Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
Pressupostos
Para efeitos da argumentação deste texto, partiu-se dos seguintes pressupostos:
o Considera-se consensual que o aborto é algo de negativo em si mesmo; ou seja, ao
longo deste texto, considera-se consensual que ninguém é “pelo aborto”, ou por
outras palavras, não se considera o aborto como algo de bom, de terapêutico, de
salutar, ou de desejável em si mesmo;
o Considera-se que o cerne do debate gira em torno da licitude ou ilicitude de um
presumido direito que é proposto a referendo, o direito a abortar em determinadas
circunstâncias temporais (até às dez semanas), apenas por opção da mulher grávida,
em estabelecimentos autorizados para o efeito; contudo, a argumentação
apresentada permite uma aplicação mais generalizada, em termos do direito ao
aborto em qualquer fase da gravidez;
o Considera-se consensual afirmar que qualquer ser humano inocente, após o
nascimento, tem o direito à sua vida e não pode ser privada dela por acção de
outrem; por outras palavras, considera-se fora de discussão o direito à vida após o
nascimento, limitando-se assim o debate ao problema específico do direito à vida
intra-uterina, ou seja, antes do nascimento;
o Considera-se desnecessário o recurso a argumentação religiosa ou metafísica para
demonstrar a ilicitude do acto de abortar;
o Utiliza-se ao longo do texto o termo “aborto” como sinónimo do consagrado
eufemismo “interrupção voluntária da gravidez”;
o Por razões de simplicidade de leitura, preferiu-se o uso generalizado do termo
“aborto” em detrimento do mais rigoroso termo “abortamento”, visto que, em
bom rigor, “abortamento” é o acto e “aborto” é o resultado desse acto.
«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas
primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?»
Esta é a pergunta que será feita a 11 de Fevereiro de 2007 a todos os portugueses votantes.
Apesar de existir um erro fundamental na essência desta pergunta1, considero existirem dois
erros na forma da pergunta, a saber:
Existem ainda duas graves omissões por parte dos proponentes do referendo, que nunca
foram devidamente esclarecidas:
Estas omissões são muito graves: pede-se o voto dos portugueses acerca de uma questão
fulcral que, caso receba maioritariamente o voto “sim”, dará lugar a um novo quadro legal que
não está claro nem foi apresentado ao eleitorado de forma nítida e transparente. Será justo que
os portugueses que votam “sim” estejam a “assinar em branco” a futura lei do aborto que
ainda ninguém conhece?
Por outro lado, sendo esta uma questão que fractura a sociedade portuguesa, é legítimo pensar
que os contribuintes que se opõem terminantemente ao aborto livre têm o direito de contestar
o uso das suas contribuições fiscais para financiar acções que consideram eticamente ilícitas.
Os adversários do direito ao aborto ficarão certamente revoltados se as suas contribuições
1 Como explicarei adiante, a pergunta nem deveria ser colocada ou proposta para referendo, porque se trata de
algo eticamente inaceitável em qualquer sociedade que preze direitos humanos fundamentais.
Antes de principiar, e porque defendo ser demonstrável que não há licitude ética no acto de
abortar, parece-me errado que se queira referendar um direito elementar, um direito que
deveria ser transversal a qualquer sociedade humana: o direito à vida humana inocente.
Por isso, oponho-me a que se referendem matérias de elementar ética como é a da ilicitude do
aborto. Se me parece errado referendar acerca da ilicitude da escravatura, ou acerca da ilicitude
da tortura, parece-me ainda mais errado referendar acerca da ilicitude do aborto.
Independentemente de se considerar que existe crescente gravidade ética em abortar em
estágios mais avançados da gravidez (este "crescendo" não altera a gravidade objectiva do
aborto em qualquer fase da gravidez, apenas implica uma determinação maior por parte de
quem aborta, visto que existe um sinal empírico em contrário – o feto cresceu e torna-se mais
difícil ignorá-lo), abortar é sempre grave e ilícito, conquanto se entenda que a vida humana
principia na concepção, o que me parece ser consensual e reconhecido, inclusive, por quem
procura distinguir “vida humana” de “pessoa humana” como forma de tentar adiar a ilicitude
do aborto para determinadas semanas de gravidez.
Uma grande parte dos defensores do direito ao aborto tenta basear-se nesta distinção entre
“vida” e “pessoa” como forma de, outorgando o direito à vida apenas à “pessoa humana”,
deixar de fora o feto, incorrendo assim, porventura de forma inconsciente, num raciocínio
circular, partindo de uma intuição acerca da tese que se pretende demonstrar e terminando na
conclusão afirmativa da mesma:
1. Intuir ou assumir que o aborto, até que o feto reúna certas e determinadas
propriedades, deve ser eticamente lícito;
2. Sugerir propriedades psicológicas ou fisiológicas que poderão diferenciar o feto da
criança nascida (consciência, actividade cerebral organizada, vontade, etc.);
3. Atribuir essas propriedades a uma nova definição de “pessoa humana”;
4. Afirmar que o feto não é “pessoa humana” por não reunir as ditas propriedades;
5. Afirmar que apenas a “pessoa humana” assim definida tem direito à vida;
6. Afirmar que o feto, por não ser “pessoa humana”, não tem o direito à vida;
7. Afirmar que o aborto, até que o feto reúna as ditas propriedades, é eticamente lícito.
Para muitos, as palavras seguintes parecerão duras, mas espero, no decorrer deste texto, apoiar
esta suposta "dureza" com base numa sólida e coerente argumentação. Peço a compreensão do
leitor para os seguintes parágrafos deste capítulo introdutório, que deverão ser lidos na óptica
do expressar da minha opinião pessoal. Deixarei argumentação mais objectiva, ou seja, menos
pessoal e subjectiva, em favor da tese que defendo para os capítulos seguintes.
Sou da opinião de que vivemos numa época intelectualmente turva, visto que parece ser
necessário, a governantes que se preocupam apenas com promessas eleitorais e futuras vitórias
eleitorais, recorrer ao plebiscito como ferramenta de pretensa legitimação dos seus errados
objectivos legislativos.
Por outro lado, de um ponto de vista assumidamente pragmático, apesar de discordar do
referendar de princípios éticos básicos, perante o risco iminente de se liberalizar o aborto até às
dez semanas, sinto-me forçado a concordar com a necessidade urgente de se participar neste
referendo para responder "não", e tentar, mais uma vez, abrandar ou atrasar uma inegável
deterioração intelectual e ética da nossa sociedade. Face à impotência intelectual dos nossos
governantes para se darem conta da ilicitude ética do aborto livre (a prática do aborto aquém
do prazo de dez semanas não altera em nada a ilicitude do acto - qualquer prazo é artificial em
termos éticos), urge fazer uma campanha de esclarecimento que procure, em primeiro lugar,
demonstrar a ilicitude ética do aborto, e em segundo lugar, apelar de forma solidamente
argumentada ao voto "não" como obrigação cívica, visto que a abstenção, nestes momentos
decisivos, pode ser nociva e irresponsável.
Quando não se tem opinião formada, a única solução racional é formar uma opinião antes do
dia do referendo. Julgo que não votar porque não se formou uma opinião é uma posição
inaceitável e irresponsável, até porque defendo que uma certa clareza intelectual permite ver a
ilicitude do aborto sem dificuldades. Mas antes, para se obter essa necessária clareza intelectual,
há que reflectir profundamente sobre o assunto e tentar raciocinar acima dos preconceitos
socialmente impostos, que procuram hoje impor uma pseudo-moral difusa e inconsistente.
A complexidade desta matéria, que abrange áreas que vão da Filosofia, à Ética, às Ciências da
Vida, até áreas como a Sociologia ou o Direito, obriga a uma precaução adicional: antes de
votarmos, é imperativo fazer um sério “trabalho de casa”, para nos ambientarmos com os
Para uns, há uma intuição certa e gritante que os leva a encarar o aborto como um acto errado
e grave, e que os faz, inequivocamente, votar "não" em qualquer referendo que seja
permissivo, em maior ou menor grau, à prática do aborto ou ao seu enquadramento legal. Essa
intuição certa, muitas vezes não está, infelizmente, sustentada em argumentação lógica ou
científica, baseando-se apenas num "senso comum", mas que não deixa, mesmo assim, de ser
valioso por ser acertado.
Para outros, uma intuição errada, ditada por modas ideológicas e pela influência de meios de
comunicação tendenciosos e comprometidos, fá-los encarar a presente situação legal1 como
uma tirania legislativa que coloca mulheres indefesas na cadeia. Para estes, votar "sim"
significaria algo tão simplista como «proteger e libertar mulheres indefesas», e votar "não"
significaria algo tão simplista como apoiar uma pretensa tirania legislativa e machista contra as
mulheres. Trata-se de uma camada de votantes que está a ver mal a questão e que urge
esclarecer. Mais do que procurar defender, definir ou justificar a penalização de quem aborta, a
problemática do aborto deve centrar-se, antes de mais nada, na criminalização ou não do acto
de abortar, ou por outras palavras, na ilicitude (ou pretensa licitude) do acto de abortar. Outra
questão, cujo pleno esclarecimento deverá ficar para os especialistas em Direito Penal, será a de
saber em que circunstâncias poderia existir um crime sem aplicação de pena2, ou existindo
pena (o mais comum) que tipo de atenuantes são presentemente consideradas pelos Tribunais
na aplicação caso a caso da justa pena para o crime de abortar.
Não é, de todo, justo que uma adolescente que tenha abortado apenas uma vez, e nas primeiras
semanas de gravidez, e motivada pelo medo, receba um tratamento legal igual à abortadeira
experiente, que conta no seu currículo com largas dezenas de abortos praticados em várias e
diferentes fases da gravidez. Ambas cometeram o mesmo crime objectivo, mas a pena deve ser
escolhida subjectivamente, dependendo das condicionantes próprias de cada situação.
Porventura a primeira precisaria, sobretudo, de uma intervenção pedagógica que lhe explicasse
o erro de abortar e que a ajudasse a não cometê-lo de novo. Neste caso em particular e em
casos semelhantes, o processo poderia inclusive ser suspenso, evitando-se o julgamento. Sobre
isto falaremos no capítulo seguinte…
Como se pode ver, logo aqui podemos marcar uma separação de intenções por parte dos
defensores do voto “sim”: uns procurarão afirmar que o aborto é um acto errado mas que as
mulheres que o praticam não merecem ser condenadas; outros procurarão afirmar que o
aborto, dentro de um dado período temporal, não é um acto errado e que por isso, qualquer
criminalização ou penalização é desadequada. Aos primeiros, basta afirmar que a confusão da
sua posição tem a sua raiz na confusão entre os termos “crime” e “pena” no contexto do
Direito Penal. Aos segundos, importa aprofundar as raízes éticas do problema do aborto, de
De entre as várias posições nesta matéria, existirá uma quantidade considerável de votantes
"sim", que por razões emocionais que encontram muitas vezes a sua base numa atitude
anticlerical ou anti-religiosa profunda, procuram votar "sim" como forma de "destruir dogmas"
ou de "acabar com o poder da religião" no nosso país. São os perpétuos adeptos da fórmula
marxista de Progresso, que vê a religião como o "ópio do povo", que urge extinguir, e que
procura um futuro livre de religiões e de “dogmas”. São também aqueles que usam,
diariamente, a falácia do "progresso" para deduzir do progresso tecnológico de certos países
permissivos em matéria de aborto, um suposto "retrocesso" de Portugal por não se ter "ainda"1
tornado permissivo nestas matérias.
Atribui-se esta presente não permissividade da legislação portuguesa a um suposto "atraso
civilizacional", que andaria a par com outros atrasos, como o económico ou o tecnológico
(estes mais fáceis de reconhecer pela opinião pública). Assim, um tipo de atraso justificável
(técnico ou económico) serviria de explicação simplista para outros presumidos "atrasos",
como o da ausência de uma legislação permissiva face ao aborto. Fica, evidentemente, por
demonstrar de forma racional porque razão uma legislação permissiva nesta matéria será sinal
de progresso civilizacional ou social.
A este grupo, inebriado pelo furor de votar “sim” para fazer guerra “contra a religião”, urge
explicar que a defesa do "não", a defesa da ilicitude do acto de abortar, tem a sua raiz, não em
pressupostos religiosos (não tenciono usar nenhum neste texto), mas sim em elementares e
universais direitos do ser humano.
Restariam ainda uma série de votantes que, sentindo-se eticamente divididos ou indecisos nesta
matéria, procurariam durante a campanha um debate de argumentos que se pautasse pelo rigor
e pela seriedade. Foi nesse sentido que escrevi este texto, como forma de expor os meus
argumentos e de expor as razões pelas quais para mim se tornou claro que a resposta justa e
correcta ao referendo será "não".
Antes de terminar esta introdução de carácter muito pessoal, resta-me dizer mais algumas
coisas importantes. Por um lado, sou católico, e admito que o meu catolicismo (ainda bem que
assim é) seja uma forte condicionante para a minha resposta negativa ao futuro referendo. Não
é por acaso que isso sucede: incoerente, imaturo, ignorante ou irresponsável será todo e
qualquer católico, sem excepção2, que vote "sim" a uma pergunta destas3.
1 Note-se o uso persistente da palavra "ainda", como parte de uma oca retórica de inevitabilidade, que raramente
procura ser justificada racional e eticamente.
2 Faço aqui um mea culpa: numa idade em que já votava, por altura do último referendo sobre esta matéria em
1998, recordo-me de defender ideias que eram incompatíveis entre si; por um lado, defendia o catolicismo, mas
por outro, não era coerentemente contra o aborto, visto que considerava existirem “fronteiras éticas” algures
durante a gravidez. Deixo aqui esta nota, porque se algum católico ainda jovem me ler, poderá concluir por si
mesmo, alguns anos mais tarde, que por vezes basta mais alguma maturidade para nos darmos conta de que,
quando se é jovem e se fez pouca leitura e pouca reflexão, há que ter cuidado redobrado antes de votar.
Poderemos estar a ser tremendamente incoerentes nas nossas ideias e não nos darmos conta disso, apenas por
falta de experiência. As actuais “modas” ideológicas, que incluem o relativismo e o utilitarismo, podem ser
nefastas em mentes ainda não amadurecidas, e podem inclusive atrasar (ou inviabilizar) a necessária maturação
intelectual. Não obstante, nestas alturas de fractura, a tendência juvenil de “ir contra a corrente” pode ser, nalguns
casos, a tábua de salvação face a um naufrágio intelectual.
3 Se algum católico se sente indignado pelas minhas palavras, apenas posso recomendar a leitura (ou releitura) do
Catecismo da Igreja Católica, visto que se tenciona votar “sim” há noções centrais ao catolicismo que ainda não
compreenderá, o que é grave. A este respeito, consultar o site do Vaticano, onde na versão reduzida (compêndio)
do Catecismo, se pode ler, no ponto 470 (que corresponde aos pontos 2268-2283 e 2321-2326 do Catecismo): «O
Com isto, encerro a justificação para a obrigação de qualquer católico em não deixar de
cumprir a sua obrigação de votar no referendo do dia 11 de Fevereiro, votando “não”. Mas o
essencial não deve ser esquecido: a razão para votar “não” tem a sua origem, não em doutrinas
religiosas ou metafísicas, mas sim no reconhecimento do universal direito à vida de todo e
quinto mandamento proíbe como gravemente contrários à lei moral: O homicídio directo e voluntário e a
cooperação nele; O aborto directo, querido como fim ou como meio, e também a cooperação nele, crime que leva
consigo a pena de excomunhão, porque o ser humano, desde a sua concepção, deve ser, em modo absoluto,
respeitado e protegido totalmente; A eutanásia directa, que consiste em pôr fim à vida de pessoas com
deficiências, doentes ou moribundas, mediante um acto ou omissão duma acção devida; O suicídio e a cooperação
voluntária nele, enquanto ofensa grave ao justo amor de Deus, de si e do próximo: a responsabilidade pode ser
ainda agravada por causa do escândalo ou atenuada por especiais perturbações psíquicas ou temores graves.»
(sublinhado meu)
- [http://www.vatican.va/archive/compendium_ccc/documents/archive_2005_compendium-ccc_po.html].
1 O sacramento do baptismo obriga à adesão total à doutrina católica.
1 Quando falo em “Igreja Católica”, refiro-me, necessariamente, e por definição, tanto à hierarquia como aos
grupos e movimentos de leigos, mas não convém esquecer, fora da Igreja Católica, as várias minorias religiosas no
nosso país que também discordam necessariamente do aborto.
2 É precisamente por esta razão que não serão usados, ao longo deste texto, argumentos metafísicos ou religiosos.
Defendo que o dilema ético do aborto tem solução dentro de um quadro mental neutro em termos religiosos.
Pelo facto de partilhar, nesta introdução, certas opiniões individuais, isso não permite que eu seja acusado de
incoerência face aos pressupostos de que parti, uma vez que, após esta introdução, não surgirão pressupostos de
cariz religioso.
3 Veja-se o caso aberrante do movimento Catholics for a Free Choice (http://www.catholicsforchoice.org), que em
Será a resposta a dar a este referendo algo de subjectivo, algo de pessoal, algo a relegar para as
"consciências" de cada um?
O relativismo intelectual moderno, que faz com que se use cada vez menos (e a medo)
conceitos como o de "verdade" ou "falsidade", "certo" ou "errado", "lícito" ou "ilícito",
procura sempre varrer os problemas complexos para debaixo do tapete da subjectividade das
consciências. No estado actual do debate sobre o aborto, isto sucede frequentemente em
ambos os lados da discussão: é corrente o uso da expressão “matéria de consciência” tanto
pelos defensores do direito ao aborto como pelos seus adversários.
Mas a questão ética do aborto, certamente complexa na sua argumentação, possui apenas três
tipos de resposta:
A resposta a) é a resposta ética e coerente com a defesa do direito à vida do ser humano desde
o princípio biológico da vida humana, ou seja, desde a concepção2.
A resposta b), aqui dada como possibilidade teórica, será defendida por muito poucos, visto
que seria complicado explicar como poderia ser lícito matar alguém um minuto antes do
nascimento, mas ilícito fazê-lo um minuto depois, a não ser que os adeptos da resposta b)
também não vejam ilicitude no homicídio de crianças nascidas, vulgo “infanticídio”.
Resta, então, a opção entre a resposta a) e a resposta c), sendo que pretendo demonstrar que a
última resposta é incoerente, porque não consegue explicar de modo satisfatório, em termos
éticos e científicos, a existência de uma barreira ética de licitude/ilicitude num qualquer
momento da gravidez.
Acima de tudo, deveria ser consensual de que esta não é uma questão de consciência pessoal.
Em questões destas não há a “verdade de cada um”, uma expressão tipicamente relativista,
muito usada hoje em dia. A pergunta do referendo está mal formulada, por várias razões3, mas
é possível vê-la como uma opção nítida entre o reconhecimento do direito ao aborto (resposta
1 Tais excepções médicas são excluídas deste raciocínio, por várias razões: a) não é rigoroso usar o termo “aborto”
nesses casos, porque a eventual morte do filho é acidental e nunca desejada, nem como fim nem como meio; b)
não há situações médicas nas quais a morte do filho seja a única forma de salvar a vida da mãe – se a morte do
filho ocorre como consequência indesejada e inevitável de uma intervenção cirúrgica para salvar a mãe, isso não é
“aborto” em sentido ético, é apenas “aborto” no sentido de “morte natural pré-natal”.
2 A expressão “princípio biológico da vida humana” é pleonástica: uso-a porque, infelizmente, muitos fazem
interpretações erradas da expressão “vida humana”, que no fundo é científica: a vida de um ser da espécie Homo
Sapiens.
3 Consultar, no capítulo A.6, as razões dos magistrados vencidos no Acórdão 617/06 do Tribunal Constitucional.
Para mais, apenas uma grave distorção do que é o sufrágio democrático levaria alguém a supor
que é o sentido do voto popular que confere licitude ou ilicitude em termos absolutos à
proposta legislativa em discussão, que trata de uma matéria eminentemente ética, de universais
direitos humanos. A aprovação popular não tem o poder de conferir licitude absoluta a todos
os actos e em todas as situações da vida em sociedade. O voto popular pode ajudar o legislador
a conferir licitude legal a determinados actos, mas se essa licitude legal não está ancorada numa
licitude ética (o caso do presumido direito ao aborto por opção da mulher), então a licitude
legal não passa de uma farsa, não passa de um castelo erigido sobre nuvens…
1 O filósofo australiano Peter Singer, e apenas para sugerir um exemplo, é um pensador contemporâneo coerente
nas suas teses a favor do direito ao aborto. Ou seja, partindo das premissas por ele estabelecidas a priori, Peter
Singer chega coerentemente à sua conclusão acerca do direito ao aborto. Isso não permite que se deduza que as
conclusões de Peter Singer estão certas, ou que o aborto é eticamente lícito, visto que há que questionar as suas
premissas, há que questionar a validade dos seus pontos de partida e a validade da sua visão ética do problema.
2 Em bom rigor, quem atribui ao feto o direito à vida vê-se forçado, por coerência, a encarar o aborto como um
tipo particular de homicídio. Contudo, na frase acima, o termo “homicídio” é, obviamente, usado no sentido de
“homicídio de seres humanos já nascidos”.
Penso ser consensual afirmar que a Ética1, como ciência filosófica que estuda a conduta
humana, está em posição de superioridade face ao Direito, no que diz respeito às vertentes do
Direito que incidem especificamente sobre a conduta do indivíduo humano em sociedade. É
em princípios éticos que o Direito se deve apoiar quando tenta legislar acerca da conduta dos
seres humanos em sociedade.
Antes de passar a uma curta incursão pelas implicações jurídicas em jogo no referendo que se
avizinha, gostaria de despender algum tempo com importantes considerações terminológicas.
Ao longo de todo este texto, surgirá frequentemente a expressão “licitude ética”, ou suas
derivadas. Por necessidade de coerência estrutural, procurei evitar o uso de expressões diversas
para os mesmos conceitos, e por isso, procurei usar a expressão “licitude ética” como síntese
daquilo que se pretende aferir face à situação concreta do aborto.
Contudo, se na Ética, de forma geral, se pode trabalhar em termos de “licitude” ou “ilicitude”
de determinada conduta humana, certamente sem dispensar gradientes de gravidade quando se
discutem ilicitudes éticas, por outro lado, em termos jurídicos, falar especificamente em
“ilicitude” pode gerar equívocos infelizes, que urge agora dissipar.
Pela necessidade de determinar e materializar na legislação a gravidade de um dado acto
eticamente ilícito, o Direito faz a distinção entre “criminalidade” e “ilicitude”. Assim, em
Direito, há condutas ilícitas que pela sua menor gravidade não são crimes (como por exemplo,
estacionar uma viatura indevidamente, ou não cumprir a tempo com as obrigações fiscais),
enquanto que qualquer crime é, por definição, uma conduta ilícita aos olhos da Lei. Ou seja,
em questões jurídicas não há equivalência entre “ilicitude” e “crime”, há implicação deste sobre
aquela.
Assim, quando ao longo do texto surgir a expressão “ilicitude ética” decorrente do acto de
abortar, que fique claro que estou a usá-la no campo mais geral da Ética, e que por isso, uma
“ilicitude ética” pode muito bem corresponder a um crime na Lei. Aliás, pretendo demonstrar
que o acto eticamente ilícito de abortar deve estar materializado como crime na legislação.
O texto constitucional define, claramente, que o direito está subjacente à “vida humana” e não
a uma qualquer subjectiva definição de “pessoa humana”. Ou seja, em termos de protecção
legal da vida humana nas suas várias fases de desenvolvimento, a nossa Constituição parece
estar bem formulada. Poderíamos sugerir, a quem defende a resposta “sim” à pergunta do
referendo, que exigissem, por coerência, a revisão da Constituição neste artigo em concreto, de
forma a incluir uma excepção para a vida humana intra-uterina com menos de dez semanas de
vida. Não obstante a aparência de inconstitucionalidade da legalização do aborto livre até às
dez semanas, o Tribunal Constitucional aprovou, a 15 de Novembro de 2006, a pergunta a ser
1 Independentemente da visão que cada um terá acerca da Ética, seja ela uma visão de matriz teísta ou ateia,
tradicionalista ou pragmática/utilitarista, etc., importa reconhecer que a Ética está na base do Direito, no que diz
respeito à legislação das regras para a conduta individual e colectiva em sociedade.
«Artigo 66.º
(Começo da personalidade)
1. A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida.
2. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.»1
Perante este artigo, que define que a personalidade jurídica se adquire apenas com o
nascimento completo e com vida, poderemos entender porque razão alguns argumentam que o
Art.º 24.º da nossa Constituição não está a ser violado com a introdução do aborto livre a
pedido. Quem optar por defender o aborto com base no Art.º 66.º estará a entrar por um
caminho espinhoso, uma vez que, baseando a sua visão ética do aborto na definição de
começo de personalidade jurídica (ou seja, colocando uma definição jurídica à frente da
ponderação ética), teria que achar legítima a prática do aborto nas imediatas horas antes do
nascimento. Como se vê, é uma posição eticamente insustentável.
Mas será que esta fraca razão consta das razões técnicas usadas na aprovação da pergunta do
referendo por parte de sete dos juízes do Tribunal Constitucional? Será que a nossa
Constituição não protege de facto a vida humana intra-uterina, estando os detractores do
direito ao aborto a usar abusivamente o seu Art.º 24.º?
Tudo indica que isto não é verdade, porque o Código Penal já protege a vida humana intra-
uterina, através de legislação que foi certamente considerada constitucional:
«CAPÍTULO II
Dos crimes contra a vida intra-uterina
Artigo 140.º
Aborto
1 - Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2 - Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão até 3 anos.
3 - A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é
punida com pena de prisão até 3 anos.»2
Perante este Art.º 140.º, torna-se evidente que a Lei protege a vida intra-uterina, e ao fazê-lo,
não estabelece quaisquer prazos dentro do período intra-uterino. Poderíamos ainda tentar
objectar que este artigo 24.º visa proteger o desejo da mulher em permanecer grávida, sendo
indiferente à protecção da vida intra-uterina, mas o título deste capítulo deixa bem claro que se
trata de definir os “crimes contra a vida intra-uterina”, e não contra uma vaga auto-
determinação reprodutiva da mulher. Aliás, é todo um juízo protector à vida humana intra-
uterina que subjaz à redacção deste artigo e dos subsequentes Art.ºs 141 (“Aborto agravado”) e
142 (“Aborto não punível”), se bem que relativamente a este último, essa protecção se
1 Ver http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=61&artigo_id=&nid=775&pagina=4&tabela=leis
2 Ver http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=121&artigo_id=&nid=109&pagina=7&tabela=leis
«5. (…) Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, numa decisão de 8 de Julho de 2004, em que
se pronunciou sobre um caso de negligência médica num aborto terapêutico, teceu, entre outras, as seguintes
considerações: “O Tribunal está convencido de que não é desejável nem mesmo possível actualmente responder em
abstracto à questão de saber se o nascituro é uma pessoa no sentido do artigo 2º da Convenção”»
Encontramos, nesta citação de uma posição infeliz do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, a clássica distinção entre “vida humana” e “pessoa humana” usada para tentar
legitimar o aborto, e sobre a qual falaremos adiante. Mas, como poderemos ver a seguir, os
juízes do Tribunal Constitucional que votaram a favor da constitucionalidade da pergunta
procuraram ainda outra protecção institucional: a protecção da União Europeia na tentativa de
suportar o seu sentido de voto:
«Por outro lado, o Parlamento Europeu, na sequência do Relatório de Anne E. M. Van Lancker de 6 de
Junho de 2002, aprovou uma resolução sobre a política a seguir nos países integrantes da União Europeia
quanto a “direitos em matéria de saúde sexual e reprodutiva” (Resolução do Parlamento Europeu sobre
Direitos em Matéria de Saúde Sexual e Reprodutiva – JO C Nº 271 E, de 12 de Novembro de 2003).
