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2011
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Universidade de Aveiro Departamento de Línguas e Culturas
Ano 2011
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Dedico este trabalho aos meus pais, Maria do Céu e Eduardo, ao meu marido,
Júlio, e aos meus filhos, Beatriz e Carlos, por serem o antes, o durante e o
porvir da minha vida.
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o júri
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agradecimentos Ao meu orientador, Professor Doutor António Manuel Ferreira, agradeço a
orientação e o incentivo nos momentos em que quase desisti.
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palavras-chave Literatura, Marçal Aquino, violência, família, sociedade.
resumo O presente trabalho pretende ser uma breve reflexão sobre os contos de
Marçal Aquino. Em narrativas curtas, Marçal Aquino transporta para a ficção a
violência da vida real e confere-lhe uma dimensão literária. Através das
colectâneas de contos, Famílias terrivelmente felizes e O amor e outros
objetos pontiagudos, em que o tema da violência é recorrente, vislumbram-se
relações familiares e sociais conturbadas de personagens que se movem no
submundo marginal onde coabitam sentimentos tão distintos como a
vingança, o ódio e o amor que, ora sublime, ora cruel «pode ser a mais
eficiente das armas quando se deseja ferir» (Aquino: 2003). Merece-nos uma
atenta reflexão o realismo das histórias contadas que, por se assemelharem à
realidade ou às páginas policiais, se poderiam confundir com elas. A mulher
brasileira comum parece assumir um papel secundário, quer na família, quer
na sociedade. Esta sistemática e “consentida” reificação do papel da mulher
reflectir-se-á na célula familiar e na sociedade, potenciando a violência de
modo directo ou indirecto.
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keywords Literature, Marçal Aquino, violence, family, society.
abstract This work intends to be a brief reflection on the stories of Marçal Aquino. In
short narratives, Marçal Aquino transports the violence of real life to fiction and
gives it a literary dimension. Through the collections of stories, Famílas
terrivelmente felizes and O amor e outros objetos pontiagudos, in which the
subject of the violence is recurrent, you have glimpses of troubled familiar and
social relations of characters who move in the marginal underworld where
different feelings live together, feelings as different as revenge, hatred and
love that either sublime or cruel «can be the most efficient of the guns when
you want to hurt» (Aquino: 2003). The realism of the stories told deserves an
attentive reflection as because of their similarity to reality or to the police
pages, they might be mistaken for them. The common Brazilian woman seems
to assume a subordinate role, whether in the family or in society. This
systematic and "allowed" reification of the role of the woman will be reflected
in the familiar cell and in society, promoting violence, direct or indirectly.
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ÍNDICE
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ÍNDICE .......................................................................................................................... 1
I - INTRODUÇÃO............................................................................................................ 7
1. A violência ....................................................................................................... 19
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PARTE 1 – ENQUADRAMENTO
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
I - INTRODUÇÃO
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a literatura não poderá, sem ser esse o propósito, fazer parte de um acto de denúncia
colectiva que põe a nu as feridas da indiferença de uma sociedade adormecida.
Este trabalho está estruturado em três partes.
Na parte um, apresentaremos o jornalista e escritor, autor de contos, romances e
roteiros de cinema. Focaremos o tema da violência, na literatura em geral, em alguns
escritores brasileiros, e em particular naqueles a quem, de algum modo, Marçal Aquino
presta um enorme tributo.
Ainda na parte um, destacaremos algumas obras de Aquino onde predomina a
violência como temática: Desde A turma da Rua quinze (1995), passando por Invasor
(2002), Cabeça a prémio (2003) e Eu receberia as piores notícias de teus lindos lábios
(2005). Apresentaremos de forma breve, as principais características da sua obra e as
temáticas que aborda nas obras em estudo, Amor e outros objetos pontiagudos (1999) e
Famílias terrivelmente felizes (2003).
Na parte dois, analisaremos a violência e o realismo narrativo nas obras em questão,
englobando a violência social e familiar. Pesquisaremos o modo como o autor molda a
realidade nos contos e a transforma em ficção, de uma forma desprovida de preocupações
com as minudências, ressaltando apenas o essencial que, por um lado, caracteriza o conto
como género narrativo, por outro, cativa o leitor e, como já referimos, confere-lhe um
papel primordial na (des)construção das histórias das suas personagens.
No primeiro capítulo da parte dois, focaremos o realismo narrativo referente a vários
tipos de violência. A violência e o crime que proliferam nas obras de Aquino têm um cariz
realista que não pode dissociar-se da realidade vivenciada na contemporaneidade do Brasil.
Marçal Aquino, a respeito da sua Literatura, esclarece que a colagem à realidade advém do
facto de ele como outros escritores serem «escritores de corte realista, e a realidade anda
conflagrada, conflituosa. Escamotear esse lado criminal, (…) pareceria fraudar um pouco o
olhar para o real». Porém essa «não é uma questão que me preocupa. Acho que esse tipo de
coisa não deve ocupar o escritor. Apenas o escrever» (Aquino: email [para mim] de 18 de
Abril de 2011). Tentamos demonstrar que há uma relação muito estreita entre os enredos
de Aquino e a violenta realidade brasileira - aquela que chega ao conhecimento colectivo
através dos media. O escritor não retrata a realidade, porque, segundo afirma, isso seria
jornalismo: «Não significa que eu pegue o fato e o transcreva, porque aí eu estaria fazendo
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jornalismo. A literatura tem um outro tipo de mirada. O ponto de partida pra mim sempre é
a realidade, mas o resto é por conta da imaginação» (Aquino, 2004).
No segundo capítulo, ainda «colado» à realidade, a família, como unidade celular da
sociedade, está inevitavelmente situada no centro dos conflitos e é atingida directa ou
indirectamente pelos estilhaços decorrentes da «conflagrada» onda de violência
generalizada. Faz-se uma breve referência às origens da família brasileira, segundo
Gilberto Freyre, para depois verificarmos o modo como Aquino aborda a família e a sua
tipificação, bem como os antecedentes responsáveis pelo desmoronamento das relações
familiares, que ele desvenda de um modo complexo e, simultaneamente, discreto, nos seus
contos. Por que motivos parecem todas as relações familiares ou sociais condenadas à
ruina, a um desfecho trágico? A resposta vai-se revelando a cada leitor. É possível que de
um modo diferente, de leitor para leitor; por isso, a análise encontrada neste trabalho tem a
marca da nossa modesta interpretação.
No terceiro capítulo, focaremos a mulher no centro da violência em duas vertentes,
como parte integrante e unificadora da família e da célula familiar - mãe, irmã ou filha-, e
como vítima de violências várias e, simultaneamente, fomentadora da desordem familiar -
amante ou esposa, pérfida e infiel. De um modo geral, os narradores de Aquino, quase
sempre homens, focalizam a mulher reificada, numa perspectiva naturalista e moralista,
subjugada a um mundo masculino que detém o ceptro soberano.
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1. O autor e a obra
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«Gibi foi o título de uma revista brasileira de história em quadrinhos, cujo lançamento ocorreu em 1939.
Graças a ela, no Brasil o termo gibi tornou-se sinônimo de "revista em quadrinhos"»
(http://www.tiosam.org/enciclopedia/index.asp?q=Gibi).
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gostaria de ter”. Então começa por aí, essa coisa de você sentir absoluta liberdade, de
que nada pode impedir você de contar aquilo que você quer. (Aquino, 2008:24)
(...) escrever para o cara de 14 anos, tem que ser sobre o tema “x”, tem que ser a
linguagem “x”, não pode falar daquilo. Esse tipo de cerceamento eu nunca admiti. E
isso me pareceu esvaziar o “tesão” da coisa, de fazer intuitivamente, de você mesmo
2
http://www.cbl.org.br/jabuti/telas/edicoes-anteriores/premio-2000.aspx
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http://www.cbl.org.br/jabuti/telas/o-jabuti/
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quando está escrevendo não saber o que vai sair. Eu gosto da idéia de que sou livre
para escrever. (Aquino, 2008:25)4
4
Entrevista à Revista Livro, durante o 4º Fórum das Letras, em Ouro Preto.
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Com base em entrevistas do autor.
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1. A violência
Os actos de violência física causam a dor física, aquela que o leitor pode imaginar
sem nenhum exercício de introspecção, porém essa é apenas uma das suas formas. Outras
se lhe associam e não menos devastadoras. A agressão psicológica desliza em silêncio
junto da vítima, e rasga feridas submersas impossíveis de observar a olho nu.
Segundo François Stirn, «a violência parece inseparável não da estrutura do universo
(do caos original), mas da condição humana ou do desejo de liberdade» (Stirn, 1978: 26).
Assim sendo, onde houver um ser humano sedento de liberdade e/ou de poder,
encontramos violência. Hebe Signorini Gonçalves acentua o carácter universal e
angustiante da violência:
Esta faceta da violência, que parece inerente à própria condição humana, está
presente na história da literatura, portuguesa e mundial, actual e antiga, e mancha de dor e
de sangue os mais sacralizados textos. A violência e a destruição são os catalisadores dos
homéricos escritos e povoam a Odisseia e a Ilíada desde as primeiras linhas: «Fala-me,
Musa, do homem astuto que tanto vagueou, depois que de Tróia destruiu a cidadela
sagrada» (Homero, 2005b: 25). «Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida (mortífera!,
que tantas dores trouxe aos Aqueus e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presas para cães e aves de rapina». (Homero, 2005a: 29). A
violência, a destruição, a luta pelo poder, a morte de culpados e inocentes e as mais
ignóbeis traições impulsionam cada capítulo e movem os instintos dos heróis. A violenta
destruição provocada, quer pela ira dos deuses desencadeada contra mortais criaturas,
numa desigualdade de forças, quer pelas lutas entre mortais, ou entre deuses, enche as
páginas dos clássicos poemas épicos e dos relatos bíblicos. A Bíblia sacralizou a violência
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nas suas páginas onde, sob diversas formas, origina trágicos desfechos, genocídios,
parricídios, infanticídios, fratricídios. Movido pela humilhação e pela inveja, Caim
assassinou o seu irmão, Abel, e foi amaldiçoado por Deus: «O sangue do teu irmão, que tu
derramaste, levanta-se da terra a pedir-me vingança. Por isso, amaldiçoado sejas tu pela
terra que bebeu o sangue do teu irmão, que tu mataste» (Génesis, 4: 10,11).
A literatura está repleta de narrativas onde a violência espreita até dos mais inocentes
enredos das histórias infantis. Assistimos às lutas entre o bem o mal, pela detenção do
poder, em que um vencedor terá lugar, aquele que chamam herói, e que raramente se
destaca sem o recurso a uma qualquer forma de violência. Salvaguardando as respectivas
diferenças culturais e epocais, contos da literatura tradicional como O Capuchinho
Vermelho, A Bela Adormecida, A Branca de Neve e os sete anões (registados ou recolhidos
por Charles Perrault) padronizam, ainda que simbolicamente, a violência contada às
crianças, na perspectiva do herói vitorioso ou na de um narrador que estrategicamente
defende o seu ponto de vista.
O leitor descuidado é guiado pelos labirintos da violência e do crime,
perspectivando-os internamente desde verosímeis sentimentos de justiça, ou de justiceiros
em que se diluem as fronteiras ente o certo e o errado, entre a justiça e a vingança. A
realidade e as múltiplas facetas da violência são transpostas para a literatura por inúmeros
escritores que, ultrapassando a linha que separa a realidade da ficção, se socorrem das
temáticas da primeira para afrontar ou enfrentar a segunda.
Alguns escritores brasileiros contemporâneos, embora de modos diversos, conferem,
através dos seus escritos, a palavra aos abandonados pela fortuna e pela vida. Idealizam
uma realidade que subjaz palpitante nas ruas e nos bairros da periferia urbana brasileira.
Entre outros, destacamos aqui alguns autores que, além de universalmente consagrados,
são referenciados por Marçal Aquino em diversas entrevistas. Todavia temos consciência
de que existem outros cuja pós-modernidade e actualidade lhes permitiriam pertencer ao
rol dos que tentam arrancar da trágica realidade a essência literária que conferirá à sua
escrita a fecundidade que lhes permitirá suplantar a própria realidade.
Jorge Amado, «fecundo contador de histórias regionais» (Bosi, 1986: 457) e urbanas,
conta as desventuras dos meninos abandonados pela vida, cuja inocência precocemente
roubada deambula pelas ruas de São Salvador da Bahia, em Capitães da Areia.
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Numa referência directa aos escritores que influenciaram a sua escrita, Marçal
Aquino afirmou:
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Texto de autor anónimo, na contracapa do livro Buraco na parede, de Rubem Fonseca (1996).
