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A ideia de conforto: reflexões sobre o ambiente construído

Book · November 2005


DOI: 10.13140/RG.2.1.4800.1365

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1 author:

Aloísio Leoni Schmid


Universidade Federal do Paraná
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A IDÉIA DE CONFORTO
ALOÍSIO LEONI SCHMID

A IDÉIA DE CONFORTO
reflexões sobre o ambiente construído

Curitiba
2005
Direitos autorais protegidos pela Fundação Biblioteca Nacional.
Certificado com número de registro: 350.514 Livro: 646 Folha:
174, emitido em 17/08/2005

Aloísio Leoni Schmid (iso@ufpr.br)


Professor Adjunto de Conforto Ambiental
Curso de Arquitetura e Urbanismo
Universidade Federal do Paraná

Revisão: Ludmila Corrêa Sandmann


Revisão da capa: Márcia Lissa Azuma
Fotografias: Aloísio Leoni Schmid

SCHMID, Aloísio Leoni


A idéia de conforto: reflexões sobre o ambiente construído /
Aloísio Leoni. – Curitiba: Pacto Ambiental, 2005.
338 p. : il. ; 23 cm.

ISBN 85-99403-01-X

Conforto ambiental. 3. Conforto térmico. 3.Teoria da arquitetura.


4. Arquitetura de interiores. 5.I. Título.

CDD 720.47
Sumário

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 1

1 - O SIGNIFICADO DE CONFORTO .......................................................... 9

1.1 Além do somente ambiental ...................................................... 9


1.2 yin e yang no ambiente construído ........................................... 13
1.3 Crítica e defesa do Modernismo ............................................... 18
1.4 Uma visão holística do conforto ............................................... 21
1.5 Uma visão histórica do conforto .............................................. 32
1.6 Comodidade, adequação e expressividade ............................... 37
1.7 Transcendência na casa e no mundo ........................................ 40

2 - INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO E BUROCRATISMO.......... 47

2.1 O caráter multissensorial do espaço ........................................ 52


2.2 O dionisíaco e o apolíneo na arquitetura ................................. 53
2.3 Inocência .................................................................................. 56
2.4 Conforto: consciência e excessos ............................................. 65
2.5 Descaso ..................................................................................... 91
2.6 Conforto ambiental como obrigação burocrática .................... 99

3 - A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO ......................... 103

3.1 Os sentidos ................................................................................ 103


3.2 As emoções: aspectos gerais .................................................... 106
3.3 O espaço e a expressão na arquitetura .................................... 115
3.4 Merleau-Ponty, Bachelard e Bollnow ...................................... 120
3.5 Congruência entre experiências físicas e memória ................. 131

4 - O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO.......... 143

4.1 Introdução ................................................................................ 143


4.2 Mecanismos físicos e fisiológicos............................................. 145
4.3 Comodidade e adequação ........................................................ 149
4.4 Expressividade .......................................................................... 160

5 - O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS....................... 177

5.1 Introdução ................................................................................ 177


5.2 Mecanismos físicos e fisiológicos ............................................. 178
5.3 Comodidade e adequação ........................................................ 180
5.4 Expressividade .......................................................................... 185

6 - O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL ... 211

6.1 Introdução ................................................................................ 211


6.2 Mecanismos físicos e fisiológicos ............................................. 214
6.3 Comodidade e adequação ........................................................ 219
6.4 Expressividade .......................................................................... 224

7 - O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL .............................................. 241

7.1 Introdução ................................................................................ 241


7.2 Mecanismos físicos e fisiológicos ............................................. 245
7.3 Comodidade e adequação ........................................................ 248
7.4 Expressividade .......................................................................... 255

8 - LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL............... 271

8.1 Mecanismos físicos e fisiológicos ............................................. 273


8.2 Comodidade e adequação ........................................................ 283
8.3 Expressividade .......................................................................... 289
8.4 A simplicidade .......................................................................... 316

9 - CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 319

ÍNDICE REMISSIVO........................................................................................... 327


Figura 1 - Residência com roda d'água, Bodensee, Alemanha
Introdução

A expressão "conforto ambiental” (com ela também o


conforto no ambiente construído) tem sido usada com cada
vez maior freqüência. Têm surgido associações profissionais
dedicadas ao assunto, assim como programas de pós-
graduação e congressos, desde os regionais até os internacio-
nais, e mesmo na mídia informal as matérias a respeito vão
ganhando regularidade.
De jargão específico, o termo passa a designar uma idéia
conhecida do grande público, mais ou menos como aconte-
ceu com a agricultura orgânica, telefonia digital ou desenvol-
vimento sustentável.
Para reforçar a literatura ainda escassa a respeito, minha
intenção original foi produzir um livro conceitual. Que, sem
recorrer à linguagem matemática, transmitisse de forma efe-
tiva o conteúdo essencial trazido por diferentes autores que
diretamente trataram seus tópicos principais – calor, ilumina-
ção, acústica e qualidade do ar. Este livro deveria ainda cap-
turar um pouco da riqueza de exemplos que resultam do in-
2 A IDÉIA DE CONFORTO

tercâmbio com profissionais e alunos, e da reflexão que se


alterna aos eventos do calendário acadêmico.
No decorrer do trabalho, surgiram questões às quais eu
não tinha resposta imediata. Foi necessário desenvolvê-las,
antes, para então voltar aos tópicos de conforto. Mas foram
se tornando os problemas de pesquisa, e o rumo do livro mu-
dou de modo a não deixá-las pendentes. Estas questões eram:
- O estudo de conforto ambiental pode ser limitado ao
estudo de uns poucos fenômenos físicos e à fisiologia dos
sentidos relacionados?
- Qual a definição de conforto ambiental mais coerente
com a etimologia de conforto?
- É possível delimitar uma região de superposição entre
conforto e estética, ou se trata de assuntos complementa-
res enquanto sub-sistemas de valores da arquitetura?
- Havia, pois, conforto antes que a palavra tomasse a cono-
tação atual?
- É possível delimitar uma região de superposição entre
conforto e valores da arquitetura sem vínculo direto às
sensações corporais, como o da produtividade no traba-
lho?
- É possível explicar objetivamente por que alguns ambi-
entes nos parecem à primeira vista confortáveis, outros
jamais?
A hipótese sobre a possibilidade de se delimitar em ter-
mos físicos e fisiológicos o conforto ambiental está implícita
na maior parte da literatura especializada, fenômeno não
isolado da abordagem dada ao ensino do assunto nas univer-
sidades. Esta hipótese é sistematicamente contestada pelos
estudiosos da cultura do morar, da qual encontrei o impulso
inicial na obra Home, a Short History of an Idea (Casa, pe-
quena história de uma idéia) do arquiteto canadense Witold
Rybczynski.1 É de fato um livro unicamente oportuno.

1
Edição em livro de bolso da Penguin Books (1987). Lançado no Brasil, posterior-
mente, pela Editora Record.
INTRODUÇÃO 3

Quanto à questão sobre a etimologia de conforto, é co-


nhecida a importância do romancista escocês Sir Walter Scott
e da romancista inglesa Jane Austen (citados por Rybczyns-
ki) de terem lançado ao mundo literário o conceito moderno
de conforto. Rybczynski mostrou o conforto como um produ-
to de lenta e gradual formação. Teria sido uma invenção da
cultura, que levou alguns séculos para ser completada: o au-
tor não se limitou à parte físico-fisiológica, mensurável e
previsível. Entretanto, entre ela e as demais partes, inclusive
o prazer - aqui, de especial interesse - o autor não apontou
vínculos concretos. Ao retratar o prazer do conforto, deteve-
se nos seus aspectos visuais. Deixou pendente a importante
questão sobre a efetividade expressiva das variáveis do ambi-
ente - principalmente ar, luz, som, calor e texturas. Seriam
estes aspectos capazes de emocionar? Se emocionam, fazem-
no como fato ou como representação?
Esta última questão pode ser exemplificada. Quando al-
guém de meu convívio completa uma idade significativa,
digamos 75 anos, eu me emociono; é um fato. Mas quando o
tema do jubileu é tratado por um poema, logo simples repre-
sentação, eu me emociono também. Isto posto, reformulo a
pergunta. Um ambiente improvisado e genérico (isento de
referências pessoais) é capaz de emocionar? Nas mãos de um
artista, um ambiente se presta a alguma intencionalidade?
Existe mesmo uma disputa entre conforto e arte. A
existência, no século XX, do termo de uso corrente “confor-
to”, que compreendesse o amplo conceito, facilitou primeiro
a disseminação da idéia, depois sua negação pelo Modernis-
mo: 150 anos antes isto não teria sido possível. Mas muito do
conforto já existia antes do termo. Lendo alguns textos sobre
o Modernismo, fui encontrando menções cada vez mais fre-
qüentes à oposição entre o visual nas artes e a domesticidade.
Fui me dando conta da existência de posições ideológicas,
mais voltadas à auto-afirmação sobre as correntes contrárias
do que a aprofundar a discussão. A discussão é rica e com-
plexa; e ao abordar arquitetura, se surge um impulso esclare-
cedor ao tratar a funcionalidade, torna-se ainda mais difícil
quando lembra, afinal, que é arte.
4 A IDÉIA DE CONFORTO

O conforto disputa com a arte o poder de satisfazer as


pessoas e parte desta disputa se refere à eficácia emocional.
Nas páginas seguintes, sem qualquer pretensão de esgotar o
assunto, faço uma tentativa de mostrar como.
Aqui é lançada a hipótese da existência de aspectos co-
muns entre o conforto e a estética, decorrentes do ambiente.
De maneira inesperada, encontrei amparo na literatura espe-
cializada em enfermagem:2 lá estava um modelo de conforto
capaz de ajudar a compreender melhor a própria classificação
de Rybczynski. As autoras souberam abordar o conforto de
forma holística e, depois, mapeá-lo com clareza cartesiana,
permitindo uma compreensão por partes.
Queria esclarecer ainda se havia, afinal, algo semelhante
ao conforto até o início do século XIX. Consultei a rica cole-
ção de gravuras selecionadas e comentadas por Peter Thorn-
ton em Authentic Décor,3 que depois constatei ter sido uma
das principais fontes de Rybczynski. Visitei um importante
museu de arquitetura rural na Suíça. Ainda, encontrei diver-
sos relatos de viajantes pelo Brasil na época do Reino Unido
e Império. A idéia de conforto se mostrava cada vez mais um
produto cultural, amadurecido ao longo do tempo.
Para responder se conforto comporta um conceito ex-
terno ao corpo como é a produtividade, segui tentando enten-
der algo da Fenomenologia do espaço: Maurice Merleau-
Ponty, Gaston Bachelard e Otto Friedrich Bollnow. Reforcei
a idéia de conforto como algo ligado ao entorno físico e tam-
bém ao contexto psicológico: as experiências passadas, a
imaginação e os sonhos, de relevância para o conforto ambi-
ental e, se não compreendidos, capazes de tornar a existência
intolerável. Entretanto, tornou-se claro que conforto tem um
endereço: a casa. Lancei com isto a hipótese de que os ambi-
entes de trabalho não poderiam oferecer conforto, caso con-
trário não seriam ambientes de trabalho.

2
Katherine Kolcaba e Linda Wilson, Comfort Care: A Framework for Perianesthe-
sia Nursing, Journal of PeriAnesthesia Nursing, Vol 17, N° 2, pp 102-114 (2002).
Tradução do autor.  
3
Peter Thornton, Authentic décor: the Domestic Interior 1620 – 1920, Seven Dials,
Londres (1993).
INTRODUÇÃO 5

Enfim, ainda associada à hipótese anterior, lancei a hi-


pótese de que seria possível explicar como alguns ambientes
convencem enquanto confortáveis, e outros não: basta aplicar
o entendimento de conforto como algo típico da casa, um
arquétipo e uma tradição na vida de quase todas as pessoas.
Uma constatação que gostaria de adiantar, relacionada
ao conjunto de hipóteses acima, é que o conforto ambiental,
tal qual se delimitou para facilitar planos curriculares em
Arquitetura e Urbanismo no Brasil, pouco difere de uma
Física aplicada às edificações – disciplina que veio substituir.
Não é senão um recorte arbitrário do conceito mais amplo de
conforto - este sub-sistema de valores fundamental da arqui-
tetura, que compreende valores técnicos, práticos e artísticos.
Afinal, holístico vem da palavra inglesa whole (inteiro), esta
por sua vez do grego holos.4 Refere-se a uma compreensão
da realidade em termos de todos integrados cujas proprieda-
des não podem ser reduzidas àquelas das unidades menores.5
Assim deveria ser o conforto ambiental: isto exigiria do téc-
nico conhecer arte, e do artista conhecer técnica. A divisão de
trabalho pura e simples não lhe permitiria evoluir.
A seguir, cada parte do livro é apresentada de maneira
sucinta.
O capítulo inicial aprofunda a apresentação das hipóte-
ses e justifica por que ainda faz sentido pesquisar conforto
ambiental.
O capítulo 2 relata três séculos da história de uma idéia,
processo que termina num campo de estudos ainda afastado
do espaço arquitetônico.
O capítulo 3 explora a relação entre ambiente e emoção.
Os capítulos 4 a 8 apresentam cada um dos sentidos
mais relevantes para o conforto ambiental: olfato, tato, calor,
audição e visão. Inicialmente, cada sentido é explorado em
seus conceitos físicos e fisiológicos. Depois, são analisados

4
É, ainda, curioso saber que hale (saudável) tem a mesma origem.
5
Fritjof Capra, op. cit.
6 A IDÉIA DE CONFORTO

diante de um conjunto de valores aqui proposto como síntese


das hipóteses acima e entendido como básico para a existên-
cia de um conforto ambiental: comodidade, adequação e
como contribuição original – ao menos do ponto de vista
classificatório – expressividade. Os fatos são classificados, e
realçados alguns a que se costuma dar menor atenção.
Exemplo disto é o desprezo ao sentido do olfato no Oci-
dente, ou o esquecimento do tato, sentido básico cuja impor-
tância é subestimada - daí serem seus mecanismos conheci-
dos de somente poucos. Já o conforto térmico e a acústica se
abrem a uma exploração qualitativa inovadora. A movimen-
tação do ar é mostrada portadora de uma carga sensorial que
vai além da sensibilização térmica. E a iluminação – captada
pelos olhos e de praxe desdobrada em sua expressividade
artística – é melhor caracterizada como elemento do ambien-
te.
O capítulo 9 – último - reúne algumas conclusões. Uma
delas, que surgiu ainda antes de terminar o livro é que con-
forto ambiental não se presta a automatismos; é um equívoco
tentar defini-lo limitado aos seus componentes físicos e men-
suráveis, e é uma lástima que tenha se disseminado um mo-
delo reduzido a tão pouco.
Aparece, enfim, uma visão alternativa - embora próxima
- à de Rybczynski sobre o fundamento de alguns achados
históricos. Creio menos do que aquele autor que conforto
tenha relação com eficiência. Não acho que pertença tanto ao
ambiente de trabalho quanto à casa. Então, proponho uma
separação maior entre moradia e outros usos quando forem
tratados os respectivos valores típicos. Isto não significa,
contudo, que não se interpenetrem valores da moradia e dos
usos. Creio que conforto não seja algo típico nem de uma
igreja, nem de uma loja de roupas, mas que tais ambientes
possuem valores próprios, não necessariamente excludentes
do conforto, mas de superior importância, e que podem exis-
tir, mesmo que marginalmente também dentro das casas.
Finalmente, cabe a observação de que este trabalho
se deteve, sem intenção, num recorte social limitado à bur-
guesia, em cujos círculos o conceito de conforto – um con-
INTRODUÇÃO 7

ceito cultural - foi constituído e difundido. Conforto é um


valor arquitetônico essencial na habitação burguesa. Certa-
mente também o é no meio aristocrático, das celebridades, e
da elite empresarial. A dúvida que paira é sobre sua impor-
tância prática junto à população pobre. Qual a noção de con-
forto, quanto conforto existe, quanto é consciente, e quanto
se almeja? Quais os outros valores da habitação, ao lado, ou
mais importantes que o conforto? É um tema desafiador aos
pesquisadores interessados.
Agradeço aqui pela ajuda que recebi de muita gente,
sob diversas formas. Nominarei poucas. Pela leitura e comen-
tários, ao colega de ENAP (Brasília) José Mendes, aos cole-
gas de docência Key Imaguire Jr., Gislene Pereira e Josilena
Gonçalves, à arquiteta Caroline Bollmann, aos manos Gina e
Dinho, e à minha esposa Ludmila; a esta, ainda, pela revisão
impecável. À minha mãe, Maria Thereza, pelo auxílio execu-
tivo. À Gina, ainda, à estudante Márcia Azuma e ao colega
Rivail, pela ajuda na produção da capa. Pela motivação, a
todos acima, e ao meu pai Manfred. Ao meu sogro, Antônio,
agradeço por nos ter cedido sua casa no meio do mato, o
segredo de poder finalizar o trabalho. Sem querer comparar
meu dia-a-dia motorizado, eletrificado e informatizado a um
Walden, aqui eu me surpreendi com algumas verdades que só
conhecia no papel do meu próprio livro. Uma delas é o fascí-
nio do escuro; outra, do silêncio. E também tem uma profun-
da tranqüilidade, que eu nem sei descrever: mas sei que dá
sentido a cada minuto de puro ócio. Obrigado!
What are we missing that we look so hard for in the past?
(O que nos falta, que buscamos tão obsessivos no passado?)
Witold Rybczynski, Home

Figura 2 - Casa em madeira, arredores de Curitiba (PR)


1 - O significado de conforto

1.1 Além do somente ambiental


Quando consideramos alugar uma casa ou, em termos
genéricos, uma edificação para uso específico, um dos prin-
cipais critérios em que baseamos a escolha – ao lado de ta-
manho, preço e localização – é o do conforto. Isto se aplica
principalmente a um imóvel já mobiliado. Se já levamos uma
idéia do ambiente pretendido, um arranjo qualquer de sofá e
duas poltronas já existentes irá provavelmente destoar da
mesma, e mais que isto: servirão para inviabilizá-la. Que nos
preocupemos com o conforto parece uma atitude natural, que
sempre existiu. Mas isto não é verdade.
Até o final do século XVIII, o termo conforto quase não
se usava aplicado à edificação. No início do século XIX, este
desconhecimento foi sendo superado. Isto ocorreu a partir da
Europa, conforme muitos indícios. Já no século XX, o mais
importante movimento na arquitetura e nas artes - o Moder-
nismo – continha núcleos de verdadeira hostilidade à noção
de conforto, visto como impróprio à estética em voga – uma
10 A IDÉIA DE CONFORTO

estética da engenharia e do progresso material. A técnica


prometia redimir a humanidade de seus maiores desafios
sociais, e o peso do passado e da tradição não podiam impe-
di-la. A ornamentação das fachadas foi um alvo prioritário de
ataques.
Ornamento é crime. Em 1909, o autor deste lema, o ar-
quiteto e crítico austríaco Adolf Loos, escrevia que a obra de
arte quer retirar as pessoas do seu aconchego, enquanto que
a casa deve servir ao propósito contrário. Num discurso radi-
cal, propunha uma contradição entre a domesticidade – o
interesse e o apego às coisas domésticas - e a arte. As casas
eram desafiadas a assumir a frieza do Modernismo, com pa-
redes brancas e móveis tubulares em aço, mais se asseme-
lhando aos hospitais. Hoje, encontramos sem dificuldade
peças originais destes móveis, em diferentes estados de con-
servação, nas repartições públicas mais descuidadas ao longo
das décadas, duráveis que se mostraram.
Le Corbusier6, decisivo mentor do movimento, propaga-
va a idéia da casa como máquina de morar; pedia às pessoas
menos sentimentalismo e mais objetividade ao tratar da casa.
De certa forma, as casas incorporaram algumas máqui-
nas como itens essenciais, como por exemplo os dispositivos
de iluminação e climatização. No entanto, tratava-se não da
arquitetura como máquina; antes, eram sistemas superpostos
à arquitetura, estranhos à sua pureza plástica. Isto se deu
especialmente nos edifícios em forma de caixas de vidro – do
chamado Estilo Internacional. A idéia se espalhou mesmo
por todo o mundo, e ainda continua se espalhando: edifícios
de forma cúbica, prismática, com pronunciados ângulos re-
tos, e que refletem o céu e o sol, como pessoas de óculos
escuros ou reflexivos que não querem revelar sua expressão
facial. Incluem tais óculos como recurso indispensável nas
suas viagens pelo mundo, como passeios de final de semana,
e registram o fato em fotografias em que se destacam por um
ar superior, indiferente à diversidade de cenários. Assim são
os edifícios em vidro. Transmitem a impressão de alguma
coisa avançada, e se mostram indiferentes ao clima. Origi-

6
Charles Edouard Jeanneret (1887 – 1965), arquiteto e pintor franco-suíço.
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 11

nalmente, a idéia de máquina era evocada pelo pronunciado


geometrismo.
O progresso nas estruturas de aço e de concreto permitiu
que construções leves vencessem vãos livres cada vez maio-
res. As plantas dos edifícios, especialmente dos edifícios
comerciais, tornaram-se livres, já que as paredes estruturais
foram reduzidas a um mínimo. Houve contribuições efetivas
ao desempenho energético, já que os conhecimentos em iso-
lamento térmico e ventilação também avançaram. Entretanto,
conhecimentos tradicionais de adaptação ao clima local fo-
ram sendo esquecidos. Nos climas quentes, as estruturas le-
ves já não conseguiam preservar durante o dia o frescor da
noite, como faziam as espessas paredes de pedra, de taipa e
de adobe. Também fazia falta o frescor dos ambientes com
pé-direito alto e ventilação cruzada. Nos climas frios, as for-
mas soltas sobre pilotis e as paredes externas em vidro já não
conseguiam conservar o calor.
À elegância das formas nem sempre correspondia a ele-
gância das soluções técnicas; à aparência de engenharia, nem
sempre sua racionalidade. As pretensas máquinas de morar e
trabalhar dependiam de portentosos sistemas de climatização,
que eram menos integrados aos edifícios que ocultos entre
paredes, pisos e forros falsos. Paredes e lajes tiveram de ser
perfuradas para a passagem de dutos. Casas de máquinas
tiveram de ser acrescentadas, por vezes em todos os andares.
E os condensadores de ar condicionado, que despejam no ar
ambiente o calor extraído das edificações, passaram a des-
pontar do lado de fora das fachadas e coberturas, desafiando
a pureza das formas. O historiador Reyner Banham sintetizou
bem a situação: conquista de invólucros de vidro invisivel-
mente servidos satisfez claramente uma das maiores ambi-
ções estéticas da arquitetura moderna mas, em o fazendo,
afundou um de seus imperativos morais mais básicos, aquele
da expressão honesta da função, e um real conflito de inten-
ções pode ser percebido nos edifícios e no discurso arquite-
tônico do início dos anos 50.7

7
Reyner Banham, The Architecture of the Well-tempered Environment, 2nd Edition,
The Univ. of Chicago Press, Chicago (1984).
12 A IDÉIA DE CONFORTO

No final dos anos 70, teve especial impacto o projeto do


Centre Georges Pompidou8 em Paris, com suas instalações
assumidamente expostas, num conjunto de tubos coloridos.
Aqui, houve uma opção consciente pela expressividade das
verdadeiras máquinas.
No que diz respeito à iluminação, é certo que a planta li-
vre tenha permitido a adoção de aberturas contínuas, não
mais janelas interpostas aos pilares, mas paredes inteiras de
vidro. Entretanto, isto não significou melhor uso da ilumina-
ção natural. A planta livre permitiu recintos profundos que,
nas porções mais internas, eram escuros. A iluminação elétri-
ca sanava o problema.
No início dos anos 70, com a crise do petróleo, a voraci-
dade energética dos edifícios passou a receber críticas fre-
qüentes. Ao Modernismo faltava uma especificidade geográ-
fica, ao menos para considerar que diferentes climas, paisa-
gens e culturas requerem diferentes propostas, por vezes dife-
rentes conceitos de edifício. Como franca oposição aos res-
quícios do Modernismo, nomes distintos foram aplicados
para idéias basicamente similares: como arquitetura biocli-
mática, arquitetura passiva e, mais recentemente, arquitetura
sustentável.
No ambiente acadêmico, surgiu o movimento pelo con-
forto ambiental, expressão que substituiu a ”física aplicada às
edificações”- assim se chamava a disciplina nos cursos de
Arquitetura e Urbanismo e Engenharia Civil. A mudança de
nome sugere que se adotou algo mais amplo, caminhando em
direção ao produto do projeto arquitetônico, que é o espaço e,
contíguo, o ambiente construído. Todavia, um retrato do con-
forto ambiental, hoje, é em grande medida o de uma “física
aplicada” que mudou de nome. Sua orientação ainda se mos-
tra decisivamente mecanicista. Nas universidades, é com
freqüência uma disciplina construída na indiferença à estética
- assunto que não lhe ocupa a consciência. Mostra-se, ainda,
indiferente aos aspectos sócio-culturais da arquitetura. Ao
invés de reencontrar a integração ao projeto arquitetônico,
compartilhando sua profusão de implicações e incertezas

8
Projeto de Renzo Piano, Richard Rogers e Pietro Franchini (1977)
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 13

(principalmente porque a arquitetura existe relacionada com


as pessoas, que não são de todo previsíveis), o conforto am-
biental com freqüência se fecha em si próprio. Quer ser mui-
to mais uma especialidade do que uma espacialidade - um
aspecto do intrincado estudo do espaço.
Este livro vem mostrar que o conforto ambiental só pode
ser compreendido dentro do conceito mais abrangente de
arquitetura.

1.2 yin e yang no ambiente construído


Ao manifestar sua crença na contradição entre conforto
e arte, Adolf Loos lançava indiretamente uma classificação
básica das edificações quanto ao uso. Contrapunha a casa e
os edifícios relacionados, como dormitórios e hotéis, a todas
as demais edificações. A divisão entre dois grupos é bastante
nítida.
A casa acolhe. Atende a um conjunto de necessidades
básicas de segurança, envolvimento, orientação no tempo e,
principalmente, no espaço. É como se oferecesse consolo
interminável ao ser humano, lançado no mundo. E na casa, a
qualidade mais importante parece ser o conforto.
Já o mundo, este excita. Desde a infância, atrai em mo-
vimento centrífugo. Contamina de paixão os adolescentes e
os incita a saírem de casa. Não se mudam para outro lar mas,
de maneira simbólica ou por vezes literal, para a rua. São
fisgados pelo paradigma da mobilidade, o sonho de Ícaro. Ao
mesmo tempo, o mundo se revela desconfortável, o antônimo
de casa.
Esta dicotomia é encontrada no ensaio de uma arquiteta
de interiores suíça sobre conforto. Menciona haver locais
onde é perceptível que o conforto nos abandona. No espaço
público e de modo bem especial nos meios de transporte
públicos, por exemplo. Sempre onde muitas, ou muito poucas
pessoas estiverem juntas, aquele espaço pode se tornar muito
desconfortável.9 A isto contrapõe a casa, paradigma do con-
9
Cristina Sonderegger, Der Mensch ist die Basis des Komforts”, entrevista com
Verena Huber & Stefan Zwicky, WBW 3, 2003, pp.60-61. Tradução do autor.
14 A IDÉIA DE CONFORTO

forto. Contudo, não esconde preocupação com relação à casa,


percebendo algo de errado com suas janelas, antigamente,
tão pequenas quanto possível, subdivididas e providas de
cortinas, de modo que atrás delas se pudesse sentir acolhi-
mento, hoje vivemos com janelas de grande superfície. Mas
não é o tamanho que mudou. Deixamos de lado as cortinas e
achamos agradável e confortável que não mais nos proteja-
mos para fora.
Tal observação lançada século XXI adentro revela quan-
to o Modernismo mudou, também, no ambiente doméstico.
Quase um século depois de Loos e sua polêmica, ainda causa
estranheza a casa que reproduz a atmosfera de escritórios e
indústrias. Nesses ambientes, quase tudo é feito para atender
à funcionalidade, à produtividade; são os endereços de orga-
nizações estruturadas em torno de um objetivo maior, o do
lucro. Foram concebidos com auxílio dos especialistas, ge-
ralmente das áreas da engenharia de produção e da ergono-
mia – a ciência do trabalho. Neles se aplicou o estado da arte
do desenvolvimento para adequar, no espaço e no tempo,
aspectos físicos como a temperatura e a qualidade do ar. Já
na casa, o uso mais nobre é o do repouso. É aqui que a casa
tem sua funcionalidade muito peculiar, e não quer parecer
simulacro de escritório.
O conforto ambiental surge num esforço de se resgatar a
arquitetura enquanto abrigo diante de outras intenções como
a monumental, a produtiva ou a representativa. Mas é comum
que isto ocorra de modo reducionista. O desempenho da casa
enquanto abrigo é restrito à soma de algumas funções-
objetivo: temperatura, umidade, nível de intensidade sonora.
Enfim, aquilo que é possível medir: como se a satisfação
humana fosse cabível em algum modelo numérico. Já se tem
conseguido, em diversos países do mundo, máquinas eficien-
tíssimas.10 É por um lado um avanço; por outro, não existe
10
Nos anos 90, surgiram diversas iniciativas de casas com auto-suficiência energéti-
ca. Notável é a casa solar de Freiburg, Alemanha, construída com isolamento térmi-
co cuidadosamente estudado e que obtém eletricidade a partir do sol através de
células fotovoltaicas. Parte desta energia é armazenada em baterias, e outra parte em
recipientes de hidrogênio mediante eletrólise da água. Este e outros exemplos no-
táveis são descritos por Stephen Carpenter em Learning from experiences with
Advanced Houses of the World, Caddet Analyses Series No. 14, Sittard, Países
Baixos (1995).
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 15

garantia de uma contrapartida na compreensão do fenômeno


do conforto. Faz falta o entendimento do abrigo como reduto
do descanso, do devaneio (na formulação de Bachelard11).
O confinamento recíproco entre a técnica e o mistério –
de que faz parte a arte – trai uma maneira de pensar, já muito
antiga, que separa o corpo do intelecto - a alma - e que consi-
dera a existência corporal uma condenação, se comparada à
pura existência espiritual. Esta atitude remete à doutrina de
Pitágoras.12 Na tradição cristã remonta, no mínimo, aos escri-
tos de São Paulo. A mesma atitude também se manifesta na
tradição hindu.13
Esta maneira de pensar foi apontada pelo físico austríaco
Fritjof Capra como um erro situado na raiz de sérias questões
sociais e ecológicas da civilização ocidental e patriarcal. Em
sua obra mais conhecida – O ponto de mutação – adverte a
humanidade do risco da dissociação entre yin e yang, São
aspectos da existência complementares e opostos, identifica-
dos pela filosofia chinesa como os pólos extremos ao redor
do qual o Tao (a essência última da realidade) se mantém
num movimento cíclico, incessante. O yin e o yang podem
ser reconhecidos na natureza e na vida social das pessoas,
entre outros sistemas.
O yin é associado à Terra, à lua, à noite, ao inverno, à
umidade, ao frio e ao interior das coisas. O yin tende sempre
à contração; é ainda responsivo, cooperativo, intuitivo e sin-
tético. Já o yang é associado ao céu, ao sol, ao dia, ao verão,
à secura, ao calor e à superfície das coisas. É exigente, agres-
sivo, competitivo, racional e analítico.14 Desde os tempos

11
Gaston Bachelard (1884 – 1962), filósofo francês que, com rigorosa formação
científica, abraçou uma forma pessoal de fenomenologia, a do estudo da imagem
poética.
12
Pitágoras (570 A.C.), filósofo grego que prestou importante contribuição à mate-
mática. Propunha uma doutrina reencarnacionista.
13
Simon Blackburn, The Oxford Dictionary of Philosophy, Oxford University Press,
Oxford (1994).
14
Na mesma linha, opõem-se transparência (yang) e mistério (yin) e, respectivamen-
te, mobilidade e enraizamento, esquecimento e lembrança, luz e escuridão, superfí-
cie e cavidade, nomadismo e sedentarismo, sociedade e comunidade, em Gert Mat-
tenklott - Material – Hoffnung der Enterbten, Daidalos Architektur, Kunst, Kultur,
16 A IDÉIA DE CONFORTO

mais remotos da cultura chinesa, o yin é associado ao femini-


no, e o yang, ao masculino.
Yin e yang não são categorias diferentes, mas aspectos
extremos de uma mesma totalidade, faces da mesma moeda.
Capra acusa a civilização patriarcal de ter favorecido os ho-
mens em detrimento das mulheres, a ciência em detrimento
da religião, yang em detrimento de yin. Não tenciona denun-
ciar que tenha ocorrido a priorização de valores maus, senão
a promoção de um desequilíbrio. A separação entre o corpo e
o intelecto, uma manifestação associada, é o cogito ergo sum
(penso, logo existo) de Descartes,15 que há quase meio milê-
nio tem forçado os ocidentais a igualar a própria identidade
com sua mente racional, e não com o organismo todo.16
Na arquitetura, este processo já recebera, um século an-
tes de Descartes, importante impulso. Atribui-se a Filippo
Brunelleschi, arquiteto italiano do século XV, a renovação
dos métodos de projeto no soerguimento da cúpula da cate-
dral de Santa Maria de Fiori em Florença: projetou aquela
construção na superfície plana de um papel, em mais um
contributo para a alteração da humana concepção do espa-
ço, o qual vai se transformando de um meio no qual o corpo
vive e se movimenta numa abstração matematizada e geome-
trizada.17 Era o início do projeto formalizado no papel. O
processo ganha novo alcance, ao final do século XX, com a
formalização digital no computador. O edifício é concebido
sem depender de uma visita do autor ao local, ou à região
onde será implantado.
Se decido erguer minha casa defronte à rua por onde
passo todos os dias, sei de antemão onde nascerá o sol no
verão, e para onde subirá, e conheço seu percurso na prima-

56, pp.44-49, Berlim (1995). Ainda, uma maior generalização ainda associa yin e
yang, respectivamente, aos deuses gregos Dionísio e Apolo (Capítulo 2).
15
René Descartes (1596 – 1650), filósofo e matemático francês. Primeira tentativa
racional de fundamentação da filosofia, na dúvida absoluta, que não pode ser posta
em dúvida. Fundador da Geometria Analítica. (Knaurs Lexicon).
16
Fritjof Capra, The Turning Point – Science, Society and the Rising Culture, Fla-
mingo, Londres (1982).
17
João Francisco Duarte Jr., O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível, Criar
edições, Curitiba (2003).
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 17

vera, no outono, e no inverno. Sei qual lado é mais ruidoso e


já excluo dali a localização das janelas dos dormitórios. Ao
projetar no monitor de vídeo, não uso informação palpável
não recebo qualquer alerta dos meus sentidos – segundo
Montagu, todos eles, em última análise, uma extensão do
tato.18
Para o filósofo alemão Otto Friedrich Bollnow, cuja im-
portância é discutida no Capítulo 4, pouco significado prático
tem, para o ser humano, a noção de espaço matemático, ho-
mogêneo, em que se pode marcar qualquer ponto através de
coordenadas x, y e z, ou qualquer outro conjunto. Para ele, o
espaço é percebido cheio de heterogeneidades. Por exemplo,
em sua origem – a casa – o espaço encontra-se concentrado,
sua experiência é muito intensa. Outra heterogeneidade se
manifesta no trecho entre dois pontos de um caminho. Num
mapa, podemos uni-los por uma reta. Porém, isto não deverá
privar o andarilho de uma variada experiência ao longo do
trajeto correspondente no mundo real.
Contemporâneo seu, Bachelard mostrou de diversas ma-
neiras que o espaço real é mais rico que aquele da teoria,
considerado homogêneo. Faz falta que o arquiteto trate o
espaço como ele é e reconheça e respeite aquilo que nele se
encontra: a Terra e o céu; o dia e a noite; a topografia; os
seres vivos; e as pessoas – em toda sua imprevisibilidade.
Mesmo enquanto arte, a arquitetura sofre forte gravita-
ção pelo visual, refinado, hiper-preciso. Deixa-se levar para o
ideal, para o geométrico, afastando-se do sociológico. Um
crítico contemporâneo observa que desprezam o conforto -
vêem nele uma demanda do corpo, logo, algo com muito jeito
de “prato caseiro”, demasiado profano para ser tomado
como conteúdo com que se preocupe a arquitetura.19 Não
mede palavras para se opor aos adeptos de tal pensamento:
Em verdade, precisamente aquele que não está pronto para

18
Ashley Montagu, Tocar: o significado humano da pele, Summus Editorial, São
Paulo (1988).
19
Hermann Czech, Komfort – ein Gegenstand der Architekturtheorie? Werk, Bauen
+ Wohnen 3 (2003). Tradução do autor.
18 A IDÉIA DE CONFORTO

isto é que se deveria culpar de uma compreensão reduzida de


arquitetura.
Intelectualizada, a arte só vem aguçar a separação entre
yin e yang. Bachelard parece sublinhar tal contraposição ao
mencionar que o estudioso que quer viver as imagens da
função de habitar não deve ceder às seduções das belezas
externas. Em geral, a beleza exterioriza, transtorna a medi-
tação da intimidade.
As casas e, mais especificamente, seus cantos ou rincões
abrigam um princípio de felicidade que é delicado e conser-
vador, protetor da vida. Exclama o filósofo: Habitar só!
Grande sonho! A imagem mais inerte, a mais fisicamente
absurda, como a de viver na concha, pode servir de gérmen
a um tal sonho. Esse sonho nos vem a todos, aos débeis, aos
fortes, nas grandes tristezas da vida, contra as injustiças dos
homens e do destino...20 Para Bachelard, o rincão é uma ne-
gação do universo – segundo argumenta, é uma manifestação
espacial daquilo que os psicanalistas chamam de introversão.

1.3 Crítica e defesa do Modernismo


Uma conhecida máxima do Modernismo diz que a for-
ma segue a função. No entanto, por que não aceitar que a
função segue a forma, a introspecção segue o rincão, e assim
por diante? Onde estaria a verdade?
Esta polêmica não se reproduz no pensamento tradicio-
nal do Oriente, onde função e forma são uma, e a mesma
coisa. A forma é a combinação de espaço e função, e quando
a função e o espaço mudam, muda também a forma que, por-
tanto, nunca é fixa, mas temporal.21 A divisão entre forma e
função é, sob certo aspecto, uma divisão entre yin e yang. Tal
yin e yang, tanto a forma como a função somente se realizam
no todo.

20
Gaston Bachelard, op. cit., tradução do autor.
21
Fred e Barbro Thomson, Unity of Time and Space: The Japanese Concept of Ma”,
revista Arkkitehti, fev. De 1981, Helsinki, p. 68, apud. João Rodolfo Stroeter, op.
cit.
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 19

A expressão “máquina de morar” foi muito usada por Le


Corbusier que, nos seus escritos, faz menção explícita à mas-
culinidade da indústria, racional e, portanto, oposta ao caráter
feminino do lar, apegado à tradição e aos sentidos. Duarte
Jr.22 faz uma crítica severa daquela metáfora e do que seriam
suas implicações. Para ele, nossa casa veio deixando de ser
um lar, no sentido de constituir uma extensão de nossas
emoções e sentimentos, veio deixando de ser um lugar ex-
pressivo da vida de seus moradores e da cultura onde se
localiza. Foi se transformando numa máquina de morar, fria
e estritamente utilitária, sem o aconchego e o afeto de uma
verdadeira morada. Nela viveriam pessoas desconfortavel-
mente instaladas no que toca à satisfação estética dos senti-
dos, dentro de um ambiente geometricamente asséptico.
Numa linha semelhante está o comentário de Heinrich
Engel no prefácio de seu livro sobre a casa japonesa23 em que
se lamenta de que na época presente (o livro data de 1964), o
avanço técnico-científico não é mais antecedido, menos ain-
da induzido, por novas cognições filosófico-espirituais como
em eras passadas. Ao invés disto, a ciência e a técnica avan-
çam de forma autônoma, sem o controle moral e o preparo
intelectual que a religião e a filosofia permitem. Observa que
mesmo que a indústria da construção, tecnicamente, se situe
muito atrás de outras indústrias, tem progredido tanto que
suas formas já são bastante neutras às emoções humanas.
É verdade que muitos aspectos do conforto, embora pre-
dominantemente mecanicistas, evoluíram no Modernismo.
Inicialmente, houve um tratamento científico de aspectos
mais físicos da ergonomia; alguns do móveis do período fo-
ram, de fato, desenvolvidos de modo adequado ao corpo hu-
mano em diferentes tarefas. A iluminação obteve significati-
vos avanços. As estruturas em esqueleto permitiram extensas
aberturas, chamadas habitualmente fenêtre en longueur, e
uma vez que as janelas se libertaram dos cânones herdados

22
João Francisco Duarte Jr., op. cit.

23
Heinrich Engel, The Japanese House: a Tradition for Contemporary Architecture,
primeira edição – 1964, 12a. reimpressão Charles E. Tuttle Publishing Company,
Inc., Rutland, Vermont, E.U.A. (1985). Tradução do autor.
20 A IDÉIA DE CONFORTO

da Antigüidade (por exemplo, de sua disposição simétrica


numa fachada) puderam ser feitas, de fato, para mostrar e
para iluminar. A liberdade de forma permitiu que os arquite-
tos que assim o quisessem trabalhassem soluções engenho-
sas, por exemplo, de iluminação zenital. Como a luz, o ar
também foi democratizado. Para o conforto térmico, houve o
desenvolvimento e a disseminação do ar condicionado; so-
mente a partir dos anos 70 é que seu caráter esbanjador de
recursos naturais se tornou fator de preocupação. Havia a
consciência de uma nova missão da arquitetura: libertar o
homem não só das condições climáticas, mas do trabalho
não-criador, do peso do ornamento e do peso das conven-
ções burguesas – com que o aspecto moral do programa
moderno já se faz ouvir: o novo homem deveria ser libertado
para se tornar ativo, para a auto-realização, e não para a
vadiagem24. Certamente era uma posição ideológica, a crença
num sistema de verdades prontas como resultado de uma
escolha pessoal.
No seu apelo a um caráter mais “ativo” ressoam algumas
vozes que, no início do século XX, justificavam uma estética
do simples e objetivo. Dizia Alexander Schwab (1930) das
peças do mobiliário modernista: são rejeitadas por serem
frias e não convidativas, lembranças desagradáveis de um
hospital. Portanto: a pessoa que se sentir confortável nesta
cadeira é alguém para quem, mesmo num estado de descan-
so, a tensão leve e constante da vida moderna, o sentimento
de elasticidade e impulso se tornou um pré-requisito existen-
cial, um componente indispensável da consciência vital.25
O gosto burguês aprendeu, depois de muita insistência, a
valorizar a poesia peculiar dos utensílios de perfil geométri-
co, produzidos em massa e vendidos nas lojas que comercia-
lizam o trabalho de desenhistas famosos. Ainda, aprendeu de
certa forma a valorizar os materiais autênticos - outra contri-
buição valiosa do Modernismo -, que convencem de modo
visual e tátil.

24
Editorial, Werk, Bauen + Wohnen, 3 (2003). Tradução do autor.
25
Alexander Schwab, citado por Gert Mattenklott , op. cit. Tradução do autor.
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 21

Enfim, não é muito lembrar que o mesmo autor da ex-


pressão máquina de morar também disse que arquitetura é
para emocionar; portanto, estaria além da utilidade. Ocorre
que a expressividade do Modernismo aparece sempre às vol-
tas com yang, deixando de lado yin. Ou, usando imagens
bíblicas, a expressividade do Modernismo é muito mais de
Marta (a hospitalidade material) do que de Maria (a atenção
serena ao hóspede). Fere as expectativas de domesticidade
que se dirige à casa, afasta-se dum consenso suprapartidário
em relação aos diferentes estilos.

1.4 Uma visão holística do conforto


Na expressão máquina de morar incomoda a idéia de
um sentir mecânico do corpo – como se fosse instrumentado
por termômetros, manômetros e conta-giros. Acabaram se
absolutizando aspectos parciais – como do conforto térmico
ou da acústica. Conforto não se explica, pois, com itens es-
tanques, precisamente definidos.
Tampouco se revela um jogo onde vença a neutralidade
(eliminação do desconforto). Os próprios cultores da arquite-
tura como arte priorizam a expressividade visual – do espaço
visível – em detrimento de outras formas de expressividade.
É certo que os aspectos táteis são de certo modo indissociá-
veis aos visuais. Mas há uma tendência ao abandono da ex-
pressividade do calor, do som, dos aromas e odores, e mesmo
da luz quando fora das finalidades pictóricas e esculturais.
Têm quando muito um papel acessório da funcionalidade.
Os aspectos não-visuais parecem não merecer muita
atenção dos arquitetos. São os diversos tipos de especialistas
em conforto que os consideram. Entretanto, costumam passar
longe da estética.
Seria o prazer estético um processo exclusivo dos olhos
e do cérebro, tão livre de outras sensações corporais? Há,
afinal, alguma relação entre o conforto e o prazer estético, e
vale a pena insistir neste assunto? Estas questões serão trata-
das a seguir.
22 A IDÉIA DE CONFORTO

Uma idéia central que motivou este livro é do conforto


como atributo positivo do espaço arquitetônico. A tese a ser
demonstrada através de pesquisa e argumentação é que con-
forto não se limita a neutralidade através da supressão dos
fatores indesejáveis, mas também envolve algo mais.
Em lugar de proibir os ambientes fora da zona de con-
forto, aquela zona que é possível delimitar ao se eleger os
critérios térmico, acústico, visual ou ainda químico, trata-se
de tolerar que a zona de conforto seja eventualmente abando-
nada em favor de um caminho que acrescente emoção e pra-
zer.
Uma concepção notavelmente positiva de conforto foi
encontrada longe dos livros de arquitetura, e muito longe da
ergonomia: na enfermagem. É um campo de conhecimento
dedicado, em boa porção, diretamente ao conforto das pesso-
as. As autoras, Katherine Kolcaba e Linda Wilson apresen-
tam uma síntese muito clara:26 O conforto é mais que a au-
sência de dor e pode ser aprimorado, mesmo se a dor não
pode ser tratada inteiramente, através da atenção à trans-
cendência. O incremento do conforto envolve aumento da
esperança e confiança e pode diminuir as complicações rela-
cionadas à alta ansiedade dos pacientes.
As autoras desenvolveram o conceito da maneira mais
holística (isto é, considerando o todo, whole). Para tanto,
estabeleceram um referencial em duas dimensões: os níveis e
os contextos de realização do conforto.
Como níveis de realização do conforto, as autoras reco-
nhecem três. O primeiro é o do alívio (relief) de uma deter-
minada dor. Supõe o contraste de uma situação para outra. É
bastante próximo a uma definição de conforto que foi pro-
posta, mais recentemente, por um ensaísta em arquitetura:
uma tempestade em aproximação rápida, chuva forte e ne-
nhum lugar para se abrigar. Após dez minutos a roupa está
encharcada, os sapatos cantam ao andar. Um vento fresco se
soma e aumenta a sensação de frio. Então é confortável che-

26
Katharine Kolcaba & Linda Wilson, Comfort Care: A Framework for Perianesthe-
sia Nursing, Journal of PeriAnesthesia Nursing, Vol 17, N° 2, pp 102-114 (2002).
Tradução do autor.  
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 23

gar a um quarto quente. Colocar roupas secas, aquecer-se


junto a uma lareira e beber chá quente. Não estar mais ex-
posto, agora sentir-se bem. O desagradável pôde ser substi-
tuído pelo agradável. É isto, para a maioria das pessoas, o
significado de conforto.27
O segundo nível que as autoras em enfermagem pro-
põem é o da liberdade: é aquele em que o paciente previne
outras manifestações específicas de desconforto.
O terceiro, explícito na definição acima, é o da trans-
cendência: aspectos positivos de conforto oferecendo com-
pensação a um desconforto inevitável que, no caso daquela
profissão, manifesta-se comumente enquanto dor física.
Já como contextos de realização do conforto, as autoras
reconhecem quatro: físico (relacionado às sensações corpo-
rais e mecanismos homeostáticos – do equilíbrio do corpo);
psico-espiritual (ligado à consciência interna de si, incluindo
estima, conceito, sexualidade, significado na vida de alguém
de uma ordem superior de existência e sua relação com ela),
sócio-cultural (pertencendo a relações interpessoais, familia-
res e sociais, e também a tradições familiares, rituais e práti-
cas religiosas); e ambiental (pertencendo à base externa da
experiência humana – temperatura, luz, som, odor, cor, mobi-
liário, paisagem, etc).
Para uma descrição mais precisa, é útil transcrever as
palavras das próprias autoras:
Necessidades de conforto físico: incluem déficits nos meca-
nismos fisiológicos que foram afetados ou colocados em
risco devido a procedimentos cirúrgicos. Necessidades físi-
cas sutis das quais o paciente pode não estar consciente in-
cluem a necessidade de melhorar o balanço de líquidos ou
eletrólitos, a oxigenação ou a termorregulação. Medidas de
conforto são dirigidas à recuperação ou manutenção da
homeostase. Necessidades físicas óbvias tais como dor, náu-
sea, vômito, tremedeira ou coceira são mais fáceis de ver e
tratar (com e sem medicamentos). Tomadas em conjunto,

27
Wolfgang Marshall: Komfort: ethnologische Splitter aus Asien. Werk, Bauen +
Wohnen 3, pp.42-47 (2003). Tradução pelo autor.
24 A IDÉIA DE CONFORTO

necessidades sutis e outras necessidades do conforto são,


muitas vezes, onde as enfermeiras noviças implementam
intervenções, excluindo as necessidades dos demais contex-
tos.
Necessidades psico-espirituais: incluem a necessidade de
inspiração, motivação e a capacidade de “crescer através”
ou colocar-se acima de desconfortos da cirurgia ou anestesia
que não possam ser aliviados imediatamente. Tais necessi-
dades são muitas vezes satisfeitas por medidas de conforto
voltadas para a transcendência, tais como massagem, cuida-
dos bucais, visitas especiais, toque carinhoso e palavras
especiais de encorajamento continuado. Estas intervenções
de caráter extraordinário, para as quais as enfermeiras difi-
cilmente encontram tempo, podem ser chamadas “alimenta-
ção de conforto” para a alma, pois são inesperadas mas
amáveis aos pacientes e facilitam a transcendência.
Necessidades sócio-culturais de conforto: são necessidades
de reestabelecimento da confiança, culturalmente sensíveis,
apoio, linguagem corporal positiva e cuidado. Podem ser
atingidos pelo acompanhamento (coaching), que inclui a
atitude positiva, mensagens de bem-estar (wellness) e enco-
rajamento, afirmações como “você está indo muito bem”,
motivação para tarefas vindouras, e educação sobre todos os
aspectos relacionados com o procedimento, despertar, des-
carga e reabilitação.28 Há em enfermagem comportamentos
mais usuais, adequados sob a maioria das circunstâncias.
Necessidades sócio-culturais também incluem as necessida-
des de assistência financeira, com documentação, honra a
tradições culturais e, algumas vezes, amizade durante a hos-
pitalização, se os pacientes tiverem uma rede social limitada.
O planejamento da alta também ajuda a atender as necessi-
dades culturais, tendo em vista uma transição gradual para
casa.
Necessidades de conforto ambiental: incluem tanto ordem,
calma, mobiliário confortável, minimização de odores, e
segurança de acordo com a possibilidade dada pela peria-
nestesia. Isto inclui a atenção às adaptações ambientais no

28
Nota do autor: aqui poderia ser incluída a visita de animais de estimação.
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 25

lar do paciente, e sugestões. Quando enfermeiras são inca-


pazes de prover um ambiente pacífico e saudável, (tal como
prescrito por Nightingale29), podem ser capazes de ajudar
pacientes a transcender menos que em condições ideais.
Entretanto, as enfermeiras deveriam fazer esforços conscien-
tes para diminuir o ruído, as luzes e interrupções ao sono,
para facilitar um ambiente pacífico.  
Este entendimento de conforto se distingüe, primeiro,
por ser o contexto ambiental visto como parte de um todo, ao
lado dos contextos corporal, psico-espiritual e sócio-cultural.
Depois, a busca do nível da transcendência já no contexto
ambiental. Assim, significa vários passos além da subservi-
ência às normas técnicas, já que muitos arquitetos terceirizam
o conforto ambiental, isolando-o dos outros contextos que
integram o espaço arquitetônico. E raramente os especialistas
consultados se propõem a algo mais que evitar o desconforto.
A preocupação muito objetiva dos profissionais da en-
fermagem restitui a clareza, há muito perdida, àquilo que se
espera da arquitetura. Para Kolcaba e Wilson, o conforto
perpassa todos os aspectos do bem-estar do paciente; não há
possibilidade de uma abordagem segmentada. Mostra-se logo
inconsistente o destacamento do conforto ambiental – objeto
de especialistas – do simplesmente conforto, objeto de toda a
arquitetura.
Este é, pois, um livro de conforto ambiental. Não trata
do conforto corporal, pois já o fazem os livros sobre alimen-
tação, vestuário, medicina e tantas outras disciplinas. Tam-
pouco trata do conforto sócio-cultural, que é a praia dos so-
ciólogos e antropólogos, dos quais o ambiente construído tem
se mostrado carente de conselhos. E nem trata, enfim, do
conforto psico-espiritual, e nem sabe a quem recorrer para
buscá-lo. Entretanto, reconhecendo a importância de uma
abordagem holística de conforto, tenta captar dependências
recíprocas destes contextos, principalmente este último, com
o contexto ambiental.

29
Enfermeira inglesa (1820-1910) que teve importante papel na reforma das condi-
ções hospitalares no seu país.
26 A IDÉIA DE CONFORTO

Uma abordagem holística propõe-se, pois, mais à busca


do bem-estar das pessoas - que não deixa escapar algum as-
pecto importante - do que à preservação da pureza de uma
definição acadêmica.
Um exemplo de uma perspectiva holística do conforto é
dado por uma crônica sobre a eutanásia, em que um médico
relata como convenceu um amigo desenganado a aproveitar
bem toda a vida que lhe restava.30 Parte do relato, um caso
verídico, é reproduzida a seguir.
Todo o mês seguinte, Simon estava notavelmente livre
de dor. Uma rotina diária emergiu, uma que claramente
refletiu o senso estético de Kate. Todas as manhãs, após o
café da manhã, ela iria ajudá-lo a descer as escadas até uma
cadeira confortável voltada para uma janela ao nascente. Lá
tomava seu café, e lia o jornal matinal. Simon me mostrou a
vista de sua janela. Conduzindo a ela, havia um vaso de flo-
res recém-cortadas, e do lado de fora estava um pequeno
arbusto de forsythia que iria logo florescer. Próxima, uma
jovem árvore de amoras com delicadas flores brancas e mar-
rons. Ao lado, e ao redor, borrifos de cor com o verde per-
manente de zimbros, pinheiros e teixos, e atrás do aromático
adubo de cascas de árvores e da grama de inverno crescia
uma linha oblíqua de árvores de tílias. Mais tarde, ainda na
manhã, Simon ia para uma alcova voltada para o sul, próxi-
mo à cozinha, e ouvia música: Buxtehude, Bach e Chopin. A
“bay window” estava viva com cor: trepadeiras juntando-se
a samambaias e palmitos, através da janela uma densa cer-
ca-viva, bem mantida, e acima, à distância, o movimento de
um conjunto de copas de cedros. Durante a tarde, na sala da
família, Simon organizava seus papéis e trabalhava na cor-
respondência. À sua frente, uma janela de vista para o jar-
dim. Os pássaros zuniram em seu vôo até os alimentadores
próximos à janela e dali foram aos arbustos. Este jardim,
cheio de destaques maravilhosos que juntos produziam um
todo, era no centro da cidade, e bem poderia ser num dos
bairros mais verdes. Depois do jantar, a filha de Simon lia-
lhe Tchekov, mas quando os dias se estenderam, sua força
30
Ian A. Cameron, Freud’s Request, JAMC • 16 de novembro, 161 (10), pp. 1298 e
1300 (1999). Tradução do autor.
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 27

começou a diminuir. Uma semana, ele estava discutindo


ativamente os pontos na história; na outra, ele estava caindo
de sono no meio das frases. Sua filha iria terminar a história
e seu filho carrega-lo até a cama. Na última semana de ju-
nho, Simon dormia a maior parte do tempo. As histórias e a
música continuavam, e quando eu o visitava, sempre havia
um sorriso gentil em seu rosto.  
Já do mundo da ficção, outro exemplo eloqüente de
compreensão holística de conforto é apresentado pelo cineas-
ta canadense Denis Arcand. Em Invasões Bárbaras,31 retrata
os últimos dias de um professor de história desenganado, que
reúne a esposa, o filho distante e a nora, amigos do Departa-
mento de História onde trabalhava, inclusive antigas aman-
tes, num rancho idílico à beira de um lago. Lá, cercado de
cuidados e caprichos, banquetes e tertúlias, despede-se de seu
passado. Numa das cenas finais, forma-se uma roda de con-
versa no jardim, sob um céu estrelado, os copos de vinho à
mão, sentados em cadeiras portáteis e envoltos em coberto-
res.
A visão holística de conforto reforça a tese da dimensão
expressiva do conforto ambiental. Vimos acima como o
conceito de conforto migrou, nos últimos dois séculos, dos
contextos corporal (alívio da dor) e psico-espiritual (conforto
como consolo) para os contextos sócio-cultural e ambiental,
identificados por Kolcaba e Wilson.32
Porém, temos visto currículos de universidades, livros-
texto e prospectos de empresas com uma visão mecanicista
de conforto ambiental a que dão, de forma não justificada,
um peso predominante na arquitetura (talvez vislumbrando a
possibilidade de uma transcendência pela simples apuração
dos parâmetros ambientais). Esta já seria uma alternativa para
explicarmos como o conforto ambiental poderia emocionar.

31
Este filme, apresentado em 2003, dá seqüência ao Declínio do Império America-
no, de 1986. Ganhou dois prêmios no festival de Cannes e o Oscar de melhor filme
estrangeiro.
32
Este assunto é tratado em detalhe por Witold Rybczynski em Casa – pequena
história de uma idéia, Edgard Blücher Editora (1995).
28 A IDÉIA DE CONFORTO

Entretanto, uma explicação mais convincente advém do


concurso dos outros contextos de conforto. Se percorrermos
os níveis propostos pelas autoras-enfermeiras na progressão
desde o alívio até a transcendência, o conforto ambiental e o
conforto físico só podem se aproximar mais do conforto psi-
co-espiritual e do sócio-cultural. Pois se o tratamento da cau-
sa imediata é requerido para a superação da dor, a compensa-
ção desta mediante o afago de outros sentidos requer um
nível de maior realização do conforto. A transcendência é
atingida ao se potencializar reações emocionais diversas de-
correntes, inclusive, da sensação de segurança de se contar
com tais afagos.
Além disso, os contextos psico-espiritual e sócio-
cultural estão intrinsecamente ligados à expectativa que as
pessoas normalmente têm de uma edificação. No idioma
alemão, o uso de diferentes expressões para o conforto trai a
existência de algumas destas expectativas. Utiliza-se, hoje, o
termo behaglich para o confortável; este adjetivo deriva do
particípio umhegt, estado de alguém que se sente cercado,
envolto, acolhido. De acordo com os irmãos Jacob e Wilhelm
Grimm em seu dicionário de 1854, isto significa tanto quanto
“satisfeito”, “aconchegado”.33 Diversos outros vocábulos,
ainda, têm significados semelhantes: gemütlich, bequem,
annehmlich, komfortabel. Somente o último (pouco usado)
corresponde à origem latina, e é difícil reproduzir numa tra-
dução as nuances que existem entre os demais. O que a eti-
mologia revela são percepções peculiares de um conceito
comum: algumas palavras albergam indícios sugestivos para
um melhor entendimento.
A idéia de estar acolhido enfatiza o elemento protetor do
conforto. Remete, em última análise, ao útero materno, talvez
o local de maior proteção de que já desfrutamos e que per-
manece um ideal inconsciente, de conforto. É mais um
exemplo de situação de conforto holístico, em que ocorre
convergência entre os diferentes contextos do conforto: o
físico, o ambiental, o psico-espiritual e o sócio-cultural.

33
Marshall, op. cit.
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 29

Esta última sentença requer uma explicação. Faz pouco


sentido considerar a sociabilidade, menos ainda a cultura de
um embrião. Efeitos do ambiente externo são praticamente
anulados pelo corpo da mãe, e sobre o psico-espiritual do
embrião pouco se pode afirmar. Exceto o corporal, os demais
contextos de conforto podem ser nulos. Tudo isto faz lembrar
a álgebra linear, quando se busca a solução para um sistema
de n equações a n incógnitas. Os matemáticos denominam
solução trivial que satisfaz um sistema de equações aquela
em que todas as variáveis tomam o valor zero. Se supuser-
mos que o embrião se encontra na origem do conforto, uma
espécie de marco inicial, então, mesmo nulos, os diferentes
contextos de conforto convergem. A atribuição à fase embri-
onária de um valor “zero” em conforto é uma imagem razoá-
vel para mostrar os contextos de conforto todos iguais (zera-
dos). Entretanto, também faz sentido a idéia desse “zero”
como representando muito conforto, como se, depois de nas-
cer, regredisse para valores negativos. Neste livro, o útero é
mencionado algumas vezes como uma espécie de padrão de
conforto, um lugar ideal do qual partimos para a vida, fora.
Ao apresentar a tese de uma origem evolucionista do
prazer arquitetônico, Grant Hildebrand34 propôs, para que
este aconteça, dois princípios fundamentais: refúgio e pers-
pectiva. Dentre os animais, e isto inclui o homem, tiveram
melhores chances de sobreviver os indivíduos a quem aprazia
a conjugação de dois elementos: o refúgio, com cantos escu-
ros e paredes sólidas próximas do corpo e restringindo a
aproximação de inimigos, e a perspectiva, a visão privilegia-
da, através de uma abertura, para a paisagem, mais clara, e
tanto mais visível sob bom tempo. Embora também se possa
perceber a importância do abrigo e portanto sentir prazer sob
tais condições e preferi-las, esta predileção seria antes uma
característica inata e hereditária, que ao longo das gerações
teria auxiliado a sobrevivência de certos indivíduos e deter-
minado sua vitória no processo de seleção natural.
Refúgio e perspectiva remetem, novamente, aos princí-
pios opostos e complementares de yin e yang, acima apresen-
34
Grant Hildebrand, Origins of Architectural Pleasure, The University of California
Press, Berkeley (1999).
30 A IDÉIA DE CONFORTO

tados. E quanto mais se avança na caracterização do conforto,


percebemos que mais seus ambientes se parecem com yin. Já
naqueles mais identificados com yang, a busca de bem-estar
não corresponde, pois, exatamente ao conforto. O leitor de
Bachelard e de Bollnow se convence gradualmente de que é
somente em casa que o conceito de conforto se realiza com
coerência. E assim também quando tratamos do contexto
ambiental do conforto.
Difícil, porém, é abordá-lo separado dos outros contex-
tos. Recortes na horizontal (separando os contextos, um do
outro) ou vertical (separando entre si os níveis) produzem
uma forma limitada de conforto ambiental. Não basta garan-
ti-lo pela proibição de tudo o que, estando aquém do tolerá-
vel, possa causar dor. E não basta que o conforto se limite ao
alívio da dor que passou. É necessário levá-lo mais longe:
para garantir a liberdade, é necessária uma certa distância
dos riscos de a dor voltar; para que haja transcendência, deve
haver compensação à dor.
No nível da transcendência, o conforto supera a linha de
neutralidade, está inseparável do prazer, do êxtase, na extre-
midade oposta à do sofrimento, e aumenta sem limites apa-
rentes. Talvez não se consiga mais quantificá-lo. Daí o desa-
fio de explorá-lo além das definições um tanto forçadas do
que é físico, ambiental, sócio-cultural ou psico-espiritual.
Mais correta seria a adoção de um conceito aberto de confor-
to, despojado da pretensão didática. Pois este é o risco dos
modelos ultra-simples: alguns são simples por que são geni-
ais; outros, viabilizam-se ao mutilarem a realidade, omitindo-
lhe aspectos fundamentais.
A limitação do conforto à superação do desconforto se
caracteriza como uma modelagem fácil, a que bastam as ana-
logias entre o corpo humano e as máquinas. Embora didático,
o mecanicismo só é viável porque omite facetas da realidade.
O modelo holístico de Kolcaba & Wilson, que considera os
níveis de alívio, liberdade e transcendência é, a seguir, exem-
plificado para o contexto ambiental do conforto. Logo depois
é apresentado um modelo histórico, e confrontado com o
anterior. E mais adiante neste capítulo será apresentado um
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 31

modelo alternativo, que será adotado ao longo do livro na


abordagem específica de olfato, tato, calor, audição e visão.
Na explicação do conforto térmico, normalmente um
ponto de partida é o balanço térmico do corpo - a igualdade
entre o calor produzido pelo metabolismo e aquele que, sub-
traído o trabalho útil, é dissipado pela pele e pela respiração.
A inserção de todos os diferentes processos de perda de calor
faz surgir uma complicada equação, embora útil: para cada
determinada situação, expressa se há algum desconforto, de
que tipo (sensação de frio ou calor) e em que medida. Mapear
zonas de conforto com seus resultados seria útil. Faz falta, no
entanto, conhecer-se as diferenças entre as múltiplas solu-
ções, e identificar estados intermediários. Por que motivo
demoramo-nos, no inverno, a tomar um banho quente, e man-
temo-nos imóveis sob um jato de água a temperatura muito
acima do teoricamente confortável? E por que, no verão,
apreciamos um copo de água gelada, a uma temperatura tão
baixa que nos anestesia as papilas da língua?
Questões comparáveis surgem com relação aos outros
sentidos.
O ouvido funciona como um conjunto de transdutores e
amplificadores; mas compreende mais partes. É todo um
sistema que monitora o ambiente até quando estamos dor-
mindo. Leva ao cérebro a descrição física do ruído e, com
isto, elementos necessários à sua identificação. Esta tem
efeito qualitativo sobre o ouvinte. E dificilmente a experiên-
cia acústica acontece isolada de uma experiência do espaço
arquitetônico.
A visão é o sentido preponderante. É percorrida por uma
profusão de estímulos tridimensionais em milhões de pontos
de imagem, com diferença de cor e intensidade ou luminân-
cia. Juntos, estes pontos configuram objetos, locais, materi-
ais, padrões que aprendemos a identificar. Como é que os
diferentes ambientes visuais nos influenciam? Como é que
relacionamos a impressão imaterial da visão com informa-
ções concretas de outros sentidos como tato e olfato?
O estudo da química ambiental não se resume à busca de
ar puro. No olfato se encontram resquícios da vida ancestral
32 A IDÉIA DE CONFORTO

sobre a terra. O mecanismo de interpretação dos odores é


profundamente ligado à produção de emoções.
Há livros de arquitetura que, ao tratar de espaço, tocam
os diversos contextos do conforto, mas no contexto ambiental
restringem-se ao espaço visível. Por outro lado, normas téc-
nicas em conforto na edificação, que cobrem os diversos
fenômenos físicos do ambiente, limitam-se ao contexto am-
biental e não consideram o nível da transcendência. Dizem
respeito a aspectos de um abrigo para o corpo. Entretanto, o
ambiente construído é um anteparo existencial, um abrigo
também para a alma.

1.5 Uma visão histórica do conforto


A seqüência empregada por Kolcaba e Wilson para des-
crever os contextos de conforto apresenta uma curiosa coin-
cidência com o desenvolvimento cronológico, primeiro da
prática, e depois da teoria de conforto. Calmar a dor (contex-
to corporal) é uma preocupação que se sabe remontar a tem-
pos imemoriais. Depois, a busca de consolo (contexto psico-
espiritual) é amplamente documentada na literatura: é, pois, o
significado original da palavra confortare no latim. E a cons-
ciência dos contextos sócio-cultural e ambiental, assim como
suas técnicas de adequação, desenvolveram-se em épocas
bem mais recentes.
Antes que o contexto ambiental, o contexto sócio-
cultural do conforto parece ter conquistado consciência en-
quanto algo mais que a eliminação do desconforto. Relatando
a burguesia rural do seu país no início do século XIX, a escri-
tora inglesa Jane Austen35 costumava comentar do pretenden-
te de uma moça possuir no banco uma comfortable fortune,
ou ainda receber um comfortable salary. É como saber da
existência de uma despensa farta, que torna a casa mais con-
fortável diante da aproximação do inverno. Foi depois que
apareceu a expressão to be comfortable inside – estar confor-
táveis dentro de casa.

35
Jane Austen (1775 – 1817), romancista inglesa, autora de uma obra reduzida, mas
muito popular. A obra de Jane Austen está integralmente disponível, em inglês, nas
páginas do Projeto Gutenberg na Internet: http://promo.net/pg.
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 33

Em Home, Rybczynski36 apresenta em relato cronológi-


co a lenta emergência dos valores que integram o conceito
contemporâneo de conforto. Tudo iniciou com a domestici-
dade, em época que não tem definição precisa. O autor conti-
nua introduzindo privacidade e intimidade. Tais valores eram
desconsiderados quando, na Idade Média, diversas famílias
dividiam um mesmo recinto.
Rybczynski mostra indícios do surgimento da privacida-
de como uma das primeiras exigências do conforto. Teria
sido uma conquista do século XVII nos Países Baixos, onde é
reconhecida a influência do tamanho limitado das casas, so-
mente suficiente para uma família, e sua planta estreita, que
exigia ocupação sistemática. Outros fatores, ainda, devem ter
concorrido para este desenvolvimento.37 Nos demais países,
isto somente ocorreu um século mais tarde, com especial
impulso na corte francesa, em que o monarca criava refúgios,
no seu palácio e fora dele, onde pudesse estar livre da pompa
para sentir-se à vontade. Conforto – para o autor, uma tradi-
ção inventada – mostra-se de início algo encontrado princi-
palmente no ambiente doméstico, conceito oposto ao da esfe-
ra pública. O que acima batizamos contexto sócio-cultural do
conforto poderia também ser chamado de contexto sócio-
cultural-político. É uma circunstância conhecida dos regimes
formalmente autoritários na China e na antiga União Soviéti-
ca, e mesmo da sociedade autoritária sob regime formalmente
liberal do Japão, através dos relatos de quem neles viveu, que
era dentro de casa que as pessoas se permitiam expressar sua
mágoa, criticar e chorar.38

36
Witold Rybczynski, op. cit.
37
A simples escassez de espaço que, guardadas as proporções também ocorria nos
sobrados urbanos brasileiros, ao exemplo da cidade baixa de Salvador, não se
mostrou suficiente para que aqui tivesse surgido, espontaneamente, idéia equivalente
– o demonstra a literatura dos viajantes do século XIX pelo Brasil, discutida mais
adiante.
38
George Orwell (1903-1950), cujo nome verdadeiro era Eric Arthur Blair, escritor
inglês, profetizou o fim da privacidade em sua obra 1984, em que os cidadãos eram
monitorados por olhos mecânicos em suas próprias casas pelo big brother. Sob tal
circunstância, o autor conseguiu destruir a noção de conforto, caracterizando uma
sociedade totalitária.
34 A IDÉIA DE CONFORTO

Peter Thornton39, historiador dos interiores no ocidente,


identificou o momento preciso, na corte francesa de Luís XV,
em que se diferenciava, enfim, entre o luxo – relacionado à
etiqueta – e o conforto: na França, a câmara-dormitório era
sem dúvida um quarto de recepção; era o mais interno de
tais quartos, mas isto não significa que fosse alguma sala de
visitas (drawing-room) onde alguém pudesse relaxar. (...). A
rígida formalidade da vida na corte e, na verdade, a maior
parte do intercâmbio social no período tornava imperativa a
existência de locais de retiro para que se pudesse relaxar.
Isto levou ao desenvolvimento, nos grandes estabelecimen-
tos, de um apartamento inteiro por detrás da cena, e também
do closet, um delicioso pequeno quarto onde alguém podia
refugiar-se das irritantes exigências da etiqueta. A distinção
entre conforto e luxo é esclarecida pelo arquiteto Stefan
Zwicky:40 são coisas totalmente diversas. Com relação aos
móveis, há os confortáveis que não representam nenhum
luxo; ao contrário, há os luxuosos que são incrivelmente
desconfortáveis. O conforto se expressa antes de tudo pela
sensação de envolvimento, pela agradabilidade, também tem
a ver com figuras, das quais a gente quer se cercar. Por
exemplo, uma velha e sólida taverna incorpora o conceito
tradicional de envolvimento: um espaço escuro, baixo e to-
talmente revestido de painéis. A maioria dos hóspedes acha
isto de um aconchego ancestral.
E por que é que o contexto sócio-cultural é também cul-
tural? A voracidade por espaço que sente um europeu não
seria imaginável a um japonês, mais acostumado à vida em
sociedade, e a uma distância pessoal menor. Certamente exis-
te um padrão cultural: o conforto é, em seu contexto sócio-
cultural, muito específico a cada povo diferente.
Entretanto, parece comum a diferentes culturas o signi-
ficado de conforto como algo que fazemos por nós mesmos,
e não pelos outros, como é o caso da etiqueta. Conforto é
algo pessoal, e a razão do conforto de um – um chinelo velho

39
Peter Thornton, op. cit.. Tradução do autor.
40
Verena Huber & Stefan Swicky. Der Mensch ist die Basis des Komforts, Werk,
Bauen + Wohnen 3, pp.60-61 (2003). Tradução do autor.
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 35

– pode parecer desagradável ao outro. Uma condição neces-


sária é a tranqüilidade: uma virtude da casa que, segundo
Bachelard, abriga o devaneio. Existe, pois, uma seleção de
quem deve ficar do lado de fora, e de quem queremos que
fique conosco; e mesmo estas pessoas não nos devem impe-
dir algumas idiossincrasias. É sintomático, ainda, que a maio-
ria das revistas de arquitetura ilustrem os espaços sem pesso-
as. Isto remete ao conceito do anti-conforto; dos espaços
revestidos em materiais de elevada dureza, nos quais não se
tolera nem sinais das pessoas que por ali passaram.
Rybczynski propõe enfim, que, despontando no século
XVIII, o conforto surgiria incorporando àqueles três valores,
ainda, os valores da conveniência41 e do encanto. Mais tarde,
acrescentaria a leveza (palavra com significado próximo de
ease: expressa o caráter não-dramático, tranqüilo, em oposi-
ção à excessiva tensão do rococó) e, enfim, algo de estilo e
eficiência.
Compreendendo os quatro ou cinco séculos de evolução
do conceito de conforto até chegar ao século XX, Rybczynski
pôde identificar suas partes. Como relacionar tal sistema,
cronologicamente ordenado, de valores do conforto, com
aquele proposto por Kolcaba e Wilson? Uma tentativa é
delineada a seguir.
O conforto no contexto sócio-cultural tem seu nível de
alívio na domesticidade (chegar em casa depois de viajar
num ônibus apinhado de gente). O nível de liberdade é obtido
na privacidade (sabe que, fechando a porta da casa, o espaço
pessoal está garantido) e o nível de transcendência, enfim,
antes que os outros contextos, na intimidade e no encanto.
O conforto no contexto psico-espiritual tem seu nível de
alívio na domesticidade – o consolo de estar em casa – e na
leveza (elimina tensões). Nela também se encontra, em parte,
seu nível de liberdade. Já o nível de transcendência é encon-
trado no encanto e, ainda, na eficiência e no estilo, duas ela-
borações maiores que dão à pessoa uma satisfação duradoura,
de caráter pessoal.
41
A expressão inglesa commodity foi traduzida, na versão em português do livro,
como comodidade, um quase sinônimo, mas que aqui não será empregado.
36 A IDÉIA DE CONFORTO

O conforto corporal e o conforto ambiental têm seus ní-


veis de alívio e também de liberdade atingidos somente na
conveniência. Cronologicamente, isto está associado à popu-
larização de conquistas técnicas aparentemente básicas no
mobiliário, nos sistemas de aquecimento e na qualidade do ar
decorrente. O nível da transcendência é encontrado no encan-
to e na leveza.
A respeito da eficiência, valor típico de yang mas que
não deixa de integrar a vida doméstica - pois dentro da casa
também há trabalho a ser feito - cabe como parêntese uma
observação de Bachelard:42 no equilíbrio íntimo dos muros e
dos móveis se reconhece a casa construída por mulher. Os
homens só sabem construir as casas do exterior, não conhe-
cem em absoluto a civilização da cera.
Embora Rybczynski apresente os diversos valores de
maneira gradual, seu processo de amadurecimento é, na ver-
dade, simultâneo – muito embora não seja uniforme. É possí-
vel afirmar que a comodidade não acontecia sozinha, mas
juntamente com o encanto. Rybczynski argumenta narrando a
evolução da cadeira e chegando à conclusão de que não nos
sentamos somente por comodidade. Da cadeira, parte para
uma generalização: sentar-se é artificial, e como outras ati-
vidades artificiais, embora menos óbvias que cozinhar, tocar
um instrumento ou pintar, introduz arte na vida. Comemos
pasta ou tocamos o piano – ou nos sentamos eretos – por
nossa escolha, não por necessidade.
E ao chegar na descrição dos interiores georgianos,
Rybczynski menciona que teriam pretendido unir o encanto
visual e o bem-estar físico ao valor da utilidade. Conforto
adquire um novo significado que é “o sentido de contenta-
mento com o desfrute do entorno de cada um.”43
Rybczynski faz de sua narrativa uma fascinante recons-
trução, contribuindo de maneira significativa para a compre-
ensão de conforto. Entretanto, não desenvolve o tema da
relação entre conveniência e encanto. Seria a relação entre

42
Gaston Bachelard, op. cit., tradução do autor.
43
Witold Rybczynski, op. cit.
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 37

ambos tão próxima, de modo a formarem um contínuo?


Abrangeria mais que o meramente visual, reunindo meca-
nismos como o térmico, o acústico, o olfativo e o tátil? Ocor-
re que Rybczynski, como Kolcaba e Wilson, tratou do amplo
conceito de conforto, tocando todos os contextos. Aqui, pre-
cisamente a partir deste ponto, será tratado com mais detalhe
o contexto ambiental.

1.6 Comodidade, adequação e expressividade


Acima, foi mostrado que a caracterização de conforto
ambiental sob uma perspectiva holística inclui, dos valores
definidores do conforto identificados por Rybczynski, a con-
veniência, o encanto e a leveza.
Aqui, será apresentado um sistema alternativo, baseado
em três valores. Não são nem tantos quanto proposto por
Kolcaba e Wilson ou por Rybczynski, nem tão poucos como
na disputa entre forma e função.
Nos anos 60, Armando Monteiro Pinto apresentou uma
abordagem de arquitetura em que reconhecia nela valores
técnicos, práticos e artísticos: do programa de necessidades é
que decorrerão os valores arquitetônicos referentes às ne-
cessidades materiais e às espirituais, as primeiras definindo
os valores práticos da arquitetura, e as segundas, conse-
qüentemente, os valores artísticos, que se prendem ao campo
do conhecimento estético. Na realização das necessidades
aparecem os valores técnicos.44 Embora aqui não seja desen-
volvido este último grupo, ele parece representar as verdades
que existem, na arquitetura, independentes de forma ou fun-
ção. Monteiro Pinto desperta, com a denominação – valores
técnicos –, a atenção para o sentido mais profundo que há
naquilo que faz os edifícios ficarem em pé. No sistema alter-
nativo, diferentemente, procuro chamar a atenção para o sig-
nificado ambiental do edifício, associado a um valor que é
intrínseco da casa. E a descrição do sistema começa por este
valor.

44
Armando de Andrade Pinto, Valores Arquitetônicos, Dissertação de Mestrado,
UnB, (1965); grifo do autor.
38 A IDÉIA DE CONFORTO

Vimos acima que o conforto existe também num contex-


to ambiental que é, até certo ponto, extensão do contexto
corporal. Nele, buscamos nos prevenir das agressões de or-
dem física. As variáveis – materiais e energéticas – que, com
sua distribuição no espaço e no tempo, definem o ambiente,
não forçariam o organismo humano para fora de seus limites
de funcionamento normal – a chamada zona de conforto. Em
termos mais concretos: em relação a ar, luz, som, calor e
superfícies não deveria haver sofrimento. Para esta qualidade
será adotado, daqui em diante, o nome “comodidade”. Rela-
ciona-se com os dois primeiros níveis de conforto adotados
pela enfermagem: “alívio de uma dor” e “liberdade de outras
dores”. É a condição encontrada, por excelência, dentro de
casa, no seu caráter yin, maternal.
No terceiro nível – o da transcendência –, deseja-se que
o ambiente atue sobre o estado de espírito. Isto equivale, em
princípio, ao valor do encanto proposto na visão histórica.
Todavia, convém rebatizá-lo com um termo mais oportuno:
“expressividade”; afinal, é antes um produto do ambiente do
que uma reação subjetiva da pessoa. E a leveza acima citada
também é abrangida. É como um freio que se aplica à expres-
sividade. Na casa, ela se contém. Difere, pois, da expressivi-
dade de um monumento onde se ostenta riqueza ou poder, ou
daquela de uma vitrine, de um palco de teatro, ou ainda de
uma instalação de arte experimental.
A expressividade do ambiente construído é associada à
forma; entretanto, não constitui paralelo a esta, assim como
na polaridade forma&função, pois só tem seu sentido quando
associada à comodidade. É encontrada sempre, e principal-
mente à noite, na casa: no teto sobre nossas cabeças, nas pa-
redes que definem o reduto inviolável, uma amostra de mun-
do sobre a qual temos pleno domínio, que ao mesmo tempo
nos prende, nos limita. Em casa queremos estar acolhidos,
protegidos, estáveis, supridos em nossas necessidades fisio-
lógicas, guarnecidos para o futuro, flexíveis para enfrentar o
imprevisto, aptos a repousar e sonhar e entretidos para que o
vazio existencial não nos venha a corromper a paz.
Na casa, no entanto, permanecemos cientes do mundo
através das janelas. Ainda, somos livres para sair. Não basta
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 39

a compreensão racional se o corpo apresentar emoções ad-


versas. É o caso do engenheiro especializado em estruturas
que, vivendo num apartamento alto, sente amolecer os joe-
lhos quando lembra de tal dado.
Para completar o sistema alternativo de valores, falta
aquele específico dos ambientes não residenciais. É valor da
correta adaptação do conforto às exigências produtivas. À
diferença da casa, existem, sim, ambientes cuja razão de ser é
o trabalho. Outros, ainda, as pessoas procuram quando ali
querem estar: é o caso de quem coloca o pé na estrada. Con-
siderando que o verdadeiro conforto existe dentro de casa,
este valor é como uma medida da não-domesticidade. Neste
ponto, será dado o nome “adequação” ao valor que contrapõe
às exigências de conforto a necessária e prioritária conformi-
dade do ambiente a determinado fim. São preservadas algu-
mas condições necessárias à sobrevivência; entretanto, abre-
se mão de alguma comodidade para atender a uma razão de
ser produtivista. A adequação tem um sinal algébrico oposto
ao da comodidade: subtrai-se dela. É a funcionalidade do
ambiente, expressa enquanto uma espécie de anti-conforto.
Corresponde à função que, para os modernistas, deve ser
seguida pela forma. Assim, não é estanque, pois tem implica-
ções para a expressividade. É a porção de desconforto em que
implica, necessariamente, uma aproximação com yang.
Imagine-se a figura do camponês que, num dia de inver-
no depois de prolongada chuva, sai de manhã cedo procurar
lenha. O frio é quase insuportável. O solo se encontra úmido
e, com ele, a lenha, que terá de secar próxima ao fogo para
ser usada. As mãos cortadas recolhem junto ao corpo as toras
mais pesadas que se consegue segurar, sujando a roupa de
barro. Para poder comer e relaxar o corpo próximo ao calor
do fogo, é fundamental que antes saia buscar lenha – ativida-
de que implica razoável sacrifício. A adequação é, pois, a
modificação no ambiente que, reduzindo o conforto, é neces-
sária para o desempenho do trabalho. Está presente inclusive
no trabalho doméstico de preparo da alimentação, limpeza da
casa, de louças e de roupas, e estudo. Porém, dá trégua à casa
quando, terminado o trabalho, conquistou-se o repouso.
40 A IDÉIA DE CONFORTO

Como seria uma escola confortável? Não me dei o traba-


lho de imaginar, consultei meus alunos. Implicaria aplicar
carpete no chão, substituir as carteiras por sofás, reduzir o
nível de iluminação, adotar lâmpadas de cor quente e cortinas
escuras e, enfim, eliminar o professor e os colegas para que
se possa tirar o sapato, esticar os pés, ligar a TV, pedir um
sanduíche e um refrigerante... A escola poderá ser feita cada
vez mais adequada em seu ambiente, mas nunca deverá se
tornar confortável.
A noção de adeqüabilidade não se aplica unicamente a
uma atividade produtiva. Quem vai a uma danceteria ouvir
dance music, a música pesada e nervosa apelida de bate-
estaca, faz opção consciente pelo barulho, pela tensão, fuma-
ça, aglomeração, adrenalina. Não tem sentido falar em con-
forto num tal ambiente. E quem vai a ele, o faz de livre esco-
lha.

1.7 Transcendência na casa e no mundo


No início do capítulo, encontramos Loos proferindo a
condenação da casa ao atraso. Ao fazê-lo, proclamou uma
diferença fundamental entre a casa e o resto do mundo, dei-
xando contribuição sugestiva ao entendimento de conforto: é
basicamente um valor caseiro. Isto não implica em despojar
um escritório de qualquer traço de domesticidade, ou que
uma casa deva-se fechar em suas tradições, rejeitando qual-
quer conquista tecnológica.45 A este respeito, Rybczynski
observa que viver no passado é privilégio de quem é muito
rico, senão muito pobre. O interior da casa, seu conteúdo e
sua tradição se aproximam de yin, e a racionalidade, as novi-
dades e a atração do mundo, de yang. Não é yin melhor que
yang; são opostos que se complementam para formar o Tao,
o todo.

