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ORGANIZAÇÃO DE DESIDÉRIO MURCHO


Universidade Federal de Ouro Preto

A ÉTICA DA CRENÇA
W. K. Clifford, William James e Alvin Plantinga

Tradução
Vítor Guerreiro
Universidade do Porto

EDITORIAL BIZÂNCIO
LISBOA, 2010
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Índice

Prefácio 9

Sobre os autores 13

1. Fé, Epistemologia e Virtude Desidério Murcho 17

2. A Ética da Crença W. K. Clifford 97

3. A Vontade de Acreditar William James 137

4. Será a Crença em Deus Apropriadamente


Básica? Alvin Plantinga 175

Origem dos ensaios 197

Leituras recomendadas 199


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Prefácio

A RELIGIÃO PODE SER ESTUDADA DE DIFERENTES PONTOS


de vista. Podemos estudar os seus aspectos psicológicos,
históricos, sociológicos ou políticos. Mas também pode-
mos estudar os problemas filosóficos que suscita. Esta pe-
quena antologia oferece uma amostra de uma área da fi-
losofia da religião conhecida por «epistemologia da fé».
Nela, estudam-se aspectos epistemológicos da crença re-
ligiosa, ou fé. Difere, por isso, de outras áreas da filoso-
fia da religião, nomeadamente a área metafísica central,
que trata da discussão dos argumentos a favor e contra
a existência de Deus.
Muitos crentes sentem que esta última discussão é
algo irrelevante — pois não é em função de argumentos
ou provas que têm fé. Apesar de poder haver algo de er-
rado nesta posição (confundir o que faz alguém ter fé
com a sua justificação), há também algo que aponta para
um aspecto que não é estudado nessa área mais tradi-
cional da filosofia da religião, mas sim na epistemologia
da fé. Trata-se de saber se haverá justificação para ter fé

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A ÉTICA DA CRENÇA

sem provas, argumentos ou indícios. Sem muita reflexão,


muitos descrentes responderão que não; muitos crentes
responderão, talvez também sem muita reflexão, que
sim. Que razões haverá para cada uma destas posições?
É este o nosso tema.
W. K. Clifford defende a primeira posição, a que se
chama indiciarista: é epistémica ou racionalmente ilegí-
timo acreditar em algo se não tivermos provas ou indí-
cios a favor disso. William James e Alvin Plantinga de-
fendem versões diferentes da segunda posição. No meu
texto, apresento várias distinções e ideias que dão ao lei-
tor instrumentos que lhe permitem entrar na discussão.
No final do volume, apresento também um conjunto de
leituras recomendadas.
Este livro nasceu em parte da disciplina de Filosofia
da Religião que leccionei na Universidade Federal de
Ouro Preto em 2009. Tive a felicidade de contar com
alunos interessados, inteligentes e imaginativos, que tor-
naram as aulas vivas e estimulantes. Agradeço a todos o
que me ensinaram; a minha compreensão deste tema
seria bastante diferente sem as suas objecções e contra-
-exemplos.
O meu ensaio foi meticulosamente lido e corrigido
por vários amigos e colegas, a quem agradeço calorosa-
mente: Artur Polónio, Aires Almeida, Sagid Salles Fer-
reira, Faustino Vaz, Pedro Merlussi e Luiz Helvécio Mar-
ques Segundo. As objecções que me levantaram permi-
tiram melhorar bastante o texto original, para benefício
do leitor.

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PREFÁCIO

Finalmente, agradeço a Vítor Guerreiro, pela tra-


dução atempada e esmerada dos textos, assim como a
Alvin Plantinga, que prontamente acedeu à publicação
do seu texto.

Desidério Murcho
Ouro Preto, 28 de Junho de 2010

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Sobre os Autores

William Kingdon Clifford nasceu no dia 4 de Maio de


1845, na Inglaterra, e morreu na Ilha da Madeira no dia
3 de Março de 1879, com apenas 34 anos. Apesar disso,
deixou uma obra matemática considerável, assim como
palestras influentes de divulgação científica, ensino e
filosofia. Antecipou Albert Einstein (1879-1955), ex-
plorando as geometrias não-euclidianas. Das suas ideias
filosóficas, as mais influentes hoje são as que estão pre-
sentes no ensaio aqui publicado, apresentando com
grande clareza a posição de que só é legítimo acreditar
em algo se tivermos indícios a seu favor. Mas defendeu
também teorias filosóficas na área da filosofia da mente
e da ética. Das suas obras, quase todas publicadas pos-
tumamente, destaca-se Elements of Dynamic, 2 vols.
(1878, 1887), Seeing and Thinking (1879), Lectures and
Essays (1879), Mathematical Papers (1882) e The Com-
mon Sense of the Exact Sciences (1885).
William James, irmão do famoso romancista norte-
-americano Henry James (1843-1916), nasceu no dia 11

