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Corpo e devir na filosofia de simondon

Autor
Tiago Rickli
Instituição
UFPR
Resumo
Nosso trabalho tem como problema a natureza do corpo e a temporalidade de seu devir
na filosofia de Simondon. Visando determinar os fatores que ativamente intervêm na
individuação de um corpo, Simondon conduz uma profunda investigação de suas
condições energéticas de gênese e existência e, longe de assimilá-las à representação de
um estado de coisas inteiramente dado, a energia constituinte de um corpo é descoberta
como simultânea e inseparavelmente potencial e atual. Portanto, de um ponto de vista
energético, um corpo tem em sua consistência os dois lados de uma mesma realidade.
Porém, na filosofia de Simondon, a dupla potencialidade e atualidade do corpo não se
confunde com a ausência ou presença de uma forma estática, mas se exprime na
atividade de relação que a república de suas partes entretém consigo e sua vizinhança.
Exercer uma atividade de relação é uma condição constitutiva de cada fração de energia
animando a existência de um corpo, e à capacidade de sua energia potencial de efetuar-
se corresponde um poder de modificar suas relações constituintes. Ora, se a carga de
realidade potencial num corpo consiste numa capacidade real de modificá-lo em sua
estrutura, esta capacidade implica, então, um modo no qual esta operação se realiza.
Com efeito, para Simondon, uma estrutura não surge pronta e instantaneamente dada
por toda a extensão de um corpo; antes, é preciso que sua atualização seja de pouco em
pouco construída ou amplificada. Estendendo-se progressiva e gradativamente desde um
foco de gênese, a operação estruturante se prolonga através do corpo como um limite
ativo sempre situado na fronteira entre o estruturável e o recém-estruturado.
Deslocando-se de uma margem a outra, o ato estruturante procede, portanto, numa
temporalidade assimétrica a si mesma, isto é, num devir que sempre se encontra em vias
de passar e já passado. Há, pois, na teoria da individuação de Simondon, uma íntima
relação entre o corpo e a temporalidade que ele vive nas suas modificações estruturais, e
é tendo em vista esta relação que desenvolveremos nossa apresentação.
http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/agenda-encontro-2018/item/559-
categoriaagenda2018/18952-corpo-e-devir-na-filosofia-de-
simondon?fbclid=IwAR2LR4v6b1bCmTN-OknDpypBjGsUEhA7x5OY_iumQlEc67o-VHTtuHX2dGI
Simondon
Gilbert Simondon
“Um filósofo inspirado na atualidade da ciência e, ao mesmo tempo, reencontra os
grandes problemas clássicos, transformando-os, renovando-os. E o que Simondon
elabora é toda uma ontologia segundo a qual o Ser nunca é Uno” Gilles Deleuze
Simondon foi um biofísico e filósofo contemporâneo (1924-1989), cuja obra mais
discutida e trabalhada, por pensadores como Baudrillard, Deleuze e Latour, nasceu de
sua tese do doutoramento: “L’ individu et as genèse psysico-biologique” , “L”
individuation psychique et collective”(teses principais), “Du mode d’esxistence des
objetes techniques”(tese secundária).
Ele se coloca na história filosófica como um teórico dos processos de individuação quer
que se trate de cristolografia, de biologia ou de individuação psíquica, social ou técnica.
Toma os operadores da Física quântica como base para desenhar uma outra ontologia.
Ele mostra como ao longo da tradição da filosofia e das ciências ocidentais, jamais se
pensou o processo de individuação- a história de como algo se torna algo- e sempre se
tomou o indivíduo como já dado.
PROBLEMA DA INDIVIDUAÇÃO ( que não produz apenas o indivíduo)
Existem duas vias segundo as quais a realidade do ser, como indivíduo, pode ser
abordada: via substancialista e a via hilemórfica. Na primeira encontramos o monismo,
que nos diz que o ser surge de uma reunião de átomos, que se reúnem e se dispersam,
mas constituídos por algo já pronto: átomos, os que não têm partes, como os indivíduos,
os que não se dividem. Na segunda perspectiva encontramos a idéia de bipolaridade em
que o indivíduo é engendrado pelo encontro de uma forma e de uma matéria.
Ambas teorias supõem que existe um princípio de individuação capaz de explica-la.
Não coloca o indivíduo no sistema de realidade em que a individuação se produz. Na
própria noção de princípio, há um certo caráter que prefigura a individualidade, é
necessário supor a existência de um primeiro termo, o que explicará que o indivíduo
seja indivíduo.
Assim, a pesquisa do princípio da individuação realiza-se antes ou depois da
individuação, conforme o modelo, seja ele tecnológico e vital (hilemórfico) ou físico
(substancialista).
Mas em ambos os casos há uma zona obscura que é deixada de lado. É exatamente essa
área que interessa Simondon: o Meio, o Processo.
Este interesse leva a uma reversão na investigação do princípio da individuação, já que
o quê se torna primordial é a operação a partir da qual o sujeito vem a existir.
O que a individuação faz aparecer é não só o indivíduo, mas também o par indivíduo-
meio. Dessa maneira, o indivíduo é relativo em 2 sentidos porque ele não é todo ser e
porque resulta de um estado do ser em que ele não existia como indivíduo.
Simondon pesquisa detalhadamente a individuação dos cristais como modelo de estudo
da gênese. Claro que no domínio físico é muito diferente do domínio do vivo. No
mundo físico a mediação é brusca e definitiva (A Gênese do Indivíduo- Simondon-
p.104) enquanto que no domínio do vivo a atividade é permanente, favorecendo um
palco e teatro da individuação.
Mas, salientamos que o modelo da individuação não se encontra só no mundo físico e
no vivo, ele também aparece no psiquismo e nos coletivos humanos- não há, por sinal,
individuação psíquica que não seja imediatamente coletiva. Ele se encontra tanto no ser
como no conhecer. Não há diferença entre os modos, os movimentos com que a
Natureza se cria e os modos como os homens constroem seu conhecimento da Natureza,
do Cosmos, ou de si mesmos. Simondon recupera um monismo ontológico como o de
Espinosa.
Conceitos principais
Individuação
Entendida como uma resolução parcial e relativa. É a primeira fase do Ser. Apresenta a
capacidade que o ser tem de defasar-se em relação a si mesmo, de resolver-se
defasando-se, o que nos sinaliza a conservação do ser pelo devir.
Para pensar a individuação é necessário considerar o ser, não como substância, matéria
ou forma, mas como sistema tenso, supersaturado. Tanto que neste entendimento, da
tensão indivíduo-meio emerge o devir como resolução das tensões primeiras e uma das
conservações dessas primeiras forças, sob estrutura, dá-se o indivíduo.
EQUILÍBRIO INSTÁVEL OU METAESTABILIDADE
Antes só se conhecia o equilíbrio estável e se pensava que o ser estava em estado de
equilíbrio estável. Os antigos- gregos- só conheciam a instabilidade e a estabilidade, o
movimento e o repouso. Para conhecer a metaestabilidade foi preciso a noção de energia
potencial de um sistema, a idéia de ordem e a de aumento de entropia.
Esta mudança de paradigma nos interessa muito porque o equilíbrio estável exclui o
devir, pois corresponde ao grau mais baixo de energia potencial, é o equilíbrio atingido
quando todas as transformações possíveis foram realizadas e não existe mais força. Já o
instável, entendido aqui como plano das forças e puro movimento, não permite
configurações duráveis num sistema.
O regime da metaestabilidade, fronteira entre o estável e o instável, não só é mantida
pelo indivíduo como também carregada com ele, de maneira que o indivíduo constituído
transporta consigo certa carga associada de realidade pré- individual (reservatório de
possíveis). Essa natureza pré-individual, que permanece associada ao indivíduo, é uma
fonte de estados metaestáveis futuros de onde poderão sair novas individuações.
Na realidade o indivíduo só pode ser contemporâneo de sua individuação,
contemporâneo do princípio. O indivíduo não é somente resultado, mas meio de
individuação.