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Na obra de Marçal Aquino, desde a literatura juvenil, de que damos como exemplo,
A Turma da Rua quinze, é abordada a violência urbana, embora numa perspectiva policial
e, poder-se-ia dizer, pedagógica. O protagonismo é de um grupo de adolescentes cuja
curiosidade e perspicácia os leva a enfrentar de forma subtil, mas ingénua e atrapalhada, o
mundo marginal e criminoso dos adultos que, afinal lhes são tão próximos: «Tigre,
Serginho, Pedro e André ficaram paralisados quando reconheceram o homem calvo que
mantinha Dino sob a mira de seu revólver: o chefão era o pai de Bia» (Aquino,1995: 103).
Acaba por ser a filha do misterioso chefe da quadrilha, amiga do grupo de rapazes
curiosos, a incauta coadjuvante do criminoso ao fornecer-lhe indicações sobre os
movimentos do grupo de jovens:
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personalidade, que o vai arrastando pela vida numa eterna espera. Numa coabitação
impossível, dois amores coexistem numa plácida hipocrisia profanando a crédula
existência do bispo Ernani, o marido traído de Lavínia. Amor, paixão, dor, traição,
incerteza, e finalmente a loucura alimentam a trama amorosa que se metamorfoseia de tal
modo que o caos assume o comando e conduz as vidas numa vertiginosa corrida em
direcção ao abismo da existência onde nada parece ser o que é. O final é trágico com a
morte física do marido traído e com a morte psicológica da mulher – a insanidade.
Com desfechos quase sempre infelizes, quase sempre trágicos, na narrativa, como na
vida real, as personagens sofrem as vicissitudes da existência e não vivem felizes para
sempre. Quando interpelado pelos críticos por não pensar em finais felizes, Marçal Aquino
ironiza: «O que posso fazer, se nada me mostra a felicidade» (Giron, 2003).
As narrativas não têm finais convencionais, e nalgumas, como refere António
Manuel Ferreira, aludindo a uma das características da escrita machadiana, «diz muito
mais, no seu estilo tácito e contido, do que a verbalização condicionada e restrita das
personagens» (Ferreira, 2009: 260). Termina a narrativa, mas não finda a história. Esta
continua para além do texto, nas entrelinhas a que apenas acede a fantasia de cada leitor.
Os pormenores permanecerão na mente de narradores autodiegéticos ou não, porque, numa
cumplicidade com a imaginação específica de cada leitor, não quis negar-se-lhe a
possibilidade de criar juntamente com o escritor pedaços de enredos que decidiriam o rumo
de histórias inacabadas, ou encaixadas em buracos negros narrativos, indesvendáveis pelos
leitores menos atentos e pouco curiosos.
Ainda que Marçal Aquino afirme que «O roteiro da realidade é tão feroz que não dá
para imaginar...» (Aquino, 2003a), a violência assume uma veracidade atemorizante
quando transposta para as páginas da sua imaginação. As personagens dos contos de
Aquino, de uma maneira geral, deambulam pelos enredos recriados, ora como vítimas
indefesas, ora como agentes da violência que assume carizes diferenciados, seja de índole
física ou psicológica. A perversidade e a frieza de certos relatos, não raras vezes, narradas
pelos próprios perpetradores, nem sempre são explícitas, nem sempre são claras. Uma das
características dos contos de Aquino é a subtil arte de insinuar sem afirmar, de deixar o
leitor decidir a importância de um pormenor ou até mesmo o final de um enredo.
Ainda que não seja esse o objecto da nossa análise, a violência como temática da
literatura actual não dispensa a abordagem da problemática da violência na sociedade
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A violência,
seja qual for a maneira como ela se manifesta,
é sempre uma derrota.
Jean-Paul Sartre
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adquirem contornos mais definidos, mais elaborados e com mais acção, e os finais quase
sempre surpreendem. São disso exemplo os contos, «Boi», «Matadores» e «A face
esquerda». Neste sentido, o crítico Cristóvão Tezza, no prefácio do próprio livro Famílias
terrivelmente felizes afirma que
O amor é um mistério, o amor é o que nos mantém vivos. Ele nos interessa
muito mais do que a guerra, embora não pareça. O amor, o amor permite a poesia, o
amor permite a literatura. O amor permite que a gente saia da cama de manhã e
procure de que lado deixou os chinelos. Esse é o amor que interessa. (Aquino, 2009b)
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desconhece a vida do filho que entregou à sua sorte há doze anos, e que reencontra
estendido numa fria morgue, vítima da ausência do pai ou apenas do arrojo da juventude,
em «Renda-se, Bob Mendes, você está cercado»; o narrador que não sabe nada pessoal
acerca da amante, em «Sete epitáfios para uma dama branca», além do seu peso e altura.
Um guerrilheiro, herói de «Novas cartas paraguaias», de quem o subtil jornalista finge
escrever as façanhas, e que não percebe, até ao último momento, que entre as suas proezas
e malvadezas, há uma que ele pagará com a vida. O ex-presidiário que continua preso a um
passado de marginalidade que já não existe e a uma mulher que o trocou pelo seu inimigo,
em «Partilha I». Em «Partilha II» o marido nem suspeita da vingança que lhe é preparada
pela mulher e pelo seu ex-sócio de crime. «Jantar em família» é uma revelação para dois
irmãos que não se conheciam assim tão bem como julgavam. No conto «O cerco», o que
apavora os fugitivos é o desconhecimento dos movimentos dos seus inimigos.
Contos que parecem um julgamento da sociedade actual que vive obcecada num
mundo dominado pelo egoísmo narcísico em que a alteridade caiu em desuso:
O traço comum nas histórias deste livro é que em todas elas alguma coisa parece
estar chegando ao fim; lealdade, esperança, amizade - a vida às vezes. E é a
consciência de que algo se perdeu de forma irremediável que move os seus
personagens. Gente íntima do abismo o suficiente para ensinar que é sempre perigoso
ficar próximo de quem não tem mais nada a perder. Acuados no mundo sombrio e
devastado em que vivem, estes personagens, mais do que confrontar-se, buscam
proteger-se com aquilo que têm à mão; o ódio, o sexo, a vingança e até mesmo o amor
- que, eles descobrem, pode ser a mais eficiente das armas quando se deseja ferir. (s. a.,
in Aquino, 1999)
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…não há como ignorá-la nem como fugir dela, a violência se faz presente a qualquer
hora em toda a parte, seja nos espaços públicos ou privados, podendo mesmo arriscar
dizer que já se encontra infiltrada nas mais recônditas frestas da subjetividade do
homem contemporâneo. (Gonçalves, 2003: 11)
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realidade, ele é próprio da literatura, embora ele esteja aludindo a uma realidade já
existente», esclarece Aquino, numa entrevista publicada no jornal Semana 3 (ed. 20,
Fevereiro de 2004).
Marçal Aquino põe o dedo na ferida de alguns aspectos da realidade brasileira de um
modo subtil, porém acutilante. Um determinado tipo de violência pode estar associado a
uma faceta interventiva da literatura na sociedade.
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Às vezes penso que meu tio poderia ter-se casado. Uma morena (…). Ou uma
loira, de olhos claros (…). Que lhe faria um carinho nessas madrugadas pastosas,
como cães vadiando em sacos de lixo e carros mortos no meio-fio.
(…) ele poderia ter sido funcionário público. Desses que ninguém nota em seu
posto, em meio a diários oficiais, carimbos e mesas na penumbra. Dissimulado,
confundindo-se com os fichários. (ibid.: 13)
Eu, que não sei como foi sua vida sexual, imagino meu tio chagando na
rodoviária em Botucatu, numa tarde de chuva. Dessas tardes cinzentas que fariam
contraponto com seus olhos verdes – isso eu me lembro que ele tinha. E a amante o
receberia como a esposa recebe seu homem depois de uma longa viagem. (…) Mas
eles fariam amor. Com fúria, num hotel de encontros, com sabonete gasto na pia para
depois do amor. Sem pressa, na sala de uma casa modesta. Com tevê, coração de Jesus
na parede, toalha de plástico na mesa de centro, sofá verde, todas essas coisas que são
de direito. Mas meu tio não teve amantes. (ibid.: 14)
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destruído o ninho. Uma realidade cruel para o pai que vê uma sociedade cujos valores
estão teimosamente invertidos e espelhados na sua família, onde ele revê o seu próprio
fracasso como pai e marido, no casamento fracassado de «Helena, a filha mais velha», nas
suas frequentes trocas de namorado e no aborto «resultado da parceria com um de seus
namorados», na conduta ilícita do filho «caçula» por posse de drogas, na promiscuidade
sexual do filho mais velho, o próprio narrador, surpreendido pelo pai «nu com uma
empregadinha que estava em casa há uns quinze dias». E mesmo assim, ele reitera a sua
posição comentando que «era a primeira vez que aquilo acontecia na sua família» (Aquino,
2003: 39-40). A decepção ou o conformismo brasileiro explica-o o narrador, no mesmo
conto, na parte que lhe serve de conclusão, recorrendo à opinião do professor Hans Ulrich
Gumbrecht7 sobre os brasileiros:
E pensaria que filho único é uma merda mesmo: continua aprontando até depois
de crescido. Tenho a certeza de que ele gastaria um bom tempo revendo fotos que
tiramos juntos: uma pescaria em Mato Grosso, algumas de formaturas – ele sempre
7
«Hans Ulrich Gumbrecht nasceu em Wuerzburg, na Alemanha, em 1948. É professor de literatura na
Universidade de Stanford. Publicou no Brasil, entre outros livros, Modernização dos sentidos (1998, Editora
34) e Em 1926: vivendo no limite do tempo (1999, Record)».
(http://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=02449).
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envergando seu indefectível terno cinza – e até uma da festa das bodas de prata, a
última antes de minha mãe morrer. Penso que ele iria sentir-se cada vez mais sozinho
lá no interior. E cada vez mais ranzinza com Rex, um vira-lata, sua única companhia
há anos. (Aquino, 2003: 61)
O pai pactua por antecipação com uma possível atitude discriminatória da sociedade
em relação a um hipotético descendente da filha que, de acordo com as leis da genética,
seria mulato.
O realismo do conto «Matadores» é explicado objectivamente pelo próprio Marçal
Aquino, numa entrevista à revista Livro. A realidade dá origem ao texto jornalístico, uma
reportagem, que adquire vida própria num texto literário, um conto, e parte
autonomamente para a sétima arte, um filme, materializando-se no dinamismo da imagem:
(…) um conto que era para ter sido um romance, que eu não consegui terminá-
lo como romance, mas acabei publicando como conto, se chama “Matadores”. É uma
coisa que se passa na fronteira do Brasil com o Paraguai, herança de reportagem que
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fiz lá, e depois resolvi fazer uma ficção daquilo. O Beto8 pegou esse texto e adorou.
(Aquino, 2008: 23)
Estava demarcado o espaço real da intriga. No conto apenas se refere que se passava
na região da «fronteira» onde havia duas coisas fáceis de fazer, uma era cruzar a fronteira,
a outra arranjar inimigos» (Aquino, 2003: 129).
Apesar de realista, e de utilizar uma linguagem fria, manifesta a preocupação ou a
necessidade de codificar o verdadeiro ofício, talvez por respeito com a lei bíblica «Não
matarás…». Deste modo, o acto de «matar» é quase sempre substituído por «negócio» ou
«trabalho»: «Quando começou no negócio», Múcio «precisava partir e achar trabalho em
outro lugar» (…), «nunca havia trabalhado para um patrão fixo» (…) e aceitou o convite
para trabalhar com o Turco. O que importava é que ali existia trabalho, exatamente do tipo
que sabia fazer» (ibid.: 127,128,129). A trama da história reúne em si vários tipos de
violência e tem retoques cruéis de realismo. A vida desses “matadores” é inspeccionada
por dentro, e partindo do interior, através da óptica do criminoso, que faz do crime o seu
«trabalho», o seu «negócio». Muito diferente da perspectiva da vítima a que nos
habituaram escritores, roteiristas, cineastas e jornalistas. O narrador, também ele um
matador, dá-nos conta da sua vida, dos seus medos, fraquezas, fragilidades, das suas
relações de amizade, de amor e familiares. Enfim, quem tem por ofício tirar a vida, ainda
que seja a mando de outrem, também sofre de todas as vicissitudes do ser humano. Um
prostíbulo de beira de estrada, onde vão desfilando a luxúria, o medo e a desconfiança, e
onde os cheiros de fumo e de álcool se confundem e a morte espreita, é o cenário de uma
tocaia, onde a morte encomendada espera «um cara muito perigoso. E muito inteligente
também» (ibid.: 118).
