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Porquê votar “NÃO”

Argumentário contra o direito ao aborto

Texto Completo – Versão 3


(Consultar o texto resumido em http://www.espectadores.blogspot.com)

«Homicidii festinatio est prohibere nasci, nec refert natam quis


eripiat animam an nascentem disturbet. Homo est et qui est
futurus; etiam fructus omnis iam in semine est.»1 –
Tertuliano, Apologeticum, IX, 8.

«A vida humana é inviolável.» – Constituição da


República Portuguesa2.

«The problem of the ethics of abortion is the problem of


determining the fetal property that settles this moral
controversy.» – Donald Marquis, Why abortion is immoral3.

Notas Prévias .......................................................................................................................................3


1. Introdução ...................................................................................................................................4
2. As “consciências”.....................................................................................................................12
3. Contexto jurídico do aborto ...................................................................................................15
3.1 O estatuto jurídico da vida humana intra-uterina .........................................................15
3.2 Situação jurídica do aborto em Portugal ........................................................................28
3.3 Situação jurídica do aborto em Espanha........................................................................31
3.4 Despenalização, descriminalização, legalização e liberalização...................................33
3.5 Considerações sobre crimes e penas...............................................................................34
4. Má argumentação contra o direito ao aborto.......................................................................40
4.1 O uso de argumentação religiosa ....................................................................................40
4.2 O apelo às emoções ..........................................................................................................40
4.3 A “derrapagem”.................................................................................................................42
4.4 O apelo à ignorância .........................................................................................................43
4.5 O apelo à «dignidade da vida humana» ..........................................................................43
5. Má argumentação pelo direito ao aborto..............................................................................44
5.1 «Quem está contra o direito ao aborto não pensa na mulher» ...................................44
5.2 A “inevitabilidade” do aborto..........................................................................................44
5.3 A “hipocrisia”.....................................................................................................................46
5.4 O “direito” da mulher ao seu corpo ...............................................................................47
5.5 O apelo às emoções ..........................................................................................................48
5.6 O argumento socio-económico.......................................................................................49
1 «Impedir um nascimento é simplesmente uma forma mais rápida de matar um homem, não importando se se
mata a vida de quem já nasceu, ou se põe fim à de quem está para nascer. Esse é um homem que se está a formar,
pois tendes o fruto já em sua semente.», adaptado da tradução de José Fernandes Vidal. A obra Apologeticum
(“Apologia”) do cristão Tertuliano terá sido escrita por volta de 197 d.C., com o objectivo de refutar as falsas
alegações anti-cristãs largamente difundidas na sociedade romana de então. Esta citação não pretende estabelecer
uma base religiosa para a defesa do “não” (nunca usarei argumentos religiosos ou metafísicos ao longo deste
artigo), é apenas um exemplo do uso eficaz de uma analogia entre a gravidez humana e a passagem da semente a
fruto. Esta analogia apela, na minha opinião, para valores éticos universais que transcendem a visão religiosa ou
não religiosa de cada um.
2 Artigo 24.º (“Direito à vida”), ponto 1.
3 Artigo publicado no The Journal of Philosophy, Inc., 1989. Donald Marquis é professor na Faculdade de Filosofia da

Universidade do Kansas, em Lawrence (Kansas, E.U.A.).

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


1
5.7 O apelo à ignorância .........................................................................................................49
5.8 A “tirania dogmática” .......................................................................................................50
5.9 «A lei actual não evita o aborto»......................................................................................52
5.10 «A mulher sabe decidir sozinha» .....................................................................................52
5.11 «Para acabar com a humilhação».....................................................................................53
5.12 «Quem sou eu para julgar?»..............................................................................................54
6. A Ética do Aborto....................................................................................................................55
6.1 Quando é lícito matar uma pessoa? ................................................................................55
6.2 A definição médica do início da vida humana...............................................................55
6.3 Introdução histórica ..........................................................................................................63
6.4 O dilema ético do aborto .................................................................................................65
6.5 Momentos-chave do debate ético ...................................................................................66
6.5.1 O contributo de Judith Jarvis Thomson (1971) .....................................................66
6.5.2 O caso Roe vs. Wade (1971-1973) ...........................................................................71
6.5.3 O contributo de Jane English (1975).......................................................................74
6.5.4 O contributo de Peter Singer (1979)........................................................................75
6.5.5 O contributo de Michael Tooley (1983)..................................................................86
6.5.6 O contributo de Mary Anne Warren (1996)...........................................................86
6.5.7 O contributo de Donald Marquis (1989) ................................................................86
6.5.8 O contributo de Mark Brown (2000).......................................................................86
6.5.9 O contributo de David Boonin (2002)....................................................................86
6.6 O Princípio do Duplo Efeito...........................................................................................87
7. O drama humano e social do aborto.....................................................................................89
8. Conclusão ..................................................................................................................................92
A. Os votos de vencido do Acórdão do Tribunal Constitucional .........................................96
A.1 Decisão................................................................................................................................96
A.2 Voto de vencido de Rui Manuel Moura Ramos............................................................97
A.3 Voto de vencida de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza...............................................99
A.4 Voto de vencido de Paulo Mota Pinto...........................................................................99
A.5 Voto de vencido de Benjamim Rodrigues ...................................................................103
A.6 Voto de vencido de Mário José de Araújo Torres......................................................109
A.7 Voto de vencido de Carlos Pamplona de Oliveira .....................................................114
B. A IPPF e as suas afiliadas......................................................................................................116
B.1 A fundadora: Margaret Sanger (1879-1966) ................................................................116
B.2 Margaret Sanger e o aborto............................................................................................118
B.3 Margaret Sanger e a eugenia...........................................................................................120
B.4 O que defende a PPFA em relação ao aborto.............................................................126
B.5 Os objectivos e motivações da IPPF............................................................................129
B.6 A visão da APF face ao aborto em Portugal ...............................................................130
C. A “contracepção de emergência” é abortiva?.....................................................................136
Agradecimentos ...............................................................................................................................144
Bibliografia .......................................................................................................................................145

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Notas Prévias

O que este texto não é


o Não é um texto científico: não tenho formação científica em nenhuma das áreas
centrais para o debate acerca do aborto, seja em Direito, seja em Medicina, seja em
Filosofia, ou no ramo filosófico específico da Ética;
o Não é um texto de opinião: apesar de este texto conter opiniões pessoais em partes
devidamente identificadas, o texto é uma argumentação que defendo como sendo
objectiva, sólida e fundamentada, com recurso a contributos de especialistas em
matéria de ética do aborto (tanto a favor como contra o direito ao aborto).

O que este texto é


É uma argumentação construída com vista à demonstração das seguintes teses:
o É eticamente ilícito propor aos portugueses, sob a forma de referendo, a pergunta
aprovada na Assembleia da República;
o Dado que o referendo se vai realizar, e não questionando o direito e a obrigação
cívica de votar, é eticamente ilícito votar “sim” na pergunta em questão;
o Em sentido lato, é eticamente ilícito abortar em qualquer fase da gravidez,
equivalendo tal acto ilícito ao igualmente ilícito acto de terminar a vida de qualquer
ser humano nascido e inocente.

Pressupostos
Para efeitos da argumentação deste texto, partiu-se dos seguintes pressupostos:
o Considera-se consensual que o aborto é algo de negativo em si mesmo; ou seja, ao
longo deste texto, considera-se consensual que ninguém é “pelo aborto”, ou por
outras palavras, não se considera o aborto como algo de bom, de terapêutico, de
salutar, ou de desejável em si mesmo;
o Considera-se que o cerne do debate gira em torno da licitude ou ilicitude de um
presumido direito que é proposto a referendo, o direito a abortar em determinadas
circunstâncias temporais (até às dez semanas), apenas por opção da mulher grávida,
em estabelecimentos autorizados para o efeito; contudo, a argumentação
apresentada permite uma aplicação mais generalizada, em termos do direito ao
aborto em qualquer fase da gravidez;
o Considera-se consensual afirmar que qualquer ser humano inocente, após o
nascimento, tem o direito à sua vida e não pode ser privada dela por acção de
outrem; por outras palavras, considera-se fora de discussão o direito à vida após o
nascimento, limitando-se assim o debate ao problema específico do direito à vida
intra-uterina, ou seja, antes do nascimento;
o Considera-se desnecessário o recurso a argumentação religiosa ou metafísica para
demonstrar a ilicitude do acto de abortar;
o Utiliza-se ao longo do texto o termo “aborto” como sinónimo do consagrado
eufemismo “interrupção voluntária da gravidez”;
o Por razões de simplicidade de leitura, preferiu-se o uso generalizado do termo
“aborto” em detrimento do mais rigoroso termo “abortamento”, visto que, em
bom rigor, “abortamento” é o acto e “aborto” é o resultado desse acto.

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1. Introdução

«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas
primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?»

Esta é a pergunta que será feita a 11 de Fevereiro de 2007 a todos os portugueses votantes.
Apesar de existir um erro fundamental na essência desta pergunta1, considero existirem dois
erros na forma da pergunta, a saber:

a) Quer-se referendar a "penalização" antes de se referendar a "criminalização"; o conceito de


“crime” antecede o de "pena", visto que qualquer pena existe para punir um crime, ou seja, um
acto ilícito aos olhos da lei; porque não se pergunta se o votante concorda com a
"descriminalização", o que seria mais honesto? É fácil encontrar quem não concorde com a
atribuição de uma pena ao acto de abortar (pessoas que prefiram valorizar a correcção e
integração social, ao invés da ideia de castigo ou compensação), mas será mais difícil que todos
os que não concordam com a atribuição de uma pena também não concordem com a ilicitude
do acto de abortar: muitos são os que dizem que abortar é errado, que é um crime, mas que
não querem que as mulheres que abortam sejam penalizadas; a pergunta está engenhosamente
estruturada para permitir que os defensores da “despenalização” ajudem com o seu voto, e
mesmo sem se darem conta, a “descriminalizar” o aborto;

b) A expressão "em estabelecimento de saúde legalmente autorizado" já traz consigo algo de


inevitável e implícito (mas que não está explícito no texto da pergunta), e que vai para além da
descriminalização: a liberalização do aborto até às dez semanas; abortar, por livre vontade de
qualquer mulher, vai passar a ser lícito, dentro do nosso quadro legal, até às dez semanas; ou
seja, vai deixar de ser "crime" e mais do que isso, vai passar a ser praticado em
estabelecimentos de saúde, públicos ou privados, sancionados para o efeito;

Existem ainda duas graves omissões por parte dos proponentes do referendo, que nunca
foram devidamente esclarecidas:

a) Que projecto-lei está por detrás do referendo?


Se o “sim” vencer, que lei ou leis serão alteradas, removidas ou adicionadas? E de que forma?

b) Se o “sim” vencer, quem pagará ou subsidiará as operações abortivas, seja no sistema


público seja no sistema privado?

Estas omissões são muito graves: pede-se o voto dos portugueses acerca de uma questão
fulcral que, caso receba maioritariamente o voto “sim”, dará lugar a um novo quadro legal que
não está claro nem foi apresentado ao eleitorado de forma nítida e transparente. Será justo que
os portugueses que votam “sim” estejam a “assinar em branco” a futura lei do aborto que
ainda ninguém conhece?
Por outro lado, sendo esta uma questão que fractura a sociedade portuguesa, é legítimo pensar
que os contribuintes que se opõem terminantemente ao aborto livre têm o direito de contestar
o uso das suas contribuições fiscais para financiar acções que consideram eticamente ilícitas.
Os adversários do direito ao aborto ficarão certamente revoltados se as suas contribuições

1 Como explicarei adiante, a pergunta nem deveria ser colocada ou proposta para referendo, porque se trata de
algo eticamente inaceitável em qualquer sociedade que preze direitos humanos fundamentais.

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fiscais forem usadas pelo Estado para financiar, mesmo que parcialmente, a extirpação de
embriões e fetos humanos em estabelecimentos públicos ou privados.
Contudo, para lá destas omissões inaceitáveis, o erro essencial subjacente à pergunta proposta
a referendo, e o erro que está já infiltrado nas mentes de muitos votantes, é este:
Aqueles que julgam, com o seu "sim", estar votar para que as mulheres que abortam não vão
para a cadeia, estão implicitamente a dar o seu "sim" à licitude, aos olhos da lei portuguesa, do
acto de abortar livremente até às dez semanas. Não só as mulheres que abortam para lá das dez
semanas continuarão a praticar um crime aos olhos da lei (o que poderá dar origem a um
processo e eventual condenação, por muito raramente que isto se verifique hoje em dia), como
o aborto até às dez semanas deixará, na prática de ser visto como um crime pelo facto de
deixar de ser penalizado. Isto representa, na verdade, o recurso livre ao aborto sem sanções
legais dentro deste prazo arbitrário das dez semanas.
Como é que se quer propor que algo desta natureza não seja crime até às dez semanas e o seja
a partir dessa data? O que muda nessa vida humana que a torna descartável e desprotegida até
às dez semanas, mas valorizada e protegida a partir das dez semanas?
É esta a contradição sob a forma de pergunta, envolta num caos conceptual, que irá ser votada
no próximo dia 11 de Fevereiro, por um eleitorado maioritariamente ignorante em termos
éticos. Este eleitorado, se não se abstiver, irá responder a esta pergunta mal colocada sem
sequer ter competência técnica para o fazer.

Antes de principiar, e porque defendo ser demonstrável que não há licitude ética no acto de
abortar, parece-me errado que se queira referendar um direito elementar, um direito que
deveria ser transversal a qualquer sociedade humana: o direito à vida humana inocente.
Por isso, oponho-me a que se referendem matérias de elementar ética como é a da ilicitude do
aborto. Se me parece errado referendar acerca da ilicitude da escravatura, ou acerca da ilicitude
da tortura, parece-me ainda mais errado referendar acerca da ilicitude do aborto.
Independentemente de se considerar que existe crescente gravidade ética em abortar em
estágios mais avançados da gravidez (este "crescendo" não altera a gravidade objectiva do
aborto em qualquer fase da gravidez, apenas implica uma determinação maior por parte de
quem aborta, visto que existe um sinal empírico em contrário – o feto cresceu e torna-se mais
difícil ignorá-lo), abortar é sempre grave e ilícito, conquanto se entenda que a vida humana
principia na concepção, o que me parece ser consensual e reconhecido, inclusive, por quem
procura distinguir “vida humana” de “pessoa humana” como forma de tentar adiar a ilicitude
do aborto para determinadas semanas de gravidez.
Uma grande parte dos defensores do direito ao aborto tenta basear-se nesta distinção entre
“vida” e “pessoa” como forma de, outorgando o direito à vida apenas à “pessoa humana”,
deixar de fora o feto, incorrendo assim, porventura de forma inconsciente, num raciocínio
circular, partindo de uma intuição acerca da tese que se pretende demonstrar e terminando na
conclusão afirmativa da mesma:

1. Intuir ou assumir que o aborto, até que o feto reúna certas e determinadas
propriedades, deve ser eticamente lícito;
2. Sugerir propriedades psicológicas ou fisiológicas que poderão diferenciar o feto da
criança nascida (consciência, actividade cerebral organizada, vontade, etc.);
3. Atribuir essas propriedades a uma nova definição de “pessoa humana”;
4. Afirmar que o feto não é “pessoa humana” por não reunir as ditas propriedades;
5. Afirmar que apenas a “pessoa humana” assim definida tem direito à vida;
6. Afirmar que o feto, por não ser “pessoa humana”, não tem o direito à vida;
7. Afirmar que o aborto, até que o feto reúna as ditas propriedades, é eticamente lícito.

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Torna-se claro que a subjectividade desta abordagem está centrada na definição de “pessoa
humana” como algo distinto de “vida humana”, sendo o primeiro conceito tão maleável que
permite a existência de uma zona eticamente difusa em relação à vida intra-uterina, que pode
mesmo transbordar para a vida extra-uterina. O filósofo Peter Singer, por exemplo, é um dos
defensores da legitimidade do infanticídio nas primeiras semanas, ou mesmo meses, após o
nascimento, tese à qual chegou em coerência com as suas próprias premissas, pelo facto de que
a sua definição de “pessoa”, de tão exigente que é em termos das características psicológicas
necessárias, deixa de fora as crianças muito novas e que ainda não as possuem. Apesar da
subjectividade da definição de “autoconsciência”, e das dificuldades inerentes às tentativas
científicas de atestar essa autoconsciência em crianças de poucas semanas, Peter Singer
considera essencial para a definição de “pessoa humana” a posse de autoconsciência, uma vez
que ele considera que só se tem direito à vida quando se deseja estar vivo. É, claramente,
indiscutível que uma criança de dois meses tem uma menor autoconsciência do que uma
criança de dois anos, por exemplo, mas é perigoso afirmar que a primeira não tem qualquer
tipo de autoconsciência, ou pior ainda, assumir como dado adquirido e não demonstrado que
tal propriedade é essencial para definir o que é uma “pessoa humana” e para lhe reconhecer
direito a viver. Deste modo, e em clara evidência dos perigos deste tipo de raciocínio, Peter
Singer conclui que, nas primeiras semanas ou meses após o nascimento, não estamos perante
uma “pessoa” visto que, segundo ele, a criança não tem ainda consciência de si nem de estar
viva. E por isso, segundo Peter Singer, o infanticídio seria legítimo nessas circunstâncias.

Para muitos, as palavras seguintes parecerão duras, mas espero, no decorrer deste texto, apoiar
esta suposta "dureza" com base numa sólida e coerente argumentação. Peço a compreensão do
leitor para os seguintes parágrafos deste capítulo introdutório, que deverão ser lidos na óptica
do expressar da minha opinião pessoal. Deixarei argumentação mais objectiva, ou seja, menos
pessoal e subjectiva, em favor da tese que defendo para os capítulos seguintes.
Sou da opinião de que vivemos numa época intelectualmente turva, visto que parece ser
necessário, a governantes que se preocupam apenas com promessas eleitorais e futuras vitórias
eleitorais, recorrer ao plebiscito como ferramenta de pretensa legitimação dos seus errados
objectivos legislativos.
Por outro lado, de um ponto de vista assumidamente pragmático, apesar de discordar do
referendar de princípios éticos básicos, perante o risco iminente de se liberalizar o aborto até às
dez semanas, sinto-me forçado a concordar com a necessidade urgente de se participar neste
referendo para responder "não", e tentar, mais uma vez, abrandar ou atrasar uma inegável
deterioração intelectual e ética da nossa sociedade. Face à impotência intelectual dos nossos
governantes para se darem conta da ilicitude ética do aborto livre (a prática do aborto aquém
do prazo de dez semanas não altera em nada a ilicitude do acto - qualquer prazo é artificial em
termos éticos), urge fazer uma campanha de esclarecimento que procure, em primeiro lugar,
demonstrar a ilicitude ética do aborto, e em segundo lugar, apelar de forma solidamente
argumentada ao voto "não" como obrigação cívica, visto que a abstenção, nestes momentos
decisivos, pode ser nociva e irresponsável.
Quando não se tem opinião formada, a única solução racional é formar uma opinião antes do
dia do referendo. Julgo que não votar porque não se formou uma opinião é uma posição
inaceitável e irresponsável, até porque defendo que uma certa clareza intelectual permite ver a
ilicitude do aborto sem dificuldades. Mas antes, para se obter essa necessária clareza intelectual,
há que reflectir profundamente sobre o assunto e tentar raciocinar acima dos preconceitos
socialmente impostos, que procuram hoje impor uma pseudo-moral difusa e inconsistente.
A complexidade desta matéria, que abrange áreas que vão da Filosofia, à Ética, às Ciências da
Vida, até áreas como a Sociologia ou o Direito, obriga a uma precaução adicional: antes de
votarmos, é imperativo fazer um sério “trabalho de casa”, para nos ambientarmos com os

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detalhes complexos desta matéria. Contra mim mesmo falo, consciente das minhas limitações,
que prejudicarão sempre, em maior ou menor medida, este mesmo texto e os argumentos que
ele encerra. Peço, então, desculpa a quem me lê e a sua indulgência para com os possíveis
defeitos da minha argumentação.
Em relação a matéria tão sensível, no adverso ambiente intelectual e no ruidoso ambiente
mediático em que vivemos, é normal que os portugueses estejam divididos. Sem qualquer
pretensão de ser exaustivo, apresentarei de seguida algumas opiniões mais frequentes, ciente de
que estou apenas a reflectir tendências gerais, com tudo o que isso implica em termos de
imperfeição no retrato da realidade.

Para uns, há uma intuição certa e gritante que os leva a encarar o aborto como um acto errado
e grave, e que os faz, inequivocamente, votar "não" em qualquer referendo que seja
permissivo, em maior ou menor grau, à prática do aborto ou ao seu enquadramento legal. Essa
intuição certa, muitas vezes não está, infelizmente, sustentada em argumentação lógica ou
científica, baseando-se apenas num "senso comum", mas que não deixa, mesmo assim, de ser
valioso por ser acertado.

Para outros, uma intuição errada, ditada por modas ideológicas e pela influência de meios de
comunicação tendenciosos e comprometidos, fá-los encarar a presente situação legal1 como
uma tirania legislativa que coloca mulheres indefesas na cadeia. Para estes, votar "sim"
significaria algo tão simplista como «proteger e libertar mulheres indefesas», e votar "não"
significaria algo tão simplista como apoiar uma pretensa tirania legislativa e machista contra as
mulheres. Trata-se de uma camada de votantes que está a ver mal a questão e que urge
esclarecer. Mais do que procurar defender, definir ou justificar a penalização de quem aborta, a
problemática do aborto deve centrar-se, antes de mais nada, na criminalização ou não do acto
de abortar, ou por outras palavras, na ilicitude (ou pretensa licitude) do acto de abortar. Outra
questão, cujo pleno esclarecimento deverá ficar para os especialistas em Direito Penal, será a de
saber em que circunstâncias poderia existir um crime sem aplicação de pena2, ou existindo
pena (o mais comum) que tipo de atenuantes são presentemente consideradas pelos Tribunais
na aplicação caso a caso da justa pena para o crime de abortar.
Não é, de todo, justo que uma adolescente que tenha abortado apenas uma vez, e nas primeiras
semanas de gravidez, e motivada pelo medo, receba um tratamento legal igual à abortadeira
experiente, que conta no seu currículo com largas dezenas de abortos praticados em várias e
diferentes fases da gravidez. Ambas cometeram o mesmo crime objectivo, mas a pena deve ser
escolhida subjectivamente, dependendo das condicionantes próprias de cada situação.
Porventura a primeira precisaria, sobretudo, de uma intervenção pedagógica que lhe explicasse
o erro de abortar e que a ajudasse a não cometê-lo de novo. Neste caso em particular e em
casos semelhantes, o processo poderia inclusive ser suspenso, evitando-se o julgamento. Sobre
isto falaremos no capítulo seguinte…
Como se pode ver, logo aqui podemos marcar uma separação de intenções por parte dos
defensores do voto “sim”: uns procurarão afirmar que o aborto é um acto errado mas que as
mulheres que o praticam não merecem ser condenadas; outros procurarão afirmar que o
aborto, dentro de um dado período temporal, não é um acto errado e que por isso, qualquer
criminalização ou penalização é desadequada. Aos primeiros, basta afirmar que a confusão da
sua posição tem a sua raiz na confusão entre os termos “crime” e “pena” no contexto do
Direito Penal. Aos segundos, importa aprofundar as raízes éticas do problema do aborto, de

1 Também ela eticamente questionável nalguns pontos (ver o capítulo seguinte).


2 Esta questão é abordada adiante, no capítulo 3.

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forma a demonstrar que o aborto é um acto eticamente ilícito, o que se procurará fazer mais
adiante neste texto.

De entre as várias posições nesta matéria, existirá uma quantidade considerável de votantes
"sim", que por razões emocionais que encontram muitas vezes a sua base numa atitude
anticlerical ou anti-religiosa profunda, procuram votar "sim" como forma de "destruir dogmas"
ou de "acabar com o poder da religião" no nosso país. São os perpétuos adeptos da fórmula
marxista de Progresso, que vê a religião como o "ópio do povo", que urge extinguir, e que
procura um futuro livre de religiões e de “dogmas”. São também aqueles que usam,
diariamente, a falácia do "progresso" para deduzir do progresso tecnológico de certos países
permissivos em matéria de aborto, um suposto "retrocesso" de Portugal por não se ter "ainda"1
tornado permissivo nestas matérias.
Atribui-se esta presente não permissividade da legislação portuguesa a um suposto "atraso
civilizacional", que andaria a par com outros atrasos, como o económico ou o tecnológico
(estes mais fáceis de reconhecer pela opinião pública). Assim, um tipo de atraso justificável
(técnico ou económico) serviria de explicação simplista para outros presumidos "atrasos",
como o da ausência de uma legislação permissiva face ao aborto. Fica, evidentemente, por
demonstrar de forma racional porque razão uma legislação permissiva nesta matéria será sinal
de progresso civilizacional ou social.
A este grupo, inebriado pelo furor de votar “sim” para fazer guerra “contra a religião”, urge
explicar que a defesa do "não", a defesa da ilicitude do acto de abortar, tem a sua raiz, não em
pressupostos religiosos (não tenciono usar nenhum neste texto), mas sim em elementares e
universais direitos do ser humano.

Restariam ainda uma série de votantes que, sentindo-se eticamente divididos ou indecisos nesta
matéria, procurariam durante a campanha um debate de argumentos que se pautasse pelo rigor
e pela seriedade. Foi nesse sentido que escrevi este texto, como forma de expor os meus
argumentos e de expor as razões pelas quais para mim se tornou claro que a resposta justa e
correcta ao referendo será "não".

Antes de terminar esta introdução de carácter muito pessoal, resta-me dizer mais algumas
coisas importantes. Por um lado, sou católico, e admito que o meu catolicismo (ainda bem que
assim é) seja uma forte condicionante para a minha resposta negativa ao futuro referendo. Não
é por acaso que isso sucede: incoerente, imaturo, ignorante ou irresponsável será todo e
qualquer católico, sem excepção2, que vote "sim" a uma pergunta destas3.

1 Note-se o uso persistente da palavra "ainda", como parte de uma oca retórica de inevitabilidade, que raramente
procura ser justificada racional e eticamente.
2 Faço aqui um mea culpa: numa idade em que já votava, por altura do último referendo sobre esta matéria em

1998, recordo-me de defender ideias que eram incompatíveis entre si; por um lado, defendia o catolicismo, mas
por outro, não era coerentemente contra o aborto, visto que considerava existirem “fronteiras éticas” algures
durante a gravidez. Deixo aqui esta nota, porque se algum católico ainda jovem me ler, poderá concluir por si
mesmo, alguns anos mais tarde, que por vezes basta mais alguma maturidade para nos darmos conta de que,
quando se é jovem e se fez pouca leitura e pouca reflexão, há que ter cuidado redobrado antes de votar.
Poderemos estar a ser tremendamente incoerentes nas nossas ideias e não nos darmos conta disso, apenas por
falta de experiência. As actuais “modas” ideológicas, que incluem o relativismo e o utilitarismo, podem ser
nefastas em mentes ainda não amadurecidas, e podem inclusive atrasar (ou inviabilizar) a necessária maturação
intelectual. Não obstante, nestas alturas de fractura, a tendência juvenil de “ir contra a corrente” pode ser, nalguns
casos, a tábua de salvação face a um naufrágio intelectual.
3 Se algum católico se sente indignado pelas minhas palavras, apenas posso recomendar a leitura (ou releitura) do

Catecismo da Igreja Católica, visto que se tenciona votar “sim” há noções centrais ao catolicismo que ainda não
compreenderá, o que é grave. A este respeito, consultar o site do Vaticano, onde na versão reduzida (compêndio)
do Catecismo, se pode ler, no ponto 470 (que corresponde aos pontos 2268-2283 e 2321-2326 do Catecismo): «O

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Devido ao grande peso dos adjectivos usados atrás, é conveniente um esclarecimento mais
pormenorizado acerca do seu uso (o que se segue apenas se aplica aos católicos):

o “Incoerente”: o termo “católico” deve ser rigorosamente atribuído a todas as pessoas


que receberam a marca sacramental do baptismo na Igreja Católica, e que desde então
não se declararam apóstatas; infelizmente, nem todos os católicos (ou seja,
“baptizados”) aceitam a doutrina católica1: muitos não aceitam essa doutrina na íntegra,
outros aceitam-na apenas em parte; usa-se ainda, erradamente, o termo “católico” para
designar pessoas não baptizadas que apenas simpatizam com a instituição “Igreja
Católica”, e que não assumiram nenhum compromisso sério de adesão à totalidade da
sua doutrina; o catolicismo absorveu o decálogo do Judaísmo, ou seja, os “Dez
Mandamentos”, um dos quais proíbe inequivocamente o homicídio (“Não matarás”); o
católico que não veja erro ético no aborto ainda não compreendeu este ponto
fundamental da doutrina católica, que aliás, se encontra enraizado na chamada “lei
natural”, na ideia de que o direito à vida é algo de universal, e não apenas apanágio de
determinadas crenças religiosas;
o “Imaturo”: a palavra parece pesada, mas a verdade é que ninguém está imune, e
mesmo quem estuda estas matérias diariamente, a possuir certas ideias erradas ou
pouco amadurecidas intelectualmente; o católico que planeia votar “sim”, não vendo a
radical contradição entre a sua posição e a doutrina católica com a qual se
comprometeu no baptismo, dará, infelizmente, provas de imaturidade intelectual, de
uma posição pouco coerente porque pouco pensada, pouco estudada e pouco
amadurecida;
o “Ignorante”: idem; conhecimento incompleto ou distorcido da doutrina católica;
o “Irresponsável”: talvez a palavra mais dura das três que usei; visto que o voto certo (o
voto “não”) pode impedir a materialização de uma lei injusta, e visto que o voto errado
(o voto “sim”) pode permitir a materialização de uma lei injusta, o sentido de voto no
referendo do próximo dia 11 possui uma enorme carga de responsabilidade; o católico
que votar “sim” enquanto afirma ser católico não beneficiará da desculpa de ignorar a
posição ética correcta nesta matéria; a abstenção de um católico, não se revestindo da
mesma gravidade do voto “sim”, é, no entanto, também grave e irresponsável, uma vez
que tal católico se demite de cumprir, não só a sua obrigação cívica, mas sobretudo a
sua obrigação católica: se o voto “sim” materializa um pecado grave resultante de um
acto em concreto, a abstenção materializa um pecado grave resultante de uma omissão
em concreto.

Com isto, encerro a justificação para a obrigação de qualquer católico em não deixar de
cumprir a sua obrigação de votar no referendo do dia 11 de Fevereiro, votando “não”. Mas o
essencial não deve ser esquecido: a razão para votar “não” tem a sua origem, não em doutrinas
religiosas ou metafísicas, mas sim no reconhecimento do universal direito à vida de todo e

quinto mandamento proíbe como gravemente contrários à lei moral: O homicídio directo e voluntário e a
cooperação nele; O aborto directo, querido como fim ou como meio, e também a cooperação nele, crime que leva
consigo a pena de excomunhão, porque o ser humano, desde a sua concepção, deve ser, em modo absoluto,
respeitado e protegido totalmente; A eutanásia directa, que consiste em pôr fim à vida de pessoas com
deficiências, doentes ou moribundas, mediante um acto ou omissão duma acção devida; O suicídio e a cooperação
voluntária nele, enquanto ofensa grave ao justo amor de Deus, de si e do próximo: a responsabilidade pode ser
ainda agravada por causa do escândalo ou atenuada por especiais perturbações psíquicas ou temores graves.»
(sublinhado meu)
- [http://www.vatican.va/archive/compendium_ccc/documents/archive_2005_compendium-ccc_po.html].
1 O sacramento do baptismo obriga à adesão total à doutrina católica.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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qualquer ser humano, independentemente da sua idade, condição, atitude religiosa, raça ou
estágio de desenvolvimento biológico.
Sinto-me entristecido por notar que, em termos de organizações que tomam posições públicas
claras nesta matéria, e sem menosprezar os indivíduos ateus ou agnósticos que também estão
contra o direito ao aborto por opção da mulher, restará pouco mais do que a Igreja Católica
em Portugal1 para defender a razão e a ética mais elementar, no que diz respeito a este
universal direito à vida do ser humano.
Curiosamente, contra aqueles que dizem que a religião católica é a culpada pelos ditos "atrasos"
de Portugal, temos a apontar que, pelo contrário, é precisamente o facto de, em Portugal, o
catolicismo ainda ter um peso grande, que o nosso país poderá, se quiser votar “não”, dar
provas ao Mundo (e a esta Europa intelectualmente moribunda) de que possui um pensamento
lúcido e de vanguarda em termos de ética e de direitos humanos.
Do mesmo modo que a civilização e o progresso técnico nos fizeram repudiar a escravatura e a
tortura, os avanços na medicina deveriam ter-nos convencido dos mecanismos espantosos
presentes na vida, sobretudo na humana, desde o instante da sua concepção. A tendência de
progresso tecnológico deveria ter contribuído para ajudar, com a sua instrumentação,
imageologia e análise, a promover a protecção do ser humano logo a partir da concepção, que
qualquer médico sabe hoje, graças aos avançados métodos ao seu dispor, ser o "momento
zero" de qualquer vida humana.
Não seria preciso ser católico para responder "não" no referendo que se avizinha2, mas
infelizmente, parece que a ética, nos anos que se seguem, se irá naturalmente retirar, cada vez
mais, para o mais seguro refúgio do terreno religioso, onde a pseudo-intelectualidade
utilitarista, relativista e hedonista do homem moderno ainda não tem morada fixa, apesar de já
estar a tentar abrir brechas na muralha3.
É natural que, nas linhas que se seguem, sobressaia a ideia de que a minha visão sobre esta
matéria é pessimista. No entanto, prefiro considerar esta visão como "realista".
Não tenho grandes dúvidas de que, um dia, Portugal (e muitos dos países ditos "modernos" e
"civilizados") terá uma legislação permissiva em matéria de aborto, que até consiga estender o
prazo legal das dez semanas bem para lá deste limite. Espero que o futuro demonstre que, a
este respeito, pessimistas como eu estavam errados, mas temo que não irá ser assim. Recorde-
se que a argumentação das dez semanas (ou doze, como pretende o Partido Comunista
Português) está apenas baseada no critério da segurança médica da operação abortiva, nos
riscos que a mulher corre com esta intervenção. A opinião generalizada dos médicos considera
que o risco aumenta grandemente a partir deste prazo. Por isso, note-se que esta actual barreira
das dez semanas não está baseada em critérios éticos acerca do ser humano por nascer, mas
sim em puros critérios de tecnologia médica e de segurança da vida da mulher.
Progredindo a tecnologia abortiva, rapidamente passará a ser mais seguro abortar em fases
mais avançadas da gravidez, e nessa altura este prazo que agora é de apenas dez semanas
poderá ser estendido mais um pouco sem grandes dificuldades ou oposições, visto que a ideia
subjacente à definição apenas se prende com este tipo de razões. Também me parece que

1 Quando falo em “Igreja Católica”, refiro-me, necessariamente, e por definição, tanto à hierarquia como aos
grupos e movimentos de leigos, mas não convém esquecer, fora da Igreja Católica, as várias minorias religiosas no
nosso país que também discordam necessariamente do aborto.
2 É precisamente por esta razão que não serão usados, ao longo deste texto, argumentos metafísicos ou religiosos.

Defendo que o dilema ético do aborto tem solução dentro de um quadro mental neutro em termos religiosos.
Pelo facto de partilhar, nesta introdução, certas opiniões individuais, isso não permite que eu seja acusado de
incoerência face aos pressupostos de que parti, uma vez que, após esta introdução, não surgirão pressupostos de
cariz religioso.
3 Veja-se o caso aberrante do movimento Catholics for a Free Choice (http://www.catholicsforchoice.org), que em

bom rigor, de católico já só terá o nome.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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haverá sempre um limite do razoável para esta inevitável extensão do prazo, que não se
prolongará, espero eu, até à gravidez, e terminará sempre um pouco antes do nascimento,
variando apenas o que cada um entenderá, subjectivamente, por "pouco antes". Na definição
destes prazos totalmente artificiais, neste jogo aberrante de contagem das semanas, está uma
falsa argumentação, que partindo apenas do risco da mulher em abortar, se “esquece” da
existência de um ser humano por nascer, e se esquece de discutir os seus direitos éticos. Este
“esquecimento” é muito pouco científico e também muito pouco ético, convenhamos…
A razão pela qual eu não duvido de que, um dia, abortar será algo de muito normal e aceitável
é a de que não vejo uma saída nítida no horizonte para o declínio da moderna civilização
ocidental. Não considero que a História se repita, mas certamente que se podem detectar
certos padrões civilizacionais recorrentes. O estudo da História do Império Romano, por
exemplo, pode ser proveitosa para dela tirarmos interessantes ilações acerca da relação
profunda entre decadência moral e ética e decadência civilizacional. Em termos intelectuais, a
erosão faz-se sentir há séculos, num mundo que também cada vez mais se torna materialista,
utilitarista, pragmático, hedonista, relativista, egoísta e superficial.
A forma como grande parte da sociedade portuguesa reage aos que fazem campanha pelo
“não”, e os depoimentos que são recolhidos por várias vias, demonstram um país escravo do
preconceito e da ignorância, que prefere as ideias da moda à reflexão ou ao estudo sério da
questão.
O que há a fazer, para aqueles poucos que ainda lutam por manter alguma sanidade mental
neste actual estado de ética moribunda, é tentar abrandar, dentro das suas finitas possibilidades,
a inexorável decadência da nossa civilização.
Ponderei bastante acerca da pertinência do uso nesta introdução de uma linguagem dura, que
poderá parecer excessiva e provocatória para alguns. Mas sentir-me-ia falso se tentasse amaciar
este texto. Peço a quem me lê o clemente favor de, em recusando a forma, procurar olhar
apenas, e objectivamente, para a essência do que se segue.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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2. As “consciências”

Será a resposta a dar a este referendo algo de subjectivo, algo de pessoal, algo a relegar para as
"consciências" de cada um?
O relativismo intelectual moderno, que faz com que se use cada vez menos (e a medo)
conceitos como o de "verdade" ou "falsidade", "certo" ou "errado", "lícito" ou "ilícito",
procura sempre varrer os problemas complexos para debaixo do tapete da subjectividade das
consciências. No estado actual do debate sobre o aborto, isto sucede frequentemente em
ambos os lados da discussão: é corrente o uso da expressão “matéria de consciência” tanto
pelos defensores do direito ao aborto como pelos seus adversários.
Mas a questão ética do aborto, certamente complexa na sua argumentação, possui apenas três
tipos de resposta:

a) É ilícito abortar em qualquer fase da gravidez;


b) É lícito abortar em qualquer fase da gravidez;
c) É lícito abortar até certa fase da gravidez, sendo ilícito fazê-lo depois.

Uma nota importante...


Visto que se trata de uma questão ética que envolve, pelo menos, duas pessoas, a mãe e o filho,
é possível que surjam raríssimas situações de decisão médica que constituam um problema
ético, mesmo sabendo que o objectivo do médico é sempre o de salvar a vida tanto da mãe
como do seu filho1. Contudo, qualquer médico experiente sabe lidar com esses problemas e
tomar a decisão que lhe parece acertada, sempre no sentido de maximizar a protecção de todas
as vidas envolvidas.

A resposta a) é a resposta ética e coerente com a defesa do direito à vida do ser humano desde
o princípio biológico da vida humana, ou seja, desde a concepção2.
A resposta b), aqui dada como possibilidade teórica, será defendida por muito poucos, visto
que seria complicado explicar como poderia ser lícito matar alguém um minuto antes do
nascimento, mas ilícito fazê-lo um minuto depois, a não ser que os adeptos da resposta b)
também não vejam ilicitude no homicídio de crianças nascidas, vulgo “infanticídio”.
Resta, então, a opção entre a resposta a) e a resposta c), sendo que pretendo demonstrar que a
última resposta é incoerente, porque não consegue explicar de modo satisfatório, em termos
éticos e científicos, a existência de uma barreira ética de licitude/ilicitude num qualquer
momento da gravidez.

Acima de tudo, deveria ser consensual de que esta não é uma questão de consciência pessoal.
Em questões destas não há a “verdade de cada um”, uma expressão tipicamente relativista,
muito usada hoje em dia. A pergunta do referendo está mal formulada, por várias razões3, mas
é possível vê-la como uma opção nítida entre o reconhecimento do direito ao aborto (resposta

1 Tais excepções médicas são excluídas deste raciocínio, por várias razões: a) não é rigoroso usar o termo “aborto”
nesses casos, porque a eventual morte do filho é acidental e nunca desejada, nem como fim nem como meio; b)
não há situações médicas nas quais a morte do filho seja a única forma de salvar a vida da mãe – se a morte do
filho ocorre como consequência indesejada e inevitável de uma intervenção cirúrgica para salvar a mãe, isso não é
“aborto” em sentido ético, é apenas “aborto” no sentido de “morte natural pré-natal”.
2 A expressão “princípio biológico da vida humana” é pleonástica: uso-a porque, infelizmente, muitos fazem

interpretações erradas da expressão “vida humana”, que no fundo é científica: a vida de um ser da espécie Homo
Sapiens.
3 Consultar, no capítulo A.6, as razões dos magistrados vencidos no Acórdão 617/06 do Tribunal Constitucional.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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“sim”) e o não reconhecimento deste presumido direito (resposta “não”). Deste modo, e em
absoluto, como ambas as respostas podem ser vistas como mutuamente exclusivas, haverá
apenas uma resposta válida neste referendo. Ou a resposta errada é "sim" e a resposta certa é
"não", o que eu defendo, ou sucederá o inverso.
É frequente vermos pessoas reputadas, com responsabilidades sociais e intelectuais, tentarem
demitir-se da questão, procurando distinguir a sua opinião pessoal (que por vezes é ocultada da
opinião pública) da legitimidade da posição do Estado em legislar sobre estas matérias de ética
fundamental. Frases típicas como “eu tenho, cá para mim, as minhas convicções, mas acho que
o Estado deve…” são exemplos claros de uma anomalia intelectual, que se está a tornar numa
verdadeira “epidemia” da mente: a incoerente coabitação de duas “verdades” incompatíveis
dentro do intelecto das pessoas que falam deste modo. Para uma dada premissa, neste caso, a
licitude (ou ilicitude) do aborto, não há duas “verdades”, tem que existir apenas uma, senão é
toda a lógica discursiva que sofre falência intelectual. Ao assumirmos com coragem a nossa
posição (seja ela a favor ou contra o direito ao aborto), damos um sinal claro e confiante de
que apoiamos com o nosso intelecto, com a nossa argumentação, aquilo que julgamos ser
verdadeiro em absoluto. Só assim se é coerente, mesmo que a coerência não seja condição
suficiente para estarmos certos. Pode-se ser coerentemente a favor do direito ao aborto1, mas a
coerência, sendo condição necessária, não é suficiente para que a posição assumida seja
verdadeira. Mas ser-se coerente é condição necessária para estarmos certos, e é disso que
poucos se dão conta, ao procurarem falaciosamente falar em termos de “consciências
subjectivas”.

Para mais, apenas uma grave distorção do que é o sufrágio democrático levaria alguém a supor
que é o sentido do voto popular que confere licitude ou ilicitude em termos absolutos à
proposta legislativa em discussão, que trata de uma matéria eminentemente ética, de universais
direitos humanos. A aprovação popular não tem o poder de conferir licitude absoluta a todos
os actos e em todas as situações da vida em sociedade. O voto popular pode ajudar o legislador
a conferir licitude legal a determinados actos, mas se essa licitude legal não está ancorada numa
licitude ética (o caso do presumido direito ao aborto por opção da mulher), então a licitude
legal não passa de uma farsa, não passa de um castelo erigido sobre nuvens…

Um exemplo chega para o demonstrar: se se referendasse acerca da licitude do homicídio2, e


vencesse o "sim", essa vitória por plebiscito não implicaria a licitude em absoluto do
homicídio, mesmo que uma falsa licitude surgisse consequentemente materializada na
legislação. Tal acto legislativo seria uma farsa. É por estas razões que me parece que matéria
tão fundamental em termos de ética, como é a do aborto, não deveria ser sujeita à
subjectividade do juízo popular, nem tão pouco posta em causa por qualquer governante
responsável, do mesmo modo que nenhum governante tem o direito de colocar em causa a
ilicitude do homicídio. Deveria ser matéria acima de discussão ou de votação!
Claramente, os nossos governantes não se dão conta, ou não se querem dar conta, da
incoerência das suas posições face à Constituição. Os actuais governantes, recorrendo à
necessidade de cumprir uma insensata (mas estratégica) promessa eleitoral, arrogam-se no

1 O filósofo australiano Peter Singer, e apenas para sugerir um exemplo, é um pensador contemporâneo coerente
nas suas teses a favor do direito ao aborto. Ou seja, partindo das premissas por ele estabelecidas a priori, Peter
Singer chega coerentemente à sua conclusão acerca do direito ao aborto. Isso não permite que se deduza que as
conclusões de Peter Singer estão certas, ou que o aborto é eticamente lícito, visto que há que questionar as suas
premissas, há que questionar a validade dos seus pontos de partida e a validade da sua visão ética do problema.
2 Em bom rigor, quem atribui ao feto o direito à vida vê-se forçado, por coerência, a encarar o aborto como um

tipo particular de homicídio. Contudo, na frase acima, o termo “homicídio” é, obviamente, usado no sentido de
“homicídio de seres humanos já nascidos”.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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direito (que não têm) de fazer uma consulta popular eticamente ilegítima para mudar algo que
não deveria ser alterável em nenhuma circunstância nem por ninguém: o direito à vida do ser
humano em qualquer fase do seu desenvolvimento.
Em suma, parece-me inaceitável que se remeta o sentido da resposta para a consciência
individual de cada um, ou que se considere qualquer das respostas dadas no referendo como
igualmente válidas ou legítimas, mesmo que dadas "em consciência".
Por outras palavras, só há uma resposta “certa” neste referendo, sendo a outra resposta
necessariamente “errada”. Eu defendo que quem vota "sim", das duas uma: ou está
inconsciente nesta matéria (não tem a noção das implicações éticas do seu voto) ou não
partilha da defesa incondicional dos direitos do ser humano, em qualquer fase da vida humana.
E consequentemente, quem vota “sim”, não partilha dos princípios plasmados na nossa
Constituição.

Concluindo, e independentemente do voto de cada um estar certo ou errado, é nestas situações


"fracturantes" que o relativismo intelectual surge com mais força e pode ser mais nocivo.
Importa que cada votante, na altura de colocar a sua cruz, tenha uma sólida e profunda
convicção de que a resposta que vai dar, seja ela qual for, é a resposta universalmente
verdadeira e coerente, e que a resposta alternativa é forçosamente, e por exclusão de partes,
uma resposta universalmente errada e incoerente.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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3. Contexto jurídico do aborto

Penso ser consensual afirmar que a Ética1, como ciência filosófica que estuda a conduta
humana, está em posição de superioridade face ao Direito, no que diz respeito às vertentes do
Direito que incidem especificamente sobre a conduta do indivíduo humano em sociedade. É
em princípios éticos que o Direito se deve apoiar quando tenta legislar acerca da conduta dos
seres humanos em sociedade.
Antes de passar a uma curta incursão pelas implicações jurídicas em jogo no referendo que se
avizinha, gostaria de despender algum tempo com importantes considerações terminológicas.
Ao longo de todo este texto, surgirá frequentemente a expressão “licitude ética”, ou suas
derivadas. Por necessidade de coerência estrutural, procurei evitar o uso de expressões diversas
para os mesmos conceitos, e por isso, procurei usar a expressão “licitude ética” como síntese
daquilo que se pretende aferir face à situação concreta do aborto.
Contudo, se na Ética, de forma geral, se pode trabalhar em termos de “licitude” ou “ilicitude”
de determinada conduta humana, certamente sem dispensar gradientes de gravidade quando se
discutem ilicitudes éticas, por outro lado, em termos jurídicos, falar especificamente em
“ilicitude” pode gerar equívocos infelizes, que urge agora dissipar.
Pela necessidade de determinar e materializar na legislação a gravidade de um dado acto
eticamente ilícito, o Direito faz a distinção entre “criminalidade” e “ilicitude”. Assim, em
Direito, há condutas ilícitas que pela sua menor gravidade não são crimes (como por exemplo,
estacionar uma viatura indevidamente, ou não cumprir a tempo com as obrigações fiscais),
enquanto que qualquer crime é, por definição, uma conduta ilícita aos olhos da Lei. Ou seja,
em questões jurídicas não há equivalência entre “ilicitude” e “crime”, há implicação deste sobre
aquela.
Assim, quando ao longo do texto surgir a expressão “ilicitude ética” decorrente do acto de
abortar, que fique claro que estou a usá-la no campo mais geral da Ética, e que por isso, uma
“ilicitude ética” pode muito bem corresponder a um crime na Lei. Aliás, pretendo demonstrar
que o acto eticamente ilícito de abortar deve estar materializado como crime na legislação.

3.1 O estatuto jurídico da vida humana intra-uterina


A Constituição Portuguesa considera que “a vida humana é inviolável”:

«Artigo 24.º (Direito à vida).


1. A vida humana é inviolável.
2. Em caso algum haverá pena de morte.»

O texto constitucional define, claramente, que o direito está subjacente à “vida humana” e não
a uma qualquer subjectiva definição de “pessoa humana”. Ou seja, em termos de protecção
legal da vida humana nas suas várias fases de desenvolvimento, a nossa Constituição parece
estar bem formulada. Poderíamos sugerir, a quem defende a resposta “sim” à pergunta do
referendo, que exigissem, por coerência, a revisão da Constituição neste artigo em concreto, de
forma a incluir uma excepção para a vida humana intra-uterina com menos de dez semanas de
vida. Não obstante a aparência de inconstitucionalidade da legalização do aborto livre até às
dez semanas, o Tribunal Constitucional aprovou, a 15 de Novembro de 2006, a pergunta a ser

1 Independentemente da visão que cada um terá acerca da Ética, seja ela uma visão de matriz teísta ou ateia,
tradicionalista ou pragmática/utilitarista, etc., importa reconhecer que a Ética está na base do Direito, no que diz
respeito à legislação das regras para a conduta individual e colectiva em sociedade.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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submetida a referendo. A aprovação foi tangencial, por um voto apenas: sete juízes votaram a
favor a pergunta, seis votaram contra. Parece-me claro que quem votou contra, o fez pelo
facto de que a pergunta viola o Artigo 24º da Constituição. Quem votou a favor, algo que só
poderá ser disfarçadamente “justificado” recorrendo à protecção de jargão técnico ou de
argumentação frágil, parece tê-lo feito por outro tipo de razões ou motivações que não as
técnicas, usando estas como pretensa justificação, e tentando ignorar a manifesta evidência de
que a pergunta é inconstitucional. Curiosamente, repetiu-se o sucedido com o referendo de
1998: a pergunta foi aprovada por sete votos a favor e seis votos contra.
Importa referir também, para evitar uma visão demasiado simplista do problema, o que o Art.º
66.º do Código Civil afirma acerca do começo da personalidade jurídica:

«Artigo 66.º
(Começo da personalidade)
1. A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida.
2. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.»1

Perante este artigo, que define que a personalidade jurídica se adquire apenas com o
nascimento completo e com vida, poderemos entender porque razão alguns argumentam que o
Art.º 24.º da nossa Constituição não está a ser violado com a introdução do aborto livre a
pedido. Quem optar por defender o aborto com base no Art.º 66.º estará a entrar por um
caminho espinhoso, uma vez que, baseando a sua visão ética do aborto na definição de
começo de personalidade jurídica (ou seja, colocando uma definição jurídica à frente da
ponderação ética), teria que achar legítima a prática do aborto nas imediatas horas antes do
nascimento. Como se vê, é uma posição eticamente insustentável.
Mas será que esta fraca razão consta das razões técnicas usadas na aprovação da pergunta do
referendo por parte de sete dos juízes do Tribunal Constitucional? Será que a nossa
Constituição não protege de facto a vida humana intra-uterina, estando os detractores do
direito ao aborto a usar abusivamente o seu Art.º 24.º?
Tudo indica que isto não é verdade, porque o Código Penal já protege a vida humana intra-
uterina, através de legislação que foi certamente considerada constitucional:

«CAPÍTULO II
Dos crimes contra a vida intra-uterina
Artigo 140.º
Aborto
1 - Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2 - Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão até 3 anos.
3 - A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é
punida com pena de prisão até 3 anos.»2

Perante este Art.º 140.º, torna-se evidente que a Lei protege a vida intra-uterina, e ao fazê-lo,
não estabelece quaisquer prazos dentro do período intra-uterino. Poderíamos ainda tentar
objectar que este artigo 24.º visa proteger o desejo da mulher em permanecer grávida, sendo
indiferente à protecção da vida intra-uterina, mas o título deste capítulo deixa bem claro que se
trata de definir os “crimes contra a vida intra-uterina”, e não contra uma vaga auto-
determinação reprodutiva da mulher. Aliás, é todo um juízo protector à vida humana intra-
uterina que subjaz à redacção deste artigo e dos subsequentes Art.ºs 141 (“Aborto agravado”) e
142 (“Aborto não punível”), se bem que relativamente a este último, essa protecção se

1 Ver http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=61&artigo_id=&nid=775&pagina=4&tabela=leis
2 Ver http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=121&artigo_id=&nid=109&pagina=7&tabela=leis

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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encontra materializada de modo desadequado, imperfeito e contestável (ver o capítulo 3.2, a
seguir).
De que forma terão, então, argumentado os sete senhores magistrados do Tribunal
Constitucional, que consideraram que o aborto livre a pedido da mulher até às dez semanas
não configurava uma inconstitucionalidade, não violava o Art.º 24 da Constituição?
Tenhamos presente o seguinte detalhe técnico: a pergunta seria declarada inconstitucional se
pelo menos, entre outras razões, uma das opções de resposta (ou ambas) fosse declarada
inconstitucional.
Claramente, a resposta “não” à pergunta do referendo teria que ser reconhecida como
constitucional, por manter o quadro legal actual, que já fora declarado constitucional
anteriormente, pelo que restaria ao Tribunal Constitucional avaliar a resposta “sim”.
Recomenda-se vivamente a leitura do texto do Acórdão n.º 617-061, de 15 de Novembro de
2006, que contém o resultado final da votação e as respectivas justificações, relativamente à
avaliação feita pelo Tribunal Constitucional à pergunta do referendo.
O cerne da argumentação pela constitucionalidade da pergunta começa a surgir no capítulo II,
referente ao enquadramento actual da questão do aborto. Os signatários recorrem à análise do
quadro legal de outros países, alguns dos quais mais permissivos do que Portugal em matéria
de aborto (cita-se a França). Usando a Irlanda como exemplo único de um país restritivo nesta
matéria, o texto prossegue com a seguinte consideração acerca de uma deliberação do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem:

«5. (…) Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, numa decisão de 8 de Julho de 2004, em que
se pronunciou sobre um caso de negligência médica num aborto terapêutico, teceu, entre outras, as seguintes
considerações: “O Tribunal está convencido de que não é desejável nem mesmo possível actualmente responder em
abstracto à questão de saber se o nascituro é uma pessoa no sentido do artigo 2º da Convenção”»

Encontramos, nesta citação de uma posição infeliz do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, a clássica distinção entre “vida humana” e “pessoa humana” usada para tentar
legitimar o aborto, e sobre a qual falaremos adiante. Mas, como poderemos ver a seguir, os
juízes do Tribunal Constitucional que votaram a favor da constitucionalidade da pergunta
procuraram ainda outra protecção institucional: a protecção da União Europeia na tentativa de
suportar o seu sentido de voto:

«Por outro lado, o Parlamento Europeu, na sequência do Relatório de Anne E. M. Van Lancker de 6 de
Junho de 2002, aprovou uma resolução sobre a política a seguir nos países integrantes da União Europeia
quanto a “direitos em matéria de saúde sexual e reprodutiva” (Resolução do Parlamento Europeu sobre
Direitos em Matéria de Saúde Sexual e Reprodutiva – JO C Nº 271 E, de 12 de Novembro de 2003).
Nessa resolução recomenda-se aos governos dos Estados-Membros e dos países candidatos à adesão “que
pugnem pela implementação de uma política de saúde e social que permita uma diminuição do recurso ao aborto,
nomeadamente graças à disponibilização de serviços de planeamento familiar e de aconselhamento e à prestação
de assistência e apoio financeiro a grávidas em dificuldade, e considerem o aborto de risco como tema
fundamental de saúde pública”. Mas recomenda-se ainda “que a interrupção voluntária da gravidez seja legal,
segura e universalmente acessível, a fim de salvaguardar a saúde reprodutiva e os direitos das mulheres”,
exortando-se “os governos dos Estados-Membros e dos países candidatos à adesão a absterem-se, em quaisquer
circunstâncias, de agir judicialmente contra mulheres que tenham feito abortos ilegais”.
Assume-se, assim, no âmbito do Parlamento Europeu, uma perspectiva preventiva e de saúde pública quanto ao
aborto, com distanciamento das soluções punitivas.» (sublinhado meu)

1Ler o texto conforme saiu em Diário da República: http://www.digesto.gov.pt/pdf1sdip/2006/11/22301/00020029.PDF.


Contudo, o site do CNE tem uma versão mais fácil de ler: http://www.cne.pt/dl/apoio_rn2007_acordao.pdf

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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É empobrecedor que os senhores magistrados que subscrevem este texto não se sintam
vexados por ter que recorrer à protecção de um órgão destituído de autoridade judicial ou ética
como é o Parlamento Europeu. Que autoridade têm os senhores deputados europeus que
subscreveram a JO C Nº 271 E, de 12 de Novembro de 20031 para se pronunciarem em
matéria de Ética? Que autoridade ou influência terão sobre a Constituição da República
Portuguesa, para que as suas deliberações sejam usadas pelo nosso Tribunal Constitucional
como exemplo a seguir?
Pela leitura do trecho citado atrás, fica claro que os deputados signatários da dita resolução do
Parlamento Europeu consideram que o aborto voluntário, a morte premeditada e voluntária de
uma vida humana, é um “direito da mulher” e apenas mais uma solução do leque de soluções
de “saúde reprodutiva”!
A inacreditável resolução do Parlamento Europeu, que poderia e deveria ter sido ignorada pelo
Tribunal Constitucional por ser fonte irrelevante, por não ser competente, para a necessária
ponderação da constitucionalidade da pergunta, é considerada pelos juízes signatários do
acórdão como materializando uma “perspectiva preventiva e de saúde pública” por parte do
Parlamento Europeu.
De seguida, os senhores juízes signatários arriscam seriamente serem conotados como
favoráveis ao relativismo ético nesta matéria, ao citarem um autor partidário de tais teses:

«7. (…) De todo o modo, tanto do lado das posições mais favoráveis à despenalização como do lado contrário se
verifica um movimento convergente para aproximar a discussão sobre o aborto de perspectivas não absolutas, que
reconhecem a existência de conflito, e para utilizar argumentos próximos dos interesses imediatamente
perceptíveis por cada pessoa, que se reflectem na sua vida. Por conseguinte, a discussão sobre a despenalização da
interrupção voluntária da gravidez dentro de certo prazo e em certas condições emergiu como questão diversa da
pura afirmação, em abstracto, de valores como a vida ou a liberdade (valores absolutos como lhes chama
LAWRENCE TRIBE, em The Clash of Absolutes, 1990, para concluir que “muito do que cada um
acredita sobre todos estes assuntos diz mais sobre o que somos, de onde provimos do que sobre a nossa visão ou
sobre a última verdade” (p. 40).» (sublinhado meu)

Os signatários reconhecem ainda a influência na sua decisão, que já era notória mesmo sem tal
ser reconhecido, das modernas teses liberais e utilitaristas em matéria de Ética, ao invocarem o
legado do norte-americano John Rawls (1921-2002), o pai do “liberalismo político” moderno,
uma tese que pretende “ultrapassar” as evidentes dificuldades que a ética deontológica clássica
coloca à moderna ética utilitarista, procurando “sobrepô-las”, de forma a obter uma espécie de
“máximo denominador comum” entre uma ética deontológica e uma outra ética “razoável”
(ou seja, a sua maior adversária, a ética “utilitarista”):

«8. A reflexão sobre valores numa sociedade democrática, pluralista e de matriz liberal quanto aos direitos
fundamentais tem sido objecto privilegiado do pensamento filosófico contemporâneo. Tal reflexão exprime-se na
ideia de um “consenso de sobreposição” (overlapping consensus) desenvolvida por JOHN RAWLS, em
Political Liberalism, 1993, p. 133 e ss.. O autor concebe a possibilidade de um consenso sobre valores
políticos, como o respeito mútuo ou a liberdade, sem o sacrifício de valores mais abrangentes e de visões
particulares, mas a partir da diversidade dos valores. Por exemplo, diferentes concepções religiosas podem
confluir, sem abandonar a respectiva matriz, num núcleo de valores estritamente políticos.
Ora, independentemente de se aceitarem as teses resultantes da referida orientação, não poderá deixar de se
registar que a discussão sobre valores induz a reconhecer que a possibilidade de um Estado de Direito
democrático os impor é problemática. Uma tal imposição não se legitima na mera evidência intuída pela

1 A referência exacta é: Jornal Oficial nº C 271 E de 12/11/2003 p. 0369 – 0374, em http://eur-lex.europa.eu

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consciência individual, num mandato divino ou até na decisão discricionária do poder político, ainda que
legitimado pela maioria. A decisão sobre valores é fundamentante do Estado de Direito e não está arredada da
discussão democrática, orientada por regras de liberdade, igualdade de oportunidades, participação política
efectiva e limites lógicos à autocontradição (cf. ARTHUR KAUFMANN, Rechtsphilosophie, 1997, p. 336
e ss., onde se lê que “só na livre discussão de opiniões a verdade tem uma chance” e que “a indagação da verdade
é um problema de liberdade”).
Não pode, por conseguinte, o Tribunal Constitucional abordar os problemas jurídico-constitucionais suscitados
pela pergunta, prescindindo de dar conta de que há uma investigação jurídico-filosófica mantida, no nosso tempo,
sobre a fundamentação dos valores e a legitimidade da sua imposição. Dessa investigação resulta que os valores
não estão acima da discussão livre e que não é possível impô-los ao “outro”, sem cumprir um estrito dever de
fundamentação sujeito a um método argumentativo e participado.» (sublinhado meu)

Como era previsível, os signatários do acórdão demonstram pender para uma visão utilitarista
e político-liberal da Ética. Claramente, evitam assumir uma posição deontológica clássica, que
no entanto está na raiz do Direito das sociedades ocidentais modernas. Aquilo que deveria ser
visto como uma crise generalizada no domínio da Ética, ou seja, a crescente tendência para a
defesa de correntes utilitaristas, é vista como boa porque “moderna”, o que se nota pelo uso da
expressão “investigação jurídico-filosófica”, que pretende claramente apontar o utilitarismo e o
liberalismo político de pensadores como Rawls como sendo pensamento de vanguarda, como
sendo o caminho a seguir, deixando-se em posição frágil e precária a deontologia clássica, e
advogando que «a possibilidade de um Estado de Direito democrático os impor [os direitos] é
problemática».
Esta posição dos signatários é a clara confirmação de que estamos em plena crise cultural,
aquilo que se convencionou chamar de “crise de valores”. Como é possível que tal crise não
surja em toda a sociedade, quando é o próprio Tribunal Constitucional, cuja obrigação
suprema está em proteger a Constituição, que se demite da protecção dos valores fundamentais
da nossa sociedade, por considerar que a sua “imposição” (não se deveria antes falar em
“afirmação”?) é “problemática”? Se a afirmação inequívoca de valores fundamentais (o valor
da vida, por exemplo) é problemática para o Tribunal Constitucional, quem restará para os
defender num Estado de Direito?
O navio da nossa sociedade, não só a portuguesa, mas também a mundial, vai à deriva:
ninguém está no leme…
Mas prossigamos: a dada altura do texto, já no capítulo III relativo à fundamentação, os
signatários referem três questões importantes, que poderiam impedir a afirmação da
constitucionalidade do referendo:

1. Aferir se a pergunta em questão levará a alterações constitucionais (algo que a nossa


Constituição proíbe, no n.º 4 do Art.º 115.º); ver o ponto 13 do acórdão;
2. Aferir se a pergunta em questão permite uma resposta inconstitucional (deixam a
resposta a esta questão para o final da fundamentação – ver adiante);
3. Aferir se o legislador tem margem de liberdade para definir, no contexto do Direito
Penal, o âmbito de descriminalização e/ou despenalização do aborto.

Evidentemente, em relação à terceira e última questão, se o legislador não tivesse essa margem
de liberdade, então não faria sentido realizar o referendo com esta pergunta, visto que a
resposta afirmativa iria dar ilicitamente a necessária margem de liberdade ao legislador para
descriminalizar e despenalizar o aborto até às dez semanas1. Interessa ver com pormenor a
argumentação acerca desta última questão:

1 Esta terminologia é debatida com mais detalhe no capítulo “Despenalização e descriminalização”.

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«14. Como ficou esclarecido no Acórdão nº 288/981, não é de confundir a questão anterior com a de saber se é
vedado pela Constituição o referendo sobre uma matéria por ela extravasar o âmbito de discricionariedade
legislativa “a resolver através de uma opção política devolvida ao eleitorado” (Acórdão nº 288/98) ou por o
legislador estar constitucionalmente vinculado a uma opção e ser vedada a opção resultante de um dos sentidos de
resposta à questão objecto do referendo.
(…)
15. Mas (…) há-de concluir-se, tal como no Acórdão nº 288/98, que a matéria em análise é enquanto tal
passível de referendo, na medida em que está ainda na margem de discricionariedade do legislador criar ou não
criar áreas de despenalização da interrupção voluntária da gravidez dentro dos limites constitucionais.
Afasta-se, portanto, a perspectiva segundo a qual, em nome do direito à vida do feto, o legislador não poderia
nunca subtrair ao Direito Penal condutas de interrupção voluntária da gravidez ou a perspectiva inversa de que
toda a punição da interrupção voluntária da gravidez dentro de certo prazo seria constitucionalmente inviável.
Diferentemente, entende o Tribunal Constitucional que o legislador, dentro de limites constitucionalmente
definidos, mantém uma margem de liberdade de decisão quanto ao âmbito da criminalização, da justificação e
do afastamento da punibilidade da interrupção voluntária da gravidez. E mantém essa margem de liberdade
porque o Direito Penal não é conformado constitucionalmente como um imperativo categórico imposto ao
legislador ordinário, regulando-se antes por ponderações de valores e de interesses situadas num contexto histórico
e por uma justificação derivada de necessidades político-criminais e da realização da justiça em função do modo
como, em cada momento, os problemas criminais se colocam.
Por outro lado, essa margem de liberdade também não está vedada em nome do reconhecimento de direitos
insusceptíveis de ser objecto de referendo. Com efeito, não seriam esses direitos, em si, o objecto do referendo, mas
antes uma ponderação sobre um conflito de direitos e valores ou a possível solução para um tal conflito em
conexão com a intervenção do Direito Penal.» (sublinhado meu)

Este trecho não pode ser aceite e não deve ser lido de ânimo leve. Por um lado, encontramos
uma incoerência na expressão atrás sublinhada: o limite constitucional que retira ao legislador a
“margem de liberdade de decisão quanto ao âmbito da criminalização, da justificação” do
aborto é o próprio Art.º 24.º, que especifica de forma inegável a inviolabilidade do aborto e a
necessária inconstitucionalidade de declarar tal acto como sendo lícito ou não criminalizável.
Outra questão diferente é a da penalização do crime de aborto. Aqui, parece-me nítido que tal
abordagem não tem que ser, necessariamente, inconstitucional, porque o Art.º 24.º seria
respeitado pela definição jurídica do acto de aborto como “crime”, ou seja, conduta ilícita
grave aos olhos da lei.
Os signatários afirmam ainda que o que está em jogo neste referendo não é a definição de
novos direitos que poderiam ser vistos como inconstitucionais (o direito a abortar), mas antes
a “ponderação sobre um conflito de direitos e valores” em sede de Direito Penal. A frase está
engenhosamente montada, mas não passa de um sofisma: com a resposta afirmativa à
pergunta, surgirá uma lei que, à parte de detalhes formais, permitirá à mulher abortar por
opção até às dez semanas, configurando na prática um real e novo direito a abortar, mesmo
que, em teoria, esse direito não seja o objecto directo do referendo. No entanto, esse novo
“direito” surge como consequência óbvia em caso de vitória do “sim”, pelo que recorrer a este
tipo de argumentação é inaceitável. Para mais, permanecem sempre por explicar os inusitados e
singulares “critérios de ponderação de direitos e valores” que estão na base da argumentação
dos signatários, que concordam com a constitucionalidade da pergunta que, se respondida
positivamente, materializa, nas primeiras dez semanas, uma supremacia dos direitos da mulher
sobre a protecção constitucional de uma vida humana.

