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Diante dessa afirmação, devemos procurar entender como a Educação Física lidou com os
saberes que emanavam dos campos da recreação e do lazer, ao mesmo tempo que
incorporava esses conhecimentos à formação de seus agentes. Certamente, esse processo
possuía implicações diretas na sociedade da época, forjando indivíduos alinhados com o
projeto societário que se almejava, e contando, para isto, com o auxílio dos profissionais que
se formavam.
(Autores como Gomes (2008) e Melo (2003) apontam que o desenvolvimento de práticas
recreativas foi responsável pela criação dos cursos de formação profissional em Educação
Física em nosso país.).
Esse modelo que se pretendia ver edificado procurava atuar na saúde biológica e social da
população, possuindo ingerência no cotidiano dos indivíduos. Buscava-se uma reformulação
das consciências e dos saberes sobre o corpo e seus cuidados, sobre as práticas corporais e sua
importância para a época. Nesse sentido, as atribuições da escola se modificam, e essa
instituição adquire uma nova responsabilidade em face do ideário de progresso social que
norteia as ações pedagógicas que ali se desenvolvem (MARCASSA, 2004).
A tão temida lassidão não combinava com os pensamentos e atitudes que os idealizadores
desse projeto societário tentavam propagar. A ociosidade poderia levar os indivíduos à
vagabundagem, à capoeiragem (também vista como algo negativo) e aos vícios que seriam
prejudiciais ao desenvolvimento físico e moral das pessoas. Diante desse quadro, a recreação
atua decisivamente no sentido de propor atividades "sadias", capazes de distinguir
afirmativamente o corpo higienizado e o relapso corpo herdado da tradição colonial
(MARCASSA, 2004).
É por meio das atividades recreativas que os limites entre tempo de trabalho e tempo livre são
constituídos e assimilados desde as etapas iniciais do processo de escolarização das crianças
(educação infantil), respondendo a interesses político-ideológicos. Dessa forma, forja-se, no
interior da sociedade, um sistema de recompensa ao esforço empreendido no trabalho (e aqui
incluímos o trabalho escolar), essencial às exigências do mundo do trabalho e da sociedade
liberal e capitalista que se desenvolvia (MARCASSA, 2002).
De forma sintética, Marcassa (2004, p. 198) se expressa para apontar o papel da recreação
nesse período histórico:
[...] sob os preceitos da ordem, da disciplina e do comportamento saudável incorporados à
escola, a recreação manifesta-se como coadjuvante do processo educativo para o alcance da
melhor forma de recuperação das forças para o retorno ao trabalho, incluso aí o trabalho
escolar, a diminuição da delinqüência e a ocupação adequada do tempo livre, fazendo-se
protagonista da construção da harmonia e do progresso. E tamanho era o "dever civilizador"
das atividades escolares que ele acaba justificando não só a efervescência de movimentos
políticos e sociais pela instrução da população brasileira, como também reforçando, cada vez
mais, a prática da recreação como estratégia de controle do tempo livre, tanto dentro, como
fora da escola (Grifos nossos).
Diante dessas primeiras palavras acerca da trajetória histórica da recreação em nosso país,
podemos perceber que ela participa da história da educação na condição de um vigoroso
recurso disciplinar, inicialmente destinado à educação infantil, mas à qual a ela não se
restringe, alcançando também o processo formativo, moral e cívico de jovens e adultos.
Com o passar do tempo, mais precisamente das três primeiras décadas do século 20,
assistimos, no cenário educacional brasileiro, à emergência de novas concepções político-
pedagógicas, sintetizadas no que podemos chamar de "escolanovismo" ou, simplesmente,
"Escola Nova".
Para uma análise crítica dessa nova concepção político-pedagógica, leia a obra Escola e
democracia, de Saviani (2002).
No interior dessas transformações, passam a ter centralidade alguns aspectos que não
figuravam como (tão) essenciais para a educação até então, tais como: qualidade de ensino,
ênfase nos métodos e processos pedagógicos e processo de ensino e de aprendizagem
centrado no aluno, para citar apenas alguns.
Apesar do destaque conferido aos três conteúdos (jogos, brincadeiras e ginástica), no interior
do movimento escolanovista um embate se estabelece visando salientar à qual deles caberia
uma maior eficácia na consolidação da ordem burguesa e capitalista em curso. Enquanto
Fernando de Azevedo defendia a utilização da Ginástica Sueca como forma ideal para o
emprego do tempo livre e ocupação útil do corpo e da mente, Anísio Teixeira buscava destacar
o papel dos jogos e brincadeiras no amoldamento do caráter e da personalidade infantil,
afirmando que esses conteúdos responderiam melhor aos anseios das crianças (MARCASSA,
2004).
De acordo com Werneck (2003, p. 25), o fato é que estamos diante de um contexto em que,
por meio das atividades recreativas, "o controle é dissimulado em um suposto clima de
‘espontaneidade’ e ‘liberdade’ proporcionado pela vivência do jogo que, como uma ‘receita’,
colabora com o processo de reprodução cultural".
Dessa forma, os jogos (com regras, de recreio ou envolvendo outras atividades corporais)
realizados nos diferentes espaços contribuem para o amoldamento das personalidades e
condutas de toda a comunidade (seja escolar ou não escolar), no sentido de adaptar os
sujeitos às novas relações de trabalho que eram gestadas no processo de consolidação da
ordem burguesa e capitalista.
