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FUNDAçAO OSWALDO CRUZ / EDITORA

Capa, projeto gráfico e edito ração


CarJota Rios

Revisão
Apresentação 7
AlIgllsta Porto Avalie
1. Sentidos da Saúde 11

2. Transformações dos Conceitos de Saúde e de Doença 29

Catalogação na fonte 3. Prevenção de Doenças e Promoção da Saúde


Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde/Fiocruz no Século :xx 59
Biblioteca de Saúde Pública

C998s Czeresnia, Dina


4. O Discurso do Risco 77
Os sentidos da saúde e da doença. / Dina Czeresnia, Elvira
Maria Godinho de Seixas Maciel e Rafael Antonio Malagón Oviedo. -
Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. 5. Teorias de Doença 91
119 p. (Coleção Temas em Saúde)
ISB : 978-85-7541-433-0
Para Finalizar 109
1. Processo Saúde-Doença. 2. Promoção da Saúde - história. 3.
Prevenção de Doenças. 4. Medicina Preventiva. 5. Risco. 6. Meios de
Comunicação de Massa. I. Maciel, Elvira Maria Godinho de Seixas. Referências 113
lI. Oviedo, Rafael Antonio Malagón. III. Título.
CDD - 22.ed. - 613
ugestões de Leituras 117
2013
EDITORA FIOCRUZ
Av. Brasil, 4036 - Térreo - sala 112 - Manguinhos
21040-361 - Rio de Janeiro - RJ
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interrogam perspectivas ainda arraigadas no campo da saúde
sobre aspectos essenciais como causalidade, dissociação entre 1 SENTIDOS DA SAÚDE
orgânico e simbólico, individualidade biológica etc. Esse capítu-
lo finaliza expondo o tema do valor biológico, introduzido já no
primeiro capítulo. É notável como esse assunto está atualizado
nas reflexões de vários autores da biologia e ne~ociência con-
temporâneas. os dicionários da língua portuguesa, encontram-se, como
xmônimos de saúde, os termos força e vigor. O tema da saúde é
u-lncionado a características que se vinculam ao bem-estar, mas
'llI ' não são definidas de modo científico. Não há uma descrição
do que seja saúde passível de ser generalizada e aplicada como
11111 modelo, isto é, podemos dizer que não há um conceito de
.iudc cientificamente fundamentado. Se perguntássemos a várias
pessoas o que significa ter saúde, obteríamos respostas diferentes
IIe cada uma delas, dependendo de seus valores, expectativas e
posturas diante da vida.
() conceito de saúde é inseparável das condições concretas
dI existência. Assim, somos levados a admitir que o lugar que
.1 s.rude ocupa na história de cada um é diferente porque as
I pcriências são singulares. A tentativa de definir saúde como
I une .ito científico deixa de lado o que não é conhecimento
I u-rnatizado, uma vez que leva em consideração somente
I nustantes ou limites orgânicos produzidos pela ciência básica
I pl'ia estatística na determinação do estado de normalidade,
.11 I qual se atribui um estatuto semelhante ao de saúde. Chris-
Illph 'r Boorse (1977) é um dos autores que defendem ser
PC) SIV ,I uma definição científica de saúde fundamentada no
I 1 li I h, imento médico e biológico, no entendimento dos limites

10 1 [11
do exercício de uma função orgânica ou fisiológica, e em parâ- '111 'r pessoa se ela já esteve doente e será muito improvável re-
metros estatísticos. I eh 'r uma resposta negativa. Não há saúde perfeita ou bem-estar
rhsoluto; as perturbações fazem parte da vida. E recuperar-se da
As perspectivas da semiologia médica (a presença ou ausência
de sinais e sintomas) e a perspectiva da clínica (a integração dos
.111 'nça é uma das possibilidades da saúde (Canguilhem, 1995).

sinais e sintomas presentes em uma síndrome ou patologia) definição de saúde proposta pela Organização Mundial da
permitem-nos falar da saúde como ausência de doença. Segundo .llIde (OMS), em 1946, como "um estado de completo bem-estar
Georges Canguilhem (1995), o médico francês René Lériche II ico, mental e social e não apenas ausência de doença ou enfer-

teria sido o autor da concepção de acordo com a qual o concei- niulade", é criticável por expressar o ideal de uma vida livre de
to de saúde seria uma espécie de negativo da doença, conformando- ,.1. I áculos, o que não corresponde à situação concreta de qualquer
se mediante estudos e descrições clínicas. Reconhecer-se-ia como I I humano. Por exemplo, o bem-estar mental poderia ser experi-
saudável todo indivíduo as sintomático, aquele cujos órgãos se nuntado como uma existência sem angústias e desafios? A ideia
encontram 'em silêncio'. .11 I) .rn-estar social poderia ser um projeto normativo que descon-
u h-ra diversidades e singularidades, uma espécie de 'tipo ideal'?
Tal concepção está presente na constituição da área da saúde
como campo de aplicação de conhecimentos e técnicas funda- lJ ma vida saudável não pode excluir tensões, uma vez que
mentados nas ciências biológicas e médicas. Ao circunscrever I Ir .nvolve um constante dinamismo nas relações. As necessi-
saúde à ausência de doença, concebida a partir da normalidade .I,IIII'Simpostas pelo meio produzem oscilações que, ou passam
de parâmetros quantitativos, desconsidera-se uma dimensão mais ,11 Ill'rcebidas, ou desencadeiam sofrimentos em diferentes pro-
ampla que é a da saúde como potência para lidar com a existên- 1".1 () .s, Nas diversas etapas da vida, as modificações necessárias
cia. Embora tal concepção de saúde não exclua as demais, nem I' 11,1 :I preservação da integridade do ser se expressam muitas
seja incompatível com elas, não é a que predomina na atenção à I'S na forma de desafios vitais. As várias dimensões dos desa-
saúde, mesmo quando se afirma que a saúde está relacionada I". ~llIe se apresentam correspondem aos modos de interação
a outras expressões do humano, tais como a vitalidade e a felici- 1111 () vivente e as circunstâncias. Os recursos necessários para
dade. Compreender o conceito de saúde com essa amplitude 1III1lll'r a saúde não são os mesmos em quaisquer situações da
suscita uma transformação no sentido de adequação das práticas. 1111 I': o que é saudável em um determinado momento pode ser
Podemos imaginar que aspectos políticos, artísticos e filosóficos ,"1\ ItI .rado patológico em outro.
devessem, nesse caso, ser integrados (Czeresnia, 2003). ( ,\nguilhem elaborou uma das mais consideráveis reflexões

Os estados de saúde e doença não devem ser pensados de ,.LlII' saúde e doença, por meio das quais ainda hoje é possível
forma cristalizada, mas processual ou dinâmica. Pergunte a qual- '1"1 M ntar ideias fundamentais sobre o tema. Saúde, afirma Can-
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12 ]
guilhem baseando-se em Kurt Goldstein, diz respeito à potência 'I .ntre os fenômenos que explica; é um modelo que busca
e à criatividade, ao passo que a doença está relacionada à limita- I pr 'sentar' a realidade sem levar em conta suas singularidades.
ção e à impotência diante de um mundo no qual alguém, ante- I', II .xemplo, doenças não ocorrem da mesma maneira em todas
riormente, sentia-se à vontade. A doença é compreendida, então, I pcss oas e apresentam diferentes sentidos para cada uma delas.
como 'sentimento de vida contrariada': diante de certo obstácu- ( ), critérios de definição e classificação dessas doenças não con-
lo seria preciso lançar mão da invenção de novos modos de estar I mplam todas as singulares possibilidades de expressão do
no mundo. " I,u-cimento.
Ao conceber saúde como capacidade de criar novas normas ( )s termos em inglês illness e disease ajudam a esclarecer essa
para se adaptar ao meio, Canguilhem reconhece o caráter relativo li unção, Illness se refere à sensação de estar doente, e disease é o
da saúde e da doença. Um ser criativo pode ser saudável mesmo 'IIH cito de doença na condição de objeto de conhecimento. Um
diante de uma evidência que, em outro ser, constituiria uma doen- I IIIlO é relativo ao sofrimento da pessoa que se percebe doente,
ça. Essa relatividade está vinculada à diferença entre conceito , , (IUI ro ao diagnóstico; um à intuição, outro a critérios objetivos
científico e experiência vivida, sobre a qual discorreremos a seguir. I, I ('ólt10S no saber instituído (Czeresnia & Soares, 2008).
( )u, ndo alguém sente um mal-estar, busca conferir a ele um
SAÚDE E DOENÇA: DIFERENÇA ENTRE EXPERIÊNCIA I IlIdlCado e um sentido. O sentido dado à doença - a vivência
E CONCEITO 1.1 ou como um fracasso, ou como um mecanismo de obten-
, dl' benefícios, por exemplo - diz respeito ao modo próprio
Os sentidos da saúde e da doença na vida de cada pessoa são
(I dessa pessoa, a sua história, ao momento em que se dá e
relativos a uma experiência, uma história singular, e não podem
1(' modo como a doença se manifesta, e isto faz dela um acon-
ser inteiramente expressos pela linguagem. Quando alguém ado-
ece, o que está em questão é uma diminuição de disposição, a ( uncnto singular.

perda da habilidade ou capacidade para realizar determinadas ( h sentidos da saúde e da doença são, ainda, configurados
, I ti, histórica e culturalmente. Eles não estão isentos de cren-
atividades. A experiência não se presta a definições precisas,
existe uma lacuna entre o que é vivido - ou experimentado - I Itil rarquias, juízos de valor, conhecimentos e atitudes com-
pelas pessoas e a elaboração conceitual, linguistica. I1 ilhudos em um grupo.