Nessa resolução recomenda-se aos governos dos Estados-Membros e dos países candidatos à adesão “que
pugnem pela implementação de uma política de saúde e social que permita uma diminuição do recurso ao aborto,
nomeadamente graças à disponibilização de serviços de planeamento familiar e de aconselhamento e à prestação
de assistência e apoio financeiro a grávidas em dificuldade, e considerem o aborto de risco como tema
fundamental de saúde pública”. Mas recomenda-se ainda “que a interrupção voluntária da gravidez seja legal,
segura e universalmente acessível, a fim de salvaguardar a saúde reprodutiva e os direitos das mulheres”,
exortando-se “os governos dos Estados-Membros e dos países candidatos à adesão a absterem-se, em quaisquer
circunstâncias, de agir judicialmente contra mulheres que tenham feito abortos ilegais”.
Assume-se, assim, no âmbito do Parlamento Europeu, uma perspectiva preventiva e de saúde pública quanto ao
aborto, com distanciamento das soluções punitivas.» (sublinhado meu)
«7. (…) De todo o modo, tanto do lado das posições mais favoráveis à despenalização como do lado contrário se
verifica um movimento convergente para aproximar a discussão sobre o aborto de perspectivas não absolutas, que
reconhecem a existência de conflito, e para utilizar argumentos próximos dos interesses imediatamente
perceptíveis por cada pessoa, que se reflectem na sua vida. Por conseguinte, a discussão sobre a despenalização da
interrupção voluntária da gravidez dentro de certo prazo e em certas condições emergiu como questão diversa da
pura afirmação, em abstracto, de valores como a vida ou a liberdade (valores absolutos como lhes chama
LAWRENCE TRIBE, em The Clash of Absolutes, 1990, para concluir que “muito do que cada um
acredita sobre todos estes assuntos diz mais sobre o que somos, de onde provimos do que sobre a nossa visão ou
sobre a última verdade” (p. 40).» (sublinhado meu)
Os signatários reconhecem ainda a influência na sua decisão, que já era notória mesmo sem tal
ser reconhecido, das modernas teses liberais e utilitaristas em matéria de Ética, ao invocarem o
legado do norte-americano John Rawls (1921-2002), o pai do “liberalismo político” moderno,
uma tese que pretende “ultrapassar” as evidentes dificuldades que a ética deontológica clássica
coloca à moderna ética utilitarista, procurando “sobrepô-las”, de forma a obter uma espécie de
“máximo denominador comum” entre uma ética deontológica e uma outra ética “razoável”
(ou seja, a sua maior adversária, a ética “utilitarista”):
«8. A reflexão sobre valores numa sociedade democrática, pluralista e de matriz liberal quanto aos direitos
fundamentais tem sido objecto privilegiado do pensamento filosófico contemporâneo. Tal reflexão exprime-se na
ideia de um “consenso de sobreposição” (overlapping consensus) desenvolvida por JOHN RAWLS, em
Political Liberalism, 1993, p. 133 e ss.. O autor concebe a possibilidade de um consenso sobre valores
políticos, como o respeito mútuo ou a liberdade, sem o sacrifício de valores mais abrangentes e de visões
particulares, mas a partir da diversidade dos valores. Por exemplo, diferentes concepções religiosas podem
confluir, sem abandonar a respectiva matriz, num núcleo de valores estritamente políticos.
Ora, independentemente de se aceitarem as teses resultantes da referida orientação, não poderá deixar de se
registar que a discussão sobre valores induz a reconhecer que a possibilidade de um Estado de Direito
democrático os impor é problemática. Uma tal imposição não se legitima na mera evidência intuída pela
Como era previsível, os signatários do acórdão demonstram pender para uma visão utilitarista
e político-liberal da Ética. Claramente, evitam assumir uma posição deontológica clássica, que
no entanto está na raiz do Direito das sociedades ocidentais modernas. Aquilo que deveria ser
visto como uma crise generalizada no domínio da Ética, ou seja, a crescente tendência para a
defesa de correntes utilitaristas, é vista como boa porque “moderna”, o que se nota pelo uso da
expressão “investigação jurídico-filosófica”, que pretende claramente apontar o utilitarismo e o
liberalismo político de pensadores como Rawls como sendo pensamento de vanguarda, como
sendo o caminho a seguir, deixando-se em posição frágil e precária a deontologia clássica, e
advogando que «a possibilidade de um Estado de Direito democrático os impor [os direitos] é
problemática».
Esta posição dos signatários é a clara confirmação de que estamos em plena crise cultural,
aquilo que se convencionou chamar de “crise de valores”. Como é possível que tal crise não
surja em toda a sociedade, quando é o próprio Tribunal Constitucional, cuja obrigação
suprema está em proteger a Constituição, que se demite da protecção dos valores fundamentais
da nossa sociedade, por considerar que a sua “imposição” (não se deveria antes falar em
“afirmação”?) é “problemática”? Se a afirmação inequívoca de valores fundamentais (o valor
da vida, por exemplo) é problemática para o Tribunal Constitucional, quem restará para os
defender num Estado de Direito?
O navio da nossa sociedade, não só a portuguesa, mas também a mundial, vai à deriva:
ninguém está no leme…
Mas prossigamos: a dada altura do texto, já no capítulo III relativo à fundamentação, os
signatários referem três questões importantes, que poderiam impedir a afirmação da
constitucionalidade do referendo:
Evidentemente, em relação à terceira e última questão, se o legislador não tivesse essa margem
de liberdade, então não faria sentido realizar o referendo com esta pergunta, visto que a
resposta afirmativa iria dar ilicitamente a necessária margem de liberdade ao legislador para
descriminalizar e despenalizar o aborto até às dez semanas1. Interessa ver com pormenor a
argumentação acerca desta última questão:
Este trecho não pode ser aceite e não deve ser lido de ânimo leve. Por um lado, encontramos
uma incoerência na expressão atrás sublinhada: o limite constitucional que retira ao legislador a
“margem de liberdade de decisão quanto ao âmbito da criminalização, da justificação” do
aborto é o próprio Art.º 24.º, que especifica de forma inegável a inviolabilidade do aborto e a
necessária inconstitucionalidade de declarar tal acto como sendo lícito ou não criminalizável.
Outra questão diferente é a da penalização do crime de aborto. Aqui, parece-me nítido que tal
abordagem não tem que ser, necessariamente, inconstitucional, porque o Art.º 24.º seria
respeitado pela definição jurídica do acto de aborto como “crime”, ou seja, conduta ilícita
grave aos olhos da lei.
Os signatários afirmam ainda que o que está em jogo neste referendo não é a definição de
novos direitos que poderiam ser vistos como inconstitucionais (o direito a abortar), mas antes
a “ponderação sobre um conflito de direitos e valores” em sede de Direito Penal. A frase está
engenhosamente montada, mas não passa de um sofisma: com a resposta afirmativa à
pergunta, surgirá uma lei que, à parte de detalhes formais, permitirá à mulher abortar por
opção até às dez semanas, configurando na prática um real e novo direito a abortar, mesmo
que, em teoria, esse direito não seja o objecto directo do referendo. No entanto, esse novo
“direito” surge como consequência óbvia em caso de vitória do “sim”, pelo que recorrer a este
tipo de argumentação é inaceitável. Para mais, permanecem sempre por explicar os inusitados e
singulares “critérios de ponderação de direitos e valores” que estão na base da argumentação
dos signatários, que concordam com a constitucionalidade da pergunta que, se respondida
positivamente, materializa, nas primeiras dez semanas, uma supremacia dos direitos da mulher
sobre a protecção constitucional de uma vida humana.
1 Ver http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/tpb_MA_2513.htm
«24. De todo o modo, a referência a estabelecimento de saúde legalmente autorizado não predispõe para uma
resposta afirmativa, nem transmite a ideia de que seria absurda a penalização por os estabelecimentos de saúde
já estarem legalmente autorizados a realizar tais intervenções. Na realidade, tal condição apenas exclui da
despenalização o aborto realizado por instituição (ou pessoa) que não reúna as condições de um estabelecimento
de saúde legalmente autorizado.
A não referência a tal condição é que poderia modificar o objecto da pergunta, transfigurando-a numa outra, em
que estaria em causa uma “liberalização” da interrupção voluntária da gravidez realizada em quaisquer
condições sem exigência de protecção da saúde da mulher grávida (sendo realizada por qualquer pessoa, sem a
formação profissional e ética que é exigida a quem exerça funções e possa vir a praticar tal intervenção num
estabelecimento de saúde legalmente autorizado).»
Esta expressão baseia a sua validade numa interpretação do conceito de “liberalização” como
sendo acesso livre e não regulada ao aborto. Argumenta-se que o facto de se referir que o
aborto será praticado em estabelecimentos de saúde legalmente autorizados constitui uma
prova de que tal prática será regulamentada, e portanto, não será verdadeiramente
“liberalizada”. Mas, se por um lado, é certo que a prática do aborto efectuada em
estabelecimento de saúde autorizado é um impedimento ao aborto clandestino, a verdade é que
o aborto “por opção da mulher” até às dez semanas passará a ser um direito, com a única
exigência de a mulher procurar fazê-lo num local autorizado. Haverá acesso livre ao aborto, do
mesmo modo que haveria acesso livre às ditas “drogas duras”, mesmo que as ditas fossem
disponibilizadas apenas em farmácias “legalmente autorizadas para o efeito”!
Como negar, então, que a resposta “sim” a esta pergunta configura uma situação de
liberalização do aborto até às dez semanas? Poderá não ser uma liberalização “total” (no
sentido de ser totalmente desregulamentada), mas é todavia uma clara liberalização!
Para além da liberalização do acesso ao aborto a pedido até às dez semanas, há ainda uma
espantosa incoerência que fica patente com esta questão: se votarmos “sim” no referendo, o
que passará a fazer do acto de aborto voluntário um crime será apenas o local onde ele for
praticado e a credencial do cirurgião!
Já nem sequer estamos a falar numa lei do aborto baseada numa ética utilitarista, no desejo da
mulher em abortar, porque se assim fosse, então o aborto não poderia ser criminalizado
mesmo que fosse praticado clandestinamente! Com a vitória do “sim”, o que fará do aborto
voluntário um crime aos olhos da lei será a sua prática fora dos hospitais ou clínicas
autorizados para o efeito, ou se praticado depois das dez semanas de gravidez! O crime não
surgirá do acto de matar uma pessoa em si mesmo, ou da violação do direito à vida dessa
pessoa, mas surgirá da credencial do local, da credencial do cirurgião e da idade do feto.
«Poderia objectar-se que a pergunta não seria clara, objectiva e precisa porque seria possível que os eleitores
entendessem que se encontravam confrontados com uma opção entre penalização absoluta e despenalização e não
com uma escolha entre a solução actual (que não corresponde a uma penalização absoluta) e uma
despenalização até às dez semanas de gravidez. Nesse caso, estaria em causa uma opção entre a incriminação
pura e simples e a despenalização proposta.» (sublinhado meu)
Dou razão aos signatários neste ponto em concreto: a opção entre a incriminação pura (quadro
legal anterior a 1984) e a inserção de circunstâncias de despenalização já foi tomada em 1984!
1 A pergunta não é clara nem objectiva, mas abdico de o criticar aqui, por uma questão de concisão.
«29. Começando por analisar a resposta afirmativa, coloca-se o problema de saber se a despenalização referida
na pergunta viola a protecção consagrada no artigo 24º, nº 1, da Constituição, segundo o qual a vida humana é
inviolável.
No plano da discussão jurídico-constitucional, a tese a favor da inconstitucionalidade assume mais do que uma
configuração. Segundo uma configuração mais radical, decorre da protecção da inviolabilidade da vida humana
que todas as suas fases devem ser protegidas de igual modo, existindo verdadeiramente um direito subjectivo à
vida de que o feto seria titular. O pressuposto da essencial igualdade entre todas as fases da vida levaria a
considerar que uma despenalização da interrupção voluntária da gravidez implica a violabilidade da vida
humana através de um tratamento do feto diverso do que se concede à pessoa já nascida.
Esta apresentação da tese da inconstitucionalidade é, no entanto, rejeitável por várias considerações.
Da inviolabilidade da vida humana como fórmula de tutela jurídica não deriva, desde logo, que a protecção
contra agressões postule um direito subjectivo do feto ou que não seja de distinguir um direito subjectivo à vida de
uma protecção objectiva da vida intra-uterina, como resulta da jurisprudência constitucional portuguesa e de
outros países europeus. O facto de o feto ser tutelado em nome da dignidade da vida humana não significa que
haja título idêntico ao reconhecido a partir do nascimento.»
Na verdade, constata-se que na generalidade dos sistemas jurídicos o feto não é considerado uma pessoa titular
de direitos (veja-se a distinção entre “ser humano” e “pessoa humana” constante da Convenção de Oviedo do
Conselho da Europa – Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano
face às Aplicações da Biologia e da Medicina, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da
República nº 1/2001 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 2/2002 – cf. D.R., I Série A,
de 3 de Janeiro de 2001). Esta perspectiva insere-se num contexto histórico, cultural e ético que recolhe
informação da Ciência mas não extrai dela, por mera dedução lógica, o conceito de pessoa. Os dados resultantes
da observação dos processos naturais relativos a funções vitais não determinam, como condição necessária e
suficiente, as valorações próprias do Direito.
Por exemplo, os critérios sobre o início das funções cerebrais ou da actividade cerebral superior (cuja
determinação não é, aliás, indiscutível) não dão, em si mesmos, solução aos conflitos de valores.» (sublinhado
meu – note-se o uso do adjectivo “radical”)
Por outro lado, nem a inviolabilidade da vida humana nem sequer a necessidade de protecção da vida intra-
uterina impõem especificamente uma tutela penal idêntica em todas as fases da vida, tal como concluiu o
Acórdão nº 288/98. A própria história do Direito Penal revela-o, ao ter feito quase sempre a distinção entre
homicídio e aborto (cf. GLANVILLE WILLIAMS, The Sanctity of Life and Criminal Law, 1957, e
para a história do Direito Penal português, RUI PEREIRA, O crime de aborto e a reforma penal, 1995).
Além disso, entre a definição do princípio da inviolabilidade da vida humana e a intervenção penal não há uma
linha recta ou uma relação de necessidade lógica, nomeadamente pela interferência de perspectivas de exclusão da
ilicitude, de desculpa ou ainda de afastamento da responsabilidade devido à “necessidade da pena”, cuja
relevância varia conforme se trate da vida intra-uterina ou de pessoa já nascida.»
Este ponto é inegável: é plenamente justificável a existência de molduras penais diferentes para
os crimes de homicídio e para os crimes de aborto. Não poderia estar mais de acordo, e as
razões para a existência histórica dessa diferenciação do tratamento penal verifica-se, não pela
criminalidade objectiva do acto (que é igual no caso de aborto e no caso de homicídio – morte
voluntária e deliberada de um ser humano), mas sim pelas subjectivas circunstâncias que
subjazem a cada caso: a mulher que aborta ou decide abortar comete tal acto, normalmente,
em circunstâncias particulares que são altamente desculpabilizantes, que obrigam forçosamente
a um tratamento penal diferenciado face ao crime de homicídio.
Não é isso que está em questão!
Este argumento pela diferenciação penal (que é algo justo e inegável) surge metido à força
numa argumentação para a descriminalização do aborto a pedido até às dez semanas. O que
provoca a inconstitucionalidade da resposta afirmativa não é a questão da moldura penal, é a
questão da definição criminal, de a conduta de abortar ser vista ou não como uma conduta
ilícita! Se vencer a resposta afirmativa, o acto de abortar voluntariamente, até às dez semanas,
deixa de ser crime, deixa de ser ilícito. Haveria uma miríade de soluções despenalizantes que
poderiam manter a criminalidade objectiva do aborto. Contudo, o que está em jogo neste
referendo é muito mais do que apenas despenalizar. Tenho a certeza de que os senhores
signatários deste acórdão sabem, bem melhor do que eu, a diferença entre “crime” e “pena”, o
que torna esta defesa da constitucionalidade da pergunta numa situação confrangedora para os
signatários.
Segue-se um argumento clássico e recorrente: apelar à remota “vontade dos constituintes”:
«30. Note-se que uma linha de argumentação a favor da inconstitucionalidade que nivele a vida em todos os
seus estádios poderia levar, no limite, a considerar inconstitucional a solução do actual Código Penal, que admite
a não punibilidade de certas situações de interrupção voluntária da gravidez, segundo uma lógica de ponderação
de valores baseada no método das indicações. De acordo com tal perspectiva poderia ser, na verdade,
inconstitucional qualquer uma das respostas (o sim e o não), porque a manutenção da actual situação legislativa
já conduzirá a uma sub-protecção da vida intra-uterina.
Mas, em suma, não poderá aceitar-se esta perspectiva não só porque ela não decorre do artigo 24º, nº 1, da
Constituição, mas também por partir de pressupostos inaceitáveis, que levariam, em última análise, a negar a
relevância de uma específica ponderação de valores em matéria de interrupção voluntária da gravidez
relativamente ao crime de homicídio.
Ora, a negação da possibilidade de uma específica ponderação de valores na interrupção voluntária da gravidez
levaria, em total coerência, a soluções inconstitucionais como seria, por exemplo, a rejeição de uma causa de
exclusão da ilicitude ou de não punibilidade no chamado aborto terapêutico, impondo à mulher grávida, mesmo
que não fosse essa a sua vontade, uma grave lesão do corpo ou da saúde ou o sacrifício da própria vida.»
Usando simples argumentação ética, ou seja, considerando que não é ético dar mais peso aos
projectos da mãe, em detrimento do direito à vida do filho, é possível concluir que a actual lei
não protege adequadamente a vida humana intra-uterina. Adiante, falarei sobre a lei actual,
pelo que não faz sentido alongar-me sobre ela aqui.
Contudo, há uma nítida diferença entre a actual lei, por muito inadequada e eticamente frágil
que seja, e as consequências da resposta afirmativa à pergunta do referendo: qualquer pessoa
pode ler o título do actual Art.º 142.º, “Interrupção da gravidez não punível”. O que está em
jogo neste referendo é passarmos a prestar à mulher que quer abortar o necessário apoio
médico, a legitimação legal. O aborto a pedido passa a ser um direito reprodutivo, uma vez que
o Estado o afirma categoricamente, ao colocar na pergunta a expressão “em estabelecimento
de saúde autorizado”. O Estado vai autorizar certos e determinados estabelecimentos de saúde
a efectuar abortos a pedido da mulher até às dez semanas! Esta é a enorme e abissal diferença
entre a resposta “sim” à pergunta e a actual situação legal do aborto. Não estamos apenas a
falar em aumentar o número de circunstâncias não puníveis, estamos a criar um período
temporal no qual o aborto deixa de ser crime. Evidentemente, deixando de ser crime, deixa de
ser punido, mas a verdade é que deixa de ser crime.
A expressão final do trecho acima citado é totalmente enganadora: os senhores signatários
saberão certamente que há uma enorme diferença entre “exclusão de ilicitude” (que defendo
ser inconstitucional) e “não punibilidade” (que pode ser constitucional). Juntam ambos os
1. Não há nenhuma situação médica que obrigue a matar o feto para salvar a mãe: trata-se
de um “mito moderno”; podemos mencionar determinados casos particulares como o
da gravidez ectópica ou o do cancro do útero, mas mesmo nestes casos extremos, não
é correcto usar uma expressão enganadora como a de “aborto terapêutico”, visto que a
morte de um embrião ou feto nestas circunstâncias em particular é uma consequência
indesejada e inevitável (ou seja, não resulta de um pedido ou vontade expressa da mãe
ou do médico) de uma intervenção cirúrgica que visa evitar uma hemorragia grave nas
trompas (caso da gravidez ectópica), a remoção de um órgão destruído pelo cancro, ou
o alastramento de células cancerígenas para o resto do organismo da mãe;
2. O incorrectamente chamado “aborto terapêutico”, ou seja, a morte indesejada, não
provocada e inevitável de um ser humano por nascer, não pode ter o mesmo
tratamento ético que o aborto a pedido: se a intervenção cirúrgica for efectuada com os
necessários cuidados éticos1, o aborto que decorre dessa intervenção não difere, em
termos éticos, do “aborto natural”, da morte de um ser humano por nascer que
ocorreu por causas naturais e inimputáveis a uma determinada pessoa.
Contra o argumento de que o prazo de dez semanas materializa uma inegável desprotecção da
vida humana intra-uterina com idade inferior a esse prazo, os signatários afirmam:
«O Acórdão nº 288/98 respondeu directamente a essa argumentação, não a aceitando e sustentando que o
método dos prazos, tal como surge na pergunta, realiza uma harmonização ou concordância prática entre os
valores conflituantes, pois que tal harmonização ou concordância prática «se faz entre bens jurídicos, implicando
normalmente que, em cada caso, haja um interesse que acaba por prevalecer e outro por ser sacrificado. Quer isto
dizer que, sempre dentro da perspectiva que agora se explicita, o legislador não poderia estabelecer, por exemplo,
que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade da mulher era hierarquicamente superior ao bem jurídico
“vida humana intra-uterina” e, consequentemente, reconhecer um genérico direito a abortar, independentemente
de quaisquer prazos ou indicações; mas, em contrapartida, já pode determinar que, para harmonizar ambos os
interesses, se terão em conta prazos e circunstâncias, ficando a interrupção voluntária da gravidez dependente
apenas da opção da mulher nas primeiras dez semanas, condicionada a certas indicações em fases subsequentes
e, em princípio, proibida a partir do último estádio de desenvolvimento do feto.» (sublinhado meu)
Leia-se este trecho com cuidado: os signatários afirmam explicitamente que não se pode dar
mais peso ao “direito ao livre desenvolvimento da personalidade da mulher”, em detrimento
do bem jurídico “vida humana intra-uterina”. Ainda bem!
Mas, se os signatários partilham desta visão correcta, então como não se dão conta da
incoerência e insensatez do resto do trecho? Como não se ficar chocado com a expressão
“harmonizar ambos os interesses”? Harmonizar? Como é possível que, acerca de matar
voluntariamente uma vida humana com menos de dez semanas, se use na mesma frase o verbo
“harmonizar”?
Justificar o injustificável é espantoso, mas os signatários dão-nos aqui um paradigmático
exemplo de excelência na arte milenar de sofismar. É caso para recordarmos a célebre frase de
George Orwell (1903-1950), «Sometimes the first duty of intelligent men is the restatement of the obvious».
Perante a arte sofística dos respeitáveis signatários deste acórdão, torna-se quase uma
obrigação cívica apontar os erros desta argumentação erigida em defesa do indefensável.
«(…) E não se trata de admitir que uma “privacy”, como direito constitucional a abortar livremente, prevaleça
sobre a vida do feto, mas antes reconhecer que, para efeitos de punição, num tempo delimitado, a liberdade de
opção da mulher possa impedir a intervenção do Direito Penal. (…)»
A linguagem complexa mascara melhor a falsidade: trocado por miúdos, a resposta afirmativa
no referendo permitirá ou não que qualquer mulher aborte livremente até às dez semanas por
sua simples e manifesta vontade? É ou não verdade que, até às dez semanas, a mulher exerce
claramente um direito a abortar livremente, uma vez que não se lhe exige nada a não ser que
aborte “em estabelecimento de saúde autorizado”? É ou não verdade que o seu filho, com
menos de dez semanas de vida, perderá a sua vida graças a este novo “direito” a abortar
livremente, que prevalecerá claramente sobre a vida daquele?
«Estaremos ante uma situação em que tem todo o sentido afirmar, como TRIBE, que “numa democracia, votar
e persuadir é tudo o que temos. Nem sequer a Constituição está para além de uma revisão. E desde que nós
tenhamos de nos persuadir uns aos outros mesmo acerca de que direitos a Constituição deve colocar fora do
alcance do voto da maioria, nada, nem a vida nem a liberdade, pode ser olhada como imune à política com letras
grandes” (The Clash of Absolutes, ob.cit., p. 240).» (sublinhado meu)
Deixo o leitor com esta citação final, pesada como chumbo: «Nada, nem a vida nem a
liberdade, pode ser olhada como imune à política com letras grandes». É caso para
perguntar: para que serve então a Justiça? Para que serve então o texto constitucional, se nem
sequer matérias fundamentais e universais como o direito à vida e o direito à liberdade estão a
salvo do destruidor zelo anti-ético dos “modernos” legisladores?
Por razões de economia de espaço, optei por não inserir no texto deste capítulo os votos de
vencido dos magistrados que se opuseram à constitucionalidade da pergunta do referendo.
Nunca é demais recomendar vivamente que se leia a argumentação sólida e coerente,
largamente consensual em todos os seis votos de vencido, que está tecida em cada um destes
votos. Os respectivos textos encontram-se no Anexo A.
Acima de tudo, ninguém deve recorrer ao resultado desta votação de sete contra seis para
defender que a constitucionalidade da pergunta e do referendo é matéria “óbvia” ou “acima de
discussão”, visto que a votação pendeu de modo tangencial para a constitucionalidade, com
vantagem de apenas um só voto. Não será mais razoável admitir que o número de magistrados
ideologicamente alinhados a favor do direito ao aborto venceu por um o número de
magistrados que procuraram desempenhar o seu papel de forma profissional, garantindo a
Constituição sem sucumbir a alinhamentos ideológicos?
Em suma, contra a decisão patente no acórdão que foi analisado, pode-se argumentar:
Para além de tudo o que aqui foi dito, não faz qualquer sentido procurar justificações éticas
para o aborto na legislação, seja a nossa seja a de outros países. Deverá suceder exactamente o
oposto. O aborto não se torna eticamente lícito pelo facto de se tornar legal, ou pelo facto de
outros estados o terem tornado legal. Ou ainda pelo facto de organizações que deveriam
proteger o fundamental direito à vida terem abdicado de o fazer, como o Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem1 (“ECHR”, European Court of Human Rights), a Organização Mundial
de Saúde2 (“WHO”, World Health Organization), a Associação Médica Mundial3 (“WMA”, World
Medical Association) ou o Parlamento Europeu4.