1 Ver http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/tpb_MA_2513.htm

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Mais adiante, os signatários, ao procurarem justificar a clareza e objectividade da pergunta1,
avaliam o alcance da expressão “em estabelecimento de saúde legalmente autorizado”,
procurando refutar quem afirma que tal expressão implica uma liberalização do aborto:

«24. De todo o modo, a referência a estabelecimento de saúde legalmente autorizado não predispõe para uma
resposta afirmativa, nem transmite a ideia de que seria absurda a penalização por os estabelecimentos de saúde
já estarem legalmente autorizados a realizar tais intervenções. Na realidade, tal condição apenas exclui da
despenalização o aborto realizado por instituição (ou pessoa) que não reúna as condições de um estabelecimento
de saúde legalmente autorizado.
A não referência a tal condição é que poderia modificar o objecto da pergunta, transfigurando-a numa outra, em
que estaria em causa uma “liberalização” da interrupção voluntária da gravidez realizada em quaisquer
condições sem exigência de protecção da saúde da mulher grávida (sendo realizada por qualquer pessoa, sem a
formação profissional e ética que é exigida a quem exerça funções e possa vir a praticar tal intervenção num
estabelecimento de saúde legalmente autorizado).»

Esta expressão baseia a sua validade numa interpretação do conceito de “liberalização” como
sendo acesso livre e não regulada ao aborto. Argumenta-se que o facto de se referir que o
aborto será praticado em estabelecimentos de saúde legalmente autorizados constitui uma
prova de que tal prática será regulamentada, e portanto, não será verdadeiramente
“liberalizada”. Mas, se por um lado, é certo que a prática do aborto efectuada em
estabelecimento de saúde autorizado é um impedimento ao aborto clandestino, a verdade é que
o aborto “por opção da mulher” até às dez semanas passará a ser um direito, com a única
exigência de a mulher procurar fazê-lo num local autorizado. Haverá acesso livre ao aborto, do
mesmo modo que haveria acesso livre às ditas “drogas duras”, mesmo que as ditas fossem
disponibilizadas apenas em farmácias “legalmente autorizadas para o efeito”!
Como negar, então, que a resposta “sim” a esta pergunta configura uma situação de
liberalização do aborto até às dez semanas? Poderá não ser uma liberalização “total” (no
sentido de ser totalmente desregulamentada), mas é todavia uma clara liberalização!
Para além da liberalização do acesso ao aborto a pedido até às dez semanas, há ainda uma
espantosa incoerência que fica patente com esta questão: se votarmos “sim” no referendo, o
que passará a fazer do acto de aborto voluntário um crime será apenas o local onde ele for
praticado e a credencial do cirurgião!
Já nem sequer estamos a falar numa lei do aborto baseada numa ética utilitarista, no desejo da
mulher em abortar, porque se assim fosse, então o aborto não poderia ser criminalizado
mesmo que fosse praticado clandestinamente! Com a vitória do “sim”, o que fará do aborto
voluntário um crime aos olhos da lei será a sua prática fora dos hospitais ou clínicas
autorizados para o efeito, ou se praticado depois das dez semanas de gravidez! O crime não
surgirá do acto de matar uma pessoa em si mesmo, ou da violação do direito à vida dessa
pessoa, mas surgirá da credencial do local, da credencial do cirurgião e da idade do feto.

«Poderia objectar-se que a pergunta não seria clara, objectiva e precisa porque seria possível que os eleitores
entendessem que se encontravam confrontados com uma opção entre penalização absoluta e despenalização e não
com uma escolha entre a solução actual (que não corresponde a uma penalização absoluta) e uma
despenalização até às dez semanas de gravidez. Nesse caso, estaria em causa uma opção entre a incriminação
pura e simples e a despenalização proposta.» (sublinhado meu)

Dou razão aos signatários neste ponto em concreto: a opção entre a incriminação pura (quadro
legal anterior a 1984) e a inserção de circunstâncias de despenalização já foi tomada em 1984!

1 A pergunta não é clara nem objectiva, mas abdico de o criticar aqui, por uma questão de concisão.

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Cá temos uma situação evidente: a fraqueza da lei de 1984 (que tem origem em várias
fragilidades éticas que serão discutidas adiante) serviu de base (o que era previsível, e foi
apontado por muitos dos seus detractores de então), de passo essencial, para se procurar
proceder agora à descriminalização, legalização e liberalização do aborto até às dez semanas,
como sucederá se vencer o “sim” no próximo referendo.
Contudo, é no ponto 29 do texto que se encontram as principais razões apontadas pelos
signatários para a consideração da resposta “sim” como constitucional:

«29. Começando por analisar a resposta afirmativa, coloca-se o problema de saber se a despenalização referida
na pergunta viola a protecção consagrada no artigo 24º, nº 1, da Constituição, segundo o qual a vida humana é
inviolável.
No plano da discussão jurídico-constitucional, a tese a favor da inconstitucionalidade assume mais do que uma
configuração. Segundo uma configuração mais radical, decorre da protecção da inviolabilidade da vida humana
que todas as suas fases devem ser protegidas de igual modo, existindo verdadeiramente um direito subjectivo à
vida de que o feto seria titular. O pressuposto da essencial igualdade entre todas as fases da vida levaria a
considerar que uma despenalização da interrupção voluntária da gravidez implica a violabilidade da vida
humana através de um tratamento do feto diverso do que se concede à pessoa já nascida.
Esta apresentação da tese da inconstitucionalidade é, no entanto, rejeitável por várias considerações.
Da inviolabilidade da vida humana como fórmula de tutela jurídica não deriva, desde logo, que a protecção
contra agressões postule um direito subjectivo do feto ou que não seja de distinguir um direito subjectivo à vida de
uma protecção objectiva da vida intra-uterina, como resulta da jurisprudência constitucional portuguesa e de
outros países europeus. O facto de o feto ser tutelado em nome da dignidade da vida humana não significa que
haja título idêntico ao reconhecido a partir do nascimento.»
Na verdade, constata-se que na generalidade dos sistemas jurídicos o feto não é considerado uma pessoa titular
de direitos (veja-se a distinção entre “ser humano” e “pessoa humana” constante da Convenção de Oviedo do
Conselho da Europa – Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano
face às Aplicações da Biologia e da Medicina, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da
República nº 1/2001 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 2/2002 – cf. D.R., I Série A,
de 3 de Janeiro de 2001). Esta perspectiva insere-se num contexto histórico, cultural e ético que recolhe
informação da Ciência mas não extrai dela, por mera dedução lógica, o conceito de pessoa. Os dados resultantes
da observação dos processos naturais relativos a funções vitais não determinam, como condição necessária e
suficiente, as valorações próprias do Direito.
Por exemplo, os critérios sobre o início das funções cerebrais ou da actividade cerebral superior (cuja
determinação não é, aliás, indiscutível) não dão, em si mesmos, solução aos conflitos de valores.» (sublinhado
meu – note-se o uso do adjectivo “radical”)

Trata-se de uma argumentação clássica desculpabilizante do crime de aborto: encontramos,


pela mesma ordem de disposição no texto:

1. Que a tutela jurídica da inviolabilidade da vida humana deve ser distinguida da


atribuição de um “direito subjectivo do feto” à sua vida; um argumento também usado
no paradigmático caso norte-americano Roe vs. Wade, onde se explicitou que a
protecção à vida intra-uterina não advinha necessariamente de um direito desta a viver,
mas sim da legitimidade de o Estado querer, por outras razões, atribuir especial
protecção nesta fase da vida;
2. A objecção ao reconhecimento do direito à vida ao ser humano desde o início da sua
vida, ou seja, desde a concepção; é a clássica distinção entre “vida humana” e “pessoa
humana”, uma distinção que, como veremos adiante, está desprovida de
fundamentação ética sólida que a justifique: em que momento da sua existência é que
uma “vida humana” adquiriria o valioso estatuto protector de “pessoa humana”?

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3. Que as valorações próprias do Direito não devem ser deduzidas exclusivamente de
dados científicos; estou de acordo com esta afirmação, contudo parece-me insensato: a)
ignorar os dados científicos que definem a vida humana como tendo início na
concepção, sem que após este “momento-chave” surja “informação genética” nova até
à morte desse ser humano; b) ignorar totalmente o debate ético: as considerações éticas
devem preceder as valorações próprias do Direito em matérias tão dependentes da
Ética como estas.

O texto continua na argumentação pela constitucionalidade da resposta afirmativa:

Por outro lado, nem a inviolabilidade da vida humana nem sequer a necessidade de protecção da vida intra-
uterina impõem especificamente uma tutela penal idêntica em todas as fases da vida, tal como concluiu o
Acórdão nº 288/98. A própria história do Direito Penal revela-o, ao ter feito quase sempre a distinção entre
homicídio e aborto (cf. GLANVILLE WILLIAMS, The Sanctity of Life and Criminal Law, 1957, e
para a história do Direito Penal português, RUI PEREIRA, O crime de aborto e a reforma penal, 1995).
Além disso, entre a definição do princípio da inviolabilidade da vida humana e a intervenção penal não há uma
linha recta ou uma relação de necessidade lógica, nomeadamente pela interferência de perspectivas de exclusão da
ilicitude, de desculpa ou ainda de afastamento da responsabilidade devido à “necessidade da pena”, cuja
relevância varia conforme se trate da vida intra-uterina ou de pessoa já nascida.»

Este ponto é inegável: é plenamente justificável a existência de molduras penais diferentes para
os crimes de homicídio e para os crimes de aborto. Não poderia estar mais de acordo, e as
razões para a existência histórica dessa diferenciação do tratamento penal verifica-se, não pela
criminalidade objectiva do acto (que é igual no caso de aborto e no caso de homicídio – morte
voluntária e deliberada de um ser humano), mas sim pelas subjectivas circunstâncias que
subjazem a cada caso: a mulher que aborta ou decide abortar comete tal acto, normalmente,
em circunstâncias particulares que são altamente desculpabilizantes, que obrigam forçosamente
a um tratamento penal diferenciado face ao crime de homicídio.
Não é isso que está em questão!
Este argumento pela diferenciação penal (que é algo justo e inegável) surge metido à força
numa argumentação para a descriminalização do aborto a pedido até às dez semanas. O que
provoca a inconstitucionalidade da resposta afirmativa não é a questão da moldura penal, é a
questão da definição criminal, de a conduta de abortar ser vista ou não como uma conduta
ilícita! Se vencer a resposta afirmativa, o acto de abortar voluntariamente, até às dez semanas,
deixa de ser crime, deixa de ser ilícito. Haveria uma miríade de soluções despenalizantes que
poderiam manter a criminalidade objectiva do aborto. Contudo, o que está em jogo neste
referendo é muito mais do que apenas despenalizar. Tenho a certeza de que os senhores
signatários deste acórdão sabem, bem melhor do que eu, a diferença entre “crime” e “pena”, o
que torna esta defesa da constitucionalidade da pergunta numa situação confrangedora para os
signatários.
Segue-se um argumento clássico e recorrente: apelar à remota “vontade dos constituintes”:

Ainda no plano da interpretação da Constituição, há quem entenda, segundo a linha de orientação de um


Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, que o artigo 24º, nº 1, na mente dos
constituintes, não pretendeu abranger a protecção da vida intra-uterina, afastando também, por aí, a necessidade
de uma referência a esse preceito e ao princípio da inviolabilidade da vida humana do problema da
despenalização da interrupção voluntária da gravidez (cf. Acórdão nº 288/98, em que, na mesma perspectiva,
se refere o Parecer da Procuradoria-Geral da República nº 31/82, Boletim do Ministério da Justiça nº 320,
Novembro de 1982, p. 224 e ss.; ver ainda, como referência paralela sobre a interpretação do artigo 2º da

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Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a decisão da CEDH de 13 de Maio de 1980, no caso X c.
Reino Unido – Décisions et Rapports, vol. 19, Outubro de 1980, p. 244).
Deste modo, a partir de qualquer uma destas considerações – mesmo que não se concorde com todas –, a
perspectiva de inconstitucionalidade não encontra fundamento no artigo 24º da Constituição.»

Recapitulemos: os argumentos usados para defender a constitucionalidade da resposta


afirmativa foram construídos sem se partir de qualquer predicado ético sólido: o “ser humano”
torna-se, como que por magia, a dada altura, em “pessoa humana”. Quando, não sabemos.
Será que é quando nascemos? Umas horas antes do nascimento, somos mera “vida humana”
descartável, e logo após o corte do cordão umbilical e a primeira golfada de ar somos
honrosamente admitidos na prestigiante e protectora categoria de “pessoas jurídicas”? Para
além de tudo isto, os signatários optam por não considerar os dados científicos como sendo
decisivos para o problema ético do aborto. Eu concordo que não sejam os únicos necessários,
mas é difícil tomar decisões em Ética sem os “olhos” da Ciência… Vejamos agora o ponto 30,
que é uma manifesta falsidade nalguns aspectos essenciais:

«30. Note-se que uma linha de argumentação a favor da inconstitucionalidade que nivele a vida em todos os
seus estádios poderia levar, no limite, a considerar inconstitucional a solução do actual Código Penal, que admite
a não punibilidade de certas situações de interrupção voluntária da gravidez, segundo uma lógica de ponderação
de valores baseada no método das indicações. De acordo com tal perspectiva poderia ser, na verdade,
inconstitucional qualquer uma das respostas (o sim e o não), porque a manutenção da actual situação legislativa
já conduzirá a uma sub-protecção da vida intra-uterina.
Mas, em suma, não poderá aceitar-se esta perspectiva não só porque ela não decorre do artigo 24º, nº 1, da
Constituição, mas também por partir de pressupostos inaceitáveis, que levariam, em última análise, a negar a
relevância de uma específica ponderação de valores em matéria de interrupção voluntária da gravidez
relativamente ao crime de homicídio.
Ora, a negação da possibilidade de uma específica ponderação de valores na interrupção voluntária da gravidez
levaria, em total coerência, a soluções inconstitucionais como seria, por exemplo, a rejeição de uma causa de
exclusão da ilicitude ou de não punibilidade no chamado aborto terapêutico, impondo à mulher grávida, mesmo
que não fosse essa a sua vontade, uma grave lesão do corpo ou da saúde ou o sacrifício da própria vida.»

Usando simples argumentação ética, ou seja, considerando que não é ético dar mais peso aos
projectos da mãe, em detrimento do direito à vida do filho, é possível concluir que a actual lei
não protege adequadamente a vida humana intra-uterina. Adiante, falarei sobre a lei actual,
pelo que não faz sentido alongar-me sobre ela aqui.
Contudo, há uma nítida diferença entre a actual lei, por muito inadequada e eticamente frágil
que seja, e as consequências da resposta afirmativa à pergunta do referendo: qualquer pessoa
pode ler o título do actual Art.º 142.º, “Interrupção da gravidez não punível”. O que está em
jogo neste referendo é passarmos a prestar à mulher que quer abortar o necessário apoio
médico, a legitimação legal. O aborto a pedido passa a ser um direito reprodutivo, uma vez que
o Estado o afirma categoricamente, ao colocar na pergunta a expressão “em estabelecimento
de saúde autorizado”. O Estado vai autorizar certos e determinados estabelecimentos de saúde
a efectuar abortos a pedido da mulher até às dez semanas! Esta é a enorme e abissal diferença
entre a resposta “sim” à pergunta e a actual situação legal do aborto. Não estamos apenas a
falar em aumentar o número de circunstâncias não puníveis, estamos a criar um período
temporal no qual o aborto deixa de ser crime. Evidentemente, deixando de ser crime, deixa de
ser punido, mas a verdade é que deixa de ser crime.
A expressão final do trecho acima citado é totalmente enganadora: os senhores signatários
saberão certamente que há uma enorme diferença entre “exclusão de ilicitude” (que defendo
ser inconstitucional) e “não punibilidade” (que pode ser constitucional). Juntam ambos os

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conceitos na mesma frase, e apesar disto, cometem um grave equívoco ao misturarem na
questão o chamado “aborto terapêutico”. Em bom rigor, há que ter cuidado com esta
expressão:

1. Não há nenhuma situação médica que obrigue a matar o feto para salvar a mãe: trata-se
de um “mito moderno”; podemos mencionar determinados casos particulares como o
da gravidez ectópica ou o do cancro do útero, mas mesmo nestes casos extremos, não
é correcto usar uma expressão enganadora como a de “aborto terapêutico”, visto que a
morte de um embrião ou feto nestas circunstâncias em particular é uma consequência
indesejada e inevitável (ou seja, não resulta de um pedido ou vontade expressa da mãe
ou do médico) de uma intervenção cirúrgica que visa evitar uma hemorragia grave nas
trompas (caso da gravidez ectópica), a remoção de um órgão destruído pelo cancro, ou
o alastramento de células cancerígenas para o resto do organismo da mãe;
2. O incorrectamente chamado “aborto terapêutico”, ou seja, a morte indesejada, não
provocada e inevitável de um ser humano por nascer, não pode ter o mesmo
tratamento ético que o aborto a pedido: se a intervenção cirúrgica for efectuada com os
necessários cuidados éticos1, o aborto que decorre dessa intervenção não difere, em
termos éticos, do “aborto natural”, da morte de um ser humano por nascer que
ocorreu por causas naturais e inimputáveis a uma determinada pessoa.

Contra o argumento de que o prazo de dez semanas materializa uma inegável desprotecção da
vida humana intra-uterina com idade inferior a esse prazo, os signatários afirmam:

«O Acórdão nº 288/98 respondeu directamente a essa argumentação, não a aceitando e sustentando que o
método dos prazos, tal como surge na pergunta, realiza uma harmonização ou concordância prática entre os
valores conflituantes, pois que tal harmonização ou concordância prática «se faz entre bens jurídicos, implicando
normalmente que, em cada caso, haja um interesse que acaba por prevalecer e outro por ser sacrificado. Quer isto
dizer que, sempre dentro da perspectiva que agora se explicita, o legislador não poderia estabelecer, por exemplo,
que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade da mulher era hierarquicamente superior ao bem jurídico
“vida humana intra-uterina” e, consequentemente, reconhecer um genérico direito a abortar, independentemente
de quaisquer prazos ou indicações; mas, em contrapartida, já pode determinar que, para harmonizar ambos os
interesses, se terão em conta prazos e circunstâncias, ficando a interrupção voluntária da gravidez dependente
apenas da opção da mulher nas primeiras dez semanas, condicionada a certas indicações em fases subsequentes
e, em princípio, proibida a partir do último estádio de desenvolvimento do feto.» (sublinhado meu)

Leia-se este trecho com cuidado: os signatários afirmam explicitamente que não se pode dar
mais peso ao “direito ao livre desenvolvimento da personalidade da mulher”, em detrimento
do bem jurídico “vida humana intra-uterina”. Ainda bem!
Mas, se os signatários partilham desta visão correcta, então como não se dão conta da
incoerência e insensatez do resto do trecho? Como não se ficar chocado com a expressão
“harmonizar ambos os interesses”? Harmonizar? Como é possível que, acerca de matar
voluntariamente uma vida humana com menos de dez semanas, se use na mesma frase o verbo
“harmonizar”?
Justificar o injustificável é espantoso, mas os signatários dão-nos aqui um paradigmático
exemplo de excelência na arte milenar de sofismar. É caso para recordarmos a célebre frase de
George Orwell (1903-1950), «Sometimes the first duty of intelligent men is the restatement of the obvious».
Perante a arte sofística dos respeitáveis signatários deste acórdão, torna-se quase uma
obrigação cívica apontar os erros desta argumentação erigida em defesa do indefensável.

1 Ver, no capítulo 6, as considerações acerca do Princípio do Duplo Efeito.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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O ponto 32, que aqui não repetimos por economia de espaço, procura argumentar que a
resposta afirmativa não materializa uma desprotecção à vida humana intra-uterina, porque esta
continua, segundo os signatários, a ser protegida: «dar a oportunidade à mulher grávida de se
decidir pela maternidade». Ou seja, é dito que a resposta afirmativa não desprotege toda a vida
humana intra-uterina. Quando a mulher quer ser mãe, há ferramentas de protecção. Isso
ninguém discute e ainda bem que é assim. Só que é inegável que a resposta afirmativa
desprotege totalmente a vida humana intra-uterina indesejada até às suas dez semanas de vida.
Mais uma vez, negar o óbvio é confrangedor…
Temos ainda um curto sofisma no ponto 33:

«(…) E não se trata de admitir que uma “privacy”, como direito constitucional a abortar livremente, prevaleça
sobre a vida do feto, mas antes reconhecer que, para efeitos de punição, num tempo delimitado, a liberdade de
opção da mulher possa impedir a intervenção do Direito Penal. (…)»

A linguagem complexa mascara melhor a falsidade: trocado por miúdos, a resposta afirmativa
no referendo permitirá ou não que qualquer mulher aborte livremente até às dez semanas por
sua simples e manifesta vontade? É ou não verdade que, até às dez semanas, a mulher exerce
claramente um direito a abortar livremente, uma vez que não se lhe exige nada a não ser que
aborte “em estabelecimento de saúde autorizado”? É ou não verdade que o seu filho, com
menos de dez semanas de vida, perderá a sua vida graças a este novo “direito” a abortar
livremente, que prevalecerá claramente sobre a vida daquele?

Termina-se a análise do texto do acórdão com este trecho, bastante esclarecedor da


mentalidade dos seus signatários:

«Estaremos ante uma situação em que tem todo o sentido afirmar, como TRIBE, que “numa democracia, votar
e persuadir é tudo o que temos. Nem sequer a Constituição está para além de uma revisão. E desde que nós
tenhamos de nos persuadir uns aos outros mesmo acerca de que direitos a Constituição deve colocar fora do
alcance do voto da maioria, nada, nem a vida nem a liberdade, pode ser olhada como imune à política com letras
grandes” (The Clash of Absolutes, ob.cit., p. 240).» (sublinhado meu)

Deixo o leitor com esta citação final, pesada como chumbo: «Nada, nem a vida nem a
liberdade, pode ser olhada como imune à política com letras grandes». É caso para
perguntar: para que serve então a Justiça? Para que serve então o texto constitucional, se nem
sequer matérias fundamentais e universais como o direito à vida e o direito à liberdade estão a
salvo do destruidor zelo anti-ético dos “modernos” legisladores?
Por razões de economia de espaço, optei por não inserir no texto deste capítulo os votos de
vencido dos magistrados que se opuseram à constitucionalidade da pergunta do referendo.
Nunca é demais recomendar vivamente que se leia a argumentação sólida e coerente,
largamente consensual em todos os seis votos de vencido, que está tecida em cada um destes
votos. Os respectivos textos encontram-se no Anexo A.
Acima de tudo, ninguém deve recorrer ao resultado desta votação de sete contra seis para
defender que a constitucionalidade da pergunta e do referendo é matéria “óbvia” ou “acima de
discussão”, visto que a votação pendeu de modo tangencial para a constitucionalidade, com
vantagem de apenas um só voto. Não será mais razoável admitir que o número de magistrados
ideologicamente alinhados a favor do direito ao aborto venceu por um o número de
magistrados que procuraram desempenhar o seu papel de forma profissional, garantindo a
Constituição sem sucumbir a alinhamentos ideológicos?
Em suma, contra a decisão patente no acórdão que foi analisado, pode-se argumentar:

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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1. A Constituição da República Portuguesa afirma incondicionalmente a protecção da
vida humana, em qualquer fase do seu desenvolvimento;
2. Que, se o sentido desejado pelo Art.º 24.º da Constituição fosse o de afirmar o direito
da “pessoa humana” à vida, em vez de tal direito pertencer à “vida humana”, o texto
constitucional deveria ter a redacção “a pessoa humana é inviolável”;
3. Que a expressão “vida humana” remete directamente para o conceito da vida biológica
de seres pertencentes à espécie Homo Sapiens; parece claro que a intenção dos
constituintes sempre foi a de proteger toda a vida humana, em qualquer fase do seu
desenvolvimento, e não apenas a vida das “pessoas jurídicas”;
4. Em nenhuma fase do seu desenvolvimento, o ser humano vê alterada de forma
eticamente relevante a sua essência ou natureza, até ao momento da sua morte; as
alterações são morfológicas ou funcionais, e nunca ontológicas;
5. A relevância ética que garante o direito à vida desde o seu início deve servir de base
para estabelecer a relevância jurídica da protecção a esse direito, ou se quisermos usar a
“cautela” dos signatários, da protecção desse “bem jurídico”;
6. Que a pergunta do referendo não está clara, por mencionar o termo “despenalização”,
sem explicitar que o aborto livre a pedido da mulher materializa uma
“descriminalização”, e que a expressão “em estabelecimento de saúde autorizado”
materializa ainda uma “legalização” e “liberalização” do aborto até às dez semanas;
podemos ainda referir, como fazem alguns dos magistrados que votaram vencidos, que
a menção a “estabelecimento de saúde autorizado” pode claramente forçar o voto pela
positiva, uma vez que votantes menos informados poderiam raciocinar que o
voto”sim” é que faria sentido, uma vez que já existiriam estabelecimentos de saúde
presentemente autorizados para o efeito (a expressão “estabelecimento de saúde a
autorizar” eliminaria este risco);
7. Finalmente, quando os signatários tentam acomodar ou aceitar como “razoáveis” os
postulados utilitaristas da Ética moderna (fazem-no ao recorrer às teorias de Rawls), tal
opção envolve sempre a destruição prévia da ética deontológica clássica: por definição,
esta última é axiomática e não deve nunca abdicar da protecção inequívoca de valores
humanos fundamentais de forma a tentar “negociar” com uma qualquer “ética
concorrente”, mesmo que esta pareça “razoável” para alguns.

Para além de tudo o que aqui foi dito, não faz qualquer sentido procurar justificações éticas
para o aborto na legislação, seja a nossa seja a de outros países. Deverá suceder exactamente o
oposto. O aborto não se torna eticamente lícito pelo facto de se tornar legal, ou pelo facto de
outros estados o terem tornado legal. Ou ainda pelo facto de organizações que deveriam
proteger o fundamental direito à vida terem abdicado de o fazer, como o Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem1 (“ECHR”, European Court of Human Rights), a Organização Mundial
de Saúde2 (“WHO”, World Health Organization), a Associação Médica Mundial3 (“WMA”, World
Medical Association) ou o Parlamento Europeu4.
Devemos ser capazes de encontrar leis justas na legislação sempre que estas se assentem em
princípios éticos que sejam, eles mesmos, justos. Mas é bem sabido que há leis imperfeitas, ou
mesmo erradas, que o são por possuírem graves erros éticos na sua base. Devemos ter sempre
presente que a legislação, pelo menos no que diz respeito a questões humanas fundamentais,
deve ser erigida sobre uma sólida estrutura ética, sob pena de se tornar numa legislação

1 http://www.echr.coe.int
2 http://www.who.int
3 http://www.wma.net
4 http://www.europarl.europa.eu/

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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desvirtuada, desadequada e injusta. Nestas questões, a Ética deve preceder inequivocamente o
Direito.
Se vencer o “sim” no referendo que se avizinha, e a vida humana intra-uterina deixar de
beneficiar de protecção legal até às dez semanas de vida, surgirá uma injusta lei do aborto,
porque baseada num erro ético acerca do aborto. De nada valerá então defender o direito ao
aborto apelando à “nova lei”, visto que esta estará necessariamente desvirtuada e viciada.

3.2 Situação jurídica do aborto em Portugal


Devido ao meu reconhecido amadorismo nestas matérias, socorro-me da valiosa informação
disponibilizada na Internet pelo Dr. Tiago Lopes de Miranda, Procurador da República, no seu
“Elucidário jurídico sobre a questão da despenalização do aborto”1, artigo em formato
electrónico que irei citar ao longo deste capítulo e do seguinte.
A 14 de Fevereiro de 1984, com os votos contra do PSD e do CDS, estando Mário Soares no
cargo de Primeiro-Ministro, o Parlamento aprovou uma nova lei do aborto2, que constituiu
uma grande mudança legislativa no quadro legal do aborto em Portugal, com a adição de várias
situações nas quais se excluía a ilicitude do acto de abortar. Actualmente, após a reformulação
do Decreto-Lei n.º 48/95 de 15 de Março, o agora Art.º n.º 142 do Código Penal (anterior
Art.º n.º 140) possui a seguinte redacção:

«Artigo 142.º
Interrupção da gravidez não punível
1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou
oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da
medicina:
a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica
da mulher grávida;
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da
mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita, e
for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges
artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16
semanas.
2 - A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e
assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.
3 - O consentimento é prestado:
a) Em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência mínima de 3 dias
relativamente à data da intervenção; ou
b) No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz, respectiva e sucessivamente, conforme os casos, pelo
representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral.
4 - Se não for possível obter o consentimento nos termos do número anterior e a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de
urgência, o médico decide em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos.»3

A actual redacção deste Artigo n.º 142 apresenta notáveis problemas éticos, não obstante o
facto de os promotores destas alterações, e os seus actuais defensores, considerarem que a
presente redacção é o resultado de vários “melhoramentos” legislativos.
Uma evidência da subjectividade ética desta redacção, e consequentemente da precariedade
ética dos pressupostos que a governaram, consiste na Resolução da Assembleia da República
1 Ver http://www.nao-obrigada.org/images/Aborto_elucidario_juridico.pdf
2 Consultar aqui a redacção original da Lei 6/84 de 11 de Maio que materializou alterações nos então artigos 139.º,
140.º e 141.º do Código Penal:
http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=104&tabela=leis
3 Ver: http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=141&artigo_id=&nid=109&pagina=8&tabela=leis

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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n.º 28/20041, na qual os mesmos partidos que em 1984 se opuseram à introdução dos
primeiros “melhoramentos” agora plasmados na actual redacção, procuram agora recomendar
ao Governo o rigoroso cumprimento desta lei pelos profissionais do Serviço Nacional de
Saúde. Ora, se sólidos pressupostos éticos estivessem estado por detrás da contestação às
alterações propostas em 1984, como se explica que os contestatários de então tenham agora
mudado de opinião, recomendando em 2004 o rigoroso cumprimento da lei? Somos forçados
a constatar que, afinal, os pressupostos éticos presentes na contestação em 1984 não eram
assim tão sólidos.
De facto, a redacção do Artigo n.º 142 da actual lei do aborto coloca inúmeros problemas
éticos, visto que está viciada de terminologia vaga e constitucionalmente contestável. Verifica-
se ainda que o legislador se demitiu, com as novas excepções à ilicitude do aborto, da
protecção dos direitos da vida humana intra-uterina.
Vejamos os problemas éticos alínea a alínea:

«a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a
saúde física ou psíquica da mulher grávida;»

Esta alínea é muito problemática. A expressão “perigo de morte” é, ela própria, “perigosa”
porque representa uma afirmação desprovida da especificidade técnica que só um médico
poderia dar. O que é “perigo de morte”? Como é que a expressão “perigo de morte” distingue
o caso menos grave da mulher grávida com hipertensão do caso mais grave da mulher com
uma gravidez ectópica? Ambos representam situações de “perigo de morte”, sendo evidente
que o último é um risco certo enquanto que o primeiro é apenas um risco provável. Se a
gravidez da primeira mulher for levada por diante, ela corre certamente risco de vida, mas não
é certo que morrerá, e se a gravidez da segunda mulher for levada por diante, ela morrerá
certamente. Além disto, não faz qualquer sentido considerar que a intervenção cirúrgica feita
para evitar hemorragia fatal numa mulher com gravidez ectópica constitui um caso de aborto,
no sentido jurídico do termo, visto que não há a intenção nem a vontade de provocar o aborto,
seja como fim seja como meio. O aborto indesejado que ocorre inevitavelmente nestes casos
deve antes ser considerado como “aborto por causas naturais”, encontrando-se por isso
claramente fora do âmbito da Ética.
Não haveria espaço na legislação, nem me parece ser este o local apropriado, para distinguir
todos os casos de “perigo de morte” da mulher grávida, e respectivas ponderações jurídicas.
Mas o pior defeito desta alínea está no uso da expressão “grave e irreversível lesão (…) para a
saúde (…) psíquica da mulher grávida”. Que enfermidades psíquicas encerra esta redacção? No
actual quadro legal, e só para dar um exemplo, um aborto pode ser perfeitamente lícito com o
consentimento da mulher e de dois médicos (o que abortará e outro médico diferente), caso o
atestado médico afirme que uma depressão da mulher que engravidou contra a sua vontade
constitui, segundo a opinião técnica dos médicos (incontestável pela Justiça, que não tem
competências técnicas médicas), uma “lesão psíquica”.
A expressão de “lesão para a saúde psíquica” é, de facto, uma péssima expressão pelo facto de
ser espantosamente vaga e abrangente que permite uma miríade de situações nas quais o
quadro penal actual permite o aborto e que não têm fundamento ético. É inegável que é um
direito da mulher grávida receber apoio médico para uma eventual depressão causada por uma
gravidez indesejada, mas não se justifica que o legislador tenha abdicado do direito à vida do
feto, que tem maior peso, para proteger o referido direito da mulher à sua saúde psíquica.
Vejamos outra alínea:

1 Consultar o Diário da República I-A de 19 de Março.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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«c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou
malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou
por outro meio adequado de acordo com as leges artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em
que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;»

De novo, esta alínea, ao falar em “doença grave ou malformação congénita”, está a usar
indevidamente um termo tecnicamente indefinido e extremamente vago e abrangente. O facto
de que uma situação sem perigo iminente de vida nem para a mãe nem para o feto como é a da
Trissomia 21 estar abrangida na lata categoria de “malformação congénita”, e por isso, ser
lícito no presente quadro legal o aborto provocado a um feto portador de tal malformação,
demonstra de forma clara que os pressupostos éticos que sustentaram as alterações legislativas,
ou estão ausentes, ou são estranhamente inconsistentes. Também se poderia questionar quais
as bases legais para o legislador ter abdicado, de novo, do seu dever em proteger a vida
humana intra-uterina. Qual é a ponderação ética e jurídica que justifica a licitude da morte do
feto em qualquer caso de “doença grave ou malformação congénita”?
E em relação às situações de fetos inviáveis, sendo certo que tais fetos nunca terão quaisquer
possibilidades de sobreviver fora do útero materno, mesmo assim a redacção do texto é ainda
questionável em termos éticos. Em Ética, é distinto a) deixar morrer um feto inviável; de b)
matar um feto inviável, ou seja, acelerar ou precipitar um acontecimento futuro que é certo. O
efeito é o mesmo, porque o feto não tinha à partida hipótese de sobreviver, mas as acções têm
impactos éticos diferentes, e só quem não está acostumado a lidar com temas éticos é que
poderia sustentar que a morte precoce de um feto inviável não coloca nenhum problema ético.
Pode ser ético matar um feto inviável se isso for a consequência não desejada de recorrer à
única forma de salvar a vida da mãe, como por exemplo, no caso de uma mulher grávida cujo
útero esteja destruído (ou em vias de o estar) por um cancro maligno1, mas já pode ser
questionável em termos éticos matar um feto inviável quando a mulher grávida não corre risco
sério e iminente de vida.
Vejamos ainda mais esta alínea problemática:

«d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for
realizada nas primeiras 16 semanas.»

De novo, a terminologia é vaga e demasiado abrangente, visto que os crimes que caem sob a
alçada da expressão “contra a liberdade e autodeterminação sexual” são variados e com
diferentes impactos éticos. Por exemplo, um homem imputável criminalmente (maior de 16
anos) que provoque uma gravidez numa adolescente comete um crime que cai nesta categoria2.
A incoerência ética desta excepção é evidente: visto que o Estado tem a obrigação de proteger
a vida humana inocente, qual é a coerência em fazê-lo relativamente a uma gravidez normal
envolvendo dois adultos e não o fazer quando a mãe é adolescente e não corre risco iminente
de vida com a sua gravidez? O que muda, em termos do estatuto jurídico do feto?
A incoerência da legislação actual fica igualmente patente quando abordamos o problema do
aborto em caso de gravidez provocada por violação. Sem menosprezar de forma alguma a
dramática injustiça que constitui para a mulher violada ser vitima de um crime desta natureza, a

1 A extirpação de um útero destruído por um tumor maligno pode ser a única forma de salvar a mãe, e a
consequência da morte do seu filho neste caso é indirecta e não desejada. Neste exemplo dado, para mais, a morte
do feto seria certa, uma vez que a gravidez num útero em tais condições seria impossível de levar a termo.
2 Como refere o Dr. Tiago Lopes de Miranda, “os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual são

múltiplos e revestem gravidades diversas. Grande parte das gravidezes de adolescentes podem atribuir-se a esta
espécie de crimes, posto que o progenitor seja imputável criminalmente (maior de 16 anos). Vejam-se os artº 163º
e sgs. do CP”.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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verdade é que o feto dele resultante deveria, em coerência, receber igual protecção legal do que
qualquer outro feto concebido numa gravidez normal.
Como refere justamente o Dr. Tiago Lopes de Miranda:

«Note-se que desta feita [no caso de violação], do lado do agente, não há um direito subjectivo com o qual a
gestação e o nascimento do nascituro conflituem. Claro que a mulher violada ou vítima de outro crime contra a
autodeterminação sexual tinha direito às suas integridade física e autodeterminação sexual. Mas esse direito
subjectivo não se confunde com o por enquanto irreconhecido direito subjectivo a não ter um filho concebido por
via de relação sexual que por motivo de crime não foi livre ou autodeterminada… Depois, apesar do drama
humano que é o nascimento de um filho gravemente doente ou deficiente, está também por reconhecer o direito a
não deixar nascer tal filho…»

Falamos então de uma colisão ética de direitos, sendo que o direito do feto à vida só poderá
ser equiparado com um direito de igual valor, como o direito da mãe à vida. Com as sucessivas
alterações efectuadas à lei do aborto, sobretudo a partir de 1984, o legislador demitiu-se da
necessária ponderação de direitos, preferindo ignorar a questão do direito do feto à vida, que
torna incoerente a redacção da presente lei em inúmeros aspectos, como acabámos de ver.
Note-se ainda que o recurso a arbitrários limites temporais para deduzir a licitude das várias
situações de aborto demonstra de forma clara que a fixação de tais limites não está assente em
sólidos pressupostos éticos.
A única possível justificação para o presente quadro legal, e para o que se imagina será o novo
quadro legal após realização de referendo caso ganhe o “sim”, seria o reconhecimento e
validação de alguma novidade definitiva em termos éticos que permitisse deixar cair o direito
do feto à vida. Há, sem dúvida, filósofos que propõem que tal direito não existe, tentando
distinguir “pessoa humana” (com direito à vida) de “vida humana” (categoria mais abrangente
de ser vivo da espécie Homo Sapiens). Segundo estes filósofos, o zigoto, o embrião e o feto
poderiam não ter o direito à vida pelo facto de, segundo eles, serem apenas seres humanos
(formas de vida humana) e não “pessoas” no sentido jurídico do termo. Mas tais propostas
estão longe de ser definitivas ou consensuais. Mais adiante neste texto, serão apresentadas
argumentações nesse sentido, acompanhadas da respectiva crítica.
Todavia, quem não nega o direito à vida a todo o ser humano sem excepção, e a mais
elementar Medicina reconhece que o ser humano (ser vivo da espécie Homo Sapiens) surge na
concepção, só pode ver o actual quadro legal do aborto como viciado de inúmeras e
constrangedoras incoerências e deficiências.
Termino com mais uma citação do artigo no qual me baseei:

«No fundo, a ratio legis que subjaz à eleição deste regime especial de exclusão de ilicitude é a adesão, pelo
próprio Legislador penal – aquele que está incumbido de velar pela tutela dos valores ético-jurídicos mais
valiosos de uma comunidade – a um relaxamento no cumprimento do imperativo da salvaguarda da vida dos
seres humanos nascituros, a resultar numa sensível desclassificação do correspondente valor ético enquanto bem
jurídico merecedor de protecção penal.»

3.3 Situação jurídica do aborto em Espanha


É costume invocar-se o país vizinho como o local ideal, pela sua proximidade, para efectuar
abortos legalmente. É corrente supor-se que há grandes diferenças na lei espanhola,
nomeadamente pela sua suposta maior permissividade, mas essa ideia é errada. O quadro legal
espanhol é, em quase tudo, semelhante ao nosso. Senão, vejamos como surgem definidas as
condições de não punição do aborto:

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«417 bis: "No será punible el aborto practicado por un médico o bajo su dirección en centro o establecimiento
sanitario publico, o privado, acreditado y con consentimiento expreso de la mujer embarazada, cuando concurra
alguna de las circunstancias siguientes:
1.- Que sea necesario para evitar un grave peligro para la vida o la salud física o psíquica de la embarazada y así
consten en un dictamen emitido con anterioridad a la intervención por un médico de la especialidad
correspondiente, distinto de aquel por quien o bajo cuya dirección se practique el aborto. En caso de urgencia o
riesgo vital para la gestante podrá prescindirse del dictamen y del consentimiento expreso.
2.- Que el embarazo sea consecuencia de un hecho constitutivo de delito de violación del artículo 429, siempre
que el aborto se practique dentro de las doce primeras semanas de gestación y que el mencionado hecho hubiese
sido denunciado.
3.- Que se presuma que el feto habrá de nacer con graves taras físicas o psíquicas, siempre que el aborto se
practique dentro de las veintidós primeras semanas de gestación y que el dictamen, expresado con anterioridad a
la práctica del aborto, sea emitido por dos especialistas del centro o establecimiento sanitario, público o privado,
acreditado al efecto, y distintos de aquel por quien o bajo cuya dirección se practique el aborto.»1

É, em tudo, idêntica à lei portuguesa: a ressalva generalista do “grave perigo para a vida ou
para a saúde física ou psíquica”, a ressalva da violação, e a ressalva das graves malformações
físicas ou psíquicas do feto. Notam-se subtis diferenças em termos do tratamento dado às
situações de urgência, quando se torna impossível elaborar o atestado assinado pelos dois
médicos (o que faz o aborto e outro independente, tal e qual como na nossa lei). Contudo,
ambas as leis prevêem as situações de urgência, pelo que mesmo neste ponto específico
parecem muito semelhantes, pese embora a redacção ser diferente.
O que muda, então?
Porque razão Espanha é um destino apetecível para a prática do aborto legal por parte de
muitas mulheres portuguesas? Pelo simples facto de que a alínea 1 do Art.º 417 bis do Código
Penal Espanhol, bem como a alínea 1.a) do Art.º 142º do nosso Código Penal (alínea análoga à
espanhola), é tão generalista e vaga que permite que muitas situações que deveriam ser
encaradas como ilícitas pela lei, caem sob a sua protecção e tornam-se legais. De novo, o
exemplo mais elucidativo: uma mulher que apresente um atestado médico a invocar risco de
depressão pela gravidez indesejada pode pedir um aborto lícito, tanto em Espanha como em
Portugal, ao abrigo da protecção da sua “saúde psíquica”.
Na prática, o que verificamos em termos de abortos legais em Espanha também poderia
suceder em Portugal, dadas as enormes semelhanças entre as suas actuais legislações. Porque
será que tal não se verifica? Porque razão, em Portugal, a alínea permissiva não é invocada mais
vezes? Porventura, o ambiente em Espanha tornou-se mais permissivo ao aborto e o recurso à
protecção da “saúde psíquica” por parte das mulheres e dos seus médicos tornou-se mais
frequente e banalizada do que em Portugal… Para além disto, em Espanha existe um mercado
de clínicas abortivas privadas que fazem disso o seu negócio principal, pelo que estas clínicas
aplicam sistematicamente a razão de protecção da “saúde psíquica”. Vejamos o que diz sobre
isto Mário José de Araújo Torres, do Tribunal Constitucional, no seu voto de vencido de 15 de
Novembro de 2006:

«Em parêntesis refira-se que, ao contrário do que com frequência se refere no debate público, não vigora em
Espanha um sistema “liberal”, perante o qual seria chocantemente contrastante o “limitado” sistema português.
O sistema legal espanhol é estritamente um sistema de indicações. O que ocorre é que, na prática, uma
interpretação latíssima da indicação relacionada com a “saúde psíquica” da mulher grávida conduziu a uma
permissividade na prática do aborto, sobretudo em “clínicas privadas”, que têm como objecto exclusivo do sua
actividade a prática abortiva (segundo informa João Loureiro, estudo citado, p. 339, 98% dos abortos
realizados nas clínicas privadas apresentam como “indicação” o risco para a saúde psíquica da mãe).»2
(sublinhado meu)

1 Ver http://www.bioetica.org/cuadernos/ley10esp.htm
2 Ver o texto completo do seu voto de vencido no Anexo A., capítulo A.6.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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Na prática, perante leis idênticas, as diferenças verificadas na prática do aborto nos dois países
devem-se não só a diferenças de mentalidade na sua aplicação, mas sobretudo a um mercado
de clínicas abortistas privadas muito mais desenvolvido em Espanha do que no nosso país.
A comparação com o caso espanhol é a prova evidente de que a actual lei portuguesa é
insuficiente para proteger a vida humana intra-uterina, porque permite excepções à penalização
do aborto que são eticamente indefensáveis. E ao invés de a nossa lei ser “demasiado
restritiva”, como advogam os defensores do direito ao aborto, é pelos vistos bem permissiva,
tanto quanto a Espanhola, bastando ver como se praticam abortos legais em Espanha com
toda a facilidade sob um quadro legal análogo ao português.

3.4 Despenalização, descriminalização, legalização e liberalização


A resposta afirmativa à pergunta do referendo traz a despenalização, a descriminalização, a
legalização e a liberalização do aborto a pedido da mulher até às dez semanas de gestação:

Aborto voluntário Remoção Aborto como Direito Acesso livre


até às dez semanas da pena por abortar conduta lícita legal ao aborto ao aborto

Despenalização SIM NÃO NÃO NÃO


Descriminalização SIM SIM NÃO NÃO
Legalização SIM SIM SIM NÃO
Liberalização SIM SIM SIM SIM
Tabela 1 – Distinção e classificação do que está em jogo com cada um dos termos e neste referendo

A pergunta recorre habilmente ao termo “despenalização”, mas na prática permite muito mais.
A expressão “por opção da mulher” faz do aborto uma conduta lícita porque passa a ser lícito
optar pelo aborto. A expressão “estabelecimento de saúde legalmente autorizado” introduz o
direito legal ao aborto. As recentes declarações do Ministro de Saúde materializam o acesso
livre ao aborto, porque o Estado passa a subsidiá-lo, seja no sistema público de Saúde, seja em
clínicas privadas.
Mas após esta argumentação de leigo, o melhor é dar espaço a quem tem competência na
matéria. Vejamos o que diz sobre isto o Dr. Pedro Vaz Patto, Juiz de Direito:

«Se vencer o sim, o aborto realizado até às dez semanas de gravidez por vontade da mulher passará a ser lícito,
passará a ter cobertura legal e passará a ser praticado com a colaboração activa do Estado (o Ministro da
Saúde até tem lamentado o facto de, actualmente, se realizarem nos hospitais públicos abortos em número que
considera reduzido). Daí que se deva falar em legalização.
E, no que se refere a tal período da gravidez, essa licitude não depende da verificação de qualquer pressuposto
para além da simples vontade da mulher. Deixará de vigorar um regime de “indicações”, como se verifica no
regime legal vigente, em que a licitude do aborto não depende da simples vontade da mulher, mas da verificação
de alguma das seguintes situações: perigo para a vida da mulher, grave perigo para a saúde da mulher,
malformação ou doença grave e incurável do nascituro ou gravidez resultante de violação. Não estaremos perante
um alargamento a outro tipo de “indicações” (razões socio-económicas, por exemplo, como se verifica na
legislação italiana ou outras). Estaremos perante um regime de aborto livre ou aborto a pedido. Daí que se deva
falar em liberalização.»1

1 Pedro Vaz Patto, em Infovitae, lista de difusão na Internet, 12 de Outubro de 2006.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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Para terminar, também é útil recorrer à citação feita à obra de Jorge de Figueiredo Dias pelo
magistrado Mário José de Araújo Torres, do Tribunal Constitucional, no seu voto de vencido
do Acórdão n.º 617/06:

“se a interrupção for um facto ilícito, ainda que não punível, o Estado se sentirá desobrigado das prestações
sociais decorrentes da intervenção médica – de acordo com o princípio de que não podem ser dispendidos
dinheiros públicos com factos constitutivos de ilícitos penais”1

Daqui vemos que a subsidiação do aborto por parte do Estado, que subjaz à expressão “em
estabelecimento de saúde autorizado” e aos já manifestados projectos do actual Ministro da
Saúde, Correia de Campos, caso vença o “sim”, materializa efectivamente o fim da ilicitude
legal do acto voluntário de abortar. Se apenas estivéssemos a discutir a “despenalização” do
aborto, sem remoção da ilicitude, então em coerência não se deveria dar suporte a esse acto
através de estabelecimentos autorizados para o efeito: o Estado não pode atribuir recursos
públicos a “factos constitutivos de ilícitos penais”.
Para além disto, e visto que o nosso Sistema de Saúde não tem recursos sequer para dar
resposta a problemas reais de saúde, parece ainda notoriamente imoral que o Estado venha a
comparticipar essas intervenções abortivas em clínicas privadas, de forma a dar vazão à
previsível vaga de pedidos de aborto após a sua legalização e liberalização. Usará então o
Estado os seus escassos recursos para financiar lucros de clínicas privadas, em detrimento de
os usar para minimizar, por exemplo, as catastróficas listas de espera em todo o país?
Será que aqueles que defendem o direito ao aborto a pedido concordam que tal presumido
“direito” tem prioridade nas finanças da saúde pública face a doentes em estado grave e que
aguardam meses a fio a sua vez para serem tratados?

3.5 Considerações sobre crimes e penas


Como se disse no início, o conceito de “crime” deve anteceder o conceito de “pena”. Antes de
se atribuir uma determinada pena a um acto particularmente grave e lesivo, devemos primeiro
estar de acordo em definir tal acto como sendo um “crime”. Não faz sentido penalizar um acto
que não seja primeiro definido como sendo um crime.
Por outro lado, dentro da objectividade de um crime, a atribuição da pena, quando se verifica,
é sempre subjectiva porque se tenta fazê-la de acordo com as circunstâncias em que o crime foi
praticado. E existem ainda as circunstâncias não puníveis de um dado crime legalmente
definido. Como vimos, o Art.º 142.º do nosso Código Penal prevê situações que tornam o
aborto não punível aos olhos da legislação. Assim, com a presente lei, já temos circunstâncias
despenalizantes do aborto plasmadas na nossa legislação.
Como vimos atrás, há problemas éticos com algumas dessas circunstâncias. Em termos do
correcto balanço ético, apenas o salvar de uma vida poderia justificar a perda de outra vida.
Apenas o risco real e directo de morte da mãe poderia justificar a perda da vida do seu filho, e
mesmo assim só se essa perda não fosse provocada directamente, mas sim como consequência
indesejada de uma tentativa derradeira e única de salvar a vida da mãe. Todas as restantes
circunstâncias de despenalização do aborto definidas na nossa lei carecem de sustento ético, e
portanto, deram origem, em 1984, a um precedente de incoerência por parte do legislador
nesta matéria, precedente esse que está agora a ser usado pelos defensores do direito ao aborto.
Assim, a uma situação legal por si só já incoerente e precária em termos éticos, procura-se
agora juntar a agravante de mais uma situação de despenalização: o aborto a pedido até às dez
semanas. Desta vez, a “novidade” que se pretende introduzir no quadro legal é inédita no

1 Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra, 1999, p. 178.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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nosso país, porque surge proposta como um direito real da mulher. Sem ter que invocar
qualquer razão justificativa, qualquer mulher poderá abortar a pedido até às dez semanas de
gravidez, podendo para tal recorrer a ajuda médica qualificada, privada ou pública.
Já não estamos perante uma excepção a um quadro legal criminalizante do aborto!
Estamos perante a introdução de um novo quadro legal que irá liberalizar o aborto até às dez
semanas de gravidez. A introdução, ao invés de ser mais uma “excepção à regra” a adicionar às
demais, torna-se num “direito da mulher”. Com que coerência se poderá, então, manter a
criminalização do aborto conforme especificada no Art.º 140.º?

«CAPÍTULO II
Dos crimes contra a vida intra-uterina
Artigo 140.º
Aborto
1 - Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2 - Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão até 3 anos.
3 - A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é
punida com pena de prisão até 3 anos.»1

Sobretudo os pontos 2 e 3 deixam bem claro que o acto de abortar é ainda visto como um
crime. Se se verificar a vitória do “sim” no referendo de 11 de Fevereiro, então será necessário
“retocar” a legislação para evitar essa enorme incoerência que seria manter o aborto como
crime (Art.º 140.º), juntamente com a introdução de um direito abortivo até às dez semanas
algures dentro do Art.º 142.º. O que é mais curioso é que se desconhece qual será a redacção
definitiva destes artigos em caso de vitória do ”sim” no referendo… Os portugueses que
votarem “sim” irão assinar “em branco” uma nova legislação cuja redacção desconhecem!

Vejamos agora, recorrendo aos esclarecimentos do Dr. Tiago Lopes de Miranda, como o
actual contexto legal já prevê inúmeras situações que evitam, na prática, a penalização de um
crime objectivo:

«Na verdade o nosso, como a generalidade dos códigos penais, contém na sua parte geral uma exaustiva previsão
de circunstâncias em que a prática de todo e qualquer facto integrante de um tipo de crime não é punível, seja
por ficar excluída a ilicitude da conduta – é o caso v.g. da legítima defesa e do estado de necessidade
justificante, do conflito de deveres (artºs 31º, 32º e 34º e 36º), seja por se considerar não haver culpa,
apesar da ilicitude objectiva do facto – é o caso do estado de necessidade desculpante (artº 35º). Além
disso, prevêem-se, quer em geral quer quanto a muitos crime em especial, múltiplas circunstâncias atenuantes da
culpa que podem ir até à isenção de pena.
Aquelas normas que prevêem a exclusão da ilicitude e da culpa tem de comum resolverem conflitos concretos de
valores ou de direitos subjectivos penalmente protegidos ponderando a importância desses valores ou direitos
subjectivos numa escala hierárquica e a maior ou menor intensidade ou actualidade da ofensa dos mesmos no
caso concreto. E nesta ponderação relevam de uma dogmática ético-juridica amplamente consensual, cujos
critérios normativos, em boa verdade, se descobrem inscritos em qualquer consciência normalmente formada.
Basta lê-las atentamente para percebermos como abrangem potencialmente todas as situações em que a prática de
um aborto se justificaria eticamente, ou em que não seria justo perseguir ou condenar os seus autores2.

1 Ver http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=121&artigo_id=&nid=109&pagina=7&tabela=leis
2 Nota original: «Artº 34º do Código Penal:
Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do
agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:
a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger interesse de terceiro
b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado e c) Ser razoável impor ao lesado o
sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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Praticado em alguma daquelas circunstâncias, e se a notícia do facto tiver ab origine tais contornos, o aborto,
como qualquer outro crime, não dá lugar sequer ao processo criminal, pois crime para efeitos de procedimento
criminal “é o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de
segurança criminais”1. Se tais contornos justificantes ou desculpantes se apurarem já no decurso da fase
investigatória do processo, ou até se suscitar apenas uma dúvida razoável sobre se terão ou não ocorrido, não
haverá lugar ao julgamento. Com efeito, o Ministério Público (Mº Pº) só pode deduzir acusação e o Juiz de
Instrução, quando for requerida, só pode proferir despacho de pronúncia, determinando se proceda a julgamento,
quando houver indícios suficientes de que se ter verificado crime2, sendo certo que se consideram suficientes os
indícios apenas “quando deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido ser aplicada, por força deles,
em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”3. E se vierem a lume tais circunstâncias, ou a lume
vier apenas aquela dúvida sobre a sua verificação, já no decurso do julgamento, impor-se-á a absolvição, seja
porque se provou não ter ocorrido crime, naquele sentido supra, seja porque daquela dúvida só a absolvição
pode decorrer, segundo a regra de ouro de todo o julgamento em matéria de facto nos estados de direito ocidentais:
in dubio, pro reo.
Por outro lado importa saber que a prisão, embora seja uma possibilidade teoricamente prevista para todos os
ilícitos criminais, funciona, nos crimes menos graves, apenas como uma espécie de medida da gravidade de cada
um: Por exemplo, um insulto é punível com prisão até três meses (artº 181º do Código Penal (CP) ou, se for
praticado na comunicação social, até dois anos. A “má língua”, é-o com prisão até seis meses, podendo ir até
dois anos naquelas mesmas condições (artºs 180º e 183º do CP).
A uma bofetada, ou menos do que isso, corresponde uma pena de prisão até três anos (artº 143º nº 1 do CP):
exactamente a mesma medida de pena der prisão que está prevista para a mulher que consente em se fazer
abortar. Porém ninguém vai parar à cadeia por um insulto ou uma bofetada. Isto porque a lei penal prevê
muitas alternativas não detentivas, de que a prisão é sempre um último e desesperado recurso. O mesmo acontece
com o crime de Aborto, no que diz respeito à mulher.
Por aqui se vê como o sistema penal português já é bem cuidadoso no sentido de evitar que as pessoas sejam
molestadas com o procedimento criminal sem de facto haverem dado lugar à sua justa intervenção.»4

Estes dados podem surpreender, mas é importante darmo-nos conta da realidade do nosso
quadro legal e da argumentação falaciosa usada frequentemente pelos que defendem o direito
ao aborto. A pena máxima de prisão para o aborto (três anos) é exactamente igual à pena
máxima para uma agressão verbal ou física leve, como uma simples bofetada. O que isto quer
dizer é que a lei quer deixar bem claro que é errado insultar, falar mal ou bater em alguém, e
que esse juízo está definido pela atribuição de uma pena máxima, a ser usada em último
recurso. No que diz respeito a dar a morte a outrem, o legislador sabe bem que o homicídio é
um acto praticado, normalmente, com motivações bem diversas das que estão presentes no
caso do aborto. Perante a lei, é nítido que os actos de matar um adulto ou matar um feto têm a
mesma gravidade objectiva. Contudo, as motivações por detrás da primeira acção são bem
diferentes (e bem mais penalizantes) do que as da segunda. Por essa razão, a pena máxima para

Artº 35º do Código Penal:


1. Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual e não removível de outro modo que ameaçe a
vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias
do caso, comportamento diferente.
2. Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior e se verificaremos restantes pressupostos ali
mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado da pena”
Artº 36º nº 1 do CP:
“Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito de deveres jurídicos (...) satisfizer dever (...) de valor igual ou superior ao do dever
(...) que sacrificar”.
1 Nota original: «Artº 1º nº 1 alª a) do Código de Processo Penal»
2 Nota original: «Artºs 283º nº 1 e 308º do CPP»
3 Nota original: «artº 283º nº 2 do CPP»
4 Tiago Afonso Lopes de Miranda, op. cit., pp. 2-4.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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aborto é muito mais baixa que a pena máxima por homicídio, mas ao mesmo tempo não
deixando esta pena de três anos de cumprir a sua função restritiva relativamente a um acto
considerado criminoso pela lei.
Como vemos, a pena de prisão é sempre o último recurso considerado no nosso sistema penal,
sendo certo que a legislação já prevê um conjunto de situações que permitem a suspensão do
processo.
O juiz Pedro Vaz Patto define deste modo, e de forma clara, a distinção entre os termos
“despenalização” e “descriminalização”, demonstrando que a resposta afirmativa à pergunta do
referendo nada tem a ver com estes termos, mas sim com uma verdade “liberalização” e
“legalização” do aborto até às dez semanas, como vimos no capítulo anterior:

«Embora, normalmente, descriminalização e despenalização coincidam (como nos exemplos atrás referidos),
porque ao crime corresponde, em princípio, uma pena, poderia verificar-se uma despenalização sem
descriminalização. O Código Penal prevê, nalgumas situações, a dispensa de pena quando se verifica a prática
de um crime. Na proposta de alteração do regime penal do aborto em tempos sugerida pelo Prof. Freitas do
Amaral, o aborto continuaria a ser crime (uma conduta objectivamente censurável como tal definida pela Lei),
mas estaria, em regra, excluída a culpa da mulher, por se verificar uma situação de “estado de necessidade
desculpante”, o que afastaria a aplicação de qualquer pena. Mas não é nada disto que se verifica na proposta a
submeter a referendo. De acordo com essa proposta, o aborto realizado, por vontade da mulher grávida, nas
primeiras dez semanas de gravidez e em estabelecimento legalmente autorizado, será descriminalizado.
Importa também esclarecer que não são necessárias a descriminalização e despenalização do aborto para evitar a
prisão, e até o julgamento, das mulheres que abortam.
Quanto à prisão, esta é, no nosso sistema penal, um último recurso (não o primeiro, nem o principal). Não há
notícia de mulheres condenadas por aborto em pena de prisão. Em relação a muitos outros crimes (injúrias,
difamação, condução ilegal, condução em estado de embriaguez) está prevista a pena de prisão, mas esta não se
aplica na prática, sobretudo quando se trata de uma primeira condenação. E mesmo o julgamento dessas
mulheres pode ser evitado, através do recurso à suspensão provisória do processo.
No fundo, o essencial da questão a discutir no referendo não reside na realização de julgamentos das mulheres
que abortam (estes podem ser evitados no actual quadro legal). E não reside sequer na criminalização ou
descriminalização do aborto. Reside, antes, na sua legalização e liberalização. Reside em saber se o Estado deve
facilitar e colaborar activamente na prática do aborto ou se, pelo contrário, deve colaborar activamente na criação
de condições que favoreçam a maternidade e a paternidade, alternativas ao aborto que todos reconhecerão como
mais saudáveis e mais portadoras de felicidade para a mulher, o homem e a criança.»1 (sublinhado meu)

Em conformidade com as práticas em vigor no nosso sistema penal, um conjunto de cidadãos


criou em 2006 uma comissão que dá pelo nome de “Proteger a Vida sem Julgar a Mulher ”2:
Pedro Vaz Patto, Alexandra Tété, Cláudio Monteiro, Diogo Lacerda Machado, Filipa Roncon
de Vilhena, Lúcio Studer Ferreira, Maria da Graça Trigo e Maria Manuel Cabrita Menezes da
Silva. Com esta comissão, pretendem levar a discussão um projecto de lei que garanta às
mulheres que abortaram em circunstâncias desculpantes a possibilidade de verem o seu
processo suspenso, evitando a presença em Tribunal, e consequentemente a aplicação de uma
pena, cujo limite máximo plasmado na lei é de três anos.
Importa sublinhar que esta iniciativa não pretende alterar o sentido da legislação actual, apenas
pretende explicitar a sua aplicação no caso do específico do aborto.
O Art.º N.º 281 do Código de Processo Penal diz o seguinte, relativamente à suspensão
provisória do processo:

1 Pedro Vaz Patto, op. cit.


2 Ver http://www.protegersemjulgar.com/

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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«Artigo 281.º
Suspensão provisória do processo
1 - Se o crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão, pode o Ministério Público
decidir-se, com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras
de conduta, se se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de antecedentes criminais do arguido;
c) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
d) Carácter diminuto da culpa; e
e) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso
se façam sentir.
2 - São oponíveis ao arguido as seguintes injunções e regras de conduta:
a) Indemnizar o lesado;
b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c) Entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia;
d) Não exercer determinadas profissões;
e) Não frequentar certos meios ou lugares;
f) Não residir em certos lugares ou regiões;
g) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas;
h) Não ter em seu poder determinados objectos capazes de facilitar a prática de outro crime;
i) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso.
3 - Não são oponíveis injunções e regras de conduta que possam ofender a dignidade do arguido.
4 - Para apoio e vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta podem o juiz de instrução e o Ministério Público,
consoante os casos, recorrer aos serviços de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades administrativas.
5 - A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é susceptível de impugnação.
6 - Em processos por crime de maus tratos entre cônjuges, entre quem conviva em condições análogas ou seja progenitor de descendente
comum em 1.º grau, pode ainda decidir-se, sem prejuízo do disposto no n.º 1, pela suspensão provisória do processo a livre requerimento
da vítima, tendo em especial consideração a sua situação e desde que ao arguido não haja sido aplicada medida similar por infracção
da mesma natureza.»1

No actual quadro legal, é perfeitamente possível, quando reunidas as condições do ponto 1 do


artigo citado, proceder à suspensão provisória do processo no caso de um crime de aborto.
Vemos então como é totalmente falaciosa a argumentação de que o actual quadro legal manda
as mulheres que abortam para a prisão. E isso vê-se pelo reduzidíssimo número de processos
por aborto que, efectivamente, foram a tribunal no nosso país, por muito mediatizados que
tenham sido com o nítido objectivo de promover uma agenda para a promoção do aborto
como um direito da mulher. E todos estes poucos processos diziam respeito a abortos
praticados após as dez semanas, o que demonstra bem a desonestidade de muitos dos falsos
argumentos a favor do “sim” no referendo.
A iniciativa da comissão “Proteger a Vida sem Julgar a Mulher” quer introduzir na lei um
artigo único que permita explicitar a aplicação da suspensão provisória do processo penal,
quando reunidas as necessárias condições atrás referidas, para o caso do crime de aborto
cometido por uma mulher grávida. Evidentemente, tal proposta mantém o quadro legal
previsto para os colaboradores no crime de aborto, visto que tais colaboradores não podem
gozar do carácter diminutivo da culpa que se reconhece normalmente à mulher grávida.
Esta iniciativa é louvável, porque consegue reunir uma dupla preocupação, por um lado para
com a vida humana intra-uterina que é responsabilidade do Estado proteger e resguardar, e por
outro lado para com a situação dramática vivida pela maioria das mulheres que abortam,
tentado evitar-lhes a exposição pública mas ao mesmo tempo sem deixar de lhes dar um sinal
claro de que o aborto é um crime e sem deixar de as apoiar através da aplicação de medidas de
apoio psicológico e social para evitar a reincidência.
Repetimos na página seguinte, e na íntegra, o texto da proposta desta comissão:

1 http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=281&artigo_id=&nid=199&pagina=15&tabela=leis

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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Proteger a Vida sem Julgar a Mulher
INICIATIVA LEGISLATIVA DE CIDADÃOS
Projecto de Lei
Sobre a aplicação da suspensão provisória do processo penal relativo ao crime de aborto consentido em que é autora a mulher grávida.

