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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

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[-] Sumário # 13
EDITORIAL 5

ENTREVISTA (Capital, crise, crítica) com Moishe Postone, 10


por Agon Hamza e Frank Ruda

ARTIGOS
A CRISE ATUAL E O ANACRONISMO DO VALOR 32
Uma leitura marxiana
Moishe Postone

DESCONSTRUÇÃO COMO CRÍTICA SOCIAL 51


O pensamento de Derrida sobre Marx e a Nova Ordem Mundial
Moishe Postone

CONSTITUIÇÃO E DESTITUIÇÃO PELO TRABALHO 77


Observações sobre o tempo e a liberdade à margem da obra de Moishe Postone
Cláudio R. Duarte

A CATEGORIA TRABALHO ABSTRATO 94


E SEU DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
Ernst Lohoff

A NATUREZA NA “CONTRADIÇÃO EM PROCESSO” 121


Contribuição para o debate da teoria da crise
Daniel Cunha

O FIM DO “CAPITALISMO VERDE” 143


André Villar Gomez e Maurílio Lima Botelho
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A NOVA CRUZADA DO FANTASMA AUTORITÁRIO BRASILEIRO 172


O bolsonarismo como fantasia e conclusão lógica do golpe de 64
Rubem Klaus

BOLSONARISMO E “CAPITALISMO DE FRONTEIRA” 183


Com adendo: comunidade e nacionalismo na era da crise do valor
Daniel Cunha

EX-HOMENS NA FRONTEIRA LITERÁRIA LATINO-AMERICANA 201


Tradução e análise de “Las moscas”, de Horacio Quiroga

Cláudio R. Duarte

PARA UMA CRÍTICA DOS AFETOS DA CRÍTICA 232


Angústia, desamparo e mal-estar
Thiago Canettieri

CRISE DO CAPITAL E CARISMA APOCALÍPTICO 239


Daniel Cunha

PÓS-CAPITALISMO REGRESSIVO E “INÉRCIA CONCEITUAL” 250


Daniel Cunha

A CRÍTICA DO VALOR À PROVA DA ATUALIDADE 255


Resenha de Poder mundial e dinheiro mundial, Robert Kurz
Leomir Hilário
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DISCURSO DA PAULISTA, COMENTADO 268


Daniel Cunha, sobre discurso de Jair Bolsonaro
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EDITORIAL

“Se o travo amargo do negativo se projeta sobre o todo, para nós


não se trata de atenuá-lo, mas sim de aguçá-lo, com a maior
contundência possível. Pois as crises que se desencadeiam não são
garantia alguma de superação social, tornando-se antes motivo
para reflexão sobre as formas de converter tal negatividade cega
em algo realmente negativo e superador.”

Assim dissemos no editorial de nossa primeira edição, em 2009. Quase dez


anos após, com a eleição de Bolsonaro, o travo parece mais amargo do que nunca. Para
nós isso não é surpreendente, mas antes é a confirmação de tendências que o tempo
histórico já apontava. Na revista especial de agosto de 2013, desmanchando o consenso
geralmente otimista sobre as Manifestações de Junho, indicamos as linhas de força em
combate nas ruas, como que tracejando a possibilidade da atual hegemonia da extrema-
direita e a necessidade de crítica do conformismo neoliberal-autoritário ascendente
naquele momento. A capa deste número, preparada por Felipe Drago em composição
com pintura de Constant Nieuwenhuys (A liberdade insultando o povo, 1975, um desvio
de Delacroix), seria uma representação in negativo da atual situação do mundo. A partir
dela, muitos artigos desta edição encaminham-se na direção de pensar esta tensão social
crescente entre Coerção, Desintegração e Liberdade.
Com tristeza, após nossa última edição, também recebemos a notícia do
falecimento de MOISHE POSTONE, em março de 2018. Postone, de quem já publicamos
uma entrevista e o seu seminal “Antissemitismo e nacional-socialismo” em nosso
número 8, é referência fundamental para a crítica do valor, tendo lançado as suas bases
já desde os anos 70, quando delineou a partir de sua leitura dos Grundrisse a sua
conceituação do capital como uma forma impessoal e abstrata de dominação pelo
trabalho. Publicamos neste volume duas traduções de suas últimas reflexões: uma
Entrevista com Agon Hamza e Frank Ruda e seu artigo A crise atual e o
anacronismo do valor. Em ambos, percebe-se a preocupação de Postone em
compreender, no quadro geral de sua teoria, a ascensão do novo populismo de direita
nos países do Norte, de forma que ele oferece chaves para se pensar também o caso
brasileiro, avant la lettre. Diz Postone na entrevista que “o movimento em direção a um
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novo fascismo, em parte, expressa a dor vivida pelas pessoas como um resultado da
transformação do capital na ausência de um movimento político que dê um sentido a
essa dor de maneiras que não sejam antissemitas nem façam de bode expiatório grupos
diversos de forma xenofóbica ou racista”. Entendemos que o legado teórico de Postone
oferece valiosas portas de acesso para se elevar esta dor ao conceito. Isso fica bem
ilustrado no texto recente que publicamos, que delineia o quadro geral de sua teoria para
explicar as grandes transformações dos séculos XX e XXI, além de refletir sobre o que
seria uma “crise secular da valorização”. Publicamos também o texto de Postone sobre
Derrida, Desconstrução como crítica social. Aqui se evidencia a sua
impressionante capacidade de interpretação histórica das formas de pensamento (pós-)
modernas, rebaixando suas pretensões ao nível que lhes cabe na memória histórica das
“fantologias” e “espectralidades” que, se fornecem boas perspectivas para se quebrar a
linearidade do tempo histórico vazio e homogêneo do capitalismo, não nomeiam a
desintegração social objetiva no cerne dos conceitos; antes, os desconstrói para poder
decretar seu fim precipitado e gozar com suas dispersões, esquivando-se da crítica
frontal da forma-mercadoria.
Em Constituição e destituição pelo trabalho - Observações sobre o
tempo e a liberdade à margem da obra de Moishe Postone, CLÁUDIO R.
DUARTE retoma a dialética do valor, do trabalho e do tempo abstrato desenhada por
Postone em sua obra, apontando algumas consequências para a crítica atual do sistema.
Recuperando os conceitos-chave de mediação e de dominação social abstrata pelo
trabalho, o autor lança outro olhar para o que parece ser o ponto mais frágil dessa obra
seminal: a crise do valor como crise da luta de classes, do paradigma produtivista do
marxismo tradicional e do sujeito histórico por ele pressuposto. Em vez de despachar a
questão através da negação abstrata, confirmando impressões superficiais de leitura, o
autor retoma a ideia do próprio Postone de sacar da “contradição” a necessidade da
“negação determinada”. Aqui, deste processo de crise e desintegração geral do sistema
categorial capitalista, incluindo a destituição das formas de pensamento, subjetividades
e necessidades “moldadas” pelo fetichismo, pode renascer o movimento social como
libertação: superação do “trabalho livre” e do tempo social abstrato de modo imanente,
que é também o movimento do próprio texto quando examinado mais de perto.

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O texto A categoria trabalho abstrato e seu desenvolvimento


histórico, de ERNST LOHOFF, publicado no primeiro volume da revista Marxistische
Kritik (1986), como inicialmente se chamava a Krisis, é, juntamente com a “A crise do
valor de troca”, de Robert Kurz, um dos primeiros ensaios da teoria da crise pensadas
sob a perspectiva da “crítica do valor”. Publicamos aqui uma tradução inédita de Marcos
Barreira.
A revista segue com A natureza na “contradição em processo”:
contribuição para o debate da teoria da crise, artigo no qual DANIEL CUNHA
procura desenvolver a teoria da crise elaborada por Robert Kurz, Moishe Postone e Claus
P. Ortlieb, em específico em relação à crise ecológica e sua relação com a crise da
valorização. Para tal, a partir de conceitos de Jason W. Moore, procura mostrar que o
valor do capital circulante, em seu papel mediador da composição orgânica do capital,
deve ser considerado na teoria da crise. A seguir, busca mostrar que noção de “naturezas
históricas” (Jason W. Moore) é mais adequada do que a de “fissura metabólica” (John
Bellamy Foster) para tal tarefa no quadro geral da crítica categorial do valor.
Na sequência, publicamos o texto de ANDRÉ VILLAR GOMEZ e MAURÍLIO
LIMA BOTELHO, O fim do “capitalismo verde”. Após enumerar uma série de
impactos ambientais de grandes proporções, o artigo busca apontar que aquele curto
período em que foi propagandeado (e até mesmo acreditado) um “capitalismo verde”
terminou: as preocupações ambientais foram deixadas de lado diante da contração
econômica mundial, e o discurso de um mercado clean deu lugar ao cinismo da
exploração dos últimos recursos naturais. Um dos argumentos do texto é que esse
processo é parte integrante da crise estrutural do capitalismo, que se manifesta também
como um colapso ambiental.
Seguindo os esforços de desvendar o fenômeno abstruso do bolsonarismo,
RUBEM KLAUS traça dois ou três densos bosquejos sobre o problema, em A nova
cruzada do fantasma autoritário brasileiro - O bolsonarismo como
fantasia e conclusão lógica do golpe de 64. Comprimindo o presente numa
estrutura fantasmática arcaica, em que confluem relações do passado neocolonial e
neoliberalismo hardcore, o bolsonarismo confirma a constante nacional de uma história
que não passa, ou apenas repete a catástrofe da mesma desintegração com fins de manter
a espoliação social em níveis estratosféricos, ao mesmo tempo em que praticamente
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liquida também o presente e o futuro, submetendo os trabalhadores à miséria,


reprimindo toda oposição e desidratando a política e o Estado como possibilidade formal
de resolução de conflitos. O que seria a conclusão lógica do trabalho sujo do golpe não
de 16, mas de 64. O artigo aponta ainda como este projeto se distingue do fascismo
original ou da “fascistização” dos Estados latino-americanos da época da Guerra Fria e
por que ele tem um potencial ainda mais devastador do que esses últimos.
A seguir, publicamos o texto de DANIEL CUNHA, Bolsonarismo e
“capitalismo de fronteira”, no qual o autor busca compreender esse fenômeno no
quadro histórico-mundial da trajetória do capitalismo. Assim, para o autor, o
bolsonarismo não pode ser compreendido no quadro de referência do nacionalismo
metodológico. Trata-se, antes, de um fenômeno que não pode ser separado do
capitalismo de crise global, no qual a alta composição orgânica do capital exige capital
circulante barato produzido em fronteiras de mercadorias na periferia do sistema, com
a mediação dos agentes locais. A rapina e a repressão são constituintes desse papel do
Brasil na divisão internacional do trabalho em plena crise de valorização. Como adendo,
analisa o “antiglobalismo’ representado pelo ministro Ernesto Araújo a partir da
perspectiva da decomposição do valor como mediação social.
CLÁUDIO R. DUARTE, em seu Ex-homens na fronteira literária latino-
americana apresenta, como indica seu subtítulo, a Tradução e análise de “Las
moscas” de Horacio Quiroga. Tradução inédita, mas mais do que isso o autor
analisa o que permanece latente neste e em outros textos seminais desse escritor
uruguaio-argentino, precursor de grandes temas literários do continente. Nas fronteiras
argentinas da selva e do chaco, ele flagra as tensões sociais que esfacelam o mito liberal
do pioneiro, transpostas em forma literária sob as faces enigmáticas do horror, da
abjeção e da morte, e que remetem ao sentido do processo de escravização, exploração e
extermínio da população indígena e mestiça proletarizada, conduzido pelo Estado
nacional e apagado da memória coletiva. Na dramatização da alucinação de um
personagem moribundo, a força reflexiva de mais um desses “ex-homens” anônimos
comparece nomeando uma espécie de “protofantasia” que se espalha em toda a série
literária latino-americana, como índice da barbárie civilizatória do capital.
O próximo artigo é de THIAGO CANETTIERI, Para uma crítica dos afetos
da crítica. O texto reflete sobre as condições de possibilidade para uma nova crítica
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social a partir de um viés específico: o dos afetos. Com isso, o autor propõe uma
discussão sobre angústia, desamparo e mal-estar, tentando colocá-los como substrato
para a tarefa da crítica.
DANIEL CUNHA, em Crise do capital e carisma apocalíptico busca
explorar e historicizar esse conceito weberiano para o entendimento da explosão trans-
nacional de figuras carismáticas. Para tanto, constroi um modelo no qual insere tal noção
no curso da “trajetória da produção” (Postone), usando também o conceito “esotérico”
marxiano do Estado (como alienação). Com isso, a explosão carismática é situada
historicamente na época do “anacronismo do valor”, de modo que se diferencia das
explosões de carisma históricas.
O mesmo autor, em Pós-capitalismo regressivo e “inércia conceitual”
especula sobre os limites epistemológicos da ciência social, inclusive da dialética, na era
da crise da formação histórica que dá origem às próprias categorias de pensamento,
argumentando que a crise do capital é também uma crise epistemológica. Mais do que
isso, o autor coloca a provocação: já não estaríamos vivendo sob as primeiras formas de
manifestação de um “pós-capitalismo” para o qual ainda não dispomos de categorias
analíticas adequadas?
Seguimos com a resenha de LEOMIR HILÁRIO A crítica do valor à prova
da atualidade, do livro “Poder mundial e dinheiro mundial” (Robert Kurz).
A revista fecha com Discruso da Paulista, comentado, no qual o discurso
de Jair Bolsonaro é pontuado por comentários de Daniel Cunha.
Agradecemos a Caroline Nogueira, Diogo Carvalho, Germano Nogueira Prado,
Luiz Philipe de Caux, Manoel Dourado Bastos e Vinícius Domingos por atenderem nosso
chamado à tradução coletiva da entrevista de Postone.

Março de 2019.

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CAPITAL, CRISE, CRÍTICA


Entrevista com Moishe Postone, por Agon Hamza e Frank Ruda

A sua obra estabelece uma distinção crucial entre a crítica do capitalismo do ponto de
vista do trabalho e a crítica do trabalho no capitalismo. A primeira implica uma
concepção trans-histórica do trabalho [work], enquanto a última situa o trabalho
como uma categoria constitutiva – capaz de “síntese social” – no modo capitalista de
produção. Essa distinção exige que abondemos toda forma de concepção ontológica do
trabalho?

Depende do que você pretende dizer com concepção ontológica do trabalho


[labor]. Isso realmente nos força a abandonar a ideia de que há um desenvolvimento
contínuo e trans-histórico da humanidade que é realizado pelo trabalho, que a interação
humana com a natureza mediada pelo trabalho é um processo contínuo que levou à
mudança contínua. E que o trabalho é nesse sentido uma categoria histórica central.
Essa posição, na verdade, está mais próxima de Adam Smith do que de Marx. Penso que
a centralidade do trabalho para algo chamado de desenvolvimento histórico pode ser
posta apenas para o capitalismo, mas para nenhuma outra forma de vida social humana.
Por outro lado, penso que se pode reter a ideia de que a interação da humanidade com a
natureza é um processo de autoconstituição.

Em que sentido você diria que há uma possível concepção do trabalho em termos de
constituição? Algo que se pode encontrar no jovem Marx aponta nessa direção.

Sim, e parece que, uma vez que Marx historiciza a centralidade do trabalho para
um processo contínuo de desenvolvimento, isso em si mesmo não afasta a ideia de que
o trabalho é o processo de autoconstituição. Apenas ele não estaria ligado a uma noção
de desenvolvimento histórico e progresso constante no trabalho.

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Uma das contribuições mais importantes de Tempo, trabalho e dominação social é uma
nova teoria de dominação impessoal na sociedade capitalista. À luz dessa forma de
dominação irredutivelmente abstrata, poderíamos inverter – ou talvez dar um novo
sentido – à famosa definição de Marx de fetichismo como “relações entre pessoas que
aparecem como relações entre coisas”? A forma capitalista de dominação não seria
melhor definida como a aparência de relações realmente abstratas como se fossem
relações concretas, pessoais? Além disso, essa inversão, ou pelo menos o
reconhecimento do papel crucial da abstração no capitalismo, não torna a definição
de luta de classes insustentável, ou teríamos necessidade de um conceito de classe que
tome essa distância do concreto em consideração?

Não sei se concordaria plenamente com a reformulação proposta. Primeiramente,


no que se refere à citação “relações entre pessoas que aparecem como relações entre
coisas”, o que é deixado de lado dessa versão do que disse Marx é que ele acrescenta que
as relações entre pessoas “aparecem como o que elas são”, como “relações sociais entre
coisas e relações coisificadas entre pessoas”. Marx elaborou explicitamente a noção de
fetichismo com o fetichismo da mercadoria. Porém, em muitos aspectos, todos os três
volumes de O capital são um estudo sobre o fetichismo, mesmo quando ele não usa essa
palavra. O fetichismo implica que, por causa do peculiar caráter duplo das formas sociais
que estruturam o capitalismo, as relações sociais desaparecem de vista. O que resulta
são relações coisificadas: também resultam abstrações. Porém, uma dimensão do
fetiche, como você colocou, é que as relações abstratas aparecem como concretas. Elas
aparecem na forma do concreto. Assim, por exemplo, o processo de produção de mais-
valia aparece como um processo concreto, o processo de trabalho. Ele parece ser técnico-
material, e não moldado por formas sociais. Entretanto, há também dimensões e
regularidades abstratas que não aparecem na forma do concreto. Estou enfatizando isso
porque algumas formas reacionárias de pensamento veem o capitalismo apenas nos
termos daquelas regularidades abstratas, e se recusam a ver que o próprio concreto é
moldado pelo abstrato, e está realmente impregnado do abstrato. Penso que muitas
formas de populismo e antissemitismo podem ser assim caracterizadas. Agora, não
tenho certeza se essa apropriação da crítica da economia política de Marx torna uma
definição da luta de classes insustentável, mas ela realmente indica que a luta de classes
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ocorre no interior das formas sociais estruturantes, e é moldada por elas. Essa posição
rejeita a centralidade ontológica ou o primado da luta de classes como aquilo que é
verdadeiramente social e real por detrás do véu das formas capitalistas. A luta de classes,
pelo contrário, é moldada pelas relações capitalistas expressas pelas categorias do valor,
da mercadoria, do mais-valor e do capital.

Uma das suas teses ou afirmações famosas e muito discutidas é a de que a dominação
impessoal no capitalismo, como notoriamente colocado por Marx, é exercida pelo
tempo, e que, portanto, a crítica da economia política em última análise se torna a
crítica da economia política do próprio tempo. Para um filósofo convencional formado
no idealismo pré-hegeliano, ou seja, kantiano, isso só pode ser surpreendente: o que
Kant considerava uma forma de intuição dada a priori deve ser radicalmente
historicizado, e pode ter – como se pode argumentar com Sohn-Rethel – o seu estatuto
apriorístico apenas porque foi colocado historicamente como a priori. É possível dizer
a partir da sua perspectiva que nem toda história é história da luta de classes, mas que
toda luta de classes é luta de classes pela história, e mais precisamente pelo tempo? Em
que estrutura temporal transcendental se vive? E, portanto, o primeiro passo para
romper a transcendentalização capitalista do tempo (tornar uma base a priori o que
você chama de “tempo histórico”) é demonstrar (crítica por meio da Darstellung
[exposição], como fazia Marx) que o que consideramos natural (o tempo) é ele próprio
um produto histórico, o que significa dizer: que não existe o tempo como tal (o tempo é
essencialmente relativo e nunca deveria ser naturalizado)? Essa compreensão então
poderia ser a própria condição para a emancipação daquilo que parece ser um regime
de tempo imutável, já que natural.

Sim, mas eu acrescentaria que a natureza da luta de classes no que diz respeito ao
tempo varia historicamente. Isso significa, como pode ser argumentado, e em muitos
aspectos alguém como E. P. Thompson realmente o fez, que em grande medida as
primeiras lutas de classe foram lutas contra um novo regime de tempo que estava sendo
introduzido. Foi uma luta contra o regime do tempo abstrato como disciplinamento, por
assim dizer. Porém, no intervalo de algumas gerações, (e é claro que estou sendo
bastante esquemático) as lutas da classe trabalhadora se tornaram uma luta no interior
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do quadro do próprio tempo abstrato, elas se tornaram lutas em torno da jornada de


trabalho. Em certo sentido, essas lutas já pressupõem a existência da jornada de trabalho
em unidades de tempo abstrato, e assim se tornaram uma luta quantitativa no interior
desse quadro dado. Em termos do que discuti sobre a possível abolição desse regime de
tempo, que relacionei com a possível abolição do trabalho proletário, a possibilidade
histórica da autoabolição do proletariado emerge em formas que começariam a apontar
para além do quadro temporal existente. Enquanto a luta de classes industrial ocorreu
no interior desse quadro temporal.

Poderíamos reformular isso de maneira que o proletariado não está lutando contra
outra classe (como a burguesia), mas sim contra o mundo burguês e a sua concepção
de tempo, com o que a própria autoabolição do proletariado modificaria esse mesmo
mundo e com isso modificaria a concepção constitutiva do tempo desse mundo? Isso
vai no sentido do que você diz?

Claro, com certeza. Isso fica mais difícil de ser visto em períodos como o atual, no
qual há enormes desigualdades. E assim as pessoas pensam que a luta é contra o 1%.
Mas estou completamente de acordo.

Como a sua concepção do tempo como “variável independente” ou tempo abstrato e


como “variável dependente” ou tempo concreto se relaciona com dimensões padrões e
triviais do tempo, nomeadamente, passado, presente e futuro? Você indicou que com o
desenvolvimento da tecnologia, uma hora de trabalho pode ser intensificada,
adensada, condensada, de maneira que há uma relação específica entre duas formas
historicamente determinadas de tempo, e assim parece haver uma intensificação
quantitativa que pode finalmente levar a um salto qualitativo na direção contrária, de
maneira que em determinado ponto é precisamente daí que pode surgir a possibilidade
de superar o trabalho, libertar o trabalhador do trabalho, quando a tecnologia alcança
um ponto no qual o trabalhador não é mais necessário? Você concordaria com essa
reelaboração simplificada? Caso positivo, ou mesmo caso negativo, como a sua análise
do tempo no e sob o capitalismo se relaciona com análises do capitalismo
contemporâneo que procuram demonstrar como o capitalismo subtrai uma ou mesmo
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mais de uma dimensão do tempo, de maneira que há uma peculiar ausência não
apenas do futuro (como afirma a atitude “sem-futuro”), mas também de um presente
propriamente dito (e, portanto, mesmo de um passado propriamente dito)?

O(s) tempo(s) do capital são de uma dinâmica complexa, que implica de uma só
vez transformações em curso e em aceleração, que não são apenas tecnológicas, mas de
todas as esferas da vida, de um lado, e, de outro lado, a reconstituição da base
fundamental do próprio capital. Esse processo de reconstituição da base do capitalismo
no interior da estrutura da crítica de Marx é a reconstituição do trabalho, não apenas
como fonte da forma valor da riqueza, mas, relacionado a isso, do trabalho como a
atividade mediadora socialmente necessária que dá origem a toda uma estrutura de
dominação abstrata. Sugeri que as pessoas tendem a ver apenas uma dimensão dessa
dialética complexa: ou elas notam apenas que quanto mais as coisas mudam, mais elas
permanecem as mesmas, que tudo é apenas esse constante deserto sem qualidades do
presente, ou elas ficam muito entusiasmadas sobre tudo o que é sólido se desmanchando
no ar, sobre como tudo é aceleração. A real trajetória do desenvolvimento do capital no
interior do quadro da teoria, como eu a entendo – e isso é particularmente potente – não
deveria ser entendida como referindo-se nem a um nem a outro, mas a ambos ao mesmo
tempo. Isso significa que ela não é um desenvolvimento linear. Há muitas tensões de
cisalhamento, como se diz na física, que são internas ao sistema. Tanto a forma da
produção quanto o sentido das possibilidades historicamente constituídas têm de ser
entendidas com referência ao que eu chamo de tensões de cisalhamento dos
desenvolvimentos capitalistas. Isso faz sentido?

Faz, sim. Então, poderia ser dito que certas posições teóricas contemporâneas que
aparecem sob o nome “aceleracionismo”, uma posição que assume que é necessário
abraçar as tendências contraditórias do capital e acelerar sua produção em todos os
níveis, é simplesmente como uma fantasia de superar o capitalismo desde dentro do
próprio funcionamento do capitalismo e, portanto, não é capaz senão de acompanhar
sua própria dinâmica?

Bem, mesmo aqui eu teria que desarticular vários momentos na sua descrição que
estão mesclados. Essa dinâmica dialética que eu esbocei é uma dinâmica contraditória,

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isto é, ela gera uma contradição crescente entre o potencial do sistema e sua efetividade.
O fato de que há um limite para o capital não significa que o capital colapse. O limite é
antes uma curva assintótica, você chega mais e mais perto de um limite absoluto, mas
nunca o alcança. Se uma transformação irá ocorrer, ela tem de ocorrer porque as pessoas
presas na contradição entre o que é e o que poderia ser olham para o que poderia ser,
para o futuro, em vez de permanecerem fixadas naquilo que elas pensam que era o
passado. De certo modo, boa parte da esquerda, no que diz respeito a isso e desde esse
ponto de vista, está se tornando conservadora. O que quero dizer com isso é que seu
ponto de vista é o passado. No século XIX, por exemplo, muitos movimentos
anticapitalistas olhavam para o passado. Eles tinham uma imagem glorificada de uma
sociedade de camponeses cuja organização era justa. Uma tal sociedade nunca existiu, é
claro. E foi o trabalho de intelectuais associados com o movimento da classe
trabalhadora que viu claramente que não havia caminho de volta. Todavia, muitos desses
associados a movimentos da classe trabalhadora, baseados em parte na leitura do
Manifesto Comunista, assumiram que a classe trabalhadora iria apenas se expandir
indefinidamente e abarcar a maior parte das pessoas. Por fim, a sociedade seria
composta por 1% de burgueses e os trabalhadores iriam assumir o controle. Isso, no
entanto, não é e não será o caso. E o que enfrentamos hoje é uma crise da classe
trabalhadora tradicional e do trabalho. Contudo, temos variedades do pensamento de
esquerda que ainda glorificam o trabalho proletário, que ainda têm implicitamente um
conceito de sociedade baseada no pleno emprego – com o que que eles querem dizer
pleno emprego proletário. Ou, de modo mais socialdemocrata, eles olham para trás para
a síntese exitosa fordista-keynesiana das décadas do pós-guerra, onde muito mais
pessoas estavam empregadas, os salários eram mais altos, a desigualdade de renda não
estava nem perto de ser tão grande como é hoje, e elas gostariam de ver um retorno a
esse tipo de utopia socialdemocrata. Mas não há retorno. E uma análise sóbria do capital
indicaria que não há retorno e que todos que ainda insistem em falar sobre pleno
emprego industrial, etc., são reacionários em um sentido bem específico. Eles estão
olhando para trás, para um passado que não pode mais ser restabelecido. Por outro lado,
a resposta não é simplesmente abraçar o capital. O capital não irá realizar o potencial
que ele gera, e ele não pode fazer isso. O capital é enormemente destrutivo, assim como
é gerador de possibilidades que apontam para além dele. É preciso haver uma
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reorientação do pensamento em direção a uma concepção distinta de futuro. Temos que


ir além de 150 anos de pensamento de esquerda e começar a assumir o que existiu apenas
como uma vertente menor, e começar a pensar com o que se pareceria o “trabalho pós-
proletário”. Pessoas como André Gorz preocuparam-se com esses assuntos, mas, claro,
salvo entre intelectuais universitários, ele foi muito marginalizado.

Em História e Desamparo (History and Helplessness)1, você aborda a categoria crítica


da indeterminação como um objetivo da luta social e política, em vez de uma categoria
da análise social. Em vez de assumir que há uma classe ou grupo social que é
inerentemente livre de certas determinações sociais, você evoca a produção de
indeterminação como um resultado importante da ação política. Você poderia
elaborar um pouco mais esse ponto – e suplementá-lo com uma análise de seu anverso:
o lugar da indeterminação na estrutura social capitalista, e a luta por distintas formas
de determinação como uma dimensão da ação política?

Não estou seguro sobre essa questão, porque não estou seguro de que tenha
defendido que a indeterminação é uma característica da luta social e política. Se você
puder elaborar um pouco mais, ficaria mais claro para mim sobre o que é a questão.

O que temos em mente é: o que poderia ocupar o próprio lugar que o trabalho está
ocupando?

Entendo. Pode haver um pequeno mal-entendido. Aquilo contra o que estou


reagindo é o tema popular em muitos dos pensamentos pós-marxistas, entre pós-
estruturalistas acadêmicos e especialmente entre desconstrucionistas, que encaram a
indeterminação ela mesma como um signo de possibilidade de resistência: mostrar que
a realidade é indeterminada é mostrar que a resistência é possível. E eu não quero que
minha posição seja confundida com esse tipo de posição. Porque para mim a noção de
indeterminação deles é muito indeterminada, assim com a noção de resistência deles é

1 Moishe Postone, “History and helplessness: mass mobilization and contemporary forms of
anticapitalism”. Public Culture 18 (1): 93-110. Disponvível em português em: http://o-
beco.planetaclix.pt/mpostone5.htm (N. E.)

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politicamente bastante indeterminada. O que temos visto em décadas recentes são


muitas formas de “resistência” que são reacionárias. O próprio termo “resistência” não
diz nada em termos de emancipação. Então eu certamente não partilho desse tipo de
visão. O que eu estava tentando dizer naquele ensaio é que, já meio século atrás, novas
formas de movimentos de massa e movimentos estudantis que eram globais surgiram.
Esses movimentos em certo sentido eram expressões da inadequação das análises mais
antigas sobre qual era a natureza da luta, quem seria o portador da luta e, mais
importante, qual poderia ser possivelmente o resultado da luta. E eu disse que toda essa
certeza se desintegrou. Mas esses novos movimentos nunca se tornaram historicamente
autoconscientes o suficiente para apreender o que eles expressaram historicamente, ou
melhor ainda, aquilo de que foram historicamente expressões. Isto é, eles não se
tornaram cientes de sua própria localização histórica. Penso que houve um
acanhamento, em termos teóricos. Em vez de repensar o que é o capital, qual era o
significado desses movimentos pós-proletários e como eles sugeriram um tipo diferente
de luta anticapitalista apontando para uma concepção diferente de pós-capitalismo, boa
parte do que foi um movimento sem forma bem definida voltou-se para um certo anti-
imperialismo, pelo que não me refiro à luta anticolonial per se, que eu apoio. Foi, em vez
disso, uma virada para apreender o mundo em termos de dominação concreta e
libertação concreta. (Acho que é significativo que o caráter miserável da maioria dos
regimes pós-coloniais nunca foram um objeto de análise crítica na maioria da esquerda).
A outra virada para questões de dominação concreta na sequência dos anos 60 foi o apoio
às lutas dissidentes na Europa Central e do Leste. E, novamente, não é que eu não
simpatizasse com essas lutas. Mas a despeito do fato de que essas lutas e as forças anti-
imperialistas parecessem representar dois campos completamente opostos, o que eles
tinham em comum era um foco na dominação concreta. Se, num caso, isso foi o que eles
chamaram de imperialismo, noutro foi a dominação concreta do sistema estatal
soviético. E em ambos os casos havia um foco na dominação concreta, cuja destruição
seria de algum modo geradora de sociedades civis emancipatórias. Ambos indicaram um
afastamento da tarefa histórica de entender a nova fase do capitalismo com suas formas
cada vez mais abstratas de dominação.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

Só uma coisa, ligada a isso. Você diria: houve relatos de movimentos estudantis mais
recentes, como o movimento Occupy, onde as pessoas enfatizaram que uma força desse
mesmo movimento foi ou emergiu de sua total indeterminação, pelo menos no começo.
De modo que eles não levantaram nenhuma demanda específica, mas a própria
fraqueza do movimento foi também essa mesma indeterminação, de modo que o ponto
de inflexão mesmo é que é difícil determinar: onde a indeterminação ainda é produtiva
ou se torna indeterminada. Você concordaria com uma consideração desse tipo?

Não sou um grande fã da indeterminação do movimento Occupy. Seria possível


argumentar que, se a noção de futuro é indeterminada, então o movimento tem que ser
indeterminado. Mas o que o movimento de fato fez foi voltar a um território bastante
familiar. Por exemplo, em vez do capital, fazia-se uma crítica das finanças, o que para
mim é muito ambíguo politicamente. Além disso, uma das grandes fraquezas desses
movimentos indeterminados informais é que você só tem líderes autoproclamados que
não respondem a ninguém. Acho essa forma anarquista fundamentalmente mais
autoritária do que uma forma estruturada, porque não há responsabilidade. Por fim, o
foco de Bernie Sanders nas políticas comerciais como em última análise responsáveis
pela perda de empregos na indústria é outro exemplo de volta ao concreto para explicar
desenvolvimentos que requerem uma teoria do capital. A miséria da classe trabalhadora
nos Estados Unidos foi aumentada pelas políticas comerciais, não foi criada por elas.
Isto é, as pessoas a quem Sanders apelou e, de uma maneira diferente, a quem Trump
apelou, são pessoas a quem se diz que há atos concretos ou pessoas concretas que são
responsáveis pelo estado do mundo. Se, com a explicação racista e xenófoba de Trump,
são os mexicanos e os muçulmanos etc., para a esquerda populista são os bancos e o
comércio. Se não fosse por eles teríamos empregos na América. Bem, os empregos não
vão voltar para a América. As razões têm mais a ver com a lógica do capital do que com
políticas comerciais. Mas em vez de pensar sobre como vamos lidar com uma sociedade
onde os empregos na indústria estão desaparecendo, sobre qual é a responsabilidade do
governo em uma nova situação, a esquerda populista evita tais questões. Assim, não
penso que o Occupy seja um modelo. Ele é uma expressão de desamparo e raiva. Assim,
temos uma elite de tecnocratas de um lado e raiva populista de outra. O que
naturalmente está em curso na Europa também, como vocês sabem.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

Em Tempo, Trabalho e Dominação Social você louva a leitura epistemológica das


categorias de Marx feita por Alfred Sohn-Rethel, uma ousada tentativa de pensar as
irredutíveis abstrações implicadas pela forma-mercadoria, ao mesmo tempo
distanciando-se dela, levando em conta o privilégio da troca sobre a produção em Sohn
Rethel, e sua separação da troca de mercadorias da emergência histórica do modo de
produção capitalista. Contudo, há um terceiro aspecto do projeto de Sohn-Rethel,
mencionado de passagem no seu livro: a produtiva, ou mesmo emancipatória,
dimensão da abstração ou da alienação (por exemplo, nas abstrações científicas – mas
também no trabalho militante disciplinado, organização social complexa, etc.). Você
poderia por acaso desenvolver mais sua crítica de Sohn-Rethel, e elaborar sua posição
acerca da dimensão potencialmente emancipatória da abstração?

Bem, se eu puder voltar o que eu estava dizendo antes, o que tenho tentado
elaborar é um modo de ver a esfera de produção na análise de Marx como o locus de uma
dinâmica histórica. Não é simplesmente um locus onde coisas concretas são produzidas
e pessoas são exploradas. Parece-me que muitas pessoas, incluindo Michael Heinrich,
interpretaram mal do que se trata a esfera de produção. Na crítica de Marx, a esfera de
produção é a esfera da dinâmica histórica, é a esfera na qual o valor excede a si mesmo
e ainda reconstitui a si mesmo. E ao focar na troca, de certa forma Sohn-Rethel remove
essa dinâmica da investigação, e fica preso numa oposição que, embora Sohn-Rethel
fosse muito sofisticado e de forma alguma pudesse ser jogado no mesmo saco intelectual
dos stalinistas, mesmo assim opõe a produção à troca. E eu sou crítico dessa posição –
não por que ele coloca o locus da abstração apenas na troca. Penso que isso é um grave
erro, porque o verdadeiro locus da abstração é a dinâmica histórica. E ainda assim isso
é muito mais difícil de compreender do que a ideia da abstração do mercado. Um
resultado é, portanto, que não há diferença histórica em Sohn-Rethel entre a filosofia
grega e a filosofia do século 17 e o pensamento do século 19. Tudo é moldado pela
abstração real da troca. E eu penso, por mais rico e sugestivo que seu trabalho era e é,
que isso é uma fraqueza. Por outro lado, e isso era o que você estava levantando, ao
contrário dos românticos, Sohn-Rethel diz que há uma dimensão positiva ao reino da
abstração. Eu concordo com ele, mas gostaria de modificar isso um pouco: o reino da
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

abstração gerado como parte e parcela da ascensão do capital é universalizante.


Entretanto, ele o é de modo que nega a particularidade. É uma parte de um sistema
caracterizado pela dicotomia e uma oposição polar entre o abstrato universal e o
particular específico. O universal abstrato tem uma dimensão emancipatória. A
universalidade abstrata das formas sociais constitui a estrutura histórica dentro da qual
categorias como direitos humanos gerais ou os direitos do homem, todos os ideais do
Esclarecimento, emergem. Por outro lado, é uma forma de universalidade que
necessariamente abstrai-se de tudo que é particular. O capital cria caracteristicamente
um sistema através da oposição da universalidade abstrata, a forma-valor, e a
especificidade particularista, a dimensão do valor de uso. Parece-me que ao invés de ver
um movimento socialista ou emancipatório como herdeiro do Esclarecimento, como o
movimento da classe trabalhadora fez, movimentos críticos hoje deveriam estar lutando
por uma nova forma de universalismo que englobe o particular, em vez de existir em
oposição ao particular. Isso não será fácil, porque boa parte da esquerda hoje tem se
inclinado à particularidade ao invés de tentar achar uma nova forma de universalismo.
Eu penso que esse é um erro fatal.

Seu trabalho é um dos poucos – talvez ao lado da teoria dos diferentes “modos de troca”
de Kojin Karatani – a criticar a “metáfora arquitetônica”, que pensa a lógica dos
modos de produção em termo de base/superestrutura sem ceder espaço à centralidade
da crítica da economia política.2 O que sobra da teoria dos “modos de produção”
quando nós partimos não do objetivo em direção ao subjetivo, mas, ao contrário,
enfatizamos, como você propõe, a constituição simultânea das dimensões subjetiva e
objetiva da vida social sob o capitalismo – como isso afeta o próprio conceito de crítica?

Mais uma vez, eu acho que tem bastante coisa envolvida aqui. Primeiramente,
estou questionando o materialismo histórico – que não foi realmente criado por Marx,
mas posteriormente largamente por Engels – isto é, a ideia de que se tem sucessivos
modos de produção. Eu penso que analisar os argumentos de Marx em O capital chama

2 Outra obra importante a respeito é a de Derek Sayer, The violence of abstraction: the analytic
foundations of historical materialism. Basil Blackwell, 1989. (N. E.)

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à questão a noção de que se tem modos de produção unificados antes da emergência


histórica do capital, que é unificado no sentido de que se pode começar por um princípio
singular, a mercadoria, e que é possível desdobrá-lo até englobar o todo. Não se pode
encontrar algo análogo em outras formas de vida social, em parte porque a possibilidade
de desdobrar o todo social de um ponto singular de partida é possível apenas porque, no
capitalismo, o modo de mediação é uniforme. Essa é a lição da forma-mercadoria.
Nenhuma outra sociedade tem uma forma de mediação uniforme, homogênea, então se
torna bastante ilusório falar de modos de produção primitivos. É realmente legítimo
dizer que certas economias, digamos, as dos romanos, eram amplamente escravocratas,
mas a escravidão não ocupou o mesmo espaço que, por exemplo, a escravidão ocupa sob
o capitalismo, onde ela é parte de um sistema muito maior. Você não tem esse tipo de
sistema em Roma ou na Idade Média ou na China. É muito mais diferenciado. Esqueça
a noção de base-superestrutura. Ela tem sido tão mal interpretada que é melhor apenas
abandoná-la. Ela tem sido mal compreendida como a relação entre objetividade e
subjetividade, considerando que a única vez que Marx a usou, ele fala sobre a
institucionalização de formas de pensamento, o que é diferente. Ele se refere, por
exemplo, à institucionalização jurídica, não à forma de pensamento em si. A forma de
pensamento é intrínseca às formas sociais. O que sobra da crítica? Primeiramente, ela
tem de ser reflexiva. Se as categorias são categorias tanto do pensamento quanto do ser
social, o mesmo permanece verdadeiro para o pensamento crítico. Nenhuma forma de
pensamento tem validade trans-histórica. Você não pode argumentar que todos os
demais são socialmente formados e presumivelmente enganados e que eu não sou
socialmente formado e fico acima e além de todo mundo. A linguagem dos modos de
produção, que é a linguagem trans-histórica, permite a essa epistemologia trans-
histórica esgueirar-se através da porta dos fundos. Então é melhor dispensá-la. A
abordagem que esbocei implica que a teoria crítica somente é válida enquanto o seu
objeto existir. Não há e não pode haver algo como uma sociedade marxista, exceto o
capitalismo, é claro.

Normalmente, há um grande cisma entre o trabalho de fazer uma crítica categorial e


delimitada da economia política, por um lado, e a luta de diferentes militantes e frentes
políticas, que geralmente se baseiam em análises locais de sua própria conjuntura
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

política, por outro. Como você visualiza a relação entre a crítica da economia política
e a organização política militante hoje?

Por um lado, não se pode esperar que as pessoas que tentam exercitar uma crítica
categorial sofisticada estejam sempre nas linhas de frente dos movimentos, e também
não se pode esperar que aqueles que são mais inclinados para o ativismo sejam grandes
teóricos. Pode haver exceções, mas geralmente você não pode esperar isso. No entanto,
você pode esperar que um dos papéis da teoria – e isso soa muito modesto, mas é muito
importante – seja mostrar quais caminhos são claramente equivocados. Você pode
colocar muito esforço e energia em caminhos equivocados. Eu lembro de argumentar
com as pessoas nos anos 70, nos EUA e na Alemanha, que um movimento de retorno à
“natureza”, onde todo mundo poderia ordenhar suas próprias vacas, poderia ter sido
satisfatório individualmente e poderia ter sido uma maneira mais rica e gratificante de
viver. Porém, de maneira alguma isso poderia servir como um modelo para a sociedade.
Chegou-se ao ponto de as pessoas promulgarem esse ideal romântico; ao ponto de elas
impedirem forças de oposição, grupos, pensadores de tentarem trabalhar para definir o
que seria um caminho adequado. Então, uma das tarefas mais importantes da teoria
talvez tenha menos a ver com indicar exatamente qual é o caminho para a revolução e
mais a ver com indicar quais caminhos não levam a uma transformação emancipatória.
Por exemplo, esse argumento poderia ter sido feito com relação ao movimento Occupy.

O seu argumento, em “The Holocaust and The Trajectory of the Twentieth Century” [“O
Holocausto e a trajetória do século XX”],3 de que os campos de concentração deveriam
ser compreendidos como a “grotesca negação anticapitalista” da modernidade
capitalista – uma espécie de “fábrica de ‘destruir valor’ (...) de destruir as
personificações do abstrato” – serve como um exemplo persuasivo da tese,
apresentada em Tempo, trabalho e dominação social, de que a dialética capitalista da
transformação/reconstituição é, na verdade, uma expressão do entrelaçamento de
duas formas de dominação: uma baseada no tempo abstrato e outra baseada no tempo
histórico. Consequências cruciais poderiam ser extraídas disso, especialmente para

3 Publicado em Moishe Postone e Eric Santner (org.) Catastrophe and meaning. Chicago: University of
Chicago Press, 2003, p. 81-115. Ver, também de Postone, “Anti-semitismo e nacional-socialismo”, Trad.
Nuno M. C. Machado. Sinal de Menos, nº8, 2012, p. 14-28. (N. E.)

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uma crítica dos projetos emancipatórios que baseiam suas expectativas para o futuro
na libertação do “concreto” e do “histórico” das garras da abstração. Como a sua
análise das categorias de tempo e temporalidade no capitalismo afeta a dialética da
utopia e da ideologia?

Ela é um aviso. O que eu tentei fazer no ensaio sobre o Holocausto ao qual você
se refere foi duas coisas de uma só vez. Tentei ajudar as pessoas a entender que há uma
diferença entre assassinato em massa e extermínio. Não se trata de uma diferença moral.
Não é que um seja pior ou melhor do que o outro. Não se pode compreender o
Holocausto apenas analiticamente caso ele seja subordinado às categorias de xenofobia,
ódio racial e assassinato em massa. Ele tem um sentido de missão e propósito que outras
formas de racismo, eu diria, não têm. Não apenas isso, ele é utópico. É utópico muito no
sentido de que tenta libertar o concreto das garras da abstração. Essa noção de
emancipação caracterizou a chamada “Revolução Alemã” dos nazistas. Os judeus, dentro
dessa visão de mundo, tornaram-se, de certa forma, não apenas a personificação do
capital, mas também a origem da sua dominação abstrata. Eu penso que o Holocausto
deveria servir como um significativo aviso contra todas as formas de utopia que reificam
o concreto e vilificam o abstrato – ao invés de ver que ambos, o abstrato e o concreto,
bem como sua separação, são o que formam o capital. Esse era o primeiro ponto. O
segundo é que o capital (e isso é baseado na minha leitura de Marx) não é simplesmente
um vampiro sentado em cima do concreto, onde, sendo assim, poderíamos
simplesmente nos livrar dele, como quando tomamos um remédio para dor de cabeça.
Dentro desse imaginário, o capital é considerado extrínseco ao concreto, à produção ou
ao trabalho. Porém, o capital na verdade molda o concreto. Ele continuamente esvazia o
trabalho de seu sentido. Ao mesmo tempo, ele é uma forma alienada de sociabilidade
humana, de capacidades humanas. Como tal, ele é criador de formas gerais de
conhecimento e poder, mesmo que ele historicamente as crie numa forma que oprime
os vivos. Ainda assim, em muitos aspectos, é precisamente isso que se torna a origem de
possibilidades futuras. Isto é, o trabalho vivo (proletário) não é a fonte de possibilidades
históricas futuras. Pelo contrário, aquilo que tem sido constituído historicamente como
capital é essa origem. Agora, eu sei que isso soa como se eu estivesse colocando tudo de
cabeça para baixo. Eu estou dizendo que a categoria de trabalho vivo em Marx não é a

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

origem da emancipação. Que, ao invés disso, o trabalho morto é essa origem. Talvez isso
soe como uma provocação, mas é algo que precisa ser pensado.

Você acha (ou diria) que qualquer mudança fundamental na dinâmica e na estrutura
do capitalismo é também sempre perigosa, não somente no sentido de vir com a
ameaça de reincidir no que se quis superar, mas também no de correr o risco de piorar
a situação? Podemos pensar na frase de W. Benjamin, que diz que por trás de todo o
fascismo há uma revolução fracassada. Além disso, você diria que é preciso, ainda
assim, correr o risco de fracassar ao fazer a revolução (e, com isso, correr o risco do
fascismo) ou algo mudou com o século XX e na sua sequência (de forma que o
imperativo seria sempre o de evitar o risco de fascismo e, desta forma, seria preciso
repensar a revolução e a transformação política a partir desta perspectiva)?

Acho que este é um conjunto muito complicado de problemas. Por um lado, não
acho que o risco de fascismo, que é alto, seja tanto que não devamos tentar mudar nada.
Porque não é como se estivéssemos vivendo num sistema estático onde se pode dizer
“saia sozinho tranquilamente, mas não balance o barco”. O barco já está sendo balançado
pelos desenvolvimentos históricos estruturais. Há o perigo real do fascismo, e aí é que a
análise comunista reducionista do fascismo nos fez um tremendo desserviço. Fascismo
não é simplesmente um movimento manipulado pelas classes dominantes reacionárias,
é também, de forma não simples, uma expressão do declínio das classes tradicionais. Ao
contrário disso, o movimento em direção a um novo fascismo, em parte, expressa a dor
vivida pelas pessoas como um resultado da transformação do capital na ausência de um
movimento político que dê um sentido a essa dor de maneiras que não sejam nem
antissemitas nem façam de bode expiatório grupos diversos de forma xenofóbica ou
racista. Acho que isto é particularmente corrente nos dias de hoje. Um fenômeno como
Donald Trump, algumas facções dos apoiadores de Bernie Sanders, o movimento Brexit,
a direita na França – estas não são mais expressões das classes reacionárias tradicionais,
mas expressões em grande parte das classes trabalhadoras industriais em declínio. Não
basta que a esquerda simplesmente os chame de racistas, xenofóbicos e mesquinhos. E
seria um erro terrível adotar, oportunisticamente, essa mentalidade, ainda que se leve
sua miséria a sério. Neste caso, não se está confrontando adequadamente a crise do

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capital industrial. Ao invés disso, nós precisamos de outra forma de ver o mundo, para
além das políticas identitárias de esquerda assim como das de direita. Como membros
de uma configuração cosmopolita, não podemos simplesmente dizer que o
multiculturalismo é cool porque gostamos muito de andar pelas ruas de uma cidade
como Londres, que é uma verdadeira metrópole, e vivenciar de mil pequenas maneiras
a globalidade disso tudo. Não podemos simplesmente ignorar todos os que estão no
Norte da Inglaterra. O fato de eles terem cometido um erro não significa que não haja
bons motivos para que se sintam radicalmente insatisfeitos. O novo perigo do fascismo,
e uso ”fascismo“ num sentido muito amplo, é gerado pela dor e miséria causadas pela
dinâmica do capital. Muitos na esquerda costumavam tentar solucionar a natureza
propensa a crises do capitalismo com programas de pleno emprego e formas de
segurança social que fossem baseadas em tal pleno emprego. Isso não irá mais funcionar.
Eu não denuncio tal programa por ser reformista. Ele fez perfeito sentido em seu tempo.
Contudo, não faz sentido agora. A esquerda tem cada vez menos a dizer em termos de
uma análise da situação – para além de se apresentar como antirracista, cosmopolita e
globalizante. Tudo o que isso irá fazer é gerar ressentimento da parte daqueles que
realmente sentem os golpes da economia globalizada.

Leva-se a sério aqueles que não se pode levar a sério. Então pode-se dizer que se a única
articulação que é dada a esse tipo de insatisfação é um tipo de fascismo, também pode-
se ver uma falha da esquerda em fazer algo a respeito.

Sim.

Uma das posições prevalecentes na esquerda hoje é a ideia de que precisamos de novas
formas de organização política que privilegiem a imanência em relação à
transcendência, a multiplicidade em relação à unidade – e engajamento concreto,
local, em relação a mediações abstratas. Quais são, em seu julgamento, os limites dos
instrumentos tradicionais de luta da esquerda (forma-partido, sindicatos etc.)? Além
disso, sua crítica da visão teleológica do proletariado implica uma concepção populista
da construção de agentes políticos?

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Creio já ter abordado algo disso. Privilegiar a imanência sobre a transcendência,


multiplicidade sobre unidade e engajamentos concretos locais sobre mediações
abstratas é tão-somente tomar apenas um polo das dicotomias constituídas pelo capital.
Então, o que infelizmente estamos vendo com muita frequência é um debate entre
intelectuais globalizantes e elites econômicas que representam o lado abstrato, de uma
parte, e populistas reacionários e também de esquerda que tomam o lado concreto, da
outra. Nenhuma considera a relação entre o concreto determinado e do abstrato
determinado de maneira que poderiam ao menos começar a apontar formas de
transcendência imanente ou imanência transcendente, ou um universalismo que
contenha a particularidade ou um particular que, em vez de ser sectário, é um particular
que em si mesmo tornou-se mais universal. Não podemos simplesmente adotar uma
posição que se alinha com particularidades, que olha para variados costumes e práticas
em algum lugar do mundo e simplesmente diz que esta é sua cultura. Tampouco
podemos simplesmente impô-los outra coisa qualquer. Antes de tudo, aquilo que se
acredita ser a “cultura deles” bem frequentemente tem sido uma reação moderna à
derrota e à impotência ao longo dos últimos 100 ou 150 anos , que apresenta a si mesmo
como um retorno aos “fundamentos autênticos”. Mas não se trata disso. De qualquer
modo, tais “fundamentalismos” devem ser lidos como reações a um mundo globalizado,
e eles têm algumas características que se coincidem com aquelas do fascismo. Há o
perigo da esquerda cair nessa armadilha. A esquerda deve começar a descobrir o
potencial emancipatório da globalização. Muitos a vivem sem se dar ao trabalho de
realmente analisar suas próprias formas de vida e o que isso implica sobre outra forma
de globalização, talvez uma forma mais emancipatória de globalização. Aquilo que você
chama a virada à imanência e ao particular é essencialmente romântica e tem
atormentado ou tem sido uma característica do capitalismo nos últimos 200 anos e
continuará sendo uma característica do capitalismo. Ela é gerada pelo próprio
capitalismo, assim como o é o universal abstrato, contra o qual ela reage. E formas
puramente anarquistas de organização nunca irão realizar essa tarefa histórica. Temos
que buscar e desenvolver novas formas de organização, que sejam de fato organizadas.
O que estou sugerindo é que uma organização tem mais possibilidades de democracia
interna significativa do que a maioria dos modos anarquistas.

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Em Tempo, trabalho e dominação social você argumenta em dado momento que se pode
comparar estrutural e sistematicamente o apontamento de Hegel, que afirma o
Absoluto como substância, mas também sujeito, com a determinação de Marx do
capital como autovalorização do valor, por meio da qual o capital poderia ser
precisamente a forma anônima, impessoal de dominação, que é a substância e também
o sujeito do capital. Em Hegel, essa história do espírito (e também do Espírito Absoluto,
ou seja, o Absoluto como Espírito) necessariamente chega a um fim (que, para ele, é a
precondição para ela continuar numa maneira não pré-determinada); você diria que
algo similar poderia ser afirmado sobre Marx? Seria necessário primeiro incluir –
como alguém como Jean-Pierre Dupuy, o teórico francês das catástrofes, parece fazer
– o fim (do capitalismo e emancipação etc.) para finalmente alcançar uma nova
perspectiva da emancipação?

Eu não penso que o capital, como o Geist [Espírito], necessariamente chega a um


fim. Uma das diferenças importantes entre Hegel e Marx está no fato de que para Hegel
a chegada a um fim implica na plena realização da totalidade. Para Marx, se o capital
chega a um fim, isso não irá implicar a realização de si mesmo, mas dar lugar a uma nova
forma de viver que vem a se tornar possível e concebível por meio do próprio capital.
Isso implica a superação do capital com base no capital. A compreensão anarquista de
uma sociedade emancipada é usualmente a de um modelo local. Não sei como se imagina
um globo que foi sendo construído historicamente agora retornar a comunidades locais
que têm relações tênues com outras comunidades que não estão próximas. Acho que o
anarquismo é uma reação equivocada, ainda que compreensível, ao tipo de
burocratização da sociedade civil e do Estado que é característico do capitalismo
avançado. Mas, não é adequada à catástrofe para a qual estamos nos encaminhando.
Penso que há uma razão que explica por que existem tantos filmes distópicos na última
geração. O que podemos observar é uma imagem do colapso social completo. O
capitalismo não irá necessariamente colapsar economicamente, como um sistema de
mediação social da riqueza. Porém, a sociedade à qual ele deu origem pode colapsar. O
resultado pode ser uma forma de vida social que tanto pode vir a ser hobbesiana (pense
em Mad Max) – ou seria militarmente controlada. Estamos no limiar desse tipo de

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colapso social. Eu digo isso, muito embora não seja de todo um amigo das teorias da
catástrofe. Não gosto de visões apocalípticas, usualmente elas foram destrutivas.

Dupuy apresenta um argumento levemente diferente, porque ele argumenta que nosso
caminho de nosso próprio futuro é parte da catástrofe que já está ocorrendo. Diz que
nosso modo de lidar com a crise ecológica depende de um quadro de cálculos que
precisa se manter estável e estamos agindo sob a hipótese de que esse é o caso e de que
não há um ponto de inflexão alcançável que poderia mudar o quadro ele próprio.
Porém, deve haver um ponto de irreversibilidade precisamente como um efeito de
nosso modo de lidar com a catástrofe que pretendemos prevenir (assumindo que
possamos manejá-la), porque a catástrofe certamente irá ocorrer se procurarmos
preveni-la da maneira como fazemos.

Isso faz mais sentido para mim. Porém, as pessoas que argumentam sobre a
importância de limitar o aumento nas temperaturas em dois graus estão cientes de um
dilema. Se você disser a todos que a catástrofe ambiental tornou-se agora irreversível,
isso também irá induzir as pessoas a rejeitar essa posição como meramente alarmista ou
a dizer, então, que não há nada a ser feito sobre isso. As pessoas que conheço que pensam
que definitivamente irá ocorrer uma catástrofe são direitistas estadunidenses
sobrevivencialistas, que constroem abrigos subterrâneos, espaços providos com um
estoque de comida, armas etc. Isso pode ser risível como uma resposta, mas é uma
resposta imediata. Isso não é diretamente o que Dupuy está argumentando. Mas, me
parece que estamos ante uma catástrofe e que está emergindo apenas lentamente nas
pessoas que se trata de uma grande catástrofe e não acho que a catástrofe deva ser
abraçada.

Você disse antes que os judeus se tornaram objeto de uma dominação abstrata.
Podemos talvez fazer uma comparação com a crise dos refugiados?

Acho que não. Mas isso não significa que o racismo e a xenofobia direcionada aos
migrantes não seja real e reacionária e um problema real. Mas penso que o
antissemitismo é, de fato, algo diferente e que a esquerda é insensível a ele. O
antissemitismo é sobre quem controla o mundo. Ninguém pensa que os refugiados
sírios, afegãos ou africanos controlam o mundo. Eles os veem como uma ameaça a seu

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

modo de vida. Isso é diferente. Isso é mais como os brancos sulistas nos Estados Unidos
considerando os negros como uma ameaça a seu modo de vida se eles vierem a obter
direitos civis plenos. Há uma diferença. Ninguém no sul [dos EUA] nunca pensou que
os negros governassem o mundo. Ninguém pensa que os refugiados governam o mundo,
que eles estão por detrás dos bancos, por exemplo. Se alguém governa o mundo no
interior do quadro desse tipo de pensamento populista, são os Estados Unidos e Israel,
e isso tem um bocado a ver com antissemitismo. Fazer essa distinção não significa dizer
que o antissemitismo é ruim e que ser contra refugiados não é igualmente ruim. É muito
ruim, e as pessoas fazem uso disso como um meio de dar sentido à miséria de suas vidas.
Essa miséria tem muito a ver com as políticas de austeridade da Europa, assim como a
crise do trabalho assalariado que vem se arrastando, da qual agora os refugiados estão
se tornando as vítimas não intencionais.

Uma última pergunta sobre o Brexit, que aconteceu há pouco. Ele surge de um
movimento nacionalista, que é peculiar porque parece que o que eles querem recuperar
é a sua autonomia. Mas eles serão completamente dependentes, no entanto, da política
da União Europeia. Então parece que a Grã-Bretanha abandonou a própria posição
de ainda ser capaz de influenciar o quadro político, que ainda continuará a determiná-
la. O que você acha dessa situação?

Bem, eu fiquei impressionado, e não sou um especialista nisso, ao ver várias


pesquisas de opinião e gráficos, não apenas pelas diferenças demográficas (Londres e
Escócia são pela Europa e o resto da Inglaterra e o País de Gales, surpreendentemente,
são pela saída, e a Irlanda do Norte, pela Europa – isso poderia significar o fim do Reino
Unido), mas, pelo fato de que para as pessoas que quiseram permanecer, para elas as
questões principais eram econômicas. Para os que quiseram deixar a União Europeia, a
questão principal, por debaixo de tudo, era a imigração. De certo modo, a imigração deve
ser entendida como uma metáfora. Pois, ao cabo, quantos imigrantes chegam à
Inglaterra? Não tantos. Eles também se sentem, como dizem os alemães, überfremdet
(infiltrados em excesso por estrangeiros, CC),4 mas não em razão dos sírios que chegam,
mas sim dos poloneses e dos romenos que já vieram. É sempre um erro abrir as

4 Explicação dos editores da Crisis and Critique. (N. T.)

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

comportas durante períodos de dificuldade econômica. E uma das razões pelas quais eu
digo isso é que, dadas as decisões da União Europeia sobre a livre circulação de pessoas,
o governo britânico decidiu não introduzir essas políticas gradualmente, mas abrir as
fronteiras de uma só vez para os nacionais da União Europeia. Se você fosse um
trabalhador polonês, você poderia ter o direito de trabalhar na Alemanha e na Grã-
Bretanha. No entanto, você poderia entrar imediatamente na Grã-Bretanha, enquanto
demoraria um certo tempo para entrar na Alemanha, pois a Alemanha escolheu
implementar gradualmente a circulação de pessoas. Mas esse é apenas um dos níveis. O
pano de fundo real é que a economia industrial está há um bom tempo descendo a
ladeira. Ninguém discute e explica a mudança estrutural massiva àqueles que são
afetados, pelo menos não na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. As pessoas que
trabalham na economia carvoeira nos Estados Unidos, os trabalhadores carvoeiros,
acreditam que seu declínio econômico se deve ao ambientalismo e às regulações do
governo. Ninguém mostra para eles que hoje se produz mais carvão do que no passado,
utilizando-se muito menos trabalho. A empresa esconde isso culpando o governo. Nos
Estados Unidos, a reação popular contra essa crise do trabalho assume a forma do
populismo de direita: somos contra o governo e os imigrantes. Na Europa, ela assume a
forma de ser contra os migrantes e ser contra a Europa. Eu só tive uma breve experiência
com a imprensa britânica. Ela é inacreditavelmente ruim. Não admira que o Guardian,
que nem é um jornal tão grande, mas é um jornal decente, se destaque como uma joia,
um farol contra as mentiras racistas xenófobas. Parece que Boris Johnson, e eu só
descobri isso na semana passada, fez seu nome trabalhando como repórter para o
Telegraph na década de 90, quando estava instalado em Bruxelas. E foi ele quem sugeriu
as histórias sobre burocratas sem rosto que determinam o quão grandes deveriam ser
pepinos ou preservativos. A maior parte do que ele escreveu era empiricamente falso,
era nonsense, mas para a imprensa britânica isso não fez diferença; quase toda ela
embarcou nessa. Penso que o que aconteceu é que muitas pessoas se sentiram
impotentes em face dessas transformações estruturais. Ao mesmo tempo, a União
Europeia tem um forte déficit democrático. Só há dois caminhos. Um é democratizar a
Europa e o outro é voltar aos Estados nacionais. Parece haver muito pouca
movimentação em direção a uma democratização da Europa. Então a única outra reação,
que é uma reação de frustração, é simplesmente ir embora dessa coisa toda. E eu não sei
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

se, quando os seis ministros se encontrarem agora em Berlim, se isso ao menos está em
sua agenda. Ou se eles simplesmente irão punir a Grã-Bretanha pela saída.

E então o perigo é que a União Europeia apenas continue como se nada tivesse
acontecido.

Exato. Assim como o Euro, a União Europeia precisa ser reformada


fundamentalmente. Agora, eu não sei se há alguma possibilidade, dado o fato de que há
26 países e tudo precisa aparecer em 26 idiomas, e a cultura política da maioria desses
países é questionável.

Publicado originalmente em Crisis and Critique 3 (3): 500-517.


Título original: An interview with Moishe Postone: that capital has limits does not
mean that it will collapse.
http://crisiscritique.org/

Tradução:

Caroline Nogueira
Daniel Cunha
Diogo Carvalho
Germano Nogueira Prado
Luiz Philipe de Caux
Manoel Dourado Bastos
Vinícius Domingos

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

A CRISE ATUAL E O ANACRONISMO DO VALOR:


uma leitura marxiana

Moishe Postone

I.
A eleição de Donald Trump, o voto em favor do Brexit e a onda de populismo de
direita varrendo parte significativa da Europa são expressões de uma crise profunda da
legitimidade política das democracias liberais, tão extensa e potencialmente perigosa
quanto aquela no período entre-guerras na Europa.
Essa crise política, que tem uma expressão na infeliz oposição entre
neoliberalismo global e nacionalismo autoritário, funda suas raízes, indiscutivelmente,
nas abrangentes transformações estruturais das décadas recentes, que se tornaram
manifestas com o crash de 2008 e suas consequências. Além de provocar a ascensão de
movimentos como o Occupy e uma onda de populismos - tanto à direita quanto à
esquerda - em vários países, a crise e a Grande Recessão deram novo ímpeto a tentativas
de entender criticamente e de maneira abrangente os desenvolvimentos históricos
contemporâneos. Junto a isso, o termo “capitalismo” foi reintroduzido em amplas
discussões, tanto acadêmicas como genericamente intelectuais, como uma concepção
que agora parece mais adequada analiticamente do que aquela de “modernidade”, que
foi mais dominante nas décadas do pós-guerra.
Mesmo assim, as compreensões de “capitalismo” variaram consideravelmente.
Com base em uma releitura das obras maduras de Marx, sugiro que uma teoria crítica
do capitalismo deve entendê-lo não apenas como uma forma determinada de
desigualdade ou, relacionado a isto, como um sistema de exploração baseado na classe,
uma categoria que em anos recentes tem sido frequentemente relacionada com aquelas
de gênero e raça como categorias de identidade e opressão. Dito de maneira mais
generalizada, uma adequada teoria crítica do capitalismo não deve ser entendida apenas
em termos de uma crítica ao modo dominante de distribuição - isto é, a propriedade

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

privada dos meios de produção e do mercado -, como sem dúvida tem sido o caso com o
marxismo tradicional.
Em vez disso, especialmente como observado com a vantagem do presente, sugiro
que o capitalismo deve ser entendido, antes de tudo, como uma forma histórica
específica de vida social, em cujo coração está uma forma abstrata historicamente única
de dominação que encontra expressão em uma dinâmica histórica global. Essa forma de
vida surgiu contingencialmente na Europa Ocidental, que foi fundamentalmente
transformada por ela, assim como passou a transformar e constituir o globo. Ou seja, ao
contrário de alguns pressupostos que se tornaram generalizados, essa forma de vida não
é intrínseca ou ontologicamente ocidental, mas ela própria remodelou o Ocidente. Ela
não pode, portanto, ser adequadamente compreendida em termos culturalistas
reificados. Ao contrário, quero sugerir que uma teoria capaz de compreender
adequadamente o caráter dinâmico dessa forma de vida social pode ser desenvolvida
mais rigorosamente baseada num encontro renovado com as obras maduras de Marx.
Para muitos, é claro, é o caso de afirmar que o colapso da União Soviética e a
transformação da China marcaram o ponto final do socialismo e da relevância teórica de
Marx. Esse fim também foi expresso, noutro nível, pela emergência de outros tipos de
abordagens teóricas, tais como o pós-estruturalismo e a desconstrução, que buscaram
proporcionar críticas da dominação que evitavam o que elas consideravam as
armadilhas dos grandes programas de emancipação humana.
A atual crise global, contudo, revelou dramaticamente as limitações fundamentais
dessas novas abordagens - incluindo aquelas associadas a pensadores tão diferentes
quanto Habermas, Foucault e Derrida - como tentativas de compreender o mundo
contemporâneo. Ela também expôs a unilateralidade daquilo que foi chamado de “virada
cultural” [cultural turn] nas humanidades e ciências sociais. A existência contínua de
crises econômicas severas como uma característica da modernidade capitalista, assim
como as transformações estruturais das sociedades industriais (que recentemente
geraram massivas reações populistas de direita), a existência de “desindustrialização
prematura” em outras partes do mundo (onde o caminho estatista para a acumulação
nacional de capital não aparece mais como uma opção viável), a financeirização
crescente da vida social, casada com a prevalência da pobreza massiva e exploração
estrutural em uma escala global, o dramático crescimento da desigualdade e - sobretudo
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

- a crise dual da degradação ambiental e esvaziamento da sociedade do trabalho põem


em questão o triunfalismo tanto do neoliberalismo como de muito do pós-marxismo.
Parece que a queda daquilo que se chamou “socialismo realmente existente” e o
florescimento do pensamento pós-marxista não remediou a necessidade de uma teoria
crítica do capitalismo.
Todavia, seria um erro pensar que seria possível simplesmente retornar a Marx,
como ele foi comumente entendido durante boa parte do século XX. Tanto o fim do
marxismo tradicional como as crescentes inadequações manifestas de parte do pós-
marxismo estão enraizados em desenvolvimentos históricos que sugerem a necessidade
de repensar, bem como reapropriar, Marx.

II.
Meu foco no caráter historicamente dinâmico do capitalismo busca responder aos
padrões das abrangentes transformações globais do século passado. Como é bem sabido,
pesquisadores como Piketty, focando em questões relativas à desigualdade, estabeleceu
recentemente a existência de um abrangente padrão histórico de mudanças na
desigualdade que caracterizou o século passado - de um período de grande desigualdade
em fins do século XIX e inícios do século XX a um período em torno de meados do século
XX durante o qual a desigualdade foi reduzida drasticamente. Isso foi seguido após o
início da década de 1970 por uma inversão - um ressurgimento acentuado do aumento
da desigualdade.
Esse padrão não apenas revela uma extrema alteração na riqueza e no poder
político no mundo contemporâneo, mas também coloca em questão compreensões de
desenvolvimentos históricos modernos em termos lineares - como é certamente o caso
da teoria da modernização, por exemplo.
Significativamente, esse padrão de mudanças na desigualdade é supranacional e
se sincroniza com outros padrões abrangentes. Por exemplo, a taxa média de
crescimento econômico dos países capitalistas avançados foi relativamente baixa
durante a primeira metade do século, então mais do que dobrou em meados do século
XX - período este de desigualdade mais baixa. Isso então se inverteu após o início da
década de 1970: o crescimento econômico declinou e a desigualdade aumentou.
Mudanças na taxa do PIB per capita seguiram um padrão similar. Elas foram
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

relativamente baixas durante a primeira metade do século XX, ascenderam durantes as


décadas do pós-guerra e caíram de novo após o início da década de 1970. Analogamente,
os salários cresceram dramaticamente no pós-guerra, mas estagnaram desde 1973 nos
EUA. O padrão de vida de diversos estadunidenses caiu desde então - muito embora isso
só tenha se tornado um tema político explosivo na década passada. Todavia, ao contrário
de opiniões muito difundidas, a produção industrial (ao menos nos EUA) não declinou.
A participação industrial no PIB dos EUA hoje é aproximadamente a mesma daquela de
1965. O que declinou foi o número de empregos na indústria.
Esses padrões - e muitos outros - parecem estar interrelacionados. Todos eles
podem ser observados a partir de um padrão ainda mais amplo - a supressão do
capitalismo liberal do século XIX por um capitalismo fordista centrado no Estado desde
seu início na I Guerra Mundial e a Revolução Russa, passando por seu ponto alto nas
décadas após a II Guerra Mundial e seu declínio após o início da década de 1970,
chegando a sua superação, por sua vez, pelo capitalismo neoliberal global (o que, por sua
vez, poderia ser prejudicado pela emergência grandes blocos econômicos concorrentes).
O que é significante nessa trajetória é seu caráter global. Ela envolveu países
capitalistas ocidentais e países comunistas, assim como terras colonizadas e países
descolonizados. Evidentemente, muito embora tenham ocorrido diferenças importantes
no desenvolvimento histórico, do vantajoso ponto de vista do século XXI elas mais se
parecem com diferentes inflexões de um padrão comum do que desenvolvimentos
fundamentalmente diferentes. Isso não significa que esse padrão seja homogêneo ou
modular. O modo como se entende os desníveis, contudo, depende de como são
entendidos os desenvolvimentos históricos abrangentes da modernidade.
A existência de tais desenvolvimentos gerais não pode ser explicada de maneira
convincente em termos locais e contingentes. Eles sugerem fortemente a existência de
coações estruturais gerais nas decisões políticas, sociais e econômicas, assim como de
forças dinâmicas que não são completamente sujeitas ao controle político.
Esses padrões gerais ainda sugerem que o foco teórico na agência [agency] e
contingência em décadas recentes eram tão unilaterais quanto o funcionalismo
estrutural a que suplantaram. Se este último alcançou uma circulação generalizada
durante a maré alta do capitalismo centrado no Estado, o primeiro assim o fez durante
a época neoliberal. Nenhuma dessas abordagens, contudo, tematizou sua própria relação
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

com seu contexto histórico. Isso sugere que, diferente dessas abordagens, uma teoria
crítica deve estar apta a problematizar sua própria contextualização histórica. Ou seja,
deve ser reflexiva.
Esses padrões abrangentes sugerem a importância de um engajamento renovado
na crítica da economia política de Marx, pois a problemática das dinâmicas históricas e
mudanças da estrutura global está no cerne dessa crítica. Todavia, como mencionado
acima, a história do último século também sugere que uma teoria crítica adequada deve
diferir fundamentalmente da crítica marxista tradicional do capitalismo - com o que eu
quero dizer um quadro interpretativo geral no qual o capitalismo é analisado
essencialmente em termos de relações de classe que estão baseadas na propriedade
privada e mediadas pelo mercado, sendo a dominação social entendida principalmente
em termos de dominação e exploração de classe.
Dentro desse quadro básico de análise, tem havido uma ampla gama de abordagens que
geraram poderosas análises econômicas, políticas, sociais, históricas e culturais.
Contudo, as limitações de abrangência do quadro de análise em si mesmo se tornaram
cada vez mais evidentes à luz dos desenvolvimentos históricos do século XX. Esses
desenvolvimentos incluem o caráter não-emancipatório do “socialismo realmente
existente”, a trajetória histórica de sua ascensão e declínio, em paralelo com aquela do
capitalismo de estado intervencionista (sugerindo que elas estavam situadas
historicamente de maneira similar), a importância crescente do conhecimento científico
e da tecnologia avançada na produção (que parecia colocar em questão a teoria do valor
trabalho), críticas crescentes ao progresso e crescimento tecnológico (que se opôs ao
produtivismo de grande parte do marxismo tradicional) e a importância crescente de
identidades sociais não baseadas na classe. Juntos, eles indicam que o quadro
tradicional não pode mais servir como um ponto de partida para uma teoria crítica
adequada.
De fato, gostaria de sugerir que um senso da inadequação do quadro marxista
tradicional - ao mesmo tacitamente - deu forma a uma política progressista crítica por
décadas. A noção de pós-capitalismo, de socialismo, como uma sociedade baseada no
trabalho industrial, propriedade pública dos meios de produção e planejamento
centralizado começou a perder o controle sobre o imaginário de muitos intelectuais,
estudantes e trabalhadores progressistas durante a crise do capitalismo fordista em fins
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

dos anos 1960 e inícios dos 1970. Essa inadequação era frequentemente sentida em vez
de explicitamente teorizada. Eu sugiro, contudo, que ela foi expressa implicitamente nas
difundidas críticas do trabalho e crescimento industrial, no enfraquecimento do apoio
aos partidos social-democratas e comunistas, na crescente perda de orientação desses
partidos, assim como nas tentativas de localizar novos sujeitos revolucionários - por
exemplo, em movimentos anti-coloniais.
De qualquer modo, colocando de lado tais considerações por um instante, estou
sugerindo que considerar os padrões históricos gerais que caracterizaram o século
passado questiona tanto o marxismo tradicional, com suas afirmações sobre trabalho e
história, assim como as compreensões pós-estruturalistas da história como
essencialmente contingente. Não obstante, esta consideração não necessariamente nega
o discernimento crítico que dá forma às tentativas de lidar com a história de maneira
contingente - a saber, que a história, entendida como o desdobramento de uma
necessidade imanente, delineia uma forma de ausência de liberdade.
Essa forma de ausência de liberdade, como irei elaborar, é o objeto central da crítica da
economia política de Marx, que fundamenta o caráter historicamente dinâmico e as
mudanças estruturais do mundo moderno em imperativos e restrições que são
historicamente específicos à sociedade capitalista. Longe de ver a história
afirmativamente, Marx fundamenta essa dinâmica direcional nas categorias de
mercadoria e capital, desse modo apreendendo-a como uma forma de dominação, de
heteronomia.
Dentro desse quadro, a crítica de Marx, então, não é tomada do ponto de vista da
história e do trabalho, como o é no marxismo tradicional. Ao contrário, a dinâmica
histórica do capitalismo e a aparente centralidade ontológica do trabalho se tornam os
objetos da crítica de Marx. Pela mesma razão, a teoria madura de Marx não mais
pretende ser uma teoria com validade trans-histórica da história e da vida social, mas é
de modo auto-consciente historicamente específica e coloca em questão qualquer
abordagem que reivindica validade universal e trans-histórica a si mesma. Essas
dimensões centrais das análises de Marx tornam sua teoria crítica mais adequada ao
nosso contexto histórico do que o marxismo tradicional ou o pós-estruturalismo.
Deveria ser evidente que o impulso crítico da análise de Marx, de acordo com essa
leitura, é similar em alguns aspectos às abordagens pós-estruturalistas na medida em
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

que isso implica numa crítica da totalidade e uma lógica dialética da história. Contudo,
considerando que Marx trata tais concepções como expressando a realidade da
sociedade capitalista, as abordagens pós-estruturalistas recusam sua validade insistindo
no primado ontológico da contingência. Do ponto de vista da crítica marxiana da história
heterônoma, qualquer tentativa de restaurar a agência histórica [historical agency]
insistindo na contingência de modo a recusar ou obscurecer a forma dinâmica de
dominação característica do capital é, ironicamente, profundamente desempoderadora.