Essa experiência na capital gaúcha se torna diferenciada para a época, pois os locais públicos
deveriam possibilitar a prática de atividades físicas e recreativas direcionadas, o que constitui
uma experiência educativa inovadora no referido período em nosso país. Para isso, era
imprescindível que houvesse equipamentos e serviços especializados a fim de orientar e
educar os frequentadores desses espaços, a exemplo do trabalho que vinha sendo
desenvolvido com êxito em vários países, especialmente os Estados Unidos (GOMES, 2008).
Outra iniciativa de destaque no cenário nacional ocorreu em 1935, em São Paulo, com a
criação do Serviço Municipal de Jogos e Recreio, coordenado por Nicanor Miranda. Para ele,
de acordo com Marcassa (2004, p. 200):
Durante a gestão de Miranda, são criados os Parques de Jogos, que abrigavam os programas
de Parques Infantis, e os Clubes de Menores Operários. As ações desenvolvidas em seu
contexto visavam contribuir para a preparação e a integração da força jovem de trabalho ao
mercado cada vez mais competitivo e industrializado (MARCASSA, 2004).
O SRO era um órgão incumbido de difundir e coordenar atividades nos setores cultural,
desportivo e de escotismo (RODRIGUES, 2006; WERNECK, 2003).
Muito embora a não ocupação ou a utilização inadequada das horas de lazer continuasse se
configurando como um problema social que poderia colocar em risco a lógica capitalista,
passamos a observar uma mudança no significado e na utilização da recreação no contexto
histórico em questão.
Como se vê, a recreação passa a ser um instrumento organizador dos lazeres dos indivíduos.
Após percorrer as trilhas da história da recreação em nosso país, passaremos, agora, a realizar
uma incursão sobre a história do lazer.
Seguidores da tese de que o lazer sempre existiu, que sempre fez parte do cotidiano das
pessoas, tais como De Grazia (1966), Medeiros (1975) e Munné (1980), situam a origem desse
fenômeno nas fases mais remotas da história humana. Para alguns, o ponto de partida da
gênese do lazer pode ser localizado nas sociedades arcaicas, para outros, remonta à
Antiguidade grega.
Esse tipo de manifestação (o lazer) poderia ser expresso por meio de uma série de atividades
recreativas, como: jogos, danças campestres, banquetes, músicas, pescarias, contos de poesia,
folguedos populares, bailes e festas, feiras e romarias.
Para De Grazia (1966), outro adepto dessa primeira corrente, os povos primitivos e as
civilizações do Oriente, do Egito ou da Pérsia, que antecederam a Antiguidade grega, não
tinham lazer.
Outro autor que pode ser citado é Frederic Munné (1980), também partidário da tendência
de que o lazer antecede à Modernidade e se situa na Antiguidade. De acordo com esse
estudioso, o "cio" é um modo típico de nos comportarmos no tempo, o qual se estrutura em
quatro áreas de atividade:
A partir desse pensamento, poderíamos concluir que o lazer sempre fez parte da vida dos
indivíduos.
Dumazedier (1979) não acredita que a ociosidade dos filósofos da antiga Grécia ou da
aristocracia medieval possa ser chamada de lazer. Para ele, esses privilegiados, cultos ou não,
sustentavam sua ociosidade com o suor do trabalho alheio. Tal ociosidade não se define em
relação ao trabalho, não o complementa nem o compensa, apenas o substitui. Para o autor, o
lazer pressupõe o trabalho.
O autor reconhece que o tempo fora do trabalho é tão antigo quanto o próprio trabalho, mas
defende de forma enfática a ideia de que o lazer possui traços específicos, característicos da
civilização nascida da Revolução Industrial.
A contínua busca de formas de diversão não significa ter sempre existido o que hoje
chamamos por lazer, na medida em que tais formas de diversão guardam especificidades
condizentes com cada época, que devem ser analisadas com cuidado. Por certo, existem
similaridades com o que foi vivido em momentos anteriores – e mesmo por isso devemos
conhecê-los –, mas o que hoje entendemos como lazer guarda peculiaridades que somente
podem ser compreendidas em sua existência concreta atual. O fato de haver equivalências não
significa que os fenômenos sejam os mesmos.
E, continuando com as reflexões acerca da emergência histórica sobre o lazer, Melo e Alves
Junior (2003, p. 2) apontam que...
[...] somente a partir de determinado momento da história que se começa a utilizar a palavra
lazer para definir um fenômeno social; antes, outras palavras denominavam outros
fenômenos, similares mas não iguais.
Esse momento pode ser apontado como a Revolução Industrial, conforme vimos
anteriormente.
Sintetizando o que discutimos até então, as questões podem ser colocadas nos seguintes
termos: de um lado, temos os estudiosos que conferem a existência do lazer, já desde os
primórdios da humanidade, não havendo a necessidade de reconhecer a Revolução Industrial
e as suas transformações como ponto de partida para o surgimento do lazer; do outro, um
grupo de autores que se baseia nesse período histórico para defender que, a partir das tensões
e transformações sociais promovidas por esse evento histórico, teríamos a gênese do lazer.
Seguindo esse raciocínio, se as pessoas associassem o lazer com as ações religiosas, por
exemplo, as pesquisas sobre o tema poderiam se encaixar perfeitamente na sociologia da
religião, não sendo necessária uma sociologia do lazer.
