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revista de psicanálise
conferências
13 Colette Soler: O que resta da infância
23 Colette Soler: Possibilidade de uma ética não individualista
da psicanálise
ensaios
33 Ana Laura Prates Pacheco: Na mansão do dito imaginário: opsis
e a seção diagonal
43 Vanina Muraro: Algumas posições do Príncipe Hamlet ante o desejo
51 Maria Lúcia Araújo: A letra e o desejo, em André Gide
59 Glaucia Nagem: “Joyce, o Sinthoma” – uma leitura
67 Christian Ingo Lenz Dunker e Fuad Kyrillos Neto: Conflito entre
psicanalistas e impasses fálicos da brasilidade
direção do tratamento
137 Bela Malvina Szajdenfisz: Se soubéssemos o que o avarento encerra no
seu cofre, saberíamos muito sobre seu desejo
143 Maria Vitória Bittencourt: A letra do desejo – um relato de um sonho
151 Lenita Pacheco Lemos Duarte: Conflito ou autorrecriminação?
Questões sobre o desejo na neurose
resenha
167 Beatriz Oliveira: Sua Majestade o autista: fascínio, intolerância e
exclusão no mundo contemporâneo
conference
13 Colette Soler: What is left of childhood
23 Colette Soler: Possibility of a non-individualistic ethics
of psychoanalysis
essays
33 Ana Laura Prates Pacheco: In the mansion of the said imaginary:
opsis and the diagonal section
43 Vanina Muraro: Some positions of the Prince Hamlet in front
of the desire
51 Maria Lúcia Araújo: The letter and the desire, in André Gide
59 Glaucia Nagem: “Joyce, the Sinthoma” – a reading
67 Christian Ingo Lenz Dunker e Fuad Kyrillos Neto: The conflict
between psychoanalysts and the phallic deadlocks of the brazilianness
review
167 Beatriz Oliveira: His Majesty the autistic: fascination, intolerance and
exclusion in the contemporary world
Ida Freitas
O que eu vou falar hoje tem, implicitamente, algo a ver com as marcas, porque
não vou falar disso propriamente, e se relaciona com o passe e o final de análise.
De fato, eu queria repercutir o que trabalhei no ano passado no meu curso em
Paris. Eu havia escolhido como título “O que resta da infância”. Portanto, é uma
questão sobre as marcas da história própria de cada um.
Evidentemente, existe uma questão sobre a relação entre as marcas e a estrutu-
ra. E, no fundo, há um ponto em comum entre a estrutura e as marcas. Refiro-me
às marcas da história. E, no final das contas, as aventuras das quais falava Patrícia
Muñoz, começam muito cedo na vida. Então, existe um ponto em comum entre
a estrutura e as marcas, que é o fato de não podermos fazer nada com isso. E não
podemos fazer nada no sentido de que sofremos essas marcas. Não são exata-
mente a mesma coisa – estrutura e marcas, elas, porém, possuem esse ponto em
comum, que evidentemente coloca o problema do limite da psicanálise, limite na
operação psicanalítica, limite da operação psicanalítica, que não vai poder mudar
nada nem na estrutura nem nas marcas.
Vou fazer algumas observações gerais sobre esse tema, entre as marcas e a estru-
tura. Primeiro, quando eu digo estrutura, não estou falando da estrutura de lingua-
gem. Há uma estrutura de linguagem, claro. No fundo, é isso que a linguística toma
como objeto, mas, quando nós dizemos com Lacan “a estrutura”, o que estamos
falando é da estrutura como efeito da linguagem. Vocês encontrarão isso explici-
tamente em Radiofonia (LACAN 1970/2003, p. 405), quando Lacan diz no começo
da questão dois: “seguir a estrutura é certificar-se do efeito da linguagem”. É aí que
vocês encontram a diferença assinalada por Lacan entre linguística e linguesteria.
A linguesteria implica tanto a linguagem quanto aquilo que não é linguagem,
ou seja, o corpo; o corpo imaginário ou como substância de gozo. O maior efeito
de linguagem é o objeto a. Eu digo maior porque o $ (sujeito barrado) é outro
efeito de linguagem. Efetivamente, sem essa estrutura do objeto a construída por
Lacan, não se poderia conceituar nem o desejo nem o gozo. Em particular, não
seria possível conceituar os gozos da repetição e do sintoma. Há um traço da
estrutura aqui salientado: a estrutura é para todos, é universal, universal dos fa-
lantes. Dito de outra forma, isso se parece com o destino. Ninguém escapa a isso.
As marcas são o contrário, elas correspondem a um por um, cada um tem as suas,
portanto, decorrem da contingência. Se começássemos a refletir sobre estrutura e
contingência, teríamos um título possível.
Constataríamos, imediatamente, uma trajetória de Lacan impressionante. Ele
construiu a estrutura, começou com isso e indicou muito bem que a estrutura não
excluía a história, ao contrário, a estrutura se inscrevia na diacronia. Isso ocorre
em todo o período de Lacan até o final dos Escritos, de certa forma. E quanto mais
ele avançou no seu ensino, mais frisou e destacou a questão da contingência, de
certo modo em todos os níveis e até mesmo no nível do final da análise. Mas este
é um pequeno parêntese que estou fechando.
As marcas da história individual infantil – inclusive isso começa desde a infân-
cia –, poderíamos dizer que é aquilo que cessou de não se inscrever, e que, a partir
daí, não cessa mais de se inscrever. Isso faz com que uma contingência, a marca
de uma contingência, se prolongue em necessidade, e que não cesse mais de se
inscrever. Essas marcas são sempre singulares, mesmo quando são as marcas de
um traumatismo coletivo. As próprias marcas são singulares, isso é muito impor-
tante porque as marcas singulares são conscientes em geral, o sujeito pode falar
sobre isso, não somente são conscientes, mas elas colam, aderem à pele. É aquilo
ao qual ele está mais ligado, amarrado, e no fundo é isso que está no coração do
sentimento da identidade pessoal, isso é muito sensível na vida.
Quando encontramos alguém, um desconhecido, e queremos conhecer essa
pessoa, não precisa de muito tempo nesse primeiro encontro para que um con-
te ao outro, e reciprocamente, a história da sua primeira infância, tal como ele
estaria contando essa história a si mesmo. Pelo contrário, a própria estrutura é
desconhecida, naturalmente desconhecida, é o que Lacan pôde dizer: a estrutura
é aquilo que não se aprende da experiência. É o que o faz dizer que ele construiu o
objeto a. E nesse sentido me parece que as marcas da história singular dissimulam
a estrutura. No entanto, postulo que as marcas se escrevem conforme a estrutura
e, nas marcas, a estrutura se torna efetiva. Isso é um problema para o passe, por-
que no passe alguém é suposto falar uma língua própria (“de son cru”), expressão
francesa que Lacan empregou e significa: próprio, de si mesmo; ninguém mais
poderia ter falado uma coisa dessas.
Voltarei um pouco mais com a questão das marcas, porque existe marca e marca.
E as únicas marcas que interessam à psicanálise são as marcas que inscrevem a es-
trutura, mas existem outras. Existem as marcas que provêm do fato de que alguém
nasceu em algum lugar, e ter nascido em algum lugar deixa marcas de identidade.
As pessoas nascem em uma língua, em um clima, em uma paisagem, em uma cul-
tura, em uma tradição, e tudo isso fabrica o sentimento de identidade, nutre um
sentimento de exílio e nostalgia quando fica longe desse lugar de origem, o que
produz afetos muito fortes quando do retorno à terra natal. Mas existem as outras
marcas que são os acidentes verdadeiros da história e do nascimento: lutos, doenças,
deficiências, e quando alguém nasce deformado é uma marca. De certa forma, a
psicanálise não se ocupa dessas marcas. O analisando pode falar a respeito se isso
lhe satisfaz, e ele fala disso, mas não é isso que está em questão na psicanálise.
Parece-me que há dois tipos de marcas que interessam à psicanálise. Vou deixar de
lado a questão eventual da marca do analista no final da análise, uma questão muito
eventual. Falo das outras marcas. Há dois tipos de marca que interessam à psicanálise:
são, primeiramente, as marcas do trauma próprio de cada um; e, depois, as marcas que
inscrevem o gozo que está no âmago do sintoma. Eu vou desdobrar um pouco isso.
As marcas do trauma persistem, como sabemos, na forma da repetição; essa é a tese
de Freud repensada por Lacan, mas que ele mantém. O trauma perdura, não volta
como o recalque, não volta na cadeia significante como volta o recalcado; o trauma per-
dura, insiste na repetição, na forma da repetição do traço unário que indexa o trauma.
Existem as outras marcas, às quais Lacan deu o nome de letra do sintoma. São
dois tipos de marcas que participam do Um: o Um do traço unário, ou o Um
da letra de gozo. Não se trata do mesmo Um, mas os dois procedem do Um. Es-
sas marcas são indeléveis e se inscrevem na contingência, o que significa que são
incuráveis, por isso, inclusive, na última vez que estive no Brasil, em Fortaleza,
tomei como tema “Repetição e Sintoma”.1
Como o sujeito vai perceber a estrutura a partir dessas marcas sofridas? Pela
análise. Todas as fórmulas de Lacan sobre o final de análise implicam um saber
adquirido sobre a estrutura, porque os sujeitos já conheciam as marcas. É uma
questão. Devemos entender como um sujeito que seria totalmente ignorante dos
textos de Lacan e de Freud, que não teria aprendido a estrutura construída por
Lacan depois de Freud, que não falaria, portanto, como nós agora; como um sujei-
to, no entanto, que se engaja numa análise, porque tem sintomas, poderia chegar
a um fim que implicaria uma conclusão estrutural? Efetivamente, toda a questão
da operatividade da análise é que está em jogo nesta questão que estou levantando
sobre a marca, para, a partir da marca, chegar ao real da estrutura.
Queria lembrar algumas afirmações de Lacan a respeito do final de análise. Ele
diz: “passar da impotência ao impossível”, é um tema que implica a lógica; o im-
possível é alguma coisa que se demonstra. “Demonstrar o impossível da relação
numa análise.” Como se demonstraria alguma coisa numa análise? “Saber ser
um rebotalho”, saber adquirido, portanto. É uma expressão equívoca, “saber ser
um rebotalho, dejeto”, porque, em francês, no texto de Lacan, ela significa “saber
que se é um dejeto”. Dito de outra forma, que alguém não está inscrito no Outro
a partir do significante. A expressão equívoca em francês pode também querer
dizer “saber fazer com isso”, “saber se virar com isso, que é ser um dejeto”. E,
obviamente, a questão é como se passa da experiência particular a uma conclusão
para a qual Lacan dá uma fórmula generalizante.
Em uma época, eu dizia, é necessário um analisante lógico; é verdade, mas é
insuficiente, geral demais, porque, mesmo em lógica e em matemática, nenhuma
conclusão pode acontecer sem um ato que coloque essa conclusão. Mesmo para
dizer dois mais dois igual a quatro é preciso um sujeito que consinta dizer que
dois mais dois é igual a quatro. Dito de outra forma, a ordem de dedução nunca
é suficiente para fundar uma ordem de conclusão. Por outro lado, Lacan, ao lado
dessas fórmulas que eu lembrei e entre muitas outras evidentemente, insiste sobre
o caráter singular de um final de análise. Na Nota Italiana (LACAN, 1973/2003,
p. 313), ele diz que é necessário que o sujeito tenha cingido o seu horror de saber
de uma forma geral; ele é, acrescenta, da sua própria, destacado de todos. Cingir
a causa de seu horror de saber, isso é uma aquisição de saber, no entanto singular,
que não combina muito com o intercâmbio, o compartilhar. Este é todo o proble-
ma dos cartéis do passe: reconhecer uma estrutura num saber singular.
Então, como a análise vai tocar nisso? Vocês podem notar, em tudo que estou
dizendo, que há dois tipos de real implicado: de um lado, há o real que se demonstra
como impossível, que é a grande definição de Lacan do real. O real é o impossível,
mas o impossível se demonstra. E quando ele avança com o “não há relação sexual”,
é a fórmula do real que deve se demonstrar numa análise. Por outro lado, há um
real que se encontra, mas não se demonstra. O real da repetição e o real da letra do
sintoma constituem algo do real que se encontra na contingência, nos dois casos.
São esses “Uns”, da repetição e da letra do sintoma, que fazem existir o incons-
ciente no real. Dessa forma, talvez possamos distinguir o que a análise faz em
relação a esses dois reais. Primeiro, como uma análise demonstra o impossível
da relação sexual? Lacan respondeu a essa pergunta, portanto não preciso pro-
curá-la no texto, está no texto Introdução à edição alemã dos Escritos (LACAN,
1973/2003, pp. 553-556). No fundo, a análise demonstra o impossível da relação
sexual pelo que ela escreve, e o que ela escreve é sempre o Um. “Há Um” (“Y a
d’l’Un”) é uma fórmula que, evidentemente, responde ao “não há relação sexual”,
mas que Lacan produziu alguns anos depois.
É uma demonstração fraca, não tão fundamentada; portanto, diz Lacan, pelo
fato de que uma análise, por mais que avance, só vai produzir Uns, e não apenas
o Um das marcas, mas o Um fálico. Vocês encontrarão essa referência no texto
O Aturdito (LACAN, 1972/2003, pp. 449-497). A análise coloca a função propo-
sicional ɸ (x), o que traz a ideia de que, pela associação livre, pelo deciframento,
pelo fio das ideias que se desdobram, pela re- petitio, da demanda, há o Um que se
impõe subjetivamente, como conclusão subjetiva, se assim podemos dizer. Esse é
um primeiro eixo da resposta.
Eu poderia ter feito um seminário apenas sobre esse ponto, mas me parece que
foi convincente, muito próximo da nossa experiência. Inclusive, é por isso que a
fase final de uma análise, antes do final, não é uma fase alegre, na medida em que
o sujeito estava esperando uma solução para a sua solidão, ao Um dos seus sin-
tomas, ao Um da repetição, aos impasses do amor. Ele, então, começa a perceber
que não é a análise que lhe vai dar isso. Nesse sentido, existe um afeto, nessa fase
do final de análise, que atesta ter o sujeito aprendido alguma coisa, que ele está se
dirigindo para essa conclusão, e, portanto o “Há o Um” se demonstrou para ele.
No entanto, concernindo ao outro lado do real, o real que se encontra, que se
encontrou e deixou sua marca, suas marcas, como o sujeito vai chegar a uma con-
clusão, como dizia Freud? E aqui invoco Freud: como o sujeito vai concluir que
sua infelicidade, que ele achava única, era, no final das contas, uma infelicidade
banal, ou seja, procedia de uma estrutura que vale para todos?
Voltei a me interrogar sobre as marcas da repetição e as marcas do sintoma, e so-
bre o que eu chamei de “as suas variáveis”, porque é certo que o que Freud escreveu
no Além do Princípio do Prazer (FREUD, 1920/1980), ou seja: um traumatismo, na
relação com o Outro (Ⱥ) e que persiste depois, na forma da repetição, e o trauma-
tismo que Freud escreveu como traumatismo infantil, não somente para os neu-
róticos, mas para todas as crianças, é uma maneira de dizer: estrutural. Freud não
usa essa palavra, mas já é uma maneira de dizer isso: traumatismo para todos, fra-
casso das aspirações do amor, do desejo de saber e do desejo de criar uma criança.
Lacan encontrou um termo para nomear esse traumatismo, que não pode não
se produzir, dizendo, troumatisme, em vez de traumatismo, que vem do (trou)
furo. É um idiomatismo que não tem tradução. É uma maneira de dizer que esse
troumatisme, no fundo, provém do Outro, dessa marca do Outro que forçosa-
mente é furado. O matema desse troumatisme é S(Ⱥ).
A questão é que o analisante tem de perceber isso, dar-se conta disso, e consta-
tamos que isso é possível, embora não ocorra em todos os casos; temos um signo
clínico, sem que o sujeito necessite dizê-lo, a cada vez que vemos um analisante,
que vem de anos e anos de análise, depois de ter denunciado aos gritos as respos-
tas que ele obteve, de seu pai, de sua mãe e de todos os outros, acabar por dizer:
“Bem! Eles fizeram o que eles puderam”.
É uma coisa muito simples, mas que indica que, naquele Outro Ⱥ do discurso, não
havia a fórmula para me responder. E é encorajador saber que é possível acontecer isso,
mesmo que não se trate de todos os casos. Acabei por me perguntar se este isso poderia
provir das diferenças do trauma singular de cada um, porque trauma para todos, sim,
mas cada um com o seu. Aí, de novo, a estrutura avança no particular de cada caso,
portanto, quais são os fatores que fazem variar essa fixação ao traumatismo?
Eu acho que existe, em primeiro lugar, o que chamo as figuras do Outro. Com
efeito, falamos do Outro com maiúscula, o Outro do discurso onde o sujeito foi re-
cebido, acolhido, mas são os outros pequenos a que dão vozes e corpo a este grande
Outro A. E, neste assunto, há uma grande variedade entre cada sujeito, inclusive
com o fator de que o valor social, a questão social, entra na psicanálise, de acordo
com a configuração das famílias, a cultura, a ausência de cultura e todos os fatores
que a diferenciam. Isso vai das formas moderadas até o oposto, as formas de exces-
so, que nós conhecemos como transgressões, violências, negligências, e também
que um sujeito nasceu em algum lugar; e ter nascido aqui ou lá não é a mesma coisa.
Essas diferenças são as questões que interessam mais a todos os serviços sociais
e educativos, um serviço que se interessa pelas formas singulares do traumatismo,
especificamente as formas desfavoráveis aos sujeitos. É óbvio que a psicanálise
tem de se haver também com essas questões, assim como Lacan nomeou “pais
traumáticos”, porque, dependendo desses “pais traumáticos”, o furo pode ser
mais ou menos perceptivo, e há algumas famílias em que o furo é quase tampado
pela obscenidade do Outro, pela violência e excitação. É por isso que eu criei outro
neologismo, tropmatismo,2 para expressar o furo tampado por um excesso.
A respeito do Outro com o qual o analisante teve de se haver, estou falando do Ou-
tro real e não do Outro fantasmático, a análise nada pode a respeito disso; e, quando
há realmente um excesso, um tropmatismo, com certeza é mais difícil, não impossível,
mas é mais difícil para o sujeito perceber e apreender que é uma infelicidade banal.
Isso é um primeiro fator de variável, mas existem outros pelos quais me interesso
muito, que são os fatores nativos; são os fatores que não vêm do simbólico, nem da
história nem do imaginário; são fatores que vêm do início, e a que Freud chamava
de constituição. É muito relevante constatar como Freud, depois de ter desdobra-
do e desenvolvido todos os aspectos possíveis da determinação, retorna para um
fator de origem, a constituição, que não dá para captar, apreender, no entanto está
presente. Lacan não deu muita atenção a esta questão da constituição, no entanto
eu gosto muito desta expressão que ele usou – as armas que o sujeito tem por sua
natureza. Ele não desenvolveu isso, mas nós poderíamos escrever um capítulo, de-
senvolver esse tema, sobre quais são essas armas que o sujeito tem da sua natureza.
Apesar de se chamar isso de constituição ou por outro nome, trata-se aqui
de um fator que não provém nem da estrutura, nem dos acidentes da história.
Chamei de nativo, mas talvez não seja a melhor forma de nomear, pois, se eu
digo nativo, estou postulando que isso não vai mudar. Em todo o caso, o que
Freud chamou de recursos do sujeito, inclui no traumatismo um fator desse tipo.
O traumatismo é o encontro com uma experiência do real, o encontro do real
numa experiência de desamparo, mas o desamparo em função dos recursos do
sujeito. Freud não explica muito também quais seriam esses recursos, mas é uma
indicação de que os sujeitos são mais ou menos traumatizáveis, há os encontros
com o real e também o fator pessoal. Isso está presente em Freud de uma maneira
muito forte, e evidentemente em Lacan mais ainda. Freud diz, textualmente, que
o traumatismo inclui a avaliação das fraquezas e de nossas forças ante um perigo.
Há uma tese que circula muito hoje em dia, não sei se aqui no Brasil também,
que é a noção de resiliência. Detesto essa invocação da resiliência porque, de certa
forma, é invocada frequentemente para sugerir ao sujeito que ele seja um pouco
mais corajoso. Porém, existe algo de verdadeiro nessa noção, e Lacan diz isso de
outra forma. Ele fala simplesmente da maneira como o sujeito responde ao real,
e nessa fórmula não se trata do real que deve ser demonstrado, mas do real que
se encontra, e o nome dessa maneira de o sujeito responder a esse real é a ética
do sujeito. A definição que eu acabei de citar está no Seminário 7: a ética da psi-
canálise (LACAN, 1959-60/1991). Lacan diz que a ética não tem de se relacionar
com as normas do Outro, a ética é a relação com o real, especificamente a ética
individual, é a maneira como o sujeito responde ao real. Compreendemos então
que, com essa definição Lacan pode falar da ética da psicanálise, de um discurso,
e da mesma maneira, poderíamos falar da ética do mestre, do universitário, da
histérica; e isso seria denotar a maneira como em cada discurso se responde ao
real, ou melhor, a maneira como cada discurso trata o real, na medida em que o
discurso já é justamente um tratamento do real.
Quando Lacan se refere à ética enquanto aquilo que responde ao real, eviden-
temente está falando sobre o real do gozo. A ética da psicanálise (LACAN, 1959-
60/1991) é um seminário sobre o gozo, um primeiro seminário sobre o gozo.
Portanto, esse fator individual, ético, está em jogo na questão das marcas, da re-
petição e do sintoma, que são as duas grandes modalidades do gozo, prescritas
pela estrutura de linguagem. Freud falou da escolha da neurose, embora o neu-
rótico não tenha precisamente a impressão de que tenha escolhido a sua neurose;
mas Freud indica com exatidão que essa escolha é a respeito do gozo, embora ele
não empregue o termo gozo, mas, quando ele diz que, na raiz da histeria, está a
aversão à carne, se isso não for uma escolha de origem, o que é isso? E quando ele
fala do obsessivo, esse excesso de prazer, se não se trata aí de uma captação pelo
gozo, o que é então? Portanto, em nossos termos, isso é como uma resposta ética.
Chegamos, então, a uma questão crucial: será que uma psicanálise, uma aven-
tura da psicanálise pode mudar a opção ética de um sujeito? A questão se desdo-
carne, será que iremos lograr que um obsessivo seja menos capturado pelo seu gozo?
Acho que, neste ponto, Lacan não produziu uma resposta, mas formulou uma
questão, embora não se reconheça sempre uma questão nessa fórmula. A meu
ver, ele formula a seguinte questão: será que a análise de uma histérica pode fazer
uma mulher? Vocês conhecem a fórmula? É impressionante, mexe muito com as
mulheres especialmente, mas vamos ver o que queria dizer, quando Lacan disse
isso. É que ele, assim como Freud, distingue o sujeito histérico da mulher a partir
do traço da relação com o gozo carnal, a aversão na histeria; e Lacan considera
que uma mulher não está nesta aversão, é a ideia dele. Mas, quando ele diz: será
que podemos fazer de uma histérica uma mulher? – é isso que quer dizer, pode-
mos levantar essa aversão. Não é uma questão que indique um desejo de retificar
a histeria, é uma questão a respeito do alcance, do impacto da psicanálise, e sobre
a ética em relação ao gozo. Inclusive, vou terminar com isto: quais razões teria
um analista para querer transformar uma histérica em mulher? Não estamos hie-
rarquizando os sintomas, porque seria melhor ser uma mulher sem a aversão à
carne, do que uma histérica que teria a aversão? Cuidado! Temos de levar a sério
essa questão, de que a psicanálise não tem de cuidar das normas, mas tentar não
se preocupar com a norma, portanto concluo com isto: no que diz respeito à ética
da relação com o gozo carnal, eu não vejo nenhuma indicação nos textos de Lacan
que indiquem que a análise produziu uma mudança, mas ele colocou a questão.
É isso!
referências bibliográficas
FREUD, S. (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de S. Freud, v. XXVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
LACAN, J. (1959-60). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Versão brasileira
Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.
LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ri-
beiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 400-447.
LACAN, J. (1972). O Aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ri-
beiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 449- 497.
LACAN, J. (1973). Nota Italiana. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 311-315.
LACAN, J. (1973). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escri-
tos. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 553-556.
resumo
A autora examina as diversas marcas deixadas pelas experiências da infância e sua
repercussão no nível da repetição e do sintoma. Ela destaca diferentes abordagens
do real, seja como impossível, seja como contingência indelével e se pergunta sobre
as respostas éticas dos sujeitos e os efeitos possíveis da análise sobre esse ponto.
palavras-chave
Marca, repetição, sintoma, ética do final da análise.
abstract
The author examines the several marks left by childhood experiences and their re-
percussion at the level of repetition and symptom. She stresses different approaches
to the real, be it as impossible or the indelible contingence, and asks herself about the
ethical answers of the subjects and the possible effects of the analysis on this issue.
keywords
Mark, repetition, symptom, ethics final analysis.
Eu parti, ontem, das diferenças das posições éticas e evoquei a ética do discurso
psicanalítico. Gostaria de voltar a falar disso para vocês. Depois de ter falado das
posições éticas pessoais, vou falar, hoje, da ética psicanalítica, ponto sobre o qual
Lacan jamais variou. Essa ética não é individualista. Com o que ele avançou no
final do seu ensino, evidentemente, a questão da possibilidade de uma ética não
individualista se coloca na medida em que, como vocês sabem, no fundo, Lacan
deixou de colocar uma ênfase sobre o sujeito dividido para sublinhar a unaridade
(unarité) – é o seu termo – do falasser. Eu formulei isso dizendo: cada sujeito é
um nó borromeano, um Um borromeano. Lacan produziu essa famosa fórmula:
“Só há os dispersos disparatados”. E, no fundo, a ética do bem-dizer da análise
produz o Um-dizer.