45
É curioso o fato de que, adepto do princípio do revestimento, Loos criou interiores
reconhecidos como muito aconchegantes. Por exemplo, utilizava painéis de madeira
escura e luminárias em cores quentes, e até mesmo padrões decorativos. Sua célebre
crítica do conforto deve ser entendida, em boa parte, como retórica, dirigida à bur-
guesia recém-radicada em Viena que, por desenraizada, ostentava uma pretensa
nobreza, por exemplo, através dos adornos em suas fachadas.
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 41

O futuro tem mais em comum com o mundo do que o


passado. A casa idealizada no futuro, analisada por Bache-
lard,46 parece uma súbita manifestação de yang no meio da
domesticidade: Às vezes, a casa do futuro é mais sólida, mais
clara, mais vasta que todas as casas do passado. O olhar
para a frente é diferente de olhar para o passado; à frente está,
pois, o desconhecido: o projeto é para nós um onirismo de
curto alcance. O espírito se desapega com ele, mas a alma
não encontra ali sua vasta vida. O autor cita George Sand,
cujo nome real era Aurore Dudevant, a namorada de Cho-
pin47 que possuía uma falsa identidade masculina: pode-se
classificar os homens segundo aspirem a viver em uma choça
ou em um palácio. Mas a questão é mais complexa: o que
tem um castelo sonha com a choça, o que tem a choça sonha
com o palácio. Temos cada um nossas horas de choça e nos-
sas horas de palácio. Conduz a argumentação a conseqüên-
cias bastante práticas: Para dormir bem não é necessário
dormir numa grande estância. Para trabalhar bem, não é
necessário um reduto. Para sonhar o poema e para escrevê-
lo se necessitam ambas as moradas. E conclui: a casa so-
nhada deve ter tudo isto.
Fora de casa, não nos basta a compreensão de estarmos
livres, entregues a nós mesmos e nossas redes de contatos, às
instituições civis e às nossas crenças. Queremos percorrer
irrestritos as ruas, exercer curiosidade, olhar, testar, conhecer
as diferenças, experimentar a velocidade, sentir o vento no
rosto. A procura de liberdade nos faz por hora esquecer-nos
do conforto. A casa alheia, a esfera pública, o mundo do tra-
balho e das oportunidades de mudança, das instituições, da
boemia, das praças e da própria rua têm cada qual sua ex-
pressividade, que buscamos nos momentos em que nos im-
porta muito menos a proteção da casa. Se a transcendência
ocorre na casa e no mundo externo a ela, este também tem
sua expressividade. Um casal de amigos revelou ter saudades
do tempo em que, ainda sem filhos, podiam sentir frio via-

46
Gaston Bachelard, op. cit., tradução do autor.
47
Fryderyk Franciszek Chopin (1810 - 1849), compositor polonês do Romantismo,
com admirável produção para o piano, prestando contribuição essencial para o
desenvolvimento da expressividade e técnica no instrumento.
42 A IDÉIA DE CONFORTO

jando de motocicleta. É uma estética do trabalho e da aventu-


ra, com caráter yang. Brecht48 escreveu a respeito uma Bala-
da dos aventureiros, que descreve como quem esqueceu não
somente os sonhos mas toda a juventude, há muito o telhado,
mas nunca o céu sobre si. Menciona terem sido expulsos do
céu e do inferno e, finalmente, sonharem com um pequeno
prado, com céu azul, e nada mais.
A expressividade é, certamente, um efeito da arquitetura
relacionado à estética. Entretanto, existe independentemente
da arquitetura ser reconhecida ou não como arte – seja por se
tratar, por vezes, de produto de cópia e logo sem originalida-
de, de um fato acidental como a moradia debaixo da ponte,
de uma experiência meramente pessoal, ou ainda por outras
circunstâncias. A interminável discussão acerca da definição
de arte foge ao propósito e à competência deste livro, mas é
preciso reafirmar o que é, e o que não é seu escopo.
Interagimos com o ambiente construído, enquanto uma
realidade física e matematicamente representável, através de
sensações. A estas, processadas num contexto pessoal e cul-
tural muito específico, seguem quase que instantaneamente
emoções. São um vínculo com o ambiente construído que, a
despeito de um valor artístico, é realidade cotidiana e não
mera representação. Vivemos e trabalhamos dentro dele,
enquanto os museus e salas de concertos somente visitamos
esporadicamente.
Mesmo incompleta, a arquitetura pode nos impressionar.
Um esqueleto de edifício em construção, com suas ferragens
e outros materiais brutos à mostra, tem irradiação própria,
não necessariamente relacionada àquela do edifício pronto.
Até uma ruína pode impressionar, mesmo sem envolver-nos
completamente. E não é difícil demonstrar que o desconforto
também é expressivo.49
Cabem duas observações aos proponentes, acima cita-
dos, dos outros sistemas definidores de conforto. Inicialmen-
48
Bertolt Brecht (1898-1956), poeta e dramaturgo alemão, defensor de uma arte
engajada. Tradução pelo autor.
49
Hermann Czech, Komfort – ein Gegenstand der Architekturtheorie em Werk,
Bauen, Wohnen 3, pp.10-15 (2003)
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 43

te, a Monteiro Pinto, que se referia não ao conforto, mas à


arquitetura, e o resultado foi semelhante àquele proposto por
este livro. Isto revela que a compartimentação de arquitetura
e de conforto (dentro ou fora da arquitetura) não resiste a um
exercício de holismo. Depois, a Rybczynski. Poder-se-ia
questionar a opção por uma cronologia da idéia de conforto,
se o autor podia já de início apresentar uma síntese? A siste-
matização temporal deve ser vista nem tanto como um siste-
ma rígido, mas um pouco como recurso do autor, um estilo
de escrever que tem eficácia didática. É mais provável que a
idéia de conforto tenha surgido aos poucos, em todos os seus
aspectos, não em simultaneidade, tampouco em fila indiana.
Os valores que a integram constituem um contínuo.
Ainda sobre Rybczynski, não parece provável que o
“encanto” a que se refere seja simplesmente visual, e que os
demais prazeres físicos devam ser agrupados em torno de
“comodidade”. O autor não nega a idéia do encanto extra-
visual, mas nunca trata de maneira explícita, deixando algu-
ma impressão de que conforto fosse limitado ao corporal e só
permitisse prazer corporal, enquanto que os aspectos visuais,
bem mais inteligíveis, dariam origem ao prazer estético – um
fenômeno principalmente intelectual.
Defendo aqui a idéia de que os aspectos não-
geométricos do ambiente construído também tenham uma
dimensão expressiva: integram o material artístico da arquite-
tura. Aqui serão apresentados dois argumentos.
Primeiramente, porque o não-visual no ambiente, em
parte significativa, é puro material poético. Não faltam
exemplos, em especial na literatura produzida por sinestetas
– aquelas pessoas com uma particular sensibilidade à correla-
ção entre os sentidos, como quem com naturalidade associa
cores a números.50 Um deles foi James Joyce, que era capaz
de retratar uma impressão espontânea de calor sem falar de
calor: he looked along the river towards Dublin, the lights of
which burned redly and hospitably in the cold night.51 Este
50
Diane Ackerman, em A Natural History of the Senses, dedica o último capítulo ao
assunto.
51
Ele olhou ao longo do rio em direção a Dublin, cujas luzes ardiam vermelhas e
hospitaleiras na noite fria, no conto A Painful Case,em Dubliners.
44 A IDÉIA DE CONFORTO

tipo de expressividade dos ambientes não é exclusivo das


páginas da literatura; existe no mundo real.
Depois, porque a funcionalidade do conforto – a ade-
quação – também tem sua extensão expressiva; integra, pois,
o conceito mais abrangente de arquitetura. Um poema é
composto de métrica e rimas, e também conteúdos. Assim
também o espaço arquitetônico, em que o ambiente construí-
do fornece elementos de composição que são ora de forma,
ora de conteúdo (o próprio espaço condicionado). Antes
mesmo de propor situações expressivas originais, faz falta
abrir os olhos e os ouvidos, as mãos e as narinas. O ambiente
construído nos oferece experiências, algumas intencionais,
outras acidentais, que estão sob risco do esquecimento en-
quanto nuances, portadores de herança cultural, de significa-
do concreto e poesia. Czech52 contradiz a formulação corren-
te de ser o espaço o objeto de trabalho da arquitetura, e ao
fazê-lo melhora, de certa forma, o reconhecimento de seus
aspectos não-visuais. Para ele, o verdadeiro material artísti-
co da arquitetura não é o material de construção, a constru-
ção, a forma escultural, nem mesmo o espaço ou a luz – é o
comportamento das pessoas. Este não é linearmente contro-
lável – já por isto a arquitetura tem muito a ver com proces-
sos (formais) nada, ou pouco controláveis.
Ao longo deste livro, aparecerá várias vezes a tese de
que a expressividade é um efeito do ambiente físico em si,
sem que haja uma preocupação plástica. Existiria, portanto,
uma responsabilidade expressiva das decisões técnicas toma-
das a respeito do ambiente. Se comprovada esta tese, faria
pouco sentido falar de conforto ambiental na arquitetura,
cada vez que fosse tomado desligado do todo. Seria parte,
pois, do universo expressivo da arquitetura, dando-lhe em
parte sua capacidade de influenciar através de uma comuni-
cação de ordem espiritual, quer pelas sensações desperta-
das, quer pelo seu comportamento ético face à sociedade,
bem como pelas idéias que lança, possibilita a análise de
seus valores.53

52
Hermann Czech, op. cit., tradução pelo autor.
53
Monteiro Pinto, op.cit.
O SIGNIFICADO DE CONFORTO 45

E o espaço guarda uma relação radical com a nossa exis-


tência, com a consciência que temos de nós mesmos. É no
espaço que nos percebemos realidade concreta. O “penso,
logo existo” não se dá livre de uma percepção espacial, pois
as coisas que existem são as coisas percebidas. Em sua Fe-
nomenologia da percepção, Merleau-Ponty54 propõe que a
percepção do mundo significa uma existência com o mundo e
com nossos semelhantes. Explorando o espaço, exploramo-
nos a nós mesmos. Encontramos novas referências, e recupe-
ramos outras. Pois somos também o que já se passou, o que
não é mais realidade imediata. Por exemplo, os lugares mági-
cos da infância estão dentro de nossa memória. E é este um
importante elemento discriminador da arquitetura enquanto
gênero artístico: não a representação, mas a realidade; não a
matéria, mas o espaço. Quer em si mesmo, quer em simboli-
zação, o espaço da arquitetura é uma fonte de espiritualida-
des, com índole e feições privativas dele, de sua realidade
intransferível.55
Bachelard nos facilita este entendimento ao afirmar que
os verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo um pas-
sado vem a viver pelo sonho numa nova casa. ...A casa, como
o fogo, como a água, nos permitirá evocar, no curso deste
livro, fulgores de devaneio que iluminam a síntese do imemo-
rial e da lembrança. ...Nesta região distante, memória e ima-
ginação não permitem que se as dissocie...As lembranças do
mundo exterior nunca terão a mesma tonalidade que as da
casa. Evocando as lembranças da casa, somamos valores de
sonho; não somos nunca verdadeiros historiadores, somos
sempre um pouco poetas e nossa emoção talvez só traduza a
poesia perdida.
Cumpre tornar cada vez mais viva a experiência presen-
te, resgatar a passada e encontrar em ambas o significado
atemporal. Os sentidos podem auxiliar-nos a fazê-lo.
É o propósito deste livro.

54
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), filósofo e fenomenólogo francês.
55
Evaldo Coutinho, O espaço da Arquitetura, 2a. edição, Ed. Perspectiva, São Paulo
(1998).
The final solution must be appealing, both rationally and
emotionally. (A solução final deve atrair, tanto racional como
emocionalmente)
Richard Neutra, Survival through Design

Figura 3 - Residência em Brienz (Suíça)


2 - Inocência, exagero, descaso e
burocratismo

Atribui-se a Freud56 a explicação de que o ímpeto que


leva o ser humano a construir tem natureza inconsciente.
Estaríamos buscando reproduzir o útero materno, o primeiro
abrigo que conhecemos e de cuja tranqüilidade emergimos ao
nascer. Esta idéia é recorrente na literatura sobre a casa.

O capítulo anterior mostrou que conforto é um conjunto


de valores. Inclui saber-se abrigado e vestido conforme o
clima e o tempo; protegido contra as intempéries e a invasão
(contexto ambiental); visível e audível quando necessário;
respeitado no seu repouso; livre de obrigações e portanto,
relaxado (contexto sócio-cultural). Seguro de que o abrigo é
estável e permanente. Conforto pressupõe, ainda, que o indi-
víduo se saiba capaz de mover-se, satisfazer uma vontade,
produzir e modificar o ambiente e, por fim, sentir-se especial,

56
Sigimund Freud (1856-1939), médico austríaco, autor da Interpretação dos so-
nhos, considerado o fundador da psicanálise.
48 A IDÉIA DE CONFORTO

com sua identidade reafirmada pelo ambiente (contexto psi-


co-espiritual).

Hildebrand57 expõe uma doutrina intuitiva do conforto.


Defende que o gosto por um ambiente com características
concretas de abrigo poderia ser um dom hereditário que, ao
longo de gerações de antepassados, determinou o sucesso na
seleção natural. Quem hoje vive, pertence provavelmente a
uma linhagem cujos antepassados tiveram sempre uma tal
preferência. A busca do conforto no abrigo seria, portanto,
uma reação espontânea de caráter hereditário.

Mas é inquestionável o componente cultural do confor-


to, aquilo que é transmitido de forma não genética – predo-
minantemente, oral. É difícil imaginar que faltasse ao homem
antigo e medieval a consciência de qualquer dos itens acima
relacionados. Poder-se-ia inferir então que o conforto fosse
um conceito conhecido e usual desde todo o sempre. Entre-
tanto, existe evidência lingüística negando a hipótese. Foi
somente ao final do século XVIII que conforto passou a ser
usado de maneira generalizada, como um conceito aplicado
ao meio de vida e trabalho.

Tudo leva a crer que o conforto era, no século XVIII,


aquilo que hoje se denomina uma demanda latente, algo que
não se expressa de forma espontânea, por alguma razão que
pode ser o desconhecimento ou uma obstrução no acesso aos
produtos. O conforto teria sido, enfim, conscientemente per-
cebido, a começar nos círculos materialmente capazes: a
nobreza e, principalmente, a burguesia. Com o passar das
décadas, o conforto se tornou acessível a uma faixa maior da
população.

Em sociedades prósperas do século XIX, houve genera-


lização e atingiu-se o exagero na preocupação com o confor-
to. Isto ocorria ao mesmo tempo em que certos ideais de qua-
lidade artística eram perseguidos. A casa cômoda e decorada
de acordo com a moda passou a ser vista, de modo especial
nos EUA, como símbolo de status.

57
Grant Hildebrand, op. cit.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 49

As casas tinham se tornado local de um acúmulo sufo-


cante de objetos. O Modernismo, no início, esbravejou contra
esta situação: propunha antes uma estética do útil que do
tradicional. A vanguarda artística chocava o senso comum.
Se o movimento trouxe ganhos técnicos com o desenvolvi-
mento dos sistemas prediais (especialmente iluminação e
climatização), perdeu-se em domesticidade, privacidade e
intimidade. Perdeu-se em parte a chamada leveza, e ainda a
informalidade dos interiores domésticos cheios das marcas
do seu uso.

A estética priorizada, do despojadamente elegante – bei-


rando o ascético - vinha eliminar valores ancestrais da casa;
portanto, era mais que um simples modismo que substitui o
modismo anterior.58 No aspecto técnico, caíam no esqueci-
mento práticas tradicionalmente eficientes de controle ambi-
ental. Os edifícios se tornavam cada vez mais dependentes de
fontes externas de energia, fontes muito concentradas. Rela-
cionado, havia elevado consumo de recursos naturais. Este
incluía os recursos renováveis, como a água doce e sua ener-
gia, e os não-renováveis, como os combustíveis fósseis, ecos-
sistemas e espécies, a paisagem natural e o próprio clima.
Duras críticas ao movimento advêm deste fatos.59

Nas três últimas décadas do século XX, acompanhando


o movimento ambientalista, novas correntes na arquitetura
tentavam resgatar o condicionamento térmico natural do am-
biente construído, a iluminação e a ventilação naturais. Cola-
boraram os avanços na física aplicada às edificações, contan-
do com versátil e poderoso ferramental empírico e computa-
cional. No meio arquitetônico e da construção civil desen-
volveu-se a disciplina do conforto ambiental. Entretanto,
surgiu como um pacote auto-contido e atraiu alguns arquite-
tos para sua ideologia peculiar. Cresceu bastante dissociado
da arquitetura.

58
Witold Rybczynski, op. cit.
59
Paolo Portoghese, Depois da arquitetura moderna, Martins Fontes, São Paulo
(1998).
50 A IDÉIA DE CONFORTO

É notório que nos contextos corporal e ambiental do


conforto verdades elementares tenham sido renegadas em
favor de uma liberdade da expressão formal. Para o conforto,
foi nefasta a iconização de produtos do Modernismo, como
os edifícios em caixas de vidro. Foram preconizadas pelo
chamado Estilo Internacional, de que Mies van der Rohe60 foi
importante mentor. Eram parte de um repertório de soluções
de um simpático ar antitotalitário, mas que se arrogavam
universalidade. De fato, surgidas em países de clima frio, em
edifícios de escritórios feitos estufa que se tornavam agradá-
veis durante o dia, as caixas atravessaram fronteiras para ser
adotadas, a despeito de diferenças culturais e climáticas, até
mesmo em regiões tropicais. Sob temperaturas do ar duas ou
três dezenas de graus acima do local de origem, acabam pro-
vocando enorme consumo de energia para o condicionamento
de ar.61

O abandono de conquistas do conforto também afetou os


contextos sócio-cultural e psico-espiritual, apesar de ser um
fato mais raramente mencionado. A casa se torna muito se-
melhante a um edifício público ou institucional. A sala de
visitas, a uma sala de espera. O quarto, a um quarto de hospi-
tal. Móveis frios, ângulos retos, superfícies duras. E a expo-
sição ao exterior através de janelas torna a casa mais parecida
com uma vitrine.

Ainda, a transcendência (termo apresentado no capítulo


1) se torna mais ausente dos contextos corporal e ambiental.
Sentar-se numa poltrona torna-se um gesto espartano. Cantos
escuros se tornam escassos. A arquitetura perde expressão ao

60
Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969), arquiteto alemão, dos mais importantes
no Modernismo.
61
No Brasil, um fato semelhante já havia ocorrido no século XIX, quando da mo-
dernização dos sobrados coloniais. Os muxarabis eram grades de madeira em trama
diagonal, de influência moura, que protegiam os rostos das mulheres da visão dos
pedestres. No Rio, D. João VI ordenou que fossem retirados das janelas. Rejeitava
seu aspecto bárbaro. Gilberto Freyre relatou como o ferro e o vidro – produtos da
pauta de exportação britânica – substituíram as esquadrias de madeira nacionais,
com prejuízo da qualidade ambiental. Mais informações em Gilberto Freyre, Cultura
e Museus, Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico do Pernambuco, Recife
(1985). Ainda, Eduardo Bueno: História do Brasil, Folha de São Paulo, São Paulo
(1997).
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 51

tratar do conforto como exigência de norma, quando não


existe uma convicção organicamente incorporada ao processo
de projeto.

As questões tratadas neste capítulo serão, nesta ordem,


as seguintes.

No final do capítulo anterior, foi defendida a opinião de


que o objeto de trabalho da arquitetura é o comportamento
das pessoas. Outra importante matéria-prima é o espaço, e
sua tarefa primordial é a produção do espaço arquitetônico. E
na tensão entre ciência e arte, o espaço - questão repetidas
vezes lembrada neste livro - é muitas vezes restrito ao visual.

O que se observa é um comportamento cíclico; em cer-


tos momentos se valoriza mais o visual, e noutros uma senso-
rialidade diversificada. Esta última aparece nas épocas, ou
situações, em que a arquitetura ingenuamente mostra maior
organicidade, como nos lares de camponeses. Então, são
melhor pronunciados os diferentes valores compreendidos no
ambiente construído. O conforto não era um objeto conscien-
temente entendido, era antes uma demanda latente. A este
momento, apelidamos de inocência.
No início do século XIX surge a noção de conforto e
uma cultura relacionada; há uma evolução com tendência a
abandonar o ingênuo, todavia preservando-se a domesticida-
de. Aparecem o movimento Biedermeier e o estilo Vitoriano.
É um momento de exagero.
No início do século XX, com o Modernismo, o visual
passa a predominar. Posteriormente, tais idéias se tornam
obsessões estéticas e provocam aberrações do ponto de vista
do ambiente construído: assim são as caixas de vidro ergui-
das em países tropicais – insuportavelmente quentes - e os
interiores de escolas em concreto aparente – insuficientemen-
te iluminados. É o descaso.
Enfim, surge o movimento do conforto ambiental como
reação. Todavia, desenvolve-se voltado para os aspectos téc-
nicos e científicos, deixando de lado os aspectos sociais e
artísticos da arquitetura. Como proposta de trabalho teórica e,
portanto, não-criativa e, ainda, alheia ao conteúdo expressivo
52 A IDÉIA DE CONFORTO

do espaço, o conforto ambiental ganha certa fama de terreno


árido para estudantes de arquitetura, que apelam para seu
caráter secundário. Profissionais de arquitetura recuam, dei-
xando que se torne um reduto de especialistas. Isto permite
que configure a atitude de burocratismo.

2.1 O caráter multissensorial do espaço


O espaço livre, bruto, ainda não trabalhado é, ao lado do
comportamento das pessoas – que se traduz em funções para
os edifícios, programas arquitetônicos e, enfim, projetos – é
uma matéria-prima essencial da arquitetura. Encontra-se tan-
to no mundo natural como no mundo aculturado. O produto
da arquitetura também é espaço – o espaço da arquitetura,
espaço pensado, civilizado, moldado para abrigar as pessoas
e suas atividades.
Cavernas e cúpulas, muros e telhados, portas e janelas,
árvores e jardins são possíveis demarcações de espaço. Con-
dicionam porções de ar que, por sua vez, trazem influências
sobre fluxos de energia e matéria; sobre o estado físico da
matéria – sólido, líquido ou gasoso - o movimento das molé-
culas (temperatura) e das porções maiores da matéria (som e
vento). Independente do ar, transita a radiação, visível (luz)
ou invisível (calor). O trânsito de matéria inclui ar, água e
umidade, odores e partículas. Muros e cercas, correntes, por-
tões e roletas, e faixas brancas e amarelas pintadas no chão
delimitam o espaço de livre circulação das pessoas. E con-
tendo o ser humano, o espaço é sensível a ele: O corpo é um
agente de influxos, uma fonte de ruídos, um fixador e move-
dor de sombras, de reflexos, fazendo as vezes de criador
eventual.62
Quase tudo o que há no espaço se sente. Entretanto, qua-
se nada se vê, a não ser seus limites.
A apreensão que fazemos do espaço se dá através dos
sentidos, vividos ou imaginados. Mesmo que, sem querer,
quase tudo remetamos à visão, tal sentido não parece ter sido,

62
Evaldo Coutinho, op. cit.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 53

na história da vida, o sentido inicial que nos fez compreender


o espaço.
O olfato é o sentido ancestral. Isto se diz porque é tanto
um sentido preservado na evolução desde os seres mais anti-
gos até o homem, como também é um sentido desenvolvido
nas primeiras semanas de vida. Sinaliza fatos de importância
vital como a proximidade do alimento.
A audição é um auxiliar. Existe desde a vida pré-natal, e
no seu estado primitivo – a audição do bebê que ainda não
entende o idioma dos pais - sublinha nossa percepção de
eventos. Traz-nos idéias sobre presença, constância, mudan-
ças súbitas e perigo.
O tato, também ancestral, está relacionado ao nosso
aprendizado motor. Permite-nos estabelecer os limites reais
das coisas, especialmente quando passamos a nos locomover
por conta própria.
A visão, por fim, se destaca por ser um sentido especi-
almente refinado; presta-se à generalização do aprendizado
do tato, principalmente, e ainda dos outros sentidos.
Suprimida a etapa do paladar – tomado como um caso
particular do olfato – essa seqüência reproduz uma aprendi-
zagem do espaço e foi desenvolvida no séc. XVIII pelo filó-
sofo Étienne de Condillac,63 numa tentativa de sistematizar a
percepção humana.

2.2 O dionisíaco e o apolíneo na arquitetura


Na história das artes, alternaram-se de modo mais ou
menos claro épocas de valorização das experiências sensori-
ais com outras de mais forte apelo à racionalidade. Quando
predomina o sensorial sobre o raciona, falamos num momen-
to dionisíaco. Na situação oposta, falamos num momento
apolíneo.

63
Étienne de Condillac, Tratado das sensações, trad. Denise Bottmann, Editora da
Unicamp (1993).
54 A IDÉIA DE CONFORTO

Os termos dionisíaco e apolíneo derivam da semelhança


mais com um, mais com outro dos deuses aludidos – Apolo e
Dionísio. As expressões foram cunhadas por Nietzsche64 em
1872. Remetem à Grécia antiga, quando surgiram os funda-
mentos da filosofia da arte. Apolo era o deus da luz, das artes
e da adivinhação, e personificava o sol. Era o mais belo dos
deuses. Dionísio era o era o deus dos ciclos vitais, da alegria
e do vinho. Corresponde ao deus Baco dos romanos.
A crença se foi, mas permaneceram os ideais. Diz-se
apolíneo àquilo que se caracteriza por equilíbrio, sobriedade,
disciplina e comedimento,65 ou ainda por ordem, racionalida-
de e harmonia intelectual.66 Há predominância do racional, da
serenidade, de uma certa imobilidade. Para exemplificar,
podemos observar a escultura. Ariano Suassuna menciona
que as obras do período clássico parecem representar seres
como que retirados do universo psicológico, imunes ao so-
frimento e à idéia ou presença da morte.67 É comum a associ-
ação de Apolo aos traços mais típicos da personalidade mas-
culina.
Diz-se dionisíaco daquilo cuja natureza é agitada, arre-
batada, desinibida, romântica, ou ainda extática e espontânea
- semelhante à de Dionísio. Por isto mesmo, o adjetivo é rela-
tivo ao entusiasmo, à inspiração criadora, ou ainda ao instin-
tivo, natural, espontâneo; tumultuário, confuso, desordena-
do.68 Dionísio é associado aos traços mais típicos da persona-
lidade feminina.
Esta polaridade se parece com aquela proposta no capí-
tulo anterior: é perceptível uma semelhança entre as caracte-
rísticas de Dionísio com yin, e as de Apolo com yang.

64
Friederik Nietzsche (1844 – 1900), filósofo e filólogo alemão, nascido na antiga
Prússia.
65
Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Ed. Nova
Fronteira (1975).
66
Simon Blackburn, The Oxford Dictionary of Philosophy, Oxford (1994).
67
Ariano Suassuna, Iniciação à Estética. 4a. ed. UFPE, Recife (1996).
68
Holanda, ibid.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 55

Dionisíaco e apolíneo são predicativos que ajudam numa


caracterização geral dos movimentos artísticos. Designam
escolhas feitas pelos artistas enquanto criadores, e reprodu-
zem uma tendência de época: comumente, são também prefe-
rências do público como apreciador. Mas sua identificação
consciente se dá pelos críticos e historiadores. A existência
da alternância de que falávamos no início é notável. A Anti-
güidade Clássica – apolínea – se alterna com a Idade Média –
dionisíaca –, e daí por diante, com o Renascimento, o Barro-
co, o Classicismo, o Romantismo e o Modernismo.
Segundo Suassuna, a Idade Média, o Barroco, o Neo-
classicismo e o neo-Gótico – ambos caminhando para o ecle-
tismo – e, ainda, o Art Nouveau foram períodos de organi-
cismo na arquitetura. Eram momentos dionisíacos.
Já na Antiguidade Clássica, no Renascimento e no Mo-
dernismo predominaram os ideais da beleza clássica. Dava-se
mais importância à racionalidade. Eram momentos apolíneos.
Contrapondo a arquitetura racional do período clássico e
a arquitetura orgânica, o autor afirma desta última que os
objetivos puramente estéticos de ornamentação são bastante
mais evidentes, e ainda que a destinação útil do prédio é
mais definida pela sobriedade e pelo despojamento. Por ou-
tro lado, a arquitetura orgânica tem uma tendência para
sugerir a presença ou a busca do trans-humano, enquanto a
racional, até pelas proporções, procura se ligar às medidas
do corpo humano.
Entretanto, esta última considera um corpo humano per-
feito, idealizado. Não gratuitamente é chamada arquitetura
racional. Seu ideal se concretiza em aspectos visuais, em
limpeza, linearidade e cartesianismo, virtudes com que pro-
cura organizar e até salvar o mundo. A arquitetura orgânica é
aquela que tem uma funcionalidade natural, mais afeita ao
mundo prático.
O convívio das duas personalidades é desafiador. Suas-
suna vê na arquitetura o campo em que é mais difícil aparecer
um grande artista, aquele que consiga vencer todas as difi-
culdades práticas de modo a que sua construção, sendo útil,
56 A IDÉIA DE CONFORTO

crie a Beleza e atinja a expressão do mundo estranho, pesso-


al e diferente que cada artista carrega dentro de si.
Décadas antes de o Modernismo unir funcionalidade a
certas obsessões formais, o arquiteto alemão Karl Friedrich
Schinkel preconizava o valor artístico da arquitetura direta-
mente associado à sua funcionalidade, e dela fazia parte o
caráter aconchegante. A mais alta sensação de segurança e
aconchego, dizia, o indivíduo alcança ao manter-se sentado,
o efeito mais simples da gravidade. A tranqüilidade na arte
(Kunstruhe) seria uma condição essencial de beleza, e em
especial na arquitetura. A citação aparece num texto recente,
descrevendo um projeto de interior que resgata elementos do
conforto desdenhados pelo Modernismo mais radical, como a
panelização das paredes em madeira e seu revestimento em
tecidos decorativos. Seu autor argumenta que a arquitetura é
uma arte corporal que pressupõe uma arte intelectual. O
exemplo do arco bem encaixado, objeto de especial interesse
de Schinkel, transmite ao intelecto a tranqüilidade, e ao corpo
a sensação de acolhimento.69
Uma tentativa pacificadora de classificação associaria
conforto à satisfação do corpo, e a arte à satisfação da mente.
Esta aparente simplicidade encobriria o fato de ambos os
valores coexistirem na arquitetura, principalmente na arquite-
tura residencial, e não parecerem ingredientes independentes:
da continuidade entre estes valores há muitos indícios. O
principal deles foi apresentado no capítulo anterior: no seu
nível de transcendência, o conforto se torna prazer, e se torna
difícil separar o prazer físico de um prazer estético.

2.3 Inocência
Há sinais convincentes de que o conforto tenha sido
por muito tempo ignorado. Segundo Benjamin,70 ao menos

69
Hans Kohlhoff e J. e Ph. Von Bruchhausen, Werk, Bauen und Wohnen 3, pp.16-
20 (2003). Tradução pelo autor.
70
Walter Benjamin (1892-1940), filósofo alemão da escola de Frankfurt, perseguido
pelos nazistas durante a segunda guerra até o suicídio.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 57

um componente fundamental seu, a domesticidade, seria uma


invenção da era moderna – isto é, teve início na Renascença.
Este gradualismo é retratado por John Crowley,71 para
quem durante séculos as amenidades físicas do conforto pou-
ca coisa mudaram na Inglaterra medieval e no início da era
moderna. No final deste período, a afirmação se estende à sua
colônia americana. As pessoas moravam em espaços esfuma-
çados, frios e escuros, sem queixa, como se tais “desconfor-
tos” fossem simples circunstâncias dadas na vida humana,
tais como o tempo e a alternância do dia e da noite. A pala-
vra “conforto”, naquele tempo, referia-se ao apoio moral e
espiritual, mais que à amenidade corporal.
A conquista gradativa de algum conforto no contexto
ambiental, como possibilidade aberta a uma larga faixa da
população, teve pressupostos técnicos, econômicos e cultu-
rais, até que o conceito se tornasse objetivamente conhecido,
ganhando uso na linguagem falada do dia-a-dia. Inicialmente,
era necessário saber como obtê-lo. Depois, eram necessários
excedentes econômicos – inclusive o tempo para pensar,
decidir, planejar e realizar o conforto. O conhecimento de
questões técnicas relacionadas ao aquecimento de palácios e
mosteiros remonta, é certo, a Roma antiga, em que a calefa-
ção central era conhecida. Por outro lado, exigia admirável
investimento em infra-estrutura. Enfim, sem a iniciativa de se
empreender esforço numa questão não reconhecida como
fundamental, nada aconteceria. Era necessária a mudança de
hábitos, e isto não ocorre como decisão isolada, mas como
um processo de adesão a uma nova moda.
O que houve, aparentemente, foi um lento desenvol-
vimento do conforto enquanto demanda latente, incluindo a
percepção de sua necessidade e a conjunção de condições
econômicas e técnicas para sua consecução, até que condici-
onantes sociais permitissem que o conforto fosse um produto
conscientemente buscado pelas famílias.

71
John Crowley, The Invention of Comfort: Sensibilities and Design in Early Mod-
ern Britain and Early America, Johns Hopkins University Press (2001) resenhado
por Richard Lyman Bushman em Business History Review, resenha eletrônica
(2002).
58 A IDÉIA DE CONFORTO

No início da longa fase de gestação da idéia de conforto


já existia a busca de comodidade – a ausência de dor, como
definido no capítulo 1. É muito anterior à consciência do
conforto; sequer é exclusividade da espécie humana.72 Um
exemplo simples está nos freqüentes movimentos do corpo
que se dão em reação a condicionantes ambientais: no frio
nos vestimos e nos encolhemos; procuramos o sol e a prote-
ção ao vento. No calor, nos despimos e nos abanamos, e pro-
curamos a sombra e a exposição ao vento. Apertamos os
olhos na claridade em excesso e tapamos os ouvidos quando
de um ruído exagerado. É provável que esta busca de uma
interação ótima com os fatores ambientais seja mais velha
que a história escrita. Entretanto, a consciência do conforto
resultou de um longo processo cultural.
Neste processo, a busca de comodidade resultou numa
forma particular de interação como meio físico natural. Nos
países frios, o ambiente encoraja o recolhimento doméstico.
O problema térmico fundamental consiste em evitar que o
calor corporal se dissipe no meio frio. Pode induzir as pesso-
as a buscarem mais proximidade umas das outras, proteção
por espessas paredes, e esconderijos térmicos no meio da
casa. O fogo é um processo simples de adicionar calor ao
ambiente. Entretanto, os inconvenientes higiênicos causados
pela fuligem e pela fumaça persistiram por vários séculos até
que fossem contornados.
No mundo tropical, a comodidade é encontrada numa
solução de bem menos identidade com o lar. Nas tardes e
finais de dia, não se pode esperar que as pessoas procurem
permanecer dentro das casas, em que os telhados e paredes
acumularam calor e então o irradiam para dentro. Daí a popu-
laridade das varandas.
A lenta evolução da consciência do conforto inclui, ain-
da, um gradual aumento do encanto relacionado às descober-
tas da técnica, provavelmente um objeto de fascínio das pes-
soas beneficiadas.

72
Por exemplo, os cães procuram superfícies para se deitar onde haja adequada
combinação, no mínimo, da transmissão de calor do corpo para o solo, e da insola-
ção.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 59

Mesmo em situações diversas da propriedade rural, sa-


ber-se capaz, dono de algum poder é um fator de satisfação.
Meninos em geral gostam de automóveis. Nos anos 70, dava-
se importância à quantidade de instrumentos. Era grande a
diferença entre o painel de um carro popular, como qualquer
um dos Volkswagen, com seus dois grandes mostradores
analógicos, e o painel de um esportivo da época. Seus ins-
trumentos, apesar de também analógicos, formavam um con-
junto cintilante: conta-giros, velocímetro, cronômetro, ter-
mômetros e outros apetrechos. À noite, parecia um painel de
avião. Era empolgante imaginar-se na posse de uma tal má-
quina, um fator de domínio do ambiente.
Rybczynski lista muitas descobertas feitas na Idade Mé-
dia – ao contrário do que o senso comum apregoa, uma era
de progresso. Catedral; livros; óculos; mina de carvão, reló-
gio mecânico, bomba de água, tear horizontal, poço de água,
catavento, usina maremotriz; foi o autêntico início da indus-
trialização na Europa. Nós, no tempo presente, mal podemos
entender o benefício que representavam uma pele de animal,
um bom fogo na lareira, uma cama macia, um copo de vi-
nho.73 Sugere a suntuosidade da arte de então, com excesso
de decoração, como evidência do que era necessário para
impressionar um público de sensibilidade pouco desenvolvi-
da pela dureza de condições. Os pobres viviam muito mal.
Sem água ou esgoto, quase sem móveis ou posses, uma situa-
ção que, na Europa ao menos, perdurou até o início do sécu-
lo XX...conceitos como “casa” e “família” não existiam
para aquelas almas miseráveis.
A rusticidade da vida camponesa na época da tração
animal condiciona a realização do conforto a um repertório
minimalista. O aconchego advém de uma pauta despretensio-
sa: o escuro que envolve a esfera iluminada pela vela, as
textura naturais da madeira, do couro e da pedra, o calor ani-
mal – os bichos praticamente dentro de casa – e os odores
naturais recendendo sem disfarce. Dificilmente se tratava de
pessoas aficcionadas de algum estilo rústico de morar. Seu

73
J.P.Huizinga, apud. W. Rybczynski, op. cit. Tradução do autor.
60 A IDÉIA DE CONFORTO

excedente econômico provavelmente não permitia nem ali-


mentar, nem realizar tais fantasias.
Depois do final da Idade Média, as casas mudaram len-
tamente. Seu tamanho aumentou, e tornaram-se mais robus-
tas. Houve poucas melhorias. Surgiu o vidro e difundiu-se a
chaminé das lareiras, ainda sem solução convincente para os
problemas do frio e da fumaça. A iluminação era precária.
Houve o início da separação entre o ambiente de moradia e o
ambiente de trabalho: início da privacidade e, em conseqüên-
cia, da intimidade. Mas dentro das casas não havia privacida-
de. Faltava o corredor. A casa começa a encher-se de móveis
e tornar-se um palco para o teatro social. As camas eram
cobertas por tecidos – dosséis - para manter calor e preservar
a discrição. Rybczynski relata que nas moradias da aristo-
cracia, os hôtels, havia muitos móveis belos, mas pareciam
abandonados, empurrados às paredes de recintos gigantes-
cos sem cantos ou qualquer interrupção. (…) Faltava a at-
mosfera de domesticidade que resulta da atividade humana.
Faltava “Stimmung” (Mario Praz), o senso de intimidade
criado por um quarto e seu mobiliário. Stimmung é um termo
alemão sem similar em português; designa uma característica
dos interiores que tem menos a ver com funcionalidade do
que com a maneira como um recinto se adequa ao caráter de
seu proprietário – a maneira como espelha sua alma, como
Praz o diz poeticamente. Para ele, isto ocorreu inicialmente
no norte da Europa. Já estava lá presente desde o século
XVI…há beleza na elegância dos elementos arquitetônicos,
mas sua predominância, e a formalidade das imediações,
cria um ar de artificialidade. O interior nada nos diz sobre
esta pessoa.
Rybczynski ressalta a tênue diferenciação entre utilidade
e cerimônia. Cita John Lukacs, para quem palavras como
“auto-confiança”, “auto-estima”, “melancolia” e “sentimen-
tal” teriam tomado seus significados modernos no inglês e no
francês somente há dois ou três séculos. Seu uso marcou o
surgimento de algo de novo na consciência humana: a apa-
rência do mundo interno do indivíduo, do self, e da família. O
significado da evolução do conforto doméstico só pode ser
apreciado neste contexto. É muito mais que uma simples
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 61

busca do bem-estar físico; começa com a apreciação da casa


como instalação a serviço de uma vida interior emergente.74
Num texto paralelo cobrindo a Europa moderna no iní-
cio, Norbert Elias75 mostra pessoas aprendendo a comer com
um garfo e não com os dedos, assoando o nariz num lenço,
limitando a prática de cuspir, e assim por diante. Passou a
causar constrangimento mesmo falar de funções corporais
básicas como evacuar. Assim, as pessoas circunscreveram
suas próprias personalidades, formando um self escondido e
envergonhado dentro e uma casca externa para a apresenta-
ção pública. Isto supõe que o contexto social do conforto
cresceu ao mesmo tempo que o contexto ambiental.
Por fim, a consciência do conforto recebe um impulso
decisivo quando a privacidade se torna um valor reconhecido.
John Crowley76 relata a gradual popularização de ele-
mentos do conforto depois da Idade Média. Calor e luz tor-
naram-se prioridades entre as ordens religiosas e nas casas
nobres ao fim do período medieval, e nos séculos XVI e XVII,
espalharam-se mais amplamente às pessoas de posse. As
janelas e locais de fogo foram alterados para aumentar o
conforto físico.
Uma tentativa de explicar a demora na evolução do con-
forto como um valor conscientemente percebido foi apresen-
tada pr Rybczynski77. O autor lembra que as casas medievais
eram de uso coletivo. Enquanto os nobres usavam móveis
para se alternar entre suas diferentes residências, os burgue-
ses,78 habitantes das cidades protegidas, tinham de usar mó-
veis para desenvolver os diferentes usos dos espaços comuns
– os halls – onde se cozinhava, comia, recebia visitas e dor-
mia. Os interiores medievais eram quase vazios. A vida era
um negócio público, e assim como o indivíduo não tinha uma

74
J. Lukacs, ibid.
75
Norbert Elias, O processo civilizador. Trad. Ruy Jungmann. R. de Janeiro: Jorge
Zahar, 1990/93,
76
John Crowley, op. cit.
77
Witold Rybczynski, op. cit.
78
Termo em uso desde o século XI na França.
62 A IDÉIA DE CONFORTO

auto-consciência fortemente desenvolvida, tampouco dispu-


nha de um recinto privativo. Era a mentalidade medieval,
não a ausência de cadeiras confortáveis ou aquecimento
central que explica a austeridade da casa medieval. Não é
tanto um desconhecimento do conforto que havia na Idade
Média: era a sua pouca necessidade.79
Esta observação significa que o conforto está relaciona-
do à privacidade; como foi mencionado no capítulo 1, é um
valor oposto ao do espaço público: é, de certa forma, incom-
patível com aquele. Isto não significa que uma praça não
possa ser planejada de modo a receber árvores que atenuem o
sol, árvores em fila para bloquear o vento ou um chafariz que
renove a umidade. Mas significa melhorias restritas ao ambi-
ente físico; sempre faltarão os outros ingredientes fundamen-
tais à compreensão holística do conforto apregoada desde o
início deste livro. A passagem de Rybczynski reforça ainda a
hipótese de que o contexto sócio-cultural do conforto se de-
senvolveu antes, criando condições para o contexto ambiental
se desenvolver depois.
John Crowley80 apresenta uma explicação diferente para
chegar no mesmo resultado. Lembra que a mudança cultural
usualmente antecede os empreendimentos bem sucedidos. Os
negócios menos criam o gosto e a moda do que exploram a
mudança que ocorre no gosto e na moda. Se não foram os
fabricantes e propagandistas, quem teria elevado o conforto a
ideal cultural? Não haveria uma causa única para esta mu-
dança em massa. Ao invés disto, presta atenção às sucessivas
alterações em posições sociais privilegiadas. As necessidades
dos mosteiros de disporem de pequenos espaços privados
para recolhimento e adoração levou aos quartos com chami-
nés e lareiras, mais tarde copiados nas grandes casas.81 Como
o feudalismo se enfraquecia, os senhores locais contrataram

79
Witold Rybczynski, op. cit.
80
John E. Crowley, op. cit., tradução pelo autor.
81
Rybczynski confirma indícios religiosos no conforto nascente: a severidade dos
móveis que foram sendo adotados pela burguesia trai a origem eclesiástica (as
Igrejas funcionavam como as grandes corporações hoje, e muito da inovação na
forma de vida derivava delas).
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 63

soldados que residiam nos grandes halls dos castelos. Para


privacidade e dignidade, os senhores se separavam de seus
homens e jantavam em câmaras privadas, com fogo e chami-
nés. Mais tarde, a câmara tornou-se o local onde eram mos-
tradas as belezas do lar. Hóspedes favoritos preferiam ir para
lá se distrair, antes que ao grande hall. Nesses quartos meno-
res, começou a ser cultivado o conforto. Enquanto isto, os
estudantes humanistas faziam dos estúdios onde liam e refle-
tiam os locais de maior conforto corporal. Crowley especula
que o estúdio da Renascença era provavelmente o local ini-
cial da revelação moderna do conforto físico ao consumidor,
e a expressão do conforto físico moderno.
É provável que o caráter rústico-acolhedor como da ca-
bana de Thoureau já existia desde a Renascença. É o que se
constata ao percorrer as casas rurais expostas com pretenso
realismo no museu ao ar livre de Ballenberg, junto ao lago de
Brienz, na Suíça. Tudo indica que a domesticidade já existia
muito antes do século XIX, e não necessariamente requeria
separação entre residência e trabalho; isto não faria sentido
numa propriedade agrícola. No outono, época da colheita, os
cereais são secos e armazenados juntamente com aguardentes
e vinhos, conservas e geléias. Produtos em calda, imersos no
vinagre ou na salmoura, defumados, desidratados ou fermen-
tados são mantidos numa despensa no subsolo. A lenha para
o fogão é mantida mais próxima da cozinha. Alguns animais
são criados sob o mesmo telhado da família. Fornecem leite,
gordura e carne e, com a lenha, calor. É revigorante a sensa-
ção de se saber cercado destes recursos.
Mas é importante notar que tal sensação dependia do
poder de dispor sobre os víveres: estava relacionada à priva-
cidade. Esta sendo assunto encerrado, os fatores ambientais –
mesmo que em escassez - passam a se integrar ao conceito de
conforto.
O relato de Crowley82 prossegue: No séc. XVIII, as ame-
nidades físicas do conforto se espalharam para as classes
médias por toda a parte. É o fim da inocência. Dois relatos
diferentes ilustram situações típicas deste período.

82
John Crowley, op.cit.
64 A IDÉIA DE CONFORTO

Henry James Thoreau83 relatou, em Walden, sua ex-


periência de viver sozinho num rancho:84 My dwelling was
small, and I could hardly entertain an echo in it; but it
seemed larger for being a single apartment and remote from
neighbors. All the attractions of a house were concentrated
in one room; it was kitchen, chamber, parlor, and keeping-
room; and whatever satisfaction parent or child, master or
servant, derive from living in a house, I enjoyed it all. Cato
says, the master of a family (patremfamilias) must have in his
rustic villa "cellam oleariam, vinariam, dolia multa, uti
lubeat caritatem expectare, et rei, et virtuti, et gloriae erit",
that is, "an oil and wine cellar, many casks, so that it may be
pleasant to expect hard times; it will be for his advantage,
and virtue, and glory." I had in my cellar a firkin of potatoes,
about two quarts of peas with the weevil in them, and on my
shelf a little rice, a jug of molasses, and of rye and Indian
meal a peck each.
Tom semelhante tem o relato de Thomas von Leithold,
visitante prussiano à corte de D. João VI,85 quando foi conhe-
cer a chácara de Hogendorp, general aposentado de Napoleão
que fora se refugiar na periferia do Rio: consiste ela, como as
demais fazendas de café, numa casa térrea de uma porta e
duas janelas. À frente da casa havia uma espécie de alpen-
dre, sustentado por quatro colunas de madeira, debaixo do
qual estava sentado o velho general. (…) Seu retiro campes-
tre, em relação à cidade, está a bastante altura e entre ro-

83
Henry David Thoreau (1817-1862) escritor e poeta americano notabilizado pelo
ensaio Desobediência Civil.
84
Tradução do autor: Minha habitação era pequena, e eu quase não podia manter
nela um eco; mas parecia grande por ser uma única morada e afastada de vizinhos.
Todas as atrações de uma casa estavam concentradas num ambiente; cozinha,
despensa, sala-de-visitas, e oficina; e toda a satisfação que teriam pai ou criança,
senhor ou empregado, de morar em tal casa, eu desfrutava. Catão diz que o chefe
da família (patremfamilias) deve ter em sua casa de campo "cellam oleariam,
vinariam, dolia multa, uti lubeat caritatem expectare, et rei, et virtuti, et gloriae
erit", isto é, “uma adega para azeite e vinho, muitos barris de modo a tornar praze-
rosa a espera por tempos difíceis; tudo o que redundará em sua vantagem, virtude e
glória”. Eu tinha em meu porão cerca de oito galões de batatas, cerca de dois
litros de ervilhas com brocas, e numa prateleira um pouco de arroz, um pote de
melado, e centeio e farinha de milho, uma porção de cada.
85
Nota original: Na ladeira do Ascurra, Cosme Velho. Uma pedra comemorativa foi
colocada no jardim dessa casa durante a primeira administração Vargas.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 65

chedos enormes de cada lado que se abrem na direção da


cidade, de modo que, da sua porta, se aprecia uma esplêndi-
da vista até o mar, parecendo o porto e a cidade muito pe-
quenos devido à distância. (…) No centro de uma das pare-
des, achava-se pendurado um retrato do general em tamanho
natural, ocupando quase toda a altura da peça. Suponho que
tenha sido pintado por David, em Paris, ou pelo menos bem
à sua maneira. De uniforme francês e condecorações, está
muito parecido. De um lado da sala, havia outra peça me-
nor, com uma só janela, a qual estava cheia de mantimentos
e de garrafas de vinho; do lado oposto, outra igual com uma
escrivaninha e uma pequena biblioteca. Para trás, havia
ainda uma pequena peça que servia ao general de quarto de
dormir. Descreve também, no jardim, do general, uma gruta
que ele tinha feito escavar à pólvora, na montanha e lhe
servia de adega, acomodando uns barris de vinho e ainda
vinho em garrafas. Uma de suas distrações prediletas é des-
tilar aguardente e licores, cujos aparelhos também nos fez
ver.86
Thoureau procura compensações físicas para a sua
solidão. E Leithold, ao retratar os pequenos privilégios do
general, de forma quase caricata, o viajante parece estar con-
solando o leitor por saber que um personagem de gloriosos
feitos no passado chegaria a tão modesto final de vida. Pare-
ce que o conforto físico foi sendo progressivamente desco-
berto como forma de aliviar a inconsolável miséria humana.

2.4 Conforto: consciência e excessos


Originalmente, conforto deriva do vocábulo de origem
latina confortare, com o significado de fortificar, consolar87.
Referia-se ainda ao apoio moral e às bênçãos da Divina Pro-
vidência.88 Depois, aparece nos livros de Jane Austen com o

86
T. von Leithold e L. von Rango, O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em
1819, tradução e anotações de Joaquim de Souza Leão Filho, Brasiliana, 328 (1966).
87
Witold Rybczynski, op. cit., tradução pelo autor.
88
John E. Crowley, The Invention of Comfort: Sensibilities and Design in Early
Modern Britain and Early America, Johns Hopkins University Press, Baltimore
(2001).
66 A IDÉIA DE CONFORTO

significado de prosperidade: a comfortable fortune significa


uma fortuna confortável, um patrimônio tão grande que o
trabalho não se torne uma preocupação. Portanto, de acordo
com a etimologia, o contexto corporal foi contemplado antes:
dar força. Depois, veio o uso metafórico do conceito aplicado
ao contexto psico-espiritual. Foi aparentemente mais tarde
que surgiu a consciência do conforto no contexto sócio-
cultural89 e no contexto ambiental.
Materialmente, a constituição da burguesia urbana foi
condição essencial para o surgimento do conforto. Ryb-
czynski argumenta que tal estrato tinha uma dose considerá-
vel de independência, e era capaz de tirar proveito da prospe-
ridade econômica: o que coloca a burguesia no centro de
qualquer discussão sobre o conforto doméstico é, à diferença
do aristocrata, que vivia num castelo fortificado, ou do clero,
que vivia num mosteiro, ou ainda do servo, que vivia num
casebre, o fato do burguês ter vivido numa casa.
Na medida em que o progresso material permitiu que
houvesse recursos para pensar e aprimorar a casa, foi surgin-
do a tendência de se acumular objetos nos ambientes. Por
exemplo, o surgimento dos móveis, que se deu por uma con-
tribuição especial da burguesia. Eram móveis devido à multi-
plicidade de usos que tinha o hall da casa – pública -, levan-
do, no século XVII, à prática de se manter as cadeiras alinha-
das junto às paredes, assim como as mesas. Estas eram divi-
didas em segmentos que, junto à parede, formavam balcões.
Na ocasião das refeições, eram agrupadas numa grande mesa
no meio do recinto. Já para os nobres, os móveis precisavam
ser móveis para os nobres poderem levá-los de uma para
outra de suas diversas casas. A domesticidade, a privacidade,
o conforto, o conceito de casa e família: estas foram, literal-
mente, as principais realizações da era burguesa.90

89
Uma obra-chave nesta análise, surgida nos anos 60, é de Edward Hall, The Hidden
Dimension, reimpressão, Anchor Books, Nova Iorque (1990).
90
John Lukacs, The Bourgeois Interior, apud W. Rybczynski, op. cit., tradução do
autor.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 67

Crowley91 mostra como as pessoas passaram a se relaci-


onar de modo diferente quando o conforto se tornou um pro-
blema central. Primariamente, examinou a influência das
plantas de casa sobre os papéis do homem e da mulher. A
separação entre a cozinha e o grande hall afastou o trabalho
feminino do local central de reunião na casa. Até o séc. XIX,
as funções de preparar comida e atender crianças tinham se
movido para os fundos. Nos quartos da frente ficava à mostra
um mobiliário seleto, comprado com a renda do marido, dis-
simulando o trabalho feminino que mantinha o domicílio em
funcionamento. Catarina Beecher, teórica de arquitetura e
serviço doméstico na metade do século, tentou integrar o
trabalho de volta ao centro do espaço doméstico, mas este,
enquanto tarefa feminina, continuou escondido e separado. O
compromisso com o conforto, na classe média, alienou as
mulheres, mais que fazê-las mais confortáveis nas suas pró-
prias casas.
No séc. XIX, com o Vitorianismo - um movimento
impulsionado pelos primeiros produtos de decoração feitos
numa escala industrial – terminou, enfim, a inocência com
respeito ao conforto. É o que se constata das palavras de Wil-
liam Morris, mentor de um movimento rival, chamado Arts
& Crafts (arte e artesanato), que apregoava a volta do artesa-
nato requintado. As pessoas agora buscavam o conforto de
forma consciente, porém sem necessariamente um bom resul-
tado: a terra que foi bela antes do homem viver nela, que por
muitas eras cresceu em beleza quando os homens aumenta-
vam em número e em poder, agora está se tornando mais feia
a cada dia, e lá tanto mais quanto mais poderosa é a civili-
zação (...) aquilo que já foi um jardim de razoável porte tor-
nou-se um trivial e miserável campo barrento, e tudo está
pronto para a última novidade da arquitetura Vitoriana (...)
todo espaço que você teria perdido, para uma destruição
inevitável do crescimento natural, você teria, nos tempos da
arte, de ter compensado pela beleza regular, por sinais visí-

91
John E. Crowley, op.cit.
68 A IDÉIA DE CONFORTO

veis da ingenuidade do homem e seu encanto tanto nas obras


da natureza como nas obras de suas próprias mãos.92
Crowley93 relata que até 1900, o conforto tinha se
tornado não somente uma prática, mas um valor. Enraizado
na cultura, o conforto tornara-se um elemento definidor na
identidade de classe. As pessoas não somente desfrutavam o
conforto, ele era requerido para se fazer respeitar. Como um
ideal da vida civilizada, o conforto justificava o consumo.
Superou a aversão moral ao luxo, ocultando o desejo de
objetos da moda sob o véu de um desejo aparentemente natu-
ral. Novas indústrias e a expansão do comércio floresceram
sob a proteção do conforto.    
É difícil identificar um ponto de partida mais explícito
para a iniciativa em direção ao conforto, Entretanto, podemos
reconstituir imagens de como o processo aconteceu em al-
guns países, no intuito de descrever como se deu, na forma-
ção do conceito de conforto no ambiente construído e deco-
rado, a superação da ingenuidade e a evolução da consciência
para o exagero.

Holanda

O custo do terreno junto aos canais, importantes vias de


circulação de Amsterdã, faz com que desde a Renascença as
casas muito estreitas e altas – atingem até 5 andares – sejam
características da capital holandesa. Os vãos pequenos libe-
ram paredes transversais de função estrutural, permitindo
janelas muito amplas. A organização do uso dos cômodos foi
se tornando possível por nível, com a parte de caráter mais
privado no alto. O pequeno tamanho das casas as condicio-
nava a abrigarem somente uma família.
Há relatos de historiadores que ressaltam os holandeses
como europeus muito peculiares em seus valores. Prezavam

92
William Morris, Hopes and Fears for Art, produzido por David Price a partir da
edição de Longmans, Green and Co. (1919), e disponibilizado no Projeto Gutenberg.
Tradução do autor.
93
John Crowley, op. cit.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 69

primeiro suas crianças, depois suas casas, e depois seus jar-


dins, privados. A identidade da família aparece, na Holanda,
mais ou menos cem anos antes que em qualquer outro lugar
da Europa.
A ordem também era notada na escala urbana: enquanto
os franceses e italianos criaram palácios impressionantes, os
holandeses criaram cidades incomparáveis.94 Tal afirmação
é fundamentada num efeito calorosamente ordenador do tijo-
lo, que mais disciplinava que convidava à criação arquitetô-
nica.
Curiosa é a descrição de Sir William Temple, diplomata
inglês, de sua visita à casa do prefeito de Amsterdã. Tendo
chegado antes dos anfitriões, foi recebido pela criada. Depois
de cuspir no chão pela segunda vez e, pela segunda vez, ver a
criada limpando prontamente o chão com um pano, foi por
esta advertido: disse-lhe ela que a patroa, se ali estivesse, iria
expulsá-lo de sua casa. Temple achou aquilo bizarro.95 Con-
densou esta e outras observações sobre a Holanda ao afirmar
ser um país em que a terra é melhor que o ar; lucro é mais
valioso que honra; há mais bom-senso que juízo; mais boa
disposição que bom humor; mais riqueza que prazer; é para
visitar, não para morar; (as pessoas são) capazes de gastar
seu lucro em tecidos, enfeites e móveis para casa. Estes mos-
travam a prosperidade do seu dono. Adoravam suas casas.
Dormiam em alcovas.
Algumas pinturas famosas de Emmanuel de Witte e Jan
Vermeer retratam mulheres nos interiores de casas holande-
sas e são bastante reveladores com respeito à cultura da habi-
tação. É natural que apareçam mulheres, mais que noutras
regiões onde os homens trabalhavam em casa: na Holanda,
muitos tinham no mar o sustento da família. A cozinha ocupa
uma posição de destaque como o cômodo mais importante. A
domesticidade tem a ver com família e intimidade. A casa

94
Steen Eiler Rasmussen, arquitetura vivenciada, ed. Martins Fontes, São Paulo
(2002).
95
Annette Stott, The Dutch Dining Room in Turn-of-the-Century America,
Wintherthur Portfolio 37: 4 (2002).
70 A IDÉIA DE CONFORTO

corporifica tais valores e se torna objeto de devoção. Tudo


isto é considerado uma conquista feminina.96
Notável, porém, é a maneira como estes valores domés-
ticos se tornaram admirados pelo mundo. Dentre diversos
movimentos de resgate de estilos passados, a burguesia dos
Estados Unidos da América trouxe para dentro de suas casas
um apanhado de idéias da Holanda. Muitas não passavam de
clichês. Era o Dutch Dining Room - a sala de jantar holande-
sa, descrita mais à frente.

Escandinávia

Para Rybczynski, nos países do Norte da Europa aparece


prematuramente – já no século XVII - a Stimmung, uma per-
sonalização dos ambientes de modo a refletir o caráter dos
moradores. No restante da Europa, demoraria mais 100 anos.
O caso apresentado a seguir, embora se refira a um persona-
gem mais recente, manifesta que na região o assunto já tinha
raízes mais profundas.
Carl Larsson, nas décadas finais do século XIX, difun-
diu na Suécia as idéias William Morris (citado logo acima
como mentor do Arts&Crafts) e de John Ruskin (escritor e
crítico de arquitetura de orientação moralista que, com Mor-
ris, criticava a industrialização). Da Inglaterra, Larsson levou
para seu país a idéia de que o meio afeta o temperamento e o
caráter do indivíduo; acreditava que reformas estéticas na
casa e no ambiente de trabalho poderiam melhorar as condi-
ções sociais. Cada membro da família iria projetar, construir
e embelezar a casa de acordo com as inclinações e capacida-
des pessoais. Seria a salvação da sociedade moderna. Associ-
ou-se o movimento romântico nacional sueco, com interesse
crescente na cultura nativista, como forma de realizar a de-
mocracia social.
O trabalho de Larsson e de sua esposa foi sintetizado na
casa chamada de Lilla Hyttnäs, que exemplificava a tendên-
cia, apontada por Walter Benjamin, de as casas assumir um

96
Witold Rybczynski, op. cit.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 71

novo papel na “expressão da personalidade”. Quietas, íntimas


e únicas, eram um refúgio ao mundo urbano, afoito e impes-
soal.97
Entrando no séc. XX, o conceito de Benjamin tornou-se
popular e os chalés em cores pastel e na forma de biscoito de
gengibre foram proliferando na costa perto de Estocolmo e
Gotemburgo. No natural e no tradicional se buscava também
reforçar a própria identidade: a apropriação da natureza, ao
que se pensava, requeria raízes tradicionais. Ainda, buscava-
se na decoração um estilo pessoal, com referências familia-
res. Assim, a burguesia procurava diferenciar-se das classes
trabalhadoras e pobres: apegando-se às tradições culturais,
aquilo que só o tempo garante.
Seu estilo nostálgico aproveitava o espírito da importan-
te era gustaviana, referência ao rei Gustavo III (1746-1792),
personalidade marcante: marcas do estilo eram as paredes
particionadas, cortinas leves nas janelas, móveis pequenos
pintados ou em madeiras leves, e tecidos em padrões simples
– xadrez ou listrados. A honestidade e a modéstia eram, pois,
identificadas pelo movimento romântico nacional como mar-
cas típicas do temperamento sueco. A casa dos Larsson foi
um sucesso, tanto nas ilustrações, como no turismo, talvez
por ser radicalmente diferente no caráter daquele dos con-
temporâneos, com seu mobiliário superestofado, pesadas
cortinas e apelo à fantasia. Segundo Facos, a casa dos Lars-
son seguia o ideal do Arts & Crafts de fornecer um senso de
bem-estar psico-emocional e uma integração holística dos
moradores com seu habitat.
O filósofo iluminista francês, barão de Montesquieu, te-
ria observado: se viajarmos para o norte, encontraremos
pessoas de poucos vícios, muitas virtudes e uma enorme
franqueza e sinceridade.98 Não deixa de ter relação com isto
a observação de que o valor de todos os objetos na casa dos
Larsson era conectado a sua beleza e utilidade, não sua ida-
de ou status.

97
Michelle Facos, The Ideal Swedish Home: Carl Larsson’s Lylla Hyttnäs, in Chris-
topher Reed, op. cit. Tradução do autor.
98
Ibid.
72 A IDÉIA DE CONFORTO

No séc. XX, o Modernismo trouxe a proposta de limpar


os ambientes e produziu, como reação, efeitos extremos.
Mostra disto é um cartão postal publicado por um centro
fundamental do pensamento modernista - a Bauhaus99 - sobre
mobiliário popular, um pouco ao estilo dos postais suecos;
entretanto, ali o objetivo era fornecer uma imagem do que era
mister evitar, a partir de então, distantes que estavam os mó-
veis retratados dos ideais dos mentores do movimento.

França

O historiador Peter Thornton100 descreve como, na corte


francesa de Louis XIV, no século XVII, a preocupação com o
aconchego crescia por detrás das exigências de um cerimoni-
al pomposo. É preciosa a explicação de que o rei precisava
poder escapar para uma atmosfera menos opressiva onde
pudesse relaxar com sua família e companhia mais próxima.
Nos edifícios reais franceses, portanto, forjaram-se naquele
tempo dois padrões que até hoje têm sua importância: de um
lado, um padrão de como um palácio deveria aparentar; do
outro lado, um padrão que embasou o relaxamento confortá-
vel e civilizado.
Luís XVI não se satisfez em demarcar áreas reservadas
ao desfrute de uma privacidade até então inédita no seu palá-
cio. Depois de Versailles, construiu um castelo em Clagny
para se encontrar com uma amante e, finalmente, outro em
Marly. Lá, embaixadores e emissários não eram admitidos;
não vigorava a etiqueta, e um convite para acompanhar sua
comitiva era reputado extremamente honorífico.
É desta época a afirmação do boudoir (espaço feminino
destinado a reuniões reservadas), do closet e do petit appar-

99
Escola superior de construção e composição na Alemanha, fundada pelo arquiteto
Walter Gropius em 1919, inicialmente estatal e a partir de 1926, privada. Esteve até
1925 em Weimar, mudou-se para Dessau e em 1932, finalmente, para Berlin, sob a
direção do arquiteto Mies van der Rohe. Foi dissolvida em 1933. Teve professores
ilustres como Kandinsky, Klee e Schlemmer. Pregava a volta da arte e do artesanato
às formas mais elementares, uma estética da utilidade e ausência de ornamentos.
100
Peter Thornton, op. cit.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 73

tement. Era provavelmente o surgimento, no século XVIII,


do quarto individual.
O século XVIII é de importantes conquistas em conforto
nos palácios, com uma incipiente assimilação pela nobreza e
pela burguesia. Baudelaire teria dito que num palácio já não
há cantos para a intimidade. No início do séc. XIX, de modo
aproximadamente simultâneo, se percebe em vários locais no
mundo uma busca mais consciente do conforto. Uma conse-
qüência disto são os ambientes cada vez mais cheios de obje-
tos. Thornton ainda afirma que na França, a partir da revolu-
ção burguesa, as conveniências e o formalismo cederam es-
paço à espontaneidade e privacidade.

Inglaterra

Para Crowley101 , o conforto no sentido de conforto am-


biental foi empregado pela primeira vez ao final do séc.
XVIII, para referir-se a um chalé. Até então, a palavra cotta-
ge tinha conotação negativa, de pobreza. Segundo o autor, tal
uso de conforto não era somente novo para as cottages: trata-
va-se de um conceito explicitamente novo para se falar de
qualquer casa.
Já Rybczynski propõe que a primeira ocasião em que a
expressão fora usada teria sido na obra de Sir Walter Scott
(let it freeze without, we are comfortable within)102. Mencio-
na ainda a escritora Jane Austen, autora de seis romances
muito populares (Emma, Sense and Sensibility, Pride and
Prejudice, Mansfield Park, Northanger Abbey e Persuasion)
em que, sobre um fundo de crítica social sutilmente irônica,
descreve a vida da burguesia rural inglesa. Austen retrata
famílias em diferentes faixas de uma classe média periclitan-
te, administrando manobras sociais pelos salões de festas, até
encontrarem um bom partido para cada uma das filhas. São
acontecimentos insistentemente comentados na família e no

101
John Crowley, In Happier Mansions: The Invention of the Cot-
tage as the Comfortable House, em Winterthur Portfolio 32, N° 2/3 (1997) .
102
Que congele lá fora, estamos confortáveis aqui dentro.
74 A IDÉIA DE CONFORTO

círculo mais próximo de visitantes. As moças casamenteiras


compartilham conquistas e fracassos amorosos com irmãs e
umas poucas amigas no aconchego do lar, sentados ao redor
da luz e do fogo para um jogo, leitura ou simples tertúlia. Ao
lado das manifestações de ternura e amizade, o lar se mostra
um importante fator de consolo. É o desfrute de um padrão
econômico mínimo que garante, ao menos, a moradia digna e
acolhedora. Casa e pessoas são formas de reforço – conforta-
re, no latim, significa dar força.
Os dois terços finais do século, na Inglaterra, estiveram
sob o predomínio do estilo vitoriano (1837-1901). Em 1836
era estabelecido o sistema férreo inglês. O código Morse era
criado em 1837. O reinado da Rainha Victoria foi um tempo
de imensas mudanças nos hábitos domésticos. A revolução
industrial permitiu a produção em massa. Os bens resultantes
tiveram razoável aceitação pelo público. As novas classes
médias emergentes eram briosas de suas casas. O status de
cada um era a coisa mais importante e a casa refletia isto.
Disseminavam-se reproduções de obras de arte. Como reação
ao Neoclassicismo e seu rigor, havia grande interesse pela
imitação de outros estilos passados - do gótico ao rococó
foram todos revividos. Chegava a haver mais de um estilo
claramente influenciando uma única peça.
Entre alguns traços do Vitorianismo está a abundância
em decoração, chegando ao excesso. Há riqueza em cores
escuras como vermelho rubi e verde floresta. O papel de pa-
rede é produzido em massa a partir de 1840, inicialmente na
Inglaterra e depois igualmente bem na França; predomina um
padrão de grandes flores, pássaros e animais. Usa-se móveis
superestofados, e padrões proliferam nos tecidos como na
pintura. Aplicações em gesso começam a ser feitas imitando
estilos diversos. Lareiras são ornamentadas, na maior parte,
em ferro fundido. Encontra-se sobre as mesmas, assim como
nos demais nichos, animais empalhados sob campânulas de
vidro, pares de cães de porcelana e arranjos de flores secas.
O movimento Arts & Crafts, reação ao Vitorianismo,
deu-se entre 1860 e 1910 aproximadamente. Era de um grupo
de designers e escritores ingleses buscando o retorno aos
bens manufaturados de boa qualidade ao invés dos vitorianos
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 75

– industrializados e baratos. Inspirado por William Morris,


usava o sistema medieval de comércios e corporações. Toda-
via, produzia bens muito caros, limitados à alta classe média.
Continuando uma tendência iniciada na era vitoriana e agora
com um acento crítico, no movimento Arts & Crafts havia
uma maior consciência do espaço da habitação, e da sua im-
portância como expressão de muitos valores da família. Há
uma preocupação visual: William Morris pregava: have noth-
ing in your houses that you do not know to be useful or be-
lieve to be beautiful.103 Tinha, visualmente, muito em comum
com o Art Nouveau e desempenhou relevante papel na fun-
dação do Bauhaus e do Modernismo.

Suíça, Alemanha e Áustria

O surgimento do conceito de conforto no espaço de lín-


gua alemã está vinculado aos conceitos de Stube (salinha) e
Biedermeier (um movimento cultural).
A Stube, com origem por volta de 1400, era um segundo
espaço de permanência, que podia ser aquecido e, ao contrá-
rio da cozinha com fogo aberto, tinha a vantagem de ser livre
de fumaça. Não era somente um local de permanência para a
família camponesa no inverno e nos domingos e feriados;
podia também ser refeitório e sala representativa, e servia
ainda de ante-sala para as camas embutidas. Nela se encon-
travam os mais variados móveis, e comumente os melhores.
No museu ao ar livre de Ballenberg, na Suíça, uma Stu-
be original é apresentada, e dela se comenta que foi mudando
os hábitos de vida da família, pois era um verdadeiro espaço
de permanência, que servia para trabalhos manuais, conver-
sas e para servir hóspedes. (...) não era somente um espaço
de trabalho e permanência de caráter central, confortável e
polivalente, mas também tinha significado cultual. Assim, na
maioria das Stuben, (depois de 1700), no canto junto à mesa
da Stube, havia o chamado Herrgottswinckel (canto do se-

103
Nada tenham em suas casas que você não saiba ser útil ou acredite ser belo.
76 A IDÉIA DE CONFORTO

nhor), em diagonal com a lareira, onde era pendurado um


crucifixo sobre o banco de canto.104
A gute Stube (boa salinha, como era chamada) foi uma
invenção das mais significativas para a cultura da habitação
centro-européia, sobre a qual se baseiam formas de habitação
de hoje em dia. Vinha da Idade Média e beneficiava mais a
massa, que os dez mil mais ricos.105
Mas o conforto foi o produto de um longo processo. A
qualidade do ar o exemplifica. Se era melhor na Stube que na
cozinha, tinha ainda defeitos. O nobre viajante italiano Be-
nedetto Dei (1476/77) comenta de uma viagem pela França,
Flandres, Países Baixos, Alemanha e Suíça: estive na Basi-
léia e atravessei a Alemanha e milhares de Stuben com ale-
mães simplórios, sebosos, grudentos e rudemente vestidos
(citado por Hundsbichler 1980, 31). A outra fonte italiana de
1468 se deve a comparação do clima interior nas Stuben ale-
mãs com emanações do presídio estatal de Florença.106
Na Suíça, a história dos móveis de agricultores se inicia
com os impulsos de uma Renascença tardia. Suas formas
aparecem em frisos, entalhes e marchetaria simples. Desta
época se originam os primeiros daqueles majestosos buffets
que encontram lugar nas salas de estar da aristocracia cam-
ponesa do interior do país desde a segunda metade do século
XVII. O buffet une a função de armário, estante e lavatório. É
integrado às paredes do recinto. Entre a Renascença e o início
do barroco, a fabricação camponesa de móveis já não tem
uma fronteira bem definida. Formas da Renascença são en-
contradas até dentro do século XVIII. Comumente, o início
do barroco vai sem transição até dentro do rococó, tão privi-
legiado pela arte popular. Ao mesmo tempo, houve uma ten-

104
Museu ao ar livre Ballenberg, Brienz, Suíça: placa informativa numa das casas,
fotografada pelo autor.
105
Material das disciplinas de História da Universidade de Münster, Alemanha,
disponíveis na Internet sob o endereço: http://www.uni-
muenster.de/GeschichtePhilosophie/Geschichte/hist-sem/SW-G/Scripte/ Alltag/
s09wohn.htm
106
Matthias Henkel, Der Kachelofen: Ein Gegenstand der Wohnkultur im Wandel,
eine volkskundlich-archäologische Studie auf der Basis der Hildesheimer Quellen,
Dissertação, Georg-August-Universität, zu Göttingen (1999).
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 77

dência às formas de móveis franceses. A cômoda, desenvol-


vida na corte de Luís XIV, teve uma campanha triunfal nos
lares de agricultores, seguida pela cama de dossel e pelo ca-
napé. Móveis com desenhos coloridos penetraram nos Alpes
entre os séculos XVII e XIX. Aqui cabe repetir uma observa-
ção por vezes esquecida: a arte popular não conhece o postu-
lado de autenticidade dos materiais.
Quando em 1789 os franceses derrubaram o poder anti-
go, os camponeses ganharam status semelhante ao dos bur-
gueses. Isto também se expressa na cultura. Eles equiparam
suas casas com móveis burgueses e procuraram seguir os
modelos urbanos nos seus hábitos e costumes.107
Painéis nas paredes e muitas peças grandes e caras (ar-
mário de roupas, de vidros, mesa removível, cadeiras e pol-
tronas, escrivaninha-armário, relógio, espelho, cômoda) dão à
Stube do séc. XVIII o caráter de afluência e conforto, e carac-
terizam a condição burguesa. Isto vale, contudo, somente
para as Stube dos camponeses mais abastados.
O “morar burguês” preza a intimidade, com a separação
de espaços representativos e dos criados dos espaços da famí-
lia, em especial os quartos. Preza a comodidade: o sofá se
torna, no século XIX, o móvel mais importante. Preza a pri-
vacidade da casa (separada do trabalho) e dos seus recintos
entre si, pais e filhos dormem separados. E preza a higiene,
com medidas especiais para a cozinha, toilette e banho. En-
tretanto, logo depois da sociedade pré-industrial, começam a
entrar em conflito os valores do conforto e a demonstração de
status.108 Pois o “morar burguês” investe o excedente econô-
mico no espaço da moradia e seu equipamento.109 A gute
Stube chegou a representar uma demonstração da própria
capacidade cultural.

107
Museu ao ar livre de Ballenberg, Führer durch das Schweizerische Freilichtmu-
seum, Brienz, Suíça (2002).
108
Conforto é como um chinelo velho: aquilo que fazemos exclusivamente por nós
mesmos. A demonstração de status é um sapato feminino de salto alto e bicudo:
feito para os outros.
109
Estes gastos dependem muito da renda, ao contrário dos gastos com alimentação
básica ou saúde: têm aquilo que os economistas chamam de uma alta elasticidade-
renda.
78 A IDÉIA DE CONFORTO

Nos anos 20, o movimento do novo morar (neues


Wohnen) se impôs à “gute Stube”. Esta por fim desaparece,
cedendo lugar à sala de estar, provavelmente em estreita liga-
ção com a penetração do rádio e da TV, e do aparelho de
som; crescente pluralidade dos estilos paralela à transição à
sociedade de consumo: rústica, moderno clássico, nostálgico,
etc.110
Já o Biedermeier foi um movimento artístico precisa-
mente datado, embora sua influência transborde desse prazo.
Ocorreu no espaço de língua alemã, formalmente entre 1815
e 1848 (respectivamente as datas do Congresso de Viena e da
Revolução de Março). O nome derivava da paródia de Ludwig
Eichrodt sobre o burguês fiel, “o professor suábio Gottlieb Bie-
dermeier”, de 1850 a 1857.
Às guerras da revolução sobreveio o desejo de calma e
ordem, alegria privada e paz interna. Resulta de uma conjun-
tura combinando o progresso material e a censura onipresente
(o sistema Metternich). Refletida na disseminação de uma
atitude de conformismo e refúgio na vida privada, dedicação
aos valores domésticos e aos idílios.
O Biedermeier é o romantismo aburguesado. Diferenci-
ava-se do Classicismo que o antecedeu pelo uso de formas
simples e concretas. Influenciou a pintura, a literatura e as
artes aplicadas – daí sua presença na cultura doméstica. A
decoração se caracteriza por simplicidade, praticidade, acon-
chego e caráter burguês, além de um acabamento notável.
As pessoas eram caseiras; as Stube, limpas e aconche-
gantes. Há melancolia desapegada na poesia. Amor ao pe-
queno, ao cotidiano, à natureza. Na música, Schubert111 acaba
de criar a Lied, a canção acompanhada ao piano, uma propos-
ta reducionista diante dos exageros da ópera. Esta agradável
domesticidade musical era um traço típico. A celebração
musical dos valores domésticos (Hausmusik) atingiu seu pico

110
Fonte: http://archiv.tagesspiegel.de/archiv/13.10.2002/251403.asp
111
Franz Schubert (1797 – 1828), compositor austríaco, somente igualado por
Mozart na inventividade melódica. Chamado o “clássico dos românticos”.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 79

no final da era Vitoriana. Estava muito em voga receber e


entreter em casa.
Muita gente pôde comprar um mobiliário refinado e só-
lido. Especialmente em Viena, havia bons projetistas e exe-
cutores. Os móveis em formas claras e simples enfeitavam os
ambientes. Ganhou espaço o uso da madeira local – nogueira,
cerejeira e freixo - contrastando com o mogno e o bronze
dourado da era napoleônica. Era característico o uso de ma-
deiras claras como cerejeira e bétula ao lado do mogno, mais
escuro, mas sem ornamentos. Grande prioridade tinha a su-
perfície dos móveis. Novos processos com verniz de alto
brilho ajudavam a dar-lhe destaque. Peças específicas eras
escrivaninhas e escrivaninhas-armário, vitrines, cômodas,
canapés e as mesinhas de costura. Estas serviam para repre-
sentar peças de recordação, vidro e porcelana. O ponto cen-
tral era uma mesa redonda ou oval com um sofá. Chama a
atenção o gosto pela simetria. Móveis eram feitos aos pares,
ou colocados de frente a um correspondente, o mais parecido
possível.
O Biedermeier recusava, sem maiores considerações,
utilizar tecidos caros e aplicações custosas. A decoração eco-
nômica das janelas já não se compara às ricas cortinas da
época anterior – classicista. Geralmente, usava-se trilhos de
tecidos brancos de disfarce como mousselin ou voile, que
eram puxados para o lado por suportes de cortinas. Proteção
visual ou solar eram pequenos rolos ou cortinas tensionadas,
especialmente de tecidos verdes. Sobre o piso, tornaram-se
moda tapetes de manufaturas de lã da Áustria e da Inglaterra,
em novos padrões, originários dos tapetes orientais. Durante
o verão, os tapetes eram retirados, e recolocados no inverno.
As cores eram combinadas de maneira audaz, os padrões
eram vivos e cheios de contrastes. Assentos usavam tecidos
de lã sem padrões, ou, melhor ainda, o damaste de algodão
ou lã, em uma ou duas cores, combinando com as cores do
quarto. Móveis muito solicitados recebiam couro pintado.
Muitas vezes, as bordas dos estofamentos eram feitas análo-
gas às superfícies das paredes.112

112
O Biedermeier teve um ressurgimento no século XX. Imagine-se uma decoração
comumente encontrada num restaurante “típico alemão”, com cortinas em renda, ou
80 A IDÉIA DE CONFORTO

Apesar do Biedermeier ter sido precisamente datado, seu


espírito perdurou, a julgar pela descrição de Golo Mann,113
até o período burguês da segunda metade do século XIX, na
Alemanha, que não era nenhuma época de altos vôos intelec-
tuais (...) Realpolitik114 de cabeça dura, e religiosidade pega-
josa, teatralidade de um fausto, nacionalismo auto-
justificativo, com toda a briga interna, materialismo, boqui-
aberto diante das conquistas da ciência e mesmo preparado
para virar em misticismo barato. A pintura, como a literatu-
ra, quando apoiadas pelo estado, eram pouco originais,
Classicismo tardio, falsa Renascença, nenhum estilo próprio
como seria de esperar na época de mudanças, e assim tam-
bém as construções: nunca se construiu mais falsamente,
estações ferroviárias e quartéis como castelos góticos, casas
de artesãos como palacetes rococó ou palácios renascentis-
tas, como o humor mandava.
Também na Alemanha, na Suíça e na Áustria, a consci-
ência do conforto tinha evoluído para alguns exageros.