III.
Essas alegações são baseadas numa leitura que reconsidera as mais fundamentais
categorias da crítica madura de Marx em referência à dinâmica heterônoma que
caracteriza o capitalismo. Dentro do quadro tradicional, suas categorias - tais como
valor, mercadoria, mais-valor e capital - foram geralmente tomadas como categorias
econômicas que afirmam o trabalho como a fonte de toda riqueza social e demonstra a
centralidade da exploração de classe no capitalismo. O trabalho aqui, entendido trans-
historicamente, fornece o ponto de vista da crítica do capitalismo.
Dentro desse quadro, o centro fundamental da dominação no capitalismo é a
propriedade privada - a exploração do trabalho pela classe capitalista. A centralidade do
trabalho para a vida social é além disso obscurecida pelo mercado. Isso é, no capitalismo,
o significado social central do trabalho é suprimido e velado pelo mercado e pela
propriedade privada; eles impedem o trabalho de se tornar plenamente realizado. A
emancipação, portanto, é realizada numa sociedade em que o trabalho trans-histórico
emergiu abertamente como o princípio regulatório da sociedade. Essa noção, é claro,
está vinculada àquela do socialismo como a “auto-realização” do proletariado.
Uma leitura atenta da madura crítica da economia política de Marx, contudo, coloca em
questão as pressuposições históricas da interpretação tradicional. Marx afirma
explicitamente nos Grundrisse que suas categorias fundamentais não são trans-
históricas, mas historicamente específicas. Mesmo categorias como dinheiro e trabalho
que parecem trans-históricas, por conta de seu caráter abstrato e geral, são válidas em
sua generalidade abstrata somente para a sociedade capitalista, de acordo com Marx.
Isso coloca em questão vários entendimentos das categorias de Marx. Irei me
referir brevemente ao Livro I de O Capital a fim de delinear uma compreensão não-
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

tradicional dessas categorias. Esta obra começa com a categoria da mercadoria, que não
se refere às mercadorias como elas podem existir em diversos tipos diferentes de
sociedade. Ao contrário, Marx toma o termo e o usa para se referir à mais básica relação
social da sociedade capitalista, sua forma fundamental de mediação social e princípio
estruturador. Essa forma, de acordo com Marx, é caracterizada por um caráter dual
historicamente específico (valor de uso e valor). Ele procura então desdobrar a natureza
e a dinâmica fundantes da modernidade capitalista a partir do caráter dual dessa forma
estruturadora básica, das interações de suas dimensões constitutivas. No coração de sua
análise está a ideia de que o trabalho no capitalismo tem uma função mediadora
socialmente única que não é trans-historicamente intrínseca à atividade do trabalho.
Numa sociedade em que a mercadoria é a categoria estruturadora básica do todo,
o trabalho e seus produtos não são distribuídos por normas tradicionais, ou relações
abertas de poder e dominação, como é o caso em outras sociedades. Ao contrário disso,
o trabalho ele mesmo constitui uma nova forma de interdependência, em que as pessoas
não consomem aquilo que produzem, muito embora seu próprio trabalho ou produtos
do trabalho funcionem como um meio quase objetivo de obter produtos de outros.
Servindo como tal meio, o trabalho e seus produtos, de fato, antecipam essa função no
que diz respeito às relações sociais manifestas; eles fazem a mediação de uma nova forma
de inter-relacionamento social.
Nas obras maduras de Marx, então, a noção de centralidade única do trabalho
para a vida social não é uma proposição trans-histórica. Ao contrário, ela se refere à
constituição historicamente específica do trabalho no capitalismo como uma forma de
mediação social que fundamentalmente caracteriza essa sociedade. Ao revelar essa
mediação, Marx busca fundamentar socialmente e elucidar as características básicas da
modernidade capitalista, bem como sua dinâmica histórica abrangente.
O trabalho no capitalismo, então, é tanto trabalho tal qual nós entendemos trans-
historicamente e segundo o senso comum, de acordo com Marx, como é uma atividade
socialmente mediadora historicamente específica. Consequentemente, aquilo que o
trabalho produz, suas objetificações - e aqui estou me referindo à mercadoria e ao capital
- são tanto produtos do trabalho concreto como formas objetificadas da mediação social.
De acordo com essa análise, portanto, as relações sociais que mais basicamente
caracterizam a sociedade capitalista são bem diferentes das relações sociais
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

qualitativamente específicas, variadas e abertas - tais como relações de parentesco ou


relações de dominação pessoal ou direta - que caracterizam sociedades não-capitalistas.
Por serem constituídas pelo trabalho, essas relações têm um caráter peculiar quase
objetivo, formal e são dualistas - são caracterizadas pela oposição entre uma dimensão
abstrata, geral e homogênea e uma dimensão concreta, particular e material, ambas
parecendo ser “naturais”, em vez de sociais, e condiciona as concepções da realidade
social assim como da natural.
A forma da riqueza associada com tais relações, de acordo com Marx, é o valor -
que também é historicamente específica. A maioria das explicações ainda tratam a
categoria do valor de Marx como se ela fosse a mesma daquela de Smith ou Ricardo - ou
seja, como uma categoria trans-histórica da constituição da riqueza em todos os tempos
e em todos os lugares. Marx, então, supostamente refinou e radicalizou a economia
política e, usando suas categorias, provou a existência da exploração. Essa explicação
bem comum, contudo, está baseada numa má interpretação fundamental. Não é que
Marx tenha simplesmente refinado ou radicalizado a economia política. Ele não escreveu
uma economia política crítica [critical political economy] mas uma crítica da economia
política [critique of political economy]. Ou seja, ele transformou o objeto e a natureza da
análise. Em seu nível mais elementar, ele não foca mais essencialmente na troca ou
mesmo na troca desigual e na exploração. Em vez disso, com suas categorias, Marx
procurou revelar e analisar as formas de mediação que estruturam a sociedade
capitalista como uma forma historicamente específica de vida social, caracterizada pela
oposição e interações de suas dimensões abstratas e concretas. Estas subjazem suas
formas de produção e seu caráter direcionalmente dinâmico.
No coração dessa análise está uma distinção que Marx explicitamente traça entre
valor - como a forma historicamente específica e estruturadora da riqueza e da mediação
social no capitalismo - daquilo que ele chama riqueza material, que é medida pela
quantidade produzida e é uma função do conhecimento, organização social e condições
naturais, para além do trabalho. A riqueza material é mediada por relações sociais
extrínsecas a ela mesma. O valor, de acordo com Marx, é uma forma de auto-mediação
da riqueza e é essencialmente temporal. Ele é constituído somente pelo tempo de
trabalho socialmente necessário despendido.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

No interior do quadro de Marx, a dualidade da forma mercadoria como valor e


valor de uso está na base da dualidade da forma capital como processo de valorização e
processo de trabalho. Essa dualidade gera uma interação dialética que dá origem a uma
dinâmica temporal complexa que tanto impulsiona o valor adiante como eventualmente
o torna cada vez mais anacrônico. Afirmar, como Marx o faz, que o valor é historicamente
específico do capitalismo é afirmar não apenas que sociedades não-capitalistas não eram
estruturadas pelo valor, como ainda que uma sociedade pós-capitalista também não
seria baseada no valor. Isso, por sua vez, implica mostrar que a tendência secular do
desenvolvimento do capital é tornar o valor cada vez mais anacrônico.
Deixe-me elaborar brevemente considerando a determinação de Marx da
magnitude do valor em termos do tempo de trabalho socialmente necessário. Esse termo
não é apenas descritivo, mas delineia uma norma constrangedora socialmente geral. A
produção deve se conformar a essa norma temporal se ela for para gerar o valor total de
seus produtos. No processo, o período de tempo (p. ex., uma hora) vem a se constituir
como uma variável independente. A quantidade de valor produzida por unidade de
tempo é uma função isolada da unidade de tempo; ela se mantém a mesma
independentemente das variações individuais ou do nível de produtividade. Segue-se -
como uma peculiaridade do valor como uma forma temporal da riqueza - que, embora o
aumento da produtividade aumente a quantidade de valores de uso produzidos por
unidade de tempo, isso resulte somente no curto prazo em aumentos na magnitude do
valor criado por unidade de tempo. Uma vez que o aumento da produtividade se torna
geral, a magnitude do valor gerado por unidade de tempo cai de volta para seu nível de
base. O resultado é algo como uma esteira rolante. Níveis elevados de produtividade
resultam em grande aumento da riqueza material, mas não em aumentos proporcionais
em longo prazo no valor por unidade de tempo. Isso, por sua vez, leva a ainda mais
aumentos na produtividade.
Essa dinâmica de esteira rolante expressa e constitui uma nova forma de
dominação social. A norma do tempo de trabalho socialmente necessário é a primeira
determinação em O Capital da forma abstrata historicamente específica de dominação
social intrínseca ao capitalismo: trata-se da dominação das pessoas pelo tempo, por uma
forma historicamente específica de temporalidade - tempo abstrato newtoniano - que é
constituído historicamente com a forma mercadoria.
41
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

No entanto, seria unilateral ver a temporalidade no capitalismo apenas em termos


do tempo newtoniano, isto é, como um tempo homogêneo vazio (como em Benjamin).
Uma vez que o capitalismo está completamente desenvolvido, suas formas temporais
geram aumentos contínuos na produtividade. Esses aumentos, como vimos, não mudam
a quantidade de valor produzida por unidade de tempo. Contudo, eles mudam a
determinação do que conta como uma unidade de tempo dada. A unidade de tempo
(abstrato) mantém-se constante; a mesma unidade de tempo gera a mesma quantidade
de valor. Mesmo que mudanças na produtividade redeterminem essa unidade; elas
empurram para frente, por assim dizer. Esse é um movimento do tempo. Uma vez que
ele não pode ser apreendido no interior do quadro do tempo newtoniano, mas requer
um quadro superordenado no interior do qual o quadro do tempo newtoniano se move.
Esse movimento do tempo pode ser nomeado tempo histórico. A redeterminação da
unidade de tempo abstrato e constante redetermina a compulsão associada com essa
unidade. Nesse sentido, o movimento do tempo adquire uma dimensão necessária. O
tempo histórico aqui não representa a negação do tempo abstrato (como em Lukács). Ao
contrário, tempo abstrato e tempo histórico são dialeticamente inter-relacionados.
Note-se que, neste quadro, nenhuma forma de temporalidade é uma mera construção
cultural; em vez disso, ambas são momentos de um processo historicamente constituído.
Ambas, no interior do quadro de Marx, emerge historicamente com o desenvolvimento
das formas sociais do capitalismo - por meio das quais elas são constituídas como
estruturas de dominação.
Em vez de considerar a temporalidade como um quadro pré-dado e imóvel no
interior do qual todas as formas de vida social se movem, então, tal teoria compreende
o capitalismo como uma organização bastante peculiar da vida social que constitui sua
própria temporalidade historicamente específica; ele é estruturado por formas
historicamente únicas de mediação social que são intrinsecamente temporais. Essas
formas subjazem uma dinâmica histórica peculiar que tanto é historicamente específica
quanto é global. As temporalidades do capitalismo, então, não são extrínsecas a ele, mas
são intrínsecas a suas formas sociais estruturadoras.
Essa forma historicamente nova de dominação social é tal que sujeita as pessoas
a imperativos estruturais impessoais, crescentemente racionalizados e
constrangimentos que não podem ser completamente compreendidos em termos de
42
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

dominação de classe ou, de maneira mais geral, em termos de dominação concreta de


agrupamentos sociais ou de ações institucionais do Estado e/ou da economia. Ela não
tem um locus determinado e, muito embora constituída por formas determinadas de
prática social, parece não ser social de todo. Estou sugerindo que a análise de Marx da
abstração social é uma análise mais rigorosa e determinada daquilo que Foucault busca
compreender com sua noção de poder no mundo moderno. Ademais, a forma de
dominação que Marx analisa não é apenas celular e espacial, como em Foucault, mas
também processual e temporal - ela gera uma dinâmica histórica. Em vez de pressupor
a história, Marx neste momento visa fundamentar uma dinâmica da história em
andamento como uma característica historicamente única do capitalismo. Quer dizer,
ele historiciza a História.
No coração desta análise está a dinâmica peculiar de esteira rolante que eu
delineei, que está subjacente a uma dinâmica histórica bastante complexa, não linear,
que está no coração da modernidade capitalista. De um lado, ela é caracterizada por
contínuas, até mesmo aceleradas, transformações de mais e mais esferas da vida -
produção, tecnologia, padrões de habitação, transporte, comunicação, educação e
formas de relação interpessoal. Ao mesmo tempo, contudo, ela estruturalmente
reconstitui sua própria base: o valor permanece a forma essencial da riqueza e, por esse
motivo, o trabalho que cria valor permanece no coração do sistema a despeito do nível
de produtividade. A dinâmica histórica do capitalismo incessantemente gera aquilo que
é “novo”, enquanto regenera aquilo que é o “mesmo”. Como irei elaborar, ela tanto gera
a possibilidade de uma nova organização do trabalho e da vida social como, ainda, ao
mesmo tempo, impede que essa possibilidade venha a se realizar.
A dinâmica gerada pela dialética do tempo abstrato e do tempo histórico está no
coração da categoria de capital que, para Marx, não se refere a meios de produção que
são possuídos privadamente. Em vez disso, é uma categoria de movimento, aquilo que
Marx chama de “autovalorização do valor”; que é valor em movimento. Ele não tem
corporificação material fixa, mas manifesta-se como a dialética da transformação e
reconstituição brevemente delineada acima.
Como esse quadro, as “relações essenciais” do capitalismo são as formas de
mediação social expressas por categorias tais como mercadoria, valor, capital e mais-
valor. Essas não são categorias da riqueza que são objetos da luta entre classes sociais -
43
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

por meio das quais essas últimas são compreendidas como as relações sociais básicas do
capitalismo. Em vez disso, elas são as relações sociais essenciais do capitalismo elas
mesmas - formas temporalmente dinâmicas e contraditórias da mediação social que
subjazem uma dinâmica histórica complexa.
Deve-se levar a sério a descrição de Marx em O Capital da categoria de capital
como a substância auto-movente que é sujeito. Ao descrevê-la com a mesma linguagem
que Hegel usou na Fenomenologia ao se referir ao espírito, Marx sugere que a noção de
Hegel sobre a história como algo que tem uma lógica, como um desdobrar dialético, é
certamente válida - mas apenas para a modernidade capitalista. Aquilo que Hegel tratou
como o Sujeito da História, Marx nesse momento identifica como o capital, uma
estrutura dinâmica de dominação abstrata que, embora constituída por humanos, se
torna independente de suas vontades e é geradora de uma dinâmica histórica.
Como um ponto paralelo, deve-se notar que daí conclui-se que a crítica madura
de Marx a Hegel não implica numa inversão antropológica da dialética idealista deste
último. Ao contrário, Marx nesse momento implicitamente demonstra que o “centro
racional” da dialética de Hegel é precisamente seu caráter idealista. Isso expressa um
modo de dominação constituído por relações que adquirem uma existência quase
independente vis-à-vis aos indivíduos, exercendo uma forma abstrata de compulsão
sobre eles e que, por conta de seu caráter dualista, são de caráter dialético.
No interior desse quadro, a História - tal qual apresentada por Hegel - é
historicamente específica. Não é uma característica universal da vida social humana,
mas é constituída por formas historicamente específicas de práticas que, por sua vez,
moldam e restringem. Isso implica em que a história humana como um todo não pode
ser caracterizada trans-historicamente - nem em termos de uma lógica abrangente,
como em Hegel, ou como trans-historicamente contingente, como em Nietzsche. Ao
contrário, uma dinâmica direcional conduzida de modo imanente é uma das
características marcantes do capitalismo. Note-se que, aqui, o Sujeito histórico, a
totalidade e o trabalho que o constitui tornam-se então os objetos de crítica na teoria
madura de Marx e não seu ponto de vista.
A compreensão da complexa dinâmica do capitalismo que eu delineei pode ajudar
a iluminar a iminente dupla crise contemporânea - aquela da degradação ambiental e a
morte da sociedade do trabalho. As categorias marxianas de mais-valor e capital
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

permitem uma análise crítica social (em vez de tecnológica) da trajetória de crescimento
na sociedade moderna. A dimensão temporal do valor, especialmente na forma daquilo
que Marx chama mais-valor relativo, subjaz um padrão determinado de “crescimento”,
dirigido por pressões contínuas, mesmo aumentos acelerados na produtividade. Isso
gera aumentos na riqueza material bem maior do que aqueles no mais-valor (que, na
análise de Marx, mantém-se a forma relevante de excedente no capitalismo) e,
consequentemente, uma demanda acelerada por matéria prima e energia, o que
contribui centralmente para a destruição acelerada do ambiente natural. Nesse quadro,
então, o problema com o crescimento econômico no capitalismo não está apenas no fato
de que ele é afetado pela crise. Ao contrário, a forma do crescimento ela mesma é
problemática. Isso sugere que a trajetória do crescimento seria diferente se o objetivo
final da produção fosse quantidades crescente de bens, em vez de mais-valor.
De acordo com essa abordagem teórica, a raiz desse problema está em que o valor
é uma forma temporal de riqueza. Como resultado, o processo de valorização transforma
a produção em um processo peculiar, por meio do qual - sob a superfície da produção
material - a matéria é transformada em unidades de tempo abstrato. Por ser uma forma
temporal de riqueza, o capital ambiciona a infinitude, ignorando, por assim dizer, a
necessária finitude material de seu ambiente natural, o planeta.
Essa abordagem também fornece a base para uma análise social da estrutura do
trabalho social e produção no capitalismo com referência à sua contradição básica. No
interior do quadro da análise de Marx, o impulso para o aumento contínuo na
produtividade leva à crescente importância da ciência e tecnologia na produção. Isto é,
a dinâmica do capital é historicamente geradora de uma rápida acumulação de
conhecimento socialmente geral. A tendência de longa duração desse desenvolvimento
histórico é tornar a produção baseada no tempo de trabalho - isto é, no valor e,
consequentemente, no trabalho proletário - crescentemente anacrônica. Por um lado,
isso abre a possibilidade de reduções socialmente gerais em larga escala no tempo de
trabalho, e mudanças fundamentais na natureza e organização social do trabalho, o que
sugere que, para Marx, a abolição do capitalismo não implicaria na auto-realização do
proletariado, mas na auto-abolição.
E ainda, por outro lado, porque a dialética da transformação e reconstituição não
apenas encaminha a produção adiante, mas também reconstitui o valor, assim, ela
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

também reconstitui estruturalmente a necessidade de trabalho criador de valor, isto é,


trabalho proletário.
A dinâmica histórica do capitalismo, então, crescentemente aponta para além da
necessidade de trabalho proletário enquanto reconstitui essa própria necessidade. Ela
tanto gera a possibilidade de outra organização da vida social como ainda dificulta essa
possibilidade de ser realizada.
Essa tensão distorce a forma em que essa possibilidade histórica emerge. Como
um resultado, em última análise, da reconstituição contínua das formas fundamentais
do capital, a possibilidade de abolição do trabalho proletário emerge historicamente em
uma forma invertida, na forma de aumento do trabalho supérfluo, na superfluidade de
uma cada vez maior porção da população trabalhadora, no crescimento dos
subempregados, o desemprego permanente e o precariado. A possibilidade da abolição
do trabalho proletário e consequentemente a emergência da possibilidade
emancipatória da sociedade em que a produção de excedente não mais deve ser baseada
no trabalho de uma classe subalterna é, ao mesmo tempo, a emergência de um
desenvolvimento desastroso em que a superfluidade crescente do trabalho é expressa
como superfluidade crescente das pessoas, com as possibilidades políticas plenas que
isso implica.
A abordagem que eu delineei, então, sugere considerar a configuração atual do
capital como aquela em que o trabalho criador de valor se torna crescentemente
anacrônico e, ainda, mantém-se estruturalmente necessário ao capital. Isso também
pode lançar luz à atual centralidade da financerização. Pode-se, talvez, sugerir que
algumas dimensões da financeirização também apontam para além do capitalismo (tão
paradoxal quanto isso possa soar) - por exemplo, no desenvolvimento de vias
verdadeiramente globais de coordenação da produção e distribuição, de criação do
sistema nervoso e sustentáculos, por assim dizer, daquilo que pode ser o nexo de
coordenação global que seja supranacional em vez de internacional.
Não obstante, a maioria dos aspectos da financeirização neoliberal não apontam
para além do capitalismo mas, ao contrário, pode ser vista como formas de buscam
manter o capital mesmo quando ele se depara com aquilo que, indiscutivelmente, são
seus limites.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

Quero sugerir - e isso não é mais que uma sugestão - que é possível considerar o
fim em crise da enormemente produtiva configuração do capitalismo pós-guerra
keynesiano-fordista como a expressão de uma crise secular da valorização. Respondendo
a esse desenvolvimento, o capital buscou não apenas reverter os ganhos do trabalho sob
o fordismo ao enfraquecer sindicatos, mudando a produção para áreas com salários
baixos e substituindo trabalho por tecnologia, mas também ao desenvolver novas formas
de gerar riqueza. Pode-se ver a expansão da economia da dívida como uma tentativa de
desenvolver novas fontes de receita. Isso em si mesmo não é necessariamente novo. A
análise de Marx a respeito da tendência do valor se tornar anacrônico, contudo, pode
lançar uma luz diferente na atual configuração do capital financeiro. No interior deste
quadro, a financeirização neste momento não seria exatamente o mesmo que a
financeirização no passado, visto que agora a expansão de uma economia da dívida
ocorreria contra o pano de fundo da produção estagnada de mais-valor.
A dívida, falando de maneira ampla, implica uma explícita ou tácita nota
promissória. Ela implicitamente pressupõe que, em algum ponto do futuro, haverá
riqueza o suficiente para cobrir a dívida. Se, contudo, a atual economia da dívida é
considerada contra o pano de fundo da estagnação da produção de mais-valor, o capital
financeiro poderia ser visto como tentando, por assim dizer, constituir seu próprio
domínio de produção de riqueza. A ampla variedade de notas promissórias e
“instrumentos” meta-promissórios desenvolvidos são orientados ao horizonte do futuro.
Contudo, esse horizonte, no quadro da teoria do valor, recua à medida em que a
produção de mais-valor estagna; não há produção suficiente de riqueza na subjacente
forma do valor para eventualmente cobrir essas dívidas.
Uma consequência é a crescente tentativa frenética de transformar tudo o que for
possível em recursos para riqueza futura. O que haviam sido formas bastante simples e
diretas de dívida - por exemplo, hipoteca - se tornaram “financeirizadas” - isto é, são
tratadas como matérias-primas, por assim dizer, de riqueza que supostamente pode ser
aproveitada no futuro. Mais e mais dimensões da vida - desde hipotecas à infraestrutura
- vieram a ser transformadas no conteúdo de novas formas de riqueza simulada.
No interior desse quadro interpretativo, então, a crise da produção de valor é
mascarada pela tentativa mediada financeiramente em transformar mais e mais
dimensões da vida em “matérias-primas” do preço e do lucro - em formas de riqueza
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

simulada que supostamente garantirá os assim chamados instrumentos financeiros cada


vez mais complexos, como se tais “riquezas” fossem independentes do valor no
capitalismo. Aquilo que David Harvey chamou “acumulação por despossessão” é uma
manifestação desse desenvolvimento. Contudo, sugiro que isso não implica a
acumulação de valor, mas modos de extração de riqueza simulada para compensar a
ausência de tal acumulação. Isso pode ser entendido como um esforço não intencional
de abolir o valor em um quadro que continua estruturado pelo valor. Na medida em que
a acumulação do valor desacelera, a procura por riqueza se torna perversamente
reflexiva, como uma doença auto-imune - ela começa a se alimentar da substância da
sociedade e da natureza.

IV.
O que eu delineei é uma crise sistêmica fundamental que ocorre na medida em
que as formas sociais subjacentes do capitalismo se tornam anacrônicas enquanto se
mantém necessárias. Ela dá origem a enormes tensões de cisalhamento com
consequências potencialmente desastrosas. Ela também sugere que categorias como
classe (ou gênero ou raça) não são historicamente estáveis, mas estão em fluxo,
constituídas e reconstituídas pelo fluir dinâmico do capital.
Como um adendo, deve-se notar que no interior deste quadro, a ideia de outra
forma possível de vida social, além do capitalismo, é imanente à modernidade capitalista
ela mesma. Ela não é derivada do contato cultural ou do estudo etnográfico de formas
de vida social fundamentalmente diferentes; tampouco é baseada na experiência de uma
ordem social prévia com sua própria economia moral que está sendo destruída pelo
capitalismo - muito embora essa experiência certamente foi geradora de oposição.
Oposição ao capitalismo, contudo, não aponta necessariamente para além dele. Ela pode
- e frequentemente tem sido - subsumida pelo capital ele mesmo ou descartada como
inadequada às exigências do contexto histórico amplo. A análise de Marx é direcionada
menos para a emergência da “resistência” (que é política e historicamente
indeterminada) do que para a possibilidade da transformação. Ela procura delinear a
emergência de uma forma de vida que, como resultado da dinâmica capitalista, é
constituída como uma possibilidade histórica e ainda é limitada por essa dinâmica em
ser realizada. Essa lacuna entre o que é e o que poderia ser permite uma possibilidade
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

futura que, crescentemente, se tornou historicamente real. É essa lacuna que constitui a
base para uma crítica histórica daquilo que é. Ela revela o caráter historicamente
específico das formas sociais fundamentais do capitalismo - não apenas em referência
ao passado, ou outra sociedade, mas também em referência a um futuro possível.
É o capital ele mesmo, como capacidades humanas objetivadas, que gera a
possibilidade de uma sociedade futura. Porém, ele faz isso numa forma que, ao mesmo
tempo, é crescentemente destrutiva do ambiente e a população trabalhadora.
Um dos resultados dessa crise dual - na ausência de críticas não tradicionais do
capital que tratem essas crises como interrelacionadas - foi uma bifurcação. Muitos
discursos sobre a mudança climática tendem a ignorar a crise do trabalho. Isso abriu os
portões para vários movimentos populistas de direita que negam tanto a primeira como
a segunda. Esses movimentos populistas procuram dar sentido à crise do trabalho em
termos concretos (como referência a minorias, imigrantes, mulheres e países
estrangeiros) em vez de em termos das limitações abstratas e imperativos que
direcionam a dinâmica do capital e entendem esse processo, essencialmente temporal,
em termos espaciais como “globalização” (pela qual os bancos ou os judeus são os
responsáveis). Como movimentos essencialmente defensivos, eles opõem como um
contra-peso a esses supostos problemas uma nova visão romântica que não aspira pela
Idade Média desta vez, mas pelo Estado-nação - imaginado como delimitado e
homogêneo, funcionando na base de uma economia nacional. (Infelizmente, vários
movimentos tradicionais de trabalhadores e progressistas também reagiram
defensivamente, desenvolvendo uma resposta nacionalista de esquerda em vez de tentar
repensar e retrabalhar a ideia de um internacionalismo progressista como resposta ao
internacionalismo neoliberal.)
Os movimentos populistas de direita, então, tem um quadro abrangente para
explicar um mundo em crise, ainda que ele seja condenável, equivocado e perigoso como
pode ser. A geração anterior de críticos e movimentos sociais progressistas de esquerda
também tinham um quadro abrangente - socialismo internacional, uma organização da
sociedade mais racional. Tal quadro abrangente, bastante difundido, está ausente pelas
últimas cinco décadas.
No interior do quadro da abordagem delineada aqui, o crescente caráter
anacrônico do valor na ausência de um imaginário abrangente de um futuro para além
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do valor - isto é, um futuro pós-proletário - tem consequências econômicas, sociais,


políticas e ambientais enormemente destrutivas. É o próprio capital, em seu
desenvolvimento, que está nos confrontando com a crescente escolha absoluta entre
socialismo ou barbárie.

[Originalmente publicado em inglês no periódico Continental Thought & Theory: A


Journal of Intellectual Freedom. Volume 01, Issue 04: 150 years of Capital., Oct. 2017.
Tradução de Manoel Dourado Bastos]

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DESCONSTRUÇÃO COMO CRÍTICA SOCIAL


O pensamento de Derrida sobre Marx e a Nova Ordem Mundial

Moishe Postone

A importante intervenção teórica e política que Jacques Derrida realiza em


Espectros de Marx1 busca formular uma crítica social adequada ao mundo surgido após
19892. Escrito em tempos sombrios nos quais, como assinala Derrida, nenhuma ética ou
política, revolucionária ou não, parece possível ou pensável 3, Espectros de Marx
desenha os contornos de uma crítica do mundo contemporâneo que reclama uma
ruptura radical com o presente. Frente à nova ordem mundial que surge após a
derrocada da União Soviética e do comunismo europeu; e frente à afirmação
generalizada de que Marx e o marxismo haviam morrido definitivamente, Derrida adota
uma atitude firme contra o triunfalismo do neoliberalismo econômico e político. Critica
ferozmente o capitalismo e, em tom desafiador, apresenta a desconstrução como
herdeira de certo espírito de Marx, reclamando uma nova Internacional capaz de
responder à Santa Aliança de fins do século XX. A estratégia teórica empregada por
Derrida é complexa: afirma que uma crítica adequada do mundo atual deve se
reapropriar de Marx de maneira afirmativa e, no entanto, criticá-lo radicalmente.
Derrida trata de contribuir com tal crítica social separando um determinado "espírito de
Marx" do que considera os aspectos ontologizantes e dogmáticos do marxismo.
Esta estratégia de reapropriação e crítica de Marx posta em marcha com o
objetivo de compreender a nova ordem mundial sugere, implicitamente, que hoje, uma
crítica social adequada deve afrontar seriamente a problemática do capitalismo global;
assim como a tendência a por entre parêntesis as considerações político-econômicas,

1 Derrida, Jacques. Specters of Marx: the state of the debt, the work of mourning, and the new
International. Tradução de Peggy Kamuf. New York and London: Routledge, 1994, Pp. xx, 198.
2 Gostaria de agradecer a Nicole Jarnagin Deqtvaal, bem como a Martin Jay, a Tom McCarthy e a Neil

Brenner pelas críticas úteis e perspicazes.


3 Ibidem, p. xix.

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próprias de numerosos enfoques críticos das últimas décadas, torna-se insustentável.


Assim, a estratégia de Derrida exige, implicitamente, desenvolver e explicar as
consequências sociais e teóricas da desconstrução. E, como indicarei mais adiante,
apesar de sua exposição mostrar-se frutífera e útil para esclarecer muitas questões
importantes, seus limites emergem com mais clareza justamente quando é considerada
uma crítica social que pretende compreender o mundo contemporâneo. Isto levanta
perguntas mais gerais acerca da diferença entre uma teoria social crítica e uma postura
filosófica crítica, iluminando as limitações desta última.

Espectros de Marx se divide em cinco capítulos. Todos organizados em torno do


conceito central de espectralidade, a saber: aquilo que não é idêntico ao presente. Este
conceito, que põe em questão o dado e a necessidade da ordem de coisas presente, está
no centro da tentativa de Derrida de esboçar uma teoria crítica da sociedade
contemporânea capaz de se reapropriar do espírito emancipador do enfoque de Marx,
facilitando, ao mesmo tempo, uma crítica radical da sociedade capitalista
contemporânea, assim como da teoria e da prática marxista tradicionais.
Derrida começa seu trabalho com um debate sobre os espectros: os de Marx, a
quem foi declarado morto, e os do pai de Hamlet4. Como alguém que pudesse reclamar
a herança de Marx, Derrida tematiza implicitamente a relação do possível herdeiro com
o fantasma do pai. Ele o faz em termos existenciais, com relação à questão de aprender
a viver que, afirma, requer assumir a morte. Aceitar a morte que requer, por sua vez,
aceitar o espectral, os fantasmas. O fantasma é e não é ao mesmo tempo. Como
consequência, aprender a viver requer ir para além da oposição "existencial" que Hamlet
estabelece entre ser e não ser, vida e morte5.
Esta indeterminação tem consequências tanto pessoais/éticas como
políticas/históricas. Como aquilo que é e não é, o espectro representa temporalidades
que não podem ser compreendidas adequadamente em termos de tempo presente. Estas

4 Ibidem, p. 3-4.
5 Ibidem, p. xvii-xviii.

52
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

temporalidades incluem um passado que não passou - os fantasmas de Marx e do pai de


Hamlet -, assim como um futuro que rompe com o presente - a imagem de Marx, em O
Manifesto Comunista, do espectro do comunismo que assola a Europa6. Derrida
considera que tais dimensões temporais, passado e futuro, estão inter-relacionadas; e
postula que não haverá futuro sem a memória e a herança de Marx, ou ao menos sem
um de seus diferentes espíritos7.
A noção de passado e futuro como temporalidades não completamente
subsumidas pelo tempo presente torna-se crucial na conceitualização de Derrida da
espectralidade como a não contemporaneidade consigo mesma do presente vivo. A
espectralidade implica uma disjunção temporal: expressa aquilo que não existe somente
na "cadeia de presentes"8.
Esta concepção de temporalidades não idênticas serve a Derrida como meio
através do qual aprofunda em Espectros de Marx sua antiga crítica à fenomenologia e à
metafísica da presença. Vinculando esta última - assim como as categorias filosóficas de
substância, essência e existência - à dominação de um presente de tempo modular e
homogêneo, enquanto vinculação de presentes modalizados, e a qualquer ordem
teleológica da história. Sua crítica do presente como presença se formula do ponto de
vista de uma política baseada em uma temporalidade não idêntica, não presentista da
espectralidade. Derrida caracteriza tal política como uma política de responsabilidade
com o passado, com os mortos - vítimas da guerra, da violência e da opressão - e com o
futuro, com aqueles que ainda não nasceram9.
Semelhante política da memória, a herança e as gerações se ligam com sua
concepção de justiça. Derrida observa que Hamlet, ao proclamar que o tempo se
encontra desajustado, maldiz sua missão de fazer justiça (no sentido de reparar a
história). Derrida assinala que o direito e a lei provêm da vingança e que, como tais, são
expressões de um sistema de equivalências que somente pode reproduzir o presente. Isto
expõe a questão (informada implicitamente pelo conceito de espectralidade) da

6 Ibidem, p. 3-4.
7 Ibidem, p. 13.
8 Ibidem, p. xix, 4, 25-27.
9 Ibidem, p. xviii-xix, xxix, 25-27, 70-75.

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possibilidade de uma justiça situada para além do direito, uma justiça, enfim, subtraída
da fatalidade da vingança10.
Heidegger também tratou de formular uma noção alternativa de justiça, uma
noção de justiça situada para além do direito (Diké). Todavia, segundo Derrida,
Heidegger vinculou tal justiça à injunção; permanecendo assim sua noção de justiça
vinculada à metafísica da presença. A concepção de Derrida de uma justiça situada para
além do direito se diferencia da de Heidegger na medida em que supõe uma relação com
o outro como outro - e isto, segundo Derrida, requer disjunção ou anacronia. A noção de
justiça de Derrida se vincula, portanto, à espectralidade11.
De maneira geral, para Derrida, a desconstrução como procedimento crítico finca
suas raízes na disjunção e na anacronia. Renega, assim, o horizonte totalizante e fechado
das regras, as normas ou as representações jurídico-morais que privam o futuro de toda
possibilidade. O futuro a que Derrida se refere está relacionado com sua noção de
espectralidade: trata-se de um futuro que, rompendo radicalmente com o tempo
presente, já não pertenceria à história12.
No centro das considerações de Derrida encontra-se uma crítica radical do
presentismo, de uma ordem existente que se pretende imutável. Realiza sua crítica em
nome de outro futuro e de uma conceituação de justiça capaz de ir para além da presença,
para além do direito e do cálculo. Derrida se refere a tal crítica em termos de um
messianismo "desértico", sem conteúdo nem Messias identificável, que se contrapõe ao
caráter concreto, encarnado, presentista, em última instância, das posturas
escatológicas, teleológicas e apocalípticas13.
Em Espectros de Marx, o conceito abstrato de messiânico é o primeiro indício -
como em sua crítica do logocentrismo do ponto de vista da primazia da escrita - de que
uma das facetas de sua exposição crítica é uma crítica dos aspectos básicos do
pensamento ocidental cristão do ponto de vista secularizado de seu outro mais
significativo: os judeus. Sua reapropriação de um aspecto crucial da tradição judaica - a
recusa em assumir o dado - recorda as "Teses da Filosofia da História" de Walter

10 Ibidem, p. 21.
11 Ibidem, p. 25-27.
12 Ibidem, p. 21.
13 Ibidem, p. 28.

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Benjamin, assim como Max Horkheimer, quem, em 1938, em tempos ainda mais
sombrios, escreveu: "Há períodos nos quais o status quo [...] tornou-se diabólico. Os
judeus se mostraram, alguma vez, orgulhosos do monoteísmo abstrato [...], de sua
negativa de fazer um absoluto de algo finito. Sua miséria atual os conduz de novo ao
passado. A falta de respeito a qualquer ser mortal que se eleve a si mesmo ao nível de
Deus é a religião daqueles que, na Europa da cortina de ferro, não renunciam viver uma
vida melhor"14.
Tendo introduzido o conceito do messiânico, Derrida o utiliza para caracterizar a
herança de Marx como uma injunção política cuja força quebra e desarticula o tempo 15.
Assim como na espectralidade, o espírito emancipador do pensamento de Marx põe em
questão a profunda linha divisória - uma linha estabelecida pelos poderes constituídos
para reafirmá-los - entre a atual realidade do presente e tudo quanto possa opor-se a ele.
Frente à nova ordem mundial, Derrida afirma que compreender as lições das grandes
obras de Marx tornou-se particularmente urgente na atualidade. Ao mesmo tempo,
reapropriar-se de um dos espíritos de Marx torna-se mais simples graças à derrocada do
comunismo europeu, bem como à dissolução dos aparelhos ideológicos marxistas.
Nestas circunstâncias, desprezar Marx converte-se em uma falta de responsabilidade
teórica, filosófica e política16.
Assim, os conceitos espectralidade e o messiânico proporcionam a Derrida um
ponto de apoio para a sua tentativa de reapropriação positiva do legado de Marx. Estes
conceitos fornecem, também, o ponto de partida para sua crítica do triunfalismo
neoliberal e da escatologia teleológica - ambos presentes de maneira combinada em O
Fim da História e o Último Homem de Francis Fukuyama. Derrida considera este livro
exemplificador dos novos discursos ideológicos dominantes que declaram a vitória do
capitalismo e recusam Marx e a possibilidade de uma transformação radical da
sociedade; fazendo-o, segundo Derrida, com o objetivo de exorcizar o caráter ameaçador
e ameaçado da nova ordem mundial17. A principal tese de Fukuyama, derivada da
interpretação de Hegel realizada por Kojève, vem dizer que a recém derrocada das

14 Horkeimer, Max. The Jews and Europe. In: Bronner, Stephen E.; Kellner, Douglas M. (orgs.). Critical
Theory and Society. New York and London, 1989, p. 94.
15 Derrida, Jacques, op. cit., p. 30-31.
16 Ibidem, p. 11, 13.
17 Ibidem, p. 49-53, 57.

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ditaduras em escala mundial anuncia que o processo coerente e direcional da história


humana alcançou seu fim: um estado universal e homogêneo baseado no livre mercado
e na democracia liberal18.
Derrida critica em diferentes níveis o tratamento da história de Fukuyama após
caracterizá-lo como uma variante da escatologia cristã e, portanto, como uma variante
presentista, em última instância. No âmbito teórico, Derrida afirma que o tratamento
que faz Fukuyama da história oscila necessariamente entre dois discursos
irreconciliáveis. Por um lado, sua exposição deve recorrer ao empírico, o que defende
que ocorreu realmente: a morte do marxismo e a realização da democracia liberal. Por
outro lado, deve fazer caso omisso dos diferentes cataclismos do século XX ou considerá-
los como meramente empíricos, contrários à orientação ideal da maior parte da
humanidade em direção à democracia liberal19.
Porém, a crítica de Derrida não é unicamente uma crítica textual; também se
pretende empírica. No terceiro capítulo, descreve a situação do mundo atual em termos
diametralmente opostos aos do neoliberalismo triunfalista. Apesar das celebrações pelo
advento do ideal da democracia liberal e do mercado capitalista, todas as evidências
sugerem que nem os Estados Unidos, nem a União Europeia se aproximaram do ideal
da democracia liberal. Além disso, a situação atual do mundo se caracteriza por uma
enorme desigualdade no desenvolvimento tecno-científico, militar e econômico, que tem
como resultado o fato de que "nunca a violência, a desigualdade, a exclusão, a fome e [...]
a opressão econômica haviam afetado tantos seres humanos" 20. Esta situação
impossibilita qualquer interpretação teleológica da história21.
Não obstante, Derrida não procede a analisar tais desenvolvimentos históricos.
Em vez disso, facilita uma "taxonomia" das características mais destacadas da situação
mundial atual. Ele o faz enumerando as "dez pragas" da nova ordem mundial: novos
tipos de desemprego; exclusão crescente da política dos "sem-teto", dos pobres, dos
exilados, dos imigrantes etc.; guerras econômicas mundiais; contradições entre o
conceito e a realidade do livre mercado; o problema da dívida externa e suas

18 Ibidem, p. 56-61.
19 Ibidem, p. 57, 62-64.
20 Ibidem, p. 85.
21 Ibidem, p. 53-54, 63-64, 78.

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consequências (fome e desespero); a centralidade da indústria armamentista para a


pesquisa, para a economia e para a socialização do trabalho; a proliferação do
armamento nuclear; as guerras interétnicas; a crescente importância da máfia e dos
cartéis de drogas; o estado atual do direito internacional e de suas instituições22.
A análise de Marx poderia, segundo Derrida, iluminar os problemas do mundo
contemporâneo, assim como a natureza deste novo discurso dominante, sempre e
quando se modificasse tal análise: evitando, por exemplo, o modelo base/superestrutura
e a identificação da dominação social unicamente com a dominação de classe23. Derrida
sublinha com aprovação a historicidade autorreflexiva da teoria de Marx, sua abertura à
sua própria transformação e reavaliação, sua análise lúcida dos modos em que a política
está adquirindo uma dimensão mundial, assim como a permanência da relevância do
"código" marxista para analisar o mundo contemporâneo24.
Não obstante, Derrida afirma que o espírito emancipador de Marx foi
frequentemente refutado pelas próprias práticas marxistas, associadas historicamente a
formas rígidas tais como organizações, partidos e Estados; em outras palavras, a formas
de presença25. Como resultado, certos aspectos do marxismo compartilham certas
características do triunfalismo neoliberal. Ao fazer seu o pressuposto de Fukuyama
(tomado de Kojève) de que Marx, como Hegel, havia postulado o fim da história, Derrida
sustenta que as noções da história de Marx e de Fukuyama se sobrepõem em traços
fundamentais. E Derrida recusa o que entende como noções compartilhadas: a ideia de
um fim da história e uma concepção da temporalidade histórica como o sucessivo
encadeamento de presentes idênticos entre si. Ambos permaneceriam dentro de um
marco de tempo homogêneo que dificulta a possibilidade de um futuro qualitativamente
diferente26.
A esta altura torna-se evidente um aspecto importante da estratégia teórica de
Derrida: a identificação, em qualidade de resistências à espectralidade, tanto do
triunfalismo neoliberal, como do marxismo dogmático. Por consequência, o conceito de

22 Ibidem, p. 78-82.
23 Ibidem, p. 53-54, 63-64.
24 Ibidem, p. 13, 54, 88.
25 Ibidem, p. 29.
26 Ibidem, p. 70.

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espectralidade pretende proporcionar a base para uma crítica social radical dirigida
contra os dois polos da oposição constitutiva da Guerra Fria.
Derrida pretende ir para além de tal oposição diferenciando, na herança de Marx,
os elementos que afirmam a espectralidade do marxismo como ontologia, como sistema
metafísico ("materialismo dialético"). Seu objetivo é reestabelecer uma crítica social do
mundo contemporâneo recuperando o que ele denomina a historicidade da história
contra as exposições que cancelam tal historicidade, a saber: o conceito "onto-teo-
arqueo-teleológico" da história em Hegel e em Marx, assim como o "pensamento epocal"
de Heidegger27. Busca fazê-lo com a ajuda de uma concepção de acontecibilidade fora do
tempo presente - similar à imagem de Benjamin do salto de tigre da revolução como o
voo messiânico de uma época determinada alheia ao curso homogêneo da história28. Por
meio desta noção, Derrida busca abrir a possibilidade de pensar o messiânico
afirmativamente e, deste modo, a possibilidade da emancipação como promessa, mais
que como programa ou desenho onto-teológico ou teleo-escatológico29.
Derrida relaciona o conceito de democracia com tal promessa. Fala de uma
democracia futura como de uma promessa que não seria simplesmente uma modalidade
futura do presente vivo. A promessa de semelhante democracia implica, por um lado, o
respeito à singularidade e a infinita alteridade; e, por outro lado, o respeito pela
igualdade calculável entre singularidades anônimas30. A democracia, portanto, como
ruptura com o presente, implica superar a oposição entre o particular e o universal. Tal
esforço por unir o respeito pela alteridade e pela igualdade se afasta profundamente do
enfoque de Derrida das críticas neorromânticas da modernidade e de todos aqueles que
almejam a "comunidade" até o ponto de dissipar aquilo que, no espírito de Marx, Derrida
valoriza, implicitamente, como um aspecto positivo da modernidade capitalista.
Na nova Internacional - o vasto desdobramento de movimentos e instituições não
governamentais e não partidárias que surgiram de uma resposta política à nova ordem -
Derrida distingue os tipos de política que apontam para a promessa de tal democracia.
Aquilo que, segundo Derrida, caracteriza esta nova Internacional é que não possui

27 Ibidem, p. 68, 74-75.


28 Benjamin, Walter. Theses on the Philosophy of History. In: Bronner, Stephen E.; Kellner, Douglas M.
(orgs.). Critical Theory and Society. New York and London, 1989, p. 260-263.
29 Derrida, Jacques, op. cit., p. 74-75.
30 Ibidem, p. 64-65.

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formas rígidas, como: organização, partido, Estado, comunidade nacional ou


pertencimento comum de classe. Em outras palavras, trata-se de um movimento que vai
para além da presença. Esta Internacional efetua, na prática, o tipo de diferenciação do
legado marxiano, o qual Derrida se esforça por fazer em termos teóricos: inspira-se em
um dos espíritos de Marx (o "messianismo desértico") ao mesmo tempo que renuncia ao
marco institucional e ao dogmatismo do marxismo clássico31.
Esta diferenciação é a base da reapropriação de Marx que Derrida realiza, e de
sua representação da desconstrução como herdeira de um determinado espírito do
marxismo, de um determinado projeto não religioso, não mitológico e não nacional
radicalmente diferenciável da "perversão" totalitária do marxismo e dos desastres tecno-
econômicos e ecológicos aos que deu lugar. Estes últimos aspectos do marxismo haviam
sido, segundo Derrida, consequência de uma ontologização do espectral32.
O espectro que assola o mundo moderno desde 1848 é a possibilidade de um
futuro radicalmente diferente. Para Derrida, o comunismo, como a democracia (e que o
Messias), está sempre por vir, distinguindo-se de todo presente vivo. As recentes
declarações da nova Santa Aliança sobre a irrevogável morte de Marx devem interpretar-
se como tentativas de anular os inoportunos espectros da democracia e do comunismo33.
Tal temor do futuro espectral teve, segundo Derrida, consequências extremamente
negativas, estando a origem de muitos dos desenvolvimentos mais negativos do século
XX. Derrida sugere, de maneira provocativa, que todas as diferentes formas de
“totalitarismo” – nazista, fascista e comunista - estavam, em última instância, originadas
por reações frente ao temor que o fantasma do comunismo inspirava: todas buscavam
incorporar tal fantasma de maneira animista. Assim, a Santa Aliança, aterrorizada pelo
espectro do comunismo, não somente empreendeu uma guerra contra tal espectro que
ainda perdura no tempo, como tal guerra foi realizada contra um campo organizado
também pelo temor do espectro34.
Tendo atribuído a dimensão totalitária do comunismo ao temor do espectral,
Derrida segue o rastro de tal medo até aquilo que caracteriza como uma dimensão

31 Ibidem, p. 29, 85.


32 Ibidem, p. 89-91.
33 Ibidem, p. 95.
34 Ibidem, p. 105.

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ontológica do pensamento de Marx. Derrida explica as práticas do marxismo ortodoxo a


partir das ideias atribuídas a Marx, isto é, dentro do marco da história das ideias (o qual
não é surpreendente em um pensador profundamente influenciado por Heidegger).
Derrida afirma que, Marx - ou o "marxista que há nele" -, em que pese a sua crítica
emancipatória, continuou também crendo na fronteira entre a realidade presente e o
espectral como um limite real35. Por consequência, inclusive quando Marx evocava o
espectro do comunismo, estava buscando uma forma encarnada e incorporada do
espectral: como manifesto, como partido, apontando na destruição do Estado e no fim
da política36. Este suposto giro do espectral-messiânico ao encarnado-apocalíptico
expressava, segundo Derrida, o próprio medo de Marx da espectralidade. Derrida tratará
de demonstrar tal modo de ver as coisas tendo em conta vários dos textos de Marx: O
Dezoito de Brumário de Luis Bonaparte, A Ideologia Alemã e O Capital.
Marx começa O Dezoito de Brumário com uma reflexão sobre o significado do
passado e do futuro para os atores revolucionários. Comentando sua célebre frase de que
a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo no cérebro dos vivos,
Marx afirma que nas revoluções burguesas os atores se agasalharam no manto do
passado, ao mesmo tempo que criavam um presente novo; a nova revolução, todavia,
somente pode extrair sua poesia do futuro, não do passado. Ao interpretar tais
passagens, Derrida sustenta que Marx, buscando inutilmente separar o espírito do
espectro, está afirmando que as revoluções futuras devem destruir todo o recurso ao
passado: devem renunciar a toda herança. Semelhante concepção da revolução é, porém,
uma concepção presentista37.
Tal presentismo não pode, segundo Derrida, se restringir meramente aos escritos
políticos de Marx; também está igualmente caracterizado em seus textos filosóficos, tais
como A Ideologia Alemã, bem como O Capital. Ao analisar A Ideologia Alemã, Derrida
se concentra na extensa crítica de Marx ao jovem hegeliano Max Stirner. Segundo Marx,
Stirner, que criticava Hegel por haver espiritualizado e mistificado o Espírito, o fazia do
ponto do vista do corpo vivo. No entanto, tal crítica da dimensão espectral do
pensamento de Hegel é, afirma Marx, espectral em si mesma porque o corpo egológico

35 Ibidem, p. 29, 38-39.


36 Ibidem, p. 99.
37 Ibidem, p. 113-119.

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que serve como ponto de vista crítico de Stirner não é mais que um corpo abstrato,
artificial: simplesmente o espaço no qual as entidades autonomizadas são reunidas; um
corpo de espectros, um fantasma38.
Reformulando o raciocínio de Marx na linguagem da fenomenologia, Derrida
observa que, para Marx, tanto a forma fenomênica do mundo com o ego fenomenológico
são espectrais. O ponto de vista de sua crítica da dimensão cristiano-hegeliana da
fenomenologia é a "estrutura prática" do mundo: trabalho, produção, realização,
técnicas39.
Este ponto de vista, porém, se vincula, segundo Derrida, a uma metafísica da
presença que afirma que a crítica de Marx é morfologicamente similar à de Stirner 40.
Derrida sustenta que, para além das diferenças entre ambos, tanto Marx como Stirner
desejam vencer o fantasma: ambos opõem o "princípio hiper-fenomenológico da
presença em carne e osso da pessoa viva"41, à onto-teologia espectral. A crítica de Marx
difere da de Stirner somente quantitativamente, buscando levar a crítica deste para mais
longe.
No fundo, para Derrida, Marx deseja diferenciar claramente o espectro (negativo)
do espírito (positivo). Mas, esta distinção não se sustenta. O espectro não é somente a
aparição carnal do espírito (isto é, o fetiche), é também a impaciente e nostálgica espera
de uma redenção, de um espírito. Segundo Derrida, a diferença entre espectro e espírito
é, por consequência, uma différance42.
Derrida estende esta interpretação da análise de Marx da forma-mercadoria no
primeiro capítulo do volume I de O Capital. Observa que, com seu conceito de fetichismo
da mercadoria, Marx trata de demonstrar que o capitalismo se caracteriza,
precisamente, por aquilo que supostamente deixou para trás: o animismo, o espiritismo.
Para Derrida, o enfoque de Marx é aqui análogo à sua crítica a Max Stirner: trata-se de
uma crítica de um tipo de "secularização" que reconstitui o animismo que acreditava
haver superado. O novo tipo de objeto do bom sentido fenomenológico: o ego
fenomenológico, por exemplo, ou a mercadoria como objeto.

38 Ibidem, p. 126-129.
39 Ibidem, p. 130, 135.
40 Ibidem, p. 131.
41 Ibidem, p. 132; 191, nota 14.
42 Ibidem, p. 136.

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Derrida supõe que a categoria de valor de uso é o ponto de vista da crítica de Marx
em O Capital e, portanto, sua crítica seria efetuada do ponto de vista ontológico da
materialidade, da presença. Ao aceitar a consagrada leitura marxista tradicional, Derrida
relaciona a dimensão valor de uso à técnica, e identifica a categoria valor com mercado.
Sobre esta base sustenta que a exposição de Marx não permite uma crítica da tecnologia;
em seu lugar, imagina uma sociedade que levaria para ainda mais longe, o processo de
secularização capitalista43.
Derrida prossegue argumentando que o valor de uso e, por conseguinte, a
produção e a tecnologia, não pertencem unicamente ao presente: não se encontram
realmente tão livres de espectros como Marx havia, supostamente, dado por certo, mas
se conformariam socialmente. Deste modo, não podem servir como ponto de partida de
uma teoria emancipatória, pois uma teoria emancipatória, ao contrário, somente pode
ser aquela que aceite a espectralidade.
Derrida conclui seu livro retomando a questão de uma esperança messiânica
desmontada, de uma espera sem o horizonte da esperança. Se se pudesse contar com o
que está por vir, a esperança não seria mais que o cálculo de um programa44, isto é,
permaneceria vinculada ao presentismo. Em vez de afugentar os fantasmas, como fez
Marx, se deveria garantir-lhes o direito de regressar. Trata-se de uma condição de
justiça, de um modo de vida radicalmente diferente do da existência atual.

II

A intervenção de Derrida contra a ideologia da nova ordem mundial e seu esforço


de apresentar a desconstrução como herdeira de Marx - isto é, como a base da recusa a
aceitar o atualmente dado como necessário - são importantes e oportunos. Anunciam o
final de um período que começou em fins da década de 1960, quando novos enfoques
críticos - distanciando-se claramente de um marxismo ortodoxo que havia manifestado
sua quebra total em Paris e em Praga - se focalizaram nos modos de dominação
característicos da época keynesiana-fordista-estatista que estava chegando a seu fim.

43 Ibidem, p. 160-163.
44 Ibidem, p. 168-169.

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Estas novas formas de pensamento crítico tendiam a valorizar e a enfatizar a importância


da contingência, da resistência, da cultura e da esfera política não estatal-burocrática.
As questões da dinâmica contínua do capitalismo e de suas consequências sociais e
políticas foram, no melhor dos casos, tratadas marginalmente.
Espectros de Marx expressa uma percepção de que os desenvolvimentos
históricos contemporâneos requerem uma resposta teórica diferente e mais adequada,
uma resposta que encare também, de maneira direta, a problemática do capitalismo
global. O livro sugere que as condições do pensamento crítico pós-fordista mudaram
radicalmente desde 1989 e que muitas das questões da década de 1960, que continuarão
impulsionando ulteriormente tal pensamento crítico durante várias décadas, tornaram-
se historicamente anacrônicas.
Com seu conceito de espectralidade, Derrida pretende oferecer a base para uma
resposta a essas novas condições dinâmicas. No entanto, este conceito torna-se muito
indeterminado social e historicamente par servir de base para uma crítica adequada do
presente. Os pontos frágeis do enfoque crítico de Derrida emergem mais claramente
quando discute diretamente o mundo contemporâneo. Como já vimos, Derrida trata
problemas cruciais do mundo contemporâneo de maneira descritiva: enuncia dez
"pragas" da nova ordem mundial, sem deixar claro, porém, se estes problemas estão
inter-relacionados. Derrida não explica que categorias subjazem sua descrição crítica ou
se são categorias intrínsecas à sua filosofia crítica.
Espectros de Marx expõe estes problemas precisamente porque a crítica do
neoliberalismo de Derrida vai para além de uma crítica textual imanente e recorre ao
princípio de adequação empírica. Derrida critica autores como Fukuyama e Allan Bloom
por formularem uma nova ideologia que implica uma "negação maníaca" das sombrias
condições do mundo atual45. Contradiz a imagem otimista de Fukuyama ao descrever o
mundo contemporâneo em termos de pauperização internacional, de conflito econômico
e de uma crise de base de ordem política moderna, todos eles provocados por mudanças
econômicas e o desenvolvimento de novas tecnologias comunicativas 46. Atuando deste
modo, Derrida mostra com clareza que a imagem neoliberal do mundo se encontra

45 Ibidem, p. 78.
46 Ibidem, p. 53-54, 63-64, 79-81, 112.

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profundamente distorcida e que sua própria postura se baseia em uma melhor análise e
mais adequada do mundo atual. Tal exposição vai, implicitamente, para além dos limites
de uma crítica desconstrucionista imanente, ao tempo em que formula necessariamente
a pergunta acerca da adequação da crítica social a seu objeto. Contudo, esta é uma
pergunta que Derrida não se coloca.
Para formulá-la, Derrida deveria, também, ter tematizado, explicitamente, o
problema da dinâmica histórica do mundo contemporâneo. A intervenção de Derrida,
como vimos, é uma resposta a uma situação histórica que se transformou
dramaticamente em 1989. As recentes derrocadas da União Soviética e do comunismo
europeu não deveriam, no entanto, ser vistas como fenômenos que se esgotam em si
mesmos, como vitórias democráticas locais das sociedades sobre os Estados. Ao
contrário, deveriam ser contextualizadas na relação com um desenvolvimento histórico
mais geral que se estende ao longo dos últimos vinte e cinco anos, e que implicou o
declínio do regime fordista de poderosos Estados metropolitanos, empresas nacionais e
sindicatos industriais; ao tempo em que se caracterizou por uma crescente globalização
e por uma cada vez maior diferenciação no que se refere a riqueza e poder.
A partir da perspectiva de fins do século XX, tal desenvolvimento geral, origem
da nova ordem mundial que Derrida ataca, pode ver-se como um dos diferentes padrões
históricos em grande escala discerníveis de maneira descritiva. Se os primeiros dois
terços do século XX se caracterizaram pela crescente intervenção e controle sobre os
processos socioeconômicos por parte dos Estados nacionais, o período que se iniciou a
princípios da década de 1970 conheceu o desvanecimento, o desfalecimento e - nos
desaparecidos países comunistas da Europa - a derrocada de tais regimes estatais. Estes
padrões se generalizaram, não dependendo totalmente dos partidos políticos ou dos
indivíduos no poder. Não podem, portanto, ser entendidos adequadamente fazendo-se
referência a fatores locais e a diferentes contingências. Estas últimas podem explicar
variações em tais padrões comuns, mas não podem, contudo, explicar os padrões em si
mesmos.
Visto assim, o pressuposto, comumente aceito na década de 1960 no ocidente (e
anteriormente no oriente), de que a esfera política havia alcançado a primazia sobre a
dinâmica socioeconômica do capitalismo - uma suposição adotada de maneira implícita
por muitos pós-marxistas - demonstrou ter sido historicamente incorreto. As décadas
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subsequentes mostraram que a tentativa de dominar a dinâmica histórica própria do


capitalismo através do Estado - encarnado no aparelho do Estado keynesiano no
ocidente e no partido-Estado estalinista no oriente - aparentemente fracassou. Estes
desenvolvimentos históricos gerais reclamam uma explicação que possa contemplar de
maneira adequada a dinâmica histórica que parece ter resistido a tais tentativas de
controle político.
A crítica de Derrida ao neoliberalismo em Espectros de Marx se vincula
estreitamente à sua interpretação dos recentes desenvolvimentos históricos. No entanto,
não oferece um marco para analisar tais desenvolvimentos. Sua noção de espectralidade
é sumamente útil como uma crítica das concepções presentistas do dado e como
lembrete de que boa parte do marxismo arruinou suas próprias pretensões ao se
fundamentar na presença e, portanto, ao promulgar uma visão do futuro que não rompia
de maneira radical com o presente. Como tal, o conceito de Derrida de não-
contemporaneidade consigo mesma do presente vivo oferece um ponto de vista a partir
do qual se pode criticar tanto o neoliberalismo e o marxismo tradicional, bem como a
metafísica e a fenomenologia.
Contudo, a análise de Derrida não proporciona os meios para especificar a
espectralidade como uma categoria crítica, isto é, para vinculá-la a uma análise socio-
histórica do fenômeno empírico ao qual se refere sua crítica. Para tais propósitos não é
suficiente, como faz Derrida, afirmar estar falando no código marxista ou que as
problemáticas procedentes da tradição marxista serão indispensáveis durante muito
tempo para analisar as tensões e os antagonismos sociais47. Mais ainda, em uma obra
que afirma se reapropriar de Marx, depois de haver invocado o problema de sua
adequação empírica e histórica, a crítica de Derrida da nova ordem mundial e de sua
hegemonia ideológica deveria levantar a questão da relação de tal crítica com a análise
categorial do capitalismo e com o espírito emancipatório típicos de Marx. Isto é, a
natureza da crítica do mundo contemporâneo de Derrida requer, implicitamente, dar
um passo, o qual se esquiva, a saber: problematizar a relação das categorias de sua
filosofia crítica com as da teoria social crítica de Marx, fazendo-o, ademais, em coerência
com sua crítica do presentismo marxista e do capitalismo global atual.

47 Ibidem, p. 54-55, 63-64.

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Torna-se impossível utilizar as categorias de Marx, interpretadas como forem,


com o objetivo de desenhar um quadro das "condições de fundo", para posteriormente
incorporá-las em um marco teórico completamente diferente. Trata-se de categorias
sociais e epistemológicas historicamente determinadas, com implicações teóricas de
longo alcance, que se opõem a qualquer tentativa de entender o mundo de maneira
historicamente indeterminada. Além disso, tais categorias se pretendem reflexivas. Uma
crítica autorreflexiva tenta fundamentar sua própria possibilidade - a possibilidade de
uma crítica radical de seu universo social - por meio das mesmas categorias com as que
trata de compreender tal universo. Assim, este tipo de teoria crítica autorreflexiva é
imanente a seu objeto, devendo, portanto, mostrar que a possibilidade de uma
transformação radical do presente é uma possibilidade determinada, imanente a tal
presente. A possibilidade de uma crítica radical imanente da ordem atual e a
possibilidade de uma transformação radical de tal ordem estão intrinsecamente
relacionadas.
A descrição crítica de Derrida da nova ordem mundial carece deste momento
autorreflexivo. Correlativamente, apesar de que caracteriza positivamente o espírito de
Marx como consequência de sua postura crítica e questionadora, assim como de sua
afirmação emancipatória e messiânica48, a própria descrição crítica da nova ordem
mundial de Derrida não está intrinsecamente ligada à sua afirmação (messiânica) de
uma possibilidade emancipatória. Seu enfoque esboça uma sólida exposição, mas não
proporciona categorias que possam sustentar adequadamente sua própria crítica socio-
histórica. Nem fundamenta as categorias com as quais compreende o mundo
contemporâneo, nem fundamenta reflexivamente sua própria crítica e, portanto, a
possibilidade de um futuro radicalmente diferente.
A compreensão de tal futuro como uma possibilidade determinada e imanente ao
presente não deveria se confundir com a questão da probabilidade de uma
transformação social. O conceito de possibilidade determinada permite ressaltar o
caráter problemático de qualquer concepção do futuro como ruptura com o presente que
não esteja arraigada no presente, e insiste em que qualquer ordem futura, inclusive uma
radicalmente diferente de nosso presente, somente possa se alicerçar nas tensões,

48 Ibidem, p. 89.

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possibilidades e lutas do presente. Neste sentido, qualquer futuro será, por necessidade,
historicamente imanente, independente de até que ponto os atores históricos possam
pensar que estão realizando um salto radical fora da história.
A questão, pois, reside em se é possível que uma crítica social do presente aponte
na direção de um futuro radicalmente diferente do presente e, no entanto, fundamente
a possibilidade de tal futuro no presente. Semelhante crítica deveria compreender o
presente sem se limitar a reproduzir e a afirmar tal presente. Em outras palavras, o
exame crítico da obra de Derrida, Espectros de Marx, realizado neste ensaio, expõe a
pergunta acerca da possibilidade de uma teoria crítica que se encontre em consonância
com um determinado espírito da desconstrução e com sua crítica do presentismo, ao
tempo que avance uma base mais sólida para uma análise crítica do mundo
contemporâneo. Sugeri que tal crítica requereria um giro social e histórico de maior
envergadura que a realizada por Derrida. Aparentemente, Derrida se mostra precavido
perante um giro deste tipo, pois teme que implique necessariamente uma volta ao
presentismo. Esta suposição é questionável e debilita sua tentativa de formular uma
crítica adequada do presente e de sua dinâmica histórica.
Em Espectros de Marx, Derrida reconhece a importância de uma crítica do
capitalismo atual, bem como a força da análise de Marx. No entanto, Derrida, muito
consciente dos riscos associados ao marxismo tradicional, parece haver pensado que não
teria outra opção que não fosse justapor elementos de uma análise marxista a seu
próprio enfoque "espectral". Com o intuito de apresentar um enfoque teórico alternativo,
avançarei brevemente alguns elementos de uma leitura de Marx muito diferente da
interpretação tradicional que subjaz no enfoque de Derrida49. O objetivo desta leitura
não é, de modo algum, "defender" Marx da crítica de Derrida, mas proporcionar a base
para uma teoria crítica que possa compreender a nova situação mundial de maneira
social e historicamente mais adequada e, ainda assim, ser congruente com a intenção
crítica do conceito de espectralidade de Derrida, bem como com sua crítica do marxismo
tradicional.

49Para uma elaboração desta leitura ver Postone, Moishe. Time, Labor, and Social Domination: a
reinterpretation of Marx's critical theory. Cambridge, Eng. and New York, 1993.

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No marco desta leitura, as categorias presentes nas obras maduras de Marx fazem
referência a relações sociais historicamente específicas e não deveriam ser entendidas
em termos "materiais" trans-históricos. Tais relações sociais, captadas mediante
categorias, tais como "mercadoria" e "capital", não são fundamentalmente relações de
classe - como assumem as interpretações do marxismo tradicional -, mas formas
particulares e quase-objetivas de mediação social. As relações sociais estão constituídas
por determinados tipos de práticas sociais que exercem um modo abstrato e "estrutural"
de constrição, historicamente novo, sobre os atores que geram tais práticas. Os traços
definidores do capitalismo, segundo tal interpretação, não se situam no mercado e na
propriedade privada. Portanto, o ponto de vista da crítica do capitalismo não se localiza
na produção (industrial) e no proletariado; de fato, este último é considerado essencial
- e moldado - pelas relações sociais básicas do capitalismo.
Neste ponto de vista, um possível futuro pós-capitalista não implicaria a
realização do proletariado industrial e do trabalho que este efetua - isto é, a realização
racional do mundo industrial moderno - mas, a superação de uma estrutura
historicamente específica de constrições racionais abstratas, bem como a superação das
formas concretas de produção, trabalho e, mais geralmente, da vida social
historicamente moldadas por tais constrições. Portanto, a teoria crítica do capitalismo
de Marx não é entendida como uma análise crítica de uma variante classista de sociedade
moderna, mas constitui uma crítica da sociedade moderna em si.
Por esta razão, as categorias da análise de Marx são historicamente específicas,
no sentido de que são categorias próprias unicamente de sociedades capitalistas,
modernas, diferenciando analiticamente tal modo de vida social de outros. No entanto,
estas categorias são também categorias gerais do capitalismo. Em um alto nível de
abstração lógica, permitem conceitualizar as principais características da sociedade
capitalista e de sua dinâmica: aqueles traços que caracterizam o capitalismo,
independentemente de suas configurações históricas mais específicas, tais como o
capitalismo "liberal" do século XIX, o capitalismo "estatista" ou "fordista" do século XX,
ou o capitalismo "pós-fordista" ou "pós-moderno" de fins do século XX. Apesar destas
categorias não bastarem para analisar qualquer dessas configurações mais específicas,
oferecem o ponto de partida necessário para qualquer análise deste tipo, bem como para

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uma análise dos processos dinâmicos que transformam uma dada configuração em
outra.
Ao contextualizar historicamente as principais categorias de sua teoria crítica
presentes em suas obras de maturidade, Marx, segundo a leitura que aqui estamos
efetuando, também contextualiza historicamente o conceito de dinâmica histórica.
Marx, abandona, implicitamente, a noção trans-histórica de que a história humana em
geral tem uma dinâmica, a favor de uma análise, em termos historicamente específicos,
dessa dinâmica como uma característica única e específica do capitalismo. As categorias
da crítica da economia política de Marx em suas obras maduras - muitas vezes
compreendidas como categorias do mercado e da exploração de classe (propriedade
privada) - permitem, em um alto nível de abstração lógica, uma análise das principais
características e da força motriz de tal dinâmica historicamente específica.
Definitivamente, as concepções trans-históricas da história - sejam hegelianas
ou marxistas tradicionais - implicam uma afirmação de uma dinâmica (e,
correlativamente, da totalidade) contra a qual reagiram pensadores como Derrida. A
compreensão historicamente específica da dinâmica histórica apontada acima conduz
esta problemática para fora do reino das afirmações metafísicas sobre a natureza da
realidade social (seja esta totalizante ou heterogênea) e, ao contrário, trata de
compreender socialmente um processo dinâmico historicamente único. No âmbito deste
tipo de compreensão, a existência de uma dinâmica histórica não é considerada
positivamente como a locomotiva da existência humana, mas é compreendida,
criticamente, como um tipo de heteronomia, de dominação temporal abstrata.
Por outro lado, esta compreensão lança alguma luz sobre uma dimensão muito
importante da democracia, a saber: a autodeterminação. Segundo esta perspectiva, a
tensão existente entre capitalismo e democracia não provém simplesmente da
desigualdade de acesso à riqueza e do poder que o capitalismo produz e reproduz, mas é
o resultado da existência de uma dinâmica histórica que necessariamente implica
importantes limitações estruturais para a possibilidade de autodeterminação. Longe de
equiparar a abolição do capitalismo com um (apocalíptico) fim da política (uma posição
criticada por Derrida), tal análise aponta para uma ampliação do âmbito da política
como uma possível consequência da abolição das constrições estruturais do capitalismo.