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A ÉTICA DA CRENÇA

de Janeiro de 1842, na cidade de Nova Iorque, e morreu


no dia 26 de Agosto de 1910, em Chocorua. Ajudou a
fundar e desenvolver a psicologia científica, e foi um dos
proponentes do movimento filosófico norte-americano
conhecido como pragmatismo. Os seus interesses eram
simultaneamente científicos e filosóficos; ao mesmo
tempo, era muito sensível às manifestações religiosas,
sendo autor do que é ainda hoje uma importante fonte
de informação antropológica sobre a diversidade reli-
giosa, The Varieties of Religious Experience (1902). Na es-
teira de C. S. Peirce (1839-1914), e juntamente com
John Dewey (1859-1952), defendeu o pragmatismo.
Deste ponto de vista, a verdade é seja o que for que fun-
cione na prática. Da sua vasta obra destaca-se The Prin-
ciples of Psychology (1890), The Will to Believe and Other
Essays in Popular Philosophy (1897), Pragmatism: A New
Name for Old Ways of Thinking (1907; trad. F. Martinho,
INCM, 1997), The Meaning of Truth (1909), Some Pro-
blems of Philosophy (1911) e Essays in Radical Empiricism
(1912).
Alvin Plantinga (n. 1932) é um dos mais influentes
filósofos actuais, com trabalhos muitíssimo discutidos nas
áreas da metafísica, filosofia da religião e teoria do
conhecimento. Cristão protestante, destacou-se por sus-
tentar as suas ideias religiosas de um modo não só inte-
grado nas outras perspectivas metafísicas e epistemoló-
gicas que defende, mas com a mesma precisão analítica.
Das suas obras, destaca-se God and Other Minds (1967;
ed. rev. 1990), The Nature of Necessity (1974), God, Free-

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SOBRE OS AUTORES

dom, and Evil (1974), Does God Have A Nature? (1980),


Warrant: the Current Debate (1993), Warrant and Proper
Function (1993), Warranted Christian Belief (2000) e Es-
says in the Metaphysics of Modality (2003).

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Capítulo 1

Fé, epistemologia e virtude


Desidério Murcho

NESTE CAPÍTULO, COMEÇA-SE POR ESCLARECER A NATU-


reza da filosofia da religião. De seguida, esclarecem-se
várias noções centrais de epistemologia, para então se
proceder a uma análise preliminar do conceito de fé. Fi-
nalmente, discute-se o tema central do livro: será legí-
timo acreditar sem provas?
O objectivo é triplo. Sem maçar o leitor com refe-
rências bibliográficas, que se encontram no final do vo-
lume, oferece-se um conjunto de noções instrumentais,
cujo domínio é importante para poder discutir profi-
cientemente o tema. Mas o objectivo é também incitar
o leitor a raciocinar e teorizar intensamente; daí que o
texto seja, sobretudo, argumentativo e teorizador, e não
descritivo ou histórico. Estes dois objectivos ajudam a
concretizar o terceiro: ajudar o leitor não só a com-
preender os textos de Clifford, James e Plantinga, mas
também a discuti-los activamente. Contudo, os textos

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A ÉTICA DA CRENÇA

destes autores têm muito mais a dizer do que o que é dis-


cutido aqui; não se pretende esgotá-los, caso em que a
sua publicação seria redundante, mas antes explorar al-
guns dos seus temas.