Devemos ser capazes de encontrar leis justas na legislação sempre que estas se assentem em
princípios éticos que sejam, eles mesmos, justos. Mas é bem sabido que há leis imperfeitas, ou
mesmo erradas, que o são por possuírem graves erros éticos na sua base. Devemos ter sempre
presente que a legislação, pelo menos no que diz respeito a questões humanas fundamentais,
deve ser erigida sobre uma sólida estrutura ética, sob pena de se tornar numa legislação
1 http://www.echr.coe.int
2 http://www.who.int
3 http://www.wma.net
4 http://www.europarl.europa.eu/
«Artigo 142.º
Interrupção da gravidez não punível
1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou
oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da
medicina:
a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica
da mulher grávida;
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da
mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita, e
for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges
artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16
semanas.
2 - A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e
assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.
3 - O consentimento é prestado:
a) Em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência mínima de 3 dias
relativamente à data da intervenção; ou
b) No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz, respectiva e sucessivamente, conforme os casos, pelo
representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral.
4 - Se não for possível obter o consentimento nos termos do número anterior e a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de
urgência, o médico decide em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos.»3
A actual redacção deste Artigo n.º 142 apresenta notáveis problemas éticos, não obstante o
facto de os promotores destas alterações, e os seus actuais defensores, considerarem que a
presente redacção é o resultado de vários “melhoramentos” legislativos.
Uma evidência da subjectividade ética desta redacção, e consequentemente da precariedade
ética dos pressupostos que a governaram, consiste na Resolução da Assembleia da República
1 Ver http://www.nao-obrigada.org/images/Aborto_elucidario_juridico.pdf
2 Consultar aqui a redacção original da Lei 6/84 de 11 de Maio que materializou alterações nos então artigos 139.º,
140.º e 141.º do Código Penal:
http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=104&tabela=leis
3 Ver: http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=141&artigo_id=&nid=109&pagina=8&tabela=leis
«a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a
saúde física ou psíquica da mulher grávida;»
Esta alínea é muito problemática. A expressão “perigo de morte” é, ela própria, “perigosa”
porque representa uma afirmação desprovida da especificidade técnica que só um médico
poderia dar. O que é “perigo de morte”? Como é que a expressão “perigo de morte” distingue
o caso menos grave da mulher grávida com hipertensão do caso mais grave da mulher com
uma gravidez ectópica? Ambos representam situações de “perigo de morte”, sendo evidente
que o último é um risco certo enquanto que o primeiro é apenas um risco provável. Se a
gravidez da primeira mulher for levada por diante, ela corre certamente risco de vida, mas não
é certo que morrerá, e se a gravidez da segunda mulher for levada por diante, ela morrerá
certamente. Além disto, não faz qualquer sentido considerar que a intervenção cirúrgica feita
para evitar hemorragia fatal numa mulher com gravidez ectópica constitui um caso de aborto,
no sentido jurídico do termo, visto que não há a intenção nem a vontade de provocar o aborto,
seja como fim seja como meio. O aborto indesejado que ocorre inevitavelmente nestes casos
deve antes ser considerado como “aborto por causas naturais”, encontrando-se por isso
claramente fora do âmbito da Ética.
Não haveria espaço na legislação, nem me parece ser este o local apropriado, para distinguir
todos os casos de “perigo de morte” da mulher grávida, e respectivas ponderações jurídicas.
Mas o pior defeito desta alínea está no uso da expressão “grave e irreversível lesão (…) para a
saúde (…) psíquica da mulher grávida”. Que enfermidades psíquicas encerra esta redacção? No
actual quadro legal, e só para dar um exemplo, um aborto pode ser perfeitamente lícito com o
consentimento da mulher e de dois médicos (o que abortará e outro médico diferente), caso o
atestado médico afirme que uma depressão da mulher que engravidou contra a sua vontade
constitui, segundo a opinião técnica dos médicos (incontestável pela Justiça, que não tem
competências técnicas médicas), uma “lesão psíquica”.
A expressão de “lesão para a saúde psíquica” é, de facto, uma péssima expressão pelo facto de
ser espantosamente vaga e abrangente que permite uma miríade de situações nas quais o
quadro penal actual permite o aborto e que não têm fundamento ético. É inegável que é um
direito da mulher grávida receber apoio médico para uma eventual depressão causada por uma
gravidez indesejada, mas não se justifica que o legislador tenha abdicado do direito à vida do
feto, que tem maior peso, para proteger o referido direito da mulher à sua saúde psíquica.
Vejamos outra alínea:
De novo, esta alínea, ao falar em “doença grave ou malformação congénita”, está a usar
indevidamente um termo tecnicamente indefinido e extremamente vago e abrangente. O facto
de que uma situação sem perigo iminente de vida nem para a mãe nem para o feto como é a da
Trissomia 21 estar abrangida na lata categoria de “malformação congénita”, e por isso, ser
lícito no presente quadro legal o aborto provocado a um feto portador de tal malformação,
demonstra de forma clara que os pressupostos éticos que sustentaram as alterações legislativas,
ou estão ausentes, ou são estranhamente inconsistentes. Também se poderia questionar quais
as bases legais para o legislador ter abdicado, de novo, do seu dever em proteger a vida
humana intra-uterina. Qual é a ponderação ética e jurídica que justifica a licitude da morte do
feto em qualquer caso de “doença grave ou malformação congénita”?
E em relação às situações de fetos inviáveis, sendo certo que tais fetos nunca terão quaisquer
possibilidades de sobreviver fora do útero materno, mesmo assim a redacção do texto é ainda
questionável em termos éticos. Em Ética, é distinto a) deixar morrer um feto inviável; de b)
matar um feto inviável, ou seja, acelerar ou precipitar um acontecimento futuro que é certo. O
efeito é o mesmo, porque o feto não tinha à partida hipótese de sobreviver, mas as acções têm
impactos éticos diferentes, e só quem não está acostumado a lidar com temas éticos é que
poderia sustentar que a morte precoce de um feto inviável não coloca nenhum problema ético.
Pode ser ético matar um feto inviável se isso for a consequência não desejada de recorrer à
única forma de salvar a vida da mãe, como por exemplo, no caso de uma mulher grávida cujo
útero esteja destruído (ou em vias de o estar) por um cancro maligno1, mas já pode ser
questionável em termos éticos matar um feto inviável quando a mulher grávida não corre risco
sério e iminente de vida.
Vejamos ainda mais esta alínea problemática:
«d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for
realizada nas primeiras 16 semanas.»
De novo, a terminologia é vaga e demasiado abrangente, visto que os crimes que caem sob a
alçada da expressão “contra a liberdade e autodeterminação sexual” são variados e com
diferentes impactos éticos. Por exemplo, um homem imputável criminalmente (maior de 16
anos) que provoque uma gravidez numa adolescente comete um crime que cai nesta categoria2.
A incoerência ética desta excepção é evidente: visto que o Estado tem a obrigação de proteger
a vida humana inocente, qual é a coerência em fazê-lo relativamente a uma gravidez normal
envolvendo dois adultos e não o fazer quando a mãe é adolescente e não corre risco iminente
de vida com a sua gravidez? O que muda, em termos do estatuto jurídico do feto?
A incoerência da legislação actual fica igualmente patente quando abordamos o problema do
aborto em caso de gravidez provocada por violação. Sem menosprezar de forma alguma a
dramática injustiça que constitui para a mulher violada ser vitima de um crime desta natureza, a
1 A extirpação de um útero destruído por um tumor maligno pode ser a única forma de salvar a mãe, e a
consequência da morte do seu filho neste caso é indirecta e não desejada. Neste exemplo dado, para mais, a morte
do feto seria certa, uma vez que a gravidez num útero em tais condições seria impossível de levar a termo.
2 Como refere o Dr. Tiago Lopes de Miranda, “os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual são
múltiplos e revestem gravidades diversas. Grande parte das gravidezes de adolescentes podem atribuir-se a esta
espécie de crimes, posto que o progenitor seja imputável criminalmente (maior de 16 anos). Vejam-se os artº 163º
e sgs. do CP”.
«Note-se que desta feita [no caso de violação], do lado do agente, não há um direito subjectivo com o qual a
gestação e o nascimento do nascituro conflituem. Claro que a mulher violada ou vítima de outro crime contra a
autodeterminação sexual tinha direito às suas integridade física e autodeterminação sexual. Mas esse direito
subjectivo não se confunde com o por enquanto irreconhecido direito subjectivo a não ter um filho concebido por
via de relação sexual que por motivo de crime não foi livre ou autodeterminada… Depois, apesar do drama
humano que é o nascimento de um filho gravemente doente ou deficiente, está também por reconhecer o direito a
não deixar nascer tal filho…»
Falamos então de uma colisão ética de direitos, sendo que o direito do feto à vida só poderá
ser equiparado com um direito de igual valor, como o direito da mãe à vida. Com as sucessivas
alterações efectuadas à lei do aborto, sobretudo a partir de 1984, o legislador demitiu-se da
necessária ponderação de direitos, preferindo ignorar a questão do direito do feto à vida, que
torna incoerente a redacção da presente lei em inúmeros aspectos, como acabámos de ver.
Note-se ainda que o recurso a arbitrários limites temporais para deduzir a licitude das várias
situações de aborto demonstra de forma clara que a fixação de tais limites não está assente em
sólidos pressupostos éticos.
A única possível justificação para o presente quadro legal, e para o que se imagina será o novo
quadro legal após realização de referendo caso ganhe o “sim”, seria o reconhecimento e
validação de alguma novidade definitiva em termos éticos que permitisse deixar cair o direito
do feto à vida. Há, sem dúvida, filósofos que propõem que tal direito não existe, tentando
distinguir “pessoa humana” (com direito à vida) de “vida humana” (categoria mais abrangente
de ser vivo da espécie Homo Sapiens). Segundo estes filósofos, o zigoto, o embrião e o feto
poderiam não ter o direito à vida pelo facto de, segundo eles, serem apenas seres humanos
(formas de vida humana) e não “pessoas” no sentido jurídico do termo. Mas tais propostas
estão longe de ser definitivas ou consensuais. Mais adiante neste texto, serão apresentadas
argumentações nesse sentido, acompanhadas da respectiva crítica.
Todavia, quem não nega o direito à vida a todo o ser humano sem excepção, e a mais
elementar Medicina reconhece que o ser humano (ser vivo da espécie Homo Sapiens) surge na
concepção, só pode ver o actual quadro legal do aborto como viciado de inúmeras e
constrangedoras incoerências e deficiências.
Termino com mais uma citação do artigo no qual me baseei:
«No fundo, a ratio legis que subjaz à eleição deste regime especial de exclusão de ilicitude é a adesão, pelo
próprio Legislador penal – aquele que está incumbido de velar pela tutela dos valores ético-jurídicos mais
valiosos de uma comunidade – a um relaxamento no cumprimento do imperativo da salvaguarda da vida dos
seres humanos nascituros, a resultar numa sensível desclassificação do correspondente valor ético enquanto bem
jurídico merecedor de protecção penal.»
É, em tudo, idêntica à lei portuguesa: a ressalva generalista do “grave perigo para a vida ou
para a saúde física ou psíquica”, a ressalva da violação, e a ressalva das graves malformações
físicas ou psíquicas do feto. Notam-se subtis diferenças em termos do tratamento dado às
situações de urgência, quando se torna impossível elaborar o atestado assinado pelos dois
médicos (o que faz o aborto e outro independente, tal e qual como na nossa lei). Contudo,
ambas as leis prevêem as situações de urgência, pelo que mesmo neste ponto específico
parecem muito semelhantes, pese embora a redacção ser diferente.
O que muda, então?
Porque razão Espanha é um destino apetecível para a prática do aborto legal por parte de
muitas mulheres portuguesas? Pelo simples facto de que a alínea 1 do Art.º 417 bis do Código
Penal Espanhol, bem como a alínea 1.a) do Art.º 142º do nosso Código Penal (alínea análoga à
espanhola), é tão generalista e vaga que permite que muitas situações que deveriam ser
encaradas como ilícitas pela lei, caem sob a sua protecção e tornam-se legais. De novo, o
exemplo mais elucidativo: uma mulher que apresente um atestado médico a invocar risco de
depressão pela gravidez indesejada pode pedir um aborto lícito, tanto em Espanha como em
Portugal, ao abrigo da protecção da sua “saúde psíquica”.
Na prática, o que verificamos em termos de abortos legais em Espanha também poderia
suceder em Portugal, dadas as enormes semelhanças entre as suas actuais legislações. Porque
será que tal não se verifica? Porque razão, em Portugal, a alínea permissiva não é invocada mais
vezes? Porventura, o ambiente em Espanha tornou-se mais permissivo ao aborto e o recurso à
protecção da “saúde psíquica” por parte das mulheres e dos seus médicos tornou-se mais
frequente e banalizada do que em Portugal… Para além disto, em Espanha existe um mercado
de clínicas abortivas privadas que fazem disso o seu negócio principal, pelo que estas clínicas
aplicam sistematicamente a razão de protecção da “saúde psíquica”. Vejamos o que diz sobre
isto Mário José de Araújo Torres, do Tribunal Constitucional, no seu voto de vencido de 15 de
Novembro de 2006:
«Em parêntesis refira-se que, ao contrário do que com frequência se refere no debate público, não vigora em
Espanha um sistema “liberal”, perante o qual seria chocantemente contrastante o “limitado” sistema português.
O sistema legal espanhol é estritamente um sistema de indicações. O que ocorre é que, na prática, uma
interpretação latíssima da indicação relacionada com a “saúde psíquica” da mulher grávida conduziu a uma
permissividade na prática do aborto, sobretudo em “clínicas privadas”, que têm como objecto exclusivo do sua
actividade a prática abortiva (segundo informa João Loureiro, estudo citado, p. 339, 98% dos abortos
realizados nas clínicas privadas apresentam como “indicação” o risco para a saúde psíquica da mãe).»2
(sublinhado meu)
1 Ver http://www.bioetica.org/cuadernos/ley10esp.htm
2 Ver o texto completo do seu voto de vencido no Anexo A., capítulo A.6.
A pergunta recorre habilmente ao termo “despenalização”, mas na prática permite muito mais.
A expressão “por opção da mulher” faz do aborto uma conduta lícita porque passa a ser lícito
optar pelo aborto. A expressão “estabelecimento de saúde legalmente autorizado” introduz o
direito legal ao aborto. As recentes declarações do Ministro de Saúde materializam o acesso
livre ao aborto, porque o Estado passa a subsidiá-lo, seja no sistema público de Saúde, seja em
clínicas privadas.
Mas após esta argumentação de leigo, o melhor é dar espaço a quem tem competência na
matéria. Vejamos o que diz sobre isto o Dr. Pedro Vaz Patto, Juiz de Direito:
«Se vencer o sim, o aborto realizado até às dez semanas de gravidez por vontade da mulher passará a ser lícito,
passará a ter cobertura legal e passará a ser praticado com a colaboração activa do Estado (o Ministro da
Saúde até tem lamentado o facto de, actualmente, se realizarem nos hospitais públicos abortos em número que
considera reduzido). Daí que se deva falar em legalização.
E, no que se refere a tal período da gravidez, essa licitude não depende da verificação de qualquer pressuposto
para além da simples vontade da mulher. Deixará de vigorar um regime de “indicações”, como se verifica no
regime legal vigente, em que a licitude do aborto não depende da simples vontade da mulher, mas da verificação
de alguma das seguintes situações: perigo para a vida da mulher, grave perigo para a saúde da mulher,
malformação ou doença grave e incurável do nascituro ou gravidez resultante de violação. Não estaremos perante
um alargamento a outro tipo de “indicações” (razões socio-económicas, por exemplo, como se verifica na
legislação italiana ou outras). Estaremos perante um regime de aborto livre ou aborto a pedido. Daí que se deva
falar em liberalização.»1
“se a interrupção for um facto ilícito, ainda que não punível, o Estado se sentirá desobrigado das prestações
sociais decorrentes da intervenção médica – de acordo com o princípio de que não podem ser dispendidos
dinheiros públicos com factos constitutivos de ilícitos penais”1
Daqui vemos que a subsidiação do aborto por parte do Estado, que subjaz à expressão “em
estabelecimento de saúde autorizado” e aos já manifestados projectos do actual Ministro da
Saúde, Correia de Campos, caso vença o “sim”, materializa efectivamente o fim da ilicitude
legal do acto voluntário de abortar. Se apenas estivéssemos a discutir a “despenalização” do
aborto, sem remoção da ilicitude, então em coerência não se deveria dar suporte a esse acto
através de estabelecimentos autorizados para o efeito: o Estado não pode atribuir recursos
públicos a “factos constitutivos de ilícitos penais”.
Para além disto, e visto que o nosso Sistema de Saúde não tem recursos sequer para dar
resposta a problemas reais de saúde, parece ainda notoriamente imoral que o Estado venha a
comparticipar essas intervenções abortivas em clínicas privadas, de forma a dar vazão à
previsível vaga de pedidos de aborto após a sua legalização e liberalização. Usará então o
Estado os seus escassos recursos para financiar lucros de clínicas privadas, em detrimento de
os usar para minimizar, por exemplo, as catastróficas listas de espera em todo o país?
Será que aqueles que defendem o direito ao aborto a pedido concordam que tal presumido
“direito” tem prioridade nas finanças da saúde pública face a doentes em estado grave e que
aguardam meses a fio a sua vez para serem tratados?
1 Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra, 1999, p. 178.
«CAPÍTULO II
Dos crimes contra a vida intra-uterina
Artigo 140.º
Aborto
1 - Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2 - Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão até 3 anos.
3 - A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é
punida com pena de prisão até 3 anos.»1
Sobretudo os pontos 2 e 3 deixam bem claro que o acto de abortar é ainda visto como um
crime. Se se verificar a vitória do “sim” no referendo de 11 de Fevereiro, então será necessário
“retocar” a legislação para evitar essa enorme incoerência que seria manter o aborto como
crime (Art.º 140.º), juntamente com a introdução de um direito abortivo até às dez semanas
algures dentro do Art.º 142.º. O que é mais curioso é que se desconhece qual será a redacção
definitiva destes artigos em caso de vitória do ”sim” no referendo… Os portugueses que
votarem “sim” irão assinar “em branco” uma nova legislação cuja redacção desconhecem!
Vejamos agora, recorrendo aos esclarecimentos do Dr. Tiago Lopes de Miranda, como o
actual contexto legal já prevê inúmeras situações que evitam, na prática, a penalização de um
crime objectivo:
«Na verdade o nosso, como a generalidade dos códigos penais, contém na sua parte geral uma exaustiva previsão
de circunstâncias em que a prática de todo e qualquer facto integrante de um tipo de crime não é punível, seja
por ficar excluída a ilicitude da conduta – é o caso v.g. da legítima defesa e do estado de necessidade
justificante, do conflito de deveres (artºs 31º, 32º e 34º e 36º), seja por se considerar não haver culpa,
apesar da ilicitude objectiva do facto – é o caso do estado de necessidade desculpante (artº 35º). Além
disso, prevêem-se, quer em geral quer quanto a muitos crime em especial, múltiplas circunstâncias atenuantes da
culpa que podem ir até à isenção de pena.
Aquelas normas que prevêem a exclusão da ilicitude e da culpa tem de comum resolverem conflitos concretos de
valores ou de direitos subjectivos penalmente protegidos ponderando a importância desses valores ou direitos
subjectivos numa escala hierárquica e a maior ou menor intensidade ou actualidade da ofensa dos mesmos no
caso concreto. E nesta ponderação relevam de uma dogmática ético-juridica amplamente consensual, cujos
critérios normativos, em boa verdade, se descobrem inscritos em qualquer consciência normalmente formada.
Basta lê-las atentamente para percebermos como abrangem potencialmente todas as situações em que a prática de
um aborto se justificaria eticamente, ou em que não seria justo perseguir ou condenar os seus autores2.
1 Ver http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=121&artigo_id=&nid=109&pagina=7&tabela=leis
2 Nota original: «Artº 34º do Código Penal:
Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do
agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:
a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger interesse de terceiro
b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado e c) Ser razoável impor ao lesado o
sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado
Estes dados podem surpreender, mas é importante darmo-nos conta da realidade do nosso
quadro legal e da argumentação falaciosa usada frequentemente pelos que defendem o direito
ao aborto. A pena máxima de prisão para o aborto (três anos) é exactamente igual à pena
máxima para uma agressão verbal ou física leve, como uma simples bofetada. O que isto quer
dizer é que a lei quer deixar bem claro que é errado insultar, falar mal ou bater em alguém, e
que esse juízo está definido pela atribuição de uma pena máxima, a ser usada em último
recurso. No que diz respeito a dar a morte a outrem, o legislador sabe bem que o homicídio é
um acto praticado, normalmente, com motivações bem diversas das que estão presentes no
caso do aborto. Perante a lei, é nítido que os actos de matar um adulto ou matar um feto têm a
mesma gravidade objectiva. Contudo, as motivações por detrás da primeira acção são bem
diferentes (e bem mais penalizantes) do que as da segunda. Por essa razão, a pena máxima para
«Embora, normalmente, descriminalização e despenalização coincidam (como nos exemplos atrás referidos),
porque ao crime corresponde, em princípio, uma pena, poderia verificar-se uma despenalização sem
descriminalização. O Código Penal prevê, nalgumas situações, a dispensa de pena quando se verifica a prática
de um crime. Na proposta de alteração do regime penal do aborto em tempos sugerida pelo Prof. Freitas do
Amaral, o aborto continuaria a ser crime (uma conduta objectivamente censurável como tal definida pela Lei),
mas estaria, em regra, excluída a culpa da mulher, por se verificar uma situação de “estado de necessidade
desculpante”, o que afastaria a aplicação de qualquer pena. Mas não é nada disto que se verifica na proposta a
submeter a referendo. De acordo com essa proposta, o aborto realizado, por vontade da mulher grávida, nas
primeiras dez semanas de gravidez e em estabelecimento legalmente autorizado, será descriminalizado.
Importa também esclarecer que não são necessárias a descriminalização e despenalização do aborto para evitar a
prisão, e até o julgamento, das mulheres que abortam.
Quanto à prisão, esta é, no nosso sistema penal, um último recurso (não o primeiro, nem o principal). Não há
notícia de mulheres condenadas por aborto em pena de prisão. Em relação a muitos outros crimes (injúrias,
difamação, condução ilegal, condução em estado de embriaguez) está prevista a pena de prisão, mas esta não se
aplica na prática, sobretudo quando se trata de uma primeira condenação. E mesmo o julgamento dessas
mulheres pode ser evitado, através do recurso à suspensão provisória do processo.
No fundo, o essencial da questão a discutir no referendo não reside na realização de julgamentos das mulheres
que abortam (estes podem ser evitados no actual quadro legal). E não reside sequer na criminalização ou
descriminalização do aborto. Reside, antes, na sua legalização e liberalização. Reside em saber se o Estado deve
facilitar e colaborar activamente na prática do aborto ou se, pelo contrário, deve colaborar activamente na criação
de condições que favoreçam a maternidade e a paternidade, alternativas ao aborto que todos reconhecerão como
mais saudáveis e mais portadoras de felicidade para a mulher, o homem e a criança.»1 (sublinhado meu)
1 http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=281&artigo_id=&nid=199&pagina=15&tabela=leis
Exposição de Motivos
A lei penal, ao prever e punir com a pena de prisão até 3 anos o aborto consentido em que é autora a mulher grávida (n.º 3 do artigo
140.º do Código Penal) traduz a gravidade objectiva do crime de aborto enquanto atentado à vida humana. Contudo, à sociedade não
é indiferente a distinção valorativa entre esta gravidade objectiva do aborto e a responsabilidade subjectiva da mulher que o pratica.
Por isso, a aplicação do actual ordenamento jurídico relativo ao crime de aborto coloca, como em todas as áreas da actuação humana,
questões de grande delicadeza no que se refere à avaliação das circunstâncias que determinam, tantas vezes, a sua prática.
A presente iniciativa legislativa visa compatibilizar a definição da gravidade objectiva do crime de aborto, por um lado, e a
consideração da frequente falta de consciência clara dessa gravidade, assim como a consideração das dramáticas situações que
frequentemente conduzem à prática desse crime, com a consequente atenuação da responsabilidade subjectiva da mulher grávida que
aborta, por outro lado. Esta atenuação aconselha o recurso a um instituto já previsto no ordenamento processual penal que, sem
prescindir de uma função sancionatória, pedagógica ou de advertência, evita o estigma e a publicidade associados ao julgamento (sendo
que ocorre numa fase secreta do processo).
Nestes termos, propõe-se a aplicação da suspensão provisória do processo penal relativo ao crime de aborto em que é autora a mulher
grávida. Pretende-se, ainda, que as injunções e regras de conduta correspondentes à suspensão provisória do processo estejam associadas
a medidas de apoio psico-social tendentes a evitar a continuação da situação que conduziu à prática desse crime. Pretende-se, por
último, clarificar (dissipando dúvidas que pudessem colocar-se) que a intervenção dessa mulher na produção de prova relativa a crimes
conexos fique sujeita ao seu consentimento.
A presente iniciativa aproveita o mecanismo dos artigos 270.º e 281.º do Código do Processo Penal, não introduzindo, contudo,
quaisquer alterações aos mesmos, e não acarreta quaisquer encargos económicos e financeiros para o Estado.
Assim, em cumprimento do artigo 4.º da Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho (Lei da Iniciativa Legislativa de Cidadãos) apresenta-se o
seguinte Projecto de Lei:
Artigo Único
(Aplicação da suspensão provisória do processo penal relativo ao crime de aborto consentido em que é autora a mulher grávida)
1. Recebida notícia do crime previsto no n.º 3 do artigo 140º do Código Penal, relativa a pessoa determinada, o Ministério Público
procede à sua inquirição, não sendo aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 270º do Código do Processo Penal.
2. Em relação a esse crime, deverá proceder-se à suspensão provisória do processo, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos,
presumindo-se, para este efeito, o carácter diminuto da culpa.
3. São aplicáveis as injunções e regras de conduta previstas no nº 1 e 2 do artigo 281º do Código de Processo Penal, associadas a
medidas de apoio psico-social tendentes a evitar a continuação da situação que conduziu à prática desse crime.
4. A suspensão provisória do processo exclui qualquer ulterior intervenção obrigatória da pessoa no processo, ou em processo conexo,
relativo a terceiros, não podendo ela ser, contra a sua vontade, objecto de meio de obtenção de prova ou intervir na produção de prova.»1
No capítulo 6, a questão do aborto é discutida com base nas mais importantes e comentadas
teorias filosóficas e bioéticas a favor e contra o direito ao aborto. Mas antes de passar a esse
capítulo, serão apresentadas as piores argumentações, aquelas que enchem uma boa parte do
debate público, sejam elas emitidas por defensores ou por detractores do direito ao aborto.
Não quer isto dizer que não exista má argumentação, ou argumentação falaciosa, nas teorias
filosóficas apresentadas no capítulo 6, quer apenas dizer que a argumentação que se segue deve
ser descartada antes de se passar a um sério debate filosófico e ético.
