Sei sulla pagina 1di 304

Organizadores:

Saulo de Oliveira Pinto Coelho


Ricardo Spindola Diniz
Alexandre Walmott Borges

DIREITO E POLÍTICAS
PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO:
EXPERIÊNCIAS E DESAFIOS NA PROMOÇÃO E
TUTELA DOS DIREITOS SOCIAIS E ECONÔMICOS

Coleção Experiência Jurídica


nos 30 anos da Constituição Brasileira

1
ESA/OAB-GO e PPGDP-UFG

Coordenadores:
Rafael Lara Martins
Saulo Pinto Coelho
Copyright© 2018 by Saulo de Oliveira Pinto Coelho, Ricardo Spindola Diniz,
& Alexandre Walmott Borges
Editor Responsável: Aline Gostinski
Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Coleção Experiência Jurídica nos 30 Anos


Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot da Constituição - ESA/OAB-GO e PPG-
Presidente da Corte Interamericana de DP-UFG
Direitos Humanos. Investigador do Instituto de
Investigações Jurídicas da UNAM - México Coordenação: Rafael Lara Martins (ESA/OAB-GO) e
Saulo Pinto Coelho (PPGDP-UFG)
Juarez Tavares
Catedrático de Direito Penal da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro - Brasil Conselho Científico da Coleção:
Luis López Guerra Profa. Dra. Alessandra Silveira (U.Minho - Portugal)
Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Prof. Dr. Alexandre Walmott (UFU)
Humanos. Catedrático de Direito Constitucional Profa. Dra. Diva Julia Safe Coelho (UFU)
da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha Prof. Dr. Felipe Bambirra (Uni-Alfa)
Prof. Dr. Gonçal Mayos Solsona (UB - Espanha)
Owen M. Fiss
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Uni- Prof. Dr Leonardo Nunes (UFOP)
versidade de Yale - EUA Prof. Dr. João Porto (UniRV)
Prof. Dr. Platon Teixeira de Azevedo Neto (UFG)
Tomás S. Vives Antón Prof. Dr. Rogerio Gesta Leal (UNISC)
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Prof. Dr. Saulo Pinto Coelho (UFG)
Valência - Espanha

D635 Direito e políticas públicas nos 30 anos da constituição :


experiências e desafios na promoção e tutela dos direitos
sociais e econômicos.
Organizadores: Saulo de Oliveira Pinto Coelho, Ricardo
Spindola Diniz, Alexandre Walmott Borges. – 1.ed. –
Florianópolis : TirantloBlanch, 2018. (Coleção
Experiências Jurídicas nos 30 anos da Constituição
Brasileira)
299p.

ISBN: 978-85-9477-198-8

1.Brasil. 2. Políticas públicas. 3. Constituição Brasileira.


I. Título.

CDU:342

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/
ou editoriais.

A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se
à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).
Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.


Av. Embaixador Abelardo Bueno, 1 - Barra da Tijuca
Dimension Office & Park, Ed. Lagoa 1, Salas 510D, 511D, 512D, 513D
Rio de Janeiro - RJ CEP: 22775-040
www.tirant.com.br - editora@tirant.com.br

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Organizadores:
Saulo de Oliveira Pinto Coelho
Ricardo Spindola Diniz
Alexandre Walmott Borges

DIREITO E POLÍTICAS
PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO:
EXPERIÊNCIAS E DESAFIOS NA PROMOÇÃO E
TUTELA DOS DIREITOS SOCIAIS E ECONÔMICOS

Coleção Experiência Jurídica


nos 30 anos da Constituição Brasileira

1
ESA/OAB-GO e PPGDP-UFG

Coordenadores:
Rafael Lara Martins
Saulo Pinto Coelho
SUMÁRIO

COLEÇÃO - EXPERIÊNCIA JURÍDICA NOS 30 ANOS DA


CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Saulo Pinto Coelho (PPGDP-UFG)
e Rafael Lara Martins (ESA/OAB-GO)
APRESENTAÇÃO DO LIVRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Ricardo Martins Spindola Diniz
Saulo de Oliveira Pinto Coelho
Alexandre Walmott Borges

APRESENTAÇÃO DOS AUTORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21


PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Caroline Müller Bitencourt
AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PÓS
CONSTITUIÇÃO DE 1988: DEFINIÇÃO, EXPERIÊNCIAS
INTERNACIONAIS E ESTADO DO CAMPO NO BRASIL . . . . . . . . 31
Robert Bonifácio
Tancredo Silva
Claudiney Rocha
DIREITOS FUNDAMENTAIS, DEMOCRACIA
MONITORADA E O FINANCIAMENTO DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Miccael Pardinho Natal
AÇÕES AFIRMATIVAS E DIREITO À EDUCAÇÃO DAS
PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: A PROTEÇÃO JURÍDICA
DOS AUTISTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Rodrigo Gabriel Moisés
ANÁLISE DO DIREITO CONSTITUCIONAL DE MORADIA
E A DIGNIDADE HUMANA: ESTUDO SOBRE AS POLÍTCAS
PÚBLICAS DESTINADAS AS NOVAS ÁREAS HABITACIONAIS
DE INTERESSE SOCIAL EM ITUIUTABA/MG . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
Lucas Marques Rodrigues Macedo
Fausto Amador Alves Neto
6 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

REPRESENTAÇÃO POLÍTICA, PARTICIPAÇÃO SOCIAL E


INTERNET: UMA ANÁLISE DO PORTAL E-CIDADANIA
DO SITE DO SENADO FEDERAL COMO MECANISMO DE
PROMOÇÃO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
Luís Jivago de Assis Quirino
A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS CARCERÁRIAS
E A PRODUÇÃO DE NOVOS SUJEITOS POLÍTICOS DE
DIREITOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
Roberta Olivato Canheo
DESAFIOS NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DOS
INDÍGENAS: O CASO DA ALDEIA MARAKÁ’NÀ NO RIO DE
JANEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
Karina Almeida Guimarães Pinhão
Arão da Providencia Araújo Filho
A PRIMEIRA CONDENAÇÃO DO BRASIL NA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: (RE)
PENSANDO AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE MENTAL
EM CRISE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213
Aluísio Ferreira de Lima
Maria Vânia Abreu Pontes
A ORDEM QUE QUEREMOS: AS DIRETRIZES DO
PROGRAMA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA COM
CIDADANIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235
Bruno César Prado Soares
A JUDICIALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO
ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL (WELFARE STATE):
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ABRANGÊNCIA DA
ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA CONCRETIZAÇÃO
DE DIREITOS SOCIAIS PREVISTOS NO TEXTO
CONSTITUCIONAL BRASILEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
Clodoaldo Moreria Dos Santos Júnior
Samuel De Jesus Veira
JURISDIÇÃO TRANSNACIONAL E POLÍTICAS DE
ENFRENTAMENTO DO TRÁFICO INTERNACIONAL DE
SERES HUMANOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277
Dimas Pereira Duarte Júnior
Danielle Carvalho Rebouças
COLEÇÃO
EXPERIÊNCIA JURÍDICA NOS 30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

Mais que um a Ciência, o Direito é uma experiência. Uma


experiência social complexa. Experiência no sentido expressado por
pensadores como Hegel e Gadamer. Assim, é experiência, tanto no
sentido imediato (Erlebnis, em alemão), vivência concreta de algo
na dimensão existencial da cognição-ação (práxis) humana; quanto
no seu sentido mediato (Erfahrung), experiência refletida, organizada
epistemologicamente.
No campo do Direito, a experiência jurídica foi pensada e prio-
rizada como a categoria fundamental dessa realidade social por juristas
como o italiano Paolo Grossi, ou o brasileiro Miguel Reale, dentre
outros.1 (COELHO, 2010, p. 98-115)
Experiência jurídica é o complexo movimento existencial do
Direito, desde a sua elaboração, à sua concreção; da abstrata dimensão
legislativa, antecedida da política legislativa e da jurisgênese da norma
abstrata, à dinâmica concreção normativa dos direitos, tanto a con-
creção vivida espontaneamente (vivência jurídico social do Direito),
como a concreção orquestrada profissionalmente (vivência jurídico
institucional), e à aplicação do Direito, que também é, em alguma
medida e com limites, um momento jurisgenético.2 (COELHO, 2017)
Entre a elaboração do Direito e a concreção dos direitos, a experiência

1 Para uma articulação desses autores no que diz respeito à compreensão do direito como
experiência, veja-se o artigo Valor e atualidade da busca por um conceito crítico-reflexivo
e histórico-especulativo para o Direito, de Saulo Pinto Coelho. (2010, p. 98-115)
2 Em Modelos jurídicos e função atualizadora da hermenêutica em Miguel Reale: a dialé-
tica da experiência de concreção do Direito (COELHO, 2017) é possível acessar detalha-
mentos acerca da dinâmica da experiência jurídica à qual nos referimos.
8 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

jurídica ainda abarca os momentos hermenêuticos de categorização,


sistematização e disputas retórico-interpretativas da linguagem jurídi-
ca. Assim, é dentro da experiência jurídica que está a ciência jurídica,
como uma parte dela; um momento importante do movimento do
Direito na realidade social.
As lacunas e abismos entre uma ‘ciência do direito’ e uma ‘prática
jurídica’ são mais uma patologia jurídica (Grossi), a expressão de uma
realização patológica do Direito, que marca a modernidade jurídica de
algumas nações, do que um traço propriamente definidor da experiên-
cia jurídica na sua realidade e racionalidade. O Direito é uma práxis
(um fazer, uma experiência que exige agir e pensar sobre esse agir, crítica
e performaticamente), ao mesmo tempo que também é propriamente
uma ciência, no sentido de que exige um momento concomitante de
pensar organizado sobre essa experiência: uma ciência dessa experiência.
Aí entra - ou deveria entrar – a Academia, as Faculdades, as Escolas de
Direito, etc. Não há futuro bom, nem para a prática do Direito, nem
para a Ciência do Direito, e nem para a sociedade, quando o fazer e o
pensar, no Direito, se colocam em dimensões apartadas.
Por vezes, na experiência jurídica brasileira, percebe-se essa
lacuna, esse abismo que mencionamos acima. Não estamos a falar
de uma disputa, um antagonismo ou uma oposição entre teoria e
prática. Antes fosse isso a nossa preocupação. Estamos a falar de um
certo desprezo mútuo entre esses dois âmbitos do Direito: o dos aca-
dêmicos e o dos práticos. Quando esse desprezo mútuo ocorre, se dá
junto com ele a falência do Direito como experiência social. Quanto
a isso, há que reverter esse estado de coisas. Há que resgatar a sinergia
entre essas duas dimensões da experiência jurídica. Para tal, é preciso
fomentar um duplo movimento de aproximação: desafiar e impulsio-
nar a Academia a se preocupar e dedicar mais aos problemas práticos
e concretos do Direito; e, por outro lado, conscientizar e convencer
o mundo prático do Direito do valor e importância das teorizações
jurídicas para a consolidação de uma linguagem e uma tradição jurí-
dica capaz de dar consistência às práticas.
COLEÇÃO EXPERIÊNCIA JURÍDICA NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA 9

O Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas


da Universidade Federal de Goiás (PPGDP-UFG) e a Escola Superior
da Advocacia da Ordem dos Advogados de Goiás (ESA/OAB-GO),
desde 2016, vêm trabalhando juntos nesse propósito, conscientes
desse desafio e da importância de levar a cabo essa tarefa.
O PPGDP-UFG é um Programa Profissional (atualmente con-
tando com um Mestrado Profissional), pensado e concebido para aliar
pesquisa jurídica de excelência à formação de know-how profissional e
de aprimoramentos técnicos e institucionais, no campo da regulação,
implementação e controle de políticas públicas no Brasil.
A ESA/OAB-GO, desde 2016, produziu uma guinada qualitati-
va em suas metas institucionais, voltando seus esforços para o fomento
do aprimoramento técnico, científico e prático dos profissionais do
Direito no seu contexto geográfico de atuação, com clara preocupação
em induzir a conversação sinérgica entre teoria e prática no Direito.
Somando-se a várias outras iniciativas conjuntas, essas duas
entidades, na ocasião do trigésimo aniversário da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, propuseram e organizaram
uma Coleção de obras jurídicas voltadas a pensar a experiência jurídica
brasileira nesses 30 anos da Constituição.
A Coleção Experiência Jurídica nos 30 anos da Constituição
Brasileira (ESA/OAB-GO e PPGDP-UFG) busca fomentar o debate
jurídico entre aqueles que vivenciam nossa experiência constitucio-
nal e social, tanto de um ponto de vista teórico, quanto prático, e
em diferentes campos do Direito. A constitucionalização do debate
jurídico nacional não encontra fronteiras em nenhum ramo jurídico
específico, ainda que os campos do direito privado mantenham –
e nisso não há nenhum problema, ao contrário – suas categorias e
estatutos jurídico-conceituais próprios. Assim sendo, nas dez obras
(dez coletâneas de textos inéditos) propostas pela Coleção, diferentes
questões-chave da experiência jurídica brasileira contemporânea são
enfocadas, em diferentes áreas do Direito, todas buscando relacionar
10 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

esses debates específicos com a realidade jurídico-político-social ba-


lizada por uma ‘Constituição Cidadã’, que de forma otimista eclode
na realidade brasileira em 1988, marcando nossas interações sociais e
jurídicas nos últimos 30 anos.
Assim, ainda em 2017, PPGDP-UFG e ESA/OAB-GO publi-
caram e divulgaram amplamente as convocatórias para apresentação
de textos e contribuições aos livros da Coleção. Centenas de textos
foram enviados à coordenação do projeto. Uma equipe com orga-
nizadores das obras, selecionada dentre experts com diversificada
formação e advindos de sete diferentes Universidades brasileiras, em
Goiás, Minas Gerais e Distrito Federal, avaliou e selecionou cuida-
dosamente os textos. Nos dez livros, os textos selecionados somam
mais de uma centena de contribuições inéditas, com autores de oito
diferentes estados brasileiros e mais de vinte diferentes Universidades.
Com a colaboração e suporte da respeitada e engajada Editora
Empório do Direito, demos forma final aos livros da Coleção, que
vem a lume em um momento de crise política, social, econômica e,
em certo sentido, crise constitucional.
Sabe-se bem que a crise é uma excelente oportunidade para
o aprimoramento e a inovação. O estado de desconforto que a crise
provoca nos faz sair do nosso ‘modo automático’ e refletir sobre o ca-
minho trilhado e as alternativas de rota. Que os livros desta Coleção
possam servir a esse propósito!
Com agradecimentos aos organizadores, avaliadores, editores
e autores,

Saulo Pinto Coelho (PPGDP-UFG)


e Rafael Lara Martins (ESA/OAB-GO)

Coordenadores da Coleção
APRESENTAÇÃO DO LIVRO

A discussão e a pesquisa sobre políticas públicas no Brasil,


embora de interesse recente para os juristas, com a literatura espe-
cializada identificando os anos 1990 como o momento em que o
tema “ganha presença no universo do direito no Brasil”, (BUCCI,
2013: 9) tem uma história mais longa, estando intrinsicamente
ligada às temáticas da Administração Pública e do desenvolvimento,
a preparar, de certo modo, a maneira pela qual essas realidades se
transcrevem para o texto constitucional, o qual informa de maneira
central, por sua vez, a relação que contextualiza as contribuições para
esse volume, isto é, a relação entre Direito, Constituição e Políticas
Públicas. Atentar-se a essa história como esforço de apresentação
parece, portanto, ser algo justificável.
Segundo Bernardo Sordi, (2011, p. 25) o poder administrativo
e aquilo que eventualmente passou-se a designar por administration
publique tem suas raízes no Antigo Regime, especificamente no seu
paulatino aumento de complexidade, direcionando-o para outras estru-
turas que não aquelas organizadas em torno de categorias estritamente
jurisdicionais. Essas novas formas de governabilidade, com seus res-
pectivos módulos normativos, serão não inventados e sim catalisados
pela Revolução de 1789, ao se apossar dessa gramática incipiente para
re-organizar o Estado e conceitualizar e descrever o poder público.
(2011, p. 26) Do final do séc. XVIII em diante, essas transformações
se consolidarão na noção de direito administrativo, com a conceituação
de uma “legalidade administrativa,” concomitantemente a articulação
da Administração Pública como um poder e a sua fundamentação qua
limitação na legalidade, normativamente embasada na concepção de lei
12 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

daquele período e da correlativa interpretação de direitos individuais,


assumindo o posto de pilares pretensamente insubstituíveis da articula-
ção do fundamento de vinculação e integração normativas da vida em
comum na Europa continental. (2011, p. 30-31)
Desenvolvimento distinto se verificou no contexto anglo-ame-
ricano, com o aparecimento de uma esfera administrativa distinta
do legislativo e do judiciário encontrando, ao menos no começo e
durante o séc. XVIII, uma série de obstáculos, dentre eles e principal-
mente, no nível organizacional, a importância do governo local, em
detrimento de soluções centralizadoras, e, em um nível intelectual, a
persistência de um ideal não-burocrático de autogoverno, a impedir
tendências de burocratização por vias jurídicas do serviço público.
(2011, p. 33) Essas tendências deixariam suas marcas na cultura jurí-
dica, muito embora, ainda segundo Sordi, (2011, p. 34) no final do
séc. XIX as demandas por regulação e serviços públicos, exigidas por
uma sociedade cada vez mais complexa, teriam convergido na neces-
sidade de um “direito administrativo digno desse nome.”
Essa interpretação pode ser complementada por uma análise
não da Administração Pública como realidade governamental, ou
como prática, e sim como disciplina, onde se faz sentir de maneira
particularmente marcante o contraste delineado por Sordi. Nas pala-
vras de Marta Ferreira Santos Farah, (2011, p. 815) ao contrário da
Europa Continental, a Administração Pública enquanto disciplina,
entendida assim na sua formação para a prática, isto é, na formação da
crescente burocracia governamental, seguiu especificamente nos Es-
tados Unidos uma tradição “científica.” Amparada na distinção forte
entre administração e política, (Cf. OSZLAK, 1982, p. 18-21) a admi-
nistração pública “era vista, assim, como uma ciência ‘livre de valores’,
cuja missão era contribuir para que a administração governamental
‘funcionasse’ de forma eficiente e econômica.” (FARAH, 2011, p.
815) Esse esvaziamento da dimensão política, por sua vez, engendraria
o campo à busca de princípios gerais para qualquer administração,
vingando em uma dicotomia entre uma ciência aproximada da ciência
APRESENTAÇÃO DO LIVRO 13

política, e focada na atuação do governo, e outra “na consolidação da


vertente da ciência administrativa.” (FARAH, 2011, p. 816)
Destacar o desenvolvimento norte-americano se justifica em
razão de sua importância e influência na concepção e categorização no
contexto brasileiro. Conforme investigado por Farah, (2011, p. 823) o
nascimento da Administração Pública como disciplina no Brasil se dá
a partir dos anos 1930, com um objetivo semelhante: o treinamento
de servidores para a administração pública moderna.
Diante de uma prática da administração pública interpretada
como “fortemente caracterizada pelo patrimonialismo e pelo clien-
telismo”, o esforço de consolidação de uma administração pública
moderna, ao qual contribuiria o seu estudo científico, se apresentaria
como um confronto para com essa “gramática política,” caracte-
rizada, sobretudo, como a “apropriação do público pelo privado.”
Institucionalmente, um marco inicial desse movimento seria a criação
do Departamento de Administração do Setor Público (DASP) em
1938, caracterizada por uma compreensão da administração pública
orientada pelo princípio da eficiência e por uma “perspectiva de racio-
nalização e a ideia de neutralidade dos princípios da administração”,
uma e outra articuladas pela intensa leitura de autores norte-america-
nos. (2011, p. 824) Influência que se veria oficializada em 1959 pela
assinatura de um convênio entre Brasil e Estados Unidos da América
de modo a viabilizar a formação de profissionais do primeiro nas
instituições do segundo, e a vinda de profissionais do segundo para
lecionar em instituições do primeiro. (2011, p. 825-827)
De 1950 em diante, mais intensamente entre o final da década
de 1960 e início da década de 1970, a discussão da Administração
Pública paulatinamente se viu implementada pela análise de políticas
públicas, o que, nos Estados Unidos, se catalisará com a formação de
escolas especializadas aglutinadas em um “movimento” que visava e
acabaria por reorientar a “educação profissional para o serviço público
em torno do tema da análise das políticas públicas.” (2011, p. 819)
No Brasil se teria algo parecido na implementação da temática, muito
14 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

embora esse processo tenha se dado aqui com a incorporação da orien-


tação para o desenvolvimento. (2011, p. 826) Em outras palavras, a
formação do servidor público na análise de políticas públicas seria
um requisito para o desenvolvimento, compreensão que entrará em
declínio após “o apogeu da reforma administrativa nos anos 1960” e
se encerrará nos anos 1970. (2011, p. 828)
Posteriormente, a partir da década de 1980, “o planejamento
e a política nacional de desenvolvimento” seriam “totalmente aban-
donados pelo Estado”, segundo Gilberto Bercovici, (2005, p. 60) na
medida em que as preocupações para com a transformação da realidade
socioeconômica brasileira rescindiriam diante da manutenção do status
quo engendrado pela Ditadura Militar, e interpretado, de certo modo,
como a finalização do processo de modernização. (2005, p. 29-30, 70)
A reabertura desse debate e dessas preocupações estaria vinculada ao
acontecimento da Constituição Federal de 1988. O texto constitucional
carregaria a situação hermenêutica necessária para a retomada na tota-
lidade conjuntural do direito de uma concepção de desenvolvimento,
contraposta à noção de modernização, como “condição necessária para
a realização do bem-estar social” a ser realizada, inclusive como seu
fundamento de legitimidade, pelo Estado, em atuação ampla e inten-
sa visando a modificação das estruturas socioeconômicas e, assim, a
integração social e política da totalidade da polução. (2005, p. 51-52)
Nesse esforço de retomada, a Administração Pública e o direi-
to administrativo apareceriam centrais, como instância e linguagem
de atualização e concretização do direito constitucional. A concep-
ção dessa tarefa, contudo, e talvez aí esteja o nexo vital do início
da abordagem jurídica das políticas públicas, se chocaria com a
compreensão dominante do direito administrativo, e a articulação
de sua superação se construiria exatamente por uma reflexão do
sentido dessa categoria assumidamente estranha à tradição jurídica.
Em outras palavras, pensar juridicamente as políticas públicas assumiu
imediatamente o sentido de constitucionalização do direito admi-
nistrativo e da Administração Pública, e mediatamente a busca pelo
APRESENTAÇÃO DO LIVRO 15

desenvolvimento e transformação da realidade brasileira a partir da


efetivação de direitos fundamentais.
A linguagem do direito administrativo e a organização norma-
tiva da Administração Pública brasileira pressuporiam uma concepção
ultrapassada de lei – a explicar em parte porque, durante o governo
Kubistchek, as transformações circunstanciais da realidade da Admi-
nistração Pública se deram às margens dos textos legais, sem articular
qualquer alteração nas suas duas dimensões jurídicas ora indicadas.
(Cf. BERCOVICI, 2005, p. 73) A conjuntura jurídica pressuporia,
portanto, uma noção de “lei-norma”, quando o Estado se manobraria
e praticaria a partir de uma compreensão da lei como decisão, estru-
turada de maneira finalística e com vistas à organização de dinâmicas
de realização de objetivos. (Cf. CASTANHEIRA NEVES, 2014, p.
585-611) Especificamente quanto ao direito administrativo, ter-se-
ia segundo Eros Grau, uma sua autocompreensão centrada em um
“conjunto de regras que regula as relações dos particulares com a
autoridade administrativa”, quando o necessário seria um seu enten-
dimento como “regulação da ação do Estado, voltada à satisfação do
social”. (GRAU, 2002, p. 262) Posto desse modo, passa-se a entender
também porque a abertura do conhecimento jurídico-administrativo
à complexidade das políticas públicas implicaria na sua setorialização
e fragmentação e em que medida o pensamento do Estado seria uma
resposta de unidade, conforme propõe Bercovici. (2005, p. 63) Em
outras palavras, uma atualização diante da experiência jurídica que
se pressupõe a presente reflexão, o pensar da Constituição serviria de
fundamento e guia à reestruturação do campo do direito público com
um enfoque na análise de políticas públicas.
Reestruturação que implicaria, especificamente, na superação da
concepção tradicional de direito administrativo por outra mais adequa-
da à realidade constitucional advinda – uma primeira para a defesa do
indivíduo, a segunda para a organização do Estado. (Cf. GRAU, 2002,
p. 261-263) Enquanto a primeira concepção permitiria a tradução
dessas regras através das categorias de normas e atos, a segunda, centrada
16 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

na noção de políticas públicas, acarretaria, segundo Comparato, (1998:


44) por sua vez, em sua distinção nítida dos elementos tradicionais da
realidade jurídica. Para o autor, esses módulos normativos tradicionais
seriam englobados em uma atividade, a atividade da política pública,
a partir da qual e no contexto do Estado Social, “a lei perde a sua ma-
jestade de expressão por excelência da soberania popular,” assumindo o
papel de “mero instrumento de governo” dado que inserida “no quadro
de políticas governamentais” e tendo por função “não mais a declaração
de direitos e deveres em situações jurídicas permanentes”, mas a solução
de questões de conjuntura, o direcionamento, por meio de incentivos e
desincentivos, no âmbito empresarial, e a regulação de procedimentos
no campo administrativo. (1998, p. 45)
As políticas públicas seriam, portanto, na definição hoje genera-
lizadamente aceita de Maria Paula Bucci Diniz, “um programa de ação
governamental que resulta de um processo ou conjunto de proces-
sos juridicamente regulados visando coordenar os meios à disposição
do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos so-
cialmente relevantes e politicamente determinados.” (2006, p. 39)
Definição que explícita ou implicitamente acaba por se comunicar
com todos os textos aqui reunidos, dado que, segundo Diogo R. Cou-
tinho, (2013, p. 4, 24) tratar-se-ia de conceito e realidade, de realidade
efetiva, que contestaria diretamente a formação jurídica tradicional ao
mesmo tempo que indicaria uma solução para a cinquentenária crise
do ensino jurídico. Para o autor, a proximidade prática – tanto insti-
tucional quanto normativa – das políticas públicas para com o juristas
exigiria, e acabaria por promover, o encurtamento da distância aca-
dêmica, na medida em que a análise dessa realidade necessitaria uma
abertura para a interdisciplinariedade e o abandono do conceitualismo
característico de certa dogmática jurídica em prol da empiria.
Essa constelação de elementos ora apreendida caminha na
indicação de se interpretar a proliferação de programas de pós-
graduação em Direito dedicados à pesquisa e análise de políticas
públicas, os desafios metodológicos compartilhados por essa
APRESENTAÇÃO DO LIVRO 17

abordagem da realidade jurídica, e finalmente, de que maneira


uma e outra se entrelaçam à experiência constitucional, marcan-
do-a de maneira significativa nos seus 30 anos.
A obra se abre com contribuição que de uma perspectiva in-
terna à ciência política e com preocupações metodológicas analisa
esse mesmo contexto ora desenhado. Assim, no capítulo primeiro,
Avaliação de Políticas Públicas Pós Constituição de 1988: Definição, Ex-
periências Internacionais e Estado do campo no Brasil, Robert Bonifácio,
Tancredo Silva, e Claudiney Rocha, propõe uma contextualização his-
tória do desenvolvimento do campo de análise de políticas públicas,
cruzando a experiência brasileira com as experiências do Chile, Reino
Unido, e Estados Unidos da América.
Com o texto Direitos Fundamentais, democracia monitorada e
o financiamento das políticas públicas Miccael Pardinho busca investi-
gar de que maneira se institucionaliza a desconfiança nas democracias
contemporâneas, o que se traduz em uma série de limites, balizas, e dire-
trizes juridicamente articuladas ao financiamento das políticas públicas.
Em outras palavras, busca articular o fundamento da relação entre po-
líticas públicas e direito financeiro no tocante a efetivação de direitos.
Rodrigo Moisés, por sua vez, com Ações Afirmativas e Direito
à Educação das Pessoas com Deficiência: a proteção jurídica dos au-
tista, propõe aborda-las como importante instrumental dessa política
pública, fundamentando-as nos textos normativos internacionais, cons-
titucional, e infraconstitucionais. Destaca-se, sobretudo, a maneira de
densificar o direito à educação e o papel do judiciário na sua proteção.
Em Análise do Direito Constitucional de Moradia e a Dignidade
Humana: Estudo sobre as políticas públicas destinadas a novas áreas ha-
bitacionais de interesse social em Ituiutaba/MG, Lucas Macedo e Fausto
Alves Neto constroem a partir da análise das normativas relevantes o
modelo de desinficação local desse direito fundamental, para então
passar à análise empírica de sua efetivação in loco, discriminando
quais serviços públicos integrantes do efetivo exercício do direito à
moradia são atendidos.
18 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

A quinta contribuição discute as respostas em termos de po-


líticas públicas ao problema da representativa, Luís Jivago Quirino
propõe com seu Representação política, participação social e internet:
uma análise do portal e-Cidadania do site do Senado Federal como me-
canismo de promoção da participação social analisar, a partir de um
estudo profundo do processo de articulação dessa política pública, a
potencialidade da e-Cidadania na maneira implementada pelo Senado
Federal, contrastada com a falta de pluralidade nas propostas legisla-
tivas em concreto, marcadas por grupos econômicos e corporativos
de grande capacidade de mobilização.
Já Roberta Canheo, com sua contribuição A Construção de Po-
líticas Públicas Carcerárias e a Produção de Novos Sujeitos Políticos de
Direito, embasada no cruzamento da análise do direito constitucio-
nal com as políticas penais e de segurança pública, realiza entrevistas
semiestruturadas com atores institucionais inseridos nas políticas pú-
blicas voltadas para pessoas LGBT presas na cidade do Rio de Janeiro,
para levantar questionamentos a respeito das ambivalências de um
Estado que busca efetivação dos direitos humanos e proteção de mi-
norias na mesma medida em que precariza as condições de existências
de populações marginalizadas.
Ao que se segue o texto de Bruno Soares, A ordem que queremos:
as diretrizes do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidada-
nia. Em sua contribuição, o pesquisador realizou pesquisa documental
para compreender os esquemas e valores sobre a segurança e ordem
pública subjacentes à textualidade da Lei nº 11.530/2007. Da análi-
se, amparada em contextualização constitucional, concluiu-se que o
Programa busca um ambiente de paz, marcado tanto pela convivência
harmoniosa quanto pela capacidade de socialização dos indivíduos,
com a repressão criminal ficando em segundo plano e sem uma ar-
ticulação consistente com a própria política e com a Constitucional.
Em A judicialização de políticas públicas no Estado do Bem-estar
Social (Welfare State): Considerações sobre a abrangência da atuação do
Poder Judiciário na concretização de direitos sociais previstos no texto
APRESENTAÇÃO DO LIVRO 19

constitucional brasileiro, Clodoaldo dos Santos Júnior e Samuel Vieira


analisam o contexto histórico de surgimento das ideais de Estado-
providência e bem-estar social e como essas ideias informam o texto
constitucional de 1988, a vingar na base que torna possível a atuação
do Poder Judiciário no contexto das políticas públicas, encontrando
aí sua fundamentação, limites e legitimação.
Apresenta-se então o trabalho Desafios na efetivação dos direitos
dos indígenas: o caso da Aldeia Maraká’ná no Rio de Janeiro, de Karina
Pinhão e Arão Araújo Filho. Ao recortar um caso judicial, os autores o
inserem na malha regulamentar de densificação dos direitos dos indí-
genas, mostrando os descompassos entre a interpretação oferecida dessa
normatividade pelo judiciário, a sua organização em termos de política
pública, sua textualidade constitucional e o contexto latino-americano.
Segue-se a tanto a contribuição A primeira condenação do Brasil
na Corte Interamericana de Direitos Humanos: (Re)pensando as Políticas
Públicas de Saúde Mental em Crise de Aluísio Lima e Maria Pontes,
no qual as instâncias de diálogo ora mencionadas são articuladas con-
cretamente com vistas a dotar de reflexividade a preocupação para
com os arranjos institucionais das políticas públicas. O texto analisa
em que medida a articulação de narrativas de casos individuais são
instrumental valioso para a análise de políticas públicas.
Ancorados no reconhecimento por parte da Constituição de
1988 dos princípios da dignidade da pessoa humana, da prevalência
dos direitos humanos, da solução pacífica de conflitos e da cooperação
entre os povos para o progresso da humanidade, Dimas Duarte Júnior
e Danielle Rebouças, em Jurisdição transnacional e políticas de enfrenta-
mento do tráfico internacional de seres humanos, propõem apreender em
que medida os processos de transformação do sistema-mundo chegam
ao texto constitucional e possibilitam a circunscrição de políticas de
enfrentamento do tráfico internacional de seres humanos.
Tratam-se, portanto, de abordagens e temáticas que dificilmen-
te seriam possíveis não fosse o momento constitucional de 1988,
bem como a sua continuidade e identidade através das mais diversas
20 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

transformações, tecnológicas, sociais, e culturais, nos mais distintos


contextos de debate e conflito, nessa experiência jurídica que perfaz
30 anos. Em igual medida, a pluralidade das contribuições dificil-
mente seria tão notável não fosse as novas preocupações, problemas,
e metodologias introduzidos na pesquisa jurídica a partir do conceito
e realidade das políticas públicas.

Ricardo Martins Spindola Diniz


Saulo de Oliveira Pinto Coelho
Alexandre Walmott Borges

REFERÊNCIAS
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: Uma leitura a partir
da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públi-
cas. São Paulo: Saraiva, 2013.
BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de políticas públicas em direito. In: BUCCI,
Maria Paula Dallari (org.) Políticas Públicas: Reflexões sobre o Conceito Jurídico. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 1-50.
CASTANHEIRA NEVES, António. A instituição dos “assentos” e a função jurídica dos
Supremos Tribunais. Coimbra: Coimbra Editora, 2014.
COUTINHO, Diogo. O Direito nas Políticas Públicas. In: MARQUES; FARIA (orgs.)
Política Pública como Campo Disciplinar. São Paulo: UNESP, 2013.
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas
públicas. Revista de Informação Legislativa, v. 138, p. 39-48, 1998.
FARAH, Marta Ferreira Santos. Administração pública e políticas públicas. Revista de
Administração Pública, v. 45, n. 3, p. 813-836, 2011.
GRAU, Eros. O Estado, a liberdade e o direito administrativo. Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, v. 97, p. 255-256, 2002.
SORDI, Bernardo. Révolution, Rechtsstaat, and the Rule of Law: historical reflections
on the emergence of administrative law in Europe. In: ACKERMAN; LINDSETH (eds.)
Comparative Administrative Law. Northampton: Edward Elgar Publishing, 2011.
OSZLAK, Oscar. Políticas Públicas e Regimes Políticos. Revista de Administração Pública,
v. 16, n. 1, p. 17-60, 1982.
APRESENTAÇÃO DOS COORDENADORES E
ORGANIZADORES

Saulo de Oliveira Pinto Coelho


Possui doutorado, mestrado e graduação em Direito pela Univer-
sidade Federal de Minas Gerais. Realizou Pós-Doutorado como bolsista
CAPES, na área de Teoria do Direito, junto à Universitat de Barcelona –
Espanha. É professor efetivo da Universidade Federal de Goiás (UFG),
onde atualmente é Vice-Diretor da Faculdade de Direito (FD-UFG),
bem como Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito
e Políticas Públicas (PPGDP-UFG). Foi Chefe do Departamento de
Formação Jurídica Básica e Complementar da FD-UFG, bem como
Coordenador de Pesquisa da FD-UFG. Também é professor do Progra-
ma de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da UFG.
Atua como pesquisador e professor visitante da Unversitat de Barcelona.
Tem experiência nas áreas de Teoria do Direito e de Direito Público,
com ênfase em Hermenêutica Jurídica; Teoria dos Direitos Humanos
e Fundamentais; Teoria do Direito Público; e Regulação e Controle de
Políticas Públicas; Regulação do Desenvolvimento. É autor de diversos
artigos, livros e capítulos de livros.

Rafael Lara Martins


Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de
Goiás (UFG), especialista em Direito do Trabalho pela PUC-GO,
especialista em Direito Civil pela UFG e especialista em Direito
Processual Civil pela UFG. Mestrado em andamento em Direito
das Relações Sociais e Trabalhistas (UDF). Conselheiro Estadual da
OAB-GO (triênio 2013-2015 e triênio 2016-2018) e Diretor-Geral da
Escola da Advocacia da OAB-GO (triênio 2016-2018). Ex-Presidente
22 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

do Instituto Goiano de Direito do Trabalho -IGT (biênio 2012-2013


e biênio 2014-2015). Palestrante e Professor de Direito do Trabalho e
Direito Processual do Trabalho em cursos e pós-graduações.

ORGANIZADORES
Saulo de Oliveira Pinto Coelho
Professor efetivo da Universidade Federal de Goiás (UFG),
onde atualmente é Vice-Diretor da Faculdade de Direito (FD-UFG),
bem como Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito
e Políticas Públicas (PPGDP-UFG). Possui doutorado, mestrado e
graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Realizou Pós-Doutorado como bolsista CAPES, na área de Teoria do
Direito, junto à Universitat de Barcelona - Espanha. Foi Chefe do
Departamento de Formação Jurídica Básica e Complementar da FD-
UFG, bem como Coordenador de Pesquisa da FD-UFG. Também é
professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos
Humanos da UFG. Atua como pesquisador e professor visitante da
Unversitat de Barcelona.

Ricardo Martins Spindola Diniz


Pesquisador Assistente do Programa de Pós-Graduação em Di-
reito e Políticas Públicas da Universidade Federal de Goiás. Mestrando
do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Bra-
sília. Atualmente pesquisa o conceito de direito em Hannah Arendt,
através de seus engajamentos com a fenomenologia e de sua retomada
das problemáticas da temporalidade e historicidade em Heidegger.
Professor das disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito e His-
tória do Direito no Instituto de Ensino Superior do Estado de Goiás
(Faculdades Integradas IESGO).

Alexandre Walmott Borges


Professor dos programas de pós graduação, mestrado em direi-
to, da Universidade Federal de Uberlândia - UFU, e da Universidade
APRESENTAÇÃO DOS AUTORES 23

Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP; é professor da


pós-graduação em biocombustíveis, mestrado e doutorado, progra-
ma conjunto da Universidade Federal de Uberlândia e Universidade
Federal dos Vales do Mucuri e Jequitinhonha. É pesquisador líder
do Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Compara-
dos - LAECC. É graduado em Direito pela Universidade Federal
de Santa Catarina (1994), Especialista em História e Filosofia da
ciência, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Cata-
rina (1996) e doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina (2002). Realizou estágio de pós-doutorado na Universida-
de Autônoma de Barcelona sob a supervisão do Professor Doutor
José Carlos Remotti Carbonell, com pesquisa na área de constitu-
cionalismo multinível. Realizou estágio de pesquisador visitante na
Universidade de Barcelona, Faculdade de Filosofia, com a associação
à pesquisa Capitalismo e Temporalidade sob a coordenação do Pro-
fessor Gonçal Mayos.

APRESENTAÇÃO DOS AUTORES


Aluísio Ferreira de Lima
Psicólogo com Pós-Doutorado, Doutorado e Mestrado em
Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUCSP), Especialista em Saúde Mental pela Univer-
sidade de São Paulo (USP) e Especialista em Psicologia Clínica pelo
Conselho Regional de Psicologia (CRP/11). É Professor Associado I
do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará/
UFC, credenciado como Professor Permanente (M/D) do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia e do Mestrado Profissional em Saúde
da Família UFC/FIOCRUZ/RENASF).

Arão da Providência Araújo Filho


Advogado militante na área de tutela e promoção dos direitos
indígenas, junto à Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro.
24 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Bruno César Prado Soares


Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (con-
centração em Direito, Estado e Constituição). Mestre em Ciência
Política pelo Centro Universitário Euro-Americano (concentração em
Direitos Humanos, Cidadania e Violência). Professor do Instituto
Superior de Ciências Policiais. Foi chefe da Assessoria Técnico-Jurídica
do Corregedor Geral e da Assessoria Técnico-Jurídica do Departamen-
to Operacional da Polícia Militar do Distrito Federal.

Claudiney Rocha
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito e Po-
líticas Públicas (PPGDP) da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Procurador do estado de Goiás. Graduado em Direito pela Univer-
sidade Federal de Goiás (2007). Tem experiência na área de Direito,
com ênfase em Direito Constitucional, em Direito Administrativo e
em Direito Processual Civil.

Clodoaldo Moreira dos Santos Júnior


Advogado, Sócio Fundador do Escritório SME Advocacia.
Presidente da Comissão de Direito Constitucional. Pós-Doutor em
Direito Constitucional na University of Messina (Itália). Doutor em
Ciências da Religião (PUCGO); Mestre em Direito Relações Inter-
nacionais e Desenvolvimento pela PUC-GO 2009. Especialista em
Direito Penal e Processo Penal PUC-GO, Especialista em Direito
Público e Privado(Faculdade Damásio e de Jesus)

Danielle Carvalho Rebouças


Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Ti-
radentes e bolsista PROSUP/CAPES. Graduada em Relações
Internacionais pela Universidade Potiguar (2015), atuou como
pesquisadora voluntária do Centro de Estudos Internacionais e Ini-
ciação Científica da Universidade Potiguar, e como estagiária no
projeto de pesquisa na área de Empreendedorismo Internacional,
Global Ventures: Creating Opportunities.
APRESENTAÇÃO DOS AUTORES 25

Dimas Pereira Duarte Júnior


Doutor em Ciências Sociais: Relações Internacionais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (2008).
Mestrado em Filosofia Política pela Universidade Federal de Goiás
(2001). Graduação em Direito pela Universidade Católica de Goiás
(1996). Tem experiência na área de Ciência Política, Relações Inter-
nacionais e Direito Público, atuando principalmente nos seguintes
temas: Direitos Humanos, Direito Internacional e Regimes Interna-
cionais. Professor e Pesquisador do Mestrado em Direitos Humanos
da Universidade Tiradentes – UNIT/SE

Fausto Amador Alves Neto


Advogado. Doutorando em Geografia pela Universidade
Federal de Uberlândia (2018-2021). Mestre em Geografia pela
Universidade Federal de Uberlândia (2016). Especialista em Di-
reito do Trabalho pela Universidade Norte do Paraná (2014).
Graduação em Direito pela Fundação Educacional de Ituiutaba
– UEMG (2011). Coordenador do Curso de Direito da Univer-
sidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) – Unidade Ituiutaba.
Professor do curso de Direito na UEMG – Unidade Ituiutaba/
MG. Professor dos cursos de Administração e Comunicação Social
da Faculdade do Triângulo Mineiro (FTM).

Karina Almeida Guimarães Pinhão


Mestre em Ciências jurídico-políticas com Menção em Di-
reito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra com sanduíche através do Programa Erasmus junto
à École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em Paris.
Especialista em Direito Civil- Constitucional pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro – UERJ/Brasil. Bacharel em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio/
Brasil. Advogada OAB/RJ 180.306. Membro da Comissão de Do-
cumentação e Pesquisa da OAB-RJ
26 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Lucas Marques Rodrigues Macedo


Graduando em Direito pela Universidade do Estado de
Minas Gerais.

Luís Jivago de Assis Quirino


Mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade de Brasília. Graduado em Direito pela Uni-
versidade de São Paulo. Assessor na Procuradoria Geral da República
do Ministério Público Federal.

Maria Vânia Abreu Pontes


Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do
Ceará-UFC. Advogada OAB/CE. Graduada em Letras Português-
Literatura e Especialista em Língua Portuguesa e Literatura pela
Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA. Bacharel em Direito
pela Faculdade Luciano Feijão – FLF. Mestra em Psicologia pela Uni-
versidade Federal do Ceará-UFC. Tem experiência de pesquisa nas
áreas de Lectoescrita e Literatura, Direito e Administração Pública,
atuando principalmente nas temáticas: ensino, leitura e texto literá-
rio; criminologia crítica; cultura organizacional e políticas públicas.

Micaael Pardinho Natal


Advogado administrativista e mestrando no Programa de
Direito e Políticas Públicas da Universidade Federal de Goiás –
PPGDP UFG.

Robert Bonifácio
Professor de Ciência Política da Universidade Federal de Goiás
(UFG). Coordenador do curso de graduação em Ciências Sociais (ha-
bilitação políticas públicas) e docente permanente dos programas de
Pós Graduação em Ciência Política (PPGCP) e em Direito e Políticas
Públicas (PPGDP).

Roberta Olivato Canheo


Mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal
APRESENTAÇÃO DOS AUTORES 27

Fluminense (2017), na linha de pesquisa de Segurança Pública e


Agentes Institucionais. Possui graduação em Direito pela Universi-
dade Federal de Santa Catarina (2014), especialização em Direito
Constitucional aplicado na Instituição Damásio Educacional (2016).
Integra o grupo de pequisa Sexualidade, Direito e Democracia, atuan-
do especialmente nas áreas de pesquisa sobre Sistema Penitenciário,
violência, Segurança Pública, gênero, Feminismo Interseccional e
Antropologia do Estado.

Rodrigo Gabriel Moisés


Mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de Goiás
(1997). Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de
Goiás (1995), especialização em Direito Administrativo. Atualmente
é Diretor Geral da Faculdade Serra da Mesa, de Uruaçu-GO, onde
exerce também atividades de ensino e pesquisa. É avaliador do Insti-
tuto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.

Samuel de Jesus Vieira


Advogado. Especialista em Direito Constitucional e Direi-
to Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Goiás
– Uni-Anhanguera.

Tancredo Silva
Mestrando em Direito e Políticas Públicas pela Universidade
Federal de Goiás (UFG), com início em agosto de 2017. Possui
graduação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2009).
Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Federal
de Goiás (2012). Atualmente é assistente administrativo da Univer-
sidade Federal de Goiás trabalhando na Coordenação de Processos
Administrativos (CDPA) e advogado inscrito na Ordem dos Ad-
vogados do Brasil – Seção Goiás. Membro da Comissão de Direito
Constitucional da OAB-GO.
PREFÁCIO

Recebi com muita honra o convite para prefaciar o presente


livro da Coleção Jurídica nos 30 anos da Constituição Brasileira
(ESA/OAB-GO e PPGDP-UFG), organizado por grandes pesqui-
sadores e professores Ricardo Spindola Diniz, Alexandre Walmott
Borges e Saulo de Oliveira Pinto Coelho, que traz em si uma propos-
ta desafiadora: estabelecer um verdadeiro diálogo em entre a teoria
jurídica e práxis jurídica.
Falar sobre Constituição diante do cenário jurídico, político e
ideológico que se vê instaurado no Brasil contemporâneo é pratica-
mente um ato de resistência, diante das inúmeras mazelas sociais e
jurídicas que entre o texto constitucional e o contexto constitucional,
observamos cotidianamente verdadeiros abismos.
Creio que é justamente nesses momentos de instabilidade que
deve emergir proposições e soluções criativas da academia, buscando
a construção de pontes de interlocução e intelecção aos problemas
socais, nos quais as respostas jurídicas exigem ações políticas constan-
tes, ou seja, há muito Norberto Bobbio já nos alertava que o problema
sobre os direitos humanos não é o de reconhecimento, mas sim o de
efetivação. Do contrário, sob pena de termos que reconhecer acerca
da indagação sobre qual a força da Constituição, a razão estava em
Ferdinand Lassale, que a essência de uma Constituição reside nos seus
fatores reais e efetivos e, se a Constituição escrita não corresponder
aos mesmos, não passará de uma mera folha de papel. Como otimista
que sou, e com o mesmo entusiasmos dos autores dessa valorosa obra,
acredito pois bebi da fonte de Konrad Hesse, ao defender que a força
normativa da Constituição é uma tarefa que foi confiada a todos nós.
Definitivamente, precisamos colocar a Constituição real e a jurídica
em uma verdadeira relação de coordenação.
30 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Os presentes trabalhos científicos que nessa obra se apresen-


tam sob forma de artigos possuem todos um tema em comum: a
preocupação com a efetivação dos direitos sociais nos 30 anos da
Constituição, daí a importância das políticas públicas. A pesquisa
demonstra também a preocupação acadêmica com o rompimento da
cultura jurídica fixada em seus dogmas e entendida como mera repro-
dução de conteúdos positivados, causando o que se pode denominar
de “patologia jurídica”. Como a ciência jurídica é uma ciência cons-
trutivista, e não descritiva, que necessita constantemente ser revisada
e revisitada em seus paradigmas diante dos novos contextos, que per-
meiam a sociedade e fazem nascer novos anseios sociais, é imperioso
tentar construir modelos de racionalidade discursiva e democrática
capazes de decidir questões fundamentais à sociedade, para não ficar à
mercê da arbitrariedade e autoritarismo jurisprudencial, contribuindo
para o aspecto qualitativo de tais decisões.
Ao debater a necessidade de concretização dos direitos fun-
damentais sociais nos 30 anos de Constituição, a presente obra
ressalta a importância das políticas públicas, demonstrando que
tal conceito não se encontra de forma suficiente e satisfatoriamente
na normatividade constitucional e, nem o poderia em face de sua
própria finalidade, motivo pelo qual é necessário debruçar-se na
análise do que se tem constitucionalmente positivado em termos
de políticas públicas e que não pode ser ignorado na construção de
seu conceito, nas suas escolhas e no próprio controle Estatal, para
então desvelar o que mais será necessário para a construção. Logo,
é preciso verificar o que a dogmática constitucional traz em termos
de políticas públicas, para, a partir de então, buscar uma definição
que se coadune com a proposta constitucional, na medida em que
estes espaços não devam ser construídos de forma autoritária. O
paradigma da legitimidade na contemporaneidade exige que essas
decisões sejam construídas democraticamente.
Esta obra bem demostra através de seus escritos que o concei-
to de política pública jamais poderá, em si, conter uma observação
PREFÁCIO - CAROLINE MÜLLER BITENCOURT 31

meramente jurídica. Importa dizer que, o conceito de política pública


extraído de uma observação dos juristas, tende a atender a outros
campos, pois, como visto, é um campo no qual se encontram os fun-
damentos e as bases de ação tanto do direito como da própria política.
Qualquer conceito que busca abandonar um destes elementos estará
sendo arbitrário. Nesta esteira é que de antemão pode-se afirmar que
estruturalmente a base de uma política pública será o direito, mas o
conteúdo material são os fins e os objetivos políticos que não deixam
de estar também expressos na Constituição, muitos deles explícitos no
próprio Texto Constitucional. Eis uma questão crucial: o quanto se
compreender que política pública está ligada aos direitos fundamen-
tais ou ainda a direitos fundamentais sociais, a atuação dos poderes
públicos será, em certa medida, mais vinculada e, consequentemente,
mais passível de controle. Diferença se tem, se o conceito demonstrar
que é um campo de atuação da discricionariedade administrativa,
logo, menor a margem de controle. Desse modo, acredita-se que qual-
quer observação minimalista do conceito de política pública possa
deixar passar algum de seus elementos estruturantes.
Entendo que a análise das políticas públicas não pode ser feita
de forma fragmentada e nem de modo a tomá-la isoladamente dos
objetivos do Estado e da sociedade, uma vez que é a partir desses
campos que as políticas públicas adquirem “vida”, como resultado
da própria política, do exercício do dever Estatal, e somente podem
ser compreendidas à luz das instituições e dos processos políticos que
estão diretamente ligados com os interesses sociais.
Em se tratando de política pública não se cuidaria de o direito
ordenar o já estabelecido, mas de um direito voltado à ordenação do
presente em relação a um futuro almejado e, por que não dizer, com
base na experiência das conquistas e dos insucessos passados, após
anos de vivência constitucional? Uma dimensão operacional do direi-
to e da própria política em que passado, presente e futuro devem ser
contemplados em suas ações. É nesse sentido que a caracterização das
políticas públicas como um conceito aberto, seria composta por um
32 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

conjunto de ações e programas continuados no tempo, que afetam


simultaneamente várias dimensões básicas da vida de uma população,
devendo ser organizadas em uma determinada área de implementação,
numa busca concretizada pelo procedimento explicitando diretrizes e
objetivos numa sucessão de atos que se desenvolvem na busca de um
fim determinado, posto.
Todo o debate Constitucional trará eu seu bojo, a necessária
correlação entre fatores jurídicos, políticos e sociais em uma construção
conjunta, em que o objetivo comum seja a concretização de direitos fun-
damentais que caracterizam essa sociedade como democrática e plural.
Parabenizo os autores pela seriedade com que constroem esses
enfrentamentos. Desejo aos leitores, um olhar esperançoso para cada
linha traçada. Encerro com as lições de Dante Alighieri: “No infer-
no os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a
neutralidade em tempo de crise”. É tempo de resistência! Desejo uma
boa leitura e uma boa luta a todos nós!
Santa Cruz do Sul, inverno de 2018.

Caroline Müller Bitencourt


Doutora em Direito e professora PPGD da Universidade de
Santa Cruz do Sul (área Direitos Sociais e Políticas Públicas).
Presidente do Comitê de Direitos Humanos da UNISC e Chefe
do Departamento de Direito.
AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PÓS
CONSTITUIÇÃO DE 1988: DEFINIÇÃO,
EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS E ESTADO
DO CAMPO NO BRASIL
Robert Bonifácio1
Tancredo Silva 2
Claudiney Rocha3

1. INTRODUÇÃO
Uma das principais maneiras de os governos intervirem na rea-
lidade, a fim de proporem resoluções para problemas existentes ou de
refinarem as ações governamentais em voga, é a partir da promoção
de políticas públicas. Logo, as políticas públicas têm sempre um ca-
ráter transgressor do status quo, que terá maior ou menor magnitude
dependendo das ambições políticas dos governos e da demanda da
sociedade, bem como da qualidade das políticas empreendidas.
Especialmente a partir dos anos 1990, uma parte componen-
te do que se convencionou chamar de “ciclo de políticas públicas”
passou a despertar um maior interesse dos acadêmicos e dos atores
governamentais no Brasil. Trata-se da avaliação de políticas públicas,
que é útil para verificar o quanto uma política pública cumpre suas
1 Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor
adjunto da Universidade Federal de Goiás (UFG), coordenador do curso de graduação em
ciências sociais, habilitação políticas públicas, e professor permanente nos Programas de Pós-
-Graduação em Ciência Política (PPGCP) e em Direito e Políticas Públicas (PPGDP).
2 Mestrando em Direito e Políticas Públicas (PPGDP) e servidor técnico-administrativo da Uni-
versidade Federal de Goiás (UFG). Advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil
– Seção de Goiás (OAB-GO).
3 Mestrando em Direito e Políticas Públicas (PPGDP) na Universidade Federal de Goiás
(UFG). Procurador do Estado de Goiás (PGE-GO).
34 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

expectativas, alcançando ou não os resultados planejados em sua con-


cepção, além de conceder medidas ou estimativas do custo-benefício
das ações governamentais. Sem dúvidas, o impulso suficiente para que
a avaliação de políticas públicas alcançasse um notório status adveio
do relativo sucesso da cartilha neoliberal, que influenciou a transfor-
mação da gestão pública para um viés gerencialista e direcionou as
ações de organismos transnacionais para o financiamento de projetos
de intervenção social que priorizassem tanto a focalização do públi-
co-alvo, quanto a análise econômica dos seus resultados.
A elevação do status da avaliação de políticas públicas no am-
biente governamental fez com que questões pertinentes a esse campo
fossem levadas em consideração para definir os investimentos governa-
mentais em políticas públicas. Por conta disso, houve um incremento
considerável das produções científicas englobando um vasto leque de
questões, especialmente aquelas referentes às técnicas envolvidas nos
estudos avaliativos e o desenho institucional das políticas públicas que
englobam a fase de avaliação de políticas públicas.
Este trabalho visa contribuir para o enriquecimento das
produções sobre avaliação de políticas públicas ao discutir o desen-
volvimento desse campo no Brasil, nas últimas décadas. Inicialmente,
faz-se uma abordagem conceitual e histórica da avaliação de políticas
públicas, definindo-se o que se entende pelo termo e destacando-se as
suas principais características, além de descrever-se o contexto de seu
surgimento. Em sequência, é descrito o campo de avaliação de políti-
cas públicas em três países, a partir de duas perspectivas: a organização
da avaliação sob responsabilidade governamental e a produção cien-
tífica a respeito. No primeiro item, são abordados os casos de Chile e
Reino Unido. Já para o segundo item são trazidas evidências sobre os
Estados Unidos da América (EUA). A partir da evolução do campo
de políticas públicas nesses três países, aborda-se a situação no caso
brasileiro, destacando-se o volume de produção sobre avaliação de
políticas públicas e os órgãos e leis relacionadas à criação de sistemas
de monitoramento e avaliação.
ROBERT BONIFÁCIO - TANCREDO SILVA - Claudiney Rocha 35

2. AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS: CARACTE-


RÍSTICAS E SURGIMENTO

2.1. DEFINIÇÃO E CARACTERÍSTICAS


Avaliar requer, preliminarmente, um juízo de valor sobre o que
se considera bom ou ruim, sucesso ou fracasso, progresso ou retro-
cesso, etc. Ou seja, não existe avaliação isenta de juízo de valor. Para
além disso, a avaliação precisa ser embasada em critérios claros e ra-
cionais, o que significa que a medição é um aspecto essencial. Logo,
a avaliação de políticas públicas sempre envolve tanto juízo de valor,
quanto técnicas (FIGUEIREDO; FIGUEIREDO, 1986; COTTA,
1998; JANNUZZI, 2016). Diferentemente de um processo pura-
mente científico, onde no qual se valoriza o cumprimento dos passos
lógicos da ciência e a publicização dos resultados em revistas e livros
de elevada categoria, um estudo de avaliação de políticas públicas
precisa incorporar elementos de utilidade social a essas questões. Isso
significa que um estudo que avalia uma política pública específica
precisa identificar a existência ou não de um impacto advindo da
política pública dentre o público-alvo, e que os seus resultados devem
ser publicizados de forma que o grande público tenha facilidade em
apreender o conteúdo (JANNUZZI, 2016).
Para uma caracterização mínima de avaliação de políticas pú-
blicas, dois pontos precisam ser destacados: um que se refere à sua
posição no ciclo de políticas públicas e outro que se atém aos seus
diferentes tipos e respectivas finalidades.
No ciclo de políticas públicas, a avaliação situa-se na última
fase, como uma etapa que sintetiza os resultados e revisa todo o pro-
cesso ocorrido, auxiliando então em possíveis aprimoramentos futuros
(PINTO, 2008; WU et al, 2014). Contudo, há de se destacar que
o ciclo de políticas públicas é um artifício pedagógico para se com-
preender com facilidade as diferentes etapas das políticas públicas, o
que não significa que (1) a sucessão de etapas se dá de forma linear e
consecutiva e que (2) haja elevada separação e independência entre as
36 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

etapas. Tais considerações mostram-se mais nítidas quando se faz uso


do monitoramento de uma determinada política pública.
O monitoramento é uma espécie de acompanhamento co-
tidiano da execução de uma política pública, servindo como um
instrumento de organização de dados e de correção de rotas de pe-
queno alcance ao longo das diversas fases de uma política pública,
como a formulação, tomada de decisão e, principalmente, a imple-
mentação. Ou seja, na prática, o monitoramento é o microcosmo
da avaliação de políticas públicas, são ações coordenadas que poste-
riormente alimentarão um estudo estrutural sobre as limitações e as
virtudes de determinada política pública. Portanto, a ideia de que
a avaliação somente ocorre findada uma política pública ou, pelo
menos, após a completude de um ciclo de ação governamental (seja
um conjunto de ações e/ou o fechamento de um período temporal
mínimo de execução de uma política pública) é equivocada.
A maneira como se realiza a avaliação de políticas públicas é
variada. Usualmente, classificam-se 4 (quatro) tipos, que são dota-
dos de diferentes objetivos e alcance analítico. São eles: avaliação de
produtos e materiais, avaliação de processos, avaliação de eficiência e
avaliação de efetividade.
A avaliação de primeiro tipo consiste simplesmente na con-
tabilização de materiais e de recursos humanos incorporados a
partir da implementação de uma determinada política pública. Já
a avaliação dos processos inclui a verificação da correição dos atos
administrativos e legais e a otimização da logística. A análise do cus-
to-benefício de uma política pública, a preocupação com o quanto
se gasta e o quanto se consegue de resultado é o que usualmente se
chama de avaliação de eficiência. Por fim, a avaliação de efetividade
consiste em analisar o impacto de uma política pública, ou seja, o
quanto essa intervenção contribuiu para a transformação da reali-
dade social dos beneficiários. Assim, apresenta uma visão holística
do processo e está em busca de relações de causalidade.
ROBERT BONIFÁCIO - TANCREDO SILVA - Claudiney Rocha 37

2.2. SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO


As primeiras ações minimamente coordenadas para a realiza-
ção de avaliação de políticas públicas remontam à década de 1960,
nos Estados Unidos da América (FARIA; FILGUEIRAS, 2003;
FARIA, 2005). A avaliação era vista quase exclusivamente como
uma ferramenta de planejamento a ser utilizada pelos formuladores
de políticas e pelos gerentes de mais alto nível. Segundo Albaek
(1998), a demanda por avaliação se deu principalmente a partir de
4 principais motivações:
1) Pelo fato de a provisão estatal de bem-estar nos EUA ser algo
politicamente controvertido (especialmente se comparado aos países
europeus ocidentais);
2) A existência de um ethos estadunidense de sempre buscar maxi-
mizar o valor do dinheiro (value for money);
3) O escasso conhecimento acerca do impacto efetivo da ação gover-
namental e a necessidade de se diminuírem problemas de interação
entre burocratas formuladores e burocratas implementadores;
4) A expectativa de que a avaliação pudesse garantir a racionalidade
dos processos decisórios, contribuindo para a sua legitimação. Esse
processo envolvia, por certo, a tentativa de se despolitizar a formu-
lação de políticas e sua avaliação.
Para diversos autores, tais como Albaek (1998), Derlien (2001),
Faria e Filgueiras (2003) e Faria (2005), o uso político da avaliação de
políticas públicas alterou-se ao longo das décadas. Nas duas décadas ini-
ciais de expansão do campo, as décadas de 1960 e 1970, predominou-se
o caráter técnico de sua utilização, sob o argumento de se conhecerem
melhor as ações governamentais e a sua capacidade de intervenção na
realidade e, a partir disso, legitimarem-se o planejamento e a execução
de políticas públicas. O principal embate nessas décadas era sobre que
tipo de arranjo deveria predominar no gerenciamento das políticas pú-
blicas: se o modelo top-down, no qual os servidores especialistas e de
alto escalão na burocracia estatal elaboram minuciosamente as políticas
públicas e atribuem aos “burocratas de nível de rua” apenas a função de
38 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

executarem as ações previamente planejadas, ou se o modelo bottom-


-up, em que os servidores especialistas dividiriam a tarefa de planejar
as políticas públicas com os burocratas de nível de rua e também com
beneficiários, ampliando a participação no planejamento daqueles que
executam e daqueles que são alvo das políticas públicas.
A partir da década de 1980, o uso político da avaliação de polí-
ticas públicas alterou-se, sendo esta colocada a serviço da reforma do
setor público. Assim, passou a predominar em muitos países a função
de realocação, associada ao movimento do New Public Management
(também conhecido como reforma gerencial do Estado). Os avalia-
dores se converteram em auditores que privilegiavam a medição dos
resultados. Nesse momento, os atores principais já não são mais os
administradores dos programas (como quando prevalecia a função
de informação), mas os escritórios de auditoria, os ministérios da Fa-
zenda e as unidades centrais, a quem compete a elaboração global do
orçamento e sua estrutura interna. Segundo Derlien (2001), as ques-
tões básicas que passaram a ser enfatizadas tenderam a dar mais ênfase
na quantidade do que na qualidade: Quais programas podem ser su-
primidos ou reduzidos a partir dos resultados negativos da avaliação?
Quais são as consequências do retrocesso das fronteiras do Estado, ou
seja, da privatização de determinadas atividades públicas? Como se
pode obter ‘mais rendimento pelo dinheiro’ a partir da reorganização
dos programas individuais e das atividades públicas em seu conjunto?
De acordo com Faria (2005), a centralidade da avaliação jus-
tifica-se, assim, porque se esperava que essas “funções” garantissem a
credibilidade do processo de reforma e a sustentabilidade política das
diretrizes de desregulamentação e de redução do tamanho do governo,
quer pela via da chamada “devolução”, ou seja, do deslocamento das
funções e dos serviços para as instâncias subnacionais, quer pela via
da privatização. Esperava-se, também, que pudessem ser fomentadas
a transparência na gestão pública e a satisfação dos usuários/clientes.
No contexto latino-americano, Faria (2005) esclarece que a
institucionalização da “função avaliação” ocorreu tardiamente, apenas
ROBERT BONIFÁCIO - TANCREDO SILVA - Claudiney Rocha 39

na década de 1990. Prevaleceu a perspectiva de instrumentalização da


pesquisa avaliativa para o sucesso da reforma do Estado. O desenho
dessas reformas privilegiou dois propósitos básicos:
1) A adoção de uma perspectiva de contenção dos gastos públicos,
de busca de melhoria da eficiência e da produtividade, de am-
pliação da flexibilidade gerencial e da capacidade de resposta dos
governos, bem como de maximização da transparência da gestão
pública e de responsabilização dos gestores, em um processo no
qual o “consumidor” dos bens e serviços públicos estaria, suposta-
mente, em primeiro plano;
2) A contribuição para uma reavaliação da pertinência das organi-
zações governamentais preservarem todo o seu leque tradicional de
atribuições, prevalecendo um contexto de valorização da provisão
privada de bens e serviços.

3. REFERÊNCIAS EM AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚ-


BLICAS: CHILE, EUA E REINO UNIDO
A evolução do campo de avaliação de políticas no Brasil é ana-
lisada sob duas perspectivas: a organização dos trabalhos de avaliação
sob demanda governamental e o volume de produção científica. Para
ambas as perspectivas, foram selecionados países que são referências, a
fim de se comparar o Brasil com os casos mais desenvolvidos. Chile e
Reino Unido se destacam na organização dos trabalhos sobre avaliação.
Enquanto o primeiro possui uma bem organizada estrutura institucio-
nal voltada à avaliação de políticas públicas, o segundo criou e atualiza
manuais de como fazerem avaliações de políticas públicas, visando o
planejamento das ações e a garantia de um padrão mínimo de quali-
dade. No caso da produção científica, a comparação com os EUA se
dá porque o país se destaca no volume de estudos realizados a respeito.

3.1. ORGANIZAÇÃO INSTITUCIONAL E NORMATIVAS TÉC-


NICAS EM AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS: OS CASOS
DO CHILE E DO REINO UNIDO
No Chile, as avaliações de políticas públicas promovidas pelo
governo nacional são institucionalmente divididas em dois grupos: as
40 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

avaliações das políticas sociais e das demais áreas.


No primeiro caso, o Ministério responsável é o do Desenvol-
vimento Social, cabendo especificamente ao Observatório Nacional4
essa tarefa. Regulamentado pela Lei 20.530 de 2011, esse órgão mi-
nisterial é responsável pelas avaliações ex ante e pelo monitoramento
dos programas sociais do governo nacional chileno. Além disso, cabe
ao Observatório Nacional a responsabilidade de realizar a Pesquisa
Nacional de Caracterização Socioeconômica (CASEN), uma espé-
cie de censo chileno. Em seu site, é abundante a oferta de dados de
relatórios de pesquisas sobre a aplicação de políticas públicas sociais,
especialmente aquelas destinadas a erradicar a pobreza, diminuir a
vulnerabilidade e promover a mobilidade, a integração social e a
igualdade de oportunidades.
Já a Dirección de Presupuestos (DIPRES)5, ligada ao Ministério
da Fazenda, é a responsável pelo monitoramento e avaliação de polí-
ticas públicas não sociais. A DIPRES subdivide suas atividades em 7
eixos: definições estratégicas, indicadores de desempenho, avaliação
de programas e instituições, apresentação de programas ao orçamen-
to, saldo integral de gestão, mecanismos de incentivo à compensação
por desempenho e monitoramento de programas públicos. Todas
essas vertentes estão intimamente interligadas quanto à finalidade
de avaliação de políticas públicas.
A DIPRES iniciou em 2009 a “Avaliação de Novos Programas”6
(ENP, sigla em espanhol), que é um conjunto de ações para avaliar
novas políticas públicas criadas pelo governo chileno. Contudo, a
execução desse plano se deu, de fato, apenas em 2012. O objetivo do
programa é identificar e diminuir as possíveis lacunas entre o projeto
proposto e o efetivo (implementado). Analisa-se a evolução do pro-
grama em relação ao nível de produção e de resultados a curto prazo,

4 Acesso: http://observatorio.ministeriodesarrollosocial.gob.cl/index.php. Acessado em:


13/03/2018.
5 Acesso: http://www.dipres.gob.cl/598/w3-channel.html. Acessado em: 13/03/2018.
6 Acesso: http://www.dipres.gob.cl/598/w3-article-41360.html. Acessado em: 13/03/2018.
ROBERT BONIFÁCIO - TANCREDO SILVA - Claudiney Rocha 41

bem como a quantificação de determinados indicadores de despesas


relevantes (despesa por beneficiário, despesa por unidade de compo-
nente, entre outras). Desta forma, uma vez que o plano e a operação
de uma política pública são conhecidos em profundidade, decide-se
sobre a viabilidade e a relevância do projeto e, eventualmente, sobre
a realização de uma avaliação de impacto.
As atividades de avaliação de impacto do ENP são de res-
ponsabilidade de um Comitê Interministerial, composto por 1
representante da Secretaria-Geral do Ministério da Presidência,
1 representante do Ministério do Desenvolvimento Social e 1 re-
presentante do Ministério das Finanças, por meio da Direção de
Orçamentos, a quem cabe presidir o Comitê. Os estudos avaliativos
são executados por instituições externas, como universidades e con-
sultorias, que são contratados por meio de licitação.
A duração de uma avaliação de impacto varia de 1 ano a 1 ano
e meio, com entrega de relatórios preliminares e final. Este contém os
resultados da avaliação e as recomendações para a superação de deficiên-
cias detectadas na política pública. As recomendações são analisadas pelo
Comitê, a fim de se especificar a forma como serão incorporadas, fazer
alterações no cronograma e identificar os espaços institucionais a serem
envolvidos em novas ações (instituição, ministério, outras instituições
públicas), além de possíveis restrições legais e de recursos financeiros.
Tem-se como produto de todo esse processo o estabelecimento de com-
promissos institucionais para incorporar algumas das recomendações
em cada um dos programas avaliados. Esses compromissos são a base
para monitorar o desempenho vindouro dos programas.
Além disso, a Diretoria de Orçamento do Ministério das
Finanças faz uso dos resultados para guiar o processo de discussão
orçamentária. Por fim, os relatórios são enviados para o Congresso Na-
cional, onde se decide sobre as leis orçamentárias e sobre sua execução.
O Quadro 1, a seguir, sintetiza as informações sobre o processo
de avaliação de impacto:
42 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Quadro 1- Fluxograma do desenvolvimento de Avaliações de


Impacto de Políticas Públicas pelo DIPRES

• O Comitê Interministerial do DIPRES é resposnável por todo o processo de avaliação de políticas públicas. Inicialmente, o comitê
Comitê seleciona empresas e consultores para executarem os trabalhos.
Interministerial
DIPRES

• Aprova o projeto metodológico e operacional da referida avaliação, como também, a análise e aprovação dos relatórios de
progresso e final, apresentando à equipe do consultor as observações e / ou recomendações que se considerem convenientes,
Gabinete de buscando superar as deficiências detectadas durante a avaliação.
Orçamento - • O processo de avaliação demora em média de um a um ano e meio.
Minist. Finanças

• Avalia as recomendações formuladas pelos avaliadores em conjunto com as instituições responsáveis pelo programas avaliados.
Comitê • Analisa a forma de incorporação das recomendações, estabelecendo cronogramas e os espaços institucionais envolvidos, além das
Interministerial possíveis restrições legais e de recursos orçamentários.
DIPRES

• Diretoria de Orçamento do Ministério das Finanças faz uso dos resultados para guiar o processo de discussão orçamentária.
Gabinete de • Posteriormente, os relatórios são enviados ao Congresso.
Orçamento -
Minist. Finanças

• No Congresso são aprovadas as leis orçamentárias, como também, realiza-se a fiscalização da execução do orçamentária
apresentada pela Diretoria de Orçamento do Ministério das Finanças.
Congresso



Fonte: Elaboração própria.

A DIPRES concede relatórios pormenorizados sobre o mo-

nitoramento
de programas e iniciativas programáticas de cada pasta
ministerial, num total de 12 Ministérios. No momento da consulta ao


site
do órgão, existiam informações disponíveis para os anos de 2012
a 2016 (Tabela 1). Restringindo-se apenas ao último ano citado, 73%

dos
programas e das iniciativas programáticas foram monitorados, o
que
representa 188 de um total de 2597. Isso é evidência de que as ava-

liações de políticas públicas não sociais estão, de fato, a pleno vapor.