O conceito é uma forma de definição, uma maneira de apre- I por um lado vimos que os sentidos conferidos à doença

sentar por meio de palavras as características de um objeto " dl' natureza individual, singular, por outro lado, as
ou uma ideia. Um conceito científico é uma definição objetivada, 11'1111 Idades são constituídas em um contexto cultural, social

uma generalização. Ele expressa as identidades e não as diferen- hl 11111 o. Podemos, portanto, dizer que nascer e viver em uma
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14 ]
determinada sociedade na qual emergiram e se legitimaram I I1 ~Iue não alcancem as singularidades, os conceitos são uma
determinados conceitos é condição para a modulação da expe- I 1111d ' definir, explicar, propor formas de intervenção, daí sua
riência pessoal. I ('I 1.incia em toda ação técnica dirigida aos problemas de
1\1111Por mais que não expressem plenamente a intuição, eles
Os conceitos de saúde e de doença apresentam descrições de
111110 .rn significados compartilháveis que possibilitam a co-
fatos observáveis à luz das concepções vigentes: Ao mesmo
1111(
ação, troca de experiências e criam recursos para interven-
tempo, o que determina o diagnóstico e a classificação de uma
" I () adoecer não se restringe à definição de doença como
neoplasia pulmonar, por exemplo, o exame radiológico que apre-
111.1,
Igla, é também por meio desta delimitação de sentido, e do
senta a imagem ou o aspecto anatomopatológico que informa o
tipo histológico do tumor são instâncias bem diferentes da ex-
1" de possibilidades que a medicina oferece diante do diag-
, 111' I, que o doente deve encontrar o modo mais conveniente
periência última, do valor atribuido pelo indivíduo ao diagnósti-
co da doença ou à própria vida depois do diagnóstico.
I I 'I'. OS conceitos cientificos integram a cultura e, consequen-
1111
111" a experiência - podemos afirmar, assim, que a ciência
Existe uma distância entre a construção da doença pelo co-
11,1.1 a delinear a experiência contemporânea do adoecimento.
nhecimento e a sensibilidade das pessoas nas suas existências
.1 Idade Média, as epidemias dizimaram milhares de pesso-
singulares. Essa singularidade existencial é fonte de questiona-
1111
wntinente europeu. Diante da inevitabilidade da morte, a
mentos e abertura para novas formas de compartilhar sentidos,
I"d.\ção era tomada pelo pavor. o fim do século XX vimos
ou mesmo para as sabedorias tradicionais e seus recursos alter-
1I >lI lima epidemia que atualizou o medo trazido pelas pestes
nativos de lidar com a relação entre vida, saúde, doença e morte.
It~vais. A Aids, doença inicialmente considerada fatal e res-
A pluralidade dos meios visando à cura, provenientes de di-
\I" .1 grupos de pessoas identificadas pelo comportamento,
ferentes racionalidades médicas, é indicativa da circunstância de
II I~I.\ um significado social fortemente carregado de imagens
que nem todo sofrimento pode ser enquadrado em um diagnós-
1I"natizantes.
tico preciso. Seja no contexto da medicina científica contempo-
\ situação se modifica com a resposta construida no encon-
rânea ou no de qualquer outra prática terapêutica, há experiências
"d.1 iência com movimentos sociais engajados na luta contra
que não encontram uma definição e solução segundo formas
I" I conceito dirigido aos, à época, chamados grupos de risco.
instituida de enxergar e tratar o doente. ão há como negar a
I ,.1r -rarn, desde então, transformações expressivas na compre-
existência de um tipo de mal-estar que escapa a toda e qualquer
11 11)C na experiência dessa doença. A possibilidade de prolon-
possibilidade de ser reconhecido por outrem.
1 .1VIda dos portadores do HN é uma realidade após o adven-
Conceitos de doença implicam determinado grau de objeti-
111 dos antirretrovirais.
vidade que orienta a tomada de posição diante do mal-estar.
[ 17
Sem desconsiderar a magnitude atual da epidemia, não há •. I .riência da saúde e da doença se transforma com os
• (I de envolvidos para diagnóstico e tratamento. As pres-
dúvida de que a Aids hoje não é a mesma de há trinta anos. Atu-
almente, a Aids é concebida como uma doença que não 'privile- médicas são incorporadas à ideia de corpo, à forma como
pncebido no decorrer da história. À medida que as práti-
gia' grupos específicos, mas atinge indivíduos ou grupos inseridos
\!lOdutos provenientes do conhecimento médico se rnulti-
em contextos de vulnerabilidade, em uma rede de condicionantes
que lhes confere mais oportunidades de expor-se e contrair o 1111, se disseminam e se intensificam, o corpo é cada vez mais

vírus, condicionantes que vão desde aspectos estruturais (precá- 111rhzado. Assim, a vida privada, as relações humanas, a pró-

rias condições de vida, por exemplo) a comportamentos indivi- • ( 1St ência é, cada vez mais, modulada por prescrições e

duais (como a opção por relações sexuais desprotegidas). • III 0, da tecnologia médica.
I onquistas tecnológicas impõem tal ordem de legitirnida-
A Aids pode ser vista como um exemplo de que a ciência não é
a única instância de elaboração dos conceitos de saúde e de doença. 1111 pas am a integrar as configurações do corpo em todas as

a atualidade, o conhecimento acerca da doença se funda, predo- I , pr .ssões, da gestação à morte. Os exemplos são inúmeros

minantemente, na ciência, mas outros elementos integram a per- II 11 IVOS a praticamente todas as esferas da vida: alimentação,

cepção da doença, que é parte de um processo cultural mais amplo. 11 .luladc, reprodução, sono etc, As funções humanas são, na
\I ,1.1\ I' ontemporânea, reguladas por diferentes especialidades
Do ponto de vista da medicina, o reconhecimento da doença
11111 () da saúde. Medicamentos, próteses, intervenções cirúr-
é principalmente dado pela visualização de uma lesão ou anoma-
outros mecanismos integram um corpo que materializa a
lia, seja ela no nível dos órgãos, tecidos, células, genes ou enzimas.
11 \ I\.\ 'ao da indissociabilidade entre natureza e artifício.
Sentir-se saudável não garante a inexistência de uma disfunção
1lllIlhaneamente, existem elementos de concepções e tradi-
ou lesão passível de se expressar, em algum momento da vida,
uulcnares presentes no imaginário e nas práticas cotidianas.
como sintoma. Saúde, do ponto de vista pessoal, não é exata-
I 1111 .lsl ectos de antigas experiências são retomados de outra
mente a mesma coisa que do ponto de vista médico. Pensemos
'11'" I or exemplo, ainda se utilizam incensos e amuletos para
em alguém que se sente plenamente saudável na ausência de
, ,,11\.11 .spíritos malignos, maus-olhados, estimular valores
qualquer dor ou limitação. Suponhamos que durante a realização
11111 h.um nia, paz, amor, vitalidade. A percepção de que atra-
de um exame rotineiro seja identificada uma lesão ainda sem
.\11 ar são carreados estímulos capazes de produzir doenças,
expressão clínica. A partir desse momento, a abordagem médica
, 11.1 1;1Ia , preserva atitudes que têm eficácia simbólica.
irá voltar-se para a investigação ou tratamento da referida lesão.
I ) 11 "bate do ser humano com as formas instituídas para lidar
A objetivação do patológico abre uma nova realidade para quem
até então se sentia saudável. I \I I do .nça e a morte é expresso na literatura em exemplos de
[ 19
18 ]
'I' I' 11'ao derivada da elaboração racional de processos ine-
grande força e sensibilidade. Diversos autores escreveram obras
de ficção de grande profundidade e apresentaram novas dimen- ,\ própria vida.
sões para a reflexão sobre o tema. O médico e escritor Moacyr
NIlI{MAL E PATOLÓGICO
Scliar (1996) desenvolveu o tema da relação entre medicina e
literatura e mostrou como a ficção revela a face oculta da do- "li r O ormal e o Patológico,Canguilhem analisa as ideias
ença e da medicina. ti adores e médicos do século XIX e XX para refletir
Thomas Mann, no livro A Montanha Mágica, realiza uma das .1d 'finição de doença na medicina científica moderna
mais sensíveis descrições sobre a relação do homem com a vida, I'Inhlcmatização da diferença entre normal e patológico.
a morte, a doença e a medicina. Em A Morte de lvan lllich , Leon 111.1"o autor, quando se utilizam em medicina parâmetros
Tolstoi apresenta de forma magistral a história de um homem no III1t.IIIVOSpara diferenciar o estado normal do estado pato-
,. I orno no caso da glicemia ou da contagem das células
confronto existencial com as mesmas questões. A dissolução da
ordem social com a desorganização das relações e papéis sociais, I «uucas, por maior que pareça a objetividade expressa nos
a impossibilidade do dorrúnio da razão e da ética diante de situ- I'" I" , haveria, no estabelecimento de um ponto de corte,
ações-limite trazidas por epidemias são os temas de Albert Camus, I") I.ão de valor, um juízo valorativo. A hiperglicemia,
em A Peste, e José Saramago, em Ensaio sobre a Cegueira. Em O I,IIIHnela laboratorialmente, traduz-se clinicamente como um
A/ienista, Machado de Assis descreve o transtorno de Simão I .I,,, ti ' poliúria, polidipsia, polifagia e astenia que configu-
Bacamarte, médico, diante da diversidade de comportamentos e 1 ".1 o indivíduo, um mal-estar,
da necessidade que sentia de classificá-Ios, enquadrando grande I 1\11'S ntação de seu ponto de vista, Canguilhem observou
parte deles como doença mental. I li( Ia de mais de um sentido do termo normal. ormal
''A medicina é a arte de curar" é uma frase bem conhecida. 11' lima medida estatística, com o sentido de média, do que
o senso comum, a ligação entre medicina e arte é vista tan- II 'lluente; e, simultaneamente, um valor que expressa a
to na percepção aguçada do médico no reconhecimento dos Ir IIIllpadrão ou tipo ideal que orienta como algo deve ser.
sintomas, quanto na intuição do diagnóstico e indicação da "I" ,\fIrmamos, por exemplo, que é normal uma criança
terapêutica. Em um sentido filosófico, a criatividade é reco- I I 'I,,:\n<.loos pais a colocam para dormir, estamOS dizendo
I I um comportamento frequente entre crianças. Trata-se
nhecida como integrante dos processos de adaptação, regene-
ração e cura. Este é um tema muitas vezes desenvolvido pelo 1111!,II/Ode valor: tal comportamento é esperado, aceitável e
I h I, I.Ido natural. A duplicidade de sentido e a ambiguidade
filósofo francês Canguilhem que, além desse ângulo, compre-
ende a medicina como extensão do dinamismo vital , uma '"'\11\' -nsão do estado de normalidade - como fato estatís-
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20 ]
tico ou valor - estão presentes na medicina quando esta desenhe I 'stáveis da espécie hoje vem sendo elaborado no de-
I