O narrador autodiegético vai revelando o percurso de vida dos matadores, como se
desfiasse vagarosamente um novelo de linha muito fina. Utiliza o método do suspense e da
surpresa, escondendo mais do que revela quer ao leitor, quer ao seu companheiro de
“ofício”, e também seu interlocutor, Alfredão, que não viveu para receber o pagamento
pelo serviço. A morte do ex-companheiro, Múcio, que hipocritamente lamentam, é
assunto recorrente entre os dois matadores que escondem nesses lamentos a
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Beto Grant, o cineasta que põe em cena a maior parte dos roteiros escritos por Marçal Aquino.
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responsabilidade ou a culpa que, por sua vez, tentam esconder até dos seus próprios
pensamentos. Ou talvez fosse apenas um estratagema subtil para se certificarem daquilo
que provavelmente ambos intimamente suspeitavam:
No passado, ele sempre havia trabalhado em parceria com o Múcio. Até que o
acertaram no Blue Star, num lance que a gente nunca conseguiu entender direito. (…)
– Sabe que até agora não consegui entender como aquilo foi acontecer com
Múcio – eu disse.
Pela maneira como Alfredão me olhou, me arrependi na hora de ter tocado no
assunto. Aquilo o chateava: eu sabia que ele era apegado ao parceiro. E nem podia ser
diferente, depois de tantos anos trabalhando juntos. (ibid.: 119)
Do mesmo modo, Alfredão tenta culpar o ex-companheiro pela sua própria morte:
- O Múcio vacilou. Eu sempre falava para ele que a gente não pode bobear.
Quando menos se espera… esses putos estão sempre esperando uma chance.
- Mas a gente não pode negar que foi um serviço bem feito, coisa de
profissional, você não acha? (ibid.: 119)
Aquela mesma cena já o havia excitado antes, quando numa espécie de aflição,
ele antevia o momento de tocar o corpo branco e magro da mulher. E impaciente
chegava a andar pelo quarto para preencher os minutos que ela levaria a até estacionar
o carro, subir as escadas de madeira desbotada e bater à porta. (ibid.: 126)
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sua vida, em direcção a um final único que pressentia, mas que tentava a todo o custo
evitar:
“Eu ainda acho que vai dar merda”, ele falou, olhando-a sério. “Ah, não, você
está pensando nisso de novo?” protestou. “Escuta, não é melhor a gente acabar com
isso de uma vez?”, ele perguntou, sentado na cama. (…) Você poderia matá-lo, não é?
Isso resolveria as coisas para a gente”. (…) Você é louca propor uma coisa dessas…”.
Ué, mas não é isso que você sabe fazer melhor?” ela retrucou divertida. “Vamos parar
de brinca e falar sério?” ele propôs (…). Ora, o grande matador com medo. Quem
diria, hein? Deixa o Alfredão saber disso. Ele que vive dizendo que você não tem
medo de nada.” (ibid.: 129-130)
Se o pai não fosse analfabeto, Múcio poderia escrever-lhe uma carta contando
como ia a vida. (…) até dar detalhes de como viera parar ali na fronteira, recordando
o dia em que estava fazendo hora num boteco de estrada e conheceu Alfredão, isso
mais de dez anos antes. (ibid.: 129)
Nem a assinatura de morte e de violência que deixava nas vítimas lhe pertencia. Era
do seu mestre de ofício: «E, num gesto romântico, até cortou o dedo mínimo esquerdo do
rapaz, uma última homenagem ao mestre» (ibid.: 128).
A sua morte pela mão do seu companheiro de ofício, Alfredão, não foi apenas a
execução de mais um serviço, foi a prova de que o «ofício» de matar não contempla
sentimentos como a sensibilidade, a humanidade e a caridade. A lealdade, a amizade e a
cumplicidade que poderão existir entre os pistoleiros são empurradas e fechadas à chave
num qualquer lugar inacessível, enquanto prevalecem o dever e a subjugação ao poder:
43
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
Vamos cair fora os dois, então – Múcio se preparava para saltar na direcção do
criado-mudo.
– Pra quê? O Turco passaria a vida mandando pistoleiros atrás da gente. Estou
muito velho para ficar fugindo por aí.
– Porra, Alfredão, nós somos amigos.
– Foi por isso que o Turco me mandou. Para testar até que ponto eu sou um
pistoleiro de confiança. (ibid.: 139)
44
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
A partir daquela inesperada visita, a vida daquela família iria mudar. Uma ordem
cumprida, uma porta fechada teria evitado a tragédia. E ao contrário do que o pastor
anunciara num programa de televisão, «que a vida era uma questão de escolhas» (ibid.:
201), a escolha entre viver e continuar naquele lugar não era dele, o patrão já a tinha feito
por ele. A ordem de Venâncio era clara e não lhe deixava alternativa: «Você tem de ir
embora daqui. (...) Pega a Regina, o moleque e vai embora. (…) Você não tem escolha». E
não tinha. (…) «Zizinho nunca mais poderia pôr os pés naquele bairro, Venâncio pensou.
Nem ele» (ibid.: 201).
45
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
46
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
era o verdadeiro alvo da visita dos três marginais, ou pelo contrário era o empecilho para a
concretização dos possíveis intentos dos marginais. Seja qual for a intenção, é evidente que
a mulher não usufrui de liberdade para decidir a sua vida. A prisão do marido estendeu-se à
sua família que sofre duplamente a sua ausência.
Apesar de a legislação brasileira9, desde 1991, assegurar o auxílio económico à
família do recluso, protegendo-o, desse modo, da necessidade material, não consegue
acautelar nem suprir a ausência física e esta problemática continua sem solução, na ficção
e na realidade.
A imprensa está manchada de notícias do mundo do crime e da corrupção, todavia
títulos como: «Policiais de Mogi acusados de extorquir e ameaçar comerciantes /Policiais
civis de Mogi achacavam comerciantes» (Jornal Sete, 11/5/2008), «Presos policiais
suspeitos de extorquir empresário na Bahia (d24am, 28/04/2011), «Dupla é baleada ao
extorquir família 3 vezes em 1 dia» (Valota, 28/04/2011), «A Rocinha se mantinha
„protegida‟ das mãos do estado por uma rede de proteção composta por policiais a serviço
do traficante Antônio Bonfim Lopes, o „Nem‟» (Tudo global, 18/02/2011), são uma marca
do quotidiano real. Com algumas nuances, seria possível utilizar este último título para
estabelecer a ponte entre a realidade e a ficção no conto «Renda-se, Bob Mendes, você está
cercado» (Aquino, 1999), o único conto cujo enredo traz a lume claramente um caso de
corrupção policial e, paralelamente um confronto entre duas forças policiais distintas. Com
uma elipse temporal de doze anos, dois agentes federais são barbaramente assassinados
pelo próprio delegado de polícia, quando interferem nos seus negócios com os
contrabandistas locais. A astúcia do delegado consegue, apesar do lapso temporal,
continuar a exercer a sua dualidade e manter como bode expiatório o contrabandista de
«uísque e perfumes», que pretensamente protege, mas que, na realidade, manipula e
chantageia inescrupulosamente.
A denúncia e os contornos da corrupção vêm embrulhados num drama familiar que
se entrelaça com a trama policial, num jogo narrativo em que o enredo se alterna entre o
passado e o presente. O passado revive no presente a sua faceta trágica e é ensombrado por
um momento doloroso da vida de um pai que, doze anos depois, numa noite impregnada de
9
Lei nº 8.213, de 24 de Julho de 1991.
47
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
medo e de ódio, marca o último encontro com o filho que já não conhecia, numa morgue.
Morto como morta está a esperança, a saudade, a nostalgia, mas não a culpa:
O menino estava nu sobre uma mesa de metal. A primeira coisa que chamou a
atenção de Bob foram os pêlos escuros que despontavam em seu queixo – Bob
Mendes não sabia que o filho já tinha barba. Depois olhou para o desenho colorido na
lateral da perna esquerda – Bob Mendes nunca imaginou que o filho tivesse feito uma
tatuagem. (…) Daniel estava morto. E parecia morto mesmo. (…) (ibid.: 70)
A morte do jovem Daniel transforma-se no isco que reúne numa fria madrugada do
presente, o passado de Bob Mendes, que vem despedir-se do filho, o agente federal
Faustino, que quer esclarecer a morte de outro agente federal assassinado há doze anos - o
seu tio Fontoura -, o delegado Monteiro, que quer garantir que o agente federal não
descobre a sua actividade por aquelas bandas, e Honório que vem apenas chorar o «menino
Daniel».
O delegado consola o pai dizendo que o filho «Deve ter morrido na hora. “Nem
sentiu nada”», e coloca-o a par dos detalhes da morte causada pela irreverência
inconsciente da juventude e pela periculosidade do «racha»10, ao mesmo tempo que
assume a sua própria inércia como polícia, dizendo que sabe «direitinho onde é que ele» -o
responsável pela morte do filho - «está escondido» (ibid.: 70), Enquanto isso, Bob pensa
na mãe do filho, Ester, e aproveita para arrumar a saudade e as memórias da sua vida
naquela cidade da qual levaria apenas a fidelidade do General, o velho «cachorro», que o
ex- empregado lhe devolveu.
No presente, o passado revela-se em analepses curtas e em tentativas infrutíferas de
combate à corrupção policial. O agente federal «Disse que o delegado Monteiro estava
acabado e que ele iria adorar foder com um tira corrupto» (ibid.: 75). Mas o delegado não o
deixou cumprir a promessa e disparou à falsa-fé com a arma do seu protegido:
10
Corrida ilegal de automóveis.
48
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
Você está fodido comigo, Monteiro. Eu vou acabar com a sua aposentadoria.
Não tem problema, o delegado disse, mantendo a arma apontada para Faustino.
Você está estragando a sua carreira. Pensa bem caralho.
Eu pensei. Nós dois vamos pegar o carro agora e dar um passeio. Enquanto isso
o Bob vai embora. (ibid.: 77)
Desde há cerca de trinta anos uma outra força contribui para a fragilidade dos
regimes: uma corrente revolucionária de inspiração marxista que toma Cuba como
modelo. Em vários países as forças revolucionárias recorrem à guerrilha e ao
49
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
O que encontramos no conto «Echenique» (Aquino, 2003) são respingos dos eternos
confrontos entre os guerrilheiros colombianos das Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia (FARC) 11 e os soldados do exército colombiano, que atingem inevitavelmente o
Brasil, bem como os países que fazem fronteira com a Colômbia. Aborda-se com subtis
pinceladas de realismo narrativo este marasmo de autodestrutivas lutas sem tréguas,
encruzilhadas de morte que espalham sofrimento, dor e revolta entre inocentes e culpados,
civis e militares, dentro e fora do Brasil. Os sequestros de políticos, de militares e de
membros da polícia são prática comum da guerrilha Colombiana12. Os antecedentes e
preparativos do resgate de um engenheiro mantido sob sequestro durante dois anos por um
grupo de guerrilheiros, supostamente colombiano, são o cenário para uma ramificação de
outras veredas narrativas percorridas com muita cautela pelo narrador ao longo da trama.
As condições em que terá sido mantido em cativeiro um engenheiro de nacionalidade
desconhecida adivinhavam-se pela descrição do intermediário da sua libertação, o
narrador: «Vi que estava descalço, com os pés enfaixados, e andava com dificuldade.
Tinha antecipado o sofrimento de pelo menos duas encarnações» (ibid.: 180). Não há
necessidade de se alongar na descrição, porque a realidade se encarrega de o fazer através
do testemunho de reféns que foram e que ainda vão sendo libertados.
Luis Mendieta13, refém das Farc durante nove anos, fez chegar à sua família algumas
cartas através da ex-congressista Consuelo González14. O conteúdo de algumas dessas
cartas foi dado a conhecer através dos microfones da Caracol Radio15
11
Movimento guerrilheiro colombiano, fundado por camponeses, em 27 de maio de 1964
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Forças_Armadas_Revolucionárias_da_Colômbia).
12
Em Fevereiro de 2010, 79 pessoas encontravam-se sequestradas por forças revolucionárias da Colômbia.
(http://www.fondelibertad.gov.co/2/informe_secuestro/resultado_estudio).
