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CURSO FORMAÇÃO DE

mediadores de leitura

APRENDIZADO DA
Leitura na
Infância
Fernanda Coutinho

Gra
tui
to!

5
FASCÍCULO
AVENTURA DE LER,
AVENTURA DE VIVER
A infância, como uma das idades da vida, Outros símbolos, como o do tapete voador,
traz em si a noção de descoberta, de apren- por exemplo, reforçam a necessidade de
dizado, e é reconhecida, cada vez mais, vagar fora de si, como uma característica
como uma etapa fundamental da existên- do ser humano, e, como todos sabemos, os
cia humana. Não é fácil desvendar o mun- passeios mágicos não costumam se fazer
do. Contudo, esse é o desafio lançado à esperar, acontecendo desde a mais tenra
criança, ainda mais hoje que os pequenos meninice. Por isso mesmo, já fomos chama-
se movimentam com mais desenvoltura na dos – nós, espécie humana –, de “espécie
sociedade, o que nem sempre ocorreu. fabuladora”. É Nancy Huston quem defende
Uma das possibilidades de busca de a ideia de que: “Enxertada em suas ficções, e
entendimento de uma experiência tão com- por elas constituída, a consciência humana
plexa, como é o existir, é a leitura. O folhear é uma máquina fabulosa...e intrinsecamente
de páginas dos livros representa, assim, um fabuladora.” A autora nos enxerga a todos,
gesto simbólico de ultrapassagem, como com um potencial de fantasia tão exacerba-
se a criança estivesse, a cada página, avan- do, que chega mesmo a criar um (aparen-
çando no alcance das inúmeras coisas a te) paradoxo, quando formula a pergunta:
compreender. Não é à-toa que as metáforas “Onde reside o real humano?” e oferece
da aventura e da viagem são costumeiras como resposta a afirmação: “Nas ficções
quando se trata de leitura. Um exemplo que o constituem.” (HUSTON, 2012, p.13-14)
disso é a afirmação de Vincent Jouve: “Ler, Tanto isso é verdade que, na perspecti-
pois, é uma viagem, uma entrada insólita va dos mundos paralelos, a criança inventa
em outra dimensão que, na maioria das estórias mirabolantes ou cria seus próprios
vezes, enriquece a experiência: o leitor personagens prediletos, os amigos imagi-
que, num primeiro tempo, deixa a realida- nários, quer seja uma pessoa, um animal,
de, para o universo da ficção, num segun- ou qualquer outro ser por ela idealizado,
do tempo, volta ao real, nutrido da ficção.” com quem estabelece longas conversações.
(Jouve, 2002, p. 108). E assim, viajando nas aventuras dos tex-
Já Carlos Drummond de Andrade faz do tos infantis, iniciamos esse fascículo sobre o
espaço do poema um lugar de recordação aprendizado da leitura na infância.
de suas leituras infantis, como acontece em Você se interessou em saber mais? Já
“Biblioteca verde”. Nele, o “eu” lírico se re- trabalha com leitura para crianças? Tem fi-
fere a elas, por meio de uma imagem ciné- lhos, alunos ou pratica a leitura com usuá-
tica: a da carruagem de fugir de si e de tra- rios de bibliotecas? Muito bem, sinta-se em
zê-lo “de volta à casa/a qualquer hora num casa e boa leitura. E se quiser se inscrever
fechar de páginas” (Andrade, 1987, p.171). em nosso curso, ainda dá tempo. Acesse:

ava.fdr.org.br

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PARA ALÉM
DO TEXTO
Você sabia? Até o século XVII, a infância
não possuía uma identidade quanto
às práticas sociais. Quem diz isso é
o historiador francês, Philippe Ariès
(1914-1984). Imagine, então, como
seria esse tempo em que a vida da
criança em quase nada diferia da do
adulto, junto a quem partilhava seu
dia a dia, desenvolvendo atividades
de trabalho e de lazer. Esse quadro
somente vai mudar com a invenção
da família burguesa, que passou
a cultivar o que Ariès define como
“sentimento da infância”, uma espécie
de “paparicação” decorrente do fato de
que a criança, “por sua ingenuidade,
gentileza e graça, se tornava uma fonte
de distração e relaxamento para o
adulto.” (Ariès, 1981, p. 158).