Brasil

Enquanto Sir Walter Scott e Jane Austen registravam em


seus romances o surgimento do conceito atual de conforto, a
corte portuguesa de D. João VI era transferida para o Brasil,
promovendo bruscas mudanças na vida social do Rio de Ja-
neiro. Seria possível que a burguesia local importasse e assi-
milasse as mudanças culturais da Europa, assim como se deu
com a simples moda do turbante das mulheres?115 Ou as
idéias da Europa, aqui chegando, eram adaptadas à realidade
brasileira e se descaracterizavam?

iguais às toalhas estampadas em branco, verde e vermelho, comumente em xadrez, e


móveis com entalhes em formas de flores e corações.
113
Golo Mann, Deutsche Geschichte des 19. und 20. Jahrhunderts, Fischer
Taschenbuchverlag, Frankfurt (1992), pp.462-464. Tradução do autor.
114
Realpolitik: política voltada para alguns objetivos concretos a serem infalivel-
mente atingidos.
115
Introduzido por D. Carlota Joaquina, mas não por ser novidade em Portugal, e
sim por ter ela contraído parasitose por piolhos durante a viagem.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 81

Gilberto Freyre dá uma informação preciosa: o homem


brasileiro da metade do século XIX passava a maior parte do
tempo na rua, mantendo mulher e filhos dentro de casa.116
Esta era pouco atraente.
Tanto as idéias como as técnicas em amenidades resi-
denciais, os objetos e o excedente econômico para comprá-
los, tudo existia em defasagem em relação à Europa. A arqui-
tetura era copiada de Portugal, com a influência que lá chega-
ra do continente africano e do mundo árabe.117,118 Casa, mobi-
liário e modo de vestir seguiam conceitos importados. No
Rio, como em Salvador, viajantes registram uma falta de
imaginação, a uniformidade na arquitetura. As ruas estreitas
derivam de uma estratégia usada na Idade Média para a pro-
teção contra ataques externos que, de fato, ocorreram.119 Os
interiores eram mal-iluminados durante o dia. A iluminação à
noite era na base de lamparinas ordinárias a óleo de baleia ou
velas de cera nas casas abastadas. A falta de luz diurna nas
casas se associava à falta de ar,120 apesar do calor excessi-
vo.121
Observava Thomaz Lindley, visitante inglês, que as fá-
bricas eram expressamente proibidas, exceto as de couro e de

116
Enquanto a mulher passava a maior parte do seu tempo dentro, o homem – o
homem urbano – passava a maior parte do seu, fora – na rua, na praça, à porta de
algum hotel francês, ou em seu escritório, um armazém. (...) O sentimento de casa
não era forte entre os homens brasileiros à época em que a família patriarcal estava
em seu pleno vigor. (...) A rua era seu clube. Isto pode servir como uma explicação
ao fato de que os brasileiros urbanos dos anos 50 não pareciam ter casas atraentes.
Vinte anos antes, um viajante francês, Louis de Freycinet, tinha observado que os
brasileiros passavam a maior parte de seu tempo dormindo, ou fora, ou, ainda,
recebendo seus amigos; portanto eles somente precisavam – o francês pensou – um
ambiente de recepção e dormitórios. De: Gilberto Freyre, Social Life in Brazil in the
Middle of the 19th Century (ensaio de mestrado), Nova Iorque (1922), tradução do
autor.
117
Luís Norton, A Corte de Portugal no Brasil, Brasiliana, vol. 124.
118
Du Petit-Thouars, citado por Melo Leitão, Visitantes do primeiro império, Brasi-
liana, vol. 32, 1934, apud Luís Norton, op. cit.
119
Miguel Antônio Leoni Gaissler, comunicação pessoal (2003); W. Rybczynski,
op. cit., p.25.
120
C. de Mello Leitão, op. cit.
121
Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, t. I, apud Luís Norton, op. cit.
82 A IDÉIA DE CONFORTO

determinadas bugigangas.122 De fato, um alvará de 1785


tornava as manufaturas ilegais na colônia. O mesmo visitante
faz aquela que deve ser a primeira referência a conforto no
Brasil:123 27 a 30 de março. Passamos o dia com um amigo
casado e um grupo de suas relações, de urbanidade e polidez
contrastantes com a maioria de seus compatriotas. A casa
fica à entrada da baía, dispondo de inteiro conforto. Constou
nosso jantar de tudo quanto a Bahia proporciona, embora
estivéssemos na Quaresma. Após o café, vieram os baralhos,
e nós passamos, desse modo, um dia agradabilíssimo.124
Como o autor deixa explícito, trata-se de um cidadão acima
da média. Casas das famílias mais abastadas tinham várias
janelas abertas para o jardim. E comumente consistiam num
volume destacado no terreno, como num palácio ou casa de
fazenda. Ocorriam em Botafogo e Laranjeiras. Vegetação,
ventilação e sombra eram os recursos mais valiosos, muito
menos associados ao detalhismo técnico do que à exuberân-
cia material e até a um comportamento social menos estan-
que, com abertura para freqüentes reuniões. É a situação da
casa de Aurélia Camargo, donzela órfã e herdeira milionária
no Rio de Janeiro do início do século XIX qual retratado por
José de Alencar em Senhora: O portão ficava a uns trinta
passos da casa que se erguia no centro de vasto jardim in-
glês. Todas as janelas do primeiro pavimento estavam aber-
tas e despejavam cortinas de luz, que tremulavam nas águas
do tanque e na folhagem verde agitada pela brisa. A varanda
era uma peça tomando toda a largura do imóvel, o que cola-
boraria para tirar a luz de dentro. Nenhum cumprimento das
leis da Câmara a este respeito.125

122
Thomaz Lindley, Relato de uma viagem ao Brasil, Brasiliana, 343 (1803) tradu-
zido do Narrative of a Voyage to Brazil por Thomaz Newlands Neto (1969).
123
Considerando que um profícuo escritor contemporâneo – José de Alencar – quase
não usa a palavra, e nunca o faz no sentido de bem-estar físico. Ao que parece, é
somente na virada do século que um escritor brasileiro, Aluízio de Azevedo, empre-
ga, na sua obra “o Mulato”, a expressão “apartamento confortável”.
124
Thomaz Lindley, op. cit.
125
Kátia Queiroz Mattoso – Bahia Século XIX – Uma Província no Império, Nova
Fronteira, Rio de Janeiro (1992).
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 83

Já as casas da população (à exceção da família real e da


nobreza) eram descuidadas por dentro e por fora, assimétricas
e feias. O exterior era lôbrego como um presídio ou antes
como um túmulo. 126 Quase todas de um só pavimento e uma
só janela. Uma peça principal; uma alcova menor ao lado da
casa; atrás, para o quintal, a cozinha, com mesa de jantar.127
Ainda, havia casas com mais pavimentos, até quatro, poden-
do abrigar várias famílias.128 Casas pertencentes aos comerci-
antes eram qualificadas repugnantes. Soldados, mulatos e
negros, viviam em choças cobertas de telhas e sem forro,
dotadas de uma única janela de rótula.129 Não têm alicerces.
As tábuas do soalho são pregadas em dormentes fixados, sem
a mínima proteção, diretamente ao chão; é fácil imaginar,
em conseqüência, os efeitos nocivos da umidade para a saú-
de, sobretudo na época das chuvas. Os andares intermediá-
rios sofriam de umidade e mofo. As casas térreas tinham um
inconveniente: cavalos passando pela peça principal quando
iam ao quintal.130 Já nas casas com mais de um pavimento do
Rio e de Pernambuco, o cavalo e a cavalariça ocupavam todo
o térreo – motivo de mal cheiro.131 E na Bahia, a inclinação
das ruas impedia a introdução de carruagens com rodas e
até os anos 70 os palanquins eram usados: os senhores se
locomoviam aos ombros dos escravos.132
Os materiais empregados sugeriam precariedade: tijolos
moles, juntados com barro e recobertos de argamassa.133
Ainda, pedra e cal, tijolos, adobe rústico, taipa e chão de terra

126
C. de Mello Leitão , op. cit.
127
Du Petit-Thouars, op. cit.
128
Kátia Queiroz Mattoso, op. cit.
129
Thomaz Lindley, op. cit.
130
T. von Leithold e L. von Rango, op. cit.
131
C. de Mello Leitão, op. cit.
132
Tradução do autor para trecho de Gilberto Freyre, Social life in Brazil in the
middle of the 19th century (ensaio de mestrado), Nova Iorque (1922).
133
As casas são totalmente desprovidas de caixilhos para suas janelas, exceto uma
cortina de varetas de bambu.
84 A IDÉIA DE CONFORTO

batida. O telhado de todas era de telhas vermelhas e ganhava


bela pátina do tempo.134
Gilberto Freyre reporta-se às casas do séc. XIX como
muito desconfortáveis. Comenta a obra do francês Vauthier,
procurando inovar ao propor soluções para a instituição da
alcova ou a camarinha sem luz nem ventilação é certo, mas
ao abrigo de olhos indiscretos e segura contra o perigo dos
raptos.135
Do Rio de Janeiro, observaram visitantes prussianos
inexistirem privadas em casa alguma; vasos noturnos fazem
o serviço, os quais são removidos pelas ruas menos construí-
das ou esvaziados em quintais e jardins pelos escravos. Aliás,
as cozinhas davam sempre para os quintais.136
Kátia Mattoso afirma que seja como for, dado o descon-
forto que reinava nas casas, o ofício de dona de casa era
espinhoso...Na precária sala de jantar a família passava o
tempo todo, as mulheres sentadas em esteira pelo chão, ou
em torno à mesa, cosendo, fazendo renda ou pontos de ma-
lha, bordando. Enquanto isto, os homens ficavam vagando
de sala em sala, ou encostados naquilo que suportasse seu
peso.
O mobiliário era pobre e escasso, mesmo em algumas
casas elegantes. Na sala, um sofá e umas poucas cadeiras,
tudo em simetria, e esteiras para sentar no chão nas casas
pobres.137 Mesinhas com imagens de santos. Um oratório
com santos do Porto.138 Pianos em Salvador, descritos como
asmáticos, tachos, harmoniosos, de todos os sons e feitios,
fazendo invejar o “abençoado Rio de 1817”. Espírito de
improviso, imitação superficial da Europa. Por exemplo, na
sala de jantar fazia as vezes de mesa larga taboa sobre dois

134
Kátia Queiroz Mattoso , op. cit.
135
Gilberto Freyre, Casas de residência no Brasil, Revista do Serviço Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, 7, Rio de Janeiro (1943), in Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional n°26 (1997).
136
T. von Leithold e L. von Rango, op. cit.
137
Ibid.
138
Oliveira Lima, op. cit.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 85

cavaletes. Algumas pessoas dormiam em camas, outros em


esteiras e travesseiros, nem sempre lençóis ou colchões, nun-
ca cobertores. Mosquiteiros. Baús e caixas de couros.139
Mello Leitão fala de pinturas de mau gosto, alguns dou-
rados parcimoniosos (...) papel barato importado de França
(...) Cômodas marchetadas de péssimo gosto. Não há nenhu-
ma diferença essencial entre o leito das criancinhas e o das
pessoas adultas, a não ser dimensão.140
Em Salvador os trabalhadores pobres tinham em geral
um ou dois catres, uma mesa, algumas cadeiras ou bancos,
um ou dois baús para guardar a roupa pessoal e os panos da
casa. O mobiliário só era de fato variado em casas muito
mais ricas.141 Em Curitiba, as casas mais despidas de ador-
nos. As paredes eram simplesmente caiadas e o mobiliário
das salas em que me recebiam constava apenas de uma mesa
e alguns bancos.142
A diferença climática explica, em parte, a diferente rela-
ção do proprietário com sua casa: não se fecha nela para pro-
curar conforto, pois talvez não o encontre. Mas é certo que a
formação brasileira se deu sobre valores diferentes daqueles
dos países europeus onde se cunhou a noção de conforto.
Aqui, a igreja condicionava e organizava a vida social. A
casa não parecia ter, na sociedade de forte orientação machis-
ta, a importância cultual atribuída às igrejas e prédios públi-
cos. É arguta a observação de Lindley de que, como em todas
as cidades católicas, as igrejas são os edifícios de mais rele-
vo, e aqueles aos quais foram dispensados o máximo cuidado
e os maiores gastos. Kátia Mattoso faz observação equiva-
lente com relação aos edifícios públicos. Alguém poderia
especular a predominância do catolicismo como uma expli-
cação para a pior qualidade das casas em relação àquelas da
Europa protestante.

139
C. de Mello Leitão, op. cit.
140
Ibid.
141
Kátia Queiroz Mattoso, op. cit.
142
Auguste de Saint-Hilaire, Viagem à Comarca de Curitiba, Brasiliana, 315
(1820).
86 A IDÉIA DE CONFORTO

No Brasil, a expressão conforto com significado similar


ao dos livros de Austen só será registrada nos livros de Aluí-
zio de Azevedo, já no século XX. É de Jean-Paul Sartre143 a
afirmação de que dar nomes aos objetos consiste em mover
eventos imediatos, irrefletidos e talvez até ignorados para o
plano de reflexão e da mente objetiva.
Dos primeiros anos da República até o Modernismo de
Brasília, foram poucas décadas de conforto como manifesta-
ção cultural, em comparação ao longo amadurecimento ocor-
rido na Europa.

Estados Unidos

Falamos agora do país onde o excesso de conforto vira


kitsch. No século XIX ocorre a ascensão de substancial par-
cela da burguesia a um nível de prosperidade nunca antes
visto. Sob influência masculina, as casas se tornaram locais
de demonstração de status. As pessoas tentavam tornar seus
ambientes agradáveis pelo acúmulo de objetos de que se
acreditava, por unanimidade de opinião, “de bom gosto”.
As condições para a emergência de conforto haviam se
completado: à existência de excedente econômico se associou
um avanço tecnológico e a moda. Russell Lynes144 descreve o
surgimento da produção em massa especializada na decora-
ção a partir de 1830: objetos para decorar a casa vieram em
rápida sucessão, cada um mais miraculoso que o outro. Em
1837, William Compton patenteou um tear visionário e, so-
mente sete anos mais tarde, a primeira máquina impressora
de papel de parede foi importada da Inglaterra. As pessoas
procuravam reproduções das obras de arte que iam sendo
difundidas nos museus e nas galerias, e isto não se limitava à
pintura: De repente, quase todos, ao invés de somente uns
poucos ricos e cultos, podiam comprar tapetes e cadeiras,
papéis de parede e materiais de cortina “de bom gosto”.
143
Apud W. Rybczynski, op. cit.
144
Russell Lynes, The Tastemakers: the Shaping of American Popular Taste, reed-
ição com novo posfácio, Dover Publications Inc., Nova Iorque (1980). Tradução do
autor.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 87

Eram não somente baratos, mas podiam ser obtidos em


grande variedade.
Junto aos móveis de baixo custo, proliferavam tecidos e
tapetes com estampas coloridas como em motivos de flora e
fauna: se a seriedade do design sofreu e a individualidade foi
perdida na enxurrada de produtos mecanizados...isto foi
compensado pelo benefício de que a arte, mesmo vulgar, foi
levada a uma multidão de consumidores, para quem a ele-
gância incipiente e antinatural dos primeiros bens industria-
lizados representou um primeiro passo no refinamento do
lar.
A popularização dos objetos de produção em massa cri-
ou o hábito da decoração, um negócio que atraiu predomi-
nantemente a atenção das mulheres. Nos anos 30, era comum
a mistura de sofás pesados de crina de cavalo, espelhos ela-
borados com molduras douradas, portraits de donzelas de
toucas, reluzentes sobre fundos escuros, densos como alca-
trão, e tapetes cobertos com tremendas flores em cores bri-
lhantes.145 O processo continuou até 1850, quando se iniciou
uma exploração comercial mais organizada do consumo da
decoração.
Já os homens, estes se interessavam pela aparência ex-
terna de suas casas. Novamente, yin e yang aparecem em
confronto. Uma casa apropriada para a maioria dos homens
nos anos 30 era um templo grego (modificado para o uso
doméstico) com finas colunas brancas e muitas vezes um
esplêndido frontão. Era somente uma questão de dinheiro
(abundante), terreno (barato) e um carpinteiro. Os arquitetos
eram um luxo que somente umas poucas pessoas podiam
pagar, enquanto havia muitos livros tais como Benjamin’s
House Carpenter e Shaw’s Civil Architecture nos quais
qualquer construtor inteligente podia encontrar tudo o que
precisava saber para produzir sua réplica de templo grego,
imponente ou modesto, com todos os ornamentos e detalhes
cabíveis.
145
A escritora inglesa Francis Trollope, tendo passado de 1827 a 1830 nos Estados
Unidos, criticava o ideal de igualdade americano e o associava à falta de bom gosto.
Em seu livro Domestic Manners of Americans, descreve uma enorme quantidade de
objetos, bibelots pretensamente preciosos nas salas de visitas das casas mais ricas.
88 A IDÉIA DE CONFORTO

Em parte, o clichê (usado até 1880) se deve ao portal dó-


rico desenhado pelo arquiteto Isaiah Rogers para o primeiro
de uma série de hotéis espetaculares: o Tremont House de
Boston (1829), que mudou a filosofia da hospedagem comer-
cial.
Ao menos na América, não mais se amontoariam hóspe-
des em camas móveis, ou dormindo no piso, ou se manteria
garçons que acumulavam a função de camareiros.146 O hotel
passaria a ser como um palácio para o povo, concretizado na
estrutura elegante, nos pisos em mosaico de mármore e nos
corredores ricamente acarpetados, nas salas de estar, de leitu-
ra, de senhoras e suas decorações no último gosto francês,
mas não somente: o tratamento dos hóspedes também era
algo jamais visto. Pela primeira vez, bacias e canecas eram
oferecidas dentro dos quartos, e o sabonete era gratuito (ape-
sar do mesmo pedaço ser deixado de hóspede para hóspede
até acabar). E as janelas tinham cortinas.
Depois do Tremont House vieram o St. Nicholas em
Nova Iorque (1853) e o Palace Hotel em São Francisco (por
volta de 1877). Esta última denominação, aliás, veio a ser
tomada emprestada por milhares de hotéis que se pretendiam
um mundo de sonhos para qualquer pessoa disposta a arcar
com o preço de um quarto. Lynes observa que depois de sen-
tir o gosto da riqueza, não teve fim o apetite dos americanos.
Estabeleceu-se uma preferência pelo luxo desproporcional ao
padrão de vida dos hóspedes, muitas vezes simples caixeiros
viajantes.
O paisagista Andrew Jackson Downing (1813 – 1852)
foi crítico contumaz dos “templos sem gosto” do Greek Revi-
val. Dizia que uma casa deve parecer-se com uma casa: seria
desonesto que se parecesse, antes, com um templo grego,
uma mentira estética e moral. Associava a beleza ao julga-
mento moral do proprietário. Mentor da criação do Central
146
Em H.G.Wells, A construção do mundo (original: The Work, Wealth and Happi-
ness of Mankind, Obra completa, V. 7, trad. de Anísio Teixeira, Cia. Editora Nacio-
nal (1956), há a menção de que na Rússia, pelos fins do século XIX, os hóspedes
ainda levavam para a hospedaria até a cama o chá e as provisões de boca. E assim
ainda seria (à época vivida pelo autor ) na maior parte da Índia.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 89

Park em Nova Iorque, foi no âmbito do movimento o prega-


dor de uma estética rural e moralista. Casas de pedras tinham
arcos e vitrais, colunas, varandas. Mas não era de um mora-
lismo ascético; também dizia que varandas, piazzas e bay-
windows, balcões, etc. são as verdades gerais mais valiosas
da arquitetura doméstica. Era o Gothic Revival.
O “gosto francês” de então já incluía rodapés cobertos
de figuras em ponto de agulha de cordeiros e coelhos dor-
mindo entre pilhas de flores, cadeiras de cerejeira entalhadas,
sofás estofados em veludo negro cintilante ou vermelho vivo,
papéis de parede floridos e paisagens românticas. Pelos can-
tos, um móvel com figuras de porcelana, conchas e cães da
china. Na prateleira da lareira, uma ninfa dourada tecida so-
bre um relógio ou um galho carregado de pássaros empalha-
dos sob uma campânula de vidro. Na sua “Life on Mississi-
pi”, Mark Twain menciona conchas com a oração do senhor
ou um portrait de George Washington esculpido, uma amos-
tra de quartzo da Califórnia, pontas de flechas indígenas,
borboletas alfinetadas numa prancha, e um locket contendo
um cacho de cabelo dos antepassados.
Downing considerava este empilhamento não somente
desconfortável e perturbador do espírito, mas uma ofensa
contra o “gosto correto”. Entretanto, a pretensa autenticida-
de do famoso paisagista era objeto de contestação. Ocorre
que tanto o Greek Revival quanto o Gothic Revival se reve-
lam manifestações de um romantismo superficial. Deram
origem a críticas severas contra o uso de ornamentos, como
demonstrações de falta de honestidade da arquitetura. À fren-
te estava o arquiteto e crítico John Ruskin, autor de As sete
lâmpadas da arquitetura.
Nas décadas finais do século XIX, nos interiores, come-
çou a difundir-se o Dutch Dining Room, o estilo holandês na
sala-de-jantar. O episódio é minuciosamente narrado por
Annette Stott.147 Menciona ter sido a sala de jantar um espaço
da dominação masculina: sobre os aparadores em nogueira
escura predominavam motivos de caça e pesca, cabeças de

147 Annette Stott, op. cit., tradução pelo autor.


90 A IDÉIA DE CONFORTO

veados, peixes empalhados e ainda pinturas alusivas. Eram os


homens quem, em pé, abriam o animal assado, o cortavam e
distribuíam a carne – simbolizando solenemente a matança. E
a divisão de papéis prosseguia. Após o jantar, sua esposa
conduzia as mulheres para fora da sala-de-jantar, deixando-
a livre para que os homens fumassem charutos e tomassem
licor – ritual de homem civilizado e prática inadequada para
a mulher moralmente responsável. É esta, aliás, a origem do
termo drawing room nos interiores ingleses e americanos,
abreviatura de withdrawing room, “sala para onde retirar-se”.
Delineava-se já a cisão percebida por Henry James: a mulher
americana (com suas ambições de lazer, cultura, graça, ins-
tintos sociais, ambições artísticas) e o homem americano
imerso na ferocidade do negócio, sem tempo para nada se-
não os mais sórdidos interesses, puramente comerciais, pro-
fissionais, democráticos e políticos.
A partir de 1870 mudou a hierarquia na sala de jantar: as
mulheres emergiram com tendo responsabilidade primária
pela decoração dos interiores domésticos. Foi neste movi-
mento que os estereótipos americanos dos Países Baixos
como civilizados e cultos casaram com a necessidade de
promover uma influência civilizatória nos Estados Unidos no
final do séc. XIX.
A evolução atingiu desde a classe trabalhadora até as
classes mais abastadas: decoração de paredes com moinhos
de vento em estêncil, tijolos azuis e brancos (chamados na
Holanda Delftware, por serem originários da cidade de
Delft), ou mobiliário arts and crafts feitos por imigrantes
holandeses em Holland, Michigan, ou ainda antiguidades
importadas. Na pintura a óleo, motivos dos mestres holande-
ses da Renascença: flores e frutos (tidos como favoráveis à
digestão) e mulheres holandesas ocupando dignamente seus
interiores, ensolarados e impecáveis. Segundo Stott, o efeito
foi duplo: aumentar a presença feminina nas casas america-
nas e reforçar certos valores da classe média: democracia,
limpeza, civilidade, ética no trabalho e vida familiar.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 91

Curiosa se torna, no contexto deste livro, a citação que a


autora faz de um mentor do estilo holandês, Embury:148 o
gênio da raça holandesa não lhe emprestou mais formalida-
de na construção do que na pompa da vida pública; não
encontramos na Holanda edifícios públicos ou privados com
tal caráter, a simplicidade holandesa não sabe ser majesto-
sa. Mas as casas. Paradoxalmente, ao se exaltar valores da
classe média de apelo às mulheres do meio rural e das vilas,
o desejo de mostrar refinamento cultural na sala de jantar
mostra que se almeja a elite. A decoração holandesa concili-
ava os valores de classe média e o gosto de classe alta.
Mesmo sem sofisticação, os nichos simbólicos como o
canto com armário, o relógio de parede e a porcelana decora-
tiva adquirem para os moradores um valor estimativo en-
quanto evocações do passado. Afinal, a tradição e a memória
são valores domésticos da classe média e influenciam o con-
forto no seu contexto psico-espiritual: faz bem olhar para as
próprias referências, mesmo sem contar com ar puro, brisa
fresca ou uma companhia agradável. E não há dúvida que o
relógio de parede é um integrante do ambiente físico, sonoro.
Aqui se evidencia a multidimensionalidade do conforto e a
relatividade da sua consideração limitada ao meramente am-
biental. No nível da transcendência, o ambiental remete às
origens do conforto: torna-se consolo.
Em 1885, o conceito de conforto já estava estabelecido,
e havia generalizada consciência dele. Foi quando ocorreu
um salto tecnológico que iria afetar significativamente sua
história: Thomas Edison (já famoso pelo invento do fonógra-
fo) desenvolveu e patenteou a lâmpada incandescente.

2.5 Descaso
A supressão da domesticidade na arte e arquitetura do
Modernismo foi detectada pelo filósofo Walter Benjamin,
para quem foi no início do século XIX que, “pela primeira
vez, o espaço de moradia foi distinguido do espaço de traba-

148
Aymar Embury, The Dutch Colonial House (New York: McBride, Nast, 1913),
apud Annette Stott, op. cit.
92 A IDÉIA DE CONFORTO

lho.” Este é um princípio da domesticidade, que ainda está


associada a outros valores, inclusive o foco na família. São
todos marcas definidoras da era moderna.
Numa abrangente compilação a respeito, Christopher
Reed formula a domesticidade como um fenômeno especifi-
camente moderno, produto da confluência das economias
capitalistas, irrompimentos na tecnologia, e noções iluminis-
tas de individualidade.149 Seria o contraponto do avant-garde
artístico, que surgia nas academias, ateliers e museus, e de-
morava décadas para conseguir alguma aceitação popular. O
próprio nome, de origem militar, significaria a marcha rumo
à glória nos campos de combate da cultura. Assim foi, por
exemplo, com as luminárias redondas de Körting & Mathie-
sen - hoje vulgarizadas nas luminárias baratas em globos
leitosos de plástico e suportes de alumínio - e as cadeiras
tubulares de Marcel Breuer (também muito disseminadas)
dentre tantos objetos do desenho.
Um marco inicial para a oposição entre Modernismo e
domesticidade ocorre já no século XIX: o ensaio de Charles
Baudelaire, The Painter of Modern Life, iniciado em 1859,
em que descreve o pintor como um flâneur. Flanar é termo
cuja tradução mais precisa seria um deslocar-se.150 O perso-
nagem padecia as horas que devia passar em casa, quando
podia estar fora, pintando as paisagens da grande cidade.151
A discussão de conforto no espaço arquitetônico ganhou
uma metáfora na pintura, na acusação feita em 1904 pelo
crítico Julius Meier-Graefe, citado por Reed, de que o critério
principal de valor na arte feita para as casas era o do “confor-
to”: A arte sob tais condições cessa de ser divina; ela não é
mais a presença encantadora...mas uma gentil pequena do-
na-de-casa que nos cerca de tenra atenção, incansável em
trazer o tipo de coisas que irá distrair gente cansada de um
dia de trabalho. A busca pela decoração (no sentido da deco-

149
Christopher Reed, (editor e co-autor), Not at Home: The Suppression of Domesti-
city in Modern Art and Architecture, Thames and Hudson, Londres (1996).
150
Key Imaguire Jr, Treze Limiares espaciais em Walter Benjamin, ensaio, UFPR
(2005)
151
Christopher Reed, op. cit.
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 93

ração de interiores) era considerada um impulso primitivo,


pouco refinado.
Frank Lloyd Wright praticava uma arquitetura de dentro
para fora: orgânica. Pregava a busca pela natureza das coisas.
Entretanto, numa fase posterior, chegou a renegar o início
“caseiro” de sua carreira.152
O doméstico – apenas por ser doméstico - era visto co-
mo kitsch. Ora, isto supera até mesmo aquela definição tão
sintética como abrangente que diz que kitsch é a citação.153 O
que não seria kitsch, então?
Le Corbusier manifestou-se contra a decoração, em fa-
vor da higiene: “estamos podres de arte confundida com o
respeito pela decoração.” E ainda: A arte não é coisa popu-
lar, ainda menos uma “galinha de luxo”. A arte não é um
alimento necessário exceto para as elites que devem se reco-
lher para poder dirigir. A arte é por essência altaneira.
Griselda Pollock define a época do Impressionismo co-
mo de “feminilidade”154 da casa – em especial nas salas de
jantar e sala de visitas, quartos, varandas, terraços e quintais.
Isto contrasta com os comentários, acima, a respeito dos Stu-
be na Alemanha e Suíça, de função masculina, de querer
exibir um status. Ainda, contrasta com as observações sobre
a literatura brasileira no século XIX, que deixou registros da
dominação, pelos homens, das salas de visitas e dos gabine-
tes. Um estudo da vila burguesa na obra completa de Macha-
do de Assis foi apresentado por Imaguire.155 Constata, por
exemplo, ser o gabinete local em que a virilidade é celebrada,
ou melhor, auto-celebrada, juntamente com o poder intelec-
tual e econômico. Segundo Pollock os homens apresentam a
casa como um espetáculo para ser testemunhado por uma
audiência de forasteiros, mais que “com uma certeza de
conhecimento da rotina e dos rituais diários” que caracteri-

152
Christopher Reed, op. cit., tradução do autor.
153
Key Imaguire Jr., revista Coisa Paralela, Vol. 2, Curitiba (2002).
154
Griselda Pollock, in Reed, op. cit.
155
Key Imaguire Jr. O espaço burguês; arquitetura eclética em Machado de Assis,
tese de doutorado, Universidade Federal do Paraná (1998).
94 A IDÉIA DE CONFORTO

zam a mulher. Esta afirmação coaduna, ainda, com a narrati-


va das salas de jantar holandesas nos Estados Unidos.
Um exemplo de casa antológica do Modernismo que
avança contra preceitos de conforto é de Mies van der Rohe:
a famosa vila Farnsworth, batizada glass house (casa de vi-
dro) e apreciada em ilustrações arquitetônicas que realçam
seu caráter leve e anguloso, contrastando com as folhas, ora
verdes, ora douradas do bosque de árvores caducas ao redor.
Menos conhecido, entretanto, é o relato de sua proprietária,
de como se ressentia, naquela casa, da falta de privacidade.
Marshall Berman156 explora o pânico de Dostoiewsky ao
se imaginar morando no Palácio de Cristal – construção gi-
gantesca inaugurada em 1851 no Hyde Park, Londres, para a
Great Exhibition, depois transferida para Sydenham. Este
célebre edifício foi consumido por um incêndio em 1936.
Reed cita novamente Benjamin para lembrar como, ao
comparar as casas da década de 1880 com as “casas de vidro”
modernistas, o filósofo nota o modo como os moradores dei-
xavam suas pistas (Spur) em cada mancha (Fleck) da casa
tradicional.157 Nesta, existia uma relação orgânica, os utensí-
lios como extensões do corpo, a casa como um ser vivo.
Em seu livro Por uma arquitetura, Le Corbusier ressalta
que os arquitetos, responsáveis pela estética das edificações,
perderam o sentido da forma; enquanto isto, os engenheiros
trabalhando com formas puras e relações matemáticas, estão
mais próximos da beleza: Operando com o cálculo, os enge-
nheiros usam formas geométricas, que satisfazem nossos
olhos pela geometria e nosso espírito pela matemática; suas
obras estão no caminho da grande arte. Le Corbusier afirma
que engenheiros são viris, enquanto que os arquitetos, falan-
tes ou lúgubres.158 Ao falar do trabalho do campo, mostra que

156
Marshall Berman. Tudo que é sólido desmancha no ar, a aventura da moderni-
dade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. Key Imaguire Jr, comunicação
pessoal (2004).
157
Christopher Reed, op. cit.
158
Le Corbusier, Por uma arquitetura, trad. Brasileira, 4a. edição, Perspectiva, São
Paulo (1989).
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 95

nele também há virilidade: não somente entre os engenheiros,


banqueiros e industriais – que admirava.
E aqui vale a pena deter o olhar sobre casas de campo-
neses. Uma casa tradicional nas montanhas da Suíça guarda,
apesar da diferença do clima e da etnia, algo em comum com
uma casa de agricultores de origem polonesa dentre as que se
espalham pelo sul do Brasil. Ambas são construções que não
materializam ideais refinados, mas valores tradicionais e
familiares. Refletem a luta pela sobrevivência – uma luta
diária, em que as marcas nos pisos, paredes e portas vão se
superpondo a outras já ancestrais, formas mais sóbrias de
souvenir que os retratos em molduras douradas. É uma estéti-
ca do mínimo, existente muito antes do glass house: realça o
local, o simples, o robusto. Desconhece algum culto das apa-
rências, mesmo porque o excedente econômico não permitia
nem alimentar, nem realizar fantasias utópicas. Ninguém
menos que Adolf Loos - o arquiteto modernista e crítico de
arquitetura que afirmou que ornamento é crime – reconheceu
que havia, sim, um valor na arquitetura tradicional.159 É ver-
dade que sua crítica se dirigia à burguesia vienense que, em
especial nas fachadas da Ringstrasse, exibia uma nobreza
inexistente, uma espécie de Potemkin austríaca.160 Loos era
implacável com os arquitetos que feriam a harmonia das
construções camponesas; estas, sim, eram obras de um redu-
cionismo autêntico, resultante das circunstâncias, verdadeira
engenharia nascente. A arquitetura dos camponeses, seja nas
suas terras de origem, seja nos países para onde imigram,
parece não ser afetada pela vaidade dos modismos. Tem mais
elementos à prova de tempo do que tudo aquilo que se cons-
trói na cidade.
Le Corbusier, contemporâneo seu, é aqui o mais radical.
Não demonstra qualquer condescendência e condena a mitifi-
cação da casa, objeto de uma relação sentimental que a man-

159
Joseph Rykwert, A Casa de Adão no Paraíso, ed. Perspectiva, São Paulo (2002).
160
Loos se referia à cidade de Potemkin, na Criméia, onde um general, tendo
conquistado a região, teria procurado ludibriar a imperatriz Catarina II, criando um
cenário de precoce prosperidade econômica.
96 A IDÉIA DE CONFORTO

tém intocada, refratária à técnica e a própria razão: religiões


são fundadas sobre dogmas, os dogmas não mudam; as civi-
lizações mudam; as religiões desmoronam apodrecidas. As
casas não mudaram. A religião das casas permanece idênti-
ca há séculos. A casa desabará.
Entretanto, muitos seguidores de Le Corbusier e dos
preceitos da Bauhaus, por mais que busquem funcionalidade,
adotam uma atitude apolínea, deixando-se encantar pela esté-
tica da lógica e do funcionalismo, mas somente pela sua esté-
tica - ou, como observaram Robert Venturi e Denise Scott
Brown, pelo simbolismo do não-simbolismo:161 Conferindo
importância primordial à função na arquitetura, os funciona-
listas tomaram a definição vitruviana segundo a qual ‘soli-
dez, utilidade e beleza fazem a arquitetura’ e torceram-na
para ‘solidez e utilidade fazem a beleza da arquitetura’.
Le Corbusier também representa esta atitude apolínea,
praticamente limitando o efeito artístico da arquitetura ao
simplesmente visual. Para ele, os elementos arquiteturais são
a luz e a sombra, a parede e o espaço. Com isto, relaciona
somente um dos sentidos – a visão - à fundamental dualidade
entre a matéria (a parede) e sua ausência (o espaço): a arqui-
tetura existe quando há emoção poética. A arquitetura é
assunto de plástica. A plástica é o que vemos e o que medi-
mos com os olhos. O restante seriam meras variáveis a man-
ter sob controle, o controle do desconforto. O não-visual do
ambiente é, na melhor das hipóteses, neutro: É evidente que
se o telhado escorregasse, se a calefação não funcionasse, se
as paredes rachassem, as alegrias da arquitetura seriam
fortemente atrapalhadas; da mesma forma, um senhor que
escutasse uma sinfonia sentado numa almofada de alfinetes
ou na corrente de ar de uma porta. (...)
Aparentemente, Le Corbusier não esperava do conforto
uma capacidade de promover a transcendência da dor de que
se fala, hoje, na enfermagem. E o movimento modernista
parecia estar muito aquém disto. Argumenta-se que a Bau-
haus teria sido responsável pelo retrocesso do conforto, do

161
Venturi &Scott Brown, Functionalism, yes, but, Revista a+u n°47, pp.33 (1974)
apud João Rodolfo Stroeter, Arquitetura & Teorias, Nobel, São Paulo (1986).
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 97

prazer e da imaginação criativa, porque descuidou completa-


mente dos consumidores, concentrando seus esforços na
racionalização da produção de objetos e edifícios e não nos
seus efeitos ambientais sobre as pessoas. 162 Interessava-se
por exemplo em como produzir eficientemente uma bela
luminária, mas ignorava o efeito produzido no ambiente.
Algo semelhante pode ser dito de seus edifícios.
Outro contemporâneo ainda, o arquiteto Richard Neu-
163
tra , era de uma opinião diferente. Reconhecendo na visão
humana o mais desenvolvido dos sentidos, de maior influên-
cia sobre a consciência, propunha que devemos rejeitar a
noção de que somente a percepção dos sentidos fácil e cons-
cientemente registrados é que conta. Para Neutra, são raras
as influências ambientais cuja percepção consciente é garan-
tida; entretanto, podem tornar-se particularmente pernicio-
sas se faltar a consciência para corrigi-las, ou neutralizá-
las. Daí devermos nos interessar por todos os aspectos não-
visuais do ambiente arquitetônico e do design, mesmo aque-
les que não ocupam o primeiro plano de nossa percepção. E
fundamenta isto uma concepção de arte mais dionisíaca que
apolínea. A arte é a poesia: a emoção dos sentidos, a alegria
do espírito que mede e aprecia, o reconhecimento de um
princípio axial que afeta o fundo do nosso ser.
Como advertência ao desequilíbrio pró-racionalista do
Modernismo, Ariano Suassuna164 contrapõe Le Corbusier a
Antonio Gaudi. Este teria preferido o caminho da arquitetura
orgânica e ornamental. Suassuna lhe ressalta a arquitetura
católica, épica, espanhola e poética que difere bastante da
cartesiana, suíça e meio calvinista de Le Corbusier.165 E
termina advertindo contra o excessivo sectarismo da arquite-
tura contemporânea, por um lado, recusando, como feias,
grandes obras da arquitetura de todos os tempos, o que faz

162
Michael Brawn, apud Domingos Henrique Bongestabs, op.cit.
163
Richard Neutra, Survival through Design, Oxford University Press, Nova Iorque
(1954).
164
Ariano Suassuna, Iniciação à Estética, UFPE, Recife (1996).
165
Antonio Gaudi y Cornet (1852 – 1926), arquiteto espanhol, construtor da igreja
da Sagrada Família, em Barcelona.
98 A IDÉIA DE CONFORTO

por mero espírito de partido; e, por outro lado, sacrificando,


ao mesmo tempo, o valor estético e a utilidade do edifício,
em nome dessa “Estética da nudez”, o que tem tendido a
transformar a arquitetura de nossos dias numa espécie de
Escultura, abstrata de grandes proporções, com prejuízo
para a arquitetura e para a Escultura.
Enfim, o historiador Paolo Portoghese,166 numa revisão
sobre o final do Modernismo, levanta contra o mesmo um
argumento eminentemente técnico: o mau desempenho ener-
gético de sua arquitetura. Se nos seus primórdios do movi-
mento havia uma proposta consciente do desempenho da
edificação enquanto abrigo, no seguimento propostas visuais
se tornaram cânones e o conteúdo – o alcance pretendido da
funcionalidade - foi esvaziado. Hoje, é fácil reconhecer o
Estilo Internacional nas diversas latitudes em que aparece;
difícil é justificá-lo.
Quando estas páginas são escritas, já há tempo que o ge-
ometrismo modernista, aquartelado nas grandes lojas de de-
sign, invade os interiores da casa. Isto, algumas décadas de-
pois de ter escandalizado nas exposições. Isto reforça a idéia
do início deste capítulo sobre os ciclos do dionisíaco e do
apolíneo. O grande público parece ter assimilado o Moder-
nismo, revivendo seus móveis e objetos pessoais em réplicas
e imitações, e algo aqui se percebe paradoxal: os interiores
das verdadeiras máquinas de morar – os automóveis – não
cabem na noção modernista de clean (limpo). São estofados,
em puro couro, com detalhes cintilantes, incrustados de peças
em madeira nobre, madrepérola, couro de tartaruga, insígnias
tradicionais, e um barroco painel de instrumentos. Estes au-
tomóveis são, por dentro, obras dionisíacas, na mesma época
em que os interiores das casas aprendem a se despojar das
curvas, do estofamento macio e dos ornamentos.
Seria bizarra uma sala de visitas constituída de poltronas
extraídas de um automóvel – por luxuosas que fossem. Entre-
tanto, nada deveriam em comodidade aos móveis modernis-
tas. São poltronas anatômicas e reguláveis em pelo menos

166
Paolo Portoghese, Depois da arquitetura moderna, Martins Fontes, São Paulo
(1998).
INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 99

dois pontos. Têm texturas convidativas ao toque e – por isto


mesmo - fáceis de limpar. E assim o são as texturas das late-
rais, do painel e da capota. É que no automóvel a tecnologia é
muito melhor aproveitada que nas construções. Utiliza-se
iluminação natural, iluminação de tarefa (luz alta, luz baixa, e
a luz interna de leitura), iluminação sinalizadora (pisca lateral
e pisca-alerta, luz de freio e de ré, faróis de neblina), ilumi-
nação do painel do motorista, e proteção contra o ofuscamen-
to do céu através de aplicação em degradê no pára-brisas. As
janelas têm limpador mecânico, desembaçador elétrico e por
fluxo de ar. A ventilação cruzada, natural ou forçada, utiliza
direcionadores para atingir os pés e o rosto; há ar frio e ar
quente, e ainda o desumidificador. Caixas acústicas são posi-
cionadas de modo a se obter um claro efeito estereofônico,
num recinto refinadamente isolado dos ruídos externos. Ins-
trumento yang por excelência, o automóvel revela-
contaminado pela lógica da casa. De viril, basta o motor. O
interior se assume feminino. Comodidade, adequação e ex-
pressividade se combinam de modo surpreendentemente mais
sincero no automóvel que na casa.

2.6 Conforto ambiental como obrigação bu-


rocrática
A conclusão deste encadeamento de países e épocas po-
de ser resumida numa sentença: o conforto de certa forma
existiu desde a Idade Média; tornou-se algo consciente com a
ascensão da burguesia; atingiu o exagero no final do século
XIX e, no Modernismo, foi reduzido ao seu contexto ambien-
tal (às custas dos contextos corporal, sócio-cultural e psico-
espiritual) e limitado aos níveis de alívio e liberdade, ou seja,
a superação do desconforto (isto, às custas do nível transcen-
dental).
Se Le Corbusier não propôs, certamente profetizou a di-
visão de trabalho entre engenheiros e arquitetos que perdura
até hoje, ao citar Larousse, para quem a arte seria a aplica-
ção dos conhecimentos para a realização de uma concepção.
Concluiu que ora, hoje são os engenheiros que conhecem,
que conhecem a maneira de sustentar, de aquecer, de venti-
100 A IDÉIA DE CONFORTO

lar, de iluminar. Entretanto, deve ter pressuposto engenheiros


de uma ampla formação humanística; diante da especializa-
ção limitadora que de fato veio, certamente errou. E previu,
ainda, que não teremos mais dinheiro para construir monu-
mentos históricos.
Meio século depois, a previsão se mostra parcialmente
correta. Houve uma derrocada do Estado de bem-estar social,
modelo de prosperidade socialmente justa em países como a
Alemanha ou o Canadá. No início do século XXI, fala-se
mesmo de uma falência do próprio Estado. As parcerias com
o setor privado são fundamentais. O problema não parece ser
exatamente falta de dinheiro, mas de um espírito criador de
monumentos históricos. A mensagem funcionalista que ou-
trora, como reação, tinha seu efeito poético, hoje parece ser-
vir cada vez mais ao capital, abolidas muitas fronteiras da
economia. Em diferentes países, as prateleiras vão se povo-
ando dos mesmos produtos, e os edifícios vão se asseme-
lhando.
Há um risco de os parâmetros de conforto servirem para
que tudo fique ainda mais igual. Quando – caso extremo – o
conforto térmico é aferido em condições de laboratório, com
assepsia geral, paredes brancas, piso branco, luz fria, indiví-
duos recrutados dentre aqueles que dispõem de tempo em
excesso para tanto, surgem dúvidas. Quando, em nossa vida,
conseguimos reunir tais condições? Quem nunca ferveu de
raiva, nunca gelou de medo, nem suou de nervosismo? Seme-
lhantes interrogações pairam sobre as verdades oficiais em
matéria de ar, luz, som e toque.
A especialidade chamada conforto ambiental nasceu de-
ficiente. Nas universidades, sua separação do projeto e da
teoria da arquitetura é prejudicial. É urgente que se busque
atividades de educação e pesquisa da comodidade e da ade-
quação como valores relacionados a uma transcendência, que
acontece na estética da arquitetura.
“Não são os acontecimentos que provocam emoções...são as
emoções que provocam acontecimentos”. Jean-Luc Godard
em Elogio ao amor

Figura 4 - Residências geminadas em Sabará (MG)


3 - A expressividade não-visual do
espaço

3.1 Os sentidos
A escola nos ensinou que temos cinco sentidos - vi-
são, audição, paladar, olfato e tato. Além destes, tradicionais,
a ciência hoje reconhece a existência de vários outros. Asso-
ciados ao tato, estão os sentidos da pressão, da dor, de frio e
de calor. Há ainda a propriocepção, que é o sentido que loca-
liza no espaço tridimensional as partes do próprio corpo. E
outro sentido funciona associado à audição: o equilíbrio, que
utiliza o labirinto, o órgão que informa o que é em cima e o
que é embaixo, estejamos de pé ou deitados. E existem ainda
outros sentidos, menos conhecidos.
Alguns sentidos são complexos, produzindo efeitos
cuja explicação não é trivial. Por exemplo, ao assistir em
vídeo a um avião fazendo piruetas, podemos sentir tontura.
Assim também, num ambiente cujas paredes na sua metade
inferior sejam brancas e, no restante, negras, recebemos uma
104 A IDÉIA DE CONFORTO

informação lumínica que contradiz o labirinto (pois normal-


mente a luz vem do alto). E a natureza nos apresenta exem-
plos de percepção sensorial que sequer imaginamos. No es-
curo, a coruja enxerga com precisão, e os morcegos se guiam
pelo ultra-som. Os cães cheiram e ouvem bem melhor que as
pessoas. O porco tem um olfato tão sensível que, treinado, é
capaz de encontrar no subsolo trufas (cogumelos muito apre-
ciados na culinária francesa, com patê de fígado de ganso).
Peixes, em suas linhas laterais, recebem informação sobre a
vibração na água, e as enguias do Amazonas recebem e envi-
am sinais elétricos. Burros não atravessam pontes inseguras.
Aos cães e gatos se atribui outras formas inexplicáveis de
premonição.
Mesmo nos detendo nos cinco sentidos tradicionais, en-
contramos casos espantosos de sensibilidade hiperrefinada:167
a visão de um atirador; o paladar de um somelier; o ouvido
de um regente de orquestra, e a propriocepção de um violinis-
ta (que coloca os dedos de sua mão esquerda sobre cordas
sem contar com as marcas da escala, como ocorre na guitar-
ra). Ao mesmo tempo, estes mesmos cinco sentidos revelam
muitas falhas. A visão é inferior a qualquer câmara fotográfi-
ca em sua capacidade de focalização: só consegue abranger
com precisão o cone central, muito estreito. A sensação de
cor não é absoluta, mas registra o contraste (para comprovar,
basta observarmos por meio minuto, os olhos fixos, um re-
tângulo colorido sobre uma parede branca bem iluminada; ao
fechar os olhos por instantes e abri-los sobre uma parede
branca, enxergaremos nela duas cores com certa nitidez). O
ouvido musical da maioria das pessoas, inclusive os músicos
treinados, é um ouvido relativo: sabe identificar intervalos
entre as notas, mas dificilmente reconhece o tom da nota
sozinha. E diversos efeitos de ilusão de ótica nos enganam o
tempo todo.
Trata-se não de falhas, mas de fatores de realce, com
que os sentidos tentam manipular nossa atenção. É comum
que deformem a realidade para que possamos reagir em tem-
po. Isto se torna claro quando a percepção sensorial é afetada

167
Alfred Maelicke, op. cit.
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 105

por emoções intensas. A aparência de um prato bem decora-


do fascina, mas os mesmos alimentos em quantidades enor-
mes ou associados a elementos amedrontadores no ambiente
podem afastar nosso apetite. O erro consiste em esperar dos
sentidos um comportamento linear, previsível.
Se os fatos nos estimulam através dos sentidos, con-
trapõem-se experiências e expectativas provindas dos instin-
tos, da memória, das necessidades e dos valores pessoais.
Instintos são reações inatas. Nós simplesmente as
temos, e o fato de tê-los mantido ao longo de milhares de
gerações comprova seu valor – outras pessoas que não os
tinham podem não ter sobrevivido até a idade de procriar. E
afetam a maneira como nos relacionamos com outras pesso-
as. Segundo Konrad Lorenz,168 pesquisador da etologia, nos-
so comportamento social é dominado por uma herança pri-
mordial, constituída por padrões de ação e reação próprios
de nossa espécie; esses padrões são indubitavelmente muitís-
simo mais antigos do que as realizações especificamente
ligadas à inteligência, sediadas no neo-córtex – filogeneti-
camente a parte caçula do nosso cérebro.
A memória é alimentada em processo praticamente
contínuo, e seus registros podem vir à tona a partir sensações:
de sons, calores e, de modo muito especial, aromas.
As necessidades sofrem uma variação temporal que é
mais previsível. Entretanto, o contexto pode ser elaborada-
mente específico. Numa viagem de ônibus, podemos ouvir
música no fone de ouvidos enquanto observando a paisagem;
por exemplo, a trilha sonora de um filme de terror. O efeito
da música é essencialmente diferente daquele quando, à noi-
te, assistimos o filme.
Já os valores variam no longo prazo, sofrendo infle-
xões causadas por choques externos, ou quando fazemos
achados dentro da própria experiência.
Tudo isto influencia o efeito dos fatos percebidos pe-
los sentidos.
168
Konrad Lorenz, A demolição do homem (Der Abbau des Menschlichen), Muni-
que (1983).
106 A IDÉIA DE CONFORTO

3.2 As emoções: aspectos gerais


Um visitante percorre todo o Museu Real em Amsterdã,
com seu numeroso acervo de mestres renascentistas, até de-
parar com a obra mais esperada: a Ronda de Rembrandt.169 A
pintura, conhecida em tantas reproduções em diferentes ta-
manhos e cores, causa surpresa quando encontrada ao vivo,
pela enormidade do original, pelos tons verdadeiros, e cada
detalhe passa a ser percebido com muito destaque. O coração
do visitante acelera. É um momento especial.
O que é uma emoção?
Na Grécia antiga, para Platão, os sentimentos (ou emo-
ções) seriam como cavalos selvagens que deveriam ser do-
mados pelo pensamento (ou intelecto), e a teologia cristã
associou por muito tempo emoções ao pecado e à tentação.
Para seu discípulo Aristóteles, a emoção era uma forma
mais ou menos inteligente de conceber certa situação, domi-
nada por um desejo. No caso da emoção de cólera, o desejo é
de vingança; já no caso da emoção do amor, o desejo é de
abraçar a pessoa amada.
No final do século XIX, o filósofo e psicólogo america-
no William James lançou uma teoria que ganhou notoriedade
e chegou a rivalizar com aquela de Aristóteles. Para James,
emoção é a reação fisiológica a um sentimento.
Grande parte do debate moderno se dá entre estas duas
últimas teorias. De um lado, parece indubitável o caráter de
reação fisiológica das emoções. Do outro, revela-se que estas
possuem peculiar inteligência: no calor do momento, conden-
samos uma decisão perspicaz e apropriada, diferindo das
tranqüilas, ponderadas considerações da razão. Portanto, uma
emoção teria um componente fisiológico e outro de conheci-
mento.
Mais recentemente, as emoções mereceram um estudo
criterioso. Konrad Lorenz afirma que, por suas características
subjetivas, os sentimentos (ou emoções) mal podem ser defi-
nidos através de palavras; podem, todavia, ser compreendi-
169
Rembrandt van Rijn (1606 - 1669), pintor holandês da época barroca.
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 107

dos por meio da pesquisa experimental, analisando-se aque-


las situações de estímulos externos em que aparecem. As
emoções passaram a ser reconhecidas, antes, como uma ma-
nifestação da inteligência.
Calhoun e Solomon se propuseram a rever com abran-
gência o conceito de emoção.170 Conseguiram sintetizá-lo em
cinco teorias, cada uma sublinhando um diferente componen-
te da emoção: sensações, conduta, fisiologia, juízo de valor e
conhecimento.
Para as teorias das sensações, as emoções constituem
acontecimentos inevitáveis. Damo-nos conta delas tão rapi-
damente e tão passivamente como acontece com as sensa-
ções. As emoções têm um caráter inconfundível, localizado
no tempo, e às vezes dentro do próprio corpo. Todavia, não
dependem de fatores físicos (David Hume – Primeira Parte).
São sensações não-físicas.
Para a teoria fisiológica, também, as emoções são inevi-
táveis. James, o principal autor, considera emoções tão-
somente as que causam transtornos fisiológicos; exclui aque-
las que Hume designa emoções leves (como o encanto estéti-
co). Tampouco considera a existência das emoções disposici-
onais, que não dependem de fatos: por exemplo, o amor por
um parceiro, ou o temor de um risco potencial.
A terceira teoria é a da conduta. Admite que as emoções
se revelam não necessariamente em sentimentos, mas em
condutas, as condutas emocionais. São condutas ora involun-
tárias (como suspirar de alívio), ora intencionais (como abra-
çar alguém). A abordagem é facilmente justificada se nos
considerarmos capazes de constatar e identificar condutas
emocionais noutra pessoa (por exemplo, a cara de culpa),
mesmo que ela nem esteja consciente disto (por exemplo,
falando tanto de alguém que desperte a suspeita de que tenha
se apaixonado). Ocorre que as emoções têm um componente
público: se eu já souber que meu chefe está zangado comigo,

170
Cheshire Calhoun & Robert C. Solomon (organizadores), ¿Que es una emoción?
Lecturas clásicas de psicología filosófica, trad. do original por Mariluz Caso, 380
pp., Biblioteca de Psicología y Psicoanálisis, Fondo de Cultura Económica, México
(1996).
108 A IDÉIA DE CONFORTO

nada preciso inferir. Mostram-se aqui efeitos culturais: por


exemplo, ajoelhar-se por reverência. Pode existir, antes que
uma conduta propriamente, a disposição a ela: a propensão
(que não se confunde com vontade) a gritar de raiva.
Darwin171 foi o primeiro autor relevante desta teoria ao
publicar The Expression of Emotions in Man and Animals,
onde explicou a utilidade da conduta emocional para a sobre-
vivência através de três princípios. O princípio dos hábitos
úteis associados estabelece que há condutas que são úteis
diante das circunstâncias. Por exemplo, a conduta do cão
dobrar para trás as orelhas de medo – prevenindo que sejam
arrancadas numa briga - podendo tornar-se habituais e, fi-
nalmente, inatas (Darwin aceitou a teoria de Lamarck,172 hoje
desacreditada, da transmissão genética de hábitos). O princí-
pio da antítese estabelece que alguns hábitos surgem sem
propósito, mas como antítese de outros. O cão abana a cauda
sem utilidade, mas para opor-se à cauda ereta de um cão co-
lérico. E o princípio da ação direta do sistema nervoso exci-
tado sobre o corpo estabelece que algumas mudanças fisioló-
gicas como empalidecer ou enrubecer para nada servem.
A quarta teoria é a do juízo de valor, ou axiológica, e
supõe que por detrás das emoções existem valores em jogo.
Há mesmo teorias que igualam (ao menos em parte) as emo-
ções a juízos de valor. Para Sartre e Solomon, as emoções
são ou se parecem com juízos de valor ou crenças não mani-
festos: a melancolia, com uma crença de que nada vale a
pena. Para outros (Hutcheson e Scheler), as emoções são
percepções de valor análogas às percepções sensoriais das
cores e sons. Ao desfrutar de uma pintura, “vemos” que é
bela. Percebemos valor e nos emocionamos. Hume e Brenta-
no dizem que as emoções são sensações agradáveis ou desa-
gradáveis, ou atitudes pró ou contra, sobre as quais formamos
nossas crenças de valor. Ao admirarmos o caráter de alguma
pessoa, consideramos que é bom.

171
Charles Darwin (1809 - 1882), biólogo inglês, autor da Origem das espécies.
172
Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet de Lamarck (1744 – 1829), naturalista
francês cuja obra foi muito extensa.
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 109

A quinta e última teoria é a do conhecimento, sustentada


por Brentano, Scheler, Sartre e Solomon. Apregoa que as
emoções estão dirigidas intencionalmente às coisas do mun-
do; são uma forma de estar consciente das coisas do mundo.
O orgulho de um feito – como de quem faz o projeto de um
edifício e o vê construído - é uma forma de estar consciente
do mesmo (não é exclusiva, pois há a recordação, a imagina-
ção ou o reconhecimento).
Em relação a estas cinco teorias, sem compromisso com
uma delas em especial, algumas observações devem ser feitas
no escopo deste livro.
Primeiro, que as sensações funcionam como chaves de
memória. São como as orelhas de um fichário, por onde pu-
xamos da memória os eventos passados. Encontrar uma pes-
soa, topar com determinado objeto, achar-se numa situação
ou ambiente são experiências que registramos melhor quando
acompanhadas de sensações; estas fazem-nos lembrar de
pensamentos, e também de emoções.
Depois, que as emoções ocorrem simultâneas aos pen-
samentos num nível mais primitivo – o sistema límbico. São
como turbilhões hormonais que alteram as sensações corpo-
rais, causando calor, tremor, arrepios. De certo modo, subli-
nham as idéias e dão um tempero à decisão racionalmente
fundamentada: desde a motivação para a tomada de atitudes
até um reforço à idéia de deixar tudo como está. Quem
aprende a esquiar na neve tem dificuldade em manter o peso
do corpo para a frente, como que tendendo a cair. Mas se não
o fizer, mal conseguirá guiar os esquis. Instrumentistas musi-
cais, como os pianistas ou violinistas, em passagens rápidas e
difíceis, tendem a retesar os músculos dos braços e até mes-
mo do restante do corpo; esta reação é inata. Entretanto, se
não relaxarem, abstraindo do eminente perigo (o perigo de
errar em público) não conseguirão tocar com clareza. Por
mais que compreendamos uma situação que nos contraria, ela
continua a nos abalar. Apesar dos sistemas cognitivo e emo-
cional se comunicarem de modo bi-direcional, existem mais
conexões saindo dos centros emocionais para os cognitivos
do que no sentido contrário. Isto sugere a força que têm as
emoções em relação ao pensamento. As emoções podem
110 A IDÉIA DE CONFORTO

facilmente apagar eventos materiais da consciência, mas os


pensamentos dificilmente deslocam emoções. As emoções
podem atuar defasadas do pensamento; entretanto, se forem
colocadas em fase com os mesmos, o racional e o emocional
harmonizados, existe um efeito de auto-convencimento que
pode, por exemplo, aprimorar processos de memorização e
aprendizado.173 Como uma conclusão, podemos explicar as
emoções como fenômenos mentais importantes que comple-
mentam a percepção da razão. Se a razão sinaliza para os
limites dos valores morais, estéticos e religiosos, para quem
nem chegamos próximo, as emoções surgem quando esbar-
ramos neles, como a consciência física de sua presença.
Resta esclarecer se o ambiente construído tem influência
sobre as emoções, se faz sentido, primeiro, considerar-se uma
intencionalidade em emoções e, segundo, se esta intenciona-
lidade pode seguir alguma linguagem, de modo a alcançar
eficácia universal, afetando um público mais ou menos indis-
tinto.
Emoções podem surgir de forma acidental. É o caso da-
quelas associadas à experiência da natureza: animais, paisa-
gens, fenômenos meteorológicos. Encontramos alguém e nos
surpreendemos; perdemos algum objeto e nos entristecemos;
vemos uma coisa bela e a desejamos. Alguém ainda pode,
sem querer, provocar-nos emoções. É o exemplo de alguém
que aparece, súbito, e nos surpreende concentrados. O que
importa aqui é afirmar que não precisamos da intencionalida-
de de ninguém para nos emocionar.
Certas emoções são causadas por uma circunstância pes-
soal. Encontrar um desconhecido cujos olhos, ou cuja voz se
pareça com a de alguém que lá no passado nos tenha marca-
do. A visita a um local que faça lembrar a infância, tal como
uma casa ou escola. A releitura de uma carta guardada por
muitos anos. São experiências capazes de abalar as pessoas
mais calculistas. E existem também emoções causadas por
fatores do inconsciente: é o caso dos sonhos que nos fazem
acordar e passar muito tempo refletindo.

173
www.heartmath.org/research/science-of-the-heart/soh_6.html
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 111

Finalmente, emoções que resultam da criação humana, e


que têm como alvo todas as pessoas. Assim são as emoções
da arte. Afetam-nos de forma original, intencional (tanto da
parte do autor, como do receptor), e por ação externa ao cor-
po; atingem certa autonomia, remetem a visões que se perpe-
tuam através das fronteiras, e apesar dos anos. Conseguem
uma expressividade universal, concreta e até passível de re-
produção.
Konrad Lorenz fala de um grande número de sentimen-
tos qualitativamente inconfundíveis que são caracteristica-
mente humanos, não-individuais, mas genericamente huma-
nos, isto é, arraigados na massa hereditária do homem.
Afirma que fenômenos ou qualidades vivenciados não são
definíveis; há, porém, quem saiba exprimir também o indizí-
vel: é o artista. E explica: o poeta só pode reproduzir o que é
vivido por seus personagens através de imagens. O que ele
visualiza para nós, e principalmente o seu instrumento para
fazer-nos compartilhar dos seus sentimentos, é a descrição
de uma situação humana em que os sentimentos correspon-
dentes vêm naturalmente à tona.
Na prática, a comunicação em arte pressupõe que o pú-
blico consumidor receba a mensagem. É necessária da parte
dele fluência no canal sensorial utilizado. Por exemplo, deve
saber quanto tempo demora um concerto; que atitude é ne-
cessária durante a execução. Deve estar preparado para des-
frutar um bom filme no cinema, sem esperar do mesmo uma
pulsação televisiva. As formas de arte – música, pintura,
escultura, literatura, dança, teatro e cinema - contêm conven-
ções, algumas permanentes, outras mais sujeitas a condicio-
nantes sociais de cada época. Existem diversas definições de
arte, e algumas delas reconhecem que tudo são, no fundo,
convenções sociais estabelecidas pelos poderosos. Para ou-
tras, a arte não recebe esta influência.
Mas é certo que entre o acidental da vida e aquilo hege-
monicamente aceito como arte, disputando a atenção das
galerias e museus, existem muitas possibilidades de nos
emocionarmos. Isto ocorre no espaço arquitetônico, mesmo
que se trate de edificações feias – adaptadas, sem autor, en-
fim, não reconhecidas como arte.
112 A IDÉIA DE CONFORTO

Não vivemos dentro de obras de arte e nem fazemos par-


te delas. Entretanto, interagimos emocionalmente com o am-
biente construído através dos sentidos da visão, do tato, do
calor, do olfato e da audição. Nesta interação, oscilamos en-
tre a dor e a neutralidade, e não somente: podemos atingir a
transcendência, um nível definido pelos estudiosos da enfer-
magem mencionados no capítulo 1. E, nas obras de arte, ad-
quirimos consciência da mensagem do seu criador, uma men-
sagem que, a rigor, se impõe a despeito de condicionantes
sociais, culturais e históricos envolvidos, colaborando na
multiplicação de sonhos, fantasias, metáforas e alegorias do
outro mundo.174 Mesmo se produzidas numa outra época, em
materiais com que não estamos familiarizados, num contexto
histórico diferente e dentro de uma cultura remota podem nos
fascinar, especialmente se tivermos um acesso facilitado à
sua expressividade.
Emoções superficiais, demasiado contextualizadas são
comuns nas telenovelas, em que se alterna com agilidade do
quarto para o necrotério. Amor, tristeza, medo e inveja são
justapostos qual mosaico. Estes contrastes, sem sutilezas,
demonstram que a referência às emoções não necessariamen-
te transforma em arte uma trama qualquer entre personagens.
Konrad Lorenz comenta a respeito que tais produtos mostram
o quanto o objeto que constitui o “gatilho” para as emoções
pode ser simplificado e embrutecido sem contudo perder sua
capacidade de efetuar o engatilhamento e o disparo. Alega
conhecer muitas pessoas sérias, eruditas e críticas, que sa-
bem muito bem o que para elas é “arte” e o que é “chan-
chada”, e que mesmo assim não conseguem resistir ao efeito
dos “xaropes”mais primitivos e transparentes. Fundamen-
talmente diferentes são as experiências da casa, concretamen-
te a nos envolver, cobrir, sustentar, conter, resfriar e aquecer,
soprar e perfumar, iluminar, reverberar e a nos tocar. Super-
fícies envelhecidas se tornam atalhos para as épocas passadas
e outros lugares. É matéria enraizada; a ela somos mais pro-
fundamente sensíveis.

174
Octavio Ianni, O reencantamento do mundo. Revista Polis, edição especial,
pp.79-86 (2001).
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 113

Em 1994, pessoas de uma nação inteira choraram a mor-


te de um ídolo esportivo, o piloto Ayrton Senna da Silva.
Ainda hoje, seu “tema da vitória”, a melodia de fundo da
televisão enquanto mostrava os momentos finais de um gran-
de-prêmio, é circunstância que afeta a sensibilidade dos bra-
sileiros. Ocorre que a canção adquiriu um significado extra-
artístico. Tornou-se portadora do sentimento de pesar associ-
ado ao trágico acidente, à interrupção súbita da carreira as-
cendente. Outras canções têm uma expressividade intrínseca,
que realça certos eventos de nossas vidas.
Diferentes sociedades convencionam as emoções cuja
manifestação não é tolerada. O emocional, manifestado num
comportamento espontâneo das pessoas, vai sendo amoldado
mediante repressão mais ou menos declarada. No Japão, o
uso de violência física ou verbal – mesmo de um tom de voz
elevado – contra outra pessoa é muito menos freqüente que,
por exemplo, num país latino. Na medida em que se manifes-
tam relações de hierarquia, tanto as institucionalizadas como
aquelas de natureza prática (por exemplo, no comércio, como
entre uma cliente e o balconista), a polidez elimina o atrito e
limita os diálogos quase somente àqueles mais previsíveis.
Esta aparente tranqüilidade não é sinônimo de satisfação;
pode ser sistematicamente acumulada e culminar em violên-
cia verbal ou física, gerando situações quase sempre irrecon-
ciliáveis de rompimento pessoal, profissional, e freqüente-
mente aproveitadas pelas telenovelas daquele país na contex-
tualização de crimes espantosos. Curiosa é a tradução de
okoru como zangar-se; para o japonês, okoru é antes mostrar-
se zangado, depois de julgar que o ofensor passou do limites.
Um importante recurso químico participa do processa-
mento das emoções: os hormônios. O estresse, a alimentação
incorreta ou até mesmo uma paixão arrebatadora podem alte-
rar seu regime. E a própria alimentação ou um processo cor-
poral podem restabelecer a normalidade. Alguns hormônios
têm importância notável na produção ou condicionamento de
emoções.
A endorfina, produzida pelo córtex cerebral, é um anal-
gésico natural, responsável pela sensação de bem-estar, que
proporciona tranqüilidade e inibe o estresse. Durante uma
114 A IDÉIA DE CONFORTO

atividade física intensa, por exemplo, o corpo libera adrenali-


na, hormônio que dilata os vasos sangüíneos para nos deixar
em estado de alerta e aumentar a força e a disposição. Quan-
do a prática termina, a endorfina ajuda a relaxar. Pesquisas
comprovam que as mulheres fabricam maior quantidade des-
sa substância que os homens, por isso são mais tolerantes à
dor.
A adrenalina é sempre liberada em situações de estresse.
É produzida pelas supra-renais e tem função contrária à en-
dorfina: é ela que acelera o funcionamento do organismo. A
queda dos níveis desse hormônio baixa a pressão, deixando a
pessoa desanimada e dispersiva. Em excesso, faz o coração
bater mais rápido, provoca irritação, agitação e aumenta a
produção de suor, por isso é chamado de hormônio das emo-
ções. A adrenalina é um bom exemplo de como as emoções
nos fazem adotar procedimentos rápidos que parecem, por
vezes, precipitados. Mas revelam-se um poderoso auxiliar do
raciocínio detalhado, analítico, se a urgência da situação re-
quer um comportamento executivo. Por exemplo, quando
arrebenta o cabo do freio a disco do carro em plena frena-
gem, eu decido segurar o automóvel pelo freio de mão, mas
com uma rapidez e força que não são usuais.
A dopamina é um neurotransmissor liberado pelo hipo-
tálamo, responsável pelo bem-estar do organismo. Seu prin-
cipal inibidor é a prolactina, hormônio produzido pela mulher
durante a amamentação. Por isso, algumas mulheres se sen-
tem desanimadas nessa época.
Emitida pelo hipotálamo, a serotonina está ligada às os-
cilações de humor. Sua falta causa alguns tipos de depressão.
Como esse desequilíbrio é mais comum no sexo feminino, as
pesquisas científicas identificam a proporção de sete mulhe-
res depressivas para cada três homens.
Enfim, é oportuno lembrar que as emoções existem e
não raro contradizem a racionalidade. Portanto, merecem
consideração. Para o ambiente construído, isto tem a implica-
ção de que o mesmo provoque emoções adequadas - seja ou
não compreendido pela razão.
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 115

3.3 O espaço e a expressão na arquitetura


Diferentes grupos profissionais ou acadêmicos mantêm
definições próprias de Arquitetura, priorizando o aspecto a
que mais se afeiçoam. Quem defende a função-abrigo da
arquitetura costuma a contrapor em importância prática à
arquitetura enquanto arte. Especialistas em conforto ambien-
tal se preocupam com a funcionalidade e muitas vezes dei-
xam fora a estética. E muitos adeptos do Modernismo perse-
guem até hoje uma estética de funcionalidade. Sua obra tem
aparência funcional, sem necessariamente sê-lo.
A discussão do que é e do que não é funcional remete
àquela sobre as necessidades humanas, um conceito um tanto
amplo.175 Monteiro Pinto afirma que as necessidades huma-
nas não se limitam àquelas cuja satisfação é indispensável à
sobrevivência física, mas também inclui as decorrentes da
natureza espiritual do humano, que compreendem as necessi-
dades psicológicas, artísticas e as ideológicas; daí enquadrar-
se a arquitetura como arte, porque se propõe a resolver pro-
blemas de ordem espiritual e material indistintamente, atin-
gindo os dois campos com amplitude e intensidade bem
grandes.176 Esta é uma abordagem mais eqüidistante. Aplica-
da à discussão acima, permite duas constatações. A primeira
é que a expressividade do ambiente tem sido sistematicamen-
te reduzida ao apenas visual. Depois, que a preocupação com
o ambiente tem se limitado àquela que é possível de uma
perspectiva mecanicista, o corpo humano visto como máqui-
na dotada de pouco mais que meia-dúzia de comportamentos
padronizados, como os programas de uma máquina de lavar.
Dentre as artes, a arquitetura tem especial capacidade
expressiva. Com seus elementos espaço, plano, cor, materi-
ais, técnicas construtivas, enfim, seus meios de edificação,

175
Este posteriormente ganhou o centro das discussões, tendo em vista o abismo
com que se separaram as camadas mais ricas e as mais pobres da população mundi-
al, e se tentou entender, de alguma maneira, o que seria o mais importante para estas
últimas. As políticas públicas de reforço à segurança alimentar estão nesta linha.
Uma das muitas obras de referência a respeito é a de Dieter Nohlen, Lexikon Dritter
Welt, Rohwolt, Alemanha (1993).
176
Armando de Andrade Pinto, op. cit.
116 A IDÉIA DE CONFORTO

tem possibilidades de atingir faixas de necessidades mais


expressivas que as outras manifestações de arte.177
Os dois trechos seguintes, selecionados de Evaldo Cou-
tinho,178 reforçam o argumento da expressividade do ambien-
te. Inicialmente, o relato de uma experiência positiva: Abso-
luto em sua detença, o espaço arquitetônico obriga, a quem
quiser conhecê-lo, ir ao seu encontro, inúteis que se mostram
as estampas do desenho, de fotografia móvel ou imóvel quan-
to à faculdade de trazer a outrem, situado alhures, a sensa-
ção que lhe provoca o mesmo espaço quando sentido em
grau de presença (...) o contexto oriundo de tantas parcelas,
como a luz, a sombra, o ruído, o silêncio, a temperatura, isto
é, o espaço interior do edifício, não se deixa representar
pelos processos em uso quanto a artes já de representação;
salvo os poderes da palavra lírica, os instrumentos de cos-
tumeira veiculação se frustram de todo ao se empregarem
em transmitir, à distância do original, a cópia em que se
pretendia expô-lo em sua plenitude.
E em seguida, o relato de uma experiência negativa de-
vido ao desconforto térmico: o visitante ou o residente se
retrai a qualquer recepção que se lhe dirija à sensibilidade,
como faria ele, com os olhos vendados, se o objeto nele se
inscrevesse através da vista; depois, certos estados de assi-
milação se fertilizam mais ou menos consoante a temperatu-
ra, certos espaços se dão melhor em momentos de tepidez ou
de frio, segundo a utilização que se opera, e também segundo
a qualidade de captação que modula a alma do comparecen-
te.
Coutinho aponta uma característica única na arquitetura
diante das demais formas de arte: o princípio da autonomia
do gênero artístico visa a uma realidade – o espaço – e não a
uma representação, contrariando o que sucede nas outras
artes. Então, explora outros aspectos. O espaço arquitetônico
se franqueia em plenitude, onde se equilibram valores a
exemplo da luz, da sombra, da temperatura, do silêncio, do

177
Ibid.
178
Evaldo Coutinho, op. cit.
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 117

ruído, etc., os quais são dosados pelo arquiteto que assim


lhes confere o tratamento artístico.
A respeito do mesmo assunto, Monteiro Pinto exempli-
fica: uma catedral gótica transmite toda a misticidade de sua
época, e o espaço barroco representa o absolutismo como
visão de mundo. Esses valores espirituais não surgiram por
acaso: os homens assim o quiseram e desejaram. A arte de
um modo geral e em particular a arquitetura traduziram as
idéias e concepções da humanidade. A arquitetura contribuiu
com seus elementos, para que os homens pudessem pensar
como pensam hoje, viver e amar como nós o fazemos.
A expressividade da arquitetura se dá mesmo que
aplicado o princípio da forma bastante, evitando-se a justa-
posição de matérias diferentes no seio da mesma obra, como
seria o caso de aromas externos para perfumar as coisas, ou
pinturas famosas para enriquecer as paredes, ou ainda
obras-primas da música para preencher os ambientes.179
Antes, o espaço será determinativo com respeito aos aromas,
a luz e o som, seus integrantes.
A natureza reúne figurações literáveis, pictóricas, escul-
turais e cinematográficas em si próprias: o sol nascente e o
sol poente; o luar; a flor, a selva, o mar, o ermo. Mas Couti-
nho insiste em que a arquitetura é realidade, e não represen-
tação; portanto, nela quase nada pode representar da nature-
za, a não ser em seus ornamentos.
Esta opinião pode ser contestada com exemplos de am-
bientes construídos. A iluminação penetrando um átrio, atra-
vés das folhas suspensas por uma pérgola, pode simular o
dinamismo de luz e sombra que caracteriza a mata Atlântica.
As flores de um arranjo podem remeter ao passeio pelo cam-
po. A corrente obtida ao abrir portas e janelas em cantos
opostos da casa, à brisa da praia. Todavia, prevalece a reali-
dade sobre a representação. Há uma natureza dual da arquite-

179
Ibid.
118 A IDÉIA DE CONFORTO

tura, de uma arte contaminada de realidade, em que esta –a


adequação à função – se torna o próprio material artístico.180
Comparado com o produto de outras formas de arte, o
produto da arquitetura é, pode-se dizer, vivo. Diz Coutinho
que se alguém nele penetra, assim ativando-lhe a criativida-
de, não é apenas seu olhar que se introduz no vão, é o seu
corpo inteiro que, desde a porta, se converte em valor arqui-
tetural, em fonte de ruídos, de sombras, de reflexos, que re-
novam o estável de um minuto antes. Observa como o espaço
freqüentemente se afeiçoa na medida de interveniências que
não foram destinadas a ele, tal no templo católico em que
uma orquestração se constitui, com díspares componentes,
as velas acesas, as inclinações das pessoas, as vozes, tudo
em intencional direção à regência do altar-mor. E a despeito
desta diversidade de aspectos, o espaço tende a se tornar um
conceito predominantemente visual.
É certo que a visão seja um sentido privilegiado para
os seres que dependem da caça para sobreviver. Permite-lhes
perceber sua presa à distância. Diane Ackerman181 lembra
que embora a maioria de nós não cacemos, nosso olhos ain-
da são os grandes monopolistas de nossos sentidos. Para
provar ou tocar seu inimigo, você deve estar de maneira
muito próxima a ele. Para sentir seu aroma ou ainda ouvi-lo,
você pode arriscar manter uma distância maior. Mas a visão
pode correr pelos campos e sobre as montanhas, viajar atra-
vés do tempo. Entretanto, o espaço – mesmo o espaço da
casa, de um único cômodo - é comumente abstraído para a
esfera do unicamente visual.
Por que precisaríamos do distanciamento da visão pa-
ra apreender o espaço construído a que já fomos admitidos,
no qual já desfrutamos de sua condição protegida? Embora
enquanto despertos façamos o tempo todo a apreensão visual
do espaço, dentro dele nós pouco aproveitamos da visão, de
sua velocidade e acuidade. Percebemos o espaço antes atra-

180
Idéia proposta por Hermann Czech, Komfort: Gegenstand der Architekturtheo-
rie? Werk, Bauen, Wohnen 3 (2003).
181
Diane Ackerman, A Natural History of the Senses, Vintage Books, Nova Iorque e
Toronto (1990), tradução do autor.
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 119

vés do sentido do tato, pois sentamos, deitamos, caminhamos


e tocamos objetos e, cercados de proteção, escapamos àquilo
que, no mundo externo, poderia se nos precipitar em assalto.
Utilizamos ainda o olfato ao respirar, incessante e inevita-
velmente, o ar ali confinado, e ainda a audição, pois nos co-
municamos verbalmente com as outras pessoas ali presentes.
Usamos, sim, a capacidade da visão para olhar por uma
janela ao longe. Isto não é privilégio do ambiente construído;
a abertura do campo visual é maior fora, que dentro de casa.
Entretanto, ao enquadrarmos a vista através de uma janela
pequena, parece que compreendemos melhor seu sentido.182
A casa perde, como abrigo, quando tem janelas contínuas –
como as fenêtre en longueur advogadas pelo Modernismo,
desde que o aço permitiu, nas construções, generosos vãos –
ou mesmo paredes inteiras de vidro. Uma casa transparente
expõe seus ocupantes ao vazio da vida; para ser confortável
deveria preencher-se de algumas pequenas ilusões do mundo.
Não é por acaso que se busca um ambiente vazio para a me-
ditação.
O céu azul de certo modo nos envolve e conforta. Se-
gundo Hildebrand,183 em sua hipótese evolucionista do prazer
arquitetônico, o bom tempo, com boa visibilidade, privilegi-
ou os primatas que dele gostassem, proporcionando-lhes
defesa contra os predadores, e ainda resultados fartos na caça.
Mas o céu azul parece intocável, mais distante quanto mais
subo para dele me aproximar. E é o mesmo céu que conforta
meus inimigos.
A sensação do espaço construído compreende saber-se
envolvido por cuidados, por estímulos, por lembranças, em
certo equilíbrio geométrico e ponderal. Por exemplo, por uma
iluminação adequada e que informe a hora do dia. Tudo isto
torna os ambientes mais aconchegantes. E não se trata de

182
Este assunto é tratado com riqueza por Christopher Alexander, que fala da paisa-
gem zen como um dos padrões mais importantes em sua obra A Pattern Language.
Para ele, é como aquela vista por alguém que sobe uma montanha por um caminho
protegido por alto muro e, já bastante alto, encontra uma rachadura no muro pela
qual pode desfrutar da paisagem. Logo, diferente de quem vive numa casa com uma
varanda aberta para a mesma paisagem.
183
Grant Hildebrand, op. cit.
120 A IDÉIA DE CONFORTO

impressões visuais: são impressões táteis, térmicas, olfativas,


mas são reportadas ao cérebro instantaneamente, pelos olhos,
através da mensagem visual. Heinrich Engel184 o conclui
depois de ter estudado em detalhes a casa japonesa: a arqui-
tetura – percebida pelos sentidos - não é mais que uma in-
trincada composição de contrastes – vazios e sólidos, luz e
sombra, reta e curva, peso e leveza, o natural e o artificial, o
áspero e o liso, o transparente e o opaco, o esqueleto e o
painel. Mas com muita freqüência estes contrastes são apli-
cados de modo inconsciente do seu potencial na expressão
estética da edificação.

3.4 Merleau-Ponty, Bachelard e Bollnow


O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908 –
1961) escreveu uma extensa Fenomenologia da percepção.185
Ele mesmo afirma, da fenomenologia, que estuda a aparição
do ser para a consciência, em lugar de supor a sua possibili-
dade previamente dada.
Apreendemos naturalmente as coisas, antes que os sen-
tidos individuais. Sentimos baseados num juízo previamente
formado do mundo, não num testemunho da consciência. Nós
acreditamos saber muito bem o que é “ver”, “ouvir”, “sen-
tir”, porque há muito tempo a percepção nos deu objetos
coloridos ou sonoros. Quando queremos analisar a percep-
ção, transportamos esses objetos para a consciência. A aten-
ção não muda a maneira como vejo as coisas, ela apenas
torna determinado o indeterminado. O juízo é freqüentemente
introduzido como aquilo que falta à sensação para tornar
possível uma percepção.186
Para Merleau-Ponty, a percepção vai diretamente à coi-
sa sem passar pelas cores, assim como ela pode apreender a
expressão de um olhar sem pôr a cor dos olhos. Na percep-
ção efetiva e tomada no estado nascente, antes de toda fala, o

184
Heinrich Engel, op.cit.
185
Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção. Martins Fontes, São
Paulo (1999).
186
Ibid.
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 121

signo sensível e sua significação não são separáveis nem


mesmo idealmente. A ciência fracassa ao tentar representar o
organismo humano como um sistema físico em presença de
estímulos definidos eles mesmos por suas propriedades físi-
co-químicas. Não consegue reconstruir sobre essa base a
percepção efetiva. Busca, em vão, descobrir as leis segundo
as quais se produz o próprio conhecimento.
Tal entendimento da percepção tem conseqüências mui-
to práticas. As qualidades da coisa, por exemplo sua cor, sua
dureza, seu peso, nos ensinam sobre ela muito mais do que
suas propriedades geométricas. A mesa é e permanece parda
através de todos os jogos de luz e de todas as iluminações.
Conheço sua cor de observá-la de perto, à luz do dia. Mas
quando a distância é muito grande ou a iluminação tem uma
cor própria, como ao pôr-do-sol ou sob luz elétrica, desloco
a cor efetiva em benefício de uma cor da recordação, que é
preponderante porque está inscrita em mim por numerosas
experiências. Merleau-Ponty menciona que os maoris (nati-
vos da Nova Zelândia) têm 3000 nomes de cor. Não que per-
cebam muito, ao contrário: porque não as identificam quando
pertencem a objetos de estrutura diferente.
O uso de nomes diferentes para a mesma cor lembra a
prática do uso de ordinais para o mesmo número de objetos
diferentes, no Japão. A depender da forma ou natureza do
que está sendo contado, muda a contagem. Por exemplo, para
folhas de papel diz-se ichimai, nimai, sanbai (respectivamen-
te, um, dois, três); para conjuntos de folhas issatsu, nisatsu,
sanzatsu; para objetos cilíndricos como uma garrafa ou copo
ippon, nihon, sanbon; para pequenos objetos como um dado,
ikko, niko, sango; para cadeiras, ikkiaku, nikiaku, sangiaku;
para animais pequenos como cães, ippiki, nihiki, sanbiki;
para animais grandes como um boi, itto, nito, sando; para
máquinas ichidai, nidai, sandai; para pessoas hitori, futtari,
sannin; para meses, ikkagetsu, nikagetsu, sankagetsu.
Para Merleau-Ponty, as propriedades sensoriais de uma
coisa constituem em conjunto uma mesma coisa, assim como
meu olhar, meu tato e todos os meus outros sentidos são em
conjunto as potências de um mesmo corpo integradas em
uma só ação. Um fenômeno que se oferece somente a um de
122 A IDÉIA DE CONFORTO

meus sentidos – por exemplo, um reflexo, ou o vento leve –


tem o efeito de um fantasma. O vento só se aproximará de
uma existência real ao se fazer ver revolvendo folhas, ou
ouvir assoviando. Merleau-Ponty menciona o pintor Cézan-
ne187 , para quem um quadro contém em si até o odor da pai-
sagem. Ele queria dizer, explica o filósofo, que uma coisa
não teria essa cor se não tivesse também essa forma, essas
propriedades táteis, essa sonoridade, esse odor, e que a coi-
sa é a plenitude absoluta que minha existência indivisa pro-
jeta diante de si mesma.
As relações entre as coisas ou entre os aspectos das coi-
sas são sempre mediadas por nosso corpo; portanto, a nature-
za inteira é a encenação de nossa própria vida ou nosso inter-
locutor em uma espécie de diálogo. Eis por que, em última
análise, não podemos conceber coisa que não seja percebida
ou perceptível. Merleau-Ponty cita uma afirmação de Berke-
ley:188 mesmo um deserto nunca visitado tem pelo menos um
espectador, e este somos nós mesmos quando pensamos nele,
isto é, quando fazemos a experiência mental de percebê-lo.
O pensamento objetivo rompe o elo entre as coisas e o
sujeito encarnado. Compõe o mundo dando preferência às
qualidades visuais, porque têm aparência de autonomia, li-
gam-se menos diretamente ao corpo. Antes nos apresentam
um objeto, do que nos introduzem em uma atmosfera. Mas,
na verdade, todas as coisas são concreções de um ambiente,
e toda percepção explícita de uma coisa vive de uma comu-
nicação prévia com uma certa atmosfera.
A última afirmação pode parecer difícil, mas refere-se a
um fato muito comum: se retiraram um quadro de um cômo-
do que habitamos, podemos perceber uma mudança sem
saber qual. Merleau-Ponty enumera exemplos da percepção
não concentrada a nenhum sentido, nem fato: a tempestade
que ainda não caiu (aliás, prenunciada pelo cheiro de terra,
pelo ruído do vento e pela sua intensidade); a periferia do
campo visual que o histérico não apreende expressamente,
mas que todavia co-determina seus movimentos e a sua ori-
187
Paul Cézanne (1839 - 1906), pintor francês.
188
George Berkeley (1684 – 1753), filósofo e bispo inglês, mentor do espiritualismo.
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 123

entação; o respeito dos outros homens ou essa amizade fiel


que eu nem mesmo percebia mais, mas que estava ali para
mim. Enfim, é mais fácil aceitarmos sua conclusão de que a
percepção natural não é uma ciência...é a “fé originária”
que nos liga a um mundo como à nossa pátria...
Merleau-Ponty trata indiretamente da poética do espaço,
da função como matéria-prima de expressão da arquitetura,
ao descrever as obras de juventude de Cézanne, que procura-
va pintar em primeiro lugar a expressão, e era por isso que
ele a perdia. Explica que o pintor aprendeu pouco a pouco
que a expressão é a linguagem da coisa mesma e nasce de
sua configuração. Sua pintura é uma tentativa de encontrar a
fisionomia das coisas e dos rostos pela restituição integral
de sua configuração sensível. É isso que a cada momento a
natureza faz sem esforço.
Insiste na importância do todo, que se opõe à decompo-
sição por partes: exemplifica ser impossível descrever com-
pletamente a cor do tapete sem dizer que ela é cor de um
tapete, de um tapete de lã, e sem implicar nessa cor um certo
valor tátil, um certo peso, uma certa resistência ao som. Do
que depreende que a coisa é este gênero de ser no qual a
definição completa de um atributo exige a definição do sujei-
to inteiro e em que, por conseguinte, o sentido não se distin-
gue da aparência total. Observa que no quadro (obra de arte)
o sentido precede a existência. Ao contrário, a maravilha do
mundo real é que nele o sentido é um e o mesmo que a exis-
tência. E o imaginário é sem profundidade, não corresponde
aos nossos esforços para variar nossos pontos de vista, não
se presta à nossa observação.
Ainda, argumenta que os sentidos se comunicam, e ser-
ve-se do exemplo da sala de concerto, cujo espaço visual
parece mais mesquinho que o espaço sonoro. A música não
está no espaço visível, mas ela o mina, o investe, o desloca, e
em breve esses ouvintes muito empertigados, que assumem o
ar de juízes e trocam palavras e sorrisos, sem perceber que o
chão se abala sob eles, estarão como uma tripulação sacudi-
da na área de uma tempestade. Os dois espaços só se distin-
guem sobre o fundo de um mundo comum, e só podem entrar
124 A IDÉIA DE CONFORTO

em rivalidade porque ambos têm a mesma pretensão ao ser


total.
Os sentidos se comunicam e se abrem à estrutura da coi-
sa. Merleau-Ponty oferece extensa relação de exemplos: Ve-
mos a rigidez e a fragilidade do vidro e, quando ele se quebra
com um som cristalino, este som é trazido pelo vidro visível.
Vemos a elasticidade do aço, a maleabilidade do aço incan-
descente, a dureza da lâmina em uma plaina, a moleza das
aparas. A forma dos objetos não é seu contorno geométrico:
ela tem uma certa relação com sua natureza própria e fala a
todos os nossos sentidos ao mesmo tempo em que fala à visão.
A forma de uma prega em um tecido de linho ou de algodão
nos faz ver a flexibilidade ou a secura da fibra, a frieza ou o
calor do tecido. Enfim, o movimento dos objetos visíveis não é
o simples deslocamento das manchas de cor que lhes corres-
pondem no campo visual. No movimento do galho que um
pássaro acaba de abandonar, lemos sua flexibilidade ou sua
elasticidade, e é assim que um galho de macieira e um galho
de bétula imediatamente se distinguem. Vejo o peso de um
bloco de ferro que se afunda na areia, a fluidez da água, a
viscosidade do xarope. Da mesma maneira, no ruído de um
automóvel ouço a dureza e a desigualdade dos paralelepípe-
dos, e com razão fala-se em um ruído “frouxo”, “embaçado”,
ou “seco”. Se se pode duvidar de que a audição nos dê verda-
deiras “coisas”, pelo menos é certo que ela nos oferece, para
além dos sons no espaço, algo que “rumoreja” e, através
disso, ela se comunica com os outros sentidos (...) todos eles
se comunicam através do seu núcleo significativo.
Os capítulos que seguem neste livro, escritos sob uma
perspectiva analítica, partem de uma decomposição em dife-
rentes sentidos com que se experimentam as mesmas coisas.
Esta divisão é didática, mas tem importância prática nos dois
níveis inferiores do conforto apresentados no cápitulo 1: de
alívio da dor e liberdade de outras dores. Já no nível da trans-
cendência, os diferentes contextos do conforto se aproximam
e se fundem; e dentro do contexto ambiental, em particular,
fundem-se os diferentes aspectos do conforto.
A casa, incluindo tudo o que diz respeito a ela, é um po-
deroso sistema de referência para cada pessoa. Nuances de
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 125

sua percepção espacial – inclusive alusiva às variáveis ambi-


entais – participam de sua poética do espaço. Os ambientes
não-domésticos, igualmente, regem-se por uma outra poética
do espaço, que lhes é peculiar.
Um outro importante fenomenólogo é o francês Gaston
Bachelard (1884 – 1962). Depois de estudar a fundo o méto-
do científico, dedicou um período mais maduro de sua carrei-
ra a uma proposta inteiramente diferente – a da fenomenolo-
gia. Bachelard descreve a casa como um dos maiores poderes
de integração para os pensamentos, as lembranças e os so-
nhos de um homem. Nesta integração, o princípio unificador
é o devaneio.
Entre o morador e a casa há uma relação recíproca que
vai além daquela entre o continente e conteúdo: dentro do
ser, no ser de dentro, há um calor que acolhe o ser que o
envolve. O ser reina numa espécie de paraíso terrestre da
matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada. Pare-
ce que nesse paraíso material, o ser está impregnado de uma
substância que o nutre, está repleto de todos os bens essen-
ciais...a casa sustenta a infância imóvel em seus braços.189
Bachelard lança a comparação entre o tempo e o espaço,
procurando saber qual é de maior importância para a intimi-
dade. Conclui que, para conhecê-la, as referências do espaço
nos auxiliam mais a memória do que as referências do tempo.
Em especial, os locais onde passamos sós. As paixões se in-
cubam e fervem na solidão (...) E todos os espaços de nossas
solidões passadas, os espaços onde sofremos a solidão ou
gozamos dela, onde a desejamos ou a comprometemos, estes
não se pode apagar. O ser não os quer apagar, pois sabe que
estes espaços de sua solidão são constitutivos. Insiste que
têm o valor de uma concha. E sugere, sem dar nomes, uma
associação já mencionada mais acima: quando se chega ao
último dos labirintos do sonho, quando se tocam as regiões
do sonho profundo, se conhecem talvez repousos ante-
humanos. Parece muito uma referência ao útero materno. A
idéia será retomada no capítulo sobre tato.