Por seu lado, as más argumentações e as falácias que encontraremos nas teses éticas mais
sofisticadas só se detectam com alguma minúcia e análise, que implicam tempo de estudo, de
leitura e de raciocínio. Por vezes, não são nada evidentes e requerem alguma experiência no
manuseamento dos conceitos envolvidos.
Apenas um detalhe terminológico: só existe “falácia”, ou “argumentação falaciosa”, quando se
faz uma inferência lógica errada, ou seja, quando maus argumentos são usados por alguém para
inferir erradamente uma determinada conclusão. Se as frases ou os argumentos estão isolados,
se não há uma inferência nem uma conclusão, então não temos formalmente uma falácia1.
Estes argumentos religiosos são bons argumentos contra o aborto, mas não são úteis num
contexto neutro em matéria de religião. As mais importantes razões para se estar contra o
aborto derivam da defesa inegociável do direito à vida, baseiam-se na Ética universal, naquilo
que a Igreja Católica chama de “lei natural”, que deveria ser reconhecida por todos.
1 Um agradecimento ao Ludwig Krippahl (http://ktreta.blogspot.com), por ter referido este dado importante.
4.3 A “derrapagem”
Quando se debate acerca da licitude ou ilicitude do aborto, convém não sair do tema
objectivamente em discussão, de forma a evitar contaminar a argumentação com factores
externos ao tema. É comum que se use, de forma falaciosa, a “derrapagem” argumentativa
para tentar “assustar” o adversário. Por exemplo, quando alguém argumenta que legalizar o
aborto até às dez semanas iria conduzir necessariamente a consequências como o legitimar da
eutanásia de crianças já nascidas e portadoras de deficiências. A consequência é uma clara
“derrapagem” argumentativa, visto que o que se está a debate é a licitude do aborto, e não a
“É inútil perder tempo com discursos, teorias, intelectualidades e minúcias éticas, porque o
importante é afirmar a crueldade de matar um ser humano”
Estas frases, estando certas nas conclusões, estão erradas nas premissas. Sendo contra o direito
ao aborto, eu concordo com as conclusões destas duas frases que dei em exemplo, mas elas
não podem ser deduzidas das premissas dadas acerca da suposta “inutilidade” do debate
filosófico e ético. Este debate é fundamental e está no cerne da questão do aborto.
Se aqueles que estão contra o direito ao aborto não conseguem sustentar a sua posição através
de teses etico-filosóficas que sejam racionais e coerentes, então deveriam, em bom rigor,
abster-se de fazer juízos negativos de valor acerca de tais teses.
1É claro que também há quem defenda o direito ao aborto por não reconhecer direito à vida até determinado
ponto da gravidez, ou mesmo até determinada idade pós-natal. Ver o capítulo 6.
Claramente, o denominador comum aos dois tipos de aborto é a inevitável perda de vida
humana, seja na fase de zigoto, embrião ou feto. A diferença entre os dois tipos de aborto
reside no menor risco de vida e menor risco de saúde física e psíquica da mulher no caso do
aborto legal. Mas há vários problemas em defender o aborto legal nestes termos:
a) Há risco de vida, e riscos para a saúde em ambos os casos, ou seja, ganha-se pouco
com a legalização do aborto; seguramente que os riscos físicos são menores no aborto
legal, e pode-se aceitar que, em termos teóricos, parte dos riscos psíquicos também
sejam menores no aborto legal, com a mulher que abortou a ser acompanhada por um
psicólogo; mas em ambos os casos, a mulher que abortou sabe e sente que matou o seu
filho ou que autorizou a sua morte por outrem, e isso é um drama psicológico
inevitável para qualquer mulher normal: esse drama acompanha-a para toda a sua vida;
b) Está-se a legalizar a perda de vida que qualquer aborto acarreta; esta legalização é
eticamente ilegítima: não há forma de justificar dar mais peso à saúde da mulher em
detrimento da vida humana que é destruída; além disso, a legalização do acto abortivo é
incoerente com a responsabilidade que qualquer Estado de Direito tem em proteger a
vida humana intra-uterina;
Vejamos esta nova tabela, agora equilibrada com a inserção da opção “Não abortar”:
Neste caso, claramente, e mesmo usando ética puramente utilitarista, “não abortar” é de longe
a melhor das possibilidades, tanto para a saúde física e psíquica da mulher, como para o
zigoto/embrião/feto, que assim pode continuar o seu desenvolvimento natural, pode viver a
sua vida. Pode-se criticar esta tabela, porque não entra em consideração com os riscos e perdas
de outras coisas que a mulher pode valorizar, como projectos de vida, independência, situação
financeira, entre outras. Mas haverá algo, em todos esses razoáveis riscos e perdas para a
mulher, que possa competir em termos de peso ético com questões fundamentais como os
riscos de saúde e a perda de vida humana presentes na opção de abortar? A tabela apresentada
restringe-se aos riscos e perdas mais significativos do aborto, deixando de parte outros riscos e
perdas que têm claramente menor peso.
5.3 A “hipocrisia”
Esta será, porventura, a mais mediatizada das argumentações dos defensores do aborto. É
constrangedor observar uma grande fatia da nossa classe política a recorrer a esta
argumentação tão empobrecedora, sinal de uma clara deficiência argumentativa e intelectual.
O facto de existirem pessoas, sem dúvida hipócritas, que abortam às escondidas e ao mesmo
tempo se manifestam publicamente contra o aborto não faz do aborto um acto lícito! É
impressionante como tantos políticos usam, desavergonhadamente, este mau argumento.
O seu carácter absurdo pode ser demonstrado recorrendo, de novo, a um exemplo em
contrário: suponhamos que, no meio de uma manifestação pública contra a pedofilia, estão
várias pessoas que têm a prática corrente de abusar de menores. Serão, sem dúvida, hipócritas,
uma vez que condenam publicamente algo que eles mesmos praticam voluntariamente em
segredo. Mas chegará isso para se afirmar que a forma para acabar com a hipocrisia destes
pedófilos passaria por legalizar a pedofilia?
Um outro exemplo: num bairro, alguém tem feito assaltos regulares à mercearia do local
durante a noite. O culpado, ainda por cima, manifesta-se publicamente contra esses assaltos,
exigindo a investigação e a prisão imediata dos ladrões. Seria lógico que os habitantes do
bairro, suspeitando do verdadeiro culpado e acusando-o de hipócrita, exigissem a pilhagem
livre, acessível para todos, desta malograda mercearia, advogando que todos teriam o direito a
retirar bens da mercearia em iguais condições de acesso aos mesmos, e sem os riscos que um
assalto ilegal acarreta em termos de confrontos com a polícia? Claro que não…
O acto hipócrita daqueles que abortam às escondidas, enquanto publicamente dizem “não” ao
aborto, não transforma, por magia, o acto de abortar num acto eticamente lícito.
Convém ainda fazer uma importante ressalva: não se pode afirmar que uma pessoa que está
contra o direito ao aborto, mas que já abortou no passado e está hoje arrependida, é uma
Porquê votar “Não” – Argumentário contra o direito ao aborto 24/1/2007
46
pessoa hipócrita. Para isso, teríamos também que considerar hipócritas todos aqueles que,
sendo contra a mentira, mentem ocasionalmente, ou todos aqueles que, sendo a favor da
existência e cumprimento de um Código da Estrada, o violam esporadicamente.
A essência de se ser hipócrita está em desejar para os outros uma ética que nós próprios não
cumprimos nem queremos cumprir. Está em nos consideramos acima da ética que
defendemos, de nos vermos como “excepções” ao cumprimento de uma regra que desejamos
universal, para cumprimento por todos.
Não é hipócrita aquela mulher que considera que o aborto é um mal e deve ser proibido, mas
que no passado, por fraqueza, decidiu abortar e está arrependida dessa decisão, não a
desejando para mais nenhuma mulher. Em bom rigor, essa mulher, que já foi vítima por
decisão própria de um aborto, está em boas condições para denunciar a ilegitimidade de tal
decisão com base na sua traumática experiência pessoal.
«Um mau argumento usado pelos defensores da legalização do aborto é o argumento feminista de que o corpo é
das mulheres, pelo que as mulheres é que sabem o que hão-de fazer com ele. Este argumento limita-se a fugir à
questão porque as feministas nunca chegam a dizer nada acerca do estatuto moral do feto — nunca dizem se o
feto tem, ou não, o direito à vida. Esta é uma falha grave pela seguinte razão: Se o argumento das feministas
fosse, simplesmente, o de que "o corpo é da mulher, a mulher é que sabe o que há-de fazer com ele", então isso
implicaria que seria moralmente permissível abortar até no nono mês. Afinal, no nono mês a criança ainda está
1 Quando não mesmo três entidades, visto que o património genético do filho pertence, em metade à mãe, e na
outra metade ao pai; tanto a mãe como o pai são causalmente responsáveis, em igual medida, pelo ser humano em
desenvolvimento que a mãe traz dentro de si. O pai é sistematicamente removido de qualquer debate ou
argumentação a favor do direito ao aborto: perante o avizinhar de uma situação legal de aborto por opção da mãe,
um pai que queira evitar, contra a mãe, a morte do seu filho por nascer, nada poderá fazer em relação a isso, o que
se afigura uma situação eticamente insustentável e injusta. No entanto, é inegável que à mãe, em virtude das suas
particularidades biológicas, cabe uma responsabilidade “material” mais forte, uma vez que é o seu corpo que dá
sustento e guarida ao ser humano por nascer. Por outras palavras, após a concepção, e para sobreviver até ao
parto, a criança necessita do corpo da mãe e não necessita do corpo do pai.
2 É evidente que este direito existe e é bem real. Contudo, como em qualquer questão de liberdades fundamentais,
o nosso direito (ou liberdade) cessa quando principia o direito (ou liberdade) de outrem. A mulher tem direito ao
seu corpo e ao destino que lhe quer dar, desde que esse direito não colida com o direito de outrem, neste caso, o
que está em discussão: o direito do feto humano à vida.
3 Ao longo deste texto, faremos frequentemente referência à argumentação de Pedro Madeira (ver
http://criticanarede.com/aborto1.html), seja para concordar, seja para discordar dela. Claramente, como Pedro
Madeira acaba por concluir que o aborto é legítimo até certa fase da gravidez (segundo ele, até ao início de
actividade organizada no córtex cerebral do feto), estamos em desacordo quanto à conclusão de Pedro Madeira e
necessariamente quanto a várias das suas premissas, não obstante recorrermos a algumas das suas premissas
quando as reconhecermos como válidas e úteis.
Há no problema do direito ao aborto uma situação de colisão de direitos. Eu defendo que estes
direitos não são iguais e não têm pesos iguais, sendo que há amplo debate filosófico e ético em
torno destes direitos, da sua definição, e da sua ponderação em vários cenários. É por esta
razão que pretender que o aborto é lícito porque a mulher tem o direito de dispor do seu
corpo é uma argumentação medíocre, primária e inaceitável. Normalmente, é um argumento
brandido por pessoas com pouca formação em termos de Ética e de Filosofia.
1 Op. cit., Argumentos sobre o aborto, parte 2, “O argumento feminista e o apelo ilegítimo às emoções”.
«Não é difícil ver porque é que este é um mau argumento. Pense no seguinte: devido à recente mediatização do
fenómeno da pedofilia em Portugal, é de crer que as redes pedófilas em Portugal venham a reduzir
substancialmente as suas actividades, pelo menos nos próximos tempos. Contudo, quem tenha dinheiro pode
facilmente apanhar um avião para países onde a pedofilia seja quase impune ou pode, até, importar crianças
desses países. Moral da história: quem não tiver dinheiro para ir fazer turismo sexual ao estrangeiro ou para
mandar vir crianças de fora é que fica privado de poder manter relações pedófilas; os pedófilos pobres é que se
lixam. Será este um bom argumento a favor da legalização da pedofilia? É óbvio que não. O mesmo
argumento, quando empregue a favor da legalização do aborto, só parece mais convincente porque se limita a
fugir à questão.»1
“É inútil perder tempo com discursos, teorias, intelectualidades e minúcias éticas, porque o
importante é o direito da mulher ao seu corpo”
“De nada vale debater filosofias e éticas, porque o aborto clandestino é inaceitável”
Estas frases, estando certas nas conclusões, estão erradas nas premissas. Sendo contra o direito
ao aborto, eu concordo com as conclusões destas duas frases que dei em exemplo, visto que a
mulher tem direito ao seu corpo, mas deve também saber que em caso de gravidez, esse seu
direito colide com o direito do feto à vida. E defendo que não são direitos de pesos iguais,
sendo que o último deve receber mais peso que o primeiro.
Do mesmo modo, concordo que o aborto clandestino é inaceitável, mas deduzo-o como caso
particular da premissa fundamental que defendo: o aborto desejado e voluntário é sempre
inaceitável.
Contudo, estas conclusões acertadas não podem ser deduzidas das premissas dadas acerca da
suposta “inutilidade” do debate filosófico e ético. Como se referiu em 4.4., este debate é
fundamental e está no cerne da questão do aborto.
“Nunca se saberá quando começa a vida humana, por isso o melhor é proteger as mulheres e
deixá-las abortar”
“Nunca se saberá definir «pessoa humana», e como cada um tem a sua ideia individual do que é
uma «pessoa», o melhor é proteger as mulheres e deixá-las abortar”
Este tipo de argumentação é totalmente evasiva: existe, hoje em dia, amplo debate ético e
filosófico acerca da vida humana, acerca da pessoa humana, acerca dos direitos do ser humano,
e acerca da licitude ou ilicitude do aborto. Sugere-se a consulta da bibliografia no final deste
artigo para se ficar a conhecer o amplo e complexo panorama do debate científico na área da
bioética.
“Voto «sim» no referendo porque os defensores do «não» não têm o direito de impor as suas
convicções religiosas ao resto da população”
“Os defensores do «não» têm que ser travados, porque querem obrigar todos os portugueses a
seguir as suas pessoais e subjectivas convicções religiosas”
É verdade que a esmagadora maioria das regras de conduta com base religiosa ou metafísica
condenam o acto de abortar. É inegável que, no conjunto daqueles que se opõem ao aborto,
uma grande parte é constituída por pessoas que professam uma determinada crença religiosa1.
A razão de ser deste facto é muito simples: qualquer religião ou espiritualidade tradicional
digna desse nome está assente em axiomas universais e perenes acerca do ser humano, do seu
inequívoco valor quando comparado com o valor dos outros seres vivos, e do carácter único e
irrepetível de cada vida humana. As regras éticas e morais de uma religião estão baseadas em
1 É sintomático que, fora do universo das três religiões abraâmicas (que condenam todas, inequivocamente, o
aborto em qualquer fase da gravidez, desde a concepção), encontremos sempre e em toda a parte a mesma
inequívoca condenação do aborto, desde o Hinduísmo e o Budismo, até ao Taoísmo no Extremo Oriente, e
falando apenas das espiritualidades de maior adesão e representatividade. É o carácter perene e universal do
direito à vida do ser humano que faz com que, em cada doutrina particular, se condene claramente todo e
qualquer acto que atente contra a vida humana, em qualquer fase do seu desenvolvimento.
O uso desta falácia é um desrespeito pelos que vão votar “não” no referendo, mas que não têm
crenças religiosas. Há muitas pessoas que, baseando-se em princípios éticos fundamentais e
universais (as verdadeiras razões para se estar contra o aborto), se manifestam contra o direito
a abortar, e no entanto não partilham de nenhuma crença religiosa.
Insistir que o que está em jogo neste debate é a tirania de dogmática religiosa dos defensores
do “não” é uma atitude de grave desonestidade intelectual, que pretende ignorar o erro da
equivalência N.º 2, baseado no erro da implicação N.º 3, e pretende também ignorar,
convenientemente, o “incómodo” grupo de votantes ateus e agnósticos no “não”.
É a crença numa religião que implica a oposição ao aborto, mas não existe equivalência, como
pretendem alguns defensores do direito ao aborto. Segundo muitos deles, votar “não” é algo
que só sucede a quem professa uma determinada crença religiosa. Esta posição falsa, ilógica e
inaceitável é necessária para se defender a ideia falaciosa de que o voto nesta matéria, ao invés
de ter um alcance universal, é apenas assunto de “consciência”, e deve ser relegado para o
campo da subjectividade individual.
Há uma grande proximidade entre esta argumentação falaciosa, que pretende reduzir a questão
do aborto às “consciências” religiosas ou não religiosas de cada um, e a típica retórica
materialista e positivista, que pretende transformar o fenómeno do religioso numa temática de
âmbito exclusivamente sentimental, subjectivo e individualista.
Foi no sentido de explicar a razão por detrás da posição da Igreja Católica contra o direito ao
aborto que o Senhor Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, se manifestou
recentemente, a 19 de Outubro de 2006, quando tentou esclarecer a opinião pública acerca dos
mal-entendidos propagados por certos órgãos de comunicação social:
«Afirmei, de facto, que a “condenação do aborto não é uma questão religiosa, mas de ética fundamental”.
Trata-se, de facto, de um valor universal, o direito à vida, exigência da moral natural. Com esta afirmação não
foi minha intenção negar a sua dimensão religiosa. A mensagem bíblica assumiu, como preceito da moral
religiosa este valor universal, dando-lhe a densidade do cumprimento da vontade de Deus. Não é só por se ser
católico que se é contra o aborto; basta respeitar a vida e este é, em si mesmo, um valor ético universal.
É claro que o respeito pela vida é uma exigência da moral cristã, porque está incluído no quinto mandamento
da Lei de Deus: “Não matarás”. Porque é um preceito da moral cristã, violá-lo é um pecado grave. Mas o
Decálogo, estabelecido, pela primeira vez no Antigo Testamento, por Moisés, consagrou como Lei do Povo de
Deus, alguns dos valores humanos universais, que interpelam a consciência mesmo de quem não é religioso. E de
facto, na presente circunstância, há muitos homens e mulheres que, não sendo crentes, são contra o aborto porque
defendem a dignidade da vida, desde o seu início.»1
Importa realçar sempre, para não perdermos de vista o essencial, que a questão do aborto não
é uma questão religiosa, que não é uma questão que dependa de uma polarização da sociedade
em “crentes” e “não crentes”. É, isso sim, uma questão de direitos humanos e de civilização.
1 http://www.agencia.ecclesia.pt/noticia.asp?noticiaid=38279
1. Que toda a mulher que aborta é levada a julgamento: tal sucede muito raramente;
2. Que a Justiça existe para humilhar;
3. Que a mulher que aborta a sua gravidez não comete um crime objectivo.
Poderíamos ainda acrescentar que, naturalmente, o circo mediático que é instalado às portas
dos tribunais onde decorrem os raríssimos casos de julgamento por aborto (todos por abortos
efectuados após as dez semanas) se deve maioritariamente aos activistas defensores do direito
ao aborto, que utilizam os dramas dessas mulheres em prol das suas “guerras culturais”. É caso
para perguntar:
1 O blastócito é o nome dado a um zigoto, com aproximadamente quatro dias (já com oito células, no caso do ser
humano, visto que se verifica aproximadamente uma divisão mitótica a cada 24 horas), que já efectuou uma série
de mitoses, tendo ultrapassado o estado de “mórula” (aproximadamente aos três dias), e as suas células começam
a se compactar. O processo de implantação do blastócito no epitélio uterino, que dá pelo nome de “nidação”
inicia-se aproximadamente ao sexto ou sétimo dia de vida.
1. O fenómeno não pode ser medido porque possui características que escapam a toda e
qualquer ferramenta ou método de medição;
2. O fenómeno poderia ser medido, mas as ferramentas de medição actuais ainda não o
conseguem medir correctamente;
3. O fenómeno poderia ser medido, mas a própria medição altera-o e condiciona-o2.
Tendo isto presente, convém saber que a tecnologia actual ainda não consegue detectar que
está a decorrer um fenómeno de fertilização de um ovo humano. Isto não quer dizer que a
«Como já tive oportunidade de mencionar, muitas pessoas parecem pensar que há um momento concreto em que
se dá a concepção; mas isto é falso. A fertilização é um processo gradual que demora cerca de 22 horas.
Primeiro, o espermatozóide penetra no óvulo, deixando a cauda do lado de fora. Nas horas seguintes, o
espermatozóide e o óvulo são, ainda, duas coisas distintas, embora o espermatozóide já esteja dentro do óvulo. Só
ao fim das ditas 22 horas é que já temos um único objecto: o zigoto.»1
À parte das dificuldades terminológicas nele presentes, penso que o equívoco central deste
trecho está em considerar que o espermatozóide e o óvulo são “coisas distintas” durante as
“horas seguintes”, e consequentemente em atribuir a classificação de zigoto apenas no
momento da clivagem (22 a 24 horas), que é o termo usado para a primeira divisão mitótica do
ovo. Isto não é muito correcto. O essencial do processo de fertilização ocorre de forma
bastante rápida e demora poucos minutos. Estas são as etapas essenciais do processo,
conforme descritas pelo Professor Bruce M. Carlson, da Universidade de Michigan, na sua
obra Embriologia Humana e Biologia do Desenvolvimento:
1 Ver http://criticanarede.com/aborto1.html
2 A corona radiata é a fronteira externa do ovócito, isto é, do óvulo. Ao contrário do que afirma Pedro Madeira, a
cauda do espermatozóide entra totalmente dentro do ovócito, onde, durante a fase de formação do pronúcleo, o
seu material será absorvido pelo citoplasma.
3 A zona pelúcida é uma camada intermédia do ovócito, que fica logo abaixo da corona radiata e acima do espaço
perivitelino, que por sua vez fica imediatamente acima da membrana plasmática do ovócito.
4 Esta fusão ainda não é a fusão do material cromossomático do espermatozóide com o do óvulo: é apenas a
redução do material cromossomático de uma célula normal para apenas 23 cromossomas (a célula diz-se que
passa de “diplóide” para “haplóide”), para permitir o seu cruzamento e fusão com os 23 cromossomas da célula
haplóide do sexo oposto. Basicamente, nesta etapa, o ovócito isola os seus 23 cromossomas essenciais antes da
fusão do seu pronúcleo com o pronúcleo do espermatozóide, que também conterá 23 cromossomas. Não
confundir a meiose com o processo de “mitose”, que é o nome dado ao processo de replicação e divisão celular
pelo qual uma célula diplóide gera sozinha duas cópias iguais a si mesma.
9 Aqui termina a fertilização e temos um zigoto. Op. cit., p. 29.
Esta primeira parte é extremamente rápida e dá lugar à etapa d), que é um importantíssimo
mecanismo de bloqueio à entrada de mais espermatozóides (a chamada “polispermia”). Este
bloqueio da polispermia tem duas fases, uma rápida, seguida de uma lenta. Vejamos a
explicação do Prof. Carlson2:
«Once a spermatozoon has fused with an egg, the entry of other spermatozoa into the egg (polyspermy) must be
prevented or abnormal development will likely result. Two blocks to polyspermy, fast and slow, are typically
present in vertebrate fertilization.
The fast block to polyspermy, which has been best studied in sea urchins, consists of a rapid electrical
depolarization of the plasma membrane of the egg. The resting membrane potential of the egg changes from about
– 70 mV to + 10 mV within 2 to 3 seconds after fusion of the spermatozoon with the egg. This change in
membrane potential prevents other spermatozoa from adhering to the egg’s plasma membrane. The fast block is
«One of the significant changes brought about by the penetration by a sperm is a rapid intensification of the egg’s
respiration and metabolism. The mechanics underlying these changes are not fully understood even in the best-
studied systems, but the early release of Ca++ from internal stores is believed to be the initiating event. In some
species, Ca++ release is shortly followed by an exchange of extracellular Na+ for intracellular H+ through the
plasma membrane. This results in a rise in intracellular pH, which precedes an increase in oxidative
metabolism.»2
Como vemos pela descrição, a activação metabólica é uma etapa importantíssima: o ovócito
torna-se numa célula “viva”, com os normais processos metabólicos e respiratórios de
qualquer célula. Este parece ser o momento mais válido para consideramos que o novo ser
humano iniciou a sua vida biológica. Apesar de ainda não se ter dado a fusão (“singamia”) dos
cromossomas masculinos e femininos, a verdade é que já não entrará novo material genético
no novo ser. A activação metabólica parece representar um melhor “momento” t* do que o
sugerido atrás, relativamente à etapa do bloqueio da polispermia.
Após a activação metabólica do ovócito, seguem-se ainda três etapas que concluem a
fertilização: a descondensação do núcleo do espermatozóide (alínea “f)” atrás referida)3, o
SS- (disulfide) cross-linking that occurs among the protamine molecules compexed with the DNA during spermatogenesis. Shortly
after the head of the sperm enters the cytoplasm of the egg, the permeability of its nuclear membrane begins to increase, allowing
cytoplasmic factors within the egg to affect the nuclear contents of the sperm. After reduction of the –SS- crosslinks of the protamines to
«Os momentos chave, são: – A Clivagem, que é a primeira divisão mitótica, do ovo com os 46 cromossomas,
acontece às 24 horas, – A Mórula às 72h, – O Blastócito aos 4 dias (96h) e, – A Implantação no endométrio
do útero aos 6 dias: adesão e penetração no epitélio uterino (144h).»2
Relativamente ao excerto de Pedro Madeira atrás apresentado, para além do erro de se afirmar
que o espermatozóide deixa a sua cauda fora do ovócito (a cauda entra totalmente no interior
da membrana do ovo e dissolve-se no citoplasma), resta ainda a afirmação que é feita acerca de
a fertilização ser «um processo gradual que demora cerca de 22 horas». O processo de fertilização atrás
descrito demora poucos minutos, sendo certo que a duração exacta será diferente em cada
novo ser. E isto porque o zigoto precisa de várias horas para iniciar a clivagem3, com a sua
primeira divisão mitótica. Nos mamíferos, ao invés do que sucede com outros seres vivos, a
clivagem é um processo lento que demora entre 12 e 24 horas (esta última duração, no caso
dos seres humanos). Por isso, nos primeiros dias da vida do zigoto, o número de células
duplica de 24 em 24 horas aproximadamente. Em suma, Pedro Madeira está errado: o processo
de fertilização demora bastante menos do que 24 horas. A preparação do zigoto para a
primeira divisão mitótica é um processo muito lento e complexo, e isso explica porque é que
temos tantas horas entre o final da fertilização e o momento do início da clivagem,
aproximadamente às 24 horas de vida.
Também é útil ter presente como são definidas as fases embrionária e fetal:
sulfhydryl (-SH) groups by reduced glutathione in the ooplasm, the protamines are rapidly lost from the chromatin of the
spermatozoon, and the chromatin begins to spread out within the nucleus (now called a pronucleus) as it moves closer to the nucler
material of the egg. After a short period during which the male chromosomes are naked, histones begin to associate with the
cromossomes.», pp.35-36.
1 Segundo Carlson, op. cit., «Alter penetration of the egg by the spermatozoon, the nucleus of the egg, which had been arrested in
metaphase of the second meiotic division, completes the last division, releasing a second polar body into the periviteline space. A
pronuclear membrane, derived largely from the endoplasmic reticulum of the egg, forms around the female chromosomal material.