A possibilidade da filosofia da religião

Alguns problemas centrais da filosofia da religião têm a


vantagem, relativamente a problemas de outras áreas da
filosofia, de ser imediatamente compreensíveis para qual-
quer pessoa. É fácil compreender em que consiste o pro-
blema da existência de Deus, por exemplo: será que
Deus existe? Mas pensa-se por vezes que nunca iremos
saber se Deus existe ou não, invocando-se até Immanuel
Kant (1724-1804) — como se este importante filósofo ti-
vesse descoberto que não se pode saber se Deus existe
ou não, mais ou menos como um cientista descobre o
ADN ou a composição química da água.
Ao longo da nossa escolaridade e estudo individual
habituámo-nos a compreender resultados científicos,
cuja paternidade ou maternidade é atribuída a este ou
àquele cientista ou intelectual. Transferindo esta atitude
para a filosofia, encara-se Kant, ou outro filósofo, não
como alguém que apresentou teorias e argumentos que
devemos analisar e discutir de maneira cuidadosa, mas
antes como uma espécie de cientista, que provou qual-
quer coisa mais ou menos definitivamente. Assim, se
Kant declarou que o problema da existência de Deus é

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FÉ, EPISTEMOLOGIA E VIRTUDE

insusceptível de ser resolvido (pela razão teórica), isso é


imprudentemente considerado um resultado definitivo
da filosofia, um pouco como a descoberta que um cien-
tista pode fazer de quantas luas tem Júpiter. O resultado
desta atitude é afastar a atenção dos problemas centrais
da filosofia da religião, como a existência de Deus. Fixa-
-se então a atenção sobre problemas de sociologia da
religião, história das religiões, psicologia e hermenêutica
das religiões, etc. — sobre tudo o que é susceptível de
ser estudado empiricamente, recorrendo aos métodos
aprovados pela ciência.
Uma breve reflexão, contudo, mostra a instabilidade
teórica desta posição. Se não se pode saber que Deus
existe nem que não existe, como sabemos que não se
pode saber? Será a teoria do conhecimento de Kant mais
plausível do que as posições de outros filósofos, tanto an-
tigos como contemporâneos, que defendem que Deus
existe ou que não existe? Poderá parecer-nos que sim,
sobretudo se desconhecermos a bibliografia da área; mas
tal como o desconhecimento da lei não iliba o prevari-
cador, também o desconhecimento da bibliografia não
fundamenta aquele que a ignora.
Imagine-se alguém que, nomeadamente por ser um
cientista, está habituado a distinguir cuidadosamente as
opiniões descuidadas que as pessoas têm sobre biologia,
por exemplo, de opiniões fundamentadas no conheci-
mento da bibliografia relevante. Essa mesma pessoa pode
considerar que, no que respeita à filosofia, as coisas são
diferentes, sendo desnecessário conhecer a bibliografia

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A ÉTICA DA CRENÇA

relevante. Só aceitaria a ilegitimidade de ter opiniões


descuidadas, que ignoram a bibliografia, sobre filosofia
da religião, epistemologia ou metafísica se nessa biblio-
grafia se encontrasse o género de resultados que se en-
contra na bibliografia científica.
Contudo, esta posição assenta numa confusão.
Mesmo que em filosofia não tenhamos o género de
resultados que temos na ciência, temos outro tipo de
resultados: alternativas teóricas sofisticadas cuidadosa-
mente pensadas, argumentos rigorosamente explorados,
distinções e análises clarificadoras. Se ignorarmos a bi-
bliografia relevante, estaremos a fazer filosofia outra vez
como os primeiros filósofos faziam, repetindo-lhes os pas-
sos — o que é desavisado porque podemos fazer melhor
do que eles fizeram se partirmos das suas investigações.
Não se deve confundir progresso com resultados.
O progresso cognitivo numa área não depende exclusi-
vamente do género de resultados que há nas ciências.
Podemos saber muito, e muito sofisticadamente, sobre
um problema, sem saber resolvê-lo, caso em que temos
progresso sem resultados. Recusar ler a bibliografia filo-
sófica relevante por esta não apresentar resultados é re-
cusar o progresso filosófico entretanto alcançado. Ironi-
camente, se todos os cientistas se tivessem recusado a
estudar a bibliografia da sua área antes de esta apresentar
resultados, nenhuns resultados teriam sido alcançados.
Há duas maneiras comuns de argumentar a favor da
ideia de que o problema filosófico da existência ou ine-
xistência de Deus é insolúvel, pelo que deve ser aban-