189
Gaston Bachelard, La Poetica del Espacio, Breviarios, Fondo de Cultura Econo-
mica. Cidade do México, México (1994). Tradução do autor.
126 A IDÉIA DE CONFORTO

Para Bachelard, no plano onírico algumas caracterís-


ticas ambientais desfavoráveis desaparecem: Antes o sótão
podia parecer-nos demasiado estreito, frio no inverno e
quente no verão. Mas agora em lembrança volto a encontrar
no devaneio, e não sabemos por que sincretismo, é pequeno e
grande, quente e fresco, sempre consolador.
Em sua atividade de busca pela poesia do espaço,
opõe-se àquela empreendida pela psicanálise. Se o inconsci-
ente está abrigado, a psicanálise quer pôr o ser em movimento
mais que em repouso. Chama o ser a viver no exterior, fora
dos abrigos do inconsciente, entrando nas aventuras da vida,
a sair de si. E, naturalmente, sua ação é saudável. Pois tam-
bém é preciso dar um destino exterior ao ser de dentro. Ba-
chelard lembra que não devemos esquecer que há um deva-
neio do homem que anda, um devaneio do caminho. É a esté-
tica yang também apresentada no capítulo 1. Menciona Ge-
orge Sand (a amante de Chopin, que usava um nome mascu-
lino, e se vestia como tal): “Há algo mais belo que um cami-
nho? É o símbolo e a imagem da vida ativa e variada”.
Mas Bachelard se declara um pesquisador muito mais da
introversão do que da extroversão, ao falar da própria obra:
não podemos traçar como conviria a geometria dupla, a
dupla física imaginária da extroversão e da introversão. Mas
não cremos que ambas físicas tenham o mesmo peso psíqui-
co. É a região da intimidade, a região onde o peso psíquico
domina, à que consagramos nossas pesquisas.
Todos os espaços de intimidade se distinguem por uma
atração. Ao fazer esta afirmação, Bachelard sinaliza que a
intimidade é convergente, enquanto que a liberdade espacial
busca qualquer direção. É a estética yin apresentada no capí-
tulo 1. Há uma só casa, mas muitos lugares para onde viajar
de avião ou de motocicleta.
A centralidade, a convergência é uma das formas em
que a casa – corpo de imagens - nos dá uma razão ou ilusão
de estabilidade. A outra é na direção vertical, uma vez que a
casa é principalmente esta instalação que nos protege pela
gravidade, está pousada sobre nós e, no porão, nos aproxima
da irracionalidade do profundo. Bachelard propõe esta dire-
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 127

ção e lembra que na nossa civilização, que põe a mesma luz


em todas as partes e instala a eletricidade no porão, já não
se baixa ao porão com uma vela acesa. Mas o inconsciente
não se civiliza. Ele, sim, toma a vela para baixar ao porão.
Normalmente, nos contentamos com a vida consciente, acima
de um piso que convencionamos como o nível zero.
Desenvolvendo o tema da verticalidade, Bachelard acusa
uma falha das grandes cidades, em que os apartamentos dos
edifícios são sem porão e sem sótão. Chama a isto uma au-
sência de valores íntimos de verticalidade. A ela, acrescenta
ainda a constatação de falta de cosmicidade da casa das
grandes cidades. Lá as casas já não estão dentro da nature-
za. As relações da morada e do espaço se tornam fictícias.
Tudo é máquina e a vida íntima foge por todas as partes.
Enfim, cita Max Picard, para quem as ruas são como tubos
de onde são aspirados os homens.
Tais relações espaciais fictícias são empregadas oportu-
namente por Alberto Vásquez-Figueroa em sua obra Tua-
reg,190 quando descreve a chegada do guerreiro à cidade.
Depois de uma vida inteira no Saara, sente um choque ini-
maginável. Sai do trem a caminhar noite adentro, desorienta-
do, perturbado pela profusão de cores, de formas e de odores,
de fileiras de luzes, e de como muros de janelas, portas e
sacadas fecham quase que hermeticamente os recintos. A
cidade impõe ao caminhante sucessivas barreiras à horizonta-
lidade que conhecia, tanto é que ele só tem certo sossego,
com este respeito, ao encontrar o mar. E a aglomeração de
pessoas, esta sim, era a característica mais impressionante da
cidade.
Em geral, os filósofos deram muito mais importância
ao estudo do tempo do que ao estudo da constituição espacial
da existência humana. Neste assunto, é notável a contribuição
de Bollnow,191 que tentou uma representação sistemática e
contextual do problema do espaço vivido. Para ele cada ser
humano, na infância como na idade adulta e na velhice, tem

190
Alberto Vásquez-Figueroa, Tuareg, Tradução do espanhol de Remy Gorga Filho,
L&M Pocket, Porto Alegre (1988).
191
Otto Friedrich Bollnow (1903 – 1991), filósofo alemão.
128 A IDÉIA DE CONFORTO

um conceito de espaço que difere substancialmente da defini-


ção dada pelos matemáticos. Aqui serão lançadas algumas de
suas principais idéias a respeito do espaço.
Sem constrangimento, o matemático arbitra um espaço
com n dimensões, seja n igual a 1 (reta), 2 (plano), 3 (espaço
tridimensional como o conhecemos), 4 (espaço x tempo dos
físicos) ou qualquer número. O espaço matemático é uma
construção teórica sobre a qual se fundamentam modelos de
complexidade variável, desenvolvidos para solucionar pro-
blemas concretos de diversos campos do conhecimento. É
comum que tal espaço seja assumido homogêneo - nenhum
ponto diferente do outro. Ou ainda, isotrópico, o que significa
com propriedades iguais em todas as direções. Por definição,
o espaço é contínuo, é infinito.
Para cada pessoa, o espaço vivido tem um centro intrín-
seco, que faz as vezes de origem de um sistema de coordena-
das. A partir dele se marcam distâncias e, com referência ao
sistema, se convencionam direções. Mas no espaço vivido, a
origem não é um ponto qualquer; tem algum poder gravitaci-
onal. Está contida no plano horizontal, que divide o mundo
em dois hemisférios: acima fica o céu, o firmamento, fonte
de luz e repositório de ar. Abaixo fica a terra, o substrato.
Para Nold Egenter, estudioso suíço da obra de Bollnow,192 os
pares já sugeridos por Aristóteles (acima e abaixo, à frente e
atrás, direita e esquerda) são contra-indicações da homoge-
neidade, particularmente se não são meramente interpreta-
dos em termos de sistemas lineares abstratos, mas relacio-
nados à realidade objetiva.
O espaço vivido não é infinito: suas fronteiras são até
bem demarcadas. Tampouco é homogêneo. Age sobre as
pessoas as estimulando ou impedindo. Condiciona o campo
de sua ação. Impede, portanto, juízo de valor. Cada parte tem
seu significado. Não é abstração, mas existe juntamente com
a pessoa nele. Bollnow menciona Dürkheim, para quem o
espaço é meio da realização corporal, anti-forma ou exten-

192
Nold Egenter, Otto Friedrich Bollnow’s Anthropological Concept of Space:
A revolutionary new paradigm is under way, em
http://home.worldcom.ch/~negenter/index.html
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 129

são, ameaça ou defesa, travessia ou permanência, estranheza


ou pátria, material, lugar de realização e desdobramento,
resistência e fronteira, órgão e adversário deste mesmo na
sua realidade momentânea de ser e viver.193 Naturalmente,
no confronto com os limites, o tato assume a maior impor-
tância.
Bollnow desenvolve sua análise sobre uma prova etimo-
lógica da delimitação do espaço. O termo em alemão, Raum,
de acordo com os irmãos Grimm,194 é derivado do verbo
räumen, que significa criar espaço, esclarecer parte da selva-
geria com a intenção de fixar-se, estabelecer uma moradia.
Isto é arrumar.195
Há uma ênfase convincente nas origens ambientais da
noção espaço, que não é um ente matemático. Ele mais se
parece com um campo físico-matemático, conceito usado
para descrever a distribuição geométrica de uma determinada
propriedade como, por exemplo, a distribuição de uma gota
de tinta numa bacia.
Interessa a Bollnow o movimento duplo fundamental de
ir-se embora e voltar que articula o espaço humano. Descre-
vendo a experiência de todos os tipos de caminhos, propõe o
espaço hodológico, um tipo de espaço que difere, em absolu-
to, do espaço matemático. Corresponde à experiência huma-
na, de fato, durante o movimento entre dois pontos diferentes
de um mapa. É uma experiência absolutamente diversa da
linha geométrica que conecta dois pontos.
Para Egenter há ainda um conceito revolucionário na
obra de Bollnow. O espaço não estava sempre lá, como as-
sumimos com o conceito Euclidiano. O espaço, no sentido
humano, tem evoluído. Como um conceito ligado à percep-
ção e cultura humanas, era originalmente relacionado de
perto à moradia e ao estabelecimento e, subseqüentemente,
193
Graf Dürkheim, Untersuchungen zum gelebten Raum. Neue Psychologische
Studien. 6. Band. Munique 1932, p. 383, apud Bollnow, op. cit., tradução do autor.
194
Além de seus contos de fundo moral, elaboraram importante Dicionário da Lín-
gua Alemã.
195
De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a semelhança supõe
a origem germânica de arrumar, provavelmente através do francês antigo arrumer.
130 A IDÉIA DE CONFORTO

desenvolvido como extensão da percepção espacial do ho-


mem. Observa ainda que os conceitos espaciais eram origi-
nalmente limitados a condições ambientais muito restritas.
Recomenda aos teóricos da arquitetura uma revisão de modo
a considerar este conceito.
Bollnow ressalta o balanço polar entre a tensão excên-
trica no mundo externo e a tranqüilidade centrada numa casa
protegida. De acordo com ele, este balanço é pré-requisito
para a saúde humana. E cita Rilke,196 Hesse197 e particular-
mente Nietzsche como autores que favoreceram um balanço
entre o distante e o próximo, entre o desconhecido e o conhe-
cido com respeito à formação da personalidade e ao caráter
humanos.
No movimento fora da casa, o indivíduo perde suas pe-
gadas domésticas, torna-se anônimo. De maneira similar, a
paisagem perde individualidade se percebida da janela de um
carro em movimento, é pois uma situação em que prevalecem
novos valores: eficiência, estado da pista. Isto remete à cita-
ção de George Sand, acima. Todas as estradas levam ao fim
do mundo. Muitos conceitos simbólicos e filosóficos são
relacionados ao caminho, à trilha, à estrada, como condição
humana. No Tao, na China, o homem é eterno peregrino que
nunca encontra um lugar de repouso permanente. Através do
livro, Bollnow enfatiza estes dois aspectos: o ser humano
como morador e peregrino, um ser que é cêntrico mas tam-
bém excêntrico. Sem menção explícita, aqui surge de manei-
ra mais clara uma compreensão da co-existência de yin e
yang.
Evocando o espaço protetor, Bollnow questiona a postu-
ra dos existencialistas (Heidegger, Sartre), que se vêem, co-
mo homens, “atirados” ao mundo. Junto com Bachelard, ele
considera a casa ... o mundo primário da existência humana.
Antes de ser “lançado ao mundo”, o homem é colocado no
berço da casa. Nela está o espaço do recolhimento, o âmbito

196
Rainer Maria Rilke (1875-1926) poeta alemão cuja obra é associada ao impressi-
onismo.
197
Hermann Hesse (1877 – 1962), poeta e ensaísta alemão, autor de Contos, Lobo da
Estepe, Demian e Siddharta, entre outros.
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 131

da calma e da paz, no qual o homem pode largar sua constan-


te atenção contra uma possível ameaça, recolher-se e relaxar.
Dar ao homem esta paz é a tarefa superior da casa. Pois nem
todos os espaços construídos por homens são habitáveis.
Exige-se a característica acolhedora – Bollnow utiliza os
termos behaglich, derivado da imagem de uma cerca viva ao
redor da casa, e gemütlich, de Gemut, coletivo de Mut (cora-
gem), como todo o comportamento que desiste da tensão e se
entrega à calma relaxante. Isto remete ao roupão, ao pijama e
aos chinelos. A intimidade é também um pressuposto. Para
que a casa seja habitável, ainda, deve oferecer privacidade:
não pode ser um corredor, nem pode ter imensas janelas ou
paredes de vidro. Ainda, o espaço não deve ser de tamanho
exagerado; antes, deve ser preenchido pelo homem que nele
vive com sua vida.
Enfim, na origem ambiental do espaço apresentada por
Bollnow, percebemos que tem importância primordial o fe-
nômeno da gravidade. É por ela que se separam a terra do
céu, o substrato do ar, a luz do escuro. Compacta, a Terra é
um reservatório de calor ancestral. Com o ar vem ainda o
som. E sem o calor do sol e a gravidade não existiria o vento
como o conhecemos. Sem a gravidade, enfim, o tato teria sua
importância reduzida a muito pouco.

3.5 Congruência entre experiências físicas e


memória
Emoções reforçam percepções. São como um processa-
mento corporal dos fatos percebidos e julgados, assim como
os pensamentos são seu processamento intelectual. Se uma
emoção aparece sincronizadas aos pensamentos, dá a este
poder de convencimento: como se o houvéssemos sentido no
corpo.
Uma variação disto ocorre quando fatos sensoriais se as-
sociam a juízos que temos sobre coisas, não necessariamente
relacionadas, tão somente coincidentes. As emoções sofrem
um reforço e se tornam experiências torrenciais. Esta é a
hipótese de congruência entre os fatos físicos (imediatos) e
fatos mentais decorrentes da experiência passada.
132 A IDÉIA DE CONFORTO

Todos temos, provavelmente, momentos da experiência


pessoal em que a mesma hipótese se comprova. São flagran-
tes de êxtase. Se neles ainda restar consciência crítica, pode-
rão ser explorados e, posteriormente, estudados.
A viagem a um local desconhecido e muito diferente
traz experiências marcantes, positivas e negativas, do encon-
tro entre expectativas e realidade. Tive uma experiência as-
sim quando cheguei ao Japão para cursar mestrado. Do aero-
porto de Narita tomei um táxi, com outro colega brasileiro,
até a cidade de Tsukuba, num trajeto de uma hora e meia.
Pelas janelas, mesmo que não encontrasse de saída as ima-
gens mais conhecidas daquele país, o Japão deixava de ser
uma realidade distante. O asfalto, estreito mas em bom esta-
do, percorria uma série de pequenas propriedades rurais, com
suas casas tradicionais de telhados cinza-azulados, as cume-
eiras curvadas em elegante convexidade nas pontas. Tinha
sido recente o auge da primavera. Via-se ao redor delas árvo-
res floridas de pessegueiro, umê e cerejeiras. E a extensão
toda era marcada por um contraste presente boa parte do ano,
entre o verde vivo dos arrozais, nos vales, e o verde escuro
dos pinheiros que cobriam todos os morros. Aqui e ali, imen-
sas touceiras de bambu, em curioso convívio com as conífe-
ras. A maior elevação no trecho era o monte Tsukuba, um
harmonioso par de cumes cônicos, de moderada inclinação,
uma histórica fonte de inspiração para os poetas. No destino,
achava-se uma cidade de traçado único, construída no final
dos anos 60 para abrigar a faculdade de Educação de Tóquio,
que convinha estivesse longe da cena política da capital.
Através do campus, calçadas e ciclovias, integradas por tú-
neis e pontes, num plano independente do tráfego motoriza-
do, constituem um respeitável parque linear, unindo blocos
de aulas, laboratórios, moradias e comércio. Um trabalho
paisagístico admirável. Um de meus anfitriões, durante a
primeira visita a templo que tive a oportunidade de fazer, me
aconselhou: fotografe logo tudo que puder, porque depois o
encantamento se torna rotina.
Viagem também é repetição, e também ocorre com mui-
tas expectativas, desta vez expectativas de reencontro. Quem
não vive no litoral parece idealizar mais suas temporadas de
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 133

praia. Desfruta-as normalmente na companhia de familiares e


amigos. Há uma redescoberta a cada vez que, da estrada, se
avista de novo o mar. Chegando à orla, ao despir as sandálias
há um reencontro tátil com a areia quente e macia. A cada
respiração, um reencontro com a maresia. O ruído de fundo
difere de tudo a que se está acostumado: é o ruído das ondas
quebrando. Próxima do mar a areia é fria e firme; adentrando
as águas, camadas de água a diferentes temperaturas se revi-
ram, espumantes. As ondas e correntes vão solicitando vários
músculos do corpo. Em algum momento, algum sabor da
água salgado vai parar dentro da boca. Depois vêm as experi-
ências de descansar, secar o corpo sob a brisa estável e os
raios do sol, cada vez mais picantes, o entorno claro de areia
com um brilho ofuscante. A praia é a mesma; é sempre rica a
experiência sensorial.
A ida à praia é o reencontro sistemático. Existem ainda
reencontros únicos, como da volta a um endereço antigo.
Licenciado de meu trabalho na universidade, passei com
minha esposa um semestre em Salvador. Alternaram-se um
verão de sol intenso quase todos os dias, e um outono impie-
dosamente chuvoso, em que a cidade se tornava lamacenta e
desordenada. Retornamos a Curitiba em pleno inverno e, do
aeroporto, fomos diretamente à universidade, ao Setor de
Ciências Biológicas, para assistir à defesa de dissertação de
minha irmã. O campus estava árido mas fresco, o céu num
tom de azul frio, as folhas das árvores caídas e varridas, um
tom cinzento aqui e ali cintilando algum raio dourado de sol.
Uma paisagem árida mas acolhedora, a natureza mais retraída
e com ela as pessoas. Como eu vinha desacostumado, a pai-
sagem tomou cores inesperadas, embora nada apresentasse de
incomum. Parece ter-se unido ao evento para realçar-lhe o
tom solene.
As experiências sensoriais têm, a princípio, valor pesso-
al; dão-se num contexto próprio. Dificilmente conseguimos
passá-las aos outros sem sua prévia materialização em mol-
des conhecidos. Isto dá sentido à arte e às suas formas pré-
estabelecidas, com suas convenções: a seqüência de páginas
de um livro, os instrumentos da orquestra, ou ainda o retân-
gulo da tela. Para transmiti-las a alguém, são necessários
134 A IDÉIA DE CONFORTO

elementos que proporcionem a esta pessoa sensações físicas,


ao menos na imaginação.
A memória anda de mãos dadas com o olfato, e a vida
parece insistir nesta lição. Passei muitos sábados da minha
infância visitando a chácara de meu avô, distante meia-hora
da cidade. A área fora outrora reflorestada com acácia negra,
da qual se pretendia obter tanino, matéria prima para tratar o
couro num curtume da família. Como o projeto fracassou, ali
montou-se uma propriedade para o lazer, e com organização
primorosa: um denso bosque de eucaliptos mantinha-na iso-
lada das estradas; oposto estava um pomar e, intercalada,
uma horta de alface, couve, couve-flor, espinafre, cenoura,
salsa, pepino, mandioca, tomates, rabanetes e repolho. Cebo-
la, feijão e batatas eram armazenados no paiol, onde também
ficavam ferramentas que eu gostava de olhar, penduradas na
parede. Defronte ao paiol ficava um jardim de flores colori-
das e a residência dos caseiros. Havia ainda três poços de
água muito fresca. Uma pequena casa de alvenaria com am-
plo beiral servia de sede da chácara. O interior era escuro,
pelo revestimento em madeira e pedra, com uma lareira no
centro, e uma lareira em pedra; cheirava como os ambientes
que passam a maior parte do tempo fechados. Era o local
onde aconteciam festas de aniversário, com churrasco e sem-
pre muitas crianças. Um gramado servia de campo de volei-
bol. Nos sábados comuns, na casa aconteciam lanches, com
bolo de chocolate e um café curiosamente muito quente – a
água ali parecia ferver a maior temperatura.
Gradualmente meus sábados foram se tornando concor-
ridos. Visitas à chácara foram se rarefazendo, até a prática
desaparecer. Recentemente, retornei àquele lugar depois da
mudança mais radical: uma desapropriação consumira casa,
pomar, bosque e gramado. Agora, ali passava uma rodovia
vários metros abaixo, deixando profundo barranco. Já não
havia mais chácara, somente materiais empilhados entre as
maiores árvores, tudo coberto pelo mato. Troncos caídos
apodreciam, e restos de safras mostravam sinais de invasão e
depredação. No entanto, tive uma surpresa única ao encontrar
ali os mesmos aromas de sempre. A terra úmida e adubada; a
mistura de ervas, mexericas e pêras, hortências, erva-doce,
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 135

couve, milho e esterco seco. Algo que não cheirava mal nem
bem, mas bem do seu modo, e me pergunto por quê? É um
mistério: tudo dali se foi, mas muito ali ficou.
A memória também é tátil. Numa visita à casa dos meus
pais, onde vivi dos oito aos vinte e oito, descobri um material
quase à prova do tempo: os azulejos do banheiro. Se as tor-
neiras se oxidavam e a madeira da janela sofria o efeito da
umidade, aqueles pouco se alteraram. Percorri os mesmos
arabescos dourados sobre fundo verde, como o fiz durante
anos, em minutos distraídos no banho, ou sentado no vaso.
Saí disposto a encontrar outros registros do passado. Desci a
escada de tábua querendo ouvir cada passo. Fui olhar os li-
vros na estante. O pó agitado me levou mais para o fundo do
poço das lembranças. Foi sem dúvida esta, para mim, a casa
eleita a que se refere Bachelard: o abrigo dos devaneios. Ain-
da, a origem das coordenadas segundo Bollnow.
A culinária realça as emoções normalmente associadas à
reunião entre pessoas. Comer e beber bem na presença de
amigos reforça a amizade, e na presença de estranhos desper-
ta simpatia recíproca. Não esqueço um almoço em particular,
na casa de um amigo, em que apesar dos hóspedes pouco se
conhecerem, havia como elementos niveladores uma preciosa
feijoada, regada a vinho tinto seco, e na sobremesa pudim de
queijo com calda quente de goiaba e raspas de limão e anis.
Ao som dos preciosos discos da coleção do anfitrião, um
diálogo através de temas aleatórios crescia em euforia.
A culinária também realça uma experiência de conforto
no ambiente. No período em que vivi em Salvador, saí às
quatro da tarde de sábado para almoçar com minha esposa.
Eu vinha do encerramento de um curso intensivo e estava
desgastado. Decidimo-nos por um resturante único, uma
construção em caixa de vidro que se projeta sobre o mar. Ao
longe se avista a Ilha de Itaparica. O estabelecimento estava
aberto, apesar de vazio. Fomos atendidos pelo maitre. A de-
coração com mesas e cadeiras brancas e flores tropicais, ape-
sar das marcas do tempo, tinha efeito nostálgico. Durante o
aperitivo, a paisagem da janela mudou como que numa de-
monstração de efeitos especiais. Formou-se uma tempestade
impressionante sobre o mar ao redor. Em questão de dez
136 A IDÉIA DE CONFORTO

minutos, nuvens escuras retiraram do céu e do mar seus tons


de azul; agora, avistávamos um conjunto de manchas cinza e
prata. O ambiente foi se tornando escuro, e logo, por detrás
dos vidros, nada podíamos ver, nem ouvir, além das gotas em
turbulência. Era como uma tempestade naval sem risco de
naufrágio. Chegaram então os pratos, de tempero pronuncia-
do. Eram frutos do mar ao molho de ervas. Foi uma mistura
marcante de consolo e de prazer olfativo.
Cemitérios são locais onde as pessoas choram a falta dos
parentes e amigos. Mas mesmo sem reconhecer nenhum no-
me dos epitáfios, as pessoas vão sendo convidadas ao lamen-
to: o aroma de flores frescas e o odor de uns talos já podres, o
verde sóbrio dos ciprestes, o murmúrio do vento entre folhas
e fitas coloridas. Cemitérios-parque são implantados junto a
paisagens solenes, como um monumento vivo dedicado aos
finados. Já nos cemitérios urbanos, o desenho dos túmulos
pode formar um todo caótico, dificilmente agradável aos
olhos. Assim é o célebre cemitério Pere-Lachaise em Paris.
Mas lá, por baixo da cobertura convencional, estão sepulta-
das personalidades do mundo das letras como Guillaume
Apollinaire, Paul Eluard, Honoré de Balzac, Marcel Proust e
Oscar Wilde e Jean de la Fontaine, da pintura como Jacques
Louis David, Eugene Delacroix, Max Ernst e Camille Pissar-
ro, do teatro como Molière, da medicina como Samuel
Hahnemann (criador da homeopatia), da música como Frédé-
ric François Chopin, Gioacchino Rossini, Vincenzo Bellini,
Paul Dukas, Francis Poulenc, Georges Bizet, Maria Callas,
Edith Piaf, Stephane Grappelli e Jim Morrison, e da religião,
como Allan Kardec. Qualquer um encontra um nome conhe-
cido. Logo, o local emociona quase qualquer visitante.
E, novamente, há experiências sensoriais que superam a
esfera pessoal, atendendo critérios universais, pois não são
acidentais. Respeitam alguma estética, e têm acesso às tantas
definições de arte que existem.
A música associada a uma cerimônia potencializa os
motivos da celebração – alegres ou tristes – e como que sen-
sibiliza os participantes para que tenham uma medida corpo-
ral do teor do evento. Um Adagio em sol menor fez a fama de
Tomaso Albinoni (que, de fato, escreveu o baixo cifrado,
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 137

sendo que a música é atribuída ao musicólogo Remo Giazot-


to)198. Não consta como música escrita com alguma finalida-
de prática. Entretanto, num velório, faz brotar lágrimas no
mais frio dos presentes. Assim também o Adagio do quarteto
de cordas de Samuel Barber – em estilo diferente de Albino-
ni, mas de efeito similar. Soou pela primeira vez numa
transmissão coast to coast de rádio nos EUA. Foi populariza-
da como tema do filme Platoon, sobre a Guerra do Vietnã.
Entretanto, já era por décadas a música funeral dos presiden-
tes dos EUA. Assim também, numa Sexta-Feira Santa, soa
mais impressionante a Missa do Réquiem de Mozart, ou a
Paixão segundo São Mateus, de Bach.
No Brasil, as cerimônias de formatura nas universidades
ocorrem principalmente no verão. Iniciam com o ritual aca-
dêmico de outorga de grau. Depois vêm homenagens diver-
sas dos formandos a seus mestres, amigos e pais. Quando eu
me formei em Engenharia Mecânica, já que eu tocava violi-
no, fui incumbido da música de homenagem aos pais, junta-
mente com um tecladista. Apresentamos o Largo do Concer-
to Il Inverno de Vivaldi, um trecho conhecido e sublime.
Músico amador, e bem nervoso, tremi e desafinei. Mas de-
pois, pessoas de maior idade entre os presentes vieram me
dizer que tinham se emocionado. Encontraram na música
uma alusão à sua idade, o inverno da existência.
E como emociona a música! Isto não depende de alguma
conjunção favorável; pode ser um evento programado. Mas é
indispensável um contexto especial, específico. Uma vez, a
Orquestra Filarmônica Jovem de Boston, numa apresentação,
anunciou a breve despedida de seus integrantes que atingiram
a idade adulta e seguiriam pelas orquestras profissionais,
entoou as Variações Enigma de Sir Edward Elgar (o mesmo
que escreveu as músicas de Pompa e Circunstância para a
família real inglesa). Foi uma despedida tocante.
Outro contexto pode ser simplesmente um público muito
atento. Nas aulas sobre acústica arquitetônica, eu procuro
mostrar que os compositores escreviam cientes dos espaços

198
Roland de Candé, As obras-primas da música, vol. 1, Edições ASA, Lisboa
(1994).
138 A IDÉIA DE CONFORTO

de apresentação de suas obras. Certa vez, numa turma especi-


almente responsiva, ouvíamos exemplos de Mozart, Haydn e
Beethoven, e deste, a Quinta Sinfonia. Servia para exemplifi-
car o ataque (a qualidades de os auditórios permitirem ouvir
sons incisivos, como no sol, sol, sol, mi inicial). Eu queria
mostrar alguns compassos, mas havia um silêncio oportuno e
eu deixei seguir a música, até que tínhamos ouvido todo o
primeiro movimento, que durava doze minutos. Percebi a
maioria dos estudantes estavam concentrados, sua atenção
tomada pela música. Para mim, foi ocasião de arrepios. Aliás,
são uma aparição comum quando um recital é ansiosamente
esperado e, de fato, os intérpretes conseguem se fazer enten-
der. É provável que nenhum outro compositor cause tantos
arrepios como Bach.
A música como que condensa sentimentos soltos pelo ar.
Fui visitar, em Berlim, o Museu do Muro (Mauermuseum zum
Checkpoint Charlie, cujo fundador, o sociólogo Rainer Hilde-
brandt, faleceu no início de 2004). Tem como tema a divisão
da cidade à força, que perdurou por mais de três décadas e
marcou a vida das pessoas de ambos os lados. Mantido por
uma iniciativa da sociedade civil, é um pouco improvisado,
mal ventilado mas denso em informação. São relatos de fugas
heróicas, pessoas escondidas nas carcaças de rádios a válvulas,
outras enroladas sobre as rodas dentro dos pára-lamas de au-
tomóveis, umas transpondo o muro de balão, outras em esca-
das dobráveis e retráteis. Fugas bem-sucedidas, outras com
final triste, e entre elas, algumas acontecidas dias antes da
abertura. Numa sala vazia com cadeiras, a TV exibia um do-
cumentário sobre a reunificação da Alemanha em 1989. A
primeira metade, em preto-e-branco, retratava o constrangi-
mento criado pelo muro, ao som da marcha fúnebre da Sétima
Sinfonia de Beethoven. A segunda parte, em cores, mostrava a
derrubada simbólica do muro. Pessoas de todas as idades,
aglomeradas junto ao portão de Brandenburgo, assistiam a
fogos de artifício. Ouvia-se, agora, o coro da Nona Sinfonia
sobre versos de Schiller (com magia unes de novo tudo que a
moda separou; sob as tuas tenras asas todos homens são ir-
mãos). Quem não chorou de tristeza na Sétima choraria agora,
de um misto de alegria ao sentimento desconcertante de impo-
tência diante do futuro. O sofrimento dos berlinenses parece
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 139

ter sido eterno, mas depois que já passou, seguramos a história


num livro, tudo parece tão simples.
A Nona Sinfonia de Beethoven, aliás, está no enredo do
filme A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrik, em que uma
sociedade hipotética usa abomináveis práticas repressivas. A
música é usada como veículo condicionador de reações. Com
ela, o Estado controla o comportamento delinqüente.
Tchaikowski é comumente festivo, ou de um saudosismo
cantado em voz alta. Entretanto, tem alguns momentos graves.
O Trio em Lá menor, Opus 50, soa melancólico, e algo disto
se deve à dedicatória “à memória de um grande artista”.
Tchaikowski homenageava o amigo Nikolai Rubinstein, que
havia recém-falecido. O fato ocorrera em Paris, durante uma
temporada do compositor em Nice. Precipitou-se para alcançar
o velório do pianista, fundador do conservatório de Moscou,
com quem dividira uma moradia e que se suicidara ao consta-
tar sério comprometimento de sua saúde. Eu conhecia uma
gravação do final dos anos 60 com Pinchas Zukerman ao vio-
lino, Daniel Baremboim ao piano, e sua esposa, Jacqueline Du
Pré, ao violoncelo, todos ainda muito jovens. É inevitável a
associação à morte prematura da violoncelista, acometida de
esclerose múltipla. Por este motivo, a gravação consegue ser
ainda mais melancólica.
Como a música, encontramos na arquitetura rico acervo
destes amplificadores emocionais; serviram para mim, e de-
verão servir à maioria das pessoas, pois não acredito que
possam ter sido frutos do acaso.
O arco do Triunfo em Paris é uma forma gigantesca,
muito rígida, e expressa naturalmente poder, ordem, triunfo.
O Monumento Lincoln, em Washington, o respeito por um
idealista, de engajamento heróico, alçado a símbolo dos direi-
tos humanos. O Congresso Nacional em Brasília, por difícil
que seja aos brasileiros um distanciamento crítico das diver-
gências e despropósitos, impressiona fisicamente por sua
elegância, altivez e clareza. Pode ser visto praticamente de
qualquer lugar aberto no Plano Piloto, pois eleva-se sobre a
paisagem de infinita planeza. Parece um gigante que, orien-
tado pelos astros, é plenamente capaz de seguir um caminho
140 A IDÉIA DE CONFORTO

de acertos. Acaba enaltecendo os valores cívicos, o poder do


Estado, a democracia.
Bibliotecas são repositórios da diversidade de pensa-
mento, da contribuição original de muitos autores, em áreas
distintas e ao longo de vários séculos de produção intelectual.
Se temos consciência disto quando as visitamos, parece que
os próprios edifícios destas bibliotecas nos dizem mais. É
fascinante a visita à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
com seu mobiliário antigo e padrões de disciplina que tam-
bém remetem a épocas passadas. Proibida a fotocópia e o
porte de canetas, os usuários que quiserem transcrever infor-
mações só podem contar com o lápis. Um anacronismo para
os aficcionados da informática; já para os cultores da memó-
ria, um gesto de respeito.
Monumentos e bibliotecas são edifícios institucionais;
neles, mas também em qualquer outro edifício existe uma
fundamentação emocional que pode ser potencializada pelos
recursos expressivos. Num hotel vamos buscar descanso do
corpo e da mente. Na casa, o abrigo diário. É o local da in-
fância e do crescimento, da existência vegetativa, afetiva,
festiva, cultual, lúdica, reprodutiva. A escola e a universidade
são locais da formação. O primeiro dia da aula nas escolas
alemãs é festejado com o hábito de pais, parentes e vizinhos
presentearem as crianças com um chapéu, na forma de cone,
preenchido com presentes que marcam o novo início: cane-
tas, borrachas, lápis de cor e gizes de cera. Este material todo
será consumido. Por muito mais tempo, no entanto, permane-
ce o edifício da escola. Este, sim, deveria ser feito para durar
para sempre: lembrança do primeiro dia aula, dos primeiros
mestres, da primeira classe.
Hospitais são locais da cura, própria e daqueles por
quem nos preocupamos. E os asilos, da assistência àqueles de
menor sorte. As lojas são locais da oferta dos itens essenciais
e também dos itens supérfluos, que dão graça ao passar do
tempo. Os teatros, cinemas e galerias são locais da busca
direta pelo prazer estético. E o clube e o bar, da busca de
sociabilidade, de companhia, das paixões. São funções exis-
tenciais que nos importam e espalham seu significado pelos
espaços que as abrigam, sede de experiências sensoriais,
A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 141

beleza e símbolos. O templo, por fim, é um local onde vamos


pensar naquilo que resta para além da vida.
É provável que passemos pelo mundo mais rapidamente
do que todos esses espaços. Deles teremos sido não mais que
visitantes. Mesmo se não dispomos dos prédios que gostarí-
amos para trabalhar e viver, algo dos nossos valores perma-
nece neles. Valores que se manifestam cada vez que nossos
sentidos são chamados a perceber tais espaços, tenham sido
por nós desenhados ou construídos, ou simplesmente esco-
lhidos para locação. Enfim, não lhes somos neutros.
A arte é uma didática das emoções. Para Alfredo Lage199
a expressividade não é mais do que o sentimento tornado
comunicável graças à sua transposição num mundo objeti-
vamente contemplável e onde reinam a ordem, a lógica, a
coerência. O contexto ambiental do conforto, se nos seus
rudimentos é utilitário e decorre da arquitetura enquanto ins-
talação de abrigo, na transcendência é expressivo e se funde
ao contexto psico-espiritual, e integra a arquitetura enquanto
arte.

199
Alfredo Lage, A revolução da arte moderna, Agir, Rio de Janeiro (1969).
Die Augen sind die Wege des Menschen, die Nase ist sein
Verstand.
(Os olhos são os caminhos do ser; o nariz, seu entendimento)
Hildegard von Bingen
4 - O ideal de ar puro e o primitivismo
do olfato

4.1 Introdução
O filósofo Étienne de Condillac, no século XVIII, lan-
çou-se a um exercício extenuante. Queria imaginar quais
seriam as impressões de uma estátua que fosse ganhando
sentidos, um a um, até tornar-se viva. Iniciou pelo olfato.
Decidiu assim porque entendeu ser este o sentido mais primi-
tivo, mais fundamental, menos dispendioso para diferenciar
um ser vivo de uma estátua.
Podemos fechar os olhos e tapar os ouvidos; mas seria
difícil suprimir o olfato, pois respiramos o tempo todo. É o
primeiro sentido que adquirimos ao nascer: palmadas do
parteiro estimulam a primeira respiração. De uma perspectiva
evolucionista, o olfato é também um sentido muito antigo,
presente nas criaturas aquáticas menos evoluídas.
O tipo de informação transmitida pelo olfato é simples:
diz sobre a presença e concentração de substâncias químicas
144 A IDÉIA DE CONFORTO

no ar. É uma informação percebida quase que estática, pois


varia com a velocidade da difusão das moléculas no ar, auxi-
liadas ou não por aceleradores como o vento ou o transporte
mecânico - se quem acaba de chegar num recinto usa um
perfume, isto é sentido mais rapidamente se a pessoa perma-
necer caminhando, mas as variações ocorrem de maneira
lenta, quase imperceptível. Já com respeito à luz e o som,
somos capazes de perceber ínfimas variações no tempo.
O olfato é um sentido quase atrofiado nos seres huma-
nos, mas nem por isto se justifica não ser aproveitado em sua
capacidade, nem receber consideração. Muito se elogia da
boca e dos olhos de uma bela mulher, mas dificilmente al-
guém encontra poesia em algum aspecto do seu nariz. Entre-
tanto, um nariz feio é o motivo fácil de apelidos e caricaturas.
Teórico da arquitetura do Modernismo, Richard Neu-
tra200 observou que os livros lidos próximo das estantes de
bibliotecas da escola retêm acentos olfativos que permane-
cem associados com aquelas primeiras experiências na lite-
ratura. Os odores do ambiente escolar, assim como muitos
outros, estão gravados da maneira mais íntima na memória.
Se, anos depois, voltamos ao local, reconhecemos os odores
como lembranças mais familiares que as imagens.
O mesmo autor identifica uma contradição nos valores
comumente atribuídos aos ambientes: O cheiro de um escri-
tório vitoriano, coberto de painéis de madeira, pode ser sen-
sorialmente mais distintivo para nós que seus perfis estilísti-
cos, cornijas, e moldes; e será diferente para materiais alta-
mente polidos, nogueira envernizada, ou carvalho encerado
e, ainda, cedro ou sequóia sem tratamento. Costumamos
estudar interiores de uma perspectiva predominantemente
visual. No entanto, Neutra ressalta que a habitabilidade de
uma sala de visitas pode ser mais fortemente afetada pelos
cheiros do estofamento, do carpete e das cortinas do que
pelo ornamento visual da imitação de Chippendale ou Shera-
ton. O piso de borracha, as pinturas em esmalte, os vernizes,
óleo tung, o cheiro de banana de certos vernizes sintéticos,
mesmo variados tipos de poeira, originando um conjunto

200
Richard Neutra, op. cit.
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 145

inesgotável de impressões odoríferas, locais, mas não lem-


bradas de forma muito consciente, que devem ser levadas em
conta no projeto.
E não obstante, os livros de Conforto Ambiental costu-
mam deter-se na afirmação de que o ar deve ser puro.

4.2 Mecanismos físicos e fisiológicos


Quando a vida ocorria unicamente nos mares, os seres
vivos utilizavam a água ao seu redor como meio de troca de
informações. As substâncias emitidas por um determinado
ser eram diretamente examinadas pelas células sensitivas de
outro. Até hoje, o paladar humano opera de maneira seme-
lhante. Mas para os seres que deixaram o meio aquático, o
principal meio de difusão das moléculas passou a ser o ar. O
paladar tornou-se bastante limitado. Os seres humanos dife-
renciam entre o salgado, o doce, o azedo e o amargo.201 As
outras centenas de nuances encontradas nos alimentos são, na
verdade, percebidas pelo olfato: são nuances de aroma.
Um número significativo de animais tem no olfato a
principal forma de percepção à distância. Isto explica um fato
básico da ecologia da Floresta Amazônica. Nela, a diversida-
de de espécies de animais é enorme. Entretanto, os indiví-
duos de mesma espécie vivem distantes de vários quilôme-
tros uns dos outros, numa densidade populacional muito bai-
xa. E mesmo assim acabam se encontrando para o acasala-
mento.
O aparelho olfativo humano compreende, como única
parte visível, o nariz. Dentro do crânio encontra-se a cavida-
de nasal, que é dividida ao meio pelo septo nasal. Os dois
orifícios nasais, assim formados, conduzem até o meio do
crânio separados um do outro. Eles terminam unidos com a
cavidade bucal. Desta para a faringe, sobem pelo caminho
retronasal os vapores dos alimentos ingeridos, causando as
sensações olfativas que associamos ao seu sabor.

201
Discute-se também a inclusão do picante entre os sabores básicos.
146 A IDÉIA DE CONFORTO

No fundo de cada cavidade nasal, as moléculas atingem


a membrana olfativa, do tamanho de um selo postal, recober-
tas de um tecido amarelado e cinzento. Cada membrana con-
tém um número estimado em 100 milhões de células recepto-
ras. Pode parecer muito; no entanto, um cão pastor alemão
tem dez vezes mais células receptoras. Isto explica em parte a
acuidade olfativa do cão, e a importância deste sentido para
ele, que tudo quer cheirar; reconhece seu dono pelo olfato,
mais que pela visão.
As células receptoras são, na verdade, neurônios com
uma terminação especializada em cílios. Estes atingem a fina
camada de muco que recobre a membrana e tocam as partícu-
las que foram inaladas, para analisar as substâncias presentes.
Na outra extremidade há o axônio que transmite a informação
ao sistema nervoso. Tais células duram poucos dias e vão
sendo substituídas por outras mais novas, as basais.
Cada célula receptora está conectada por um neurônio
olfativo primário aos dois bulbos olfativos do cérebro. Os
neurônios olfativos primários passam por orifícios da placa
cribiforme, um osso muito fino na frente da cavidade crania-
na onde se localiza o bulbo olfativo. Os neurônios primários
se unem em estruturas conhecidas por glomérulos e ali en-
contram os neurônios secundários.
As fibras nervosas do aroma, então, percorrem um com-
plexo caminho através do restante do cérebro, particularmen-
te através de suas porções consideradas as mais primitivas do
ponto de vista evolutivo. Algumas fibras atingem o hipotá-
lamo, que é o centro que controla o apetite, o medo, a raiva e
o prazer, enquanto outras continuam até o hipocampo, que
regula a memória, ou descem até a base do crânio, onde são
reguladas funções tais como a lembrança de respirar.
As ligações nervosas explicam por que os odores conse-
guem despertar respostas emocionais tão fortes. Marcel
Proust descreve, no início de sua trilogia À procura do tempo
perdido, a sensação incomum depois que sua mãe serviu-lhe
madelaine (um bolo leve como um pão-de-ló amanteigado),
molhado no chá. O aroma desencadeou-lhe um tremor no
corpo: um prazer delicioso tinha invadido meus sentidos,
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 147

mas individual, isolado, sem dar pistas sobre sua origem.


Proust observa ainda que esta essência não estava nele, era
ele próprio. Deixei de sentir-me medíocre, acidental, mortal.
Esforçando-se em explicar de onde vinha uma alegria tão
poderosa, percebia algo que deixa seu local de repouso e
tenta erguer-se, algo que estava oculto como uma âncora a
grande profundidade. De súbito, consegue associar a lem-
brança ao sabor das migalhas de madeleine que, nas manhãs
de domingo em Combray sua tia Léonie costumava dar-lhe,
molhando-a antes em sua própria xícara de chá real ou de flor
de lima.
Ao fim da narrativa desta experiência sensorial que lhe
abriu as profundezas da memória para reencontrar sua infân-
cia, Proust observa que quando de um passado remoto nada
subsiste, depois que as pessoas estão mortas, as coisas des-
truídas, ainda, só, mais frágeis, mas com mais vitalidade,
mais imateriais, mais persistentes, mais crédulos, o aroma e
o sabor das coisas continua por longo tempo, como almas,
prontos para nos lembrar, aguardando e esperando por seu
momento, entre as ruínas de todo o resto.
Provavelmente não foi o sabor doce que liberou a lem-
brança de coisas do passado, da casa de sua tia. Foi, antes, o
cheiro levemente rançoso que estimulou o hipocampo e o
hipotálamo do escritor. Diane Ackerman202 observa que, nes-
te caso, entender de neurociência ajuda a melhor desfrutar
um clássico da literatura.
O mecanismo que nos permite a diferenciação de um
aroma do outro é bastante complexo. Até recentemente, des-
cobertas significativas têm sido feitas, mudando a explicação
vigente para o funcionamento do olfato.
Nos anos 30, foram encontradas áreas especializadas,
nos bulbos olfativos, para diferentes aromas, comprovando
especialização dos receptores. Nos anos 60, John Amoore, do
Departamento de Agricultura dos EUA, identificou a forma
das moléculas como um fator primordial para seu reconheci-
mento. Propôs cinco classes de odores com formas molecula-

202
Diane Ackerman, op. cit.
148 A IDÉIA DE CONFORTO

res específicas: canfóricos (forma esférica), muscais (forma


de disco), florais (forma de papagaio), mentados (forma de
cunha) e etéricos (forma de bastão). Outras duas classes de
odores ainda, pungentes e pútridos, tinham como marca não a
forma, mas as cargas elétricas de suas partículas. Amoore
acreditava em pelo menos trinta odores primários.
As classificações de Amoore funcionam como generali-
zações grosseiras, mas não revelam tudo. Em 1991, pesqui-
sadores da Universidade de Columbia, Drs. Richard Axel e
Linda Buck, identificaram uma família de genes que carrega
mapas de proteínas receptoras de odores. É uma família
enorme.
Em março de 1999, Linda Buck e Betina Malnic, da
Harvard Medical School, e ainda Junzo Hirono e Takaaki
Sato, do Life Electronics Research Center em Amagasaki,
Japão, acreditaram ter decifrado o mistério pelo qual o nariz
203
pode reconhecer mais de dez mil odores.
Por seu longo e valioso trabalho para desvendar o olfato
humano, os pesquisadores Richard Axel e Linda Buck rece-
beram em 2004 o Prêmio Nobel da Medicina.
Neurônios individuais de ratos foram expostos a uma sé-
rie de odoríferos. Usando uma técnica chamada de imagem a
cálcio, os pesquisadores detectaram quais células nervosas
estariam sendo estimuladas por um determinado odor. Quan-
do uma molécula do ambiente se combina ao seu receptor
odorífero, canais se abrem nas membranas dos nervos e os
íons de cálcio são neles depositados. Isto gera uma carga
elétrica que viaja através do axônio como um sinal nervoso.
A técnica citada mede o influxo de íons de cálcio.
O sentido do olfato nos mamíferos é aparentemente ba-
seado numa abordagem combinatória para reconhecer e pro-
cessar odores. No lugar de dedicar um diferente receptor para
cada substância, o sistema olfativo utiliza um alfabeto de
receptores para criar uma determinada resposta odorífera
enviada aos neurônios no cérebro. É algo semelhante à lin-

203
Michael Berry, An article on flavour, Sciencenet, (1994), disponível em
http://www.sciencenet.org.uk/database/soc/senses/s00129b.html
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 149

guagem escrita, que combina caracteres para formar palavras,


ou à música, que combina notas para formar canções, ou
ainda a um código genético, onde os quatro nucleotídeos
(adenina, citosina, guanina e timina) permitem um número
quase infinito de combinações de seqüências genéticas. Se
um odor excita um neurônio, o sinal viaja ao longo do axônio
da célula nervosa e é transmitido aos neurônios do bulbo
olfativo. Esta estrutura, localizada à frente do cérebro, é que
transforma os sinais químicos em estímulos nervosos.
Pesquisadores mostraram também que mesmo pequenas
mudanças na estrutura química ativam diferentes combina-
ções de receptores. Assim, o octanol - de cheiro parecido ao
das laranjas – tem um composto similar – ácido octanóico –
que cheira a suor. Descobriu-se que grandes quantidades do
composto químico ativam uma maior variedade de receptores
que quantidades menores do mesmo produto. Isto pode ex-
plicar por que um mesmo composto pode, em pequenas
quantidades, ter cheiro floral e, em grandes quantidades, ter
cheiro pútrido.204

4.3 Comodidade e adequação


No capítulo 1, foi proposta a decomposição do conforto
ambiental em três valores essenciais: comodidade (resumi-
damente, a ausência de dor), adequação (ao desempenho
produtivo) e expressividade (elevação de tudo em direção ao
prazer). Deste capítulo até o final, cada sentido retratado será
objeto de um estudo quanto a cada um destes valores do con-
forto ambiental.
O ar é composto de quase quatro quintos de nitrogênio e
cerca de um quinto de oxigênio. O restante das substâncias
aparece em pequenas percentagens: vapor de água, argônio,
dióxido de carbono, neônio.205 O olfato nos proporciona co-
204
John C. Leffingwell, Olfaction – Update No. 5, Leffingwell Reports, Vol. 2
(No.1) (2002).
205
Segundo James Lovelock, em Das Gaia-Prinzip – Die Biographie unseres
Planeten, Insel Taschenbuch, Frankfurt (1993), se não fosse a existência da vida
sobre a terra, sua atmosfera seria composta de 98% de CO2, 1,9% de N2, 0% de O2
e 0,1% de Ar, com temperaturas superficiais de 240 a 340 °C.
150 A IDÉIA DE CONFORTO

modidade quando podemos dispor de um ar puro, livre de


produtos nocivos à saúde. Ainda, o ar deve ser livre de odo-
res desagradáveis. Comumente, tais odores são traços de
substâncias em dosagens ínfimas, mas suficientes para serem
percebidas.
Para a qualidade do ar, não há diferenças significativas
entre a comodidade e a adequação, pois nem no repouso, nem
no trabalho toleramos substâncias prejudiciais à saúde. Mas
adequação pode significar coerência entre o odor e a tarefa
planejada. Se o cheiro de comida dentro de casa é usual, no
ambiente de trabalho ou estudo é inadequado – a não ser que
o local de trabalho seja uma lanchonete ou restaurante. Por
outro lado, no ambiente de trabalho, toleramos alguns odores
que não são aprazíveis dentro de casa. O pintor se acostuma
às tintas e solventes; o açougueiro à carniça; o enfermeiro ao
éter, e o lixeiro, ao lixo.
Odores não necessariamente agradáveis podem ser por-
tadores de informação útil e até servir de alarme, desencade-
ando reações urgentes. Um incêndio é detectado pela olfação;
o gás encanado (normalmente inodoro) recebe adição de gás
sulfídrico - típico odor a ovo podre – para que vazamentos
sejam rapidamente reconhecidos.
Na Universidade de Yale, nos EUA, os pesquisadores do
Centro de Psicofisiologia argumentam que o cheiro de maçãs
pode reduzir a pressão sanguínea em pessoas sob estresse e
pode prevenir ataque de pânico. Já a lavanda poderia desper-
tar o metabolismo e tornar alguém mais alerta. Fragrâncias
adicionadas à atmosfera podem aumentar a velocidade de
digitação e a eficiência no trabalho, em geral.
A qualidade do ar nos ambientes internos é especialmen-
te importante, por ao menos três razões.
Primeiramente, porque neles as pessoas passam a maior
parte do seu tempo.
Depois, porque o ar interno é a soma do ar externo com
alguma coisa – não a subtração, como pode parecer. A pre-
sença das pessoas dentro dos ambientes fechados é um fator
suficiente para que a qualidade do ar vá piorando com o tem-
po. E os filtros de aparelhos de ar condicionado, sem o cui-
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 151

dado da limpeza periódica, contaminam, mais que purificam,


o ar insuflado.
Ainda, além dos poluentes já presentes no ar externo, o
ar interno ainda tem sua qualidade afetada por uma série de
poluentes exclusivos, como os provenientes de móveis, re-
vestimentos, colas e tintas.
Por último, sendo limitado o volume de ar dentro dos
ambientes, a concentração de poluentes facilmente atinge
níveis muito mais altos que no ar externo. Nas regiões quen-
tes, este problema é compensado pela prática da ventilação
intensa. Já nas regiões frias, a infiltração por esquadrias de
má qualidade, se prejudica o conforto térmico, pode auxiliar
a qualidade do ar. Ocorre mesmo na ausência de vento, pois
o ar quente dos interiores, mais leve, é trocado naturalmente
pelo ar frio do lado de fora. E o problema se agrava à medida
em que se afirmam novas tendências de construções com
maior isolamento térmico, tanto para prevenir as perdas de
calor (ambientes aquecidos), como de frio (ambientes refrige-
rados).
A qualidade do ar pode vir a ser preocupante nas cama-
das mais pobres da população. O fator mais simples é o ta-
manho reduzido dos cômodos, portanto com menor volume
de ar, maior densidade de pessoas e de fontes de poluição.
Além disso, concorrem fatores comportamentais relaciona-
dos. Uma pesquisa realizada em domicílios com crianças
entre zero e cinco anos de idade revelou uma tendência de
maior percentual de fumantes na família, assim como de
mães fumantes, na população mais pobre.206 Em regiões ru-
rais, em diversos países, o uso de fogões a lenha e da lampa-
rina a querosene ou Diesel é um reconhecido fator de má
saúde pulmonar.
Na ausência de fontes de poluição importantes no ambi-
ente, é pouca, quase ínfima a renovação de ar necessária para
a eliminação dos resíduos da respiração. Todavia, entre o
206
Carlos Augusto Monteiro e Clarissa de Lacerda Nazário, Evolução de condicio-
nantes ambientais da saúde na infância na cidade de São Paulo(1984-1996) Rev.
Saúde Pública vol.34 n.6, supl. São Paulo ( 2000).
152 A IDÉIA DE CONFORTO

ambiente hermeticamente fechado e o ambiente levemente


arejado existe uma diferença crucial.
Quanto ar é necessário renovar? Com as mãos sob as na-
rinas, recebendo o sopro que deixa os pulmões, é fácil esti-
mar empiricamente que o influxo de ar externo deve ser algo
em torno de meio litro por segundo, por pessoa. Entretanto,
dado que o ar puro se mistura ao viciado, e o ar que sai con-
tém ar puro que recém entrou, é necessário majorar a quanti-
dade estritamente necessária à respiração.
E se não é possível, nos ambientes, controlar a presença
de outras fontes de poluição, é necessário ventilar ainda mais,
em medida suficiente a diluí-la até que deixe de constituir
fator de ameaça ou incômodo.
Embora não seja considerada um poluente, a umidade do
ar no ambiente construído é um dos principais fatores que se
deve manter numa faixa razoável. Além da decisiva influên-
cia sobre a sensação de frio ou calor, como explicado no
capítulo sobre conforto térmico, um valor muito alto de umi-
dade propicia o crescimento de fungos, que podem desenca-
dear reações alérgicas nas pessoas e também danos materiais.
Já um valor muito baixo de umidade predispõe ao resseca-
mento das mucosas e facilita a transmissão de doenças. As
pessoas são fontes de vapor de água no ambiente, assim co-
mo as plantas e alguns processos domésticos: cocção, lava-
gem e higiene pessoal. Para que o excesso da umidade seja
eliminado, é necessária uma ventilação em torno de cinco
vezes mais intensa que aquela necessária para respirar. São
necessários próximo de três litros por segundo por pessoa.
Este mesmo fluxo de ar é facilmente obtido pelas frestas das
portas e janelas, na presença de vento – que não deve obriga-
toriamente ser contínuo, podendo ser intermitente.
O ar pode reter tanto mais vapor de água, dissolvido,
quanto mais alta for sua temperatura. Atingido um limite – o
ponto de saturação–, seja pelo aumento da produção de vapor
ou pela diminuição da temperatura, forma-se água em gotícu-
las. Isto ocorre nas estações frias. As pessoas fecham as jane-
las para se proteger, e o vapor de água que expelem ao respi-
rar não tem como sair. O teor de umidade no ar sobe até o
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 153

limite, quando então o vapor de água se condensa nas partes


mais frias: os vidros. Aliás, durante uma chuva, é o que ocor-
re no interior de um automóvel: com as janelas fechadas e
suas vidraças refrigeradas pela água que escorre por fora, a
umidade se condensa em gotículas e prejudica a visibilidade.
Nas edificações, pontos em que é comum a conden-
sação de umidade localizam-se junto às quinas de paredes
externas, falhas, adelgaçamentos e outros locais mais sujeitos
a um resfriamento localizado. Esta dinâmica do vapor de
água impõe um desafio especial às edificações em que se
pretende manter uma temperatura diferente da do meio exter-
no, seja através de isolamento térmico, seja através de aque-
cimento artificial.
Em superfícies muito frias, como nos balcões frigorí-
ficos das lojas, a umidade do ar sofre condensação, deixando
as superfícies molhadas. O mesmo acontece na face interior
de paredes ou esquadrias externas que sejam delgadas ou de
alta condutividade térmica. Se forem impermeáveis, como o
vidro, não haverá conseqüências aparentes para a saúde.
No caso de uma parede permeável, o vapor de água a
atravessa, por difusão, do meio de maior concentração para o
de menor concentração. Normalmente, o meio de maior con-
centração de vapor é o meio interno das edificações. Buscan-
do as concentrações menores do lado de fora, o vapor encon-
trará porções frias, que podem ficar encharcadas. Se for uma
parede espessa ou de um material de baixa condutividade
térmica, como o concreto celular alveolar, a profundidade em
que o vapor vira água estará mais próxima da superfície ex-
terna. Em geral, as paredes externas que, ao longo de sua
superfície, apresentarem descontinuidades materiais, sofrerão
o efeito concentrado da condensação. É o caso de uma parede
delgada de tijolos, em que a umidade condensa em seus re-
juntes feitos com argamassa. Nas cidades com estações frias,
as paredes externas permeáveis em ambientes mal ventilados
sofrem infiltração de umidade com condensação que, além de
deixar manchas, pode soltar o revestimento externo, como
por exemplo as pastilhas, comprometendo a segurança das
pessoas.
154 A IDÉIA DE CONFORTO

Ao lado da umidade, um importante fator de prejuízo da


qualidade do ar são processos de combustão ocorrendo den-
tro de ambientes fechados. Na presença de fumantes, o valor
mínimo de ventilação, por pessoa, é de quinze litros por se-
gundo.
Outras formas de combustão como fogões, aquecedores
a gás e lareiras a lenha consomem razoavelmente mais ar
fresco que o cigarro e requerem uma abundante ventilação.
Ao lado do dióxido de carbono, que emitem em volume mui-
to superior àquele normalmente produzido pelas pessoas,
contaminam o ar com monóxido de carbono (CO). Este é
resultado de uma combustão incompleta – em que falta oxi-
gênio. É o que ocorre quando um aquecedor a gás permanece
ligado, num cômodo fechado, sem a ventilação necessária. O
CO atinge o sangue e ali prejudica as condições de transporte
de oxigênio pelo corpo. Um agravante é o fato de este gás ser
inodoro. Mata por asfixia sem que as vítimas tenham tempo
de reagir.
Poluentes comuns em processos de combustão, ainda,
são os óxidos de enxofre (causadores da chuva ácida); os
óxidos de nitrogênio (causadores de diversas condições pato-
lógicas, como a supressão da imunidade, hipertensão e cân-
cer); os materiais particulados (descritos abaixo), especial-
mente na combustão de sólidos, ou óleos pesados; os hidro-
carbonetos, dos quais ao menos os compostos benzênicos
têm efeito cancerígeno; e o ozônio, um gás irritante que apa-
rece como sub-produto dos poluentes da combustão na pre-
sença da luz solar. Trata-se do mesmo gás que hoje faz falta,
na estratosfera, onde normalmente exerce o papel de filtro
das radiações ultravioleta do sol, nocivas à saúde humana.
Os chamados compostos orgânicos voláteis (COV) estão
presentes no estado gasoso à temperatura ambiente. Normal-
mente, originam-se de duas fontes: as emanações de materi-
ais de superfícies, como espumas e plásticos, e os produtos
de limpeza e outros químicos de uso doméstico, como as
tintas e os pesticidas. Os COV mais comuns são o benzeno, o
tolueno, o xileno, o cloreto de vinila (VC), o naftaleno, o
cloreto de metileno e o percloroetileno. Entre eles estão ainda
centenas de outras substâncias, das quais se tem descoberto
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 155

efeitos irritantes das vias repiratórias e mucosas e, a longo


prazo, uma eventual influência cancerígena.
O PVC – cloreto de polivinila – tem uso disseminado
nos interiores de residências e escritórios: em filmes para a
proteção de alimentos, persianas, base de carpetes, móveis
para jardim, fechaduras, janelas e forros. Expressiva resistên-
cia ao uso do PVC surgiu na Alemanha, apesar de ser o país
sede de importantes indústrias químicas: existe uma preocu-
pação pública por se tratar de um produto perigoso na fabri-
cação e no uso. O PVC exala vapores que contém substâncias
comprovadamente cancerígenas e que, no ambiente não ven-
tilado, podem atingir concentrações críticas. No evento de
um incêndio, a queima do PVC produz vapores tóxicos, além
de acelerarem a degradação das estruturas de aço por conte-
rem cloro. Diversos municípios alemães proibiram o uso do
PVC em obras públicas.207 Nos Estados Unidos, é vedado o
uso de PVC nas rotas de evacuação dos edifícios em caso de
incêndio.
Os laminados e aglomerados desempenham papel fun-
damental na indústria de móveis, e podemos diferenciar três
classes de produtos: o compensado (lâminas compostas de
chapas de madeira superpostas e coladas); os aglomerados
(lâminas compostas de serragem aglomerada por meio de
cola), e o MDF - medium density fiberboard (tecnologia que
permite a confecção de peças curvas, leves e bastante resis-
tentes). Os aglomerados têm mais cola que os compensados,
e o MDF chega a ter cinco vezes mais cola que os aglomera-
dos. É o produto do qual são feitos hoje os móveis em sua
maioria, revestidos de delgadas lâminas de madeira natural.
Nem o compensado, nem o aglomerado e muito menos o
MDF devem ser queimados em lareira, forno caseiro ou chur-
rasqueira, mesmo que seja na melhor intenção de aproveitar
os resíduos. Se o compensado expõe poucas superfícies de
cola, móveis com aglomerados e MDF são por vezes deixa-
dos sem lâmina de revestimento na sua face interna e eventu-
almente na face externa. Tais partes exalam vapores originá-

207
Manfred Fritsch, Handbuch des gesunden Bauen und Wohnen, Dtv Taschenbuch
Verlag, Munique (1996).
156 A IDÉIA DE CONFORTO

rios da cola, nos quais o formaldeído é o principal compo-


nente a considerar. É comprovado causador de mal-estar:
irritabilidade das mucosas, olhos e garganta, e dores de cabe-
ça, e desconfia-se do efeito cancerígeno a longo prazo. Con-
siderado o mais importante poluente dos interiores, o formal-
deído é um gás incolor com cheiro forte, embora sua concen-
tração seja normalmente baixa ao ponto de não ser percebido.
Outras fontes de formaldeído incluem carpetes, papéis de
parede decorativos e muitos outros produtos domésticos.208
É extensa a relação dos solventes utilizados em tintas,
colas, aglomerantes de pranchas utilizadas na estrutura e no
revestimento de móveis, e ainda produtos de limpeza. Acon-
selha-se não utilizar produtos novos sem que estejam testados
e aprovados, e consultar informações ambientais de países
em que estejam em uso há mais tempo e a discussão dos efei-
tos, portanto, esteja mais avançada. Muitos produtos são pro-
ibidos e deixam o mercado e, todavia, permanecem presentes
nos ambientes.
Especialmente em reformas e restauros, em que revesti-
mentos são arrancados e pisos e paredes são lixados, tais
materiais ressurgem nos ambientes. Durante a obra, a ação
mecânica das ferramentas deixa no ar substâncias sólidas
potencialmente nocivas. São classificados como materiais
particulados – um grupo abrangente por ser identificado pelo
critério de tamanho, e não pela composição química. São
sólidos suficientemente leves para permanecer em suspensão
no ar, e pequenos de modo a conseguirem penetrar nos alvéo-
los dos pulmões. Além do pó originário do ambiente externo,
diversos materiais presentes nos interiores são fontes de par-
ticulados. Entre eles, a fumaça do cigarro, dos fogões a lenha
e de outros tipos de queimadores de combustível sólido e
líquido.
No pó há possibilidade de encontrar-se pequenas par-
tículas de tecidos, madeira e comida; esporos de fungos, pó-
len, fragmentos de insetos, pêlos e cabelos, e partículas de
fumaça, tinta, nylon, borracha, fibra de vidro e papel.

208
Peter du Pont, &John Morrill, Residential Indoor Air Quality and Energy Effi-
ciency, ACEEE, Washington (1989).
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 157

Dois materiais de construção que foram intensamente


utilizados nas últimas décadas são o amianto (presente nas
telhas e nas massas corridas) e os aglomerados de papelão
(nos forros de absorção acústica). Quando manipulados, libe-
ram partículas que podem ser inaladas e produzir enfermida-
des do aparelho respiratório. A proibição do amianto em
obras novas poderia provocar a reação de arrancá-lo de onde
já está instalado. É neste momento que pode se tornar perigo-
so: telhas jogadas ao solo se partem, formando nuvens de
partículas.
Outro grupo de contaminantes a ameaçar o ar ambi-
ente é o dos agentes biológicos. Alguns são visíveis, facil-
mente atribuídos a condições deficientes de higiene, e outros
não, podendo permanecer insuspeitos por muito tempo.
Cães e gatos de estimação têm potencial para desen-
cadear alergia das vias respiratórias. Os agentes causadores –
chamados de alergógenos -, especialmente em se tratando de
gatos, são pequenos de modo a permanecer por muito tempo
em suspensão no ar, e são transportados pela roupa e pelos
cabelos de quem vive junto dos animais para os outros ambi-
entes. Neles, a irritação de pessoas sensibilizadas é imediata.
Quando os cães têm liberdade de permanecer sobre pisos de
carpete do interior das casas, a concentração de alergógenos
chega a ser cem vezes superior àquela verificada em assoalho
de tábuas.
Os ácaros são artrópodes incluídos na ordem Acari da
classe Arachnida. São aparentados com as aranhas e escorpi-
ões e distinguem-se facilmente dos insetos por apresentarem
quatro pares de patas.
Os mais importantes do ponto de vista do conforto am-
biental são os Dermatophagoides, que vivem nas frestas do
assoalho e nos cantos dos ambientes. Suas fezes apresentam
uma substância causadora de alergia aos seres humanos, que
se manifesta como eczema, asma ou rinite crônica. São bem
maiores que os resíduos de pelos de gatos e não se mantêm
em suspensão. É nas frestas do assoalho e entre os fios dos
carpetes que se acumulam, assim como nas roupas de cama e
nos outros tecidos usados no revestimento de móveis. Os
158 A IDÉIA DE CONFORTO

ácaros se alimentam do material que cai sobre aqueles subs-


tratos como, por exemplo, os resíduos de cabelos e pele das
pessoas. Ao sentar-se ou deitar-se sobre o chão, roupas de
cama e estofados, e ao varrer ou aspirar o piso, as pessoas
tomam contato com os resíduos de ácaros. Locais de risco
incluem bares e danceterias, auditórios de teatros, salas de
conferências e de concertos e cinemas. Por motivos acústi-
cos, tais salas são revestidas em carpete, onde se acumulam
restos de comida (principalmente pipoca). Muitas não rece-
bem radiação solar alguma, apesar de seu componente ultra-
violeta poder auxiliar na desinfecção. Se a sujeira não é vista,
provavelmente é inalada.
Ao menos duas espécies de ácaros atacam penas de
galinhas, os Syringophilus e Analgesidae. Travesseiros e
almofadas de penas, outrora apreciados pela sua agradável
consistência, são hoje evitados em virtude dos ácaros. A lim-
peza com aspirador de pó e produtos químicos – acaricidas –
reduz a concentração de ácaros de acordo com testes labora-
toriais, mas os resultados não são comprovados na prática.209
A redução da umidade através de desumidificadores ou venti-
lação mecânica é outra maneira de se combater a sua propa-
gação; todavia, é tarefa dispendiosa. A renovação de col-
chões e travesseiros rende resultados somente temporários. A
providência mais eficaz é cobri-los com um tecido permeável
ao vapor, porém impermeável aos ácaros. Roupas de cama
devem ser lavadas, pelo menos, a 55°C, temperatura suficien-
te para matar os ácaros. As capas de proteção devem ser es-
covadas a cada troca de roupa de cama. Diversos outros áca-
ros podem causar danos às pessoas, diretamente como os
carrapatos, e indiretamente, como um ácaro que ataca somen-
te abelhas.210
Na Escandinávia, no final do século XX, houve um
acúmulo de queixas com respeito à qualidade do ar dentro
das edificações. O fato foi atribuído à adoção, desde a metade
do século, de um superisolamento térmico das mesmas, vi-
209
Ashley Woodcock, Adnan Custovic ABC of allergies: Avoiding exposure to
indoor allergens, British Medical Journal 316, pp.1077-1080 (1998).
210
Carlos H.W.Flechtmann, Ácaros de importância médico veterinária, Bibl. Rural,
Livraria Nobel, São Paulo (1985).
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 159

sando à economia de energia. A renovação do ar era limitada


a um valor muito baixo. O resultado foi de prejuízo da saúde
das pessoas, e isto está relacionado, entre outros fatores, à
ação de fungos.
Estes seres, que não são animais nem vegetais, mas
constituem um reino à parte, entram nas edificações pelas
aberturas como portas e janelas, pelas tomadas de ar dos sis-
temas de aquecimento, ventilação e condicionamento de ar,
através de materiais de construção contaminados, ou ainda
trazidos por pessoas e animais. Se condições de elevada umi-
dade persistirem por um tempo suficiente, pode ocorrer cres-
cimento de fungos e esporulação. Isto ocorre, por exemplo,
pela infiltração de água durante uma tempestade, ou ainda
devido à condensação da umidade (descrita acima).
Vasos de flores nos interiores das edificações, úmi-
dos e protegidos da radiação solar, oferecem condições pro-
pícias para o crescimento de fungos. O mesmo ocorre dentro
das instalações de ar condicionado, que devem ser objeto de
manutenção regular e cuidadosa.
No maior levantamento feito nos EUA sobre concentra-
ção de fungos no ar interno,211 com medições concomitantes
do ar externo, Cladosporium, Penicillium e Aspergillus fo-
ram os fungos mais comuns.
Imóveis que tenham sofrido danos por água mostravam
médias populações, e a presença de sinais visíveis de cresci-
mento fungal indicava, sim, grandes populações de fungos e
múltiplas toxinas de origem microbial, assim como possíveis
patógenos,212 com freqüente ocorrência de pneumonite com
hipersensibilidade. Apesar desta associação, nenhum fungo
foi identificado como principal responsável pelo surgimento
da doença.

211
Brian G. Shelton, Kimberly H. Kirkland, W. Dana Flanders, e George K. Morris
Profiles of Airborne Fungi in Buildings and Outdoor Environments in the United
States Applied and Environmental Microbiology, Vol. 68, No. 4, p. 1743-1753
(2002).
212
J. Peltola et al., Toxic-Metabolite-Producing Bacteria and Fungus in an Indoor
Environment Applied and Environmental Microbiology, Vol. 67, No. 7, p. 3269-
3274 (2001).
160 A IDÉIA DE CONFORTO

A pesquisa apontou ainda que nos imóveis sem sinais


visíveis de fungos as menores populações dos mesmos eram
mínimas. Entretanto, a biocontaminação oculta também exis-
te.
Uma ampla gama de compostos orgânicos voláteis são
produzidos por micróbios e podem permear as paredes dos
edifícios, difundindo-se no ar interno. Quando o valor de
equilíbrio da umidade relativa do ar nos materiais vai se
aproximando da saturação, começam a crescer diferentes
culturas: espécies dos gêneros Penicillium, Eurotium e As-
pergillus entre 75 e 80%, Clodosporium entre 80 e 90% e
Fusarium e Stachybotrys, Actinomicetos e levedura acima de
90%. Estes microorganismos produzem, como resíduo de seu
metabolismo, diversos compostos orgânicos voláteis (COV)
que podem contaminar o ar interno, e poderiam ser erronea-
mente atribuídos aos materiais sintéticos.213
Enfim, outro agente biológico a ser mencionado é o
alergógeno das baratas.
Independendo de efeitos sobre a saúde, evitamos nos
ambientes de nossa permanência alguns odores aos quais
desenvolvemos aversão: alimentos em decomposição, suor,
excrementos, mofo, poeira, algumas madeiras e flores, alguns
animais, e até mesmo pessoas. Mas até as fragrâncias de per-
fumes podem irritar, caso sejam em concentrações elevadas.
Por exemplo, dentro de um ônibus nos incomodamos se uma
pessoa demasiado perfumada toma um lugar próximo. Irrita-
ção ainda maior é causada dentro de uma cabine de avião,
pelo caráter mais hermético do ambiente.

4.4 Expressividade
Por vital que seja o ar, há situações em que sua pureza
deixa de ser a opção unanimemente preferida.

213 Anne Korpi, Anna-Liisa Pasanen, and Pertti Pasanen, Volatile Compounds
Originating from Mixed Microbial Cultures on Building Materials under Various
Humidity Conditions, Applied and Environmental Microbiology, Vol. 64, No. 8,
p. 2914-2919 (1998).
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 161

É a situação em que aplicamos perfume sobre a pele,


aromatizante num banheiro ou incenso na sala. O cheiro de
comida nos atrai até a cozinha. Chegando a hotel, é preferível
sentir o cheiro de cera, ou desinfetantes, que não sentir odor
algum. Um fumante busca conscientemente pela fumaça.
Adolescentes freqüentam bares que já conhecem como esfu-
maçados.
Alguns contrastes curiosos se revelam. O mesmo vina-
gre que colocamos na comida, fora da mesa pode ter efeito
repulsivo, pois sugere decomposição. O aroma da carne assa-
da e salgada pode despertar fome compulsiva nas pessoas.
Entretanto, é muito diferente o odor de sangue, quando fora
do contexto da alimentação.
Muitos são os riscos associados à qualidade do ar sobre
a saúde e a comodidade das pessoas. Ricas e intensas, contu-
do, são as experiências do olfato, especialmente ao conside-
rarmos sua expressividade. Para um estudo mais sistemático,
é útil a distinção entre o ponto de vista pessoal (baseado na
associação) e o ponto de vista coletivo (baseado em referên-
cias culturais; haveria ainda as referências absolutas).
No primeiro caso, a expressividade do olfato está muito
relacionada à localização do centro olfativo no cérebro, que
se dá junto ao centro das emoções.
O olfato é um sentido ancestral. Como já foi dito, ainda
no mar, os seres interceptavam moléculas diversas, que ser-
viam de pistas dos outros seres, provavelmente presentes nas
proximidades. Estes sinais químicos tinham importância vi-
tal, pois permitiam o reconhecimento de predadores ou pre-
sas e, logo, fundamentavam a decisão de avançar ou recuar.
No lento processo da evolução, este sentido continuou sendo
usado, auxiliando as espécies.
Uma função vital do olfato é a identificação. Pesquisa-
dores do Monell Chemical Senses Center (Pennsylvania,
EUA) perceberam que os ratos podem discriminar diferenças
genéticas em parceiros potenciais através do odor, que in-
forma detalhes do sistema imunológico de cada indivíduo.
Mesmo sem explicação científica, é fato que em tribos como
os Negritos Batek da Península Malaia, a união de casais “de
162 A IDÉIA DE CONFORTO

mesmo cheiro” equivale a um delito comparável ao incesto.