Tomando a mesma linha de pensamento, para exemplificar, verifica-se que a integração entre
lazer e religião é muito comum em nosso meio, uma vez que é muito difícil separar o lazer de
determinados ritos e festejos religiosos.
A vivência das manifestações e das tradições culturais da humanidade também pode nos
auxiliar a compreender os significados comumente atribuídos ao lazer. Mesmo que algumas
ideias devam ser repensadas e revistas, esse é um lado da questão que ressalta a importância
das pesquisas dos autores que afirmam não ser o lazer um fenômeno recente (GOMES,
2004b). Tal suposição convida-nos a recuar na nossa história com o intuito de investigar e
compreender alguns dos princípios que influenciaram a constituição do lazer.
Diversos caminhos poderiam ter sido seguidos, porém, pela riqueza de elementos, três
contextos devem ser privilegiados: a sociedade greco-romana da Antiguidade; a feudal, da
Idade Média; e a urbano-industrial, da Modernidade.
Sociedade greco-romana
Foi aproximadamente no século 5º a. C. que ocorreu o "florescimento cultural do mundo
grego", como o denominam os historiadores. Essa época é conhecida como a fase clássica da
Grécia, representada pelo apogeu de Atenas: capital das artes, da ciência, da filosofia e da
política, fervilhante de novas ideias.
Os jogos aconteciam no monte Olimpo e eram, antes de tudo, um evento de cunho religioso,
no qual deveriam ser oferecidos sacrifícios e orações a Zeus.
Além de Zeus, muitos outros deuses eram cultuados pelos gregos. Acredita-se que o teatro, a
tragédia, a comédia e a declamação da poesia tiveram origem nos rituais realizados pelas
seguidoras de Dionísio, o deus do vinho. A Grécia clássica abrigava uma centena de anfiteatros,
e neles se encenavam muitas peças sobre vários temas.
Em geral, quando as heranças gregas são consideradas nas discussões sobre o lazer, os autores
que debatem o assunto não se debruçam sobre os significados das práticas culturais, como as
citadas anteriormente. Na maioria das vezes, são estabelecidas reflexões sobre o ócio, o que
nos remete ao termo grego skholé, que também é de grande valor para a compreensão do
processo de constituição histórica do lazer (GOMES, 2008).
Skholè (σχολή) é uma palavra grega que significa “ócio, tempo livre”, palavra
esta que é também a raiz da palavra “escola” (do latim schola).
Esse estado seria alcançado apenas por aqueles que conseguiam libertar-se da necessidade de
trabalhar, pois o trabalho produtivo era visto como indigno. O ideal clássico de lazer indicava,
portanto, distinção social, liberdade, qualidade ética, relação com as artes liberais e busca do
conhecimento.
Para Aristóteles (s.d), nem todos poderiam se entregar ao ócio (Tempo Livre), pois a maioria se
ocupava com a produção do que era necessário e útil e com o exercício da guerra – como os
artesãos, os lavradores e os guerreiros. Mas, para esse filósofo, valia muito mais gozar da paz e
do repouso proporcionados pelo ócio (Tempo Livre) , que era o inverso da vida ativa.
A expressão vita activa designava três atividades humanas fundamentais. A primeira delas é
o labor, atividade que correspondia ao processo biológico do corpo humano, relacionada às
necessidades vitais, assegurando a sobrevivência do indivíduo e a perpetuação da espécie.
Aristóteles foi aluno de Platão. De acordo com a filosofia platônica, tal como expresso em suas
Leis, um verdadeiro cidadão não deveria trabalhar, e sim dedicar-se integralmente à vida
contemplativa. De fato, acreditava-se que um cidadão virtuoso não "trabalhava". Quando este
destinava um tempo às suas tarefas políticas (caso desempenhasse algum cargo público), ou a
seus afazeres econômicos (como administrar seus domínios, cultivados pelos escravos), não
estava "trabalhando", apenas zelando pela vida habitual do espaço público e do privado, como
pontua Veyne (2002).
Tamanho era o desprezo pelo trabalho que, de acordo com Platão, uma cidade bem feita
seria aquela na qual os cidadãos fossem alimentados pelo trabalho rural de seus escravos, e
os ofícios fossem relegados às pessoas "comuns". Uma vida virtuosa deveria ser ociosa. Para
Aristóteles, os escravos, os camponeses e os comerciantes não poderiam ter uma vida
virtuosa, próspera e cheia de nobreza: podem-no somente aqueles que dispõem dos meios
para organizar a própria existência, fixando para si mesmos um objetivo ideal (VEYNE, 2002).
Dessa maneira, apenas os ociosos (Ocioso significa em estado de ócio, aquele que não
tem nenhuma ocupação, que não faz nada da vida) correspondiam, moralmente, ao ideal
humano, merecendo ser reconhecidos como cidadãos.
Essas foram algumas das ideias que marcaram a sociedade clássica grega. No entanto, com as
conquistas de Alexandre da Macedônia, imortalizado como "o Grande", passou-se da idade
grega para a helenística. Alexandre estendeu o império da Grécia às fronteiras da Índia, mas
acabou sucumbindo diante da dificuldade de controlar o vasto território conquistado a partir
de um ponto situado na periferia.
Roma foi bastante influenciada pela cultura helênica. A civilização, a literatura, a arte e a
própria religião provieram quase inteiramente dos gregos. Para Veyne (2002), o Império
Romano foi a civilização helenística nas mãos brutais de um aparelho de Estado − constituído
por imperador e Senado ─ de origem latina. Por essa razão, diz-se que Roma foi um império
fundado na violência e protegido por ela.