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Este giro conceitual implica o retorno a um conceito de totalidade, mas não como
uma categoria alternativa, como no marxismo ortodoxo, onde se considera que o
problema do capitalismo é seu caráter irracional e fragmentado. Aqui, ao contrário, a
totalidade é o objeto da crítica. Tal enfoque, como em Derrida, é crítico com respeito à
homogeneidade e à totalização. No entanto, em lugar de negar sua existência real, esta
crítica fundamenta os processos de homogeneização e totalização em formas
historicamente específicas de relações sociais e busca mostrar como as tensões
estruturais internas a tais relações abrem a possibilidade da abolição histórica de tais
processos.
O problema de muitas exposições críticas recentes (incluindo as de Derrida) que
afirmam a heterogeneidade é que buscam inscrevê-la de maneira quase-metafísica,
negando a existência daquilo que somente pode ser abolido historicamente. Deste modo,
estas exposições, pretendendo ampliar a capacidade de ação das pessoas terminam por
diminuí-la, na medida em que equiparam e tornam invisíveis dimensões centrais da
dominação no mundo moderno.
Uma importante diferença entre Hegel e Marx reside na distinção entre uma
concepção trans-histórica e afirmativa da dinâmica histórica e uma concepção
historicamente específica e crítica da mesma. Esta diferença foi ignorada por Fukuyama,
Kojève e por boa parte do marxismo ortodoxo. Derrida também termina por aproximar
Marx de Hegel, assumindo que qualquer noção de dinâmica histórica direcional deve ser
linear, teleológica e afirmativa: definitivamente, presentista. Por conseguinte, Derrida
opõe a história, enquanto que encadeamento linear de unidades homogêneas de tempo
abstrato, à acontecibilidade, uma oposição que reproduz a antinomia clássica entre
necessidade e liberdade. Dentro de tal esquema dicotômico, a mudança radical somente
pode ter lugar como resultado de uma ruptura completamente inesperada e não como
uma possibilidade inscrita no presente.
Estas pressuposições debilitam a capacidade de Derrida para compreender
criticamente a dinâmica do capitalismo e, com ela, uma dimensão central da dominação
no mundo moderno, de modo tal que Derrida pudesse fundamentar, também, a
possibilidade imanente de uma mudança qualitativa radical. Na medida em que
interpreta tal dinâmica através das lentes das formas afirmativas do marxismo ortodoxo
- que recusa como presentista - Derrida, na tentativa de se reapropriar do "espírito de
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Marx", se desfaz de muitos aspectos da análise de Marx, interpretando uma análise


crítica historicamente específica como se fosse trans-histórica e, em última análise,
afirmativa.
Semelhante leitura aparece muito claramente nas diferentes críticas que realiza
Derrida aos textos de Marx. Em suas reflexões sobre a análise do dinheiro que realiza
Marx em Contribuição à Crítica da Economia Política, sua pesquisa crítica sobre Max
Stirner na Ideologia Alemã, bem como sua análise do fetichismo da mercadoria em O
Capital, Derrida afirma que Marx efetua sua crítica aos fantasmas, aos espectros e à
mistificação do ponto de vista da presença viva. Derrida, lendo Marx através da visada
interpretativa de Michel Henry e de Maurice Blanchot (e, de modo mais geral, do tipo de
leituras fenomenológicas que se estenderam na França durante várias décadas depois da
Segunda Guerra Mundial), aproxima Marx do tipo de exposições fenomenológicas que
criticou em obras anteriores.
No entanto, em todos os textos citados, o que Derrida considera como "presença
viva" é, na análise de Marx, uma forma abstrata, particular e historicamente específica
das relações sociais, que existe (necessariamente) sob formas reificadas. Derrida supõe,
por exemplo, que a crítica do dinheiro de Marx opõe o dinheiro à realidade viva 50.
Semelhante argumento, porém, confunde Marx com Proudhon. Este último considerava
que o dinheiro era a origem das tendências abstratas e homogeneizadoras da sociedade
capitalista moderna e, contrapondo o dinheiro ao trabalho vivo, promulgava a abolição
do dinheiro. Em sua crítica a Proudhon, Marx sustenta que o dinheiro, enquanto
equivalente universal homogeneizador, é a expressão de uma forma particular,
historicamente específica, das relações sociais que molda os dois temos da oposição de
Proudhon. Daí a impossibilidade de abolir a forma fenomenológica da mediação social
abstrata sem abolir as relações sociais particulares que expressa.
De maneira semelhante, como observamos, Derrida critica Marx por formular
uma crítica de Stirner que é morfologicamente similar à crítica que Stirner faz a Hegel.
No entanto, longe de criticar Stirner do ponto de vista do "princípio hiper-
fenomenológico da presença em carne e osso da pessoa viva"51, como diria Derrida, eu

50 Derrida, Jacques, op. cit., p. 46-47.


51 Ibidem, p. 191, nota 14.

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afirmaria que Marx está sustentando que o indivíduo moderno está social e
historicamente constituído por uma forma das relações sociais que ele mesmo constitui.
Sobre esta base, Marx critica Stirner por pressupor o indivíduo como dado, como um
ponto de partida ontologicamente irredutível, em lugar de um resultado histórico.
Em outras palavras, Derrida toma sistematicamente como o ponto de vista
"material" e ontológico da crítica marxiana o que Marx, por sua vez, analisa como a
expressão reificada de uma forma historicamente específica das relações sociais. Como
consequência, a leitura "materialista" de Marx realizada por Derrida lhe impede de
compreender a dinâmica do capital enquanto reificação "real", compreensão que lhe
possibilitaria superar a oposição clássica entre necessidade e contingência. A análise de
O Capital efetuado por Derrida mostra isto com clareza.
Como vimos, Derrida afirma que, em O Capital, o valor de uso proporciona o
ponto de vista ontológico para a crítica de Marx da forma mercadoria e de suas
mistificações. Vinculando o valor de uso e a técnica, Derrida identifica a crítica de Marx
ao capitalismo com a valorização da produção industrial do marxismo ortodoxo. Sobre
essa base, sustenta que a crítica de Marx permanece atada ao imediato da presença: a
visão marxiana do futuro não poderia ir, realmente, para além da dominação do
presente. Em seguida, Derrida busca desconstruir a crítica de Marx assinalando (de
maneira trans-histórica) que o valor de uso (e, portanto, a produção) não se encontra
unicamente ali, mas possui, também, uma dimensão espectral. Ao evacuar-se de tal
dimensão, Marx teria ficado preso ao presente; permaneceria, definitivamente, assolado
pelo espectro que buscava exorcizar.
A interpretação de Derrida da crítica de Marx ao capitalismo e de sua concepção
da história é, fundamentalmente, ortodoxa. Considera o althusserianismo um tipo mais
sofisticado de marxismo e, em um livro que se bate com a forma-mercadoria, ignora as
obras de Lukács e Adorno. Ao pressupor em Marx uma concepção teleológica da história
que compreenderia a temporalidade histórica como o encadeamento sucessivo de
presentes idênticos em si, Derrida não leva sua leitura de O Capital para além do
primeiro capítulo.
No entanto, torna-se problemático deter-se no primeiro capítulo; capítulo que
poderia, a primeira vista, ser lido em termos de uma simples oposição estática entre o
social/abstrato, o natural/físico. A investigação da forma mercadoria realizada por Marx
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é tão-somente o ponto de partida de sua análise do capital. E tal análise, como


observamos acima, busca esboçar e a fundamentar a dinâmica historicamente específica
da sociedade moderna. Porém, a dinâmica que esboça difere consideravelmente do
cenário marxista tradicional e, com efeito, está em consonância, em grande medida, com
a exposição de Derrida.
Afirmei que a análise de Marx da forma-mercadoria e do capital não constitui
uma crítica do ponto de vista do trabalho, dos objetos e da produção material,
entendidos de maneira trans-histórica. Trata-se, ao contrário, de uma teoria de um tipo
de mediação social abstrata e historicamente específica: uma forma das relações sociais
que é única enquanto que mediada pelo trabalho. Aquilo que caracteriza o mundo
capitalista moderno, segundo Marx, consiste em que o trabalho não somente medeia as
relações sujeito/objeto dos humanos e da natureza, mas medeia também as relações
entre as pessoas. Tal confere uma forma particularmente abstrata às relações sociais
modernas e aos modos de dominação que, em última instância, constrangem e
conformam a vida social moderna.
A mercadoria, não obstante, como forma social fundamental da modernidade
capitalista, não é um todo unificado e homogêneo. Ao contrário, enquanto que mediação
social particular constituída pelo trabalho, encarna tanto uma dimensão material, como
uma dimensão social. Este dualismo, socialmente constituído e historicamente
específico, não é simplesmente uma oposição estática. Ao contrário, na análise de Marx,
o valor de uso e o valor estão inter-relacionados. Tal interação, baseada no caráter dual
da forma mercadoria, gera uma dinâmica imanente complexa, assolada por aquilo que
Derrida denominaria o espectro do valor, que atuaria como um sujeito automático e
apareceria, às vezes, sob a forma de diferentes mercadorias, outras sob a forma de
dinheiro. Em sentido oposto à leitura que Derrida realiza de Marx, o valor de uso não se
encontra fora da tal dinâmica, mas é essencial à mesma; paralelamente, a tecnologia é
moldada pelo valor (não se situando, como crê o marxismo tradicional, fora das relações
sociais do capitalismo).
Esta dinâmica constitui uma das principais características da dominação abstrata
do capital. Não é simplesmente uma sucessão linear de presentes, mas trata-se de uma
complexa dialética entre duas formas de tempo constituído. Supõe a acumulação do
passado de modo tal que implica a permanente reconstituição das principais
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características do capitalismo enquanto presente, aparentemente necessário, marcado


pela dominação do tempo abstrato, homogêneo e constante, do tempo como presente -
inclusive quando tal dinâmica é precipitada por outro tipo de tempo, concreto,
heterogêneo e direcional. Este último movimento do tempo é o "tempo histórico". No
entanto, este tempo não é um contra-princípio do tempo capitalista (como diria Lukács),
mas outro tipo de tempo constituído, essencial também ao capital que, em sua interação
com o tempo abstrato, constitui a dinâmica mundial, não-linear, da sociedade
capitalista. Tanto o tempo histórico como o tempo abstrato se constituem como formas
de dominação.
Assim, dentro do marco desta análise da temporalidade e do capitalismo, o
presente contínuo nunca é simplesmente presente. Ao contrário, enquanto "cadeia de
presentes" contínua, está constituído por uma complexa interação entre aquilo que
Derrida denomina espectralidade e o presente. Por um lado, esta dinâmica implica a
acumulação de tempo passado que domina o vivo por meio da reconstituição
permanente do tempo presente. A famosa frase de Marx de O Dezoito de Brumário
deveria ser entendida precisamente neste sentido: que a tradição de todas as gerações
mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. Marx não está simplesmente
renegando o passado. Ao contrário, o que Derrida critica como a dominação do presente,
Marx o analisa em termos de dominação dos vivos pelo passado, de modo tal que se
reconstitui o presente como necessidade. Por outro lado, segundo esta leitura, é,
precisamente a acumulação mesma de tempo passado a que debilita a necessidade do
presente e torna possível um futuro distinto. Aqui o futuro se torna possível graças à
apropriação do passado.
Esta crítica não se levanta sobre o espaço que separa os ideais da realidade, mas
sobre a crescente tensão temporal - gerada pela acumulação de tempo passado
objetivado - existente entre o que é e o que poderia ser. Seu ponto de vista não é - como
pensa Derrida - o do corpo vivo, a presença, o trabalho, a produção, mas o da
possibilidade emergente de um futuro radicalmente diferente. Tal futuro não estaria
baseado na realização do presente - da história e do trabalho proletário - mas na sua
abolição como expressão da dominação abstrata.
Este enfoque historiciza a história. Mais ainda, o faz de maneira que evita o infeliz
dualismo, reintroduzido por Derrida, entre história (necessidade) e acontecimento
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(contingência). Esta leitura sugere, também, que a concepção de espectralidade de


Derrida não se encontra suficientemente diferenciada: a reconstituição do presente, bem
como seu enfraquecimento, são, ambos, aspectos do que Derrida denomina
"espectralidade". Mais ainda, este padrão dinâmico não-linear se vê obscurecido por
outra dimensão daquilo que poderia denominar-se "o espectral": as diferentes formas de
fetichismo, por meio das quais a dimensão material da mediação social esconde sua
dimensão social historicamente específica. Estas importantes distinções, no entanto,
não podem ser compreendidas a partir da categoria de espectralidade, a partir de uma
exposição como a de Derrida que, simplesmente, opõe a espectralidade à presença viva.
As fraquezas do conceito de espectralidade estão relacionadas com o marxismo
contra o qual Derrida está reagindo. Quando Derrida faz referência aos efeitos espectrais
da mercadoria, pressupõe que, para Marx, o trabalho concreto e os valores de uso são,
de certo modo, independentes, e estão para além da forma-valor e da forma-mercadoria,
podendo ser compreendidos de maneira adequada pelo bom sentido fenomenológico52.
Tal compreensão, que realiza uma separação radical entre a dimensão material
(entendida em termos de produção e mercado) e a dimensão social (entendida em
termos de mercado e propriedade privada), se encontra no centro do marxismo
tradicional e não foi tampouco questionada por Althusser. Esta compreensão não
fornece a base para uma crítica da produção moderna e tende a interpretar a noção de
uma dinâmica histórica de modo afirmativo, em lugar de fazê-lo criticamente, como um
modo de dominação abstrato.
Ao opor seu enfoque a este tipo de marxismo - que se presta ao mesmo tipo de
crítica que Derrida fez da fenomenologia - Derrida desenvolve uma concepção de
espectralidade que não é completamente adequada à problemática que trata. Formula
uma teoria da "fantologia" [hauntology] para debilitar o que considera uma ontologia
do ser e do tempo. Em termos da leitura que esbocei: a tentativa de Derrida é análoga a
de Marx e, ironicamente, muito menos potente em termos históricos.
O enfoque da crítica da economia política que esbocei, em grande medida, está
em consonância com a exposição de Derrida. Difere no fato de que se determina histórica
e socialmente e vai para além das oposições que subjazem - em que pese que trate de

52 Ibidem, p. 149-156.

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desconstruí-las - o enfoque de Derrida. Na medida em que fornece a base para uma


análise da dinâmica do capitalismo, tal enfoque poderia servir como ponto de partida
para uma análise das contínuas transformações históricas do mundo contemporâneo,
bem como do surgimento, nas últimas décadas, de uma nova configuração de
capitalismo. Além disso, encorparia a concepção de um futuro muito diferente. Isto é,
como no enfoque de Derrida, tal teoria crítica aponta para um futuro que rompe
radicalmente com a dominação do tempo abstrato homogêneo. Não obstante, diferente
do enfoque de Derrida, tal teoria proporciona a base para uma rigorosa análise social e
histórica do mundo contemporâneo, e o faz de modo que permite uma concepção de um
futuro radicalmente diferente como uma possibilidade historicamente determinada.
Desde a posição vantajosa da tal teoria crítica pode-se observar que as virtudes
da exposição de Derrida constituem, também, seus pontos fracos. Se, como afirma
Habermas, Heidegger colocou novamente a filosofia na posição dominante da que havia
sido deslocada pelas críticas (sociais e históricas) dos jovens hegelianos53, os limites da
tentativa pós-heideggeriana de Derrida em derrubar a filosofia ficam patentes na sua
tentativa de enfrentar criticamente a nova ordem mundial e reivindicar a herança do
espírito de Marx, isto é, ficam patentes em seu esforço por abordar problemas sociais e
históricos.
Sem pretendê-lo, este esforço demonstra que o trabalho de desconstrução
imanente das narrativas filosóficas, no intuito de debilitar determinadas
autocompreensões culturais reificadas permanece, em última instância, presa nos
limites do discurso filosófico. Apesar do conceito de espectralidade de Derrida possuir
uma importante força crítica dirigida contra qualquer ordem dada e a qualquer noção
de um fim da história, tal conceito parece muito indeterminado, social e historicamente,
como para servir de base para uma análise crítica dos desenvolvimentos históricos
contemporâneos. O conceito de espectralidade, portanto, ilumina o que deveria ser uma
dimensão importante de uma crítica social atual, mas não é completamente pertinente
como conceito central de tal crítica, reforçando, assim, a necessidade de uma teoria
social crítica contemporânea.
[Tradução de Sergio Ricardo Alves de Oliveira.]

53 Habermas, Jürgen. The Philosophical Discourse of Modernity. Trad. Frederick Lawrence. Cambridge,
Mass., 1987, p. 131.

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CONSTITUIÇÃO E DESTITUIÇÃO PELO TRABALHO


Observações sobre o tempo e a liberdade à margem da obra de Moishe Postone

Cláudio R. Duarte

“A trajetória do desenvolvimento capitalista, de acordo com a


análise de Marx, implica uma possível negação histórica
determinada que permitiria a constituição de outra forma de
mediação social não ‘objetiva’, uma forma diferente de
crescimento e um modo de produção tecnologicamente
avançado não mais moldado pelos imperativos do valor.”

“Libertar as forças produtivas das compulsões impostas pela


forma de riqueza baseada no tempo de trabalho imediato exige
libertar a vida humana da produção. (...) fazer a distinção entre
o tempo de trabalho necessário para o capitalismo e o que seria
necessário para a sociedade não fosse pelo capitalismo”.

(Moishe Postone, Tempo, trabalho e dominação social, 1993).

O problema da alienação e do fetichismo ganha centralidade numa certa vertente


do marxismo do século XX, principalmente a partir do Lukács de História e consciência
de classe (1923). Escrevendo em fins dos anos 1960 e início dos 70 (com desdobramentos
até os dias atuais), Moishe Postone herda e desenvolve essa temática a partir da
experiência do século XX, principalmente em sua obra Time, Labor, and Social
Domination1. De certo modo, quem inicia desse ponto tem a vantagem do
distanciamento histórico e a possibilidade da reflexão sobre a reflexão acumulada por
críticos anteriores (além de comentadores de Hegel e de Marx, como se sabe, há um
exército de comentadores dos quais deveríamos destacar, além de Lukács: Isaac Rubin,
os frankfurtianos como Adorno, Marcuse e Sohn-Rethel, Lefebvre, Debord, Althusser,

1 POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social. (Uma reinterpretação da teoria crítica de
Marx). São Paulo: Boitempo, 2014. As referências que seguem serão dadas no corpo do texto sob a
abreviatura: TTDS, seguido do número da página. Noutro ensaio, tentei oferecer uma resenha crítica do
livro. DUARTE, Cláudio R. “A potência do abstrato. Resenha com questões para o livro de Moishe
Postone”. Sinal de menos, n. 11, vol. 2, 2015.

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Rosdolsky, Coletti, Backhaus, Reichelt, Ollman e Norman Geras). Pois a centralidade


desse problema relaciona-se à determinação das formas de temporalidade do
desenvolvimento do capital. Postone pode partir da ideia estabelecida de que o
capitalismo se consolida mundialmente como um sistema que, mesmo enfrentando
crises profundas, demonstrou ter um enorme poder de reprodução de suas estruturas de
socialização alienadas e fetichizadas, embora não nada tenham de divino ou
sobrenatural. Daí a contradição desse mundo ao mesmo tempo plenamente
desencantado e reencantado pelo fetichismo, plenamente “racional” (e mesmo
“planejado” ao nível do Estado e das grandes empresas) e ainda assim totalmente
incontrolável e irracional quando considerado em seus resultados sistêmicos. Assim, a
pergunta fundamental de Postone, seguindo a tradição da Teoria Crítica, será: como esse
sistema se reproduz no tempo? Qual será a relação do trabalho com a alienação, o
fetichismo e a dominação social moderna? (Pressupondo-se, está claro, que há vários
outros mecanismos de reprodução do sistema tais como o direito, a administração
estatal, o crédito e a política monetária, os discursos ideológicos e os sistemas de
integração social e cultural, no limite, todo o aparato militar).

O conceito de alienação (pelo qual estamos traduzindo o termo alemão


“Entfremdung”) surge, como se sabe, no interior do hegelianismo e seus derivados. Em
Marx, ele ganha rapidamente a centralidade quando se trata de pensar o homem, o
trabalho e a história, de início por meio do conceito de “trabalho alienado” 2. No entanto,

2 Nota sobre Hegel e a alienação no Marx dos Manuscritos econômico-filosóficos (São Paulo: Boitempo,
2004). A alienação é um tema que, na Fenomenologia do espírito, de Hegel, vinha embutido
nebulosamente na chamada dialética do senhor e do escravo (dialética do reconhecimento), no capítulo
da consciência de si e, principalmente, no capítulo da alienação da Cultura. Em alguns dos pontos
centrais da crítica do jovem Marx a Hegel (sem querer aqui esgotar essa leitura), sabemos que ele busca
tirar as consequências de seu Idealismo: a) em lugar do Homem sensível, ativo, finito, Hegel coloca a
atividade da consciência e do espírito, que se objetiva, se duplica e se aliena nas formas de consciência,
cultura e sociedade históricas, retornando dessa alienação no interior da consciência filosófica, que
expressaria a reconciliação ao nível do Saber Absoluto. A supressão da alienação apareceria para Hegel
como um ato abstrato, puramente subjetivo (um ato de “reflexão” ou “rememoração” da experiência
alienada etc.), que restabeleceria o infinito do Espírito, a teologia etc., a positividade da empiria existente
como falsa positividade, como pura mistificação e acomodação com a mentira (ibid., p. 122 e 130); b) a
partir dessa lógica especulativa e formalista (a “coisa/causa da lógica” em lugar da “lógica da coisa”), se
segue que toda objetivação do trabalho – do homem como “sujeito pressuposto” (Idem, ibidem: 118) –
aparece mistificada como trabalho espiritual ou atividade da Ideia e não do homem/trabalho (alienado)
enquanto tal. O sujeito real do mundo real torna-se mero “predicado” do Espírito. Nesse sentido, Hegel
assumiria o ponto de vista da economia política, mas o suspenderia como objeto, num ato de puro
pensamento ou da razão especulativa (ib.: 133). Desse modo, a partir do pressuposto da identidade de
sujeito-objeto, toda objetivação apareceria como alienação (ib.: 125) – mas logo também, como

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como objeto da crítica – estritamente ligado às questões da dialética – este modificou-


se nas mãos de Marx assim que este mergulhou nas determinações da economia política
nos anos 1850, principalmente após os estudos recolhidos nos Grundrisse. A diferença
existente nesse percurso (que é descontinuidade numa continuidade, e não de uma
“ruptura” total), que divide o Marx da juventude, da transição e da maturidade, interessa
menos para Postone do que determinar a especificidade do conceito de trabalho
abstrato no último Marx.

Alienação como constituição capitalista de uma realidade invertida

No marxismo que toma a alienação como noção fundamental é comum tomar o


rumo de uma generalização dos elementos de seu objeto. Via de regra deriva-se para
uma espécie de “teoria geral do trabalho” como modelo de toda a práxis ou mesmo de
toda a atividade humana. Trata-se sempre de “fundar” o marxismo ou o “materialismo
histórico e dialético” buscando firmar alguns princípios epistemológicos, metodológicos
ou ontológicos fundamentais. A partir disso, por exemplo, pode-se ler a história como a
história da alienação do homem como sujeito, ou realizar uma “teoria geral das práticas
sociais” como um capítulo complementar à história das lutas de classes. Como se toda
análise de um sistema econômico complexamente mediado como o capitalista tivesse de
partir do modelo antropológico reduzido de sujeito e objeto, ou homem e natureza, em
que a relação de produção fundamental fosse um simples resultado dessa troca
metabólica mais simples e direta, concebida como primária, fundamental e

apontado, como uma desalienação garantida no nível da verdade do Espírito – com o que a própria
objetividade seria facilmente suprassumida (ib.: 128), pois o homem real, o objeto real etc. valeriam aqui
apenas como “objeto evanescente”, “uma nulidade” (ib.: 129), em suma, figura exteriorizada e abstrata
da consciência. Assim, o mundo teria uma “essência não-objetiva, espiritualista” (ibid: 125) – embora
paradoxalmente o “objeto” permaneça subsistindo na efetividade. Hegel manejaria as noções de
Entfremdung e Aufhebung de modo escandalosamente idealista. Note-se como este retrato de Hegel
quase como um idealista subjetivo (ao modo de Kant, Fichte, mesmo com toques da dialética da ironia
de Schlegel) é, no mínimo, controvertível. Para um bom comentador dessa questão da diferença entre o
Marx da juventude e o da maturidade, para além do mero continuísmo, ver a leitura de: FAUSTO, Ruy.
Marx: lógica e política, tomo I. São Paulo: Brasiliense, 1983; como aqui: “Vemos que [o jovem] Marx
critica Hegel porque este supõe a existência de um sujeito autônomo de que os indivíduos são portadores.
O que, guardadas outras diferenças, ele mesmo suporia mais tarde, ao escrever O Capital. Analisada
mais de perto, a Critica do Direito do Estado de Hegel aparece assim não (ou não só) como a crítica do
formalismo dialético, mas como a crítica da própria dialética. Crítica do pensamento que estabelece a
posição de abstrações reais que se tomam autônomas” (ib.: 243).

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prevalecente, e não como um pressuposto material de uma análise complexa de relações


sociais essenciais. O “trabalho humano”, concebido de maneira trans-histórica como
“fundamento”, sempre partiria de um sujeito que visa apropriar-se da natureza para
produzir objetos, previamente concebidos como fins, que servirão à sua autossatisfação.
Aqui um sujeito unitário (tanto faz se é ou não é considerado em relação social com
outros sujeitos) põe em ação um projeto intencional no mundo, articulando teleologia e
causalidade e coordenando meios e fins de modo a criar valores de uso, e por meio disso
a sociedade e um mundo humanizado. No trabalho, o homem se objetiva, mas retorna
dessa alienação, real ou potencialmente, através da apropriação e da subjetivação do
resultado de “sua” produção. Desse ponto de vista humanista e antropológico, a
alienação viria como que de fora do ato produtivo – do roubo ou da coação da
propriedade privada, que é resultado do trabalho humano alienado, e que desde o
surgimento das sociedades de classes continuaria a “negar” o homem como o verdadeiro
fundamento e sujeito do processo social. A rigor, a alienação não implica aqui ainda uma
exteriorização de relações sociais determinadas que constitui e inverte sujeito e objeto.
Referimo-nos à inversão e à autonomização reais que separam na modernidade a
realidade social em esferas relativamente independentes (economia, política, cultura
etc.) e submetem o trabalho ao capital, convertendo as forças produtivas em forças
produtivas do capital como um fim em si mesmo. A alienação aqui implica apenas uma
espécie de “estranhamento” ou “bloqueio do reconhecimento” da unidade do sujeito
humano coletivo já posto (mais do que apenas pressuposto) no processo social. Essa
crítica visa menos o trabalho alienado e a função que este exerce no capitalismo como
forma específica de mediação social que uma crítica da divisão do trabalho e da
distribuição do produto social. Tal é o pano de fundo do debate em que Postone se insere,
tendo à sua frente os resultados históricos megacomplexos do capitalismo pós-liberal e
do socialismo realmente existente.

Tal leitura baseada no jovem Marx tem a sua coerência e sua força prática, e foi
sem dúvida sempre muito produtiva para se pensar a história, moldando as versões
antropológicas, fenomenológicas, historicistas ou ontológicas do marxismo 3. Mas ela

3 Aqui, poderíamos citar uma plêiade de marxismos que vão do jovem Lukács e do jovem Marcuse
passando por Korsch, Gramsci e Lefebvre até Sartre, Thompson e o último Lukács.

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tem também o seu preço, caracterizando o que Postone denomina como “marxismo
tradicional” ou “marxismo ricardiano”. No prefácio da edição brasileira de sua obra, o
autor aponta o que precisaria ser invertido em relação a esta abordagem:

“No coração dessa reinterpretação está uma inversão fundamental do sentido e


da importância da marxiana categoria-chave do trabalho. Enquanto nas
interpretações marxistas tradicionais o trabalho constitui o ponto de vista da
crítica de Marx à modernidade capitalista e a base de uma possível ordem social
pós-capitalista, na interpretação desenvolvida aqui, o trabalho constitui o objeto
fundamental da crítica de Marx” (TTDS, 9).

**

Os primeiros a apontar uma parte destes problemas pertenceram ao círculo


francês criado em torno de Louis Althusser, que descentrando o “homem” e o
“antropologismo” do jovem Marx colocava no centro da análise uma ideia de estrutura
como totalidade “pensada” – fruto direto da epistemologia estruturalista – composta
basicamente pelas relações de produção e as forças produtivas, “completadas”, por assim
dizer, pelas superestruturas jurídicas e ideológicas, materialmente concretizadas através
dos “aparatos ideológicos do Estado”. Multiplamente determinado (ou
“sobredeterminado”), o todo se reparte em instâncias semiautônomas e sem a prioridade
de um centro (ou de uma “totalidade expressiva” e “homogênea”, como falsamente
atribuída a Hegel), embora a economia apareça como dominante “em última instância”.
O althusserianismo visava deslocar a economicismo do velho marxismo, investindo o
entendimento analítico na separação dessas instâncias, bem como nos modos de sua
“articulação” singular em cada formação social. Resta saber o que fazer com a ideia
marxiana da centralidade da forma valor, da abstração real, do tempo de trabalho
abstrato e homogêneo e suas contradições objetivas. Na leitura althusseriana, o modo de
produção sai relativamente estabilizado como um “processo sem sujeito”, em que o
ponto de crise ou de “colapso” das estruturas fundamentais da valorização, salvo melhor
juízo, passa a ser inexistente ou um tanto inconcebível e enigmático: nem propriamente
interno, nem externo, girando em falso ou livre de um centro dinâmico estruturante,
sem que se deixe de lado a análise dos agentes, das classes e das lutas de classes, as

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configurações históricas do Estado e das ideologias4. Muito pelo contrário, como o


processo de síntese social através do trabalho e da troca (cernes da “abstração real” que
funda os laços sociais capitalistas) não são propriamente concebidos ao modo dialético
de Marx, morre-se no meio do caminho da crítica da totalidade efetiva (erigida a partir
da forma-valor), sem poder “articular” o todo como sujeito, isto é, como processo social
impessoal e quase objetivo (isto é, constituído por práticas sociais difusas) que repõe
dinamicamente seus próprios pressupostos (como diria Marx seguido por Postone,
TTDS, 345-6). Isto é, sem poder determinar como esse fundamento-sujeito se constitui,
se transforma e se corrompe no tempo histórico da acumulação, determinando fases,
padrões ou regimes de acumulação diferenciados, bem como lutas de classe nacionais e
internacionais específicas, em que a posição de “suporte” dos agentes é constitutiva de
sua própria ação imanente ou transcendente. A questão da alienação e do fetichismo,
aparentemente recusada como mero moralismo, não é dissolvida nem adequadamente
solucionada, mas formalmente metamorfoseada através da noção de história como um
“processo sem Sujeito e sem Fim(ns)”, cujo “motor” seria menos a “instância econômica”
que a... “luta de classes”5. Com o que o autor permanece na linha de fuga do marxismo
tradicional. Assim, apesar da semelhança aparente, Postone não é de forma alguma mais
um althusseriano na praça requentando a marmita.

Do trabalho como mediação social ao trabalho como fetiche

Em Postone, a análise também não parte do sujeito ou do trabalho antropológico,


nem de um objeto “puro”, construído pela “Ciência”, mas de uma mediação histórico-
social específica: o trabalho abstrato como “princípio de síntese social do capitalismo”
(TTDS, 128-9, 206-7). De saída, a operação inicial da exposição trata de suspender
(aufheben) as pressuposições antropológicas e materiais concretas, pondo-as como

4 ALTHUSSER, Louis et alli. Lire Le Capital, T. I e II. Paris: François Maspero,1966/67; Idem, “Idéologie
et appareils idéologiques d’État” [1970] in:__. Positions. Paris: Éd. Sociales, 1982; POULANTZAS,
Nicos. Les clases sociales dans le capitalisme aujourd’hui. Paris: Seuil, 1974.
5 “L’histoire est bien un ‘procès sans Sujet ni Fin(s)’, dont les circonstances données, où ‘les hommes’

agissent en sujets sous la détermination de rapports sociaux, sont le produit de la lutte de classe.
L’histoire n’a donc pas, au sens philosophique du terme, un Sujet, mais un moteur: la lutte des classes.”
(ALTHUSSER, Louis. Réponse à John Lewis. Paris: Maspero, 1973, p. 76).

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manifestação empírica esse princípio abstrato. O que significa dizer que seu ponto de
partida é a posição dialética do conceito de trabalho abstrato no modo de produção
capitalista, pressupondo as formas mais simples e abstratas em que ele se cristaliza
(mercadoria e valor)6. O que não se confunde com uma abstração mental, dita
“conceitual” ou “razoável”. “Na análise de Marx, a categoria de trabalho abstrato exprime
esse processo social real de abstração; ele não se baseia simplesmente em um processo
conceitual de abstração” (TTDS, 178). Noutros termos, uma abstração concreta que
demanda uma apreensão “dialética”, unificando o universal e o particular. Dialética
então no sentido rigoroso de mediação de essência e aparência, ou de posição e
pressuposição entre um certo “sujeito” e sua “substância” (aqui as referências à Lógica
de Hegel e à chamada “Nova Leitura de Marx”, em ascensão nos anos 70, são essenciais
para Postone). Disso emerge um exame demorado do “núcleo duro” das categorias,
segundo sua ordem de apresentação dialética em O Capital (formas da mercadoria e do
valor, abstração real, troca e trabalho abstrato, mais-valor, etc.). Penetrando nesse
núcleo, encontramos seu conceito-chave de trabalho como mediação social. A ideia
parece banal, uma mera ferramenta de sociologia funcionalista, mas logo se percebe a
determinação rigorosa de um conceito dialético, pressuposto o tempo todo na obra de
Marx, mas praticamente novo para os ouvidos tradicionais: “O que torna geral o trabalho
no capitalismo não é simplesmente o truísmo de ele ser o denominador comum de todos
os vários tipos específicos de trabalho”, ou seja, não é seu aspecto concreto e seu papel
histórico no metabolismo do homem com a natureza, mas antes é

6 Apenas para lembrar um texto de Marx pouco refletido pelo marxismo tradicional, citemos: “Parece ser
correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo, e, portanto, no caso da economia,
por exemplo, começarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção
como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é
uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por
sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho
assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p. ex., não é nada
sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc.” (MARX, Karl. Grundrisse der
Kritik der Politischen Ökonomie, MEW 42. Berlin: Dietz, 1983, p. 34-5). Assim, o trabalho deveria ser
entendido como uma categoria posta efetivamente apenas na modernidade: “O trabalho parece ser uma
categoria totalmente simples. Também a representação do trabalho nesse sentido geral – como trabalho
em geral – é muito antiga. Porém, compreendido economicamente nessa simplicidade, o ‘trabalho’ é
uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples ‘abstração’. (...) Aqui pois [nos
EUA], a abstração da categoria ‘trabalho’, ‘trabalho em geral’, trabalho sans phrase, ponto de partida da
economia moderna, tornou-se pela primeira vez uma verdade prática.” (ibid., p. 38-9).

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“a função social do trabalho que o torna geral. Como prática que constitui uma
mediação social, o trabalho é trabalho em geral. Ademais, estamos tratando com
uma sociedade em que a forma-mercadoria é generalizada e, portanto,
socialmente determinante; o trabalho de todos os produtores serve como meio
pelo qual é possível obter os produtos de outros. Consequentemente, ‘trabalho em
geral’ serve de uma forma socialmente geral como atividade mediadora” (TTDS,
178).

Essa atividade mediadora exercida pelo trabalho, aparentemente “livre” e


“intencional”, constitui a dominação social abstrata e impessoal específica do
capitalismo. Vale ressaltar, uma “dominação abstrata e estrutural - que abrange e se
estende além da dominação de classe” (TTDS, 46). Por contraposição, as relações das
formações não-capitalistas podem ser lidas como mediações sociais “abertas”
(religiosas, políticas, culturais etc.), não puramente “objetivas”, “instrumentais” e
“calculáveis”, embora não menos passíveis de autonomização e encantamento face aos
agentes. Tais relações tradicionais foram suplantadas pelo valor-trabalho na sociedade
moderna. Postone observa que:

“O trabalho nas sociedades não-capitalistas não constitui a sociedade, pois não


possui o caráter sintético peculiar que marca o trabalho determinado pela forma-
mercadoria. Apesar de social, ele não constitui relações sociais, mas é constituído
por elas (...) Se, em sociedades tradicionais, as relações sociais atribuem
significado e significância ao trabalho, no capitalismo o trabalho atribui a si
próprio e às relações sociais um caráter ‘objetivo’” (TTDS, 200).

A alienação põe-se aqui integralmente porque não ocorre só no âmbito do


comércio e da troca (que certamente existiram no pré-capitalismo), mas passa a operar
no coração da produção enquanto produção de capital. Aqui, não temos mais que
personificações e apêndices do capital – embora como “sujeitos coletivos” eles lutem
entre si por frações do valor criado. Cada objetivação, mediada pela forma-mercadoria,
é paga em novas cisões e alienações, e não apenas ganho em termos de “apropriação” ou
“subjetivação”. Nesse sentido, observa o autor (2014: 187), aqui “objetivação é de fato
alienação – se o que o trabalho objetiva são as relações sociais”7 do capitalismo – pois

7 Completamente de acordo com Marx: “Na economia burguesa — e na época de produção que lhe
corresponde — esta plena elaboração da interioridade humana aparece como um completo
esvaziamento, esta objetivação universal (universelle Vergegenstandlichung) como alienação total
(totale Entfremdung) (...)” (MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie, op. cit., p.
396).

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desde a base do processo real temos um trabalho alienado que funciona como
objetivação das finalidades do Capital por meio de seus suportes.

Em resumo, através dessa distinção de tipos de mediação social (“quase-objetiva”,


ou seja, “objetivada”, e “aberta”), Postone refere-se à peculiaridade dos imperativos
sistêmicos do capital, que destinam esta sociedade à acumulação de dinheiro, ampliando
tanto quanto possível o domínio da natureza e a carga de mais-trabalho objetivado. Um
meio aqui (trabalho abstrato) inverte-se em fim em si mesmo (guiado pela lógica do
capital). Trabalho vivo torna-se mera expressão de uma força abstrata, “suporte” do
Capital. E o trabalho aparece não só como “sujeito”, mas como objeto fundamental do
capital, como sua substância vital. Assim, pode-se compreender a alienação como um
processo de “inversão real”: “considerado em termos das determinações iniciais do
processo de trabalho, o trabalho funciona como uma força ativa produtiva que
transforma a matéria, a fim de produzir riqueza material; no entanto, ele serve como a
"verdadeira” matéria-prima, como o objeto do processo de valorização. Na análise de
Marx, essa inversão é real e não metafórica e ocorre em todas as formas de produção
capitalista” (TTDS, 389). Esta inversão que põe o trabalho no centro da socialização
moderna é então fetichizada e consagrada como “natural” ou “essencial”, de uma
maneira trans-histórica. A inversão real é como que reinvertida e ocultada quando o
“valor parece ser criado pelo trabalho como atividade produtiva [em geral] – trabalho na
medida em que produz bens e riqueza material –, e não pelo trabalho como atividade de
mediação social” (TTDS, 197). As relações coisificadas entre proprietários, mediadas
pelo valor (em que se oculta o papel mediador do trabalho abstrato), aparecem então
como “formas trans-históricas válidas e ontologicamente fundamentadas. A aparência
do caráter de mediação do trabalho no capitalismo como trabalho fisiológico é o núcleo
fundamental do fetiche do capitalismo” (TTDS: 198). Ou, como o próprio Marx
determinara: “Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias provém (...) do caráter
social peculiar do trabalho que produz mercadorias”. E por isso, aos produtores
“aparecem as relações entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como
relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como

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relações coisificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas” 8. Com o que
“produção social” e “trabalho humano abstrato” (que põe valor) são falsamente
identificados. O valor e o trabalho sans phrase são assim divinizados como meios
“neutros”, “naturais” ou “essenciais” de toda e qualquer forma de produção e
socialização. Se a alienação é um processo complexo de autonomizações e inversões reais
de determinadas relações sociais, que se tornam necessariamente coisificadas nesta
sociedade histórica, o fetichismo seria a sua completa naturalização e ontologização.

Alienação como destituição temporal da lógica da acumulação

“O sonho implícito pela forma capital é de total ausência de limites, uma


fantasia de liberdade como a total libertação da matéria e da natureza.
Esse ‘sonho do capital’ está se tornando o pesadelo daqueles que ele se
esforça por se libertar – o planeta e seus habitantes.”

(Postone, Tempo, trabalho e dominação social).

Ora, como trabalho abstrato-concreto, tal categoria é duplamente determinada


pelo tempo: um tempo abstrato (da produtividade social do trabalho) e um tempo
histórico coligado (TTDS: 339), em que as determinações sociais abstratas do valor se
concretizam socialmente e têm de ser postas à prova. As duas temporalidades divergem,
mas estão numa relação de determinação recíproca. Postone centra-se, assim, na análise
dos movimentos contraditórios do trabalho subsumido formal e realmente ao capital ao
longo da história. De um ponto de vista imanente, o capital constituído passa a ter um
poder constituinte e quase autônomo sobre uma “totalidade substancial” de forças
produtivas, relações sociais e formações ideológicas complexamente mediadas,
aparecendo então como o “sujeito predominante” ou o “sujeito automático” do processo
social9. Como unidade bifronte de uma dimensão abstrata e outra concreta, o trabalho
concreto, aparentemente um espaço puro e imediato de intenções e expressões do
homem, converte-se em manifestação de uma dominação abstrata dos homens pelo
próprio trabalho, em que o capital se acumula, mas também se processa e se dialetiza.

8 MARX, Karl. O Capital. Crítica da economia política. Livro I, tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p.
71 (trad. modificada).
9 Idem, Ibidem, p. 126.

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Uma “dialética do trabalho e do tempo abstrato”, ou seja, uma “dialética de


transformação e reconstituição” da medida da produtividade e da “substância” histórica
do Capital (TTDS, 333).
Contudo, essa substância não é eterna; ao contrário, ela é duplamente mediada,
como vimos, pelo tempo social abstrato da valorização e pelo tempo concreto da história
social, em que se inclui o saber técnico-científico socialmente acumulado. Trata-se de
uma substância que tenderia logicamente, então, a se esgotar e a se tornar “anacrônica”
(TTDS, 23, 85, 443)10. Noutros termos, a forma-valor seria cada vez mais reduzida à pura
forma, uma espécie de invólucro ou recipiente social cada vez mais esvaziado de
conteúdo, à medida que o capital – não apenas “sujeito”, mas “contradição em
processo”11 – impõe a mecanização e a automatização da produção, aumentando o nível
global da produtividade social e expulsando maciçamente trabalho vivo (“realmente
produtivo”) do processo de criação da riqueza. O mesmo trabalho que constitui o
funcionamento desta sociedade tende não só à sua perpétua “reconstituição” fetichista,
mas à sua potencial destituição histórica. Isso que se expressa superficialmente, como
se sabe, na lei tendencial da queda da taxa de lucro (TTDS, 360): esta é a contradição
efetiva, isto é, como aparece periodicamente para seus agentes. Mas a contradição
estrutural básica no capitalismo, solúvel apenas através de um movimento prático de
negação determinada, como afirma Postone (TTDS: 268),

“é baseada no fato de a forma das relações sociais e da riqueza, bem como a forma
concreta do modo de produção, continuarem determinadas pelo valor, mesmo
quando se tornam anacrônicas do ponto de vista do potencial de criação de
riqueza material do sistema. Em outras palavras, a ordem social mediada pela
forma-mercadoria gera, de um lado, a possibilidade histórica de sua própria
negação determinada - uma forma diferente de mediação social, outra forma de
riqueza, e um novo modo de produção não mais baseado no trabalho humano
direto fragmentado como parte integral do processo de produção. Por outro lado,
essa possibilidade não é automaticamente realizada, a ordem social permanece
baseada no valor”.

10 Cf. o artigo de POSTONE, “Crise atual e anacronismo do valor”, nesta edição de Sinal de Menos.
11 MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie, op. cit., p. 601.

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A partir das reflexões dos Grundrisse e de O capital (TTDS, 36-45, 433-5) sobre
a contradição incurável do valor, Postone equaciona a crítica marxista como uma crítica
antiprodutivista fundamental:

“O potencial da dimensão do valor de uso, não mais limitado e moldado pela


dimensão do valor, poderia ser usado reflexivamente para transformar a forma
material da produção. Como resultado, grande parte do trabalho que, como fonte
do valor, se tornou cada vez mais vazio e fragmentado, poderia ser abolido; tarefas
unilaterais remanescentes poderiam ser revezadas socialmente. Em outras
palavras, a análise de Marx alude que a abolição do valor permitiria uma
transformação social geral da produção que acarretaria a abolição do trabalho
proletário - por intermédio da transformação da natureza do trabalho no
capitalismo industrial, e a abolição de um sistema no qual as pessoas passam a
maior parte da vida adulta atreladas a esse trabalho – ao mesmo tempo que
conserva um alto nível de produtividade. Isso permitiria uma forma de produção
baseada diretamente na apropriação do tempo histórico” (TTDS, 421).

Em outros termos, com a superação do capitalismo, o saber técnico-científico


socialmente acumulado, o “General Intelect”, permitiria, segundo Marx, “a redução do
tempo de trabalho de toda a sociedade a um mínimo decrescente” (citado em TTDS,
434), transformando assim o que aparecia como “trabalho socialmente necessário” e
“trabalho excedente” em um “trabalho supérfluo”. Obviamente, não se trata de uma
abolição da produção em geral, ou seja, do processo metabólico de criação de riqueza,
mas da superação (Aufhebung) dessa forma de mediação coisificada. Superação, enfim,
da compulsão abstrata para a acumulação de mais-valor e mais-trabalho ad infinitum.
Aqui, permanece a necessidade trans-histórica de manutenção e mesmo de
aprofundamento do metabolismo homem-natureza. Mas esta manutenção necessita
cada vez menos de trabalho vivo imediato, ou trabalho proletário, dependendo muito
mais do tempo histórico do saber socialmente acumulado aplicado na produção de
riqueza. A superação do trabalho abstrato-concreto como mediação significa então uma
liberação relativa do tempo social e individual: “tempo disponível” ou “tempo livre” em
relação às necessidades sociais e naturais remanescentes, o tempo de um “reino da
liberdade” (TTDS, 442-4)12.

12 Para uma análise mais extensa de toda essa problemática, ver: DUARTE, Claudio R. “A superação do
trabalho em Marx – Em busca do tempo não-perdido”. Sinal de menos, nº3, 2009.

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Aqui, Postone questiona a caracterização da teoria crítica de Marx como um


humanismo “prometeico”. Aqui também se trata de superação de inversões reais, não de
uma lógica de desbloqueio, reconhecimento ou mera apropriação da riqueza abstrata
sob a forma do trabalho próprio/privado ou dos aparelhos de sua administração estatal.
Em sua conclusão, o autor desafia as leituras hegemônicas, apontando para a dialética
de constituição, transformação e destituição pelo trabalho. Seu limite lógico implicaria
na superação de um determinado paradigma de sujeito-objeto ossificado, o que significa
dizer: uma certa forma de destituição subjetiva.

“A teoria crítica de Marx tem sido frequentemente criticada como "prometeica”


como uma teoria baseada no pressuposto perigosamente utópico de que as
pessoas podem moldar o mundo como quiserem. A análise da sociedade moderna
em termos de relações sociais mediadas pelo trabalho apresentada nesta obra põe
em questão um pressuposto assumido por essas críticas - a saber, que as pessoas
moldariam o mundo à sua volta por uma questão de escolha. A análise de Marx
pode ser entendida como uma tentativa muito poderosa e sofisticada de mostrar
que, com o desenvolvimento da mercadoria como forma social total, as pessoas já
"fazem" o mundo ao seu redor. Isso indica retrospectivamente que as pessoas
também constituíram seu mundo antes; a forma pela qual as pessoas fazem o
mundo sob o capitalismo, no entanto, é muito diferente das formas anteriores de
construção social. O mundo capitalista moderno, de acordo com Marx, é
constituído pelo trabalho, e esse processo de constituição social é tal que as
pessoas são controladas por aquilo que fazem. Marx analisa o capital como forma
alienada de conhecimentos e habilidades gerais da espécie, historicamente
constituídos, e, portanto, apreende seu movimento cada vez mais destrutivo em
direção à ausência de limites como um movimento de capacidades humanas
objetivadas que se tornaram independentes do controle humano” (TTDS, 445).

Menos que um “motor” a la Althusser, a luta de classes aparece historicamente


aqui como “elemento propulsor” do desenvolvimento capitalista (TTDS, 369 e ss.),
sempre mediado, assim, pelas leis da valorização. Indeterminação do fundamento,
conflito permanente da base social, por certo – mas força propulsora da acumulação e
da distribuição do produto social, não necessariamente para além destas. Tais lutas são
um momento ativo da dinâmica social da valorização, que são tanto estruturadas pela
totalidade social como as constitui (TTDS, 372). As determinações de classe não são
simplesmente determinações posicionais “objetivas”, “mas sim determinações tanto da
objetividade como da subjetividade social” (TTDS, 373). Isso que põe finalmente em
questão a subjetividade e o imaginário desse sujeito imanente à sociedade do trabalho,

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que há séculos reificou-se como uma espécie de prolongamento do “espírito objetivo”


moderno ou mesmo como uma forma de “apriori transcendental”13, fetichizando o papel
do trabalho vivo, a condição de trabalhador produtivo e a própria teoria social como uma
metafísica do trabalho e da identidade. Contudo, é claro que, a partir dessa crítica radical
das estruturas de objetividade e subjetividade modernas, não se trata de negar
abstratamente as lutas sociais dos trabalhadores:

“As ações sociais e políticas das organizações da classe trabalhadora têm sido
historicamente importantes nos processos pelos quais os trabalhadores têm
constituído e defendido a si mesmos como uma classe dentro do capitalismo, no
desdobrar da dinâmica do trabalho assalariado-capital e, especialmente na
Europa ocidental, na democratização e humanização social da ordem capitalista.
Por mais militantes que tenham sido as ações e as formas de subjetividade
associadas à autoasserção do proletariado, contudo, elas não apontaram e não
apontam para a superação do capitalismo” (TTDS, 430).

E no entanto, o processo de destituição ou desintegração prossegue, através da


“tensão” ou “pressão de cisalhamento” que empurra a produção de valor e de riqueza
material, ou seja, as formas atuais e potenciais da sociabilidade, para lados opostos
(TTDS, 349, 404, 418, 428). Aqui, a brecha que permite a crítica dessa forma de
constituição social fetichista de sujeito e objeto. Nessa esteira, pode-se compreender a
crítica da subjetividade moderna proposta pelo autor, cujos desenvolvimentos mais

13 Aqui, Postone pressupõe certamente o debate entre Adorno e Sohn-Rethel sobre a constituição do
sujeito transcendental, como reflexão do processo de trabalho e troca mercantil, mal criticado pelo
positivismo ou pelos ontologismos: “Alfred Sohn-Rethel foi o primeiro a chamar a atenção para o fato
de que nisso, na atividade universal e necessária do espírito, se esconde incondicionadamente trabalho
social. (...) Em face dessa consciência, porém, esse conceito não representa apenas o mais abstrato, mas,
em virtude de sua potência formadora, também o mais real. (...) A universalidade transcendental não é
uma simples autoexaltação narcisista do eu, nem a hybris de sua autonomia, mas ela tem sua realidade
no domínio que se impõe e eterniza por meio do princípio de equivalência. O processo de abstração
transfigurado pela filosofia e atribuído unicamente ao sujeito cognoscente transcorre na sociedade de
troca efetiva. (...) Parodiando Heidegger, nós poderíamos interpretar sem muitos artifícios a ideia da
necessidade naquilo que é filosoficamente universal em função da necessidade de evitar a penúria, de
remediar a carência de meios de subsistência pelo trabalho organizado; com isso, porém, a mitologia
linguística heideggeriana sairia certamente de seus eixos, pois ela é uma apoteose do espírito objetivo
que desde o princípio denigre como de valor inferior a reflexão sobre o processo material que se prolonga
no espírito. (...) A unidade da consciência é moldada segundo a objetividade e tem por conseguinte seu
critério de medida na possibilidade de constituição de objetos, ela é o reflexo conceitual da reunião total
e sem falhas dos atos de produção na sociedade, atos por meio dos quais se forma efetivamente pela
primeira vez a objetividade das mercadorias, o seu "caráter objetivo': - Mais além, aquilo que o eu possui
de sólido, estável, impenetrável é mimesis da impenetrabilidade do mundo exterior para a consciência,
tal como essa impenetrabilidade é percebida pela consciência primitiva. É na onipotência intelectual do
sujeito que sua impotência real encontra seu eco” (ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003, p. 152-5).

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importantes concretizaram-se numa teoria estrutural do antissemitismo tendo em vista


o lugar “libertador” e “integrador” que o nazifascismo confere ao trabalho concreto
contrapondo-o à dimensão abstrata do trabalho e do dinheiro projetada no povo judeu
e na conspiração judeu-comunista internacional14.
Tirando de lado a hipótese de um implausível “colapso automático da sociedade
capitalista, ou a necessária emergência de formas de consciência opostas ou críticas
apontando para além da formação social existente” (TTDS, 428), Postone aponta que a
crítica social deveria orientar-se para a crítica do sujeito moderno e das necessidades
sociais naturalizadas, captando as mudanças já reveladas nas relações sociais e nas
formas de trabalho, nas formas de subjetividade e na estrutura de necessidades e afetos
atuais.
A luta de classes aparece aqui como “elemento propulsor” do sistema capitalista,
mas não necessariamente como o seu termo. De modo algum se trata de ideologia
anarquista, liberal ou antipatia academicista, como vimos. Note-se como ao recusar ao
movimento dos trabalhadores e à luta de classes existente um papel lógico necessário de
transformação e superação do sistema, ele toma distância do próprio pensamento
teórico, que jamais poderia ganhar o lugar efetivo da teoria e da práxis política efetivas,
orientadas pelo tempo histórico estratégico de curto ou médio prazo. Mas a contradição
objetiva – e a questão fundamental da dominação abstrata pelo trabalho – se impõe no
longo prazo. Nesse sentido, as lutas de classes são um caminho socialmente necessário,
erguido a partir da experiência histórica heroica de milhões de trabalhadores, por certo,
mas rumo a uma colisão anunciada pela teoria crítica de Marx, a saber: a posição da
necessidade da “autoabolição do proletariado”: “Longe de levar à realização do
proletariado, a superação do capitalismo envolve a abolição material do trabalho
proletário. A emancipação do trabalho exige a emancipação em relação ao trabalho
(alienado)” (TTDS, 50). Assim, trata-se de “defender os interesses dos trabalhadores e
ao mesmo tempo participar de sua transformação” (TTDS, 431).
Por certo, aqui Postone pensa num processo universal, muito mais amplo e
estrutural, de emancipação social – englobando não só a ação dos trabalhadores

14 POSTONE, Moishe. “Antissemitismo e nacional-socialismo”. Sinal de menos, nº8, 2012 (Trad. Nuno
Machado).

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“produtivos” (convertida numa minoria face à massa humana “improdutiva” do ponto


de vista dos atuais níveis de produtividade e dos ditames da valorização), mas todos
aqueles engajados numa luta antissistêmica (questões sociais, de gênero, “raça”,
ambientais etc.) – movimento que poria radicalmente em questão toda a ontologia do
trabalho moderno.

Destituição / reconstituição da crítica da economia política

“...uma explicação completa de como esses imperativos duais são


efetuados – isto é, como a tendência ao aumento da produção no
capitalismo é tal que, em um nível social total, o trabalho humano direto
é retido como elemento integral da produção – excederia os limites deste
livro. (...) O valor é reconstituído como um presente perpétuo, embora
tenha se movido historicamente no tempo.”
(Moishe Postone, Tempo, trabalho e dominação social).

Para terminar uma nota curta sobre o debate atual. Desse painel de questões
desenhado por Postone, emergem as controvérsias teóricas de nosso tempo, nas quais o
marxismo tradicional desponta sob a bandeira da ortodoxia e da verdadeira crítica,
coerente, responsável e voltada às lutas reais, como “arma revolucionária” enfim,
relegando Postone e a crítica do valor aos modismos intelectuais importados. Ora, estes
são os primeiros a acusarem a dificuldade de se pensar e realizar o processo de mediação
e superação, apontando seu caráter necessariamente distanciado e abstrato. Além disso,
há muito que se pensar a respeito das dinâmicas atuais do capital fictício, da acumulação
simulada de valor e reprodução estatal das relações do sistema. Para eles, “o que está em
debate é a natureza do capitalismo” (TTDS, 461), a reconstrução de uma teoria crítica
do valor e da mediação social etc., e os pressupostos histórico-sociais de uma superação
efetiva, que não se trata de adiantar ou orientar diretamente. A unidade férrea entre
teoria e práxis é deletéria; uma autonomia relativa e um distanciamento recíproco
sempre foram saudáveis para o avanço de ambos. Por outro lado, podemos verificar o
que restará em breve do chamado “marxismo tradicional” à luz desse processo de
destituição objetiva/subjetiva do trabalho vivo em curso acelerado após a consolidação
de uma Terceira ou mesmo de uma Quarta Revolução Industrial. Em vez da conservação

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da crítica imanente objetiva/subjetiva em dois planos, um que corre por trás das costas
dos envolvidos na base mesmo desse processo, outra como crítica das formas de
identidade subjetiva, a crítica anticapitalista tende a “resumir-se” cada vez mais, por
assim dizer, à crítica política “social-democrata” ou “socialista” da propriedade privada
e da distribuição dos meios, ou restringir-se à análise da exploração e do atraso do
desenvolvimento, sonhando com uma nova revolução nacional modernizadora. Seja
como for, o consenso em torno de “crescimento, emprego e renda” está estabelecido. A
estratégia ofensiva geralmente conflui com a defensiva por necessidade lógica, pois nem
sequer se lembra, ou quer se lembrar, desse outro Marx da crítica da alienação pelo
trabalho. A afirmação abstrata do “proletariado” na luta dissolve e reverte
“teoricamente” as contradições sistêmicas em lutas empíricas por direitos, gestão do
dinheiro público e mais pleno emprego, que certamente expandem o capital e dão
sobrevida a um sistema anacrônico (TTDS, 415-24). Ao soterrar a crítica teórica e o
tempo longo do desenvolvimento das contradições sistêmicas, ao subordinar toda teoria
à prática política “realista” e “antimessiânica”, o marxismo apenas garante sua
indistinção dos grupos desse velho consenso conformista. Contudo, em vez da lógica da
antinomia e da exclusão das perspectivas, não se trata antes de sustentar a diferença e a
contradição até que esta possa se resolver? A crítica deve incidir simultaneamente sobre
o processo de constituição/destituição em curso, que abre as condições para libertar-se
do trabalho livre, abstrato – e encerrar a pré-história humana.

Numa de suas conclusões mais luminosas, voluntariamente generosa e inocente,


plena do espírito dialético que retorna à posição de seus próprios pressupostos, Postone
interroga se

“O capital não é a forma mistificada de forças que ‘na verdade’ pertencem aos
trabalhadores; ele é a forma real de existência das ‘capacidades da espécie’, não
mais dos trabalhadores apenas, que são constituídas historicamente sob forma
alienada como forças sociais gerais” (TTDS, 406).

[São Paulo, 2018-2019]

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

A CATEGORIA TRABALHO ABSTRATO E


SEU DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO1

Ernst Lohoff

Observações metodológicas preliminares

“Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto
efetivo, e, portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela
população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um
todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A
população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das
quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se
desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado,
capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p. ex.,
não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço

1 Publicado na revista Marxistische Kritik, n. 1, 1986 com o título Die Kategorie der abstrakten Arbeit und
ihre historische Entfaltung. NOTA DO TRADUTOR: Surgida em 1986, a revista Marxistische Kritik,
organizada em torno de Robert Kurz e do IMK [Initiative Marxistische Kritik] foi a precursora da revista
Krisis. Os pontos de vista apresentados na antiga revista eram ainda marcados decisivamente pelo
pensamento marxista tradicional, como a definição ontológica do trabalho e o ponto de vista da “classe
operária”. Tratava-se de uma “revista de teoria e política revolucionária”, qualificação que permaneceu
até o início dos anos 1990. O texto de Ernst Lohoff que ora publicamos faz parte do primeiro volume da
MK, juntamente com “A crise do valor de troca”, ensaio “fundador” da teoria da crise de Robert Kurz
(publicado em 2018 pela Editora Consequência, juntamente com outros materiais da MK). Ambos os
ensaios abordam o valor e o trabalho abstrato em sua dinâmica histórica, recusando o tratamento
“estático” que lhes era dado pelo pensamento marxista. Especialmente no ensaio de Lohoff, o argumento
é desenvolvido sempre em companhia dos textos de Marx e da reivindicação do seu método “ortodoxo”.
É a partir deles que o autor acompanha o trabalho abstrato em sua relação com o desenvolvimento das
forças produtivas e as “contradições objetivas” da sociedade capitalista madura. Aqui os processos
produtivos ditados pela microeletrônica aparecem como a plena realização do trabalho abstrato, a
eliminação de qualquer vínculo entre o “trabalho concreto” e o produto do trabalho. Ao mesmo tempo,
com a progressiva eliminação do trabalho vivo nos processos produtivos tem início uma nova fase de
socialização material da produção cuja tendência é a abolição da lei do valor. No argumento então
desenvolvido nos primeiros ensaios da Marxistische Kritik, essa tendência, que se manifesta como crise
da classe operária tradicional, também indicaria o novo grau de socialização material que constitui a
base para a revolução antecipada teoricamente por Marx. Daí a conclusão de Lohoff e do antigo circulo
da IMK, segundo a qual, o aprofundamento das contradições do capital produzem não um “adeus ao
proletariado”, mas uma reestruturação da classe operária e exigem a redefinição do objetivo socialista
(M. B).

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etc. Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação
caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria
analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado
[chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que tivesse
chegado às determinações mais simples. Daí teria de dar início à viagem de
retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como
a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas
determinações e relações. A primeira via foi a que tomou historicamente a
Economia em sua gênese. Os economistas do século XVII, p. ex., começam
sempre com o todo vivente, a população, a nação, o Estado, muitos Estados etc.;
mas sempre terminam com algumas relações determinantes, abstratas e gerais,
tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc., que descobrem por meio da
análise. Tão logo esses momentos singulares foram mais ou menos fixados e
abstraídos, começaram os sistemas econômicos, que se elevaram do simples,
como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a
troca entre as nações e o mercado mundial. O último é manifestamente o método
cientificamente correto. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas
determinações, portanto, unidade da diversidade” (Grundrisse, p.21).

No que se segue, aderimos estritamente a este “método cientificamente correto”.


Portanto, não começamos a partir do turbilhão da superfície social, nem das incontáveis
investigações empíricas e históricas, em parte meritórias, mas sobretudo da lógica
conceitual do capital como tal, da maneira como fora desenvolvida na obra de Marx.

Quando Marx desenvolve a lógica do capital a partir de determinadas relações


gerais, abstratas, até os fenômenos superficiais do mercado mundial, o crédito, etc., a
análise do componente variável do capital teve de partir das relações gerais, abstratas,
que determinam tal componente. A categoria mais importante para o trabalho vivo, além
de sua divisão, é a categoria trabalho humano abstrato. Ela é apresentada por Marx em
O Capital, Livro I, capitulo 1, como base de toda a produção de mercadorias.

Sempre que buscamos de uma maneira “ortodoxa”, partindo de uma categoria real
marxiana abstrata até às novas reestruturações da classe operária, como essa categoria
se desenvolve na história, tal abordagem inicialmente irrita a maioria dos leitores. Por

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

mais evidente que nosso método devesse ser para os marxistas, tornou-se, no entanto,
incomum. O positivismo e o empirismo raso minaram completamente as ideias da teoria
na esquerda, e também o marxismo foi dissolvido, entre outros, numa coleção de
teoremas políticos, sociológicos, econômicos. Seus teóricos costumam usá-lo como uma
prateleira de supermercado, separando um ou dois pedaços da obra de Marx e
ajustando-os em suas construções enviesadas. Perde-se irremediavelmente a conexão
entre a obra de Marx e seu método dialético. Este parece ser uma mera exterioridade,
um discurso antiquado do qual é preciso se abster para chegar ao conteúdo positivo da
teoria de Marx. Ainda que a dialética, a ascensão do abstrato para o concreto, o
desdobramento da lógica conceitual, seja a essência da obra de Marx, muitos dos seus
discípulos consideram-na como um capricho individual, uma relíquia da sua pré-
história filosófica. Os teóricos da esquerda, com impulso irreprimível para a prática
política, ficaram muito aquém da posição da Escola de Frankfurt na querela positivista,
entregando-se incondicionalmente ao domínio dos fatos empíricos e estabelecendo-se
como retaguarda de esquerda do positivismo. Uma vez que estão familiarizados com a
ciência apenas em sua caricatura positivista, eles também reduzem o marxismo a uma
ciência positiva. Como tal, é claro, ele já não pode compreender a totalidade do processo
social e, como qualquer outra ciência positivista, depende da adição de outras ciências
particulares. Assim, tornou-se costumeiro um certo entusiasmo com a crise do
marxismo – crise que não é outra coisa senão a crise da redução prévia da recepção de
Marx e sua adulteração – o que autoriza a sua diluição com adições do empreendimento
científico burguês para, em seguida, submetê-lo ao ataque dessa teoria substituta assim
obtida como “suplemento ao marxismo” ou como seu mais elevado “aprimoramento”.
Embora as várias tentativas sejam geralmente de curta duração e geralmente se
condenem rapidamente por sua própria deficiência, à parte o fato de que isso agora é
incorporado como virtude de imobilidade e modéstia na estratégia de marketing, o
princípio subjacente revela-se extremamente resistente e generalizado.

Há muito tempo se esquece que o caráter básico dos textos de Marx, inclusive nos
seus títulos, é o de serem críticas. Nas mãos dos teóricos da esquerda, a obra principal
de Marx, O Capital, se transforma de uma “Crítica da economia política” em um livro de
economia, perdendo, é claro, a capacidade de presumir o contexto social global. Se o

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objetivo é capturar a conexão entre a obra de Marx e sua força crítica explosiva, devemos
antes de tudo levar a sério seu método dialético, que dá origem a ambos. Poucos teóricos
marxistas o fizeram para identificar o alcance das categorias reais de Marx e sua
dinâmica.

A maioria considera essas categorias como cascas vazias ao lado ou anteriores à


análise real, com as quais fazem malabarismos e tentam, na medida em que se
compreendem explicitamente como marxistas, expressar nelas os resultados de
pesquisa; mas nisso se esgotam suas ações. Ao se limitarem a atestar o caráter ainda
capitalista da sociedade de hoje, enfatizam a continuidade, a contradição social básica
sempre idêntica, em vez de conceituar o capitalismo atual como uma forma mais
desenvolvida dos antagonismos capitalistas e, portanto, também as categorias reais
subjacentes como algo novo, como uma ruptura com o próprio passado. A dinâmica de
desenvolvimento lógico das categorias de modo algum flui na análise. Elas são
manejadas de forma estática, como leis imutáveis da relação de capital, fixadas desde o
início e de uma vez por todas. Marx, por outro lado, estava sempre e essencialmente
preocupado com a conexão entre o desenvolvimento lógico-conceitual e histórico do
capital. As categorias por ele elaboradas definem o capital em seu desenvolvimento
processual.

Exemplar aqui é o tratamento da categoria trabalho humano abstrato. Marx já o


introduziu no primeiro capítulo de O Capital, mas apenas para que ele caísse no
esquecimento, entendido erroneamente pelos epígonos como um mero pressuposto,
permanecendo ali até mofar. Na realidade, não é simplesmente um pré-requisito para o
capital, mas sim, pelo menos em suas formas mais desenvolvidas, um produto bastante
tardio. Desdobra-se apenas com o desenvolvimento da própria relação de capital e, como
uma tendência para colocar o trabalho vivo em uma abstração crescente, permeia a
história do capital variável como seu conteúdo real. Marx aborda esse tema nos
Grundrisse: “A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma
forma de sociedade em que os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro,
e em que o tipo determinado do trabalho é para eles contingente e, por conseguinte,
indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não somente enquanto categoria, mas na
efetividade, meio para a criação da riqueza em geral e, como determinação, deixou de

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

estar ligado aos indivíduos em uma particularidade. Tal estado de coisas encontra-se no
mais alto grau de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade
burguesa – os Estados Unidos. Logo, só nos Estados Unidos a abstração da categoria
“trabalho”, “trabalho em geral”, trabalho “puro e simples”, o ponto de partida da
Economia moderna, devém verdadeira na prática. Por conseguinte, a abstração mais
simples, que a Economia moderna coloca no primeiro plano e que exprime uma relação
muito antiga e válida para todas as formas de sociedade, tal abstração só aparece
verdadeira na prática como categoria da sociedade mais moderna” (Grundrisse, p.25).

É claro que, quando Marx reconhece uma história para o trabalho humano
abstrato, reconhecendo-a como materialmente prática, ela não termina nos Estados
Unidos de meados do século passado. Inerente à relação do capital, essa tendência à
abstração do trabalho não encontrou sua forma material final naquela época, mas, com
o tempo, se tornou ainda mais “praticamente verdadeira” no desenvolvimento ulterior
do capital.

O desenvolvimento da relação de capital e a tendência para tornar o trabalho cada


vez mais abstrato coincidem: “... essa relação econômica – o caráter que o capitalista e o
trabalhador portam como os extremos de uma relação de produção – é desenvolvida
tanto mais pura e adequadamente quanto mais o trabalho perde todo caráter de arte; a
sua perícia particular devém cada vez mais algo abstrato, indiferente, e devém mais e
mais atividade puramente abstrata, puramente mecânica, por conseguinte, indiferente
à sua forma particular; atividade simplesmente formal ou, o que dá na mesma,
simplesmente física, atividade pura e simples, indiferente à forma” (Grundrisse, p.204).

A tendência de tornar o trabalho cada vez mais abstrato, esvaziado, expressa, em


relação ao trabalho vivo, como o capital se defronta com as forças produtivas existentes,
eliminando vestígios pré-capitalistas e criando materialmente uma base adequada, uma
base à sua própria imagem.

O fazer-se abstrato do trabalho, a alienação, o esvaziamento, não é uma


possibilidade entre muitas, mas segue como uma tendência principal imediata da lógica
do capital. Todas as fantasias do trabalho autodeterminado, “atividade menos alienada”
no interior do domínio capitalista, podem ser apenas fantasias. A corrente principal do

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desenvolvimento histórico corre exatamente na direção oposta, sempre que existe a


relação de capital, contrariando Kern e Schumann.2 O capital só excepcionalmente abre
nichos, e apenas para fechá-los o mais rápido possível. Em qualquer caso, isto se aplica
aos produtores diretos criadores de mais-valia, mas não só a eles.

O ponto de partida histórico

Certo grau de abstração do trabalho é, em si mesmo, uma condição prévia para o


surgimento do modo de produção capitalista. Assim sendo, a indústria manufatureira
não se aproveita primeiro das corporações altamente desenvolvidas e altamente
especializadas com suas obras igualmente especializadas e separadas, “mas da indústria
rural acessória, fiar e tecer, o trabalho que requer menos habilidade especializada ou
formação artística (...) A indústria rural acessória contém a base ampla da manufatura,
ao passo que a pequena indústria urbana exige um grande avanço da produção para
poder ser explorada em escala fabril” (Grundrisse, p. 410). Esse progresso da produção
permite então desmantelar o trabalho em tais áreas de produção tradicionais
associativas, esvaziá-lo para o produtor imediato e torná-lo abstrato. Historicamente, no
entanto, o capital produtivo só pode começar em indústrias nas quais o trabalho vivo
consumido tem um caráter geral per se, no trabalho tradicionalmente feito no campo
por quase todos, enquanto as guildas urbanas especializadas bloqueavam por muito
tempo a sua capitalização. Não é por acaso que o capital que começa a se misturar à
produção tem de começar no campo, onde é feito o trabalho geral da produção pré-
capitalista.

2 Horst Kern e Michael Schumann, estudiosos dos processos de racionalização/requalificação do trabalho


industrial e defensores da tese da “polarização das qualificações”, segundo a qual as transformações nos
processos produtivos levariam, ao mesmo tempo, a formas de qualificação e desqualificação do trabalho.
Publicaram, em 1984, Das Ende der Arbeitsteilung? [O fim da divisão do trabalho?]. No primeiro
número da MK, apareceu uma crítica das teses de Kern e Schumann, Die Chance der Möglichkeit eines
menschenfreundlichen Kapitalismus [As chances de um possível capitalismo humanitário], por Rainer
Büschel e Rainer Jahn. [NdT]

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Subsunção formal do trabalho sob o capital

Com a separação do produtor imediato de seus meios de produção, isto é, a


criação do assalariado livre, já existe uma estranheza formal e uma externalidade do
trabalhador diante tanto do processo quanto do produto do trabalho. O valor de uso da
força de trabalho no processo de produção já recai no capital, que entra na esfera da
circulação e avança no processo de produção, ainda que os trabalhadores se preocupem
apenas com o valor de troca da sua força de trabalho. “Por outro lado, o próprio
trabalhador é absolutamente indiferente à determinabilidade de seu trabalho; o trabalho
enquanto tal não tem interesse para ele, mas tão somente na medida em que é trabalho
em geral e, enquanto tal, valor de uso para o capital” (Grundrisse, p.204). No mesmo
contexto, escreve Marx: “O material que ela trabalha [a capacidade de trabalho, EL] é
material estranho; da mesma maneira, o instrumento é instrumento estranho; seu
trabalho aparece somente como acessório das condições objetivas, que aparecem como
a substância, e, por isso, objetiva-se em algo que não lhe pertence. Na verdade, o próprio
trabalho vivo aparece como estranho perante a capacidade de trabalho, da qual ele é
trabalho, da qual ele é a manifestação vital peculiar, porque o trabalho vivo é cedido ao
capital em troca de trabalho objetivado, em troca do produto do próprio trabalho. A
capacidade de trabalho comporta-se, em relação ao trabalho vivo, como algo estranho, e
se o capital quisesse pagar a ela sem a fazer trabalhar, aceitaria o negócio com prazer.
Por conseguinte, o seu próprio trabalho lhe é tão estranho – e o é também no que diz
respeito à sua orientação etc. – quanto o material e o instrumento” (Grundrisse, p.366).
Esse estranhamento, no entanto, afeta nessa etapa apenas o lado da propriedade, não o
processo de produção em si mesmo. O capital historicamente começa submetendo o
processo de produção ao seu comando tal como o encontra. Assim, lemos em Marx: “A
fortuna em dinheiro não inventou nem produziu a roda de fiar e o tear. Mas, separados
de sua terra, os fiandeiros e tecelões caíram com seus teares e rodas de fiar sob o domínio
da fortuna em dinheiro etc. Próprio do capital é unicamente a união das massas de
mãos e instrumentos que ele encontra. Ele os aglomera sob seu comando” (Grundrisse
p. 407).

Enquanto o capital assume apenas as forças produtivas já dadas, principalmente


incorporadas nos meios de trabalho, seu domínio sobre o processo de produção

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permanece formal. A extrassão de mais-valia funciona nessa fase unicamente pela


extensão implacável do dia útil, portanto, impondo a mais-valia absoluta. O alargamento
da jornada é forçado até o limite físico dos produtores, embora a estrutura do próprio
trabalho permaneça nas mãos dos produtores imediatos.

Com a criação do assalariado livre, se dá a possibilidade de o trabalho vivo se tornar


abstrato, na medida em que o valor de uso da força de trabalho do trabalhador não lhe
diz respeito e pode ser usado para tudo de acordo com a vontade do capital. No entanto,
o capital deve primeiro criar materialmente a possibilidade de que se possa usar o
trabalho de maneira diferente da tradicional. Até então, permanece no processo de
produção o intercâmbio orgânico tradicional de produtores imediatos e meios de
produção.

Subsunção real do trabalho sob o capital

O primeiro passo nessa direção é o desmembramento do trabalho na manufatura,


mas é somente com a introdução da maquinaria que o capital realmente consegue
garantir a possibilidade de tornar o trabalho abstrato. Só isso lhe permite submeter
realmente o processo de produção de uma maneira específica. Se a transição para o
modo especificamente capitalista da produção de mais-valia, a produção de mais-valia
relativa, começa com a combinação dos operários na manufatura, o desenvolvimento na
indústria aprofunda e consolida esse passo decisivo. O desenvolvimento do meio de
trabalho em maquinaria não é casual para o capital; é a reconfiguração do meio de
trabalho tradicionalmente herdado na forma adequada ao capital (Grundrisse, p. 586).
“A maquinaria aparece, portanto, como a forma mais adequada do capital fixo, e o
capital fixo, na medida em que o capital é considerado na relação consigo mesmo, como
a forma mais adequada do capital de modo geral” (Grundrisse, p. 586). Somente a
maquinaria torna o trabalho materialmente abstrato, porque “com a ferramenta de
trabalho, o virtuosismo em sua condução também passa do trabalhador à máquina” (Das
Kapital, I, MEW volume 23, p. 442).

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Acumulação de forças produtivas sociais como esvaziamento do trabalho


imediato

“O saber aparece na maquinaria como algo estranho, externo ao operário; e o


trabalho vivo é subsumido ao trabalho objetivado que atua autonomamente”
(Grundrisse, p. 586). “A acumulação do saber e da habilidade, das forças produtivas
gerais do cérebro social, é desse modo absorvida no capital em oposição ao trabalho, e
aparece consequentemente como qualidade do capital, mais precisamente do capital
fixo, na medida em que ele ingressa como meio de produção propriamente dito no
processo de produção” (Grundrisse, p. 586). Na mesma medida em que a aplicação do
conhecimento social se converte em uma força produtiva, e o processo de produção é
cada vez mais socializado materialmente pelo capital, o trabalho vivo se torna
progressivamente mais miserável. “Se o trabalho individual enquanto tal deixa de todo
de aparecer como produtivo, mas, ao contrário, só é produtivo nos trabalhos em comum
que submetem a si as forças da natureza, e se essa elevação do trabalho imediato à
condição de trabalho social aparece como redução do trabalho individual à impotência
diante da comunidade concentrada representada no capital” (Grundrisse, p.588), uma
maior socialização, o desenvolvimento final da ciência como força produtiva, não pode
transformar essa tendência no interior do quadro capitalista. Isso é cada vez mais
fundamental: “A atividade do operário, limitada a uma mera abstração da atividade, é
determinada e regulada em todos os aspectos pelo movimento da maquinaria, e não o
inverso. A ciência, que força os membros inanimados da maquinaria a agirem
adequadamente como autômatos por sua construção, não existe na consciência do
operário, mas atua sobre ele por meio da máquina como poder estranho, como poder da
própria máquina. Na produção baseada na maquinaria, a apropriação do trabalho vivo
pelo trabalho objetivado – da força ou atividade valorizadora pelo valor existente por si,
inerente ao conceito do capital – é posta como caráter do próprio processo de produção,
inclusive de acordo com os seus elementos materiais e seu movimento material. O
processo de produção deixou de ser processo de trabalho no sentido de processo
dominado pelo trabalho como unidade que o governa. Ao contrário, o trabalho aparece
unicamente como órgão consciente, disperso em muitos pontos do sistema mecânico em
forma de operários vivos individuais, subsumido ao processo total da própria

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maquinaria, ele próprio só um membro do sistema, cuja unidade não existe nos
trabalhadores vivos, mas na maquinaria viva (ativa), que, diante da atividade isolada,
insignificante do operário, aparece como organismo poderoso. Na maquinaria, o
trabalho objetivado se contrapõe ao trabalho vivo no próprio processo do trabalho como
o poder que o governa, poder que, de acordo com sua forma, o capital é como
apropriação do trabalho vivo. A assimilação do processo do trabalho como simples
momento do processo de valorização do capital também é posta quanto ao aspecto
material pela transformação do meio de trabalho em maquinaria e do trabalho vivo em
mero acessório vivo dessa maquinaria, como meio de sua ação” (Grundrisse, p.584-585).
Nesta forma desenvolvida, no entanto, é só muito tarde que o trabalho abstrato penetra
em toda a produção social. A cientifização da produção finalmente se firma só após a
Segunda Guerra Mundial.