Exposição de Motivos

A lei penal, ao prever e punir com a pena de prisão até 3 anos o aborto consentido em que é autora a mulher grávida (n.º 3 do artigo
140.º do Código Penal) traduz a gravidade objectiva do crime de aborto enquanto atentado à vida humana. Contudo, à sociedade não
é indiferente a distinção valorativa entre esta gravidade objectiva do aborto e a responsabilidade subjectiva da mulher que o pratica.
Por isso, a aplicação do actual ordenamento jurídico relativo ao crime de aborto coloca, como em todas as áreas da actuação humana,
questões de grande delicadeza no que se refere à avaliação das circunstâncias que determinam, tantas vezes, a sua prática.
A presente iniciativa legislativa visa compatibilizar a definição da gravidade objectiva do crime de aborto, por um lado, e a
consideração da frequente falta de consciência clara dessa gravidade, assim como a consideração das dramáticas situações que
frequentemente conduzem à prática desse crime, com a consequente atenuação da responsabilidade subjectiva da mulher grávida que
aborta, por outro lado. Esta atenuação aconselha o recurso a um instituto já previsto no ordenamento processual penal que, sem
prescindir de uma função sancionatória, pedagógica ou de advertência, evita o estigma e a publicidade associados ao julgamento (sendo
que ocorre numa fase secreta do processo).
Nestes termos, propõe-se a aplicação da suspensão provisória do processo penal relativo ao crime de aborto em que é autora a mulher
grávida. Pretende-se, ainda, que as injunções e regras de conduta correspondentes à suspensão provisória do processo estejam associadas
a medidas de apoio psico-social tendentes a evitar a continuação da situação que conduziu à prática desse crime. Pretende-se, por
último, clarificar (dissipando dúvidas que pudessem colocar-se) que a intervenção dessa mulher na produção de prova relativa a crimes
conexos fique sujeita ao seu consentimento.
A presente iniciativa aproveita o mecanismo dos artigos 270.º e 281.º do Código do Processo Penal, não introduzindo, contudo,
quaisquer alterações aos mesmos, e não acarreta quaisquer encargos económicos e financeiros para o Estado.
Assim, em cumprimento do artigo 4.º da Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho (Lei da Iniciativa Legislativa de Cidadãos) apresenta-se o
seguinte Projecto de Lei:

Artigo Único

(Aplicação da suspensão provisória do processo penal relativo ao crime de aborto consentido em que é autora a mulher grávida)
1. Recebida notícia do crime previsto no n.º 3 do artigo 140º do Código Penal, relativa a pessoa determinada, o Ministério Público
procede à sua inquirição, não sendo aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 270º do Código do Processo Penal.
2. Em relação a esse crime, deverá proceder-se à suspensão provisória do processo, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos,
presumindo-se, para este efeito, o carácter diminuto da culpa.
3. São aplicáveis as injunções e regras de conduta previstas no nº 1 e 2 do artigo 281º do Código de Processo Penal, associadas a
medidas de apoio psico-social tendentes a evitar a continuação da situação que conduziu à prática desse crime.
4. A suspensão provisória do processo exclui qualquer ulterior intervenção obrigatória da pessoa no processo, ou em processo conexo,
relativo a terceiros, não podendo ela ser, contra a sua vontade, objecto de meio de obtenção de prova ou intervir na produção de prova.»1

1 Retirado de: http://www.protegersemjulgar.com/projecto.htm

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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4. Má argumentação contra o direito ao aborto

No capítulo 6, a questão do aborto é discutida com base nas mais importantes e comentadas
teorias filosóficas e bioéticas a favor e contra o direito ao aborto. Mas antes de passar a esse
capítulo, serão apresentadas as piores argumentações, aquelas que enchem uma boa parte do
debate público, sejam elas emitidas por defensores ou por detractores do direito ao aborto.
Não quer isto dizer que não exista má argumentação, ou argumentação falaciosa, nas teorias
filosóficas apresentadas no capítulo 6, quer apenas dizer que a argumentação que se segue deve
ser descartada antes de se passar a um sério debate filosófico e ético.
Por seu lado, as más argumentações e as falácias que encontraremos nas teses éticas mais
sofisticadas só se detectam com alguma minúcia e análise, que implicam tempo de estudo, de
leitura e de raciocínio. Por vezes, não são nada evidentes e requerem alguma experiência no
manuseamento dos conceitos envolvidos.
Apenas um detalhe terminológico: só existe “falácia”, ou “argumentação falaciosa”, quando se
faz uma inferência lógica errada, ou seja, quando maus argumentos são usados por alguém para
inferir erradamente uma determinada conclusão. Se as frases ou os argumentos estão isolados,
se não há uma inferência nem uma conclusão, então não temos formalmente uma falácia1.

4.1 O uso de argumentação religiosa


Um dos argumentos mais usados pelos que defendem o direito ao aborto livre diz respeito à
suposta natureza “religiosa” da posição dos que se opõem à liberalização. E é bem verdade
que, infelizmente, alguns dos que se manifestam contra o direito ao aborto recorrem
demasiado, no foro público, a argumentação assente em conceitos religiosos. Sucede então
que, por não possuírem por vezes argumentação ética contra o aborto que seja suficientemente
neutra em termos religiosos, se vêem encurralados na sua posição e frequentemente forçados
pelos seus oponentes a admitir algo de profundamente absurdo e errado: que seria apenas a sua
crença religiosa que legitimaria e fundamentaria a sua posição contra o direito ao aborto.
Frases como as que se seguem, por exemplo, seriam bons argumentos se usadas por crentes
para uma audiência de crentes. Mas tornam-se em argumentos inúteis para outras pessoas que
não partilhem da mesma crença. Este tipo de argumentos não são compreendidos nem aceites
pelos ateus ou pelos agnósticos e contribuem para que se veja erradamente o aborto como
uma “mania dos crentes”, ou como uma questão “da consciência moral de cada um”:

“Sou contra o direito ao aborto porque a alma se torna presente na concepção”


“Não concordo com o aborto porque viola um mandamento de Deus”

Estes argumentos religiosos são bons argumentos contra o aborto, mas não são úteis num
contexto neutro em matéria de religião. As mais importantes razões para se estar contra o
aborto derivam da defesa inegociável do direito à vida, baseiam-se na Ética universal, naquilo
que a Igreja Católica chama de “lei natural”, que deveria ser reconhecida por todos.

4.2 O apelo às emoções


Não apenas em Portugal, mas um pouco por todas as sociedades nas quais se debate este tema,
têm-se visto certas formas de apelo ilícito às emoções por parte dos que condenam o direito ao
aborto livre. O apelo às emoções, em termos argumentativos, e independentemente de ser

1 Um agradecimento ao Ludwig Krippahl (http://ktreta.blogspot.com), por ter referido este dado importante.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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lícito ou ilícito (pode ser dos dois tipos), carece sempre de verdadeira universalidade e
objectividade, visto que a emoção é um fenómeno subjectivo, isto é, varia consoante o sujeito
que a vive. Todavia, sabendo que há a possibilidade de usar licitamente as emoções, e que esse
recurso pode ter utilidade e eficácia comunicativa quando usado correctamente, então, é
essencial saber separar bem as situações nas quais o apelo às emoções pode ser lícito das
situações nas quais ele é claramente ilícito.
É evidente que, quanto mais racional e objectivo se mantiver um debate, e menos se recorrer à
subjectividade emocional, mais proveitoso e objectivo, em termos intelectuais, será esse debate.
Apelar às emoções é jogar um jogo perigoso, que pode trazer bons resultados (quando se
motiva emocionalmente um grupo de pessoas para uma causa legítima), mas que também pode
trazer resultados desastrosos. A História é pródiga em maus exemplos do uso indevido e
destrutivo de argumentação emocional, e todo o seu uso deve ser feito com cautela.
No contexto de campanhas emocionalmente carregadas, exacerbadas, exageradas e excessivas,
pode-se chegar a assistir a manifestações de violência física. Nos Estados Unidos da América,
por exemplo, estão documentados casos de ataques contra clínicas abortivas perpetrados por
pessoas que estão contra o direito ao aborto. Os fins, por muito louváveis que sejam (evitar o
aborto), não podem nunca justificar o uso de meios ilegítimos, como a prática da violência.
Este pode ser um dos terríveis resultados de uma campanha conduzida com uso excessivo,
desequilibrado e desadequado do apelo às emoções em pessoas influenciáveis e possivelmente
frágeis em termos psicológicos, que depois poderão sentir-se mais motivadas a cometer este
tipo de actos violentos.
Visto que se trata de uma área eminentemente subjectiva, não me queria alongar acerca do uso
das emoções, deixando apenas uma nota que me parece importante: pode existir licitude no
recurso às emoções, e é essa licitude que importa destacar da sua contraparte ilícita. Um
exemplo bastará para expor este ponto de vista…
Muitos dos defensores do direito ao aborto livre não hesitam em classificar como “terrorismo
emocional” o uso, por parte dos seus adversários, de diagramas, imagens ou filmes que visam
assumidamente chocar ou perturbar o espectador. Têm razão em determinados casos mas não
em todos. Por vezes, deparamo-nos com campanhas pelo “não” ao aborto nas quais surgem
imagens e diagramas que distorcem ou hiperbolizam a realidade que se está a discutir: é ilícito o
uso de imagens de crianças nascidas para tentar representar um estágio intermédio da vida
intra-uterina, de forma a gerar choque na pessoa que visiona esse material propagandístico. Um
zigoto tem a forma de um zigoto, um embrião tem a forma de um embrião, um feto tem a
forma de um feto, e todos deverão ser representados com imagens fidedignas adequadas à sua
fase de desenvolvimento, sem tentar “embelezá-las” com detalhes provenientes da fisiologia de
bebés já nascidos.
Mas, por outro lado, se não houver logro, ou seja, se o material propagandístico não for usado
para inferir que a fotografia de um bebé nascido representa a vida humana na fase intra-
uterina, então não haverá ilicitude no seu uso. Poder-se-ia, por exemplo, usar um cartaz com a
fotografia de um bebé e com uma frase como “Protejamos as nossas crianças”. Apesar de
subtil, este poderoso e legítimo cartaz não estaria a afirmar explicitamente, não estaria a inferir,
que a fotografia usada representa um embrião ou um feto.
Outro tipo de uso ilícito do apelo às emoções verificou-se, infelizmente, na última campanha
para o referendo acerca do aborto em 1998, durante a qual circularam panfletos que retratavam
um hábito de canibalismo que consistia em cozinhar e comer fetos humanos, supostamente
praticado num país longínquo, sem serem dadas quaisquer provas em suporte dessa tese.
Deverá ser consensual repudiar terminantemente este tipo de publicidade enganosa: o
problema em debate não é o canibalismo com fetos, mas sim o aborto.
Com estes exemplos, temos o suficiente para retirar uma regra geral relativamente ao uso de
imagética com fins emocionais. Ele pode ser legítimo quando as imagens usadas retratam

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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fielmente a realidade que se pretende referendar: mostrar o pormenor sofisticado da mão de
um feto, com todos os seus dedos, ainda na fase das dez semanas dentro da qual se propõe
passar a ser legal abortar livremente, pode ser chocante e pode fazer qualquer pessoa sensível
pensar duas vezes antes de apoiar o direito ao aborto livre com o seu voto. Também é legítimo
recorrer à emotividade quando as imagens usadas, mesmo que não representem o feto num
seu estágio de desenvolvimento, não constituam um logro, uma tentativa ilícita de enganar o
espectador, levando-o a ver uma distorção da realidade.
Por outro lado, divulgar repulsivos vídeos de abortos conduzidos em condições hospitalares
normais é algo de perfeitamente legítimo. É aberrante que certos defensores do aborto livre
procurem esconder estes vídeos da opinião pública. Assistir a imagens de um aborto real, ao
vivo, mesmo quando conduzido num hospital e por médicos tecnicamente qualificados, é algo
de chocante e de perturbador e que deve ser visto por quem ainda tem dúvidas nesta matéria.
A revolta que qualquer pessoa normal e equilibrada sente quando vê um vídeo deste tipo é,
seguramente, uma perturbação emocional, e quando se divulgam conteúdos deste tipo, está-se
perante um claro apelo legítimo às emoções, porque se retrata fielmente a realidade do aborto.
Por outro lado, seria desadequado exibir imagens de abortos praticados em locais lúgubres ou
sem condições mínimas, alegando que o voto “sim” irá permitir esse tipo de situações, não
porque tais imagens não possam ser reais, mas porque não se coadunam com o objectivo deste
referendo, que claramente especifica que as intervenções abortivas legais serão conduzidas em
estabelecimentos hospitalares autorizados.
Sobretudo, não se deve deixar de recorrer ao poder comunicativo de uma imagem ou de um
vídeo: não é sensato contestar, por exemplo, o uso de fotografias de campos de concentração
para ensinar às pessoas os horrores do Holocausto nazi. Visto que tais fotografias são reais e
retratam fielmente uma realidade horrenda, servem como bons e legítimos “apelos à emoção”.
Quem vê com os olhos as fotografias e os filmes que retratam as condições miseráveis às quais
foram sujeitos milhões de seres humanos em campos de concentração, facilmente se identifica
com a condenação ética do Holocausto, independentemente de ser ou não capaz de depois
racionalizar e argumentar objectivamente a malignidade desse trágico acontecimento histórico.
Não quero, com estas palavras, tentar tecer comparações éticas entre o Holocausto e o aborto.
Considero essa comparação arriscada: pode ser feita em certa medida e recorrendo a certas
precauções para apenas comparar o que é comparável nos dois casos e não comparar o que é
incomparável. Quero somente, usando esta analogia simples, mostrar que a licitude ou ilicitude
do apelo às emoções através de material audiovisual irá apenas depender de estarmos a usar,
respectivamente, imagens reais e adequadas, ou imagens falsas e desadequadas; e dependerá
ainda das inferências que fizermos, ou das conclusões que retirarmos delas.
Em suma, não faz qualquer sentido censurar, proibir ou condenar a divulgação de imagens e
vídeos de abortos: todas as pessoas têm o inegável direito a ter conhecimento, pelo menos
visual, sensorial, do que é efectuar um aborto em condições médicas controladas. Ao verem
estes conteúdos, as pessoas apercebem-se de forma eficaz que o terrível mal do aborto não
desaparece por ser efectuado em boas condições sanitárias ou higiénicas.

4.3 A “derrapagem”
Quando se debate acerca da licitude ou ilicitude do aborto, convém não sair do tema
objectivamente em discussão, de forma a evitar contaminar a argumentação com factores
externos ao tema. É comum que se use, de forma falaciosa, a “derrapagem” argumentativa
para tentar “assustar” o adversário. Por exemplo, quando alguém argumenta que legalizar o
aborto até às dez semanas iria conduzir necessariamente a consequências como o legitimar da
eutanásia de crianças já nascidas e portadoras de deficiências. A consequência é uma clara
“derrapagem” argumentativa, visto que o que se está a debate é a licitude do aborto, e não a

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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eutanásia. É inegável que, por vezes, o quadro mental que leva alguém a defender o direito ao
aborto pode ser o mesmo que leva essa pessoa a defender a eutanásia. Mas não há forma de
provar que uma coisa levaria forçosamente à outra.
Apesar de o uso desta falácia surgir sobretudo nos opositores do direito ao aborto, também
poderá surgir nos seus defensores, sempre que, por exemplo, se pretender que responder
“não” à pergunta do referendo acarretará um aumento inevitável do número de abortos e
provocará um estado de catástrofe na saúde pública. O facto é que essa causalidade é
impossível de demonstrar, e só serve para “assustar” o adversário de forma ilícita em termos
de argumentação.

4.4 O apelo à ignorância


É frequente, sobretudo em debates televisivos ou mediatizados, vermos os adversários do
direito ao aborto recorrerem ao que aqui chamo de “apelo à ignorância”.
Frases como estas são possíveis exemplos disso mesmo:

“É inútil perder tempo com discursos, teorias, intelectualidades e minúcias éticas, porque o
importante é afirmar a crueldade de matar um ser humano”

“De nada vale debater filosofias e éticas, porque o aborto é um crime”

Estas frases, estando certas nas conclusões, estão erradas nas premissas. Sendo contra o direito
ao aborto, eu concordo com as conclusões destas duas frases que dei em exemplo, mas elas
não podem ser deduzidas das premissas dadas acerca da suposta “inutilidade” do debate
filosófico e ético. Este debate é fundamental e está no cerne da questão do aborto.
Se aqueles que estão contra o direito ao aborto não conseguem sustentar a sua posição através
de teses etico-filosóficas que sejam racionais e coerentes, então deveriam, em bom rigor,
abster-se de fazer juízos negativos de valor acerca de tais teses.

4.5 O apelo à «dignidade da vida humana»


Esta expressão deve ser evitada como argumento para a conclusão de que o aborto é
eticamente ilícito. E isto pela simples razão de que o termo “dignidade” é subjectivo. Cada qual
pode considerar uma determinada realidade como mais ou menos digna que outra.
Por exemplo, quem defende o direito ao aborto, pode fazê-lo por considerar mais digno o
direito à liberdade da mulher que quer abortar, do que o direito à vida do seu filho1. Quem está
contra o direito ao aborto, pode fazê-lo por considerar mais digno o direito à vida do filho do
que o direito da mãe acerca do destino que quer dar à sua gravidez.
Quando construímos uma argumentação com vista a dar suporte a uma determinada conclusão
que queremos defender como sendo universal, devemos evitar o uso de expressões vagas,
incertas ou subjectivas, que variem de indivíduo para indivíduo.
Afirmar que “dignidade” é um termo vago ou incerto parece-me excessivo, mas trata-se
certamente de um termo subjectivo. Quando possível, este argumento contra o direito ao
aborto deverá ser modificado para um apelo ao “direito à vida humana intra-uterina”, ou ao
“direito à vida humana pré-natal”, que já são realidades objectivas com âmbito universal.

1É claro que também há quem defenda o direito ao aborto por não reconhecer direito à vida até determinado
ponto da gravidez, ou mesmo até determinada idade pós-natal. Ver o capítulo 6.

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5. Má argumentação pelo direito ao aborto

Também se aplicam, neste capítulo, as observações tecidas no início do capítulo anterior. No


caso concreto da argumentação pelo direito ao aborto, os argumentos mais usados costumam
ser básicos e rudes. Tais argumentos impedem o debate sério acerca do aborto que deverá ter
lugar no terreno da Ética, disciplina da Filosofia. Por coerência estrutural das sociedades
modernas, as considerações éticas deveriam preceder as considerações legais ou jurídicas.
Infelizmente, isso está longe de suceder. Como se poderá constatar de seguida, a maioria destes
maus argumentos está baseada no mesmo erro: quem a eles recorre não tem clara a noção de
que o aborto é um crime por se tratar da violação do direito mais fundamental: o direito à vida.

5.1 «Quem está contra o direito ao aborto não pensa na mulher»


Uma típica argumentação falaciosa tenta apresentar os detractores do direito ao aborto como
pessoas com um raciocínio desequilibrado porque unilateral. Muitos defensores do direito ao
aborto afirmam que os seus adversários não estão a ver a questão como um todo, porque de
tão focados que estão na vida intra-uterina e na defesa dos direitos desta, se esquecem da
mulher grávida e dos seus direitos.
Esta argumentação é falaciosa, pela simples razão de que o aborto tem, na verdade, duas
vítimas: a vida humana que é terminada, e a mãe que muito provavelmente sofrerá toda a vida
com o peso na consciência de ter tomado uma decisão terrivelmente errada.
É certo que existirão mulheres que não sentirão qualquer culpa ou remorso após um aborto.
Contudo, é consensual reconhecer que há inúmeras mulheres que, após abortarem, sofrem
profundamente, e por vezes até ao final das suas vidas, pela decisão que tomaram.
O zigoto, embrião ou feto abortados perdem a sua vida, perdem o seu futuro de forma
irremediável.
Mas a mãe é a outra perdedora: a sua saúde psíquica fica, na generalidade dos casos, seriamente
comprometida após um aborto. Os que não aceitam o direito ao aborto, em coerência, têm que
reconhecer que a criminalização do aborto é também uma forma de proteger as mulheres da
tomada de uma decisão errada.
O aborto legal, a pedido, até às dez semanas, transmite às mulheres que pensam abortar uma
sinal errado: o de que não há mal ético em abortar. Ninguém está à espera que uma lei não seja
ética (apesar de muitas não o serem), e por isso, se abortar a pedido passar a ser legal, as
mulheres que ponderem abortar poderão sentir-se tentadas a pensar que não há mal no aborto,
e assim, optarem por tal decisão sem se darem conta de que estarão a comprometer a sua
saúde psíquica de forma irremediável.
Quem está contra o direito ao aborto tem que pensar na mulher, naquilo que é melhor para a
sua saúde, mas também tem que pensar na vida humana por nascer.
Em última análise, quem está contra o direito ao aborto considera que os efeitos psíquicos que
a mulher sofre em abortar são sempre piores que os de levar uma gravidez indesejada até ao
fim.

5.2 A “inevitabilidade” do aborto


É uma dos argumentos mais frequentes dos defensores do direito ao aborto: dizem que o
aborto é inevitável e que, face ao problema real do aborto, a melhor solução seria torná-lo
legal, evitando assim o problema de “saúde pública” que é o aborto clandestino. Este
argumento, é fácil de verificá-lo com exemplos, está totalmente errado: os crimes de violação
são também um flagelo e não se resolvem legalizando a violação. O mesmo se poderia dizer
Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007
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em relação a qualquer crime. O que se deve é averiguar se o aborto é ou não um crime, e neste
texto pretende-se demonstrar que é um crime. Sendo um crime, é evidente que a solução para
a sua erradicação nunca passará pela sua legalização.
Para mais, é desadequado o uso da expressão “saúde pública”, uma vez que o que se discute,
quando se fala no aborto, é se se trata ou não de um acto eticamente reprovável, ou seja, se se
trata, em termos legais, de um “crime”. Nesse sentido, fazer um aborto num hospital ou numa
clínica profissional, independentemente de se oferecerem melhores condições à mulher, não é
um acto de “saúde pública”, visto que a gravidez não é uma doença. O que se discute não é um
problema de saúde, mas sim a extirpação, sancionada pela lei, praticada por técnicos de saúde
autorizados, e paga pelos contribuintes, de um ser vivo do interior de uma mãe que não o quer
e que tem responsabilidades éticas para com ele.
O aborto, como se pretende demonstrar, deveria ser sempre encarado um acto ilícito, fosse
praticado num “vão-de-escada”, fosse praticado clandestinamente numa clínica ou hospital por
pessoal qualificado, ou fosse praticado numa clínica ou hospital autorizados para esse efeito.
Um dos argumentos mais usados pelos defensores do acesso ao aborto prende-se com a
necessidade de reduzir as mortes pelo aborto clandestino. Poderíamos apontar que esta causa
de morte é das causas de morte com menos peso estatístico nos tempos que correm, mas o
erro central deste argumento não está aqui. Segundo esse argumento, o aborto é sempre um
mal, e de um ponto de vista utilitarista, se for feito com supervisão médica adequada, torna-se
num mal menor, porque é minorado o risco de vida da mulher.
Vejamos um esquema do problema do aborto legal versus aborto clandestino, tal e qual costuma
ser colocado pelos defensores do aborto legal, para vermos se tal argumento colhe:

Aborto Clandestino Aborto Legal


Mulher + Risco de vida/saúde – Risco de vida/saúde
Zigoto, Embrião, Feto Perda de vida Perda de vida
Tabela 2 – Ponderação dos riscos e perdas de saúde/vida nos dois tipos de aborto

Claramente, o denominador comum aos dois tipos de aborto é a inevitável perda de vida
humana, seja na fase de zigoto, embrião ou feto. A diferença entre os dois tipos de aborto
reside no menor risco de vida e menor risco de saúde física e psíquica da mulher no caso do
aborto legal. Mas há vários problemas em defender o aborto legal nestes termos:

a) Há risco de vida, e riscos para a saúde em ambos os casos, ou seja, ganha-se pouco
com a legalização do aborto; seguramente que os riscos físicos são menores no aborto
legal, e pode-se aceitar que, em termos teóricos, parte dos riscos psíquicos também
sejam menores no aborto legal, com a mulher que abortou a ser acompanhada por um
psicólogo; mas em ambos os casos, a mulher que abortou sabe e sente que matou o seu
filho ou que autorizou a sua morte por outrem, e isso é um drama psicológico
inevitável para qualquer mulher normal: esse drama acompanha-a para toda a sua vida;

b) Está-se a legalizar a perda de vida que qualquer aborto acarreta; esta legalização é
eticamente ilegítima: não há forma de justificar dar mais peso à saúde da mulher em
detrimento da vida humana que é destruída; além disso, a legalização do acto abortivo é
incoerente com a responsabilidade que qualquer Estado de Direito tem em proteger a
vida humana intra-uterina;

c) Legalizar o aborto praticado em estabelecimentos de saúde autorizados para o efeito


transmite sinais errados à sociedade: desresponsabiliza a mulher pela sua gravidez,

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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desresponsabiliza o homem pela sua paternidade (que, muitas vezes, de forma egoísta,
procura convencer a mulher a abortar para não ter que assumir as suas obrigações);
transmite ainda a ideia errada e falaciosa de que o aborto é um direito da mulher; e
finalmente despreza o direito do zigoto/embrião/feto à vida;

d) Em suma, e esta é a questão mais importante: apresenta o aborto como inevitável!

Vejamos esta nova tabela, agora equilibrada com a inserção da opção “Não abortar”:

Não abortar Aborto Clandestino Aborto Legal


Mulher N/A + Risco de vida/saúde – Risco de vida/saúde
Zigoto, Embrião, Feto N/A Perda de vida Perda de vida
Tabela 3 – Ponderação dos riscos e perdas de saúde/vida nos dois tipos de aborto

Neste caso, claramente, e mesmo usando ética puramente utilitarista, “não abortar” é de longe
a melhor das possibilidades, tanto para a saúde física e psíquica da mulher, como para o
zigoto/embrião/feto, que assim pode continuar o seu desenvolvimento natural, pode viver a
sua vida. Pode-se criticar esta tabela, porque não entra em consideração com os riscos e perdas
de outras coisas que a mulher pode valorizar, como projectos de vida, independência, situação
financeira, entre outras. Mas haverá algo, em todos esses razoáveis riscos e perdas para a
mulher, que possa competir em termos de peso ético com questões fundamentais como os
riscos de saúde e a perda de vida humana presentes na opção de abortar? A tabela apresentada
restringe-se aos riscos e perdas mais significativos do aborto, deixando de parte outros riscos e
perdas que têm claramente menor peso.

5.3 A “hipocrisia”
Esta será, porventura, a mais mediatizada das argumentações dos defensores do aborto. É
constrangedor observar uma grande fatia da nossa classe política a recorrer a esta
argumentação tão empobrecedora, sinal de uma clara deficiência argumentativa e intelectual.
O facto de existirem pessoas, sem dúvida hipócritas, que abortam às escondidas e ao mesmo
tempo se manifestam publicamente contra o aborto não faz do aborto um acto lícito! É
impressionante como tantos políticos usam, desavergonhadamente, este mau argumento.
O seu carácter absurdo pode ser demonstrado recorrendo, de novo, a um exemplo em
contrário: suponhamos que, no meio de uma manifestação pública contra a pedofilia, estão
várias pessoas que têm a prática corrente de abusar de menores. Serão, sem dúvida, hipócritas,
uma vez que condenam publicamente algo que eles mesmos praticam voluntariamente em
segredo. Mas chegará isso para se afirmar que a forma para acabar com a hipocrisia destes
pedófilos passaria por legalizar a pedofilia?
Um outro exemplo: num bairro, alguém tem feito assaltos regulares à mercearia do local
durante a noite. O culpado, ainda por cima, manifesta-se publicamente contra esses assaltos,
exigindo a investigação e a prisão imediata dos ladrões. Seria lógico que os habitantes do
bairro, suspeitando do verdadeiro culpado e acusando-o de hipócrita, exigissem a pilhagem
livre, acessível para todos, desta malograda mercearia, advogando que todos teriam o direito a
retirar bens da mercearia em iguais condições de acesso aos mesmos, e sem os riscos que um
assalto ilegal acarreta em termos de confrontos com a polícia? Claro que não…
O acto hipócrita daqueles que abortam às escondidas, enquanto publicamente dizem “não” ao
aborto, não transforma, por magia, o acto de abortar num acto eticamente lícito.
Convém ainda fazer uma importante ressalva: não se pode afirmar que uma pessoa que está
contra o direito ao aborto, mas que já abortou no passado e está hoje arrependida, é uma
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pessoa hipócrita. Para isso, teríamos também que considerar hipócritas todos aqueles que,
sendo contra a mentira, mentem ocasionalmente, ou todos aqueles que, sendo a favor da
existência e cumprimento de um Código da Estrada, o violam esporadicamente.
A essência de se ser hipócrita está em desejar para os outros uma ética que nós próprios não
cumprimos nem queremos cumprir. Está em nos consideramos acima da ética que
defendemos, de nos vermos como “excepções” ao cumprimento de uma regra que desejamos
universal, para cumprimento por todos.
Não é hipócrita aquela mulher que considera que o aborto é um mal e deve ser proibido, mas
que no passado, por fraqueza, decidiu abortar e está arrependida dessa decisão, não a
desejando para mais nenhuma mulher. Em bom rigor, essa mulher, que já foi vítima por
decisão própria de um aborto, está em boas condições para denunciar a ilegitimidade de tal
decisão com base na sua traumática experiência pessoal.

5.4 O “direito” da mulher ao seu corpo


Quando se discute o aborto, há que atentar ao facto de que há duas principais entidades
envolvidas, mãe e filho1. Quando se tenta concluir acerca da licitude do aborto numa qualquer
fase da gravidez, há que tentar construir uma argumentação sólida em termos de direitos do
feto versus direitos da mãe. No cerne da complexa questão do aborto está uma discussão de
direitos que se sobrepõem e que importa discernir e contrabalançar: o direito do feto à vida e a
sobreposição deste direito ao direito que a mulher tem acerca do destino que quer dar ao seu
corpo2.
Muitos adeptos do aborto, e este argumento encontra fãs nas correntes feministas, afirmam de
forma contundente que a mãe tem o direito a fazer o que bem entender do seu próprio corpo
e do que quer que lá esteja dentro. Como diz acertadamente o filósofo Pedro Madeira3, isto é
fugir à questão:

«Um mau argumento usado pelos defensores da legalização do aborto é o argumento feminista de que o corpo é
das mulheres, pelo que as mulheres é que sabem o que hão-de fazer com ele. Este argumento limita-se a fugir à
questão porque as feministas nunca chegam a dizer nada acerca do estatuto moral do feto — nunca dizem se o
feto tem, ou não, o direito à vida. Esta é uma falha grave pela seguinte razão: Se o argumento das feministas
fosse, simplesmente, o de que "o corpo é da mulher, a mulher é que sabe o que há-de fazer com ele", então isso
implicaria que seria moralmente permissível abortar até no nono mês. Afinal, no nono mês a criança ainda está

1 Quando não mesmo três entidades, visto que o património genético do filho pertence, em metade à mãe, e na
outra metade ao pai; tanto a mãe como o pai são causalmente responsáveis, em igual medida, pelo ser humano em
desenvolvimento que a mãe traz dentro de si. O pai é sistematicamente removido de qualquer debate ou
argumentação a favor do direito ao aborto: perante o avizinhar de uma situação legal de aborto por opção da mãe,
um pai que queira evitar, contra a mãe, a morte do seu filho por nascer, nada poderá fazer em relação a isso, o que
se afigura uma situação eticamente insustentável e injusta. No entanto, é inegável que à mãe, em virtude das suas
particularidades biológicas, cabe uma responsabilidade “material” mais forte, uma vez que é o seu corpo que dá
sustento e guarida ao ser humano por nascer. Por outras palavras, após a concepção, e para sobreviver até ao
parto, a criança necessita do corpo da mãe e não necessita do corpo do pai.
2 É evidente que este direito existe e é bem real. Contudo, como em qualquer questão de liberdades fundamentais,

o nosso direito (ou liberdade) cessa quando principia o direito (ou liberdade) de outrem. A mulher tem direito ao
seu corpo e ao destino que lhe quer dar, desde que esse direito não colida com o direito de outrem, neste caso, o
que está em discussão: o direito do feto humano à vida.
3 Ao longo deste texto, faremos frequentemente referência à argumentação de Pedro Madeira (ver

http://criticanarede.com/aborto1.html), seja para concordar, seja para discordar dela. Claramente, como Pedro
Madeira acaba por concluir que o aborto é legítimo até certa fase da gravidez (segundo ele, até ao início de
actividade organizada no córtex cerebral do feto), estamos em desacordo quanto à conclusão de Pedro Madeira e
necessariamente quanto a várias das suas premissas, não obstante recorrermos a algumas das suas premissas
quando as reconhecermos como válidas e úteis.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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no ventre da mãe. As feministas podem agora aceitar esta conclusão, ou rejeitá-la. Imaginemos que a aceitam.
Nesse caso, ficam com a dificuldade de explicar porque é que não podemos matar uma crianca recém-nascida.
Afinal, podíamos matá-la dois minutos antes, mas agora já não? Isso parece extremamente arbitrário.
Imaginemos agora que as feministas rejeitam a conclusão de que é moralmente permissível abortar no nono mês.
Nesse caso, terão de nos dizer a partir de que altura é que o feto, ainda na barriga da mãe, começa a ter o
direito à vida. Independentemente de como escolham responder a este problema, uma coisa é certa: ao admitir
que não é moralmente permissível abortar no nono mês, uma feminista terá acabado de abandonar o argumento
de que "o corpo é da mulher, a mulher é que sabe o que há-de fazer com ele".»1

Há no problema do direito ao aborto uma situação de colisão de direitos. Eu defendo que estes
direitos não são iguais e não têm pesos iguais, sendo que há amplo debate filosófico e ético em
torno destes direitos, da sua definição, e da sua ponderação em vários cenários. É por esta
razão que pretender que o aborto é lícito porque a mulher tem o direito de dispor do seu
corpo é uma argumentação medíocre, primária e inaceitável. Normalmente, é um argumento
brandido por pessoas com pouca formação em termos de Ética e de Filosofia.

5.5 O apelo às emoções


Do mesmo modo que se falou do uso ilícito das emoções por parte de certos adversários da
liberalização do aborto, também os defensores do aborto costumam incorrer neste erro. Um
bom exemplo é o uso de uma linguagem terrorista, falando do zigoto, embrião ou mesmo do
feto como "amontoados de células", que podem ser destruídos sem preocupações éticas ou
morais.
É costume ver os defensores do direito ao aborto afirmarem que abortar um feto num
determinado estágio da gravidez é tão lícito como a remoção de um tumor. Que o mesmo
património genético humano do feto (o seu ADN), também está presente na célula cancerosa,
no espermatozóide, nos óvulos perdidos pela mulher aquando da menstruação, ou mesmo no
cabelo, nas unhas ou noutro tipo de células do nosso corpo. É graças ao uso deste argumento
científico (o ADN) que este falso uso das emoções ganha um ar de cientificidade, quando na
verdade, é um puro absurdo. É um argumento vazio.
A diferença entre um zigoto, embrião ou feto, e um “amontoado de células” está no facto de
que os primeiros irão evoluir até possuírem autonomia biológica. Se for deixado crescer
livremente, o zigoto passará a embrião e a feto, e se tudo correr bem, terá uma existência
biológica autónoma. Tem também o seu valor intrínseco reconhecido socialmente, como é
disso bom exemplo a nossa Constituição. Isso nunca acontecerá com um órgão do nosso
corpo, com um tumor, ou com outros agregados celulares que deixamos morrer sem receios
éticos, como os cabelos ou as unhas.
A comparação entre um zigoto, embrião ou feto e outro tipo de agregados celulares, apesar de
ter uma aparência de cientificidade (por se afirmar, correctamente, que o ADN é o mesmo em
ambos os casos), é totalmente desadequada: os primeiros têm totipotência, estão vocacionados
para a completude, para a autonomia biológica, e por se tratarem de seres humanos, estão
vocacionados para a sofisticação intelectual, algo que nunca sucede com qualquer agregado
celular tomado em si mesmo.
Normalmente, os que defendem uma argumentação deste tipo ficam com o ónus de ter que
explicar quando é o que o “amontoado de células” ganha o direito à vida. É aqui que surge,
para muitos, a distinção subjectiva entre “pessoa humana” e “vida humana”. Apesar de
existirem abordagens bem intencionadas que defendem a tese de que este direito é adquirido
num dado momento específico da gravidez que varia consoante a abordagem, ou que o direito

1 Op. cit., Argumentos sobre o aborto, parte 2, “O argumento feminista e o apelo ilegítimo às emoções”.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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é adquirido gradual e continuamente ao longo da gravidez, penso que estas abordagens são
artificiais e trazem consigo erros que as inviabilizam, mas sobre isto se falará mais adiante no
capítulo 6.

5.6 O argumento socio-económico


Aqueles que defendem o direito ao aborto indignam-se ao verificar que as mulheres
portuguesas de mais elevado estrato socio-económico podem deslocar-se para fora do país
(Espanha, na maior parte dos casos) e praticar o aborto em melhores condições de higiene e
segurança, enquanto que as mulheres de mais baixa condição se vêem “empurradas” para o
aborto clandestino. É falso todo o argumento que procure, com base no recurso a uma
pretensa razão de justiça social, legitimar o aborto como forma de providenciar esse “direito” a
todas as mulheres, independentemente da sua condição socio-económica.
Um exemplo em contrário é suficiente para mostrar o erro deste argumento, e podemos
recorrer ao claro exemplo sugerido pelo filósofo Pedro Madeira:

«Não é difícil ver porque é que este é um mau argumento. Pense no seguinte: devido à recente mediatização do
fenómeno da pedofilia em Portugal, é de crer que as redes pedófilas em Portugal venham a reduzir
substancialmente as suas actividades, pelo menos nos próximos tempos. Contudo, quem tenha dinheiro pode
facilmente apanhar um avião para países onde a pedofilia seja quase impune ou pode, até, importar crianças
desses países. Moral da história: quem não tiver dinheiro para ir fazer turismo sexual ao estrangeiro ou para
mandar vir crianças de fora é que fica privado de poder manter relações pedófilas; os pedófilos pobres é que se
lixam. Será este um bom argumento a favor da legalização da pedofilia? É óbvio que não. O mesmo
argumento, quando empregue a favor da legalização do aborto, só parece mais convincente porque se limita a
fugir à questão.»1

5.7 O apelo à ignorância


Analogamente ao que se referiu no capítulo 4.4, é frequente, sobretudo em debates televisivos
ou mediatizados, vermos os defensores do direito ao aborto recorrerem ao “apelo à
ignorância”, em típicas frases como estas:

“É inútil perder tempo com discursos, teorias, intelectualidades e minúcias éticas, porque o
importante é o direito da mulher ao seu corpo”

“De nada vale debater filosofias e éticas, porque o aborto clandestino é inaceitável”

Estas frases, estando certas nas conclusões, estão erradas nas premissas. Sendo contra o direito
ao aborto, eu concordo com as conclusões destas duas frases que dei em exemplo, visto que a
mulher tem direito ao seu corpo, mas deve também saber que em caso de gravidez, esse seu
direito colide com o direito do feto à vida. E defendo que não são direitos de pesos iguais,
sendo que o último deve receber mais peso que o primeiro.
Do mesmo modo, concordo que o aborto clandestino é inaceitável, mas deduzo-o como caso
particular da premissa fundamental que defendo: o aborto desejado e voluntário é sempre
inaceitável.
Contudo, estas conclusões acertadas não podem ser deduzidas das premissas dadas acerca da
suposta “inutilidade” do debate filosófico e ético. Como se referiu em 4.4., este debate é
fundamental e está no cerne da questão do aborto.

1 Argumentos sobre o aborto, parte 3, “O argumento social e o argumento do direito à vida”.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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Se aqueles que defendem o direito ao aborto não conseguem sustentar a sua posição através de
teses etico-filosóficas que sejam racionais e coerentes, então deveriam, em bom rigor, abster-se
de fazer juízos negativos de valor acerca de tais teses.
Existe ainda uma forma particular do apelo à ignorância, sobretudo verificada nos que
defendem o direito ao aborto, e que chamarei aqui de “apelo ao agnosticismo”, tipificado em
frases como estas:

“Nunca se saberá quando começa a vida humana, por isso o melhor é proteger as mulheres e
deixá-las abortar”

“Nunca se saberá definir «pessoa humana», e como cada um tem a sua ideia individual do que é
uma «pessoa», o melhor é proteger as mulheres e deixá-las abortar”

Este tipo de argumentação é totalmente evasiva: existe, hoje em dia, amplo debate ético e
filosófico acerca da vida humana, acerca da pessoa humana, acerca dos direitos do ser humano,
e acerca da licitude ou ilicitude do aborto. Sugere-se a consulta da bibliografia no final deste
artigo para se ficar a conhecer o amplo e complexo panorama do debate científico na área da
bioética.

5.8 A “tirania dogmática”


É frequente, por parte dos defensores do direito ao aborto, o uso de uma argumentação
particularmente errada, ou mesmo desonesta quando é usada conscientemente, que passa pelo
uso de frases como estas:

“Voto «sim» no referendo porque os defensores do «não» não têm o direito de impor as suas
convicções religiosas ao resto da população”

“Os defensores do «não» têm que ser travados, porque querem obrigar todos os portugueses a
seguir as suas pessoais e subjectivas convicções religiosas”

Esta argumentação é falaciosa e isso demonstra-se facilmente com o recurso à lógica. É


acertada a dedução desta implicação:

(1) Sou crente ⇒ Sou contra o direito ao aborto

É verdade que a esmagadora maioria das regras de conduta com base religiosa ou metafísica
condenam o acto de abortar. É inegável que, no conjunto daqueles que se opõem ao aborto,
uma grande parte é constituída por pessoas que professam uma determinada crença religiosa1.
A razão de ser deste facto é muito simples: qualquer religião ou espiritualidade tradicional
digna desse nome está assente em axiomas universais e perenes acerca do ser humano, do seu
inequívoco valor quando comparado com o valor dos outros seres vivos, e do carácter único e
irrepetível de cada vida humana. As regras éticas e morais de uma religião estão baseadas em

1 É sintomático que, fora do universo das três religiões abraâmicas (que condenam todas, inequivocamente, o
aborto em qualquer fase da gravidez, desde a concepção), encontremos sempre e em toda a parte a mesma
inequívoca condenação do aborto, desde o Hinduísmo e o Budismo, até ao Taoísmo no Extremo Oriente, e
falando apenas das espiritualidades de maior adesão e representatividade. É o carácter perene e universal do
direito à vida do ser humano que faz com que, em cada doutrina particular, se condene claramente todo e
qualquer acto que atente contra a vida humana, em qualquer fase do seu desenvolvimento.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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princípios éticos universais, como o do direito à vida de qualquer ser humano inocente desde o
momento da sua concepção. Mas, por outro lado, está errada esta equivalência:

(2) Sou crente ⇔ Sou contra o direito ao aborto

E isto pela simples razão de que esta implicação é falsa:

(3) Sou contra o direito ao aborto ⇒ Sou crente

O uso desta falácia é um desrespeito pelos que vão votar “não” no referendo, mas que não têm
crenças religiosas. Há muitas pessoas que, baseando-se em princípios éticos fundamentais e
universais (as verdadeiras razões para se estar contra o aborto), se manifestam contra o direito
a abortar, e no entanto não partilham de nenhuma crença religiosa.
Insistir que o que está em jogo neste debate é a tirania de dogmática religiosa dos defensores
do “não” é uma atitude de grave desonestidade intelectual, que pretende ignorar o erro da
equivalência N.º 2, baseado no erro da implicação N.º 3, e pretende também ignorar,
convenientemente, o “incómodo” grupo de votantes ateus e agnósticos no “não”.
É a crença numa religião que implica a oposição ao aborto, mas não existe equivalência, como
pretendem alguns defensores do direito ao aborto. Segundo muitos deles, votar “não” é algo
que só sucede a quem professa uma determinada crença religiosa. Esta posição falsa, ilógica e
inaceitável é necessária para se defender a ideia falaciosa de que o voto nesta matéria, ao invés
de ter um alcance universal, é apenas assunto de “consciência”, e deve ser relegado para o
campo da subjectividade individual.
Há uma grande proximidade entre esta argumentação falaciosa, que pretende reduzir a questão
do aborto às “consciências” religiosas ou não religiosas de cada um, e a típica retórica
materialista e positivista, que pretende transformar o fenómeno do religioso numa temática de
âmbito exclusivamente sentimental, subjectivo e individualista.
Foi no sentido de explicar a razão por detrás da posição da Igreja Católica contra o direito ao
aborto que o Senhor Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, se manifestou
recentemente, a 19 de Outubro de 2006, quando tentou esclarecer a opinião pública acerca dos
mal-entendidos propagados por certos órgãos de comunicação social:

«Afirmei, de facto, que a “condenação do aborto não é uma questão religiosa, mas de ética fundamental”.
Trata-se, de facto, de um valor universal, o direito à vida, exigência da moral natural. Com esta afirmação não
foi minha intenção negar a sua dimensão religiosa. A mensagem bíblica assumiu, como preceito da moral
religiosa este valor universal, dando-lhe a densidade do cumprimento da vontade de Deus. Não é só por se ser
católico que se é contra o aborto; basta respeitar a vida e este é, em si mesmo, um valor ético universal.
É claro que o respeito pela vida é uma exigência da moral cristã, porque está incluído no quinto mandamento
da Lei de Deus: “Não matarás”. Porque é um preceito da moral cristã, violá-lo é um pecado grave. Mas o
Decálogo, estabelecido, pela primeira vez no Antigo Testamento, por Moisés, consagrou como Lei do Povo de
Deus, alguns dos valores humanos universais, que interpelam a consciência mesmo de quem não é religioso. E de
facto, na presente circunstância, há muitos homens e mulheres que, não sendo crentes, são contra o aborto porque
defendem a dignidade da vida, desde o seu início.»1

Importa realçar sempre, para não perdermos de vista o essencial, que a questão do aborto não
é uma questão religiosa, que não é uma questão que dependa de uma polarização da sociedade
em “crentes” e “não crentes”. É, isso sim, uma questão de direitos humanos e de civilização.

1 http://www.agencia.ecclesia.pt/noticia.asp?noticiaid=38279

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Pretender o contrário é viciar um debate, que já se tornou bastante complexo e não precisa da
complexidade adicional trazida pelo debate acerca da religião e acerca da ideia que cada um
poderá ter de Deus.
É evidente, como diz D. José Policarpo, que o crente não deve procurar esconder a sua
posição religiosa nem negá-la, o que seria incoerente e absurdo. Contudo, deve ter presente
que o fundamento religioso para a ilicitude do aborto encontra-se em valores humanos
universais, que podem ser partilhados tanto por crentes da sua e de outras religiões como por
não crentes. O crente, para melhor expor as verdadeiras razões de se considerar o aborto como
errado, deve evitar argumentos religiosos na defesa da sua posição, apesar de existirem muitos
e bons argumentos religiosos contra o direito ao aborto.

5.9 «A lei actual não evita o aborto»


Quando esta frase surge para justificar o voto no “sim” como forma de “mudar uma lei inútil”,
poderíamos também afirmar que a lei que criminaliza a violação pouco fez para a evitar,
sobretudo no âmbito da violência doméstica, ou que a lei que criminaliza o tráfico de droga
pouco fez para o evitar. A solução para combater um crime nunca passa por o legalizar.

5.10 «A mulher sabe decidir sozinha»


Quando esta frase é usada para justificar o direito ao aborto, estamos perante um argumento
falacioso. Este argumento é muito recorrente. Quem o usa, procura apresentar a mulher como
um ser humano independente, consciente, responsável, capaz de tomar sozinha uma decisão
difícil acerca da sua vida. Até aqui, nada a apontar. Exceptuando os casos de gravidezes na
adolescência, como regra geral, podemos assumir que uma mulher adulta que decide abortar é
um ser humano independente, consciente, responsável e capaz de tomar sozinha uma decisão
difícil acerca da sua vida.
Qual é, então, o problema deste argumento?
É que a mulher que decide abortar não está a tomar uma decisão apenas acerca da sua vida.
Está a decidir também a continuação ou não da vida do seu filho. Está a ponderar matar o seu
filho, ou deixar que um cirurgião o mate por si, sem ter em consideração o direito à vida que o
seu filho tem.
Todos nós, homens adultos ou mulheres adultas, devemos ser independentes, responsáveis,
capazes de tomar decisões sozinhos acerca das nossas vidas. Contudo, é certo que muitas vezes
tomamos decisões más. Matar uma pessoa inocente é uma decisão má. Como vemos, este mau
argumento, bem como muitos dos anteriores, nasce da não consideração do aborto como um
crime ético: a privação de uma vida inocente que não nos pertence.
Alguns exemplos bastam para vermos o erro desta argumentação. Outros crimes, como o
crime de violação, de roubo, de abuso de menores, são crimes cujos autores os podem cometer
sozinhos, de forma independente, mesmo consciente. Um criminoso, quando comete um
crime, pode saber bem o que está a fazer. Contudo, o que ele faz não deixa de ser um crime
por ter sido feito de forma consciente, porque ao cometê-lo viola um direito fundamental de
uma pessoa inocente. Os defensores do direito ao aborto, com o uso deste mau argumento,
querem convencer-nos de que a melhor coisa que o Estado tem a fazer, perante uma mulher
que se prepara para optar por um crime, é apoiá-la nesse crime. Ajudá-la a cometê-lo. Deixá-la
cometer esse crime numa clínica autorizada para o efeito, com a ajuda de médicos cooperantes
na autoria do crime. Este argumento não colhe.

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5.11 «Para acabar com a humilhação»
Eis mais um argumento muito popular (e populista), que é usado variadíssimas vezes,
sobretudo em cartazes expostos publicamente, de forma a causar sensação e angariar votos
pró-escolha através de motivação emocional. Quando se usa este argumento para legitimar o
direito ao aborto, procura-se evocar a “humilhação” dos julgamentos em tribunal. Há, por
detrás deste mau argumento, uma grande confusão acerca da Justiça e da sua importância
social.
A Justiça não é uma instituição criada para humilhar. Afirmá-lo é difamar um dos pilares das
sociedades modernas. Os tribunais, os juízes, todo o edifício jurídico, existem para defender a
pessoa comum. Existem para garantir uma sociedade justa.
É infame pretender insinuar que a Justiça existe para humilhar as pessoas.
Mais uma vez, a confusão do uso deste mau argumento está na ignorância do facto de que o
aborto é um crime objectivo. Devemos ter em consideração que a mulher de decide abortar,
apesar de estar a cometer um crime objectivo, normalmente fá-lo em circunstâncias
emocionais muito especiais, fá-lo muitas vezes perante uma situação de drama, perante grandes
e graves dificuldades. Por estas razões, o sistema jurídico sabe bem que tais mulheres, apesar
de terem cometido um grave crime objectivo, privando o seu filho da sua vida, devem ser
tratadas com o respeito que a sua difícil situação merece.
Quase sempre, perante um caso de aborto levado à Justiça, o processo é suspenso por se
verificarem as circunstâncias atenuantes que o permitem fazer. Quando um processo não é
suspenso, sendo levado aos tribunais, é porque o crime de aborto terá sido praticado em
circunstâncias bem mais graves, que impediriam o recurso às atenuantes previstas na lei.
Mesmo assim, é muito raro que se aplique uma pena de detenção. No nosso país, nunca
nenhuma mulher que tenha decidido abortar a sua gravidez foi colocada na prisão. E mesmo
que o fosse, mesmo no caso extremo de lhe ser aplicada a pena máxima pelo crime de aborto,
que é de três anos, a verdade é que esta pena máxima, justamente, está muito longe da pena
máxima que se aplica nos crimes de homicídio. Apesar de ambos os crimes, aborto e
homicídio, serem atentados contra uma vida humana inocente, a verdade é que a Justiça sabe
que há enormes diferenças nos contextos em que tais crimes são praticados, e por essa razão,
está bem munida de instrumentos que procuram tratar a mulher que aborta a sua gravidez com
muitíssimo menos severidade do que trataria um culpado de homicídio.
Apesar do enorme alarido populista levantado pelos defensores do direito ao aborto, a actual
moldura penal é bastante sensata, equilibrada e justa para com a mulher que abortou a sua
gravidez. A Justiça já será menos complacente, naturalmente, para com os terceiros que
colaboraram na prática do aborto: médicos, enfermeiras, familiares ou maridos, entre outros.
Estes, não podendo beneficiar de circunstâncias psicológicas atenuantes, devem receber um
tratamento à altura do crime que cometeram, que foi certamente cometido com um grau de
frieza e de consciência muito maior do que o da mulher grávida.
Em suma, o erro deste falso argumento está em considerar:

1. Que toda a mulher que aborta é levada a julgamento: tal sucede muito raramente;
2. Que a Justiça existe para humilhar;
3. Que a mulher que aborta a sua gravidez não comete um crime objectivo.

Poderíamos ainda acrescentar que, naturalmente, o circo mediático que é instalado às portas
dos tribunais onde decorrem os raríssimos casos de julgamento por aborto (todos por abortos
efectuados após as dez semanas) se deve maioritariamente aos activistas defensores do direito
ao aborto, que utilizam os dramas dessas mulheres em prol das suas “guerras culturais”. É caso
para perguntar:

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“Quem humilha quem?”

5.12 «Quem sou eu para julgar?»


Concordar com o aborto por opção da mulher com base neste argumento é cair num claro
raciocínio falacioso. Este erro tem origem no próprio equívoco de se convocar um referendo
popular para ajuizar sobre uma matéria de fundamentais direitos humanos. De facto, não faz
sentido nenhum chamar a opinião popular para julgar uma matéria que deveria estar acima de
julgamento. O direito à vida não é matéria referendável.
Mas, para além disto, é evidente que este é um péssimo argumento por outra razão importante.
Visto que a resposta afirmativa no referendo terá como consequência a revisão da legislação
penal em matéria de aborto, tais alterações afectarão a forma como a Justiça tratará o problema
do aborto. Nunca está em causa que um votante, escolhendo o “sim” ou o “não”, esteja a
julgar ou a deixar de julgar uma mulher que tenha abortado.
Quem deve julgar são os tribunais. É à Justiça que cabe julgar.
Este raciocínio falacioso contém ainda um erro latente: a sua proximidade com o relativismo
ético: fica no ar a ideia de que os juízos éticos acerca do aborto são matéria subjectiva, que
recebe respostas diferentes consoante a “consciência” de cada um. Como se disse atrás, esta
matéria não é matéria de opinião pessoal nem deve ser tratada como tal.

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6. A Ética do Aborto

Neste capítulo, pretende-se expor sinteticamente os dados fundamentais acerca da ética do


aborto. A única abordagem séria no sentido de tentar legitimar eticamente o aborto é
relativamente recente, e está assente numa tentativa de não reconhecer o direito à vida aos
seres humanos nas suas primeiras semanas, ou nos seus primeiros meses, de vida pré-natal,
enquanto ainda se encontram dentro do útero materno. Há, então, que questionar se tal
argumentação é válida ou não. Se não for válida, não sobra alternativa senão continuar a
reconhecer o aborto como um crime, com a mesma gravidade objectiva que qualquer outro
atentado contra a vida humana inocente.

6.1 Quando é lícito matar uma pessoa?


É consensual que a ilicitude de matar uma pessoa possui uma excepção. É sempre lícito matar
alguém em legítima defesa, ou seja, quando provocamos a morte a alguém, não como
objectivo, mas sim como única e derradeira forma de protegermos a nossa própria vida ou a
vida daqueles que temos o dever de proteger. Por esta razão, muitos dos Estados actuais não
reconhecem a pena de morte como uma pena eticamente legítima, porque não encontram
situações reais nas quais tal pena pudesse ser aplicada em legítima defesa.
Na verdade, as actuais sociedades modernas estão organizadas no sentido de possuírem
estruturas prisionais que permitam confinar os seus indivíduos mais perigosos e garantir assim
a segurança da vida dos restantes, sem ser necessário matar potenciais agressores.
Noutros tempos, ou noutros locais ou contextos, a pena de morte poderia ser considerada,
mesmo que apenas teoricamente, se tal fosse a única forma de garantir a protecção do direito à
vida de outrem: por outras palavras, a pena de morte só seria ética se fosse aplicada numa
situação inequívoca de legítima defesa. Ora, tais situações tornaram-se muito raras hoje em dia,
senão mesmo inexistentes.
Mas tenhamos presente esta ideia: apenas é eticamente lícito matar alguém em legítima defesa.
Isto não quer dizer que a legítima defesa seja uma excepção do inviolável direito à vida: o
agressor potencialmente homicida também tem direito à sua vida, mas se age no sentido de
tentar tirar a vida a outra pessoa, esse seu direito entra em colisão com outro direito de igual
valor. E quando se dá essa colisão, o agente que se defende tem a primazia.
O direito à vida não pode ser recusado nem violado a uma pessoa inocente que não atenta
contra a vida de ninguém. O ser humano, na sua fase de evolução intra-uterina, não pode
atentar voluntariamente contra ninguém, nem mesmo contra a vida da sua mãe, mesmo que a
sua presença no útero materno possa colocar involuntariamente a vida da mãe em risco. Logo,
o aborto nunca se aplica como legítima defesa da vida da mãe. Nas situações de gravidez de
risco, quando um médico tem que tomar uma decisão médica correcta, ele não tem que, nem
deve, optar entre salvar a vida da mãe ou salvar a vida do seu filho: ele deve tomar a decisão
médica adequada para maximizar as possibilidades de salvação de ambos, e seguramente,
nunca verá o aborto provocado como único meio para salvar a mãe: tais casos não existem.

6.2 A definição médica do início da vida humana


Nos debates com defensores do direito ao aborto, é frequente surgir a objecção de que não há
uma definição rigorosa e consensual para o início da vida humana. Ao longo deste texto,
recorro frequentemente à expressão “desde a concepção” para demarcar a fronteira do início
da vida humana e, como tenho vindo a argumentar, do início do seu direito à vida. Por isso, é

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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necessário algum rigor na definição desta expressão, de forma a evitar fragilizar toda a
argumentação devido ao uso de terminologia vaga ou problemática.

Os vários sentidos do termo “concepção”


O início da vida humana dá-se com a fertilização, ou seja, com a fecundação do óvulo pelo
espermatozóide, o que implica a fusão dos respectivos núcleos (“singamia”) no que se define
como sendo o “zigoto”, um ovo humano totipotente. Contudo, de forma a evitar um excesso
de tecnicismos ao longo do texto, usei por toda a parte o termo “concepção” em vez do termo
técnico mais correcto de “fertilização”.
Existem, não obstante, outras interpretações para o termo “concepção”, e antes de
prosseguirmos convém esclarecer que quando falo em “concepção” não me refiro a estas
outras interpretações, mas sim ao conceito científico de “fertilização”. Há quem interprete
“concepção” como o acto sexual propriamente dito que está na origem da fertilização. Para
efeitos da determinação ética do acto de abortar, esta interpretação não serve, porque existe
um intervalo temporal entre a relação sexual e a fertilização que não traz consequências éticas
para a avaliação do acto de abortar. Antes da fertilização ocorrer, não faz sentido falar em
termos de direito à vida, visto que a vida humana ainda não se gerou.
Existe ainda um outro sentido menos correcto para o termo “concepção”, quando este é usado
no sentido de “gravidez”. Em termos médicos, costuma-se definir o início da gravidez com a
nidação, e isto por uma razão bastante válida, visto que apenas com a nidação, ou seja, com a
implantação do blastócito1 nas paredes intra-uterinas, é que se estabelece uma ligação física
sólida entre a nova vida humana e o organismo da sua mãe. Importa deixar bem claro que o
início da gravidez, se o reconhecermos apenas na nidação, não coincidirá com o início da vida
humana, ocorrido sensivelmente uma semana antes. Por esta razão, a avaliação ética do aborto
não pode ser feita com base na nidação.

Significado e limites do conceito de “momento” / “instante”


Deveria ser evidente que, sempre que se usa um termo como “momento” ou “instante”, está-
se, na verdade, a fazer uma aproximação a uma realidade contínua que escapa à fixação rígida
no tempo. Na realidade, não há nenhum fenómeno natural que seja verdadeiramente
“instantâneo” ou “momentâneo”, no sentido de demorar “tempo zero”. Podemos sempre
fazer ampliar a escala temporal, e progredir de uma escala em dias, horas ou segundos, para
escalas menores em milissegundos, microssegundos, nanossegundos, picossegundos,
fentossegundos, atossegundos, e poderíamos ainda criar novos termos para passarmos a
escalas ainda menores, sem nunca chegarmos a uma escala final. Não há limite microscópico
pela mesma razão de que não há limite macroscópico. A realidade temporal é tão contínua
como a realidade espacial.
A concepção (ou melhor dizendo, a fertilização), por estas razões, não pode ser algo de
instantâneo ou de momentâneo: deve possuir sempre uma duração ∆t, sendo certo que não
existe determinismo nestes processos biológicos: a fertilização que dá início a cada ser humano
demorará sempre intervalos diferentes de tempo, consoante cada ser.
Mais adiante, veremos os mecanismos bioquímicos presentes na fertilização, mas antes
convém ter presente que a fertilização é um processo de duração finita e não nula que pode ser
balizado entre dois fenómenos distintos e muito importantes:

1 O blastócito é o nome dado a um zigoto, com aproximadamente quatro dias (já com oito células, no caso do ser
humano, visto que se verifica aproximadamente uma divisão mitótica a cada 24 horas), que já efectuou uma série
de mitoses, tendo ultrapassado o estado de “mórula” (aproximadamente aos três dias), e as suas células começam
a se compactar. O processo de implantação do blastócito no epitélio uterino, que dá pelo nome de “nidação”
inicia-se aproximadamente ao sexto ou sétimo dia de vida.

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a) A penetração do espermatozóide na parede externa do óvulo (“momento” t1);
b) A fusão dos núcleos de ambos (“singamia”) para o surgimento do zigoto
(“momento” t2).

Deste modo, o processo de fertilização possui uma duração ∆t = t2 – t1.


Já sabemos que estes “momentos” nunca podem ser instantâneos, mas podemos imaginar que
existe uma altura, mesmo antes de verificado o “momento” t1, na qual a camada exterior que
cobre a cabeça do espermatozóide, o chamado “acrossoma”, ainda não entrou em contacto1
com a camada exterior que cobre o óvulo, a chamada “corona radiata”. Antes deste “momento”
t1, não existe ainda nada que possibilite efectivamente a fertilização, e por isso, antes deste
“momento”, a vida humana ainda não começou e não faz sentido tecer considerações acerca
do direito à vida. Por outro lado, logo após a singamia, o “momento” t2, com a união
cromossomática dos núcleos terminada, estamos perante um ovo humano totipotente ainda
indiviso, ao qual se dá o nome de zigoto. Certamente, agora a nova vida humana já teve início.
Com a constituição do zigoto, dá-se início a uma série de processos metabólicos que
permitirão, aproximadamente vinte e quatro horas após a fecundação, que se dê a primeira
“mitose”, ou seja, divisão do zigoto unicelular em duas células distintas.
A dificuldade desta questão reside no que se passa entre o “momento” t1 e o “momento” t2,
visto que antes do primeiro, ainda não temos vida humana, e depois do segundo, já a temos. É
possível argumentar que, entre t1 e t2, apesar de ainda não se ter dado a singamia, o
espermatozóide já não poderá “fugir” ao seu destino, saindo do óvulo, nem o óvulo poderá
“fugir” ao seu destino, expelindo o espermatozóide. Podemos considerar o “momento” t1
como uma definição de início de vida humana, se bem que em sentido fraco, visto que os 23
cromossomas do espermatozóide ainda não se fundiram com os 23 cromossomas do óvulo,
num só conjunto totipotente de 46 cromossomas.
Por outro lado, o “momento” t2 pode ser considerado como uma definição de início de vida
humana, mas agora em sentido forte. Esta segunda barreira é mais sólida, segura e coerente,
não obstante poder-se advogar que a primeira também seria uma barreira válida. Mais adiante,
veremos que existe a possibilidade de definição de um “momento” t*, localizado entre t1 e t2,
que serve intuitivamente como barreira ética do começo da vida humana, e que sendo mais
segura que a primeira barreira, não corre o risco de ser excessivamente prudente como poderá
ser a segunda.

Diferença entre o “real” e o “mensurável”


Devemos ser capazes de ter a noção da diferença entre a realidade de um fenómeno e a sua
mensurabilidade. Há fenómenos bem reais, mas não mensuráveis. A não mensurabilidade de
um fenómeno pode dever-se a várias causas, de entre as quais se destacam:

1. O fenómeno não pode ser medido porque possui características que escapam a toda e
qualquer ferramenta ou método de medição;
2. O fenómeno poderia ser medido, mas as ferramentas de medição actuais ainda não o
conseguem medir correctamente;
3. O fenómeno poderia ser medido, mas a própria medição altera-o e condiciona-o2.

Tendo isto presente, convém saber que a tecnologia actual ainda não consegue detectar que
está a decorrer um fenómeno de fertilização de um ovo humano. Isto não quer dizer que a

1 Ainda não se efectuaram interacções bioquímicas entre ambas as superfícies.


2 Este é um problema clássico no campo da Física de partículas sub-atómicas.

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fertilização não se verifique, à revelia da nossa capacidade técnica de medição, e não quer dizer
que pelo facto de este não ser ainda um fenómeno mensurável ou detectável, não se possam
tirar as devidas ilacções éticas. Posto de outro modo: tomar uma medida que possa provocar a
morte precoce de um zigoto, mesmo que este seja “invisível” ou indetectável em termos
técnicos, é correr um risco considerável de fazer algo eticamente ilícito. Podemos não saber o
resultado da nossa acção, visto que se o zigoto se perder, ele poderá sair do útero sem ser
detectado, pelas suas reduzidas dimensões. Mas isso não invalida o erro ético objectivo da
decisão, caso essa decisão tenha uma consequência má. Em caso de dúvida, a melhor opção
ética é a de evitar correr o risco de provocar a consequência má.
Um bom exemplo dos riscos da mensurabilidade está no uso da dita “contracepção de
emergência”, que ora poderá funcionar como contraceptivo (impedindo a ovulação ou a
fertilização) ou como abortivo (impedindo a nidação)1. A mulher que tomar este medicamento
nunca saberá se abortou um zigoto ou se simplesmente suprimiu a sua ovulação ou a
fertilização do ovo. Mas perante o risco de tomar uma decisão abortiva, o melhor seria não
tomar o dito medicamento.
Outro exemplo: os testes de gravidez actualmente disponíveis no mercado são reactivos a um
composto que apenas existe no organismo da mulher após a nidação. Ou seja, hoje em dia, só
se detecta tecnicamente a existência de uma nova vida humana numa mulher após a nidação.
Trata-se de uma limitação técnica. É de prever que, num futuro que poderá estar próximo,
surjam novas ferramentas técnicas de detecção que possam reagir logo após a fertilização,
podendo assim a mulher saber imediatamente que irá ser mãe, sem ter que esperar até à
nidação para ter essa informação2.
É por estas razões que não podemos criar barreiras éticas com base em limitações técnicas de
mensurabilidade. Para tirarmos conclusões acerca da ética do aborto, não podemos refugiar-
nos no facto de que as gravidezes, actualmente, só se detectam na nidação, e afirmar que este
deveria ser o momento de início de uma nova vida humana.
É também por estas razões que fármaco potencialmente abortivos, como a dita “pílula do dia
seguinte”, não deveriam ser disponibilizados, porque colocam graves problemas éticos.
Em suma, as barreiras éticas não se devem definir com base em limitações técnicas, uma vez
que estas são tipicamente temporárias e não constituem terreno seguro e definitivo para
estabelecer direitos tão fundamentais como é o direito à vida.

Os fenómenos bioquímicos verificados na fertilização


Costuma ser dito que a concepção3 é um processo muito demorado, o que inviabilizaria que se
falasse no “momento da concepção” como “momento zero” da vida humana. Vimos atrás que
o processo da fertilização não tem, evidentemente, duração nula. Mas isso não chega para que
não se possa definir uma barreira ética na fertilização, visto que poderemos, por segurança,
usar como barreira ética o término efectivo da fertilização, que ocorre com a completude da
singamia, a junção dos núcleos cromossomáticos do espermatozóide e do óvulo (o
“momento” t2 atrás referido), em vez de se usar como barreira ética o início da fertilização (o

1 Ver o Anexo C, A “contracepção de emergência” é abortiva?


2 Estudos em fisiologia veterinária já demonstraram a presença, em certos mamíferos, de mecanismos detectores
de ovos fertilizados antes de a nidação se ter dado: «Um estudo interessante na égua é a sua capacidade de distinguir oócitos
fertilizados dos não-fertilizados. Os não-fertilizados provenientes de ciclos anteriores são retidos dentro do oviduto, enquanto os oócitos
recém fertilizados (embriões) se movem através do oviduto em direcção ao útero. É provável que todos os animais reconheçam o estado
de gestação pela presença de um embrião (ou mais) em estágio inicial no oviduto. Entretanto, tal reconhecimento não resulta
necessariamente no prolongamento do CL [corpo lúteo no ovário] e na produção continuada de progesterona, que é essencial para a
manutenção da gestação.», in Cunningham, Tratado de Fisiologia Veterinária, 2ª Ed., Guanabara Koogan, 1999.
3 Não esquecer que o termo científico correcto é “fertilização”.