Administrar a grande área conquistada pelos romanos não foi uma tarefa simples. Roma
determinou uma moeda única e pavimentou estradas, possibilitando ao seu exército agir
rapidamente diante de ataques inimigos.
Como esclarece Veyne (2002, p. 41), em Roma, "todo homem público fazia carreira pelo pão
e pelo circo". O pão era a base da alimentação de Roma, geralmente produzido em casa,
pelas mulheres.
Da mesma maneira que em terra grega, os concursos atléticos e os jogos foram grandes
acontecimentos em Roma, e em todas as cidades do império foram os grandes espetáculos
públicos: tratava-se do circo, representado por algumas das práticas culturais que marcaram
esta civilização (GOMES, 2008).
De acordo com Veyne (2002), no que se refere a esse segundo ponto, o pensamento romano
era contraditório. Um notável que negociava não era classificado como negociante, era um
notável. Ele não era definido pelo que fazia, não importando o que fosse. Para ser apenas ele
mesmo, um romano deveria possuir patrimônio.
Um pobre, em contrapartida, era sempre classificado conforme seu ofício, como sapateiro
ou operário diarista.
Ao lado do ideal de "ócio e política", que caracterizava a sociedade antiga, uma ideia mais
positiva do trabalho transparece em documentos de origem popular. Muitos se orgulhavam de
seus ofícios, e alguns deles chegavam a pertencer ao Senado municipal de sua cidade; várias
pessoas fizeram fortuna com seu trabalho. Ricos comerciantes, artesãos ou grandes
agricultores mencionavam sua profissão no seu epitáfio, informando que "trabalharam
laboriosamente" (VEYNE, 2002).
O destino de quase toda a população romana era uma luta ardorosa pela sobrevivência. Ou
seja, eles trabalhavam muito. Com a disseminação do cristianismo, muitos aderiram ao
princípio de que quem não trabalhava não teria o que comer. Era, simultaneamente, uma
lição dada a si mesmo e uma advertência ao preguiçoso que pretendia partilhar do pão
obtido pelo suor alheio.
À primeira vista, a convivência entre cristianismo e paganismo não foi pacífica no império.
"O paganismo era uma religião de festas: o culto não passava de uma festa, com a qual os
deuses se divertiam, pois nela encontravam o mesmo prazer que os homens" (VEYNE, 2002,
p. 189). O calendário religioso diferia de uma cidade para outra, mas periodicamente
restaurava festas religiosas, vistas como feriados. A religião determinava a distribuição
irregular dos dias de descanso ao longo do ano.
O império entrou em decadência ao final do século 3º, como consequência de vários fatores:
constantes corrupções das classes altas, revoltas populares, invasão das fronteiras imperiais
e frequentes derrotas nas batalhas. Os bárbaros foram recebidos com entusiasmo pelo
próprio povo romano, há muito assolado pela fome e pela miséria. Nem mesmo a adoção do
cristianismo como religião oficial de Roma foi capaz de refrear o inevitável declínio do
império, cuja degradação foi evidenciada nos primórdios do período medieval (GOMES,
2008).
Sociedade medieval............
A fase conhecida como Idade Média abrange um período muito extenso, com
características profundamente distintas ao longo dos séculos. Essa etapa revelou-se
heterogênea em termos de tempos, lugares, formas de agir e categorias sociais.
Como será evidenciado neste tópico, muitas dessas variáveis influenciaram a
constituição do lazer e do trabalho em nosso meio, especialmente considerando a vida
social das pessoas comuns.
No século 5º, começa a se formar um sistema social, político e econômico conhecido como
feudalismo, cuja origem está relacionada ao declínio do Império Romano do Ocidente,
conforme tratamos no tópico anterior.
No feudalismo, as relações sociais podiam ser resumidas nas relações entre servos e
senhores. Enquanto os senhores tinham a posse legal das terras e exerciam o poder
político, militar, jurídico e religioso (quando também assumiam as funções eclesiásticas),
os servos estavam presos a obrigações devidas ao senhor e à Igreja. Essas obrigações
podiam ser pagas com bens, serviços, presentes ou dinheiro.
Sendo um pecador, o ser humano deveria aceitar esse destino e dedicar-se inteiramente
ao árduo trabalho. E quando não estivesse trabalhando, deveria buscar a paz e a
purificação do espírito, evitando todo tipo de tentação causada pelos prazeres da carne.
Todos sabiam que Deus julgava e que as sentenças seriam pronunciadas no último dia.
Somente se afastando das armadilhas do pecado seria possível alcançar um lugar entre os
"eleitos de Deus".
Alguns membros do clero estudavam a filosofia clássica grega e romana com o intuito de
adaptar esse importante legado aos princípios cristãos. Essa orientação pode ser
identificada no pensamento de Santo Agostinho (que no século 6º retomou os estudos de
Platão) e de São Tomás de Aquino (que deu novo vigor à obra de Aristóteles no século 19,
enfatizando a noção de ócio como contemplação).
Desde o despertar da Idade Média, os líderes religiosos faziam valer a premissa de que
"conhecimento é poder", e a exerciam perante os outros membros da sociedade, pois
quase toda a população pobre era analfabeta. Essa era uma das razões pelas quais os
camponeses deveriam exercer o trabalho árduo, uma vez impossibilitados de
desempenhar outras atribuições mais ilustres (GOMES, 2008).