Cytoplasmic factors appear to control the growth of both the female and male pronuclei. DNA replication occurs in the developing
haploid pronuclei, and each chromosome forms two chromatis as the pronuclei approach each other. When the male and female
pronuclei come into contact, their membranes break down, and the chromosomes intermingle. The maternal and paternal chromosomes
quickly become organized around a mitotic spindle in preparation for an ordinary mitotic division. At this point, the process of
fertilization can be said to be complete and the fertilized egg is called a zygote.», p. 36.
2 Op. cit., p. 42.
3 Ver os excelente artigos acerca da clivagem e da mitose na Wikipedia:
http://en.wikipedia.org/wiki/Cleavage_%28embryo%29, e http://en.wikipedia.org/wiki/Mitosis
Como se vê, às oito semanas, antes no final do prazo de dez semanas proposto a referendo, já
estamos perante um feto humano. Neste texto, tentou-se argumentar que não há diferença
entre o erro ético de matar um zigoto, um embrião ou um feto, mas é importante ter estes
prazos bem presentes, porque pode suceder que alguns defensores do direito ao aborto
afirmem que às dez semanas ainda não há feto e ainda não terminou a organogénese, num
esforço para considerar que, neste período das dez semanas, o desenvolvimento humano é
mínimo, quando na verdade, às dez semanas, o ser humano já tem todos os seus principais
órgãos vitais formados e distintos.
«Physician's Oath
At the time of being admitted as a member of the medical profession:
«Whereas the peoples of the United Nations have, in the Charter, reaffirmed their faith in fundamental human
rights and in the dignity and worth of the human person, and have determined to promote social progress and
better standards of life in larger freedom,
Whereas the United Nations has, in the Universal Declaration of Human Rights, proclaimed that everyone is
entitled to all the rights and freedoms set forth therein, without distinction of any kind, such as race, colour, sex,
language, religion, political or other opinion, national or social origin, property, birth or other status,
Whereas the child, by reason of his physical and mental immaturity, needs special safeguards and care, including
appropriate legal protection, before as well as after birth,
1 Esta linha em particular foi adicionada na revisão feita na 22ª Assembleia Médica Mundial em Sidney (Austrália),
em Agosto de 1968. Contudo, nada do que já constava desde 1948 foi alterado nesta revisão.
2 Contudo, ao longo dos anos, o Juramento foi modificado de forma a fazer face às crescentes tendências
mundiais de mitigação do aborto. Na 35ª Assembleia Médica Mundial da WMA, em Veneza, em Outubro de
1983, a frase “…respect for human life from the time of conception” foi alterada para “…respect for human life
from its beginning”. Em Maio de 2005, a WMA voltou a alterar o Juramento, desta vez para remover totalmente a
expressão problemática, ficando apenas a ler-se “…respect for human life.”, tudo isto para acomodar o chamado
“aborto terapêutico”. A WMA explica estas alterações aqui, na secção “Abortion”:
http://www.wma.net/e/ethicsunit/whats_new_archives09.htm. A política actual da WMA em termos de ética
médica pode ser lida aqui: http://www.wma.net/e/policy/c8.htm.
3 Ver: http://www.un.org/Overview/rights.html.
Esta declaração, de forma explícita, não faz a distinção entre vida humana e pessoa humana
pelo facto de que exige protecção legal para a criança, tanto antes como depois do nascimento.
Ou seja, por outras palavras, o direito à vida é atribuído de forma incondicional, sem depender
da formulação de uma distinção entre “vida humana” e “pessoa humana”.
Sou da opinião de que Donald Marquis está certo ao afirmar que o problema do aborto está
em determinar a propriedade do feto que resolve de forma definitiva a questão da ética do
aborto2, uma vez que a esmagadora maioria dos defensores sérios do direito ao aborto não
vêem o feto como dotado da propriedade que lhe garantiria o direito à vida, e os seus
adversários não hesitam em reconhecer ao feto a posse do dito direito, posse essa derivada
necessariamente de uma sua propriedade intrínseca.
Normalmente, poucos contestam a premissa (2), sendo que é consensual, em termos médicos,
definir que a vida humana principia na concepção, altura a partir da qual se está perante um ser
vivo da espécie Homo Sapiens na sua acepção biológica plena.
Se a premissa (1) for verdadeira a par com a premissa (2), a mais elementar lógica valida a
conclusão (3). E a partir daqui, ajuizando que o direito à vida é prioritário face ao direito da
mulher ao seu corpo, o problema ético do aborto estaria resolvido: abortar é um crime.
O problema está em que a generalidade dos defensores sérios do direito ao aborto consideram
que a premissa (1) não é verdadeira. Pretendem que o direito à vida depende da posse de certas
e determinadas propriedades biológicas e/ou psicológicas, e nesse sentido procuram
estabelecer uma separação entre “pessoa humana” e “ser humano”. A primeira categoria é que
seria o garante do direito à vida. De facto, se a premissa (1) não fosse verdadeira, cairia por
terra toda esta argumentação contra o direito ao aborto.
Uma outra abordagem importante a este problema, sugerida por pessoas que defendem o
direito ao aborto como Judith Thomson, propõe que, mesmo assumindo a validade das
premissas (1) e (2), perante uma colisão de direitos, o direito do ser humano à vida e o direito
da mãe relativamente ao destino do seu corpo, este último vence. Assim, uma forma de
procurar legitimar o direito ao aborto passa por sublinhar a supremacia do direito da mulher ao
seu corpo face ao direito à vida do feto, ignorando, de certo modo, a validade ou não das
premissas (1) e (2). Esta abordagem, que pretende que o direito do feto à vida não é condição
1 Ver texto completo no site da Secretaria do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos,
em http://www.unhchr.ch/html/menu3/b/25.htm
2 Why abortion is immoral, The Journal of Philosophy, Inc., 1989.
3 Por economia verbal, para evitar a repetição dos mesmos termos, usa-se aqui o termo “feto” para designar a vida
We are asked to notice that the development of a human being from conception through birth into childhood is
continuous; then it is said that to draw a line, to choose a point in this development and say "before this point
the thing is not a person, after this point it is a person" is to make an arbitrary choice, a choice for which in the
nature of things no good reason can be given. It is concluded that the fetus is. or anyway that we had better say it
is, a person from the moment of conception. But this conclusion does not follow. Similar things might be said
about the development of an acorn into an oak tree, and it does not follow that acorns are oak trees, or that we
had better say they are. Arguments of this form are sometimes called "slippery slope arguments"--the phrase is
perhaps self-explanatory--and it is dismaying that opponents of abortion rely on them so heavily and uncritically.
É consensual que um adulto inocente tem o direito à vida. O raciocínio que pretende
considerar que o feto também o tem é um raciocínio linear: recuando do adulto para a criança,
vemos que esta também o tem, e recuando da criança acabada de nascer para a criança logo
antes do nascimento, não vemos razão para que deixe de o ter, e assim por diante, até ao
momento da concepção. Antes deste momento, é evidente que não existe tal coisa como um
You wake up in the morning and find yourself back to back in bed with an unconscious violinist. A famous
unconscious violinist. He has been found to have a fatal kidney ailment, and the Society of Music Lovers has
canvassed all the available medical records and found that you alone have the right blood type to help. They have
therefore kidnapped you, and last night the violinist's circulatory system was plugged into yours, so that your
kidneys can be used to extract poisons from his blood as well as your own. The director of the hospital now tells
you, "Look, we're sorry the Society of Music Lovers did this to you--we would never have permitted it if we had
known. But still, they did it, and the violinist is now plugged into you. To unplug you would be to kill him. But
never mind, it's only for nine months. By then he will have recovered from his ailment, and can safely be
unplugged from you." Is it morally incumbent on you to accede to this situation? No doubt it would be very nice
of you if you did, a great kindness. But do you have to accede to it? What if it were not nine months, but nine
years? Or longer still? What if the director of the hospital says. "Tough luck. I agree. but now you've got to stay
in bed, with the violinist plugged into you, for the rest of your life. Because remember this. All persons have a
right to life, and violinists are persons. Granted you have a right to decide what happens in and to your body,
but a person's right to life outweighs your right to decide what happens in and to your body. So you cannot ever
be unplugged from him."
1 São diferentes na sua forma, mas seguramente que não na sua essência. Nem é necessário recorrer a
argumentação ontológica para o sustentar, visto que qualquer biólogo reconhece que tanto a bolota como a árvore
pertencem à mesma espécie do reino vegetal.
poderia eventualmente retirar o suporte vital ao feto, desde que existisse uma alternativa para o feto, ou seja, ser
acolhido noutro útero onde poderia continuar a viver. No estado actual, mesmo o retirar do suporte vital ao feto
Como se vê, a mãe que decide abortar, claramente, autoriza a morte do seu filho, não está
apenas a deixá-lo morrer. Mesmo se considerássemos que a mãe optava, não por abortar
(directamente matar o feto), mas sim por retirar suporte vital ao feto, estaríamos perante o acto
de matar indirectamente o feto. Não se pode considerar esta excepção hipotética como um
acto ou omissão do tipo “deixar morrer”, porque sucede que o retirar do suporte vital ao feto
acarreta a morte do feto. O feto, se ainda não for viável, precisa sempre da sua mãe para
sobreviver. O violinista do exemplo de Thomson, para sobreviver, precisa pelo contrário de
uma solução para a sua insuficiência de fígado, e não necessariamente da “vítima” que foi
raptada e a ele ligada. Se a pessoa do exemplo decidir cortar o elo que a liga ao violinista, não é
forçoso que a morte do violinista ocorra devido a esse acto. O violinista não está estruturado
para viver ligado a alguém permanentemente, ele apenas necessita de uma forma de limpar o
seu sangue, algo que poderá ser feito de outro modo recorrendo a uma máquina, ou mesmo no
limite, recorrendo a outra “vítima”. Assim, a “vítima” de rapto que decide desligar-se do
violinista está, claramente, na situação da decisão lícita de “deixar morrer”1.
Recorrendo ao exemplo do Dr. Schwarz, se por falta de fôlego, desistimos de respirar
artificialmente pela pessoa, essa decisão é legítima porque (a) não parámos de respirar boca a
boca com o objectivo de matar o desafortunado, e (b) a nossa desistência não implica
forçosamente a morte do desafortunado: alguém poderá vir substituir-nos, eventualmente uma
equipa médica com um pulmão artificial, ou mesmo os pulmões do desafortunado poderão
voltar a funcionar por si mesmos.
«It may be said that what is important is not merely the fact that the fetus is a person, but that it is a person for
whom the woman has a special kind of responsibility issuing from the fact that she is its mother. And it might
be argued that all my analogies are therefore irrelevant--for you do not have that special kind of responsibility for
implica sempre a morte deste, se o feto ainda não estiver suficientemente desenvolvido para ser viável fora do
útero.
1 Evidentemente, suponho que a ligação forçada teria como intenção ser definitiva e com duração indeterminada.
Como foi dito atrás, se uma ligação temporária à “vítima” permitisse ao violinista recuperar e poder sobreviver
por si mesmo, abdicando a dada altura do sistema circulatório da “vítima”, não é claro que esta teria
imediatamente o direito de se separar dele.
Thomson tenta escapar a esta fraqueza afirmando, sem qualquer justificação, o seguinte
(sublinhado meu):
«If a set of parents do not try to prevent pregnancy, do not obtain an abortion, but rather take it home with
them, then they have assumed responsibility for it, they have given it rights, and they cannot now withdraw
support from it at the cost of its life because they now find it difficult to go on providing for it. But if they have
taken all reasonable precautions against having a child, they do not simply by virtue of their biological
relationship to the child who comes into existence have a special responsibility for it. They may wish to assume
responsibility for it, or they may not wish to. And I am suggesting that if assuming responsibility for it would
require large sacrifices, then they may refuse.»
Ou seja, segundo Thomson, os pais biológicos podem recusar a responsabilidade pela criança,
desde que tenham tomado “todas as precauções razoáveis” para evitar a gravidez. Thomson
advoga que a relação biológica entre os pais e a criança não atribui aos primeiros uma especial
responsabilidade sobre ela no caso em que os pais tomaram todas as precauções
contraceptivas. Essa suposta ausência de responsabilidade por parte dos pais legitimaria,
segundo Thomson, a opção pelo aborto.
Thomson faz então depender a responsabilidade paternal da ausência de intenção
contraceptiva dos progenitores. É um raciocínio errado, o que se demonstra com um contra-
exemplo. Suponhamos que um dado casal, totalmente informado acerca dos métodos
contraceptivos, e recorrendo à pílula contraceptiva com a devida regularidade medicamente
prescrita, se engana uma vez na caixa do medicamento devido à cor da mesma que é parecida
com a cor da caixa de outro medicamento, tomando então a mulher um medicamento
totalmente diverso. Claramente, este casal, de acordo com Thomson, estava a tomar
“precauções razoáveis” para evitar uma gravidez indesejada. O único erro foi acidental, não
desejado, inconsciente. No entanto, a mulher não consegue evitar a gravidez porque tomou o
medicamento errado. Será que Thomson quer mesmo propor um argumento para a ausência
de responsabilidade dos progenitores baseado em intenções contraceptivas? Um simples erro
na caixa da pílula transforma um aborto ilícito num aborto lícito de acordo com a
argumentação de Thomson. Não duvido de que Thomson, confrontada com este exemplo,
poderia advogar que o casal se deveria responsabilizar pelo seu erro na medicação e levar a
gravidez por diante, mas o que é um facto é que o argumento de Thomson abre espaço para
que se avalie a eticidade de um acto com base nas intenções dos seus imediatos e directos
responsáveis. E, como é evidente, a responsabilidade objectiva de um acto não está
fundamentada apenas em intenções, mas também em efeitos e consequências.
Este argumento não colhe: a responsabilidade dos progenitores para com a criança por nascer
existe sempre, independentemente da vontade destes em terem um filho ou não. Se
acidentalmente ferimos alguém somos eticamente obrigados e responsabilizados a colaborar na
ajuda à vítima do nosso acto, por muito acidental e indesejado que esse acto tenha sido. Como
vemos, o argumento de Thomson não legitima o aborto por opção na generalidade dos casos.
Vejamos agora se poderá legitimar o aborto em casos especiais…
O artigo de Thomson tornou-se muito popular pelo facto de que muitos o viam e vêem como
um contributo importante para tornar o aborto lícito em casos como o da gravidez por
violação. Muitos consideram que a analogia do violinista, a violência de alguém ser “ligado” a
outra pessoa para sobrevivência desta, é equiparável à violência de levar uma gravidez por
violação até ao fim.
1 Durante a escrita deste texto, ocorreu-me um caso extremo: o de uma mulher em cujo útero fosse implantado,
sem o seu consentimento, um ovo humano. Neste caso, essa mulher não teria sequer contribuído para o
património genético da criança. É um facto que essa criança precisaria dessa mulher para sobreviver à gravidez,
mas a ausência de ligação causal entre a mulher e a criança levanta dificuldades éticas. A protecção da vida
humana indefesa seria uma decisão louvável dessa mulher, ou seja, levar a gravidez indesejada adiante, mas não
me parece claro que tal decisão devesse ser imposta. No entanto, seguindo a linha de raciocínio usada neste texto,
sinto-me inclinado a também considerar o aborto nesta situação extrema como um acto eticamente ilícito, pelo
facto de que o direito à vida humana inocente seria superior ao direito da mulher a não ter uma gravidez
indesejada e com a qual ela não tinha nenhuma relação causal prévia.
2 A fixação de um limite quando se parte deste tipo de argumentação é, claramente, incoerente. Se a mulher tem
um direito de supremacia sobre o destino do seu corpo, porque razão não poderia abortar por sua livre escolha
um dia, uma hora ou mesmo um minuto antes do parto?
3 Ver artigo na Wikipédia: http://en.wikipedia.org/wiki/Roe_v._Wade. O texto completo do caso Roe vs. Wade
1 O pseudónimo de “Jane Roe” foi usado na altura do processo para ocultar o seu verdadeiro nome, Norma
McCorvey (1947-). Nos anos oitenta, uma década após o processo Roe vs. Wade, Norma decidiu revelar
publicamente a sua identidade, deixando cair o pseudónimo de Jane Roe.
2 Ler aqui o documento de opinião, escrito pelo juiz Blackmun:
http://www.law.cornell.edu/supct/html/historics/USSC_CR_0410_0113_ZO.html
3 L. Edelstein, The Hippocratic Oath (1943).
1 Segundo o colectivo, esta razão seria uma herança da moral vitoriana proveniente da legislação britânica, que já
não era levada a sério por ninguém, nem sequer fora usada pelo procurador texano durante o processo.
2 Lê-la aqui: http://www.law.cornell.edu/supct/html/historics/USSC_CR_0410_0113_ZD.html
1A ideia não científica de que uma obra mais moderna é, por força do chamado “Progresso”, melhor que outra
mais antiga. Quem acredita nesta ideia infundada partilha da convicção de que o Homem só pode saber cada vez
mais, que é impossível à Humanidade perder algum conhecimento que possuía antigamente. Esta ideia não tem
bases científicas, apesar de estar enraizada em grande parte da opinião pública. Deveria ser evidente que certos
conhecimentos se podem perder ao longo dos séculos, e que o avançar dos tempos pode conduzir a formas
piores e mais erradas de ver certas realidades.
«Os deontologistas – aquelas pessoas que pensam que a ética é um sistema de regras – podem salvar a sua
posição elaborando regras mais complicadas e mais específicas que não se contradigam, ou organizando essas
regras numa qualquer estrutura hierárquica que resolva os conflitos entre elas. Além disso, há uma velha
abordagem da ética que pouco sofre com as complexidades que tornam as regras simples de difícil aplicação: a
perspectiva consequencialista. Os consequencialistas não partem de regras morais1, mas de objectivos. Avaliam
as acções na medida em que favorecem esses objectivos. A teoria consequencialista mais conhecida, embora não
sendo a única, é o utilitarismo. O utilitarismo clássico considera uma acção um bem quando esta produz um
incremento igual ou maior da felicidade de todos os envolvidos relativamente a uma acção alternativa, e um mal
se assim não acontecer.»2
1 Uma nota importante: Singer usa frequentemente o termo “moral” como sinónimo de “ética”. Não podíamos
estar mais de acordo com ele: a moral é, de facto, o mesmo que a ética. No fundo, trata-se de estudar a conduta
humana e as respectivas regras. A moral, ou a ética, estudam as acções ou comportamentos e a sua respectiva
licitude ou ilicitude. Contudo, ao longo deste texto, rapidamente se constata que não usei o termo “moral”. O
problema quotidiano com o uso do termo “moral” como sinónimo de “ética” está nos equívocos gerados pelo
preconceito de que o uso de tal termo forçaria a argumentação do seu utilizador ao contexto de uma crença
religiosa, nomeadamente ao cristianismo no contexto da cultura ocidental. Pensa-se que quem argumenta usando
a palavra “moral” está a pensar necessariamente em modo religioso, e que por isso uma argumentação que recorra
a esta palavra não é universalmente aplicável, sendo inútil para um ateu ou para um agnóstico. É possível usar o
termo “moral” num contexto totalmente neutro em termos religiosos, ou mesmo num contexto não neutro como
o do ateísmo. De facto, é elementar constatar que qualquer pessoa, crente, agnóstica ou ateia, pode defender um
conjunto de regras gerais de conduta, e certas dessas regras podem e devem coincidir. Contudo, não se pode
perder de vista que o crente defende a ideia de que a moral, ou a ética, apenas alcançam pleno significado com o
conceito de infinitude metafísica (ao qual corresponde, em Teologia, o da bondade plena) representado pelo
termo “Deus” ou por outro que lhe seja análogo noutra cultura não ocidental. Uma ressalva: os conceitos que
caem na categoria da moral/ética ocidental são tão diferentes nas culturas orientais que se pode legitimamente
questionar se existirá nestas culturas algum termo ou termos plenamente equivalentes a “moral” ou “ética”, mas
explorar esta difícil questão levar-nos-ia para lá do âmbito deste texto.
2 Op. cit., p. 19.
«Poderíamos argumentar interminavelmente sobre os méritos de cada uma destas caracterizações da ética; mas o
que têm em comum é mais importante do que as suas diferenças. Todas concordam que não se pode justificar um
princípio ético relativamente a um grupo parcial ou local. A ética adopta um ponto de vista universal. Não quer
isto dizer que um determinado juízo ético tenha que possuir aplicação universal. Como vimos, as circunstâncias
alteram as causas. Significa, isso sim, que, quando fazemos juízos éticos, vamos para além de preferências ou
aversões.»1
Singer está absolutamente certo neste ponto, que aliás é defendido pela maioria dos filósofos
antigos, modernos e contemporâneos.
Os princípios éticos devem ser universalmente aplicáveis a qualquer sociedade humana, sob
pena de perdermos totalmente de vista o que é a ética. Mas também é inegável que o
relativismo ético está a corroer o pensar moderno, sobretudo na opinião pública, menos
habituada a pensar em termos éticos. No que diz respeito ao debate do aborto, muitos pensam
que votar “sim” ou votar “não” no referendo é apenas uma questão de “convicção pessoal”,
abdicando-se de tentar descobrir qual das opções de voto é a certa ou a errada do ponto de
vista ético.
O mundo moderno está hoje exposto como nunca ao confronto entre culturas muito
diferentes. Singer diz, na citação acima, algo que também pode ser muito útil neste confronto
cultural: ele alerta para a necessidade de não vermos todo e qualquer juízo ético como sendo de
aplicação universal. Parece-me justo que se combata a pena de morte2, mesmo que isso
implique contrariar seriamente uma determinada cultura3, quando se defende a ideia de que a
consequência penal de um crime de igual valor objectivo. Assim, segundo a sharia, quem mata alguém deve ser
morto. Esta visão, que parece ser coerente, e que também foi abundantemente usada no Ocidente durante séculos
e ainda hoje é usada em vários países considerados “civilizados”, é nitidamente contraditória com a defesa do
direito à vida humana. Se não existir uma razão de legítima defesa que a justifique, a pena de morte é uma
infracção ética. Na verdade, nas sociedades onde ainda se recorre à pena de morte, seria perfeitamente possível
isolar o agressor recorrendo a variados meios que não a morte, para que este deixasse de constituir uma ameaça
«Suponhamos agora que começo a pensar eticamente, a ponto de reconhecer que os meus interesses, pelo simples
facto de serem os meus interesses, já não podem contar mais que os interesses alheios. Em lugar dos meus
interesses, tenho agora de tomar em consideração os interesses de todas as pessoas que serão afectadas pela minha
decisão. Isso exige que eu pondere todos esses interesses e adopte a acção que tenha maior probabilidade de
maximizar os interesses dos afectados. Assim, pelo menos num determinado nível do meu raciocínio ético, tenho
que escolher as acções que têm as melhores consequências para todos os afectados.»1
para a sociedade. Se se defende o direito à vida humana, não é lícito dar a morte a ninguém sem ser em legítima
defesa.
1 Op. cit., p. 29.
A objecção do “especismo”
Um argumento erigido para tentar invalidar a premissa (1), “Todos os seres humanos têm
direito à vida”, consiste em questionar o porquê de reconhecer à espécie Homo Sapiens o direito
à vida, em detrimento de o reconhecer a outras espécies de seres vivos.
Alguns defensores do direito ao aborto com base na distinção entre “vida humana” e “pessoa
humana” procuram apontar à premissa (1) a suposta fraqueza de estar condenada pelo seu
“especismo”, ou seja, pelo facto de procurar dar primazia à nossa espécie no que diz respeito
ao direito à vida. Dizem que, caso encontrássemos outras formas de vida inteligente análogas à
nossa, mesmo que muito diferentes na sua forma, teríamos que também lhes reconhecer o
direito à vida. Por outras palavras, consideram que a categoria de “pessoa”, a tal que garante
segundo eles o direito à vida, também pode abarcar seres vivos de outras espécies.
Tentar apontar a falácia do “especismo” a quem defende inequivocamente aos seres humanos,
e apenas a eles, o direito inalienável à vida, é um fenómeno moderno, mas que está em plena
expansão e já goza de grande popularidade, não obstante se tratar de uma falsa falácia, visto
que o problema está mal colocado.
Peter Singer é um dos pensadores contemporâneos mais conhecidos em termos de denúncia
da falácia de especismo, ideia que ele aplica não só ao problema do aborto, mas também na sua
defesa dos direitos dos animais1.
«É possível dar à expressão “ser humano” um significado preciso. Podemos usá-la como equivalente a “membro
da espécie Homo Sapiens”. A questão de saber se um ser pertence a determinada espécie pode ser
cientificamente determinada por meio de um estudo da natureza dos cromossomas das células dos organismos
vivos. Neste sentido, não há dúvida de que, desde os primeiros momentos da sua existência, um embrião
concebido a partir de esperma e óvulo humanos é um ser humano; e o mesmo é verdade do ser humano com a
mais profunda e irreparável deficiência mental – até mesmo de um bebé anencefálico (literalmente sem cérebro).»1
(sublinhado meu)
É interessante notar, apenas de passagem, que muitos dos defensores do direito ao aborto
costumam dizer enormidades como “ainda ninguém está de acordo acerca do início da vida
humana”, ou “não é certo que o embrião seja um ser humano”. Claramente, isto sucede
porque desconhecem factos médicos elementares acerca da vida humana.
Não há, de facto quaisquer dúvidas, tanto entre médicos como entre filósofos, de que a vida
humana principia na concepção. Vejamos agora Peter Singer a tentar denunciar o suposto
especismo de reconhecer a todos os seres humanos um direito inalienável à vida:
«O mal de infligir sofrimento a um ser não pode depender da espécie a que esse ser pertence; nem o mal de o
matar. Os factos biológicos que traçam a fronteira da nossa espécie não têm significado moral. Dar preferência à
vida de um ser apenas porque esse ser é membro da nossa espécie pôr-nos-ia na mesma posição que os racistas,
que dão preferência aos membros da sua própria raça»2
É uma afirmação espantosa, esta a proferida por Peter Singer, reputado filósofo!
Peter Singer terá certamente maturado o seu raciocínio antes de afirmar as suas ideias, pelo que
não é razoável supor que a citação acima seja o resultado de um lapso ou de uma precipitação.
É pela força deste trecho e pela convicção nele plasmada que a visão que Peter Singer possui
acerca da Ética se encontra nele revelada.
No entanto, Peter Singer deveria levar em conta o seguinte: se algum ser necessita de Ética ou
de Moral, é o ser humano, e podemos encontrar esta necessidade mesmo no ateu mais
convicto, que procurará nesta disciplina da Filosofia a universal necessidade de Justiça. Para o
crente, a Justiça é um dos mais importantes atributos divinos, mas não é obrigatório que
sejamos crentes para desejarmos a Justiça. Ou seja, desejar a Justiça faz parte da essência do ser
humano, e é graças a este desejo profundo e inato que o ser humano desenvolveu o pensar
ético-moral. Apetece perguntar a Peter Singer se ele não estaria desempregado, caso a Justiça
não fosse um desejo intemporal do ser humano!