Como, a partir disso, desenvolver uma ética não individualista?
Evidentemente, a proposição de fazer uma Escola, em Lacan – não apenas uma
associação, mas uma Escola – responde a essa preocupação. A gente já poderia
responder, antes de mais nada, antes de qualquer consideração, que os discursos
que Lacan escreve são quatro tipos de laços sociais e nenhum deles pertence a
uma ética individualista. O laço social exclui a ética individualista. É preciso ob-
servar que o laço social inclui uma disparidade. Num laço social há sempre dois
termos: um que está no lugar do semblante, como vocês sabem, e que comanda o
outro. Portanto, não há paridade entre os dois. Hoje em dia amamos a paridade.
No mundo capitalista só juramos em nome da paridade. E isso é incompatível
com o laço social tal como Lacan o define. É preciso desenvolver o fato de que
no laço social, não se trata, simplesmente, de conexões; não são simplesmente
relações com os outros, ou com a vizinhança. No capitalismo há muitas conexões,
vizinhanças. Isso não faz laço social, no sentido de Lacan, para quem o laço social
é uma ordem. Uma ordem que produz uma ordem de gozo. Nesse sentido, uma
vez que há laço social nós saímos de uma ética individualista.
Alguém poderia fazer uma pesquisa mais metódica disso. Então, o que acontece
é que os fenômenos que até então eram próprios da adolescência se generalizam.
A adolescência é um período de espera da fixação identitária. E, por isso, é um pe-
ríodo no qual o sujeito busca signos de ligação identitária. A forma de se vestir, as
músicas que eles ouvem, todas as práticas próprias aos grupos dos quais eles fazem
parte, são buscas de identidade grupal próprias de um período em que a identidade
ainda não está assegurada. E na medida em que essas inseguranças identitárias se
generalizam, também se generalizam os esforços de identidade grupal.
O que é que a psicanálise faz de tudo isso? Como se coloca a questão da iden-
tidade na psicanálise? Vou começar pelo seguinte: a entrada em análise se dá a
partir de uma questão de identidade. Aquilo que chamamos de a histerização
de entrada, o “Che vuoi?”, é uma questão identitária. Qual é a sua identidade de
desejo ou de sintoma? Portanto, a entrada se faz por uma suspensão da certeza
identitária. E a tese de Lacan sempre foi, do começo ao fim, que o final de análise
devia assegurar uma identidade. No começo a fórmula era: a análise conduz a um
“Tu és isso”, um “Tu és” estático. Esta é uma fórmula de identidade. E no final do
seu ensino é a identidade pelo nome do sintoma. Portanto, começamos por um
sujeito não identificado para ir em direção a uma identidade singular.
No que diz respeito à identidade sexual, nisso que eu acabo de lembrar, de um
sujeito dividido em falta de identidade em direção a um sujeito que tem acesso à
sua identidade, nem se falou em sexo – isso vale tanto para homens quanto para
mulheres. Se a gente se volta para a questão da identidade sexual, a tese de Lacan
foi, durante muito tempo, até 1972, precisamente: “Não há identidade sexual”. Há
claro, um significante, um semblante, o falo – tanto pode ser escrito em maiúscula
quanto em minúscula – mas esse significante não fornece uma identidade sexual.
Ao contrário, ele projeta todas as manifestações sexuais, como diz Lacan, ao nível
do parecer, logo ao nível do teatro, especificamente da comédia. É verdade que há
uma comédia da relação entre os sexos – fazer o homem, fazer a mulher – mesmo
no campo homossexual. E isso foi a tese de Lacan durante tantos anos que ele até di-
zia que o próprio ato sexual, o coito, não dava prova de nenhuma identidade sexual.
Em 1972, ele vai introduzir, evidentemente, algo diferente, algo novo no Atur-
dito (LACAN, 1972/2003) – não é no Seminário Mais Ainda (LACAN, 1972-
73/1985), é no Aturdito, logo antes – com o que nós chamamos agora as fórmulas
da sexuação. As fórmulas da sexuação designam duas identidades sexuadas, duas
identidades de gozo – a toda-fálica e a não-toda fálica. E com isso, pela primei-
ra vez, Lacan introduziu um fator identitário no nível do real do gozo. A partir
daí, então, um novo problema se produziu, para o qual Lacan não está isento de
responsabilidade: todo-fálico é homem e não-todo fálico é mulher. Então, não es-
tamos mais no teatro, não estamos mais no semblante, não estamos mais no fazer
verdadeira. Aí, bom, a gente encontra todos esses termos já conhecidos, cada um
tem seu nome próprio, que não é seu patronímico, que é seu sintoma, o qual não
tem homônimo; o patronímico tem homônimo, mas o sintoma, não. De forma
que, o sentido do sintoma é o verdadeiro DNA do falasser, mas ele não se diagnos-
tica da mesma maneira que o DNA.
Vejam aí, no fundo, a identidade não precária da separação, que não tem nada
a ver com uma identificação, como nós já dissemos, e que introduz o problema
da ética não individualista. Porque esses falasseres, cada um com sua unaridade
sintomática, como eles se articulam no laço social? A questão poderia se colocar
em dois níveis, mas tem uma que me interessa aqui. O primeiro nível, que eu não
vou desenvolver, é como um analisado se coloca nos laços sociais de sua época, é
uma questão. A outra, que é mais importante para a gente, é a da possibilidade de
uma Escola na própria psicanálise, porque a Escola é pensada por Lacan como um
laço social. É por isso que ele evoca, antes de mais nada, a transferência de traba-
lho, que faz laços entre uns e os outros. O que é preciso para levar um analisado à
Escola? Vou dizer de uma forma bem tola. É preciso que ele tenha sentimento de
que o que apreendeu e experimentou em sua análise valeu suficientemente a pena
para que outros também possam experimentar. Não se trata de caridade, não tem
nada que ver com caridade. É que o que pareceu tão importante, para mim, pode
também levar outros a quererem, a desejarem seguir na mesma direção.
referências bibliográficas
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LACAN, J. (1975-76). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Tradução: Sérgio Laia.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
resumo
Em sua terceira conferência “Possibilidade de uma ética não individualista da
psicanálise”, Colette Soler levanta a questão de saber como uma ética não indi-
vidualista é possível para os falasseres, definidos como unaridades, e também no
contexto de um discurso capitalista, que não é o avesso da psicanálise, mas que
comporta um homólogo “não há relação social”?
palavras-chave
Ética, laço social, capitalismo, identidade.
abstract
In her third conference, “Possibility of a non-individualistic ethics of psychoa-
nalysis”, Colette Soler raises a question we need to be aware of: How is a non-in-
dividualistic ethics possible for the speaking-beings, defined as unarities, and also
in the context of a capitalist discourse, which is not the contrary of psychoanlysis,
but holds a “there is no social relation” homologue?
keywords
Ethics, social bond, capitalism, identity.
Minha experiência foi a seguinte: entrei em uma sala vazia, toda branca, cujo
único objeto presente era um espelho que refletia a própria sala e seu vazio. Eis,
entretanto, que outra pessoa que entrou na sala comigo, atravessou o espelho,
passando para o outro lado.
Esse corte promove uma ilusão que pode durar um tempo indeterminado – so-
bretudo para aqueles que ali viram simplesmente um vidro. No caso de quem vê
um espelho, como eu vi, a questão é mais complexa. No segundo seguinte ao atra-
vessamento da ilusão, a pergunta que não pode mais se calar é a seguinte: como
pude supor que ali havia um espelho, se minha própria imagem não vi refletida,
pela simples razão de que um espelho real não havia? Ao supor um espelho, supus,
por um segundo, uma imagem – a minha – que não existia. Aqui, não é apenas a
imagem ortopédica do espelho que é uma ilusão, como havia proposto Lacan em
seu famoso texto sobre O estádio do espelho (1949/1998). Lembremos: “O estádio
do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a
antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação
espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo
até uma forma de sua totalidade que chamaremos ortopédica” (p. 100).
Lembremos ainda que em 1960, no texto Observação sobre o relatório Daniel La-
gache, Lacan apresentara seu famoso esquema dos espelhos conjugados, a partir da
“ilusão do buquê invertido”, de Bouasse. Conhecemos bem o que Lacan chama de
“modelo teórico”, o qual, segundo ele fará aparecer “de maneira analógica com estru-
turas (intra)subjetivas como tais, representando a relação com o outro e permitindo
distinguir nela a dupla incidência do imaginário e do simbólico” (op. cit., p. 681).
[...] o que o modelo indica pelo vaso oculto na caixa é o pouco acesso que o
sujeito tem à realidade do corpo, perdida por ele em seu interior, no limite em
que redobra de camadas coalescentes a seu invólucro, e vindo costurar-se neste
em torno dos anéis orificiais, ele o imagina como uma luva que pode ser virada
pelo avesso (op. cit., p. 686).
[...] ao se apagar progressivamente até uma posição a 90° de sua partida, o Ou-
tro, como espelho em A, pode levar o sujeito de $1 a ocupar a posição de $2 em I, de
onde ele só tinha acesso virtual à ilusão do vaso invertido; só que nesse percurso, a
ilusão fadada está a enfraquecer com a busca que ela guia” (op. cit., p. 687).
180 o
$1 Espelho
a a’ I
A $2
i(a)
i ‘ (a)
90o A
i ‘ (a)
a’ i ‘ (a) _ 180 o
Em 1963, Lacan retoma ainda esse esquema, entretanto com um passo a mais,
chamado objeto a, definido como objeto não especularizável: “O investimento
da imagem especular é um tempo fundamental da relação imaginária. É funda-
mental por ter um limite. Nem todo investimento libidinal passa pela imagem
especular. Há um resto” (p. 49). De um lado há o falo, e do outro o “a, que é resto,
o resíduo, o objeto cujo status escapa ao status do objeto derivado da imagem
especular, isto é, às leis da estética transcendental” (p. 49).
Assim, para Lacan, nesse momento, o imaginário estaria regido pelas leis da estética
transcendental kantiana, à qual a psicanálise, com o conceito de objeto a faz obstáculo.
Mas quais são essas leis? Sabemos que o pensamento kantiano é um marco na
criação da ciência moderna, na medida em que rompe com o que Luc Ferry chama
de “argumento ontológico”, ou seja, a existência de Deus, presente – embora de
modos distintos – em Descartes e Espinoza. Para Kant, as marcas da finitude estão
no espaço e no tempo, “âmbitos incontornáveis da aisthesis, a sensibilidade” (FER-
RY, 2010, p. 23). Para Kant, portanto, a intuição ou o sensível, está subordinado ao
espaço e ao tempo enquanto a priori. A partir de então, como aponta Ferry, “é o
ponto de vista do homem que deverá ser privilegiado, e não mais o cosmos”; e a
marca desse ponto de vista finito é aquela “da sensibilidade de um corpo situado
no espaço e no tempo” (p. 33). Para Kant, na Estética Transcendental, “o espaço não
Em seu primoroso texto Opsis, corpo e intuição, Sonia Alberti (2010) esclarece por
meio de uma leitura rigorosa desse seminário, que “Lacan instrumentaliza o con-
ceito de dimensão retomando sua etimologia, que remete por sua vez ao teatro me-
dieval” (p. 152). Por falta de recursos técnicos, o palco continha todos os lugares nos
quais as cenas se desenvolveriam. Esses locais eram chamados de “mensão”. É essa
a analogia que Lacan faz com sua nova topologia borremeana: as três dit-mansions
estão ligadas de modo a que se uma se solta, as demais não se aguentam. Nas pala-
vras de Alberti: “Eis como Lacan reabilita o imaginário: sem ele não há nó” (p. 152).
Lacan abre, então, todo um debate a respeito da diferença entre o espaço geométrico
e o espaço vetorial, introduzido por Grassman e posteriormente formalizado por Pea-
no. Ele afirma que “há três dimensões no espaço do ser falante – RSI –, o que de modo
algum implica as coordenadas cartesianas as quais dependem da velha geometria”:
É porque o meu espaço, o meu, tal como eu o defino por essas três dito-man-
sões é um espaço cujos pontos se determinam de uma maneira inteiramente ou-
tra. É o que ele chama de cunhagem, ou seja, a característica borromeana que
faz com que os três registros se enganchem de modo a ficarem inseparáveis (s.p.).
Trata-se “de uma outra maneira de operar com o espaço que nós habitamos
realmente... se o inconsciente existe. Isso parte – ele diz – de outra maneira de
considerar o espaço, sendo RSI estritamente equivalentes. Uma estrutura, comen-
ta Lacan, “que muda certamente o sentido da palavra espaço, no sentido como ele
é empregado na Estética Transcendental”.
Victor se esforça para fazer entrar todo o real da condição humana e o real das
questões metafísicas, que isso supõe, em uma escrita lógica, pretendida por ele
como uma estética perfeita” (s.p.).
É verdade que Lacan afirma que o amor cristão foi o primeiro a enodar os re-
gistros borromeanamente, ao inventar a trindade. Mas precisamos tomar todo o
cuidado para não confundirmos a topologia dos nós com uma “estética perfeita”,
o que reeditaria o more geométrico ou a estética transcendental que Lacan faz
questão de evitar. Se os três registros enodados borromeanamente são o Real, isso
só vale na condição de que eles não formam Um, muito menos Um todo.
Voltando à minha experiência com a instalação de Galan, Seção Diagonal, eu
diria que essa obra mostra, sem Lacan, o que ele ensina a respeito dessa “sua no-
ção de espaço”, já que o espelho não está dado a priori, mas é o próprio espelho – e
não apenas a imagem – uma montagem en corps, não sem o Simbólico e o Real,
portanto; e evidentemente, embora as três dimensões estejam simultaneamente
presentes, elas ao mesmo tempo se furam mutuamente.
Lacan, entretanto, retoma a interlocução com Kant e mesmo com seus ante-
cessores – Leibniz e Newton. Tratava-se exatamente de um debate a respeito da
concepção do espaço e sua dependência a Deus. Seriam o espaço e o tempo pres-
supostos autônomos e infinitos ou um conjunto dos objetos matérias do mundo?
Lacan comenta a famosa controvérsia epistolar entre Leibniz e Newton a respeito
da descoberta do algoritmo infinitesimal. No texto Derivadas como no tempo de
Newton e Leibniz, Luana Lopes dos Santos Alves afirma que o modo como am-
bos procediam o cálculo diferencial e integral não utilizava funções como se faz
referências bibliográficas
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NOMINÉ, B. Richard de Saint Victor e o nó borromeano. 2013. Disponível em:
<http://www.valas.fr/>. Acesso em 7, set. 2014.
resumo
O texto parte da experiência com a obra Seção Diagonal, de Marcius Galan, expos-
ta no museu de Inhotim, em Minas Gerais. A partir dessa experiência, desenvolvo
a frase de Lacan do Seminário 21 Les non-dupes errent: “O imaginário é sempre
uma intuição daquilo a ser simbolizado”. Para tanto, retomo brevemente o percur-
so do ensino de Lacan em relação ao registro do Imaginário, desde o texto sobre o
Estádio do Espelho (1949), passando pela subversão operada pela noção de “objeto
a” nos anos sessenta. Debato então as consequências da reabilitação do Imaginá-
rio, operada por Lacan a partir da topologia borromeana, a qual opera com uma
noção de espaço que não é kantiana, e propõe uma apresentação da estrutura que
não é da ordem do more geométrico. Proponho, finalmente, com Milner, uma ho-
mologia entre a “experiência borromeana” e o que ocorre em uma análise.
palavras-chave
Imaginário, nó borromeu, Jacques Lacan.
abstract
The paper bases itself on the experience with the artwork Seção Diagonal, by Mar-
cius Galan, exhibited at the Inhotim Museum in Minas Gerais State. From this
experience, I develop my work using as starting point the quote by Lacan at the
21st Seminar Les non-dupes errent: “The imaginary is always an intuition of what
is to be symbolized”. For this purpose, I briefly resume the path of what Lacan
taught in relation to Imaginary imprint, from the text Mirror Stage (1949) to the
subversion operated by the notion of the “object a” in the 1960s. Therefore, I dis-
cuss the consequences of the rehabilitation of the Imaginary operated by Lacan
based on the borromean topology, which operates with a non-Kantian notion
of space, and proposes a non-geometric presentation of the structure. Finally, I
propose, based on Milner, establishing a homology between the “borromean ex-
perience” and what takes place in a psychoanalysis session.
keywords
Imaginary, borromean knot, Jacques Lacan.
recebido
14/02/2014
aprovado
18/07/2014
Introdução
Uma das leituras possíveis dessa obra de Shakespeare, proposta por Lacan no
Seminário 6, indica que a peça gira ao redor de um protesto que tem como motivo
o não cumprimento dos ritos da morte. Essa irregularidade encontra-se dissemi-
nada na obra em quatro ocasiões cruciais.
A primeira irregularidade consiste na apressada união entre seu tio e sua mãe.
Trata-se da abreviação do luto pela morte do Rei. A segunda, quiçá a mais impor-
tante desta série – já que nela reside a razão da tragédia – consiste em que seu pai
foi envenenado na flor do pecado, antes de estar preparado para dar esse passo,
ou seja, sem oportunidade de arrepender-se e ser digno de perdão. Por isso, foi
condenado a vagar entre os vivos, sem descansar na paz dos sepulcros, até que
Hamlet efetue sua vingança.
1 Desenvolvemos mais amplamente essa temática, juntamente com Martín Alomo, em um livro
de pronta publicação intitulado: Las tragedias del deseo. Antígona, Lear, Hamlet.
Para que a morte fosse assim anunciada, era preciso que não fosse súbita, repenti-
na. Quando não avisava, deixava de aparecer como uma necessidade temível, e sim
esperada e aceita, de boa ou má vontade. Então, desgarrava a ordem do mundo em
que cada qual acreditava, instrumento absurdo de um azar disfarçado às vezes de có-
lera de Deus. Por isso, a mors repentina era considerada infame e vergonhosa (Ibid).
2 “O suicídio, isso não é tão simples. Nós não estamos somente sonhando com ele nisso que se
passa no além, mas simplesmente isso, é que colocar o ponto final em algo não impede que o ser
permaneça idêntico a tudo o que ele articulava pelo discurso de sua vida, e que aí não há ‘to be or
not to be’, que o ‘to be’, qualquer que seja, permanece eterno” (LACAN, 1958-1959, p. 281).
A loucura do príncipe
Polônio não parece tão errado ao indicar que raras vezes o homum comum se
aproxima desses raciocínios, tão ocupado que se encontra em velar o destino ine-
vitável que o espera. Em relação a isso, Lacan destaca em sua aula de 22 de abril
de 1959 do Seminário 6, O desejo e sua interpretação:
Mas o que é preciso não esquecer é a maneira como ele faz o louco, esta maneira
que dá a seu discurso este aspecto quase maníaco, esta maneira de apanhar no voo
O X do desejo de Hamlet
não pôde atacar aquele designado por sua vingança por causa de um desejo edípi-
co reprimido. É na medida em que se trata de aplicar justiça ao mesmo crime que
ele havia cometido, que não pode atacar aquele que possui sua mãe sem atacar a si
mesmo, sem reavivar nele um desejo por ela marcado pela culpa.
Será tardiamente na obra que Hamlet conseguirá orientar-se; somente na cena do
cemitério, durante o enterro de Ofélia. Ali, a visão da dor e o ódio de Laertes, jovem
irmão, tornam-se insuportáveis para o Príncipe. Ele não consegue tolerar semelhan-
te manifestação de amor em relação a uma moça com a qual foi extremamente cruel
sem se mostrar também consumido pelo desassossego. A identificação a Laertes o
orienta. Nas palavras de Lacan: “É na medida em que alguma coisa, $, está aí numa
certa relação com a, que se faz de repente esta identificação que lhe faz reencontrar
pela primeira vez seu desejo em sua totalidade” (LACAN, 1958-1959, p. 285).
Contudo, o que Hamlet, sim, parece saber é que para encontrar esse X que cons-
titui seu desejo, deverá transgredir o limite do primum vivere, arriscar sua própria
vida regida pelos bens e pelo conforto. A esse respeito, voltemos ao Seminário 6:
Conclusões
perguntar pelo sentido da vida, a terrena, a única que se sabe certa, e culmina seu
ato, em conformidade a uma posição ética que antecipa a cena prévia ao duelo: “Se o
homem, ao terminar sua vida, sempre ignora o que lhe pode ocorrer depois, de que
importa que a perca cedo ou tarde? Saiba morrer” (SHAKESPEARE, 1604/1972).
referências bibliográficas
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__________. Lacan, l’inconscient reinventée. Paris: PUF, 2009.
resumo
Fazendo uso da figura do Príncipe Hamlet, consideramos a disposição do herói
perante a morte. Atitude que nos ilustra suas posições ante o desejo. A comple-
xidade do herói de Shakespeare, sua dúvida, sua demora em realizar o ato en-
comendado pela sombra – que o diferenciam claramente da figura decidida de
Antígona – permitirão aproximarmo-nos das oscilações que nos ensina a clínica
das neuroses. Seguindo a indicação lacaniana presente no Seminário 6, O desejo
e sua interpretação, tomaremos como chave de leitura os distintos modos de não
cumprimento dos ritos da morte que se disseminam na obra. Faremos esse exer-
cício com a finalidade de pensar a que obedece a loucura de Hamlet.
palavras-chave
Hamlet, desejo, morte.
abstract
Across the figure of Prince Hamlet, we will consider the disposition of the hero
before death. The attitude which illustrates his positions before the desire. The com-
plexity of Shakespeare’s hero, his doubt, his slowness in realizing the act entrusted
by the shade – which clearly differentiates him from the decided figure of Antigo-
ne – will allow us to approximate to the oscillations that the clinic of the neuroses
teaches us. Following the Lacanian indication in Seminar 6, The desire and its inter-
pretation, we will take as reading orientation the different manners of not following
the rites of death that are disseminated throughout the work. We will engage in
such an exercise with the purpose of reflecting over what Hamlet’s madness obeys.
keywords
Hamlet, desire, death.
recebido
13/02/2014
aprovado
15/05/2014
André Gide foi um escritor que dedicou sua vida à literatura. Segundo Jean
Delay, autor de sua psicobiografia, a obra de Gide “[...] é um dos ensaios mais
completos que fez um homem para se compreender e se explicar”1 (LACAN,
1958/1998, p. 11).
O próprio André Gide em seu romance autobiográfico Si le grain ne meurt
declarou: “Nesta idade inocente, na qual se quer que toda alma seja apenas trans-
parente, terna e pura eu vejo em mim apenas a escuridão, a deformidade e a dis-
simulação”.2 Ele relata que quando criança passava rapidamente da alegria para a
tristeza e do entusiasmo ao desespero. Seu temperamento era indeciso, hesitante,
ambíguo, pleno de contradições e essencialmente instável. Nos termos de Gide,
ele foi uma criança triste, aborrecida, não se relacionava com os colegas e que, no
entanto, não poderia fazer de outro modo (GIDE, 1955, p. 10).
Sendo assim, interrogamos: O que escrever significou para Gide? Qual foi a
contribuição da obra para a psicanálise? Teria André Gide superado a angústia,
graças à literatura?
Neste texto, busquei refletir sobre essas questões, sem esquecer que a premissa
freudiana é de que a arte se adianta à psicanálise.
Um dos principais enigmas do livro Si le grain ne meurt é o contraste entre a
primeira e a segunda parte, pois na primeira temos um jovem extremamente reli-
gioso, tímido, seguidor da corrente dos huguenotes,3 e na segunda um imoralista,
irreverente e audacioso.
Embora André Gide tenha praticado a pedofilia, isso não impediu que em 1947
recebesse o prêmio Nobel de literatura. Assim, o que nos interessa como psica-
nalista é nos despojarmos da ideia da perversão como maldade, perversidade, ou
práticas de gozo perversas, e nos debruçarmos a pensar a perversão como estra-
tégia de gozo do sujeito, onde o que está em jogo é negar a castração do Outro,
construindo a mulher ideal.
Para Colette Soler, o valor da perversão diz respeito ao que podemos chamar
“os impasses do gozo”, onde o perverso retrocede menos que o neurótico, que é
um covarde diante das pulsões. Assim, “Uma estrutura clínica se define na relação
Em relação à angústia, “Por três vezes o menino ouviu-lhes a voz pura”. “[...]
um tremor vindo do fundo do ser, um mar que tudo inundava, a Schaudern [...]”,
palavra que Gide emprestou de Schopenhauer. E que em alemão significa sobres-
salto, calafrio ou situação catastrófica. Onde claramente há emergência de angús-
tia (LACAN, 1958/1998, p. 762). Gide relata ao longo da obra os três momentos
em que sentiu a Schaudern: o primeiro momento foi por ocasião da morte de um
priminho. Ele ouve a conversa dos pais, começa a chorar, entra em desespero e
diz à sua mãe: “Eu não sou igual aos outros”. Logo depois ele é inundado por esse
sentimento, tal qual uma embriaguez dionísica, fonte de inspiração poética, mas
que antes lhe trouxera o sentimento de não ser igual aos outros. O sentimento de
ser excluído da relação com o semelhante.
O pequeno Gide não conhecia muito o primo, mas compreendia que ele estava
morto, e em seu romance autobiográfico, Si le grain ne meurt, diz [...] “um oceano
de desgosto irrompe, explode de repente em meu coração” (GIDE, 1955, p. 132).