Desde o cristianismo primitivo, o riso foi condenado e afastado da cultura oficial, pois o
bom cristão deveria ser constantemente sério e temente a Deus, conservando o
arrependimento e a dor em expiação de seus pecados. Enquanto contenção e sofrimento
eram associados com a redenção, o riso denunciava sucumbência às tentações de
inspiração demoníaca. Mas nem por isso as formas cômicas deixaram de subsistir ao
lado das canônicas. Por ser jocoso e alegre, o riso continha um aspecto regenerador, fun-
damentado no folguedo, na alegria e no cômico (GOMES, 2008).
O riso gozava de poderoso encanto que, por vezes, alcançava todos os graus da jovem
hierarquia feudal, inclusive a eclesiástica. Bakhtin (1999) considera que esse alcance pode
ser explicado por vários fatores, tais como:
- as tradições romanas, como as saturnais e outras formas de riso popular legalizadas em
Roma, ainda estavam muito vivas no início da época medieval;
- a cultura popular era muito forte nesse período, de maneira que o sistema feudal em
constituição a considerava, aproveitando seus elementos com interesses sociais e
políticos específicos;
- a Igreja procurava coincidir as festas pagãs e cristãs locais a fim de cristianizar os cultos
cômicos (GOMES, 2008).
As formas e as manifestações do riso medieval eram compostas por ritos e cultos cômicos;
presença de bobos e bufões; atuação de gigantes, anões, monstros e palhaços; literatura
paródica, obras cômicas e teatro popular (especialmente de marionetes), representado
por artistas de feira nas praças públicas, bem como nas festas carnavalescas. Todas essas
manifestações do riso, chamadas "grotescas", contrapunham-se à cultura oficial, ao tom
sério, religioso e feudal da época. Nas cerimônias de entrega do direito de vassalagem ou
iniciação de novos cavaleiros, por exemplo, era comum a presença de bufões e bobos, que
parodiavam os atos formais das autoridades e do público presente (GOMES, 2008).
O carnaval era uma prática comum, vivida por todos, e, nas grandes cidades, chegava a
durar três meses por ano, no total. Os espectadores não assistiam ao carnaval, eles o
viviam intensamente. Essa festa representava uma fuga provisória dos moldes da vida
ordinária, e, enquanto durasse, não se conhecia outra vida.
Para Bakhtin (1999, p.7),"O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do
riso. É a sua vida festiva. A festa é a propriedade fundamental de todas as formas de ritos
e espetáculos cômicos da Idade Média".
Era comum o uso de máscaras, que traduziam a alegria das alternâncias, das
metamorfoses e das reencarnações que recobriam a natureza inesgotável da vida com
suas múltiplas faces. A máscara carregava o sentido da cultura popular e carnavalesca
medieval, não sendo utilizada para enganar, encobrir ou dissimular, mas para revelar a
alegre negação da identidade e do sentido único.
Até certo ponto, os rituais cômicos das festas, os folguedos das feiras, os carnavais, as
procissões e os ritos estavam legalizados. Evidentemente, essa permissão legal era
forçada e alternava-se com as interdições. A vitória efêmera do riso só durava o período
da festa, sendo logo seguida por dias ordinários de medo e opressão. Ao contrário do
riso, a seriedade medieval impregnava-se de elementos de temor, repressão, fraqueza,
docilidade, resignação, hipocrisia, proibições, violência e ameaças (GOMES, 2008).
As festas celebradas nos feriados, como a "festa dos loucos", eram, no início da Idade
Média, comemoradas nas igrejas e consideradas perfeitamente legais, mas, em seguida,
tornaram-se controversas, até que, no final desse período, foram consideradas ilegais.
Mesmo proibidas, continuavam a ser celebradas nas ruas e nas tavernas, incorporando-se
aos folguedos populares (GOMES, 2008).
O período conhecido como "Renascimento" alcançou seu apogeu por volta do século
16 e representa uma fase de transição entre as idades Medieval e Moderna. Trata-se
de uma época conturbada, permeada por conflitos entre a Igreja e o Estado e
caracterizada por uma efervescência epistemológica, intelectual e artística,
acentuada pelo desejo de empreender novas descobertas quanto à natureza e ao
homem, demolindo tudo quanto viera do passado e redescobrindo o saber greco-
romano livre da tradição cristã (GOMES, 2008).
Sociedades urbano-industriais
Por mais conceituadas que fossem as cidades, antes da era Moderna, as áreas rurais
eram as grandes produtoras de riqueza. À medida que o padrão social de riqueza se
alterou da posse de terra para o montante de dinheiro acumulado, a classe burguesa
viuse em situação privilegiada. Afinal, os substanciais valores gerados pelo comércio
garantiram à burguesia um progressivo acúmulo de capital.
Aparentemente, trabalho e tempo livre são esferas opostas, pois o primeiro é apresentado
como o reino da necessidade, enquanto o segundo é visto como a esfera da liberdade, da
gratuidade e da desobrigação, como sugere a própria expressão "livre".
No decorrer do século 19, difunde-se rapidamente a ideia de que o trabalho, categoria que
passa a ser a referência determinante da vida em sociedade, é o que permite aumentar a
riqueza das nações (GOMES, 2004b).