Tabela 1- Quantidade de avaliação de políticas públicas por


ministério (2012 a 2016)

MINISTÉRIOS 2012 2013 2014 2015 2016


Ministério da Agricultura 17 32 28 29 29
Ministério de Bens Nacionais 2 6 3 6 6

7 Acesso: http://www.dipres.gob.cl/598/articles-169540_proceso_2016.pdf. Acessado em:


13/03/2018.
ROBERT BONIFÁCIO - TANCREDO SILVA - Claudiney Rocha 43

Ministério da Economia,
12 37 26 54 67
Fomento e Turismo
Ministério da Educação 11 14 14 12 16
Ministério de Energia 3 8 8 14 14
Ministério da Fazenda - - 1 3 4
Ministério da Justiça 7 8 10 18 20
Ministério da Mineração 1 1 1 1 1
Ministério das Relações
5 6 6 14 15
Exteriores
Ministério de Transporte e
1 1 1 2 4
Telecomunicações
Ministério do Interior e
3 4 4 6 5
Segurança Pública
Ministério da Secretaria Geral
5 4 4 4 7
de Governo
Total 67 121 106 163 188
Fonte: DIPRES

Para além desse quesito institucional, há também indicado-


res de qualidade do trabalho realizado. A DIPRES já foi premiada
2 vezes no Concurso de Gestão por Resultados de Desenvolvimen-
to promovido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento8. O
último prêmio recebido foi em 2017, pela linha de avaliação ex post
de programas governamentais, chamada de Evaluación Focalizada de
Ámbito (EFA), linha essa que possui enfoque sobre a análise de custos,
implementação e plano de estratégia na avaliação de programas de go-
verno9. Anteriormente em 2016, a DIPRES foi premiada no mesmo
concurso na linha Evaluación Ex Ante de Diseño de Programas10.
Já no Reino Unido, o que se destaca no campo de avaliação de
políticas públicas são dois livros produzidos pelo governo, via HM

8 Acesso: http://www.dipres.gob.cl/598/articles-166200_doc_pdf.pdf. Acessado em:


13/03/2018.
9 Aba de informação disponível em: http://www.dipres.gob.cl/598/w3-article-163163.html.
10 Acesso: http://www.dipres.cl/598/articles-149482_doc_pdf.pdf. Acessado em: 13/03/2018.
44 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Treasury (Ministério da Economia e Finanças), para planejar e execu-


tar avaliação de políticas públicas – Green Book11 – e para informar
as melhores práticas a serem seguidas nesse campo – Magenta Book12.
Os conteúdos desses livros, que servem como uma espécie de guia ou
de cartilha, para além das demais regras e diretrizes do HM Treasury,
orientam as ações dos atores governamentais e de empresas contra-
tadas na condução de estudos sobre avaliação de políticas públicas.
O Green Book agrega conhecimentos sobre como proceder no
desenho e na execução do monitoramento e da avaliação em período
anterior, durante e posterior à implementação de uma política públi-
ca específica. Nesse sentido, o livro trata tanto do que se chama de
appraisal (desenho e custo-benefício da avaliação) quanto de evalua-
tion (avaliação sistemática de uma política pública). Logo, é uma
obra que pretende ser um guia para todo o processo de avaliação de
políticas públicas. A primeira edição do livro é de 2011 e sua última
atualização se deu em 6 de março de 2018. Nos anos posteriores à
publicação da primeira edição do Green Book foram produzidos diver-
sos suplementos, que visam especificar recomendações para avaliações
de políticas setoriais, tais como gerenciamento de risco, transportes,
transferência de riqueza intergeracional e descontos sociais, meio am-
biente, poluição do ar, infraestrutura, crime, saúde pública, etc.
O conteúdo do livro é revisado anonimamente (peer reviewed)
pelo Grupo de Avaliação dos Economistas-chefe do Governo. As
recomendações devem ser seguidas por todos os departamentos,
agências reguladoras e demais órgãos que prestam contas ao governo
nacional. Isso não impede que esses órgãos tenham normas internas
próprias, desde que essas estejam em convergência com as diretrizes
do Green Book.
O Magenta Book é um livro complementar ao Green Book, uma

11 Acesso: https://www.gov.uk/government/publications/the-green-book-appraisal-and-evalua-
tion-in-central-governent. Acessado em: 13/03/2018.
12 Acesso: https://www.gov.uk/government/publications/the-magenta-book. Acessado em:
13/03/2018.
ROBERT BONIFÁCIO - TANCREDO SILVA - Claudiney Rocha 45

vez que seu foco é destacar quais são as melhores práticas para se de-
senhar e se executar a avaliação de políticas públicas.
O livro é subdividido em duas partes. A parte A destina-se aos
decisores políticos, estabelecendo o que é uma boa avaliação e quais
são os seus benefícios. São explicados, em termos simples, quais
são os requisitos para se conseguir uma boa avaliação e quais são
as etapas que os decisores políticos devem cumprir para atingirem
esse nível e torná-lo sustentável. Também discute-se algumas das
questões em torno da interpretação e da apresentação dos resultados
da avaliação, especialmente no que diz respeito à qualidade da evi-
dência de avaliação. A parte B destina-se a analistas e formuladores
de políticas e, por isso, possui um caráter mais técnico. São descritas
detalhadamente as etapas para se planejar e executar uma avaliação
de políticas públicas, além de destacadas abordagens para a inter-
pretação e a assimilação de evidências de avaliação.
O Magenta Book também possui suplementos, publicados
em 2012, que versam sobre qualidade em avaliação qualitativa e
qualidade em avaliação de impacto. O primeiro visa incrementar a
qualidade das avaliações qualitativas, com foco especial nas fases de
formulação e implementação de políticas. Já o segundo contribui
para, tecnicamente, aumentar a qualidade da avaliação de impacto
de uma determinada política pública, excluindo-se dos resultados a
influência de efeitos externos.

3.2. PRODUÇÃO EM AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBICAS:


EUA COMO DESTAQUE
Conforme já destacado anteriormente, o desenvolvimento da
utilização da avaliação de políticas públicas iniciou-se na década
de 1960 e é importante destacar que os EUA tiveram um papel de
liderança nisso.
O lugar da avaliação de políticas públicas nos EUA situa-se
tanto dentro dos governos, quanto na academia, e a evolução de prá-
ticas e de pesquisas relacionadas deu-se ao mesmo tempo. Ou seja, os
46 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

interesses e os refinamentos a respeito da avaliação de políticas públi-


cas ocorreram tanto no âmbito governamental, quanto acadêmico e
no mesmo período temporal.
Crumpton et al (2016) enxerga o início do desenvolvimento
do campo sobre avaliação de políticas públicas nos EUA a partir da
década de 1960 e considera que a profissão de pesquisador em avaliação
passou por um significativo crescimento, desenvolvimento e institu-
cionalização desde então. Um exemplo disso é a robustez da American
Evaluation Association (AEA)13. Fundada em 1986, a AEA é fruto da
reformulação de três associações anteriores e, no ano de 2013, possuía
7.500 membros em todo o país. Para além de aspectos organizacionais,
o desenvolvimento conceitual da avaliação também tem sido evidente e
incluiu debates sobre a teoria e a prática da avaliação, discussões acerca
de estratégias e metodologias, deliberações sobre as competências avalia-
tivas e o exame de várias contribuições que a avaliação pode trazer para
a comunidade global. Segundo os autores, pesquisadores em avaliação
oferecem suporte conceitual para a construção de políticas públicas e
programas, uma vez que fornecem análises de evidências resultantes
de avaliações de políticas e programação em outros contextos para os
criadores e gerentes de políticas que estão procurando resposta para um
problema em seu ambiente de atuação.
A fim de mensurarem a quantidade e a identificarem tendências
em produções científicas sobre avaliação de políticas públicas no Brasil
e nos EUA, Crumpton et al (2016) analisaram artigos publicados
entre 2005 e 2014 em 6 bases de dados, 2 nacionais (Scielo Brasil e
Spell) e 4 internacionais (Wiley Online Library, Sage Publications,
Oxford Journals e Science Direct). Os termos de pesquisa usados
incluem descritores de avaliações, verificações e análises relativos a
políticas públicas, programas e projetos. A amostra final foi compos-
ta por um total de 320 trabalhos: 100 do Brasil e 220 dos Estados
Unidos. Os resultados segmentados por países, anos, quantidade e
porcentagem encontram-se na Tabela 2 abaixo.
13 Para maiores informações, acessar: http://www.eval.org. Acessado em: 13/03/2018.
ROBERT BONIFÁCIO - TANCREDO SILVA - Claudiney Rocha 47

Tabela 2 – Produção em pesquisa sobre avaliação de políticas


públicas (Brasil e EUA, 2005 a 2014)
Brasil EUA Total
Quantidade % Quantidade % Quantidade %
2005 7 7 19 8,6 26 8,1
2006 2 2 11 5 13 4,1
2007 11 11 19 8,6 30 9,4
2008 10 10 21 9,5 31 9,7
2009 7 7 19 8,6 26 8,1
2010 13 13 16 7,3 29 9,1
2011 15 15 21 9,5 36 11,3
2012 15 15 30 13,6 45 14,1
2013 14 14 34 15,5 48 15,0
2014 6 6 30 13,6 36 11,3
Total 100 100 220 100 320 100
Fonte: Crumpton et al, 2016, p. 990.

O que pode-se identificar, a partir dos resultados, é que há


mais do que o dobro de produção nos EUA, em comparação com o
Brasil, sobre avaliação de políticas públicas. Nota-se uma tendência
uniforme de publicação nos EUA entre 2005 e 2011 – entre 5% e
9,5% da publicação total, considerando o período temporal – e, no
período posterior, um incremento dessa quantidade em novo patamar,
que perdura até 2014 – entre 13,6% e 15,5% da publicação total,
considerando o período temporal. Já no Brasil é difícil identificar
alguma tendência, pois tanto a quantidade, quanto o percentual de
publicação durante o período temporal é bastante variável.
A respeito dos temas das produções, os percentuais encontra-
dos em ambos os países são muito próximos. Enquanto no Brasil
observa-se que as áreas da saúde (27%), educação (25%), pesquisa
em avaliação (9%), quando somadas, totalizam 68% das publicações,
nos Estados Unidos saúde (44,1%), educação (9,5%) e pesquisa em
avaliação (8,2%) correspondem a 66,8% do total de publicações.
48 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Isto é, em ambos os países, essas três áreas são as que recebem mais
atenção, diferenciando-se apenas em termos de percentual de cada
área (CRUMPTON et al, 2016: 992)14.

4. AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL:


ORGANIZAÇÃO INSTITUCIONAL E PERSPECTIVAS
Após o panorama sobre o campo de avaliação de políticas pú-
blicas em países estrangeiros, é necessário situar a trajetória brasileira.
Para Melo (1998; 1999), a construção histórica da agenda de políticas
públicas no Brasil teve algumas etapas marcantes. Houve um boom na
década de 1980, impulsionada pela transição democrática. São três os
motivos da expansão: primeiramente, o deslocamento na agenda pú-
blica. Nos anos 1970, predominava o debate sobre o modelo brasileiro
de desenvolvimento. A isso seguiu-se uma agenda de pesquisas voltada
às políticas municipais e à descentralização. Em segundo lugar, não
obstante o fim do período autoritário, constatou-se que os obstáculos
à consecução de políticas sociais efetivas continuaram existindo, o que
serviu para fortalecer os estudos sobre a efetividade da ação pública.
Em terceiro lugar, a difusão internacional da ideia de reforma do
Estado e do aparelho de Estado passou a ser o princípio organizador
da agenda pública dos anos 1980-90, o que provocou uma prolifera-
ção de estudos de políticas públicas, de uma forma geral.
Dado todo esse movimento, o que se tem de destaque de or-
ganização institucional para avaliação de políticas públicas no Brasil
em período corrente são dois casos (considerando-se apenas o âmbito
do governo federal): a Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação
(SAGI) do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e o Comitê
de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas Federais (CMAP).
De acordo com Ferrarezi, Jannuzzi e Montagner (2016), a
SAGI surge na primeira organização institucional do MDS, que foi
15

14 Para maiores detalhes, ver Tabela 2 do referido estudo.


15 Para maiores informações, acessar: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/portal/. Acessado em:
13/03/2018.
ROBERT BONIFÁCIO - TANCREDO SILVA - Claudiney Rocha 49

criado em 2004. Constitui-se uma inovação porque foi o primeiro


órgão criado especificamente para realizar atividades de monitoramen-
to e avaliação de políticas públicas. Os ministérios da Saúde (MS), da
Educação (MEC) e da Casa Civil já haviam realizado monitoramento
e avaliação de políticas públicas anteriormente, mas não contavam
com um órgão específico para a realização de tarefas dessa natureza.
O Decreto 5.074/2004 define a estrutura regimental e de cargos do
MDS e nele está inscrito as competências da SAGI, que são:
1) Desenvolver e implementar instrumentos de avaliação e moni-
toramento das políticas e programas referentes ao desenvolvimento
social e combate à fome;
2) Elaborar, propor, coordenar e apoiar a implementação de
planos, programas, projetos e ações de desenvolvimento social e
combate à fome;
3) Promover a gestão do conhecimento, o diálogo de políticas e
a cooperação técnica em gestão pública de forma articulada com
órgãos, entidades, poderes e esferas federativas e outros países.
A partir de 2010, a SAGI passou a contar com 4 diretorias:
Gestão da Informação (DGI), Avaliação (DA), Monitoramento (DM)
e Formação e Disseminação (DFD). A DGI organiza e administra
as bases de dados dos programas e das ações, além de elaborar ferra-
mentas informacionais para apoiar as atividades de monitoramento
e de gestão das secretarias finalísticas. O DM cria os desenhos dos
modelos lógicos de programas, organiza painéis de monitoramento
de programas e elabora análises sobre estes. As pesquisas de avaliação
para aprimoramento dos programas e ações do Ministério são desen-
volvidas pelo DA, e o DFD planeja e desenvolve projetos e programas
de capacitação e formação nas modalidades presencial e a distância,
para diferentes públicos do Ministério, além de ser responsável pelas
publicações impressas e eletrônicas e outras ações de disseminação da
Secretaria (FERRAREZI; JANNUZZI; MONTAGNER, 2016: 29).
Em 2008, por meio da Portaria Ministerial 160, constitui-se um
Grupo de Trabalho de Monitoramento e Avaliação (GTMA). Cabe
50 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

a esse grupo elaborar planos anuais de monitoramento e avaliação.


Ou seja, é ele quem dá a diretriz dos trabalhos a serem desenvolvidos.
Depois de um período com menor atividade, destacam os autores,
o GTMA passou a ter como objetivo a construção de uma agenda
conjunta de pesquisas e monitoramento para os programas e polí-
ticas do MDS. De acordo com a Portaria, cabe especificamente ao
plano anual:
• Indicar os programas para ações de avaliação no ano
subsequente;
• Considerar as avaliações realizadas anteriormente;
• Propor iniciativas para aprimoramento do monitoramento;
• Ser elaborado de forma participativa sob a coordena-
ção da SAGI;
• Registrar, além das ações da SAGI, as avaliações realizadas por
outros órgãos internos.
Uma abordagem panorâmica do SAGI indica que a abrangên-
cia de sua atuação é restrita a políticas sociais, mais especificamente,
àquelas que visam sanar problemas relacionados a assistência social,
segurança alimentar e nutricional, desenvolvimento social e renda de
cidadania. Isso significa que o órgão mais capacitado para desempe-
nhar a função de monitoramento e de avaliação de políticas públicas
do governo federal atua numa área específica – a social – que, embora
seja uma das mais relevantes, é apenas um microcosmo da múltipla
rede de políticas que o governo federal empreende, que incorpora
áreas densas e complexas, como a de transporte, meio ambiente, ciên-
cia e tecnologia, agricultura, etc.
Ainda no âmbito federal, pode-se considerar que a iniciativa
mais ousada seja a constituição do CMAP. Contudo, embora ousada, a
ideia parece ainda não ter sido operacionalizada em sua plenitude. Pelo
contrário, parece estar longe disso acontecer. Criado via Portaria Inter-
ministerial 102, de 7 de abril de 2016, o comitê tem como principais
objetivos aperfeiçoar políticas públicas, programas e ações do Poder
ROBERT BONIFÁCIO - TANCREDO SILVA - Claudiney Rocha 51

Executivo Federal para que alcancem melhores resultados e aprimorar


a alocação de recursos e melhorar a qualidade do gasto público. Isso
significa que é uma iniciativa que visa centralizar a organização das ações
governamentais, de modo a otimizar gastos e resultados.
Compõem o CMAP os seguintes atores governamentais:
• O(A) (1) Ministro(a) de Estado do Planejamento, Orçamen-
to e Gestão (MPOG, a quem cabe a sua coordenação);
• Os(As) titulares das Secretarias de (2) Orçamento Federal, (3)
Planejamento e Investimentos Estratégicos, (4) e da Assesso-
ria Econômica do MPOG;
• Os(As) titulares das Secretarias de (6) Política Econômica e
(7) Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda (MF);
• O(A) titular da (8) Secretaria Federal de Controle Interno da
Controladoria-Geral da União (CGU);
• Os(As) titulares das Subchefias de (9) Articulação e Moni-
toramento e (10) Análise e Acompanhamento de Políticas
Governamentais da Casa Civil da Presidência da República.
As informações sobre os trabalhos do CMAP ainda são limi-
tadas. No seu site, há apenas 10 notícias, sendo que a última data de
outubro de 2017. A partir das notícias, tem-se apenas um registro
sobre a atuação do comitê em questões que são de sua responsabili-
dade. Trata-se da análise sobre a gestão de benefícios sociais, visando
melhor uso do dinheiro público e o combate a fraudes16.
Como o único site relacionado ao CMAP é pobre de infor-
mações, foi feita uma consulta ao MPOG via E-sic17 para mais
esclarecimentos. A partir das respostas aos questionamentos, desco-
briu-se que o comitê realiza trabalhos em parceria com o Instituto
de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) e a Escola Nacional de Administração
16 “Comitê interministerial avalia primeiros resultados da revisão de programas sociais”. Aces-
so: http://www.planejamento.gov.br/noticias/comite-interministerial-avalia-primeiros-resul-
tados-da-revisao-de-programas-sociais. Acessado em: 13/03/2018.
17 Protocolo nº 03950001442201860, aberto em 19/04/2018.
52 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Pública (ENAP), mas não foram especificados quais tipos de tra-


balhos são realizados com cada um desses órgãos. Além disso, foi
esclarecido que o CMAP não conta com orçamento próprio e que
as suas reuniões não são registradas em atas, mas por meio de power
points, e-mails e notas técnicas, material que ainda não foi disponi-
bilizado para o público.
O conjunto de informações incompletas e imprecisas disponi-
bilizadas pelo CMAP só faz possível ter uma percepção turva sobre a
sua atuação, chegando-se a conclusão de que os trabalhos do comitê
ainda engatinham.
Recentemente, um Projeto de Lei do Senado (PLS), de autoria
do Senador Roberto Muniz (PTB-BA), foi colocado em pauta. O PLS
488, de 2017, acrescenta dispositivos à Lei Complementar 95, de 26
de fevereiro de 1998, com o intuito de estabelecer normas e diretri-
zes para encaminhamento de proposições legislativas que instituam
políticas públicas, propiciando melhor responsabilidade gerencial na
Administração Pública.
A ideia é tornar mais transparentes, profissionais e efetivos o
desenho das políticas públicas e a tomada de decisão quanto às poten-
ciais intervenções do Estado. Conforme a previsão original, aprovada
pelo Plenário do Senado, a Lei Complementar 95, de 26 de fevereiro
de 1998, que trata da “elaboração, redação, alteração e consolidação
das leis”, ganharia um novo capítulo, intitulado de “CAPÍTULO
III-A DOS PROJETOS DE LEI QUE INSTITUEM POLÍTICAS
PÚBLICAS”, com os novos artigos 17-A, 17-B e 17-C.
No art. 17-A, além de prevista a obrigatoriedade da avaliação
prévia de impacto legislativo para os projetos de lei que instituam
políticas públicas, conceituam-se a política pública e os critérios de
economicidade, eficácia, eficiência e efetividade. O art. 17-C trata
do conteúdo da avaliação prévia de impacto legislativo, consistente
de (i) notas explicativas quanto à situação ou problema, aos obje-
tivos propostos, às alternativas de solução com a comparação do
ROBERT BONIFÁCIO - TANCREDO SILVA - Claudiney Rocha 53

custo-benefício global de cada uma, aos custos da solução escolhida


e à sustentabilidade orçamentária da medida, bem ainda de (ii) pare-
cer conclusivo sobre a constitucionalidade da proposta. No recheio,
o art. 17-B dispõe sobre itens mínimos a serem definidos na concep-
ção das políticas públicas, tais como órgãos e agentes responsáveis,
participação social na decisão, competências, objetivos, papéis, res-
ponsabilidades, grau de focalização ou universalização, tendo em
conta as necessidades do público-alvo e os recursos disponíveis,
periodicidade de avaliação de desempenho, marcos de verificação,
indicadores-chave e metas, motivação e evidências na escolha, inte-
gridade e auditoria, além de um plano de gestão documental, para
preservação da memória, e um plano de gestão de riscos, antevendo
os principais problemas e as medidas adequadas a tratá-los.
O PLS 488, de 2017, foi aprovado em definitivo no Senado
Federal e encaminhado por seu Presidente à Câmara dos Deputados.
Nesta casa desde 11/4/2018, o PLS foi renumerado como Projeto
de Lei Complementar (PLP) 494/2018. Em 3/5/2018, foi despa-
chado, pelo Presidente, à Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania e tramita em regime de prioridade. Como o projeto de lei
já foi aprovado na câmara alta, o Senado, a perspectiva agora é que
seja apenas revisto pela câmara baixa, em um só turno de discussão
e votação; depois, finalmente enviado à sanção ou promulgação.
Mas, se houver emenda alterando a redação, o texto volta à Casa
iniciadora, nos termos do art. 65 da Constituição Federal. Mesmo
se rapidamente aprovada, a alteração legislativa só entrará em vigor
90 (noventa) dias após sua publicação oficial. Esse é um prazo para
o Executivo adaptar-se à nova sistemática.
Se a lei for criada sem alterações que desfigurem seu propósito
inicial, ela pode servir como um instrumento legal para a criação de
estruturas de monitoramento e avaliação de políticas públicas pelo
governo federal, seja num só único órgão ou de forma segmentada,
dentro dos ministérios. Espera-se, com isso, um maior apoio técnico
sobre os processos de desenho (avaliação ex ante) e os resultados das
54 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

políticas públicas (avaliação ex post). Outro possível efeito talvez


seja a criação de um número menor de políticas públicas. Porém,
de maneira inversamente proporcional, espera-se um crescimento
qualitativo das políticas públicas. Ou seja, talvez um dos possíveis
efeitos da aprovação da lei seja a criação de menos, mas melhores,
políticas públicas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A avaliação de políticas públicas passou a ser vista, ao longo
das últimas décadas, como essencial para uma maior racionalidade e
otimização das ações e dos recursos governamentais. Se a necessidade
da existência do monitoramento e da avaliação é ponto consensual
entre experts e atores políticos, por outro lado, a capacitação de
recursos humanos e a organização institucional para a sua efetiva
aplicação são objetivos que demandam um longo caminho para
serem alcançados.
Algumas experiências internacionais de sucesso indicam que é
necessário haver uma estrutura institucional para a realização de ativi-
dades de monitoramento e avaliação. Para além disso, é necessário um
acordo mínimo sobre conceitos e técnicas que devem ser empregados
em todo esse processo. A situação corrente no Brasil aponta que esta-
mos muito longe dessa situação. Há uma certa dose de apoio político
para a constituição desse cenário, mas os avanços são tímidos.

REFERÊNCIAS
ALBAEK, Erik. Knowledge, interests and the many meanings of evaluation: a develop-
mental perspective. Scandinavian Journal of Social Welfare, v. 7, 1998.
BRASIL. Projeto de Lei do Senado n° 488, de 2017. Brasília, DF, dez 2017.
COTTA, Tereza. Metodologias de avaliação de programas e projetos sociais: análise de
resultados e de impacto. Revista do Serviço Público, ano 49, nº 2, 1998.
CRUMPTON, Charles David et al. Avaliação de políticas públicas no Brasil e nos Esta-
dos Unidos: análise da pesquisa nos últimos 10 anos. Revista de Administração Pública, v.
6, n. 50, 2016.
DERLIEN, H-U. Una comparación internacional en la evaluación de las políticas públi-
ROBERT BONIFÁCIO - TANCREDO SILVA - Claudiney Rocha 55

cas. Revista do Serviço Público, v. 52, nº 1, 2001.


FARIA, Carlos Aurélio P.; FILGUEIRAS, Cristina de A. C. A avaliação de políticas pú-
blicas como instrumento de planejamento: os casos do Sistema de Avaliação da Educação
Básica (Saeb), do Brasil, e do Sistema de Medición de la Calidad de la Educación (Simce),
do Chile. Trabalho apresentado no GT “Políticas Públicas” do XXVII Encontro Anual da
Anpocs. Caxambu, Minas Gerais, 21 a 25 de outubro de 2003.
FARIA, Carlos Aurélio P.; FILGUEIRAS, Cristina de A. C. A política da avaliação das
políticas públicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, nº 59, 2005.
FERRAREZI, Elisabete; JANNUZZI, Paulo; MONTAGNER, Paula. Trajetória e desenvolvimento
institucional da SAGI/MDS (2004-2015). In: FERRAREZI, Elisabete (org). SAGI: Informação
e Conhecimento para Políticas de Desenvolvimento Social. Brasília: Ministério do Desenvolvi-
mento Social, 2016.
FIGUEIREDO, Marcus; FIGUEIREDO, Argelina. Avaliação política e avaliação de po-
líticas: um quadro de referência teórica. Análise e Conjuntura, v. 1, nº 3, 1986.
JANNUZZI, Paulo. Eficiência econômica, eficácia procedural ou efetividade social: três
valores em disputa na avaliação de políticas e programas sociais. Desenvolvimento em De-
bate, v. 4, nº 1, 2016.
PINTO, Isabela. Mudanças nas políticas públicas: a perspectiva do ciclo de política. Re-
vista Políticas Públicas, v. 12, nº 1, 2008. pp. 27-36.
WU, Xun et al. Guia de Políticas Públicas: gerenciando processos. Brasília: Enap, 2014.
DIREITOS FUNDAMENTAIS, DEMOCRACIA
MONITORADA E O FINANCIAMENTO DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS
Miccael Pardinho Natal1

1. INTRODUÇÃO
O advento do Estado Democrático de Direito é marcado pela
retórica de proteção aos direitos fundamentais. Nesse diapasão, tal
modelo de Estado é herdeiro do liberalismo político – que consagrou
a o respeito às liberdades individuais – , do constitucionalismo social
e do wellfare state, que se ocupava com direitos econômico-sociais.
Assim, cabe investigar como esse paradigma de Estado ope-
racionaliza a proteção e promoção desses direitos fundamentais. De
fato, a efetivação dos compromissos constitucionais reclama mecanis-
mos de financiamento correspondentes, cabendo perscrutar o modo
como as chamadas políticas públicas compõem esse quadro.
Nessa empreitada, cumpre atentar-se às formas com que o
ordenamento protege os direitos fundamentais e as políticas pú-
blicas, visando entender quais desenhos institucionais servem a tal
fim e como o fazem. Nesse sentido, tratar-se-á da ideia de mínimo
existencial, enquanto compromisso mínimo para com a dignidade
da pessoa humana. Assim, passar-se-á pelo federalismo fiscal coope-
rativo, pelo controle da atividade administrativa e pelas formulação
de planejamentos e planificações.

1 Advogado administrativista e mestrando no Programa de Direito e Políticas Públicas da Uni-


versidade Federal de Goiás – PPGDP UFG, vinculado à linha de pesquisa Regulação, Efetivi-
dade e Controle Constitucional das Políticas Públicas. E-mail: miccael.pardinho@gmail.com.
Telefone: (62) 98542-3964.
58 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Tal esforço de compreensão examinará a ideia de democracia


monitorada, tentando apreender como tal noção informa a relação
existente entre financiamento de políticas públicas e promoção dos
direitos fundamentais.
Este empreendimento será pautado por uma pesquisa emi-
nentemente bibliográfica, trabalhando com bibliografia produzida a
respeito da temática ora problematizada e dialogando com as atinentes
previsões do ordenamento jurídico. Este artigo trata-se, portanto, de
resultado de pesquisa marcadamente qualitativa. A saber, tal escolha
adéqua-se ao estudo do fenômeno constitucional-administrativo bra-
sileiro em relação às políticas públicas, tomado como uma amostra
única e eleita como objeto de estudo.

2. POLÍTICAS PÚBLICAS E ESTADO DEMOCRÁTICO


DE DIREITO

2.1. POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS FUNDAMENTAIS


Tem-se que uma política pública consiste um programa de ação
governamental voltado a alguma finalidade específica. Com efeito, as
políticas públicas são pautadas por um esquema de “meios e fins”, de
modo que o Estado elabora programas de ação complexos, visando
satisfazer um interesse que é socialmente relevante e escolhido demo-
craticamente. (BUCCI. 2002, p. 252-253).
Nesse sentido, Maria Paula Dallari Bucci aponta que
(2000, p. 264):
As políticas públicas devem ser vistas também como processo ou
conjunto de processos que culmina na escolha racional e coletiva de
prioridades, para a definição dos interesses públicos reconhecidos
pelo direito.
No contexto do Estado Democrático de Direito, não se pode
olvidar, estarão sujeitas ao que dispuser o ordenamento jurídico: a
eleição das finalidades que serão buscadas por meio das políticas pú-
blicas; a escolha dos meios; as formas de controle dos resultados. Há
MICCAEL PARDINHO NATAL 59

que se frisar que a ordem jurídica é composta não apenas de regras,


mas também de princípios jurídicos, que revestem de normativida-
de determinados valores. A Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, por exemplo, faz uma clara escolha pela utilização
dos princípios, seguindo tendência do neopositivismo, que sucedeu
a segunda guerra mundial.
Cabe, assim, observar as políticas públicas sob uma perspectiva
funcionalista. Isso quer dizer reconhecer a função eminentemente
promocional dessas políticas, que, a partir, não só da autorização,
mas também dos mandamentos contidos no ordenamento jurídico,
ofertam alguma utilidade aos sujeitos de direito.
Nesse sentido, volvendo-se especificamente à experiência cons-
titucional brasileira e à escolha dos fins que serão perscrutados, tem-se
que os direitos fundamentais possuem um status diferenciado, a for-
tiori, de modo que sua promoção merece especial atenção do Poder
Público (BARCELLOS, 2008, p. 115). A valer, sendo a realização
dos direitos fundamentais um fim essencial da ordem constitucional,
cabe ao Estado acolher essa finalidade em destaque, desenvolvendo
políticas públicas nesse sentido.
Elaborando um conceito de políticas públicas, Fernando Aith,
ressalta esse protagonismo dos direitos fundamentais: “considera-se po-
lítica pública a atividade estatal de elaboração, planejamento, execução e
financiamento de ações voltadas à consolidação do Estado Democrático
de Direito e à promoção dos direitos humanos” (2006, p. 232).
Não é por outra razão que o texto constitucional chega a trazer
em seu bojo determinadas políticas públicas, como o Sistema Único
de Saúde (SUS) e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
(FUNDEB).2 No mesmo diapasão, a Carta Política estabelece di-
versas vinculações em relação a gastos com direitos fundamentais, bem

2 O FUNDEB substituiu o extinto Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Funda-


mental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), que, igualmente, era constitucionalizado.
60 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

como, conforme será tratado mais à frente, desenha um federalismo


fiscal cooperativo, que favorece a implementação de tais direitos.
Os direitos fundamentais, enquanto direito humanos que são
constitucionalmente reconhecidos e protegidos no Brasil, prestam-se
a fornecer a todos a dignidade. Nesse âmbito, o artigo 1º, inciso III
da Constituição de 1988 elege a dignidade da pessoa humana como
um dos fundamentos da República Federativa, comprovando o acerto
dessa concepção no sentido da primazia e cuidado para com os di-
reitos fundamentais na escolha das finalidades das políticas públicas.
Portanto, levando em consideração que o respeito e a pro-
moção aos direitos fundamentais são condições sine qua non da
dignidade da pessoa humana, um Estado que se pretende democrá-
tico de direito, balizará seu ordenamento jurídico nesse compasso,
buscando garantir acesso universal a esses direitos. Essa promoção,
por seu turno, materializar-se-á justamente pelos programas de ação
desse Estado, que consistirão justamente em políticas públicas, ju-
ridicamente concebidas, executadas, controladas e avaliadas, no
chamado ciclo das políticas públicas.

2.2. O CUSTO DOS DIREITOS E O MÍNIMO EXISTENCIAL


Sabe-se que toda atividade estatal implica em custos, não sendo
diferente com as políticas públicas. Por certo, mesmo que se recor-
ra àquela clássica divisão, que separa os direitos fundamentais, em
relação ao Poder Público, entre aqueles que exigem uma omissão,
em postura passiva de respeito, e aqueles que exigem ação, em uma
postura ativa de prestação, em todo caso haverá dispêndio de recursos.
A valer, partindo dessa divisão entre “gerações de direitos
fundamentais”, nos moldes propostos, por exemplo, pelo pensador
italiano Norberto Bobbio, (2004) é corriqueiro que se associe os cha-
mados direitos de liberdade – identificados como direitos de primeira
geração – , reconhecidos como de primeira geração, a uma postura
exclusivamente passiva do Estado, portanto, livre de custos.
Tal concepção remonta à tradição contratualista liberal, no
MICCAEL PARDINHO NATAL 61

sentido de que indivíduos fundam o “Leviatã”, porém resguardam


para si um núcleo mínimo de liberdades – direito de ir e vir, pro-
priedade privada e liberdade de expressão, por exemplo – , que são
oponíveis ao Estado criado. Com efeito, a matriz de pensamento
liberal clássica pressupõe um indivíduo que precede a coletividade
e, por isso, é responsável por fundá-la, negociando os termos de
surgimento da sociedade e do Estado.
Nesse compasso, em primeiro lugar, sem desconsiderar a
importância didática da classificação de direitos fundamentais em
gerações – notadamente no que tange à facilitação da visualização
do processo dialético de suprassunção e consolidação de diversas
matizes de direitos, em função dos eventos históricos – , não há que
se conceber uma divisão estanque dessas gerações. Com efeito, os
direitos fundamentais guardam uma interconexão entre si, sendo,
reciprocamente, a condição para o exercício uns dos outros, com-
pondo a dignidade da pessoa humana.
Desse modo, ainda que a proximidade histórica informe di-
retamente a maior ou menor assimilação dessas gerações de direitos
– por certo, aqueles direitos reconhecidos a maior tempo gozam de
uma assimilação mais acentuada – , deve-se evitar uma hierarquização
dos direitos, de modo a crer, por exemplo, que direitos sociais estão
submissos em relação aos direitos individuais.
Em segundo lugar, como trataram de esclarecer Stephen
Holmes e Cass Sunstein em sua obra The cost of rights:why liberty de-
pends on taxes, é equivocado concluir que os direitos de liberdade não
demandam uma postura ativa do Estado (1999, p. 43-48). Tomando
por exemplo o direito à propriedade, considerando que o exercício
pacífico de tal direito reclama uma profilaxia e uma proteção por meio
da segurança pública, há gastos e uma política pública, que resguarda
seu gozo. Colocando noutros termos, em última ratio as liberdades
individuais sempre dependerão da tutela do Estado enquanto titular
do monopólio do uso legítimo da força (gewaltmonopol des staates),
conforme assinala Max Weber (2003, p. 9-12).
62 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Seguindo nessa mesma linha de raciocínio, em todo caso,


sempre há a possibilidade de buscar tutela do Estado por meio
do Poder Judiciário, para fazer valer aqueles direitos individuais,
emprestando-se da cogência de decisões judiciais para opor tais
prerrogativas face os outros indivíduos. Por certo, a manutenção
da máquina judiciária, tal qual a estrutura da segurança pública,
implica em custos à Administração. Assim, não se mostra razoável
conceber que existam direitos sem custos coletivos, ou que reclamem
única e exclusivamente uma postura omissivo-absenteísta por parte
do Estado, mesmo em se tratando de liberdades individuais.
Ou seja, a proteção e promoção de qualquer direito funda-
mental, como visto, reclamam políticas públicas, que, por seu turno,
demandam gasto estatal. A escassez dos recursos tem como exau-
rimento lógico a necessidade de racionalização nos gastos, o que
compõe o escopo do próprio princípio da eficiência, que informa
toda a atividade administrativa, nos termos postos pela Carta Política.
Assim, no âmbito do ciclo das políticas públicas, será travado debate
quanto à eleição de fins prioritários a serem perseguidos.
Nesse ponto específico, lidando com a relação existente entre
políticas públicas e direitos fundamentais – nos moldes lançados
acima – merece destaque a noção alcunhada como mínimo existencial.
A ideia de mínimo existencial é uma construção oriunda da Alemanha
do segundo pós-guerra, no sentido que existem condições mínimas de
subsistência, sem as quais não será possível uma existência digna em
que se observe ambiente favorável à manifestação da própria persona-
lidade (SARLET, 2008, p. 21). Importante esclarecer que não se trata
simplesmente de um aspecto meramente biológico, que diria mais
respeito ao próprio direito à vida, referindo-se de modo mais acertado
às condições sócio-econômico-culturais mínimas, que permitirão, em
tese, o desenvolvimento de uma individualidade identitária, que acaba
por ser o centro da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2015).
De fato, a diginidade é o espaço em que podem manifestar-se
os modos de crer, ser e fazer, mediante o gozo dos direitos. Nesse
MICCAEL PARDINHO NATAL 63

âmbito, tendo mínimo existencial uma relação de condição apriorís-


tica em relação aos direitos fundamenteis, Ingo Wolfgang Sarlet chega
a visualizar no próprio mínimo existencial um conteúdo de direito
fundamental (SARLET, 2017):
Convém relembrar, nesse contexto, que a atual noção de um direito
fundamental ao mínimo existencial arranca da ideia de que qualquer
pessoa necessitada que não tenha condições de, por si só ou com o
auxílio de sua família prover o seu sustento, tem direito ao auxílio
por parte do Estado e da sociedade...
Em termos de escolha de fins para os programas de ação gover-
namentais, levando em conta o custo dos direitos e a escassez acima
referidos, o mínimo existencial ocupa um locus privilegiado, sendo o
escopo mínimo dos direitos fundamentais. Se em uma ordem consti-
tucional comprometida com a dignidade da pessoa humana o cuidado
para com os direitos fundamentais é prioridade, a garantia do mínimo
existencial a todos deve figurar como uma “prioridade dentro das
prioridades”, no tocante às políticas públicas. Decerto, não há que se
conceber que a eleição dos gastos ocorra ao arrepio do amparo a pes-
soas em situação sócio-econômica que lhes prive de, minimamente,
ter possibilidade de desenvolvimento de sua personalidade.
A Constituição de 1988, ainda que não traga de modo expresso
e nominado o mínimo existencial, traz vários dispositivos que indi-
cam, de modo claro, uma preocupação com essa proteção básica e
mínima. Nesse jaez, tem-se como exemplo a previsão de “ações gover-
namentais na área da assistência social”, balizadas pela universalidade,
independentemente de contribuições à seguridade social, apontando
que, no Estado brasileiro, a vontade política é de que ninguém reste
desassistido e entregue a uma situação de miséria. De igual modo,
estabelece-se, conforme já referido, um sistema universal de saúde,
bem como há especial atenção para a educação básica.
A garantia do mínimo existencial informa ainda a atividade
jurisdicional no controle das políticas públicas. A saber, existem
diversas críticas no tocante ao controle das políticas públicas pelo
64 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Poder Judiciário – especialmente em sede de apreciação de deman-


das individuais, sem uma cosmovisão ampla em relação às políticas
públicas. Não obstante, por vezes, há sujeição do indivíduo a uma
situação periclitante tal que, estando ele sem acesso a uma política
pública que reverta o latente desrespeito à dignidade, estará o Judi-
ciário autorizado a intervir, justamente por força do compromisso
axiológico-constitucional, rompendo com flagrantes situações hostis
à dignidade humana.
Tal hipótese de intervenção compromissada com o mínimo exis-
tencial pode ser verificada, por exemplo, no caso do direito à moradia,
que não possui vinculações mínimas previstas no texto constitucio-
nal, de modo que, à mercê da discricionariedade da Administração,
corriqueiramente fica relegado a um limbo em termos de políticas
públicas (CONTI, 2015, p. 78-79). Nesse contexto, vislumbra-se a
possibilidade de mover o Poder Judiciário para a superação de situa-
ções episódicas e periclitantes, como, a título de ilustração, vítimas de
catástrofes naturais que restam desabrigadas. A decisão judicial, nesses
casos, terá supedâneo justamente na garantia do mínimo existencial.
Desse modo, tendo em conta o compromisso assumido na
ordem constitucional, a própria noção de discricionariedade da Ad-
ministração pública tem que ser considerada em termos. Isso porque,
muito embora haja espaço para juízos de oportunidade e conveniên-
cia, estes deverão ser exercidos à luz do compromisso com os direitos
fundamentais e com a dignidade da pessoa humana.
Não se trata de entregar aos administradores um papel em
branco, para que livremente e segundo seus juízos e arbítrios, es-
colham como operar a res publica – o que, por certo, configuraria
patrimonialismo. A discricionariedade deve estar atrelada à promo-
ção do interesse coletivo e o juízo, enquanto medida flexibilizadora,
recairá tão somente quanto à escolha de um modo – dentre diversas
outras maneiras possíveis – de se perscrutar tal interesse.
O conteúdo das políticas públicas, portanto, não está sujeito
de modo algum ao arbítrio de determinado gestor e/ou governo.
MICCAEL PARDINHO NATAL 65

Essa “reserva de intenções” pode ser operacionalizada por diversos


mecanismos de controle e avaliação, que compõem a chamada de-
mocracia monitorada, fortemente marcada por uma desconfiança
institucionalizada, de modo a garantir o alcance às finalidades de-
mocraticamente relevantes.

2.3. FEDERALISMO FISCAL BRASILEIRO


Tendo com clareza a noção de que todo direito implica em
custos, cumpre tratar, ainda que brevemente, sobre o federalismo
fiscal brasileiro. A valer, aprofundar-se na questão não é escopo deste
artigo, não obstante, a questão do financiamento da atividade es-
tatal – incluindo as políticas públicas de promoção dos direitos
fundamentais – pressupõe arrecadação e repartição de receitas entre
os entes da federação.
Nesse âmbito, Heleno Tavares Torres é enfático asseverando
que, no federalismo fiscal cooperativo, a Administração tem “...o meio
para o melhor cumprimento das suas funções, especialmente aquelas
de eficiência organizativa do Estado, ao aprimorar sua capacidade de
cumprimento das competências constitucionais” (2014, p. 43).
Essa concepção – do federalismo fiscal como meio de opera-
cionalização do cumprimento das competências constitucionalmente
instituídas – pode ser compreendida à medida que se contempla que,
no Brasil, entre os entes, não há uma identidade entre a competên-
cia arrecadatória e distribuição de encargos. De fato, o governo está
dividido em central (União), local (estados e Distrito Federal) e local
(municípios e Distrito Federal), que têm repartidas, entre si, diversas
atribuições constitucionais, ainda que, nem sempre, tenham arreca-
dação suficiente para fazer frente a essas obrigações.
O descompasso entre competência para arrecadar e as com-
petências fundamentais é explicado pelo fato de que estas últimas
são distribuídas levando em conta a maior ou menor capacidade de
penetração dos bens e serviços na ampla extensão territorial do país
(CONTI, 2010, p. 18). Ou seja, a distribuição de encargos, à luz da
66 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

eficiência, é pautada pela busca da melhor logística de fornecimento


de uma utilidade social, levando ainda em conta as vicissitudes locais,
dada a extensão continental do Brasil.
De igual modo, a competência arrecadatória é distribuída de
modo a atribuir a atividade de arrecadação àquele ente que melhor
pode operacionalizá-la e fiscalizar seu fiel cumprimento, tendo em
conta, por exemplo, os fatos geradores dos tributos (CONTI, 2010,
p. 22). Nesse contexto, nem sempre aquele ente que possui maior
capacidade para arrecadar será aquele mais adequado para prestar o
serviço. Por certo, nesse jaez, verifica-se, a título de exemplo, que os
municípios, entes com menor potencial arrecadatório, é inflado de
diversas competências, dado sua aptidão de apreender o interesse local
e proporcionar bens e serviços nesse âmbito.
Nesse contexto, sabendo que a principal fonte de recursos do
Poder Público é a tributação (CONTI, 2010, p. 22) esse gap existente
entre arrecadação e encargos deve ser institucionalmente superada,
sob pena de restarem inviabilizadas as ações governamentais – como as
políticas públicas de promoção de direitos fundamentais – e compro-
meter a autonomia dos entes, que é inerente ao próprio federalismo.
É justamente nesse sentido que o federalismo fiscal cooperativo ope-
racionaliza a realização das competências constitucionais, nos termos
propostos por Heleno Tavares Torres, conforme citação alhures.
A valer, a distribuição do produto arrecadado serve “... à sufi-
ciência de recursos pelo exercício das competências materiais de cada
unidade do federalismo, que deve ser a fonte principal das receitas
públicas, segundo os princípios do sistema tributário” (TORRES,
2014, p. 45).
Por meio do federalismo cooperativo, a Constituição Federal
estabelece complexo sistema de repasses, em diversas modalidades,
incluindo fundos contábeis, que servem para contornar o desajuste
mencionado. Assim, a nível constitucional, é assegurada a autono-
mia dos entes, garantindo que haja receita para o cumprimento das
obrigações atribuídas, a fim de evitar submissão dos entes com menor
MICCAEL PARDINHO NATAL 67

potencial arrecadatório.
Os direitos têm custos, de tal sorte que, o mesmo texto cons-
titucional que os prevê e os reveste de fundamentalidade, também
cuida de garantir, ao Poder Público, meios de cumprimento dos res-
pectivos encargos.

3. DEMOCRACIA MONITORADA
3.1. DESCONFIANÇA INSTITUCIONALIZADA
O modelo de democracia amplamente presente nos Estados é
o da democracia indireta, em que o exercício do poder reclama a me-
diação de representantes. Nessa configuração, por certo, paira sempre
uma desconfiança, dado que os administrados, em regra, têm alguém
atuando em seu nome, tomando decisões que afetam a coletividade,
imperativas e que envolvem o patrimônio público.
Assim, é congruente que o próprio regime democrático traga
em seu bojo “regras do jogo”, que balizem o exercício do poder. Em
um Estado Democrático de Direito, essas regras apriorísticas estão
insculpidas no ordenamento jurídico, sendo o constitucionalismo
um “dique” que, informado pelos direitos e garantias fundamentais,
protege o próprio regime democrático de arroubos da maioria e de
contingências, que ameacem aqueles mesmos direitos e garantias.
Mesmo naquelas acepções mais minimalistas de democracia,
existirá esforço em conceituar tal regime destacando que ele pauta-se
por um conjunto de regras “...que estabelecem quem está autori-
zado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos...”
(BOBBIO, 1986, p. 18).
Outrossim, para além da desconfiança oriunda do próprio fato
de o poder ser exercido por representação, já no fim do século XX, Nor-
berto Bobbio indicava que a democracia colecionava algumas promessas
não cumpridas, dentre as quais o teórico italiano destacava: criação de
uma sociedade pluralista; eliminação das oligarquias; representantes
que atendam aos interesses da coletividade, não interesses privados;
68 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

democratização de todos os espaços em que se exerce poder; eliminação


do poder invisível, como, por exemplo máfia e influência política da
maçonaria; educação para a cidadania (BOBBIO, 1986, p. 21-29).
Tal estado de coisas retroalimenta a cultura da desconfiança,
exigindo mecanismos de controle, que institucionalizem esse ceticis-
mo. Valendo mencionar que, com a revolução tecnológica – em que
os particulares incluíram-se mais rapidamente do que o Estado – e
êxodo rural, emergem cidadãos mais críticos e exigentes em relação
aos governos, acentuando a desconfiança (SCHULER, 2017).
Nesse contexto, Marianna Montebello Willeman indica que
(2013, p. 225):
Os pilares dessas experiências democráticas contemporâneas, que
começaram a ganhar crescente reforço nas últimas décadas, são o
escrutínio, o controle público e o monitoramento constante do exer-
cício do poder político.
Com efeito, a suspeita influencia a própria legislação, que cria
mecanismos de controle e de freios e contrapesos para o exercício do
poder, incluindo, nesse ínterim, a atividade administrativa. Há ainda
verdadeira expansão dos instrumentos de controle, sendo observado
também um fenômeno de “economia de confiança”, em que há, de
certo modo, um deslocamento de competências administrativas aos
próprios órgãos de controle, de acordo com o crédito ou descrédito
das instituições (MARQUES NETO, 2017, p. 21-38).
Quanto a esse controle, de acordo com Guillermo O’Donnell,
é possível notar a existência tanto de um accountability vertical, que
diz respeito à responsividade em relação aos eleitores, quanto um a
de um accouncatility horizontal, que é levado a cabo pelas próprias
agências estatais legalmente autorizadas ao exercício do controle (apud
WILLEMAN, 2013, p. 232-233). Nota-se, desse modo, que o accou-
ntability horizontal trata-se propriamente de uma manifestação da
desconfiança incorporada em instituições.
Verifica-se, assim, que a desconfiança institucionaliza-se, produ-
zindo um modelo de democracia monitorada, ou vigiada. Limites são
MICCAEL PARDINHO NATAL 69

impostos tanto a nível legislativo, precedendo a atividade administrativa,


bem como a posteriori por meio de mecanismos que operacionalizam
os receios dos administrados em relação à Administração.
Porém, nesse sentido, há que se tomar cuidado para não su-
perinflar as competências dos órgãos de controle, nem, a pretexto
de proteger o interesse público, engessar a atuação administrativa
e submeter escolhas que afetam toda a coletividade ao arbítrio de
agentes do controle, ferindo, justamente, o interesse público. De
fato, sempre há o risco de um neopatrimonialismo, caso o interesse
público fique contingenciado ao arbítrio dos controladores (MAR-
QUES NETO, 2017, p. 26-29).
A valer, ao fim, são os membros dos poderes Executivo e Legis-
lativo que estão sujeitos ao escrutínio popular, sendo eleitos mediante
sufrágio e recebendo pressões populares (accountability vertical). Não
se pode, em razão de uma crescente desconfiança, transferir a com-
petência administrativa aos órgãos de controle, conforme aquele
fenômeno de economia de confiança referido acima, sob pena de se
deparar com uma situação de “Quis custodiet ipsos custodes?”.3
As atividades de fomento, serviço público e poder de polícia são
de competência da Administração Pública, que foi eleita democrati-
camente, para, nos limites da juridicidade, decidir como realizar tais
encargos. Repise-se, porém que, como já ventilado no item 2.2 deste
artigo, à luz da constitucionalização, a própria discricionariedade está
limitada pelos valores constitucionais.
O juízo de oportunidade e conveniência serve para conferir
certa margem de flexibilidade aos administradores, para que estes,
na busca pelo interesse público, façam frente à realidade eminente-
mente dinâmica, sempre respeitando o compromisso com os direitos
fundamentais. A constitucionalização de valores também reflete a des-
confiança democrática, não admitindo arbítrios individuais, sejam dos
administradores ou dos controladores.

3 Quem vigia os vigilantes? (tradução nossa).


70 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Assim, a desconfiança/suspeita é coerente com o modelo re-


presentativo de democracia, tendo como consequência congruente
a institucionalização de meios de controle sobre os agentes admi-
nistrativos. O que não deve ocorrer, sob pena de se trair o próprio
modelo de democracia monitorada – que, acima de tudo, é marcado
pelo estabelecimento de limites, freios e contrapesos – é transferir
competências administrativas aos órgãos de controle, usando a des-
confiança como pretexto para ingerências antidemocráticas. A rigor,
tais órgãos estão incumbidos de verificar o respeito aos limites legais
e avaliar os resultados das ações estatais à luz das finalidades eleitas
pelo ordenamento jurídico.

3.2. DESCONFIANÇA E FINANCIAMENTO DAS POLÍTICAS


PÚBLICAS NO BRASIL
Ao reboque da desconfiança democrática, no que diz respeito
aos direitos fundamentais – tendo em conta seu protagonismo no
Estado Democrático de Direito, bem como a existência de custos
das políticas públicas – o ordenamento jurídico brasileiro traz regras
e princípios que visam não sujeitar os direitos fundamentais a con-
tingências e arbítrios.
De fato, a atividade de planejamento está intimamente ligada
às políticas públicas, que, rememore-se, são programas de ação utiliza-
dos, inclusive, para a promoção e proteção de direitos fundamentais.
Se não for assim – política pública integrada em planejamentos e
em planos, com respectiva previsão orçamentária, conforme o orde-
namento dispõe – , corre-se o risco de tornar-se ao que ocorreia no
Welfare State, quando as políticas públicas, relegadas ao campo político
e divorciadas do direito, tinham status eminentemente programático,
com pouca operacionabilidade (BUCCI, 2002, p. 262-263).
Por meio dos planos, que representam uma direção políti-
ca do Estado, uma decisão política é sistematizada, no esquema
meio-fim, tratando-se, assim, de peça técnica, mas também de do-
cumento comprometido com os objetivos regidos pela axiologia
MICCAEL PARDINHO NATAL 71

constitucional (BERCOVICI, 2006, p. 145-148). O planejamento é


mais amplo e pode ser composto de diversos planos que, dialogando
entre si, encaminhem a atuação estatal em determinada direção. No
Brasil, os planos são vinculados ao orçamento, de modo a garantir
a operacionalidade mencionada acima.
É justamente nesse sentido que o artigo 174 da Constituição
Federal de 1988, inserto no “Título VII – Da ordem econômica e
financeira” estabelece que: “Como agente normativo e regulador da
atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de
fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para
o setor público e indicativo para o setor privado”.
No tocante aos investimentos públicos, o texto constitucio-
nal prevê instrumentos que forneçam insumos às políticas públicas,
tratando-se de documentos que devem estar de acordo com o plane-
jamento geral, são eles: plano plurianual; diretrizes orçamentárias; e
orçamento anual. Nesse âmbito, todavia, não se pode reduzir o plano
ao orçamento, simplesmente, sob pena de se cair em um truísmo tec-
nocrata, extraindo da atividade de planejamento seu caráter de fixação
de diretrizes políticas (BERCOVICI, 2006, p. 156-157).
Nada obstante, a existência de tais instrumentos constitucio-
nais, por meio de vinculações mínimas, protegem as políticas públicas
de promoção dos direitos fundamentais, evitando que fiquem des-
guarnecidas de recursos. De nada adiantaria a previsão abstrata dos
direitos, sem a afetação dos recursos necessários à sua garantia, de tal
sorte que incumbe ao legislador democraticamente eleito estabelecer
vinculações e balizas orçamentárias mínimas (SCAFF, 2016).
A título de exemplo, mesmo após a adoção do chamado “novo
regime fiscal” – adotado a partir da inclusão Emenda Constitucional
95 de 15/12/2016 – o investimento em saúde e educação, incluídas
nos gastos primários, tem um piso mínimo de 15% (quinze por cento)
e 18% (dezoito por cento), respectivamente. A valer, há diversas crí-
ticas em relação à aludida reforma constitucional, no sentido de que
72 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

para expandir tais percentuais, o gestor deverá realocar gastos, em


respeito ao teto, caso contrário sobrevirá correção apenas de acordo
com a inflação. De qualquer modo, verifica-se a constitucionalização
de uma vinculação mínima de investimento mínimo em políticas
públicas ligadas a direitos fundamentais.
O acerto dessas vinculações orçamentárias – enquanto reflexo
daquela desconfiança democrática em relação à Administração Públi-
ca, em um contexto em que direitos fundamentais devem ter um locus
privilegiado – pode ser observado, quando se verifica a precariedade de
políticas públicas referentes a direitos que não são assim protegidos.
Nesse jaez, como exemplificação, no caso do direito social à moradia,
sem um trato constitucional mais vertical, a questão fica sujeita ao
plano infraconstitucional e entre os entes, não se verifica uma unici-
dade, no território nacional, em termos de políticas públicas.
Mesmo o já mencionado federalismo fiscal cooperativo tra-
ta-se de desenho institucional dedicado ao não “abandono” das
políticas públicas, garantindo que haja insumos à sua fiel execução. É
nesse sentido que se estabelecem repasses obrigatórios, contornando
aquele descompasso entre competência arrecadatória e distribuição
de encargos. No mesmo sentido, o ordenamento jurídico diver-
sos fundos, como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
(FUNDEB), o Fundo Nacional de Saúde (FNS) e os fundos de
participação dos estados e municípios.
A saber, no Estado Democrático de Direito, as políticas públi-
cas, por meio das atividades de planejamento e planificação, devem
estar devidamente institucionalizadas e protegidas de contingências de
governos, recebendo os recursos necessários. Somente a partir de tal
institucionalização, ter-se-á continuidade e efetividade dos programas
de ação. Igualmente, ter-se-á ambiente adequado ao controle (accou-
ntability) democrático, que será balizado pelo próprio ordenamento
jurídico, ainda que respeitando a liberdade conferida pela própria
juridicidade; liberdade condicionada pelos valores constitucionais.
MICCAEL PARDINHO NATAL 73

4. CONCLUSÃO
Neste trabalho, indicou-se que o Estado Democrático de Direito
caracteriza-se por um compromisso especial, a nível constitucional, para
com os direitos fundamentais. Nesse âmbito, nota-se que tais direitos,
com seu aspecto axiológico-deontológico, operam em um esquema de
“dever-ser”. Nada obstante, para que haja a devida promoção e proteção
desses direitos, a partir da atuação estatal, deve-se adotar um esquema
de “meios e fins” e isso, em relação ao Estado, dá-se por meios de pro-
gramas de ação que são justamente as políticas públicas.
Nesse compasso, não se pôde olvidar que qualquer atividade
estatal reclama o dispêndio de recursos – a valer, mesmo o respeito às
liberdades individuais, que, classicamente, é associado a uma postura
passiva do Poder Público, reclama políticas públicas de proteção e
atuação do Estado, que encerram custos – , de tal sorte que, ao se falar
em garantia de direitos fundamentais, deve-se pensar nos insumos que
as políticas públicas respectivas consumirão.
Salientou-se que, nesse contexto em que, os direitos possuem
custo e, ao mesmo tempo que há demanda por políticas públicas em
relação a esses direitos, tem-se também uma limitação dos recursos,
os dispêndios devem pautar-se por um horizonte normativo calcado
pela noção de mínimo existencial.
Ainda quanto ao custo dos direitos e financiamento das respecti-
vas políticas públicas, verificou-se que o federalismo fiscal cooperativo
– que, por meio de complexos esquemas de repasses, visa superar o
desajuste existente entre capacidade arrecadatória e a distribuição de
encargos entre os entes, garantindo-lhes autonomia – é importante
saída institucional, no sentido de guarnecer os programas de com
recursos. Isso porque tal arranjo político garante ampla penetração/
entrância das políticas públicas, mesmo quando o ente responsável
pela política pública não consegue angariar recursos mediante tributa-
ção, que é a principal fonte de receitas para a Administração Pública.
Mereceu destaque ainda um fenômeno denominado
74 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

democracia monitorada, em que, por meio do direito, notadamente


nesse contexto de escassez de recursos, institucionaliza a descon-
fiança em relação ao Poder Público, mitigando a possibilidade de
arbítrios nas escolhas políticas que concernem à toda coletividade.
A desconfiança é exaurimento da própria condição de ver-se repre-
sentado, em vez de se ter o exercício direto do poder – o que não se
mostra cabível em nível amplo em sociedades complexas, plurais e
fragmentadas. De fato, se as políticas públicas estão ligadas a direitos
cuja fundamentalidade reclama especial proteção, não podem tais
políticas ficar sujeitas às contingências relacionadas a patrimonialis-
mos e interesses privados parasitando gestões administrativas, sendo
este o objeto da desconfiança tratada.
É nesse contexto que o controle – tanto aquele exercido pela
verticalmente pela população, que diz respeito diretamente ao capital
político dos representantes e pretensos representantes, quanto aquele
institucionalizado e exercido horizontalmente pelos órgãos estatais de
controle – ganha protagonismo. Não obstante, destacou-se o cuida-
do necessário para que tal controle não superinfle as competências
dos órgãos de controle, conferindo-lhes competências que, em um
regime democrático, devem figurar nas mãos dos representantes de-
mocraticamente eleitos, mesmo porque agentes estatais de controle
estão menos sujeitos àquele controle popular alhures aludido.
A valer, gestores, para fazer frente às vicissitudes e dinâmicas
da realidade complexa e contingente, gozarão de discricionariedade
para efetuar juízos de oportunidade e conveniência. Nada obstante,
tal juízo deverá sempre ser adstrito à persecução do interesse público
e à especial atenção exigida pelos direitos fundamentais.
Ainda a partir da institucionalização da desconfiança e sem
perder de vista o custo dos direitos, versou-se sobre a necessidade de
que políticas públicas, por meio de planos e planejamento sejam per-
meadas por juridicidade, não ficando alheias ao direito. Com efeito,
no Estado Democrático de Direito, não há que se conceber políticas
públicas como programas de intenções despidos de normatividade
MICCAEL PARDINHO NATAL 75

– como ocorria ao tempo do Welfare State. Somente assim, os direitos


terão real proteção, com a cogência provinda do ordemante, que é
operacionalizada por meio das atividades de planejamento e planifi-
cação, que garantirão recursos para as políticas públicas.

REFERÊNCIAS
AITH, Fernando. Políticas públicas de Estado e de governo: instrumentos de consolida-
ção do Estado Democrático de Direito e de promoção e proteção dos direitos humanos.
In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurí-
dico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 217-245.
BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das Políticas Públicas em matéria de
direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democráti-
co. In: SARLET, Ingo Wolfgang e TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos Fundamentais
orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 111-147.
BERCOVICI, Gilberto. Planejamento e políticas públicas: por uma nova compreensão
do papel do Estado. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexões
sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 143-162.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução
Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Texto promulgado em
05 de outubro de 1988. Brasília, 05 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_ 03/constituicao/constituicaocompilado. htm> Acessado em 04 out. 2016.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e políticas públicas. São Paulo: Sa-
raiva, 2002.
CONTI, José Maurício. Considerações sobre o federalismo fiscal brasileiro em uma
perspectiva comparada. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury; BRAGA,
Carlos Eduardo Faraco (Org.). Federalismo Fiscal: questões contemporâneas. São Paulo:
Conceito, 2010. p. 15-34.
CONTI, José Maurício; CARVALHO, André Castro. Direito financeiro e direito à mo-
radia: a concretização mediante a judicialização. In: DOMINGUES, José Marcos (Org.).
Direito financeiro e políticas públicas. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2015. p. 77-83.
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: Why liberty depends on taxes.
Nova Iorque: W. W. Norton And Company, 1999.
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Os sete im-
passes do controle da Administração Pública no Brasil. In: PEREZ, Marcos Augusto;.
SARLET, Ingo Wolgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mí-
nimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolgang;
76 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais orçamento e “reserva do possível”.


Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 11-53.
SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas aproximações entre direitos sociais e mínimo exis-
tencial. Consultor Jurídico, 01 set. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/
2017-set-01/direitos-fundamentais-algumas-aproximacoes-entre-direitos-sociais-mini-
mo-existencial>. Acesso em: 15 mar. 2018.
SARLET, Ingo Wolfgang. O direito ao mínimo existencial não é uma mera garantia de
sobrevivência. Consultor Jurídico, 08 maio 2015. Disponível em: <https://www.conjur.
com.br/2017-set-01/ direitos-fundamentais-algumas-aproximacoes-entre-direitos-so-
ciais-minimo-existencial>. Acesso em: 15 mar. 2018.
SCAFF, Fernando Facury. Crônicas de direito financeiro: Tributação, guerra fiscal e políti-
cas públicas. São Paulo: Conjur, 2016.
SOUZA, Rodrigo Pagani de (Org.). Controle da Administração Pública. Belo Horizonte:
Fórum, 2017. p. 21-38
SCHULER, Fernando. Mal-estar da democracia. 2017. Disponível em: <https://www.
fronteiras.com/artigos/o-mal-estar-da-democracia>. Acesso em: 20 fev. 2018.
TORRES, Heleno Tavares. Constituição financeira e o federalismo financeiro cooperati-
vo equilibrado brasileiro. Fórum Direito Financeiro e Econômico, Belo Horizonte, ano 3,
n. 5, p.25-54, abr/ago 2014.
WEBER, Marx. A política como vocação. Tradução Maurício Tragtenberg, Brasília: Edito-
ra Universidade de Brasília, 2003.
WILLEMAN, Marianna Montebello. Desconfiança institucionalizada, democracia mo-
nitorada e Instituições Superiores de Controle no Brasil. Revista de Direito Administrativo,
Rio de Janeiro, p.221-250, mai/ago 2013.
.
AÇÕES AFIRMATIVAS E DIREITO À EDUCAÇÃO
DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: A
PROTEÇÃO JURÍDICA DOS AUTISTAS
Rodrigo Gabriel Moisés1

1. INTRODUÇÃO
A luta pela defesa de uma sociedade inclusiva e contra todas
as formas de discriminação que impedem o exercício da cidadania
às pessoas com deficiência é relativamente recente, com conquistas
progressivas no aspecto de institucionalização de instrumentos in-
ternacionais de proteção e garantia de direitos a estas pessoas, com
respectiva incorporação nas constituições e legislações nacionais.
No campo do direito à educação, no decorrer destes avanços,
fortalece-se a crítica às práticas de segregação de estudantes encami-
nhados para ambientes especiais, geradores de exclusão nos espaços
escolares. As propostas de educação inclusiva preconizam que as escolas
devem acolher todas as crianças, independentemente de suas condi-
ções físicas, intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas ou outras.
Este foi o posicionamento adotado pela Convenção Internacio-
nal sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), outorgada
pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2006, ratificada por
vários países, inclusive pelo Brasil, que em seu artigo 24, garante a
educação inclusiva como um direito incondicional.
O conceito de pessoas com deficiência, pacificado a partir da
CDPD, com sua acepção ampla, engloba as pessoas com autismo,
1 Advogado, Professor, Diretor Geral da FASEM, doutorando em Ciências Jurídicas pela Uni-
versidade de Lisboa – rodrigo.gabriel@fasem.edu.br
78 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

que é categorizado como um Transtorno Global do Desenvolvimento


pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
relacionados à Saúde (CID-10).
Os estudos sobre o autismo também são recentes e encon-
tram-se em constante evolução, sendo caracterizado pela presença
de “deficits persistentes na comunicação social e na interação social
em múltiplos contextos, atualmente ou por história prévia”, de
acordo com a recente edição do Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais (DSM-V) da Associação Psiquiátrica Ame-
ricana (APA), que passou a adotar novo termo médico e englobador
de outras síndromes e transtornos, originalmente designado por
Autism Spectrum Disorders (ASD), que no Brasil foi traduzido para
Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).
Com o desenvolvimento dos estudos, ampliação das defi-
nições e maior acesso ao diagnóstico, em todo o mundo vem se
detectando uma maior incidência de casos de autismo. Segundo a
ONU, acredita-se ter mais de 70 milhões de pessoas com autismo
no mundo. Já uma pesquisa do Centro de Controle de Prevenção
de Doenças dos Estados Unidos, realizada em 2010, detectou a
existência de uma criança dentro do espectro autista para cada grupo
de 110 crianças de 8 anos de idade.2
Na medida em que esta realidade vem sendo descoberta, im-
põe-se à sociedade e ao Estado uma tomada de uma decisão de
efetiva inclusão que exigem esforços conjuntos para a concretização
destes valores.
Neste sentido, as políticas de discriminação positiva ou ações
afirmativas surgem como medidas de mitigação das desigualdades
e de inserção social das pessoas com deficiência, buscando assim a
construção de uma sociedade mais igualitária.
2 Conforme reportagem Pesquisa do CDC revela número alto de prevalência de autismo nos
EUA em crianças de oitos anos, além de grande aumento em relação a pesquisa anterior,
divulgada pela Revista Autismo. Disponível em: <http://www.revistaautismo.com.br/edic-
-o-0/numero-impressionante-uma-em-cada-110-criancas-tem-autismo>. Acesso em: 11 ago.
2017.
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 79

O presente estudo se propõe a investigar o direito à educação


das pessoas com autismo, partindo de uma justificativa jurídica das
políticas de inclusão e de ações afirmativas, tendo ainda como referên-
cia os principais documentos internacionais de proteção sobre o tema.
Por fim, tem como objetivo questionar a efetividade do direito à
educação das pessoas com TEA, e o papel que vem desempenhando o
Judiciário na construção deste novo modelo de inclusão que se propõe.

2. PRINCÍPIO DA IGUALDADE E AÇOES AFIRMATIVAS


2.1. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE FACE ÀS DESIGUAL-
DADES
A igualdade que aparece em destaque nas declarações interna-
cionais e nos textos constitucionais e legais, em muito se distancia
da realidade vivenciada no mundo fático. O que se deve buscar no
princípio impõem ir além de uma igualdade meramente formal, re-
presentada como uma uniformidade de tratamento perante a lei. Ao
contrário, seu alcance deve abranger também uma obrigatoriedade de
diferenciação no tratamento dos desiguais que implique numa maior
igualdade social, que vise a realizar a pessoa em sua dignidade.
Conforme leciona Walter Claudius Rothenburg (2008, p. 9
– 14), a complexidade de analisar o conceito jurídico de igualdade
compreende o fato de que ao mesmo termo abrange tanto as variações
de igualdade formal quanto de igualdade material, segundo diver-
sos critérios e distinções propostos, criando diferenciações relativas
à teoria e à prática (onde a igualdade formal equivale à igualdade
jurídica e a igualdade material corresponde a igualdade de fato); geral
e específico (a igualdade formal estabelece uma igualdade genérica e a
igualdade material uma igualdade específica); igualdade perante a lei
e igualdade na lei (a igualdade formal implica em uma igualdade de
aplicação, dirigida ao Executivo e ao Judiciário, já a igualdade material
em uma igualdade de formulação, dirigida ao Legislativo); liberal e
social (a igualdade formal como um direito individual de 1ª dimensão
80 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

e a igualdade material um direito social de 2ª dimensão).


Jorge Miranda ao comentar sobre esta dicotomia entre a igual-
dade jurídica/igualdade social ou igualdade perante a lei/igualdade
na sociedade, observa que enquanto a primeira, uma igualdade li-
beral, é inspirada numa concepção jusnaturalista, a segunda, como
igualdade material, encontra-se ligada a uma atitude crítica sobre a
ordem social e econômica existente e à consciência da necessidade
de sua modificação, e assevera que:
Os direitos são os mesmos para todos, mas como nem todos se
acham em igualdade de condições para os exercer, é preciso que
essas condições sejam criadas ou recriadas através da transforma-
ção da vida e das estruturas dentro das quais as pessoas se movem.
(2014, p. 268)
Com esta concepção de se efetivar uma igualdade material é
que se repete de forma abundante que se devem tratar igualmente os
iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade,
conforme a clássica lição de Aristóteles:
Pensa-se, por exemplo, que justiça é igualdade – e de fato é, embora
não o seja para todos, mas somente para aqueles que são iguais entre
si; também se pensa que a desigualdade pode ser justa, e de fato
pode, embora não para todos, mas somente para aqueles que são
desiguais entre si... Para pessoas iguais o honroso e justo consiste
em ter a parte que lhes cabe, pois nisto consistem a igualdade e a
identificação entre pessoas; dar, porém, o desigual a iguais, e o que
não é idêntico a pessoas identificadas entre si, é contra a natureza, e
nada contrário à natureza é bom. (1997, p. 228).
Tendo em vista esta máxima aristotélica, a grande dificuldade
reside exatamente em determinar, em cada caso concreto, quem são
os iguais ou desiguais e qual a medida dessa desigualdade.
Segundo critérios apontados por Canotilho (1993, p. 166-
167), a igualdade apresenta a forma de norma jurídica do tipo
princípio que se caracteriza por um grau de abstração relativamente
elevado e por traduzir “exigências de justiça”.
Conforme Boaventura e Sousa Santos:
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 81

O multiculturalismo progressista pressupõe que o princípio da igual-


dade seja utilizado de par com o princípio do reconhecimento da
diferença. A hermenêutica diatópica pressupõe a aceitação do se-
guinte imperativo transcultural: temos o direito a ser iguais quando
a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a
igualdade nos descaracteriza. (2003, p. 28)
O maior problema está no fator de discriminação, que deve ser
adequado, numa relação entre meio e fim, e lícito. Excluem-se desde
logo fatores “proibidos” e utilizam-se critérios rigorosos para avaliar
o cabimento de determinadas distinções.
Em estudo sobre o tema, Celso Antônio Bandeira de
Mello observa:
As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula
igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de corre-
lação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente
no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida,
desde que tal correlação não seja incompatível com interesses presti-
giados na Constituição. (2001, p. 17)
Ao analisar o princípio da igualdade Robert Alexy assevera que
sua aplicação ordena o tratamento jurídico igual, obrigatório, mas
que pode ser afastado nos casos em que haja fundamentos razoáveis e
corretos baseados em outros princípios constitucionais.
A assimetria entre a norma de tratamento igual e a norma de
tratamento desigual tem como conseqüência a possibilidade de com-
preender o enunciado geral de igualdade como um princípio da
igualdade, que prima facie exige um tratamento igual e que permite
um tratamento desigual apenas se isso for justificado por princípios
contrapostos. ( 2008, p. 411)
A abrangência do âmbito de proteção do princípio da igualdade,
em classificação apresentada por J. J. Canotilho e Vital Moreira (2007,
p. 339-342), revela três dimensões: a proibição do arbítrio, pois “nem
aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente
como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser
arbitrariamente tratado como igual”; a proibição de discriminação,
uma vez que “o tratamento desigual deve pautar-se por critérios de
82 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

justiça, exigindo-se, desta forma, uma correspondência entre a solução


desigualitária e o parâmetro de justiça que lhe empresta fundamento
material”; e a obrigação de diferenciação que corresponde ao “dever
de eliminação ou atenuação, pelos poderes públicos, das desigualdades
sociais, econômicas e culturais, a fim de se assegurar uma igualdade
jurídico-material”. A primeira exprime-se por meio de uma proibição
à discriminação indevida e, por isso, tem em mira a “discriminação
negativa”, ou apenas “discriminação”, o sentido usual do termo, que
assume uma conotação negativa. A segunda exprime-se por meio de
uma determinação de discriminação devida e, por isso, tem em mira
a assim chamada “discriminação positiva”, ou “ação afirmativa”.
As normas jurídicas devem não apenas ser aplicadas a todos
indistintamente e, nesse sentido, evitar “discriminações negativas”,
mas também favorecer de modo diferenciado aqueles que estejam em
situações de indevido desfavorecimento devido a condições sociais
ou pessoais de desvantagem. Como diz Sidney da Silva (2005, p.
50), “igualdade tanto é não-discriminar, como discriminar em busca
de uma maior igualização (discriminar positivamente)”.
A igualdade significa, portanto, evitar discriminações injustificá-
veis, proibindo-se o tratamento desigual de quem esteja numa mesma
situação, bem como promover distinções justificáveis, oferecendo um
tratamento desigual para quem esteja numa situação diferenciada. Ou
seja, o tratamento igual deve ser obrigatório se não houver razões suficien-
tes para o tratamento desigual, devendo neste último caso recair o ônus
argumentativo que justifique a aplicação da desigualdade.
Conforme Chaim Perelman (1996, p. 214) “a igualdade não
tem de ser justificada, pois é presumida justa: a desigualdade, pelo
contrário, se não é justificada, parece arbitrária, portanto injusta”.
Mas a discriminação tem de ser razoável, não podendo preju-
dicar desproporcionalmente os discriminados desfavoravelmente ou
beneficiar desproporcionalmente os discriminados favoravelmente,
pois nestes casos diferenciações tornam-se inconstitucionais.
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 83

Sem adentrar no debate se a proporcionalidade é um princí-


pio , uma regra ou máxima da proporcionalidade4 ou um postulado5,
3

o que importa não é a determinação do conceito mas o modo da


aplicação e da argumentação racionalmente fundamentada que se
adeque a uma proporcionalidade constitucionalmente adequada na
criação de ações afirmativas.
Para Jorge Miranda (2014, p. 308), o princípio da proporcio-
nalidade decompõem-se em três subprincípios: i) idoneidade ou
adequação, que corresponde a utilização de meio adequado à sua
prossecução; ii) necessidade do meio, que demonstra que é este,
entre os demais que poderiam ser escolhidos, que melhor satis-
faz, numa análise entre a melhor relação de custos e benefícios, a
realização do fim; iii) a racionalidade ou proporcionalidade stricto
sensu, que corresponde a uma justa medida, uma correta avaliação
da providência em termos quantitativos, para que ela não fique nem
aquém nem além do resultado pretendido.
Assim, a busca por tratamentos diferenciados que sejam justos e
que permitam uma aproximação cada vez maior do ideal de igualdade
é um desafio constante do Direito, tanto na sual elaboração quanto
na sua aplicação.