Sua mãe tenta acalmá-lo e diz que todos nós vamos morrer, que o pequeno pri-
minho está no céu, que não sofria mais etc. Mas isto não o acalmava, pois não era
precisamente pela morte do pequeno primo que ele chorava. Gide não sabia por
que uma angústia indefinível o invadia.
O segundo momento ocorreu alguns meses depois da morte de seu pai, nova-
mente a cena se repete, e se passa à mesa durante o café da manhã. Ele chorava,
caía nos braços da mãe, tinha convulsões e sentia de novo a angústia inexplicável.
Exatamente a mesma, sentida quando da morte do pequeno primo. E, de novo,
ele não conseguia explicar o motivo exato de sua angústia (GIDE, 1955, p. 133).
O terceiro foi quando ele descobriu que Bernard, um dos coleguinhas de escola,
estava interessado nas prostitutas (GIDE, 1955, p. 133). Ocorre que a mãe de Gide
havia recomendado que ele evitasse passar pela rua do Havre, pois era um lugar
extremamente mal frequentado. Ele escuta as palavras da mãe como algo muito
grave e pergunta a Bernard: “Bernard, quando você sair da escola você não vai
passar pela rua do Havre, não é?”. Bernard não disse nem sim, nem não e pergun-
tou a Gide o que este pedido queria dizer. Então, Gide é tomado pela angústia e
relata: “De repente alguma coisa de enorme, de religiosa, de pânico, invadia meu
coração, como a morte do pequeno Raul, [...] eu me precipitava aos joelhos de meu
amiguinho. ‘Bernard! Oh! Eu te suplico: não vá’” (GIDE, 1955, p. 133).
Outro fato relevante em relação à morte foi que Gide acreditava que levara o
pai à morte pela mágoa causada por sua expulsão da escola, por causa dos “maus
hábitos”, isto é, a masturbação. Ele considerava a morte um castigo vindo por
alguma culpa e assim une erotismo à morte. A isto veio acrescentar a censura do
tio Charles, irmão do pai, que interferia na educação do menino autorizado por
sua mãe. Tio Charles, quando descobriu o interesse do jovem por uma prostituta,
e como consequência a perda da virgindade, julgou a atitude de Gide escandalosa.
De acordo com Lacan o menino Gide, entre a morte e o erotismo masturbató-
rio, só teve do amor a fala que protege e a que interdita; a morte levou com seu
pai aquela que humaniza o desejo. Por isso é que o desejo fica, para ele, confinado
ao clandestino. Gide dizia que o que ele não tinha era o sentimento de realidade,
quando ela se tornava desagradável ele se punha a flutuar “[...] eu não colo, nunca
pude colar perfeitamente à realidade” (LACAN, 1958/1998, p. 764).
Ora, sabemos que é a função paterna que sustenta o sujeito na realidade; se ela
vacila, tudo cai no semblante. Quando Gide se confrontava com a castração, com
a lei ele tentava driblar, tergiversar a realidade. “Na perversão o campo da reali-
dade é profundamente perturbado por imagens” (LACAN, 1957-58/1998, p. 169).
A partir destas considerações, interrogamos: para dirigir o tratamento, como o
analista pode ter a precisão de que está diante de um sujeito de estrutura perversa?
De acordo com minha pesquisa e apoiada nos textos de Freud e Lacan, suponho
que uma indicação clínica fundamental, no tratamento do sujeito perverso, inclui
furo do amor sem desejo, manifesta sua verdade quando se desvela a imagem
mutilada do eu. A identificação com sua prima Madeleine constitui então o mo-
mento crucial de precipitação de uma posição que se torna a marca de toda sua
existência (FLEIG, 2008, p. 81).
Em um dos mais belos textos escritos por Gide, depois da morte de sua mulher,
“Et nunc Manet in te”, ele narra como foi o acontecimento referente à queima das
cartas por Madeleine:
André Gide reconhece que na sua relação com Madeleine havia uma espécie de
contrato que sua natureza lhe impunha. Ora, sabemos que na perversão o sujeito
faz uso de sua relação com o outro para usá-lo como depositório de suas pulsões.
A questão gira ao redor da necessidade e não do desejo. Se na relação do sujeito
ocorrer demanda de articular desejo e lei, a parceria é quebrada. O perverso pre-
cisa sempre do contrato que segue um ritual e que é necessário que seja mantido
em segredo. Rudge afirma que: “No discurso perverso, o desejo do outro não deve
se manifestar, nem levantar questões. Os [...] contratos perversos [...] são também
recursos para evadir a lei do desejo do Outro” (RUDGE, 2005, s.p.).
As cartas, diz Gide, eram frutos de seu amor por Madeleine. Ele narra que du-
rante uma semana, após descobrir que elas foram queimadas, ele chorou de ma-
nhã à noite. “É verdade, eu perdi o testemunho de minha vida. Foi o melhor de
mim que desapareceu e que não contrabalançará jamais o pior” (GIDE, 1947).
Lacan conclui que a carta, que tem a natureza de fetiche, toma o lugar do qual o
desejo se retirou e apresenta como prova a última frase de Et nunc Manet in te, em
que Gide se detém diante da imagem de seu eu mutilado, “que não oferece mais
que um buraco no lugar ardente de um coração”, que representa o lugar deixado
vazio pelas cartas, e não pela morte de Madeleine (PORGE, 2003, p. 30).
Cabe agora retomar a questão do início do texto: teria André Gide superado a
angústia graças à literatura?
Para responder não podemos deixar de levar em conta que o motivo da queima
das cartas, realizada por Madeleine, deveu-se ao fato de Gide ter empreendido uma
viagem com Marc Allégret por quem estava apaixonado. De acordo com Millot:
Graças a mil ardis, conseguiu levá-lo para viajar na Suíça, depois na Inglaterra.
Seu diário traz a explosão que ele conheceu. “Uma imensa alegria me enternece
e me exalta” (GIDE, 1889/1939, pp. 275-276). A escrita representa um modo de
realização de um desejo, que, por aí se esgota. Gide utilizava, além disso, em a
Tentativa amorosa, o procedimento do brasão que consiste, no primeiro, em
pôr um segundo em abismo, este não reproduzindo o primeiro de modo idêntico,
mas invertendo seus valores. A construção em abismo serve aqui ao propósito de
Gide de acrescentar à báscula de um polo ao outro a inclusão em cada polo, de
seu oposto, conjugando assim a alternância e a simultaneidade, e juntando assim
mais estreitamente os contrários.
Clivagem, alternância e clandestinidade formam um nó. A alternância, res-
pondendo a uma dualidade interna, põe-se a serviço da dissimulação, a qual ca-
minha junto com uma divulgação velada que joga com as oposições ser-parecer,
verdade-mentira, realidade-ficção, com a qual se tece igualmente a criação li-
terária. De modo significativo, o princípio de alternância ao qual sua produção
obedecia será abandonado por Gide no momento em que o encontro com Marc
Allégret tornará, por um lado, caduca a clivagem íntima pela qual desejo e amor
eram, para ele, radicalmente separados (MILLOT, 2004, p. 54).
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GIDE, A. Les Faux-Monnayers. Paris: Editions Gallimard, 1925.
GIDE, A. Et nunc Manet in te – suivi de Journal intime. Neuchatel e Paris: Ides et
calendes. Copyright by Richard Heyd, 1947.
GIDE, A. 1889-1939, Journal op. cit., pp. 275-276. Inédito. Nota de rodapé retirada
resumo
André Gide foi um escritor que dedicou sua vida à literatura. Segundo Jean Delay,
autor de sua psicobiografia, a obra de Gide “(...) é um dos ensaios mais completos
que fez um homem para se compreender e se explicar”.4 O próprio André Gide em
seu romance autobiográfico, Se o grão não morre, declarou: “Nesta idade inocente,
na qual se quer que toda alma seja apenas transparente, terna e pura eu vejo em
mim apenas a escuridão, a deformidade e a dissimulação”.5 Sendo assim, interro-
gamos: O que escrever significou para Gide? Qual a contribuição da obra para a
psicanálise? Teria André Gide superado a angústia graças à literatura? Neste texto
busquei refletir sobre estas questões, sem esquecer que a premissa freudiana é de
que a arte se adianta à psicanálise. Assim, me deixei ensinar pelos escritos de Gide.
palavras-chave
Letra, angústia, Jacques Lacan, psicanálise.
abstract
André Gide was a writer who devoted his life to literature. According to Jean
Delay, the author of Gide’s psychobiography, the work of the writer “[...] is one
of the most complete essays done by a man to understand and explain oneself”.
André Gide himself in his autobiographical novel, If it dies, affirmed: “At this
innocent age in which we want every soul to be not only transparent, but tender,
and pure, what I see in me is only darkness, deformity, and dissimulation”. Based
on this, we pose the following question: What did writing mean to Gide? Which
would the contribution of such work for psychoanalysis? Would have André Gide
overcome his anguish through literature? In this text I intended to reflect on these
issues keeping in mind the Freudian premise which says that art comes before
psychoanalysis. So, I let myself be taught by Gide’s writings.
keywords
Letter, anguish, Jacques Lacan, psychoanalysis.
recebido
3/02/2014
aprovado
3/07/2014
“Joyce, o Sinthoma” –
uma leitura
Glaucia Nagem
“Os escritores criativos são aliados muitos valiosos, cujo testemunho deve ser
levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas
entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar.”
FREUD, 1906[1907]
Qual o uso que a psicanálise faz da arte? Esta pergunta permeia a leitura do
texto Joyce, o Sinthoma. E nessa esteira podemos questionar: qual a importância
de Joyce para Lacan no momento do Seminário 23?
Uma via simples e aparentemente fácil seria analisar sua obra como se fosse um
paciente – colocá-la no divã e acreditar que ali está a verdade do sujeito-artista.
Outra via aparentemente tão fácil quanto seria colocar o autor no divã e tentar
analisar sua biografia como se esta fosse o paciente. O que fez Lacan nesse mo-
mento? Ele não analisou a biografia, tampouco a obra. O que interessou a Lacan
foi o tratamento dado por Joyce a seu texto, a seu escrito. Há algo de ilegível no
que está escrito; há lapso no que se lê. Vejamos o que Lacan (1972-73) antecipa em
seu Seminário 20:
(...) vocês podem ler Joyce, por exemplo. Então vocês verão como isso começou
a se produzir. Vocês verão que a linguagem se aperfeiçoa e sabe brincar, sabe
brincar com a escrita. Joyce, eu admito que ele não seja legível (...)
Mas o que é Joyce, o que é? É exatamente o que eu lhes disse há pouco: é o
significante que vem se infiltrar no significado. Joyce é um longo texto escrito
– leiam Finnegans Wake – cujo sentido é proveniente disso: pelo fato de que os
significantes se encaixam, se compõem, se vocês quiserem (...) penetram uns nos
outros. É com isso que se produz algo que, como significado, pode parecer enig-
mático, mas é realmente o que há de mais próximo daquilo que nós, analistas,
graças ao discurso analítico, sabemos ler. É o que há de mais próximo ao lapso. E
é a título de lapso que isso significa alguma coisa, ou seja, que isso pode ser lido
de uma infinidade de modos diferentes. Mas é justamente isso que isso se lê mal,
ou se lê ao contrário, ou não se lê, mas essa dimensão do “se ler” não será sufi-
ciente para mostrar que estamos no registro do discurso analítico? E que aquilo
Joyce aponta para a articulação de uma questão que Lacan coloca desde o início
de sua obra, qual seja, a dimensão do escrito. Escrito, escrita, letra – são pontos
que costuram toda a obra de Lacan, e Joyce indica uma direção que o interessa.
Se o sujeito é o que um significante representa para outro significante, vemos que
Joyce catapulta esses significantes e põe em questão isso que está entre um e outro
significante. Afinal, o que seria a possibilidade de um significante que não reme-
tesse a outro significante, mas a um vazio? Que em um significante muitos outros
se aglutinassem, se encaixassem, se penetrassem uns pelos outros?
“(...) river run, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay, brings
us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs”
(JOYCE apud CAMPOS, 2001, p. 40). E a tradução de Haroldo de Campos (2001)
nos auxilia a acompanhar em português: “(...) rio corrente, depois de Eva e Adão,
do desvio da praia à dobra da baía, devolve-nos por um commodius vicus de re-
circulação de volta a Howth Castle e cercanias” (p. 41).
Leia em voz alta. Peça a alguém para ler e apenas escute a sonoridade do tex-
to. Uma frase apenas poderia ser escutada por muito tempo. Finnegans Wake já
nos provoca desde seu título: nome, fim e começo, acordar... Mas cada palavra
usada se presta a esse exercício. Paremos na queda: “The fall w(bababadalgha-
raghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnska-
wntoohoohoorde nenthurnuk!)” (JOYCE apud CAMPOS, 2001, p. 40).
Alguns teóricos indicam que essa palavra imensa faz parte de uma pesquisa
de Joyce dos muitos nomes e sonoridades de trovão. E como se trata de pura so-
noridade, o tradutor manteve tal como escrito por Joyce. Sim, pesquisa – Joyce
não retirava essas palavras de seu repertório apenas. Além de criá-las, ele as
recolhia e as recebia dos amigos. Um árduo “work in progress”. Mas não se trata
de um trabalho apenas dele. Cada um que se dispõe a ler seu texto, nem que seja
alguns trechos, é convocado a trabalhar, pensar, construir e reconstruir os sons
em palavras, as palavras em sons.
Bernardina Pinheiros (2010) ressalta, na introdução de sua tradução de Ulisses,
a importância da sonoridade na obra joyciana. Vemos com ela que, desde O retra-
to do artista quando jovem, essa sonoridade já estava em jogo:
Se, como Joyce dissera em Um retrato, que “havia diferentes tipos de dor para
todos os diferentes tipos de som”, também em Ulisses ele imprimirá ritmos pró-
prios e distintos aos monólogos dos três personagens principais do romance,
apropriados às suas respectivas personalidades (p. 12).
Vemos aqui um dos elementos essenciais: o som, emitido pela fala, musicalidade
da voz. Joyce trabalha desde muito cedo essa questão em sua obra. Lembremos que
não só ele, mas muitos outros autores se aventuraram por essas veredas. Lewis Car-
roll, em seu poema Jabberwocky1 – Jaguadarte escreve em sua primeira estrofe:
Isso que vemos em autores como Joyce e Carroll é uma marca de estilo, de tra-
balho literário. E neste ponto precisamos atentar que não foi isso o que apontou
para Lacan o que é da ordem da estrutura. Se seguirmos pelo caminho de que foi
aí que Lacan se apoiou, concluiremos que cada um desses autores que se dedica-
ram a destruir a estrutura prevista da língua poderia ser enquadrado em determi-
nada estrutura ou em alguma tipologia patológica.
Mas a voz não é apenas um som. Ela vem de um sujeito. E uma pergunta se
impõe: quem fala? Esta questão se coloca para Lacan desde muito cedo. Já em seu
Seminário 3 ele perguntava:
O que é a fala? (...) Falar é, antes de mais nada, falar a outros (...) O sujeito
recebe sua mensagem do outro sob uma forma invertida (...) Desde que o sujeito
fala, há o outro com A maiúsculo (...) Qual será essa parte, no sujeito, que fala? É
o inconsciente (...) Esse inconsciente é algo que fala no sujeito. Além do sujeito,
e mesmo quando o sujeito não o sabe, e diz sobre isso mais do que crê (LACAN,
1955-56/2007, pp. 47, 52).
Vemos aqui que, desde muito cedo, a fala é o que Lacan nos aponta como o mote
para o inconsciente. O inconsciente estruturado como linguagem tem como um veí-
culo o falar, ou seja, a articulação significante. Isso Lacan retira de Freud, e desde os
anos 1950, insiste que os analistas atentem para esse fato. Em seus casos, Freud indi-
ca a importância de se escutar o que está sendo dito e como está sendo dito. Mesmo
que o paciente fale outra língua, como no caso do Homem dos Lobos, Freud ressalta
a importância de ouvir o dizer por trás do dito. Vejamos o que ele nos diz em O Ego
e o Id: “A palavra é, pois, essencialmente o resto das palavras ouvidas”2 (1923/1981,
p. 2.706). E ele conclui que é com esse material que o trabalho analítico opera.
1 Original: “Twasbrlling, and the slithytoves; Did gyre and gimble in the wabe; All mimsy were the
borogoves; Ans the momeraths out grabe” (p. 44).
2 No original: “La palabra es, pues, esencialmente el resto mnémco de La palabra oída”.
É preciso regredir ao pressuposto do ato de fala e dizer o que se diz sem nunca
dizer um sentido, mas estabelecendo orientações que fazem conexões ativas e
provisórias. Por que falar? Uma causa plausível: porque é preciso eliminar ra-
dicalmente as significações e o sentido das palavras herdadas. Para que falar?
Uma função real: para constituir a existência de algo fora da linguagem como
o impensável inominável que impede, justamente, que a voz e o leitor delirem
possuídos por ela (p. 25).
E é exatamente a palavra que Joyce vai triturar em sua obra, tirando dela o que
se ouve mais do que aquilo que se lê, ou até mesmo tirando dela o que se lê em
uma dimensão de puro equívoco. Por isso mesmo faço a proposta de que se ouça o
texto joyciano. Ele se serve dos sons, as palavras soam com ressonâncias variadas
que são mais importantes em seu texto do que o próprio sentido.
Em Lacan, um joyciano, Jacques Albert (2011) conta que Lacan “(...) foi a Lon-
dres mergulhar alguns dias na língua do Império, aquela em que Joyce tinha
colocado tanto zelo amoroso a roer, de uma maneira que Lacan fez semblante de
imitar em Joyce, o Sinthoma”3 (p. 44).
Assim, acompanhar o texto Joyce, o Sinthoma, é um percurso de costura entre
o que a teoria nos apresenta e o que Joyce nos ensina; é ler Lacan joyciando sua
construção teórica.
Essa leitura joyciana marca a transmissão de Lacan, que passa a utilizar de sua
língua materna para transmitir em seus seminários. Lembremos do LOM, uma
das criações de Lacan-joyciado. O que é isso? O homem, mas em sua máxima re-
dução. Não o homem no simbólico, mas o que do homem toca o real. “LOM, LOM
de base, LOM cahun corps et nan-na Kun (...) Il a (même son corps) du fait qu’il
appartient en même temps à trois… appelons ça, ordres” (LACAN, 1975/2003,
p. 565). Que em português foi traduzido como: “UOM, UOM de base, UOM ki
temum corpo e só-só Teium (...) Ele tem (inclusive seu corpo) por pertencer ao
mesmo tempo a três – chamemo-las de ordens”.
Vemos aqui como Lacan desloca nesse texto o que era, a princípio, prioridade do
Simbólico para o que é do Real em jogo na linguagem, como escreve Soler (2010):
“‘Corpo falante’, isso desloca o campo da linguagem do Simbólico para o Real,
pois o corpo do qual se trata não é o do estádio do espelho, o corpo da imagem,
da forma. É o corpo substância que ‘se goza’ e se situa no espaço da vida” (p. 11).
Ao lermos esse texto, vemos que Lacan, a partir de seus avanços teóricos sobre
3 No original; “il alla se plonger jours à Londres dans la langue de l‘Empire, celle que Joyce avait mis
tant de zèle amouroux à ronger, d’une manière que Lacan fit mine d’imiter dans ‘Joyce le Syntôme’”.
Ele tinha encontrado ali uma artista que tinha um gozo enigmático, rompendo
tanto com seu nome – Lucie Schwob, que não era tão significativo assim quanto
Cahun, onde “Caim” podia se ouvir – quanto com seu corpo colocado em jogo
em muitos autorretratos, colagens, montagens, performances e outros cenários,
e notadamente sua identidade sexual, cujo neutro era para ela palavra de ordem:
Cahun era bem o caso. O caso do Um, já?4 (p. 46).
4 No original: “Il avait rencontré là une artiste à la jouissance énigmatique, en rupture avec son
nom – ‘Lucie Schwob’ n’était pas aussi parlant que Cahun, où ‘Caïn’ pouvait s’entendre – autant
qu’avec son corps mis en scène, notamment de son identité sexuelle dont le neutre était pour elle
le fin mot: Cahun était bien uncas. Le cas du Un, déjà?“
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cional dos Fóruns – Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
– Brasil, 2010.
resumo
A autora propõe uma reflexão sobre a contribuição da obra de James Joyce à cons-
trução teórico-clínica de Jacques Lacan a partir da análise de seu texto “Joyce, o
Sinthoma”. O foco deste texto está sobre a relação entre o modo criativo literário
de Joyce e as articulações de Lacan ao abordar seu conceito de la-língua.
palavras-chave
James Joyce, literatura, la-língua.
abstract
The author proposes a reflection on the contribution of James Joyce’s work to
Jacques Lacan’s theoretical and clinical construction departing from the analysis
of his text entitled “Joyce, the Sinthoma”. The main focus of the article is on the
relationship between Joyce’s literary creative mode and Lacan’s enunciations whi-
le approaching his concept of la-langue.
keywords
James Joyce, literature, la-langue.
recebido
4/02/2014
aprovado
3/07/2014
Introdução
1 No escopo deste trabalho adotamos uma definição convencional e nominalista do termo psi-
canalista, entendendo que este refere-se aos que, sem necessária sobreposição de condições (1)
dedicam-se à prática clínica autodeclarando-se psicanalistas, (2) participam de escolas, associa-
ções e grupos, formais ou informais de formação de psicananalistas (3) escrevem, participam de
atividades públicas, de natureza científica, de transmissão ou de divulgação sendo assim social-
mente reconhecidos como psicanalistas seja por uma comunidade mais ampla ou mais restrita.
Tal definição recobre, aproximativamente, noções como as de Analista Membro de Escola, Ana-
lista de Escola e Analista Praticante, usualmente encontradas em Lacan. Não empregaremos uma
definição que pretenda estabelecer o que vem a ser o verdadeiro ou legítimo psicanalista, pois
entendemos que este essencialismo, ingênuo ou propositado, é um dos motivos fundamentais do
conflito entre os psicanalistas, qual seja, a posse, uso e controle hegemônico ou não do emprego
deste significante no interior de relações de reconhecimento.
Um caso real
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resumo
Neste ensaio examinam-se as rupturas e discordâncias no interior da tradição
lacaniana de psicanálise, com foco em sua inscrição cultural e sua acolhida no
Brasil. Considerando-se a psicanálise como prática clínica, discurso social e dis-
positivo de transmissão, a hipótese desse trabalho é de que os conflitos e divisões
entre psicanalistas podem ser remetidos a diferentes gramáticas fálicas, presentes
na cultura brasileira, particularmente depois dos anos 1970. Pretende-se con-
tribuir para o entendimento da grande penetração da perspectiva lacaniana de
psicanálise no Brasil, como também subsidiar o entendimento mais genérico da
recepção de práticas, teorias e discursos no período posterior à Ditadura Militar.
Finalmente, à luz dos impasses fálicos da brasilidade apresentados no decorrer do
texto, discute-se um episódio ocorrido em uma instituição de psicanalistas.
palavras-chave
Psicanálise, instituição, política, transmissão, poder.
abstract
In this essay shall examine whether the ruptures and disagreements inside tradi-
tion of Lacanian psychoanalysis, focusing on its cultural inscription and its recep-
tion in the Brazil. Considering psychoanalysis as a clinical practice, social discourse
and transmission device, the hypothesis of this study is that the conflicts and di-
visions among psychoanalysts can remit to differents phallic grammars, present in
the Brazilian culture, particularly after the 1970. It is intended contribute to unders-
tanding of the great penetration of the perspective of lacanian psychoanalysis in the
Brazil, as well as subsidize the more general understanding of reception practices,
theories and discourses in the post-military dictatorship period. Finally in the light
of the phallics deadlocks of the brazilianness shown throughout the text, will be
discussed an episode that occurred in an institution of psychoanalysts.
keywords
Psychoanalysis, institution, politics, transmission, power.
recebido
21/01/2014
aprovado
22/08/2014
A verdade ou o testemunho
Cibele Barbará
Onde tudo estará dito, anotado... Onde tudo será verdade... salvo que
faltará a verdade essencial, a qual nenhuma reconstrução histórica ja-
mais poderá alcançar, por mais perfeita e onicompreensiva que seja... [...]
O outro tipo de compreensão, a verdade essencial da experiência não é transmis-
sível... Ou melhor, só o é pela escrita literária... (SEMPRUN, 1995, p. 126).
Como contar uma verdade pouco crível, como suscitar a imaginação do ini-
maginável, a não ser elaborando, trabalhando a realidade, pondo-a em pers-
pectiva? Com um pouco de artificio, portanto! (SEMPRUN, 1995, pp. 125-126).
conveniente dessa aproximação, como levanta Prates Pacheco (no prelo), seja a
diferença radical da posição do sujeito que testemunha por meio da literatura,
daquele que testemunha no dispositivo analítico e/ou do passe. É que nas ex-
periências desumanizantes das torturas ou dos campos de concentração, como
ela diz: “O sentido cai, porque antes cai o homem” (PRATES PACHECO, 2011).
Aliás, é preciso lembrar que um dos grandes projetos criados por Hitler, nomeado
de “a solução final”, tinha como meta eliminar não só os judeus, mas acabar com
todos os rastros humanos da sua existência (GAGNEBIN, 2009).