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FÉ, EPISTEMOLOGIA E VIRTUDE

donado, e nenhuma é plausível. No primeiro caso, argu-


menta-se que só podemos saber o que podemos saber
pela experiência; dado que não podemos saber pela ex-
periência que Deus existe, segue-se que não podemos
saber se Deus existe. No segundo, defende-se que os ar-
gumentos a favor e contra a existência de Deus se anu-
lam mutuamente.
O primeiro argumento enfrenta a seguinte dificul-
dade: as razões a favor da ideia de que só podemos co-
nhecer o que podemos conhecer pela experiência não
podem ser conhecidas ou sustentadas pela experiência.
Nenhuma experiência laboratorial, por exemplo, permite
determinar que só podemos conhecer o que podemos
conhecer pela experiência. Para estabelecer esta tese é
necessário argumentar filosoficamente, e uma parte
importante dessa argumentação não será baseada na ex-
periência. Por exemplo, pode argumentar-se que todo o
conhecimento implica justificação, e que a única justifi-
cação disponível é empírica. Mas o próprio princípio de
que o conhecimento implica justificação não é algo que
se conheça pela experiência, nem pela experiência se co-
nhece a ideia de que só há justificações empíricas — na
verdade, a experiência parece até mostrar-nos o contrá-
rio, pois os matemáticos não recorrem à experiência para
estabelecer os seus resultados, que estão entre os mais
sólidos resultados de sempre da empresa cognitiva hu-
mana.
Isto significa que a ideia de que só podemos saber o
que podemos saber pela experiência é, se não incoerente,

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A ÉTICA DA CRENÇA

pelo menos teoricamente instável — pois, se for verda-


deira, parece que não podemos saber que é verdadeira.
Uma saída para esta dificuldade é sublinhar, como Kant,
a diferença entre saber ou conhecer algo, por um lado, e
pensar algo ou levantar conjecturas, por outro. Assim,
podemos argumentar que a nossa posição, pelos seus pró-
prios critérios, não pode obviamente ser conhecida, por-
que não pode ser conhecida pela experiência; no entanto,
pode ser pensada ou conjecturada. Um problema desta
resposta é tornar aparentemente a posição original arbi-
trária. Pois se a posição original pode ser conjecturada
com densidade suficiente para em função dela se recusar
a possibilidade de saber se Deus existe ou não, então tam-
bém podemos conjecturar que Deus existe (ou que não
existe), apesar de reconhecermos que essa é uma mera
conjectura, e não conhecimento propriamente dito.
Quanto ao segundo argumento, enfrenta a seguinte
dificuldade: para os argumentos a favor e contra a exis-
tência de Deus se anularem mutuamente não basta
contá-los, ou apresentar objecções a cada um dos argu-
mentos a favor ou contra a existência de Deus — é pre-
ciso mais. Nomeadamente, duas coisas, pelo menos: pri-
meiro, é preciso mostrar que os argumentos a favor e
contra a existência de Deus são rigorosamente de igual
força; segundo, que quaisquer argumentos concebíveis
contra ou a favor da existência de Deus terão sempre os
seus opostos, e de força rigorosamente igual. Ora, mos-
trar qualquer uma destas duas coisas é cognitivamente
mais exigente do que argumentar apenas que Deus existe

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FÉ, EPISTEMOLOGIA E VIRTUDE

ou que não existe. Além disso, se todos os argumentos a


favor e contra a ideia de que Deus existe se anulam por-
que não têm base experimental, então também os argu-
mentos a favor dessa mesma posição se anulam perante
os argumentos da posição rival, pois também aqui não
há base experimental.
Além disso, é defensável que ambos os argumentos
confundem o problema da existência de Deus com o pro-
blema de saber se Deus existe. A diferença torna-se clara
se pensarmos em extraterrestres. Neste caso, é óbvio que
há uma grande diferença entre saber se existem e existi-
rem efectivamente ou não. Podemos facilmente imagi-
nar cenários em que os extraterrestres existem, mas, por
não quererem dar-se a conhecer ou porque, querendo,
não podem fazê-lo por se encontrarem demasiado longe
de nós, não podemos saber da sua existência. Mas da im-
possibilidade de saber que os extraterrestres existem não
se segue que não existem, apesar de ser verdade que se
não existirem extraterrestres se segue que não podemos
saber que existem. No que respeita a Deus, mesmo que
tivéssemos razões para pensar que não podemos saber se
existe, isso não constitui em si razão para pensar nem
que Deus não existe nem que a própria existência de
Deus é irrelevante. Mesmo sem saber se Deus existe, po-
demos querer pensar na hipótese de que existe ou que
não existe, e, caso exista, que género de características
poderá ou não poderá ter.
Ambos os argumentos são, pois, improcedentes,
pelo menos sem reformulações cuidadosas. Mas as ideias

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A ÉTICA DA CRENÇA

subjacentes a estes argumentos desempenham o seu


papel habitual: fazem parar de pensar e de investigar
ainda antes de se darem os primeiros passos.