2.2. AS AÇÕES AFIRMATIVAS COMO FORMAS DE CON-


CRETIZAÇÃO DA IGUALDADE
Na busca de preservar o direito à diferença e eliminar as

3 Para Dworkin (1999, p. 15) os princípios são “exigências de justiça”, pois “o direito como
integridade pede que os juízes admitam, na medida do possível, que o direito é estruturado
por um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a eqüidade e o devido processo legal
adjeti.vo, e pede-lhes que os apliquem nos novos casos que se lhes apresentem, de tal modo
que a situação de cada pessoa seja justa e eqüitativa segundo as mesmas normas.”.
4 Conforme observa o tradutor da citada obra de Alexy (2008), Virgílio Afonso Silva, o ter-
mo “máxima da proporcionalidade” é a tradução direta do termo em alemão utilizado pelo
autor, mas pode ser menos apropriado que o termo “regra da proporcionalidade”, por ele
preferido, porque passa ao leitor brasileiro a ideia de que se trata de mera recomendação, e
não de um dever.
5 Para Humberto Ávila (2001, p. 4), “o chamado princípio da proporcionalidade não consiste
num princípio, mas num postulado normativo aplicativo (...) é que ele não pode ser deduzido
ou induzido de um ou mais textos normativos, antes resulta, por implicação lógica, da estru-
tura das próprias normas jurídicas estabelecidas pela Constituição brasileira.”
84 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

desigualdades injustificadas, o simples repulso à “discriminação ne-


gativa” não se mostra suficiente para afastar as desigualdades existentes
na sociedade, fazendo-se também necessária a construção da “discri-
minação positiva” ou “ação afirmativa”6.
Nesse contexto, surgiram em ordenamentos jurídicos, como no
da Inglaterra e Índia, medidas legais voltadas a garantir a harmonia
nas relações sociais marcadas até então pelo desequilíbrio, favorecen-
do o acesso de grupos marginalizados a bens jurídicos fundamentais,
tendo sido nos Estados Unidos, principalmente nas décadas de 1960
e 1970, tanto por políticas públicas efetivadas pelo Governo, quanto
por decisões da Suprema Corte, que atividades com essa natureza
tomaram monta e passaram a influenciar vários países do mundo
(GOMES, 2001a, p. 39).
Entre as várias definições doutrinárias, no Brasil destaca-se o
conceito apresentado por Joaquim Barbosa Gomes que apresenta uma
concepção bastante abrangente:
Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão con-
cebidos por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de
competência jurisdicional, com vistas à concretização de um ob-
jetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva
igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm
direito. (2001b, p. 40)
Nessa concepção mais ampla, qualquer medida que vise me-
diatamente à inclusão social, política ou econômica de um grupo de
certo modo fragilizado mediante o estabelecimento de tratamento
jurídico desigual é uma medida de ação afirmativa.
As ações afirmativas estão baseadas assim na busca da con-
cretização da igualdade e da dignidade humana, devendo o Estado,
juntamente com a sociedade, se empenhar para que estes princípios
sejam realizados, coibindo as práticas discriminatórias e respeitando

6 Conforme Joaquim Barbosa Gomes (2001b, p. 39), nos Estados Unidos, “affirmative action”;
na Europa, “discrimination positive” ou “action positive”, expressões em inglês e francês,
respectivamente.
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 85

a premissa de que está implícito no conceito de igualdade o conceito


de diferença, e que o diferente deve receber o tratamento necessário
para que seja igualado aos demais. O objetivo imediato das medidas
de ação afirmativa é a redução de desigualdades fáticas.
As ações afirmativas se adequam assim dentro das funções pro-
mocionais do Direito, conforme descrito por Bobbio (2007, p. 16-37),
uma vez que utilizando uma técnica de encorajamento, por meio de
estímulos e vantagens,tambémdesignadascomo“sanções premiais ou posi-
tivas” que se traduzem em consequências jurídicas favoráveis, de modo
coativo ou não, intervém para promover comportamentos desejados,
com vistas a modificar a realidade.
Para Michael Sandel (2011, p. 213), o argumento da defesa da
diversidade se justifica em nome do bem comum, tanto da sociedade
quanto das escolas que adotam as ações afirmativas, pois um corpo
estudantil com diversidade permite que os estudantes aprendam mais
entre si, além do que que possibilita que minorias possam assumir
posições relevantes na vida pública e profissional, contribuindo para
avanços culturais e sociais.
No Brasil, a discussão no âmbito do Judiciário sobre as ações
afirmativas voltadas para a educação foi realizada no ano de 2012 por
ocasião do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da Ar-
guição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186,
ajuizada em 2009, que visava impugnar a política de cotas étnico-raciais
para seleção de estudantes da Universidade de Brasília (UnB). Nesta
oportunidade, em que o STF julgou constitucional a medida adotada,
o Ministro Marco Aurélio assentou que as ações afirmativas devem ser
utilizadas na correção de desigualdades, e que “a meritocracia sem igual-
dade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia”. Já
o Ministro Carlos Aires Britto afirmou: “nossas relações sociais de base
não são horizontais. São hegemônicas, e, portanto, verticais”.7

7 Conforme íntegra da decisão disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verPro-


cessoAndamento.asp?numero=186&classe=ADPF&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamen-
to=M>. Acesso em: 11 jul. 2017.
86 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Pelo exposto, pode-se concluir que as políticas de ação afirmati-


va ou de discriminação positiva estão fundamentadas em princípios da
dignidade humana e da igualdade, na sua concepção material; operam
mediante o estabelecimento de tratamentos jurídicos diferenciados de
modo a fomentar a igualdade fática; e que para serem constitucionais,
devem ser proporcionais, uma vez que implica vulnerações ao princí-
pio da igualdade jurídica. Depreende-se deste raciocíonio que o ônus
argumentativo é de quem pretende o estabelecimento de políticas
de ação afirmativa, uma vez que o tratamento jurídico igual é orde-
nado se não houver razões suficientes para um tratamento jurídico
desigual, ressaltando que a argumentação não se resume a fundamen-
tos jurídicos e dogmáticos, mas absorve argumentos práticos gerais,
inclusive empíricos (sociológicos, biológicos, históricos, etc.). Com
implementação de medidas que seguem estes critérios, nas palavras de
Jorge Miranda (2008, p. 21), “espera-se conduzir para uma sociedade
inclusiva, uma sociedade de todos e para todos.”

3. GARANTIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO DAS PES-


SOAS COM O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA
3.1. QUESTÕES CONCEITUAIS: PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
E PESSOAS COM O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

3.1.1. PESSOAS COM DEFICIÊNCIA


Utilizar a terminologia mais adequada para designar um grupo
de pessoas é de fundamental importância para sua proteção e inclu-
são, pois a compreensão e uso das expressões corretas colabora para
a compreensão de situações, evitando-se indesejáveis discriminações.
Nesse sentido, utilizar a nomenclatura correta que compreende
a definição de pessoas com deficiência não é apenas uma questão de
vocabulário, mas de inclusão social, respeito e superação de precon-
ceitos e estereótipos. Termos usualmente utilizados podem transmitir
ideias equivocadas ou informações incorretas. Assim surge a necessi-
dade de adotar conceitos corretos sobre a nomenclatura a ser utilizada
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 87

para designar pessoas com deficiência.


Deve-se esclarecer a dificuldade de estabelecer um único termo
correto, válido em todos os tempos e espaços, na medida em que, a cada
época são utilizados termos cujo significado seja compatível com os
valores vigentes em cada sociedade enquanto esta evolui em seu relacio-
namento com as pessoas que possuem este ou aquele tipo de deficiência.
Já foram utilizados no passado termos como aleijado, defei-
tuoso, incapacitado, inválido, excepcional, retardado, mongoloide,
deformado, cocho, manco, imperfeito, dentre outros, enfatizando
mais a deficiência do que a pessoa. Estas e outras expressões, ao rela-
cioná-las com a atualidade, denotam evidente violação ao princípio
da dignidade da pessoa humana, na medida em que utilizam termos
que segregam e diminuem os valores dos indivíduos com deficiência
(GOLDFARB, 2009, p.30).
Por sua vez, o termo “pessoa portadora de deficiência” passou
a ser adotado a partir de 1981, quando a ONU anunciou o Ano In-
ternacional das Pessoas Deficientes. Percebe-se, posteriormente, que
tal terminologia foi adotada em várias legislações.8 Todavia, o foco
acabou centralizado na expressão “portador” ao invés de “pessoa”,
razão pela qual o termo pessoa portadora de deficiência passou a ser
questionado, eis que evidencia como característica que a pessoa porta
ou carrega uma deficiência, como se este pudesse fazer uma opção em
transportar ou não sua deficiência, como se fosse um objeto.
A expressão “pessoas com necessidades especiais” teve o seu uso
relacionado à “necessidades educacionais especiais”, termo utilizado
na área de educação para crianças com deficiência, mas que passou a
ser aplicado para todas as circunstâncias. No entanto esta utilização
pode ser questionada, pois, de forma geral, qualquer pessoa pode ter
sua “necessidade especial” específica, independente de ser deficiente.
Ademais, as pessoas com deficiência necessitam de ter equiparação de

8 A Constituição brasileira de 1988, em vários de seus dispositivos, optou por utilizar a expres-
são pessoas portadoras de deficiência.
88 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

direitos e não propriamente de direitos especiais.


Em 1982, a Organização Mundial de Pessoas com Deficiência
(Disabled Peoples International – DPI), revisou e modificou o vocabu-
lário com o objetivo de agregar outras formas de lesões, não apenas as
físicas, e apresentou a seguinte definição:
Deficiência significa as limitações funcionais nos indivíduos causadas
por lesões físicas, sensoriais ou mentais; handicap é a perda ou limita-
ção de oportunidades em participar na vida normal da comunidade
em igualdade de condições com outros indivíduos devido as barreiras
físicas e sociais. (DINIZ, 2007, p. 34)
Esta proposta teve o objetivo de evitar qualquer forma de
divisão entre os deficientes, sejam eles físico, mental, sensorial, psi-
cológico, etc., ou suas gradações de intensidade, sejam elas leve,
moderada ou grave, uma vez que estas classificações podem desmo-
bilizar os deficientes e criar uma competição por maior atenção e
recursos entre estes.
Em 2006, a questão foi pacificada mundialmente através da
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiên-
cias (CDPD), aprovada pela ONU, momento em que ficou definido
que o termo a ser adotado seria “pessoas com deficiência”, em todos
os idiomas, seja em expressões orais ou escritas.
A referida Convenção, já em seu preâmbulo, na alínea “e”,
aponta para a incompletude do conceito de deficiência, que deverá
ser verificado e atualizado em cada contexto histórico:
e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que
a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as
barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena
e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas
A definição de pessoa com deficiência é apresentada no artigo
1º da Convenção, com a seguinte redação:
O propósito da presente Convenção é promover, proteger e asse-
gurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 89

liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e pro-


mover o respeito pela sua dignidade inerente. Pessoas com deficiência
são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas
barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na socie-
dade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Neste sentido, a CDPD entende que a pessoa com deficiência
não é portadora de uma limitação física mas, principalmente, de uma
limitação social.
O Brasil ratificacou a CDPD9, assumindo o dever de inserir
na sua respectiva legislação10 o termo “pessoas com deficiência” e sua
concepção ampla.
Desta forma, a Lei nº 13.146, de 6 de Julho de 2015, denomi-
nada Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto da Pessoa
com Deficiência, assim define em seu art. 2º:
Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento
de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial,
o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições
com as demais pessoas.
Se desejamos uma sociedade inclusiva a terminologia correta
é de extrema importância quando enfrentamos assuntos carregados
de preconceitos e estereótipos, como é o caso das deficiências. Ob-
viamente, mais do que expressar adequadamente, Estado e sociedade
precisam demonstrar seu respeito através de ações concretas de inclu-
são das pessoas com deficiência.

9 No Brasil a Convenção e seu Protocolo Facultativo foram ratificados pelo Congresso Nacio-
nal por meio do Dexreto Legislativo no 186/08 que gerou o Decreto nº 6.949/09 emitido pelo
executivo, tornando-se o primeiro tratado internacional de direitos humanos aprovado nos
termos do art. 5º, § 3º, da CF/88, com a redação dada pela EC nº 45/04, ou seja, que passou a
ter status de emenda constitucional, implicando na constitucionalização do conceito de pessoa
com deficiência e a invalidade de toda a legislação infraconstitucional incompatível.
10 Diante da não uniformização do conceito na legislação pátria, foi ajuizada a Arguição de Des-
cumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 182 no STF, para que o conceito de pessoa
com deficiência do artigo 1º da CDPD tivesse aplicabilidade imediata, eficácia erga omnes e
efeito vinculante. Por consequência, foi publicada a Portaria nº. 2.344/10, da Secretária Na-
cional de Direitos Humanos, instituindo legalmente o termo ‘pessoas com deficiência’, e, por
isso, a utilização da sigla PcD no Brasil.
90 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

3.1.2. PESSOAS COM O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA


Derivado do grego autos, ou o próprio indivíduo, e do sufixo
“ismo” que significa orientação ou estado, o termo autismo define
o distúrbio onde o indivíduo está voltado para si mesmo. Os estu-
dos referentes ao autismo são recentes, a primeira vez que se utilizou
desta terminologia foi em 1911 por Blueler, para indicar a perda do
contato com a realidade, acarretando uma grande dificuldade ou até
mesmo impossibilidade de comunicação, mas as pesquisas em torno
do autismo se iniciaram entre os anos de 1943, nos Estados Unidos,
por iniciativa do psiquiatra pediátrico Leo Kanner, e, em 1944, na
Aústria, por iniciativa do também psiquiatra Hans Aspenger.
O diagnóstico oficial é dado a partir a Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas relacionados à Saúde (CID-10)
que inclui o Autismo na ordem dos Transtornos Globais do Desen-
volvimento (categoria F84).11
Já a versão V do Manual Diagnóstico e Estatístico de Trans-
tornos Mentais (DSM) da Associação Psiquiátrica Americana (APA),
lançada em maio de 2013, exclui as categorias Autismo, Síndrome de
Asperger, Transporto Desintegrativo e define apenas a denominação
de Transtornos do Espectro Autista (TEA).12
Para este novo DSM são necessárias alterações em dois do-
mínios para definir o transtorno do espectro do autismo: i) deficit
na comunicação e interação social; e ii) padrão de comportamentos,
interesses e atividades restritos e repetitivos.
Utiliza-se o termo Espectro Autista para se referir aos mais va-
riados graus de interferência que essa síndrome pode apresentar, com
diversos reflexos.
11 A Classificação Estatística Internacional de Doenças e de Problemas Relacionados à Saú-
de, 10ª Revisão, abreviadamente CID-10, é publicada pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) e visa padronizar a codificação de doenças e outros problemas relacionados à saúde. A
cada estado de saúde é atribuída uma categoria única à qual corresponde um código CID 10.
Conforme informação disponível em: <http://www.medicinanet.com.br/cid10.htm>. Acesso
em: 15 ago. 2017.
12 Traduções da expressão em inglês Autism Spectrum Disorders (ASD) adotada pela American
Psychological Association (APA).
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 91

Na legislação brasileira, o Transtorno do Espectro Autista está


definido no art. 1° da Lei nº 12.764/2012, segundo o qual para a con-
firmação do respectivo diagnóstico, a pessoa deve apresentar síndrome
clínica assim caracterizada:
I – deficiência persistente e clinicamente significativa da comunica-
ção e da interação sociais, manifestada por deficiência marcada de
comunicação verbal e não verbal usada para interação social; ausên-
cia de reciprocidade social; falência em desenvolver e manter relações
apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;
II – padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses
e atividades, manifestados por comportamentos motores ou verbais
estereotipados ou por comportamentos sensoriais incomuns; exces-
siva aderência a rotinas e padrões de comportamento ritualizados;
interesses restritos e fixos.
De acordo com a Lei supra citada, a pessoa com transtorno do
espectro autista é considerado pessoa com deficiência para todos os
efeitos legais.

4. DIREITO À EDUCAÇÃO DAS PESSOAS COM TRANS-


TORNO DO ESPECTRO AUTISTA NO BRASIL
4.1. A PROTEÇÃO LEGAL
Além das disposições constitucionais (arts. 6º; 205; 208, III e
227, II da CF/88), e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (art. 24), o direito à educação das pessoas com deficiência,
sobretudo pela educação inclusiva no ensino regular, ampara-se em
ampla legislação federal.
A orientação pela educação inclusive já aparece no Estatuto
da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, em seu art. 54, III,
que veio determinar como dever do Estado assegurar à criança e ao
adolescente “atendimento educacional especializado aos portadores de
deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei nº
9.394/96, reafirma em seu art. 4º, III, o dever do Estado de fornecer
92 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

atendimento educacional especializado gratuito aos estudantes com


deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilida-
des/superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades,
preferencialmente na rede regular de ensino, e nos seus artigos 59 e
60 que os sistemas de ensino devem assegurar aos estudantes com
deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilida-
des/superdotação currículos, métodos, técnicas, recursos educativos
e organização específicos, para atender às suas necessidades; profes-
sores com especialização adequada em nível médio ou superior para
atendimento educacional especializado, bem como professores do
ensino regular capacitados para a inclusão desses educandos nas clas-
ses comuns; e acesso igualitário aos benefícios dos programas sociais
suplementares disponíveis para o respectivo nível do ensino regular;
e que os órgãos normativos dos sistemas de ensino estabelecerão cri-
térios de caracterização das instituições privadas sem fins lucrativos,
especializadas e com atuação exclusiva em educação especial, para fins
de apoio técnico e financeiro pelo poder público.
A Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da
Educação Inclusiva elaborada pelo Ministério da Educação em 200813,
concebe a educação especial como modalidade de ensino transver-
sal a todos os níveis, etapas e demais modalidades, responsável pelo
Atendimento Educacional Especializado (AEE)14, realizado de forma
complementar ou suplementar à escolarização dos estudantes com de-
ficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/
superdotação, matriculados no ensino regular.
Com relação aos direitos das pessoas com Transtorno do Es-
pectro Autista (TEA), o Brasil é um dos poucos países que possui
uma legislação específica sobre o assuno, a Lei nº 12764, de 27 de
13 Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf>. Acesso em:
28 ago. 2017.
14 O atendimento educacional especializado (AEE), é definido no §1º, art. 2º, do Decreto nº
7.611/2011, como conjunto de atividades, recursos de acessibilidade e pedagógicos, organi-
zados institucionalmente e prestados de forma complementar ou suplementar à escolarização.
A Resolução nº 4/2009 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação
(CNE/CEB), que dispõe sobre as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional
Especializado (AEE) na Educação Básica.
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 93

dezembro de 2012, regulamentada pelo Decreto nº 8.368, de 2 de


dezembro de 2014, que busca aprofundar a problemática do autismo.
Esta Lei, que ficou conhecida como Lei Berenice Piana, em homena-
gem a luta de uma mãe pelos direitos de seu filho autista, instituiu a
Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno
do Espectro Autista e diretrizes para sua consecução.
Na Lei 12.764/12 há disposição expressa garantindo a inclusão
escolar e o direito ao acompanhante especializado, nos termos do
artigo 3, IV, alínea “a”, combinado com o parágrafo único, in verbis:
Art. 3 São direitos da pessoa com transtorno do espectro autista:
(...)
IV – o acesso:
a) à educação e ao ensino profissionalizante;
(...)
Parágrafo único. Em casos de comprovada necessidade, a pessoa
com transtorno do espectro autista incluída nas classes comuns de
ensino regular, nos termos do inciso IV do art. 2º , terá direito a
acompanhante especializado.
Estas orientações são de caráter obrigatório tanto para as ins-
tituições de ensino públicas quanto particulares, que devem assumir
todo o ônus deste cumprimento.15
A lei prevê ainda punição para os gestores escolares que re-
cusarem a matrícula de alunos com transtorno do espectro autista,
estabelecendo multa de 3 a 20 salários mínimos para o gestor respon-
sável pela negativa da matrícula.16

15 Conforme Nota Técnica nº 24/2013/MEC/SECADI/DPEE, O custo do atendimento do es-


tudante com TEA integrará a planilha de custos da instituição de ensino, não cabendo o re-
passe de despesas decorrentes da educação especial à família do estudante ou inserção de
cláusula contratual que exima a instituição dessa obrigação. Disponível em: < http://portal.
mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=13287-nt24-sistem-
-lei12764-2012&Itemid=30192> Acesso em: 28 ago. 2017.
16 Conforme Nota Técnica nº 20/2015/MEC/SECADI/DPEE, o sistema de ensino ao qual está
vinculado o estabelecimento de ensino infrator (federal, estadual ou municipal) é o responsá-
vel por instaurar o procedimento e aplicar a sanção. Disponível em: <http://portal.mec.gov.
br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=17213-nota-tecnica-20-orienta-
cao-aplicacao-multa-20mar&Itemid=30192>. Acesso em: 28 ago. 2017.
94 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Na linha desta política de educação inclusiva, o Plano Nacional


de Educação – PNE, instituído pela Lei nº 13.005/2014, no inciso
III, parágrafo 1º, do artigo 8º, determina que os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios devem garantir o atendimento às necessidades
específicas na educação especial, assegurado o sistema educacional
inclusivo em todos os níveis, etapas e modalidades.17
Dando continuidade a sua avançada política de proteção legal
à pessoa com deficiência, o Brasil instituiu sua Lei de Inclusão da
Pessoa com Deficiência, também denominado de Estatuto da Pessoa
com Deficiência, Lei nº 13.146, de 6 de Julho de 2015, que de-
termina ao Estado, a sociedade e a família assegurar à pessoa com
deficiência o direito à educação (art. 8º), que é tratado especifica-
mente nos seus artigos 27 a 30.
A ampliação de garantias e direitos relativos à educação pelo Es-
tatuto da Pessoa com Deficiência, causaram uma reação por parte das
instituições de ensino particulares, o que levou a entidade representativa
do setor a ajuizar em agosto de 2015 uma Ação Direta de Inconstitucio-
nalidade (ADI nº 5357) no Supremo Tribunal Federal (STF), visando
a declaração de inconstitucionalidade das normas que impõem obriga-
ções às instituições de ensino privadas por entenderem excessivamente
onerosas e desarrazoadas. Em julgamento realizado no dia 09 de junho
de 2016, o Plenário do STF reconheceu a constitucionalidade destas
normas conforme voto do relator, Ministro Edson Fachin.18
Toda esta política de implementação de inclusão escolar no Brasil
veio resultar em uma significativa ampliação do acesso das pessoas com
deficiência à educação básica, que passou de 337.326 matrículas em
17 A meta 4 do PNE e respectivas estratégias objetivam: universalizar, para as pessoas com de-
ficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, na faixa
etária de 04 a 17 anos, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especiali-
zado; professores capacitados para a inclusão desses educandos nas classes comuns; acesso
igualitário aos benefícios dos programas sociais suplementares disponíveis para o respectivo
nível do ensino regular; estabelecimento de critérios de caracterização das instituições espe-
cializadas e com atuação exclusiva em educação especial, para fins de apoio técnico e finan-
ceiro pelo Poder Público.
18 Em seu voto, o relator assim se pronunciou: “Em suma: à escola não é dado escolher, segregar,
separar, mas é seu dever ensinar, incluir, conviver”. Conforme disponível em: http://www.stf.
jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=318570. Acessado em: 29 ago. 2017.
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 95

1998 para 820.433 em 2012, saindo de 13% de inclusão nas classes


comuns do ensino regular para alcançar 76%. A partir de 2005, o
Censo Escolar identificou as matrículas de estudantes com transtornos
do espectro autista, partindo de 10.053 matrículas em 2005 e atingindo
72.410 matrículas em 2012, um crescimento de 620%.19
Pelo exposto, verificam-se os inegáveis avanços no processo de
consolidação do direito à educação das pessoas com deficiência no
Brasil, em decorrência da implementação de políticas públicas volta-
das à inclusão escolar.
Apesar da constante crítica sobre o hiato existente entre o mundo
das leis e o mundo real, deve-se compreender que as normas jurídicas
têm sempre uma intenção de intervenção nas relações sociais, buscando
evitar ou corrigir injustiças e efetivar os valores adotados pela sociedade.
A visão dicotômica que simplesmente separa a realidade material da
construção normativa formal, utilizada como justificativa para o não
cumprimento das normas que são “evoluídas demais” para uma reali-
dade “demasiadamente atrasada”, se apresenta como uma contradição
para uma sociedade que se quer igualitária e justa, mas que desrespeita
as normas que buscam diminuir as desigualdades e efetivar a justiça
social. Neste sentido, cabe ressaltar o papel fundamental do Judiciário
na construção deste processo, mormente no Brasil, que apresenta um
excelente ordenamento jurídico carente de efetivação.

4.2. A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO


O direito à educação das pessoas com deficiência se tornou um
assunto recorrente nos diversos Tribunais brasileiros, tendo em vista
a não observância da legislação pertinente tanto pelo poder público
quanto pelos particulares.
O aumento do número de pessoas diagnosticadas com TEA,
somado às recentes legislações que garantem direitos a estas pessoas
19 Conforme dados apresentados no Parecer Técnico nº 71 / 2013 / MEC / SECADI /DPEE, de
02/05/2013, p. 201-202. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_do-
cman&view=download&alias=17237-secadi-documento-subsidiario-2015&Itemid=30192>.
Acesso em: 29 ago. 2107.
96 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

que, contudo, são frequentemente desrespeitados, fez crescer de


forma vertiginosa a incidência de demandas no Judiciário brasilei-
ro acerca do tema.
A ocorrência mais frequente de descumprimento da lei refere-se
a ausência de acompanhantes especializados para os casos em que se
fazem necessários. Há situação em que é necessário a presença de um
monitor para auxiliar a criança em sala de aula, e ainda outros em que
pode ser exigido o acompanhamento terapêutico, que não se restringe
ao ambiente escolar. A falta de efetivação desta medida é justificada
tanto pela falta de profissionais capacitados, quanto, e principalmente,
por questões de restrições orçamentárias. Neste sentido, o Judiciário
apresenta várias decisões que visam garantir este direito:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ECA. GARANTIA CONSTI-
TUCIONAL DE ACESSO À EDUCAÇÃO. CONCESSÃO DE
LIMINAR CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDA-
DE. PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DA
RESERVA DO POSSÍVEL. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO.
1. Considerando que o direito cuja tutela é postulada na presente
ação (fornecimento de monitor para aluno especial) é efetivamente
preponderante, não há falar em impossibilidade de concessão de
medida liminar contra a Fazenda Pública, bem como que esgote
no todo ou em parte o objeto da ação, devendo a disciplina legal
ser flexibilizada, em face do alto valor jurídico em discussão. 2. O
direito à educação, especialmente àquelas crianças e adolescentes que
possuam necessidades especiais, constitui direito fundamental social,
que deve ser assegurado de forma solidária pelos entes federativos,
com absoluta prioridade, nos termos dos artigos 208, III, e 227, §
1º, II, da Constituição Federal, artigos 4º e 54, III, do Estatuto da
Criança e do Adolescente, e artigos 4º, 58 e 59 da Lei n.º 9.394/96
3. Não há desrespeito à autonomia do Executivo por parte do Ju-
diciário. Esposar essa compreensão a cada vez que estiver em jogo
algum interesse estatal, é simplesmente negar a existência de uma
função estatal em face da outra, o que é descabido. 4. Ocasionais
limitações ou dificuldades orçamentárias não podem servir de pre-
texto para negar o direito à educação, dada a prevalência do direito
reclamado. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.
(Agravo de Instrumento nº 70064603582, Oitava Câmara Cível,
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 97

Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Jul-


gado em 02/07/2015) 20
Conforme exposto por Bianca Santos (2014), a garantia do
direito à educação da criança autista ultrapassa o ambiente escolar,
abrangendo aspectos que circundam a garantia desse direito. Não
é questão apenas de incluir em uma escola, mas também deve ser
dado condições para que a criança autista exerça seu direito à edu-
cação. Como exemplo, de nada adianta ter uma escola disponível,
caso a família não tenha condições de arcar com o transporte da
criança autista até esta escola. Nesse caso, também deve-se garantir
o transporte especializado à criança. Se o Poder Executivo perma-
necer omisso e negar o auxílio necessário à criança autista, o Poder
Judiciário deve ser provocado e fazer a devida interpretação dos
fatos. Também neste sentido, os Tribunais têm sido acionados e
manifestam-se pela obrigatoriedade de fornecimento de transporte
adequado para a pessoa com TEA, conforme decisão abaixo:
Apelação cível. Estatuto da criança e do adolescente. Município
de Caxias do sul. Carência de ação por falta de interesse de agir.
Inocorrência. Criança portadora de (autismo infantil) que a impe-
dem de se locomover desacompanhada, necessitando do transporte
porta a porta, de sua residência até a escola e ao centro especial
que frequenta. Dever do ente público. Garantias constitucionais
de acesso à educação infantil. Operacionalidade das garantias cons-
titucionais fundamentais. Fator de relativização do princípio da
reserva do possível. Inteligência do art. 208, incisos iv e vii, da
constituição federal, art. 54, incisos iv e vii, do ECA. E artigos 4º,
incisos iv e viii e 11, v, ambos da lei de diretrizes e bases da edu-
cação – lei nº 9.394/96. Precedentes jurisprudenciais. Honorário
de sucumbência em favor do Fadep – Fundo de Aparelhamento
da Defensoria Pública. Descabimento. Preliminar rejeitada. Apelo
parcialmente provido. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
Apelação Cível n. 70050221910. Rel.: Sandra Brisolara Medeiros.

20 No mesmo sentido: Agravo de Instrumento nº 5345404-94.2017.8.09, 1ª Câmara Cívil, TJ-


-GO, Rel.: Carlos Roberto Favaro, DJ de 02/04/2018; Agravo de Instrumento nº 70064807837,
8ª Câmara Cível, TJ-RS, Rel.: Ricardo Moreira Lins Pastl, julgado em 02/07/2015; ; Apelação
Cível n. 2014.077813-7, TJ-SC, Rel.: Des. Ronei Danielli, jultado em 03/02/2015; AGI nº
20080020085218, TJ-DF, Rel.: Flavio Rostirola, julgado em: 06/11/2008.
98 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Julgado em 26/09/2012)21
Sobre a negativa de matrícula por parte de instituição de ensino
privada de aluno com deficiência, o Judiciário também já se manifes-
tou, condenando a instituição ao pagamento de dano moral. Vejamos:
APELAÇÕES CÍVEIS. ENSINO PARTICULAR. DANO
MORAL CARACTERIZADO. QUANTUM INDENIZA-
TÓRIO MAJORADO. O menor goza dos mesmos direitos
fundamentais insculpidos no artigo 5° de nossa Constituição, e
por consequência, tem direito à indenização por dano extrapatri-
monial. Desta feita, o autor teve sua matrícula negada pelo Colégio
Americano por ser portador de necessidades especiais, privando-se
por mais de duas semanas de frequentar as aulas, sofrendo ato de
discriminação e preconceito, ocasião que ficou evidenciado o cons-
trangimento e abalo moral. Juros moratórios Não conhecimento
do apelo quanto ao ponto, por carência de interesse recursal. Apelo
da parte autora conhecido em parte e, nesta, parcialmente provido.
Por maioria. Apelo da ré desprovido. Unânime. (Apelação Cível nº
70039492129, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Rel.: Gelson Rolim Stocker, Julgado em 29/06/2011).
A educação inclusiva é de extrema importância para a criança au-
tista, pois integra o necessário tratamento interdisciplinar. Desta forma
a sua inclusão na escola ultrapassa a condição de um direito à educação,
para ser também uma questão de saúde e de efetivação do princípio da
dignidade da pessoa humana. Este é o entendimento apresentado em
alguns julgados, como o do Tribunal de Justiça de São Paulo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO Execução de sentença proferida
nos autos de ação civil pública promovida pelo Ministério Público
do Estado de São Paulo, onde a Fazenda Estadual foi condenada a
providenciar unidades especializadas próprias e gratuitas, adequa-
das ao tratamento educacional de portadores de autismo. Decisão
recorrida que determinou que o Estado custeie o tratamento do
agravante em instituição particular, no valor de R$ 2.000,00 por
21 No mesmo sentido: Apelação Cível nº 70021981683, 7ª Câmara Cível, TJ-RS, Rel.: Sér-
gio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 11/12/2007 e Agravo de Instrumento nº
70019247758, 1ª Câmara Cível, TJ-RS, Rel.: Carlos Roberto Lofego Canibal, julgado em
21/11/2007; Apelação Cível n. 2012.037136-0, TJ-SC, Rel.: Paulo Henrique Moritz Martins
da Silva, j. 30/07/2013; AG 7937325800 SP , Rel.: Prado Pereira, julgado em: 20/08/2008, 12ª
Câmara de Direito Público, TJ-SP.
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 99

mês, observando que a decisão é válida até que a Fazenda demonstre


que já possui entidade conveniada, próxima à residência do autor,
que preste o atendimento prescrito pelo médico – Agravante que
não indicou outra unidade pública especializada e compatível com
as necessidades do agravado, ou mesmo outra unidade privada com
valor inferior. Direito à saúde consagrado constitucionalmente como
direito fundamental da dignidade da pessoa humana (inciso III do
art. 1º da CF) – Decisão mantida – Recurso improvido. (Relatora:
Maria Laura Tavares Comarca: São Paulo Órgão julgador: 5ª Câmara
de Direito Público Data do julgamento: 22/10/2012)22
Pelo exposto percebe-se que o Judiciário tem exercido um papel
fundamental na garantia do direito à educação das pessoas com TEA.
Pela análise da jurisprudência apresentada, depreende-se que o maior
motivo de não implementação deste direito está fundamentado na
sua onerosidade, sendo o Poder Público o seu maior descumpridor.
Contudo, o ônus imposto aos cofres públicos e a carência de
recursos não devem servir de motivo para afastar a eficácia constitucio-
nal dos direitos fundamentais. As políticas para efetivação da educação
inclusiva devem estar previstas no orçamento público e, quanto não
estiver, cabe ao Poder Judiciário determinar sua correção.
Admitir a ideia da reserva do possível como fundamento para
carência de recursos públicos é deixar os direitos fundamentais e so-
ciais condicionados à gerência do Poder Público e escusar-se de sua
efetividade por meio de uma fundamentação genérica. Este é o posi-
cionamento adotado pelo STF em decisão que determina município
a disponibilizar recursos para a garantia do direito à educação, con-
forme trechos que transcritos abaixo:
(…) O Poder Público – quando se abstém de cumprir, total ou par-
cialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no
próprio texto constitucional – transgride, com esse comportamento
negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulan-
do, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da

22 No mesmo sentido: Ação Civil de Improbidade Administrativa: 11345109 PR 1134510-9


(Acórdão), Relator: Clayton de Albuquerque Maranhão, julgado em: 03/06/2014, 6ª Câmara
Cível, TJ-PR.
100 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

consciência constitucional. (…) A intervenção do Poder Judiciário,


em tema de implementação de políticas governamentais previstas e
determinadas no texto constitucional, notadamente na área da edu-
cação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos
lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais
traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria
Constituição da República assegura à generalidade das pessoas.
(…) A cláusula da reserva do possível – que não pode ser invoca-
da, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e
de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na
própria Constituição – encontra insuperável limitação na garantia
constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto
de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da
essencial dignidade da pessoa humana. (STF – ARE: 639337 SP ,
Relator: Min. Celso de Mello, Data de Julgamento: 23/08/2011,
Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-177 DIVULG 14-09-
2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125)23
Desta forma, deve-se concordar com Carmen Lúcia Antunes
Rocha (1997, p. 90) ao afirmar que compete ao Poder Judiciário “a
tarefa mais elevada de impedir afrontas e desfazer, com eficácia e
eficiência imprescindíveis, os desmandos que acometem, ameaçam
e agridem os direitos fundamentais”.

5. CONCLUSÕES
O presente trabalho buscou analisar as especificidades que en-
volvem a garantia do direito à educação das pessoas com Transtorno
do Espectro Autista, e a necessidade de sua sua efetividade.
Os especialistas em tratamento do autismo são unânimes em
apontar as melhoras que um ambiente escolar adequado pode trazer
à vida dessa pessoa e à de sua família. A inclusão escolar é, além
disso, uma forma de eliminação de preconceitos, aproximando rea-
lidades diferentes e fazendo com que todos os envolvidos aprendam
a conviver com as diferenças.

23 Também no STF, no mesmo sentido: RE 464.143-AgR, Relator: Min. Ellen Gracie. Brasí-
lia: 15 de fevereiro de 2009; e RE 594.018-AgR. Relator: Min. Eros Grau. Brasília, 23 de
junho de 2009.
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 101

É primordial que as pessoas autistas, assim como outras pessoas


com deficiência, tenham meios de acesso ao sistema de ensino regu-
lar, já que se deve conferir tratamento igualitário, com a ressalva de
serem respeitadas as suas limitações, incentivando-se, sempre, o seu
desenvolvimento de maneira plena e sadia.
O direito à educação inclusiva, com todos os instrumentos
que devem ser disponibilizados, é essencial para as pessoas com
TEA, superando a qualidade de direito social fundamental. É,
também, uma questão de saúde, de desenvolvimento e de dignidade,
corresponde à garantia de um mínimo existencial, de uma melhor
qualidade de vida à pessoa autista e à sua família.
Pelo exposto, ficou caracterizado que a garantia do direito à
educação da pessoa autista é uma questão complexa, que envolve
aspectos que trazem obstáculos que dificultam a aplicação da le-
gislação. Por ser um tema novo, faltam profissionais capacitados,
ambiente escolar favorável, conhecimento e principalmente, sensi-
bilidade por parte da sociedade e do Estado para que se possa fazer
valer os direitos e garantias estabelecidos.
Os avanços obtidos nas legislações específicas sobre a proteção
das pessoas com TEA geram este grande desafio de construção de
uma nova realidade, próxima à preconizada pelas leis, sob o risco de
expor estas pessoas e suas famílias ao sofrimento e à frustração por
não conseguirem alcançar seus sonhos e projetos, apesar das promessas
que lhe são feitas por meio das leis.
Vale ressaltar o importante pensamento de Bobbio, que
nos ensina:
Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua
natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos,
absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para
garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles
sejam continuamente violados. (2004, p. 25)
Diante desta constatação, compete ao Poder Público prover
esforços para a realização dos direitos fundamentais, à sociedade
102 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

reivindicar e ao Judiciário, quando demandado, responder com se-


gurança, pois conforme avalia Eugenio Facchini Neto:
o juiz, enquanto guardião da Constituição, passa a ser o garan-
te não só do existente (daquilo que é), mas também o garante
daquilo que deve ser (e por vezes, garante daquilo que deve ser
contra aquilo que é), fiscalizando e compelindo os demais pode-
res a cumprirem os programas e objetivos fixados claramente na
Constituição. Seu comprometimento com os direitos fundamen-
tais faz com que ele seja o tutor das minorias discriminadas e das
maiorias excluídas. É por essa razão que a justiça civil (no sentido
de jurisdição não penal) passa a ser um instrumento à disposição
da cidadania (muitas vezes representada pelo Ministério Público)
para fazer implementar políticas públicas, com responsabilidade,
consciência e visão prospectiva. (2003, p. 25)
Assim deve-se proceder, caso contrário o Direito e a Justiça pode-
rão ser fielmente retratados no diálogo imaginado por José Saramago:
Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas mulhe-
res, de todas estas crianças (Deus) falando à multidão, anunciou: ‘A
partir de hoje chamar-me-eis Justiça’. E a multidão respondeu-lhe:
‘Justiça, já nós a temos, e não nos atende’. Disse Deus: ‘Sendo assim,
tomarei o nome Direito.’ E a multidão tornou a responder-lhe: ‘Di-
reito, já nós o temos, e não nos conhece’. E Deus: ‘Nesse caso, ficarei
com o nome Caridade, que é um nome bonito.’ Disse a multidão:
‘Não necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se
cumpra e um Direito que nos respeite’. (1997, p. 10-11)
O autismo não é uma doença, por isto não tem cura e sim tra-
tamento. Mas a sociedade, esta sim, pode deixar de ser “autista”, no
sentido de renunciar a comodidade de seu “mundo normal” e partir
para a compreensão, respeito e inclusão das diferenças.

REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
ARISTÓTELES. Política. 3. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997.
ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de
proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, a. 1, n. 4, jul. 2001. Disponível
em: <http://www.direitopublico.com.br/pdf_4/DIALOGO-JURIDICO-04-JULHO-
RODRIGO GABRIEL MOISÉS 103

-2001-HUMBERTO-AVILA.pdf>. Acesso em: 13 ago de 2017


BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevir. 2004.
___. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Editora Manole,
2007.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.
___; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada – Volume I. 4. ed.
Coimbra: Coimbra, 2007.
DINIZ, Débora. O que é Deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GOLDFARB, Cibelle Linero. Pessoas portadoras de deficiência e a relação de emprego: o
sistema de cotas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2009.
GOMES, Joaquim Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001a.
GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo Direi-
to Constitucional Brasileiro. Revista de Informação Legislativa, nº 151, Brasília: jul./set.
2001b
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, vol. II, tomo IV. Coimbra: Coim-
bra Editora, 2014.
MIRANDA, Jorge. Direitos Fundamentais, Estado Social, Sociedade Inclusiva In: COR-
RÊA, Rosa Maria (Org.). Avanços e desafios na construção de uma sociedade inclusiva. Belo
Horizonte: PUC-MG, 2008.
NETO, Eugenio Facchini .Premissas para uma análise da contribuição do juiz para a efe-
tivação dos direitos da criança e do adolescente. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
2003. Disponível em: <http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/jij_site.wwv_main.main?p_langua-
ge=ptb&p_cornerid=1614&p_currcornerid=1&p_full=1>. Acesso em: 28 ago. 2017.
PERELMAN, Chaim. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. O constitucionalismo contemporâneo e a instru-
mentalização para a eficácia dos direitos fundamentais. Revista CEJ, v. 1, n. 3, p. 76-91,
1997. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/numero3/artigo10.htm>. Acesso
em: 29 ago. 2017.
ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade Material e Discriminação Positiva: O Prin-
cípio da Isonomia. Revista Novos Estudos Jurídicos, Vol. 13, n. 2. Univali: jul-dez 2008.
SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos.
In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Reconhecer para libertar – Os caminhos do
cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
104 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

SANTOS, Bianca G. A garantia do Direito à Educação da Criança Autista. 2014. 30 p.


Artigo TCC (Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais). PUC-RS, Porto Alegre. Dispo-
nível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/traba-
lhos2014_1/bianca_santos.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2017
SARAMAGO, José. Prefácio. In: SALGADO, Sebastião. Terra. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.
SILVA, Sidney Pessoa Madruga da. Discriminação positiva: ações afirmativas na realidade
brasileira. Brasília: Brasília Jurídica, 2005.
ANÁLISE DO DIREITO CONSTITUCIONAL DE
MORADIA E A DIGNIDADE HUMANA: ESTUDO
SOBRE AS POLÍTCAS PÚBLICAS DESTINADAS
AS NOVAS ÁREAS HABITACIONAIS DE
INTERESSE SOCIAL EM ITUIUTABA/MG
Lucas Marques Rodrigues Macedo1
Fausto Amador Alves Neto2

1. INTRODUÇÃO
O estudo traz uma análise sobre as novas áreas habitacionais
de interesse social, especificamente, sobre as residências criadas pelo
Programa “Minha Casa, Minha Vida” e se estas atendem sua função
social, estabelecendo moradia digna para seus residentes. Ressalta-se
que o Estado é responsável por produzir políticas públicas em busca
da efetiva consolidação de seu sistema jurídico e de criar normas que
possibilitem maior igualdade e justiça social, na busca da concretiza-
ção da dignidade da pessoa humana.
Dentre outros, teve-se como objetivo principal da pesquisa, ana-
lisar a efetividade do direito constitucional de moradia no que tange às
novas áreas habitacionais de interesse social e seus impactos ambientais.
Quanto à metodologia, tratou-se de uma pesquisa bibliográfica,
documental e de campo. A pesquisa bibliográfica, foi pautada em
debates constitucionais ligados aos direitos fundamentais, dando-se
1 Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Minas Gerais. E-mail: lucasmrm2010@
hotmail.com
2 Advogado. Doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em
Geografia pela mesma instituição. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade
Norte do Paraná. Graduação em Direito pela Fundação Educacional de Ituiutaba – UEMG.
Coordenador e professor do Curso de Direito da UEMG – Unidade Ituiutaba.
106 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

ênfase nos direitos sociais. Para o desenvolvimento da pesquisa do-


cumental, buscou-se documentos públicos, processos judiciais, nos
quais constataram-se que o Plano Diretor está desatualizado e que
o município não possui um Plano Local de Habitação e Interesse
Social, documentos estes que são de fundamental importância para
nortearem a construção de novos bairros nas cidades. Posteriormente
foi realizada a pesquisa de campo, visando verificar se as residências
atendem aos mínimos padrões de dignidade.
O presente estudo traz uma análise sobre os meios e mecanismos
destinados a assegurar o direito de moradia como constitucionalmente
previsto. Utilizou-se o método dedutivo, partindo da compreensão
da regra geral para então compreender os casos específicos, para
tanto, primeiramente, passou-se por uma abordagem histórica, que
englobou, especificamente a Constituição de 1988. Em um segundo
momento, tratou-se sobre a dignidade da pessoa humana e quais os
seus principais aspectos, juntamente com os direitos sociais, todos
estes previstos na Carta Magna. Posteriormente, afunilando a pes-
quisa, abordou-se sobre os direitos e garantias fundamentais e as suas
quatro dimensões. Em seguida, tratou-se a respeito do direito de
moradia, as políticas públicas destinadas ao seu manuseio, e as leis
infraconstitucionais que garantem a sua aplicação.
Após, feitas as considerações sobre o Plano Local de Habitação e
Interesse Social (PLHIS) e o Plano Diretor Municipal indagou-se qual
o papel que eles possuem no crescimento da cidade, e por consequência
na construção dos novos bairros em zonas afastadas dos centros urbanos.
Por fim, apresentou-se os resultados obtidos durante as visitas
aos bairros construídos pelo programa governamental “Minha Casa,
Minha Vida”, bem como os principais pontos levantados sobre cada
bairro, segundo a concepção da equipe executora do projeto, e a sua
demonstração gráfica.

2. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E OS DIREITOS SOCIAIS


A partir da Constituição Federal de 1988, os direitos
LUCAS MARQUES RODRIGUES MACEDO - FAUSTO AMADOR ALVES NETO 107

fundamentais tiveram um avanço significativo e estes passaram a ser


tratados como núcleo da proteção da dignidade da pessoa.
No que se refere ao direito à moradia, este foi incluído no texto
constitucional por força da Emenda Constitucional nº 26/2000,
que alterou a redação original do art. 6º da Constituição Federal
de 1988, o direito à moradia foi incluindo no texto constitucional,
sendo atribuindo a ele status de direito social, compromisso este
assumido pelo Brasil por ser signatário da Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948.
Sobre o tema Dirceu Marchini Neto, leciona:
A Constituição de 1988 institucionaliza a instauração de um regime
político democrático no Brasil e proporciona um avanço na con-
solidação legislativa das garantias e direitos fundamentais. Através
desta Constituição os direitos humanos também ganham importân-
cia nunca antes verificada no âmbito do Governo Federal. A atual
Constituição Federal é muito avançada em direitos sociais e civis, e,
também, de forma consciente, protege os direitos políticos democrá-
ticos ante qualquer interferência autoritária. (2012, p.82)
O princípio da dignidade da pessoa humana, é um elemento
essencial para entender os fundamentos do Estado de Direito Demo-
crático, e assim torna-se um ponto referencial para a interpretação e
aplicação das normas jurídicas.
Nas Constituições anteriores as normas relativas a esses di-
reitos encontravam-se dispersas no âmbito da ordem econômica e
social, não constando do título dedicado, exclusivamente, aos direi-
tos e garantias. Assim, a Constituição de 1988 adotou o princípio
da indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, pelo
qual o valor da liberdade se conjuga com o valor da igualdade, não
havendo como separar os direitos de igualdade dos direitos de liber-
dade. (PIOVESAN, 2008, p. 34)
Portanto, é a primeira vez que uma Constituição brasileira
insere na declaração de direitos os direitos sociais. Em definição,
André Ramos Tavares conceitua direitos sociais como direitos “que
108 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

exigem do Poder Público uma atuação positiva, uma forma atuante


de Estado na implementação da igualdade social dos hipossuficien-
tes. São, por esse exato motivo, conhecidos também como direitos a
prestação, ou direitos prestacionais.” (2012, p. 837)
Também nesse caminho José Afonso da Silva, para quem os
direitos sociais:
São prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indi-
retamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam
melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a
realizar a igualização de situações sociais desiguais. (2005, p. 286)
No Brasil, os Direitos Sociais são uma garantia constante na Lei
Maior do país, ou seja, na Constituição Federal de 1988. Dentro dela,
os Direitos Sociais são definidos em dois títulos, que dizem respeito
aos direitos e garantias fundamentais e à ordem social.
Isto indica que eles são, ao mesmo tempo, parte essencial daqui-
lo que o Estado deve garantir a seus indivíduos e uma necessidade para
o estabelecimento de uma sociedade funcional, capaz de perpetuar-se
ao longo do tempo.
Portanto, de acordo com essas definições, constata-se que os
direitos sociais necessitam de uma intervenção do estado para serem
eficazes, ou seja, exige-se uma intermediação do poder público para
a sua efetiva concretização. Assim, esses direitos têm por propósito
assegurar uma compensação das desigualdades entre as pessoas, abran-
gendo a pessoa humana na medida em que ela necessita das condições
mínimas de subsistência.
Segundo ARAUJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR,
Vidal Serrano (2005), citado por Adriano (2007), os direitos funda-
mentais podem ser conceituados como a categoria jurídica instituída
com a finalidade de proteger a dignidade humana em todas as di-
mensões, por isso, buscando resguardar o homem na sua liberdade
(direitos individuais), nas suas necessidades (direitos sociais, eco-
nômicos e culturais) e na sua preservação (direitos relacionados à
fraternidade e à solidariedade).
LUCAS MARQUES RODRIGUES MACEDO - FAUSTO AMADOR ALVES NETO 109

Assim os direitos fundamentais não são dispensáveis à exis-


tência das pessoas, e portanto, possuem as seguintes características:
Inalienabilidade; Imprescritibilidade; Irrenunciabilidade; Universali-
dade; e Limitabilidade.
Salienta-se que esses direitos possuem a característica de serem
variáveis, isto é, modificam-se ao longo da história. Essa mudança é
fundamentada na teoria das gerações de direitos fundamentais, criada
no lema francês (liberdade, igualdade, fraternidade), resumindo-se
assim, com os seguintes posicionamentos doutrinários:
Os direitos fundamentais de primeira geração de acordo com
o professor Celso Lafer “[...] são, neste sentido, direitos humanos
de primeira geração, que se baseiam numa clara demarcação entre
Estado e não-Estado, fundamentada no contratualismo de inspira-
ção individualista. São vistos como direitos inerentes ao indivíduo
[...].” (1988, p. 126)
A segunda geração dos direitos fundamentais abrange o direito
à saúde, trabalho, educação, lazer, repouso, habitação, saneamento,
greve, livre associação sindical, etc. São direitos de titularidade coletiva
e com caráter positivo, pois exigem atuações do Estado.
Alexandrino (2012. p.102), citado por Brenno de Paula Mi-
lhomem (2013) nota-se, portanto, que, ao contrário dos direitos
de primeira geração, em que o Estado passa a ter o dever de não
intervir, nos direitos de segunda geração o Estado passa a ter res-
ponsabilidade preponderante para a concretização de um ideal de
vida digno na sociedade.
Sobre os direitos de terceira dimensão, Paulo Bonavides leciona:
Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os di-
reitos da terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século
enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção
dos interesses de um indivíduo, de um grupo, ou de um deter-
minado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano
mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor
supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e
110 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

juristas já o enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o cará-


ter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos
na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram
eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz,
ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da
humanidade. (2006, p.563-569)
Tem-se, atualmente uma nova geração de direitos fundamentais
que é a mais aceita pela doutrina, chamada de quarta geração, sobre
o tema Paulo Bonavides, afirma:
São direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à
informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretiza-
ção da sociedade aberta para o futuro, em sua dimensão de máxima
universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de
todas as relações de convivência. (2006, p.571)
Para tanto, o direito à moradia está inserido no direito de se-
gunda geração, que são aqueles ligados ao valor de igualdade, dito isso,
é notável e plausível a sua aparição, especificamente nessa geração,
pois se trata de valores sociais destinados a coletividade da sociedade
com a finalidade de garantir que a mesma possa uma vida mais justa,
digna e que deve ser garantias devem ser feitas pelo poder público.
Portanto, em virtude dos fatos aludidos acima, é possível dizer
que a moradia está intimamente ligada ao conceito de direitos sociais,
e devido a isso, devem ser assegurados pelo Estado com uma distribui-
ção justa dos recursos, com o objetivo de atender toda a população.

2.1. O DIREITO DE MORADIA


O direito à moradia foi inserido na Constituição por meio de
Emenda Constitucional, a de número 26, de 14/02/2000, embora
seu caráter fundamental já estivesse disposto no artigo 23, IX da
Constituição Federal. Assim, a previsão legal na qual está atualmente
explicita, e que se refere ao direito de moradia como um direito
fundamental está no artigo 6º, caput, da Constituição Federal que
dispõe da seguinte forma, “são direitos sociais a educação, a saúde,
a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segu-
rança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
LUCAS MARQUES RODRIGUES MACEDO - FAUSTO AMADOR ALVES NETO 111

assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”


A moradia é um direito inerente a toda pessoa, ou seja, nin-
guém pode dele dispor ou abdicar. Dito isso, é importante mencionar,
que por se tratar de um direito constitucionalmente previsto, deve ser
cumprido o seu papel, mesmo que por mais difícil que possa ser a sua
implementação, o Estado, titular de garantir tal aplicação, deve utili-
zar de todos os seus recursos disponíveis para a aplicação do direito,
com a finalidade de diminuir e se possível eliminar as desigualdades
existentes no que tange em relação a moradia.
Cabe ressaltar que é necessário haver um prévio planejamento
feito pelo Estado, a fim de que não exista construções em locais ina-
dequados, e que se tenha garantias mínimas de subsistência. Ou seja,
o estado não pode ser parcialmente efetivo, isto é, não pode cumprir
o seu papel de qualquer maneira com a intenção de esquivar-se da sua
obrigação, e ser omisso em outra parte.
Em outras palavras, vê-se que há falta de planejamento, pois
diversas pessoas são deslocadas para os chamados “subúrbios” e com
isso se faz necessário proposição de programas governamentais para
que tal situação possa ser resolvida e assim não prejudicar o direito de
dignidade da pessoa humana.
A moradia digna é vista como aquela que
[...] é levada em alta conta por ser dotada de proteção; proporcionar
a satisfação individual dos moradores, tais como conforto; estar apta
para nela sobreviver, não se enquadrando as moradias inadequadas,
perigosas, insalubres; há de ser adequada ao espaço onde o indivíduo
mantém suas atividades; além de benéfica para a sua existência e ma-
nutenção. Ora, uma moradia onde o proprietário sequer consegue
pagar suas obrigações, não pode ser elevada ao grau de adequada.
(LUCA, G. D. de; LEÃO JÚNIOR, T. M. de A., 2016, p. 82)
Atenta-se para as políticas públicas destinadas a promover a
inserção das famílias necessitadas no meio de abrigo, isto é, políticas
que tem por finalidade desempenhar um papel social no que tange a
garantir uma moradia digna para as famílias de baixa renda.
112 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

A constituição delega a responsabilidade de promover essas


políticas a cada estado-membro, assim, nos seus artigos 182 e 183
destinados ao tratamento da Política Urbana, o legislador teve o in-
tuito de estabelecer um ponto final as desigualdades que foram criadas
pela política de urbanização.
Para regulamentar o capítulo da política urbana, a Lei
10.257/2001, (Estatuto da Cidade), fez surgir diversas formas de inter-
venção do Poder Público sobre o patrimônio particular bem como sobre
as próprias cidades o que possibilita a criação de políticas pelo estado,
eficazes e com capacidade de serem colocadas em pratica, isto é, como
já mencionado anteriormente, é competência do estado a criação de
meios e mecanismos que assegurem a moradia digna a toda população.
Com o objetivo de garantir o pleno desenvolvimento das
cidades e a função social da propriedade urbana, o Estatuto, per-
mite aos Municípios que adotem instrumentos necessários para a
urbanização e a legalização das moradias, o combate à especulação
imobiliária, além de uma distribuição mais justa dos serviços públi-
cos, passando a ser a regularização fundiária o centro dos programas
habitacionais, onde ocorre a legalização urbanística e jurídica das
ocupações, garantindo os preceitos constitucionais da função social
da propriedade e direito fundamental à moradia.
Para Betânia Alfonsin, “a regularização fundiária é uma inter-
venção que, para se realizar efetiva e satisfatoriamente, deve abranger
um trabalho jurídico, urbanístico, físico e social. Se alguma destas
dimensões é esquecida ou negligenciada, não se atingem plenamente
os objetivos do processo.” (2006, p. 100)
Segundo Leão (2014), é incumbência do Poder Público criar e
efetivar Políticas que desenvolvam o habitat, com o intuito de remo-
ver ou até mesmo eliminar as desigualdades existentes em relação ao
solo ocupado nas cidades, de acordo com o que está estabelecido no
Estatuto das Cidades e no Plano Diretor.
Portanto, para tentar solucionar o problema da regularização
LUCAS MARQUES RODRIGUES MACEDO - FAUSTO AMADOR ALVES NETO 113

fundiária, o Governo criou o Programa Minha Casa, Minha Vida


inserido no nosso ordenamento jurídico pela Lei nº 11.977/2009, a
qual vai tratar da Regularização Fundiária que também é disciplinada
pela Lei nº 10.257/01, denominado Estatuto da Cidade.
Este programa refere-se a um conjunto de soluções que visam
resolver os problemas de déficit habitacional no Brasil, cuja institui-
ção visou abranger o Programa Nacional de Habitação Urbana e o
Programa nacional de Habitação Rural. E tem por objetivo principal
implantar subsídios governamentais a serem utilizados pelas famílias
de baixa renda, tanto nas áreas urbanas como nas áreas rurais.
Cabe ressaltar que existem controvérsias quanto a criação do
Programa, “há especulações de que o programa foi criado como forma
de estimular o mercado imobiliário e, por conseguinte da constru-
ção civil, para que assim, se possa aquecer a economia do mercado”
(LUCA, G. D. de; LEÃO JÚNIOR, T. M. de A., 2016, p. 90), visto
que, “o setor da construção civil, emprega grande quantidade de mão
de obra de baixa qualificação e que tem uma grande participação no
PIB do país” (D’AMICO, 2011, p.47). Porém, a princípio são apenas
críticas, e não há nenhum tipo de fundamentação sobre esse assunto,
ou seja, nada de concreto foi comprovado.
Dito isto, é imperioso ressaltar que, as políticas públicas necessárias
para garantir o direito à moradia digna para a população de menor renda,
é de competência exclusiva do Estado, que deve, de acordo com recursos
existentes no sistema financeiro, universalizar o acesso à moradia.

2.2. O PLANO LOCAL DE HABITAÇÃO E INTERESSE SOCIAL


E O PLANO DIRETOR
O Plano Local de Habitação e Interesse Social (PLHIS) é um
aglomerado de diretrizes e objetivos que estabelecem, a nível local, a
Política Nacional de Habitação. É uma ramificação do Plano Diretor,
pode ser considerado um elemento essencial para complementar o
que está estabelecido no Plano, ou seja, é um complemento, porém
vai agir mais especificadamente nas áreas urbanas.
114 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Para isso, o PLHIS deve apresentar compatibilidade com o


Plano Diretor e com o Plano Plurianual, quando existentes, ou seja,
não deve haver divergências em seus textos, e sim, que ambos atinjam
a mesma finalidade.
Porém, há diferença existente entre o PLHIS e o Plano Direto.
A questão é que o primeiro deve ter o seu conteúdo elaborado con-
siderando as especificidades do local e da demanda, como estabelece
a Lei nº 11.124/2005. Já o segundo tem o seu conteúdo definido
no Estatuto Das Cidades Lei nº 10.257/01. Assim, infere-se que, o
PLHIS deve ser elaborado de acordo com as necessidades locais, o
que irá variar de município para município e tem apenas algumas
especificações que devem conter em todo Plano Local, que são: le-
vantamento do perfil socioeconômico da população de baixa renda;
Caracterização da inserção regional e urbana do município; Dimen-
sionamento e qualificação da oferta e das necessidades habitacionais;
e Levantamento das condições legais, institucionais e administrativas
do município na área habitacional. Além de estabelecer: Princípios e
diretrizes; Objetivos, metas e indicadores; e estratégias de ação. Já o
Plano Diretor tem sua base estabelecida no Estatuto da Cidade, isto é,
deve ser elaborado levando em conta o que está estabelecido em Lei.
Outra diferença consiste em que o PLHIS para ser aprovado
precisa passar pelo Conselho Local de Habitação do Município ou
algum outro Conselho com natureza e finalidade parecidas, confor-
me determinação do CGFNHIS constante da Resolução nº 37, de
8 de dezembro de 2010. Por outro lado, o Plano Diretor precisa ser
instituído por Lei Estadual ou Municipal, além de ser aprovado nas
assembleias legislativas ou câmaras municipais.
Feita essa definição, para continuar o desenvolvimento do pro-
jeto fez-se uma busca pelo Plano Diretor atualizado, além do Plano
Local de Habitação e Interesse Social.
Procurou-se, primeiramente a Prefeitura Municipal de Ituiuta-
ba com a finalidade de obter acesso a esses documentos. No primeiro
contato, falou-se com a Secretária Municipal de Planejamento, a
LUCAS MARQUES RODRIGUES MACEDO - FAUSTO AMADOR ALVES NETO 115

qual informou que para ter acesso a esses Planos ter-se-ia que fazer
um ofício e protocolá-lo na Secretaria de Fazenda – área de pro-
tocolos, para análise do pedido de acesso ao documento, pois de
acordo com a mesma, “para obter informações da prefeitura este
seria o procedimento correto”. Questionada sobre a existência de
um PLHIS a referida se escusou da pergunta aduzindo outros fatos
que não condiziam com o questionamento. Deduziu-se que a Se-
cretária não detinha conhecimento suficiente sobre os documentos
existentes na Prefeitura e quais deles são públicos ou não.
Não logrando êxito na primeira tentativa, a equipe dirigiu-se
novamente à Secretaria de Planejamento Municipal, desta vez em con-
tato com a Diretora do Departamento de Planejamento Urbano, que
se disponibilizou para atender e a responder as perguntas referentes ao
Plano Diretor e sobre o Plano Local de Habitação e Interesse Social.
Em relação as perguntas, questionada sobre a atualização do
Plano Diretor, primeiramente, foi informado que o Plano Diretor está
sendo atualizado junto com uma parceria com a UFU, e que no prazo
de 4 meses estaria findado e à disposição do município.
Questionada sobre a existência do PLHIS a mesma informou
que ele não existe, alegando falta de recurso humano, pois há poucas
pessoas que trabalham no setor específico. Perguntou-se então se há
omissão por parte da prefeitura, haja vista que é de sua competên-
cia a designação de concursos para ocupação de cargos públicos, e
como há falta de “recursos humanos” seria de sua alçada designar tais
funcionários, porém a servidora não respondeu diretamente, apenas
pontuando que há falta de verba para contratação de pessoal.
Em consequência disso, perguntou-se então, qual foi o critério
utilizado para as construções dos novos bairros, visto que o Plano
Diretor que foi utilizado está desatualizado e a Lei Complementar
n° 63 também está. Assim, ela informou que existem leis internas
que nortearam essas construções, as quais são Lei nº 4.161/12 e Lei
nº 4.296/14, que foram utilizadas para regulamentar as construções.
Perguntada se há um acompanhamento posterior às construções,
116 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

a mesma não soube responder e informou que a prefeitura contrata


uma empresa terceirizada para realizar tal feito, porém as empresas
mencionadas são as que executam as obras durante as construções e
não depois. Refeita novamente a pergunta, a servidora disse então que
essa vistoria é feita pelo fiscal do bairro e não pela prefeitura.
Questionada se haveria previsão de elaboração do Plano Local
de Habitação e Interesse Social, foi dito que não saberia declinar
prazos e/ou previsões para tal feito.
No decorrer da entrevista, foram fornecidas cópias das Leis que
foram usadas para a construção dos bairros de interesse social, além
de um mapa geográfico atualizado da cidade de Ituiutaba.

2.3. DA ATUAÇÃO E INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚ-


BLICO
No dia 06 de agosto de 2014 foi instaurado na 6ª Promotoria
de Justiça de Ituiutaba o Inquérito Civil para a apuração de irregula-
ridades no Plano Diretor Integrado de Ituiutaba (Lei Complementar
n. 63/2006).
As principais irregularidades encontradas em relatório feito pela
Nota Técnica da Coordenadoria Estadual das Promotorias de Justiça
de Habitação e Urbanismo, foram:
a) Ausência de novo mapa de zoneamento e de novos parâmetros
urbanísticos para cada zona, considerando que a legislação
em vigor (Lei n. 1.362/1970) que estabelece o zoneamento e
regras de ocupação do solo é antiga, editada antes da Consti-
tuição de 1988 e do Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001)
(itens 2.1, “c”, e 22);
b) Ausência de identificação das áreas passíveis de parcelamento,
de edificação ou de utilização compulsórios do solo urbano não
edificado, subutilizado ou não utilizado (itens 2.2 e 2.3 “e”);
c) Ausência de área de aplicação dos instrumentos de direito de
perempção, outorga onerosa do direito de construir e de alte-
ração de uso, operações urbanas e a transferência do direito de
construir (item 2.3, “f ”);
LUCAS MARQUES RODRIGUES MACEDO - FAUSTO AMADOR ALVES NETO 117

d) Ausência de demarcação de assentamentos irregulares passíveis


de regularização fundiária (item 2.4, “e” e “f ”);
e) Ausência de comprovação do efetivo cumprimento do art. 40,
da Lei 10.257/2001.
Em 07 de agosto de 2014, o Prefeito Municipal concordou
parcialmente com a Nota Técnica, aduzindo que Ituiutaba estava em
fase de desenvolvimento, com o Programa Habitacional, e que no
prazo de seis meses daria início aos trabalhos de revisão.
Após notificado, o Prefeito Municipal tomou ciência da
referida recomendação no dia 09 de outubro de 2014 e o prazo
determinado para a revisão do Plano Diretor, que foi de 180 dias,
portanto, o Prefeito teria até o dia 07 de abril de 2015 para executar
a atividade, fato este que não ocorreu.
Dentro do prazo de 180 dias foram realizadas reuniões públicas
com as autoridades locais e a comunidade visando dar publicidade à
questão envolvendo a necessidade do Plano Diretor, sendo que, em 21 de
outubro de 2014, foi realizada audiência com os Vereadores Municipais;
e em 23 de março de 2015, realizou-se Audiência Pública, contando com
ampla presença popular. Porém, mesmo se mostrando disposto a resolver
a situação o Executivo Municipal não comprovou dentro do prazo por
ele próprio estipulado o cumprimento de tal obrigação legal.
A recomendação expedida procurou orientar o Poder Executi-
vo a regularizar tais questões, porém se quedou inerte, contrariando
não somente as orientações do MP, mas também o disposto na Lei
Complementar do Município de Ituiutaba n. 63, de 31 de outubro
de 2006, prevê em seu artigo 109 que “O Executivo deverá encami-
nhar à Câmara Municipal projeto de lei de revisão do Plano Diretor
Integrado no segundo ano de cada mandato.”
Conforme exposto na Nota Técnica, o Plano Diretor foi apro-
vado em 2006 com sérios problemas e irregularidades, o que indica
que pode ter sido feito às pressas, apenas para cumprir formalmente o
disposto no art. 50 do Estatuto da Cidade, conforme o prazo previsto
em sua redação original.
118 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

3. REALIDADE ATUAL DAS ÁREAS HABITACIONAIS DE


INTERESSE SOCIAL EM ITUIUTABA
Durante a realização das visitas aos bairros, constatou-se que
eles possuíam diversos pontos em comum, como, por exemplo, todos
os bairros estão povoados, e a maioria se comparados com o centro
da cidade, verifica-se que há poucos estabelecimentos comerciais, não
tem supermercado ou farmácia de grande porte e são pouco movi-
mentados, exceto o bairro Canaã como demonstrado abaixo.
Observou-se também que, em relação as casas, em quase todos
os bairros estas tiveram mudanças em relação a sua estrutura inicial,
e em que algumas possuem cercas e muros altos, como é o caso dos
bairros: Buritis, Camilo Chaves, Estados Unidos, Jardim Europa I
e Nadime Derze. Já os bairros Carlos Dias Leite e Jardim Europa II
contém casas pouco seguras, com muros baixos, sem nenhum tipo de
segurança. Por outro lado, os bairros Gilca Vilela Cancela, e Marcon-
des Bernardes tiveram pouca ou quase nenhuma modificação e estão
da mesma forma que foram estregues pelo governo.
Os bairros Buritis e Carlos Dias Leite, aparentemente, são bairros
com ruas e calçadas sujas, onde não há muito cuidado com a limpeza.
Por fim, tratando a respeito dos serviços básicos essenciais que
complementam a moradia digna, apenas o serviço de transporte pú-
blico que realmente se mostrou efetivo nos bairros: Buritis, Camilo
Chaves, Gilca Vilela Cancela, Jardim Europa II, Nova Ituiutaba.
Abaixo segue a análise individual de cada bairro visitado, sob o
ponto de vista da equipe executora do projeto.