I ~k milhares ou milhões de anos em um longo processo de


a fronteira entre o normal e o patológico.
II 11I Para Canguilhem (1995), há, nesse processo, uma atri-
Se a medida da glicemia é um parâmetro objetivo para o
I 11\ "onsciente de valor operada pela vida em seus processos
diagnóstico do diabetes melito, por outro lado, a distribuição da,
taxas de glicemia em uma população é a expressão dos modos I nut .nção e expansão.
'saudáveis' de funcionamento do organismo (Canguilhem, 1995).
AÚDE DIANTE DA MORTE
Sabemos que os parâmetros foram definidos ~ediante a experi-
mentação e a observação, com base em estudos laboratoriais e 11 Ir a saúde implica uma reflexão sobre a morte. Saúde e
populacionais. Se os homens cujos valores encontram-se abaixo nncnto, vida e morte estão em constante relação. A condi-
ou acima dos limites estabelecidos como normais apresentam 1111111.11 do homem ou a finirude da vida está no horizonte da
sintomas compatíveis com o achado laboratorial ou, se são as- I I 'I I -da medicina. Em última análise, a consciência da mor-
sintomáticos, no caso da hiperglicemia, considera-se seu risco I I' a a espécie humana
entre outras. Tal condição, embora
aumentado para determinadas doenças e, em ambas as situações, I \lIM\ da humanidade, nem sempre é aceita, sendo produ-

deverão submeter-se a medidas terapêuticas visando ao retorno I u-nsão, sobretudo em uma época em que a tecnologia
à normalidade funcional. I I t' um apelo para o prolongamento 'indefinido' da vida.
Para algumas constantes fisiológicas, tolera-se uma margem .hdade _ possibilidade de intervenção em casos extremos
111

de variação. Os batimentos cardíacos dos atletas, por exemplo, I mor pelo 'direito à morte' em situações irreversíveis e de

podem estar aquém dos limites considerados normais para a I. 01rimento - constitui objeto de reflexão da bioética.

população em geral e, no entanto, este fato não é tomado como ••'lIhccemos que, apesar de tantas certezas apresentadas
anormal. O mesmo se dá com o aumento da contagem de he- onhc imento especializado, há muitas lacunas na abordagem
mácias esperado nas pessoas que vivem em grandes altitudes, em 1I 11;1 relação com sua finitude e com seus limites. Os avan-
regiões nas quais a concentração atmosférica de oxigênio é baixa. I I\Ir!), tornam essa relação mais difícil em vários aspectos.
Ao considerarmos que as constantes fisiológicas exprimem I11 Itll controle sobre funções fisiológicas e a existência de
modos de funcionamento orgânico, precisamos levar em conta 1\ ,I. I 'I:IS que permitem mantê-Ias, mesmo em pacientes graves

que representam uma estratégia de adaptação, isto é, durante a 1\ ,I, possibilidade de cura, conduzem
a novos dilemas éticos.
I" I ddlnição de morte a ser doravante adotada? Quando
evolução da espécie - ou filogênese - determinadas funções
foram consideradas mais eficientes no estabelecimento do equi- 11 li os aparelhos'? Qual a margem de segurança para admi-

lfbrio entre o organismo e seu meio. O que vemos como carac- •I. 1.1 ao de órgãos de um jovem em situação de morte cere-
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22 ]
la si mesmo; para alguém tipicamente sadio, ao inverso, o
bral? ~om~ dialogar, nessas circunstâncias, com uma família que
l lar-doente pode ser até um energético estimulante à vida,
possui tradições e crenças religiosas que embasam argumentos
.1 mais-vida. Assim, de fato, me aparece agora aquele longo
contra a doação? Il mpo de doença: descobri a vida como que de novo, inclusive

. O direito à opção antecipada do momento em que devem ser .1 num próprio, saboreei todas as boas e mesmo as pequenas

•• lisa, como não seria fácil a outros saboreá-Ias - fiz de minha


~terrompidas intervenções e a legalização da eutanásia são ques-
ontade de saúde, de vida, minha filosofia. ietzsche, 1983:
toes frequentemente debatidas por leigos e especialistas, seja na
70, grifo do original)
perspectiva médica, seja em uma perspectiva filosófica ou moral.
I 11.1 se da intensidade e não só da duração da vida. A reali-
Uma vez que são condições inevitáveis, a doença e a morte
\I. I k um ser humano precisa ser compreendida no contexto
devem ser aceitas e incorporadas nas reflexões humanas sobre a
111 torça, que não é a negação da sua fragilidade, mas antes a
vid~. C~nstituem, uma vez admitidas, motivação para a proble-
I «Iuussâo e reversão em potência de vida.
manzaçao da própria existência e, a partir daí, o inicio de movi-
mentos no sentido da transformação, da inovação ou criação de I I li a distinção entre saúde e doença, contudo, é importan-

outras possibilidades de vida. Ao desconsiderar tais aspectos, \I.I:t alorização de uma vida vigorosa, com as potencialida-

perdem-se oportunidades de redimensionar valores e, em virtu- Ir : envolvidas. Se por um lado a saúde é um bem precioso

de deles, fazer novas escolhas. I 1'11 -inde da doença para ser considerada uma forma de vida
III 1111 rrnento; por outro, é uma conquista que implica resis-
A transformação é intrínseca à vida e a capacidade de apren-
I I I u iva a dificuldades inseparavelmente ligadas à condição
der com a experiência da doença é um sinal de saúde.
t I1 IV em um determinado meio.
Tomamos aqui o pensamento de Friedrich ietzsche sob a
('lIndo anguilhem (1995), é um sinal de saúde adoecer e
ru.brica d' ''A grande saúde". A "grande saúde" proposta por
I I III uperar-se. Somando a voz de Nietzsche à de Cangui-
ietzsche pressupõe uma constante reinvenção de si, pensamen-
I .hnnrn s que ainda mais saudável seria cair doente, recu-
to que impossibilita a universalização do que se chamaria 'saúde
1I I -, tendo feito da doença uma experiência vital, trazer
perfeit~', e a produção de um modelo a ser seguido por todos.
\I IIIOS que nos confiram maior positividade.
Para Nietzsche, após uma dor, uma derrota, uma perda, a saúde
retoma como um renovado desejo pela vida, admitindo os con-
1\Ili) E CUIDADO
flitos e a dor como estimulantes para a ação:
1.11 saudável ou doente não é uma qualificação suficiente
Tomei-me em. mãos, curei a mim próprio: a condição para
II I ilinrmos a posição do indivíduo diante da vida. Alguém
ISSO .-. todo fisiólogo admitirá - é ser sadio no fundamento. m
ser upicarnente mórbido não pode sarar, e menos ainda curar- II I lima doença crônica e, no entanto, viver em uma atitu-
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24 ]
I 11 rorn o cuidado. Se por um lado é necessário ter competên-
de de grande potência. Os efeitos da doença podem ser reduzidos
h'l nica, por outro é necessário também saber ouvir e atentar
por meio da adoção de determinadas atitudes que se traduzem
I I d .mentos outros que, embora não façam parte do quadro
e~ ~ma forma de viver com a doença conservando a capacidade
1111 li padrão daquele estado patológico, integram a doença
criatrva, e normativa, tendo em vista uma vida em que a capaci-
11 ulual. Reconhecer o caráter limitado do conhecimento for-
dade de realizar-se não se encontra abatida pelas limitações tra-
\I 111 por padrões e protocolos é uma importante conquista
zidas pelo adoecimento. Essa consciência deve ser cultivada por
II I Iransformação das práticas de saúde, para a obtenção de
todos e, principalmente, por aqueles que são responsáveis pelo
III I formas de sabedoria importantes na relação terapêutica.
cuidado.
I) laca-se a necessidade de ampliar a consciência sobre o
O cuidado de uma pessoa doente conjuga o tratamento ade-
I1 III dos conceitos na relação com a realidade concreta e abrir
quado pelo conhecimento e tecnologia médica à atenção aos
, \I I) para outras formas de expressão na configuraçã~ ~as
aspectos ligados à abertura de novas possibilidades de vida. É
1111 ,I de saúde. Favorecer a relação humana com sua eX1sten-
necessário estimular a criação de meios orgânicos e psíquicos
• \c,lmando a atenção para a necessidade de buscar respostas
para resistir às limitações impostas pela doença. A atitude assu-
'I 1I1.1~ I ara além daquelas oferecidas por sistemas especialistas
mida diante do diagnóstico, da evolução e do tratamento inter-
1llllIdos, de modo algum impede ou entra em conflito com
fere no prognóstico. O processo terapêutico não deve restringir-
, • 11) ientíficos da medicina.
se aos seus aparatos técnicos.
I IlIrsOS para criar esse distanciamento crítico podem ser
esse contexto cabe argumentar que, apesar de haver um
I I I,. rn ,diante a compreensão de que as forças que orientam
conhecimento hegemônico na orientação das práticas de saúde,
I • 111 ao do conhecimento, aparentemente neutras, se esrmu-
estas, quando dirigidas a uma pessoa, tornam-se mais complexas
II 'Iam o quanto há de imbricação entre sociedade, cul-
do que suas regras de aplicação. Submeter alguém a um procedi-
I I onomia. Ou seja, deve-se considerar o caráter profun-
mento médico não diz respeito apenas à execução de uma técni-
1111 histórico da ciência e das suas verdades.
ca, mas também à produção de expectativas e de sentidos. Práti-
cas de saúde que buscam aprimorar os aspectos comunicativos
do cuidado podem ser postas sob a rubrica de tecnologia, mas
apresentam algo além da técnica propriamente dita.
Aliar os melhores conceitos à certeza de que não há como
dar conta da plenitude da experiência singular da saúde e da
doença possibilita encontrar uma postura mais adequada para
( 27
26 1
2 TRANSFORMAÇÕES DOS CONCEITOS DE
SAÚDE E DE DOENÇA