Metafísica, epistemologia e lógica

A filosofia da religião ocupa-se de problemas metafísi-


cos, epistemológicos e lógicos suscitados pelas religiões.
Esta é uma caracterização razoavelmente neutra da filo-
sofia da religião, mas para a compreender é necessário
saber o que se entende em filosofia por problemas meta-
físicos, epistemológicos e lógicos.
O problema intuitivamente óbvio da existência de
Deus, por exemplo, é metafísico. Um problema filosófico
é metafísico quando diz respeito aos aspectos mais gerais
da realidade — e não quando diz respeito ao oculto ou
ao misterioso, como popularmente se pensa, nem
quando diz respeito ao que não pode ser conhecido pela
experiência. A ontologia é a subdisciplina da metafísica
que procura estabelecer as categorias mais gerais da exis-
tência. Isto implica discutir se há realmente números,
por exemplo, ou proposições, ou se estas são meras pro-
jecções mentais dos seres humanos. Num certo sentido,
todos os problemas são metafísicos, porque todos os pro-
blemas são sobre a realidade (incluindo os problemas
sobre o conhecimento da realidade, pois tal conheci-
mento é também parte da realidade). Mas é óbvio que
não consideramos que um físico está a fazer metafísica ao

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Capítulo 2

A ética da crença
W. K. Clifford

1. O dever de investigar

Um armador preparava-se para enviar para o mar um


navio com emigrantes. Sabia que o navio estava velho e
tinha defeitos de construção; que conhecera já muitos
mares e climas e teve de ser reparado muito mais de uma
vez. Alguém sugeriu ao armador que o navio talvez não
estivesse em condições de navegar. Estas dúvidas pesa-
vam-lhe na consciência e deixavam-no infeliz; pensou
que talvez devesse mandar inspeccionar e renovar com-
pletamente o navio, embora isto ficasse provavelmente
bastante caro. Antes de o navio zarpar, contudo, o ar-
mador conseguiu deixar para trás estes pensamentos me-
lancólicos. Disse para consigo que o navio enfrentara
com êxito tantas viagens e resistira a tantas tempestades
que não havia razão para supor que não regressaria ileso
também desta viagem. O armador confiaria na provi-

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A ÉTICA DA CRENÇA

dência, que seguramente não deixaria de proteger todas


aquelas infelizes famílias que abandonavam a pátria em
busca de uma vida melhor noutras paragens. Silenciaria
todas as dúvidas mesquinhas acerca da honestidade dos
construtores e dos empreiteiros. Assim, alcançou uma cer-
teza sincera e confortável de que o seu navio era comple-
tamente seguro e estava em condições de navegar; viu-o
partir com despreocupação e desejos caridosos de que os
exilados fossem bem-sucedidos no novo e estranho lar que
os esperava; e recebeu o dinheiro do seguro quando o
navio se afundou em pleno mar sem deixar rasto.
O que diremos do armador? Seguramente, que é
muitíssimo culpado pela morte daqueles homens. Admi-
tindo-se que acreditava sinceramente no bom estado do
seu navio, a sinceridade da sua convicção, porém, não
lhe pode valer de maneira alguma, porque não tinha o di-
reito de acreditar com base nos indícios de que dispunha. Não
adquiriu a sua crença por mérito honesto, através da inves-
tigação paciente, mas silenciando as suas dúvidas. E em-
bora no final a sua certeza sobre o assunto fosse porven-
tura tão grande que não era capaz de pensar de outra
maneira, temos de o considerar responsável pelo suce-
dido, na medida em que se colocou deliberada e volun-
tariamente naquele estado de espírito.
Alteremos um pouco a história e suponhamos que o
navio não estava, afinal, em mau estado; suponhamos
que fez a viagem em segurança, e muitas outras viagens
após aquela. Será que isso diminui a culpa do seu pro-
prietário? Nem um pouco. Quando se pratica uma acção