Para Agamben (2008/2013), o campo de concentração, de Auschwitz em espe-
cial, foi um lugar de um experimento ainda não imaginado. Daí muitos testemu-
nhos de sobreviventes recorrentemente nomearem esta experiência de “inimagi-
nável”. Uma experiência devastadora em que o impossível é introduzido à força
no real (AGAMBEN, 2008/2013). Ou, como explica Duba (2010, p. 41), trata-se de
um acontecimento inédito que com efeitos de trauma, marca uma ruptura que
explode os limites da representação: “Ou, em outras palavras, a literatura que se
tornou possível a partir daí teve que incluir a representação de um real irredutível,
o que se traduz por uma defasagem sempre presente na própria narrativa entre o
acontecimento e o discurso”.
Diferente disso, em uma análise, a interpretação inclui o sem sentido, o Real,
para fazer cair a consistência da significação e não para fazer cair o homem.
Aponta-se o sem sentido para fazer emergir justamente os traços, os rastros mais
radicais da singularidade do sujeito humano, ao mesmo tempo em que evidencia
que sua sujeição ao Outro é voluntária (PRATES PACHECO, 2011). Contudo, se
existe alguma outra possibilidade de aproximação entre a psicanálise e a literatu-
ra de testemunho, talvez possamos dizer que é na importância dada por ambos
à construção de um saber sobre a experiência. É só no discurso do analista que o
saber está no lugar da verdade, e isso não pode passar despercebido, pois denota
uma posição ética – a de que o saber construído pelo analisante tem valor de
verdade, independente se corresponde ou não à realidade: “Se a palavra é tão li-
vremente dada ao psicanalisante – é justamente assim que recebe essa liberdade –,
é porque se reconhece que ele pode falar como um mestre, isto é, como um estou-
vado [...]” (LACAN 1969/1970-1992, p. 35). É o discurso do analista que institui,
como diz Lacan (Ibid., p. 31), a histerização do discurso: “Em outras palavras, é
a introdução estrutural, mediante condições artificiais, do discurso da histérica”.
Condição artificial que institui uma circulação entre os discursos, marcando o
retorno do sujeito ao lugar de agente da sua própria história.
Da mesma forma, a literatura de testemunho parece produzir também certa
condição para a elaboração sobre um saber em uma experiência, sem a pretensão
de sobrescrever uma verdade por outra indiscutível. Não é porque os testemunhos
relativizem uma verdade histórica totalizante que significa que eles se tornem
equivalentes, pois a escrita de cada testemunho carrega rastros singulares. Por-
tanto, o testemunho literário, assim como a experiência psicanalítica, viabiliza
diferentes versões que incluem aquilo que outros discursos totalitários tentam
excluir, ao mesmo tempo em que situam a verdade apenas como um semi-dizer:
“ela só é acessível por um semi-dizer, que ela não pode ser inteiramente dita por-
que, para além da sua metade, não há nada a dizer.” (Ibid., p. 49).
Neste sentido, como pontua Prates Pacheco (2011), a literatura de testemunho es-
taria mais do lado da experiência de análise do que exatamente a do passe: “Mais do
lado do que Lacan chama de hystoire, historisterização, ou seja, uma experiência que
institui um sujeito dividido no lugar de agente” (PRATES PACHECO, 2011).
A questão é que nem todos os testemunhos desafiam o impossível de dizer.
Muitos tendem à descrição e insistem de alguma maneira em falar a verdade do
que se passou. É justamente neste ponto, da sua relação com a verdade, que o
testemunho de Semprun (1995), a meu ver, diferencia-se; ele, já de saída, contou
com o impossível. Seu livro “A Escrita ou a Vida” é mais do que o testemunho
da sua experiência no campo de concentração. Neste livro ele relata o que pôde
fazer com sua experiência no campo de concentração: “Não é um livro sobre ‘a
coisa’, mas sim sobre o que ele pode fazer com ‘a coisa’, para permanecer vivo”
(PRATES PACHECO, 2011). Há algo de inédito, de criação, de invenção. E este
inédito não tem relação com o “inimaginável” da experiência do campo de con-
centração, como citamos antes. E sim, com a invenção singular, que criou para se
separar do lugar de objeto que ocupava para o Outro. Invenção para dar conta de
fabricar vida após tanta morte, para sair do sonho/pesadelo que a realidade havia
se tornado após sua libertação. “O sonho da morte, única realidade de uma vida
que, ela mesma, não passa de um sonho. [...] Nada era verdade a não ser o campo
de concentração, é isso” (SEMPRUN, 1995, p. 237).
Retomo sua fala: “Onde tudo estará dito, anotado... Onde tudo será verdade...
salvo que faltará a verdade essencial, a qual nenhuma reconstrução histórica ja-
mais poderá alcançar, por mais perfeita e onicompreensiva que seja” (Ibid., p. 126).
É disparatado que na discussão com os repatriados já soubesse de antemão que a
experiência que anteriormente vivera não era passível de ser transmitida, a não ser
a partir de certa perspectiva, usando um pouco de artificio. Em seu testemunho,
ele diz não ter conseguido isso de imediato: “Mas meu plano afigurava-se irreali-
zável, pelo menos no imediato e na sua totalidade sistemática. A memória de Bu-
chenwald era demasiado densa, demasiado implacável, para que eu conseguisse al-
cançar logo de saída uma forma literária tão depurada, tão abstrata” (Ibid., p. 158).
Ele fala em seu livro que precisou abrir mão por um bom tempo da ideia de
escrever. Por um lado, precisava da escrita para fabricar vida após tanta morte,
mas, por outro, deixar passar; deixar passar através da escrita naquele momento
afigurava-se para ele um luto inacabado, uma passagem temporal radical demais,
suicida. Daí o nome do livro A Escrita ou a Vida (Ibid., p. 162):
Nada mais possuo a não ser minha morte, minha experiência da morte, para
contar minha vida, expressá-la, levá-la adiante. Tenho que fabricar vida com
toda essa morte. E a melhor maneira de conseguir é a escrita. Ora, esta me leva a
morte, aí me tranca, aí me asfixia. Estou nesse ponto: só posso viver assumindo
essa morte pela escrita, mas a escrita me impede literalmente de viver.
Tinha de escolher entre a escrita e a vida, escolhi esta. Escolhi uma longa cura de
afasia, de amnésia deliberada, para sobreviver. E era nesse trabalho de retorno
à vida, de luto da escrita que havia me afastado de Claude-Edmonde Magny, é
fácil compreender. Sua Carta sobre o poder de escrever, que me acompanhava
por todo canto, desde 1947, mesmo nas minhas viagens clandestinas, era o único
vínculo enigmático, frágil, com aquele que eu gostaria de ter sido, um escritor.
Comigo mesmo, em resumo, com a parte de mim mais autêntica embora frustra-
da (SEMPRUN, 1995, pp. 191-192).
Nesta carta, a amiga lhe dizia que para escrever é preciso deixar-se morrer, pois
a literatura só é possível ao término de uma ascese, de algum descolamento: um
se desgarrar de si (SEMPRUN, 1995).
A escrita só pôde ser retomada, dezenove anos depois da sua libertação do cam-
po, especificamente em 1964, com a publicação do livro A Grande Viagem, mas
não sem o retorno de muita angústia:
1 Esta carta, transformada em livro, foi publicada em 1947 sob o título “Carta sobre o poder de
escrever”, pela editora Seghers.
Livro que ele escolhe escrever em sua segunda língua, o francês, por ser uma
língua de exílio que lhe permitiu certo afastamento e possibilitou esta primeira
publicação (SEMPRUN, 1995).
Importante notar que devido à censura de Franco a publicação deste livro foi
proibida e sua versão em espanhol feita no México. Seu editor, com o intuito de
cumprir o ritual de entrega ao autor deste livro premiado, mandou fabricar um
exemplar único com capa e formato tal qual a versão mexicana, mas com as folhas
internas brancas “virgens de qualquer impressão” (Ibid., p. 263). Ao folhear o li-
vro, com suas páginas brancas, Semprun conta que foi tomado, naquele “instante
único”, pela lembrança do dia 1o de maio de 1945, quando uma borrasca de neve
caía sobre as bandeiras vermelhas, no momento exato da sua libertação: “Naquele
instante, naquele primeiro dia da vida de volta, a neve turbilhonante parecia me
lembrar que seria, para sempre, a presença da morte” (Ibid., p. 264). Explica que
foi como se a “neve de antigamente” tivesse caído de novo sobre sua vida e apa-
gado os traços impressos do livro, segundo o qual havia escrito “numa sentada”:
Era um sinal fácil de interpretar, uma lição fácil de tirar: eu ainda não ha-
via conquistado nada. Esse livro, que levei quase vinte anos para poder escrever,
desaparecia de novo, mal terminado. Teria de recomeçá-lo: tarefa interminável,
decerto, essa de transcrição da experiência da morte (Ibid., p. 264).
A neve, a antiga neve que naquele instante recaía sobre as páginas brancas do
livro, não cobria qualquer texto. Não cobria uma língua qualquer: “Por certo, ao
anular o texto de meu romance na sua língua materna, a censura franquista limi-
tou-se a redobrar um efeito do real. Pois não escrevi A grande viagem na minha
língua materna” (Ibid., p. 265). Contudo, conta que nesta época vivia em Madri a
maior parte do tempo e aí reencontrava constantemente a sua língua de infância, e
junto dela a cumplicidade, a paixão, a desconfiança, base para a intimidade para o
desenvolvimento da escrita. Ele sabia que a questão não tinha a ver com o simples
reencontro com a língua espanhola após o tempo de exílio na França. Entende que
em parte foi obrigado a fazer isso devido às circunstâncias políticas do exílio, porém
acha que este não era o único motivo de sua escolha pela língua francesa:
Conta que sempre pensava nisso, especialmente quando, vez ou outra, lia a car-
ta da amiga Claude-Edmonde Magny. Para ele, quando “o poder de escrever” lhe
fosse restituído, poderia escolher sua língua materna (SEMPRUN, 1995).
Talvez aqui seja preciso lembrar que o exílio não se resume à passagem de um
país para outro: “Exilar-se é efetivamente um acontecimento”2 (BERTA, 2007). E
apesar de tema recorrente na literatura e poesia, é uma experiência radical que
transforma a relação do sujeito com o mundo (KOLTAI, 2005).
Assim, além da questão da língua materna e apesar de o livro A grande viagem ser
literatura baseada na experiência do campo de concentração, havia um tempo, o tem-
po presente do campo, da memória, que não era possível acessar naquele momento:
O meu problema, que, todavia, não é técnico, é moral, é que não consigo, pela
escrita, penetrar no presente do campo, contá-lo no presente... Como se houvesse
uma proibição da figuração do presente... Assim, em todos os meus rascunhos
a coisa começa antes, ou depois, ou em torno de, jamais começa no campo... E
quando afinal chego lá, quando ali estou, a escrita fica bloqueada... Invade-me a
angústia, torno a cair no vazio, abandono (SEMPRUN, 1995, p. 164).
Para ele não bastava uma estrutura romanesca em terceira pessoa ou mesmo
um simples depoimento enumerador dos sofrimentos e horrores. Era preciso al-
cançar, como ele diz, um eu da narração, nutrido com sua experiência, mas que
vai para além dela “capaz de nela inserir o imaginário, a ficção... Uma ficção que
seria tão esclarecedora quanto a verdade, sem dúvida” (Ibid., p. 163). “[...] Pelo
artificio da obra de arte, é claro!” (Ibid., p. 126). Assim, em 1995, cinquenta anos
depois, no desafio, no fio do impossível de dizer, ele publica o livro A Escrita ou a
Vida, onde testemunha sobre sua experiência no campo de concentração e mais,
sobre o que pôde fazer com o horror do sem sentido.
De acordo com Fingermann (2005), alguns autores – incluo o nome de Sem-
prun – podem ser chamados de Passadores do pior, porque seus textos transmi-
tem o inominável cada qual a seu estilo e maneira singular:
2 Para aprofundamento das questões a respeito do exílio, remeto às pesquisas sobre as relações
do exílio e do luto, realizadas por Sandra Letícia Berta, especialmente na sua dissertação de mes-
trado “O exílio: vicissitudes do luto – reflexões sobre o exílio político dos argentinos” (1976-1983).
cia, e nos fazem ceder à tentação de se atingir aí onde não estava: Duras, Be-
ckett, Blanchot, Lispector, Levi. E outros também (FINGERMANN, 2005, p. 95).
Não é para nós uma questão apenas estética, mas também interesseira e ética.
Interessa saber como orientar as análises para que no fim se reduza o texto da
neurose à estrutura do conto – como diz Lacan. Interessa almejar que pela graça
do desejo do analista que corta, talha e cala, a neurose ao final possa se deduzir e
se reduzir ao matema e ao poema (FINGERMANN, 2005, p. 97).
alguns testemunhos, obras de arte, poemas, transmitam algo para além da signi-
ficação? O que este narrador sucateiro sabe fazer que alguns discursos não sabem?
O que ele sabe interpretar da sua experiência, tal como Semprun soube desafiar e
incluir na transmissão de seu testemunho? É exatamente essa pergunta que Lacan
parece estar procurando responder.
O semblante se apoia na verdade, só pode haver semblante no regime da ver-
dade. Mas há um testemunho, diz Lacan (Ibid., p. 107), que é feito “sem nenhum
recurso ao conteúdo”. Um semblante que conta com seu fracasso de representa-
ção, não para revelar a verdade, mas, sim, algo do sem sentido para fazer ressoar
alguma coisa do significante. Depende, portanto, de ocupar um lugar onde o sem-
blante falha. Nas palavras de Fingermann (2010, p. 343): “Instalar o objeto pe-
queno a no lugar do semblante [semblant], sentido em branco [sens blanc], é não
produzi-lo nem reproduzi-lo como verdadeiro, é o pôr em causa, como hiância,
furo, oco em que ressoa o falasser [parlêtre] aquém da tagarelice do sujeito”. Uma
virada, como diz Lacan (Ibid., p. 113), entre centro e ausência, entre saber e gozo,
que só se consegue por um embalo diferente: “que só consegue quem se desliga de
seja lá o que for que o traça (raye)”.
Conforme destacam Caldas e Barros (2012), Lacan demonstra que todo discur-
so é artificio significante e que de fato o Real não se reduz à significação, porém é
sensível aos efeitos de escrita, assim como na matemática que tem sua eficiência,
mas é desprovida de sentido. O mesmo artifício, o mesmo material serve para
construir algum sentido (semblante) e por não aderir totalmente a ele, deixa res-
tar algo de enigmático, que pode indicar o real:
Este discurso, por ser agenciado pelo objeto, traz o estranhamento diante do real
do escritor, indicando que, mesmo como agente, sua posição de sujeito está mais
próxima possível da posição feminina na qual experimentou um gozo indizível.
Não importa se se trata de um escritor homem ou mulher. Trata-se de escrever a
partir de uma experiência na qual faltou medida ou controle sobre o gozo (p. 197).
Restos que, segundo as autoras, apontam para o que não tem nome, para aquilo
que escapa a todos os ditos. Explicitando que transmitem um enigma, causam
desejo. Mostram através do exercício sublimado de escrever o real que não se
escreve, o que sabem fazer com o impossível (CALDAS; BARROS, 2012). Um sa-
ber fazer que rompe o semblante além das significações produzidas pelas leis do
significante: “A letra parte do pior, da falta, para contorná-lo, produzindo esse
contorno que tanto baliza quanto assinala. A letra está para além da angústia;
ela faz sinthoma, uma solução que não ignora o pior: antes o trança e trespassa”
(FINGERMANN, 2005, p. 98).
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LACAN, J. (1969-1970). O Seminário, Livro 17: O Avesso da psicanálise. Rio de
resumo
Este artigo tem como objetivo examinar, a partir do livro A Escrita ou a Vida, de
Jorge Semprun, algumas relações entre os testemunhos literários e os testemu-
nhos dados nos dispositivos psicanalíticos: a experiência da análise e a do passe.
Também pretende percorrer algumas noções de verdade e testemunho a partir do
conceito de semblante, apresentado especialmente por Lacan em O Seminário,
Livro 18: De um discurso que não fosse semblante.
palavras-chave
Testemunho, verdade, semblante.
abstract
This article is intended to examine, from the book Literature or Life by Jorge
Semprun, relations between the literary testimony and the testimony given in
psychoanalytic devices: the experience of analysis (psychoanalysis) and the pro-
cedure of the Pass. It is also an aim to look at some notions of truth and testimony
from the concept of Semblant, especially presented by Lacan in The Seminar Book
XVIII: On a Discourse that might not be a Semblance.
keywords
Testimony, truth, semblant.
recebido
15/02/2014
aprovado
22/08/2014
Martín Alomo
I. O sujeito do cogito
dar de muitas coisas, dos meus sentidos, das minhas ideias, contudo, não posso
duvidar do fato de que estou duvidando. Para Descartes, esse ponto de chegada
marca um deter da hesitação e a fundação de um novo sujeito. Esse sujeito mo-
derno agora tem a certeza de ser, a qual lhe vem do fato de que pensa e que, além
disso, pensa o pensado, ou seja, não tem dúvidas sobre o objeto em que pensou:
esse sujeito, articulado à noção de verdade romana, que postula a adequação en-
tre o pensamento e a coisa, é sujeito dos objetos de conhecimento que manipula.
Finalmente, constituiu-se um sujeito transcendente.
Heidegger assinala que isso não se deu de um dia para outro. O movimento
cartesiano vinha sendo preparado durante centenas de anos. Descartes é, sim-
plesmente, quem dá o passo decisivo.
O primeiro ponto que me interessa deixar assinalado então é o seguinte: o su-
jeito da civilização, isto é, o sujeito cartesiano, comunica-se com seus objetos em
uma relação contínua, constituindo-se no agente do vínculo. A instauração firme
de um sujeito transcendente.
Esse sujeito cartesiano, que Lacan vinculará com o sujeito da psicanálise em
mais de uma oportunidade, constitui-se no recorte de seu objeto ao qual trans-
cende, ou seja, um sujeito que fica por fora de seus enunciados. Um sujeito sem
atributos, um sujeito que simplesmente é, sem mais. Esse sujeito é o da ciência
moderna. Um sujeito deduzido do fato de que duvida, de que pensa. Ao ser dedu-
ção, também é, poderíamos dizer, um sujeito-quociente e, nesse sentido, um su-
jeito dividido, mesmo que isso seja adiantar-nos muito, já que nem Descartes nem
a ciência propõem um sujeito dividido. E, finalmente, segundo assinala Lacan
(1965/1998) em A ciência e a verdade, esse sujeito cartesiano que é o sujeito da
ciência, é aquele de que se ocupa a psicanálise. Para compreender essa afirmação,
devemos avançar no problema que nos propusemos elucidar.5
Uma primeira aproximação: o Cogito, ergo sum é analisado por Lacan na du-
plicidade do eu duplicado que interessa: há um eu penso e há também um eu
sou. Ambos, de modo algum, coincidem. Podemos seguir os desdobramentos la-
canianos sobre o assunto nos seminários Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, A lógica do fantasma e O ato analítico.
Sabemos que o pensamento, em termos cartesianos, é um pensamento tão
consciente como o sujeito que os pensa e que, evidentemente, isso difere dos
unbevussten Gedanken, os pensamentos freudianos, inconscientes, que pensam
sem se saber pensados, sem consentimento do eu. Todavia, ainda assim, há no
sujeito cartesiano, sujeito-quociente, uma divisão que, com Heidegger, situaria
em termos do esquecimento do ser.
5 Em seu livro Para una izquierda lacaniana, Jorge Alemán desenvolve amplamente esse ponto.
(Gramma, Bs. As., 2009).
100 Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.99-111 novembro 2014
Avatares do desejo no mundo capitalista:
a noção lacaniana de “latusa” e sua relevância clínica
Por um lado, trata-se de um sujeito que esquece, no sentido mais radical do ter-
mo, um sujeito que ignora sua qualidade de ser pura dedução lógica dos elemen-
tos do pensamento. Por outro, ignora também sua qualidade de ser esse objeto ao
qual fica confinado pelo próprio pensar. O sujeito da ciência funda-se nessas duas
ignorâncias radicais, poderia-se dizer: uma, sua qualidade de deduzido; e outra,
sua qualidade de ser o objeto no qual se encontra lançado. Essa dupla ignorância,
esquecimento do ser radical, funda a consistência do discurso científico articula-
do ao discurso da civilização moderna.
“O homem do tecnocapitalismo esqueceu o ser” (HEIDEGGER, 1961/2000, p.
121). Escreve Heidegger em Nietzsche – nem bem Descartes introduziu a certeza
do sujeito, o capitalismo assumiu que tal sujeito era o próprio ser e todo o ente
deveria submeter-se a ele.
Quanto ao modo de laço capitalista, Heidegger considera que o capitalismo, en-
quanto sistema globalizador, é um sistema vinculante. Diferente de um laço discursi-
vo, que vincula os seres falantes, o capitalismo como sistema vincula as mercadorias
a seus consumidores. Nesse sistema, o Dasein, em sua qualidade de aberto ao mun-
do, cai no mundo do inautêntico, já que as produções do capitalismo são produções
de ninguém, produções em série que propiciam a homogenização, como se qualquer
objeto pudesse adequar-se à realidade de qualquer Dasein (Ibid., p. 121 e seg.).
E, em relação a Descartes, continua Heidegger: “sua tarefa foi a de fundar o
fundamento metafísico para a liberação do homem à nova liberdade enquanto
legislação segura de si mesma” (Ibid., p. 123).
Quer dizer, situar seu fundamento no cogito, e já não em Deus.
Interessa-me revisar aqui a noção de “lei férrea” mencionada por Lacan em pelo
menos dois lugares de sua obra escrita. Interessei-me por essa questão, pois vários
colegas referem-se à lei férrea do discurso capitalista como uma determinação
inevitável à qual nos submete a época.
Primeiramente, encontrei a seguinte referência em A agressividade em psicanálise:
Antes dele [Darwin], no entanto, Hegel havia fornecido a teoria perene da função
própria da agressividade na ontologia humana, parecendo profetizar a lei férrea da
nossa época. Foi do conflito entre o Senhor e o Escravo que ele deduziu todo o pro-
gresso subjetivo e objetivo de nossa história, fazendo surgir dessas crises as sínteses
que representam as formas mais elevadas do status da pessoa no Ocidente, do estoico
ao cristão, e até ao futuro cidadão do Estado Universal (LACAN, 1948/1998, p. 123).
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.99-111 novembro 2014 101
ALOMO, Martín
Aqui temos a lei férrea, remetida por Lacan, à dialética do Senhor e do Escravo.
Trata-se da lei férrea, então, enquanto lei de funcionamento de uma lógica específica,
a do Senhor e a do Escravo, nesse caso, que regula os laços entre os indivíduos.
Porém, em outro de seus escritos, mais precisamente em A direção do tratamen-
to e os princípios de seu poder (1958), encontramos outro apontamento que espe-
cifica mais a questão em relação ao tema que nos convoca. Na parte IV: “Como
agir com seu ser”, Lacan envolve-se em uma discussão sobre a identificação ao
eu do analista no final de análise, a qual pode ser lida em elocubrações de alguns
autores ingleses. Daí deriva a questão do problema da cessão do objeto na análise:
Aqui a questão fica um pouco mais clara. A lei férrea, então considerada nos
termos de Lacan, é a lei do significante. Nela, o sujeito está condenado a contar
como um. Não só como um efeito, enquanto efeito de sujeito, mas também como
um objeto, já que, enquanto tal, como objeto, entra em jogo no laço social, em que
– cito – “suas necessidades estão reduzidas a valores de troca”.
Até aqui vamos começando a colocar a questão. O sujeito está submetido à lei
férrea do significante e conta como um no comércio social, no qual os objetos
estão submetidos a uma transação regulada por valores de troca.
É notável como nós, enquanto analistas, também estamos tomados por essa
lei férrea, não estamos fora dela. Ainda mais: em O avesso da psicanálise, Lacan
situa precisamente o lugar da latusa, esse lugar impossível, como aquele que seria
esperado que o analista ocupasse. Mas, antes de desenvolver esse ponto, propo-
nho-lhes um passeio por Marx.
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Avatares do desejo no mundo capitalista:
a noção lacaniana de “latusa” e sua relevância clínica
Modifica-se a forma da madeira, por exemplo, quando se faz dela uma mesa.
Não obstante, a mesa continua sendo madeira, uma coisa comum, sensível. Po-
rém, nem bem entra em cena como mercadoria, transmuta-se em sensorialmente
supra-sensível (Ibid., loc. cit.).
6 Cf. a seção “A” do capítulo IV do La fenomenología del espíritu, “La verdad de la certeza de sí mis-
mo” (HEGEL, 1807/1981, p. 108 e seg.).
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.99-111 novembro 2014 103
ALOMO, Martín
mesa, a mesa continua sendo madeira, mas, ao ser levada ao mercado de bens,
passa a ser mercadoria e já escapa ao sensível, torna-se um ente metafísico. Esse
mercado em que habitam as mercadorias é um mundo vertiginoso, regido pela
oferta e procura e onde outros oferecem suas mercadorias. Esses objetos “objeta-
lizam” aqueles que creem ser seus possuidores. Esses, por sua vez, oferecem mer-
cadorias cujo valor de uso não requerem, não necessitam. Aquele que oferece uma
mesa não necessita de uma mesa, não a necessita enquanto valor de uso e, por isso
mesmo, a oferece como valor de troca. Escreve Marx: “Todas as mercadorias são
não-valores-de-uso para seus possuidores, valores de uso para seus não-possui-
dores. Por isso, têm que trocar de dono” (MARX, 1867/1992, pp. 104-105).