A palavra beijo significa cheiro em tribos de muitos países:
Borneo, Gâmbia, Burma, Siberia, Índia, e em vasta extensão
do Brasil. As pessoas se abraçam e aproximam o nariz à regi-
ão detrás das orelhas umas das outras para sentir seu cheiro.
Apesar de socialmente desprezado entre diversos grupos
humanos, que procuram disfarçá-lo, o odor é fator fundamen-
tal, no reino animal. E isto diz respeito também aos seres
humanos, na identificação, comunicação e atração entre si,
tanto pares amorosos, como entre mães e seus filhos.
Uma função vital relacionada ao olfato é a alimentação.
Apesar de o ser humano ser caçador, portanto orientado pela
visão em sua busca por comida, sofre impulsos irresistíveis
ao perceber seu aroma.
Uma função diferente, ainda, é a da previsão do tempo.
O olfato informa sobre os acontecimentos climáticos: o chei-
ro de chuva é algo que se percebe mediante treinamento pois,
com a queda da pressão atmosférica, intensificam-se os aro-
mas do solo.
Muitas outras reações desencadeadas a partir do olfato
decorrem de associações. São fatos da vida pessoal e portanto
dificilmente se deixam generalizar. É difícil dissociar o olfato
das emoções passadas. Para Rachel Herz,214 as emoções são
somente um tipo de versão abstrata daquilo que o olfato diz
ao organismo num nível primitivo. São uma predisposição ao
ataque ou à fuga diante da identificação de um inimigo, ou
ainda de movimentos diferentes no caso de seres amigáveis.
Diane Ackerman215 menciona uma teoria segundo a qual
nossos hemisférios cerebrais teriam brotado dos órgãos olfa-
tivos dos seres dos quais nos originamos.
A autora cita ainda diversos contextos culturais em que
os aromas tomaram significado ritual. O uso do perfume
iniciou-se na Mesopotâmia como incenso oferecido aos deu-
ses para adoçar o cheiro de carne animal em sacrifício; era
214
Rachel Herz et al., The emotional distinctiveness of odor evoked memories.
Chemical Senses. 20(5): 517-521(1995) citada no folheto eletrônico Living Well
with Your Sense of Smell, Sense of Smell Institute, Nova Iorque (2004).
215
Diane Ackerman, op. cit.
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 163

usado em exorcismos para curar os doentes e, ainda, após o


ato sexual. A origem da palavra perfume é latina: perfumar =
defumar através de. Pessoas da pré-história aplicavam per-
fumes aos seus corpos, assim como as pessoas, sofisticadas
ou não, o fazem até hoje, tanto mais em ocasiões especiais. A
primeira civilização de que se tem registro de usar perfumes
de maneira regular e extravagante foi o Egito. Suas práticas
funerais e de embalsamar corpos requeriam condimentos e
ungüentos. Queimavam toneladas de incenso em rituais ela-
borados de culto. O perfume se tornou uma obsessão nacio-
nal durante o reino da Rainha Hatshepsut (1501-1480 AC),
do novo reino, que plantou grandes jardins botânicos e quei-
mou incenso nos terraços que levavam aos seus templos.
A consideração do fator cultural esclarece o relativismo
de muitas experiências olfativas como ocorre, por exemplo,
com relação ao odor de determinados tipos de queijo aprecia-
dos na França e na Holanda, nem sempre tolerados no Brasil
e rejeitados no Extremo Oriente juntamente com outros mui-
to mais suaves.
A propósito, é um fato conhecido que os povos do Ex-
tremo Oriente sejam asseados com relação aos odores. No
Japão, o fato parece estar associado ao hábito do banho diá-
rio, que contrasta com os costumes de vários povos europeus.
Diane Ackerman comenta que japoneses e chineses, de modo
geral, não têm tantas glândulas sebáceas nas raízes dos pêlos
como os ocidentais. Odores pungentes seriam absorvidos por
gorduras, em menor quantidade nos orientais, que são portan-
to cuidadosos com relação às essências corporais Um odor
corporal forte entre homens japoneses pode até mesmo justi-
ficar a dispensa do serviço militar. Curiosamente, no Japão, a
palavra kusai se aplica tanto a um item mal-cheiroso – espe-
cialmente se estiver em decomposição (kusaru = apodrecer) –
como ao indivíduo cuja personalidade transborda, distoando
do padrão médio. O odor se torna, então, um princípio com
que se costuma caricaturar alguém, e muitas vezes em senti-
do figurado, já que naquele país, nos ambientes comerciais e
institucionais, preza-se a uniformidade das atitudes sociais.
Isto inclui cor e corte das roupas, cabelos e barba, linguajar e,
o mais surpreendente, os assuntos das conversas: pessoas que
164 A IDÉIA DE CONFORTO

não forem da maior intimidade não entram em diálogo sobre


temas como filosofia ou religião.
Rachel Herz menciona que, num estudo feito pelas for-
ças armadas dos Estados Unidos para criar a bomba pestilen-
ta, mostrou-se impossível encontrar um odor que fosse ine-
quivocamente considerado desagradável através de diferentes
grupos étnicos. – Mesmo o odor das latrinas de campanha
daquelas forças não era unanimemente repudiado. Isto indica
que não são somente os odores neutros ou moderados que
variam por cultura, o que consideramos que cheira mal tam-
bém varia.
A parcela de odores que parecem causar reações univer-
salmente previsíveis é muito mais limitada. Em geral, trata-se
de substâncias químicas irritantes como, por exemplo, a
amônia. E o aroma de alimentos conhecidos, principalmente
de alimentos doces, atrai as pessoas de modo pouco depen-
dente de sua cultura. É o caso do aroma da baunilha – extraí-
do de orquídeas. Aqui, a preferência trata-se mais de um
fenômeno absoluto que cultural.
O olfato é o único sentido que consegue acesso direto ao
sistema límbico, que é responsável pelos cuidados pessoais
como alimentação, ataque e defesa, e preservação da espécie
(sexualidade no sentido amplo e restrito). Regula nossas im-
pressões, motivações e impulsos e influencia os controles
hormonais, processos de aprendizado e armazenamento na
memória, assim como o abastecimento nervoso vegetativo
dos órgãos internos.
O sistema límbico é tido como o centro de nosso incons-
ciente. Reações provocadas pelo olfato naquela que é a parte
mais velha do cérebro ocorrem em alguns segundos e poucas
moléculas bastam para mudar humores e colocar em movi-
mento sistemas reguladores.
A psico-aromaterapia se vale deste fato. Assume que as
terapias podem ser melhoradas mediante o uso de aromas,
acelerando processos psíquicos, mentais e espirituais. O tra-
balho atinge mais rapidamente os efeitos desejados no in-
consciente. Em muitos aromas se constatou ação consoladora
e de auxílio à alma ferida. Apóiam mudança de atitude e
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 165

processos de aprendizado, têm efeito terapêutico ordenador:


ajudam as pessoas a alcançar um balanço de mente e alma.
Os aromas servem de espelho; aspirações e tabus são mostra-
dos mais claramente, com menos constrangimento.216
A valoração dos odores que ocorre no sistema límbico,
atribuindo-lhes caráter entre simpático e antipático, é captu-
rada num eletroencefalograma (EEG). Isto mostra serem as
freqüências diferentes para cada aroma, e se alterarem mes-
mo pela lembrança do aroma - é como se houvesse sido ar-
mazenado um resumo, uma ficha de cada molécula odorífera
e, através desta ficha, se abrisse o acesso a uma parte especí-
fica do acervo de emoções. Ainda, confirma a existência de
uma reação coletivamente uniforme (como no exemplo da
baunilha) e outra parte personalizada, que remete ao passado,
como forma de interiorização. Faz surgirem respostas afeti-
vas de vínculo ou repulsa, de cunho pessoal. O contato com
odores da infância, seja em objetos ou em pessoas conheci-
das, desperta um reviver realista de situações passadas. Al-
guns odores reconhecidos depois de longo tempo freqüente-
mente despertam sensação semelhante à de quem esquece,
por um lapso de tempo, o nome de uma pessoa do seu conví-
vio freqüente.
A aprendizagem de odores inicia antes do nascimento,
quando componentes aromáticos da dieta materna são incor-
porados ao fluido amniótico e ingeridos pelo feto. Em estu-
dos que registraram o consumo, pelas mães, de substâncias
determinadas (alho, álcool ou fumaça de cigarros) durante a
gravidez, as crianças adquirem preferência por tais cheiros. O
mesmo não acontece com crianças cujas mães não consumi-
ram os mesmos produtos em sua gravidez.
Embora a maioria das respostas a odores seja adquirida
na infância, devido à novidade e intensidade da experiência,
mecanismos associativos podem determinar a percepção
odorífera.
De acordo com Rachel Herz, os odores têm efeito na
solução criativa de problemas, na produtividade, na atenção,

216
Ingrid Andres, op. cit.
166 A IDÉIA DE CONFORTO

no desempenho e na disposição para ajudar outros. Por


exemplo, pessoas expostas ao aroma de biscoitos ao forno,
ou de café sendo torrado, são mais inclinadas a ajudar um
estranho que as outras. Herz registrou ainda que as mulheres
consideram o cheiro a variável mais importante na escolha
do parceiro, enquanto os homens julgam igualmente o cheiro
e a aparência.217
Os odores são poderosas chaves de memória; todavia,
remetem muito mais às emoções vividas do que aos fatos que
as causaram. Daí a conclusão da pesquisadora: no princípio,
era o aroma: os organismos usavam o senso químico para se
moverem em direção ao bem (comida) e fugirem do mal
(predador). Mas o sistema límbico cresceu para fora do sis-
tema olfativo, de modo que a dicotomia emocional entre o
bem (sobrevivência, amor, reprodução) e o mal (perigo,
morte, fracasso) reflete a dicotomia quimiossensitiva.
Hellen Keller, personagem célebre pelas suas capacida-
des e realizações apesar da tríplice limitação como cega-
surda-muda, dizia que o aroma é um mágico poderoso que
nos transporta através de milhares de milhas e através de
todos os anos que já vivemos. A autora exemplificava: os
odores de frutas me remetem a minha casa sulista, aos meus
gracejos de infância junto aos pessegueiros. Outros odores,
instantâneos e arredios, causam meu coração a dilatar-se
alegremente, ou contrair-se na lembrança da dor. Mesmo se
penso em aromas, meu nariz se preenche de fragrâncias que
começam a despertar-me doces lembranças de verões passa-
dos e campos amadurecendo distantes. 218
Ao escrever este texto, sentado ao sofá com o computa-
dor portátil sobre o colo, tento por instantes encontrar alguma
recordação através do olfato. Procuro lembrar algum aroma
remoto.
Começo examinando as lembranças de um imóvel anti-
go, a casa de meus avós, construída ainda uma geração antes.
Nela funciona, hoje, um escritório de engenharia. Embora eu

217
Rachel Herz et al., op. cit.
218
Diane Ackerman, op. cit.
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 167

não tenha participado da maior parte de sua história, aquela


casa antiga participou da maior parte da minha infância e é
portanto um campo fértil para esta arqueologia pessoal. É
uma casa típica de imigrantes alemães, o telhado alto, o fron-
tão anguloso. Eu tinha poucos anos de idade quando lá pas-
sávamos as tardes de domingo.
Para as crianças, depois de saudar os donos da casa, a
cada vez a casa era revista, a começar pela sala de visitas,
com suas cortinas claras, sofás cobertos de pequenas almofa-
das de lã tricotadas em cores e formas diversas, mesinhas de
canto cobertas por pequenas toalhas em crochê, e sobre elas
diversos objetos. Associado estava um odor a lustra-móveis,
e também a pó. Seguíamos pelo corredor, passávamos pela
cozinha, onde era comum o aroma de tortas de maçã ou bolos
de chocolate, e pela pequena lavanderia, até chegarmos ao
quintal.
Preso a um caramanchão de madeira ficava um balanço.
Mas não nos detinha de início; íamos diretamente à garagem
no fundo do quintal, onde algum adulto chegaria para levan-
tar a porta de madeira basculante. No compartimento escuro,
que estava sempre fechado e cheirava a madeira úmida, eram
guardados os principais brinquedos: um triciclo, um kart de
pedal, um outro carrinho de tração braçal e uma pequena
bicicleta. Percorríamos os caminhos calçados ao redor dos
canteiros de rosas, dálias, manacá e flores de que nem sei o
nome, mas seria capaz de reconhecer o aroma, assim como o
aroma da terra úmida. Certamente, uma mistura de aromas e
odores que diferenciava um do outro cada quintal da cidade.
Ao longo do muro ficava o galinheiro, do qual mantínhamos
certa distância de medo do galo. À frente do galinheiro, um
pé de camélia, em geral florido.
Um bicho importante nas visitas aos avós também faz
parte do acervo olfativo da casa. Era um cão cocker spaniel.
Tomava banho dentro do tanque. Lembro do odor a pelo
molhado, o cão sacudindo a cada minuto as longas orelhas,
da água fortemente clorada de Curitiba e, ainda, dos óxidos
da torneira.
168 A IDÉIA DE CONFORTO

Logo, percebo que a casa já está toda ela acessível à


memória, aberta diante mim. O quarto do casal com seus
armários escuros, uma pesada colcha sobre a cama, livros
sobre os criados mudos e uma gravura a carvão do desenho
do Cristo no Jardim das Oliveiras à parede; o banheiro com
sua pia alta, sabonete a jasmim, o chuveiro dentro da banhei-
ra. A despensa estreita, onde eu entrava olhando para o armá-
rio muito alto, com grandes potes de vidro, tampa também
em vidro, onde ficavam biscoitos diversos – entre eles os
Pfefferkuchen, apimentados de açúcar mascavo, típicos do
Natal. Sob o piso em sonoras tábuas se escondia uma peque-
na adega. Na sala de jantar havia um piano armário e uma
lareira num canto; oposta, a Santa Ceia de Da Vinci em alto
relevo na parede. O escritório adjacente recendia a charutos
bahianos, conservados em cilindros de alumínio, e estes em
caixinhas de madeira. A parede era preenchida por uma colo-
rida estante de livros. Sobre a escrivaninha, muitos documen-
tos, fotografias e postais, a coleção de selos e o cheiro de
papel já amarelado.
Simplesmente visitar aquela casa, já com outro uso e ou-
tra decoração, não ajuda tanto a recuperar lembranças como o
exercício de explorar as associações olfativas. Dois ou três
exemplos foram puxando outros, e ajudaram a recompor toda
uma descrição visual da época. E se continuasse, eu conse-
guiria avançar mais além, aos dois ou três primeiros anos de
vida e reconstruir o apartamento de meus pais, numa seqüên-
cia de aleatórios detalhes.
Um deles era o sabonete dermatológico que minha mãe
usava no meu couro cabeludo. Sua cor azul-cobalto já era
muito peculiar – ainda mais seu odor medicinal. Naquela
época, eu desarrumava o sofá da sala, retirando do lugar suas
almofadas em camurça - outro odor peculiar. Erguia ali caba-
nas, cabinas de trem ou de avião. Tenho ainda uma lembran-
ça algo bizarra do gosto amargo dos móveis da casa, em im-
buia. Certamente eu os provei aos poucos meses de idade,
quando criança que engatinha e tudo quer levar à boca. Já o
aroma da imbuia –esta madeira densa e escura da mata Atlân-
tica, hoje escassa - é inconfundível. Ressurgiu como uma
lembrança preciosa quando mandei lixar o piso do laborató-
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 169

rio onde trabalho na universidade. Certamente, consumir


meio milímetro do piso no intuito de recuperar sua regulari-
dade já vale a pena, mais ainda se trouxer luz a escuros recin-
tos da memória.
As lembranças vão surgindo desordenadas. Por
exemplo, as guloseimas que se comia fora de casa. A pipoca
do cinema, o algodão-doce do parque, o pastel de queijo na
lanchonete da natação.
O início das aulas implicava numa visita à papelaria e
acabava trazendo para casa o cheiro forte do plástico de en-
capar cadernos e livros, e o cheiro da tinta dos livros antigos.
Cheiro da lancheira e da mochila com motivos de Walt Dis-
ney, o estojo (que sempre chamei penal) com lápis e borra-
chas, coloridos e perfumados, presente da avó ou de alguma
tia que havia feito estoque junto a algum importador de arti-
gos de Taiwan ou Hong Kong. A aula de artes era uma expe-
riência diversificada: giz de cera, nanquim e guache, argila
úmida e massa de modelar. O uniforme da escola era em
camisa de tergal, calça jeans e o kichute preto cheirando a
pneu. O uniforme de educação física, na época, era todo em
algodão.
O consultório do médico era uma lembrança mais
apagada. Lá se destacavam os palitos para examinar a gar-
ganta, o estetoscópio, álcool para injeção e, eventualmente, o
mercúrio cromo.
Encontrei lá pelos oito anos um passatempo irresistí-
vel: miniaturas de aviões e navios para montar. Acrescentou
ao meu acervo produtos da química orgânica: o poliestireno
dos kits – que eu às vezes derretia para fabricar a fiação elé-
trica dos aviões e navios -, a cola sintética, a tinta-esmalte e o
solvente.
Vão surgindo tantos detalhes materiais que logo pas-
so a me preocupar com a imensa lacuna de tempo que se
abriu. Já posso construir um mapa de minha cidade natal -
Curitiba, capital do Paraná. Vou mais além, pois incluo a
terra natal de minha mãe – cidade histórica da Lapa; a cidade
de Santos, no litoral paulista, em que passamos alguns ve-
rões; uma ou outra viagem avulsa cuja lembrança ainda pare-
170 A IDÉIA DE CONFORTO

ce limitada às fotografias, até que eu encontre a chave olfati-


va. Mostro o texto, até aqui, a um amigo, e ele me traz outras
lembranças de cheiros de cidades: Curitiba, moinhos de erva-
mate no Rebouças; São Luís, óleo de côco no centro; Ma-
naus, do aeroporto, tem cheiro de floresta; e Tijucas do Sul
cheira inteira a bananada.
Recentemente, em visita a uma tia no centro da cida-
de, detive-me em contemplar alguns objetos colocados no
mesmo lugar de sempre. E os registros olfativos continuavam
lá. Isto me dá a impressão de que muita coisa atravessou as
décadas sem ter mudado. E sei que a hospitalidade desta tia
tampouco mudou.
Penso nos anos 70 em que eu, criança, convivia com
primos já adultos. Aqueles anos parecem ter demorado mui-
to. Saber-me cercado de gente de muito maior idade me fazia
sentir seguro. Trago a impressão de que foram anos de sonho,
assim parece ter sido para mim e para todos. A música da
época continua popular, e suas influências no vestuário vêm e
vão novamente, mas fora do contexto original. Este, sim, é
passado remoto. E preocupa saber que os sonhos daquela
época possam ter sido esquecidos. Eu já sabia muito do que
me causa satisfação, esperança, medo e angústia e, no entan-
to, me vejo até hoje na busca.
Ao encerrar este exercício de volta ao passado concluo
que uma coisa certamente não mudou: as moléculas que afe-
tam meus receptores olfativos. São exatamente iguais, não
envelheceram nem se renovaram. Depois de expor-me volun-
tariamente à torrente do passado, já não acho que os persona-
gens que habitavam aquelas cenas tenham mudado, senão
externamente. Crianças cresceram; adultos envelheceram;
idosos partiram. Se antes nem na rua eu precisava olhar ao
redor, já não tenho quem olhe por mim o tempo todo. Mas
parece improvável que, neste mundo mental que recriei, falte
efetivamente alguém. Alguma coisa fica: talvez o espírito -
palavra tão freqüentemente usada com a conotação de aroma.
Foram as impressões do mundo físico que me convenceram
disto: eles parecem mais próximos do que nunca desde que
partiram. Com muita propriedade Salvador Dali dizia que dos
cinco sentidos, o olfato é aquele que transmite a melhor im-
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 171

pressão da imortalidade. E Marcel Proust, no início de sua


procura do tempo perdido, descreveu raciocínio semelhante:
o aroma de madeleine deu origem a uma transformação de
sua maneira de sentir o tempo, como se o passado voltasse ao
alcance dos dedos.
Os registros olfativos contêm emoções congeladas, já
são muitas as evidências. Repenso o item acima sobre olfato
e comodidade, citando taxas mínimas recomendáveis de ven-
tilação: não deveria pretender esgotar o assunto da qualidade
do ar. Mais ou menos, todo o campo do conforto ambiental
está exposto ao risco de um semelhante reducionismo.
O olfato completa a contextualização dos outros senti-
dos: num resort tropical, a manga e o abacaxi são aromas
bem acolhidos em qualquer mesa. E em se tratando de víncu-
los culturais entre aromas e conteúdos diversos, existe uma
profusão de exemplos.
Em alemão se usa dizer ein schöner Wein (um lindo vi-
nho). Pouco importa a cor do líquido no copo, ou o rótulo da
garrafa. Muito menos a cor da garrafa. É a transposição do
olfativo para o visual, já que a beleza do vinho não é gustati-
va, mas aromática. E daí surge uma idéia: se quiséssemos,
não poderíamos manter uma adega em nossa memória? Em
prateleiras escuras, dentro de frascos empoeirados, ficaria o
registro das celebrações que marcaram nossa vida.
Se cultivarmos a alimentação em tais eventos, selecio-
nando cardápios e ainda encontrando bons vinhos, certamen-
te estaremos arquivando aromas. Deveríamos fazê-lo com
tanto empenho que, ao reencontrar tais aromas, no futuro,
possamos enxergar imagens e escutar os sons ao redor da
mesa. Tudo isto nos deixará o sangue em semelhante tempe-
ratura que na ocasião retratada, o pulso em semelhante an-
damento. As refeições são experiências de convívio, do com-
panheirismo que conduz a uma auto-realização inexplicável,
uma alegria profunda.
A aromaterapia desaconselha que se deixe embriagar
com um aroma, o que poderia provocar uma aversão àquele
aroma por longo período. Por tal motivo, por mais de uma
172 A IDÉIA DE CONFORTO

década não pude sentir o gosto de alho na comida, e a rejeita-


va, e conheço história semelhante com a vodka.
Num breve relato sobre aromas na cultura brasileira,
Câmara Cascudo deixa transparecer uma enorme especifici-
dade cultural no assunto:219 a origem mágica da Defumação
funda-se nas plantas votivas ou dedicadas aos deuses, de-
terminando ação protetora e de combate às forças adversas,
malévolas e agressivas. Certos aromas afugentam os seres
sobrenaturais. Bruxas em Portugal, como os duendes das
matas brasileiras, curupiras, caiporas, sacis, não toleram
arruda, alho, cravo, alecrim. O breve fumo da palha seca do
Domingo de Ramos faz cessar a chuva forte ou evita a tem-
pestade com trovoada.
Queimar certas essências, ervas, raspas de raízes, fo-
lhas, sementes, é processo de milênios no plano da oferenda
propiciatória. Os animais sacrificados aos deuses só os al-
cançam no estado de fumo, gases, aroma...
Existe um repertório de odores e aromas cujas associa-
ções convergem dentro das culturas. Odores fétidos, putrefa-
tos, como de roupas molhadas e carne estragada provocam
desprazer. Já o esterco animal é algo com que se acostuma, e
pode se tornar uma referência bucólica – como dos vales da
Suíça. E os odores de queijos e de vinagre, da fermentação
das uvas e da cana, dos cereais da cerveja e do repolho usado
para fazer chucrute, uma vez identificados, adquirem a cono-
tação positiva dos produtos que originam.
É um exercício difícil o da descrição de odores em que
não se recorre aos exemplos de substâncias conhecidas (um
odor cítrico, um odor a ranço). Vemo-nos logo na dependên-
cia de emprestar adjetivos dos outros sentidos. Aqui é apro-
priado falar não de odores, mas de aromas, verdes e maduros,
graves e agudos, suaves e penetrantes, magros e cheios,
quentes e frios, ácidos e salgados. Existe uma explicação que
procura mostrar, no cérebro, a relativa falta de vínculos entre
o centro da linguagem e o centro do olfato. Num mundo des-
critível e exuberante onde as maravilhas se oferecem prontas
219
Luiz da Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, Editora Itatiaia,
Belo Horizonte (1988).
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 173

para a dissecação verbal, os aromas muitas vezes estão na


ponta de nossas línguas – mas não mais perto – e isto lhes dá
uma espécie de distância mágica, um mistério, uma força
sem nome, uma sacralidade.220 A dificuldade em descrever
aromas e odores, contudo, também é derivada do estado de
abandono em que se encontra o olfato na cultura ocidental.
Para a aromaterapia, 221 os aromas variam de acordo com
sua decrescente volatilidade, desde os tons de cabeça (frutos
cítricos: frescos, leves, rápidos no desenvolvimento e desapa-
rição; dão um impulso a quem os aspira), passando pelos
peitorais (flores, cheios, redondos e afáveis, sensíveis), até os
tons profundos (raízes, pesados, requerem aquecimento para
ser percebidos). É nítida a metáfora musical, que associa sons
do canto com as partes do corpo, os graves peitorais e os
agudos de cabeça.
As dez famílias mais importantes de plantas produtoras
de óleos etéricos são Burseraceae, (incenso, mirra); Apiceae
(cominho, coentro, cenouras, anis); Gramineae (capim li-
mão,Vetiver); Pinaceae (pinheiro branco, cedro-atlas); Aste-
raceae (estragão, camomila selvagem, romana e azul); Labia-
tae (lavandas, melissa, mentas, basílico, orégano, patchouli,
tomilho); Lauraceae (canela, louro); Myrtaceae (eucalipto,
cravo, chá); Rutaceae (bergamota, grapefruit, limão, mexeri-
ca, laranja); e Cupressaceae (cipreste e zimbro).
As substâncias ativas nestas plantas teriam efeitos cor-
porais peculiares. Um fator ambiental responsável por algu-
mas associações é a temperatura com que se volatilizam. É
responsável por surgirem ora em paisagens quentes, ora frias
ou alguma situação intermediária.
Para a aromaterapia, têm uma importância matricial os
óleos etéricos naturais, produtos sintetizados pelas plantas em
resposta ao ambiente, à radiação solar. Seu significado seria
comunicativo, em que as plantas manifestariam seu espírito

220
Diane Ackerman, op. cit., tradução do autor.
221
O restante desta secção utiliza como fonte os trabalhos de Inge Andres, Duftbera-
tung: Pflanzen, ätherische Öle und Essenzen, 159 pp., Bassermann, Alemanha
(2000), e Simone Lenz, Mit allen Sinnen Wohnen – Ein Zuhause zum Wohlfühlen,
Inspiration für Geist und Seele, Tosa Verlag, Viena (2000).
174 A IDÉIA DE CONFORTO

concentrado como atração ou repulsão às outras plantas,


animais e pessoas, de quem ativam processos de ordem men-
tal e espiritual. A propriedade de respirar o aroma das men-
sagens aromáticas permitiria uma espécie de integração das
pessoas com a linguagem da natureza.
Sobre a destilação – operação em que se obtém a solu-
ção aquosa dos óleos etéricos – escreveu Hieronymus Bruns-
chwig222 no século XVI,223 aqui em livre tradução:
Separar o sutil do grosseiro
e o grosseiro do sutil,
o destrutível e o frágil
do indestrutível
materializar o imaterial
espiritualizar o corporal
e do feio produzir beleza.

A aromaterapia tem proposto os rudimentos de uma


classificação dos aromas. É uma classificação amparada em
associações, mas de forma sistematizada, considerando al-
guns aspectos de química e de botânica.
A classificação reconhece os seguintes grupos: esférico-
espiritual (íris); aéreo e claro (lavanda, melissa e louro); frio
e fresco (hortelã, capim-limão, eucalipto); leve e fresco (li-
mão, bergamota); frutado-cálido (laranja, mandarina e cas-
sis); rosado-florado (rosas turcas, búlgaras, damascenas e
marroquinas, gerânios); florestal-fresco (pinho, cipreste, chá,
basílico); fogoso-quente (pimenta, gengibre, coentro), florado
opulento (jasmim, ylang-ylang, narciso), balsâmico-cálido
(sândalo, baunilha, tabaco), picante-cálido (cravo, canela),
herbal-cálido (tomilho), terroso-cálido (elemi) e terroso-
profundo (cedro, vetiver, patchouli). Estas plantas oferecem
um abrangente repertório aromático para enriquecer a experi-
ência sensorial dos ambientes.

222
Hieronymus Brunschwig (1450 – 1512), químico da região da Alsácia, hoje
França. Autor do Liber de arte distillandi.
223
apud Inge Andres, op. cit.
O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 175

Diane Ackerman224 reuniu exemplos que mostram co-


mo, no mundo antigo, a arquitetura real era ela mesma aro-
mática. Menciona que em Chengde, na China, no salão Dan-
bo Jingcheng (da frugalidade e placidez), no chamado Nan-
mu, as vigas e os painéis, todos em cedro, eram sem verniz
ou tinta, de modo que a fragrância da madeira pudesse in-
fluenciar o ar. Menciona construtores de mesquitas que usa-
vam misturar água de rosas e almíscar na argamassa; o sol
do meio dia iria aquecê-la e liberar os perfumes. E lembra
que as portas do palácio de Sargon II, no século VIII, onde
hoje se encontra Khorsabad, era tão perfumadas que exala-
vam perfume quando visitantes entravam ou saíam. As bar-
caças, assim como os caixões dos faraós, eram de cedro.
A leitura deste trecho reforça a idéia de que, queiramos
ou não, o aroma nos individualiza, assim como nosso espaço
de vida. Podemos através do aroma inserir curiosas referên-
cias pessoais, familiares, culturais, religiosas, e históricas ao
ambiente. E onde estas forem menos evidentes, o cultivo dos
aromas naturais poderá criá-las, fortalecendo a percepção
futura dos lugares, dos relacionamentos e dos acontecimen-
tos.
Podemos escolher odores, assim como escolhemos mó-
veis e outros objetos de decoração. Assim como mantemos
livros nas estantes, um repertório de aromas equivale a mui-
tos álbuns de fotografia. Reavivar a memória requer um con-
tato não constante com os aromas, mas periódico, antes festi-
vo, nas celebrações da vida e da morte.

224
Diane Ackerman, op. cit., tradução do autor.
... sem o tato, eu sempre consideraria meus os odores, os sa-
bores, as cores e os sons, nunca teria julgado que existem
corpos odoríferos, sonoros, coloridos, saborosos. (Étienne de
Condillac, Tratado das Sensações Humanas)

Figura 5 - Texturas deixadas nas dunas pelo vento, Prainha (CE)


5 - O entorno palpável: formas e
texturas

5.1 Introdução
O tato é o sentido que sinaliza a interação concreta das
pessoas com o mundo físico: não é uma percepção baseada
em representações como a contemplação de imagens, ou a
audição de gravações. O tato instrumentaliza a lei da física
que proíbe dois corpos de ocuparem o mesmo lugar no espa-
ço. Tem um caráter muito concreto. Com um beliscão nos
convencemos de que estamos conscientes.
A interação do tato se incorpora à memória como uma
consciência de limites. Nós a tomamos de modo espontâneo,
acidental ou à força, em experiências que podem variar de
suaves a ríspidas. O tato orienta nossa existência dentro dos
ambientes de vida e trabalho. Relaciona-se a um aspecto tão
inevitável do ambiente quanto o ar que respiramos pois, a
principiar pelo solo, estamos permanentemente em contato
físico com a matéria.
178 A IDÉIA DE CONFORTO

O tato é a aferição do visual. Se não houvesse o tato, a


visão provavelmente não teria o tamanho poder de síntese
que tem. Não daríamos a mesma importância àquilo que ve-
mos, nem mesmo àquilo que de nós se aproxima, pois não
sinalizaria alguma experiência concreta, no corpo. E mesmo
que, no escuro, nada estejamos vendo, o tato permanece na
raiz do conforto ambiental, embora nem sempre se reconhe-
ça. Pode-se afirmar que o conforto é julgado, antes de mais
nada, pelos sentidos do tato e do equilíbrio.225
Junto com os sensores que nos permitem sentir a forma
dos objetos, temos espalhados pela pele outros sensores que
registram o frio e o calor, a pressão e ainda a vibração. As
sensações térmicas serão tratadas num capítulo próprio.

5.2 Mecanismos físicos e fisiológicos


O corpo humano tem milhões de terminações nervosas.
São pontos onde acontece o intercâmbio do sistema nervoso
com o meio externo, seja recebendo dele informações, seja
enviando-lhe ordens. No primeiro caso são terminações sen-
sitivas. No segundo, terminações motoras.
As terminações sensitivas, de particular interesse do
conforto ambiental, dividem-se entre as terminações livres,
como aquelas responsáveis pela percepção da dor, e as termi-
nações encapsuladas, caso daquelas responsáveis pelo tato,
frio e calor e pressão. Têm nomes individualizados. Os cor-
púsculos de Meissner são responsáveis pela percepção de
forma e textura e ocorrem na pele das mãos. Os corpúsculos
de Paccini são responsáveis pela sensação da pressão, e ocor-
rem no tecido celular subcutâneo das mãos e pés, peritônio,
cápsulas viscerais, etc. Os corpúsculos de Krause, responsá-
veis pela sensação de frio, e os de Rufini, responsáveis pela
sensação de calor, ocorrem na derme, na conjuntiva, na mu-
cosa da língua e nos órgãos genitais. Existem ainda termina-
ções especializadas, que são estruturas mais complicadas
fazendo parte dos órgãos especiais dos sentidos localizados

225
Bettina Kohler, Nichts als Illusionen? Werk, Bauen und Wohnen 3, pp.4-8
(2003).
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 179

na cabeça - visão, audição, olfação e gustação. Todas estas


são agrupadas na categoria dos exteroceptores: têm relação
direta com as variáveis ambientais.
Ainda no grupo das terminações sensitivas, outras cate-
gorias utilizadas são interoceptores e proprioceptores. Os
interoceptores, localizados nas vísceras e vasos, também
chamados visceroceptores, são responsáveis pelas sensações
de fome, sede, prazer sexual e dor visceral, além de informa-
rem dados do plasma e do sangue. Incluem-se os sensores do
ouvido interno para a sensação especial de equilíbrio. Moni-
toram o regime de funcionamento do organismo e, embora
sejam relacionados ao bem-estar do indivíduo, não têm rela-
ção direta com as variáveis ambientais. Já os proprioceptores,
localizados profundamente nos músculos esqueléticos, ten-
dões, fáscias, ligamentos e cápsulas articulares, dão origem a
impulsos proprioceptivos conscientes e inconscientes.
A pele não é somente o maior órgão sensitivo do corpo,
mas o maior órgão do corpo, contendo as terminações nervo-
sas citadas. É composta de três camadas.
A epiderme é a mais externa, tendo em sua superfície
células duras e mortas, preenchidas com queratina, uma pro-
teína do corpo encontrada nas unhas e cabelos. Logo abaixo
se encontram células novas e moribundas. Estão em constan-
te reprodução e, progressivamente, empurram as células mor-
tas para a superfície. Na epiderme se encontra a melanina,
um pigmento escuro que dá cor à pele, assim como ao cabe-
lo.
A camada seguinte é a derme, um tecido conectivo, con-
tendo terminações nervosas, vasos sanguíneos, glândulas
sebáceas e sudoríparas. As terminações nervosas sob a pele
detectam o toque e a dor e enviam mensagens do cérebro. Há
uma faixa de músculos lisos próximos da base dos folículos
capilares que, se estimulados, fazem com que aqueles se eri-
cem, de modo a aumentar o isolamento térmico ao redor do
corpo (pois os pelos eriçados retêm o movimento das molé-
culas de ar, como um agasalho). O sebo da pele reduz perdas
de água, protege-a da infecção por bactérias e fungos e con-
tribui para o odor corporal.
180 A IDÉIA DE CONFORTO

A mais interna camada é de gordura subcutânea: ajuda a


armazenar alimentos, isolar termicamente o corpo do exteri-
or, e absorver choque.

5.3 Comodidade e adequação


A sensibilidade ao toque, à pressão e à dor se distribui
por toda a superfície do corpo e é especialmente refinada nas
pontas dos dedos das mãos e dos pés. Testamos com os dedos
as texturas e formas dos objetos que surgem em nosso meio
de vida e de trabalho. Nas cadeiras, poltronas e principalmen-
te sofás, sentamo-nos testando o encontro de sua textura e de
sua estrutura com a textura e a estrutura de nosso corpo. Mui-
to depois de tê-los testado e esgotado possíveis variações,
retomamos consciência do tato cada vez que nos sentamos ou
nos ajeitamos no assento, nos deitamos e nos viramos, e em
cada piso diferente que nos aparece debaixo dos pés, mais
ainda se estivermos descalços.
O tato previne o corpo de prejuízos causados por objetos
e superfícies que com ele entrem em interação mecânica,
térmica ou química.
Correspondendo, a comodidade, para o tato, reúne di-
versos fatores. Depende de uma sensação térmica não muito
acentuada: um mau exemplo é um assento em alumínio, es-
pecialmente em clima frio. Depende de uma granulometria
adequada, evitando a presença de saliências pontiagudos,
como ocorre num papel de lixa. Depende da ausência de vi-
brações. Depende de um aspecto higienicamente favorável –
evitando, por exemplo, que superfícies permaneçam úmidas
ou engorduradas, reconheçamos ou não as substâncias ali
presentes. Depende da prevenção de texturas causadoras de
arrepios como, por exemplo, a lousa. Enfim, depende da li-
mitação da pressão mediante maciez superficial, respeito à
anatomia e uma certa consistência da forma: esta deve man-
ter seu contorno principal mesmo após prolongada interação
com o usuário.
Cada parte do corpo tem seu grau de tolerância à pres-
são. Os pés e as mãos são especializados em distribuí-la.
Assim também os glúteos, acostumados – especialmente nas
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 181

culturas ocidentais – a receber o peso do corpo. A pressão


diretamente sobre os ossos, como ao se caminhar sobre os
calcanhares ou, sentando-se ao chão, reclinar-se sobre os
cotovelos é dolorida. Sua redução se consegue por superfí-
cies macias, que distribuem o esforço numa área maior do
corpo.
O contato limitado a regiões pequenas do corpo pode
elevar a pressão, provocando dor. É o caso de uma cadeira
dura ou, ainda, do caminhar descalço sobre pedriscos para
quem sempre usa sapatos. Uma pressão muito alta e localiza-
da pode causar ferimento. É o caso do puncionamento por
uma agulha: mesmo que seja pequena a força, sua área de
aplicação é minúscula. O puncionamento ou corte por objeto
muito afiado, entretanto, pode não ser sentido instantanea-
mente.
Adequação, para o tato, é um conceito fácil de ilustrar. É
a sina de quem carrega, todos os dias, uma lata de água na
cabeça. Preferiria, certamente, não ter de fazê-lo. Entretanto,
isto faz parte do desafio diário de muitas mulheres, cujas
famílias carecem de água encanada. O fundo da lata se de-
forma. Os cabelos ajudam a atenuar a pressão, que se resiste
mais facilmente que ao carregar a lata numa das mãos, medi-
ante um arame. Aplicado na cabeça, o peso se distribui con-
cêntrico com o corpo, logo minimizando algum esforço de
torque. As carregadoras de lata, heroínas do abandono pelos
governantes, certamente otimizaram sua comodidade, redu-
zindo-a o necessário para que possam servir a um propósito
vital para a família.
Noutros casos, como o de um bombeiro que, em emer-
gência, precipita-se de seu alojamento para a garagem desli-
zando pelo mastro, é necessário um atrito muito baixo. E os
mensageiros internos dos supermercados, em patins, não se
encontram nas situações táteis mais cômodas, nem mais se-
guras; entretanto, deslizando sobre rodas, realizam seu traba-
lho com menos cansaço.
A interação estática, em que a pessoa se firma a uma su-
perfície sem que ocorra deslizamento, requer atrito e, ainda,
uma forma anatômica.
182 A IDÉIA DE CONFORTO

Por exemplo, ao sentar-se. O revestimento em couro de


um sofá por vezes impede as pessoas de se aconchegarem em
sua posição preferida; elas deslizam passivamente até a posi-
ção que lhes impõe a forma do móvel. Isto ainda ocorre nos
assentos de couro dos veículos, em que os bancos, impecá-
veis ao toque e de aroma inconfundível, permitem aos seus
passageiros deslizarem. Os assentos rígidos, em fibra de vi-
dro, de ônibus de transporte público de muitas cidades, con-
duzidos sob velocidade exigem das pessoas sentadas que
ocupem ambas as mãos para não escaparem nas curvas. Tal
insegurança pode ser comparada à de uma bicicleta em que o
selim, além de estreito, é duro, liso e está fora do prumo.
Há uma diferença fundamental entre o sentar-se sobre o
chão, na forma tradicional do Oriente, e sobre móveis.226
Estes permitem uma diversidade de posturas, todas elas ma-
neiras de se sentar: para comer à mesa; num banco de bar;
num sofá branco com um copo de vinho tinto à mão; ou,
ainda, num sofá qualquer sem qualquer compromisso. Um
banco de igreja não permite muitas variações ao redor da
postura correta. O mesmo ocorre nas carteiras escolares, e
mesmo às mesas de refeições. Embora busquemos natural-
mente pelas superfícies mais macias, um padrão de atitude é
imposto pela dureza dos materiais.
O deitar-se pede móveis macios, que sugerem pronto re-
laxamento. Entretanto, a maciez pode trair uma rigidez insu-
ficiente, deixa o conjunto formado entre o corpo e o móvel
tomar uma forma indesejável. O apoio para a cabeça ao dor-
mir deve manter sua integridade de forma para que a coluna
cervical não seja danificada.
O caminhar requer atrito com o solo. Embora o corpo se
desloque, o pé está em geral agarrado no chão a cada passo.
A superfície necessária é quase lisa para o plano horizontal,
mas à medida que a inclinação aumenta é necessária rugosi-
dade, ou uma textura especial. Solados de couro em carpete
têm baixa capacidade de aderência. Uma inclinação pronun-

226
Para esta diferença de hábitos existe uma explicação térmica relacionada à estrati-
ficação do ar nos ambientes, o ar frio estando próximo ao chão e o ar quente próxi-
mo ao teto. Esta explicação é apresentada por diversos autores.
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 183

ciada requer uma escada: rigorosamente, é uma textura de


grande escala. Não nos causa tropeços por ser regular. Nos
pisos, a granilite, o petit-pavet e as grades de ventilação apre-
sentam o inconveniente do atrito insuficiente, especialmente
se associados a pó, gordura ou água. Alguns edifícios de uso
público são revestidos de materiais duros e lisos, como os
pisos em granito ou mármore polido. O pedestre que ali
adentra precisa esfregar os pés no capacho para evitar que
suas solas, incrustadas de grânulos, deslizem sobre o piso, ou
venham a riscá-lo.
Puxar ou empurrar um objeto requer uma adaptação en-
tre este e as mãos. A forma anatômica para uma alça de sus-
tentação reproduz em negativo o perfil dos dedos da mão
fechada. Assim, consegue-se distribuir melhor a força sobre
os dedos, reduzindo a pressão. E se a força aplicada pelas
mãos for excêntrica, isto é, se não seguir uma linha pelo cen-
tro de gravidade do objeto, compensamos com um esforço de
torque. É assim que erguemos uma pá cheia de terra, ou ain-
da uma panela pesada que tenha somente um cabo (se tivesse
duas alças, este torque desapareceria). E se a forma não auxi-
lia na distribuição de forças, o atrito se torna um importante
aliado: permite um redirecionamento do esforço aplicado. Ao
segurar o cabo de uma enxada na vertical, aperto horizontal-
mente os dedos, uns contra os outros. Se não houvesse atrito,
a ferramenta cairia.
Mas se a interação entre o corpo e a superfície envolver
deslizamento, o atrito deve ser reduzido ao mínimo, e as for-
mas devem ser livres de irregularidades na direção da força
de apoio, para evitar choques. É o caso de um corrimão de
escada, feito liso, seja em plástico, madeira, metal ou pedra.
Sua seção transversal é uma forma anatômica, e longitudi-
nalmente não aninha os dedos em abaulamentos, pois estes
devem correr livres.
É difícil dançar sobre um piso áspero como o asfalto; é
necessário que os sapatos possam deslizar. Movimento seme-
lhante é aquele de se cortar papel com um estilete: normal-
mente o fazemos sobre o tampo de vidro de uma mesa, regu-
lar e de alta dureza, assim preservando-se liso, sem riscos.
184 A IDÉIA DE CONFORTO

Já a atividade de desenhar ou escrever é um caso misto:


requer uma superfície regular e, ao mesmo tempo, algum
atrito. O lápis se presta ao papel-jornal, ao papel sulfite, mas
não ao papel couchê ou ao plástico. O mesmo se aplica à
caneta esferográfica. Deslocar-se ou mover objetos deslizan-
do sobre rodas é um caso equivalente, que requer regularida-
de e também atrito. Assim deve ser o piso por onde deslizam
carrinhos de compras, bicicletas, patins e, especialmente,
cadeiras de rodas. Que falta não faz, para um menino, uma
superfície plana de borracha aderente, onde possa empurrar
seus carrinhos de brinquedo vendo as rodinhas rolarem, ao
invés de deslizarem.
Um outro tipo de interação entre o corpo e o entorno fí-
sico ocorre entre o corpo e a poltrona durante o movimento
de sentar-se, seja de forma suave ou violenta. Naquele instan-
te, a poltrona e o corpo absorvem o impacto, e disto não par-
ticipam somente as superfícies, mas as respectivas estruturas.
Quando caminhamos, semelhante interação acontece. Aqui,
pode ser significativa a contribuição mesmo de finas camadas
de materiais superficiais em aliviar o impacto dos passos. Isto
se refere especialmente aos materiais de alta resiliência (que
sob o efeito de uma força se deformam e depois voltam à
forma inicial). Os pisos em madeira, mesmo se afixados a
uma base dura de concreto, têm efeito de amortecimento de
choques. Em se tratando de pisos de madeira apoiados sobre
vigas, e não sobre o solo, o efeito absorvedor é ainda maior.
O caminhar sobre tal estrutura é aprazível. Camadas de bor-
racha são utilizadas em quadras e pistas esportivas, e como
substrato debaixo dos tablados para a dança; combinam ca-
racterísticas de atrito e absorção ao choque. Um amorteci-
mento um pouco maior é dado pelo carpete. Esteiras de tata-
mi, comuns nos pisos das casas japonesas, podem ser duras
ao toque, mas têm forma flexível. São usadas tanto nos dor-
mitórios como nas artes marciais, pois absorvem suficiente-
mente o impacto da queda de um corpo. Enfim, o gramado, a
terra batida e as caixas de areia apresentam razoável amorte-
cimento, motivo de sua preferência para diversos jogos de
crianças.
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 185

Por fim, existem aspectos do tato que não estão relacio-


nados ao atrito, nem à pressão ou ao choque. A ausência de
implicações práticas sugere não serem aspectos de adequa-
ção. Há algum consenso quanto ao seu caráter desagradável,
daí uma classificação como aspectos de comodidade.
Em geral, preferimos superfícies capazes de não des-
prender partículas. Um quadro negro em ardósia se parece
sólido, mas dele finas partículas se desprendem, assim como
as partículas de giz: parecem querer entrar sob as unhas. Uma
parede de gesso, o papel velho e empoeirado, e um pneu,
coberto de fina camada de pó de borracha, apresentam super-
fícies repulsivas ao toque. Tinta fresca ou gordura aderem à
pele e incomodam.
Ainda, preferimos superfícies que não possam ralar, cor-
tar ou perfurar: o papel de lixa é agressivo à pele. Crianças
brincam no asfalto com certo receio de cair e se esfolar. E
tenistas têm uma simpatia pelas quadras de saibro, em parte
porque pouco se machucam nas quedas.
Os materiais lisos tendem a ser mais agradáveis ao tato
que os materiais rugosos. Mas pequenas ondulações confe-
rem às superfícies algum dinamismo lúdico.
A adequação é explorada ao máximo quando o tato é
utilizado como canal de informação codificada. Para transmi-
tir uma informação de natureza objetiva, o tato atende porta-
dores de deficiência visual severa através da linguagem
Braille. Já o método Tadoma foi desenvolvido para que sur-
dos-cegos possam compreender o que falam as outras pesso-
as. Os pacientes colocam as mãos sobre o rosto de seu inter-
locutor, o dedo mínimo tocando a garganta para sentir-lhe a
vibração; o indicador tocando o nariz, e o polegar tocando os
lábios. Se a pessoa permitir este toque e falar lentamente,
será compreendida, e mais: os sentimentos com que se ex-
pressa serão transmitidos.

5.4 Expressividade
Acima, foi proposta a idéia do toque como teste de vera-
cidade, como o beliscão para sabermos que não estamos so-
186 A IDÉIA DE CONFORTO

nhando. Esta função do tato é conseqüência do enunciado


pelo qual dois corpos não podem, ao mesmo tempo, ocupar o
mesmo lugar no espaço. Como um princípio da movimenta-
ção de pessoas e objetos, em cuja consciência nos mexemos e
caminhamos, pois desafiá-lo significa originar uma interação
física entre os corpos, da qual nenhum deles sairá como an-
tes.
Acreditamos plenamente em algo que vemos se já o to-
camos. O apóstolo São Tomé foi chamado incrédulo porque
admitiu não crer no Cristo ressuscitado se não pudesse tocar
suas feridas. Se sua fé não foi suficiente, foi sincero com
relação à curiosidade tátil que nos faz aferir com os dedos
aquilo que é visualmente percebido.
Mesmo sem implicação prática aparente, a informação
tátil é concreta. Processo a informação recebida do tato com
maior ou menor racionalidade, ou, também poderia dizer,
com menos ou mais fantasia. O caráter concreto do toque dá-
lhe uma conotação que não é virtual (como outras sensações),
mas física. E isto me influencia.
A perspectiva, esta visão deformada das coisas e do
mundo, não nos engana desde a infância porque soubemos,
aos poucos, desmistificá-la. Percorremos as ruas para consta-
tar que não se afilam no final. Demos passos para o lado para
constatar que não existe um poste de iluminação sozinho,
mas vários enfileirados.
A visão não é um órgão do tato, mas funciona associada
aos registros táteis. É como uma modalidade rápida, expedita
do tato. Praticamente toca os objetos. Tenho nos olhos como
que projeções dos dedos, algo comparável à tromba do ele-
fante – um curioso órgão tátil-olfativo. Em cada novo espaço
onde me encontro vou logo testando os limites. Em qualquer
caminho me projeto, buscando onde vai dar e se posso, até lá,
pisar sem medo. Cansado de caminhar, passo a reparar nos
possíveis anteparos horizontais para repousar que encontro,
entre a altura dos joelhos e do quadril, e visualmente lhes
avalio a forma, a textura e a estrutura. Ruídos de meu apar-
tamento são ouvidos do lado de fora, e seu interior fica em
parte visível do lado de fora janela. Mas a porta me protege
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 187

da interação tátil com o mundo externo. Aliás, é uma barreira


variável ao mundo exterior; sua “semi-permeabilidade” per-
mite o abrir e o fechar. O morador diferencia amigos, que
têm acesso, e estranhos, que são mantidos fora.227
Vestindo uma luva de borracha, a sensibilidade da ponta
dos dedos diminui. E por vezes tomamos uma incorreta pos-
tura de apoio, em que se comprime um membro, que se torna
amortecido. Por alguns segundos, desaparece a sensibilidade
ao toque e, mais estranho, desaparece a propriocepção, ou
seja, a sensação de onde está o membro.
Uma raríssima doença é a Síndrome de Guillain-Barré,
em que as fibras nervosas finas são completamente destruí-
das. Ginette Lizotte, uma paciente de tal doença, relata so-
mente conseguir segurar os objetos por fazer uso extrema-
mente atento da visão. Para ela, o tato é tão importante quan-
to a visão.228
E como a pele é um invólucro fabuloso, à prova de água,
lavável, elástica229 e renovável, posso testar o mundo físico
sem receio. Nas pessoas, as terminações nervosas do tato
estão concentradas nas pontas dos dedos e ainda existem
também nas outras partes. E a propriocepção nos faz sentir
cada músculo em seu estado.
Toco as folhas das plantas, mesmo que suas bordas afia-
das me cortem ou seus espinhos me perfurem a pele; e tenho
maior pudor em tocar as pétalas do que inalar o perfume de
uma flor.
Não compro frutos sem antes tê-los tido à mão: maçãs,
pêssegos e abacaxis. E ao apanhar um limão da árvore, sei
que posso resvalar em espinhos.
Acaricio o pelo de um cão sem receio. Um pássaro nas
mãos é o sonho de muita criança; mas, no contato físico, sua
fragilidade chega a ser perturbadora. Um peixe vivo é liso e

227
Otto Friedrich Bollnow, op. cit.
228
Kun Chang, Touch – The Forgotten Sense, Max Films Television, exibido na TV
Nacional em janeiro de 2004.
229
Diane Ackerman, op. cit.
188 A IDÉIA DE CONFORTO

fugidio. Uma cobra, uma aranha e uma rã são texturas indefi-


nidas, que me repelem. Mas isto varia de pessoa a pessoa.
Fora do mundo natural, a curiosidade tátil não é menor.
E é sistematicamente reprimida. Nas galerias, não gostaria de
tocar somente as esculturas, mas também as pinturas a óleo.
Muitos objetos eu nem alcanço, pois estão por detrás das
vitrines das lojas. Ora são os objetos em si que me atraem;
ora são seus materiais ou mesmo as suas superfícies.
A madeira convida ao toque pelo calor que proporciona.
Mas no estado bruto pode soltar fibras e arranhar ou perfurar
a pele. Uma peça grosseira é arredondada pelo tempo, até
tornar-se inofensiva. Lixada e polida, a madeira revela o de-
senho de seus veios, transversais, longitudinais ou ainda es-
paciais – como na rádica. São como texturas virtuais, algu-
mas regulares, outras extravagantes. Outro fator de atração. O
revestimento de paredes em painéis de madeira é uma fabulo-
sa mistura do natural e do cultural: é de cor grave, sempre
quente e nunca monótona. Convida ao toque e ao aconchego.
Aceita a fantasia de deitar-se sobre as mesmas como faria um
cão.230
Uma descrição muito atual do assunto231 é apresentada
por um arquiteto e teórico alemão: o tratamento arquitetôni-
co de paredes com a ajuda de papel, tecidos e revestimento
em painéis de madeira, objetivando a habitabilidade e acon-
chego, é quase obrigatório em salas de festas e espaços exi-
gentes para práticas sociais. Entretanto, a mais bela e agra-
dável roupagem para a parede é a panelização em madeira:
dá ao ambiente uma alta nobreza, é ao mesmo tempo caseiro
e imune à devastação; o tom quente da madeira confere ao
espaço um aconchego que não se obtém de nenhum outro
modo.
A pedra no estado natural pode ser rude, com reentrân-
cias, ou pode ter o acabamento de um seixo rolado, redondo e
liso. As irregularidades pontiagudas do mármore e do granito
desaparecem com o polimento. Como na madeira, aparece a

230
Peter Thornton, op. cit., prancha 525.
231
Hans Kohlhoff et al., op. cit.
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 189

textura imaginária, em que os dedos, em vão, procuram por


algum relevo. A ardósia no estado natural tem irregularidades
suaves e bastante estáveis. Polida, parece veludo. O arenito
conserva como sua menor unidade de textura os grânulos de
areia de que é feito, sempre ameaçando deixar alguns deles
nos dedos insistentes. Muito mais finas são as partículas de
cerâmica. A pedra-sabão recebe e registra a pressão das
unhas.
Carpetes, painéis tecidos, estofados, toalhas e cortinas
são materiais que atraem naturalmente os dedos. Compro
roupas como se fossem frutas: somente depois de alisar seu
tecido com a palma da mão, comprimi-lo na mão ou contra
um anteparo, e ainda envolver a mão com o tecido. A pelúcia
e o veludo se alternam entre a lisura das fibras percorridas
desde a raiz e a resistência do sentido inverso. Reconheço a
seda pela sua consistência e pelo seu frescor; nela eu uso a
ponta da ponta dos dedos. O algodão eu identifico mais com
a mão parada do que percorrendo a sua variedade de feituras,
aquele desde o saco de farinha até a tricoline egípcia. A lã
varia desde o poncho rústico até o corte refinado que eu
guardo para mandar fazer um traje passeio completo.
O carpete que é sobreposto a um piso em tábuas ou pe-
dra, debaixo da mesa de jantar ou café e suas cadeiras, consti-
tui no ambiente um nicho diferenciado. Dá segurança à ca-
deira que desliza e isola termicamente as solas dos pés.232
Adolf Loos dá um curioso depoimento; ele, que se dizia ini-
migo do conforto: o arquiteto tem, pois, a tarefa de criar um
espaço tépido e habitável. Tépidos e habitáveis são os tape-
tes. Portanto, ele resolve estender um tapete no assoalho e
pendurar outros quatro, formando as quatro paredes. Mas
assume logo que não se constrói uma casa de tapetes. Tanto o
tapete dos pés como o da parede requer um esqueleto cons-
trutivo que o mantenha na posição correta. Inventar este
esqueleto é a segunda tarefa do arquiteto. Este é o caminho
correto, lógico, a seguir na arte da construção. Assim, nesta

232
Peter Thornton, op. cit., pranchas 515, 532.
190 A IDÉIA DE CONFORTO

seqüência, a humanidade aprendeu também a construir. E


não esquece o princípio: no princípio era a roupa.233
Segundo Witold Rybczynski, os móveis estofados apa-
receram somente no século XVII.234 E desde pelo menos o
século XVII se busca revestir paredes com materiais tecidos.
Posteriormente surgiram as cortinas revestindo os vidros das
janelas. As camas, até o final do século XIX, eram um recin-
to fechado em pano, com seu dossel. Isto é atribuído ao cará-
ter público que tinham os quartos até o século XVIII.
A cama tem para Bollnow o papel antropológico de cen-
tro da casa. Herdou-o da lareira (mais tarde, foi parcialmente
substituída pela mesa como a cena das refeições familiares,
que depois passou para o sofá e para a TV). Pela manhã, a
cama é o ponto inicial da saída para o trabalho fora de casa.
À noite, é o ponto para o qual se retorna depois de um ocu-
pado dia. Além disto, é o domínio mais íntimo da casa ou de
um apartamento; em geral, não é acessível aos visitantes. O
ciclo diário de ir e vir se assemelha ao ciclo maior da vida: o
homem, usualmente, nasce e morre numa cama. O ponto de
origem, o marco zero de cada um de que fala o filósofo é um
conceito tátil, uma forma de propriocepção. E não muda de
lugar, não se deforma: o colchão amortece o mergulho do
corpo cansado, não o deixa bater no fundo, e o estrado não o
deixa afundar no quadrante negativo. Para mim, o marco zero
do mundo é o sofá da sala no seu momento de máxima defle-
xão – quando entro em casa, despindo os sapatos, e me jogo
sobre ele, decretando meu período de descanso.
A sensação de aconchego, quando excessiva, pode se
distorcer em restrição à liberdade: num refeitório, cadeiras
macias, envolventes e pesadas dão a sensação de que prende-
ram o hóspede sob a mesa.235 Uma análise do uso feito de
sofás e poltronas nos séculos XVIII e XIX revela fato curio-

233
Adolf Loos, Das Prinzip der Bekleidung (1898), citado por Franz Glück (editor),
Adolf Loos Sämtliche Schriften, Vol. 1, Viena, Munique, pp. 105-120 (1962), ainda
em Hermann Czech, Komfort – ein Gegenstand der Architekturtheorie?, Werk,
Bauen, Wohnen 3 (2003). Tradução do autor.
234
Witold Rybczynski, op. cit.
235
Peter Thornton, op. cit., prancha 531.
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 191

so: do par mesa & assento, o elemento estático era geralmen-


te este último. A mesa de leitura ou de chá é que era puxada
para junto de quem estava confortavelmente sentado sobre
um sofá ou poltrona.236 Na posição sentada é mais cômodo
empurrar uma mesa leve que arrastar a pesada cadeira ou
poltrona.
Os tecidos no ambiente, presentes como potenciais ante-
paros, têm o efeito de compensar a crueza das janelas. Como
se a área de exposição ao mundo, com suas incertezas, sur-
presas e perigos, exigisse uma contrapartida em acolhimento,
percebido pelos olhos mas interpretado pelo tato. Este precei-
to de proporcionalidade faz com que toda janela mereça uma
poltrona, toda porta-janela um sofá, e toda parede de vidro
um extenso carpete. O anteparo complementa o esquema
visual da toca: ao redor, proteção e aconchego e, à frente,
uma abertura para o lado mais claro, com o maior alcance
possível. Talvez ainda seja uma forma de consolo por não
podermos desfrutar a paisagem de cima, como os pássaros,
mas presos à Terra pela força da gravidade.
As aberturas para passagem de um ambiente a outro,
quando cercadas de cortinas amarradas aos lados, reforçam a
idéia de proteção. Eu passo, mas se quisesse proteção, basta-
ria fechar as cortinas. E recebo seu toque ao passar, como que
em temporária despedida. Saber-se cercado de tapetes, a
construção como uma extensão da roupa, como sugeriu Loos,
isto sim seria confortável ao tato, todavia não teria estabili-
dade.
Percorro sonoramente, com os dedos, uma folha de pa-
pel. Sua sensação ao toque é reconhecida como uma caracte-
rística única, que o faz insubstituível. O aclamado escritor
japonês Junichiro Tanizaki237 lembra que o papel é uma in-
venção dos chineses, e constata uma diferença fundamental
na maneira como é usado no Ocidente. Tem-se a impressão
de estar ante um material estritamente utilitário, embora a

236
Ibid, pranchas 340, 343, 344, 345, 350, 361, 362, 365, 369, 370, 372.
237
Junichiro Tanizaki, El elogio de la sombra,Tradução espanhola de Julia Escobar,
Biblioteca de Ensayo, Ediciones Siruela. Madrid (1997). Tradução para o português
pelo autor.
192 A IDÉIA DE CONFORTO

simples visão de um papel chinês ou japonês basta para sen-


tirmos um calorzinho que nos reconforta o coração. Tanizaki
tem uma proposta ambiental baseada no resgate das sensa-
ções táteis e também lumínicas (tornará a ser lembrado no
capítulo sobre a visão). Assume postura de defesa da cultura
tradicional do Japão, ameaçada pela modernidade, que trouxe
consigo uma cosmopolitização de mérito duvidoso.
Entre a necessidade e a curiosidade, toco aquilo que
posso tocar. Lembro, no apartamento de verão de minha tia
em Santos, uma parede feita em canjiquinha: placas de areni-
to empilhadas, cujas bordas se alternavam mais para dentro e
para fora, as ímpares cerca de um centímetro mais para fora
que as pares; variavam regularmente a forma e sombras; irre-
gularmente, as cores. É um convite à brincadeira para os
dedos. A fantasia mexia até com o apetite, pois pareciam
feitas de wafer gigante. É quase completa a diferença a uma
divisória bege de escritório, arrematada em PVC negro, mo-
nótona e fria. A presença de materiais verdadeiros (por
exemplo, vigas e tijolos) sugere a proteção concreta, peça por
peça, enquanto um painel de revestimento parece efêmero.
Forma uma parede lisa que nem agradável é, não identifico
do que é feita, portanto não me convence.
A textura desempenha, por vezes, função semelhante à
da escala de uma régua. A microescala vem do passo do tor-
no ou da plaina mecânica, do diâmetro dos fios no tear. A
macroescala vem do módulo das peças, sejam tijolos, azule-
jos ou tábuas. Olhando um trecho preenchido por uma textu-
ra, consigo captar de modo mais convincente tudo o que está
compreendido: entre o chão e o forro, de uma parede a outra.
Eu me convenço mais concretamente da verdadeira grandeza
das coisas.
Para Grant Hildebrand,238 de acordo com sua hipótese
evolucionista do prazer arquitetônico, as superfícies em ma-
teriais naturais nos fascinam pelo simples fato de que, até
algumas gerações atrás, as trincheiras, cavernas e árvores nos
proporcionavam abrigo, e se sobrevivemos, foi porque já
tínhamos uma preferência por tais locais. E as texturas nos

238
Grant Hildebrand, op. cit.
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 193

permitiam enquadrar possíveis invasores numa escala, avali-


ando seu tamanho.
Meus pés são quase sempre impedidos de tocar.
Quando tiro os sapatos e meias e piso, inicio uma nova visita
do local, seja ele o gramado, a areia da praia, a casa de al-
guém. Os pés sentem efetivamente o solo sobre o qual se
pisa, e que faz parte do invólucro da casa. Os tapetes e carpe-
tes ganham significado especial se os piso descalço, mas não
somente. Um carpete colocado sobre base de espuma envolve
ainda mais o pé a cada passo. É agradável pisar e sentir o
peso do corpo não concentrado sobre o calcanhar, mas distri-
buído como sobre a areia da praia, com um componente,
ainda que pequeno, de levitação. Saber que a cada momento
é possível sentar no chão. Um tapete de pele tem textura irre-
gular, assim como o tapete de sisal ou de pano feito à mão.
Talvez se eu pudesse ir trabalhar descalço eu ganhasse
maior simpatia em relação ao ambiente, aos colegas e aos
chefes; seria mais aberto aos aspectos simpáticos e menos
afeto à lembrança de ter chefes carrascos, colegas rivais e
subordinados conspiradores. Se pudesse me sentar ou até
deitar no chão eu iria ainda além nesta experiência de releitu-
ra tátil. Aqui reside um mistério de hospitalidade dos japone-
ses que, descalços, recebem suas visitas no chão. Com eles,
recebido numa sala tradicional, não sou desnivelado, nem
compartimentado, mas tratado com surpreendente igualdade.
Não parece demasiado estranha a idéia de uma Socieda-
de das Solas Sujas, a Dirty Sole Society,239 que de fato existe.
Se o tato é o sentido que nos conecta com a medida das
coisas, é inevitável sua relação com o princípio da sincerida-
de dos materiais, causa defendida no século XIX por críticos
moralistas como William Morris e John Ruskin e que ganhou
vigor no Modernismo. Ao tocar uma superfície plástica imi-
tando mármore, elimino qualquer dúvida sobre sua constitui-
ção. Ao bater com a mão fechada numa parede, ganho uma
impressão de sua espessura e massa, que os olhos nem sem-
pre me asseguram. Mas logo a sinceridade entra em conflito

239
Kun Chang, op. cit.
194 A IDÉIA DE CONFORTO

com a praticidade. O assunto é tratado por Rasmussen.240


Pela porosidade, algumas texturas são apenas imperfeitamen-
te lisas, pois parecem borradas, como é o gesso fresco; com o
tempo seus poros são preenchidos e as estátuas adquirem
expressão. Cita Thorvaldsen (escultor dinamarquês) para
quem o barro é vida, o gesso é morte, o mármore é ressur-
reição. Fala das peças em gesso como banalidades pré-
moldadas. Lembra que o concreto demorou até que seu po-
tencial em criar texturas agradáveis fosse identificado e de-
senvolvido, sem procurar finos detalhes geométricos, as tá-
buas das fôrmas deixando marcas dos veios da madeira.
Entretanto, mesmo os materiais considerados nobres po-
dem se mostrar dúbios, desagradáveis, como o mármore sem
acabamento, que parece açúcar. Uma parede de gesso, assim
como uma lousa suja de giz, não convida ao toque, o pó que
se desprende parece querer se alojar debaixo das unhas. As
suas superfícies têm valores intrínsecos associados aos mate-
riais: a precisão da forma; a honestidade, a robustez e a dura-
bilidade. Esta última compreende o envelhecer digno: como
na madeira exposta ao vento, da qual os veios se ressaltam,
como no rosto enrugado de um idoso. O tijolo feito à mão
incute vida e caráter às paredes. 241
O colorido não escapa a esta análise. A pintura acrescen-
ta à superfície ao mesmo tempo cor e uma qualidade lisa,
como no esmalte bem distribuído e seco, ou na tinta acrílica.
Se a pintura é procurada para efeito de limpeza ou conserva-
ção – como nas casas e barcos das cidades litorâneas – tal
aparência entra em choque com a honestidade dos materiais.
A pintura é delgada, passageira, sofre riscos, se converte em
resíduos sob a ação de uma lixa. O verniz cria na madeira
duplicidade de forma, dando-lhe alguma reflexão e fazendo
parecer que a superfície está molhada. Já a laca dos utensílios
e templos chineses e japoneses é uma espécie de pintura con-
sistente e muito refinada. Para Tanizaki, contém uma quali-
dade que vai além do meramente material: supera em muito
as cerâmicas, a que faltam as qualidades de sombra e pro-

240
Steen Eiler Rasmussen, op. cit.
241
Ibid.
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 195

fundidade das lacas. São pesadas e frias ao tato; permeáveis


ao calor, não servem para os alimentos quentes; além disto,
o menor golpe lhes tira um ruído seco, enquanto as lacas,
leves e suaves ao tato, não ferem o ouvido. Quando sustento
no oco de minha mão uma cumbuca de sopa, nada me agra-
da mais que a sensação de um peso líquido, de vívida tibieza
que minha palma experimenta. É uma impressão análoga à
que produz ao tato a carne elástica de um recém-nascido. 242
Para alguns japoneses de hábitos tradicionais, há dois
itens indispensáveis nas três refeições do dia. Um deles é o
arroz, cozido sem gordura e sem sal e servido num recipiente
cerâmico de perfil aproximadamente cônico, facilitando que
se retire todos os grãos com os palitos – hashi. Não se admite
o desperdício de um grão de arroz sequer. Outro é a sopa de
missô – o missoshiru – servida numa cumbuca de tamanho
aproximadamente igual, porém de forma mais próxima à
esférica, e de madeira recoberta com laca. A respeito desta
última, Tanizaki243 diz haver boas razões para explicar por
que se segue servindo hoje em dia a sopa numa cumbuca de
laca. Para o autor, um recipiente de cerâmica está muito lon-
ge de dar satisfações comparáveis. Sobretudo porque enquan-
to levantas a tampa o líquido encerrado em cerâmica se re-
vela imediatamente seu corpo e cor. Do contrário, quando
destampas uma cumbuca de laca, até que o leves à boca,
experimentas o prazer de contemplar em suas profundezas
obscuras um líquido cuja cor apenas se distingue da cor do
continente e que se estanca, silencioso, no fundo. Impossível
discernir a natureza do que há nas trevas da cumbuca mas
tua mão percebe uma lenta oscilação fluida, uma ligeira
exsudação que cobre as bordas da cumbuca e que diz que há
um vapor e o perfume que exala tal vapor oferece uma sutil
antecipação do sabor do líquido antes que te preencha a
boca. Que prazer este instante, que diferente do que experi-
mentas diante de uma sopa apresentada num prato plano e
branquelo de estilo ocidental ! Não é muito exagerado afir-
mar que é um prazer de natureza mística, com um ligeiro
saborzinho zen.

242
Junichiro Tanizaki, op. cit., tradução do autor.
243
Ibid.
196 A IDÉIA DE CONFORTO

O que mais parece ameaçar os costumes japoneses tradi-


cionais em laca não é exatamente a cerâmica. A industriali-
zação trouxe o plástico, com as vantagens de custos. Entre-
tanto, tocar o plástico é experiência bastante diversa de tocar
a madeira laqueada; muda o peso e também a sonoridade. O
gosto de plástico é perceptível aos paladares mais apurados.
Tadao Ando é um renomado arquiteto japonês. Sua obra
tem no concreto aparente que utiliza uma marca inconfundí-
vel. Mantém nas paredes os furos de fixação, formas, distri-
buídos com rigorosa regularidade. Com dosagem original e
aferição pessoal de qualidade, utiliza areia de granulometria
muito fina. O resultado é uma textura aveludada. Os visitan-
tes não hesitam em tocar a primeira parede moldada in loco
que encontram. Curioso é que no Centro de Convenções Vi-
tra, em Weil am Rhein, extremo sul da Alemanha, diante das
exigências da Wärmeverordnung (resolução do calor) daque-
le país, Ando teve de embutir na parede de concreto preten-
samente maciça uma camada de isolamento térmico. O dis-
curso de sinceridade dos materiais caiu por terra diante das
exigências burocráticas das normas.
A decisão entre os produtos industriais e as técnicas tra-
dicionais é afetada, na movelaria, pela valorização da experi-
ência tátil. O resgate do caráter artesanal na construção foi
apregoado pelo movimento Arts & Crafts na Inglaterra, final
do século XIX e início do século XX. William Morris se
opunha ao Vitorianismo industrializante e apregoava a volta
do artesanato refinado. Na versão americana e mais radical
do Craftsman, os objetos literalmente cercam as pessoas de
cuidados, que atingem a perfeição. O abundante uso de ma-
deira, cerâmica e alvenaria em pedra nas residências de Frank
Lloyd Wright lhes confere qualidade orgânica e, ao mesmo
tempo, coerência com alguns princípios resgatados no Mo-
dernismo, entre eles o da sinceridade dos materiais.
Mas o embate atravessou os movimentos. Nos anos 70,
contrariando a tendência, Christopher Alexander, arquiteto
inglês radicado nos EUA, declarou sua oposição ao uso de
pisos industrializados, como o porcelanato de extrema dureza
que então se difundia. Fazia apologia dos tijolos, e preferia
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 197

pavimentos de uma dureza limitada:244 Como é que uma pes-


soa pode sentir a terra, ou o tempo, ou qualquer conexão
com seu entorno, se caminha sobre as superficies mecânicas,
duras e laváveis do concreto, asfalto, blocos de pavimenta-
ção cozidos a alta temperatura ou misturas artificiais como o
terrazzo?
Alexander245 não se limitou à defesa do natural e do ar-
tesanal; queria trazer para dentro das construções as marcas
dos moradores: é essencial, sobretudo, que as superfícies ao
nível do solo, sobre as quais caminhamos, - tanto ao redor
dos edifícios, como também dentro nos lugares, como nos
corredores e nas cozinhas, onde o piso deve ser duro – sejam
macias o suficiente, ao menos, para mostrar a passagem do
tempo, em ondulações e irregularidades graduais, para con-
tar a história de milhares de pés passando, e tornar claro
que edifícios são como pessoas – não inquebrantáveis e es-
tranhos, mas vivos, mudando com o tempo, lembrando os
caminhos que as pessoas traçaram. Pedia ainda que o piso
fosse confortável ao toque, convidativo. Mas também que
fosse duro o suficiente para resistir o atrito, e fácil de lim-
par.
Sugeriu ainda que se buscasse uso para as paredes es-
pessas, já que as casas com paredes lisas e duras, feitas de
painéis pré-fabricados, concreto, gesso, aço, alumínio ou
vidro sempre parecem impessoais e mortas. Entretanto, uma
vez que se deterioram ou quebram, tais materiais não aceitam
reparos caseiros.246 Lembrou que antigamente as casas eram
feitas de madeira, tijolos, barro, palha, massa, facilmente
modificados pela mão do artesão, senão pelos usuários. O
caráter pessoal das casas transparecia em decorrência da ocu-
pação. Entretanto, os materiais usados na sociedade tecnoló-
gica moderna o impedem. Alexander lamenta este fato, pois a
maior parte da identidade de uma habitação está em suas
superfícies, ou próximo – até cerca de um metro de distância
das paredes.

244
Christopher Alexander, op. cit. (padrão 197).
245
Ibid.
246
Ibid. (padrão 207).
198 A IDÉIA DE CONFORTO

Recomendou, como exemplo, a massa de gesso macio,


por ser quente na cor (mesmo que branca), quente ao toque,
macia o suficiente para lhe afixarmos percevejos e pregos e
ganchos, fácil de reparar, e resultar num som que chama ma-
duro devido ao seu padrão de absorção acústica. Sobre a
massa de cimento, Alexander se queixava da excessiva dure-
za para se lhe bater um prego confortavelmente. Além do
mais, é fria, dura e áspera ao toque; tem baixa absorção acús-
tica. É mais difícil de reparar, pois na presença de uma ra-
chadura é difícil obter homogeneidade. Ao preferir o gesso
ao cimento, contudo, Alexander dificilmente se referia aos
ornamentos neoclássicos que, nos anos 90, voltaram a sobre-
carregar os forros dos ambientes. Buscava as qualidades ine-
rentes à superfície do gesso, e não algum tipo de nobreza
atraída por referências históricas infundadas nos ornamentos.
Alexander defendeu o uso do princípio estrutural da
compressão, recomendando a inclusão de abóbadas onde
possível, pois achava que a madeira, material por demais
nobre enquanto revestimento, não devia ser desperdiçada sob
o telhado pelo simples fato de resistir tração. Propôs ainda a
correspondência entre estruturas e a hierarquia social dos
espaços. Assim, cobrou do Modernismo uma coerência para
a qual este não parecia estar preparado.
E a disputa entre o prático e o autêntico avança, século
XXI adentro, quando revestimentos sintéticos imitam não só
desenho, mas a textura dos materiais naturais. O MDF, com-
binando resíduos de madeira e cola, viabiliza móveis de cur-
vas graciosas e arrojada esbelteza. Nas fachadas, apresentam-
se novos compostos de minerais e resinas. Mantendo propri-
edades táteis semelhantes ao arenito, ou ao próprio granito,
concordam mesmo com fachadas curvas, prometendo resistir
às intempéries e às agressões próprias do ambiente urbano. O
toque ainda é uma prova de verdade. Mas se a técnica conti-
nuar cobrindo a lacuna que separa, fisicamente, o autêntico
do postiço, não deverá suprir o déficit ético. Alguns princí-
pios deverão prevalecer além de todas as aparências.
Implicações da escolha entre o tradicional e o indus-
trial transcendem aspectos práticos: por exemplo, o significa-
do das marcas das mãos dos artesãos nas suas obras. É opor-
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 199

tuna a defesa feita por um escritório de arquitetura suíço247 de


um projeto próprio, em Berlim, para uma galeria de arte.
Priorizaram o conforto, tentando libertar-se da estética do
engradado proposta, no início do século XX, pelo artista
vanguardista Marcel Duchamp. O líder, Hans Kohlhoff, lem-
bra que quanto mais luxuoso o equipamento de um carro,
mais manual é a sua fabricação. Contraditoriamente, a casa
busca por uma racionalidade de aparência, e assim se desu-
maniza. Kohlhoff menciona o escritor mexicano Octavio Paz
(1914 – 1998), na obra Los privilegios de la vista,248 no tre-
cho em que descreve o caráter superpessoal que tem o objeto
artesanal. Este caráter expressa-se inexplicavelmente no sen-
timento ao toque.
A curiosidade me motivou para procurar o texto
completo de Paz. Para ele, a marca das mãos do artista não é
sua assinatura, senão a cicatriz quase apagada que comemo-
ra a fraternidade original dos homens. Assim, as obras de
arte (para ver) diferem dos objetos industriais (para usar) e,
enfim, daqueles de artesanato, com que temos vínculo corpo-
ral. É por isto, afirma, que o corpo é participação. Sentir
significa, antes de mais nada, sentir algo ou alguém, que não
somos nós. Antes de tudo: sentir com alguém. Mesmo para
sentir-se, o corpo procura um outro corpo. (...) O artesanal é
um sinal, que expressa à sociedade não como trabalho (téc-
nica) nem como símbolo (arte, religião) mas como uma vida
física compartilhada.249
As marcas do trabalho humano ajudam a produzir a sen-
sação de acolhimento que, numa abordagem holística, integra
a sensação de conforto. Peças pré-fabricadas para se morar
dentro – banheiros em fibra de vidro, no Japão, e hotéis intei-

247
Apud Hans Kohlhoff et al., op. cit.
248
Octavio Paz. El uso y la contemplación. In: México en la obra de Octavio Paz.
III. Los Privilegios de la vista. Arte de Mexico. Letras Mexicanas. Fondo de Cultura
Economica. Mexico (1987).
249
O autor, enfim, formula que a obra de artesanato é um objeto útil mas que também
é belo; um objeto que dura mas que se acaba e se resigna a acabar-se; um objeto
que não é único como a obra de arte e que pode ser substituído por outro objeto
parecido, mas não idêntico. O artesanato nos ensina a morrer e assim nos ensina a
viver. Esta situação intermediária do artesanato ajuda a compreender a situação da
arquitetura, que não se reduz a arte, nem a utilidade.
200 A IDÉIA DE CONFORTO

ros em painéis industrializados, na França – contrastam


enormemente com as construções em alvenaria de tijolos,
ainda mais quando estes são queimados em forno de lenha,
cada qual com seus desenhos.
O ambiente tátil em que as pessoas vivem e trabalham é
resultado, das decisões tomadas ao construir e finalizar o
edifício, com escolha do mobiliário. Também resulta do lon-
go processo de envelhecimento dos materiais, que transforma
as superfícies. E ainda é influenciado pelos objetos que vão
sendo colocados no ambiente. A este respeito, afirma uma
arquiteta de interiores suíça que o conforto tem a ver com
aconchego, proteção e bem-estar. Como confortável, eu vejo
a possibilidade de ter uma certa disponibilidade de produtos
em livre escolha, e também a capacidade de poder recusá-
los. 250
Não se trata rigorosamente de um efeito psicológico,
mas de uma presença que não pode ser falsificada. Através da
visão de muitas superfícies, como as superfícies de víveres
ordenados em prateleiras, uma sensação de segurança se tra-
duz em bem-estar tátil. O escritor americano Henry David
Thoreau, narrando em Walden seu retiro voluntário a uma
cabana de troncos remota, lembra como um habitante no
meio da floresta se regozija com os alimentos na despensa. É
confortável saber-se cercado de sacos de arroz e tonéis de
vinho. Esta impressão acompanha a visita a casas rurais tra-
dicionais, descendo às suas adegas. É a princípio uma idéia
tátil de conforto, portanto de conforto no seu contexto ambi-
ental. Contudo, tem implicações nos contextos sócio-cultural
e psico-espiritual do conforto, onde pode aumentar até atingir
um padrão de luxo. Fora das cortes reais e imperiais da Euro-
pa e da Ásia, o prazer de saber-se cercado de regalias se dis-
seminou, nos EUA de meados do século XIX, como um pro-
duto comercial, na prática dos hotéis de alto padrão. Ofereci-
am aos viajantes a possibilidade de sentirem-se reis por uma
noite, de onde o nome Palace Hotel.

250
Verena Huber & Stefan Zwicky, Der Mensch ist die Basis des Komforts, Werk,
Bauen + Wohnen 3, pp.60-61 (2003).
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 201

Entretanto, esta infra-estrutura de acolhimento pede um


toque pessoal, sem o qual ela se mostra fria. Confere a dife-
rença fundamental entre o hotel e a pousada, em que o pro-
prietário ainda cuida em colocar cortinas nas janelas, estantes
nas paredes e sobre elas seus objetos pessoais. Christopher
Alexander251 menciona que se propagaram de tal modo a
decoração e a concepção de arquitetura de interiores – como
beleza feita para se exibir às visitas – que, muitas vezes, as
pessoas esquecem as coisas que realmente gostariam de ter
ao seu redor. Bachelard exemplifica com objetos pessoais.
Pensa na lâmpada, na lâmpada tão velha que te saudava
desde longe na janela de teus pensamentos, na janela toda
queimada de sóis antigos (...) Do fundo do seu rincão o so-
nhador volta a ver uma casa mais velha, a casa de outro
país, fazendo assim uma síntese da casa natal e da casa oní-
rica. Os objetos, os alusivos objetos o interrogam: ”Que
pensarão de ti os objetos que te foram acolhedores, tão fra-
ternalmente acolhedores? Seu obscuro destino não estava
estreitamente unido ao teu? É uma impressão causada pelos
objetos que cercam a heroína Amélie Poulain no premiado
filme francês.252
A simplicidade num ambiente não deveria parecer in-
consistente. Superfícies brancas e assoalho liso, móveis tubu-
lares, tão simples que parecem incompletos, ângulos retos
entre paredes e tetos. Uma elegância pretensamente sincera,
mas que oculta as vigas por detrás do forro e cabos e verga-
lhões de aço por dentro das vigas. Não resistem a uma rápida
decomposição visual. Resistirá a edificação ao efeito dos
vândalos, das intempéries, do tempo? Nosso ambiente de
refúgio também tem a propriedade de nos conceder abrigo à
sensação de solidão, do vazio existencial. O receio da imen-
sidão é uma característica do homem ocidental, que Coelho
Netto aponta como a razão dos ambientes entulhados de ob-
jetos.253

251
Christopher Alexander, op. cit. (padrão 257).
252
O fabuloso destino de Amélie Poulain, filme de Jean-Pierre Jeunet (2001)
253
José Teixeira Coelho Netto, op. cit.
202 A IDÉIA DE CONFORTO

Mas se o vazio é frio, como lembra Bollnow, o empi-


lhamento - aquele mencionado nos interiores das casas bur-
guesas a partir da metade do século XIX, o cluttered look -
sufoca. Benjamin254 descreve um interior pequeno-burguês
como tendo as paredes cobertas por quadros, o sofá por al-
mofadas, as almofadas por capas, os consoles por bibelôs, as
janelas por vidros coloridos. E desabafa: ali nada de humano
pode prosperar. Buscamos algo intermediário, que integra o
calor; o assento aconchegante; a cor da parede. O espaço
cuidado, porém livre da excessiva ordem: sem apagar as
marcas da vida. Como as cadeiras diferentes que aparecem
num conjunto disposto ao redor de mesa circular, sob o can-
delabro central da sala. A quebra de simetria sugere a presen-
ça de alguém responsável: traz calor a um esquema formal.255
Móveis escolhidos a dedo. Para Bollnow é a irradiação
da pessoa que torna o espaço habitável. As coisas através do
uso cuidadoso fundem-se na vida do sujeito. E a moradia
expressa a pessoa e reflete um passado. Referências da histó-
ria, e mesmo as marcas do uso adquirem valor positivo. A
verdadeira moradia não é uma criação artificial, mas um
amadurecimento progressivo”. (...) A moradia habitável de
uma outra pessoa não somente nos prende em sua magia,
mas também nos transforma, na medida em que nós, na at-
mosfera de sua intimidade, somos levados de volta para nós
mesmos. Ocorre tanto uma individualização do ambiente
como uma ambientação do indivíduo.
Quadros na parede quebram a monotonia e sugerem que
o proprietário tem preferências, talvez até idéias próprias,
tradições e valores. Os pequenos e minúsculos objetos num
quarto de menina têm o efeito de um reservatório de singele-
za.256 Alguns pertences de caráter ancestral e formas marcan-
tes chegam a ser insubstituíveis. Móveis que atravessaram as
décadas trazem a marca do durável. Imagine-se que choque

254
Walter Benjamin, Obras Escolhidas II – Rua de mão única, Editora Brasiliense,
São Paulo (1987).
255
Peter Thornton, op. cit., prancha 415.
256
Ibid, prancha 416.
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 203

encontrar subitamente vazio o canto sempre ocupado por um


piano.257
Ainda, a riqueza em detalhes apresenta, implícito, o
convite à próxima visita, pois o tempo será sempre curto para
que se tenha visto tudo, já que se passou vagando de pensa-
mento em pensamento. Não há perigo de exposição ao vazio.
Nada da beleza gélida de uma paisagem de mar aberto como
à beira da Lagoa da Mangueira, na costa do extremo sul do
Brasil.
Rybczynski lembra que, como uma página em branco,
uma escrivaninha completamente livre pode intimidar. Ar-
gumenta que o caseiro não é sinônimo de ordeiro. Lembra
como, na Idade Média, o piso do hall das casas recebia palha
no inverno e ervas e flores no verão. Esta prática tinha o pro-
pósito tanto de manter o piso aquecido como manter uma
aparência e odor de limpeza. É esta a origem provável do
verbo espalhar em português.258 Em inglês, straw significa
palha e também espalhar; em alemão, Stroh e streuen, respec-
tivamente.
Uma parede coberta de estantes de livros é, como ele-
mento do entorno visual, um padrão de formas e cores mo-
vimentando as paredes do ambiente. É ainda uma realidade
tátil. Não são lombadas decorativas; são livros reais. Não
deixam abandonado quem buscá-los for; tantas vezes quanto
se puxar pelas lombadas os livros, estarão eles prontos para
serem lidos.
Tem um gosto particular a leitura num ambiente cercado
de livros. É difícil imaginar sua falta. As estantes têm alguma
relação com a despensa cheia de comida com que passamos
um feriado prolongado sem nos perguntarmos se o comércio
abriu, especialmente sob mau tempo. Os livros são objetos
para serem tocados, sua sensação tátil é quente, à diferença
da parede branca. Sento-me quase esbarrando neles.