I •"Ir .itos de saúde e de doença mudam no decorrer da his-


I, lx-m como as maneiras de compreender os processos de
• I1t t -nto e recuperação pela ação terapêutica. Transformações
'.IHeit e na experiência se retroalimentam, organizando e
1IIII.II1dopráticas e instituições. A valorização da saúde e o
111111
ItlOdedicado às doenças compõem a história das socieda-
I. m.meiras distintas em razão dos sistemas culturais vigentes,
I 11"1na constituição de modos particulares de ver o próprio
'I" 'I relacionar-se com o mundo. É importante ressaltar que,
, I, I I -m nossos referenciais teóricos, as diferenças históricas
111, I" li, explicar as doenças não apresentam um padrão evo-
I' IIIacumulação linear e crescente, pois sofrem rupturas e
111u.oc resultantes tanto da incorporação de novas moda-
111 conhecimento quanto das práticas sociais.

" I onhecermos a temporalidade dos conceitos de saúde


I , ti .r, valorizamos seus campos de constituição nas dife-
Tais conceitos formam parte de uma trama com-
I IHIcas.
I, u-la ões, representações e percepções, nas quais se en-
I' ti , pe to amplos de vida e morte, orientações filosóficas:
It '11S mais especificas, como possibilidades experimentais,
I, , '" , protocolos terapêuticos, modelos de formação mé-
"I IIIuc ronalizaçâo e regulamentação das profissões na área

[ 29
I umas passagens aqui apresentadas foram abordadas ini-
da saúde, organizações sociais nas quais se inserem as práticas
\ " 1111' no livro Do Contágio à Transmissão: ciência e cultura na
instituições de saúde.
,111 tllllbecimento epidemiofógico (Czeresnia, 1997).
Michel Foucault (2009) denominou "formação discursiva" a
um conjunto articulado de saberes e práticas. Para ele, todo dis No! I S, REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS DE
curso científico tem como pano de fundo um saber que confor
I\lIll1 NA ANTI GU IDADE
ma o que é possível falar acerca das coisas em uma época. A
Illlguidade foi marcada por doenças pestilenciais. Os re-
emergência e as transformações dos enunciados sobre saúde
\11.11 antigos apresentam descrições que se repetiram no
d.o~~ça e terapêutica se dão conforme certas condições de pos
I {{ I (Ia história, permeadas de imagens de terror, morte,
sibilidade. Sistemas simbólicos, valorativos e aspectos da coesão
111111 { li 'sagregação. Os períodos de peste foram associados
de laços sociais estão sempre presentes.
\ '11 -rra, invasões, desastres, destruição, fome e guardam
As práticas médicas não representam a cristalização sistemática e
11\1 11 Ia ão religiosa. Heródoto e Tucídides narraram histó-
contínua de um discurso cientificamente proposto, testado e compro-
I Il\d 'mias acompanhadas por derrotas em batalhas, pre-
vado. Elas obedecem a relações entre diferentes saberes e a relações
I1 ( ,\gricultura, perda de rebanhos e fome.
de poder que permitem que venha à tona o que é possível falar, reco-
I: li\( '\ ção da doença como castigo divino suscita a repre-
nhecer, legitimar e o que deve, ao contrário, ser ocultado ou excluído.
I I 11) (1.1S epidemias na forma de flechas lançadas por deuses
Os conceitos científicos são contingentes e não expressam
II I 11(1) transgressões humanas, conhecidas a violência e a
uma verdade absoluta, mas são constituidos historicamente. E a
IIr sua disseminação. Apaziguando-se a cólera divina,
trajetória da construção dos conceitos deve abranger os diversos
\' 1IIIItI .nte por meio de sacrifícios e oferendas, as punições
ângulos daquilo que hoje aceitamos como verdade, o que inclui
111 I 11 auas. Por exemplo, no canto I da I1íada de Homero, a
não apenas o discurso vigente, mas as formas de problematização
\ 1111.1 sobre o exército é figurada em flechas enviadas por
que o acompanham e o diagrama de poder que sustenta a hierar-
quia das proposições aceitas como mais ou menos legítimas. I di paradas por Apoio.
\11 I pl'rSr ectiva racional foi elaborada no mundo grego a
Com essa lógica, apresenta-se a seguir a história dos conceitos
111 tllI , ' ulo V a. C. A pf?ysis - concepção de natureza da
de saúde e de doença no Ocidente. Na próxima seção, utilizam-se
I I \ I raica _ e as raízes do pensamento ocidental com os
como referências principais os livros Uma História da Saúde Pública
0111 pr "socráticos parecem ter influenciado a medicina
de George Rosen, Histeria Universal de Ia Medicina de Pedro Laín
1111\ ó\, orpO de conhecimentos sobre saúde e doença pro-
Entralgo e The Conquest of Epidemic Disease (A conquista da doença
l, I 1111 li ' orrer de cerca de trezentos anos. As teorias hipo-
epidêmica) de Charles Edward Winslow. [ 31
30 1
cráticas compreendiam a doença como perturbação da harmonia I l11a vez que no pensamento hipocrático as doenças foram
entre o corpo e a natureza, ambos compostos pelos elemento, 1,111 .ulas por causas naturais, as práticas de intervenção sobre
originários da pbysis: ar, terra, fogo e ar. A predominância de 1'11 h-mias se caracterizaram por essa concepção naturalista.
determinado elemento conferia ao corpo certas característica I "hstante, coexistia um imaginário religioso que justificava
cuja prevalência definia um temperamento ou constituição que I 1i 1II as de purificação e expiação.
se relacionava aos modos de manifestação das doenças. A doen I 111 exemplo característico desse aspecto religioso é o mode-
ça não vinha do exterior, mas ao resultar de um processo de in I 1'1;1 ti as adotado na Idade Média com relação à lepra, doen-
teração com o meio, fazia parte da natureza do homem. 11 I q~ada de estigma e imagens simbólicas associadas a senti-
Na medicina hipocrática, o equilíbrio entre os quatro ele I I.' I k temor. A lepra começou a se espalhar pela Europa a
mentos confere as possibilidades de recuperação, e a ação te 1111 do século VI e alcançou o ápice nos séculos XII e XIV,
rapêutica fundamentada no diagnóstico procura atenuar o 11I1I111Id) a partir de então. Foi relacionada à impureza espiri-
desequilibrios ou impedimentos para a cura. Essa concepção I Igreja assumiu o encargo de combatê-Ia. Os doentes eram
deu base à dietética ou higiene individual, um conjunto siste I dll das comunidades, submetidos a regras minuciosas e ri-
matizado de procedimentos e técnicas de atuação na vida pes- , IIl' 'íficos de purificação. Eram tidos como ameaça pública
soal como: tempo e qualidade do repouso, regulação da dieta, I 1 .11 I orrência, excluídos e proibidos de frequentar espaços de
regime de banhos, práticas sexuais e de atividades físicas, e in , "" \11m, salvo em ocasiões especiais quando a tolerância a
dicação de ambientes e estações do ano mais convenientes a 1"11 motivos religiosos, era recomendada.
cada tipo de constituição. Reforça-se um ponto de vista natural , p -riência das práticas de isolamento dos leprosos influen-
e laico em contraponto com as práticas médicas centradas em 111 -didas adotadas posteriormente contra a peste, que no
aspectos sobrenaturais. d, , IV adquiriu magnitude de pandemia. Os mortos deveriam
A explicação natural dos fenômenos da doença, a observação I 11111 idos regularmente das cidades com a finalidade de
e o registro da sua evolução e a classificação das constituições ou II I I ('. pansão da epidemia. Após a morte de um doente, os
temperamentos individuais caracterizam a prática médica hipo- 1 11 •• 11, eram arejados, fumigados e queimavam-se seus objetos.
crática. Para os gregos, a saúde é concebida como relação har- I, 111 d .ssas medidas no interior da cidade, evitava-se o con-
mônica entre os elementos que pode ser afetada na relação entre 11111 lorasteiros e a circulação de mercadorias para impedir
o indivíduo e o meio. A doença é uma espécie de esforço da 11 1.1.1 da epidemia. O sistema da quarentena, surgido nessa
natureza, uma reação que visa à restauração de um estado de I, 1 ,\1:1 terizava-se pelo isolamento e observação rigorosa
equilíbrio ameaçado ou perdido. II:IS até que se garantisse que não portavam a doença.
[ 33
32 ]
Com auxílio da empiria, a peste foi concebida como doença I" 'li 'concebido com uma especificidade ou estrutura morfoló-
comunicável pelo contato pessoal e com objetos, mas não eram " I llL1 o diferenciasse de eflúvios ou emanações miasmáticas.
suficientemente claras a natureza do elemento comunicável e ( )s estímulos que produziam doenças penetravam o corpo
sua proveniência. Naquela época, as respostas sistematizadas a 11, \'S dos seus poros ou pela inalação. Considerava-se a exis-
respeito da origem das doenças, sobretudo das epiderriias, ainda I" de uma predisposição pessoal à doença decorrente de uma
1.1