METAESTÁVEL
PRÉINDIVIDUAL TRANSCENDENTAL EM DELEUZE

MEIO PROVIDO DE SINGULARIDADES QUE CORRESPONDEM À


EXISTÊNCIA E À REPARTIÇÃO DOS POTENCIAIS ENERGÉTICOS. ESPAÇO
EM QUE SE PODE SER SINGULAR SEM SER INDIVIDUAL

Tudo muda com a dimensão quântica do pré-individual. O que se individua sai desse
todo ou desse nada, conjunto de todos os potenciais, em transformação veloz e
inidentificável, quando dois ou mais potenciais são, por acaso, içados fora do plano pré-
individual, uma informação passa a circular de um a outro. Enquanto a informação se
faz em sua repetição criadora, algo está se individuando. O que se individua nunca deixa
de ser atravessado pelos fluxos potenciais de onde surgiu. A forma mais rica desses
sistemas físicos é a vida: com suas estruturas continuamente abertas e se replicando.
Simondon escreve: “Poder-se-ia chamar natureza a esta realidade pré-individual que o
indivíduo leva consigo, tratando de encontrar na palavra natureza o significado que lhe
davam os filósofos pré-socráticos: a natureza é realidade do possível que, sob as
espécies do apeíron (indeterminado), faz surgir toda forma individuada; a Natureza não
é o contrário do homem, mas a primeira fase do ser”
O ser pré-individual é o ser sem fases, ao passo que o ser após a individuação é um ser
fasado.
Problemático
Primeiro momento do ser pré-individual. A individuação é a organização de uma
resolução para um sistema objetivamente problemático.
Adaptação
Na individuação do vivo há tb a individuação do meio na medida em que cada processo
no vivo vai desdobrando, vai se inventando também um mundo ou um meio ambiente
diante desse vivo, emergindo e tornando-se viável para esse vivo. Assim entre indivíduo
e meio encontramos a imbricação ou seja uma relação de co-dependência.
Técnica
Para Heidgger a técnica servia em sua perspectiva instrumental, ou seja, estando a
serviço do homem e do bem-estar social. Tal idéia está relacionada com o Humanismo e
o discurso de progresso da modernidade. Simondon nos apresenta a perspectiva da
imbricação, ou seja, a técnica é concebida como algo genuinamente humano. A
mixagem homem-máquina é a integração da técnica à cultura enquanto o objeto técnico
é mediador entre o gênero humano e o mundo.
“O ser vivo resolve problemas não apenas se adaptando, ou seja, modificando sua
relação com o meio (como a máquina pode fazer), mas modificando-se ele mesmo.
Inventando estruturas internas novas. “ Simondon
Simondon procurou pensar a individuação em seu aspecto mais amplo, tanto no físico
quanto no biológico, no psíquico e no social. Focando a processualidade. Descarta a
perspectiva de dar formar ou moldar e opta pela idéias de modulação. Neste caso, o
indivíduo não recebe uma forma. Ele se auto-modula, e o que lhe permite esta auto-
modulação é o seu regime de metaestabilidade.
https://www.ufrgs.br/corpoarteclinica/?page_id=135
ED. 15
Ano 4 | N. 15 | Jan. 2016
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“ESTADO DAS COISAS”: AGIR NO CORPO, AGIR NA ARTE DA PERFORMANCE


Cinthia Mendonça

Neste artigo veremos o propósito da arte da performance a partir da diferença entre agir e fazer. O agir ao qual me refiro podemos encontrar na peça Este Corpo que me Ocupa, de João
Fiadeiro, quando se coloca quase vazio, como coisa. Vemos este agir na maneira como se movimenta Yvonne Rainer em Trio A, retirando o virtuosismo da bailarina de cena e dando lugar ao
movimento. O mesmo agir parece estar também na ação observada por Fernand Deligny nos traços dos mapas dos trajetos das crianças autistas na fazenda onde viviam na França. Nesse
caso, o mapa substitui a fala, e nos possibilita enxergar um agir anterior ao sujeito subjetivado e quiçá mais livre dos efeitos dos dispositivos de poder que tendem a formatar a existência de
corpos e de sujeitos no mundo.
Descrevo, nas páginas que seguem, as referências e inquietações que me mobilizam no âmbito do trabalho que cruza pesquisa e experimentação artística e que nomeio Estado das
Coisas. Este resulta dos anos de minha pesquisa de mestrado em Artes Visuais na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Por meio de três séries, que vão sendo
criadas com performances, fotografias e vídeos, a produção que leva este título ora evidencia a subjeção que pode existir entre sujeito e objeto técnico, ora propõe linhas de fuga a essa
condição, abrindo possibilidades para novas formas de existências e outros usos, apontando, assim, a outras perspectivas além do antropocentrismo ao qual estamos acostumados. O objeto
técnico ao qual me refiro está profundamente inserido em nosso cotidiano e tem especial relevância na formação de nossa subjetividade. Ele é produzido em linhas de montagem de fábricas,
em escala industrial, e é parte de uma cadeia de extração, produção, venda e consumo.
O trabalho aqui apresentado está no limiar entre dança e artes visuais. Além disso, a tecnologia é trazida como tema e a sonoridade é tratada com bastante atenção. Na composição das
performances utilizo, de maneira simples, a vibração e a ressonância que pode produzir a matéria de objetos técnicos em contato com o corpo e seus movimentos. Estado das Coisas vem
problematizar esteticamente a centralidade do sujeito assim como a perspectiva que homogeneíza os modos de existência.

pessoa, objeto, pedra, planta


Deligny assinala, em suas pesquisas, a existência de um agir que abre possibilidade a modos de existência desprendidos de uma certa imagem unitária centrada em torno do sujeito. A
questão de Deligny é como existir sem impor à pessoa os ditames do sujeito e as determinações da linguagem. Para ele, o autista é o indivíduo em ruptura de sujeito e, por isso, nos interessa
aproximar alguns elementos da experiência de Fernand Deligny, com enfoque no que ele define como agir, a determinadas manifestações da arte da performance. Será possível encontrar na
performance um sujeito que pode romper, enquanto age, com os a-sujeitamentos impostos a ele?
Deligny defende o agir como diferente do fazer, como algo que nos aproxima de um mundo onde “o balanço da pedra e o ruído da água não são menos relevantes do que os murmúrios dos
homens” (PELBART, 2013: 261). O fazer seria fruto da vontade dirigida a uma finalidade, enquanto agir é o gesto desinteressado, o movimento não representacional, sem intencionalidade,
que dá lugar ao intervalo, ao tácito, à irrupção, ao extravagar, à dessubjetivação (Ibidem).
Agir faz parte de um mundo onde a linguagem ainda não está ou já deixou de estar. Esse agir nos aproximaria do universo a-consciente do mineral, do vegetal e do animal, então “entregues
ao inato que os anima” sem que seja necessário “fazer como ou imitar, como ‘paimãe’” (Ibidem, p. 263). Sendo assim, podemos dizer que existe um agir que pode ser procedimento não
significante, não representacional, sem finalidade (não engendrado na lógica de causalidade do tempo), isto é, maquínico. O agir maquínico nos aproxima do desejo, do acontecimento, do
atual, operando como uma linha de fuga aos dispositivos de poder, enquanto o fazer nos conecta como parte engendrada dos dispositivos de controle e nos mantém totalmente articulados
com os enunciados de poder.
Cinthia Mendonça e Andreas Trobollowitsch, |Stand :: estado das coisas, 2015