3.1. VISITA AO ‘BAIRRO BURITIS’


É um bairro com bastante fluxo de pessoas e apesar de não ter
muitos pontos de comércio dentro dele, nas suas proximidades existe
supermercados, farmácia, restaurante, dentre outros estabelecimentos
comerciais. No que tange a sua estrutura, possui tratamento de re-
síduos, energia, iluminação pública e saneamento básico, possuindo
também rampas de acessibilidade.
LUCAS MARQUES RODRIGUES MACEDO - FAUSTO AMADOR ALVES NETO 119

3.2. VISITA AO ‘BAIRRO CAMILO CHAVES’


Em relação a sua estrutura, possui tratamento de resíduos, ener-
gia, iluminação pública e saneamento básico, não possuindo rampas
de acessibilidade. Verificou-se também que na época da visita, algumas
ruas não possuíam a marcação de “pare” nas esquinas, o que gera uma
insegurança em relação aos que trafegam por aquelas ruas.
3.3. VISITA AO ‘BAIRRO CANAÃ’
Canaã foi o bairro com maior fluxo de pessoas que constatamos
durante as visitas. Segundo os moradores dentre os serviços básicos
essenciais a complementar a moradia digna, os serviços ao transporte,
à educação e lazer são os que realmente se mostram efetivos no bairro.
Em uma breve análise dos pontos coletados, tem-se, a princípio, que
este é dentre os bairros pesquisados um dos mais “completos”. Em
relação a sua estrutura, possui rampas de acessibilidade, porém nem
em todas as calçadas, tratamento de resíduos, energia, iluminação
pública e saneamento básico. Há pouca diferença no que se refere
ao centro da cidade, verifica-se que há estabelecimentos comerciais,
supermercados, pontos de táxi, salão de beleza entre outros.
3.4. VISITA AO ‘BAIRRO CARLOS DIAS LEITE’
Segundo os moradores dentre os serviços básicos essenciais a
complementar a moradia digna, os serviços de transporte, a educação
e a saúde são os que realmente se mostram efetivos no bairro. Em uma
breve análise dos pontos coletados, tem-se, a princípio, que este é
dentre os bairros pesquisados um dos mais “completos”. No que tange
a sua estrutura, possui tratamento de resíduos, energia, iluminação
pública e saneamento básico, não possuindo rampas de acessibilidade.
Ressalta-se ainda que há lotes vazios com o acúmulo de entulho.
3.5. VISITA AO ‘BAIRRO ESTADOS UNIDOS’
Neste bairro, de acordo com a pesquisa, dentre os serviços
básicos essenciais a complementarem a moradia digna, o serviço ao
transporte público é o que se mostra parcialmente efetivo, tendo
em vista que o coletivo não entra no bairro. Em relação aos demais
120 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

serviços, segundo relatos dos moradores é possível encontra-los nas


proximidades. No que tange a sua estrutura, possui rampas de aces-
sibilidade, porém nem em todas as calçadas, tratamento de resíduos,
energia, iluminação pública e saneamento básico.
3.6. VISITA AO ‘BAIRRO GILCA VILELA CANCELA’
Em relação a sua estrutura, possui rampas de acessibilidade,
porém nem em todas as calçadas, tratamento de resíduos, energia,
iluminação pública e saneamento básico.
3.7. VISITA AO ‘BAIRRO JARDIM EUROPA I’
Já com relação ao Bairro Jardim Europa I, os serviços de trans-
porte público nas mediações do bairro, a educação, a segurança e a
saúde são os que realmente se mostram efetivos no conjunto habita-
cional. No que tange a sua estrutura, possui tratamento de resíduos,
energia, iluminação pública e saneamento básico, não possuindo
rampas de acessibilidade.
3.8. VISITA AO ‘BAIRRO JARDIM EUROPA II’
A respeito da sua estrutura, possui tratamento de resíduos,
energia, iluminação pública e saneamento básico, possuindo também
rampas de acessibilidade. Segundo o relato de um morador o bairro
é uma favela quase urbanizada.
3.9. VISITA AO ‘BAIRRO MARCONDES BERNARDES’
Havia pouco fluxo de pessoas durante a visita. Segundo os mo-
radores dentre os serviços básicos essenciais a complementar a moradia
digna, o bairro não contempla nenhum deles, visto que, em relação
ao transporte público, o coletivo não passa dentro do bairro. Em re-
lação a sua estrutura, possui rampas de acessibilidade, tratamento de
resíduos, energia, iluminação pública e saneamento básico. Tivemos
dificuldades em encontrar moradores para as entrevistas.

3.10. VISITA AO ‘BAIRRO NADIME DERZE’


Na vista a este Bairro, os moradores enalteceram o serviço de
LUCAS MARQUES RODRIGUES MACEDO - FAUSTO AMADOR ALVES NETO 121

transporte público e a segurança, ainda que parcialmente fornecidos.


No que tange a sua estrutura, possui tratamento de resíduos, energia,
iluminação pública e saneamento básico, possuindo também rampas
de acessibilidade. Aparentemente, é um bairro com ruas e calçadas
sujas, onde não há muito cuidado com a limpeza. Ressalta-se ainda
que há lotes vazios entre as casas com o acúmulo de entulho. E algu-
mas casas já foram desmoronadas.

3.11. VISITA AO ‘BAIRRO NOVA ITUIUTABA’


Neste conjunto habitacional, existem quatro repartições dentro
do mesmo bairro, e segundo os moradores os blocos 2 e 4 ainda
não tinham sido entregues pelo governo. Em relação a sua estrutura,
possui rampas de acessibilidade, tratamento de resíduos, energia, ilu-
minação pública e saneamento básico. É considerado um dos bairros
mais afastados do centro da cidade.
Em relação a análise feita sobre os dados obtidos com a pes-
quisa, o presente gráfico retrata os pontos que devem ser melhorados,
segundo a opinião dos próprios moradores, em que está evidente que
há diversos serviços defasados nos bairros.

Org.: Autores (2018)


122 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

De acordo com os dados levantados, tem-se que ainda há diver-


sos serviços que os bairros ainda não possuem, ou então, se possuem,
estes não são de boa qualidade. Nota-se que todos os serviços apre-
sentados mostraram um grau de insatisfação daqueles que o utilizam,
assim, não houve nenhum bairro que contemplasse em sua maioria
os serviços essenciais a garantir a moradia digna. E de fato, o que
realmente constatou-se é bem ao contrário da situação descrita acima.
As áreas de interesse social, em sua maioria, não possuem uma infraes-
trutura adequada para os que lá habitam, pois, como elucidado no
gráfico, ainda há muito para ser melhorado.
Primeiramente, nota-se com a análise do gráfico, que a saúde
foi, para os moradores, o ponto em que os bairros mais necessitam
de suporte do município. Num total de 71,27% dos entrevistados,
sugeriram que a saúde tivesse um olhar mais nobre por parte da pre-
feitura, seja com a implantação de postos de saúde, postos de saúde
da família ou seja com a construção de farmácias.
Seguido da saúde, de acordo com a opinião dos entrevistados,
com 56,21% tem-se a segurança como o segundo ponto de maior
insatisfação dos moradores. De acordo com a entrevista, em alguns
bairros a polícia faz apenas um monitoramento, mas é impossível pre-
cisar a frequência dela nessas localidades, visto que, segundo relatos,
ela faz uma sonda em alguns dias da semana. A população, no quesito
segurança, pediu postos de polícia e uma constante presença do corpo
militar dentro dos bairros.
A educação com 51,20% de insatisfação dos moradores entre-
vistados, ocupa a terceira colocação. Neste ponto, a população busca
a implantação de escolas, creches e vans para o transporte escolar.
Em quarto lugar, tem-se o lazer com a insatisfação de 45,17%
do numerário entrevistado. Porque as crianças brincam na rua, praças,
ocupação para crianças e adolescentes terem o que fazer, academia
Os moradores além desses pedidos genéricos, tem outras insa-
tisfações com alguns pontos nos bairros, que denominamos de demais
LUCAS MARQUES RODRIGUES MACEDO - FAUSTO AMADOR ALVES NETO 123

melhorias e aparece no gráfico com 25,10% da opinião dos entrevis-


tados. Engloba, supermercados, postos de gasolina, estrutura para os
jovens terem mais oportunidades, preocupação com os loteamentos
vazios que possuem entulho, a existência de atividades físicas para o
bairro, exercícios em área pública, lotérica, benfeitorias, asfalto, coleti-
vo entrar no bairro, indignação sobre dois terrenos vagos que ficaram
para a prefeitura fazer creches e área de lazer, porém nada foi feito,
casa de carnes e que o ponto de ônibus não tem cobertura.
O transporte foi o que menos se mostrou ineficaz nos bairros,
apenas com 14,5%. A maioria dos bairros possuem o sistema de trans-
porte público, porém a insatisfação dos moradores foi no quesito de
qualidade e que os coletivos não entram dentro do bairro, e que não
passam na hora certa.
O gráfico abaixo faz menção a respeito dos conhecimentos dos
entrevistados sobre o que são direitos fundamentais e direitos sociais,
o qual demonstra o conhecimento dos moradores sobre seus direitos.

Org.: Autores (2018)

O questionário foi aplicado para um total de 110 pessoas em


diferentes 11 bairros de interesse social, no município de Ituiutaba/
MG. Indagados sobre o tema, obtivemos os seguintes resultados. Com
um percentual de 55%, a maioria dos entrevistados já ouviu falar sobre
124 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

esses direitos, porém, não sabiam explicar. Por outro lado, 33% dos
moradores que responderam ao questionário não detinham nenhum
conhecimento sobre tais direitos. E por fim, apenas 12% da população
entrevistada sabiam do que se tratava os direitos fundamentais e sociais.
Deste modo, nota-se que, somente uma pequena parcela dos
moradores das casas construídas pelo governo detém o conhecimento
sobre alguns dos seus direitos constitucionalmente garantidos. In-
fere-se então, que as pessoas residentes nos conjuntos habitacionais
possuem baixo nível de escolaridade. Não apenas pelo fator de não
saberem o que são esses direitos, mas sim, pelo fato de apenas 3 (três)
pessoas de um total de 110, cursam ou já cursaram o nível superior de
ensino. Dos outros 107 moradores entrevistados 46 possuem o ensino
fundamental, 52 pessoas têm apenas o ensino médio e 2 entrevistados
não estudaram. Assim, como consequência do pouco conhecimento
que possuem sobre as normas que lhes garantem direitos acabam por
serem prejudicados, visto que não possuem conhecimento sobre os
seus direitos, e assim, o estado aproveita da inocência destes morado-
res e se mostra parcialmente omisso com relação as suas obrigações.
Pois já que não conhecem os seus direitos, a atual situação em que
vivem está “correta”, porque entendem que o estado é apenas obrigado
a garantir a moradia e os demais fatores (segurança, saúde, transporte,
entre outros) é como se fosse um bônus que vieram de brinde junto com
as casas e assim, não possuem um norte para reivindicar os direitos que
lhes são ceifados pelo estado. Subentende-se que, caso os moradores não
fossem tão leigos com relação aos seus direitos, estes possuiriam uma
voz mais ativa frente a atual situação em que vivem.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em virtude dos fatos acima apresentados, conclui-se que, o
papel do estado está sendo parcialmente cumprido, ou seja, é notó-
rio, de acordo com os dados levantados, que a maioria dos bairros
de interesse social construídos pelo “Programa Minha Casa, Minha
Vida” não estão garantindo o direito constitucional a moradia digna,
LUCAS MARQUES RODRIGUES MACEDO - FAUSTO AMADOR ALVES NETO 125

devido ao fato de não possuírem todos os serviços essenciais que


conceitua a moradia digna àqueles que residem nos bairros. Como
demonstrado no gráfico abaixo:

Este gráfico está relacionado a opinião dos moradores sobre


os serviços existentes nos bairros em que residem. Deste modo, bus-
cou-se saber se as áreas de interesse social no município de Ituiutaba
realmente estabelecem moradia digna para seus moradores. Para isso,
foram visitadas 110 casas em 11 diferentes bairros nos anos de 2017 e
2018. Foram entrevistadas pessoas de diversas faixas etárias, da criança
ao idoso, e com diferentes níveis de escolaridade, que variam desde
aqueles que não tiveram oportunidade de estudar até aqueles que cur-
saram o ensino superior. E com diversos tipos de conhecimentos sobre
126 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

os próprios bairros que de um modo geral contribuiu para o projeto.


Os dados coletados dizem respeito sobre os serviços que os
bairros dispõem a seus moradores, como, por exemplo, transporte,
segurança, saúde, educação e lazer. Assim, cada morador respondia
de acordo com o seu conhecimento se o bairro tinha ou não aquele
determinado serviço.
Os bairros que possuem praticamente todos os serviços
listados durante a entrevista são: Carlos Dias Leite e Canaã. Se
comparado com os demais, eles podem ser considerados os mais
completos, com a melhor infraestrutura para seus moradores. Por
outro lado, os bairros Marcondes Bernardes e Estados Unidos são
os que estão em piores condições em relação aos serviços essenciais.
Seguindo a mesma linha de raciocínio se comparado aos demais,
estes podem ser considerados os bairros que menos favorecem seus
moradores em relação a sua infraestrutura.
Com a análise do gráfico, constata-se que, o transporte está pre-
sente em praticamente todos os bairros, apesar de ter reclamações sobre
ele não entrar no bairro, o transporte público foi o item em que os
moradores se mostraram mais satisfeitos com a sua utilização. Neste
ponto, é importante ressaltar que foi levado em consideração a opinião
popular e não se realmente há o transporte público naquela localidade.
Isto porque, por mais que em alguns bairros o transporte não contemple
o bairro diretamente, pelo fato de passar apenas nas proximidades os
moradores consideraram que existe sim o transporte público no bairro.
O mesmo fato acontece quando se trata a respeito da segurança,
este item também se fez presente na maioria dos bairros, porém, os
moradores consideram a existência de segurança no bairro o simples
fato de haver rondas policiais esporádicas dentro dele. Sabe-se que
para se ter uma efetiva segurança é necessário postos de polícia dentro
do bairro e não apenas visitas aleatórias.
Educação e saúde aparecem em apenas 4 dos 11 bairros em
que foram feitos os levantamentos. Assim infere-se que há baixo
índice de oportunidades escolares para os moradores, do mesmo
LUCAS MARQUES RODRIGUES MACEDO - FAUSTO AMADOR ALVES NETO 127

modo que também não há meios, dentro dos bairros, que garan-
tem a saúde dos que ali residem. É importante mencionar que, em
alguns bairros não existem meios que garantem a saúde e educação,
mas sim nas dependências desses locais, em outros bairros, há sim
saúde e educação, e por isso os alguns moradores consideram como
se realmente tivesse esses serviços dentro do bairro em que residem.
Como é o caso, por exemplo, do Bairro Jardim Europa I, que não
possui escolas ou creches no bairro, mas há uma escola próxima ao
bairro. O mesmo fato se repete em relação a saúde.
E por fim, o serviço que menos aparece no gráfico, isto é, aquele
que quase não tem nos bairros criados pelo programa governamental,
em Ituiutaba, é o lazer. Ele aparece em apenas duas localidades, nos
bairros: Canaã e Carlos Dias Leite. A respeito do primeiro, possui
o maior agrado dos seus moradores em relação a este serviço que é
oferecido no bairro com uma aprovação de 80%. Já o segundo, não é
de agrado integral dos seus moradores, apenas 20% dos entrevistados
consideraram que há áreas de lazer neste bairro.
Portanto, nota-se que o estado cumpre sim seu papel de esta-
belecer moradia para a população, porém, não se pode falar que essas
moradias são suficientes para garantir que elas sejam dignas, pois, os
demais fatores que norteiam para que se tenha um local de habitação
que garanta todos as suas necessidades básicas os bairros não possuem.

REFERÊNCIAS
ALFONSIN, Betânia. O significado do estatuto da cidade para os processos de regularização
fundiária no Brasil. In FERNANDES, Edésio, ALFONSIN, Betânia. Evolução do direito
urbanístico. Belo Horizonte: PUC Minas Virtual, 2006.
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Cons-
titucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 109-110.
BIANCO, Fernanda Silva. As gerações de direitos fundamentais. Disponível em: <https://
www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3033/As-geracoes-de-direitos-fundamentais>.
Acesso em: 20 mar. 2018.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006,
p. 563-571.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
128 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

DF: Senado Federal, 1988.


CASTRO, Angelina Gomes Freitas de; SANTOS, Eduardo Rodrigues dos. O PRINCÍ-
PIO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO ELEMEN-
TO ESTRUTURANTE DO SISTEMA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONS-
TITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E O DIREITO FUNDAMENTAL À CULTURA.
Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/ artigos/? cod=0c74b7f78409a402>.
Acesso em 20 mar. 2018.
GONÇALVES, Fabiana Rodrigues. Direitos sociais: direito à moradia. Disponível
em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_
id=12892>. Acesso em 20 mar. 2018.
HOLZ, Sheila; MONTEIRO, Tatiana Vilela de Andrade. POLÍTICA DE HABITA-
CÃO SOCIAL E O DIREITO A MORADIA NO BRASIL. Disponível em: <http://www.
ub.edu/geocrit/-xcol/158.htm>. Acesso em: 20 mar. 2018.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Han-
nah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.126.
LEÃO JÚNIOR, Teófilo Marcelo de Arêa. Acesso à moradia: políticas públicas e sentença
por etapas. Curitiba: Juruá, 2014.
LUCA, Guilherme Domingos de; LEÃO JÚNIOR, Teófilo Marcelo de Arêa. Minha casa,
minha vida: extensão do direito à moradia e proteção constitucional. Scientia Iuris, Londri-
na, v. 20, n. 1, p. 79-71, abr. 2016. DOI: 10.5433/2178-8189.2016v20n1p79. ISSN:
2178-8189.
Marchini Neto, DIRCEU. A Constituição Brasileira de 1988 e os Direitos Humanos: Ga-
rantias Fundamentais e Políticas de Memória. Revista Científica FacMais, Volume. II, Nú-
mero 1. Ano 2012/2º Semestre. ISSN 2238-8427.
MARCHINI NETO, Dirceu. A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E OS
DIREITOS HUMANOS: GARANTIAS FUNDAMENTAIS E POLÍTICAS DE
MEMÓRIA. Disponível em <http://revistacientifica.facmais.com.br/wp-content/
uploads/2012/10/6.A-Constitui%C3%A7%C3%A3o-Brasileira-de-1988-e-os-Direitos-
-Humanos-Dirceu-Marchini1.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2018.
MINAS GERAIS. Lei 18.315 de 06/08/2009. Diretrizes para a formulação da política
estadual habitacional de interesse social – PEHIS. Disponível em: <http://www.cidades.
mg.gov.br/ images/ documentos/ lei- 18315- diretrizes -para-formulacao -da- poliitica-es-
tadual-habitacional -de-interesse-social-pehis.pdf>. Acesso em 20 mar. 2018.
PAULO, Vicente, ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 8º
ed. Editora Método. São Paulo-SP. 2012.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9ª ed. rev.,
ampl. e atual., São Paulo: Saraiva, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2005.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. Rev. E atual. – São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 837.
REPRESENTAÇÃO POLÍTICA, PARTICIPAÇÃO
SOCIAL E INTERNET: UMA ANÁLISE
DO PORTAL E-CIDADANIA DO SITE DO
SENADO FEDERAL COMO MECANISMO DE
PROMOÇÃO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Luís Jivago de Assis Quirino1

1. INTRODUÇÃO
Em um contexto de crise da representação política, em que a
confiança nas instituições democráticas é menor a cada dia, a busca
pela renovação dos mecanismos de legitimação do Estado é uma
preocupação constante.
O processo de inclusão política observado nos países centrais
desde o século XIX e no Brasil a partir da Constituição de 1988
trouxe mudanças estruturais para a esfera pública, aumentando as
expectativas da sociedade civil em relação à atuação do Estado, prin-
cipalmente no campo das políticas públicas.
Entre nós, a promessa constitucional de um Estado Social e
a valorização da soberania popular recrudesceram as reivindicações
pela prestação de serviços públicos de qualidade. Nesse diapasão, a
juridificação da participação social como instância de controle das
políticas públicas ganha vulto.
Para a concretização da cidadania, já não basta o direito a votar e ser
votado. Após a redemocratização, as reivindicações por efetiva ingerência

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Bacharel


em Direito pela Universidade de São Paulo. E-mail: jivago@aluno.unb.br
130 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

da sociedade em todo o processo de formulação, implementação e fiscali-


zação das políticas públicas tornam-se cada vez mais frequentes.
Com o desenvolvimento e consolidação da internet, abrem-se
as portas para uma nova forma de fazer política. A facilidade de acesso
à informação de utilidade política, das relações sociais e de discussão
das questões de interesse coletivo, aliada à introdução de novos locais
para engajamento político estimularia a participação política dos ci-
dadãos (FARIA, 2012, p. 82).
A questão posta é se a internet é um instrumento que incre-
menta e qualifica a participação política nos processos de tomada de
decisão coletiva, em especial na elaboração, execução e fiscalização das
políticas públicas. Para investigá-la, este artigo realizará a análise do
caso do portal e-Cidadania do Senado Federal, instrumento que pre-
tende fomentar a participação cidadã na discussão e elaboração de leis.
Nesse percurso, em um primeiro momento, far-se-á uma re-
tomada dos conceitos de Democracia, representação e participação
na teoria política, bem como suas interconexões. Na mesma seção, a
constitucionalização do direito à participação política será relacionada
às mudanças de compreensão acerca da relação entre os três conceitos.
Em seguida, será abordada a relação entre a internet e participa-
ção social. A questão central a ser abordada é se as novas ferramentas
disponibilizadas pela esfera pública conectada estimulam o incremen-
to na ingerência dos cidadãos nas políticas públicas.
Por fim, será exposto o exame do surgimento e configuração do
portal e-Cidadania, bem como uma análise quantitativa das propostas
e eventos que obtiveram maiores números de participação de cidadãos
no portal. Ao final, pretende-se responder à provocação acerca da
relação entre internet e participação política.

2. DEMOCRACIA, REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO


SOCIAL
A representação política é a principal categoria de legitimação
LUÍS JIVAGO DE ASSIS QUIRINO 131

dos governos democráticos da modernidade. Mesmo havendo mecanis-


mos de participação dos cidadãos, nenhuma das grandes democracias
ocidentais prescinde da representação para que haja governo.
Segundo Hanna Pitkin (1967, p. 14-16), o conceito de repre-
sentação remonta ao Livro XVI do “Leviatã” de Thomas Hobbes. O
autor formula esse conceito associado ao contrato social, ambos nor-
teados por uma preocupação de estabilidade da organização política.
A elaboração do conceito de representação na Teoria Política con-
tinua contra o pano de fundo das revoluções liberais do século XVIII e
das progressivas lutas sociais por inclusão no sistema político do século
XIX, que culminaram com a ampliação do sufrágio, advento dos par-
tidos políticos e do sistema proporcional (PITKIN, 2006, p. 30).
Carole Pateman (1992, p. 11) descreve que, após o Colapso
da República de Weimar, e a experiência totalitária que a sucedeu,
marcada por altas taxas de participação popular, aumentaram o receio
de conferir mais espaços para a participação política direta dos cida-
dãos. A teoria democrática passou então a desconfiar da participação
popular, associando a ampliação das bases de tomada de decisões à
má qualidade da participação de cidadãos desinteressados ou à insta-
bilidade política resultante da pulverização do dissenso.
Durante a Guerra Fria, os regimes comunistas negavam a
existência de democracias nos Estados capitalistas, afirmando que
seu regime político seria superior em termos participativos, consti-
tuindo as verdadeiras democracias. Em resposta, os defensores das
“democracias ocidentais” formularam uma compreensão acerca do
fenômeno que ficou conhecida como “Democracia minimalista”
(PLOTKE, 1997, p. 20).
Autores como Joseph Schumpeter reformulam as bases do
conceito de democracia, considerando que o aumento da taxa de
participação possa representar um risco para a estabilidade do sistema
democrático. Desse modo, eles restringem os momentos de partici-
pação política direta dos cidadãos ao exercício do voto, dando maior
132 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

relevância à dimensão representativa da democracia.


Nesse caminho, a Democracia se distancia largamente de sua
forma original. Para Schumpeter, a doutrina clássica da Democracia
do século XVIII, que a define como arranjo institucional em que o
povo toma as decisões políticas orientadas pela realização do bem
comum (1961, p. 300), seria muito mais calcada em uma crença do
que em elementos empíricos.
Segundo o autor, uma teoria da Democracia adequada à reali-
dade traz a compreensão de que o “método democrático é um sistema
institucional, para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo
adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos
do eleitor” (1961, p. 321).
Nos estados capitalistas, uma esquerda não-comunista reagiu
às teorias da “Democracia minimalista” afirmando que os mecanis-
mos representativos convencionais substituíram ou bloquearam a
participação política. Considerando a ênfase no momento eleitoral,
a fragmentação e o desinteresse do eleitorado, o papel político dos ci-
dadãos restringe-se à ratificação da escolha de candidatos selecionados
pelas elites (PLOTKE, 1997, p. 23).
A crítica participativa afirma que a representação é incompa-
tível com a liberdade, pois não há autogoverno e autonomia se a
vontade política é delegada a um representante. Por outro lado, a
representação também não se compatibiliza com a igualdade, pois a
igualdade eleitoral é uma ficção abstrata que omite as desigualdades
sociais e econômicas subjacentes. Além disso, a representação impede
a formação de um público participativo, no qual a ideia de justiça
social deve ser calcada (BARBER, 1984, pp. 145-146).
Jean Paul Sartre (2004) faz uma crítica radical em um ensaio
intitulado “Eleições, armadilha para otários”. Sartre defende que
quando o eleitor é convocado às urnas, não vai como membro de
uma classe ou dos grupos dos quais faz parte no convívio social. Ao
exercer o voto, ele passa por um processo de alienação institucional.
LUÍS JIVAGO DE ASSIS QUIRINO 133

Esse processo é marcado por dois momentos descritos pelo


autor. O primeiro deles é a atomização, etapa em que o “cidadão” é
separado dos grupos que integra no convívio social, tais quais classe,
família, organização sindical etc. O outro é a serialização, que con-
siste no reagrupamento dos indivíduos atomizados em um coletivo
homogêneo, em que todos os integrantes são iguais.
Para Sartre, quando o indivíduo vota, abdica do poder, pois
abdica da possibilidade de estabelecer um grupo soberano com outros
indivíduos. Portanto, a Democracia indireta [leia-se representativa] é
uma mistificação. Pretende-se que o Corpo de representantes reflita a
opinião pública, mas só há opinião pública serial, composta por um
conjunto de ideias pré-fabricadas.
Essa tensão entre participação e representação se torna mais
aguda quando a ela é adicionada a desigualdade extrema entre os
membros da sociedade. Nos Estados da periferia global, em que
o sistema político é marcado pela exclusão de largas camadas da
população, a questão ganha contornos específicos, pois a ausência
ou assimetria da cidadania tende a comprometer os mecanismos de
participação e representação.
Hanna Pitkin (2006, p. 42) identifica o paradoxo ineren-
te ao próprio significado da representação: “tornar presente de
alguma forma o que apesar disso não está literalmente presente”.
Desafia-se, pois, a própria ideia de representação e, por consequên-
cia, sua superioridade ou capacidade de substituir a participação
direta da sociedade nos processos decisórios.
Com a queda dos regimes comunistas ao final da Guerra Fria,
esta oposição entre participação e representação arrefece. Junto à
dissolução da União Soviética, desaparece a alternativa à Demo-
cracia representativa que as democracias socialistas representavam.
Ademais, a globalização e crescente complexificação da organização
social e das decisões tomadas em seu seio inviabiliza um modelo
que prescinda da representação, calcado em pequenas assembleias
formadas por cidadãos educados e engajados.
134 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

A inviabilidade da democracia direta não é uma questão de


escala, mas uma decorrência da autonomia de preferências que ela
enseja, inclusive, para o engajamento necessário à decisão das questões
públicas. Diante da implausibilidade da Democracia direta, Plotke
afirma que, em lugar de tentar implantá-la em lugar da Democra-
cia representativa, devemos melhorar esta última e desenvolver novas
formas de representação. Ele define representação como um processo,
marcado pelo diálogo entre representante e representados, no qual se
destacam a dimensão construtiva, de produção de conhecimento, e
a aptidão de alcançar acordos entre partes antagônicas (1997, p. 31).
Sobretudo a partir da década 90, desenvolve-se uma nova com-
preensão acerca da representação política. Nessa direção, Iris Young
(2000, pp. 121-153), apresenta um conceito de representação política
que se distancia do conceito clássico relacionado a substituir alguém,
agindo em seu interesse. A autora define representação política como
um processo dinâmico marcado pelo relacionamento entre represen-
tantes e representados, entre os indivíduos que compõem a base dos
representados entre si e entre os representantes no ambiente decisório.
Para além do momento eleitoral, esse relacionamento seria
marcado por momentos de autorização (authorization) e prestação de
contas (accountability), formando um ciclo contínuo em que o repre-
sentante recebe o consentimento dos representados para exercer sua
função, presta contas acerca de sua atuação e de seus motivos, recebendo
novamente autorização para o exercício do mandato e assim por diante.
Embora, os autores mencionados resgatem a dimensão proces-
sual e criativa da representação, é com a formulação de Michael Saward
(2010) que a “virada construtivista” ganha contornos mais claros. O
autor introduz a ideia de representative claim, que estressa o caráter
construtivista e performático do processo de representação. Para Saward,
a representação é uma via de duas mãos em que os representados esco-
lhem seu representante e o representante retrata os representados.
Descrita como um processo em que tanto representantes
como representados participam ativamente, a representação política
LUÍS JIVAGO DE ASSIS QUIRINO 135

incorpora a participação social, aumentando a tendência à institucio-


nalização de mecanismos de diálogo entre Estado e sociedade civil no
processo de tomada de decisão coletiva.
Nesse sentido, parte da teoria política recente enfatiza a
necessidade de expansão da participação social nas instituições re-
presentativas, de criação de espaços para o exercício deste direito
e incremento da participação de grupos sociais sub-representados,
com o intuito de potencializar a interação e comunicação entre
representantes e representados, conferindo maior legitimidade e
responsividade ao processo político.
À medida que ocorre a pluralização e processualização do
conceito de representação, instaurando-se um novo parâmetro nas
relações entre Estado e sociedade civil, a participação deixa de ser
vista como oposição ao Estado. O conceito de participação social
pretende representar a pluralidade e diversidade de grupos sociais,
cujos interesses e projetos integram o espaço público de tomada de
decisão coletiva em igualdade de condições.
A participação social é alçada ao rol dos direitos humanos com-
posta por duas dimensões: uma garantia de tomar parte nas decisões
coletivas e outra garantia de votar e ser votado em eleições periódi-
cas, pautadas pelo voto secreto e pelo sufrágio universal, exercido em
igualdade de condições (STEINER, 1988, p. 85-89). Ao lado dos
direitos de liberdade de expressão, de associação e reunião, a parti-
cipação social se insere na dimensão dos direitos políticos, um dos
componentes do status da cidadania.
No entanto, é importante ressaltar que a institucionalização da
participação social não elimina as assimetrias de acesso a tais meca-
nismos, nem as desigualdades de poder de agenda verificadas entre os
diversos segmentos sociais (CARVALHO, 1995, p. 27).
No Brasil, a participação incorporada no sistema político a
partir da inserção de organizações civis e atores coletivos no pro-
cesso de formulação de políticas públicas (ALMEIDA, 2014, p.
136 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

176). A institucionalização da participação social ocorre no contexto


de redemocratização do país, tencionando romper com o passado
marcado pelo elitismo, pela escravidão e pelo autoritarismo, carac-
terísticos do processo de formação social brasileira (FONSECA,
2007, p. 247).
Segundo FONSECA, no campo das políticas públicas, a Cons-
tituição Federal de 1988 inaugura um novo paradigma institucional
marcado pela descentralização, participação social e universalização
da cidadania, como resultante das lutas dos movimentos sociais,
que tiveram ampla participação na sua elaboração. O incremento
participativo da democracia representativa veio acompanhado da
descentralização federativa da gestão de políticas públicas e da pre-
visão de direitos sociais, coletivos e difusos.
A Constituição Federal prevê em seu texto alguns dos ins-
trumentos de participação social e inspira muitos outros com suas
normas de vetores democrático e descentralizador. De um lado
temos o plebiscito, o referendo e a iniciativa legislativa popular pre-
vistos expressamente no texto constitucional; de outro os conselhos
gestores de políticas públicas, o orçamento participativo e as audiên-
cias públicas, inspirados por normas constitucionais e consagrados
em normatização ulterior.
A participação social insere-se dentro e ao lado das demais
instituições democráticas. Nesse passo, a participação na gestão se
desdobra em controle social das políticas públicas (FONSECA, 2007,
p. 251). Instituições como os Conselhos Gestores e o Orçamento
Participativo somam-se ao Judiciário, aos Tribunais de Contas e ao
Ministério Público, estabelecendo relações de complementaridade e
divergência com elas. Todavia, diversamente das citadas instâncias de
controle que atuam em momento sucessivo à elaboração da política
pública, os instrumentos de participação social possuem a possibili-
dade de incidir antes e durante a sua elaboração.
Essa potencialidade de controle social do input do processo de
elaboração das políticas públicas será objeto deste artigo, focalizando-se
LUÍS JIVAGO DE ASSIS QUIRINO 137

a participação social por meio eletrônico no processo de elaboração das


leis, instrumento de planejamento e execução das políticas públicas.

3. E-DEMOCRACIA: É POSSÍVEL INSTAURAR UM


NOVO PARADIGMA DE CONTROLE SOCIAL DAS POLÍ-
TICAS PÚBLICAS COM O AUXÍLIO DA INTERNET?
O desenvolvimento tecnológico alcançou um patamar tal que
alguns adventos tecnológicos passaram a integrar a vida das pessoas,
tornando-se cruciais. A internet pode ser incluída neste rol. No campo
da política, seu caráter transnacional e a facilitação da comunicação
por ela proporcionada trazem inúmeras potencialidades.
Tem sido cada vez mais frequente o uso da tecnologia da infor-
mação para fomentar a participação direta dos cidadãos nos processos
de tomada de decisão coletiva. Eduardo Magrani alega que o recurso
a essas tecnologias têm “transformado indivíduos em uma importante
fonte de informação, engajamento sociopolítico e controle do poder
público.” O autor afirma que o uso da internet enseja tanto um maior
empoderamento dos cidadãos, quanto um ganho de legitimidade para
o poder político (2014, p. 20).
Criatiano Ferri Soares de Farias (2012, p. 84) ressalta “a uti-
lidade da tecnologia de informação e comunicação, em especial da
internet, como instrumento de intensificação de relações sociais que
podem ter algum impacto na política de forma geral, mas, em espe-
cial, no sistema de políticas públicas”.
O uso disseminado dessas ferramentas possibilita a criação de
um novo ambiente comunicativo, de livre e fácil acesso, no qual as
respostas são instantâneas. Assim, novos espaços para o debate púbico
surgem e os custos da participação social são reduzidos sobremanei-
ra. A aplicação dessas ferramentas de tecnologia da informação pelas
instituições democráticas fomentou o surgimento do conceito de
e-Democracia, que pode ser definida da seguinte maneira (TRECH-
SEL et al, 2003, p. 10 apud FARIAS, 2012, p. 96):
138 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

e-Democracia consiste em todos os meios eletrônicos de comu-


nicação que habilitem/auxiliem cidadãos em seus esforços para
fiscalizar e controlar governantes/políticos sobre suas ações no
poder público. Dependendo de qual aspecto democrático esteja
sendo promovido, a e-democracia pode empregar diferentes téc-
nicas: (1) para melhorar a transparência do processo político; (2)
para facilitar o envolvimento direto e a participação dos cidadãos;
e (3) para melhorar a qualidade da formação de opinião por meio
da abertura de novos espaços de informação e deliberação
A pesquisa de Treschel, Kies, Mendez e Schimitter avaliou os
sites das 38 legislaturas da União Europeia e de todos os 144 partidos
políticos com mais de 3% de assentos no parlamento europeu nas
últimas eleições. Através de uma análise quantitativa e comparativa,
o estudo tentou extrair as características de cada um, desenvolvendo
parâmetros de de avaliação de sua qualidade e interatividade.
No que tange especificamente aos mecanismos de fomento à
participação, o estudo identificou em meio às experiências analisa-
das uma tipologia que os divide em e-consulting, e-petition e e-voting
(TRESCHEL et al, 2003, pp. 47-51).
A consulta eletrônica se refere ao uso da internet (por intermé-
dio de um fórum, e-mail, ou mesmo chat com o gestor público) para
enviar para o público em geral, grupos de interesse e especialistas em
um campo de políticas públicas um convite para que eles respondam
e integrem a discussão de determinada medida, esperando promover
e qualificar o debate público em torno dela.
A petição eletrônica é uma ferramenta que permite aos cidadãos
redigir uma petição sobre um assunto de interesse público, convidar
outros cidadãos a assinarem, apoiarem e divulgarem sua petição e
submetê-la ao poder público.
O voto eletrônico é, segundo os autores, o instrumento mais
controverso entre eles. Em sua vertente mais arrojada, o voto ele-
trônico pode ser proferido pelo cidadão de qualquer terminal ou
computador e é transmitido à autoridade eleitoral. O voto ele-
trônico é utilizado tanto em referendos, quanto em substituição
LUÍS JIVAGO DE ASSIS QUIRINO 139

ao processo eleitoral em si, aumentando a conveniência do voto.


Esta modalidade também foi identificada na realização de eleições
prévias intrapartidárias.
Apesar do imenso potencial democratizante da internet, ele
encontra limites, como identifica Magrani (2014, p. 22):
Fatores como a distribuição desigual do acesso, a estrutura altamen-
te fragmentada dos canais, a polarização dos discursos e a crescente
apropriação do espaço on-line pela lógica do poder estatal e do
capital dos mercados, ilustram como a capacidade da internet de
expandir a esfera pública pode ser limitada impedindo em grande
medida seu potencial.
Este trabalho pretende investigar os usos destes mecanismos
de facilitação e promoção do envolvimento direto dos cidadãos com
o processo de tomada de decisão coletiva a respeito das políticas
públicas no Brasil. Para isso, foi selecionado como objeto de análise
o portal e-Cidadania do Senado Federal.

4. O PORTAL E-CIDADANIA
4.1. CONTEXTO E CRIAÇÃO DO PORTAL E-CIDADANIA
O portal e-Cidadania foi criado pelo ato nº 3/2011 da Mesa
Diretora do Senado Federal, com o intuito de “estimular e possibilitar
maior participação dos cidadãos, por meio da tecnologia da infor-
mação e comunicação, nas atividades legislativas, orçamentárias, de
fiscalização e de representação da Casa”.
A ideia de criação do sítio eletrônico para fomentar a par-
ticipação social foi de um grupo de servidores do Senado Federal
(ROCHA, 2016, p.29), que constituíram um grupo de trabalho
para elaborar um mecanismo que possibilitasse maior interatividade
com a população.
O portal foi ao ar em maio de 2012, ainda em versão de testes,
que foi complementada em novembro de 2012 com outras funcio-
nalidades. Em sua primeira versão, o portal e-Cidadania apresentava
140 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

três eixos principais: e-Legislação, e-Fiscalização e e-Representação


(BRANCHINE, 2015, pp. 15-16).
O e-Legislação é um espaço que se destina à apresentação pelo
cidadão de propostas legislativas e ao debate de projetos já em trami-
tação. Essa ferramenta deu origem ao programa “ideias legislativas”,
instituído pela resolução nº 19/2015 do Senado Federal.
O cidadão cadastrado no portal e-cidadania pode propor em
termos simples uma ideia para criação de novas leis ou modificação
das já vigentes. A proposta fica exposta durante 4 meses no portal
e, caso receba mais de 20.000 apoios de outros usuários cadastrados
nesse período, é convertida em Projeto de Lei e remetida à Comissão
de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, na qual
é designado um relator e elaborado um parecer.
O e-Fiscalização disponibilizava informações orçamentárias
e administrativas em formato simples, permitindo o controle de
gastos do governo, da atuação dos senadores e da administração do
Senado Federal por parte do cidadão.
Por meio do e-Representação, o cidadão possuía um canal
direto de comunicação com os senadores, podendo interagir e
propor temas para audiências públicas.
A criação do portal está relacionada com três ordens de fato-
res: a expansão do acesso à internet, o surgimento e consolidação
das redes sociais e o movimento por maior transparência na Admi-
nistração Pública.
Em 2011, 46,5% dos brasileiros com mais de 10 anos de idade
haviam acessado a internet nos últimos 3 meses, segundo dados da
Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílios. Em 2015, esse per-
centual subiu para 57,5% dos brasileiros com mais de 10 anos de
idade, levando em consideração o acesso à internet por outros meios
além do computador pessoal. O gráfico abaixo mostra a evolução do
percentual de usuários de internet na década 2005-2015:
LUÍS JIVAGO DE ASSIS QUIRINO 141

O uso das redes sociais no país acompanha a mesma tendência


de crescimento. Tomando como exemplo o Facebook, em 2010, havia
8,8 milhões de usuários no brasil, passando para 35 milhões em 2011
e 102 milhões em 2016.
Além disso, a criação do portal e-Cidadania está inserida em um
contexto de recrudescimento do controle social da atividade do Estado.
Desse modo, o portal e-Cidadania foi influenciado por outros meca-
nismos de transparência pública contemporâneos a ele. Alguns meses
após a publicação do ato de criação do portal, foi promulgada a Lei de
Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), cujas diretrizes estão presentes
na configuração inicial do portal e-Cidadania. Não obstante, o portal do
Senado recebeu forte influência do portal e-Democracia, sítio eletrônico
da Câmara dos Deputados criado com a mesma finalidade.

4.2. OS INSTRUMENTOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL DO


PORTAL E-CIDADANIA
Atualmente o portal disponibiliza três eixos de ferramentas aos
usuários, são eles o “Evento interativo”, o “Consulta Pública” e o
142 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

“Ideia Legislativa”.
Por meio do “Evento Interativo” o usuário pode participar de
audiências públicas, sabatinas e outros eventos abertos. Todas as saba-
tinas são interativas, conforme previsto pelo artigo 383 do Regimento
Interno do Senado Federal. As audiências públicas podem ser interati-
vas, a depender de decisão do presidente da comissão em que ocorram.
Os eventos podem ser transmitidos pela TV Senado, rádio
Senado e pelo canal do Senado no Youtube. Para cada evento, é criada
uma página com a transmissão ao vivo pelo canal do Senado no You-
tube. Nessa página, além de informações acerca do evento, há um
espaço para que o usuário envie comentários ou perguntas.
Além da página eletrônica, é possível enviar comentários via
telefone, por intermédio do canal “Alô, Senado”, que são inseridos na
página eletrônica do evento interativo por atendentes.
Os vinte eventos interativos que contaram com os maiores nú-
meros de participações de usuários foram os seguintes:
Data Evento Local Participações
11/04/2018 Transparência e demais assuntos relacionados CTFC 2.400
ao Sistema “S”
21/02/2017 Sabatina de Alexandre de Moraes, indicado ao CCJ 1.674
cargo de Ministro do STF
28/04/2016 Debate sobre a SUG nº 15, que regula a CDH 1.270
interrupção voluntária da gravidez pelo SUS
06/08/2015 Debate sobre a SUG nº 15, que regula a CDH 1.179
interrupção voluntária da gravidez pelo SUS
13/10/2014 Regulamentação do uso da maconha: CDH 1.048
posicionamento dos atores sociais contrários a
qualquer liberação
05/05/2015 Debate sobre a SUG nº 15, que regula a CDH 937
interrupção voluntária da gravidez pelo SUS
11/08/2014 Maconha: políticas públicas brasileiras e CDH 907
legislação nacional
06/05/2015 Confronto entre a Polícia Militar e os CDH 819
Professores do Paraná
29/10/2015 Debater pesquisas médico-farmacológica- CCT 800
clínicas com a droga fosfoetanolamina
LUÍS JIVAGO DE ASSIS QUIRINO 143

03/05/2016 Limite do uso de banda larga e o bloqueio dos CCT 736


serviços após o limite da franquia contratada
22/09/2014 Regulamentação do uso da maconha: sobre os CDH 713
impactos no judiciário e no sistema penal
31/10/2016 Propostas de limitação aos gastos públicos nas CDH 662
políticas educacionais e sociais
13/04/2015 Terceirização CDH 640
08/09/2014 Regulamentação do uso da maconha: impactos CDH 625
sobre a violência
26/10/2017 Descriminalização do cultivo da cannabis para CDH 617
uso próprio
25/08/2014 Maconha: debate sob a ótica da ciência e da CDH 585
saúde pública
15/08/2017 Regulamentação da avaliação de desempenho CCJ 579
do servidor público
26/09/2017 Privatização da Eletrobras CI 520
28/05/2015 Debate sobre a SUG nº 15, que regula a CDH 478
interrupção voluntária da gravidez pelo SUS
24/09/2015 Debate sobre a SUG nº 15, que regula a CDH 452
interrupção voluntária da gravidez pelo SUS
Dos 1691 eventos interativos realizados desde o lançamento
do portal, 333 tiveram sede na Comissão de Direitos Humanos e Le-
gislação Participativa e apenas 9 no Plenário do Senado Federal. Há,
portanto, uma grande concentração dos eventos interativos na Comis-
são de Direitos Humanos e Legislação Participativa. Entre os 20 eventos
destacados acima, a maioria também teve sede na Comissão de Direitos
Humanos e Legislação Participativa, conforme gráfico abaixo:
144 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Por sua vez, a “Consulta Pública” enseja ao cidadão opinar


sobre projetos de lei, propostas de emenda à Constituição, medidas
provisórias e outras proposições em tramitação no Senado Federal. De
acordo com a resolução nº 26/2013 do Senado, todas as proposições
legislativas devem ficar expostas para consulta pública, do início ao
final de sua tramitação.
As vinte propostas que contaram com mais números de apoio:
Proposição Autor Ementa Sim Não
Dá nova redação aos arts. 45 e
46 da Constituição Federal para
PEC 106/2015 Jorge Viana reduzir o número de membros 1.702.447 10.113
da Câmara dos Deputados e do
Senado Federal.
“Fim do auxílio moradia para
SUG 30/2017 E-Cidadania 1.108.521 1.674
deputados, juízes e senadores”
Anistia ao Senhor Deputado
SUG 11/2017 E-Cidadania 223.094 221.433
Federal Jair Messias Bolsonaro
Debate sobre a SUG nº 15, que
SUG 15/2014 E-Cidadania regula a interrupção voluntária 210.829 1.179
da gravidez pelo SUS
Inclui entre as diretrizes e
bases da educação nacional,
PLS 193/2016 Magno Malta de que trata a Lei nº 9.394, 199.873 210.819
de 20 de dezembro de 1996, o
“Programa Escola sem Partido”.
Altera o Ato das Disposições
Câmara dos Constitucionais Transitórias,
PEC 55/2016 23.766 345.656
Deputados para instituir o Novo Regime
Fiscal, e dá outras providências
Wilder Convoca plebiscito sobre a
PDS 175/2017 revogação do Estatuto do 338.060 15.532
Morais Desarmamento.
Altera a Lei nº 12.587, de
Câmara dos 3 de janeiro de 2012, para
PLC 28/2017 regulamentar o transporte 44.857 262.113
Deputado remunerado privado individual
de passageiros
Sugere o fim da imunidade
SUG 2/2015 E-Cidadania tributária para as entidades 149.931 149.076
religiosas (igrejas).
LUÍS JIVAGO DE ASSIS QUIRINO 145

Renan Define os crimes de abuso


PLS 280/2016 de autoridade e dá outras 4.671 277.463
Calheiros providências.
Insere artigo no Ato das
Disposições Constitucionais
Walter Transitórias, para prever
PEC 20/2016 202.871 16.569
Pinheiro a realização de eleições
presidenciais simultaneamente
às eleições municipais de 2016.
Altera a Lei nº 12.842, de 10
de julho de 2013, que dispõe
PLS 350/2014 Lúcia Vânia sobre o exercício da Medicina, 76.820 114.696
para modificar as atividades
privativas de médico.

Câmara dos Altera a Consolidação das Leis


do Trabalho (CLT) a fim de
PLC 38/2017 Deputados/ 16.789 172.166
adequar a legislação às novas
Presidência relações de trabalho.
Regulamenta o art. 41, § 1º,
III, da Constituição Federal,
Maria do para dispor sobre a perda do
PLS 116/2017 39.963 146.690
Carmo Alves cargo público por insuficiência
de desempenho do servidor
público estável.
Reduzir os impostos sobre
SUG 15/2017 E-Cidadania 156.189 552
games dos atuais 72% para 9%.
Concede isenção do Imposto
Sérgio de Renda sobre a remuneração
PLS 445/2012 138.861 4.032
Petecão de professores, nas condições
que estabelece.
Descriminalização do cultivo
SUG 25/2017 E-Cidadania 126.387 13.891
da cannabis para uso próprio
Dispõe sobre a fabricação,
Wilder importação, comercialização,
PLS 378/2017 registro, posse e porte de armas 104.280 13.150
Morais de fogo e munição em todo o
território nacional.
Donizeti Dispõe sobre o exercício de
PLS 439/2015 atividades nos campos da 56.405 55.576
Nogueira Administração.
146 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Acrescenta a alínea f ao inciso


VI do art. 150 da Constituição
Federal, instituindo imunidade
PEC 51/2017 Marta Suplicy 111.086 559
tributária sobre os consoles
e jogos para videogames
produzidos no Brasil
Observa-se uma recorrência das matérias de Tributação/Finan-
ças Públicas e Trabalho e Emprego entre os projetos que contaram
com maiores participações:

Entre os 20 mais votados, há também proposições polêmicas,


que mobilizaram intensamente o debate público, como a Reforma
Trabalhista (PLC 38/2017) e a convocação de novo plebiscito para
revogar o Estatuto do Desarmamento (PDS 175/2017).
O Ideia Legislativa é o canal por meio do qual o usuário pode
enviar e apoiar ideias legislativas, “que são sugestões de alteração na
legislação vigente ou de criação de novas leis”. Trata-se de um simples
aprimoramento da ferramenta “e-legislação”, que acompanha o portal
desde seu lançamento.
As ideias legislativas ficam expostas durante 4 meses no portal.
Aquelas que receberem 20 mil apoios serão encaminhadas para a
LUÍS JIVAGO DE ASSIS QUIRINO 147

Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH),


onde serão discutidas e, ao final, receberão um parecer.
Excetuando-se as proposições repetidas e aquelas que violem os
termos de uso do portal, não há restrições às ideias apresentadas pelos
usuários. Junto a cada ideia proposta há uma opção para comparti-
lhá-la no Facebook, Twitter e Google+.
Em março de 2018, de 43.881 ideias legislativas apresentadas,
31 aguardam avaliação de conformidade com os termos de uso, 6.462
foram encerradas por ferir os termos de uso, 5.115 estão abertas para
receber apoios, 32.187 foram encerradas após apoio insuficiente e 86
receberam mais de 20.000 apoios.
Das que foram bem sucedidas na primeira etapa do proce-
dimento, 6 aguardam envio à Comissão de Direitos Humanos e
Legislação Participativa, 50 tramitam na comissão, 23 foram rejei-
tadas por ela e 7 foram convertidas em Projetos de Lei ou Propostas
de Emenda à Constituição:

Entre as 30 propostas legislativas que obtiveram mais de


20.000 apoios e já tramitaram na Comissão de Direitos Humanos
e Legislação Participativa, observa-se um predomínio de ideias re-
lacionadas a Direito Penal/Processo Penal e Segurança Pública, com
148 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

destaque para questões relativas ao Estatuto do Desarmamento, que


foram aventadas por 4 vezes. O gráfico abaixo exibe as ideias legis-
lativas com tramitação encerrada, por tema:

Em relação às ideias legislativas rejeitadas pela CDH, 4 foram re-


chaçadas por vício de iniciativa, 2 por inconstitucionalidade da matéria,
7 foram consideradas prejudicadas, por já haver Projeto em tramitação
no mesmo sentido ou por haver lei dispondo sobre a ideia, e 10 foram
rejeitadas por juízo de conveniência. Veja-se o gráfico a seguir:
LUÍS JIVAGO DE ASSIS QUIRINO 149

5. CONCLUSÃO
Mesmo que a internet efetivamente diminua os custos da
participação social e tenha o potencial de facilitar a circulação e plura-
lização da informação, observa-se uma concentração das participações
veiculadas pelo portal e-Cidadania em determinadas temáticas.
A recorrência de ideias sobre a política de desarmamento, por
exemplo, evidencia a facilidade com que grupos de interesse ligados
a setores econômicos conseguem veicular suas demandas por meio
dos canais de participação social. O lobby é alçado aos mecanismos
de democracia direta.
O mesmo pôde ser observado em relação a interesses corpora-
tivos. Propostas versando sobre salários e vantagens de determinadas
categorias profissionais facilmente angariam mais de 20.000 apoios no
programa ideias legislativas ou nas consultas públicas realizadas sobre
Projetos de Lei e Propostas de Emenda à Constituição.
Não se questiona a potencialidade da ferramenta em promover
o debate público e a participação direta dos cidadãos. No entanto, a
pluralidade das intervenções a que os teóricos da “Democracia par-
ticipativa” e da “Esfera Pública conectada” faziam referência não se
verifica na concretização de mecanismos de e-Democracia, ao menos
no caso observado.
O processo de formação de preferências pode ser um fator re-
lacionado a esse fenômeno. Embora não seja um problema novo da
Democracia (SUSTEIN, 2009), a internet, paradoxalmente, tem o
potencial de agravá-lo, por meio da massificação da informação e
impulsionamento de conteúdo.
Cristiano Ferri de Farias (2012, p. 83) destaca que há diversos
estudos demonstrando que o ambiente virtual estimula o processo de
formação de comunidades por agregação de interesses. Esses grupos
aglutinados por um interesse comum organizam-se com maior riqueza
e especificidade de informações. A agregação de preferências aliada aos
mecanismos majoritários contribuem para a exclusão de preferências
150 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

e valores minoritários.
A prevalência de mecanismos que privilegiem a decisão de de-
terminada maioria, a exemplo da votação em plebiscitos e referendos,
possibilita a manipulação de certos participantes menos informados
e preocupados quanto à questão em discussão pelo grupo de atores
mais organizados e interessados em ‘ganhar’ no processo de decisão.”
(FARIAS, p. 89-90).
Embora os contradiscursos encontrem na internet uma ferra-
menta barata e eficaz para sua disseminação, o excesso de informações
e a seletividade de sua veiculação em mídias sociais e mecanismos de
busca facilita a disseminação dos interesses e opiniões de grupos de
interesse organizados, principalmente os ligados ao poder econômico.
Identifica-se certa ambivalência no uso da internet para pro-
moção da participação social. Se por um lado ela colabora com a
democracia ao facilitar a comunicação e o debate e diminuir os custos
de participação, por outro, conduz o antigo problema das assimetrias
na formação de preferências a um novo patamar com a massificação
da informação, por vezes, descompromissada com a verdade.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Débora Rezende de. Representação como processo: a relação Estado/socie-
dade
na teoria política contemporânea. Rev. Sociol. Polit., Curitiba , v. 22, n. 50, pp. 175-199,
Junho 2014;
ALKMIN, Antonio Carlos. O paradoxo do conceito de representação. Teoria e Pesquisa,
vol. 22, n. 1, p. 56-71, jan./jun. 2013;
ASSUNÇÃO, Guilherme Sena. Internet e democratização da representação política: de-
sencontros de um casamento arranjado. Dissertação (Mestrado em Direito). 93 fls. Uni-
versidade de Brasília, 2014;
BARBER, Benjamin. Strong democracy: Participatory politics for a new age. University
of California Press, 2003;
BRANCHINE, Vanda Josefina. A publicização do portal e-Cidadania. Monografia. Ins-
tituto Legislativo Brasileiro. 132p. 2015;
CUNHA FILHO, Marcio Camargo; GUIMARÃES FILHO, Paulo André Caminha.
Por que temer o povo? O debate em torno do Sistema Nacional de Participação Social.
LUÍS JIVAGO DE ASSIS QUIRINO 151

Revista Direito e Práxis, vol. 6, núm. 12, 2015, pp. 104-133;


CARVALHO, Antônio Ivo de. Conselhos de Saúde no Brasil: participação cidadã e con-
trole social, Rio de Janeiro: FASE/IBAM, 1995;
DAHL, Robert A., Democracy and Its Critics, New Haven: Yale University, 1989;
FARIA, Cristiano Ferri Soares de. O parlamento aberto na era da internet: pode o povo
colaborar com o Legislativo na elaboração das leis? Centro de Documentação e Informa-
ção, Edições Câmara, 2012;
FONSECA, Francisco. Democracia e participação no Brasil: descentralização e cidada-
nia face ao capitalismo contemporâneo. Revista Katálysis, vol. 10, núm. 2, pp. 245-255
julio-diciembre 2007;
MAGRANI, Eduardo. Democracia conectada: a internet como ferramenta de engaja-
mento político-democrático. FGV Direito Rio, 2014;
MANSBRIDGE, Jane, Rethinking Representation,. American Political Science Review,
n. 97, pp. 515 – 528, 2003;
PATEMAN, Carole. Participação e Teoria democrática, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992;
PITKIN, Hanna. The concept of representation. Berkley: University of Califórnia Press,
1971;
PITKIN, Hanna. Representação: palavras, instituições e ideias. Lua Nova, São Paulo, 67:
15-47, pp. 30 e 42, 2006;
PITKIN, Hanna; SHUMER, Sara. On Participation. Journal of democracy, n. 2, pp.
43 – 54, 1982;
PLOTKE, David, Representation is Democracy. Constellations, nº4, pp. 19 – 34, 1997;
ROCHA, Maria Neblina. O e-Cidadania e a legalização da maconha no Senado Federal.
E-legis, Brasília, n. 21, p. 23-44, set./dez. 2016;
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 2005;
SARTRE, Jeal-Paul. Eleições, armadilha para otários. Alceu, Revista de Comunicação,
Cultura e Política, 5(9), 2004;
SUNSTEIN, Cass R. Preferências e política. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 1,
p. 219-254, 2009;
SAWARD, Michael. Representation and Democracy: Revisions and Possibilities. Sociolo-
gy Compass, n. 2, pp. 1000 – 1013, 2008;
SAWARD, Michael. The representative claim. Contemporary political theory, v. 5, n. 3,
p. 297-318, 2006;
SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Edi-
tora Fundo de Cultura, 1961;
STEINER, Henry J., Political Participation as a Human Right. Harvard Human Rights,
Y.B, v.1,p.77,1988;
152 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

TRECHSEL, Alexandre H. et al. Evaluation of the use of new technologies in order to


facilitate democracy in Europe. C2D-Research and Documentation Centre on Direct
Democracy, 2003;
YOUNG, Iris Marion. Inclusion and Democracy. New York: Oxford University Press,
2000.
A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
CARCERÁRIAS E A PRODUÇÃO DE NOVOS
SUJEITOS POLÍTICOS DE DIREITOS
Roberta Olivato Canheo1

1. INTRODUÇÃO
O presente texto se debruça sobre a atuação de atores institucio-
nais envolvidos na construção e implementação de políticas públicas
para pessoas LGBT2 presas no Rio de Janeiro, tendo como ponto
central a discussão e análise dos processos de Estado que se perfazem
no percurso de materialização de normativas referentes à temática.
Propõe-se, assim, refletir sobre as práticas de poder estatais, sobre
aquilo que se entende como “Estado”, e de que maneira esta reflexão
está imbricada à análise da construção de políticas públicas carcerárias,
direcionadas para uma “população” específica.
Tais reflexões, por sua vez, têm como origem minha dissertação
de mestrado, intitulada “‘Puxa pro Evaristo’: produção e gestão da po-
pulação LGBT presa na cidade do Rio de Janeiro” (CANHEO, 2017),
desenvolvida a partir de entrevistas semiestruturadas com atores ins-
titucionais implicados na formulação de resoluções destinadas ao
“acolhimento” de pessoas LGBT aprisionadas no Rio de Janeiro. E a
partir de entrevistas com travestis e transexuais alocadas no presídio
Evaristo de Moraes, localizado na zona norte da capital fluminense

1 Mestre em sociologia e direito pela Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF) e pesqui-


sadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Telefone para contato: (21) 98160-4375.
2 A opção aqui de se adotar a sigla LGBT se justifica pelo fato de ser a sigla empregada nas reso-
luções, leis e normativas trazidas neste texto, além de denotar a construção discursiva de uma
categoria de sujeitos específicos, que também constitui o plano de sua legitimação política.
154 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

e classificado como “seguro”3. Neste presídio, reúnem-se, além de


“minorias”, acusados e condenados por crimes sexuais, assassinatos, e
por outras tipificações consideradas “odiosas”, que, como disseram em
mais de uma ocasião os agentes penitenciários, constituíam a “escória
do crime”. São as pessoas que ou pelos crimes em que foram enqua-
dradas, ou por terem traído alguma das grandes facções- notadamente
Comando Vermelho (CV), Amigos dos Amigos (ADA) e Terceiro
Comando no Rio de Janeiro – precisavam estar no “seguro”, caso
contrário correriam risco de morte.
As percepções advindas de minhas idas ao Evaristo de Moraes, e
as trajetórias das pessoas LGBT ali aprisionadas, contudo, não serão o
foco deste texto, em que se abordará mais detidamente os processos de
estado que conformam aquilo que se pode chamar de “prisão sistema”.
Importante fazer a ressalva, não obstante, que o trabalho de campo no
presídio não implicou o abandono da análise dos processos de estado
e da atuação de atores institucionais como o objeto primordial da
pesquisa. Pelo contrário, o empreendimento de se produzir através
de pesquisas (institucionais ou acadêmicas) um perfil da população
presa, a sala destinada às entrevistas, as condições estruturais do pre-
sídio, a superlotação; enfim, todas essas questões foram analisadas
enquanto processos de estado. Todas faziam emergir a contradição
fundamental entre um Estado que tem grandes políticas públicas,
atreladas aos preceitos fundamentais dos “direitos humanos”, mas que,
simultaneamente, produz um lugar efetivo de abjeção a esses corpos
fora da norma (BUTLER, 2000), a esses corpos “locus” último de
materialização das tensões constitutivas de um Estado generificado.
Pretende-se trabalhar, dessa maneira, em cima da escassez de
pesquisas relativas ao Sistema Penitenciário que versem sobre polí-
ticas públicas e programas governamentais, tal como apontado por
Salla (2006). Pesquisas que impliquem na análise “[d]os fatores que

3 Minha inserção no Presídio Evaristo de Moraes se deu como auxiliar da Defensoria Pública,
acompanhando uma pesquisa com mulheres transexuais e travestis, acerca da efetividade de
normativas que estabeleciam seus direitos.
ROBERTA OLIVATO CANHEO 155

interferem na sua formulação; como são implementadas tais políticas


pelos órgãos responsáveis e ainda quais os resultados ou o impac-
to dessas políticas” (SALLA, 2006, p. 08). Trazendo à apreciação
resoluções que preveem a implementação de políticas públicas es-
pecificamente direcionadas a pessoas LGBT, pessoas que passam a
ser localizadas no centro da crise penitenciária, acredita-se que as
presentes reflexões possam de alguma forma contribuir.
Para além disso, pensar sobre a construção dessas políticas nos
desloca da visão de que são geradas, financiadas e avaliadas dentro de
territórios estritos demarcados por fronteiras que estabelecem o que
é o governo. Tais políticas governamentais são construídas também
por feixes múltiplos de agências e agentes, princípios e práticas que
trespassam essas fronteiras (SOUZA LIMA & CASTRO, 2015, p.
35-36). É o caso, por exemplo, da colaboração de movimentos sociais,
LGBT, feministas, ou ainda de pesquisas acadêmicas, na formulação
de planos de ação governamental.

2. RESOLUÇÕES, ALAS LGBT E O “SEGURO”


Como aponta o levantamento feito por Lago e Zamboni
(2016), os trabalhos acadêmicos sobre prisão e sexualidade das úl-
timas décadas mostram um deslocamento da gestão da sexualidade
de pessoas presas, acompanhado da formulação de políticas públicas
específicas. Por exemplo, nas décadas de 1970 e 1980, a adoção da
visita íntima na Lei de Execução Penal em 1984 é impulsionada pela
tentativa de se prevenir práticas homossexuais/homoeróticas nas pri-
sões. Nas décadas de 80 e 90, a gestão da sexualidade gira em torno
de questões sanitárias, especialmente em decorrência da disseminação
do HIV, sendo que já à época a população LGBT possuía centralidade
nessa gestão, vez que encarada como um “grupo de risco”. A partir
principalmente da década de 2010, entretanto, esse mesmo grupo
passa a ser constituído como sujeitos políticos de direitos, e ao mesmo
tempo, como um “grupo em risco”, que deve ser protegido.
Assim, nos últimos anos, observa-se uma maior visibilidade na
156 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

esfera pública de “populações” específicas em privação de liberdade,


a exemplo das mulheres, cujo crescimento do número de aprisiona-
mentos foi vertiginoso nas últimas décadas; e de pessoas LGBT, sendo
também crescente o engajamento por parte de movimentos sociais em
torno de suas demandas. Além de uma maior atenção por parte dos
movimentos feministas e LGBT aos contextos de privação de liberda-
de, tem-se uma maior incorporação pelos movimentos de defesa dos
direitos humanos – consagradamente implicados na defesa de direitos
das pessoas privadas de liberdade – de questões de gênero e sexualida-
de, em especial aquelas relativas a violências em suas múltiplas formas,
físicas, sexuais, psicológicas, etc. (LAGO; ZAMBONI, 2016, p. 3).
Nesse contexto, o movimento de construção de políticas públi-
cas, representado em minha pesquisa pela edição de resoluções no Rio
de Janeiro, vem em realidade na esteira de um crescente movimento
nacional no sentido de estabelecer parâmetros de acolhimento para
pessoas LGBT privadas de liberdade. É o caso do estado de São Paulo,
onde a Resolução SAP-11, de 30 de janeiro de 2014 (de iniciativa da
Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo) rege a temá-
tica, e dispõe sobre a atenção às travestis e transexuais no âmbito do
sistema penitenciário, asseverando em seu artigo 3º que: “As pessoas
que passaram por procedimento cirúrgico de transgenitalização po-
derão ser incluídas em Unidades Prisionais do sexo correspondente”.
Ou ainda a Resolução Conjunta do Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária e do Conselho Nacional de Com-
bate à Discriminação CNPCP/CNCD/LGBT n° 01 de 2014, que
estabeleceu os parâmetros de acolhimento de LGBT em privação de
liberdade no Brasil. Estabelece, a título de exemplo, em seu artigo
3° que: “Às travestis e aos gays privados de liberdade em unidades
prisionais masculinas, considerando a sua segurança e especial vulne-
rabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos”; e
em seu artigo 4° que: “As pessoas transexuais masculinas e femininas
devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas”.
Esta resolução nacional serviu de base para a criação de
ROBERTA OLIVATO CANHEO 157

resoluções estaduais, sendo que no Rio de Janeiro duas resoluções


no ano de 2015 foram produzidas, referindo-se à temática do apri-
sionamento de pessoas LGBT: a Resolução n° 558, que estabeleceu
diretrizes e normativas para o tratamento da população LGBT no
Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, assinada pelo
Secretário de Estado de Administração Penitenciária; e a Resolução
conjunta da Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP) e Secre-
taria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH)
nº 34, que criou o Grupo de Trabalho Permanente de Políticas LGBT
no Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. Foi também
criado um “Termo de Cooperação Técnica entre os órgãos”. As nor-
mativas, diretrizes e propostas das resoluções foram encaminhadas
através do programa Rio sem Homofobia (RSH), criado pelo governo
do Estado, coordenado pela Superintendência de Direitos Individuais,
Coletivos e Difusos (SUPERDIR), da Secretaria de Estado de Assis-
tência Social e Direitos Humanos (SEASDH).
A adoção de alas ou galerias específicas para pessoas LGBT, por
seu turno, ainda que por vezes ausentes resoluções ou normativas as
estabelecendo, compreende medida adotada por presídios em alguns
estados brasileiros, como é o caso do Presídio Central de Porto Alegre,
no Rio Grande do Sul, alguns presídios de Minas Gerais, de Mato
Grosso e da Paraíba. Sua implementação, geralmente acompanhada
de grande atenção midiática- de grandes “cenas de Estado” – é consi-
derada uma “boa prática” institucional, já que tornam-se “seguros”, ou
seja, espaços considerados de menor perigo, especialmente para mu-
lheres transexuais e travestis. Uma ala específica, ou a histórica reunião
de acusados/condenados por crimes sexuais e mulheres transexuais/
travestis nos mesmos pavilhões dos presídios, como bem trabalha Fer-
reira (2014) em sua dissertação de mestrado sobre o Presídio Central
de Porto Alegre, passa a ser produzida pela narrativa de um território
seguro, da segurança, pela narrativa chave dos direitos humanos, um
espaço que é o “seguro do seguro”.
A construção da ala LGBT neste mesmo presídio é também
158 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

objeto de estudo de Passos (2014), que mostra como a materiali-


zação da ala se deu através da produção discursiva de um sujeito
situado e legítimo, invariavelmente oprimido e vitimizado, sem
plena autonomia, cuja vida está em permanente risco e cuja pre-
servação da integridade física não depende só de si. Nesse sentido,
chama atenção para a conjugação fundamental entre aquilo que é
enunciável sobre “direitos humanos”, “políticas públicas para grupos
consideráveis vulneráveis”, “funcionalidade do sistema carcerário”
e “espaço social” no processo de construção histórica de demanda
pela “Ala” (PASSOS, 2014, p. 35-36).

3. FRONTEIRAS FICTÍCIAS ENTRE “ESTADO”, “SOCIE-


DADE CIVIL” E “MILITÂNCIA” EM MEIO A PROCESSOS
DE ESTADO GENERIFICADOS
Perseguir os caminhos de construção de resoluções e demais
documentos referentes à população LGBT privada de liberdade, nos
ajuda a perceber como o Estado, nas últimas décadas, adquiriu uma
permeabilidade relativa que permitiu o levantamento e incorporação
de defesa de direitos de chamadas “minorias” em nível institucional.
Ademais, esse caminho nos possibilita compreender como e por quais
motivos o “Sistema Penitenciário” passa a assimilar e estabelecer direi-
tos e políticas públicas voltadas especificamente para pessoas LGBT;
e em quais camadas ocorrem a efetivação dessas políticas.
A partir dos enunciados dos atores institucionais entrevista-
dos, foi possível entender primeiramente o importante papel, no Rio
de Janeiro, de Conferências e Conselhos LGBT na confecção das
resoluções e no encaminhamento de outras políticas públicas. Nesses
espaços – a partir do inferido pelas leituras dos relatórios oriun-
dos dos encontros, assim como da narrativa dos atores -, termos
como “Estado”, “sociedade civil”, “militância”, eram reiterados e
colocados, por vezes, na condição de entes estáticos, delimitados
por fronteiras fixas. Marcados pela presença de inúmeros coletivos
que trabalham com a diversidade sexual e de gênero, de personagens
ROBERTA OLIVATO CANHEO 159

consideradas “líderes” ou apoiadoras do movimento LGBT, de or-


ganizações não-governamentais, de pesquisadores acadêmicos e de
representantes da “sociedade civil”, esses eventos contam com a “as-
sinatura” da participação social, ao serem enxergados como lugares
de exposição de conflitos. Sendo também espaços de colocação das
trajetórias pessoais, profissionais, militantes, acadêmicas, propícios
para o encontro de diferentes marcadores e da emergência de con-
tendas por poder (AGUIÃO, 2014a, p. 52-53).
As conferências e conselhos se configuram então como respon-
sáveis pela produção não só de debates, mas de documentos, acordos,
atualização de lideranças, afirmação de compromissos e sedimentação
ou desmantelamento de relações. A partir deles, agentes institucionais
tomam iniciativas, muitas vezes em articulação uns com os outros,
culminando, ao fim, no impulso para a edição de novas normativas.
O recorrente emprego de expressões como “avaliar”, “acompanhar”,
“monitorar”, “executar” pelos atores mostra também a pretendida
interação entre a “sociedade civil” e o “Estado” – como se fossem
distintas esferas-, ao passo que as Conferências passam a ser lidas
como espaços de participação democrática. Espaços onde a diversi-
dade sexual e de gênero é fomentada, seja por aqueles colocados na
categoria de “Estado”, ou aqueles entendidos como “sociedade civil”,
ou ainda por quem se enquadra na categoria “militância”.
Tais termos entram num domínio léxico comum compartilhado
tanto por agentes governamentais como por aqueles que compreen-
dem e dominam a “morfologia de Estado” presente nessas políticas
públicas, o que delimita o campo no qual esses sujeitos LGBT são
produzidos e consequentemente passíveis de serem administrados
enquanto “população”, “‘imaginável’, modelável, e adaptável dentro
de uma certa gramática, cujas regras e limites são mais ou menos
elásticos” (AGUIÃO, 2014a, p. 239).
Aguião (2014b, p. 117-118) ao destrinchar questões de seu
campo de pesquisa, conta como a criação de uma parceria entre a
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a Secretaria de
160 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Assistência Social e Direitos Humanos do governo do estado – para


o apoio de algumas ações do programa Rio sem Homofobia – cul-
minou na explicitação da reificação de três categorias atribuídas
usualmente aos sujeitos: “a universidade”, “a gestão pública” e “o
movimento social”.
À primeira atribuía-se a produção do saber acadêmico, ope-
rativo e técnico, relativo à formação de profissionais atuantes nos
centros de referência. A gestão pública, por sua vez, seria respon-
sável pelo saber político-administrativo, o saber prático. A última
categoria, a do movimento social, ficaria a cargo da mobilização,
impulsividade e improvisação diante de situações contingenciais
cotidianas. Essas reificações, presentes também na composição dos
Conselhos, e na dinâmica das Conferências, representadas pela
atribuição de características específicas a esferas distintas, levam à
impressão de que esses espaços de atuação são determinados pelo
pertencimento a uma dessas categorias, o que potencializa a produ-
ção de “ficções institucionais estanques” (ibid, p. 118).
Esta produção de “ficções institucionais estanques” nos remete
à ideia de fronteiras artificiais trabalhadas por Mitchell (2006), e no
quão borradas são essas fronteiras, sendo que muitas vezes o “nós”
se confunde com o “eles”. Como pontuado por Aguião, divisões
como as entre a Universidade, o ativismo e o governo, nos dizem
sobre disputas no campo político, por financiamentos e pelo poder
nas hierarquias de processos de Estado. Mas, ao mesmo tempo, elas
não podem ser definidas, fixadas, produzem-se mutuamente e são
manejadas contextualmente a depender dos interesses envolvidos
(AGUIÃO, 2014b, p. 122-124). A composição do Conselho LGBT,
e também a composição do Grupo de Trabalho estabelecido pela
resolução n° 34 de 2015, no caso de minha pesquisa, espelham esse
remanejamento de posições e indefinição de fronteiras, ao passo, por
exemplo, que travestis e transexuais egressas do Sistema Penitenciá-
rio passam a compor o corpo de formuladores de políticas públicas
que irão implementar normativas destinadas à “população LGBT”
ROBERTA OLIVATO CANHEO 161

em situação de cárcere. Assim, os processos que as tentam fixar são


na verdade os que mais interessam para uma análise da atuação de
atores institucionais- que articulam, manejam, incluem ou não re-
quisições de acesso a direitos de pessoas presas LGBT.
Finalmente, a leitura de documentos (como os relatórios
oriundos das Conferências, ou ainda as resoluções diretamente di-
recionadas às pessoas LGBT privadas de liberdade) cumpre, junto
à observação da atuação de atores, a função de descortinar as inscri-
ções de técnicas burocráticas da administração estatal. Nesse sentido,
a pesquisa documental possibilita o empreendimento de uma ex-
ploração sobre práticas de poder, sobre o “fazer Estado”, que deem
conta também da “dimensão performativa” e “da ação simbólica na
produção de efeitos (e afetos)” de poder imbuídas nesses processos
(CASTILHO; SOUZA LIMA; TEIXEIRA, 2014, P. 22). Assim,
os documentos devem compor a malha de elementos aferíveis no
campo de pesquisa, que junto aos atores, interlocutores e espaços,
também são partícipes de toda essa trama e do “fazer Estado”, espe-
cialmente no que diz respeito à produção de uma categoria específica
de sujeitos, “a população LGBT presa”.