257
Ibid., padrões 412, 413 e 498.
258
A origem, relacionada a palha, é confirmada pelo Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa.
204 A IDÉIA DE CONFORTO

Os livros trazem variedade ao ambiente – olhando para


seus títulos, já encontro algum que nunca li, ou que talvez
quisesse ler ou reler naquele mesmo instante. Diminuem o
espaço do quarto sem que isto me incomode. Diminuem o
vazio à noite e melhoram a sensação de caverna, que me
acolhe do frio e do escuro. Mesmo se eu me sentar na poltro-
na sem idéia do que fazer, encontro-me diante de uma porção
de idéias. São como um banco de sementes, o germoplasma.
A provisão para atravessar o vazio do tempo.259
A informação sobre o ambiente recebida do tato - em
concomitância ou alternância com a visão - se mostra sensí-
vel às relações de forma, proporção e posicionamento relati-
vo entre os objetos.
A experiência das formas é mais uma experiência tátil
que visual. Do tato decorre a sensação de envolvimento. Afi-
nal, é uma proteção contra a invasão, a violação da integrida-
de física. Bachelard trata de algo que representa uma sensa-
ção de aconchego, envolvimento, que contém uma forte me-
táfora do humano: a choça primitiva, raiz pivotal da função
de habitar. É a planta humana mais simples, a que não ne-
cessita ramificações para poder subsistir. É tão simples que
não pertence já às lembranças, às vezes demasiado cheias de
imagens. Pertence às lendas. É um centro de lendas. Ante
uma luz remota perdida na noite, quem não dormiu na cho-
ça, quem não dormiu, adentrando-se mais nas lendas, na
cabana do ermitão? (...) Em seguida a cabana é a solidão
concentrada...Tem uma feliz intensidade de pobreza...De
despojo em despojo, nos dá acesso ao absoluto do refúgio.
E noutra ocasião, trata da curva: que fazemos de mais se
dizemos que um ângulo é frio e uma curva quente? Que o
ângulo é masculino e a curva feminina? Um nada de valor
muda tudo. A graça de uma curva é um convite a permane-
cer. Não pode alguém evadir-se dela sem esperança de re-
torno. A curva amada tem poderes de ninho; é um chama-
mento a uma possessão. É um rincão curvo. É uma geome-
tria habitada. Estamos ali num mínimo de refúgio, no es-
quema ultra-simplificado de um devaneio do repouso. A

259
Peter Thornton, op. cit., prancha 429.
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 205

rigidez classicista ou modernista dos ângulos retos requer um


contraponto curvilíneo e macio;260 algo como já era dado
pelos automóveis da época do auge do Modernismo, nos anos
20.
Por que o nicho escuro, acarpetado, coberto de almofa-
das e fechado por cortinas inserido no escritório desenhado
por Maurice Dufrène em Paris,261 1912, é tão convidativo?
Tal não seria, por exemplo, uma cama colocada naquele lo-
cal. O nicho é muito mais convidativo que a cama feita um
móvel.
Semelhante impressão de segurança advém dos desní-
veis. Talvez a satisfação que sentimos possa ser explicada
com um argumento evolucionista: quando no nível mais bai-
xo, dispomos como que de trincheiras para a defesa. Quando
acima, vemo-nos em posição de maior alcance para atacar.262
O sofá é muito mais aconchegante quando envolve as
pessoas com seus braços, formando um nicho.
Uma coluna espessa e de sessão circular projetando-se
para fora no canto de uma sala retangular traz-lhe calor. Mos-
tra conformidade com um princípio recomendado por Ale-
xander: de que a solução estrutural deve refletir a hierarquia
social dos espaços.
A densificação de nichos em que se encaixam armários,
mesas, cama e sofás dá ao espaço vazio restante o caráter de
um contraponto, em que parece enriquecido.263
Uma sala de visitas com arranjo circular de objetos que-
bra a formalidade cartesiana, fazendo da sociabilidade uma
experiência mais onírica.264
A influência que tem a dinâmica das pessoas no ambien-
te é tratada no contexto sócio-cultural do conforto, e sua des-

260
Ibid, prancha 519 (exemplo da ausência do elemento curvilíneo).
261
Ibid., prancha 520.
262
Ibid., pranchas 366, 365.
263
Ibid., prancha 488.
264
Ibid., prancha 518
206 A IDÉIA DE CONFORTO

crição aprofundada foge ao escopo deste livro. Entretanto,


são seres concretos, que podemos tocar, ou que podem nos
tocar. Aqui está uma extensão natural do estudo do tato.
Existem estudos comprovando que o ato de acariciar um
cachorro faz diminuírem os batimentos cardíacos da pessoa.
Outro estudo foi realizado numa biblioteca em que os
atendentes foram instruídos para, de maneira pretensamente
acidental, tocar seus clientes. Demonstrou que estes, se con-
sultados, expressam uma maior satisfação com os serviços.
As pessoas tocadas respondem diferentemente, e não é ne-
cessária a consciência do toque para o efeito. Na continuação
da pesquisa, verificou-se que se uma garçonete sutilmente
tocar seus clientes, eles dão gorjetas maiores. Entretanto,
trata-se de um toque muito suave, nada parecido com o toque
inevitável que ocorre no transporte de massa em horário de
pico. E se o toque se mostra como gesto intencional, é perce-
bido como sinal de poder, pois um chefe usa esta prática para
lembrar aos subalternos que não poderiam agir em reciproci-
dade, pois não têm o controle que pensam ter. E o toque um
pouco mais insistente pode ser mal interpretado: como um
avanço de sinal em direção ao assédio.265 O toque é, pois, a
primeira linguagem que aprendemos, mas parece que nunca o
dominamos. A rainha da Inglaterra nem mesmo fala com um
plebeu: isso seria abrir para o toque.
A pesquisadora Ashley Montagu descreveu o significa-
do comunicativo e estimulante do toque entre a mãe e a cri-
ança, num manifesto em defesa do aleitamento materno e
alguns outros cuidados. Bebês massageados adquirem peso
até 50% mais rapidamente que os bebês que não recebem
massagem. São mais ativos, alertas e respondem melhor, são
mais ligados ao seu meio, mais tolerantes ao ruído e orien-
tam-se mais rapidamente. Ficam emocionalmente mais sob
controle.266

265
Estas idéias e resultados de estudos foram apresentados num programa do Natio-
nal Geographic Channel sobre toque, exibido pela TV Nacional (Radiobrás) em
janeiro de 2004.
266
Ashley Montagu, Touching – the Human Significance of the Skin, Perennial
(1986).
O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 207

Na literatura brasileira, José de Alencar é um prolífico


inventor de situações táteis, como na abertura do romance
Cinco Minutos, em que descreve um encontro inesperado. À
hora marcada, narra, chegou o ônibus e apressei-me a ir to-
mar o meu lugar (...) O canto já estava ocupado por um
monte de sedas, que deixou escapar-se um ligeiro farfalhar,
conchegando-se para dar-me lugar. Sentei-me; prefiro sem-
pre o contato da seda à vizinhança da casimira ou do pano.
O meu primeiro cuidado foi ver se conseguia descobrir o
rosto e as formas que se escondiam nessas nuvens de seda e
de rendas. Era impossível.Logo adiante, prossegue em nova
experiência: senti no meu braço o contato suave de um outro
braço, que me parecia macio e aveludado como uma folha de
rosa. Quis recuar, mas não tive ânimo; deixei-me ficar na
mesma posição e cismei que estava sentado perto de uma
mulher que me amava e que se apoiava sobre mim. Cinco
minutos, enfim, é o tempo do atraso que fez o protagonista
tomar o próximo ônibus – uma hora depois do planejado - e
encontrar alguém que passaria a fazer parte de sua vida.
Já no romance Senhora, o autor usa sensações táteis di-
versas para descrever uma valsa entre os protagonistas de um
casamento de conveniência. Sua relação antes meramente
cartorial vai se tornando uma atração recíproca, e ambos vão
cedendo. Haveria na valsa uma delícia, uma voluptuosidade
pura e inocente, nessa embriaguez da velocidade. Para a
mulher, a valsa seria ocasião de metamorfose. Esse enlevo
inocente da dança entrega a mulher palpitante, inebriada, às
tentações do cavalheiro, delicado embora, mas homem, que
ela sem querer está provocando com o casto requebro de seu
talhe e traspassando com as tépidas emanações de seu cor-
po. Quando a mão de Aurélia calcava-lhe no ombro, trans-
mitindo-lhe com a branda e macia pressão o seu doce calor,
era como se todo seu organismo estivesse ali, naquele ponto
em que um fluido magnético o punha em comunicação com a
moça.
E ainda noutro romance, Diva, o autor mostra saber
converter sensualidade em indiferença através, principalmen-
te, do tato: vendo-me aproximar, toda sua pessoa envolveu-se
de repente na frieza glacial, que de longe ainda já me tinha
208 A IDÉIA DE CONFORTO

congelado a palavra nos lábios. Essa mulher, cheia de graça


e vida, tinha o mágico poder de fazer-se mármore, quando
queria.267 Parece dominar o contraste, comparando uma mo-
ça a certos frutos que, se a nossa mão a alisa, experimenta
uma sensação aveludada; se ao contrário a eriça, o tato é
áspero. Assim era o pudor de Emília.
Mesmo no distanciamento tomado das pessoas que não
aprovamos, há uma sensação de toque ao nos referirmos a
elas: pegajosas ou grudentas, ásperas ou ríspidas, evasivas ou
lisas.
O sentido que cada um tem de si mesmo é muito o sen-
tido do tato. Diante do espelho, estamos muitas vezes nos
tocando. É assim que nos vemos em profundidade e contor-
no, parte do mundo tridimensional. E nossos proprioceptores
nos mantêm informados da localização no espaço, se nossos
estômagos estão ocupados, onde é que nossas pernas e braços
se encontram, ou se estamos em movimento. Mas isto não
significa que nosso sentido de nós mesmos seja necessaria-
mente acurado. Cada um de nós tem uma figura mental exa-
gerada do próprio corpo, com uma grande cabeça, e ainda
grandes mãos, boca, órgãos genitais, mas um pequeno tronco.
As crianças muitas vezes desenham as pessoas com grandes
cabeças e mãos, por ser esta a maneira como percebem seus
corpos.
O tato é um vínculo que temos com a realidade física.
Como no olfato, é um vínculo que se completa através da
matéria, e não somente da energia como ocorre na visão ou
na audição.
O tato tem com a realidade um vínculo mais simples que
o tem a visão. Não conhecemos a expressão “ilusão tátil”,
mas a visão, esta nos engana com freqüência. Muito da im-
portância atribuída à visão o deveria ser àquilo que ela repre-
senta: o tato.

267
José de Alencar, Diva, cap. X. Obra integral do autor disponível na biblioteca
virtual do estudante brasileiro (Universidade de São Paulo) em
http://www.bibvirt.futuro.usp.br.
...it is so much pleasanter and wholesomer to be warmed by
the sun while you can be, than by an artificial fire.

(...é muito mais prazeroso e saudável ser aquecido pelo sol,


enquanto se pode, que por um fogo artificial)

Henry David Thoreau, Walden

Figura 6 – Projeção do sol da manhã, através da janela leste, num


corredor de hospital (Hospital de Clínicas da UFPR – Curitiba)
6 - O ambiente termicamente
perceptível

6.1 Introdução
O conforto térmico é objeto de uma busca incessante.
Uma pessoa qualquer, muitas vezes ao dia, abre e fecha bo-
tões da gola e das mangas, que sobe e desce. Retira seu pale-
tó e o veste novamente. Abre e fecha janelas. Ajusta as persi-
anas. Sai pelos corredores ora em busca de café quente, ora
de água gelada. Caminhando pela rua sob o sol escaldante,
prefere o lado sob um beiral ou ao longo de um muro alto. Já
no frio de inverno, deverá inverter tal escolha, e chegando em
casa numa tarde fria, procura uma xícara de chá. Troca-se e
encontra no fundo da gaveta aquelas meias de lã muito velhas
- nesta hora, não há peça mais importante no guarda-roupa. E
no meio da noite, é comum que jogue longe as cobertas da
cama para, horas depois, amanhecer encolhido de frio. São
gestos irrefletidos que fazem parte da rotina das pessoas,
independendo de sua classe social ou atividade profissional.
212 A IDÉIA DE CONFORTO

Embora tomem tempo, não são gestos agendados; são feitos


quase inconscientemente.
Mas nem tudo é feito com vistas ao conforto térmico.
Este muitas vezes entra em conflito com valores culturais da
indumentária. O médico está geralmente de branco, o salva-
vidas de vermelho e o garçom de preto. O motorista usa luvas
brancas. Os mecânicos macacão, jogadores de futebol, ber-
mudas; boxeadores, o peito nu. Banhistas usam maiô. São
ícones, dificilmente se aceita algo diferente disto.
O terno e a gravata foram adotados de maneira quase
generalizada como traje masculino nos círculos decisórios
públicos e privados, no Oriente quase tanto como no Ociden-
te. Num país predominantemente tropical como o Brasil, é
um traje que atrapalha o conforto em todo o território nacio-
nal, quase o ano inteiro. E sequer se trata de alguma manifes-
tação cultural própria.
O terno nasceu em 15 de outubro 1666, na Inglaterra,
quando Charles II encomendou uma roupa de três peças:
calça, colete e paletó. Segundo David Kuchta,268 o rei busca-
va um traje para os homens ingleses que lhes realçasse o
caráter másculo e assim lhes reforçasse sua legitimidade polí-
tica, sua autoridade moral e utilidade econômica. Os ombros
em ângulo reto e a linha da gola estendida dão, de fato, a
ilusão de um tronco mais reforçado. O tecido rígido oculta
muitos movimentos naturais do corpo, dando-lhe altivez e
postura. As cores escuras ainda amplificam estes efeitos. O
azul denota tranqüilidade, transcendência e dignidade; o ne-
gro, além do significado fúnebre, está associado ao poder. O
azul marinho procura unir as propriedades das duas cores.
Já o costume da gravata remonta a 1635 quando, na
Guerra dos 30 anos, uma leva de mercenários croatas foi a
Paris prestar apoio a Luís XIV e Richelieu, e chamou a aten-
ção pelos lenços coloridos amarrados ao pescoço. Os lenços
eram chamado “croatas”, de onde o nome gravatas. Segundo

268
David Kuchta. The Three-Piece Suit and Modern Masculinity: England, 1550-
1850. Studies in the History of Society and Culture. Berkeley and London: Universi-
ty of California Press ( 2002). Resenha por David Turner em http://www.h-net.org
(2003).
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 213

Françoise Chaille,269 tinham individualidade: os soldados


usavam lenços de tecido mais barato; já os oficiais, estes
optavam pela seda. Representavam um ganho em praticidade
sobre os laços de colarinho que tinham de ser mantidos bran-
cos e engomados. A idéia encantou os franceses. O que era
uma rebelde simplificação incorporou, ao longo de séculos,
valores de formalidade e elegância. Em ambientes restritos, a
falta de gravata é quase tão mal-vista quanto a falta de decên-
cia.
Num dia quente e úmido, o termicamente ideal seria
usar nenhuma roupa, o que na maioria das sociedades nem se
cogita. Já num dia frio, o ideal seria muita roupa, porém res-
trito à necessidade de ventilação do corpo. Mesmo que não
houvesse convenções sociais a respeito, o traje, em si, não
seria um parâmetro de muito alcance para a obtenção do con-
forto térmico.
O que vestir e o que beber são questões que já ocupam
muitos minutos de atenção diária de qualquer um. Como se
não bastasse, existe ainda uma legião de pessoas que se dedi-
cam exclusivamente ao conforto térmico alheio. Desenhistas
de moda e alfaiates que se alternam entre as coleções de ve-
rão, inverno e meia-estação; enfermeiras que cobrem seus
pacientes e mães que vestem seus filhos; empresas que ven-
dem e instalam aparelhos de climatização; paisagistas que
distribuem plantas na área urbana, e cientistas que, reunidos
na Convenção do Clima, discutem o aquecimento artificial
do planeta e formulam a política ambiental global. Mas a
maior responsabilidade cabe aos projetistas e construtores,
arquitetos e urbanistas, engenheiros, empresários e operários
da construção. Também se incluem os auto-construtores, os
edificadores mais atuantes nas regiões pobres do planeta.
A busca de abrigo, aos inimigos como às intempéries, é
o motivo primordial para que os povos se dediquem à cons-
trução de casas e outros edifícios, investindo esforço muscu-
lar e poder de raciocínio.

269
Françoise Chaille, La Grande Histoire de la Cravate, Flamarion, Paris (1994).
214 A IDÉIA DE CONFORTO

6.2 Mecanismos físicos e fisiológicos


O calor – idéia familiar – está presente nos raios do sol,
num cobertor, numa xícara de café ou numa dose de vodka –
mesmo gelada. Durante a atividade corporal, o calor parece
vir de dentro do corpo. O que é que estas aparições de calor
têm em comum?
A temperatura de um objeto é tanto maior quanto mais
intenso for o movimento vibratório de suas moléculas. Quan-
do este movimento é transmitido de uma porção para outra
porção da matéria, dizemos que está havendo transferência de
calor, ou simplesmente calor. É, portanto, uma forma de
energia transmitida de uma porção da matéria em maior tem-
peratura para outra em menor temperatura. Um copo de água
pode estar mais quente do que um balde de água morna; isto
não significa, porém, que tenha mais calor, pois a massa do
balde é muito superior – possui um número muito maior de
moléculas de água. Calor e temperatura são conceitos dife-
rentes. A temperatura é uma propriedade associada do calor.
Calor é energia, e energia é algo que se mede. Quantida-
des bem definidas de energia estão presentes num tanque de
combustível, ou num pacote de biscoitos (energia química);
na descarga de um flash (energia luminosa); numa pedra que
se ergue do chão (energia potencial); num carro em movi-
mento (energia cinética); numa pilha de rádio (energia eletro-
química); ou numa panela de água quente (calor). Cheia de
ar, a panela, à mesma temperatura, teria bem menos calor.
Primeiramente, porque o ar é quase mil vezes menos denso
que a água. Além disto, o mesmo peso de ar requer quatro
vezes menos energia que a água para uma mesma variação de
temperatura.
O calor é uma das formas de energia que se pode acu-
mular; já a luz, não.
A potência é rapidez com que a energia é transferida ou
convertida. Um motor pode ser de grande potência (nunca de
alta energia). Assim também um secador de cabelos. Já uma
usina hidrelétrica com baixo nível de reservatório dispõe de
pouca energia, mesmo que seja de alta potência. Uma refei-
ção leve contém pouca energia.
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 215

Rigorosamente não existe consumo de energia. O que


existe é a conversão de energia de maior qualidade em ener-
gia de menor qualidade. E a menor qualidade é atribuída ao
calor. Isto não significa que calor seja algo ruim. Entretanto,
indica o caminho da maior racionalidade energética: cada
forma de energia sendo aproveitada naquilo que tem de mais
precioso.
Quando uma forma de energia é transformada em outra,
parte dela se torna calor. Existe uma tendência pela qual as
diferentes formas de energia são convertidas naturalmente em
calor. Aliás, todas as formas de energia podem ser transfor-
madas integralmente em calor, mas o contrário não é verda-
deiro.270
O calor pode ser do tipo sensível ou latente. Calor sensí-
vel é aquele transferido entre duas porções de matéria com
diferença de temperatura.271 Já o calor latente é a porção de
energia necessária para mudar o estado físico da matéria: ou
seja, mudar seu estado sólido, líquido ou gasoso. O gelo, ao
derreter, permanece a uma temperatura estável; entretanto, só
derrete com aporte de calor.
O calor sensível pode ser transmitido por condução,
convecção ou radiação. Cada forma de transmissão de calor
apresenta seu mecanismo próprio.
A condução é a transferência de calor através dos
corpos sólidos. Um material bom condutor de calor, se inter-
posto a dois corpos a diferentes temperaturas, atua de modo a
aproximá-las. Uma panela de alumínio, sobre a chama, aque-
ce mais rapidamente a água que uma panela de barro. São
bons condutores de calor os metais; são condutores médios a
270
O calor é, pois, a forma mais comum de energia. É muito fácil produzir calor. É
como uma energia residual na natureza, a energia em estado de desordem. Se um dia
todas as reações químicas possíveis tivessem ocorrido, todas as moléculas estives-
sem uniformemente misturadas e tudo estivessem à mesma temperatura, o universo
teria alcançado sua morte térmica. É uma situação hipotética, mas é para onde tudo
caminha. A vida é, pois, um esforço de reorganização da energia que envolve muita
complexidade.
271
A temperatura absoluta do espaço é zero. Já a matéria pode ter uma temperatura
absoluta diferente de zero. A temperatura absoluta é uma escala utilizada na física,
sendo que o zero absoluto é muito mais frio que o ponto de congelamento da água,
chegando aos quase trezentos graus negativos.
216 A IDÉIA DE CONFORTO

pedra, o concreto e o vidro. Maus condutores de calor, por-


tanto bons isolantes térmicos, são a madeira e, caso mais
extremo, a lã e a cortiça. Contêm ar encapsulado. Por isto
mesmo, são materiais de baixa densidade.
A convecção é o calor que viaja associado a porções
da matéria: o movimento da água nos tubos de um radiador
ou do vento que atravessa um edifício. Ou ainda, da água que
cozinha o spaghetti e faz com que ele vire na panela, sem
precisar mexer. Este último é um caso de convecção natural,
pois o movimento é provocado pelas próprias diferenças de
temperatura. Fazem subir as porções quentes - menos densas
- e baixar as porções frias – mais densas. Já a convecção for-
çada ocorre por algum outro fator externo. Por exemplo, a
água nos tubos, que se movimenta pela ação de uma bomba,
ou o ar que circula propulsionado por um ventilador.
A radiação é a transferência de energia na forma de
ondas eletromagnéticas através do espaço. Absorvida pela
matéria, se converte em calor. Praticamente toda superfície
emite radiação.272 Quanto maior, mais quente e mais emissiva
for uma superfície, maior sua emissão. A energia saindo de
cada porção de superfície viaja por todas as direções para
onde puder viajar (menos para trás). Portanto, por todo um
semi-espaço. Uma outra superfície que estiver no caminho
recebe esta energia, e tanto mais quanto maior, mais próxima,
e mais perfeitamente face a face se encontrar. O sol, visto da
Terra, é pequeno, mas com sua superfície à temperatura de
milhares de graus Celsius influencia decisivamente as condi-
ções térmicas sobre a Terra. Já no espaço, onde não há maté-
ria, predomina o zero absoluto de temperatura; a Terra perde
calor para ele e nada recebe em troca.
O calor latente é aquele envolvido numa mudança de es-
tado físico (de sólido para líquido, de líquido para vapor, de
sólido para vapor ou vice-versa), que ocorre a temperatura
constante para as substâncias puras.

272
A rigor, todos os corpos acima de –273,16°C, que não sejam perfeitamente
reflexivos, emitem radiação eletromagnética. Mais a respeito no capítulo sobre
visão.
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 217

A importância prática do calor latente para o conforto


térmico é enorme, pois assim como o suor sobre a pele ao
evaporar vai aliviando a sensação de calor, uma roupa úmida,
no corpo, vai secando e aumentando a sensação de frio (além
disso, a roupa úmida é um pior isolante térmico que a roupa
seca). E a neve sobre a roupa, ao derreter, extrai-lhe razoável
quantidade de calor.
A temperatura do corpo e, conseqüentemente, o conforto
térmico são o resultado da aplicação dos mecanismos de
transferência de calor sensível e latente entre o indivíduo e o
ambiente. Este processo obedece às leis da física. Os parâme-
tros corporais (temperatura e taxa de transpiração da pele,
roupa e atividade física) normalmente são inegociáveis. As
variáveis climáticas nos são impostas; mas num escopo limi-
tado – o ambiente construído – conseguimos modificá-las.
Quatro variáveis resumem as influências do clima e da paisa-
gem sobre o conforto térmico: temperatura do ar, velocidade
do ar, umidade do ar e as fontes de calor radiante direto ou
refletido.
Felizmente, há quase sempre uma solução, ou mais de
uma, para obter conforto térmico.
A sensação de calor pode ser produzida, da maneira
mais simples, pelo agasalho. Imagino-me num chalé no alto
das montanhas. Fora sopra um vento cortante. Visto-me com
várias camadas de roupas e me coloco debaixo de um cober-
tor de lã e ainda um acolchoado de penas. Fora da cama faz
muito frio. Ainda não estou contente, e puxo mais dois cober-
tores. Constato que a temperatura no meu nicho logo se esta-
biliza. O calor vem de dentro do corpo e é retido pelas cober-
tas.
Muito diferente é a sensação de calor ao caminhar pela
praia. Além dos raios diretos do sol, a pele recebe os raios
que vêm refletidos pela areia. É como se a radiação solar
fosse amplificada, quase dobrada. Mas existem duas formas
de compensação. O líquido que molha a pele (o suor e a água
do mar, coincidentemente, duas formas de água salgada)
retira-lhe calor latente ao evaporar. O vento acelera o proces-
so. Se brinco com uma bola, produzo mais calor; no entanto,
218 A IDÉIA DE CONFORTO

também aumento a ventilação do corpo ao correr. Se perma-


neço parado e o vento cessa, minha temperatura sobe. E o
corpo reduz automaticamente seu ritmo de funcionamento.
Numa sauna seca, sinto-me próximo à sensação da praia.
A pele está exposta a altas temperaturas superficiais e a
transpiração é intensa. A diferença é que o aquecimento é
feito pelo ar, mantido quente e muito seco. Recebo radiação
térmica de todas as paredes do ambiente.
Numa sauna úmida a temperatura é bem mais baixa,
pois o ar úmido, saturado de água, não permite mais que o
suor evapore. Fico imerso no vapor e pouco enxergo ao re-
dor: sinto que vou cozinhar.
Numa academia de ginástica, a sensação é diferente de
tudo isto. O calor é produzido pelo corpo numa taxa muito
acima da média do dia. O suor escorre. Sinto o calor durante
os movimentos, mas estou condicionado a tolerá-lo, sabendo
que é uma situação temporária. Em parte, o movimento faz
com que o calor se dissipe em maior velocidade. O restante
eu elimino com descanso, água gelada e um banho refrescan-
te.
Existe ainda a troca de calor por contato. É intensa, pois
os sólidos são melhores condutores de calor que o ar. Num
dia frio, um piso aquecido em contato com meus pés parece
restabelecer o equilíbrio térmico do corpo. Ao caminhar des-
calço sobre um piso de pedra, perco tanto calor quanto o
restante do corpo, nu, perderia para o ar à mesma temperatu-
ra. Ao sentar-me sobre este piso, maior ainda é a perda de
calor, com o risco de contrair doença.
Por fim, ao consumir vodka, deixo agir o efeito vasodi-
latador do álcool. Aumento com ele a irrigação sangüínea de
meus braços e pernas, até a ponta dos pés. Circula mais in-
tensamente o sangue para as extremidades do corpo. Aumen-
to a potência com que os membros são aquecidos. Mas não
consigo manter este efeito indefinidamente. Depois de algum
tempo, o efeito não somente cessa, como se reverte. O corpo
pode entrar em hipotermia, sofrendo queda de temperatura
para abaixo do normal.
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 219

Embora o conforto térmico seja relacionado ao organis-


mo como um todo, é da pele que vêm as indicações de frio,
calor ou neutralidade. A sensação de frio ou calor transmitida
pela pele à região somato-sensitiva do córtex cerebral o ins-
trui quanto à necessidade de medidas de adaptação, no caso
em que haja a tendência de afastamento das condições de
conforto. A produção do suor, assim como os tremores e os
arrepios de frio - quando os pelos eriçados retêm a perda de
calor para o ar - são mecanismos termorregulatórios do cor-
po. Não temos controle sobre eles. Apesar de todos surgirem
associados ao desconforto, são processos que procuram nos
garantir as condições vitais. Estaremos provavelmente em
conforto quando não precisarmos lançar mão de tais meca-
nismos.
Um estudo recente concluiu que a temperatura da pele –
reconhecida como uma variável fundamental na caracteriza-
ção de um estado de conforto, ou não - está mais relacionada
ao conforto térmico subjetivo que às medidas termorregulató-
rias do corpo.273 Isto significa que se me encontro de súbito
numa situação que faça cair a temperatura da pele, haverá
inicialmente uma mensagem para que eu tome alguma atitude
consciente: sair do frio, agasalhar-me, ou ainda acionar al-
guma fonte externa de calor. Somente depois de eu persistir
na condição que faz a temperatura da pele cair é que meu
corpo iniciará processos mais energeticamente dispendiosos,
como tremer.

6.3 Comodidade e adequação


A Terra não é um planeta inteiramente hospitaleiro. Em
algumas regiões, a necessidade de abrigo às intempéries é
desafio diário à sobrevivência.
Um eloqüente exemplo deste desafio se encontra na obra
mais famosa de Euclides da Cunha, em que descreve o clima
do agreste brasileiro, pleno de variações num único dia. A
atmosfera junto ao chão vibra num ondular vivíssimo de
273
Frank, Steven M., Srinivasa N. Raja, Christian F. Bulcao, and David S. Goldstein
Relative contribution of core and cutaneous temperatures to thermal comfort and
autonomic responses in humans. J. Appl. Physiol. 86(5), pp. 1588–1593 (1999).
220 A IDÉIA DE CONFORTO

bocas de fornalha em que se pressente visível, no expandir


das colunas aquecidas, a efervescência dos ares; e o dia,
incomparável no fulgor, fulmina a natureza silenciosa, em
cujo seio se abate, imóvel, na quietude de um longo espasmo,
a galhadas sem folhas da flora sucumbida. E não é tudo:
desce a noite, sem crepúsculo, de chofre – um salto da treva
por cima de uma franja vermelha do poente – e todo este
calor se perde no espaço numa irradiação intensíssima,
caindo a temperatura de súbito, numa queda única, assom-
brosa.
Com arroubos de retórica, é a descrição de um clima
semi-árido. Mas as condições verdadeiramente extremas são
encontradas nos desertos, que cobrem cerca de um quarto da
superfície da Terra. Ocorrem em todos os continentes à exce-
ção da Europa.
O que a citação descreve é muito diferente das condi-
ções encontradas no clima mais oceânico do litoral do Nor-
deste brasileiro, aliás, ponto onde iniciou a ocupação do terri-
tório pelos portugueses. Entretanto, mesmo nas regiões mais
privilegiadas, dificilmente se escapa, durante o ano, da neces-
sidade de abrigo às agruras térmicas do meio natural.
À vida humana se impõem as condições de temperatura
do ar e da superfície da Terra, radiação, velocidade dos ven-
tos e umidade do ar, e sua variação no dia e no ano. Às con-
dições instantâneas denominamos tempo; à generalização de
suas variações chamamos clima.274
O meio físico abriga muitos fenômenos simultâneos que,
no conjunto, definem as condições térmicas naturais. Os
principais fenômenos são apresentados a seguir.
A Terra, aqui tomada juntamente com a atmosfera que a
envolve, é perpassada por dois fluxos de calor permanentes e
decisivos.
De fora da atmosfera chega a radiação dos astros, que
compreende a radiação cósmica e a radiação solar. Esta últi-
ma é predominante em intensidade. Sobre metade da Terra, a
274
G. T. Trewartha, An Introduction to Weather and Climate, McGraw –Hill, Nova
Iorque (1943).
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 221

cada instante, incide a radiação do sol - uma esfera distante,


tão distante que, para efeitos geométricos, pode ser conside-
rada um ponto. O movimento relativo entre o sol e a Terra
faz variar constantemente a porção da Terra que é aquecida.
Existe um ciclo diário e outro anual. Ao longo do dia, a rota-
ção da Terra ao redor do seu eixo faz com que toda a porção
situada entre as linhas polares receba insolação. Quanto às
regiões situadas fora desta faixa, entre o Círculo Polar Ártico
e o Pólo Norte, e entre o Círculo Polar Antártico e o Pólo
Sul, passam parte do ano sem receber sol nenhuma hora do
dia. Este fenômeno ocorre em latitudes acima dos círculos
polares, e aumenta à medida em que nos aproximamos dos
pólos. Lá, a duração do inverno escuro é de seis meses. Em
compensação, ao período sem sol corresponde outro em que
os dias têm 24h. Entre o centro do período sem sol e o centro
do período sem noite decorrem seis meses. Tudo isto se deve
à inclinação do eixo da Terra em relação ao plano da eclípti-
ca.
O sol possui em sua superfície temperaturas de milhares
de graus; em correspondência, de acordo com as leis da físi-
ca, a radiação que emite tem sua maior potência em ondas
curtas. Estas ondas atravessam a atmosfera quase integral-
mente.
Por sua vez, a Terra envia ondas eletromagnéticas ao es-
paço. Saindo de sua atmosfera, uma parcela é radiação solar
refletida (um terço). Outra parte é radiação que a própria
Terra emite. Esta é uma radiação de ondas longas, correspon-
dendo à temperatura relativamente baixa de sua superfície.
Sai pelo espaço em todas as direções; todavia, uma razoável
parte permanece retida na atmosfera, que é opaca às ondas
longas. Ao final, a radiação emitida pela Terra que deixa a
atmosfera equivale a dois terços da radiação recebida do
sol.275 Em termos líquidos, a Terra não ganha nem perde
calor; contudo, a atmosfera atua neste processo como um
cobertor protetor: ela consegue elevar a temperatura superfi-
cial em que se estabelece este equilíbrio energético, efeito

275
Richard M. Goody e J.C.G. Walker, Atmosferas Planetárias, Ed. Edgard Blücher,
São Paulo (1996).
222 A IDÉIA DE CONFORTO

conhecido como efeito estufa.276 Assim, o zero absoluto do


espaço não consegue impor condições semelhantes à superfí-
cie da Terra. 277
Sua temperatura média permanece aproximadamente
constante, equilibrando o calor que recebe do sol com aquele
que irradia para todas as direções do espaço.278 Entretanto,
existe variação regional causada por vários fatores: distribui-
ção de águas e terras; ventos; regimes de umidade e vegeta-
ção. Temperaturas do ar são encontradas desde -90°C até
+60°C. A velocidade do ar chega até mais de 100 km/h. A
umidade do ar varia entre praticamente zero e 100%, e a ra-
diação, desde zero (na sombra) até cerca 1000 W/m² – a den-
sidade energética sob o sol equatorial a pino –, uma ordem de
grandeza correspondente ao calor de um secador de cabelo
médio por metro quadrado. Isto inclui o componente ultra-
violeta, que tem propriedade biocida.279
O conforto térmico pode ser definido como um estado
em que o indivíduo não tem vontade de mudar sua interação
térmica com o meio. Não é uma definição holística; é restrita,
afeita à comodidade. Corresponde a dizer que não sofre qual-
quer tipo de tensão que o motive a procurar mudança. A lite-
276
Esta retenção é devida principalmente à presença do dióxido de carbono e do
metano, e é agravada pela produção artificial destes gases. O dióxido de carbono se
origina, principalmente, nas caldeiras das fábricas e usinas, dentro dos motores e nas
queimadas. Já o metano deriva, em parte, dos processos de decomposição, como
ocorre nos aterros sanitários, estábulos, arrozais alagados e rios e lagos poluídos,
com alta concentração de matéria orgânica. Este fenômeno, chamado de efeito
estufa, tem em sua quantificação um tema polêmico.
277
O biólogo inglês James Lovelock (nascido em 1919) observou os mecanismos
termorregulatórios da Terra e os caracterizou de tal forma complexos e delicados,
principalmente se analisados na história geológica do planeta – em que a própria
vida primitiva foi que iniciou a formação de uma atmosfera - que concluiu poder
considerar a Terra um ser vivo, que denominou Gaia.
278
O componente artificial do efeito-estufa ganhou evidência em 1988 com a cria-
ção, em Toronto, do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática. De Je-
remy Leggett, editor, Aquecimento Global – o relatório do Greenpeace, Editora da
FGV, Rio de Janeiro (1992).
279
Ao lado do efeito estufa, a destruição da camada de ozônio pela contínua emissão
de clorofluorcarbonados (utilizados na indústria de refrigeração e nas embalagens
spray e, ainda, na produção de espuma) é o outro grande dano atmosférico de origem
artificial. O ozônio estratosférico é responsável pela filtragem de razoável parte da
radiação ultravioleta do sol que, se tem efeito desinfetante, causa danos irreparáveis
sobre a saúde dos homens e de outros animais.
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 223

ratura demonstra que a comodidade com relação ao aspecto


térmico está ligada, no mínimo, a três condições que devem
ser observadas em concomitância.280
A condição do balanço térmico do corpo significa que
todo o calor produzido pelo organismo deve ser dissipado
para o ambiente através dos mecanismos de transmissão de
calor já descritos, em efeito combinado. Ainda, parte do calor
deixa o corpo por meio da respiração.
A condição da temperatura de pele adequada significa
que, em valores absolutos, esta deva se manter numa deter-
minada faixa, não ultrapassando valores extremos estabeleci-
dos. Um pequeno desvio da temperatura ideal do corpo pro-
voca razoável mal-estar, e um desvio maior pode levar à mor-
te. O ser humano, como outros animais de sangue quente,
consegue variar o fluxo de calor saindo do organismo. As-
sim, seu organismo procura manter, para a operação normal,
a temperatura do corpo dentro de uma faixa estável. Para
proteger o restante do corpo, a temperatura superficial é vari-
ada mais para cima ou mais para baixo, compensando os
processos que ameacem deslocar a temperatura do corpo do
valor ideal. Mas mesmo a temperatura da pele não pode so-
frer variações ilimitadas e, ao variar para mais ou para me-
nos, deve fazê-lo na proporção direta do nível de atividade do
organismo – sempre associado à taxa de produção de calor
pelo corpo. A pele adquire temperatura menor para um alto
grau de atividade do corpo, permitindo que o calor seja
transmitido dos tecidos mais profundos para os tecidos mais
superficiais, até sair mediante a evaporação do suor e da
água.
A condição de taxa de transpiração adequada significa
que, se parte da massa corporal é eliminada na forma líquida
para, ao evaporar, retirar o calor em excesso, isto deve ocor-
rer dentro de limites toleráveis. Ao contrário da temperatura
da pele, a taxa de transpiração varia de maneira diretamente
proporcional à produção de calor pelo corpo.

280
Parametrização feita de acordo com Peter Ole Fanger, Thermal Comfort,
Robert E. Krieger Publishing Company, Malabar, Florida (1982).
224 A IDÉIA DE CONFORTO

Uma condição suplementar, ainda, é relacionada à ma-


neira como as fontes de radiação se distribuem. Dificilmente
uma pessoa sente-se bem exposta de modo assimétrico ao
calor radiante: por exemplo, recebendo calor sobre sua frente,
e frio sobre suas costas, ou ainda sujeita à assimetria lateral.
Uma certa assimetria vertical é tolerada se o piso estiver mais
quente que o teto, já que os cabelos protegem a cabeça do
frio, enquanto que os pés, mais distantes do núcleo do corpo,
estão mais sujeitos às perdas de calor, além de sofrerem o
efeito agravante da condução.
Tudo isto caracteriza, enfim, a comodidade com respeito
ao calor. O ser humano, como os outros animais, tem na mo-
bilidade uma grande vantagem em relação às plantas: pode
mover-se em busca de locais mais cômodos. E no ambiente
doméstico, em que o objetivo maior é o repouso, a comodi-
dade é condição inegociável.
Em algumas atividades domésticas e, quase predominan-
temente, na vida fora de casa, a manutenção da comodidade
requer que o indivíduo altere sua atividade física, ou o traje.
Não se espera, pois, um arquiteto propondo aos garçons que
deixem de usar smoking, aos militares, que deixem de usar
suas fardas, e aos nadadores numa academia, que adotem
roupas de borracha. São como, na matemática, as condições
de contorno dos problemas. Resolvê-los é o desafio da ade-
quação.

6.4 Expressividade
Nos anos setenta, Lisa Heschong281 defendeu a idéia de
que o conforto térmico não somente é necessário, mas tam-
bém é motivo de prazer, afeto e referências simbólicas na
arquitetura. Para a autora, as qualidades térmicas – quente,
frio, úmido, arejado, radiante, aconchegante – são uma parte
importante de nossa experiência do espaço; não somente
influenciam o que escolhemos para fazer no espaço, mas
também nossa sensação nele.

281
Lisa Heschong, Thermal Delight in Architecture, the MIT Press, Cambridge
(EUA) e Londres (1979).
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 225

Começou a pesquisar o assunto depois de resolver dedi-


car-se à arquitetura solar passiva. A normatização em confor-
to térmico, em razoável parte desenvolvida e implementada
pela Associação Americana de Aquecimento, Refrigeração e
Ar Condicionado – ASHRAE, parece sempre embasada na
noção de ótimo térmico, de que o melhor ambiente térmico
nunca precisa ser notado, e que uma vez que um ambiente
objetivamente “confortável” foi atingido, todas as nossas
necessidades térmicas terão sido atendidas. Causou-lhe in-
triga, relata, perceber como isto contrastava com a riqueza da
experiência térmica na arquitetura, tanto nas novas casas
solares, assim como nos bons exemplos de arquitetura verna-
cular consciente do clima.
Heschong compara os ambientes objetivamente confor-
táveis às pílulas de alimentação de astronautas, enquanto que
as refeições de verdade – com seu sabor, aroma, textura,
temperatura e cor – é que desempenham um papel na vida
cultural das pessoas. E ainda existem os alimentos cerimoni-
ais: o bolo de aniversário, o pernil do Natal, o peru do ano
novo. Todo este encanto poderia ter o ambiente térmico. A
obra é um manifesto em favor da expressividade do conforto
térmico – sensualidade, papéis culturais e simbolismo – dian-
te de um mundo que ameaça ser tornado termicamente neu-
tro. E no entanto, ainda restam outros argumentos para refor-
çar a idéia. Serão apresentados a seguir.
Fazendo alusão ao efeito do calor na percepção do espa-
ço, Evaldo Coutinho considera toda uma experiência estética.
Se, pois, a arquitetura fosse meramente arte da visão, os pro-
cessos conhecidos bastavam para se expedir um julgamento
estético acerca da obra, como enganadoramente fizeram e
fazem os que não se estendem, em suas considerações críti-
cas, além da explicitude escultórica, e sobre esta emitem os
seus conceitos como se englobassem toda a arquitetura. En-
tram num edifício olhando para as paredes, nelas buscam por
atlantes, colunas, frisos, sancas e rosetas. Mas arquitetura é,
sobretudo, uma realidade espacial – essência que firma o seu
atributo de arte autônoma – e encerra dentre os seus valores
um que obviamente escapa ao figurativo das estampas, e que
todavia desperta inquestionável interesse: a temperatura do
226 A IDÉIA DE CONFORTO

mesmo espaço. O autor exemplifica então como a experiência


térmica de sofrimento pode se tornar impeditiva de uma sen-
sação estética.
Se terminasse aqui, o filósofo deixaria subentendido que
a temperatura, se influi, só atrapalha. Mas, em seguida, apaga
esta impressão ao recriar a cena de uma Missa do Galo. Su-
põe uma celebração em uma pequena igreja rural da Europa,
em que a neve completa a paisagem natalina. A comunidade,
ocupando a igreja, preenche seu vazio, e assim lhe dá o má-
ximo sentido, unindo o calor corporal ao calor da fé. A expe-
riência do espaço inclui, pois, sua temperatura, e os outros
condicionantes do conforto térmico. Aliás, como escreveu
Vitrúvio, teria sido a descoberta do fogo que originalmente
deu origem ao agrupamento das pessoas, à assembléia deli-
berativa e ao intercâmbio social.282
A neutralidade térmica é um ideal de comodidade, e
também de adequação. Resulta de uma equação complicada
que, se for escrita, ocupa quase uma página toda de papel.
Podemos procurar por uma solução teórica - no lápis ou
computador - ou prática - no próprio corpo. A solução envol-
verá dois grandes grupos de parâmetros: os fatores de frio e
os fatores de calor. Os fatores de frio podem advir do clima,
como o vento, o gelo, a neve, ou o céu limpo de uma noite.
Podem ser resultado da nudez, da amplidão dos recintos ou
da ausência de pessoas e máquinas dissipando energia. Ain-
da, da imobilidade ou letargia das pessoas. O frio resulta
destes fatores, sozinhos, ou combinados. Já o calor pode ser
causado por fogo, sol, agasalho, densidade de pessoas e ati-
vidade corporal. Nem os fatores do frio, nem os do calor são
exclusividade do mundo físico, nem do conforto corporal ou
ambiental. Também têm significados em outros contextos,
sócio-cultural e psico-espiritual. Mesmo sem elaboração pro-
vocam emoções. E flagrados pelos poetas, tornam-se ima-
gens de um apelo mais universal aos sentidos.
Enfim, a experiência térmica no ambiente não é esteti-
camente neutra. Logo, a pesquisa em conforto térmico não
deveria ser restrita aos laboratórios e computadores, mas

282
Vitruvio, Os dez livros da Arquitetura, apud Heschong, op. cit.
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 227

examinar também os domínios da sociedade e da cultura, das


artes e do inconsciente.
Relacionadas ao calor, identificamos diversas situações
expressivas. Cinco conjunturas parecem ser as mais freqüen-
tes:
- mantidas as condições de comodidade (balanço térmico,
temperatura de pele e taxa de transpiração adequadas),
algumas variáveis ambientais ou corporais são explora-
das para além dos valores usuais, em combinações pouco
comuns;
- mantidas as condições médias de conforto ao longo do
tempo, oscilações temporais das variáveis ambientais são
exploradas podendo momentaneamente sair das condi-
ções de comodidade, associadas com assimetrias;
- outros aspectos ambientais são utilizados para realçar a
percepção dos aspectos diretamente ligados à sensação
térmica;
- as sensações térmicas adquirem conseqüências na per-
cepção do contexto sócio-cultural;
- as sensações térmicas adquirem conseqüências na per-
cepção do contexto psico-espiritual.
Cada uma das conjunturas será abordada a seguir.
Inicialmente, é fácil exemplificar como pode haver
comodidade mesmo quando uma das variáveis envolvidas
assume valores anormais, resguardada uma combinação das
demais de modo a promover compensação.
Na estação seca, no Norte e no Nordeste do Brasil, o sol
brilha quase os dias inteiros. À noite, tanto a calçada da rua
quanto o asfalto guardam tamanho calor armazenado que
sentimos na pele sua irradiação logo ao deixar um recinto
refrigerado, como um hotel ou restaurante. O contraste sur-
preende. Por alguns minutos, a sensação é de intenso bem-
estar, que se mantém se encontramos uma brisa. Com o pas-
sar do tempo, o calor se torna incômodo.
Numa situação oposta, ao sair de um edifício aquecido
em pleno inverno, principalmente na presença de neve, sen-
228 A IDÉIA DE CONFORTO

timos logo o frio sobre as porções descobertas do corpo, co-


mo as mãos e o rosto. No início, não é uma sensação de des-
conforto térmico, mas uma experiência do contraste com
efeito estimulante. Com o passar do tempo, o corpo inteiro já
se ressente. Nas partes descobertas sentimos dor – especial-
mente sob temperaturas negativas. Passa o encanto do frio
súbito.
Este efeito é deliberadamente utilizado pelo arquiteto
Tadao Ando no centro de convenções da empresa Vitra, em
Weil am Rhein, Alemanha. Planejou a circulação entre os
quatro auditórios coberta, porém aberta, com exposição ao ar
externo. Argumenta que as pessoas, concentradas em salas
climatizadas e acusticamente isoladas, precisam mais de ar
fresco e de contraste, do que do conforto térmico estritamente
dentro das normas.
O vento forte a uma alta temperatura e moderada umi-
dade proporciona mais que conforto térmico. É a experiência
de caminhar, no sol como na sombra, nas praias do Ceará.
Ou, em qualquer praia tropical, permanecer num apartamento
de frente para o mar, vazado e aberto. O ar agita as roupas e
parece que ganha consistência, torna-se quase visível. Preen-
che cada canto com sua vitalidade. Dá um prazer comparável
à contemplação da água corrente, que detém qualquer um
diante de um rio. Ver girar uma roda de água, queimar pe-
quenas peças de lenha, ver bater o sol na varanda, as ondas
quebrando no cais. São maneiras com que a energia da natu-
reza se dissipa, como se tivesse por único propósito aparente
entreter-nos.
O sol da praia sobre o corpo estirado numa esteira nos
mantém num misto de preguiça e felicidade. Do ponto de
vista térmico, é um estado muito diferente daquele que se
vive nos ambientes fechados: o corpo seminu e inerte, alta
taxa de transpiração, intenso fluxo de radiação com assime-
tria e muito vento.
É semelhante à sauna seca, porém naquela o corpo se
submete a temperaturas acima dos 80°C, enquanto que a
umidade é mantida muito baixa; não há vento. Dificílimo é
suportar qualquer elevação súbita de umidade, como quando
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 229

se aspergem essências sobre as pedras por onde penetra o


calor.
Já na sauna úmida, a temperatura é muito mais baixa. A
umidade é muito alta. O vapor prejudica a visibilidade e pre-
dispõe a uma sensação sufocante.
A sauna, tanto seca quanto úmida, é uma experiência de
desequilíbrio térmico; no entanto, as pessoas a procuram por
vontade própria.
Frank Lloyd Wright dizia não conhecer nada mais con-
fortável que um assoalho aquecido.283 A transmissão de calor
ao corpo, por contato, é um recurso mais raramente utilizado,
mas que tem efeito nitidamente consolador: se o corpo está
perdendo calor para o ar relativamente frio, as solas dos pés
compensam. Termicamente, fazem o papel de fundo da pane-
la. No lugar de uma perda adicional de calor pelos pés, há
neles uma reposição. Literalmente, aquecem o sangue, que
transporta o calor para o restante do corpo.
O chuveiro quente tomado depois de um dia de frio e
também o chuveiro frio depois de um dia de calor são mais
que estados de conforto térmico. Têm um efeito de euforia. O
banho na sua concepção tradicional, para os japoneses, é uma
experiência de poesia térmica. Alexander descreve suas sen-
sações depois de um banho:284 Sinto a maior felicidade. Visto
o kimono, as sandálias de madeira, retorno ao meu quarto,
tomo mais chá, e da parede aberta, observo os peregrinos
subindo a estrada, batendo tambores...superei a impaciência,
o nervosismo, a pressa. Desfruto cada segundo destes sim-
ples momentos que eu passo. A felicidade, penso, é um sim-
ples milagre de cada dia, como a água, e não a percebemos.
Ao final do banho, como arremate, a toalha seca e levemente
áspera consola o corpo pelo choque com a realidade.
Não queremos tudo morno; aliás morno significa indeci-
so. Os pesquisadores já despertaram suas atenções para o
tédio térmico ou termotédio (thermal boredom), que resulta

283
Frank Lloyd Wright, The Natural House, Mentor Books, Nova Iorque (1963).
284
Christopher Alexander, op. cit. padrão 144.
230 A IDÉIA DE CONFORTO

do excesso de controle no espaço construído.285 Defronte a


uma lareira conseguimos aquecer somente parte do corpo (ou
a frente, ou as costas, ou um dos lados), sempre sob forte
assimetria térmica. Mas a lareira nos dá prazer. Assim, tam-
bém, abrir a janela e ventilar o ambiente muito mais do que o
necessário. Ou ainda, sentar-se com amigos em círculo ao
redor de fogueira numa noite estrelada. Dos lados, um certo
calor das pessoas. Da frente, o calor picante do fogo. De ci-
ma, o gelo do espaço vazio.
Na Escandinávia, as pessoas pagam caro para poderem
sentar-se em saunas a vapor em temperaturas que superam os
limites de tolerância. Depois disto, vão correr ao ar livre e
rolar na neve. No Japão, país onde segundo os provérbios o
frio fortalece a mente, os escritórios em edifícios inteligentes
são criticados por tornarem as pessoas preguiçosas.
No mesmo país, num dos muitos Matsuri – festivais po-
pulares de inspiração religiosa – os homens saem praticamen-
te nus sobre a neve, carregando um templo portátil, em gritos
e gestos ritmados, entre goles de sakê. O tempura é um em-
panado quente que se mergulha no molho frio e salgado,
assim também o macarrão kakesobá. O rottenburô é um exó-
tico furô ao ar livre, em que o corpo fica imerso numa piscina
natural de água naturalmente quente, recebendo flocos de
neve sobre a cabeça.
O escalda-pés, alívio do frio e do cansaço, é uma forma
do bem-tratar-se que transcende a superação da dor: é trans-
cendência.
Lisa Heschong286 menciona ainda o fato de os america-
nos procurarem com avidez as praias, no verão, e as casas de
montanha e estações de esqui, no inverno. São situações ex-
tremas em que, curiosamente, os opostos estão sempre à mão.
Na praia, depois de bronzear-se ao sol, as pessoas mergulham
na água fresca. E os esquiadores sabem que, ao escurecer,

285
Alison G. Kwok, Thermal Boredom, Passive and Low Energy Architecture
Conference - PLEA 2000, PLEA: July 2-5, 2000, Cambridge, Reino Unido.
286
Lisa Heschong, op.cit.
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 231

têm à sua espera uma cabana com o fogo aceso e bebidas


quentes, senão de efeito aquecedor.
Diferentes sentidos buscam referências nas sensações
térmicas. As cores são quase naturalmente quentes e frias. Os
sons podem ser quentes ou frios. É comum um regente de
orquestra pedir de seus músicos calor, especialmente ao naipe
de cordas; utiliza isto na música romântica de tempero aciga-
nado, como na suite da ópera Carmen, de Bizet,287 em que
produzem a sensação de água fervendo. Já na música impres-
sionista, como a “Pavanne para uma princesa morta” de Ra-
vel,288 a melodia da trompa solista é etérea, gélida. E na per-
fumaria, cálido e refrescante são alguns possíveis atributos
dos aromas.
O calor e o frio têm, para o nosso corpo, um caráter bas-
tante concreto. Raramente descrevemos uma sensação térmi-
ca por meio de outra qualquer; o “frio cortante” é uma das
poucas exceções. Para Lisa Heschong,289 é notável o fato de
nossos receptores térmicos serem integrados ao corpo: não
podem perceber, à distância, uma situação de calor ou frio
sem antes senti-la. Desta forma, temos de aproveitar ao má-
ximo os outros sentidos para prevenir a exposição à tensão
térmica. Daí, provavelmente, esta abundância de imagens
importadas de outros sentidos.
Sensações térmicas são sugeridas visualmente. Por
exemplo, de frio: o mergulho numa cachoeira, o copo de
limonada. O balde de água fria, ou a luz fluorescente. Os
japoneses trocam periodicamente a figura que exibem no seu
tokonoma, recanto da sala principal onde também se encontra
um arranjo de flores. No verão, penduram a imagem de uma
queda de água ou rio de montanha, e a contemplam para sen-
tirem o seu frescor.
O frio nos provoca o retesamento dos músculos, que
procuram gerar calor, e a constrição dos capilares da pele.
Estas respostas nos fazem sentir tensos e entorpecidos. Bus-

287
Georges Bizet (1838 – 1875), compositor francês.
288
Maurice Ravel (1875-1937), compositor francês.
289
Lisa Heschong, op.cit..
232 A IDÉIA DE CONFORTO

camos antídotos no ambiente: uma luz suave, uma poltrona


de veludo, as notas profundas de uma canção de blues. Aju-
dam-nos a relaxar como o calor do fogo ou uma bebida. Já,
quando estamos superaquecidos, nos tornamos lerdos. Assim,
nos agradam estímulos positivos como o turbilhonamento da
água numa fonte ou o tinir de sinos de vento. Mas o calor
também pode superestimular, especialmente sob o sol quente.
Neste caso, um ambiente convidativo seria de sombra e si-
lêncio. Heschong cita os templos do Islã como locais de efei-
to calmante. Seu jardins seriam ambientes ricos, com nichos
apropriados para remediar a letargia, e outros para remediar a
exaustão dos sentidos.
Frio e calor não faltam no mundo dos sinestetas -
pessoas que percebem sutilezas da correspondência entre os
diferentes sentidos. Um notório sinesteta foi o escritor irlan-
dês James Joyce.290 Descrevia um quarto assim: The lofty
walls of his uncarpeted room were free from pictures.291 Po-
deria ter usado diretamente a palavra “frio”, no sentido figu-
rado. Em lugar disto, construiu um cenário de maneira mais
convincente, sem precisar dizer nada sobre a sensação térmi-
ca propriamente dita. E as experiências sinestésicas não são
privilégio de alguns iluminados, mas fazem parte de nossa
vida.
Tomamos, pois, o café fumegante e a cerveja gelada.
Nem o café, nem a cerveja têm serventia se são servidos à
temperatura ambiente. Para vinho tinto isto, em geral, não
seria um problema. Já o vinho branco e rosê se prefere gela-
dos, o conhaque quase morno, o saquê, já quente, e o quen-
tão, fumegante. Alguns coquetéis vêm à mesa em chama
acesa.
Existe uma expectativa térmica em relação a alguns ali-
mentos, que são procurados mais pela sua temperatura do que
pelo seu sabor. É o caso do sorvete. Mas é também o caso da
cerveja gelada. O feijão, o arroz e o macarrão, se não são
quentes, viram salada – neste caso, recebem sal, azeite e vi-

290
James Joyce (1882 - 1941 ), escritor irlandês, autor de Ulisses.
291
(As paredes altas de seu quarto sem carpete eram livres de figuras) J. Joyce,
Dubliners.
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 233

nagre, como se, frios, lhes faltasse sabor. O calor afeta o sa-
bor ativando as papilas gustativas. Ao mesmo tempo, diminui
a viscosidade das gorduras.
À mesa, o contraste em temperatura aprofunda o con-
traste gustativo e, certamente, aumenta o prazer da comida.
Café quente e nata gelada; manteiga dura sobre torradas
quentes; tortas de maçã saída do forno e sorvete de creme.
Lisa Heschong, em seus exemplos, reforça a hipótese
apresentada no capítulo 1, do caráter holístico do conforto
ambiental. Imagine-se um sistema de climatização que fosse
todo embutido nas paredes e lajes, baseado no princípio da
irradiação: traria o grave inconveniente de não ser percebido
e, portanto, não nos despertar nenhum afeto. É o contrário de
instalações visíveis que existem para o nosso conforto e,
refletindo a importância que lhe atribuímos, recebem especial
destaque e ornamentos: o gazebo; o balanço do jardim e o
canto da lareira (de que muito se comentou no capítulo 2). Os
belos tapetes que conhecemos da Índia e da Pérsia também
seriam manifestações, naqueles locais, do afeto que desper-
tam nas pessoas, que tanto dependem do seu poder de isola-
mento térmico para sobreviver. Estes instrumentos são cele-
brados por nos proporcionarem conforto, que não é somente
relacionado a frio ou calor; pois, como a autora enfatiza, não
somos capazes de nos lembrar da sensação térmica em si,
mas de sua qualidade, associada à experiência total do local.
E esta experiência também se dá num contexto social, pois o
conforto térmico é uma experiência que tendemos a compar-
tilhar. Não é difícil encontrar exemplos de como um proble-
ma térmico serve de pretexto para aproximar pessoas. Quem
nunca convidou, ou foi convidado a uma caminhada na praia,
a tomar um refrigerante, dividir um guarda-chuvas, ou a to-
mar carona? As práticas ligadas ao ambiente térmico se in-
corporam à vida das pessoas, aos lugares que freqüentam:
atingem significado ritual Como exposto no capítulo 1, a
expressividade é um nível de conforto em que seus diferentes
contextos – corporal, ambiental, psico-espiritual, sócio-
cultural – tendem a fundir-se.
A sensação térmica tem implicações sobre a privaci-
dade. As cobertas pesadas, esticadas, aguardam a pessoa
234 A IDÉIA DE CONFORTO

ajeitar-se para dormir. Irão adaptar-se-lhe ao corpo e prote-


ger-lhe o repouso íntimo.
Mas o calor também sublinha a invasão da privacida-
de: na viagem num ônibus lotado, ao entrar-se num ambiente
abafado e cheio de gente, sob empurrões de ombros e qua-
dris. Ao sentar-me no assento que alguém acabou de desocu-
par. Ao apertar uma mão lisa, encharcada de suor.
Tais manifestações se alinham com a observação de
Lisa Heschong292 sobre a diferença que existe entre a sensa-
ção de calor, interna – pois parece fazer parte de nossos cor-
pos, já que o calor é nele produzido – e a sensação de frio,
externa, relacionada a fatores ambientais.
A lareira é um ponto focal da casa e ao redor dela se re-
únem as pessoas. Mesmo apagada, organiza socialmente o
espaço. Alexander aponta a lareira como o antepassado social
da televisão. E a televisão, quando ligada, prende a atenção
como mais nada, e produz ruídos, lampejos e calor. Todavia,
impõe às pessoas um ritmo próprio. Não somente integra o
ambiente: trata-se de um personagem que monopoliza aten-
ções. É ainda um substituto da janela para a rua, da qual anti-
gamente se bisbilhotava o mundo.
Se na casa há fogo, é porque há ainda material para
queimar. Conhecer o estoque de lenha significa conhecer a
capacidade de compensar um fator externo (a temperatura)
no ambiente. A fogueira acesa tem efeito consolador.
Em se tratando de calor, o socialmente expressivo pode
estar a desserviço do cômodo e do adequado, como na passa-
gem abaixo, de Gilberto Freyre:293
Os estudos realizados nos últimos anos, sob critério
fisiológico, ecológico, higiênico, sobre a matéria - o trajo
mais conveniente ao homem nos climas quentes - não deixam
dúvidas quanto a este ponto: a inconveniência das calças e
dos cinturões; a superioridade das túnicas soltas. O proble-

292
Lisa Heschong, op.cit.

293
Gilberto Freyre, A favor das túnicas para homens nos trópicos: para ser homem
não é preciso vestir calças. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 29 de junho (1963)
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 235

ma em que implica a adoção de túnicas por homens habitua-


dos a associar o uso das calças a convenções de masculini-
dade já não é um problema fisiológico e sim psicológico.
Psicossocial. Depende de vencer-se este tabu: o de que o
homem, para ser homem - músculo, viril, varonil -, precisa
vestir calças.
Como é que se modificará a relação da pessoa com o lar
acolhedor, se consideramos agora uma região quente? A lite-
ratura dá alguns indícios na obra urbana de José de Alencar.
Ele descreve caminhadas ao cair da tarde, o sol já baixo, as
serras projetando longa sombra sobre a cidade (o Rio) e as
folhagens murmurando ao vento. Conforto (apesar de a pala-
vra não ser usada) se encontra fora da casa, no espaço aberto.
O indivíduo sai à procura de gente. E aqui se revela uma
importante especificidade de gênero. Gilberto Freyre,294 des-
crevia como eminentemente externo o comportamento do
homem – personagem que, na metade do séc. XIX, podia
escolher o local de suas atividades diárias. Enquanto a mu-
lher passava a maior parte do seu tempo dentro de casa, o
homem – o homem urbano – passava a maior parte do seu
tempo fora, na rua, na praça, à porta de algum hotel francês,
ou em seu escritório, ou ainda num armazém. A condição era
muito parecida àquela da Grécia antiga (...) O sentimento de
casa não era tão forte entre os brasileiros quando a família
patriarcal estava no seu maior vigor. Nem tinham clubes
mundanos – exceto as lojas maçônicas. A rua era seu clube.
Na alimentação, calor e frio denotam qualidade. O pão
quente é em geral um pão fresco. Um prato de comida quente
parece recém-preparado. O chocolate quente, tomado dentro
de casa é uma fonte de consolo – conforto - contra o frio e o
vento lá fora. No entanto, frutos e saladas gelados sempre se
apresentam mais convidativos.
Algumas igrejas góticas, na Europa, recebem aqueci-
mento por debaixo de seu piso de pedra. Pisar o chão aqueci-
do proporciona certo alívio aos fiéis. Contudo, o ar quente
sobe para ocupar o vazio da nave alta, e o sentido de proteção

294
Gilberto Freyre. Social life in Brazil in the middle of the 19th century. Nova
Iorque. Edição do autor (1922) .
236 A IDÉIA DE CONFORTO

não será completo. Motivos espaciais farão faltar na igreja


gótica, em geral, a sensação de aconchego.
A cama, com suas cobertas, é uma caverna do tamanho
de um ou dois corpos. Assim também é o saco de dormir.
Que criança já não examinou, com uma lanterna, o espaço
que produz debaixo das cobertas ao sustentá-las com a cabe-
ça ou com as mãos? Espaço em que pode se refugiar, vivendo
alguns minutos num mundo à parte?
Na barbearia, os homens vestem uma peça de roupa sem
braços, que os protege dos cabelos que caem. O poncho do
gaúcho é uma projeção do corpo, um aumento do espaço
pessoal. É como o espaço debaixo das quatro saias de Maria
Truczinski, no livro O tambor de Günther Grass. Lá se es-
condeu uma vez um camponês perseguido, que se tornou seu
marido. Anos depois, o neto Oskar Mazerath também gostava
daquele esconderijo.
Para Bachelard,295 a casa de uma região fria, de inverno
rigoroso e neve, é um abrigo em que as pessoas se aprazem
tanto no rigor do clima como na memória. Lembrar o inverno
aumenta o prazer de estar na casa. O espaço se reduz a um
pequeno mundo e nele se elabora as sensações externas com
fantasia. Uma habitação agradável não faz mais poético o
inverno, e o inverno não aumenta a poesia de uma habita-
ção? Continua observando que a casa recebe do inverno
reservas de intimidade, finuras de intimidade. No mundo fora
da casa, a neve apaga os passos, confunde os caminhos,
afoga os ruídos, oculta as cores, Se sente atuar uma negação
pela brancura universal. O sonhador de casas sabe de tudo
isto, sente tudo isto, e pela diminuição do ser do mundo exte-
rior, conhece um aumento de intensidade de todos os valores
íntimos.
Bachelard cita ainda o escritor francês Henri Bosco
(1888 – 1976), em Malicroix, que descreve a casa como a
mãe protetora do morador durante uma tempestade: a casa se
estreitou contra mim como uma loba, e por momentos sentia
seu aroma descender maternalmente até o meu coração.

295
Gaston Bachelard, op. cit.
O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL 237

Naquela noite foi verdadeiramente minha mãe. Só ela eu tive


para guardar-me e sustentar-me. Estávamos sós. Interpreta
que frente à hostilidade, frente às formas animais da tempes-
tade e do furacão, os valores de proteção e de resistência da
casa se transpõem em valores humanos. A casa adquire as
energias físicas e morais de um corpo humano. Formula,
enfim, um elogio incomum da casa: é um instrumento para
afrontar o cosmos.
Henry David Thoreau, escritor americano que deci-
diu ir morar no bosque em exílio voluntário, reconhece no
fogo de sua cabana qualidades de um ser vivo.296 Eu às vezes
deixava um bom fogo quando ia caminhar numa tarde de
inverno; e quando eu voltava, três ou quatro horas depois,
ele estaria sempre, ainda, vivo e ardendo. Minha casa não
estava vazia apesar de eu ter saído. Estava como se eu tives-
se lá deixado um guardião bem-disposto. Era eu e o fogo
quem morávamos ali; e muitas vezes meu guardião mostrou-
se confiável.
Para Thoreau, o fogo não pode ser simplesmente
substituído por outra fonte de calor. No inverno seguinte, eu
usei um pequeno fogão-aquecedor por economia, pois não
era dono da floresta; mas não manteve o fogo tão bem quan-
to o braseiro aberto. Cozinhar não era mais, então, na maior
parte, um processo poético, mas meramente um processo
químico. Logo seria esquecido, nos dias dos fogões, como
usávamos assar batatas nas cinzas à moda indiana. O fogão
não somente tomou espaço e aromatizou a casa, mas acabou
com o fogo, e eu senti como se tivesse perdido um compa-
nheiro. Você pode sempre ver uma face no fogo.
Para Christopher Alexander,297 o fogo é objeto de de-
vaneio, convite ao repouso. Observa que uma tal sensação
reconfortante é reconhecida depois de um período razoavel-
mente longo de contemplação das chamas. O fogo não so-
mente cozinha, mas torna as coisas crocantes. Doura as co-
midas. Tem poder hipnótico. É contraponto à conversa. Me-
nos monótono e menos abstrato que a água corrente, mesmo
296
Henry David Thoreau, Walden (1852).
297
Christopher Alexander, op. cit., padrão 181.
238 A IDÉIA DE CONFORTO

mais rápido para crescer e mudar que o jovem pássaro, ob-


servamos todos os dias no seu ninho nos arbustos, o fogo
sugere o desejo de mudar, de acelerar a passagem do tempo,
de trazer toda a vida à sua conclusão, ao seu depois.
Em muitas regiões do mundo e também no Brasil, famí-
lias rurais se reúnem na cozinha, e esta constitui o coração do
lar. Ali se encontra o fogão a lenha, e perto dele a mesa. Não
é mesa decorativa, nem de uso ocasional, mas diário. Nela
está o lugar de cada um, em cada lugar encontram-se marcas
dos ocupantes presentes e passados. O ar recende fuligem e
cinzas, resinas e vapor da lenha, o material das paredes e a
comida, e enfim pessoas. Na cozinha, comumente, está aceso
o fogo, e nela permanece, muitas horas por dia, a dona da
casa.
O conforto térmico do corpo e no ambiente, mesmo que
dentro da faixa ótima de temperatura, umidade, velocidade
do ar e temperatura das superfícies radiantes, pode não cons-
tituir um sentimento de completo consolo. Qual é, pois, o
consolo do vigia noturno que, cuidando de um imponente
edifício público, permanece sentado sobre a grade de insu-
flamento de ar quente, se sua baia de trabalho é uma mesa de
fórmica, perdida no meio das altas paredes de mármore cin-
zento do imenso foyer? Diante de uma tal situação, parece
mesmo que o conforto térmico se encontre dentro de casa, e
lá o mármore não faz muita falta.
Figura 7 - Capim ao vento, península de Chiba (Japão)
7 - O canal econômico do audível

7.1 Introdução
A audição nos traz informações muito compactas sobre
o ambiente. Ao telefone, reconhecemos pessoas pela voz,
quase imediatamente. Nomes curtos, de memorização fácil,
designam quase tudo quanto conhecemos bem e usamos com
freqüência. Mas a influência da audição não é apenas objeti-
va. Se ouvimos atentos a entonação de quem fala, sabemos
seu estado de espírito: é como se tivéssemos visto sua ex-
pressão facial. É mais fácil descrever, enfatizando impres-
sões, que desenhar. E ouvimos dormindo – se fosse diferente,
não teria utilidade o despertador.
Os sons revelam idéias sem que tenhamos de nos mexer
para conhecê-las. O ruído do motor anuncia alguém chegan-
do; o gotejar de água, que alguém ainda está no banho; o
silêncio numa casa onde moram crianças, que as mesmas
dormem, ou estão entretidas com alguma novidade, dando
aos pais o que pensar.
242 A IDÉIA DE CONFORTO

A acústica é provavelmente o aspecto físico de maior


complexidade do ambiente construído. O som num ambiente
fechado é um efeito que se distribui pelo volume todo. Se os
olhos enxergam cada superfície e de longe avaliam suas con-
dições de iluminação, os ouvidos não têm a mesma acuidade
com relação à direção; é mais fácil percebermos com os
olhos a cor dos objetos que condicionam a luz, do que com
os ouvidos a maneira como os objetos absorvem ou refletem
sons graves, médios e agudos. Os ouvidos percebem um som
mesmo depois de ele ter sido refletido de parede em parede,
como num labirinto. No silêncio da noite, da porta da frente
da casa, escuto alguém estalar os dedos no quarto mais reti-
rado; porém, se esta pessoa acender uma lanterna, eu prova-
velmente nada verei. Os olhos não conseguem identificar esta
luz residual. Primeiro, porque sua sensibilidade aos sinais
ínfimos não é tão grande quanto na audição. Depois, porque a
luz difusa – aquela que não revela imagens- não possui a
mesma individualidade do som. Se me aproximo do cômodo
onde alguém assiste a um filme de portas fechadas, enxergo o
rastro de luz debaixo da porta, mas não saberei identificar o
filme. Entretanto, posso prestar atenção no som e poderei até
mesmo dispensar as imagens.
No século XX, a acústica teve importante desenvolvi-
mento. Num teatro ou auditório tornou-se um fator de projeto
de primeira ordem. Richard Neutra298 comenta a respeito que
em muitos casos, as intenções de que se pode chamar o ar-
quiteto platônico ou euclidiano são anuladas pelo especialis-
ta em acústica, para quem paredes paralelas ou circulares,
domos e outros elementos formais habituais são ofensivos.
O domo, citado expressamente, pode vir a provocar a
focalização do som de retorno, devolvendo-o amplificado
sobre sua fonte. Não serve para um auditório. Entretanto,
construído sobre uma banheira para reforçar o canto diletan-
te, será de notável efeito. Já o auditório em forma de leque
resolve questões visuais; todavia, permite que a potência do
som se disperse espacialmente, não favorecendo os ouvintes

298
Richard Neutra, op. cit.
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 243

quanto à acústica. E o auditório em forma de caixa de sapato,


este sim tem sido consagrado com o passar das décadas.
Neutra descreve a visita a uma igreja - um tipo de
edificação valorizado visualmente - como uma experiência
sonora única: quando caminhamos através da nave de uma
catedral medieval, o impacto de nossos passos no pavimento
de pedra, ou a reverberação de uma pequena tosse torna
possível, ou mesmo se torna em si própria, uma impressão
essencial, vital do espaço arquitetônico. Tais sons, acustica-
mente, elucidam o material do invólucro. Paredes de pedra
podem ter eco, mas peças de veludo quase não reverberam e
não sinalizam nada ao ouvido. E procura destacar a impor-
tância da acústica na caracterização dos ambientes: como a
luz, o som traz à mostra os corpos arquitetônicos e os espa-
ços, e deixa porções dos mesmos em sombra. Como numa
apresentação em auditório, o ritual durante a missa, na ver-
dade, nos revela o interior da igreja. É errado pensar que a
catedral somente contenha velas, cantores, um órgão elo-
qüente. As modulações do coral, a força dos baixos, os pia-
níssimos e diminuendos iluminam o grande interior acusti-
camente assim como as velas o fazem visualmente.
O espaço arquitetônico, devido principalmente à pre-
sença da vida, também é um espaço sonoro. Condiciona o
som tanto pelo seu volume confinado, como pelo caráter de
suas superfícies. Conhecer o espaço dá à música novo senti-
do, nova profundidade.
Neutra reclama a atenção que teria faltado aos
fenômenos acústicos na época do Classicismo, nos séculos
XVI e XVII. Período tido como apolíneo, nele era mais im-
portante a harmonia visual: a excitação dos estímulos audí-
veis produzidos pela vida na nossa concha construída é um
fator que o arquiteto clássico ignorou para a glorificação de
uma abstração somente visual e estática. O projetista de um
ambiente construído concebido fisiologicamente não pode
mais ignorar isto. A arquitetura, para ele, é um palco para a
dinâmica que afeta o ouvido como reverberação do som, o
olho como luz refletida, e outros sentidos de muitas formas.
244 A IDÉIA DE CONFORTO

Felizmente, os efeitos acústicos dos espaços não eram


desconhecidos de Mozart,299 Haydn300 e Beethoven,301 os
principais compositores do período clássico da música - de
meados do século XVIII ao início do século XIX.302 Tal perí-
odo deixou algumas marcas na música posterior, que perdu-
raram até a música contemporânea. O concerto passou a ter,
cada vez mais, caráter popular. No final do período, a escrita
musical foi deixando o rigor formal da época das salas em
que tudo – até a respiração – se ouvia com clareza. Depois de
Beethoven, ganhou terreno a prática de grandes blocos sono-
ros – grandes na estrutura da harmonia, na sua duração e
também na intensidade sonora. Auditórios cada vez maiores,
para o público cada vez mais numeroso, forneceram as con-
dições acústicas para esta evolução da música Romantismo
adentro. Afirmava-se o espaço como extensão da orquestra.
A reverberação modificava o colorido sonoro, produzindo
novos e característicos timbres e com eles novas possibilida-
des expressivas.
A influência da acústica é tal que, numa mesma obra,
deveria variar para realçar os efeitos. Neutra lembra o ultimo
movimento da nona Sinfonia de Beethoven como um dos
exemplos mais evidentes de que a acústica de um ambiente,
se mantida constante, impede o desfrute musical. Beethoven
colocou nesta sua última grande obra sinfônica todo um de-
senvolvimento que conduz a um coral de efeito avassalador.
Quando inicia o grande coral, ressoando sobre a orquestra,
ainda restrita ao padrão do século XIX, sentimos que o teto
deveria ser elevado e as paredes deveriam recuar. O regente
do futuro deve ser capaz de comandar uma tal operação.
Hoje, tal operação é possível nas salas de concerto com vo-

299
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), compositor austríaco, tinha inventivi-
dade melódica genial. Nas três décadas em que atuou, escreveu quase tanta música
quanto um ser humano seria capaz de copiar no mesmo tempo.
300
Joseph Haydn (1732-1809), compositor austríaco.
301
Ludwig van Beethoven (1770 – 1827), compositor alemão.
302
É comum que os movimentos artísticos sejam reconhecidos, na música, mais
tarde que na arquitetura. Fator de alguma relevância é a longa duração dos edifícios,
fazendo com que a música que neles surja, décadas depois, venha impregnada de
suas idéias.
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 245

lume variável, a exemplo da Sala São Paulo, na capital pau-


lista.

7.2 Mecanismos físicos e fisiológicos


O som é definido como a vibração mecânica do meio em
freqüência e intensidade tais que possam sensibilizar o apare-
lho auditivo humano. Esta definição reúne alguns conceitos
que devem ser compreendidos.
Inicialmente, o meio é aquilo que nos envolve. Normal-
mente ouvimos as vibrações no ar, mas também podemos
ouvir alguma coisa quando estamos mergulhados numa pis-
cina, ou com a orelha apertada contra uma parede como se
fosse uma ventosa.
Para vibrar, o meio deve ser elástico. Uma mola é capaz
de esticar e encolher numa direção. Uma placa de metal de-
forma-se nas duas direções, e um edifício, nas três. É neces-
sária uma força externa para deformar o meio – seja ele o
volume de ar de um tubo, a pele de um tambor ou uma corda
esticada. Cessada a força, a deformação tende a se reverter.
Ocorre que tanto a corda, como a pele do tambor ou o
volume de ar, depois que se deformam, voltam à forma inici-
al embalados. Assim, não param imediatamente na forma
inicial, mas se deformam em direção ao outro extremo. Se
tinham sido esticados e depois soltos, se contraem, e se esta-
vam contraídos, se expandem. Permanecem em vai-e-vem.
Neste movimento, convertem repetidas vezes energia de de-
formação em energia de movimento e vice-versa. Ao jogar
um pesado saco de farinha sobre uma laje de cimento, esta irá
esta vibrar sonoramente. Já um pontapé no mesmo saco, não,
pois não se trata de um meio elástico.
A freqüência da vibração é o número de ciclos de vai-e-
vem por unidade de tempo. Uma medida de freqüência é
ciclos por segundo (também chamada Herz ou Hz).
A intensidade da vibração indica quanta energia está en-
volvida na transformação repetida entre movimento e defor-
mação. É relacionada à amplitude da deformação: quanto
mais esticarmos uma corda de violão, maior a amplitude, e
246 A IDÉIA DE CONFORTO

maior a intensidade. Quando o som atravessa o ar, é possível


medir quanta energia viaja por unidade de área, e por unidade
de tempo. A medida mais usada é Watt por metro quadrado
(W/m²).
O ouvido humano compreende internamente diversos
elementos: a membrana do tímpano; os ossos chamados de
estribo, martelo e bigorna (os menores de todo o corpo); uma
peça em forma de caracol chamada cóclea, em que a vibração
aérea se converte na vibração de um líquido, e o nervo audi-
tivo que transmite ao cérebro um impulso elétrico.
Ouviremos as vibrações no ar se sua freqüência for entre
aproximadamente 20 e 20 mil ciclos por segundo (20 a 20
mil Herz). Ainda, a vibração do ar deverá ter uma intensidade
de, no mínimo, 0,000000000001 W/m² (ou 10-12 W/m²) para
ser ouvida. É o chamado limiar da percepção auditiva.
Há leis da física e características do corpo humano na
definição: não vale necessariamente para outros animais.
Aqui, mais dois conceitos de caráter físico e um de caráter
fisiológico serão apresentados com o intuito de um melhor
entendimento do som.
Inicialmente, o conceito de modo de vibração. Deforma-
dos de certo modo e soltos, os corpos elásticos vibram com
freqüência pré-determinada. A cada um destes pares peculia-
res de organização do movimento e freqüência se chama um
modo natural de vibração. É como o som de uma taça de
cristal que recebe um estalo. Sob um estímulo adequado, os
corpos permanecem vibrando à freqüência natural correspon-
dente a cada modo. É o que ocorre quando, em velocidade
constante, passamos a ponta do dedo em círculo sobre a bor-
da da taça (é necessário molhar a ponta do dedo). Assim
também é o atrito do arco de violino (um feixe de cabelos
eqüinos esticado) com a corda do instrumento (metálica ou
de tripa animal ou sintética). A corda de um instrumento
musical pode vibrar ao longo do seu comprimento todo, for-
mando um só ventre. É o chamado modo principal de vibra-
ção. Pode ainda vibrar formando vários ventres menores, a
1/2 do comprimento, 1/4, etc. São os outros modos. As placas
possuem mais modos, pois podem vibrar em diferentes dire-
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 247

ções. Um murro sobre uma porta de madeira fechada provoca


sons diferentes que sobre a mesma porta aberta. Já um objeto
tridimensional apresenta ainda mais modos de vibração. Isto
depende de sua forma e de suas dimensões, e também de
propriedades como sua massa, elasticidade e amortecimento.
Vibrações em dois, três, ou muitos mais modos diferentes
podem ocorrer ao mesmo tempo.
Também é necessário apresentar o conceito de transmis-
são, reflexão e absorção do som. Quando a frente de onda
originária de um determinado material encontra outro, pode
fazê-lo também vibrar. Trata-se da transmissão da vibração.
Também pode dele receber uma reação e retornar pelo mate-
rial original, com outra direção de propagação. Trata-se da
reflexão. O novo meio pode, ainda, absorver a vibração,
transformando sua energia em calor. Trata-se da absorção.
Normalmente, nas transições entre diferentes meios, existe
uma combinação dos três componentes, em proporções que
variam de acordo com a compatibilidade entre a vibração e as
características do novo meio. Para a acústica arquitetônica,
isto significa que cada espaço fechado mantém certa catego-
ria de som aprisionado, promovendo, de maneira peculiar,
sua amplificação natural. É por isto que cada recinto desem-
penha como uma caixa acústica. Dois ambientes distintos
fazem a mesma música soar de forma diferente. É como
acontece ao ouvir o mesmo disco amplificado por caixas
acústicas de diferentes tamanhos.
Compreendidos estes conceitos, é possível comentar
uma particularidade do ouvido humano. Temos maior tole-
rância a sons graves: podemos dizer que nosso ouvido não
lhes dá uma resposta plena. Já os sons agudos nos incomo-
dam mais. Para a mesma intensidade que os sons graves, sons
agudos são menos tolerados. Isto sugere a predominância de
narradores do sexo masculino no rádio como na televisão. Se
forem mulheres, há preferência pelas vozes aveludadas às
mais estridentes. Havendo superposição de sons agudos e
graves, os primeiros tendem a absorver mais nossa atenção. É
como se os agudos tivessem contornos mais nítidos, incisi-
vos, enquanto que os graves fossem percebidos de modo
mais nebuloso. É por este motivo que, ao pedirmos que al-
248 A IDÉIA DE CONFORTO

guém repita o que falou, esta pessoa contrai a musculatura do


rosto procurando enfatizar as consoantes, e dá às vogais um
tom mais agudo.
A explicação envolve os dois conceitos físicos apresen-
tados anteriormente. O ouvido funciona como qualquer mi-
crofone: tem uma faixa de sensibilidade, associada a suas
propriedades de transmissão do som. Para transmitir o som
até a cóclea, de onde surge o sinal elétrico, o ouvido deve ser
capaz de vibrar de acordo com o som recebido. Isto significa
que deve ter modos de vibração suficientes para cobrir toda a
faixa de freqüências presentes no som. Ocorre que o ouvido
vibra com mais facilidade nos sons agudos que graves. Isto
faz com que percebamos os sons agudos como se fossem
mais intensos, daí tolerarmos melhor os graves.

7.3 Comodidade e adequação


O que vêm a ser comodidade e adequação para o con-
forto acústico? Para dormir, comodidade significa silêncio.
Ou, ainda, constância: por exemplo, o som do relógio não
perturba o sono; chega, pois, a facilitá-lo; tranqüiliza bebês e
filhotes de cães, provavelmente pela semelhança aos bati-
mentos cardíacos da mãe. O ruído da geladeira ou do trânsito
em condições de normalidade também não deveria incomo-
dar. Já a frenagem brusca de um automóvel na rua interrompe
esta sensação de normalidade com seu tom agudo e aspecto
alarmante. A comodidade acústica está associada à conveni-
ência de se ouvir; às vezes, ouvir ainda é uma necessidade,
ou um desejo.
Prefiro adormecer ainda ouvindo funcionar meu reló-
gio. A mãe quer ouvir a respiração do filho no berço ao seu
lado, e o camponês quer ouvir sua roda d’água girando. A
vontade de ouvir é seletiva.
Buscamos ouvir aquilo que não causa dor nem estresse,
nem distrai a atenção necessária à tarefa que porventura nos
ocupe. Mas seu desempenho pode depender da audição de
alguns sons, e estes queremos ouvir adequadamente. Se for-
mos ouvir música, há implícito um ideal objetivo que nem
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 249

sempre é reconhecido: ouvir na qualidade estética pretendida


pelo compositor e interpretada pelo músico.
Os sons se organizam numa dimensão principal: a do
tempo. É diferente de uma pintura, onde as pinceladas se
organizam em largura e altura, ou de uma escultura, que tem
ainda a profundidade. Os ouvidos discriminam as informa-
ções no tempo com muito maior precisão que a informação
espacial (de onde vem o som). Por exemplo: pouco importa
que um toca-discos, num ambiente, esteja mal posicionado;
mas se o disco não girar na velocidade correta, haverá um
sério prejuízo da recepção. Desta velocidade dependem as
freqüências dos sons e também o ritmo.
As freqüências são, para a audição, como as cores para
a visão - aliás, as cores também são freqüências. A música
sem tons, reduzida ao ritmo, poderia ser comparada à visão
em preto e branco. Percebemos a variação entre duas notas
encadeadas e também entre duas notas superpostas. No caso
de freqüências muito próximas, se encadeadas, percebemos
uma inflexão e, se superpostas, o batimento, que é uma osci-
lação temporal da intensidade. No caso de freqüências afas-
tadas, é mais fácil identificarmos tanto notas encadeadas
como superpostas. Os intervalos musicais correspondem a
notas em proporções exatas de freqüência e a harmonia esta-
belece regras de combinação para três ou mais freqüências
superpostas Um treinamento musical médio nos permite dife-
renciar quaisquer três notas tocadas, ao mesmo tempo, num
piano. Um maior treinamento permite a identificação de qua-
tro, cinco ou mais notas.303 Há, porém, um limite. E o fenô-
meno do mascaramento, pelo qual as freqüências menores
(sons mais graves) são abafadas pelas maiores (sons mais
agudos), faz com que seja mais difícil perceber as notas mais
graves. Na música, da combinação das freqüências sucessi-
vas depende a melodia; da combinação de freqüências simul-
tâneas, a harmonia.