Na série pessoa, objeto, pedra, planta realizo performances que trabalham a disposição sem hierarquia entre sujeitos e objetos técnicos. A ideia de trabalhar o sujeito frente ao objeto vem de
um desejo de tensionar e questionar o lugar de poder ocupado por ambos. Quem manipula o quê? Somos manipulados pelos objetos na mesma medida em que os manipulamos? Exemplos
do material criado a partir dessas indagações estão nas performances “a coisa muda”, “|Stand” e “Juntos”.
Nessa série, trabalho com operações que chamo de disposição e deslocamento, em que objeto, humano, vegetal e mineral são dispostos lado a lado sem hierarquias e, em seguida,
deslocados de suas significações. A disposição está na simples organização de corpos no espaço, seguida de inércia e tempo para observação. O deslocamento do objeto está na
identificação de sua tecnicidade, isto é, de sua estrutura principal e, em seguida, em sua modificação, dando a ele nova função, novo uso ou, ainda, desutilizando-o. A operação relativa ao
deslocamento do sujeito consiste em deslocá-lo de seu lugar de manipulador do objeto. Já o deslocamento de plantas, pedras e demais representantes dos reinos vegetal e mineral se dá pela
proposição de outras maneiras de uso. Os deslocamentos são operações de busca de novas formas, ou de novos modos de existência, sobretudo para o sujeito e para o objeto. Realizando
tais operações tenho, por fim, um produto que está conectado, ao mesmo tempo, com o imaginário e com a técnica.

fábrica
Recorro à fabricação para tratar do agir no corpo. A fabricação de um corpo se dá com a ativação da potência de criação de cada indivíduo. Para entendermos melhor o processo de
fabricação de corpos e sua conexão com o agir, que pode ser diferente do fazer, trazemos relatos sobre um outro modo de existir apresentados em estudos do antropólogo Eduardo Viveiros
de Castro, que nos apresenta a maneira ameríndia de perceber o corpo (e com isso a subjetividade), em que, ao contrário da maneira ocidental, o corpo não é algo dado, mas sim algo a ser
fabricado. Nessa perspectiva, age-se sobre o corpo porque ele é constantemente submetido a essa fabricação. Na puberdade, no casamento, no nascimento dos filhos, na doença ou no
processo de transformação de uma pessoa em xamã, em todos esses momentos de movimento e mudança está a fabricação dos corpos.
O antropólogo cita o exemplo da cultura Yawalapíti [1], cujos membros necessitam ter o corpo submetido a processos intencionais e periódicos de fabricação, que consiste em um conjunto de
intervenções sobre as substâncias que conectam o corpo ao mundo e sobre fluidos vitais, alimentos, eméticos, tabaco, óleos e tinturas vegetais, além da abstinência e da reclusão. O corpo é
fabricado no âmbito natural e social, sem distinção. Ele passa por uma verdadeira metamorfose em que os processos fisiológicos e sociológicos não se distinguem da transformação do corpo,
das relações sociais e dos estatutos que as condensam em uma só coisa. “Assim a natureza humana é literalmente fabricada ou configurada pela cultura. O corpo é imaginado, em todos os
sentidos possíveis da palavra, pela sociedade” (CASTRO, 2002: 72).
Na natureza fabricada pela cultura do povo Yawalapíti, o corpo em metamorfose parece em estado constante e imanente de descentralização de si, na medida em que a materialidade do
corpo é o foco da existência. Ou ainda, usando o termo de Giorgio Agamben, existe, nessa prática, um constante profanar, um trazer para si (para o mundo) a matéria que parece escapar.
Seguindo esse raciocínio, podemos considerar a existência de um agir que sobrepõe tempos e símbolos numa condição atemporal e a-subjetiva. Além disso, o agir, nesse tipo de ritual, tem
dimensão coletiva, na medida em que existe desde a perspectiva de uma coletividade que o mantém como operador de realidades.
Na série fábrica, trago, por um lado, a proposta de uma perspectiva animista e, por outro, a “coisitude”. Como seria ver o mundo considerando que tudo é dotado de humanidade? Ou, como
seria se tudo fosse coisa? A matéria, nesse contexto, ora ganha vida ora a-sujeita-se enquanto coisa, abrindo, dessa forma, possibilidade para se ver além das ideias já estruturadas pelo
antropocentrismo em nosso tempo. Fábrica se apresenta como um exercício de perspectiva que, por meio da performance e da fotografia, busca maneiras outras de se estar no ou de se ver
o mundo.
É uma fábrica porque trata da matéria que fabrica corpos e objetos. É um experimento sobre contato e sobre as muitas partes que pode ter o todo. Na fábrica produzo fotografias em preto e
branco de performances que tratam da matéria do corpo na relação com a matéria dos objetos técnicos por meio de perspectivas distintas: a ideia animista presente em algumas culturas
ameríndias e um “devir coisa” como uma poética de resistência do objeto. [2] Segundo André Lepecki, a categoria coisa em sua coisitude pode, para além da funcionalidade, da utilidade do
“objeto utilitário de consumo”, indicar-nos um possível devir fora de um regime de uso e mais valia e, então, quiçá, escapar dos dispositivos de poder. Em relação ao sujeito, pode ocorrer o
mesmo ao deslocar-se de seu centro de gravidade em direção a sua coisitude. Aproximando-se de algo anterior ao conceito que tem de si mesmo, o sujeito poderá abdicar de sua posição
soberana no mundo, dando passagem a outras formas de sentir e agir. Essa suspensão do objeto de sua usabilidade e do sujeito de sua própria subjetividade, apesar de momentânea, tem
sua potência. A coisa que aqui propomos funciona como um escape. Anterior ao humano e a tudo que existe, a coisa talvez seja como uma involução, um processo de depuração em devir:
cada vez mais simples, econômica e sóbria (PELBART, 2013: 282).
Quando me refiro à matéria, estou interessada no contato com a matéria manufaturada, isto é, com aquilo que foi desterritorializado e transformado para dar forma ao objeto técnico. Penso a
tensão, a deformação e a reorganização que se dá neste contato entre matérias distintas. Também o tempo é um elemento a se considerar. Sobretudo, estou atenta às distintas
temporalidades que há no acesso das pessoas às tecnologias, bem como observo o abandono proveniente do desgaste da matéria, seja ela do corpo ou do objeto.

Cinthia Mendonça, ding :: Estado das Coisas (díptico), 2015

Como exemplo, trago o díptico ding, composição fotográfica onde mostro, em detalhe, o contato da pele com o metal de um velho trator. No contexto dessa série, fotografo a matéria-objeto
(alumínio, aço, cobre, plástico, entre outras) e a matéria-corpo (pele, pelos, articulações, estrutura óssea, entre outras), considerando o peso, a textura, a forma, o design e demais qualidades
de ambos. E então mostro os detalhes do contato entre corpo e objeto, evidenciando: contraste; fricção; tensão; resistência; vulnerabilidade; deformação; reorganização.
As imagens produzidas na série fábrica levam como inspiração o exemplo de algumas culturas ancestrais que consideram o corpo físico, a alma e a psique como uma só e única coisa. Isto se
mostra em rituais onde a matéria é trabalhada na liberação da própria matéria, por meio de uma identificação com a própria materialidade. Por exemplo: as vísceras de um animal morto são
colocadas sobre a barriga de um paciente em tratamento xamânico. As vísceras do animal em contato com o corpo do paciente vivo transformam a simbologia em coisa concreta, e a parte do
animal morto opera na cura da parte da pessoa viva. Quando o corpo de um animal é usado para curar o corpo de um humano, existe entre o humano e esse corpo de animal uma
identificação. Não se trata de simbologia, posto que é evidente a relação material estabelecida entre a pessoa e a operação de cura. Trata-se, então, de uma matéria em devir que edifica um
corpo em processo de cura. Nesse caso, não há mesmo separação entre corpo e espírito, ou espírito e matéria.
O mesmo poderia ocorrer em alguns casos da arte da performance? Acredito que sim, porque o agir na performance fabrica enunciados de ordem coletiva, assim como fabrica corpos, isto é,
o maquínico, o ritual e a performance podem contar com o agir que promove agenciamentos de dimensões, aproximando o sujeito (o corpo) novamente do mundo, sem mediações,
esvaziando-o de seus mecanismos dados e datados e, em seguida, conectando-o com seu próprio desejo.