guardavam certos aspectos da tradição hipocrática já revisada I lima às sensações. Os mais propensos eram os que se expu-
por Galeno: a proximidade de ar corrompido ou água parada 111111
a entrada de estímulos danosos, por serem abertos aos
afetava os humores do corpo, originando as doenças. As altera- 1II.IIOS, ensuais, ávidos e disponíveis aos prazeres dos sentidos.
ções atmosféricas eram decorrentes de águas com detritos, I li fato, muitos problemas de saúde tinham relação com as-
corpos putrefeitos, lixo, cemitérios, pântanos, estábulos e quais- I', da moral pública e religiosa. A dor como experiência
quer outros lugares em que houvesse a possibilidade de acúrnu- I d ligada ao corpo atribui à doença o papel de entidade me-
10 de matéria em decomposição. Havia ainda a concepção de tI"!.1 .ntre a vida mundana dos homens e a verdade religiosa
que as conjunções astrológicas malignas potencializavam a cor- ,111110 além-mundo. A dor intensa produzida por doenças
rupção atmosférica. I 1.1 orno expressão de decomposição moral, um castigo
A percepção da doença guardava, portanto, um componen I ,I, I vm razão de pecados sexuais e luxuriosos, ou fonte de
te tátil e olfativo, físico; e outro meta físico, ligado à astrologia e 1I1111.IÇão
divina.
a outras modalidades de ocultismo. As formas de epidemia mais , pcriência da doença na Alta Idade Média e período
devastadoras apresentavam ainda uma associação simbólica com 1 "I.IS imento mistura representações e percepções religio-
1I o fogo propagando-se pelo ar: uma das imagens da velocidade ""1 práticas médicas e de controle sobre a população. Os
do alastramento da peste é a de uma centelha que sai dos cadá , ) de urbanização da época enfrentaram problemas
veres e se precipita sobre as pessoas. As práticas instituídas , .1 destinação do lixo, esgotamento de dejetos e, em
nesse período buscavam evitar o contato e neutralizar com " ') 'S ontra a pestilência. Reformas urbanas foram feitas
perfumes, incensos e máscaras os perigos ferecidos pelos odo ,Iicão de casas e pontes, alargamento
I 1111 de ruas e dre-
res viciados no ar. I ,I, p:intanos, com o intuito de diminuir a proliferação
o isolamento tinha, na época, significado semelhante ao da 111.1l' favorecer a circulação do ar. Ainda assim, pode-se
práticas de purificação do ar: proteger o corpo de influência I I 11llll ' a doença é experimentada como uma realidade
maléficas de distintas origens. Não havia uma distinção clara I ' I" doente e materializada na relação com a natureza
entre 'contágio' e 'miasma'. O 'contágio' não era predominante 1" d\(latie, fonte de infidelidades, incertezas e berço de

34 ] [ 35
forças ou potências capazes de perturbar o equilíbrio natural 1111uução do saber no mundo ocidental. Quanto ao saber mé-
associado à saúde. I, ", Irata-se de procurar, no reino vegetal, por exemplo, plantas
A singularidade do doente era reportada para o coletivo, I I .tpresentem semelhanças com o órgão afetado ou com os
considerada menção à possibilidade de qualquer um cair em 111
limas apresentados pelo doente. A tarefa do médico se torna
desgraça, perder a dádiva divina e adoecer. Algumas das ações 1IIIIIllrar na natureza o remédio adequado para cada doença.
que hoje entenderíamos como saúde pública diziam respeito às \ partir do Renascimento, as doenças vão sendo identificadas
condições de salubridade locais. Alguns séculos depois, com o I, lima individualizada. A sífilis, o chamado 'suor inglês', tifo
crescimento das cidades, estabelece-se uma administração local 1111
mático, escarlatina, varicela, varíola e malária, raquitismo
que assume a responsabilidade por tais ações. , urbuto foram observados ou estudados de modo mais pre-
I' I I(" Ia primeira vez.
CONFIGURAÇÃO MODERNA DO DISCURSO E
«xse contexto, Fracastoro elaborou a teoria do contágio,
PRÁTICAS DE SAÚDE 111 nulo identificar um princípio, uma causa que fosse a origem
o Renascimento representou a aurora de um novo período I, 11 11 a. O contágio seria uma corrupção, similar em portado-
histórico: assiste-se ao surgimento da civilização moderna. A IV eptores, iniciada pela infecção causada por partículas
superação da ordem feudal se ligou ao início do processo de li' II vptíveis, denominadas de semminaria. Tais partículas se
transformação na estrutura do saber no Ocidente. Modificou-se II nzavam por apresentar propriedades que garantiriam di-
a relação entre conhecimento e ação no mundo com a emergên- " I,do ar e penetração em substâncias porosas. A contagio-
cia de novos valores que constituíram os primórdios da ciência I. poderia originar-se no próprio corpo ou no mundo exter-
moderna. li, :ígua, pântanos e outras fontes. Ocorreria diretamente,
li 1.11por objetos ou a distância. Fracastoro, no século XVI,
Paracelso, Vesálio e Fracastoro são exemplos de tentativas de
1111\ ,I aos contágios uma especificidade ao atingir árvores e
transformação do conhecimento sobre o corpo e as doenças. Os
111\I ucs, certas espécies de animais, crianças etc.
estudos anatômicos de Vesálio deram a conhecer a estrutura
interna dos órgãos. Paracelso assinalou uma origem local das 111.ir das tentativas de especificação das doenças e suas
alterações corporais provocadas pela doença e buscou especificar , I nrn o intuito de encontrar uma terapêutica também es-

o seu 'ente' como uma substância proveniente do mundo exter lI, " 11:10 se conseguiu nesse período superar as práticas an-

no. Com a busca de especificação da doença, procurava-se en Por exemplo, as recomendações de Fracastoro para