CURIOSIDADE
O poeta português, Fernando
Pessoa (1888-1935) foi um dos que,
aos 6 anos de idade, criou o que
alguns consideram o seu primeiro
heterônimo, o Chevalier de Pas,
seu amigo imaginário, com quem
conversava, inclusive por escrito,
através de cartas.

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1.
LEITURAS PARA
PUXANDO
PROSA
A PRIMEIRÍSSIMA
INFÂNCIA MUNDOS DA LEITURA
INFANTIL: LER LIVROS,
LER DOCUMENTÁRIOS,
LER O MUNDO.
Além dos textos ficcionais, a
grade de leitura infantil inclui: livros-
jogos, documentários, obras práticas,
livros de atividades manuais, além
dos livros didáticos, e, em nossa
contemporaneidade, os textos digitais.
Indagada sobre a literatura não
ficcional, para o público infantil, Ana
Garralón, prestigiada pesquisadora
espanhola dos estudos literários
infantis, define: “São estes livros
que contam o mundo, e esta é uma
pesquisa que me dá muita alegria
em estudar, porque muitas crianças
gostam demais desses livros, pois
acompanham a sua curiosidade
natural, o desejo de conhecer e
descobrir o mundo, o corpo humano.
Mas são livros que na escola, por
exemplo, não se usam muito, enquanto
os pais dizem “isso não é ler”, porque
acham que ler é ler ficção, romance.” In:
http://oglobo.globo.com/sociedade/
conte-algo-que-nao-sei/ana-garralon-
especialista-em-literatura-infantillivros-
sao-pensados-para-criancas-internet-
uma-selva-19421126.

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Habitar o reino do ilusório, portanto, é uma predisposição inata no
indivíduo, acompanhando-o, desde o tempo de bebê até a matu-
ridade. Por isso mesmo, a biblioteca infantil contemporânea ofe-

PARA ALÉM
receu uma carta de cidadania às crianças pequenas, o que inclui
os chamados livros-objeto, artefatos de caráter lúdico, de cores

DO TEXTO
chamativas, em várias texturas, como tecido ou plástico, às vezes,
sonoros, apelando, como tal, para a intensa percepção da criança
pequena do mundo que a rodeia. Em “A emancipação dos bebês
leitores”, María Emília López lembra que eles “são os seres mais abs-
tratos da criação, cheios de impulsos, de produções de todo tipo: Você quer entender melhor ainda o
sonoras, corporais, práticas, imaginárias; eles investem quase todo desafio do trabalho de leitura com os
o seu tempo de vigília na transformação do mundo que os rodeia; bebês? Você pode acessar na íntegra
para os adultos, porém, eles são tão enigmáticos quanto abstratos.” a entrevista com Yolanda Reyes.
(LOPÉZ, 2018, p. 27-28) Yolanda Reyes, outra estudiosa que se dedi- disponível em: https://eraoutravez.
ca aos estudos sobre leitura para os pequeninos, entende que, mais blogfolha.uol.com.br/2018/04/16/por-
importante do que cercar a criança de livros, é a interação mãe-filho que-ler-para-bebes-leia-entrevista-
no processo da iniciação ao mundo da literatura. Segundo ela: com-a-colombiana-yolanda-
Tudo começa pela audição. Depois vão surgindo outras maneiras reyes/?loggedpaywall.
de ler e de interagir com as palavras. (...) Em seguida, esse bebê já
pode sentar e olhar algo além do rosto dos adultos. A página do
livro nasce diante de seus olhos. Ele, então, interage com a mancha
de texto, com as ilustrações, com o papel. É quando surge o que
chamo de triângulo amoroso. A criança está sentada no colo de al-
guém que ama, posicionada entre o livro e o corpo desse adulto. O
bebê enxerga o livro, mas a leitura é guiada pela voz do outro. Pelo
mesmo som que ele já conhece. É um outro momento. Pouco a
pouco, surgem mais palavras, mais imagens e a narrativa caminha
cada vez para mais longe.