Tendências opostas na história da relação capital

Na história, esta tendência ao trabalho abstrato é rompida. Em parte, o capital,


com base tecnológica modificada, novamente restaura a integração da força de trabalho
com sua capacidade de trabalho específica. Especialmente na Alemanha, antes da
Primeira Guerra Mundial, o capital criou extensas formações de operários qualificados,
que se caracterizavam por uma posição relativamente independente e, portanto, uma
posição forte no processo de produção que os identificava em grande medida com seu
trabalho e permitia que se definissem por meio da sua particularidade. Havia o
monopólio do conhecimento real da produção e, portanto, o capital só podia controlar
de maneira limitada a materialidade do processo produtivo. Eles estavam longe de se
colocar miseravelmente nus diante do processo de produção. Politicamente, isso teve
consequências imensas. Foram precisamente essas formações de operário qualificados
artesanais que formaram a coluna vertebral da força da luta proletária e moldaram
profundamente o movimento operário clássico. O orgulho do trabalho e a posição de
força no processo de produção determinaram tanto as expressões políticas e os objetivos,
quanto as formas de organização. Não é de admirar, então, que a ideia popular do
socialismo naquela época se limitasse à remover sem reparação os “parasitas
capitalistas”, enquanto a crítica do valor e do fetiche do salário não desempenhava

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nenhum papel significativo, como tampouco se pensou em uma transformação da


própria produção. Isso não foi diferente nem mesmo onde tais camadas se tornaram
radicais. Por exemplo, a sua “... posição... estava materialmente mais predisposta a
assumir um programa político-organizacional como o dos conselhos operários, ou seja,
a autogestão da produção. A recepção que essa ideia de autogestão operária encontrou
no movimento conselhista alemão... não teria sido tão difundida sem a existência de uma
força de trabalho que estava inextricavelmente ligada à tecnologia do processo e que -
profundamente determinada por valores profissionais e corporativos - foi naturalmente
levada a cabo para destacar o seu próprio papel como produtora”.3 Por toda parte, o
movimento operário tradicional proclamou o orgulho do produtor imediato, “aquele que
cria todos os valores”, e a proletarização não foi vista como uma desgraça especial a ser
abolida, mas como uma honra sem o devido reconhecimento social. Isso se aplica tanto
à linha socialdemocrata-marxista no movimento operário quanto ao sindicalismo.
Somente em tal cenário é que se torna compreensível a limitação dos sindicalistas
italianos à empresa individual no período de crise até a tomada do poder por Mussolini,
com a renúncia deliberada à ação política fora do espaço da empresa. A forte posição das
formações operárias qualificadas no processo de produção predispôs tanto a força de
combate quanto a limitação do movimento operário clássico.

Composição de classe e história do movimento operário

A história do movimento operário na época da II Internacional e após o seu


declínio só pode ser entendida no contexto desta composição particular da classe. Em
geral, a história da constituição da classe é a base material real da história do movimento
operário. A classe operária vem à luz como capital variável e isso permanece
fundamental. A história do movimento operário é, em primeiro lugar, a história da classe
e seus segmentos no e para o processo de produção capitalista. No entanto, essa base
ficou, aliás, em grande parte, debaixo de uma história puramente partidário-

3 Sergio Bologna in „Zusammensetzung der Arbeiterklasse und Organisationsfrage“. Berlin: Merve-


Verlag, 1973.

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organizacional. Eis uma razão importante para a recepção da história do movimento


operário pela Nova Esquerda ter permanecido, em geral, tão insatisfatória. Abandonada
sua base material, essa recepção esgotou-se em um debate organizacional ainda idealista
e na repetição minuciosamente maçante das lutas ideológicas da Segunda e Terceira
Internacionais, enquanto seu conteúdo material era amplamente ignorado. As
abordagens disponíveis no início do século, p.ex., a tese de Lênin sobre a aristocracia
operária, não foram desenvolvidas.

Taylorismo como etapa do desenvolvimento capitalista

Mesmo que o movimento operário clássico fosse determinado precisamente por


uma tendência contrária à imediata redução abstrata do trabalho vivo, para além desse
momento retardador, a principal tendência na história do capital continua sendo a perda
de poder do produtor imediato, sua subsunção direta no processo mecânico. Com a
difusão do taylorismo, essa tendência também alcançou os tipos tradicionais de
operários qualificados e começou a destruir sua antiga base. A essência do taylorismo é
a expropriação dos operários qualificados tradicionais a partir do conhecimento da
produção via ciência do trabalho. A ciência do trabalho é apenas um sinônimo de
transferência e monopolização do conhecimento de produção que cresceu junto com o
produtor imediato. O antigo operário qualificado despojado de seu conhecimento
produtivo, que, como uma quasi propriedade, assegurou sua posição relativamente
privilegiada diante do capital, no futuro, o enfrentará como algo estranho, coagulado em
máquinas e organização do trabalho. As diferentes etapas de trabalho que o antigo
operário qualificado combinou em sua profissão são divididas em ações individuais e,
como tais, atribuídas pelo comando capitalista a diferentes operários. A linha de
montagem como símbolo da nova divisão do trabalho torna possível, entre outras coisas,
esse desmembramento do processo de trabalho. Somente através dele, o capital controla
materialmente o processo de produção. As etapas concretas de produção permanecem,
até esse momento, as mesmas, pois a ciência do trabalho orienta-se tecnicamente para
os processos de trabalho tradicionais, simplesmente tentando torná-los mais eficazes,

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

embora o conhecimento sobre eles, antes distribuído entre os vários trabalhadores


qualificados, agora esteja centralizado pela capital. Embora o trabalho vivo como um
todo continua sendo um agente do processo de produção, o trabalho individual é
reduzido à “impotência” diante da “coletividade concentrada no capital”.

Na Alemanha, mas não só lá, a Primeira Guerra Mundial é um ponto de inflexão


decisivo a esse respeito. A produção de guerra como produção em massa permitiu a
transição para a produção fragmentada e parcialmente mecanizada, que simplesmente
não era viável em suas áreas nas séries menores anteriores à guerra. Por outro lado, a
reestruturação da própria classe operária está relacionada com a guerra, pois a perda de
muitos operários qualificados bem treinados através do seu uso militar e o
preenchimento das lacunas por parte de pessoas não qualificadas, especialmente as
mulheres, tornou esse passo inevitável. Na transição para a produção em tempo de paz,
essas novas realizações foram gradualmente incorporadas à esfera civil.

Ciência do trabalho e ciência da natureza

A aplicação da ciência do trabalho ao desmembramento das atividades até então


integradas não substitui a nova mecanização, mas a prepara. É somente com a grande
escala do modo de produção capitalista que a aplicação da ciência natural na produção
via maquinaria pode ocorrer, independentemente da aplicação da gestão científica do
trabalho, e saindo de sua esfera de influência. Marx já antecipou isso nos Grundrisse:
“por um lado, é a análise originada diretamente da ciência e a aplicação de leis mecânicas
e químicas que possibilitam à máquina executar o mesmo trabalho anteriormente
executado pelo operário. Contudo, o desenvolvimento da maquinaria por essa via só
ocorre quando a grande indústria já atingiu um estágio mais elevado e o conjunto das
ciências já se encontra cativo a serviço do capital; por outro lado, a própria maquinaria
existente já proporciona elevados recursos. A invenção torna-se então um negócio e a
aplicação da ciência à própria produção imediata, um critério que a determina e solicita.
Porém, esta não é a via que deu origem à maquinaria no geral, e menos ainda a via pela
qual ela avança no detalhe. Tal via é a análise – pela divisão do trabalho, que transforma
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as operações dos operários cada vez mais em operações mecânicas, de tal modo que a
certa altura o mecanismo pode ocupar os seus lugares. Por conseguinte, um modo de
trabalho determinado aparece aqui diretamente transposto do operário para o capital na
forma da máquina, e por meio dessa transposição sua própria capacidade de trabalho é
desvalorizada” (Grundrisse, p. 591).

A taylorização e a substituição do trabalho taylorizado pela maquinaria se


comportam da maneira esboçada por Marx. Somente com uma ampla substituição do
trabalho mecanizado pela maquinaria, o trabalho vivo finalmente “se situa ao lado do
processo de produção em vez de ser seu principal agente” (Grundrisse, p. 593). Só então
o processo de produção é completamente formado pela aplicação da ciência natural. O
trabalho abstrato muda sua forma aparente com esta etapa. Anteriormente, suas formas
mais distintivas eram as operações esvaziadas, repetitivas e constantes realizadas com
as mãos, enquanto agora a sua nova marca característica é a exterioridade das mãos em
relação ao processo de produção em si. Sua tarefa principal é o monitoramento e controle
constante do processo de produção, que ocorre automaticamente como um processo
natural e requer intervenção humana apenas pontual e em caso de falhas. Esse trabalho
dificilmente é mais humano, mas exige um grau relativamente alto de concentração e
não permite o alívio da habitualização. O estresse físico não desaparece, mas diminui
relativamente o seu peso.

Esse processo de substituição de uma forma de trabalho abstrato pela sua forma
mais desenvolvida avança de modo gradual e diferente de um ramo para outro. O
trabalho vivo, como trabalho diretamente produtivo, é preservado durante muito tempo
como um substituto no sistema automático de máquinas. Com a introdução da
microeletrônica, esse desenvolvimento está dando um salto qualitativo, cuja
importância não deve ser subestimada. Ele conduz o nível esboçado de abstração do
trabalho até o seu fim consequente e, ao mesmo tempo, o eleva a um novo nível que
ainda queremos delinear. O primeiro pode ser lido de modo simples e ilustrativo no
estudo do IG-Metall sobre “as consequências negativas da racionalização”: “Há cada vez
menos influência do tempo. A influência imediata dos trabalhadores na concepção do
processo de trabalho diminui”. (p. 63 do resumo de 1983). “Os trabalhadores e
empregados da execução, assim como os quadros médios da gerência, são privados

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

(‘expropriados’) do conhecimento, da experiência e das vantagens da senioridade que


advinham da sua maior proximidade da produção. Relações hierárquicas e de influência
consolidadas se transformam. Por exemplo, supervisores e planejadores já não fazem
especificações diretamente, mas sim a gerência superior, através da possibilidade de
controle permanente da produção. As relações de poder empresariais foram de fato
centralizadas”. (p.63 do resumo). Deste ponto de vista, a microeletrônica apenas
aperfeiçoa Taylor em uma nova base técnica. Por outro lado, ela impulsiona o processo
de produção capitalista para além de Taylor, pois cada vez mais elimina o trabalho
produtivo imediato.

Taylorismo e organização hierárquica da classe operária

Com a ampla expropriação de seus conhecimentos de produção pela ciência do


trabalho, o antigo operário qualificado perde sua base tradicional em muitas áreas, mas
ele não desaparece sem substituição, renascendo como comandante e subcomandante.
Para o operário da produção imediata, ele é, como mestre e capataz, a encarnação da
combinação do trabalho por meio do capital. Enquanto parte da hierarquia operacional,
ele representa a totalidade do processo de produção frente à maioria dos produtores
imediatos reduzidos à personificação de um movimento manual. Quanto mais
diferenciada a divisão do trabalho, mais miserável é a posição do produtor direto isolado
e mais importante se torna aquela função comparada com eventuais habilidades técnicas
restantes. O lado técnico-artesanal sobrevive apenas nas áreas que acompanham a
produção em grande escala (manutenção, etc.). Além disso, o antigo operário qualificado
tende a se tornar organizador do trabalho e, portanto, aparece fora do processo de
produção imediato.

A diferenciação entre as especificidades de trabalho e artesanato vai para o


segundo plano, enquanto a força de trabalho é predominantemente dividida de acordo
com sua posição na hierarquia de comando. Repete-se o que Marx disse n’ O Capital
para a transição da manufatura à grande indústria: “As diferenças produzidas
artificialmente entre os trabalhadores parciais são substituídas pelas diferenças naturais
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

de idade e sexo” (MEW 23, Das Kapital, p.442). Igualmente importante é uma
característica quase naturalizada que aqui não é mencionada por Marx: a nacionalidade.

Na Alemanha, em particular, a divisão do trabalho de acordo com o ponto de vista


étnico tem uma longa e infeliz tradição. Esse mecanismo de divisão de classes celebrou
sua origem neste país com a imigração polonesa no final do século XIX e teve sua
coroação no sistema de trabalho forçado do fascismo nos últimos anos da guerra.
Naquela época, havia um sistema de separação e desmembramento que se estendeu do
extermínio pelo trabalho para prisioneiros de guerra judeus, poloneses e russos até os
prisioneiros de guerra da Europa ocidental, e recrutava à força os “trabalhadores
estrangeiros” quase voluntários italianos e, finalmente, os capatazes alemães
privilegiados (o principal privilégio consistia em estar razoavelmente a salvo de ser
enviados para o fronte caso desempenhassem, como “indispensáveis”, principalmente
os trabalhos forçados que lhes eram atribuídos).

Após a guerra, esse sistema foi convertido às condições civis e aperfeiçoado como
um momento constituinte do “modelo Alemanha”. Aqui se encontra uma base material
essencial para o racismo, que ainda ornamenta este país e que nenhum choramingar
humanitário pode mudar minimamente. O mesmo se aplica ao campo do trabalho
feminino. Em muitas áreas do emprego feminino industrial, as posições do mestre e do
capataz ainda estão reservadas para os homens. Em ambos os casos, as diferenças
biológicas e quase biológicas solidificam a estrutura hierárquica. Os sindicatos são tudo
menos hostis a isso. Se os sindicatos, antes da Primeira Guerra Mundial, representavam
principalmente os operários qualificados, eles se estabeleceram cada vez mais como
defensores dos interesses de capatazes e mestres, os subcomandantes do capital. Em
consequência, ele mudou de caráter. O corporativismo de operários especializados
relativamente independentes deu lugar ao corporativismo dos subcomandantes e
executores do capital. O pacto de produtividade entre capital e sindicatos tem também
raízes em partes da base sindical de mentalidade “motivacional”. Mesmo que os
sindicatos de tempos em tempos se esforcem para atrair filiados de outras camadas
operárias, isso não altera seu caráter fundamental. A recente reestruturação da classe
nos anos 1980 torna isso ainda mais visível.

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A ciência natural microeletrônica como agente da produção e o trabalho


concreto-abstrato

Hoje, com a revolução técnica da produção por meio da microeletrônica, o


trabalho vivo consumido no processo de produção está sendo profundamente
revolucionado. Seu poder relativo ainda existente como agente do processo de produção
finalmente sucumbe à destruição. Somente agora o prognóstico de Marx se torna
realidade. A cientifização da produção coloca o trabalho vivo em um estado de abstração
e impotência relativamente ao poder social comprimido no capital, o que era impensável
no início dos anos 1970. A socialização da produção material, levada aos extremos,
aparece ao lado do trabalho vivo como seu completo devir abstrato.

A aplicação da ciência natural, coagulada na microeletrônica, está se tornando


gradualmente a base técnico-científica comum em uma ampla gama de aplicações. Ela
se torna base comum em um âmbito muito mais amplo, especialmente no que diz
respeito ao trabalho vivo, do que no caso do sistema mecânico clássico. As revoluções
industriais do passado revolucionaram principalmente os sistemas de propulsão (vapor,
petróleo, eletricidade) e generalizaram sua aplicação produtiva, mas preservaram os
processos de trabalho em suas particularidades. O sistema mecânico transferiu o
conhecimento específico do artesanato para a máquina, que, por sua vez, reproduzia
novamente essa especificidade. Daí resultaram máquinas especiais com funcionalidades
bastante diferentes, correspondendo a diferentes trabalhos concretos, dependendo do
ramo industrial que as utilizava. A antiga particularidade artesanal do trabalho concreto
se transferia em certo grau de especificação do trabalho nessa maquinaria, que seguia os
seus traços. Somente a cientifização da produção por meio da microeletrônica resolve
isso eliminando a experiência do artesanato e dos preciosismos isolados.

A ciência da natureza como um todo social torna-se a base material geral da


produção da riqueza social. É o mesmo conhecimento científico e a análoga tradução
técnica em áreas sempre crescentes, “que aparece como o grande fator decisivo da
produção de riqueza” (Grundrisse, p. 593). Para os processos de trabalho concretos, isso
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significa que eles são ajustados uns aos outros em uma dimensão até agora
desconhecida. Conforme os estudos IG Metall sobre as consequências negativas da
racionalização, isso é expresso no fato “impressionante de que as mesmas atividades
laborais sejam identificadas como causadoras de doenças por comissões de segurança
de empresas em setores, tamanhos e localizações diferentes” (p. 62 do resumo de 1983).
Pois “as novas tecnologias são tecnologias de racionalização e controle universais que,
devido à sua flexibilidade, podem penetrar em quase todas as áreas da atividade
humana” (p.66).

O trabalho já não se revela abstrato apenas no sentido de que “os indivíduos


passam com facilidade de um trabalho a outro” (Grundrisse, p.25), como Marx
descreveu os EUA no século XIX, já que os diferentes trabalhos concretos em si mesmos
dificilmente continuam a variar. Aqueles que alternam o seu trabalho não fazem nada
qualitativamente diferente do que era feito. A mesma instalação técnica, com apenas
uma pequena modificação, pode produzir produtos completamente diferentes, e outra
instalação requer do trabalho vivo operações quase idênticas. Desaparece o vínculo até
pouco tempo inequívoco entre um trabalho concreto, útil e o produto particular no qual
ele entra. Aquele já não está ligado a um determinado valor de uso, mas aparece
diretamente como uma partícula indeterminável desse processo socializado que gera
toda a riqueza material. Isso mina a dicotomia entre o trabalho humano abstrato e a
utilidade concreta que Marx apresenta no Capítulo 1 d’ O Capital. Se, na análise de Marx,
o caráter social dos produtos se manifesta apenas no fato de eles serem valores de uso
não para seu produtor, mas para outros; que ele produz para o mercado e seu trabalho é
trabalho social apenas na circulação, ou seja, quando aparece no lado do valor da troca,
ainda que, ao mesmo tempo, siga sendo trabalho privado como trabalho concretamente
útil, essa relação agora está completamente rompida. O trabalho é agora trabalho social
não só no que diz respeito ao valor de troca, mas é também socializado no lado material,
na produção de valores de uso. Seu caráter social geral não se esgota na conhecida
combinação de diferentes operários pelo capital individual na empresa individual, onde
o material que entra no produto ainda podia ser claramente circunscrito à empresa
individual na qual o trabalho foi desempenhado e, portanto, só pode ser um produto
privado, se não do capitalista individual, pelo menos da força de trabalho claramente

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definida dessa empresa particular (ideia dos conselhos). Essa demarcação clara
desapareceu. Por trás da produção de cada pino aparece a infraestruturada sociedade
como um todo. A dicotomia entre o valor de uso produzido concretamente pelo trabalho
útil e o valor de troca produzido pelo trabalho humano abstrato está ligada ao caráter
privado da produção e desaparece com ele.

O momento decisivo do processo de produção não é mais o trabalho realmente


despendido em um produto, mas desde o início a aplicação de uma potência social, a
ciência natural. Se os produtos se tornam materialmente sociais, isto é, produtos de uma
força produtiva social global, os processos de trabalho perdem igualmente sua conexão
com o valor de uso específico que foi produzido e não podem mais permanecer como
particularidades intercambiáveis. Os trabalhos concretos são completamente
subsumidos na força produtiva socializada.

Em termos conceituais, Marx demonstra tal contexto nos Grundrisse, que


historicamente, só hoje ganha contornos e precisa fazer explodir pelos ares a lei do valor:
“Não é mais o trabalhador que interpõe um objeto natural modificado como elo
mediador entre o objeto e si mesmo (...) Ele se coloca ao lado do processo de produção,
em lugar de ser o seu agente principal. Nessa transformação, o que aparece como a
grande coluna de sustentação da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato
que o próprio ser humano executa nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação de
sua própria força produtiva geral, sua compreensão e seu domínio da natureza por sua
existência como corpo social – em suma, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo
de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se baseia, aparece como
fundamento miserável em comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado
por meio da própria grande indústria. Tão logo o trabalho na sua forma imediata deixa
de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de deixar, de ser a sua
medida e, em consequência, o valor de troca deixa de ser [a medida] do valor de uso. O
trabalho excedente da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza
geral, assim como o não trabalho dos poucos deixa de ser condição do desenvolvimento
das forças gerais do cérebro humano. Com isso, desmorona a produção baseada no valor
de troca...” (Grundrisse, p. 592/593).

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Na discussão marxista essa passagem foi tantas vezes referida quanto mal
interpretada. “O desenvolvimento do indivíduo social... coluna de sustentação da
produção e da riqueza” sempre foi interpretado como um objetivo a ser realizado apenas
no socialismo, bem como o fim da lei do valor, e não como um processo que, embora
catastrófico, se inicia no interior das relações de capital. Para a consciência confinada na
lei do valor, considerada mais ou menos como uma lei natural, seu solapamento por
meio do próprio processo capitalista desapareceu completamente, e isso ainda mais à
medida que o movimento operário clássico confrontava um estágio de desenvolvimento
produtivo que por muito tempo ainda se moveria no interior da lei do valor. Se a abolição
da lei do valor foi tomada, ainda de maneira relativamente justificada, como uma tarefa
pós-revolucionária do proletariado na sua auto-superação final, hoje a sua
decomposição prenhe de catástrofes e o daí resultante desastre do capitalismo do pós-
guerra devem ser o ponto de partida de uma estratégia revolucionária. Hoje temos que
levar a sério esses comentários de Marx, porque nesse meio-tempo eles se tornaram
praticamente verdadeiros. O próprio capital destrói o valor, seu fundamento lógico. A
iminente crise prolongada do capital, em última análise, se baseia no fim histórico de
sua categoria fundamental. “O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato]
de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por
outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. Por essa
razão, ele diminui o tempo de trabalho na forma do trabalho necessário para aumentá-
lo na forma do supérfluo; por isso, põe em medida crescente o trabalho supérfluo como
condição – questão de vida e morte – do necessário. Por um lado, portanto, ele traz à
vida todas as forças da ciência e da natureza, bem como da combinação social e do
intercâmbio social, para tornar a criação da riqueza (relativamente) independente do
tempo de trabalho nela empregado. Por outro lado, ele quer medir essas gigantescas
forças sociais assim criadas pelo tempo de trabalho e encerrá-las nos limites requeridos
para conservar o valor já criado como valor. As forças produtivas e as relações sociais –
ambas aspectos diferentes do desenvolvimento do indivíduo social – aparecem somente
como meios para o capital, e para ele são exclusivamente meios para poder produzir a
partir de seu fundamento acanhado. De fato, porém, elas constituem as condições
materiais para fazê-lo voar pelos ares” (Grundrisse, p. 593/594).

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Portanto, se falamos anteriormente da corrosão da dicotomia do trabalho humano


concreto útil e trabalho abstrato, isso expressa apenas a decomposição da lei do valor.
Se o próprio trabalho concreto se torna abstrato, então nele se externaliza a rebelião das
forças produtivas já socializadas pelo capital contra a lei do valor baseada na propriedade
privada e no trabalho privado separado que se tornou imaginário. O trabalho concreto
tornado abstrato anuncia seu colapso iminente, o surgimento de proletários que não
podem mais ser um proletariado e, portanto, que são forçados a abolir a relação capital.
O trabalho humano abstrato nesse sentido é o complemento vivo da produção
materialmente socializada. O trabalhador abstrato, mesmo que ele faça trabalho simples
e com pouco potencial, é ele próprio um produto social, uma força produtiva social
gerada pela abrangente infraestrutura de formação. Na dependência de um trabalhador
social geral, o capital é obrigado, em sua nova forma, cada vez mais, a livrar a formação
técnica da esfera da família e dos restos estamentais e mantê-la livre de casuísmos. A
expansão do sistema escolar com a reforma da educação socialdemocrata apenas cria a
mão de obra social adequada para o capital do final do século XX. A formalização das
qualificações, a mudança de ênfase da educação prática-operacional para a formação
escolar são manifestações necessárias da socialização da produção. A importância
decrescente da experiência artesanal e da qualificação desloca o peso a favor de uma
qualificação mais geral. Uniformização e enquadramento da formação correspondem à
padronização da tecnologia e às exigências que ela coloca ao trabalho vivo. A educação
socializada recai cada vez mais sobre o capitalista global ideal, e a especificação
operacional do seu conhecimento torna-se menos importante. O trabalho da empresa
permanece importante apenas como uma adaptação contínua à constante evolução
científica e tecnológica, como luta da força de trabalho isolada contra seu desgaste moral.
Nas áreas mais qualificadas, importa menos onde a força de trabalho atuou
especificamente do que ela ter sido utilizada nos últimos anos e que tenha sido capaz de
se adaptar aos novos padrões técnicos.

Desenvolvimento lógico e histórico da relação de capital (excurso)

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É claro que isso é apenas uma tendência e não se tornou realidade da mesma
forma em todas as áreas da produção e da reprodução sociais. Determinar a amplitude
e a velocidade desse desenvolvimento é, em si mesmo, uma tarefa. Aqui duas coisas me
interessam. Antes de tudo, quero demonstrar que as categorias marxianas fornecem um
instrumento analítico adequado para a análise dos modernos processos de
reestruturação do capitalismo atual; em segundo lugar – e diretamente relacionado com
isso – elas mostram que esse tão deplorado fenômeno aqui indicado, longe de invalidar
a lógica do capital e o antagonismo entre o capital e o trabalho, ao contrário, representa
apenas a lógica capitalista levada ao extremo, a ponto de explodir a si mesma. Em
primeiro lugar, estou preocupado com a tendência geral, cuja aplicação exata,
naturalmente, aguarda uma investigação mais aprofundada. Quando tomo as categorias
reais marxistas como o quadro da minha análise e sigo sua lógica, é para deixar claro o
quanto a realidade mais moderna vai na sua direção.

Como Lênin já sabia, quem pretende antecipar o curso das circunstâncias corre o
risco de se adiantar a elas. Isso é uma característica do conjunto da obra marxiana. Marx
expôs a lógica conceitual do capital num momento em que o seu desenvolvimento
histórico, medido pelo seu estado atual, ainda estava na infância. A tendência do capital
para abolir a lei do valor e a correspondente criação de um proletariado, que é então
compelido a executar essa tendência, só se torna realidade progressivamente, mais de
100 anos após a morte de Marx. Durante décadas, o desenvolvimento histórico da
relação de capital manteve-se irremediavelmente aquém de sua descoberta teórica. Eis
a causa fundamental do reducionismo das interpretações tradicionais de Marx. A teoria
de Marx não conseguiu compreender as massas na sua forma autêntica, porque a própria
realidade ainda não estava pronta o suficiente para impelir as ideias de Marx. Os teóricos
marxistas apenas mantiveram essa tensão até o final e abordaram na obra de Marx tão
só os pedaços que já eram, até certo ponto, tangíveis na realidade.

O trabalho humano abstrato em sua forma mais desenvolvida não o era para o
proletariado qualificado e seus representantes intelectuais no período do movimento
operário clássico, nem as potencialidades revolucionárias associadas a ele. Os mais
qualificados, como estrato que dava suporte ao movimento proletário, não tinham o
menor interesse na sua autoabolição, de modo que nas ideias socialistas concretas essa

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autoabolição praticamente foi para debaixo da mesa. A base material para a


revolução proletária elaborada teoricamente por Marx foi criada pela microeletrônica. É
só hoje que surge uma revolução não mais baseada no desenvolvimento insatisfatório da
relação de capital ou em fricções passageiras em seu desenvolvimento, mas, justamente
o contrário, que está a ponto de conduzir às últimas consequências e, portanto, para além
de si mesma.

A ironia da história consiste no fato de que o marxismo autêntico, completamente


enterrado sob a limitação historicamente necessária de sua teoria, é descartado pela
esquerda como sem utilidade, no momento em que a realidade social começa a atingir o
auge de suas reflexões teóricas. Como eles identificam o marxismo com suas
emasculações tradicionais, a esquerda decide abandonar Marx no momento em que,
pela primeira vez, uma interpretação abrangente e maciça de Marx se torna possível,
politicamente efetiva e, portanto, imperiosamente necessária.

Novas tecnologias e “trabalho precário”

O trabalho concreto, já socializado pelo capital, portanto, abstraído, perde sua


estreita conexão com a empresa individual e com uma indústria específica. Com o
desaparecimento da empresa individual como ponto de referência exclusivo da produção
material também é dissolvida a base material das formações operárias tradicionais. A
cooperação produtiva rompe os limites do capital individual, sobretudo os da empresa
individual, e desse modo explode a coesão do contexto operário tradicional. A sua
decomposição é apenas o outro lado da socialização material da produção através da
respectiva cientifização. O que é interpretado por Gorz e outros como o fim do
proletariado não é senão o reverso da crise da lei do valor. O que é realmente um novo
patamar na socialização aparece, no lado dos operários, como atomização e
individualização.

Na década de 1980, experimentamos um salto qualitativo na história da


mercadoria força de trabalho, cujas dimensões podem apenas ser esboçadas. As
profundas revoluções tecnológicas delineadas coincidem com o desemprego em massa e
todas as consequências mais fundamentais dessa época. O capital aproveita a
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

oportunidade oferecida pela crise para produzir uma nova força de trabalho, conforme
a estrutura tecnológica modificada. Flexibilização é a palavra-chave sob a qual o capital
absorve o trabalho abstrato residual em qualquer proporção em condições
tecnologicamente revolucionárias. O capital não precisa mais competir por cada besta
de carga, como nos anos de alta conjuntural, mas pode colocar a permutabilidade da
força de trabalho a seu favor. Nas condições de um persistente desemprego em massa, o
núcleo da força de trabalho está cada vez mais reduzido aos subcomandantes e aos
setores de capital especialmente intensivo sujeitos a falhas. O núcleo da força de trabalho
que se tornou escassa é complementado por uma diversidade de trabalhos precários. As
formas de trabalho precárias, antes apenas um fenômeno marginal e residual de tempos
passados, estão se tornando um fenômeno de massa. Trabalho temporário ilegal e legal,
ainda desconhecido no início da década de 1970, está se espalhando, bem como novas
formas de relação de trabalho temporárias, trabalho parcial e trabalho em casa
[Heimarbeit]. O capital procura minimizar sua porção variável, e o principal meio para
fazê-lo é reduzir os custos salariais indiretos. As conquistas sociais das décadas de 1960
e 1970 (salário regular, pagamento de férias, proteção contra demissão, acumulação de
ativos, etc.) são minadas pelo capital para uma parte precária e crescente da classe e
transformadas em privilégios da parte central da força de trabalho. O que foi celebrado
como progresso para todos os “empregados” torna-se um motivo e um meio para o
capital dividir a classe. As reformas, que visavam a relação de trabalho normal
(permanente, em tempo integral), são elas próprias um incentivo para que o capital
dissolva essa relação de trabalho normal em muitas esferas.

Todas as formas de trabalho precário são mais ou menos caracterizadas pela


exterioridade em relação à empresa individual e um alto grau de mobilidade e
permutabilidade. A separação em relação à empresa individual leva, em primeiro lugar,
à individualização e ao isolamento da força de trabalho frente ao poder concentrado do
capital. O trabalhador precário isolado está em grande parte alheio aos acordos coletivos
de negociação, bem como dos direitos tradicionais de proteção e participação do
conselho de empresa e sindicato. Não há o menor interesse em integrá-lo. A tendência
geral de tornar o trabalho cada vez mais abstrato parece, na sua forma mais moderna,
não mais ser a homogeneização da classe, mas a sua completa dispersão e segmentação.

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A classe operária divide-se em dois campos contraditórios. De um lado, o núcleo da força


de trabalho, cujos interesses estão intimamente interligados à empresa individual e que
defende seus interesses individuais de forma mais decisiva contra a parte precária da
classe. Do outro lado, esse campo precário é ele mesmo em muitos casos segmentado.
Aqui, a externalidade prevalece sobre a empresa individual, a alta mobilidade e a
flutuação; há aqui um intercâmbio ativo com as várias formas do exército industrial de
reserva.

A decomposição da classe operária tradicional anuncia a nova composição da


classe nas condições de decadência da lei do valor. O nível da socialização material do
trabalho alcançado e a sua abstração tornam possível uma organização
fundamentalmente nova do trabalho, por exemplo, novas formas de trabalho em casa
como produto das novas tecnologias da informação. Eles permitem separar
espacialmente as complexas operações de trabalho sem romper o processo de trabalho
para o capital. “O uso de um meio eletrônico, que atualmente ainda transmite sobretudo
informações escritas e gráficas, leva a uma comunicação mais eficaz, a uma restrição da
comunicação a conteúdos essenciais e a uma redução do ‘ruído social’ comum na
conversação” (citado de acordo com o Relatório de pesquisa da BMFT DV 82-002,
agosto de 1982). “O fato de o posto de trabalho ser subcontratado implica uma limitação
de oportunidades de cooperação direta entre colegas. Essa colaboração ainda está
presente quando envolvida na criação de um produto, resolução de problemas ou
qualquer outra coisa em que se trata de várias pessoas. No entanto, dificilmente é
percebida como uma relação pessoal direta, uma vez que se “esconde” em uma divisão
do trabalho abstrata, talvez nem sequer compreensível concretamente para o
trabalhador parcial” (a.a.O.).

O capital pode manter a combinação de operários sem ter que colocá-los em


contato pessoal durante o processo de trabalho. A precária economiazinha
local [Klitschenwirtschaft] em qualquer empresa fornecedora está diretamente ligada às
necessidades de exploração de empresas multinacionais, apesar da separação espacial e
da segmentação parcial das grandes empresas. A FIAT-Turin é um excelente exemplo,
seguido pela fábrica da Volkswagen. Os operários temporários legais e ilegais não só

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mudam constantemente a empresa em que estão empregados, mas também enfrentam


um capitalista (mutuário e credor) combinado.

Não é apenas para a parte precária crescente da classe que a empresa individual
em grande parte desaparece como ponto de referência. O próprio capital em seu
desenvolvimento há muito desdobrou a estrutura da empresa individual e relativizou
sua importância como unidade de produção. Isso vale especialmente para grandes
empresas. Seu desmembramento aponta o caminho para a grande versão capitalista do
small is beautiful. O processo capitalista de socialização começou concentrando
espacialmente a força de trabalho, forçando os operários a se comunicarem e, em
seguida, devolveu-os à dispersão. Os pontos de contato em que os operários isolados
devem travar relações pessoais devido à combinação capitalista do trabalho tornam-se
cada vez menores, precisamente por causa do desenvolvimento continuo da combinação.
Neste nível, isso também se aplica à empresa individual, e ainda mais naturalmente para
os setores subcontratados. Dentro da empresa individual, o capital constante está
crescendo em meio ao decréscimo da força de trabalho. A coesão na empresa enfraquece
juntamente com o significado da empresa individual em geral.

“Adeus ao proletariado” ou nova luta de classes

O movimento operário tradicional, ou o que sobrou dele em restos e


reminiscências, continua a ser essencialmente afetado por esse desenvolvimento. Os
sindicatos finalmente degeneram em representação de pequenos estratos decrescentes
da aristocracia operária. Os meios tradicionais de luta e de pensamento estão se
tornando obsoletos, e não surpreende que a esquerda tradicional, incluindo quase todo
o espectro emergente dos rudimentos organizacionais da Nova Esquerda, afundando em
denúncias e lamentações, confunda o fim de uma formação operária ultrapassada ou a
nova composição da classe pelo capital com o fim de todo o movimento operário. Seu
instrumental teórico inadequado é incapaz de compreender as implicações gerais desse
desenvolvimento, bem como as possibilidades revolucionárias aí contidas. Como de
costume, a esquerda em conjunto se atrapalha com a armadura de cavaleiro no campo

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

de batalha, agora atômico, e choraminga porque, em meio à escuridão, deixa a sua


própria quixotada às claras. Mas apenas incidentalmente.

Sabe-se que o capital suspende suas contradições apenas para aprofundá-las em


novos níveis. Ainda que a reestruturação da classe operária puxe o antigo campo de
batalha sob os pés do marxismo revolucionário, é apenas para construir um novo campo,
mais desenvolvido. Esse terreno ainda virgem precisa ser explorado. Nele o marxismo
terá novamente que se colocar à prova.

Uma coisa é clara: a socialização, impulsionada pelo capital, obriga que as futuras
lutas proletárias, se quiserem ser mais do que mera caricatura, se deem em um nível de
universalidade que permaneceu estranho ao movimento operário tradicional, mesmo
em suas formas mais desenvolvidas. Por exemplo, o caráter internacionalista de um novo
movimento operário é desde o início uma necessidade indispensável e não uma simples
reivindicação moral. Mas o mesmo se aplica às nações tomadas individualmente e aos
respectivos mercados; e também o lado político (intervenções estatais, etc.) está mais
intimamente ligado às lutas econômicas do que nunca. Há pouco espaço objetivo para a
separação entre lutas políticas e econômicas. Neste contexto, modifica-se a dialética da
espontaneidade e da organização, e o lado teórico da luta torna-se uma conditio sine qua
non. Aqui, no entanto, não há lacunas, mas abismos.

[Traduzido por Marcos Barreira]

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

A NATUREZA NA “CONTRADIÇÃO EM PROCESSO”


Contribuição para o debate da teoria da crise

Daniel Cunha

Após mais de meio século de lenta mas contínua decomposição do capitalismo,


pontuada por catástrofes sociais como o estouro da bolha imobiliária em 2008, ter o
conceito adequado da crise é da máxima importância. Tal teoria da crise tem no círculo
da crítica do valor (Wertkritik) representantes rigorosos pelo menos desde os anos 80.
Nesse artigo será proposto um desenvolvimento da teoria da crise como proposta por
teóricos críticos do valor como Robert Kurz, Claus Peter Ortlieb e Moishe Postone e pelo
geógrafo Jason W. Moore no que se refere à conceituação da natureza no processo de
crise. Para isso, apresentarei brevemente alguns conceitos-chave da teoria da crise de
Kurz e seu desenvolvimento por Ortlieb baseado em Kurz e Postone. Em seguida,
procurarei mostrar que a teoria de Kurz/Ortlieb ainda apresenta um ponto cego que
precisa ser conceituado, e proporei uma modificação baseada em Moore. Em seguida,
discutirei a teorização da “ruptura metabólica” de John Bellamy Foster e do “regime
ecológico” de Moore, relacionando-as com a crítica do valor, e revisitarei o problema do
“Antropoceno” sob a luz dessa discussão.

Teoria da crise e natureza: Kurz, Postone e Ortlieb

Marx arguiu nos Grundrisse que o capital é uma “contradição em processo”, pois
ele tem no trabalho abstrato a sua medida de riqueza, mas ao mesmo tempo elimina
trabalho vivo do processo imediato de produção à medida que a composição orgânica do
capital segue a sua tendência de aumento.

Historicamente, a expansão do capital, de acordo com Kurz (2018/1986), teria


então de compensar a queda da massa de mais-valia através do aumento da taxa de mais-
valia relativa. Com isso, o crescimento exponencial tem de avançar sobre espaços sociais

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

ainda não conquistados pela acumulação de capital. O processo inclui não apenas o
aumento da escala de produção, possivelmente incorporando novas regiões do globo,
mas também dois momentos inter-relacionados: a conquista de ramos da produção
ainda sob a forma da subsistência e a criação de novos ramos de produção (novas
necessidades) à medida que os antigos eliminam trabalho no processo imediato de
produção.

Esse processo teria continuidade histórica até que finalmente se alcança um ponto
no qual o valor se tornaria um fundamento miserável para a produção de riqueza. Nas
palavras de Marx:

“… à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva


passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho
empregado que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de
trabalho, poder que – sua |poderosa efetividade –, por sua vez, não tem nenhuma
relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que
depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da
aplicação dessa ciência à produção. (…) Não é mais o trabalhador que interpõe um
objeto natural modificado como elo mediador entre o objeto e si mesmo; ao
contrário, ele interpõe o processo natural, que ele converte em um processo
industrial, como meio entre ele e a natureza inorgânica, da qual se assenhora. Ele
se coloca ao lado do processo de produção, em lugar de ser o seu agente principal.
(…) O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se baseia,
aparece como fundamento miserável em comparação com esse novo fundamento
desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria. (…) O trabalho
excedente da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza geral
(…) Com isso, desmorona a produção baseada no valor de troca, e o próprio
processo de produção material imediato é despido da forma da precariedade e
contradição.” (Marx 2011/1858, 941-2)

Kurz (2018/1986) argumenta que com a cientifização generalizada da produção,


especialmente desde a “revolução microeletrônica” desde os anos 70, esse ponto foi
alcançado. Ele argumenta que os momentos de expansão compensatória se esgotaram
desde a “revolução microeletrônica” que toma simultaneamente todos os ramos da
produção, incluindo o setor de serviços, que desde então não mais demandam grandes
massas de mão-de-obra. A situação descrita por Marx nos Grundrisse é alcançada, de
forma que “a nova crise, portanto, não é mais uma crise passageira de superacumulação
ou de superprodução, mas, antes, uma crise da própria criação de valor, diante da qual
o capital não encontra mais saída” (Kurz 2018/1986, 59).

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

Mas a crise não espera até que o “último trabalhador” seja eliminado do processo
imediato de produção. Ao invés disso, o colapso da valorização começa no ponto
histórico no qual o balanço entre a eliminação de trabalho vivo e a sua reabsorção através
da expansão sistêmica se inverte. Se mais trabalho vivo é eliminado do que pode ser
reabsorvido, a crise começa a desdobrar o seu processo histórico. Kurz (2018/1986)
localiza esse ponto entre o começo e a metade dos anos 70, tendo como expressões
empíricas o avanço do desemprego estrutural e o colapso de Bretton Woods.

O problema dos limites materiais já é apontado:

“Então, e somente então, esse processo de acumulação não pode mais ser
compreendido como infinito, pois se a riqueza abstrata, na forma de dinheiro,
é essencialmente ilimitada e interminável, o conteúdo material tem que
possuir um limite histórico absoluto. Não há, porém, qualquer acumulação
sem suportes materiais, por mais que esse seja o ideal do capital. A absorção
do trabalho produtivo vivo imediato deve se relacionar a um conteúdo material
e a um suporte, e este também pode ser observado histórica e concretamente
em muitos aspectos.” (Kurz 2018/1986, 54).

Pode-se ver que, ainda que Kurz esteja consciente da contradição entre valor e
conteúdo material, nesse estágio o seu tratamento da crise reduz o conteúdo material ao
trabalho vivo. É bem verdade que Kurz afirma que uma das consequências da
acumulação baseada na mais-valia relativa é

“uma escalada da quantidade de produtos materiais postos em circulação, que


força, por sua vez, a expansão do mercado e a aceleração da acumulação. Esse
processo concentra e centraliza o capital no interior dos Estados individuais;
ao mesmo tempo, o mercado mundial, enquanto teatro de guerra econômica,
é transformado em arena política global das lutas pelos mercados de
mercadorias e capital, lutas por matérias-primas, ‘esferas de influência’ etc.”
(Kurz 2018/1986, 47-8, ênfase minha).

Porém, a mediação entre a crise da valorização e a crise ecológica não é


plenamente desenvolvida. Em Postone (2014/1993), a relação entre a acumulação de
capital e a crise ecológica se torna mais explícita.

“há uma tensão subjacente entre as considerações ecológicas e os imperativos


de valor como a forma de riqueza e mediação social. Isso implica, ainda, que

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qualquer tentativa de responder, no contexto da sociedade capitalista, a


crescente degradação ambiental com a restrição ao modo de expansão desta
sociedade seria provavelmente ineficaz no longo prazo — não só por causa dos
interesses dos capitalistas ou gestores estatais, mas porque a falta de expansão
do mais-valor resultaria em graves dificuldades econômicas com grandes
custos sociais. Na análise de Marx, existe uma relação intrínseca entre a
necessária acumulação do capital e a criação da riqueza na sociedade
capitalista. Além disso, (…) sendo o trabalho determinado como um meio
necessário para a reprodução individual na sociedade capitalista, os
trabalhadores assalariados continuam dependentes do ‘crescimento’ do
capital, mesmo quando as consequências de seu trabalho, tanto ecológicas
como sob outras formas, são prejudiciais a eles mesmos e a terceiros. A tensão
entre as exigências da forma-mercadoria e as necessidades ecológicas agrava-
se com o aumento da produtividade e gera um severo dilema durante crises
econômicas e períodos de desemprego elevado. Esse dilema e a tensão em que
está radicado são imanentes ao capitalismo, a sua solução definitiva enfrentará
obstáculos enquanto o valor continuar sendo a forma determinante da riqueza
social.” (Postone 2014/1993, 362)

O que falta em Postone (2014/1993), apesar do seu conceito de “trajetória da


produção” baseado no aumento da composição orgânica do capital, é uma teoria da crise
mais desenvolvida. 1 Em um texto posterior, Kurz (2002) oferece uma análise da crise
ecológica semelhante àquela de Postone, baseada nas noções de degradação da natureza
e “externalização”:

“O moderno sistema produtor de mercadorias, baseado na valorização do


capital monetário como fim em si mesmo, revela-se aí, de dupla maneira,
irracional: tanto no macroplano da economia nacional e mundial quanto no
microplano da economia industrial. O macroplano, isto é, a soma social de
todos os processos de valorização e de mercado, produz a coerção para um
crescimento abstrato permanente da massa de valores. Isso leva a formas e
conteúdos nocivos de produção e a modos de vida que não são compatíveis
nem com as carências sociais nem com a ecologia dos nexos naturais
(transporte individual, assentamento irregular, desgaste do ambiente,
formação de aglomerações-monstro nas cidades, turismo de massa etc.). No
microplano da economia industrial, as coerções do crescimento e da
concorrência conduzem a uma política de ‘redução dos custos’ a qualquer
preço, não importando se o conteúdo da produção é em si conveniente ou
diruptivo. Mas os custos não são na maior parte objetivamente reduzidos, mas
simplesmente deslocados para fora: para a sociedade inteira, para a natureza,
para o futuro. Essa ‘externalização’ dos custos aparece então, de um lado, como
‘desemprego’ e pobreza, de outro, como poluição do ar e da água, lixiviação e

1 Mais tarde, Postone falaria em “anacronismo do valor”. Ver o texto de Moishe Postone publicado nesta
edição da Sinal de Menos.

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erosão do solo, transformação destruidora das condições climáticas etc.” (Kurz


2002)

Ortlieb (2009) conceitua uma mediação adicional entre a crise da valorização e a


crise ecológica no que se refere ao processamento material. Ortlieb demonstrou que na
produção baseada na mais-valia relativa, após um certo limiar de produtividade,
aumentos adicionais dessa produtividade geram massa decrescente de mais-valor por
unidade de riqueza material. Portanto, “a história do capitalismo pode ser subdividida
numa fase ascendente e numa fase descendente da mais-valia relativa.” (Ortlieb 2009).
Ele então chega à importante conclusão:

“Com o aumento da produtividade, este crescimento compulsivo potencia-se


uma vez mais no plano material: se, para a realização de igual mais-valia, é
necessária a produção de cada vez mais riqueza material, então
o output material do capital tem de crescer ainda mais intensamente do que a
massa de mais-valia. (…) isto aplica-se à fase descendente da produção de
mais-valia relativa, já há muito tempo alcançada. Se esse movimento de
expansão esbarra agora nos limites, porque a riqueza material em constante
aumento não apenas tem de ser produzida, mas também tem de encontrar
clientes solventes, desencadeia-se uma dinâmica de crise irreversível:
um output material constante, ou mesmo crescendo simplesmente menos
rapidamente do que a produtividade, tem por consequência uma produção de
mais-valia que se torna cada vez menor, o que reduz as possibilidades de
escoamento do output material, o que em seguida reforça a diminuição da
massa de mais-valia etc. (...) Os espaços para os quais o capital assim se
expandiu são de natureza material, sendo, portanto, necessariamente finitos e,
mais cedo ou mais tarde, esgotados. Quanto ao primeiro momento
mencionado do processo de expansão, é sem dúvida onde estamos na
actualidade: não há canto da Terra nem sector de produção que não tenha sido
devassado pelo capital.” (Ortlieb 2009).

Ortlieb confirma a análise de Kurz de que a expansão histórica do capital impele


à busca constante de trabalho vivo e riqueza material, e vai além, mostrando que a crise
ecológica não se reduz à externalização e degradação, mas também se reflete no input
de recursos materiais:

“A questão não é, portanto, se o ambiente será destruído por causa da


valorização do valor, mas, quando muito, até que ponto o será. E aqui o
crescimento da produtividade desempenha um papel totalmente pernicioso,
na medida em que – como produção de mais-valia relativa – continua ligado
ao valor, como forma dominante de riqueza, porque a realização da mesma

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massa de mais-valia exige um output material cada vez maior e uma


utilização de recursos ainda maior: à transição das antigas para as novas
técnicas, com a finalidade de reduzir o tempo de trabalho necessário, sucede
geralmente que o trabalho humano é substituído por máquinas, ou por elas
acelerado. ” (Ortlieb 2009; ênfase minha).

Ortlieb reconhece que a sua análise baseada no papel da mais-valia relativa no


desenvolvimento histórico do capital é “bastante árida” e envolve uma “redução de
complexidade” que pode resultar na “supressão temporária de todos os outros aspectos
do patriarcado produtor de mercadorias entrado em crise”. Mas esse seria o “o tributo a
pagar por uma exposição – espero eu – compreensível” (Ortlieb 2009). Na medida em
que a sua análise lançou luz sobre um aspecto importante da crise da valorização,
nomeadamente a mediação entre a crise da valorização e um crescente processamento
material para a valorização valor, ela foi de fato bem-sucedida. Contudo, ainda há um
importante momento que foi negligenciado no modelo de Ortlieb. A incorporação desse
momento aprimora a compreensão das crises atuais.

Natureza, capital circulante, crise

O momento que falta ao modelo de Ortlieb é o valor da natureza como capital


circulante. A taxa e lucro é determinada não apenas pela taxa de mais-valia (o nível no
qual o modelo de Ortlieb se concentra) mas também pelo valor do capital constante. No
modelo de Ortlieb, o capital constante é omitido, “porque é irrelevante para a
consideração aqui efectuada do ponto de vista do conjunto da sociedade: também o
capital constante é produzido (em outro lugar), sendo a magnitude do seu valor o tempo
de trabalho a ser gasto pelo mesmo na média social, novamente subdividido em trabalho
necessário e trabalho excedente.” (Ortlieb 2009, n. 1). Essa formulação parece indicar
que apenas o capital fixo (maquinário) é considerado, mas não o outro componente do
capital constante, o capital circulante (matérias-primas). Ou, no máximo, o valor do
capital circulante é implicitamente considerado como dependendo exclusivamente da
produtividade do trabalho, mas não das condições biofísicas da sua extração. Porém,
como destacado por Moore (2011), “a fraqueza crucial dos argumentos da queda da taxa
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

de lucro não é a teoria em si, mas a ênfase exagerada em um momento do capital


constante – no capital fixo, e não no circulante” (tradução minha).
Tomar o valor do capital circulante em consideração é importante porque o
rebaixamento do seu valor é um mecanismo compensatório adicional na expansão do
capital, no sentido apresentado por Kurz (2018/1986). Em outras palavras, a
composição orgânica do capital tende a aumentar com a acumulação de maquinário
(capital fixo) no processo imediato de produção, mas o barateamento do capital
circulante pode amortecer esse aumento. Subjaz esse argumento o fato de que a extração
de matérias-primas não apresenta condições constantes, mas, pelo contrário, se
desenvolve ao longo de uma trajetória de exploração. Uma nova mina apresenta mineral
de alta pureza, mas à medida que é explorada, ele se torna mais pobre, demandando
processamento adicional, e portanto, mantidas as demais condições constantes, a
matéria-prima se torna mais cara. O capital pode baratear o capital circulante
expandindo continuamente as fronteiras de mercadorias: explorando novas minas,
novos solos, novos cardumes etc. que produzirão capital circulante mais barato, e,
indiretamente, causarão o barateamento do capital fixo (por exemplo, ferro mais barato
resultará em maquinário mais barato). Naturalmente, pode-se argumentar que
aumentos de produtividade compensariam a qualidade declinante de minérios etc., mas
isso seria apenas deslocar o problema: o aumento da produtividade teria de ser ainda
mais intenso devido a essa mediação adicional.
Pode-se constatar, então, que há uma mediação entre o aumento tendencial da
composição orgânica do capital e a expansão de fronteiras de mercadorias, sendo que a
mercadoria força de trabalho pode ser considerada um caso especial. 2 Em relação à crise,
como mostrado por Ortlieb (2009), após a ultrapassagem de um certo limiar de
produtividade o consumo de recursos materiais cresce exponencialmente, mais
rapidamente do que a produtividade. Usando o conceito de fronteira de mercadorias,
pode-se notar que o valor desse capital circulante é crucial: não apenas o consumo de
recursos, mas a exploração de novas minas, novos solos e recursos em geral em
fronteiras de mercadorias torna-se crítico. No que poderia ser considerado um corolário
da conclusão de Ortlieb, Moore (2015b) diz que “a relação entre exploração e

2 Sobre fronteiras de mercadorias, ver Moore (2000).

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apropriação [em fronteiras de mercadorias] é assimétrica. A crescente produtividade do


trabalho na produção de mercadorias implica um aumento ainda maior do volume de
energia e matérias-priams (capital circulante) para cada unidade de tempo de trabalho”.
Essas condições biofísicas diferenciadas de extração, porém, resultam em uma
“tendência de queda do excedente ecológico” (o valor crescente do capital circulante). O
que fica subjacente aqui é a geografia desigual e diferenciada da natureza. Imperialismo
e guerras por recursos podem ser consideradas em relação ao aumento tendencial da
composição orgânica do capital, ou seja, não apenas levados a cabo para garantir o
acesso a recursos abstratos indiferenciados, mas recursos de uma determinada
qualidade que produzirão capital circulante mais barato. Aqui o valor de uso se impõe.
Flatschart (2017) critica a noção de (apropriação de) “natureza barata” em
fronteiras de mercadorias porque “a magnitude do ‘valor da natureza’ é ela própria
produzida pela relação entre sociedade e natureza, que é configurada pelo valor” (148;
tradução minha). É claro que Flatschart está correto quando diz que o “valor da
natureza” é mediado socialmente. Porém, parece que o papel da “fronteira de
mercadorias” escapa à sua análise. A fronteira de mercadorias fornece “natureza virgem”
ao circuito do capital: solo virgem (naturalmente fértil), novas minas (minério de alta
pureza), novos e abundantes cardumes etc., o resultado de milhares ou milhões de anos
de atividade biogeoquímica do planeta, o que garante que a natureza permaneça barata.
Sem a expansão dessas fronteiras, a natureza tem de ser crescentemente “capitalizada”
(fertilizantes artificiais para os solos, maior processamento de minérios em minas em
vias de esgotamento etc.) e assim se tornaria tendencialmente mais cara. O que está em
jogo aqui é a dialética entre trabalho abstrato e trabalho concreto. O trabalho concreto
em uma mina de mineral de baixa pureza (ou solo pobre, cardume esparso etc.) é
diferente daquele em uma mina contendo mineral com alto teor de pureza (ou solo fértil,
etc.) e implica um dispêndio diverso de tempo de trabalho (trabalho abstrato): seja
dispêndio de força de trabalho imediato pelo trabalho vivo, seja o dispêndio de trabalho
morto adicional incorporado em matérias-primas e no maquinário (depreciação).
Assim, o movimento de expansão das fronteiras de mercadorias, globalmente, mediará
o valor da natureza e, em consequência, a composição orgânica do capital.
Além dessa mediação, o que resulta dessa análise é que a exaustão de fronteiras
de mercadorias é também uma causa de crise, porque nesse caso o capital perde a
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

capacidade de produzir capital circulante barato, e a composição orgânica tende a


explodir. A teoria da crise de Moore se baseia nessa exaustão, mas a eliminação de
trabalho vivo não é enfatizada. Kurz e Ortlieb, por sua vez, se baseiam na eliminação de
trabalho vivo, mas o valor da natureza é considerado função tão somente da
produtividade do trabalho, abstraindo de diferenciações materiais e do que Moore
(2011) chama de “tendência de queda do excedente ecológico”. Trata-se de dois
momentos da mesma crise da valorização que devem ser considerados em sua totalidade
mediada: a eliminação do trabalho vivo do processo imediato de produção e a exaustão
de fronteiras de mercadorias como um processo único de crise.
A “crise ecológica”, nessa análise, consistiria não apenas em uma crise “externa”
causada pela lógica da externalização (Kurz 2002) (aquecimento global, pontos críticos
biogeosféricos), mas também em uma crise internalizada, relacionada à valorização, à
medida que o valor da natureza tende a aumentar quando as fronteiras de mercadorias
se exaurem e assim explode um importante mecanismo de amortecimento do aumento
tendencial da composição orgânica.

A natureza na “trajetória da produção”: “ruptura metabólica” ou valor?

A análise da degradação da natureza pela externalização tem similaridades com o


enfoque da “fissura metabólica” proposto por Foster (1999). Ele se baseia em trechos do
volume 3 e do volume 1 d’O Capital, respectivamente:

“a grande propriedade do solo reduz a população agrícola a um mínimo em


diminuição constante e opõe-lhe uma população industrial cada vez maior,
aglomerada em grandes cidades, gerando assim as condições para uma
ruptura irremediável no metabolismo social, prescrito pelas leis naturais da
vida; dessa ruptura decorre o desperdício da força da terra, o qual, em virtude
do comércio, é levado muito além das fronteiras do próprio país. (Liebig.) . . .
A indústria e a agricultura em grande escala, exploradas de modo industrial,
atuam de forma conjunta. Se num primeiro momento elas se distinguem pelo
fato de que a primeira devasta e destrói mais a força de trabalho e, com isso, a
força natural do homem, ao passo que a segunda depreda mais diretamente a
força natural da terra, posteriormente, no curso do desenvolvimento, ambas se
dão as mãos, uma vez que o sistema industrial na zona rural também exaure
os trabalhadores, enquanto a indústria e o comércio, por sua vez, fornecem à
agricultura os meios para o esgotamento do solo.” (Marx 2014, 734; citado em
Foster 1999; ênfase minha)

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“Com a predominância sempre crescente da população urbana, amontoada em


grandes centros pela produção capitalista, esta, por um lado, acumula a força
motriz histórica da sociedade e, por outro lado, desvirtua o metabolismo entre
o homem e a terra, isto é, o retorno ao solo daqueles elementos que lhe são
constitutivos e foram consumidos pelo homem sob forma de alimentos e
vestimentas, retorno que é a eterna condição natural da fertilidade permanente
do solo. Com isso, ela destrói tanto a saúde física dos trabalhadores urbanos
como a vida espiritual dos trabalhadores rurais. Mas ao mesmo tempo que
destrói as condições desse metabolismo, engendradas de modo inteiramente
natural-espontâneo, a produção capitalista obriga que ele seja
sistematicamente restaurado em sua condição de lei reguladora da produção
social e numa forma adequada ao pleno desenvolvimento humano. (...) todo
progresso da agricultura capitalista é um progresso na arte de saquear não só
o trabalhador, mas também o solo, pois cada progresso alcançado no aumento
da fertilidade do solo por certo período é ao mesmo tempo um progresso no
esgotamento das fontes duradouras dessa fertilidade. (...) Por isso, a produção
capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção
social na medida em que solapa os mananciais de toda a riqueza: a terra e o
trabalhador.” (Marx 2013/1867, 702-3; citado em Foster 1999)

De imediato, pode-se observar que, de um lado, a “ruptura” é mencionada por


Marx no volume 3, no qual Marx trata dos aspectos mais superficiais da acumulação de
capital (a “fórmula trinitária”: lucro, renda, salário). Ela não pode ser uma categoria
fundamental do capital, mas apenas uma derivação das categorias fundamentais
desenvolvidas no volume 1. Ademais, em ambos os volumes os excertos tratam da
fertilidade do solo como um problema empírico específico, mas não como uma categoria
fundamental. A “ruptura metabólica” pode ser analiticamente útil para referir-se ao
aquecimento global e outras perturbações empíricas causadas pelas externalizações do
capital, mas trata-se de um construto desenvolvido por Foster que, em Marx, se refere a
um problema empírico específico, não se tratando de uma categoria fundamental.

Pode esse construto ser aplicado com o enfoque da crítica do valor? Há


importantes inconsistências em seu uso. Essas inconsistências podem ser traçadas no
tratamento que Foster dispensa à alienação através da obra marxiana:

“Assim como Marx traduziu a sua teoria inicial da alienação do trabalho


[labor] para termos mais materiais através da sua análise posterior da
exploração e degradação do trabalho [work], ele traduziu a sua noção inicial
de alienação da natureza (parte do naturalismo feuerbachiano que perpassou
os seus Manuscritos econômico-filosóficos) para termos mais materiais

130
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

através do seu conceito posterior de fissura metabólica.” (Foster 1999;


tradução minha)

Foster considera que o jovem Marx era “feuerbachiano” (essencialista). A análise


marxiana da alienação do trabalho teria se tornado “mais materialista” com o foco na
“exploração” e na “degradação”. Pode-se ver aqui que Foster entende a alienação de
maneira muito diversa daquela da crítica do valor. Como colocado por Jappe (2014):

“Mas se o fetichismo consistir de fato nessa inversão real, ele não será tão
diferente da alienação de que falava Marx em seus primeiros textos. (...) Marx
sugere – eis porque se pode falar de uma continuidade propriamente
conceitual entre as noções de alienação e de fetichismo em Marx – que o
fetichismo da mercadoria é a continuação de outras formas de fetichismo
social, como o fetichismo religioso. O “desencantamento do mundo” ou a
“secularização” não tiveram lugar verdadeiramente: a metafísica não
desapareceu com as Luzes, mas desceu do Céu e se mesclou à realidade
terrestre. É o que Marx diz quando denomina a mercadoria um “ser sensível-
suprassensível” (...) A descrição que Marx oferece da alienação nos
Manuscritos de 1844 não aparece, portanto, como uma abordagem
fundamentalmente diferente da conceitualização do fetichismo, mas como
uma primeira aproximação, uma abordagem ainda limitada, que já dizia,
implicitamente, o essencial: a despossessão do homem pelo trabalho abstrato
que se tornou o princípio da síntese social.”

A noção de Foster da alienação no Marx tardio, pelo contrário, adere à noção de


“ruptura epistemológica” entre a juventude e a maturidade de Marx. Ela se aproxima de
uma tradição marxista de “materialismo vulgar” (centrada na “exploração” e na
“degradação”), sem embasar a análise no conceito fundamental do valor entendido como
teoria da alienação, a inversão real de sujeito e objeto (fetichismo). O conceito crítico do
valor é o elo entre a “alienação” no jovem Marx e o “fetichismo” no Marx tardio, como
externalização objetificada das mediações sociais.3 A interpretação de Foster da
alienação no jovem Marx tem como consequência lógica que o fetichismo é considerado
como mero “véu” ou “falsa consciência”, de acordo com a tradição de Paul Sweezy que
ele continua na Monthly Review:

3 Sobre a continuidade entre o jovem Marx e o Marx tardio, e entre os seus conceitos de alienação e
fetichismo, ver também Colletti (1992).

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

“é evidente que a forma de produção das mercadorias constitui o véu mais


eficiente do verdadeiro caráter de classe da sociedade capitalista. (…) a
produção de mercadorias alimentou a ilusão de sua permanência e ocultou o
verdadeiro caráter das relações sociais que representa (…) a lei do valor é
essencialmente uma teoria de equilíbrio geral. (…) sendo a distribuição da
atividade produtiva colocada sob controle consciente a lei do valor perde a
importância. Seu lugar é tomado pelo princípio do planejamento. Na
economia de uma sociedade socialista a teoria do planejamento deve ocupar
a mesma posição da teoria do valor na economia de uma sociedade
capitalista. (Sweezy 1976/1962, 67-8, 81-2; ênfases minhas)

Para Sweezy, uma vez que o “véu” é removido, os burocratas assumirão o


“planejamento” da distribuição da atividade produtiva (“equilíbrio geral”, isto é,
circulação), mas a forma da produção permanecerá intacta. 4 Correspondendo a isso, a
noção de Foster de “ruptura metabólica” é apartada de uma análise categorial
fundamental. A “ruptura metabólica” é então hipostasiada como uma “explicação total”,
um lugar que, em Marx, é ocupado pelo valor; assim como a “exploração” é hipostasiada
em leituras do marxismo tradicional. A crise, para Foster, é exclusivamente externa
(aquecimento global, tipping points), derivada das “fissuras”: deve-se notar aqui a
ênfase na alocação (circulação), assim como em Sweezy, e a ausência de uma crítica da
forma de (co-)produção da natureza.
Levar a sério a teoria do fetichismo implica a noção de que o valor é o Geist (o
espírito hegeliano), o “sujeito automático” (Marx) (Postone 2014/1993, 71-83). Significa,
ao fim e ao cabo, que a propria dialética deve ser historicamente especificada, ou seja,
ancorada em uma forma historicamente específica de práxis (alienada):

“Ao escolher a mercadoria como ponto de partida, Marx não apenas localiza o
objeto próprio da dialética na forma social historicamente específica da
produção de mercadorias, mas também localiza historicamente a própria
dialética. Essa auto-reflexividade é uma consequência necessária da noção de
adequação do conceito ao seu objeto, que está na base da dialética tanto de
Hegel quanto de Marx. O que se rejeita ao começar pela mercadoria é uma
noção da dialética como método universalmente aplicável – ou, em outras
palavras, como a expressão adequada de uma realidade indeterminada cuja
natureza essencial é contraditória. Ao invés disso, a dialética é entendida como
um conceito crítico que agora deve ser visto como tendo surgido com a
aparição da forma-mercadoria e como sendo o único método adequado para

4 Foster menciona com aprovação o entendimento do valor de Sweezy como “teoria geral do equilíbrio”
em Foster (1986, 49).

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

uma forma social determinada como uma totalidade pela produção de


mercadorias (isto é, a sociedade capitalista), com as suas contradições
historicamente específicas.” (Postone e Reinicke, 1974; tradução minha)

A teoria de Foster da “ruptura metabólica”, pelo contrário, se baseia em uma


noção trans-histórica da dialética como “método universalmente aplicável”. Foster
rejeita a Teoria Crítica e o Marxismo Ocidental en bloc justamente porque, desde o jovem
Lukács, ela rejeita a “dialética da natureza”. Foster afirma que isso representou uma
virada ao idealismo, e busca, ao contrário, por uma “unidade essencial de método entre
as ciências naturais e sociais” (Foster 2000, 7). Ainda que ele rejeite a verão engelsiana
da “dialética da natureza” devido ao seu determinismo divorciado da práxis, o seu
recurso a Epicuro não modifica o seu caráter ontológico, trans-histórico: ele ainda
defende uma “dialética materialista” (Foster 2016), ou a “inversão materialista” de
Hegel: “Hegel buscou superar o cisma no interior do pensamento através de um método
dialético que privilegiou uma ontologia idealista. Marx ofereceu um método dialético
que privilegiou uma ontologia e práxis materialista.” (Foster e Burkett 2016, 57). Como
mostrou Colletti (1973), uma “dialética materialista” é a mera imposição da metafísica
hegeliana sobre a natureza, um entendimento incompatível com a dialética como a
expressão da “metafísica real” historicamente específica do valor como Geist
(fetichismo).
Além disso, o enfoque de Foster não é livre de inconsistências, oscilando entre
uma dialética baseada na práxis de inspiração epicuriana, de um lado, e uma dialética
contemplativa da própria natureza, por outro (Cassegard 2017). Foster não percebe a
especificidade histórica da dialética, ancorada em um sistema histórico baseado na
produção de mercadorias. Assim, fica claro que Foster não pode compreender o
fetichismo como inversão real de sujeito e objeto. Essa ontologia da dialética caminha
de mãos dadas com o entendimento do fetichismo como mero “véu” e com a ontologia
do “trabalho”. Foster (2016) até mesmo cita elogiosamente a reafirmação hegeliana de
Engels segundo a qual a “liberdade é a consciência da necessidade”, que nada mais é
senão a ontologia das coerções objetivadas do capitalismo; o exato oposto da crítica do
“sujeito automático”. Ele também se refere positivamente ao Lukács tardio: “O
metabolismo também teve papel crítico, como enfatizou Lukács, tanto na ontologia do

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processo de trabalho de Marx quanto na questão da dialética da natureza.” (Foster e


Burkett 2016, 36; tradução e ênfase minhas).
Moore (2011) propõe a noção de “regime ecológico” como uma alternativa à
“ruptura metabólica”. Com isso, a ênfase se desloca para a maneira pela qual o capital
organiza a natureza para produzir capital circulante barato – aqui a análise se baseia no
valor como a categoria fundamental. Regimes ecológicos mudam tanto quanto “regimes
de acumulação” (da primeira Revolução Industrial ao fordismo ao neoliberalismo etc.).
O regime ecológico da primeira revolução industrial incluiu plantações de algodão
escravistas no vale do Mississippi, minas de carvão, minas de enxofre, minas de ferro,
plantações de açúcar escravistas no Caribe, entre outros. O regime fordista incluiu o
petróleo como componente essencial. A vantagem do conceito de “regime ecológico” é
que ele internaliza o valor da natureza, ao invés de apenas lidar com “externalizações”.
Deve estar claro que o problema das externalizações (bem podemos chamá-las de
“rupturas metabólicas”, com um sentido modificado) persistem, porque a natureza não
se subsume completamente no capital e possui as suas próprias relações materiais,
constituindo um não-idêntico. A noção de “regime ecológico pode adicionar a isso a
noção do valor do capital circulante como uma internalização da natureza na crise da
valorização.
Postone e Foster fazem afirmações fortes sobre a separação entre sociedade

natureza:

“O sonho implícito pela forma capital é de total ausência de limites, uma


fantasia de liberdade como a total libertação da matéria e da natureza. Esse
‘sonho do capital’ está se tornando o pesadelo daquilo do que ele se esforça
para se libertar — o planeta e seus habitantes.” (Postone 2014/1993, 445)

“O mundo não está, sob o capitalismo, se movendo em direção à unidade da


humanidade e da natureza, mas em direção a uma perigosa separação.”
(Foster 2016; tradução minha)

A plena realização desse sonho-pesadelo ou separação só pode significar a


alienação total, a subsunção absoluta da natureza ao capital. Em outras palavras, que
no auge da “trajetória da produção” a natureza seria transformada completamente em
“capital circulante” perfeitamente fungível. Porém, a realização plena desse sonho-
pesadelo significaria a aniquilação tanto da humanidade quanto da natureza. O corolário

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é que, por um lado, no capitalismo histórico a natureza preserva uma (sempre


decrescente) dimensão de não-identidade; por outro, que a produção de capital
circulante é um momento importante dessa trajetória. Apenas se entendidas dessa
maneira as afirmações de Postone e Foster podem se referir não apenas à externalização
mas também à forma pela qual o capital produz “naturezas históricas” adequadas para a
valorização do valor.

Saito (2017) argumenta que

“a crítica ecológica da ruptura metabólica de Marx pode ser consequentemente


deduzida do seu método e teoria do valor (...) Após desenvolver uma série de
categorias econômicas puramente sociais, ele investiga como o processo de
produção material é subsumido e subjugado à primazia do valor, [de maneira
que a] relação monística de homem e natureza é modificada por formas
puramente sociais que não contêm ‘um átomo de matéria’ sob certas relações
sociais, e como uma formação social mediada por seres humanos como
personificações de mercadorias, dinheiro e capital resulta em uma série de
desarmonias e contradições na realidade” (ênfase e tradução minhas).

Flatschart (2017) argumenta de maneira semelhante ao afirmaar que “natureza”


e “sociedade” são “abstrações reais”. Deve-se notar que essa relação entre valor e “fissura
metabólica” proposta por Saito (2017) e Flatschart (2017) está ausente na proposição
original de Foster, que se baseia em uma noção trans-histórica do trabalho e em uma
posição sobre a “dialética da natureza” que não é seguida por eles. Ou seja, o que eles
propõem é um conceito consideravelmente modificado da “ruptura metabólica”, que não
seria uma “explicação total”, como o é para Foster, e não implicaria uma ontologia da
dielética. A “ruptura metabólica”, em suas formulações, seria uma forma fenomênica de
formas de relações historicamente específicas mais fundamentais. Além disso, as suas
análises em si não negam a validade e relevância da produção de capital circulante em
“naturezas históricas” e a sua relação com a teoria da crise, que é o ponto defendido aqui.

Por outro lado, Malm (2017) defende uma versão mais “ortodoxa” da “fissura
metabólica”:

“Quanto mais profundamente os seres humanos transformaram a natureza


no curso de sua história, mais intensamente ela veio a afetar a sua vida.
Quanto mais a esfera das relações sociais determina aquela das relações

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naturais, mais o inverso se torna também verdadeiro, e isso ocorre até o ponto
no qual tudo acaba por colapsar. Poderíamos chamar isso de paradoxo de uma
natureza historicizada. (...) Aqui se encontra [na teoria da ruptura metabólica]
um método para reparar as combinações perturbatórias do natural e do social.”

Aqui a forma histórica da transformação da natureza (relações determinadas pelo


valor) é ignorada, resultando em uma concepção ingênua da natureza pristina
ontologicamente em “equilíbrio”, e a transformação da natureza como a-historicamente
“disruptiva”. 5

A tempestade perfeita: trabalho vivo, capital circulante

Enquanto os autores da crítica do valor teorizam a crise baseados na eliminação


do trabalho vivo, Moore vê a raiz da crise no valor crescente do capital circulante.
Podemos ficar tentados a escolher uma entre elas como a “verdadeira raiz” da crise
objetiva do capitalismo. Porém, há uma mediação entre o aumento da composição
orgânica do capital e a apropriação em fronteiras de mercadorias. Em uma passagem
destacada por Moore, Marx diz que

“quanto mais desenvolvida estiver a produção capitalista, e quanto maiores,


por isso, forem os meios para um aumento súbito e sustentado da parte do
capital constante constituída pela maquinaria etc., quanto mais rápida for a
acumulação (como ocorre especialmente em épocas de prosperidade), maior

5 Os argumentos de Saito, Flatschart e Malm são também parte do debate sobre monismo versus dualismo
que está fora do escopo deste artigo. Deve-se notar que Moore reconhece que “[Natureza e Sociedade]
são (...) abstrações ao mesmo tempo violentas e reais. Elas são violentas no sentido de que abstraem
demasiado da realidade no interesse da clareza conceitual. E elas são reais no sentido de que Sociedade
e Natureza são de fato forças operantes, tanto em nossas estruturas de conhecimento quanto nas relações
de poder e produção realmente existentes do capitalismo”; “A Natureza pode ser uma abstração violenta
– um conceito no qual relações essenciais são abstraídas da realidade em questão – mas ela é também
uma abstração real, um força operante no mundo.” (Moore 2015, 27, 47-8; tradução minha). A
insistência de Moore em um “metabolismo singular” é, de um lado, normativa – “um meio de se
resguardar contra nossa tendência a aceitar a ontologia do capital” (Moore 2015, 47; tradução minha),
daí a alusão de Saito (2017) à décima primeira tese sobre Feuerbach. Por outro lado, como vejo, ela se
origina da distinção wallersteiniana entre a lógica do capital e o capitalismo histórico (Wallerstein 1983).
A lógica do capital produz uma separação entre sociedade e natureza, como argumentam Flatschart
(2017) e Saito (2017), mas essa separação tem de ser levada a cabo historicamente, e aparece de maneira
imperfeita ao longo da história do capitalismo. A separação plenamente realizada entre sociedade e
natureza na verdade coincidiria com a aniquilação de ambas, um estágio do qual estamos provavelmente
nos aproximando no século XXI – mas essa é uma tendência histórica, não uma ontologia estática, que
evolui pari passu com a crescente composição orgânica do capital. Essa dialética entre lógica e história
(More 2015, 47-8) é entendida como inconsistência por Malm (2017). Criticar um método para o estudo
do capitalismo histórico com base na lógica do capital me parece equivocado.

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será a sobreprodução relativa de maquinaria e outros capitais fixos, mais


frequente será a subprodução relativa das matérias-primas vegetais e
animais, mais veementes serão o aumento do seu preço.” (Marx 2016, 100).

Isso constitui uma dialética de superprodução e subprodução (Moore 2015b).


Quando cresce a composição orgânica do capital, a apropriação da natureza virá na
sequência: “cada inovação marcadora de época, portanto, uniu produtividade e pilhagem
em um ato histórico-mundial que reduz a proporção da natureza mundial diretamente
dependente do circuito do capital.” (Moore 2011). Mas o inverso também vale: quando a
natureza se torna cara, o aumento de produtividade não tardará. 6 Esse acoplamento da
eliminação de trabalho vivo do processo imediato de produção (aumento da composição
orgânica do capital) e da produção de capital circulante em fronteiras de mercadorias
tem como consequência do fato de que ambas as tendências tendem a convergir
historicamente para um crise única. Quando uma das pontas está sobrecarregada, a
outra é posta em funcionamento, até a situação-limite na qual ambas estão a ponto de
arrebentar.

“Naturezas históricas” e o problema do “Antropoceno” como fetichismo.