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“momento” t1 atrás referido), que apenas marca o primeiro contacto físico do espermatozóide
com a barreira exterior do óvulo (a “corona radiata”).
É frequente, no tratamento ético da questão do aborto, que se usem simplificações
terminológicas inaceitáveis relativamente ao processo de fertilização, ou que se ignorem dados
biológicos importantes acerca dele. No seu texto acerca da ética do aborto, o filósofo Pedro
Madeira afirma o seguinte:

«Como já tive oportunidade de mencionar, muitas pessoas parecem pensar que há um momento concreto em que
se dá a concepção; mas isto é falso. A fertilização é um processo gradual que demora cerca de 22 horas.
Primeiro, o espermatozóide penetra no óvulo, deixando a cauda do lado de fora. Nas horas seguintes, o
espermatozóide e o óvulo são, ainda, duas coisas distintas, embora o espermatozóide já esteja dentro do óvulo. Só
ao fim das ditas 22 horas é que já temos um único objecto: o zigoto.»1

À parte das dificuldades terminológicas nele presentes, penso que o equívoco central deste
trecho está em considerar que o espermatozóide e o óvulo são “coisas distintas” durante as
“horas seguintes”, e consequentemente em atribuir a classificação de zigoto apenas no
momento da clivagem (22 a 24 horas), que é o termo usado para a primeira divisão mitótica do
ovo. Isto não é muito correcto. O essencial do processo de fertilização ocorre de forma
bastante rápida e demora poucos minutos. Estas são as etapas essenciais do processo,
conforme descritas pelo Professor Bruce M. Carlson, da Universidade de Michigan, na sua
obra Embriologia Humana e Biologia do Desenvolvimento:

a) Penetração [do espermatozóide] na corona radiata2


b) Fixação e penetração [do espermatozóide] na zona pelúcida3
c) Fusão do espermatozóide com o ovócito4
d) Bloqueio da polispermia5
e) Activação metabólica do ovócito6
f) Descondensação do núcleo do espermatozóide7
g) Término da meiose do ovócito8
h) Desenvolvimento e fusão dos pronúcleos masculino e feminino9

1 Ver http://criticanarede.com/aborto1.html
2 A corona radiata é a fronteira externa do ovócito, isto é, do óvulo. Ao contrário do que afirma Pedro Madeira, a
cauda do espermatozóide entra totalmente dentro do ovócito, onde, durante a fase de formação do pronúcleo, o
seu material será absorvido pelo citoplasma.
3 A zona pelúcida é uma camada intermédia do ovócito, que fica logo abaixo da corona radiata e acima do espaço

perivitelino, que por sua vez fica imediatamente acima da membrana plasmática do ovócito.
4 Esta fusão ainda não é a fusão do material cromossomático do espermatozóide com o do óvulo: é apenas a

fusão da membrana plasmática do ovócito com a membrana plasmática do espermatozóide.


5 Uma fase crítica no processo de fertilização: o impedimento da entrada de outros espermatozóides quando o

processo de fertilização já está em curso. Ver adiante.


6 Início do metabolismo celular e da respiração celular do ovócito fertilizado. Ver adiante.
7 Fase intermédia, na qual o núcleo do espermatozóide se vai tornando menos denso, o que permite a formação

do chamado “pronúcleo” masculino.


8 As células normais de um ser humano possuem 46 cromossomas. A meiose é um processo complexo de

redução do material cromossomático de uma célula normal para apenas 23 cromossomas (a célula diz-se que
passa de “diplóide” para “haplóide”), para permitir o seu cruzamento e fusão com os 23 cromossomas da célula
haplóide do sexo oposto. Basicamente, nesta etapa, o ovócito isola os seus 23 cromossomas essenciais antes da
fusão do seu pronúcleo com o pronúcleo do espermatozóide, que também conterá 23 cromossomas. Não
confundir a meiose com o processo de “mitose”, que é o nome dado ao processo de replicação e divisão celular
pelo qual uma célula diplóide gera sozinha duas cópias iguais a si mesma.
9 Aqui termina a fertilização e temos um zigoto. Op. cit., p. 29.

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As três primeiras etapas não são significativas para a avaliação ética do processo de fertilização.
Até à alínea c), pode ocorrer algo indesejado: a entrada de um outro espermatozóide no
ovócito. Se isso acontecer, a fertilização gerará um desenvolvimento anormal do novo ser.
Podemos considerar que, até ao fim da fusão das membranas plasmáticas do espermatozóide e
do ovócito, ainda não sucedeu nada de relevante em termos éticos: o espermatozóide apenas
atravessou as camadas exteriores do ovócito, e este ainda corre o risco de entrar um outro
espermatozóide. O esquema seguinte mostra em detalhe a primeira parte da fertilização, até ao
fim da alínea “c” atrás referida:

Figura 1 – Diagrama do processo de fusão do espermatozóide com o óvulo1

Esta primeira parte é extremamente rápida e dá lugar à etapa d), que é um importantíssimo
mecanismo de bloqueio à entrada de mais espermatozóides (a chamada “polispermia”). Este
bloqueio da polispermia tem duas fases, uma rápida, seguida de uma lenta. Vejamos a
explicação do Prof. Carlson2:

«Once a spermatozoon has fused with an egg, the entry of other spermatozoa into the egg (polyspermy) must be
prevented or abnormal development will likely result. Two blocks to polyspermy, fast and slow, are typically
present in vertebrate fertilization.
The fast block to polyspermy, which has been best studied in sea urchins, consists of a rapid electrical
depolarization of the plasma membrane of the egg. The resting membrane potential of the egg changes from about
– 70 mV to + 10 mV within 2 to 3 seconds after fusion of the spermatozoon with the egg. This change in
membrane potential prevents other spermatozoa from adhering to the egg’s plasma membrane. The fast block is

1 Diagrama sem copyright: http://commons.wikimedia.org/wiki/Image:Acrosome_reaction_diagram.svg. Retirado do artigo da


Wikipedia “Human Fertilization”: http://en.wikipedia.org/wiki/Human_fertilization.
2 Para aproveitar ao máximo o estado actual do conhecimento científico, esta citação é retirada do original, em

língua inglesa, da edição de 2004 da obra do Prof. Carlson.

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short lived, usually lasting only about 5 minutes in mammals. This time is sufficient for the egg to mount the
permanent slow block.
The slow block to polyspermy begins with the propagation of Ca++ from the site of sperm-egg fusion.
Within a couple of minutes, the Ca++ wave has passed through the egg, sequentially acting on the cortical
granules to fuse with the plasma membrane and to release their contents (hydrolytic enzymes and
polysaccharides) into the perivitelline space. The polysaccharides released into the perivitelline space become
hydrated and swell, causing the zona pellucida to elevate from the surface of the egg.
The secretory products of the cortical granules diffuse into the porous zona pellucida and hydrolize the sperm
receptor molecules (ZP3 in the mouse) in the zona. This reaction, called the zona reaction, essentially
eliminates the ability of spermatozoa to adhere to and penetrate the zona. The zona reaction has been observed
in human eggs that have undergone in vitro fertilization. In addition to changes in the zona pellucida,
alterations in sperm receptor molecules on the plasma membrane of the human egg cause the egg itself to become
refractory to penetration by other spermatozoa.»1

Parece lógico classificar o “momento-chave” da fertilização, chamemos-lhe “momento” t*,


como o “momento” em que se dá o “bloqueio rápido da polispermia”, ou seja, com a mudança
de potencial eléctrico do ovócito de cerca de –70 mV para cerca de +10 mV. Em dois ou três
segundos, o ovócito torna-se, pela alteração de potencial eléctrico, impenetrável para outros
espermatozóides. Esta mudança de potencial eléctrico afigura-se como um bom “momento-
chave” para definir o início de uma nova vida humana, uma vez que já não poderá entrar
material genético novo após o bloqueio rápido da polispermia. O bloqueio lento da
polispermia, protegido durante aproximadamente cinco minutos pelos efeitos eléctricos do
bloqueio rápido, confirma a impenetrabilidade bioquímica do ovócito a novos
espermatozóides. É então que o novo ser humano possui tudo o que necessita em termos
genéticos para iniciar o seu desenvolvimento. Contudo, podemos e devemos considerar a etapa
seguinte como ainda mais significativa para a definição do início da vida humana, a activação
metabólica do ovócito:

«One of the significant changes brought about by the penetration by a sperm is a rapid intensification of the egg’s
respiration and metabolism. The mechanics underlying these changes are not fully understood even in the best-
studied systems, but the early release of Ca++ from internal stores is believed to be the initiating event. In some
species, Ca++ release is shortly followed by an exchange of extracellular Na+ for intracellular H+ through the
plasma membrane. This results in a rise in intracellular pH, which precedes an increase in oxidative
metabolism.»2

Como vemos pela descrição, a activação metabólica é uma etapa importantíssima: o ovócito
torna-se numa célula “viva”, com os normais processos metabólicos e respiratórios de
qualquer célula. Este parece ser o momento mais válido para consideramos que o novo ser
humano iniciou a sua vida biológica. Apesar de ainda não se ter dado a fusão (“singamia”) dos
cromossomas masculinos e femininos, a verdade é que já não entrará novo material genético
no novo ser. A activação metabólica parece representar um melhor “momento” t* do que o
sugerido atrás, relativamente à etapa do bloqueio da polispermia.
Após a activação metabólica do ovócito, seguem-se ainda três etapas que concluem a
fertilização: a descondensação do núcleo do espermatozóide (alínea “f)” atrás referida)3, o

1 Op. cit., na versão original em língua inglesa, edição de 2004, p. 34.


2 Op. cit., ibidem, pp. 34-35.
3 Segundo Carlson, op. cit., «In the mature spermatozoon, the nuclear chromatin is very tightly packed, due in large part to the –

SS- (disulfide) cross-linking that occurs among the protamine molecules compexed with the DNA during spermatogenesis. Shortly
after the head of the sperm enters the cytoplasm of the egg, the permeability of its nuclear membrane begins to increase, allowing
cytoplasmic factors within the egg to affect the nuclear contents of the sperm. After reduction of the –SS- crosslinks of the protamines to

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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término da meiose do ovócito e o desenvolvimento e fusão dos pronúcleos masculino e
feminino (alíneas “g)” e “h)” atrás referidas)1. Este último passo recebe o nome de “singamia”
e encerra o processo de fertilização.
Se quisermos adoptar uma posição mais segura, podemos considerar o “momento” t*, o
momento-chave de início da vida humana, apenas na singamia, ou seja, buscando a protecção
conceptual do “momento” t2 considerado atrás, que marca a fronteira final do processo de
fertilização. Ou seja, por outras palavras, se quisermos ser cautelosos, podemos assumir,
apenas por razões conceptuais, que a vida humana tem início apenas quando termina a
fertilização, o que sucede quando a singamia está concluída e estamos perante uma célula
diplóide e totipotente, o “zigoto”.
Terminada a fertilização, o zigoto inicia os lentos processos metabólicos que, após
aproximadamente 24 horas no caso do ser humano, produzirão a primeira divisão mitótica,
iniciando-se a chamada “clivagem”.Vejamos agora os momentos fundamentais a partir deste
ponto e até à nidação, de acordo com o manual de Carlson:

«Os momentos chave, são: – A Clivagem, que é a primeira divisão mitótica, do ovo com os 46 cromossomas,
acontece às 24 horas, – A Mórula às 72h, – O Blastócito aos 4 dias (96h) e, – A Implantação no endométrio
do útero aos 6 dias: adesão e penetração no epitélio uterino (144h).»2

Relativamente ao excerto de Pedro Madeira atrás apresentado, para além do erro de se afirmar
que o espermatozóide deixa a sua cauda fora do ovócito (a cauda entra totalmente no interior
da membrana do ovo e dissolve-se no citoplasma), resta ainda a afirmação que é feita acerca de
a fertilização ser «um processo gradual que demora cerca de 22 horas». O processo de fertilização atrás
descrito demora poucos minutos, sendo certo que a duração exacta será diferente em cada
novo ser. E isto porque o zigoto precisa de várias horas para iniciar a clivagem3, com a sua
primeira divisão mitótica. Nos mamíferos, ao invés do que sucede com outros seres vivos, a
clivagem é um processo lento que demora entre 12 e 24 horas (esta última duração, no caso
dos seres humanos). Por isso, nos primeiros dias da vida do zigoto, o número de células
duplica de 24 em 24 horas aproximadamente. Em suma, Pedro Madeira está errado: o processo
de fertilização demora bastante menos do que 24 horas. A preparação do zigoto para a
primeira divisão mitótica é um processo muito lento e complexo, e isso explica porque é que
temos tantas horas entre o final da fertilização e o momento do início da clivagem,
aproximadamente às 24 horas de vida.
Também é útil ter presente como são definidas as fases embrionária e fetal:

sulfhydryl (-SH) groups by reduced glutathione in the ooplasm, the protamines are rapidly lost from the chromatin of the
spermatozoon, and the chromatin begins to spread out within the nucleus (now called a pronucleus) as it moves closer to the nucler
material of the egg. After a short period during which the male chromosomes are naked, histones begin to associate with the
cromossomes.», pp.35-36.
1 Segundo Carlson, op. cit., «Alter penetration of the egg by the spermatozoon, the nucleus of the egg, which had been arrested in

metaphase of the second meiotic division, completes the last division, releasing a second polar body into the periviteline space. A
pronuclear membrane, derived largely from the endoplasmic reticulum of the egg, forms around the female chromosomal material.
Cytoplasmic factors appear to control the growth of both the female and male pronuclei. DNA replication occurs in the developing
haploid pronuclei, and each chromosome forms two chromatis as the pronuclei approach each other. When the male and female
pronuclei come into contact, their membranes break down, and the chromosomes intermingle. The maternal and paternal chromosomes
quickly become organized around a mitotic spindle in preparation for an ordinary mitotic division. At this point, the process of
fertilization can be said to be complete and the fertilized egg is called a zygote.», p. 36.
2 Op. cit., p. 42.
3 Ver os excelente artigos acerca da clivagem e da mitose na Wikipedia:

http://en.wikipedia.org/wiki/Cleavage_%28embryo%29, e http://en.wikipedia.org/wiki/Mitosis

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«Genericamente, é referido Período Embrionário o que vai desde a implantação uterina do Zigoto até ao final
da organogénese; isto é, aquele em que ainda há diferenciação celular e emergência de novos órgãos. O período
fetal começa quando todos os órgãos estão presentes de uma forma macroscopicamente reconhecível. O período
fetal é também frequentemente considerada uma época de crescimento e amadurecimento fisiológico dos sistemas
de órgãos. Depois da oitava semana de gravidez, o período da organogénese encontra-se em grande parte
concluída e tem início o período fetal.»1

Como se vê, às oito semanas, antes no final do prazo de dez semanas proposto a referendo, já
estamos perante um feto humano. Neste texto, tentou-se argumentar que não há diferença
entre o erro ético de matar um zigoto, um embrião ou um feto, mas é importante ter estes
prazos bem presentes, porque pode suceder que alguns defensores do direito ao aborto
afirmem que às dez semanas ainda não há feto e ainda não terminou a organogénese, num
esforço para considerar que, neste período das dez semanas, o desenvolvimento humano é
mínimo, quando na verdade, às dez semanas, o ser humano já tem todos os seus principais
órgãos vitais formados e distintos.

6.3 Introdução histórica


Apesar de a definição de vida humana ser consensual na comunidade médica, bem como o
estabelecimento do seu início2, têm surgido nos últimos trinta anos, sobretudo com o
crescimento do interesse pelas implicações éticas do aborto, várias tentativas de distinguir entre
“vida humana” (definida consensualmente, em termos puramente biológicos, como tendo
início na concepção) e “pessoa humana” (definida pela posse de determinadas características
psicológicas que presumidamente garantiriam ao ser vivo da espécie humana o direito à vida).
A necessidade desta distinção para os defensores do direito ao aborto prende-se com o
seguinte: visto que ninguém discute que o feto é “vida humana”, para tornar o aborto
eticamente lícito seria necessário estabelecer que o direito à vida não pertence a todo e
qualquer ser vivo inocente da espécie humana, mas sim apenas aos que definirmos como
“pessoas”. Convenientemente, os defensores do direito ao aborto procuram recorrer a um
termo diferente do de “vida humana” para estabelecer o direito à vida, sendo então apenas
necessário procurar características que, subjectivamente, considerássemos presentes no ser
humano nascido, mas ausentes no feto. Deste modo, retira-se ao feto o estatuto de “pessoa”,
assim previamente definido, e automaticamente ele perde o direito à vida!
Curiosamente, esta distinção entre “vida humana” e “pessoa humana”, considerada facto
assente por muitos dos mais reputados filósofos pró-escolha com artigos publicados nos
últimos trinta anos, contraria claramente três importantíssimas declarações históricas do século
XX, a Declaração de Genebra da World Medical Association3 (Setembro de 1948), a
Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU (10 de Dezembro de 1948), e a
Declaração dos Direitos da Criança da ONU (20 de Novembro de 1959).

1 Op. cit., p. 375.


2 Há quem sustente que a concepção ocorre antes da singamia, numa fase intermédia na qual o material
cromossomático do espermatozóide ainda não se fundiu com o material cromossomático do óvulo, mas no
entanto, já não se observam nem o óvulo nem o espermatozóide de forma distinta. No entanto, parece-me mais
convincente que a singamia, pelo facto de que surge um novo agregado genético totipotente, é que deve marcar
verdadeiramente a definição da concepção e o “momento zero” de uma nova vida humana. É, no entanto,
falacioso deduzir, do facto de que não há consenso científico acerca do “momento zero” da vida humana, sendo
este momento situado num intervalo temporal que vai da perfuração da barreira do óvulo pelo espermatozóide,
até à fusão do material cromossomático (singamia), que o direito à vida humana não principia na concepção.
Independentemente da definição de concepção, da marcação do “momento zero”, todos estão de acordo de que a
concepção está seguramente terminada com o surgimento do zigoto.
3 http://www.wma.net

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No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, como forma de resposta da comunidade médica
internacional às atrocidades perpetradas durante o regime nazi por médicos alemães, a World
Medical Association decidiu propor uma versão revista do Juramento de Hipócrates, de forma
a acomodar algumas ressalvas que impedissem actos então inaceitáveis para a profissão médica
como a eugenia, a eutanásia e o aborto.
A versão original do Juramento do Médico, conforme fixada em Setembro de 1948, e após a
revisão de Agosto de 1968, apresentava a seguinte redacção:

«Physician's Oath
At the time of being admitted as a member of the medical profession:

I solemnly pledge myself to consecrate my life to the service of humanity;


I will give to my teachers the respect and gratitude which is their due;
I will practice my profession with conscience and dignity; the health of my patient will be my first consideration;
I will respect the secrets which are confided in me; even after the patient has died1;
I will maintain by all the means in my power, the honor and the noble traditions of the medical profession; my
colleagues will be my brothers;
I will not permit considerations of religion, nationality, race, party politics or social standing to intervene between
my duty and my patient;
I will maintain the utmost respect for human life from the time of conception, even under threat, I will not use
my medical knowledge contrary to the laws of humanity;
I make these promises solemnly, freely and upon my honor.»2 (sublinhado meu)

A 10 de Dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração


Universal dos Direitos Humanos, pela resolução 217 A (III), cujo Artigo 3º afirma claramente
que todos os seres humanos têm direito à vida, à liberdade e à segurança da sua pessoa3.
Por outro lado, a Declaração dos Direitos da Criança, conforme proclamada nas Nações
Unidas, na resolução 1386 (XIV) de 20 de Novembro de 1959 diz o seguinte:

«Whereas the peoples of the United Nations have, in the Charter, reaffirmed their faith in fundamental human
rights and in the dignity and worth of the human person, and have determined to promote social progress and
better standards of life in larger freedom,

Whereas the United Nations has, in the Universal Declaration of Human Rights, proclaimed that everyone is
entitled to all the rights and freedoms set forth therein, without distinction of any kind, such as race, colour, sex,
language, religion, political or other opinion, national or social origin, property, birth or other status,

Whereas the child, by reason of his physical and mental immaturity, needs special safeguards and care, including
appropriate legal protection, before as well as after birth,

1 Esta linha em particular foi adicionada na revisão feita na 22ª Assembleia Médica Mundial em Sidney (Austrália),
em Agosto de 1968. Contudo, nada do que já constava desde 1948 foi alterado nesta revisão.
2 Contudo, ao longo dos anos, o Juramento foi modificado de forma a fazer face às crescentes tendências

mundiais de mitigação do aborto. Na 35ª Assembleia Médica Mundial da WMA, em Veneza, em Outubro de
1983, a frase “…respect for human life from the time of conception” foi alterada para “…respect for human life
from its beginning”. Em Maio de 2005, a WMA voltou a alterar o Juramento, desta vez para remover totalmente a
expressão problemática, ficando apenas a ler-se “…respect for human life.”, tudo isto para acomodar o chamado
“aborto terapêutico”. A WMA explica estas alterações aqui, na secção “Abortion”:
http://www.wma.net/e/ethicsunit/whats_new_archives09.htm. A política actual da WMA em termos de ética
médica pode ser lida aqui: http://www.wma.net/e/policy/c8.htm.
3 Ver: http://www.un.org/Overview/rights.html.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


64
Whereas the need for such special safeguards has been stated in the Geneva Declaration of the Rights of the
Child of 1924, and recognized in the Universal Declaration of Human Rights and in the statutes of specialized
agencies and international organizations concerned with the welfare of children, (…)» (sublinhado meu)1

Esta declaração, de forma explícita, não faz a distinção entre vida humana e pessoa humana
pelo facto de que exige protecção legal para a criança, tanto antes como depois do nascimento.
Ou seja, por outras palavras, o direito à vida é atribuído de forma incondicional, sem depender
da formulação de uma distinção entre “vida humana” e “pessoa humana”.
Sou da opinião de que Donald Marquis está certo ao afirmar que o problema do aborto está
em determinar a propriedade do feto que resolve de forma definitiva a questão da ética do
aborto2, uma vez que a esmagadora maioria dos defensores sérios do direito ao aborto não
vêem o feto como dotado da propriedade que lhe garantiria o direito à vida, e os seus
adversários não hesitam em reconhecer ao feto a posse do dito direito, posse essa derivada
necessariamente de uma sua propriedade intrínseca.

6.4 O dilema ético do aborto


Procuremos agora, em termos teóricos, formalizar o problema ético do aborto. Em traços
gerais, os que consideram que o aborto é um acto eticamente ilícito usam uma argumentação
formulada deste modo:

(1) Todos os seres humanos têm direito à vida


(2) Os fetos3 são seres humanos
(3) Logo, os fetos têm direito à vida

Normalmente, poucos contestam a premissa (2), sendo que é consensual, em termos médicos,
definir que a vida humana principia na concepção, altura a partir da qual se está perante um ser
vivo da espécie Homo Sapiens na sua acepção biológica plena.
Se a premissa (1) for verdadeira a par com a premissa (2), a mais elementar lógica valida a
conclusão (3). E a partir daqui, ajuizando que o direito à vida é prioritário face ao direito da
mulher ao seu corpo, o problema ético do aborto estaria resolvido: abortar é um crime.
O problema está em que a generalidade dos defensores sérios do direito ao aborto consideram
que a premissa (1) não é verdadeira. Pretendem que o direito à vida depende da posse de certas
e determinadas propriedades biológicas e/ou psicológicas, e nesse sentido procuram
estabelecer uma separação entre “pessoa humana” e “ser humano”. A primeira categoria é que
seria o garante do direito à vida. De facto, se a premissa (1) não fosse verdadeira, cairia por
terra toda esta argumentação contra o direito ao aborto.
Uma outra abordagem importante a este problema, sugerida por pessoas que defendem o
direito ao aborto como Judith Thomson, propõe que, mesmo assumindo a validade das
premissas (1) e (2), perante uma colisão de direitos, o direito do ser humano à vida e o direito
da mãe relativamente ao destino do seu corpo, este último vence. Assim, uma forma de
procurar legitimar o direito ao aborto passa por sublinhar a supremacia do direito da mulher ao
seu corpo face ao direito à vida do feto, ignorando, de certo modo, a validade ou não das
premissas (1) e (2). Esta abordagem, que pretende que o direito do feto à vida não é condição

1 Ver texto completo no site da Secretaria do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos,
em http://www.unhchr.ch/html/menu3/b/25.htm
2 Why abortion is immoral, The Journal of Philosophy, Inc., 1989.
3 Por economia verbal, para evitar a repetição dos mesmos termos, usa-se aqui o termo “feto” para designar a vida

intra-uterina em qualquer fase do seu desenvolvimento, seja a do zigoto, a do embrião ou a do feto.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


65
suficiente para afirmar a ilicitude do aborto, considera que o dilema ético do aborto, conforme
esquematizado atrás, está mal colocado.
Neste texto, pretendemos demonstrar, não só que as premissas (1) e (2) estão correctas, mas
também que a argumentação contra o direito ao aborto se pode sintetizar na formulação dada
atrás, sem prejuízo para a necessária ponderação dos direitos em colisão, tanto da mãe como
da vida intra-uterina. Por outras palavras, afirmando que o direito do feto à vida é superior ao
direito da mãe ao controlo sobre o destino do seu corpo, pretendemos que o direito do feto à
vida é condição suficiente para se considerar o aborto provocado como ilícito em qualquer
circunstância.
Relativamente às situações em que é necessário ponderar direitos de igual natureza e valor
antes de tomar uma decisão ética, será ainda apresentado adiante o Princípio do Duplo Efeito,
uma ferramenta clássica que aponta uma solução para estas situações.

6.5 Momentos-chave do debate ético


Depois desta síntese introdutória ao problema ético do aborto, vejamos agora, analisando caso
a caso e de forma cronológica, como foram surgindo os vários argumentos contra e a favor do
direito de abortar. Esta lista não pretende ser exaustiva, visto que tal tarefa exigiria vários
volumes. A selecção dos contributos para a ética do aborto foi estabelecida por mim, e é
natural que importantes nomes estejam ausentes desta selecção. Tenho todo o interesse em
incluir futuramente qualquer importante contributo que esteja ausente desta selecção.

6.5.1 O contributo de Judith Jarvis Thomson (1971)


A norte-americana Judith Jarvis Thomson (1929-) é uma das filósofas pioneiras na defesa do
direito ao aborto. O seu artigo A Defense of Abortion1 tornou-se num clássico. Em linhas muito
gerais, Judith Thomson pretende refutar a ilicitude absoluta do aborto, procurando levantar
situações onde essa ilicitude absoluta seria exposta como errada.
Thomson principia o seu artigo afirmando que discorda da premissa (1) atrás apresentada, ou
seja, que todos os seres humanos têm direito à vida. Mais concretamente, a filósofa crê que
existe uma falácia na consideração do feto como “pessoa humana” dotada do direito à vida.
Ela diz que este argumento é uma falácia do tipo “slippery slope”:

We are asked to notice that the development of a human being from conception through birth into childhood is
continuous; then it is said that to draw a line, to choose a point in this development and say "before this point
the thing is not a person, after this point it is a person" is to make an arbitrary choice, a choice for which in the
nature of things no good reason can be given. It is concluded that the fetus is. or anyway that we had better say it
is, a person from the moment of conception. But this conclusion does not follow. Similar things might be said
about the development of an acorn into an oak tree, and it does not follow that acorns are oak trees, or that we
had better say they are. Arguments of this form are sometimes called "slippery slope arguments"--the phrase is
perhaps self-explanatory--and it is dismaying that opponents of abortion rely on them so heavily and uncritically.

É consensual que um adulto inocente tem o direito à vida. O raciocínio que pretende
considerar que o feto também o tem é um raciocínio linear: recuando do adulto para a criança,
vemos que esta também o tem, e recuando da criança acabada de nascer para a criança logo
antes do nascimento, não vemos razão para que deixe de o ter, e assim por diante, até ao
momento da concepção. Antes deste momento, é evidente que não existe tal coisa como um

1 Philosophy & Public Affairs, Vol. 1, nº. 1 (Outono de 1971).

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“indivíduo” da espécie humana, pelo que não faz sentido discutir nesta situação o direito à vida
do indivíduo humano.
Eu defendo que este raciocínio de continuidade é imbatível e está correcto. Thomson não tem
razão ao tentar chamá-lo de falacioso. Segundo a filósofa, há alterações substanciais na
evolução do feto até ao nascituro que não permitiriam o contínuo argumentativo. Mais
concretamente, Thomson diz que as bolotas evoluem até serem árvores adultas, mas que uma
bolota não é uma árvore. Thomson tem razão na observação que faz acerca da bolota e da
árvore, que de facto são diferentes1, mas esta comparação é despropositada porque não se está
a discutir direitos elementares de tais seres vivos. Que existem alterações morfológicas entre
um feto e uma criança nascida é evidente, assim como há alterações morfológicas entre um
bebé e um idoso: a questão é saber se alguma das alterações morfológicas registadas entre o
estado de feto e o estado de criança nascida é ou não fundamental para a decisão acerca dos
direitos dessa vida humana.
Resumindo, há necessariamente continuidade de direitos, a menos que se queira retirar a
universalidade do direito à vida para todos os seres humanos e se queira restringir tal direito
aos que possuem determinadas características psicológicas ou morfológicas. Esta é a
abordagem pró-escolha mais corrente, mas mais sobre isto adiante quando falarmos sobre
outros argumentos, porque para já regressamos ao artigo de Thomson…
Após esta consideração sobre a suposta falácia, Thomson decide partir de um pressuposto
radicalmente novo: o de que o estatuto do feto como pessoa humana não é condição suficiente
para a ilicitude ética do aborto. Thomson pretende que, mesmo que se reconhecesse ao feto
todos os direitos à vida que reconhecemos a uma criança nascida ou a um adulto, isso não
tornaria automaticamente o aborto num acto eticamente ilícito. A estratégia de Thomson passa
por tentar fazer ver que o problema fundamental do aborto, como exposto atrás, está mal
formulado, porque mesmo aceitando as premissas (1) e (2), não deveríamos chegar sempre à
conclusão (3).
O exemplo dado por Thomson, o do violinista, tornou-se num popular argumento pró-
escolha. Thomson pede-nos no seu artigo que imaginemos o seguinte:

You wake up in the morning and find yourself back to back in bed with an unconscious violinist. A famous
unconscious violinist. He has been found to have a fatal kidney ailment, and the Society of Music Lovers has
canvassed all the available medical records and found that you alone have the right blood type to help. They have
therefore kidnapped you, and last night the violinist's circulatory system was plugged into yours, so that your
kidneys can be used to extract poisons from his blood as well as your own. The director of the hospital now tells
you, "Look, we're sorry the Society of Music Lovers did this to you--we would never have permitted it if we had
known. But still, they did it, and the violinist is now plugged into you. To unplug you would be to kill him. But
never mind, it's only for nine months. By then he will have recovered from his ailment, and can safely be
unplugged from you." Is it morally incumbent on you to accede to this situation? No doubt it would be very nice
of you if you did, a great kindness. But do you have to accede to it? What if it were not nine months, but nine
years? Or longer still? What if the director of the hospital says. "Tough luck. I agree. but now you've got to stay
in bed, with the violinist plugged into you, for the rest of your life. Because remember this. All persons have a
right to life, and violinists are persons. Granted you have a right to decide what happens in and to your body,
but a person's right to life outweighs your right to decide what happens in and to your body. So you cannot ever
be unplugged from him."

1 São diferentes na sua forma, mas seguramente que não na sua essência. Nem é necessário recorrer a
argumentação ontológica para o sustentar, visto que qualquer biólogo reconhece que tanto a bolota como a árvore
pertencem à mesma espécie do reino vegetal.

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Thomson apresenta um exemplo bizarro, mas que parece à partida extremamente poderoso:
teremos nós o direito de nos “desligarmos” do violinista, condenando-o assim à morte certa?
Lendo com atenção o artigo de Thomson, e para sermos justos para com a autora, podemos
considerar que este exemplo não pretendia provar que o aborto era lícito, mas sim que não era
correcto considerar que o aborto é sempre ilícito. Mas mesmo assim, este exemplo é
radicalmente diferente do acto de abortar. A mulher que opta por abortar não está numa
situação análoga à da pessoa que decide desligar-se do violinista.
Na tentativa de esclarecer este erro, socorro-me do trabalho do Dr. Stephen Schwarz, cuja
impressionante obra de refutação do direito ao aborto está disponível gratuitamente na
Internet1. Como o Dr. Schwarz, eu também concedo que, para efeitos da presente
demonstração, até poderia não ser imoral que a pessoa do exemplo se desligasse do violinista.
Ou seja, por outras palavras, deixo de parte a complexa questão que seria debater a
obrigatoriedade ou não de dar suporte vital a todo o custo ao violinista2. Assumindo que seria
ética a separação do violinista, importa, recorrendo à argumentação do Dr. Schwarz, mostrar
que o exemplo de Thomson é radicalmente diferente de abortar.
A principal diferença está em que no caso do violinista, o que está em jogo é a decisão de
deixar morrer com boas razões para tal, e no aborto, o que está em jogo é a decisão de matar.
Se a pessoa decide separar-se do violinista, é devido às falhas do sistema biológico do violinista
que este morre, e não devido a uma acção homicida voluntária da pessoa. A pessoa separa-se
do violinista porque quer legitimamente continuar com a sua vida, e esta separação pode fazer-
se naturalmente, cortando a ligação vital da pessoa com o violinista. Seria bem diferente se a
pessoa do exemplo desse um tiro ao violinista ou o matasse com uma faca. Há que distinguir
então entre “matar” e “deixar morrer”. Não quero com isto afirmar que será sempre lícito
deixar morrer, o que seria um absurdo. O que afirmo, juntamente com o Dr. Schwarz, é que
não é sempre moralmente obrigatório, a todo o custo, sustentar a vida de outrem com prejuízo
para a nossa.
O exemplo por ele dado3 é disso ilustrativo e bem menos exótico que o exemplo de Thomson:
suponhamos que um salva-vidas socorre uma pessoa que esteve temporariamente submersa e
que não está a respirar; se essa pessoa não receber respiração assistida morre. É evidente que o
salva-vidas tem a obrigação moral de tentar ajudar a pessoa, nomeadamente fazendo respiração
boca a boca, e deverá fazê-lo até ao limite das suas possibilidades. Mas será que, na
eventualidade de ele verificar que a pessoa nunca mais consegue respirar por si mesma, o salva-
vidas estará obrigado a continuar a respirar por ela, indefinidamente, sem nunca parar até ao
final da sua própria vida?
Parece claro então que a obrigatoriedade de não deixar morrer também tem limites éticos e não
é universalmente válida. Na esmagadora maioria dos casos de aborto, o que está em jogo é
matar o feto. Poderíamos tentar refutar esta afirmação, alegando que existiria uma forma
qualquer de retirar suporte vital ao feto sem o matar directamente. A morte do feto seria então
uma consequência indirecta da decisão da mãe em lhe retirar suporte vital. Mesmo assim, a
mãe não tem qualquer direito em retirar, ou abdicar de dar, suporte vital à criança que traz
dentro de si, porque isso implica quase sempre a morte da criança4.

1 Dr. Stephen Schwartz, The Moral Question of Abortion, http://www.ohiolife.org/mqa/toc.asp.


2 Parece-me evidente que se o nosso apoio ao violinista fosse apenas necessário durante um espaço curto de
tempo, poderia ser argumentável que seria nossa obrigação ajudá-lo. Contudo, não concordo que seja razoável
exigir-nos, a todo o custo, o sustento da vida do violinista com prejuízo para a nossa própria vida, durante o resto
da existência do músico.
3 Stephen Schwartz, op. cit., capítulo 8.1.
4 Se a medicina estivesse evoluída ao ponto de se poder transplantar um feto de um útero para outro, a mãe

poderia eventualmente retirar o suporte vital ao feto, desde que existisse uma alternativa para o feto, ou seja, ser
acolhido noutro útero onde poderia continuar a viver. No estado actual, mesmo o retirar do suporte vital ao feto

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Stephen Schwarz explica o que entende por “matar” e por “deixar morrer”:

Matar (condições suficientes)


(A) Uma acção a alguém com a intenção deliberada de terminar a sua vida, ou
(B) Uma acção com outra intenção, mas matando alguém como consequência

Deixar morrer (condições necessárias)


(A) Deixar de prestar apoio a alguém em risco de vida, através de uma acção ou omissão sem a
intenção deliberada de terminar ou encurtar a sua vida, e
(B) Essa acção ou omissão não acarreta forçosamente a morte desse alguém

Como se vê, a mãe que decide abortar, claramente, autoriza a morte do seu filho, não está
apenas a deixá-lo morrer. Mesmo se considerássemos que a mãe optava, não por abortar
(directamente matar o feto), mas sim por retirar suporte vital ao feto, estaríamos perante o acto
de matar indirectamente o feto. Não se pode considerar esta excepção hipotética como um
acto ou omissão do tipo “deixar morrer”, porque sucede que o retirar do suporte vital ao feto
acarreta a morte do feto. O feto, se ainda não for viável, precisa sempre da sua mãe para
sobreviver. O violinista do exemplo de Thomson, para sobreviver, precisa pelo contrário de
uma solução para a sua insuficiência de fígado, e não necessariamente da “vítima” que foi
raptada e a ele ligada. Se a pessoa do exemplo decidir cortar o elo que a liga ao violinista, não é
forçoso que a morte do violinista ocorra devido a esse acto. O violinista não está estruturado
para viver ligado a alguém permanentemente, ele apenas necessita de uma forma de limpar o
seu sangue, algo que poderá ser feito de outro modo recorrendo a uma máquina, ou mesmo no
limite, recorrendo a outra “vítima”. Assim, a “vítima” de rapto que decide desligar-se do
violinista está, claramente, na situação da decisão lícita de “deixar morrer”1.
Recorrendo ao exemplo do Dr. Schwarz, se por falta de fôlego, desistimos de respirar
artificialmente pela pessoa, essa decisão é legítima porque (a) não parámos de respirar boca a
boca com o objectivo de matar o desafortunado, e (b) a nossa desistência não implica
forçosamente a morte do desafortunado: alguém poderá vir substituir-nos, eventualmente uma
equipa médica com um pulmão artificial, ou mesmo os pulmões do desafortunado poderão
voltar a funcionar por si mesmos.

O outro grande problema do exemplo de Thomson é a total ausência de ligação biológica, e


consequentemente de responsabilidade, entre o leitor e o violinista. Essa ligação, essa
responsabilidade, estão bem presentes tanto no pai biológico de qualquer criança como na mãe
de qualquer criança. Em particular, porque a criança necessita nos seus primeiros meses de
vida do corpo da mãe para sobreviver, a mãe tem para com a criança uma particular e grave
responsabilidade natural face à qual o exemplo de Thomson é inútil em termos descritivos.
Thomson tem bem presente esta potencial fraqueza do seu argumento, e alude a ela no final
do artigo:

«It may be said that what is important is not merely the fact that the fetus is a person, but that it is a person for
whom the woman has a special kind of responsibility issuing from the fact that she is its mother. And it might
be argued that all my analogies are therefore irrelevant--for you do not have that special kind of responsibility for

implica sempre a morte deste, se o feto ainda não estiver suficientemente desenvolvido para ser viável fora do
útero.
1 Evidentemente, suponho que a ligação forçada teria como intenção ser definitiva e com duração indeterminada.

Como foi dito atrás, se uma ligação temporária à “vítima” permitisse ao violinista recuperar e poder sobreviver
por si mesmo, abdicando a dada altura do sistema circulatório da “vítima”, não é claro que esta teria
imediatamente o direito de se separar dele.

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that violinist; Henry Fonda does not have that special kind of responsibility for me. And our attention might be
drawn to the fact that men and women both are compelled by law to provide support for their children»

Thomson tenta escapar a esta fraqueza afirmando, sem qualquer justificação, o seguinte
(sublinhado meu):

«If a set of parents do not try to prevent pregnancy, do not obtain an abortion, but rather take it home with
them, then they have assumed responsibility for it, they have given it rights, and they cannot now withdraw
support from it at the cost of its life because they now find it difficult to go on providing for it. But if they have
taken all reasonable precautions against having a child, they do not simply by virtue of their biological
relationship to the child who comes into existence have a special responsibility for it. They may wish to assume
responsibility for it, or they may not wish to. And I am suggesting that if assuming responsibility for it would
require large sacrifices, then they may refuse.»

Ou seja, segundo Thomson, os pais biológicos podem recusar a responsabilidade pela criança,
desde que tenham tomado “todas as precauções razoáveis” para evitar a gravidez. Thomson
advoga que a relação biológica entre os pais e a criança não atribui aos primeiros uma especial
responsabilidade sobre ela no caso em que os pais tomaram todas as precauções
contraceptivas. Essa suposta ausência de responsabilidade por parte dos pais legitimaria,
segundo Thomson, a opção pelo aborto.
Thomson faz então depender a responsabilidade paternal da ausência de intenção
contraceptiva dos progenitores. É um raciocínio errado, o que se demonstra com um contra-
exemplo. Suponhamos que um dado casal, totalmente informado acerca dos métodos
contraceptivos, e recorrendo à pílula contraceptiva com a devida regularidade medicamente
prescrita, se engana uma vez na caixa do medicamento devido à cor da mesma que é parecida
com a cor da caixa de outro medicamento, tomando então a mulher um medicamento
totalmente diverso. Claramente, este casal, de acordo com Thomson, estava a tomar
“precauções razoáveis” para evitar uma gravidez indesejada. O único erro foi acidental, não
desejado, inconsciente. No entanto, a mulher não consegue evitar a gravidez porque tomou o
medicamento errado. Será que Thomson quer mesmo propor um argumento para a ausência
de responsabilidade dos progenitores baseado em intenções contraceptivas? Um simples erro
na caixa da pílula transforma um aborto ilícito num aborto lícito de acordo com a
argumentação de Thomson. Não duvido de que Thomson, confrontada com este exemplo,
poderia advogar que o casal se deveria responsabilizar pelo seu erro na medicação e levar a
gravidez por diante, mas o que é um facto é que o argumento de Thomson abre espaço para
que se avalie a eticidade de um acto com base nas intenções dos seus imediatos e directos
responsáveis. E, como é evidente, a responsabilidade objectiva de um acto não está
fundamentada apenas em intenções, mas também em efeitos e consequências.
Este argumento não colhe: a responsabilidade dos progenitores para com a criança por nascer
existe sempre, independentemente da vontade destes em terem um filho ou não. Se
acidentalmente ferimos alguém somos eticamente obrigados e responsabilizados a colaborar na
ajuda à vítima do nosso acto, por muito acidental e indesejado que esse acto tenha sido. Como
vemos, o argumento de Thomson não legitima o aborto por opção na generalidade dos casos.
Vejamos agora se poderá legitimar o aborto em casos especiais…
O artigo de Thomson tornou-se muito popular pelo facto de que muitos o viam e vêem como
um contributo importante para tornar o aborto lícito em casos como o da gravidez por
violação. Muitos consideram que a analogia do violinista, a violência de alguém ser “ligado” a
outra pessoa para sobrevivência desta, é equiparável à violência de levar uma gravidez por
violação até ao fim.

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É inegável que uma gravidez por violação é algo de muito violento, injusto e exigente para
qualquer mulher. A injustiça da situação da mulher tem a sua origem exclusiva no crime
perpetrado pelo violador, pelo pai da criança. Este é o único responsável e culpado por essa
injustiça. A mulher sabe bem que a criança por nascer está inocente do crime do pai e que esta
criança necessita do seu corpo para sobreviver. Estes dois factos devem ser pesados para que
não nos pronunciemos levianamente sobre a licitude do aborto em caso de violação.
Por mais injusta que seja a situação, a mulher violada que decide abortar a criança indesejada
está a dar autorização à morte de um ser humano inocente que precisa do apoio biológico da
mãe para poder efectuar o seu desenvolvimento e nascer. Entende-se que uma mãe nessas
circunstâncias dê essa criança para adopção após o seu nascimento, mas terá ela legitimidade
para dispor da vida do seu filho enquanto este necessita dela para se desenvolver e poder
nascer?
A mãe pode, em certos casos, não exercer a responsabilidade de educar o seu filho: é o que
sucede quando uma mãe dá a sua criança para adopção (ou é obrigada a fazê-lo) por não ser
capaz de tomar conta dela, ou nos casos de violação, por não ser capaz de suportar viver com
o filho nascido de um crime tão grave e traumatizante. Contudo, a mãe não se pode esquivar à
responsabilidade biológica natural de zelar pela vida do seu filho enquanto este não tem
viabilidade própria. Não tem direito a dispor de uma vida para a qual ela contribuiu,
voluntariamente ou não, com metade do património genético, de uma vida que, mesmo tendo
sido gerada sob violência e abuso, não perde por isso os seus direitos fundamentais1.
Segundo Thomson, a mãe, perante uma gravidez indesejada, não deveria ser obrigada a ser
uma “boa samaritana” protegendo o seu filho e levando toda e qualquer gravidez até ao fim,
devendo a sua obrigação cingir-se a ser apenas o que Thomson apelida de “mínima
samaritana”, ou seja, assumir responsabilidade apenas pelas consequências das suas intenções.
Thomson, com a sua engenhosa argumentação, não apresenta argumentos sólidos e
irrefutáveis para considerar o aborto lícito em gravidezes indesejadas, mesmo em caso de
violação, apesar de o seu argumento ter contribuído, em larga medida, para ponderações éticas
que terminaram, em variados países, na permissividade legal do aborto em caso de violação.
Apesar de todas as suas falhas e deficiências, o argumento de Thomson contribuiu fortemente
para a argumentação usada pelos adeptos da tese da supremacia do “direito da mulher ao seu
corpo”, uma tese cara aos movimentos feministas radicais pró-escolha, que consideram
normalmente que até determinada altura da gravidez2, a mulher pode optar por abortar apenas
invocando a sua vontade, como se abortar fosse um inalienável “direito”.

6.5.2 O caso Roe vs. Wade3 (1971-1973)


Este caso é um ponto de referência na história recente do debate acerca da legalidade do
aborto. Trata-se de um caso tratado pelo Supremo Tribunal dos E.U.A., que foi discutido a 13

1 Durante a escrita deste texto, ocorreu-me um caso extremo: o de uma mulher em cujo útero fosse implantado,
sem o seu consentimento, um ovo humano. Neste caso, essa mulher não teria sequer contribuído para o
património genético da criança. É um facto que essa criança precisaria dessa mulher para sobreviver à gravidez,
mas a ausência de ligação causal entre a mulher e a criança levanta dificuldades éticas. A protecção da vida
humana indefesa seria uma decisão louvável dessa mulher, ou seja, levar a gravidez indesejada adiante, mas não
me parece claro que tal decisão devesse ser imposta. No entanto, seguindo a linha de raciocínio usada neste texto,
sinto-me inclinado a também considerar o aborto nesta situação extrema como um acto eticamente ilícito, pelo
facto de que o direito à vida humana inocente seria superior ao direito da mulher a não ter uma gravidez
indesejada e com a qual ela não tinha nenhuma relação causal prévia.
2 A fixação de um limite quando se parte deste tipo de argumentação é, claramente, incoerente. Se a mulher tem

um direito de supremacia sobre o destino do seu corpo, porque razão não poderia abortar por sua livre escolha
um dia, uma hora ou mesmo um minuto antes do parto?
3 Ver artigo na Wikipédia: http://en.wikipedia.org/wiki/Roe_v._Wade. O texto completo do caso Roe vs. Wade

pode ser lido no site da Cornell Law School: http://www.law.cornell.edu/supct-cgi/get-us-cite?410+113

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de Dezembro de 1971, voltou a ser discutido a 11 de Outubro de 1972 e foi finalmente
decidido a 22 de Janeiro de 1973. O caso surgiu pouco tempo depois da publicação do artigo
de Judith Jarvis Thomson acerca da ética do aborto, que logo após a decisão final de se
manifestou publicamente a favor da decisão do Tribunal. A deliberação final do Supremo
Tribunal concluiu que a maioria das leis anti-aborto então em vigor nos E.U.A. eram
inconstitucionais, incluindo obviamente as do Texas que eram objecto do processo, o que
abriu um importantíssimo precedente jurídico a favor da defesa do direito ao aborto num país
no qual a jurisprudência goza de uma posição privilegiada.
A questão nasceu em Março de 1970, no Texas, quando duas jovens advogadas pró-escolha,
Linda Coffee e Sarah Weddington, tomaram em suas mãos a defesa de Jane Roe1, uma jovem
de vinte e dois anos que alegava ter sido violada e por isso ter direito a abortar. As duas
advogadas Coffee e Weddington moveram um processo contra o Procurador Público Henry
Wade pelo facto de a legislação texana criminalizar o aborto, o que ambas alegavam ser
inconstitucional.
O Supremo Tribunal, na sua decisão final de 22 de Janeiro de 1973, deu razão a Jane Roe,
considerando que a criminalização do aborto, então em vigor no Texas e em muitos estados,
para todo e qualquer aborto excepto em caso de risco iminente de vida para a mãe, era
inconstitucional. O grupo de nove juízes, com sete votos contra dois, decidiu que tais leis
criminalizantes do aborto violavam a décima quarta emenda da Constituição dos E.U.A.
(cláusula “Due Process”) visto que, na sua opinião, as leis restritivas do aborto eram uma
invasão do Estado à privacidade da mulher grávida, que eles consideraram incluir o direito a
abortar por vontade própria. O colectivo de juízes baseou a sua decisão, para além das razões
de inconstitucionalidade, na análise histórica do tratamento legal dado ao aborto. Concluíram
que as leis anti-aborto eram relativamente recentes na história dos E.U.A., datando de, no
máximo, finais do século XIX.
Na secção VI2 do texto que suporta a decisão, são elaborados alguns comentários ao
tratamento legal dado ao aborto na Antiguidade, concluindo-se que a prática do aborto, apesar
de ter encontrado sempre alguma oposição pontual, era corrente e dominante. Mais
concretamente, refere-se que a legislação grega e romana não protegia a vida intra-uterina, ou
quando o fazia era no sentido de proteger o direito paterno à tutela da sua descendência.
O colectivo passa então a analisar o Juramento de Hipócrates, que impede claramente o
aborto, procurando estabelecer-se se tal juramento seria cumprido na Antiguidade. É aceite
pelo colectivo a opinião do Dr. Edelstein3, que considera que a inclusão da proibição de
abortar no Juramento proviria de uma influência pitagórica. Os pitagóricos consideravam que a
animação ocorria logo na concepção e viam o aborto como a morte de um ser humano vivo.
Segundo Edelstein, o ponto de vista pitagórico estava longe de representar um consenso da
comunidade médica, sendo por isso marginal.
No seguimento da secção VI, o colectivo refere a crença generalizada na Antiguidade e na
Idade Média de que o feto só era considerado como um ser humano vivo após a então
chamada “animação” (“quickening”, a primeira vez em que o feto se movia dentro do útero),
afirmando que inclusive esta ideia esteve presente em boa parte da teologia cristã medieval, o
que é correcto.
Apenas uma nota importante: convém também recordar que a teologia cristã o fazia com base no ensinamento de
São Tomás de Aquino que considerava que a propriedade de movimento era necessária para a definição de vida.

1 O pseudónimo de “Jane Roe” foi usado na altura do processo para ocultar o seu verdadeiro nome, Norma
McCorvey (1947-). Nos anos oitenta, uma década após o processo Roe vs. Wade, Norma decidiu revelar
publicamente a sua identidade, deixando cair o pseudónimo de Jane Roe.
2 Ler aqui o documento de opinião, escrito pelo juiz Blackmun:

http://www.law.cornell.edu/supct/html/historics/USSC_CR_0410_0113_ZO.html
3 L. Edelstein, The Hippocratic Oath (1943).

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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Evidentemente, com base na limitada informação biológica então disponível, o aquinate concordaria no seu
tempo que a vida humana apenas teria início com a “animação” porque não faria a menor das ideias que existe
movimento fetal muito antes da dita “animação”. Hoje em dia, confrontado com as sólidas evidências de que há
movimento, em sentido tomista/aristotélico, logo após a concepção, a definição de vida feita por São Tomás de
Aquino como implicando movimento permitiria estabelecer sem dificuldades que a vida humana tem início na
concepção. Necessariamente, a teologia cristã, à medida que a Medicina evoluiu, modificou-se não no sentido de
violar a definição tomista/aristotélica, que se mantém válida, mas sim no sentido de melhor a aplicar, visto que os
avanços da Medicina permitiram aos teólogos constatar que o movimento do feto ocorria muito antes da
externamente aparente “animação”. Por esta razão, a teologia cristã considera hoje que todo o ser humano
adquire a sua vida, e consequentemente o seu valor pleno e intrínseco, com a concepção.
O texto da secção VI passa depois à análise detalhada da evolução da legislação britânica, que
fixou pela primeira vez leis contra o aborto em 1803 (com o “Lord Ellenborough's Act”), que
considerava o aborto feito a uma criança “animada” como crime grave, punido com pena
capital. O aborto efectuado antes da “animação” era considerado como uma ofensa grave, mas
recebia um tratamento penal menos severo. Em 1837, a pena de morte por aborto desapareceu
completamente da legislação britânica, mantendo-se a criminalização do aborto excepto nas
situações em que tal era necessário para salvar a vida da mãe. A primeira lei norte-americana
acerca do aborto foi fixada pelo estado do Connecticut em 1821, que adoptou a legislação
britânica, mas estabelecendo uma pena mais leve do que a pena capital, que até 1837 vigorou
no Reino Unido.
Como resumo das razões que justificavam, até ao final do século XIX, a criminalização do
aborto, o colectivo identifica três principais razões: a) que a prática do aborto potenciava
práticas sexuais ilícitas1, b) que até ao final do século XIX, a prática do aborto envolvia
enormes riscos para a mulher, sobretudo por razões sépticas, e que por isso, criminalizar o
aborto era uma questão de saúde pública que caía sob a responsabilidade estatal; e c) que o
Estado, independentemente da definição do início da vida humana ou da existência ou não do
direito à vida, poderia sempre querer legitimamente exercer o seu interesse de estender a
protecção da vida humana à vida intra-uterina, fosse ela real ou potencial.
O colectivo passa então à afirmação de que os direitos da mulher incluem o direito a abortar,
mas que tal direito não é absoluto e deve ser pesado face ao direito do Estado em querer
exercer a protecção à vida humana intra-uterina.
Em suma, após detalhada análise, o Supremo Tribunal concluiu que o Estado do Texas não
podia sobrepor uma teoria acerca do início da vida humana aos “direitos” da mulher, e que a
lei então em vigor no Texas, e que apenas permitia o aborto para salvar a mãe, era
inconstitucional.
Como decisão final, o Supremo Tribunal deliberou considerar em separado os três trimestres
da gravidez: a) no primeiro trimestre, a mulher grávida pode exercer o aborto e receber a ajuda
de um médico qualificado para tal; b) no segundo trimestre, o Estado pode deliberar acerca da
licitude ou ilicitude do aborto, ponderando caso a caso com base em razões (não definidas no
texto) de “saúde maternal”; c) no terceiro e último trimestre, constatada a viabilidade do feto, o
Estado pode impedir o aborto, excepto no caso de perigo iminente para a vida da mãe,
atestado medicamente.
Dos dois votos contra, um pertencia ao juiz Rehnquist, que escreveu um importante voto de
vencido que merece uma leitura atenta2. As alegações de Rehnquist eram, resumidamente, as
seguintes: face à total liberdade dada à mulher grávida para abortar por opção no primeiro
trimestre da gravidez, o Supremo Tribunal tinha decidido, relativamente ao primeiro trimestre,
dar prioridade à “conveniência” da mulher grávida face à sua obrigação constitucional em
proteger a vida humana, sem justificar convenientemente essa opção. Para além disso,

1 Segundo o colectivo, esta razão seria uma herança da moral vitoriana proveniente da legislação britânica, que já
não era levada a sério por ninguém, nem sequer fora usada pelo procurador texano durante o processo.
2 Lê-la aqui: http://www.law.cornell.edu/supct/html/historics/USSC_CR_0410_0113_ZD.html

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Rehnquist manifesta-se em total desacordo com a referência à décima quarta emenda, na qual
ele não vê sinal do dito “direito à privacidade” que incluiria o pretenso direito a abortar.
Segundo Rehnquist, o Supremo Tribunal teria retirado do texto da emenda uma intenção que
os seus autores não teriam, sobretudo porque a emenda datava de uma época (1868) em que a
legislação anti-aborto estava adoptada de forma generalizada. Rehnquist avisava ainda que o
Supremo Tribunal tomara uma decisão totalmente contrária à recomendação tradicional de que
“nunca deveria formular uma regra de lei constitucional de âmbito maior que o necessário”
para os factos em análise no processo.
Nos E.U.A., as décadas de setenta e oitenta foram marcadas por uma clara tendência legislativa
pró-escolha baseada no caso Roe vs. Wade, tendência que começou a ser contrariada por outra
de sinal contrário, quando o caso foi reavaliado em 19921, tendo-se mantido válido
tangencialmente por uma votação de cinco contra quatro a favor da decisão de Roe vs. Wade,
apenas devido ao facto de um dos juízes ter mudado de opinião, passando a apoiar a decisão
de 1973.
Em 1994, Norma McCorvey, a mulher no centro do caso Roe vs. Wade, o caso que
influenciou as principais alterações pró-escolha nos E.U.A. (com impacto maior ou menor nas
legislações acerca do aborto noutros países), autografava o seu primeiro livro quando conheceu
o activista anti-aborto Flip Benham, que influenciou fortemente a sua conversão ao
cristianismo. Norma McCorvey foi baptizada a 8 de Agosto de 1995, tendo anunciado
publicamente a 10 de Agosto desse ano que passaria a apoiar organizações anti-aborto,
dedicando-se especificamente a uma organização, a “Operation Rescue”, como forma de tentar
redimir-se da sua parte de responsabilidade pela tendência de liberalização do aborto na
sequência do caso Roe vs. Wade.
Em 2005, Norma McCorvey fez uma petição ao Supremo Tribunal para que a decisão de 1973
fosse reavaliada com base em informação nova acerca dos efeitos nocivos do aborto para a
mulher, mas a petição foi rejeitada.

6.5.3 O contributo de Jane English (1975)


Jane Elizabeth English (1947-1978) foi Professora Assistente de Filosofia na Universidade da
Carolina do Norte (E.U.A.). O seu artigo “Abortion and the Concept of a Person”2 é um dos
artigos clássicos da Ética do Aborto.
Em termos gerais, Jane English argumenta que o conceito de pessoa humana não é adequado
para se chegar a uma solução definitiva para o problema ético do aborto. Segundo English, os
defensores do direito ao aborto que se baseiam num determinado conceito de pessoa para dele
excluir o feto estão a argumentar mal porque pensam que as condições que eles consideram
necessárias são adequadas para definir “pessoa humana”.
Por outro lado, segundo English, os que se opõem ao direito ao aborto e que se baseiam num
determinado conceito de pessoa para nele incluir o feto estão a argumentar mal porque
pensam que as condições que eles consideram suficientes são adequadas para definir “pessoa
humana”.
Posto de outra forma, Jane English considera que o conceito de pessoa é difuso (ela usa a
expressão “cluster concept”), e que por isso não é possível, segundo ela, chegar a um conjunto
de condições necessárias ou suficientes para o conceito de pessoa humana.
Jane English reconhece que há, certamente, condições necessárias que todos reconhecem para
se ser uma pessoa humana (por exemplo, “estar vivo”), bem como há condições suficientes
para tal que todos reconhecem (por exemplo, “ser senador dos E.U.A.”). Quem está vivo,

1 Caso Planned Parenthood vs. Casey, ver: http://en.wikipedia.org/wiki/Planned_Parenthood_v._Casey


2 Canadian Journal of Philosophy, Vol. 5, no.2, pp. 233-243, 1975.

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necessariamente, é uma pessoa humana, e bastaria afirmar que se era senador dos E.U.A. para,
de forma suficiente, se concluir que estávamos perante uma pessoa humana.
Só que, segundo English, estas parcas condições suficientes e necessárias que são reconhecidas
por ambos os lados do debate, não servem para o problema em causa, que diz respeito à vida
humana intra-uterina.
Jane English, por um lado, considera que mesmo se defendemos que o feto é uma pessoa,
pode ser legítimo matá-lo, concordando com as conclusões de Judith Thomson.
Por outro lado, Jane English considera que, mesmo se defendemos que o feto não é uma
pessoa, em determinadas situações é eticamente errado abortar, como por exemplo abortar no
final da gravidez por razões fúteis. Apesar de tentar, Jane English não consegue neste artigo ser
específica acerca do que a faz considerar o aborto tardio nestes casos como algo de errado. A
filósofa tenta não entrar num raciocínio utilitarista que se baseie apenas no evitar de efeitos
psicológicos para quem toma a decisão ou participa nela. Mas, na prática, Jane English não
consegue definir a razão ou razões que a fazem, mesmo considerando que o feto não é uma
pessoa, recusar o aborto tardio.
Concluindo, Jane English defende que o conceito de pessoa não serve para se tomar uma
posição ética definitiva face ao problema do aborto.
Importa dedicar algumas palavras ao modo como Jane English concorda com Judith
Thomson, e que se baseia no conceito de “autodefesa”: ela pede que imaginemos que somos
atacados por pessoas hipnotizadas. Nesse caso, mesmo sendo essas pessoas inocentes,
teríamos o direito de as matar em legítima defesa. English vai mais longe e considera ainda que
a destruição, devido à gravidez indesejada, de um grande projecto ou projectos de vida pode
também implicar que um aborto nessas condições representa uma situação de legítima defesa
por parte da mãe. O filósofo Baruch Brody defende que tal comparação é totalmente
desadequada1, e sinto-me forçado a concordar com ele: segundo Brody, o feto não está a atacar
a mãe, e o conceito de autodefesa é totalmente desadequado.
Penso que o conceito de “pessoa humana”, quando tornado distinto do conceito de “vida
humana” para efeitos da defesa do direito ao aborto, é uma das principais causas para que o
problema do aborto não encontre solução consensual.
Se, por um lado, considero que a abordagem de Jane English é louvável pela sua intenção
moderadora, penso que se deveria repensar de novo as razões históricas que levaram à defesa
incondicional dos direitos humanos. O reconhecimento de um direito tão básico como o
direito à vida não deveria estar dependente de subjectivas definições de “pessoa”. Parece-me
claro que, desde a concepção, estamos perante um ser humano totipotente, que apenas ainda
não funciona como qualquer outra pessoa nascida pelo elementar facto de que ainda está a
desenvolver as ditas funcionalidades. Não funcionar como pessoa nascida é bem diferente de
não ser como uma pessoa nascida, no que diz respeito ao reconhecimento da posse do direito
à vida. No que diz respeito a este direito fundamental, defendo que não há qualquer diferença
de essência entre um feto e uma criança nascida.
Defendo a tese de que pertencer à espécie humana e estar vivo é condição suficiente para se ter
direito à vida sem que esta seja artificialmente interrompida.

6.5.4 O contributo de Peter Singer (1979)


O filósofo australiano Peter Singer (1946-) é, hoje em dia, um dos mais conceituados
especialistas em Ética. A sua obra Practical Ethics2 deverá ser, nos nossos tempos, uma das mais

1Ver o artigo de Allen Stairs, http://stairs.umd.edu/140/english.html


2A primeira edição desta obra em língua original data de 1979. A Cambridge University Press fez uma 2ª edição
em 1993. Foi a partir desta edição aumentada e revista que se fez a primeira tradução para português, que já conta
com duas edições: Ética Prática, Lisboa, Gradiva, 2002 (2ª edição).

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lidas obras sobre Ética, não só pelos alunos e professores envolvidos nos meios académicos
onde se estuda a Ética mas também pelo público em geral. Peter Singer não esconde o
objectivo divulgador desta obra, que procura não só partir de uma sintética mas sólida
introdução teórica, mas também concretizar a aplicação dos princípios teóricos por ele
propostos em casos reais que possam apelar à generalidade das pessoas preocupadas com a
tomada de decisões éticas na sua vida.
A eventual falta de contacto do público que lê esta obra com a complexidade da Ética, e mais
importante do que isso, com a história do próprio pensamento ético, pode conduzir a erros
interpretativos e a uma má avaliação da obra de Singer e adequado enquadramento no
contexto da Ética como um todo.
Pretendo, neste capítulo, apontar argumentos sólidos para que se possa questionar seriamente
a abordagem de Singer à Ética, e consequentemente, para que se possa discordar das suas
tomadas de posição em situações concretas, como é a do aborto.
É justo reconhecer que Peter Singer possui a humildade necessária a todo e qualquer cientista,
seja qual for a área em que trabalhe, pelo que muitos dos erros interpretativos que decorram da
leitura desta obra deverão ser imputados à ignorância do leitor.
Peter Singer é claro, e fá-lo em várias partes desta obra, quando afirma que não está a propor
soluções definitivas para a Ética mas sim apenas sugestões decorrentes do próprio caminho
que ele decidiu seguir em Ética. Por isso, todo e qualquer leitor desta obra de Singer deve ter
presente que não está a ler “o que de mais avançado se sabe em Ética”, um erro comum que
pode decorrer da mistura explosiva da crença no mito do “Progresso”1 com a ignorância
acerca do papel específico desempenhado por esta obra na enorme e vasta história da própria
Ética.
Não obstante, apesar de eu pretender demonstrar que Singer está errado nas suas conclusões
acerca da licitude do aborto, derivadas de também erradas premissas acerca da Ética, considero
que a sua obra tem enorme valor representativo. A obra de Peter Singer pertence ao culminar
de uma corrente de pensamento que já conta com dois ou três séculos de existência. É também
uma obra que está a influenciar o pensamento de muitos docentes universitários em várias
partes do globo, e por conseguinte, pode ter um impacto considerável no desenrolar da Ética
do terceiro milénio.
Para além do seu valor representativo, do facto de que esta obra marca uma “tendência” cada
vez mais valorizada em Ética, há vários pontos fulcrais nos quais Singer tem a razão do seu
lado, e irei apontar esses pontos, porque permitem eliminar muitas das falácias usadas nas
discussões sobre o aborto.
Um outro aspecto que devemos ter em conta ao ler esta obra é o facto de que Singer não é
especialista em religião, pelo que as suas observações acerca desta devem ser lidas com
discernimento e não devem ser tomadas à letra sem crítica ou reflexão. Evidentemente que
Singer não escreveu esta obra com o objectivo de criticar a posição religiosa, apesar de ser
óbvio que ele é crítico em relação a ela, mas sim com o objectivo de falar sobre Ética. Por
razões idênticas, não irei despender esforços a criticar as visões de Singer acerca da religião,
porque isso levava-nos por caminhos bem diferentes dos escolhidos: o que pretendo fazer é
criticar as ideias de Singer acerca do aborto, e em geral, acerca da Ética.

1A ideia não científica de que uma obra mais moderna é, por força do chamado “Progresso”, melhor que outra
mais antiga. Quem acredita nesta ideia infundada partilha da convicção de que o Homem só pode saber cada vez
mais, que é impossível à Humanidade perder algum conhecimento que possuía antigamente. Esta ideia não tem
bases científicas, apesar de estar enraizada em grande parte da opinião pública. Deveria ser evidente que certos
conhecimentos se podem perder ao longo dos séculos, e que o avançar dos tempos pode conduzir a formas
piores e mais erradas de ver certas realidades.