E, a seguir a esta, faríamos ainda outra pergunta a Singer: que outro animal deseja a Justiça?
Que outro animal precisa de uma ética, de uma moral, de um qualquer código de conduta sob
o qual reger a sua vida?
Singer diz que «os factos biológicos que traçam a fronteira da nossa espécie não têm
significado moral», mas é a própria moral que só faz sentido quando falamos de seres da nossa
espécie, pois que é apenas a nossa conduta humana que pode ser avaliada em termos morais.
Singer procura obstinadamente uma artificial igualdade entre nós e os restantes animais, mas
enquanto este pensador não hesitará em discutir a moralidade de matar outros animais, o que
dirá ele quando um qualquer animal mata um ser humano?
A objecção da “potencialidade”
Uma grande parte da Ética moderna, baseada em raciocínios utilitaristas, procura deduzir os
direitos de um indivíduo a partir dos seus desejos. Deste modo, e seguindo o exemplo sugerido
por Peter Singer, roubar um automóvel só seria errado se a vontade do respectivo dono fosse
violada. Ou seja, o direito a possuir um automóvel só existiria se o seu proprietário não
desejasse que lho roubassem.
Esta forma de pensar em termos éticos é relativamente recente, terá pouco mais de dois
séculos1, e no entanto está a conquistar terreno e a mudar radicalmente a forma de abordar
problemas éticos fundamentais como o do aborto.
As duas grandes divisões em Ética são, basicamente, a da deontologia e a do utilitarismo. O
deontologista, no exemplo dado atrás, diria que é errado roubar o automóvel pela razão de que
se trata de violação de propriedade privada, independentemente de considerações acerca dos
desejos do proprietário. Por outro lado, um utilitarista apenas consideraria a situação como
ilícita se o desejo do proprietário fosse desrespeitado.
O deontologista pensa com base numa mão cheia de axiomas éticos acima de discussão, como
o do direito à vida, o do direito à liberdade, o do direito à propriedade privada, entre outros. O
utilitarista considera que tais axiomas não são demonstráveis, e por isso, procura estabelecer
direitos caso a caso, com base, não só nos desejos dos indivíduos, mas também na decisão que
maximiza as vantagens para todos os envolvidos na decisão.
O problema está em que a ética utilitarista não possui alicerces sólidos, porque se baseia em
realidades subjectivas e individuais como as das volições humanas. Enquanto que a ética de
deontologia procura alicerces intelectualmente universais, e por isso, válidos para todos os
seres humanos, independentemente do tempo ou do espaço, a ética de utilitarismo faz com
que uma mesma acção em concreto possa ser boa ou má dependendo do contexto subjectivo
dos desejos e das vantagens/desvantagens para todos os envolvidos.
Deste modo, é com base numa visão utilitarista da Ética que se considera que matar um ser
humano apenas é errado se se violar o eventual desejo de viver desse ser humano. Por esta
linha de raciocínio, se o feto não desejar estar vivo porque nem sequer sabe que está vivo, ou o
que significa deixar de estar vivo, então não haverá mal em matá-lo.
O deontologista não hesita: matar um ser humano é sempre um mal, apenas justificável em
legítima defesa, o que não se aplica no caso do aborto. Logo, o deontologista conclui: o aborto
é um erro, um crime, um acto ilícito em termos éticos.
1Jeremy Bentham (1748-1832) foi um dos primeiros filósofos modernos a propor teorias utilitaristas. Foi seguido
por James Mill (1773-1836), pelo seu filho John Stuart Mill (1806-1873).
A essência do erro de distinguir “potenciais pessoas” de “pessoas” jaz numa visão distorcida da
essência do ser humano: quem o faz, fixa erradamente os seus conceitos à inconstância da
forma humana, em vez de os fixar na perenidade da essência humana. O ovo humano
fecundado, na sua totipotência genética, não possui maior complexidade do que um adulto ou
um idoso. Não existe mais informação genética num adulto do que num feto! Estamos apenas
perante alterações na forma, e não na essência. Se fazemos depender a ética de abortar daquilo
que é visível, ou da sofisticação intelectual que o ser humano vai gradualmente, desenvolvendo,
estamos a cometer um enorme erro.
Os direitos de qualquer ser humano devem ser reconhecidos pela sua essência humana, por
aquilo que ele é, e não por aquilo que ele, numa dada fase do seu desenvolvimento formal, é
capaz de fazer.
Uma criança portadora de Trissomia 21 (“Síndroma de Down”), ou recorrendo a um caso mais
extremo, uma criança anencefálica, pertencem ambas à espécie Homo Sapiens, e fazem parte de
uma categoria biológica única de seres dotados de pensamento abstracto, e consequentemente,
de seres capazes de aspirar à Justiça e de reconhecer direitos fundamentais aos elementos da
sua espécie. Mesmo que, no caso limite da anencefalia, um determinado ser humano não tenha
quaisquer possibilidades de desenvolver as suas capacidades intelectuais. Se uma criança ou um
adulto, numa dada fase da sua vida, perdem faculdades periféricas, ou perdem mesmo
faculdades fundamentais de forma irremediável, elas não deixam por essa razão de merecer o
estatuto mais elevado que se reconhece a qualquer ser vivo: o estatuto de ser humano, que
porque é ser humano, tem direito à vida.
Se, um dia, viermos a conhecer eventualmente outra espécie de ser vivo diferente da nossa à
qual seja reconhecida a capacidade de pensamento abstracto e o mesmo desejo de Justiça,
evidentemente que teremos que alargar a nossa categoria de “pessoa” aos seres dessa outra
espécie. Mas até ao momento, sem termos descoberto tal espécie, não faz qualquer sentido
discutir o direito à vida de outros seres que não os da espécie Homo Sapiens. Podemos dizê-lo
sem qualquer receio de incorrermos em falácia.
Repare-se como não foi necessário recorrer a qualquer argumento transcendente, de tipo
religioso. Tais argumentos caracterizam-se por valorizarem o ser humano muito para além das
suas meras faculdades biológicas. Qualquer coerente visão transcendente do ser humano não
se limita a ver a unicidade de cada ser humano no seu património genético, o que permite, por
exemplo, considerar dois gémeos verdadeiros (com exactamente o mesmo património
genético) como pessoas únicas e irrepetíveis.
Contudo, para concluir acerca do erro de abortar, não é necessário tornar a discussão mais
complicada, envolvendo argumentação religiosa.
Termino deixando esta ideia fundamental: ao longo dos seus nove meses de gestação, e ao
longo dos seus primeiros anos de vida, todo o ser humano desenvolve as capacidades que
possui desde a concepção. A própria palavra “desenvolvimento” ou “evolução” tem no seu
significado esta ideia: partir de características ou faculdades que temos em nós mesmos e tentar
1 Ver: The Journal of Philosophy, 86, 4, 1989, pp. 183-202. Ver também o artigo mais recente, An argument that abortion
is wrong, in La Follete, Ethics in Practice, 2ª ed., Malden, Blackwell, 2002, pp. 83-93.
«(…) nada impede um acto de ter dois efeitos, um dos quais é desejado, e o outro indesejado. Ora, os actos
morais recebem a sua espécie de acordo com o que é desejado, e não de acordo com o que está à parte da intenção,
visto que tal é acidental como explicado acima [43, 3; I-II, 12, 1]. Assim, o acto de defesa própria pode ter
dois efeitos, um sendo a salvação da própria vida, e o outro a morte do agressor. Desde modo este acto, porque a
intenção era salvar a própria vida, não é ilícito, considerando que é natural que todas as coisas, em podendo,
conservem o seu ser. Não obstante, apesar de este acto proceder de uma boa intenção, o acto pode tornar-se ilícito
se não for proporcional ao fim [desejado]. Deste modo se um homem, em defesa própria, usa uma violência
maior do que a necessária, [isso] é ilícito. Se repele a força verdadeiramente com moderação, a sua defesa será
justa, porque de acordo com os juristas [Cap. Significasti, De Homicid. volunt. vel casual.], “é justo repelir a
força pela força, desde que não se exceda os limites de inculpabilidade”.»2 (tradução feita “livremente”)
São Tomás diz que matar alguém em defesa própria pode ser lícito, visto que a intenção de
salvar a própria vida é lícita em si mesma, e que repelir um ataque como única forma de salvar
a própria vida, se feito de forma proporcionada, também é lícito. Ora, se um ataque é dirigido à
nossa vida, é possível que a única reacção que tenhamos disponível seja fazer algo na mesma
proporção: atacar a vida do nosso agressor. Nestes casos, dar a morte a outrem é lícito3, não
querendo matar o nosso agressor, e só o fazendo como forma única e inevitável de salvar a
própria vida. Vejamos agora a formulação geral tradicional do Princípio do Duplo Efeito, e a
sua aplicação ao dilema ético de uma gravidez de alto risco. As formulações tradicionais deste
princípio consistem em quatro condições necessárias para que a acção seja eticamente lícita:
1. A acção deve ser eticamente lícita (boa), ou pelo menos eticamente neutra;
2. A consequência má não pode ser desejada em si mesma; se a consequência má
(indesejada) pudesse ser evitada por outra acção diferente, essa deveria ser tomada;
3. A consequência boa (desejada) não pode ser atingida indirectamente por meio da
consequência má (os fins nunca podem justificar os meios), ou seja, pelo menos a
consequência boa deve provir directamente da acção tomada (a consequência má
poderá ser directa ou indirectamente causada pela acção);
4. A consequência boa deve ter peso igual à consequência má.
de morte, conquanto se comprove ser esta a única forma de legítima defesa de uma pessoa ou de um grupo de
pessoas perante um agressor que atente contra a sua vida. Ver, a este respeito, o ponto 56 da encíclica do Papa
João Paulo II, Evangelium Vitae, de 25 de Março de 1995:
http://benedictumxvi.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_25031995_evangelium-vitae_po.html
1. A acção (intervenção cirúrgica, por exemplo) de salvar a vida da mãe ser eticamente
lícita (boa);
2. A morte do feto (consequência) não ser desejada em si mesma; se a morte da mãe
puder ser evitada salvando o feto, essa deve ser a acção tomada;
3. A salvação da vida da mãe não pode ser obtida indirectamente, matando primeiro1
(directamente) o feto; pelo menos a salvação da vida da mãe deve ser consequência
directa da acção tomada (a morte do feto pode ser consequência directa ou indirecta da
acção);
4. Igual peso ético das consequências boa e má: a vida da mãe tem peso ético igual à vida
do feto.
Um exemplo clássico é o da mulher grávida com um tumor que inviabiliza o seu útero. O
médico que decida remover o útero para evitar a morte da mulher, apesar de saber que o feto
não sobreviverá sem o útero materno, está a agir de forma ética. O médico não deseja o aborto
em si mesmo, deseja salvar a vida da mulher e esta não sobreviverá se o útero não for
removido. Por outro lado, o médico não mata o feto directamente, limita-se a extirpar o útero.
Ou seja, a morte do feto não é um passo intermédio para, indirectamente, salvar a vida da
mulher. A remoção cirúrgica do útero canceroso gera a consequência directa da salvação da
vida da mãe e a consequência indirecta, inevitável e indesejada da morte do feto.
Este princípio é extremamente equilibrado, porque também permite deduzir que o médico que
opta por não agir numa situação destas está a portar-se de forma eticamente ilícita. Se o
médico nada faz para evitar o alastramento do tumor no útero para o resto do corpo da
mulher, estará, por ausência de acção, a ser responsável por negligência pela morte da sua
paciente, cuja vida depende directamente da sua acção técnica. Para além de morrer o filho,
morrerá também a mãe, sem o devido apoio médico.
Um mau argumento, usado nalguns debates para combater a posição ética dos crentes, consiste
em afirmar que um crente prefere que nada seja feito pelo médico para que “seja feita a
vontade de Deus”. Normalmente, uma pessoa pouco informada poderia pensar que o crente
católico, perante o dilema atrás dado como exemplo, preferiria deixar morrer a mulher e o feto.
Isto está profundamente errado. Não fazer a nossa obrigação ética é certamente um erro ético,
uma negligência.
O Princípio do Duplo Efeito é poderoso porque possui um apelo universal, que faz com que
também seja defendido por pensadores laicos. É um princípio independente de qualquer
crença religiosa, pois apela a conceitos universais de ética e de direitos fundamentais.
Chegados ao cerne deste texto, após análise das várias questões éticas em jogo, estamos em
condições de apresentar a conclusão final acerca da ética do aborto:
É sempre eticamente ilícito matar directamente um zigoto, embrião ou feto,
porque nunca é aplicável a situação de legítima defesa.
O zigoto, embrião ou feto nunca atentam contra a vida de ninguém.
A Europa envelhece…
Portugal é um dos países da Europa que envelhece mais depressa.
É bizarro promover políticas abortivas liberais quando o país necessitava de outro tipo de
medidas: apoio à natalidade e às famílias numerosas, criação e financiamento de centros de
acolhimento de crianças abandonadas, facilitação dos processos de adopção de crianças, entre
outras. O aborto livre surgiu nos E.U.A. em 1973, no rescaldo do caso Roe vs. Wade., e hoje
em dia, nesse país, a maré está a virar no sentido de restringir de novo o aborto, procurando
desenvolver estruturas sociais que protejam a maternidade.
Portugal, que gosta de importar tardiamente os erros dos outros, planeia agora liberalizar o
acesso ao aborto até às dez semanas, e isto claramente em “contra-ciclo”, quando as taxas de
natalidade prevêem a extinção das nossas populações a médio prazo se nada for feito para
travar esse “suicídio” demográfico europeu.
Os que defendem o acesso ao aborto falam em “progresso”, em “civilização”, sempre que um
país se torna permissivo nestas matérias, e nisto são socorridos por um Parlamento Europeu
autista, que ainda hoje insiste no acesso legal ao aborto1. Como se atrevem a fazê-lo num
contexto destes? Como é possível que tais argumentos falsos, que desprotegem e atacam a
mulher, ainda sejam tidos em conta?
Sexualidade responsável
A cultura hedonista e utilitarista da sociedade moderna entrou uma imparável rota de
desresponsabilização da sexualidade. Uma gravidez indesejada é sempre justificada com: a)
falta de acesso a métodos contraceptivos; b) falta de acesso a educação sexual; c) falha técnica
do método contraceptivo. Para onde vai a responsabilidade do homem e da mulher?
1 Em breve, uma versão revista deste texto conterá dados estatísticos recolhidos junto de fontes credíveis.
Este texto pretendeu argumentar acerca da verdade e justeza da resposta "não" ao próximo
referendo acerca da despenalização do aborto até às dez semanas a pedido da mulher em
estabelecimento autorizado. Este texto também serve para argumentar acerca da ilicitude ética
do aborto em qualquer fase da gravidez. Para além disto, também me parece claro que exigir a
um médico que pratique um aborto, ou um médico praticar um aborto de livre vontade e não
coagido, são ambos actos que violam o clássico juramento ético feito por qualquer médico,
baseado no Juramento de Hipócrates1, de proteger a vida humana em qualquer circunstância e
dentro das suas possibilidades. Em resumo, o argumento pelo “não” ao aborto é o seguinte:
a) A vida de um ser humano principia com a concepção, cujo "momento zero" se define
de forma segura com a singamia2, a fusão do material genético humano (o núcleo de 23
cromossomas do espermatozóide e o núcleo de 23 cromossomas do óvulo) no núcleo
diplóide que dá pelo nome de "zigoto"; esta definição de “vida humana” é a corrente
em qualquer manual contemporâneo de Medicina e não depende de quaisquer
considerações acerca da definição ética de “pessoa humana”;
c) Visto que a totipotência do zigoto demarca-o, de forma clara, de outro tipo de células
ou aglomerados celulares considerados independentemente, demarcando-o ainda do
espermatozóide e do óvulo, visto que nenhum deles em si mesmo, independentemente
do seu conteúdo genético, é totipotente como é o zigoto;
e) Visto que uma distinção artificial entre “ser humano” e “pessoa humana” parece ser
apenas um expediente para tentar contornar a ilicitude do aborto, porque o direito à
vida baseia-se naquilo que o zigoto, embrião ou feto são, e não naquilo que ainda não
1 Após a revisão que a World Medical Association fez ao juramento em 2005, a frase “problemática” que era
directamente contraditória com a prática do aborto foi suprimida, certamente para tentar contornar este tipo de
críticas. Contudo, a fórmula clássica do Juramento, até 1983, protegia especificamente a vida humana desde a
concepção. Ver a nota de rodapé acerca do Juramento do Médico, no capítulo 6.3. Não obstante, o juramento
actual ainda obriga o médico a proteger a vida humana, e por isso, torna perjuro todo e qualquer médico que
pratique um aborto, mesmo que num quadro legislativo que confira legalidade jurídica a tal acto.
2 Ver considerações estabelecidas atrás acerca do início da vida humana no capítulo 6.
f) Visto que existe consenso generalizado de que o acto de privar uma pessoa inocente da
sua vida é eticamente ilícito1, e ponderando as possíveis razões para a ilicitude ética
deste acto, uma razão interessante parece ser a da privação provocada de um futuro em
absoluto2, independentemente da duração desse futuro, um futuro único que pertence
a cada pessoa e que seria vivido e concretizado caso não se verificasse essa privação
provocada;
g) Visto que qualquer pessoa inocente tem, então, o direito a possuir um futuro em
absoluto, único e irrepetível, do qual não seja privada por um acto provocado3;
h) Visto que a propriedade de ter um futuro em absoluto, juntamente com o direito a ter
esse mesmo futuro em absoluto sem que deste seja privado por um acto provocado, é
partilhada tanto pela generalidade das pessoas inocentes (sejam elas crianças,
adolescentes, adultos ou idosos) como pela generalidade dos fetos em qualquer fase do
seu desenvolvimento, incluindo a fase embrionária, desde o momento em que qualquer
ser humano “adquire” esse seu futuro, o que só pode ser coincidente com o início da
vida humana, ou seja, com a concepção, altura em que a vida humana tem o seu início;
i) Visto que levar até ao fim uma gravidez indesejada pode acarretar para a mãe uma série
de consequências psicológicas, sociais ou económicas, mas que o direito a evitar estas
consequências é um direito seguramente menor que o direito de um ser humano à vida,
ou seja, a não ser privado do seu futuro de forma intencional e provocada; se assim não
fosse, seria forçoso encontrar exemplos de situações reais nas quais fosse eticamente
lícito privar um qualquer ser humano inocente, mesmo já nascido, da sua vida futura
para evitar consequências psicológicas, sociais ou económicas, por mais graves que
estas fossem;
1 A palavra “inocente” é fundamental para evitar, por exemplo, a inviabilização do pressuposto no caso de
legítima defesa. Claramente, é lícito matar alguém em legítima defesa, seja da nossa vida seja da vida de alguém
por quem somos responsáveis. Considera-se que este ponto é consensual.
2 A vida dessa pessoa seria terminada pelo dito acto provocado, independentemente da duração curta ou longa
que essa vida teria caso não se verificasse esse acto. O seu futuro em absoluto, ou seja, não apenas um “futuro
qualquer” de expectativas (esse nunca poderia ser um direito – não temos o direito a ter qualquer futuro que
queiramos ter), mas sim o seu futuro biológico e biográfico, deixaria simplesmente de existir. Por “futuro”,
entenda-se também “vida futura”, seja ela qual for ou vier a ser.
3 Deste debate ético, excluem-se necessariamente causas biológicas intrínsecas à pessoa (por exemplo, doenças
mortais) bem como causas extrínsecas à pessoa e não imputáveis a ninguém (por exemplo, acidentes ou
catástrofes de consequências mortais), ambas de âmbito exterior à ética, ou seja, sempre que não há uma vontade
deliberada e provocada de alguém causar a morte a outrem.
o Então, abortar voluntariamente é algo de eticamente ilícito, seja em que fase for da
gravidez, pela simples razão de que a vida humana em formação perde imediatamente
o seu futuro (a sua vida futura) por intervenção provocada; por esta razão, abortar
nestas circunstâncias é eticamente equivalente a terminar qualquer vida humana
inocente, de forma deliberada, quer estejamos a falar de uma criança, de um
adolescente, de um adulto ou de um idoso;
o Então, não é lícito tomar qualquer medida, incluindo votar “sim” no próximo
referendo ou apoiar a campanha pelo “sim”, que permita ou procure legitimar o
término provocado da vida do ser humano, que principia no momento em que se
constitui como zigoto (núcleo totipotente de genoma humano) e que termina com a
sua morte;
1. A argumentação para a ilicitude ética do aborto é idêntica à argumentação para a ilicitude ética
do homicídio;
2. A prática do aborto é objectivamente um crime, conclusão que se baseia nos mesmos
pressupostos éticos que fazem do homicídio objectivamente um crime;
3. A legislação deve continuar a tratar o aborto como um crime, visto que trata o homicídio como
um crime;
4. A resposta “sim” à pergunta do referendo que se avizinha permitiria o aborto a pedido da mãe,
sem qualquer justificação, até às dez semanas de gravidez; tal resposta só pode implicar a
descriminalização do aborto, sob pena de incoerência grave da própria legislação; para tentar
ser coerente, a legislação terá que apenas considerar crime o acto de abortar após as dez
semanas, o que como vimos atrás, carece de coerência ética e de sustentabilidade
argumentativa; o que sucede na décima semana para que surja espontaneamente a
criminalidade no acto de abortar?
5. Dada a enorme amplitude do espectro social e psicológico da mulher que aborta, é
fundamental garantir um quadro penal amplo que situe a pena entre dois extremos:
a. Pena mínima ou nula: em situações de fortes atenuantes sociais e psicológicas, devia-se
dar lugar à suspensão do processo, evitando-se o julgamento; nestas situações, o
importante é o aconselhamento à mulher que abortou, e a haver pena, o que faz
sentido é o recurso a penas de serviço social em instituições de apoio social de valor
reconhecido; é o forte elo biológico e psicológico entre mãe e feto, juntamente com a
complexidade da situação para a própria mãe que decide abortar, que dá todo o
sentido a que o extremo mínimo de penalização deste crime possa corresponder à
ausência de pena ou à aplicação de uma pena leve de serviço social, o que torna este
crime totalmente distinto do crime do homicídio, nunca em termos da sua gravidade
objectiva, que é igual, mas em termos do seu subjectivo tratamento penal;
b. Pena máxima: em situações de repetida e obstinada prática do aborto, em
circunstâncias particularmente graves como a ausência de motivos válidos e/ou a
demonstração de total desculpabilização e falta de responsabilidade por parte de quem
aborta; nestas situações, as atenuantes que permitiriam um tratamento penal diferente
do dado ao crime de homicídio não estão presentes, e não há razão para não se
Considero que os textos dos votos de vencido presentes no Acórdão 617/061 encerram
argumentação valiosa e imprescindível, que permite aferir a clara inconstitucionalidade da
pergunta do referendo. Se, ao invés de seis em sete, tivessem votado contra a
constitucionalidade da pergunta um número maioritário de magistrados, o referendo nem
sequer seria realizado por ser declarado inconstitucional, devido à falta de clareza da pergunta e
devido à inconstitucionalidade da resposta afirmativa.
Há uma grande diferença entre:
a) A pergunta ser constitucional;
b) A pergunta ser votada como constitucional.
Obviamente, o que sucedeu a 15 de Novembro de 2006 foi o caso b), o que não permite que
se deduza imediatamente que a) é uma afirmação verdadeira. Continua a ser perfeitamente
justificável e defensável afirmar que a pergunta é inconstitucional.
Daqui advém a grande importância da argumentação apresentada pelos magistrados vencidos,
porque esta explica de forma sólida e com carácter de autoridade a existência de
inconstitucionalidade da pergunta do referendo. Antes de reproduzir os textos dos votos de
vencido, reproduz-se para referência o texto da decisão do Tribunal Constitucional.
A.1 Decisão
38. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
1º Considerar que
a) A proposta de referendo constante da Resolução nº 54‑A/2006 da Assembleia da República foi aprovada pelo
órgão competente para o efeito, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 115º da Constituição da República
Portuguesa;
b) O referendo proposto tem por objecto questão de relevante interesse nacional que deve ser decidida pela
Assembleia da República através de acto legislativo, conforme se preceitua no nº 3 do mesmo artigo;
c) A matéria sobre que ele incide não se encontra excluída do âmbito referendário, de acordo com o estabelecido
no nº 4 do mencionado artigo 115º;
d) O referendo proposto recai sobre uma só matéria, através de uma só pergunta, sem quaisquer considerandos,
preâmbulos ou notas explicativas, sendo a questão formulada para uma resposta de sim ou não e cumprindo,
nestes aspectos, as exigências constantes do nº 6 do artigo 115º da Constituição e do artigo 7º da Lei Orgânica do
Regime do Referendo;
e) A pergunta formulada satisfaz os requisitos de objectividade, clareza e precisão, enunciados nas mesmas
disposições;
f) A proposta de referendo respeitou as formalidades especificadas nos artigos 10º a 14º da Lei Orgânica do
Regime do Referendo;
g) A restrição da participação no referendo aos cidadãos residentes em território nacional cumpre os requisitos do
universo eleitoral prescritos no nºs 1 e 12 do artigo 115º da Constituição;
h) O Tribunal Constitucional, no âmbito da verificação prévia da constitucionalidade do referendo, a que se refere
a alínea f) do nº 2 do artigo 223º da Constituição, é competente para apreciar se a pergunta formulada não coloca
os eleitores perante uma questão dilemática em que um dos respectivos termos aponta para uma solução jurídica
inconstitucional;
i) Nenhuma das respostas – afirmativa ou negativa – à pergunta formulada implica necessariamente uma solução
jurídica incompatível com a Constituição.
2º Consequentemente, ter por verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na
mencionada Resolução nº 54‑A/2006, da Assembleia da República.
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido quanto às alíneas e) e i) do n.º 1, e ao n.º 2 da decisão, e com declaração
de voto quanto à alínea g) do n.º 1, nos termos da declaração de voto junta.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza. Vencida quanto às alíneas e), h) e i) do n.º 1 e, consequentemente quanto
ao n.º 2 da decisão, conforme declaração de voto junta.
Paulo Mota Pinto (vencido quanto às alíneas e), g), e i) do n.º 1, e, consequentemente, quanto ao n.º 2 da
decisão, nos termos da declaração de voto que junto)
Benjamim Rodrigues (vencido quanto às alíneas e) e i) do n.º 1 e, decorrentemente, ao n.º 2 da decisão, e
com declaração de voto quanto à sua alínea g) do n.º 1, nos termos da declaração de voto junta.)
Mário José de Araújo Torres (Vencido relativamente às alíneas e), g) e i) do n.º 1 e, consequencialmente, ao
n.º 2 da decisão, nos termos da declaração de voto junta)
Carlos Pamplona de Oliveira (vencido quanto às alíneas e) e i) do n.º 1 e quanto ao n.º 2 da decisão
conforme declaração em anexo que, para além disto, abrange as matérias tratadas nas alíneas b), c), d), g) e h) do
aludido n.º 1 da decisão do presente aresto).