transdução
Na série transdução trabalho a transferência que pode haver no contato de sujeitos e objetos. Essa operação pode ser via transdução ou ressonância. Segundo Gilbert Simondon, a
ressonância interna “é o modo mais primitivo da comunicação entre realidades de ordens diferentes; ela contém um duplo processo de amplificação e de condensação” (SIMONDON, 2009:
31). Já a transdução, tem como resultado a transformação do que passou de um registro a outro, por um processo que mistura transmissão, tradução e deslocamento no espaço e no tempo.
Ambas operações, ressonância interna e transdução, se aplicam ao processo de individuação do ser, que, na perspectiva do autor, não é algo estável, “o ser possui uma unidade transdutora,
isto é, ele pode defasar-se em relação a si próprio, ultrapassar a si próprio de um lado e de outro de seu centro” (Ibidem: 110).
A transdução [3], que dá título a essa série, usada como modelo de operação pode nos servir para o entendimento do que vem a ser um sujeito de subjetividade parcial, isto é, em devir
objeto, animal, substância e coisa.
Como sabemos, a ressonância interna é o que emana a matéria seja ela viva ou não. Ela é a via pela qual a matéria realiza trocas com o meio, com sua exterioridade. Portanto, a ressonância
está presente na matéria, assim como os enunciados estão presentes nos objetos. Dessa forma, a hipótese da série transdução é de que as operações de deslocamentos, como, por
exemplo, o “devir-coisa”, possuem uma ressonância que substitui o enunciado que se insere em objetos e sujeitos. Porque a coisa aproxima. Esta proximidade é o que nos faz perceber a
coisa em sua concretude. Não é exatamente o olhar que debruçamos sobre ela, ou o tato, o que nos faz ter certeza de que estamos diante da coisa, mas sim a percepção da matéria através
de sua ressonância. Sabemos que entre o objeto (ou sujeito) e a coisa o que existe é ressonância, a mesma ressonância que se encontra na nuvem semântica da palavra. Justamente por
ressoar, e não por significar ou representar, a ressonância seria uma espécie de antienunciado da matéria?
Nessa série me interesso justamente pelo entre meio que há em cada sujeito e objeto, aquilo que os aproxima como “coisas”, isto é, em um devir sem contornos em que dentro e fora se
misturam.
A aproximação, nesse contexto, não significa relação ou comunicação, mas sim espaço de contato ou disposição para contato. A transferência aqui vem a substituir a ideia de comunicação
ou relação que, em geral, prioriza a existência prévia de contornos definidos para sujeitos e objetos. Neste caso, tentamos provocar o des-centramento de objetos e sujeitos, a exemplo do
vídeo transdução [4], onde trabalho a proximidade de um objeto técnico, que, no caso, é uma roçadeira de motor de dois pontos, e uma pessoa. Com isso, propomos deslocar o objeto e o
sujeito de seus centros de gravidade, apagando, assim, os contornos existentes na definição de cada um deles, propondo, com isso, um devir que seja um tanto animal e um tanto coisa.

Cinthia Mendonça, transdução :: Estado das Coisas, 2015

Guattari afirma que ter a máquina [5] como um agenciamento seria abolir tudo aquilo que representa entidades fechadas umas em relação às outras, pois um dispositivo fechado implica
modos de comunicação, ou seja, é o universo da referência comunicacional que opera. Ao contrário, se invertermos essa perspectiva, “a transferência deve ser primeira, deve já estar lá”
(GUATTARI, 2003: 49). A máquina de subjetivação existirá quando os limites do ser forem ultrapassados, abrindo espaço a uma autocriação (autopoiética) onde “alguma coisa sempre
passa”. O agir, nesse caso, opera justamente onde “alguma coisa se passa”; sua dinâmica não é mesmo da ordem da comunicação, mas da ordem da afecção, da transferência, ou melhor,
da transdução (SIMONDON, 2007: 10-11). Dessa maneira, podemos considerar que há uma potência transdutora e irruptiva que habita as artes performativas, mas isso dependerá do agir ou
do fazer e não somente da dissidência de um artista.
O fazer pressupõe um sujeito enquanto o agir é conduzido por um agenciamento mais complexo da ação que envolve desejo, vontade do corpo, e uma série de fatores não conscientes que,
por fim, dão à ação uma consistência relevante para além do sujeito que a realiza. Explicando de maneira simples, talvez seja como ter mais intuição e menos afirmação como sujeito.
Por não ser facilmente apreendida pela visão, a ressonância interna seria algo da ordem da motilidade, do movimento invisível que nos aproxima do outro (objeto, aparelho, coisa), sem que
esta aproximação seja por meio de um sentido de funcionalidade, de interpretabilidade ou representabilidade. Trata-se talvez de um fenômeno de in-corporação seguido de ex-corporação. A
in-corporação por ressonância se dá na assimilação, na digestão, na elaboração do efeito do outro em si (o sujeito, o objeto, o aparelho ou a coisa), enquanto a ex-corporação por ressonância
se dá quando os efeitos desse outro em si começam a aflorar, a suar nos poros, a mostrar-se, a transbordar, a fazer o sujeito descentrar-se.
Falemos do agir a título de exemplo do que acontece na prática da dança butô. O butô será tratado, nesse caso, como prática e não exatamente como forma de espetáculo por conta do
contexto que nos pede uma análise mais relativa ao processo do que ao produto em si.
Segundo o diretor do grupo de butô Sankai-Juku, Ushio Amagatsu, “o butô é mais uma tentativa de articular a linguagem corporal do que de transmitir alguma ideia e visa proporcionar a cada
espectador uma viagem particular ao seu mundo interior” (BAIOCCHI, 1995: 17). No contexto da prática da dança butô, a vida do corpo é trabalhada para além de uma instância totalmente
consciente, ou melhor, a consciência é compreendida como algo que se faz também desde a vontade do corpo e não somente da mente que supostamente comanda.
Denominado por Tatsumi Hijitaka [6] como a dança da escuridão, a dança butô extrai o movimento desde o interior do corpo, de suas vísceras, de sua energia mais primária, e não
exatamente de uma forma coreográfica ou de um enunciado vindo do exterior para a superfície do corpo. O butô se compromete com o exercício constante de buscar na escuridão de um
corpo, em seus meandros ainda não iluminados, o movimento da dança que está sob forma de energia. Tais movimentos, por vezes, são tão mínimos que a visão não nos basta para captá-
los. Por vezes, a dança se faz na motilidade do corpo, em outras palavras, nos movimentos involuntários, invisíveis — os fluidos nas veias, as batidas do coração, isto é, na ressonância do
corpo. A autonomia do corpo é ouvida, é sentida e transformada em movimento e em dança. Um pouco parecido a esse agenciamento de energia é o que faz Yvonne Rainer, quando
estabelece a diferenciação entre energia aparente e energia investida. Pode parecer um tanto estranha a aproximação entre o trabalho de Rainer e o butô, porém, é possível perceber o que
proponho justamente no agenciamento da energia do corpo que evidencia o movimento e não o artista que dança. Ambos parecem apresentar uma força de liberação, e ao mesmo tempo são
disciplinados. Apesar da disciplina, o butô nem sempre será coreografado; ele não trabalha fundamentalmente dentro do conceito de coreografia. Já Rainer, parece querer fazer da
coreografia “o lugar” para provar e refletir sobre a dança e sobre o movimento que se funde a ela. Com isso ela faz irromper dentro da coreografia a vontade de um corpo.
Os movimentos da contracultura do butô dos anos de 1950 entendem a escuridão que lhes propõe Hijikata como sendo algo, digamos, não interpretado, não significado, não explicado pela
colonização ocidental. Existe, nessa ideia de escuridão, uma proposição de desfalque comunicacional, significativo, que evidencia que a linguagem não dá conta dos processos corporais e
subjetivos. O modo ocidental de ver e sentir o mundo, que se estabelece desde os enunciados da linguagem, não pôde interpretar o corpo e a subjetividade japonesa daquela época.
As práticas do butô funcionam de acordo com a dança de cada corpo, conforme o desejo e a imaginação de cada um, ou ainda de cada mestre de butô. “Não importa a técnica, mas o fazer
sem intenção” (BAIOCCHI, 1995: 18). Um exercício recorrente do trabalho de criação se faz por meio da imobilização. São longas sessões de inércia em que se coloca o corpo em um estado
de esvaziamento. Esvaziamento dos gestos e memórias cotidianas, para abrir espaço a outras intensidades. Muitas vezes, nesse processo de tentar fazer com que o corpo não se mova,
muita energia é contida nele e, do ato de deixar sair ou no escape involuntário dessa energia que foi contida na imobilização, é que muitas vezes nasce um movimento. Após esse processo, o
movimento que então vai preenchendo o corpo vem da imaginação. O butô põe a mente para imaginar, ocupando-a com aquilo que parece ser imprescindível para a criação. É imaginação
concreta, material, imaginar e deixar que a vida interna do corpo decida para onde vai o movimento. A relação estabelecida entre imaginação e ação é direta. Por exemplo, algumas vezes,
enquanto praticava o butô, eu era instruída a não separar essas coisas, pelo contrário, era levada a tentar provar a fusão delas. Decerto, o movimento nasce da materialidade da imaginação,
da energia agenciada pela vida interna do corpo. Talvez isso se dê porque de fato exista em algum momento a fusão entre a alma e a matéria (corpo) e entre a ação e a imaginação.
Enquanto pratico o butô, parece-me que o processo que leva ao movimento me coloca em proximidade com o contexto que, segundo Gilles Deleuze, propicia o encontro com o desejo.
Praticando-o senti-me muitas vezes próxima do “vazio”, beirando o silenciamento dos enunciados do corpo. Essa sensação me coloca no limite entre a presença da consciência que vem da
imaginação e do não controle do corpo que realiza um movimento não programado.
Concluindo, podemos dizer que o agir está conectado ao acontecimento. O conceito deleuziano não pode ser explicado segundo a ordem das causalidades por bifurcar a ordem do tempo: o
passado não dá mais conta de explicar e agir sobre o presente e o novo que se instaura, não respeita uma lógica de causa e consequência. O acontecimento é uma ruptura brusca,
intempestiva, que faz com que o corriqueiro se torne intolerável. Ele opera uma transformação, abre procedente a novas e outras possibilidades. Porém, segundo Deleuze, esse “possível” não
é exatamente o que é realizável, mas sim a própria potência de criação, “algo novo sob o sol”. Novos modos de sentir, perceber e agir são resultados do acontecimento que tem em sua
medida o mundo que está por vir.
Por ser exterior ao sujeito e funcionar como um fenômeno de vidência, enxergando o que extrapola, excede, transborda, o acontecimento motiva, ou pode motivar, o ato performativo. Acima
de tudo, ele depende de um encontro com o outro: o acontecimento não se dá pela discursividade, mas sim pela dimensão afetiva da coletividade que se forma nele. Acoplamento,
agenciamento, pertencimento: afecção.
Sendo assim, o acontecimento traz o corpo como medida ou desmedida: o que aguenta o corpo, ou o que o corpo não aguenta mais (LAPOUJADE, 2002: 82). Isso se explica, por exemplo,
quando há uma incompatibilidade entre uma sensação de porvir e uma realidade intolerável, pois é aí que se inserem as linhas de força que podem nos levar a um deslocamento ou quiçá a
uma transformação. O corpo por onde “algo passa” é a bussola da construção da nova subjetividade que tratamos nesta pesquisa. É por ele e através dele e de suas afecções que novos
modos de ver e sentir o mundo serão pautados.
Desse modo, podemos dizer que o agir não repete, não representa, não cria metáforas, ele abre possibilidades ao acontecimento, opera como um desarticulador da dinâmica de alienação
imposta ao corpo pelos dispositivos de mediação que alimentam a distância entre o sujeito e o mundo. Ele funciona como agente conector entre o ser e a ação, na medida em que não
depende das mediações impostas pelos dispositivos de poder que operam na formatação dos sujeitos.
O deslocamento ou o desaparecimento do sujeito é característica fundamental para que se possa agir na performance. Nesse contexto de deslocamento, a performance tende a evidenciar a
obra, ou o movimento, ou ainda o objeto e as outras coisas em detrimento do sujeito que manipula. No agir da performance, o que move o sujeito é a coisa, ou ele é a própria coisa que se
move [7].