contrar uma base empírica para a intervenção terapêutica. Até o 11,111,IS doenças epidêmicas não diferiam das presentes nos
início do século XVII, a similitude tem um papel importante na ,I,. 111xlievais sobre a peste: as janelas seriam abertas ou
36 [ 37
fechadas de acordo com a localização dos ventos; flores e frutas I, sificação que ele realizou se baseava nos sintomas e não
deveriam ser colocadas nos quartos dos doentes; fumigações Iimulos capazes de engendrar a doença no espaço corporal.
seriam realizadas com substâncias aromáticas; além da utilização
11\ flucnciado pelo empirismo extremo da época, Sydenham
de máscaras com perfumes. Também era conveniente que se
n "u os fenômenos mórbidos, tal qual se apresentavam,
evitassem aglomerações e visitas a pessoas enfermas, devendo-se,
unuutndo os sintomas principais, que se encontravam de
em épocas de epidemias, permanecer em casa e mantê-Ias limpas
11 II a peculiar em cada doença; daqueles secundários ou
e bem ventiladas, e evitar o calor para que os poros da pele não I. urais, que eram expressão das singularidades dos pacientes.
abrissem, facilitando o contágio.
perspectiva sugeria uma ação terapêutica diferenciada,
Ainda que a racionalidade científica moderna, tal como a 111. 11 lar e regulada. Para Sydenham, a terapêutica deveria
conhecemos, tenha se originado no século XVII, a cientificidade I I 1111 lar os processos naturais de recuperação, o que propiciou
na medicina se consolida apenas no século XIX, como será vis- nd.lIll .ntos para uma propedêutica clínica mais específica,
to adiante, 1111 (I dos parâmetros da época.
A teoria do contágio, em suas derivações até meados do sécu- I',"vm, com a elaboração da teoria da constituição epidêmica,
lo XIX, foi considerada especulativa e sem base consistente. As 1.uharn recuperou diversos aspectos da concepção hipocráti-
teorias hegemônicas acerca da origem das epidemias eram, até epidemias ocorriam por alterações atmosféricas que pre-
então, provenientes da tradição hipocrática. Os trabalhos do mé- I,""ham ao adoecimento, elas eram decorrentes de um con-
dico francês Guillaume Baillou (1538-1616) a respeito da distribui- 111 .k causas singular, próprio a um determinado momento.
ção sazonal de doenças foram influenciados pelos estudos hipo- 1111 111 uição epidêmica era peculiar a um determinado ano,
cráticos sobre os estados e constituições atmosféricas e o colocaram 11 I< urrava o caráter de todas as epidemias que ocorriam naque-
como um dos seguidores históricos dessa tradição. No século XVII " .I! Ido e imprimia suas características e sintomas próprios.
esse pensamento ganha sua principal expressão com a teoria da I I • prd 'mia era resultado da interação entre as qualidades fí-
constituição epidêmica de Thomas Sydenham (1624-1689). I .1.1 atmosfera (sazonais) e as influências ocultas, provenien-
a medicina hipocrática, a doença era caracterizada pelo li, Intestinos da terra', que atuavam especificamente naque-
desequilíbrio, era um acontecimento único, dado pelo tempera- I' Iltldo. Cada nova epidemia constituía, portanto, uma
mento do doente. Sydenham é um dos primeiros a dedicar-se à t" 1111 ' particular e dificilmente se repetiria.
classificação de doenças como espécies ou entidades, valendo-se uoria da constituição epidêmica manteve a cosmologia da
da lógica que orientou a descrição de espécies vegetais e animais di. 10 hipocrática ao centrar-se sobre os fenômenos atrnosfé-
na história natural, incluindo-as em ordens, gêneros e espécies. , • I l'cuperar o estudo das mudanças das estações, dos ventos
38 1 [ 39
,lida racional para evitar a propagação de epidemias. Sua or-
etc. e sua influência sobre o corpo humano e a ocorrência de do-
1111
'.1 ão então passou a incluir uma escala hierárquica, uma
enças, mas esses componentes eram considerados de maneira
I 1It1ldcde inspetores, funcionários da administração, encarre-
distinta da medicina grega. Por exemplo, especialmente a partir do
I 11) da vigilância, cujas funções eram as de: notificação e
fim do século XVIII, os miasmas diziam respeito a emanações
1IIIIpanhamento de casos novos; proibição da circulação do
atmosféricas compostas por partículas já descritas como elementos
IIll' c de seus contatos; comunicação da evolução da doença;
químicos, no modelo da química, disciplina científica nascente.
1I111.Igemdos óbitos.
A representação do mias ma, antes uma matéria misteriosa e
( ls 'ontagionistas estiveram,grosso modo, comprometidos com
venenosa que se colava às coisas e às pessoas, passou a ser con-
',11I() .rarização dessas práticas, imprimindo ao contágio um
cebida como substância de natureza quimica, embora não esti-
I 11II conservador, associado a poderes arcaicos (Ackerknecht,
vessem identificadas e estabelecidas as relações entre esses ele-
I ) A concepção de que a doença se propagava individual-
mentos .e as ainda então denominadas 'emanações' que
1111de um para outro estimulou intervenções de controle e
corrompiam o ar.
11I ,\mento dos indivíduos. Ao contrário, os anticontagionistas,
O que caracteriza, nessa época, a principal diferença entre
1\limando a doença à constituição atmosférica, enfatizaram as
as teorias explicativas sobre a origem das epidemias que se
centradas fundamentalmente no controle ambiental. Mes-
contrapunham - contágio e constituição epidêmica - era, de
I...sim, as teorias que deram suporte aos contagionistas e
um lado, a intenção de precisar uma causa específica localizável
11111
<ll1tagionistas conviveram e interagiram nas intervenções e
capaz de produzir terapêuticas generalizáveis; e de' outro lado:
I 1III:lginário social.
a ênfase na ideia de predisposição, gerada por um conjunto de
\ operações relacionadas ao controle de doenças, particular-
circunstâncias singulares e não generalizáveis.
11IIIl as pestilenciais, constituíram organizações estatais com
A disputa entre contagionistas e anticontagionistas nos sécu-
111<l 'S de fiscalização e normalização da aplicação de leis que
los XVIII e XIX foi motivada ainda por divergências de posições
1\ \11 avam regular práticas da vida cotidiana. Essas ações forma-
quanto à organização das práticas sanitárias. Quais as medidas
111)1:1 rte do processo de institucionalização da higiene pública,
mais adequadas ao controle das epidemias? Medidas mais focais
11111110
uma racionalidade jurídico-política dos Estados emergen-
ce~tradas no controle das pessoas? Ou medidas mais gerais re-
1I,Illueleperíodo.
lacionadas ao controle do ambiente?
1,1no fim do século XVIII, o discurso sobre a propagação das
A teoria do contágio foi identificada com a institucionalização
I, " 11as entre anticontagionistas não se referia de modo vago às
da quarent~na. A partir do século XVII, sobretudo na França,
11II I oes atmosféricas resultantes das matérias pútridas, como
este procedimento surgido na Idade Média se estabeleceu como
[ 41
40 ]
Sydenham propunha no século XVII. Os miasrnas, concebidos " I -rn sindicatos realça o papel da política como instrumento
ainda imprecisamente como substâncias químicas, eram origina- I 11I Indicação de melhores condições de vida.
dos por condições de vida objetiva, decorrentes da organização I Il1Iis-René Villermé, William Alison, William Farr, John Si-
e manutenção do espaço social. 111,I!ricdrich Engels e Rudolf Virchow, entre outros, impulsio-
Aos poucos, à constituição epidêmica foram incorporadas as I 1111
lima significativa produção científica que destacou as rela-
ações humanas. As construções características da teoria de Sydenham, -utre as condições materiais de vida e a saúde. Eles
relativas à influência atmosférica, imprinúam ao discurso anticonta- 'lI\h' eram a saúde da população como tema de estudo dife-
gionista a marca de uma medicina do passado e se misturavam às I" i.ulo e contribuíram para o desenvolvimento e consolidação
formulações da emergente disciplina da higiene pública. I I( tonalidade epideITÚológica que vai emergir nesse século. A
A partir da primeira metade do século XIX, além das carac- 1111d ..ses autores, a questão da saúde conquista um novo uni-
terísticas materiais do espaço, o estudo da constituição epidêrni- I II I1 ' objetos de análise e novas perspectivas de ação para a
ca iria se aproximar dos aspectos geográficos, históricos e socio- 111ma,
lógicos. A tradição higienista é extremamente importante para a I) P 'nsamento de Virchow, médico alemão com uma vasta
história não só da epiderniologia e da saúde pública, mas também , ..III~:lOsobre temas de epideITÚologia, saúde pública e patolo-
da geografia humana (século XIX), da ecologia e de outras ciên- , 11mexemplo da ligação entre o ponto de vista anticonta-
cias SOCIaIS. 1111.1 . a defesa da necessidade de profundas transformações
O movimento da higiene pública levou em conta as condições III para que ocorresse uma mudança nas condições de saúde
de vida dos trabalhadores, relacionando-as com a origem das do- I" lplllações. Para ele, as doenças da população seriam deter-
enças, sobretudo na Inglaterra pós-Revolução Industrial. As con- 11I I IS por "defeitos na sociedade".
dições de vida e trabalho eram precárias. As articulações entre cio 'nça, como fenômeno coletivo, mostraria que a vida da
miséria social e doença se tornaram um objeto de interesse e de 1,t1.1 ao se encontrava em condições anormais. Essa anorma-
estudo na medicina, assim como a denúncia e divulgação das ide- I, 1I ti 'veria ser reconhecida pelo estadista como sinal de que
ologias que inspiraram movimentos revolucionários envolvendo a '1111orrera no desenvolvimento de seu povo (Virchow, 1985).
classe operária. Sob o impacto do processo da Revolução Industrial, I IllIdições naturais induziriam epideITÚas quando e ond.e
estudos da época apontavam, além das influências climáticas e UIIl,O'S sociais precárias produzissem situações anormais
sazonais, a falta de salubridade nas fábricas, as condições de mo- ,111I11':ltlas:
radia, alimentação e nutrição como propícias à disseminação de ( .u .rras, pestilência e fome se engendram mutuamente; nós
doenças e desfavoráveis ao seu controle. A organização dos ope- 1\.1<) nhecemos nenhum grande período da história do mundo
[ 43
42 1
em que isto não tenha ocorrido em maior ou menor escala " públicas assistenciais. O conceito de salubridade, o contro-
simultaneamente, ou em curta sucessão. (Virchow, 1985 :122) .11 I enças endêmicas e a prevenção de epidemias se
11111. rurararn como pontos estratégicos da ação do Estado. es-
Ainda quanto às repercussões da Revolução Industrial, podemos
,,,,,texto , destacaram-se intelectuais imbuidos de ideias poli-
ressaltar aspectos de grande relevância e influência no panorama
\ •I orno Edwin Chadwick, que esteve por décadas à frente da
social e econômico, com reflexos na saúde. O processo migratório
das áreas rurais - com o declínio da produção de alimentos em 11" ma sanitária na Inglaterra.

prol do uso da terra na produção de matéria-prima para a indústria ( hadwick publicou em 1932 o "Relatório sobre as condições

têxtil- desencadeou o aumento abrupto da população urbana, sem I u.ma da população trabalhadora na Grã-Bretanha" (Rosen,

que isso fosse acompanhado de ações no sentido de providenciar I) 1), n qual ressaltou a importância da estruturação de um

a infraestrutura necessária ao crescimento das cidades. Além da II ma de informações estatísticas de boa qualidade como

insalubridade do ambiente nas fábricas, a inexistência de regulação 11, ídio para o esforço de prevenção de doenças. No discurso

ou leis trabalhistas dava margem a jornadas intermináveis, trabalho 11 't,'S de Chadwick, a medicina une-se à política na análise das

infantil e de gestantes e puérperas. I 11 ocs entre Estado, economia, política e salubridade: sua linha
, I" nsarnento sustentava que a doença mantinha com a po-
Aos poucos, ocorre a valorização da população: o desenvol-
li' I lima relação de circularidade, uma favorecendo o aumen-
vimento de medidas de combate à mortalidade infantil e de
proteção ao trabalho de crianças e adolescentes; a atribuição .1.1 outra.
de um papel diferenciado à mulher no cuidado com a higiene IIIS ideias não se restringiram à Inglaterra, e possibilitaram a

tendo em vista a conservação e proteção da família; e o aumento 11 IIhdação de uma perspectiva transversal ao enfoque de se-

do custo da especialização de operários para lidar com máquinas 1II.I.It! social que se desenvolverá com Otto von Bismarck na

cada vez mais complexas. Configuram-se uma nova mentalidade I m.inha: garantir por todos os meios que as catástrofes oca-

e o fortalecimento dos Estados- ação e das políticas públicas. 111 ulns pelas doenças não levem a catástrofes econômicas e

A nascente sociedade de mercado, a indústria e os ambientes \I efeitos não sejam perversos tanto para o indivíduo e sua

urbanos acabam por determinar a necessidade de um novo sig- 111111:\, como para o sistema produtivo. Desta maneira, há uma

nificado para a prevenção e a proteção da saúde. Torna-se lugar- 111 "a ã íntima entre a preocupação pecuniária, a prevenção

comum o reconhecimento do povo como 'capital humano' de- I .111 'nça e a ação governamental.
vendo, portanto, ser alvo de investimentos. , na Inglaterra foi central a questão de como organizar a vida