É assim que se produz o intercâmbio das mercadorias que objetalizam seus
possuidores. Sob essa perspectiva, ir a um shopping não é ir senão a um lugar onde
as mercadorias, dali das vitrines, gritam-nos “goza, goza de mim, compre-me”. O
shopping é um lugar em que as mercadorias estão em busca de novos possuidores
-objeto. As mercadorias nos vociferam, nos seduzem, nos encantam, são objetos
endemoniados, metafísicos, teológicos.
Marx pergunta-se: de onde brota, então, o caráter enigmático que distingue o
produto do trabalho nem bem assume a forma de mercadoria? E responde: “ob-
viamente, dessa própria forma”. Fundamenta essa resposta no fato de que aquilo
que dá valor à mercadoria é o tempo de trabalho que o homem dispensa para
produzi-la. Mas, por sua vez, o valor fetichista da mercadoria está no fato de que
sua própria forma vela o tempo de produção, mostrando somente seu caráter fas-
cinante no mercado de consumo. Escreve Marx: “Os homens veem o caráter so-
cial de seu próprio trabalho como caracteres objetivos inerentes aos produtos do
trabalho, como propriedades sociais naturais dessas coisas” (Ibid., loc. cit.).
Os homens veem seu trabalho coisificado. Desaparece assim o caráter social do
trabalho, coisificando-se, de modo intenso, seu valor em um objeto privilegiado:
o dinheiro. Esse objeto representa o valor da mais-valia, extraída quase cirurgica-
mente do fator “tempo de produção” das mercadorias. Enquanto isso, “as merca-
dorias”, escreve Marx, “fazem-nos ver o mundo como uma relação social entre os
objetos, existente à margem dos produtores”. E, mais adiante, prossegue:
“Em um mundo de objetos” – conclui Marx – “os homens tornam-se coisas e intercam-
biam coisas. Em um mundo configurado desse modo, é o objeto que determina o sujeito.”
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Avatares do desejo no mundo capitalista:
a noção lacaniana de “latusa” e sua relevância clínica
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ALOMO, Martín
Vamos chamar isso de latusas. O mundo está cada vez mais povoado de latusas.
Como isso parece lhes causar graça, vou escrevê-lo com a ortografia. Notarão que
poderia tê-lo chamado de latusias. Teria ficado melhor com a ousia, esse particí-
pio com tudo o que tem de ambíguo. (…) E quanto aos pequenos objetos a que vão
encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na
proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês, na medida em que
agora é a ciência que o governa, pensem neles como latusas (p. 153).
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Avatares do desejo no mundo capitalista:
a noção lacaniana de “latusa” e sua relevância clínica
Dentro dessas latusas, assinala, encontrarão vento. Elas estão cheias de vento:
o vento da voz humana, afirma. A voz humana que lhes diz: gozem, gozem, com-
prem-me e gozem.
A latusa é o angustiante e, justamente porque há latusa, é que podemos dizer que
a angústia não é sem objeto, comenta Lacan. Sobre o analista, diz que o impossível
é justamente que ocupe esse lugar, o lugar de latusa. Cito: “É no plano do impos-
sível, como sabem, que defino o que é real. Se é real que haja o analista, isto se dá
justamente porque é impossível. Isto faz parte da posição da latusa” (Ibid., p. 154).
Interessa deter-me nesse ponto: o analista ocupando a posição impossível da la-
tusa. A partir daqui, isolarei algumas linhas de pensamento que já estão presentes
em tudo que foi exposto.
Em primeiro lugar, a latusa obtém sua denominação por uma imersão radical
no rio do esquecimento. Se a verdade da pólis é alètheia, uma alternância entre
ocultamento e des-ocultamento do ser, a latusa da civitas capitalista remete pura-
mente ao ocultamento no Leteo. O Leteo, para os gregos, era o rio do esquecimen-
to. Daí que as latusas sejam um nome do esquecimento do ser.
O ser ao qual nos referimos em psicanálise é o ser ao qual fica cominado o fa-
lante ao habitar um discurso, um ser de objeto. Esse objeto que se é fica soterrado
no esquecimento, na ignorância. Sua consistência pode ser palpada unicamente
no transcurso de uma análise, comenta Lacan, uma vez colocado em andamento
o discurso analítico. Mas, também, o ser em psicanálise remete-nos à falta-a-ser
e, nesse sentido, a latusa é um artefato dado nas mãos do sujeito para que ele não
se encontre com a castração. Por essa via, temos a latusa a serviço do não querer
saber sobre a castração. No que se refere aos distintos modos do não querer saber,
cada uso de latusa será particular de cada sujeito.
Essas latusas “esquecidas”, ou melhor, “esqueser”, de um ser feminino que remete
ao objeto, a ousia, seriam, melhor, latousias enquanto esquecimento da essência – fe-
minina – que foi ou algo assim, se tentamos traduzir mais ou menos o aoristo grego.
Por outro lado, as latusas são os gadgets, assim o diz Lacan. “O mundo está
povoado de gadgets, entenda-os como latusas.” Ele também diz que o analista
deveria poder ocupar o lugar impossível de latusa. Com isso, está dizendo que as
latusas não são somente gadgets. Ou, quiçá, que as latusas-gadgets assinalam um
lugar disponível que, além dos gadgets, também poderia ser ocupado por outra
coisa, eventualmente por um analista bem situado. Entendamos a proposta de
Lacan não como um analista advindo mais uma latusa, e sim ocupando o lugar
disponível que fica assinalado pela existência das latusas no mundo.
A particularidade do analista situadao como objeto a no dispositivo serve-se
desse lugar ao qual nos referíamos, assinalado pela existência das latusas, não
para aprofundar a via do esquecimento do ser, mas para buscar a partir daí, como
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Comentários finais
Se o lugar de latusa pode ser ocupado também por algo que não é um gadget, ou
seja, por algo que não é um artefato tecnológico como por exemplo, um analista,
isso nos permite abrir o jogo a um campo mais amplo, em que as latusas que pu-
lulam no mercado não são somente artigos tecnológicos.
Acredito que essa linha de pensamento leva-nos a ampliar o horizonte no que
diz respeito àquilo que costumamos chamar de patologias do consumo, lugar-co-
mum ao qual acabamos referindo-nos cada vez que tentamos dizer algo sobre as
patologias de nossa época.
Se é certo que a anorexia, apenas para dar um exemplo, é considerada uma
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Avatares do desejo no mundo capitalista:
a noção lacaniana de “latusa” e sua relevância clínica
resumo
Propomos estabelecer o percurso teórico que nos permita reconstruir a noção de
“latusa”, formulada por Jacques Lacan no seminário O avesso da psicanálise. Para
isso, começaremos situando as condições do sujeito que se desprende do cogito
cartesiano e o modo particular que se imbrica com o surgimento do capitalismo
tecnológico. Para tanto, recorreremos a elaborações de Martin Heidegger. Com
base em algumas passagens de O capital, de Karl Marx, situaremos o conceito de
mais-valia, a partir do qual Lacan construirá sua noção de mais-de-gozar. Trata-
se de um percurso necessário para chegar às latusas. Por último, analisaremos a
posição da latusa em relação à posição do analista. Esse percurso nos permitirá
situar a relevância clínica do problema, no que se refere à situação do analista no
mundo capitalista.
palavras-chave
Civilização, capitalismo, Jacques Lacan, mais-de-gozar, latusa.
abstract
We propose to establish the theoretical trajectory which will allow us to recons-
truct the notion of “letosa,” formulated by Jacques Lacan in the seminar L’envers
de la psychanalyse. For this, we begin by setting up the conditions of the subject
which are detached from the Cartesian cogito, and the particular way in which
it is interwoven with the emergence of technological capitalism. To pursue that
objective, we resort to elaborations by Martin Heidegger. Also based on some
passages of Das Kapital, by Karl Marx, we situate the concept of surplus value,
in which Lacan founded his notion of plus de jouir. This is a necessary path in
order to get to the letosas. Finally, we analyze the position of the letosa in relation
to that of the analyst. This path will allow us to pose the clinical relevancy of the
problem, concerning the analyst’s situation in the capitalist world.
keywords
Civilization, capitalism, Jacques Lacan, plus de jouir, letosa.
recebido
13/02/2014
aprovado
05/05/2014
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O psicanalista e a errância de seu desejo: um olhar sobre
as vicissitudes de um ofício tão particular...
O psicanalista e a errância
de seu desejo: um olhar sobre
as vicissitudes de um ofício
tão particular...
Leandro Alves Rodrigues dos Santos
Sigmund Freud
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SANTOS, Leandro Alves Rodrigues dos
Essa pergunta não reverbera gratuitamente, até mesmo porque algum tem-
po atrás defendi uma tese de doutoramento que abordava justamente as vicissi-
tudes da clínica psicanalítica, desse oficio tão particular, já chamado por Freud
(1937/1987) de “profissão impossível”, expressão que encobria certo tipo de ad-
moestação diante do espinhoso caminho pelo qual transita o psicanalista. É pro-
videncial retomá-la neste momento:
Detenhamo-nos aqui por um momento para garantir ao analista que ele conta
com nossa sincera simpatia nas exigências muito rigorosas a que tem que atender
no desempenho de suas atividades. Quase sempre parece como se a análise fosse
a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’ quanto às quais de antemão se pode
estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios. As outras duas; conhecidas há
muito mais tempo, são a educação e o governo (p. 282).
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O psicanalista e a errância de seu desejo: um olhar sobre
as vicissitudes de um ofício tão particular...
Mas mesmo que isso tudo seja necessário e esperado, o cenário que surge, ou
o playground transferencial, como Freud (1914/1987) insinua, torna-se então um
terreno minado, no qual o psicanalista deve ter coragem para aceitar a parte que
lhe cabe nessa fantasia enredada pelo paciente, bem como habilidade e lucidez
para sair dela de quando em quando e poder atuar estrategicamente no caso.
Freud (1915[1914]/1987, p. 221, [grifos nossos]), nesse tópico específico, traça uma
interessante analogia:
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SANTOS, Leandro Alves Rodrigues dos
Diria mais: o paciente não sabe e, em muitos casos, não quer saber, visto que,
diferentemente de um padre confessor – que espera apenas arrependimento a
partir de uma suposta completude da confissão –, o analista incide justamente
nesses pontos da divisão, evidenciando em momentos específicos pontos que le-
vam à dimensão do não-dito, na qual o arrependimento seria de pouca valia.
Além do mais, convenhamos que isso acaba se configurando uma desagradável
tarefa para o paciente: destinar um quantum de esforço para dizer o que sabe e
provavelmente esconde e, principalmente, para dizer o que não sabe ou, como
lembraria com propriedade Freud (1916[1915-16]/1987, p. 126, [grifos nossos]),
dizer aquilo que “não sabe que sabe e, por esse motivo, pensa que não sabe”.
Mais uma vez entra em cena considerável dose de esforço e habilidade necessária
ao analista que, com base em seus cálculos particulares, precisa cuidadosamente
cadenciar o processo, pois também está em jogo uma contabilidade do paciente.
É porque leva em conta a cadência do paciente que Freud (1913/1987, p. 186) ad-
verte os psicanalistas da necessidade de se manterem alertas, especialmente nesse
ponto que consideramos desgastante, pois é esperado que o neurótico alimente
a suposição de que a análise implica sempre um ganho, deixando intactas coisas
que, no fundo, muito provavelmente não quer alterar:
A saída proposta por Freud (1913/1987, p. 171, [grifos nossos]), ao que parece,
engloba outra dificuldade corriqueira, que é comunicar essa dificuldade ao pa-
ciente com meticulosa sinceridade:
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as vicissitudes de um ofício tão particular...
mar sua atenção – sem tentar assustá-lo, mas bem no começo – para as difi-
culdades e sacrifícios que o tratamento analítico envolve, e, desta maneira,
privá-lo de qualquer direito de dizer mais tarde que foi enganado para um trata-
mento de cuja extensão e implicações não se deu conta. Um paciente que se dei-
xa dissuadir por essa informação mostrar-se-ia, de qualquer modo, inadequado
posteriormente. É bom o progresso do entendimento entre pacientes, o número
daqueles que enfrentam com êxito este primeiro teste aumenta.
Posto isso, passemos agora para outro aspecto, quiçá pouco comentado, acerca
das autoexigências feitas pelo próprio analista durante o decorrer de sua prática,
culpando-se em possíveis momentos de insucesso ou de distanciamento diante de
certo ideal que é secretamente cultivado. Freud (1933/1987, p. 189, [grifos nossos])
abordou de um jeito bastante direto esse tópico:
Ainda que lembre aos iniciantes que o interessado em se tratar deve entrar,
desde o começo, com sua cota de implicação:
Para começar, direi que não se trata de uma dificuldade intelectual, de algo
que torne a psicanálise difícil de ser entendida pelo ouvinte ou pelo leitor, mas
de uma dificuldade afetiva – alguma coisa que aliena os sentimentos daqueles
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que entram em contato com a psicanálise, de tal forma que os deixa menos
inclinados a acreditar nela ou a interessar-se por ela. Conforme se poderá
observar, os dois tipos de dificuldade, afinal, equivalem-se. Onde falta simpatia,
a compreensão não virá facilmente.
Aquele que quer tornar-se analista geralmente o deseja muito tempo antes de
ter começado uma cura pessoal. Neste caso, ele se engajará numa profissão ou
numa formação sobre a qual pensa que o aproxima de um tal objetivo: por exem-
plo, começou estudos, de medicina ou psicologia. O saber universitário que ele
assim acumulará será útil sem dúvida, por mais de um motivo. Entretanto, a sa-
piência acumulada apresenta também um inconveniente. É que o futuro analista
ignorará deste modo o traço particular de seu passado distante sobre o qual sua
ambição se apoia, porque seu curso de estudante, depois sua experiência profis-
sional, mascararão facilmente esta origem. Como está escrito nos manuais, ele
crerá engajar-se nesta profissão para fazer o Bem e ignorará em que Mal recalca-
do seu desejo se apoia.
Após esse rol de vicissitudes que surgem durante o exercício da atividade psica-
nalítica, gostaria de destacar algo mais que percebi na confecção de minha tese de
doutoramento, peça acadêmica na qual compilei e lancei um olhar mais apurado
a determinadas dificuldades presentes no psicanalisar e, grosso modo, posso di-
zer que em alguns aspectos se igualam às dificuldades de quaisquer outras pro-
fissões, sem grandes diferenciações, porém por outros ângulos se singularizam
de maneira muito evidente. Dentre eles elegi e abordei alguns tópicos específicos,
elencando algumas das dificuldades que enfrenta o psicanalista, como é possível
depreender a partir de um trecho do resumo que apresenta a referida tese:
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tas e vicissitudes na relação com a família podem ser considerados índices do mal-
-estar do psicanalista frente ao ato de psicanalisar nos dias atuais (SANTOS, 2011).
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Se é preciso um desejo específico para exercer esse ofício, é o que analista deve
ser capaz de reinventar a teoria para cada novo paciente. Essa reinvenção inces-
sante supõe uma curiosidade, um interesse infatigável pelo outro. O paradoxo
desse interesse inesgotável é induzir em alguns o amor da transferência e, em
outros, o ódio: com efeito, essa curiosidade incessante tende a desencorajar as
explicações medíocres com as quais o sujeito pode querer se contentar (p. 26).
Em relação a eles, eu diria que Lacan não pensava em meu ser cheio de dificul-
dades ou cheio de esperança, ele só se interessava pelo que eu dizia. Logo, come-
cei com ele. Tive então de ser hospitalizado. E ele veio me ver no hospital, umas
vinte vezes talvez, para que fizéssemos as sessões. Devo dizer que, na época, isso
não me havia impressionado, porque eu não tinha modelo para me dizer como
um analista devia fazer ou não. Evidentemente, não era comum, mas Lacan era
assim. Há um monte de coisas dessa ordem que ele fez existir ao longo de sua vida
e que são muito diferentes da imagem que em geral passam dele (p. 29).
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Afirmar então que cada psicanalista deveria se haver com seu desejo de ana-
lista, com as errâncias, invariabilidades, imperfeições e arbitrariedades que nele
estão presentes, pode soar como um desperdício, pela obviedade e redundância
da colocação, mas também parece ser razoável que Freud já nos lembrava de que
cada analista só vai até onde seus complexos permitem, só pode analisar até onde
foi com sua análise pessoal e, ainda assim, a despeito disso tudo, pode angariar
recursos que o permitam caminhar nessa trilha espinhosa.
Deve e pode contar também com a ajuda e o acolhimento dos pares, que po-
deria ser mais frequente e mais disponível, tanto dentro quanto fora das institui-
ções psicanalíticas, pois noto que essa temática ultrapassa o terreno da análise e
da supervisão. Talvez seja o lado mais nobre do que chamamos de transferência
de trabalho, tema abordado insuficientemente em nossas produções e pesquisas.
Alio a isso um aprofundamento que julgo salutar, que se embrenha nos possíveis
efeitos que a prática da profissão impossível potencializa naqueles que a praticam.
Tal aspiração se deve ao contato com um trecho específico de uma carta endereça-
da a Freud por Sandor Ferenczi, em 6 de maio de 1910, publicada na coletânea que
engloba a correspondência desses dois amigos e desbravadores dessa nova forma
de olhar e pensar o humano:
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SANTOS, Leandro Alves Rodrigues dos
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FREUD, S.; FERENCZI, S. Correspondência. Organizada por Eva Brabant, Ernst
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O psicanalista e a errância de seu desejo: um olhar sobre
as vicissitudes de um ofício tão particular...
resumo
Trata da delicada questão do desejo do analista, enfatizando algumas particula-
ridades presentes no ato de psicanalisar, em especial sobre as possíveis razões do
entusiasmo necessário à manutenção de tal prática em tempos atuais. Manter a
psicanálise viva e acolher os interessados no tratamento pode exigir do analista
profundas re-significações no campo do amor e trabalho. Propõe também ampliar
a investigação nos efeitos e consequências de tal profissão na vida do psicanalista.
palavras-chave
Psicanalista, desejo, profissão.
abstract
The article deals with the sensitive issue of the analyst’s desire, emphasizing some
peculiarities present in the act of psychoanalyze, in particular related to the pos-
sible reasons towards the enthusiasm necessary for the maintenance of such a
practice in current times. To keep psychoanalysis alive and welcome those in-
terested in treatment may require from the analyst deep re-significations in the
fields of love and work. It also proposes to extend the investigation on the effects
and consequences of such profession in the psychoanalyst’s life.
keywords
Psychoanalyst, desire, profession.
recebido
15/02/2014
aprovado
10/06/2014
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O desejo do analista e o autismo
O desejo do analista é que a análise se dê. Para tanto, o analista seria convocado
a operar no lugar de agente do discurso do analista. Operar da posição de objeto
a que pode causar o desejo do sujeito. Contudo, quando na clínica o analista con-
fronta-se com alguém cuja posição de sujeito aí não se presentifica, o analista é con-
vocado a fazer a “psicanálise invertida”, termo cunhado por Colette Soler (1997, p.
2). Tal situação me levou a pensar sobre o que pode o psicanalista diante de alguns
sujeitos que fracassam ao se inscreverem num discurso, mas especificamente no
discurso do Outro, como é o caso das crianças autistas. Portanto, o presente texto
busca investigar qual o uso que essas crianças podem fazer do desejo do analista.
É a partir deste questionamento que pretendo tratar o binômio – O desejo do
analista e o autismo. Os binômios que tomo aqui como pares de opostos consti-
tuem a base arcaica da língua. A clínica com crianças cuja hipótese diagnóstica é
de autismo mostra como elas se interessam bastante em pôr em ação os pares de
significantes opostos. Elas costumam dedicar bastante tempo das sessões em, por
exemplo: abrir e fechar porta, ascender e apagar a luz. Segundo Nominé, “o autis-
ta é fascinado por esse nível arcaico” da linguagem expresso pelo “funcionamento
binário do significante” (NOMINÉ, 2012, p. 16).
No autismo existiria, então, “uma espécie de gozo automático do significante”
(Ibid). Nas crianças ditas autistas é possível perceber “um gozo muito primitivo
que não é articulável à fala e que não é partilhável com ninguém” (Ibid). Fami-
liares dessas crianças chegam à clínica ressentidos pela perda e/ou ausência da
fala, do olhar, ou melhor, de qualquer sinal de uma demanda destas crianças. Os
analistas advertidos pelo jogo do Fort-da do neto de Freud sabem que uma especi-
ficidade da língua é que “primitivamente os significantes se constituem por pares
de opostos” (Ibid), não retrocedem diante do autismo.
No seu texto Autismo e Paranoia, Colette Soler diz que as crianças ditas autistas
“são sujeitos, mesmo que elas não falem, uma vez que são tomadas no significante
pelo fato de se falar dela; no Outro há significantes que a representam” (SOLER,
1999, p. 222). Ela propõe que escrevamos o sujeito autista com o seguinte matema:
s – sujeito representado, subposto, posto embaixo dos significantes que o repre-
sentam no Outro.
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FERNANDES, Andréa Hortélio
S1
____
s
Esta é a primeira emergência de todo sujeito, ser falado pelo Outro. A questão
que se coloca é de como o sujeito pode vir à agente de um discurso, “tornar-se
alguém que fala, dito de outra maneira, alguém que se anima de libido” (SOLER,
Ibid). Com o matema acima, Soler deseja demonstrar que o sujeito suposto pelos
significantes do Outro ainda não fez sua entrada no real. Isto justificaria a neces-
sidade de uma psicanálise invertida.
É a libido do Outro que se liga às crianças autistas, aqui é importante “evocar
sua inclusão no lugar do Outro” (Ibid). Como é pela demanda que o sujeito “faz
sua entrada no real” (Ibid, p. 225), é por essa via, também, que pode vir a se sepa-
rar do Outro. Logo, o olhar e voz concorrem na relação que pode vir a se estabe-
lecer entre a criança autista e o Outro.
Assim, com bastante frequência, no início do tratamento, o analista é toma-
do como um objeto qualquer da sala. Ao olhar o analista, o olhar da criança o
atravessa. A criança pega no analista como se pegasse num móvel da sala. E com
o tempo, a criança vem a se apoiar na perna, no braço do analista, deixando-se
tomar pela libido do Outro.
As crianças autistas evidenciam na clínica que “não entram por conta própria na
alienação significante... Essas crianças, na condição de sujeitos, permanecem puros
significados do Outro” (Ibid, p. 226). Essas crianças, muitas vezes, são consideradas
unicamente no nível da palavra e dos significantes do Outro. Os analistas ao falar de-
las com a mãe ou com aqueles que as rodeiam terminam por dar continuidade a isso.
Bernard Nominé traz um caso, bastante ilustrativo, acerca disso que foi de-
nominado por ele “o menino de botas”. Era um menino que não dizia uma só
palavra e logo que entrava na sala se despia. Nominé conseguiu fazer com que
ele parasse de se despir, mas o garoto continuava a tirar os sapatos. Quando o
pai vinha pegar o filho era uma luta para calçar-lhe os sapatos. Então, Nominé é
informado pelo pai que o menino passava o dia todo descalço e à noite só dormia
depois de calçar as botas que seu avô tinha lhe dado. O nome do menino era um
nome bastante raro que foi dado pelo pai, a contragosto da mãe. Na região em
que morava esse nome era bastante conhecido por evocar “um célebre desportista
que tinha a particularidade de sempre fazer dupla com seu irmão” (NOMINÉ,
1999, p. 241). Nominé declara ainda que o irmão gêmeo do avô do seu paciente
fez carreira neste esporte, enquanto seu avô era tesoureiro do clube, pois tinha os
pés aleijados.1 O avô também fabricava botas, o pai do menino sonhava em ser
1 No original em francês, pés aleijados é “pieds bots” que remete ao significante “bottes”, botas.
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FERNANDES, Andréa Hortélio
portador desse objeto. Nesse momento, não há nenhuma espécie de apelo ao Outro.
Assim, cabe lembrar que no autismo “a ausência da dimensão do apelo é a contrapar-
tida e o complemento da recusa de ser chamado pelo Outro” (SOLER, 1999. p. 225).
O gozo em causa seria prévio ao Outro “furado pela virtude do significante”
(LEFORT, op. cit.), já que “é o significante que faz furo no real do Outro pela
demanda” (Ibid). O gozo em causa é possível pensá-lo como prévio ao Outro que
está em jogo na incorporação significante. Este último é Outro que é barrado (Ⱥ),
inconsistente, uma vez que não há um significante (S) que garanta sua existência
e consistência; Outro próprio da neurose.
O gozo prévio ao Outro pode ser tomado como um real do ser vivente. Na psicose,
ele retorna no real e, na neurose, ele retorna no simbólico. A não-incorporação signi-
ficante do Outro simbólico está em causa no que diz respeito à problemática do corpo
no autismo. No que diz respeito ao autismo teríamos um “aquém da alienação, uma re-
cusa de entrar, um permanecer na borda” (SOLER, 1999, p. 219) do discurso do Outro.
A inscrição em um discurso acontece dada a efetivação da operação de sepa-
ração. E é a inscrição do Nome-do-Pai no Outro que permite a inscrição num
discurso. Assim, na neurose a efetivação da estrutura está posta dada a efetivida-
de das operações de alienação e separação. O sujeito neurótico entra no discurso
tanto que o retorno do recalcado se faz no próprio simbólico. Já na psicose, a
operação de separação não acontece dada a foraclusão do Nome-do-Pai.
O psicótico está na linguagem, mas está fora do discurso uma vez que a ope-
ração de separação não é operante. Na psicose paranoica, encontramos o fora do
discurso ilustrado pela instalação do sujeito no campo da alienação, sem que haja
a operação de separação. Na psicose, portanto, o que é foracluído do simbólico
retorna no real, por meio das alucinações e delírios.