O conceito de “regime ecológico” coloca importantes questões para a conceituação


do Antropoceno. Moore propõe o termo Capitaloceno, para especificá-lo historicamente
e localizá-lo na acumulação de capital. A noção de “natureza histórica” abarca
plantações, minas, etc. que são “postas para trabalhar” para produzir capital circulante
barato (Moore 2017). Cunha (2015), por outro lado, defende que o Antropoceno se
caracteriza pela sua falta de controle, como uma forma fenomênica do fetichismo. Em
Moore (2017) há um elemento de “controle” no Capitaloceno que, porém, não é
contraditório com a noção do Antropoceo como fetichismo. Como colocado por Marx,
“na sociedade do modo de produção capitalista a anarquia da divisão social do trabalho
e o despotismo da divisão manufatureira do trabalho se condicionam mutuamente”
(Marx 2013/1867, 534) – controle instrumental relativo na unidade de produção

6 Por simplificação, abstraio de outras tendências, como a taxa de exploração.

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individual e fetichismo na reprodução social agregada são dois lados da mesma moeda.
O mesmo se aplica às “naturezas históricas”, na qual o controle prevalece (por exemplo,
em plantações ou minas), e no Antropoceno como fetichismo, no qual os fluxos materiais
globais do planeta estão cada vez mais fora de controle (por exemplo, o ciclo global do
carbono). A relação entre o Capitaloceno como projeto de classe ou imperialista e o
Antropoceno como fetichismo é mediada pela escala, como notado por Campagne (2017,
84-5). 7
Com o advento da “revolução microeletrônica”, juntamente com novas
biotecnologias e a geoengenharia, o capital está progressivamente se aproximando da
plena fungibilidade da natureza, o sonho-pesadelo descrito por Postone (2014/1993): as
naturezas históricas tendendo a coincidir com a “abstração real” da natureza,
acumulação sem trabalhadores e uma natureza perfeitamente fungível – exceto que isso
é impossível em um sistema cuja substância é o trabalho abstrato, assim como é
impossível subsumir perfeitamente a natureza ao capital. Com a sua apropriação
intensificada e aceleração das fronteiras de mercadorias, o novo regime ecológico
intensifica a feiura. Isso na melhor das hipóteses, se tivermos a sorte de escapar de
catástrofes reais. Ao mesmo tempo, essa contradição torna mais possível do que nunca
uma vida na qual a “lei do valor” é substuída pelas “leis da beleza”. Contudo, um dos
momentos da alienação, para o jovem Marx, é a separação do homem dessas “leis da
beleza” (Marx 2004, 84). O núcleo de verdade do Capitaloceno é o Antropoceno, levado
a sério: o “intelecto geral” da humanidade, constituído em forma alienada no tempo
histórico, deve ser apropriado e transformado para configurar a natureza e a sociedade
como um metabolismo reconciliado de acordo com as “leis da beleza”, não para subjugar
a natureza à lei do valor, mas para libertar o seu potencial pleno com a mediação
humana. “Beleza” e “feiura” são aqui entendidas não como estética em abstrato, mas em
relação direta com o trabalho alienado, ou seja, com as forças e relações de produção:

A impressão da fealdade da técnica e da paisagem industrial (...) remete para


o princípio da violência, da destruição. Os fins estabelecidos não estão
reconciliados com o que a natureza, por muito mediatizado que seja, quer dizer
de si mesma. Na técnica, a violência quanto à natureza não é reflectida por

7 Porém, Campagne (2017) compreende mal a noção de “trajetória da produção” como “teleologia”. Uma
trajetória alienada e historicamente específica da produção não deve ser confundida com uma teleologia
metafísica da História em si.

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representação, mas entra imediatamente pelos olhos. Isso só poderia ser


modificado por uma reorientação das forças técnicas de produção, que não se
medem mais apenas pelos fins queridos, mas também pela natureza, que
assume aqui uma forma técnica. (...) A técnica que, segundo um esquema
recentemente tirado da moral sexual burguesa, teria violentado a natureza,
seria igualmente capaz, sob relações de produção modificadas, de a socorrer e,
nesta pobre terra, a ajudar a tornar-se no que talvez aspire a ser. (Adorno
2008/1970, 61, 84)

Isso requereria e incluiria a “emancipação dos sentidos”, uma nova sensibilidade


não mais determinado pelo “sentido do ter”, quando o objeto existe para nós apenas
enquanto propriedade, enquanto capital (Marx 2004, 108). Em outras palavras: as
“naturezas históricas” são mediadas historicamente por uma técnica historicamente
específica que pode ser reconfigurada em direção à libertação da humanidade e da
natureza; a nostalgia por uma natureza não-mediada e “pristina” é ingênua e
reacionária, o obverso da sua abstração violenta. 8 A relação entre estética e forças e
relações de produção é usada aqui também para destacar a estreiteza histórica de um
modo de sociabilização determinado pela autovalorização do valor. As forças avançadas
de produção permitiriam a reconfiguração da riqueza material como a livre expressão da
humanidade e da natureza, mas a sociedade organizada de acordo com a base miserável
do tempo de trabalho socialmente necessário, justamente quando o trabalho se torna
supérfluo, bloqueia essa possibilidade, e assim as forças produtivas se tornam forças
destrutivas.

Conclusão

Neste artigo, propus o argumento de que a teoria da crise elaborada por Kurz
(2018/1986) e desenvolvida por Ortlieb (2009) com base em Kurz (2018/1986) e
Postone (2014/1993) ainda apresenta um ponto cego. Nessa teoria, o valor da natureza
(como capital circulante) não é levado em consideração. Como consequência, a “crise
ecológica” é considerada apenas como um problema de “externalização” (tipping points)

8 Sobre a dialética capitalista específica de abstrato e concreto, e as formas reacionárias de pensamento


que positivizam o particular concreto em oposição ao universal abstrato vilanizado, ver Postone (1986).

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ou de volume de processamento, deixando de lado como ela é internalizada no processo


de valorização como o valor do capital circulante. Levar em consideração o valor do
capital circulante no aumento tendencial da composição orgânica do capital, como
proposto por Moore (2011), é importante para se ter uma figura mais abrangente do
desenvolvimento da crise do capitalismo e da sua forma historicamente específica de
organizar a natureza. Para isso, o conceito de “regime ecológico” (baseado no valor)
parece ser mais útil do o de “ruptura metabólica”, que se baseia em uma noção da
dialética que é inconsistente com enfoque da crítica do valor. A noção de valor como
forma de organizar naturezas históricas conduz à dialética do controle de naturezas
particulares e descontrole da totalidade da biogeosfera.9

Referências

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Foster, John Bellamy (2016) “Marxism in the Anthropocene: dialectical rifts on the Left.”
International Critical Thought 6(3): 393-421.

9 Para uma análise da ascensão do bolsonarismo que faz uso da teoria da crise aqui proposta, ver meu
texto “Bolsonarismo e ‘capitalismo de fronteira’”, nesta edição de Sinal de menos.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

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142
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

O FIM DO “CAPITALISMO VERDE”

André Villar Gomez


Maurilio Lima Botelho

“É a nossa capacidade de ter medo que é


pequena demais e que não corresponde à
magnitude do perigo atual.”
(Günther Anders).

Dois fatos recentes indicaram uma mudança de percurso na relação entre política
e questão ambiental. Nos EUA, em março de 2017, Donald Trump anulou uma série de
medidas que controlavam a exploração de carvão mineral e cancelou acordos anteriores
em relação à mudança climática. Com um discurso de geração de empregos, o gesto foi
visto como uma retomada das formas clássicas de energia sem preocupação com os
impactos ambientais e sociais. No Brasil, em agosto do mesmo ano, Michel Temer
revogou uma imensa reserva ambiental na Amazônia, permitindo a exploração mineral
de uma área com gigantesco depósito de cobre no subsolo.

Esses gestos controversos de políticos conservadores não deixaram de gerar


polêmica, principalmente no segundo caso, já que a preservação da Amazônia é símbolo
mundial da luta ambiental. Mas a avaliação dominante pelos meios econômicos focou
nos ganhos proporcionados pelas medidas: criação de emprego, ampliação de
possibilidades energéticas, atração de investimentos internacionais etc.

Esses dois eventos, embora simbólicos, não correspondem a uma ruptura abrupta
com a preocupação ambiental. Há pelos menos dez anos uma mudança significativa tem
sido verificada no trato oficial das questões ambientais. Essa mudança poderia ser
resumida como o fim do capitalismo verde: o rompimento com as tênues preocupações
ambientais erigidas nas décadas de 1980, 1990 e que avançaram após o milênio. Visíveis
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

em uma série de ações e medidas pontuais, um progressivo rompimento com o discurso


das preocupações ambientais e a adoção cada vez mais óbvia de um cinismo político têm
sido a marca de ações econômicas recentes. Muitas vezes a indiferença ambiental é
acompanhada de um negacionismo radical dos impactos ambientais: trata-se pura e
simplesmente da adoção oficial de um discurso ultraconservador (com traços teológicos
evidentes) de que não há mudanças naturais provocadas pela sociedade ou, numa
vertente mais “cuidadosa”, de que não é possível confirmar “cientificamente” essas
alterações.

Assim, numa trajetória muito breve em termos históricos, podemos dizer que a
relação entre economia capitalista e questão ambiental saiu de um catastrofismo oficial
(cujo símbolo foi o Relatório Meadows e a Conferência de Estocolmo) e transitou para
um discurso de capitalismo verde em que seria possível lucrar com a integração da
proteção ambiental aos negócios (cujo símbolo foi o conceito de “desenvolvimento
sustentável” e sua popularização com a Eco-92).1 Nos últimos anos, um novo limiar foi
atravessado: há um completo abandono do pudor da preocupação ambiental. As
reclamações contrárias são tratadas como mero “infantilismo ecológico”, o que ocorre
mesmo no ambiente “científico”.

Resultado do aprofundamento da crise do capitalismo a partir do grande colapso


de 2007/2008, assim como da ampliação vertiginosa dos preços das commodities no
mercado internacional (temporariamente rebaixados pela crise de demanda), essa
ruptura com o “capitalismo verde” se manifesta cada vez mais claramente no discurso
oficial, mas é possível enxergá-la já em múltiplas ações. Ou seja, a crise estrutural do
capitalismo, cujos primeiros sinais estavam dados no início da década de 1970 – daí a
coincidência história com as preocupações ecológicas —, vai progressivamente
reduzindo os limites do mercado, a ponto de o mínimo de proteção ambiental ser

1 “Ao contrário do “Limites do Crescimento”, que preconizava o divórcio entre ecologia e economia – uma
vez que o “crescimento zero” strictu sensu é antagônico ao modo de produção capitalista –, a publicação
do extenso Relatório Brundtland, que adquiriu o sugestivo título de “Nosso Futuro Comum” (“Our
Common Future”, 1987) foi o corolário do processo de alinhamento dos interesses econômicos
com a questão ambiental” (OLIVEIRA, Leandro Dias de. Os "Limites do Crescimento" 40 Anos Depois.
Revista Continentes, [S.l.], n. 1, p. 72-96, jul. 2012. Disponível em:
http://www.revistacontinentes.com.br/continentes/ index.php/continentes/article/view/8. Acesso em
mar. 2018, p. 81).

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relegada a um elemento dispensável diante da própria autodestruição econômica em


curso. Assim, mesmo os custos ambientais decorrentes de uma frágil preocupação com
a sustentabilidade se tornam dispendiosos demais para um mercado que enfrenta
problemas de retorno em seus investimentos. Se os lucros estão cada mais minguados,
então é preciso cortar todas as despesas possíveis (desde as sociais até as ambientais) —
torna-se obrigação a externalização de todos custos implicados na produção.

A externalização de custos ecológicos, evidentemente, não é nova e nunca se


encerrou. Mas houve um breve momento em que a ideologia ambiental andou de mãos
dadas com a crença liberal numa saída ecológica para as encruzilhadas econômicas – a
abertura de novos mercados pela “economia verde” poderia ser uma oportunidade. O
“capitalismo verde” não passou de uma ideologia, mas, como tal, precisava se legitimar
com pequenas e simbólicas ações mínimas de “regulação ambiental”. Esse capricho
ambiental foi descartado pela “seriedade” mercantil. Agora, as limitações naturais são
distendidas ao máximo, a fim de que o último átomo de recurso natural seja explorado
empresarialmente. Se foi vendida, brevemente, a ilusão de que seria possível lucrar com
a descontaminação do ar e reconversão energética, agora se sabe que os custos para isso
são demasiado elevados e os retornos cada vez mais parcos — melhor faturar com a
queima da última gota de combustível fóssil e a venda de máscaras respiratórias do que
falir com a pouco rentável produção de ar puro.

Um tempo de catástrofes acelerado

É verdade que o decreto assinado por Michel Temer, que previa a abertura da
Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), foi revogado depois de uma forte
pressão da opinião pública internacional, capitaneada por figuras da mídia. Mas no
“recuo” da extinção da Renca, o governo federal brasileiro acabou permitindo a
exploração mineral em áreas protegidas, uma autorização lançada em meio a uma

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cortina de fumaça legal sobre o “manejo sustentável”.2 Além disso, essa medida foi
apenas a mais noticiada de uma série de outras mudanças na permissão de exploração
de áreas da Floresta Amazônica. Essa mudança é muito expressiva na política oficial em
relação à floresta pois agora se sabe que pelo menos 9 % do seu desmatamento se deve à
exploração mineral.3

De fato, é possível ver uma significativa mudança política na questão ambiental,


em âmbito nacional, pelo menos desde 2008, quando Marina Silva demitiu-se do
Ministério do Meio Ambiente, incapaz de conseguir cumprir suas próprias obrigações
ambientais. Radicalizando-se nos governos Dilma, a indiferença com os problemas
ambientais – cujo maior símbolo tornou-se a monstruosa construção de Belo Monte –
foi parte inseparável do chamado “novo desenvolvimentismo”.4 A redução do ritmo de
desmatamento da Floresta Amazônica, no governo Lula e nos dois anos iniciais do
primeiro governo Dilma, foi revertida drasticamente assim que a busca de processos
lucrativos, através da exploração de recursos naturais, tornou-se também uma receita
para evitar a irrupção da crise mundial em nossas terras. Assim, em que pese o
simbolismo do decreto de Temer, sua antecedência direta estava na política ambiental
destrutiva do governo Dilma, que passou a história recente como a presidência que
menos criou reservas ambientais desde o governo Geisel.

Em seu primeiro mandato, Dilma Rousseff criou até outubro de 2014


apenas quatro unidades de conservação na Amazônia Legal, num total
de ridículos 1.089 km2, sendo a presidência que menos criou reservas
desde a ditadura de Geisel (1974-1979). Sob seu primeiro governo, houve
diminuição em todas as modalidades de reservas legais, bem como da
área de várias Unidades de Conservação (UC) e de Territórios Indígenas
(TI). Foram extintas ou reduzidas diversas reservas naturais (parques
nacionais e estaduais), entre as quais se podem mencionar a Chapada
dos Veadeiros, os Pontões Capixabas, os Parques Nacionais de Monte

2Novo decreto de Temer não afasta ameaça à Amazônia, dizem especialistas, Carta Capital, 29 ago. 2017,
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/novo-decreto-de-temer-nao-afasta-ameaca-a-amazonia-
dizem-especialistas.
3Sonter, Laura J.; Herrera, Diego; Barrett, Damian; Galford, Gillian L.; Moran, Chris J.; Soares-Filho,

Britaldo S. Mining drives extensive deforestation in the Brazilian Amazon. In: Nature Communications
8, out. 2017. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41467-017-00557-w. Acesso em mar.
2018.
4 Gomez, André Villar; Barreira, Marcos. Catástrofe como modelo: agronegócio, crise ambiental e

movimentos sociais durante o decênio 2003-2013. In: Sinal de Menos, ano 7, n. 11, v. 1, 2015, p. 74-112.

146
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

Pascoal, Monte Roraima, Serra da Canastra, Araguaia, e os Parques


Estaduais da Serra do Tabuleiro e do Cristalino, entre outros.5

O mesmo se pode dizer em termos internacionais em relação à


desregulamentação do carvão pelo governo de Donald Trump: uma retomada do uso de
carvão já estava em curso mundialmente, desde pelo menos a alta gigantesca dos preços
do petróleo na primeira década do século XXI. Ainda que se possa apresentar exemplos
parciais de redução do uso de carvão mineral como fonte primária de energia ou como
combustível para indústrias, o fato é que tivemos uma alta global considerável na sua
produção: em onze anos ocorreu um aumento da produção mundial de carvão em 45 %
(2003-2013), enquanto no mesmo período, comparativamente, a população mundial
aumentou cerca de 10%.6

Enquanto a opinião pública se preocupa basicamente com os efeitos ambientais


do consumo de petróleo – mais visível do ponto de vista imediato do consumidor
individual, devido à sua infinidade de derivados —, o carvão segue sendo o maior
responsável pela emissão de gases de efeito estufa. O carvão mineral é a maior fonte de
dióxido de carbono — principal gás responsável pelo aumento de temperatura da
atmosfera com a intensificação do efeito estufa.7 Também na mineração do carvão é
liberado grande volume de metano, segundo gás em importância para o aquecimento
atmosférico.8

É verdade que um certo otimismo rodou o mundo recentemente, em virtude de


uma redução do consumo de carvão na China, principal produtor e consumidor mundial
desse combustível. Entre 2014 e 2016, ocorreu uma queda no consumo de carvão em

5 Marques, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Editora da Unicamp: Campinas, 2015, p. 116.
6 Marques, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental, p. 282. “A produção de carvão, em especial, está a
conhecer um dramático renascimento, com o século dezenove a perseguir com os seus espectros o século
vinte e um. Centenas de milhares de mineiros estão agora a trabalhar em condições que teriam
estarrecido Charles Dickens, extraindo os sujos minerais que permitem à China abrir duas novas centrais
térmicas a carvão por semana. Enquanto isso, prevê-se que o consumo total de combustíveis fósseis
aumente pelo menos 55%, ao longo da próxima geração, com as exportações internacionais de petróleo
a duplicar em volume.” (Davis, Mike. Vivendo na plataforma gelada. In: O comuneiro, n. 25, set. 2017,
disponível em: http://www.ocomuneiro.com/nr07_05_mikedavis.html). Acesso em mar. 2018.
7 Marques, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental, p. 286.
8 Dow, Kirstin; Downing, Thomas E. O Atlas da Mudança Climática: o mapeamento completo do maior

desafio do planeta. São Paulo: PubliFolha, 2007, p. 44.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

território chinês, mas o efeito foi mínimo do ponto de vista da matriz energética (caiu de
64 % para 62 %) e foi provocado muito mais pela redução dos preços globais do barril
do petróleo, depois do estouro da bolha das commodities, do que propriamente por uma
guinada na política ambiental chinesa, tal como a imprensa fez parecer.9 Agora se sabe
que em 2017 deve ser registrado uma retomada do consumo de carvão na China,
provocado pelas baixas chuvas.10 A tão aclamada diversificação da matriz energética
chinesa não se deve a uma preocupação ambiental sincera, mas aos gargalos da própria
crise energética em curso: é preciso encontrar alternativas para manter aceso o forno do
maior produtor mundial de mercadorias.

Em função da crise da sociedade baseada no petróleo e dos efeitos do


aquecimento global, vivemos uma verdadeira “regressão ao carvão”. Desde 1970, no
limiar da primeira crise do petróleo, o mundo utilizava o carvão como fonte de 12 % da
energia primária – uma redução significativa frente a 1880, quando era responsável por
97 % da produção de energia primária. Em 2010, a base energética do carvão chegou a
27 % e em 2014 atingiu 30,1 %.11 Longe, portanto, de uma transição energética rumo a
um futuro de novas fontes, tal como pregam os mais otimistas, estamos aceleradamente
caminhando para um retorno às condições da Primeira Revolução Industrial. A
progressiva crise do petróleo — seja pelas limitações em sua produção (que há anos gira
em torno de 85 a 95 milhões de barris diários, mesmo com o grande acréscimo da
produção por hidrofracionamento nos EUA), seja pela elevação do barril no mercado
internacional (que atingiu o cume de 146 dólares o barril em 2008) — tem provocado
uma brusca corrida ao carvão mineral como fonte “alternativa” de energia.

O aumento de consumo do carvão mineral também deve ser registrado como


decorrência de uma crise hídrica progressiva em boa parte do mundo, cujos resultados
imediatos são a redução ou a inviabilização crescente das fontes de energia hidráulicas

9 China reduz seu consumo de carvão pelo terceiro ano consecutivo, El País, 08 mar. 2017, disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/04/internacional/1488631238_086175.html. Acesso em
mar. 2018.
10 “a diminuição das chuvas no país asiático também fez com que caísse a energia hidroelétrica produzida

e o ‘espaço energético foi coberto com o carvão, cujo uso aumentou 3%’. Mudança climática: as emissões
mundiais de CO2 voltam a crescer em 2017, El País, 13 nov. 2017. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/09/ciencia/1510243597_169204.html. Acesso em mar. 2018.
11 Marques, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental, p. 282.

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– principalmente as usinas “a fio d’água”. Até mesmo o Brasil ampliou seu uso de
termoelétricas para evitar o colapso energético: entre 2012 e 2013, a participação do
carvão na matriz energética nacional passou de 1,6 % para 2,6% e as projeções do
governo indicam a ampliação desse tipo de usina para os próximos anos como forma de
conter o apagão (com os custos da energia em ampliação vertiginosa). Talvez sua
importância ainda seja mínima, mas além de ser um salto significativo em apenas dois
anos, é preciso ponderar que no subsolo brasileiro possui pouco carvão e de baixa
qualidade, além de que uma parte das termoelétricas estão sendo acionadas também
com gás natural e biomassa.

Assim, já como efeito econômico conjunto de aquecimento global e crise da


economia do petróleo, há uma corrida ao carvão mineral que, por sua vez, não pode
representar outra coisa senão o agravamento das mudanças climáticas e a
desqualificação do otimismo tecnológico. Em 13 anos, desde o ano 2000, a procura
mundial por carvão aumentou 10 vez mais do que por fontes de energia renováveis. 12
Esse é um dos fundamentos de uma visível regressão ambiental em curso – o que elimina
qualquer discurso “ecologicamente responsável” –, acompanhada pelo agravamento do
desmatamento.

Uma das causas principais dessa redução do volume hídrico de rios, a eliminação
de nascentes e alteração na dinâmica das chuvas, é o desmatamento de grandes
ecossistemas, como as floretas tropicais e as savanas. Em que pese toda a mobilização
social, a acalorada “preocupação” da opinião pública mundial e os tantos acordos de
proteção florestais firmados por organismos internacionais, o processo de destruição
desses biomas tem se acelerado, como se pode ver no caso da própria Floresta
Amazônica, que passou por períodos seguidos de queda na velocidade do desmatamento,
mas agora salta significativamente em 30 % em 2016, comparado ao ano anterior.13
Mesmo os índices parciais comemorados de 2017 são enganosos: eles mostram uma

12 Demanda por carvão cresce 10 vezes mais que por energia renovável, Terra, 7 mar. 2013, disponível em:
https://www.terra.com.br/noticias/ciencia/sustentabilidade/demanda-por-carvao-cresce-10-vezes-
mais-que-por-energia-renovavel,c0aa81fdbd44d310VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD.html. Acesso em
mar. 2018.
13 Desmatamento na Floresta Amazônica cresceu 30% em 2016, Jornal Hoje, 11 jan. 217. Disponível em:

http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2017/01/desmatamento-na-floresta-amazonica-cresceu-30-
em-2016.html. Acesso em mar. 2018.

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queda no nível de desmatamento em comparação à brusca elevação no ano anterior, mas


são em absoluto ainda maiores do que muitos dos anos anteriores.14 Além disso, o efeito
total pode ser maior do que as projeções, já que o número de queimadas na floresta foi
tão elevado neste último ano que o mês de setembro tornou-se o maior recordista em
toda a história dos registros.15

O exemplo da quase completa eliminação das florestas dos EUA, ao longo de uma
história de expansão econômica destrutiva (restaram cerca de 5 % das matas originais)
parece não significar absolutamente nada diante de uma sociedade com absoluta
inconsciência de sua própria capacidade destrutiva (e incapaz de rememorar seus feitos
históricos negativos). Também a Mata Atlântica brasileira poderia servir como exemplo
negativo de uma voraz destruição ambiental – 7 % da floresta original é o que resta,
sendo que entre 2015 e 2016 foi registrado um aumento de quase 60 % em sua área
desmatada, o maior nível atingido em 10 anos.16

A questão, entretanto, é que mesmo que sirvam como insofismáveis


demonstrações da natureza economicamente destrutiva da forma capitalista de
relacionamento social, esses dois exemplos são inadequados por não servir de parâmetro
para a singularidade ambiental da Floresta Amazônica, bioma com maior biodiversidade
disponível hoje e com a maior densidade de árvores do planeta. O seu papel como
regulador climático continental (e mundial) pode ser radicalmente suprimido sem que
necessariamente se atinja a destruição total. Na verdade, os especialistas apontam que
devido ao seu intrincado equilíbrio — obtido num longuíssimo período histórico-natural
em que interagiram rios, árvores e atmosfera —, uma ruptura pode desencadear um
processo de autodestruição pela redução da umidade. O ponto crítico parecia ser o de 40
% da destruição florestal.

14 Desmatamento na Amazônia Legal cai 21% e interrompe crescimento após 5 anos, aponta Imazon, G1,
22 ago. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/natureza/noticia/desmatamento-na-amazonia-
legal-cai-21-e-interrompe-crescimento-apos-5-anos-aponta-imazon.ghtml. Acesso em mar. 2018.
15 Desmatamento, pasto e mudança climática causam recorde de queimadas no país, UOL, 30 set. 2017,

disponível em: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao /2017/09/30/


desmatamento-pasto-e-mudanca-climatica-causam-recorde-de-queimadas-no-pais.htm. Acesso em
mar. 2018.
16 Desmatamento da Mata Atlântica cresce quase 60% em um ano, SOS Mata Atlântica, 26 maio 2017.

Disponível em: https://www.sosma.org.br/106279/desmatamento-da-mata-atlantica-cresce-quase-60-


em-um-ano/. Acesso em mar. 2018.

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O ponto preocupante desses exercícios de modelagem é a indicação de


que aproximadamente 40% de remoção da floresta oceano-verde poderá
deflagrar a transição de larga escala para o equilíbrio da savana,
liquidando, com o tempo, até as florestas que não tenham sido
desmatadas. O desmatamento por corte raso atual beira os 20% da
cobertura original na Amazônia brasileira, e a degradação florestal,
estima-se, já teria perturbado a floresta remanescente em variados
graus, afetando adicionalmente mais de 20% da cobertura original.17

Portanto, não é um problema futuro o rompimento do equilíbrio da floresta mais


densa do mundo e responsável pelo arrefecimento climático de parte do planeta. Esse é
um limite tão próximo e de natureza tão indeterminada que podemos estar já em seu
umbral. Não é possível calcular precisamente os efeitos de retroalimentação provocados
por desmatamento e mudança climática, ampliação da seca, maior potencial de
queimadas, o “efeito de borda” e a perda de biodiversidade sobre a cobertura vegetal.
Por todos esses motivos, “pelas evidências de alterações, o futuro climático da Amazônia
já chegou”. Nessa avaliação de Antonio Donato Nobre — um dos maiores especialistas
em clima do Brasil e que monitora a destruição da Amazônia —, “acelerando o
desmatamento e ultrapassando o ponto de não retorno, que parece estar próximo,
estimam-se poucas décadas até o clima saltar para outro estado de equilíbrio”. 18 Isso é
um vaticínio trágico, mas ele foi anunciado num momento de certo otimismo, em que se
comemorava uma breve redução da velocidade do desmatamento.19 Estudos mais
recentes, da própria equipe do INPE responsável por esses alertas, já começam a avaliar
os efeitos do aumento de temperatura sobre a floresta, o que cria um circuito de
retroação que pode implicar num ponto de equilíbrio ainda mais baixo: “as sinergias
negativas entre o desmatamento, as mudanças climáticas e o uso generalizado do
incêndio indicam um ponto de inflexão no sistema amazônico para se deslocar para

17 Nobre, Antonio Donato. O futuro climático da Amazônia. Relatório de Avaliação Científica. São José
dos Campos: ARA: CCST-INPE: INPA, 2014, p. 5-6.
18 Nobre, Antonio Donato. O futuro climático da Amazônia, p. 28.
19 Nobre, Antonio Donato. O futuro climático da Amazônia, p. 22.

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ecossistemas não-florestais na Amazônia oriental, sul e central com 20-25% de


desmatamento”.20

Considerando, sobretudo, a velocidade de todo esse processo de destruição do


bioma amazônico, não sabemos o que nos espera. Antes do golpe militar de 1964, a
Floresta Amazônica estava praticamente intacta. 50 anos depois, estamos discutindo o
seu possível desequilíbrio. Esta é demonstração de uma incapacidade social –
contemporânea ao capitalismo que assumiu um cariz “verde” — de conter qualquer
efetiva destruição ambiental. Com a regressão evidente das áreas de proteção e o código
florestal aprovado em 2012, que reduziu a proteção às nascentes, é preciso contar com a
aceleração da destruição, não com a sua mitigação.

Se no caso da Amazônia ainda é possível, com reticências, falar em seu


desequilíbrio, no caso do cerrado brasileiro essa dúvida não existe. Segundo Altair Sales
Barbosa, maior especialista nesse bioma no Brasil, o “cerrado está extinto”:

Em média, dez pequenos rios do Cerrado desaparecem a cada ano. Esses


riozinhos são alimentadores de rios maiores, que, por causa disso,
também têm sua vazão diminuída e não alimentam reservatórios e
outros rios, de que são afluentes. Assim, o rio que forma a bacia também
vê seu volume diminuindo, já que não é abastecido de forma suficiente.
Com o passar do tempo, as águas vão desaparecendo da área do Cerrado.
A água, então, é outro elemento importante do bioma que vai se
extinguindo.
Hoje, usa-se ainda a agricultura irrigada porque há uma pequena reserva
nos aquíferos. Mas, daqui a cinco anos, não haverá mais essa pequena
reserva. Estamos colhendo os frutos da ocupação desenfreada que o
agronegócio impôs ao Cerrado a partir dos anos 1970: entraram nas
áreas de recarga dos aquíferos e, quando vêm as chuvas, as águas não
conseguem infiltrar como antes e, como consequência, o nível desses
aquíferos vai caindo a cada ano. Vai chegar um tempo, não muito
distante, em que não haverá mais água para alimentar os rios. Então,
esses rios vão desaparecer.
Por isso, falamos que o Cerrado é um ambiente em extinção: não existem
mais comunidades vegetais de formas intactas; não existem mais
comunidades de animais – grande parte da fauna já foi extinta ou está

20Lovejoy, Thomas E.; Nobre, Carlos. Amazon Tipping Point. In: Science Advances 21 Feb 2018:
Vol. 4, no. 2, disponível em: http://advances.sciencemag.org/content/4/2/eaat2340. Acesso em mar.
2018.

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em processo de extinção; os insetos e animais polinizadores já foram, na


maioria, extintos também; por consequência, as plantas não dão mais
frutos por não serem polinizadas, o que as leva à extinção também. Por
fim, a água, fator primordial para o equilíbrio de todo esse ecossistema,
está em menor quantidade a cada ano.21

A crise hídrica que agora acomete regularmente vastas regiões do Brasil é o


resultado dessa catástrofe já efetivada: o cerrado alimenta algumas das principais bacias
hidrográficas sul-americanas através da recarga de seus aquíferos. Mesmo que se recorra
a essas reservas subterrâneas no caso de falta de disponibilidade de água superficial – e
isso já está sendo realizado intensa e dispendiosamente pelo agronegócio e por “parques
aquáticos” em todo território nacional —, não há garantia da qualidade dessa água, pois
uma parte dos próprios aquíferos estão contaminados.22 Sem falar do efeito meramente
temporário dessa alternativa: sem a recarga sistemática e com o desperdício
característico do uso da água em nossas terras tropicais, essa fonte não pode ser
encarada, como é apontada normalmente, como uma válvula de segurança para a crise
da água.

E o problema da pressão sobre importantes biomas não é exclusiva dos trópicos.


Um grupo de pesquisadores norte-americanos, da Universidade da Pensilvânia,
lançaram um Atlas para o Fim do Mundo em formato eletrônico (on-line). O Atlas
acompanha o crescimento de 422 cidades (acima de 300 mil habitantes), em várias
partes do planeta, e o impacto que devem provocar no seu meio ambiente até 2020. Este
foi o prazo estabelecido em acordos internacionais para se conseguir pelo menos 17 % de

21 “O Cerrado está extinto e isso leva ao fim dos rios e dos reservatórios de água”, Jornal Opção, 04 out.
2014, disponível em: https://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/o-cerrado-esta-extinto-e-isso-leva-
ao-fim-dos-rios-e-dos-reservatorios-de-agua-16970/. Acesso em mar. 2018.
22 Um grave problema de contaminação de aquíferos em São Paulo, Guia Ecológico, 9 jan. 2014, disponível

em: https://guiaecologico.wordpress.com/2014/01/10/um-grave-problema-de-contaminacao-de-
aquiferos-em-sao-paulo/. Acesso em mar. 2018. Na China, as águas subterrâneas de fácil alcance já estão
sob risco: um relato recente de pesquisadores do país apontou que 80 % dos poços analisados nas áreas
mais populosas estavam altamente contaminados, inviabilizando seu consumo e uso doméstico (China
diz que 80% dos poços testados no país têm água poluída demais para uso e consumo, UOL, 12 abr. 2016,
disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/the-new-york-
times/2016/04/12/china-diz-que-80-dos-pocos-testados-no-pais-tem-agua-poluida-demais-para-uso-
e-consumo.htm. Acesso em mar. 2018). Voltando ao Brasil, já não se pode mais confiar nas bacias
hidrográficas: é quase mensal o vazamento de rejeitos de mineração para os cursos d’água em vários
estados, principalmente em Minas Gerais.

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áreas terrestres (e águas continentais) protegidas e geridas para a conservação


ambiental. Embora otimistas quanto ao esforço mundial de cientistas e “cidadãos bem-
intencionados” em preservar a biodiversidade global, o resultado obtido pelos autores é
trágico:

Em um esforço para juntar a urbanização e a biodiversidade no mesmo


estudo, concluímos que quase todas as cidades nos pontos críticos do
mundo (383 de 422) estão espalhadas por habitat remanescente, em
cursos de colisão fatal com espécies ameaçadas de extinção. Mais
importante ainda, também encontramos poucas evidências de
planejamento urbano e planejamento do uso do solo que contenham
compromissos espaciais para evitar essa calamidade.23

Segundo estimativas da própria ONU, 75 % da população mundial deve morar em


cidades em 2030 e a área urbanizada em todo o mundo deve ser multiplicada por três
nesse curto período. Ou seja, o problema da destruição sistemática de biomas não
decorre apenas da exploração mineral, de grandes barragens, do complexo
agroindustrial, mas também da própria insanidade que se tornou uma urbanização
mundial sem fundo econômico e social – já que a maioria das pessoas que hoje chegam
às cidades, principalmente na periferia do capitalismo, não vão conseguir empregos ou
condições sanitárias melhores.

Um dos principais problemas diretos dessa urbanização desenfreada é o acúmulo


sistemático de lixo provocado pela concentração populacional e acesso a mercadorias
industrializadas. As cidades de todo o mundo geram hoje algo em torno de 2 bilhões de
toneladas de lixo coletado anualmente. Para alimentar e produzir bens que serão
destinados principalmente aos consumidores urbanos, o agronegócio e a indústria
geram 28 bilhões de toneladas lixo em todo o mundo. A maior parte desse resíduo,
obviamente, não será tratado ou reciclado, como é a água contaminada pelos
agrotóxicos, o esterco da pecuária e o rebotalho industrial que será acumulado em lixões.
E o mais impressionante nessa insaciável gigantesca sociedade produtora de lixo é que

23 Atlas for the end of the world. Disponível em: http://atlas-for-the-end-of-the-


world.com/index_0.html. Acesso mar. 2018.

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seu apetite não está determinado pelo crescimento populacional. Entre 1960 e 2000, a
população dos EUA cresceu 2,5 vezes, mas o lixo gerado pelo país triplicou nesse
período. Em sociedades demograficamente quase estáveis, o resultado é ainda mais
surpreendente: na Espanha, entre 1996 e 2003, a produção de lixo aumentou em 46 %;
na União Europeia, em 2020, 45% a mais de lixo será produzido em relação a 1995. O
Brasil, que passa por um processo de desaceleração de seu crescimento populacional,
amplia a produção de resíduos: entre 1991 e 2000, a população brasileira aumentou 15,6
%, mas o volume de lixo gerado aumentou em 49 %.24 O gigantesco volume anual de
resíduos lançado no planeta, se persistir por muito tempo em sua trajetória de
aceleração, realizará efetivamente a distopia de uma Terra soterrada por lixo. 25

Como uma espécie de síntese maior de todos os problemas ambientais


desenvolvidos pela sociedade capitalista, a energia nuclear vai além do problema da
geração de energia e emissão de poluentes, encerrando também o descarte de resíduos
– só agora efetivamente estamos enfrentando o problema do que fazer com a herança
nuclear. Assim como ocorre atualmente com o carvão, também no setor de energia
nuclear vivemos uma demonstração da regressão histórica.

Depois de Chernobyl (1986), as usinas nucleares estiveram um certo período sub


judice, apertadas entre os movimentos antinucleares e o aprofundamento da crise fiscal
do Estado que limitou investimentos em novas plantas. Assim como ocorre com as

24 A civilização do lixo. Entrevista especial com Maurício Waldman Revista IHU-Online, 03 dez. 2012,
disponível em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/516032-a-civilizacao-do-lixo-entrevista-
especial-com-mauricio-waldman. Acesso em mar. 2018.
25 “Sabe-se que, do ponto de vista quantitativo, a natureza movimenta, em seu ciclo normal formado pela

movimentação da crosta, vulcanismo, processos erosivos, etc., cerca 50 bilhões de toneladas de materiais
por ano. A humanidade, por sua vez, está movimentando 48 bilhões de toneladas no mesmo período. É
como existisse uma segunda natureza agindo no planeta! Duro ainda é saber que desses 48 bilhões, 30
bilhões viram lixo. Daí que não há como não perceber que o lixo está para tudo quanto é lado. Existe até
mesmo um continente artificial de detritos em formação no Pacífico. Trata-se de um território formado
por 100 milhões de toneladas de refugos, conhecido como Grande Vórtice de Lixo do Pacífico.
Estima-se que a superfície ocupada por esse novo "continente" seja de 15.000.000 de km². Em suma:
quase duas vezes a extensão do Brasil, uma vez e meia a área da Europa, metade da África ou 8% da
superfície do Pacífico, o maior dos oceanos do globo terrestre. Assim, tendo o problema do lixo assumido
proporções tão dantescas, como discordar do geógrafo francês Jean Gottman, que certa vez definiu
provocativamente a época atual como uma Era do Lixo. Quem ousaria dizer que ele está enganado?”
(A era do lixo. "Ele está visceralmente associado ao atual modo de vida". Entrevista especial com
Maurício Waldman, Revista IHU-Online, 11 nov. 2011, disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/500514-a-era-do-lixo-ele-esta-visceralmente-associado-ao-
atual-modo-de-vida-entrevista-especial-com-mauricio-waldman. Acesso em mar. 2018.)

155
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

grandes usinas hidrelétricas que necessitam de gigantescas barragens, o volume de


investimentos na energia nuclear inviabiliza a atuação autônoma de empresas sem a
participação do Estado.26 Com o acidente de Fukushima (2011), parecia que o golpe de
misericórdia seria dado às usinas nucleares: presenciamos um recrudescimento de
vistorias na Europa e o anúncio por parte de alguns governos de desativação de suas
centrais.

Entretanto, a crise energética em curso pressionou para a direção contrária e, nos


últimos anos, o número de novas usinas não apenas se ampliou (atingindo o recorde
histórico depois de uma regressão no início do século XXI), como também dezenas de
novas plantas estão em construção. Segundo um relatório da Eletrobrás, estavam em
operação no mundo, em fevereiro de 2016, 442 reatores nucleares para geração de
energia elétrica, enquanto 66 novos reatores estavam sendo construídos. Não apenas
países já com tecnologia nuclear estão ampliando suas usinas, como um grande número
de países novos estão dispostos a adquiri-la:

Atualmente 65 países que não possuem tecnologia nuclear expressaram


junto à AIEA seu interesse nesta questão, para a construção de reatores
ou e/ou desenvolver uma indústria neste sentido. As potências em
expansão querem multiplicar o número de usinas em seu território.
Mesmo após o acidente da central de Fukushima no Japão, muitos
governos consideram a ampliação internacional da energia nuclear uma
opção à mudança climática e uma alternativa às oscilações do preço dos
produtos energéticos, além de ser uma proteção à incerteza sobre o
suprimento dos combustíveis fósseis.27

26 Os gastos com a energia são tão exorbitantes em sua implantação que só é viável com a presença do
Estado em sua instalação, que pode passar depois à concessão privada em sua operação. O cálculo
comumente apresentado de custo final do megawatt baixo considera uma vida longa das usinas
nucleares que é irreal e, sobretudo, desconsidera os custos com sua desativação, que podem ser tão
elevados quanto de implantação (Professora da USP alerta: Dizer que os reatores nucleares duram, em
média, 40, 60 anos é blefe, disponível em: https://www.viomundo.com.br/denuncias/emico-okuno-
dizer-que-os-reatores-nucleares-duram-em-media-40-60-anos-e-blefe.html. Viomundo, 17 mar. 2011.
Acesso em mar. 2018).
27 Eletronuclear. Panorama da Energia Nuclear do Mundo. Disponível em:
http://www.eletronuclear.gov.br/LinkClick.aspx?fileticket=SG_9CnL80wM%3d&tabid=406. Acesso
em mar. 2018, p. 13-14.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

Aqui a falsificação tecno-ideológica, misturada à incapacidade de refletir sobre os


processos sociais mais amplos, salta aos olhos. A tese de uma “energia alternativa” capaz
de ocupar o lugar de fontes poluidoras é falsa. Segundo seus defensores, a energia
nuclear “não emite gases do efeito estufa”. É verdade que, ao isolar apenas o processo de
geração de energia pela fissão nuclear, não há essa emissão. O problema é a
complexidade da produção das plantas nucleares, a constituição do combustível para a
sua operação (enriquecimento do urânio), os efeitos posteriores da prolongada vida de
seus resíduos (milhares de anos), o isolamento e a manutenção permanente das
unidades desativadas — enfim todo o processo é que deve ser levado em consideração. E
isso coloca a energia nuclear como uma fonte até mais poluente do que a hídrica, que
libera volumes gigantescos de metano quando represas são construídas sobre florestas.
A cadeia produtiva da energia nuclear, portanto, é altamente poluente – isolar a etapa
de geração de energia das outras para justificar seus usos é uma cegueira
socioeconômica, articulada a interesses das empresas detentoras de tecnologia, que
pretendem triplicar o número de usinas em operação.28

O lado assustador desse incremento do uso da energia nuclear como fonte


primária é o perigo do envelhecimento dos reatores. Questionamentos ao prolongado
uso das unidades são constantemente realizados por especialistas no assunto, pois os
riscos se multiplicam. Com a elevação dos preços dos combustíveis fósseis e a crise
hídrica, há uma tendência de prolongamento da vida útil dos reatores, o que aparece no
levantamento acima que indica que das 441 centrais operando no início de 2016, mais
da metade (250) já ultrapassaram 30 anos de atividade, o que significa que mesmo do
ponto de vista oficial, essas centrais “terão que ser substituídas por novos reatores ou
por outra fonte de geração”.29. Em alguns países, as centrais nucleares mais antigas já
estão atingindo meio século de operação, um risco gigantesco que deverá ser enfrentado

28Setor nuclear quer triplicar número de usinas no mundo até 2050, Agência Brasil, 07 jun. 2016,
disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2016-06/setor-nuclear-
mundial-se-mobiliza-para-triplicar-numero-de. Acesso em mar. 2018. O grau de insanidade nesse setor
é tamanho que agora a Rússia anuncia sua primeira usina nuclear flutuante, ou seja, uma fonte de
energia nuclear móvel, cujo protótipo servirá para futuros modelos a serem exportados (Rússia vai lançar
primeira usina nuclear flutuante com perspectiva de exportação, Sputnik Brasil, 08 abr. 2018, disponível
em https://br.sputniknews.com/russia/2018040810938021-usina-nuclear-flutuante-russia-brasil/.
Acesso em abr. 2018).
29 Eletronuclear. Panorama da Energia Nuclear do Mundo, p.17..

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nos próximos anos. Aqui vale a comparação precisa de Luiz Marques: a construção do
aparato nuclear de produção de energia, ao longo da segunda metade do século XX, foi
o embarque da humanidade num voo de avião cujo piloto que não sabia ainda como
pousar a aeronave. O desafio de desligamento, tratamento dos resíduos e isolamento das
centrais nucleares ativas só está começando,30 mas a sua multiplicação continua sem que
isso represente um problema a ser administrado.

Aqui se revela que há uma grande multiplicidade de fatores (desmatamento,


queimadas, mudanças climáticas, defensivos agrícolas, poluição hídrica, contaminação
nuclear etc.) que dão conta de uma crise ambiental acelerada. Aliás, muitos desses
fatores estão por trás da mais óbvia representação das catástrofes ambientais em curso,
uma espécie de síntese do desastre ambiental capitalista: a extinção em massa de
espécies.

No curso da vida de um indivíduo da geração atual, serão extintas pela menos 400
espécies de animais, sem contar os vários outros grupos de seres vivos que estão sob a
pressão dos efeitos sociais devastadores.31 O relatório de um grupo de pesquisadores que
reúne cientistas mexicanos e norte-americanos é enfático sobre a capacidade de
destruição da vida na história moderna: nos últimos 500 anos, a taxa de extinção de
espécies de vertebrados (universo principal utilizado para a pesquisa) foi muito superior
à extinção conhecida em milhares de anos, sendo que no século XX a taxa foi acelerada,
passando por um novo incremento no século XXI. Esse é o fenômeno da chamada “sexta
extinção”, cuja causa agora, diferente de todas as anteriores, é de natureza social:

Provavelmente, o aspecto mais sério da crise ambiental é a perda de


biodiversidade — os outros seres vivos com os quais compartilhamos a
Terra. Isso afeta o bem-estar humano, interferindo com os serviços dos
ecossistemas cruciais, como a polinização das culturas e purificação de

30 “Em muitos casos, o tempo para desativar completamente uma usina nuclear ultrapassa sua própria
vida útil. Segundo a Agência de Usina Nuclear (NEA, na sigla em inglês), o local onde foi instalada uma
unidade nuclear pode demorar até cem anos para ser útil para outro empreendimento, caso o nível de
radiação na região não retorne aos níveis normais.” (Desativar uma usina pode levar décadas, Gazeta do
Povo, 26 mar. 2011, disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/desativar-uma-usina-
pode-levar-decadas-et3kfkyef94svyk0n4e0w2qmm. Acesso em mar. 2018).
31 Sexta grande extinção está em curso, El País, 21 jun. 2015, disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/19/ciencia/1434727661_836295.html. Acesso em mar. 2018.

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água e destruindo belas, fascinantes e culturalmente importantes


companhias da humanidade em vida
Nossa análise mostra que as taxas atuais de extinção excedem
amplamente as taxas de fundo naturais normais, mesmo quando (i) a
taxa de fundo é considerada como duas estimativas anteriores e quando
(ii) os dados sobre as extinções modernas de vertebrados são tratados de
maneira plausível mais conservadora. Enfatizamos que nossos cálculos
provavelmente subestimam a gravidade da crise de extinção porque
nosso objetivo era colocar um "limite inferior" realista sobre o impacto
da humanidade na biodiversidade. Portanto, embora os biólogos não
possam dizer precisamente quantas espécies existem, ou exatamente
quantas foram extintas em qualquer intervalo de tempo, podemos
concluir com confiança que as taxas modernas de extinção são
excepcionalmente altas, que elas estão aumentando e que sugerem uma
extinção em massa em curso — o sexto de seu tipo nos 4,5 bilhões de anos
da história da Terra.32

Um relatório de pesquisadores da WWF, em conjunto com a Zoological Society,


reunindo dados de diversas fontes, alertou para o brutal desaparecimento da vida
animal: as populações de animais tiveram uma queda de 58% entre 1970 e 2012, com
uma projeção que pode chegar a 67% até 2020.33 Ou seja, provocamos um verdadeiro
“colapso da biodiversidade terrestre” (Marques) cujos efeitos de retroalimentação,
particularmente no caso da extinção de espécies polinizadoras, são ainda incalculáveis.
E, por mais que possamos garantir a proteção de exemplares de algumas das espécies
ameaçadas pela escalada incontrolável de destruição, não há garantias de que sua
reprodução futura possa continuar. Cada vez mais pesquisas apontam que, em
ambientes naturais que sofrem os efeitos da poluição, principalmente os ambientes
aquáticos próximos de zonas industriais, que são afetados pelos venenos da agricultura
intensiva ou que recebem os dejetos urbanos, um número progressivo de aves, répteis,
mamíferos e peixes têm seu metabolismo reprodutivo alterado por substâncias
químicas. São os chamados “disruptores endócrinos”, um grupo amplo de substâncias

32 Ceballos, Gerardo et alli. Accelerated modern human–induced species losses: Entering the sixth mass
extinction. In: Science Advances , 19 Jun 2015, Vol. 1, no. 5, disponível em:
http://advances.sciencemag.org/content/1/5/e1400253.full. Acesso em mar. 2108.
33 World on track to lose two-thirds of wild animals by 2020, major report warns, The Guardian, 27 out.

2016, disponível em: https://www.theguardian.com/environment/2016/oct/27/world-on-track-to-


lose-two-thirds-of-wild-animals-by-2020-major-report-warns?CMP=fb_gu. Acesso em mar. 2018.

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sintéticas que só recentemente foram compreendidos como “hormônios artificiais”, ou


seja, como sucedâneos incontroláveis dos ativadores naturais de funções endócrinas.

Nas pistas deixadas por Racquel Carson em seu clássico Primavera Silenciosa,
uma série de pesquisadores de toda parte do mundo têm relatado o vínculo entre
substâncias químicas dispersas pelo ambiente e alterações nos órgãos sexuais, alterações
de nascimento (hermafroditismo, órgãos sexuais atrofiados ou incompletos), câncer de
mama, câncer de próstata, câncer do testículo, câncer do ovário, disfunções menstruais,
abortos “espontâneos” e infertilidade sistemática. Entre os principais agentes desses
desreguladores endócrinos estão PCBs (policloretos de bifenilas), HCBs
(hexaclorobenzeno), ftalatos, chumbo, cádmio, manganês, mercúrio, bisfenol A etc.

Há cada vez mais pesquisas apontando a relação entre a presença dessas


substâncias e a progressiva infertilidade e redução da população de animais no Golfo do
México (águias americanas), no Lago Michigan (visom), no Lago Ontário (gaivotas), na
Flórida (crocodilos) e no Mar Mediterrâneo (golfinhos). Até mesmo a redução de
espermatozoides no sêmen humano tem sido acompanhada progressivamente desde a
Segunda Guerra Mundial. Esse conjunto de informações foram reunidos num livro
impactante cujo título dá a dimensão do problema: Nosso futuro roubado.34 A maior
parte dessas anomalias não foram creditadas a problemas e mutações genéticas – o que
não pode ser descartada para uma série de outros problemas, dada a convivência social
com a radiação desde a entrada da humanidade na Era Atômica. A velocidade com que
essas variações ocorreram nas espécies estudadas demonstra que foram fatores
ambientais os seus catalisadores. Ao inundar o planeta de mercadorias e com isso criar
um mundo completamente sintético, um ambiente cada mais artificial, a moderna
economia capitalista criou uma “sociedade de prótese”35, cujas implicações ecológicas
são absolutamente catastróficas, embora seus principais riscos só inicialmente estejam
sendo compreendidos. Enfim, além de devastar externamente a biosfera, é a própria
perpetuação biológica da espécie humana que está em risco, numa conversão cada vez
maior do “Tempo do Fim no Fim do Tempo” (Günther Anders).

34 Colborn, Theo; Dumanoski, Dianne; Myers, John Peterson. Nosso futuro roubado. Porto Alegre: L&PM,
1997.
35 Dupuy, Jean-Pierre; Robert, Jean. La traición de la opulência. Barcelona: Gedisa, 1979, p. 68.

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Três escalas de atuação do capital

Um dos mecanismos de proteção psicológica ativado diante de um anunciado


desastre é a pretensa segurança da existência passada. Como tudo transcorreu
relativamente bem até agora (do ponto de vista daquele que ainda vive), nada de muito
grave deve ocorrer. Não se trata apenas de uma tendência à denegação. A palavra
“resiliência” entrou na ordem do dia e passou ao vocabulário das ciências sociais, físicas
e do noticiário. Foi transformada em um atributo pessoal que muito revela sobre o tempo
de catástrofes ambientais e econômicas: ser resiliente é uma necessidade dos novos
tempos.

O problema desse comportamento é que, apoiado numa experiência sem


mediação teórica, sustenta-se numa compreensão do passado que não serve mais para
explicar o mundo atual. O capitalismo desenvolveu um tal aparato produtivo, criou uma
tecnologia tão destrutiva dos fundamentos naturais da vida, que acabou por mudar
progressivamente as escalas em que se enquadrava o metabolismo com a natureza. Para
ser mais preciso, ao atuar nos fundamentos dos processos vitais – ao produzir uma
natureza “segundo à sua imagem e semelhança” –, esses processos naturais
propriamente ditos são radicalmente alterados pela forma social capitalista. Resiliência
talvez não baste diante de um movimento que não é meramente a destruição da natureza
dada, mas a tendência à sua radical reelaboração inconsciente.

A primeira alteração na escala dos metabolismos naturais é o da própria


mobilização do tempo histórico e do tempo geológico. A história humana não é mais
apenas uma parte da história natural, ela própria faz erguer da tumba o passado natural
da Terra para torná-lo disponível para a produção de mercadorias.

Isso é mais visível na produção de energia. Até a Primeira Revolução Industrial,


o uso da energia estava limitado ao consumo de depósitos relativamente curtos em
termos temporais, em geral limitados ao horizonte de vida de uma árvore (o acumulo de
carbono em sua biomassa), ou seja, dezenas, centenas ou, no máximo, milhares de ano

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para as grandes árvores. Embora tenhamos o registro do uso de carvão mineral há


milênios (assim como o petróleo), a lenha sempre foi a fonte de energia básica utilizada
em sociedades pré ou não-capitalistas. Como principal atividade produtiva, a agricultura
também estava baseada no ciclo diário de utilização da energia solar, responsável pelo
crescimento dos alimentos na lavoura durante as estações. O uso complementar do óleo
retirado da gordura de diversos animais revela ainda mais essa limitação.

A industrialização rompeu essa limitação energética temporal, permitiu queimar


energia acumulada durante milhões de anos na forma de carvão e, em seguida, com a
Segunda Revolução Industrial, também em petróleo e gás. Esses combustíveis, pouco
utilizados até então, tornaram-se centrais para a lógica do capital porque o volume de
produção exigia capacidades energéticas de “longa duração”. Era preciso, para dar conta
da produção intensiva e massiva de mercadorias, mobilizar energia sedimentada em
várias eras geológicas.

Entretanto, como o capitalismo impõe uma constante revolução nos meios de


produção, mais uma barreira temporal foi superada no século XX com a energia nuclear:
a fissão do átomo permitiu instrumentalizar a energia “depositada” em bilhões de anos
sob forma molecular.

Os ciclos produtivos da indústria capitalista, com o dispêndio de fontes de energia


de variadas dimensões temporais, romperam completamente com os tradicionais ciclos
naturais da vida terrestre em comunidades, regido pelas formas básicas do fogo e da luz
do sol. A responsabilidade em relações às consequências nunca foi um entrave para o
uso de uma energia cuja origem remonta ao próprio nascimento do universo. Nem
Prometeu teria ousado tanto.

Aqui fica patente como o pensamento científico é amplamente amparado em


pressupostos metafísicos herdados da religião. As formas de energia desenvolvidas pelo
capitalismo transtornam completamente a proporção entre o consumo da natureza e sua
recuperação: queimamos energia de milhões e bilhões de ano que não pode ser renovada
no tempo histórico. A história humana liquida a história natural, sua base insuprimível.
Enquanto as ciências naturais, ferramentas da produção industrial, operam
praticamente com um paradigma científico pós-nuclear, a reflexão sobre essa ciência, a

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epistemologia e a filosofia ainda operam com concepções pré-nucleares ou pré-


industriais, encarando a natureza como um “livro escrito por Deus”. Por isso continuam
a ignorar essa brutal mudança de escala e apostam numa “capacidade de resiliência” de
ambientes que são revolvidos em seus fundamentos geológicos.

Enquanto a primeira transformação é na escala histórica, a segunda


transformação é de escala geográfica. A indiferença aos problemas ambientais costuma
lançar mão da desculpa de que nunca existiu uma sociedade “ecologicamente
sustentável”. Se isso não pode ser tomado como uma verdade em si — algumas
sociedades tribais de caça e coleta possuíam vínculos naturais que provocavam
“impactos ambientais” quase desprezíveis —, é preciso apontar para o caráter sempre
limitado dos danos naturais até então provocados. O desmatamento dos tupinambás
para montar suas ocas e plantar seus alimentos provocavam esgotamento no solo, alguns
anos depois da queimada realizada para a limpeza de terreno. Entretanto, a tribo se
movia para outro local e a floresta podia se recuperar. O mesmo ocorria com o uso dos
bosques europeus para lenha durante a Idade Média, cujo ritmo de remoção de madeira
era compensado pela regeneração natural ou, pelo menos, pela ampliação da mata em
lugares afastados dos campos de plantio e cidades. Ou seja, as consequências da
exploração do ambiente natural eram localmente contidas, de modo que os ritmos
naturais acompanhavam ou compensavam os “danos”. Mesmo as formações do passado
que foram vítimas de um colapso ambiental provocado por sua própria dinâmica social
autodestrutiva demonstram o caráter limitado desses impactos: Páscoa era uma ilha e o
presumido colapso Maia pelo desmatamento e seca atingiu apenas a sua organização
social, pois uma parte do povo sobreviveu deslocando-se para outros locais.36

A escala limitada dos impactos ambientais também atravessou a história do


capitalismo. O smog das cidades inglesas no século XIX ainda era um problema contido
nos limites metropolitanos de Londres e Manchester, assim como o esgotamento do solo

36 “... quando temos muito mais meios de prever e de calcular esses danos, nos pedem para termos a mesma

cegueira que atribuímos a essas civilizações do passado que destruíram o meio ambiente de que
dependiam. E o destruíram apenas de maneira local e, ao contrário, o que nós fizemos em um século,
sem ter explorado até a quase extinção os ‘recursos’ constituídos ao longo de milhões de anos de história
terrestre (muito mais tempo para os lençóis freáticos)”. Isabelle Stengers. No tempo das catástrofes:
resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 55.

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promovido pelo plantio do café, no Vale do Paraíba, promovia o colapso da economia


local ou regional. Ao longo do século XX, entretanto, as escalas regionais foram
superadas pelos problemas ambientais. O Dust Bowl, provavelmente gerado pelo
abandono das lavouras nas pradarias centrais americanas após o crash de 1929 e as
retomadas hipotecárias, deixou Nova York debaixo de poeira durante semanas. A
contaminação dos peixes por mercúrio da Baía de Minamata, no Japão, durante os anos
de 1950, provocou envenenamento e problema de saúde em milhões de consumidores
japoneses em todo o país nas décadas seguintes. Isso sem falar nos danos continentais
dos bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial ou o envenenamento sistemático
pelo uso dos defensivos agrícolas relatados na obra clássica de Racquel Carson.

Hoje essas escalas são pequenas.37 Vivemos, desde pelos menos a entrada na Era
Nuclear, naquilo que Ulrich Beck denominou de “sociedade de risco global”:

Os riscos e perigos de hoje diferenciam-se de seus equivalentes


medievais, com frequência semelhantes por fora, fundamentalmente por
conta da globalidade de sua ameaça (seres humanos, animais, plantas)
e de suas causas modernas. São riscos da modernização. São um
produto global da maquinaria do progresso industrial e são
sistematicamente agravados com seu desenvolvimento ulterior.38

A nuvem radioativa liberada por Chernobyl atravessou a Europa e mudanças nos


contadores foram sentidas até mesmo no Brasil. Hoje, peixes contaminados por radiação
de Fukushima estão sendo pescados na Costa Oeste dos EUA. Evidentemente, uma
catástrofe nuclear de ampla magnitude não está descartada (o risco de uma grande
explosão nuclear esteva presente em Chernobyl e Fukushima). E o arsenal nuclear
militar nem precisa ser indicado. Mas o problema nuclear não é o único risco global. O
aquecimento global já registra em sua denominação que se trata de um problema a ser
experimentado por todos. Nuvens de poluição da China estão rodando o globo e o
desmatamento na Amazônia agora começa a ser sentido em todo o continente americano

37Aqui se preferiu a interpretação popular da dimensão das escalas. O correto é que uma pequena escala
abranja grandes áreas ou mesmo toda a Terra.
38Beck, Ulrich. La sociedad del riesgo. Hacia uma nova modernidade. Barcelona: Paidós, 1998, p. 28.

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por meio de mudanças no regime de chuvas. Em suma, mesmo o “capitalismo verde” já


coincidia com uma condição geográfica em que, a rigor, já não havia mais externalização
de danos ambientais, pois os problemas locais repercutiam sobre todo o globo. A
globalização significou também uma conexão dos problemas ambientais em escala
mundial.

Por último, a terceira mudança de escala se refere à relação entre o social e o


natural. Na verdade, trata-se de uma profunda alteração na própria definição das
“esferas” sociais e naturais. Em virtude da mudança de metabolismo entre sociedade e
natureza, a produção capitalista constrói uma natureza nova, sintética. O que nos leva à
óbvia constatação – com implicações filosóficas profundas – de que a natureza não é
mais algo “externo” como sempre apreendido pela ciência burguesa, pelo menos desde
Francis Bacon. A natureza tornou-se um ambiente físico “interno” à forma social
capitalista.39 Isso já se revela no fato de que os impactos ambientais não são mais
localizados e de alcance limitado: eles não podem ser externalizados, não há um “lado
externo”. Dos problemas naturais não se pode mais fugir, já que eles se tornaram globais.

E, novamente, esse é um novo patamar que a ciência parece ainda não ter
alcançado: o “ceticismo” científico se comporta do mesmo modo como esses
economistas embasados em teorias do século XIX que tentam entender a realidade de
economia global do século XXI. Ou seja, os instrumentos da ciência natural e dos
experimentos locais não são mais suficientes para dar conta da dinâmica social-natural
global. O esforço do IPCC de reunir dados mundiais e construir uma visão unificada
(criticável por uma série de aspectos, desde a “unificação do separado” (Debord), típica
do positivismo, até a leitura ainda otimista do declínio ecológico) é visto pelo
negacionismo como “extrapolação não-verificável” ou como um exagero incapaz de ser
controlado.

39Com esse transtorno entre o social e o natural, seus atributos precisam ser reelaborados pela cultura
industrializada: como a natureza tornou-se um subproduto da produção industrial, não é estranho que
um campo de golfe no meio de uma metrópole caótica seja encarado como um lugar tranquilo, bucólico
e clean, enquanto uma ilha desabitada do Pacífico tenhas suas praias completamente abarrotadas de
lixo: com essa mudança de escalas, “o ‘natural’ é pior e mais degradado que o artificial” (Jameson,
Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996, p. 104).

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Mas isso ainda não é tudo. Como já discutido acima, os efeitos inconsequentes de
uma vida social num ambiente cada vez mais sintético estão provocando alterações
fisiológicas e hormonais que só agora começam a ser investigadas. Também se sabe dos
efeitos grotescos da radiação sobre a genética de homens e animais. O perigo invisível
da radioatividade e dos disruptores endócrinos está alterando as raízes genéticas e
reprodutivas dos seres vivos, erguendo um mundo novo que deverá ser interpretado
pelos instrumentos da teratologia. Isso é algo absolutamente original e inédito na
história da relação entre sociedade e natureza: os fundamentos mais básicos da própria
existência biológica estão sendo inconsequentemente alterados pela loucura de uma
produção sistemática de quinquilharia industrial. Assim, além dos fundamentos físicos
— as bases externas para a vida —, também os fundamentos biológicos — as bases
internas da vida — estão sendo solapadas por uma forma social destrutiva.

Isso significa que o futuro da humanidade está ameaçado. Aqui seria preciso
repetir as reflexões de Günther Anders sobre a Era Atômica, num nível ainda mais
assustador porque não é apenas a “loucura nuclear” que nos ameaça. A mudança de
escala temporal, geográfica e social-natural nos levou a uma espécie de síntese absoluta
do espaço e do tempo históricos: assim como o indivíduo desconhecido do outro lado do
planeta é nosso vizinho, pois sujeito às nossas irresponsáveis ações sobre o ambiente,
“nossos filhos são nossos contemporâneos”, pois é a existência deles e de nossos netos
que está sob ameaça da pressão industrial sobre a reprodução e a genética. 40 Por outro
lado, agora, mais do que em 1960, também nossos antepassados estão ao nosso lado
nessa empreitada de enfrentar o risco global, não apenas porque sua memória corre o
risco diante da extinção, mas também porque liquidamos em poucos anos toda a energia

40“Não apenas nosso horizonte espacial deve ser ampliado, como também o temporal. Na medida em que
ações praticadas hoje (explosões para testes nucleares, por exemplo) afetam gerações futuras tão
perniciosamente quanto afetam a nossa, o futuro pertence ao âmbito de nosso presente. ‘O futuro já
começou’ – pois o trovão de amanhã vem do relâmpago de hoje. A distinção entre as gerações de hoje e
de amanhã perdeu o sentido; podemos até mesmo falar em uma Liga de Gerações, à qual nossos netos
pertencem tão automaticamente quanto nós. Eles são nossos ‘vizinhos no tempo’. Ao pôr fogo em nossa
casa, não podemos evitar que as chamas atinjam as cidades do futuro, e que as casas ainda-não-
construídas das gerações ainda-não-nascidas se reduzam a cinzas junto com nossas casas. Até mesmo
nossos antepassados são membros de pleno direito dessa Liga: pois, morrendo, faríamos com que eles
morressem também – uma segunda vez, por assim dizer; e, depois dessa segunda morte, tudo seria como
se eles nunca tivessem existido” (Anders, Günther. Teses para a Era Atômica. Disponível em:
http://www.culturaebarbarie.org/sopro/outros/anders.html#.WtTJ8ojwbIU. Acesso em mar. 2018.)

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deixada intocada por eles e que poderia de algum modo, com uso menos intensivo e para
fins sociais, servir às gerações futuras.

O “ceticismo” sob nova roupagem

Na década de 1980, ainda era possível imaginar que a ampliação crescente dos
riscos ambientais pudesse levar a uma comunidade ampla e sem fronteiras de
interessados em combater os subprodutos da indústria, isto é, que o risco global pudesse
unificar as lutas contra as possibilidades autodestrutivas da sociedade industrial.41 O que
foi subestimado, naquele momento, foi exatamente a capacidade do mercado de
absorver essas lutas, convertê-las em autolegitimação democrático-universalista (na
medida em que correspondiam a uma superação das lutas de interesses típicas da época
da sociedades de classe) e transformar seus slogans em embalagem para um
“capitalismo verde” que oferecia soluções paliativas para problemas industriais.

Dado que raramente a dinâmica socialmente inconsciente da lógica de produção


era questionada, os danos ambientais podiam ser tomados isoladamente como
problemas a serem combatidos, mantendo-se sua articulação interna intocada e assim
vendendo tecnologias, hábitos e mercadorias “verdes” para os consumidores
preocupados com sua “pegada” individual ou familiar sobre o ecossistema. Que a
maioria dos membros radicais do movimento verde tenham se transformado em
gestores de um capitalismo “ambientalmente responsável” revela o quanto essa crença
num futuro de lutas democráticas de base estava condenada ao fracasso. O “capitalismo
verde” cabia como uma luva na lógica neoliberal da solução individual de problemas,
completado com a exigência de que o Estado assumisse oficialmente responsabilidades
pontuais sobre a “regulamentação” ambiental – ou pelo menos como o gestor último das
catástrofes.

Hoje já não há mais essa ilusão. Desde a escala local até as negociações
internacionais, esvaiu-se o aparente interesse em criar consensos com relação aos
problemas ambientais. O fim do “capitalismo verde” é o fim da esperança universalista

41 Beck, Ulrich. La sociedad del riesgo, p. 53.

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e unificadora do movimento ambiental – antes mesmo que essa esperança pudesse se


materializar. Os obscurantistas de todas as seitas, o fundamentalismo evangélico, os
burocratas “neodesenvolvimentistas” ou os neoconservadores que ignoram a própria
existência social não se dispõem mais (se é que alguma vez o fizeram de fato) a discutir
“democraticamente” o problema ecológico. O grupo de cientistas “céticos”, que já na
década de 1980, contra os verdes, acusava toda e qualquer crítica da ciência e princípio
de precaução de irracionalismo, agora incrivelmente se vale de toda e qualquer
tergiversação metodológica para criar obstáculos gnosiológicos contra a evidente
avalanche destrutiva da indústria e da ciência moderna.

Aqui é preciso apreender uma contradição que parece ter se instalado no cerne da
ciência: enquanto no passado era a autorreflexão epistemológica a base de uma crítica
da ciência moderna que mostrava os seus perigos e limites, hoje é a negação dos
fundamentos científicos que está ao lado do inquestionável “progresso industrial e dos
produtos científicos”. Enfim, para que se mantenha a ciência e seus produtos industriais
a salvo de que qualquer ingerência crítica, apela-se para a incapacidade científica em
aferir seus próprios danos. Um estranho matrimônio de positivismo e ceticismo se
instalou no cerne das ciências naturais para quebrar a evidência material que não é mais
possível afastar: o de que os riscos provocados por uma gigantesca produção industrial,
principalmente com suas substâncias químicas e nucleares, são globais, diferente dos
riscos até então experimentados em toda a história humana.

Enquanto em momentos passados havia ainda formulações científicas


divergentes, que podiam reivindicar o mesmo direito de se exprimir sobre os riscos locais
ou a sua contestação; agora, o acúmulo de evidências e a consciência das escalas de
impactos ambientais não deixam dúvida sobre os riscos globais. Enquanto no passado o
ceticismo ainda podia se basear em evidências experimentais parciais que contradiziam
outras indicações científicas, a onipresença da catástrofe ambiental em qualquer
pesquisa científica deslocou o alvo do ceticismo para as bases epistemológicas da própria
ciência – são as concepções de “todo”, “global” e até mesmo de “catástrofe” que são
questionadas por meio de uma retórica superficial negacionista.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

Os princípios de precaução e de responsabilidade, desenvolvidos por Hans Jonas


e que deveriam guiar qualquer procedimento de pesquisa, nunca foram devidamente
compreendidos e muito menos adotados pela ciência em seus desdobramentos
industriais – apesar das suas recomendações pela ONU. Enfim, essa “tecnologia dos
sinais de alarme”42 foi quase sempre ignorada, mas agora ela é invertida e
instrumentalizada para fins irrefletidos. O princípio de precaução é subordinado à
ideologia latente de progresso, casada agora com um falso “ceticismo” científico: in
dubio pro reo — sendo o réu, nesse caso, a própria ciência, da qual se aceita qualquer
utilização para os fins da produção industrial, mas para a qual se rejeita qualquer
capacidade reflexiva.43 Não é por acaso que o neopositivismo case tão bem com a postura
“cética” pós-moderna de refletir sobre os descaminhos do mundo: “Sobre aquilo de que
não se pode falar, deve-se calar”.

Com uma forçosa quebra de consenso por meio de instrumentos epistemológicos


obscurantistas, legitima-se o retorno à ignorância dos efeitos destrutivos do
desenvolvimento econômico ou se radicaliza a seletividade do campo de atuação
científica. Numa espécie de prolongamento forçado da desqualificação pós-moderna das
grandes narrativas, também as explicações abrangentes para os problemas ambientais
são transformadas em “arbitrariedade epistemológica”. O “ceticismo”, assim, aparece na
verdade como um sacrifício de intelecto que dá voz ao automatismo típico do
positivismo: diante da aparente complexidade do problema de representação científica
de mudanças globais – para os quais até mesmo o modelo mais otimista não deixa
dúvidas —, há uma opção pela passividade crítica e por dar livre curso às atividades
destrutivas.44

42 Arantes, Paulo. O Novo Tempo do Mundo. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 169.
43 Na formulação de Ulrich Beck: “os riscos são os primeiros bens a evitar cuja inexistência se supõe até
um novo aviso, de acordo com o lema: in dubio pro progressu, o que quer dizer: in dubio, olhe para
outro lado” (Sociedad del riesgo, p. 40).
44 O negacionismo climático ampara-se sobre duas objeções comuns: a de que aumento do dióxido de

carbono não pode ser atribuído às transformações ambientais provocadas pela sociedade e de que o
papel do gás carbônico é pequeno para a ampliação do efeito estufa. Essas duas objeções, as mais
importantes do ponto de vista do questionamento do aquecimento, como se nota, sustentam-se menos
em demonstrações de teses contrárias e mais na dúvida sobre a origem “antrópica” de parcela cada vez
maior do principal gás do efeito estufa e no improvável impacto significativo de sua ampliação. Mas essas
refutações epistemológicas não resistem ao menor teste teórico-científico atual – enfim, são tentativas
de refutação que não tocam nos próprios fundamentos físicos dos processos climáticos. A identificação
de um isótopo de carbono específico ligado ao consumo de combustível fóssil e queima de florestas já

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

Por isso o fim da ilusão em torno de um “capitalismo verde”. Quando o discurso


econômico ainda podia explorar os nichos de mercado da crescente instabilidade
ecológica, a rejeição das mudanças globais podia se casar com uma “ação local”
preventiva: graças à preocupação expressa por figuras políticas internacionais e grandes
celebridades, a “prevenção” podia ser uma espécie de válvula para a má consciência dos
grandes investidores. Quando nem mesmo as pontuais ações de mitigação ecológica
podem mais ser desenvolvidas, dados os gastos crescentes da crise energética e a
concorrência cada vez mais intensa por externalização dos custos, a formulação teórica
“cética” busca as alturas, sem bases comprováveis, para se livrar da responsabilidade
pelos danos científico-industriais. O fim do “capitalismo verde” não é apenas a superação
de uma ilusão bem comportada de resolver problemas ambientais pontuais por meios
econômicos, é também a liquidação de qualquer debate teórico racional sobre os efeitos
da indústria e da ciência. A era do “obscurantismo”, portanto, casa o seu séquito de
terraplanistas e criacionistas com os defensores acadêmicos da geoengenharia e
biotecnologia – não há incompatibilidade nenhuma entre a mais avançada ciência
especializada e o mais estúpido fundamento metafísico.

A ilusão de um “capitalismo verde” foi tão absurda quanto a de um leopardo


vegano. Ainda que esta última imagem não possa ser descartada, dada a irracionalidade
e o aventureirismo das experiências de modificação genética, não é possível alterar o
DNA de nossa forma social voltada ao lucro, pois sua natureza é exatamente atuar por
meios objetivos e, principalmente, por meios subjetivos, como pulsão inconsciente
individualizada e em permanente conflito. Dado que esta forma social é por natureza
uma formação que se manifesta como uma coleção de indivíduos, a ponto de parecer
que “a sociedade não existe” (Thatcher), não é possível alterar “geneticamente” o
comportamento social um a um, por isso qualquer formulação ecológica no idiotismo da

demonstrou que é esse CO2 que está em ampliação vertiginosa (Nobre, Carlos A.; Reid, Julia; Veiga, Ana
Paula Soares. Fundamentos científicos das mudanças climáticas. São José dos Campos: Rede
Clima/INPE, 2012, p. 11). Por outro lado, ainda que se possa questionar os efeitos significativos do
dióxido de carbono sobre o aumento da temperatura, a brutal ampliação de metano liberado na
atmosfera por processos “antrópicos” e pelo efeito de retroalimentação do próprio aquecimento
(liberação do metano do permafrost), não deixa dúvidas sobre a radicalização do efeito estufa: embora
permaneça em curto prazo na atmosfera, seu potencial de absorção de calor é cerca de 25 vezes maior
que o CO2. As projeções sobre o aquecimento, em geral, ignoram ou subestimam a liberação de metano
e seus efeitos sobre a atmosfera, o que pode indicar que o mais realista é a tendência a um “efeito estufa
descontrolado” (Marques, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental, p. 428-440).