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PUXANDO
PROSA 2.
A INVENÇÃO DOS
EXPERIÊNCIAS COM CLÁSSICOS INFANTIS
LIVROS PARA BEBÊS OU POR QUE
NO BRASIL E LÁ FORA ESSAS HISTÓRIAS
O mercado editorial vem se movimentando para registrar CONSEGUEM
a ligação umbilical da Literatura com os bebês. Eles agora
figuram como uma das categorias de público dos catálogos, FASCINAR TÃO
tal como acontece com Para mi bebé: animales pequenitos, da
Susaeta Ediciones, situada em Madri.
FORTEMENTE AS
Explorando a relação criança x animal, Le zoo, publicado CRIANÇAS
pelo selo Gallimard jeunesse musique, segmento infantil da Escrevendo sobre obras célebres da literatu-
editora, mostra, além do retrato e da identificação pela escrita ra infantil, como O pequeno príncipe, O má-
dos nomes, a voz de seis animais: flamingo, coala, urso, ser- gico de Oz, Peter Pan, ET e História sem fim,
pente, tigre e crocodilo. São os ruídos da vida, que chegam aos Alain Montandon relaciona a sensação de
pequenos – a sugestão é que pode ser ouvido/visto a partir de maravilhamento produzida pela descoberta
um ano de idade – levando-os a perceber a noção de diferença dessas obras, hoje clássicas, à recordação
pela diversidade de falas. arcaica do tempo em que se é criança.
Para situar a questão no espaço da literatura brasileira, vale
destacar a proposta da editora Cosac Naify em Bebês brasilei-
rinhos: poemas para os filhotes mais especiais de nossa fauna
(2014), um dos cinco títulos pertencentes à coleção Brasileiri-
nhos, lançada em 2001. Depois de quatro volumes dedicados

PUXANDO
aos animais em extinção, Lalau e a ilustradora Laurabeatriz
optam pela apresentação de treze filhotes de nossa fauna.
O livro compõe-se de um poema e uma ilustração para cada
animal, além de um texto informativo sobre suas particulari-
dades de nascimento, características no princípio da vida ou
PROSA
reprodução. É significativo verificar o ponto de vista adotado
em relevante número dos textos infantis contemporâneos,
Mesmo sendo esses livros
que colocam, em princípio, o animal como personagem de si
considerados célebres, vale a
mesmo, assinalando, porém, suas semelhanças com o animal
pena lembrarmos seus autores
humano. Essas semelhanças nascem, em muitos casos, no
e a época em que apareceram
território dos afetos – amamentação, hora de dormir, brinca-
(contextualização). Que tal
deiras do cotidiano – e não mais no estrato comportamen-
descobrirmos essas informações
tal, como era comum acontecer nas fábulas clássicas. Como
junto com as crianças? E você, que
consequência, tem-se a ressignificação da própria Literatura
livros infantis lhe causaram essa
Infantil, que se afasta de uma de suas premissas fundadoras:
sensação de maravilhamento?
a intenção moralizante.

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A imagem primordial escolhida por
Montandon para reviver esse tempo é de
natureza gustativa, logo, muito em sintonia,
com o imaginário da primeira idade da vida,
que, muitas vezes, é vinculado à recordação
de sabores.
A primeira cereja que a criança come é
uma maravilha; esta sensação é um abso-
luto, porque ela é independente de toda
referência: ela é única. A primeira cereja lhe
inunda de delícias. Somente o tempo e a ex-
periência, que relativizam todas as coisas,
arrebatarão a criança desta viva emoção
para colocá-la no círculo dos hábitos, dos
compromissos, das fadigas da existência.
(MONTANDON, 2001, p. 10)
Montandon sublinha a magicidade
de textos do universo infantil situados
no século XX, todavia essa mesma sensa-
ção pode ser estendida retroativamente a
obras que, mesmo não tendo sido escritas
com o intuito de ser literatura endereçada
às crianças, terminaram, por circunstân-
cias, incorporando-se à biblioteca dos pe-
quenos leitores.
Como se vê, o desprestígio da figura da
criança no decorrer da História fez com que
o próprio surgimento da literatura infan-
til se desse, de maneira enviesada, e não
como um projeto consciente e deliberado
de fazer valer suas peculiaridades, enquan-
to indivíduo. Por conta dessa circunstância,
por quais livros foram ocupadas as primei-
ras prateleiras dessa estante? Na realida-
de, as narrativas vieram da boca do povo
para a estante dos letrados. Um exemplo:
os Contos da mamãe gansa ou histórias do
tempo antigo (1693), conjunto de narrativas
recolhidas da tradição oral francesa por
Charles Perrault (1628-1703), no século XVII.