4. O “FAZER ESTADO” E O “FAZER GÊNERO”


Ao se falar do “fazer Estado”, todavia, algumas considerações
devem ser colocadas. Especialmente, importa dizer o que entendemos
por “Estado”, e assumir a necessidade de se generificar as percepções que
advém da observação de seus processos e da criação de suas fronteiras.
Abrams (2006) propõe uma distinção operacional entre Es-
tado-sistema e Estado-ideia, trabalhando com a noção do Estado
enquanto feixes de relações, aptos a estimular e ao mesmo tempo
dissimular a produção de desigualdades duradouras, tornando-as
mais potentes em nome da democracia, equidade, bem estar social,
dentre outros (SOUZA LIMA & CASTRO, 2015, p. 37). As duas
dimensões propostas, tanto o Estado-ideia como o Estado-sistema se
conjugam, sendo que a primeira remete à ideia de abstração do Estado
162 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

na qualidade de um ente autônomo e real. A segunda, por sua vez, o


Estado-sistema, representa o aglomerado de práticas institucionais e
a própria estrutura institucional, que abarcaria a administração pú-
blica entendida por direta. Para o autor, o “Estado” representado por
uma identidade abstrata, “concebido como uma entidade substancial
separada da sociedade, provou ser um objeto de análise incrivelmen-
te evasivo” (ABRAMS, 2006, p. 113, tradução nossa). Esse plano
representacional e de abstração do Estado- pensado como substância
dotada de unidade e coerência- é, por sua vez, constitutivo de práticas
políticas, que conformam e forjam a noção que se tem de Estado,
como aparato externo à sociedade.
Mitchell (2006), por seu turno, retoma a ideia do Estado-i-
deia e do Estado-sistema postulada por Abrams, mas concebendo-os
como dois aspectos de um mesmo processo. O fenômeno que de-
nominamos por “Estado” decorre, para o autor, de técnicas que
permitem que as práticas materiais assumam a aparência de uma
forma abstrata, apartada e não material (MITCHELL, 2006, p.
170). O Estado é na verdade, assim, os “efeitos de Estado”, efeitos
por sua vez, de processos de representação, práticas e técnicas buro-
cráticas, e de regulação. Tal como Abrams, Mitchell (2006) observa
o Estado a partir das práticas políticas sustentadas em relações de
poder internas, as quais tomam a aparência de uma estrutura exter-
na, concedendo um duplo caráter ao Estado, de “força material e
construção ideológica” (FREIRE, 2015, p. 38).
Mitchell não empreende esforços em exatamente disputar os
termos da discussão acadêmica sobre o que “o Estado é”, tendo em
vista que em suas palavras “a análise acadêmica do estado é suscetí-
vel de reproduzir em sua própria ordenança analítica essa coerência
imaginária e deturpar a incoerência da prática estatal” (MITCHELL,
2006, p. 169, tradução nossa). O autor toma então toda a discus-
são sobre o que “o Estado é” como parte de seu objeto de pesquisa,
buscando enxergar como a ciência política, sobretudo, produz em
suas discussões internas delimitações do que seria o Estado. Ao invés,
ROBERTA OLIVATO CANHEO 163

portanto, de buscar uma definição que fixe os limites da “sociedade”


e do “Estado”, uma busca que tente demonstrar como o objeto de um
lado influencia ou é autônomo em relação ao que reside no outro, o
caminho proposto pelo autor é examinar os processos políticos através
dos quais a distinção incerta mas poderosa entre “Estado” e “socieda-
de” é produzida (MITCHELL, 2006, p. 170).
O grande ganho analítico da sua perspectiva é, portanto, não a
disputa dos termos da verdade sobre “o que é o Estado”, ou da deli-
mitação de seu começo e de seu fim, o “dentro” e o “fora” do Estado,
mas sim concentrar-se na produção das fronteiras entre sociedade,
economia, Estado, etc. (MITCHELL, 2006, p. 175). Assim, localizar
quem as produz, sob quais critérios, construindo quais instituições
e atuando de qual forma, nos ajuda a entender as relações de poder
imbricadas nesse “fazer fronteira”.
Outro importante deslocamento proposto pelo autor é pensar
o Estado em termos técnicos, e não em termos institucionais ou de
representação. Nesse registro, essas técnicas responsáveis pela emer-
gência do que se entende por Estado – que nada mais é do que um
efeito estrutural- são o que permite as práticas materiais mundanas.
Esta demarcação é importante para se pensar na existência de técnicas
que se articulam, e que não se referem a uma esfera específica, ou a
uma estrutura dada e fixa. A tentativa de delimitação do Estado, neste
sentido, é ela mesma efeito de técnicas, utilizadas em suas variadas
formas. Essas técnicas, por seu turno, não constituem um absoluto,
mas sim são historicamente situadas.
Michell se aproxima de Foucault neste sentido, para quem a
governamentalidade, simultaneamente interior e exterior ao Estado, é
constituída justamente por técnicas, tecnologias e táticas de governo,
que a todo instante buscam a definição do que é do âmbito do Estado
e do que não é, do que é privado e do que é público, estatal e não
estatal. Dessa forma, o Estado e seus limites só podem ser compreen-
didos a partir das táticas gerais da governamentalidade (Foucault,
2008). À noção usualmente mobilizada de governança, que remete a
164 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

uma sistematização das relações governamentais, e a um consequente


almejo pelo seu aperfeiçoamento através da atuação na administração
do Estado, entendido como homogêneo e sistemático, Foucault con-
trapõe o termo “tecnologias de governo”, com o fim de mostrar que
o Estado é ele próprio resultado de tecnologias de poder, e não um
ente que transcende em relação a elas. Ainda assim, Mitchell levanta
a insuficiência da análise de Foucault em mostrar como se deu o sur-
gimento da aparência de unidade e identidade que o Estado sempre
parece ter, mesmo que não tenha (MITCHELL, 2006, p. 179).
O que de mais importante podemos inferir para este texto,
trazido pela leitura de Mitchell (2006), é, portanto, as tensões
existentes nas construções das fronteiras; construções estas politica-
mente sensíveis e politicamente orientadas a partir de um jogo de
forças. Isso porque essas fronteiras vão produzir os seus efeitos, de
definir quem fica “dentro” e quem fica “fora” do Estado e da legali-
dade, da sociedade, dessas várias “entidades”. As linhas de fronteira
(as diferenciações, portanto) são um recurso de poder fundamental
(que pode ser disputado) para que as ordens social, política e econô-
mica possam funcionar tal como funcionam (MITCHELL, 2006,
p. 185). Os efeitos produzidos, por sua vez, são reais, de estrutura;
e mover as fronteiras, borrá-las ou deixá-las inertes também são
estratégias de atuação política.
No caso dos processos de construção de políticas públicas es-
pecificamente, tomando como princípio os estudos revisitados de
processos de formação de Estado- entendido como efeitos de Estado-,
temos que pensá-los como parte desse fazer-se Estado, também maleá-
veis e plásticos, distantes de avaliações consistentes (SOUZA LIMA
& CASTRO, 2015, p. 39). Dessa forma, as políticas públicas e as
práticas que as constituem são um excelente locus para a observação
dos fenômenos estatais e das práticas de poder enredados nos feixes
de processos em constante transformação, que levam à constituição
daquilo que se entende por Estado (CASTILHO; SOUZA LIMA;
TEIXEIRA, 2014, P. 22).
ROBERTA OLIVATO CANHEO 165

Os processos de Estado comportam, ademais, dimensões ine-


rentemente contraditórias e tensões produtivas. Uma dessas tensões
é a representada pelo conjunto de documentos aqui considerado, que
para além da sua rentabilidade e natureza etnográfica, devem ser com-
preendidos a partir de suas especificidades e heterogeneidade no seu
modo de circulação em meio aos processos de Estado.
Durante a minha pesquisa de mestrado, muitas foram as
dificuldades no percurso de obtenção de autorizações para reali-
zação da pesquisa dentro de um presídio específico. Muitas foram
também as idas à Escola de Gestão Penitenciária ou ao Tribunal
de Justiça- (“checkpoints” da minha pesquisa, nos termos traba-
lhados por Freire (2015)). A tensão na espera por respostas dos
responsáveis pelo processamento do meu pedido e a ansiedade com
a descoberta de uma resolução que impossibilitava a continuação
desse processamento se fizeram constantemente presentes também.
Esses elementos e situações são representantes de toda uma faceta do
Estado enquanto rotina, representado pelo “outro lado do balcão”,
pelo “guichê”, por todas as microtransações que se afastam da ideia
de Estado enquanto simulacro. As margens dos processos de estado
(DAS; POOLE, 2004), nesse ínterim, relacionam-se aos processos
de governamentalidade presentes nas variações e incertezas da rotina
administrativa; no acionar, por exemplo, de uma normativa especí-
fica por uma pessoa específica, dirigida a outro alguém específico.
Ao mesmo tempo, existe também uma dimensão inerentemen-
te espetacular e performática dos processos de estado. Fazer estado é
fazer cena de estado (VIANNA; FARIAS, 2011); é a inauguração de
uma política, é a criação de um programa de governo pioneiro, van-
guardista, acompanhado de uma grande campanha midiática e de um
generoso orçamento4. Estado é, assim, tanto performance e espetáculo

4 No livro “Retratos da Política LGBT no Estado do Rio de Janeiro”, partes da entrevista com
o então coordenador do Programa Rio sem Homofobia, exemplificam o “fazer Estado” atra-
vés do “fazer cena de Estado”, como: “A gente lançou em maio e também com uma grande
cerimônia aqui – com a presença da senadora Marta Suplicy, do então secretário estadual
de Assistência Social e Direitos Humanos, Rodrigo Neves, e do governador Sérgio Cabral”
(CARRARA; AGUIÃO, LOPES; TOTA, 2017, p. 223-225).
166 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

como rotina, sendo que as duas dimensões se alimentam mutuamen-


te, dentro de tensões constitutivas e produtivas (VIANNA, 2013).
Por fim, mostra-se necessário generificar, sexualizar e afeti-
vizar as percepções acerca do Estado- necessidade que se aflora da
insuficiência de autores anteriormente citados em considerar os
componentes “gênero”, “sexualidade” e tudo aquilo que se enreda a
esse campo às suas análises. Para tanto, tomo por princípio o duplo
fazer do gênero e do Estado (VIANNA; LOWENKRON, 2017),
que consiste na ideia de que “fazer Estado” é necessariamente “fazer e
desfazer gênero”, de que processos de estado inexistem sem processos
de gênero, e vice versa. A questão dos efeitos de estado trabalhada
por Mitchell (2006) e acima discutida, leva em conta a produção
do Estado pelo seu efeito de diferenciação, sendo o Estado diferente
daquilo que se entende por sociedade, daquilo que se entende por
economia, resultando na compreensão do Estado como sendo os
efeitos de Estado a todo tempo. O Estado, então, aparece afastado,
por exemplo, do que é relativo aos corpos de travestis e de transe-
xuais ou das suas contendas e relações afetivas e sexuais- sendo esse
efeito de distinção, de separação, parte central e elemento absoluta-
mente constitutivo dos próprios processos de estado.
Acrescentando assim à temática do fazer Estado o “gênero” e
a “sexualidade”, percebemos que o Estado é constituído também de
processos, categorizações, imaginações, que não são outra coisa que
generificados – ao revés de um ente que apenas se derrama sobre
o campo da sexualidade e do gênero, aquele que cede, concede ou
nega, mas permanece e se relaciona a este campo a partir de uma
exterioridade. Isso implica em pensar a hipótese repressiva de Fou-
cault (2015)5 não apenas em termos puramente de sexualidade, em
que ela é de fato bem trabalhada. Mas estender e questionar essa

5 Em “História da sexualidade I”, Foucault (2015) mostra um sexo colocado em discurso à


exaustão, e não um sexo reprimido e silenciado, colocando-se além da hipótese repressiva.
Por “hipótese repressiva”, refere-se à ideia de que a repressão do sexo seria uma evidência his-
tórica, indicando a instauração ou acentuação, a partir do século XVII de um regime de repres-
são ao sexo. O autor opõe-se a essa hipótese não indicando sua falsidade, mas questionando a
singularidade da interdição do sexo na constituição da sexualidade do sujeito moderno.
ROBERTA OLIVATO CANHEO 167

hipótese em termos de processos de estado. Podemos pensar desde


os modelos de Estado nacional, nos desejos de produção correta,
ou ainda, nas narrativas de atores institucionais responsáveis pela
implementação de políticas públicas.
Prosseguindo na tentativa de generificar a análise sobre Estado,
cabe trazer a reflexão tecida por Wendy Brown (2006) em “Finding
the man in the State”, sobre a tendência quase inevitável de nos re-
ferirmos ao Estado como “ele”, ente intrinsicamente masculino que
serve a ideais masculinistas através de suas burocracias. Tal como Mit-
chell (2006), Brown entende pela não reificação e unidade do Estado,
descrevendo-o como terreno de poderes e técnicas em grande medida
sem limites, ou ainda um conjunto de regras e práticas que coabitam
relações tensas e muitas vezes contraditórias entre si.
Ademais, para a autora, as capacidades reguladoras e discipli-
nares da burocracia permitem e mascaram os interesses dominantes
masculinistas externos à burocracia, de forma semelhante à visão de
Foucault da organização disciplinar das escolas e hospitais, como au-
xiliares de um objetivo generalizado de controle social. O fato, por
sua vez, de a burocracia como disciplina ser tanto um fim quanto um
instrumento, e, assim, nas palavras da autora, “operar como poder
e ao serviço de outros poderes, ao mesmo tempo que se apresenta
como extrínseca ou neutra em relação ao poder, torna-se especialmen-
te potente em modelar a vida de mulheres” (BROWN, 2006, p. 202,
tradução nossa) ou ainda, podemos acrescentar, de pessoas LGBT.
Em Consonância com Brown, Vianna e Farias (2011) também
chamam atenção para a figura antropomorfizada e masculinizada do
Estado, esta ideia-ente que se defronta com personagens “eminente-
mente femininas: mães enterradas, mães que enterram”, no caso de
sua pesquisa. Evocando a fala de uma das mães de vítima do Estado,
que diz: “enquanto o Estado está lá sentado, comendo e bebendo
do bom e do melhor, nós estamos aqui enterrando mais uma mãe”
(VIANNA; FARIAS, 2011, p. 92), as autoras buscam percorrer as
inferências desse antagonismo Estado/mãe, a partir de uma análise de
168 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

seu plano relacional e distintivo: o prazer de “um” em contraste com a


dor de “outras”; a inércia e omissão deste “um” com o ativismo no luto
dessas “outras”. Para tanto, a dimensão do Estado ideia de Abrams
(2006) é mais uma vez retomada, como o ente que possui concretude,
institucional, administrativa e governamental, mas também como o
ente simbólico “que atravessa e ordena o cotidiano das pessoas: aquele
que faz; que deve fazer; que pode realizar ou escolher não realizar”
(VIANNA; FARIAS, 2011, p. 93).
Em resumo, através das leituras das autoras e autores citados,
pretendeu-se refletir sobre as práticas de poder estatais, e de que
maneira esta reflexão está imbricada à análise da construção de polí-
ticas públicas carcerárias, direcionadas para novos sujeitos políticos
de direitos. Buscou-se, também, demonstrar a concepção de Estado
enquanto feixes de relações de poder, produzido por técnicas, e não
enquanto um ente uno e dotado de consciência, ou transcendente; e o
duplo fazer do gênero e do Estado, sendo os processos de gênero im-
prescindíveis aos processos de Estado e constitutivos dele, e vice-versa.
A redução da análise à malha mais visível dos processos de Estado,
por seu turno, pode levar em consequência à confusão do espetáculo do
poder com a operacionalização do poder. De acordo com as autoras e
autores trabalhados, essa confusão leva a um entendimento precipitado
da atuação das dinâmicas de poder e das políticas de governo, do fazer
Estado e do fazer gênero, em que os processos burocráticos e suas conse-
quências impactam potentemente o mundo social. A visão reificada do
Estado e das instituições- entendidos como entidades unas e fixas- gera
desdobramentos negativos não apenas para o campo do pensamento
acadêmico, como afeta diretamente a construção e a implementação de
políticas públicas (FONSECA; JARDIM; SCHUCH; MACHADO,
2016, p. 19) tais como as resoluções fluminenses de 2015.

5. CONCLUSÃO
Se a malha da administração pública é definida como sendo o
“Estado”, a agência e atuação de atores institucionais que compõem
ROBERTA OLIVATO CANHEO 169

sua dimensão organizacional, e das leis, normativas e demais


documentações construídas a partir desses processos de estado, cons-
tituem importante foco de atenção e pesquisa, além de produzirem
subjetividades e assujeitamentos. Ademais, tanto os burocratas no
cotidiano da administração pública, como pesquisadores, ou ainda
representantes da “sociedade civil” podem ensejar “(re)arranjos”,
“(re) configurações”, “(re)interpretações” na maneira de atendimen-
to às demandas dos grupos sobre os quais atuam, fazendo fronteiras,
e a consequente crença nelas, daquilo que se entende por “Estado”,
o que acaba por lhe conferir uma real materialidade (CASTILHO;
SOUZA LIMA; TEIXEIRA, 2014, p. 14).
A questão que não se pode perder de foco, além do mais, é que
tudo o que se coloca no campo das conquistas, avanços, a presença do
que seria a sociedade civil na persecução de políticas direcionadas à
população LGBT, tudo isso constitui matéria de processos de Estado;
todas essas categorias representam coisas de Estado. Inclusive nós,
pesquisadoras e pesquisadores, somos sujeitos de Estado, da mesma
forma que somos sujeitos do ativismo e de determinado posiciona-
mento político. E no fato de sermos “sujeitos de Estado” reside a
dificuldade de voltarmos a análise para os processos de Estado que
se dão através da gestão e administração de uma certa “população”,
de um certo ativismo, ao invés de quase cairmos na crença de que a
“política está avançando”. Essa crença é ela própria também um “efeito
de Estado” (MITCHELL, 2006), vez que nos meandros das disputas
por versões e formas ideais de ação, subscreve-se a ideia de um “ho-
rizonte justo” a ser perseguido também através de políticas públicas,
corroborando-se um tipo de ilusão orientadora das possibilidades de
ação dos atores em meio a um universo de desigualdades das mais
variadas ordens (VIANNA, 2013, p. 16).
Concluindo, objetivou-se com o exposto neste texto, des-
cortinar a relação produtiva entre “Estado” e “sociedade civil”, e a
produção de sujeitos, acompanhada da institucionalização de deman-
das, que desta relação, ou demarcação de fronteiras, advém. Outro
170 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

ponto a ser reforçado é que não apenas as arenas públicas de contendas


assumidamente políticas devem ser consideradas para se entender o
funcionamento da máquina estatal, mas também aquilo que se produz
nos meandros menos visíveis das malhas administrativas do poder,
aquelas técnicas e práticas por meio das quais um preciso efeito Estado
é produzido, e adquire materialidade através de uma série de efeitos
estruturais que se conjugam.
Ao centrar as análises na atuação de atores institucionais – e
também de atores do ativismo -, buscou-se provocar o questionamen-
to sobre a quem atende a materialização de políticas públicas para
a “população LGBT” presa; e se essa materialização não estaria em
realidade a serviço da governamentalidade de uma determinada “po-
pulação”. Para além da heterogeneidade de forças e disputas presentes
nas arenas de Estado, os atores institucionais entrevistados durante a
pesquisa foram pensados como enredados no acionamento de certos
documentos de espetáculo, que somados a grandes cenas de Estado,
são capazes de sustentar as ambivalências de um Estado que se coloca
no lugar de comprometido com os “direitos humanos” e das “mino-
rias”, mas que ao mesmo tempo, produz o acirramento das condições
de precarização de populações marginalizadas e encarceradas.
Assim, mesmo que em muitos momentos as análises aqui pro-
postas possam parecer externas ao universo prisional, por não falarem
propriamente de seus muros, celas, e das vidas ali encerradas, in-
tentou-se chamar a atenção para a materialidade da construção de
políticas públicas ou programas governamentais, que edificam uma
prisão “sistema”, trabalhada enquanto um dispositivo de fazer e fa-
zer-se no Estado, executado por atores sociais específicos. No caso de
minha pesquisa, políticas que produzem uma população vulnerável,
que deve ser segurada, “novos sujeitos políticos de direitos”.
Retomemos uma última vez a discussão foucaultiana em a His-
tória da Sexualidade I, que gira ao redor da produção de instituições
reguladoras da sexualidade, dos movimentos de resistência a essa re-
pressão sexual, ao passo em que há uma explosão dos discursos sobre
ROBERTA OLIVATO CANHEO 171

a sexualidade, ao ponto de saturá-la. De maneira semelhante, tanto a


prisão como as “populações” ditas vulneráveis entram hoje com peso
nos circuitos de discussão acadêmica, nas discussões e ações governa-
mentais, nos processos de estado levados a cabo por diversos atores.
Todavia, insiste-se em falar de sua invisibilidade, e na ausência de
políticas capazes de encabeçar uma boa gestão e administração de
ambas- da prisão e dessas “populações”.
Uma indagação que persiste, mas que através das considerações
tecidas pode-se mapear pistas é: onde se localiza o poder de regular a
vida de pessoas LGBT privadas de liberdade? Estaria nas lutas legisla-
tivas e na persecução de políticas públicas que ganham notoriedade na
cena pública e nas pesquisas acadêmicas? Ou estaria na malha menos
visível e usualmente menos considerada dos pequenos detalhes da
administração burocrática dessa “população”?
As reflexões trazidas neste texto constituem uma tentativa-
muito embrionária, diga-se de passagem-, de mapear os aparelhos,
agentes e processos de estado que produzem e reificam a prisão, e
re(produzem) certas categorias de sujeitos identitários.

REFERÊNCIAS
ABRAMS, Philip. Notes on the Difficulty of Studying the State. In: SHARMA, Aradha-
na; GUPTA, Akhil (Ed.). The anthropology of the state: a reader. Malden, MA: Blackwell,
2006, p. 112-130.
AGUIÃO, Silvia. Fazer-se no ‘Estado’: uma etnografia sobre o processo de constituição dos
‘LGBT’ como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo. Tese de Doutorado: UNI-
CAMP, 2014.
AGUIÃO, Silvia. Produzindo o campo, produzindo para o campo: um comentário a
respeito de relações estabelecidas entre “movimento social”, “gestão governamental” e
“academia”. In: RODRIGUES CASTILHO, Sergio Ricardo; SOUZA LIMA, Antonio
Carlos de; COSTA TEIXEIRA, Carla (orgs). Antropologia das práticas de poder: reflexões
etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de janeiro: Contra Capa; Faperj,
p. 115-126, 2014b.
BROWN, Wendy. Finding the Man in the State. In: SHARMA, Aradhana; GUPTA,
Akhil (Ed.). The anthropology of the state: a reader. Malden, MA: Blackwell, 2006, p.
187-210.
BUTLER, J. Corpos que pesam: Sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, G.
172 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

L. (Org.). O corpo educado: Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.


CANHEO, R.O. “Puxa pro Evaristo”: produção e gestão da população LGBT presa na
cidade do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado: UFF, 2017.
CARRARA, Sergio; AGUIÃO, Silvia; LOPES, Paulo Victor Leite; TOTA, Martinho.
Retratos da Política LGBT no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CEPESC, 2017
DAS, Veena & POOLE, Deborah. State and its Margins: Comparative Ethnographies.
In: DAS, Veena & POOLE, Deborah. (org.) Anthropology in the Margins of the State.
Oxford, James Currency, 2004, pp. 3-33.
FERREIRA, Guilherme Gomes. Travestis e Prisões: a experiência social e a materialidade
do sexo e do gênero sob o lusco-fusco do cárcere. Dissertação de mestrado: PUC-RS,
2014.
FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I: a vontade de saber. 3ª ed. São Paulo:
Paz e Terra, 2015.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France
(1977-1978) (E. Brandão, Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FREIRE, Lucas. A Máquina da Cidadania: uma etnografia sobre a requalificação civil de
pessoas transexuais. Tese de Doutorado. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social),
Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro, 2015.
LAGO & ZAMBONI. Políticas sexuais e afetivas da prisão: gênero e sexualidade em con-
textos de privação de liberdade. Caxambu: 40º Encontro da ANPOCS, 2016.
MITCHELL, Timothy. Society, economy, and the state effect. In: In: SHARMA, Ara-
dhana; GUPTA, Akhil (Ed.). The anthropology of the state: a reader. Malden, MA: Black-
well, 2006, p. 169-186.
PASSOS, Amilton Gustavo da Silva. Uma Ala Para Travestis, Gays e Seus Maridos: Peda-
gogias institucionais da sobrevivência no Presídio Central de Porto Alegre. Dissertação de
Mestrado: UFRGS, 2014.
RODRIGUES CASTILHO, Sergio Ricardo; SOUZA LIMA, Antonio Carlos de; COSTA
TEIXEIRA, Carla. Introdução: Etnografando burocratas, elites, e corporações: a pesquisa
entre estratos sociais hierarquicamente superiores em sociedades contemporâneas. In: RO-
DRIGUES CASTILHO, Sergio Ricardo; SOUZA LIMA, Antonio Carlos de; COSTA
TEIXEIRA, Carla (orgs). Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre bu-
rocratas, elites e corporações. Rio de janeiro: Contra Capa; Faperj, p. 07-32, 2014.
SOUZA LIMA, Antônio Carlos de; CASTRO, João Paulo Macedo e. Notas para uma
Abordagem Antropológica da(s) Política(s) Pública(s). Revista Anthropológicas, Ano 19,
26(2), 2015, p. 17-54.
VIANNA, Adriana. “Introdução: fazendo e desfazendo inquietudes no mundo dos direi-
tos”. In: VIANNA, Adriana (org.) O fazer e o desfazer dos direitos: experiências etnográfi-
cas sobre política, administração e moralidades. Rio de Janeiro: E-papers, 2013, p. 15-35.
VIANNA, Adriana e FARIAS, Juliana. A guerra das mães. Cadernos Pagu, 37, p. 79-116,
2011.
ROBERTA OLIVATO CANHEO 173

VIANNA, Adriana e LOWENKRON, Laura. O duplo fazer do gênero e do Estado:


interconexões, materialidades e linguagens. Cadernos Pagu, 51, 2017.

Normativas:
CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA E
CONSELHO NACIONAL DE COMBATE A DISCRIMINAÇÃO. Resolução Conjun-
ta n° 1, de 15 de abril de 2014.
SAP. Resolução SAP 11 de 30-1-2014. Dispõe sobre a atenção às travestis e transexuais no
âmbito do sistema penitenciário.
SECRETARIA ESTADUAL DE ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA. Estabelece
diretrizes e normativas para o tratamento da população LGBT no Sistema Penitenciário
do Estado do Rio de Janeiro. Resolução n° 558, de 29 de maio de 2015.
SECRETARIA DE ESTADO DE ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA E SECRE-
TARIA DE ESTADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E DIREITOS HUMANOS. Cria
o Grupo de Trabalho Permanente de Políticas LGBT no Sistema Penitenciário do Estado
do Rio de Janeiro. Resolução n° 34, de 29 de maio de 2015.
DESAFIOS NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS
DOS INDÍGENAS: O CASO DA ALDEIA
MARAKÁ’NÀ NO RIO DE JANEIRO
Karina Almeida Guimarães Pinhão1
Arão da Providencia Araújo Filho2

1. INTRODUÇÃO
A Constituição de 1988 completará 30 (trinta) anos de vigência
neste ano de 2018, um aniversário cuja comemoração desperta muitas
controvérsias principalmente na efetivação dos direitos nelas contidos.
Se, por um lado, a Constituição de 1988 foi um marco histórico,
símbolo do fim do regime militar e da redemocratização do Brasil,
por outro, a efetivação dos direitos nelas previstos se torna um desafio
e uma atividade muito precária em um país cuja governança persegue
linhas econômicas desenvolvimentista as quais, inclusive, resgatam
alguns dos projetos -nesta base político-econômica – da ditadura mi-
litar. Nesse sentido, a efetivação dos direitos indígenas presenta um
verdadeiro desafio pelo qual se propõe a presente análise.
Assim sendo, deste conflito entre a previsão constitucional
e sua efetivação que se subjaz nas próprias linhas político-econô-
micas do Brasil, primeiramente, se verificará como tais desafios já
aparecem nos debates para sua inserção no texto constitucional na
Assembléia Constituinte, em 1987. Apesar da dificultosa vitória do
1 Mestre em Ciências jurídico-políticas com Menção em Direito Constitucional pela Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra com sanduíche através do Programa “Erasmus+” junto
à École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em Paris. Especialista em Direito Ci-
vil- Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ/Brasil. Bacharel em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio/Brasil. Advogada.
2 Advogado.
176 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

movimento indígena no reconhecimento constitucional dos direitos


indígenas – compreendidos aqui como os direitos destinados a pro-
teção e garantia dos povos indígenas e de suas respectivas culturas
-, ela significa um marco característico do constitucionalismo da
América Latina na conquista de tais direitos.
São assim reconhecidos como direitos fundamentais cuja con-
cretização é dever do Estado. Encaixam-se, assim no amplo rol de
direitos fundamentais sociais de cunho prestacional. Assim sendo,
face aos dispositivos constitucionais que estabelecem a proteção e
garantia dos direitos indígenas e da natureza de seus objeto, diversos
são os limites doutrinários que se colocam à tais direitos. Motivo pelo
qual, se fará um breve exame acerca dos direitos sociais prestacionais
e dos princípios que subjazem sua efetivação e os limites colocados
jurisprudencial e doutrinariamente.
Sendo assim, tais direitos apresentam em sua natureza uma
relativização em sua eficácia a qual é verificada nos planos legislativo,
executivo e judiciário. No caso do Poder Judiciário, isto é observado,
por exemplo, no caso da Aldeia Maraká’nà3 no Rio de Janeiro e no
enfrentamento dos projetos de obras e licitações para empreiteiras
face aos jogos da Copa da Mundo que beneficiam interesses privados
em detrimento dos interesses coletivos indígenas e de proteção do
patrimônio cultural e histórico. Assim sendo, opta-se por trazer o
caso da Aldeia Maraká’nà, localizada ao lado do estádio Maracanã,
no Rio de Janeiro, como exemplo e estudo de caso face a explícita
violação aos direitos indígenas e a visibilidade que gerou a defesa do
território às vésperas da Copa do Mundo, em 2013 tendo em vista,
em suma, o grau de violência que o território e os povos que lá se
encontravam sofreram por parte do Governo de Sérgio Cabral para
realização de um Shopping Center e estacionamento pela empresa

3 Opta-se intencionalmente pelo uso da expressão em indígena Maraká’nà (em Tupi), ao invés
de Maracanã em respeito e valoração às suas origem indígenas que remetem a arara, comum
em florestas tropicais brasileiras, assim como, ao “maraká”, um instrumento de uso ritual,
religioso, ancestral adotado por outros tantos povos tradicionais, também usado pelos guerrei-
ros, em batalhas e conflitos.
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 177

Odebrecht, a fim de atender os interesses da FIFA e a resistência que


permanece até hoje como real autora e responsável pela revitaliza-
ção e preservação do espaço, da cultura indígena e do patrimônio
histórico e cultural lá presente.
Nesse sentido, são destacados dois processos judiciais, um
em que os povos indígenas estão no pólo ativo, a Ação Civil Públi-
ca ajuizada contra o Estado do Rio de Janeiro e a Companhia de
Abastecimento (CONAB) em proteção aos direitos indígenas e do
patrimônio cultural (Processo de nº 0101051-65.2012.4.02.5101)
e outro em que estão no pólo passivo, na ação de Imissão de Posse
ajuizada pelo Estado contra as lideranças indígenas (Processo nº.
0004624-69.2013.4.02.5101). Ressalva-se que partindo-se de uma
perspectiva que comunica a análise da efetivação dos direitos indíge-
nas no plano prático dos efeitos na realidade social, o exame desses
processos será realizada obedecendo a cronologia dos fatos sociais.
Motivo pelo qual, ao invés de analisar separadamente cada uma destas
ações, o fará de modo simultâneo seguindo as ordens dos fatos. Ob-
jetiva, assim, ademais, destacar como as ações externas ao processo se
repercutiam face aos atos processuais perpetrados durante o processo.
Por fim, se examinará como os desafios atestados nos processos
da Aldeia Maraká’nà repercutem nos projeto político-econômicos
adotados e fomentados constitucionalmente. Nesse sentido, se des-
tacará os limites de sua efetivação em comparação com o alcance
adquirido em outros países vizinhos ao Brasil, como Bolívia, Peru,
Colômbia e Venezuela, na adoção de uma dimensão multinacional
ou plurinacional. Assim sendo, se verificará que o reconhecimento4
dos direitos indígenas parte do movimento de multiculturalismo
que perpassa os movimentos constitucionais na América Latina que,
entretanto, apresentam limites na efetivação dos direitos indígenas.
Além disso, ao colocar-se em destaque a proteção dos direitos in-
dígenas nestes Estados plurinacionais, busca-se apresentar como o

4 Essa política de reconhecimento, fundado nas bases do multiculturalismo, segue assim as


políticas de diferença na construção da justiça social (cf. Taylor, 1998; Young, 1990).
178 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

ordenamento jurídico brasileiro, assim como a doutrina, poderia


avançar na efetivação de tais direitos.

2. OS DIREITOS DOS INDÍGENAS NA CONSTITUIÇÃO


DE 1988

2.1. A MOBILIZAÇÃO POLÍTICA PELA GARANTIA DE DI-


REITOS DOS POVOS INDÍGENAS NA ASSEMBLÉIA CONSTI-
TUINTE DE 1987
Conforme afirmado incialmente, a Constituição de 1988 é o
símbolo normativo da redemocratização do Brasil. Seu texto é consti-
tuído através de um processo histórico que se desenvolve da formação
da Assembléia Constituinte de 1987 até a votação e aprovação to
texto final da Constituição de 1988, marcando o fim o regime auto-
ritário militar que se instalara no país desde o golpe de 64. Em outras
palavras, a Constituição de 1988 significa a ruptura com a ditadura
militar e a defesa do Estado Democrático de Direito através de um
texto considerado majoritariamente, pela doutrina, progressista, ou
seja, emancipatório da perspectiva social, sobretudo pela garantia e
proteção de um amplo rol de direitos fundamentais.
Contudo, o texto constitucional de 1988 não foi facilmente
adquirido e esteve longe de refletir um consenso pacífico entre a plu-
ralidade de interesses da sociedade brasileira. Mais que isso, observa-se
que a Assembléia Constituinte de 1987 é seguida de intensos debates
onde se verifica por um lado uma visão política econômica neoliberal
que dê certa forma não estabelece uma grande ruptura com o regime
anterior, por outro lado, uma visão progressista que visava o reconhe-
cimento da pluralidade cultural brasileira. Apesar desta ausência de
um consenso5, considerando as atividades da constituinte de 1987
no plano da concorrência de interesses, cumpre destacar a ampla par-
ticipação social constituinte, como um importante marco histórico
5 Consenso é aqui apreendido no sentido de presunção de unanimidade ocorrida pela não obje-
ção da última proposição realizada na ocasião de uma tomada de decisão, precedida de uma
deliberação (Cf. Urfalino, 2007, 2014).
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 179

político do país. Assim sendo, apesar de sua formação parlamentar


majoritariamente conservadora, decorrente das eleições ordinárias
ocorridas em 1986 (Pilatti, 2008: 2), a Constituinte foi um espaço
público de grande participação popular de diversos setores sociais e,
consequentemente, de intensa mobilização política entre setores mais
progressistas e conservadores da sociedade brasileira. Motivo pelo qual
se afere o resultado de um texto mais progressista que conservador
apesar de sua composição parlamentar.
Isto se refletirá claramente dos debates até a aprovação final do
Capítulo VIII da Constituição de 1988 a respeito dos povos indíge-
nas. Nesse sentido, o movimento indígena, à época, constituído de
uma ampla rede de aliados que incluía “políticos, antropólogos, juristas,
jornalistas, religiosos, entre muitos outros apoiadores, sem esquecer o pro-
tagonismo que as próprias lideranças indígenas” (Lisboa, 2017: 84) e,
também de organizações e partidos de esquerda tiveram que enfrentar
diversas estratagemas políticas que tinham por objetivo impedirem
a sua participação no processo constituinte e a positivação de seus
interesses. Dentre estas estratagemas inúmeras foram as emendas ao
projeto de Constituição que contou, ainda, com a aliança das grande
mídia na veiculação de falsas informações a respeito da organização
que defendia interesses indígenas6 neste processo.
As alas conservadoras da constituinte visavam implementar um
projeto político econômico similar ao que já vinha sendo implementado
pelo regime militar7 dando-lhe, assim, continuidade da qual resultaria
na perda de terras indígenas e consequentemente de vidas indígenas
e suas respectivas culturas. Reivindicavam, em suma, a segurança na-
cional sob o fundamento de integração nacional preconizado pela
política indigenista nacional (Fernandes, 2016: 155). Nesse sentido,
6 Aqui, faz-se referência as notícias veiculadas pelo jornal Estadão, assim como, pelo Correio
Braziliense e O Globo contra o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), cf. Fernandes,
2016: 161).
7 Como exemplo desses projetos do regime militar, pode-se destacar o da “integração Ama-
zônica”, a qual gerou milhares de mortes de indígenas na implementação fundados sob a
justificativa de segurança nacional e crescimento econômico. Sobre a Amazônia, documentos
da Comissão da Verdade neste Estado revelam, por exemplo, a morte de diversos indígenas
na construção da BR-174 (rodovia Manaus-Boavista).(Cf. Schwade; Reis, 2012.).
180 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

se oponham aos interesses indígenas argumentando que o tratamento


diferenciado aos povos indígenas significava a defesa de privilégios (sic)
que colocavam em risco a unidade nacional e a igualdade de direito
entre brasileiros. Consequentemente, sob a insígnia de um Estado, uma
nação, um Direito e negando, por via de consequência, respectivamen-
te, a ideia de plurinacionalidade, da pluralidade étnica da sociedade
brasileira e do pluralismo jurídico. Dessa maneira:
A reação do Estado contra o CIMI não tardou, com a repres-
são e proibição das assembleias e ataques a seus membros, sendo
uma triste ironia que durante a Assembleia Nacional Constituinte
(ANC), entre 1987 e 1988 – logo após o término de uma ditadura
que durara mais de vinte anos – , o discurso oficial tenha contado
com a ajuda de um jornal chamado Estadão (O Estado de São
Paulo) para atacar, com um dossiê cheio de informações falsas, o
trabalho do CIMI – que tentava emplacar o termo Nações Indígenas
na Carta Magna – junto aos povos indígenas (RAMOS, 1997, p.
06-8). A ideia de que o Estado brasileiro poderia ser concebido
como tendo em seu interior nações indígenas, ou seja, enquanto
um autêntico “Estado Plurinacional” (como ocorreu vinte anos
mais tarde na Bolívia e no Equador) provocou as mais destempera-
das reações nos governantes e generais da época, como demonstrou
Ramos, e continua a alimentar ainda hoje os pesadelos nacionalis-
tas daqueles que dizem defender a “soberania nacional”.
Tanto que o termo “Nações” foi abandonado pelo movimento
indígena no Brasil, que o considerou um desgaste desnecessário
e uma causa impossível – ou até indesejável, quando se ouve de
lideranças indígenas que os “brasileiros” de verdade são eles, nós
é que viemos de fora, isto é, de outros países. Tais temores de um
suposto “separatismo” indígena, apesar de alguns boatos que já
circularam na internet, nunca encontraram qualquer fundamento
em fatos reais ou em discursos e projetos políticos dos próprios
indígenas que, ao contrário, costumam cobrar maior presença e
efetiva atenção do Estado brasileiro para a proteção de suas terras
e seus direitos (Lisboa, 2017: 83).
Verifica-se, dessa maneira, a aplicação formalista e conserva-
dora que guia os discursos conservadores da Constituinte de 1987
que defende uma unidade nacional racista e etnocida (Fernandes,
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 181

2016: 147). Defendiam, em suma, a imagem do indígena inimigo


(Viveiros de Castro, 2004) do Estado, negando-lhes cidadania. O
que ficou perceptível no uso das expressões como “buscar evitar con-
flitos”, quando do impedimento às reivindicações de terras indígenas
(Fernandes, 2016: 156).
Fica claro a preocupação dos setores conservadores de impedir
o reconhecimento constitucional dos direitos dos povos indíge-
nas às suas terras para a exploração dos subsolo, das suas riquezas
minerais, enfim, da exploração das terras indígenas e da natureza in-
timamente relacionado com a finalidade de efetivação de uma plano
nacional-desenvolvimentista neoliberal. Pretendiam, com isso, o aval
constitucional para a entrega de áreas indígenas para grupos estran-
geiros, transnacionais, com fundamento em uma política econômica
colonialista (Fernandes, 2016: 155; Filho, 2009).
É o que se verifica da análise das propostas de emenda ao pro-
jeto da constituição realizado pelo setor conservador, à exemplo, da
tentativa de inclusão entre os bens da União “as terras de posse ime-
morial onde se acham permanentemente localizados os índios”, em
vez de “as terras ocupadas pelos índios” que anteriormente constava.
Tal medida, se fosse aprovada, significaria a restrição ao direito dos
indígenas as suas terras na medida em que imporiam à eles caráter
imemorial muitas vezes não condizente com as aspectos de territo-
rialidade das culturas indígenas. Contudo, tal emenda não vigorou
encontrando-se hoje na CF/88 a expressão “terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios” em seu lugar.
Outras emendas finalizadas pelo setor conservador contra os
interesses indígenas tentaram remeter o conteúdo normativo do agora
art. 231 da CF/88 à regulação por legislação ordinária, ou seja, visa-
vam o esvaziamento constitucional da matéria de direitos dos povos
indígenas. Tais emendas visavam evitar a autoaplicabilidade dos direi-
tos dos povos indígenas. Para tanto, argumentava-se que a natureza do
objeto das normas não se constituíam de matéria constitucional, mas
a matéria de legislação especial, e que as discussões sobre a matéria
182 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

– que viria a forma o conteúdo normativo dos art. 231 e 232 da


CF/88 – estavam prejudicadas por falta de compreensão e radicali-
zações indesejáveis e desnecessárias. Tendo isto em vista, defendiam
que a matéria deveria ser deixada para discussão em momento poste-
rior, onde se amadureceriam e aumentariam o conhecimento sobre o
assunto, fixando o prazo para discussão em época oportuna que não
comprometa uma futura legislação sobre os índios no Brasil isenta e
duradoura. Fica nítida nesta argumentação o objetivo do setor conser-
vador em evitar a nulidade dos atos de alienação das terras indígenas
atendendo aos interesses latifundiários, de mineradoras e madeireiras.
Nesse sentido, cumpre mencionar que no início de julho de 1987,
foram apresentadas diversas emendas para abrir as terras indígenas
a mineração privada, em continuidade com a política realizada na
ditadura militar por meio do Decreto 99.985/83 que contrariava o
disposto no art. 198 da CF/1967 (Fernandes, 2016: 157-159).
Ressalva-se, ademais, que se a matéria indígena fosse, de fato,
deixada para legislação ordinária restaria relegada a omissão do legis-
lador como ocorrem com muitos dos direitos sociais. Tal hipótese
pode ainda ser atestada pelo fato de até a presente data não haver uma
legislação atualizada e adequada a norma constitucional de 1988 que
diga respeito aos direitos dos povos indígenas, aplica-se o Estatuto do
Índio (Lei nº 6001 de 19 de dezembro de 1973), recepcionada pela
Constituição 1988 nos dispositivos que com ela não conflita. Cumpre
lembrar que o Estatuto do Índio foi aprovado em pleno regime mili-
tar no governo Médici e apresenta descompasso grande com o atual
contexto jurídico social, no entanto, tanto o PL 2057/91 quanto o
PLS 169/2016, até o momento nunca foram votados. Por outro lado,
a PEC 215, PLP 227/2012 e a PL 1610/1996, seguem fornecendo
risco aos direitos indígenas nas suas intenção, respectivamente, de
limitar o direito sobre terras indígenas pelo processo de demarcação,
de limitar o usufruto sobre tais terras e na regulação da exploração de
minério em terras indígenas.
Portanto, a Constituinte de 87 que culminou na Constituição
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 183

de 1988 é marcada por conflitos acirrados entre as alas conservadoras e


progressistas que as compunha. Porém, se por um lado, a ala conserva-
dora se mostrava numericamente majoritária, por outro, o texto final
da Constituição de 1988 mostrou, felizmente, mais progressista que a
legislação anterior. Entretanto, na análise da mobilização política para
a defesa dos interesses de cada uma destas alas no curso do processo
da constituinte de 1987 fica claro o caráter etnocentrista da doutrina
da segurança nacional do fundamento das iniciativas anti-indígenas
perpetradas pelo setor conservador durante o Governo Sarney, tute-
lado pelos militares (Fernandes, 2016: 169).
Os documentos sigilosos estudos por Pádua Fernandes (2016:
142-170) do Conselho de Segurança Nacional mostram como o ca-
pítulo constitucional dedica aos índios na Constituição de 1988 era
sensível aos militares, cuja matéria sofreu no curso do processo cons-
tituinte diversos golpes, manipulações, emendas e alterações em geral
que buscavam influenciar uma proteção inferior à da Constituição
de 1934, para permitir uma exploração econômica de suas terras e
lhes reduzindo a área, com a perspectiva do desaparecimento dos
índios do Brasil. Contudo, a mobilização indígena se mostrou mais
forte, logrando êxito. Conseguiram, com isso, não apenas aliados nas
organizações indígenas, mas em outras organizações principalmente
aquelas mais opostas à ditadura como a Central Única dos Trabalha-
dores (CUT) que tinham razões estratégicas para apoiar esses povos.
Tais alianças, contudo, se perderam após a constituinte o que explica
que a implementação de projetos anti-indígenas da ditadura militar
(como a construção de barragens na Amazônia) esteja sendo condu-
zida, paradoxalmente por governos que se originaram da esquerda
(Fernandes, 2016: 170). Apesar disto, em resumo, considerar-se-á
vitoriosa o texto constitucional de 1988 na potencialidade de prote-
ção aos direitos e interesses indígenas face à abolição da integração
adotada nas constituições anteriores (Lopes, 2014) que visavam a “in-
corporação dos silvícolas” à Nação, ao reconhecimento dos direitos na
organização social, cultural e de seus territórios, e no reconhecimento
184 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

do direito à terra indígena de modo inalienável, imprescritível, impe-


nhorável e intransferível.

2.2. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS POVOS INDÍGE-


NAS PREVISTOS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
O descompasso entre a considerada vitoriosa normativa cons-
titucional em matéria indígena e as políticas que se perpetuam nos
governos seguintes à promulgação da Constituição de 1988 que os
restringem, revelam a problemática relação entre a norma e a sua
eficácia e efetividade, seja no plano jurídico, legislativo e executi-
vo. Considerando que tais direitos fazem parte do rol de direitos
fundamentais, aplicam-se-lhes o princípio da máxima otimização
desses direitos, ou seja, da vedação de interpretação restritiva (Sarlet,
2012: 262), em observância ao disposto art. 5º, §1º e 2º da CF/88
em conformidade, ainda, com a Convenção 169 da OIT no qual o
Brasil é signatário.
Os direitos fundamentais, por sua vez, apesar da existência deste
princípio, costumam ser diferenciados pela doutrina entre direitos de
defesa dos direitos sociais. Tal diferenciação é marcada justamente pela
eficácia e da aplicabilidade destes direitos a qual é estabelecida em con-
sonância com a natureza do objeto da norma. Assim sendo, quando
da diferenciação destes direitos, a doutrina costuma estabelecer dife-
rentes graus de aplicabilidade a tais direitos (Sarlet, 2012; Sarmento;
2006) os quais podem ter eficácia direta ou indireta, como é o caso
dos direitos indígenas. Razão pela qual, considerar-se-á importante
perpassar pelas teorias doutrinárias acerca da eficácia de tais direitos,
como desafios a sua própria efetivação.
Tomando-se por critério a natureza do objeto da norma, ou
seja, do seu conteúdo normativo, os direitos sociais compreendem
tanto os direitos de defesa quanto os direitos prestacionais (Sarlet,
2012: 174-175; Andrade, 2012: 165-172). Serão considerados di-
reitos de defesa aqueles que possuem direta aplicabilidade, sendo os
prestacionais aplicáveis diretamente somente quando apresentem
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 185

remissão do legislador para concretização do direito ou quando


faltam-lhes elementos mínimos indispensáveis para a sua aplicabi-
lidade (Sarlet, 2012: 264-270; Silva, 2007, 2008). Sendo assim, os
direitos fundamentais são exigíveis em juízo na condição de direi-
tos subjetivo individual ou transindividual, dotados, portanto, de
eficácia e aplicabilidade (Sarlet, 2012: 267, 273), porém, tendo em
vista o texto normativo e a natureza de seu objeto podem apresentar
diferentes graus de efetivação.
Os direitos de defesa, de modo sintético, são aqueles direitos
de liberdade, igualdade, direitos-garantia, garantias institucionais, di-
reitos políticos, ou seja, as posições jurídicas fundamentais em geral.
Estes, costumam apresentar como efeito uma preponderante atuação
negativa, de abstenção por parte do Estado e particulares. Dessa ma-
neira, eles representam um limite à atuação do Estado, em prol da
conservação de direitos. A partir de uma perspectiva tradicional, são
direitos atribuídos a conjunturas políticas liberais (Estados Liberais)
que buscavam sua proteção contra o retorno dos governos autoritá-
rios dos quais decorrem arbitrariedades e discriminações através do
estabelecimento de privilégios. Neste sentido, possuem uma posição
formalista acerca do princípio da igualdade, colocando-se contra qual-
quer forma de discriminação em defesa da máxima “uma lei igual
para todos”. Finalizam, portanto, a proteção de bens essenciais sem
relevância econômica, apresentando-se, assim, neutralidade econômi-
co-financeira (Sarlet, 2012: 282-286).
Os direitos prestacionais, por sua vez, possuem uma dimensão
positiva com face de negativa, no que se refere a atuação Estatal. Em
outras palavras, eles estabelecem uma obrigação de fazer do Estado,
ou seja, uma prestação. Demandam, deste modo, uma atuação ativa
na esfera econômica e social a qual significa tanto uma abstenção
de agir no que venha a violar tais direitos, assim como, o de agir
na promoção e concretização destes direitos. Mantém, desta forma,
uma dimensão positiva apesar de não preponderante. Costumam
ser incluídos dentre aquelas dimensões ou gerações de direitos dos
186 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Estados Sociais, fundados no princípio isonômico ou na igualdade


material segundo a qual se proíbe a relativa de discriminação (Sarlet,
2012: 302). Neste sentido, os direitos sociais reconhecem de deter-
minadas posições de desigualdade social as quais visam erradicar
não somente proibindo as ações que as perpetuam, como, gerando a
responsabilidade Estatal de erradicá-las. Tendo por pressupostos tais
fundamentos, esses direitos tem por finalidade tarefas de melhoria,
distribuição e redistribuição de recursos, representando, assim, a
criação de bens essenciais com relevância econômica (Sarlet, 2012:
285-286). Representam, em suma direitos, liberdade e garantias,
cuja falta ou insuficiência da lei ou necessidade de preenchimento
com recurso à hermenêutica para sua aplicação, entretanto, não
chega a constituir obstáculo para imediata aplicabilidade, na medida
que podem ser objeto de interpretação constitucional sem que seja
necessário para tanto se remeter ao legislador.
Em conclusão, os direitos de defesa e os direitos prestacio-
nais, dada a natureza de seus objetos costumam ser diferenciados
por sua relevância econômica, neutra no primeiro e característico
daquele último. Assim sendo, enquanto nos primeiros aparentemente
é possível aplicá-los sem conflitos com a ordem econômica e social
existentes, nos demais, é parte da sua natureza a intervenção do status
econômico e social para a sua modificação. Por conseguinte, a rele-
vância econômica refletirá de forma essencial na eficácia e efetividade
dos direitos prestacionais. Sob esta perspectiva, a conjuntura política
e econômica esta intimamente ligada ao seus conteúdo normativo e
aos alcance de sua efetivação (Sarlet, 2012).
Logo, não há como separar assim da compreensão dos direitos
prestacionais da conjuntura político e econômica de sua efetivação, e,
consequentemente, da ideologia que se encontra de fundo na prática
destas conjunturas8. Assim sendo, entende-se que tais conjunturas
enquanto prática social carregam consigo uma ideologia que lhes

8 Diverge-se, neste ponto, da doutrina de Ingo Sarlet (2012: 306) que nega a ligação dos direitos
prestacionais com as posições ideológicas existente socialmente.
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 187

caracteriza seja de modo arbitrário ou historicamente orgânica (Cf.


GRAMSCI, 1977) e que, deste modo, lhe fazem parte. A ideologia
presentes socialmente, portanto, está presente intrinsecamente na fun-
damentação alcances da efetivação dos direitos prestacionais, como
direitos subjetivos passíveis de judicialização (Mello, 1982; Grau,
2012: 311-314). É o que vem a refletir na compreensão doutrinária
majoritária de que que todos os direitos fundamentais possuem um
custo – conjunto de medidas positivas do Estado – para a sua reali-
zação, divergindo-se, porém, ao grau deste custo e seu significado na
concretização dos direitos (Barcellos, 2011, p. 280-281).
Tendo em vista a relevância econômica preponderante nos di-
reitos sociais, esta acaba por refletir nas restrições ou limites a sua
plena eficácia. Em outras palavras, as metas ou finalidade de reali-
zação de algo por parte do Estado estabelecidas pelos direitos sociais
visam uma implementação progressiva na medida em que enfrentam
limites da disposição estatal para tanto, conhecida por “reserva do
possível”. Observa-se, assim, como tal argumento abre a possibilidade
dos direitos sociais, por parte do destinatário da norma e, que pode se
fundamentar em 3 (três) dimensões: a disponibilidade fática – de re-
cursos, essencialmente orçamentária; jurídica – competência para sua
concretização; e de proporcionalidade da prestação – sua exigibilidade
e razoabilidade de implementação. A reserva do possível, entretanto,
não é um limite imanente dos direitos fundamentais prestacionais/
sociais, podendo se caracterizar em um limite fático ou jurídico ou a
garantia de um direito fundamental quando do conflito entre direi-
tos fundamentais (Sarlet, 2012: 287-288; Barcellos, 2011: 278-279).
Para tanto, justifica-se ainda que a baixa densidade normativa destes
direitos, ou sua normatividade insuficiente, é o que abre a possibilida-
de para que o legislador, de acordo com esta reserva do possível, possa
vir a gerar a plenitude de seus efeitos, dependendo assim, da dispo-
nibilidade de meios e da progressiva complementação e execução de
políticas públicas na esfera socioeconômica (Sarlet, 2012: 292-293).
Por outro lado, isto não significa um esvaziamento completo
188 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

da aplicabilidade dos direitos prestacionais. Assim sendo, tais direi-


tos possuem aplicabilidade, entretanto, limitada: (i) a revogação da
norma anterior que contrariarem com tais direitos, (ii) a reinterpre-
tação da norma anterior que não divergir (novação) com estes; (ii) a
obrigação do Estado de tomar tais direitos como parâmetro para sua
atuação sob pena de Mando de Injunção e Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade por Omissão; (iii) enquanto objeto para a proposição da
ADIN contra lei posterior que os contrariar; (iv) enquanto parâmetro
de interpretação, integração, e aplicação das normas jurídicas; como
condições para atividade discricionária da Administração Pública e do
Poder Judiciário; (v) na posição jurídico-subjetiva (no mínimo direito
subjetivo no sentido negativo) (Canotilho, 2003), e, por fim, (vi) a
restrição com base no princípio da proibição do retrocesso (Sarlet,
2012: 295-299; Barcellos, 2011: 85-93; Andrade, 2012: 377-381).
Cumpre mencionar, ainda, que os limites fundados na reserva
do possível, podem ser de cunho fáticos, jurídicos e da proporcio-
nalidade da prestação dos direitos sociais que recaem, inclusive, nas
três dimensões de disponibilidade dos direitos sociais mencionada
anteriormente. Especialmente, sobre o limite jurídico, entretanto,
costuma-se aferir um limite específico à judiciabilidade de tai direitos
uma vez que por sua natureza, se judicializados, geram necessariamen-
te a violação ao princípio da separação dos poderes. Motivo pelo qual
parte da doutrina o considera como limite imanente do direito social
(Santos, 2014; Canotilho, 2003, p. 1148).
Por outro lado, Ingo Sarlet (2012), compreende que tais limi-
tes não são internos, mas externos aos direitos sociais, ou seja, não
lhe são imanentes – conforme anteriormente mencionado. Contudo,
para este autor, o que irá determinar a plena eficácia de tais direitos
é a possibilidade (ou não) se de alcançar a definição deste objeto,
de seu conteúdo, ou, em outras palavras, o alcance da prestação;
razão pela qual não há ofensa ao princípio da separação dos poderes.
Esta possibilidade é inclusive, considerada pelo autor, como fator
de adaptabilidade deste tipo normativo de acordo com a conjuntura
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 189

socioeconômica com a qual está umbilicalmente ligado, e que permite


com que a constituição esteja adequada a realidade e simultaneamente
conferindo um risco a estabilidade do texto constitucional. Por fim,
destaca que estas são as características pelas quais os direitos sociais
possuem uma tensão dialética constante com o direito de defesa e que
impede um congelamento da proporcionalidade que deve ser sempre
feita a luz do caso concreto (Sarlet, 2012: 308-309).
No que respeita aos direitos indígenas estes limites colocados
a aplicabilidade dos direitos prestacionais significam verdadeiros de-
safios a sua efetivação, principalmente quando da sua insuficiência
normativa somada a omissão legislativa, na aprovação de projetos de
lei, na execução de políticas econômicas e públicas e, na interpretação
normativa que os restringem com base na reserva do possível. Tais
restrições aos direitos indígenas perfazem, desse modo, as três esferas
de poder. No que atine a função legislativa, por exemplo, é verificável
esta restrição tanto na omissão legislativa na atualização do Estatuto
do Índio e quando na ausência de aprovação dos projetos de lei (PL
2057/1991 e o PLS 169/2016) cujo conteúdo vai de encontro com
os interesses ruralista, madeireiro e da exploração de minério que de-
fendem como único meio para o crescimento econômico a exploração
e intensificação da produção para o mercado externo em detrimento
dos povos indígenas que se encontram em suas área de interesse ou
da proteção ambiental. Acresce-se à este fator as intensas tentativas de
aprovação da PEC 215 e outros projetos de lei que visam restringir
o conteúdo normativo constitucional sobretudo no que se refere a
demarcação de TI e ao seu usufruto pelos povos indígenas.
Deve-se acrescentar, por fim, que apesar de tais restrições esta-
belecidas em cima da doutrina dos direitos prestacionais, o art. 232 da
Constituição abre a possibilidade a aplicabilidade jurídica dos direitos
indígenas previstos constitucionalmente ao estabelecer não somente
acerca da capacidade postulatória dos indígenas e suas comunida-
des e organizações, assim como, por mencionar expressamente na
defesa em juízo de seus direitos e interesses, de modo independente
190 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

à constituição de legislação especial sobre o assunto. No que atine a


legislação especial que venha a dar concretude normativa a estes dispo-
sitivos constitucionais, recorda-se, entretanto, que o Estatuto do Índio
de 1973 foi recepcionado pela Constituição nos dispositivos em que
com esta não contrarie e cuja interpretação se paute nela. Pode-se afir-
mar, então, que os direitos dispostos no art. 231 da Constituição tem
plena aplicabilidade no poder judiciário face aos art. 232 da mesma.
Por outro lado, independente da compreensão doutrinária
acerca de tais direitos, é inegável que a sua judiciabilidade fica preju-
dicada face a ausência da regulação da matéria por legislação ordinária
a qual, por este motivo, se faz urgente e importante. Sob este ponto
de vista, destaca-se o disposto no nos §3º e §6º do art. 231, os quais
fazem clara menção a “forma da lei” ou à “conformidade com a Lei
Complementar”. O §3º do art. 231 da CF/88, prevê a participação
das comunidade afetadas nos resultados de pesquisas e no aproveita-
mento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos e na
lavra de minerais que venha a ser autorizados pelo Congresso Nacional
em terra indígenas na “forma da lei” a qual não existe especialmente
sobre a forma pela qual se daria essa participação. O §6º do art. 231
da CF/88, por sua vez, prevê a possibilidade de não haver anulação das
ocupações, domínio e posse de terras e exploração das riquezas natu-
rais do solo, rios e lagos em terras indígenas face a relevante interesse
público da União conforme “lei complementar”, sem que haja até a
presente data uma definição legislativa que demarque qual o relevante
interesse público. Além disso, este mesmo parágrafo prevê ainda que
a nulidade de tais atos não geram o direito de indenização ou de ação
contra o União ressalvando a sua possibilidade no caso de benfeitorias,
também “na forma da lei”. As lacunas legislativas a respeito desses
parágrafos significam, assim, um grande risco de restrição ao direitos
(Santos, 2014: 126-182) sobre as terras indígenas motivo pelo qual
se torna relevante uma adequada legislação que não venha a diminuir
a eficácia dos direitos dos povos indígenas.
Por fim, se por um lado, estes apresentam limites que se
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 191

colocam como restritivos de sua eficácia, por outro, tais restrição são
igualmente limitadas à proibição do retrocesso que visa a resguardar
o seu conteúdo essencial (Silva, 2014). Em outras palavras, este prin-
cípio visa garantir o progresso de seu conteúdo normativo adquirido
durante o processo constituinte, ou seja, a estabilidade das conquistas
dispostas. Consequentemente, gera-se ao legislador, assim como ao
poder judiciário; no primeiro caso, um dever de abstenção no sen-
tido de não extinção arbitrária total ou parcial do direito, nem seu
esvaziamento constitucional; no segundo caso a declaração de incons-
titucionalidade de projeto de lei, ou projeto de emenda a constituição
e suas respectivas promulgações – se já votadas na casa legislativa –
que gerem a revogação total ou parcial do núcleo essencial do direito
social (ou prestacional). Parte-se do entendimento de que a permissão
a violação à este princípio, significaria uma “carta em branco” para o
legislador de fraudar e esvaziar a norma constitucional (Sarlet, 2012:
453) diminuindo-lhe a sua força normativa.
Em suma, o princípio da proibição do retrocesso é um princí-
pio implícito que decorre: do princípio do Estado Democrático de
Direito; da dignidade da pessoa humana; da máxima eficácia e efeti-
vidade das normas de direitos fundamentais- art. º5, §1º da CF/88;
da proteção em normas constitucionais a medida de cunho retroativo;
do princípio da proteção da confiança; do principio da proteção da
confiança e da segurança jurídica; da força normativa da Constituição;
e no fundamento do direito internacional o qual impõe a implemen-
tação progressiva da proteção aos direitos sociais pelos Estados (Sarlet,
2012, 255-457). Esse princípio constituí um direito subjetivo nega-
tivo (Silva, 2008), aplicável, portanto, judicialmente como meio de
impugnação de qualquer medida legislativa que vise subtrair o grau
de concretização da norma constitucional (Sarlet, 2012: 454). De
acordo Canotilho (2003), o princípio caracteriza-se como direito de
defesa para aqueles direitos sociais que contenham lei específica que
os regulamente (Sarlet, 2012: 454-455).
Sua aplicação, contudo, não está livre de divergência na
192 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

doutrina, havendo quem aponte uma necessidade de relativiza-


ção do princípio, na medida em que, enquanto tal, não se aplica
como as regras segundo a máxima “tudo ou nada” (Sarlet, 2012:
459; Canotilho, 2003; Ávila, 2012), devendo ser ponderado tendo
em vista o conflito com demais princípios constitucionais. Assim
sendo, argumenta-se que o princípio pode e deve ser relativizado
para possibilitar a possibilidade de revisão e de reavaliação global
permanente (Sarlet, 2012: 458; Andrade, 2012) dos direito so-
ciais. Discorda-se deste posicionamento, principalmente quando
se observa o seu reflexo na efetivação dos direitos indígenas, no
reconhecimento de sua cultura, sua organização social e de suas
terras. Tais direitos foram historicamente esvaziados por doutrinas
que justificam suas restrições em modelos econômicos e políticos
que impedem por não se comunicarem com a cosmovisão indígena
que se perpetuam até a atualidade.
Neste sentido, e no que se refere a sua efetivação através do
poder judiciário, pode-se citar o caso da Raposa Serra do Sol, cujo
suposto conflito entre direitos indígenas e proteção ambiental e à
segurança jurídica busca justificar a tese do marco temporal criado
judicialmente pelo STF em clara restrição a demarcação de terras pre-
vistas constitucionalmente. A tese do marco temporal, impõe como
condição para demarcação a presença indígena nas áreas em questão,
à época da promulgação da Constituição de 1988 (marco temporal
em 5 de outubro de 1988); ressalvados se já houvessem sido pleiteadas
as terras no Poder Judiciário ou se estivesse sofrendo violência física à
época. Por não haver comunicação com a cosmovisão indígena acerca
da conexão do povo indígena com a natureza e sua territorialidade e
baseados em noções estanques de propriedade privada, individual, não
coletiva face a preservação ambiental, tal precedente do STF, acaba
por gerar um retrocesso ao direito as terras tradicionalmente ocupadas
pelos povos indígenas, já foi inclusive, aplicado, por exemplo, em
outros casos de demarcação de terras como nas TI de Limão Verde,
Panambi-Lagoa Rica e Guyraroka, no Mato Grosso do Sul.
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 193

3. OS DESAFIOS DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DOS


INDÍGENAS: UMA ANÁLISE A PARTIR DO TERRITÓRIO
DA ALDEIA MARAKÁ’NÀ

3.1. BREVE CONTEXTO HISTÓRICO DOS POVOS DO MA-


RAKÁ’NÀ
O território da atual Aldeia Maraká’nà é composto de um
prédio e um espaço em seu entorno localizado ao lado do estádio de
futebol Maracanã. Sua composição tem origem em uma propriedade
de imóvel pertencente à família imperial, Duque de Saxes, genro
de Dom Pedro II (1889). Nele foi construído um prédio, situado
ao lado do antigo Derby Club (fundado em 1885), que deu lugar
no final da década de 1940 ao estádio Maracanã. O prédio que
inicialmente chegou a ser sede do Derby e, posteriormente veio a
abrigar um centro de pesquisas em agropecuária, incluindo estu-
dos da domesticação de plantas nativas, integrado ao Ministério de
Agricultura, Indústria e Comércio. Em 1910, o prédio passa a ser do
Serviço de Proteção ao Índio (SPI), com a criação deste órgão, sob
o comando de Marechal Cândido Rondon. Além disso, quando o
prédio foi sede do Setor de Estudos e Pesquisa do SPI, importantes
antropólogos brasileiros como Eduardo Galvão e Roberto Cardoso
de Oliveira, chegaram a trabalhar nele
Em 1953, passa a ser o primeiro Museu do Índio na América
Latina por obra de Darcy Ribeiro, e será espaço de realização de cursos
de pós-graduação em Antropologia e de graduação da Escola Nacio-
nal de Agronomia (um dos embriões da futura Universidade Federal
Rural do RJ-UFRRJ). Neste período, décadas de 1950 até 1970, uma
vez que a SPI lá se encontrava, a Aldeia Maraká’nà passa a receber
diversas lideranças dos povos indígenas do Brasil todo, que traziam
diversas reinvindicações acerca de seus direitos. Sobre este momento,
cumpre destacar o registro da chegada de três indígenas Xukuru, que
vieram em peregrinação numa jornada que fizeram à pé desde a Serra
do Ororubá, para aqui ter com Cândido Rondon, trazendo-lhe a
194 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

reivindicação dentre elas, por suas terras ancestrais do povo Xukuru,


usurpadas por coronéis da região (Silvam, 2010: 286-291).
Em 1978, o Museu foi transferido para o bairro de Botafogo,
na zona sul do Rio e o prédio fica abandonado. Em outubro de 2006,
face ao abandono jurídico e de políticas públicas sobre o local, o
movimento indígena da cidade do Rio de Janeiro, a partir da auto-
-organização do I Congresso Tamoio dos Povos Originários, tomou
como decisão a retomada do território abandonado desde 1977, na
área externa do complexo do estádio do Maracanã, que passou a se
denominar Aldeia Maraká’nà. Com isso, o aldeamento passa a promo-
ver ali a história e as formas de organização social e cultura indígena
através da reativação do espaço ao redor do prédio e com a constru-
ção de pequenas habitações de taipa, hortas, árvores frutíferas, com
a realização de eventos de promoção da cultura indígena, venda de
artesanato e de encontro de indígenas que moram ou estão em trânsito
no Rio de Janeiro (Albuquerque, 2015: 158-159).
Entretanto, uma vez que o aldeamento encontra-se ao lado
do estádio Maracanã, ele passa a ganhar muita visibilidade às vés-
peras da Copa das Confederações em 2013 e a Copa do Mundo em
2014, quando desperta o interesse de empreiteiras nas obras para tais
eventos cuja realização era fortemente pressionada pela FIFA. Para
tanto, o setor privado, contou com um forte lobby nas três esferas de
poder, Legislativo, Executivo e Judiciário, tomando forças políticas
para expulsão dos povos indígenas da Aldeia Maraká’nà. A Aldeia se
torna, desse modo, alvo de vários ataques e repressões policiais para
sua remoção as vésperas da Copa de 2014. Nestas ações, os prédios
anexos que compunham o LANAGRO (Laboratório Nacional de
Agropecuária) foram destruídos e todo o terreno fartamente arbo-
rizado teve árvores seculares criminosamente derrubadas e todo o
solo sagrado foi sufocado com asfalto.
O Estado do Rio de Janeiro chega a utilizar da força policial
para fazer valer um contrato feito entre o então Governador Sérgio
Cabral e a Odebrecht para construção de um Shopping Center e um
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 195

estacionamento em detrimento da comunidade que dava utilidade


pública e tornava o espaço ativo culturalmente. Em outras palavras,
o Estado usa de sua posição de poder para defender o uso empresarial
do território em detrimento da conservação da história indigenista
e da proteção da cultura indígenas e de seus povos de interesse da
coletividade. É a partir deste momento de ataque à Aldeia que o
movimento indígena que lá se encontrava busca assistência jurídica
para fazer valer seus interesses protegidos constitucionalmente com
a finalidade, em suma, de construção de uma Universidade Indígena
sob o manejo indígena. Porém, se verificará no exame dos processos
como o reconhecimento constitucional da cultura indígena passa por
desafios significativos principalmente quando em região urbana, os
quais se perpetuam até hoje no espaço da Aldeia Maraká’nà, cujo
movimento, entretanto, permanece resistindo na defesa dos direitos
indígenas, na manutenção do espaço através da cultura indígena e na
promoção dos saberes e cosmovisão indígena.