De acordo com Thompson (1991), a disciplina imposta pelo capitalismo industrial exigiu uma
nova postura da mão de obra assalariada, pautada no aproveitamento produtivo do tempo,
agora concebido como dinheiro. Nessa perspectiva, aos operários foi garantido apenas o
repouso necessário para sua reprodução como força de trabalho.
Além disso, era grande o medo de perder o posto de trabalho ocupado. O patrão poderia,
por exemplo, intensificar o período diário de trabalho nas fábricas e abolir o descanso
semanal, porque sabia que os operários acabariam aceitando essas condições. Os festejos,
que no decorrer da Idade Média duravam dias, semanas ou meses, foram completamente
banidos da vida do operariado. As exaustivas jornadas de trabalho, ao lado das necessidades
de higiene, alimentação e transporte, ocupavam todo o tempo em função do ritmo e das
relações estabelecidas no interior do processo produtivo (GOMES, 2004b).
Nesse contexto, são válidas as palavras de Paul Lafargue (1999), que combateu a economia
capitalista com o panfleto O direito à preguiça, publicado originalmente em 1880. Nessa
obra, o autor critica a moral cristã e a ética do trabalho, esboçando um painel da sociedade
burguesa e focalizando a questão da consciência de classe que faltava ao proletariado.
De acordo com Lafargue (1999), à medida que a máquina era aperfeiçoada, suprimindo o
trabalho humano, o operário parecia multiplicar seu empenho, como se quisesse concorrer
com o equipamento, o que para esse autor representava um contrassenso. O proletariado
precisava entender que a máquina deveria redimir a humanidade, resgatando o homem do
trabalho assalariado para conceder-lhe "os lazeres e a liberdade".
Sendo assim, Lafargue instigou a classe proletária a mobilizar-se para instaurar uma lei que
proibisse o trabalho além de três horas diárias. Conforme sua visão, a preguiça era mil vezes
mais nobre e mais sagrada que os "direitos do homem" proclamados pela burguesia. Tal
argumentação ecoou como um verdadeiro ultraje à lógica da produtividade. Entretanto, fiéis a
essa lógica, os proletários acreditavam que aqueles que não trabalhavam eram inúteis e não
tinham o direito de comer, muito menos de descansar e de se divertir (GOMES, 2008).
Além da complexidade que engendra essa trama social, cabe destacar que o lazer foi
constituído como um tempo/espaço subtraído do trabalho; como um campo propício para
fugir da rotina, compensar frustrações, proporcionar descanso ou divertimento no tempo
supostamente "livre" das mazelas do trabalho produtivo. Por essa razão, como uma prática
social dialeticamente vinculada ao trabalho, mesmo passível de direcionamento, o lazer
pode ser visto como um direito jurídico e legalmente reivindicado pelos trabalhadores no
final do século 19.
Em suma, à medida que a burguesia procurou exercer controle sobre o tempo livre,
revertendo-o em benefício do próprio tempo de trabalho, o ócio foi encarado como um
desvio, e o lazer − normativo, controlado, regulado − passou a ser a regra (SANT’ANNA,
1998).
O processo de institucionalização do lazer no contexto da sociedade moderna foi impulsionado
por vários fatores, tais como a urbanização, o avanço tecnológico e industrial, a difusão da
noção de tempo mecânico, o desenvolvimento do modo de produção capitalista e a
concretização de projetos sociais, políticos e pedagógicos condizentes com os valores
hegemônicos em cada momento histórico. O capitalismo não vem se constituindo como um
sistema rígido, perpetuando-se graças à sua grande capacidade de adaptação e flexibilidade.
Contudo, a história construída em nossa sociedade revela sua "fratura exposta": a exploração
proveniente da Revolução Industrial (GOMES, 2008; GOMES, 2004b).
Esses elementos foram essenciais não apenas para orientar os novos rumos seguidos pelo
trabalho, mas também para o lazer, com profundos impactos na sociedade contemporânea.
Sociedade contemporânea......
Geralmente, o trabalho é concebido como uma obrigação, e não como uma autêntica
possibilidade de realização humana.
Como explica a autora, a lógica do capital rege não apenas o tempo de trabalho, mas
também o tempo fora dele. No entanto, para Padilha (2004, p. 221), [
...] o tempo livre pode ser um tempo de alienação e consumismo, mas também pode ser um
tempo de reflexão e práxis. [...] Numa abordagem crítica da sociedade ela é apreendida como
contraditória, o que faz com que o tempo livre, como um fenômeno social, também seja cheio
de contradições.
Essa opinião é compartilhada por muitos estudiosos, como Souza Júnior (2000), para quem o
tempo livre deveria constituir o momento em que cada ser social poderia dispor de si mesmo
livremente, sem se submeter ao imperativo de ter de trabalhar para viver. Porém, no contexto
da sociedade regida pelo capital o tempo livre se encontra distanciado do ideal de estar
consigo mesmo de maneira liberta, se configurando em um momento para reprodução da
força de trabalho.
Além disso, o autor acredita que o desenvolvimento das forças produtivas deveria levar a
humanidade a despender cada vez menos tempo no trabalho, dispondo cada vez mais de
tempo livre no qual possa desenvolver sua potencialidade (SOUZA JÚNIOR, 2000).