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E não só na França, pois na Alemanha do
século seguinte, os irmãos Jacob e Willelm
Grimm dedicaram-se igualmente a recolher
narrações que de há muito circulavam en-
tre o povo daquele país, de maneira que um PUXANDO
novo volume importante veio habitar uma
outra prateleira dessa estante, apoderan-
do-se, em seguida, da fantasia dos meni-
PROSA
nos daquele tempo. Quem poderia supor
Uma prova disso está presente
que essas histórias viveriam, pelos séculos
em A misteriosa chama da rainha
afora, no imaginário das crianças que ainda
Loana (2004), romance em que
hoje é nutrido pelas figuras universalmente
Yambo, o protagonista, em estado
conhecidas do gato de botas, de João e Ma-
de amnésia, procura recuperar sua
ria, da menina do chapeuzinho vermelho e
memória através da memória de
da bela adormecida no bosque.
papel, quer dizer, seus objetos sa-
Isso corresponde a dizer, retomando
grados: livros e HQs lidos na época
Alain Montandon, que o sabor da primeira
de menino. O autor desse livro é o
cereja perdura, em sua essência, ao longo
famoso escritor italiano Umberto
da vida. Esse mundo em que a criança se
Eco (1932-2016).
aloja, muitas vezes poderá vir a permane-
cer, também, para o adulto na forma de ob-
jetos-talismãs, uma vez que a materialidade
do livro traz à lembrança um paraíso de ex-
periências despertadas pelos sentidos:
o toque, o odor, a cor, o som, como se todos
eles estivessem a serviço da restauração de
um gosto de infância.

PARA ALÉM
DO TEXTO
Sobre os contos de fadas, ver: “Contos
de fadas e infâncias”, In: https://seer.
ufrgs.br/educacaoerealidade/article/
viewFile/22976/13260.

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Com o passar do tempo, personagens
dinamarqueses, como O Patinho Feio, A
Pequena Sereia e o Soldadinho de Chumbo
vieram fazer companhia a seus antepassa-
dos franceses e alemães. Entretanto, quan-
do Hans Christian Andersen (1805-1875) es-
crevia as narrativas, com sua rústica pena
de ganso, era nas crianças que pensava,
em sua sensibilidade. Transformou-as em
personagens de seus contos e, muitas ve-
zes, dava um jeito de conversar com elas
no decorrer dos relatos. Por essas razões, é
considerado o pai da Literatura Infantil,
cuja data comemorativa é 2 de abril, dia do
aniversário do escritor.

PARA ALÉM
DO TEXTO
Andersen, ele mesmo, é um
personagem fascinante e, por isso,
possui várias biografias mundo
afora. Aqui, no Brasil, podemos
ler sobre sua vida na distante
Dinamarca em: MACHADO, Ana
Maria, Palmas para João Cristiano:
de Ana Maria Machado para Hans
Christian Andersen. Ilustrações
Maria Inês Martins. São Paulo:
Mercuryo Jovem, 2004.

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PUXANDO
PROSA CURIOSIDADE
E QUANTO AOS ESCRITORES,
O QUE TERIAM ELES A DIZER SOBRE Foi o International Board on Books for
SUAS PRIMEIRAS LEITURAS? Young People, o IBBY (Organização
Internacional para o Livro Infanto-ju-
Através dos textos memorialistas, eles dão notícia dessas leituras preliminares de suas vidas, venil), fundada em Zurich, com sede
sendo, muitas vezes, esse relato sobre a alfabetização literária um depoimento sobre a ausência de atualmente na Basileia, e que fomenta
obras infantis na época em foco. Isso ocorre em Como e porque sou romancista (1893), no qual José a leitura em mais de sessenta países,
de Alencar (1829-1877) recorda seus tempos de meninice, em que exerceu o papel de que mais se que, em 1967, decidiu homenagear An-
orgulhou em sua vida – o de ledor da família. Segundo suas próprias palavras, mais até do que o dersen, reconhecendo nele a paterni-
magistério ou o parlamento. Porém, o que lia o menino Alencar? Melhor dizendo, o que lia Cazuza, dade da literatura infantil. No Brasil,
como ele era chamado na intimidade da casa? Ao falar da biblioteca doméstica, o escritor informa o IBBY é representado pela Fundação
ser ela composta de uma “dúzia de obras entre as quais primavam a Amanda e Oscar, Saint-Clair das Nacional do Livro Infantil e Juvenil(FN-
Ilhas, Celestina” e outras cuja lembrança já havia se apagado. (Alencar, 1990, p. 29) Os três livros são LIJ), fundada em 1968 e sediada no Rio
romances-folhetins – publicados em capítulos nos jornais, o que causava suspense nos leitores. Foi de Janeiro. O fato de nomear o mais
através de seu conteúdo que o menino de 10 anos entrou em contato com a ficção. importante prêmio na área de livros
Passando do século XIX para o XX, vamos perceber que Graciliano Ramos (1892-1953) ainda re- infantis, um Nobel em versão pequena,
gistra a inexistência de um corpus literário infantil, em nosso país. Sendo assim, o que lia, então? desde 1956, foi outra homenagem por
Sua curiosidade de leitor era satisfeita, em grande parte, igualmente com o romance-folhetim, mais sua dedicação à escrita para crianças.
especificamente, As aventuras de Rocambole, uma saga do escritor francês Ponson du Terrail (1829-
1871), que narra as inacreditáveis aventuras do personagem-título. Em Infância, aparecem registros
das leituras dessas peripécias mirabolantes, tão mirabolantes que deram origem ao adjetivo “ro-
cambolesco”: “Nesse tempo eu andava nos fuzuês de Rocambole”. E onde ele se deliciava com as
aventuras de tirar o fôlego? Nos “folhetos devorados na escola, debaixo das laranjeiras do quintal,
nas pedras do Paraíba, em cima do caixão de velas, junto ao dicionário que tinha bandeiras e figuras”