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Na introdução da sua obra, encontramos pontos-chave que merecem destaque especial, porque
permitem-nos questionar as aplicações práticas que Singer deduz das próprias premissas e
escolhas que faz, enquanto filósofo adepto de um ramo particular da Ética moderna.
Singer distingue duas abordagens gerais ao problema da Ética: a dos “deontologistas” e a dos
“consequencialistas”, deixando claro que prefere a segunda. De acordo com Singer, os
deontologistas, porque baseiam a sua visão da Ética na fixação de um conjunto de regras
simples de conduta, correm o risco de a sua visão se revelar inútil, porque aplicar regras
simples nas decisões do dia-a-dia não é fácil sem uma necessária hierarquização de prioridades,
e sem um ginasticar da capacidade de ponderação de direitos e deveres de pesos diferentes. Por
outro lado, Singer acredita que a posição dos consequencialistas pode ser a mais promissora,
uma vez que, ao invés de partir de regras axiomáticas simples, parte da fixação de objectivos a
priori:

«Os deontologistas – aquelas pessoas que pensam que a ética é um sistema de regras – podem salvar a sua
posição elaborando regras mais complicadas e mais específicas que não se contradigam, ou organizando essas
regras numa qualquer estrutura hierárquica que resolva os conflitos entre elas. Além disso, há uma velha
abordagem da ética que pouco sofre com as complexidades que tornam as regras simples de difícil aplicação: a
perspectiva consequencialista. Os consequencialistas não partem de regras morais1, mas de objectivos. Avaliam
as acções na medida em que favorecem esses objectivos. A teoria consequencialista mais conhecida, embora não
sendo a única, é o utilitarismo. O utilitarismo clássico considera uma acção um bem quando esta produz um
incremento igual ou maior da felicidade de todos os envolvidos relativamente a uma acção alternativa, e um mal
se assim não acontecer.»2

O problema da abordagem consequencialista, como o próprio nome indica, é o de que tenta


construir a ética a partir dos objectivos em vez de o fazer a partir dos princípios. Para um
consequencialista, a própria expressão “princípios fundamentais” torna-se incómoda visto que
o consequencialista começa do “fim” (da consequência ou objectivo desejados) e não do
“princípio”, e considerando ainda que o consequencialista, abdicando do conjunto básico de
regras morais, abdica necessariamente de um fundamento, de uma base para construir o
edifício ético. A pergunta que se faz aos que procuram o futuro da ética no consequencialismo
é esta: porquê procurar “inovar” alterando desastrosamente o fundamental? Reconstruir o
edifício da ética a partir do telhado, tentando ao mesmo tempo demolir os alicerces, parece ser
uma péssima ideia. Vejamos um exemplo…

1 Uma nota importante: Singer usa frequentemente o termo “moral” como sinónimo de “ética”. Não podíamos
estar mais de acordo com ele: a moral é, de facto, o mesmo que a ética. No fundo, trata-se de estudar a conduta
humana e as respectivas regras. A moral, ou a ética, estudam as acções ou comportamentos e a sua respectiva
licitude ou ilicitude. Contudo, ao longo deste texto, rapidamente se constata que não usei o termo “moral”. O
problema quotidiano com o uso do termo “moral” como sinónimo de “ética” está nos equívocos gerados pelo
preconceito de que o uso de tal termo forçaria a argumentação do seu utilizador ao contexto de uma crença
religiosa, nomeadamente ao cristianismo no contexto da cultura ocidental. Pensa-se que quem argumenta usando
a palavra “moral” está a pensar necessariamente em modo religioso, e que por isso uma argumentação que recorra
a esta palavra não é universalmente aplicável, sendo inútil para um ateu ou para um agnóstico. É possível usar o
termo “moral” num contexto totalmente neutro em termos religiosos, ou mesmo num contexto não neutro como
o do ateísmo. De facto, é elementar constatar que qualquer pessoa, crente, agnóstica ou ateia, pode defender um
conjunto de regras gerais de conduta, e certas dessas regras podem e devem coincidir. Contudo, não se pode
perder de vista que o crente defende a ideia de que a moral, ou a ética, apenas alcançam pleno significado com o
conceito de infinitude metafísica (ao qual corresponde, em Teologia, o da bondade plena) representado pelo
termo “Deus” ou por outro que lhe seja análogo noutra cultura não ocidental. Uma ressalva: os conceitos que
caem na categoria da moral/ética ocidental são tão diferentes nas culturas orientais que se pode legitimamente
questionar se existirá nestas culturas algum termo ou termos plenamente equivalentes a “moral” ou “ética”, mas
explorar esta difícil questão levar-nos-ia para lá do âmbito deste texto.
2 Op. cit., p. 19.

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Alguém decide não roubar dinheiro a outrem, apenas porque teme as consequências: o castigo
que receberá se for descoberto. Ou seja, a decisão ética de não roubar, neste caso, está apenas
assente nas suas boas consequências para ambos os envolvidos: a) alguém que não perde o seu
dinheiro; b) alguém que não é castigado. Não seria mais interessante apoiar a decisão ética de
não roubar no princípio de que tal decisão é uma violação do fundamental direito positivo à
propriedade privada?
Penso que entendo a razão pela qual filósofos como Singer não aderem aos axiomas éticos
clássicos, preferindo atalhar por outros caminhos novos: o problema está em que perderam de
vista a razão de ser dos axiomas éticos clássicos. Muitas vezes, e isto também sucederá um
pouco com Singer, evitam os axiomas éticos clássicos porque os vêem demasiado associados a
uma determinada religião (na Europa, a cristã).
Antes de prosseguirmos com a discussão em torno dos direitos e da ética e da sua aplicação ao
problema do aborto, é importante que se valorize um ponto-chave na introdução da obra de
Singer, e com o qual concordo necessariamente: a sua crítica negativa ao relativismo moral.
Singer, baseando-se no ponto em comum que une filósofos como Kant, Hare, Hutcheson,
Hume, Smith, Bentham, Smart, Rawls, e mesmo Sartre e Habermas, partilha da consensual
defesa que todos fazem da universalidade da ética:

«Poderíamos argumentar interminavelmente sobre os méritos de cada uma destas caracterizações da ética; mas o
que têm em comum é mais importante do que as suas diferenças. Todas concordam que não se pode justificar um
princípio ético relativamente a um grupo parcial ou local. A ética adopta um ponto de vista universal. Não quer
isto dizer que um determinado juízo ético tenha que possuir aplicação universal. Como vimos, as circunstâncias
alteram as causas. Significa, isso sim, que, quando fazemos juízos éticos, vamos para além de preferências ou
aversões.»1

Singer está absolutamente certo neste ponto, que aliás é defendido pela maioria dos filósofos
antigos, modernos e contemporâneos.
Os princípios éticos devem ser universalmente aplicáveis a qualquer sociedade humana, sob
pena de perdermos totalmente de vista o que é a ética. Mas também é inegável que o
relativismo ético está a corroer o pensar moderno, sobretudo na opinião pública, menos
habituada a pensar em termos éticos. No que diz respeito ao debate do aborto, muitos pensam
que votar “sim” ou votar “não” no referendo é apenas uma questão de “convicção pessoal”,
abdicando-se de tentar descobrir qual das opções de voto é a certa ou a errada do ponto de
vista ético.
O mundo moderno está hoje exposto como nunca ao confronto entre culturas muito
diferentes. Singer diz, na citação acima, algo que também pode ser muito útil neste confronto
cultural: ele alerta para a necessidade de não vermos todo e qualquer juízo ético como sendo de
aplicação universal. Parece-me justo que se combata a pena de morte2, mesmo que isso
implique contrariar seriamente uma determinada cultura3, quando se defende a ideia de que a

1 Op. cit., pp. 27-28.


2 Exceptuando necessariamente as situações de legítima defesa. É possível, nem que seja apenas teoricamente,
prever que a pena de morte poderia ser eticamente lícita se fosse a única e derradeira forma de proteger o direito à
vida de uma ou mais pessoas inocentes e/ou indefesas.
3 Por exemplo, a lei islâmica, a sharia, vê a atribuição de uma pena de morte como sendo justa se for como

consequência penal de um crime de igual valor objectivo. Assim, segundo a sharia, quem mata alguém deve ser
morto. Esta visão, que parece ser coerente, e que também foi abundantemente usada no Ocidente durante séculos
e ainda hoje é usada em vários países considerados “civilizados”, é nitidamente contraditória com a defesa do
direito à vida humana. Se não existir uma razão de legítima defesa que a justifique, a pena de morte é uma
infracção ética. Na verdade, nas sociedades onde ainda se recorre à pena de morte, seria perfeitamente possível
isolar o agressor recorrendo a variados meios que não a morte, para que este deixasse de constituir uma ameaça

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pena de morte é uma clara violação do direito à vida. Por outro lado, vejo como desadequado
que alguns ocidentais procurem combater o uso de véu na cultura islâmica, uma vez que os
eventuais juízos éticos que se façam contra o seu uso são juízos que partem de circunstâncias
apenas verificadas na sociedade ocidental, e sem aplicação numa sociedade islâmica. Tais juízos
acerca do uso do véu não são universais.
Singer sugere uma abordagem minimalista à ética, procurando deduzir o comportamento ético
ideal a partir de uma ponderação de interesses de todos os envolvidos numa tomada de
decisão:

«Suponhamos agora que começo a pensar eticamente, a ponto de reconhecer que os meus interesses, pelo simples
facto de serem os meus interesses, já não podem contar mais que os interesses alheios. Em lugar dos meus
interesses, tenho agora de tomar em consideração os interesses de todas as pessoas que serão afectadas pela minha
decisão. Isso exige que eu pondere todos esses interesses e adopte a acção que tenha maior probabilidade de
maximizar os interesses dos afectados. Assim, pelo menos num determinado nível do meu raciocínio ético, tenho
que escolher as acções que têm as melhores consequências para todos os afectados.»1

Esta é a moderna abordagem utilitarista. Há quem procure distingui-la de um utilitarismo dito


“clássico”, conforme as ideias de Bentham e Stuart Mill, que recorreram a termos como
“prazer” e ”sofrimento” em vez do termo “interesses”. Mas, na prática, trata-se da mesma
proposta: erigir uma abordagem à ética que seja ao mesmo tempo universal e intuitiva, baseada
na maximização dos desejos ou interesses dos intervenientes, procurando ao mesmo tempo
garantir que os meus interesses são ponderados de igual modo que os interesses do outro. É
com base nesta igualdade que Singer procura defender o carácter universal do utilitarismo,
porque os meus interesses são vistos como tão válidos como os dos outros. Estamos de
acordo com um facto: a simetria de interesses impede o relativismo. Mas será que tal simetria
permite considerar o utilitarismo como universal? Quero demonstrar de seguida que, mesmo
assim, o utilitarismo é subjectivo e não permite uma visão ética verdadeiramente universal.
É, no entanto, sobre o utilitarismo que Singer constrói a sua visão da ética, e é com base nele
que Singer conclui que o aborto é permissível.
Mas antes de passarmos à questão do aborto, é importante questionar a validade de uma ética
utilitarista. Singer diz que quem quer ir além do utilitarismo tem o ónus de ter que provar
porque razão seria necessário algo mais do que esta abordagem. Assim, recairia sobre o
deontologista a obrigação de apresentar razões sólidas para não ficarmos pelo minimalismo da
ética utilitarista e para procurarmos regras morais absolutas.
Na prática, estamos a falar de abdicar de uma ética baseada em actos certos ou errados em
absoluto, para substituí-la por uma ética mutualista, de consideração, caso a caso, dos
interesses dos envolvidos.
Há, contudo, nisto uma falha que é intuitiva: o termo “interesse” é, por definição, subjectivo.
O interesse é diferente, menor ou maior, consoante o sujeito. Singer ambiciona uma visão
utilitarista, mas ao mesmo tempo, não relativista, da Ética. É certo que não há relativismo num
certo sentido, porque, por exemplo, o meu interesse em estar vivo é considerado como igual
ao interesse de outra pessoa em estar viva, em qualquer lugar e em qualquer tempo. Mas o
interesse depende da vontade de cada um, e por isso, é relativa. A ambição universalista e não
relativista de Singer não parece ser viável sem recorrer a qualquer tipo de deontologia.
Vejamos um exemplo baseado na pena de morte.

para a sociedade. Se se defende o direito à vida humana, não é lícito dar a morte a ninguém sem ser em legítima
defesa.
1 Op. cit., p. 29.

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Singer concordaria comigo que a pena de morte, quando não existe justificação válida baseada
na autodefesa, é algo de profundamente errado. E se a consideramos errada na nossa cultura,
também devemos considerá-la errada noutras culturas. O raciocínio utilitarista de Singer,
baseado na ponderação dos interesses, faz-nos pensar que, normalmente, o condenado à morte
tem interesse em continuar vivo. Por isso, não seria ético condenar alguém à morte sem tomar
em consideração o interesse do próprio condenado. Até aqui, tudo bem.
Em coerência, condenaríamos a pena de morte nos E.U.A., como ela é praticada em vários
Estados, do mesmo modo e pelas mesmas razões que o faríamos relativamente a uma pena de
morte num Estado islâmico. A ética não pode ser relativista!
Mas suponhamos este caso prático de pena de morte: uma mulher muçulmana que foi infiel ao
seu marido acaba de ser condenada à morte por apedrejamento. Tal pena revolta-nos, entra em
conflito com a nossa ética ocidental. O raciocínio utilitarista de Singer leva-nos a racionalizar
essa revolta pelo facto de que o interesse dessa mulher em estar viva está a ser violado, de que
a vida dela vai acabar contra a sua vontade.
Contra a sua vontade?
O raciocínio que fiz apresenta, propositadamente, uma precipitação. Como sabemos a vontade
da mulher condenada a morrer por apedrejamento? Imaginemos que a mulher é uma
muçulmana devota, defensora da justeza da sharia. Uma suposição nada rara nem fortuita. Tal
mulher sente que o mal que fez ao seu marido merece uma punição adequada, segundo os
padrões jurídicos da sharia. Tal mulher sente que a sua morte é o castigo justo para o crime que
cometeu. Como ficam os interesses agora?
Este exemplo mostra bem a subjectividade de uma ética de interesses. A abordagem utilitarista
pode falhar em vários aspectos, mas este parece-me central: o interesse de cada sujeito é
subjectivo. Se a mulher em questão não se importasse com a pena, ou até concordasse com ela,
a decisão da execução da pena de morte já seria ética?
Intuitivamente, afirmamos que não. Que tal decisão, mesmo que a mulher concorde com ela, é
uma decisão injusta. Algo diz-nos que aquela mulher, mesmo sem o saber, terá um seu direito
fundamental violado irreversivelmente com a pena de morte.
Singer poderia levantar uma objecção: a mulher, ao concordar com a pena, seria semelhante a
uma suicida, e é sabido que Peter Singer concorda com o suicídio. Mas esta objecção não
colhe: podemos supor que a mulher quer realmente viver, mas que abdica desse desejo de viver
por algo que considera melhor e maior: o cumprimento da justiça islâmica.
Poderíamos ainda encontrar outra objecção: os interesses dessa mulher estariam errados. A
pressão social sofrida por essa mulher ter-lhe-ia provocado um desequilíbrio nos seus
interesses normais ao ponto de a fazer preferir um desfecho injusto e não ético. Mas, se
optarmos por sustentar esta objecção, estamos a entrar em terreno perigoso: quem somos nós
para fazermos juízos acerca dos interesses desta mulher? Teremos legitimidade para definirmos
se os seus interesses estão certos ou errados? Para impormos a nossa definição de interesses à
dela? Claramente, é a subjectividade de um interesse que explica a fraqueza desta abordagem: o
nosso interesse é tão subjectivo como o dela. Não passa de uma vontade pessoal: a nossa pela
defesa da própria vida, e a dela pela defesa da sua ideia de justiça.
A conclusão evidente é esta: é errado matar alguém, exceptuando a legítima defesa, porque
violamos o direito à vida dessa pessoa. E esse direito existe sempre, independentemente de
essa pessoa querer exercê-lo ou não numa dada situação.
Podemos ir um pouco mais longe, ao cerne do problema: o direito à vida é atribuído, não por
aquilo que a pessoa quer, pelos seus interesses, mas sim por aquilo que a pessoa é. O direito à
vida é atribuído pelo reconhecimento do que uma pessoa é, e não daquilo que deseja ou
procura. Notamos que esta abordagem aos direitos fundamentais, claramente deontológica,
tem uma estrutura muito mais sólida e objectiva. Independentemente do que fizermos da
nossa vida, independentemente da nossa conduta e das nossas vontades, seremos sempre

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pessoas e teremos sempre o direito à vida. Mesmo quando atacamos alguém com a intenção de
a matar, não perdemos esse direito. O que sucede é que, se a nossa vítima nos matar, terá
legitimidade para o fazer, uma vez que pretende proteger um direito de igual valor: o direito à
sua vida. Ao matar-nos em defesa própria, estará a violar legitimamente o nosso direito à vida
para proteger o seu.
Fixar direitos fundamentais deste modo confere um carácter perene aos nossos raciocínios
éticos. Uma ética de volições é subjectiva e inconstante. A fragilidade do utilitarismo está
precisamente no facto de recorrer a uma base subjectiva e inconstante: os interesses dos
envolvidos.
Mas vejamos agora como Peter Singer lida com a questão do aborto. Ele segue a tradicional
abordagem séria à tentativa de legitimar o direito ao aborto, nomeadamente, atacando a
premissa (1) atrás apresentada, ou seja, a de que todos os seres humanos (ou seja, da espécie
Homo Sapiens) têm direito à vida. A argumentação que procura contestar a premissa (1) atrás
referida tem como objectivo principal encontrar a característica (ou conjunto de características)
necessária ao ser humano para que lhe seja reconhecido o estatuto de “pessoa” e
consequentemente o direito à vida. Por outro lado, os que argumentam que o aborto é um acto
eticamente ilícito procuram defender a posse, por parte do feto, da característica (ou conjunto
de características) suficiente para que seja reconhecido o direito à vida a esse ser humano.
Esta argumentação pode assumir formas muito complexas, e pode variar bastante de filósofo
para filósofo, mas pode-se afirmar que há duas principais objecções que costumam ser
apontadas como forma de procurar estabelecer erradamente uma diferença ou uma barreira
entre “vida humana” e “pessoa humana”, são elas a objecção do “especismo” e a objecção da
“potencialidade”.
Se estas objecções fossem justas, de facto, não haveria razão para considerar que:

a) Toda a forma de vida humana (Homo Sapiens) teria direito à vida;


b) Desde a sua concepção, um ser humano seria uma “pessoa”.

A objecção do “especismo”
Um argumento erigido para tentar invalidar a premissa (1), “Todos os seres humanos têm
direito à vida”, consiste em questionar o porquê de reconhecer à espécie Homo Sapiens o direito
à vida, em detrimento de o reconhecer a outras espécies de seres vivos.
Alguns defensores do direito ao aborto com base na distinção entre “vida humana” e “pessoa
humana” procuram apontar à premissa (1) a suposta fraqueza de estar condenada pelo seu
“especismo”, ou seja, pelo facto de procurar dar primazia à nossa espécie no que diz respeito
ao direito à vida. Dizem que, caso encontrássemos outras formas de vida inteligente análogas à
nossa, mesmo que muito diferentes na sua forma, teríamos que também lhes reconhecer o
direito à vida. Por outras palavras, consideram que a categoria de “pessoa”, a tal que garante
segundo eles o direito à vida, também pode abarcar seres vivos de outras espécies.
Tentar apontar a falácia do “especismo” a quem defende inequivocamente aos seres humanos,
e apenas a eles, o direito inalienável à vida, é um fenómeno moderno, mas que está em plena
expansão e já goza de grande popularidade, não obstante se tratar de uma falsa falácia, visto
que o problema está mal colocado.
Peter Singer é um dos pensadores contemporâneos mais conhecidos em termos de denúncia
da falácia de especismo, ideia que ele aplica não só ao problema do aborto, mas também na sua
defesa dos direitos dos animais1.

1 Ver Ética Prática, capítulo 3, pp. 75-99.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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Como podemos constatar, Peter Singer não coloca quaisquer entraves à premissa (2) atrás
apresentada, ou seja, Singer não duvida que a vida humana biológica de um ser da espécie
Homo Sapiens principia na concepção:

«É possível dar à expressão “ser humano” um significado preciso. Podemos usá-la como equivalente a “membro
da espécie Homo Sapiens”. A questão de saber se um ser pertence a determinada espécie pode ser
cientificamente determinada por meio de um estudo da natureza dos cromossomas das células dos organismos
vivos. Neste sentido, não há dúvida de que, desde os primeiros momentos da sua existência, um embrião
concebido a partir de esperma e óvulo humanos é um ser humano; e o mesmo é verdade do ser humano com a
mais profunda e irreparável deficiência mental – até mesmo de um bebé anencefálico (literalmente sem cérebro).»1
(sublinhado meu)

É interessante notar, apenas de passagem, que muitos dos defensores do direito ao aborto
costumam dizer enormidades como “ainda ninguém está de acordo acerca do início da vida
humana”, ou “não é certo que o embrião seja um ser humano”. Claramente, isto sucede
porque desconhecem factos médicos elementares acerca da vida humana.
Não há, de facto quaisquer dúvidas, tanto entre médicos como entre filósofos, de que a vida
humana principia na concepção. Vejamos agora Peter Singer a tentar denunciar o suposto
especismo de reconhecer a todos os seres humanos um direito inalienável à vida:

«O mal de infligir sofrimento a um ser não pode depender da espécie a que esse ser pertence; nem o mal de o
matar. Os factos biológicos que traçam a fronteira da nossa espécie não têm significado moral. Dar preferência à
vida de um ser apenas porque esse ser é membro da nossa espécie pôr-nos-ia na mesma posição que os racistas,
que dão preferência aos membros da sua própria raça»2

É uma afirmação espantosa, esta a proferida por Peter Singer, reputado filósofo!
Peter Singer terá certamente maturado o seu raciocínio antes de afirmar as suas ideias, pelo que
não é razoável supor que a citação acima seja o resultado de um lapso ou de uma precipitação.
É pela força deste trecho e pela convicção nele plasmada que a visão que Peter Singer possui
acerca da Ética se encontra nele revelada.
No entanto, Peter Singer deveria levar em conta o seguinte: se algum ser necessita de Ética ou
de Moral, é o ser humano, e podemos encontrar esta necessidade mesmo no ateu mais
convicto, que procurará nesta disciplina da Filosofia a universal necessidade de Justiça. Para o
crente, a Justiça é um dos mais importantes atributos divinos, mas não é obrigatório que
sejamos crentes para desejarmos a Justiça. Ou seja, desejar a Justiça faz parte da essência do ser
humano, e é graças a este desejo profundo e inato que o ser humano desenvolveu o pensar
ético-moral. Apetece perguntar a Peter Singer se ele não estaria desempregado, caso a Justiça
não fosse um desejo intemporal do ser humano!
E, a seguir a esta, faríamos ainda outra pergunta a Singer: que outro animal deseja a Justiça?
Que outro animal precisa de uma ética, de uma moral, de um qualquer código de conduta sob
o qual reger a sua vida?
Singer diz que «os factos biológicos que traçam a fronteira da nossa espécie não têm
significado moral», mas é a própria moral que só faz sentido quando falamos de seres da nossa
espécie, pois que é apenas a nossa conduta humana que pode ser avaliada em termos morais.
Singer procura obstinadamente uma artificial igualdade entre nós e os restantes animais, mas
enquanto este pensador não hesitará em discutir a moralidade de matar outros animais, o que
dirá ele quando um qualquer animal mata um ser humano?

1 Op. cit., p. 106.


2 Op. cit., p. 108.

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É que não há simetria possível em termos de ética entre um ser humano e um ser vivo de outra
espécie!
Podemos certamente discutir a legitimidade ética de matar um ser vivo não humano, e
podemos fazê-lo porque, enquanto seres humanos, a justeza de todos os nossos actos pode ser
discutida e questionada. Mas quem irá discutir a eticidade da morte de um ser humano
provocada por um animal? Se um urso matar um homem, poderemos discutir a ética do acto
desse urso? Evidentemente, há algo de diferente entre a conduta de um qualquer ser vivo não
humano e a conduta de um ser humano.
A pretensa falácia do especismo cai por terra quando nos damos conta de que a ética só faz
sentido para quem aspira à Justiça. Ora, aspirar à Justiça é apenas característica dos seres vivos
dotados de pensamento abstracto. E, até prova em contrário, a única espécie de seres vivos
capaz de raciocinar de forma abstracta, e capaz de desejar coisas abstractas como Justiça, é o
ser humano, é o Homo Sapiens.

A objecção da “potencialidade”
Uma grande parte da Ética moderna, baseada em raciocínios utilitaristas, procura deduzir os
direitos de um indivíduo a partir dos seus desejos. Deste modo, e seguindo o exemplo sugerido
por Peter Singer, roubar um automóvel só seria errado se a vontade do respectivo dono fosse
violada. Ou seja, o direito a possuir um automóvel só existiria se o seu proprietário não
desejasse que lho roubassem.
Esta forma de pensar em termos éticos é relativamente recente, terá pouco mais de dois
séculos1, e no entanto está a conquistar terreno e a mudar radicalmente a forma de abordar
problemas éticos fundamentais como o do aborto.
As duas grandes divisões em Ética são, basicamente, a da deontologia e a do utilitarismo. O
deontologista, no exemplo dado atrás, diria que é errado roubar o automóvel pela razão de que
se trata de violação de propriedade privada, independentemente de considerações acerca dos
desejos do proprietário. Por outro lado, um utilitarista apenas consideraria a situação como
ilícita se o desejo do proprietário fosse desrespeitado.
O deontologista pensa com base numa mão cheia de axiomas éticos acima de discussão, como
o do direito à vida, o do direito à liberdade, o do direito à propriedade privada, entre outros. O
utilitarista considera que tais axiomas não são demonstráveis, e por isso, procura estabelecer
direitos caso a caso, com base, não só nos desejos dos indivíduos, mas também na decisão que
maximiza as vantagens para todos os envolvidos na decisão.
O problema está em que a ética utilitarista não possui alicerces sólidos, porque se baseia em
realidades subjectivas e individuais como as das volições humanas. Enquanto que a ética de
deontologia procura alicerces intelectualmente universais, e por isso, válidos para todos os
seres humanos, independentemente do tempo ou do espaço, a ética de utilitarismo faz com
que uma mesma acção em concreto possa ser boa ou má dependendo do contexto subjectivo
dos desejos e das vantagens/desvantagens para todos os envolvidos.
Deste modo, é com base numa visão utilitarista da Ética que se considera que matar um ser
humano apenas é errado se se violar o eventual desejo de viver desse ser humano. Por esta
linha de raciocínio, se o feto não desejar estar vivo porque nem sequer sabe que está vivo, ou o
que significa deixar de estar vivo, então não haverá mal em matá-lo.
O deontologista não hesita: matar um ser humano é sempre um mal, apenas justificável em
legítima defesa, o que não se aplica no caso do aborto. Logo, o deontologista conclui: o aborto
é um erro, um crime, um acto ilícito em termos éticos.

1Jeremy Bentham (1748-1832) foi um dos primeiros filósofos modernos a propor teorias utilitaristas. Foi seguido
por James Mill (1773-1836), pelo seu filho John Stuart Mill (1806-1873).

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O utilitarista, por outro lado, procura dizer que o acto de matar outrem não tem que ser,
necessariamente, algo de errado. Abortar pode não ser mau, se o ser humano que matamos
não tiver consciência de que está vivo, e consequentemente não tiver desejo de viver.
É, então, típico de um utilitarista argumentar que os que negam a legitimidade ao aborto estão
a incorrer numa falácia de “potencialidade”. Dizem que um zigoto, um embrião ou um feto
são “pessoas em potência”, ou seja, tendem a se tornarem, num dia futuro, em seres humanos
autoconscientes e com o desejo de viver, com projectos de vida.
De uma perspectiva totalmente utilitarista, o direito à vida surgiria com o desejo de a viver,
algo que só seria possível em seres dotados de autoconsciência e de consciência do mundo em
seu redor. Com consciência da diferença entre a vida e a morte.
É, também, deste modo que Peter Singer, juntamente com Michael Tooley, defende que o
infanticídio não é um mal ético, porque as crianças muito novas demoram vários meses,
mesmo anos, a se aperceberem da diferença entre a vida e a morte, e consequentemente, a
desejarem estar vivas e permanecer vivas.
Tais defensores do direito ao aborto dizem que o zigoto, o embrião e o feto não são “pessoas”.
Que, sendo “pessoas em potencial”, só terão o direito à vida quando a “pessoa em potencial”
que trazem dentro de si se desenvolver plenamente.
Infelizmente, muitos dos vêem o aborto como um erro ético, não hesitam em concordar com
os seus adversários, afirmando que o zigoto, o embrião e o feto são “pessoas em potência”, o
que contribui para o aprofundar do equívoco.
No entanto, é perfeitamente defensável, de uma perspectiva ética deontológica clássica, que ao
consideramos um zigoto, um embrião ou um feto estamos perante uma pessoa na acepção
plena da palavra desde o início da vida humana, ou seja, desde a concepção. Na tentativa de
esclarecer esta afirmação, socorro-me do trabalho do Dr. Stephen Schwarz, cuja
impressionante obra de refutação do direito ao aborto está disponível gratuitamente na
Internet1. Schwarz diz que o facto de um ser humano demorar a manifestar plenamente todas
as funcionalidades que reconhecemos a uma pessoa humana adulta, não permite que se deduza
que ele não é uma pessoa humana. Segundo Schwarz, o facto de o feto ainda não “funcionar
como pessoa” de forma plena não quer dizer que não seja verdadeiramente uma pessoa na
acepção rigorosa do termo.
A questão central é esta: embutida no património genético e totipotente do zigoto está toda a
plenitude biológica de qualquer pessoa humana. Está tudo ali, desde a capacidade de conhecer
o mundo em redor, até à capacidade de se conhecer a si mesmo. Está ainda a capacidade
latente, única no universo dos seres vivos, de pensar de forma abstracta. Mesmo o ateu mais
convicto tem que reconhecer que a capacidade intelectual mais abstracta de todas, a de
conceber um Ser transcendente como Deus, é característica única dos seres vivos da espécie
Homo Sapiens.
É esta a característica única e distintiva dos seres humanos, independentemente da sua raça, do
seu género, da sua idade: a da vocação para a abstracção intelectual.
O zigoto, o embrião ou o feto não são “potencialmente pessoas”, são mesmo pessoas!
Nada mudará, na sua estrutura genética, desde o momento da concepção. Nada de novo será
adicionado à sua essência humana até à idade em que sejam capazes de pensar em modo
abstracto e de desejar viver por si mesmas. O ser humano é, essencialmente, o mesmo tanto na
fase de zigoto como quando já criança aprende a discernir a vida da morte.
Tratam-se de faculdades latentes, que estão presentes desde o primeiro dia mas que apenas se
manifestam formalmente meses mais tarde. O raciocínio que proponho para a defesa do
direito à vida humana desde a sua concepção é, em suma, o seguinte:

1 Dr. Stephen Schwartz, The Moral Question of Abortion, http://www.ohiolife.org/mqa/toc.asp.

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1. Considerações éticas só fazem sentido em seres vivos que valorizem a Justiça;
2. Até agora, só se detectou uma espécie capaz de o fazer: a espécie Homo Sapiens;
3. Desde a concepção que qualquer forma de vida humana pertence à espécie Homo
Sapiens, mesmo que se trate de um ser humano com deficiências graves ou profundas,
incluindo a anencefalia (ausência de cérebro);
4. Nada de novo é adicionado à essência dessa vida humana até à sua morte; quando a
criança começa a poder realizar pensamentos abstractos, isso significa que ela apenas
desenvolveu naturalmente certas qualidades que possuía embutidas nos seus genes
desde a concepção.

A essência do erro de distinguir “potenciais pessoas” de “pessoas” jaz numa visão distorcida da
essência do ser humano: quem o faz, fixa erradamente os seus conceitos à inconstância da
forma humana, em vez de os fixar na perenidade da essência humana. O ovo humano
fecundado, na sua totipotência genética, não possui maior complexidade do que um adulto ou
um idoso. Não existe mais informação genética num adulto do que num feto! Estamos apenas
perante alterações na forma, e não na essência. Se fazemos depender a ética de abortar daquilo
que é visível, ou da sofisticação intelectual que o ser humano vai gradualmente, desenvolvendo,
estamos a cometer um enorme erro.
Os direitos de qualquer ser humano devem ser reconhecidos pela sua essência humana, por
aquilo que ele é, e não por aquilo que ele, numa dada fase do seu desenvolvimento formal, é
capaz de fazer.
Uma criança portadora de Trissomia 21 (“Síndroma de Down”), ou recorrendo a um caso mais
extremo, uma criança anencefálica, pertencem ambas à espécie Homo Sapiens, e fazem parte de
uma categoria biológica única de seres dotados de pensamento abstracto, e consequentemente,
de seres capazes de aspirar à Justiça e de reconhecer direitos fundamentais aos elementos da
sua espécie. Mesmo que, no caso limite da anencefalia, um determinado ser humano não tenha
quaisquer possibilidades de desenvolver as suas capacidades intelectuais. Se uma criança ou um
adulto, numa dada fase da sua vida, perdem faculdades periféricas, ou perdem mesmo
faculdades fundamentais de forma irremediável, elas não deixam por essa razão de merecer o
estatuto mais elevado que se reconhece a qualquer ser vivo: o estatuto de ser humano, que
porque é ser humano, tem direito à vida.
Se, um dia, viermos a conhecer eventualmente outra espécie de ser vivo diferente da nossa à
qual seja reconhecida a capacidade de pensamento abstracto e o mesmo desejo de Justiça,
evidentemente que teremos que alargar a nossa categoria de “pessoa” aos seres dessa outra
espécie. Mas até ao momento, sem termos descoberto tal espécie, não faz qualquer sentido
discutir o direito à vida de outros seres que não os da espécie Homo Sapiens. Podemos dizê-lo
sem qualquer receio de incorrermos em falácia.
Repare-se como não foi necessário recorrer a qualquer argumento transcendente, de tipo
religioso. Tais argumentos caracterizam-se por valorizarem o ser humano muito para além das
suas meras faculdades biológicas. Qualquer coerente visão transcendente do ser humano não
se limita a ver a unicidade de cada ser humano no seu património genético, o que permite, por
exemplo, considerar dois gémeos verdadeiros (com exactamente o mesmo património
genético) como pessoas únicas e irrepetíveis.
Contudo, para concluir acerca do erro de abortar, não é necessário tornar a discussão mais
complicada, envolvendo argumentação religiosa.

Termino deixando esta ideia fundamental: ao longo dos seus nove meses de gestação, e ao
longo dos seus primeiros anos de vida, todo o ser humano desenvolve as capacidades que
possui desde a concepção. A própria palavra “desenvolvimento” ou “evolução” tem no seu
significado esta ideia: partir de características ou faculdades que temos em nós mesmos e tentar

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levá-las até ao limite, dentro das nossas possibilidades. Quando uma criança aprende a falar, ou
quando anos mais tarde aprende a diferença entre a vida e a morte, está apenas a desenvolver
capacidades que possuía desde que foi concebida. E parece-me bastante lógico e sensato que se
atribuam direitos fundamentais como o direito à vida partindo de realidades objectivas como
as capacidades únicas da nossa espécie em termos de pensamento abstracto, e não com base
em realidades subjectivas, como seria por exemplo, o grau que cada indivíduo humano atinge
em termos do seu desenvolvimento pessoal dessas capacidades que todos temos embutidas na
nossa essência.
(por terminar)

6.5.5 O contributo de Michael Tooley (1983)


(por terminar)

6.5.6 O contributo de Mary Anne Warren (1996)


(por terminar)

6.5.7 O contributo de Donald Marquis (1989)


A solução para o dilema ético do aborto está em encontrar a propriedade suficiente que
garanta à vida intra-uterina o direito a viver. Quem o diz é o filósofo norte-americano Donald
Marquis, que em 1989 publicou um importante artigo intitulado Why abortion is immoral1, no
qual propõe para propriedade suficiente para se ter direito à vida a posse de “um futuro como
o nosso” (“a future like ours”). Marquis procura encontrar a razão fundamental que torna o
homicídio de uma pessoa num acto errado, e descobre-a no facto de que o homicídio priva a
sua vítima de um futuro com valor, “um futuro como o nosso”, um futuro que essa pessoa
teria se a sua vida não tivesse sido interrompida abruptamente e contra a sua vontade.
Claramente, tanto o zigoto, como o embrião e como o feto possuem um futuro com valor, seja
ele qual for, independentemente da sua duração temporal ou da quantidade e qualidade de
felicidade pessoal que tal futuro venha a possuir.
Na verdade, nós não sabemos o que o futuro reserva a cada um de nós, pelo que não faz
sentido fazer juízos a priori acerca do valor que esse futuro terá, seja em absoluto (se tal sequer
é possível), seja para a pessoa que o vai viver. Apelar para o aborto como forma de evitar o
sofrimento é arriscado e, em última análise, carece de justificação sólida: há vidas com
sofrimento que são muito valorizadas pelas pessoas que as vivem.
O erro fundamental em matar um ser humano, em qualquer fase da sua vida biológica, está em
privá-lo de um “futuro como o nosso”. Este argumento é difícil de refutar e está isento de
argumentação religiosa.
(por terminar)

6.5.8 O contributo de Mark Brown (2000)


(por terminar)

6.5.9 O contributo de David Boonin (2002)


(por terminar)

1 Ver: The Journal of Philosophy, 86, 4, 1989, pp. 183-202. Ver também o artigo mais recente, An argument that abortion
is wrong, in La Follete, Ethics in Practice, 2ª ed., Malden, Blackwell, 2002, pp. 83-93.

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6.6 O Princípio do Duplo Efeito
Em situações de dilema ético, é útil o recurso a um clássico método de análise que dá pelo
nome de “Princípio do Duplo Efeito”, e que é útil quando está em jogo tomar uma decisão
que implique ponderar dois valores eticamente equivalentes, como é o caso das decisões
médicas que visam salvar a mãe numa situação de gravidez de risco, sem provocar
deliberadamente a morte do seu filho. Este princípio, de modo genérico, é útil para ajuizar a
eticidade de uma decisão que trará forçosamente duas consequências, uma boa e outra má. Daí
resulta o nome de “Princípio do Duplo Efeito”, o efeito desejado (bom) e o indesejado (mau).
O Princípio do Duplo Efeito1 nasce na monumental obra de São Tomás de Aquino (1225-
1274), a Summa Theologica, a propósito da justeza de matar outrem em legítima defesa:

«(…) nada impede um acto de ter dois efeitos, um dos quais é desejado, e o outro indesejado. Ora, os actos
morais recebem a sua espécie de acordo com o que é desejado, e não de acordo com o que está à parte da intenção,
visto que tal é acidental como explicado acima [43, 3; I-II, 12, 1]. Assim, o acto de defesa própria pode ter
dois efeitos, um sendo a salvação da própria vida, e o outro a morte do agressor. Desde modo este acto, porque a
intenção era salvar a própria vida, não é ilícito, considerando que é natural que todas as coisas, em podendo,
conservem o seu ser. Não obstante, apesar de este acto proceder de uma boa intenção, o acto pode tornar-se ilícito
se não for proporcional ao fim [desejado]. Deste modo se um homem, em defesa própria, usa uma violência
maior do que a necessária, [isso] é ilícito. Se repele a força verdadeiramente com moderação, a sua defesa será
justa, porque de acordo com os juristas [Cap. Significasti, De Homicid. volunt. vel casual.], “é justo repelir a
força pela força, desde que não se exceda os limites de inculpabilidade”.»2 (tradução feita “livremente”)

São Tomás diz que matar alguém em defesa própria pode ser lícito, visto que a intenção de
salvar a própria vida é lícita em si mesma, e que repelir um ataque como única forma de salvar
a própria vida, se feito de forma proporcionada, também é lícito. Ora, se um ataque é dirigido à
nossa vida, é possível que a única reacção que tenhamos disponível seja fazer algo na mesma
proporção: atacar a vida do nosso agressor. Nestes casos, dar a morte a outrem é lícito3, não
querendo matar o nosso agressor, e só o fazendo como forma única e inevitável de salvar a
própria vida. Vejamos agora a formulação geral tradicional do Princípio do Duplo Efeito, e a
sua aplicação ao dilema ético de uma gravidez de alto risco. As formulações tradicionais deste
princípio consistem em quatro condições necessárias para que a acção seja eticamente lícita:

1. A acção deve ser eticamente lícita (boa), ou pelo menos eticamente neutra;
2. A consequência má não pode ser desejada em si mesma; se a consequência má
(indesejada) pudesse ser evitada por outra acção diferente, essa deveria ser tomada;
3. A consequência boa (desejada) não pode ser atingida indirectamente por meio da
consequência má (os fins nunca podem justificar os meios), ou seja, pelo menos a
consequência boa deve provir directamente da acção tomada (a consequência má
poderá ser directa ou indirectamente causada pela acção);
4. A consequência boa deve ter peso igual à consequência má.

1 Informação baseada no artigo Doctrine of Double Effect da Stanford Encyclopedia of Philosophy, em


http://plato.stanford.edu/entries/double-effect (28 de Julho de 2004).
2 Ver o texto da segunda parte da segunda parte, questão 64, Art.º 7.º, em inglês:
http://www.newadvent.org/summa/3064.htm#7,em latim: http://www.corpusthomisticum.org/sth3061.html#41804
3 É precisamente com base neste raciocínio que a Igreja Católica ainda permite, mesmo que teoricamente, a pena

de morte, conquanto se comprove ser esta a única forma de legítima defesa de uma pessoa ou de um grupo de
pessoas perante um agressor que atente contra a sua vida. Ver, a este respeito, o ponto 56 da encíclica do Papa
João Paulo II, Evangelium Vitae, de 25 de Março de 1995:
http://benedictumxvi.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_25031995_evangelium-vitae_po.html

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Como vemos, a aplicação do Princípio do Duplo Efeito à situação de uma gravidez de risco
faz-nos concluir que uma acção (intervenção cirúrgica, por exemplo) eticamente lícita ou
neutra em si mesma, mas que provoque o aborto como consequência, só é eticamente lícita: se
não houver acção alternativa para salvar a vida da mãe e que permita salvar o feto; se o aborto
não for desejado como um fim em si mesmo; se o aborto não for provocado directamente
como meio para se obter, indirectamente, a salvação da vida da mãe; e que a acção só será
tomada em caso de risco iminente para a vida da mãe, porque só a vida da mãe tem peso igual
à vida do feto. As condições necessárias são então:

1. A acção (intervenção cirúrgica, por exemplo) de salvar a vida da mãe ser eticamente
lícita (boa);
2. A morte do feto (consequência) não ser desejada em si mesma; se a morte da mãe
puder ser evitada salvando o feto, essa deve ser a acção tomada;
3. A salvação da vida da mãe não pode ser obtida indirectamente, matando primeiro1
(directamente) o feto; pelo menos a salvação da vida da mãe deve ser consequência
directa da acção tomada (a morte do feto pode ser consequência directa ou indirecta da
acção);
4. Igual peso ético das consequências boa e má: a vida da mãe tem peso ético igual à vida
do feto.

Um exemplo clássico é o da mulher grávida com um tumor que inviabiliza o seu útero. O
médico que decida remover o útero para evitar a morte da mulher, apesar de saber que o feto
não sobreviverá sem o útero materno, está a agir de forma ética. O médico não deseja o aborto
em si mesmo, deseja salvar a vida da mulher e esta não sobreviverá se o útero não for
removido. Por outro lado, o médico não mata o feto directamente, limita-se a extirpar o útero.
Ou seja, a morte do feto não é um passo intermédio para, indirectamente, salvar a vida da
mulher. A remoção cirúrgica do útero canceroso gera a consequência directa da salvação da
vida da mãe e a consequência indirecta, inevitável e indesejada da morte do feto.
Este princípio é extremamente equilibrado, porque também permite deduzir que o médico que
opta por não agir numa situação destas está a portar-se de forma eticamente ilícita. Se o
médico nada faz para evitar o alastramento do tumor no útero para o resto do corpo da
mulher, estará, por ausência de acção, a ser responsável por negligência pela morte da sua
paciente, cuja vida depende directamente da sua acção técnica. Para além de morrer o filho,
morrerá também a mãe, sem o devido apoio médico.
Um mau argumento, usado nalguns debates para combater a posição ética dos crentes, consiste
em afirmar que um crente prefere que nada seja feito pelo médico para que “seja feita a
vontade de Deus”. Normalmente, uma pessoa pouco informada poderia pensar que o crente
católico, perante o dilema atrás dado como exemplo, preferiria deixar morrer a mulher e o feto.
Isto está profundamente errado. Não fazer a nossa obrigação ética é certamente um erro ético,
uma negligência.
O Princípio do Duplo Efeito é poderoso porque possui um apelo universal, que faz com que
também seja defendido por pensadores laicos. É um princípio independente de qualquer
crença religiosa, pois apela a conceitos universais de ética e de direitos fundamentais.
Chegados ao cerne deste texto, após análise das várias questões éticas em jogo, estamos em
condições de apresentar a conclusão final acerca da ética do aborto:
É sempre eticamente ilícito matar directamente um zigoto, embrião ou feto,
porque nunca é aplicável a situação de legítima defesa.
O zigoto, embrião ou feto nunca atentam contra a vida de ninguém.

1 “Primeiro” em sentido causal e não temporal. A diferença é subtil mas essencial.

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7. O drama humano e social do aborto

Um atentado contra a maternidade e contra a mulher


Inúmeros estudos indicam que a maioria das mulheres que descobrem que estão grávidas
quando não o desejavam sofre um grande e profundo abalo psicológico, abalo este que é
sentido por essas mulheres como uma experiência assustadora e bem real, semelhante a uma
“morte”. A vida que tinham antes de descobrirem a sua gravidez parece perdida para sempre.
Para muitas dessas mulheres, é como estar à beira de um precipício, quando tantas coisas
horrorosas se encontram à sua frente e podem suceder: a) possível perda de namorado,
marido, companheiro; b) possível perda de emprego; c) possível ruína de uma carreira
profissional; d) possível drama financeiro de sobrevivência, entre tantos outros.
Mas a mulher que concebeu é, de facto, uma nova mulher: é mãe.
A maternidade, mesmo no caso ideal da mulher sem os problemas acima indicados, é
certamente sentida pela maioria das mulheres como uma radical mudança de estado. Uma
mulher, depois de ficar grávida, nunca mais é a mesma. É por estas razões que a nossa
sociedade deve uma especial protecção à mãe, muito maior do que a que poderá ser dada a um
pai, visto que a mulher que é mãe está numa situação psicológica particularmente sensível e
vulnerável. Se isto sucede mesmo com as mulheres que têm a sorte de não ter os problemas
indicados acima, então como será com as mulheres em dificuldades?
Para além disto, as mulheres que optam por não abortar nunca se arrependem depois!
A resposta da nossa sociedade, com a possível vitória do “sim”, a solução que tencionamos dar
a estas mulheres, que são mães desde a concepção, é a morte dos seus filhos. É o aborto. Claro
que podemos depois apresentar inúmeras boas intenções: aconselhamento psicológico,
planeamento familiar, apoio pós aborto, sessões de esclarecimento. Mas antes de lhes darmos
isso tudo, damos-lhes a morte do seu filho ou filha como opção. O aborto, mesmo legal,
mesmo em “estabelecimento de saúde autorizado”, não é um direito reprodutivo: é um
atentado contra a maternidade e contra a essência do ser mulher.

A “morte” da mulher que aborta


Uma das verdades mais negadas pelos que defendem o direito ao aborto diz respeito às
terríveis sequelas psicológicas que afligem a esmagadora maioria das mulheres que abortam.
Contra este inegável facto negro, costumam invocar as “consultas de apoio psicológico” pós-
aborto, pensando que trágica (porque errada) decisão de abortar se resolve com uma ou várias
sessões “terapêuticas”. A mulher que aborta também sofre uma espécie de morte, não menos
dolorosa do que a experiência de morte que todos sentimos quando morre alguém que nos é
muito próximo. Mais dolorosa ainda será esta experiência quando a mulher que abortou se der
conta de que contribuiu voluntária e decisivamente para a morte do seu filho. Quem poderá
argumentar, para tentar ajudar esta mulher, que “o aborto é um direito seu”, ou que “a saúde
reprodutiva moderna tem que incluir o aborto”, se a mesma mulher dorme mal à noite, tem
pesadelos que só ela conhece, sofre profundamente por dentro quando olha para outras
crianças ou para quaisquer imagens que lhe evoquem infância ou maternidade? A mulher que
abortou, ou que foi convencida a abortar, “morre” também com o seu filho, sofre uma morte
não física mas sim psicológica.
Uma morte não se apaga. A mulher que abortou terá que suportar essa decisão de morte toda a
vida. Poderá aprender a viver com isso, sobretudo se se arrepender da decisão que tomou, e
poderá aprender a voltar a viver a sua vida dentro de uma regular normalidade. Mas algo de
essencial morreu nela, quando decidiu abortar.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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O aborto tem duas vítimas mortais: uma que sofre de morte física e outra que sofre uma morte
psíquica. Perante este cenário, não é escandaloso falar em “direitos abortivos”?
Tanto o aborto legal como o aborto clandestino “matam” a mulher. Será que legalizar o aborto
resolve este profundo drama humano?
A maior ofensa que um Estado pode fazer a uma mulher é ajudá-la a abortar.

A Europa envelhece…
Portugal é um dos países da Europa que envelhece mais depressa.
É bizarro promover políticas abortivas liberais quando o país necessitava de outro tipo de
medidas: apoio à natalidade e às famílias numerosas, criação e financiamento de centros de
acolhimento de crianças abandonadas, facilitação dos processos de adopção de crianças, entre
outras. O aborto livre surgiu nos E.U.A. em 1973, no rescaldo do caso Roe vs. Wade., e hoje
em dia, nesse país, a maré está a virar no sentido de restringir de novo o aborto, procurando
desenvolver estruturas sociais que protejam a maternidade.
Portugal, que gosta de importar tardiamente os erros dos outros, planeia agora liberalizar o
acesso ao aborto até às dez semanas, e isto claramente em “contra-ciclo”, quando as taxas de
natalidade prevêem a extinção das nossas populações a médio prazo se nada for feito para
travar esse “suicídio” demográfico europeu.
Os que defendem o acesso ao aborto falam em “progresso”, em “civilização”, sempre que um
país se torna permissivo nestas matérias, e nisto são socorridos por um Parlamento Europeu
autista, que ainda hoje insiste no acesso legal ao aborto1. Como se atrevem a fazê-lo num
contexto destes? Como é possível que tais argumentos falsos, que desprotegem e atacam a
mulher, ainda sejam tidos em conta?

«Trazer ao mundo uma criança indesejada?»


Este slogan tão gasto continua a ser usado como um pretenso argumento para o recurso ao
aborto. Mas Portugal necessita desesperadamente de crianças. Nem que sejam crianças
"indesejadas" pelos pais, ou crianças cujos pais não as podem suportar, porque existirão
sempre soluções de acolhimento para tais crianças. Devo confessar que me causa estranheza
um certo tipo de argumentação legitimadora do recurso ao aborto que defende ser errado
deixar vir ao mundo uma criança indesejada. Uma argumentação absurda, que prefere que se
termine com a vida dessa criança se os progenitores não a desejarem. O absurdo desta
argumentação está, em grande medida, no facto de que também seria aplicável após o
nascimento da criança indesejada.
Essa criança poderia ser desejada até ao final da gravidez, e ser rejeitada após o nascimento, o
que poderia suceder caso a criança nascesse com alguma doença grave ou alguma deficiência
mais ou menos profunda não detectada na gravidez e os pais se quisessem alienar da
responsabilidade de tomar conta dela. Nestes casos, de crianças que se vissem rejeitadas pelos
pais após o nascimento, ninguém pretenderia, certamente, tornar lícita a "interrupção
voluntária da vida, a pedido dos pais, até aos N meses de idade".
É comum dizer-se que o Estado não pode nem consegue garantir apoio de sobrevivência a
estas crianças “indesejadas”. Mesmo que isto fosse absolutamente verdadeiro, o que é
questionável, não podemos ignorar o inegável crescimento e propagação de movimentos
cívicos de apoio à maternidade ou de recolha de crianças indesejadas ou abandonadas: Ajuda
de Mãe, Ajuda de Berço, Associação Missão Vida, Associação Portuguesa das Famílias
Numerosas, Federação Portuguesa pela Vida, Fórum da Família, Juntos pela Vida, Movimento
de Defesa da Vida, Ponto de Apoio à Vida, Sinais de Vida, Vida Universitária, e apenas para

1 Jornal Oficial nº C 271 E de 12/11/2003 p. 0369 – 0374, em http://eur-lex.europa.eu

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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citar uma dezena deles, deixando de fora centenas de pequenos movimentos espalhados um
pouco por todo o país e bem próximos das populações!
Em última análise, teríamos sempre a Igreja Católica: nenhuma criança deixada dentro de uma
igreja, mesmo que a mãe a deixasse lá de forma discreta e permanecesse anónima, ficaria
desprotegida. Seria imediatamente acolhida, protegida e encaminhada para organizações que
tratariam dela.
Para mais, temos ainda a questão da adopção. Milhares de casais procuram no nosso país
crianças para adoptar. Como é possível (como poderá ser racional) que, caso vença o “sim”, se
torne mais fácil abortar, matar uma vida humana usando recursos do Sistema Nacional de
Saúde ou recorrer a uma clínica privada com subsídio estatal, quando ainda é tão difícil adoptar
uma criança “indesejada”, porque os processos de adopção são lentos, ineficientes e
burocráticos?

Liberalizar o aborto aumenta o número de abortos


Não faz sentido procurar argumentar que a despenalização do aborto vai reduzir o número de
abortos. A estatística noutros países demonstra o contrário, o que era facilmente expectável1.
Vejamos porquê…
Se uma mulher receosa de ter um filho tem pela frente uma intervenção arriscada e sinistra
como é a que ocorre em determinados casos de aborto clandestino, esses receios seriam
fortemente atenuados se a mulher que quisesse abortar tivesse o forte apoio psicológico da
legitimação do Estado e pudesse dispor das instalações hospitalares e respectivos médicos, e
do erário público, para terminar a sua gravidez com mais segurança e apoio financeiro (um
aborto clandestino, caso o aborto seja legalizado até às dez semanas, poderá passar a sair mais
caro do que um aborto praticado num hospital autorizado pelo Estado).
É inevitável que o eventual "sim" neste referendo provoque, no mínimo, um ligeiro
incremento no número de abortos, contrariamente ao que é apregoado pelos defensores do
direito ao aborto por opção da mulher, que dizem que isso faria diminuir o número de abortos.
Se bem que haverá mulheres que abortam, conscientes da gravidade e do erro do seu acto, e
que o fazem impelidas por extrema necessidade, também as haverá que apenas ponderam entre
abortar e não abortar pelo facto de que temem os riscos para a sua saúde do recurso ao aborto
clandestino. A despenalização do aborto poderá não alterar o número de abortos praticado
pelo primeiro grupo, o das mulheres que o fazem por extrema necessidade mas conscientes de
que é algo de errado. Mas alterará certamente, por uma questão de simples dedução lógica, o
número de abortos praticado por aquelas mulheres que, não ponderando ou questionando a
licitude ética do seu acto, apenas se preocupam com as condições de saúde em que o vão fazer,
ou ainda aquelas mulheres que tinham dúvidas acerca da legitimidade ética do aborto, e que se
deixaram convencer de que não há mal nenhum em abortar porque passou a ser algo “legal”.
Essas, libertas dos riscos do aborto clandestino, e libertas das dúvidas éticas, acorrerão aos
hospitais, cientes de que o seu "aborto" ficará entregue em "boas mãos", que será conduzido
em segurança, e que eventualmente será pago, pelo menos parcialmente, pelos contribuintes!

Sexualidade responsável
A cultura hedonista e utilitarista da sociedade moderna entrou uma imparável rota de
desresponsabilização da sexualidade. Uma gravidez indesejada é sempre justificada com: a)
falta de acesso a métodos contraceptivos; b) falta de acesso a educação sexual; c) falha técnica
do método contraceptivo. Para onde vai a responsabilidade do homem e da mulher?

1 Em breve, uma versão revista deste texto conterá dados estatísticos recolhidos junto de fontes credíveis.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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8. Conclusão

Este texto pretendeu argumentar acerca da verdade e justeza da resposta "não" ao próximo
referendo acerca da despenalização do aborto até às dez semanas a pedido da mulher em
estabelecimento autorizado. Este texto também serve para argumentar acerca da ilicitude ética
do aborto em qualquer fase da gravidez. Para além disto, também me parece claro que exigir a
um médico que pratique um aborto, ou um médico praticar um aborto de livre vontade e não
coagido, são ambos actos que violam o clássico juramento ético feito por qualquer médico,
baseado no Juramento de Hipócrates1, de proteger a vida humana em qualquer circunstância e
dentro das suas possibilidades. Em resumo, o argumento pelo “não” ao aborto é o seguinte:

a) A vida de um ser humano principia com a concepção, cujo "momento zero" se define
de forma segura com a singamia2, a fusão do material genético humano (o núcleo de 23
cromossomas do espermatozóide e o núcleo de 23 cromossomas do óvulo) no núcleo
diplóide que dá pelo nome de "zigoto"; esta definição de “vida humana” é a corrente
em qualquer manual contemporâneo de Medicina e não depende de quaisquer
considerações acerca da definição ética de “pessoa humana”;

b) Visto que o património genético do zigoto, presente nos seus 46 cromossomas, se


identifica rigorosa e cientificamente com o chamado "genoma humano", e que esse
núcleo é totipotente (não carece de património genético externo para se desenvolver
plenamente e de forma viável, nas suas várias, diferenciadas e interdependentes formas
celulares) estamos literalmente perante uma vida humana, na acepção plena desta
expressão;

c) Visto que a totipotência do zigoto demarca-o, de forma clara, de outro tipo de células
ou aglomerados celulares considerados independentemente, demarcando-o ainda do
espermatozóide e do óvulo, visto que nenhum deles em si mesmo, independentemente
do seu conteúdo genético, é totipotente como é o zigoto;

d) Visto que, se não existirem interferências externas nocivas, ou inviabilidades intrínsecas


ao próprio zigoto, este passará desta forma à de embrião, e posteriormente à de feto, e
posteriormente à de recém-nascido, estes termos sendo apenas designações
convencionais para classificar alterações morfológicas e psíquicas, que em nada mudam
a pertença deste ser vivo à espécie humana até ao final da sua vida biológica, do mesmo
modo que outras alterações morfológicas e psíquicas (infância, adolescência, idade
adulta, velhice) em nada alterarão a sua pertença à espécie humana; o zigoto é um ser
humano, como é o embrião, o feto ou qualquer ser humano nascido;

e) Visto que uma distinção artificial entre “ser humano” e “pessoa humana” parece ser
apenas um expediente para tentar contornar a ilicitude do aborto, porque o direito à
vida baseia-se naquilo que o zigoto, embrião ou feto são, e não naquilo que ainda não
1 Após a revisão que a World Medical Association fez ao juramento em 2005, a frase “problemática” que era
directamente contraditória com a prática do aborto foi suprimida, certamente para tentar contornar este tipo de
críticas. Contudo, a fórmula clássica do Juramento, até 1983, protegia especificamente a vida humana desde a
concepção. Ver a nota de rodapé acerca do Juramento do Médico, no capítulo 6.3. Não obstante, o juramento
actual ainda obriga o médico a proteger a vida humana, e por isso, torna perjuro todo e qualquer médico que
pratique um aborto, mesmo que num quadro legislativo que confira legalidade jurídica a tal acto.
2 Ver considerações estabelecidas atrás acerca do início da vida humana no capítulo 6.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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são capazes de fazer ou desejar; apesar de o zigoto, embrião ou feto não se
comportarem como uma criança ou adulto, no sentido de terem projectos de vida, de
terem plena autoconsciência, quando evoluem ao ponto de o conseguirem, fazem-no
porque desenvolveram capacidades que já tinham desde a concepção, mas que se
encontravam latentes; a autoconsciência, a abstracção intelectual, a capacidade de
distinguir a vida da morte são tudo capacidades sofisticadas que não são “adquiridas de
fora”, do mundo exterior, mas sim “desenvolvidas de dentro”, a partir de capacidades
inatas dos seres da espécie Homo Sapiens;

f) Visto que existe consenso generalizado de que o acto de privar uma pessoa inocente da
sua vida é eticamente ilícito1, e ponderando as possíveis razões para a ilicitude ética
deste acto, uma razão interessante parece ser a da privação provocada de um futuro em
absoluto2, independentemente da duração desse futuro, um futuro único que pertence
a cada pessoa e que seria vivido e concretizado caso não se verificasse essa privação
provocada;

g) Visto que qualquer pessoa inocente tem, então, o direito a possuir um futuro em
absoluto, único e irrepetível, do qual não seja privada por um acto provocado3;

h) Visto que a propriedade de ter um futuro em absoluto, juntamente com o direito a ter
esse mesmo futuro em absoluto sem que deste seja privado por um acto provocado, é
partilhada tanto pela generalidade das pessoas inocentes (sejam elas crianças,
adolescentes, adultos ou idosos) como pela generalidade dos fetos em qualquer fase do
seu desenvolvimento, incluindo a fase embrionária, desde o momento em que qualquer
ser humano “adquire” esse seu futuro, o que só pode ser coincidente com o início da
vida humana, ou seja, com a concepção, altura em que a vida humana tem o seu início;

i) Visto que levar até ao fim uma gravidez indesejada pode acarretar para a mãe uma série
de consequências psicológicas, sociais ou económicas, mas que o direito a evitar estas
consequências é um direito seguramente menor que o direito de um ser humano à vida,
ou seja, a não ser privado do seu futuro de forma intencional e provocada; se assim não
fosse, seria forçoso encontrar exemplos de situações reais nas quais fosse eticamente
lícito privar um qualquer ser humano inocente, mesmo já nascido, da sua vida futura
para evitar consequências psicológicas, sociais ou económicas, por mais graves que
estas fossem;

j) Visto ainda que, em caso de dúvida acerca da licitude ou ilicitude do aborto, é


irresponsável aprovar o direito ao aborto, uma vez que são bem mais graves as
consequências éticas de permitir um acto ilícito como a morte provocada de um ser

1 A palavra “inocente” é fundamental para evitar, por exemplo, a inviabilização do pressuposto no caso de
legítima defesa. Claramente, é lícito matar alguém em legítima defesa, seja da nossa vida seja da vida de alguém
por quem somos responsáveis. Considera-se que este ponto é consensual.
2 A vida dessa pessoa seria terminada pelo dito acto provocado, independentemente da duração curta ou longa

que essa vida teria caso não se verificasse esse acto. O seu futuro em absoluto, ou seja, não apenas um “futuro
qualquer” de expectativas (esse nunca poderia ser um direito – não temos o direito a ter qualquer futuro que
queiramos ter), mas sim o seu futuro biológico e biográfico, deixaria simplesmente de existir. Por “futuro”,
entenda-se também “vida futura”, seja ela qual for ou vier a ser.
3 Deste debate ético, excluem-se necessariamente causas biológicas intrínsecas à pessoa (por exemplo, doenças

mortais) bem como causas extrínsecas à pessoa e não imputáveis a ninguém (por exemplo, acidentes ou
catástrofes de consequências mortais), ambas de âmbito exterior à ética, ou seja, sempre que não há uma vontade
deliberada e provocada de alguém causar a morte a outrem.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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humano com direito à vida, do que as consequências psicológicas, sociais ou
económicas na vida de uma mulher que é obrigada a suportar a sua gravidez até ao fim,
que sem as querer menosprezar, serão por natureza sempre menos graves que as
primeiras; aprovar o direito ao aborto e estar errado é bem mais grave do que rejeitar o
direito ao aborto e estar errado;

o Então, abortar voluntariamente é algo de eticamente ilícito, seja em que fase for da
gravidez, pela simples razão de que a vida humana em formação perde imediatamente
o seu futuro (a sua vida futura) por intervenção provocada; por esta razão, abortar
nestas circunstâncias é eticamente equivalente a terminar qualquer vida humana
inocente, de forma deliberada, quer estejamos a falar de uma criança, de um
adolescente, de um adulto ou de um idoso;

o Então, não é lícito tomar qualquer medida, incluindo votar “sim” no próximo
referendo ou apoiar a campanha pelo “sim”, que permita ou procure legitimar o
término provocado da vida do ser humano, que principia no momento em que se
constitui como zigoto (núcleo totipotente de genoma humano) e que termina com a
sua morte;

Consequências que retiro em termos da legislação e do referendo:

1. A argumentação para a ilicitude ética do aborto é idêntica à argumentação para a ilicitude ética
do homicídio;
2. A prática do aborto é objectivamente um crime, conclusão que se baseia nos mesmos
pressupostos éticos que fazem do homicídio objectivamente um crime;
3. A legislação deve continuar a tratar o aborto como um crime, visto que trata o homicídio como
um crime;
4. A resposta “sim” à pergunta do referendo que se avizinha permitiria o aborto a pedido da mãe,
sem qualquer justificação, até às dez semanas de gravidez; tal resposta só pode implicar a
descriminalização do aborto, sob pena de incoerência grave da própria legislação; para tentar
ser coerente, a legislação terá que apenas considerar crime o acto de abortar após as dez
semanas, o que como vimos atrás, carece de coerência ética e de sustentabilidade
argumentativa; o que sucede na décima semana para que surja espontaneamente a
criminalidade no acto de abortar?
5. Dada a enorme amplitude do espectro social e psicológico da mulher que aborta, é
fundamental garantir um quadro penal amplo que situe a pena entre dois extremos:
a. Pena mínima ou nula: em situações de fortes atenuantes sociais e psicológicas, devia-se
dar lugar à suspensão do processo, evitando-se o julgamento; nestas situações, o
importante é o aconselhamento à mulher que abortou, e a haver pena, o que faz
sentido é o recurso a penas de serviço social em instituições de apoio social de valor
reconhecido; é o forte elo biológico e psicológico entre mãe e feto, juntamente com a
complexidade da situação para a própria mãe que decide abortar, que dá todo o
sentido a que o extremo mínimo de penalização deste crime possa corresponder à
ausência de pena ou à aplicação de uma pena leve de serviço social, o que torna este
crime totalmente distinto do crime do homicídio, nunca em termos da sua gravidade
objectiva, que é igual, mas em termos do seu subjectivo tratamento penal;
b. Pena máxima: em situações de repetida e obstinada prática do aborto, em
circunstâncias particularmente graves como a ausência de motivos válidos e/ou a
demonstração de total desculpabilização e falta de responsabilidade por parte de quem
aborta; nestas situações, as atenuantes que permitiriam um tratamento penal diferente
do dado ao crime de homicídio não estão presentes, e não há razão para não se

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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considerar a pena máxima de três anos, ou outra que se venha a fixar, como extremo
superior;
6. Em suma, o aborto deve ser criminalizado porque se trata de um acto eticamente ilícito e
particularmente grave, uma vez que constitui uma violação do direito à vida de um ser humano
inocente;
7. Sendo criminalizado, o acto de abortar deve no entanto merecer amplo tratamento penal,
devendo a legislação prever uma grande liberdade de escolha ao decisor jurídico, para que seja
tomada, caso a caso, a escolha mais adequada à subjectividade da situação de cada crime de
aborto em concreto;
8. A despenalização geral do crime de abortar até às dez semanas é uma decisão errada por três
razões fundamentais:
a. É uma decisão generalista que não toma em consideração as diferentes circunstâncias
nas quais o crime foi cometido; a aplicação de uma pena deixa, pura e simplesmente,
de existir na lei; uma despenalização generalista corresponde na verdade a uma
descriminalização; se esta for acompanhada da protecção e sanção legal do Estado, o
que se retira da expressão “(…) em estabelecimento de saúde legalmente autorizado
(…)”, temos uma legalização e liberalização do dito crime;
b. É uma decisão incoerente em termos de legislação: se tal acto é considerado “crime”, e
se não há aplicação de pena alguma face à sua prática, em qualquer situação que seja,
não será que toda a lógica do Direito Penal sai pervertida?
c. É uma decisão que não resolve o problema, uma vez que não visa as causas desse
problema, visando apenas a sua liberalização como hipotética forma de o tentar fazer
desaparecer;
Conclusão: despenalizar um crime não torna o crime menos criminoso, nem faz com que este
seja menos praticado.
9. Sendo o aborto um crime, despenalizá-lo em todas as circunstâncias até às dez semanas,
mesmo que em “estabelecimento de saúde legalmente autorizado”, não faz qualquer sentido: a
resposta no referendo que se avizinha deverá ser “não”.

Se estes argumentos não o convenceram, pedia-lhe o favor de me escrever, apontando as


deduções que lhe pareceram inválidas ou incorrectas. Se estes argumentos o convenceram,
então é fundamental que divulgue este texto junto dos seus amigos, familiares ou outros.
Obrigado!