NOTAS
[1] Os Yawalapíti são um grupo étnico que vive na porção sul do Parque Indígena do Xingu, região que ficou conhecida como Alto Xingu.
[2] No ano de 2009, André Lepecki realizou a curadoria do festival In Transit 09, ocorrido em Berlim sob o título de Resistência do Objeto. Dentre os temas e questões levadas pelas obras
presentes no festival, o conceito “coisa” aparece como denotação de uma força de fuga. Analisando algumas das obras apresentadas no contexto do festival, Lepecki afirma que a coisa é
uma inapreensibilidade, um não utilitarismo, o inalcançável (e o mais próximo também), isto é, em objetos, em animais, em pedras, em plantas, em pessoas, existirá sempre algo que escapa
ao que o objeto faz e é feito para fazer: funcionar de acordo com a vontade (ou plano) do sujeito. Sujeito-Objeto são um só. O que faz com que ambos deixem de o ser é a coisa em cada um
deles. Assim, a coisa não se reduz ao objeto ou ao duro do ente, ao contrário, ela existe como uma potência de linha de fuga. (LEPECKI, 2012: 77-78). O tema do festival faz menção aos
estudos de Fred Moten, poeta, professor da Universidade da Califórnia em Riverside.
[3] Em suas teses, Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos [Du mode d’existence des objets techniques], de 1958, e O Indivíduo e sua Gênese Físico-biológica [L’individu et sa
genèse physico-biologique], de 1964, Gilbert Simondon nos traz os conceitos de transdução e de ressonância interna.
[4] Disponível em: <https://vimeo.com/139866491>.
[5] Máquina, maquinismo, <<maquínico>>: não é nem mecânico, nem orgânico. A mecânica é um sistema de ligações em cadeia de termos dependentes. A máquina, pelo contrário, é um
conjunto de <<vizinhança>> entre termos heterogêneos independentes (a vizinhança topológica é independente da distância ou da contiguidade). O que define um agenciamento maquínico é
o deslocamento de um centro de gravidade sobre uma linha abstrata. […] A máquina é um conjunto de vizinhança homem-utensílio-animal-coisa que é anterior em relação a eles, uma vez
que é a linha abstrata que os atravessa e os faz funcionar em conjunto. (DELEUZE; PARNET, 2004: 127-128).
[6] Tatsumi Hijikata nasceu em 1928 e morreu prematuramente aos 57 anos de idade. Ele influenciou toda uma geração de japoneses que são hoje referências para a dança butô: Mishima,
Kazuo Ohno, Tadashi Suzuki, entre outros.
[7] André Lepecki, em “Moving as Thing: Choreographic Critiques of the Object”, p. 78.