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

ação individual como consumidor é um fiasco. O fim do “capitalismo verde” é também a


liberação individual de uma obrigação com a suposta consciência ambiental: diante da
renúncia estatal e do “negacionismo”, não cabe ao comportamento privado o custo de
qualquer preocupação. Por isso o fim do “capitalismo verde” é também uma
radicalização do neoliberalismo diante da crise estrutural do capitalismo: cada um por
si e a “natureza em ruínas” (Robert Kurz) contra todos. Apenas uma alteração radical na
forma de relacionamento social pode levar a uma superação dessa pulsão destrutiva
enraizada em cada indivíduo.

P.s.: O texto foi concluído em abril de 2018. As catástrofes ambientais se aceleraram


nesse curto intervalo. Entretanto, a discussão sobre o “cinismo” político diante dos
problemas ambientais foi superada agora numa escala mais ampla: o avanço do
neofascismo e da extrema-direita em todo mundo, com o seu cortejo de conselheiros,
ideólogos e intelectuais obscurantistas, elevou o patamar do ceticismo e do
negacionismo. Os “pressupostos metafísicos herdados da religião”, como registrado no
artigo, parecem agora ter mudado de posição: deixou de ser um fundamento e passou
diretamente aos conteúdos das formulações políticas e científicas: já não há mais pudor
em transitar de uma argumentação técnica para uma “verdade” bíblica num mesmo
discurso político, econômico ou científico. Com isso o debate público sobre os problemas
ambientais tem uma regressão ainda maior, sendo interditado.

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A NOVA CRUZADA
DO FANTASMA AUTORITÁRIO BRASILEIRO

O bolsonarismo como fantasia e conclusão lógica do golpe de 64

Rubem Klaus

1- Pioravante, marche!

O bolsonarismo seguirá em sua marcha batida para o futuro – uma fuga para a
frente arrastando uma acumulação periférica subdesenvolvida, mais ou menos
fracassada em sua agenda de modernização e integração nacional num mercado global
cada vez mais excludente – idêntica a uma cruzada militar-religiosa para o passado
arcaico de uma ex-colônia escravagista, ameaçando liquidar o presente e o futuro, bem
como a memória histórica dessa barbárie a ser reinstalada, com o superministro dos
negócios Paulo Guedes no leme. Centenas de diagnósticos interessantes já foram
traçados, o fundamental aqui será captar o sentido ideológico mais fundo do “projeto
conservador”(!) de reformas destrutivas dessa extrema-direita. Sua base e suas alianças
são claras e conhecidas: um inepto autoritário do baixo clero na presidência associado a
uma junta militar ultraneoliberal, elementos dos grandes bancos e do judiciário, forças
conservadoras e modernizadas do campo e do setor primário-exportador, milicianos,
fundamentalistas religiosos e uma malta de políticos novatos celerados, reacionários
nostálgicos da ditadura, machistas, racistas e ultraliberais. Um “governo de ocupação”
“autocrática” – como bem flagrou Wanderley Guilherme dos Santos1 – ocupação

1 “Quando ele estima considerar movimentos de sem-terra como organização terrorista ou diz que os
vermelhos ou vão embora ou vão para a cadeia isto é um governo de ocupação que transforma toda a
oposição em inimigo. A visão que Bolsonaro transmitiu é que seus opositores são estrangeiros ao Brasil.
Não são brasileiros propriamente ditos. São estranhos ao Brasil. É importante entender que um governo
de ocupação não é necessariamente fascista. Ele vai usar as leis que existem. Leis que estão no código
penal e na Constituição e que podem ser aplicadas de uma forma perfeitamente violentadora daqueles
direitos que supúnhamos adquiridos mas que não têm respaldo institucional nas leis do país. (...) As
instituições democráticas, pelas suas virtudes, de tolerância interpretativa, abrem um espaço para se

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

militarizada e judiciarizada ao extremo, por certo, tutelando a democracia, colonizando


o Supremo Tribunal Federal, suplantando a Constituição e tentando bloquear qualquer
possiblidade de a esquerda retomar a presidência pelos próximos dez ou vinte anos
através de um processo eleitoral “normal”. Se a estratégia falhar e a esquerda reacumular
forças, há muito vem se preparando a desmontagem dos aparelhos, com a PEC do teto
de gastos e o desmanche geral através de uma onda programada de privatizações, cortes
de direitos e mais planos de austeridade, e, não menos importante, a formação de um
estado policial-carcerário, e se preciso militarizado, sempre a postos nas ruas.

2- O consenso fabricado e o sonho de uma nova “unidade neoliberal”

O consenso em torno do presidente e sua chapa de aluguel foi fabricado, mas o


apoio é real, e está mais ou menos enraizado nas Forças Armadas, no velho Brasil
oligárquico, nos interesses do grande capital e da grande mídia, e em parte da classe
média branca do centro-sul; mas também em setores populares empobrecidos que
sofrem com a recessão, o desemprego, a insegurança, o endividamento e a falta geral de
perspectivas. Tudo sob a cobertura de uma guerrilha psicológica comparável a uma
estratégia de propaganda fascista anos 30 ou de controle de um território sem lei pelo
Exército, através de uma enxurrada jamais vista de mentiras estilo vale-tudo
programadas nas redes sociais compradas ilegalmente, sob a supervisão de agentes da
extrema-direita internacional, talvez da ABIN, e a vista grossa do Tribunal Superior
Eleitoral. De quebra, um atentado a faca contra o presidenciável, que lhe serviu
claramente como álibi para a fuga dos debates.

Como muitos já disseram, o Brasil certamente não tem 49 milhões de “fascistas”.


Cerca de 88 milhões formam o campo dos que votaram na oposição petista ou anularam
e se abstiveram do voto. Mas certamente também não se tratou da escolha de um Brasil
“mais democrático, justo e inclusivo”. Se o “politicamente correto” saiu desgastado, o

governar autocraticamente em nome da democracia” (SANTOS, Wanderly Guilherme dos. "Só uma
frente apartidária conterá um governo de ocupação". Valor econômico, São Paulo, 29/10/2018.
https://www.valor.com.br/politica/5955315/so-uma-frente-apartidaria-contera-um-governo-de-
ocupacao. (Acesso em 07/03/2018).

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

moralismo e a justiça vingativa imperaram: o discurso batido do “combate à corrupção”,


erguido com o ativismo judiciário e as marchas coxinhas de 2013, tornou-se algo total,
mas também uma bandeira que além hipócrita parece justificar toda e qualquer ação
imoral, ilegal e autoritária a fim de se impor (do presidente e seus filhos, do juiz do
partido da Lavajato, da jornalista plagiária e oportunista, do guru parafrênico do
bolsonarismo, da reaçada em geral nas redes etc.). Desde o “golpeachment de 2016”, a
ordem democrática foi enxovalhada, ou convertida em uma pura forma lacunar, sujeita
ao arbítrio e à política da exceção2. A dualidade de conduta que sempre se viu na ação
violenta da polícia nas periferias, o estado dual que administra populações
precariamente incluídas no mercado e na cidadania – de um lado fachada democrática,
no avesso, um estado policial-carcerário – agora pode se universalizar sem nenhuma
vergonha. A ação truculenta e ilegal das forças repressivas, das milícias e dos grupos
parafascistas já começou. Uma série de decretos pode normalizar esse clima estranho
em que se misturam ordem repressiva, paranoia securitária e situações de emergência
diante do caos. Com a elite das manifestações na Av. Paulista, amplamente
televisionadas e divulgadas pelas redes, parte da pequena burguesia e mesmo da massa
empobrecida virou à direita e à extrema-direita, todos eles calculando mais ou menos os
ganhos desta aposta de mudança ideológica radical: livre mercado, redução de impostos
e do tamanho do Estado, ampliação da fronteira agrícola, do desmatamento e do uso de
agrotóxicos, mais segurança e repressão à criminalidade, conservadorismo nos
costumes, hegemonia familista-religiosa em nível nacional, anticomunismo etc. Um
gênero impossível de “integração neoliberal” – no fundo um outro nome para a
reconfiguração do modelo de “capitalismo selvagem” e “autocrático-burguês”, como o
definia Florestan Fernandes3, só que atualizado pelo neoliberalismo... pinochetiano. Ou
seja, continuação do Estado oligárquico militarizado do passado ligado no 220v de um
“turbocapitalismo de rapina”. Sem descontar aí os elementos obscurantistas e
protofascistas embutidos nesse conjunto, que tanto fascinam como repelem a massa,

2 Para uma análise das raízes desse processo, cf. TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta
da ditadura. (A exceção brasileira). São Paulo: Boitempo, 2010; SERRANO, Pedro Estevam.
Autoritarismo e golpes na América Latina. Breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda,
2016; MASCARO, Alysson. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo, 2018.
3 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. 2ªed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

inclusive aquela que votou no candidato vencedor. É deste último elemento que
deveríamos partir para decifrar esse monstrengo autoritário fã de torturadores que se
aproxima como um estranho conhecido, um líder de bando soberano, um fantasma
remoto.

3- Na fantasia de fascistização do poder, o real desintegrado de uma ex-


colônia

Por certo esse fenômeno político abstruso e algo delirante tem vários níveis e
dimensões econômicas, sociais e culturais que se desdobram e se entrelaçam. Mas esse
real precisa ser examinado em seus próprios termos. Não é difícil encontrar o centro da
questão – o sentido deste capitalismo de rapina – se penetrarmos no ponto de vista de
seus próprios agentes. Pois o espaço social estará como nunca sujeito às “representações
do espaço concebido”4 por este governo de ocupação. Nesse sentido, é incrível a frieza
com que Paulo Guedes lida com os números mais abstratos, inflados e imaginários do
orçamento, da previdência ou das privatizações, totalmente de costas para as
necessidades sociais e as consequências materiais dessa política neoliberal de choque,
que visa tornar o que parecia politicamente “impossível” algo viável através do uso
instrumental das crises econômicas e institucionais5. Isso do lado da gestão econômica.
Do outro lado, temos a visão político-ideológica típica do bolsonarismo. A título de
experimento, imaginemos que isso então se condense suficientemente bem numa
mensagem exorbitante de um guru pancada do grupo, figura machadiana clássica criado
na Casa Verde de Itaguaí, lançada no calor da hora triunfal, na rota de uma eleição quase
vencida6. Abram-se aspas,

4 Conforme a útil conceituação de LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 1974.
5 KLEIN, Naomi. The Shock Doctrine. The rise of disaster capitalism. New York: Metropolitan
Books/Henry Holt Co., 2007. A autora reconhece num texto de Milton FRIEDMAN (Capitalism and
Freedom, 1962) a semente do programa desse “capitalismo de desastre”: "Only a crisis—actual or
perceived—produces real change. When that crisis occurs, the actions that are taken depend on the ideas
that are lying around. That, I believe, is our basic function: to develop alternatives to existing policies, to
keep them alive and available until the politically impossible becomes politically inevitable." (ib., p. 6 e
140).
6 Olavo de Carvalho, "O que cai com a ascensão do Bolsonaro" (publicado originalmente como post em seu

facebook em 11/10/2018). Reproduzido em: https://andif.com.br/noticia/olavo-de-carvalho-o-que-cai-

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"O que cai com a ascensão do Bolsonaro

1) Todo o esquema de poder construído pelo PT e seus associados ao longo de


cinquenta anos.

2) O centro motor e financiador de todo o movimento comunista latino-


americano. Portanto, o Foro de S. Paulo com as duzentas organizações que o
compõem.

3) Os planos internacionais de eliminação da soberania nacional brasileira e de


subgjugação do país ao esquema globalista.

4) Milhares de carreiras e biografias de políticos, intelectuais e artistas de


esquerda.

5) Todo o poder impune do narcotráfico e do crime organizado em geral.

6) Todas as grandes empresas de mídia.

7) Toda a constelação de prestígios do show bussiness.

8) Todo o sistema de poder instalado nas universidades e no sistema de ensino


em geral.

A queda de tudo isso é imediata e automática no dia mesmo da posse de


Bolsonaro. Ademais, o famoso “Gigante Adormecido”, o povo brasileiro, acordou
e não há soporífero capaz de fazê-lo voltar a dormir. É um novo poder soberano
decidido a subjugar ou anular todos os outros.

Por tudo isso, é óbvio, é patente e inegável que os representantes do atual


esquema de poder não podem aceitar uma derrota de maneira alguma, porque
não será só uma derrota, será a sua total destruição enquanto grupos, enquanto
organizações e até enquanto indivíduos.

Eles não estão lutando pelo poder nem para vencer uma eleição, estão lutando
pela sua sobrevivência política, social, econômica e até física. É inconcebível que,
nessas condições, não lutem com a fúria de milhares de leões feridos, apelando a
todos os recursos lícitos e ilícitos, morais e imorais, para obter não só a vitória a
todo preço, mas, se possível, a redução do povo à total inermidade.”

com-a-ascensao-do-bolsonaro#.XIBUbvZFzIU, também publicado em


https://olavodecarvalhofb.wordpress.com/2018/10/12/11-10-2018/ (Acesso em 06/03/2019).

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Piada, provocação, ficção, réclame, ironia? De tudo um pouco, mas o post é


“sério”, chocou a opinião pública e foi curtido por centenas de fanáticos seguidores do
mestre, e por isso mesmo tem algo de delirante. O fato é que ele estrutura uma espécie
de protofantasia autoritária por nós há muito conhecida. Sua semente foi plantada num
passado longínquo, mas baixou à realidade no golpe de 64. O sonho desse
pseudoideólogo do bolsonarismo é claro, simples, podre: um retrocesso aos anos de
chumbo, o desejo fascistoide de repressão e liquidação dos elementos “comunistas” e
“subversivos” da política e da cultura do país, localizados paranoicamente em todos os
quadrantes. Ele projeta no outro (a esquerda) aquilo que ele mesmo deseja realizar (a
conquista da hegemonia, o controle do Estado, a paz armada e a aniquilação da oposição)
em nome da comunidade nacional unânime cimentada a um novo governo de exceção:
“É um novo poder soberano decidido a subjugar ou anular todos os outros”. Trata-se
então de administrar a máquina e enquadrar os que ainda não foram calados e exilados,
ou presos, torturados, assassinados. A lógica dessa fantasia é semelhante à do bode
expiatório nazista do entreguerras, ou macarthista e anticomunista da Guerra Fria:
perseguir populações fora da linha e extirpar inimigos internos da nação que encarnam
imaginariamente a corrupção moral, o dinheiro sujo, o saber, as artes e o prazer livres,
o ócio e o não-trabalho etc.7

Nesta cena fantasmática, a repressão de professores e estudantes, dos sindicatos,


movimentos sociais e partidos de esquerda e centro-esquerda completa o programa de
liquidação neoliberal de Guedes e Cia. O sentido então seria a conversão do Estado social
em um modelo autoritário-neoliberal a la Pinochet, que por intermédio da profunda
crise sofrida e de uma estratégia de choque e pavor, pode se orientar exclusivamente
para os ganhos do grande capital financeiro e empresarial e das classes que se mostrarem
“ordeiras”, que se esforçarem e se “adaptarem” à concorrência selvagem sem reclamar.

7 Lembremos do célebre “Discurso” de Bolsonaro na Av. Paulista (comentado por D. Cunha nesta edição
de Sinal de menos) e teremos uma amostra de como isso se expressa na voz do próprio líder autoritário.
Isso tudo tomou forma com a erosão da hegemonia petista e a crise de governabilidade a partir de 2013.
Ver, p.ex.: Bob KLAUSEN. “A espuma, a onda e o mar da reação. Cruzando o fantasma autoritário
brasileiro”. Sinal de menos, n. 11, vol., 1, 2015. Comparar com a leitura da ascensão do bolsonarismo
feita por CATALANI, Felipe. “Aspectos ideológicos do bolsonarismo”, 2018. Blog da
Boitempo. https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/31/aspectos-ideologicos-do-bolsonarismo/
(Acesso em 05/01/19).

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Tela de proteção imaginária contra esta concorrência e o desejo de liberdade e


emancipação, esta fantasia opera uma identificação a um líder/agressor e a um poder
arbitrários, que prometem mais liberdades dentro da Ordem e a salvação da nação do
“comunismo” através das garras de um governo fortemente militarizado.

Contudo, os contrapontos da realidade, os limites jurídicos e institucionais, a


oposição parlamentar, a ação popular democrática nas ruas, a imprensa livre, tendem a
bloquear a realização integral de tais cenários perversos. Mas algo em sua lógica parece
ser ainda mais arcaico e irredutível. O que torna o diagnóstico muito mais complicado.
O que fará o Governo quando tiver de enfrentar o resultado das medidas impopulares,
uma forte oposição de massas ou uma nova crise internacional? É aí que a desintegração
daria seu rebote como integração mais dura ou abertamente autoritária e o nosso
“arcaísmo” constitutivo tenderia a retornar finalmente como “projeto”8?

Sabe-se como a formação social brasileira é marcada estruturalmente pelo signo


geral da violência. A modalidade colonial de capitalismo aqui instalada, que associou
liberalismo e escravagismo, a lógica impessoal do lucro e o domínio pessoal sobre o
escravo, formou não só uma sociedade radicalmente hierárquica e desigual,
estruturalmente patriarcal e racista, que se constata empiricamente em cada zona de
guerra periférica do país. Também formou uma espécie de fantasia fundamental de
dominação sem limites, em que toda a esfera da alteridade – dos homens às coisas – é
espacializada, enquadrada territorialmente e submetida à reprodução da ordem. O guru
do bolsonarismo apenas atualizou esse esquema mental obsoleto, mas ele cala fundo
tolhendo a voz da razão. Neste cenário, o corpo do escravo e do dependente ocupavam a
clara posição de objeto de gozo, ao mesmo tempo em que eram utilizados, dobrados aos
caprichos senhoriais ou diplomáticos e invisibilizados como classe9. Desde a época

8 FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade
agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia, Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
9 Remeto aqui à discussão da arbirariedade do narrador machadiano feita por: SCHWARZ, Roberto. Um

mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990; PASTA, José
Antonio. Formação supressiva: constantes estruturais do romance brasileiro. São Paulo: Dep.
Literatura Brasileira, FFLCH-USP, Tese de Livre-Docência, 2011; DUARTE, Cláudio R. “Nada em cima
de invisível – Esaú e Jacob, de Machado de Assis. (As aventuras do dinheiro na transição do Império à
República)”. São Paulo: DTLLC-FFLCH/USP, 2017 (Tese de doutorado).

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

colonial, como dizia Darcy Ribeiro, esta ordem consistiu em “moinhos de gastar gente”10.
Muito do que o antropólogo sintetiza em sua obra final poderia ser trazido para iluminar
o fenômeno da ascensão e da possível permanência do bolsonarismo:

“Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com


a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa
espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo massa, sofrido e
perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria
contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concebido. Inclusive o dom de
serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos, e, invariavelmente,
imprevisíveis”11.

É por isso que se torna impossível conceituar o bolsonarismo como “fascismo” no


sentido original do termo. Sem dúvida, processos de “fascistização” do Estado latino-
americano foram investigados pela tradição sociológica, sem nunca encontrar por aqui
o terreno fértil para o enraizamento do modelo original12. Nos anos 60 e 70, segundo
Augustín Cueva, nas ditaduras do cone sul tratava-se da manutenção da dominação do
capital monopolista pela “via terrorista”, ampliar a modernização dependente, a
centralização e concentração de capitais, erguida sobre as costas das massas
superexploradas e absolutamente pauperizadas. Na realidade, esta fascistização
acentuou-se em alguns setores e na etapa mais fortemente repressiva da
“contrarrevolução preventiva” burguesa, que ainda tinha como meta lineamentos de um
Estado nacional desenvolvimentista, mesmo que tivesse de travar uma verdadeira
guerra econômica contra a massa trabalhadora, no contexto da Guerra Fria13. Assim que
“pacificada” a ordem interna, pôde-se restabelecer as bases formais da sociedade civil-
democrática, enquanto o neoliberalismo lentamente emergia como modelo de gestão

10 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. (A formação e o sentido do Brasil). São Paulo: Companhia de Bolso,
2011, p. 95.
11 Idem, Ibidem, 22.
12 FERNANDES, op. cit., p. 365; CUEVA, Augustín. “La Fascistización del Estado en América Latina”.

(Intervención em el debate sobre "La cuestión del fascismo en América latina"), Cuadernos Políticos,
México, Ediciones ERA, núm. 18, octobre-dicièmbre, 1978, pp. 15-21. O texto é ambíguo, contudo,
variando entre a admissão dum regime político fascista e a fascistização do Estado:“En lo personal me
inclino a caracterizar de esta manera a regímenes como los del cono sur de América Latina, tomando en
consideración que representan la implantación de una dictadura terrorista abierta de los elementos más
reaccionários del capital monopólico, ejercida en contra de la clase obrera y el sector revolucionário de
los campesinos y los intelectuales”. Sobre esse debate, ver o artigo sintético de TRINDADE, Hélgio.
“Fascismo e neofascismo na América Latina”, 2000.
(http://www.derechos.org/nizkor/brazil/libros/neonazis/cap5.html#N_13_ Acesso em 07/03/2919).
13 Cf. FERNANDES, op. cit.

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integral das formas de vida14. Ora, que “fascismo” seria este hoje, portanto, quando a
legalidade formal permanece e o que se espreita no horizonte é apenas a imposição
violenta do programa neoliberal mais antipopular e o fim de qualquer política
desenvolvimentista? Um fascismo sem “nação”, sem “comunidade popular”, sem ação
de massas fascistizadas e mobilizadas, calçado em frações reacionárias da elite e da
pequena burguesia com seu nacionalismo de araque, e sem classe operária organizada
ou politicamente derrotada no campo oposto?15 É claro que muitos elementos soltos do
fenômeno original parecem aqui presentes, que compartilham seu espírito com a
extrema-direita “neofascista” ascendente no mundo. Chutando fora a escada de incêndio
da “gestão da barbárie” içada pelo lulismo16, também aqui “o neofascismo em ascensão
tem o inconveniente de precipitar aquilo que já é realizado pelos mecanismos
antissociais do mercado, por isso precisa se afirmar em conjunto e não contra a ideologia
liberal. O neofascismo é uma combinação, aparentemente inusitada, de dirigismo estatal
repressivo e desintegração dos mecanismos estatais de proteção como tentativa de
administrar a crise estrutural do capitalismo”17.

O lastro histórico brasileiro desta ascensão sem mobilização nacional de peso


portanto é outro: remete muito mais ao nosso velho escravismo colonial e à sua
passagem direta a uma agenda acelerada de saques, exploração, controle social e
destruição socioambiental – sobredeterminados pela recessão interna e a economia
política da concorrência global de crise. Em fuga para a frente, a sociedade tende a

14 DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. (Ensaio sobre a sociedade neoliberal).
São Paulo: Boitempo, 2016.
15 Cf. SANTOS, op. cit. Além das análises de POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. São Paulo:

Martins Fontes, 1978 (especialmente Cap. VII. O Estado Fascista, 4. Proposições gerais sobre o Estado
fascista, forma de regime de exceção); KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. São Paulo:
Expressão Popular, 2018.
16 Cf. MENEGAT, Marildo. “Entrevista com Marildo Menegat”. Sinal de menos, Nº 12, vol.2, 2018.
17 BOTELHO, Maurílio L. “Notas sobre o fascismo, o de ontem e o de hoje”. Blog da Consequência, 02/10/

2018. (https://blogdaconsequencia.com/2018/10/02/notas-sobre-o-fascismo-o-de-ontem-e-o-de-
hoje/ (Acesso em 03/10/18). Bem entendido, um fenômeno totalmente diferente, novo na continuidade
dispersiva do conteúdo típico do fascismo histórico: “As duas cavidades presentes no coração neoliberal
estão também no peito do neofascismo. De um lado, uma preocupação em continuar a forrar os
mercados financeiros com o capital fictício num volume que apenas o Estado é capaz de oferecer; de
outro, levar às ultimas consequências a dissolução de qualquer garantia social, fazendo com que cada
indivíduo seja responsável por sua própria sobrevivência”. Ver também as considerações importantes
sobre a ascensão da extrema-direita mundial em: LAVAL, Christian. “Bolsonaro e o momento
hiperautoritário do neoliberalismo”, 29/10/2018.
(https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/29/o-momento-hiperautoritario-do-neoliberalismo/ Acesso
em 05/01/19).

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

regredir sem memória histórica suficiente para o passado mais triste, desigual e violento.
Para começar, porque aqui, como nos lembraria Darcy, tivemos tradicionalmente apenas
um território a conquistar, e “ao contrário das sociedades autônomas, o povo não existe
para si e sim para outros”18. Nesse sentido, pode-se falar da ampliação do modelo de
rapina neocolonial típico das zonas de fronteira capitalista para todos os cantos do país,
e assim de um modelo de “capitalismo de fronteira”, com consequências nefastas para o
desmatamento, as populações tradicionais e periféricas e até muito provavelmente o
clima global19.

4- Declínio das ilusões?

O bolsonarismo seria assim uma forma de retorno do Estado oligárquico absoluto


(ou quase autocrático), reunindo mais uma vez o arcaico ao moderno, repondo o atraso
através do moderno, mas do moderno em crise estrutural. Adequando-se às
desigualdades do país, suportadas por uma relativa uniformidade étnico-cultural e uma
unidade nacional muita dividida (cf. o mapa das votações), sua ação tende a exacerbar o
fosso entre as classes e aumentar as velhas “tensões dissociativas de caráter
traumático”20. Nesse sentido, para além da utopia política fascista de integração e
mobilização de massas para o trabalho, o bolsonarismo amplia potencialmente uma
política de total precarização, exclusão e desintegração nacional. Maneira de dizer que
um governo ultraliberal e repressivo como este, caso perpetuado como modelo e
difundido no tempo-espaço, pode se tornar ainda mais devastador que as ditaduras
“fascistizadas” do passado latino-americano.

Comprimindo o presente numa estrutura fantasmática arcaica, em que confluem


relações do passado neocolonial e delírios do neoliberalismo hardcore, o bolsonarismo
confirma a constante nacional de uma história que não passa, ou apenas repete a

18 RIBEIRO, op. cit., p. 229.


19Cf. os ensaios de Daniel CUNHA, “Bolsonarismo e capitalismo de fronteira” e como referencial de fundo:
DUARTE, Cláudio R. “Ex-homens na fronteira literária latino-americana”, ambos publicados nesta
edição de Sinal de menos. Sob uma perspectiva mais global de instalação de um estado de emergência
difuso, ver: ARANTES, Paulo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007 e Idem, O novo tempo do mundo (e
outros estudos sobre a era da emergência). São Paulo: Boitempo, 2014.
20 RIBEIRO, op. cit., p. 21.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

catástrofe da mesma desintegração com fins de manter os negócios e a espoliação geral


sob controle em níveis estratosféricos, ao mesmo tempo em que tende a liquidar também
o presente e o futuro, submetendo os trabalhadores à miséria, perseguindo toda
oposição e desidratando a política e o Estado como possibilidade formal de resolução de
conflitos. Feitas as contas, subtraindo do esquema várias contradições sociais existentes,
esse projeto equivaleria à conclusão lógica do trabalho sujo iniciado em 64.

Esta enfim deve ser a ideia fixa na cabeça do capitão Jair, recolhida por exemplo
nas memórias falsificadas do torturador Brilhante Ustra, depositadas em sua cabeceira
de cama. Líder que seus fãs mais fanáticos já tatuaram na pele e pedem para já irmos
nos acostumando com a cruzada obscurantista que vem por aí. Ora, sob a possibilidade
concreta de entrarmos num novo colapso financeiro ou nova recessão global a partir de
2019, este projeto de liquidação pode endurecer-se muito mais rapidamente do que hoje
dá como sinal, o que significaria talvez o declínio das ilusões democráticas alimentadas
desde a Anistia e a Abertura consolidada com a Nova República. Teremos sorte se nessa
marcha batida em direção ao progresso da totalização da ideologia do “livre mercado”
não refundarmos o Império brasileiro (ou antes, ianque-brasileiro).

É daqui que pode emergir quem sabe uma nova crítica da economia, da política e
das identidades vigentes, até hoje vestida pela esquerda noutra fantasia: a utopia de uma
sociedade do trabalho livre. É preciso saber atravessá-la em direção à liberdade.

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BOLSONARISMO E
“CAPITALISMO DE FRONTEIRA”

Daniel Cunha1

“O sentido da evolução brasileira... ainda se afirma


por aquele caráter inicial da colonização”.

(Caio Prado Jr.)

A ascensão de Jair Bolsonaro e sua agenda política que mescla ultraliberalismo


econômico com racismo, misoginia, homofobia, xenofobia e militarismo (incluindo
apologia da ditadura e da tortura) tem provocado tanto inquietação política quanto
desamparo teórico. De um lado, faz-se a devida denúncia, com ensaios de mobilização
antifascista e a necessária campanha do #elenão liderada pelas mulheres; de outro,
aparecem as relações com o fascismo histórico e com outras figuras políticas
contemporâneas, como Trump nos Estados Unidos, Orban na Hungria, Erdogan na
Turquia ou talvez o melhor correlato, Duterte nas Filipinas. Essas aproximações, porém,
permanecem pouco tematizadas. A “consciência democrática” tem claro para si que “ele”
é inaceitável, mas essa consciência permanece difusa e sem maior elaboração conceitual.
Para que se vá além de relações superficiais é preciso colocar fenômenos como o
bolsonarismo em perspectiva histórico-mundial, localizando-os na trajetória da
modernidade capitalista e no seu lugar periférico brasileiro.

1 DanielCunha é doutorando em sociologia (SUNY-Binghamton), mestre em ciência ambiental (UNESCO-


IHE), engenheiro químico (UFRGS). Co-editor da revista Sinal de Menos (www.sinaldemenos.org).
Versão ligeiramente modificada de texto publicado anteriormente no Blog da Consequência em outubro
de 2018 e publicada em inglês no Brooklyn Rail em fevereiro de 2019. Ver em
https://blogdaconsequencia.com/2018/10/04/bolsonarismo-e-capitalismo-de-fronteira/ e
https://brooklynrail.org/2019/02/field-notes/Bolsonarism-and-Frontier-Capitalism

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Utilizo aqui um conceito sócio-histórico que chamarei de “capitalismo de


fronteira”, inspirado no conceito de “fronteira de mercadorias” de Jason W. Moore.2
Fronteiras de mercadorias são o resultado da incorporação de áreas e setores
previamente “exteriores” à economia-mundo capitalista. Essa incorporação é
geralmente motivada pela presença de recursos (minérios, solos naturalmente férteis
etc.) e usualmente, por estar na fronteira, é carente de força de trabalho, que tem de ser
deslocada até ela. Daí a sua relação estrutural com o trabalho escravo ou análogo à
escravidão. Trata-se do caso brasileiro; de fato, essa configuração é constitutiva do Brasil
enquanto sociedade moderna, o “sentido da colonização”, como bem mostrou Caio
Prado Jr.: a plantação de cana-de-açúcar como capítulo da expansão do capital comercial
europeu, com produção baseada na apropriação da fertilidade natural do solo (massapé),
destinada ao mercado mundial; produção baseada em trabalho escravo racializado,
tendo como pré-requisito a prévia expulsão (ou extermínio) dos habitantes e seres
anteriores daquela área de fronteira (indígenas, flora, fauna). 3 Já nascemos como um
empreendimento comercial escravista/exterminador. O padrão repetiu-se com os ciclos
do ouro e do café. Aqui já se vê que racismo e exterminismo são estruturais e fundantes
na nossa configuração do capitalismo de fronteira. A Independência que passou o
comando ao herdeiro do colonizador, a Abolição mais tardia do continente, repúblicas
de tipo “café com leite” e “anistias” de ditadores e torturadores não colaboraram para
mudar radicalmente esses fundamentos.

A partir da industrialização iniciada na Europa, uma vez que o sistema-mundo


capitalista passa a funcionar sobre as suas próprias bases (produção industrial baseada
na mais-valia relativa), a fronteira tem o seu papel sistêmico reforçado. A tendência

2 Moore (2000). O conceito de “fronteira de mercadorias” deriva da teoria da reprodução ampliada do


capital elaborado por Marx no volume 2 de O capital e discutido por Luxemburg (1970).
3 Prado Jr. (2015/1942). A racialização da escravidão foi consequência da evolução histórica da economia-

mundo, conforme Wallerstein (1974, 88-9): “O cultivo de açúcar começou nas ilhas mediterrâneas, mais
tarde avançou para as ilhas do Atlântico, e então cruzou o Atlântico em direção ao Brasil e às Índias
Ocidentais. A escravidão seguiu o açúcar. À medida que se moveu, a composição étnica da classe dos
escravos foi transformada. Mas por que africanos como os novos escravos? Por causa da exaustão da
oferta de trabalhadores autóctones das regiões das plantações, porque a Europa precisava de uma fonte
de força de trabalho de uma região razoavelmente populosa que fosse acessível e relativamente próxima
da região do seu uso. Mas ela tinha de vir de uma região externa à economia-mundo, de maneira que a
Europa não tivesse que preocupar-se com as consequências econômicas da remoção de mão-de-obra em
larga escala na forma de escravos da região de reprodução. Coube à África Ocidental preencher melhor
esses requisitos” (tradução minha).

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sistêmica de aumento da composição orgânica do capital (substituição de trabalhadores


por maquinário) acarreta a tendência de queda da taxa de lucro, conforme mostrado por
Marx. O capital emprega várias estratégias sistêmicas para contrarrestar a tendência de
queda da taxa de lucro, a mais imediata o aumento da taxa de exploração do trabalho. A
própria expansão sistêmica promovida pelo aumento de produtividade absorve novas
massas de força de trabalho. Mas um mecanismo pouco mencionado é o barateamento
do capital circulante (matérias-primas). A fronteira aqui tem papel crucial: capital
circulante barato se produz com a apropriação da natureza “virgem”, preferentemente
com trabalho escravo ou análogo à escravidão. Solos naturalmente férteis que dispensam
fertilização artificial, novas minas com minério de alto grau de pureza que minimizam a
necessidade de processamento. A fronteira, portanto, é móvel, uma zona de apropriação
em constante expansão, e assim exerce o papel de “amortecedor” da tendência de queda
da taxa de lucro.4

Se avançarmos até o século XXI, vivemos sob aquilo que Moishe Postone
chamou de “anacronismo do valor”.5 Como antecipado por Marx nos Grundrisse, a
composição orgânica do capital atinge tal grau que o valor ou tempo de trabalho
socialmente necessário passa a ser uma base mesquinha para a medição da riqueza
material.6 Trata-se do limite absoluto do modo de produção capitalista, que se desenrola
enquanto processo de crise cujos efeitos vão do desemprego estrutural à favelização
mundial, da financeirização ao asselvajamento do patriarcado, do reforço do racismo
estrutural ao agravamento da crise ecológica.7 Robert Kurz localizou esse “ponto de
viragem” na “revolução microeletrônica” a partir dos anos 70, quando as racionalizações
dos sistemas produtivos (automatização computadorizada etc.) começam a eliminar
mais trabalho vivo do que o gerado pela expansão da do sistema.8 Esse “ponto de
viragem” foi marcado por uma constelação de eventos, como o colapso de Bretton
Woods, a queda do muro de Berlim e dos regimes do Leste, a crise de dívida nos países
do Terceiro Mundo. Ocorre, se Kurz está certo, que neste ponto a “modernização”

4 Moore (2015).
5 Postone (2019), nesta edição da Sinal de Menos.
6 No célebre “fragmento sobre as máquinas”: Marx (2011/1858), 940-ss.
7 Sobre o asselvajamento do patriarcado, elemento gritante do bolsonarismo, ver Scholz (2017). Scholz

possui extensa obra sobre o tema do capitalismo e patriarcado.


8 Kurz (2018/1986).

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brasileira (e dos países do “Terceiro Mundo” em geral) ainda estava incompleta. Trata-
se do “colapso da modernização”, o fim dos projetos de “modernização retardatária”,
geralmente impulsionados por ditaduras que conduzem o desenvolvimento das forças
produtivas com mão-de-ferro. Desde então, temos uma sociedade “pós-catastrófica” em
uma economia-mundo capitalista que passa a girar em falso. 9 “Pós-catastrófica” e
apenas parcialmente modernizada, frise-se, não tendo uma completa formação de
classes, instituições e democracia de massas como nos países centrais; nem o
“proletariado” e tampouco o “cidadão” foram aqui plenamente acumulados. Racismo,
violência estrutural exterminista, mandonismo e capricho anti-republicano (para além
de suas formas militaristas mais óbvias, como por exemplo no Judiciário e no Ministério
Público), permanecem não como meros “preconceitos” ou “privilégios” idiossincráticos,
mas como elementos estruturantes de uma sociedade escravista de fronteira apenas
parcialmente superados.

Nesse contexto de crise, tem-se o asselvajamento da necessidade de capital


circulante barato para a modulação da composição orgânica do capital. Mais do que
nunca o avanço sobre fronteiras de mercadorias é vital para o prosseguimento da
acumulação. O “colapso da modernização” conjugado com essa necessidade sistêmica
resulta nesse papel do Brasil na divisão internacional do trabalho: a de uma imensa
fronteira de mercadorias cada vez mais desindustrializada. Trata-se de posição periférica
e subalterna, mas crucial. A fronteira da soja está vinculada à produção de alimentos
para a força de trabalho chinesa e, portanto, à continuidade do seu baixo custo; a
produção exportadora chinesa, por sua vez, se conjuga com o endividamento norte-
americano, em um “circuito de dívida” no qual a China compra os títulos de dívida
americanos que financiarão a exportação de suas próprias mercadorias. O minério de
ferro é crucial para a expansão urbana chinesa, mesmo que seja para acabar no concreto
de cidades-fantasma e aniquilar Mariana e o Rio Doce devido a flutuações de preço
seguidas de cortes de custos. Esse circuito China-EUA-Brasil que articula fronteiras de
mercadorias brasileiras, mão-de-obra chinesa barata e endividamento americano foi
central na continuidade da “normalidade” capitalista nos últimos 20 anos, mas em
última análise repousa sobre o colchão de ar quente do capital fictício (montanhas de

9 Kurz (1992)

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dívidas e papeis).10 Foi neste cenário de boom de mercadorias que os governos do PT


puderam aplicar políticas sociais de redistribuição sem mudanças estruturais na
sociedade brasileira, no embalo do fluxo de capital chinês e em aliança com o
agronegócio, o setor financeiro e mesmo a bancada evangélica. Um sistema de “gestão
de crise” que promoveu a “inserção pelo consumo” e que só podia ser precário e
provisório, como ficou claro em seguida.11

O estouro da bolha imobiliária em 2008, porém, estragou a festa de fim de


feira. O endividamento chinês ainda pode prolongar o boom das commodities por algum
tempo, mas o declínio inevitavelmente chegou. Isso resultou em instabilidade política
no Brasil, onde a classe média excluída do arranjo legitimador dos governos petistas foi
às ruas pedindo impeachment, embalada pela mídia oligopolizada e um Judiciário e
Ministério Público sem controle popular e partidarizado.12 Pouco antes, a desastrada
reação tecnocrática do então prefeito de São Paulo e candidato derrotado à presidência
Fernando Haddad aos protestos de junho de 2013, que inicialmente tinham demandas
progressistas, jogou as manifestações nos braços do conservadorismo.13 A legitimidade
do governo de Dilma Rousseff entre quem poderia defendê-la foi ainda ferida de morte
pela sua catastrófica opção por um ajuste fiscal neoliberal promovido pelo “Chicago Boy”
Joaquim Levy. O golpe (formalmente impeachment) coincidiu com o mínimo do índice
do preço de commodities (dezembro de 2015). O afastamento de Rousseff significou um
aprofundamento e aceleração do processo de rapinagem, agora não mais limitado por
nenhum arranjo conciliador. Michel Temer tratou, em suma, de baratear a força de
trabalho, vender o pré-sal e cortar serviços públicos.

Esse contexto de crise econômica e de legitimidade do PT (identificado como


esquerda em geral), ampliada pelos “escândalos de corrupção” movidos a “delação
premiada” e “domínio do fato”, sabotagem do PSDB, bombardeio midiático, agitação de
think tanks juvenis e ideólogos paranoicos (MBL, Reinaldo Azevedo, Olavo de Carvalho,
este último tendo diretamente indicado ao menos dois ministros de Bolsonaro) foi o

10 Sobre o circuito de dívidas EUA-China, ver Kurz (2017/2007)


11 Sobre o Partido dos Trabalhadores como “gestor de crise”, ver Menegat e Sinal de Menos (2018).
12 Sobre a crise do “pacto social” brasileiro ver Barreira e Botelho (2016)
13 Sobre a ascensão do conservadorismo já em 2013, ver Duarte (2013), Marques (2013) e Behrens e Sinal

de Menos (2013).

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caldo de cultura no qual cresceu o bolsonarismo.14 Bolsonaro mobiliza os chavões típicos


de populistas de extrema-direita em tempos de crise econômica: racismo, militarismo,
misoginia, xenofobia, homofobia, anti-comunismo, anti-intelectualismo (incluindo o
pretendido “banimento” do marxismo e das ideias de Paulo Freire das escolas e
universidades) são padrões em líderes fascistas.15 Se o antissemitismo parece residual,
as teorias conspiratórias se apresentam como mirabolantes planos de “dominação
comunista”, veja-se o delírio, sob o comando do PT – o futuro chanceler Ernesto Araújo
é adepto dessas formulações, que incluem o negacionismo climático como elemento da
conspiração.16 Mais atípico é o ultraliberalismo representado pelo seu futuro ministro
da economia Paulo Guedes, conjugado com o autoritarismo militarista do seu candidato
a vice, general Mourão. Mas aqui não há nada de inconsistente: esse é o arranjo ideal
para capitalismo de crise em um país periférico que é relegado à condição de fronteira
de mercadorias do mercado mundial enquanto uma imensa e explosiva massa de
supérfluos se acumula em favelas, precisando ser contida – daí o sentido de “guerra aos
vagabundos” da militarização da segurança pública.17 Por sua vez, a apoteose do lawfare
sistêmico representado por Sérgio Moro, agora ministro da justiça, se dedicará à
oposição política organizada. Não é à toa que frações da burguesia apoiam a candidatura
bolsonarista, pouco se importando com aparências civilizatórias; elas são as sucessoras
históricas dos modernos proprietários de escravos que forjaram a ideologia liberal-
escravista.18 Mas aqui também aparece uma diferença importante em relação ao
fascismo histórico: enquanto este último teve papel de modernização como “sistema de
mobilização total para o trabalho industrial”, fenômenos como o bolsonarismo
representam antes a mobilização total para a rapina das fronteiras de mercadorias e

14 A sabotagem do PSDB foi surpreendentemente admita por Tasso Gereissati em entrevista ao jornal O
Estado de São Paulo. Disponível em https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,nosso-grande-
erro-foi-ter-entrado-no-governo-temer,70002500097. Em artigo publicado em 2004, o juiz Moro
escreveu: “A presunção de inocência, no mais das vezes invocada como óbice a prisões pré-julgamento,
não é absoluta, constituindo apenas instrumento pragmático destinado a prevenir a prisão de inocentes.”
Ele também defendeu as “delações premiadas”, incluindo o uso de táticas de desinformação contra os
acusados e o uso dos meios de comunicação de massa para revelar informações durante o processo,
antecipando a sua decisão de “vazar” ilegalmente a conversa entre a então presidente Dilma Rousseff e
Lula em 2016. Ver Moro (2004).
15 Ver Jiménez (2018).
16 Ver Araújo (2017) e minha crítica no adendo a este texto.
17 Cf. Botelho (2018).
18 Sobre liberais escravistas, ver Bosi (1988) e Schwarz (2000/1977).

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contenção militarizada dos não-rentáveis. Não há mais pretensão de arregimentação em


massa para o trabalho.19

Nesse contexto de “expectativas decrescentes”, afloram os mecanismos


tradicionais de desumanização do “outro”, do não-rentável, do favelado, do excluído dos
sistemas de proteção social: racismo, elitismo e circuitos de afetos reacionários. 20 A isso
junta-se um componente ideológico específico, enfatizado por alguns pesquisadores: a
emergência de uma ideologia supremacista anti-indígenas e anti-quilombolas.21
“Quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo que não presta”, disse Luiz Carlos Heinze em
audiência pública com produtores rurais, e Bolsonaro garante que “quilombola não serve
nem para procriar” e que não vai mais demarcar terras, enquanto seu vice Mourão
lamenta a “indolência” e a “malandragem” do negro e do indígena. 22 Ocorre que muitas
das terras indígenas e quilombolas demarcadas estão no caminho da expansão da
fronteira da soja e da mineração.23 Muito mais do que atravancando o caminho de
fazendeiros e mineradoras particulares, eles estão no caminho de um importante
mecanismo de amortecimento do aumento da composição orgânica do capital, e
portanto da continuidade da acumulação capitalista global. Longe de ser mero
“preconceito” subjetivo contra indígenas, trata-se de uma coagulação ideológica dos
interesses imediatos dos seus agentes com a configuração atual do capitalismo de crise
e uma arraigada herança histórica de extermínio. Aqui a apologia bolsonarista às armas
de fogo remete não apenas ao militarismo da ditadura, mas também ao “capitalismo de
fronteira” dos bandeirantes matadores de índios. Em 2017, 207 pessoas foram

19 Sobre o papel modernizador do nazi-fascismo, ver Kurz (s. d.).


20 Sobre a “era das expectativas decrescentes”, ver Arantes (2014). Sobre “modos de vida” e “circulação de
afetos” no processo de crise política atual, ver Safatle (2018).
21 Ver a página “De olho nos ruralistas”: https://deolhonosruralistas.com.br/
22 Conforme reportagem do jornal O Estado de São Paulo:
https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,mourao-liga-indio-a-indolencia-e-negro-a-
malandragem,70002434689
23 Ver o mapa das áreas de mineração pretendida sobrepostas às terras indígenas em

https://www.nexojornal.com.br/grafico/2017/04/19/Quais-%C3%A1reas-ind%C3%ADgenas-as-
mineradoras-querem-explorar. Uma consequência importante desse impulse de expansão fronteiriça é
a pressão sobre a Floresta Amazônica, prejudicando a biodiversidade e arriscando o colapso da floresta
oriental se for atingido um ponto de não-retorno (tipping point) que provocará a conversão da floresta
em savana e a liberação de enorme quantidade de carbono à atomosfera. Isso configura uma pressão
adicional nos ciclos biogeoquímicos planetários, já for a de controle. Ver Lovejoy e Nobre (2018) e Cunha
(2015).

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

assassinadas no campo em conflitos por terra ou ambientais.24 Junto com a favela, onde
milhares são assassinados todos os anos, esse é o lugar da milícia no “capitalismo de
fronteira”. Também neste aspecto, o bolsonarismo se diferencia da versão brasileira do
movimento fascista histórico (integralismo), que em seu projeto de “nação” imaginária
buscava “incluir” negros e indígenas (devidamente “evangelizados”), inclusive utilizando
como saudação oficial o tupi “Anauê”.25

O bolsonarismo tem elementos em comum com o fascismo histórico, mas não


coincide com ele. A transição do “trabalho liberta” (mote nazista) para o “bandido bom
é bandido morto” e o “tudo aquilo que não presta” é o espelho ideológico da transição da
ascensão para o declínio da economia-mundo capitalista. A sua força como ideologia
parece residir no fato de que ela conjuga as necessidades do capitalismo de crise
contemporâneo, tanto no que se refere à acumulação em si quanto aos processos
ideológicos, com elementos profundos e constitutivos da sociabilidade e da constituição
do sujeito no “capitalismo de fronteira” brasileiro, elementos nunca completamente
superados em nossa modernização truncada. Assim, o bolsonarismo rompe com a
“gestão de crise” petista, com isso assumindo certo ar “contestador”, mas que propõe
substancialmente não mais do que rapinagem e repressão. Nessa configuração histórica,
o bolsonarismo como ideologia política (para além do indivíduo homônimo), salvo uma
improvável queda-relâmpago, parece abrir um novo período histórico, encerrando o
breve intervalo da Nova República.

***

Adendo: Comunidade e Nacionalismo na Era da Crise do Valor26

A indicação de Ernesto Araújo como futuro chanceler por Jair Bolsonaro trouxe à
luz um debate que estava até então sendo feito implicitamente: a questão do novo
nacionalismo de extrema-direita liderado internacionalmente por figuras como Steve
Bannon.27 Araújo parece ser uma versão subalterna dessa Internacional neonacionalista,

24 Ver reportagem da BBC: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44933382


25 Cf. Silva (2005).
26 Este adendo foi publicado originalmente no Blog da Consequência (novembro de 2018)

https://blogdaconsequencia.com/2018/11/27/comunidade-e-nacionalismo-na-era-da-crise-do-valor/
27 Ver Rossi (2018) e Fernandes (2018).

190
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

e as suas posições parecem indicar tanto uma tendência à extrema subalternidade da


política externa quanto ao compromisso ou choque com o ultraliberalismo de Paulo
Guedes, o futuro ministro da economia. Aqui busco brevemente compreender as
condições de possibilidade para que posições francamente pseudoeruditas e amalucadas
como as de Araújo, expressas principalmente em seu texto “Trump e o Ocidente”, podem
chegar a ter condições de disputa hegemônica intelectual e política. Um exame crítico de
seu texto, evidentemente, revela toneladas de falácias, da Revolução Francesa como
“momento tenebroso da história” à projeção do nacionalismo à época de Ésquilo (500 a.
C.). É preciso lembrar, porém, que toda ideologia é expressão de contradições reais.
Tendo esta ideologia em particular tomado importantes posições de poder, inclusive na
potência (ainda) hegemônica, os Estados Unidos, é preciso levá-la a sério, não no sentido
de validar as suas aberrações, mas para desvelar as contradições reais que tornam tais
excrescências ideológicas não apenas possíveis, mas as colocam em posição de disputa
de poder e de consciência a nível global.

Subjaz ao argumento de Araújo um impulso de salvação da “comunidade”, que


estaria corrompida pelo capitalismo internacional desalmado. Para ele, a “comunidade
precisa ter base na história profunda, nos mesmos arquétipos. Comunidade construída
só com base em valores abstratos não é comunidade (…) O Ocidente que Trump quer
reviver e defender não se baseia no capitalismo nem numa democracia liberal
desnacionalizada, desencarnada, desvinculada de uma personalidade histórica, mas nos
símbolos.” Talvez o momento mais falsificador do texto seja a imputação ao “marxismo
cultural” o ímpeto de destruição da comunidade: “Não por acaso o marxismo cultural
globalista dos dias atuais promove ao mesmo tempo a diluição do gênero e a diluição do
sentimento nacional: querem um mundo de pessoas ‘de gênero fluido’ e cosmopolitas
sem pátria, negando o fato biológico do nascimento de cada pessoa em determinado
gênero e em determinada comunidade (…) Já hoje o marxismo conclama a destruir o
conceito de comunidade histórica, a nação, e não fala mais de liberdade, hoje quer um
mundo de fronteiras abertas onde todos são imigrantes e ninguém pode identificar-se
com a sua terra nem com a sua gente sem ser chamado de fascista”.

O construto “marxismo (cultural)” utilizado por Araújo é vago e impreciso, no


que parece ser uma má leitura do “Marxismo Ocidental” (Escola de Frankfurt, o jovem

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Lukács) como “crítica cultural” desvinculada da crítica da mercadoria. Tomando-se os


escritos de Marx por base, não apenas é equivocado dizer que Marx não toma a
comunidade em consideração: na verdade, a comunidade é tema central de sua obra, a
ponto de Lucio Colletti, enquanto ainda marxista, ter traçado um paralelo entre o
“comunismo primitivo” marxiano e o “sauvage” de Rousseau.28 Por certo, não se trata
da comunidade defendida por Araújo e seus chefes do novo nacionalismo internacional.
Em sua época (1845), Marx já recusava o nacionalismo (em outro contexto): “a
nacionalidade dos trabalhadores não é francesa, não é inglesa, não é alemã, mas
o trabalho, a escravidão livre, a barganha de si mesmo. O seu governo não é francês,
não é inglês, não é alemão, é o capital. A sua atmosfera natal não é francesa, não é alemã,
não é inglesa, é a atmosfera da fábrica. O solo que lhes pertence não é francês, não é
inglês, não é alemão, mas a cova alguns metros abaixo do solo.”29 Não se trata, porém,
de uma recusa abstrata da “comunidade”, mas de uma particular forma ideológica que
ofusca as fissuras sociais reais. Um ano antes, ao analisar o trabalho alienado, Marx
criticava esta forma histórica da atividade vital humana não apenas por separar o
trabalhador do seu produto, do seu processo de trabalho e da natureza, mas também por
separá-lo do seu ser-genérico (Gattunswesen), o que hoje chamaríamos de
“humanidade”, a comunidade humana. Aqui, porém, a comunidade não é uma ideologia
ou mito, mas é ancorada na atividade vital interdependente da espécie, que é negada e
pervertida pela sociedade da mercadoria.30 Daí referir-se repetidamente à realização
dessa comunidade, por exemplo, no Manifesto: “em lugar da antiga sociedade burguesa,
com suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação na qual o livre
desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.31

Nos Grundrisse, onde registrou a sua exaustiva investigação que resultou em O


capital, lê-se na conclusão (o capítulo sobre o valor): “A troca não começa entre os
indivíduos no interior de uma comunidade, mas ali onde as comunidades terminam –
em sua fronteira, no ponto de contato entre diferentes comunidades.”32 Aqui, em Marx,

28 Ver Colletti (1969), p. 410-ss.


29 Marx 1845; livre tradução minha.
30 Ver Marx (2004), 79-90.
31 Marx (1998/1848), 59, ênfase minha.
32 Marx (2011/1858), 1220.

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se conceitua a dissolução da comunidade na sociedade produtora de mercadorias, que


internaliza essa fronteira até o nível do indivíduo. A mercadoria, por sua vez, abre O
capital, e neste capítulo de abertura Marx assevera que nesta sociedade predominam
“relações coisificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas”. 33 Novamente aqui se
expressa a noção de que a comunidade se dissolve na sociedade da mercadoria. 34 Não se
trata de uma pura dissolução, no entanto; nenhuma sociedade se mantém coesa sem um
nexo social. Daí ser crucial o entendimento da continuidade entre a teoria da alienação
e a teoria do valor/fetichismo.35 É o valor que passa a ser o nexo social, a “comunidade
alienada” que faz a mediação cega entre os produtores privados, tanto quanto o Estado,
como exposto na Ideologia alemã, é a “comunidade ilusória”, a contraparte da
dissolução da comunidade em cidadãos privados (assim também se processando a
clivagem entre a esfera econômica e a esfera política).36 Toda a crítica política marxiana
volta-se, justamente, para o estabelecimento de uma comunidade humana universal
concreta (que admite diferenças ao não subsumi-las a um princípio universal-abstrato
como o valor). Mas essa comunidade só poderia ser estabelecida com uma forma distinta
de organização social, para além da forma-mercadoria. À diferença dos neonacionalistas,
porém, para Marx o capitalismo globalizante não é vilificado em abstrato: ele tem uma
“missão civilizatória”, de maneira que entre o “comunismo primitivo” e o comunismo
como comunidade futura do Gattunswesen ou “comunidade humana universal” haveria
uma fase de heteronomia (comunidade alienada) que estabeleceria as condições de
possibilidade para aquele comunismo futuro, o desenvolvimento das forças
produtivas.37

33 Marx (2013/1867), 207 (tradução modificada para preservar a continuidade entre sachliche e Sache).
34 Convém lembrar que no pensamento dialético, a conclusão do modo de investigação (capítulo sobre o
valor nos Grundrisse) abre o modo de exposição (primeiro capítulo d’O Capital). O capítulo de abertura
de O Capital, assim, ao invés de ser lido como um preâmbulo do que vem a seguir, como faz a maior
parte dos leitores marxistas tradicionais, deveria ser lido como uma conclusão, plenamente
compreensível apenas em uma segunda leitura do volume.
35 Ver Jappe (2014); Colletti (1992/1975)
36 Marx (2007), 37. Ver também Sobre a questão judaica (Marx (2010)). Para uma introdução da noção

de valor como nexo social, ver também Jappe (2006), 44-53.


37 Toda essa teorização da sociedade da mercadoria está presente na Escola de Frankfurt (Horkheimer,

Adorno, Marcuse) e no jovem Lukács da História e consciência de classe etc., que Araújo parece
identificar com um “marxismo cultural” divorciado da crítica da mercadoria. Já em Gramsci essa crítica
da mercadoria não parece presente. Ver Bösch (2015).

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A “onda” ideológica nacionalista, assim, também pode ser explicada a partir


dessa conceituação categorial da dissolução da comunidade. Pois se o nexo social
(alienado) é o valor, o valor agora entre em crise no atual estágio da composição orgânica
do capital, conforme prefigurado por Marx no Fragmento sobre as máquinas.38 O
tempo de trabalho socialmente necessário torna-se uma base mesquinha para as forças
de produção enormemente desenvolvidas pelo capital.39 O crescimento do
neonacionalismo de extrema-direita emerge de um fenômeno social objetivo (daí a sua
força), ocupando o espaço da anomia deixado pela decomposição do valor e deixado livre
por forças de “esquerda” mais preocupadas com política identitária e/ou gestão de crise,
e por seus déficits teóricos incapaz mesmo de conceituar essa anomia. É preciso também
apontar a dimensão estruturalmente antissemita das posições de Araújo. Trata-se do
padrão de glorificação do “concreto”, da “comunidade nacional”, do “trabalho” e da
vilificação do “abstrato”, do “cosmopolitismo”, das “finanças”. Como desvendado por
Moishe Postone, ambos os polos dessa antinomia são constitutivos do capitalismo, em
sua dialética peculiar de concreto e abstrato. Trata-se de uma crítica fetichista
(capitalista) do capitalismo, que ao fim necessita de uma teoria conspiratória para
manter-se em pé. O cosmopolitismo financeiro-cultural desalmado, então, é imputado a
um determinado grupo que deve ser combatido. Araújo parece substituir os judeus pela
“esquerda globalista”, desvelando o momento anticomunista paranoico da sua
ideologia.40

Assim, como o neonacionalismo não oferece e não propõe nenhuma mudança


na forma de organização social da sociedade produtora de mercadorias, o que se oferece
como alternativa à anomia só pode tomar a forma de um mito, literal e assumidamente:
“teopolítica”, “o Deus que age na história”. O mito que oferece à “nação” brasileira é
baseado nas navegações portuguesas como “grande ritual iniciático”, sendo o Brasil
“fruto supremo desse ‘mistério’ … de origem profunda e sagrada”. Desse mito, ficam
excluídos os negros (escravizados) e indígenas (dizimados). Aquela instituição social

38 Marx (2011/1858), 940-ss.


39Ver Kurz (2018) e Postone (2019).
40 Ver Postone (2008/1986) sobre o antissemitismo estrutural como anticapitalismo fetichista.

Lembrando que, para Adorno, o antissemitismo tem caráter funcional e independência relativa do
objeto. Ver Catalani (2018) sobre o anticomunismo bolsonarista como estruturalmente antissemita.
Ademais, se há uma “Internacional” ativa hoje, é a dos neonacionalistas comandada por Steve Bannon.

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originária que é realmente estruturante da sociedade brasileira – a escravidão – não é


jamais mencionada na mitologia de Araújo. Ademais, como mostrou Magalhães
Godinho, historicamente o objetivo dos portugueses era de início apenas a conquista
territorial do Marrocos (interesse da nobreza) e das rotas comerciais africanas de outro
e escravos (interesse da burguesia). Nem mesmo as Índias estavam no horizonte, sendo
a qualificação do Brasil como “destino manifesto” das navegações, verdadeiramente um
mito.41

Nesse contexto ideológico, um elemento importante em Araújo e na ideologia


neonacionalista em geral é o negacionismo climático. Essa é uma tendência marcante na
nova extrema-direita mundial, a tal ponto que historiador francês Jean-Baptiste Fressot
pergunta se se trata de um “carbofascismo”, tal a regularidade com que se defende a
queima de combustíveis fósseis e a derrubada de florestas.42 Araújo apresenta uma
constrangedora teoria (que, de resto, não é originalmente sua, mas forjada nos meios da
extrema-direita dos EUA), segundo a qual a mudança climática é “basicamente uma
tática globalista de instilar o medo para obter mais poder”. “Esse dogma vem servindo
para justificar o aumento do poder regulador dos Estados sobre a economia e o poder
das instituições internacionais sobre os Estados nacionais e suas populações, bem como
para sufocar o crescimento econômico nos países capitalistas democráticos e favorecer
o crescimento da China”.43 Evidentemente, o sistema climático desmente a mitologia de
Araújo, e portanto só pode lhe parecer inadmissível. Não há fronteiras ou mitos
fundantes na atmosfera. A noção de que a queima de carvão na China afetará o Brasil e
a de que a derrubada da floresta amazônica afetará a China, numa comunhão material
promíscua entre o “Ocidente” e o “Oriente”, é intolerável para a sua visão de mundo que
o divide em “blocos civilizacionais”, separando a “civilização” da “natureza” como
abstração violenta.44 O sistema climático planetário é o desmentido material dessa
ideologia, já que ele, de fato, requer um Gattunswesen, uma comunidade universal, para
que seja tratado de maneira racional.45

41 Cf. Godinho (1944).


42 Fressot (2018).
43 Di Cunto et al (2018).
44 Sobre “Natureza” e “Sociedade” como abstrações a um só tempo reais e violentas, ver Moore (2015).
45 Para aprofundamento, ver meu texto Cunha (2015).

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Há algo a aprender com a ascensão do neonacionalismo de corte proto-fascista


e sua ênfase na “comunidade nacional”, mas isso não está em suas teorias propriamente
ditas, evidentemente. Antes, está no déficit que essas ideologias revelam na própria
política da “esquerda”. A esquerda que foca exclusivamente em pautas identitárias
(reificando a fragmentação real da comunidade universal) e distributivas (gerindo a
crise) deixa intacta a forma de produção e organização social no momento em que nexo
social mesmo (o valor) entra em crise. Essa ausência de um imaginário social para além
do valor que se proponha a pensar a realização da “comunidade universal”, cujas
condições de possibilidade já estão postas, deixa o caminho aberto para que ideologias
regressivas ganhem força e produzam catástrofes sociais de dimensões difíceis de
imaginar.46 Uma posição emancipatória, portanto, não se fixa nem na “comunidade
nacional” e nem no globalismo da mercadoria, mas articula a comunidade universal
concreta que existe como ainda-não na (e para além da) interdependência mercantil
global.

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EX-HOMENS NA FRONTEIRA LITERÁRIA


LATINO-AMERICANA
Tradução e análise de “Las moscas”, de Horacio Quiroga

Cláudio R. Duarte

Esta é a verdade. Mas para a obscura animalidade resistente,


para o latejar e o alentar ameaçados pela morte, que vale ela diante da
bárbara inquietude do instante preciso em que este resistir da vida e esta
tremenda tortura psicológica explodirão como um foguete, deixando um
ex-homem com o rosto fixo para todo o sempre?
O zumbido aumenta cada vez mais. Fecha-se agora sobre meus
olhos um véu de densa treva em que se destacam losangos verdes. E em
seguida vejo a porta amuralhada de um mercado marroquino, da qual
por uma das folhas da porta escapa em fuga uma tropilha de potros
brancos, enquanto por outra entra correndo uma teoria de homens
decapitados.
(Quiroga, “As moscas”, 1933).

Que vale a vida neste fim de mundo, na fronteira da civilização latino-americana


no início do século XX? É o que costumava perguntar o escritor uruguaio Horácio
Quiroga (1878-1937)1 nas entrelinhas de contos sobre a vida estropiada e ameaçada –
aqui literalmente abandonada às moscas – espécie de verdade social que desperta
somente através do pesadelo da narrativa fantástica, no instante da morte de um
trabalhador largado num campo devastado. Essa verdade da ficção merece ser

1 Para um panorama geral da biografia e da obra do autor: MONEGAL, Emír Rodriguez. Las raíces de
Horacio Quiroga - Ensaios. 2ª ed. Montevideo: Ed. Asir, 1961; do mesmo autor, ver o “Prólogo” à
coletânea de contos por ele organizada: QUIROGA, Horacio. Cuentos. 3ª ed. Caracas: Biblioteca
Ayacucho, 2004. Salvo indicação contrária, as citações dos contos referem-se a esta edição, facilmente
encontrável nas redes sociais. A obra completa foi reunida numa edição crítica: QUIROGA, Horacio.
Todos los cuentos. Ed. crítica por Napoleón L. de León e Jorge Lafforgue (coords.). 2ª ed.
Paris/Madrid/São Paulo (...): Unesco/ALLCA XX/Edusp, 1996.

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interpretada em detalhe, após a tradução integral dessa pequena joia do conto latino-
americano, até hoje inédita. Mas antes disso devemos retomar o contexto e o sentido da
obra, através da análise de outros contos significativos e da limpeza do verdadeiro cipoal
de interpretações construídas pela fortuna crítica.

1- Condenados da fronteira: para além do mito do pioneiro

“...para lutar contra nós, a antiga colônia deve lutar contra ela
mesma.” (J.-P. Sartre, Prefácio a Frantz Fanon, Os condenados
da terra, 1961)

Quiroga situa-se num posto avançado da literatura “regionalista” latino-


americana, funcionando como uma espécie de dobradiça para a segunda fase do
modernismo argentino, que se abre em arte literária de maior rigor construtivo e
reflexivo com Borges, Bioy, Arlt, Sabato, Cortázar, entre outros. Seus numerosos contos
fornecem elementos precursores da estruturação de um campo específico de problemas
estéticos, sociais e ideológicos: da reflexão estilística no terreno da narrativa realista
(levada à perfeição se lembrarmos as pressões comerciais de tempo, espaço e temática
impostas pelos jornais e revistas da época2) às formas de uma “literatura fantástica”
adaptada ao novo continente (aqui, vale lembrar, Quiroga é precursor de Borges e cia.),
ou, agora do ponto de vista do conteúdo, das questões cruciais do “sentido da
colonização” e da modernização periférica às problematizações da experiência de grupos
marginalizados nas fronteiras norte e oeste do país. Aqui a zona rural habitada pelo
escritor a partir de 1912, isto é, a região das Misiones na Argentina, uma área subtropical
riquíssima marcada pela selva e os grandes rios da tríplice fronteira, vizinha à
Mesopotâmia, ao Chaco e ao Monte semiárido – um vasto domínio fronteiriço no
coração da América do Sul, que lhe serve de espaço literário singular. O tema da

2 Sobre tais pressões editoriais vide as observações de Angel RAMA (“Prólogo” in:
Cuentos - Obras inéditas
y desconocidas de Horacio Quiroga, vol. IV. Montevideo: Arca, 1967) e de MONEGAL (op. cit.). A
perfeição do conto realista de Quiroga foi desdenhada por Borges, Bioy Casares e outros autores dos anos
30 e 40; com o tempo foi reconhecida pela fortuna crítica clássica (Estrada, Zum Felde, Monegal, Jitrik,
Garet) e relembrada por escritores de peso, no início dos anos 1980 e 90, alinhando-o a outros mestres
como Poe, Maupassant, Tchékhov (CORTÁZAR, Julio. Clases de literatura – Berkeley 1980. Buenos
Aires: Alfaguara, 2013, p. 134; PIGLIA, Ricardo. La Argentina em pedazos. Buenos Aires: Ed. de la
Urraca, 1993, p. 64-5).

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fronteira é, assim, seu grande tema vital, em nada exótico ou contingente, a ponto de
tornar-se uma espécie de metáfora obsessiva.
À primeira vista, entretanto, o autor parece perder-se numa fuga ilusória em
direção à primeira natureza. De fato, aqui sentimos mais do que tudo a presença
agressiva do meio, a vida determinada pela fatalidade e os acasos da natureza. Tome-se
um conto como “El hombre muerto”, ou “Las moscas”, que lhe dá continuação. Em
ambos, por um acidente, um homem se fere gravemente no meio do mato, agonizando
solitariamente até a morte. O drama individual parece completamente anódino. Entre
roçados e bosques, rios e estiagens severas, plantas e animais ameaçadores, Quiroga
procuraria nos apresentar, como descreve Bella Jozef, “de maneira direta o efeito
devastador do ambiente físico sobre o homem. O meio, com suas consequências
inevitáveis, chega a ser uma das personagens principais e encontra-se na base de todas
as situações. A selva impiedosa rege a ação dos homens e até seu pensamento”3. Estamos
a um passo do caminho que dá Quiroga como ideólogo de uma relação antropológica
simples e imediata entre Homem e Natureza. A brutalidade da natureza aparece sem
mediação social visível. Nesse mundo de forças implacáveis, elementos de uma estética
naturalista, no seu sentido mais literal, tornar-se-iam opções incontornáveis. E de fato
a obra cimentará, embrenhando-se por tais caminhos isolados em Misiones, sua
primeira camada de uma certa configuração realista. (Por isso mesmo tais contos, que
são complexos em sua aparente imediatidade, serão nosso ponto de chegada).
Aqui, na verdade, o modernismo “decadentista” do autor dava uma espécie de
giro materialista, subordinando a imaginação poética, a fábula e a intertextualidade a
um determinado contexto histórico. Isso nos leva ao sentido social da fronteira
neocolonial. Num primeiro nível de manifestação, o melhor da obra remete à fronteira
política e econômica do território, invocando, embora de maneira velada, nada menos
que questões ligadas à propriedade da terra, aos usos e às disputas territoriais no
momento de consolidação do Estado argentino. Mas, levada adiante, esta base deriva
para noções de fronteira social, linguística, cultural, simbólica e psíquica4, o que lhe

3 JOZEF, Bella. Romance hispano-americano. São Paulo: Ática, 1986, p. 38.


4 Sobre a questão da fronteira, apoiei-me parcialmente em indicações de ALVES-BEZERRA, Wilson.
Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga. São Paulo: Humanitas, 2008; e de MENDOZA, Carlos
Abreu. “Horacio Quiroga, a Writer on the Limits”. A Contracorriente, Vol. 11, No. 2, Winter 2014, p.302-
322.

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permite, em seus pontos mais altos, passar além do regionalismo naturalista, do


romance psicológico, gótico ou de costumes de tipo mais convencional. A objetividade,
a sobriedade e a economia de detalhes são enganosas na medida em que camuflam o que
há de essencialmente social, dinâmico e indefinido nesse mundo da fronteira: transições,
rupturas, passagens no oposto, desmedidas reveladoras de uma experiência social de
trabalho, violência e desterro, marcada pela luta com o estranho, em que o caráter
humano é posto à prova e como que arrastado para a experiência do monstruoso e do
abjeto.
Numa exposição de seus motivos, é o próprio narrador quem explica essa dialética
negativa dos tipos fronteiriços:

“Misiones, colocada a la vera de un bosque que comienza allí y termina en el


Amazonas, guarece a una serie de tipos a quienes podría lógicamente imputarse
cualquier cosa menos el ser aburridos. La vida más desprovista de interés al norte
de Posadas, encierra dos o tres pequeñas epopeyas de trabajo o de carácter, si no
de sangre. Pues bien se comprende que no son tímidos gatitos de civilización los
tipos que del primer chapuzón o en el reflujo final de sus vidas han ido a encallar
allá.”5

Uma ambivalência trespassa esses tipos que experimentam “pequenas epopeias


de trabalho ou de caráter, quando não de sangue”: seres lançados na aventura ao mesmo
tempo vulneráveis e sempre prestes a mergulharem e encalharem nos confins do
humano. Aqui se vão as ingenuidades dos “tímidos gatinhos da civilização” urbana
moderna, com seus mitos de triunfo do sujeito burguês. O horror “metafísico” que
emerge aqui e ali do que parecia estático e previsível, o horror que produz um halo de
fascínio e abjeção nesses relatos, determina-se objetivamente como horror histórico – o
que torna cada conto uma espécie de enigma social a decifrar. Vale frisar desde já,
portanto: o confronto com a natureza e suas leis esconde o confronto com uma “história
natural”, história social petrificada como segunda natureza, e que na fronteira tende a
despertar de seu sono6. Tais pistas serão melhor analisadas adiante. Basta dizer por ora
que a fronteira seria o ponto limite em que sociedade e natureza na realidade são

5 QUIROGA, “Tacuara-Mansión” [em Los desterrados, 1926] in:__. Cuentos, op. cit., p. 264.
6 Para uma teoria crítica da socialização mercantil como “história natural”: ADORNO, Theodor W.
“Espírito do Mundo e História Natural – Excurso sobre Hegel in:__. Dialética negativa [1966]. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003, especialmente p. 293-97.

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mediados, refletindo-se e intervertendo-se até se confundirem numa unidade. Não por


acaso, os títulos de suas melhores coletâneas – Cue’ntos de amor, de loucura y de morte
(1917), El desierto (1924), Los desterrados (1926) e Más allá (1935) – carregam essa
metáfora continuada da fronteira no próprio nome. Segundo muitos já apontaram, o
conto “Las moscas” (1933) seria o ápice dessa lenta metamorfose qualitativa da literatura
latino-americana; nele, o programa de Quiroga declarado em “Decágolo del perfecto
cuentista” (1927)7 seria melhor executado8.
**
É claro que algo dessa estrutura de identidades e limites, por exemplo, a distinção
entre “civilização e barbárie”, vinha se consolidando desde obras inaugurais como “El
Matadero” (1837), de Esteban Echeverría, e o Facundo (1845), de Sarmiento, que, em
resumo, são “obras que postulam a superioridade cultural da Europa e arremetem contra
a ‘selvageria nativa’”9. Contrapondo civilização e barbárie, metrópole e colônia, elas
denunciam a barbárie da província, a violência arbitrária do caudilhismo, a “incultura”
de gaúchos e indígenas, em suma, reafirmam ideologicamente o poder da cidade liberal-
letrada contra as províncias e o grande “deserto” das fronteiras a desbravar, que naquele
momento abarcava praticamente todo o Hinterland argentino (da Patagônia ao Chaco,
e ainda o sul do Pampa, a selva de Misiones, o domínio do Monte a sudoeste, as terras
andinas no extremo oeste).
Ora, a fronteira é sugestiva para Quiroga pois não é somente um lugar ignorado
pelos leitores urbanos, mas um território pleno de tensões e conflitos sociais em que tais
limites vacilam e as identidades falham. Com Quiroga tais identidades nacionais
polarizadas começam a ser colocadas em questão, no seio mesmo de um forte realismo
tingido de cores regionalistas, naturalistas e fantásticas, algo que aqui aliás mudava
inteiramente de sentido em relação à Europa. Num movimento negativo característico,

7 QUIROGA, “Decálogo del perfecto contista” in: Cuentos, op. cit., p.416-20; Trad. John O’Kuinghttons:
Contos de amor, de loucura e de morte. São Paulo: Hedra, 2013, p. 16-8.
8 Cf. ARRIGUCCI JR., Davi. O escorpião encalacrado. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 141-147;

BALDERSTON, Daniel. “Short story” in: Encyclopedia of Latin American and Caribean Literature
1900-2003, ed. Daniel Balderston and Mike Gonzalez. London/New York: Routledge, 2004, p. 537. O
autor cita também o caso do conto “El hijo”.
9 PRIETO, René. “The politics of Indigenismo” in: Echevarría, R. Gonzalez & Enrique Pupo-Walker (orgs.).

The Cambridge History of Latin American Literature, Vol. 2: The Twentieth Century. Cambridge:
Cambridge University Press, 1996, p. 141; ECHEVARRÍA, Roberto Gonzalez. Mito e archivo. Una teoría
de la narrativa latino-americana. 2ª ed. México: Fondo de Cultura Económica, 2011, cap. II.