Bernardo Sanchez da Motta


bernardo@observit.com.pt
http://www.espectadores.blogspot.com

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A. Os votos de vencido do Acórdão do Tribunal Constitucional

Considero que os textos dos votos de vencido presentes no Acórdão 617/061 encerram
argumentação valiosa e imprescindível, que permite aferir a clara inconstitucionalidade da
pergunta do referendo. Se, ao invés de seis em sete, tivessem votado contra a
constitucionalidade da pergunta um número maioritário de magistrados, o referendo nem
sequer seria realizado por ser declarado inconstitucional, devido à falta de clareza da pergunta e
devido à inconstitucionalidade da resposta afirmativa.
Há uma grande diferença entre:
a) A pergunta ser constitucional;
b) A pergunta ser votada como constitucional.
Obviamente, o que sucedeu a 15 de Novembro de 2006 foi o caso b), o que não permite que
se deduza imediatamente que a) é uma afirmação verdadeira. Continua a ser perfeitamente
justificável e defensável afirmar que a pergunta é inconstitucional.
Daqui advém a grande importância da argumentação apresentada pelos magistrados vencidos,
porque esta explica de forma sólida e com carácter de autoridade a existência de
inconstitucionalidade da pergunta do referendo. Antes de reproduzir os textos dos votos de
vencido, reproduz-se para referência o texto da decisão do Tribunal Constitucional.

A.1 Decisão
38. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
1º Considerar que
a) A proposta de referendo constante da Resolução nº 54‑A/2006 da Assembleia da República foi aprovada pelo
órgão competente para o efeito, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 115º da Constituição da República
Portuguesa;
b) O referendo proposto tem por objecto questão de relevante interesse nacional que deve ser decidida pela
Assembleia da República através de acto legislativo, conforme se preceitua no nº 3 do mesmo artigo;
c) A matéria sobre que ele incide não se encontra excluída do âmbito referendário, de acordo com o estabelecido
no nº 4 do mencionado artigo 115º;
d) O referendo proposto recai sobre uma só matéria, através de uma só pergunta, sem quaisquer considerandos,
preâmbulos ou notas explicativas, sendo a questão formulada para uma resposta de sim ou não e cumprindo,
nestes aspectos, as exigências constantes do nº 6 do artigo 115º da Constituição e do artigo 7º da Lei Orgânica do
Regime do Referendo;
e) A pergunta formulada satisfaz os requisitos de objectividade, clareza e precisão, enunciados nas mesmas
disposições;
f) A proposta de referendo respeitou as formalidades especificadas nos artigos 10º a 14º da Lei Orgânica do
Regime do Referendo;
g) A restrição da participação no referendo aos cidadãos residentes em território nacional cumpre os requisitos do
universo eleitoral prescritos no nºs 1 e 12 do artigo 115º da Constituição;
h) O Tribunal Constitucional, no âmbito da verificação prévia da constitucionalidade do referendo, a que se refere
a alínea f) do nº 2 do artigo 223º da Constituição, é competente para apreciar se a pergunta formulada não coloca
os eleitores perante uma questão dilemática em que um dos respectivos termos aponta para uma solução jurídica
inconstitucional;
i) Nenhuma das respostas – afirmativa ou negativa – à pergunta formulada implica necessariamente uma solução
jurídica incompatível com a Constituição.
2º Consequentemente, ter por verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na
mencionada Resolução nº 54‑A/2006, da Assembleia da República.

Lisboa, 15 de Novembro de 2006

1Ler o texto conforme saiu em Diário da República: http://www.digesto.gov.pt/pdf1sdip/2006/11/22301/00020029.PDF.


Contudo, o site do CNE tem uma versão mais fácil de ler: http://www.cne.pt/dl/apoio_rn2007_acordao.pdf

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Maria Fernanda Palma
Bravo Serra
Gil Galvão
Vítor Gomes
Maria Helena Brito
Maria João Antunes (com declaração)

Rui Manuel Moura Ramos. Vencido quanto às alíneas e) e i) do n.º 1, e ao n.º 2 da decisão, e com declaração
de voto quanto à alínea g) do n.º 1, nos termos da declaração de voto junta.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza. Vencida quanto às alíneas e), h) e i) do n.º 1 e, consequentemente quanto
ao n.º 2 da decisão, conforme declaração de voto junta.
Paulo Mota Pinto (vencido quanto às alíneas e), g), e i) do n.º 1, e, consequentemente, quanto ao n.º 2 da
decisão, nos termos da declaração de voto que junto)
Benjamim Rodrigues (vencido quanto às alíneas e) e i) do n.º 1 e, decorrentemente, ao n.º 2 da decisão, e
com declaração de voto quanto à sua alínea g) do n.º 1, nos termos da declaração de voto junta.)
Mário José de Araújo Torres (Vencido relativamente às alíneas e), g) e i) do n.º 1 e, consequencialmente, ao
n.º 2 da decisão, nos termos da declaração de voto junta)
Carlos Pamplona de Oliveira (vencido quanto às alíneas e) e i) do n.º 1 e quanto ao n.º 2 da decisão
conforme declaração em anexo que, para além disto, abrange as matérias tratadas nas alíneas b), c), d), g) e h) do
aludido n.º 1 da decisão do presente aresto).

Artur Maurício

A.2 Voto de vencido de Rui Manuel Moura Ramos


1. Votei vencido o número 2 da decisão, considerando não verificada a constitucionalidade e legalidade do
referendo proposto, uma vez que não acompanho as conclusões constantes das alíneas e) e i) do número 1, pelas
razões que passo sumariamente a enunciar. Ficaram-me ainda dúvidas quanto à conclusão expressa na alínea g) do
número 1, que não foram porém suficientes para me levar a afastar, neste ponto, da decisão – e enunciarei
igualmente a justificação do meu ponto de vista.
2. A alínea e) da decisão dá por verificados os requisitos de objectividade, clareza e precisão exigidos pelo
número 6 do artigo 115º da Constituição. Começando pelo primeiro, pode desde logo perguntar-se se ele não será
afectado pelo o inciso final da pergunta “em estabelecimento de saúde legalmente autorizado”, na medida em que
a sua inclusão nesta é susceptível de ser vista como induzindo uma resposta afirmativa. Com efeito, a autorização
legal pode considerar-se reportada à realização da interrupção voluntária da gravidez nos termos em que se
pretende questionar o eleitorado, e só em caso de resposta afirmativa existiriam estabelecimentos autorizados a
levá-la a cabo. Admitimos no entanto que por tal inciso se tenha em vista a existência de estabelecimentos de
saúde legalmente autorizados a praticar em geral actos cirúrgicos, ou actos do tipo daqueles em que se incluem os
que interferem no processo de interrupção voluntária da gravidez, o que afastaria o risco de a pergunta predispor
necessariamente a uma resposta positiva. Só que, a ser assim, tal redunda numa menor clareza da pergunta, uma
vez que no respectivo contexto ela consente a dúvida legítima sobre o que se entende por “estabelecimento de
saúde legalmente autorizado”. Dúvida que poderia aliás ser facilmente esclarecida se se falasse em
“estabelecimento de saúde a autorizar”. Semelhante ambivalência pode ainda ligar-se ao conceito de
“despenalização” que integra a pergunta, na medida em que nos podemos legitimamente interrogar sobre o seu
alcance. Visa ele a supressão total da infracção, nas suas duas componentes, a hipótese e a sanção, ou limita-se
apenas a esta última, deixando permanecer o carácter ilícito do comportamento mas sem lhe ligar qualquer sanção
penal, na linha de uma tendência referida no acórdão e que contesta a racionalidade da ideia de que o crime
reclama sempre uma pena (nº 9 do acórdão)? Pode igualmente questionar-se se o estádio visado pela pergunta é o
de uma total e radical descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (quando realizada por opção
voluntária da mulher, nas primeiras dez semanas e em estabelecimento de saúde legalmente autorizado), em
termos de esta deixar, em tais condições, de constituir um facto ilícito e de ser objecto de uma censura ético-
jurídica (o que parece ser inculcado pela última condição enunciada), ou se a ela apenas deixa de estar ligada uma
sanção de carácter penal, sem que no entanto a ordem jurídica deixe de a considerar como censurável. A falta de
nitidez e de univocidade dos sentidos possíveis da pergunta prejudica assim irremediavelmente a sua clareza, em
termos de justificar o nosso voto de vencido quanto à alínea e) do nº 1 da decisão.
3. Também não sufragamos a afirmação, feita na alínea i) da decisão, de que nenhuma das respostas –
afirmativa ou negativa – à pergunta formulada implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com a
Constituição. Entendemos, na verdade, que tal sucede com a resposta afirmativa, uma vez que, ao possibilitar a
realização da interrupção voluntária da gravidez, “por opção da mulher, nas primeiras dez semanas”, se lesa, de

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forma constitucionalmente insuportável, o princípio da inviolabilidade da vida humana consagrado no artigo 24º,
nº 1 da Constituição. Em nosso entender, deste princípio decorre igualmente a protecção da vida intra-uterina,
uma vez que “funcionando o direito à vida como pressuposto e condição de todos os restantes direitos do ser
humano, (…), é o momento de origem da vida que torna operativo o postulado constitucional da sua
inviolabilidade” (Paulo Otero, Direito da Vida, Coimbra, 2004, p. 82).
Do reconhecimento da protecção constitucional da vida intra-uterina não decorre porém, em nosso
entender, que lhe deva ser necessariamente dispensada uma tutela jurídico-penal idêntica em todas as fases da vida
e que uma tal tutela seja absoluta. Designadamente, aceitamos que uma lógica de ponderação de valores e de
concordância prática como a que se exprime no método das indicações (tal como consagrado presentemente
entre nós ou porventura noutras variantes) possa conduzir à não punibilidade de certas situações de interrupção
voluntária da gravidez. É por isso aliás que não temos por constitucionalidade inadmissível uma resposta negativa
à pergunta formulada, uma vez que a solução jurídica que dela resultaria – a insusceptibilidade de alterar, nos
termos contemplados na pergunta, o regime da interrupção voluntária da gravidez, com a consequente
manutenção da situação presente – não contraria, em nosso entender a Constituição. O que já contrariará a
Constituição, pelo contrário, será uma solução legislativa que, num dado período (dez semanas, no texto da
pergunta), permita o sacrifício de um bem jurídico constitucionalmente protegido, por simples vontade da mãe,
independentemente de toda e qualquer outra consideração ou procedimento. Em tais casos, não poderá falar-se
em nosso entender de concordância prática ou de ponderação de valores, uma vez que nenhuma protecção é
dispensada ao bem jurídico vida. É certo que o acórdão sustenta, diferentemente, existir ainda aqui uma
ponderação, ou uma tentativa de concordância prática, entre o bem jurídico vida (do feto) e o direito à
autodeterminação da mulher grávida. Simplesmente, entendemos que, com a solução legal proposta, ao fazer
prevalecer sempre, em todos os casos e independentemente das circunstâncias, o que se designa por “direito ao
livre desenvolvimento da personalidade da mulher”, se está afinal a postergar completamente a protecção da vida
intra-uterina que cremos ser objecto de tutela constitucional. Também não ignoramos que o acórdão pretende
responder a esta objecção considerando existir uma protecção do bem jurídico vida, como que vista
diacronicamente, uma vez que se a ponderação se faz nas primeiras dez semanas a favor do direito ao livre
desenvolvimento da mãe grávida ela passa depois por admitir uma tentativa de concordância prática nos termos
do método das indicações para, no período final da gravidez, reverter à protecção total do bem jurídico vida. Não
podemos porém aceitar esta versão, na medida em que a protecção dos bens jurídicos não pode ser vista em
abstracto, desenraizada da consideração dos seus titulares e que, no sistema proposto, o bem jurídico vida é,
sempre e independentemente das circunstâncias, desconsiderado nas primeiras dez semanas, não lhe sendo nunca
pois, em tal período, dispensada qualquer protecção. É por conduzir assim, no período considerado, a essa total
desconsideração do bem de vida, quando radicado num sujeito, sejam quais forem os motivos que levam à
decisão da mãe, que entendemos que o sistema proposto contraria o imperativo de protecção da vida intra-uterina
constitucionalmente consagrado, com o que temos por justificada a nossa discordância com a conclusão
formulada na alínea i) do nº 1.
4. Finalmente, não temos por conseguida a justificação fornecida pelo acórdão para a definição do universo
eleitoral a que procede a proposta. Na verdade, explicar a restrição deste universo aos cidadãos residentes em
Portugal pela circunstância de a aplicação da lei penal portuguesa se orientar em princípio por um critério de
natureza territorial é conceber o interesse dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro de forma redutora,
excluindo-o por não serem eventuais potenciais integrantes do círculo de pessoas susceptíveis de serem
abrangidas pelo comando de uma norma incriminadora. Ora, diversamente, e também atento o relevante interesse
nacional reconhecido à questão objecto do referendo, a participação dos portugueses no estrangeiro (rectius,
daqueles de entre estes chamados a participar) justifica-se pela particular ligação destes (traduzida pelo
recenseamento) à vida nacional e pela circunstância de a questão a decidir integrar como que o património cultural
da comunidade em que se têm por inseridos.
Nestes termos, não temos por congruente a fundamentação dada pelo acórdão a este propósito.
Simplesmente, dispondo a Constituição, no seu artigo 115º, nº 12, que os cidadãos portugueses residentes no
estrangeiro regularmente recenseados são chamados as participar nos referendos “quando recaiam sobre matéria
que lhes diga também especificamente respeito”, não temos por claro o que se deva entender a este propósito. Ou
seja, se é para nós nítido que tal ocorre num eventual referendo sobre a vinculação de Portugal a um tratado
europeu, já temos dúvidas que uma questão central da vida comunitária diga especificamente respeito aos
cidadãos residentes no estrangeiro, muito embora não se possa duvidar que lhes diga igualmente respeito. É por
não podermos excluir, sob reserva de melhor estudo, que o citado preceito constitucional vise como fundadas
razões limitar em maior grau a participação dos residentes no estrangeiro nas iniciativas referendárias, que nos
limitamos a dar conta das nossas dúvidas a este respeito, sem dissentir contudo da solução a que o acórdão
chegou a este respeito na alínea g) do nº 1 da decisão.

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A.3 Voto de vencida de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Votei vencida quanto às alíneas e), h) e i) do n.º 1º. e, consequentemente, quanto ao n.º 2º. da decisão, pelas
razões que indiquei no voto de vencida que juntei ao acórdão n.º 288/98, que transcrevo, e que a meu ver não são
postas em causa pelo presente acórdão:
«Votei vencida quanto à alínea f) [correspondente à actual al. e) do n.º 1] do n.º 1º. porque entendo que a
pergunta não satisfaz, tanto quanto podia e devia satisfazer, os requisitos constitucionalmente exigidos de
objectividade, clareza e precisão.
No plano da objectividade, importaria sobretudo garantir, na medida do possível, a neutralidade da pergunta
relativamente às posições dominantes no debate público da questão, em especial a posição que se traduz em
manter o actual sistema legal de não punibilidade do aborto terapêutico, eugénico ou criminológico, nas condições
definidas pelo artigo 142º. do Código Penal, o qual se não pode confundir de modo nenhum com a ideia de
penalização absoluta da interrupção voluntária da gravidez. Ora, nos termos em que se encontra formulada, a
pergunta sugere uma escolha entre penalização e despenalização que não exprime a alternativa emergente dos
debates que lhe deram origem, e que se coloca entre a despenalização relativa da lei actual e a despenalização
absoluta até às dez semanas de gravidez.
Quanto aos requisitos da clareza e da precisão, eles mostram-se imperfeitamente cumpridos, tanto do ponto
de vista da resposta positiva ao referendo, como do ponto de vista da resposta negativa. Com efeito, uma resposta
positiva pode ser entendida como favorável a uma simples eliminação da incriminação do aborto, mantendo-se
este, no entanto, como um acto não lícito para outros efeitos, da mesma forma que pode ser entendida no sentido
da liberalização – e, portanto, da licitude – do aborto nas primeiras dez semanas de gravidez, como sugere a parte
final da pergunta ao referir-se à sua prática em estabelecimento legalmente autorizado. Uma resposta negativa, por
seu lado, pode traduzir, quer o entendimento de que a criminalização deve ser mantida nos termos actuais, quer a
opinião de que tanto deve ser despenalizado o aborto realizado em estabelecimento legalmente autorizado como
o que é executado fora desses estabelecimentos.
Votei vencida quanto à alínea i) [actual al. h) do n.º 1] do n.º 1º. por ter sérias dúvidas quanto à possibilidade
de o Tribunal Constitucional, na fase de fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta
de referendo, se pronunciar sobre a constitucionalidade material da pergunta do ponto de vista da eventual
desconformidade de alguma das respostas possíveis. Os referendos exigem um grau de simplificação das questões
que normalmente inviabilizará um juízo fundado sobre a conformidade constitucional das respostas hipotéticas.
Só mais tarde, se e quando uma lei vier a ser aprovada em consequência do referendo, e em face dos termos
concretos da regulamentação que nela se contiver, o Tribunal Constitucional estará em condições de se
pronunciar acerca da adequação constitucional das soluções adoptadas. O referendo apenas produz consequências
mediatas sobre a ordem jurídica, relativamente indeterminadas e, não obstante o efeito vinculativo sobre o
legislador, aliás sem qualquer sanção eficaz, também incertas.
Poderá, em sentido contrário, argumentar-se que há questões em que os parâmetros constitucionais são tão
nítidos e peremptórios que não oferecerá dificuldades um juízo sobre a constitucionalidade de uma questão
submetida a referendo, ainda que reduzida à sua máxima simplificação. Mesmo, todavia, que fosse esse o caso
presente, a apreciação da constitucionalidade material da pergunta, quanto a este aspecto, encontra-se inviabilizada
por força de imprecisões e ambiguidades de que, a meu ver, ela padece. Refiro-me, nomeadamente, à incerteza do
significado de uma resposta positiva, a que acima aludi, pois a diferença entre a liberalização e a simples
despenalização do aborto tem decerto profundas implicações constitucionais.
Se, no limite, se poderia talvez defender que a simples descriminalização é compatível com o princípio da
inviolabilidade da vida humana, ficando esta protegida por formas de tutela jurídica sem carácter penal, já, porém,
a liberalização, no sentido de tornar a interrupção voluntária da gravidez um acto lícito não condicionado por
qualquer causa justificativa, me parece inconciliável com o princípio da inviolabilidade da vida humana, razão pela
qual entendo que deveria ser mantida a jurisprudência deste Tribunal, fixada nos acórdãos nºs 25/84 e 85/85,
apenas compatível com o sistema das indicações. Fica, assim, igualmente fundamentado o meu voto de vencida
quanto à alínea j) [actual al. i) do n.º 1] do mesmo n.º 1º.
Fica de igual modo justificado que, na falta de objecções à formulação da pergunta, me teria pronunciado no
sentido de considerar preenchidos os requisitos de realização do referendo que, na perspectiva atrás desenvolvida,
incumbe ao Tribunal, neste momento, apreciar, possibilitando assim o conhecimento qualificado da concepção
dominante sobre a matéria em causa. Tendo, porém, em conta as considerações precedentes, votei contra o
segundo ponto da decisão.»

A.4 Voto de vencido de Paulo Mota Pinto


Votei vencido quanto às alíneas e), g) e i) do n.º 1, e, consequentemente, quanto ao n.º 2 da decisão, pelas
razões que passo a expor:

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1.A minha discordância em relação à alínea e) assenta fundamentalmente nas razões expostas na declaração
de voto que juntei ao acórdão n.º 288/98 (a que pertencem os passos retomados seguidamente). A meu ver, as
exigências, constantes dos artigos 115.º, n.º 6, da Constituição, e 7.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Regime do
Referendo, de que as perguntas objecto de referendo sejam formuladas com objectividade, clareza e precisão, são
cruciais para assegurar a correcção e a idoneidade democrática do procedimento referendário. Elas visam permitir
aos eleitores a leitura e compreensão acessível e sem ambiguidades da pergunta, evitando “que a vontade expressa
dos eleitores seja falsificada pela errónea representação das questões” e eliminando a possível sugestão de
respostas, directa ou implícita (J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, anot. X ao art. 118.º). Requer-se, assim, “a minoração, na medida do possível, do
risco de leituras e entendimentos da questão pelos seus destinatários que possam – directa ou implicitamente, por
interrogações ou ambiguidades que suscitem no eleitor – apontar para uma das respostas alternativas. Sendo esta a
finalidade precípua das referidas exigências, impõe-se concluir que elas devem ser apreciadas a partir justamente
do ponto de vista dos destinatários, considerando mesmo, mais do que um ‘tipo médio’ de eleitor, um tipo de
eleitor com graus de instrução e literacia abaixo da média, e não podendo, assim, a precisão e o rigor técnico-
científicos da questão prevalecer, na medida em que sejam susceptíveis de afectar a clareza para aquele tipo de
eleitor. Por outro lado, clareza e objectividade afiguram-se-me necessariamente atributos relativos, podendo dizer-
se que esta ou aquela formulação é mais ou menos clara, ou mais ou menos objectiva, em termos de respeitar os
requisitos constitucionais e legais mínimos, mas tendo de considerar-se neste juízo a maior ou menor frequência
do uso de certas expressões na linguagem acessível aos destinatários da questão, bem como a existência de
expressões ou formulações alternativas, muito próximas ou praticamente equivalentes, mas significativamente
mais claras e objectivas”.
Continuo a considerar que a pergunta proposta não satisfaz o requisito de objectividade, designadamente,
por o enquadramento na frase da expressão “em estabelecimento legalmente autorizado” se afigurar susceptível
de conduzir a um enviesamento da resposta, ou, pelo menos, de despertar dúvidas nos destinatários. Com efeito,
“a condição contida nesta parte final da pergunta pressupõe a existência de estabelecimentos legalmente
autorizados a realizar a interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, mas estes só existirão em caso de
resposta positiva à própria pergunta posta à consideração do eleitorado. A hipótese da pergunta pressupõe, pois,
uma resposta positiva, e pode predispor a esta resposta por se entender que, existindo estabelecimentos
legalmente autorizados a realizar a interrupção voluntária da gravidez nas condições definidas, seria paradoxal
penalizar esta interrupção”. A meu ver, este ponto pode, pelo menos, continuar a despertar dúvidas ao leitor que
ignore o estado actual da nossa legislação, no que toca à inexistência de tal autorização legal, e considero que o seu
esclarecimento não é de remeter apenas para a campanha eleitoral, não devendo permitir-se qualquer
enviesamento da questão a submeter a referendo. Nem creio que à utilização do instituto do referendo seja
inerente o risco de tais ambiguidades. Deve antes dizer-se, a meu ver, que, não podendo simplesmente elencar-se
nomes ou símbolos (como nos restantes actos eleitorais), e antes se tendo que formular questões – tarefa mais
sujeita a manipulações e distorções – “por maioria de razão, a exigência de objectividade surge acrescida” (assim,
Maria Benedita Urbano, O Referendo, Coimbra, 1998, p. 210). A resposta a este argumento, no sentido da falta de
objectividade da pergunta, que se contém no Acórdão n.º 288/98 e foi retomada na presente decisão (n.º 23),
assenta, a meu ver, num equívoco: o de separar a autorização legal aos estabelecimentos de saúde, a que se refere a
questão, da realização da interrupção da gravidez por mera opção da mulher (diz-se, assim, que, já hoje sendo
possível efectuar em certas condições a interrupção voluntária da gravidez, já existem “estabelecimentos de saúde
legalmente autorizados”). É claro, porém, que a pergunta se refere – e é mesmo nesse sentido que é entendida
pelo “destinatário normal” – a estabelecimentos de saúde legalmente autorizados a realizar a interrupção da
gravidez por mera opção da mulher, e tal pressupõe já uma resposta positiva à pergunta (exigir-se-ia, pois, pelo
menos, que se falasse de “estabelecimentos de saúde que venham a ser legalmente autorizados” a tanto).
Para além desta reserva, ficaram-me novamente dúvidas quanto à clareza do termo “despenalização”, não só em
face de hipóteses alternativas, de sentido equivalente mas indubitavelmente mais claras, segundo o critério que
apontei e que julgo decisivo, como em relação à possível permanência do juízo de ilicitude do aborto (embora
sem pena, ou, mesmo, fora do domínio criminal).
2.Votei também vencido quanto à alínea g) do n.º 1 da decisão, sobre o universo eleitoral do referendo
proposto.
Entendo que no artigo 115.º, n.º 12, da Constituição, e no artigo 37.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Regime do
Referendo, que se referem a matérias que digam “também especificamente respeito” aos cidadãos portugueses
residentes no estrangeiro: a) não se prevê a participação dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro em
todos os referendos nacionais (como resulta da formulação e da própria localização sistemática das referidas
normas); b) não se requer um interesse específico apenas dos cidadãos não residentes, distinguindo-se a fórmula
empregue, por exemplo, da do “interesse específico” que era exigido para a delimitação dos poderes legislativos
das regiões autónomas (trata-se de matérias que digam também especificamente respeito aos cidadãos não
residentes em Portugal).

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A meu ver, é excessiva a exigência de que a matéria do referendo “tenha a ver com a específica situação dos
cidadãos portugueses residentes no estrangeiro”, ou de uma “particular incidência relativamente aos interesses da
emigração portuguesa”. Por isso não é decisivo o critério da aplicação da lei penal no espaço, em que se baseia o
presente Acórdão, sem aprofundar a dilucidação do sentido da formulação constitucional e legal. Em face destas,
deve entender-se, a meu ver, que nas matérias que digam “também especificamente respeito” aos cidadãos não
residentes se incluem ainda aquelas que são susceptíveis de interessar a estes ao mesmo título que aos cidadãos
que residem em Portugal, ou simplesmente as que não respeitem a um interesse específico destes cidadãos
residentes. É o que acontece, designadamente, com alterações da legislação nacional que impliquem, ou traduzam,
uma alteração fundamental nos valores subjacentes à ordem jurídica nacional, ou uma “mudança de paradigma”
na protecção de bens jurídicos fundamentais – como seria, por exemplo, o caso (se esses referendos fossem
constitucionalmente possíveis) com referendos relativos à reintrodução da pena de morte ou da prisão perpétua.
Como resulta do que direi a seguir, entendo que é igualmente o caso da presente alteração da legislação relativa à
interrupção voluntária da gravidez, pelo facto de se passar a prescindir de qualquer indicação ou motivo para a sua
realização, para além da opção de um dos progenitores.
Considerei, pois, que era de exigir o chamamento dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro a
participar no presente referendo.
3.Quanto à discordância em relação à alínea i) do n.º 1 da decisão, mantenho as razões expostas na
declaração de voto anexa ao acórdão n.º 288/98. Assim, acompanho a consideração – que vem, aliás, no
seguimento da anterior jurisprudência do Tribunal e da maioria da doutrina – de que a vida humana pré-natal é
abrangida pela garantia de inviolabilidade constante do artigo 24.º da Constituição. Com uma formulação ampla,
esta norma não se limita a garantir um direito fundamental à vida a todas as pessoas, mas consagra igualmente
uma tutela não subjectivada do bem “vida humana em formação”, e, em meu entender, impõe igualmente ao
legislador um correspondente dever de protecção. Como se pode ler na referida declaração de voto, aceito,
porém, “a tese de que esta protecção não tem que assumir as mesmas formas nem o mesmo grau de densificação
da exigida para o direito à vida subjectivado em cada pessoa, bem como a tese de que tal protecção se pode e deve
ir adensando ao longo do período de gestação. Aceito, ainda, que, quando se verifique estarem outros direitos
constitucionalmente protegidos em conflito com a vida intra-uterina, se possa e deva proceder a uma tentativa de
optimização, não sendo esta possibilidade vedada por qualquer escala hierárquica de valores constitucionais –
embora defenda que a inegável importância do bem ‘vida humana’, como pressuposto necessário de todos os
outros direitos, e, desde logo, o seu carácter de comando prima facie (portanto, mesmo não invocando, nem a
específica estrutura desse bem, nem a sua eventual consagração numa regra, assentes numa lógica de tudo ou
nada), sempre requerem, pelo menos, a verificação da existência de um direito em conflito com esse bem (…),
assim como a definição, pelo legislador, das circunstâncias em que a ponderação pode conduzir a uma limitação
da tutela da vida humana intra-uterina”.
O que não acompanho é a conclusão de que a afirmada “concordância prática” entre a liberdade, ou o “direito ao
desenvolvimento da personalidade”, da mulher e a protecção da vida intra-uterina “possa conduzir a desproteger
inteiramente esta última nas primeiras dez semanas (durante as quais esse bem é igualmente objecto de protecção
constitucional), por a deixar à mercê de uma livre decisão da mulher, que se aceita será lícita, em abstracto, ou
seja, independentemente da verificação de qualquer motivo ou indicação no caso concreto”. Por outras palavras,
não concordo com que, pela via da alegada harmonização prática dos interesses em conflito, a Constituição
permita chegar a uma “solução dos prazos”, com aceitação da total “indiferença dos motivos” ou de uma
“equivalência de razões” para proceder à interrupção voluntária da gravidez, para a qual todas as razões podem
servir – “quer seja realizada por absoluta carência de meios económicos e de inserção social, quer seja motivada
por puro comodismo, quer resulte de um verdadeiro estado depressivo da mãe, quer vise apenas, por exemplo,
selar a destruição das relações com o outro progenitor”.
Entendo que a garantia da inviolabilidade da vida humana, incluindo a vida intra-uterina, pode ter de ceder
perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, se se verificar em concreto a presença de um
motivo constitucionalmente relevante para a realização da interrupção voluntária da gravidez, pois “aquela
garantia há-de ter, pelo menos, o conteúdo de tutelar o bem em causa contra a liberdade da mulher de prática de
‘aborto a pedido’, sem invocação de qualquer motivo e, em princípio, com indiferença deste para a ordem
jurídica” – tendo igualmente por inconstitucional a solução de total liberdade da mãe quanto ao «destino» de uma
vida humana que já iniciou o seu percurso, v., entre outros, Maria Conceição Ferreira da Cunha, Constituição e
crime, Porto, 1995, p. 386; no mesmo sentido Rabindranath Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade,
Coimbra, 1995, p. 166, n. 241, e, com uma análise comparatística das soluções vigentes em vários sistemas
europeus, João Loureiro, “Aborto: algumas questões jurídico-constitucionais (A propósito de uma reforma
legislativa)”, in Boletim da Faculdade de Direito, vol. 74, Coimbra, 1998, pp. 327-403. Ou seja, entendo que o
dever de protecção da vida humana intra-uterina, que a Constituição impõe, não pode deixar de ter como
conteúdo mínimo a protecção contra a liberdade de pôr termo a esta vida intra-uterina, sem invocação de razões.
Assim, considero que o direito à liberdade da mulher, bem como o direito ao “livre desenvolvimento da
personalidade” – direito que, aliás, se refere aqui apenas a um dos progenitores, e, onde, como se sabe, no limite

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tudo poderia caber (cf. Paulo Mota Pinto, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, in Portugal-
Brasil – ano 2000, Stvdia Ivridica, 40, Coimbra, 2000, pp. 149-246) – não são suficientes para fundamentar a
desprotecção da vida pré-natal, mesmo nas primeiras dez semanas, se não forem reforçados com a presença de
uma indicação no caso concreto. E isto, não curando sequer de saber qual o tipo de indicação que seria
constitucionalmente relevante ou a quem deve competir avaliá-la – pressuposto apenas que não basta a mera
opção da mãe, desvinculada de qualquer controlo exterior.
Não encontro, nem no Acórdão n.º 288/98, nem na presente decisão, razões que afastem a relevância
constitucional da “indiferença dos motivos” (a consideração de que, em nome da liberdade de um dos
progenitores, qualquer motivo serve) para destruir um bem constitucionalmente tutelado. Em particular, é claro
que a referência ao prazo das primeiras dez semanas (n.º 31 da decisão) apenas pode, na própria lógica de
compatibilização com a protecção da vida intra-uterina, seguida pelos acórdãos de que dissenti, servir para
delimitar o momento antes do qual não existe qualquer protecção. Já não existem argumentos para fundamentar a
menor ponderação em termos de “concordância prática”, justamente até às primeiras dez semanas, da vida intra-
uterina que se reconhece tutelada na Constituição, sendo evidente que mesmo tal restrição a um prazo inicial da
gravidez conduz ao sacrifício total, pela interrupção da gravidez, do bem protegido.
Noto, aliás, que o presente aresto se recusou a considerar concretamente quaisquer elementos científicos,
como os emergentes da chamada “revolução ecográfica”, relativos à caracterização do feto nas suas diversas fases
de desenvolvimento, afastando‑os apenas com a fundamentação, a meu ver extremamente insuficiente, de que
“não dão, em si mesmos, solução aos conflitos de valores”, e resumindo o “valor conflituante”, no presente caso,
à “liberdade da mulher grávida”, ou ao “livre desenvolvimento da personalidade”. Ora, a “concordância prática”
exige, como se sabe, o cumprimento de um ónus de argumentação jurídica dirigido a fundamentar o tipo de
concordância a que se chega, sob pena de se esgotar numa mera “fórmula vazia” (no sentido de ligar a estrutura
da ponderação a fazer para a concordância prática de direitos fundamentais a uma teoria da argumentação jurídica
que remete para uma teoria da argumentação prática em geral, v. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte,
Frankfurt, 1985, p. 154).
O referido ónus de argumentação não é, por outro lado, cumprido com a consideração genérica, que ecoa
mais do que uma vez no presente aresto (n.º 16 e 36), de que, sendo a questão em causa discutida, e objecto de
divisões profundas na sociedade, é de admitir (mesmo no plano constitucional) resolvê-la devolvendo a decisão ao
voto directo do povo soberano. Independentemente de outras considerações que possa merecer este argumento
(o próprio Ronald Dworkin, Life’s Dominion. An Argument About Abortion, Euthanasia and Individual
Freedom, 1993, pp. 154-159, citado no Acórdão, conclui, aliás, o tratamento da relevância da coerção na matéria
da interrupção da gravidez no sentido de que, se a questão for a de saber se o Estado pode impor quer a proibição
dessa interrupção, “o facto de a escolha ser aprovada pela maioria não é melhor justificação num caso do que no
outro”), deve notar-se que ele não pode ser relevante para o controlo da constitucionalidade de uma pergunta
referendária. Na verdade, o parâmetro de constitucionalidade ou a intensidade do respectivo controlo não variam
entre o controlo da constitucionalidade da pergunta no referendo ou de uma norma jurídica aprovada pelo
parlamento (por exemplo, um diploma aprovado na sequência do referendo), o que, além do mais, se torna
evidente logo que se pensa, por exemplo, em que para o resultado do referendo não releva apenas uma maioria
constituinte (a Constituição proíbe, aliás, o referendo sobre alterações à Constituição), mas logo maioria simples.
Não pode, também, merecer o meu acordo a fundamentação que remete para a harmonização entre a vida intra-
uterina, por um lado, e garantia de uma maternidade consciente, por outro, e, em termos de conduzir ao sacrifício
geral desta durante as primeiras dez semanas. Com efeito, subjacente “à afirmação da licitude da interrupção
voluntária da gravidez com base na garantia de uma maternidade consciente parece-me estar uma visão do aborto
como meio de contracepção, ou, mesmo, de planeamento familiar, que não considero constitucionalmente
admissível (a garantia da maternidade consciente é, aliás, prevista na Constituição a par do direito ao planeamento
familiar). E mesmo que se considerasse que a garantia da maternidade consciente tem uma dimensão subjectiva
que vai além do planeamento familiar, podendo incluir o aborto, não vejo o que poderia este argumento
acrescentar à invocação do direito à liberdade, em termos de prevalecer em geral, durante as primeiras dez
semanas, sobre a garantia da vida intra-uterina, a qual, como condição de base de todos os outros direitos, assume
uma posição-chave”.
Consideraria, assim, a resposta afirmativa à pergunta – na medida em que conduz à despenalização da
interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, e, portanto, com irrelevância dos motivos invocados
para pôr termo à gravidez – como inconstitucional, por violar o princípio da “proibição da insuficiência”, quanto
à protecção da vida pré-natal (o “Untermabverbot” – v., entre nós, José Joaquim Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, 2003, p. 273), isto é, o “défice” de tutela de um bem
cuja protecção é constitucionalmente assegurada (sem que esta garantia seja afastada pela proposta
compatibilização com outros interesses constitucionalmente protegidos). Isto, uma vez que, por outro lado, não
se divisam outros meios a que o legislador possa recorrer para proteger esse bem, afirmando a sua dignidade ética
para a comunidade jurídica, e que a protecção penal é, apesar de tudo, a única que se pode revestir de alguma
eficácia jurídica (e notando igualmente que a questão submetida a apreciação não contende directamente com a da

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punibilidade do aborto clandestino, não sendo sequer líquido que uma resposta positiva viesse a contribuir para a
diminuição deste, ou, muito menos, para a diminuição geral do número de abortos).
4. Por último, e ainda a propósito da alínea i) do n.º 1 da decisão, discordei também da fundamentação
empregue para justificar a não inconstitucionalidade de uma resposta negativa. O presente aresto inova aqui em
relação ao Acórdão n.º 288/98. Mas a inovação, com uma pronúncia “incidental” sobre o regime vigente, passa, a
meu ver, ao lado do objecto de cognição do Tribunal no presente processo – a constitucionalidade da pergunta
referendária – e é mesmo contraditória com o sentido que se atribui ao controlo pelo Tribunal, a propósito da
resposta positiva.
Com efeito, já desde o Acórdão n.º 288/98 se entendeu que ao Tribunal não cabe, a propósito do controlo
da constitucionalidade de uma pergunta de um referendo destinado a propor uma alteração do regime vigente,
pronunciar-se sobre o concreto regime jurídico, em vigor ou que viesse provavelmente a ser aprovado. Antes lhe
cabe apenas apreciar se uma das respostas à pergunta, ou eventualmente as duas, implicam necessariamente uma
solução inconstitucional – implicação necessária, esta, avaliada, naturalmente, em relação aos efeitos do referendo,
com os correspondentes deveres de agir ou de não agir da Assembleia da República delimitados pelo teor da
pergunta a que se respondeu (cf., falando de acto legislativo correspondente às perguntas objecto de resposta, ou
de acto “de sentido correspondente”, os artigos 241.º e 243.º da Lei n.º 15-A/98, de 3 de Abril). Justamente por
isso se afirmou no Acórdão n.º 288/98 que podem existir outros elementos (como a exigência de um
aconselhamento da mulher) que, não constando da pergunta, poderiam, porém, vir a ser previstos na legislação
aprovada na sua sequência (n.º 52).
Uma resposta negativa apenas impede, pois, o legislador de alterar o regime vigente no sentido
correspondente à pergunta. E aplicado a tal resposta, o critério para a sua inconstitucionalidade – repete-se: o da
implicação necessária de uma solução inconstitucional – significa que a resposta negativa só seria inconstitucional
se existisse uma imposição constitucional de alteração do regime vigente justamente no sentido previsto na
pergunta, isto é, se a única alteração constitucionalmente aceitável fosse a correspondente ao sentido da pergunta.
Já outras alterações (tal como os outros elementos que poderiam ser previstos em caso de resposta positiva) não
seriam abrangidas pelo efeito do referendo. Resulta daqui, com toda a linearidade, que o Tribunal, a entender
tratar desenvolvidamente da questão de saber se a resposta negativa implicava necessariamente uma solução
inconstitucional – diversamente do Acórdão n.º 288/98, que se limitou a remeter o problema da manutenção da
incriminação para a liberdade de conformação do legislador (não deixando, a este propósito, de responder àquela
questão) –, haveria de ter apurado se o legislador estava constitucionalmente vinculado a alterar o regime vigente
justamente no sentido correspondente à resposta positiva.
Não foi, porém, assim que o presente Acórdão entendeu dever abordar a questão, antes se pronunciando
(n.º 35) sobre o regime vigente – com considerações relativas ao “sistema vigente” ou a uma “solução mais
abrangente no sentido da exclusão da responsabilidade” (itálico aditado). Tais considerações não tinham, a meu
ver, lugar no contexto do presente Acórdão, mesmo que fossem movidas pelo intuito de atalhar a qualquer
alteração do regime vigente num sentido mais restritivo – àquilo que (destoando numa decisão judicial que, além
do mais, tem de pronunciar-se sobre a objectividade da pergunta referendária) o Acórdão qualifica, noutro passo
(n.º 5), como um “retrocesso” num sentido criminalizador. Pois tal alteração nunca esteve em causa nem pode ser
“implicação necessária” de qualquer uma das respostas à pergunta.

A.5 Voto de vencido de Benjamim Rodrigues


1 – Votei vencido quanto à decisão constante da alínea e), na parte em que, aí, se julga que a pergunta
formulada na proposta de referendo satisfaz os requisitos da objectividade e da clareza; votei com dúvidas a
decisão constante da alínea g) e votei vencido quanto à decisão constante da alínea i), na parte em que aí se
considera que a resposta afirmativa à pergunta formulada não implica necessariamente uma solução jurídica
incompatível com a Constituição, todas as alíneas do ponto 38 do acórdão.
Tal posição fundamenta-se nas razões que passo, sucintamente, a expor.
2 – Antes de as dar a conhecer, não posso, porém, deixar passar em branco a convocação feita no Acórdão
[Parte II, ponto 9, epigrafada de “Enquadramento actual da questão objecto da proposta de referendo”] à cultura
bíblica enquanto razão tida como susceptível de concitar dúvidas, no plano da racionalidade, sobre “a perspectiva
doutrinária de que o crime reclama sempre a punição e não outra forma de superação”, por, ali, “o mal do pecado
– que é a separação de Deus – é [ser] superado pelo perdão e pela graça”.
Na verdade, tal abordagem apresenta-se efectuada não só em termos ambíguos, como não consegue afastar,
igualmente, a suspeita de que a sua referência poderá ser vista como estando, subliminar e utilitariamente,
funcionalizada para gerar alguma aceitação da doutrina do acórdão por parte de alguns sectores sociais que
seguem, ou estão próximos de tal cultura, como regra de conduta da sua vida.
Omite-se ou ignora-se, porém, que, na doutrina bíblica, não tem qualquer pertinência, no plano da
racionalidade, a afirmação da existência de qualquer relação ou sequer conexão, em termos de simples

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correspondência, e muito menos em termos de equivalência, entre crime e pena. Estes são conceitos que, nesse
domínio, são totalmente imprestáveis. No plano de relação entre o Homem e Deus não há lugar para a existência
das figuras de crime e de punição.
Segundo a doutrina bíblica, Deus é, em Si próprio, Amor e Vida. Por mor do acto de criação, Deus
estabelece com o Homem uma relação pessoal de Amor. O pecado consiste, assim, em um corte, voluntário e
consciente, do Homem com a fonte da sua Vida e de Amor que apenas acontece quando aquele repudia,
consciente e voluntariamente, a vontade manifestada de Deus. O mal do pecado traduz-se, pois, assim, no
“sentimento” ou “efeito” de privação ou de falta que a pessoa criada, por puro acto de Amor, tem relativamente
ao seu Criador, por se ter por abandonada quando, de acordo com o seu acto de criação, continua a “ansiar” por
Ele. A restauração da relação pessoal de Amor entre o Homem e Deus representa o fim desse “sofrimento”,
resultando de puro acto de misericórdia, próprio do Amor do Criador, em face do acto de arrependimento da
pessoa criada, traduzido na sua reconciliação com o Criador.
Não tem, pois, qualquer sentido ou utilidade a descontextualizada convocação da doutrina bíblica para o
thema decidendum. Ao invés, o que resulta dessa doutrina é que, correspondendo a vida a um acto pessoal do
Amor de Deus, não deverá o Homem negar a sua contínua revelação real, no devir do tempo e dos tempos.
3 – Segundo penso, a pergunta formulada aos eleitores não é clara e objectiva.
Note-se que se trata de exigências constitucionais (art.º 115.º, n.º 6) e não só de requisitos conformados pelo
legislador ordinário (art.º 7.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo).
Como tal, o sentido que se lhes deve conferir, tem de ser, no meu ponto de vista, um sentido que se conjugue,
com a máxima expansividade de protecção, decorrente da sua natureza de direitos e garantias fundamentais (art.º
18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa – CRP) com o princípio democrático do direito à
participação política e do direito ao sufrágio e ao respectivo exercício (art. 48.º e 49.º da CRP).
Sendo assim, a pergunta há-de poder ser entendida, em toda a sua extensão, quanto ao seu conteúdo e
projecção da resposta, por quem, nos termos constitucionais e legais, poderá ser eleitor. Deste modo, não pode o
grau de exigência desligar-se do universo real que constitui esse colégio eleitoral.
Assim, suscitam-se-nos ponderadas dúvidas sobre a clareza da pergunta na medida em que tal qual a
pergunta é feita, esta supõe que o eleitor, para poder fazer um juízo ponderativo-decisório, conheça qual o regime
vigente quanto à penalização da interrupção voluntária de gravidez e, nomeadamente, as suas actuais causas de
desculpabilização e de justificação. Ora, parte relevante dos eleitores não será detentora de tais conhecimentos.
Além de que, a pergunta faz apelo a conceitos de matriz técnico-jurídica, como sejam os de “despenalização da
interrupção voluntária da gravidez”, “por opção da mulher”, cuja inteligibilidade escapa a grande parte do colégio
eleitoral, bem podendo, por isso, gerar a dúvida aos eleitores sobre se eles não estão assumidos na proposta em
sentido diferente daquele pelo qual essa realidade empírica é expressada comummente, em linguagem vulgar, mas
que é a seguida, normalmente, na comunicação política: aborto e completa liberalização dentro das 10 primeiras
semanas, desde que a mulher o queira e o mesmo seja efectuado em estabelecimento de saúde legalmente
autorizado.
Para além disso, a utilização da expressão “estabelecimento de saúde legalmente autorizado” é, também,
equívoca, pois permite tanto uma acepção de estabelecimento de saúde (público ou privado), autorizado, apenas,
para a prática do aborto nas condições propostas, como a de estabelecimento (público ou privado) autorizado, de
prestação de serviços de saúde (pública), que pode praticar, igualmente, esses e outros actos abortivos, cuja prática
já não é punida no regime vigente.
E, do mesmo passo, a pergunta não é objectiva nem neutra no que importa à sua intencionalidade.
Na verdade, a referência a “estabelecimento de saúde legalmente autorizado”, para a prática da interrupção
voluntária de gravidez, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez, deixa entender que a
condição apenas existirá no caso prevalecer a resposta positiva, dado esse acto, nas condições propostas, não ser
hoje autorizado em qualquer estabelecimento de saúde, predispondo por isso a uma tal resposta para que a
condição seja possível.
Por outro lado, a previsão de que o aborto, por simples opção da mulher, dentro do prazo assinalado, será
efectuado em estabelecimento de saúde legalmente autorizado sugere uma ideia de completa inexistência de
quaisquer outros valores constitucionais ou legais que tenham de entrar em confronto com a opção da mulher, ou
seja, uma ideia de completa liberalização do aborto, desde que realizado dentro do prazo das 10 semanas e em
estabelecimento de saúde autorizado.
4 – Votei, ainda, com dúvidas quanto à questão do universo subjectivo eleitoral.
Não tendo, todavia, chegado a um juízo de não conformidade constitucional, outra solução não poderia aceitar
que a da aplicabilidade do princípio da presunção de constitucionalidade.
Diz o n.º 12 do art.º 115.º da CRP que “nos referendos são chamados a participar cidadãos residentes no
estrangeiro, regularmente recenseados ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 121.º, quando recaiam sobre
matéria que lhes diga também especificamente respeito”.
Na verdade, se é certo que, na aplicação da lei penal, vigora o princípio da territorialidade (art.º 4.º do
Código Penal) e que os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro não estão, em regra, sujeitos à aplicação da

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lei penal, salvo nas condições limitadas do art.º 5.º, n.º 1, alínea c), do mesmo código, argumentos estes que
apontam para a solução da não inconstitucionalidade do universo eleitoral adoptado, também não o deixa de ser
que a questão pode ser vista fora do enfoque, apenas, da conexão com o direito penal, podendo argumentar-se
que, estando em causa uma alteração tão profunda ao sistema de valores jurídicos do direito pátrio, essa alteração
não é de todo indiferente à situação dos portugueses residentes no estrangeiro, enquanto cidadãos que tendem a
reger a sua vida por esses valores e esse direito e deles dão expressão nos locais onde vivem. Neste aspecto, estar-
se-ia perante “matéria que lhes diria [diz] também especificamente respeito”.
Tal solução seria postulada, de resto, pela mesma lógica substancial que justifica a participação dos
portugueses residentes no estrangeiro nas eleições para o cargo de Presidente da República, podendo encontrar-se
em tal circunstância a coincidência de universo eleitoral estabelecida no referido n.º 12 do art.º 115.º da CRP. A
participação dos portugueses, nestas eleições, também se explica pelo facto de estar em causa a instituição
representativa do povo português e dos valores constitucionais que sedimentou na sua Constituição. Subsistem-
me, porém, dúvidas sobre se a Assembleia da República não goza de discricionariedade normativo-constitutiva,
relativamente às situações em que a matéria objecto do referendo não diga directamente respeito aos portugueses
residentes no estrangeiro enquanto tal, como é o caso.
5.1 – Finalmente, votei vencido quanto à decisão constante da alínea i) do ponto 38 do acórdão, na parte em
que aí se considera que a resposta afirmativa à pergunta formulada não implica necessariamente uma solução
jurídica incompatível com a Constituição.
Não irei expor longamente os fundamentos jurídico-constitucionais com base nos quais se considera que a
vida humana uterina tem consagração e protecção constitucionais nos termos do art.º 24.º, n.º 1, da nossa Lei
fundamental. E não o farei, exactamente, porque, quer o Acórdão n.º 288/98, ao qual constantemente se arrimou,
aí de modo inequívoco, quer o presente Acórdão não deixam de pressupor, ainda que, neste, de forma não tão
impressiva, que a vida uterina tem protecção constitucional, correspondendo a um direito ou garantia
fundamentais. Depois, porque acompanho, no essencial, os votos apostos àquele Acórdão n.º 288/98 pelos
senhores conselheiros que votaram vencido e que aqui se recuperam.
Nesse ponto – e com naturais reflexos, como não poderá deixar de ser quanto à solução desta questão – a
nossa discordância com o acórdão reside, essencialmente, na intensidade de protecção jurídico-constitucional que
se entende derivar de tal preceito, quer no que importa à dúvida, nele concitada, sobre a
titularização/subjectivação do direito à vida humana no art.º 24.º, n.º 1 da CRP, quer na resposta a dar quando
esse direito ou garantia fundamentais entrem em conflito com outros direitos da mulher, mormente, a agora
designada “liberdade de manter um projecto de vida” “como expressão do livre desenvolvimento da
personalidade”.
Não obstante isso – e com referência à metodologia seguida – não é de passar em branco que o acórdão,
ansiando, porventura, acentuar os argumentos que, na sua óptica, abonarão a favor da não inconstitucionalidade
de uma solução jurídica perspectivada na senda de uma resposta afirmativa ao referendo, discorre, essencialmente,
sobre um diálogo de ponderação entre os direitos fundamentais, susceptíveis de entrarem em conflito, a partir de
uma “configuração mais radical” do âmbito da protecção da vida humana, como se a solução passasse, no caso
concreto, por essa linha de protecção, esbatendo a existência, no direito vigente, de causas de desculpabilização e
de justificação que dão expressão, num plano autónomo e exterior, às exigências demandadas, no caso, por um
juízo ponderativo de concordância prática entre os direitos tidos como estando em conflito.
Ao contrário do suposto como elemento de argumentação, não se afirma, nem se viu alguma vez defendido
na ciência jurídica, que, tendo por referência a vida pré-natal e pós-natal, “tenha de existir uma protecção penal
idêntica em todas as fases da vida”, como postulado ou decorrência da inviolabilidade da vida humana ou que haja
“uma argumentação a favor da inconstitucionalidade [da resposta afirmativa ao referendo] que nivele a vida em
todos os seus estádios”.
Tal princípio constitucional não demanda que a protecção penal da vida humana tenha de ser idêntica, em
intensidade, em todo o continuum da vida e em todas as circunstâncias de facto.
O que o princípio da inviolabilidade da vida humana reclama é que a violação do direito à vida (uterina e pós-
uterina) tenha, sempre, protecção penal, valendo, dentro dos diferentes níveis dessa protecção, os princípios gerais
de direito criminal, de matriz, igualmente, constitucional, da justificação do facto, da culpa e do estado de
necessidade.
Assim, não está o legislador ordinário impedido, em geral, de conformar diferentes níveis de protecção
criminal, expressos, maxime, no recorte do facto ilícito típico e da pena, para os diferentes momentos e
circunstâncias do continuum em que se desenvolve a vida humana, diferenciando, dentro dele, a vida intra-uterina
da pós-uterina. O que a Constituição reclama é que, salvo a existência de causas de desculpabilização ou de
justificação, a vida seja penalmente protegida.
Em segundo lugar, o argumento de que não existe “uma linha de inflexível necessidade lógica”, como afirma
o acórdão, entre a definição da inviolabilidade da vida humana e a intervenção penal, “nomeadamente pela
interferência de perspectivas de justificação, de desculpa ou ainda de afastamento da responsabilidade devido “à

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necessidade da pena” assenta sobre uma patente incongruência lógica, dado que as dimensões alegadas para
afastar a intervenção penal são já institutos que pressupõem, necessariamente, a existência dessa protecção penal.
Em terceiro lugar, a convocação do entendimento seguido no referido Parecer do Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República, segundo o qual na mente dos constituintes do art.º 24.º, n.º 1, da CRP não
caberia a protecção da vida uterina só teria sentido para quem – posição que parece não ser, de modo assumido, a
do acórdão e não é, seguramente, a do Ac. 288/98, em que constantemente se abona, nem dos votos de vencido a
eles apostos – seguisse uma tese radical de exclusão do âmbito de protecção conferida por tal artigo da vida intra-
uterina.
5.2 – Sendo, assim, admitido como está, pelo acórdão e por todos os vencidos, que a vida humana intra-
uterina goza de protecção constitucional, o que importa saber, é se, a operação de concordância prática dos
direitos e valores constitucionalmente relevantes, presentes no caso, que o acórdão levou a cabo se apresenta
efectuada com respeito pelo princípio constitucional que emerge do art.º 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP.
Por nós, temos por seguro que não. E firmamos esse juízo, essencialmente, nas seguintes considerações.
Desde logo, porque não deixa de impressionar-nos que o acórdão perspective a tutela de inviolabilidade da
vida humana, estabelecida no art.º 24.º, n.º 1, da CRP, desligada do ser que constitua o seu titular, acabando por
reduzir, subliminarmente, segundo uma óptica radical que tanto critica, o seu âmbito de protecção apenas aos
fetos com mais de 10 semanas de gestação e às pessoas nascidas.
Ora, não vemos, como melhor se verá adiante, que tenha sentido falar-se de inviolabilidade da vida humana
sem ser por referência ao ser que dela seja titular, seja este ser já uma pessoa ou apenas um ser a caminho de ser
pessoa (cf. Laura Palazzani, Il concetto di persona tra bioetica e diritto, Torino, 1996; A. M. Almeida Costa,
“Abortamento provocado”, in Bioética, AA. VV. Coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia e Walter Osswald,
Lisboa, 1996, pp. 201 e segs., e João Carlos Loureiro, “Estatuto do Embrião”, in Novos Desafios à Bioética, AA.
VV., coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald e Michel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs).
Do mesmo passo, não se compreende que se erija a essencial fundamento da tutela constitucional devida ao
embrião/feto o princípio constitucional da dignidade humana, quando este princípio supõe, precisamente, a
existência de um ser dotado de vida humana e o preceito do art.º 24.º, n.º 1, da CRP não só não aponta em
qualquer sentido restritivo, como corresponderia a uma solução contrária ao princípio da “máxima efectividade e
expansividade” dos direitos e garantias fundamentais, constantemente, invocado para justificar a inclusão nos
direitos fundamentais de realidades que suscitam alguma dúvida.
Por outro lado, o acórdão não realizou qualquer juízo de concordância prática entre os dois valores ou
direitos constitucionais, tidos como estando em conflito: o direito do ser, “embrião/feto humanos”, a nascer e a
“liberdade da mulher a manter um projecto de vida, como expressão do livre desenvolvimento da sua
personalidade”. E não efectuou, porque, pura e simplesmente, para fazer prevalecer este último, rejeita a
titularização, no âmbito do art.º 24.º, n.º 1, da CRP (subjectivação constitucional), do direito à vida humana e,
decorrentemente, do conteúdo essencial do direito do feto a nascer, admitindo a possibilidade de, sem censura
penal, lhe tirar a vida humana.
De qualquer modo, pressuposta, como se defende na doutrina e jurisprudência constitucionais, a
inexistência de hierarquia entre direitos constitucionais, precisamente com base na identidade da sua fonte, nunca
a colisão de direitos constitucionais poderá ser resolvida, pelo legislador ordinário, com base num critério
normativo de prevalência da liberdade da mulher a manter um projecto de vida à custa da morte do feto, titular
constitucional de vida humana e da respectiva dignidade.
A operação de concordância prática entre direitos constitucionais, posicionados como estando em conflito,
demanda a realização de um juízo de ponderação (legislativa ou judicial) que dê satisfação ao princípio
constitucional da máxima efectividade de protecção dos direitos e garantias fundamentais.
Tal equivale por dizer que esse juízo deve efectuar-se de modo a tentar obter uma optimização do âmbito de
eficácia da protecção constitucional conferida a tais direitos e que nunca poderá chegar a um resultado de
eliminação de um deles em favor do outro, pois, neste caso, está-se, radicalmente, a eliminar o conteúdo essencial
do preceito constitucional que reconhece a inviolabilidade da vida humana, na sua expressão de direito do titular
da vida humana uterina a nascer e a violar-se frontalmente o disposto na parte final do art.º 18.º, n.º 3, da CRP.
[E a solução não varia se se fizer radicar, segundo a lógica dubitativa que o acórdão admite, a tutela
constitucional do titular embrião/feto no princípio da dignidade de vida humana – lógica essa, diga-se,
incongruente, se referida à dignidade do embrião/feto, por essa dignidade da vida humana supor a existência da
vida humana e de um seu titular, ou, então, contraditória, se a alegada dignidade disser respeito à mulher grávida,
por, nesse caso, inexistir a perspectivada situação de colisão de direitos]
Por outro lado, o juízo de concordância prática não pode deixar de ter presente a estrutura e natureza dos
concretos direitos ou garantias constitucionais, que se apresentam como estando em conflito, mormente para
avaliação dos resultados sob a óptica do princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de justa medida, ao qual
deve obediência.
Ora, nesta sede, não deve desconhecer-se que estão em causa direitos ou garantias constitucionais em
concreto, radicados em diferentes titulares constitucionais: de um lado, a liberdade da mulher grávida a manter um

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projecto de vida e do outro o direito do concreto embrião/feto a nascer, em cada situação de gravidez. Cada
situação de gravidez gera uma situação de existência de um concreto titular do direito à vida humana a nascer.
Nesta perspectiva, cabe acentuar que a Constituição, sempre que quer conferir uma especial intencionalidade
protectora ou eficácia do âmbito de protecção constitucional a certos direitos ou garantias constitucionais, usa
expressões reveladoras desse significado, como o adjectivo “inviolável” ou expressões de exclusão como
“ninguém”, “quaisquer”, etc. (cf., por exemplo, quanto ao primeiro caso, os art.ºs 24.º, n.º 1, 25.º n.º 1 e 34.º, n.º
1, e, quanto ao segundo caso, os art.ºs 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, e, a ambas as situações, o art.º 13.º, n.º
2).
O direito à vida humana é protegido pela Constituição (art.º 24.º, n.º 1) como direito inviolável. O vocábulo
“inviolável” só poderá significar que se trata de um direito que não poderá ser violado em caso algum, mesmo
pelo Estado legislador. Nesta óptica, apenas, se conceberão causas de exclusão que consubstanciem, perante a
Constituição, situações de não violação, como sejam as causas constitucionais de desculpabilização ou de
justificação.
Trata-se, deste modo, de um direito ou garantia constitucional que se encontra dotado de uma especial força
de tutela constitucional. E bem se compreende que o seja, porquanto se trata de um direito fundante de todos os
outros, de um direito que é pressuposto necessário de todos os outros, pois sem titulares de vida humana não
poderá falar-se em dignidade humana ou sequer constituir-se comunidade organizada em Estado de direito
democrático.
Ao contrário, o direito ou garantia fundamental que se apresenta em colisão com ele – a liberdade da mulher
a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade – não se apresenta
dotado constitucionalmente de uma tal força excludente de lesão.
Na verdade, essa liberdade é não a liberdade a que se refere o art.º 27.º, n.º 2, da CRP, a liberdade física ou
liberdade de “ir e vir” – essa sim dotada de tal força excludente – mas sim uma específica dimensão do princípio
do desenvolvimento da personalidade, consagrado no art.º 26.º, n.º 1.
Assim sendo. Existente um direito à vida humana titularizado no ser resultante da partogénese celular, ser
esse diferente, não só biológica e geneticamente (cf. Fernando J. Regateiro, Manual de Genética Médica, Coimbra,
2003, pp. 310 a 312 e Fernando Regateiro, “Doenças Genéticas”, in Comissão de Ética – Das Bases Teóricas à
Actividade Quotidiana, AA. VV. Coordenada por Maria do Céu Patrão Neves, 2.ª edição, Coimbra, 2002, pp. 351
e 352), como também constitucionalmente (cf., entre outros, João Carlos Loureiro, “Estatuto do Embrião”, in
Novos Desafios à Bioética, AA. VV., coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald e Michel
Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs., e A. M. Almeida Costa, op. cit., pp. 210 e segs.), do ser da sua mãe ou
mulher grávida – seja ele já uma pessoa ou não, mesmo numa acepção constitucional – e podendo ele estar em
colisão com o direito a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da sua
personalidade, titularizado na mulher grávida, não pode deixar, numa ponderação de concordância prática dos
valores constitucionais, de adoptar-se, do ponto de vista da sua estrutura e natureza constitucional, uma solução
que não acarrete o sacrifício do titular da vida humana.
Anote-se, de resto, que só o (implícito) reconhecimento de uma alteridade de titularidade constitucional do
ser embrião/feto em relação à sua mãe é que justifica que o próprio acórdão, na esteira, aliás, do de 1998, procure
intentar uma demonstração de existência de concordância prática entre o direito titularizado da mulher grávida e o
direito respeitante ao embrião/feto.
O aborto importa a morte do concreto titular da vida humana, do concreto embrião/feto. Com ele extingue-
se o direito de se desenvolver no seio materno (e de mais tarde nascer), de acordo com a informação codificada
no DNA, a vida humana do concreto feto advindo do específico ovo ou zigoto, este, por sua vez, resultante da
fecundação do concreto ovócito pelo concreto espermatozóide. O ser irrepetível advindo da partogénese celular
deixa de existir, saindo violado, por completo, o seu direito à vida humana.
Pelo contrário, o prosseguimento da vida uterina não extingue a liberdade da mulher a manter um projecto de
vida como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade, mas tão só, quando muito, a obriga a que
adapte, para o futuro, o seu projecto de vida às novas circunstâncias, tal qual pode acontecer por força de muitas
outras circunstâncias possíveis naturalisticamente, como, por exemplo, a doença, o desemprego, acidentes, etc.
Ela continua a ser titular de um direito pessoal ao livre desenvolvimento, de o poder exercer e manifestar,
repetidamente, em todas as outras condições da sua vida. Seguindo a lógica do acórdão, a mulher grávida manterá
a sua liberdade de desenvolver o seu projecto de vida quantas as vezes que optar pela interrupção da gravidez.
Porém, em todas essas vezes, ocorrerá a extinção do direito à vida humana de um concreto titular – o concreto
feto em gestação.
Nesta linha de pensamento, há-de convir-se que a interrupção voluntária de gravidez, por opção da mulher,
nas primeiras 10 semanas de gravidez, assume tão só a natureza de um simples meio de contracepção ou mesmo
de planeamento familiar cuja determinação do concreto conteúdo corresponde a um direito absoluto da mulher
grávida, fazendo irrelevar, para o concreto embrião/feto, qualquer protecção constitucional do seu direito à vida
humana, consagrado no art.º 24.º, n.º 1, da CRP.

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Ou seja, a concepção do acórdão assenta numa ideia de completa liberalização do aborto, condicionando-o a
condições que visam apenas acautelar o aspecto de saúde da mulher abortanda e não em qualquer ideia de que
deve ser efectuada uma ponderação de direitos ou valores: contra a vontade, de livre opção, da mulher de abortar,
nas primeiras 10 semanas de gravidez, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, nada (absoluto) se
pode opor.
Trata-se, por outro lado, de uma solução cuja admissibilidade não vemos como possa ser acolhida pelo
princípio constitucional da proporcionalidade, na sua acepção de justa medida. Essa desproporcionalidade torna-
se patente não só quando abandona, por inteiro, a natureza do direito que está em colisão com o direito da
mulher grávida, permitindo o seu sacrifício, de plano, nas primeiras 10 semanas, como quando a valoração acaba
por ficar dependente apenas da decorrência de simples prazos de gestação, e da aleatoriedade decisória que,
durante eles, poderá ser feita, livremente, pela mulher grávida, podendo ser levada a cabo, sem censura penal, num
limite em que o feto tem até já forma humana (desde as 8 semanas) (cf. Fernando J. Regateiro, Manual de
Genética Médica, Coimbra, 2003, pp. 310 a 312).
Como se verifica dos seus termos, o acórdão invoca a realização de uma concordância prática dos direitos
em questão no plano abstracto, indicando até, nesse sentido, a existência de vários regimes de protecção da
maternidade, que identifica.
Todavia, a primeira objecção que poderá fazer-se a propósito de tal atitude é que, posta a questão em termos
abstractos (plano do conteúdo/extensão do direito objectivo à vida humana), no plano de constitucionalidade,
caberia ao próprio legislador constitucional resolvê-la e não ao legislador ordinário, mormente no que toca ao
conteúdo essencial do direito, que é aquele que é tocado pelo aborto.
E não se esgrima, contra esta posição, como está pressuposto pelo acórdão, para justificar a existência de um
juízo ponderativo de concordância prática, que só tal operação permite enquadrar constitucionalmente as causas
de desculpabilização e de justificação da interrupção voluntária de gravidez existentes na lei em vigor, pois estas,
apenas, correspondem a concretizações, relativamente aos concretos direitos constitucionais que estão em causa,
de princípios constitucionais autónomos, que valem para todo o direito criminal – as causas de justificação e de
desculpabilização.
Depois a tese do acórdão sofre de um verdadeiro ilogismo: é que os direitos cuja existência alega, apenas,
constituirão direitos para quem tiver a sorte de não ser abortado. A sua eficácia depende da existência de titulares
de direito à vida humana que tenham nascido.
A vida humana não existe sem um titular e não é possível falar-se de violação, que o preceito constitucional
proíbe, sem ser relativamente à posição jurídica de quem se encontre investido na titularidade de um direito.
De contrário, o que está em causa é, ainda, a definição do conteúdo constitucional desse direito, dos seus
contornos, do seu conteúdo essencial, no mínimo. E, a ser assim, tal domínio não cabe nos poderes do legislador
ordinário, mas nos do constitucional.
Essa é, também, a razão pela qual repudiamos a tese, admitida no acórdão (pontos 7 a 10), sobre a
admissibilidade de uma dúvida interpretativa sobre a solução, em abstracto, no plano da constitucionalidade, de
um conflito de valores ou direitos constitucionais, como a que está, em causa, na proposta de referendo, poder ser
devolvida ao eleitorado, através de mecanismos como o referendo e não de eleições em que possam ser assumidos
poderes constituintes por parte da Assembleia da República.
É que o voto expresso neste caso, desde que afirmativo, apenas pode traduzir uma posição de poder político
legislativo ordinário, no sentido transportado pela pergunta, ou seja, corporiza, apenas, uma posição de poder
legislativo ordinário, não incorporando quaisquer poderes de definição do conteúdo dos direitos e garantias
constitucionais, só possível através da concessão/assumpção de poderes constituintes.
Resta, por último, apreciar a posição em que se abona o acórdão, segundo a qual não se esgota, no domínio
penal, o âmbito de protecção do direito constitucional à vida humana e de que não existe uma imposição
constitucional à criminalização.
Estamos de acordo quanto à primeira consideração, mas já não podemos acompanhar, de forma alguma, a
segunda proposição.
E não podemos, porque entendemos que existem direitos constitucionais cuja existência e exercício hão-de,
necessariamente, impor a criminalização das atitudes que os violarem, por, na sua defesa, o legislador ordinário
dever usar todos os meios constitucionalmente possíveis e entre estes, evidentemente, a sua última ratio – o
direito criminal.
É o caso do direito à vida humana uterina e pós-uterina. Trata-se de um direito que é pressuposto necessário
da existência de todos os demais (direito com pretensão de absoluto), de um direito sem cuja existência, em seres
concretos, não é concebível qualquer princípio de dignidade da pessoa humana e existência de uma comunidade
politicamente organizada em Estado.
O direito à vida humana de qualquer titular constitucional que ele seja, nascido ou não nascido, porque a
Constituição os não distingue, é um direito fundante do Homem e da sociedade organizada.
Na mesma situação se encontra, por exemplo, a protecção do princípio democrático do Estado de direito.
Sem protecção do princípio democrático do Estado de direito, por todos os meios constitucionalmente

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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permitidos, este não poderá existir e subsistir. Sendo assim, não poderá o legislador ordinário deixar de utilizar na
sua protecção a última ratio – o direito criminal.