303
Quando menino, Mozart ouviu no Vaticano o Miserere Mei Deus de Gregório
Allegri, uma peça para coro a nove vozes e, chegando em casa, escreveu de memória
a música no papel, praticamente completa. Ao divulgar o fato, foi repreendido, pois
se tratava de uma partitura de uso restrito à Capela Sistina.
250 A IDÉIA DE CONFORTO

Como os objetos vibram simultaneamente em mais de


um modo de vibração, eles possuem timbres, que são suas
sonoridades específicas. São como fórmulas para a constitui-
ção de acordes naturais, em que há uma nota mais evidente,
correspondendo ao modo de vibração principal, e outras no-
tas associadas. Suas freqüências são múltiplos ou divisores
entre si, dentro da chamada série harmônica. O timbre do
som individualiza sua fonte: permite a distinção entre duas
pessoas que cantam ao mesmo tom, ou dois instrumentos que
tocam a mesma nota.
Todavia, a capacidade de diferenciar partes simultâ-
neas do todo é muito menor na audição que na visão. Numa
foto de grupo, seja da classe na escola, do grupo de trabalho
ou da família, reconheceremos de imediato todos os rostos.
Mas a gravação de todos cantando “parabéns” não me permi-
te identificar as vozes uma a uma. Mas isto não implica a
completa incapacidade de identificar características das mis-
turas sonoras. O organista se especializa na mistura de regis-
tros – que são diferentes conjuntos de tubos, um tubo para
cada nota do teclado. O organista os combina até obter os
timbres desejados para cada trecho da música. Assim tam-
bém trabalha o orquestrador, aquele que traduz uma música
escrita sem indicação de instrumentos (normalmente, na du-
pla clave do piano) para a linguagem de toda a orquestra.
Sem descaracterizar a música, procura distribuir as notas da
música entre os diferentes instrumentos – cordas, metais,
madeiras e percussão – até obter a expressividade que consi-
dera adequada.304
Um regente, sem ver, pode não saber qual de seus vio-
linos cometeu um erro. Os timbres são parecidos, e a locali-
zação também. Mas prontamente reconhece se o instrumento
que errou foi um clarinete ou um oboé. Aqui um, lá outro
timbre funcionam como marcos, entre si inconfundíveis. Sem
ver, distinguimos o som de umas duas dezenas de instrumen-
tos. Vários acontecimentos nos são familiares apenas auditi-
vamente: o vento soprando pelas frestas, uma gaveta fechan-

304
Um orquestrador famoso foi Leopold Stokowski, que transcreveu para orquestra
a célebre Toccata e Fuga em Ré menor de Bach, para a trilha sonora do filme Fanta-
sia, de Walt Disney.
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 251

do, uma porta batendo, água pingando, um interruptor de


iluminação sendo acionado, passos sobre tábua, uma janela
sendo aberta, uma mesa sendo arrastada, a televisão, o rádio,
os passos no piso superior, a campainha, a vassoura, o liqui-
dificador, a enceradeira, o aspirador de pó, a máquina de
lavar, a batedeira elétrica, panelas. Não se trata de um reco-
nhecimento apenas pelo timbre, mas também por característi-
cas de duração, intensidade e progressão típicas de cada obje-
to. Se considerarmos timbre e a entonação peculiar, é imensa
a quantidade de pessoas que somos capazes de identificar
somente pela voz – mesmo se a pessoa estiver falando um
idioma diferente do habitual.
A audição se revela, sim, um dispositivo de razoável
sensibilidade. É um importante complemento da visão, pois
muitos dos sons que nos interessa ouvir são provocados fora
de nosso campo visual. Geralmente, não vemos a campainha
sendo tocada por um visitante: ouvimos. Não vemos a tem-
pestade começar: ouvimos. Não vemos um acidente na calça-
da: ouvimos.
Muitos sons se mostram, ao mesmo tempo, incômodos
e úteis. Aqui surge a diferença entre comodidade e adequa-
ção.
Diferenças de entonação nos permitem interpretar que
intenção existe num sussurro ou num berro, num comentário
ou numa advertência. Além disto, cada idéia que consegui-
mos decodificar é fonte de tensão, remete-nos a outras idéias,
mantém o cérebro em ação. Uma reunião de um grupo pe-
queno, reservado de pessoas pode transcorrer em calma
mesmo defronte a uma rua movimentada e ruidosa. O som de
frenagem súbita é estridente e alarma as pessoas que, por um
instante, perdem sua concentração. Todavia, mesmo o som
de passos se aproximando no corredor as convida a calar e a
ouvir. A tensão não está necessariamente associada à intensi-
dade, ou ao contraste. Já a repetição (da história que as crian-
ças querem ouvir antes de dormir, ou das orações recitadas
dezenas de vezes) predispõe à sonolência, pois no som já não
há novidades. A ausência de estímulos é necessária num local
destinado ao sono. Mas não significa a ausência de sons.
252 A IDÉIA DE CONFORTO

Em geral, se a música não é aceita como arte, se en-


quadra como entretenimento. Mas para o conforto ambiental,
a música não tem seu efeito restrito à expressividade. Existe,
pois, a audição cômoda, ou ainda utilitária da música, e dela
o ambiente também participa.
Quem repousa quer ausência de tensão, ausência de
dor. Isto é comodidade. Mas se ouve música, provavelmente
estará exposto à tensão, que é um elemento básico da compo-
sição musical. Normalmente, faz parte de uma ordem maior,
pois depois dela vem sua resolução. A ópera e os concertos
barrocos utilizam com freqüência os trinados305 dissonantes
com resoluções harmônicas logo depois. Nas serenatas de
Mozart, notamos tensão entre os diferentes temas. Nas sona-
tas de Beethoven, tensão provocada pelos ataques súbitos. Na
música impressionista, Debussy306 insiste em alguns timbres
frios, agudos e límpidos, criando a expectativa do contraste.
Sinfonias do romantismo tardio usam tensão na forma de
intensidade sonora, com as explosões do naipe de percussão.
E o rock’n roll, em que em geral contrastam a homogeneida-
de no ritmo e na harmonia com uma amplificação agressiva –
de poucas surpresas - parece estar associado ao silêncio que
vem depois da música; soa como reação à ordem social que
impõe a obediência, simbolizada pelo silêncio. No cinema, o
som é comumente fonte de tensão, auxiliar às imagens, ou
mesmo principal. E independendo de se tratar de uma forma
de arte (a “sétima arte”), o cinema pressupõe que as pessoas
estejam acordadas. Enfim, não é feito para ser cômodo, mas
expressivo.
Mas também se faz música com recurso muito menos
freqüente à tensão. É o caso do canto gregoriano, a música
vocal dos mosteiros da Idade Média, tida por Otto Maria
Carpeaux307 como a mais antiga forma de música ainda hoje
cultivada. No canto gregoriano, os recursos expressivos são

305
Alternância muito rápida e repetida entre duas notas vizinhas, imitando o canto
de um pássaro.
306
Claude Debussy (1862-1918), compositor francês.
307
Otto Maria Carpeaux, Uma nova história da música, Ediouro, Rio de Janeiro
(1999).
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 253

menos numerosos; a monotonia é um traço característico; é


através dela, e de uma rica melodia, que se transmite a men-
sagem artística. Já a música ambiente contém uma limitação
proposital, pois convida mais à indiferença que à reação. O
pintor Ferdinand Léger se mostrou entusiasmado com uma
idéia de Eric Satie a respeito: era atormentado pelo desejo de
realizar uma música de acompanhamento, música sem inten-
ção, que desliza sem peso, que a gente ouve, mas não escuta.
Segundo Léger, Satie dizia que as relações sociais seriam
consideravelmente melhoradas, se soubéssemos realizar esse
problema de acústica médio, por exemplo, numa sala de
restaurante, num lugar público, num lar. Duas pessoas estão
sentadas à mesa; conversam, mas não o tempo todo. Não
vieram a esse café para ouvir música. Então, devemos tratar
de preencher o silêncio delas, impedir que ele se torne incô-
modo, evitar que elas rompam o silêncio quando não estão
com vontade. Música de acompanhamento inteligente e fugi-
tiva, que roda em torno de você sem se impor, que deixa você
conversar ou se calar numa atmosfera não intencional. Mú-
sica de acompanhamento que a gente não escuta, mas que,
apesar disso, está presente e é encarregada de preencher os
silêncios incômodos. Satie tinha razão.
Também em acústica, nem sempre se requer máxima
comodidade, mas a melhor combinação entre esta e a ade-
quação. E não se confundam, ainda, estas duas com expressi-
vidade. O som da TV pode ser ajustado para que tenha volu-
me e altura adequados para ouvir, por exemplo, a transmissão
de um concerto de beleza inquestionável. Entretanto, para
algumas pessoas, poderá ser inadequado para dormir.
A adequação requer que o ambiente sonoro seja coerente
com a atividade desenvolvida. Quando esta envolve a comu-
nicação sonora, o ambiente não deve impedir a transmissão
da mensagem. No caso da fala, é importante a ausência de
mascaramento. Tal fenômeno consiste na presença de ruídos
mais agudos que o som sendo transmitido, dificultando sua
audição. Já no caso da música, as exigências que se impõem
ao ambiente são mais específicas. É desejável não somente o
silêncio, mas ainda que o ambiente se some à atuação dos
músicos e seus instrumentos, a serviço da expressão artística.
254 A IDÉIA DE CONFORTO

E o próprio ambiente construído, com sua função bá-


sica de abrigo e pelo fato de se apresentar hermético, delimi-
tado por materiais rígidos, constitui muitas vezes a causa
primária das dificuldades de acústica. Um recinto de pequeno
volume, de superfícies lisas e duras e despojado de objetos,
amplifica demais o som, tornando-o ensurdecedor. À medida
que aumenta de volume sem acréscimo de superfícies absor-
vedoras, o som vai-se tornando confuso, perdendo em clare-
za. Isto é devido ao fenômeno da reverberação: é o som que,
nos ambientes, ainda se ouve instantes depois que sua produ-
ção já cessou. Mas mediante a inclusão de objetos e superfí-
cies absorvedoras, recupera-se a clareza e perde-se em ampli-
ficação. Auditórios para convenções, com abundantes estofa-
dos, carpetes e cortinas permitem audição muito clara do
palestrante, desde que prevaleça rigoroso silêncio entre os
ouvintes. Daí a importância, em tais locais, da amplificação
eletrônica: mesmo entre conversas paralelas, a mensagem
oficial é compreendida.
As observações acima não consideram, ainda, que di-
ferentes direções requerem uma diferente propagação do
som. Em grandes auditórios, a distinção entre palco e platéia
permite definir direções e sentido predominantes de propaga-
ção do som: são principalmente do palco para a platéia, e
entre diferentes locais do palco (permitindo aos artistas ou-
vir-se reciprocamente e assim melhorar sua sincronia). As-
sim, é possível, sem amplificação eletrônica, conciliar inten-
sidade, reverberação e clareza. Já nos refeitórios, interessa
limitar ao máximo a propagação do som ao espaço. Os con-
vivas de uma mesa querem ouvir-se entre si, sem serem per-
turbados pelas conversas, ou pelas batidas de talheres e louça
das outras mesas.
Ruídos originados na própria edificação como vozes,
passos, movimentação de objetos e o funcionamento de má-
quinas ou sistemas podem se apresentar incômodos ou inade-
quados. Estes ruídos se transmitem pelo ar num mesmo re-
cinto, através de frestas de portas e janelas ou ainda imperfei-
ções das divisórias entre recintos diferentes, ou através dos
sólidos. No último caso se incluem os passos ouvidos através
das lajes. Um especial desafio é imposto aos projetistas e
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 255

construtores pelas instalações sanitárias, em que movimentos


percussivos e vibratórios da água geram ruídos que se propa-
gam pelas paredes e dutos. Seu isolamento depende de um
cuidadoso detalhamento da instalação. Alguns ambientes
podem ser propositadamente ruidosos: é o caso de auditórios,
cinemas, danceterias, igrejas e academias de ginástica.
O transporte provoca um ruído de fundo mais ou menos
constante, a que se somam acontecimentos pontuais como a
passagem de trens e aeronaves, mais conscientemente per-
ceptíveis. Em geral, a poluição sonora advinda do transporte
impõe dificuldade à ventilação das moradias: traz como con-
seqüência a necessidade de soluções baseadas em grandes
volumes renovados de modo intermitente, ou ainda à ventila-
ção mecânica associada à filtragem do ar, com eliminação do
barulho e ainda de suas impurezas macroscópicas. Ambas as
formas de poluição do ar (sonora e química) são comuns em
cidades em situação de saturação.308 Tal contexto torna cada
vez mais difícil a tarefa de planejar uma edificação ambien-
talmente confortável.

7.4 Expressividade
O som pode ser condicionado de modo a não inco-
modar (comodidade) e ainda permitir a realização de uma
atividade (adequação). Além disto, participa da maneira co-
mo identificamos, lembramos e julgamos os ambientes. Estes
têm aqui sua expressividade audível, chamada expressividade
sonora ou acústica.
A arquitetura pode ser ouvida? Para Rasmussen,309
recebemos uma impressão total da coisa para a qual estamos
olhando e não prestamos atenção aos vários sentidos que
contribuíram para essa impressão. Ao afirmar que uma sala
é fria e formal, raramente nos referimos à temperatura em si,

308
E. Odum, Ecologia, é uma obra que aborda cidades como ecossistemas. O autor
propõe como tamanho máximo de uma cidade 500 mil habitantes, medida a partir da
qual as economias de escala desaparecem e se tornam deseconomias de escala: a
partir daquele tamanho, é melhor para cada habitante da cidade que a população não
aumente.
309
Op. cit..
256 A IDÉIA DE CONFORTO

mas a outros aspectos percebidos como antipáticos, como as


cores, ou uma acústica áspera, de modo que o som – especi-
almente os tons altos – reverbera nele: portanto, tal impres-
são é proveniente de algo que ouvimos.
A seguir, será comentada a influência da transmissivida-
de acústica sobre a percepção do espaço, especialmente da
habitação. Ainda, algumas propriedades acústicas dos espa-
ços enclausurados serão apresentadas.
Há uma categoria de sons que é característica do
mundo fora de casa, o espaço da ação, dos acontecimentos.
São sons que, pela sua intensidade, tendem a ser transmitidos
para dentro das edificações. Dentro delas podemos preferir o
silêncio, mas quando estamos fora, sem a proteção do lar,
privar-se da audição causa mais inquietude que serenidade,
pois é um alheamento forçado do mundo real. Nossos olhos
enxergam somente um hemisfério, ou menos ainda, e somen-
te em linha reta – não vêem o que se esconde atrás de algum
anteparo. Mas os ouvidos nos permitem monitorar todo o
espaço ao nosso redor, e o som, a nosso favor, contorna obje-
tos para nos alertar de acontecimentos que não perceberíamos
nem pela imagem, nem pelo odor. O som também incita à
reação, a uma nova atitude, seja ela de nos imobilizar, fugir,
ou ainda fechar os olhos. E se for música de ritmo convidati-
vo, nos causará a reação de sair dançando.
O ruído, dependendo de suas características físicas e de
seu teor de informação, sujeita-nos a certo estado de tensão
que não conseguimos evitar. A fogueira de um acampamento
não seria tão cativante se fosse silenciosa. Tem suspense o
momento em que estoura a pipoca, e também quando a or-
questra se afina no palco, minutos antes do início de um con-
certo. O relâmpago carrega tensão acústica, pois à sua vista já
esperamos pelo trovão, que mesmo assim nos surpreende
quando chega. São situações diversas em que o som quebra a
monotonia.
Quando conseguimos deixar fora de um recinto sons que
nos atormentam muitas horas do dia, como o ruído nervoso
do trânsito, sobrevem uma sensação de paz. A construção de
ambientes herméticos em relação aos sons externos seria,
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 257

então, uma forma de disfarçar a realidade. Dentro de um


quarto protegido por vidraça dupla e espessa cortina, desfru-
tamos desta paz. No fundo, porém, sabemos que é frágil co-
mo o vidro da janela. Uma situação aparentemente semelhan-
te mas conceitualmente oposta é a de uma casa retirada da
cidade, distante dos agrupamentos de pessoas e vias de tráfe-
go intenso. Esta casa podemos manter aberta, ventilada, ex-
posta aos sons do entorno. Alguns são sons agradáveis. De
manhã cedo, cantos de galos ajudam as pessoas a despertar.
Vão seguindo cantos de pássaros. O som da água corrente
por perto, assim como o barulho do mar quebrando na rocha,
é sentido permanentemente, sem nunca se tornar monótono.
O vento balançando a vegetação, tanto a folhagem rasteira
como copas de árvores, traz variedade. Cigarras alertam o
morador distraído, que não percebeu a hora, que o final do
dia se aproxima. E principalmente à noite, a passagem de
uma pessoa caminhando próximo à casa é facilmente perce-
bida. Se ninguém é esperado e o fato em si amedronta, uma
tal clareza no fundo conforta o morador, pois sabe que quase
nada passa desapercebido. Nem o incêndio no mato, revelado
pelo crepitar do fogo, como a aproximação de um intruso,
pelo ranger do arame na cerca.
Na morada rural, tanto pela ausência de outras fontes de
ruído como pela relativa simplicidade da construção, as chu-
vas são sentidas de maneira única: dos pingos no telhado até
o aguaceiro acompanhado de trovoadas, a sensação de aco-
lhimento dentro de casa se intensifica. A chuva parece até
aumentar sua proteção, pois ninguém virá; a vida terá uma
lacuna mais contemplativa. Em Bachelard, citado anterior-
mente, o abrigo fornecido pela casa aparece em imagens
poéticas do trovão assustando o morador de uma casa no
campo e o morador de um prédio na cidade: mas a casa não
treme sob trovão. Não treme conosco e por nós. Em nossas
casas, apertadas umas contra as outras, temos menos medo.
A tempestade em Paris não tem a mesma ira ofensiva contra
o adormecido que contra uma casa de solitário.(...) Quando
(...) o passar dos caminhões me induz a maldizer meu destino
citadino, encontro paz vivendo as metáforas do oceano (...) é
saudável naturalizar os ruídos para fazê-los menos hostis.
258 A IDÉIA DE CONFORTO

Assim também o vento nos dias secos: a depender da


forma de movimentação das copas de árvores, se percebe a
manutenção ou alteração das condições climáticas. As frentes
frias no sul do Brasil são sentidas acústica e termicamente no
campo, mais que na cidade. As copas das árvores altas se
movimentam de modo tranqüilo mas constante, como um
guizo. Alguns estalos de madeira seca também se ouvem,
enquanto sob o céu azul se renova a massa de ar seco, que
mantém a paisagem ensolarada. Sol e lenha sugerem que será
fácil manter aquecida a casa. No meio urbano, o ruído de
fundo oculta estes sinais.
Diferente da direcionalidade estrita da luz, o som tam-
bém ocupa o vazio, tornando o espaço mais presente ao cor-
po – não reduzido aos olhos. Bachelard observa que os ruí-
dos colorem a extensão e lhe dão uma espécie de corpo so-
noro. E o silêncio no lar, especialmente na residência isolada,
além de cômodo, será especialmente expressivo.
Há outra categoria de sons que são característicos da in-
timidade, do meio imediatamente próximo, e sua presença
nos conforta. É como ouvir a voz de alguém conhecido.
Acima foi observado que o pulsar do relógio lembraria os
bebês do coração da mãe. Diane Ackerman310 vai mais longe:
ao começar a falar, a criança repete o som familiar do espaço
onde viveu por meses: ma-ma, pa-pa. Na poesia, este é o som
dos versos jâmbicos.311 Mas não somente a natureza conheci-
da dos sons nos conforta: eles devem ser oportunos, ao me-
nos, nos aspectos temporal e social.
O relógio cuco é um som que trazemos para dentro de
casa: tem um ruído uniforme, e o canto do cuco, embora pre-
visível, surpreende. E assim também é, na manhã, o desper-
tador que programamos na noite anterior. Soa todos os dias
no mesmo horário, e assusta. Sons comuns podem assumir
um tom amedrontador, especialmente quando imprevistos.
Ao ouvir sons temos certeza de que houve uma ação e tenta-
mos identificá-la. Existem formas de alucinação em que as

310
Diane Ackerman, op. cit.
311
Na poesia grega e latina, chamava-se jambo o verso composto de duas sílabas, a
primeira breve e a segunda, longa.
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 259

pessoas ouvem vozes, ou mesmo canções, e precisam ser


tratadas. O mesmo não ocorre com as sensações visuais. A
estas podemos associar mais facilmente uma causa, podemos
processá-las.
Dentro de casa existe uma hierarquia social dos sons: al-
guns são públicos e outros são mantidos audíveis somente
dentro de recintos específicos. O arquiteto Richard Neutra312
faz observações bastante originais a respeito da acústica do
ambiente construído ao descrever a arquitetura residencial
japonesa. Nela, a privacidade depende de vozes sussurradas
em ambientes que podem ser fechados temporariamente por
painéis deslizantes – quartos não isolados acusticamente.
Trata-se do shoji, uma esquadria em quadriculado de madeira
recoberto por uma única folha de papel de seda. Conversas
secretas são mantidas, de preferência, visualmente, como
numa peça de Nakamura: alguns ideogramas rapidamente
traçados são, de maneira misteriosa, mostrados a um conspi-
rador e então rapidamente atirados ao hibashi, o braseiro de
carvão. O lar japonês, com suas propriedades específicas,
acústicas e outras, é o núcleo de uma larga cultura, com
modos de vida intrinsecamente dependentes da arquitetura e
de suas diversas realidades sensoriais.
O som é associado a processos naturais, como respirar, e
culturais, como falar. A voz é um canal de transmissão de
idéias e também sentimentos. Mas minha expressão sonora
não depende unicamente da fala. A maneira como coloco o
telefone no gancho, ou fecho uma porta e deixo um recinto é
muitas vezes o verdadeiro desfecho da conversa que acabei
de manter. Logo, o som expressa mais que seu conteúdo ob-
jetivo e imediato, seja ele a linguagem codificada ou a sinali-
zação de um fato, como uma campainha que soa. A própria
maneira de tocar a campainha pode refletir o estado de espíri-
to do visitante: discreto, apressado, insistente.
O som no ambiente incorpora traços deste; torna-se
também parte de sua realidade. O condicionamento que o
ambiente dá ao som nele produzido possui mais de uma de-
zena de atributos, de maneira que, quase tanto como a fonte

312
Richard Neutra, op.cit.
260 A IDÉIA DE CONFORTO

emissora – voz ou instrumentos – o ambiente também é res-


ponsável pela qualidade estética do que se ouve.
A expressividade acústica não-musical do espaço é
descrita por Rasmussen no trecho em que trata a estética
sonora dos palácios rococós, com interiores muito mais con-
fortáveis do que os das mansões do período barroco. Os
aposentos nas novas casas variavam não só em dimensões e
formatos, mas também no efeito acústico. Da entrada cober-
ta para carruagens, o visitante ingressava num hall de már-
more que ressoava com o estrépito de sua espada à ilharga e
dos sapatos de salto alto, enquanto seguia o mordomo pelo
piso de pedra até a porta que era aberta para ele. Estava
agora no limiar de uma série de salas com sons mais íntimos
e musicais – uma espaçosa sala de jantar acusticamente
adaptada para música de câmara, um salão com paredes
revestidas de painéis de seda ou damasco que absorviam o
som e as reverberações encurtadas, e lambris de madeira
que propiciavam a ressonância certa para esse gênero de
música. Seguia-se uma sala menor em que se podia desfrutar
os sons frágeis de uma espineta e, finalmente, o boudoir de
madame, como uma caixa de jóias revestida interiormente
de cetim, onde os amigos íntimos podiam reunir-se para
conversar, cochichando entre si os mais recentes escândalos
da sociedade.
Assim, não são poucas as implicações das características
acústicas sobre o uso social do espaço. Num recinto cheio de
pessoas, se muito ruidoso, sentimo-nos em certo anonimato.
Já se for cheio, mas muito silencioso, sentimo-nos expostos:
até a própria respiração pode ser ouvida, quanto mais a voz.
Para falar de um palco diante de uma platéia calada, precisa-
mos nos preparar para não perder a auto-confiança: sentimo-
nos claramente como quem está sendo ouvido.
Christopher Alexander313 recomenda que os espaços
dentro de um edifício tenham o teto em alturas variáveis para
que a sociabilidade que neles ocorre possa se adaptar. Para
falar com pessoas próximas procuramos um espaço onde o
teto seja mais baixo com maior intimidade acústica. Para

313
Christopher Alexander, op. cit.
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 261

falar com pessoas estranhas, procuramos um ambiente de teto


mais alto. As condições dentro de uma loja de carpetes, entre
rolos do produto postos em pé, são de muita intimidade acús-
tica, que chega a incomodar. Dois clientes opinando sobre
um produto têm a sensação de serem ouvidos com clareza
pelo vendedor.
A proximidade entre duas pessoas que se comunicam
oralmente é percebida pelos olhos, pelo tato e também pela
audição. Se o ambiente não contiver ruído em excesso, uma
pessoa irá ouvir a outra com clareza. Entretanto, se estiverem
afastadas, o ambiente terá de contribuir com a amplificação
natural para que ambas se ouçam. Em tais circunstâncias, se
estiverem muito distantes, será provável que o ambiente dis-
torça a comunicação. Isto não ocorreria se o espaço entre elas
tivesse a forma de um corredor ou de um túnel. É isto que se
chama, na acústica musical, de intimidade. As pessoas que se
comunicam estão próximas entre si, ou o ambiente é tal que
elas se sintam próximas. Já se as pessoas estivessem distantes
entre si, numa ampla sala, ou em amplas salas contíguas, não
seria o caso. E a chance de outras fontes sonoras atrapalha-
rem a comunicação seria maior.
Quem tem um piano em casa pode tocá-lo todos os dias;
quem visita um auditório de concertos e, no palco, digita seu
grande piano de concerto, experimenta uma sensação singu-
lar, não apenas pelo instrumento precioso que toca como pela
acústica pomposa, que dá a certeza de se tratar de um ambi-
ente especial.
Mas uma musicalidade intrínseca não é privilégio de
grandes recintos, como teatros e salas de palácios. Muitas
obras musicais classificadas como música de câmara têm sua
origem na sala de visitas de uma residência. Logo, é necessá-
rio que a apresentação de tais obras ao público recrie tais
condições. A proximidade física é uma condição natural da
intimidade acústica. Outra condição é a predominância do
som direto (que viaja diretamente do músico para o ouvinte)
sobre o som refletido (que sofre no caminho uma ou mais
reflexões). A intimidade pode ser prejudicada pela reverbera-
ção em excesso: ouvindo desde poucos metros de distância
um recital de instrumento no centro de uma igreja gótica, a
262 A IDÉIA DE CONFORTO

intimidade pode desaparecer. Para ouvir uma flauta doce em


sua individualidade – instrumento frágil, de timbre delicado e
expressão muito associada à respiração do músico - é desejá-
vel a intimidade.
Não é raro que sonatas para piano sejam apresentadas
em auditórios médios e grandes. No entanto, é comum tratar-
se de música escrita para a sala de estar. Beethoven e Schu-
bert dedicaram sonatas para piano a alunas suas, para o seu
consumo individual, como quem lê uma carta de amor. A
observação vale de certo modo para toda a música de câmara
(que tradicionalmente se define como aquela escrita para
conjuntos de até nove instrumentos). A intimidade em acústi-
ca, muitas vezes, é condição necessária para que a música
fale do mundo restrito do compositor, como se tivesse sido
composta para um pequeno grupo de pessoas. Particularmen-
te intimistas são os quarteto de cordas. Comparando uma
sinfonia a um quarteto, o líder do grupo inglês Lindsay String
Quartett usou como metáfora uma festa de aniversário: pode
ser festa para uma centena de pessoas, como também pode
ser dedicada somente aos quatro melhores amigos. São duas
formas válidas de comemorar. Mas não faz sentido que se
use, tanto numa quanto noutra festa, o mesmo ambiente.
A importância da intimidade se aplica de modo especial
à música de câmara de Mozart. Sua obra requer interpretação
delicada; assim é, em geral, a música do Classicismo, do qual
os outros dois nomes importantes são, na seqüência cronoló-
gica, Haydn e Beethoven, todos atuantes em Viena. Com este
último, a música sinfônica aumentou sua escala; os concertos
foram ganhando popularidade, tendência característica no
Romantismo, movimento posterior ao Classicismo – Beetho-
ven é mesmo chamado o “romântico dos clássicos”.314 A
escala tem efeitos diversos sobre a compreensão da música.
De longe, ou dentro de uma catedral, não se nota a diferença
entre o sintetizador e o instrumento que imita – seja ele violi-
no, trompete ou oboé. Mas de perto, a riqueza de nuances
permitida pela intimidade que, ao pé da letra, significa poder

314
O austríaco Franz Schubert (1797-1828), comparado a Mozart em sua inventivi-
dade melódica, é chamado o “clássico dos românticos”.
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 263

ouvir até a respiração do músico, dificilmente seria alcançada


com sintetizadores.
Quanto mais pessoas se reúnem para ouvir uma apresen-
tação musical, maior deve ser o ambiente, e mais distantes
elas estarão, na média, dos músicos que produzem o som
com sua voz ou instrumentos. Serão necessárias paredes re-
fletoras para reforçar o som que viaja do palco para as pesso-
as, caso contrário estas o absorverão, e ele mal será ouvido.
À medida que o volume dos espaços aumenta, mais propen-
sos estão ao efeito da reverberação: cessada a emissão de
som, ele ainda é ouvido. Chama-se tempo de reverberação o
tempo necessário, depois de cessada a emissão de som, para
que o som restante num ambiente também desapareça. Na
verdade, se num espaço confinado as paredes refletem uma
parcela do som que incide, a reverberação permanece indefi-
nidamente. Para fins práticos, convenciona-se que a reverbe-
ração termina quando a intensidade sonora máxima (medida
em potência sonora que atravessa uma área unitária), do mo-
mento em que cessa a emissão do som, cai a apenas um mili-
onésimo. Em acústica, diz-se que esta redução corresponde a
60 decibéis.315 Enquanto a compreensão da linguagem falada,
num teatro ou numa sala de aula, requer tempo de reverbera-
ção o mais curto possível, menor que meio segundo, a audi-
ção de música requer tempos maiores que um, por vezes até
de vários segundos. Isto se deve ao simples fato de a música
ter sido, em geral, concebida para ambientes fechados e de
certa forma reverberantes. A pesquisa histórica em música e
arquitetura tem ajudado a esclarecer em que medida a música
requer reverberação.
Em qualquer recinto existe um tom que chama a atenção
da pessoa que cantarola, pois sustentando nele o canto parece
que todo o espaço canta junto. Nesta nota ocorre a ressonân-
cia; corresponde a uma especial amplificação natural, e uma
longa reverberação. O arquiteto Steen Eiler Rasmussen men-
ciona que o canto gregoriano composto para a (antiga) basíli-
ca de S. Pedro316 adotava uma nota simpática – a nota longa,
315
Resultado obtido quando 10 log(I1/I2) = 60, sendo a intensidade inicial I1 e a
final, I2, ambas em W/m2.
316
Uma igreja românica, bastante diferente da Basílica de São Pedro hoje existente.
264 A IDÉIA DE CONFORTO

sustentada pelo sacerdote – que correspondia a uma freqüên-


cia natural do espaço. Era uma nota entre o lá bemol e o lá.
Para continuar as orações e demais proclamações do rito, o
sacerdote baixava sua voz, dando origem a uma melodia
simples. Assim, podia ser entendido pela comunidade en-
quanto que, se insistisse em falar na altura da nota simpática,
seria ouvido somente num tom, mas em nenhuma palavra:
nas velhas igrejas, as paredes eram, de fato, poderosos ins-
trumentos que os antigos aprenderam a tocar. Comumente
numa casa esta nota ocorre em banheiros ou cozinhas azule-
jados, ou ainda nos corredores. É a origem dos cantores de
banheiro.
Na música sacra da Renascença, o valor ideal do tempo
de reverberação é menor que no canto gregoriano, uma vez
que a polifonia (uso simultâneo de várias vozes) requer mais
clareza. Entretanto, como se trata de uma música desacom-
panhada – canto à capela – a reverberação é útil, pois permite
preencher o entorno com música o tempo todo.
Já na obra instrumental de Vivaldi,317 também da fase
final do período barroco, há indícios de que o tempo de re-
verberação era maior. As condições acústicas no salão do
Ospedalle Della Pietá, orfanato de moças em Veneza em que
atuava o chamado prete rosso, podem ser estimadas a partir
de uma conhecida pintura de Francesco Guardi, que permite
determinar dimensões e materiais. Estes elementos permitem
o cálculo de tempo de reverberação surpreendentemente alto,
de 3,0s para os sons agudos. Logo, uma interpretação fide-
digna dos concertos de Vivaldi não depende tanto de clareza.
Antes, depende do brilho. Trata-se da reverberação nos sons
agudos. A música fica melhor pronunciada: o que é alegre se
torna festivo, o que já é triste se torna pungente. Há tendência
a uma sonoridade cristalina, ou por vezes metálica. Ganham
realce instrumentos como oboé e flautim, e a voz de soprano
(voz aguda feminina).
Na música do Classicismo, compreendendo a obra de
Haydn e Mozart e a da primeira fase de Beethoven, detalhes

317
Antonio Vivaldi (1678 – 1741), compositor italiano, conhecido como o padre
vermelho pela cor dos seus cabelos.
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 265

e nuances se tornam delicados, requerendo tempo de reverbe-


ração não superior a 1,5 segundos. Já na segunda fase de
Beethoven e caminhando em direção ao Romantismo, a mú-
sica se torna uma prática popular e os auditórios aumentam;
com eles, alonga-se o tempo de reverberação, superando 2,0
segundos. O concerto para violino e orquestra de Beethoven
explora o brilho: o violino-solo quase sempre cantando muito
mais agudo que toda a orquestra, lembra um pássaro voando
em altura inatingível. Outros exemplos de música realçada
pelos ambientes de muito brilho são as Quatro Últimas Can-
ções (Vier letzte Lieder), para soprano e orquestra, de Ri-
chard Strauss318 (1864-1949), do final do Romantismo, e as
Bachianas Brasileiras n.°5, para soprano e orquestra de vio-
loncelos, de Villa-Lobos.319
Uma propriedade de certa forma oposta ao brilho é o ca-
lor. É a reverberação dos sons graves. O calor é mais dificil-
mente percebido, a não ser por comparação: ao ouvirmos
uma orquestra sem os contrabaixos e, em seguida, com sua
participação, notamos a diferença. O calor não prejudica a
clareza, mas dá consistência à música; reforça a harmonia (a
lógica dos sons simultâneos, relacionada ao caráter de cada
trecho da música), pois, na base dos acordes, está o baixo
(nota mais grave), e este não progride ágil como a melodia,
mas com inércia muito maior. Certas formações musicais
transmitem, mais que outras, a sensação de calor: os sextetos
para cordas de Brahms,320 compositor do auge do Romantis-
mo, têm em sua formação dois violinos, duas violas e dois
violoncelos. Em comparação à formação clássica do quarteto
de cordas (dois violinos, viola e violoncelo), há nítido reforço
dos instrumentos médios e graves. O resultado percebido é
calor – um calor instrumental. Mas o calor que aqui interessa
é aquele originário dos próprios ambientes, como no caso da
música de câmara. Não serve, pois, uma caixa de vidro. E a
música feita para ambientes externos se ressente da falta de
calor. Um exemplo notável ocorre na Música dos reais fogos

318
Richard Strauss (1864 – 1949), compositor alemão.
319
Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959), compositor brasileiro.
320
Johannes Brahms (1833-1897), compositor alemão.
266 A IDÉIA DE CONFORTO

de artifício, de Haendel,321 do final do período barroco, exe-


cutada num parque para celebrar a Paz de Aachen, no início
do século XVIII. Ouve-se um freqüente rufar de tambores; a
percussão é usada não para reforçar o ritmo, nem o ataque,
mas para preencher vazios, como ruído de fundo: uma fonte
de calor artificial, quase extra-musical.
A música de câmara, feita para ambientes restritos, em
todas as épocas requer tempos de reverberação baixos. Mas
um alto tempo de reverberação é característica fundamental
para a execução de quase a totalidade da música para órgão,
sem depender de sua época. Tal característica está presente
nas igrejas góticas e românicas. Nelas, todavia, esta reverbe-
ração prejudica a clareza. Dificilmente se compreende a fala
que não seja especialmente enfática.
E até aqui falou-se tão somente na música ocidental. O
arquiteto Richard Neutra fala de uma sonoridade específica
nos instrumentos musicais tradicionais japoneses, o koto
(espécie de cítara primitiva) e o shamisen (espécie de guitarra
tocada com palheta) que diferem daqueles usados no canto
lírico ocidental, e têm direta relação com o espaço. Os pri-
meiros, assim como a vocalização das canções e letras japo-
nesas, seriam desenhados para não vencer grandes distâncias.
Seu vibrato, onde ocorre, tem uma intenção inteiramente
diferente daquele do primo tenoro italiano. Este, deslocando
suas cordas vocais, tenta atingir os espectadores na Quarta
galleria do velho Teatro dal Verme, ou do La Scala. Ele na
verdade move pedras, como fez Orfeu através de sua música,
pois seu canto serve para uma estrutura de alvenaria resso-
ante, à qual a tradição do belcanto está associada. No outro
extremo, em relação ao teatro italiano, está a casa japonesa,
que não tem tais qualidades acusticamente reflexivas; sua
casca consiste de membranas de papel em tensão frouxa. Os
pisos são cobertos com espessas esteiras de palha sobre as
quais os pés do dançarino, em meias sobre almofadas de
algodão, não produzem impacto audível. E não há a intenção
de tal impacto, ou de algum estímulo acústico. A dança é
quase estacionária, quase silenciosa. Os movimentos são

321
Georg Friedrich Haendel (1685-1759), compositor alemão.
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 267

flutuantes, sem staccato. Eles não requerem ruído rítmico.


Numa casa japonesa, um fandango guarnecido com casta-
nholas espanholas seria uma fúria destrutiva e ao mesmo
tempo uma apresentação frustrada, acusticamente manca.
Existem várias outras propriedades acústicas dos ambi-
entes. Foram relacionadas e esclarecidas por Beranek,322 que
as verificou em extenso estudo de campo. São, em parte,
especializações do conceito de reverberação.
Enfim, quanto à expressividade musical do espaço,
cumpre dizer que pode vir a ser, momentaneamente, a ex-
pressividade da música que nele se ouve. Pois as leis do rit-
mo, da melodia e da harmonia, aplicadas à voz humana e aos
sons de instrumentos, estabelecem a linguagem musical, se-
dimentada ao longo dos séculos. A música é uma experiência
em geral abstrata. Assim é a música instrumental de Mozart.
Um especialista pode procurar analisá-la; entretanto, nada
explicará o efeito que produz. No filme Amadeus, de Milos
Forman, baseado na obra de Peter Schaffer, o compositor
Antonio Salieri é retratado como rival de Mozart. Invadindo
sigilosamente os aposentos de um cliente deste, lê mental-
mente a partitura de uma serenata de Mozart para instrumen-
tos de sopro. Conta como começou de modo suficientemente
simples: somente um pulso nos registros mais baixos – trom-
pas e fagotes – como um espremedor enferrujado...e então,
de repente, alta sobre eles, soou uma única nota no oboé.
Permaneceu lá pendurada, impassível, penetrando-me, até a
respiração não poder mais ser segurada, e um clarinete a
tirou de mim, e a adoçou numa frase de tamanho encanto
que me fez tremer.Trata-se de fato de um trecho de música de
beleza ímpar. Abstrata, ainda, é a música de Bach. O barroco
é o período em que surge a ópera, e nela a clareza é impor-
tante; ganha importância, ainda, a constância da pulsação
rítmica. Assim, há uma tendência do tempo de reverberação
cair. A obra sacra de Bach,323 que é do final do período bar-
roco na música, retomou o uso da polifonia e portanto reque-
ria uma clareza que é raramente proporcionada pelas igrejas

322
Leo Beranek, Music Hall Acoustics, J. Wiley, Nova Iorque (1966).
323
Johann Sebastian Bach (1685 – 1750), compositor alemão.
268 A IDÉIA DE CONFORTO

góticas. Ocorre que a Igreja de S. Thomas em Leipzig, para


onde a obra foi composta, era peculiar à época de Bach:324
após a reforma, vastas áreas de madeira ressoante foram
adicionadas à pedra nua...devido ao sistema luterano de
administração eclesiástica que colocava a igreja sob a dire-
ção do conselho municipal. Cada vereador tinha seu próprio
camarote familiar, tal como poderia ter na ópera. Os novos
aditamentos eram de estilo barroco, com molduras e painéis
ricamente esculpidos, e havia cortinas nas aberturas. ..Hope
Bagenal calculou a atual reverberação em 2 1/2 segundos,
em comparação com os 6 a 8 segundos na igreja medieval. A
ausência de uma “nota” ou região de resposta na igreja
possibilitou a Bach escrever suas obras numa variedade de
tons. O mesmo fato é confirmado por Beranek.325 A Paixão
segundo São Mateus foi escrita para esta igreja. A respeito da
extensa obra que, reunidas todas as partes, se estende por
mais de três horas de duração, conta-se que Bach – único
compositor a quem os musicólogos se referem como o maior
de todos os tempos – trabalhou nesta composição fechado
numa sala da qual, quando saía, era comumente em prantos.
As condições acústicas da igreja de São Thomas em Leipzig,
que tornaram possível a audição original da Paixão segundo
São Mateus, ajudaram certamente a criar uma conjuntura que
emocionava até o compositor.
É fascinante a diversidade de características acústicas
dos ambientes considerados para a produção e apreciação da
música. Entretanto, ao voltarmos a atenção para o ambiente
doméstico, o que resta da importância de intimidade, clareza,
brilho e calor? Que propriedades são mais coerentes com a
função do repouso? Dificilmente o tempo de reverberação,
em algum cômodo, será alto, a não ser nos banheiros, ou
numa espaçosa sala. O brilho pode ser um reforço à sensação
de amplidão e limpeza dos ambientes, pois as superfícies
lisas, especialmente as paredes, e tanto mais quanto mais
impermeáveis, é que o proporcionam. Como os sons graves
são melhor tolerados pelo ouvido, o calor é mais desejado no

324
Hope Bagenal, organista norte-americano atuante no início do séc..XX, apud
Steen Eiler Rasmussen, op. cit.
325
Leo Beranek, op. cit..
O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 269

ambiente doméstico. O termo “calor” se justifica pelo fato de


esta propriedade resultar da presença de superfícies estofadas
ou acarpetadas que absorvem mais os sons agudos que os
graves. Entretanto, tais propriedades de acústica são típicas
de espaços grandes, de uma escala em que já não cabe mais a
casa.
Nesta, reverberação e amplificação natural devem ser
mantidos baixos, pois ouvir os passos amplificados, ressoan-
do em superfícies distantes, certamente, não parece alguma
impressão caseira. Mas, tipicamente, os ambientes da casa
são bem isolados acusticamente. São também dotados de
superfícies de absorção. A riqueza em mobiliário, objetos e
tecidos faz com que a comunicação seja feita com clareza; há
supressão do brilho e uma certa promoção de calor. E a con-
dição mais naturalmente afeita à casa é a da intimidade. Ela
serve tanto para a comunicação musical como para a comuni-
cação não-musical, como diversos exemplos acima o ilustra-
ram.
Figura 8 - Balcão de um restaurante na Liberdade (São Paulo)
8 - Luzes e cores: o entorno pela
via racional

A visão é o mais elaborado dos sentidos, muito especia-


lizado nos seres humanos. É o canal pelo qual passa a maior
quantidade de estímulos e informações que recebemos. Ates-
ta nossa característica diurna, caçadora. Ainda, mais do que
os outros sentidos, está associada ao raciocínio analítico.
As condições de conforto visual podem ser resumidas no
ajuste dos níveis absolutos e relativos de brilho das coisas aos
propósitos que temos nos ambientes. Geralmente, as fontes
de luz não servem para ser vistas, mas para iluminar os ou-
tros objetos. Procuramos ver sem ferir os olhos e sem sofrer
estresse; ver mais daquilo que cada tarefa nos pede, e menos
daquilo que nos desvia a atenção da tarefa. Também procu-
ramos ver o que é belo e, de modo mais genérico, somos
afetados pela expressividade do visível. A iluminação das
formas e vazios ao nosso redor tem significativo potencial
estético.
Este capítulo trata das características visuais do espa-
ço, sem porém deter-se em problemas de composição, que
surgem das relações geométricas apreendidas pela visão.
Interessa, principalmente, o condicionamento visual do am-
biente construído.
A visão nos dá acesso ao mundo à distância, à velocida-
de da luz. Pode abranger num único instante uma porção
considerável do espaço. Adentrando um ambiente qualquer,
os músculos do pescoço aquecidos e sem reprimir a curiosi-
dade, em pouco tempo teremos percorrido com os olhos todo
o invólucro; caminhando, ainda, ganhamos novos pontos de
vista e compreendemos as relações espaciais. Para onde quer
que olhemos durante o dia, quando os objetos refletem luz e
se fazem visíveis, capturamos as propriedades geométricas
essenciais. A cada fração de segundo, a visão de uma pessoa
reconhece milhões de diferentes pontos com características
de luz e cor. Lê naqueles pontos padrões; identifica materiais
e objetos.
A visão tem especial capacidade de antecipar outras sen-
sações. Olhando uma escultura de longe, sem tocá-la, pode-
mos pressentir sua textura. Isto requer somente que a peça
esteja iluminada com suficiente direcionalidade de modo a
produzir sombras, todavia mantendo parcela de luz difusa de
modo a não criar sombras demasiado profundas. Num restau-
rante, antecipamos sensações ao contemplar as fotografias no
cardápio: sabor, aroma e texturas, e a própria temperatura da
comida. Os surdos-mudos aprendem a ler os lábios das pes-
soas. A música é representada graficamente; um músico trei-
nado pode ler e, mentalmente, ouvir partituras para se distrair
numa sala de espera. Quase dois terços de todas as informa-
ções que chegam do entorno ao cérebro vêm através da vi-
são.326
Entretanto, o próprio estudo da fisiologia da visão de-
monstra que as aparências enganam, pois os olhos estão su-
jeitos a diversas formas de ilusão. Muitas vezes, a expressi-
vidade é justamente o produto de uma ilusão.

326
Hennig Stieve e Irene Wiecke, Wie unsere Augen sehen, in Alfred Maelicke, op.
cit.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 273

8.1 Mecanismos físicos e fisiológicos


Luz é o termo dado à radiação eletromagnética capaz de
sensibilizar os olhos humanos.
Toda superfície que estiver acima do zero absoluto de
temperatura (correspondente a -273,16°C, a temperatura mais
fria que se conhece) emite alguma radiação eletromagnética:
o sol, as paredes de um forno, nossa pele, mesmo um cubo de
gelo. A única exceção é dada pelas superfícies perfeitamente
reflexivas, que nada emitem. Todavia, sendo reflexivas, não
se podem dizer neutras à radiação eletromagnética; são capa-
zes de refleti-la, mudando sua direção.
A radiação eletromagnética é uma energia que se propa-
ga no vácuo: não requer um meio material. Difere do som,
que se define como a vibração da matéria; difere ainda do
calor conduzido por uma frigideira. O nome se origina do
fato de combinar forças elétricas e forças magnéticas. A força
elétrica é aquela que faz nossos cabelos se eriçarem quando
secos. A força magnética, a mesma do ímã, surge associada
com o movimento das cargas elétricas: enrolado num parafu-
so, um fio elétrico em corrente alternada se torna um eletroí-
mã. Os dois tipos de força estão presentes num motor elétri-
co, onde o movimento de cargas elétricas ao redor de um imã
faz girar o eixo. Na radiação eletromagnética existe a trans-
formação constante de uma força na outra; isto propulsiona
as ondas para viajarem pelo espaço. As ondas têm seu com-
primento medido, por exemplo, em metros. A freqüência tem
o mesmo significado que na acústica: indica quantas vezes se
forma, num determinado ponto, uma onda completa num
segundo. A velocidade da onda é dada pelo produto da fre-
qüência pelo comprimento.
Ao conjunto de freqüências possíveis denominamos es-
pectro. A faixa de seleção de um rádio com mostrador desli-
zante corresponde a um pedaço do espectro. Cada emissora
de rádio tem uma freqüência medida em kHz (quilohertz =
milhares de ciclos por segundo) ou MHz (megahertz = mi-
lhões de ciclos por segundo). A cada freqüência está associa-
do um comprimento de onda. As ondas de rádio costumam
ter comprimento de onda de várias dezenas de metros. As
microondas e os raios cósmicos têm comprimento de onda
ainda maior. Já as ondas térmicas têm comprimento menor
que as de rádio. Correspondem ao infravermelho, o mesmo
descrito no capítulo sobre calor.
Quando as ondas se tornam menores que um milésimo
de mm, precisamente 0,00076 mm, conseguem sensibilizar
nossos olhos: correspondem à cor vermelha. É uma radiação
somente emitida por corpos em alta temperatura – como um
pedaço de carvão em brasa, ou o ferro no estado líquido.
Ondas de comprimentos menores são emitidas por corpos a
temperaturas maiores. Vão correspondendo ao laranja, ao
amarelo, ao verde, ao azul e, enfim, ao violeta, cujo compri-
mento de onda é de 0,00038mm.
Ondas ainda menores já não são visíveis. Correspondem
ao ultravioleta; isto é, têm freqüência maior que a do violeta).
Além de aquecer, têm outros efeitos sobre os organismos
vivos, pela sua capacidade de penetrar uma ou várias cama-
das de células. Decorre daí sua aplicação anti-séptica utiliza-
da na desinfecção de água, assim como seus efeitos prejudi-
ciais à saúde, estando relacionada ao câncer de pele.
Da energia radiante que chega à Terra em cada segundo
proveniente do sol, quase metade se encontra sobre esta faixa
visível; do restante, a maior parte é infravermelho, e uma
pequena fração corresponde ao ultravioleta.
A luz existe no espectro entre o ultravioleta e o infra-
vermelho, intervalo dentro do qual os comprimentos de onda
são visíveis. Aqui cabem duas observações.
Primeiramente, a luz é, à semelhança do som, um fenô-
meno físico fisiologicamente qualificado. Não é por ser luz
que ela é visível, mas por ser visível é que ela é luz. E isto
vale para os olhos humanos. Animais caçadores chegam a
enxergar fora da faixa da luz visível, reconhecendo visual-
mente a radiação emitida por corpos em torno dos 35°C –
como no caso dos mamíferos. Os óculos e as câmaras infra-
vermelhos, que auxiliam em operações policiais e militares
noturnas, produzem efeito semelhante.
Depois, a faixa visível corresponde a aproximadamente
50% da radiação solar que chega à superfície da Terra. Ao
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 275

longo da evolução, desenvolvemos uma visão diurna, ade-


quada aos efeitos da radiação do sol que é despejada sobre a
biosfera, de maneira direta ou difusa, e múltiplas vezes refle-
tida.
Embora na antiguidade clássica já se soubesse que se
propaga em linhas retas, foi tortuoso o caminho que trouxe à
compreensão da luz nos dias de hoje. Euclides327 seguia a
doutrina de Platão328 : imaginou que a luz - quid - fosse uma
emanação proveniente do fogo interior dos seres vivos lança-
dos pelos olhos das pessoas aos objetos, tornando-os visíveis.
Hero329 de Alexandria, em sua obra Catoptrics, identificou a
reta como o menor caminho entre dois pontos. Se a este prin-
cípio juntarmos as leis da reflexão e da refração, teremos a
ótica geométrica, uma abordagem fenomenológica e não-
relativística da luz.
Descartes,330 para quem todas as coisas eram relaciona-
das à geometria, foi o primeiro a publicar a fórmula correta
da refração.
Fermat331 encontrou o índice da refração como hoje é
conhecido, aplicando o princípio do menor caminho de Hero
de Alexandria. Mas até que se entendesse que a luz não testa
os caminhos antes, para depois encontrar o mais curto, mas
que este fato é uma mera observação, muito tempo se passou.
Newton,332 em Opticks (1704), descreveu a luz como
constituída por corpúsculos que se deslocavam em linha reta

327
Euclides (cerca de 300 A.C.), matemático grego.
328
Platão (427 a 347 A.C.), filósofo grego, aluno de Sócrates e professor de Aristó-
teles, fundador do idealismo. Autor dos Diálogos.
329
Hero de Alexandria (cerca de 120 A.C.), matemático e físico grego.
330
René Descartes (1596-1650), filósofo e matemático francês. Fundador da geome-
tria analítica.
331
Pierre de Fermat (1601-1665), matemático francês, pioneiro do cálculo infinite-
simal e probabilístico.
332
Isaac Newton (1643-1727), cientista inglês, cuja atuação abriu caminhos na
matemática, física e astronomia, através da descoberta do cálculo diferencial e
integral, leis da gravitação e do especto, marés e movimentos planetários, e ação e
reação.
e em velocidade constante nos meios homogêneos. Com isto,
explicava a reflexão, a refração, a dispersão e a difusão a luz.
Huygens,333 seu contemporâneo, propôs que a luz se
propaga por meio de ondas. Isto acrescentou à explicação as
interferências luminosas e a difração. Young334 propôs as
ondas de luz como transversais à direção de propagação. Em
1865, Maxwell335 desenvolveu sua teoria da eletricidade e do
magnetismo. Verificou que as ondas eletromagnéticas se
propagavam com a velocidade da luz e introduziu a teoria
eletromagnética da luz. Hertz,336 em 1888, mostrou que as
ondas eletromagnéticas possuíam propriedades semelhantes
às da luz. Faltava explicar a diferença do índice de refração
das diferentes cores. Depois das contribuições de diversos
outros pesquisadores chegamos até Einstein.337 Ele chamou
de fóton ao quantum da energia luminosa.
Ironicamente, hoje se reconhece que a propagação retilí-
nea não é absolutamente correta, pois a luz pode dobrar a
esquina através da difração, como explica a teoria da relativi-
dade geral.
Tanto a luz como o som são ondas. Ambos se propagam,
para efeitos práticos, de forma retilínea e de acordo com a lei
dos quadrados: a potência por área transversal cai a um quar-
to ao se duplicar a distância. Ambos têm sua reflexão de
acordo com as mesmas regras. Ambos têm uma definição que
combina condições físicas e fisiológicas. Todavia, a luz se
propaga no vácuo, enquanto o som somente se propaga num
meio material.
É possível emitir um raio de luz, enquanto é difícil tratar
direcionalmente o som – especialmente as baixas freqüên-

333
Christiaan Huygens (1629-1695), físico holandês, encontrou leis do choque, do
movimento pendular e força centrífuga, e a teoria ondulatória da luz.
334
Thomas Young (1773-1829), médico e matemático inglês.
335
James Clerk Maxwell (1831-1879), físico inglês. Fundador da teoria cinética dos
gases. Previu a supercondução.
336
Heinrich Hertz (1857-1894), físico alemão.
337
Albert Einstein (1879-1955), físico alemão naturalizado americano, descobridor
da teoria da relatividade específica e geral.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 277

cias, que tendem a se espalhar. É difícil detectarmos a locali-


zação precisa de uma fonte de som, que acaba não servindo
para dar uma localização geométrica precisa. No caso da luz,
podemos nos colocar no ponto final de um raio de luz e en-
xergar com clareza sua fonte. Numa operação de salvamento
à noite, na floresta, se a vítima emitir um som, dá às equipes
de resgate uma idéia aproximada de onde se encontra, a des-
peito de haver obstáculos no caminho como árvores ou mor-
ros. Se possuir lanternas e fogos de artifício, criará uma refe-
rência visual muito mais precisa. E se o ar contiver suspensas
partículas de umidade, fumaça ou poeira, o facho da lanterna
será visto por detrás de obstáculos.
Da mistura de uns poucos sons de diferentes freqüências
resulta um resultado harmônico ou não (consonante ou disso-
nante), do qual podemos distinguir as diferentes freqüências
componentes. Já na mistura de luzes isto não ocorre; surge a
luz de uma outra cor – ao menos, é como nossos olhos a per-
cebem. Ao projetar sobre uma parede branca um facho emiti-
do por uma lâmpada vermelha e outro emitido por uma lâm-
pada azul, o resultado é a cor magenta.
Fisiologicamente, a visão se mostra um sentido especi-
almente sofisticado. O olho é um órgão que, à medida que se
ascende na escala zoológica, vai se tornando mais complexo,
tanto do ponto de vista estrutural como funcional. Nos seres
mais primitivos, existem apenas formações sensíveis à luz,
enquanto que nos seres humanos o olho é o mais completo
meio de aquisição de conhecimentos e o principal gerador de
estímulos e de exteriorizações de natureza estética.
Seja um objeto esférico, visto de longe, tão longe que
pareça um ponto, mas ainda bem visível: uma lâmpada (fonte
primária) que emite um raio de luz, ou uma laranja madura
no pé (fonte secundária) que reflete um raio de sol. Chegando
ao olho, se o raio de luz for admitido pelo sistema externo
que protege cada olho - sobrancelhas, cílios e pálpebras -
atravessa a membrana transparente da córnea e a camada de
cerca de 4 mm de humor aquoso existente no seu interior.
Segue através da pupila, abertura da íris (porção colorida do
olho) que, com seu diâmetro de 2 a 9 mm, regula a quantida-
de de luz que passa para dentro do globo ocular. Em seguida,
atravessa o cristalino, uma lente orgânica de 4 mm de espes-
sura, de convexidade controlada por músculos e responsável
pela focalização do olho para curtas distâncias. Outros dois
pares de músculos existentes no olho são responsáveis pelo
seu movimento para cima e para baixo, para a direita e para a
esquerda. Do cristalino, a luz atravessa uma camada de cerca
de 16 mm de humor vítreo. O momento fisiológico da visão
se dá na retina, membrana nervosa de forma côncava.
A descrição até aqui corresponde à de uma câmara fil-
madora: possui uma abertura de diafragma (pupila), a lente,
uma distância focal e o ajuste de lente no modo macro (varia-
ção do cristalino), e um filme (retina).
A laranja no pé, iluminada pelo sol, projeta mais de um
raio de luz que nos atravessa o olho, pois a pupila não é um
ponto, mas um disco, tanto mais aberto quanto menos luz
houver na cena. Importante é que todos estes raios, chegando
à retina, concordem sobre uma única projeção, que será lida e
enviada ao cérebro. Caso contrário, a imagem será borrada.
Na visão perfeita, a imagem se forma nítida sobre a reti-
na; na visão míope, o globo ocular é excessivamente grande e
o foco se forma à frente da retina. Já no caso da hipermetro-
pia, o foco se dá atrás da retina. Em ambos os casos é neces-
sária uma correção com uma lente complementar, divergente
(no caso da miopia) ou convergente (hipermetropia).
A retina contém dezenas de milhões de células recepto-
ras da luz, que se dividem entre cones e bastonetes. Os cones
estão em menor número, cerca de 6 milhões, concentrados na
região central da retina e que corresponde ao centro da ima-
gem. Mais dispersos estão os cerca de 120 milhões de basto-
netes, mais afastados do centro da imagem; permitem a visão
periférica e no escuro, sendo capazes de perceber mais o
movimento do que a imagem em detalhe.
Se tomarmos cada olho de uma vez, em cada momen-
to, o espaço é apreendido como que rebatido sobre uma su-
perfície, como se fosse a superfície de um hemisfério vista de
dentro para fora (na verdade, um pouco menor que um he-
misfério). No centro deste campo de visão, a imagem perce-
bida tem resolução extremamente fina se comparada com os
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 279

dispositivos óticos que se conhece, como câmaras de fotogra-


fia e vídeo e monitores. Então, à diferença de um monitor de
computador, nossa visão não possui seus pontos sensíveis
(pixels) em arranjo matricial retangular e uniforme. Confor-
me a explicação acima, há um arranjo esférico, e aumenta a
concentração dos cones à medida que se aproximam de um
eixo de visão.
A retina humana possui, na sua região central, um núme-
ro limitado de células, comparável ao de uma câmara foto-
gráfica digital de 2 MP (dois milhões de pontos). Entretanto,
sua precisão na mesma área equivale à de uma câmara de 20
MP. Ocorre que vemos somente “em movimento”, pois as
células da retina oscilam à freqüência de 50 Hz ao redor de si
mesmas, com amplitude correspondente a 5 a 10 vezes seu
tamanho; assim, conseguem uma nitidez capaz de identificar
detalhes projetados com tamanho de 1/10 do diâmetro de
uma célula: é o “micro-nistagmus”, empregado com sucesso
nas câmaras de vídeo CCD.
As células da retina, num complexo processo, trans-
formam a sensação luminosa numa corrente elétrica transmi-
tida pelo nervo ótico ao cérebro. Cada ponto corresponde à
porção do hemisfério visual que tem sua imagem focalizada
sobre uma única célula, por enviar-lhe luz própria (como uma
vela e qualquer outra fonte primária) ou porque reflete a luz
(como uma mesa, uma parede ou outra fonte secundária). É
curioso observar que o nervo ótico de cada um dos olhos se
bifurca e o cérebro divide ao meio a informação recebida;
manda para o lado esquerdo os sinais relativos à metade di-
reita da imagem, tanto recebidos pelo olho direito como pelo
esquerdo, e vice-versa; as duas metades do cérebro trabalham
bastante independentes no processamento de sua parte da
imagem.
O par de olhos que possuímos permite a formação de
imagem tridimensional; o cérebro compõe a imagem vista
por um olho com aquela vista pelo outro e o resultado é uma
imagem em que é preservada a sensação de profundidade.
Existem três tipos de cones: um especializado no azul,
outro no vermelho e violeta, e outro no verde. Daí ser possí-
vel desagregar nestes três componentes qualquer cor que se
queira expressar por meio de luzes, no monitor de TV ou
computador. Trata-se do sistema RGB (red, green, blue).
Vermelho, verde e azul são definidas como cores primárias
enquanto fontes de luz.
Ao projetarmos superpostas luzes vermelha e azul sobre
uma parede branca, o resultado é o magenta; de azul e verde
surge o ciano e de vermelho e verde, o amarelo. E todos jun-
tos produzem a luz branca. Tal constatação destoa daquela
obtida ao pintarmos uma folha branca de papel com giz de
cera. Na escola, aprendemos que as cores primárias seriam
justamente aquelas que obtivemos ao combinar luzes verme-
lha, verde e azul. Trata-se das cores primárias enquanto pig-
mentos: quanto mais forem, maior quantidade de luz será
absorvida e mais escura será a pintura.
Como se estabelece uma relação cíclica, uma estrela de
cores, entre freqüências linearmente distribuídas, como numa
régua, entre o vermelho e o violeta? Ocorre que os cones
especializados em verde e azul respondem a cores bem defi-
nidas, de modo tão mais intenso quanto mais próximas à
freqüência central, definidora de cor primária. Já o cone ver-
melho responde tanto a esta cor quanto ao violeta. Isto expli-
ca a semelhança com que percebemos ambas as cores, apesar
de se situarem cada uma num extremo da faixa visível do
espectro.
Na zoologia, a percepção de cores se mostra em diversos
estágios de desenvolvimento. Dos invertebrados, somente os
insetos possuem desenvolvido o senso cromático e, entre os
vertebrados, acredita-se que os pássaros tenham bem elabo-
rada a capacidade de ver cores, mais que a do olho humano, o
que lhes permite divisar à distância insetos mimetizantes, que
aos nossos olhos ficariam invisíveis. Entre os mamíferos, é
nos macacos capuchinhos que primeiro aparece o senso cro-
mático.
Peculiaridades da visão demonstram que os olhos huma-
nos não se comportam como instrumentos precisos: a infor-
mação que passam ao cérebro é o resultado de diversos fato-
res. A percepção é bastante distorcida pela percepção de gru-
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 281

pos, explicada pela teoria de Gestalt. Os olhos induzem a


uma estimativa incorreta das dimensões dos objetos: uma
dimensão aparece tanto maior quanto melhor se distinguem
suas partes, e quanto mais está dividida. São diversos os ca-
sos clássicos de ilusão de ótica.
Se, numa folha de papel, alinharmos vários segmentos
de reta horizontais, de mesmo comprimento, separados um
do outro de modo que a soma das distâncias verticais seja
equivalente a seu comprimento, surgirá um quadrado. Entre-
tanto, mais parecerá um retângulo se o colocarmos lado a
lado a uma cópia sua que giramos em 90°. A direção trans-
versal à das linhas parecerá sempre maior, por ser mais sub-
dividida.
Outra distorção é causada pelo fenômeno de persis-
tência: a retina, iluminada com um fluxo luminoso oscilando
periodicamente, tem a sensação de um fluxo constante, dado
pelo valor médio. Isto permite que, no cinema, na televisão e
nos monitores de computador, imagens (frames) sejam refei-
tas 50 ou 60 vezes em cada segundo, sem que percebamos
descontinuidade. As moscas enxergam com muito maior
velocidade, daí a dificuldade que temos em capturá-las com
as mãos. É provável que percebam a TV como se fosse uma
apresentação de slides.338 Mas os olhos humanos, embora
percebam as oscilações constantes com 30 Hz, são capazes
de identificar um único lampejo que dure 1/2000 de segundo.
E outra distorção, ainda, é causada pelo fenômeno da
fadiga: consiste na redução da sensibilidade do olho para
uma determinada cor, caso esteja sendo vista estaticamente,
com considerável intensidade. A cor resultante ao olhar-se,
de súbito, uma folha branca, é a sua cor complementar. Por
exemplo, depois de olhar para um retângulo alaranjado por
muito tempo, uma superfície branca aparece com um retân-
gulo azul de mesmo tamanho. Despertar num quarto de jane-
la para o nascente com cortinas alaranjadas faz as paredes
brancas do restante da casa parecerem azuladas.

338
Reiner Wolf e Dorothea Wolf, Vom Sehen zum Wahrnehmen: Aus Illusionen
entsteht ein Bild der Wirklichkeit, in Alfred Maelicke, op. cit.
Apesar de o campo visual abranger quase um hemisfé-
rio, a visão é somente nítida ao redor do eixo visual. Ela se
dá a despeito do ponto cego da retina (entrada do nervo no
globo ocular) e a percepção de cores somente ocorre próxima
ao eixo visual. Não se pode fazer uma interpolação na curva
de sensibilidade espectral. É possível, ainda, enganar os
olhos com relação à cor.
Tais fatos sugerem que o olho humano não se com-
porta com a regularidade e previsibilidade de um instrumen-
to, mas manda para a consciência uma imagem melhorada
daquela que ele vê.
Daí a afirmação que percepções são hipóteses de nosso
cérebro, e ilusões de ótica são hipóteses falsas. Isto é um
motivo para não se procurar, para a visão, parâmetros absolu-
tos de comodidade.
Outro motivo é dado pelo fato de que a luz do dia se
altera constantemente. Rasmussen observa, a respeito, que os
outros elementos de arquitetura que consideramos podem ser
exatamente determinados. O arquiteto pode fixar dimensões
de sólidos e cavidades, pode estabelecer a orientação de seu
edifício, especificar os materiais e o modo como estes serão
tratados; pode descrever precisamente as quantidades e qua-
lidades que deseja em seu edifício, antes de ser colocada a
primeira pedra. Ele só não pode controlar a luz do dia. Ela
altera-se da manhã para a tarde, de dia para dia, em inten-
sidade e cor. Como é possível trabalhar com um fator tão
caprichoso?339
E por que, pois, trabalhar com uma iluminação arti-
ficial constante? Pois o mesmo autor lembra que os olhos
registram muito mais o contraste que os valores absolutos de
brilho. A quantidade de luz refletida por uma superfície
branca no inverno é inferior à refletida por uma superfície
preta de mesmo tamanho no verão, mas, ainda assim, vemos
o branco como branco e o preto como preto. E podemos
distinguir claramente uma letra preta sobre um fundo bran-

339
Steen Eiler Rasmussen, op. cit.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 283

co.340 Logo, não há motivos para que as fontes de luz artifici-


al que utilizamos sejam rigorosamente invariáveis.

8.2 Comodidade e adequação


A situação em que mais se valoriza a comodidade em re-
lação à luz é provavelmente quando se está sentado num
auditório, o palco ainda semi-iluminado, aguardando o início
de uma peça de teatro, e um cinegrafista resolve filmar o
público, voltando-lhe duas fortes lâmpadas halógenas dire-
tamente sobre os rostos. É uma situação de ofuscamento,
processo que ocorre se, no campo de visão, encontrar-se um
objeto excessivamente brilhante, ou mais brilhante que outro
que pretendemos ver. Trata-se da principal manifestação de
desconforto visual. O ofuscamento capaz de afetar a comodi-
dade é classificado como doloroso.
Mas comodidade não é garantida apenas com a elimina-
ção das causas mais críticas de desconforto - como é o ofus-
camento. Merleau-Ponty,341 procurando exemplificar sua
fenomenologia da percepção, esclarece aspectos da consciên-
cia do ato de ver: não é fácil descrever a região que rodeia o
campo visual, mas é certo que ela não é nem negra nem cin-
za. Há ali uma visão indeterminada, uma visão de não sei o
que, e se passamos ao limite, aquilo que está atrás de nós
não deixa de ter presença visual. Não somos neutros ao que
se passa ao redor do campo visual.
A comodidade requer que esteja ausente o ofuscamento
e moderada a tensão. Se esta é um recurso da composição nas
artes visuais, o conforto pede uma expressividade atenuada.
O repouso em casa não comporta alguma experiência visual
comparável à de assistir, da praia, os fogos de artifício de ano
novo sobre o mar. A expressividade, no conforto, é algo dis-
toante de comodidade. Isto não difere da formulação apresen-
tada para os outros sentidos, e lembra uma afirmação de
Adolf Loos, dizendo que a arte vem tirar as pessoas do seu
conforto.

340
Ibid.
341
Maurice Merleau-Ponty, op.cit.
Por sua vez, a adequação está relacionada aos objeti-
vos distintos do repouso. Reúne critérios qualitativos e quan-
titativos.
Uma lanchonete, local onde as pessoas normalmente
permanecem bem despertas, pode ser imersa em tensão visu-
al, dada por desproporções (formas agressivas: pontas), in-
tensidade, descontinuidades e contraste. Este, com os efeitos
objetivos e subjetivos que vêm associados, poderia ser explo-
rado na iluminação de um bar de uso noturno. E numa dance-
teria a iluminação se desenvolve na dimensão temporal, se-
guindo o ritmo da música. Já um ambiente destinado ao sono
deve ser quase estático, de maneira tal a não provocar estímu-
los – comumente se quer admitir a luz do dia, motivo natural
para despertar. O conforto visual advém daquilo que a pessoa
busca no ambiente.
Pouco ajuda a luz de um lampião decorativo e acon-
chegante se alguém, aguardando no ponto de ônibus, tenta ler
um livro de bolso. E pouco vale a perfeita iluminação de uma
sala de estar se o que eu mais quero é cochilar no sofá. Nesta
condição, conforto visual para mim consiste no escuro. Mas
não se trata da escuridão completa. Da cama, pode ser útil
enxergar a janela, o interruptor, o relógio, o batente e a ma-
çaneta da porta. Existe, portanto, a conveniência de ver certas
coisas, e outras não.
Um primeiro critério quantitativo para que a visão se
processe com o nível de detalhe pretendido é o contraste. É a
diferença relativa entre os valores do maior brilho e do menor
brilho no campo visual.342 Para cada patamar de brilho má-
ximo no campo visual, o contraste determina qual o mínimo
detalhe que pode ser percebido e, por conseguinte, qual a
acuidade visual: uma alta acuidade significa que se enxerga
um pequeno detalhe. Saindo de uma situação de penumbra
para outra de um campo visual bastante iluminado, cada au-

342
Embora não seja fundamental à compreensão das condições de conforto visual, a
definição de brilho corresponde à de luminância, medida em blondel (símbolo bl),
que é a intensidade dividida pela área da fonte de luz (primária ou secundária). A
intensidade é a potência radiante visível (medida em lumens, símbolo lm) emitida
por uma fonte por unidade de ângulo sólido (um estéreo-radiano, símbolo ster) e
medida em lm/ster ou ainda candela (cd).
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 285

mento de patamar de brilho permite um aumento na acuidade


visual, inicialmente em proporção constante, e depois cada
vez menor.
As condições visuais existentes na Terra se situam entre
a clareza do dia e a escuridão da noite. Referência máxima é
o brilho das superfícies claras da Terra sob o sol a pino. É
certo que olhando para o sol diretamente estaríamos diante de
uma superfície ainda cerca de cem vezes mais brilhante, mas
descartamos esta situação, que nossos olhos normalmente
evitam.
O brilho depende da refletividade da superfície e do
nível de iluminação sobre ela. Se a superfície for negra, o
brilho será nulo, mesmo sob alto nível de iluminação. Se a
superfície for branca, o brilho será máximo. Todo o contraste
possível num ambiente pode ser obtido somente pelas dife-
rença de cores.
A acuidade visual é medida pelo diagrama de Snellen,
um recurso utilizado pelos oftalmologistas. Possui letras pre-
tas sobre fundo branco, em tamanhos diversos, a que se asso-
cia diferentes níveis de acuidade. Devemos utilizá-lo nas suas
dimensões padronizadas, e de uma distância também padro-
nizada. Se da escuridão total saltarmos para um pequeno
valor de iluminação sobre o diagrama, passaremos a poder ler
alguma coisa (no nível de acuidade chamado 6/12). Com
mais um pouco de iluminação, estaremos lendo o nível ime-
diatamente superior, chamado 6/9. Contudo, mesmo com
mais e mais, dificilmente passaremos do nível imediatamente
superior, chamado 6/6. A acuidade Snellen aumenta rapida-
mente a partir de um baixo nível de iluminação. À medida
que vai subindo o patamar de brilho máximo, já deixa de ser
proporcional àquele aumento. Assim, não se pode melhorar
infinitamente a acuidade visual apenas aumentando o brilho
da cena.
Quando a visão não está associada a nenhuma tarefa
exigindo concentração ou reconhecimento de objetos em
ângulos ínfimos, não há explicação funcional para a manu-
tenção de um alto nível de iluminação: não existe, pois, ne-
cessidade de um grande contraste. Predomina um critério de
comodidade em relação à adequação.
Assim, a preferência por baixos níveis de iluminação à
noite em restaurantes e bares está associada à maior imitação
do ambiente natural de escuridão, respeitando o relógio bio-
lógico de cada um e toda a conjuntura da noite. O mundo
escurecido se encolhe, pois somente o entorno imediato passa
a ser visível. Sendo o entorno do lar ou de algum ambiente
seguro, tornar-se-á ambiente agradável e aconchegante. O
brilho do entorno deve ser tal que permita a necessária per-
cepção de mudanças possíveis. Já durante o dia, um baixo
nível de iluminação tem antes o efeito de desorientar.
E uma luz de composição diferente daquela da luz solar
também causa estranheza. A importância da luz natural para
o ser humano é indiscutível. No final dos anos 60, nos EUA,
desenvolveu-se a tecnologia true lite das lâmpadas capazes
de imitar o espectro da luz natural – full spectrum. Levou-se
em conta que o organismo humano já está adaptado a uma
radiação com estas características.343 Existe entre a visão
humana e a radiação solar uma coincidência notável. O má-
ximo de sensibilidade da visão humana se dá nos compri-
mentos de onda em que é máxima a intensidade da radiação
solar, correspondendo à cor amarela. Por isto, é considerada a
cor mais expansiva aos olhos do observador, aquela que pa-
rece sair do contorno dos objetos. Este fato pode ser melhor
interpretado como um forte indício da evolução da espécie:
sobreviveram os seres melhor capacitados a ver, função es-
sencial para a sobrevivência. Tanto quanto o homem primiti-
vo, que caçava e se protegia para não ser devorado, o homem
contemporâneo tem sua sobrevivência repetidamente posta à
prova, ao assinar papéis, receber pagamentos e atravessar a
rua. E isto não se verifica somente no curto prazo. A capaci-
dade de ver e perceber detalhes – inclusive aqueles escritos
em letras miúdas de livros, jornais, instruções – pode definir
o destino de uma pessoa.

343
M. Schäfer, Licht in unserer Umwelt, comentários em OTTI Technologie-Kolleg,
Innovative Lichttechnik in der Architektur, Seminário, pág. 163, Karlsruhe,
Alemanha (1994).
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 287

As duas principais fontes de luz na natureza, o sol e o


céu, têm características geométricas e escalares que estão
constantemente variando. O sol se move ao longo do dia e ao
longo do ano (com ele varia a intensidade e cor da radiação
que atinge a terra). As nuvens variam em sua posição, tama-
nho e densidade com importante componente aleatório. A
noite é naturalmente escura, mas não completamente, con-
tando ainda com fontes de luz como a lua e as estrelas, e a
névoa. Já o ambiente cultural é caracterizado pela iluminação
elétrica, que modifica as condições naturais, principalmente
da escuridão. Desta diferença fundamental decorrem dois
critérios para o estabelecimento de padrões de iluminação
para determinado plano de trabalho: o fator de luz do dia, que
representa uma fração da luz que, ao ar livre, chegaria ao
mesmo plano – portanto, medido em termos relativos; e o
estabelecimento de níveis de iluminação mínimos para a luz
elétrica, em termos absolutos. O fator de luz do dia depende
da geometria dos cômodos, da distância à janela, de sua for-
ma e tamanho, e da refletividade das superfícies ao redor.
Outro critério quantitativo para a visão, com adequada
percepção de detalhe, é a ausência de ofuscamento. Além de
perturbar a comodidade, o ofuscamento pode comprometer a
adequação. Objetos brilhantes que não interessa ver diminu-
em o grau de contraste disponível para enxergar corretamen-
te. O ofuscamento desabilitador é aquele que prejudica a
iluminação em sua adequação: por exemplo, ao ler um livro
sentado numa cadeira sobre a areia do mar, mesmo debaixo
do cone de sombra de um guarda-sol, enxergo o preto e o
branco das letras, mas ao redor do livro que sustento diante
dos olhos extravasa o fundo da cena, em areia alvíssima. É
desconfortável a leitura nestas condições, sem que eu apro-
xime muito o livro dos olhos para obstruir o entorno demasi-
ado brilhante. Outro exemplo típico ocorre com o motorista à
noite numa pista de mão dupla, quando vem no sentido con-
trário um veículo com luz alta. A luz do veículo, por segun-
dos, impede-nos de enxergar as marcações da estrada à fren-
te. E outro exemplo, ainda, é dado pela luz natural refletida
sobre um monitor de computador: embora o monitor continue
funcionando de acordo com suas especificações de brilho e
contraste, sobre ele se formam imagens refletidas de maior
brilho, distorcendo o contraste original e prejudicando, senão
desabilitando completamente a visão.
Ao percebermos contrastes e, mais que isto, identificar-
mos formas ou grupos (chamados Gestalt) conhecidos rece-
bemos mensagens, que por vezes têm importância vital. O
estado de alerta, de alarme é despertado pelas cores verme-
lho, amarelo, laranja, pela fumaça, por um corpo movimen-
tando-se em queda livre, ou aproximando-se para uma coli-
são iminente. Ainda, por um triângulo, uma exclamação, uma
caveira.
A abertura nas paredes externas sem função estrutu-
ral é a forma mais comum de uso da luz natural. Dos arcos
romanos e ogivas góticas, dispositivos que permitiam abri-
rem-se logo abaixo as janelas, até as estrutura modernas, de
aço e de concreto, que dispensam faixas inteiras de parede
externa da responsabilidade estrutural, houve longa trajetória
de avanço da técnica. Entretanto, continua uma tarefa difícil
iluminar pela lateral. Se na busca de conforto térmico somos
levados a cobrir o céu, automaticamente bloqueamos o aces-
so da luz celeste aos objetos debaixo do telhado. Todavia,
através de janelas, observamos a paisagem iluminada pelo sol
com porções de céu. É, portanto, uma visão brilhante. Esta
situação predispõe ao ofuscamento.
No seu notável tratado sobre iluminação natural,
Hopkinson e seus co-autores344 reconhecem que a principal
função de uma janela é a de proporcionar uma vista e a de
permitir à luz que penetre no interior de um edifício em tal
quantidade e com uma tal distribuição, de modo a que resul-
te uma iluminação interior satisfatória. A necessidade psico-
lógica de observar o mundo externo é comumente confundida
com uma necessidade de iluminação natural através de jane-
las laterais. Bollnow,345 ao analisá-las, foi ainda mais claro:
pertence às tarefas mais simples da janela a possibilidade de
se observar o mundo externo a partir dos interiores.

344
Hopkinson, Longmore, Peterbridge, Iluminação Natural, Fund. Calouste Gulben-
kian, Lisboa (1969).
345
Op. cit..
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 289

A adequação é explorada ao máximo quando a visão


serve de canal à informação codificada. Para transmitir uma
informação de natureza objetiva, a visão proporciona diver-
sas formas de linguagem, desde os sinais unidimensionais
como o código Morse até a escrita (caracteres romanos, cirí-
licos, kanji usados na China e no Japão), bidimensional, e a
fala dos surdos-mudos (baseada em gestos e expressões tri-
dimensionais). A visão pode, ainda, servir como canal para a
comunicação de outra natureza: por exemplo, ao ler o jornal,
a visão remete diretamente à fala; ao executar uma partitura,
um regente transmuta o visual em musical.

8.3 Expressividade
Para além do sentir-se bem e enxergar, é essencialmente
pela visão que se comunica a poesia implícita na disposição
dos elementos no espaço: forma, cores, brilho, sombras e seu
movimento. Assim, através da luz é que adquirem sentido a
fotografia; o cinema e o teatro; a pintura e a escultura, e em
parcela apreciável a arquitetura. As artes plásticas são apreci-
adas em geral com os olhos – é o que estabelecem os regula-
mentos das galerias de arte com seus avisos de proibido to-
car.
Dentro deste estudo da visão, expressividade não se re-
fere às formas, pois a este respeito já foram escritas dezenas
de milhares de páginas sobre pintura, arquitetura e escultura.
Antes, são tratados os condicionantes ambientais percebidos
através da visão: o claro e o escuro, bem como o uso das
cores. Quanto aos materiais de revestimento, também inte-
grantes da expressividade visual, são complementados no
capítulo sobre tato.
Lê-se um livro, preto no branco, sob uma iluminação de
qualquer cor; já uma pintura requer iluminação cromatica-
mente fiel à luz natural – embora Goya346 pintasse à noite,
pois preferia suas cores mais dramáticas; provavelmente,
com iluminação a tochas, enxergava tons quentes em todas as
tintas.

346
Francisco Goya (1746 – 1828), pintor espanhol.
Inicialmente, considere-se que a luz, em si, tem expres-
sividade. Luz dirigida e sombras projetadas modificam a
percepção dos objetos. Contribuem para a forma plástica. À
luz do sol, as formas são arredondadas e tridimensionais, mas
se tornam mais planas sob luz tênue ou influenciada pela
atmosfera. Detalhe, textura, redondeza, a sensação de estrutu-
ra e solidez permitem a distinção dos objetos próximos, en-
quanto que uma relativa constância e planeza caracterizam os
objetos distantes.

Luz concentrada: fontes primárias

A iluminação muda significativamente a sensação de es-


paço. Uma luz mais ou menos concentrada enfatiza o caráter
fechado de uma sala. A luz pode, por si só, criar o efeito de
espaço fechado. Uma fogueira de acampamento numa noite
escura forma uma caverna de luz circunscrita por uma mu-
ralha de escuridão.347 Da mesma forma, os abajures criam
estas pequenas cavernas dentro das casas, cavernas de socia-
bilidade e intimidade. Já a iluminação no centro dos ambien-
tes e projetada por igual sobre todas as paredes não permite
este efeito, deixando tudo igualmente iluminado e enfatizan-
do as reais dimensões. À noite e sobretudo quando o forro e
as paredes têm a cor branca do gesso ou do cal, resulta no
ambiente uma certa frieza. Nesse sentido, um caso extremo é
um salão de churrascaria vazio, todo branco e somente equi-
pado com os móveis minimamente necessários, sob ilumina-
ção fluorescente geometricamente distribuída. Em outra situ-
ação, do lado de fora, no escuro, as luzes iludem com sensa-
ção de proximidade. Um caminhante portando um lampião
pode estar a cem metros como a alguns quilômetros, e a im-
pressão de distância será aproximadamente a mesma.
O tamanho aparente de objetos reconhecíveis estabelece,
efetivamente, posições no espaço. Iluminados uns poucos
objetos à noite, eles recriam as relações espaciais que conhe-
cemos de dia.

347
Steen Eiler Rasmussen, op. cit.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 291

A iluminação concentrada possui um caráter peculiar.


Considere-se a iluminação de uma estátua. Requer destaque à
forma em geral e também à sua textura. A iluminação da qual
se explora mais a regularidade direcional da luz ganha em
dramaticidade. E a fonte de luz primária e concentrada mais
importante a considerar é a luz direta do sol.
Evaldo Coutinho escreve sobre a luz do dia no edifí-
cio: as paredes, o piso, todos os valores esculturais, além de
conterem o vão, deferindo-se-lhe uma forma segundo a ca-
pacidade do continente, vedam expansões da luz, então per-
mitindo que a temporalidade presa em caixilho se ofereça
igualmente como um dado arquitetônico (...) Um trecho do
piso tanto recolhe os passos como apresenta o conspecto de
horas, de meses, de fases do ano, sendo o espaço da arquite-
tura, como o seio franqueado à penetração do sol, a entidade
que abriga, na conformidade de sua natureza, os visitantes
menos ou mais assíduos, entre eles o tempo através do inter-
posto meio: a luz.
A luz natural guarda algumas peculiaridades: não é uni-
forme, mas varia constantemente em cor, intensidade, direci-
onalidade e distribuição no espaço. A luz elétrica, por outro
lado, é uniforme e monótona: a iluminação arquitetônica
convencional à sua ideologia de liga-desliga, ainda se pren-
de aos valores tradicionais de estaticismo e continuida-
de...isto faz lembrar que a luz, em todas as suas formas não-
elétricas, nunca foi estática (...) Há 2000 anos, Vitrúvio
apontou aos seus leitores que a luz do sol e a velocidade com
que se muda move linhas e expande e encolhe o espaço (...)
Comparada à luz natural, a luz artificial parece ter sido libe-
rada da influência do tempo.348
Para Christopher Alexander, a iluminação natural
não é alternativa, mas um imperativo:349 os edifícios moder-
nos são muitas vezes conformados sem tal preocupação e
dependem quase inteiramente da luz artificial. Mas os edifí-
cios que deslocam a luz natural como a principal fonte de

348
U. Belzner & C. Hoesch, Sulla Luce, Ensaio, Domus Dossier, 4, pág. 65 (1997).
349
Christopher Alexander, op. cit.; padrão 107.
iluminação não são espaços saudáveis para se passar o
dia.350
A luz natural é referência. Durante uma sessão de cine-
ma ou teatro cortam-se os vínculos com o ambiente lumínico
externo. Se antes da sessão era dia, claro e quente, depois
dela tudo pode ser noite, chuva ou frio. Desconcertante é este
efeito num planetário, em que condições externas são simu-
ladas, conduzindo os espectadores à sensação de envolvimen-
to físico. O desligamento da realidade, nestes casos, é propo-
sital. Mas o que dizer dos ambientes de processamento ban-
cário, quase que na sua maioria privados da luz natural? E
das salas de concertos, em que se convencionou a recriação
do ambiente lumínico como atribuição indiscutível do espaço
arquitetônico? Não teria a música um caráter diferente, uma
outra cor, se fosse ouvida à luz natural?
O escuro da noite não deveria ser dispensado do projeto
dos interiores. O que dizer de uma mesa de jantar iluminada
com holofotes, como num teatro? Se a habitação procura
algum caráter de esconderijo, ela o será tão mais segura se de
dentro houver visibilidade para o meio externo. Com abun-
dante iluminação dentro de casa, haverá vulnerabilidade a
observadores externos, a não ser que usemos cortinas opacas.
Mas se dentro de casa for mantido baixo o valor de brilho
máximo, será possível enxergar melhor o que se passa do
lado de fora através da janela. Isto traz segurança.
Estou sentado à minha sala, às sete da manhã, no mo-
mento em que o sol se eleva acima do edifício à frente e entra
pela porta da varanda. A luz, neste exato momento, deixa de
ser somente difusa, para ser também direta. É como se um
visitante tivesse chegado. A sensação de calor, mesmo que
ainda insuficiente para meu conforto, é imediata. Surgem de
súbito tons quentes. Os contornos ganham consistência. Al-
guns deles parecem querer ser transbordados pelas cores que
delimitam, como o amarelo da mesa em pinho. Ressurge a
consciência de estar entre objetos com formas e texturas. Um
componente dinâmico, que posso quase tocar (a projeção do
sol sobre o chão) entrou e é como se eu tivesse companhia.