Santos (2000) observa que as contínuas evoluções tecnológicas prometeram não somente
uma liberação do esforço no trabalho, acenando também com mais tempo livre para todos,
mais informação, mais comunicação, mais política e mais desenvolvimento humano. Em
outras palavras, um mundo melhor. Contudo, lamentavelmente, a realidade vem mostrando
que o tempo livre não vem sendo ampliado, mas, sim, reduzido em larga escala,
especialmente por causa das condições sociais de existência da maioria das pessoas.
A explicação elaborada por De Masi (2000), embora dotada de uma lógica própria,
desconsidera questões sociais que são fundamentais a um entendimento mais amplo e
consistente do trabalho e do lazer. Em várias regiões do mundo continuam predominando as
jornadas de trabalho extremamente longas dos primórdios do capitalismo e, mesmo nas
metrópoles ocidentais, a jornada real de trabalho foi reduzida apenas em certa medida.
Consequentemente, cada vez mais as pessoas procuram, desesperadamente, o tal "tempo
livre", como pondera Kurz (2000).
Muitas corporações aderiram à redução de pessoal, optando por estratégias que parecem
gerar melhores resultados para as empresas. Logo, aqueles que permaneceram empregados
passaram a trabalhar muito mais: tanto para dar conta de cumprir todas as tarefas como
para não correr o risco de demissão. Os trabalhadores informais também acabam
trabalhando muito, pois enfrentam jornadas extensas para tentar manter sua antiga
condição de renda (WERNECK; STOPPA; ISAYAMA, 2001).
Além de trabalhar muito, o trabalhador fica vulnerável aos imperativos do mercado, que
provocam uma gradativa deterioração das relações de trabalho.
Tal situação não está circunscrita ao chamado Primeiro Mundo, atingindo também os países
em desenvolvimento. Além disso, abrange tanto a exclusão de uma crescente massa de
trabalhadores do gozo de seus direitos legais como a consolidação de um ponderável exército
de reserva e o agravamento de suas condições.
Existem infinitas possibilidades de desfrute pessoal e coletivo, e a mídia explora todo esse
potencial de lazer como se os bens e os serviços ofertados fossem acessíveis a todos.
Como trabalho e lazer estabelecem relações dialéticas, podem colaborar com a emancipação
social. Para isso, o lazer não pode ser visto como um remédio para a problemática social,
cujo objetivo seja simplesmente aliviar as tensões ou compensar os dilemas que marcam
profundamente o mundo do trabalho.
Como bem disse Riesman (1971), o lazer não é capaz de salvar o trabalho, fracassando
juntamente com ele, e só será significativo para as pessoas se o trabalho o for também.
Dessa forma, as qualidades por nós desejadas no lazer ─ como satisfação, realização,
reconhecimento, autonomia, liberdade, criatividade e criticidade − terão maiores chances de
se concretizar no trabalho a partir do momento em que travarmos a batalha em uma única
frente: a do "trabalho-e-lazer".
[...] um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para
repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou ainda para desenvolver sua formação
desinteressada, sua participação social voluntária, ou sua livre capacidade criadora, após livrar-se ou
desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais.
O entendimento do lazer como "um conjunto de ocupações", tem sido alvo de críticas por
parte de diversos autores. Além de restringir o lazer à prática de determinadas atividades,
supõe que o indivíduo deve estar sempre ocupado com algo, não havendo possibilidades
para o "nada fazer".
Na época em que Dumazedier elaborou essa definição, o lazer era colocado em oposição
ao conjunto das necessidades e das obrigações da vida cotidiana, especialmente do
trabalho profissional. Dessa forma, o lazer era definido em contraponto à liberação das
obrigações institucionais, e não apenas do trabalho.
As necessidades humanas (descanso, divertimento, recreação e desenvolvimento da
personalidade) apresentadas em sua definição são influenciadas pela dinâmica social, e o
sociólogo não considera essa questão em sua elaboração.
Faleiros, citada por Padilha (2002), ao criticar o conceito de lazer emitido por Dumazedier
(1973), parte do princípio marxista de que as necessidades humanas são geradas em uma
dada realidade social e estão vinculadas ao processo histórico e às transformações da
civilização.
A partir dos resultados das pesquisas empíricas desenvolvidas na França nas décadas de
1950 e 1960, Dumazedier (1979) indicou um sistema de características constituintes do
lazer:
- Caráter liberatório: o lazer é liberação de obrigações institucionais (profissionais,
familiares, socioespirituais e sociopolíticas) e resulta de uma livre escolha;
Além destas características, Dumazedier (1973) contribui com este campo de estudos
apontando que o lazer atenderia, basicamente, a três funções: descanso, divertimento e
desenvolvimento.
A função descanso tem como função liberar-se da fadiga. Nesse sentido, o lazer "é um
reparador das deteriorações físicas e nervosas provocadas pela tensões resultantes das
obrigações cotidianas e, particularmente, do trabalho" (DUMAZEDIER, 1973, p. 32). Já o
divertimento está ligado à busca de atividades compensatórias que provoquem satisfação
e prazer. Por fim, a função desenvolvimento "cria novas formas de aprendizagem
voluntária [...] no indivíduo libertado de suas obrigações profissionais", visando "o
completo desenvolvimento da personalidade dentro de um estilo de vida pessoal e social"
(DUMAZEDIER, 1973, p. 34). De acordo com o autor, essas funções são solidárias entre si.