13
«El Mayor General Luis Herlindo Mendieta Ovalle (nacido en 1959) es un Oficial de la Policía Nacional
de Colombia que inició su carrera en esa fuerza el 12 de agosto de 1974. El General Mendieta (quien en ese
momento ostentaba el grado de Teniente Coronel) fue secuestrado por las Fuerzas Armadas Revolucionarias
de Colombia (FARC) en la Toma de Mitú, el 1 de noviembre de 1998. Fue rescatado por el Ejército Nacional
de Colombia el 13 de Junio de 2010» (http://es.wikipedia.org/wiki/Luis_Mendieta).
14
Consuelo González de Perdomo, sequestrada em 10 de Setembro de 2001 e libertada em Janeiro de 2008.
(http://www.elpais.com/solotexto/articulo.html?xref=20080115elpepuint_4&type=Tes&anchor=elpepuint).
15
(http://www.caracol.com.co/noticias/jenny-mendieta-hija-del-coronel-mendieta-secuestrado-hace-9-anos-
lee-carta-de-su-padre/20080115/oir/533502.aspx).
50
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
Los penosos viajes en hamaca por el cruce de ríos, terrenos difíciles, pantanos
etc, los sitios donde me dejaban, llegaban bichos de diferentes clases: moscas,
mosquitos, tábanos, zancudos, mostacilla, hormigas de diversos colores y tamaños,
arañas, abejas de diferentes clases, avispas de diferentes tamaños. (…) Me tocaba
arrastrarme por el barro para mis necesidades, únicamente con la ayuda de mis brazos
porque no podía levantarme, (…) me volvieron a colocar cadenas al cuello, atado a un
palo cuando hasta ahora empezaba la convalecencia. (Mendieta, 2008b)
51
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
O homem fingia não se interessar em saber quem éramos ou que fazíamos. Mas
tinha olhos desconfiados e, eu já notara, estava atento. Na manhã daquele dia,
aproximou-se do lago, como quem calculava se valia a pena pescar ali, e aproveitou
para conferir, dissimulado, as placas dos carros. (ibid.: 168)
As débeis condições de vida de uma família que tinha deambulado pela aridez da
existência e se tinha fixado «naquele cu de mundo no meio do nada» (ibid.: 168) eram
sustentadas pelas necessidades básicas dos fora-da-lei que por ali passavam:
ela e o homem viviam nos cómodos nos fundos do dancing. Havia também um
bebê, (…) ele era mais velho do que a mulher, e tão magro quanto ela. Fios de barba
rala despontavam em seu queixo e seu cabelo parecia ter sido cortado por um
epiléptico durante uma crise. Era do Paraná, mas desde menino havia perambulado
com a família por uma dúzia de estados. (ibid.: 168)
Como podiam, mas por meios escusos, também os guerrilheiros obtinham dinheiro
para manter acesa a chama da revolução. Aquele sequestro tinha tido como objectivo a
extorsão: «Celestino perguntou pelo dinheiro do resgate e eu pedi que Miltão pegasse a
bolsa no porta-malas do carro» (ibid.: 178).
Um pormenor que tinha passado despercebido a todos os intervenientes revelara-se
da maior importância. Sebastião Carijó, o índio,
52
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
Vestia uma jaqueta ensebada de cor imprecisa. Dizia que fora presente de um
soldado numa ocasião em que o exército colombiano andou fazendo manobras na
região, atrás da guerrilha. Miltão achava que ele tinha roubado a jaqueta. (ibid.: 162)
Este facto enfureceu o intermediário da entrega do refém, o que atesta a origem dos
sequestradores como pertencendo à guerrilha colombiana. De tal modo ficou perturbado
pela imagem da farda do inimigo, que a recusa do índio em dar-lhe a jaqueta desencadeou
um acto de violência que causou a morte a um dos companheiros do narrador. Sebastião
Carijó16, o índio que «passava a maior parte do tempo entupido de álcool e maconha (…),
era o único que dominava os atalhos e picadas daquelas serras; só ele poderia nos tirar dali
se algo não saísse direito», também «era capaz de identificar qualquer planta que você
apontasse e dizer para que servia» (ibid.: 162). Era capaz «de ler avisos nas cores do céu,
em especial no fim do dia» (ibid.: 164), de ouvir ruídos que mais ninguém ouvia: «escutei
quando chegaram» (ibid.: 165). O seu conhecimento da mata era precioso e não podiam
prescindir dele. Vivia, contudo, numa dualidade ambígua, e se, por um lado, manteve vivos
indícios que caracterizam os nativos, seus ancestrais, por outro, não resistiu aos vícios da
civilização branca. O índio, o nativo, o símbolo vivo e legítimo da Amazónia inóspita, não
percebe o perigo de uma jaqueta. É o elemento dissonante neste enredo de personagens que
gravitam em torno de interesses opostos, porém bem definidos. O índio é valente sem ser
provocador: «Sebastião empurrou o sujeito, que se virou e quis engrossar. Só que ele não
teve tempo de dizer “passarinho” e já estava com as costas no chão» (ibid.: 170). Não
entende o significado da guerrilha, não toma partido porque não os conhece, mas conhece
o espaço, as propriedades de cada planta, interpreta o tempo, percepciona os sinais da
natureza e os humanos.
A violência da guerrilha colombiana e os seus crimes, a americanização do índio e a
sua humilhante e humilhada existência, a vulnerabilidade da fronteira entre o Brasil e
outros países da América Latina que facilitam o narcotráfico, o contrabando e as
movimentações criminosas dos guerrilheiros colombianos são alguns dos aspectos realistas
16
Antigo nome dos índios guaranis da Lagoa dos Patos (RS). (Nova enciclopédia Larousse 1, Selecções do Reader‟s
Digest, 1983).
53
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
abordados neste conto, perspectivando a violência social que transpõe fronteiras, através da
conspecção interna e omnisciente de um narrador que encarna o papel de uma personagem.
À semelhança do conto «Echenique», também «Novas cartas paraguaias» (Aquino,
1999) aflora a guerrilha e as revoluções da América Latina. Mais uma vez a ficção bebe no
locus real e dali ganha força e asas, e voa em direcção ao infinito da arte e da literatura.
Apesar da trama principal ter como fio condutor uma sui generis reportagem sobre
um herói de revoluções, ou melhor, sobre um ex-revolucionário, ela esconde, na verdade, a
trágica história de uma família paraguaia que viu o seu chefe ser assassinado por vingança
de um guerrilheiro revolucionário. A sombra da incerteza, do medo, da dor, do passado
manchado de sangue, do que quer esquecer, ou não quer lembrar, persegue o herói: «O
editor conhecia quase todos os ex-revolucionários que viviam em S. Paulo. Gente de
diversos países da América Latina. (…) Às vezes promoviam encontros de
confraternização. E acabavam falando de revolução. (…) Sottomayor nunca ia a esses
encontros. Tinha se desiludido» (ibid.: 43).
Numa ronda pelas personagens, encontramos o herói, Sottomayor, personagem de
ficção, em interacção com personagens reais e com factos históricos como «o golpe que
derrubou Allende17 no Chile» (ibid.: 42); «na Nicarágua», «na ofensiva final dos
sandinistas (…) em Manágua no dia 19 de Julho» (ibid.: 44). A História relata-o da
seguinte maneira:
17
O ditador Salvador Allende foi derrubado na sequência do golpe de estado liderado por Pinochet, a 10 de
Novembro de 1973 (adaptado de http://pt.wikipedia.org/wiki/Salvador_Allende#Biografia).
18
Edén Pastora Gómez Atanacio (1937 - ) é um político da Nicarágua e ex-guerrilheiro que concorreu à
presidência como o candidato da Alternativa para a Mudança (AC) partido nas eleições gerais de 2006. Anos
antes da queda do regime de Somoza, Pastora foi o líder da Frente Sul, a maior milícia no sul da Nicarágua,
perdendo apenas para a FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional), no norte. Pastora foi apelidado
Comandante Cero. (adaptado de http://es.wikipedia.org/wiki/Ed%C3%A9n_Pastora).
54
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
Pergunto por Angel Benítez, o homem que ele matou numa cidadezinha do
Paraguai. (…)
Ele me denunciou como subversivo e eu tive que fugir para Assunção. Uns
meses depois, eu voltei e fui até o armazém que ele tinha na cidade. Justicei ele com
dois tiros.
19
José Daniel Ortega Saavedra (1945 -) é um ex-guerrilheiro e político nicaraguense. Foi presidente de seu
país entre 1985 e 1990, tendo regressado ao cargo em 2006. É membro da Frente Sandinista de Libertação
Nacional (FSLN) desde 1962 (Adaptado de http://pt.wikipedia.org/wiki/Daniel_Ortega).
20
Anastasio (Tacho) Somoza García (1896 –1956) foi, oficialmente, o trigésimo quarto e trigésimo nono
Presidente da Nicarágua, mas efectivamente comandou o país como ditador desde 1936 até ser assassinado
(adaptado de http://pt.wikipedia.org/wiki/Anastasio_Somoza_Garc%C3%ADa).
21
Inaugurado em 18 de Março de 1989 na Barra Funda, São Paulo, o Memorial da América Latina foi criado
para difundir as manifestações latino-americanas de criatividade e saber, sempre com o objectivo de interagir
relações culturais, políticas, económicas e sociais (adaptado de
http://pt.wikipedia.org/wiki/Memorial_da_Am%C3%A9rica_Latina).
55
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
(…) Sabe que a família dele ficou na miséria, que a mulher morreu de tanto
beber e que uma das filhas virou puta?
Era uma gente muito ruim, Sottomayor diz. Mas como é que você sabe de todas
essas coisas?
Angel era meu pai, eu digo.
(…) não há nenhum traço de surpresa no rosto do herói. Nem mesmo quando
abro a pasta, pego no revólver e aponto para o seu peito. (ibid.: 49-50)
22
Período de 31 de março de 1964 (Golpe Militar que derrubou João Goulart) a 15 de janeiro de 1985
(eleição de Tancredo Neves).
23
João Antônio Ferreira Filho (1937-1996) nasceu de uma família de imigrantes portugueses de poucos
recursos, na cidade de São Paulo (SP). Contista brasileiro, consagrado pelo emprego de temas do submundo e
ligado à corrente de ficção urbana, procurando aproximar o idioma escrito do falado e incorporando a seus
textos muitos termos de gíria, ditos e expressões populares
(http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/JoaAFerF.html).
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
medo, aos que vagueiam pela cidade nas frestas de uma sociedade que os rejeita, que os
exclui. Ou será que são eles que se deixam abandonar e que permitem que lhes esvaziem a
alma de esperança, restando apenas o vazio em direcção ao aniquilamento total?
Num ambiente degradado da geografia urbana e da humana condição vagueia a
personagem principal desta narrativa curta, que indica que a sua situação e a sua saúde só
podem piorar: «Não era gordo, estava sempre inchado – de cachaça e das bordoadas da
vida» (Aquino, 2003: 183).
A materialização da pobreza assume-se na perspectiva da personagem Boi que como
ambição só possui outra miséria mais generosa do que a sua. Cobiça o barraco, uma
«construção de madeira criteriosamente encravada no alto sobre o viaduto» (ibid.: 183), do
“colega de infortúnio”, que tem até um «pijama» para dormir e um «fogareiro», onde
aquece o café e a alma: «uma lâmina de madeira fazendo as vezes de parede interna, um
cobertor improvisado como cortina. Eraldo tinha dividido o barraco em cómodos». Era um
luxo, contrastante com o outro lado do vão do viaduto, onde «um amontoado precário de
tábuas e folhas de zinco abrigava mais de dez pessoas. Homens e mulheres» (ibid.: 184).
Mas tão-pouco ali a caridade tinha conseguido abrigo ou aconchego. E Boi estava agora
perante a grande oportunidade da sua vida e não a ia deixar escapar, fosse qual fosse o
preço a pagar para se libertar da sua humilhante condição de despejado diário dos
Com tudo contra ele: outros mendigos, o faxineiro insensível e até o próprio tempo
que queria apressar a chegada do Inverno; e a uma distância tão curta da fartura que
morava ali tão perto, mas tão inacessível «nos restaurantes que havia nas imediações, onde
todos conseguiam comida» (ibid.: 185), o mendigo desejava muito pouco, apenas as
migalhas que caíam da mesa farta daqueles de quem se havia afastado tanto. Na miséria,
até a ambição é moderada.
A recusa da partilha, da ajuda ao parceiro de infortúnio e a desumanidade parecem
ser características anómalas desta realidade onde tudo tem um preço. A oferta do serviço
de vigilância não bastava, como não bastou o «revólver com bala». A força da
57
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
determinação de quem não tem nada a perder, ou de quem descobre que pode ascender
pela via da violência, porque até tem algo para oferecer, transforma-se em obsessão. É a
descida aos infernos de quem poderia pensar que a perder só tinha o que ainda não tinha
conseguido obter.