350
Evaldo Coutinho, op. cit.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 293

Sinto compaixão dos ambientes onde o sol só entrará, e


quando muito, ao final do dia.
As igrejas românicas e góticas, em geral, foram orienta-
das com o altar a leste e a porta de entrada a oeste. Especula-
se ser assim porque as pessoas, ao rezarem, se colocam de-
fronte à Terra Santa. Mais provável parece a explicação de
que no leste o sol nasce, simbolizando a ressurreição de Cris-
to. No início do Cristianismo, cruzes eram colocadas nas
paredes de face leste das casas de encontro, que seriam ori-
gem do altar a leste. Outras explicações, ainda, adotam a
forma em cruz da estrutura da maioria das basílicas, com sua
cabeça apontando para Jerusalém. Seja como for, a orienta-
ção a leste deixa, no hemisfério norte como no hemisfério
sul, os vitrais laterais expostos aos raios de sol. E à medida
que se aumenta a latitude, desde Milão e Madri em direção a
Paris, Ulm, Colônia, Bruxelas e Londres, mais exageros ver-
ticais mostram as catedrais no estilo gótico.
Independentemente do aproveitamento que se faça da
luz natural, a luz artificial, para ser usada à noite ou não, é
um elemento quase inevitável da expressividade dos ambien-
tes.
Desde que residi três anos no Japão, nas províncias de
Ibaraki e Tochigi – ambas ao norte de Tóquio – vou ocasio-
nalmente a restaurantes japoneses. Raramente algum deles
ocupa uma construção típica e original. Mas a iluminação –
ao menos – é um fator decisivo na recriação de ambientes
mais bem caracterizados. Num deles, a casa era tão clara, que
sugeri ao proprietário simplesmente reduzir a potência das
lâmpadas, ao que me olhou surpreso. Agradou-me um restau-
rante em que pude perceber o cuidado de se iluminar o balcão
de peixe cru com luz incandescente – de modo a garantir
fidelidade da cor –, as lâmpadas cuidadosamente recolhidas
atrás dos tradicionais anteparos de pano azul escuro e letras
brancas sobre o balcão, demarcando nele uma zona clara de
cozinha e outra escura, onde ficavam os hóspedes. E noutro
restaurante, ainda, quando jantava com amigos, apagou-se a
luz de todo o quarteirão, ao que o pessoal prontamente distri-
buiu velas sobre as mesas e as acendeu. Dentro de alguns
minutos tínhamos nos acostumado bem à ambiência criada.
Mas de súbito a luz elétrica retornou, e logo percebemos toda
sua inconveniência: veio estragar uma ambiência muito mais
acolhedora.
O escritor japonês Junichiro Tanizaki chama “elogio
da sombra” a um manifesto que publicou em defesa dos valo-
res tradicionais na construção e na habitação do seu país.
Nele, a iluminação tem importância fundamental.351 Tanizaki
tenta recuperar o prestígio de elementos da cultura oriental
ameaçada pelos inventos americanos e europeus e, aos pou-
cos, dilapidada em algumas de suas verdades estéticas. Muito
deste retrocesso toma lugar nos interiores dos edifícios, em
que o autor condena desde a lâmpada incandescente até o
brilho metálico dos talheres e a perfeição do vidro dos hábi-
tos europeus e americanos à mesa. Menciona, na cidade de
Quioto, um famoso restaurante, o Waranji-ya, que mantinha
recintos privativos no lusco-fusco, iluminados com arcaicos
candelabros. Atraído por este entre outros detalhes, o autor
vai até lá e constata que os mesmos já tinham sido substituí-
dos pela luz elétrica a pedido dos clientes, que alegavam luz
insuficiente. Precisamente eu havia ido ali para dar-me este
prazer e certamente pedi uns candelabros; foi então que me
dei conta pela primeira vez de que esta luz incerta era a que
de verdade realçava a beleza das lacas japonesas. É o mo-
mento de uma delicada, mas significativa descoberta do au-
tor.

Luz concentrada de fontes secundárias

A expressividade da iluminação não diz respeito, so-


mente, às fontes primárias, mas também às fontes secundá-
rias: a toda superfície que reflete luz. Em especial, isto afeta
os objetos brilhantes.
Tanizaki352 menciona o pouco valor que dão os morado-
res de casas muito claras à beleza do ouro. Lembra que, ao
tempo dos seus antepassados, o material tinha uma fascina-

351
Junichiro Tanizaki, op. cit.. Tradução do autor.
352
Junichiro Tanizaki, op.cit.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 295

ção esplêndida. Além disto, servia de refletor – propriedade


não encontrada na prata, nem nos outros metais, que, polidos,
perdem logo seu brilho.
Semelhante cuidado havia no Ocidente à época em que
somente se conhecia a iluminação tênue de velas. Visitei uma
exposição pouco comum, na câmara de tesouros anexa à
catedral gótica de Münster - cidade alemã situada ao norte da
região do Ruhr. Tratava-se de uma coleção de trajes sacerdo-
tais preservados desde a Idade Média. Em diversos padrões
de tecelagem e de desenhos, que impressionam pela sua bele-
za e estado de conservação, não faltavam fios dourados. Res-
salte-se que aquele trecho da Europa vive a maior parte do
ano sob um céu baixo, cinzento e gélido. Nas celebrações
noturnas e naquelas em que pelos altos vitrais não entrava luz
suficiente, os trajes dos bispos e dos sacerdotes cintilavam,
refletindo as chamas.
Uma especial sensibilidade no uso da luz parece ter ha-
vido até às vésperas da invenção da lâmpada elétrica. No
Brasil, José de Alencar se mostrava um arguto observador
das nuances da iluminação: o rosto cândido e diáfano, que
tanto me impressionou à doce claridade da lua, se transfor-
mara completamente: tinha agora uns toques ardentes e um
fulgor estranho que o iluminava. Os lábios finos e delicados
pareciam túmidos dos desejos que incubavam. Havia um
abismo de sensualidade nas asas transparentes da narina
que tremiam com o anélito do respiro curto e sibilante, e
também nos fogos surdos que incendiavam a pupila negra.353
Efeitos a estimular-nos a fantasia são diversos. Por
exemplo, a refletividade especular de grandes superfícies cria
efeitos irreais, como o de uma amplidão inexistente, ou sur-
reais. Assim é o assoalho lustroso de um salão de baile vazio,
dando aos ocupantes a impressão de flutuar, de levitar sobre
um chão fluido, imaginário.354

353
José de Alencar, Lucíola, cap. XVI. Obra integral do autor disponível na Biblio-
teca Virtual do Estudante Brasileiro (Universidade de São Paulo) em
http://www.bibvirt.usp.br.
354
Peter Thornton, op. cit., pranchas 531 e 532.
Alguns pequenos objetos coloridos e cintilantes, que são
efetivamente integrados aos ambientes, como o azulejo azul e
branco Delftware, que no século XIX tornou-se popular junto
às lareiras burguesas, ou os objetos colocados com destaque
sobre os móveis e prateleiras, não deixam de surpreender em
sua constância. Na China, a crença popular leva à prática de
se cobrir os espelhos dentro dos quartos, à noite, com uma
capa de pano.

Luz difusa de fontes primárias

O efeito de abertura é oposto ao efeito de caverna, ou se-


ja, é conseguido pelo uso de luz difusa. Frank Lloyd Wright,
no início de sua carreira, construiu casas no chamado plano
aberto: paredes e divisórias não sobem até o teto, mas deixam
uma lacuna. Entretanto, o fato de a iluminação ser predomi-
nantemente lateral e os vãos extensos, quando do lado de fora
árvores e rochedos projetam sombras sobre a casa, torna os
ambientes escuros.355 Alia-se o predomínio da rusticidade dos
materiais utilizados. Wright empregava iluminação lateral em
cantos que seriam escuros, para poder explorar detalhes da
textura, como também fez o arquiteto sueco Elis Benckert:
uma parede recebe luz de uma janela lateral que lhe é propo-
sitalmente adjacente.
A luz natural não é toda ela concentrada. Muito presente
é a luz natural difusa. E não faz muita diferença se é uma luz
naturalmente difusa: se é a luz do céu, limpo ou encoberto,
ou ainda a luz do sol refletida na areia, na calçada, ou ainda
filtrada pelos materiais translúcidos. Sua expressividade é
peculiar.
A casa tradicional japonesa é uma casa de penumbra,
e o explica, na falta de materiais impermeáveis como ladri-
lhos, vidro e cimento, a necessidade de proteger-se da chuva,
já que o clima é muito úmido em quase todo o Japão. Tani-
zaki356 conta que seu povo preferiria casas mais claras, mas

355
Steen Eiler Rasmussen, op. cit.
356
Junichiro Tanizaki, op. cit.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 297

foi obrigado a fazer da necessidade virtude. E, como recurso


de auto-convencimento, afirma que isto que geralmente se
chama belo não é mais que uma sublimação das realidades
da vida, e foi assim como nossos antepassados, obrigados a
residir, quisessem ou não, em moradias escuras, descobri-
ram um dia a beleza no seio da sombra e não tardaram em
utilizar a sombra para obter efeitos estéticos. Explica o belo
de uma habitação japonesa como sendo produzido unicamen-
te por um jogo sobre o grau de opacidade da sombra, que não
necessita nenhum acessório. Ao ocidental que o vê surpreen-
de esta nudez e crê estar tão só diante de algumas paredes
cinzentas e desprovidas de qualquer ornamento, interpreta-
ção totalmente legítima desde seu ponto de vista, mas que
mostra não ter captado em absoluto o enigma da sombra.
A obstrução pelo beiral não produz uma sombra in-
discriminada, pois desde os primórdios os japoneses – habi-
tantes do hemisfério norte - têm consciência da importância
que tem para seu conforto térmico a face sul. Por facilitarem
o acesso à radiação solar no inverno, priorizam as aberturas
para este lado. Mas trabalham, de fato, com a sombra, fazen-
do a luz recebida do jardim passar através dos shoji, painéis
em papel de seda, que a filtram ainda mais.357 E precisamente
esta luz indireta e difusa é o elemento essencial da beleza
daquelas residências. E para que esta luz gasta, atenuada,
precária, impregne totalmente as paredes da casa, pintamos,
de propósito, com cores neutras estas paredes iluminadas. É
uma claridade tênue que, para o autor, conserva apenas um
último resto de vida. Declara que, para seus conterrâneos,
esta penumbra vale por todos os adornos do mundo e sua
visão nunca cansa.
Descreve então o toko no ma, oco em que recua uma
das paredes da sala. É enfeitado com um quadro ou com um
arranjo floral. Mas não se ilumina este canto, nem com luz
natural, nem elétrica; e a função dos objetos ali presentes é
justamente dar à sombra uma dimensão no sentido da pro-
fundidade; o quadro não é, em suma, mais que uma superfí-
cie modestamente destinada a recolher uma luz débil e inde-
357
Por esta razão é que o papel de seda cobre áreas consideráveis de paredes exter-
nas.
cisa...o ar nestes lugares encerra uma espessura de silêncio,
nesta obscuridade reina uma serenidade eternamente inalte-
rável. Definitivamente, quando os ocidentais falam dos “mis-
térios do Oriente”, é muito possível que com isto se refiram à
calma algo inquietante que gera a sombra quando possui
esta qualidade.
Se a luz natural é referência para o passar do tempo,
o papel translúcido filtra sua percepção: quando estou à luz
macilenta dos shoji de uma “biblioteca” me esqueço do tem-
po que passa358. A luz difusa, ao perder sua relação de auto-
matismo claro e correspondência biunívoca com o estado
instantâneo da atmosfera, as horas do dia e a estação do ano,
e se predominar o escuro, remete ao intemporal, à eternidade,
ao ancestral. Estaremos sob esta luz nos abstendo das impres-
sões superficiais, da materialidade, para nos interiorizarmos.
O efeito dos shoji é intensificado nas imensas salas dos mo-
nastérios: a luz está tão mitigada, devido à distância que as
separa do jardim, que sua macilenta penumbra é igual no
verão como no inverno, faça bom ou mal tempo, na manhã,
ao meio-dia ou à noite. Tanizaki defende a idéia de uma cla-
ridade especial. Nunca experimentaste esta espécie de apre-
ensão que se sente diante da eternidade, como se ao perma-
necer neste espaço tivesses perdido a noção do tempo, como
se os anos passassem sem perceberes, até o ponto de crer
que quando saias tenhas te convertido num velho de cabelos
brancos?
Completamente diferente é o efeito de uma igreja supe-
riluminada, como a Catedral de Brasília, de Oscar Niemeyer,
que convida antes à euforia que ao recolhimento. Este efeito
é ainda realçado pelo fato de se chegar à igreja por meio de
um corredor muito escuro.
O efeito de luz coada por superfícies translúcidas, se
usado de maneira indiscriminada, pode destruir certas inten-
ções expressivas. A iluminação zenital na arquitetura, espe-
cialmente através de clarabóias translúcidas, tem a proprie-
dade de eliminar sombra; permite aporte de luz natural e
uniforme aos interiores, mas tem a desvantagem da monoto-

358
Junichiro Tanizaki, op.cit.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 299

nia. Entretanto, o uso consciente de tecidos translúcidos tem


uma expressividade única. José de Alencar, citado acima, não
observava tão somente a reflexão da luz, mas também sua
transmissão através de tecidos finos e claros: a luz invadindo
os cômodos femininos; as formas femininas em suaves mo-
vimentos transparecendo através do tecido; e seu olhar indis-
creto tudo flagrando. Uma cortina translúcida pode transfor-
mar uma vista externa sem atrativos numa experiência plásti-
ca e onírica.359 Uma toalha branca escondendo os pés das
mesas e balcões, de belo caimento e efeito cintilante, dá-lhes
um caráter solene e mesmo etéreo, apropriado a uma festa. O
artista plástico Christo Javacheff se notabilizou, no final do
século XX, empacotando em plástico edificações famosas em
todo o mundo: dava-lhes o caráter de esculturas de luz e
sombra de proporções nunca vistas.
Alexander360 estende seu conceito de luz difusa àque-
la que se propaga através de folhas secas ou engradamentos.
Baseia sua recomendação de luz difusa nas propriedades de
arredondar arestas, reduzir ofuscamento e propiciar prazer
sensual.

Luz difusa de fontes secundárias

Um outro grupo de fontes de luz com expressividade


própria é aquele das fontes secundárias e difusas. O restau-
rante descrito por Tanizaki lhe inspirou outras descobertas.
Os reservados do Waranji-ya são uns pequenos e recoletos
salões de chá com uma superfície de quatro tatami361 e os
pilares do toko no ma e do teto são negros, o que faz com
que, mesmo com uma lâmpada elétrica em forma de lanter-
na, reine uma impressão noturna. Mas quando substituíram
a lâmpada por um candelabro ainda mais escuro, eu pude
observar as bandejas e as cumbucas à luz vacilante da cha-
ma e descobri nos reflexos das lacas, profundos e espessos

359
Peter Thornton, op. cit., prancha 526.
360
Christopher Alexander, op. cit., padrão 238.
361
Unidade de área retangular correspondendo a aproximadamente 0,85 m x 1,70 m.
como os de um tanque, um novo encanto totalmente diferen-
te. Soube então que se nossos antepassados haviam encon-
trado este verniz chamado laca, e haviam se deixado enfeiti-
çar pelas cores e brilho dos utensílios não era, em absoluto,
por azar. O autor conclui com uma observação específica aos
utensílios tradicionais de mesa no seu país: substituamos a
luz solar ou elétrica pela luz de uma única lâmpada de azeite
ou de uma vela, e veremos imediatamente que estes chamati-
vos objetos cobram profundidade, sobriedade e densidade.
E ainda observa: Se há dito que na culinária japonesa
não se come mas se vê; num caso assim eu me atreveria a
acrescentar: se vê, mas, além disto, se pensa! Tal é, com
efeito, o resultado da silenciosa harmonia entre o brilho das
velas que piscam na sombra e o reflexo das lacas (...) em
qualquer caso, se a cozinha japonesa se serve num lugar
demasiado iluminado, numa vasilha predominantemente
branca, perde a metade do seu atrativo.
Para Tanizaki, a sombra intensifica a cor. Refere-se a
produtos típicos da culinária japonesa, não necessariamente
aqueles mais populares fora do Japão. Por exemplo, o doce
de feijão (yokan), a que chama de harmonia colorida. Numa
bandeja em laca, submergindo-o numa sombra tal que ape-
nas se possa distinguir sua cor, se tornará muito mais propí-
cio à contemplação. E quando, por fim, levamos à boca esta
matéria fresca e lisa, sentiremos fundir-se na ponta da língua
algo assim como uma parcela da obscuridade da sala, solidi-
ficada numa massa açucarada e a este yokan, que na verda-
de é bastante insípido, encontraremos uma estranha profun-
didade que realça seu gosto. O molho shoyu apresenta um
semelhante encanto disperso sobre o peixe e os legumes:
harmoniza com a escuridão.
E os alimentos de cor branca – o tofu (queijo de soja), o
kamaboko (pudim salgado) e os peixes brancos, enfim, não
podem ser realçados ao se iluminar seu entorno. Para come-
çar, o arroz, somente apresentado numa caixa de laca negra
e brilhante colocada num canto escuro é que satisfaz nosso
sentido estético e por sua vez estimula nosso apetite. Quem
já aceitou a privação inicial de provar do arroz cozido sem
gordura nem sal e já procurou, assim mesmo, seu sabor, e o
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 301

encontrou, contraposto ao salgado do shoyu presente no pei-


xe e à salmoura do tsukemono (conserva) compreenderá que
nenhum japonês que ao ver este arroz imaculado, cozido ao
ponto, amontoado numa caixa negra, que enquanto se levan-
ta a tampa emite um quente vapor, cada grão brilhando co-
mo uma pérola, não capte sua insubstituível generosidade.
Tanizaki conclui que a cozinha de seu país harmoniza com a
sombra, entre ela e a escuridão existem laços indestrutíveis.

Expressividade da noite

A noite tem um caráter completamente diferente do dia.


As distâncias parecem outras; o mundo parece acabar a al-
guns palmos. É como o nevoeiro. Mas o escuro guarda seme-
lhança com a caverna. É naturalmente cômodo. Já o claro se
presta mais à adequação, quase que automaticamente às cus-
tas da comodidade.
Merleau-Ponty362 toma a noite de exemplo quando quer
demonstrar que, antes que sentidos individuais, percebemos o
fato, o objeto: ela me envolve, penetra por todos os meus
sentidos, sufoca minhas recordações, quase apaga minha
identidade pessoal. Não estou entrincheirado em meu posto
perceptivo pra dali ver desfilarem, à distância, os perfis dos
objetos. A noite é sem perfis, toca-me ela mesma, e sua uni-
dade é a unidade mística do mana. Até mesmo gritos ou uma
luz distante só a povoam vagamente, é inteira que ela se
anima, ela é uma profundidade pura sem planos, sem super-
fícies, sem distância dela a mim. Pois a consciência não ad-
mite a separação entre a aparência e a realidade. Descrevendo
a noite, o filósofo nos flagra na incapacidade de mantermos a
mesma racionalidade por todas as 24 horas do dia.
Bollnow363 mostra-se interessado na reconstrução diária
do mundo especial pessoal e de sua dissolução em favor do
estado inconsciente durante o sono, à noite. Se o espaço
diurno é um conceito visual, o espaço noturno é de tato e

362
Maurice Merleau-Ponty, op. cit.
363
N. Egenter, op. cit.
audição. Entre eles existe um espectro diferenciado de espa-
ços de meia-luz, anoitecer e semi-escuridão: o caráter para-
doxal dos bosques, livre para ir-se a qualquer lugar mas
intimamente limitado com respeito à visão, que, como um
espaço estreito acompanha o caminhante. Cita Goethe,364
para quem a noite criou mil monstros.
Mas a noite também é de uma calma ancestral; é acolhe-
dora; permite a cada um encontrar-se consigo mesmo: o es-
paço da escuridão “não se expande à minha frente” como no
claramente reconhecível espaço do dia, “mas toca-me dire-
tamente, me envolve...me penetra e me atravessa...tanto que
poderíamos dizer quase que sou transparente para a escuri-
dão, enquanto não o sou para a luz”.365 À noite, “o espaço
perde o caráter de espaço de ação”366 e passa a ser antes um
espaço de reflexão. Sinto-me mesmo recebido pela proteção
deste espaço.
A luz que adentra um ambiente escuro deveria vir de
uma direção que não ofusca: num quarto, de um lado pouco
visível pela pessoa deitada na cama; nos outros ambientes, do
alto.
Dentro das instalações domésticas, um simples toque de
interruptor faz o dia aparecer diante dos olhos. Há ocasiões
em que um efeito de luz do dia é necessário e, de fato, obti-
do; é o que ocorre sobre a mesa de leitura, debaixo de uma
lâmpada incandescente. Em outros casos, ainda, a luz elétrica
cria situações próprias, irreais. Por exemplo, num ambiente
inteiro quando a distribuição da luz deixa de simular aquela
verificada durante o dia: ilumina-se quadros na parede, obje-
tos sobre os balcões; neste caso, criou-se propositadamente o
antinatural. Ou ao iluminar-se um corredor sem janelas com
tubos fluorescentes uniformemente distribuídos. Ou ainda o
acesso lateral das fileiras do cinema, depois que o filme co-
meçou. Normalmente, a luz do dia não provoca semelhantes
efeitos. Entretanto, a iluminação pode ser concebida e desen-

364
Johannes Wolfgang von Goethe (1749 – 1832), escritor e poeta alemão.
365
E. Minkowski, Le temps vecú p. 393, Paris (1933), apud Bollnow, op. cit..
366
Otto Friedrich Bollnow, op. cit.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 303

volvida de modo a preservar, no que for possível, o caráter da


noite. É ocasião de não enxergar as coisas todas, somente
aquilo mais imediato. As pessoas se aproximam. A noite é
por definição escura; e os ambientes internos são mais escu-
ros ainda.
Entro em meu apartamento à noite e, propositalmente,
não acendo a luz. Cada led de algum equipamento que ficou
ligado na tomada – computador, TV, rádio-relógio - lembra o
cuidado que alguém teve, como se adornasse o breu com uma
pedra. No restaurante, cada vela lembra uma especial corte-
sia. A luz de vela é viva, parece conversar conosco, senão
com alguém que não vemos. Cada lampião da rua sugere
pessoas caminhando debaixo dele, cada janela distante ilumi-
nada uma existência distante. Posso começar a contá-las; já
durante o dia nem imagino quantas janelas vejo, quantas
pessoas, quantos objetos. Sou tão solicitado pelas sensações
visuais que somente posso responder aos estímulos mais
urgentes.
Uma cidade iluminada ganha encanto especial. Serve
de pano de fundo a um ambiente íntimo de casa ou de um
restaurante, por uma ampla janela se enxerga as luzes nos
edifícios distantes. A iluminação modifica os objetos e o
ambiente. Ao recriar, da escuridão, a visibilidade do mundo,
a iluminação o reinterpreta, e faz os espectadores participan-
tes de uma nova experiência. Um único ponto brilhando, à
noite, caracteriza a altura de uma torre, e duas seqüências de
pontos alinhados caracterizam uma pista de pouso. A ilumi-
nação noturna de um monumento lhe confere uma forma de
destaque jamais obtido sob iluminação natural. Num amplo
saguão de hotel, como um volume aberto até vários andares
do edifício, os abajures ao redor de um conjunto de sofás
criam um ambiente de intimidade e calor ao reduzir a escala
do espaço visível.
Para Tanizaki, tem especial expressividade a escuridão
dentro dos edifícios, aquela dos grandes pavilhões de templos
e castelos iluminados pela claridade de uma única vela: “tre-
vas sensíveis à vista” produziam a ilusão de uma espécie de
bruma palpitante, provocavam facilmente alucinações e em
muitos casos eram mais terroríficas que as trevas exteriores.
A luz elétrica nos fez perder esta dimensão mística dos
interiores noturnos muito fracamente iluminados. Nossa vi-
são, treinada para ler contrastes em diferentes níveis de clari-
dade, podia antes trabalhar como um canal de aporte de im-
pressões desmaterializadas, de um espaço mais íntimo, ao
mesmo tempo mais aberto aos entes misteriosos que o de
hoje. Quem não guarda recordações de sua infância do escuro
de um acampamento, uma caminhada à noite pelo escuro, ou
de quando cai a energia elétrica, o lento reconhecimento tátil
e topográfico do entorno conhecido tão clara, mas tão super-
ficialmente de dia pela visão?
Até o início do século XX, as edificações dependiam em
grande parte da luz natural, e eram projetadas de modo a
aproveitá-la racionalmente. A iluminação a querosene, des-
confortável, era reservada à noite, ocasião em que mesmo
uma lâmpada fraca proporcionava algum contraste aproveitá-
vel. A lâmpada elétrica, inventada por Edison, aparentemente
libertou os usos diurnos da arquitetura dos preceitos da ilu-
minação natural, para se tornar enfim escrava da rede de
energia. Os padrões mínimos de iluminação para as diferen-
tes tarefas foram subindo e subindo, sob influência dos fabri-
cantes de lâmpadas, e já nos anos 60 tinham atingido níveis
de exagero.367 Os ambientes se tornaram frios e monótonos.
Perderam suas referências no tempo. Os gastos de energia
para iluminação diurna atingiram patamares significativos. E
por todo o mundo tem-se apregoado o uso de lâmpadas efici-
entes: fluorescentes para os edifícios e de vapores de sódio
para as ruas. O maior desperdício, que deve ser reconhecido,
não é a energia consumida, mas a iluminação pobre, o efeito
inadequado. E neste caso a luz traz ao ambiente uma expres-
sividade ingrata: a expressividade do desnecessário, do des-
propositado, do insensível.
Relacionada é a queixa de Tanizaki aos ocidentais,
que buscam sempre mais claridade e passaram da vela à
lâmpada de petróleo, do petróleo à luz do gás, do gás à luz
elétrica, até acabar com o menor resquício, com o último
refúgio da sombra.368 Nas ruas e praças, o fluxo luminoso de
367
Hopkinson et al., op. cit.
368
Junichiro Tanizaki, op.cit.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 305

potentes lâmpadas é espalhado, em parte considerável, para o


espaço. Lá, difundido pela neblina, impede a contemplação
do céu noturno.

Expressividade da cor

Sobre fundo escuro – sem superfícies a iluminar – as


fontes de luz surgem como entidades de uma importância
própria, sem dimensão (fontes de luz pontuais), unidimensio-
nais (fontes de luz alinhadas, tubos fluorescentes, néon, tubos
de led usados nos corredores do cinema e raio laser), bidi-
mensionais (superfícies difusamente reflexivas iluminadas
por projetores, corpos translúcidos interpostos à fonte de luz
e o observador, conjuntos de lâmpadas em superfície) e tri-
dimensionais (formas iluminadas por dentro ou por fora de
modo a manter ou realçar sua espacialidade, a disposição de
fontes de luz numa sala ou de lampiões numa calçada), e
ainda variáveis no tempo, em posição, forma, intensidade e
cor.
Esta última é outra das características mais importan-
tes da luz, tanto para sua caracterização física como para sua
eficácia expressiva. A percepção visual do espaço é baseada
na luz que chega à retina. Sua cor resulta da cor da luz que
incide sobre os objetos e da cor destes objetos que, refletindo
a luz, se tornam visíveis aos nossos olhos. Propriedade per-
cebida unicamente pelos olhos, a cor carrega significado e
constitui fértil terreno expressivo para as artes plásticas. Mais
que a forma, é mais intimamente relacionada à emoção.369
A cor – mesmo a cor branca – dá um certo sentido
ao espaço diurno; a cor própria do material original revela
propriedades dos objetos. A luz quente remete à vela, ao sol;
a luz fria, às nuvens, que iluminam menos, daí a sensação de
que sempre lhe parece faltar algo.
Se à luz do dia o ponto de máxima sensibilidade da reti-
na situa-se na cor amarela, à luz da noite situa-se na cor ver-

369
Daniel Katz, citado em F. Birren, Color, Form and Space, Reinhold Publishing
Corp., Nova Iorque (1961).
de-limão. Daí o freqüente emprego destas cores na sinaliza-
ção, em contraste com fundos negros. São dois efeitos fisio-
lógicos das cores.
Numerosos efeitos decorrem das associações, algumas
muito simples, baseadas em evocações da natureza. O azul
lembrando céu, mar, imaterialidade, infinito. O verde, calma
e frescor. O vermelho, sangue. O laranja, fogo.
Outras associações têm um vinculo mais fortemente cul-
tural. No Ocidente, a cor da morte é o negro; na China, é o
branco. Estas duas modalidades de associações abrem uma
extensa discussão. Melville370 diz que o terror é branco, don-
de a personagem Moby Dick ser uma baleia branca.
As cores escuras parecem mais pesadas que as cores cla-
ras: se pintado de negro, o teto de um corredor de paredes
brancas parece mais baixo. O efeito é incômodo, especial-
mente se as paredes forem também, na sua metade superior,
negras, pois isto contraria uma percepção corriqueira de que
a luz vem do céu, ou seja, do sentido oposto ao de onde atua
a força da gravidade.
Um corredor com paredes negras e forro branco parece-
rá mais alto. Se as paredes forem tomando, com a altura, cor
cada vez mais clara, em direção ao branco na porção mais
alta, o forro parecerá estar flutuando.
As cores claras e quentes parecem mais próximas que as
cores cinzentas e frias: ao pintar-se de amarelo uma parede
que sempre foi cinzenta, temos a impressão de que a parede
deu um passo à frente, encolhendo o espaço. Uma cor quente
como o laranja, aplicada em mais de uma parede, pode tor-
nar-se sufocante.371 O couro e a madeira, nos seus tons natu-
rais, reforçam a associação de calor tátil e calor visual. Esta
impressão é ainda mais intensa sob uma luz de cor quente.372
Uma parede pintada de azul escuro é presença pouco in-
sistente, não é logo notada. O azul num carpete, na extensão

370
Herman Melville (1819-1891), poeta americano.
371
Peter Thornton, op. cit., prancha 390.
372
Ibid., prancha 525.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 307

de toda a área de um recinto, torna-se referência quase inevi-


tável ao mar ou ao céu – dependendo do tom – e dá ao cami-
nhar o ludismo de flutuar.373 E um carpete em padrão irregu-
lar imitando nuvens claras sobre fundo escuro transmite,
visualmente, a sensação da maciez do piso.
Merleau-Ponty374 analisou a significação motora das
cores a partir dos depoimentos de pacientes psiquiátricos. O
verde é cor repousante, que me fecha em mim e me põe em
paz, diz uma doente. Não nos pede nada e não nos convoca a
nada diz Kandinsky.375 O azul parece ceder ao nosso olhar,
diz Goethe. O amarelo é picante, e o vermelho dilacera, di-
zem pacientes de um outro psiquiatra, Goldstein.
Um arranjo em que o piso e o mobiliário têm cores
quentes e as paredes, cores frias, recebendo grupos de foto-
grafias históricas, mostra-se capaz de manter, senão intensifi-
car a expressividade de cada um dos dois grupos.376 O piso e
os móveis, pois, com que temos contato físico, são tornados
cromaticamente mais acolhedores. Já a referência ao passado
é associada ao longínquo, idéia reforçada pelo azul. O con-
traste, aplicado dentro de um ordenamento, amplifica efeitos
das cores.
O contraste cromático é levado ao extremo ao aplicar-se
a complementaridade das cores, como a associação de azul e
amarelo, verde e magenta, ciano e vermelho.
Outros princípios de associação utilizam cores vizinhas,
como o amarelo e o vermelho; o amarelo e o verde; o verde e
o ciano. O uso da cor em elementos geométricos formando
padrões decorativos é assunto de composição e foge ao esco-
po deste livro, embora esteja relacionado. Certo é, contudo,
que a tranqüilidade é ameaçada pela utilização de padrões
decorativos, especialmente se portadores de excessivos estí-
mulos. Já paredes ou pisos contendo desenhos dissipadores

373
Peter Thornton, op. cit., prancha 392.
374
Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, tradução de Carlos
Alberto Ribeiro de Moura, Martins Fontes, São Paulo (1999).
375
Wassily Kandinsky (1866-1944), pintor russo, professor na Bauhaus.
376
Peter Thornton, op. cit., prancha 408.
de alguma tensão – como os padrões naturais – preenchem os
vazios, trazendo complexidade ao ambiente; padrões obses-
sivamente geométricos ou cromáticos introduzem tensão e,
com ela, podem comprometer a comodidade.377
O concreto aparente tem, em sua cor natural, a expressi-
vidade adequada a certos ambientes onde é priorizado. Em
Curitiba, o Santuário de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro
tinha a cobertura em imensa cúpula internamente revestida,
por razões acústicas, em concreto chapiscado, na cor natural.
Numa reforma, a mesma foi pintada em azul claro. Preferiu-
se uma alusão barata ao céu à ambiência circunspecta, pre-
tendida pelo autor, Koso Kasai.
O pintor Ferdinand Léger escreveu páginas valiosas
sobre as funções da cor.378 Considera-a uma necessidade
vital, matéria-prima indispensável à vida, como a água e o
fogo. Não é possível conceber a existência dos homens sem
um ambiente colorido. As plantas, os animais se colorem
naturalmente; o homem se veste com cores. Sua ação não é
só decorativa, é psicológica. Ligada à luz, ela se torna inten-
sidade, se torna uma necessidade social e humana. O senti-
mento de alegria, de emulação, de força, de ação se acha
fortalecido, ampliado pela cor.
E suas recomendações não se limitam às tintas: Léger
reconhece a função espacial da pintura, não da pintura encer-
rada aos limites da tela, mas da pintura integrada ao espaço.
O problema não está solucionado, mas podemos conceber
uma satisfação real por esse procedimento novo e moderno.
(...)
Uma arquitetura se compõe de superfícies vivas e de
superfícies mortas. As superfícies mortas são as reservas de
repouso – não se tocará nelas. As superfícies vivas devem ser
postas à disposição da forma, do pintor e do escultor. Os
arquitetos do Renascimento italiano careceram de vontade e
se deixaram invadir pelos pintores e pelos escultores. Certos
palácios e monumentos romanos são inabitáveis devido ao

377
Peter Thornton, op. cit., padrões 459, 513 e 528.
378
Ferdinand Leger, As funções da pintura, Nobel, São Paulo (1989).
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 309

acúmulo de pinturas e esculturas que não deixaram nenhuma


superfície de repouso. O problema, porém, é bastante maleá-
vel, pois o volume e a cor são coisas que podemos organizar
e distribuir, reduzir ou aumentar, conforme as necessidades
da luz ou da superfície.
Léger recomenda que uma parte da arquitetura muito
iluminada tenha cores atenuadas, o contrário ocorrendo numa
parte escura. E se, por força das necessidades construtivas,
massas volumosas – colunas, relevo – se impõem, sugere
uma cor de acompanhamento sem muita intenção, uma liga-
ção arquitetônica estática ou dinâmica, segundo a necessida-
de a ser satisfeita.
É como, na música, a de Erik Satie,379 assumidamen-
te não tanto algo para ser ouvido atentamente, como para
preencher o espaço. O problema pode ser o mesmo em arqui-
tetura, se quisermos. Pintura de acompanhamento. É um
novo dispositivo. Há outros.
A indústria atual põe a nossa disposição matérias
decorativas e ornamentais absolutamente notáveis: vidro
colorido, cimentos multicores, aço, bronze, todas as ligas:
alumínio, duralumínio e outras. Esses materiais têm, neles
mesmos, uma vitalidade plástica considerável, uma riqueza
preenchedora e ativa, que podemos empregar nos interiores
arquitetônicos modernos. Isso entra no domínio da “arte de
acompanhamento”(...) A máquina moderna cria belos obje-
tos simples, sem ornamentação. Vamos empregá-los.
E enfim, Léger abandona a própria idéia inicial em
favor de uma generalização: deixemos as paredes de cores,
pensemos em decorações de cores livres, para evitarmos a
palavra “abstrata”, que é falsa. A cor é verdadeira, realista,
emocional em si mesma, sem se achar na obrigação de se
ligar intimamente a um céu, uma árvore, uma flor – ela vai
em si, como uma sinfonia musical; ela é uma sinfonia visual,
seja harmonia, seja violência, e assim deve ser aceita. Mer-
leau-Ponty explica que a cor, antes de ser vista, anuncia-se
então pela experiência de uma certa atitude do corpo que só

379
Erik Satie (1866 - 1925), compositor francês.
convém a ela e a determina com precisão. E, sobre a visão,
afirma que é um pensamento sujeito a um certo campo e é
isso que chamamos de um sentido.
Rasmussen expôs algumas contradições que surgem
ao se tentar formular teorias sobre como deve ser a cor na
arquitetura.380 Não existem regras definitivas nem diretrizes
que, se forem estritamente obedecidas, garantam uma boa
arquitetura. A cor pode ser um poderoso meio de expressão
para o arquiteto que tem algo a dizer. Um pode achar que o
teto deve ser escuro e pesado; um outro, que deve ser leve e
incorpóreo.
Mostrou-se contrário ao emprego da cor como maquia-
gem do tamanho ou das sensações térmicas dos cômodos.
Propõe, antes, que a cor intensifique: é irritante descobrir
que a coisa não é o que esperamos. Na arquitetura conscien-
temente projetada, a sala pequena parece pequena, a sala
grande parece grande e, em vez de disfarçar essas caracte-
rísticas, elas devem ser enfatizadas pelo uso judicioso da
cor. O quarto pequeno deve ser pintado em tons profundos,
saturados, para que sintamos realmente a intimidade de qua-
tro paredes próximas à nossa volta. E o esquema cromático
do quarto ou sala grande deve ser leve e arejado, para fi-
carmos duplamente conscientes da amplidão de espaço de
parede a parede.
E identificou um princípio gerador de cores quentes:
não é a cor das coisas, a superfície, que torna um lugar
quente ou frio, mas a cor da luz. Escolha superficies que,
juntas com a cor da luz natural, reflitam a luz e luzes artifi-
ciais, crie uma luz quente nos ambientes.

Expressividade do próximo e do distante

Um aspecto peculiar da visão é a imensa escala geomé-


trica com que as informações do meio podem ser recebidas.
Se tomamos conhecimento dos interiores arquitetônicos com

380
Steen Eiler Rasmussen, op. cit.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 311

todos os sentidos, a paisagem aberta é principalmente apre-


endida pela visão.
Isto tem um efeito desconcertante. Na verdade, pouco
importa o tamanho da janela, há uma diferença fundamental
entre ter uma janela para poder olhar para fora e não ter nada.
E o buraco da porta (o olho mágico ou o orifício da fechadu-
ra) já satisfaz boa parte desta demanda de ver o que se passa
lá fora. É uma idéia de Bollnow. A luz amorfa – direta ou
indireta – aquela que jogamos sobre os objetos conhecidos,
esta pode ser tanto de janelas, como de lâmpadas. E é até
melhor que venha de janelas altas, que entre si mesmas e o
céu não têm muros nem plantas, e despejam sua luz sobre os
ambientes sem móveis nem biombos pelo caminho. Já a luz
definida, a imagem do mundo lá fora que chega aos nossos
olhos, esta vem normalmente de uma janela transparente –
não basta que seja translúcida, deve revelar as formas do
mundo e com isto informar. A necessidade de observação do
mundo externo é relacionada à sensação de segurança de
quem está na toca escura e quer espreitar a sua porta sem ser
visto. Embora a curiosidade de olhar para fora seja hoje su-
prida, em parte, pela TV e pela internet, precisamos de um
referencial físico e concreto: janelas com cortinas, persianas,
películas e muxarabis para vermos as pessoas lá fora sem
sermos notados.
Bollnow também aponta o significado da janela no Ro-
mantismo e em alguns textos de Rilke: uma moldura que dá à
seção externa um significado particular.
A técnica estrutural, em sua evolução, foi libertando as
paredes externas da tarefa de suportarem carga. Sob os arcos
ogivados do período gótico surgiram vitrais feitos de peque-
nas peças, pois o vidro por muito tempo foi soprado. Os pe-
daços eram emendados com chumbo. A estrutura metálica, o
concreto armado e o concreto protendido, em que o aço cor-
rige a fraca resistência da pedra à tração, libertaram as pare-
des e permitiram janelas muito amplas.
Mas há quem afirme que os grandes vãos em peças úni-
cas de vidro não nos libertaram das limitações impostas pelas
esquadrias, mas nos alienaram da vista. Alexander381 diz que
quanto menores as janelas, e menores suas lâminas, mais
intensamente as janelas nos ajudam a nos conectarmos com
o outro lado. É a extensão na qual a janela emoldura a vista
que a aumenta, em intensidade, em variedade, mesmo no
número de vistas que podemos ver...é a multiplicidade de
molduras que faz a vista. O descontentamento que sentimos
com relação às grandes lâminas é por não oferecerem um
mínimo de proteção desejada quando, de dentro da casa, ob-
servamos o mundo exterior. As janelas são pontos frágeis da
casa. Poderiam propiciar vista externa sem deixarem de pro-
teger, como o fazem as paredes e o telhado.
As janelas são, de fato, pontos de extrema vulnerabili-
dade das edificações. Se permitem entrada de luz e de ima-
gens, expõem a privacidade dos moradores. Admitem radia-
ção solar e perdem calor à noite. Abertas, permitem entrada
de insetos, animais maiores e pessoas, e ainda expõem pesso-
as e animais ao perigo de caírem das alturas para fora da
edificação. São por onde entra e sai mais ruído das edifica-
ções. São os pontos mais frágeis à ação de objetos voadores
como pedras. E é nas janelas que as bombas fazem o maior
estrago. Logo, trazem o risco de expor o caráter de casa, o
conforto aos perigos do mundo. Para enfrentá-los, são neces-
sários outros tipos de equipamento: grades, cortinas e pelícu-
las. Em casa, quero sobreviver de bermudas e de chinelos,
olhando para fora por curiosidade, não por preocupação.
Não é apenas a informação visual que flui do mundo ex-
terior para dentro através das portas e janelas que nos interes-
sa. Quando enxergamos os cômodos vizinhos, recebemos
uma informação visual que reforça a noção de um abrigo
com diferentes possibilidades. Assim é avistar através de
uma porta interna parte de outro cômodo como um nicho de
trabalho com o colorido de alguns livros, o canto ocupado
por uma poltrona e diante dela um apoio para os pés, ou ain-
da uma parede colorida.382 E se através da própria janela,
junto com visões da rua, do céu ou do jardim, pudermos en-

381
Christopher Alexander, op. cit., padrão 239
382
Peter Thornton, op. cit., prancha 389.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 313

xergar um prolongamento visível da própria casa, teremos a


fonte de satisfação de percebê-la luxuosamente espaçosa. Isto
aumenta a consciência de estarmos no abrigo.

Efeitos expressivos da forma visualmente percebida

Ainda que a forma dos espaços e dos objetos neles con-


tidos atue sobre os sentidos, um estudo abrangente de suas
implicações, inclusive por meio de símbolos, foge ao escopo
deste livro. O que apresento a seguir são apenas uns poucos
efeitos que as formas têm sobre o conforto ambiental.
A disposição circular das janelas ao redor de um nicho
de mesa de jantar, ou sofá, faz a paisagem externa cercar
gentilmente o ambiente interno. Assim também a presença de
diversas janelas.383
As janelas através de espessas paredes, pelo menos 40
cm, formando grandes nichos, em especial aqueles a 60 cm
do chão, ou feitos acessíveis por um tablado384 - comuns nos
séculos XVIII e XIX, são convidativas como assentos privi-
legiados com visão, sol e calor. E na arquitetura brasileira há
as conversadeiras, conjuntos de duas ou três cadeiras em
arranjo simétrico em relação ao eixo central, como num car-
rossel.
Se conforto significa consolo e proteção, ele depende,
sim, da forma. Por que o nicho escuro, com carpete, almofa-
das e fechado por cortinas no escritório desenhado por Mau-
rice Dufrène em Paris,385 1912, é tão convidativo? Não teria
efeito semelhante alguma cama colocada no espaço do escri-
tório. O nicho é muito mais agradável que a cama feita um
móvel.
Os desníveis nos ambientes revelam outras facetas do
conforto. Uma sala de estar rebaixada por um ou mais de-
graus tem um efeito acolhedor, talvez por remeter a um abri-

383
Ibid., pranchas 414 e 527.
384
Ibid., prancha 406.
385
Ibid., prancha 520.
go. Assim também as partes elevadas, a cama engastada de
um adolescente, acessível somente por escada, dá-lhe um
domínio espacial que não tem quem dorme quase ao nível do
solo. É como o observatório sobre o telhado, ou numa árvore.
Segundo Hildebrand,386 advém como herança genética desde
o período em que os macacos procuravam por caça de cima
das árvores, período em que a visão teve seu maior desenvol-
vimento, tanto para perto e de modo estereoscópico, como
para longe e em detalhe.
O sofá é muito mais aconchegante quando envolve as
pessoas com seus braços, formando um nicho. Os braços do
sofá servem para que as pessoas apóiem os seus, mas tam-
bém para abraçar as pessoas.
Em algumas disposições particulares, os móveis se reve-
lam importantes fatores do conforto. Sua utilidade fica mais
evidente: por exemplo, uma confortável poltrona, de lado,
junto à janela ensolarada com um livro sobre ela e, à sua
frente, um apoio para os pés.
Algumas considerações podem ser feitas com relação à
ordem como um elemento do ambiente visual. Por exemplo,
o revestimento das paredes em painéis, com molduras em
frisos, cornijas e adornos de gesso, supõe estabilidade, uma
institucionalidade do ambiente, especialmente com a lareira
em mármore e peças de culto ocupando um lugar de desta-
que. A observação de muitos ambientes sugere que a ordem
tenha de ser percebida, mas não deva ser excessivamente
óbvia, traindo artificialidade. A simplicidade evidente de
uma ordem facilmente apreensível poderia sugerir sua fragi-
lidade e, dela, inconsistência. Seria uma ordem que não resis-
tiria a um olhar crítico, uma ordem que facilmente alguém
romperia. Um exemplo de ordem simples porque elaborada,
porém consistente, é encontrado nos padrões retangulares da
casa japonesa tradicional. Integram a estrutura os revestimen-

386
Grant Hildebrand, op. cit.
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 315

tos e as vedações e parecem sempre evocar uma razão de ser


de cada peça.387
Os great English living-halls, 388 uma proposta do sé-
culo XIX de sala de estar de enorme altura, demonstram que
conforto ambiental tem forte relação com proporções; é difí-
cil conceber conforto num ambiente tão grande. Assim, as
catedrais góticas. Não foram feitas para o conforto ambiental.
O caráter oposto ao da casa, o caráter público, impesso-
al, solene, não causa estranheza em ambientes onde se inici-
am viagens, onde se forma para carreiras, onde se apresentam
instituições públicas, onde se celebra fatos e homenageia
pessoas, onde se educa e cultiva os valores do social e coleti-
vo, onde se produz. Não seria este um princípio de concepção
para tais ambientes?
Finalmente, podemos voltar à teoria exposta no pri-
meiro capítulo para propor que, dos diferentes contextos de
conforto, através da visão ocorre curiosa interação entre o
contexto ambiental do conforto e o contexto social, e vice-
versa. Isto diz respeito, em especial, à maneira com que os
ambientes são iluminados. Christopher Alexander relaciona o
volume dos espaços (de maneira inversamente proporcional)
com o grau de intimidade que oferecem. Assim também, os
ambientes muito iluminados servem somente para a comuni-
cação simplificada, generalizada, por vezes grosseira, não
para sutilezas que requerem proximidade; a visão atenta não
pode ser de objetos excessivamente brilhantes (como ao se
ler ao sol). Alerta que a iluminação uniforme, que seria a
favorita dos engenheiros de iluminação, destrói a natureza
social do espaço, e torna as pessoas desorientadas e desco-
nexas. A luz ao ar livre nunca é constante. A maior parte dos
lugares naturais e, especialmente, as condições sob as quais
o organismo humano evoluiu, têm luz mesclada, que varia
continuamente de minuto a minuto e de lugar a lugar (...)

387
Heinrich Engel, The Japanese House: a Tradition for Contemporary Architec-
ture, primeira edição – 1964, 12a. reimpressão Charles E. Tuttle Publishing Compa-
ny, Inc., Rutland, Vermont, E.U.A. (1985). Tradução do autor.
388
Peter Thornton, op. cit., prancha 480; Charles Boyle, editor, O mundo doméstico,
História em Revista, Abril Coleções, São Paulo (1993).
Quando a luz é perfeitamente plana, a função social do es-
paço se destrói sonoramente: é mesmo difícil às pessoas
formarem grupos humanos.(...) Propõe que os grupos se for-
mam debaixo de “piscinas de luz”: como seria, num amplo
salão, um grupo de poltronas iluminado por abajur, o que dá
uma coesão física ao grupo. Todos os bons restaurantes se-
param cada mesa da outra como uma piscina de luz separa-
da, sabendo que isto contribui para sua ambiência privada e
íntima.
Portanto, recomenda luzes baixas e separadas, para for-
mar piscinas de luz individuais, que compreendem cadeiras e
mesas tais quais bolhas para reforçar o caráter social dos
espaços que elas formam. Lembra que não se formam pisci-
nas de luz sem os locais escuros entre as mesmas. E com uma
só forte lâmpada no teto, no seu centro geométrico, isto não é
possível.

8.4 A simplicidade
O caráter excessivamente pitoresco de uma moradia
pode ocultar sua intimidade. É uma preocupação de Bache-
lard. Para ele, as verdadeiras casas da lembrança, as casas
onde nosso sonho volta a conduzir-nos, as casas enriqueci-
das por um onirismo fiel, resistem a toda descrição.
No capítulo sobre olfato, foi mencionada a dificulda-
de de explicar aromas sem lançar mão de aromas conhecidos
como exemplos, ou das impressões importadas dos outros
sentidos, como um “aroma penetrante” ou “cálido”. Descre-
ver as casas oníricas equivaleria a ensiná-las. Talvez se pos-
sa dizer tudo do presente, mas e do passado? A primeira e
oniricamente definitiva casa deve conservar sua penumbra.
Bachelard compara este exercício com a literatura profunda,
quer dizer, com a poesia, e não com a literatura dissertativa
que necessita das novelas alheias para analisar a intimidade.
Bachelard parece consciente do risco de a visão ocu-
par uma predominância sobre os outros sentidos. Argumenta
que só devo dizer da casa de minha infância o necessário
para pôr-me eu mesmo em situação onírica, para situar-me
no umbral de um devaneio de onde vou descansar em meu
LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL 317

passado. Então posso esperar que minha página contenha


algumas sonoridades autênticas, quero dizer uma voz lon-
gínqua em mim mesmo que será a voz que todos ouvem
quando escutam no fundo da memória, no limite da memória,
talvez além da memória, no campo do imemorial.
As impressões que adquirimos do mundo através dos
olhos estão naturalmente afetadas de um ponto de vista.
Quem, quando criança, não passou minutos surreais virado
de cabeça para baixo, imaginando-se podendo caminhar so-
bre o forro, tendo de saltar as soleiras de portas, enxergando
mesas e cadeiras suspensas, vivendo na própria casa uma
espacialidade toda própria, num espaço onírico?
Por tantas razões, visuais e também olfativas, térmi-
cas e táteis, o ambiente construído tem a propriedade de tor-
nar as pessoas mais sensíveis sem que para tanto tenham de
procurar os teatros ou galerias de arte.
Figura 9 - Adega de casa rural tradicional, Ballenberg (Suíça)
9 - Considerações finais

Uma tentativa de definir conforto, baseada na análise de


sua evolução ao longo do tempo, demonstra a dificuldade de
identificar seus componentes e lhes atribuir pesos. É mais
difícil delimitar conforto que desconforto. Possivelmente é
este o motivo da abordagem negativa que se tornou usual na
arquitetura, que acredita promover conforto através da pre-
venção do desconforto. Quase inexiste a formulação voltada
para o outro extremo, positivo, do prazer. Por este motivo,
este livro saiu em busca de uma definição que incluísse a
conotação positiva, praticamente sinônimo da expressivida-
de.
Apresentou inicialmente um conceito holístico de con-
forto, dentro do qual o aspecto ambiental é tratado como um
dos contextos de conforto, indissociável dos outros contextos
(corporal, sócio-cultural e psico-espiritual) e que existe não
somente como a prevenção do desconforto (nos níveis do
alívio e da liberdade), mas como leveza e encanto (no nível
da transcendência). Foram apresentados argumentos em favor
do conforto como um sistema de valores que é predominante
na casa, onde resulta da combinação de comodidade e ex-
pressividade. Entretanto, é também encontrado em edifica-
ções de outros usos, em que alguma comodidade é sacrifica-
da em favor da adequação. São formas reduzidas de conforto,
que também têm sua expressividade.
Ficou exposto o despropósito de se relegar conforto am-
biental a uma disciplina periférica e acessória da arquitetura;
só encontra sentido pleno enquanto integrado ao conceito de
espaço arquitetônico. Conforto ambiental reúne o alívio da
dor e a liberdade de outras dores (comodidade), e ainda a
transcendência da dor mediante o encanto de outros sentidos.
Tem, portanto, necessariamente uma expressividade. Nela,
confundem-se o contexto ambiental e os contextos corporal,
psico-espiritual e sócio-cultural do conforto.
Na literatura dos fenomenólogos aparece a casa retratada
como origem. De modo semelhante, a pesquisa do significa-
do do conforto identifica seu ideal na casa, jamais igualada
por um ambiente público, ou de trabalho. A casa remete ao
útero, ambiente da maior proteção física, social e espiritual.
O conforto recupera, ali, seu significado original de consolo.
A hipótese tem a concordância da pesquisa dos diferentes
sentidos, aliada ao comportamento humano em relação ao
espaço, que inclui a busca dos espaços íntimos, cavernosos
pelas crianças, debaixo das mesas, das escadas, das almofa-
das, e pelos adultos, dentro dos carros e debaixo das cobertas.
Uma expressividade peculiar dá à casa alcance muito superi-
or à mera eliminação do desconforto, atingindo o encanto em
relação ao ambiente construído.
Fora de casa, no mundo do trabalho e da aventura, pre-
valecem outros pesos para os valores ambientais. Busca-se
valores distintos do conforto, reduzido que é diante dos obje-
tivos concorrentes como, por exemplo, o afã de velocidade.
A motocicleta é uma combinação de conjunturas corporais,
ambientais e sociais que satisfaz os aficcionados, mas não se
presta a um ideal de conforto.
A expressividade do ambiente é um misto de realidade e
representação. Diferentes aspectos do ambiente nos confor-
CONSIDERAÇÕES FINAIS 321

tam, em parte, pelo que são, e em parte pelo que representam.


E ao representar, nem sempre o fazem numa linguagem in-
tencional e universal como a da arte. Entretanto, podem vir a
integrar a arquitetura enquanto arte.
Os sentidos estabelecem comunicação entre o ambiente
construído e nossa mente. Isto não ocorre num processo me-
cânico de comunicação, de conteúdo objetivo, mas sempre
sujeito a uma interpretação, consciente ou não.
O olfato é uma linguagem de referências muito fortes, a
que se associam emoções, registradas com muito realismo.
Como conseqüência para o ambiente construído, faz com que
os materiais estruturais, de revestimento ou outros quaisquer
presentes no ambiente (plantas, perfumes e ingredientes da
cozinha), sejam criteriosamente escolhidos. A riqueza olfati-
va é uma garantia de sobrevivência do espírito da casa e das
gerações que nela habitam através das décadas.
O tato é nossa forma de vinculação mais concreta com o
mundo. Dá parâmetros reais à visão: permite sua aferição. Do
tato advém a percepção de solidez que é tão importante para
que haja a certeza de privacidade. E é através do tato que a
casa e seu conteúdo, em texturas e formas, nos acolhe como
num abraço.
O calor advém, em última análise, das reações químicas
exotérmicas que sustentam a própria vida. A certeza do seu
domínio no ambiente doméstico, assim como do seu uso
instrumental na preparação de alimentos está enraizada na
satisfação que nos proporciona o ambiente construído.
A audição se presta como um canal de comunicação re-
sumida entre o meio e as pessoas, e delas entre si. É a comu-
nicação tanto de mensagens simples como complexas; aci-
dentais como propositais; objetivas como subjetivas; e ainda
artísticas. O ambiente construído condiciona de maneira de-
cisiva o que ouvimos.
Enfim, a visão é a medida de um envolvimento racional
com o mundo, supõe as pessoas acordadas, monitorando
movimentos longínquos, processando imagens que possam
ser de algum significado para a sobrevivência. Por outro la-
do, da limitação da luz dependem a intimidade e o repouso.
Bachelard resumia a importância da casa abrigar o sonhador.
O repouso é provavelmente o uso mais nobre do ambiente
protegido da casa. Por isto mesmo, não lhe servem os dita-
mes das normas técnicas formuladas para um ambiente de
escola, de fábrica ou de escritório.
A abordagem de conforto proposta no capítulo inicial,
que é baseada nos valores da comodidade, adequação e ex-
pressividade, foi testada nestes cinco diferentes sentidos,
tomados isolados: olfato, tato, sentido do calor, audição e
visão. Em cada um deles, mostrou-se aplicável, e parece faci-
litar uma integração do conceito holístico de conforto, que
inclui o contexto ambiental, ao conceito de espaço arquitetô-
nico, de que se mostrou indissociável.
Há três séculos, Étienne de Condillac389 escreveu uma
obra em que imaginou quais seriam os pensamentos de uma
estátua que adquirisse sentidos humanos, inicialmente o olfa-
to, depois a audição, a visão e o tato. Suas constatações sobre
a estátua são resumidas no final da obra: Várias sensações
nos são indiferentes ou mesmo desagradáveis, seja por não
terem nada de novo para nós, seja por conhecermos sensa-
ções mais vivas. Mas a situação da estátua é muito diferente;
e ela pode se sentir extasiada ao experimentar sentimentos
que nem nos dignamos a notar ou, se notamos, é apenas com
desprazer. Observemos a luz, quando o tato ensina o olho a
distribuir as cores por toda a natureza: são outros tantos
novos sentimentos e, por conseguinte, novos prazeres e novos
gozos. Cabe raciocinar do mesmo modo sobre todos os ou-
tros sentimentos e operações da alma. Pois gozamos não só
pela visão, a audição, o paladar, o olfato e o tato, mas go-
zamos também pela memória, a imaginação, a reflexão, as
paixões e a esperança; numa palavra, por todas as nossas
faculdades. Mas esses princípios não têm a mesma atividade
em todos os homens. O homem não é senão o que ele adqui-
riu. Espero que este livro conscientize os leitores da impor-
tância de reeducar, ou melhor, de educar permanentemente a
sensibilidade ao ambiente construído.

389
Étienne de Condillac, op. cit.
CONSIDERAÇÕES FINAIS 323

Na afluência de circunstâncias agradáveis, que nem mais


percebamos de onde vêm, é que atingimos um alto grau de
satisfação. Temos grata experiência em adentrar uma biblio-
teca, e expectativa elevada em ainda não ter percorrido com
os olhos as lombadas de todos os seus livros. Desconhecemos
ainda seus limites. Nos conforta saber existir sobre nossas
cabeças uma estrutura sólida, sem perceber seus pontos fra-
cos. Ou ainda saber-nos cercados de aliados muito experien-
tes, sem precisar encarar de frente os problemas ou, no caso
da criança, a indefinição da existência. O confortável se mos-
tra dependente do complexo, que elimina a possibilidade de
uma decomposição analítica imediata do ambiente. Se todas
as paredes fossem lisas e desprovidas de qualquer marca de
feitura, transmitiriam a idéia de que compô-las teria sido
muito simples. Do ponto de vista da termodinâmica, a confi-
guração mais estável é o caos. Não é de se esperar que ele
naturalmente evolua para outra situação. Quanto menor a
ordem, maior sua estabilidade. Entretanto, a vida como um
fenômeno físico-químico é um esforço de auto-organização,
que requer um padrão mínimo de organização para que per-
dure. De modo semelhante, buscamos no ambiente por um
nível de organização que ainda se caracteriza natural, orgâni-
co. Além deste, a ordem passa a ser uma camisa-de-força,
passa a restringir a realização humana, mais que facilitá-la.
O ambiente da casa é onde buscamos a realização pela
permanência, pelos valores consolidados. O ambiente externo
é onde buscamos a realização através da mudança, pelas
idéias; mas é onde somos constantemente desafiados, pelos
fenômenos meteorológicos e doenças, pela violência, pelos
efeitos da destruição ambiental e do empobrecimento.
O progresso faz aumentar o estupor diante dos paradig-
mas do mundo: velocidade crescente, informação ilimitada,
entretenimento para nunca se aborrecer, e trabalho infindável.
Contrasta com isto o espaço doméstico, estável e acolhedor.
Duzentos anos depois de Condillac, o filósofo e fenomenólo-
go Gaston Bachelard identificou o benefício mais precioso da
casa: abriga o devaneio, protege o sonhador, nos permite
sonhar em paz. Não são unicamente os pensamentos e as
experiências que sancionam os valores humanos. Ao deva-
neio pertencem valores que marcam o homem em sua pro-
fundidade. Tem incluído um privilégio de auto-valorização.
Goza diretamente de seu ser. Então, os lugares onde se há
vivido o devaneio se restituem por eles mesmos num novo
devaneio. Porque as lembranças das antigas moradias se
revivem como devaneios, as moradias do passado são em nós
imperecíveis.390 Os valores da casa são preciosos e devem
ser, além de preservados, representados. A casa, seu espaço e
seu ambiente podem expressar estes valores.
Espaço de intimidade. De tranqüilidade. Da continui-
dade. Da segurança. Do devaneio e do sonho. Depois de re-
fletir sobre as variáveis do ambiente construído, tenho mais
forte a percepção de tais valores na caracterização dos espa-
ços. Se o meio natural pode influenciar no comportamento
do homem e condicionar sua evolução, a arquitetura que
organiza e estabelece quadros de vida humana nesse meio
exercerá, inevitavelmente, enorme influência.391 E ainda,
quantos valores difusos saberíamos concentrar se vivêramos,
com toda a sinceridade, as imagens de nossos devaneios!392
Mas hoje se perdem preciosas referências sensoriais
em favor do novo. Tanizaki393 desabafa: No que me diz res-
peito, gostaria de ressucitar, ao menos no âmbito da literatu-
ra, esse universo de sombras que estamos dissipan-
do...gostaria de ampliar o beiral deste edifício chamado “li-
teratura”, obscurecer suas paredes, fundir na sombra o que
resulta demasiado visível e despojar seu interior de qualquer
adorno supérfluo.
A expressividade precisa ser criada nos projetos novos,
descoberta nas casas existentes e mantida. Que potencial
expressivo não têm, pois, o entorno tátil e visual, portador de
riscos e pegadas; os aromas, portadores das emoções de en-
tão?

390
Gaston Bachelard, op. cit.
391
Miguel Brada, Notas à Teoria da arquitetura, São Paulo, ed. Anhembi, p. 25,
1957, apud Armando Pinto, op. cit.
392
Gaston Bachelard, op. cit.
393
Junichiro Tanizaki, op. cit.
CONSIDERAÇÕES FINAIS 325

No ambiente construído estão quadros de nascimento e


crescimento, existência vegetativa, afetiva, festiva, cultual, de
lazer e reprodutiva; de aprendizado e formação, de ritos e
cerimônias; da procura pela cura e assistência; do consumo e
da satisfação dos prazeres materiais, sensuais, do gosto e da
beleza; da sociabilidade, da amizade, do amor e da paixão.
Quadros existenciais figurativos e simbólicos, alguns com-
pletos no espaço meramente visual; outros no enaltecimento
sinérgico dos sentidos. Quadros de busca da realização em
nossa condição de seres temporariamente vivos e sedentos de
respostas. Por sediar o conforto ambiental, a arquitetura aten-
de muitas das necessidades humanas, desde a sobrevivência
até a plena realização.
A casa não pode se limitar a abrigo do corpo, se as ne-
cessidades não se limitam ao físico. O ambiente construído é
mais que um conjunto selecionado de variáveis e parâmetros
sujeitos ao cartesianismo das normas. Efetivamente tornado
arquitetura, é algo contínuo e complexo; não se resume àqui-
lo que pode ser montado numa bancada de teste de laborató-
rio; tampouco cabe dentro de uma moldura solenemente pen-
durada numa parede branca de galeria. É um meio efetivo de
vida, em que ela acontece no plano físico, sentimental e inte-
lectual.
Conforto, portanto, é de fato consolo, e isto não restrin-
ge, senão abre o campo do conforto ambiental, a ponto de
impor-lhe a interdisciplinaridade como única alternativa de
sobrevivência.
Espero que o conforto não seja somente idéia e se con-
cretize nos ambientes, dando-lhes sentido.
Índice remissivo

Aachen, Paz de, 270 Albinoni, Tomaso, 139


ácaros, 159 Alemanha, 77, 78, 82, 95,
Ackerman, Diane, 44, 120, 117, 141, 157, 200, 232,
149, 165, 169, 175, 177, 290
191, 262 Alencar, José de, 84, 211,
acolhimento, 14, 58, 195, 212, 239, 299, 302
204, 205 Alexander, Christopher, 20,
acústica, 1, 6, 31, 140, 159, 200, 201, 202, 205, 209,
202, 246, 247, 248, 251, 233, 238, 241, 264, 295,
252, 257, 258, 260, 263, 303, 316, 319
264, 265, 267, 277 Allegri, Gregorio, 253
adequação, 6, 37, 39, 44, amianto, 159
103, 151, 152, 184, 189, Amoore, John, 149, 150
223, 228, 230, 252, 255, Amsterdã, 70, 108
257, 287, 291, 292, 305,
Ando, Tadao, 200, 232
324
anti-conforto, 35
agentes biológicos, 159
Antiguidade Clássica, 57
aglomerados, 157
apolíneo, 55, 56
Apolo e Dionísio, 56 Bauhaus, 74, 77, 94, 98
ar condicionado, 20 Beecher, Catarina, 69
Arcand, Denis, 27 Beethoven, Ludwig van,
Aristóteles, 108, 131 140, 141, 248, 256, 266,
aromaterapia, 167, 176 269
arquitetura bioclimática, 12 Benckert , Elis, 300
arquitetura orgânica, 57, 100 Benjamin, Walter, 59, 73, 96
arquitetura racional, 57, 99 Beranek, Leo, 271, 272
Art Noveau, 77 Berlim, 16, 203
arte, definições, 113, 139 Biedermeier, 53, 77, 80, 81,
82
Arts & Crafts, 77, 200
Bingen, Hildegard von, 144
Assis, Machado de, 95
Birren, F., 309
audição, 5, 31, 55, 105, 114,
121, 126, 181, 183, 212, Bizet, Georges, 139, 235
245, 246, 252, 253, 254, Bollnow, Otto Friedrich, 17,
255, 256, 257, 258, 260, 130, 194, 206, 292, 305,
265, 267, 272, 305, 325, 306, 315
326 Bosco, Henri, 240
Austen, Jane, 33, 75, 82 boudoir, 75, 264
Áustria, 77, 81, 82 Boyle, Charles, 319
Axel, Richard, 150 Brada, Miguel, 328
Azevedo, Aluízio, 88 Brahms, Johannes, 269
Bach, Johann Sebastian, 26, Braille, linguagem, 189
139, 140, 271, 272 Brasil, 2, 33, 82, 83, 84, 86,
Bachelard, Gaston, 15, 17, 87, 88, 97, 139, 164, 165,
18, 35, 36, 41, 46, 122, 207, 216, 231, 242
127, 128, 129, 133, 137, Brasília, 88, 302
205, 208, 240, 262, 320, Breuer, Marcel, 94
325, 327, 328
Brown, Denise Scott, 98
Bagenal, Hope, 272
Bruneleschi, Filippo, 16
Bahia, 85
Brunschwig, Hieronymus,
balanço térmico do corpo, 176
227
Buck, Linda, 150
Ballenberg, 65
burguesia, 32, 64, 68, 72, 73,
Barber, Samuel, 139 75, 88, 101
Barroco, 57, 78 Cães e gatos
Basiléia, 78 alergógenos, 159
bastonetes (células da Calhoun, Ceshire, 109
retina), 282 calor, 1, 3, 5, 11, 16, 21, 31,
Baudelaire, Charles, 75, 94 38, 44, 54, 60, 61, 62, 84,
ÍNDICE REMISSIVO 329

93, 108, 111, 114, 126, cones (células da retina), 282


127, 133, 153, 154, 182, conforto
192, 199, 200, 206, 209, dimensão expressiva, 27
211, 218, 219, 220, 221, etimologia, 28, 68
222, 223, 224, 225, 226,
significado, 9
227, 228, 229, 230, 231,
visão holística, 21
233, 234, 235, 236, 237,
238, 239, 241, 251, 269, conforto ambiental, 5, 12,
272, 273, 277, 278, 296, 14, 25, 28, 30, 32, 36, 37,
307, 310, 316, 317, 325, 45, 51, 54, 75, 102, 160,
326 173, 182, 317, 319, 324,
329
como forma de energia, 218
sensível e latente, 219 conforto térmico, 6, 20, 31,
102, 153, 154, 215, 216,
calor (sonoro), 269
217, 221, 222, 223, 226,
canto gregoriano, 256, 267 230, 232, 233, 242, 292,
Capra, Fritjof, 15 301
Carpeaux, Otto Maria, 256 contexto ambiental do
Cézanne, 125 conforto, 26, 32, 38, 59,
Cézanne, Paul, 124 63, 68, 101, 127, 143,
China, 133, 177, 300, 310 204, 319, 323, 324
Chopin, Frédéric François, contextos de realização do
26, 41, 128, 139 conforto, 22, 23
Clagny, França, 74 conveniência, 35
Classicismo, 80, 82, 140, Coutinho, Evaldo, 229, 295
247, 266, 269 Crowley, John, 59, 63, 64,
cluttered look, 206 75
código Morse, 292 culinária, 106, 137, 138, 304
Coelho Netto, José T., 206 Curitiba, 16, 87, 135, 170,
172, 312
combustão, 156
Czech, Hermann, 44
comodidade, 6, 35, 37, 38,
39, 43, 60, 79, 101, 103, D. João VI, 66, 82, 84
151, 152, 163, 173, 184, Da Vinci, Leonardo, 170
185, 189, 223, 226, 228, Dali, Salvador, 173
230, 231, 252, 255, 257, Darwin, 110
287, 312, 324 Darwin, Charles, 110
compostos orgânicos Debussy, Claude, 256
voláteis, 157
Dei, Benedetto, 78
condicionamento térmico
deleite, 35, 38
natural, 51
Delftware, 92, 299
Condillac, Étienne de, 55,
180, 326, 327 derme, 183
Descartes, 16 Escandinávia, 72, 161, 234
Descartes, René, 16, 279 espacialidade, 13, 309, 321
desconforto, 23, 25, 39, 40, espaço da arquitetura, 45, 54,
43, 86, 98, 102, 118, 223, 295
232, 287, 323, 324 espaço Euclidiano, 132
dionisíaco, 55, 56, 100 espaço hodológico, 132
dionisíaco e do apolíneo, 100 espaço homogêneo, 130
domesticidade, 10, 33, 51, espaço vivido, 130
65, 87 espectro, 277
dopamina, 116 Estados Unidos, 72, 88, 89,
Downing, Andrew Jackson, 92, 96, 157, 166
91 estilo, 35
Duarte Jr., João Francisco, Estilo Internacional, 52
19
Estocolmo, 73
Duchamp, Marcel, 203
etiqueta
Dufrène, Maurice, 209, 317
e conforto, 35
Dürkheim, Graf, 131 Euclides, 279
Dutch Dining Room, 72 existencialistas (filósofos),
ecletismo, 57 133
Edison, Thomas Alva, 93, expressividade, 6, 21, 37, 38,
308 41, 42, 44, 45, 101, 113,
eficiência, 35 114, 115, 117, 118, 119,
Egenter, Nold, 305 143, 163, 254, 255, 257,
Egito, 165 264, 276, 287, 293, 297,
298, 300, 303, 307, 308,
Eichrodt, Ludwig, 80
311, 312, 324, 328
Einstein, Albert, 280
exteroceptores, 183
Elgar, Edward, 140
fenetre en longueur, 20
Elias, Norbert, 63
Fenomenologia, 122
emoção, 19, 22, 32, 39, 42,
Fermat, Pierre de, 279
46, 98, 99, 104, 107, 108,
109, 110, 111, 112, 113, física aplicada às
114, 115, 116, 117, 134, edificações, 5, 12, 51
137, 143, 163, 164, 167, formaldeído, 158
168, 173, 230, 309, 325, Forman, Milos, 271
328 França, 34, 63, 74, 75, 76,
endorfina, 116 78, 87, 165, 176, 204
Energia e potência, 218 Frank, Steven M, 223
engenharia da produção, 14 Freyre, Gilberto, 83, 85, 86,
epiderme, 183 238, 239
ergonomia, 14, 20, 22 funcionalidade, 21
ÍNDICE REMISSIVO 331

Gaudi, Antonio, 100 Hume, David, 109, 110


Gestalt, 284 Huygens, Christiaan, 280
Goethe, Johann Wolfgang Ícaro, 13
von, 306, 311 Idade Média, 57, 61, 62, 63,
Goldstein, 311 78, 83, 101, 207, 256, 299
gordura subcutânea, 184 iluminação, 1, 6, 10, 12, 20,
Gotemburgo, 73 51, 62, 83, 101, 119, 122,
Goya, Francisco, 293 123, 190, 246, 254, 275,
286, 289, 291, 292, 293,
Grass, Günther, 240
294, 295, 296, 297, 298,
Grécia, 56, 239 299, 300, 302, 306, 307,
Greek Revival, 91 308, 319
Grimm, Jacob e Wilhelm, 28 iluminação natural, 51
Guardi, Francesco, 268 iluminação zenital, 20
Gustavo III, 73 ilusões de ótica, 106, 286
Haendel, Georg Friedrich, Imaguire Jr., Key, 95
270 Impressionismo, 95
Haydn, Joseph, 140, 248, Inglaterra, 59, 72, 75, 76, 81,
266 89, 200, 216
Hero da Alexandria, 279 interoceptores, 183
Hertz, Heirich, 280 intimidade, 33
Herz, Rachel, 164, 166, 168 irmãos Grimm, 131
Heschong, 228, 230, 235 Jacob e Wilhelm Grimm, 28
Heschong, Lisa, 228, 229, James, Henry, 92
234, 235, 237, 238
James, William, 108
Hildebrand, Grant, 29, 50,
Japão, 115, 123, 134, 150,
121, 196, 318
165, 166, 204, 234, 297,
hipermetropia, 282 300, 304
hipotermia, 222 Jerusalém, 297
Hogendorp (general de Joyce, James, 44, 236
Napoleão), 66
Kandinsky, Wassily, 311
Holanda, 56, 70, 71, 92, 93,
kanji, 293
165
Kasai, Koso, 312
holística
Katz, Daniel, 309
abordagem ao conforto, 21,
22, 26, 27, 37, 64, 73, 226 Keller, Hellen, 168
Hopkinson, R.G., 292, 308 Kohler, Bettina, 182
hormônio, 116 Kohlhoff, Hans, 58, 192, 203
hormônios, 115 Kolcaba e Wilson, 28, 35
Huber, Verena, 204 Kolcaba, Katherine, 22, 25
Körting & Mathiesen, 94 memória, 45, 46, 93, 107,
Krause, corpúsculos de, 182 111, 127, 136, 137, 141,
Kubrik, Stanley, 141 146, 148, 167, 168, 170,
173, 178, 181, 240, 253,
Kuchta, David, 216
321, 326
Lage, Alfredo, 143
Merleau-Ponty, Maurice, 45,
Lamarck, 110 122, 287, 305, 311, 313
Larsson, Carl, 72 Metternich, sistema, 80
Le Corbusier, 10, 19, 95, 98, Minkowski, 306
102
miopia, 282
Léger, Ferdinand, 257, 312
mobilidade, 13
Leipzig, 272
Modernismo, 9, 12, 14, 18,
Leithold, Thomas von, 66 19, 21, 51, 52, 53, 57, 58,
leveza, 35, 38 74, 77, 88, 94, 99, 100,
Lilla Hyttnäs, 73 101, 117, 146, 197, 200,
límbico, sistema, 111, 166, 202, 209
167, 168 monóxido de carbono, 156
limiar da percepção auditiva, Montagu, Ashley, 17, 210
250 Monteiro Pinto, Armando,
Lindsay String Quartett, 266 37, 43
Loos, Adolf, 97, 195 Montesquieu, barão de, 73
Lorenz, Konrad, 107, 114 Morris, William, 69, 70, 72,
Louis XIV, 74, 216 77, 161, 197, 200
Lukacs, John, 62 Mozart, Wolfgang Amadeus,
Lynes, Russel, 88 81, 139, 140, 248, 256,
266, 271
Mann, Golo, 82
Münster, 299
maoris, 123
Neoclassicismo, 57, 76
máquina de morar, 10, 19
neo-Gótico, 57
Marly, França, 74
Neutra, Richard, 48, 99, 146,
Marta e Maria, 21
246, 247, 248, 263, 270
mascaramento, 253, 257 Newton, Isaac, 279
materiais particulados, 158
Niemeyer, Oscar, 302
Mattoso, Kátia, 86, 88
Nietzsche, Friedrich, 56
Maxwell, James Clerk, 280 níveis de realização do
MDF, 157, 202 conforto, 22
mecanicismo, 31 nível de iluminação, 289
Meier-Graefe, Julius, 94 Nova Iorque, 90
Meissner, corpúsculos de, Odum, Eugene, 259
182
ofuscamento, 275
ÍNDICE REMISSIVO 333

ofuscamento desabilitador, 68, 93, 101, 143, 230,


291 231, 323, 324
ofuscamento doloroso, 287 PVC, 157
óleos etéricos, 176 qualidade do ar, 1, 14, 78,
olfato, 5, 6, 31, 32, 55, 105, 152, 153, 156, 161, 163,
106, 114, 121, 136, 145, 173
146, 147, 148, 149, 150, Quioto, 298
152, 163, 164, 166, 169, Rasmussen, Steen Eiler, 71,
173, 175, 212, 320, 325, 198, 259, 264, 267, 272,
326 286, 294, 300, 314
Paccini, corpúsculos de, 182 Ravel, Maurice, 235
Países Baixos, 33, 78, 92 Reed, Christopher, 96
Palace Hotel, 90, 205 Rembrandt, 108
Paris, 67, 138, 141, 209, 216, Renascença, 59, 65, 78, 82,
217, 261, 297, 317 93
Paulo, São, 15 Renascimento, 57, 312
Paz, Octavio, 203 retina, 282
penso, logo existo, 45 revolução industrial, 76
percepção, 123 Rilke, Reiner Maria, 315
Pernambuco, 85 Rio de Janeiro, 66, 67, 83,
petit apartemment, 75 84, 85, 86, 87, 142, 143,
Picard, Max, 129 226, 238, 239
Pinto, Armando Monteiro, rock’n roll, 256
117, 119 Rogers, Isaiah, 90
Pitágoras, 15 Rohe, Mies van der, 96
Platão, 108, 279 Ruskin, John, 91, 197
Pollock, Griselda, 95 Rybczynski, Witold, 8, 27,
Portoghese, Paolo, 100 33, 36, 37, 38, 41, 43, 51,
61, 62, 63, 64, 67, 68, 69,
Portugal, 83, 174
72, 75, 83, 88, 194, 207
Praz, Mario, 62
Salieri, Antonio, 271
privacidade, 33, 64, 96
Salvador (Bahia), 83, 87
e conforto, 33
Sand, George, 41, 128
prolactina, 116
Santa Maria de Fiori, 16
propriocepção, 105, 106,
Sartre, Jean-Paul, 88, 110,
191, 194
111, 133
proprioceptores, 183
Satie, Erik, 313
Proust, Marcel, 138, 148
Schaffer, Peter, 271
psico-espiritual
Schinkel, Karl Friedrich, 58
contexto do conforto, 23, 26,
27, 28, 29, 30, 36, 50, 52, Schubert, Franz, 81, 266
Schwab, Alexander, 20 Terra Santa, 297
Scott, Sir Walter, 82 Thoreau, Henry David, 66,
série harmônica, 254 204, 241
serotonina, 116 Thornton, Peter, 4, 34, 74,
sistema RGB, 284 192, 206, 299, 303, 310,
311, 316, 319
Snellen, diagrama de, 289
Tóquio, 297
sócio-cultural
tranqüilidade
contexto do conforto, 23, 25,
28, 29, 30, 32, 35, 49, 52, e conforto, 35
68, 101, 210, 230, 231, transcendência, 53
323, 324 transferência de calor
Solomon, Robert, 109 condução, 219
som, 249 convecção, 220
Stokowski, Leopold, 254 radiação, 220
Stott, Annette, 92 Trewartha, G. T., 224
Strauss, Richard, 269 Trollope, Francis, 89
Stube, 77 Twain, Mark, 91
Suassuna, Ariano, 56, 57, 58 umidade, 154
Suíça, 65, 77, 78, 79, 82, 95, condensação, 155
97, 174 útero
Tadoma, método, 189 ideal de conforto, 13, 29, 55,
Tanizaki, Junichiro, 195, 128, 324
198, 298, 302, 303, 305, utilidade, 37
307, 328 Veneza, 268
Tao, 15, 41, 133 ventilação, 51, 84, 86, 153,
tato, 5, 6, 31, 32, 55, 102, 156, 160, 161, 173, 187,
105, 114, 121, 124, 128, 217, 221, 259
131, 133, 180, 181, 182, Venturi, Robert, 98
184, 185, 189, 190, 191, Vermeer, Jan, 71
195, 197, 199, 208, 210, Versailles, França, 74
212, 293, 305, 325, 326
Viena, 81
taxa de transpiração, 227
Vietnã, 139
Tchaikowski, Piotr Illich,
visão, 5, 6, 21, 29, 31, 55,
141
98, 99, 105, 106, 108,
temperatura de pele, 227 119, 121, 126, 148, 164,
Temple, Sir William, 71 182, 183, 190, 191, 196,
tempo de reverberação, 267 204, 208, 212, 220, 229,
terminações sensitivas, 182 253, 254, 255, 275, 276,
termotédio, 233 279, 281, 282, 284, 285,
286, 287, 288, 289, 290,
terno e gravata, 216
291, 292, 293, 301, 306,
ÍNDICE REMISSIVO 335

307, 313, 315, 317, 318, Wright, Frank Lloyd, 95,


319, 320, 325, 326 200, 233, 300
Vitorianismo, 53, 76, 200 yin e yang, 13, 15, 16, 18,
Vitrúvio, 230, 295 19, 21, 30, 38, 39, 89,
Vivaldi, Antonio, 139, 268 101, 133
Washington, 91, 142, 158 Young, Thomas, 280
Weil am Rhein, Alemanha, zero absoluto, 277
200, 232 zona de conforto, 22, 38
Wilson, Linda, 22, 25 Zwicky, Stefan, 34, 204
Witte, Emmanuel de, 71
Próximo lançamento

O homem e o espaço (Tradução do original alemão


Mensch und Raum, de Otto Friedrich Bollnow, Editora
Kohlhammer, Stuttgart, 9a edição).

Muito se escreveu sobre a percepção do tempo, e pouco


sobre a percepção do espaço - observa Otto F. Bollnow (1903
– 1991). Este filósofo alemão, catedrático de Filosofia e Pe-
dagogia na Universidade de Tübingen, falecido, dedicou
especial atenção ao espaço vivenciado. Procurou caracterizá-
lo como algo distinto do espaço dos matemáticos - este, um
espaço idealizado. O espaço vivenciado - aquele que conhe-
cemos - pouco se parece com aquele espaço tridimensional
da álgebra, homogêneo e isotrópico. O espaço vivenciado
difere para cada pessoa; varia ao longo do tempo, e gravita ao
redor de uma origem - também diferente para cada pessoa,
pois trata-se de sua casa, ou a casa que identifica como sua.
Existem forças que atraem para a casa, e forças que atraem
para a direção oposta (ou melhor, todas as direções): o mun-
do. E mesmo uma distância igual no mundo pode ter signifi-
cados diferentes à medida que se aproxima do centro.

São apenas algumas idéias presentes no livro.

Esta obra fundamental para a reflexão sobre a Arquitetu-


ra estará nas livrarias brasileiras em fevereiro de 2006.

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