É a incorporação significante que mortifica a carne e faz surgir o incorpóreo;
tanto a libido como órgão do incorpóreo como o objeto a. Nessa perspectiva, o
circuito da pulsão seria a representação de como o organismo libidinal vai pe-
gar e, portanto, contornar, os objetos a e como o sujeito utiliza-se da linguagem,
da fala, para isso. Abaixo, o circuito pulsional conforme proposto por Lacan
(1964/1985, p. 169):
Aim
Board
Goal
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O desejo do analista e o autismo
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FERNANDES, Andréa Hortélio
uma espécie de escolha entre se ligar ao Outro ou não” (Ibid.). Isso tem referência
com a operação de alienação: ou bem a criança fica como um puro corpo vivo,
sem libido, inerte, ou “se torna uma máquina significante” (Ibid.), é maquinizado.
Na clínica, até mesmo um boneco pode fazer a criança autista se ligar. Por meio
de um boneco em cujas partes do corpo tocamos e ele se põe a possa cantar, es-
pirrar, dizer que sente cócegas ou contar números, uma criança insistia em fazer
a escolha em apertar a mão do boneco, pois assim conseguia que ele cantasse
sempre uma mesma música. A letra da música dizia: “Lá fora tem um mundo
colorido onde as cores fazem sentido: azul, verde, vermelho e amarelo. Cores di-
ferentes desse mundo encantado, cores e formas para todo lado”. Essa criança, ao
chegar à sessão, corria para o boneco e, inicialmente, pedia à analista para ligar o
botão que fazia o boneco funcionar, depois ela própria ligava o botão. A criança
apertava insistentemente o botão até que a mesma música tocasse repetidas vezes.
Em seguida, ia para a janela e pedia para abri-la, depois de algum tempo a cor
verde se tornou sua cor favorita e era uma das cores presentes na letra da música.
Voltemos à pergunta: a criança autista permanece como puro significado do
Outro? Leo Kanner no texto intitulado “Linguagem fora de propósito e metafóri-
ca no autismo infantil precoce”, datado de 1946, discute essa questão (KANNER
apud RODRIGUEZ, 1999). De acordo com Rodriguez, para Kanner, “algumas
expressões verbais fora de propósito e sem sentido de crianças autistas são, na
realidade, expressões metafóricas” (RODRIGUEZ, Ibid., p. 249). Para Kanner es-
taríamos, então, diante de uma metáfora de transferência de significado entre
palavras; assim, “uma coisa se põe no lugar de outra, à qual apenas se assemelha”
(KANNER, 1946, p. 16).
Era assim que um menino de quatro anos, ao encontrar entre os brinquedos da
sala Nemo, do filme Nemo, sempre o pegava para brincar. Certo dia descobre, na
estante da analista, uma escultura que lembra a forma de um peixe. Ele a nomeia
de Nemo e a leva para a pia, enche a pia de água para mergulhar “Nemo”.
Para Rodriguez, as ilustrações de Kanner, nesse artigo apontam mais para as
definições de metonímia. Ao citar o texto Kanner dá razão a Lacan (CECCAREL-
LI apud RODRIGUEZ, 1999), Rodriguez enfatiza que a falta de intervalo entre S1
e S2 impede que haja sujeito como metáfora, já que para haver metáfora é preciso
que a cadeia significante não seja plena. Como sabemos, Lacan (1964/1985) faz
referência a isso ao falar da holófrase da cadeia significante presente na psicose,
no fenômeno psicossomático e na debilidade mental. Lacan não se refere ao fe-
nômeno psicossomático e na debilidade mental como estrutura, mas sim que elas
apontam para algo específico da relação do sujeito com o Outro.
É interessante, então, lembrar que Lacan já havia chamado atenção sobre
isso no texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose
130 Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.125-133 novembro 2014
O desejo do analista e o autismo
(1958/1998). Nesse texto, Lacan diz que “a condição do sujeito (neurótico ou psi-
cótico) depende do que acontece no Outro, A, e tal acontecimento se articula num
discurso (o inconsciente é o discurso do Outro)” (LACAN, 1958/1998, p. 555).
No exemplo com Nemo vemos que ele pode ser um dos estágios da aquisição da
linguagem por qual passa uma criança. Trago, então, outro exemplo. Uma crian-
ça de cerca de dois anos vê uma locomotiva se aproximar e a nomeia por “Tho-
mas”, a locomotiva é nomeada pelo nome próprio do desenho animado Thomas
e seus amigos, de um canal fechado da TV. Para essa criança, como é para todos
que adquirem a linguagem durante um tempo, “o nome próprio carece do traço
essencial do nome próprio: nomear algo, um objeto individual na sua singula-
ridade” (RODRIGUEZ, op. cit.). Contudo, encontramos isso institucionalizado
na linguagem quando, por exemplo, utilizamos Gilette no lugar de barbeador. O
significante Gilette passa a ser o nome próprio de barbeador e não remete apenas
à marca Gilette, há uma ampliação de sentido.
No autismo, a holófrase do par significante S1 e S2 não é sem consequências. O
“S1 se subtrai ao discurso e, aderido como está ao S2 holofraseado, ele o ‘arrasta’
consigo para fora do discurso S2” (Ibid.). Assim, a clínica com crianças autistas
revela que os significantes se mostram congelados e exercem apenas a função de
signo, representar algo para alguém sem a dialética própria à função significante.
Entretanto, costumamos ouvir diferentes acepções sobre a saída do autismo. Para
Rodriguez, isso corresponderia “ao ‘descongelamento’ desses signos e à sua mu-
tação em significantes” (Ibid.). Cabe ainda colocar mais uma questão: tratar-se-ia
de uma aquisição sem volta ou de uma alternância?
Retomarei um último recorte clínico, no qual tentarei abordar essa questão. O
menino em vias de fazer três anos que era cotidianamente treinado pelos próxi-
mos a cantar “Parabéns para você” e apagar a velinha. Essa criança ao desenhar
ainda faz bastante uso de garatujas, onde vemos o furor do polimorfismo sexual
da criança, porém o número 3 aparece e a analista marca: “olha o 3”. A criança,
que ia fazer outro desenho, para e volta-se para a analista com um largo sorriso.
Ao mesmo tempo, essa criança ainda mantém uma linguagem com muita ecolalia
onde é vislumbrado o seu apagamento enquanto sujeito por meio do qual o sujeito
permanece excluído do discurso que enuncia.
Por fim, concordo com a afirmação de Colette Soler, segundo a qual “esses su-
jeitos não entram por sua própria conta na alienação significante” (SOLER, 1999,
p. 226). Se o fazem é na medida em que podem encontrar um analista como o
parceiro que pode escutá-los e acompanhar como se dá e se desenrola a relação
com o Outro para essas crianças. Longe de automatizar a linguagem e a vida das
crianças autistas, o analista deve estar atento à possibilidade de a criança poder
deixar de ser um puro significado do Outro.
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FERNANDES, Andréa Hortélio
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132 Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.125-133 novembro 2014
O desejo do analista e o autismo
resumo
O artigo examina o que pode o psicanalista frente a alguns sujeitos que fracassam
ao se inscreverem num discurso, mas especificamente no discurso do Outro, como
é o caso das crianças autistas. O texto busca investigar qual o uso que essas crianças
podem fazer do desejo do analista, através de recortes clínicos. Parte da constatação
de que essas crianças se interessam bastante em por em ação os pares de significan-
tes opostos, demonstrando um fascínio pelo nível mais arcaico da linguagem. Res-
salta que longe de automatizar a linguagem e a vida das crianças autistas, o analista
deve estar atento à possibilidade da criança poder deixar de ser um puro significado
do Outro e assim adentrar na alienação significante. Para tanto, adverte que, muitas
vezes, é necessário encontrar um analista como o parceiro que pode escutá-los e
acompanhar como se desenrola a relação com o Outro para essas crianças.
palavras-chaves
Desejo do analista, autismo, alienação, Outro, linguagem.
abstract
The article examines what the psychoanalyst can do as he finds himself working
with some individuals who fail to enroll in a speech, specifically in the discourse of
the Other, as it happens with autistic children. The text aims to investigate the use
which these children can make of the analyst’s desire, through clinical samples. It
departs from the conclusion that these children become very interested in putting
into action the pairs of opposing significants, demonstrating a fascination for the
most archaic level of language. It also points out that far from automatizing the lan-
guage and the lives of autistic children, the analyst should be alert to the possibility
which may lead the child into no longer being a pure meaning of the Other and thus
go into significant alienation. To this end, the article warns that it is often necessary
to find an analyst who will work as the partner who can listen to them and follow
how the relationship with the Other for these children unfolds.
keywords
Desire of analyst, autism, alienation, Other, language.
recebido
15/02/2014
aprovado
21/06/2014
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.125-133 novembro 2014 133
direção do tratamento
135
Se soubéssemos o que o avarento encerra no seu cofre,
saberíamos muito sobre seu desejo
Se soubéssemos o que
o avarento encerra no seu cofre,
saberíamos muito sobre
seu desejo 1
Lacan faz essa citação, de autoria de Simone Weil, em O Seminário, livro 6: o de-
sejo e sua interpretação, na lição de 13/05/1959, quando convoca os psicanalistas
a ocuparem o lugar de objeto a, objeto este que causa o desejo de o sujeito trazer
algo de sua verdade à tona, impulsionando o discurso inconsciente. A autora se
apropriou dessa citação, como uma metáfora, com o objetivo de desenvolver o
trabalho do psicanalista em sua prática clínica enquanto objeto a, lugar em que o
analista põe o sujeito analisante ($) a produzir os significantes que o determinam.
A questão da avareza aparece durante o processo de uma jovem em análise,
como um significante do Outro, significante esse que ela toma para si como uma
sina que a persegue e que lhe provoca um mal-estar. O significante “avaro”, com
suas derivações “avarento” e “avareza” se faz presente na fala da jovem de uma
forma insistente, o que a leva a buscar saber sobre o segredo familiar que lhe faz
enigma. Ela esconde no seu “cofre” o objeto precioso, o pai biológico, por não
querer perdê-lo, mas a ele não tem acesso, efeito de um dito materno proibitivo na
adolescência e de uma confrontação, na época, inamistosa com esse pai.
O fragmento desse caso clínico, que muito contribuiu para a clínica da autora,
é o de Verônica,2 que após muitas andanças pelo mundo acompanhando os pais
que a criaram, retorna às suas origens, a cidade de São Paulo,3 em busca do pai que
lhe foi “arrancado” ainda na infância.
Verônica trabalha para uma ong4 como pedagoga. Saiu da cidade em que atual-
1 Este artigo baseia-se na apresentação realizada por ocasião do XIV Encontro Nacional da EPFCL
– “O desejo e suas errâncias”, cujo título original foi Em busca da verdade. O título foi extraído de
uma frase de Simone Weil, escritora francesa, citada por Lacan (1958-59/2002, lição de 13 de maio
de 1959, p. 394). Foi utilizado pela autora como uma metáfora.
2 Nome derivado do latim verum (verdade) .
3 Neste artigo as cidades, nomes e profissões utilizadas pela autora são fictícios.
4 Organização não governamental que trabalha em comunidades carentes.
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.137-142 novembro 2014 137
SZAJDENFISZ, Bela Malvina
mente vive sua família, porque queria se distanciar de seu controle. Trouxe consi-
go o desejo de busca pelo pai biológico e a tiracolo, o namorado alagoano que, ao
passar em um concurso público para o magistério superior, mudou-se para outra
cidade no norte do Brasil. Verônica não o acompanhou. Diz que o ama, mas teme
recomeçar uma nova peregrinação. Atribui à universidade um obstáculo para sua
vida, pois quando pequena, foi obrigada a morar com os pais no exterior, por cau-
sa dos mestrados e doutorados deles e agora, na fase adulta, vê isso se repetir. Diz
que não quer isso para si, mas quer construir sua própria família em outra base,
que não a da família em que foi criada.
Na sua primeira entrevista, Verônica se queixa de uma gastrite e se apresenta com
manchas pelo corpo, sem diagnóstico preciso. As manchas apontam para o sintoma,
levando a perceber que ali há uma mensagem. Ela é o mensageiro que carrega suas
marcas. Seu código pessoal está gravado no corpo, exigindo uma decifração.
Os pais biológicos de Verônica se conheceram em São Paulo, ainda estudantes
de biologia, e foram morar juntos quando ela nasceu. Ainda pequena, eles se se-
pararam. Sua mãe, sentindo-se desamparada, sem trabalho, conseguiu uma bolsa
para o mestrado em uma cidade no sul do Brasil, onde encontrou em Figueiredo5
alguém que pudesse lhe dar uma sustentação e com ele acabou se casando.
Verônica, que queria muito ter um pai, aos cinco anos arrancou a foto de seu pai
biológico do álbum de bebê e a substituiu pela foto de Figueiredo, seu pai adotivo,
que simplesmente riu. Ela se queixa até hoje de que perdeu seu pai verdadeiro por
um pai que a adotou parcialmente. Isto porque prometeu dar-lhe seu sobrenome
e nunca o fez. Como ele havia passado para um doutorado no exterior, a família
precisou acompanhá-lo e nunca mais se falou dessa mudança de nome.
Em uma das sessões, Verônica evoca uma passagem traumática de sua ado-
lescência. Silva, seu pai biológico, veio ao seu encontro, mas sua mãe interveio
impedindo qualquer aproximação, só consentindo após a concordância dele em
custear os estudos da filha, o que o fez por curto período. Com a interrupção do
custeio dos estudos, Verônica se viu na contingência de trabalhar, mas só conse-
guiu quitar a dívida com a ajuda do pai adotivo, irritando a mãe a tal ponto que
ele exigiu que a filha entrasse na Justiça contra o próprio pai. Na sua fantasia de
adolescente, ela imagina que seu pai nunca mais vai querer vê-la. Ela diz não que-
rer nenhum contato com ele, mas precisa saber de sua história.
Verônica lembra-se de ter exercido funções domésticas, de organização da casa
por um bom período. Enquanto sua mãe trabalhava em outra cidade, ela cuida-
va de sua meia-irmã mais nova. Ela, por não se sentir parte da família, em sua
5 Sobrenome fictício dado para ressaltar a notoriedade do sobrenome da família. João Batista
Figueiredo foi o trigésimo Presidente do Brasil no período de 1979 a 1985 e o último presidente
do período do regime militar.
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Se soubéssemos o que o avarento encerra no seu cofre,
saberíamos muito sobre seu desejo
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projeto original de encontrar aquele que, na sua fantasia, lhe foi arrancado de seu
convívio quando criança.
Em O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação, Lacan nos diz que o dis-
curso fragmentado, efeito do recalque, contém elementos interpretáveis que vão
surgindo à medida que o sujeito em análise tenta reconquistar-se na sua originali-
dade. Mas, ainda que a enunciação aponte para o lugar do falante e do seu desejo,
o mais próximo a que se pode chegar diz respeito a fragmentos, ou a um dizer
marcado pela falta (LACAN, 1958-1959/2002, lição de 28/01/1959).
Lacan, em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (LACAN,
1958/1998), acrescenta que para apreender o desejo é preciso tomá-lo ao pé da
letra, na decifração da cadeia significante, um processo cuja lógica traz a marca
da impossibilidade de um saber todo, a recusa de uma verdade irrefutável. Fixado
como uma constante pela fantasia fundamental, o desejo está ali, efeito da opera-
ção de linguagem, motor na enunciação do “isso fala” do inconsciente, um saber
muito maior do que o homem crê saber. É um saber ele mesmo, um saber que não
se pode saber por que está recalcado, um saber que faz parte do recalque original,
algo da ordem do impensável, um saber que a gente sabe sem sabê-lo (LACAN,
1976-77, lição de 14/12/1976).
Ao final de seu ensino, Lacan relativiza a descoberta freudiana em produzir um
corpo de significantes e significações nas interpretações dos casos clínicos. Ele
nos diz que a linguagem deve ser pensada como real, pois há um saber no real e
é nesse saber que está a verdade, priorizando, assim, o gozo. Nesse sentido, uma
psicanálise que visa tudo interpretar e dar sentido a todas as coisas, a tudo que
é falado pelo sujeito, é de outro estofo. As interpretações nada dizem, são meras
intervenções no dizer do analisante. O analista participa do inconsciente do ana-
lisante sustentando o seu desejo, mas, na análise, o Um dialoga sozinho, pois ele
recebe sua própria mensagem sob forma invertida. Satisfazer a demanda dirigida
ao saber é algo da ordem do inacessível, uma vez que é um-dizer que se sabe so-
zinho (Ibid.). Assim, ao ouvir a partitura de um sujeito, o analista não pode ser
tomado pelo sentido, mas precisa ouvir os engasgos, os tropeços, os tons, os sons,
o silêncio, uma enunciação para além dos ditos.
Em relação à verdade, cito Soler (2009):
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Se soubéssemos o que o avarento encerra no seu cofre,
saberíamos muito sobre seu desejo
Verônica lamenta-se da sina que a persegue até os dias atuais, sina com a qual
se identifica em sua fantasia: a da mãe, com seu sofrimento e sua avareza. Ela es-
conde no “cofre” esse pai imperfeito, objeto agalmático não-todo, capaz de furar
a série dos perfeitos. Encerra em si o objeto de seu desejo, um objeto mortificado,
fora do circuito, subtraído, inapreensível, um gozo para além da linguagem, que
escapa ao discurso e se experimenta no corpo.
“Por que tenho que saber tudo?” “Eu não tenho que saber tudo!” são ditos de
Verônica que confirmam um amor cujo pretenso objeto é o resto, sua causa, esteio
de sua insatisfação e talvez, de sua impossibilidade.
O sujeito com que a psicanálise trabalha é produto do discurso da ciência, mas
a ciência da psicanálise é de outro estofo. Na psicanálise há um saber que não
comporta conhecimento. É um saber que não se sabe, mas que está lá recalcado e
que contém uma verdade que o sujeito crê saber. Mas o sujeito não sabe nem do
texto, nem do sentido, nem da língua, cabendo ao analista promover a decifração
de seu enigma. Esta primeira clínica de Lacan se pauta em dar um sentido ao que
o sujeito diz. Na segunda clínica, Lacan aponta para uma intervenção no querer
gozar do sujeito, ou seja, ele muda a noção de estrutura, sendo esta pensada não
como linguagem, mas como real. O objeto a, nesse segundo caso, está fora da
linguagem e se concentra como objeto condensador de gozo, não sendo da ordem
do sintoma. O modo de barrá-lo é pelo ato analítico, sendo o corte da sessão uma
de suas possibilidades.
Esse caso clínico pode mostrar à autora que uma clínica não exclui a outra. Sua
utilização se dará em função da prática, da habilidade e do desejo do analista. O
efeito é a busca do sujeito analisante por um melhor se sentir.
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SZAJDENFISZ, Bela Malvina
resumo
Este artigo traz um fragmento de um caso clínico de uma jovem que, após muitas
andanças, retorna às suas origens, o São Paulo, cidade em que mora seu pai bio-
lógico. Vai em busca da verdade que se esconde por trás de um segredo familiar.
Fixado como uma constante pela fantasia fundamental, o desejo está ali, efeito da
operação de linguagem, motor na enunciação do “isso fala” do inconsciente, um
saber muito maior do que o homem crê saber. Verônica quer encontrar aquele
que, na sua fantasia, lhe foi arrancado de seu convívio quando criança. Guarda
no cofre o objeto de seu desejo, um objeto mortificado, fora do circuito, inapreen-
sível, um amor que denuncia que o pretenso objeto é o resto, sua causa, esteio de
sua insatisfação e talvez, de sua impossibilidade.
palavras-chave
Verdade, desejo, saber, impossibilidade.
abstract
This article presents a fragment of a clinical case of a young woman who, after
many wanderings, returns to her origins, São Paulo, the city where her biological
father resides. She goes in search of the truth that is hidden behind a family secret.
Fixed as a constant by the fundamental fantasy, the desire is there, as an effect of
language operation, the engine of the enunciation of the ‘this speaks’ of the un-
conscious, a knowledge far greater than what man believes he knows. Verônica
wants to find the one who, in her fantasy, was pulled away from her life when she
was a child. She keeps in a safe the object of her desire, an object which is mortified,
out of circulation, ungraspable, a love that denounces that the alleged object is the
rest, her cause, the basis of her dissatisfaction and perhaps of her impossibility.
keywords
Truth, desire, knowledge, impossibility.
recebido
15/02/2014
aprovado
25/08/2015
142 Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.137-142 novembro 2014
A letra do desejo – um relato de sonho
A letra do desejo
um relato de sonho
Maria Vitória Bittencourt
Foi com seu texto O sonho do unicórnio que Serge Leclaire elaborou sua concep-
ção do desejo inconsciente como ordem da letra, numa demonstração da psica-
nálise como uma prática da letra. Esse texto teve várias versões e foi debatido no
Seminário de 1965, Problemas cruciais para a psicanálise (LACAN, 1964-65). A
grande novidade introduzida por Leclaire, ao apresentar o caso de Phillipe para
defender sua tese, não traz o relato de uma análise, nem uma biografia do pa-
ciente, mas um sonho em que a cifra do inconsciente é desvelada a partir de uma
interpretação do analista, prova da primazia do significante. Isso pode ilustrar a
ideia de Freud de que um sonho pode englobar toda uma análise, pois equivaleria
a todo o conteúdo da neurose, e que “a interpretação completa deste sonho coin-
cidirá com o término de toda a análise” (FREUD, 1912/1969, p. 123).
Outro ponto inédito nesse texto é o fato de o próprio analisante efetuar o traba-
lho de deciframento do sonho, pois ficou demonstrado que se tratava da análise
de Leclaire com Lacan, concluída sete anos antes (ROUDINESCO, 1986, p. 321).
Talvez seja o único caso clínico que temos de Lacan como analista, estabelecen-
do-o como um paradigma da análise lacaniana. Assim, é como analista de sua
própria experiência que Leclaire escreveu esse texto e podemos considerá-lo que
teve um valor de passe, no sentido da hystoricização de sua análise com Lacan.
Segundo Michel Bousseyroux, essa dimensão de passe é particularmente notável
nas três lições do Seminário 12, Problemas cruciais para a psicanálise, em que La-
can convida Leclaire a retomar o caso Phillipe e pede aos membros de sua escola
que deem sua opinião sobre o caso (BOUSSEYROUX, 2009, p. 82). A resposta de
Leclaire a todas as questões debatidas nesse seminário se encontra no texto publi-
cado em 1966, considerado sua última versão (LECLAIRE, 1966, p. 106).
Esse trabalho foi apresentado no Colóquio de Bonneval, de 1960, consagrado
ao Inconsciente, organizado por Henri Ey, cuja proposa era abrir um debate com
os filósofos, psiquiatras e psicanalistas das duas tendências na época: Lacan e IPA.
O que estava em jogo era o ensino de Lacan e seu retorno a Freud nas relações do
inconsciente e da linguagem. Desta maneira, esse sonho vem demonstrar a preva-
lência do significante sobre todo o metabolismo das imagens, a partir de um estu-
do detalhado da função da letra. Propomos a leitura da versão publicada em 1968,
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BITTENCOURT, Maria Vitória
Eis o texto manifesto do sonho que, pela via das associações, Leclaire vai extrair
aquilo que insiste em seu dizer: o texto inconsciente.
A partir desse relato, um deciframento de grande riqueza de detalhes vai se
efetuar em torno de associações do paciente, das quais vamos retomar alguns
pontos. O trabalho em torno do sonho traz várias lembranças. Primeiramente, a
praça deserta remete à fonte do unicórnio que se situava na aldeia onde, muito pe-
queno, passava as férias com a família. Fonte essa em que o pequeno Serge gostava
de beber água com um gesto de juntar as mãos como uma concha. Beber a água
da fonte o leva à lembrança de Lili, uma prima de sua mãe que o havia apelidado
de “Philippe tenho sede”, pois a criança não parava de repetir: “tenho sede”.1 Cada
vez que se encontravam, ela o chamava de “Philippe-tenho-sede”, uma fórmula
que se tornou um signo de reconhecimento, uma espécie de pacto que diz, so-
bretudo, o jogo de sedução entre os dois e da espera de uma satisfação garantida.
Segundo Leclaire, no sonho, o paciente realiza seu desejo de beber, remetendo a um
evento da véspera, que fornece ao sujeito o meio de apaziguar um desejo de beber dife-
rente da necessidade real. O desejo de beber estaria ligado a essa mulher, Lili, que tes-
temunha que sua queixa é entendida como um apelo ao desejo, portanto desejo de Lili.
A evocação da sede pelo analista permite a abertura de lembranças de infância,
quando tinha de três a quatro anos de idade. Lembra então da sua relação com a praia
e de sua fobia pelo contato com a areia no seu corpo, como também com migalhas,
fobia que se manifestava à noite na cama, fato que suscitava uma grande angústia.
Outro tema do sonho, o pé, remete a essa manifestação quanto ao corpo: esfor-
çava-se para tornar a sola do pé bem dura, como um chifre,2 para andar sem risco
de se ferir na praia e assim ser admirado por seus amigos, graças à sua proeza.
Uma maneira de realizar sua fantasia obsessiva de manter seu corpo protegido
pelo revestimento de couro invulnerável (Ibid. p. 103).