Uma visão assustadoramente realista…. São os destroços de uma sociedade que não
acolhe o sofrimento de uma quase mutilação humana que raia as fronteiras do animalesco.
A ambição pelo poder ou pelo ter de modo fácil, sem esforço, numa realidade enredada em
infelicidade e desesperança, e em que a idade avançada e a doença se agigantam num
estádio de pobreza provocam o desespero de um velho, pobre e doente, que nada tem. E só
pelo desespero se justifica a violência encomendada por um pobre, o Boi, contra o outro
pobre, o Eraldo: Boi, «Acompanhado por dois sujeitos que não conhecia. Ambos armados
de porretes. “Você vai embora daqui na boa ou na porrada?”» (ibid.: 186). O pagamento
era o revólver que Eraldo não tinha aceitado como forma de pagamento em troca de abrigo.
Mas se havia um preço, então Eraldo podia pagar mais para fazer desaparecer a ameaça.
Num perigoso jogo de sobrevivência, Eraldo detinha o poder do dinheiro que estava
disposto a usar para se vingar da afronta: «“O dinheiro é de vocês. Agora quero que vocês
levem o Boi para bem longe daqui e batam nele sem dó. Estou pagando pela surra. Que é
pra ele aprender”» (ibid.: 186).
Mas aqueles que confiam de mais, não ficam atentos e a retaliação não se faz
esperar:
E foi.
Todavia, a civilização e o progresso já tinham marcado encontro com a destruição e
não se compadeceram com todo o esforço de Boi para conseguir um tecto. E a voz que o
mandou sair não era a da consciência. Era real: «“Você vai ter de se mandar daqui”» (…)
«“Vai tudo para o chão daqui a pouco”» (…), «Você tem cinco minutos para tirar suas
58
Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
24
O Império da Babilónia, que teve um papel significativo na história da Mesopotâmia, foi provavelmente
fundado em 1950a.C.
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
Idalina. (…)
Mas lá ela usava outro nome, não é?
Usava. Neto respondeu. Odete. (…)
Bom, o povo daqui não precisa saber de nada disso, você não acha? Essa gente
é muito atrasada, Neto, eles não iam entender. (...)
Ainda mais agora que você ficou importante …. Já pensou? (…)
O que você vai fazer, Cícero?
Eu? Nada. A gente é amigo ou não é?
Neto suspirou. Cícero deslizou com a cadeira e admirou as prateleiras
abarrotadas do armazém.
Então. Um amigo sempre ajuda o outro, não é assim? (ibid.: 218,219)
Embora não pareça ser extorsão premeditada, não deixa de ser oportunismo e uma
forma mesquinha de violência psicológica.
Na obra Leviathan, Thomas Hobbes, em algumas considerações sobre a natureza
humana, explicou que «no estado natural, enquanto alguns homens podem ser mais fortes
ou mais inteligentes do que outros, nenhum se ergue tão acima dos demais por forma a
estar além do medo de que outro homem lhe possa fazer mal» (Hobbes, 1651). Qualquer
que seja a posição de um homem em relação a outro, ele será sempre o seu maior inimigo:
Homo homini lupus25 (Plauto).
«Matadouro» (Aquino,1999) é um conto, e simultaneamente um local onde se
abatem animais e inocências. A morte do boi no Matadouro onde trabalhava o pai do
25
«O homem é o lobo do homem». Plauto (284-184 a.C). Asinaria. A sua obra foi posteriormente
popularizada por Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVII.
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no conto «Partilha II». O narrador foi abandonado na cadeia pelo único cúmplice
sobrevivente «daquele lance» em S. Paulo, cuja violência relata na primeira pessoa:
O narrador cumpriu uma pesada pena, tomou um «pau brabo» mas nunca denunciou
o companheiro. E até entendeu que ele não o tivesse ido visitar, nem mandado «uma carta
para saber se» - eu- «precisava de alguma coisa» (ibid.: 119), que tivesse montado um
próspero negócio e que ficasse com a sua mulher. Mas tanta “generosidade” requeria
retribuição. E por vingança, ou justiça, era o momento de pagar os juros e cumprir a «lei
bíblica: sobre crimes»: Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé (Êxodo,
21,24).
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
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Edição Comemorativa do 50º aniversário da publicação de Casa-grande & Senzala.
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
Neste o amor foi só o físico, com gosto só de carne, dele resultando filhos que
os pais cristãos pouco se importaram de educar ou de criar à moda europeia ou à
sombra da Igreja. Meninos que cresceram à toa, pelo mato; alguns tão ruivos e de pele
tão clara, que, descobrindo-os mais tarde a eles e a seus filhos entre o gentio, os
colonos dos fins do século XVI facilmente os identificaram como descendentes de
normandos e bretões. (Freyre, Ed. com.: 101)
Ainda assim, é o pai/ o homem que, no seio familiar, tem a última palavra. Por isso,
de acordo com Freyre, a família no Brasil assenta as suas origens na colonização e é o
produto de uma multicultural e complexa miscigenação, racial e sexual: «O ambiente em
que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual» (ibid.: 100).
Não pretendemos, com a referência ao estudo de Freyre sobre as origens da família
brasileira, estabelecer uma relação entre a origem e a actual família brasileira, apenas
chamar a atenção para um dos aspectos que vamos tentar analisar neste capítulo: as
complexas e difíceis relações familiares, que mais não são do que relações humanas.
Pretendemos também estudar o papel que a mulher ocupa ainda hoje nas famílias, em
especial nas famílias do submundo urbano da sociedade brasileira, e o modo como ela é
tratada pelos narradores dos contos de Marçal Aquino.
A evolução da família, enquanto congregação de vários sujeitos unidos por laços de
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
sangue, não se pode definir de forma imponderada e possui implicitamente regras rígidas
que a evolução cultural e social de abertura a novas formas de família e de diferenças nas
relações familiares não consegue apagar. Apesar da não existência de um padrão de família
na sociedade brasileira, em todas as suas formas podemos encontrar um vestígio de
Europeu e de Índia.
Segundo um estudo feito pelo governo brasileiro, o padrão de família no Brasil
apresentou algumas mudanças nas últimas décadas do século XX. Destacam-se a
diminuição substancial do tamanho das famílias, o aumento do número de famílias
monoparentais, mulheres sem cônjuge e com filhos, e o aumento do número de famílias
cujas pessoas de referência são mulheres:
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
O tio insano não foi e não teve nada. E isso a sua família e a sociedade não
perdoaram.
A privação ou a ausência continuam a atormentar em «Onze jantares». O abandono
pela família foi a causa do desequilíbrio emocional e psíquico de um escritor. Primeiro, o
exílio levou-lhe o pai, depois, a irmã levou com ela a mãe:
(…) o meu pai foi cassado pelo AI-5, tendo de se exilar, e a família nesse período
desagregou-se completamente; (…) meu pai acabou morrendo em Paris, sem
conseguir voltar; (… ) este apartamento é a única coisa que sobrou e minha mãe
preferiu ir morar com minha irmã casada em Curitiba; (…) às vezes penso seriamente
em dar um tiro na cabeça; (…) já fui internado numa clínica psiquiátrica (…) essa
internação foi motivada entre outras coisas, por uma tentativa (frustrada, diga-se) de
atirar no síndico do edifício e até hoje ele me olha meio desconfiado. (ibid.: 27)
A família, presente ou ausente, será uma das escoras que auxilia o homem no seu
percurso de vida. A ausência provoca o vazio de pertença, o desequilíbrio, e com ela se
ateia o fogo da violência cujo alvo pode ser o próprio indivíduo ou outrem. Ela pode ser
incontornavelmente uma realidade tão apaziguadora, quanto turbulenta: «Sempre foi um
cara esquisito. Piorou muito depois que a mãe se mudou. Raramente recebe amigos» (ibid.:
27). O vazio familiar, ainda que essa família estivesse completamente «desagregada», nem
a mulher vulgar, nem os amigos, nem os clientes do bar, nem a escrita, ninguém o
conseguira preencher. É nestas relações paradoxais que avançam as narrativas de Aquino,
que se constroem os enredos tumultuados das vidas inexoravelmente ambíguas e
contraditórias das suas personagens. À luz desta ambiguidade, podem parecer bizarras as
indecisões do escritor que, entre um momento de sexo com «a mulher vulgar», e decidir
onde colocar a dedicatória de um «livro inacabado», escolhe a segunda. Restaram-lhe os
vizinhos e «uma mulher vulgar» que se havia mudado para o seu prédio e com quem não
consegue manter um relacionamento aceitável. Conclui que «O homem é uma criatura
solitária. Muito embora viva procurando se amparar nas mais diversas coisas. Até mesmo
numa página em branco» (ibid.: 31).
No conto «Para provar que o escritor, provocações à parte, está de fato liquidado»,
está patente a solidão do escritor a par da sua «liquidação». A separação da família e da
mulher poderá ter sido o início da derrocada que levou à sua própria desestruturação como
pessoa e como ser social. «O escritor, quando jovem, foi o orgulho da família», teve
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
relevância como escritor e «chegou a fazer versos para uma repórter de tevê» (ibid.: 49),
«já trabalhou como advogado de um banco, já teve bigode e carro do ano (ibid.: 47).
Agora, da família, só o pai o visita. Foi casado, mas já não é. Sofre quando observa a ex-
mulher com um «garotão de cabelo arrepiado». Está rodeado por circunstâncias e
jovialidades que parecem provar-lhe que, de facto, está liquidado. Será talvez excessivo
afirmar que esse facto poderá ter sido a causa de todas as crises existenciais de que o
narrador sofre. Certo é que só se interessa sexualmente por adolescentes: «O escritor está
na cama com Elsa, (...) mas pensa na adolescente do bar» (ibid.: 49). Prestes a abandonar a
literatura, que já o terá abandonado, rodeado pelo seu fracasso como escritor, como
advogado, como homem de sucesso, como filho, o escritor «mora num deserto de
silêncios», debate-se com a escolha da arma da sua morte e invoca o suicídio de escritores
célebres, Hemingway, Maiakóvski e Pedro Nava, que terão usado armas de fogo para pôr
termo às suas vidas. Resolve, então, ser mais original e esperar que a natureza cumpra o
seu papel: «espera (…) por um câncer» (ibid.: 50).
Também em «Inventário», a felicidade passa ao largo e o suicídio aflora como
possibilidade de libertação da alma amargurada pela clausura de todos os laços terrenos
que, apesar de desfeitos, continuam a aprisionar a alma do escritor e a não a deixar libertar-
se das amarras da opinião dos outros, da sociedade e da família.
O narrador, um jornalista, numa profunda crise existencial, à beira do abismo,
adivinhando o que os outros pensariam se ele se suicidasse, cogita a possível reacção da
ex-mulher, passando em revista, como num flash, toda a sua estéril vida conjugal:
Meu pai não teria para quem deixar seu Fusca amarelo, os discos do Orlando
Silva – conservados com tanto zelo -, os móveis velhos, a casa e o saldo da dívida com
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
o BNH. E pensaria que filho único é uma merda mesmo: continua aprontando até
depois de crescido. (ibid.: 61)
Entre as várias causas possíveis para a perpetração do suicídio, e embora possa estar
desactualizado e desfasado no tempo pelas incontáveis mudanças sociais, Durkheim aponta
as disfunções familiares, nomeadamente o divórcio, como uma delas, e refere que «em
todos os países sobre os quais possuímos os dados necessários, o número dos suicídios dos
divorciados é incomparavelmente superior aos das outras camadas da população»
(Durkheim, 1982: 256). Do mesmo modo, podemos sugerir que a ausência de
descendência poderá ser também um factor facilitador da predisposição para o suicídio, já
que os filhos são, em regra, uma forma de continuação da vida que os pais pretendem
acompanhar e não abandonar, pelas mais diversas razões.
Um provável suicídio pode ter impedido uma hipotética família no conto «A casa»
(Aquino, 2003). O narrador faz uma visita a uma casa através de uma imobiliária, casa cuja
história ele aparentava já conhecer muito bem. Seria a mesma casa em que se suicidou uma
«moça meio doida», depois de «ter escrito uma carta para a família e outra para os
amigos», citando Cesare Pavese27, e com a qual o narrador evidenciava ter convivido,
como se depreende da sua última reflexão: «naquela altura era muito difícil saber quem é
que tinha sido mais doido» (ibid.: 82). Não se conclui qual foi a relação entre o narrador e
a suicida, nem das causas do suicídio, apenas se percebe que tinha havido uma relação.
27
Escritor e poeta italiano que se suicidou aos 42 anos, em Turim.