Artur Maurício
Ponderei durante algum tempo antes de decidir incluir neste documento este apêndice com
alguns dados e factos acerca das origens e motivações da International Planned Parenthood
Foundation1 (IPPF) e do seu empenho nas últimas décadas com o objectivo de liberalizar o
aborto, a par com outros objectivos como o da promoção do planeamento familiar e o da
contracepção, bem como a promoção de um tipo particular de “educação sexual”.
Numa primeira abordagem, este documento pretendia ser apenas um texto argumentativo
contra o direito do aborto a pedido e que apelasse racionalmente ao voto “não” no referendo
de 11 de Fevereiro de 2007. Contudo, ao longo do tempo que despendi a estudar este assunto,
fui-me dando conta de que desconhecia profundamente a história da IPPF, das suas origens,
das suas motivações, das ideias dos seus fundadores e promotores. Ao tomar contacto com
esta história, intimamente relacionada com a da discussão em torno do aborto, também me dei
conta de que tal informação não estava suficientemente divulgada. Tratam-se de factos
incómodos para o status quo do “politicamente correcto” no qual nos movemos diariamente.
Verifiquei que a minha ignorância acerca da IPPF não era apenas um problema meu nem um
caso isolado. Sistematicamente, estes factos não chegam à opinião pública. Claramente,
abstenho-me de procurar razões ocultas ou conspiratórias que levam a esta situação, e isto
também porque sou contra “teorias da conspiração”, que em muitos casos, pela forma
simplista como são veiculadas, se tornam em retratos também eles simplistas de uma realidade
complexa e multifacetada.
Afinal, onde está ancorado este duplo fenómeno, que passa por constatarmos a) que a
informação fundamental acerca da história e motivações da IPPF é difícil de encontrar e está
pouco divulgada, e b) que os principais promotores da divulgação destes factos são rotulados
de “fanáticos” e “fundamentalistas” pelos fazedores da opinião pública, quando não mesmo
sujeitos a propositadamente vexatórios processos judiciais?
O que se segue, alguns factos relativos à história e motivações da IPPF, permite a quem me lê
tomar conhecimento da história e das motivações por detrás de um dos maiores movimentos
internacionais pela liberalização do aborto, pelo que se concordará com a afirmação de que
esta informação é pertinente para qualquer discussão acerca do aborto.
1 http://www.ippf.org
2 O que se segue é uma síntese desta informação biográfica: http://en.wikipedia.org/wiki/Margaret_Sanger
1 Chesler, Ellen, Woman of Valor: Margaret Sanger and the Birth Control Movement in America. New York City, NY:
Simon & Schuster, 1992. Citada no artigo da Wikipédia acima referido.
2 O Comstock Act de 1873. Ver: http://en.wikipedia.org/wiki/Comstock_Law
3 Foi o Director Científico do Scientific Advisory Board do Tobacco Industrial Research Committee (que mudou de nome,
“The question, then, is not whether family limitation should be practised. It is being practised; it has long been
practised and it will always be practised. The question now is whether it is to be attained by normal, scientific
Birth Control methods or by the abnormal, often dangerous, surgical operation.”
Claramente, Sanger defende um ponto de vista pragmático: o aborto é uma realidade, ou seja, é
algo de inevitável e que está a ser feito na sociedade. A solução apontada para evitar a
“anormal, por vezes perigosa, operação cirúrgica” do aborto passaria, segundo Sanger, pelo
controlo de natalidade. É curioso notar que os actuais sucessores e “herdeiros” ideológicos de
1 Certamente que Sanger veria o adversário católico como mais forte do que a fragmentada realidade do universo
protestante, onde porventura encontraria, em certos ramos do protestantismo, menor oposição ou por vezes
apoio às suas ideias. Sanger criticava, sobretudo, tanto a moral sexual católica como a atitude da Igreja Católica em
relação à caridade. Em várias das obras de Sanger, como por exemplo em The Pivot of Civilization (ver o capítulo V,
“The Cruelty of Charity”), encontramos as suas opiniões negativas acerca da cultura cristã como também acerca
do aspecto especificamente católico dessa cultura.
2 Fonte: http://wilde.acs.its.nyu.edu/sanger/documents/show.php?sangerDoc=232534.xml
“In plain, everyday language, in an abortion there is always a very serious risk to the health and often to the life
of the patient.
It is only the women of wealth who can afford to give an abortion proper care and treatment both at the time of
the operation and afterwards. These women often escape any serious consequences from its occurrence.
The women whose incomes are limited and who must continue at work before they have recovered from the effects
of an abortion are the great army of sufferers. It is among such that the deaths due to abortion usually ensue. It
is these, too, who are most often forced to resort to such operations.
If death does not result, the woman who has undergone and abortion is not therefore safe. The womb may not
return to its natural size but remain large and heavy, tending to fall away from its natural position. Abortion
often leaves the uterus in a condition to conceive easily again and unless prevention is strictly followed another
pregnancy will surely occur. Frequent abortions tend to cause barrenness and serious, painful pelvic ailments.
These and other conditions arising from such operations are quite likely to ruin a woman's general health.
While there are cases where even the law recognizes an abortion as justifiable if recommended by a physician, I
assert that the hundreds of thousands of abortions performed in America each year are a disgrace to civilization.
I also assert that the responsibility for these abortions and the illness, misery and deaths that come in their train
lies at the door of a government whose authority has been stretched beyond the limits of the people's intention and
which, in its puritanical blindness, insists upon suffering and death from ignorance, rather than life and
happiness from knowledge and prevention.
It needs no assertion of mine to call attention to the grim fact that the laws prohibiting the imparting of
information concerning the preventing of conception are responsible for tens of thousands of deaths each year in
this country and an untold amount of sickness and sorrow. The suffering and the death of these women is
squarely upon the heads of the lawmakers and the puritanical, masculine-minded persons, who insist upon
retaining the abominable legal restrictions.
Try as they will they cannot escape the truth, nor hide it under the cloak of stupid hypocrisy. If the laws against
imparting knowledge of scientific Birth Control were repealed, the 1,000,000 or 2,000,000 women who
undergo abortions in the United States each year would escape the agony of the surgeon's instruments and the
long trail of disease, suffering and death which so often follows.”
Não resta, então, dúvida alguma de que Margaret Sanger considerava o aborto como uma
epidemia. Fica também claro que Sanger não tece considerações éticas acerca do embrião ou
do feto abortados, mas que se preocupa exclusivamente com as consequências para a saúde da
mulher que aborta, que eram então praticadas com elevado risco.
No final do artigo citado, Sanger deixa à Igreja, ao Estado e à sociedade a tarefa de decidir
entre o controlo de natalidade e o aborto, marcando ainda mais a ideia de que ela queria
promover o primeiro como solução para acabar com o último:
“When all is said and done, it is not the advocates of Birth Control, but the bitter, unthinkable conditions
brought about by the blindness of church, state and society that puts up to all three the question: Birth Control
or Abortion–-which shall it be?”
Em bom rigor, não se pode afirmar que Sanger promoveu activamente o aborto como um fim
em si mesmo. Durante a fase de crescimento, e até ao apogeu, da sua carreira pública, Sanger
viveu sempre sob uma legislação restritiva em termos de aborto e a batalha de Sanger nunca foi
“I found that the Marxian influence tended to lead workers to believe that, irrespective of the health of the poor
mothers, the earning capacity of the wage-earning fathers, or the upbringing of the children, increase of the
1 Ver Apêndice B.
2 Brentano’s Publishers, Nova Iorque, 1922.
Também não há dúvidas de que Sanger aprovava o maltusianismo, se bem que ela considerava
que apenas o controlo da natalidade é que daria toda a amplitude às doutrinas de Thomas
Malthus (1766-1834)2, cuja limitação para Sanger eram serem puramente economicistas:
“As a social programme, Birth Control is not merely concerned with population questions. In this respect, it is a
distinct step in advance of earlier Malthusian doctrines, which concerned themselves chiefly with economics and
population. Birth Control concerns itself with the spirit no less than the body. It looks for the liberation of the
spirit of woman and through woman of the child. Today motherhood is wasted, penalized, tortured. Children
brought into the world by unwilling mother suffer an initial handicap that cannot be measured by cold statistics.
Their lives are blighted from the start.”3
A aprovação dada por Sanger ao maltusianismo, bem como às variantes mais sofisticadas de
neo-maltusianismo, compreende-se pelo facto de ela via o controlo de natalidade como um
essencial travão para a explosão demográfica.
Vejamos agora as ideias de Sanger acerca da eugenia…
Se, por um lado, alguns podem alegar que é injusto apresentar Sanger taxativamente como
abortista, também é inaceitável, por outro lado, eufemizar ou ocultar as ideias de Sanger acerca
da eugenia. É importante também vincar a ideia de que, no início do século XX, uma pessoa
com relevo intelectual ou social não o perdia, “ipso facto”, por defender ideias racistas ou de
aperfeiçoamento da raça. Pelo contrário, as teorias de apuramento da raça foram objecto de
inúmeros estudos e obras intelectuais que, sendo hoje sem dúvida classificadas de racistas,
naquele tempo gozavam de um certo prestígio científico.
Sucede o mesmo com a obra de Sanger. Se bem que não seja fácil encontrar escritos de Sanger
abertamente racistas, é certo que encontramos inúmeras evidências de que ela defendia o
aperfeiçoamento racial, a eugenia e a esterilização dos “menos aptos”. A distinção é subtil, mas
importante: Sanger não parece propor, como os nazis fizeram, uma teoria acerca do valor
absoluto de uma raça face a outra. A posição de Sanger é mais anglo-saxónica do que
germânica, e isso nota-se no seu marcado utilitarismo e pragmatismo. Sanger via um qualquer
bairro étnico degradado como um problema social devido à presença de um grande número de
“There is but one practical and feasible program in handling the great problem of the feeble-minded. That is, as
the best authorities are agreed, to prevent the birth of those who would transmit imbecility to their descendants.
Feeble-mindedness as investigations and statistics from every country indicate, is invariably associated with an
abnormally high rate of fertility. Modern conditions of civilization, as we are continually being reminded, furnish
the most favorable breeding-ground for the mental defective, the moron, the imbecile. "We protect the members of
a weak strain," says Davenport, "up to the period of reproduction, and then let them free upon the community,
and encourage them to leave a large progeny of `feeble-minded': which in turn, protected from mortality and
carefully nurtured up to the reproductive period, are again set free to reproduce, and so the stupid work goes on of
preserving and increasing our socially unfit strains."
The philosophy of Birth Control points out that as long as civilized communities encourage unrestrained
fecundity in the "normal" members of the population—always of course under the cloak of decency and
morality—and penalize every attempt to introduce the principle of discrimination and responsibility in
parenthood, they will be faced with the ever-increasing problem of feeble-mindedness, that fertile parent of
degeneracy, crime, and pauperism. Small as the percentage of the imbecile and half-witted may seem in
comparison with the normal members of the community, it should always be remembered that feeble-mindedness
is not an unrelated expression of modern civilization. Its roots strike deep into the social fabric. Modern studies
indicate that insanity, epilepsy, criminality, prostitution, pauperism, and mental defect, are all organically bound
up together and that the least intelligent and the thoroughly degenerate classes in every community are the most
prolific. Feeble-mindedness in one generation becomes pauperism or insanity in the next. There is every
indication that feeble-mindedness in its protean forms is on the increase, that it has leaped the barriers, and that
there is truly, as some of the scientific eugenists have pointed out, a feeble-minded peril to future generations—
unless the feeble-minded are prevented from reproducing their kind. To meet this emergency is the immediate and
peremptory duty of every State and of all communities.”
Ideias como estas são hoje totalmente inaceitáveis, sobretudo porque a Segunda Guerra
Mundial nos ensinou os perigos de uma política eugénica apoiada numa forte e militarizada
sociedade ditatorial, como por exemplo, o Terceiro Reich. As experiências nazis no campo da
eugenia constituem hoje um tristemente célebre episódio de horror na nossa memória
colectiva.
Mas Sanger retira censuráveis e controversas conclusões na sua defesa obstinada de uma
inegável forma de eugenia. Segundo ela, as implicações de não se seguir uma estratégia
eugénica prejudicam inclusive o ensino:
Sanger chega mesmo a admitir, no primeiro capítulo, que métodos de força deve ser usados na
sociedade americana para impedir a fertilidade dos “inadaptados” (“unfit”):
“The lack of balance between the birth-rate of the "unfit" and the "fit," admittedly the greatest present menace
to the civilization, can never be rectified by the inauguration of a cradle competition between these two classes.
The example of the inferior classes, the fertility of the feeble-minded, the mentally defective, the poverty-stricken,
should not be held up for emulation to the mentally and physically fit, and therefore less fertile, parents of the
educated and well-to-do classes. On the contrary, the most urgent problem to-day is how to limit and discourage
the over-fertility of the mentally and physically defective. Possibly drastic and Spartan methods may be forced
upon American society if it continues complacently to encourage the chance and chaotic breeding that has resulted
from our stupid, cruel sentimentalism.”2 (sublinhado meu)
As palavras de Sanger são bem claras acerca da segregação e da eugenia para os “menos aptos”,
como podemos ver neste trecho do capítulo IV:
“The emergency problem of segregation and sterilization must be faced immediately. Every feeble-minded girl or
woman of the hereditary type, especially of the moron class, should be segregated during the reproductive period.
Otherwise, she is almost certain to bear imbecile children, who in turn are just as certain to breed other
defectives. The male defectives are no less dangerous. Segregation carried out for one or two generations would give
us only partial control of the problem. Moreover, when we realize that each feeble-minded person is a potential
source of an endless progeny of defect, we prefer the policy of immediate sterilization, of making sure that
parenthood is absolutely prohibited to the feeble-minded.”3 (sublinhado meu)
Será que isto chega para que se classifique Margaret Sanger como uma racista pura, ao nível de
um ideólogo nazi? Penso que tais comparações poderão ser desadequadas, porque a eugenia de
Sanger, sendo semelhante à eugenia suportada no racismo hitleriano, não tinha uma base
racista como a que encontramos no nacional-socialismo, nem partilhava dos mesmos
objectivos políticos hegemónicos. Contudo, é inegável que, em termos de aperfeiçoamento
racial e eugenia, os métodos propostos por Sanger são semelhantes em vários aspectos aos
defendidos e usados pelos nacional-socialistas.
Certamente que, com a derrota da Alemanha nazi, Sanger e os seus colaboradores perderam
uma grande parte do seu entusiasmo intelectual e “científico” pela promoção da eugenia e pelo
aperfeiçoamento racial. Mas, não obstante podermos pensar que Sanger não seria uma pura
racista, no sentido que hoje damos a essa palavra, a verdade é que trabalhou, numa fase fulcral
da sua carreira, com um colaborador racista. O seu colaborador e co-fundador da American
Birth Control League, Lothrop Stoddard, era abertamente racista. Stoddard escreveu em 1920
uma obra cujo título é suficientemente explícito: The Rising Tide of Color Against White World-
Supremacy.
Contudo, a questão mais delicada no debate acerca do eventual racismo de Sanger é a questão
dos seus projectos junto da população negra, nomeadamente o projecto em Harlem (1929-
1930) e o chamado “Negro Project” (1939-1942). Penso que é justo concluir que Sanger não
era racista, e que a sua visão acerca da raça negra era idêntica à que teria relativamente a
1 Ibidem.
2 Op. cit., capítulo I.
3 Op. cit., capítulo IV.
«Though she tried for years, Sanger was unable to convince the leaders of the eugenics movement to accept her
credo that "No woman can be free who does not own and control her body (Sanger, 1920)." Her on-going
disagreement with the eugenicists of her day is clear from her remarks in The Birth Control Review of February
1919:
A PFFA defende a fundadora da acusação de racismo, afirmando que Sanger criticava os usos
racistas da eugenia, mas por outro lado, e de forma clara, demarca-se das posições eugénicas de
Sanger, considerando-as questionáveis e “fora de moda”. Nota-se também que a eugenia de
Sanger era de um tipo especial: deveria ser praticada sem perder de vista a liberdade e
autodeterminação da mulher em termos da sua sexualidade e reprodução. Por essa razão,
Sanger teria que se opor, logicamente, a qualquer despotismo estatal sobre o corpo da mulher,
que segundo ela não deveria ser colocado ao serviço do Estado. Esta é uma boa razão para
diferenciar as ideias eugénicas de Sanger das ideias eugénicas da maior parte dos nacional-
socialistas, ou da típica eugenia racista. Mas, como vimos atrás, Sanger era incoerente com esta
sua defesa da liberdade da mulher sempre que defendia que as raparigas portadoras de
deficiências deveriam ser segregadas e esterilizadas.
Contudo, a PPFA mostra-se herdeira do legado intelectual de Sanger no que diz respeito ao
seu maior erro. Sanger estava profundamente equivocada na sua visão ética acerca da mãe e do
feto. Em bom rigor, Sanger não tinha posição ética acerca do feto, limitando-se exclusivamente
à defesa da mãe, da sua liberdade e das suas decisões, e esse sempre foi o seu maior erro. Por
essa mesma razão, a visão que Sanger tinha da sexualidade feminina era altamente redutora:
Sanger opunha-se ao aborto por questões de saúde da mulher, mas não considerava que
abortar fosse um erro ético. Sanger via o aborto como uma opção arriscada e perigosa,
abstendo-se de fazer juízos morais acerca do acto de abortar. Tal como Sanger, a PPFA e
respectivos movimentos afiliados internacionais defendem a ideia profundamente errada de
que o aborto é um direito da mulher, e que abortar deve fazer parte do leque de opções de
planeamento familiar completo, mesmo que seja dito por estes movimentos que o aborto deve
ser “a última escolha”.
Tanto Sanger como os seus actuais representantes e “herdeiros intelectuais” defendem que o
planeamento familiar é a chave para combater o aborto, mas enquanto estes movimentos
continuarem a considerar que não há mal ético em abortar, então é evidente que o aborto
continuará a ser para eles “uma opção legítima da mulher”, e que continuarão a usar o drama
1 Nota original: "Birth Control and Racial Betterment." The Birth Control Review, 3(2), 11-12. Reprint: The Birth
Control Review Vol. I, Vols. 1-3, 1917-1919. (1970). New York: Da Capo Press.
2 Ver: http://www.plannedparenthood.org/about-us/who-we-are/margaret-sanger-planned-parenthood-founder.htm
1 http://www.plannedparenthood.org
2 Ver o texto completo em: http://www.plannedparenthood.org/news-articles-press/politics-policy-
issues/abortion-access/nine-reasons-why-abortions-are-legal.htm
3 «Laws against abortion kill women. To prohibit abortions does not stop them. When women feel it is absolutely
necessary, they will choose to have abortions, even in secret, without medical care, in dangerous circumstances. In
the two decades before abortion was legal in the U.S., it's been estimated that nearly a million women per year
sought out illegal abortions. Thousands died. Tens of thousands were mutilated. All were forced to behave as if
they were criminals.»
4 «Legal abortions protect women's health. Legal abortion not only protects women's lives, it also protects their
health. For tens of thousands of women with heart disease, kidney disease, severe hypertension, sickle-cell anemia
and severe diabetes, and other illnesses that can be life-threatening, the availability of legal abortion has helped
avert serious medical complications that could have resulted from childbirth. Before legal abortion, such women's
choices were limited to dangerous illegal abortion or dangerous childbirth.»
1 «A woman is more than a fetus. Some people argue these days that a fetus is a "person" that is "indistinguishable
from the rest of us" and that it deserves rights equal to women's. On this question there is a tremendous spectrum
of religious, philosophical, scientific, and medical opinion. It's been argued for centuries. Fortunately, our society
has recognized that each woman must be able to make this decision, based on her own conscience. To impose a
law defining a fetus as a "person," granting it rights equal to or superior to a woman's — a thinking, feeling,
conscious human being — is arrogant and absurd. It only serves to diminish women.»
2 «Being a mother is just one option for women. Many hard battles have been fought to win political and
economic equality for women. These gains will not be worth much if reproductive choice is denied. To be able to
choose a safe, legal abortion makes many other options possible. Otherwise an accident or a rape can end a
woman's economic and personal freedom.»
3 «Outlawing abortion is discriminatory. Anti-abortion laws discriminate against low-income women, who are
driven to dangerous self-induced or back-alley abortions. That is all they can afford. But the rich can travel
wherever necessary to obtain a safe abortion.»
1 «Compulsory pregnancy laws are incompatible with a free society. If there is any matter that is personal and
private, then pregnancy is it. There can be no more extreme invasion of privacy than requiring a woman to carry
an unwanted pregnancy to term. If government is permitted to compel a woman to bear a child, where will
government stop? The concept is morally repugnant. It violates traditional American ideas of individual rights and
freedoms.»
2 «Outlaw abortion, and more children will bear children. Forty percent of 14-year-old girls will become pregnant
before they turn 20. This could happen to your daughter or someone else close to you. Here are the critical
questions: Should the penalty for lack of knowledge or even for a moment's carelessness be enforced pregnancy
and childrearing? Or dangerous illegal abortion? Should we consign a teenager to a life sentence of joblessness,
hopelessness, and dependency?»
«We currently provide around 40,000 service outlets, with the help of our millions of volunteers, for counselling,
gynaecological care, HIV/AIDS-related activities, diagnosis and treatment of sexually transmitted infections,
mother and child health and abortion-related services, among many others.
We fight for what we see as a human right to enjoy good sexual health, safe maternal health, gender equality
and a positive environment towards sexuality.
Finally, we make it possible for people to make choices. Choices about the number of children they have, choices
about having safer sex, choices about getting good treatment and care.»3 (sublinhado meu)
Acerca do aborto, a IPPF explicita desta forma a sua política a nível global:
«We believe that a woman has the right to choose and access safe abortion services and we lobby for changes in
legislation to support this. This is one of the priority concerns of our work. Each year, an estimated 500,000
women die of pregnancy-related causes, and almost all maternal mortality occurs in developing countries,
representing one of the widest, and most unjust, health gaps between developed and developing nations.»4
A IPPF promove uma acção mais intensa destas medidas nos países em desenvolvimento. A
aposta da IPPF e das suas afiliadas na prestação de “serviços abortivos” é impressionante, e os
1 «"Every child a wanted child." If women are forced to carry unwanted pregnancies to term, the result is
unwanted children. Everyone knows they are among society's most tragic cases, often uncared-for, unloved,
brutalized, and abandoned. When they grow up, these children are often seriously disadvantaged, and sometimes
inclined toward brutal behavior to others. This is not good for children, for families, or for the country. Children
need love and families who want and will care for them.»
2 «Choice is good for families. Even when precautions are taken, accidents can and do happen. For some families,
this is not a problem. But for others, such an event can be catastrophic. An unintended pregnancy can increase
tensions, disrupt stability, and push people below the line of economic survival. Family planning is the answer. All
options must be open.»
3 Ver http://www.ippf.org/ContentController.aspx?ID=297
4 Ver http://www.ippf.org/ContentController.aspx?ID=353
«The Safe Abortion Action Fund (previously the Global Safe Abortion Fund) is a targeted reserve of resources
to enable the implementation of programmes and initiatives to increase access to comprehensive safe abortion
services, within a comprehensive package of reproductive health services, with particular regard for the needs of
marginalized and vulnerable women.
The UK Government initiated the Safe Abortion Action Fund in February 2006 in response to a major new
service and advocacy initiative for safe abortion developed by IPPF. The UK’s Department for International
Development (DFID) elected IPPF to administer the Safe Abortion Action Fund on behalf of civil society
groups and non-governmental organizations worldwide to support a range of work on unsafe abortion.»2
«Until 1984, abortion was totally forbidden by law in Portugal. However, while legally it was forbidden, de
facto abortion was widely accepted and performed by doctors, nurses and midwives. In fact, very few legal actions
were taken relating to abortion, indicating some degree of tolerance of the practice. This was a kind of
compromise, between the Catholic public moralism and the pragmatism of a political power that did not want to
push this private but widely used method of controlling fertility very hard.»
Duarte Vilar começa por afirmar que, até à primeira radical alteração à lei do aborto, a sua
prática era “tolerada”, deduzindo isto do facto de existirem poucas acções legais nesta matéria.
Segundo Duarte Vilar, isto explica-se pelo “pragmatismo de um poder político” que não queria
1 http://www.ippf.org/ContentController.aspx?ID=13469
2 Ibidem.
3 http://oldwww.ippf.org/regions/europe/choices/v27n1/portugal.htm
Mais adiante, Duarte Vilar desabafa acerca da frustração sentida aquando da derrota do “sim”
no referendo de 1998:
«It is difficult to describe the anger and the revolt that all those who had fought for legal and safe abortion in
Portugal felt at this time, a day when a promise of change was swiftly taken away. Once again abortion had
become a political weapon, much more than a social problem or even a moral question. In October 1996, when
the referendum on abortion was first proposed, APF made a statement: "... abortion is a personal moral choice
and in pluralistic societies different ideas must be respected; the State has no right to identify moral majorities on
personal matters in view of producing according legislation; finally, illegal and unsafe abortion is a matter of
public health and this must be not referended." When it became apparent that the referendum process would go
ahead, APF decided to use this opportunity to campaign not only for legal abortion but also for sexual and
reproductive health improvements in Portugal.»
Este texto mostra bem o raciocínio parcial por detrás desta visão acerca do problema do
aborto. Se o “sim” tivesse ganho o referendo de 1998, certamente que os representantes da
APF não poupariam elogios à decisão e à opinião popular. Como a vitória coube aos seus
adversários, então a APF deveria necessariamente colocar a decisão popular em segundo plano,
para se procurarem justificações em “armas políticas”.
É certo que a abstenção no referendo de 1998 foi enorme: o resultado nunca poderia ser
representativo da opinião popular com tão elevados valores de abstenção. Mas não é
defensável que o voto popular confira licitude em matéria de ética universal, como sucede com
o aborto. Independentemente do voto de 1998 (ou do voto de 2007) ser maioritariamente pelo
“sim” ou pelo “não”, isso não alteraria nunca o estatuto ético do acto de abortar. Mas vejamos
a citada declaração da APF com mais detalhe:
"... abortion is a personal moral choice and in pluralistic societies different ideas must be respected; the State has
no right to identify moral majorities on personal matters in view of producing according legislation; finally, illegal
and unsafe abortion is a matter of public health and this must be not referended."
Diz a APF que “o aborto é uma escolha moral pessoal”. Escolha pessoal? Como sempre, a
APF passa por cima do debate ético acerca do estatuto da vida humana intra-uterina. O aborto
não é, nem nunca pode ser, uma “escolha moral pessoal”, pelo facto de que há pelo menos
duas pessoas (e isto exceptuando o pai, o que também é injusto) directamente envolvidas no
acto de abortar.