Assim, sob a perspectiva anticontagionista, as práticas sanitá- 1111 lhorar as condições de saúde nos complexos industriais das

rias preconizadas se voltavam para reformas sociais ou interven- " I sociedades urbanas, nas doutrinas liberais, em países como
[ 45
44 ]
os Estados Unidos, a resposta não se encaminhou para a trans- ( a posição dos anticontagionistas era relacionada a um
formação das estruturas políticas e econômicas do capitalismo, ,1111) de vista mais amplo para a saúde pública, à medida que
mas sim para modelos assistenciais que envolviam a sociedade I Ili iva visão mais adequada ao discurso moderno da higiene
civil - seguiu-se a criação de diversas entidades filantrópicas, al- ,ti" torça, acaba por implicar uma mudança de foco nas estra-
gumas voltadas para grupos populacionais específicos como as II da medicina social. A ideia de especificidade ganha terreno
crianças, por exemplo. 'I nt 'S rnicrobiológicos, com o advento da microbiologia,
O discurso moderno da higiene se desenvolveu com um ca- ,1111 a ser considerados as causas das doenças.
ráter individualista e liberal. O conjunto de práticas e experiências 1',.1 .mizar apenas o caráter político desse conjunto de rnu-
já existentes foi direcionado para camadas da população, segun- 111 IS pode obscurecer a análise de sua complexidade. Sem
do características sociais e culturais. Esse discurso desconsiderou II Ic 1.1, a perspectiva anticontagionis ta era identificada com um
as contundentes denúncias sobre os contextos sociais mais amplos Illl1ento social mais amplo e este perdeu espaço com a
geradores dos problemas de saúde. Um dos desdobramentos I formação do conhecimento médico. Porém, essa transfor-
dessa linha de pensamento levou ao funcionamento de um có- I 11) foi mais do que uma opção estritamente política. Ela se
digo moral que responsabilizava os indivíduos pela adoção e I' 1\1, sobretudo, em níveis mais capilares, diversificados e
insistência em certos padrões de comportamento e preconizava " ,f 11 lidos da experiência e ação humanas. O estímulo e finan-
mudanças nesses padrões. 1111 mo a pesquisas - Louis Pasteur (e suas pesquisas aplicadas
A demanda por conhecimentos específicos sobre a doença e I 1 •• 1>1 'mas focais) é uma figura de peso nesse sentido - com-
sobre as epidemias permaneceu, no século XIX, exercendo uma I 111 os elementos que estão na base do surgimento da medi-
grande influência na medicina. Nessa época, já existiam condições 11 I moderna e da crescente construção tecnológica; interfe-
conceituais e instrumentos propícios ao desenvolvimento de uma II I•• não só nas formas de compreender e explicar a doença,
maior positividade com respeito ao desvendamento do mecanismo uscitando inúmeras práticas relacionadas ao cuidado e
da doença e identificação de uma causa específica. O surgimento ti .111 ia do corpo.
de novas tecnologias possibilitou intervenções que viabilizaram a onsequências dessa construção são, de um lado, uma
coletivização das medidas de prevenção de doenças e manutenção I' Illa de grandes conquistas em termos de recursos para pro-
da saúde. Nesse processo, de acordo com as necessidades impos- " ',11 a vida; de outro lado, a emergência de contradições no
tas, privilegiavam-se ações específicas. Um exemplo é a elaboração I ,,, h 10 biomédico que questionam sua racionalidade, como
de uma série de regras para o cuidado das crianças, como o acon- 1I IlIO, adiante.
selhamento quanto à alimentação, vestuário e cuidados em geral.

46 ] [ 47
o DESENVOLVIMENTO DA LÓGICA DA
u r,
I \I 1I
\ anatomoclinica transformou o caráter do olhar para o
do corpo onde se encontra a doença. O olhar inquiridor
ESPECIFICIDADE DA DOENÇA
1II.IIOmoclinica tornou visível o que não era (Foucault, 1987) .
A partir do fim do século XVIII ocorreu uma profunda .inatomia patológica, seja pelas observações de Giovanni
transformação no conhecimento médico, incentiv~da por mu- 1I' I rni (1682-1771), um de seus expoentes, seja pelos trabalhos
danças no panorama politico, social e econômico. Por mais que 1111 '-François-Xavier Bichat (1771- 1802), consolidou uma
nos pareça verdadeira a concepção de doença que emergiu nessa I Iorrna de produção de conhecimento sobre as doenças
época e que ainda hoje compartilhamos, é importante sublinhar li IlIdo relacionar a observação clinica a lesões anatômicas. Para
como ela é vinculada tanto a uma ideia de sociedade e de civili- 1 li, a causalidade da doença fica na estrutura mais íntima dos
zação, quanto tributária de modificações e inovações ocorridas 1\' I~,onde se aloja a realidade da doença. Essa perspectiva vai
no campo científico. di u-rminante nos desenvolvimentos posteriores da medicina
Foucault (1987) assinala o período do nascimento da clinica I I mental.
no fim do século XV1II, quando esta se estrutura por meio de l.tI caracterização marcou o início de um novo modo de
uma linguagem que fala das visibilidades, em última instância, do I I I (Igar e compreender a transmissão de doenças a partir do
olhar. É nesse período que a linguagem anterior, permeada de 1.1,I 'IX. Já não se tratava mais da disputa entre contágio ou
imagens, metáforas e analogias, torna-se conceitual, quantitativa I 111.1,
mas da observação precisa de uma lesão anatômica. O
e rigorosa, baseada em dados de observação e experimentação. 111
~() se deslocou do sentido do tato (contágio) ou olfato
São qualidades atribuídas ao novo discurso: objetividade, forma- I I ma) para o sentido da visão (Czeresnia, 1997). A perspec-
lidade, empiricidade. I I • Il1tagionista ganhou um novo lugar com as transform~ções
Essa nova orientação criou a possibilidade de uma experiência 1111
dI ina. A especificação da identidade da doença abriu es-
clinica e da elaboração de um discurso de estrutura científica sobre , •I para a observação de um agente capaz de ~ese~cade~r a
o indivíduo (Foucault, 1987). esse sentido, o estudo dos fenô- I' I. a lesão, consolidava-se o terreno da teoria microbiana
menos da doença pela anatomia patológica foi central para o .locnças.
surgimento de uma nova concepção. A observação e a descrição \ I) mesmo tempo, os aportes da medicina experimental des-
de modificações no cadáver e a ligação entre as lesões examinadas 11.1.\1
nrn as intimidades dinâmicas da doença e deram à nova
e os sintomas concederam estabilidade e clareza à experiência da 11 Ia médica o caráter de progressividade derivado da investi-
clinica a partir do século XIX. A doença encontrou uma corres- I 111 -ontinua. Os trabalhos de Claude Bernard, durante o sé-
pondência no corpo, uma vez identificada como lesão em um I ,e o surgimento da fisiologia como disciplina científica
[ 49
48 ]
reforçam o projeto de trazer, para a biologia, o modelo experi •li .ntes e constitui, ainda hoje, a experiência compartilhada
mental da física e da química. 111m.nte do que é a doença. O desenvolvimento da biologia
'Meio interno' é o conceito-chave que possibilitará o desenvol I,I ular a partir da segunda metade do século :xx reforça a
vimento da fisiologia e da experimentação biomédica. Esse 'meio I ,'. perimental e instrumental. Porém, como veremos no
interno' não era mais aquele espaço ilusório dos gregos onde 11I11l5, "Teorias de doença", as incongruências e a cornple-
ocorria uma luta entre forças naturais materializadas nos humores, I I. .ilcançada na descrição contemporânea dos mecanismos
mas o espaço onde aconteciam reações físico-químicas na concre I , 'I< os aponta para uma transformação desse modelo.
tude dos tecidos e, mais tarde, da célula. A possibilidade da expe
rimentação nas ciências da vida significou a emergência de uma IOIlN SNOW E O NASCIMENTO DA EPIDEMIOLOGIA

nova atitude diante da natureza. Como descreve Canguilhem: "o mudanças na medicina estiveram ligadas também ao sur-
hipocratismo é um naturalismo; a medicina da observação é pas IIIIIda epidemiologia em sua feição moderna. A propagação
siva, contemplativa, descritiva como uma ciência natural. A medi I. n-ucas passou a ser compreendida por meio de um novo
cina experimental é uma ciência conquistadora" (2009: 139). I I 110:lransmissão.
O desenvolvimento da medicina experimental permitiu a !,Il'ocupação em descobrir lesões anatômicas específicas
sistematização de doenças caracterizadas como perturbação de ,IIII.ISa s sintomas e sinais das doenças suscitou a busca da
funções fisiológicas, por exemplo, distúrbios endócrinos como 11 ~,Itambém específica da causa e da via pela qual ela atingia

diabetes, hipotireoidismo etc. Com isso, inaugura-se um progra I '"IISITIO, provocando a inflamação.
ma que tem atualidade ainda hoje: é possível dominar a natureza I u.ibalho Sobre a Maneira de Transmissão do Cólera de ]ohn
viva por meio da ciência; tudo o que existe patologicamente pode I publicado pela primeira vez em 1849 na Inglaterra,
(I C)<)()),
ser explicado fisiologicamente, ainda que como um desvio; o I I1Ilfl .a o aparecimento da configuração moderna da epide-
mecanismo etiológico e fisiopatogênico pode ser desvendado. " • '\.1 Os manuais da disciplina celebram Snow como o seu