Surge o significante chifre, que remete à cicatriz de Philippe, no mesmo lugar
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A letra do desejo – um relato de sonho
onde está implantado o chifre do unicórnio.3 Uma marca sobre o corpo onde
comemora um valor fálico e seu traço. Para Philippe, essa cicatriz que atinge a
integridade de seu corpo é, antes de tudo, um signo de reparação, de sutura, de
preenchimento. Tudo isso se articula aos cuidados atenciosos de uma mãe impa-
ciente de satisfazer às necessidades de seu corpo. Esse amor materno excessivo,
que trazia muita satisfação a Philippe, não impedia sua eterna sede, marca do
destino do obsessivo. Vemos que o falo aparece nessa cicatriz, falo desejado por
Lili, efetuando um remanejamento da organização libidinal do sujeito.
Assim, a partir desses elementos do sonho, Leclaire isola uma série de significantes
que se repetem no dizer de seu paciente, significantes que vêm desvelar a cadeia me-
tonímica do desejo do sujeito. São eles: “Lili-sede-praia-vestígio-pele-pé-chifre”.4 En-
tão, o autor nos convida a deixar de lado toda tentativa do que chama de reconstru-
ção e tomar essa cadeia significante inconsciente na sua literalidade, aproximando os
termos das extremidades, fazendo surgir o significante Li-corne. A atenção se fixa na
estrutura literal de Li-corne, para se despreender do valor altamente significativo de
uma representação da linguagem, para se ater ao jogo de letras que indica a via para
o inconsciente. (Ibid. p. 110). Pois Li-corne condensa Lili, e corne que o sujeito deseja
ter, dois extremos da cadeia onde o falo vai se situar na cicatriz, marca do objeto de
desejo de sua mãe. Li-corne também remete a “belo corpo de Lili”5 e ao objeto mito-
lógico – o unicórnio – evitando assim que esses elementos se fixem numa imagem.
Desta maneira, decompondo a estátua do unicórnio em um jogo de letras – Li-corne
– o analista permite a redução do relato à cadeia significante.
Lembramos que o unicórnio é um animal mitológico, emblema da pureza
e força, cuja lenda diz que o único ser capaz de domá-lo é uma donzela pura.
Assim, para capturá-lo é preciso deixar uma virgem na solidão de uma floresta,
como oferta ao unicórnio, que desta maneira viria colocar seu chifre no seu
interior, cujo efeito seria de adormecê-lo.
Nesse momento, Leclaire evoca a estratégia do analista e sua interpretação,
descrita como aquela de uma “reverberação” onde, “deixa se desdobrar e se es-
gotar a intensidade do eco significativo, até que se imponha o traço literal (…)
deixando ressoar como o apelo da sereia, som que o paciente produzia quando
soprava nas mãos em concha”. Vemos como essa intervenção do analista anula
o sentido, não se situando na dimensão da significação. Podemos considerar
um exemplo de interpretação lacaniana.
O efeito dessa interpretação se encontra na rememoração de brincadeiras infantis,
em que o menino fazia piruetas e saltos, movimentos sempre carregados de muita
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BITTENCOURT, Maria Vitória
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A letra do desejo – um relato de sonho
mento de passe. Essa experiência teve como efeito produzir alguns textos sobre
o sonho – “Sonho: via régia?”, “O inconsciente: trabalhador ideal”, “Uma via da
satisfação” (BITTENCOURT, 2007, 2009, 2010).
É verdade que, nos testemunhos dos passadores, se tratava antes, de sonhos em
que a presença do analista, com sua interpretação, trazia uma outra dimensão –
aquela de um despertar, que nunca se dá sem evocar uma certa relação com o real.
Num deles, a partir de uma interpretação do analista, o efeito foi o surgimento de
uma fórmula da lalíngua, carregada de gozo. Portanto, um sonho pode tocar, se
aproximar do real do inconsciente, não porém sem a presença do analista. Foi isso
que um passante nos mostrou – um sonho que fez surgir um significante da la-
língua, língua esquecida que permitiu aceder ao sentido do sintoma. A dimensão
do gozo pôde ser atingida graças à lalíngua, tocando o real do sintoma reduzido a
uma letra – via mais curta – onde se revela o modo pelo qual o sujeito goza de seu
inconsciente – singularmente e realmente.
Vemos nesse sonho de Leclaire, não somente uma demonstração da função da
letra no inconsciente, como também podemos considerar como uma ilustração
da passagem do analisante ao analista, objetivo central da Proposição do Passe,
de Lacan. Ao teorizar o processo que produziu efeito em sua análise, tornando-se
analista de sua própria experiência, deixa um testemunho da marca de seu desejo
e do seu entusiasmo pela causa analítica.
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.143-149 novembro 2014 147
BITTENCOURT, Maria Vitória
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A letra do desejo – um relato de sonho
resumo
Com seu texto “O sonho do unicórnio”, Serge Leclaire elaborou sua concepção do
desejo inconsciente articulado à letra. O trabalho em torno de significantes do sonho
demonstra como a psicanálise se revela como uma prática da letra, onde lalíngua
tem uma posição primordial. Podemos considerar que esse texto teve valor de passe
pelo fato de se tratar do relato de um sonho em análise, cujo autor se faz analista de
sua própria experiência – o que mais tarde Lacan chamou, em 1976, de hystoriciza-
ção de análise. Trata-de de uma teorização de sua própria experiência de analisante,
um testemunho da função da letra no inconsciente, ilustrando a passagem do anali-
sante a analista, objetivo fundamental da Proposição do Passe, de Lacan.
palavras chave
Sonho, desejo, letra, inconsciente, passe.
abstract
With his text “ The dream of the unicorn“, Serge Leclaire elaborates his concep-
tion of the desire of the inconscious articulated with the letter. The work with the
signifiers of the dream demonstrates how psychoanalysis reveals as a practice of
the letter, where lalangue has a most important place. We can regard this text as
having a value of passe by the fact that it discuss a work of a dream in his own
analysis. Becoming the analyst of his own experience, he illustrates the hystorisa-
tion of an analysis, as Lacan define it in 1976. Making a theory of his experience as
an analysand, he testifies the foncion of the letter in the inconscious and the pas-
sing to analyst, the fundamental objective of the Lacan’s Proposition of the passe.
keywords
Dream, desire, letter, inconscient, passe.
recebido
15/02/2014
aprovado
21/07/2014
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.143-149 novembro 2014 149
Conflito ou autorrecriminação? Questões sobre o desejo na neurose
Conflito ou autorrecriminação?
Questões sobre o desejo
na neurose 1
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DUARTE, Lenita Pacheco Lemos
Freud observa que a diferença entre tais neuroses consiste em que, na neurose ob-
sessiva, assim como na fobia, a fonte de excitação permanece necessariamente no
domínio psíquico, enquanto na histeria ela é “transportada para o corporal”, por
um processo de conversão. O caráter puramente mental dos processos obsessivos
é mais obscuro e incompreensível do que o da histeria, sendo mais difícil entender
um dialeto em que a língua dele é próxima, no caso, a histeria.
Na neurose obsessiva, o processo pelo qual a representação do episódio passa-
do se desliga do seu afeto próprio e esse afeto se une a outra representação que
lhe convém, e que já não é incompatível com o eu, é um processo que, por um
lado, se produz fora da consciência, por outro, consiste numa substituição em
que podemos ver “um ato de defesa (Abwehr) do eu contra a ideia incompatível”
(KAUFMAN, Ibid.). Intervindo durante ou após a puberdade, a transformação
das impressões penosas da experiência sexual infantil, por vezes muito precoce,
culmina em obsessões que assumirão a forma de ideias, atos ou impulsos.
No artigo sobre a Etiologia das Neuroses, Freud evoca outra diferença funda-
mental entre a histeria e a obsessão, no que se refere à natureza das experiências
sexuais precoces, vividas respectivamente por um e por outro. Caracteriza o ca-
ráter ativo de experiência erótica infantil como a causa da patologia obsessiva,
quando afirma: “Em todos os meus casos de neurose obsessiva, em idade muito
precoce, anos antes de experiência de prazer, tinha havido uma experiência pura-
mente passiva; e isso dificilmente se daria por acaso” (1896a/1976, p. 244). Freud
pensara ter encontrado a razão da conexão mais íntima desta última e de maior
frequência de obsessões nos sujeitos neurastênicos.
Quanto à causa da patologia histérica, diz que esta “pressupõe necessariamente
uma experiência primária de desprazer – isto é, de natureza passiva” (Ibid., p. 248).
Dessa maneira, Freud achara ter descoberto o motivo da conexão da histeria com
o sexo feminino, e da maior frequência das obsessões nos sujeitos masculinos. No
entanto, em 1913, no texto A Disposição à Neurose Obsessiva (1913/1976, p. 401),
Freud reconhece que essa forma de explicar as respectivas etiologias por essas afi-
nidades não era pertinente, como já dera indícios desta dedução desde a Carta
46 (1896b/1976, pp. 249-253). Ele vai situar a vida sexual precoce como origem
da neurose histérica e da neurose obsessiva, revelando como característica funda-
mental dessa última, seu vínculo estrutural com o sentimento de culpa. Ao reviver
o gozo sexual que antecipava a experiência ativa de antigamente, o obsessivo faz
recriminações a si mesmo num trabalho psíquico inconsciente de transformação
e de substituição. “Resta para a histeria”, segundo Freud, “uma relação íntima com
a fase final do desenvolvimento libidinal, que se caracteriza pela primazia dos ór-
gãos genitais e pela introdução da função reprodutora” (1913/1976, p. 408). Na neu-
rose histérica, esta aquisição está submetida ao recalque, não implicando regressão
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Conflito ou autorrecriminação? Questões sobre o desejo na neurose
ao estádio pré-genital. Freud ressalta que ocorre também uma outra regressão na
histeria, a um nível mais primitivo, dizendo: “A sexualidade das crianças do sexo
feminino é, como sabemos, dominada e dirigida por um órgão masculino (o clitó-
ris) e amiúde se comporta como a sexualidade dos meninos” (Idem, Ibid.). Obser-
va que “esta sexualidade masculina tem de ser abandonada mediante uma última
onda de desenvolvimento, na puberdade, e a vagina, órgão derivado da cloaca, tem
de ser elevada à zona erógena dominante” (Ibid., p. 409). Prosseguindo, embora
considere cedo demais, Freud afirma que “é muito comum na neurose histérica
que esta sexualidade masculina seja reativada e, então, que a luta defensiva por
parte das pulsões egossintônicas seja dirigida contra ela” (Idem, ibid.).
Segundo Quinet, os tipos clínicos também se situam distintamente quanto ao dese-
jo. Este é estruturado não como uma resposta e sim como uma questão inconsciente,
situado no nível de “quem sou eu”? Para o obsessivo, trata-se de uma questão sobre a
existência (estou vivo ou estou morto?); para a histérica, trata-se de uma questão sobre
o sexo (sou homem ou sou mulher?) que é subsumida pela questão – tanto para o ho-
mem quanto para a mulher histérica – “o que é ser mulher?” (QUINET, 1996, p. 29).
Feitas estas breves considerações, minha proposta de trabalho é apresentar re-
cortes de dois casos clínicos, destacando o conflito na histeria de Juma, “a masca-
rada sintomática”, e a experiência de desprazer e a autorrecriminação na neurose
obsessiva, tendo como consequência a culpa pela experiência proibida evidencia-
da por José, “o fóssil engessado”. Os fragmentos evidenciam como os tipos clíni-
cos se difereciam quanto a questões sobre o desejo e a existência.
Inicialmente, Juma procura atendimento para o filho de seis anos de idade que
apresenta medo, dificuldade para juntar as letras e tem queixas frequentes de en-
joo, vômito, alergias alimentares e diarreia. Nas entrevistas preliminares, Juma
apresenta uma demanda de análise e passa a falar do seu desejo de se separar do
marido, criticando-o: “Eu que resolvo os problemas do meu filho e banco tudo em
casa, e ele sempre passivo”, quando acaba revelando que mantém um relaciona-
mento afetivo com um médico, casado, com quem tem conseguido “algum prazer
e amor”. Queixa-se de seu estado permanente de tensão e de diversos sintomas
físicos que apresenta: espasmos musculares, dor no peito e, principalmente, cons-
tantes problemas vaginais que dificultam seu relacionamento sexual.
Juma diz que costuma lembrar-se de seus sonhos, mas alega que estes são in-
compreensíveis para ela. Relata que sonha muito que “possui um pênis, medindo
meio metro de comprimento, seja dependurado no cordão, seja no lugar do cli-
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DUARTE, Lenita Pacheco Lemos
tóris”. Outro que se repete: “Recebo telefonemas de meu amante, antigo médico
de meu filho, que ao chegar de viagem quer me ver com urgência. Sempre vou
correndo ao seu encontro”. Juma explica que esse sonho reproduz o que acontece
no seu cotidiano, pois sempre corre para atender o amante quando ele a chama,
mesmo que seja para um encontro fortuito, o que a deixa “confusa e insatisfeita”.
Juma fala que apresenta frequentes lapsos, enganando-se ao preencher fichas, nas
quais se apresenta como do sexo masculino: “Escrevo meu nome no lugar reserva-
do ao nome do pai. Não sei porque acontece isso, se eu sou mulher e sou a mãe!”.
Esses ditos da analisante apontam para manifestações do inconsciente que sinali-
zam a questão sexual da histérica: “Sou homem ou sou mulher?”.
Durante a análise, Juma interroga e busca decifrar o sentido de seus sintomas,
acrescentando outras queixas no corpo: “Hoje acordei surda, com dor de estôma-
go e cólicas intestinais. Acho que é para não ouvir a voz do meu marido e para
consultar meu gastro, pois estou com saudades dele. Meu pescoço também fica
duro, vou ao ortopedista”. Aqui, a analisante mostra como joga com intensa plas-
ticidade corporal, entregando-se a uma constante simbolização e sexualização
na qual os significantes copulam. Ela chega a dizer: “Eu sou muito sintomática!”.
No entanto, Juma reclama: “Vou a vários médicos, mas nenhum me cura!”. Recorren-
do ao ensino de Lacan, Quinet diz que “a histérica inventa um mestre para não se subme-
ter a ele, mas para reinar apontando as falhas de sua dominação e mestria” (1996, p. 29).
Juma afirma que mesmo estando insatisfeita com seu marido, “que é parado,
bobo e passivo”, não quer se separar, e resolve tentar “encará-lo”. Pensa em seu pê-
nis e fantasia uma boa trepada, mas foge, enquanto busca entender por que recua,
“ora se sentindo anestesiada, ora sentindo aversão por ele”, como fala, mantendo
seu desejo insatisfeito. Pontua a analista: “Mas você permanece casada com ele...”!
“É, e não sei a razão disso”, diz ela. Paradoxalmente, comenta que escolheu esse
homem porque sexualmente fora o mais potente que conhecera. Pontua a analis-
ta: “Potente!”. E ela exclama: “Sim, no início lembrava meu pai superpotente, só
com a diferença que papai tentava comer todas as mulheres, até minhas amigas”.
Juma lembra-se de ter visto uma das relações sexuais entre seus pais, o que a dei-
xou com muito medo e raiva por ter visto o pai agressivo, além de se decepcionar
com a mãe, pois a considerava assexuada, não percebendo-a como uma mulher
submetida a um homem autoritário e prepotente. Após uma briga do casal, seu
pai contou para ela, na época com dez anos, que sua mãe o traíra antes de seu
nascimento, o que a deixou transtornada pela dúvida quanto à sua paternidade e
decepcionada por sua ideia de “santidade materna”.
Juma frequentemente dorme com o filho justificando que precisa cuidá-lo pelos
problemas alérgicos que apresenta, e seu marido não se incomoda e não se oferece
para ajudá-la, o que indica que ele não barra o desejo incestuoso da mulher. Juma
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Conflito ou autorrecriminação? Questões sobre o desejo na neurose
exclama: “Lá em casa está tudo misturado, só há brigas e desencontros entre mim,
ele e o menino. Brigamos muito, porque meu marido me quer muda e eu quero
falar. Ele dorme numa cama e eu em outra!”.
No entanto, buscando aguçar a fantasia do marido, ela não se despe, mas se
veste, quando exclama: “Gosto de comprar calcinhas e sutiãs, tenho prazer de me
enfeitar para ele”. Lacan diz que “é para ser o falo, isto é, o significante do desejo
do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nome-
adamente todos os seus atributos na mascarada” (1958/1998, p. 701). Continuan-
do, afirma: “É pelo que ela não é que pretende ser desejada, ao mesmo tempo que
amada. Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no corpo daquele a
quem sua demanda de amor é endereçada” (Idem, Ibid.). Desse modo, ela recorre
às máscaras, faz-se de falo, indicando que, para além dos panos e enfeites, está o
que constitui seu maior mistério: o gozo feminino. Não tendo um significante que
a identifique como mulher, resta-lhe criar uma imagem agalmática para se sentir
amada e desejada, sua principal reivindicação.
A impossibilidade da analisante é de se oferecer como objeto de desejo ao
marido, de quem ela sabe que se encostar o dedo, “ele vem correndo”. Seu filho
foi usado para que Juma chegasse à análise, para ver se o marido reagia e para
desvencilhar-se de seu sofrimento corporal. Reclama de suas insatisfações junto
ao marido e ao amante, que não a satisfaz sexualmente, mas lhe dá amor, quan-
do diz: “Tenho dois homens iguais, incompletos! Com meu amante eu relaxo, é
quando consigo me descolar do papel de mãe. Ele me ouve, com quem me sinto
mulher, apesar de ele falhar sexualmente. Meu marido é bobo e parado, mas po-
tente sexualmente. Eu o provoco, mas fujo dele”.
O filho aparece como “sintoma do casal parental” (1968/2003, p. 369), e seus
sintomas alérgicos e dificuldade de aprendizagem escolar revelam a impossibili-
dade da relação sexual e a falha do pai em barrar o desejo da mãe. Assim, Juma
mantém com o marido uma relação de perene insatisfação, em que ela procura
impor sempre algum obstáculo entre ela e essa pessoa incômoda, que presentifica
para ela o desejo. Ser objeto de desejo é uma coisa dolorosa e equivocada para ela,
que, como observado, aparece convertido em seu corpo. Ela produz vários sinto-
mas e uma série de problemas vaginais, mostrando que seu desejo está cada vez
mais forte, quando afirma: “Está tudo ardendo, queimando, fica tudo em brasa,
igual a uma fogueira! Tenho que correr para o meu ginecologista!”.
No encontro com o sexo, Juma traz a cena primária dos pais, na qual ela vive um
desencontro ao ver um homem agressivo sexualmente e uma mulher submissa, que,
em sua lógica, articula-se como ser mulher = ser passiva, calar = sofrer, posição ma-
soquista de ser agredida. Assim, ela tenta de todos os modos escapar de ser objeto
de desejo de um homem e poder gozar como mulher, evidenciando dificuldades em
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.151-165 novembro 2014 155
DUARTE, Lenita Pacheco Lemos
assumir a castração e usando seu filho como tampão fálico. A estrutura histérica
revelada nesse caso se resume a encontrar um homem, sustentá-lo, denunciar sua
impotência e fazer com que esse homem seja impotente. Ser objeto de desejo é uma
coisa dolorosa e equivocada para ela, que, como vimos, aparece convertido em seu
corpo quando ela produz vários sintomas e uma série de problemas vaginais.
Nesse caso, observa-se que a analisante tem no marido um parceiro sexual com
o qual faz uma manobra histérica para escapar dele. Juma vai consultar vários
médicos que lhe deem um saber e um alento para sua dor. Todos, porém, são
considerados “impotentes” para curá-la. Recorrendo ao ensino de Lacan em O
Seminário, livro 17: O Avesso da Psicanálise (1969/1970-1992), Quinet destaca que
“a histérica inventa um mestre não para se submeter a ele, mas para reinar apon-
tando as falhas de sua dominação e mestria” (1996, p. 29).
Em Rascunho K (1896/1976, pp. 248-249), Freud diz que na histeria, o início
está no trauma sexual pressupondo uma experiência primária de desprazer, de
natureza passiva, de um gozo a menos. Do trauma, então, tem-se uma represen-
tação sobre o qual incidirá a barreira do recalque. O destino do afeto que acom-
panha a representação recalcada seria a conversão em algum lugar do corpo e
disso resultaria o sintoma. No lugar da representação recalcada encontraremos
uma lacuna psíquica. Quando o processo é bem-sucedido, segundo Freud, temos
a operação bem-sucedida do recalque. A conversão da representação no corpo
implica uma alteração, que ele chama de condensação, porque, na realidade, essa
conversão no corpo não se dá de qualquer modo. A parte do corpo escolhida para
representar a ideia ou a representação recalcada guarda uma relação simbólica, o
que aponta para o sentido dos sintomas. Trata-se de uma operação de linguagem,
condensação em Freud, e metáfora para Lacan. É a presença do sintoma que vai
falar de uma relação específica do sujeito com a linguagem e, por isso pode-se ler
o sintoma; ele está escrito no corpo, como sinaliza Freud, porque uma parte do
corpo se presta a serviço da conversão. Há uma parte do corpo que entra em jogo
na complacência somática (1905/1976, pp. 38-39). Juma não vai, de consulta em
consulta, buscar um médico que lhe dê um saber e um alento para sua dor? Todos,
porém, não são considerados “impotentes” para curá-la?
No artigo Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade, (1908/1976,
pp. 163-170), Freud ensina que o sujeito identifica-se ao mesmo tempo com o ho-
mem e com a mulher, ou seja, a histérica se identifica com o homem ao desejar
o desejo dele por ela e com a mulher ao desejar ser objeto de desejo do homem.
Freud descreve certos ataques histéricos em que “o paciente desempenha simul-
taneamente ambos os papéis na fantasia sexual subjacente. Em um caso que ob-
servei, por exemplo, a paciente pressionava o vestido contra o corpo com uma das
mãos (como mulher), enquanto tentava arrancá-lo com a outra (como homem)
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Conflito ou autorrecriminação? Questões sobre o desejo na neurose
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diz o analisante. Formado em cinema, alega que ficou “engessado e fossilizado ao
virar funcionário público, só compilando dados para o chefe”.
José lembra-se que, na infância, a mãe o alertava sobre a maldade no sexo, a não ir
na conversa de ninguém. Até que um rapaz lhe oferecera bolas de gude transparen-
tes que o deixaram fascinado e ele embarcou na sedução. Relata que não houve pene-
tração: “Só houve bulinação, e eu fiquei satisfeito com a troca”. Esse acontecimento
não teve significação para ele, até ouvir alguém dizer que o sexo era coisa proibida,
quando percebeu que fora “sacaneado”, expressando: “Caí na real, empalideci, me
senti um criminoso”. Acrescenta que se sentiu angustiado e com sentimentos de
culpa por haver concordado em participar daquela relação, se autorrecriminando.
Continuando, afirma que as orientações de seu pai foramvoltadas para que nada
de funesto acontecesse com ele, do tipo: “É melhor ficar em casa do que sair, jogar,
chutar, ser aplaudido ou vaiado. Ficando no banco de reservas, não lhe acontecerá
nada, meu filho”. Mas, segundo José, é melhor ser vaiado quarenta e nove vezes
vezes em cinquenta chances e acertar só um gol que não chutar, não tendo nenhu-
ma chance de fazer gol. Acrescenta que não conseguia pegar no volante porque o
pai sempre dizia: “Cuidado, você vai se acidentar”. Durante uma viagem, afirma
que contou, em quarenta e cinco minutos, trinta e duas coisas negativas que o pai
falou. Diz que não percebia que isso tinha relação direta com ele, achando tudo
folclórico, pensando que o pai era “pirado”. Quanto à religião, exclama: “Quando
eu era pequeno tinha medo de não acreditar em Deus, pois me ensinaram que eu
ia me dar mal se não tivesse essa crença. Minha vida foi moldada em procurar
certezas na religião”. Até iniciar seu tratameto, o analisante não notara que todas
essas observações deixaram fortes marcas em sua subjetividade.
José comenta que passou a beber para romper com os valores familiares, ex-
plicando: “Sempre endossei os dogmas religiosos paternos, vivendo de reflexões
e assertivas do hinduísmo, budismo, islamismo, alcorão e da bíblia, que faziam
parte de minha bibliofilia, da mania de colecionar livros”. Comenta que se não
fosse esse saber, sua iconografia psíquica seria outra, que são as várias imagens
mitológicas que construiu em função da leitura da bíblia. Lembra-se de que de-
pois se ligou a um grupo de artistas, dizendo que seu batismo foi um grande
“porre”, mas com o tempo, precisou afastar-se dessas pessoas por julgá-las “cultu-
ralescas”, refugiando-se na bebida. Retornava sempre ao bar para conversar, mas
acabava profetizando dogmas religiosos, quando lembrava-se do pai, que sempre
repetia histórias de heróis bíblicos. Diz ele: “Lá no bar eu não falava de mim, das
minhas questões, das minhas prioridades, das minhas emergências, carências,
insuficiências, brechas, crateras, fraturas e dos meus vazios. Lá, eu ficava hiber-
nando as ideias, carpindo os pensamentos no copo de cerveja. Acompanhando
todo o ritual do cadáver, velar o corpo, orar por sua alma, até sepultá-lo. Qualquer
Conflito ou autorrecriminação? Questões sobre o desejo na neurose
projeto tinha de ser carpido ali, e eu ia escrevendo e bebendo até ficar embriagado,
inconsciente, esquecendo tudo”, o que sinaliza seu desejo mortificado.