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como a morte e a vida, o que separa um do outro é uma estreita e paradoxal linha invisível
que os une permanentemente.
A separação e/ou o divórcio são responsáveis pela desestruturação familiar,
vivenciada por narradores autodiegéticos e por personagens em pelo menos dezoito dos
trinta e dois contos das duas colectâneas: Famílias terrivelmente felizes (2003) e O amor e
outros objetos pontiagudos (1999).
O actual companheiro da mãe, no conto «Cicatriz» (Aquino, 2003), ocupa todas as
conversas entre o pai e a filha. Em «A família no espelho da sala» (ibid.: 33), o divórcio de
uma filha transforma-se em mais uma das inéditas fatalidades da família. No conto «Para
provar que o escritor, provocações à parte, está de fato liquidado» (ibid.: 47), o escritor
relaciona a sua decisão de abandonar a literatura com a de «largar a mulher». Em
«Inventário» (ibid.: 59), o narrador, numa crise existencial, passa em revista a sua vida,
colocando na memória da ex-mulher as suas próprias recordações de um casamento
infecundo e violento, e numa das hipotéticas explicações para o seu suicídio, um dos seus
conhecidos diria que «“ele nunca se refez da separação da Luciana”». Em «Echenique»
(ibid.: 161), o narrador, sob o efeito de um alucinogénio, sonha com a sua ex-mulher e
revive, neste caso, não a violência nociva, mas a intensidade da relação sexual, a única
coisa que «lamentou perder». Na colectânea O amor e outros objetos pontiagudos, no
conto «Renda-se, Bob Mendes. Você está cercado», a inexistência de afinidades provocou
a inevitável separação do casal e terá sido responsável pela trágica morte do ténue elo entre
o casal: um filho. No conto «Bianca 17», o narrador analisa o seu próprio estilo literário,
através da personalidade da sua ex-mulher. Em «Matadouro» (ibid.: 89), a separação foi a
única opção para uma mulher que depositou no casamento todas as suas esperançadas
energias.
O eflúvio acre da infidelidade e da traição, em algumas narrativas, coabita com uma
relação apodrecida ou de aparência. No conto «Jogos iniciais» (Aquino, 2003), a
infidelidade masculina vem acompanhada de dupla violência e provoca duas vítimas: a
amante reivindicativa que é, por isso, barbaramente agredida, e a mulher que se presume
legítima, e mãe do filho, de quem o homem precisava cuidar. Em «Matadores» (ibid.), a
aleivosia da mulher e a insaciável sede de vingança tirânica de um homem rompem as
fronteiras da amizade e da lealdade entre matadores. No conto «Santa Lúcia» (ibid.), a
infidelidade da mulher ao marido detido é vigiada e punida pelos cúmplices dele. No conto
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paterna que acredita ver reflectida no espelho a falsa imagem que ele tem de si próprio e da
sua família perfeita.
Por outro lado, e com base no passado obscuro da personagem, esta pode ser uma
paliação para a família imaginada, em que o patriarca parece refugiar-se na tentativa de
compensar as suas próprias debilidades como pessoa, como educador, como pai de família
e como marido. Já que do seu passado, se sabia apenas que
ele a conheceu menina ainda e já era vivido, já tinha andado muito; aquele ar de quem
sabe mais do que todo o mundo. Que inspira temor e segurança ao mesmo tempo. Isso
a fascinou, acho. Isso e outras coisas talvez. E que fascinaram outras moças também.
Havia muitas histórias sobre ele, mas isso é obscuro ainda hoje. (ibid.: 33)
...ele era avarento nos carinhos e ela cuidadosa. Como se os filhos fizessem parte
de um jogo de louças somente usado quando havia visitas em casa e que, na hora
de lavar, exige o dobro de cuidados para evitar riscos, arranhões e trincas. Para
depois ser devolvido ao armário até à próxima visita ou data especial. (ibid.:
33,34)
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narrador, nu com a empregada nova, e que continua «procurando a mulher ideal», tudo
cautelosamente escondido por detrás da indiferença, ou da recusa dos progenitores em
enxergar a realidade:
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
E o sangue que saía dos seus pulsos abertos ia formando aos poucos uma poça
escura no assoalho. (ibid.: 26)
Naquele dia no hotel, após envolver seus ferimentos com toalhas, eu a levei
para casa e a obriguei a telefonar para o pronto-socorro. Então saí e me sentei no jipe,
de onde acompanhei a chegada da ambulância. Eu não podia ter meu nome vinculado
a ela, muito menos naquelas circunstâncias. (ibid.: 28)
A posterior morte da mulher infiel, «prensada no meio das ferragens» (ibid.: 37),
num acidente de carro conduzido pelo marido, terá sido a purgação dos seus pecados ou a
libertação de um casamento piedoso que a traição já havia maculado.
No conto «Renda-se, Bob Mendes. Você está cercado», as incompatibilidades sociais
e de carácter, e a opção pela marginalidade, associadas à perda do mistério e da aventura,
conduziram uma relação conjugal, condenada, pelos caminhos da infelicidade:
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
Os pais e os irmãos dela nunca aceitaram o casamento. Onde já se viu uma das
herdeiras da maior fazenda da região casar com um sujeito bem mais velho, que não
tinha onde cair morto e ainda por cima mexia com contrabando? - Esse era o
argumento deles. Para piorar as coisas, Bob arrastou Honório, antigo empregado da
fazenda, para seus negócios. Isso azedou a relação do casal de forma irremediável.
(ibid.: 71)
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A descrença do narrador no amor fazem dos seus livros uma decepção para a mulher,
para quem não é difícil estabelecer uma analogia entre as histórias escritas pelo marido,
despidas de afectos e de cumplicidades, e a sua vida real sem amor. O narrador escritor
corrobora:
A existência de uma segunda mulher, com nuances de carácter diferentes, e que ele
designa por «ela», como se a identidade não interessasse, só o sexo, retoma a discordância
feminina com o escritor, não em relação à literatura, mas em relação à sua atitude perante a
vida e perante a sociedade, o que se traduz num maior leque de incompatibilidades.
Questiona-o sobre a sua participação na vida política e pergunta se ele acredita mesmo que
«escrever histórias sobre homens e mulheres infelizes é uma maneira de participar» nos
destinos do país. Isto prova que o narrador, talvez numa aproximação ao autor, percebe que
a sensibilidade feminina se opõe à frieza e à impetuosidade masculinas em relação ao
modo como ambos encaram a vida, o amor e o sexo. A convivência parece impossível e
inimaginável entre o escritor e a futilidade da mulher, que em comum não têm orientação
política, gostos musicais, literários, sonhos, quereres ou amores. Trata-se apenas de uma
cómoda relação em que cada um sabe tudo do outro, e ambos assistem a esse determinismo
serenamente, como uma fatalidade.
Embora correndo o risco de parecer lugar-comum, transcreve-se o que Sérgio
Rodrigues escreveu no seu blog a respeito dos motivos que levam homens e mulheres a ter
perspectivas diferenciadas perante o sexo na literatura:
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
em várias ocasiões nos últimos dois anos, eu declarei amor por mulheres que apenas
desejava. Da mesma forma em momentos extremados, ouvi frases de mulheres
apaixonadas que nem meu nome sabiam direito. (Aquino, 1999: 85)
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
que oculta a sua homossexualidade e que se esquiva ao confronto com essa realidade,
fingindo, dissimulando, tal como fez o pai do narrador, até que a morte veio desvendar
tudo. Nem o pai, nem o amigo, Aloísio, nem o amigo do pai, Ezequiel, assumiram a sua
homossexualidade. Por medo? por cobardia? por preconceito seu ou alheio ? Ou talvez por
todos juntos.
O temor ou a raiva, que Aloísio parece nutrir pelo Ezequiel, confundem-se num
sentimento de aparente desprezo, que em nada faz prever o desenlace, em que se
manifestam os conflitos interiores entre as personagens masculinas juntamente com o seu
sofrimento.
Numa teia de infelicidade a que a família não é imune, antes é o mais frágil dos elos,
as relações homossexuais potenciarão este sofrimento, ou não. Como António Manuel
Ferreira refere, no seu artigo «Escorpião de seda: homoerotismo em contos brasileiros»:
O sofrimento parece ser a batuta que rege todas relações afectivas, e foi
magistralmente encaixado em todos os enredos dos contos de Marçal Aquino, de uma
forma incisiva, sem rodeios nem alusões metafóricas.
A violência no conto «Jogos iniciais» atravessa quatro pedaços de histórias, «jogos»
distintos, em que a personagem masculina poderia ser a mesma. O mesmo jogador, o
mesmo adversário, em «jogos» ou campos diferentes, ou apenas em diferentes tempos do
mesmo jogo. A perspectiva misógina domina, até mesmo na relação homossexual em que
o preconceito tenta esconder-se numa nebulosa sucessão de aparências e usa a
inevitabilidade como «atenuante».
As pinceladas de realismo encontram-se em cada jogo de sedução. O primeiro jogo, a
rotina e a monotonia destruíram-no: «E o mais difícil é fingir espanto» (Aquino, 2003: 51).
O segundo terá o sabor da primeira vez: «era difícil, acreditar que aqueles cabelos
castanhos, aquela boca e aqueles olhos não pertenciam a uma mulher» (ibid.: 52-53), mas
jazerá carregado de culpa e de preconceito: «Então ele repassou mentalmente as
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
atenuantes: (…) ninguém naquele bar o conhecia e com toda certeza ele nunca mais os
veria (ibid.: 52). O terceiro, a pressa ou o dessossego do «rapaz forte, que usa um brinco na
orelha esquerda», «finge ter paciência», e ao sorriso da «menina», «responde com um riso
curto e continua fingindo ter o resto do dia para ficar ali» (ibid.: 54), liquida-o com a
mesma avidez com que o mesmo rapaz forte «liquida o copo de cerveja» (ibid.). No último
jogo, a reificação da mulher é notória. A prepotência machista, e numa total e humilhante
relação recheada de sadomasoquismo, escuda-se na violência contra a mulher que ousa
querer mais do que sexo de uma relação doentia, de que ela própria acalenta a hipocrisia:
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
A mulher soltou o sutiã e depois ergueu as pernas para tirar a calcinha. (...)
“Escuta, não é melhor a gente acabar com isso de uma vez?”, ele perguntou, sentando-
se na cama. Ela ficou em silêncio por alguns segundos. Depois disse: “Você poderia
matá-lo, não é? Isso resolveria as coisas para a gente”. Múcio levantou bruscamente e
foi até a janela. Quando se voltou, a voz denunciava a irritação que sentia: “Você é
louca em propor uma coisa dessas…”. “Ué, mas não é isso que você sabe fazer
melhor?”, ela retrucou divertida. “Vamos parar de brincar e falar sério?”, ele propôs,
aproximando-se da cama. “Óptimo. Deita aqui e a gente vai fazer algo bem mais sério
do que ficar falando essas bobagens”, ela disse, segurando-o pela mão. Múcio reagiu
com um puxão, livrando-se da mulher: “ Mas que coisa…”. “Ora, o grande matador
com medo. Quem diria, hein? Deixa o Alfredão saber disso. Ele que vive dizendo que
você não tem medo de nada”. (Aquino, 2003: 129,130)
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
amante «até ao meio das suas pernas» (ibid.: 131), para condenar a mulher adúltera e
acusá-la da traição ao marido e da morte do amante, ilibando deste modo toda a
intervenção masculina: a sua própria participação como informante, o carrasco, Alfredão, e
o mandante, o marido traído. Acrescenta ainda considerações pouco abonatórias da
reputação da mulher que indiciam a aleivosia da mulher do patrão que eles pareciam
conhecer muito bem: «- Ele andava desconfiado e botou alguém para vigiar a vagabunda»
(...) A mulher do Turco é mesmo um bicho à-toa» (ibid.: 138).
Apesar da sua culpabilização pelo narrador, a mulher não sofre qualquer revés, pois
não há indícios de que possa ter sido confrontada com a sua infidelidade. Tal como
verificamos no conto «Sete epitáfios para uma dama branca» (Aquino,1999), o marido não
confronta a mulher com a sua infidelidade, mas pune o macho que ousa invadir o seu
território. É um sinal de que mais importante do que o amor, do que a relação conjugal, é a
invasão da “propriedade” e a desonra.
A ruptura provocada pelo feminino na esfera dominante do masculino nem sempre
resulta em benefício da mulher ou em favor da sua libertação como pessoa. Pelo contrário,
em vários contos de Marçal Aquino, esta situação constitui-se como mais uma faceta de
reificação da mulher, já que esta assume, leviana e inconsequentemente, um
relacionamento adúltero, que a coloca no papel de vilã no plano familiar e conjugal.