Em seu livro Lazer e humanização, Marcellino (1983) confere notável destaque às ideias
de Dumazedier. Nessa obra, também é possível identificar o pensamento de Antônio
Gramsci, pois Marcellino assume a perspectiva marxista como pano de fundo para
subsidiar suas análises. Contudo, a influência de Gramsci é mais expressiva na obra Lazer
e educação (1987), na qual não são feitas muitas menções a Dumazedier, embora suas
ideias continuem presentes no texto (GOMES, 2004a).
No livro Sociologia empírica do lazer, Dumazedier (1979) justifica sua opção por adotar a
expressão "tempo livre", como designação para o tempo liberado do trabalho, e não
necessariamente o tempo de lazer.
Para Camargo (1986, p. 97), que também fora influenciado pelo pensamento do
sociólogo francês, o lazer se configura em:
[...] um conjunto de atividades gratuitas, prazerosas, voluntárias e liberatórias, centradas em
interesses culturais, físicos, manuais, intelectuais, artísticos e associativos, realizadas num tempo
roubado ou conquistado historicamente sobre a jornada de trabalho profissional e doméstico e que
interferem no desenvolvimento pessoal e social dos indivíduos.
[...] prática social historicamente situada que se funda a partir das relações que estabelece com o
trabalho, o tempo, a práxis, o espaço, a cultura e a educação. (...) Estou convencida de que o lazer se
configura como uma instituição que envolve um conjunto de práticas cujas normas e características
internas lhe conferem um estatuto próprio de funcionamento, atribuindo-lhe qualidades que
assumem um caráter indissociável da sua própria experiência e compreensão. Nessa perspectiva, o
lazer agrega, num mesmo tempo e espaço, a realização de inúmeras práticas corporais e lúdicas,
diferentes formas de divertimento e descontração consideradas lícitas, mas que têm um caráter
espontâneo, porque partem dos desejos, ainda que induzidos, dos indivíduos e grupos, e um arranjo
planejado frente à vida cotidiana moderna e racionalizada, abarcando inúmeras experiências de
contato e recriação do universo cultural que acontecem em locais determinados e que promovem
valores, saberes e significados articulados às possibilidades e condições postas às diferentes classes
sociais. Portanto, o lazer só pode ser entendido como um fenômeno social moderno, que cria códigos
e funções muito importantes para a sua realidade contextual, constituindo-a e revelando-a, tanto no
sentido da manutenção, como da transformação.
Marcellino (2010) enfatiza que o lazer pode ser compreendido a partir da combinação dos
aspectos "tempo" e "atitude". A atitude diz respeito à relação estabelecida entre o sujeito
e a experiência vivida, fruto de uma escolha pessoal e prazerosa. O tempo refere-se ao
tempo disponível, obtido pelo indivíduo após se desvencilhar não apenas das obrigações
profissionais, mas também das obrigações familiares, sociais e religiosas, ou seja, o tempo
da não obrigatoriedade. Nesse ponto, o autor também se aproxima de Dumazedier.
O lúdico pode ser destacado como a essência que integra a concepção de lazer de Leila
Pinto (2003). Entendendo o lazer como disponibilidade de tempos e lugares para vivências
da cultura lúdica, a autora ressalta a construção de interações prazerosas centradas no
sujeito, em determinado contexto, constituídas a partir de sua curiosidade, de seus
desejos, de suas descobertas críticas e criativas.
Para a autora, essas experiências são construídas, sobretudo, pela liberdade do sujeito
na ressignificação desses tempos e lugares, na recriação de objetos, materiais e
atividades. Na sua visão, lazer implica sonhos, gerenciamento de conflitos e anúncios;
implica relações humanizadas e transformação de tempos e espaços educativos (formais
e não formais) em experiências lúdicas.
Nesse sentido, a alegria é possível como fruto da conquista da liberdade ao lidar com
atitudes, espaços, tempos e atividades que busquem superar os muitos dilemas sociais
colocados como limites às conquistas desejadas.
Conforme o autor, o lazer é constituído por três elementos: tempo, espaço e atitude.
Para esse autor, a vivência do lazer relaciona-se com as oportunidades de acesso aos
bens culturais — determinadas, geralmente, por fatores sociopolíticos e econômicos e
influenciadas por fatores ambientais.
De acordo com as ponderações de Bramante (1998), ao longo do tempo o lazer vem sendo
conceitualmente confundido com outros derivados, como "recreação" e "jogo". Para ele, o
lazer significa um amplo e interdisciplinar campo de estudos, pesquisas e aplicação. A
recreação, por sua vez, é atrelada ao conceito de "atividade" – por exemplo, a um
"programa de atividades recreativas para pré-escolares" (BRAMANTE, 1998, p. 11). Em
outro trabalho, o autor reforça esse entendimento: "Em última análise, recreação pode ser
considerada como produto, isto é, atividade/experiência, que ocorre dentro do lazer"
(BRAMANTE, 1997, p. 123).
Para outro grupo de estudiosos, a exemplo de Pinto (1992, p. 291), "a recreação e/ou
lazer sendo considerados espaços privilegiados para a vivência do lúdico". Nesses
termos, ao compartilhar a essência lúdica, recreação e lazer poderiam ser concebidos
com o mesmo sentido conceitual.
Camargo (1998, n. p.33) corrobora a concepção anterior, trazendo outros dados para a
discussão. Conforme suas considerações, "os conceitos de lazer e recreação em nada se
diferenciam do ponto de vista da dinâmica sociocultural que produziu o divertir-se
moderno".