PARA ALÉM
(Ramos, 2006, p. 232)
No tempo de Clarice Lispector (1920-1977), porém, já se evidencia um outro momento de nosso

DO TEXTO
mapa literário infantil, e o ponto mais destacado dele é a presença de Monteiro Lobato (1882-1948)
e de seu livro de maior repercussão: Reinações de Narizinho (1931). Quem pode se esquecer da ânsia
da criança devoradora de livros em “Felicidade Clandestina”, um dos contos autobiográficos de Cla-
rice? Em “O primeiro livro de cada uma de minhas vidas”, crônica de A descoberta do mundo (1984),
a autora cria uma ciranda de histórias, aludindo novamente a Reinações de Narizinho, obra capital O gaúcho Érico Veríssimo (1905-
de sua segunda vida: “Acho que foi o livro que me deu mais alegria naquela vida.” As leituras mais 1975), autor de vários textos infantis
antigas, as da primeira vida, tinham sido O patinho feio e Aladim e a lâmpada maravilhosa. “Eu lia como O urso que tinha música na
e relia as duas histórias, criança não tem disso de só ler uma vez; criança quase aprende de cor e, barriga (1938), e o mineiro Pedro
mesmo quase sabendo de cor, relê com muito da excitação da primeira vez.” (Lispector, 2018, p. 546) Nava têm suas recordações de
E Ana Maria Machado (1941-), vencedora do prêmio Hans Christian Andersen de 2000, o que teria leitura examinadas em uma tese de
a dizer sobre suas leituras de formação? Em Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, doutorado, no endereço: https://
ela recorda sua descoberta do Dom Quixote, primeiro, escutando encantada a leitura feita por seu docplayer.com.br/23961019-
pai e, posteriormente, lendo, “por conta própria, em outra edição – o Dom Quixote das crianças, na Infancia-e-leitura-na-memoria-de-
adaptação de Monteiro Lobato”. (Machado, 2002, p.9) escritores.html 7926

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3.
O NOVO
“ERA UMA VEZ”
Os autores de Literatura Infantil são hoje
reconhecidos como portadores de uma
voz particular e não como um tipo de es-
critor menor, que, talvez, um dia, consiga
deixar essa condição subalterna e possa
atingir a literatura dita adulta. Ao contrário
dessa percepção, muitos são os escrito-
res que conjugam as duas dicções em sua
produção literária. No Brasil, por exemplo,
podem ser citados, entre outros, Jorge
Amado, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz
e Clarice Lispector.