Como diz Sales, «O amante é o sujeito que supostamente estará livre de qualquer
obrigação conjugal com a mulher, servindo apenas para satisfazer suas vontades e
interesses em um jogo de duplo interesse» (Sales, 2008: 5). Em alguns contos em análise,
esta duplicidade de interesses, a figura do amante, que se distingue do marido pela
juventude e pela coragem, na prática, quase sempre se transforma numa dupla punição dos
traidores. Porém, é o amante que sofre a penalização mais pesada, pagando o seu denodo
com a vida, como se verifica em «Matadores».
O «subúrbio triste» onde mora Rita, a protagonista do conto «Santa Lúcia» (Aquino,
2003), condiz com a sua miserável existência. Tem que prestar contas da sua vida aos três
comparsas do marido, que se encontra na cadeia. A porta aberta com violência pelo
visitante indesejado deixa entrever também o desleixo de Rita com a exígua e inacabada
construção, onde mora na companhia do seu filho pequeno e da sua desgraça. Este
conjunto de miséria, «uma construção inacabada» - que - «exibe, em lugar da janela, uma
placa que no passado serviu para anunciar o lançamento de um refrigerante», o seu
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
interior: «uma pia no canto do cómodo, um fogão e uma mesa coberta por uma toalha
encardida», está em dissonância com o traje da mulher jovem que, à noite em casa, «usa
um vestido preto curto, com o cabelo preso por uma fita e os lábios pintados de vermelho»
(ibid.: 151). Esta aparente incongruência será um dos indícios do seu delito, da sua traição.
Será isso que os cúmplices do marido buscam numa noite de inverno? «Pedro Macaco está
tirando lentamente as roupas da boneca» e continua até tirar «a última peça de roupa da
boneca», num misto de sadismo e malvadez, como se desse a conhecer à vítima, num jogo
de antecipação, as suas intenções. (ibid.: 153). Depois de agredir, roubar, quase matar e
expulsar o «amigo» grisalho de Rita, o mesmo Pedro Macaco rasga as roupas da mulher
numa clara intenção de lhe «dar uma lição» pela arranhadela que lhe fez no rosto ao
defender-se, pela traição ao marido, ou por mero despeito: - «ela nunca olhou na cara de
ninguém aqui no Santa Lúcia, só porque é mulher do Dico – Agora vai ver o que é bom»
(ibid.: 158).
Lorraine Nencel, num artigo sobre a sexualidade masculina no Perú, salienta que
«La pareja sigue siendo la mujer que es protegida, tratada con respeto y para la cual se
reservan ciertos sentimientos» (Nencel, 1999: 142-143). Neste sentido, o homem
estabelece uma separação entre a sua mulher e as outras mulheres. Em «Santa Lúcia»,
distinguem-se duas actuações: a de Pedro Macaco e a do amigo, Nego, cuja mulher tinha
tido uma relação como o primeiro. Para o primeiro, a distinção fez-se apenas a um nível
discursivo, pois os seus instintos carnais falaram mais alto, para o segundo prevalece o
instinto de defesa da mulher, que está prestes a ser agredida sexualmente, e que ele socorre,
num misto de ciúme e raiva, como se protegesse as duas, a sua e a do companheiro detido.
«Num dia de casamento» (Aquino, 2003), o narrador assiste «num local de sombra»
aos rituais de um casamento. As famílias reúnem-se para testemunhar a origem de uma
nova família, que poderia ter sido a do narrador. Mas não foi, e ele sofre por isso. Resta-lhe
a memória de «uma mecha de cabelo» que se soltou, antes como agora, do des«arranjo» de
uma vontade, a que terá faltado o querer, e prosseguiu a viagem ao sabor do «vento que
entrava pela janela do ônibus» em que viajaram no regresso daquela que terá sido a última
oportunidade de felicidade, abandonada «num hotel de beira de estrada» (ibid.: 44). Depois
disso, «com as mãos nos bolsos» vazios de sonhos mergulhou na nostalgia dos dias
comuns como aquele.
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
Sem a mãe, destruída por uma incógnita e talvez pelo «formicida» da traição,
Ataliba, no conto «Pai» (Aquino, 1999), parece ter vivido desde os doze anos até à morte
do pai, numa espécie de letargia, que conviveu com o suicídio da mãe, apesar de
desconhecer a sua causa, sem que isso o tenha incomodado ou impedido de estar bem com
a vida. Porém, a morte do pai e a presença de uma enigmática mulher no seu velório,
vieram trazer-lhe a inquietude de que o conhecimento normalmente se faz acompanhar: «Ia
começar a conhecer o pai» (ibid.: 15). Iria, talvez, começar a sofrer o remorso do pai e a
ausência da mãe, e a consciência da família destruída. A mulher, que julgamos ter
descoberto a traição do marido, confirma a sua fraqueza de mulher e abandona
definitivamente a família, libertando também o marido, através do suicídio. A família
recebeu, a posteriori, um novo elemento, um novo dado que, neste caso, iria pôr em causa
a sua própria essência, porque teria sido, simultaneamente, o factor impeditivo do normal
decurso da família e a peça que faltava para a compreensão do rumo que tomou.
Marçal Aquino, no conto «Jantar em família» (ibid.: 51), criou uma situação
embaraçosa que raia a comicidade. Durante um jantar em família, o pai, viúvo, apresenta
aos filhos a noiva, e a ironia do destino apresenta ao filho mais novo uma embaraçosa
situação e um grande problema de consciência. A sua futura madrasta, uma garota de
programa, usando nome falso, veio reavivar-lhe a memória de uma relação fortuita, ou
talvez não, que poderá ser o fim da tranquilidade do seu próprio casamento. O narrador,
como faz em tantos outros contos, resolve deixar ao leitor a decisão do desenlace desta
história.
Num país como o Brasil, que tem origem na mais completa miscigenação cultural e
racial, o racismo, apesar de proibido por lei, está enraizado na família até à alma, no conto
«Sábado» (Aquino, 2003). Constitui, por isso, uma forma de conflito activo. Este é o
paradigma da família patriarcal, tradicional e conservadora, com os papéis bem definidos e
as figuras do pai e da mãe bem demarcadas. A mãe, empenhada no bem-estar dos seus
descendentes, é o suporte emocional, a ela cabem-lhe, além das tarefas domésticas, as da
harmonia e da delicadeza. Quando entrou na sala para cumprimentar o namorado da filha
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
mais velha, que iria ser apresentado à família num tradicional almoço de sábado, não só
«tinha no rosto um sorriso que Helena considerou sincero» (ibid.: 87), como também havia
escolhido um vestido para «ocasiões especiais». No final, demonstra compreensão em
relação ao que o marido pensa, adivinha-lhe os pensamentos, ou dedu-los do seu
comportamento na presença do rapaz («você está preocupado, não está?»), ao mesmo
tempo que se mostra tolerante, em relação ao namoro da filha. Distingue piedosamente o
negro do mulato: «O Fred nem é negro. É mulato» (ibid.: 97). O pai, por seu lado,
demonstra menosprezo («não se levantou quando Flávia fez as apresentações» [ibid.: 86]);
indiferença («vestia o seu tradicional traje de sábado: chinelos, bermuda e camiseta» [ibid.:
88]); apreensão, cautela («Nessa fase é tudo maravilhoso, um mar de rosas. Os problemas
vêm depois» [ibid.: 96]); racismo em relação à cor dos netos hipotéticos e preocupado com
a opinião da sociedade: «E você acha que faz alguma diferença para as pessoas?» (ibid.:
97).
O narrador adopta a percepção da filha «caçula» e, deste modo, proporciona ao leitor
uma visão realista e verosímil de uma famíla que parece ser, nesta colectânea, a única
tradicional, até ao momento em que o preconceito rácico, funcionando como elemento
perturbador, vem sacudir-lhe a serenidade.
A subversão de valores familiares no conto «Visita» (ibid.: 99), a brutalidade do
irmão mais velho e a indiferença, ou a impotência do pai e da mãe, assumem-se como
causas da vida de prostituição de Regina. Neste conto, encontramos o paradigma do
arcaico e omnipotente poder patriarcal, assumido pelo filho primogénito, numa clara
transmissão de funções que são assumidas pelo «homem da casa», chefe da família que, na
ausência ou inaptidão do pai são asseguradas pelo filho mais velho.
Antonio Candido, no seu texto The brazilian family, refere que a «autoridade paterna
era praticamente ilimitada» e relata casos raros, mas de extrema violência, em que pais
matavam ou mandavam matar os próprios filhos: «No século XVIII Antônio de Oliveira
Leitão, em Minas Gerais, executou com as suas próprias mãos uma filha que acenou com
um lenço para quem ele pensava ser o seu amante» (Candido,1951: 6). Apesar de
excepcionais, casos como este ilustram a «amplitude do poder paternal na família
patriarcal e a violência com que reagiam à ameaça de uma ruptura da honra doméstica»
(ibid.: 7).
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Violência social e familiar nos contos de Marçal Aquino
(…) ela estava nua e tinha arranhado o rosto dele, que a esmurrava sem parar,
gritando que estava cheio de ter uma vagabunda em casa. Meu pai assistia à cena, sem
interferir e sem se importar com os gritos e o choro da minha mãe. Eu soube depois
que Zeca também tinha batido no rapaz (…). Vi esse moço na cidade (….). Percebi
que mancava e acho que nunca mais endireitou, porque o Zeca usou um pedaço de pau
para bater nele, depois de surpreende-lo no carro com nossa irmã. (Aquino, 2003:112)
Quando fui vê-la, ainda de cama por causa da surra […] ela sentou na cama e
tirou a camiseta. […] que vestia para me mostrar as marcas que as pancadas de Zeca
haviam deixado no seu corpo.
Nunca comentei em casa que tinha ido visitá-la. Talvez com receio de me trair e
deixar escapar alguma coisa sobre o que aconteceu naquela visita. (ibid.: 113)
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culpa que não tinha, num mundo para onde foi atirada sem direito a defesa, acendeu a
centelha da sua própria dor, o último refúgio da sua culpa.
A última visita terá sido também a sua derradeira tentativa de redimir-se em nome da
família perante a irmã, que desfez, com o seu abraço silencioso e com a devolução do
«retrato amarelado», todos os laços que a uniam à família. No regresso, o silêncio de um
cachorro agonizante, que o «olhava com os seus olhos espantados, como se não
compreendesse bem o que lhe acontecia» (ibid.: 115), foi sentido como «uma espécie de
ensinamento» por parte do narrador que também ficou em silêncio, lembrando que a mãe
dizia que «é como a gente deve ficar diante das coisas que não compreende direito» (ibid.:
115).
«A face esquerda» (Aquino, 2003) foi a outra face «erodida» da vida e da família de
um menino. Menino que «aquele homem de cara redonda, a quem o haviam ensinado a
chamar de padrinho,» (ibid.: 202) mandou despojar do conforto do seu lar num bairro de
ruas barrentas, porque o seu pai não tinha fechado a porta do bar no dia do funeral da mãe
de um mafioso. A gangrena social estende as suas garras e flagela o mais fundo da célula
familiar, quantas vezes inocente, em que o mais fraco é atingido pela aura amarga do
sofrimento.
Apesar da violência e das traições, em alguns contos, a família, com todas as suas
vicissitudes e debilidades, embora seja referida de passagem, possui particular relevância
para a compreensão das atitudes dos seus membros. Quando não está presente ou quando
não é possível um a aproximação real, verifica-se o recurso ao expediente onírico. Boi, no
conto com o mesmo nome (ibid.: 184), sonha com a mãe que não conheceu, numa noite em
que se «sentia realizado», mas não chegou a saber como terminaria o sonho (ibid.: 192),
porque se suicidou.
Em «Echenique» (ibid.: 162), enquanto quatro homens esperam que um raptor faça a
troca de um engenheiro pelo respectivo resgate, num bar de fronteira, Bar e Dancing
Minha Deusa, no meio do mato, a família está presente nas suas mentes. Dois eram
cunhados, um deles, separado, tem um sonho erótico com a sua ex-mulher; outro, casado,
comunica frequentemente com a mulher pelo telefone.
A família dos donos do lugar parece perfeita, a mulher sempre recatada, «ajudou o
homem a servir a comida. Não olhou para o rosto de nenhum (homem)» (ibid.: 166). A
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família («o homem e a mulher ao seu lado, com o bebé ao colo» [ibid.: 180]), assiste,
unida, mas quieta, ao sofrimento do engenheiro libertado e à morte acidental de Enoque.