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ele lucidamente corre em direção às margens da “cidade letrada” e do seu sujeito burguês
“racional”, cujo projeto modernizador configurou-se, segundo Ángel Rama, como
produção de “mitos letrados e urbanos” de ascendência liberal, feitos a contrapelo da
“cidade real” e às expensas das massas campesinas e indígenas, que continuarão a pagar
o pato do sobretrabalho nas atividades agrícolas e extrativas, chegando no limite à
“extinção da natureza e das culturas rurais”10. Isso sem esquecer a política de extermínio
dos grupos indígenas do país – a chamada “conquista do deserto” executada pelos
governos liberais-conservadores com o apoio dos militares positivistas na segunda
metade do XIX, cujo ápice foi a campanha do general Roca em 187911.
Nesse sentido, Quiroga regressa ao que o pensamento hegemônico considerava o
horror: as raízes coloniais e a “barbárie” do campo, grupos e culturas que estão em vias
de “modernização”, obliteração ou pura e simples eliminação física. O risco, adivinha-
se, seria um retorno aos mitos românticos da natureza, do bom selvagem, das culturas
comunitárias e patriarcais autárquicas etc. De fato, seu “rechaço da cidade mercantil” foi
lido em certa época a partir de uma perspectiva marxista ortodoxa como uma “variante
da viagem modernista e do anarquismo individual”12, que terminaria por atualizar um
romantismo regressivo: distância de toda “integração social, ação grupal ou
incorporação em uma ação crítica coletiva”; donde a fronteira seria simples “metáfora”
vazia, que o próprio autor não ultrapassaria: “yo me voy, pero no me passo; mis
fronterizos son insólitos pero nada más que casi locos”13, p. ex., índios “cretinos” ou tidos
como moralmente fracos e degradados pelo álcool; ou ainda, uma posição literária de
cunho “populista” e “moral”, que se solidariza com as vítimas do processo, mas
identificaria o fundamento da opressão social numa espécie de “Grande Causa” ou
“Motor Primeiro” puramente ideológico de base natural (“Es la Selva”), ou
obscurantista, conforme o “casuísmo naturalista” de meros acidentes num ambiente
inóspito, enquanto que reserva para si a inteligência, a virtude, a sinceridade, a atividade
viril, a distância crítica e a individualidade mesmo no desterro, que ele projetaria em

10 RAMA, Ángel. La ciudad letrada. Montevideo: Arca, 1998, p. 69.


11 Cf. VIÑAS, David. Indios, ejército y frontera [1982]. Buenos Aires: Santiago Arcos ed., 2003.
12 VIÑAS, David. “Trabajo, espectáculo y correspondência: Horacio Quiroga” in:__. Literatura argentina

e realidade política: de Sarmiento a Cortázar. Buenos Aires: Siglo Vinte, 1971, p. 55.
13 Idem, ibidem, p. 57.

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alguns de seus caracteres numa forma de reedição do “espectáculo del pioneiro” 14. Em
síntese, para o crítico e ficcionista argentino David Viñas, o suicídio de Quiroga teria
relação com tais ambiguidades político-sociais jamais resolvidas.
Esta crítica tem alguma procedência, mas talvez se fia demais nas aparências e
negligencia o trabalho de interpretação crítica, confundindo-o com dados biográficos,
psicológicos e sociais externos. Pois a fronteira ficcional quiroguiana não aparece jamais
à maneira romântica, como idílio natural e utópico, nem simplesmente como lugar de
culturas indígenas ou tradicionais reprimidas que cumpriria salvar do processo
modernizador. O genocídio indígena estava praticamente concluído, e poderíamos
perguntar se não é ele que retorna sob o fantasma da morte onipresente nessa prosa
ficcional fronteiriça. Diante da expropriação e da concentração de terras que se
seguiram, não há moral a reinventar ideologicamente, nem a moral do colonizador é
consagrada no altar de um novo “destino manifesto”. Para começar, Quiroga troca a
beleza e a nostalgia neoparnasiana pela sinceridade e a verdade histórica negativa do
país, ultrapassando os mitos restauradores do regionalismo simbolista e impressionista
de um Güiraldes (Don Segundo Sombra, 1926) e da literatura criolla e gauchesca
tradicional15. Tanto quanto aqui, por suposto, também distanciava-se do mito do
pioneiro norte-americano clássico: o conquistador e colonizador de terras indígenas, o
imigrante bem sucedido convertido em pequeno fazendeiro ou cowboy, militar, pastor,
jornalista, médico, advogado que se faz reconhecer pela profissão e o trabalho próprio.
Em Quiroga, esse mito triunfal se desenvolve por meio de ásperos confrontos
entre ideologia e realidade, como no relato cheio de humor irônico “El Monte Negro”
(trabalhos infernais, fracassos em série, vitória duvidosa), ou noutros em que a aventura
e o heroísmo, mediados pelo espírito técnico, o trabalho artesanal, a invenção de
engenhocas, a vontade resistente do homem às intempéries naturais e sociais pode
desabrochar, mas sem promessa alguma de prosperidade, consagração ou
reconhecimento (“La voluntad”, “El techo de incienso”, “Los destiladores de naranja”,
“El desierto”, “Los pescadores de viga”). Estes tornam-se então ideologias ou francos

14 Idem, ibidem, p. 57-9.


15 O próprio VIÑAS reconhece quem realmente fazia esse trabalho de mitologização do passado (Idem,
ibidem, p. 240-3; cf. também SARLO, Beatriz. Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1930
[1988]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003, p. 31-43).

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delírios. Assim, de maneira explícita, num conto em que a fantasia substitui por
completo a realidade, “Los inmigrantes”, em que a esposa de um alemão perece ao
enfrentar os rigores da selva enquanto o marido alucina a chegada da família à terra
prometida, carregando a falecida nos braços. Esta a mesma atmosfera pesadelar de “El
hijo”, “El desierto”,“El hombre muerto” e “Las moscas”. Nesse ponto, pode-se imaginar
que o autor tem como base literária sua própria experiência traumática 16, tanto como o
desgaste de seu próprio rosto, de sua própria consciência individualista repleta do
pathos de “heroísmo” e “aventura”17 enquanto habitante, produtor e inventor na frente
pioneira18. É assim que suas coletâneas confrontam a experiência comum desses homens
práticos da fronteira, mais ou menos isolados no norte do país, que têm no trabalho e na
sobrevivência diante da adversidade sua medida de sucesso patriarcal, atravessada
contudo pela perda da identidade, deparando-se com o trauma histórico da
proletarização e do etnocídio sofrido pela população nativa. Não se trata de saltar a
própria sombra, mas de atravessá-la como novos condenados da terra neocolonial. As
ideologias do self made man, do predomínio da razão, da liberdade e da vontade do
“homem de caráter”, são, assim, testadas literariamente. Este isolamento, voluntarismo
e caráter moral das figuras, por sua vez, dão azo às leituras “metafísicas” de sua obra:
segundo estas, somada ao aspecto de horror metafísico originário do modelo de Edgard
Alan Poe, a parte mais válida de sua obra estaria voltada ao teor universal de
“experiência vital e de descobrimento do homem”19. Assim, para Noé Jitrik, existiriam
duas linhas de interpretação de sua obra: uma “historicista”, outra “metafísica”, o que
colocaria em dúvida a significação social de sua literatura. Sem recusar esta sugestão de
maneira abstrata, na verdade tais linhas se cruzam quando adequadamente mediadas,
como realidade e ilusão necessárias. Noutros termos, Quiroga incorpora
sistematicamente tais ilusões individualistas, os mitos da fronteira, como partes
integrais da realidade histórica a analisar. Seus quatro temas principais identificados

16 Cf. a biografia de Quiroga em MONEGAL, op. cit.


17 Cf. TOBÍO, Luis M. & MARCH, Kathleen. “Ejes conceptuales de Horacio Quiroga”. Cuadernos
Hispanoamericanos, núm. 443 (mayo 1987), pp.73-87.
18 Sarlo aponta a base técnica moderna que seduzia Quiroga e suas personagens (cinema, fotografia,

experimentações técnicas e científicas). SARLO, Beatriz. “Horacio Quiroga y la hipótesis técnico-


científica” in:__. La imaginación técnica. Sueños modernos de la cultura argentina. Buenos Aires:
Nueva Visión, 1992.
19 JITRIK, Noé. Horacio Quiroga: una obra de experiencia y riesgo. Buenos Aires: Ediciones Culturales

Argentinas, 1959, p. 45.

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pelo mesmo crítico seriam20: a) o “sentido da experiência” vital em um mundo novo e


diverso (donde o tema histórico da fronteira argentina como fundamento do todo); b) “a
presença da atividade como forma expressiva de uma situação do homem
contemporâneo” (donde surge o tema do trabalho privado e mercantilizado como chaga
social); c) “a presença da solidão como caminho para o descobrimento e a aceitação dos
próprios limites” (donde surge o tema do bloqueio da experiência e da reificação das
relações sociais, com sua aura metafísica inclusa); d) “a presença da morte como a
instância vital mais importante que exige a mais dificultosa adequação da literatura”
(donde surge o significado maior do processo social na expansão fronteiriça, dissolvendo
ao mesmo tempo ideologias naturalistas e vitalistas ou metafísicas fatalistas da morte).
No mundo hodierno, a única fatalidade “natural” é, como contrapõe Viñas, a “fatalidade
da acumulação expansiva de capital”21. Por certo, esta é a substância principal dos
melhores contos de Quiroga. Pois do contrário, qual seria o sentido dessa queda
generalizada no negativo? Um viés naturalista incorrigível, o “gosto do nada” ou da
“decadência” de Poe e Baudelaire mal compreendidos, ou ideologias irracionalistas fin-
de-siècle mais que empoeiradas face às necessidades de expressão de um continente em
fase nacional-afirmativa? Voltando ao fio do argumento mais acima lançado, a realização
das ideias burguesas e modernas parece aqui sempre pisar em falso, e em Quiroga não
exatamente por falta de atividade, iniciativa ou reflexão da parte dos homens, mas
pelos obstáculos impostos por um modelo social de espoliação generalizada, fundado
numa acumulação primitiva do capital sempre na ordem do dia 22. Em primeiro lugar,
aqui, trata-se da gênese do mercado nacional e do futuro predomínio urbano-industrial,
primeiro elo da maquinaria capitalista através da expropriação generalizada de terras e

20 Idem, ibidem, p. 47.


21 VIÑAS, “Trabajo, espectáculo y correspondência: Horacio Quiroga”, op. cit., p. 58.
22 Como lembra outro historiador do período, a partir de meados do séc. XIX, “começa em quase todas as

partes o assalto às terras indígenas (somado em algumas regiões à que se desencadeia contra as terras
eclesiásticas); este processo, quem em alguns casos avança junto à expansão de cultivos para o mercado
mundial, em outros se dá perfeitamente separado desta. Seu primeiro motor parece ser então a maior
agressividade de setores frequentemente situados a um nível mais abaixo que os tradicionalmente
dirigentes (aristocracia rural provincial, comerciantes, amiúde mestiços, das cidades pequenas; também
o que se chama agora “índios ricos”, seja porque estes tenham prosperado dentro ou fora da estrutura
comunitária, e em primeiro caso sobre tudo mediante um uso econômico criterioso de sua preeminência
político-social); junto com ela, o que faz mais atrativa a conquista das terras indígenas parece ser, em
uma primeira etapa, a expansão dos mercados locais proporcionados pelas cidades e povoados (...)”
(DONGHI, Tulio Halperin. Historia contemporánea de la América Latina. [Ed. revisada e ampliada:
1996]. Madrid: Alianza, 2005, p. 213).

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da formação de uma superpopulação relativa, em que o significante “nacional” é pouco


mais que mera ilusão de unidade pós-colonial23. Só que tais reflexões são o ponto mais
oculto e verdadeiro de toda a obra. Ocorre que o artista jamais tematiza tais estruturas
objetivadas de maneira “conceitual” ou direta, como literatura engajada, o que
provavelmente cancelaria a sua força e singularidade como obra literária universal. Daí
as ilusões de ótica de tais críticos.

2- “Mensús” e “moscas” da fronteira: ex-homens na série de interversões de


natureza e história, norma e exceção

Contestando Noé Jitrik, David Viñas e outros críticos, poderíamos dizer que em
vez do “homem” no centro, Quiroga põe a figura histórico-negativa do que ele denomina
“ex hombres”24. A começar pelos rastros por eles deixados após o grande genocídio
indígena sul-americano acima rememorado: índios e peões proletarizados, camponeses
mestiços em desagregação, uma massa de trabalho abstrato concentrada nos rincões do
país, que serve como meio fundamental da acumulação. Seus contos mais atuais, e quase
sempre os melhores, terão a ver com essa substância social: “La insolación”, “A la
deriva”, “Los mensú”, “Los pescadores de viga”, “Un peón”, “Una bofetada”, “Los
precursores”, “Las moscas”. Representam tipicamente os trabalhadores em busca de
sobrevivência e emprego, às vezes sujeitos à mobilidade e à coerção direta (escravidão
por dívidas) como ocorre entre os índios mestiços conhecidos como “mensús”
(<mensualeros>). O mito estilhaçado do pioneiro desdobra-se então na figura negativa
do ex-homem. Como descreve uma autora húngara, com um pé na ideologia, ex-homens
são em geral: “estrangeiros que cortaram amarras com sua vida, ninguém sabe quando
ou por quê” (...) “sobreviventes de si mesmos, oprimidos e despojados de tudo, inclusive

23 Desse ponto de vista literário interno, crítico e contextualizado, a compreensão afirmativa do


anticolonialismo e das lutas pela construção do Estado nacional periférico perde muito de seu encanto,
como se vê hoje no renascimento de um certo marxismo ontológico e ao mesmo tempo politicista
simpático às ditaturas burocráticas do socialismo real, além de devotado à refutação radical da teoria
crítica e da crítica do valor, lançando-as na vala comum do assim chamado “marxismo ocidental”
(LOSURDO, Domenico. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. São
Paulo: Boitempo, 2018).
24 Além de “Las moscas” (Más allá), o termo aparece explicitamente em dois contos de Los desterrados

(“Tacuara-Mansión” e “Los destiladores de naranja”), mas permeia todos os textos deste e de outras
coletâneas a partir de sua instalação na província de Misiones.

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de afeto e clemência como João Pedro e Tirafogo, em Los desterrados; pobres indígenas
cujas vidas valem menos que os animais ou as coisas (os bêbados, os mensú), são
escravizados por um trabalho brutal e insalubre e que não conhecem outra norma de
conduta que a submissão à violência, sempre extrema”25. Na verdade, tais traços de
degradação, mobilidade e subordinação típicas do processo de proletarização, ou mais
amplamente, de coisificação e desumanização das relações sociais mercantilizadas,
afetam, em medida desigual, todas as figuras “desterradas” da fronteira, como percebe
mais além a autora: a figura do imigrante europeu ou migrante forasteiro não menos que
a do peão mensú; ou a do criollo típico, incluindo pequenos e médios proprietários
expostos a laços de dependência e assalariamento, mas não menos ainda, poderíamos
acrescentar por nossa conta, o cidadão urbano que termina desdobrado na figura
reificada do grande empresário ou latifundiário, de “olhos sombrios” e mortiços. Ao
redor do conceito pleno do ex-homem, a ideia de fronteira entre a civilização e a barbárie
capitalista atravessa simbolicamente todas as camadas sociais tragadas pelo rolo
compressor do mercado e da divisão social do trabalho. O grupo de ex-homens pode
abranger virtualmente então a classe média, como ex-químicos e ex-engenheiros (de
“Tacuara-Mansión”, “Van-Houten” e “Los destiladores de naranja”), assim como
técnicos e cientistas amadores mais ou menos fracassados (“Los fabricantes de carbón”,
“El mármol inútil”), que testam seus limites na fronteira, até proprietários e pequenos
burgueses que se perdem para o vício, a doença e a neurose, ou são devorados pelo meio
selvagem e por relações coisificadas (“La miel silvestre”, “El almohadón de plumas”, “Los
ojos sombrios”, “La muerte de Isolda”, “El solitário”), passando pela curiosa
metamorfose de um homem em “cão raivoso” (“El perro rabioso”, espécie de releitura da
lenda do lobisomem), ou pelo caso dos filhos oligofrênicos de um casal, tratados
brutalmente como seres selvagens e desprezíveis por ambos os pais, até que nasce Berta,
uma filha normal, que é amada e protegida; certa vez, os “quatro monstros”, imitando a
cozinheira da casa e o tratamento animal que sempre lhes foi dispensado por todos,
matam a pequena Berta qual fosse uma galinha (“La gallina degollada”). Sem esquecer

25 NAROŽNÍKOVÁ, Linda. “Horacio Quiroga: regreso, soledad y la muerte de los desterrados en


Misiones”. Premio Iberoamericano, 1998, p.7.
(http://www.premioiberoamericano.cz/documentos/4taedicion/2doPremioIV_LindaNaroznikova.pdf.
Acesso em 10/12/2018).

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de mencionar outros dessa galeria de doentes e desajustados (“Los buques suicidantes”,


“El Infierno Artificial”), em que a força vinculante das relações humanas e da vontade
individual são postas à prova por forças destrutivas difusas e mais ou menos irracionais.
Ou também ainda, invertendo a direção do movimento, os animais que se humanizam,
ganham consciência no relato, mas parecem sofrer a mesma vulnerabilidade,
desnaturação e perda de si dos “ex-homens” (“Yaguaí”, “El alambre de púa”,
“Anaconda”).
Como se vê, uma série de interversões sociais de história e natureza passa a
modular o conjunto, aparentando ter mesmo algo de falso, como se aqui atuasse um
mecanismo literário totalmente mágico e arbitrário, qual fosse uma tara estilística ou
patológica predisposta a distorcer toda a realidade (origem aliás dos equívocos sobre o
suposto “realismo mágico” da literatura latino-americana). Ora, guiando-se
sensivelmente pelos mestres europeus, Poe, Maupassant, Dostoiéviski, Tchékhov,
Conrad, Kippling, em seus melhores contos de atmosfera sombria Quiroga imerge na
vida alucinada de suas criaturas de um ponto de vista histórico particular e imanente,
não simplesmente universalista, como vimos. As condições históricas pesam
objetivamente na obra ficcional como sedimentação ou redução estrutural do mundo
fronteiriço em que este é revelado como estado de exceção permanente, em que regem
o excesso e a ilegalidade sistemáticas. Só assim, talvez, compreende-se como do real
emerge o fantástico, do normal nasce o patológico, das duras leis da natureza, mediadas
pelo processo social produtivo, surge o horror e a verdadeira força de uma segunda
natureza social.
De um ponto de vista teórico-crítico, na fronteira quiroguiana, portanto, a
“essência” inverte-se em seu contrário: numa aparição de uma “essência monstruosa”26.
Aparição aqui no sentido ambivalente de aparência humana e de fantasmagoria real (cf.
a seguir a análise de “La insolación” e “Las moscas”), de traços de cultura e de barbárie
(cf. análise de “Los pescadores de viga”), de normalidade e exceção (cf. análise de “Los

26“Uma tal essência [Wesen] é antes de tudo inessência [Unwesen], a organização do mundo que rebaixa
os homens a um meio de seu sese conservare', que amputa e ameaça suas vidas, reproduzindo-as e
fazendo-os acreditar que o mundo seria assim algo para satisfazer suas necessidades. Essa essência
também precisa aparecer exatamente como a hegeliana: mascarada em sua própria contradição. A
essência não pode ser reconhecida senão junto à contradição do ente em relação àquilo que ele afirma
ser”. (ADORNO, Dialética negativa, op. cit., p. 144).

212
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mensú”). Como dito acima, então, em vez do “homem”, o “ex-homem” real, em vez da
“civilização”, a barbárie civilizatória do capital captada no coração da província, em vez
da ideologia do trabalho concreto, a inversão capitalista que potencialmente faz de toda
atividade um meio e um fim em si mesmo da acumulação. Este enquadre trespassa o
próprio fazer artístico: a maquinaria racional de cada conto – em parte imposta pelos
editores, em parte estritamente aceita pelo autor (o espaço restringido em geral a uma
só página de revista, cerca de 1.250 palavras27, moldado por um padrão de relojoeiro
astuto, às vezes vítima da fórmula e da repetição de efeitos e desenlaces) – deve ser lido
como expressão mediada desse mesmo processo social de mercantilização.
Por fim, do ponto de vista da série literária local, ou antes continental, uma
“identidade” dúbia e alienada se cristaliza nesses contos de fronteira: uma espécie de
universal minado pelo peso da particularidade local, que começa a ser levada realmente
a sério na produção literária. O que abriu trilhas e perspectivas dentro da nossa
literatura, fortemente marcada pelo conto curto, realista, prosaico e provinciano – mas
mediado pelo fantástico, o “horror” de uma sociedade sem lei, ou em que a lei é
sistematicamente suspensa por estados de exceção originários da experiência histórica
da colônia28. A conjunção de imperialismo, modernidade e atraso, o cruzamento de
tradição nacional “criolla” ou das frentes pioneiras com os valores modernos
importados, junto às demandas do mercado global, prefigura assim aquela “cultura de
mescla”29 que definiria mais tarde a versatilidade e permeabilidade da cultura argentina
aos influxos externos divisada por Sarlo na geração posterior. Aqui seria interessante
testar uma hipótese: se Quiroga passa além do modernismo inicial (representado pelo
próprio simbolismo neoparnasiano de seu primeiro livro de poemas, Los arrecifes de

27 Cf. PIGLIA, La Argentina en pedazos, op. cit., p. 65.


28 Cf. ARANTES, Paulo E. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014; Idem, Extinção. São
Paulo: Boitempo, 2007. Um tal movimento negativo tem sua razão não apenas, como pensa Echevarría,
num “temor” ou numa “atração desejante” pela “violência”, “a anarquia” e a “ilegalidade” de seres
exóticos ou de exceção nos confins do humano (tiranos, caudilhos, líderes messiânicos etc.), por parte
de um “eu latino-americano” supostamente fascinado pelo ponto de vista do “viajante” ou da “ciência
europeia”, no fundo querendo igualar-se a este “Outro Interno” da ordem legal estabelecida, mas antes
serve como instrumento de revelação deste Outro fora da lei, quase sempre sem lugar na sociedade
fortemente estratificada latino-americana, como o lado oculto e excluído desta mesma ordem
civilizatória, ela própria uma matriz social fundada na violência e na exceção capitalista. (ECHEVARRÍA,
Roberto González. Mito e archivo. Una teoría de la narrativa latino-americana. 2ª ed. México: Fondo
de Cultura Económica, 2011, p. 148-9.)
29 SARLO, Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, op. cit., p.28.

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coral, 1901) e estaciona às portas da “vanguarda” ultraísta e martinfierrista dos anos


1920 e 30, não anunciaria um passo além das ideologias vanguardistas ao voltar-se
propositalmente para a margem das margens – o referente neocolonial mais duro e
incontornável de uma modernização lenta mas selvagem na fronteira argentina, e,
sobretudo, menos afastada do que se pensa da sociedade burguesa concentrada nas
capitais? Nisso, ele adiantaria a orientação do melhor Borges, Arlt, irmãos Tuñon,
Cortázar, Saer, dentre tantos outros que se seguirão, como escritores das “margens”, dos
“subúrbios” ou das “orillas”30. Em termos de América Latina, a proximidade patente é
com Juan Rulfo, cuja mola, nos contos de El llano en llamas (1953) ou em Pedro Páramo
(1955), será a perspectivação histórica de um mundo rural castigado pela seca e a
escassez, convulsionado pela revolução mexicana, mas paralisado e esquecido porque
nunca verdadeiramente transformado, trazendo as questões da sociabilidade da família
e do trabalho ao primeiro plano. Aqui também um mundo humano é vergado por
caudilhos locais, relações conflituosas e traumas sócio-psíquicos, entrelaçados ao um
meio natural inóspito31. Mais além, esse mapa literário se completaria com figuras
diversas, cujas personagens cruzam fronteiras como em Carpentier, Fuentes, Roa
Bastos, Bolaño. Entre nós, algo disso aparece em Euclides, Graciliano e Rosa, e antes de
tudo, em Machado. Nenhum fato “mágico”, aqui: seria na margem das margens – no
capitalismo descoberto em sua gênese histórica nas zonas pioneiras ou de fronteira –
que o centro ou a essência social contraditória melhor se revelariam. Aqui é preciso
finalmente desenvolvê-las através da análise de alguns contos exemplares.
**
Desse novo ponto de vista construído para a obra, uma ironia cortante destrona
o sujeito soberano ou a pose burguesa e aventureira de seus caracteres. Num dos contos
do ciclo principal acima lembrado, “Los pescadores de vigas”, um índio mestiço enfrenta
bravamente as correntezas de um grande rio em busca de madeiras de lei. O
“aventureiro” Candiyú representa na verdade o outro, o lado oculto do progresso, a
figura do ex-homem proletarizado na fronteira, como indicado pelas mãos destroçadas

30 Idem, ibidem, p. 179-180.


31 Um conto como “¡Diles que no me maten!” é exemplar na exposição dessa reflexão do natural no social,
da norma em exceção, e vice-versa. (Cf. RULFO, Juan. “¡Diles que no me manten!” in: __. El llano en
llamas. Toda la obra. Ed. crítica Claude Fell (coord). Madrid: ALLCA XX/Univ. Costa Rica, 1997, p.92-
100).

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no trabalho nos bananais da região. Nas horas vagas, o indígena costumava roubar toras
nos rios do Alto Paraná lançadas por serrarias, aliás multinacionais inglesas. Assim, após
um acordo com um contador comercial inglês, Mister Hall, ele troca uma enorme viga
de pau-rosa, “pescada” através de um esforço hercúleo, e na verdade suicida, por um...
surrado gramofone e vinte discos de uma música que nada deve lhe significar. O
narrador suspende o juízo, deixando ao leitor a constatação: o inglês sai do negócio com
a percepção do ganho material concretizado em finos móveis da melhor madeira,
enquanto o indígena, seduzido e ludibriado, sai com um velho gadget inútil, suporte
para música estrangeira, aliás, uma “maquininha prodigiosamente barulhenta”32. Nossa
simpatia vai para o lado do ex-homem explorado e enganado, que não foge à palavra
empenhada – mas que não muda um centímetro de sua condição objetiva após a
empreitada e ao cabo de uma vida destroçada, uma “moral” da história que o narrador
ironicamente bota no início do relato:
“Candiyú mora na costa do Paraná há trinta anos e se seu fígado ainda for capaz
de eliminar qualquer coisa depois do último ataque de febre em dezembro
passado, deve viver ainda mais alguns meses. Ele passa agora os dias sentado em
seu catre de varas, com o chapéu posto. Apenas suas mãos, lívidas garras sulcadas
de verde que pendem imensas dos pulsos, como projetadas em primeiro plano
numa fotografia, se movem monotonamente sem parar, com um tremor de
papagaio depenado”33.

Tal comparação alegórica, que iguala homem e animal, a mão do trabalhador


doente à garra do papagaio depenado, cria a ideia-chave de Quiroga: a figura do ex-
homem da fronteira.
Via de regra, assim, o mito do pioneiro venturoso se eclipsa ou se decompõe
inteiramente, mesmo em contos que ameaçam terminar positivamente como em
“Yaguaí” (com a morte do simpático cão a tiros pelo próprio dono, na última página do
conto; outro relato de fracasso de um camponês pobre, atado a relações de dependência
direta e assalariamento) ou em “A la deriva” (em que outro homem dependente é picado
por uma cobra, sente o veneno alastrar-se, toma aguardente, coloca-se numa canoa à
deriva no rio Paraná à procura de ajuda, e até parece que irá se salvar, lembra de um
compadre, de um ex-patrão inglês dono de uma obraje (madeireira), da sexta-feira

32 QUIROGA, “Los pescadores de vigas” in: __. Cuentos, op. cit., p. 134; Idem, “Os pescadores de vigas”
in:__. Contos de amor, de loucura e de morte, trad. cit., p. 192.
33 Ibidem, p. 135; ibidem, trad. cit., p. 192.

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santa... talvez quinta..., e morre repentinamente). O corte, a ironia sutil, a ponta de uma
cruel objetividade em que o escritor logo iria se especializar nos indica que: “O homem
que ia nela [na canoa] se sentia cada vez melhor, pensando no tempo que havia passado
sem ver seu ex-patrão Dougald. Três anos? Talvez não tanto. Dois anos e nove meses?
Talvez. Oito meses e meio. Isso sim, com certeza.” 34 Eis quanto dura a independência e
o sentimento de bem-estar dos pobres nessa deriva pelos domínios do capital
monopolista – a verdadeira selva social oculta no texto. E aqui novamente entra o
detalhe crítico da forma: o comentário irônico, a revelação cruel nos últimos momentos,
o corte brusco e a inversão de perspectivas representam a crítica do mito do
empreendedor. Onde o romantismo ou o anarquismo aristocrático, portanto? Na
aparência pode ser que sim, mas como analisa Rama, face à inexistência do mito do self
made man nas fronteiras latino-americanas, “impõe reconhecer a força constritiva que
no Sul exerceu a oligarquia proprietária de terras, paralisando o esforço democratizado
que no Norte cumpriram os pioneiros sedentos de terras. A ‘conquista do deserto’ na
Argentina segue de perto à ‘conquista do Oeste’ nos Estados Unidos, mas a primeira é
levada a cabo pelo exército e a oligarquia, enquanto que a segunda concedeu uma ampla
parte aos esforços dos imigrantes, aos que teve de recompensar com propriedades”35.
Exatamente este é o sentido mais geral de um de seus “cuentos de monte”36 mais
famosos e paradigmáticos: “La insolación” (publicado em 1908, em Caras y caretas).
Aqui temos a prova maior dessa linha de enredo antimítica. Nele, outro proprietário
inglês ocioso e bebedor de uísque, Mister Jones, falece ao substituir seu peão, enviado
para a compra de um parafuso numa madeireira próxima, na verdade ao repetir o
percurso do peão e seu cavalo até a madeireira mais o retorno ao rancho sob um sol
abrasante no clima semiárido. Horas antes da fatalidade, o cavalo também caíra morto
de extenuação por ter sido forçado pelo peão a galopar, decerto com pressa pois ele

34 Idem, “A la deriva” in:__. Cuentos, op. cit., p.108; trad. “À deriva” in: __. Contos de amor, de loucura
e de morte, op. cit., p. 136, grifos nossos.
35 RAMA, La ciudad letrada, op. cit., p. 64.
36 Em Quiroga, o monte refere-se em geral à zona de bosques na fronteira rural mais desabitada. Mais

especificamente, o monte é uma região biogeográfica particular da Argentina, que se alastra para o sul e
sudoeste, caracterizada pelo clima semiárido e por um bioma de transição entre o chaco e os campos
cerrados, com bosques de mata densa, seca, fechada e escura, formada por plantas xeromórficas e
arbustivas, geralmente localizada em médias altitudes. Limite da penetração humana, é às vezes aberto
por roçados recentes através de queimadas, como vemos em “La insolación”, “La miel silvestre”, “El
hombre muerto” e “Las moscas”.

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também castigado pela insolação durante uma estiagem insuportável do Chaco e, o que
não é dito, pelo trabalho extenuante na monocultura do algodão – condições não
obstante suportadas diariamente pelos peões e os animais sem reclamação, ou como diz
o texto, “com o mutismo de seus trabalhos de lavoura”, executados numa “paisagem
silenciosa e ofuscante do sol”37. O senhor estava insatisfeito com o trabalho realizado;
assim, toma sua máquina carpinadeira em mãos, junge-a às mulas e trabalha até as nove,
mas constata que as lâminas estão cegas e soltas, pois o parafuso quebrara. Dá então as
ordens de compra de um novo. Apesar da recomendação contrária do patrão, o peão
forçara o galope e matara o cavalo de cansaço, sem conseguir trazer o parafuso
necessário para a máquina. O proprietário aparece gritando e pedindo o parafuso, mas,
como é plausível, “não havia parafuso, o depósito estava fechado, o encarregado estava
dormindo etc.” “Sem replicar”, tira o chapéu e vai ele mesmo em busca da peça, que é
por fim obtida. Nesse momento, Mister Jones encarna a razão, enquanto o peão é só
“jesuíticas desculpas” (“Culpólo com toda su lógica racional, a lo que el otro respondía
con evasivas”38). O imigrante inglês aparece ilusoriamente então como modelo de
trabalho racional, previdência, eficácia e moralidade, enquanto o peão nacional aparece
como um cretino, displicente, inepto e malandro. Na prática, porém, o conto demonstra
justamente o contrário: pastos abertos e campos lavrados em série, uma propriedade
trabalhada o ano inteiro pelos peões, que criam animais, aram a terra, plantam e
capinam manualmente os pés de algodão mesmo sob a seca e o calor mais intensos,
enquanto Mr. Jones dorme, levanta tarde, almoça, vigia o trabalho alheio e goza seguidas
noitadas de uísque39. Sua pequena participação nas tarefas é mediada pela máquina e as
mulas. À “alma pensativa” do leitor, guiada pelo olhar dos cães e convocada logo no início

37 “En el paisaje silencioso y encegueciente de sol, el aire vibraba a todos lados, dañando la vista. La tierra
removida exhalaba vaho de horno, que los peones soportaban sobre la cabeza, envuelta hasta las orejas
en el flotante pañuelo, con el mutismo de sus trabajos de chacra” (QUIROGA, “Insolación” in:__.
Cuentos, op. cit., p. 51; “Insolação” in: __. Contos de amor, de loucura e de morte, trad. cit., p.140).
38 Idem, ibidem, p. 53; frase faltante na tradução citada, cf. ibid., p. 143.
39 Sinta-se o ritmo binário e as tensões desse trecho no original: “El día avanzaba igual a los precedentes

de todo ese mes; seco, límpido, con catorce horas de sol calcinante que parecía mantener el cielo en
fusión, y que en un instante resquebrajaba la tierra mojada en costras blanquecinas. Míster Jones fue a
la chacra, miró el trabajo del día anterior y retorno al rancho. En toda esa mañana no hizo nada. Almorzó
y subió a dormir la siesta.// Los peones volvieron a las dos a la carpición, no obstante la hora de fuego,
pues los yuyos no dejaban el algodonal. Tras ellos fueron los perros, muy amigos del cultivo, desde que
el invierno pasado hubieran aprendido a disputar a los halcones los gusanos blancos que levantaba el
arado. Cada uno se echó bajo un algodonero, acompañando con su jadeo los golpes sordos de la azada.”
(Idem, ibidem, p.50-1; trad. cit., p. 139).

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do texto sob o céu límpido do Chaco, ficava o aviso sobre “as melancolias de um trabalho
melhor recompensado”40.
Mas a luz transbordante do sol apresenta outra coisa, de fato, no final, numa
espécie de segunda negação determinada, que repõe a primeira negação41: o proprietário
capitalista encarna simbolicamente a morte. Na conversa dos cães, que avistam Jones
vestido de branco, evanescente, estabelece-se a ambivalência da figura como uma
espécie de duplo fantasmagórico: “é o patrão”, “não é ele, é a Morte”, “é o patrão
morto?”42. No desfecho, contudo, o patrão caminha e é confirmado como um
“autômato”, um Doppelgänger idêntico à morte: “a Morte, a Morte!”, uiva o cão Old43.
Note-se que desde o início ele surge à luz, após as noitadas de uísque, com uma “mirada
muerta y el lábio pendente”44. E é a partir dele que a morte se espalha pelo conto. Eis
como se esclarece esta alegoria da “Morte”, que ao invés de uma entidade metafísica,
externa e independente, aparece encarnada ou duplicada na imagem do próprio Mister
Jones tal como visualizada pelos cães – que no texto, então, têm a função de transmitir
essa visão imanente da morte ao leitor, como centros refletores, auxiliares do ponto de
vista do narrador onisciente. Assim, o sobrenatural ganha o centro de referência do
conto, constitui o próprio ponto de vista que funda o real, mas assumindo contornos
histórico-sociais muito precisos quando lido nesta chave crítica. Mister Jones, a
personificação do Capital, é a cegueira da razão autoconservadora45, o rastro da morte
social que se difunde pelo campo como segunda natureza, a verdadeira insolação
ofuscante. Obcecado por sua meta, apenas no retorno ele “se convence de que tinha
ultrapassado seu limite de resistência”, e sua cabeça passa a flutuar, entrando em
vertigens e ausências sob a pressão alta, em que deve pesar o álcool remanescente no

40 Idem, ibidem, p.47; trad., ibidem, p. 137.


41 Para a crítica da “negação positiva da negação”, como “negação afirmativa” que cancela idealmente os
antagonismos, bloqueia as interversões e repõe a identidade abstrata dos termos, cf. ADORNO, Dialética
negativa, op. cit., p. 138-40. Em Adorno, como em Marx, a segunda negação não está “bloqueada” ou
ausente, mas repõe a negação na unidade, conceitua o objeto particular e articula-os à cadeia de negações
determinadas, desdobrando a dialética do objeto e seu conceito no tempo como unidade histórico-
negativa, em suma, constituindo uma lógica da exposição de uma desintegração que não interrompe a
negatividade objetiva captada no processo capitalista ao permanecer junto à particularidade como
resistência do objeto não-idêntico.
42 QUIROGA, ibidem, p.51; trad. cit., p. 140.
43 Ibidem, p. 55; trad., ibid., p. 145-6.
44 Idem, p. 50; trad., cit., p. 139.
45 ADORNO, Dialética negativa, op. cit., p. 154.

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corpo após a noitada solitária. Como figuras do limite entre o homem e a matéria
inorgânica, os cães (assemelhados à posição subordinada dos peões), que já sentiam o
menor cheiro da embriaguez do amo, agora enxergam a presença da Morte. Ela surge
em cadeia: a visão do fantasma de Jones prenuncia a morte do cavalo; o cavalo morto
pelo trabalho excessivo prenuncia a morte do Jones real quando este precisamente
assume a máscara e as tarefas do trabalhador; mortes que então assombram os próprios
cães, principalmente após a rápida liquidação da fazenda pelo irmão do proprietário, e
que se religam, finalmente, ao destino dos peões – que podem ser agora declarados o
que realmente são: “índios”46. Nesse ritmo de liquidação geral tocado pelo poder do
dinheiro, para esses peões o fantasma da morte significa simbólica e concretamente
tanto o desreconhecimento de seu trabalho, sua cultura e etnia pelos proprietários, como
assinala as consequências gerais da mercantilização, da divisão do trabalho e do
antagonismo de classes, vividos na imediaticidade como sofrimento corporal
diariamente suportado em silêncio até a morte. Morte que já se impunha com o trabalho
e agora se avizinha com o desemprego. Numa sentença: tal fantasmagoria social revela
algo sobre a morte diária por eles realmente vivida nesta paisagem calcinante em que se
acumula trabalho morto, ao mesmo tempo opaco e resplandecente, oferecido e ocultado
à vista desde a abertura do texto, em que a fazenda é localizada na... “monótona llanura
del Chaco, con sus alternativas de campo y monte, monte y campo, sin más cor que el
crema del pasto y el negro del monte”, que “cerraba el horizonte” 47. Insolación trata
assim da invisibilidade do processo de exploração e dominação social do trabalhador
indígena. Com isso, o mito heroico do pioneiro ou do trabalhador venturoso é
literalmente enterrado, ao mesmo tempo que retraduzido na linguagem mística do
fetichismo moderno, como ilusão real da autovalorização do capital. Um conto
extraordinário, portanto, inigualável à época de sua publicação, com que poucos ou
apenas a literatura do próprio Quiroga poderiam emparelhar. Aliás, valeria perguntar: a

46 O corte brusco no final, forma quiroguiana já examinada, aparece como uma lâmina mortífera vinda da
cidade: “Mister Moore, seu irmão materno, viajou de Buenos Aires até lá, ficou uma hora na chácara, e
em quatro dias liquidou tudo, voltando em seguida para o sul. Os índios repartiram entre eles os
cachorros, que passaram a viver magros e sarnentos e iam todas as noites, com faminto sigilo, roubar
espigas de milho nas plantações alheias” (QUIROGA, ibid., p.55; trad. emendada, p. 146, grifo meu).
47 Idem, p. 49; trad., cit., p. 137.

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poesia desse conto não suspende e conserva o modernismo da primeira fase do autor,
elevando-a/os a outro patamar?
**
Para fechar o tópico, vejamos rapidamente os contos sobre os mensús. Dois deles,
ao contrário do que os críticos citados disseram, tratam de sua resistência à exploração.
Em “Una bofetada”, o indígena se vinga da humilhação e da bofetada recebida do patrão
em grande estilo senhorial – e por isso mesmo da forma mais cruel depois de cozinhar
as chicotadas de sua represália em fogo brando: prova de identidade de caráter e
memória histórica, mas também de impotência para resolver a questão politicamente,
como classe. Em “Los precursores” (1929), é esta questão da organização da classe que é
retratada de um ponto de vista histórico (a criação do sindicato de trabalhadores do
campo da erva-mate), através de um foco narrativo totalmente imanente, na voz de um
mensú semiletrado, que conversa com um “patrão” (e algo desse modelo repercutirá
mais tarde, da prosa de Rulfo à de Rosa). A organização sindical incipiente promove uma
greve, mas esbarra em confusões e fortes obstáculos sociais e culturais: a greve é
abortada após o assassinato acidental de um capataz, vem a repressão, as empresas
deixam de empregar peões sindicalizados e tudo se fragmenta novamente. O interesse
do texto, contudo, é o registro do movimento dessa perspectiva imanente dos de baixo,
de quem enfrenta as circunstâncias reais, na esteira do espírito social em devir nos anos
20, após a revolução russa. As inversões dialéticas são uma especialidade de Quiroga:
“Ahora a vos te parece raro, patrón, que un bolichero fuera el jefe del movimiento, y que
los gritos de un tuerto medio borracho hayan despertado la conciencia. Pero en aquel
entonces los muchachos estábamos como borrachos con el primer trago de justicia” 48.
No fundo, o conto insiste que o marco civilizatório da organização social e do direito
trabalhista mínimo não pode se dar senão pela implicação política de todos os sem parte,
“los más bárbaros”49, jamais tolerados pela consciência racista prevalecente, ao mesmo
tempo em que aponta a precariedade dessa luta.
Em “Los mensú” (1914), a perspectiva é a da alienação do trabalho. Por um lado,
temos a vida sacrificada dos mensú no trabalho nas madeireiras (obrajes) das serras de

48 QUIROGA, “Los precursores” in:__. Cuentos, op. cit., p. 404.


49 Ibidem, p. 405.

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Misiones, em que são tratados como potenciais escravos por dívida, sujeitos a
perseguições e ameaças de morte; experiência contrastada, por outro lado, pelos raros
dias de liberdade e consumo hedonista na cidade ribeirinha de Posadas. O ponto de vista
moral do narrador, entre o aristocrático e o burguês, cobra postura e certo conformismo
dos protagonistas (Cayé e Podeley), mas dá leve sinal de construir a gênese de seu caráter
heterônomo e submisso através da dominação prática do trabalho alienado e autoritário,
e não por qualquer moral “fraca” própria ao indígena. O dito “fatalismo indígena” que
submete as personagens à humilhação e à superexploração, por exemplo o “aumento
crescente do preço das provisões” compradas no armazém da empresa ou centros
monopolistas exploradores, é contrapesado por uma afirmação de dignidade contida
nesse mesmo processo de alienação: “o mesmo fatalismo que aceitava isso com um anhá!
e um olhar risonho para os demais companheiros lhe ditava, em elementar desagravo, o
dever de fugir da madeireira assim que pudesse”50.
No limite, a perspectiva ético-política da enunciação se inverte, apontando-se o
campo dos proprietários como o responsável pela perpetuação do infortúnio e da
degradação moral, principalmente os que comandam através da violência pessoal: “o
capataz olhou aquela ruína e não deu grande valor à vida que resta em seu peão” (...) “e
o capataz preferia um homem morto a um devedor distante” 51; por seu turno, o
trabalhador “Podeley nunca deixou de cumprir nada, única altivez que um mensú se
permite diante de seu patrão”52. O capitalista leva a justiça do contrato firmado com seus
trabalhadores até sua inversão em injustiça e execução do contratado, o “extremo final”
do des-reconhecimento como luta de morte53; os capatazes perseguem os fugitivos da
madeireira aos tiros, como verdadeiros animais de trabalho e seres extermináveis, em
boa medida para dar o exemplo aos trabalhadores que ficam. Ninguém deixa de pagar
suas dívidas ali impunemente: a administração terrorista do trabalho é decorrência da
fronteira aberta: terra abundante e vazio demográfico significam escassez de um
“proletariado livre como os pássaros”54. Em primeiro lugar, como indicamos acima,

50 QUIROGA, “Los mensú” in:__. Cuentos, op. cit., p. 159; trad. cit.: “Os mensú” in: __. Contos de amor,
de loucura e de morte, op. cit., p. 167, grifos nossos’1’’.
51 Ibidem, p. 161-2; Trad. cit., p. 170.
52 Ibidem, p. 162; trad. cit., p. 171.
53 Ibidem, p. 159, trad. cit., p.167.
54 MARX, Karl. O Capital. (Crítica da economia política). São Paulo: Nova Cultural, 1996, Livro I, tomo 2,

p. 355.

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trata-se da gênese do mercado nacional e do futuro predomínio urbano-industrial,


primeiro elo da maquinaria capitalista através da expropriação generalizada de terras e
da formação de uma “superpopulação relativa” (Marx). Só que tais reflexões são o ponto
oculto de toda a obra.
O anticlímax do conto é o grave momento de espera no leito do rio Paraná, após
uma fuga bem planejada e bem executada pelos dois mensús. No entanto, os dois
companheiros se desentendem e se dividem, no que resulta a morte de Podeley por
exaustão e febre (contraída no emprego, aliás) em meio aos dilúvios de outono e as cheias
do rio. Imobilizado pela força das águas, após longa espera, ele tomba imóvel para
sempre em “sua tumba de água”55. Aqui, explicitamente cabe a questão sobre o
fundamento do processo narrativo: qual “natureza” o matou segundo o narrador ou
autor implícito? A febre, o rio, as chuvas? Ou o Capital, uma força econômica convertida
em segunda natureza? O narrador parece tomar o partido dos indígenas, mas vale
refletir, sopesando o valor dessa cultura híbrida de ex-homens proletarizados, por um
lado moldada pela moderna disciplina do trabalho e o cálculo mercantil, que os
determina até mesmo fora do trabalho (no consumo, no lazer compensatório das
“misérias da madeireira”, na vida esparramada por aí, gasta no jogo, luxo e pequenas
posses, na orgia da prostituição e da aguardente, na dominação patriarcal das mulheres),
mas que no limite, por outro lado, conduz ao “desprendimento brutal em relação ao seu
dinheiro”56 – espécie de negação abstrata da condição de trabalhador e de macho
dominador, a semente da camaradagem dos peões nas serrarias do planalto. Por outro
lado, assim, uma cultura de gente de fibra capaz de empenhar a palavra e resistir à
injustiça, porque nunca se enquadra de fato ao mando pessoal, nem se deixa enganar
por uma forma de contrato só aparentemente racional, mero invólucro de uma relação
social escravagista. Fria e imparcial, contudo, a frase final do conto repete o destino de
todo mensú na fronteira, lugar em que a força de trabalho é um recurso escasso e
controlado pelo poder capitalista: nem bem estabelecido em Posadas, Cayé “já estava
ébrio e com um novo contrato” de trabalho57. Não se trata de um julgamento moral
contra Cayé, e poucos comentadores percebem o círculo fatal em sua totalidade: a

55 QUIROGA, ibidem, p. 165; trad. cit., p. 175.


56 Ibidem, p. 157, trad. cit., p. 163-4.
57 Ibidem, p. 165; trad. cit., p. 175.

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mesmíssima coisa acontecera da primeira vez em que eles desceram a Posadas, no início
do conto (“Pouco depois, estavam ébrios e com novo contrato fechado”58). Além disso,
quem nos assegura que desta vez Cayé não será morto quando retornar ao trabalho,
encontrando os mesmos patrões que o condenaram à morte? Por isso, ele chora e
reclama ao capitão do barco que o resgatou: “vão me matar!”59. Seu destino é as moscas.
Nessa tensão de vozes acolhida pelo narrador, que não cede nas críticas para ambos os
lados, Quiroga atinge um dos pontos máximos dentro de seus parâmetros artísticos.

3- Tradução de “As moscas”60

AS MOSCAS
(Réplica de “O homem morto”)

Horacio Quiroga

AO ROÇAREM O MONTE, os homens derrubaram no ano passado esta


árvore, cujo tronco está aplastado contra o solo em toda a sua extensão. Enquanto
suas companheiras perderam grande parte da casca no incêndio do roçado, esta
conserva a sua quase intacta. Em todo seu comprimento apenas uma franja
carbonizada dá claro sinal da ação do fogo.
Isso ocorreu no inverno passado. Quatro meses se passaram. No meio do
roçado perdido devido à estiagem, a árvore partida estende-se em um páramo de
cinzas. Sentado contra o tronco, o dorso apoiado nele, me acho também imóvel.
Em algum ponto das costas, tenho a coluna vertebral fraturada. Caí aqui mesmo,
depois de tropeçar sem sorte em uma grande raiz. Tal como caí permaneço
sentado – quebrado, melhor dito – contra a árvore.

58 Ibidem, p. 156; trad. cit., p. 163.


59 Ibidem, p. 165; trad. cit., p. 175.
60 QUIROGA, Cuentos, op. cit., 2004, p. 412-15.

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Há instantes atrás comecei a sentir um zumbido fixo – o zumbido da lesão


medular – que inunda tudo, e no qual a minha respiração parece defluir-se. Já
não posso mover as mãos, e apenas um ou outro dedo consegue remover a cinza.
Claríssima e fatal, a partir deste momento adquiro a certeza de que, ao rés
do chão, minha vida está aguardando a brevidade de alguns segundos para
extinguir-se de uma vez.
Esta é a verdade. Como esta jamais se apresentou à minha mente uma mais
completa. Todas as outras flutuam, dançam em uma espécie de reverberação
longínqua de outro eu, num passado que tampouco me pertence. A única
percepção de meu existir, mas flagrante apenas como um grande golpe recebido
em silêncio, é que daqui a um instante vou morrer.
Mas quando? Que segundo e que instantes são estes em que esta
exasperada consciência de viver deixará lugar a um sossegado cadáver? Ninguém
se aproxima deste roçado; nenhuma picada no monte o alcança a partir de alguma
propriedade. Para o homem aqui sentado, como para o tronco que o sustenta, as
chuvas chegarão molhando casca e roupa, e os sóis secarão líquens e cabelos, até
que o monte rebrote e unifique árvores e potassa, ossos e couro de calçado.
E nada, nada na serenidade do ambiente que denuncie e grite tal
acontecimento! Ao contrário, através dos troncos e negros galhos do roçado,
daqui ou dali, seja qual for o ponto de observação, qualquer um pode contemplar
com perfeita nitidez o homem cuja vida está a ponto de deter-se sobre a cinza,
atraída como um pêndulo por ingente gravidade; tão pequeno é o lugar que ocupa
no roçado e tão clara sua situação: está morrendo.
Esta é a verdade. Mas para a obscura animalidade resistente, para o latejar
e o alentar ameaçados pela morte, que vale ela diante da bárbara inquietude do
instante preciso em que este resistir da vida e esta tremenda tortura psicológica
explodirão como um foguete, deixando um ex-homem com o rosto fixo para todo
o sempre?
O zumbido aumenta cada vez mais. Fecha-se agora sobre meus olhos um
véu de densa treva em que se destacam losangos verdes. E em seguida vejo a porta
amuralhada de um mercado marroquino [zoco marroquí], da qual por uma das

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folhas da porta escapa em fuga uma tropilha de potros brancos, enquanto por
outra entra correndo uma teoria de homens decapitados.
Quero fechar os olhos e já não o consigo. Vejo agora um pequeno quarto de
hospital, onde quatro médicos amigos se empenham em convencer-me de que
não vou morrer. Eu os observo em silêncio, e eles começam a rir, pois seguem o
meu pensamento.
– Então – diz um deles – não lhe resta mais nenhuma prova de convicção
que a jaulinha de moscas. Eu tenho uma.
– Moscas?...
– Sim – responde –; moscas verdes de rastreio. Você sabe que as moscas
verdes cheiram a decomposição da carne muito antes do falecimento do sujeito.
O paciente ainda vivo, elas acodem, seguras de sua presa. Voam sobre ela sem
pressa, mas sem perdê-lo de vista, pois já cheiram sua morte. É o meio mais eficaz
de prognóstico que se conhece. Por isso eu tenho algumas selecionadas, de olfato
apuradíssimo, que podem ser alugadas por um preço módico. Onde entram, presa
segura. Posso colocá-las no corredor quando você ficar sozinho, e abrir a porta da
jaulinha que, diga-se de passagem, é um pequeno ataúde. A você não resta mais
trabalho que virar o olho da fechadura. Se uma mosca entra e você a ouve zumbir,
esteja seguro de que as outras acharão também o caminho até você. Alugo-as por
um preço módico.
Hospital?... Subitamente o quartinho branco, o armário de primeiros
socorros, os médicos e sua risada se desvanecem em um zumbido...
E bruscamente, também, se faz para mim a revelação: as moscas!
São elas que zumbem. Desde que caí acudiram sem demora. Amodorradas
no monte pelo hábito do fogo, as moscas tomaram, não sei como, conhecimento
de uma presa segura em sua vizinhança.
Farejaram a iminente decomposição do homem sentado, por
características inapreciáveis para nós – talvez através da exalação da carne da
medula espinhal cortada. Acudiram sem demora e revoam sem pressa, medindo
com os olhos as proporções do ninho que a sorte acaba de inesperadamente criar
para seus ovos.
O médico tinha razão. Seu ofício não pode ser mais lucrativo.
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Mas eis aqui que esta ânsia desesperada de resistir se aplaca e cede o passo
a uma beata imponderabilidade. Não me sinto já um ponto fixo na terra, arraigado
a ela por gravíssima tortura. Sinto que flui de mim, como a própria vida, a leveza
do vapor ambiente, a luz do sol, a fecundidade da hora. Livre do espaço e do
tempo, posso ir aqui, acolá, a esta árvore, àquela liana. Posso ver já muito distante,
como uma lembrança de existência remota, mas ainda posso ver, ao pé de um
tronco, um boneco de olhos que não piscam, um espantalho de olhar vítreo e
pernas rígidas. Do seio desta expansão, que o sol dilata esmiuçando minha
consciência em um bilhão de partículas, posso me levantar e voar, voar...
E voo e pouso com minhas companheiras sobre o tronco caído, sob os raios
do sol que emprestam seu fogo à nossa obra de renovação vital.

4- Que são “as moscas”? A codificação de uma fantasia ideológica da


fronteira

Sem pretensão de esgotar o trabalho de crítica e recuperação de Quiroga, o que só


se dá com a atenção máxima à forma e seu contexto, tentemos desenvolver os elementos
novos plasmados nesse conto derradeiro, publicado em 1933, um dos pontos mais altos
de sua obra61.
O texto começa relatando uma queda, ou antes duas, abrindo uma comparação
entre o homem moribundo e a árvore tombada. Com a coluna partida e isolado na roça
abandonada, o homem tem a certeza da morte iminente, sem poder desviar o olhar dessa
fatalidade. Em seguida, ele sente um zumbido, que é atribuído ao ferimento. Os
zumbidos se intensificam, ele sente a consciência turvar-se e então passa a alucinar,
vendo imagens sem nexo aparente e logo alguns médicos num hospital. Um dos médicos
lhe oferece – “por um preço módico” diz ele –, um diagnóstico por meio de moscas
verdes rastreadoras de decomposição da carne. O homem percebe mais zumbidos e vê
um enxame de moscas atraídas para sua posição. O homem falece, mas o texto ainda se
estende descrevendo uma metamorfose fantástica de sua consciência desaparecente

61 Um de nossos melhores críticos interpretou-o e apontou sua importância ainda no início dos anos 70.
(ARRIGUCCI JR., op. cit., p. 145-148).

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numa das moscas verdes, que em última instância participará do processo de


decomposição de seu cadáver. Metamorfoseado em mosca, esta voa liberta entre outras
moscas, pousa e observa friamente um corpo sentado sob o sol quente, como que
integrado ao sistema de reciclagem da matéria natural, ou como é dito, como parte da
“nossa obra de renovação vital”. Em linha reta, eis o resumo do conto.
O subtítulo do conto traz uma pista valiosa para começar a decifrá-lo: trata-se
duma “réplica” ao conto “El hombre muerto” (1920)62. Neste primeiro texto, tínhamos
outro retrato de um acidente banal de um homem que cai sobre o próprio facão,
assinalando a fragilidade da vida nesse ermo da frente pioneira, novamente
dramatizando uma consciência no instante da morte (a mesma linha de contos como “A
la deriva” e “La miel silvestre”). Aqui, entretanto, trata-se de um proprietário de um
bananal, que se reconhece em suas próprias obras na chácara, sem atentar para a
chegada traiçoeira da morte. Ele apenas se distrai e sente um forte cansaço, sem
atormentar-se com qualquer reflexão ou alucinação. Ele morre repentinamente próximo
à porta de casa, diante do cavalo e do filho, que se aproxima e chama pelo pai ao final.
Em “As moscas”, a negatividade é muito mais radical. O que significa esse homem
sendo comparado e reduzido à árvore derrubada (apenas com a casca intacta), às moscas
e ao ciclo natural que rege o mundo? Trata-se, dessa vez, da figura duplicada de um ex-
homem: um trabalhador insignificante, ferido e abandonado à própria sorte, vivendo
uma “gravíssima tortura” psicológica, num campo devastado e coalhado pelas cinzas
(um símbolo bíblico, aliás, que é anulado pela perspectiva puramente biológica das
moscas), que já o envolvem e prenunciam seu fim desde o início – descrita inicialmente
como a explosão de um “foguete” num “bilhão de partículas”. Destruição da matéria viva
que remete não só às cinzas do início mas ao enxame de moscas do final, as quais irão se
reproduzir com base neste cadáver de “ex-homem”, e o olhar do sujeito que investe no
instante secreto da morte acaba “com o rosto fixo para todo o sempre”. Aqui o sentido
dúplice desse conto-réplica: não só o cadáver de um trabalhador em decomposição, mas
o ex-homem de um ex-homem convertido em mosca. O conto constitui-se, assim, por

62QUIROGA, Horacio. “El hombre muerto” in:__. Cuentos, op. cit., p. 258 e ss. Uma tradução desse conto
foi publicada como “Homem morto”, por Liege Karyj, em:
https://www.recantodasletras.com.br/contosdesuspense/4736351 (Acesso em 04/03/2019).

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meio de duplicações e degradações em série, que se desenrolam, através da alucinação,


como uma espiral do inferno. Essa equivalência naturalizante de homem, vegetal,
animal e coisa, despida de qualquer intenção sedutora de “devir-animal” promovida pela
Cia. Deleuze & Guattari, traduz uma verdade social negativa de um tempo histórico e de
uma classe específica de homens isolados, que partilham com a figura do artista pós-
baudelaireano a condição de mercadoria, o que nos lança à questão da caracterização
desse ponto de vista antagônico. Como propusemos acima, essa queda nada mais tem a
ver com filosofias naturalistas ou da decadência; ao contrário, tais visões são aqui
expostas em sua ideologia e mesmo em sua insanidade.
O segundo detalhe formal a observar será então a alternância e as tensões internas
do ponto de vista construído pela narrativa, que varia entre três ou quatro perspectivas:
a consciência do protagonista (em primeira pessoa), que surge e se desvanece por duas
vezes, interrompida pelas outras perspectivas: o narrador onisciente (em terceira
pessoa), que introduz noções mais amplas de contexto e algumas reflexões de fundo; a
conversa e a proposta comercial absurda feita pelo médico; a visão alucinatória
redobrada a partir da mosca (novamente em primeira pessoa).
Note-se aí então que a perspectiva do homem é de reflexão e luta pela vida, o que
o narrador onisciente, de maneira sutilmente irônica e com um certo humor negro,
denomina uma “obscura animalidade resistente”. Aqui, ele pergunta o que vale tal
esforço diante da verdade inexorável da morte. Esse narrador é menos neutro do que
parece, e se o observarmos bem, trata-se de um narrador onisciente intruso, isto é, um
narrador que não apenas descreve objetivamente a situação do moribundo, mas opina
sobre o valor da vida e da resistência dessa obscura animalidade. Uma voz perversa que
rebaixa o humano ao biológico, o vivo ao morto e à coisa, a ser pulverizada em bilhões
de partículas de potassa, ossos, couro, cinzas e nada. Algo a ser reintegrado à sua unidade
natural de origem, a terra – que na verdade tem dono, é cristalização de trabalho
agrícola, propriedade capitalizada. Essa degradação a objeto é operada sob uma
perspectiva positiva, escarninha, mítica, que adere ao sentido do sistema vigente. Ela
consiste assim numa espécie de “ponto de vista da morte” (José Antonio Pasta), que cede
o passo a um novo tipo de fetichismo, mimese do fetiche-capital: uma “empatia com o
inorgânico”, diria Benjamin, para nomear a ebriedade, a maleabilidade e as
metamorfoses do flâneur baudelairiano, ou ainda, uma “empatia pela mercadoria” ou
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“pelo próprio valor de troca”63. Desse modo, com a chegada das moscas vindas do bosque
e a respeito da proposta macabra feita pelo médico ao doente moribundo, que ao invés
de socorrê-lo quer lhe alugar moscas verdes que apenas confirmam a morte –, o narrador
vaticina sarcasticamente: “O médico tinha razão. Seu ofício não pode ser mais lucrativo”!
Daqui surge a terceira perspectiva, que metamorfoseia a morte abjeta em meio às moscas
na perspectiva de uma falsa reconciliação com a natureza.
A tensão dos pontos de vista introduz assim um jogo de contrastes, que codifica
os antagonismos sociais da sociedade das mercadorias. Mas que aparecem
transfigurados por um olhar mítico, de falsa transcendência. Assim, o preparo do roçado
através das queimadas do bosque, como o falso trabalho do médico empulhador,
transforma-se em puro nada, ou antes, em “trabalho” natural do sol e das moscas na
cena final (como “nossa obra de renovação vital”) incorporado à fertilidade da
propriedade. Da mesma maneira, à paralisia e à “gravíssima tortura psicológica” sofrida
pelo trabalhador moribundo corresponde, de maneira mágica e evanescente, a “beata
imponderabilidade” da mosca, em seu voo “livre do espaço e do tempo”.
A comparação incomum entre o homem e a árvore caídos tem outro sentido, se
voltarmos ao início. Mas desta vez negativo, desintegrando o mito naturalista do final.
No páramo forrado de cinzas nos são apresentados de chofre e sem véus os resultados
finais do sobretrabalho no campo: degradação da natureza e degradação do homem, este
prestes a se reconhecer como “ex-homem” proletarizado, a certa altura criticamente
nomeado no texto. Homem não casualmente “esquecido” por alguém, mas ser
vulnerável, isolado como mônada abstrata de trabalho “livre” e já sem valor, como a
árvore derrubada, incendiada e abandonada às intempéries.
Por fim, além das interversões do vivo em morto, do trabalho em capital e do
capital em simples “natureza”, enquanto o trabalhador vive/morre como mosca, a
dramatização da consciência alucinada à espera da morte torna-se o centro da fantasia
desenhada pelo conto, que serve como tela de defesa para esse real abjeto, o de uma
degradação total do sujeito a pequeno objeto excrementício do Outro64. No primeiro

63 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas III. 2ª
ed. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 52 e 227.
64 Como lembra Freud, “[d]esejos insatisfeitos são as forças impulsionadoras das fantasias e toda fantasia

individual é uma realização de desejo, uma correção da realidade insatisfatória”. Além disso, “uma
fantasia paira entre três tempos, os três momentos temporais de nossa imaginação. O trabalho psíquico

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tempo da encenação imaginária, tudo surge como um devaneio positivo, em que desejos
de fuga (uma tropa de cavalos brancos), amparo e proteção (médicos, hospital) desviam
a mente desse sumo horror da insignificância humana. Mas a cena, na verdade, tem seu
lugar num mercado marroquino. Ou seja, um mercado, a imagem-sede da alienação
moderna, na realidade um zouk marroquino, situado na fronteira da civilização
ocidental, por cujas portas sai correndo uma tropilha de potros brancos, como dito,
enquanto “entra correndo uma teoria de homens decapitados”. Uma referência cifrada
aos médicos, talvez, que logo adentram no recinto dessa fantasia, bem como a suas
teorias de cunho naturalista – inúteis e sem pé nem cabeça, que apenas duplicam a
aflição do homem.
O devaneio inverte-se então numa lúcida reflexão crítica (“Quero fechar os olhos
e já não o consigo”). Tal seria a verdade desse desejo captado na tela de uma fantasia
social em que diversos tempos e espaços se misturam de modo ambivalente: um corpo
que cai e sente a própria impotência, um desejo perverso que vem do Outro
(corporificado pelo médico), cuja história, como vimos ao longo do ensaio, desfila na
construção prototípica de um mundo neocolonial marcado pelo signo da exploração, da
violência e da morte, que tende a reduzir os sujeitos a trabalhadores servis e meros
instrumento de gozo alheio – um mero “boneco” ou “espantalho de olhos vítreos e pernas
rígidas” ao final –, aparecendo reforçado no conto através de uma Voz cruel e obscena
do narrador onisciente, supostamente “neutro”, uma espécie de Supereu ambivalente65,

acopla a uma impressão atual, a oportunidade no presente, capaz de despertar um dos grandes desejos
da pessoa; remonta a partir daí à lembrança de uma vivência antiga, na sua maioria uma vivência
infantil, na qual aquele desejo foi realizado e cria então uma situação ligada ao futuro, que se apresenta
como a realização daquele desejo, seja no sonho diurno, seja na fantasia, que traz consigo os traços de
sua gênese naquela oportunidade e naquela lembrança” (FREUD, Sigmund. “O poeta e o fantasiar”
[1908] in: __. Arte, literatura e os artistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 57-8). Lacan lembra que
“[é] em relação ao real que funciona o plano da fantasia. O real suporta a fantasia, e a fantasia protege o
real.” (LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 43-4).
65 Freud indica no humor traços ambivalentes de um “triunfo do narcisismo” e “do princípio do prazer”,

em que o Eu afirmaria sua invulnerabilidade, “teimando que os traumas do mundo exterior não podem
o afligir”; mas também de traço consolador e educativo que se ligaria ao Supereu (como herdeiro da
instância paterna), cf. FREUD, S. “O humor” [1927] in: __. Arte, literatura e os artistas, op. cit., p.273-
81. Sobre a mudança para um “Supereu pré-edipiano”, com suas injunções perversas, como imagem de
um “grande Outro fora da lei que exerce o que podemos chamar de um despotismo benévolo”, ver:
ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem – O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar,
1992, p.72. Nessa linha, ver também os artigos do mesmo autor: “Entre a ficção simbólica e o espectro
fantasmático: rumo a uma teoria lacaniana da ideologia” e “Revisando a crítica social ‘lacaniana’: a Lei e

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que brinca e redime ironicamente essa vida lesada na fronteira com a benção do ciclo
histórico-natural capitalista. Mas tudo isso devendo ser lido a um só tempo sob a
perspectiva da morte simbólica e da castração desse Outro violento da fronteira, ao fim
de uma travessia desse fantasma decapitado: pois também sob esse “sol [que] dilata
esmiuçando minha consciência em um bilhão de partículas, posso me levantar e voar,
voar....”.
Algo então se ergue, alça voo, se dilata e ganha a força do pensamento e a
perspectiva de uma totalidade histórica. O “poder mágico que converte o negativo em
ser”, lembraria Hegel, é o mesmo que determina a “verdade como resultado”. Mas como
converter um todo subdesenvolvido e quebrado “em [um] ser sujeito ou vir-a-ser-de-si-
mesmo”66?

[São Paulo, 2018/2019]

seu duplo obsceno” in: ŽIŽEK, Slavoj. Interrogando o real (Org. Rex Butler e Scott Stephens). Belo
Horizonte: Autêntica, 2017.
66 HEGEL, Georg W.F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992, Parte I, §§ 32 e 19.

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PARA UMA CRÍTICA DOS AFETOS DA CRÍTICA


Angústia, desamparo e mal-estar

Thiago Canettieri

Desde Hegel1 a angústia aparece como momento fundamental na efetivação de


uma “consciência superior”. É somente neste momento que é possível redimensionar o
campo de sua própria experiência, no momento de desabamento do mundo simbólico
que orienta as ações e os desejos para que se configure outras coordenadas simbólicas,
que se passe por outros significantes. A angústia nada mais é do que uma forma de vida
que chegou em seu limite máximo. Assim, a angústia é responsável pelo sentimento de
desamparo que a acompanha; o sentimento que não existe qualquer ponto de apoio. Ao
nos sentirmos desamparados, nos sentimos sem suporte, deixados à nossa própria sorte.
Seu oposto é exatamente o cuidado, ou seja, aquele reconhecimento objetivo do poder
de um Outro que pode decidir pelo sujeito. Ser cuidado corresponde a fase infantil que,
de certa forma, é prolongada nos sujeitos. A busca por cuidado é, no fundo, a busca pela
autorização de um Grande-Outro, um atestado de heteronomia. Para a destituição
radical do poder e a reivindicação da autonomia, a angústia e o desamparo são
fundamentais.

Freud pode nos mostrar como uma política realmente emancipatória, de certa
forma, funda-se na capacidade de fazer circular socialmente a experiência de
desamparo e sua violência específica, e não de construir fantasias que nos
defendam dela2

1 HEGEL, Georg. Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Vozes, 2003.


2 SAFATLE, Vladimir. O circuito de afetos. São Paulo: Cosac Naif, 2016, p.67.

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Não é à toa que Angst em Freud3 e l’angoisse em Lacan4 são categorias-chaves. É


exatamente esse o afeto que surge no momento do reconhecimento de que na liberdade
efetiva não há onde pedir ajuda, não existe sequer um ponto de apoio onde se socorrer:
a experiência efetiva da liberdade é um abismo. Ir ao seu fundamento [Gründ] é cair no
abismo [Abgrund]5.

Adorno, reconhecido filósofo da aporia, costuma se remeter ao poeta Grabbe e a


sua sentença de que “nada senão o desespero pode salvar-nos”. É, portanto, exatamente
esse reconhecimento que o pessimismo de Adorno parece captar. Não existe saída que
não seja esse reconhecimento angustiante da realidade, de que a forma de vida que
vivemos atingiu seu limite e, diante disso, só nos resta o desespero. De maneira ainda
mais provocante, Adorno continua: “Mais limitados serão aqueles que se aferram
compulsivamente ao otimismo do oba-oba da ação direta para obter alívio psicológico”6.
Afinal, o alívio psicológico que ele fala é exatamente aquela sensação de uma ilusão, uma
estrutura fetichista de que “eu sei muito bem, mas...” à qual Slavoj Žižek7
frequentemente se remete. Eu sei muito bem que não vai resolver todos os problemas,
mas... me traz um alívio psicológico. A solução, ao contrário dessa fórmula, é exatamente
aquela que Grabbe enuncia.

Assim, a formação do sujeito no mundo contemporâneo ocorre necessariamente


de maneira traumática, excedendo seu potencial de simbolização e imaginação, que o
força a experimentar a angústia, ou experiências de desamparo ou na condição
existencial e mais genérica do mal-estar [Unbehagen].

Portanto, essa experiência de mal-estar é fundamental para mudança. É esse o


momento de catalisar uma ruptura com o estado das coisas. As pessoas, via de regra,
procuram um analista ou porque foram diretamente referidas a um ou porque tentaram
outras opções e nada funcionou. “Quando os remédios do médico e do psiquiatra, ou os
conselhos do psicólogo não resolvem, se a gente não tem um xamã ou exorcista à

3 FREUD, Sigmund. “Inibições, sintomas e ansiedade”. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 20). Rio de Janeiro: Imago, 1976.
4 LACAN, Jacques. Seminário X: A angústia (1962-1963. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
5 SAFATLE, Vladimir. Grande Hotel Abismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
6 ADORNO, Theodor. “A astúcia da dialética”. Caderno Mais, 31 ago. 2003. p. 6.
7 ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012.

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disposição, o que sobra muitas vezes é procurar um analista”8. É exatamente nesse


desamparo que o processo analítico se desenrola. O mesmo se dá com um movimento
revolucionário “A porta de entrada para o universo da tal luta de classes costuma ser o
desespero”9.

Assim, não é errado alocar no cerne do afeto de angústia um quê de


revolucionário. É essa experiência de mal-estar que se configura como força motriz para
mudar o estado atual das coisas. É exatamente o espaço criado pelo desespero depois de
ter “tentado de tudo” que a revolução tenta ocupar, alterando a própria noção da
experiência do sujeito para uma nova direção. Por isso Žižek afirma que sua tarefa como
intelectual hegeliano-marxista-lacaniano é “combinar uma crença pessimista,
extremamente negativa, que a vida é basicamente horrível com uma atitude social
essencialmente revolucionária”10.

Pode parecer, principalmente para aqueles adeptos das paixões alegres, um


esforço fadado ao fracasso esse de colocar uma paixão triste na base dos fundamentos
libidinais do campo político para a transformação da vida, mas é exatamente deste afeto
que pode vir a emancipação. São estes os afetos que mobilizam um sujeito para se
transformar radicalmente. Com isso, cabe reconhecer um vínculo direto e paradoxal dos
afetos da angústia e do desamparo com a potência de vida11. Essa potência de vida, que
em alguns teóricos spinozistas12 aparece ligada a afetos da felicidade e da alegria, só pode
ser uma categoria negativa, de sempre estar insatisfeita com o estado atual das coisas.
Afinal, é dessa forma que se efetiva o movimento de negação.

Essa negação é exatamente a experiência de um luto. Todavia, cabe lembrar que o


luto não opera por mera substituição do objeto perdido através do deslocamento da
libido. “Dar a tal deslocamento o estatuto de uma substituição equivaleria a colocar os
objetos em um regime de intercambialidade estrutural, regime no interior do qual a falta

8 DANTAS, Daniel; TUPINAMBÁ, Gabriel. 2015. “O analista cobra, o paciente paga e a economia política
dá o troco”. Lacuna – Revista de Psicanálise, n.0, n.1, p.8.
99 Idem.
10 Apud BOYTON, Robert. “Enjoy your Zizek”. Lacanian ink, n.26, 2001, s/p.
11 ADORNO, Theodor. “A astúcia da dialética”, op. cit., p. 7.
12 Cf. NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaios sobre as alternativas para a modernidade. Rio de

Janeiro: DP&A., 1992. NEGRI, Antonio. Kairòs, Alma, Vênus, Multitudo: nove lições ensinadas a mim
mesmo. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

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produzida pelo objeto perdido poderia ser suplementada em sua integralidade pela
construção de um objeto substituto a ocupar seu lugar. Um mundo de balcão de trocas
sem prazo de vencimento.”13 Freud estava ciente de que não se trata simplesmente de
substituição e que o desamparo que a perda de um objeto produz não é simplesmente
revertida e reorientada a outro “Por isto, vincular o luto a uma operação de esquecimento
seria elevar a lobotomia ao ideal de vida”14. O que ocorre no luto é uma operação que
deve lidar exatamente com o desamparo gerado, diretamente, sem nada evanescente
para mediar essa relação. E, se a lobotomia não ocorre e a memória não é enxotada no
processo de luto, seu significado só pode ser o oposto: uma rememoração do que foi
perdido. Uma rememoração das derrotas. É o que destaca Brecht em seu poema Aos que
vierem depois de nós [An die Nachgeborenen], no qual Benjamin15 adiciona o
comentário: “Pedimos àqueles que vierem depois de nós não a gratidão por nossas
vitórias, mas a rememoração de nossas derrotas.”

É exatamente nas Teses sobre o conceito de história que Benjamin16 desenvolve a


indicação a respeito do objeto perdido que cria o desamparo: as sucessivas derrotas das
classes oprimidas que aparecem na história recalcadas por “esse inimigo que não parou
de vencer” e que são geradoras da angústia.

Portanto, é nesse sumo breu que temos que agir. Não existe nada fora dele e falta-
nos luz para entender o monstruoso movimento do desastre que não deixa de ocorrer,
se reinscrevendo constantemente no corpo social e se aperfeiçoando ao mesmo tempo
que desenha seus limites, criando um constante estado de crise.

De tal maneira, o momento verdadeiramente revolucionário deve ser o


reconhecimento desagradável que não existe qualquer luz no final do túnel ou que, se
acaso existir, só pode ser um trem vindo na nossa direção. É, portanto, somente diante
deste momento cheio de angústia que a experiência de desamparo oferece que se torna
possível mudar o estado atual das coisas. Talvez, nem seja possível puxar o freio-de-

13 SAFATLE, Vladimir. “O trabalho do impróprio e os afetos da flexibilização”. Veritas, Porto Alegre, v.60,
n.1, p.41, 2015.
14 Idem, p.42.
15 Apud LOWY, Michel. 2005. Aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005, p.134.
16 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da história”. In: __. Magia e técnica, arte e política. Ensaios

sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

emergência17, a inércia do movimento do trem já é enorme demais para o sistema de


freio. A única tarefa possível: descarrilhar todo o trem.