3.2. A ALDEIA MARAKÁ’NÀ SUB JUDICE: AÇÃO CIVIL PÚ-


BLICA E A AÇÃO DE IMISSÃO DE POSSE NA JUSTIÇA FEDE-
RAL DO RIO DE JANEIRO
Com violenta repressão policial contra a Aldeia Maraká’nà
ocorrendo as vésperas dos grandes eventos supra citados, recorre-se,
então, ao judiciário para proteção dos direitos dos povos indígenas e
da proteção do patrimônio histórico. As violações de direitos perpe-
tradas sem qualquer assistência jurídica chamam a atenção da Ordem
dos Advogados do Brasil – Secção Rio de Janeiro (OABRJ), sobre-
tudo tudo, da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Jurídica
(CDHAJ) que em 20 de setembro de 2012 ajuíza Ação Civil Pública
(Processo nº 2012.51.01.101051-4) e, em nome do CDHAJ/OABRJ
E DO CESAC – Centro de Etnoconhecimento Sociocultural e am-
biental Cauieré, entidade Associativa de Representação dos Indígenas
em face da União Federal e a Companhia Nacional de Abastecimento
(CONAB). Neste processo, participaram ainda o Ministério Público
Federal (MPF) na condição de fiscal da lei. É intimada a FUNAI
196 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

a qual, entretanto, não se manifesta, omitindo-se do caso de claro


interesse indígena. Interessante notar que, a CONAB e a União são
citadas em 26 de outubro ode 2012 e a escritura de promessa de
compra e venda do imóvel, referente a Aldeia Maraká’nà, é realizada
dois dias depois, no dia 29 de outubro de 2012, pelo valor de 60
milhões, e que até 14 de dezembro de 2012 somente a União havia
apresentado contestação.
Em novembro de 2012, o advogado da ação, Arão da Provi-
dência, até então membro da Comissão de Direitos Humanos da
OABRJ, começa a sentir a pressão da própria instituição que insisti
em fazer-lhe desistir dela. Face a oposição do seu membro, a OABRJ
através de seu procurador protocola petição onde pede retirada da
OABRJ do processo sob a alegação da falta de prerrogativa da institui-
ção para tanto. Motivo pelo qual em janeiro de 2013 é dada decisão
em favor da ilegitimidade ativa da OABRJ para constar no processo,
permanecendo no processo no polo ativo a CESAC.
No dia 25 de fevereiro deste mesmo ano, o Estado do
Rio de Janeiro ajuíza Ação de Imissão de Posse (Processo nº.
2013.51.01.004624-4) pessoalmente contra as lideranças indígenas
da Aldeia Maraká’nà sobre esse espaço, com pedido liminar e distri-
buída por dependência às ações que tramitavam na 8ª Vara Federal,
manejadas pela DPU e MPF, referentes ao valor histórico e arquitetô-
nico do prédio do antigo Museu do Índio, onde já haviam liminares
em favor dos indígenas. Nesta ação, é revogada as liminares anteriores
e deferida a liminar de imissão a qual resta condicionada a execução da
medida a demonstração por parte do autor (Estado do Rio de Janeiro),
através de sua Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos
Humanos, ao oferecimento de um local seguro para acolhimento dos
ocupantes do imóvel que assim o desejarem, e cujas dependências
ofereçam condições adequadas de habitação, saneamento etc., de
modo provisório, até que lhes seja oferecido, em caráter definitivo,
outro local que lhes permita o exercício das atividades atualmente
desenvolvidas no imóvel descrito nos autos. Neste mesma decisão,
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 197

determina-se ainda a intimação do Estado do Rio de Janeiro para


o seu conhecimento e do MPF e da Defensoria Pública da União
(DPU) para manifestação. Resta, assim, ausente a citação dos réus
contra quem pessoalmente é movida a ação. Nos termos dessa decisão,
convoca-se a DPU e o MPF, para no “...exercício de suas atribuições
institucionais, possam auxiliar no seu fiel cumprimento...”, como se
citação não fosse um ato personalíssimo, indisponível e intransferível.
No dia 11 de março de 2013 é emitido mandado de imissão
de posse e no dia 15 de março de 2013, é apresentada contestação
em relação as nulidade de falta de citação, assim como, é realizada a
anexação do laudo antropológico, do edital de privatização do Mara-
canã, assim como da recomendação da 6ª Câmara de Revisão da PGR,
da subprocuradora Geral da República Gilda Pereira de Carvalho,
de manutenção da posse indígena e da ata da Audiência Pública que
desautorizou o estado ado RJ a remover os indígenas. Porém, esta peça
é desconsiderada pela magistrada da ação, e no dia 22 de março de
2013, é realizada a imissão de posse, com todo o aparato militar e com
a utilização da experimental arma sônica com o respaldo no mandado
da 8ª Vara Federal da Justiça Federal do Rio de Janeiro. Inclusive, em
folhas seguintes do processo, verifica-se que foram emitidos os man-
dados de citação, onde o oficial certifica que somente um dos réus é
encontrado e citado9. O mandado em questão determinava que se
procedesse a citação do réu para contestação.
Enquanto isso, retornando à ACP na 7ª Vara Federal, a União
Federal apresenta contestação e a CONAB fica revel, ou seja, apesar
de citada deixa de contestar mesmo bem após a imissão de posse

9 Nas palavras do oficial de justiça designado: “Diante de tal dificuldade e da argumentação do


Sr. Carlos de que necessitava de alguns dias para reunir o grupo e consultar um advogado e
o defensor público acerca da presente ação judicial, agendei nova diligência para a semana
seguinte. Quando de meu retorno, dia 21/03/13, NÃO tive acesso ao imóvel, que estava tran-
cado, com o portão fechado, amarrado com cordas e “barricada” feita com pedras e madeira;
além de muitos manifestantes à frente. Por este motivo não logrei êxito em localizar os demais
réus, bem como proceder à citação dos mesmos. Face ao acima exposto e tendo em vista que
a respeitável determinação judicial no sentido de imitir o Estado do Rio de Janeiro na posse
do imóvel em tela foi efetivamente cumprida no dia 22/03/13, submeto o diligenciado à apre-
ciação superior. O referido é verdade e dou fé. Rio, 25 de março de 2013 . OTAVIO COSTA.
Analista Judiciário/Execução de Mandados. Matrícula: 11548”.
198 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

supra, e após reiterados pedidos para a proteção e reintegração da


posse. Apesar da saída da OABRJ, a CESAC continua no processo
através do qual é proferida decisão sobre sua manutenção e também
em rejeição da preliminar de reforma do prédio do Museu do Índio,
que deve ser decidido em sentença; acolheu-se, ainda, a preliminar
de litisconsórcio passivo necessário do Estado do Rio de Janeiro face
a promessa de compra e venda e a preliminar de ilegitimidade ad
causam da União Federal.
Em 23 de setembro de 2013, nesta mesma ação, é proferido
decisão10 na qual se reconhece a presença indígena e, por conta disto,
intima-se as partes-autoras sobre o interesse de agir na lide e, em se-
guida, há manifestação do MPF. Contudo, face a ausência de eficácia
jurídica deste reconhecimento, e da afirmação da posse indígena, a
assistência e as recomendações da 6ª Câmara da PGR foi contrário
a posse. E, em 16 de dezembro de 2013 é proferida a sentença (fls.
628/640) reiterando a solicitação de ofício à FUNAI, onde foi parcial-
mente procedente em favor dos indígenas no sentido de determinar
as rés a integrarem às suas estruturas administrativas e patrimoniais o
imóvel e o projeto de manejo indígena; mas indefere o pedido de le-
vantamento e catalogação de todos os patrimônios públicos indígenas
(imóveis, cemitérios, sambaquis, sítios arqueológicos, fazendas, entre
outros) e da regularização dos seus registros nos RGIs e SPU em todo
o Estado do Rio de Janeiro; assim como demais pedidos.
Porém, na mesma data desta decisão o Governo do Estado
do Rio de Janeiro, sem qualquer autorização remove novamente
os indígenas e no dia 18 de dezembro de 2013, dois dias depois, o
CESAC solicita (fls. 641/642) a reintegração com base nesta decisão
favorável. Com isso, apelam, Estado do Rio de Janeiro e CONAB,

10 Despacho Tendo em vista que o Estado do Rio de Janeiro, consoante amplamente noticiado,
desistiu do projeto de demolição do Museu do Índio e o devolveu aos ocupantes anteriores, e
que, inclusive, o imóvel já voltou a ser ocupado pela comunidade indígena, intimem-se as par-
tes para que informem, no prazo de 10 (dez) dias, se persiste o interesse de agir na lide. Após,
ao MPF, voltando-me então os autos conclusos. Rio de Janeiro, 23 de setembro de 2013. (
assinado eletronicamente – alínea ‘a’, inciso III, § 2º, art. 1º da Lei 11.419/2006 ) BRUNO
OTERO NERY Juiz(a) Federal Substituto(a) no exercício da Titularidade.
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 199

em relação ao ponto favorável as autoras. Apelação esta que é recep-


cionada pelo tribunal em seu duplo efeito, suspendendo a eficácia
da sentença. Razão pela qual a CESAC apresenta um agravo de
instrumento (AI) (fls. 623-733), ou seja, contra o duplo efeito dado
as apelações, assim como a contrarrazão às apelações (fls. 734/751).
Em relação a apelação o MPF (fls. 767) manifesta-se pela conheci-
mento e desprovimento do recurso de apelação e pelo provimento
parcial da apelação da CONAB.
Em 8 de junho de 2015 é proferido acordão em relação a esta
apelação, através do qual se decide em concordância parcial com a
sentença que deu provimento ao manejo indígena face o Decreto
Estadual n. 44.525/2013, através do qual o Governador do Estado
do Rio de Janeiro afeta parte do imóvel da Aldeia Maraká’nà para
atividades culturais indígenas no interesse de implantar em Centro
de Referência da Cultura dos Povos Indígenas/Universidade Indí-
gena11 considerando, ademais, a falta de interesse de agir em relação
à este ponto. Neste decisão, entendeu-se, ainda, que não cuida de
caso de ilegitimidade passiva da CONAB, na medida em que esta in-
gressou no feito, tendo em vista que o pedido original era bem mais
abrangente do que ficou deferido na sentença, envolvendo, inclusi-
ve, atos relacionados à alienação e disposição do bem imóvel, assim
como sua titularidade. Tendo sido a ação ajuizada em setembro de

11 De acordo com o Decreto 44.525 de 16 de dezembro de 2013: “Art. 1º – O prédio da Avenida


Maracanã, 252, esquina com a Rua Mata Machado, 127, bairro do Maracanã, na cidade do
Rio de Janeiro, conhecido como antigo Museu do Índio, constitui bem público ora afetado
à instalação de um Centro de Referência da Cultura dos Povos Indígenas/Universidade In-
dígena, para o desenvolvimento de atividades culturais relacionadas aos usos, costumes e
tradições indígenas. Art. 2º – Para a execução do referido Centro de Referência da Cultura
dos Povos Indígenas/Universidade Indígena compete à Secretaria de Estado de Cultura: a)
definir, ouvidas as lideranças indígenas do Estado e instituições que formalmente destinem-se
à defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas, o programa de uso cultural do bem
afetado, para que seja estabelecido no local o Centro de Referência da Cultura dos Povos
Indígenas/Universidade Indígena; b) envidar esforços para a captação dos recursos priva-
dos e/ou públicos necessários ao patrocínio e financiamento da implantação do Centro de
Referência da Cultura dos Povos Indígenas/Universidade Indígena; c) envidar esforços para
estabelecer convênios, parcerias, e demais instrumentos jurídicos permitidos em lei, com os
órgãos responsáveis pela assistência aos povos indígenas e de apoio à questão indígena. Art.
3º – A Secretaria de Estado de Cultura adotará as providências necessárias ao cumprimento
deste Decreto. Art. 4º – Este Decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas
as disposições em contrário. Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 2013.” Disponível em: http://
www.emop.rj.gov.br/bs_dinamica.asp?id=315. Acesso em 20 de Abril de 2018.
200 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

2012 e o imóvel alienado pela CONAB em outubro de 2012, fica


clara sua legitimidade para figurar no polo passivo da presente ação.
Se a CONAB não é mais proprietária do imóvel, resta óbvio que
não mais deverá dar cumprimento ao comando contido na sentença,
no sentido de “integrar à sua estrutura administrativa e patrimonial o
imóvel e o projeto de manejo indígena”. Razão pela qual é desnecessá-
ria qualquer modificação da sentença neste sentido, tendo em vista
que tal conclusão decorre da simples leitura do comando. Por fim,
dá-se remessa necessária e apelação do Estado do Rio de Janeiro
parcialmente providas. Em relação à apelação da CONAB, à esta
é negada o provimento, por unanimidade, de acordo com o voto
do relator. Nesse sentido, a decisão foi favorável aos indígenas, mas
sem nenhuma eficácia executória. Posteriormente à esta decisão, o
MPF interpõe recurso especial ao STJ (fls. 843/856), ratificado pelo
CESAC (fls. 896/900), o qual é inadmitido (fls. 922).
Já no processo da 8ª Vara, de Imissão de Posse contra a Aldeia
Maraká’nà, após executada do mandado liminar, interpôs-se Agravo
de Instrumento contra este, o qual foi indeferido (fls. 434-495 e
fls. 478, respectivamente). Conforme, informado supra, o cumpri-
mento deste mandado foram acompanhados por muitas pessoas,
inclusive pela grande mídia, principalmente tendo em vista o uso
excessivo da força de seu cumprimento, o que gerou, ademais, a
instauração de inquérito para apuração destes fatos (fls. 520 e IPL
0151/2014, DELEFAZ/SR/DPF/RJ).
Cumpre mencionar, ainda, sobre esse processo, a posição da
Defensoria Pública da União (DPU), a qual intervém no processo
pelo apontamento de falta de assistência jurídica por parte dos indí-
genas, o que não é completamente verdade, tendo em vista que alguns
estavam representados pelo advogado Arão da Providência. No en-
tanto, tomando uma posição tutelar, já denunciada acima, protocola
petição na qual alega que todos os indígenas fizeram acordo com o
Governo do Estado do Rio de Janeiro no qual se comprometeram a
abandonar o local da Aldeia para receber um apartamento e aluguel
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 201

social pelo programa governamental “Minha Casa, Minha Vida”12.


Porém, tal alegação da DPU é falsa, na medida em que nem
todos os indígenas são ouvidos. Por meio deste ato a DPU passa por
cima da representação dos demais indígenas partes do processo que
inclusive negam tal acordo o qual contraria os interesses indígenas.
Nesse sentido, o próprio Estado do Rio de Janeiro, comprova que dos
24 réus da ação de Imissão de Posse, somente 8 deles foram beneficia-
dos com os alegados apartamentos do programa “Minha Casa, minha
Vida” (fls. 573). Motivo pelo qual, os indígenas não contemplados e
discordantes deste acordo, manifestam-se restaurando a verdade dos
fatos e manifestando seus interesses (fls. 543/547), afirmando, ainda,
que este acordo impossibilita a prática da cultura indígena. Além
disso, estes indígenas informam que parte dos indígenas que se en-
contravam na Aldeia se deslocaram face a repressão do Estado-autor,
apesar de até então, ter-lhe sido negadas a produção de provas de tal
violência, e da violação dos direitos e garantias dos cidadãos indígenas.
Como se não fosse o bastante, a DPU não somente omite que não são
todos os réus do processo que acordam com o Governo do Estado,
como pede a extinção do processo por perda de objeto baseado neste
acordo, agindo claramente contra os interesses indígenas.
Cumpre destacar que em nenhum momento, na ação de
Imissão de Posse, é aferida que o objeto da lide, o imóvel do antigo
Museu do Índio já foi objeto de sentença nos autos do processo da
Ação Civil Pública mencionada, com sentença parcialmente favorável
aos indígenas a qual atualmente é objeto da Apelação Cível (AC nº

12 “A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, ciente da decisão proferida às folhas 537 no


processo eletrônico em epígrafe, vem perante V. Ex.ª expor o que segue. Na presente data,
entramos em contato com o Cacique Tukano, que nos asseverou, conforme certidão anexada
à presente, “que todos os índios que estavam no antigo Museu do Índio já foram devida e
definitivamente realocados em imóveis do Minha Casa Minha Vida; que isso se deu em
junho de 2014, quando a própria Presidente da República Federativa do Brasil veio ao Rio
de Janeiro fazer a entrega dos imóveis; que já assinaram toda a papelada, tendo a proprie-
dade dos imóveis; que estão no Minha Casa Minha Vida localizado na Rua Frei Caneca,
441, bloco 15, Estácio de Sá.”. Não obstante, requer a V. Exª. que determine a expedição de
mandado judicial de verificação, a ser cumprido por Oficial de Justiça, para verificar se no
local ainda permanece algum indígena. Quanto à última parte do despacho de fls. 537, não há
outras provas a serem produzidas para além das constantes dos autos. Pede Deferimento. Rio
de Janeiro, 18 de maio de 2015. DANIEL MACEDO. Defensor Público Federal.”
202 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

2012.51.01.101051-4) na 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da


2ª Região, conforme parágrafo único do Art. 2º da Lei nº 7347/1985
13
. Portanto, todas as demais ações, posteriores assim como a Imissão
de Posse, que contenham a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto,
ou seja, referente a posse da Aldeia Maraká’nà, deveriam ser extintas
face prevenção determinada pelo dispositivo legal.
Sendo assim, o Estado do Rio de Janeiro se beneficia de sua
torpeza, alega falta de interesse na Ação Civil Pública ora menciona-
da e ajuíza ação contra as lideranças indígenas da Aldeia na ação de
Imissão de Posse. Há, assim, fraude na distribuição e violação ao juízo
natural. Ignora-se o julgamento da Apelação à sentença da Ação Civil
Pública já proferida em favor dos indígenas, e aguarda-se decisão da 5ª
Turma face a sentença do processo de Imissão de Posse, que possuem
o mesmo objeto, mesmo sendo alertada sobre tal fato (fls. 555/557).
Por diversas vezes foram denunciadas as ações policiais violentas
contra a comunidade que se encontrava na Aldeia Maraká’nà (vide
fls. 642 da ação de Imissão de Posse) a qual nunca tiveram resposta
positiva do Poder Judiciário ou de qualquer instituição jurídica como,
inclusive, a Defensoria Pública da União que inclusive atua neste
processo contra os interesses indígenas. Assim como as violações aos
direitos processuais no curso do processo, como o proferimento de
sentença sem citação de todos os réus, por exemplo. Ao fim, no ação
de Imissão de Posse, todos os 24 réus-indígenas foram condenados,
inclusive aqueles que acordaram com o Estado do Rio de Janeiro para
serem contemplados pelo Programa Minha Casa Minha Vida.
Face a esta sentença, parte dos réus, 5 indígenas interpõe ape-
lação civil, enquanto que tanto a DPU quanto o MPF que deveriam
resguardar os direitos coletivos dos indígenas se mantém inertes.
Apesar disto, são chamados a se manifestarem sobre a apelação,
quando passam a manifestar-se, o MPF em favor dos recorrentes
13 Lei 7347/1985: “Art. 2º As ações previstas nesta Lei serão propostas no foro do local onde
ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa. Parágra-
fo único. A propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posterior-
mente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto”.
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 203

afirmando que a “dos realocados no Programa Minha Casa minha


Vida fica evidente que somente nove dos demandados estão entre
aqueles que de fato realocados no citado programa governamental”
(fls. 764/772), denunciando, deste modo, a contrariedade da sentença
ao afirmar que a sentença parte da premissa condicional de que fosse
oferecido, em caráter definitivo, outro local ao indígenas em que fosse
possível exercer suas atividades atualmente desenvolvidas no imóvel
descrito nos autos. Sendo assim, resta claro ao MPF, após cotejar os
autos, que a informação prestada pelo Estado do Rio de Janeiro carece
de veracidade, havendo a necessidade de se providenciar diligências
no sentido de determinar o real destino de todos os indígenas que
originalmente ocupavam o imóvel em questão. Concluindo que, não
há que se falar em nulidade do processo por ausência de intervenção
ministerial, já que comprovada a atuação do órgão durante todo o
feito. Entretanto, com relação ao cumprimento efetivo das condições
estabelecidas no despacho de fls. 114/124, entende este órgão minis-
terial que o julgamento do apelo deve ser convertido em diligência a
fim de que a questão possa ser totalmente dirimida, com a definitiva
comprovação do paradeiro de todos os ocupantes da “Aldeia Mara-
canã”. A DPU, por sua vez, se manifesta novamente de modo a causar
dano aos indígenas ao reafirmar seu posicionamento em relação a
extinção do processo por perda do objeto (fls. 774).
A Ação Civil Pública transitou em julgado no dia 21 de maio
de 2017 e, a ação de imissão de posse ainda não terminou e aguarda
decisão acerca dos recursos interpostos. Os indígenas, apelantes na
ação de Imissão de Posse, face as nulidades decorrentes de violação
de direitos processuais, apresentaram reclamação disciplinar no CNJ
e ao Presidente do TRF2. Aguardam ainda a decisão de apelação civil
da ação de Imissão de Posse.

3.3. OS DESAFIOS DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS INDÍ-


GENAS DA ALDEIA MARAKÁ’NÀ
As ações acima examinadas, demonstram assim, como é
problemática a busca por efetivação dos direitos indígenas no âmbito
204 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

judicial, principalmente, quando do claro conflito de interesses pri-


vados na adequação as demandas da FIFA em detrimento dos direitos
dos povos indígenas e da patrimônio histórico e cultural. Os desafios
da efetivação dos direitos indígenas revelados nesses processos, assim
como em muitos outros, se colocam, em suma, no afastamento ins-
titucional à cosmovisão indígena acerca do direito pelos órgãos de
proteção dos direitos humanos e coletivos como da OAB, do MPF, da
DPU e da FUNAI, nas violações a direitos processuais e materiais que
diminuem a eficácia desses direitos em privilégio da defesa dos interes-
ses privados, principalmente, da propriedade privada. Tais desafios se
colocam, ainda, face às ações violentas do Estado com o uso da força
policial e pela ausência de políticas públicas e de ações em concreti-
zação dos direitos indígenas. Além disso, estes dois últimos desafios
abrem caminho para uma situação de precariedade e vulnerabilidade
dos povos indígenas, colocado pelo próprio Estado através dos quais
são impostas acordos em clara violação e esvaziamento dos direitos
indígenas. Todavia, cientes da importância da defesa de seus direitos,
a Aldeia Maraká’nà permanece no seu território desde sua retomada
em 2006 resistindo de forma auto-organizada na concretização destes
através de atividades de promoção da cultura indígena e de seus sa-
beres, reunindo etnias diversas. Portanto, os desafios se resumem na
concretização de legislação a qual resta como mera promessa, vide a
expedição do Decreto 44.525/2013 que afeta o prédio existente na
Aldeia à instalação de um Centro de Referência da Cultura dos
Povos Indígenas/Universidade Indígena, mas que até a presente
data permanece em estado de abandono pelo Estado e que já es-
taria ruído se não fosse a mobilização da comunidade local na sua
preservação e ativação na medida de suas capacidades.

4. A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS INDÍGENAS E O


CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO
Nesse sentido, não há como afastar da efetivação dos direitos
indígenas de natureza coletiva o conflito com os interesses privados
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 205

na consecução de projeto políticos e econômicos como colocados in-


cialmente de forma genérica em relação aos direitos prestacionais. O
caso da Aldeia Maraká’nà, é um bom exemplo, porque não só monstra
como a ideologia neutra do judiciário somente fomenta a violência do
Estado embargando a efetivação dos direitos indígenas, como sequer
se adentra na fundamentação acerca de tais direitos, se atendo à uma
normativa civilística e administrativa completamente esvaziada da
cosmovisão indígena. O que poderia ser contornado, dentre outras
razões, por uma previsão constitucional na qual os direitos indígenas
fossem atravessados, ou seja, que não se mantivessem isolados em um
capítulo, mas pulverizados nas normativas a que se referem, por exem-
plo, todas as esferas de poder (legislativa, executiva e judiciária). Esse
atravessamento dos direitos indígenas na lei constitucional é observa-
do nas legislações constitucionais de países como Bolívia (2006-2009)
e Equador (2008) que perspectivam assim, maior efetivação desses
direitos, que comportam assim uma fase constitucional própria do
modelo constitucional latino americano que se examinará a seguir.
A Constituição Brasileira de 1988 integra o movimento cons-
titucionalista latino-americano no horizonte do constitucionalismo
pluralista (Uprimny, 2011) de rupturas com o constitucionalismo
liberal monista do século XIX, assim como, do constitucionalismo
social integracionista do século XX, questionando, dessa maneira, o
fato colonial que lhes subjazem (Fajardo, 2011). Nesse sentido e sob a
perspectiva da proteção dos direitos indígenas, o movimento constitu-
cionalista na América Latina apresenta três fases. Numa primeira fase,
do constitucionalismo liberal, importado pelas elites colonialistas, há
completa exclusão dos povos indígenas como sujeitos de direito cate-
gorizados como povos selvagens e sofrerem um projeto de civilização
ao modo eurocêntrico de sujeito de direito. Numa segunda fase, do
constitucionalismo social, passa-se a questionar o assimilacionismo e o
individualismo da fase liberal quando do reconhecimento dos direitos
coletivos, direitos sociais e a ampliação das bases da cidadania. Porém,
tal reconhecimento que se perfaz acerca da diversidade cultural das
comunidades indígenas e os direitos coletivos a terra, é marcado por
206 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

políticas indigenistas integracionalistas, ou seja, de integração dos


indígenas ao Estado-Nação, ao Mercado e ao Direito monista. A ter-
ceira fase por sua vez, rompe com a identidade do Estado Nação, do
monismo jurídico, em reconhecimento do pluralismo jurídico e da
cultura indígena, conhecida por constitucionalismo pluralista iden-
tificada no final do Século XX até hoje. Este constitucionalismo é
marcado pelo questionamento progressivo dos elementos centrais da
configuração e definição dos estado republicanos latino americanos,
da herança colonial indígena, semeando um projeto descolonizador
(Fajardo, 2011: 2). O constitucionalismo pluralista é diferenciado,
ainda, em: (i) multicultural; (ii) pluricultural ou plurinacional.
O constitucionalismo pluralista multicultural é justamente
aquele adotado pela Constituição de 1988. Neste, é desenvolvido
o conceito de diversidade cultural e reconhece-se a configuração
multicultural (Santos, 2003; Uprimny: 112-113) e multilíngue da
sociedade, o direito a identidade cultural (individual ou coletivo)
e alguns direitos indígenas específicos. As constituições desta fase,
contudo, como é o caso da Constituição de 1988, perpassam por con-
textos de implementação de políticas neoliberais face a globalização
(Fajardo, 2011: 4), momento em que ao Estado é conferido maior
papel social (ampliação dos direitos sociais), em que há flexibilização
do mercado e sua abertura para transnacionais. Estas últimas se ins-
talam sobretudo em territórios indígenas para realização de extração
de minério para o mercado exterior, dando lugar a novas formas de
expulsão territorial, como ocorreu no Brasil posteriormente a Cons-
tituição de 1988 conforme assinalado inicialmente. Assim sendo, a
simultânea adoção de planeamento neoliberais e os direitos indígenas,
característicos deste período constitucional no qual se promulga a
Constituição de 1988 no Brasil, teve por consequência prática de neu-
tralização dos novos direitos conquistados. Realidade esta verificável
no Brasil, desde anos 80, assim como outros fatores, como a violência
interna, ações de poderes locais entre outros (Sieder, 2011: 314).
Desse modo, verifica-se que a incorporação constitucional de
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 207

novos direitos e competências indígenas e a ratificação de tratados de


direitos humanos como a Convenção de 169 da OIT característicos
desta fase multicultural (Sieder, 2011: 307), apesar de reconhecer
tais direitos, não apresenta correspondentes mecanismos institucio-
nais para torná-los efetivos. Estes câmbios constitucionais deixaram
pendentes uma tarefa incompleta e que demanda revisão de todo
o direito constitucional, administrativo, civil, penal, etc., para dar
conta dos novos direitos e atribuições públicas reconhecidos os povos
indígenas e coletivos. (Fajardo, 2011, Id.). Razão pela qual os
direitos conquistados pela constituinte de 1987 em matéria indígena
dão lugar a um sem número de disputas legais e política que, entre-
tanto, restam sem resultados significativos no plano de sua efetivação.
Dessa maneira, o legislativo segue reclamando atribuição soberana
para dar leis sem estar condicionado ou limitado sequer pelo direito
de consulta dos povos indígenas. Até agora, nem as leis, nem as cortes
tem logrado em clarificar a extensão deste direito, como foi visto
nos processos judiciais supradestacados. O mesmo passa com o tema
de jurisdição indígena, ou os conflitos em torno a interpretação dos
direitos humanos. Aqui há grandes avanços, mas também perguntas
pendentes. (Fajardo, 2011: 5; Uprimny, 2011: 133).
Não obstante, a afirmação do valor da diversidade cultural e da
necessidade de políticas pública inclusiva que tenham em conta esta
diversidade, esta acaba por ser usada muitas vezes de forma limitante
aos direitos indígenas. Não há, em contrapartida, direito ao próprio
direito, ou seja, não é conferida de forma concreta e explícita a livre
determinação do povo indígena para criação e aplicação de seus pró-
prio direito, mas em uma avaliação externa da diversidade cultural.
Isto implica no reconhecimento característicos nos precedentes judi-
ciais brasileiros, da determinação externa – por órgãos indigenistas ou
pelos próprios juízes, não indígenas – de dizer quem são os indígenas,
ao invés de conferir-lhes autonomia identitária, ou seja, sua autodeter-
minação14 e servindo disto para retirar-lhe ou restringir seus próprios

14 Discorda-se, neste ponto, da interpretação conferida por José Afonso da Silva (2008: 855-
208 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

direitos. Há, neste sentido, uma tendência, inclusive, em conferir a


estampa de indígena àqueles que mais se adequam aos estereótipos
preconceituosos, de maior conservação tradicional da cultura, negan-
do-lhes sua própria historicidade.
Por este motivo, cogitou-se uma mudança nesse panorama,
com o rompimento do paradigma de Estado-nação, com a identidade
Estado-Direito ou com o monismo jurídico, realizado pelas Cons-
tituição da Bolívia e do Equador, onde os indígenas alcançam um
status nações originárias em ampliação de sua cidadania e de sua
autodeterminação. Essas Constituições incorporam, dessa forma, um
novo e ampliado rol de direitos coletivos que não somente reconhece
o pluralismo jurídico como estabelecem uma autonomia jurídica e
eleitoral indígena (Sieder, 2011).
Sendo assim, no Estado Plurinacional, os indígenas fazem parte
do pacto e não são determinados externamente para o reconhecimen-
to de seus direitos, sendo estes constituídos pelos próprios indígenas
no exercício de sua autonomia e que com outros povos pactuam entre
si a definição do novo modelo de Estado e as relações entre os povos
que os formam. Rompe-se, desse modo, com a política indigenista
tutelar, de vulneração dos povos em detrimento de sua autodetermina-
ção. O constitucionalismo plurinacional representa, assim, um marco
da cosmovisão indígena e uma oposição do sistema homocêntrico
ocidental. As Constituições provenientes destes modelos constitu-
cionais apresentam um explícito projeto decolonial (Sieder, 2011:
308; Uprimny, 2011: 118) em afirmação do princípio do pluralismo
jurídico, da igualdade da dignidade dos povos e de seus culturas, e da
interculturalidade (Fajardo, 2011: 9).
Para tanto, os direitos indígenas neste modelos constitucio-
nais atravessam todo o texto constitucional, ou seja, não restam
856) que entende que o art. 231 da CF/88 prevê a auto-identificação dos povos. Em que pese o
entendimento deste autor, considera-se necessário considerar a ausência de sua concretização
na realidade na qual os povos indígenas continuam submetidos ao reconhecimento enquanto
tal pela FUNAI, responsável pela imissão da identidade indígena colocada muitas vezes como
condição para serem contemplados por políticas públicas que lhe são destinadas, como é o
caso da cota para ingresso no ensino superior público.
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 209

isolados em um capítulo da Constituição – como ocorre na Consti-


tuição de 1988 -, mas encontram-se previstos nas disposições acerca
dos poderes do Estado com que fazem colisão nos estados pluralistas
multiculturais. Ou seja, são previstos de modo concreto, levando a
sério a cosmovisão indígena e onde ela pode conflitar com o modelo
unificador do Estado-nação, como por exemplo, os possíveis confli-
tos de competência entre a auto-organização indígena e os poderes
legislativo, executivo e judicial.
Nesse sentido, cumpre destacar a previsão de uma jurisdição
indígena independente, de aplicação especial (não excepcional) aos
povos indígenas. Em outras palavras, os povos indígenas nestas cons-
tituições possuem a garantia de sua jurisdição própria que se revela
hierarquicamente igual a jurisdição comum e cuja aplicação não se
faz de modo excepcional. Havendo, inclusive, a garantia de igual
representação no tribunal constitucional entre indígenas e não-in-
dígenas para solução de conflitos entre estas jurisdições. Por fim, no
que atine ao sistema político, é garantido aos povos indígenas que
estes estabeleçam seus próprios procedimentos eleitorais (Fajardo,
2011: 10; Uprimny, 2011: 119-120).
Portanto, não se nega que no plano jurídico-formal, a
Constituição de 1988 foi vitoriosa em romper com o regime do
ocultamento e da invisibilidade da diversidade étnico-culturais dos
povos indígenas com o reconhecimento de suas organizações so-
ciais, usos, costumes, tradições, direito ao território e capacidade
postulatória estabelecendo um marco decolonial. Entretanto, reco-
nhecer, somente no plano formal, a natureza plural e multicultural
que conforma a sociedade brasileira não é suficiente. É necessária
a efetivação dos direitos diferenciados e a construção de espaços de
lutas pelos direitos mediados pelo diálogo intercultural.
Portanto, mais um desafio na efetivação de tais direitos, perfa-
zem a construção deste diálogo intercultural para construção de uma
nova cidadania indígena, diferenciada, multicultural, dinâmica, cria-
tiva e participativa. Diálogo este que permita construir e reconstruir
210 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

os direitos diferenciados indígenas e, como consequência, criar,


também, contextos jurídicos, sociais e políticos descolonizados,
plurais e heterogêneos onde a convivência democrática possibilite
o desenvolver das ações da vida livre de opressão e exclusão. Para
tanto, é necessário ainda construir ferramentas para a hermenêu-
tica e uma doutrina pluralista, a fim de salvar suas limitações ou
inconsistências e garantir o princípio do pluralismo igualitário e o
projeto descolonizador se possa realizar nas normas secundárias, na
jurisprudência e nas políticas públicas (Fajardo, 2011: 12).

5. CONCLUSÃO
Malograda as tentativas de derrubada das iniciativas de inclusão
de matéria acerca da proteção dos povos indígenas, a Constituição
de 1988 resulta, assim, em um texto progressista em relação às nor-
mativas anteriores, reconhecendo os direitos dos povos indígenas a
“organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os di-
reitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (art.
231). Por outro lado, não chega a romper completamente com a he-
rança colonial, através de um projeto decolonial como estabeleceram
alguns países da América Latina, com a constituição e reconhecimento
de um Estado Plurinacional. Os direitos dos povos indígenas resta-
ram, assim, a mercê de todas as limitações impostas e construídas em
torno dos direitos prestacionais e sua insuficiência normativa para
plena efetivação do direito constitucional a que se refere.
Nesse sentido, ao perpassar pelo exame da doutrina consti-
tucionalista, verificou-se como determinados conceitos no âmbito
dos direitos prestacionais, como da reserva do possível, representam
desafios a efetivação dos direitos indígenas. Nesse sentido, a constru-
ção doutrinária acerca dos direitos prestacionais se constrói alheia
a problemática da efetivação dos direitos indígenas. Apesar disto,
reconhece-se como as conjunturas políticas e econômicas impactam
a efetivação de tais direitos que se dá em razão de sua insuficiência
normativa a qual permite, por sua vez, que tais direitos permaneçam
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 211

submetidos a ideologias que subjazem tais conjunturas e que se


desenvolvem sem o diálogo com a cosmovisão indígena. Por conse-
guinte, tais limites ou restrições colocadas a efetivação dos direitos
indígenas acabam por se refletirem tanto no plano jurisdicional,
quanto no legislativo ou no executivo.
Nos processos da Aldeia Maraká’nà, observou-se como tais
conjunturas impactam a efetivação dos direitos indígenas e como o re-
conhecimento constitucional da diversidade cultural representada por
tais direitos se revela insuficiente para sua efetivação no caso concreto.
Para além da ausência da integração da cosmovisão indígena durante
o curso de tais processos judiciais, observa a completa invisibilidade
indígena até mesmo pelos órgãos que possuem a prerrogativa de sua
defesa, como MPF, FUNAI e DPU. Somado à estes fatores, os povos
indígenas, face aos interesses econômicos de grande monta com que se
deparam – exploração econômica do solo e seu uso privado envolven-
do empreiteiras, mineração, madeireiras e latifúndios – acabam tendo
que enfrentar ainda o desafio de efetivarem seus direitos face a grandes
esquemas de corrupção que costumam envolver, ainda, o abuso de
autoridade com o uso de violência policial. A invisibilidade como
desafio perpassa, ainda, a ausência de políticas públicas direcionadas
aos interesses destes povos, que acabam em estado de marginalização
e precariedade que somente os tornam mais vulneráveis a acordos que
de fundo lhes são prejudiciais e não contemplam a cultura indígena.
Por fim, no plano constitucional, destacou-se, ainda, os desafios
apresentados diante da ausência de uma transversalidade dos direitos
indígenas no texto constitucional, característico do constitucionalismo
plurinacional. deixa vulnerável a proteção e garantia constitucional
desses direitos. Transversalidade, esta, que permeia a ruptura com os
modelos constitucionais anteriores, principalmente, os importados ou
impostos sob o paradigma colonialista. Assim sendo, coloca-se como
desafio, resumidamente, a reforma constitucional que dê amplitude
aos direitos indígenas e venha a afirmar o princípio do pluralismo
jurídico, da igualdade da dignidade dos povos e de seus culturas, e
212 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

da interculturalidade. Em outras palavras, que confira direitos que


reconhecem sua ampla cidadania indígena, ou seja, como sujeito de
direito e políticos capazes de autodetermina-se e, assim, de realizar
suas próprias organizações políticas e seu próprio sistema jurídico.
Verifica-se portanto que os desafios a efetivação dos direitos
indígenas percorrem as três esferas do poder, legislativo, executivo
e judiciário, assim como, as compreensões hermenêuticas e doutri-
nárias acerca deles. Assim sendo, para dar fim a opressão e exclusão
sofrida pelos povos indígenas no Brasil e garantir a plena eficácia de
tais direitos, é necessário partir de um projeto decolonial que obje-
tive o diálogo intercultural entre a sociedade brasileira. Conclui-se,
assim, com uma proposição de que os 30 anos da Constituição sejam
objeto não somente de comemoração e de dispendiosos elogios a
Constituição, mas uma revisão crítica de seu conteúdo e de sua
aplicabilidade em todas as esferas de poder, principalmente no que
se refere aos direitos indígenas.

REFERÊNCIAS
1o Relatório do Comitê Estadual da Verdade: O Genocídio do povo Waimiri-Atroari. ., de
outubro de 2012. Manaus: Comitê da Verdade, Memória e Justiça do Amazonas. Disponí-
vel em: http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/. Acesso em: 20/4/2018.
ALBUQUERQUE, M. A. D. S. Indígenas na Cidade do Rio de Janeiro. Cadernos do
Desenvolvimento Fluminense, v. 0, n. 7, p. 149 – 167, 2015.
ANDRADE, J. C. V. DE. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 5a
ed. Coimbra: Almedina, 2012.
ÁVILA, H. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13a ed.
São Paulo: Malheiros, 2012.
BARCELLOS, A. P. DE. A eficácia jurídica dos Princípios Constitucionais. 3a ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2011.
CANOTILHO, J. J. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. ed. Coimbra:
Almedina, 2003.
CURI, M. V. O Direito Consuetudinário dos Povos Indígenas e o Pluralismo Jurídico.
Espaço Ameríndio, v. 6, n. 2, p. 230, 2012.
DALLARI, D. Índios, cidadania e direitos. , 1983. São Paulo: Brasiliense.
DALLARI, D. Reconhecimento e Proteção dos Direitos dos Índios. Revista de informação
KARINA ALMEIDA GUIMARÃES PINHÃO - ARÃO DA PROVIDENCIA ARAÚJO FILHO 213

legislativa, v. 28, n. 111, p. 315 – 320, 1991.


DANTAS, F. A. DE C. Direito e povos indígenas no Brasil. In: L. AVRITZER (Org.);
Dimensões políticas da justiça. p. 383 – 397, 2013. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
FAJARDO, R. Z. Y. El horizonte del constitucionalismo pluralista: del multiculturalismo
a la descolonización. In: C. A. Rodríguez Garavito (Org.); El derecho en América Latina:
un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI, Derecho y política. p. 139 – 159, 2011.
Buenos Aires, Argentina: Siglo Veintiuno Editores.
FERNANDES, P. Povos indígenas, segurança nacional e a Assembleia Nacional Cons-
tituinte: as Forças Armadas e o capítulo dos índios da Constituição brasileira de 1988.
Revista InSURgência, ano 1., v. 1, n. 2, p. 142 – 175, 2016.
FILHO, C. S. Monopólio Colonial e Subdesenvolvimento. Direitos humanos, democracia
e república homenagem a Fábio Konder Comparato, 2009. São Paulo: Quartier Latin.
GARGARELLA, R. Pensando sobre la reforma constitucional en América Latina. In: C.
A. Rodríguez Garavito (Org.); El derecho en América Latina: un mapa para el pensamiento
jurídico del siglo XXI, Derecho y política. p. 87 – 108, 2011. Buenos Aires, Argentina:
Siglo Veintiuno Editores.
GRAMSCI, A. Quaderni del Carcere. Turim: Einaudi, 1977.
GRAU, E. R. A ordem econômica na Constituição de 1988: (interpretação e crítica). 15a ed.
São Paulo: Malheiros, 2012.
LISBOA, J. F. K. Etnogênese e movimento indígena: lutas políticas e identitárias na vira-
da do século XX para o XXI. INTERETHNIC@- Revista de Estudos em Relações Interétni-
cas, v. 20, n. 2, p. 68 – 86, 2017.
LOPES, D. B. O direito dos Índios no Brasil: a trajetória dos grupos indígenas nas Cons-
tituições do País. Espaço Ameríndio, v. 8, n. 1, p. 83, 2014.
LOPES, D. B. A presença do invisível na Assembléia Nacional Constituinte: um estudo
sobre a participação indígena (1987‐1988). Hist. R., Goiânia, v. 22, n. 1, p. 71 – 87,
2017.
MELLO, C. A. B. DE. Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social. Revista
de Serviço Público, v. 39, n. 4, p. 63 – 78, 1982.
MOISÉS, C. P. O exercício do direito à verdade no Brasil Pós-ditadura Militar. Direitos
humanos, democracia e república homenagem a Fábio Konder Comparato. p.269 – 276,
2009. São Paulo: Quartier Latin.
PECHINCHA, M. T. S. O ataque aos direitos indígenas no Brasil atual: a dimensão ima-
ginária da tensão entre assimilação e admissão da diferença indígena. Espaço Ameríndio,
v. 10, n. 1, p. 195, 2016.
PILATTI, A. A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e
regras do jogo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.
SANTOS, B. DE S. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos funda-
214 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

mentais na perspectiva constitucional. 11a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
SARMENTO, D. Direitos Fundamentais e relações privadas. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006.
SIEDER, R. Pueblos indígenas y derecho(s) en América Latina. In: C. A. Rodríguez Ga-
ravito (Org.); El derecho en América Latina: un mapa para el pensamiento jurídico del siglo
XXI, Derecho y política. p. 303 – 321, 2011. Buenos Aires, Argentina: Siglo Veintiuno
Editores.
SILVA, E. Xukuru: A conquista do posto. O período do SPI entre os Xukuru do Ororubá.
Revista ANTHROPOLÓGICAS, 14., v. vol.21, n. 2, p. 265 – 304, 2010.
SILVA, J. A. DA. Curso de direito constitucional positivo. 31a. ed., e atualizada até a Emen-
da constitucional n. 56, de 20.12.2007 ed. São Paulo, SP: Malheiros Editores, 2008.
SILVA, V. A. DA. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2a, 3a tira-
gem ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.
STRECK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da constru-
ção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
TAYLOR, C. Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
UPRIMNY, R. Las transformaciones constitucionales recientes en América Latina: ten-
dencias y desafíos. In: C. A. Rodríguez Garavito (Org.); El derecho en América Latina: un
mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI, Derecho y política. p. 109 – 137, 2011.
Buenos Aires, Argentina: Siglo Veintiuno Editores.
URFALINO, P. La décision par consensus apparent. Nature et propriétés. Revue euro-
péenne des sciences sociales. European Journal of Social Sciences, , n. XLV-136, p. 47 – 70,
2007.
URFALINO, P. The Rule of Non-Opposition: Opening Up Decision-Making by Con-
sensus: The Rule of Non-Opposition. Journal of Political Philosophy, v. 22, n. 3, p. 320
– 341, 2014.
VIVEIROS DE CASTRO, E. DE. Perspectival antroplogogy and the method of control-
led equivocation. Tipití, Oxford, v. 2, n. 1, p. 3 – 22, 2004.
YOUNG, I. M. Justice and the politics of difference. Princeton, N.J: Princeton University
Press, 1990.
A PRIMEIRA CONDENAÇÃO DO BRASIL NA
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS: (RE)PENSANDO AS POLÍTICAS
PÚBLICAS DE SAÚDE MENTAL EM CRISE
Aluísio Ferreira de Lima1
Maria Vânia Abreu Pontes2

1. INTRODUÇÃO
Esta pesquisa procura discutir, no contexto de comemoração
dos 30 anos da Constituição cidadã, a inversa internação psiquiá-
trica e a perversa morte de Damião Ximenes Lopes, que levou o
Brasil a ser condenado pela primeira vez na Corte Interamericana
de Direitos Humanos, impulsionando assim, a criação de políticas
públicas de saúde mental.
Damião Ximenes Lopes foi internado na Casa de Repouso
Guararapes, localizada no Bairro Dom Expedito, na cidade de Sobral
– CE. É importante destacar que durante a infância e adolescên-
cia Damião não teve nenhum sinal de alteração de comportamento.
Somente, em 1988, quando completa 17 anos de idade, começa a
apresentar os primeiros sinais de alteração em seu comportamento,
1 Pós-Doutor, Doutor e Mestre em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo – PUCSP. Especialista em Saúde Mental pela Universidade de
São Paulo – USP. Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Regional de Psicologia
11a. Região. Professor Associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal
do Ceará – UFC. Bolsista de Produtividade do CNPq. Contato: (85) 96196343. E-mail:
aluisiolima@hotmail.com
2 Doutoranda em Psicologia (Universidade Federal do Ceará). Mestre em Psicologia (Univer-
sidade Federal do Ceará). Especialista em Literatura (Universidade Estadual Vale do Acaraú).
Graduada em Letras/Português (Universidade Estadual Vale do Acaraú). Bacharel em Direito
(Faculdade Luciano Feijão). Professora do Curso de Direito do Centro Universitário INTA.
Advogada OAB/CE. Contato: (88) 99262013. E-mail: vaniapontes@yahoo.com.br
216 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

depois da separação do seu irmão gêmeo, de um traumatismo crâ-


neoencefálico sofrido acidentalmente no colégio e de castigos físicos
impostos por seu pai (PROCESSO INTERNACIONAL DO CASO
DAMIÃO XIMENES LOPES, 2006).
Damião passou a sofrer com um transtorno mental de origem
orgânica, proveniente de alterações no funcionamento do cérebro. De
tal modo que, os primeiros sintomas da doença mental foram sonam-
bulismo e episódios em que parecia estar fora de si ou desorientado.
Depois teve períodos depressivos, em que chorava, ficava tímido e não
conversava sobre seus próprios sentimentos. Os problemas envolven-
do sua saúde mental foram sendo agravados, o que resultou em crises
ocasionais. Em consulta, um psiquiatra indicou que os seus sintomas
enquadravam-se dentro de uma situação geral conhecida em Psiquia-
tria, como “quadro psicótico”, que causa habitualmente sofrimento e
isolamento da pessoa de seus padrões normais de comportamento. Em
virtude deste diagnóstico, o jovem adquire a “identidade pressuposta
de doente mental”, vindo a passar por três internações psiquiátricas na
Casa de Repouso Guararapes: a primeira, em 1995 (período de dois
meses); a segunda, em 1988 (período de uma semana); e a terceira,
em 1999 (quatro dias) (PONTES, 2015).
A terceira internação de Damião foi realizada no dia 1° de ou-
tubro de 1999, o jovem estava ciente da necessidade de tratamento,
tinha 30 anos de idade, perfeito estado físico e sem nenhuma lesão
externa. O hospital Casa de Repouso Guararapes, que era uma ins-
tituição privada recebeu Damião como paciente do Sistema Único
de Saúde, pois esta instituição mantinha convênio com o Estado.
No dia 4 de outubro de 1999, o referido paciente fora desinternado
morto, com marcas de lesões na cabeça causadas por golpes com
instrumentos ou punhos. Estas lesões traumáticas foram definidas
pelos peritos como originárias de socos, pedradas ou pontapés. O
corpo de Damião apresentava equimoses, escoriações e hematomas,
sugestivos de traumatismo, e que foram posteriormente, esclarecidos
como causados por objetos contundentes.
ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA - MARIA VÂNIA ABREU PONTES 217

A internação não primou pela vida do paciente e pelos direitos


fundamentais garantidos na Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 (CRFB), na verdade, exprimiu seu contrário: a
sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição
numa “relação de abandono”. Embora a CRFB seja tida como um
marco de reconhecimento da saúde na história do Brasil, sendo instru-
mento fundamental ao processo de consolidação da democratização
da saúde, como um direito humano, infelizmente, há na morte de
Damião fortes indícios de que a gestão da saúde pelo avesso encontra
sustentação num persistente “estado de exceção”. E esse “estado de
exceção” mina completamente as bases do Estado Democrático de
Direito, proclamado pela Constituição de 1988.
Com base no exposto percebe-se que existiu uma simbiose entre
o inverso de uma internação psiquiátrica, que encontra sustentação
em um laudo de causa morte “quase inverso”, impedindo assim que
a Justiça Penal reconheça como criminosos os autores da violência
que deixaram marcas no corpo de Damião Ximenes Lopes. Tais fatos
aparecem sistematicamente a confirmar a teoria do contrário de um
estado de normalidade, discutida pelo italiano Giorgio Agamben, que
denuncia a existência de um “estado de exceção” aliado à esperança
de impunidade na sociedade contemporânea.
A Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
no caso Damião Ximenes, assinala que as pessoas com transtorno
mental estão sujeitas a discriminação e fortes estigmas, construindo
um grupo vulnerável às violações de direitos humanos. Damião
Ximenes sofreu perversas formas de maus-tratos, principalmente
por ser um cidadão com transtorno mental quando comparado a
qualquer outro indivíduo vulnerável dentro da sociedade brasileira.
Isso mostra que os desdobramentos do caso oferece a hipótese de
que sem a intervenção da Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos as reformas no campo das políticas públicas de Saúde Mental e
do marco legal da Reforma Psiquiátrica teriam caminhado a passos
bem mais lentos ou nem sequer tivessem sido implementados nos
218 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

últimos anos (LIMA; PONTES, 2015).


A sentença mencionada acima solicita que Brasil cumpra
sua obrigação de desenvolver de forma permanente programas de
formação e capacitação para todas as pessoas vinculadas ao campo
da saúde mental (técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos e
psicólogos), levando em consideração os princípios que devem reger
o trato das pessoas que padecem com transtorno mental, conforme
os estatutos internacionais.

2. APONTAMENTOS TEÓRICOS PRELIMINARES


Nos últimos dez anos, distintos pesquisadores da vertente da
Psicologia Social Crítica brasileira desenvolvem pesquisas orientadas
pela interpretação e operação do projeto político e epistemológico
de uma Psicologia Social histórica, proposta pela pesquisadora Sílvia
Lane (1995a). Leva-se em consideração a abordagem sócio-histórica,
cuja miragem epistêmica encontrou no marxismo algumas das pos-
sibilidades necessárias para se pensar o “homem em movimento”3,
sem reduzi-lo a categorias sociais ortodoxas. Sob esta ótica, assinala
Silva Lane (1995a, p.55):
É de fundamental importância precisarmos as bases epistemológicas
que norteiam os nossos estudos: partimos de uma postura materialis-
ta-histórica e dialética, o que implica uma concepção do ser humano
como produto e produtor da história [...].
Essa percepção metodológica destacada acima marca aqui o
presente objeto de estudo, visto que sua interpretação do materia-
lismo histórico articula de forma construtiva as ações políticas do
homem com o processo histórico de produção do conhecimento
em Psicologia Social.
Para que se possa ter uma ideia dos impactos dessa discussão,

3 3. Em Silva Lane (1995), essa expressão refere-se ao homem enquanto agente constituído e
constituidor da própria história e da sociedade, a qual pertence. Aluísio Lima (2010b) com-
plementa essa perspectiva laneana ao reforçar que esse agente é um sujeito titular de direitos
na sociedade contemporânea.
ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA - MARIA VÂNIA ABREU PONTES 219

torna-se fundamental ressaltar seu alcance nacional e internacional,


sem dúvida, sua especial contribuição para se (re)pensar alguns dos
avanços da Reforma Psiquiátrica no Brasil, levando em consideração
sobretudo: questões judiciais; as violações dos Direitos Humanos
dos sujeitos com transtornos mentais; as políticas públicas de aten-
ção em saúde mental; e a estrutura social excludente/inclusiva. Ao
lado destas questões discute-se a saúde mental como direito humano
fundamental, que ainda precisa da intensificação dos movimentos
sociais, das práticas libertárias e da boa vontade política, para que os
estigmas derivados do antigo imaginário social da loucura possam
ser combatidos por equivalerem ao “sofrimento ético-político da
dialética exclusão/inclusão” (SAWAIA, 2004a); resignificados pelas
políticas públicas de reconhecimento perverso (LIMA, 2010b), que
incluíram Damião na Casa de Repouso Guararapes, mas ao mesmo
o excluíram do mundo da vida.
Nesse caso, a demarcação do campo epistêmico em geral, das
ciências humanas e da Psicologia Social Crítica, em particular, con-
sidera a complexidade do objeto de estudo, bem como os desafios
teóricos e jurídico-políticos-sociais nele implicados para produção
de um “saber psicológico e jurídico”, preocupado com situações-li-
mites que ainda atingem pessoas com transtornos mentais e questões
sócio-políticas nacionais. Assim sendo, as formas de organização da
produção de conhecimento no campo da Psicologia Social e do Di-
reito partem de realidades diversas que interferem na vida humana.
Por essa razão, adota-se uma metodologia de caráter interdisciplinar
que se processa simultaneamente na teoria e nas investigações em-
píricas do caso concreto registrado nos processos judiciais do caso,
onde o campo das relações humanas é sempre interpretado a partir
das problemáticas da contemporaneidade, sob o princípio episte-
mológico da unidade entre teoria e prática.
É dentro do materialismo histórico e da lógica dialética que vamos
encontrar os pressupostos epistemológicos para reconstrução de
um conhecimento que atenda à realidade social e ao cotidiano de
cada indivíduo e que permita uma intervenção efetiva na rede de
220 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

relações sociais que define cada indivíduo – objeto da psicologia


social. (LANE, 2004b, p.16)
Nesse sentido, é de fundamental importância o apontamento
dos aspectos da proteção do direito humano à saúde com foco na
saúde mental, à luz do aparato legal de proteção nacional e interna-
cional, que reconhecem a singularidade e a integridade dos sujeitos
com transtornos mentais, titulares de direitos. Evidentemente, os
impasses na aplicabilidade desse direito geram violações, o que exige
tutela jurisdicional do Estado, bem como de órgãos internacionais de
proteção dos direitos humanos.
O campo epistêmico da Psicologia Social Crítica, conjugado
com a orientação teórico-metodológica de Aluísio Lima (2010b), abre
espaço para se trabalhar a gama de possibilidades de diálogos possíveis
entre a Psicologia Social Crítica e outras áreas do saber, sem cair nas
armadilhas da produção cientificista e da compulsão classificatória de
determinadas opções metodológicas.
A perspectiva teórica que norteia este estudo insere-se na
Psicologia Social, sob o marco teórico da Psicologia Crítica em diá-
logo com o Direito, a fim de progredir com um estudo, centrado
na realidade brasileira e, ao mesmo tempo, participante do debate
internacional, por meio da: produção crítica e difusão do conhe-
cimento científico sobre o caso Damião Ximenes. Trata-se de uma
proposta que contribui para a superação das contradições existentes
no Positivismo, desenvolvendo em torno de questões contemporâ-
neas, uma metodologia de pesquisa com bases materialista/histórica.
Além disso, concebe-se o homem como um ser produzido, que se
metamorfoseia sob condições materiais e históricas dadas, sendo,
essencialmente social (CIAMPA, 2009a [1987]).
Aluísio Lima (2012d) assinala que a Psicologia Social possui
bases histórico-políticas, o que possibilita criticar o planejamento de
tecnologias de manutenção do estado de exceção, no qual o dissonan-
te, a pobreza, a fome, o descontentamento são concomitantemente
excluídos e capturados sob novas formas de dominação, mais sutis
ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA - MARIA VÂNIA ABREU PONTES 221

e alinhadas aos ditames capitalistas. Por meio dessas bases históri-


co-políticas, sente-se a necessidade de “intercambiar experiências”
(BENJAMIN, 1994, p.197). O intuito é produzir uma Psicologia
Social teoricamente plural, preocupada com a realidade da saúde
mental brasileira e, ao mesmo tempo, que possa apresentar o desen-
volvimento da sociedade, evidenciando as formas contemporâneas de
políticas de gestão da antiga engrenagem psiquiátrica brasileira ainda
manifesta na sociedade contemporânea, sob a forma de discursos e
práticas de reconhecimento perverso (LIMA, 2010a).
Dessa forma, discute-se valores universais de proteção à pessoa,
o que revela a relativização e flexibilização da soberania do Estado,
como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos em hospitais
psiquiátricos brasileiro. O próprio processo de incorporação do direito
humano à saúde mental no Brasil tomou por base: a Constituição de
1988, a luta por Justiça em um caso particular de violação aos direitos
de um sujeito com transtorno mental, bem como seu impacto no
marco legal da Reforma Psiquiátrica e da criação de políticas públicas
de saúde mental em âmbito nacional.
Assim, os caminhos trilhados para concepção desse objeto de
estudo perseguem a ideia da proteção ao direito humano à saúde
mental em ação, para que as relações humanas sejam intermedia-
das cotidianamente por atuações transformadoras, emancipatórias
e libertárias. Isso tudo dialoga com a discussão levantada por Lima
(2010a) a respeito da persistência da hegemonia psiquiátrica na as-
sistência à saúde mental, que evidencia a necessidade de análise
crítica da realidade a que estão inseridos os indivíduos com sofri-
mento mental. Afinal, numa sociedade em que as vias institucionais
garantidoras de direitos dificultam a exigibilidade destes, o surgi-
mento de novos tipos de opressão passam a ser naturalizados pelas
pessoas e despercebidos pelo controle do Estado Democrático de
Direito, surgindo um novo “estado de exceção”. Como diz Hannah
Arendt (2004, p.9): “aqueles que escolhem o mal menor esquecem
muito rapidamente que escolheram o mal”.
222 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

À luz das obras “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua” e


“Estado de Exceção”, do filósofo italiano Giorgio Agamben (2004a),
(2008b), percebe-se o quanto as normas são suspensas nos lugares asi-
lares, onde a “exceção” torna-se a regra, ou seja, o paciente, na maioria
das vezes, é privado de seu direito à saúde mental e todos os crimes
são cometidos contra ele. A engrenagem psiquiátrica, primeiramente,
danifica sua identidade enquanto sujeito de direitos, e, em seguida,
captura sua vida sob o argumento da cura e da normalidade. O Estado
é a instância capaz de traçar o limite entre a vida protegida e a vida
exposta à morte nos espaços asilares. Segundo Agamben, dentro deste
limite se pode matar sem cometer nenhum homicídio.
Destarte, o presente estudo descortina o universo da complexa
engrenagem psiquiátrica reproduzida no interior dos espasos asila-
res, tomando como mote um caso específico e seus impactos. Com
isto, verifica-se o quanto os espaços gerados pela ordem pública
conseguem ser perversos na sua função principal (cuidar da saúde
mental dos que sofrem), possibilitando o exercício da crueldade, sob
a custódia do próprio Estado. Trata-se de uma situação-limite de
morte psiquiátrica, o que desafia à capacidade analítica da condição
humana (ARENDT, 2004b).
A “precariedade” da condição clássica de doente mental gera a
extrema privação de valores humanos e provoca a suprema negação
de direitos. O termo “precariedade” aqui adotado é compreendido
de acordo com o livro Vida precaria: el poder del duelo y la violên-
cia, de Judith Butler (2006), cuja precariedade traduz uma condição
politicamente construída, através da qual determinadas pessoas são
assimetricamente expostas ao flagelo social, a contextos de violência,
perigo, enfermidade, migração forçada, pobreza, injustiça ou morte.
Butler chamar atenção para um maior conflito social e político: o
abandono humano em pleno Estado Democrático de Direito. Trata-se
do abandono dos sujeitos mais “precarizados” em suas condições de
vida. A autora ainda observa que nas “condições de vulnerabilida-
de” tem-se uma ruptura no padrão dos sujeitos identificados como
ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA - MARIA VÂNIA ABREU PONTES 223

pertencentes à civilização, pois na “vida precária” encontra-se a vio-


lência como elemento principal de exclusão.
Lima (2010a, p.45) afirma que a persistência da hegemonia
psiquiátrica compromete as garantias de direitos fundamentais dos
sujeitos com transtornos mentais. Esta é uma questão que envolve
manobras silenciosas da injustiça manifesta e “da racionalidade psi-
quiátrica” que insistem em se fazer presentes na contemporaneidade.
“Racionalidade psiquiátrica” e “discurso psiquiátrico” como evidên-
cias de não superação da instituição psiquiátrica. Mais do que uma
estrutura concreta que separa os indivíduos normais e anormais, é
capaz de exclui-los do espaço público, referindo-se ao conjunto de
conhecimento e normas morais revertidas de categorias científicas,
que definem doença mental no esteio social.
Sendo assim, procura-se mostrar como a morte de um sujei-
to com transtorno mental, em um hospital psiquiátrico brasileiro,
instiga os anseios legislativos dos movimentos pela Reforma Psiquiá-
trica, impactando em avanços reformistas no campo das políticas
públicas de saúde mental.
Na dissertação de mestrado intitulada “Damião Ximenes Lopes:
a ‘condenação da saúde mental’ brasileira na Corte Interamericana de
Direitos Humanos e sua relação com os rumos da Reforma Psiquiá-
trica”, desenvolvida sob orientação do professor Dr. Aluísio Ferreira
de Lima e apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia,
da Universidade Federal do Ceará, algumas questões cruciais foram
levantadas, a saber: como o Estado, por meio do seu corpo técnico
em saúde mental, operou a produção de um tratamento psiquiátrico
mortífero para um de seus nacionais? Quais as engrenagens jurídicas,
políticas e burocráticas que permitiram crimes contra Damião Xime-
nes Lopes sem que estes fossem considerados delituosos pela Justiça
nacional? Quais as resistências à aprovação da Lei n° 10.216/01 e suas
contribuições para o nosso tempo? Como a Condenação do Brasil
na Corte Interamericana de Direitos Humanos (2006) se expressa
no campo das políticas públicas de saúde mental do Brasil? Como,
224 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

então, a Sentença internacional do caso Damião Ximenes tem gerado


intervenções na atenção à saúde mental, no modo pelo qual se pro-
move esta saúde ou (re)produz políticas de reconhecimento perverso
(LIMA, 2012)? Será a Reforma Psiquiátrica fruto da luta dos mo-
vimentos sociais ou de um processo de judicialização internacional
da saúde mental? A referida dissertação permite verificar que estas
questões precisam ser aprofundadas, tendo em vista que o estudo da
arte no campo da saúde mental, em particular, na Psicologia, pouco
menciona os impactos da morte de Damião Ximenes Lopes, nas po-
líticas públicas de saúde mental.
Para compreender as problemáticas surgidas na mencionada
nessa pesquisa tomam-se os fatos que compõem o caso Damião
Ximenes Lopes (registrados em documentos oficiais) e a reflexão
principalmente de Agamben (2004; 2008), pois este estudioso revela
que os primeiros campos de concentração criados na Alemanha não
foram obras do regime nazista, mas sim dos governos social-demo-
cráticos. Os indivíduos nos campos encarcerados eram integralmente
despojados de seus direitos e prerrogativas, de tal modo que contra
eles se podia cometer qualquer ato, tudo sendo verdadeiramente
possível. Tal abordagem possibilita não somente uma perspectiva
histórica do “estado de exceção”, mas autoriza compreendê-lo na
contemporaneidade e aproximá-lo do que aconteceu com Damião
Ximenes Lopes e o processo de instituição da Reforma Psiquiátrica
sob os olhares vigilantes da Justiça internacional. Nesse horizonte
agambeniano, o “campo” constitui o local onde a norma é suspensa
e a exceção torna-se a regra, nele o homem é privado de seus direitos
e todos os assassinatos podem ser cometidos sem que aqueles que o
fazem possam ser considerados criminosos. O “campo” é o espaço
que se abre quando o “estado de exceção” torna-se a regra.
A estrutura originária do “campo” é relacionada por Agamben
com a realidade de hoje. Para ele existe uma “vida nua” que se expressa
em um subconjunto dos excluídos: uma minoria que mediante lenta
e prolongada perda da dignidade humana chega ao limite de ter uma
ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA - MARIA VÂNIA ABREU PONTES 225

“vida absolutamente matável” e exposta à morte, estabelecida por uma


relação de “exclusão inclusiva”, o que significa um “profundo abando-
no” revelador do mais perverso vínculo social. Tal vínculo une vida e
lei, violência e norma aplicada à exceção desaplicando-se.
O referido autor ressalta a localização do “campo” em suas
mais distintas metamorfoses, como, por exemplo: em certas perife-
rias das grandes cidades, esquecidas pelo poder público; nas zonas
de detenção de aeroportos internacionais, onde são detidos estran-
geiros à espera de jurisdição; nos presídios superlotados que, embora
decorram do direito carcerário é em si o seu contrário: ou em certas
instituições psiquiátricas, que confinam pessoas para tratá-las por
força de uma internação compulsória de custódia ou voluntária,
mas que violam os direitos dos pacientes, quando não fiscalizadas.
Estes são exemplos de lugares onde a ordem jurídica é, muitas vezes,
temporal ou permanentemente suspensa, e os que ali se encontram
submetidos passam a depender (para viver ou morrer) unicamente
do senso ético daqueles que os subjugam.
Os testemunhos dos sobreviventes à violência institucional
instalada dentro da Casa Repouso Guararapes, mostram a inversão
temporária do humano no não-humano, o que possibilita localizar o
“campo” referenciado por Agamben. Desta maneira, compreender os
motivos da condenação da Saúde Mental brasileira na Corte Intera-
mericana de Direitos Humanos possibita identificar a judicialização
da Reforma Psiquiátrica brasileira e a implementação de novas polí-
ticas públicas de saúde mental.