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Como a mulher indígena, de que fala Freyre, que se deixava possuir e troca de um
espelhinho que brilhasse, as personagens femininas dos contos de Aquino continuam hoje
amarradas à luxúria, ao brilho de homens mais novos e mais ousados, de homens diferentes
do seu. As mulheres de Aquino são traidoras, não respeitam as relações, agem por
interesses vários, sem se importarem com os sentimentos, próprios ou alheios.
Representam, na sua maioria, uma visão misógina, não de um escritor, mas de narradores
que interpretam a realidade suburbana pós-moderna como um jogo de espelhos que
reflectem os desejos incontrolados, roubados à inocência pueril das mulheres jovens.
Como as suas ancestrais, elas carregam o estigma de casar jovens, ou arriscar-se a ficar
solteironas. As opções não são as melhores. E as mulheres, mesmo as de família
constituída e, aparentemente, possuindo relações estáveis, prevaricam e, no dizer de
Freyre, que os narradores de Aquino corroboram, levam a liberdade sexual ao extremo,
mantendo relacionamentos a par do casamento. Desse modo, no seio familiar, será a
mulher a principal responsável pela destruição dos valores, colocando as debilidades da
família no centro da violência.
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(…) Un beau soir, celle-ci tombe dans les bras d'un amant; non pas qu'elle y soit
poussée par le moindre appétit sensuel, mais parce qu'elle souffre, qu'elle est folle.
C'est l'adultère, l'adultère physiologique par le déséquilibre des névroses héréditaires,
l'adultère qui sévit surtout dans les classes moyennes, et si fréquent, sue, [sic] sur dix
cas, on en compte au moins quatre dus à cet état morbide de la femme. (Zola, s.d.)28
28
Também citado por Maria Saraiva de Jesus (1997: 21).
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carinhos eram ponderados em função dos do marido: «ele era avarento nos carinhos e ela
cuidadosa» (ibid.: 33). Consciente ou inconscientemente, a mulher é cúmplice, ou vítima
do silêncio e do medo que lhe cala a vontade de viver. «A vida trapaceou com eles» e
sobretudo com ela que «apenas dava conselhos» (ibid.: 38), numa atitude passiva, sem se
opor, sem intervir, de tal modo que o narrador, o filho, só se lembra «de uma vez em que
os dois discutiram» (ibid.: 38). A mãe cala-se e reparte-se entre o papel de mãe de família e
de esposa que se submete à vontade do marido, e até a sua confunde com a dele:
Não tinham planos, desejos, vontades ou sonhos. Essas coisas pequenas que não
têm importância. Ou têm? Acho que ninguém parou para pensar nisso. Ou se parou,
preferiu ficar quieto. (ibid.: 36)
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relações livres, fechando a porta a compromissos sérios. O suicídio terá sido a solução para
duas mulheres que terão sentido o abandono ou a traição iminentes, em «A casa» (Aquino,
2003) e em «Pai» (Aquino, 1999). A mãe do narrador em «Novas cartas paraguaias»
(1999) foi uma vítima indirecta da guerrilha da América Latina. Morto o pai, a família
ficou na miséria, e a mãe «morreu de tanto beber» (Aquino, 1999: 50). Ester, a mulher de
Bob Mendes, depois de acabado o casamento, deambulou pelos recantos tristes do amor e
«andou com uns caras aí. Nada que durasse» (ibid.: 79). «Matadouro» é o título do conto
que pôs fim às ilusões da mãe do narrador. Trocada por um homem, vai saltando de
parceiro em parceiro, («era o terceiro homem diferente que eu encontrava em casa depois
da morte do meu pai» [ibid.: 95]) até se conformar com uma vida ao lado de um homem
que não respeita os seus sentimentos, que a maltrata, que a aprisiona, proibindo-a até de
acompanhar o pai do filho à sua última morada. Ilusões roubadas e sepultadas numa
aliança já sem anelar, ocultas na negação de um abraço do filho, acompanham a mãe do
narrador pelo trilho da vida, possuindo como bem apenas «um sorriso triste». Outra mulher
se oculta, neste conto, atrás da cegueira, sua e alheia: a mãe de Ezequiel, o companheiro do
pai do narrador. Apesar da cegueira física, conseguiu recordar as marcas das feições do
rosto do companheiro do filho e compará-las com as do filho dele: «“Você é muito
diferente do seu pai”» (ibid.:98). Talvez tivesse enxergado mais do que dissemelhanças
físicas, poderia até ter adivinhado as diferenças de carácter gravadas nas suas almas.
Contrastando com a mãe de família, com a esposa, existe outro tipo de mulher. A que
representa o prazer sexual, a vulgaridade, o meretrício. A esposa, a mãe, a meretriz,
coabitam no mesmo submundo, desempenhando, por vezes, concomitantemente estes
papéis. As mulheres vulgares deambulam nos contos de Aquino, ora subtis como
silenciosas mariposas, ora como extravagantes araras. É recorrente o estigma de
superficialidade e promiscuidade ao dispor da luxúria masculina, de relações fortuitas ou
duradouras, mas quase sempre desumanizadas e sem dignidade.
Assim, a mulher é a amante hipotética do tio, no conto «Impotências», caricatura da
homérica Penélope «com pivô e cílios postiços» que «o receberia como a esposa recebe o
seu homem, depois de uma longa viagem. Ulisses com sapato furado e loção barata»
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(Aquino, 2003: 14), sem necessidade de reconhecimento. É a mulher que mantém o elo
familiar intacto e sempre pronto a retomar a vida conjugal interrompida no tempo. Em
«Onze jantares», ela é a mulher objecto, «a mulher vulgar» fútil, sem amor-próprio, fácil,
que se encontra em qualquer lugar: «no shoppping», gastadora; «na sala de espera do
cinema»; num «single bar», aventureira e oferecida; «num catálogo de agências de
encontros», como mercadoria; «num concerto de Jazz; «numa academia de ginástica, num
desfile de moda e mesmo no enterro de um deputado»; «na plateia de São Silvestre»,
desapontada porque não foi convidada para nenhuma festa de réveillon; numa
«manifestação em favor das baleias»; na «sala de espera de algum dentista»; «no trânsito»
ou «numa exposição de Botero». Em qualquer recanto triste da vida existe uma Andreia,
vulgar, pronta para a humilhação e para o desprezo masculinos. O narrador não partilha
com a mulher vulgar os fracassos da sua vida familiar, nem as suas angústias pessoais:
«Nunca lhe contei que o meu pai foi cassado, que a família se desagregou, que às vezes
penso seriamente em dar um tiro na cabeça…» (ibid.: 19-27).
Em «A família no espelho da sala», existem, além da mãe, várias mulheres na corda
bamba da reificação: a filha divorciada não é prodigamente recebida quando regressa à
casa paterna com uma filha; pelo contrário, é rejeitada e ignorada pelo pai que «não disse
nada. Mas era visível sua reprovação, seu silêncio à mesa na hora do jantar, seu
constrangimento quando o ex-marido vinha buscar a filha do casal para um passeio» (ibid.:
38). Marisa, a filha do meio, deixa a vida esvair-se pelos pulsos cortados enquanto «O pai
e a mãe andavam há horas entretidos num jogo de cartas com dois casais amigos» (ibid.:
35). A empregadinha disponível para o filho do patrão de noite e de dia. A aversão ao
casamento do amigo Pedro, a quem «a mulher trocou por um jornalista da editoria de
turfe» (ibid.: 37). A mulher quimera, a ideal, que o narrador ainda está tentando encontrar
«nem que tenha de pesquisar a árvore genealógica das manhãs» (ibid.). A prostituta que
«cobrava três mil, incluído o hotel» (ibid.: 39).
Do rol de um escritor que não precisa de provar que está liquidado, encontramos
apenas parceiras sexuais reais, mas transitórias e outras que ele deseja sexualmente, mas
que não tem, talvez por razões morais ou de pudor, no conto «Para provar que o escritor,
provocações à parte, está de fato liquidado» (ibid.: 47). Uma colegial atrevida, a menina do
shopping, a adolescente do bar.
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«Lena, Mara, Lola, Sandra, Lúcia e uma porção de outros nomes» (ibid.:
100,101,105,110). Os nomes não eram relevantes, apenas a ocupação. Jurando que «não
eram nomes de guerra», «Graça, Luma, Suzete, Marilin, Odete», as moradoras da «buate-
puteiro», em «Recuerdos de Babilónia», onde «nas noites de sábado, a peãozada baixava
com tudo», «usavam roupas decotadas, curtas, pintura no rosto e muito perfume. (…)
Nenhuma era bonita. E todas pesavam mais do que deviam. Mas estavam ali para ser
desejadas» (ibid.: 209). O tom depreciativo com que o narrador descreve as prostitutas,
denuncia a sua perspectiva penalizadora e reprovadora, que é distinta da opinião da
«rapazeada» frequentadora do estabelecimento que «comentou que tá cheio de mulher
bacana, numa casa perto da obra» (ibid.: 208). Em «Ao lado do fogo», a mulher estranha o
singular comportamento do homem que compra os seus serviços sexuais, que «paga
adiantado» e que fica deitado na cama a observá-la, «nua, fumando, encostada na parede
em um quarto de hotel de beira de estrada» (ibid.: 222).
Em «Matadores», no bar onde Alfredão e o companheiro, o narrador, tocaiam a sua
presa, vão desfilando uma «japonesa» - que - «tinha rosas estampadas nas meias» (ibid.:
117), «Uma dona gorda, com um vestido amarelo» (ibid.: 118), «uma índia»
acompanhando «um cara manco» (ibid.: 120), «Duas mulheres – uma loira vestida com
calça de couro e uma baixinha com cara de nordestina» (ibid.: 122), de quem o narrador
desdenha chamando-lhes «bagulhos».
É um desfilar de situações quase idênticas que denunciam uma chaga social em que a
promiscuidade sexual parece ser apenas uma evolução natural dos primórdios da família
brasileira de Freyre.
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PARTE 3 - CONCLUSÃO
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que nenhuma delas se orgulha e que não querem ver revelado. «Ao lado do fogo» vive
perigosamente o narrador. «Miss Danúbio», uma foto resgatada de incêndio, uma «mulher
cuja nudez» é susceptível de comover o narrador, que não se apaixona, apenas se comove.
O amor e outros objetos pontiagudos. «Pai» desconhecido até à hora da sua morte,
cuja vida iria ser desvendada pela mulher misteriosa do seu velório. «Sete epitáfios para
uma dama branca», sete motivos para condenar a mulher que envereda pelos atalhos do
meretrício e do adultério e que a morte liberta do seu pecado e do seu castigo, para dar
lugar às turbinas das hidroeléctricas do Paraná. «Novas cartas paraguaias» são as missivas
para a reescrita da história de um guerrilheiro. Ou de um assassino? «Jantar em família»,
encontro com as lembranças do passado que colocarão em causa o presente e a felicidade
da família. «Renda-se, Bob Mendes, você está cercado» de ódio, de traição, de corrupção e
das memórias que o ajudaram a sobreviver ao cerco até se despedir do filho na morgue fria
numa noite chuvosa. «Bianca 17» o nome e talvez a idade que em comum com o escritor
maduro tem apenas o «gosto pelo mar. Mas por razões diferentes». «Matadouro» dos
sonhos de uma mulher que escondeu do filho, e até dela própria, a orientação sexual do pai
do filho, e nunca saberemos se foi só preconceito. «Partilha I» prova que não existem
sentimentos como a amizade e a lealdade no mundo do crime. «Partilha II», antípoda da I,
prova que um grande amor pode resistir ao tempo e pode repor a dignidade nem que ela
seja o produto de um furto. Um dia é da caça, outro do caçador. «O cerco» levanta duas
questões: não estaremos todos cercados pela dúvida, pela incerteza? Não serão esses os
nossos maiores inimigos, numa sociedade onde o medo alastra e cerca toda a existência,
semeando incertezas em vidas infelizes?
Ninguém escapa, neste mundo de barbárie marginal, e que mais não é do que o
espelho de uma sociedade classista, machista, e discriminatória, à análise aguçada e
«angustiada» do escritor Marçal Aquino.
Em cada conto descobre-se uma infinidade de temas, entrelaçados numa dilacerante
e pungente realidade urbana, corrompida, onde a única lei conhecida é a do mais forte.
Descobre-se uma sociedade marginal perspectivada de dentro, pelos seus agentes,
narradores e personagens, que, intrinsecamente, mostram as suas feridas ainda
ensanguentadas, num emaranhado de enredos em que a imaginação do leitor é posta à
prova, na técnica do iceberg.
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