A.6 Voto de vencido de Mário José de Araújo Torres


Votei vencido por entender que: (i) a formulação da pergunta não satisfaz os requisitos constitucionais e
legais da clareza e da objectividade; (ii) é injustificada a restrição do “universo eleitoral” aos eleitores residentes no
território nacional; e (iii) a resposta afirma­tiva é susceptível de conduzir a uma solução jurídica inconstitucional.
1. A falta de clareza e de objectividade da pergunta.
1.1. A Constituição da República Portuguesa (CRP) exige, no seu artigo 115.º, n.º 6, que as questões objecto
de referendo sejam “formuladas com objectividade, clareza e precisão”, tendo a Lei Orgânica do Regime do
Referendo (Lei n.º 15-A/98, de 3 de Abril, alterada pela Lei Orgânica n.º 4/2005, de 8 de Setembro – LORR)
reiterado que “as perguntas são formuladas com objectividade, clareza e precisão (...), sem sugerirem, directa ou
indirectamente, o sentido das respostas”.
Os requisitos da clareza e da precisão implicam que a pergunta seja formulada “de modo unívoco e explícito,
sem ambiguidades” (Acórdão n.º 704/2004), insusceptível de “comportar mais do que uma interpretação”
(Acórdão n.º 531/98). O requisito da objectividade impede a utilização de formulações susceptíveis de “induzir os
eleitores em erro, influenciando o sentido da resposta” (Acórdão n.º 531/98).
Entendo que a pergunta ora em apreciação não é clara quando utiliza a expressão “em estabelecimento de
saúde legalmente autorizado”, e não é objectiva quando usa a expressão “despenalização da interrupção voluntária
da gravidez”.
1.2. A primeira expressão é susceptível de duas interpretações: tratar-se de estabelecimento de saúde
legalmente autorizado a praticar abortos (autorização específica) ou tratar-se de estabelecimento de saúde
legalmente autorizado a funcionar como estabelecimento de saúde tout court (autorização genérica).
No Acórdão n.º 288/98 o Tribunal Constitucional interpretou a expressão naquele primeiro sentido,
interpretação que foi mantida pelo precedente acórdão. Afigura-se-me, porém, que é a segunda a interpretação
correcta, como, a meu ver, resulta da história das iniciativas parlamentares pertinentes, em que a expressão surge
como equivalente a “estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido” (cf. Projectos de Lei n.ºs
177/VII, 235/VII, 236/VII, 417/VII, 451/VII, 453/VII, 16/VIII, 64/VIII, 1/IX, 89/IX, 405/IX, 409/IX, 1/X,
6/X, 12/X, 19/X e 166/X), que é, aliás, a utilizada no corpo do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal. O que se
pretendeu exigir terá sido que o aborto fosse praticado em estabelecimento de saúde, quer oficial, quer legalmente
autorizado (no sentido de oficialmente reconhecido), e não em quaisquer outras instalações, mas não se terá
querido limitar tais intervenções a estabelecimentos de saúde especificamente autorizados a praticar abortos
(admitindo que estas autorizações específicas existam ou venham a existir). A simples exis­tência desta dualidade
de interpretações demonstra a falta de clareza desta parte da pergunta.
1.3. Mais grave, porém, é a falta de objectividade que deriva do uso da expres­são “despenalização da
interrupção voluntária da gravidez”. Interessará começar por recordar as oito formulações propostas para a
pergunta ao longo das diversas tentativas de processo referendário nesta matéria:
1) “Não existindo razões médicas, o aborto deve ser livre durante as primeiras 12 semanas?” (Projecto de
Resolução n.º 38/VII, apresentado pelo PSD, Diário da Assem­bleia da República (DAR), II Série-A, n.º 12, de
9/1/1997);
2) “Não existindo razões médicas, o aborto deve ser livre durante as primeiras 10 semanas?” (Projecto de
Resolução n.º 75/VII, apresentado pelo PSD, DAR, II-A, n.º 23, de 15/1/1998);
3) “1 – Concorda que o aborto seja livre nas primeiras 10 semanas de gravidez? 2 – Concorda que razões de
natureza económica ou social possam justificar o aborto por constituírem perigo grave para a saúde da mulher?”
(proposta de substituição do Projecto n.º 75/VII, apresentada pelo PSD e CDS-PP, DAR, I, n.º 51, de
20/3/1998);
4) “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da
mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” (proposta de
substituição do Projecto n.º 75/VII, apresentada pelo PS (DAR, I, n.º 51, de 20/3/1998), que viria a ser adoptada
pela Resolução da Assembleia da República n.º 16/98 (Diário da República (DR), I Série-A, n.º 76, de
31/3/1998), e retomada no Projecto de Resolução n.º 69/X, apresentado pelo PS (DAR, II-A, n.º 50, de
22/9/2005), adoptado pela Resolução da Assembleia da República n.º 52-A/2005 (DR, I-A, Supl. ao n.º 188, de
29/9/2005), e no Projecto de Resolução n.º 148/X, apresentadas pelo PS (DAR, II-A, n.º 2, de 21/9/2006),
adoptado pela Resolução da Assembleia da República n.º 54-A/2006 (DR, I Série, 2.º Supl. ao n.º 203, de
20/10/2006));
5) “Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez, com o
consentimento da mulher, em estabelecimento legal de saúde?” (Projecto de Resolução n.º 7/X, apresentado pelo
BE, DAR, II-A, n.º 4, de 2/4/2005);

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6) “Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado nas primeiras 10 semanas de gravidez, com o
consentimento da mulher, em estabelecimento legal de saúde?” (Projecto de Resolução n.º 9/X, apresentado pelo
PS (DAR, II-A, n.º 4, de 2/4/2005), adoptado pela Resolução da Assembleia da República n.º 16-A/2005 (DR, I-
A, Supl. ao n.º 78, de 21/4/2005));
7) “Concorda com a despenalização do aborto realizado nas primeiras 16 sema­nas de gravidez, com o
consentimento da mulher, em estabelecimento legal de saúde” (pro­posta de substituição do Projecto n.º 9/X,
apresentado pelo CDS-PP, DAR, II-A, n.º 8, de 22/4/2005);
8) “Concorda com a liberalização do aborto, se realizado, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas,
em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” (Proposta de substituição do Projecto n.º 148/X,
apresentada pelo CDS, DAR, II-A, n.º 12, de 28/10/2006).
Nestas formulações são utilizados os conceitos de “liberalização”, “despenalização” e “descriminalização”,
que, como é sabido, têm sentidos bem diferenciados e efeitos distintos, desde logo o de que, como assinala Jorge
de Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra, 1999, p.
178), “se a interrupção for um facto ilícito, ainda que não punível, o Estado se sentirá desobrigado das prestações
sociais decorrentes da intervenção médica – de acordo com o princípio de que não podem ser dispendidos
dinheiros públicos com factos constitutivos de ilícitos penais”.
Tenho por evidente que a medida legislativa que os proponentes do refe­rendo visam aprovar, na hipótese
de resposta afirmativa vinculativa, não consiste numa mera despe­nalização (sem descriminalização). Não se trata,
na verdade, de previsão de situações de não aplicação de penas a determinados autores de condutas que
continuam a ser qualificadas como criminalmente ilícitas (como acontece com as propostas de eliminação do n.º 3
do artigo 140.º do Código Penal, constantes dos Projectos de Lei n.ºs 308/X (PCP), 309/X (Os Verdes) e 317/X
(BE), que, essas sim, conduzem à não punição da mulher grávida em todas as situações de crimes de aborto,
praticados fora das previsões do artigo 142.º), mas muito mais do que isso. Trata-se de deixar de considerar como
crime, relativamente a todos os participantes nes­sas intervenções (e não apenas à mulher grávida), o aborto
praticado, nas primei­ras dez sema­nas de gravidez, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde
legalmente autorizado. E não se trata apenas de afastar a ilicitude criminal, mas toda e qualquer ilicitude. E ainda
mais: trata-se de assegurar, pelo próprio Estado, designadamente através do serviço nacional de saúde, a prática
desses actos. Isto é: pretende-se passar de uma situação de “crime punível”, não a uma situação de “crime não
punível”, mas a uma situação de “não crime”, de “não ilícito” e de “direito a prestação do Estado”.
Nem se diga, como foi aduzido no debate parlamentar, que não se trata de “des­criminalização” por o crime
de aborto continuar a ser punível quando praticado para além das 10 semanas. A questão, porém, é que um
conjunto de situações (prática do aborto, por opção da mulher, até às 10 semanas de gravidez, sem que se
verifiquem as “indicações” do artigo 142.º), que eram consideradas crime e como tal punidas, deixam de ser
consideradas como crime relativamente a todos os intervenientes nessas práticas.
Neste contexto, embora fosse sustentável que, em rigor, se trata de uma “legalização” do aborto em causa
[na apresentação da Projecto de Resolução foi expressamente referido: “(...) ao legalizar a interrupção voluntária
da gravidez sob determinadas condições, não se está, como é evidente, a liberalizar o aborto, está-se apenas a
alargar, de forma razoável e equilibrada, o elenco das excepções, já hoje admitidas na lei, à regra geral de
criminalização que permanece em vigor. (..) Por isso, propomos a realização desta consulta popular, onde a única
questão a decidir é saber se «sim» ou «não» à licitude da inter­rupção voluntária da gravidez, nas primeiras 10
semanas, em estabelecimento autorizado” – DAR, I, n.º 14, de 20/10/2006, p. 8 (sublinhados acrescentados)], a
pergunta a formular, para ser objectiva, teria, no mínimo, de referir a intenção de “deixar de constituir crime” tal
conduta. Isto é: devia ter sido mantida a formulação dos Projectos de Resolução n.ºs 7/X (BE) e 9/IX (PS) –
“Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado nas primeiras 10 [12 para o BE] semanas de gravidez,
com o consentimento da mulher, em estabelecimento legal de saúde?” – acolhida na Resolução da Assembleia da
República n.º 16-A/2005.
A isto acresce que, quer na discussão pública em curso sobre este tema, quer, mais relevantemente, na
apresentação parlamentar da iniciativa referendária, se tem sistemati­camente insistido na associação desta
iniciativa ao propósito de pôr termo à perseguição cri­minal, julgamento, condenação e prisão das mulheres
grávidas que pratiquem aborto. E o uso da expressão “despenalização”, na pergunta, pode propiciar o
entendimento de que é esse propósito que se visa alcançar, o que não corresponde à realidade. Na verdade, face
ao apontado desiderato, a aprovação da medida legislativa que resultará de eventual resposta positiva vinculativa
ao referendo surge como inadequada, por defeito e por excesso: por defeito, porque não evitará a perseguição
criminal das mulheres que pratiquem aborto para além das 10 semanas fora das indicações do artigo 142.º do
Código Penal e ainda das que pratiquem aborto dentro das 10 semanas, mas fora de estabelecimento de saúde
legalmente autorizado; por excesso, porque exclui da incriminação, não apenas as mulheres grávidas, mas todos os
intervenientes no acto em causa.
Não se leia nas considerações precedentes qualquer tomada de posição negativa quanto ao mérito da
iniciativa. Não é disso que se visa nesta sede, em que apenas se trata de verificar o respeito dos requisitos de
clareza e de objectividade exigíveis à pergunta do referendo.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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E, pelas razões expostas, concluo que, para além da falta de clareza da expressão “estabelecimento de saúde
legalmente autorizado”, a expressão “despenalização da interrupção voluntária da gravidez” não respeita o
requisito da objectividade, pois se mostra susceptível de “induzir os eleitores em erro, influenciando o sentido da
resposta”.
2. A definição do “universo eleitoral”.
A proposta referendária limita a intervenção no referendo aos “cidadãos eleitores recenseados no território
nacional”.
O precedente acórdão (n.º 26), para considerar justificada esta limitação, invoca argumentos (ser a “aplicação
da lei penal portuguesa a cidadãos residentes no estran­geiro relativamente excepcional e condicionada” e não ter
a matéria do referendo “a ver especificamente com a particular situação dos cidadãos portugueses residentes no
estrangeiro”), que não posso acompanhar.
Com efeito, afigura-se-me de todo impertinente o argumento extraído das regras sobre a aplicação no
espaço da lei penal portuguesa. Não pode consti­tuir critério ade­quado para aferir da relevância da participação
no referendo dos cida­dãos portugueses resi­dentes no estrangeiro a circunstância de, por regra, as normas penais
portugue­sas lhes não serem aplicáveis. O interesse na participação no referendo não pode resultar da
susceptibilidade de ser autor ou vítima dos crimes em causa.
Por outro lado, a CRP (artigo 115.º, n.º 12) não restringe a participação dos cidadãos residentes no
estrangeiro aos referendos sobre matéria que apenas lhes diga especificamente respeito, mas sim sobre matéria
“que lhes diga também especificamente respeito”. E em lado algum a CRP manda considerar esses cidadãos “na
sua condição de emigrantes”, condição que, aliás, muitos deles não terão.
Há que atender que não é à generalidade dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro que é facultada
a participação no referendo, nem sequer ao grupo, mais reduzido, dos que, estando recenseados, são eleitores da
Assembleia da República. É, apenas, ao grupo estrito de cidadãos portugueses a quem, apesar de residirem no
estrangeiro, foi admitida a participação nas eleições para Presidente da República por mantenham “laços de
efectiva ligação à comunidade nacional” (artigo 121.º, n.º 2, da CRP, para que remete o artigo 115.º, n.º 12) e que
efectivamente exercitaram esse direito de recenseamento (o que revela a actualidade do seu interesse na
participação nos assuntos públicos nacionais), designadamente titulares de órgãos da União Europeia e de
organizações internacionais, diplomatas e outros funcionários e agentes em serviço em representações externas do
Estado, funcionários e agentes das comu­nidades e da União Europeia e de organizações internacionais,
professores de escolas portu­guesas, cooperantes (artigo 1.º-A, n.º 1, da Lei Eleitoral para Presidente da República
– Decreto-Lei n.º 319-A/76, de 3 de Maio, alterado, por último, pela Lei Orgânica n.º 5/2005, de 8 de Setembro);
cônjuges ou equiparados, parentes ou afins, que vivam com os cidadãos atrás mencionados (artigo 1.º-A, n.º 2, da
mesma Lei); e os cidadãos que não estejam ausentes do território nacional para além de determinados limites
temporais, consoante sejam residentes nos Estados membros da União Europeia ou nos países de língua oficial
portuguesa ou nos demais Estados ou que se tenham deslocado a Portugal e aqui permanecido durante
determi­nado período de tempo em época recente (artigo 1.º-B da mesma Lei).
Por outro lado, a matéria em causa no referendo, como o evidencia a intensi­dade do debate público que a
tem rodeado ao longo de um já dilatado período de tempo, está directamente ligada à definição dos valores
fundamentais estruturantes da comunidade nacional, problemática que não pode deixar de afectar os portugueses
que, apesar de residentes no estrangeiro, têm manifestado laços de efectiva ligação à comunidade nacional e
revelado interesse actual na intervenção directa na vida política nacional.
Não se vislumbra motivo justificado para excluir este grupo de cidadãos portugueses da participação num
referendo que, atenta a matéria sobre que versa, também lhes diz especificamente respeito, e no qual, aliás, irão
participar cidadãos estrangeiros residentes em Portugal – os referidos no artigo 38.º da LORR.
3. A inconstitucionalidade da solução legislativa derivada de eventual res­posta positiva vinculativa ao
referendo.
3.1. Apesar da notória divisão de posições revelada pelos quatro acórdãos proferidos pelo Tribunal
Constitucional sobre a problemática do aborto (Acórdãos n.ºs 25/84, 85/85, 288/98 e o presente), num aspecto
crucial verificou-se unanimidade por parte dos 31 juízes das diversas formações que subscreveram esses acórdãos:
todos eles, nemine discrepante, assumiram que a vida intra-uterina constitui um bem constitucionalmente tute­lado,
donde deriva a obrigação do Estado de a defender.
O reconhecimento da dignidade constitucional da vida intra-uterina (comum, aliás, à generalidade das
pronúncias de diversos Tribunais Constitucionais da nossa área civilizacional) – que é independente de
concepções filosóficas ou religiosas sobre o início da vida humana – não impede, como é óbvio, a admissão de
que a sua tutela seja menos forte do que a da vida das pessoas humanas (desde sempre revelada na diferenciação
das penas aplicáveis aos crimes de aborto e de homicídio) e que possa conhecer gradações consoante a fase de
desenvolvimento do feto, designadamente em sede de ponderação da solução do conflito entre esse valor e outros
valores igualmente dignos de protecção constitucional, relacionados com a mulher grávida.
O que se me afigura constitucionalmente inadmissível, por incompatível com o reconhecido dever do
Estado de tutelar a vida intra-uterina – com consequente postergação da concepção primária do feto como uma

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víscera da mulher, sobre a qual esta deteria total liber­dade de disposição – é admitir que, embora na fase inicial de
desenvolvimento do feto, se adopte solução legal que represente a sua total desprotecção, com absoluta
prevalência da “liberdade de opção” da mulher grávida, sem que o Estado faça o mínimo esforço no sentido da
salvaguarda da vida do feto, antes adoptando uma posição de neutral indiferença ou, pior ainda, de activa
promoção da destruição dessa vida.
Não acompanho, assim, o argumento expendido no n.º 48 do Acórdão n.º 288/98 e retomado no n.º 31 do
precedente acórdão, que vislumbra uma ponderação de inte­resses no “contexto global” da regulação da matéria,
como que “compensando” a despro­tecção total da vida intra-uterina nas primeiras 10 semanas com a protecção
total (ou quase total) nos últimos períodos de gestação, argumento que se me afigura inaceitável face à inarredável
individualidade e infungibilidade de cada vida humana, mesmo que intra-uterina. Como se afirmou na declaração
de voto do Cons. Tavares da Costa aposta àquele acórdão, na vida intra-uterina manifesta-se “uma forma de vida
que, desde logo, contém um acabado programa genético, único e irrepetível, o qual, se entretanto não conhecer
destruição, culminará, inevitavelmente, com o nascimento de um ser humano” (sublinhado acrescentado) – cf.,
ainda, sobre este ponto, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005,
pp. 230–232).
3.2. Não excluo, porém, compartilhar da convicção de Jorge de Figueiredo Dias (obra citada, p. 172) “de que
mesmo um sistema que combinasse equilibradamente o sistema das indicações com o sistema dos prazos não
mereceria censura constitucional se nele assentasse o legislador ordinário; nomeadamente se um tal sistema se
combinasse por sua vez, como deve, com um consistente e adequado sistema de aconselha­mento” (negrito no
original, sublinhado acrescentado).
Isto é: admitiria considerar não inconstitucional uma solução legislativa que, no período inicial da gestação,
acabasse por conceder prevalência à opção da mulher grávida, desde que fosse associada à imposição de um
sistema de aconselhamento, designadamente se este aconselhamento não fosse um aconselhamento meramente
informativo, mas antes um aconselhamento orientado para a salvaguarda da vida.
Como resulta dos elementos de direito comparado largamente referidos no Acórdão n.º 288/98 (cf. também
João Carlos Simões Gonçalves Loureiro, “Aborto: algumas questões jurídico-constitucionais (A propósito de uma
reforma legislativa)”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXIV, Coimbra, 1998, pp. 327-403), há, na nossa
área civilizacional, três modelos fundamentais em matéria de criminalização do aborto.
Um primeiro grupo engloba os países em que vigora a proibição total: Irlanda e Malta.
O segundo grupo é integrado pelos países que reconhecem apenas o modelo das indicações, isto é, “o
reconhecimento de situações taxativamente indicadas e objectivamente controláveis (i. e., controláveis por
terceiro) perante as quais a lei permite o sacrifício da vida intra-uterina” (Figueiredo Dias, local citado, p. 171). É o
caso, embora com variações quanto ao tipo de “indicações” consideradas relevantes e a sua relacionação com os
períodos de gestação, da Itália, Reino Unido, Luxemburgo, Suíça, Finlândia, Portugal e Espanha. [Em parêntesis
refira-se que, ao contrário do que com frequência se refere no debate público, não vigora em Espanha um sistema
“liberal”, perante o qual seria chocantemente contrastante o “limitado” sistema português. O sistema legal
espanhol é estritamente um sistema de indicações. O que ocorre é que, na prática, uma interpretação latíssima da
indicação relacionada com a “saúde psíquica” da mulher grávida conduziu a uma permissividade na prática do
aborto, sobretudo em “clínicas privadas”, que têm como objecto exclusivo do sua actividade a prática abortiva
(segundo informa João Loureiro, estudo citado, p. 339, 98% dos abortos realizados nas clínicas privadas
apresentam como “indicação” o risco para a saúde psíquica da mãe)].
O terceiro grupo compreende os países que associam o modelo das indicações com o modelo dos prazos,
segundo o qual o aborto será permitido, sem necessidade de justificação por parte da grávida ou do seu controlo
por terceiro, dentro de certo prazo. Neste grupo, há ainda que distinguir entre os que não associam (Áustria,
Dinamarca, Suécia e Grécia) e os que associam ao método dos prazos um sistema de aconselhamento obrigatório
meramente informativo (Bélgica, França, Luxemburgo) ou um aconselhamento obrigatório orientado para a
salvaguarda da vida (Holanda, Itália, Alemanha) e um período de reflexão (Bélgica, França, Holanda, Itália,
Luxemburgo).
Na Holanda, estabeleceu-se, no artigo 5.º da Wet afbreking zwangerschap, de 1 de Maio de 1981, “um
processo de aconselhamento obrigatório visando analisar alternativas à interrupção voluntária da gravidez e que o
médico, se a mulher achar que a situação de emer­gência não poderá ser resolvida de outro modo, se certifique
que a mulher manifestou e manteve o seu pedido de livre vontade após cuidadosa reflexão e na consciência da sua
responsa­bilidade pela vida pré-natal e por si própria e pelos seus” (João Loureiro, estudo citado, p. 366-367).
Em Itália, durante os primeiros 90 dias da gravidez, a decisão de abortar cabe à mulher, mas sujeita a
consulta em centro de consulta familiar, que a deve esclarecer e ponde­rar em conjunto com ela e com o autor da
concepção (se a mulher assim consentir) todas as soluções possíveis, com o objectivo de ajudar a mulher a
ultrapassar as causas que poderiam conduzi-la a interromper a sua gravidez (cf. n.º 38 do Acórdão n.º 288/98).
Finalmente, na Alemanha, na sequência directa de pronunciamentos do respec­tivo Tribunal Constitucional,
a possibilidade de prática de aborto, nas primeiras 12 semanas, a pedido da mulher, está dependente de

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aconselhamento obrigatório especificamente dirigido à protecção da vida embrionária e fetal, dispondo o n.º 1 do
§ 219 do Código Penal alemão (cf. João Loureiro, local citado, p. 389):
“O aconselhamento serve a protecção da vida que está por nascer. Deve orientar-se pelo esforço de
encorajar a mulher a prosseguir a gravidez e de lhe abrir perspectivas para uma vida com a criança. Deve ajudá-la
a tomar uma decisão responsável e em consciência. A mulher deve ter a consciência de que o feto, em cada uma
das fases de gravidez, também tem o direito próprio à vida e que, por isso, de acordo com o sistema legal, uma
interrupção da gravidez apenas pode ser considerada em situações de excepção, quando a mulher fica sujeita a um
sacrifício que pelo nascimento da criança é agravado e se torna tão pesado e extraordinário que ultrapassa o limite
do que se lhe pode exigir.”
A meu ver, atento o quadro constitucional português vigente, não pode dei­xar-se de considerar
inconstitucional um sistema que, na parte em que acolhe o método dos prazos, não o condicione a um sistema de
aconselhamento orientado para a salvaguarda da vida. Na verdade, após se reconhecer que a vida intra-uterina
constitui um valor constitucio­nalmente tutelado, cuja defesa incumbe ao Estado, é contraditório e incongruente
considerar constitucio­nalmente aceitável uma solução em que a vida do feto é sacrificada, por mera opção da
mulher, sem que o Estado tome qualquer iniciativa nesse domínio, a mínima das quais seria condicionar o aborto
à obrigatoriedade de aconselhamento e de um período de reflexão. Aconselhamento este que, nos sistemas legais
que o acolhem, não surge como mecanismo estranho à solução penal (como as consultas de planeamento
familiar), mas antes se insere no estrito domínio penal, como condição da não incriminação ou punição do aborto.
3.3. É certo que, quer o Acórdão n.º 288/98, quer o precedente acórdão, acabem por reconhecer a
relevância da introdução, na lei que vier a ser aprovada na sequência de eventual resposta afirmativa vinculativa ao
referendo, da “obrigatoriedade de uma prévia con­sulta de aconselhamento, em que possa ser dada à mulher a
informação necessária sobre os direitos sociais e os apoios de que poderia beneficiar no caso de levar a termo a
gravidez, bem como o estabelecimento de um período de reflexão entre essa consulta e a intervenção abortiva,
para assegurar que a mulher tomou a sua decisão de forma livre, informada e não preci­pitada, evitando-se a
interrupção da gravidez motivada por súbito desespero” (n.º 52 do Acórdão n.º 288/98, retomado no n.º 34 do
precedente acórdão).
Acontece, porém, que, perante os termos em que está formulada a pergunta do referendo, se a lei aprovada
na sua sequência não contemplar esse condicionamento (e, como veremos, é mesmo questionável que o possa
inserir), ela não poderá ser vetada pelo Presidente da República nem sujeita a fiscalização preventiva do Tribunal
Constitucional com o fundamento de ser inconstitucional a não consagração do aconselhamento obrigatório
como condição de não punibilidade.
É o que resulta, a meu ver, da força vinculativa constitucionalmente atribuída à resposta afirmativa ao
referendo, com participação neste de mais de metade dos eleitores inscritos no recenseamento.
As diversas iniciativas legislativas surgidas, neste domínio, na última década, na parte em que visavam a
introdução do sistema dos prazos (Projectos de Lei n.ºs 177/VII, 235/VII, 236/VII, 417/VII, 451/VII, 453/VII,
16/VIII, 64/VIII, 1/IX, 89/IX, 405/IX, 409/IX, 1/X, 6/X, 12/X, 19/X, 166/X, 308/X, 309/X e 317/X),
previram o condicionamento da não punibilidade do aborto, por opção da mulher, aos seguintes requisitos:
1) ser a interrupção da gravidez efectuada por médico ou sob a sua direcção;
2) ser feita em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido;
3) durante as primeiras 10 ou 12 semanas de gravidez;
4) com invocação de motivos relacionados com a preservação da integridade moral e dignidade social da
mulher e com uma maternidade consciente e responsável; e
5) após consulta num centro de acolhimento familiar ou comissão de apoio à maternidade.
A proposta de referendo apenas contempla, como condições de “despenalização” (rectius, descriminalização),
para além da opção da mulher, o prazo de 10 semanas e a natureza do estabelecimento de saúde.
Do carácter vinculativo do referendo (artigo 115.º, n.º 1, da CRP) resulta que o sentido da vontade popular
soberana, por esse meio directamente expressa, se impõe aos órgãos de soberania que sejam chamados a intervir
no subsequente processo legislativo. Impõe à Assembleia da República e ao Governo a aprovação, em prazo
certo, do acto legislativo de sentido correspondente à resposta afirmativa (artigo 241.º da LORR) e proíbe ao
Pre­sidente da República a recusa de promulgação do acto legislativo “por discor­dância com o sentido apurado
em referendo com eficácia vinculativa” (artigo 242.º da LORR).
Desta última proibição de veto presidencial (sem distinção entre veto político e veto por
inconstitucionalidade) resulta a impossibilidade de fiscalização preventiva, pelo Tribunal Constitucional, da
constitucionalidade do acto legislativo concretizador da pronúncia referendária, desde que o sentido desse acto
caiba dentro do alcance de tal pronúncia. Isto é, tal como Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa
Anotada, Tomo II, Coimbra, 2006, p. 309), entendo que só será admissível o Presidente da República requerer ao
Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da lei concretizadora da pronúncia referen­dária “apenas naquilo
em que ela estiver para além do conteúdo da proposta referendada, ou no tocante a inconstitucionalidade orgânica
ou formal”. Trata-se de entendimento também subscrito por Maria Benedita Urbano (O Referendo – Perfil
Histórico-Evolutivo do Insti­tuto. Configuração Jurídica do Referendo em Portugal, Coimbra, 1998, p. 287: “(...)

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


113
isto equivale à impossibilidade de o PR utilizar o seu veto político e de pedir a fiscalização pre­ventiva das normas
concretizadoras da consulta referendária, pelo menos na parte em que elas se limitem a traduzir correctamente a
vontade popular”), por Luís Barbosa Rodrigues (O Referendo Português a Nível Nacional, Coimbra, 1994, pp.
230-231, onde após, referir estar vedado ao Presidente da República recusar a promulgação da lei que concretize o
resultado do referendo, acrescenta: “No que se refere ao Tribunal Constitucional (...) parece líquido que este não
deverá pronunciar-se preventivamente acerca da concretização normativa do resul­tado do referendo, mesmo se
instado pelo Presidente da República a fazê-lo”), e mesmo por Vitalino Canas (Referendo Nacional – Introdução
e Regime, Lisboa, 1998, pp. 23 e 35 e nota 37), que, apesar de admitir que o Presidente da República peça “a
fiscalização preventiva da constitucionalidade de quaisquer normas constantes de um acto executor da decisão dos
cidadãos expressa em referendo, tenham elas ligação directa com essa execução ou não e seja o referendo
vinculativo ou não”, reconhece que, “quando o Tribunal Constitucional tenha efectuado aquilo que se designou
por fiscalização pré-preventiva das normas, a sua jurisdição se reduza à averiguação sobre se a norma produzida
na sequência do referendo coincide com a norma pré-avaliada”.
No caso concreto, se, face a resposta afirmativa vinculativa ao referendo, a Assembleia da República aprovar
uma lei em que condicione a “despenalização” do aborto às três condições expressas na pergunta (opção da
mulher, período de 10 semanas e estabeleci­mento de saúde legalmente autorizado) – hipótese em que não vejo
como se poderá sustentar que a lei desrespeite o sentido da resposta –, a questão da inconstitucionalidade dessa
solução legislativa, por se entender que seria indispensável a imposição de uma consulta de aconse­lhamento e/ou
de um período de reflexão, não poderá ser colocada ao Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização
preventiva, contrariamente ao que pressupõem o Acórdão n.º 288/98 e o precedente acórdão, sendo mesmo
questionável a constitucionalidade da imposi­ção, pelo legislador, de outras condições de “despenalização” para
além das que constam da pergunta, tal como seria inconstitucional, por exemplo, a fixação do período de gravidez
em 8 semanas, em vez das 10 semanas que da mesma constam.
A solução para evitar o aparecimento irremediável de soluções legislativas inconstitucionais consiste no
particular rigor que o Tribunal Constitucional deve colocar na apreciação da constitucionalidade das soluções
legislativas emergentes das respostas (positiva ou negativa). Não basta, contrariamente à decisão que no presente
acórdão obteve maioria, que nenhuma das respostas implique necessariamente uma solução jurídica incompatível
com a Constituição. O que importa assegurar é que nenhuma das possíveis soluções jurídicas que caibam no
sentido da resposta (relativamente às quais o Tribunal Constitucional, pelas razões expostas, não terá
oportunidade de se voltar a pronunciar em sede de fiscalização preventiva) viole a Constituição.
No presente caso, a meu ver, não apenas uma das soluções possíveis, mas até a solução que directamente
resultará da resposta afirmativa, se se converter a formulação literal desta em artigo de lei, é inconstitucional,
atenta a completa falta de intervenção do Estado na tutela da vida intra-uterina, bem constitucionalmente
protegido, que exigiria, no mínimo, a imposição da obrigatoriedade de uma consulta de aconselhamento e de um
período de refle­xão antes da consumação do aborto. Ora, em vez dessa intervenção para salvaguarda da vida, de
tal solução resultará, nem sequer uma posição de neutralidade ou de indiferença do Estado (que já seria criticável),
mas inclusivamente uma posição de promoção do aborto, através da facilitação da sua prática, por mera opção da
mulher grávida, sem invocação de motivos, nos serviços públicos de saúde, tendencialmente gratuitos.

A.7 Voto de vencido de Carlos Pamplona de Oliveira


1. Coincidem, no presente aresto, duas matérias de difícil resolução. A primeira tem a ver com a os
requisitos formais e substantivos da convocação de referendo, e a segunda diz respeito à natureza da questão
especificamente tratada: a descriminalização do crime de aborto quando voluntariamente praticado "nas primeiras
10 semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado".
2. Votei em sentido contrário à solução encontrada pelo Tribunal em resposta a estas duas questões, pois
entendo, essencialmente, que a pergunta formulada não espelha com clareza, precisão e objectividade – como a
Constituição impõe – a matéria que é colocada à consideração dos cidadãos, e também porque entendo que uma
resposta positiva à pergunta determina violação do n.º 1 do artigo 24º da Constituição.
3. As cautelas com que a lei rodeia a convocação de referendo explicam-se pelo peso que, nas democracias
ocidentais, é conferido à opinião pública expressa em sufrágio universal, fora dos momentos eleitorais
determinados pelos ciclos políticos previstos na Constituição. É, assim, essencial – ao fim e ao cabo para garantir
a genuinidade da resposta dos cidadãos –, que a pergunta seja absolutamente clara e objectiva, não só na sua
locução gramatical, mas também no seu conteúdo, expondo a questão por forma a permitir a sua completa
apreensão. Não é, a meu ver, o caso em presença, pois a pergunta não esclarece, nem deixa espaço para que se
perceba, que, actualmente, a lei já não penaliza sempre a interrupção voluntária da gravidez (artigo 142º do
Código Penal). Em suma, a pergunta pode falsamente fazer concluir que o tratamento jurídico do aborto se
desenvolve na dicotomia crime/descriminalização, sem ocorrência de situações justificativas de não punibilidade

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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já previstas no actual sistema legal. Ao colocar deficientemente os dados da questão, a pergunta não é, a meu ver,
precisa nem objectiva.
4. Quanto à segunda questão, entendo muito simplesmente que se a Constituição, no aludido preceito,
protege, sem excepção, a vida humana, é necessário que se conclua que esse dever de protecção legal se estende a
todas as formas de vida humana e, portanto, à vida intra-uterina. O que não significa que se imponha um grau de
intensidade necessariamente igual na protecção de todas as formas de vida. Significa, isso sim, que se me afigura
constitucionalmente desconforme que se retirem completamente todos os obstáculos legais à morte da vida intra-
uterina, nesse período de 10 semanas.
5. Para além disto, acompanho, embora com dúvidas, a solução perfilhada nas alíneas b), c), d), g) e h) da
decisão.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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B. A IPPF e as suas afiliadas

Ponderei durante algum tempo antes de decidir incluir neste documento este apêndice com
alguns dados e factos acerca das origens e motivações da International Planned Parenthood
Foundation1 (IPPF) e do seu empenho nas últimas décadas com o objectivo de liberalizar o
aborto, a par com outros objectivos como o da promoção do planeamento familiar e o da
contracepção, bem como a promoção de um tipo particular de “educação sexual”.
Numa primeira abordagem, este documento pretendia ser apenas um texto argumentativo
contra o direito do aborto a pedido e que apelasse racionalmente ao voto “não” no referendo
de 11 de Fevereiro de 2007. Contudo, ao longo do tempo que despendi a estudar este assunto,
fui-me dando conta de que desconhecia profundamente a história da IPPF, das suas origens,
das suas motivações, das ideias dos seus fundadores e promotores. Ao tomar contacto com
esta história, intimamente relacionada com a da discussão em torno do aborto, também me dei
conta de que tal informação não estava suficientemente divulgada. Tratam-se de factos
incómodos para o status quo do “politicamente correcto” no qual nos movemos diariamente.
Verifiquei que a minha ignorância acerca da IPPF não era apenas um problema meu nem um
caso isolado. Sistematicamente, estes factos não chegam à opinião pública. Claramente,
abstenho-me de procurar razões ocultas ou conspiratórias que levam a esta situação, e isto
também porque sou contra “teorias da conspiração”, que em muitos casos, pela forma
simplista como são veiculadas, se tornam em retratos também eles simplistas de uma realidade
complexa e multifacetada.
Afinal, onde está ancorado este duplo fenómeno, que passa por constatarmos a) que a
informação fundamental acerca da história e motivações da IPPF é difícil de encontrar e está
pouco divulgada, e b) que os principais promotores da divulgação destes factos são rotulados
de “fanáticos” e “fundamentalistas” pelos fazedores da opinião pública, quando não mesmo
sujeitos a propositadamente vexatórios processos judiciais?
O que se segue, alguns factos relativos à história e motivações da IPPF, permite a quem me lê
tomar conhecimento da história e das motivações por detrás de um dos maiores movimentos
internacionais pela liberalização do aborto, pelo que se concordará com a afirmação de que
esta informação é pertinente para qualquer discussão acerca do aborto.

B.1 A fundadora: Margaret Sanger (1879-1966)


Margaret Higgins Sanger2 nasceu a 14 de Setembro de 1879, em Corning, Nova Iorque
(E.U.A.) e morreu a 6 de Setembro de 1966, em Tucson, no Arizona (E.U.A.). É considerada
uma figura incontornável na história do planeamento familiar e do combate pelo direito à
contracepção.
Filha de católicos descendentes de irlandeses emigrados para os E.U.A., Margaret nasceu numa
família numerosa: a sua mãe teve dezoito gravidezes, das quais apenas onze com crianças
nascidas vivas. A sua mãe morreu de tuberculose e cancro cervical em 1899, ano no qual
Margaret entrou para um programa de enfermagem de um hospital de White Plains, um
subúrbio de Nova Iorque. Em 1902, casou-se com o arquitecto William Sanger, de quem teve
um filho em 1903, enquanto estava doente com tuberculose. Margaret teve ainda um segundo
filho e uma filha que morreu na infância. As condições difíceis que marcaram a sua juventude e
o início da sua vida adulta ajudam a compreender a preocupação de Margaret com a situação

1 http://www.ippf.org
2 O que se segue é uma síntese desta informação biográfica: http://en.wikipedia.org/wiki/Margaret_Sanger

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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difícil de muitas das mulheres grávidas de então e com os problemas de saúde então
verificados em muitas famílias numerosas de poucos recursos.
Margaret não conseguiu concluir o seu curso de enfermagem devido ao seu estado de saúde, ao
casamento e gravidez subsequente. Ellen Chesler1 refere que o marido de Margaret não
concordava que a mulher exercesse uma profissão e que ela deveria tomar conta dos filhos.
Após um incêndio na sua casa em 1912, a família Sanger mudou-se para Nova Iorque. Por esta
altura, Margaret deu início à sua actividade pública em prol do controlo de natalidade. No
jornal The New York Call, Margaret escrevia uma coluna intitulada “What Every Girl Should
Know”, enquanto tomava medidas concretas de distribuição de panfletos e documentação
contraceptiva às mulheres mais pobres, arriscando-se a ser presa ao abrigo da então em vigor
legislação que o proibia2. Margaret separou-se do seu marido em 1913, lançando no ano
seguinte um periódico com o título The Woman Rebel. Terá sido Margaret, nas colunas dessa
publicação, uma das primeiras pessoas a usar o termo “controlo de natalidade” (“birth
control”). Para fugir à justiça, viajou para a Europa sob o pseudónimo de “Bertha Watson”,
regressando aos E.U.A. em Outubro de 1915.
A 16 de Outubro de 1916, Margaret abriu uma clínica para apoio ao planeamento familiar e
controlo de natalidade, em Brooklyn. A clínica foi alvo de uma busca policial e Margaret foi
encarcerada durante trinta dias. É neste ano que Margaret publica a sua primeira obra, What
Every Girl Should Know, que continha informação acerca da menstruação e da sexualidade dos
adolescentes. Esta obra foi seguida em 1917 pela obra What Every Mother Should Know. Margaret
fundou uma publicação mensal intitulada The Birth Control Review and Birth Control News e
escreveu artigos para o jornal do partido socialista The Call.
É em 1921 que Margaret Sanger funda a American Birth Control League (“ABCL”), a
precursora da International Planned Parenthood Foundation, juntamente com Lothrop
Stoddard (1883-1950), autor de inúmeros livros que propunham teorias racistas sob a forma de
teorias científicas, e Clarence Cook Little (1888-1971), investigador, professor e geneticista,
cuja carreira universitária foi conduzida com alguma polémica pela sua defesa aberta da
eugenia, da eutanásia e do controlo de natalidade. Entre 1954 e 1969, Clarence Cook Little foi
o cientista porta-voz da indústria tabaqueira norte-americana3. Até à sua morte, em 1971, C. C.
Little defendeu que a inalação das partículas do fumo do tabaco não tinha qualquer relação
com o cancro pulmonar, defendendo a ideia de que esta doença tinha apenas causas genéticas e
não estava relacionada com o consumo de tabaco.
Em 1922, Margaret Sanger viajou para o Japão com o objectivo de promover o controlo de
natalidade, em colaboração com a feminista Kato Shidzue. Neste ano, casou-se com James
Slee, empresário do petróleo. Em 1923, ela funda a primeira clínica de controlo de natalidade
totalmente legalizada, a Clinical Research Bureau4. Nesse ano, Margaret fundou o National
Committee on Federal Legislation for Birth Control, ao qual presidiu até 1937, ano em que se
tornou desnecessário pelo facto de que o controlo de natalidade sob acompanhamento médico
se tornou legal em muitos estados. Em 1927, Sanger participou na organização da primeira
Conferência sobre a População Mundial, em Genebra.
Em 1928, Sanger abdicou da presidência da ABCL, para dois anos mais tarde liderar o Birth
Control International Information Center. Em 1937 passa a presidir ao Birth Control Council
of America, no mesmo ano em que lança dois novos periódicos: The Birth Control Review e The

1 Chesler, Ellen, Woman of Valor: Margaret Sanger and the Birth Control Movement in America. New York City, NY:
Simon & Schuster, 1992. Citada no artigo da Wikipédia acima referido.
2 O Comstock Act de 1873. Ver: http://en.wikipedia.org/wiki/Comstock_Law
3 Foi o Director Científico do Scientific Advisory Board do Tobacco Industrial Research Committee (que mudou de nome,

em 1964, para Council for Tobacco Research).


Ver: http://en.wikipedia.org/wiki/C._C._Little
4 Que mudaria o nome em 1940 para Margaret Sanger Research Bureau, em sua honra.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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Birth Control News. Entre 1939 e 1942, Margaret foi a delegada honorária da Birth Control
Federation of America. Entre 1952 e 1959, presidiu à International Planned Parenthood
Foundation.
Com o surgimento da pílula contraceptiva no início dos anos sessenta, Margaret Sanger
percorreu o mundo a divulgá-la, a apoiar clínicas de apoio à contracepção e a fazer palestras
sobre o tema. Margaret Sanger morreu a 6 de Setembro de 1966.

B.2 Margaret Sanger e o aborto


Apesar de ser complicado sustentar documentalmente que Margaret Sanger foi uma abortista,
no sentido em que defendesse a liberalização do aborto, a verdade é que Sanger não via a
decisão ou o acto de abortar como eticamente ilícitos, via-os antes como uma desgraça para a
saúde da mulher, e consequentemente para a saúde pública.
A preocupação fundamental de Margaret Sanger está assente numa visão eminentemente
feminista da sexualidade da mulher. Parece evidente que a sua dura infância e adolescência
moldaram-na de forma a fazê-la querer defender de modo feminista a mulher e o seu papel na
sociedade. Sanger era socialista e ateia, mas para além disso era notoriamente anticristã, e
sobretudo anticatólica1: revoltava-se pelo facto de que via a moral católica como machista, e
como natural aliada de uma sociedade capitalista governada por homens e na qual as mulheres
eram tratadas de forma menor. Sanger procurava um mundo simultaneamente liberto da moral
católica e do poder capitalista.
É inegável que Sanger tinha preocupações muito importantes e louváveis, como por exemplo,
a de querer promover o controlo das doenças venéreas, que no início do século não eram
controladas como qualquer outra doença transmissível, ou a defesa das mulheres dos ataques
sexuais e da violência doméstica, ou ainda promoção e defesa da higiene e da saúde da mulher.
Contudo, uma visão feminista do mundo impediu-a de possuir noções eticamente profundas
ou sofisticadas acerca do aborto. Para Sanger, o aborto era mau e algo que as mulheres
deveriam tentar evitar através da educação sexual e da contracepção. Não conheço escritos de
Sanger a comentar o estatuto ético do embrião ou do feto: ela opunha-se ao aborto, sobretudo,
porque o considerava uma séria ameaça à saúde da mulher pelo facto de se tratar de uma
intervenção arriscada no seu tempo.
Isto constata-se facilmente em inúmeros escritos de Margaret Sanger, dos quais destacamos
como exemplo o seu artigo intitulado Birth Control or Abortion?2, publicado na The Birth Control
Review em Dezembro de 1918:

“The question, then, is not whether family limitation should be practised. It is being practised; it has long been
practised and it will always be practised. The question now is whether it is to be attained by normal, scientific
Birth Control methods or by the abnormal, often dangerous, surgical operation.”

Claramente, Sanger defende um ponto de vista pragmático: o aborto é uma realidade, ou seja, é
algo de inevitável e que está a ser feito na sociedade. A solução apontada para evitar a
“anormal, por vezes perigosa, operação cirúrgica” do aborto passaria, segundo Sanger, pelo
controlo de natalidade. É curioso notar que os actuais sucessores e “herdeiros” ideológicos de

1 Certamente que Sanger veria o adversário católico como mais forte do que a fragmentada realidade do universo
protestante, onde porventura encontraria, em certos ramos do protestantismo, menor oposição ou por vezes
apoio às suas ideias. Sanger criticava, sobretudo, tanto a moral sexual católica como a atitude da Igreja Católica em
relação à caridade. Em várias das obras de Sanger, como por exemplo em The Pivot of Civilization (ver o capítulo V,
“The Cruelty of Charity”), encontramos as suas opiniões negativas acerca da cultura cristã como também acerca
do aspecto especificamente católico dessa cultura.
2 Fonte: http://wilde.acs.its.nyu.edu/sanger/documents/show.php?sangerDoc=232534.xml

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Margaret Sanger, bem como muitos dos que promovem o acesso livre ao aborto a pedido,
recorrem ao mesmo argumento falacioso da inevitabilidade, defendendo que o aborto,
segundo eles “inevitável”, não deve ser proibido mas sim regulamentado legalmente para ser
executado em instituições dotadas de adequadas condições médicas.
Mas deixemos Margaret Sanger explicar melhor porque considerava o aborto uma maleita e
porque promoveu o controlo de natalidade como solução para o problema do aborto:

“In plain, everyday language, in an abortion there is always a very serious risk to the health and often to the life
of the patient.
It is only the women of wealth who can afford to give an abortion proper care and treatment both at the time of
the operation and afterwards. These women often escape any serious consequences from its occurrence.
The women whose incomes are limited and who must continue at work before they have recovered from the effects
of an abortion are the great army of sufferers. It is among such that the deaths due to abortion usually ensue. It
is these, too, who are most often forced to resort to such operations.
If death does not result, the woman who has undergone and abortion is not therefore safe. The womb may not
return to its natural size but remain large and heavy, tending to fall away from its natural position. Abortion
often leaves the uterus in a condition to conceive easily again and unless prevention is strictly followed another
pregnancy will surely occur. Frequent abortions tend to cause barrenness and serious, painful pelvic ailments.
These and other conditions arising from such operations are quite likely to ruin a woman's general health.
While there are cases where even the law recognizes an abortion as justifiable if recommended by a physician, I
assert that the hundreds of thousands of abortions performed in America each year are a disgrace to civilization.
I also assert that the responsibility for these abortions and the illness, misery and deaths that come in their train
lies at the door of a government whose authority has been stretched beyond the limits of the people's intention and
which, in its puritanical blindness, insists upon suffering and death from ignorance, rather than life and
happiness from knowledge and prevention.
It needs no assertion of mine to call attention to the grim fact that the laws prohibiting the imparting of
information concerning the preventing of conception are responsible for tens of thousands of deaths each year in
this country and an untold amount of sickness and sorrow. The suffering and the death of these women is
squarely upon the heads of the lawmakers and the puritanical, masculine-minded persons, who insist upon
retaining the abominable legal restrictions.
Try as they will they cannot escape the truth, nor hide it under the cloak of stupid hypocrisy. If the laws against
imparting knowledge of scientific Birth Control were repealed, the 1,000,000 or 2,000,000 women who
undergo abortions in the United States each year would escape the agony of the surgeon's instruments and the
long trail of disease, suffering and death which so often follows.”

Não resta, então, dúvida alguma de que Margaret Sanger considerava o aborto como uma
epidemia. Fica também claro que Sanger não tece considerações éticas acerca do embrião ou
do feto abortados, mas que se preocupa exclusivamente com as consequências para a saúde da
mulher que aborta, que eram então praticadas com elevado risco.
No final do artigo citado, Sanger deixa à Igreja, ao Estado e à sociedade a tarefa de decidir
entre o controlo de natalidade e o aborto, marcando ainda mais a ideia de que ela queria
promover o primeiro como solução para acabar com o último:

“When all is said and done, it is not the advocates of Birth Control, but the bitter, unthinkable conditions
brought about by the blindness of church, state and society that puts up to all three the question: Birth Control
or Abortion–-which shall it be?”

Em bom rigor, não se pode afirmar que Sanger promoveu activamente o aborto como um fim
em si mesmo. Durante a fase de crescimento, e até ao apogeu, da sua carreira pública, Sanger
viveu sempre sob uma legislação restritiva em termos de aborto e a batalha de Sanger nunca foi

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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objectivamente a da alteração dessas restrições mas sim a das restrições legais e sociais que
encontrava quando tentava divulgar o controlo de natalidade e as suas propostas para a
educação sexual. Contudo, seria insensato afirmar que a obra de Sanger não contribuiu de
forma definitiva e decisiva para criar uma onda de suporte à liberalização do aborto, que
cresceu sobretudo após a sua morte e suportada solidamente na sua obra.
Sanger morreu na altura em que principiavam as discussões nos E.U.A. acerca da liberalização
do aborto em determinadas circunstâncias e até determinada fase da gravidez. Sanger morreu
em 1966, e o caso Roe vs. Wade foi julgado nos E.U.A. entre 1971 e 1973, tendo tido início
apenas cinco anos após a sua morte. Não podemos ter certezas acerca do que Sanger diria hoje
sobre o presumido direito da mulher ao aborto a pedido, mas visto que a segurança médica da
operação abortiva realizada por técnicos qualificados é hoje mais elevada do que no seu tempo
e que as razões de Sanger não eram éticas mas sim utilitaristas e feministas, é perfeitamente
razoável supor que, porventura, hoje Sanger seria a favor do reconhecimento deste presumido
direito.
Isso também explica porque razão os dirigentes da IPPF e das suas afiliadas nunca deixaram de
se afirmar como seguidores devotos de Sanger nem deixaram de a promover ou elogiar,
enaltecendo-a como uma das mulheres mais importantes do nosso tempo. Não tenho
conhecimento de que um líder destas associações tenha criticado a opinião negativa de Sanger
acerca do aborto, pelo que me parece sensato deduzir que a IPPF e as suas filiadas, ao
promoverem o acesso ao aborto seguro (a famosa expressão “safe abortion”) e à
potencialmente abortiva “contracepção de emergência”1, está a fazer todos os esforços para se
manter fiel ao legado ideológico da fundadora.
Por outras palavras: a melhoria das condições médicas em que um aborto pode hoje ser
efectuado fez minorar significativamente o lado negativo que Margaret Sanger via no aborto.
Em suma: as razões que Sanger evocava para ser contra o aborto, não sendo éticas mas apenas
de segurança para a saúde da mulher que aborta, são hoje razões perfeitamente compatíveis
com a prática do aborto a pedido, visto que os riscos médicos estão hoje mais controlados do
que no seu tempo. Evidentemente, os riscos psíquicos mantêm-se…

B.3 Margaret Sanger e a eugenia


Antes de falarmos sobre eugenia no contexto da vida e obra de Margaret Sanger, importa tecer
algumas considerações preliminares acerca da visão social desta pensadora. Sanger defendia a
ideia de que eram as famílias mais pobres que tinham maiores dificuldades em suportar
descendências numerosas, e que quanto maior a precariedade económica, maior o
analfabetismo e mais difícil o acesso à informação de controlo de natalidade, que segundo ela,
era a solução para que muitas famílias pusessem um fim à espiral de miséria na qual se viam
presas em virtude de uma descendência numerosa. Na sua obra The Pivot of Civilization2, Sanger,
mostrando-se desiludida com as promessas marxistas, constatava que o proletariado estava a
receber sinais contraditórios da campanha revolucionária em matéria de sexualidade
reprodutiva. Ela constatou, falando com trabalhadores em vários países, que a ideia geral era a
de que, quanto maior a família, quanto mais bocas existissem para alimentar, maior seria a
dimensão demográfica do proletariado e maior a pressão social que este poderia exercer sobre
as “classes superiores” para que a revolução marxista estalasse em todo o mundo:

“I found that the Marxian influence tended to lead workers to believe that, irrespective of the health of the poor
mothers, the earning capacity of the wage-earning fathers, or the upbringing of the children, increase of the

1 Ver Apêndice B.
2 Brentano’s Publishers, Nova Iorque, 1922.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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proletarian family was a benefit, not a detriment to the revolutionary movement. The greater the number of
hungry mouths, the emptier the stomachs, the more quickly would the "Class War" be precipitated. The greater
the increase in population among the proletariat, the greater the incentive to revolution. This may not be sound
Marxian theory; but it is the manner in which it is popularly accepted. It is the popular belief, wherever the
Marxian influence is strong. This I found especially in England and Scotland. In speaking to groups of
dockworkers on strike in Glasgow, and before the communist and co-operative guilds throughout England, I
discovered a prevailing opposition to the recognition of sex as a factor in the perpetuation of poverty.”1

Também não há dúvidas de que Sanger aprovava o maltusianismo, se bem que ela considerava
que apenas o controlo da natalidade é que daria toda a amplitude às doutrinas de Thomas
Malthus (1766-1834)2, cuja limitação para Sanger eram serem puramente economicistas:

“As a social programme, Birth Control is not merely concerned with population questions. In this respect, it is a
distinct step in advance of earlier Malthusian doctrines, which concerned themselves chiefly with economics and
population. Birth Control concerns itself with the spirit no less than the body. It looks for the liberation of the
spirit of woman and through woman of the child. Today motherhood is wasted, penalized, tortured. Children
brought into the world by unwilling mother suffer an initial handicap that cannot be measured by cold statistics.
Their lives are blighted from the start.”3

A aprovação dada por Sanger ao maltusianismo, bem como às variantes mais sofisticadas de
neo-maltusianismo, compreende-se pelo facto de ela via o controlo de natalidade como um
essencial travão para a explosão demográfica.
Vejamos agora as ideias de Sanger acerca da eugenia…
Se, por um lado, alguns podem alegar que é injusto apresentar Sanger taxativamente como
abortista, também é inaceitável, por outro lado, eufemizar ou ocultar as ideias de Sanger acerca
da eugenia. É importante também vincar a ideia de que, no início do século XX, uma pessoa
com relevo intelectual ou social não o perdia, “ipso facto”, por defender ideias racistas ou de
aperfeiçoamento da raça. Pelo contrário, as teorias de apuramento da raça foram objecto de
inúmeros estudos e obras intelectuais que, sendo hoje sem dúvida classificadas de racistas,
naquele tempo gozavam de um certo prestígio científico.
Sucede o mesmo com a obra de Sanger. Se bem que não seja fácil encontrar escritos de Sanger
abertamente racistas, é certo que encontramos inúmeras evidências de que ela defendia o
aperfeiçoamento racial, a eugenia e a esterilização dos “menos aptos”. A distinção é subtil, mas
importante: Sanger não parece propor, como os nazis fizeram, uma teoria acerca do valor
absoluto de uma raça face a outra. A posição de Sanger é mais anglo-saxónica do que
germânica, e isso nota-se no seu marcado utilitarismo e pragmatismo. Sanger via um qualquer
bairro étnico degradado como um problema social devido à presença de um grande número de

1 Op. cit., capítulo I: “A New Truth Emerges”.


2 Thomas Malthus ficou conhecido pela sua teoria populacional, que advogava que num curto futuro, a Terra não
teria alimentação suficiente para contrabalançar as exigências de uma crescente população mundial. Na sua obra
de 1798, An Essay on the Principle of Population, Malthus defendia a tese de que a população humana crescia em
proporção geométrica, enquanto que os recursos alimentares cresciam em proporção aritmética. Se tal tese fosse
verdadeira, os recursos alimentares terminariam num futuro próximo, ocorrendo uma catástrofe de fome à escala
mundial. Malthus propunha regras que limitassem a reprodução nas classes sociais mais baixas, que segundo
Malthus eram as que mais directamente contribuíam para o crescimento populacional e consequente exaustão dos
recursos alimentares globais. Os dados empíricos demonstraram que o modelo maltusiano não se adapta à
realidade: nem a população mundial cresce em progressão geométrica (não há um modelo rigoroso que permita
prever com precisão a sua evolução futura – há factores imponderáveis), nem os recursos alimentares crescem em
progressão aritmética (o avanço tecnológico tem permitido cada vez mais optimizar a produção alimentar, ou seja,
fazer mais com menos recursos).
3 Ibidem.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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inadaptados (“unfits”), porque veria de forma utilitarista que eles não estavam “adaptados à
sociedade” e que não contribuíam, segundo ela, para o “melhoramento da raça”. Por estas
razões, Sanger defendia de forma pragmática que o crescimento de tal população deveria ser
limitado pelo controlo de natalidade.
Em suma, Margaret defendia que o controlo de natalidade deveria ser intensificado nas
populações menos aptas para a vida em sociedade, sem parecer fazer juízos depreciativos
acerca do valor genético intrínseco das raças presentes nessas populações. No capítulo IV da
sua obra The Pivot of Civilization, Margaret Sanger fala acerca da necessidade de restringir a
fertilidade dos deficientes mentais e das pessoas com intelectualidade reduzida através do
controlo da sua natalidade. Apesar de a argumentação de Sanger ser hoje chocante, a sua
argumentação eugénica é utilitarista, e não racista no sentido presente em obras de autores
nazis:

“There is but one practical and feasible program in handling the great problem of the feeble-minded. That is, as
the best authorities are agreed, to prevent the birth of those who would transmit imbecility to their descendants.
Feeble-mindedness as investigations and statistics from every country indicate, is invariably associated with an
abnormally high rate of fertility. Modern conditions of civilization, as we are continually being reminded, furnish
the most favorable breeding-ground for the mental defective, the moron, the imbecile. "We protect the members of
a weak strain," says Davenport, "up to the period of reproduction, and then let them free upon the community,
and encourage them to leave a large progeny of `feeble-minded': which in turn, protected from mortality and
carefully nurtured up to the reproductive period, are again set free to reproduce, and so the stupid work goes on of
preserving and increasing our socially unfit strains."
The philosophy of Birth Control points out that as long as civilized communities encourage unrestrained
fecundity in the "normal" members of the population—always of course under the cloak of decency and
morality—and penalize every attempt to introduce the principle of discrimination and responsibility in
parenthood, they will be faced with the ever-increasing problem of feeble-mindedness, that fertile parent of
degeneracy, crime, and pauperism. Small as the percentage of the imbecile and half-witted may seem in
comparison with the normal members of the community, it should always be remembered that feeble-mindedness
is not an unrelated expression of modern civilization. Its roots strike deep into the social fabric. Modern studies
indicate that insanity, epilepsy, criminality, prostitution, pauperism, and mental defect, are all organically bound
up together and that the least intelligent and the thoroughly degenerate classes in every community are the most
prolific. Feeble-mindedness in one generation becomes pauperism or insanity in the next. There is every
indication that feeble-mindedness in its protean forms is on the increase, that it has leaped the barriers, and that
there is truly, as some of the scientific eugenists have pointed out, a feeble-minded peril to future generations—
unless the feeble-minded are prevented from reproducing their kind. To meet this emergency is the immediate and
peremptory duty of every State and of all communities.”

Ideias como estas são hoje totalmente inaceitáveis, sobretudo porque a Segunda Guerra
Mundial nos ensinou os perigos de uma política eugénica apoiada numa forte e militarizada
sociedade ditatorial, como por exemplo, o Terceiro Reich. As experiências nazis no campo da
eugenia constituem hoje um tristemente célebre episódio de horror na nossa memória
colectiva.
Mas Sanger retira censuráveis e controversas conclusões na sua defesa obstinada de uma
inegável forma de eugenia. Segundo ela, as implicações de não se seguir uma estratégia
eugénica prejudicam inclusive o ensino:

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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“The presence in the public schools of the mentally defective children of men and women who should never have
been parents is a problem that is becoming more and more difficult, and is one of the chief reasons for lower
educational standards.”1

Sanger chega mesmo a admitir, no primeiro capítulo, que métodos de força deve ser usados na
sociedade americana para impedir a fertilidade dos “inadaptados” (“unfit”):

“The lack of balance between the birth-rate of the "unfit" and the "fit," admittedly the greatest present menace
to the civilization, can never be rectified by the inauguration of a cradle competition between these two classes.
The example of the inferior classes, the fertility of the feeble-minded, the mentally defective, the poverty-stricken,
should not be held up for emulation to the mentally and physically fit, and therefore less fertile, parents of the
educated and well-to-do classes. On the contrary, the most urgent problem to-day is how to limit and discourage
the over-fertility of the mentally and physically defective. Possibly drastic and Spartan methods may be forced
upon American society if it continues complacently to encourage the chance and chaotic breeding that has resulted
from our stupid, cruel sentimentalism.”2 (sublinhado meu)

As palavras de Sanger são bem claras acerca da segregação e da eugenia para os “menos aptos”,
como podemos ver neste trecho do capítulo IV:

“The emergency problem of segregation and sterilization must be faced immediately. Every feeble-minded girl or
woman of the hereditary type, especially of the moron class, should be segregated during the reproductive period.
Otherwise, she is almost certain to bear imbecile children, who in turn are just as certain to breed other
defectives. The male defectives are no less dangerous. Segregation carried out for one or two generations would give
us only partial control of the problem. Moreover, when we realize that each feeble-minded person is a potential
source of an endless progeny of defect, we prefer the policy of immediate sterilization, of making sure that
parenthood is absolutely prohibited to the feeble-minded.”3 (sublinhado meu)

Será que isto chega para que se classifique Margaret Sanger como uma racista pura, ao nível de
um ideólogo nazi? Penso que tais comparações poderão ser desadequadas, porque a eugenia de
Sanger, sendo semelhante à eugenia suportada no racismo hitleriano, não tinha uma base
racista como a que encontramos no nacional-socialismo, nem partilhava dos mesmos
objectivos políticos hegemónicos. Contudo, é inegável que, em termos de aperfeiçoamento
racial e eugenia, os métodos propostos por Sanger são semelhantes em vários aspectos aos
defendidos e usados pelos nacional-socialistas.
Certamente que, com a derrota da Alemanha nazi, Sanger e os seus colaboradores perderam
uma grande parte do seu entusiasmo intelectual e “científico” pela promoção da eugenia e pelo
aperfeiçoamento racial. Mas, não obstante podermos pensar que Sanger não seria uma pura
racista, no sentido que hoje damos a essa palavra, a verdade é que trabalhou, numa fase fulcral
da sua carreira, com um colaborador racista. O seu colaborador e co-fundador da American
Birth Control League, Lothrop Stoddard, era abertamente racista. Stoddard escreveu em 1920
uma obra cujo título é suficientemente explícito: The Rising Tide of Color Against White World-
Supremacy.
Contudo, a questão mais delicada no debate acerca do eventual racismo de Sanger é a questão
dos seus projectos junto da população negra, nomeadamente o projecto em Harlem (1929-
1930) e o chamado “Negro Project” (1939-1942). Penso que é justo concluir que Sanger não
era racista, e que a sua visão acerca da raça negra era idêntica à que teria relativamente a

1 Ibidem.
2 Op. cit., capítulo I.
3 Op. cit., capítulo IV.

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qualquer raça, mantendo-se os pressupostos eugénicos que ela defendia, nomeadamente a
esterilização e segregação dos “menos aptos”, sem que esta expressão tivesse conotação racial.
Mas parece-me importante apresentar alguns factos relativos a este período importante da
actividade social de Margaret Sanger e dos seus movimentos.
No final dos anos 20, a American Birth Control League abriu um clínica no bairro de Harlem,
maioritariamente ocupado por afro-americanos. A ideia por detrás da iniciativa do movimento
de Sanger era a de promover o controlo de natalidade nesta população. Segundo Sanger, como
vimos atrás, o planeamento familiar era a única solução para que as gentes dos bairros sociais
afro-americanos pudessem melhorar as suas condições de vida. Famílias demasiado numerosas
e precariedade económica eram, para Sanger, os ingredientes de uma calamidade social que
importava resolver recorrendo ao controlo de natalidade.
Ao mesmo tempo, surgiam importantes movimentos de autodeterminação e libertação das
comunidades africanas em solo norte-americano. Marcus Garvey (1887-1940)1, por exemplo,
foi um importante agente nestes movimentos, condenando a miscigenação das raças branca e
negra e advogando o regresso dos afro-americanos a África (“back to Africa!”), onde poderiam
segundo ele exercer uma liberdade efectiva e orgulhosa. Margus Garvey entrou frequentemente
em conflito com William Edward Burghardt Du Bois (1868-1963)2, um importante activista
social norte-americano da primeira metade do século XX, que descendia de escravos mas
também de negros livres que viviam em liberdade. A atitude de Du Bois face ao problema do
racismo era muito diferente da atitude de Marcus Garvey. O primeiro procurava a integração
social e a melhoria das condições de vida dos afro-americanos nos E.U.A., e o segundo
promovia a separação das raças, a libertação do povo negro e o regresso a África. Por essa
razão, entraram por vezes em conflito aberto.
Sanger contava com Du Bois como consultor para ajudar a promover o seu plano de controlo
de natalidade junto da população afro-americana, e foi isso que fez no Harlem, e mais tarde, ao
implementar o “Negro Project”, cuja esfera de acção era a população afro-americana no sul do
país, região historicamente mais problemática em termos de racismo e segregação devido ao
seu forte passado esclavagista.
Du Bois afirmava que as ideias religiosas dos afro-americanos, tradicionalmente contra o
controlo de natalidade, entravam em conflito directo com a necessidade de difundir esses
métodos junto das populações como forma de evitar a existência de famílias numerosas, e
consequentemente, a pobreza que essa situação acarretava.
O papel importante de Du Bois nos projectos de Margaret Sanger tinha dois objectivos
imediatos: a) tentar solucionar o conflito entre o controlo de natalidade e a religião cristã
tipicamente praticada pelos afro-americanos, apelando aos pastores protestantes; b) tentar
evitar que a população afro-americana pensasse que os métodos de controlo de natalidade
promovidos por Sanger eram uma forma de extermínio da sua raça, ou de submissão à raça
branca.
Em suma, parece justo afirmar que Sanger não era racista no significado usual que é atribuído
ao termo. Poderá certamente dizer-se que promovia ideias de melhoramento racial, e que era a
favor da eugenia. Vejamos o que diz a PPFA acerca das ideias de Sanger nesta matéria:

«Though she tried for years, Sanger was unable to convince the leaders of the eugenics movement to accept her
credo that "No woman can be free who does not own and control her body (Sanger, 1920)." Her on-going
disagreement with the eugenicists of her day is clear from her remarks in The Birth Control Review of February
1919:

1 Para saber mais sobre Marcus Garvey, consultar: http://www.isop.ucla.edu/africa/mgpp/


2 Ver: http://en.wikipedia.org/wiki/W._E._B._Du_Bois

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Eugenists imply or insist that a woman's first duty is to the state; we contend that her duty to herself is her
first duty to the state. We maintain that a woman possessing an adequate knowledge of her reproductive
functions is the best judge of the time and conditions under which her child should be brought into the
world. We further maintain that it is her right, regardless of all other considerations, to determine whether
she shall bear children or not, and how many children she shall bear if she chooses to become a mother. . .
.Only upon a free, self-determining motherhood can rest any unshakable structure of racial betterment1.
Although Sanger uniformly repudiated the racist exploitation of eugenics principles, she agreed with the
"progressives" of her day who favored: a) incentives for the voluntary hospitalization and/or sterilization of
people with untreatable, disabling, hereditary conditions, b) the adoption and enforcement of stringent regulations
to prevent the immigration of the diseased and "feebleminded" into the U.S., c) placing so-called illiterates,
paupers, unemployables, criminals, prostitutes, and dope-fiends on farms and open spaces as long as necessary for
the strengthening and development of moral conduct.
Planned Parenthood Federation of America finds these views objectionable and outmoded. Nevertheless, anti-
family planning activists continue to attack Sanger, who has been dead for nearly 40 years, because she is an
easier target than the unassailable reputation of PPFA and the contemporary family planning movement.
However, attempts to discredit the family planning movement because its early 20th-century founder was not a
perfect model of early 21st-century values is like disavowing the Declaration of Independence because its author,
Thomas Jefferson, bought and sold slaves.»2 (sublinhado meu)

A PFFA defende a fundadora da acusação de racismo, afirmando que Sanger criticava os usos
racistas da eugenia, mas por outro lado, e de forma clara, demarca-se das posições eugénicas de
Sanger, considerando-as questionáveis e “fora de moda”. Nota-se também que a eugenia de
Sanger era de um tipo especial: deveria ser praticada sem perder de vista a liberdade e
autodeterminação da mulher em termos da sua sexualidade e reprodução. Por essa razão,
Sanger teria que se opor, logicamente, a qualquer despotismo estatal sobre o corpo da mulher,
que segundo ela não deveria ser colocado ao serviço do Estado. Esta é uma boa razão para
diferenciar as ideias eugénicas de Sanger das ideias eugénicas da maior parte dos nacional-
socialistas, ou da típica eugenia racista. Mas, como vimos atrás, Sanger era incoerente com esta
sua defesa da liberdade da mulher sempre que defendia que as raparigas portadoras de
deficiências deveriam ser segregadas e esterilizadas.
Contudo, a PPFA mostra-se herdeira do legado intelectual de Sanger no que diz respeito ao
seu maior erro. Sanger estava profundamente equivocada na sua visão ética acerca da mãe e do
feto. Em bom rigor, Sanger não tinha posição ética acerca do feto, limitando-se exclusivamente
à defesa da mãe, da sua liberdade e das suas decisões, e esse sempre foi o seu maior erro. Por
essa mesma razão, a visão que Sanger tinha da sexualidade feminina era altamente redutora:
Sanger opunha-se ao aborto por questões de saúde da mulher, mas não considerava que
abortar fosse um erro ético. Sanger via o aborto como uma opção arriscada e perigosa,
abstendo-se de fazer juízos morais acerca do acto de abortar. Tal como Sanger, a PPFA e
respectivos movimentos afiliados internacionais defendem a ideia profundamente errada de
que o aborto é um direito da mulher, e que abortar deve fazer parte do leque de opções de
planeamento familiar completo, mesmo que seja dito por estes movimentos que o aborto deve
ser “a última escolha”.
Tanto Sanger como os seus actuais representantes e “herdeiros intelectuais” defendem que o
planeamento familiar é a chave para combater o aborto, mas enquanto estes movimentos
continuarem a considerar que não há mal ético em abortar, então é evidente que o aborto
continuará a ser para eles “uma opção legítima da mulher”, e que continuarão a usar o drama

1 Nota original: "Birth Control and Racial Betterment." The Birth Control Review, 3(2), 11-12. Reprint: The Birth

Control Review Vol. I, Vols. 1-3, 1917-1919. (1970). New York: Da Capo Press.
2 Ver: http://www.plannedparenthood.org/about-us/who-we-are/margaret-sanger-planned-parenthood-founder.htm

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do aborto na sua continuada “kulturkampf” contra os defensores dos direitos da vida humana
intra-uterina.