3. IMPACTOS DA PRIMEIRA CONDENAÇÃO DO BRASIL


NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A Corte Interamericana de Direitos Humanos encontrou as
provas necessárias dentro do Processo Internacional de que o Estado
brasileiro na época da morte de Damião Ximenes Lopes, em 1999,
não dispensava de adequada atenção ao tratamento e internação
de pessoas com transtornos mentais. Tomando o caso da Casa de
226 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Repouso Guararapes como exemplo de instituição que oferecia ser-


viços em saúde mental pelo SUS, a referida Corte determinou que
o Estado reparasse os prejuízos sofridos pela população brasileira.
Embora no momento da prolatação da Sentença da Corte Intera-
mericana de Direitos Humanos, em 2006, o Brasil já tivesse adotado
diversas medidas destinadas a melhorar esse atendimento, a referida
Corte considera que o Estado continue a desenvolver programas de
formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psico-
logia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem, bem como todas
as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, dando ênfase
aos princípios que devem reger o tratamento a ser oferecido às pessoas
com transtornos mentais, de acordo com as normas internacionais.
A Sentença internacional do caso Damião Ximenes Lopes re-
força que o direito à vida é um direito humano fundamental, cujo
gozo constitui um pré-requisito para o desfrute de todos os demais
direitos humanos. Em razão do caráter fundamental do direito à vida,
não são admissíveis enfoques restritivos de um estado de exceção a
tal direito. O direito à integridade pessoal não pode ser suspenso em
circunstância alguma, para que mortes como a do brasileiro Damião
Ximenes Lopes não volte a vitimar a população brasileira.
Na História da saúde mental brasileira pouco se fala no processo
de judicialização internacional da saúde mental. A Lei n°10.216/2001,
também conhecida como Lei da Saúde Mental ou Lei da Reforma
Psiquiátrica, quando aprovada passou a dar impulsionar a execução do
projeto reformista dos movimentos sociais, vislumbrado desde 1961,
mas ganhando reconhecimento somente com as investigações inter-
nacionais em nível de Comissão Interamericana de Direitos Humanos
acerca da morte de Damião Ximenes Lopes.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhece na
Sentença que o Estado brasileiro já tinha adotado uma série de me-
didas a reorientar as condições de atenção psiquiátrica nas diversas
instituições do SUS, desde quando tomou conhecimento da denúncia
nacional e internacional do caso Damião Ximenes no ano de 1999.
ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA - MARIA VÂNIA ABREU PONTES 227

Algumas dessas medidas foram adotadas pelo Município de Sobral-Ce,


a saber: foi construída uma comissão para investigar a responsabili-
dade da Casa de Repouso Guararapes em relação à morte de Damião
Ximenes Lopes; foi implementada a Rede de Atenção Integral à Saúde
Mental de Sobral; foi assinado no ano 2000 um convênio entre o Pro-
grama Saúde na Família e a Equipe de Saúde Mental do Município de
Sobral; e foram criados uma Unidade de Internação Psiquiátrica no
Hospital Dr. Estevão da Ponte do Município de Sobral; um Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS) especializado no tratamento de pessoas
portadoras de psicose e neurose; um Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) especializado no tratamento de pessoas dependentes de álcool
e outras substâncias psicotrópicas; o Serviço Residencial Terapêutico;
e uma unidade ambulatorial de psiquiatria regionalizada no Centro
de Especialidades Médicas e equipes do Programa Saúde na Família.
O Estado também adotou várias medidas no âmbito nacional,
entre as quais estão: a aprovação da Lei nº 10.216, em 2001, conhe-
cida como “Lei de Reforma Psiquiátrica”; a realização do seminário
sobre “Direito à Saúde Mental – Regulamentação e aplicação da Lei
nº 10.216”,em 23 de novembro de 2001; a realização da III Confe-
rência Nacional de Saúde Mental em dezembro de 2001; a criação
a partir de 2002 do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços
Hospitalares Psiquiátricos; a implementação em 2004 do Programa de
Reestruturação Hospitalar do Sistema Único de Saúde; a implemen-
tação do “Programa de Volta para Casa”; e a consolidação em 2004
do Fórum de Coordenadores de Saúde Mental.
O Tribunal da Corte IDH reconhece que o Estado vem ten-
tado operacionalizar as referidas medidas de reparação à população
brasileira, cuja eficaz aplicação possibilitará o melhoramento do
atendimento de saúde e sua regulamentação e fiscalização no âmbito
do Sistema Único de Saúde.
No campo das frutíferas discussões teóricas produzidas no
Brasil assinala-se que o mérito para essa transformação do pensa-
mento político frente às políticas de saúde mental é resultado do
228 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

reconhecimento tardio por parte do Estado das demandas do movi-


mento político envolvendo trabalhadores, familiares e usuários dos
serviços de saúde mental, iniciado em meados dos anos de 1980. Um
movimento que levou o Estado brasileiro a compreender de maneira
tardia, que os manicômios são produtores de desumanização do
sujeito com transtorno mental. Logo, a solução para esse problema
está na ampliação de instituições substitutivas de tratamento e de
dispositivos de controle, que possam promover a inclusão do cida-
dão com transtorno mental na sociedade (LIMA, 2010a).
Com relação à Reforma Psiquiátrica pode-se destacar que ela
surgiu no exterior, na década de 1970, como movimento que tentava
dar ao problema da loucura uma outra resposta social, não asilar, a fim
de evitar a internação como único destino e reduzi-la a um recurso
eventualmente necessário. No Brasil, a expressão “Reforma Psiquiá-
trica” surgiu associada ao movimento de democratização e cidadania,
que se consolidou-se na segunda metade da década de 1980. Estudos
recentes apontam, que desde a década de 60, insurreições contra o
modelo asilar/manicomial já vinham acontecendo de forma isolada,
em determinadas cidades brasileiras. Entre as décadas de 1970 e 1990
começou a surgir no Brasil um projeto reformista mais organizado
do ponto de vista formal, encabeçado pelo Movimento Brasileiro de
Reforma Psiquiátrica (MBRP), que possuía características socialistas
e democráticas. Este movimento precedeu o movimento da Refor-
ma Sanitária, porém só conseguiu ser operacionalizado depois dos
avanços desta. (DELGADO, 1992), (LIMA, 2010, 2011, 2012),
(GOULART, 2008), (GOULART, 2010).
A Saúde como direito humano é recente, pois começou a ser
estruturada com o processo de democratização a partir dos anos 70
e sua redemocratização a partir dos anos 80. Estes foram anos de
transformações, cujo Movimento da Reforma Sanitária surgiu como
instrumento de luta pela democratização da saúde. Em seguida, veio
a formulação e a construção do Sistema Único de Saúde (SUS), no
início da década de 90. Momento em que o Ministério da Saúde
ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA - MARIA VÂNIA ABREU PONTES 229

passou a apoiar mais a Saúde Mental. A criação dos Centros de Aten-


ção Psicossocial, Hospitais-Dia e Residências Terapêuticas, foram
investidas significativas para caminharmos rumo ao rompimento de
práticas desumanas e degradantes de natureza asilar. Todavia, não
basta apenas criar dispositivos extra-hospitalares, mas sim garantir
que eles se orientem permanentemente em princípios do direito
humano à saúde mental. As ações dos movimentos sociais de defesa
da Reforma Psiquiátrica são fundamentais para se traçar estratégias,
que visem uma sociedade inclusiva e politicamente democrática
(AMARANTE, 2003d).
A partir da condenação do Brasil na Corte Interamericana de
Direitos Humanos ocorreram várias medidas em âmbito nacional,
entre as quais estão: i) Programa Permanente de Formação de Re-
cursos Humanos para a Reforma Psiquiátrica, criado para melhorar
a formação dos profissionais da área de saúde mental, recebeu novos
componentes em 2007 e 2008, e segue em andamento. Os cursos de
especialização e atualização em saúde mental apoiados pelo Minis-
tério da Saúde continuam capacitando profissionais nos 23 (vinte e
três) Núcleos Regionais de Formação em Saúde Mental para a Rede
Pública, os quais “são abertos à participação dos profissionais da rede
pública de saúde mental, incluindo-se também profissionais de hos-
pitais psiquiátricos”. Da mesma forma, consolidaram-se os Programas
de Residência Multiprofissional em Saúde Mental nos Estados da
Bahia, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, os quais possuem um
grande número de pacientes atendidos em hospitais psiquiátricos,
e criou-se em Sobral, no Ceará, a primeira residência em psiquia-
tria mantida diretamente por uma rede municipal de saúde mental.
Tais ações são fundamentais para a descentralização dos programas
de formação da Reforma Psiquiátrica e para o aumento do acesso dos
profissionais de saúde mental à qualificação; ii) Programa Pró-Saúde
através de um convênio entre os Ministérios da Saúde e da Educação
para revisar os currículos das instituições de ensino superior com o
propósito de adequá-los aos interesses da saúde pública; inaugurou
230 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

a Escola de Saúde Mental do Rio de Janeiro e a Universidade Aberta


do Sistema Único de Saúde (UnaSUS), as quais objetivam formar
novos quadros técnicos, assim como educar e especializar a força de
trabalho vinculada ao atendimento em saúde mental; e iii) o Minis-
tério da Saúde instaurou o “Programa Emergencial de Ampliação do
Acesso para a Atenção de Problemas relacionados ao Álcool e outras
Drogas”, no qual se incluem cursos de especialização e atualização
em saúde mental, com ênfase em problemas relacionados ao abuso
das referidas substâncias. Outrossim, no ano de 2009 se expandiram
os cursos de capacitação em saúde mental para os profissionais do
“Programa Saúde da Família” e para profissionais de apoio que atuam
nas regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil. Esses cursos têm duração
de 180 horas e capacitarão mais de 200 profissionais no ano de 2009;
iii) o Ministério da Saúde instaurou o “Programa Emergencial de
Ampliação do Acesso para a Atenção de Problemas relacionados ao
Álcool e outras Drogas”, no qual se incluem cursos de especialização e
atualização em saúde mental, com ênfase em problemas relacionados
ao abuso das referidas substâncias (RESOLUÇÃO DE SUPERVI-
SÃO DE SENTENÇA DA CORTE IDH, 2009).
O Tribunal da Corte Interamericana de Direitos Humanos
reconhece que o Estado brasileiro vem tentado operacionalizar as me-
didas de reparação à população brasileira no que diz respeito à saúde
mental, cuja contínua criação de novas políticas públicas irá melhorar
de forma significativa o atendimento de saúde.
No Relatório Anual de 2017 da Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos, foram apresentados os dois pontos da Sentença do
caso Damião Ximenes Lopes pendentes de cumprimento:
1.Garantizar, en un plazo razonable, que el proceso interno tendiente
a investigar y sancionar a los responsables de los hechos de este caso
surta sus debidos efectos, en los términos de los párrafos 245 a 248
de la presente Sentencia.
2.Continuar desarrollando un programa de formación y capacitación
para el personal médico, psiquiátrico, psicológico, de enfermería,
ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA - MARIA VÂNIA ABREU PONTES 231

auxiliares de enfermería y para todas aquellas personas vinculadas


con la atención de salud mental, en particular, sobre los principios
que deben regir el trato de las personas que padecen discapacidades
mentales, conforme a los estándares internacionales en la materia y
aquellos establecidos en la presente Sentencia, en los términos del
párrafo 250 de la misma.
(RELATÓRIO ANUAL DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇAS
DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMA-
NOS, 2017).
A partir da análise do Relatório anual de cumprimento da
sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso
Damião Ximenes Lopes, percebe-se a necessidade de conclusão dos
processos judiciais internos e a contínua criação dos Programas de
formação em saúde mental, com intuito criar novas práticas de aten-
ção à saúde mental.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com o Processo Internacional de Damião Xime-
nes, o Estado brasileiro, entre 1990 e 1995 vivenciou um período
de “avanços” da Reforma Psiquiátrica e no período de 1996 a 1999
passou por um momento de grande refluxo, ou seja, retrocessos no
campo da saúde mental, relacionados às mudanças no corpo admi-
nistrativo do Ministério da Saúde, como exemplo desse processo de
retrocesso, encontra-se o caso da morte violenta de Damião Ximenes
durante internação psiquiátrica, em 4 de outubro de 1999.
O Estado brasileiro afirmou, no ano de 2000, que renovou os
quadros funcionais do Ministério da Saúde e passou a fomentar novas
medidas e empreendimentos para a saúde mental, ou seja, avançou
na implementação da Reforma Psiquiátrica, tirando da última gaveta
do Congresso Nacional a Lei n°10.216, que completava doze anos de
tramitação em 2001. Estrategicamente, essa Lei foi sancionada no dia
6 de abril de 2001, isto é, um dia antes do dia Mundial da Saúde (7
de abril), em que se comemorou por determinação da Organização
232 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Mundial da Saúde (OMS) a temática da Saúde Mental. Com a sanção


da referida Lei, o Estado brasileiro reconheceu publicamente que esta
era a primeira vez que uma proposta legislativa nacional idealizada
pelos militantes dos movimentos sociais em defesa da Reforma Psi-
quiátrica e apresentada ao Congresso, em 1989, pelo ex-deputado
Paulo Delgado era aprovada e sancionada.
Os avanços significativos no campo da saúde mental no Brasil
são registrados entre os anos de 2001 e 2006. Tais avanços estão re-
lacionados em grande parte a denúncia internacional da morte de
Damião Ximenes Lopes, o que possibilita identificar que todas as
iniciativas estatais desse período não eram nada espontâneas, cuja
escuta das aspirações e da proposta legislativa nacional dos movi-
mentos sociais pela Reforma Psiquiátrica não era um reconhecimento
estatal de décadas de lutas dos movimentos sociais.
O presente estudo veio revelar que a Lei n°10.216 foi aprova-
da justamente no contexto inicial das investigações do caso Damião
Ximenes Lopes, o que implica no descrédito das intenções espontâ-
neas do Estado, principalmente, quando encontra-se fortes indícios
de que a morte violenta de Damião Ximenes Lopes apresenta-se
como um caso reformista da saúde mental da cidade de Sobral – CE
e do Brasil. Nesse período, a saúde mental brasileira disponibilizada
pelo Estado foi condenada pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos, em virtude da denúncia da morte de Damião Ximenes.
A hipótese de que a mencionada morte é um caso reformista acaba
sendo materializada a cada posicionamento da Comissão Interame-
ricana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos
Humanos dentro do Processo Internacional.
A sinistra realidade manicomial da Casa de Repouso Guarara-
pes dentro do Processo Internacional parece resumir um longo curso
de sofrimento ético próprio dos campos manicomiais brasileiro.
Diante da dimensão desumana deste curso, não restou outra opção
para a Corte Interamericana de Direitos Humanos a não ser condenar
o Brasil ao estabelecimento de programas de formação e capacitação
ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA - MARIA VÂNIA ABREU PONTES 233

para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem


e auxiliares de enfermagem, a fim de gerar mudanças no sistema de
assistência à Saúde Mental do Brasil, de modo a evitar que no futuro
ocorressem fatos similares à morte de Damião Ximenes.
As iniciativas estatais dos últimos anos de implementação de
formação e práticas em saúde mental brasileira e Direitos Humanos
não são de preocupação própria do Estado brasileiro, como aparecem
na literatura nacional. No presente estudo encontra-se os elementos
reais que impulsionaram alguns dos avanços da Saúde Mental brasi-
leira após 4 de outubro de 1999.
Conhecendo os resultados da Sentença internacional acerca
da morte de Damião Ximenes Lopes, mais do que nunca, os mo-
vimentos em defesa da Reforma Psiquiátrica precisam: continuar
avançando nas suas relações com as instâncias públicas de defesa dos
direitos humanos, como o Ministério Público, as Coordenadorias de
Direitos Humanos e outras; propor estratégias para buscar parcerias
na sociedade civil; zelar para que as denúncias se efetuem de forma
responsável, com o devido cuidado em seu acompanhamento. Tais
iniciativas ajudam a fortalecer a Luta Antimanicomial na área da
defesa dos direitos humanos como experiência jurídica no contexto
de comemoração dos 30 anos da Constituição (OLIVEIRA; PITTA;
AMARANTE, 2017).
O caso Damião Ximenes Lopes veio mostrar o quanto as pes-
soas com transtornos mentais estão em uma situação de particular
vulnerabilidade. Isso conduz frequentemente à violação de seus direi-
tos fundamentais como foi demonstrado no caso em estudo. Antes da
repercussão desse caso na Corte Interamericana de Direitos Humanos,
situações de fato que afetavam as pessoas com transtornos mentais no
Brasil nem sempre eram verificáveis como problema de direitos hu-
manos. Com o alargamento de denúncias nacionais e internacionais
acerca das violações apresentadas no caso referido e que serve de corpus
de pesquisa, percebe-se maior preocupação do Estado com a proteção
à integridade pessoal, à vida e outros direitos humanos fundamentais
234 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

das pessoas com transtornos mentais. Para estas pessoas tais violações
são agravadas por preconceitos, estigmas e fatores culturais, bem como
práticas políticas de reconhecimento perverso, que implicam, muitas
vezes, no silenciamento de tratamentos degradantes e desumanos
fundado numa relação de “exclusão inclusiva”, isto é, de “abandono”
legitimado pelo próprio Estado.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. (Homo Sacer I)Belo Hori-
zonte: Editora UFMG,2004a.
AGAMBEN, G. [1942]. O que resta de Auchwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer
III). Tradução de Selvino J. Assamann. São Paulo: Boitempo, 2008c.
AGAMBEN, G.Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitem-
po, 2008b. 133 p.
AMARANTE, Paulo. A Constituição do Paradigma Psiquiátrico. In: Saúde mental, polí-
ticas e instituições: programa de educação à distância. Coordenado por AMARANTE, P.
Rio de Janeiro: FIOTEC/FIOCRUZ, EAD/FIOCRUZ, 2003d.
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Tradução de Rosaura Einchenberg.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004b.
BECKER, Howard. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais. Rio de Janeiro, 1994.
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas I. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre litera-
tura da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rounel. 7. ed. São Paulo Brasiliense, 1994a.
BUTLER, Judith. Vidas precárias: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós.
2006.
CIAMPA, Antônio da Costa. A estória do Severino e a História de Severina. São Paulo:
Brasiliense, 2009a [1987].
CIAMPA, Antônio da Costa. Identidade. In: LANE, S.; GODO, W. (Orgs.). O homem
em movimento. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004b.
DELGADO, P. G. Reforma psiquiátrica e cidadania: o debate legislativo. In: Rev. Saúde e
Debate. Rio de Janeiro, n. 35, 1992, p 80-84.
GOULART, Maria Stella Brandão. Os 30 anos da “Lei Basaglia”: aniversário de uma luta.
In: Mnemosine v.4, n.1, p. 2-15 (2008a). Disponível em: http://www.cliopsyche.cjb.net/
mnemo/index.php/mnemo/article/viewFile/299/459.
Acesso: 14 jul. 2017.
GOULART, Maria Stella Brandão. Em nome a razão: quando a arte faz história. In: Rev.
Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2010c; 20(1):36-41. Disponível em: http://pep-
sic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v20n1/06.pdf . Acesso em: 14 jul. 2017.
ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA - MARIA VÂNIA ABREU PONTES 235

GOULART, Maria Stella Brandão; DURÃES, F. A Reforma e os Hospitais Psiquiátri-


cos: Histórias da Desinstitucionalização. In: Rev. Psicologia & Sociedade, 22 (1): 112-120,
2010b.
LANE, S.T.M & SAWAIA, B.B. (Org.) Novas veredas da Psicologia Social. São Paulo:
EDUC, pp. 55-63. 1995a.
LANE, Silvia T. M, CODO, Wanderley (Orgs.). A psicologia social e uma nova con-
cepção do homem para a psicologia. In: LANE, Silvia T. M. (Orgs.) Psicologia Social: o
homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 2004b.
LIMA, Aluísio; PONTES, Maria Vânia Abreu. Damião Ximenes Lopes e a primeira con-
denação internacional do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: Revis-
ta Cadernos de Saúde Mental. Florianópolis, v.7, n.16, p. 01-13, 2015. Disponível em: fi-
le:///C:/Users/User/Downloads/3076-15116-1-PB%20(2).pdf. Acesso em: 14 jul. 2017.
LIMA, Aluísio Ferreira de (Org.). Psicologia Social Crítica: paralaxe do contemporâneo.
Porto Alegre, 2012d.
LIMA, Aluísio Ferreira de. Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identida-
de na perspectiva da Psicologia Social Crítica. São Paulo: FAPESP, EDUC, 2010b.
LIMA, Aluísio Ferreira de. Os movimentos progressivos-regressivos da reforma psiquiá-
trica antimanicomial no Brasil: uma análise da saúde mental na perspectiva da Psicologia
Social Crítica. In: Revista Salum & Sociedad. v.1. n.3, pp.165-177, 2010b. Disponível
em: file:///C:/Users/User/Downloads/DialnetOsMovimentosProgressivosregressivosDa-
ReformaPsiqui-4016938.pdf. Acesso em: 14 jul. 2017.
LIMA, Aluísio Ferreira de. Sobre a crítica de Jürgen Habermas ao projeto frankfurtiano:
separação epistemológica ou continuidade de uma tradição. In: Estudos e Pesquisas em
Psicologia. Rio de Janeiro, v.11, n.1, pp.181-196, 2011c. Disponível em: http://pepsic.
bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S. Acesso em: 14 jul. 2017.
NARITA, Stella. Notas de Pesquisa de Campo em Psicologia Social. In: Psicologia & So-
ciedade. 18 (2): 25-31; maio/ago. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/psoc/
v18n2/03.pdf. Acesso em: 14 jul. 2017.
OLIVEIRA, Walter; PITTA, Ana; AMARANTE, Paulo (Org.) Direitos Humanos e Saú-
de Mental. In: SANTOS, Beatriz Oliveira; PONTES, Maria Vânia Abreu. A relação entre
os direitos humanos, a saúde mental e a primeira condenação do Brasil na Corte Interameri-
cana: Implicações para o surgimento do Fórum Cearense da Luta Antimanicomial. São
Paulo: Editora: HUCITEC, Ed: 1a, 2017, Cap.01, p.21-49.
PROCESSO INTERNACIONAL, ALEGAÇÕES FINAIS, BRASIL. CASO DAMIÃO
XIMENES, pp.2-35,2006.
PONTES, Maria Vânia Abreu. Damião Ximenes Lopes: a “condenação da saúde mental”
brasileira na Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua relação com os rumos da
Reforma Psiquiátrica. 2010. (Dissertação Mestrado) – Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Ceará, 2010, Fortaleza, 2015.
Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/13205. Acesso em: 14 jul.
2017.
236 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

RELATÓRIO ANUAL DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇAS DA CORTE INTERA-


MERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO DAMIÃO XIMENES 2017). Dis-
ponível em: http://www.corteidh.or.cr/cf/jurisprudencia2/casos_en_etapa_de_supervi-
sion_archivados_cumplimiento.cfm?lang=es
RESOLUÇÃO DE SUPERVISÃO DE SENTENÇA DA CORTE IDH. CASO DAMIÃO
XIMENES, 2009. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/xime-
nes_17_05_10_%20por.pdf.
SAWAIA, B. B. (org.). O Sofrimento Ético-Político como categoria de Análise da dialéti-
ca Exclusão/Inclusão. In: SAWAIA, B. B. (org.). As artimanhas da exclusão: análise psicos-
social e ética da desigualdade social. Petrópolis: Editora Vozes, 2004a.
SAWAIA, B. B.. Psicologia Social Laneana, conhecida lá fora do país como a “Escola de
São Paulo”. In: SAWAIA, B. B. Silvia Lane. Rio de Janeiro: Imago, 2002b.
A ORDEM QUE QUEREMOS: AS DIRETRIZES
DO PROGRAMA NACIONAL DE SEGURANÇA
PÚBLICA COM CIDADANIA
Bruno César Prado Soares1

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS E MÉTODO


Lei e ordem são elementos essenciais para o desenvolvimento
de uma nação. A capacidade do Estado de impor a ordem pública,
impedir crimes e garantir o cumprimento das obrigações contratuais
garante o mínimo de condições para a convivência e o progresso
(ACEMOGLU; ROBSON, 2012). Além disso, a legitimidade de
um governo depende da manutenção desse estado de ordem e segu-
rança (SAPORI, 2007).
No período pós-ditadura, esperava-se que a implementação dos
valores democráticos fosse acompanhada por uma harmonização da
convivência social (OLIVEIRA JR; SILVA FILHO, 2010). Porém, de
acordo com pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada – IPEA, cerca de 5% do Produto Interno Bruto brasileiro
é consumido pela violência no país (CERQUEIRA et al, 2007). De
acordo com os responsáveis pelo estudo, em 2004 a violência consu-
miu R$ 92,2 bilhões, em que R$ 28,7 bilhões foram gastos pelo setor
público (envolvendo os sistemas de segurança pública, prisional e de
saúde) e o restante relacionado a custos tangíveis e intangíveis arca-
dos pelo setor privado (perda de capital humano, segurança privada,

1 Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília. Mestre em Ciência Política, com con-
centração em Direitos Humanos, Cidadania e Violência, pelo Centro Universitário Euro-A-
mericano – DF. Docente do Instituto Superior de Ciências Policiais (ISCP/DF). Capitão da
Polícia Militar do Distrito Federal. E-mail: bruno.soares@iscp.edu.br.
238 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

seguros, transferências por roubos e furtos).


Mais recentemente, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública
de 2015 mostrava que existiram pelo menos 58.497 mortes violentas
no Brasil em 2014. Somente com Segurança Pública houve um gasto
superior a 71 bilhões de reais em 2013. Importante ressaltar que a
metodologia para verificação do custo com a violência não é uniforme
, correspondendo, para Sapori (2015) a 1,29% do PIB. O
Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016 apresentou 58.467
mortes violentas no Brasil em 2015 e um gasto superior a 76 bilhões
de reais naquele ano (LIMA et al, 2016).2
Nesse contexto, a articulação de políticas públicas voltadas
à segurança assume grande relevância. O objeto a ser desenvolvido
parte do caminho encontrado pelo governo federal para superar
o rígido federalismo adotado pela Constituição de 1988 na ques-
tão da segurança pública: a vinculação de repasses financeiros ao
cumprimento de diretrizes de segurança estabelecidos pela União.
Dessa forma, busca o governo federal a adoção de uma política de
segurança de caráter nacional e não regional.
Ao se considerar que o descumprimento das diretrizes da União
pode acarretar graves consequências financeiras, o presente trabalho
tem como tema a compreensão das diretrizes estabelecidas na Lei nº
11.530, de 24 de outubro de 2007. Assim, surge o questionamento a
ser respondido: quais são as representações da segurança e da ordem
pública nas diretrizes constantes na Lei que estabeleceu o Programa
Nacional de Segurança Pública com Cidadania? Para a realização da
pesquisa, tem-se como hipótese que a Lei, ao estabelecer a questão da
cidadania em seu título, buscou dissociar a questão da segurança da
criminalidade e priorizou ações de natureza preventiva.
De forma a responder o questionamento, parte-se para uma
2 Outras pesquisas também mostram o impacto da violência no Brasil em sistemas aparente-
mente não relacionados à Segurança Pública. As violências já responderam por quase metade
dos óbitos hospitalares por causas externas em um cenário onde 7% das mortes possuem
causa indeterminada. Além disso, os homicídios figuram como principal causa de óbito por
causas externas no país (DUARTE et al, 2009).
BRUNO CÉSAR PRADO SOARES 239

pesquisa documental, que tem como objetivo geral a compreensão dos


esquemas e valores sobre a segurança e a ordem pública nas diretrizes
da Lei nº 11.530, de 24 de outubro de 2007. De forma a atingir o
objetivo, a pesquisa foi dividida em quatro objetivos específicos: 1.
relacionar a questão das representações a partir dos preceitos da pes-
quisa histórica com a questão da formulação das políticas públicas; 2.
descrever como a literatura trata a questão da segurança e da ordem
pública; 3. contextualizar a criação do Programa Nacional de Segu-
rança Pública com Cidadania; 4. analisar suas diretrizes.
De forma a cumprir o objetivo geral, segue-se os passos da pes-
quisa documental sugerida por Cellard (2012). O trabalho inicia-se
com um breve aporte teórico sobre os conceitos de representação, polí-
tica pública, segurança pública e ordem pública, de forma a permitir a
análise dos dados coletados. Logo após, passa-se a uma análise prelimi-
nar do documento, em que são verificados o contexto da sua produção,
seus autores, a sua confiabilidade e a sua natureza (CELLARD, 2012).
Na tentativa de trazer fluidez ao texto, os dados relacionados
ao contexto de produção, autores, confiabilidade e natureza são de-
senvolvidos em conjunto com a revisão. Associadas à bibliografia
especializada, são utilizadas fontes primárias colhidas nos endereços
eletrônicos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
As fontes principais de análise são o próprio texto da lei original
e de sua nova redação, promovida pela Lei nº 11.707, de 17 de junho
de 2018, as mensagens encaminhadas pela Presidência da República
ao Congresso Nacional, com a justificativa da medida provisória e os
votos dos relatores apresentados no âmbito do Congresso Nacional. A
interpretação é realizada a partir da comparação entre os dois textos,
acompanhada de comentários em busca da recomposição de seu con-
teúdo a partir de exame baseado no referencial teórico (LEITE, 2011;
MARCONI; LAKATOS, 2006). Não é realizada a reconstrução dos
discursos políticos por entender que estes constituiriam uma pesquisa
a parte, inclusive com novo referencial metodológico. Tal estrutura
não seria condizente com o artigo que se busca apresentar.
240 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

2. FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS A PARTIR


DE REPRESENTAÇÕES
De forma a compreender a questão das representações da se-
gurança e da ordem pública nas diretrizes do Programa Nacional de
Segurança Pública com cidadania, é necessário delimitar a noção de
representação a ser utilizada e a maneira como essa representação
influencia a formulação e a execução de políticas públicas.
As políticas públicas advêm da atividade política e “constituem
um conjunto articulado de ações, decisões e incentivos que buscam
alterar uma realidade em resposta a demandas e interesses envolvidos”
(RODRIGUES, 2013, p. 52). De maneira mais simples, Grau (2011)
define política pública como atuação do Estado. A ação estatal con-
temporânea intervém na ordem social através da criação da lei e da
definição dos interesses públicos em contraponto com os privados.
De acordo com o autor:
(...) o Estado esteve sempre a ‘intervir’ na ordem social e, por isso,
a desenvolver políticas públicas. O advento, neste século, do Estado
intencionista desencadeia, contudo, um verdadeiro salto qualitativo,
que informa, enriquecendo-o, o conteúdo de suas atuações. (GRAU,
2011, p. 27) (grifo do autor)
A execução das políticas públicas no Brasil ocorre dentro do
denominado “Estado Democrático de Direito”, que reúne a reali-
zação de valores, como igualdade, liberdade e dignidade da pessoa
humana, com as características básicas do Estado de Direito: sub-
missão ao império da lei, divisão dos poderes e garantia dos direitos
fundamentais (SILVA, 2010). O império da lei, traduzido como
legalidade, constitui princípio basilar da ação Estatal. A lei emana
da vontade popular e deve guiar as ações dos agentes do Estado.
Essa situação é passível de causar algumas disfunções, pois, dentro
da realidade latino-americana, a lei é um dado abstrato, dissociado
da realidade da maioria (GRAU, 2011).3
3 Adota-se aqui a explicação de Reale (2004) sobre o termo lei para o Direito: uma regra ou
conjunto ordenado de regras escritas constitutivas de direito elaboradas a partir do processo
legislativo.
BRUNO CÉSAR PRADO SOARES 241

Através das políticas públicas, os grupos que compõem a socie-


dade “tomam decisões coletivas que condicionam o conjunto dessa
sociedade (RODRIGUES, 2013, p. 13). A transformação dessas de-
cisões coletivas em lei ocorre através do processo legislativo, que se
desenvolve no parlamento (CARVALHO, 2010). O termo parlamen-
to se relaciona ao conjunto de pessoas que fala, conversa, debate sobre
determinado assunto e passa a se referir às assembleias políticas a partir
do século XIII (CARVALHO, 2010).
A função “preliminar” do parlamento é a representativa (CAR-
VALHO, 2010). Nesse sentido, a representação, deve ser entendida
como representação política. Entre os sentidos que podem ser atribuí-
dos à essa questão, o representante substitui o eleitor, age no lugar dele.
A representação política se relaciona ao processo de escolha dos go-
vernantes e o controle de sua ação (COTTA, 2004, p. 1102, 1106).4
Os debates no Congresso e a consequente aprovação das leis
trazem as opiniões e ideologias compartilhada pelos parlamentares.
De acordo com Ricoeur (2007, p. 239):
(...) o campo político oferece um terreno favorável a uma explo-
ração regrada de fenômenos relativos à categoria de representação.
Sob esse nome, ou de opinião, ou até de ideologia, esses fenômenos
prestam-se a operações de denominação e de definição, às vezes
acessíveis à quantificação pelo método das cotas.
Para Ricoeur (2007, p. 240), ao tratar da questão da represen-
tação na história, verifica que o termo é dotado de polissemia: pode
tanto tratar do conjunto de práticas sociais que regem a atuação do
indivíduo no espaço, quanto da “avaliação dos esquemas e valores
socialmente compartilhados”. Essa última definição torna capaz a
pesquisa a ser realizada.5
4 Importante destacar que o parágrafo único do art. 1º da Constituição de 1988 estabelece que
todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição. Em seus artigos 45 e 46, a Constituição estabelece que a Câ-
mara dos Deputados é composta pelos representantes do povo e o Senado pelos representantes
dos Estados e do Distrito Federal.
5 Em sua obra, Ricoeur trata da questão desde a ideia de mentalidade até as representações,
que fariam parte do “glossário da historiografia” a partir do último terço do século XX
(2007, p. 238).
242 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Essa definição de Ricouer se aproxima daquilo que é estudado


pelas representações sociais, que buscam compreender e comunicar
o que já é considerado senso comum (MOSCOVICI, 2015). Con-
forme Oliveira e Werba, a teoria das representações sociais “trata do
conhecimento construído e partilhado entre pessoas, saberes especí-
ficos à realidade social, que surgem na vida cotidiana no decorrer das
comunicações interpessoais” (2013, p. 114). Ela estuda as “noções por
meio das quais os indivíduos buscam se situar no mundo, explicá-lo
e apreender sua maneira de ser” (PORTO, 2009, p. 215).
A questão da interpretação da lei na busca pelas representações,
na forma realizada no presente trabalho, deve ainda ser complemen-
tada pelas noções trazidas por Becker em sua obra Outsiders (2008).
Para o autor, as regras sociais são criadas por grupos específicos,
que não necessariamente concordam com o restante da sociedade
(BECKER, 2010). A pluralidade da sociedade não permite que o
parlamento represente o consenso da população. Além disso, as leis
não necessariamente são aprovadas por unanimidade.
Essa ideia pode ser complementada pelas constatações de Porto
(2009). A autora afirma que as representações sociais não são cons-
truídas homogeneamente dentro da sociedade. Dentro do processo
de formação das representações, alguns grupos podem apresentar o
papel de protagonistas. No caso estudado, esse papel é assumido pelo
parlamento. A mesma autora lembra que “as representações sociais
podem justificar e orientar políticas públicas” (2006, p. 268).
Dessa forma, pode-se definir o que se busca com a compreensão
das representações da segurança e da ordem púbica nas diretrizes da
lei que estabeleceu o Programa Nacional de Segurança Pública com
cidadania: o entendimento dos esquemas e valores compartilhados
por aqueles encarregados de elaborar a política pública em questão,
consubstanciada na Lei 11.530, de 24 de outubro de 2007.
O primeiro ponto para permitir o entendimento dos esque-
mas e valores compartilhados e consubstanciados no Pronasci passa
BRUNO CÉSAR PRADO SOARES 243

pela compreensão dos termos segurança pública e ordem pública,


que não podem ser reduzidos à simples explicações em razão da
vastidão de seus significados.

3. A SEGURANÇA PÚBLICA E A ORDEM PÚBLICA


Nos termos da Constituição da República Federativa do Brasil,
a segurança pública é exercida para a preservação da ordem pública e
da incolumidade das pessoas e do patrimônio. A questão está inserida
dentro do Título V da Carta Magna, que trata da defesa do Estado e
das Instituições Democráticas.
A segurança pública abrange um estado de preservação e rees-
tabelecimento da convivência social que permite a todos o exercício
de suas atividades sem perturbação (SILVA, 2010). Não está restrita
à simples repressão. Além disso, é dever e responsabilidade de todos,
e deve ser acompanhada em caráter permanente pelo Estado e pela
população (SILVA, 2010, p. 482). A segurança pública também pode
ser definida através de suas organizações, como fazem Costa e Lima
(2014, p. 482): “A segurança pública constitui, assim, um campo
formado por diversas organizações que atuam direta ou indiretamente
na busca de soluções para problemas relacionados à manutenção da
ordem pública, controle da criminalidade e prevenção de violências”.
Dessa maneira, percebe-se que a segurança pode ser com-
preendida a partir dos seus efeitos, ou seja, a partir da preservação da
convivência social, da preservação da ordem pública, da incolumida-
de das pessoas e do patrimônio, ou a partir de suas organizações, ou
seja, polícias, corpos de bombeiros, secretarias de segurança, entre
outras estruturas.
Como lembra Bauman (2003), a busca pela segurança deve ser
realizada com ponderação, pois seu incremento requer o sacrifício
da liberdade. Vivemos um dilema, pois “a segurança sem liberdade
equivale à escravidão; e a liberdade sem segurança equivale a estar
perdido e abandonado”. Nesse sentido, Freud afirma que a “liberdade
244 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

individual não é um bem cultural. Ela era maior antes de qualquer


civilização, mas geralmente era sem valor, porque o indivíduo mal
tinha condição de defendê-la” (2011, p. 41).
A expressão “segurança pública” encerra conceitos jurídicos inde-
terminados e difusos. Além disso, conforme a Constituição, ela é exercida
para a preservação da “ordem pública”, outro conceito polissêmico.
Para Lazzarini, a ordem pública engloba a segurança pública,
a tranquilidade pública e a salubridade pública (1999). O autor
sustenta que a ordem pública não integra o conceito de segurança
pública, mas sim o contrário (1998) e define o termo como “um
conjunto de princípios de ordem superior, políticos, econômicos,
morais e algumas vezes religiosos, os quais a sociedade considera
estreitamente vinculada à existência e conservação da organização
social estabelecida” (LAZZARINI, 2008, p. 530).
Diversas áreas do conhecimento também se preocupam com
a questão da ordem pública. Dentro da ciência política, Bobbio
compreende ordem pública como o “fim mínimo da política” por
consistir na “conditio sinie qua non para a consecução de todos os
demais fins, conciliável, portanto, com eles” (1998, p. 958). Dentro
da sociologia e da psicologia, Bauman (1998) explica que a ordem é
necessária para que possamos “saber como prosseguir”. Para o autor,
precisamos de um “meio regular e estável para os nossos atos; um
mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam
distribuídas ao acaso”. De forma semelhante, Freud define seu con-
ceito de ordem (2011, p. 38):
A ordem é uma espécie de compulsão de repetição que, uma vez es-
tabelecida, resolve quando, onde e como algo deve ser feito de modo
a evitar oscilações e hesitações em cada caso idêntico. O benefício
da ordem é inegável: ela permite ao ser humano o melhor aproveita-
mento de espaço e tempo, enquanto poupa suas energias psíquicas.6
Para Bauman (1998, p. 15), a ordem é necessária para que
6 Pesquisas recentes reforçam a necessidade acerca da preservação das “energias psíquicas”. A
tomada constante de decisões diminui o autocontrole e a capacidade de iniciativa. Existiria um
“recurso” escasso, que diminuiria a cada escolha que temos que tomar ao acaso (VOHS et al)
BRUNO CÉSAR PRADO SOARES 245

possamos “confiar nos hábitos e expectativas que adquirimos no de-


correr de nossa existência no mundo”. Em um “estado de desordem”
não existe previsibilidade sobre os acontecimentos (BAUMAN, 2012,
p. 157). De acordo com o autor, a “construção da ordem” importa em
um controle das probabilidades, em um manejo sobre os padrões de
comportamento dos indivíduos. Para isso, é necessária a limitação da
liberdade de escolha dos indivíduos, ou até mesmo a limitação total
das opções (BAUMAN, 2012, p. 150).
A noção de ordem do indivíduo é traçada a partir de sua cultu-
ra. De acordo com Bauman (2012), a cultura possui a capacidade de
impor ao mundo novas “estruturas, que podem ser entendidas como o
contrário de desordem”. Ela deve ser pensada como um “dispositivo de
antialeatoriedade, um esforço para estabelecer e manter uma ordem”
(BAUMAN, 1998, p. 164). Nesse sentido, a ordem deriva de um con-
junto de um conjunto de expectativas culturais que situam o indivíduo
no espaço e estabelecem as rotinas de comportamentos esperados dele
mesmo e dos outros membros da sociedade (SOARES, 2016).
O termo ordem teria sido incorporado ao vocabulário admi-
nistrativo-policial no século XIX. Em busca da “ordem pública”, da
“ordem e tranquilidade públicas” ou da “ordem e segurança públicas”,
autoridades civis e militares ampliaram sua atuação sobre a criminali-
dade para diversas formas de oposição ao regime (FERREIRA, 2011).
Percebe-se que a questão da ordem pública abarca um contexto
maior que o cumprimento da lei. Tal situação pode causar conflito,
pois, apesar da atuação do agente estar ligada à questão da legalidade
(SILVA, 2010), não existe necessariamente articulação entre os ideais
democráticos da lei e da ordem, que se encontram frequentemente
em oposição (SAPORI, 2007).
Como lembra Sapori (2007, p. 63), o processo histórico da
manutenção da ordem pública “incorporou valores e crenças que vão
muito além da eficiência na contenção da criminalidade”. Os limites
rígidos da lei dificultam a imposição da ordem pública. A pressão
por resultados eficientes e a exigência do cumprimento estrito da lei
246 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

criam a separação entre as atividades práticas do sistema de justiça


criminal e suas estruturas formais. Ocorre que a atuação dos órgãos
de segurança na execução de políticas públicas em desconformidade
com a lei desmoraliza a atuação do Estado e pode criar uma crise de
legitimidade pública (DECKER; WAGNER, 2007).
A partir da compreensão dos vários sentidos ligados à segu-
rança pública e à ordem pública, e cientes de que a polissemia dos
termos não pode ser esgotada em definições reduzidas, verifica-se a
impossibilidade, a priori, de trabalhar com os dois conceitos de forma
isolada para a análise a ser desenvolvida. Dessa forma, opta-se por
utilizar, para o presente trabalho, os dois conceitos em conjunto, com-
preendidos, de forma simplificada, como um estado de convivência
harmônica e organizada, onde os cidadãos têm a sua incolumidade
física garantida e o seu patrimônio preservado. Esclarecida a questão
da segurança e da ordem pública, resta saber a maneira como a questão
foi tratada ao longo da história recente do Brasil, em especial após a
promulgação da Constituição de 1988.

4. EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS DE SEGURANÇA NO


FEDERALISMO BRASILEIRO PÓS 1988
A Constituição de 1988 delimitou os órgãos federais e es-
taduais que exercem a segurança pública. Porém, não estabeleceu
qualquer parâmetro de coordenação entre eles. Além disso, em res-
peito ao pacto federativo, não pode a União intervir de maneira
forçada nos estados federados de forma a impor uma maneira de
agir às polícias militares e civis.
O federalismo está presente na realidade constitucional bra-
sileira desde 1891 (SILVA, 2011), existindo seu ideal desde cedo na
história política brasileira (SILVA, 2010). Dentro do federalismo, a
autonomia federativa é construída a partir de órgãos governamen-
tais próprios e de competências exclusivas, pressupostos presentes na
Carta de 1988 (SILVA, 2010).
Ocorre que a separação de competências no campo da
BRUNO CÉSAR PRADO SOARES 247

segurança pública e a autonomia federativa geraram ações “sem a


articulação ordenada, inteligente e orientada para objetivos viáveis,
racionalmente preestabelecidos” (SILVA, 1990, p. 53).7 A desarticu-
lação contribuiu para o aumento da criminalidade. O crescimento
da violência, que atinge todos os grupos sociais, fez com que a
população passasse a exigir de todas as esferas de governo a adoção
de políticas públicas com o objetivo de garantir a segurança à co-
munidade (OLIVEIRA, 2016, p. 31).
Com o objetivo de diminuir a distância entre o governo federal
e os estados na questão da segurança pública, o ex-presidente Fernan-
do Henrique Cardoso foi responsável pela implementação de três
grandes ações: a criação da Secretaria Nacional de Segurança Pública
no Ministério da Justiça, em 1997, o I Plano Nacional de Segurança
Pública – PNSP, em 2000 e a criação do Fundo Nacional de Segu-
rança Pública (SILVA, 2012).
A Secretaria Nacional de Segurança Pública foi instituída na
estrutura do Ministério da Justiça pelo Decreto nº 2.802, de 13 de
outubro de 1998. Ela veio a substituir a Secretaria de Planejamento
de Ações Nacionais de Segurança Pública, criada pelo Decreto nº
1.796, de 24 de janeiro de 1996. Entre as ações a serem desenvolvi-
das pela nova Secretaria estavam o apoio a modernização do aparelho
policial do país, a ampliação do Sistema Nacional de Informações de
Justiça e Segurança Pública, a consolidação das estatísticas nacionais
de crimes e a gestão dos fundos federais.
Por sua vez, o Plano Nacional de Segurança Pública foi lançado
pelo Governo Federal em 20 de junho de 2000, com o Ministério
da Justiça como responsável pela sua coordenação. O Plano trazia
algumas medidas de caráter preventivo, porém concentrava seus es-
forços em ações de caráter repressivo (SILVEIRA, 2002). Porém, as
ações previstas no Plano demandavam grandes reformas estruturais
7 Em situações particulares, onde o governo federal e o governo local eram adversários polí-
ticos, Jorge da Silva acredita existir uma “impressão” em que “as autoridades públicas fede-
rais até torcem para que os índices de criminalidade aumentem naquele particular Estado”
(SILVA, 1990, p. 63).
248 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

das instituições envolvidas com a Segurança Pública, o que fez com


que sua implementação ocorresse apenas em parte: houveram avanços
na articulação entre prevenção e repressão, foram celebrados convê-
nios em torno de projetos de prevenção e foram estruturadas ações de
capacitação, como a implementação do ensino a distância e da Rede
Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (SILVA, 2013).
Para que a coordenação do PNSP fosse efetiva, foi criado o
Fundo Nacional de Segurança Pública (SILVEIRA, 2002). O Fundo
em questão foi instituído pela Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro
de 2001, e era destinado ao reequipamento das polícias estaduais,
treinamento e qualificação de policiais militares e civis e guardas
municipais, sistemas de informação e estatísticas policiais, progra-
mas de polícia comunitária e polícia técnica e científica. Para ter
acesso aos recursos, os estados deveriam criar um plano de segurança
pública. Além disso, eram priorizados os repasses aos Estados que
realizassem o diagnóstico do problema da segurança e apresentassem
soluções, desenvolvessem ações integradas dos diversos órgãos de
segurança pública, qualificassem os integrantes do sistema e reduzis-
sem a corrupção e a violência policiais. Dessa forma, com a criação
do Fundo Nacional de Segurança Pública, passou a haver o moni-
toramento das políticas estaduais de segurança por parte da União.
Posteriormente, em 2003, no governo do ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, foi lançado o Sistema Nacional de Estatísticas de
Segurança Pública. Criou-se também o Sistema Nacional de Gestão
do Conhecimento em Segurança Pública. Buscava-se a credibilidade
das informações e a difusão de dados para os diversos órgãos de segu-
rança pública (OLIVEIRA JR; SILVA FILHO, 2010).
Em 20 de agosto de 2007, foi instituído o Programa Nacional
de Segurança Pública com Cidadania – Pronasci, pela Medida Pro-
visória nº 384 (BRASIL, 2007e). O principal objetivo do Pronasci é
a melhoria da segurança pública (art. 1º). Para isso, a lei determina a
execução de programas, projetos e ações de assistência técnica e finan-
ceira e mobilização social, e permite que a União realize convênios,
BRUNO CÉSAR PRADO SOARES 249

acordos, ajustes ou outros instrumentos congêneres (art. 6º). Im-


portante ressaltar que a norma trata da participação da família e da
comunidade em conjunto com o poder público (art. 1º) e permite
parcerias com Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público.
Para participar do Programa e obter assistência financeira, o
ente federativo é obrigado a aceitar diversas condições que permitem
o monitoramento e a avaliação das políticas públicas de segurança
(art. 6º). Entre essas condições estão o compartilhamento das ações
e das políticas de segurança, sociais e de urbanização, a disponibiliza-
ção de mecanismos de comunicação e informação para mobilização
social e divulgação de ações e projetos do Pronasci e o compromisso
de implementar programas continuados de formação em direitos hu-
manos para os servidores do sistema de segurança pública. Essas ações
são necessárias para que o governo federal seja capaz de monitorar e
influenciar a agenda local de segurança pública.
O Pronasci possui quatro focos prioritários. No foco etário, os
jovens de 15 a 24 anos; no foco social, jovens e adolescentes egressos
do sistema prisional ou em situação de moradores de rua, famílias
expostas à violência urbana, vítimas da criminalidade e mulheres em
situação de violência; no foco territorial, regiões metropolitanas e
aglomerados urbanos que apresentem altos índices de homicídios e de
crimes violentos; e, no foco repressivo, o combate ao crime organizado.
A Medida Provisória nº 384 foi encaminhada ao Congresso
pela Mensagem nº 613, acompanhada da Exposição de Motivos In-
terministerial nº 00139, dos Ministérios da Justiça, Planejamento,
Desenvolvimento Social, Secretaria Geral e Casa Civil. De acordo
com a Exposição de Motivos, o texto seria produto de um grupo
de trabalho instalado no Ministério da Justiça após amplos debates
internos, com especialistas e com a sociedade civil (BRASIL, 2007e).
Para o governo, a violência teria origem na falta de resposta
adequada às demandas sociais, e seria gerada, em grande parte por
fatores como:
(...) família em estado de pobreza e miséria, violência familiar,
250 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

exploração do trabalho infantil, violência sexual, consumo de drogas


lícitas e ilícitas, gravidez na adolescência, desemprego dos pais, equi-
pamentos públicos inadequados ou inexistentes, ausência de espaços
de cultura, esporte e lazer (BRASIL, 2007e).
Para combater esses fatores, o governo procurava uma proposta
“mais qualificada e humanista, com foco etário, social e territorial”
(BRASIL, 2007f ).
A Medida Provisória teve como relator na Câmara dos Depu-
tados o Deputado Marcelo Melo (PMDB-GO).8 Em seu relatório,
datado de 08 de outubro de 2007, o parlamentar informa que a pro-
posta procura “enfrentar a violência de maneira mais qualificada e
humanista, com foco etário, social e territorial” (BRASIL, 2007a,
p. 52949). Para o relator, as ações propostas pela Medida Provisória
proporcionariam “o enfrentamento da questão da segurança pública
de forma mais eficiente, sem tratar nossa juventude como algo que
deve ser combatido” (BRASIL, 2007a, p. 52950).
No senado, foi apresentado o Parecer nº 876 de 2007, de auto-
ria do Senador Romeu Tuma (PTB-SP). O relator dá destaque para a
parte da mensagem que trata da inefetividade das políticas repressivas:
“temos visto que o crime vem crescendo assustadoramente” (BRASIL,
2007b, p. 36153). O senador chama a atenção para o trato que o Estado
deve ter com as vítimas de crimes, que “não podemos deixar ao léu”
(BRASIL, 2007b, p. 36153). O relator foi a favor da matéria, conside-
rada meritória. Após retornar para a Câmara, é aprovado o Projeto de
Lei de Conversão e sancionada a lei em 24 de outubro de 2007.
Após a aprovação no Congresso, a Medida Provisória nº 384 foi
convertida na Lei nº 11.530, de 24 de outubro de 2007. Em 23 de
janeiro de 2008, apenas três meses após a aprovação da Lei, o Governo
Federal edita a Medida Provisória nº 416, que alterava diversos pontos

8 Conforme lembra Carvalho (2010, p. 82), os relatores têm origem nos regimentos internos de cada
uma das casas do Congresso Nacional. Sua atribuição principal é estudar a matéria e redigir pare-
cer sobre a constitucionalidade e os demais aspectos valorativos relacionados às proposições. As
relatorias são disputadas “pois o trabalho exercido pode determinar o destino da proposição, como
a aprovação ou a rejeição do seu texto” (CARNEIRO; SANTOS; NETO, 2011, p. 199).
BRUNO CÉSAR PRADO SOARES 251

do Pronasci, incluindo suas diretrizes. Na mensagem nº 23, encami-


nhada ao Congresso Nacional, o Governo Federal esclarece que se
buscava a implementação dos Programas Reservista-Cidadã, Mulheres
da Paz, Proteção de Jovens em Território Vulnerável, Comunicação
Cidadã Preventiva e Bolsa-Formação. A adoção dessas medidas seria
necessária para o sucesso do Pronasci (BRASIL, 2008d).
A nova proposta teve como relator na Câmara o Deputado
Regis de Oliveira (PSC/SP), que apresentou seu relatório em 16 de
abril. Para o deputado, a Medida Provisória merecia aprovação in-
tegral. A alteração nas diretrizes fortaleceria medidas preventivas e
serviria “para evidenciar, de forma translúcida, os objetivos essenciais
do projeto” (BRASIL, 2008a, p. 15695). O relator considera ainda
que o “centro de gravidade da intenção governamental é estabelecer
estruturas internas em locais de grande risco social para que se possa
haver um efetivo combate ao crime organizado” (BRASIL, 2008a, p.
15695). Para o parlamentar, as ações não tratam apenas de repressão
policial, mas de intervenções sociais que permitam ao próprio am-
biente rejeitar as práticas delitivas.
O relator da nova Medida Provisória no senado foi o Senador
Valter Pereira (PMDB-MS). Para o congressista, a relevância da ma-
téria decorria da necessidade de se criarem novos mecanismos para
combater a criminalidade “que, a cada dia, aumenta mais” (BRASIL,
2008b, p. 17039). O relator considerava necessária a valorização dos
profissionais de segurança pública e o envolvimento da comunidade
na prevenção da violência. O fato do programa articular políticas de
segurança e atividades sociais, bem como não concentrar seus esfor-
ços na repressão policial, foi considerado “extremamente meritório”
e “louvável” (BRASIL, 2008b, p. 17040).
Aprovada pelo Congresso, a Medida Provisória nº 416, de
2008, foi convertida na Lei nº 11.707, de 19 de junho de 2008,
ainda em vigor no ano de 2017. Conforme visto nas mensagens do
Governo Federal, ela busca uma reposta mais adequada ao problema
da segurança pública, com base em ações qualificadas e direcionadas.
252 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

A iniciativa foi saudada pelo Congresso, que concordava com a neces-


sidade de reformulação das políticas públicas de combate à violência.

5. SEGURANÇA E ORDEM NO PROGRAMA NACIONAL


DE SEGURANÇA PÚBLICA COM CIDADANIA
A criação do Pronasci teve como objetivo promover a melhoria
da segurança pública por meio da articulação dos órgãos das diversas
esferas de governo e com a participação da família e da comunidade.
Conforme determina o art. 2º da lei que o instituiu, a finalidade
do Programa é a articulação de ações de segurança pública para a pre-
venção e repressão da criminalidade. Além disso, busca-se estabelecer
políticas sociais e ações de proteção às vítimas. Uma leitura apressada
do dispositivo, em especial na questão da repressão da criminalidade,
poderia levar a uma impressão equivocada dos fundamentos da lei.
Essa questão estaria inclusive em dissonância com as mensagens en-
caminhadas pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional e às razões
utilizadas pelos relatores para propor a aprovação da matéria.
De forma a clarear o foco do Pronasci, busca-se a compreen-
são de suas diretrizes. Como lembra Carvalho (2010), para que
uma lei seja eficaz, ela deve observar, entre outros requisitos, o da
coerência. A coerência se manifesta na unidade de pensamento que
deve estar presente no ato legislativo, livre de contradições ou de
disposições desarmônicas. Da mesma forma, Reale (2002, p. 317)
afirma que os diversos espaços normativos pressupõem “diretrizes
ou conceitos básicos que asseguram a unidade lógica dos institutos
e das figuras que a compõem”.
Como as diretrizes têm o papel de dar coerência e unidade
lógica ao Programa, busca-se a partir delas a compreensão do objeto do
presente trabalho: as representações da segurança e da ordem pública.
Como visto no Tópico 2, entende-se por representações, para o pre-
sente trabalho, os esquemas e valores compartilhados que orientaram
a elaboração da Lei. Assim, espera-se que as diretrizes revelem como os
encarregados de elaborar a política pública em questão compreendem
BRUNO CÉSAR PRADO SOARES 253

a segurança e a ordem pública, ou seja, o estado de preservação da


convivência e organização social, conforme desenvolvido no Tópico 3.
O art. 3º da Lei aponta dezessete diretrizes para o desenvolvimento
do Programa. Essas diretrizes envolvem desde a valorização dos agentes de
segurança pública e a modernização das instituições até o fortalecimento
da participação da sociedade nas políticas de segurança pública.
Com sua primeira diretriz, a Lei aponta para um conceito muito
diferente do combate à criminalidade. Traz a ideia de paz. Busca-se a
promoção dos direitos humanos, intensificando uma cultura de paz, de
apoio ao desarmamento e de combate sistemático a diversos tipos de
preconceito: de gênero, étnico, racial, geracional, de orientação sexual e
de diversidade cultural. A redação original da Lei não previa a questão
da busca pela paz dentro de sua primeira diretriz. Tampouco tratava do
desarmamento ou do combate ao preconceito. Esses preceitos estavam
consubstanciados na sétima diretriz. A alteração demonstra os focos
prioritários do Programa.9 Essa medida é reforçada por outra alteração
inserida na Lei em 2008: a promoção de estudos, pesquisas e indicado-
res sobre a violência que considerem as dimensões de gênero, étnicas,
raciais, geracionais e de orientação sexual (inciso XV).
A promoção de um ambiente de convivência pacífica, com
estruturas capazes de dar os suportes necessários à população, é
tratada na segunda, na terceira e na quarta diretriz. Elas estabele-
cem a criação e o fortalecimento de redes sociais e comunitárias, o
fortalecimento dos conselhos tutelares e a promoção da segurança
e da convivência pacífica.10 Outra diretriz que trata da questão está
prevista no inciso IX, que busca a garantia de acesso à justiça, com
ênfase nos territórios vulneráveis.
Em relação ao espaço público, as diretrizes de número XI e XIV
tratam da recuperação de espaços públicos por meio de medidas de
urbanização, da ressocialização e reintegração da família de jovens e
9 Cabe ressaltar que Bonavides (2010, p. 579) aponta para o direito à paz como um direito
fundamental de quinta geração.
10 O fortalecimento dos conselhos tutelares não fazia parte da redação original do artigo.
254 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

adolescentes em situação de rua, através da participação em programas


educativos e profissionalizantes. Através de intervenções no espaço
público, o Estado busca reestabelecer a tranquilidade e a salubridade.
A Lei também aponta para o amparo e a ressocialização dos
egressos do sistema prisional, com a implementação de projetos edu-
cativos, esportivos e profissionalizantes (incisos VII e VIII).
Além dos egressos do sistema, a Lei trata das vítimas e de outras
pessoas expostas à violência. Em suas diretrizes VII e XIII, ela aponta
para a participação das famílias expostas à violência urbana e de mu-
lheres em situação de violência, bem como trata do apoio psicológico,
jurídico e social das vítimas.
De forma a garantir o controle social das ações de segurança
pública, o Programa estabelece a necessidade de transparência em sua
execução, inclusive por meios eletrônicos de acesso público, bem como
a garantia da participação da sociedade civil. Dessa maneira, procura
inserir a sociedade no debate sobre segurança pública. Essas questões
foram inseridas pelas alterações de 2008 nas diretrizes XVI e XVII.
Isso não significa que não havia participação social na redação
original. A última diretriz prevista na legislação original (inciso XII)
trata da observância dos princípios e diretrizes dos sistemas de gestão
descentralizados e participativos das políticas sociais, bem como da
observância das resoluções dos conselhos de políticas sociais e de
defesa de direitos afetos ao Pronasci. A orientação, mantida na redação
atual da Lei, busca aproveitar as discussões e decisões tomadas em um
ambiente que diversos atores sociais organizados estão representados.
De acordo com Silva, Jaccoud e Beghin (2005), essa estrutura permi-
te que grupos demandantes tenham representatividade no processo
decisório de políticas públicas.11

11 Em sua pesquisa, publicada em 2005, os autores haviam identificado nove conselhos de po-
líticas sociais (conselhos nacionais que contam com a participação da sociedade): Conselho
Nacional de Educação (CNE), Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), Conselho
Nacional da Saúde (CNS), Conselho Nacional da Previdência Social (CNPS), Conselho das
Cidades (CC), Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf), Con-
selho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Conselho Deliberativo do
Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat), e Conselho Curador do FGTS.
BRUNO CÉSAR PRADO SOARES 255

As organizações policiais e penitenciárias são tratadas nas di-


retrizes V e VI. Elas estabelecem a necessidade de modernização das
instituições bem como da valorização dos profissionais de segurança
pública e dos agentes penitenciários. As medidas se coadunam com
o disposto no art. 2º, que fala sobre medidas de prevenção e controle
da criminalidade. De forma a complementar o disposto nas diretrizes
V e VI, a nona diretriz trata do enfrentamento à corrupção policial.
Chama a atenção que, embora o art. 2º direcione o Pronasci
não só à prevenção e ao controle, mas também à repressão da crimi-
nalidade, apenas uma das diretrizes trabalhe explicitamente a questão
da violência: a nona diretriz, que trata da intensificação e ampliação
das medidas de enfrentamento do crime organizado.
Dessa forma, percebe-se que a Lei, ao tratar da questão da se-
gurança pública, deixou de dar ênfase à questão da repressão criminal.
Um ambiente em que estejam garantidas a segurança e a ordem é um
ambiente de paz, de convivência harmoniosa, com acesso à justiça,
livre de preconceitos, dotado de espaços públicos com estrutura ade-
quada e capacidade de socialização dos indivíduos. Esse ambiente
seria garantido por meio do fortalecimento de instituições sociais e de
segurança pública que atuariam em conjunto com a sociedade civil.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segurança pública e Ordem pública são conceitos polissêmicos, de
difícil definição. Ambos podem ser compreendidos em conjunto como
um estado de convivência harmônica e organizada, onde os cidadãos
têm a sua incolumidade física garantida e o seu patrimônio preservado.
A pesquisa buscou apresentar como estão presentes os esquemas e valores
a serem buscados no trato da segurança pública e da ordem pública em
uma Lei que direciona o repasse de recursos financeiros.
Foi verificado que as políticas públicas, entendidas como a
atuação do Estado, são consolidadas por meio de leis. Essas leis
trazem em seu conteúdo as maneiras de pensar e os valores da-
queles que estão envolvidos no processo legislativo, seja no Poder
256 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Executivo, pela edição de uma Medida Provisória, seja no Poder


Legislativo, na discussão e alteração de proposições, por exemplo.
Dessa maneira, as diversas leis aprovadas durante as duas últimas
décadas sobre a questão da Segurança Pública apresentam a visões
sobre a maneira como ela deveria ser tratada. Elas também tratam
dos instrumentos que deveriam ser priorizados e dos meios a serem
buscados para que as políticas públicas fossem concretizadas.
Em 2007, a instituição do Pronasci consolidou a possibilidade
de a União realizar convênios, acordos, ajustes ou outros instrumentos
congêneres com os diversos entes da Federação nas questões relaciona-
das à Segurança Pública. Assim, os Estados e o Distrito Federal teriam
acesso a mais uma fonte de recursos. Foi assim consolidado aquilo que
a União espera com as políticas de segurança pública e os entes Fe-
derados ficaram condicionados a sua aceitação na busca por recursos.
O caminho a ser buscado pelo Pronasci pode ser encontrado em
suas diretrizes, ponto em que se concentrou a análise da pesquisa. Sua
leitura demonstra a busca por um ambiente de paz, de convivência
harmoniosa, com acesso à justiça, livre de preconceitos, dotado de
espaços públicos com estrutura adequada e capacidade de socializa-
ção dos indivíduos. Outro ponto chave das diretrizes é a necessidade
de fortalecimento de instituições sociais e de segurança pública, que
devem atuar em conjunto com a sociedade civil. Merece também
destaque que a questão da repressão criminal foi deixada em segundo
plano. Muito embora seja lembrada nos objetivos do Programa, foi
tratada apenas em uma diretriz. Além disso, essa diretriz trata do
enfrentamento ao crime organizado e da corrupção policial. Dessa
maneira, a análise das diretrizes confirma a hipótese que orientou o
desenvolvimento do presente trabalho.
Percebe-se, a partir do trabalho, espaço para pesquisas que
tragam uma análise mais profunda das discussões no Congresso e do
contexto político que levou à aprovação da Lei, além da verificação da
coerência entre as diretrizes da Lei e seus demais dispositivos. Também
carece de aprofundamento a verificação da conformidade entre as
BRUNO CÉSAR PRADO SOARES 257

representações dos legisladores e as representações dos cidadãos, ou


seja, daqueles que são representados pelos congressistas.

REFERÊNCIAS
ACEMOGLU, Daron; ROBSON, James. Por que as nações fracassam: as origens do po-
der, da prosperidade e da pobreza. Trad. de Cristina Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. de
Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Trad. de Carlos Alberto Medei-
ros. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. de Mario Gama e Cláudia
Martinelli Gama; rev. técnica Luís Carlos Fridman Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Trad. de Maria Luiza X.
de Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BOBBIO, Norberto. Política. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUI-
NO Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. de Carmen C, Varriale et al.; coord. trad.
João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1998.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Decreto nº 1.796, de 24 de janeiro de 1996. Aprova a Estrutura Regimental e
o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e Funções Gratificadas do Ministério
da Justiça e dá outras providências.
BRASIL. Decreto nº 2.802, de 13 de outubro de 1998. Aprova a Estrutura Regimental e
o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e Funções Gratificadas do Ministério
da Justiça, e dá outras providências.
BRASIL. Diário da Câmara dos Deputados. Ano LXII. Nº 182. Terça-Feira, 09 de outu-
bro de 2007 [2007a]. Brasília – DF.
BRASIL. Diário da Câmara dos Deputados. Ano LXIII. Nº 052. Quinta-Feira, 17 de
abril de 2008 [2008a]. Brasília – DF.
BRASIL. Diário do Senado Federal. Ano LXII. Nº 166. Quinta-Feira, 18 de outubro de
2007 [2007b]. Brasília – DF.
BRASIL. Diário do Senado Federal. Ano LXIII. Nº 075. Quinta-Feira, 29 de maio de
2008 [2008b]. Brasília – DF.
BRASIL. Lei nº 11.530, de 24 de outubro de 2007 [2007c]. Institui o Programa Nacio-
nal de Segurança Pública com Cidadania -PRONASCI, e dá outras providências.
BRASIL. Lei nº 11.707, de 19 de junho de 2008 [2008c]. Altera a Lei nº 11.530, de
24 de outubro de 2007, que institui o Programa Nacional de Segurança Pública com
Cidadania – Pronasci.
BRASIL. Medida Provisória nº 384, de 20 de agosto de 2007 [2007d]. Institui o Programa
258 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Nacional de Segurança Pública com Cidadania -PRONASCI, e dá outras providências.


BRASIL. Medida Provisória nº 416, de 23 de janeiro de 2008 [2008d]. Altera a Lei nº
11.530, de 24 de outubro de 2007, que institui o Programa Nacional de Segurança Pú-
blica com Cidadania – PRONASCI, e dá outras providências.
BRASIL. Mensagem nº 613, de 20 de agosto de 2007 [2007e]. Encaminha ao Congresso
Nacional o texto da Medida Provisória nº 384, de 20 de agosto de 2007, que “Institui o
Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania -PRONASCI, e dá outras pro-
vidências”. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostra-
rintegra?codteor=503833&filename=MSC+613/2007+%3D%3E+MPV+384/2007>,
acesso em 01 jun. 2017.
BRASIL. Mensagem nº 23, de 23 de janeiro de 2008 [2008e]. Encaminha ao Congresso
Nacional o texto da Medida Provisória nº 416, de 23 de janeiro de 2008, que “Altera a
Lei no 11.530, de 24 de outubro de 2007, que institui o Programa Nacional de Segu-
rança Pública com Cidadania – PRONASCI, e dá outras providências”. Disponível em <
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=540585&file-
name=MSC+23/2008+MESA+%3D%3E+MPV+416/2008>, acesso em 01 jun. 2017.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
CARNEIRO, André Côrrea de Sá; SANTOS, Luiz Claudio Alves dos; NETTO, Miguel
Gernônimo da Nóbrega. Curso de Regimento Interno. Brasília: Câmara dos Deputados,
Edições Câmara, 2011.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Técnica Legislativa. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2010.
CELLARD, André. A análise documental. In: POUPART, Jean et al. A Pesquisa Quali-
tativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Trad. de Ana Cristina Nasser. 3. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 295-316.
CERQUEIRA, Daniel R. C. et al. Análise dos custos e consequências da violência no Brasil.
Brasília: IPEA, 2007.
COSTA, Arthur Trindade; LIMA, Renato Sérgio de. Segurança Pública. In: LIMA, Re-
nato Sérgio; RATTON, José Luiz; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli (Orgs.). Crime,
polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.
COTTA, Maurizio. Representação Política. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Ni-
cola; PASQUINO Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. de Carmen C, Varriale et al.;
coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1998.
DECKER, Scott H.; WAGNER, Allen E. Denúncias da família e dos cidadãos contra a
polícia: uma análise de suas interações. In: GREENE, Jack R. (org.). Administração do
Trabalho Policial: questões e análises. Trad. de Ana Luísa Amêndola Pinheiro. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2007.
DUARTE, Elisabeth Carmen et al. As violências e os acidentes como problema de Saúde
Pública no Brasil: marcos das políticas públicas e a evolução da morbimortalidade duran-
te os 20 anos do Sistema Único de Saúde. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria
de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Situação em Saúde. Saúde Brasil
BRUNO CÉSAR PRADO SOARES 259

2008: 20 anos de Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde,
2009, p. 311-336.
FERREIRA, Fátima Sá e Melo. O conceito de ordem em Portugal: (séculos XVIII e XIX).
Tempo: Revista do Departamento de História da UFF, Rio de Janeiro, v. 16, n. 31, p.21-
33, dez. 2011. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/tempo/site/>. Acesso em: 23
maio 2016.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo:
Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malhei-
ros, 2011.
LAZZARINI, Álvaro. A Defesa do Estado e das Instituições Democráticas na Constitui-
ção de 1988. In: MARTINS, Ives Gandra; REZEK, Francisco (org.). Constituição Federal:
Avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008.
LAZZARINI, Álvaro. A Ordem Constitucional de 1988 e a Ordem Pública. In: LAZZA-
RINI, Álvaro. Estudos de Direito Administrativo. Sistematização de Rui Stoco. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
LAZZARINI, Álvaro. Polícia de Manutenção da Ordem Pública e a Justiça. In: LAZ-
ZARINI, Álvaro et al. Direito Administrativo da Ordem Pública. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1998.
LEITE, Eduardo de Oliveira. Monografia Jurídica. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011.
LIMA, Renato Sérgio de et al. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 10. ed. São Paulo:
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2016.
MARCONI, Marina de Andrade Marconi; LAKATOS, Eva Maria. Metodologia do Tra-
balho Científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publi-
cações e trabalhos científicos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigação em psicologia social. Trad. Pe-
drinho Guareschi. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
OLIVEIRA, Fátima; WERBA, Graziela. Representações Sociais. In: STREY, Marlene
Neves et al. Psicologia social contemporânea. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 104-107.
OLIVEIRA, Marcos Antônio Nunes de. Política de Segurança Pública no Brasil: o termo
circunstanciado de ocorrência e a Polícia Militar. 2016. 182 f. Dissertação (Mestrado em
Ciência Política) – Centro Universitário Euro-Americano, Brasília, 2016.
OLIVEIRA JR, Almir de; SILVA FILHO, Edison Benedito. Política de Segurança Pú-
blica no Brasil: evolução recente e novos desafios. In: BRASIL. Instituto De Pesquisa
Econômica Aplicada. Estado, instituições e democracia: república – perspectivas do desen-
volvimento brasileiro. Brasília: Ipea, 2010.
PORTO, Maria Stela Grossi. Crenças, valores e representações sociais da violência. Socio-
logias, Porto Alegre, ano 8, nº 16, jul/dez 2006, p. 250-273.
PORTO, Maria Stela Grossi. Mídia, segurança pública e representações sociais. Tempo
260 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Social, v. 21, n. 2, nov 2009, p. 211-233.


REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
RICOEUR, Paul. A história, a memória, o esquecimento. Trad. de Alain François et al.
Campinas, SP: Unicamp, 2007.
RODRIGUES, Marta Maria Assumpção. Políticas públicas. São Paulo: Publifolha, 2013.
SAPORI, Luis Flávio. Muitas dúvidas e algumas certezas. In: LIMA, Renato Sérgio de et
al. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 10. ed. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segu-
rança Pública, 2016, p. 60-61.
SAPORI, Luis Flávio. Segurança Pública no Brasil: desafios e perspectivas. Rio de Janeiro:
FGV, 2007.
SILVA, Fábio de Sá. Entre o Plano e o Sistema: o impasse da segurança pública. In: INS-
TITUTO De Pesquisa Econômica Aplicada. Boletim de Análise Político-Institucional. n. 1
(2011). Brasília: Ipea, 2013.
SILVA, Fábio de Sá. “Nem isto, nem aquilo”: trajetória e características da política nacio-
nal de segurança pública (200-2012). Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo,
p. 412-431, ago/set. 2012.
SILVA, Frederico Barbosa; JACCOUD, Luciana; BEGHIN, Nathalie. Políticas Sociais
no Brasil: Participação Social, Conselhos e Parcerias. In: JACCOUD, Luciana (Org.) et
al. Questão Social e Políticas Sociais no Brasil Contemporâneo. IPEA: Brasília, 2005.
SILVA, Jorge da. Controle da criminalidade e segurança pública na nova ordem constitucio-
nal. Rio de Janeiro: Forense, 1990.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33. ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2010.
SILVA, José Afonso da. O constitucionalismo brasileiro: evolução institucional. São Paulo:
Malheiros, 2011.
SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. O Plano Nacional Antiviolência. Brasília: Consul-
toria Legislativa do Senado Federal, 2002. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/
bdsf/bitstream/handle/id/140/43.pdf?sequence=4>. Acesso em: 01 jun. 2017.
SOARES, Bruno César Prado. Ordem Pública e Controle na Constituinte Republicana:
Análise dos discursos parlamentares da Assembleia de 1890-91 sob a perspectiva do na-
cionalismo. 2016. 198 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Centro Universi-
tário Euro-Americano, Brasília, 2016.
VOHS, Kathleen D. et. al. Making choices impairs susequent self-control: a limi-
ted-resource account of decision making, self-regulation, and active initiative. Jour-
nal of Personality and Social Psychology, Vol 94(5), May 2008, 883-898, http://dx.doi.
org/10.1037/0022-3514.94.5.883.
A JUDICIALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
NO ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL
(WELFARE STATE): CONSIDERAÇÕES SOBRE
A ABRANGÊNCIA DA ATUAÇÃO DO PODER
JUDICIÁRIO NA CONCRETIZAÇÃO DE
DIREITOS SOCIAIS PREVISTOS NO TEXTO
CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
Clodoaldo Moreria Dos Santos Júnior1
Samuel De Jesus Veira2

1. CONCEITOS E ASPECTOS INICIAIS: DIREITOS SO-


CIAIS, POLÍTICAS PÚBLICAS E JUDICIALIZAÇÃO
A concretização de direitos fundamentais é sempre assunto
importante quando se trata da prestação de serviços públicos, mais
especificamente no que tange a análise de sua adequação quanto as
previsões constitucionais relativas ao serviço público prestado.
Os direitos e garantias fundamentais, ao longo do tempo, sofre-
ram importantes mudanças no que se refere à sua interpretação. Foram
inúmeras as mutações até se alcançar, apesar de bastante evidente na
atualidade, a ideia de direitos fundamentais da pessoa humana, ditos
direitos da sociedade ou sociais.
Na lição de Alexandre de Moraes, os direitos sociais foram con-
ceituados da seguinte forma:

1 Pós Doutor em Direito Constitucional na University of Messina, Professor Universitário e


Advogado.
2 Especialista em Direito Constitucional e Direito Administrativo e Advogado.
262 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

São direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como


verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em
um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de
condições de vida dos hipossuficientes, visando à concretização da
igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado
Democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal. (2016: 202)
A Constituição Federal tratou de alçar os direitos sociais a con-
dição de direitos indisponíveis além de autoaplicáveis, tudo com o
objetivo de garantir máxima eficácia no momento de sua aplicação.
Interessante ainda notar que, em muitas situações os direitos
sociais são entregues a sociedade através das chamadas políticas pú-
blicas, estas podem ser conceituadas nas palavras do ilustre José dos
Santos Carvalho Filho, como sendo:
Políticas públicas, por conseguinte, são diretrizes, estratégias, prio-
ridades e ações que constituem as metas perseguidas pelos órgãos
públicos, em resposta às demandas políticas, sociais e econômicas e
para atender aos anseios das coletividades. Nesse conceito tem-se que
diretrizes são os pontos básicos dos quais se originara a atuação dos
órgãos; estratégias correspondem ao modus facendi, isto é, aos meios
mais convenientes e adequados para a consecução das metas obtidas
mediante processo de opção ou escolha, cuja execução antecederá à
exigida para outros objetivos; e ações constituem a efetiva atuação
dos órgãos públicos para alcançar seus fins; As metas constituem os
objetivos a serem alcançados: decorrem na verdade, das propostas
que nortearam a fixação das diretrizes. (2006, p. 34)
Em muitas situações, o poder público se abstém de realizar de-
terminadas ações que se constituem em verdadeiras obrigações sociais
do Estado para com a sociedade, essa situação de abstenção estatal
acaba gerando um conflito de interesses, de um lado o poder público
com a alegação de falta de receitas públicas suficientes para concretizar
ações governamentais de caráter obrigatório, e, do outro os particu-
lares lesados em seus direitos buscando, quase sempre judicialmente,
a prestação estatal que lhes é direito.
Com o aumento dos casos de inércia da Administração pública
e a constante busca da sociedade por uma prestação social, através de
CLODOALDO MORERIA DOS SANTOS JÚNIOR - SAMUEL DE JESUS VEIRA 263

uma decisão judicial positiva, surge na doutrina e jurisprudência a dis-


cussão acerca desse fenômeno, o qual ficou batizado de judicialização
das políticas públicas, que se constituem na busca ao Poder Judiciário
como última alternativa para a obtenção da prestação de um serviço
público, que constitui verdadeiro dever estatal, instrumentalizado em
uma prestação de determinada atividade de cunho social, normalmen-
te entendida como política pública.
As posições a respeito da judicialização das políticas públicas
são variáveis, passando desde juristas que acreditam tratar-se de ver-
dadeira usurpação de poderes do Executivo à juristas que consagram
tratar-se de verdadeiro dever do Judiciário diante da inércia em serem
promovidos os deveres constitucionais de prestação de serviços pú-
blicos pela Administração Pública. Importante considerar algumas
definições doutrinárias sobre o tema, assim, segundo Barroso “A Ju-
dicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que
decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício
deliberado de vontade política”. (2017)
O fenômeno da judicialização ocorre quando na existência
de uma norma constitucional presume-se uma pretensão objetiva
e/ou subjetiva que é pleiteada, e neste sentido cabe ao juiz decidir.
Em seguidos casos é verificado que a matéria é discutida em situa-
ções que envolvam o direito à saúde, educação, ações afirmativas e
questões que envolvam direitos ligados às minorias ou populações
vulneráveis/carentes.
É importante deixar claro que a Judicialização é por vezes, asso-
ciado ao ativismo social, este considerado como uma atitude, a escolha
de um modo específico e proativo de interpretar a constituição, ex-
pandindo o seu sentido e alcance. Logo, partindo desta distinção é
importante considerar que a Judicialização consiste em uma espécie
de transferência do poder político (na aplicação de políticas públicas,
por exemplo) para o poder judiciário que tem como uma possível
causa: o processo de redemocratização brasileira que ampliou o acesso
à justiça, em especial com a CF/88, a qual distribui em seu texto um
264 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

elenco significativo de garantias sociais. (SARLET, 2009) Enquanto, o


ativismo social consiste na ação do poder judiciário que direciona suas
forças para suprir a omissão dos outros poderes, e nesta circunstância
aplica princípios a ocasiões não previstas em lei.
O Poder Judiciário, embora não realize diretamente o plane-
jamento ou a execução de políticas públicas, é um dos principais
atores e condutores nesse cenário institucional. Isto porque tem
concedido tutela jurisdicional a direitos consagrados no ordena-
mento pátrio, principalmente aos referentes a direitos sociais como
a saúde, educação e previdência social. A toda essa estrutura, a ju-
dicialização de políticas públicas edifica-se e torna-se sustentável
na medida em que se modifica e adequa-se as necessidades sociais
por prestações estatais. Isto quer dizer que certas questões de cunho
político e social, de grande repercussão, geralmente decididas pelo
Poder Executivo e pelo Legislativo, agora, ganham destaque na arena
judicial. (BARROSO, 2017)
Ilustrando o que foi falado, extrai-se de julgados recentes a
atuação do Supremo Tribunal Federal na efetivação de direitos relacio-
nados à educação pública, demonstrando que a não concretização dos
direitos fundamentais elencados na Constituição Federal desperta o
interesse de uma atuação judicial visando sua implementação, confor-
me se depreende do trecho da ementa do julgado ARE 639337 AgR,
de relatoria do Min. Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal:
DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE-
FINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE
LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. O
Poder Público – quando se abstém de cumprir, total ou parcialmen-
te, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio
texto constitucional – transgride, com esse comportamento nega-
tivo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no
âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciên-
cia constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO
DE MELLO, v.g.. – A inércia estatal em adimplir as imposições
constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade
da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que
CLODOALDO MORERIA DOS SANTOS JÚNIOR - SAMUEL DE JESUS VEIRA 265

deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegí-
timo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la
cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o pro-
pósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se
mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes,
em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. – A interven-
ção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas
governamentais previstas e determinadas no texto constitucional,
notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220),
objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados
pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto
a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura
à generalidade das pessoas. (ARE 639337 AgR, Relator (a): Min.
CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011,
DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC. 15-09-2011 EMENT.
VOL-02587-01 PP-00125).3
Nessa mesma dimensão, e ainda mais recente, o Min. Ricardo
Lewandowski se manifestou da seguinte forma no STF-RE 592581/
RS, como pode ser observado adiante:
REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO DO MPE CONTRA
ACÓRDÃO DO TJRS. REFORMA DE SENTENÇA QUE
DETERMINAVA A EXECUÇÃO DE OBRAS NA CASA DO
ALBERGADO DE URUGUAIANA. ALEGADA OFENSA AO
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DESBOR-
DAMENTO DOS LIMITES DA RESERVA DO POSSÍVEL.
INOCORRÊNCIA. DECISÃO QUE CONSIDEROU DIREI-
TOS CONSTITUCIONAIS DE PRESOS MERAS NORMAS
PROGRAMÁTICAS. INADMISSIBILIDADE. PRECEITOS
QUE TÊM EFICÁCIA PLENA E APLICABILIDADE IME-
DIATA. INTERVENÇÃO JUDICIAL QUE SE MOSTRA
NECESSÁRIA E ADEQUADA PARA PRESERVAR O VALOR
FUNDAMENTAL DA PESSOA HUMANA. OBSERVÂNCIA,
ADEMAIS, DO POSTULADO DA INAFASTABILIDADE DA
JURISDIÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARA
MANTER A SENTENÇA CASSADA PELO TRIBUNAL. – I – É
lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de
3 Consulta ao sitio eletrônico do Supremo tribunal federal. Disponível em: < http://redir.stf.
jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=627428 >. Acesso em 30 de setem-
bro de 2017.
266 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de


obras emergenciais em estabelecimentos prisionais. II -Supre-
macia da dignidade da pessoa humana que legitima a intervenção
judicial. III – Sentença reformada que, de forma correta, buscava
assegurar o respeito à integridade física e moral dos detentos, em
observância ao art. 5º, XLIX, da Constituição Federal. IV – Impos-
sibilidade de opor-se à sentença de primeiro grau (STF-RE 592581/
RS, DJ em 13/08/15).4
É evidente que, com tudo que foi exposto, o poder judiciário
passou, nas últimas décadas, a desempenhar um papel inverso ao
que vinha sendo realizado. Pautado em outros tribunais ao redor do
mundo, o judiciário brasileiro assume um papel ativo na arena social.
Nesse novo espaço, os instrumentos políticos de ações governamentais
cedem, cada vez mais, espaço aos instrumentos judiciais de controle
de políticas públicas. É cada vez mais nítido que a sociedade busca
menos seus representantes políticos, com o objetivo de desenvolver
medidas sociais, e mais o Poder Judiciário que impõe medidas coerci-
tivas para fazer valer preceitos constitucionais que são cotidianamente
negligenciados pela Administração Pública.