BIBLIOGRAFIA
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<http://www.bienal.org.br/publicacoes.php> Acesso em: 23 de novembro de 2014.
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução e apresentação de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
DELIGNY, Fernand [et al.]. Le Moindre Geste. Documentário. 105 min, 35mm, vídeo P&B. França, ISKRA, 1971. Disponível em: <https://youtu.be/i20VWKO9Sdk>. Acesso em: 30 de abril de
2015.
FIADEIRO, João. Esse Corpo que me Ocupa, 2008. Release de Chão de Oliva/4 Estações. Mostra de Dança Contemporânea de Sintra. Disponível em: <http://www.chaodeoliva.com>.
Acesso em: 20 de outubro de 2013.
GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. 20. ed. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 2009.
__________. “A Paixão das Máquinas”. In: “O Reencantamento do Concreto”. Cadernos de Subjetividade. PUC/SP. São Paulo: Hucitec/EDUC, 2003, p. 39-52.
__________. Caosmose: Um Novo Paradigma Estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.
LEPECKI, André. Exhausting dance: Performance and the Politics of Movement. New York/ London: Routledge; Taylor and Francis Group, 2006.
__________. “Moving as Thing: Choreographic Critiques of the Object”. October Magazine, Ltd. And Massachusetts Institute of Technology, n. 140, 2012, p. 75-90.
PELBART, Peter Pál. O Avesso do Niilismo – Cartografias do Esgotamento. Cartography of Exhaustion – Nihilism inside out. Tradução de John Laudenberger. São Paulo: N-1
Edições, 2013.
RAINER, Yvonne. Trio A (The Mind is a Muscle, Part 1), 1966. Disponível em: <https://youtu.be/TDHy_nh2Cno>. Acesso em: 15 de janeiro de 2015.
SIMONDON, Gilbert. “A Gênese do Indivíduo”. In: “O Reencantamento do Concreto”. Cadernos de Subjetividade. PUC/SP. São Paulo: Hucitec/EDUC, 2003, p. 97-118.
________. El Modo de Existencia de Los Objetos Tecnicos. Tradução: Margarita Maninez y Pablo Rodriguez. Buenos Aires: Prometeo-Paidós, 2008.
________. La Individuación a la Luz de Las Nociones de Forma y de Información. 1. ed. Buenos Aires: La Cebra Ediciones y Editorial Cactus, 2009.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
________. “Entrevista”. Rio de Janeiro, 2009. Apud MELITOPOULOS, Angela; LAZZARATO, Maurizio. “O animismo maquínico”. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, ano 8, n. 13, out.
2011, p. 8.

PARA CITAR ESTE TEXTO


MENDONÇA, Cinthia. “‘Estado das Coisas’: Agir no Corpo, Agir na Arte da Performance”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 15, jan. 2016. ISSN: 2316-8102.

https://performatus.net/estudos/estado-das-coisas/
Simondon, um espaço por vir
P U B L I C A D O E M 9 de novembro de 2016

Introdução ao pensamento de Emília Marty ( por Amnéris Maroni)

Abaixo a interpretação de Emilia Marty (Multitudes 18 – out/2014) sobre o pensamento de Gilbert Simondon. O artigo de Marty, ¨Simondon, um espaço por vir¨ nos sugere que a obra do
filósofo, particularmente, aquela sobre Individuação, nos acena desde o futuro. Abertura de um espaço outro, por vir, inscrita no próprio ato do conhecimento, além da cisão sujeito-objeto.

Essa mudança de espaço efetua-se por um desvio do pensamento: da realidade individuada, à realidade pré-individual, Apeiron, o Ilimitado. Trata-se de desviar o pensamento dos indivíduos e
dirigi-lo à realidade pré-individual a serviço da individuação.

Simondon usa indistintamente a palavra Apeiron e a palavra Natureza, no sentido dos pré-socráticos. É do Apeiron que brota, segundo Anaximandro, toda a forma individuada e, então,
a Natureza não é o contrário do Homem, e sim a primeira fase do ser.

Como Simondon, Marty valoriza a angústia como um ¨possível caminho de individuação¨. Mas, Marty é radical e nos propõe que ao final da des-individuação, propiciada pela angústia, não há,
na sua interpretação, re-individuação. Há, para ela, ¨o outro que não o indivíduo¨, o ser da orla, que não mais faz passagens, nem ganha formas. O que, doravante, caracteriza o ser é a partida –
e não mais uma forma, uma individuação, nova individuação. É assim que Marty interpreta a frase de Simondon: ¨Ela a angústia é partida do ser¨. Para Marty, através da angústia, o ¨ser se
tornou partida. O ser como partida é um ser do começo. Habitando a orla, voltado para a realidade pré-individuada, ele vive na proximidade da ´fonte viva´¨. E a ´fonte viva´está lá onde se
criam mundos.

E, com isso, a natureza mesma do conhecimento se transforma. Conhecer já não pressupõe sujeito e objeto e torna-se análogo à criação artística. Cito Marty:…¨O pensamento, aqui, não é mais
o meio do domínio, ou até da dominação, sobre os objetos que ele estuda. Ele é um ato de co-criação do vivente, acompanhando as etapas da individuação¨. E como o pensamento/
conhecimento se dá em relação àquilo que nos é exterior? É um pensamento que acompanha a gênese de tudo que há, dos indivíduos como um todo, seja ele, homem, planta, rocha ou
pensamento.

REP ORT T H IS AD

No final do artigo, Marty faz uma linda homenagem a Simondon:…¨Essa obra nos acompanha em nosso caminho de individuação e, reciprocamente, nós todos, viventes do presente que somos
no caminho da co-individuação, continuemos a individuar esse pensamento¨.
Boa leitura!

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Simondon, um espaço por vir

Emilia M. O. Marty, Multitudes 18 – Outono de 2014

Tradução de Carla Ferro

Nós podemos somente individuar, nos individuar, e individuar em nós[i]

_______

O pensamento de Gilbert Simondon perturba. Pensamento da totalidade, não se pode acomodá-lo nos recortes obrigatórios das disciplinas. Os avatares das edições acompanham suas flutuações.
A publicação, não como três tomos, mas como livros independentes, permitiu sua difusão, mas contribuiu para segmentá-la. Durante muito tempo Simondon foi conhecido não por seu
pensamento sobre a individuação, mas por sua abordagem do objeto técnico. Atualmente, o tomo que trata da “Individuação física e coletiva” suscita uma onda de interesse. Aí também ele é
tratado de um modo disciplinar.[ii] Simondon é utilizado como uma nova “caixa de ferramentas”, permitindo vir alimentar e regenerar notadamente os conceitos de indivíduo e de meio. Tal
prática desnatura o pensamento da individuação e oculta seu lugar, o de um outro que não o das ciências humanas.

para além das ciências humanas

Ao lado do pensamento sobre o homem dominado pelas ciências humanas, desenvolve-se profusamente um movimento que busca, nas culturas das sociedades tradicionais, ao mesmo tempo
uma sabedoria para viver e uma outra concepção do homem e de suas relações com o outro, com a natureza e com o invisível. Bem antes desse movimento, Gilbert Durand colocou em
evidência a figura do homem tradicional, o homem primordial, em contraponto ao homem objetivado e fragmentado das ciências do homem.[iii] Ele defende a ideia da necessidade de sair das
ciências do homem, que se tornaram, aliás, “ciências sociais”, para se dirigir a uma ciência do homem. Simondon inscreve-se nessa busca de um outro pensamento sobre o homem. Por um lado,
sua teoria da individuação reconcilia as diferentes ciências e o humano. Por outro lado, sua abordagem do homem, pensando inseparavelmente o indivíduo e o coletivo em uma época em que
essas duas noções eram cuidadosamente separadas, faz explodir a noção de ciências humanas.

REP ORT T H IS AD

Eu gostaria de defender aqui a ideia de que essa obra não deve ser referida ao passado, seja ele o passado das ciências humanas, da Enciclopédia, das tradições ou dos esoterismos, mas
ao futuro. Gilbert Simondon abre uma porta para um conhecimento de outra natureza. Um espaço para o pensamento e para o homem, que individuaria (e não religaria ou unificaria) ciências e
tradição. Um espaço além. Um espaço por vir. Mas esse além não é constituído por uma mudança de objeto. Trata-se da abertura de um espaço outro, além da cisão sujeito-objeto. Aqui, o que
seria pertinente pensar não é mais essa cisão e suas múltiplas pontes, mas o ato de conhecimento ele-mesmo.

a realidade pré-individuada, o apeiron

Essa mudança de espaço efetua-se por um desvio do pensamento, da realidade individuada à realidade pré-individuada. O pensamento da individuação, e não do individuado, apoia-se na noção
de apeiron, do qual Simondon vai fazer o pré-individual. Saindo do indivíduo como campo de pensamento e se dirigindo ao pensamento da individuação, ele introduz a ideia da realidade pré-
individuada, mas a serviço, poderíamos dizer, da individuação. Em seu texto sobre a Angústia, temos em revanche uma inversão de perspectiva, já que ele é centrado menos sobre a
individuação do que sobre a entrada em contato do individuado com os efeitos da realidade pré-individual.