A psicanálise já estava bem ciente que o movimento de gerar uma outra forma de
vida só é possível quando a anterior perecer, em um movimento de destruição. E a
angústia é o sintoma deste processo. O movimento que a angústia permite fazer é
exatamente aquele que Butler18 descreve o processo, próprio da angústia, de desejar o
fim de sua existência social:

“O que significaria para o sujeito desejar outra coisa que não sua existência social
continuada? Se essa existência não pode ser desfeita sem cair em uma espécie de
morte, a existência pode ser posta em risco, a morte pode ser cortejada ou
perseguida, de modo a se expor e abrir à transformação o poder social sobre as
condições de persistência da vida? O sujeito é compelido a repetir as normas pelas
quais é produzido, mas a repetição estabelece um domínio de risco, pois, se não
consegue restabelecer a norma de “modo correto”, fica-se sujeito a sanções
ulteriores, veem-se ameaçadas as condições prevalentes de existência. E, no entanto,
sem uma repetição que ponha em risco a própria vida – em sua organização presente
-, como podemos começar a pensar a contingência dessa organização e reconfigurar
performativamente os contornos das condições de vida?”

É por isso que Žižek19 ao comentar o trabalho de Butler indica que é exatamente
por esse motivo que a pulsão de morte freudiana indica a forma mais elementar do ato
ético. É esse o pano de fundo sob o qual a existência social, chegada ao seu limite, deve
encontrar uma resposta que dê conta de sua angústia, organizando e reconfigurando os
contornos nos quais se insere a própria reprodução da vida.

Dessa forma, o afeto da crítica deve ser responsável por desamparar os sujeitos,
criando o sentimento de despossessão e de absorção de contingências, que atua como
um afeto que despossui os predicados que identificam o sujeito20.

A angústia e desamparo, enquanto impotência são, na verdade, forma de


expressão do desabamento de potências anteriores que produzem sempre os mesmos

17 Idem, p.225.
18 BUTLER, Judith. 1997. The psychic life of power. Standford: Standford University Press, p.28.
19 ZIZEK, Slavoj. O sujeito incômodo: o centro ausência da ontologia política. São Paulo: Boitempo, 2016,

p.282.
20 SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos, op. cit., p.26.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

atos, sempre os mesmos agentes e que tem, como resultado, sempre os mesmos sujeitos.
Para mudar é necessário assumir essa impotência exatamente como movimento. O
desamparo produz corpos em errância que, desprovidos de sua capacidade de
estabilizar, são obrigados a se reconfigurarem a partir de outras bases que não aquelas
que faziam parte do seu processo de inscrição em uma totalidade21.

Se o proletariado que Marx22 descreveu se deitasse em um divã, com certeza sua


narrativa seria marcada pela angústia e desamparo, exatamente porque a categoria
marxiana representa a “parte dos que não tem parte”23.

Angústia e desamparo, como o mal-estar, são o movimento de subtração que


permite ocorrer a desconstrução de certas categorias referenciais que foram marcadas
por um significante mestre, admitindo, a partir dessa fratura, a abertura para outras
significações. Com isso, gesta aí novos sujeitos políticos que são atravessados por esses
afetos que os obriga a mover-se para fora do que lhes promete abrigo e amparo, saindo
fora da determinada ordem que os inscrevem no interior do atual estado das coisas.

Ao contrário de propor saídas, encontrar sujeitos revolucionários ou, em alguma


possibilidade de sínteses positivas mais elevadas, a única postura possível diante do
estado atual das coisas é lidar diretamente com o predicado desesperador de nosso
tempo. Isso significa fazer o luto de todos os sonhos não realizados como uma maneira
de superar este momento. Neste sentido, em seu recente The Courage of Hopelessness,
Žižek diz: “a verdadeira coragem não está em imaginar uma alternativa, mas em aceitar
as consequências para o fato que não há qualquer alternativa possível” 24. A afirmação
contundente é o movimento similar que o psicanalista de Zeno, no romance de Italo
Svevo A Consciência de Zeno25. O personagem tinha uma compulsão de fumar, muito
embora tentasse parar sucessivas vezes. Cada vez que fumava seu último cigarro ele
aproveitada de uma maneira tão especial que voltava a fumar loucamente. A estratégia
de seu psicanalista então é dizer que ele deve fumar o tanto quiser pois a saúde não é um

21 Idem, p.27.
22 MARX, Karl. Obras escolhidas. Livro I. Lisboa: Avante, 1982.
23 RANCIÈRE, Jacques. “O dissenso”. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. Rio de Janeiro:

Companhia das Letras e Fundação Nacional de Arte, 1996.


24 ZIZEK, Slavoj. The Courage of Hopelessness. Nova York: Penguin Books, 2017, p.12.
25 Idem, p.8.

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grande problema. Assim, o psicanalista retirou de Zeno o mais-de-gozar que ele


mobilizava a cada último cigarro.

Assim como o caso deste psicanalista, a crítica não deve estar as voltas em oferecer
respostas para o mundo presentes ou buscar possibilidades alternativas no futuro ou no
passado. Tudo isso, para usar a expressão do próprio Slavoj Zizek é uma ilusão
fetichista26. A verdadeira tarefa da crítica é reconhecer que não existe saída. Nosso
personagem tentava parar sem sucesso, o que lhe causava culpa, mas essa culpa era
experimentada com um excesso de satisfação narcísica. Não é o mesmo que parte da
crítica de hoje, voltada para os processos constituintes faz? Ao mudar a estratégia, o
psicanalista de Zeno desfez esse excesso, e, em total desespero – e não como uma grande
decisão – Zeno para de fumar.

De uma maneira análoga, me parece, que a crítica que se propõe negar – de


maneira fetichista – o desespero e a angústia de nosso tempo perde de foco o real
conteúdo da crítica. Ao focar nos processos constituintes que as paixões alegres podem
vir mobilizar, eles se veem sem dar nenhuma resposta para a i) crescente desigualdade
resultante da pobreza alarmante que, por sua vez, gera novas formas de apartheid, ii)
para a propriedade intelectual, iii) para o viés classista da engenharia genética ou iv)
para a crise ambiental que nos assola27 ou, de maneira mais abstrata, para as formas
sociais do capital, mercadoria, trabalho, dinheiro e, portanto, a dominação abstrata e
impessoal do capital pode continuar existindo28. A única forma de lidar com essa
situação, a meu ver, é reconhecer que não temos respostas para este mundo, e ele vai, a
passos largos, rumo ao precipício. Só uma luta que comece a reconhecer o afeto da
angústia, do mal-estar e do desamparo como centrais para a crítica é que nós poderemos,
de alguma forma paradoxal, nos salvar.

26 ZIZEK, Slavoj. Um mapa da ideologia. São Paulo: Contraponto, 1996.


27 Todos estes são exemplos dos quatros cavaleiros do apocalipse de nosso tempo que Slavoj Zizek
apresenta. (ZIZEK, Vivendo no fim dos tempos, op. cit.).
28 POSTONE, Moishe. 2014. Tempo, trabalho e dominação social. São Paulo: Boitempo, 2014.

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CRISE DO CAPITAL E CARISMA APOCALÍPTICO

Daniel Cunha

Your world is an ashtray. We burn and coil like cigarettes. The


more you cry your ashes turn to mud. (…) There is a dream
inside a dream. I’m wide-awake the more I sleep. You’ll
understand when I’m dead. (…) This is the idol experience.

Marilyn Manson, The reflecting God

A ascensão de um “mito” e a “onda carismática”

Por mais que ocasione rejeição ou mesmo repulsa de uma parte significativa da
população brasileira, a ascensão de Jair Bolsonaro representa aquilo que Max Weber
chamou de liderança carismática. Em sua caracterização do carisma e do carismático,
diz Weber que

Denominamos “carisma” uma qualidade pessoal considerada


extracoditiana (...) e em virtude da qual se atribuem a uma pessoa
poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos, ou, pelo menos,
extracotidianos específicos ou então se a toma como enviada por Deus,
como exemplar, e portanto, como ‘líder’” (Weber 2000, 158-9)

Bolsonaro, que é ovacionado por seus apoiadores como sendo nada menos do que
um “mito”, encontra-se aqui. O apoio de evangélicos e de figuras iniciadas no misticismo
(Olavo de Carvalho, cujo livro foi posto sobre a mesa no discurso da vitória), aliado à
facada e subsequente “ressurreição” confere mais substância a essa caracterização. Com
efeito, Bolsonaro não está sozinho aqui: ele faz parte de uma “onda” trans-nacional que

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

inclui figuras “endiabradas” como Trump e Duterte, mas também o papa como
derradeiro “herói” de uma esquerda carente de referências.

A tarefa aqui será a de historicizar o conceito weberiano de carisma para avaliar


a sua evolução ao longo da história da modernidade capitalista, e explorar as
possibilidades de entendimento da crise atual do capitalismo que ele oferece. Para isso,
usarei a noção de “trajetória da produção” (Postone 1993), derivada da teoria marxiana,
para traçar a trajetória do referido fenômeno e colocá-lo em relação com o conceito
“oculto” do Estado em Marx – o Estado como forma de alienação. O uso que farei tanto
de Weber quanto de Marx é heterodoxo. Sigo aqui o conselho de William Blake: “Conduz
teu carro e teu arado sobre os ossos dos mortos”.

O “carisma” na “trajetória da produção”

Tentativas de historicizar o “carisma” já foram feitas. Agamben detecta o carisma


como importante para a ascensão do nazi-fascismo (Agamben 2004, §6.8). Gerth e Mills
propõe que a oscilação entre carisma e rotinização burocrática constitui nada menos do
que uma “filosofia da história”, uma “teoria pendular da história”, noção que seria
provavelmente rejeitada por Weber (Weber 1979, 68-73; Bendix 1986, cap. X, D). Para
os meus objetivos, a noção de “trajetória da produção” se baseia no fato de que o
desenvolvimento das forças produtivas ocorre em forma alienada; a “autovalorização do
valor” mediada pela competição entre capitais individuais acarreta a contínua
substituição de trabalho vivo por trabalho morto (maquinário). Portanto, ao mesmo
tempo em que o capitalismo constantemente se reconstitui como o mesmo processo de
valorização do valor através da produção de mercadorias com o dispêndio de trabalho
abstrato (tempo abstrato), esse “mesmo” opera sobre forças de produção “cumulativas”,
constituindo um tempo histórico. Essa “trajetória da produção” é uma forma de
heteronomia histórica ou alienação, pois ela escapa de qualquer deliberação consciente
dos envolvidos, a partir do nível mais básico da produção imediata, como teorizado por
Marx na sua teoria do fetichismo da mercadoria. Porém, essa “trajetória” não pode se
desenrolar indefinidademente: como elaborado com espantosa antecipação por Marx
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

nos Grundrisse, a crescente composição orgânica do capital ao fim e ao cabo leva a um


ponto no qual o valor se torna uma “base miserável” para mediar a riqueza material; o
tempo de trabalho deixa de ser a condição para a produção de riqueza. Contudo, como o
capitalismo não é superado automaticamente, essa situação aparece como uma crise
sistêmica mundial. Como colocado por Marx nos Grundrisse:

“O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura


reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro
lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. Por essa
razão, ele diminui o tempo de trabalho na forma do trabalho necessário para
aumentá-lo na forma do supérfluo; por isso, põe em medida crescente o
trabalho supérfluo como condição – questão de vida e morte – do necessário.
Por um lado, portanto, ele traz à vida todas as forças da ciência e da natureza,
bem como da combinação social e do intercâmbio social, para tornar a criação
da riqueza (relativamente) independente do tempo de trabalho nela
empregado. Por outro lado, ele quer medir essas gigantescas forças sociais
assim criadas pelo tempo de trabalho e encerrá-las nos limites requeridos para
conservar o valor já criado como valor. As forças produtivas e as relações
sociais – ambas aspectos diferentes do desenvolvimento do indivíduo social –
aparecem somente como meios para o capital, e para ele são exclusivamente
meios para poder produzir a partir de seu fundamento acanhado. De fato,
porém, elas constituem as condições materiais para fazê-lo voar pelos ares.”
(Marx 2011a, 942-3)

Portanto, como o fundamento da sociabilização capitalista (o valor) apresenta


uma trajetória marcada pelo crescimento da composição orgânica do capital, é possível
avançar a hipótese de que o desenvolvimento da história da modernidade, no que se
refere ao Estado, não apenas apresenta uma forma pendular entre rotinização
burocrática e carisma, como sugerido por Gerth e Mills, mas que o próprio quadro de
referência desse pêndulo apresenta uma trajetória; isto é, trata-se de um “pêndulo
historicamente específico” que cairá aos pedaços quando esse quadro de referência (a
valorização do valor) se tornar obsoleto. E essa situação, pode-se dizer, já chegou, desde
o advento da microeletrônica e tecnologias computacionais, que levaram a
produtividade do trabalho a níveis sem precedentes, que dispensam mais trabalho vivo
do que é capaz de reabsorver em expansões sistêmicas (Kurz 2014; Ramtin 1991),
juntamente com a aparente exaustão das possibilidades de expansão sistêmica através
da apropriação recursos naturais ainda não capitalizados em fronteiras de mercadorias
(Moore 2015).

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

Apesar da sua aversão a qualquer tipo de lógica histórica, Weber oferece algumas
indicações sobre as condições para a emergência do carisma ou da liderança carismática:

“O carisma pode ser uma transformação com ponto de partida íntimo, a qual,
nascida de miséria ou entusiasmo, significa uma modificação da direção da
consciência e das ações, com orientação totalmente nova de todas as atitudes
diante de todas as formas de vida e diante do ‘mundo’, em geral” (Weber 2000,
161)
“Todas as necessidades extraordinárias, ou seja, aqueles que transcendem a
esfera das rotinas econômicas cotidianas, sempre foram satisfeitas de maneira
inteiramente heterogênea: sobre uma base carismática. Quanto mais
retrocedemos na história, mais fortemente se aplica essa afirmação” (Weber
1968, 1111; tradução minha)

Temos aqui, então, sofrimento, necessidades extraordinárias. Claramente, o sofrimento


que emerge de crises econômicas se adequa a essas condições para a aparição do
fenômeno carismático. Localizado o carisma na trajetória heterônoma da produção,
passemos ao Estado, a estrutura cuja “estabilidade burocrática” é desafiada pelo
fenômeno carismático.

Estado e alienação

A muito lamentada ausência de uma teoria do Estado no Marx maduro é em parte


causada pelo fato de que a interpretação marxista dominante do Estado é a do “comitê
da burguesia”, que de fato está presente n’A ideologia alemã e no Manifesto. No entanto,
há outra conceituação do Estado em Marx, mais “esotérica”, que pode ser suprida com
uma leitura atenta das noções de fetichismo e alienação em conjunto com seus textos de
juventude, nomeadamente a Crítica da Teoria do Direito de Hegel e A Questão Judaica,
bem como, em parte, A ideologia alemã. Neste último, Marx caracteriza o Estado como
uma “comunidade ilusória”:

É justamente porque os indivíduos buscam apenas seu interesse particular,


que para eles não guarda conexão com seu interesse coletivo, que este
último é imposto a eles como um interesse que lhes é “estranho” e que deles
“independe”, por sua vez, como um interesse “geral” especial, peculiar; ou,
então, os próprios indivíduos têm de mover-se em meio a essa
discordância, como na democracia. Por outro lado, a luta prática desses
interesses particulares, que se contrapõem constantemente e de modo real

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

aos interesses coletivos ou ilusoriamente coletivos, também torna


necessário a ingerência e a contenção práticas por meio do ilusório
interesse “geral” como Estado. Além disso, com a divisão do trabalho, dá-
se ao mesmo tempo a contradição entre o interesse dos indivíduos ou das
famílias singulares e o interesse coletivo de todos os indivíduos que se
relacionam mutuamente; e, sem dúvida, esse interesse coletivo não existe
meramente na representação, como “interesse geral”, mas, antes, na
realidade, como dependência recíproca dos indivíduos entre os quais o
trabalho está dividido. E, finalmente, a divisão do trabalho nos oferece de
pronto o primeiro exemplo de que, enquanto os homens se encontram na
sociedade natural e, portanto, enquanto há a separação entre interesse
particular e interesse comum, enquanto a atividade, por consequência,
está dividida não de forma voluntária, mas de forma natural, a própria ação
do homem torna-se um poder que lhe é estranho e que a ele é contraposto,
um poder que subjuga o homem em vez de por este ser dominado. (Marx
2007, 37; ênfase minha).

Ou seja, já que a comunidade é dissolvida com a divisão “natural” (involuntária) do


trabalho, o Estado como “comunidade ilusória” é a consequência necessária dessa
alienação, e a constitui. Isso implica que

“Eles [os proletários] (...) se encontram, por isso, em oposição ao Estado, a


forma pela qual os indivíduos se deram, até então, uma expressão coletiva,
e têm de derrubar o Estado para impor a sua personalidade.” (Marx 2007,
66; ênfase minha).

A relação com o fetichismo, conceito desenvolvido posteriormente (inversão de sujeito e


objeto) é ainda mais clara em textos anteriores. Na Crítica da teoria do direito de Hegel,
quando se refere à legislação da propriedade fundiária (primogenitura), Marx observa
que

A propriedade privada (a propriedade fundiária) é assegurada contra o


próprio arbítrio do proprietário, pelo fato de a esfera de seu arbítrio se ter
transformado, de arbítrio humano geral, no arbítrio específico da
propriedade privada; a propriedade privada se tornou o sujeito da
vontade e a vontade o mero predicado da propriedade privada. A
propriedade privada não é mais um objeto determinado do arbítrio, mas
sim o arbítrio é o predicado determinado da propriedade privada. (Marx
2010a, 116; ênfase minha)

É notável que a noção de inversão real de sujeito e objeto já está presente. Ela também
aparece como: “Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência

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invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido.”; “A realidade da ideia ética
aparece, aqui, como a religião da propriedade privada” (Marx 2010a, 118, 145)

Além disso, a forma-Estado é especificada historicamente, como derivada da


divisão capitalista do trabalho: “no Estado político revela-se que a ‘personalidade
abstrata’ é a mais elevada personalidade política, a base política de todo o Estado. Do
mesmo modo, no morgadio, revela-se o direito dessa personalidade abstrata, a sua
objetividade, a ‘propriedade privada abstrata’ como a suprema objetividade do Estado”;
“A abstração do Estado como tal pertence somente aos tempos modernos porque a
abstração da vida privada pertence somente aos tempos modernos. A abstração do
Estado político é um produto moderno” (Marx 2010a, 123, 52); “A constituição do
Estado político e a dissolução da sociedade burguesa nos indivíduos independentes –
cuja relação é baseada no direito, assim como a relação do homem que vivia no
estamento e na guilda era baseada no privilégio – se efetiva em um só e mesmo ato.”
(Marx 2010b, 53).

Posteriormente, Marx substituiria “religião” por “fetichismo” para descrever essa


forma de consciência que não é uma mera ilusão, mas a consciência invertida que
corresponde ao “mundo invertido” (no primeiro capítulo de O capital). A emancipação,
então, é posta em contraposição ao Estado como alienação:

“Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o


homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se
tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida
empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando
o homem tiver reconhecido e organizado suas “forces propres” [forças
próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si
mesmo a força social na forma da força política.” (Marx 2010b, 54)

É bastante provável que se Marx tivesse desenvolvido uma teoria do Estado em O


capital ele teria retornado aos conceitos desenvolvidos em seus textos de juventude
(“comunidade ilusória”, propriedade privada como sujeito), desenvolvendo-os e
especificando-os historicamente sobre a base do valor como sujeito, tal como o fez com
a teoria do fetichismo/valor como desenvolvimento e determinação histórica da teoria

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da alienação. Na verdade, a primeira forma embrionária da teoria do fetichismo foi


desenvolvida em relação ao Estado, à norma legal etc. em seus primeiros escritos.

Mesmo que não tenha abordado o Estado em O capital, em ao menos um escrito


histórico-político posterior Marx rejeita o conceito instrumental do Estado,
nomeadamente na sua exposição sobre a Comuna de Paris:

“Em todas as suas proclamações aos franceses da província, ela os conclamava


a formar uma federação de todas as comunas francesas com Paris, a uma
organização nacional que, pela primeira vez, seria realmente obra da própria
nação. Precisamente o poder repressivo do governo centralizado até então
existente, o poder do exército, da polícia política e da burocracia criados por
Napoleão em 1798 e, desde então, assumido por todo novo governo como um
conveniente instrumento e usado contra seus adversários, precisamente este
poder devia cair por toda parte, do mesmo modo como já caíra em Paris.
Desde o primeiro momento, a Comuna teve de reconhecer que a classe
trabalhadora, uma vez no poder, não podia continuar a operar com a velha
máquina estatal; que essa classe trabalhadora, para não tornar a perder o
poder que acabara de conquistar, tinha de, por um lado, eliminar a velha
maquinaria opressora até então usada contra ela, enquanto, por outro lado,
tinha de proteger-se de seus próprios delegados e funcionários, declarando-os,
sem qualquer exceção, como substituíveis a qualquer momento. Em que
consistia o traço característico do Estado até então existente? A sociedade
havia criado, para a consecução de seus interesses comuns, seus próprios
órgãos, originalmente por meio da divisão simples do trabalho. Mas esses
órgãos, tendo em seu ápice o poder estatal, converteram-se, com o passar do
tempo e em nome de seus próprios interesses, de servidores da sociedade em
senhores desta.” (Marx 2011b, 196-7; ênfase minha)

O que se tem aqui é bem diferente do conceito de Estado do Manifesto Comunista,


ou do conceito instrumental de Estado da Ideologia Alemã – o Estado que é usado como
instrumento pela burguesia, e tem de ser tomado como um instrumento pelo
proletariado. Na Guerra Civil na França (escrito após O Capital), parece haver uma
exposição política do conceito teórico de Estado como alienação: a revolução não toma,
mas se livra do “poder repressivo do governo centralizado até então existente” do “poder
do exército”, da “polícia política” e da “burocracia”, “desde o primeiro momento”, na sua
própria forma de organização:
“A multiplicidade de interpretações a que tem sido submetida a Comuna e a
multiplicidade de interesses que a interpretam em seu benefício próprio
demonstram que ela era uma forma política completamente flexível, ao passo
que todas as formas anteriores de governo haviam sido fundamentalmente
repressivas. Eis o verdadeiro segredo da Comuna: era essencialmente um
governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a

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classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para se levar a efeito


a emancipação econômica do trabalho.” (Marx 2011b, 59; ênfase minha)
A forma política da superação do Estado como alienação, “enfim descoberta”
(portanto, previamente desconhecida), para Marx, é o conselho ou comuna, a forma
política que dissolve a burocracia, e é de natureza completamente diferente do partido
como descrito no Manifesto Comunista, uma organização orientada para a tomada e uso
instrumental da burocracia estatal. No seu prefácio da edição alemã de 1872, Marx
registrou que o Manifesto tornou-se parcialmente obsoleto após a Comuna (Marx n. d.).

A função do carisma no Estado como alienação

Now I found you, it’s almost too late. And this Earth seems
obliviating (…) I’m so empty here without you. (…) I know
it’s the last day on Earth.

Marilyn Manson, The last day on Earth

A questão, então, é como isso se relaciona com a noção de “trajetória da produção”


e o seu “pêndulo weberiano” (carisma/burocratização) imbricado no Estado como
estrutura constitutiva da alienação. Isso significa, sucintamente, que as “explosões de
carisma” são o estado de emergência da alienação (lembremos que Weber menciona o
“sofrimento”, as “necessidades extraordinárias”): elas reconfiguram o Estado (o Estado
como alienação) para restaurá-lo (reestabelecer a normalidade burocrática) sobre a base
da valorização do valor. Essa restauração carismática ocorre historicamente sob muitas
formas. O ponto é que, no presente, a restauração não é mais possível, porque a sua base
fundamental (o valor) tornou-se historicamente obsoleta.

De todo modo, a superação da alienação não poderia ser levada a cabo com líderes
carismáticos que tomam a maquinaria estatal (isso sempre significou a restauração da
alienação), mas com a forma política que dissolve a “vida comunal ilusória” e institui
uma “comunidade substantiva”. A Comuna de Paris foi, por assim dizer, “prematura”; as
forças de produção ainda não estavam prontas para a “liberdade plena”. Porém, hoje a

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

situação é diversa. A forma-conselho de uma “vida comunal substancial” assume novas


potencialidades com formas descentralizadas de energia (como a energia solar) e
comunicação (internet) que tornam possível a organização consciente da produção em
nível mundial e em tempo real. Não há impedimento técnico, hoje, para a existência de
uma federação mundial de conselhos que reúna representantes permanentemente
revogáveis da escala do bairro até a escala planetária, que efetivamente controle uma
produção material e distribuição globalizadas, plenamente automatizadas. Os
impedimentos são políticos, mas também teóricos, epistemológicos, ontológicos: é
necessário imaginar um mundo para além do Estado (da “comunidade ilusória”) e para
além do “trabalho” (a alienação da “atividade vital”, de acordo com o “jovem” Marx).

Na ausência dessa ruptura, a crise da valorização aparecerá também como um


surto desesperado de “carisma apocalíptico” – ou seja, o carisma que se alimenta da crise
do “tempo de trabalho socialmente necessário”, da forma da temporalidade da
modernidade. Trata-se realmente de um “fim dos tempos”. O historiador holandês
Johan Huizinga se referiu desta forma em relação a outra crise histórica, o “outono da
Idade Média”:

Assim, sempre e por toda a parte, na literatura da época encontramos uma


confissão de pessimismo... Todavia este profundo pessimismo é a base de onde
a alma deles voará para a aspiração de uma vida de beleza e serenidade. Porque
em todos os tempos a visão de uma vida sublime se instalou na alma dos
homens e quanto mais sombrio é o presente mais fortemente se fará sentir esta
aspiração. (Huizinga 1996/1924, cap. 2)

Apesar das diferenças sócio-históricas, talvez as “almas humanas” do capitalismo


contemporâneo estejam sofrendo e aspirando tanto quanto aquelas do feudalismo
decadente. Pois não faltam pesares no tempo presente: do estouro de bolhas financeiras
a crises de refugiados, de explosões de racismo e xenofobia à crescente população de
desempregados, precarizados e supérfluos, do terrorismo jihadista ao amok ocidental,
da destruição do Estado de bem-estar social às catástrofes ecológicas e o ressurgimento
do antissemitismo, tudo indica que estamos vivendo uma época de expectativas
decrescentes (Arantes 2014).

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À medida que as “expectativas decrescentes” se tornam cada vez mais claras para
os “trabalhadores sem trabalho”, as suas formas se multiplicam: Trump, Estado
Islâmico, jihadismo, amok ocidental, o papa como mais novo herói da esquerda, o
ressurgimento pós-moderno da Ku Klux Klan, neonacionalismo, ressurgimento de
teorias conspiratória antissemitas e política identitária excludente em geral são
expressões do mesmo desamparo, a mesma expressão pervertida e violenta da
“aspiração de uma vida de bela e serena” que não encontra uma forma adequada de
expressão. Um projeto alternativo e emancipatório não centraria o foco no Estado e no
trabalho – tomada do Estado, “direito ao trabalho” – mas no seu oposto: na dissolução
da “comunidade ilusória” através da instituição de uma vida comunal substantiva, na
dissolução do “trabalho” – como esfera cindida da vida social dedicada à valorização do
valor, em oposição às demais esferas – no fluxo geral da “atividade vital”.

A tese que apresentei pode ser resumida assim: o “pêndulo” que oscila entre
carisma e rotinização burocrática é historicamente específico do desenvolvimento
histórico alienado da modernidade; nisso, o carisma é o estado de emergência da
alienação. O próprio quadro de referência do pêndulo, a “trajetória da produção”, atinge
agora os seus limites. A explosão de carisma atual é o último estado de emergência da
modernidade, o que chamo de “carisma apocalíptico”. Dessa vez, com Bolsonaro ou
qualquer outro, o carisma não será capaz de restaurar a rotina sobre a mesma base da
valorização do valor, apesar dos nostálgicos do Estado de bem-estar de esquerda e
direita. Todo projeto emancipatório tem de rejeitar formas carismáticas de liderança e
poder (qualquer forma de “bolsonarização de esquerda”) e construir novas formas de
sociabilidade que superem a alienação; para isso, a forma política da Comuna de Paris
pode servir de inspiração, e a reconfiguração da produção material para além da
valorização do valor deve ser o seu conteúdo. Em outras palavras, não o “direito ao
trabalho”, mas tempo livre e riqueza incondicional para todos deve ser a aspiração capaz
de pacificar as almas atormentadas. Porém, se as categorias da modernidade seguirem
sendo mobilizadas ao longo de todo o espectro político, parece bem mais provável que
no próximo meio século a humanidade decaia definitivamente a novas formas de
barbárie. O carisma é um índice dessa decadência.

248
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

Referências
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representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes
profetas. Trad. R. Enderle, N. Schneider e L. C. Martorano. São Paulo: Boitempo.
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da economia política. Trans. M. Duayer e N. Schneider. São Paulo: Boitempo.
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teoria crítica de Marx. Trad. A. Reis e P. C. Castanheira.
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Weber, Max. 2000. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 1.
3ª. ed. Trad. R. Barbosa e K. E. Barbosa. Brasília: UnB.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

PÓS-CAPITALISMO REGRESSIVO
E “INÉRCIA CONCEITUAL”
Uma hipótese sobre a decomposição social em curso

Daniel Cunha

Leb schneller. Bis zum Kollaps, nicht viel Zeit.


[ Viva mais rápido. Até o colapso, não resta muito tempo. ]

Einstürzende Neubauten

Se tomarmos a sério as teorias da crise do capitalismo propostas, por exemplo,


por Immanuel Wallerstein e Robert Kurz, já chegou o momento de nos perguntarmos se
já não vivemos sob o “pós-capitalismo”, ou ao menos sob momentos de uma nova
formação social.1 Para Kurz, a “revolução microeletrônica” desencadeia a crise da
valorização, uma vez que a composição orgânica do capital atinge um grau tal que o valor
se torna uma base mesquinha para as forças produtivas desenvolvidas, efetivando o
cenário do Fragmento sobre as máquinas dos Grundrisse.2 Para Wallerstein, trata-se
de um “achatamento de lucros” [profit squeeze] que levará a uma “bifurcação” do
sistema-mundo, da qual poderá resultar uma formação social mais democrática e
igualitária ou outra mais autoritária e desigual.3 Ambos localizaram o início da crise nos
anos 70 do século XX.4

1 Este pequeno texto se enriqueceu, mesmo na eventual discordância, a partir de debates com Joelton
Nascimento, Leo Vinicius, Bruno Lamas, Juliana Mesomo, Rubem Klaus, Victor Marques, Marcos
Barreira, Jefferson Almeida, Edilberto Malheiros, Ofensiva Histórica. A responsabilidade por ele é
exclusivamente minha.
2 Marx (2011), 587-ss.; Kurz (1992) e Kurz (2018/1986).
3 Ver Wallerstein (1974) e Wallerstein (2004). Em entrevista recente, Wallerstein afirmou crer que

estamos “no meio da bifurcação” (Wallerstein 2019).


4 Também o Moishe Postone tardio parece localizar uma crise a partir dos anos 70. Ver Postone

(2017/2019).

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Bem entendido, não se trataria, portanto, da visão otimista de um pós-


capitalismo na forma do comunismo como certeza histórica, tão cara ao marxismo dos
séculos XIX e XX, mas de uma tão violenta quanto inconsciente e melancólica transição
regressiva. Uma constelação de fenômenos inquietantes avassalam o mundo nos últimos
anos: novas formas de escravidão, asselvajamento do extrativismo, financeirização (e
possível curto-circuito entre extrativismo e financeirização, atalhando o processo de
valorização), erosão da democracia formal, reforço do autoritarismo com lideranças
carismáticas, reforço do Estado policial e militarizado, o esgotamento das últimas
fronteiras de mercadorias baratas e seus booms de preços, reposicionamento da religião
como mediação social, neonacionalismo, formação de massas de supérfluos e favelização
mundial, amok ocidental, entre outros.5 Tomados isoladamente, nenhum desses
fenômenos é novo ou incompatível com a forma social capitalista, mas em conjunto e no
atual contexto do capitalismo de crise, podem indicar o início da ultrapassagem da
bifurcação.

Uma dificuldade adicional no que se refere à consciência social dessa bifurcação é


que a crise social objetiva é necessariamente acompanhada de uma crise epistemológica:
a ciência social de que dispomos é adequada para a formação capitalista, mas terá pouco
ou nada a dizer sobre o que vem após. Isso inclui a tão querida dialética, que é o método
tão adequado quanto historicamente específico para a análise da formação histórica
capitalista. Diz Marx, nas suas observações metodológicas nos Grundrisse:

“Como em geral em toda ciência histórica e social, no curso das categorias


econômicas é preciso ter presente que o sujeito, aqui a moderna sociedade
burguesa, é dado tanto na realidade como na cabeça, e que, por conseguinte, as
categorias expressam formas de ser, determinações de existência, com frequência
somente aspectos singulares, dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que,
por isso, a sociedade, também do ponto de vista científico, de modo algum só
começa ali onde o discurso é sobre ela enquanto tal.”6

5 Recentemente, chamam a atenção a recente “lei do trabalho escravo” na Hungria de Orban e o projeto
bolsonarista de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém, motivado por mediações religiosas
(seguindo o padrão dos EUA), por exemplo – ver Duchaide (2018). Sobre a exaustão das fronteiras de
mercadorias, ver Moore (2015). Sobre favelização mundial ver Botelho (2015). Sobre escravidão
contemporânea, ver Lamas (2012). Sobre amok ocidental, ver Jappe (2017), cap. 4.
6 Marx (2011, 59).

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Aqui Marx destaca, por um lado, que nessa mediação entre a realidade e o conceito, a
dialética ou o método da economia política e suas categorias derivadas são
historicamente específicos “dessa sociedade determinada”, e não uma ontologia ou
método trans-histórico que permitiria a análise de qualquer forma social. 7 De outro, ele
observa que há uma defasagem histórica entre o estabelecimento dessa formação social
e a consolidação do arcabouço conceitual ou método que permite que ela seja decifrada.

De tal forma que uma hipotética bifurcação atual, ainda que possa ser conceituada
a partir da determinação dos limites tendenciais da formação capitalista utilizando-se o
método da economia política, talvez não possa ser propriamente “detectada” em
processo, devido à “inércia conceitual” da ciência social; a crise do capitalismo é também
uma crise do seu método específico de análise. A transição do feudalismo para o
capitalismo só foi teorizada séculos mais tarde, a partir da perspectiva histórica
posterior. A modernidade capitalista possibilitou a emergência da secularização e da
crítica social e dinamizou os processos de formação de conceitos, mas sendo uma
formação ainda sob os auspícios da alienação, estes seguem o padrão da coruja de
Minerva, sendo necessariamente post festum. Apenas uma sociedade livre seria
conscientemente auto-reflexiva quanto à sua própria forma e assim tenderia a eliminar
aquela “inércia”.

Mas nada indica que hoje estejamos diante da perspectiva de uma “sociedade
livre”. As inúmeras insurreições dos últimos anos no mundo todo, ainda que busquem
superar formas políticas obsoletas, esbarram em uma espécie de “tabu dos meios de
produção”, enfatizando na prática e na teoria quase que exclusivamente o problema da
“representação política”, reforçando assim a dissociação capitalista entre política e
economia. Essas insurreições “espontâneas” são carentes de uma nova forma do sujeito,
passando a girar em falso, já que passam ao largo do problema estrutural da reprodução
social capitalista baseada na forma-mercadoria.8 As reivindicações não passam pelo

7 Sem esse ancoramento histórico da dialética, ela se converte em uma metafísica. Ver Postone e Reinicke
(1974) e Colletti (1969).
8 Uma expressão elaborada desse politicismo que radicaliza a transformação política mas se abstrai da

crise estrutural do capitalismo e reifica a “representação política” dissociada da forma-mercadoria está


em Safatle (2018).

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buraco da agulha da mercadoria, mas o sujeito da mercadoria ainda não foi superado, e
assim se abre o caminho para a reação.

Passado meio século do início da crise epocal do capitalismo, segundo teóricos


como Wallerstein e Kurz, já chegou a hora de deixar de tomar como pressuposto que a
sociedade está subsumida às leis da valorização do valor em todos os seus momentos. A
hipótese que se lança aqui é que o horror do mundo atual não necessariamente é o
resultado exclusivo dos desaforos do capitalismo em processo: podemos estar diante das
primeiras manifestações de algo ainda pior que sucede o seu ocaso, das trevas pós-
capitalistas nas quais ainda não temos instrumentos para enxergar, e tateamos como
cegos para compreender um ambiente ainda mais hostil, até aqui sem nome. A “inércia
conceitual” parece implicar que, quando tivermos um nome apropriado, já será tarde
demais para evitar o nomeado.

Referências

Botelho, Maurílio (2015). “Favelização mundial: o colapso urbano da sociedade


capitalista.” Sinal de Menos 11(2): 248-270.
Colletti, Lucio (1969) Il marxismo e Hegel. Bari: Laterza.
Duchaide, André (2019). “Frente evangélica apoia Israel por crença no Apocalipse e na
volta de Cristo.” O Globo, 6.3.2019. Disponível em
https://oglobo.globo.com/mundo/frente-evangelica-apoia-israel-por-crenca-no-
apocalipse-na-volta-de-cristo-23348539
Jappe, Anselm (2017). La societé autophage: capitalisme, démesure e autodestruction.
Paris: La Découverte.
Kurz, Robert (1992). O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de
caserna à crise da economia mundial. Trad. K. E. Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e
Terra.
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Lamas, Bruno (2012) “Os paradoxos da nova escravatura global e os presssupostos cegos
da nova anti-escravatura hoje.” (In)Visível 1: 91-104.
Marx, Karl (2011/1858) Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da
crítica da economia política. Trad. M. Duayer e N. Schneider. São Paulo: Boitempo.
Moore, Jason W. (2015). “Nature in the limits to capital (and vice versa).” Radical
Philosophy 193: 9-19.

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Postone, Moishe (2019/2017). “A crise atual e o anacronismo do valor: uma leitura


marxiana.” Trad. M. D. Bastos. Sinal de Menos 13: 32-50.
Postone, Moshe and Helmut Reinicke (1974). “On Nicolaus’ ‘Introduction’ to the
Grundrisse”. Telos 22: 130-148.
Safatle, Vladimir (2018). “Organizar as lutas.” Folha de São Paulo, 7.12.2018.
Disponível em
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2018/12/organizar-as-
lutas.shtml
Wallerstein, Immanuel (1974). “The Rise and Future Demise of the World Capitalist
System: Concepts for Comparative Analysis.” Comparative Studies in Society and
History 16(4): 387-415.
Wallerstein, Immanuel (2004). World-Systems Analysis: An Introduction. Durham:
Duke University Press.
Wallerstein, Immanuel (2019). Pensadores Contemporáneos en Síntesis. Entrevista
com John Ackerman. TV UNAM. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=XWr7bA6kMaU (acessado em março de 2019)

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A CRÍTICA DO VALOR À PROVA DA


ATUALIDADE
KURZ, Robert. Poder Mundial e Dinheiro Mundial: crônicas do
capitalismo em declínio. Rio de Janeiro: Consequência, 2015. 120p.

Leomir C. Hilário

I-

A sociedade está passando por uma revolução silenciosa, a qual é


obrigada a se submeter e que leva em conta as existências humanas que
ela fragmenta tanto quanto um terremoto se importa com as casas que
destrói.

(Karl Marx, em “Emigração Forçada”, texto de 1853, publicado no New


York Daily Tribune).

A queda do Muro de Berlim, em 1989, em vez de unificar todo o mundo numa paz
duradoura regida pelo mesmo sistema de produção, como acreditaram alguns, foi o
pontapé inicial para a multiplicação de cisões pelo mundo. Se outrora havia um grande
muro separando dois supostos projetos diferentes de sociedade, hoje temos vários: o
muro que separa os Estados Unidos do México, construído em 1994 para conter a
imigração ilegal; o muro da Cisjordânia, que desde 2002 separa os palestinos dos
israelenses, chamado pelo governo de Israel como “Cerca de Separação ou Segurança”
para evitar a infiltração de “terroristas”, isolando mais de 450 mil pessoas; os muros que
separam Espanha e Marrocos nas cidades de Melilla, Ceuta e do Ilhote de Vélez de la
Gomera; os muros contra ciganos na Eslováquia, em Kosice; o muro entre Turquia e
Grécia, construído em 2012 ao longo da margem do rio Evros, erguido em meio à crise
grega e que custou 3,2 milhões de euros; dentre tantos outros.

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Posso ainda mencionar o “muro marítimo” do Mediterrâneo, através do qual


imigrantes tentam chegar à Europa1. Contra isso, vale sublinhar, líderes europeus
propuseram destruir os navios usados pelos “traficantes”. Após protestos da ONU e da
Cruz Vermelha, que argumentaram não ser a solução bombardear navios cheios de
imigrantes, essa ideia perdeu força na esfera pública.
Produzir uma teoria crítica radical que dê conta deste atual quadro global de
barbárie é a tarefa urgente para quem ainda tem a emancipação social como horizonte.
É este o caso do ensaísta alemão Robert Kurz (1943-2012) e de todo um grupo formado
em torno dele que se pode denominar de “Crítica do Valor” (Wertkritik, em alemão). Em
linhas gerais, trata-se de uma tradição minoritária da crítica social que busca suas chaves
analíticas nas categorias básicas marxianas (tais quais valor, mercadoria e fetichismo)
como meios de compreensão do mundo atual. Esta tradição se opõe diametralmente ao
que eles denominam de “marxismo do movimento operário” e/ou “marxismo
tradicional”, caracterizado pela análise centrada no problema da distribuição de
mercadorias, o que acaba por deixar subteorizado o problema do modo de produção.
(Para uma apreciação desta tradição categorial da Crítica do Valor, ver o livro As
Aventuras da Mercadoria, de Anselm Jappe, publicado pela Editora Antígona, em
2006)2.
Esta tarefa mais fundamental de repor as bases marxianas da crítica social –
projeto realizado também pelo professor americano de origem canadense Moishe
Postone3 (1942-2018) – deve vir acompanhada da reflexão de como esta crítica

1 Para se ter uma ideia do fluxo de imigrantes, a operação “Mare Nostrum” da Itália, que consistia em
resgatar os imigrantes em alto mar, salvou a vida de 150 mil em um só ano, o tempo que durou esta
operação, entre 2013 e 2014. Esta operação se iniciou após os naufrágios em Lampedusa (uma ilha
italiana) que provocaram a morte de mais de 400 pessoas, cuja imagem dos corpos boiando no mar
chocou o mundo.
2 Cf. a resenha escrita por Maurilio Lima Botelho, publicada em: http://arlindenor.com/2016/01/05/as-
aventuras-da-mercadoria-de-anselm-jappe-maurilio-lima-botelho-em-o-livro-que-estou-lendod/. E
também o texto “Do marxismo à crítica do valor”, de Ulrich Leicht, disponível em:
http://obeco.planetaclix.pt/ulrich-leicht.htm.
3 Refiro-me a sua principal obra chamada Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da

teoria crítica de Marx, publicada no Brasil em 2014 pela editora Boitempo. Escrevi uma pequena
resenha introdutória sobre este livro chamada “Com Marx para além do marxismo”, disponível em:
http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/Noticias/visualizar/3690. Eu indicaria, ainda a respeito
deste livro de Moishe Postone, a resenha de autoria de Cláudio R. Duarte chamada “A potência do
abstrato: resenha com questões para o livro de Moishe Postone”, publicada pela revista Sinal de Menos,
n. 11, vol. 2, em: https://www.dropbox.com/s/yu3b9u0mtrs0sqf/SINAL_DE_MENOS_11_2.pdf.

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categorial de Marx produz efeitos de análise em relação ao presente. Ou seja, de que


modo temas aparentemente díspares como imperialismo, barbárie, migração, guerras
civis etc., podem ser pensados como fenômenos no interior de uma totalidade histórica?
De que maneira a releitura categorial ajuda a compreender o presente?
A meu ver, este ato de pôr a teoria à prova do presente é o fio que costura os
ensaios que compõem o livro Poder Mundial e Dinheiro Mundial: Crônicas do
capitalismo em declínio, de Robert Kurz, editado pela Consequência e lançado no
segundo semestre de 2015, no Rio de Janeiro. São oito ensaios cujo foco são questões
urgentes da atualidade, respectivamente: Crise mundial e ignorância (2009); Poder
Mundial e Dinheiro Mundial (2008); Imperialismo de crise (2003); Barbárie,
migração e guerras de ordenamento mundial (2005); Seres humanos não rentáveis
(2005); Crise econômica mundial, movimento social e socialismo (2009); O clímax do
capitalismo (2012); e O terror do estado de emergência (2012). Antes de expor as linhas
gerais de cada texto, acredito que é importante mencionar o grupo que levou a frente
este projeto: Marcos Barreira, André Villar Gomez, Maurílio Lima Botelho e Daniel
Cunha, com o auxílio de Boaventura Antunes, Lumir Nahodil, Mônica Ramalho e
Roswitha Scholz, que autorizou a publicação.
Eu diria que, do ponto de vista da ampliação do público-leitor da Crítica do Valor,
a publicação deste livro é importante, sobretudo porque se situa no eixo mais das
análises conjunturais, históricas e políticas, possibilitando que mesmo um leitor não
familiarizado possa seguir tranquilamente o caminho, apropriando-se da crítica social
por meio de acontecimentos urgentes e não tanto através de discussões teóricas
profundas, as quais, apesar de sobejamente necessárias, podem assustar ou afastar o
leitor em sua primeira experiência de contato. Estes foram os objetivos da organização e
publicação deste livro: divulgar as ideias de Kurz para um público mais amplo e fazer
uma coletânea temática.

II-

O texto de abertura do livro – Crise mundial e ignorância, que é, na verdade, uma


carta aberta aos interessados e interessadas na produção da Revista EXIT!, veículo de
publicação utilizados pelos intelectuais mais próximos a Kurz – trata de apresentar
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sucintamente a que veio a Crítica do Valor. O problema da crise histórica da valorização


do capital é mencionado como um dos eixos pelos quais se move esta tradição
minoritária, a saber, do capitalismo acometido internamente pelo seu próprio
dinamismo. Isto significa que a derrocada do sistema capitalista não está
necessariamente ligada ao surgimento de um movimento social emancipatório capaz de
derrubá-lo. O texto apresenta, também, a tese já defendida em O Colapso da
Modernização (livro publicado no Brasil pela Paz e Terra em 1993) segundo a qual o
socialismo real era um sistema de capitalismo de Estado cuja função histórica foi a de
realizar uma modernização acelerada e recuperadora em determinados países
periféricos, de tal modo que de sua dissolução não resultou a vitória triunfal do
capitalismo, mas sim a entrada numa era de crise sistêmica de alcance global. Para um
leitor iniciante, estas duas teses são suficientes para provocar um impacto significativo.
Contribui para a relevância do livro também o fato de que o seu lançamento foi
concomitante ao furor público internacional em relação aos acontecimentos envolvendo
os imigrantes que chegam à Europa por conta de guerras civis, em específico as da Síria.
Lembremos da comoção da grande mídia gerada pela foto do menino refugiado sírio de
três anos chamado Alan Kurdi morto à beira da praia de Bodrum, na Turquia, em
setembro de 2015. As cenas da barbárie são absurdas. Os 71 corpos de refugiados
encontrados mortos, em agosto de 2015, em um caminhão refrigerado no interior da
Áustria nos fazem lembrar dos caminhões a gás utilizados pelos nazistas, porém, dessa
vez não há ideologia forte que sustente tal ação, mas sim o contexto da socialização do
valor em ruínas. Não há nenhuma função exercida por meio da morte deles, ao contrário,
eles morrem justamente porque já não possuem nenhuma serventia do ponto de vista
da valorização do valor. O totalitarismo aqui perdeu sua fachada ideológica, mas não sua
dominação fetichista, que escapa à vontade e compreensão dos indivíduos.
O texto Barbárie, migração e guerras de ordenamento mundial, por exemplo,
parte desses processos de migração para caracterizar a atual situação da sociedade
mundial. De que maneira estes movimentos migratórios, que se dão hoje numa escala
sem precedentes, podem estar ligados à atual fase do capitalismo em crise? O que tem a
ver o processo de valorização do valor com o deslocamento de grandes massas humanas?
Robert Kurz comenta a diferença entre as migrações atuais e as antigas: seu caráter
universal e global. Além disso, ao contrário do que defende certa ideologia, os fluxos
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migratórios contemporâneos não significam que as pessoas estejam convencidas de que


podem encontrar melhores lugares para viver, mas sim que as pessoas migram porque
já não há mais como viver onde estão. Como disse Herbert Böttcher 4, não há crise de
refugiados, mas sim crise do capitalismo, que se expressa nas pessoas forçadas a fugir.
Se nos lembrarmos da dinâmica migratória interna de uma sociedade periférica
como a brasileira, podemos visualizar bem como o destino de grandes massas humanas
é sempre ditado pelo movimento de produção de valor. Posso mencionar a migração do
Nordeste para a Amazônia, no final do século XIX e início do século XX, quando
trabalhadores iam procurar trabalho no processo de extração da borracha; ou quando,
na primeira metade do século XX, quantidades imensas de pessoas (cerca de 200 mil
migrantes por ano) viajavam do Nordeste em direção ao Oeste paulista para trabalharem
na produção de café e algodão, em caminhões precários, razão pela qual ficaram
conhecidos como “paus-de-arara”. A dinâmica de inserção subalterna do Brasil no
mercado internacional dita o fluxo interno das massas à procura de trabalho, exemplo
de como se expressa a dinâmica fetichista dessa totalidade concreta, onde os membros
que a compõem não possuem o controle de seu próprio destino nem de sua ação,
devendo, antes, seguir peremptoriamente imperativos cuja base desconhecem.
O quadro de uma sociedade periférica como a nossa em boa parte do século XX
ainda permitia a estas massas deslocarem-se com o objetivo de viver uma vida melhor
em centros urbanos cujo crescimento era visível. A modernização estava a pleno vapor,
absorvendo quantidades significativas de braços humanos no processo de produção. Na
atual fase de declínio sistêmico, de “colapso da modernização”, as massas não somente
já não podem ficar onde estão – seja devido às poucas oportunidades de venderem sua
própria força de trabalho seja pela ação bárbara de guerras civis intermináveis – como
também não existe destino possível a elas em outro lugar.
É como se o movimento do capital já não passasse pelo registro de inclusão de
braços humanos na produção, mas sim pela sua expulsão. Em escala global, isso significa
que países inteiros são dispensáveis, descartáveis. Se num nível mais particular podemos
verificar, por meio do chamado desemprego estrutural permanente, a maneira pela qual

4 Cf. A necessidade da ação: carta aberta às pessoas interessadas na EXIT! na passagem de 2015 para
2016, disponível em http://obeco.no.sapo.pt/herbert_bottcher.htm.

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

a força de trabalho é expulsa do processo produtivo, numa visada de alcance mais amplo,
o processo de desmobilização global da força de trabalho é evidenciado. Recuperando
aquela argumentação de Marx nos Grundrisse e também no volume III d’O Capital
segundo a qual “o próprio desenvolvimento é o limite para o desenvolvimento da força
produtiva do capital”, Kurz afirma que “com a desmobilização da força de trabalho, a
capacidade imanente do desenvolvimento capitalista chegou ao fim”.
Neste contexto, para as massas supérfluas à margem do processo de valorização
do valor restam duas alternativas: realizarem perigosas viagens através de montanhas,
oceanos e fronteiras, com a finalidade de venderem sua força de trabalho, ou juntarem-
se a clãs armados, grupos terroristas, milícias religiosas ou étnicas. Assim, migrações
socioeconômicas e guerras civis são dois lados da mesma moeda, expressam o
mecanismo alienado, cego e irracional constitutivo do capital.

III-

O texto Seres humanos não-rentáveis: ensaio sobre a relação entre história da


modernização, crise e darwinismo social neoliberal visa fundamentar a existência de
massas supérfluas e demonstrar como elas são o efeito do desenvolvimento do capital,
consequências da revolução microeletrônica, cuja dinâmica diminui a presença do
trabalho vivo no processo de produção. Mais cedo ou mais tarde, todos somos não-
rentáveis e, avisa Kurz, “não se trata de nenhum pessimismo, mas de uma realidade
social em expansão”. É importante sempre recordar que, para Kurz, a Terceira
Revolução Industrial impôs um limite histórico intrínseco ao capitalismo.
O meio pelo qual a teoria resiste à prova da atualidade é pela explicitação de nexos
causais entre fenômenos como migração, guerras de ordenamento mundial, massas não-
rentáveis e barbárie, todos ligados aos limites lógico-históricos do capitalismo atual.
Robert Kurz, a meu ver, recupera a categoria da totalidade, tão cara ao jovem Lukács de
História e Consciência de Classe. Trata-se, no entanto, de uma totalidade concreta
negativa e fetichista, desprovida de um sujeito-objeto idêntico da História. Ou seja, o
sistema entrou em declínio não pela ação de algum sujeito como o proletariado, mas se
desfaz passivamente, por meio de suas contradições intrínsecas. Em outras palavras, o
que se realiza é uma dissolução passiva cujo melhor nome é barbárie.
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Estes fluxos migratórios globais evidenciam, também, mudanças significativas no


exercício do imperialismo. Por exemplo, há algo como um “imperialismo de exclusão”
cujo objetivo é proteger os oásis de produção concentrados nas zonas centrais contra tais
fluxos migratórios, permitindo somente uma migração controlada. Ou um
“imperialismo de segurança” cuja finalidade é proteger os poucos oásis de rentabilidade
das regiões mundiais das explosões irracionais de violência.
As metamorfoses do exercício do imperialismo é o tema do texto “Imperialismo
de crise”. Nos últimos anos, estas metamorfoses foram tematizadas por pensadores
como Antônio Negri, Michal Hardt, David Harvey e Ellen M. Wood, para citar apenas
alguns que perceberam tais mutações e procuraram dimensioná-las. Não é meu objetivo
aqui neste texto comparar estas investigações ao empreendimento de Robert Kurz,
apenas as menciono como forma de demonstrar que se trata de um problema
historicamente posto para a esquerda. Assim, interessa a Kurz levantar a seguinte
questão: o que é o imperialismo na crise histórica da valorização do valor?
Aquele imperialismo clássico, baseado no domínio e expansão territorial, situado
mais ou menos entre 1870 e 1945, repartindo o mundo em colônias nacionais e zonas de
influência, ficou para trás. Se a hegemonia mundial ainda é exercida pelos Estados
Unidos, eles “não atuam em nome de uma expansão territorial nacional, mas como uma
espécie de potência protetora do imperativo da valorização e das respectivas leis sob as
condições de crise do sistema mundial”, segundo Kurz, mantendo as economias de
bolhas financeiras. Em que pesem suas diferenças, é inevitável lembrar aqui das teses
desenvolvidas por Robert Brenner5.
Kurz desenvolve em seu livro A Guerra de Ordenamento Mundial: O fim da
soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização, em especial no
capítulo um, o argumento segundo o qual o imperialismo das antigas potências
europeias se deu em períodos de ascensão do sistema capitalista a sistema global, no
período que pode ser compreendido como “modernização”. A potência americana surge,
ao contrário, nos limites do capitalismo enquanto forma social, sendo, assim, a seu ver,

5 Cf. The Economics of Global Turbulence: The Advanced Capitalist Economies from Long Boom to Long
Downturn [A economia da turbulência global: as economias capitalistas avançadas da longa expansão
ao longo declínio], New Left Review, 1998. Há uma edição espanhola: La economía de la turbulencia
global: Las economías capitalistas avanzadas de la larga expansión al largo declive, 1945-2004,
Ediciones Akal, 2009.

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a última potência mundial. Mesmo o poderio militar estrondoso dos Estados Unidos,
ancorado num “aparelho high-tech” de drones e ataques com armas de última geração,
devora quantidades astronômicas de dinheiro e, neste sentido, deve passar pelo “buraco
da agulha da financeirização”. Razão pela qual Kurz aposta na repetição de seu
diagnóstico sobre a União Soviética, a saber, de que o colosso arrogante e cheio de
músculo americano tem pés de barro e será derrubado por sua própria lógica interna.
Em O terror do estado de emergência: como se pretende fazer da Grécia um
exemplo, Kurz reflete também sobre as metamorfoses do imperialismo em tempos de
crise. O que faria o antigo imperialismo ao conquistar zonas econômicas povoadas de
populações supérfluas? A crise mundial do capitalismo promove mudanças
significativas na ação do imperialismo. Hoje não se trata mais de anexar territórios, pois
isto representaria não mais uma opção para a acumulação, mas um peso, pois na crise
atual há grandes zonas supérfluas ao mercado mundial, territórios que perderam sua
capacidade de ser explorados.
Não é o caso de afirmar que este imperialismo à moda antiga tenha saído de cena
por completo, mas de que agora se trata de controlar a globalização enquanto crise.
Porque “o paradigma do conflito no mundo decadente dos Estados não é a guerra
externa, mas sim a guerra interna, com base em divisões étnicas e religiosas”. Robert
Kurz toma a Grécia como exemplo de gestão da crise, dissecando a preocupação da
Alemanha com a crise grega, bem como tendências futuras.

IV-

No ensaio Poder mundial e dinheiro mundial: a função econômica da máquina


militar dos Estados Unidos no capitalismo global e os motivos ocultos da nova crise
financeira, Kurz faz um balanço em relação ao que se seguiu a 1989, demonstrando
como o que a globalização trouxe foi cada vez mais zonas de pobreza em massa, guerras
civis intermináveis, desemprego em massa, precarização do trabalho e um terrorismo
“pós-moderno neorreligioso”. Aquilo que ele chama de “guerras de ordenamento
mundial” são a resposta precária, encabeçada pelos Estados Unidos, de administrar a
crise planetária. É bom lembrar, correndo o risco de ser repetitivo, que se a crise atual é
sistêmica, isto quer dizer que ela não é conjuntural ou cíclica, o que significa que ela veio
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

para ficar, razão pela qual, se ela não será superada, terá de ser gerida, administrada,
controlada. O capitalismo é, hoje, a crise.
O limite interno da valorização real do capital, cujo emblema é a terceira
revolução industrial, promoveu a fuga para o crédito e para economias de bolhas
financeiras. Uma vez que os salários reais, em média, estagnaram ou regrediram desde
os anos 19706, o consumo se tornou o pilar do crescimento. Mas, se a desindustrialização
é a tendência mundial, como isso é possível? Basta verificar o último boom da economia
brasileira, impulsionada não pelo crescimento da indústria nacional ou pelo aumento
dos salários reais, mas sim pelas bolhas financeiras dos mercados de ações e
imobiliárias, por exemplo.
Quem não se recorda do feito extraordinário do empresário brasileiro Eike
Batista, ao prever a extração de petróleo de 15 a 29 mil barris por dia em alguns de seus
poços, figurando entre os mais ricos do planeta em 2012, segundo a Revista Forbes, para
menos de dois anos depois colapsar? Como jogador do “capitalismo-cassino”, Eike
Batista declarou, em setembro de 2015, que tinha apostado demais numa área de alto
risco. Na verdade, tratavam-se de blefes, alguns de seus postos de petróleo não
produziram nenhum barril em meses. Ele é o exemplo individual do declínio nacional
da Petrobrás e da economia brasileira, que chegou a figurar entre as seis primeiras
maiores economias mundiais em 2012, registrando superávit de quase US$ 30 bilhões
em 2011. A crise parecia, de fato, apenas uma “marolinha” se vista a partir do Brasil,
como afirmou o ex-presidente Lula, sobretudo devido ao papel da demanda da China em
relação às commodities brasileiras que possibilitou a trajetória ascendente do lulismo.

No entanto, cedo ou tarde chegaria a hora de emparelharmos os ponteiros de


nosso relógio periférico à hora da crise mundial. O Brasil caiu para a posição nona no

6 Além do livro do Robert Brenner que eu mencionei, vale sublinhar que a referência utilizada por Robert
Kurz neste momento é o livro de Lester C. Thurow chamado O futuro do capitalismo, publicado no Brasil
pela Editora Rocco, em 1997. Acrescento ainda que as relações entre os mais próximos da Crítica do
Valor e aqueles que se aproximam mais da leitura histórica de Fernand Braudel, baseada na longue durée
[perspectiva da longa duração histórica], pode ser dimensionada através da leitura do artigo de Moishe
Postone, chamado Teorizando o mundo contemporâneo: Robert Brenner, Giovanni Arrighi e David
Harvey, disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002008000200008. Eu diria que há, sim, uma convergência no que diz respeito à hipótese de um
declínio sistêmico de longo prazo entre autores como Immanuel Wallerstein, Robert Brenner e Robert
Kurz. Todos eles defendem que, a partir da década de 1970, o capitalismo, entendido como sistema-
mundo, entrou numa fase de declínio.

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ranking das economias mundiais e as ações da Petrobrás despencaram, chegaram a valer


R$ 50,56 em 2008 e hoje (janeiro de 2016) valem R$ 4,41. Este me parece um bom
exemplo daquilo que Robert Brenner descreve como a transição de uma era de
recuperação da rentabilidade pela indústria para uma espécie de acumulação baseada
na especulação, isto é, expansão através do mercado de valores. Apesar do efeito-riqueza
momentâneo destas operações fictícias, cedo ou tarde o castelo de cartas desmorona e
fica clara a falta de substância real da valorização.
Robert Kurz menciona, ainda neste texto, os processos de “digestão ideológica da
crise”. Mirando a esquerda, ele afirma que causas e efeitos são invertidos: a crise do
crédito é vista não como efeito do esgotamento da acumulação real mas como resultado
da avidez do capital financeiro, uma argumentação ligada aos clichês antissemitas, cuja
retórica consiste em transformar o que é global e sistêmico em algo resultante da má
ação de determinados grupos ou pessoas. Ele critica, também, o desejo de encontrar
refúgio de novo nos tempos de prosperidade fordista e da regulação keynesiana. No
entanto, assevera que a crise mundial da terceira revolução industrial chegou para ficar
e nada indica que ela dará lugar a um novo ciclo de crescimento econômico e expansão
sistêmica.
A queda em direção à barbárie é fruto da única saída encontrada nos marcos do
sistema capitalista, que Kurz sagazmente chama de “fuga para frente”7. Esta fuga é
irracional e se dirige à guerra mundial. Se já não há mais guerras entre blocos de poder,
entre impérios nacionais para partilhar o mundo de outra maneira, há que se falar numa
guerra civil de novo tipo, razão pela qual “nunca a palavra de ordem ‘socialismo ou
barbárie’ teve tanta atualidade como hoje. Mas, simultaneamente, no final da história da
modernização, o socialismo tem de ser reinventado”.
Este tom mais propositivo de Kurz talvez seja algo de que se fale pouco. Mas é
bom avisar ao leitor e à leitora que ele está sempre presente, sobretudo nos finais de cada

7 Gostaria de indicar, também, o argumento do sociólogo alemão Wolfgang Streeck (1946-), no livro
Tempo Comprado: A crise adiada do capitalismo democrático, publicado para o português em 2013
pela editora Actual, onde esta fuga para a frente se dá nos marcos daquilo que ele denomina de “comprar
tempo”, indicando movimentos históricos nos quais o capitalismo procura adiar e gerir sua própria crise.
A este respeito ver o artigo deste autor intitulado As crises do capitalismo democrático, disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002012000100004&script=sci_arttext. Bem como a
resenha escrita por Maurílio Botelho intitulada Comprando tempo diante da crise do capitalismo,
disponível em http://r1.ufrrj.br/revistaconti/pdfs/6/RES1.pdf.

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texto que compõem este pequeno livro de ensaios. Essa centelha de esperança que surge
ali quando Kurz termina de pincelar o quadro sombrio da erosão da forma social
capitalista é algo que não deve ser negligenciado, porque faz parte da montagem desta
crítica social radical. No final do texto sobre migração e guerras de ordenamento
mundial, Robert Kurz aposta num “movimento social das migrantes e dos migrantes”,
no sentido de uma conscientização cuja possibilidade está vinculada a um “movimento
social transnacional disposto a suprimir o sistema produtor de mercadorias”.
Creio que não há melhor maneira do que essa de adentrar no ensaio Crise
econômica mundial, movimento social e socialismo. Ele está organizado em doze teses,
as quais consistem basicamente em expor a conjuntura da crise financeira mundial
global de hoje. O que eu gostaria de sublinhar neste texto é o tom final de aposta num
novo conceito de socialismo, o qual “só pode ser conseguido na medida em que for
rompida a internalização das formas de vida capitalistas através da forma de mercadoria
da força de trabalho, do trabalho abstrato, da lógica de valorização e da forma de
mercadoria da reprodução. [...] Se a crítica de esquerda do capitalismo quiser sair do
desmoralizado combate de retaguarda e recuperar a ofensiva, ela precisa quebrar essa
casca e saltar acima da própria sombra histórica”. A citação é longa porque este me
parece um problema urgente e atual para esquerda, o fato de ela ter entrado num “estado
de sítio moral”, para usar uma expressão do filósofo brasileiro Paulo Arantes.
A esquerda, de um modo geral, não consegue compreender o atual estágio
histórico, é sempre pega de surpresa pelas irrupções de crise, além de ter perdido sua
capacidade propositiva e prática. Progredindo com uma “crítica truncada” ao
capitalismo reduzida ao capital financeiro, sem nenhuma elaboração sobre as bolhas
especulativas e a riqueza irreal, pode acabar exigindo sua fatia de um bolo que não existe,
como foi o caso das lutas em relação ao Pré-Sal, onde não havia possibilidade real de que
o Petróleo fosse explorado de maneira rentável num contexto de variação do preço do
barril do petróleo para baixo, como ocorreu desde pelo menos junho de 2014.
O texto O clímax do capitalismo: breve esboço sobre a dinâmica histórica da
crise segue nesta linha de expor a noção de crise como colapso da forma social
capitalista, e o que este ensaio tem de curto também tem de denso. Kurz se opõe à ideia
comum de que sempre há crises no capitalismo e ele sempre as superou. Ideia que,
mudando-se o que se deve mudar, subjaz a certa esquerda que compreende a crise como
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parte do milagroso funcionamento do capital de expansão e contração alternando-se


numa infinita sucessão. Contra isso, postula uma teoria da desvalorização histórica que
demonstra a chegada do capitalismo ao seu clímax “quando a expansão interna do
desenvolvimento das forças produtivas é atingida e ultrapassada. Então a relativa queda
da taxa de lucro se transforma numa queda absoluta da massa de mais-valia e, portanto,
da massa de valor da sociedade. Consequentemente, a suposta eterna valorização do
valor colide com sua histórica desvalorização”.
A terceira revolução industrial é um indício de que o desenvolvimento capitalista
ingressou neste estado, a materialização histórica do limite lógico objetivo do capital.
Neste quadro, o crédito se torna um motor substituto à produção de mais-valia,
promovendo uma alimentação não da substância real do trabalho passado, mas na
crescente expansão de um futuro imaginário. Porém, o que se acumula neste processo
não é capital, como demonstram os efeitos dos estouros das bolhas imobiliárias pelo
mundo ou mesmo aquela bolha que mencionei na trajetória de Eike Batista.
São estes os oito ensaios que compõem este livro de Robert Kurz. Não foi meu
objetivo esgotar tais ensaios, mas somente expor as ideias que mais me chamaram a
atenção na leitura que fiz há poucos meses atrás. Parece-me que este livro cumpre bem
a tarefa de expor, aos leitores e leitoras iniciantes, um bom panorama do quadro
categorial de Robert Kurz.

V-

Para concluir, eu diria que há uma tarefa da qual nós, situados na periferia do
capitalismo, não podemos nos furtar, a saber, aclimatar esta teoria crítica radical às
condições periféricas do capitalismo. O que significa compreender como desde aqui se
produz modos particulares de “gestão da barbárie” constantemente produzida pela crise,
por exemplo. Entre nós, o filósofo e professor da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Marildo Menegat8, tem realizado esta tarefa, ou

8 Eu citaria dois textos onde ele faz isso diretamente, como, por exemplo: Unidos por catástrofes
permanentes: o que há de novo nos movimentos sociais da América Latina, disponível em:
https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0
ahUKEwjnsZmU-
qHKAhVBEJAKHahAD74QFggiMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.historia.uff.br%2Festadoepoder%2F

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seja, de pôr à prova da atualidade periférica a Crítica do Valor. Ele não está sozinho. Eu
citaria também este grupo de intelectuais cariocas que idealizaram a publicação desta
obra de ensaios de Kurz e que também já publicaram um livro em comum chamado Até
o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, pela editora
Boitempo em 2013. Estes são apenas alguns exemplos de outras experiências de
recepção e atualização desta tradição minoritária da crítica social. Há outros, como a do
Grupo Crítica Radical em Fortaleza e a do pessoal que organiza e publica a Revista Sinal
de Menos, dentre outros que fatalmente escapam à minha percepção individual. Ao
produzir efeitos de análise em relação ao nosso contexto periférico, entendo que a Crítica
do Valor pode contribuir para a construção de uma dissolução ativa do capitalismo.

[Fevereiro de 2016.]

7snep%2Fdocs%2F005.pdf&usg=AFQjCNE-SMkTa8HE67AXK826-
H9watVY_Q&sig2=XAQig7qjUBVfAQMHmGW8wA&bvm=bv.111396085,d.Y2I; O fim da gestão da
barbárie, disponível em: http://arlindenor.com/2016/01/06/o-fim-da-gestao-da-barbarie-marildo-
menegat/.

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DISCURSO DA PAULISTA, COMENTADO

Daniel Cunha, sobre discurso de Jair Bolsonaro.1

Acabei de ver o discurso de hoje


do Bolsonaro. Inegavelmente
um discurso neofascista. Uma
análise rápida de alguns pontos:

“Nós somos a maioria. Nós somos o Brasil de verdade.”

Exclusão das minorias como o


“falso” do Brasil.

“Perderam ontem, perderam em 2016 e vão perder semana que vem de novo”.

Continuidade entre o golpe


("impeachment") e a sua
provável eleição. Está correto.

“Só que a faxina agora será muito mais ampla. Essa turma se quiser ficar aqui vai
ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão pra fora ou vão pra cadeia. Esses
marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria.”

Desumanização do adversário
político, identificando-o com
“sujeira”. Promessa de
banimento caso não se coloque
“sob a lei”. O que é a “lei” é
esclarecido mais tarde.

1 Comentários escritos em 21 de outubro de 2018, logo após ouvir o discurso em


https://www.youtube.com/watch?v=kV_4q5A_U4M, e postadas em rede social no mesmo dia. Os
comentários são aqui reproduzidos sem edição, exceto pela adição de título e formatação.

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“Ninguém vai sair dessa pátria, porque essa pátria é nossa. Não é dessa gangue
que tem uma bandeira vermelha e tem a cabeça lavada.”

Lembrando que as minorias


estão excluídas da “nossa
pátria”, a esquerda política é
igualada ao crime (“gangue”). A
contradição entre “ninguém vai
sair dessa pátria” com o “serão
banidos da nossa pátria” é
resolvida com
criminalização/exclusão/desum
anização dos banidos - eles não
são ninguém.

“Sem indicações políticas faremos um time de ministros que realmente atenderá


as necessidades do nosso povo.”

Promessa claramente absurda,


já que toda indicação é política.
Na melhor das hipóteses, indica
política tecnocrática. Pode
indicar tendência autocrática,
anti-política.

“O Brasil será respeitado lá fora. O Brasil não será mais motivo de chacota junto
ao mundo.”

O Brasil está sendo motivo de


espanto no mundo todo por
causa desse candidato.
Complexo de inferioridade.

“Seu Lula da Silva, se você estava esperando o Haddad ser presidente para assinar
o decreto de indulto, eu vou te dizer uma coisa: você vai apodrecer na cadeia!
Brevemente você terá Lindberg Farias para jogar dominó no xadrez. Aguarde, o Haddad

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vai chegar aí também. Mas não será para visitá-lo, não. Será para ficar alguns anos ao
seu lado. Já que vocês se amam tanto, vocês vão apodrecer na cadeia. Porque lugar de
bandido que rouba o povo é atrás das grades.”

Aqui Bolsonaro se arvora no


papel de Judiciário,
prometendo prisão perpétua a
Lula e encarceramento ao seu
concorrente na eleição, a futura
oposição. Ameaça explícita e
claríssima manifestação de
autoritarismo.

“Você achava que tava tudo dominado? Não tava, não. Esse povo sempre se
levantou nos momentos mais difíceis da nossa nação, para exatamente salvá-la. Vocês
da Paulista, vocês que fazem manifestação em todo o Brasil, vocês estão salvando a nossa
pátria. Não tenho palavras para agradecê-los nesse momento. Vocês estão salvando o
meu, o seu, o nosso Brasil. Petralhada: vai tudo vocês (sic) pra ponta da praia! Vocês não
terão mais vez em nossa pátria, que eu vou cortar todas as mordomias de vocês! Vocês
não terão mais ONG’s para saciar a fome de mortadela de vocês. Será uma limpeza nunca
visto (sic) na história do Brasil. Vagabundo vai ter que trabalhar! Vai deixar de fazer
demagogia junto ao povo brasileiro. Vocês verão as instituições sendo reconhecidas.
Vocês verão umas forças armadas altiva (sic) que estará colaborando com o futuro do
Brasil. Vocês, petralhada, verão uma polícia civil e militar com retaguarda jurídica pra
fazer valer a lei no lombo de vocês!”

Reitera promessa de banimento


de um grupo político.
Conspiracionismo (“tudo
dominado”), misticismo
nacionalista (“salvação da
pátria”). Vagabundo vai ter que
trabalhar – “o trabalho liberta”
[Arbeit macht frei, inscrição dos

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

campos de concentração
nazistas]. Promessa de
violência política - a lei “no
lombo”.

“Bandido do MST, bandido do MTST, as ações de vocês serão tipificadas como


terrorismo! Vocês não levarão mais o terror ao campo ou à cidade. Ou vocês se
enquadram e se submetem às leis, ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba!”

Promessa de criminalização e
encarceramento de movimentos
sociais. Aqui está a “lei” referida
anteriormente - quem não se
adequa será banido. Referência
chula ao ex-presidente.

“Conclamo a todos vocês que continuem mobilizados e participem ativamente por


ocasião das eleições no próximo domingo. De forma democrática...”

Referência cínica à
“democracia”, após prometer
banimento de adversários
políticos, exclusão de minorias,
criminalização de movimentos
sociais e encarceramento do
opositor na eleição.

“sem mentiras, sem fake news, sem Folha de São Paulo! Nós ganharemos essa
guerra. Queremos a imprensa livre, mas com responsabilidade. A Folha de São Paulo é
o maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitária do governo.
Imprensa livre: parabéns! Imprensa vendida: meus pêsames!”

Promete retaliar veículos de


imprensa não-alinhados, o
momento de maior ênfase do
discurso. Semeia confusão ao

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

atribuir as próprias práticas


(fake news) a terceiros.
“Guerra”, expressão militar,
para se referir à eleição.

“Somos amantes da liberdade. Queremos a democracia e queremos viver em paz.


Nós amamos as nossas famílias. Nós respeitamos as crianças. Nós respeitamos todas as
religiões. Nós não queremos socialismo. Nós queremos distância de ditaduras do mundo
todo. Amigos da Paulista e do Brasil: muito obrigado a todos vocês. E vamos juntos
trabalhar para que no próximo domingo aquele grito que está em nossa garganta que
simboliza tudo o que nós somos seja posto para fora: Brasil acima de tudo e Deus acima
de todos!”

Da “liberdade” foram excluídos


a esquerda, os “petralhas”, a
“bandeira vermelha”, as
minorias, os movimentos
sociais. Assim se tem "paz" e se
pode praticar as liberdades de
mercado neoliberais. Brasil
acima de tudo – “Deutschland
über alles” era o lema da
Alemanha nazista"; Deus
acima de todos - tendência
teocrática.

Esse discurso resume bem a


catástrofe que será a eleição
desse sujeito. O discurso foi
lido, logo não foi de improviso.
A regressão civilizatória é, a
meu ver, irreversível.

272
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.

SINAL de MENOS

ISSN 1984-8730

Contribuições:

Edição:
A revista aceita contribuições e
comentários críticos, que serão
Cláudio R. Duarte (São Paulo) avaliados quanto ao conteúdo, o
estilo e a adequação à linha
Daniel Cunha (Binghamton) editorial. Os artigos devem ser
enviados para
Felipe Drago (Porto Alegre) dcunha77@outlook.com.

Joelton Nascimento (Cuiabá)

Raphael F. Alvarenga (Leuven)

Rodrigo C. Castro (São Paulo)

Capa desta edição: Felipe Drago, em


composição com pintura de Constant
Nieuwenhuys (A liberdade
insultando o povo, 1975)

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