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PUXANDO
PROSA
ESCREVER PARA
CRIANÇAS?
TAREFA FÁCIL? POIS SIM!
Sobre a complexidade da escrita infantil, va-
mos refletir junto com Silvana Tavano, escritora
de obras infanto-juvenis, entre as quais: Creuza
em Crise: 4 histórias de uma bruxa atrapalhada
e Encrencas da Creuza, publicadas pela Compa-
nhia das Letrinhas. “Nem sempre é fácil migrar
para esse país antigo – a infância que deixamos
para trás quando nos tornamos adultos. Há que
se reaprender o idioma, redescobrir palavras,
conversar com as crianças para recuperar o
ritmo das frases. Só assim obtemos o visto de
entrada e podemos circular com naturalidade
nesse país. Ouvir o que têm a dizer, brincar com

PUXANDO
elas ou simplesmente sentar numa praça no A cartela de títulos da Literatura Infan-
meio da tarde e observá-las para se lembrar: til é enorme, tendo hoje uma dimensão de

PROSA
como era mesmo aquela imensa curiosidade sete léguas. Por outro lado, o fato de esse
sobre todas as coisas? Escrever para crianças é mercado editorial ser tão vigoroso cria
falar com elas, ler todos os livros que as fasci- muitas questões relativas ao aprendizado
nam, reler os livros que marcaram a nossa pró- da leitura na infância. Diante do expressivo
pria infância, mergulhar no cânone com La Fon- número de títulos e da valorização dessas Precisamos ser uma sociedade
taine, Jonathan Swift, Charles Perrault, Irmãos leituras inaugurais, torna-se possível per- de cidadãos leitores e de leitores
Grimm, Collodi, Carroll, Roald Dahl, Rodari, Lo- guntar: em que condições se dá o acesso cidadãos. “Ora, se ninguém pode
bato, e passar horas nas livrarias entre Bartolo- das crianças a essas histórias? passar vinte e quatro horas sem
meu Campos de Queirós, Sylvia Orthof, Maurice Antonio Candido defende a fruição da mergulhar no universo da ficção e
Sendak, Tatiana Belinky, Wolf Erlbruch, Angela Literatura como um dos direitos huma- da poesia, a literatura concebida no
Lago, Lygia Bojunga, Marina Colasanti, Roger nos, e, embora ele não se reporte especi- sentido amplo a que me referi parece
Mello e dezenas de autores geniais. Também é ficamente aos textos infantis, eles estão corresponder a uma necessidade
fundamental estudar com Peter Hunt, Nelly No- necessariamente incluídos, na construção universal, que precisa ser satisfeita
vaes Coelho, Ana Garralón, entre tantos especia- da cidadania. Então, o primeiro aspecto e cuja satisfação constitui um
listas que se dedicam à literatura infantil. do problema se refere à inclusão de todas direito.” (CÂNDIDO, 2011, p. 177).
as crianças na cena literária, como uma exi- E como você acha que podemos
E, você, o que pensa a respeito? Até gência basilar dessa mesma cidadania. No colocar em prática a proposta
que ponto concorda com as afirmativas de Brasil, essa questão se vincula fortemente de Cândido?
Silvana Tavano? ao drama do analfabetismo.

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Embora a ficção possa ser experimentada de modos di-
versos, quer pela literatura escrita, quer pela literatura oral,
é importante que todas as crianças tenham competência
leitora para desfrutá-la em todas as suas singularidades.
Deve-se atentar, igualmente, para a noção mesma do
direito de usufruto de espaços de públicos
voltados para a leitura. Reportando-se
à ambiência, como um termo da equa-
ção, que leva à existência do “pequeno
leitor emancipado”, como um ator
social concreto, María Emília López
anota o testemunho de uma mãe
colombiana, também ela em pro-
cesso de emancipação: “Nunca
havia tido a oportunidade de ler
um conto ao meu bebê; pensei
que isso somente acontecesse
em famílias que têm a oportuni-
dade de comprar livros para seus
filhos”. (LÓPEZ, 2018, p. 27)
O desconhecimento da mãe,
verossímil na Colômbia e também
no Brasil, países com dívida social
importante, repercute a falta de
oportunidade por ela experimen-
tada, e sua distância da condição
de sujeito de direitos. Eis, assim,
uma outra razão importante de se
aprender a ler na infância, pois,
através do acompanhamento das
diversas situações ficcionais retrata-
das, tornam-se perceptíveis as variadas
formas de expressão da alteridade.

ALTERIDADE
natureza ou condição do que é outro,
do que é distinto.