B.4 O que defende a PPFA em relação ao aborto


Apesar do título ambicioso deste capítulo, não é fácil sintetizar a enorme quantidade de
informação disponibilizada pela Parenthood Foundation of America (PPFA)1, quanto mais
pelas inúmeras associações filiadas da IPPF. Irei cingir-me a poucos exemplos retirados da
PPFA porque se trata da associação herdeira directa dos movimentos fundados por Margaret
Sanger nos E.U.A., e que portanto serve como exemplo paradigmático das linhas ideológicas
dos restantes movimentos afiliados a nível internacional.
Estes são os nove principais argumentos referidos pela PPFA para afirmar a legitimidade do
aborto legal2, seguidos das minhas observações acerca dos mesmos:

«1. As leis contra o aborto matam mulheres»3


Este argumento falacioso já foi comentado atrás neste documento, pelo que me irei abster de
considerações extensas acerca dele.
Legalizar um acto eticamente ilícito nunca é uma boa solução. A falácia está também presente
na característica de pretensa “inevitabilidade” da solução de abortar. Pelo facto de que há
alternativas ao aborto, e todos sabemos que elas existem, é falacioso afirmar que o aborto é
inevitável e que a culpa da morte de muitas mulheres em abortos ilegais se deve a legislação
restritiva. A responsabilidade pelas mortes por aborto ilegal pode ser imputada às mulheres que
recorrem a esta solução, mas deve ser sobretudo imputada aos agentes envolvidos no aborto
ilegal e às autoridades que não impedem o exercício de tais práticas nem promovem políticas
de apoio à maternidade.

«2. Os abortos legais protegem a saúde das mulheres»4


O aborto, legal ou não, nunca é benéfico, nem para a saúde física nem para a saúde psíquica da
mulher. O aborto legal pode minorar (mas não eliminar) os riscos físicos, mas nada altera em
termos dos riscos psíquicos essenciais. Ao contrário do que afirmam estas organizações, os
riscos psíquicos não se centram no trauma da operação abortiva. Diz-se que, em ambiente
hospitalar adequado, o trauma do aborto seria reduzido ou eliminado. Mas a causa central do
trauma pós-aborto é a consciência que a mãe adquire de que matou o seu filho. E esse
profundo trauma psicológico não se resolve abortando em salas limpas e cheias de
equipamento médico avançado, nem se resolve a posteriori em sessões de terapia.
Se, como afirma este argumento, o aborto traz inegáveis vantagens para a saúde das mulheres
que, sem correr risco imediato e iminente de vida, têm pela frente gravidezes arriscadas
(mulheres com hipertensão aguda, diabetes agudos, doenças renais ou cardíacas, etc.), este

1 http://www.plannedparenthood.org
2 Ver o texto completo em: http://www.plannedparenthood.org/news-articles-press/politics-policy-
issues/abortion-access/nine-reasons-why-abortions-are-legal.htm
3 «Laws against abortion kill women. To prohibit abortions does not stop them. When women feel it is absolutely

necessary, they will choose to have abortions, even in secret, without medical care, in dangerous circumstances. In
the two decades before abortion was legal in the U.S., it's been estimated that nearly a million women per year
sought out illegal abortions. Thousands died. Tens of thousands were mutilated. All were forced to behave as if
they were criminals.»
4 «Legal abortions protect women's health. Legal abortion not only protects women's lives, it also protects their

health. For tens of thousands of women with heart disease, kidney disease, severe hypertension, sickle-cell anemia
and severe diabetes, and other illnesses that can be life-threatening, the availability of legal abortion has helped
avert serious medical complications that could have resulted from childbirth. Before legal abortion, such women's
choices were limited to dangerous illegal abortion or dangerous childbirth.»

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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argumento não colhe: não faz a ponderação ética do peso dos direitos envolvidos. O direito à
vida do feto (que é destruído pelo aborto) sobrepõe-se ao direito à qualidade da saúde da
mulher grávida, quando esta não corre risco iminente de vida. Apenas nos encontraríamos em
situação de paradoxo ético se fosse necessário decidir o que fazer perante duas únicas opções:
a morte da mãe ou a morte do seu filho. Ora, como qualquer médico sério poderá atestar, tais
opções nunca se apresentam para um médico experiente e competente, que tenta sempre fazer
tudo para salvar ambos e nunca precisa de recorrer ao aborto provocado como um meio para
um fim.

«3. A mulher é mais do que um feto»1


Este pretenso argumento é completamente absurdo. Nem sequer é um argumento a sério,
visto que é bem fácil aceitar a premissa de que a mulher é mais do que um feto, o que é banal e
que qualquer adversário do direito ao aborto reconhece sem dificuldades, mas todavia não se
vê como é que esta premissa nos levaria a legitimar eticamente o aborto.
De novo, a explicação dada pela PPFA (ver nota de rodapé) para este pretenso argumento
peca porque não está a ponderar os pesos dos direitos envolvidos. A mulher tem obviamente o
direito à autonomia do seu corpo, desde que tal direito não colida com outro direito maior, o
direito à vida do filho que traz dentro de si. Nenhuma mulher tem o direito de retirar a vida a
outro ser humano, mesmo sendo o seu filho. De forma confusa, este pseudo-argumento tenta
esquivar-se da questão dos direitos do feto, relativizando a enorme importância da discussão
ética destes direitos. Claramente, as pessoas que escreveram este texto não estão a querer ver o
problema através do prisma da Ética: procuram apenas fugir da discussão séria através de
falácias populistas.

«4. Ser mãe é apenas uma opção para as mulheres»2


Este é um típico e falacioso argumento feminista. A justa defesa da igualdade de direitos das
mulheres não implica dar-lhes o poder de cometer o crime de aborto. A atribuição de um
direito só é lícita quando não é lesiva dos direitos de outrem. Não faz sentido tentar basear o
pretenso direito a abortar (matar), na defesa da liberdade pessoal de decisão, e na legítima luta
pela igualdade de direitos das mulheres. Se os homens pudessem engravidar, seria igualmente
ilícito reconhecer-lhes o direito a abortar.

«5. A proibição legal do aborto é discriminatória»3


Já falámos atrás acerca desta falácia no capítulo 5.6, “O argumento socio-económico”, pelo
que não vale a pena repetir a mesma argumentação usada para a refutar.

1 «A woman is more than a fetus. Some people argue these days that a fetus is a "person" that is "indistinguishable
from the rest of us" and that it deserves rights equal to women's. On this question there is a tremendous spectrum
of religious, philosophical, scientific, and medical opinion. It's been argued for centuries. Fortunately, our society
has recognized that each woman must be able to make this decision, based on her own conscience. To impose a
law defining a fetus as a "person," granting it rights equal to or superior to a woman's — a thinking, feeling,
conscious human being — is arrogant and absurd. It only serves to diminish women.»
2 «Being a mother is just one option for women. Many hard battles have been fought to win political and

economic equality for women. These gains will not be worth much if reproductive choice is denied. To be able to
choose a safe, legal abortion makes many other options possible. Otherwise an accident or a rape can end a
woman's economic and personal freedom.»
3 «Outlawing abortion is discriminatory. Anti-abortion laws discriminate against low-income women, who are

driven to dangerous self-induced or back-alley abortions. That is all they can afford. But the rich can travel
wherever necessary to obtain a safe abortion.»

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«6. Leis de gravidez compulsiva são incompatíveis com uma sociedade livre»1
Esta foi a principal linha seguida no célebre caso Roe vs. Wade, decorrido entre 1971 e 1973.
Esta argumentação baseia-se na ideia falaciosa de que uma gravidez compulsiva ditada pela lei
é uma invasão à privacidade da mulher por parte do legislador.
A questão essencial, como sempre, é a do estatuto legal e dos direitos do embrião e do feto por
nascer. Tentámos, ao longo deste texto, demonstrar que os direitos fundamentais, como o
direito à vida, devem ser reconhecidos logo na concepção. Com base neste reconhecimento,
fica evidente que o legislador já não poderá encarar a questão do aborto como “privada” das
mulheres, visto que o Estado tem obrigações e responsabilidade legais para com a criança por
nascer. É muito difícil defender seriamente o direito ao aborto deste modo tão primário e
precário, com base num argumento de “privacidade”. Por esta razão, muitos dos mais
sofisticados defensores do direito ao aborto, atentos às implicações éticas do mesmo,
procuram justificá-lo racional e eticamente tentando retirar ao feto o estatuto de “pessoa
humana”, que lhe garantiria direitos fundamentais como o direito à vida.

«7. Proíba-se o aborto, e mais crianças terão crianças»2


Esta é uma clássica falácia do tipo “slippery slope”. Ameaçar com catastróficas consequências
impossíveis de demonstrar. Como se prova que a proibição do aborto implica
obrigatoriamente que “mais crianças terão crianças”? O drama da maternidade na adolescência,
ou mesmo na infância, não se resolve abortando essas gravidezes. Um segundo mal, o do
aborto, não resolve, apenas agrava, o mal inicial da gravidez precoce.
A argumentação dada afirma: «Should the penalty for lack of knowledge or even for a
moment's carelessness be enforced pregnancy and childrearing?».
Ora, este argumento não colhe: por muito ignorante ou descuidada que tenha sido a mãe ou o
pai, por razões de idade ou de imaturidade, a verdade é que os responsáveis por qualquer
gravidez serão sempre os intervenientes no acto sexual, sendo a mulher desculpabilizada
apenas em caso de violação. A gravidez de qualquer mulher, independentemente da sua idade,
decorre naturalmente da fertilização de um óvulo por um espermatozóide. É a consequência
natural de um acto sexual. Como é possível que se use, falaciosamente, a expressão “gravidez
forçada”? Esta expressão não faz qualquer sentido quando falamos de relações sexuais
consentidas, por muito nova que seja a mãe ou por muito novo que seja o pai. Quando o pai
“desaparece de cena”, a mãe permanece grávida, com a sua metade de responsabilidade na
gravidez.
Mesmo no caso extremo de violação, é também difícil sustentar que um novo mal (aborto) vai
resolver o mal inicial (violação). Violar o direito à vida do feto não anula a violação de que a
mulher foi vítima. Estamos neste caso perante uma “gravidez forçada”? Certamente que sim.
Mas será isso suficiente para considerar que ela pode ser interrompida? A resposta a esta
pergunta é simples, se respondermos primeiro a outra: a vida humana em desenvolvimento
tem direito a continuar a sua existência? Se respondemos “sim” a esta última, então o aborto
em caso de violação é ilícito, e devemos também responder “não” à primeira. A situação de

1 «Compulsory pregnancy laws are incompatible with a free society. If there is any matter that is personal and
private, then pregnancy is it. There can be no more extreme invasion of privacy than requiring a woman to carry
an unwanted pregnancy to term. If government is permitted to compel a woman to bear a child, where will
government stop? The concept is morally repugnant. It violates traditional American ideas of individual rights and
freedoms.»
2 «Outlaw abortion, and more children will bear children. Forty percent of 14-year-old girls will become pregnant

before they turn 20. This could happen to your daughter or someone else close to you. Here are the critical
questions: Should the penalty for lack of knowledge or even for a moment's carelessness be enforced pregnancy
and childrearing? Or dangerous illegal abortion? Should we consign a teenager to a life sentence of joblessness,
hopelessness, and dependency?»

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gravidez resultante de violação é dramática e merece especial apoio por parte da sociedade,
mas tal apoio não pode ser prestado sob a forma de uma morte.

«8. Cada criança, uma criança desejada»1


É evidente que uma criança indesejada é um mal, tanto para a criança como para a sociedade.
O problema está na ponderação dos males. Este pretenso argumento quer convencer-nos de
que a solução para o mal de uma criança indesejada se encontra num mal maior: matá-la antes
de nascer.

«9. A escolha é boa para as famílias»2


Este argumento é tão incrível como o anterior. Pretende convencer quem o lê do seguinte: o
mal do desentendimento familiar eventualmente causado por uma gravidez imprevista pode ser
“solucionado” com um mal maior: matar o ser humano por nascer. O aborto, ou seja, a morte
de um ser vivo em desenvolvimento intra-uterino, não deve evidentemente fazer parte do
leque de “escolhas” de nenhuma família responsável e consciente.

B.5 Os objectivos e motivações da IPPF


Neste capítulo, que se pretende ser modesto e sintético, o melhor é citar directamente a IPPF,
a federação internacional que trabalha à escala mundial para promover as ideias de Sanger e os
projectos e iniciativas dos movimentos por ela fundados nos E.U.A.:

«We currently provide around 40,000 service outlets, with the help of our millions of volunteers, for counselling,
gynaecological care, HIV/AIDS-related activities, diagnosis and treatment of sexually transmitted infections,
mother and child health and abortion-related services, among many others.
We fight for what we see as a human right to enjoy good sexual health, safe maternal health, gender equality
and a positive environment towards sexuality.
Finally, we make it possible for people to make choices. Choices about the number of children they have, choices
about having safer sex, choices about getting good treatment and care.»3 (sublinhado meu)

Acerca do aborto, a IPPF explicita desta forma a sua política a nível global:

«We believe that a woman has the right to choose and access safe abortion services and we lobby for changes in
legislation to support this. This is one of the priority concerns of our work. Each year, an estimated 500,000
women die of pregnancy-related causes, and almost all maternal mortality occurs in developing countries,
representing one of the widest, and most unjust, health gaps between developed and developing nations.»4

A IPPF promove uma acção mais intensa destas medidas nos países em desenvolvimento. A
aposta da IPPF e das suas afiliadas na prestação de “serviços abortivos” é impressionante, e os

1 «"Every child a wanted child." If women are forced to carry unwanted pregnancies to term, the result is
unwanted children. Everyone knows they are among society's most tragic cases, often uncared-for, unloved,
brutalized, and abandoned. When they grow up, these children are often seriously disadvantaged, and sometimes
inclined toward brutal behavior to others. This is not good for children, for families, or for the country. Children
need love and families who want and will care for them.»
2 «Choice is good for families. Even when precautions are taken, accidents can and do happen. For some families,

this is not a problem. But for others, such an event can be catastrophic. An unintended pregnancy can increase
tensions, disrupt stability, and push people below the line of economic survival. Family planning is the answer. All
options must be open.»
3 Ver http://www.ippf.org/ContentController.aspx?ID=297
4 Ver http://www.ippf.org/ContentController.aspx?ID=353

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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números envolvidos são significativos, tanto em pessoas implicadas nestas acções, como no
alcance desejado e como ainda nos aparatosos recursos financeiros envolvidos.
Segundo a IPPF, o Safe Abortion Action Fund1, é um programa internacional, iniciado pelo
governo britânico e agora administrado pela própria IPPF, com o objectivo de diminuir o
número de abortos ilegais através da prestação de “serviços abortivos seguros”. Este fundo
visa atrair investimento para um variado leque de acções em larga escala envolvendo a
execução de abortos, a divulgação de documentação e informação, e o apoio legal a mulheres
que abortam:

«The Safe Abortion Action Fund (previously the Global Safe Abortion Fund) is a targeted reserve of resources
to enable the implementation of programmes and initiatives to increase access to comprehensive safe abortion
services, within a comprehensive package of reproductive health services, with particular regard for the needs of
marginalized and vulnerable women.
The UK Government initiated the Safe Abortion Action Fund in February 2006 in response to a major new
service and advocacy initiative for safe abortion developed by IPPF. The UK’s Department for International
Development (DFID) elected IPPF to administer the Safe Abortion Action Fund on behalf of civil society
groups and non-governmental organizations worldwide to support a range of work on unsafe abortion.»2

Recomendo a leitura atenta deste site, e da documentação nele disponibilizada. A


impressionante dimensão dos recursos humanos, logísticos e financeiros desta organização, e o
enorme impacto social das suas iniciativas à escala global, sobretudo através da prática do
aborto nos países em vias de desenvolvimento.
Se o aborto é um grave erro ético, algo que procurei demonstrar neste texto, nunca uma
organização se mostrou tão poderosa e organizada como a IPPF para praticar e promover a
prática do crime do aborto a uma escala tão grande, verdadeiramente global, e com o apoio
financeiro de instituições públicas e privadas de vários países.
É algo que, verdadeiramente, dá que pensar…

B.6 A visão da APF face ao aborto em Portugal


Apesar do título escolhido, este capítulo tem um objectivo bastante modesto: comentar apenas
um artigo da autoria de Duarte Vilar, da APF, The referendum on abortion in Portugal3, publicado
num dos vários sites da IPPF.
A meu ver, uma análise atenta do texto de Duarte Vilar permite obter-nos uma visão realista
do que pensa a APF e os seus representantes, que em tudo parecem seguir a linha orientadora
das afiliadas da IPPF.

«Until 1984, abortion was totally forbidden by law in Portugal. However, while legally it was forbidden, de
facto abortion was widely accepted and performed by doctors, nurses and midwives. In fact, very few legal actions
were taken relating to abortion, indicating some degree of tolerance of the practice. This was a kind of
compromise, between the Catholic public moralism and the pragmatism of a political power that did not want to
push this private but widely used method of controlling fertility very hard.»

Duarte Vilar começa por afirmar que, até à primeira radical alteração à lei do aborto, a sua
prática era “tolerada”, deduzindo isto do facto de existirem poucas acções legais nesta matéria.
Segundo Duarte Vilar, isto explica-se pelo “pragmatismo de um poder político” que não queria

1 http://www.ippf.org/ContentController.aspx?ID=13469
2 Ibidem.
3 http://oldwww.ippf.org/regions/europe/choices/v27n1/portugal.htm

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pressionar esse “privado mas largamente usado método de controlo de fertilidade”, ao mesmo
tempo que queria manter um status quo de “moralismo público Católico”. Curiosa
terminologia… Como é que se “controla a fertilidade” abortando, ou seja, quando a
fertilização já ocorreu?

Primeira objecção: a questão do aborto não é religiosa. Definir os oponentes ao direito ao


aborto como “moralistas católicos” é distorcer as razões para recusar o direito ao aborto, que
são éticas, e por isso, podem ser neutras em termos religiosos. Não é obrigatório ser-se crente,
ou crente católico, para estar contra o aborto. Trata-se de uma táctica falaciosa bem conhecida
de muitos defensores do “sim” ao aborto: transformar a questão numa guerra contra a religião.

Segunda objecção: o aborto não é um “método de controlo de fertilidade”. Parece-me


indefensável afirmá-lo. O aborto não é “planeamento familiar”, é um acto de pesadas
consequências éticas, visto que é necessário ponderar os direitos da vida humana em formação.

Mais adiante, Duarte Vilar desabafa acerca da frustração sentida aquando da derrota do “sim”
no referendo de 1998:

«It is difficult to describe the anger and the revolt that all those who had fought for legal and safe abortion in
Portugal felt at this time, a day when a promise of change was swiftly taken away. Once again abortion had
become a political weapon, much more than a social problem or even a moral question. In October 1996, when
the referendum on abortion was first proposed, APF made a statement: "... abortion is a personal moral choice
and in pluralistic societies different ideas must be respected; the State has no right to identify moral majorities on
personal matters in view of producing according legislation; finally, illegal and unsafe abortion is a matter of
public health and this must be not referended." When it became apparent that the referendum process would go
ahead, APF decided to use this opportunity to campaign not only for legal abortion but also for sexual and
reproductive health improvements in Portugal.»

Este texto mostra bem o raciocínio parcial por detrás desta visão acerca do problema do
aborto. Se o “sim” tivesse ganho o referendo de 1998, certamente que os representantes da
APF não poupariam elogios à decisão e à opinião popular. Como a vitória coube aos seus
adversários, então a APF deveria necessariamente colocar a decisão popular em segundo plano,
para se procurarem justificações em “armas políticas”.
É certo que a abstenção no referendo de 1998 foi enorme: o resultado nunca poderia ser
representativo da opinião popular com tão elevados valores de abstenção. Mas não é
defensável que o voto popular confira licitude em matéria de ética universal, como sucede com
o aborto. Independentemente do voto de 1998 (ou do voto de 2007) ser maioritariamente pelo
“sim” ou pelo “não”, isso não alteraria nunca o estatuto ético do acto de abortar. Mas vejamos
a citada declaração da APF com mais detalhe:

"... abortion is a personal moral choice and in pluralistic societies different ideas must be respected; the State has
no right to identify moral majorities on personal matters in view of producing according legislation; finally, illegal
and unsafe abortion is a matter of public health and this must be not referended."

Diz a APF que “o aborto é uma escolha moral pessoal”. Escolha pessoal? Como sempre, a
APF passa por cima do debate ético acerca do estatuto da vida humana intra-uterina. O aborto
não é, nem nunca pode ser, uma “escolha moral pessoal”, pelo facto de que há pelo menos
duas pessoas (e isto exceptuando o pai, o que também é injusto) directamente envolvidas no
acto de abortar.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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Será que a APF também defenderia que um pai ou uma mãe, ao cometerem infanticídio de um
seu filho menor de idade, estão a fazer uma “escolha moral pessoal”? Imagino que não o
fariam, visto que consideram que qualquer criança inocente possui o direito à vida e deve ser
considerada no juízo ético acerca do infanticídio! Então porque razão não o fazem no caso do
aborto?
Certamente que não o fazem porque crêem que o feto não é uma pessoa, crêem que o feto está
desprovido de estatuto ético. Para o aborto ser “uma escolha moral pessoal” é forçoso
demonstrar que a vida humana intra-uterina, pelo menos até certa fase da gravidez, não tem
estatuto ético. Só assim se poderia riscar o feto da discussão acerca do seu futuro. A APF, ao
defender que o aborto é “uma escolha moral pessoal”, não tem presente o facto de que tem a
obrigação de apresentar uma razão ética definitiva para o feto ser desprezado na discussão
acerca do seu futuro. Essa “escolha moral pessoal”, segundo a APF, implica directamente a
existência ou inexistência do futuro de um feto. Se for abortado, perde o seu futuro. Se não for
abortado, terá o seu futuro como todos nós tivemos.
Poderíamos pensar: porque razão recai sobre a APF, e não sobre os seus adversários, o ónus
da demonstração ética de que o feto não conta no debate do aborto?
A APF quer propor que a violação da vida humana inocente não seja, no caso do aborto até
um certo limite temporal, considerada um crime aos olhos da lei portuguesa.
Mas a APF não pode ignorar a estabelecida forma de proceder nestas matérias. Do mesmo
modo que, em Justiça, a dúvida razoável permite dar o benefício ao réu (“in dubio, pro reo”),
em Ética, e estando a vida humana citada na nossa Constituição como sendo “inviolável”, recai
sobre a APF o ónus de fornecer a razão ética definitiva que criaria uma excepção à frase
constitucional “a vida humana é inviolável”1.
De outro modo, “in dubio, pro vita”!
A APF também defende a ideia de que o Estado não deve criar legislação condicionada por
opiniões morais pessoais, mesmo que maioritárias, e que as sociedades pluralistas devem
respeitar ideias diferentes.
Penso que não está em questão discutir se a APF se pode manifestar publicamente para
defender as suas ideias muito próprias acerca do aborto. É evidente que o mais elementar
direito de expressão permite que a APF afirme o que bem entender acerca desta e de quaisquer
outras questões. Por isso, sendo certo que a APF nunca foi impedida de exercer o seu direito
de opinião, é estranho que critique o nosso país como não sendo pluralista, uma vez que a
opinião da APF é respeitada e permitida.
O problema está com a expressão “moral majorities”, que mostra bem os pressupostos
teóricos em matéria de Ética que subjazem ao ponto de vista da APF. Sucede que a APF,
evidentemente não partilhando de ideias básicas e consensuais acerca da Ética, entra num
discurso cientificamente insustentável. É largamente consensual, em Ética, considerar que
existem predicados éticos universais. Por exemplo, se eu considerar que a escravatura é
eticamente ilícita, devo procurar combatê-la mesmo junto de culturas que a promovam, e isto
porque afirmar que a escravatura é um crime significa, no fundo, afirmar um predicado ético
universal. A larga maioria dos filósofos que estudam Ética considera que certos predicados
éticos devem ser aplicados em qualquer tempo ou lugar, devem ser válidos em qualquer
cultura, devem ser “universais”.
Logo, a APF deve começar a preocupar-se seriamente com aquele que deveria ser o seu
principal objectivo nesta matéria: tentar demonstrar que o direito ao aborto é um predicado
ético universal, o que se afigura como uma tarefa de monta, que não pode se resolvida usando
argumentação superficial ou falaciosa. De outro modo, ao usar a expressão “maiorias morais”,

1 Constituição da República Portuguesa, Artigo 24.º (“Direito à vida”), ponto 1.

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a APF está na prática a confessar que defende o relativismo ético/moral, uma posição
inaceitável em termos científicos, e que muito poucos filósofos defenderão.
Quando discutimos predicados universais, e o caso do aborto está nesta região pelo facto de
desafiar o direito à vida, não podemos recorrer a argumentação relativista em termos éticos.
Ou o aborto é um erro ético, ou não é. A contagem das opiniões a favor ou contra, a discussão
em torno das “maiorias” ou das “minorias” é irrelevante e inconsequente para o juízo ético.
Um exemplo chega para demonstrar o erro do raciocínio da APF. Se o Estado proibisse os
métodos contraceptivos não abortivos, então estaria a codificar na lei determinadas opiniões
morais de um determinado grupo de elementos da população, e isso seria legitimamente
censurável por parte dos restantes elementos que não partilhassem dessas opiniões morais. Um
Estado neutro em matéria religiosa pode considerar, por exemplo, que a moral católica em
matéria de contracepção é moral subjectiva, e portanto, não universal. Com base nisto, um
Estado neutro pode abster-se de materializar na legislação certos juízos morais da religião
católica que não considere como universais. A contracepção, referida no exemplo dado atrás,
não viola nenhum direito constitucionalmente estabelecido: não viola nenhum predicado ético
considerado universal aos olhos da lei. Por este facto, não se encontra proibida pela legislação.
Contudo, pelo facto de que o direito à vida é universal e transversal a qualquer cultura, o
Estado deve procurar defender este direito, porque se trata de ética e moral objectiva e
universal.
Criminalizar o aborto, como o faz a actual legislação na maior parte dos casos, é defender
objectivamente o direito universal à vida humana inocente. O raciocínio subjacente a esta
legislação “restritiva” está assente num sólido predicado ético universal.
Continuemos com a análise ao texto opinativo de Duarte Vilar:

«The main arguments of the No lobby were the traditional 'pro-life' arguments, and strategies included TV
transmission of the terrible and misleading images that have often been circulated in so many countries on
similar occasions - namely photos of foetuses allegedly depicting the 'murder' of children. But another new and
surprising argument was defended by the No groups: that the improvement of family planning and sex education
should be the true answer to the problem of unwanted pregnancies, and that if this happened, abortion would not
be needed any more.»

Já falei atrás acerca do uso de imagens de fetos abortados. Se tais imagens correspondem ao
resultado de operações abortivas efectuadas em estabelecimentos de saúde por médicos
tecnicamente competentes para o efeito, é evidente que as imagens, por muito chocantes que
sejam (o aborto é um acto chocante) são lícitas e podem ser usadas em campanha. Ver o efeito
real de um aborto é algo de muito útil, apesar de apenas apelar a reacções emotivas.
Evidentemente, estarei de acordo com Duarte Vilar sempre que se referir ao uso abusivo de
imagens que retratem de forma distorcida ou deturpada o aborto praticado em clínicas e
hospitais sancionados para o efeito. Nomeadamente, se se usarem imagens de abortos
praticados em condições totalmente diversas das que são propostas no referendo.
Contudo, surge na citação acima um dado novo. Os defensores do “não” começavam, em
1998, a defender que a educação sexual e o planeamento familiar eram a resposta adequada
para acabar com o aborto. Esta resposta surpreendeu, certamente pela positiva, a APF, visto
que se trata, nada mais, nada menos, do que um argumento que sempre foi defendido pela
fundadora da PPFA1, Margaret Sanger: “Birth Control or Abortion–-which shall it be?”.
É inegável que, na base da estratégia usada por estas organizações para legalizar o aborto a
pedido, está a promoção do controlo de natalidade e do planeamento familiar. Basta
percorrermos alguma da literatura divulgada por estas organizações, para vermos em muitos

1 Organização norte-americana que esteve na origem da IPPF, a quem a APF responde directamente.

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casos o aborto referido como método de “controlo de natalidade”, ou como fazendo parte das
opções legítimas para o “planeamento familiar”.
É também assim que se conseguem vitórias que antigamente eram impossíveis: alterando a
opinião pública, mudando as suas ideias. Hoje em dia, muitas pessoas não vêem qualquer
problema ético no acto de abortar pela simples razão de que lhes foi dito que o aborto era
apenas mais um método de “controlo de natalidade”, parte integrante de um “moderno
planeamento familiar”…
A promoção do controlo de natalidade torna-se assim no passo evidente, e seguro, na direcção
da liberalização generalizada do aborto. A ideia parecia boa à partida: a promoção e divulgação
do controlo de natalidade deveria, em teoria, permitir a uma sociedade responsável, informada
e consciente repudiar o aborto como solução. Na prática, dada a pouca formação da população
em geral, dado o facto de que esta população é facilmente influenciável e manipulável, a
justificação ética do planeamento familiar e da contracepção cria um clima propício à inclusão
abusiva do aborto no conjunto de métodos de “controlo de natalidade”.
O clima propício surge de um facto evidente e inegável: a desresponsabilização generalizada do
acto sexual. Hoje em dia, a tendência já não é a de responsabilizar quem tem uma relação
sexual, protegida ou não. A tendência crescente, iniciada precisamente com a divulgação do
controlo de natalidade, é a de desculpabilizar os directos agentes, a mulher e o homem, sempre
que surge uma gravidez não desejada.
É a mesma óptica de desresponsabilização que subjaz, tanto ao uso de métodos
contraceptivos, como à defesa do direito ao aborto. Nenhum método contraceptivo é
totalmente eficaz. Por isso, sempre que um método falha, a tendência é a de pensar que a culpa
não pertence nem à mulher nem ao homem. Então, a quem pertence?
Há, incrivelmente, quem chegue a promover a própria abolição do conceito de “culpa”, que
muitos vêem como uma herança da religião que importa erradicar quanto antes.
Por isso, sempre que um método contraceptivo falha, seja por causa inerente ao método, seja
pela inépcia dos seus utilizadores, surge vitorioso o “direito ao aborto” para resolver “o
problema”. Na verdade, para a opinião pública moderna, a gravidez deixa cada vez mais de ser
vista como uma responsabilidade a enfrentar, mas sim como “um problema a resolver”
recorrendo ao aborto. Continuemos com a análise do texto de Duarte Vilar…

«However, even though the question of abortion was again postponed, all the groups in the campaign (even the
Catholic Church) publicly agreed that family planning and sex education were the main means to prevent and
reduce abortion.»

Esta frase é curiosa. Duarte Vilar defende que a «Igreja Católica concordou publicamente em
que o planeamento familiar e a educação sexual eram o principal meio para prevenir e reduzir
o aborto”. O que quer isto dizer? Que a Igreja Católica concorda com a generalidade dos
meios de planeamento familiar? Que a Igreja Católica concorda com os programas de
educação sexual promovidos pela APF?
O que se deve afirmar, sem sombra de dúvidas, é o seguinte:

1. A Igreja Católica, pelas características intrínsecas da sua doutrina, apenas pode permitir o
controlo de natalidade pelos chamados “métodos naturais”, quando se evita a relação sexual
durante o período fértil;

2. A Igreja Católica, pelas características intrínsecas da sua doutrina, não pode concordar com a
maioria dos pressupostos que estão na base da “educação sexual” defendida pela APF.

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Estes esclarecimentos são essenciais para se dar o devido contexto à frase de Duarte Vilar. É
evidente que uma boa educação sexual, como qualquer outra forma de educação, deve ser
encorajada, planeada e executada. O que se poderá contestar é o que é que a APF entende por
“educação sexual”. Com base em que pressupostos? Os pressupostos usados pela APF são, na
minha opinião, altamente questionáveis e estão longe de poderem constituir uma base sólida
para qualquer acção pública do Estado nesta matéria.
O texto termina com mais uma falácia:

«Very soon, we hope it will be understood that the No victory did not change anything for the thousands of
Portuguese women who are forced, for personal or social reasons, to have illegal and possibly unsafe abortions.»

Esta frase dá a ideia falaciosa de que uma grande parte das mulheres, senão mesmo todas, são
“forçadas, por razões pessoais ou sociais” a abortar ilegalmente. São forçadas? De que modo?
Recorrendo a ameaças físicas? É evidente que, salvo ameaça física directa, toda e qualquer
mulher tem uma alternativa ao aborto: levar a gravidez adiante. Não considerar esta alternativa,
como faz Duarte Vilar, é distorcer o problema do aborto de forma falaciosa. O aborto não é
“inevitável” nem é algo que as mulheres que abortam estejam obrigadas a fazer. Abortar é uma
opção errada, mas é normalmente tomada de forma livre pela mulher que escolhe abortar, seja
legalmente nos países e situações que o permitem, seja ilegalmente nos países e situações que
não o permitem.
Também importa, para terminar, “descer à Terra” e darmo-nos conta de que, mesmo com a
actual lei, uma mulher consegue abortar legalmente no nosso país se arranjar dois médicos que
assinem um atestado que confirme que ela corre risco de “grave e duradoura lesão para a [sua]
saúde psíquica”. Os termos generalistas presentes no Art.º 142.º do Código Penal permitem,
como vimos no início deste texto, que seja abrangida pela legalidade uma série de abortos de
legitimidade ética subjectiva e questionável…

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C. A “contracepção de emergência” é abortiva?

Ao longo deste texto, procurei argumentar que o aborto é uma violação ética grave ao direito à
vida humana inocente. Procurei também estabelecer como sólido momento-chave do
reconhecimento do direito à vida humana o momento da concepção, o instante zero de toda a
forma de vida humana. Não recorri a argumentação religiosa, pelo que afirmo que as minhas
conclusões estão erigidas sobre fundamentos éticos universais, recusando terminantemente o
relativismo ético em matérias tão graves como esta. Se o aborto é uma violação ética grave do
direito à vida humana inocente, é-o em qualquer tempo, em qualquer lugar, e em qualquer
contexto cultural e social humano.
Com base nestas teses, discutir se a chamada “contracepção de emergência” é abortiva ou não
torna-se muito importante, não só porque assistimos à disseminação em larga escala deste tipo
de fármaco, juntamente com a crescente promoção de uma cultura de facilitismo em termos de
conduta ética que pretende, entre outras coisas, retirar a gravidade ética ao aborto, tornando-o
num “direito reprodutivo”.
Alguns defensores do direito ao aborto dirão que apenas um fanático religioso poderia criticar
a chamada “contracepção de emergência” ou como é mais conhecida, a “pílula do dia
seguinte”. Quem o faz apenas dá provas de que não conhece o fármaco em questão, não está
acostumado a ler obras de ética, ou a pensar em termos éticos e a argumentar com base em
axiomas éticos. Independentemente da crença pessoal de cada um, ou da sua total ausência,
quem defenda, como eu defendo, que a vida humana adquire o seu direito fundamental à vida
a partir do momento da concepção, e há filósofos e pensadores agnósticos e ateus que o
fazem, sente-se obrigado, por coerência e em consciência, a considerar todo e qualquer
método abortivo que interrompa uma vida humana em qualquer fase do seu desenvolvimento
após a concepção como um acto grave e eticamente ilícito.
Comecemos pelo termo “concepção” e o seu correlativo “contracepção”…
A chamada “contracepção de emergência” está disponível no mercado nacional desde 2001 e é
vendida e propagandeada como sendo “contracepção”, ou seja, como actuando de forma a
evitar a “concepção”, ou por outras palavras, a fecundação do óvulo pelo espermatozóide,
processo que recebe o termo técnico de “fertilização”. Tal fármaco, se fosse puramente
contraceptivo, deveria actuar antes do início de uma vida humana como forma de evitar
precisamente esse início (“concepção”). Em bom rigor, poderíamos equacionar a legitimidade
ética de tal abordagem, mas então também teríamos que fazê-lo em relação a qualquer outro
método contraceptivo. Não o farei aqui, não porque ache que a contracepção é eticamente
lícita, mas apenas porque o verdadeiro acto contraceptivo, o recurso a um ou mais meios para
evitar a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, não viola o direito fundamental à vida
humana inocente, enquanto que o acto abortivo viola-o necessariamente.
Na verdade, a dita “contracepção de emergência” não é um puro método contraceptivo, uma
vez que há uma probabilidade substancial de que actue de forma abortiva e não apenas
contraceptiva. Quem afirma que a “contracepção de emergência” não é abortiva, ou está a agir
de má fé ou não está bem informado. Infelizmente, a informação correcta e precisa está pouco
divulgada. Navegando um pouco na Internet, e só para dar alguns exemplos em português,
podemos encontrar facilmente vários exemplos de informação prestada de forma errónea. Um
site governamental1 diz por exemplo o seguinte:

1 http://www.juventude.gov.pt/Portal/OutrosTemas/SaudeSexualidadeJuvenil/SexualidadePrevencao/Contracepção+de+emergência.htm

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«Como funciona a Contracepção de Emergência
Actua de várias formas, para prevenir uma gravidez, consoante a altura do ciclo menstrual em que é tomada:
· Pode impedir ou atrasar a ovulação;
· pode impedir a fecundação/fertilização (o encontro do óvulo com o espermatozóide);
· pode impedir a implantação dum ovo na parede do útero (nidação).

É abortiva?
Tem efeitos abortivos no caso de impedir a nidação. Pode prevenir 3 em cada 4 gravidezes não desejadas, evitando assim o recurso ao
aborto.
A comunidade científica definiu o começo de uma gravidez a partir do momento que se dá a nidação (implantação) do ovo nas paredes
do útero.
Se a mulher estiver grávida, ou seja, se a nidação já tiver acontecido, num período superior a 72 horas, a contracepção emergência não
produz um efeito anticonceptivo, não interrompe a gravidez em curso. Por essa razão é disponibilizada no nosso país.»

Infelizmente, esta informação contém erros graves que importa apontar e corrigir.
Partindo do fármaco de “contracepção de emergência” mais divulgado e usado no nosso país,
o Levonorgestrel1, vejamos o que a literatura farmacológica diz acerca dele:

"Este fármaco, que mimetiza a acção da progesterona, usado em doses altas como a desta terapêutica vai actuar
no endométrio provocando uma diminuição abrupta da sua espessura e assim impedir a implantação do zigoto.
Como os efeitos adversos dos contraceptivos orais são dependentes da dose dos seus constituintes, estas doses
apresentam efeitos adversos desagradáveis (40% de náuseas e vómitos) e perigosa (trombose) o que deve restringir
o seu uso. Os progestagéneos isolados podem, ainda, abolir o ciclo ovárico (anovulação) se a dose for
relativamente elevada, conduzindo igualmente à atrofia ovárica e do endométrio."2

O endométrio é a camada de revestimento mais superficial do útero. Quando actua no sentido


de reduzir a sua espessura, o Levonorgestrel impede a fixação do zigoto na parede intra-
uterina. O zigoto, sem possibilidade de se fixar, acaba por ser expelido do útero, o que equivale
a um aborto.
Vejamos ainda, para contrabalançar a informação farmacológica dada atrás, a análise mais
profunda, feita pela Dra. Margarida Castel-Branco, Professora de Farmacologia da Faculdade
de Farmácia de Coimbra:

«O mecanismo pelo qual a contracepção oral de emergência actua é bastante desconhecido. Provavelmente são
vários os mecanismos de acção possíveis, dependendo da altura em que ocorre a toma da COE em relação ao
momento da ovulação (período pré-ovulatório, peri-ovulatório ou pós-ovulatório). Assim, é provável que a COE
possa actuar antes da fecundação, por interferência com a ovulação (atrasando-a ou inibindo-a) ou por
espessamento do muco cervical, de modo a dificultar a migração dos espermatozóides (o que só terá relevância se
for tomada antes da relação sexual em causa); se já tiver ocorrido a fecundação, a COE poderá actuar por
interferência na viabilidade e/ou funcionalidade do corpo amarelo (com consequências na produção de
progesterona), por diminuição do peristaltismo das trompas de Falópio (com a inviabilização do ovo fertilizado
antes da sua chegada ao útero) ou por desencadeamento de alterações endometriais hostis à implantação do
embrião (atrofia aguda da parede uterina. Uma das hipóteses prováveis refere-se à alteração no padrão temporal
de secreção endometrial da glicodelina-A – em condições normais, a glicodelina-A não é secretada durante a fase
peri-ovulatória, só aparecendo no endométrio na última semana da fase luteínica, como consequência da secreção
de progesterona pelo corpo lúteo; com a toma de elevados níveis de progestagénio, a secreção da glicodelina-A vai
ocorrer mais cedo, ou seja, vai verificar-se um aumento da secreção de glicodelina-A durante o período fértil –

1 O Levonorgestrel (de nome comercial: "Mirena" – uso intra-uterino, "Norlevo" – uso oral, "Levonelle" – uso
oral) é um progestagénio usado na dose de 0,75 mg (750 µg) nas 72 horas que se seguem a uma relação sexual
para impedir a nidação do zigoto.
2 Ver Terapêutica Medicamentosa e Suas Bases Farmacológicas - Manual de Farmacologia e Farmacoterapia, 4ª edição, Osswald

W. e Guimarães S. (coordenadores), 2001, Porto Editora, pp. 743-744.

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originando um aumento da sua acção inibitória sobre a ligação do espermatozóide à zona pelúcida do oócito
libertado – e uma diminuição da expressão endometrial de glicodelina-A no momento da implantação –
conduzindo a um enfraquecimento do ambiente imunossupressivo necessário na interface feto-materna do
momento da implantação).»1

O Levonorgestrel não é infalível, como aliás sucede com muitos fármacos. É possível que surja
uma gravidez, mesmo tomando este fármaco de acordo com as recomendações do seu
fabricante. Após tomarmos contacto com a literatura farmacológica competente e com os
valiosos esclarecimentos da Profª. Margarida Castel-Branco, vejamos agora com mais detalhe
as informações presentes no site governamental atrás referido…
Diz-se que o fármaco “actua de várias formas, para prevenir uma gravidez”, o que nem sempre
é verdade, uma vez que uma das acções deste fármaco, o impedimento da nidação, constitui
um aborto e não uma prevenção de gravidez. A gravidez apenas é prevenida se o efeito do
fármaco for o de impedir a fecundação. De outra forma, a gravidez é abortada. A única
interpretação possível para esta frase ser verdadeira é a de se considerar que o termo
“gravidez” é usado como sinónimo de “nidação”, mas como vimos atrás, quando falámos
acerca da definição científica do início da vida humana, a nidação não tem consequências para
a ética do aborto. A fertilização dá-se antes da nidação, e portanto, se definirmos a gravidez
como tendo início na nidação, então a fertilização precede o estado de gravidez assim definido.
Se o ovo fertilizado for eliminado antes de ter nidado, isso equivale a um aborto. Esta é a
principal razão pela qual o termo “gravidez” não deveria ser definido na nidação mas sim na
fertilização. Como explica o Dr. Victor Neto, Médico Especialista em Ginecologia e
Obstetrícia:

«O mecanismo de acção deste tipo de metodologia, depende da altura do ciclo em que a mulher toma o produto.
Sendo assim, se o método for utilizado após a ovulação e dando-se a concepção, esta pílula vai actuar impedindo
que o novo ser humano entretanto gerado não tenha condições de nidar no útero materno, impedindo a
continuação da gravidez. Se a pílula for tomada antes da ovulação existe a probabilidade de a impedir.
Do que foi afirmado anteriormente, resulta que a mulher está grávida a partir da concepção e não só a partir da
nidação.
Um exemplo interessante é o caso de uma mulher estar e se dizer grávida, mesmo que tenha uma gravidez
ectópica, ou seja, fora do útero (nas trompas, por exemplo).
No entanto, para que este tipo de metodologia possa ter uma certa aceitação por parte de uma grande parte da
comunidade médica e público em geral, algumas pessoas tentam definir o início da gravidez como a altura da
nidação.
Dentro de muito pouco tempo, dado o facto de o embrião comunicar quimicamente com a mãe antes da nidação,
vai ser possível fazer testes de gravidez antes da implantação ocorrer. Neste momento, os testes de gravidez só
dão positivos a partir do momento da nidação, em que é possível detectar uma hormona produzida nesta altura,
que é a gonadotrofina coriónica, na urina da mulher grávida ou no seu sangue.»2

De forma a não deixar dúvidas, eis a resposta do Dr. Vitor Neto a uma questão directa:

1 Referências usadas pela Profª. Margarida Castel-Branco: Hapangama, D.; Glasier, A.F.; Baird, D.T. The effects of
peri-ovulatory administration of levonorgestrel on the menstrual cycle. Contraception. 63 (2001) 123-129. Croxatto, H.B. [et al.].
Pituitary-ovarian function following the standard levonorgestrel emergency contraceptive dose or a single 0.75-mg dose given on the days
preceding ovulation. Contraception. 70 (2004) 442-450. Durand, M. [et al.]. Late follicular phase administration of levonorgestrel
as an emergency contraceptive changes the secretory pattern of glycodelin in serum and endometrium during the luteal phase of the
menstrual cycle. Contraception. 71 (2005), 451-457.
2 Ver a entrevista dada à Factos da Vida, n.º 3, Maio de 2000: http://vida.aaldeia.net/piluladodiaseguinte.htm

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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«FV: Em Julho de 1999, quando o Infarmed (um instituto do Ministério da Saúde) aprovou a
comercialização da "pílula do dia seguinte" sob a designação de Tetragynon1, foi repetidamente dito que esta não
é abortiva pois a gravidez começaria no momento da nidação (implantação no útero). Que comentário lhe merece
esta afirmação?
VN: Como disse atrás, a gravidez inicia-se com a fecundação e não somente quando o blastocisto (assim
chamado o novo ser humano na altura da implantação) chega ao interior do útero materno, nidando e dando
continuidade a uma nova fase da sua vida já começada cerca de dez dias antes.»2

Para a opinião popular, ignorante em termos médicos e éticos, a gravidez terá início a partir do
momento em que o teste de gravidez que compraram na farmácia, que só demarca o momento
da nidação, acusa positivo!
Infelizmente, há desonestos defensores do aborto que nada fazem para dissipar, ou tudo fazem
para aumentar, esta confusão tão útil para a sua causa. Para eles, é conveniente que se defina a
gravidez após a nidação, o que só parece encontrar justificação técnica nos testes de farmácia,
carecendo de justificação médica ou ética.
É evidente que o problema ético do aborto, que temos vindo a discutir, surge com a
concepção. Assim, é forçoso que qualquer fármaco que impeça o desenvolvimento da vida
humana a partir da concepção seja visto como um fármaco abortivo.
Continuemos a analisar o “método de funcionamento” de acordo com o referido site
governamental:

«Pode impedir ou atrasar a ovulação»


É um facto. Se o momento do ciclo da mulher estiver antes da ovulação, a toma deste fármaco
pode impedir ou atrasar a ovulação. Isso explica-se porque o Levonorgestrel é um
progestagénio, mas disponibilizado em doses bastante mais elevadas que as presentes nas
pílulas contraceptivas convencionais.

«pode impedir a fecundação/fertilização (o encontro do óvulo com o espermatozóide)»


É um facto. Se o fármaco actuar no sentido da anovulação (impedindo a libertação de
ovócitos), se actuar por espessamento do muco cervical (impedindo a subida dos
espermatozóides), ou ainda se actuar por aumento da secreção de glicodelina-A durante o
período fértil (inibindo a ligação do espermatozóide à zona pelúcida do ovócito).

«pode impedir a implantação dum ovo na parede do útero (nidação)»


É um facto. Se o Levonorgestrel for tomado após a ovulação, e se ocorrer a fecundação, então
o fármaco actuará no sentido de impedir a nidificação pelo estreitamento do endométrio. Este
efeito é abortivo: a vida humana gerada na concepção não sobrevive sem se poder fixar às
paredes interiores do útero. Outros potenciais efeitos, que também são abortivos, são a da
redução do peristaltismo nas trompas de Falópio, o que impede que o ovo fertilizado possa
avançar nas trompas e descer até ao útero para nele se fixar.

«É abortiva?
Tem efeitos abortivos no caso de impedir a nidação. Pode prevenir 3 em cada 4 gravidezes não desejadas,
evitando assim o recurso ao aborto.»
É surpreendente que quem escreveu esta frase não se tenha dado conta da incoerência. Se tem
efeitos abortivos no caso de impedir a nidação, é evidente que nessas situações se trata de

1 Também baseado no Levonorgestrel.


2 Ibidem.

Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007


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aborto, e por isso não “evita” o “recurso ao aborto” em todos os seus modos de acção, mas
apenas quando impede a ovulação ou a fertilização.

«A comunidade científica definiu o começo de uma gravidez a partir do momento que se dá a nidação
(implantação) do ovo nas paredes do útero.»
A definição do começo da gravidez como sendo na nidação não reúne o consenso da
comunidade médica, pelo que a afirmação é falsa porque generaliza algo que não é
generalizável. Para mais, mesmo que toda a comunidade médica assim definisse a gravidez, em
termos da avaliação ética do aborto, a interrupção da vida humana antes ou após a nidação tem
exactamente o mesmo peso ético e em nada altera o debate ético do aborto.

«Se a mulher estiver grávida, ou seja, se a nidação já tiver acontecido, num período superior a 72 horas, a
contracepção de emergência não produz um efeito anticonceptivo, não interrompe a gravidez em curso. Por essa
razão é disponibilizada no nosso país.»
A afirmação é verdadeira, mas a frase final “por essa razão é disponibilizada no nosso país”
constitui um estranho corolário, sobretudo quando atrás se admitiu que uma das acções deste
fármaco é abortiva. Por enquanto, a nossa legislação não permite o aborto sem as adequadas
ressalvas consagradas na lei. Sempre que o fármaco Levonorgestrel actua de forma abortiva,
impedindo a nidificação, a actual lei portuguesa está a ser violada. Em grande escala e com a
permissão do Estado.
Infelizmente, quando as altas instâncias em matéria de bioética no nosso país se pronunciaram
sobre a questão, o resultado não foi nada satisfatório nem adequado. A 19 de Julho de 2005, a
Associação Portuguesa de Bioética1 publicou o Parecer n.º P/02/APB/052, relativo à
“contracepção de emergência” que concluía da seguinte forma:

«Que só é legítima a referência à expressão “contracepção de emergência” quando o método em causa impede a
fertilização do ovócito, ou seja, quando o medicamento é administrado nas primeiras horas após uma relação
sexual desprotegida;
Que o fármaco, se utilizado nos primeiros 14 dias após a fertilização, não envolve verdadeiramente uma
contracepção de emergência mas uma “contraimplantação de emergência”, pelo que se pode concluir que não está
em causa nem a existência de um abortamento, nem a utilização de um método abortivo;»3

É de louvar o facto de a APB ter identificado correctamente o erro do uso geral do termo
“contracepção” para este fármaco, que apenas actua neste sentido quando a mulher ainda não
está em ovulação, ou quando estando em ovulação, o fármaco actua no sentido de prevenir a
fertilização. Contudo, é de lamentar que a APB tenha concluído que este fármaco, quando
actua no sentido de impedir a nidificação, não é abortivo. Para além disso, o prazo referido de
catorze dias constitui um erro: a nidação inicia-se aproximadamente seis dias após a
fertilização4. O prazo apresentado poderá referir-se ao término da implantação.
A conclusão errada da APB explica-se pelos pressupostos errados usados na elaboração deste
parecer. Veja-se a definição dos termos essenciais:

«Que a gravidez se inicia com a implantação do embrião no útero materno, também designada por nidação, e
que esta tem o seu início nos primeiros dias após a fertilização e termina cerca de 13-14 dias após a formação
do zigoto (célula primordial e totipotencial);

1 http://www.apbioetica.org
2 Redigido por Rui Nunes, Guilhermina Rego e Cristina Brandão.
3 Pág. 4. Ver o texto completo aqui: http://www.apbioetica.org/fotos/gca/1128590675contracepcao.pdf
4 Ver Carlson, op. cit., p. 42 da edição em português de 1996.

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Que por “abortamento” se entende a interrupção da gravidez antes de atingido o limite de viabilidade fetal – e
consequente expulsão do produto remanescente – e que por “aborto” se deve perspectivar o produto do
abortamento;
Que por “método abortivo” se entendem os meios utilizados para produzir um abortamento;»1 (sublinhado
meu)

A conclusão da APB de que este fármaco nunca actua de modo abortivo está errada. Como se
vê, os termos “abortamento” e “método abortivo” estão baseados na definição dada neste
parecer para o início da gravidez, definição essa que, como vimos atrás, está longe de
representar um seguro consenso científico na comunidade médica. O que me parece mais
constrangedor é que a APB tem uma nítida vocação para o tratamento de assuntos éticos
relacionados com as ciências da vida. Nesse sentido, e sem detrimento de espécie alguma para
a necessária ponderação da informação médica relevante, o que é um facto é que a definição de
gravidez que foi aceite como pressuposto pela APB é irrelevante em termos éticos. O debate
ético a nível internacional relativamente à questão do aborto centra-se, não na definição médica
de início de gravidez, mas sim no estatuto ético do zigoto, do embrião e do feto, no
reconhecimento do direito à vida humana intra-uterina, no debate acerca de se é eticamente
relevante ou não distinguir “pessoa humana” de “vida humana” no que diz respeito à vida
intra-uterina e à consequente ponderação do seu direito à vida. É que não há quaisquer dúvidas
científicas de que o zigoto, primeira célula totipotente, é vida humana!
Mesmo que toda a comunidade médica (o que não sucede) afirmasse em consenso que a
gravidez apenas começa com a nidação, e que consequentemente, todos os médicos definissem
“abortamento” como apenas a interrupção das gravidezes pós-nidação, mesmo assim a APB
não deveria ignorar que tal eventual definição técnica consensual dos médicos não teria nunca
carácter vinculativo na ponderação ética do acto de destruir um zigoto. Em termos éticos, há
que avaliar se é ou não errado impedir o desenvolvimento da vida humana intra-uterina desde
a sua constituição no zigoto, e se o erro ético existe em qualquer fase do desenvolvimento
intra-uterino ou apenas a partir de uma determinada fase.
A APF, Associação para o Planeamento da Família, de quem se falou no Anexo B, também
promove o acesso livre à dita “contracepção de emergência”. Num seu artigo de 2001,
intitulado De que falamos quando falamos de contracepção de emergência...2 e publicado na revista
Sexualidade & Planeamento Familiar, a Dra. Maria José Alves, ginecologista e obstetra, e
presidente da APF afirma o seguinte:

«Mas, também, dos três mecanismos de acção da PCE (Pílulas Contraceptivas de Emergência), o que mais
falhará será exactamente aquele que é tomado como disruptor da vida: os cientistas ainda não são unânimes
acerca do facto da dose hormonal de emergência ser capaz de alterar o “forro do útero” – endométrio, se
quiserem – e impedir a implantação. E é só por isso que é importante o acesso fácil à contracepção de
emergência: para que seja realizada mais cedo, para que possa bloquear uma ovulação, para que previna uma
gravidez não desejada, para que não se recorra ao aborto.
O mecanismo de acção é o mesmo da tomada da pílula regular. Não, não esperamos que os opositores dos
métodos contraceptivos modernos estejam de acordo com a CE, mas então digam as verdadeiras razões e
consintam que as suas decisões são legítimas para si próprios, mas não podem impedir outros de serem bem
informados e de tomarem também eles as suas próprias decisões.»3 (sublinhado meu)

1 Ibidem, pp. 2-3.


2 Ver http://www.apf.pt/revista/actual.pdf
3 Ibidem, p. 5.

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Este texto foi escrito no ano de 2001, quando a Assembleia da República, pela lei n.º 12/2001
de 29 de Maio1, adoptou legislação específica acerca dos fármacos de “contracepção de
emergência”. A Dra. Maria José Alves, como presidente da APF e na continuidade natural dos
objectivos desta associação e da sua “casa-mãe”, a IPPF, batalhava então pela divulgação e
disseminação deste tipo de fármaco, tentando mitigar junto da opinião pública os seus
possíveis efeitos abortivos. Claramente, a Dra. Maria José Alves prefere ver a “contracepção de
emergência” como uma ferramenta puramente contraceptiva, porque afirma que apenas os
“opositores dos métodos contraceptivos modernos” poderiam reprovar a “contracepção de
emergência”. Este raciocínio é falacioso: há quem se oponha à “contracepção de emergência”
quando esta opera de forma abortiva, mas não se oponha a outros métodos puramente
contraceptivos.
É estranho comparar estas afirmações tão categóricas, escritas por uma médica profissional,
com o que diz a documentação farmacológica acerca deste tipo de medicamentos. Vamos
repetir, apenas por comodidade, o que a documentação diz acerca da Levonorgestrel, o mais
divulgado fármaco desta categoria:

"Este fármaco, que mimetiza a acção da progesterona, usado em doses altas como a desta terapêutica vai actuar
no endométrio provocando uma diminuição abrupta da sua espessura e assim impedir a implantação do zigoto.
Como os efeitos adversos dos contraceptivos orais são dependentes da dose dos seus constituintes, estas doses
apresentam efeitos adversos desagradáveis (40% de náuseas e vómitos) e perigosa (trombose) o que deve restringir
o seu uso. Os progestagéneos isolados podem, ainda, abolir o ciclo ovárico (anovulação) se a dose for
relativamente elevada, conduzindo igualmente à atrofia ovárica e do endométrio."2 (sublinhado meu)

Como se vê, este tipo de fármacos não actua sempre de forma contraceptiva, actuando por
vezes de forma abortiva, e é apenas por esta última razão que estes fármacos levantam um
problema ético: o da violação do direito à vida do ser humano.
É, também, muito útil ver de perto a documentação técnica3 fornecida com cada caixa de
Norlevo (nome comercial da versão para uso oral do Levonogestrel):

«Grupo farmacoterapêutico: IX-5-c) PROGESTAGÉNIOS


Código ATC: G03AC03
5.1 - Propriedades farmacodinâmicas
O mecanismo de acção do NorLevo não está totalmente esclarecido. Nas doses utilizadas, o levonorgestrel
poderá bloquear a ovulação prevenindo assim a fertilização caso a relação sexual tenha ocorrido na fase
préovulatória, quando a probabilidade da fertilização é maior. No entanto, NorLevo® não é eficaz, caso o
processo de implantação do ovo já se tenha iniciado. Nos ensaios clínicos NorLevo demonstrou prevenir 85%
das gravidezes esperadas. A eficácia parece diminuir com o tempo decorrido após a relação sexual mal protegida
ou desprotegida (95% nas 24h; 85% 24-48h; 58% tomado entre as 48 e 72 horas). A eficácia após 72h não
é conhecida.»4

1 Ver http://www.fd.uc.pt/hrc/enciclopedia/portugal/legislacao/vidaintegridadefisica/12-2001.pdf
2 Ver Terapêutica Medicamentosa e Suas Bases Farmacológicas – Manual de Farmacologia e Farmacoterapia, 4ª edição,
Osswald W. e Guimarães S. (coordenadores), 2001, Porto Editora, pp. 743-744.
3 Ver: http://www.norlevo.com/Norlevo_pt/RCM-08-031.pdf. O Norlevo é propriedade da farmacêutica

francesa HRA-Pharma (http://www.hra-pharma.com). O titular da autorização de introdução no mercado


nacional é a Fargin, Produtos Farmacêuticos, Lda., desde 6 de Outubro de 2000, data da autorização de
introdução no nosso mercado. Usaremos aqui o texto da revisão feita à documentação em Maio de 2003.
4 Ibidem, p. 5. Note-se a curiosa “coincidência” entre o prazo de uso do Levonorgestrel, 72 horas, e o tempo que

o ovo fecundado demora a fixar-se nas paredes interiores do útero: 72 horas!

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De novo, encontramos uma complicação neste texto, quando o comparamos com o texto da
obra Terapêutica Medicamentosa e Suas Bases Farmacológicas – Manual de Farmacologia e Farmacoterapia.
A documentação técnica deste fármaco fala do efeito anovulante, “caso a relação sexual tenha
ocorrido na fase pré-ovulatória”, e fala no que se passa após a nidação, “não é eficaz, caso o
processo de implantação do ovo já se tenha iniciado”. E o que sucede no entretanto? Entre a
fecundação e a nidação? O documento é omisso. Apenas menciona a palavra “implantação” na
contra-indicação acerca das mulheres com risco de gravidez ectópica1 e, como acabámos de
ver, no facto de o fármaco ser ineficaz após a dita implantação. O sinónimo “nidação” também
não surge em todo o texto!
A documentação gerada pela empresa fabricante e vendedora do Norlevo é omissa
relativamente ao abortivo efeito anti-nidação ou a outros efeitos abortivos, que já vimos atrás
que podem ocorrer. Mas, por outro lado, o independente manual farmacológico atrás citado
refere que este fármaco pode actuar no sentido de impedir a nidificação/implantação pelo
estreitamento do endométrio, e por isso, pode actuar de forma abortiva.
Não podemos esquecer que, dentro das obrigações legais mínimas, qualquer documento
técnico de um medicamento é cuidadosamente redigido no sentido de não prejudicar as suas
vendas e sucesso no mercado.
Perante abundantes argumentos a favor, parece notório que este fármaco pode actuar de forma
abortiva. Mas enquanto não surgir nova informação científica que elucide de forma definitiva
os mecanismos de acção deste fármaco, e na impossibilidade de uma mulher saber se, ao tomá-
lo, está a abortar ou apenas a evitar a fertilização, a acção ética recomendável será a de não o
tomar. Já para não referir que a falta de informação científica definitiva relativamente aos
mecanismos de acção deste fármaco pode significar a ocorrência de efeitos indesejados para
além dos documentados pelo fabricante.

1 Ibidem, p. 2.

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Agradecimentos

Este texto deve a sua forma e conteúdo à contribuição valiosa e generosa de várias pessoas, às
quais estou profundamente agradecido. Agradeço ao Pe. Nuno Serras Pereira pela informação
fornecida acerca dos movimentos e organizações pró-escolha e pelo apoio à divulgação deste
texto; ao Dr. Pedro Vaz Patto pela ajuda fundamental nas questões jurídicas; ao Dr. Tiago
Lopes de Miranda pelo excelente elucidário jurídico que escreveu e disponibilizou na Internet;
ao Pedro Frazão pela valiosa informação médica e farmacêutica que me enviou; à Dra.
Margarida Castel-Branco pelos seus esclarecimentos profundos acerca do funcionamento da
dita “contracepção de emergência”, ao Pedro Gil pela grande quantidade de informação em
formato electrónico sobre o aborto que me tem enviado nos últimos meses, bem como pelos
sempre pertinentes conselhos; ao José Maria André, pelos seus indispensáveis comentários e
correcções acerca dos dilemas éticos das gravidezes com risco de vida, ao Prof. Donald
Marquis, por me ter gentilmente oferecido cópias dos seus artigos acerca do Aborto,
juntamente com os seus esclarecimentos acerca do seu argumento e das críticas que a ele têm
sido feitas pela comunidade académica.
Apesar de ambos terem posições acerca do aborto que são diferentes das minhas em maior ou
menor grau, é um facto que, para a construção de muitas das partes deste texto, devo agradecer
aos filósofos Pedro Madeira e Pedro Galvão os sérios textos acerca da ética do aborto que
gratuitamente têm disponibilizado na Internet para livre leitura por parte de todos interessados.
Ambos ajudam a elevar a discussão do aborto para um nível intelectual sério.
Queria ainda agradecer ao Ludwig Krippahl1, um ateu contra o direito ao aborto, pelos
estimulantes e lúcidos debates internéticos que sempre me proporcionou.
Não poderia terminar sem agradecer profundamente à minha querida mulher, Maria Ana, pelo
seu apoio e compreensão durante os vários meses de escrita deste texto.

1 http://ktreta.blogspot.com

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