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Capítulo 3

A vontade de acreditar
William James

NA BIOGRAFIA RECENTEMENTE PUBLICADA QUE LESLIE


Stephen escreveu sobre o seu irmão, Fitzjames, há o
relato de uma escola que este frequentou em criança.
O professor, um tal Sr. Guest, tinha o hábito de falar com
os seus alunos nestes termos: «Gurney, qual é a diferença
entre justificação e santificação? Stephen, prova a
omnipotência de Deus!», etc. No seio do nosso livre-
-pensamento e indiferença de Harvard, tendemos a ima-
ginar que aqui, no nosso bom velho colégio ortodoxo, a
conversa continua mais ou menos nestes parâmetros; e
para vos mostrar que em Harvard não perdemos todo o
interesse nestes assuntos vitais, trouxe comigo esta noite
algo de semelhante a um sermão acerca da justificação
pela fé, para vo-lo ler — falo de um ensaio sobre a justi-
ficação da fé, uma defesa do nosso direito a adoptar uma
atitude crente em assuntos religiosos, apesar de o nosso
intelecto meramente lógico poder não ter sido compe-

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A ÉTICA DA CRENÇA

lido. «A Vontade de Acreditar», consequentemente, é o


título do meu artigo.
Há muito que defendo perante os meus próprios alu-
nos a legitimidade da fé adoptada voluntariamente; mas
assim que ficam bem embuídos do espírito lógico, têm
por norma recusar admitir a legitimidade filosófica da
minha asserção, embora eles mesmos, na verdade, este-
jam todos, pessoalmente e a cada momento, repletos de
uma fé ou outra. Mantive-me sempre, contudo, tão pro-
fundamente convicto de que a minha posição está cor-
recta, que o vosso convite me pareceu uma boa ocasião
para esclarecer as minhas afirmações. Talvez as vossas
mentes estejam mais abertas do que aquelas com que até
agora tive de lidar. Serei o menos técnico possível, em-
bora tenha de começar por estabelecer algumas distin-
ções técnicas que acabarão por nos ajudar.

Chamemos hipótese a qualquer coisa que se proponha


como objecto da nossa crença; e tal como os linguistas1
falam em metáforas vivas e mortas, diremos que uma hi-
pótese qualquer está viva ou morta. Uma hipótese está

1
James faz originalmente uma analogia com a electricidade,
e não com a linguística, pois em inglês chama-se respectivamente
live wire e dead wire a um fio com e sem electricidade, ou positivo
e negativo. [N. do T.]

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A VONTADE DE ACREDITAR

viva se parece uma possibilidade real à pessoa a quem se


apresenta. Se vos peço que acreditem no Mádi, esta
noção não estabelece qualquer conexão vívida com a
vossa natureza — escusa-se de todo em todo a pulsar
com alguma credibilidade. Como hipótese, está com-
pletamente morta. Para um árabe, contudo, (mesmo
que não pertença aos seguidores do Mádi), esta hipó-
tese encontra-se entre as possibilidades da mente: está
viva. Isto mostra que a morbidez e a vividez numa hi-
pótese não são propriedades intrínsecas, mas relações
entre a hipótese e o pensador individual. São aferidas
pela sua inclinação para agir. O máximo de vividez
numa hipótese significa inclinação para agir irrevoga-
velmente. Na prática, isto quer dizer crença; mas há
uma tendência para acreditar onde quer que haja dis-
posição para agir.
Em seguida, chamemos opção à decisão entre duas
hipóteses. As opções podem ser de tipos diferentes.
Podem ser: 1) vivas ou mortas, 2) forçosas ou evitáveis, 3)
momentosas ou triviais; e para o que nos interessa, pode-
mos chamar genuína a uma opção quando pertence ao
tipo das opções que são forçosas, vivas e momentosas.

1) Uma opção viva é uma opção em que ambas as hi-


póteses estão vivas. Se vos digo: «Sejam teosofistas
ou maometanos», trata-se provavelmente de uma
opção morta, porque para vós nenhuma das hipóte-
ses tem probabilidade de estar viva. Mas se afirmo:
«Sejam agnósticos ou cristãos», a história é outra:

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A ÉTICA DA CRENÇA

dada a vossa formação, cada hipótese apela, por


muito pouco que seja, à vossa crença.
2) De seguida, se vos digo: «Escolham entre sair com
ou sem o vosso chapéu de chuva», não vos ofereço
uma opção genuína, pois não é forçosa. Podem fa-
cilmente evitá-la não saindo sequer. De igual modo,
se digo «Ou me amam ou me odeiam», «ou consi-
deram a minha teoria verdadeira ou a consideram
falsa», a vossa opção é evitável. Podem permanecer
indiferentes a mim, nem me amando nem me
odiando, e podem recusar-se a emitir qualquer juízo
a respeito da minha teoria. Mas se digo «Ou acei-
tam esta verdade ou lhe passam ao lado», coloco-
-vos uma opção forçosa, pois não há lugar fora da
alternativa. Todos os dilemas baseados numa dis-
junção lógica completa, sem a possibilidade de não
escolher, são opções deste tipo forçoso.
3) Finalmente, se eu fosse o Dr. Nansen e vos convi-
dasse a juntarem-se à minha expedição ao Pólo
Norte, a vossa opção seria momentosa; pois prova-
velmente não voltariam a ter uma oportunidade se-
melhante, e o que escolhessem agora ou vos exclui-
ria completamente do tipo de imortalidade norte-
-polar ou colocaria pelo menos essa hipótese nas
vossas mãos. Quem recusa uma oportunidade única
perde tão seguramente o prémio como se tivesse
tentado e falhado. Per contra, a opção é trivial
quando a oportunidade não é única, quando o que
está em causa é insignificante, ou quando a decisão

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A VONTADE DE ACREDITAR

é reversível se mais tarde se mostrar insensata. Tais


opções triviais abundam na vida científica. Um quí-
mico considera que uma hipótese está suficiente-
mente viva para passar um ano a verificá-la: acredita
nela até esse ponto. Mas se as suas experiências se
mostram duplamente inconclusivas, perdoa-se a sua
perda de tempo, não resultando daí qualquer mal
vital.

A nossa discussão será mais fácil se tivermos bem


presentes estas distinções.

II

A questão a considerar de seguida é a psicologia pro-


priamente dita da opinião humana. Quando olhamos
para determinados factos, parece que a nossa natureza
passional e volitiva está na raiz de todas as nossas con-
vicções. Quando olhamos para outros factos, parece que
essa natureza nada pode fazer depois do intelecto se ter
pronunciado. Consideremos antes de mais estes últimos
factos.
Não parece absurdo, à primeira vista, afirmar que as
nossas opiniões são modificáveis segundo a nossa von-
tade? Poderá a nossa vontade ajudar ou estorvar o nosso
intelecto na sua percepção da verdade? Será que pode-
mos, querendo-o apenas, acreditar que a existência de
Abraham Lincoln é um mito e que os seus retratos na

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Capítulo 4

Será a crença em Deus


apropriadamente básica?
Alvin Plantinga

MUITOS FILÓSOFOS TÊM APELADO À OBJECÇÃO INDICIA-


rista à crença teísta; argumentam que a crença em Deus
é irracional ou irrazoável ou racionalmente inaceitável
ou intelectualmente irresponsável ou noeticamente in-
ferior, porque, segundo afirmam, os indícios a favor desta
crença são insuficientes.1 Muitos outros filósofos e teó-

1
Ver, por exemplo, Brand Blanshard, Reason and Belief (Lon-
dres: Allen & Unwin, 1974), pp. 400 ss, W. K. Clifford, «A Ética
da Crença» (Cap. 2 deste volume), A. G. N. Flew, The Presumption
of Atheism (Londres: Pemberton Publishing Co., 1976), p. 22, Ber-
trand Russell, «Why I am not a Christian», in Why I am Not a
Christian (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1957), pp. 3 ss. e Mi-
chael Scrivin, Primary Philosophy (Nova Iorque: McGraw-Hill,
1966), pp. 87 ss. Em «Is Belief in God Rational?» in Rationality and
Religious Belief, org. C. Delaney (Notre Dame: University of Notre
Dame Press, 1979), considero e rejeito a objecção indiciarista à
crença teísta.