2. O WELFARE STATE E A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO


NA CONCRETIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
É assente que a doutrina do Welfare state é baseado na ideia
de que o indivíduo possui direitos indissociáveis a sua existência en-
quanto cidadão, tratam-se de direitos sociais. De acordo com esse
pensamento, todo indivíduo tem o direito, desde o nascimento, a
um conjunto de bens e serviços que devem ser oferecidos e garantidos
de forma direta através do Estado, ou indiretamente (Ex. Parcerias
Público-Privada, Concessões, Permissões e etc.), desde que o Estado
exerça sua função de regular a prestação do serviço dentro de padrões
eficientes e socialmente aceitáveis5.
4 Consulta ao sitio eletrônico do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://www.
stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/592581.pdf >. Acesso em 30 de setembro
de 2017.
5 Consulta realizada no sitio eletrônico em:< https://www.google.com.br/search?q=welfare+s-
CLODOALDO MORERIA DOS SANTOS JÚNIOR - SAMUEL DE JESUS VEIRA 267

A ideia central do termo Welfare state (Estado do bem-estar


social ou Estado-Providência) surge no século XIX através de pen-
sadores como o economista e sociólogo sueco Karl Gunnar Myrdal
e o jurista alemão Lorez Von Stein como uma medida que se con-
trapunha ao liberalismo econômico clássico ou Laissez-faire, em que
era proposta uma versão mais pura de capitalismo sem a intervenção
estatal, acreditando que a sociedade só funcionaria se fosse livre em
seus tratos de natureza econômica e social, sem interferência do
Estado acreditava-se que a sociedade se desenvolveria em toda sua
plenitude. A doutrina do Laissez-faire foi bastante difundida nos
EUA no início do século XX.
A total abstenção do Estado na sociedade logo trouxe suas
primeiras consequências. Com a Crise de 1929 e a segunda guerra
mundial, as ideias de intervenção positiva do Estado na sociedade
começaram a ganhar concretude através das lições de John Maynard
Keynes que expunha que eram necessárias intervenções estatais para
remediar crises e garantir direitos sociais aos cidadãos.
As ideias de Keynes ficaram conhecidas como “politicas key-
nesianas”6 e incentivaram a criação do New Deal nos EUA para
remediar a crise econômica de 1929, demonstrou-se que o mercado
não é auto regulável e que as medidas sociais necessitam de tutela
estatal para alcançarem toda a sociedade, a ideia de abstenção do
Estado era superada pela ideia de Estado promovente de políticas
sociais, Estado ativo e que interfere positivamente nas atividades
particulares, seja para garantir sua continuidade através de incen-
tivos econômicos, seja para sancionar as atividades que causem
significativo dano à sociedade.
Keynes propunha medidas, entre as quais as mais conhecidas
são: regulação do Estado no mercado econômico, medida necessária
para suprimir o instinto de lucro dos empresários, que não conhecia
tate&rlz=1C1GCEA_enBR753BR753&oq=walferaqs=chrome.4.69i57j0l5.5877j0j7&sour-
ceid=chrome&ie=UTF-8# >. Acesso e 05 de outubro de 2017.
6 Consulta realizada no sitio eletrônico. Disponível em: < http://www.economiabr.net/teoria_
escolas/teoria_keynesiana.html >. Acesso em 05 de outubro de 2017.
268 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

limites; intervenção econômica para garantia de empregos; criação


de salário mínimo; criação do auxílio desemprego; redução da jor-
nada de trabalho; assistência médica gratuita; e educação gratuita
em todos os seus níveis.
Dentro dessa perspectiva, Dilmanoel de Araujo Soares faz uma
importante análise que merece transcrição: (2011, p. 172-173)
É necessário ter em vista que o Estado social cogita a ideia de um
intervencionismo desgarrado de escolhas motivadas por um querer
genético da sociedade, de interesses de grupos dominadores, de ex-
tratos sociais no poder. E tal situação bem retrata a evolução do
Estado brasileiro, que historicamente foi dominado por seguimen-
tos sociais, por elites econômicas, tais como os barões do café, os
senhores do engenho, os extrativistas que se serviram e ainda se
servem da situação econômica para ascender no poder, para servir
aos seus próprios negócios e interesses, produzindo um crescimento
econômico excludente e concentrador.
Outro aspecto que merece ser repisado é sobre o verdadeiro papel
da constituição, que ao adotar um Estado Social e Democrático de
Direito procura não apenas explicitar o contrato social, mas, mais
do que isso, com a sua força normativa, se esforça para que o Estado
assuma um papel mais ativo, em favor de causas sociais, econômicas
e culturais, do bem-estar de todos, da felicidade geral, e que o con-
trato social possa assumir um viés hermenêutico intersubjetivo, uma
relação sujeito-sujeito, firmada num caráter discursivo, enquanto
produto de um processo constituinte. Em outras palavras, significa
entender o texto constitucional em um sentido de linguagem, de
ação, de descrição da situação social, com a finalidade de uma orien-
tação futura, com um intercâmbio de mensagens mais imperativas
do que meramente informativas para o ordenamento do convívio
futuro dos membros do grupo social.
O Estado do bem-estar social ou Estado-Providência sobrevi-
ve até a atualidade e sua atuação é ainda mais proeminente do que
antes, existe a incumbência do Poder Público em regular a atividade
privada, e, promover políticas públicas em todos os níveis e áreas da
sociedade. Acontece que, desde o princípio, a premissa era que essas
atividades de atuação positiva eram essencialmente desenvolvidas
CLODOALDO MORERIA DOS SANTOS JÚNIOR - SAMUEL DE JESUS VEIRA 269

pelo Poder Executivo, ente responsável pelas variadas atividades do


Estado, gestor principal das atividades de promoção de políticas pú-
blicas, ações sociais e atividades positivas entre Estado e sociedade.
(DO VALLE, 2016, p. 60) Com o desenvolvimento social surgido
na segunda metade do século XX, o crescimento demográfico e o
êxodo rural cada vez mais acentuado, além da crescente migração
do pós guerra, o Estado passa a demonstrar deficiência na maneira
de atingir e promover políticas sociais à toda a sociedade, que diga-
-se de passagem começou a exigir do poder público atuações novas
que atendessem os anseios, cada vez mais mutáveis, que passavam a
surgir com todo o emaranhado de fenômenos sociais que estavam
acontecendo ao mesmo tempo.
A Constituição Federal ou as leis do nosso país não apresentam,
de forma expressa, um conceito de serviço público e tão pouco de
políticas públicas, espécie da qual àquele é gênero.
A doutrina enfatiza ser muito difícil apresentar um concei-
to único de políticas públicas. Conforme bem destaca Eros Grau:
(2000, p. 21)
A expressão política pública designa a atuação do Estado, desde
a pressuposição de uma bem demarcada separação entre Estado e
Sociedade [...]. A expressão ‘políticas públicas’ designa todas as atua-
ções do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do poder
público na vida social.
Com isso, as políticas públicas constituem os mecanismos de
que dispõe o Estado para a concretização de direitos fundamentais,
mediante a satisfação espontânea dos bens da vida por eles protegidos.
O Estado pode entender que determinada atividade, por sua
importância para a coletividade, não deve ficar na dependência da
iniciativa privada e, mediante lei, a transforma em um serviço público
(DE ARAGÃO, 2017, p. 21) de natureza prestacional positiva (Ex.
uma política pública educacional); em outro momento, determinada
atividade hoje considerada pela lei como serviço público pode passar
a ser exercida como atividade econômica, aberta à livre iniciativa.
270 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Enfim, é uma questão de escolha política. Fica clara que as necessi-


dades sociais são mutáveis e podem ou não sofrer a interferência do
Estado, de acordo com as modificações sociais.
Acontece que, a Administração Pública, com as modificações
sociais que surgem à todo o tempo, possui relativa dificuldade em
promover prestações sociais de qualidade para a população, o Poder
Executiva já não consegue atender a filosofia de Estado-Providência
da forma como antes, a atuação dos outros poderes, com a medida do
tempo, tornou-se necessidade cada vez mais pulsante.
Com o estabelecimento de um Estado Democrático e Social de
Direito e a positivação de normas constitucionais programáticas de-
terminando planos de governo voltados especialmente para os direitos
de segunda geração, o Judiciário passa a intervir mais ativamente no
espaço público, nesse contexto Ana Luiza Gomes de Araújo em tese
desenvolvida na UFMG afirma:
Contudo, pode-se afirmar que, se o princípio da separação dos
poderes foi inicialmente idealizado com a finalidade de conter o
arbítrio estatal, atualmente, a remissão a ele de modo a justificar a
impossibilidade do controle jurisdicional sobre as políticas públi-
cas visa garantir a manutenção do status quo, dando um caráter
de pretensa “juridicidade” à omissão do Estado quanto aos seus
deveres de realizar os direitos fundamentais, por meio das políticas
públicas. Nesse sentido, entende-se competir ao Poder Judiciário,
à luz do princípio da separação dos poderes, a tarefa de tutelar a
Constituição, de modo que os preceitos nela contemplados tenham
efetividade, não podendo, portanto, encontrar guarida na doutrina
da separação dos poderes, a omissão estatal desarrazoada no cum-
primento desse dever. (ARAUJO, 2006, p. 118)
Com isso, tem-se que o Poder Judiciário passa a desenvolver
um papel primário nas atividades da administração pública. O sistema
de separação de poderes passa a ser entendido como a necessidade de
atuação de um poder no outro quando não há o efetivo desenvol-
vimento das suas funções, diferentemente da inercia que outrora se
experimentava pela ideia de não intervenção total entre os poderes.
CLODOALDO MORERIA DOS SANTOS JÚNIOR - SAMUEL DE JESUS VEIRA 271

O Judiciário atrai para suas funções a necessidade de promoção de


direitos sociais que são negligenciados pelos outros poderes.
Ao prolatar uma sentença na qual vincula o agente público à
satisfação do bem da vida tutelado pelo direito fundamental, o Poder Ju-
diciário não está interferindo arbitrariamente na escolha dos caminhos
hábeis à consecução material do direito fundamental, pelo contrário,
presta única e exclusivamente atividade jurisdicional, residual e inte-
gradora, dando completude ao ordenamento jurídico-constitucional.
E assim o faz em plena harmonia, o que existe é tão somente o
redirecionamento das políticas públicas, no limite do necessário para
a consecução do princípio da igualdade substancial, buscando atender
de imediato as necessidades mais urgentes e postas a sua apreciação.
A noção de Estado Democrático e Social de Direito estatuída
pela Constituição Federal de 1988 é incompatível com uma visão
de separação de poderes que inviabilize o amplo controle de cons-
titucionalidade visando à efetivação dos direitos fundamentais, o
Estado tem o dever de se auto regular através de seus poderes, é com
isso que se garante a máxima efetividade dos preceitos estatuídos na
Carta Constituinte.
O Estado do bem-estar social toma contornos mais inclusivos
do que antes, a Constituição Federal garante maior atuação dos po-
deres na administração pública, deixando de lado a ideia de um Poder
Executivo soberano na aplicação dos recursos públicos. Nessa ideia a
discricionariedade administrativa acaba sendo mitigada, a Adminis-
tração Pública, na escolha das áreas onde irá concentrar os recursos
financeiros do Estado, acaba sofrendo interferência do judiciário no
momento de sua aplicação, buscando atender necessidades mais ur-
gentes da sociedade, decorrentes do seu papel de buscar a satisfação
dos anseios da sociedade ligados a prestações positivas que não são
abarcadas pela atuação do gestor público.
Não parece legitimo, por exemplo, a alegação de insuficiên-
cia de recursos para realização de investimentos na área da saúde
272 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

quando existem, no mesmo orçamento, a previsão de gastos na área


e ainda mesma previsão para gastos supérfluos de governo, como
propagandas governamentais. Se faz necessário uma ponderação de
interesses para se buscar quais são s gastos realmente são necessários
para o bem-estar social. (DANIELLI, 2017, p. 50)
Nesse contexto, o Welfare State, modernamente, adquiriu
novos contornos. Com o advento da Carta Constituinte de 1988, o
Estado social que se buscou criar garantiu que todos os poderes da
república, de certa forma, têm acentuado dever em garantir que os
direitos sociais previstos naquele texto sejam efetivamente cumpridos.
A judicialização de políticas públicas nada mais é do que a
necessidade de autorregulação realizada pelo judiciário nos demais
poderes, em especial o poder executivo, demonstrando que é possível
uma realocação dos recursos públicos para despesas mais urgentes no
meio social. Não se tratar de ferir a discricionariedade administrativa,
posto que é dever dos poderes constituídos realizar prestações à socie-
dade que tornem concretos os preceitos da Carta mãe.

3. PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO NO


ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL E A IMPORTÂNCIA DA
JUDICIALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO CON-
TEXTO DA CARTA POLÍTICA DE 1988
A proibição do retrocesso social, no Brasil, emergiu da preocu-
pação com o resgate das promessas da modernidade tardia, sustentado
na tese do constitucionalismo compromissário-programático, em con-
traposição ao paradigma liberal individualista, que se apega na ideia
de garantia de liberdade do indivíduo, na segurança da propriedade
privada e na livre concorrência no mercado, sem muito se preocupar
com os direitos sociais. (SARLET, 2001)
Decorre da significação jurídico-constitucional do princí-
pio da democracia econômica e social7, no sentido de vincular o
7 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Editora Malheiros, 8° Ed. 2008, p. 50-53.
CLODOALDO MORERIA DOS SANTOS JÚNIOR - SAMUEL DE JESUS VEIRA 273

legislador, não apenas para limitar a sua atuação, como também


para, positivamente, concretizar as normas constitucionais, sociais
e econômicas; também no sentido de determinar ao administrador
a adoção das medidas necessárias para a efetiva realização progressi-
va dos preceitos constitucionais, no sentido de dar materialização,
conformação, transformação e modernização das estruturas econô-
micas e sociais
A teoria do não retrocesso encontra-se também ligada a um
quadro de insegurança social, típico da pós-modernidade, gerado,
sobretudo, pelo advento da globalização, fenômeno que se caracteriza
por privilegiar a integração econômica mundial, com a expansão do
mercado em escala global e onde os grandes conglomerados transna-
cionais passam a ter influência direta, pelo domínio da lex mercatoria,
sobre os ordenamentos estatais, comprometendo a soberania dos
Estados-Nações e, assim afetando as políticas sociais, econômicas e
culturais. (BARROSO, 2006, p. 158)
Manifesta-se na problemática da eficácia dos direitos funda-
mentais, numa faceta subjetiva, no sentido de o seu titular poder
fazer valer esse direito, mediante uma ação outorgada pelas próprias
normas consagradas de direitos fundamentais, no sentido de impor ao
Estado, por efeito de alta significação social, o reconhecimento de tais
direitos, com a obrigação do Estado em criar condições normativas e
materiais que possibilitem, de maneira concreta, o efetivo exercício,
pelas pessoas, a tais direitos, sob pena de configurar uma inaceitável
omissão estatal. (LEAL, 2017)
Nesse contexto de necessidades sociais, surge o papel do ju-
diciário como agente promovente de direitos sociais, pautado na
necessidade de se materializar os preceitos constitucionais, de modo
a se fazer uma verdadeira constituição normativa, principalmente
na parte que toca aos direitos sociais. Nesse sentido Andréas J. Krel:
(2002, p. 22)
Em princípio, o poder Judiciário não deve intervir na esfera re-
servada a outro poder para substituí-lo em juízos de conveniência
274 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de or-


ganização e prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja
uma violação evidente e arbitrária, pelo legislador, da incumbência
constitucional.
No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto
dogma de Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos
públicos e da prestação dos serviços básicos do Estado Social, visto
que os poderes legislativo e executivo no Brasil se mostraram incapa-
zes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos
constitucionais.
Com isso, o Poder Judiciário, ao acolher direitos fundamentais
sociais consagrados na constituição, suprime a omissão material do
executivo e a falta de atuação do Poder Legislativo, sem que com isso
haja usurpação de poderes, demonstrando verdadeira operacionali-
dade nos poderes que lhe foram investidos pela carta constituinte.
A judicialização é a própria necessidade de redemocratização
do Estado constitucional de direito, elaborado com a Carta Política
de 1988, sendo executada em sua inteireza. Com a nova constituição
federa o “Judiciário deixou de ser um departamento técnico-especia-
lizado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de
fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os
outros Poderes” (BARROSO, 2008) o ambiente democrático que se
instalou reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e de
consciência de direitos aos vários seguimentos sociais, que passaram a
buscar a proteção de seus interesses junto aos órgãos judicias.
Outro aspecto da constituição que torna a judicialização como
centro de um novo modo de se ver a implementação de políticas
sociais é o extenso rol de direitos e a abrangência dos mesmos, que
foram garantidas pelo legislador constituinte. Esses direitos sociais
expostos são verdadeiras políticas afirmativas, que, com o intuito de
se verem concretizadas foram alçadas à mandamentos constitucionais.
Por exemplo: se a Constituição assegura o direito de acesso ao ensino
fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, é possível judicializar
a exigência desses dois direitos, levando ao Judiciário o debate sobre
CLODOALDO MORERIA DOS SANTOS JÚNIOR - SAMUEL DE JESUS VEIRA 275

ações concretas ou políticas públicas praticadas nessas duas áreas.


Outro aspecto que torna a judicialização verdadeiro centro
de afirmação de direitos sociais, pode ser verificado no controle de
constitucionalidade das leis. Nossa constituição adota um sistema
hibrido, o que permite que determinadas matérias sejam levadas
imediatamente ao Supremo Tribunal federal para apreciação. Nesse
sentido temos a ADPF 347/DF que versa inteiramente sobre direitos
sociais previstos na Constituição Federal.
Com isso, judicialização de políticas sociais nada mais é do que
o Judiciário, guardião da Constituição, atuando em nome dos direitos
fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusi-
ve em face dos outros Poderes. Eventual atuação contra majoritária,
nessas hipóteses, se dará a favor, e não contra a democracia.

4. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
Com tudo o que foi discutido, não há dúvidas que pairem
sobre a legitimidade da atuação judiciária no controle de políticas
públicas. A carta constitucional foi a responsável por garantir que
o Judiciário pudesse agir sobre a falta de atuação do Executivo em
áreas sociais de extrema necessidade.
A efetivação do Estado do bem-estar social, através de pres-
tações sociais a toda a sociedade, é indispensável para a garantia do
próprio direito à vida, bem como para a concretização do próprio
princípio basilar da dignidade da pessoa humana e para a construção
de uma sociedade justa e igualitária.
O Poder Judiciário Brasileiro, de maneira tardia, iniciou o con-
trole de políticas públicas. Esse controle já era uma realidade em
países como os EUA, que utilizam de controle judicial desde meados
da segunda metade do século XX. Atualmente o judiciário brasileiro,
com os poderes da nova constituição, demonstrou que tem “levado
a sério” a concretização dos direitos sociais, tratando-os como au-
tênticos direitos fundamentais, ao passo que a via jurisdicional se
276 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

transformou efetivamente em um dos principais instrumentos de


efetivação desses direitos.
Destaca-se ainda que, em se tratando a constituição federal
de uma verdadeira carta política de interesses, nada mais obvio do
que aceitar que seus órgãos de cúpula possuem atribuições políticas.
Na medida em que a regulação de poderes pressupõe que exista uma
fiscalização entre os órgãos constitucionais, que convergem para um
bem comum, o judiciário, exercendo seu papel político-constitucio-
nal, possui legitimidade para interferir na esfera dos outros poderes
para concretizar necessidades sociais mais urgentes, sem que com
isso haja usurpação de poderes. Trata-se de exercício constitucional
das atribuições do judiciário, garantidor de direitos sociais de pri-
meira necessidade.
A judicialização de políticas públicas, no contexto apresentado,
é a demonstração pelo judiciário que o governo está violando a cons-
tituição, através de uma omissão inconstitucional passível de provocar
graves prejuízos sociais. Se existe inconstitucionalidade no controle
judicial de políticas públicas, ela está justamente na inexistência desse
controle, não em sua promoção.
Ao se defender a possibilidade do Judiciário intervir em políti-
cas públicas, não se quer colocar o primeiro como salvador da pátria
ou como protagonista de um processo de transformação e de redu-
ção de desigualdades em nossa sociedade, e sim que ele atue junto
com os outros poderes e possa, por meio da efetivação dos direitos
fundamentais sociais, melhorar o processo democrático existente.
(BARBOZA; KOZICKI, 2012)
Nosso país, ainda com uma constituição jovem na idade e en-
velhecida pelas sucessivas reformas ao bel prazer dos governos, vem
também passando por sua fase de incremento da Justiça nos assun-
tos que, na teoria original, seriam de outros poderes. Atravessamos
fases de ajustes, o país não conseguiu consolidar-se ainda em vários
aspectos sociais, econômicos e políticos, e em alguns momentos o
CLODOALDO MORERIA DOS SANTOS JÚNIOR - SAMUEL DE JESUS VEIRA 277

Judiciário vem agindo com maior ingerência, mas sempre tentando


funcionar em prol da sociedade. Se excessos eventualmente parecem
ocorrer, o caminho virá natural e serenamente, com decisões moti-
vadas e providas da imprescindível razoabilidade, eis que o interesse
público deve sempre prevalecer, por ser o norte natural dos que
atuam nos vários setores da administração pública.

REFERÊNCIAS
ARAUJO, Ana Luiza Gomes de. Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. Belo Hori-
zonte. UFMG, 2006.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Editora Malheiros, 8° Ed. 2008.
BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; KOZICKI, Katya. Judicialização da políti-
ca e controle judicial de políticas públicas. Rev. direito GV, vol.8 no.1 São Paulo Jan./
June 2012. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S180824322012000100003 >. Acesso em 10 de outubro de 2017.
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de
Janeiro: Editora Renovar, 8° Ed. 2006.
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo social e legitimidade democrática.
<http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Sele-
cao.pdf >. Acesso em 30 de setembro de 2017.
BARROSO, Luís Roberto. Ano do STF: Judicialização, ativismo e legitimidade demo-
crática. Revista Consultor Jurídico, 22 de dezembro de 2008. Disponível em: < http://
www.conjur.com.br/2008-dez-22/judicializacao_ativismo_legitimidade_democratica >.
Acesso em 30 de setembro de 2017.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Políticas Públicas e pretensões judiciais determi-
nativas. Texto em: FORTINI, Cristina; ESTEVES, Júlio César dos Santos; DIAS, Maria
Tereza Fonseca (Org.). Políticas Públicas: Possibilidades e limites. Belo Horizonte: Editora
Fórum, 2006.
DANIELLI, Ronei. A judicialização da saúde no Brasil: Do viés individualista ao patamar
do bem coletivo. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2017.
DE ARAGÃO, Alexandre Santos. Direito dos serviços públicos. Belo Horizonte: Editora
Fórum, 4° Ed. 2017.
DO VALLE, Vanice Regina Lírio. Políticas púbicas, direitos fundamentais e controle judi-
cial. Revista, ampliada e atualizada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2° Ed. 2016.
GRAU, Eros Roberto. O Direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2000.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Editora Atlas, 2016.
KREL, Andréas J. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des) cami-
nhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2002.
278 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

LEAL, Roger Stiefelmann. Direitos sociais e a vulgarização da noção de direitos fundamen-


tais. Disponível em: < http://www.ufrgs.br/ppgd/doutrina/leal2.htm >. Acesso em 12 de
outubro de 2017.
SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Direitos fundamentais e Estado Constitucional: Estudos em
homenagem a J. J. Gomes Canotilho. Editora Revista dos Tribunais, 2009.
SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado social de direito, a proibição de retrocesso e a garantia
fundamental da propriedade. Revista diálogo Jurídico. Salvador, ano I, n.4, p. 2-4, jul.
2001.
SOARES, Dilmanoel de Araújo. Direitos sociais e o princípio da proibição de retrocesso
social. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2011.
JURISDIÇÃO TRANSNACIONAL E POLÍTICAS
DE ENFRENTAMENTO DO TRÁFICO
INTERNACIONAL DE SERES HUMANOS
Dimas Pereira Duarte Júnior1
Danielle Carvalho Rebouças2

1. INTRODUÇÃO
A partir da segunda metade do século XXI a agenda interna-
cional sofreu significativa ampliação, sobretudo em decorrência da
afirmação dos direitos humanos como tema legítimo do direito inter-
nacional e também reconhecido como norma de jus cogens. O objetivo
deste trabalho é analisar o tráfico internacional de seres humanos
como um crime transnacional.
A intensificação dos processos transnacionais pode ser explicada
pelo menos sob duas perspectivas. A primeira parte do pressuposto de
que temas que antes eram exclusivos do direito nacional ou que sequer
integravam a agenda do direito internacional tanto em âmbito global
quanto em âmbito regional, passaram a ser reconhecidos e aceitos
como tal pela sociedade internacional. A segunda parte do pressu-
posto de que esse reconhecimento passou a ditar não só parâmetros
de obediência e conformidade, mas também de qualidade tanto das

1 Doutor em Ciências Sociais: Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica


de São Paulo – PUC-SP (2008). Mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de
Goiás (2001). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Goiás (1996). Professor
e Pesquisador do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes – UNIT/SE.
E-mail: dimas.duartejr@gmail.com.
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Tiraden-
tes, e bolsista CAPES/SE. Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Potiguar
(2015) E-mail: daniellecr@outlook.com.
280 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

decisões políticas quanto jurídicas.


Em que pese o fato de que os Estados continuam sendo os
atores primários das relações internacionais, não se pode negar a im-
portância e a influência que outros atores, quer sejam subnacionais,
quer sejam não estatais, privados ou até mesmo foram da zona insti-
tucionalizada de poder, passam a exercer a construção de parâmetros
políticos, normativos e jurisdicionais nacionais e transnacionais.
Nesse sentido, acentua Harold H. Koh que além dessas transfor-
mações sociais alterarem o sistema jurídico, elas e os próprios sistemas
jurídicos também contribuem para moldar os limites das alterações
futuras nos sistemas sociais, a partir do reconhecimento de uma maior
juridicidade das relações internacionais (KOH, 1996, p. 184).
Essa dinâmica, além de colocar em evidência o papel da lógica
comunicativa que permeia as formas de agir e de processar informa-
ções, também revela novas formas para a identificação e enfrentamento
de problemas que são comuns à toda a humanidade e que, portanto,
demandam esforços também comuns, expressos na forma da coope-
ração internacional, tanto política quanto jurídica e técnico-funcional
para se encontrar soluções efetivas e duradouras.
É neste sentido que se pode afirmar que o direito internacional
passa a exercer uma forte influência no direito constitucional, sobretu-
do em razão do aumento da governança global em temas considerados
como transnacionais ou cujos impactos transcendem as fronteiras ter-
ritoriais dos Estados, revelando uma linha bastante tênue entre a esfera
doméstica e a internacional de regulação, juridicização e resolução de
conflitos em torno desses temas.
Esse estudo parte da premissa de que, para o enfrentamento
de problemas comuns e a busca por soluções compartilhadas para
que atinja um grau razoável de eficácia, deve ser obtido levando em
conta pelo menos de três perspectivas que perpassam o ambiente
das relações internacionais e também do direito internacional con-
temporâneo. A primeira diz respeito ao embate entre igualdade de
DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR - DANIELLE CARVALHO REBOUÇAS 281

poder versus assimetria de poder. A segunda parte do pressuposto da


emergência e do reconhecimento de novos temas, atores e sujeitos de
direito internacional, fruto das transformações das próprias relações
internacionais no século XX. E a terceira e última, o embate que
tangencia o dilema apresentado pelo cenário contemporâneo das
relações internacionais, que expõe a preponderância do constitucio-
nalismo em face do internacionalismo como política de Estado, e
que faz pressupor a existência de um hard law e um soft law na cons-
trução de mecanismos de accountability que transcendem a esfera do
Estado-Nação e, portanto, redefinem os rumos da soberania estatal
e também de cidadania na atualidade.
A Constituição brasileira de 1988, símbolo da redemocra-
tização do país, da institucionalização dos direitos humanos e da
reinserção do Brasil no cenário das relações internacionais, ao reco-
nhecer os princípios da dignidade da pessoa humana, da prevalência
dos direitos humanos, da solução pacífica de conflitos e da coo-
peração entre os povos para o progresso da humanidade não só
reconhece formalmente a essa interatividade do agir comunicativo
presente no sistema mundo do pós-segunda guerra, como também
faz a promessa de agir de forma integrada para o enfrentamento de
problemas comuns da humanidade.
No caso do enfrentamento da criminalidade transnacional,
em especial, do tráfico de pessoas, esse discurso se traduz na adesão
dos Protocolos de Palermo e na formulação de uma política pública
expressa no Decreto nº 5.948/2006 que externa diretrizes decorren-
tes de padrões e consensos internacionais estabelecidos no âmbito
do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC),
que é o escritório da ONU responsável pelo suporte aos países no
que se refere a medidas de enfrentamento ao tráfico e ao abuso de
drogas e de substância ilícitas, à corrupção e ao crime organizado
transnacional e cujo trabalho está baseado em três grandes áreas:
saúde, justiça e segurança pública. Bases sobre as quais se desdo-
bram temas como drogas, crime organizado, corrupção, lavagem de
282 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

dinheiro e tráfico de pessoas.


Esse estudo, nesse sentido, visa analisar os conceitos de coope-
ração internacional, jurisdição transnacional, crime transnacional, em
especial o de tráfico de seres humanos, para ao final buscar compreender
a influência do sistema político internacional na adoção de políticas
eficazes de enfrentamento do crime transnacional de tráfico de seres
humanos no Brasil guiado pela ordem Constitucional de 1988.

2. COOPERAÇÃO INTERNACIONAL E POLÍTICAS PÚ-


BLICAS PARA O ENFRENTAMENTO DA CRIMINALIDA-
DE TRANSNACIONAL
Tradicionalmente as questões relativas à guerra, à paz e à segu-
rança internacional dominaram a agenda das relações entre os Estados.
Desde a Antiguidade Clássica, como se abstrai dos relatos de Tucídi-
des na “História da Guerra do Peloponeso”, passando pelo medievo,
quando impera a noção de um território da cristandade e uma ordem
desvinculada do elemento territorial, e adentrando na renascença e na
modernidade, sobretudo com a ordem que emerge da Paz de Westfália
(1648), as linhagens intelectuais herdadas para o estudo das relações
interestatais partem de concepções estado-centristas, racionalistas,
baseadas na força, no poder e na anarquia internacional.
Política interna e política externa, nesse contexto, se apresen-
tam como temas significativamente diversos, pois a primeira parte do
pressuposto da existência de uma ordem hierárquica de autoridade
enquanto a segunda, tendo como tema central o poder e a segurança,
se sustenta na ideia de ausência de poder central mundial. Do que
se infere que, num cenário como o desenhado por Maquiavel ou
Hobbes, onde imperam o medo, a busca por prestígio e, por conse-
guinte, a anarquia internacional, a autoajuda (self-help) constitui-se
num elemento crucial para lidar com o desafio da segurança.
Ainda nesse contexto, que antecede o estabelecimento das re-
lações internacionais como campo de estudo autônomo, há que se
DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR - DANIELLE CARVALHO REBOUÇAS 283

ressaltar as contribuições do idealismo clássico representado por au-


tores como Marsílio de Pádua, Abade de Saint Pierre, Thomas More,
Rousseau e Grotius, que lançam as interações interestatais no plano do
dever ser. De sorte que percebem a busca pela paz como algo possível
de ser alcançado por meio de valores, normas e instituições comuns.
Do ponto de vista teórico, o primeiro grupo de pensadores
estabelece as bases para a formação da escola realista de relações in-
ternacionais e o segundo para a formação da corrente liberal. No
entanto, o que importa ressaltar é que, seja do ponto de vista realista,
seja do ponto de vista liberal, os temas da guerra, da paz e da segurança
internacional ocuparam a centralidade dos debates até então.
A diversificação de temas concernentes às relações interna-
cionais somente começa a ganhar maior visibilidade no século XX,
mais especificamente, após a Segunda Guerra Mundial (1939-145),
quando o comércio, o desenvolvimento, os direitos humanos, a cri-
minalidade transnacional, dentre outros, passam a integrar e orientar
a agenda internacional.
Essa diversificação decorreu não apenas de reflexões teóricas
como também da realidade fática que se impôs, sobretudo, em de-
corrência do legado das duas guerras mundiais. Temas que foram
ofuscados pela Guerra Fria e retomados com ênfase somente a partir
do fim do conflito Leste-Oeste.
No que se refere à cooperação pode-se afirmar que é um tema
caro às relações internacionais na medida em que, compreendido seja
sob a perspectiva do interesse mútuo, seja do interesse comum, se
apresenta como um processo de negociação e coordenação de políticas
por meio do qual os atores ajustam seus comportamentos às prefe-
rências reais ou esperadas dos outros atores envolvidos. Em suma é
uma via importante para minimizar conflitos, buscar a paz e o desen-
volvimento, tanto pela via diplomática quanto pela via jurisdicional
internacional, nacional ou mesmo transnacional.
Do ponto de vista teórico, os realistas admitem que a cooperação
284 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

internacional é possível e pode ser benéfica, no entanto, não lhe atri-


buem um papel relevante pois seria incapaz de mudar a natureza
anárquica do sistema internacional na medida em que os Estados
tenderão a cooperar apenas até o ponto em que seus interesses domés-
ticos sejam atingidos. Sendo os ganhos da cooperação assimétricos,
os ganhos relativos recaíram apenas sobre os Estados mais poderosos.
Por sua vez, a cooperação tem se apresentado cada vez mais como
um tema central para os teóricos liberais, sobretudo, dentre aqueles
que integram as correntes funcionalista, neo-institucionalista e da
interdependência complexa.
Para os funcionalistas a cooperação se mostra mais eficiente
quando deflagrada em áreas eminentemente técnicas e se expandem
para outros âmbitos tais como o político, o econômico, o social e
também o jurisdicional.
Calcada na experiência europeia, na década de 1950, que se ini-
ciou com a cooperação técnica na produção de carvão e aço (CECA)
esta corrente (Mitrany) mostrava-se cética quanto a eficiência da
cooperação iniciada nas instâncias políticas deliberativas em razão
de divergências políticas e ideológicas. Quando iniciada nas áreas
técnicas ou funcionais tende a gerar um efeito de transbordamento
(spillover) para as demais áreas ao produzirem bens públicos tangíveis
para as sociedades dos países envolvidos.
Revisando esses pressupostos, anos depois, os neo-funciona-
listas embora reconhecessem a importância da cooperação técnica
alertavam para o fato de que esta não prescinde da cooperação política
e da participação de outros setores da sociedade.
Os institucionalistas atribuem papel central às instituições na
articulação e viabilização dos processos de cooperação. Organizações
internacionais governamentais, regimes internacionais e o próprio
direito internacional, ao sistematizarem princípios, normas, regras
e procedimentos de tomada de decisão constituem-se em impor-
tantes vias para dar mais estabilidade e previsibilidade ao sistema
DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR - DANIELLE CARVALHO REBOUÇAS 285

internacional, quer seja disponibilizando informações comuns aos


atores, quer seja prevendo sanções em caso de descumprimento das
regras acordadas.
Por seu turno os proponentes da teoria da interdependência
complexa ao enfatizarem o crescimento da interdependência entre os
Estados e analisarem suas consequências para as relações interestatais,
acabam por concluir que o Estado não é um ator unitário, mas sim
uma coalizão complexa de grupos e interesses que devem ser levados
em conta em todo processo de cooperação.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a interdependência comple-
xa é um contexto que favorece a cooperação tendo em vista o aumento
da sensibilidade e vulnerabilidade dos Estados entre si. Assim, a opção
por não cooperar tornar-se mais custosa vez que a pluralidade de
temas e a ausência de hierarquia entre eles lança não só o tema da
política exterior como tema de política pública como também revela
as interconexões de um cenário em que a variedade de questões e mo-
tivações estratégicas domésticas também se apresenta como assunto
da política “inter” e transnacional.
A experiência internacional mostrou ao longo das últimas dé-
cadas pelo menos duas grandes formas de cooperação, quais sejam, a
cooperação Norte-Sul e cooperação Sul-Sul. A primeira, predominan-
te no Pós-Segunda Guerra, caracteriza pelo protagonismo dos países
desenvolvidos (Norte) como doadores de cooperação, ao passo que os
países em desenvolvimento figuram como receptores de cooperação,
sendo que os primeiros (do Norte) definem as formas, ideologias e
setores prioritários da cooperação.
Esse formato, posteriormente, veio a ser contestado por ser
considerado vertical, unilateral e até mesmo imperialista, ao descon-
siderar as necessidades e os anseios culturais locais. A partir dessa
crítica é que surge um novo formato relevante para a cooperação
internacional, qual seja, aquela denominada de “Sul-Sul” ou coo-
peração para o desenvolvimento.
286 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

No contexto da interdependência complexa as políticas públi-


cas, entendidas como o resultado da atividade política em que decisões
coletivas são tomadas por diversos grupos que compõem a sociedade,
se antes eram tratadas quase exclusivamente sob o âmbito doméstico
passam, com a globalização, a sofrer influências de atores, instituições
e valores gestados no âmbito internacional.
Importante ressaltar que os temas afetos às políticas públicas
não só têm sido discutidos e formulados no âmbito internacional, mas
também, têm sido objeto de preocupação de agências, instituições e
organizações internacionais que cada vez mais têm dispendido recur-
sos para o seu financiamento.
No que concerne ao crime transnacional, é fato que nas últimas
décadas ele tem se apresentado como uma das grandes ameaças às
instituições democráticas e também um desafio para o ordenamento
jurídico internacional. A Organização das Nações Unidas, inserida
nesse contexto de insegurança, almejou harmonizar as normas ju-
rídicas referentes ao crime organizado e estabeleceu a Convenção
das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Esse
instrumento se transformou em uma das mais importantes medidas
internacionais no combate ao crime organizado transnacional.
A cooperação internacional em nível de segurança de baixa
intensidade para enfrentamento do crime transnacional tem, atual-
mente, dois grandes atores supranacionais: a Interpol e a Europol,
que realizam o poder policial e foram criadas em decorrência da
necessidade de cooperação interestatal advinda, principalmente, do
aumento do poder e influência do crime organizado, que não se
atém a apenas um país.
A realização deste poder de polícia em cooperação ocorre tanto
na troca de informações quanto na troca de técnicas.
Nesse sentido é que foi criado um sistema no qual os seus
participantes possuem acesso aos dados de todos os criminosos que
por ali passaram ou que são procurados, fortalecendo o trabalho de
DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR - DANIELLE CARVALHO REBOUÇAS 287

polícia e facilitando a prisão dos foragidos. É de extrema importância


ressaltar o caráter exclusivamente técnico destes atores, devendo eles
serem isentos de qualquer forma de intervenção política.
Outro instituto importante destes atores é a troca contínua
de conhecimento e experiências, o que facilita a compreensão das
organizações criminosas transnacionais, promovendo um trabalho
mais assertivo.
A Interpol, nesse contexto, caracterizada como uma polícia
internacional e possuindo representantes de vários países em seu
corpo técnico tem sido compreendida como uma instituição com
elevado poder catalisador da cooperação jurídica internacional
para o enfrentamento da criminalidade transnacional. Sua função
é tão importante que em 1971 foi elevada ao status de organização
intergovernamental pela ONU. Os seus principais objetivos são
combater o tráfico de drogas e de seres humanos, os crimes finan-
ceiros, a corrupção e ainda rastrear fugitivos.

3. A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL NA CONSTRU-


ÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEO
Os efeitos do avanço cada vez maiores da globalização, em
seu potencial de integração econômica, social, política e cultural,
também apresentam seu outro lado, onde há o mesmo movimento
abrangente de fatores não tão positivos. Nestes, está o surgimento da
criminalidade organizada e de caráter transnacional, passando a exigir
a construção de uma nova estrutura (VARELLA, 2012, p. 74).
Santos (2001) observa que a globalização está longe da consen-
sualidade entre os grupos sociais, Estados, e os interesses hegemônicos
e subalternos, que tem contribuído para revelar “um vasto e intenso
campo de conflitos” (SANTOS, 2001, p. 33). É o que mostra o tra-
tamento distinto dado a um determinado bem, mercadoria ou serviço
maior facilidade transfronteiriça do que a pessoas.
O aumento no número de tratados internacionais sob os mais
288 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

diversos temas, principalmente ligados a direitos humanos, demonstra


notadamente o aumento da influência internacional na criação de
normas e regras jurídicas integradoras e comuns aos Estados. Porém,
a integração dos países pela internacionalização do direito por meio de
um pacto civilizatório, sobretudo no que diz respeito aos direitos hu-
manos, exigem também valores comuns (DALMAS-MARTY, 2007).
Por valores comuns subentende-se ideais democráticos, baseados so-
bretudo na valorização e proteção baseados nos direitos e dignidade
humana, e não a percepção de uniformização das diferentes nações.
O problema surge quando há uma ratificação por parte dos
países acompanhada de reservas ou refutações de parte dos textos in-
ternacionais, o que corrobora a priorização de sujeitos privados e uma
consequente fragmentação do direito (DALMAS-MARTY, 2006).
Varella (2012) apontou que “um importante elemento motiva-
dor de uma coordenação global entre Estados e demais atores está na
necessidade de lidar com riscos relacionados a problemas compartilha-
dos” (VARELLA, 2012, p. 56), onde há a consciência da necessidade
por respostas adequadas aos problemas de uma “sociedade global de
riscos” (VARELLA, 2012, p. 56).
O mesmo autor ainda afirma que as crises globais do sistema ju-
rídico “são reveladoras da força dos poderes não-instituídos, sobretudo
no tocante à desarticulação dos poderes no sentido das instituições
nacionais” e da “fragmentação dos poderes no sentido das instituições
internacionais” (Delmas-Marty apud VARELLA, 2012, p. 56).
Dessa maneira, a cooperação internacional entre os atores esta-
tais apresenta-se como a solução mais adequada para os riscos comuns
que perpassam as fronteiras nacionais (VARELLA, 2012, p. 56).

3.1. A JURISDIÇÃO TRANSNACIONAL COMO ELEMENTO


CATALISADOR DA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
A construção de um direito desterritorializado, sem fronteiras
e com repercussão em toda a ordem global tem sido ideal perseguido
DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR - DANIELLE CARVALHO REBOUÇAS 289

pela sociedade internacional, sobretudo no âmbito das organizações


internacionais interestatais, desde a segunda metade do século XX,
com o fim da II Guerra Mundial e com a adoção de tratados e acordos
internacionais nas mais diversificadas áreas.
O primeiro grande tema a ser enfrentado pela sociedade inter-
nacional do pós Segunda Guerra foi aquele decorrente dos efeitos da
catástrofe humanitária causada pela barbárie do holocausto levado
a cabo pelo nazi-fascismo que fez prevalecer os conceitos de raça e
nação sobre os valores individuais, representado por um governo au-
tocrático, centralizado na figura de um ditador e que levou a cabo um
projeto político ideológico pautado na limpeza étnica, na banalização
do mal, no culto a virtude vazia e no respeito cego às ordens de Estado.
A primeira tentativa de instituir uma jurisdição transnacional
foi aquela levada à cabo pelo Tribunal de Nuremberg, em 1945, que
visava responsabilizar individual e criminalmente agentes de Estado
pela prática de crimes contra a humanidade.
Instituído pelo Acordo de Londres em 1945, o Tribunal de
Nuremberg, apesar de alto grau de seletividade de sua atuação, exer-
ceu forte influência na construção dos regimes internacionais que se
utilizam de órgãos supra-nacionais para aplicar o direito no âmbito da
sociedade internacional. Uma de suas principais contribuições recaem
sobre o instituto da responsabilidade internacional que, a partir de
então, passa a ser aplicado também na esfera individual e não mais
exclusivamente no âmbito institucional. Ele inaugura, portanto, a
lógica da responsabilização penal individual internacional.
É inspirado na prática do Tribunal de Nuremberg que o
sistema das Nações Unidas, por previsão na Carta de São Francisco,
irá instituir a figura dos tribunais “ad hoc” com competência para
processar e julgar pessoas pela prática de crimes que afetam a
humanidade, tais como os crimes de guerra e os de lesa humani-
dade. E será inspirada nessa prática que o sistema das ONU irá
instituir, por meio do Estatuto de Roma, o tribunal permanente
290 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

internacional, denominado de Tribunal Penal Internacional, para


processar e julgar pessoas por crimes considerados de maior gra-
vidade pela sociedade internacional, tais como os crimes contra a
humanidade, os crimes de guerra, o genocídio e o crime de agres-
são, que, com exceção do último, passam a encontrar tipificação
no próprio direito penal internacional.
Nesse mesmo compasso outros órgãos com competência juris-
dicional são instituídos tanto em âmbito global quanto em âmbito
regional para tratar de temas relacionados aos direitos humanos,
como são os casos do Conselho de Direitos Humanos da ONU,
os Comitês especializados com previsão nos tratados e convenções
que integram o sistema especial de proteção dos direitos humanos,
a Corte Europeia de Direitos Humanos e a Corte e a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.
Em que pese o fato das decisões oriundas dessas instâncias ju-
risdicionais internacionais não conseguirem coagir os Estados que as
reconhecem por meio da força, não se pode olvidar que foram delas
que vieram algumas das mais importantes pressões que países violado-
res dos direitos humanos sofreram para rever suas posições acerca de
temas relacionados à tortura, à violência contra a mulher, ao racismo,
ao meio ambiente e muitos outros, reconhecendo uma outra força
para o direito que não exclusivamente o direito da força.
No que concerne aos demais temas da globalidade, como o
comércio internacional e o meio ambiente, também não se pode negar
o papel transformador exercido pelas conferências mundiais e também
pelas decisões judiciais ou quase-judiciais proferidas por órgãos de
solução pacífica de controvérsias envolvendo esses temas.
Em matéria de meio ambiente cabe ressaltar que as conferências
internacionais e os tratados e acordos delas decorrentes promoveram
uma verdadeira revolução em âmbito jurídico e político domésticos,
pois não só influenciaram os contornos formais para um novo direito
constitucional como também influenciaram a consciência coletiva que
DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR - DANIELLE CARVALHO REBOUÇAS 291

passou dar mais atenção para temas relacionados com a preservação


ambiental e o uso consciente de recursos naturais.
Diferente não foi em se tratando de comércio internacional
que, ao estabelecer parâmetros comuns para orientar as práticas co-
merciais em esfera global, tem, de forma significativa dado uma nova
tônica para a solução de controvérsias em assuntos relacionados com
as práticas comerciais e alfandegárias.
Essa breve recuperação histórica da construção das insti-
tuições jurisdicionais internacionais é válida porque nos permite,
objetivamente, verificar os impactos que essa nova lógica de solução
de controvérsias vem exercendo em âmbito doméstico e também
internacional, pois não só impacta na mudança de práticas políticas
como exerce forte impacto no domínio ético, pois estabelece novos
padrões e protocolos sobre esses temas que passam a orientar os
órgãos jurisdicionais nacionais nos Estados democráticos contem-
porâneos, que reconhecem o papel pacificador e estabilizador dos
sistemas pacíficos de solução de controvérsias e também do princípio
da cooperação internacional para o enfrentamento de problemas
comuns da humanidade.
No caso brasileiro, cumpre salientar que a Constituição de
1988 não só recepcionou esses princípios como também os concedeu
um lugar privilegiado, pois são eles verdadeiras condicionantes consti-
tucionais das relações internacionais, da política externa e da atuação
dos poderes juridicamente constituídos em âmbito doméstico.
Prova disso é que o país tem buscado, cada vez mais dar cumpri-
mento a decisões oriundas de instâncias jurisdicionais internacionais e
também adotar e implementar medidas legislativas e administrativas
coadunadas com os princípios da cooperação internacional e da solu-
ção pacífica de controvérsias, como se pode vislumbrar da análise do
aparato brasileiro para enfrentamento do crime organizado transna-
cional, em especial o de tráfico internacional de pessoas, definido no
Protocolo de Palermo de 1996 e no Decreto 5.948/2006.
292 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

4. O TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS E O


CONTRABANDO DE MIGRANTES SOB O ASPECTO DOS
CONFLITOS INTERNACIONAIS NO SÉCULO XXI
O tráfico internacional de pessoas enquanto fenômeno é um
problema antigo, mas que cada vez mais ganha espaço dentro das
discussões contemporâneas, por suas novas facetas, ou seja, dos novos
crimes e violações de Direitos Humanos em que o tráfico de pessoas
possa estar inserido, a exemplo da escravidão moderna.
As dimensões do tráfico internacional de pessoas ainda são
complexas de serem delimitadas em um grande consenso universal,
visto que engloba diversos aspectos, como o da transnacionalidade,
e diversos atores, incluindo ainda diferentes jurisdições com percep-
ções distintas do que caracteriza o crime. Assim, tanto os conceitos
acerca do que é o tráfico de pessoas como os números de vítimas são
movediços, inconstantes (CHAPKIS, 2003) o que dificulta obter a
real dimensão do número de vítimas e de quantificá-lo como uma
rede criminosa transnacional. A falta de dados concretos é um dos
principais obstáculos ao seu combate e prevenção.
A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional, mais conhecida como Convenção de Palermo, ocorrida
no ano de 2000, produziu dois protocolos adicionais que atualmente
representam os principais documentos internacionais de referência
aos países: o Protocolo Adicional relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças e
o Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via
Terrestre, Marítima e Aérea.
Sobre o Protocolo Relativo à Prevenção, à Repressão e à Puni-
ção do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, seu artigo
3º, estabelece que:
Por “tráfico de pessoas” entende-se o recrutamento, o transporte, a
transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo
à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto,
DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR - DANIELLE CARVALHO REBOUÇAS 293

à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vul-


nerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios
para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre
outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo
menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de
exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou
práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2000a).
Já o Protocolo contra o Tráfico Ilícito de Migrantes determina
que “’tráfico ilícito de migrantes’ entende-se o facilitar da entrada
ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não é
nacional ou residente permanente com o objetivo de obter, direta ou
indiretamente, um beneficio financeiro ou outro beneficio material”
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2000b, p. 2).
Não existe apenas um único conceito ou interpretação universal
para o crime do tráfico internacional de pessoas ou contrabando de
migrantes. A Convenção de Palermo estabelece um modelo bastante
completo de modo a guiar o cenário internacional legal, reconhecido
por uma ampla gama de países partes da Organização das Nações
Unidas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS). As principais
diferenças entre essas duas definições acerca do ato criminoso envol-
vem três pontos principais: o consentimento, a exploração e o caráter
transnacional (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND
CRIME, 2018). Por questões de melhor compreensão, o tráfico ilícito
de migrantes é geralmente chamado de contrabando de migrantes.
O tráfico de pessoas é um crime em que não existe o con-
sentimento ou conhecimento real sobre as intenções as quais são
submetidos e envolve a coerção, ou seja, são enganadas, ameaçadas
ou forçadas. Diferentemente do contrabando de migrantes, que
apesar da precariedade e periculosidade, estão cientes, pelo menos
em parte, do ato criminoso (UNITED NATIONS OFFICE ON
DRUGS AND CRIME, 2018).
As vítimas do tráfico de pessoas sofrem exploração, que podem
294 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

ser de caráter sexual, laboral, ou até perderem a vida, envolvendo


a obtenção de lucros ou benefícios financeiros aos criminosos, en-
quanto que, em tese, o migrante está livre de exploração quando
chega ao destino final (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS
AND CRIME, 2018).
O terceiro ponto, que corresponde ao caráter transnacional do
crime de tráfico, atenta para o fato que o tráfico de pessoas pode
ocorrer de forma interna, onde as vítimas não necessariamente saem
de seus países, ou externa, internacionalmente, ao contrário do con-
trabando de migrantes, que necessariamente se caracteriza pela saída
das vítimas do país em que nasceram ou em que se encontravam
(UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2018).
Porém, o migrante contrabandeado não tem garantia nenhuma
das outras características que envolvem do tráfico de pessoas, ou seja,
pode acabar sofrendo as mesmas consequências de exploração ou até
mesmo perder a vida durante o trajeto. Segundo McAuliffe e Laczki
“dadas as relações de poder desigual entre os contrabandistas e os
migrantes – um migrante contrabandeado pode rápida e involunta-
riamente tornar-se uma pessoa traficada”, onde há indícios inclusive
do sequestro de migrantes por contrabandistas. (MCAULIFFE e
LACZKO, 2016. p. 6).
A complexidade na compreensão do tráfico internacional de
pessoas e do contrabando de migrantes são os vários agentes que
podem estar envolvidos no processo (MCAULIFFE e LACZKO,
2016). Configurá-lo como uma rede criminosa transnacional ou in-
divíduos e pequenos grupos contrabandistas, neste caso, quem são
estes indivíduos, como é os perfis vulneráveis das vítimas, e a possível
corrupção de agentes estatais envolvidos são questionamento que di-
recionam ações de prevenção e punição diferentes.
Ao mesmo passo em que o mundo e as sociedades evoluem,
baseados principalmente no desenvolvimento de novas tecnologias
e no crescimento econômico, a instabilidade em diversas partes do
DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR - DANIELLE CARVALHO REBOUÇAS 295

globo contrasta com a perspectiva progressista de países considerados


como grandes potencias.
Segundo dados da Global Conflit Tracker3, um guia interativo
de monitoramento, existem no momento 28 conflitos em andamen-
to no mundo, em diferentes países, regiões e continentes, dos quais
9 são considerados críticos4 e estão se agravando, 18 estão estáveis,
mas com impacto significante5, e 1 apresenta sinal de melhora.
Entre os conflitos com sinal de melhora está considerada a crise
de refugiados na União Europeia (CENTER FOR PREVENTIVE
ACTION`S, 2018).
Os conflitos analisados dividem-se por tipos, que incluem
guerra civil, violência criminal, instabilidade política, sectarismo,
disputa territorial, terrorismo transnacional, conflito interestadual e
outros motivos não convencionais (CENTER FOR PREVENTIVE
ACTION`S, 2018).
Mcauliffe e Laczko (2016) são categóricos ao afirmarem que:
Muitos formuladores de políticas, acadêmicos e analistas reconhe-
cem há muito tempo a importância de realizar pesquisas e análises de
aspectos da migração irregular, incluindo o contrabando de migran-
tes, mas indicações de mudanças sutis nas práticas de contrabando
nos últimos anos tornam esse volume oportuno (MCAULIFFE E
LACZKO, 2016, p. 2)6.
3 Integra o Centro de Ações Preventivas que monitora e avalia conflitos em andamento visando
uma análise sobre os impactos nos interesses dos Estados Unidos e outra dos status de cará-
ter independente dos interesses de determinado país. Os dados aqui relatados partem desta
segunda análise. A metodologia de análise dos conflitos apresentados advém de solicitações
e relatórios de autoridades governamentais, posteriormente avaliados por especialistas e aca-
dêmicos, determinando o status do conflito mensalmente ou de acordo com acontecimentos.
4 Estes conflitos são: O Talibã no Afeganistão; a guerra civil na Síria; as disputas territoriais no
sul do mar da China; as tensões do leste do mar da China; crise da Coréia do Norte; a guerra
contra o Estado Islâmico no Iraque e a guerra civil na Líbia (CENTER FOR PREVENTIVE
ACTION`S, 2018).
5 Os conflitos deste grupo são: militância islamista no Paquistão; conflito sectário no Líbano;
militância islamista no Egito; conflito na Ucrânia; Conflito curdo; violência criminal no Mé-
xico; Conflito Israel-Palestina; Boko Haram na Nigéria; conflito entre a índia e o Paquistão;
guerra no Iemên e a crise dos refugiados na União Europeia (CENTER FOR PREVENTIVE
ACTION`S, 2018).
6 “Many policymakers, academics and analysts have long recognized the importance of con-
ducting research and analysis of aspects of irregular migration, including migrant smuggling,
but indications of subtle shifts in smuggling practices in recent years renders this a timely
volume” (Tradução livre).
296 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

Os deslocamentos, sobretudo os de maneira forçada, ganham


força ao passo contrário da abertura dos países em receber imigrantes
se torna cada vez menor, havendo assim “um crescente reconhecimento
de que o contrabando de migrantes é um aspecto cada vez mais signifi-
cativo da migração irregular para muita regiões e milhares de migrantes
em todo o mundo” (MCAULIFFE E LACZKO, 2016, p. 2).
As migrações forçadas dentro do fenômeno de tráfico de pes-
soas, sob a forma do contrabando de migrantes, encontram-se em
um grande limbo, visto que está ligada diretamente à imigração
ilegal, ocasionando o surgimento de diversas barreiras para sua iden-
tificação real e o combate.
A migração irregular de pessoas vindas de países em conflitos
está diretamente ligada ao contrabando de migrantes e ao tráfico de
pessoas, realidades jurídicas distintas, mas que se encontram profun-
damente interligadas, já que “dada as relações de poder desiguais entre
contrabandistas e migrantes. – Um migrante contrabandeado pode
rapidamente e involuntariamente tornar-se uma pessoa traficada”
(MCAULIFFE E LACZKO, 2016, p. 2).
Segundo o Missing Migrants Project, que monitora migrantes,
inclusive refugiados, morreram ou desapareceram no processo de
migração para um destino internacional, mais de 5,732 mil pessoas
morreram desde 2015, dentre elas 876 somente nos três primeiros
meses de 2018 (INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MI-
GRATION, 2018).
O contrabando de migrantes requer respostas multifacetadas,
abrangendo 4 áreas principais, que são: a proteção e assistência aos mi-
grantes vítimas do contrabando, a abordagem das causas, a ampliação
da capacidade dos países na interrupção dessa atividade criminosa e
o estimulo acerca da investigação e recolhimento de dados (MCAU-
LIFFE E LACZKO, 2016).
A falta de dados integrados e concretos sobre o tráfico de in-
ternacional de pessoas e o contrabando de migrantes dificulta, mas
DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR - DANIELLE CARVALHO REBOUÇAS 297

não impede a mobilização dos países em propor soluções para uma


migração mais segura. Os dados sobre as mortes ou desaparecimen-
tos de migrantes são alarmantes. É preciso obter maneiras de uma
melhor compreensão de como o contrabando de migrantes, é visto
e delimitado em diferentes países e regiões, ciente de que proble-
mas transnacionais pedem soluções transnacionais (MCAULIFFE
e LACZKO, 2016).

5. O FECHAMENTO DE FRONTEIRAS COMO AGRA-


VANTE DO TRÁFICO INTERNACIONAL DE MIGRANTES
FORÇADOS
O tráfico internacional de pessoas e o contrabando de migran-
tes estabelecem-se assim como um crime transnacional, não só pelo
fato de que transpassa as fronteiras de um Estado, mas pela necessida-
de de combate e punição de forma conjunta. Afetando diretamente a
dignidade da pessoa humana, subjugando os indivíduos ao status de
objeto ou mercadoria, constitui uma ameaça aos Direitos Humanos
de todas as sociedades do globo.
A migração irregular abre mais perigos à segurança mundial
do que uma migração regular e controlada pelos Estados. Pois o trá-
fico internacional de pessoas e o contrabando de migrantes, como
um mercado ilícito demonstra que as fronteiras dos Estados e o
forte controle sobre elas jamais estiveram cerradas integralmente ou
foram suficientes em sua totalidade. Pelo contrário, o fechamento de
fronteiras objetivando o bloqueio da passagem de certos grupos ou
indivíduos aumenta a vulnerabilidade humana.
A criminalização das vítimas por parte dos Estados vai de en-
contro ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, que, segundo
Cançado Trindade (1997), consagra de maneira efetiva o “critério da
primazia da norma mais favorável às vítimas” (CANÇADO TRIN-
DADE, 1997, p. 22). Neste caso, a combinação binária lícito/ilícito,
que Varella aponta como “característica de identificação do sistema
298 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

jurídico” (VARELLA, 2012, p. 319), não corresponde com a efetiva


busca pela justiça.
É, portanto, necessário o adensamento de uma gramática
comum entre os países para encontrar soluções realmente eficazes
para as transformações e demandas sociais de nosso século.
O que Varella (2012) chama de nova realidade, nas feições
de um direito internacionalizado e complexo, aponta não para uma
“comunidade internacional” entre os Estados em sentido natural
e espontâneo, mas sim para uma “sociedade internacional”, onde
predomina a vontade de forma consciente na implementação de
normas jurídicas, a fim de alcançar um meio termo entre as duas
ideias (VARELLA, 2012).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O crime de caráter transnacional é um fenômeno crescente nas
últimas décadas, apresentando-se como uma imponente ameaça ao or-
denamento jurídico nacional e internacional, como uma forte ameaça
às instituições democráticas. O tráfico internacional de pessoas consti-
tui um grande desafio internacional contemporâneo, por ser um crime
complexo de ser delimitado e controverso no sentido de um consenso
universal entre as mais diversas jurisdições. Além disso, a dificuldade
em se ter dados concretos e fidedignos à realidade apresenta-se como
um grande obstáculo a identificação da real dimensão do problema. A
crise migratória presenciada a partir de 2014, já envolve uma grande
quantidade de pessoas refugiadas, que são expostas às redes criminosas
de contrabando buscando uma fuga e por sua vulnerabilidade correm
graves riscos de tráfico e exploração.
A Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado
Transnacional é, atualmente, o principal instrumento em âmbito in-
ternacional que guia a cooperação entre os países no combate ao crime
transnacional e na busca por soluções eficazes. Por meio de seus pro-
tocolos, que influenciam o sistema político internacional na adoção
DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR - DANIELLE CARVALHO REBOUÇAS 299

de políticas, há a busca da construção de valores comuns entre os


Estados, que subentendam a proteção e a valorização do ser humano.
A Constituição brasileira de 1988 reinseriu o país no cená-
rio das relações internacionais e institucionalizou os princípios da
dignidade humana e os direitos humanos, incumbindo-se de res-
ponsabilidades no que diz respeito ao enfrentamento de problemas
comuns, inclusive de enfrentamento ao crime transnacional de trá-
fico de seres humanos, admitindo a importância da ação integrada
em um mundo interligado e interdependente em um mundo globa-
lizado. O decreto 5.948/2006, assim como a busca cada vez maior
do cumprimento de decisões oriundas de instâncias jurisdicionais
internacionais e também a adoção e implementação de medidas
legislativas e administrativas ligadas aos princípios da cooperação
internacional ressaltam o papel indispensável da cooperação inter-
nacional e da jurisdição transnacional na construção do sistema
brasileiro de enfrentamento ao crime de tráfico de pessoas.
A cooperação internacional como elemento de autoajuda
(self-help), apresenta-se como elemento primordial para a segurança
nacional de todos os países, uma vez que as fronteiras e o controle
atual destas atualmente não constituem impeditivos concretos à mate-
rialização de um crime transnacional como um risco comum a todos.
Ao contrário do que se imagina em outras áreas, a cooperação
internacional como mecanismo de combate ao crime transnacional
de tráfico de seres humanos não incide ganhos assimétricos ou relati-
vos de acordo com o poder dos Estados, já que todos ganham com o
combate coletivo aos riscos sentidos também de forma coletiva.
As migrações, sobretudo no que diz respeito às forçadas apre-
sentam-se como um grande desafio a ser resolvido por meio da
cooperação internacional, que, junto ao fenômeno do tráfico inter-
nacional de pessoas, constitui um dos maiores obstáculos aos direitos
humanos do século XXI.
A decrescente disponibilidade dos países na recepção desses
300 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

migrantes vai de encontro oposto ao número de refugiados que


só aumentam, consequentemente estimulando a migração dessas
pessoas de modo irregular, o que, por conseguinte tem efeitos sobre
o número crescente de migrantes de morrem ou desaparecem nas
rotas de fugas entre os países.
A relação entre o tráfico de pessoas, o contrabando de migrantes
e as migrações forçadas, encontram dentro da migração irregular sua
principal vulnerabilidade, que aliada a dificuldade na obtenção de
dados tecem complexos obstáculos.
Dessa maneira, se fazem necessárias respostas que englobem a
proteção das vítimas, e a não criminalização dos migrantes sem antes
a abordagem e investigação das causas, assim como o levantamento
de dados, a fim de que se possa ampliar a capacidade dos países no
combate ao tráfico internacional e contrabando de migrantes.
O controle de fronteiras visando a dificultar ou impedir a en-
trada de pessoas que estejam fugindo de seus países de origem são
potencialmente estimulantes do crime transnacional por meio do
contrabando de migrantes, além disso não resolvem a crise migrató-
ria. Dessa maneira, a aderência à protocolos internacionais e a busca
por soluções que sejam benéficas coletivamente promovem resultados
mais eficazes, de proteção mais efetiva, além de resgatar as promessas
constitucionais à dignidade humana.
É imprescindível a transparência entre os países, a construção
de um ambiente jurídico legítimo da imposição de sanções duras,
inclusive por estruturas supranacionais, a competência das instituições
nacionais em um cenário também internacional, a revisão constante
de garantias constitucionais baseadas nos direitos humanos a fim de
que se possa construir ambientes jurídicos consistentes e justos.

REFERÊNCIAS
CENTER FOR PREVENTIVE ACTION`S (CPA). Global Conflict Tracker. Council
on Foreign Relations. 2018. Disponível em: <https://www.cfr.org/interactives/glo-
bal-conflict-tracker?cid=soc-twitter-in-gct-042616#!/>. Acesso em: 22 de mar. de 2018.
DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR - DANIELLE CARVALHO REBOUÇAS 301

CHAPKIS, Wendy. Trafficking, migration, and the law. Protecting innocents, punishing
immigrants. Gender & Society. vol. 17, n. 6, December, p. 923-937, University f Sou-
thern Maine, 2003. Disponível em: <http://www.nswp.org/sites/nswp.org/files/CHAP-
KIS-TRAFFICK.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2018.
DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (III): La refondation des pou-
voirs. Seuil, 2007.
DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (II): Le pluralisme ordonné.
Seuil, 2006.
INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION. Missing Migrants Project:
Tracking Deaths Along Migratory Routes. Geneva, 2018. Disponível em: <https://missing-
migrants.iom.int>. Acesso em: 01 abr. 2018.
KOH, Harold Hongiu. Transnational Legal Process. Nebraska Law Review, v. 75, 1996.
MCAULIFFE, M.L. LACZKO, F. Migrant Smuggling Data and Research: A global
review of the emerging evidence base. Report by International Organization for Migra-
tion. Edited by M.L. McAuliffe and F. Laczko. Geneva, 2016. Disponível em: <https://
pt.scribd.com/document/335900887/Migrant-Smuggling-Report-by-OIM>. Acesso
em: 27 mar. 2018.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Protocolo Adicional à Conven-
ção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à
Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e
Crianças. Palermo, 2000a. Disponível em: <http://sinus.org.br/2014/wp-content/
uploads/2013/11/OIT-Protocolo-de-Palermo.pdf> Acesso em: 22 de mar. de 2018.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Protocolo Adicional à Convenção
das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional contra o Tráfico Ilícito
de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea. Palermo, 2000b. Disponível em: <http://
www.gddc.pt/cooperacao/materia-penal/textos-mpenal/onu/protocolomigrantes2.pdf >.
Acesso em: 23 de mar. de 2018.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os processos de globalização. In: Globalização: fatalida-
de ou utopia. Porto, 2001.
TRINDADE, Cançado. Tratado Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1997.
UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME (UNODC). Tráfico de Pes-
soas e Contrabando de Migrantes. Escritório de Ligação e Parceria no Brasil. Brasília, 2018.
Disponível em: <https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/trafico-de-pessoas/index.html>.
Acesso em: 25 de mar. de 2018.
VARELLA, Marcelo D. Internacionalização do direito: Direito internacional, globalização e
complexidade. Tese apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)
para obtenção do titulo de Livre-Docência em Direito Internacional. São Paulo, 2012.
302 DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL –


SEÇÃO DE GOIÁS – GESTÃO 2016-2018

Diretoria da OAB/GO
Lúcio Flávio Siqueira de Paiva - Presidente
Thales José Jayme - Vice-Presidente
Jacó Carlos Silva Coelho - Secretário-Geral
Delzira Santos Menezes - Secretária-Geral Adjunta
Roberto Serra da Silva Maia – Tesoureiro

Diretoria da Escola Superior de Advocacia da OAB/GO


Rafael Lara Martins - Diretor-Geral
Giovanny Heverson de Mello Bueno - Diretor-Adjunto
Luciana Lara Sena Lima - Diretora-Adjunta
Rildo Mourão Ferreira - Diretor-Adjunto

Conselho Federal da OAB/GO


Dalmo Jacob do Amaral Júnior
Fernando de Paula Gomes Ferreira
Leon Deniz Bueno da Cruz
Marcello Terto e Silva
Marisvaldo Cortez Amado
Valentina Jungmann Cintra

Diretoria da CASAG
Rodolfo Otávio Pereira da Mota Oliveira – Presidente
Marcelo Di Rezende Bernardes - Vice-Presidente
Ana Lúcia Amorim Boaventura - Secretária-Geral
Estênio Primo de Souza - Secretário-Geral Adjunto
Carlos Eduardo Ramos Jubé - Direto Tesoureiro
Cácia Rosa de Paiva - Diretora-Adjunta
Helvécio Costa de Oliveira - Diretor-Adjunto
Osório Evandro de Oliveira Silva - Diretor-Adjunto
Tênio do Prado - Diretor-Adjunto
Thiago Mathias Cruvinel - Diretor-Adjunto
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SEÇÃO DE GOIÁS - GESTÃO 2016-2018 303

Conselho Seccional da OAB/GO

Aibes Alberto da Silva Leandro de Oliveira Bastos


Allinne Rizzie Coelho Oliveira Garcia Leandro Martins Pereira
Ana Carollina Ribeiro Barbosa Leandro Melo do Amaral
Ana Paula Félix de Souza Carmo Gualberto Lilian Pereira de Moura
André Luis Cortes de Souza Luciano de Paula Cardoso Queiroz
Arcênio Pires da Silveira Luis Gustavo Nicoli
Ariana Garcia do Nascimento Teles Marcos Cesar Gonçalves de Oliveira
Bárbara de Oliveira Cruvinel Marlene Moreira Farinha Lemes
Bartira Macedo de Miranda Santos Maura Campos Domiciana
Carla Franco Zannini Maurício Alves de Lima
Carlos André Pereira Nunes Milena Maurício Moura
Caroline Regina dos Santos Nadim Neme Neto
Colemar José de Moura Filho Osmar de Freitas Junior
Daniella Grangeiro Ferreira Paulo Gonçalves Paiva
Danilo Di Rezende Bernardes Philippe Dall’Agnol
Danúbio Cardoso Remy Rafael Lara Martins
David Soares da Costa Junior Raphael Rodrigues de Ávila Pinheiro Sales
Diego Martins Silva do Amaral Renata Abalém
Dirce Socorro Guizzo Renata Medina Felici
Eduardo Alves Cardoso Júnior Ricardo Gonçalez
Eliane Ferreira Pedroza de Araújo Rocha Ricardo Silva Naves
Eliane Simonini Baltazar Velasco Rildo Mourão Ferreira
Erlon Fernandes Cândido de Oliveira Rodnei Vieira Lasmar
Fabrício Antônio Almeida de Brito Rodrigo Lustosa Victor
Fabrício Cândido Gomes de Souza Romildo Cassemiro de Souza
Fabricio Rocha Abrão Rubens Fernando Mendes de Campos
Flávia Silva Mendanha Crisóstomo Sara Mendes
Flávio de Oliveira Rodovalho Scheilla de Almeida Mortoza
Flávio Henrique Silva Partata Sérgio Murilo Inocente Messias
Henrique Alves Luiz Pereira Simon Riemann Costa e Silva
Idélcio Ramos Magalhães Filho Sirlene Moreira Fidélis
Iraci Teófilo Rosa Telmo de Alencastro Veiga Filho
Janine Almeida Sousa de Oliveira Valdir José de Medeiros Filho
Janúncio Januário Dantas Valéria Alves dos Reis Menezes
Jean Pierre Ferreira Borges Vandelino Cardoso Filho
Jônatas Moreira Vasco Rezende Silva
José Carlos Ribeiro Issy Vitor Hugo Albino Pelles
José Humberto Abrão Meireles Viviany Souza Fernandes
José Mendonça Carvalho Neto Waldemir Malaquias da Silva
Juscimar Pinto Ribeiro Weliton Soares Teles

Potrebbero piacerti anche