Associando livremente em análise, José evidencia sua procrastinação indican-
do como é difícil agir, concretizar e perpetrar seus planos. Ele contabiliza e com-
pila dados, enumera ideias, lança e verifica hipóteses, faz relatórios, revelando
sua “iconografia mental”, como ele mesmo afirma, ou seja, “os labirintos tortu-
osos de sua mente’, nos quais se mostra escravo dos pensamentos, prevalecendo
o deslizamento metonímico (hinduísmo, budismo..., exigências, carências, in-
suficiências...). Sem se dar conta, José repete as verdades instituídas, alienantes,
não sabendo nada sobre seu desejo. Embriagado pelas palavras, pelo simbólico,
seus atos sucumbem na ruminação mental e, em sua solidão, compartilha com
a bebida o gozo do pensamento. Mas certo dia, ele é capturado pela pulsão es-
cópica, pelo objeto olhar, ao ficar fascinado e impressionado quando vê a garço-
nete do bar enfiar, penetrar os dedos nos gargalos das garrafas para recolhê-las
das mesas. Nesse momento desperta a questão do desejo, e passa a observá-la e
segui-la criando questões e fantasias, quando afirma: “Quem seria aquela mulher,
seria casada, a “rainha do lar” como sua esposa de quem afirmava não sentir mais
nada? Em processo de análise, José deixa de falar da garrafa e passa a descrever a
mulher clara que conhecera no bar. Pontua a analista: “Clara”? “Sim, ela é clara
assim como você”, responde José. Corta-se a sessão e ele não comparece na ses-
são seguinte. No entanto, dias depois, passa no consultório e deixa uma caixa de
bombons para a analista, evidenciando a transferência erótica e resistência. Por
meio de contato telefônico, o analisante é convidado a voltar, e ele retorna.
Em análise, José procura se desvencilhar das verdades impostas pelos mestres
encarnados por teólogos nos quais buscava compulsivamente um saber. Em sua
“bibliofilia”, José se apresenta instalado no discurso do mestre, evidenciando a dia-
lética do senhor e do escravo em que ora se coloca como pastor, encarnando a lei
de Deus ao “pregar” nos bares, ora se apresenta escravizado das certezas dos versí-
culos e mandamentos bíblicos, nos quais verdades absolutas lhes foram impostas.
Freud, em sua correspondência a Fliess, nos seus primeiros estudos sobre a
etiologia da neurose obsessiva, observa que esta neurose de defesa está vinculada
à conotação de prazer quando do primeiro encontro com o sexo, mas quando
sua recordação é evocada, esta se acompanha da autorrecriminação, tendo como
consequência a culpa pela experiência proibida. O que era prazer se torna des-
prazer. Em seguida, recordação e recriminação são recalcados para dar origem à
escrupulosidade. Ao retornar o recalcado, o afeto da recriminação se associa a um
conteúdo deformado: a ideia obsessiva, que é o sintoma de compromisso. A recri-
minação que acompanha a recordação da experiência sexual de prazer lhe confere
a posteriori a característica de experiência proibida. Ela representa a lei pela qual o
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.151-165 novembro 2014 159
DUARTE, Lenita Pacheco Lemos
gozo é marcado como proibido e seu retorno. “A obsessão traz ao mesmo tempo a
lei e sua transgressão, o gozo e sua condenação” (QUINET, 1997, p. 68).
A experiência sexual de prazer da infância de José adquire no a posteriori uma
conotação condenável que se desloca para seus atos, daí sentir-se “imobilizado,
engessado”, pois passar ao ato, isto é, “perpetrar” seus pensamentos, equivale a re-
alizar uma ação criminosa. Embriagado pelas palavras, pelo simbólico, seus atos
sucumbem na ruminação mental e, em sua solidão, compartilha com a bebida
o gozo do pensamento. Durante muito tempo a garrafa de cerveja foi a parceira
ideal de suas frustrações e aspirações, “o casamento feliz” (FREUD, 1912, p. 171).
José vai com projetos para o bar, mas seu alcoolismo é uma tentativa de anestesiar
e anular o gozo do crime de sua infância e, ao apagá-los de sua memória e consci-
ência, desaparece como sujeito, evidenciando seu desejo impossível.
Neste caso observam-se os fenômenos intrassubjetivos característicos da neurose
obsessiva. Beber não tinha importância para José, até ele se deparar com as dívidas,
com a justiça, com a lei simbólica, quando emergem manifestações de intensa angús-
tia e culpa ao perceber sua omissão diante dos fatos em que estava implicado. Via-se
como “co-gestor” de uma situação numa sociedade que tinha com um amigo, que foi
à falência, alegando sua implicação no fracasso, já que não comparecia na empresa.
Em suas associações, evidencia sua procrastinação, indicando como é difícil
agir, concretizar e “perpetrar” seus planos, que continua adiando. Ele contabiliza
e compila dados, enumera ideias, lança e verifica hipóteses, faz relatórios o tempo
todo, revelando sua “iconografia mental”, como expressa, ou seja, os labirintos
tortuosos de sua mente, em que se mostra escravo dos pensamentos, prevalecendo
o deslizamento metonímico. José goza do pensamento, satisfazendo-se no sinto-
ma da ruminação mental obsessiva. Dessa forma, “o obsessivo não só anula seu
desejo como tenta preencher todas as lacunas com significantes para barrar esse
gozo: ele não para de pensar, duvidar, calcular” (QUINET, 1996, p. 28).
Inicialmente, aprisionado aos significantes mestres (S1), aos imperativos superegoi-
cos, representados não só pelo Outro paterno e materno, mas também pelos mestres
religiosos, José repetia as verdades instituídas, alienantes, não sabendo nada sobre
seu desejo. Mas ele é capturado pela pulsão escópica, pelo objeto olhar, focalizado na
mulher “clara” do bar, pelo qual fica fascinado, quando aparece a questão do desejo.
Ao se sentir um “criminoso”, portador de um pênis “estilete” que pode machu-
car a mulher, José afasta-se do objeto causa de desejo para não “perpetrar”, ou
seja, realizar um ato condenável que o deixaria culpado. É na análise, por meio da
neurose de transferência, quando aparecem as resistências, que ele pode atualizar
e elaborar a experiência traumática. Presenteando a analista e interrompendo o
tratamento ele recua, tentando “protegê-la” e, desse modo, busca anular suas fan-
tasias agressivas associadas ao gozo da penetração (“a mulher enfiando os dedos
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Conflito ou autorrecriminação? Questões sobre o desejo na neurose
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DUARTE, Lenita Pacheco Lemos
Considerações finais
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Conflito ou autorrecriminação? Questões sobre o desejo na neurose
Em análise, Juma mostra nos seus ditos, de várias formas, seu desejo insatisfeito
e sua divisão enquanto sujeito. Esta analisante ilustra que a mulher não forma um
universo, daí dizer que A Mulher não existe, como diz Lacan. Juma mostra que a
mulher é não-toda submetida à ordem fálica, ela não faz série, ela se desdobra, se
mascara e faz semblante de falo, mostrando que seu gozo é enigmático, devendo
ser tomada uma a uma. Isso, a clínica psicanalítica não cansa de ensinar, onde
observa-se que cada mulher apresenta uma forma particular de gozar.
José inicia a análise “engessado” e submetido a verdades oriundas dos discursos
dos mestres paterno e religioso, curtindo ruminações e sentimentos de culpa. Des-
sa forma, mostrava sua impossibilidade de agir que é correlata à sua modalidade
de sustentação do desejo como impossível. Mas com o tratamento psicanalítico,
por meio da transferência, ocorre a histerização de seu discurso, quando emerge a
questão do desejo: o que quer uma mulher “clara, a Cinderela?”. E na sua divisão
como sujeito, sujeito dividido, encontra-se no lugar do agente que comanda a pro-
dução de saber. Na posição histérica, José passa a questionar as certezas nas quais se
encontrava alienado, assim como seus desejos e atos, ao estabelecer a transferência
de amor com a analista, sujeito suposto saber sobre as questões de sua existência.
referências bibliográficas
ANDRÉ, Serge. (1991). O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
_________. (1896a). Rascunho K: As neuroses de defesa (Um conto de Fadas Na-
talino) Vol. I.
_________. (1896b). Carta 46. Vol. 11.
_________. (1898). A sexualidade na etiologia das neuroses. VOL. III.
_________. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Vol. VII.
_________. (1905). Fragmento da análise de um caso de histeria. Vol. VII.
_________. (1908). Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade. Vol. IX.
_________. (1909[1908]). Algumas observações gerais sobre ataques histéricos. Vol. IX.
_________. (1912). Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor.
(Contribuições à psicologia do amor II). Vol. XII.
_________. (1913). A disposição à neurose obsessiva. Vol. XII.
_________. (1914). A história do movimento psicanalítico. Vol. XIV.
_________. (1916). Conferência XVII: O sentido do sintoma. Vol. XVI.
_________. (1916[1925]). Inibições, sintomas e angústia. Vol. XX.
_________. (1930). Mal-estar na Civilização. Vol. XX.
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DUARTE, Lenita Pacheco Lemos
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Conflito ou autorrecriminação? Questões sobre o desejo na neurose
resumo
Freud busca esclarecer a etiologia das neuroses, diferenciando os tipos de gozo
vivenciados no primeiro encontro com o sexo, comparando a histeria com a neu-
rose obsessiva. Destaca o conflito na histeria, pressupondo uma experiência de
desprazer e a autorrecriminação na neurose obsessiva, tendo como consequência
a culpa pela experiência proibida. Os tipos clínicos difereciam-se quanto ao dese-
jo, que é uma questão inconsciente. Recortes da clínica mostram as questões da
histérica sobre o sexo, e da existência para o obsessivo.
palavras-chave
Conflito, autorrecriminação, desejo, neurose histérica e obsessiva, gozo.
abstract
Freud aims to enlighten the etiology of neurosis making differences of kinds of
experienced enjoyment in the first meeting with sex, comparing the hysteria with
obssesive neurosis. He destinguishes the conflict in hysteria, presuming an expe-
rience of unpleasure and self-recrimination in the obsessive neurosis and conse-
quently guilt because of a prohibited experience. The clinical types are different
in terms of desire, as it is an unconscious subject. Profiles of the clinic show issues
of hysteria about sex and the existence for the obsessive.
keywords
Conflict, self-recrimination, desire, hysterical neurosis
and obssesive, enjoyment.
recebido
15/02/2014
aprovado
22/08/2014
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.151-165 novembro 2014 165
Resenha do livro: Sua Majestade o autista:
fascínio, intolerância e exclusão no mundo contemporâneo
Resenha do livro
Sua Majestade o autista:
fascínio, intolerância e exclusão
no mundo contemporâneo
Beatriz Oliveira
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.167-171 novembro 2014 167
OLIVEIRA, Beatriz
Em seu livro, Luis traça o caminho em torno de três passos principais. Primei-
ro, faz a crítica à categoria nosográfica do autismo e seu uso ideológico e insti-
tucional na educação destas pessoas. Segundo, demonstra que o próprio termo
“autismo” instaura problemas em torno da dimensão do sujeito e, à luz da psica-
nálise, procura pensar a inclusão destes sujeitos. Terceiro, a partir da ideologia
pós-moderna, se pergunta se o autismo poderia ser uma metáfora do mundo con-
temporâneo como propõem alguns autores.
Vê-se que a pesquisa não é pequena, pois procura articular o campo da clínica,
educação e política. Por isso mesmo não é um texto para se ler com pressa, mas sim,
lembrando que estes campos se enodam e que, em vários momentos, o leitor passeia
por diferentes questões sem, no entanto, perder a orientação ética de Luis: a via do su-
jeito e sua enunciação singular num discurso que forclui a dimensão da subjetividade.
Inicialmente, Luis nos apresenta os pressupostos que nortearam sua pesquisa,
bem como sua escolha pela psicanálise e pela educação inclusiva.
Para sustentar aquilo que Luis nomeia como “fascínio pela figura do autismo”, o
autor retoma a história do autismo, desde as descobertas de Jean Itard com Victor
de Aveyron e as consequências destas para o que veio a se propor como “educação
especial”. Não só isso, mas também faz um estudo histórico da própria psiquiatriza-
ção da infância para retomar a antiga polêmica da diferença entre idiotia e retardo,
estabelecida por Séguin: a idiotia como um bloqueio na linha do desenvolvimento
e o retardo como patologia da lentidão. Tal diferença levaria a distintas formas de
tratar e educar as crianças. Seu objetivo, com isso, foi mostrar que os antecedentes
genealógicos da noção de autismo e de sua educação e tratamento já apresentavam
problemáticas encontradas hoje em diversas teorias (Idem, p. 65).
Assim, ao retomar as controvérsias presentes no próprio estabelecimento do au-
tismo por Leo Kanner, Luis adverte para o apagamento da contribuição da psica-
nálise para o estabelecimento desse diagnóstico a partir da noção de “transtorno
de desenvolvimento”: o distanciamento do autismo enquanto categoria nosográ-
fica diferenciada da esquizofrenia, distanciando-a das psicoses – alvo de trata-
mento clínico – leva-o a ser entendido como “deficiência”, objeto da educação
especializada. “O autismo passa a ser situado em termos de problemas cognitivos
e seu déficit nos processos psíquicos justificados por disfunções cerebrais inatas”
(Idem, p. 66). Isso se verifica ao acompanharmos as instituições especializadas
nos dias de hoje, no Brasil, tal como Luis apresenta no final do segundo capítulo.
É nesse ponto que Luis já nos introduz no campo político. Seguindo Zizek,
ele dirá: as mudanças na concepção teórica e “científica” do autismo ilustram a
cumplicidade entre a ideologia multiculturalista e a hegemonia totalitária técno-
cientificista, representada pelo cognitivismo-comportamental contemporâneo,
questão que ele abordará mais detidamente no último capítulo.
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Resenha do livro: Sua Majestade o autista:
fascínio, intolerância e exclusão no mundo contemporâneo
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OLIVEIRA, Beatriz
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Resenha do livro: Sua Majestade o autista:
fascínio, intolerância e exclusão no mundo contemporâneo
referência bibliográfica
FURTADO, L. A. Sua Majestade o Autista: fascínio, intolerância e exclusão no
mundo contemporâneo. Curitiba: CRV, 2013.
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.167-171 novembro 2014 171
Orientações Editoriais
1. Recebimento do texto por e-mail pelos membros da EPS de acordo com a data
divulgada na rede-afcl@yahoogrupos.com.br e na if-epfcl@champlacanien.net
2. Distribuição para parecer.
3. Encaminhamento do parecer para a reunião da EPS para decisão final.
4. Informação para o autor: se recusado, se aprovado ou se necessita de refor-
mulação (neste caso, é definido um prazo de vinte dias, findo o qual o artigo é
desconsiderado, caso o autor não o reformule apropriadamente).
5. Após a aprovação o autor deverá enviar à EPS no prazo de sete dias úteis um
e-mail contendo um arquivo de seu texto, definido para impressão.
6. Direitos autorais: a aprovação dos textos implica a cessão imediata e sem
ônus dos direitos autorais de publicação nesta revista, a qual terá exclusividade
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.1-192 novembro 2014 173
de publicá-los em primeira mão. O autor continuará a deter os direitos autorais
para publicações posteriores.
7. Publicação.
Nota: não haverá banco de arquivos para os números seguintes. O autor que
desejar publicar deverá encaminhar seu texto a cada número de Stylus.
174 Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.1-192 novembro 2014
Resumo / Abstract: todos os trabalhos (artigos, entrevistas) deverão conter um
resumo na língua vernácula e um abstract em língua inglesa contendo de 100 a
200 palavras. Deverão trazer também um mínimo de três e um máximo de cinco
palavras-chave (português) e keywords (inglês) e a tradução do título do trabalho.
As resenhas necessitam apenas das palavras-chave e keywords.
t 1SJNFJSBMBVEBDPOUFOEPBQFOBTPUÓUVMPEPBSUJHP
OPNF T
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EB-
dos do(s) autor(es) [titulação, filiação institucional e referências acadêmicas e
profissionais, em 10 linhas, no máximo] e endereço completo (com e-mail).
t %FNBJTMBVEBT
OVNFSBEBTDPOTFDVUJWBNFOUFBQBSUJSEF VN
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título, sem o(s) nome(s) do(s) autor(es), e contendo o texto da publicação.
t /PDBTPEFJOWFTUJHBÎÜFTEFTFOWPMWJNFOUPTUFØSJDPT
SFMBUPTEFQFTRVJTBT
EF-
bates e entrevistas, deve ser incluído um resumo de no máximo trezentas pala-
vras, ao final, na mesma língua do trabalho, acompanhado de palavras-chave
(no mínimo três e no máximo sete). Após esse resumo, deve-se incluir também
uma tradução do mesmo, em inglês (abstract), acompanhada da tradução do
título e das palavras-chave.
t /PDBTPEFFOUSFWJTUB
EFWFNTFSJODMVÓEPT
BPĕOBM
PTTFHVJOUFTEBEPTEBUB
da entrevista, nome do entrevistador, nome do entrevistado e dados completos
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.1-192 novembro 2014 175
de identificação de ambos (titulação, filiação institucional e referências acadê-
micas e profissionais). Opcionalmente, podem ser incluídos dados relevantes
sobre o contexto em que foi realizada a entrevista.
t /P DBTP EF SFTFOIBT
EFWFTF JODMVJS
BP ĕOBM
B SFGFSÐODJB DPNQMFUB EB PCSB
resenhada. As ilustrações devem ter seu lugar indicado no texto e devem ser
enviadas também em anexos separados, em formato de arquivo JEPG. Devem
ser nomeadas Fig. 1, Fig. 2, sucessivamente, podendo ainda ter um título suges-
tivo do seu conteúdo.
Citações no texto:
176 Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.1-192 novembro 2014
produzir resultados numa autoanálise desse tipo deve desistir, imediatamente, de
qualquer ideia de tornar-se capaz de tratar pacientes pela análise.
As citações indiretas devem contar as ideias daquele que escreve o texto, mas
também devem referendar as ideais originais do autor citado, em letras maiúscu-
las. Exemplo: Lacan sempre deixou claro sua posição sobre os psicanalistas que
se acomodavam frente aos mecanismos institucionais das escolas psicanalíticas
daquela época, com suas burocracias e rituais questionáveis (LACAN, 1956).
As citações de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte maneira:
Kraepelin (1899/1999).
No caso de citação de artigo de autoria múltipla, as normas são as seguintes:
A) até três autores – o sobrenome de todos os autores é mencionado em todas as
citações, por exemplo: (Alberti e Elia, 2000).
B) de quatro a seis autores – o sobrenome de todos os autores é citado na pri-
meira citação, como acima. Da segunda citação em diante só o sobrenome do
primeiro autor é mencionado, como abaixo (Alberti, et al, 2009, p. 122).
C) Mais de seis autores – no texto, desde a primeira citação, somente o sobreno-
me do primeiro autor é mencionado, mas nas referências bibliográficas os nomes
de todos os autores devem ser relacionados.
Quando houver repetição da obra citada na sequência deve vir indicado Ibid.,
p. (página citada).
Quando houver citação da obra já citada, porém fora da sequência da nota, deve
vir indicado o nome da obra em itálico, op. cit., p. (Kant com Sade, op. cit., p. 781).
Caso a fonte seja um website ou página eletrônica, deve-se explicitar o endereço
eletrônico de acesso, entre parentêses, após a informação, (http://www.campola-
canianosp.com.br/).
Notas de rodapé:
Referências Bibliográficas:
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.1-192 novembro 2014 177
congressos devem ser colocados em itálico. O sobrenome do(s) autor(es) deve vir
em caixa alta, seguido do prenome abreviado.
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ça. Psicanálise: uma profissão? Regulamentável? Questões Lacanianas. Trabalho
apresentado no Colóquio Internacional Lacan no Século. 2001 Odisseia Lacania-
na, I, 2001, abril; Rio de Janeiro, Brasil.
Home Page: Gerbase, Jairo. Sintoma e tempo: aula de 14 de maio de 1999. Dis-
ponível em: www.campopsicanalitico.com.br. Acesso em: 10 de julho de 2002.
Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.1-192 novembro 2014 179
Sobre autores e tradutores
Ana Laura Prates Pacheco
Psicóloga, Psicanalista. Especialista, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pelo
IPUSP. Pós-doutora em Psicanálise pela UERJ. Pesquisadora convidada do LA-
BEURB/UNICAMP. AME da EPFCL, Membro do FCL-SP/EPFCL-Brasil. Coor-
denadora da Rede de Pesquisa de Psicanálise e Infância da EPFCL-Brasil. Autora
de Feminilidade e experiência psicanalítica (2001) e Da fantasia de infância ao
infantil na fantasia (2013).
E-mail: analauraprates@terra.com.br
Beatriz Oliveira
Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano,
Membro do FCL-SP/EPFCL-Brasil, mestre em psicologia clínica pela PUC-SP.
E-mail: biaoliv@uol.com.br
Cibele Barbará
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo.
Rua Jureia, 896 – Chácara Inglesa – São Paulo – SP 04140-110
11 98937-6334
E-mail: cibelelbarbara@singularclinica.com.br
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Christian Ingo Lenz Dunker
Psicanalista, professor livre-docente do Departamento de Psicologia Clínica do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). AME da Escola de
Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil.
Rua Abílio Soares, 932 – Paraíso.
04005-003 São Paulo - SP
E-mail: chrisdunker@usp.br
Colette Soler
Doutora em Psicologia (Paris VII). AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do
Campo Lacaniano – França. Professora de FCCL – Paris. Autora de vários livros,
entre os quais Psicanálise na Civilização (Contra Capa), O que dizia Lacan das
mulheres (JZE), edição bilíngue do Caderno Stylus 1: O corpo falante, O incons-
ciente. Que é isso? (Annablume), Lacan, o inconsciente revisitado (Cia de Freud),
Declinações da Angústia (Escuta), Seminário de leitura de texto: A angústia, de
Jacques Lacan (Escuta), A repetição na experiência analítica, (Escuta).
E-mail: solc@wanadoo.fr
Dominique Fingermann
Psicóloga. Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo La-
caniano Brasil | Fórum São Paulo. Coautora de Por causa do pior (Iluminuras).
E-mail: dfingermann@terra.com.br
Glaucia Nagem
Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
(EPFCL), Fórum São Paulo.
Endereço: Rua Wanderley 700, Perdizes – São Paulo. CEP 05011-001
E-mail: glaucia.nagem@uol.com.br
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Lenita Pacheco Lemos Duarte
Psicóloga. Psicanalista. Membro da AFCL RJ e da IF-EPFCL-Brasil. Participante de
Formações Clínicas do Campo Lacaniano. Pós-graduada em Psicanálise pela Uni-
versidade Estácio de Sá (UNESA). Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
E-mail: duartelenita@gmail.com
Martín Alomo
Psicanalista. Mestre em Psicanálise, Graduado e Professor de Psicologia na Uni-
versidade de Buenos Aires, onde atua como docente e pesquisador. Psicólogo do
Hospital Braulio Moyano da Cidade de Buenos Aires. Membro do Foro Analítico
del Río de la Plata e da Escola Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano.
Codiretor da revista AUN, Publicação de Psicanálise do FARP, e Diretor da revis-
ta Nadie duerma, Publicação digital de Psicanálise do FARP. Entre outros livros,
publicou La elección irónica. Estudios clínicos sobre la esquizofrenia, por Edito-
rial Letra Viva.
E-mail: martinalomo@hotmail.com
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Sonia Alberti
Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise e Pro-
ciência da UERJ. Pesquisadora do CNPq. Analista Membro da Escola de Psicaná-
lise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Rio de Janeiro.
E-mail: sonialberti@gmail.com
Vanina Muraro
Graduada em Psicologia pela UBA – Universidade de Buenos Aires. Coordena-
dora do Foro Analítico del Río de La Plata. Membro da Escola Internacional dos
Fóruns do Campo Lacaniano. Codiretora da Revista Aun, Publicação de Psica-
nálise do FARP.
Docente e pesquisadora da Faculdade de Psicologia, Universidade de Buenos Aires.
Endereço: Av. Pueyrredón 1108 6 K (1118), CABA, Buenos Aires, Argentina
E-mail: vaninamuraro@fibertel.com.ar
184 Stylus Revista de Psicanálise Rio de Janeiro no. 29 p.1-192 novembro 2014
stylus, m. 1. (Em geral) Instrumento formado de
haste pontiaguda. 2. (Em especial) Estilo, ponteiro de
ferro, de osso ou marfim, com uma extremidade afiada
em ponta, que servia para escrever em tabuinhas
enceradas, e com a outra extremidade chata, para
raspar (apagar) o que se tinha escrito / / stilum vertere
in tabulis, Cic., apagar (servindo-se da parte chata
do estilo). 3. Composição escrita, escrito. 4. Maneira
de escrever, estilo. 5. Obra literária. 6. Nome de
outros utensílios: a) Sonda usada na agricultura; b)
Barra de ferro ou estaca pontiaguda cravada no chão
para nela se espetarem os inimigos quando atacam as
linhas contrárias.
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Pareceristas do número 28
Andréa Hortélio Fernandes (UFBA / EPFCL – Salvador)
Ângela Diniz Costa (EPFCL – Belo Horizonte)
Ângela Mucida (Newton Paiva / EPFCL – Belo Horizonte)
Clarice Gatto (FIOCRUZ/ EPFCL – Rio de Janeiro)
Conrado Ramos (PUC – SP/ EPFCL – São Paulo)
Daniela Sheinkman Chatelard (ENB / EPFCL – Brasília)
Elizabeth Thamer (EPFCL – Paris)
Eliane Shermann (EPFCL – Rio de Janeiro)
Fátima Pereira (EPFCL – Salvador)
Lia Silveira (EPFCL – Fortaleza)
Luis Achilles Rodrigues Furtado (UFC – Sobral/ EPFCL)
Raul Pacheco (EPFCL – São Paulo)
Silvana Pessoa (EPFCL – São Paulo)
Sonia Borges (EPFCL – Rio de Janeiro)