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A ÉTICA DA CRENÇA

logos — em particular os que se inserem na grande tra-


dição da teologia natural — afirmam que a crença em
Deus é intelectualmente aceitável, mas apenas pelo facto
de haver indícios suficientes a seu favor. Estes dois gru-
pos unem-se na defesa de que a crença teísta só é racio-
nalmente aceitável se houver indícios suficientes a seu
favor. Mais exactamente, defendem que uma pessoa só é
racional ou razoável em aceitar a crença teísta se dispu-
ser de indícios suficientes a favor dessa crença — isto é,
só se a pessoa conhece ou crê racionalmente noutras pro-
posições que sustentam a proposição em causa, e acre-
dita na última com base nas primeiras. Em «Is Belief in
God Rational?» argumentei que a objecção indiciarista
enraíza no fundacionalismo clássico, uma imagem muitís-
simo popular ou uma perspectiva total acerca da fé, do
conhecimento, da crença justificada, da racionalidade e
de tópicos afins. Esta imagem tem sido amplamente
aceite desde Platão e Aristóteles; as suas familiares pró-
ximas continuam talvez a ser os modos dominantes de
pensar acerca destes tópicos. Podemos imaginar o fun-
dacionalista clássico a começar com a observação de que
algumas das nossas crenças se podem basear noutras;
pode dar-se o caso de haver um par de proposições A e
B tais que acredito em A com base em B. Embora não seja
fácil caracterizar esta relação de uma maneira reveladora
e intrivial, é ainda assim familiar. Acredito que a palavra
«melindroso» se soletra me-lin-dro-so: esta crença ba-
seia-se noutra crença minha: a crença de que é assim
que o dicionário mostra como se soletra. Acredito que

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SERÁ A CRENÇA EM DEUS APROPRIADAMENTE BÁSICA?

72 × 71 = 5112. Esta crença baseia-se em diversas ou-


tras crenças que tenho: que 1 × 72 = 72; 7 × 2 = 14;
7 × 7 = 49; 49 + 1 = 50; e outras. Contudo, há cren-
ças que aceito, mas não com base em quaisquer outras.
Chamemos-lhes «básicas». Acredito que 2 + 1 = 3, por
exemplo, e não o acredito com base noutras proposições.
Também acredito que estou sentado à minha secretária
e que tenho uma ligeira dor no joelho direito. Também
estas são básicas para mim; não acredito nelas com base
em quaisquer outras proposições. Segundo o fundacio-
nalista clássico, algumas proposições são apropriadamente
ou adequadamente básicas relativamente a uma pessoa e
outras não. As que não são, só são racionalmente acei-
tes com base em indícios, em que os indícios se têm de re-
portar, em última análise, ao que é apropriadamente bá-
sico. A existência de Deus, além disso, não está entre as
proposições que são apropriadamente básicas; pelo que
uma pessoa só é racional ao aceitar a crença teísta se
tiver indícios a seu favor.
Ora, muitos pensadores e teólogos reformistas1 re-
jeitaram a teologia natural (concebida como a tentativa
de fornecer provas ou argumentos a favor da existência
de Deus). Não só afirmaram que os argumentos apre-
sentados não são bons, mas que toda a empresa está, de

1
Um pensador ou teólogo reformista é alguém intelectual-
mente afecto à tradição protestante que remonta a João Calvino (e
não alguém que foi anteriormente teólogo e que depois viu a luz).

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A ÉTICA DA CRENÇA

alguma maneira, radicalmente equivocada. Em «The Re-


formed Objection to Natural Theology» (Proceedings of
the American Catholic Philosophical Association, 1980), ar-
gumento que se interpreta melhor a objecção reformista
à teologia natural como uma rejeição incipiente e im-
precisa do fundacionalismo clássico. O que estes pen-
sadores reformistas realmente pretendem sustentar,
penso, é que a crença em Deus não tem de se basear, de
todo em todo, em argumentos ou indícios dados por ou-
tras proposições. Pretendem sustentar que o crente está
inteiramente no seu direito intelectual ao acreditar do
modo como o faz, mesmo que não conheça qualquer
bom argumento teísta (dedutivo ou indutivo), mesmo
que não acredite que haja qualquer argumento desse gé-
nero, e mesmo que não haja de facto qualquer argu-
mento assim. Defendem que é perfeitamente racional
aceitar a crença em Deus sem que o façamos sequer com
base em quaisquer outras crenças ou proposições. Numa
palavra, defendem que a crença em Deus é apropriada-
mente básica. Neste ensaio tentarei desenvolver e defen-
der esta posição.
Mas primeiro temos de alcançar uma compreensão
mais profunda da objecção indiciarista. É importante ver
que se trata de uma discussão normativa. O objector in-
diciarista defende que quem aceita a crença teísta é de
alguma maneira irracional ou noeticamente inferior.
Aqui deve entender-se «racional» e «irracional» como
termos normativos ou avaliativos; segundo o objector, o
teísta não consegue satisfazer um cânone ao qual se de-

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