A dificuldade de abordar a noção de apeiron, o Ilimitado, é a mesma que temos quando consideramos a natureza do “pré-individual”. Simondon usa indistintamente a palavra natureza, no
sentido dos pré-socráticos, e a palavra apeiron. “Poderíamos chamar de natureza essa realidade pré-individual que o indivíduo carrega em si, procurando reencontrar na palavra natureza o
significado que os filósofos pré-socráticos lhe davam: os Fisiólogos jônicos encontravam aí a origem de todas as espécies de seres, anterior à individuação: a natureza é a realidade do possível,
sob as espécies desse apeiron do qual Anaximandro vê emergir toda forma individuada: a Natureza não é o contrário do Homem, e sim a primeira fase do ser.”[iv]

“Anaximandro […] disse que o princípio – isto é, o elemento – dos seres é o infinito (apeiron) […] Ele diz que não é nem a água, nem nenhum desses que se diz serem os “elementos”, mas
uma certa natureza infinita, da qual nascem todos os céus e os mundos neles: mas, daquilo em que se dá, para os seres, geração, é nele também que acontece a destruição, segundo o que deve
ser; porque eles se conferem justiça e reparação, uns aos outros, de sua mútua injustiça, conforme o desígnio do Tempo.”[v]

Talvez Anaximandro retire da contemplação do Mar Egeu, do espetáculo que ele contempla todos os dias, a essência do mar, isto é, o Ilimitado. Ou talvez porque seja habitado pela luz tão
particular da Grécia que dá ao mar tanta intensidade e profundeza. Mas esse ilimitado não é o caráter de algum elemento natural, água, terra, ar, fogo. Ele não se abre, por essa naturalidade,
sobre os abismos da terra. Ele se abre sobre um espaço totalmente diferente, “o céu profundo”, diz Marcel Conche. O céu, entretanto, é para os gregos dessa época uma cúpula fechada, posta
sobre o horizonte: ele não tem nada de ilimitado. Somente o fluxo de sua aparência gasosa pode dar essa sensação de indeterminação, característica, aliás, que define o apeiron.

REP ORT T H IS AD
A confusão do apeiron com a matéria, no sentido aristotélico, tornou-se fácil pela predominância de características comuns: ela é indeterminada, incognoscível, inengendrada e indestrutível.
Mas o apeiron é fonte geradora, e portanto uma realidade outra, e separada dos seres e dos mundos que ela engendra. O apeiron é uma potência de determinação, enquanto a matéria,
indeterminada, recebe sua determinação. Essa dimensão de genesis abre para o caráter criativo do apeiron que é potência. Ele é causa de um movimento eterno que gera os seres por separação
dos contrários.

O apeiron não é uma substância intermediária entre os elementos, entre mundos ou ainda, no interior dos mundos, entre os seres – como será mais tarde a natureza primordial, definida
como ar pelo sucessor de Anaximandro, Anaxímenes. Esse ar produz os seres por rarefação e condensação. O apeiron engendra as coisas por um fenômeno de ejeção a partir da origem.
O apeiron não é um reservatório de confusão original, como se substâncias, no estado indiferenciado, estivessem amalgamadas em uma materia prima, espécie de magma primordial.
Lembremo-nos de que o apeiron pertence ao registro do “céu profundo”, e não ao dos abismos da terra. Quer dizer, ele não pertence ao mundo do caos. Ele não é, tampouco, reservatório de
seres potenciais ainda não determinados pelo seu advento como mundos. Não existem “dentro” do apeiron seres em potência. Enfim, ele não é um reservatório dos contrários que nele
repousariam, indeterminados e não-conflituosos, antes de se aventurarem no mundo.

O apeiron é o infinito. No sentido qualitativo, esse infinito é indeterminação. Mas como origem dos seres determinados, a determinação não é uma transformação desse indeterminado. Há
separação entre o princípio e as formas que ele engendra. O apeiron é imenso uma vez que ele é sem limites temporais, mas também sem limites espaciais. Além disso, ele engendra “mundos
inumeráveis”. Sua potência se exerce além de todas as fronteiras, tanto temporais como espaciais.

A despeito da comodidade das imagens, o apeiron não é um corpo, ele não participa da realidade sensível, ele não pode ser apreendido pelo olhar, ele pode somente ser pensado. Marcel Conche
precisa que “o rigor conceitual com que Anaximandro argumenta implica que ele concebe o infinito, e não se limita a imaginar. O infinito é certamente pensado por ele na plenitude de sua
significação”. Entretanto, se o apeiron é infinito no tempo, e infinito no espaço, ele não é o espaço infinito e o tempo infinito. “Ele abre o espaço e o tempo: pelo mesmo ato, ele desdobra o
espaço e o tempo e se desdobra no espaço e no tempo.” Ele é, assim, indeterminado não somente quanto à essência, mas também em grandeza. Essa infinitude em grandeza não é a de uma
espacialidade, mas a de um poder gerador.

Essa fonte não é a passagem da potência ao ato. “Ela é atualização, mas daquilo que toma forma nessa própria atualização. A geração é a forma se dando, não o vir-à-luz de uma forma
preexistente, mas o processo de geração de uma forma que a natureza vai em seguida deixar ser à luz.”[vi] A fonte é fonte de vida, ela não é lugar de passagem de uma forma indeterminada de
ser a uma forma determinada enquanto sendo. Não há desgaste da fonte, fonte de todo nascimento, ela é ela mesma infinitamente nascente. Mas nem por isso existe independência do Ilimitado.
O modelo da soberania, trazendo majestade e distância, está excluído aqui também: a fonte está ligada ao fato de que existem “sendos”: “ela é apenas na medida em que ela faz ser… É o gesto
de lhes dar nascimento que a constitui como physis (…) ato de fazer passar do não-ser ao ser.”[vii]

REP ORT T H IS AD

~o outro que não indivíduo~, o ser da orla

Nós dissemos que o espaço por vir além das ciências humanas e das tradições necessitava de um desvio do pensamento orientado para a realidade individuada e a individuação, na
direção da realidade pré-individuada. Mas esse desvio não é somente desvio do pensamento: ele é desvio de todo o ser.

Para Simondon, os seres humanos conhecem uma segunda individuação, que passa pelo coletivo, isto é, pela partilha e o câmbio das “partes” de pré-individual de cada um. Isso só pode
acontecer depois de uma experiência que permita sair, por si e na relação com os outros, das formas de identidade, fixadas nos papéis, nas funções, num funcionamento social dominante e que
impõe afetações identitárias. Essa saída se faz através da experiência da passagem solitária pela demolição dessas formas.

“A angústia” é uma outra individuação. Simondon apresenta a angústia como um possível caminho de individuação, mas raro e reservado a poucos seres. Comentando essas páginas, eu tentei
mostrar que, ao contrário, ela permitia uma individuação, de uma forma nova, uma terceira individuação. E que somente o medo e a representação catastrófica desse trabalho de metamorfoses
operado pelo pré-individual no indivíduo sob a forma de uma desindividuação interminável e intensa, impediam e obstruíam esse caminho.[viii]

No processo de individuação, criador de indivíduo, no sentido de Simondon (quer dizer, de indivíduo-mais-que-um, de individuado portador de seus potenciais de transformação), o olhar e a
intenção vão na direção dessa forma do individuado – com a passagem de uma forma a uma outra sendo apenas um meio. No processo de desindividuação da angústia, o olhar e o desejo se
transmutam, e poderíamos dizer que o ser entra em um esquecimento do individuado. Ao final da desindividuação não há re-individuação. Há ~o outro que não indivíduo~. Eu propunha a ideia
de que aí não há mais nem passagem nem formas, mas um ser da orla. Simondon termina suas linhas com essa frase surpreendente: “Ela (a angústia) é partida do ser.”[ix] Como se, desde
então, a partida, e não mais o individuado, caracterizasse o ser.