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Se os relatos infantis sempre re-
presentaram um espaço para o en-
frentamento do outro, muito mais
em nossa contemporaneidade, em
que os temas da diversidade e da di-
ferença permeiam o cotidiano. Muitos
“outros” povoam as novas páginas do
texto infantil, como resultado até da
desconstrução de papeis canônicos
da modalidade narrativa tradicio-
nal. A metamorfose, um dos recursos
DESAFIO
mais presentes nos contos de fadas,
reivindica seu lugar nas narrativas do Que tal juntar a criançada na
século XXI e, assim, as novas princesas varanda, garagem, quintal, praça,
questionam sua antiga condição de comunidade, na sala de jantar ou em
pessoas inertes, que não interferem outros espaços convidativos para ler
na condução do próprio destino. Ho- com elas histórias infantis? Pode ser
moafetividade, reconhecimento ra- contos de fada, poesia, ficção...
cial, novos enquadramentos de famí- Você pode escolher os títulos, no
lia, guerras, migrações e preocupação começo dos trabalhos talvez seja
ecológica são alguns dos temas, que melhor, mas com a continuidade,
atualizam a pauta da Literatura Infan- que tal deixar que elas também
til e colocam seu receptor preferencial possam escolher o(s) tipo(s) de
como um interlocutor ativo da socie- leitura que desejam?
dade em que vive, tudo isso carreado
pela potência encantatória e transfor-
madora do “era uma vez”.

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REFERÊNCIAS
ALENCAR, José de. Como e porque sou
romancista. Campinas, SP: Pontes, 1990.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Biblioteca
verde. In: Boitempo - Menino Antigo. Rio
de Janeiro: Editora Record, 2006.
ARIÈS, Philippe. História Social da
Criança e da Família. Tradução Dora
Flaskman. 2. ed. Rio de Janeiro: LCT, 2012.
CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”.
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sobre azul, 2011.
HUSTON, Nancy. A espécie fabuladora:
Um breve estudo sobre a humanidade.
Tradução Ilana Heineberg. LP&M, 2012.
Porto Alegre: L&PM, 2012.
JOUVE, Vincent. A Leitura. Tradução
Brigitte Hervot. São Paulo: UNESP. 2002.
LISPECTOR, Clarice. Todas as crônicas. Rio
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LÓPEZ, María Emília.  “A emancipação dos
bebês leitores.” In: Caderno Emília nº 1. 10
de maio de 2018. Tradução Cícero Oliveira.
In:http://revistaemilia.com.br/caderno-
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MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler
os clássicos infantis desde cedo.  Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002.
MONTANDON, Alain. Du récit merveilleux
ou ailleurs de l’enfance: Le Petit Prince,
Le Magicien d’Oz, Peter Pan, ET, Histoire
sans fin. Paris: Éditions Imago, 2011.
RAMOS, Graciliano. Infância. 38. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2006.

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Fernanda Coutinho (Autora)
Professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
e Universidade Estadual do Ceará (Uece), especialização em Literatura Luso-Brasileira e mestrado em Literatura Brasileira pela UFC.
É doutora em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, pós-doutora em Literatura Comparada pela
Universidade de Minas Gerais (UFMG) e Université de la Sorbonne – Paris 4. Desde 1992, é professora efetiva de Teoria da Literatura do
Departamento de Literatura da UFC. Atuou como pesquisadora convidada do Centre de Recherche en Littérature Comparée, ligado à
Universidade de Paris - Sorbonne - Paris 4.

Rafael Limaverde (ilustrador)


É ilustrador, chargista e cartunista (premiado internacionalmente) e xilogravurista. Formado em Artes Visuais pelo Instituto Federal de
Educação, Ciências e Tecnologia do Ceará (IFCE). Escreve e possui livros ilustrados nas principais editoras do Ceará e em editoras paulistas.

Este fascículo é parte integrante do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura
de Fortaleza, sob o nº 05/2018.
Todos os direitos desta edição reservados à: EXPEDIENTE: FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de
Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Raymundo Netto Gestor de Projetos Emanuela Fernandes
Analista de Projetos Tainá Aquino Estagiária UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Viviane Pereira Gerente
Fundação Demócrito Rocha Pedagógica Luciola Vitorino Analista Pedagógica CURSO FORMAÇÃO DE MEDIADORES DE LEITURA
Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora Raymundo Netto Coordenador Geral e Editorial Lidia Eugenia Cavalcante Coordenadora de Conteúdo
Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Emanuela Fernandes Assistente Editorial Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico Marisa
Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271 Marques de Melo Diagramadora Rafael Limaverde Ilustrador
fdr.org.br ISBN: 978-85-7529-893-0 (Coleção)
fundacao@fdr.org.br ISBN: 978-85-7529-895-4 (Fascículo 5)

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