«The main arguments of the No lobby were the traditional 'pro-life' arguments, and strategies included TV
transmission of the terrible and misleading images that have often been circulated in so many countries on
similar occasions - namely photos of foetuses allegedly depicting the 'murder' of children. But another new and
surprising argument was defended by the No groups: that the improvement of family planning and sex education
should be the true answer to the problem of unwanted pregnancies, and that if this happened, abortion would not
be needed any more.»
Já falei atrás acerca do uso de imagens de fetos abortados. Se tais imagens correspondem ao
resultado de operações abortivas efectuadas em estabelecimentos de saúde por médicos
tecnicamente competentes para o efeito, é evidente que as imagens, por muito chocantes que
sejam (o aborto é um acto chocante) são lícitas e podem ser usadas em campanha. Ver o efeito
real de um aborto é algo de muito útil, apesar de apenas apelar a reacções emotivas.
Evidentemente, estarei de acordo com Duarte Vilar sempre que se referir ao uso abusivo de
imagens que retratem de forma distorcida ou deturpada o aborto praticado em clínicas e
hospitais sancionados para o efeito. Nomeadamente, se se usarem imagens de abortos
praticados em condições totalmente diversas das que são propostas no referendo.
Contudo, surge na citação acima um dado novo. Os defensores do “não” começavam, em
1998, a defender que a educação sexual e o planeamento familiar eram a resposta adequada
para acabar com o aborto. Esta resposta surpreendeu, certamente pela positiva, a APF, visto
que se trata, nada mais, nada menos, do que um argumento que sempre foi defendido pela
fundadora da PPFA1, Margaret Sanger: “Birth Control or Abortion–-which shall it be?”.
É inegável que, na base da estratégia usada por estas organizações para legalizar o aborto a
pedido, está a promoção do controlo de natalidade e do planeamento familiar. Basta
percorrermos alguma da literatura divulgada por estas organizações, para vermos em muitos
1 Organização norte-americana que esteve na origem da IPPF, a quem a APF responde directamente.
«However, even though the question of abortion was again postponed, all the groups in the campaign (even the
Catholic Church) publicly agreed that family planning and sex education were the main means to prevent and
reduce abortion.»
Esta frase é curiosa. Duarte Vilar defende que a «Igreja Católica concordou publicamente em
que o planeamento familiar e a educação sexual eram o principal meio para prevenir e reduzir
o aborto”. O que quer isto dizer? Que a Igreja Católica concorda com a generalidade dos
meios de planeamento familiar? Que a Igreja Católica concorda com os programas de
educação sexual promovidos pela APF?
O que se deve afirmar, sem sombra de dúvidas, é o seguinte:
1. A Igreja Católica, pelas características intrínsecas da sua doutrina, apenas pode permitir o
controlo de natalidade pelos chamados “métodos naturais”, quando se evita a relação sexual
durante o período fértil;
2. A Igreja Católica, pelas características intrínsecas da sua doutrina, não pode concordar com a
maioria dos pressupostos que estão na base da “educação sexual” defendida pela APF.
«Very soon, we hope it will be understood that the No victory did not change anything for the thousands of
Portuguese women who are forced, for personal or social reasons, to have illegal and possibly unsafe abortions.»
Esta frase dá a ideia falaciosa de que uma grande parte das mulheres, senão mesmo todas, são
“forçadas, por razões pessoais ou sociais” a abortar ilegalmente. São forçadas? De que modo?
Recorrendo a ameaças físicas? É evidente que, salvo ameaça física directa, toda e qualquer
mulher tem uma alternativa ao aborto: levar a gravidez adiante. Não considerar esta alternativa,
como faz Duarte Vilar, é distorcer o problema do aborto de forma falaciosa. O aborto não é
“inevitável” nem é algo que as mulheres que abortam estejam obrigadas a fazer. Abortar é uma
opção errada, mas é normalmente tomada de forma livre pela mulher que escolhe abortar, seja
legalmente nos países e situações que o permitem, seja ilegalmente nos países e situações que
não o permitem.
Também importa, para terminar, “descer à Terra” e darmo-nos conta de que, mesmo com a
actual lei, uma mulher consegue abortar legalmente no nosso país se arranjar dois médicos que
assinem um atestado que confirme que ela corre risco de “grave e duradoura lesão para a [sua]
saúde psíquica”. Os termos generalistas presentes no Art.º 142.º do Código Penal permitem,
como vimos no início deste texto, que seja abrangida pela legalidade uma série de abortos de
legitimidade ética subjectiva e questionável…
Ao longo deste texto, procurei argumentar que o aborto é uma violação ética grave ao direito à
vida humana inocente. Procurei também estabelecer como sólido momento-chave do
reconhecimento do direito à vida humana o momento da concepção, o instante zero de toda a
forma de vida humana. Não recorri a argumentação religiosa, pelo que afirmo que as minhas
conclusões estão erigidas sobre fundamentos éticos universais, recusando terminantemente o
relativismo ético em matérias tão graves como esta. Se o aborto é uma violação ética grave do
direito à vida humana inocente, é-o em qualquer tempo, em qualquer lugar, e em qualquer
contexto cultural e social humano.
Com base nestas teses, discutir se a chamada “contracepção de emergência” é abortiva ou não
torna-se muito importante, não só porque assistimos à disseminação em larga escala deste tipo
de fármaco, juntamente com a crescente promoção de uma cultura de facilitismo em termos de
conduta ética que pretende, entre outras coisas, retirar a gravidade ética ao aborto, tornando-o
num “direito reprodutivo”.
Alguns defensores do direito ao aborto dirão que apenas um fanático religioso poderia criticar
a chamada “contracepção de emergência” ou como é mais conhecida, a “pílula do dia
seguinte”. Quem o faz apenas dá provas de que não conhece o fármaco em questão, não está
acostumado a ler obras de ética, ou a pensar em termos éticos e a argumentar com base em
axiomas éticos. Independentemente da crença pessoal de cada um, ou da sua total ausência,
quem defenda, como eu defendo, que a vida humana adquire o seu direito fundamental à vida
a partir do momento da concepção, e há filósofos e pensadores agnósticos e ateus que o
fazem, sente-se obrigado, por coerência e em consciência, a considerar todo e qualquer
método abortivo que interrompa uma vida humana em qualquer fase do seu desenvolvimento
após a concepção como um acto grave e eticamente ilícito.
Comecemos pelo termo “concepção” e o seu correlativo “contracepção”…
A chamada “contracepção de emergência” está disponível no mercado nacional desde 2001 e é
vendida e propagandeada como sendo “contracepção”, ou seja, como actuando de forma a
evitar a “concepção”, ou por outras palavras, a fecundação do óvulo pelo espermatozóide,
processo que recebe o termo técnico de “fertilização”. Tal fármaco, se fosse puramente
contraceptivo, deveria actuar antes do início de uma vida humana como forma de evitar
precisamente esse início (“concepção”). Em bom rigor, poderíamos equacionar a legitimidade
ética de tal abordagem, mas então também teríamos que fazê-lo em relação a qualquer outro
método contraceptivo. Não o farei aqui, não porque ache que a contracepção é eticamente
lícita, mas apenas porque o verdadeiro acto contraceptivo, o recurso a um ou mais meios para
evitar a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, não viola o direito fundamental à vida
humana inocente, enquanto que o acto abortivo viola-o necessariamente.
Na verdade, a dita “contracepção de emergência” não é um puro método contraceptivo, uma
vez que há uma probabilidade substancial de que actue de forma abortiva e não apenas
contraceptiva. Quem afirma que a “contracepção de emergência” não é abortiva, ou está a agir
de má fé ou não está bem informado. Infelizmente, a informação correcta e precisa está pouco
divulgada. Navegando um pouco na Internet, e só para dar alguns exemplos em português,
podemos encontrar facilmente vários exemplos de informação prestada de forma errónea. Um
site governamental1 diz por exemplo o seguinte:
1 http://www.juventude.gov.pt/Portal/OutrosTemas/SaudeSexualidadeJuvenil/SexualidadePrevencao/Contracepção+de+emergência.htm
É abortiva?
Tem efeitos abortivos no caso de impedir a nidação. Pode prevenir 3 em cada 4 gravidezes não desejadas, evitando assim o recurso ao
aborto.
A comunidade científica definiu o começo de uma gravidez a partir do momento que se dá a nidação (implantação) do ovo nas paredes
do útero.
Se a mulher estiver grávida, ou seja, se a nidação já tiver acontecido, num período superior a 72 horas, a contracepção emergência não
produz um efeito anticonceptivo, não interrompe a gravidez em curso. Por essa razão é disponibilizada no nosso país.»
Infelizmente, esta informação contém erros graves que importa apontar e corrigir.
Partindo do fármaco de “contracepção de emergência” mais divulgado e usado no nosso país,
o Levonorgestrel1, vejamos o que a literatura farmacológica diz acerca dele:
"Este fármaco, que mimetiza a acção da progesterona, usado em doses altas como a desta terapêutica vai actuar
no endométrio provocando uma diminuição abrupta da sua espessura e assim impedir a implantação do zigoto.
Como os efeitos adversos dos contraceptivos orais são dependentes da dose dos seus constituintes, estas doses
apresentam efeitos adversos desagradáveis (40% de náuseas e vómitos) e perigosa (trombose) o que deve restringir
o seu uso. Os progestagéneos isolados podem, ainda, abolir o ciclo ovárico (anovulação) se a dose for
relativamente elevada, conduzindo igualmente à atrofia ovárica e do endométrio."2
«O mecanismo pelo qual a contracepção oral de emergência actua é bastante desconhecido. Provavelmente são
vários os mecanismos de acção possíveis, dependendo da altura em que ocorre a toma da COE em relação ao
momento da ovulação (período pré-ovulatório, peri-ovulatório ou pós-ovulatório). Assim, é provável que a COE
possa actuar antes da fecundação, por interferência com a ovulação (atrasando-a ou inibindo-a) ou por
espessamento do muco cervical, de modo a dificultar a migração dos espermatozóides (o que só terá relevância se
for tomada antes da relação sexual em causa); se já tiver ocorrido a fecundação, a COE poderá actuar por
interferência na viabilidade e/ou funcionalidade do corpo amarelo (com consequências na produção de
progesterona), por diminuição do peristaltismo das trompas de Falópio (com a inviabilização do ovo fertilizado
antes da sua chegada ao útero) ou por desencadeamento de alterações endometriais hostis à implantação do
embrião (atrofia aguda da parede uterina. Uma das hipóteses prováveis refere-se à alteração no padrão temporal
de secreção endometrial da glicodelina-A – em condições normais, a glicodelina-A não é secretada durante a fase
peri-ovulatória, só aparecendo no endométrio na última semana da fase luteínica, como consequência da secreção
de progesterona pelo corpo lúteo; com a toma de elevados níveis de progestagénio, a secreção da glicodelina-A vai
ocorrer mais cedo, ou seja, vai verificar-se um aumento da secreção de glicodelina-A durante o período fértil –
1 O Levonorgestrel (de nome comercial: "Mirena" – uso intra-uterino, "Norlevo" – uso oral, "Levonelle" – uso
oral) é um progestagénio usado na dose de 0,75 mg (750 µg) nas 72 horas que se seguem a uma relação sexual
para impedir a nidação do zigoto.
2 Ver Terapêutica Medicamentosa e Suas Bases Farmacológicas - Manual de Farmacologia e Farmacoterapia, 4ª edição, Osswald
O Levonorgestrel não é infalível, como aliás sucede com muitos fármacos. É possível que surja
uma gravidez, mesmo tomando este fármaco de acordo com as recomendações do seu
fabricante. Após tomarmos contacto com a literatura farmacológica competente e com os
valiosos esclarecimentos da Profª. Margarida Castel-Branco, vejamos agora com mais detalhe
as informações presentes no site governamental atrás referido…
Diz-se que o fármaco “actua de várias formas, para prevenir uma gravidez”, o que nem sempre
é verdade, uma vez que uma das acções deste fármaco, o impedimento da nidação, constitui
um aborto e não uma prevenção de gravidez. A gravidez apenas é prevenida se o efeito do
fármaco for o de impedir a fecundação. De outra forma, a gravidez é abortada. A única
interpretação possível para esta frase ser verdadeira é a de se considerar que o termo
“gravidez” é usado como sinónimo de “nidação”, mas como vimos atrás, quando falámos
acerca da definição científica do início da vida humana, a nidação não tem consequências para
a ética do aborto. A fertilização dá-se antes da nidação, e portanto, se definirmos a gravidez
como tendo início na nidação, então a fertilização precede o estado de gravidez assim definido.
Se o ovo fertilizado for eliminado antes de ter nidado, isso equivale a um aborto. Esta é a
principal razão pela qual o termo “gravidez” não deveria ser definido na nidação mas sim na
fertilização. Como explica o Dr. Victor Neto, Médico Especialista em Ginecologia e
Obstetrícia:
«O mecanismo de acção deste tipo de metodologia, depende da altura do ciclo em que a mulher toma o produto.
Sendo assim, se o método for utilizado após a ovulação e dando-se a concepção, esta pílula vai actuar impedindo
que o novo ser humano entretanto gerado não tenha condições de nidar no útero materno, impedindo a
continuação da gravidez. Se a pílula for tomada antes da ovulação existe a probabilidade de a impedir.
Do que foi afirmado anteriormente, resulta que a mulher está grávida a partir da concepção e não só a partir da
nidação.
Um exemplo interessante é o caso de uma mulher estar e se dizer grávida, mesmo que tenha uma gravidez
ectópica, ou seja, fora do útero (nas trompas, por exemplo).
No entanto, para que este tipo de metodologia possa ter uma certa aceitação por parte de uma grande parte da
comunidade médica e público em geral, algumas pessoas tentam definir o início da gravidez como a altura da
nidação.
Dentro de muito pouco tempo, dado o facto de o embrião comunicar quimicamente com a mãe antes da nidação,
vai ser possível fazer testes de gravidez antes da implantação ocorrer. Neste momento, os testes de gravidez só
dão positivos a partir do momento da nidação, em que é possível detectar uma hormona produzida nesta altura,
que é a gonadotrofina coriónica, na urina da mulher grávida ou no seu sangue.»2
De forma a não deixar dúvidas, eis a resposta do Dr. Vitor Neto a uma questão directa:
1 Referências usadas pela Profª. Margarida Castel-Branco: Hapangama, D.; Glasier, A.F.; Baird, D.T. The effects of
peri-ovulatory administration of levonorgestrel on the menstrual cycle. Contraception. 63 (2001) 123-129. Croxatto, H.B. [et al.].
Pituitary-ovarian function following the standard levonorgestrel emergency contraceptive dose or a single 0.75-mg dose given on the days
preceding ovulation. Contraception. 70 (2004) 442-450. Durand, M. [et al.]. Late follicular phase administration of levonorgestrel
as an emergency contraceptive changes the secretory pattern of glycodelin in serum and endometrium during the luteal phase of the
menstrual cycle. Contraception. 71 (2005), 451-457.
2 Ver a entrevista dada à Factos da Vida, n.º 3, Maio de 2000: http://vida.aaldeia.net/piluladodiaseguinte.htm
Para a opinião popular, ignorante em termos médicos e éticos, a gravidez terá início a partir do
momento em que o teste de gravidez que compraram na farmácia, que só demarca o momento
da nidação, acusa positivo!
Infelizmente, há desonestos defensores do aborto que nada fazem para dissipar, ou tudo fazem
para aumentar, esta confusão tão útil para a sua causa. Para eles, é conveniente que se defina a
gravidez após a nidação, o que só parece encontrar justificação técnica nos testes de farmácia,
carecendo de justificação médica ou ética.
É evidente que o problema ético do aborto, que temos vindo a discutir, surge com a
concepção. Assim, é forçoso que qualquer fármaco que impeça o desenvolvimento da vida
humana a partir da concepção seja visto como um fármaco abortivo.
Continuemos a analisar o “método de funcionamento” de acordo com o referido site
governamental:
«É abortiva?
Tem efeitos abortivos no caso de impedir a nidação. Pode prevenir 3 em cada 4 gravidezes não desejadas,
evitando assim o recurso ao aborto.»
É surpreendente que quem escreveu esta frase não se tenha dado conta da incoerência. Se tem
efeitos abortivos no caso de impedir a nidação, é evidente que nessas situações se trata de
«A comunidade científica definiu o começo de uma gravidez a partir do momento que se dá a nidação
(implantação) do ovo nas paredes do útero.»
A definição do começo da gravidez como sendo na nidação não reúne o consenso da
comunidade médica, pelo que a afirmação é falsa porque generaliza algo que não é
generalizável. Para mais, mesmo que toda a comunidade médica assim definisse a gravidez, em
termos da avaliação ética do aborto, a interrupção da vida humana antes ou após a nidação tem
exactamente o mesmo peso ético e em nada altera o debate ético do aborto.
«Se a mulher estiver grávida, ou seja, se a nidação já tiver acontecido, num período superior a 72 horas, a
contracepção de emergência não produz um efeito anticonceptivo, não interrompe a gravidez em curso. Por essa
razão é disponibilizada no nosso país.»
A afirmação é verdadeira, mas a frase final “por essa razão é disponibilizada no nosso país”
constitui um estranho corolário, sobretudo quando atrás se admitiu que uma das acções deste
fármaco é abortiva. Por enquanto, a nossa legislação não permite o aborto sem as adequadas
ressalvas consagradas na lei. Sempre que o fármaco Levonorgestrel actua de forma abortiva,
impedindo a nidificação, a actual lei portuguesa está a ser violada. Em grande escala e com a
permissão do Estado.
Infelizmente, quando as altas instâncias em matéria de bioética no nosso país se pronunciaram
sobre a questão, o resultado não foi nada satisfatório nem adequado. A 19 de Julho de 2005, a
Associação Portuguesa de Bioética1 publicou o Parecer n.º P/02/APB/052, relativo à
“contracepção de emergência” que concluía da seguinte forma:
«Que só é legítima a referência à expressão “contracepção de emergência” quando o método em causa impede a
fertilização do ovócito, ou seja, quando o medicamento é administrado nas primeiras horas após uma relação
sexual desprotegida;
Que o fármaco, se utilizado nos primeiros 14 dias após a fertilização, não envolve verdadeiramente uma
contracepção de emergência mas uma “contraimplantação de emergência”, pelo que se pode concluir que não está
em causa nem a existência de um abortamento, nem a utilização de um método abortivo;»3
É de louvar o facto de a APB ter identificado correctamente o erro do uso geral do termo
“contracepção” para este fármaco, que apenas actua neste sentido quando a mulher ainda não
está em ovulação, ou quando estando em ovulação, o fármaco actua no sentido de prevenir a
fertilização. Contudo, é de lamentar que a APB tenha concluído que este fármaco, quando
actua no sentido de impedir a nidificação, não é abortivo. Para além disso, o prazo referido de
catorze dias constitui um erro: a nidação inicia-se aproximadamente seis dias após a
fertilização4. O prazo apresentado poderá referir-se ao término da implantação.
A conclusão errada da APB explica-se pelos pressupostos errados usados na elaboração deste
parecer. Veja-se a definição dos termos essenciais:
«Que a gravidez se inicia com a implantação do embrião no útero materno, também designada por nidação, e
que esta tem o seu início nos primeiros dias após a fertilização e termina cerca de 13-14 dias após a formação
do zigoto (célula primordial e totipotencial);
1 http://www.apbioetica.org
2 Redigido por Rui Nunes, Guilhermina Rego e Cristina Brandão.
3 Pág. 4. Ver o texto completo aqui: http://www.apbioetica.org/fotos/gca/1128590675contracepcao.pdf
4 Ver Carlson, op. cit., p. 42 da edição em português de 1996.
A conclusão da APB de que este fármaco nunca actua de modo abortivo está errada. Como se
vê, os termos “abortamento” e “método abortivo” estão baseados na definição dada neste
parecer para o início da gravidez, definição essa que, como vimos atrás, está longe de
representar um seguro consenso científico na comunidade médica. O que me parece mais
constrangedor é que a APB tem uma nítida vocação para o tratamento de assuntos éticos
relacionados com as ciências da vida. Nesse sentido, e sem detrimento de espécie alguma para
a necessária ponderação da informação médica relevante, o que é um facto é que a definição de
gravidez que foi aceite como pressuposto pela APB é irrelevante em termos éticos. O debate
ético a nível internacional relativamente à questão do aborto centra-se, não na definição médica
de início de gravidez, mas sim no estatuto ético do zigoto, do embrião e do feto, no
reconhecimento do direito à vida humana intra-uterina, no debate acerca de se é eticamente
relevante ou não distinguir “pessoa humana” de “vida humana” no que diz respeito à vida
intra-uterina e à consequente ponderação do seu direito à vida. É que não há quaisquer dúvidas
científicas de que o zigoto, primeira célula totipotente, é vida humana!
Mesmo que toda a comunidade médica (o que não sucede) afirmasse em consenso que a
gravidez apenas começa com a nidação, e que consequentemente, todos os médicos definissem
“abortamento” como apenas a interrupção das gravidezes pós-nidação, mesmo assim a APB
não deveria ignorar que tal eventual definição técnica consensual dos médicos não teria nunca
carácter vinculativo na ponderação ética do acto de destruir um zigoto. Em termos éticos, há
que avaliar se é ou não errado impedir o desenvolvimento da vida humana intra-uterina desde
a sua constituição no zigoto, e se o erro ético existe em qualquer fase do desenvolvimento
intra-uterino ou apenas a partir de uma determinada fase.
A APF, Associação para o Planeamento da Família, de quem se falou no Anexo B, também
promove o acesso livre à dita “contracepção de emergência”. Num seu artigo de 2001,
intitulado De que falamos quando falamos de contracepção de emergência...2 e publicado na revista
Sexualidade & Planeamento Familiar, a Dra. Maria José Alves, ginecologista e obstetra, e
presidente da APF afirma o seguinte:
«Mas, também, dos três mecanismos de acção da PCE (Pílulas Contraceptivas de Emergência), o que mais
falhará será exactamente aquele que é tomado como disruptor da vida: os cientistas ainda não são unânimes
acerca do facto da dose hormonal de emergência ser capaz de alterar o “forro do útero” – endométrio, se
quiserem – e impedir a implantação. E é só por isso que é importante o acesso fácil à contracepção de
emergência: para que seja realizada mais cedo, para que possa bloquear uma ovulação, para que previna uma
gravidez não desejada, para que não se recorra ao aborto.
O mecanismo de acção é o mesmo da tomada da pílula regular. Não, não esperamos que os opositores dos
métodos contraceptivos modernos estejam de acordo com a CE, mas então digam as verdadeiras razões e
consintam que as suas decisões são legítimas para si próprios, mas não podem impedir outros de serem bem
informados e de tomarem também eles as suas próprias decisões.»3 (sublinhado meu)
"Este fármaco, que mimetiza a acção da progesterona, usado em doses altas como a desta terapêutica vai actuar
no endométrio provocando uma diminuição abrupta da sua espessura e assim impedir a implantação do zigoto.
Como os efeitos adversos dos contraceptivos orais são dependentes da dose dos seus constituintes, estas doses
apresentam efeitos adversos desagradáveis (40% de náuseas e vómitos) e perigosa (trombose) o que deve restringir
o seu uso. Os progestagéneos isolados podem, ainda, abolir o ciclo ovárico (anovulação) se a dose for
relativamente elevada, conduzindo igualmente à atrofia ovárica e do endométrio."2 (sublinhado meu)
Como se vê, este tipo de fármacos não actua sempre de forma contraceptiva, actuando por
vezes de forma abortiva, e é apenas por esta última razão que estes fármacos levantam um
problema ético: o da violação do direito à vida do ser humano.
É, também, muito útil ver de perto a documentação técnica3 fornecida com cada caixa de
Norlevo (nome comercial da versão para uso oral do Levonogestrel):
1 Ver http://www.fd.uc.pt/hrc/enciclopedia/portugal/legislacao/vidaintegridadefisica/12-2001.pdf
2 Ver Terapêutica Medicamentosa e Suas Bases Farmacológicas – Manual de Farmacologia e Farmacoterapia, 4ª edição,
Osswald W. e Guimarães S. (coordenadores), 2001, Porto Editora, pp. 743-744.
3 Ver: http://www.norlevo.com/Norlevo_pt/RCM-08-031.pdf. O Norlevo é propriedade da farmacêutica
1 Ibidem, p. 2.
Este texto deve a sua forma e conteúdo à contribuição valiosa e generosa de várias pessoas, às
quais estou profundamente agradecido. Agradeço ao Pe. Nuno Serras Pereira pela informação
fornecida acerca dos movimentos e organizações pró-escolha e pelo apoio à divulgação deste
texto; ao Dr. Pedro Vaz Patto pela ajuda fundamental nas questões jurídicas; ao Dr. Tiago
Lopes de Miranda pelo excelente elucidário jurídico que escreveu e disponibilizou na Internet;
ao Pedro Frazão pela valiosa informação médica e farmacêutica que me enviou; à Dra.
Margarida Castel-Branco pelos seus esclarecimentos profundos acerca do funcionamento da
dita “contracepção de emergência”, ao Pedro Gil pela grande quantidade de informação em
formato electrónico sobre o aborto que me tem enviado nos últimos meses, bem como pelos
sempre pertinentes conselhos; ao José Maria André, pelos seus indispensáveis comentários e
correcções acerca dos dilemas éticos das gravidezes com risco de vida, ao Prof. Donald
Marquis, por me ter gentilmente oferecido cópias dos seus artigos acerca do Aborto,
juntamente com os seus esclarecimentos acerca do seu argumento e das críticas que a ele têm
sido feitas pela comunidade académica.
Apesar de ambos terem posições acerca do aborto que são diferentes das minhas em maior ou
menor grau, é um facto que, para a construção de muitas das partes deste texto, devo agradecer
aos filósofos Pedro Madeira e Pedro Galvão os sérios textos acerca da ética do aborto que
gratuitamente têm disponibilizado na Internet para livre leitura por parte de todos interessados.
Ambos ajudam a elevar a discussão do aborto para um nível intelectual sério.
Queria ainda agradecer ao Ludwig Krippahl1, um ateu contra o direito ao aborto, pelos
estimulantes e lúcidos debates internéticos que sempre me proporcionou.
Não poderia terminar sem agradecer profundamente à minha querida mulher, Maria Ana, pelo
seu apoio e compreensão durante os vários meses de escrita deste texto.
1 http://ktreta.blogspot.com
CARLSON, Bruce M., Human Embriology and Developmental Biology, 2004, Mosby Inc. Ed.
ENGLISH, Jane, Abortion and the Concept of a Person, Canadian Journal of Philosophy, Vol. 5,
no.2, pp. 233-243, 1975.
MARQUIS, Donald, Why abortion is immoral, The Journal of Philosophy, 86, 4, 1989, pp. 183-
202.
----, An argument that abortion is wrong, in La Follete, Ethics in Practice, 2ª ed., Malden, Blackwell,
2002, pp. 83-93.
THOMSON, Judith, A Defense of Abortion, Philosophy & Public Affairs, 1971, Vol. 1, pp. 47-
66.
TOOLEY, Michael, Abortion and Infanticide, Philosophy & Public Affairs, 1972, Vol. 2, pp. 37-
65.