Mas então, o que é a orla? A orla não designa uma fronteira que delimitaria dois espaços: aquele da realidade criada, da realidade segmentada, como diria Simondon, e aquele da realidade pré-
individuada, já que esta é o Ilimitado. Ela tampouco delimita a identidade flutuante de um ser mergulhado no caos de uma materia prima. A realidade pré-individuada não é nem terrestre nem
telúrica, ela pertence “ao céu profundo”. Como vimos, o céu profundo não é o espaço longínquo, ele está aqui, na familiaridade das coisas e dos seres.

A orla está lá onde está a partida do ser. ~O outro que não indivíduo~ é o ser como partida. O termo da angústia não é um lugar que serviria de ponto de partida ao ser. Ele está onde, tendo
abandonado definitivamente a individuação, o ser se tornou partida. O ser como partida é um ser do começo. Habitando a orla, voltado para a realidade pré-individuada, ele vive na proximidade
da “fonte viva”. A fonte não é o Ilimitado. Ela está lá onde se criam os mundos. Falar, aqui, de “mundo”, é falar desse outro espaço, dessa outra realidade, que Simondon vê como “forma de
comunicação organizada”. Como pensar esse espaço, esse espaço-Mundo, esse espaço por vir?

REP ORT T H IS AD

Em Mileto, no tempo em que aparece a filosofia com a escola jônica, e depois na Itália e em Atenas, o que nasce com os pré-socráticos não é somente uma forma de pensamento organizada
segundo a Razão. É, inseparavelmente, um personagem: o filósofo. Esse personagem é um mediador entre os homens mergulhados na realidade “visível”, na qual lhes é necessário viver e agir,
e a realidade “invisível”, não mais aquela do mundo dos deuses e de seus truques, mas a da natureza e do cosmos, um invisível “laicizado”, como diz Jean-Pierre Vernant, mas que deve ser
desvelado. O deslocamento da filosofia para as ciências humanas desmembrará esse personagem em uma multidão de figuras diferentes. Cada sistema filosófico, e depois cada sistema
disciplinar, definirá uma posição particular para cada uma dessas figuras entre as duas ordens de realidade. Mas a invariante será esse cenário onde todo conhecimento que se objetiva é
inseparável dessa posição do mediador.

A individuação transforma esse cenário ao mesmo tempo em que transforma a natureza do conhecimento. “Os seres podem ser conhecidos pelo conhecimento do sujeito, mas a individuação
dos seres só pode ser captada pela individuação do conhecimento do sujeito.”[x] O conhecimento já não se dá pela posição de recuo e pelo olhar altivo de uma informação detida pelo sujeito[1].
Conhecer é um ato análogo à criação artística. O pensamento, aqui, não é mais o meio do domínio, ou até da dominação, sobre os objetos que ele estuda. Ele é um ato de co-criação do vivente,
acompanhando as etapas de individuação. Por esse ato do ser cognoscente a criação nele-mesmo, a criação que ele é, permanece viva, e se cumpre. Mas, inseparavelmente, permanece viva a
criação que lhe é exterior: “Assim que o pensamento reflexivo se inicia, ele tem o poder de perfazer o pensamento das gêneses, que não se efetuou inteiramente, tomando assim conhecimento
do sentido do próprio processo genético.”[xi]

Essa co-individuação, do conhecido, do cognoscente e do conhecimento, é difícil de pensar já que nossa linguagem é essa da fase científica e do conhecimento objetivado. Viver nesse espaço
supõe uma transformação da relação com a linguagem e uma transformação da própria linguagem.
Mas, antes de tudo, viver e conhecer nesse espaço torna-se possível para um ser ao preço de uma transmutação de sua relação com o mundo. Em Rainer Maria Rilke o ser que pode viver no
Aberto é a criatura. Essa criatura, da oitava elegia, é misteriosa, meio-animal, meio-vegetal. Ela designa um certo estado do ser que é abandonado, despossuído de si mesmo, e por isso, em um
contato contínuo e vivo, respirante, com esse contínuo que é o Aberto. ~O outro que não indivíduo~ se parece com essa criatura, sempre em contato com o contínuo reticular. Mas o trajeto de
individuação na angústia que assim o transformou fez dele uma consciência particular, uma consciência que é seu ser-no-mundo, uma consciência como corpo. A criatura é no Aberto, banhada
no contínuo do Aberto; o ser da orla, ele é aquiescência de todo seu ser ao que é.

Gilbert Simondon no mundo vivente

REP ORT T H IS AD

Segundo o desígnio do Tempo Gilbert Simondon nos deixou, mas ele permanece um vivente do passado. “No momento em que um indivíduo morre, sua atividade fica inacabada, e podemos
dizer que ela permanecerá inacabada enquanto ele subsistir dos seres individuais capazes de re-atualizar essa ausência ativa, semente de consciência e de ação. (…) A subconsciência dos
viventes é toda tecida dessa carga de manter o ser os indivíduos que existem como ausência, como símbolos dos quais os viventes são recíprocos.”[xii]

Todo ser, tecido em seus laços afetivos, amigáveis e familiares, e em suas tramas genealógicas, continua, após sua morte, participando de seu mundo, pelas palavras, pelos pensamentos, atos,
emoções e sentimentos que ele colocou em movimento e que, ligados aos dos outros, constituem esse mundo. Além disso, toda obra permanece, como presença ativa de seu criador, no espaço
coletivo. Presença ativa de uma ausência ativa enquanto houver viventes que se deixem nutrir e inspirar por ela em suas ações e em sua consciência, ou ainda para encontrá-la e apoiar-se nesse
encontro. Mas o trabalho de parto da História que fazem as obras se realiza de maneira secreta e na sombra.

A presença ativa da ausência de Gilbert Simondon participa desse trabalho do secreto de uma maneira particular: ela contribui menos para participar do mundo presente do que para individuar
um mundo por vir. Com muitos outros, mas em um lugar essencial, o lugar do pensamento que se individua.

Essa obra nos acompanha em nosso caminho de individuação e, reciprocamente, nós todos, viventes do presente que somos no caminho da co-individuação, continuemos a individuar esse
pensamento.

[1] A palavra mídia foi traduzida duas vezes por mediador e uma vez por informação (detida pelo sujeito).

[i] Gilbert Simondon, L’individu et sa genèse physico-biologique. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information, p. 34.

[ii] Cf. edição italiana.

[iii] Science de l’homme et tradition, Berg international, 1979.

[iv] Gilbert Simondon, La Physique et l’individuation collective, p. 196.

[v] Citado e traduzido por Marcel Conche, Anaximandre. Fragments et témoignages, Puf 1991.

[vi] Ibid, p. 75.

[vii] Ibid, p. 126.

[viii] Emilia Marty, “~Celui autre qu’individu~ le voyage de l’angoisse ou l’art de la lisière” in collectif Gilbert Simondon, une pensée operative, Paris, Puf 2002, p. 35-38.

[ix] “O sujeito se afasta da individuação ainda sentida como possível; ele percorre as vias inversas do ser (…). Ela (a angústia) é partida do ser.” IPC, p. 114.

[x] IGPB, p. 34.

[xi] Gilbert Simondon, Du mode d’existence des objets techniques, p. 162

[xii] IPC, p. 102.

https://pontodevistabrblog.wordpress.com/2016/11/09/simondon-um-espaco-por-vir/

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