Essa construção da medicina experimental se desenvolveu o entanto, outros como Villermé, Max von Pet-
além das divergências que se contrapunham no pensamento ,j II I, irchow, Peter Panum e William Budd também pro-
médico. A anatomoclínica e a fisiopatologia se transformaram na I 111\Imbalhos significativos e característicos do novo modo
realidade da medicina. Algumas polêmicas anteriores permanc I ".\1 daquela época. Snow, sem dúvida, é um exemplo rnui-
ceram presentes, mas não abalaram a solidez da estrutura sobre I I II.IIIV()da racionalidade epidemiológica.
a qual se ergueu o moderno conceito de doença. Apesar das f " I\Ima-se ressaltar a maneira como Snow se vale de um
controvérsias, esse arcabouço apresentou uma positividade sem li' técnicas de análise - construção e comparação
111I111l
[ 51
50 1
de indicadores de morbidade e mortalidade em grupos popu , , «lera". Cabe lembrar que esse momento é anterior ao surgi-
lacionais -, além de elaborar desenhos de estudo caracterizados 1111) da microbiologia e que esse modo de pensar não era, à
como modelos para o surgimento do método epidemiológic . " " hcgemônico.
O raciocínio de Snow se desenvolve com base na teoria que III)W inferiu que o "veneno do cólera", saindo do corpo
dá forma ao conceito moderno de doença. Para o investigador, "'1'10 das fezes, contamina mãos, objetos, roupas e se mis-
foi a patologia do cólera que pôde indicar o seu modo de trans I I agua. E é através da água que o cólera ultrapassa as
missão. Snow articulou o conhecimento médico-científico dis 1,11., ões aglomeradas das pessoas de poucos recursos" e
ponivel na época para encontrar uma relação coerente entre os I nao só "se propagar por uma maior extensão, mas alcan-
eventos que ocorreram durante as epidemias de cólera em Lon , r lasses mais favorecidas da comunidade" (Snow, 1990:89).
dres, em meados do século XIX. I r onclusâo foi demonstrada através de minucioso estudo
1I l.ição entre casos de cólera e a distribuição das redes de
Ele descreveu detalhadamente as relações entre lesões, fisio
I 111imento de água em Londres.
patologia, sintomas clínicos e análises quimicas do sangue e fezes.
Concluiu que os sintomas do cólera dependem de uma exsudação r .rramentas herdadas da clínica patológica, da medicina
proveniente da membrana mucosa intestinal, que é depois expe "111111 .ntal, da estatística, o compromisso com a produção de
lida copiosamente pela evacuação. Buscava precisar a causa 10 ,. vitais e o enfoque coletivo próprio do movimento da
"verdadeira e específica" da doença. Afirmou que o "veneno do ,111 ma ocial foram conjugados no desenvolvimento da racio-
cólera" se introduz no canal alimentar, onde tem a capacidade de I" 1.1( I ' cpidemiológica e na sua posterior consolidação como
reproduzir-se por ter provavelmente "estrutura semelhante à tlll") de produção de conhecimento voltado principalmente
de uma célula", sendo expelido nas fezes. As fezes seriam, por I ,) -studo das doenças em populações.
tanto, veículo de transmissão.
Em seguida, Snow estudou os hábitos cotidianos, condições
RI PERCUSSÕES DA TEORIA MICROBIANA

de alimentação, de moradia e de trabalho da população, como medicina tropical e os estudos sobre o cólera e a tubercu-
anticontagionistas da época também fizeram. Em sua investigação, . ntre outras doenças, dão testemunho acerca do lugar da
comparou a morbidade e mortalidade da doença entre distritos II uuologia no fim do século XIX e na primeira metade do
e vilas com diferentes condições de infraestrutura e qualidade de ,d,). X. Sua institucionalização esteve relacionada às decisões
vida. Porém, de modo diferente dos anticontagionistas, Snow se I i.ido, à gestão e administração dos incipientes sistemas de
interrogava observando o ambiente em busca de indícios que () 1111< lnde social, e aos desenvolvimentos estratégicos da econo-
ajudassem a descobrir o mecanismo de transmissão do "veneno ti, lias relações geopolíticas da época.
[ 53
52 1
l r de novo isolado do indivíduo doente, experimentalmente,
A teoria microbiana e a descrição da epidemiologia das do
l ser idêntico ao agente causal inicial.
enças a partir da infecção estimulam a corporação médica a rever
seu posicionamento científico e político diante da relação entre bacteriologia se desenvolveu intensamente nos principais
doença, ambiente e sociedade. A descoberta de Pasteur eRobert Iltlns de pesquisa da França e da Alemanha e direcionou
Koch tornou estabelecida a tese da causalidade da doença infec 1111> irnento sanitarista que crescia no seio da burocracia
ciosa de modo a conferir-lhe uma legitimidade ímpar. ão há 1t 11 Entre 1875 e 1905, quase todos os microrganismos
dúvida sobre o quanto o desenvolvimento da bacteriologia inter I r ionados com as doenças mais prevalentes na Europa ti-
feriu na medicina como campo de teoria e prática. Além disso, li 1111 Sido isolados.
microbiologia modificou o senso comum acerca da doença, do ) controle das condições das fontes da água e das comidas,
corpo e das relações entre os homens e a natureza. 1'1 u-urização do leite oferecido às crianças, assim como a es-
A teoria bacteriológica serviu de substrato a uma determina 1111I ação de medidas de isolamento baseadas nos períodos de
da forma de entender a origem das doenças. Os postulados de 111 uiçâo e modos de transmissão dos agentes causais são deri-
Koch evidenciam a forma mais pura do entendimento inicial da I, > da racionalidade microbiológica, e permitiram que o mo-
importância dos agentes microbianos no processo patológico. 1111 nro sanitarista estatal atingisse um alto grau de eficácia.
Esses postulados regem uma maneira de conceber a doença como medicina científica, centrada nos institutos de pesquisa e
invasão de agentes microbiológicos, e apresentam a tendência de I1 -cz mais restrita aos círculos acadêmicos, consolidava-se
reificar a causa externa como principal explicação e, consequen uue o movimento da medicina social e da saúde pública do
temente, fundamento para medidas de prevenção e controle. do XIX, e do discurso médico-político que reivindicava mu-
Segundo os postulados de Koch, a causa específica da doen 11 ,I social em nome da melhoria das condições de saúde de
ça, ou seja, o agente microbiano responsável pelo quadro pato I" > segmentos populacionais. A separação entre o biológico
gênico, poderia ser determinada mediante o rigor de procedimen () ial e o privilégio do enfoque individual sobre o coletivo

tos laboratoriais nos quais o microrganismo deveria: I 1111 reproduzidos tanto no espaço dos programas de ensino
medicina, quanto nas práticas institucionais, fossem clínicas
• ser encontrado em abundância em todos os organismos qUl'
I 1(· saúde pública.
sofrem a doença, mas estar ausente nos indivíduos saudáveis;
\ rentes invasores que atacam e destroem a intimidade dos
• ser isolado do indivíduo doente e crescer puro no meio de
Idos poderiam, após o advento da quirnioterapia antimicro-
cultura;
111.1, ser controlados com agentes farmacológicos. Vacinas di-
• produzir a mesma doença quando introduzido num organismo
Id.ISpara alvos específicos são objeto de pesquisa e desenvol-
saudável;
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54 ]
vimento, além de medidas sanitárias centradas na higiene, com a I I l'specialização, prática individualista e centrada no hospital
vigilância e desinfecção do meio ambiente. " uso exaustivo das tecnologias. Esse modelo ainda é hege-

O diagnóstico e a terapêutica vão ocupar um lugar privilegia 11111 o nas estruturas curriculares de formação dos profissionais

do na clínica em relação a outras ações de cuidado em saúde. urde.


intervenção sobre o agente etiológico será o centro de preocu medicina moderna que se estabelece no início do século
pação da pesquisa experimental e da prática médica. O modelo I o produto da articulação de três correntes diferentes, que
de intervenção baseado no combate e extermínio de um inimigo 1111 objetos distintos e que se originam em práticas muito
invisível, configurado na experiência de controle das doença II n iadas: a anatomoclínica, centrada na experiência da ob-
infecciosas, vai se espalhar para a compreensão e tratamento I I ,\0 sistemática; a fisiologia baseada na experimentação e
clínico das principais doenças prevalentes na época. , I .mceitos de função e dinamismo; e a bacteriologia cujo eixo
, li lcntificação do agente causal. Essas correntes puderam se
As mudanças sofridas pela medicina, tais como a adoção de
ações terapêuticas cada vez mais centradas na técnica; a especia 1\ ular na medida em que perseguiam o propósito similar de

lização clínica e semiológica; e a relação hierarquizada de sabere I ' ( dicar a doença e estabelecer sua causa última. A epidemio-

voltados para a instrumentalização das práticas de saúde, criaram II ~ , constituiu como saber complementar que estabelece uma

condições que pressionaram uma reforma da educação médica, '111 .ntre essas diferentes modalidades de conhecimento bio-
I' (I C médico e a preocupação com a expressão coletiva do
O Relatório "Educação Médica nos EUA e o Canadá", ela
borado por Abraham Flexner, em 1910, teve uma importância ( uo de doença.
I ncontrar as causas específicas, localizáveis, que orientem
especial na estruturação do ensino da medicina. Esse relatório
propunha a articulação dos saberes das ciências básicas como ,I
1 It lI lS de intervenção que possam ser padronizados, é o pro-

química, a física e a fisiologia com os saberes da clínica, e apon 1111 lJue direciona os desenvolvimentos da medicina desde

tava para uma formação médica de base disciplinar centrada ru I I I I "poca. Assim, é preciso definir os procedimentos mais

prática laboratorial e clínica. ,. '1'1 lados, as tecnologias mais pertinentes, os conhecimentos


1I1,IIS se destacam e merecem ser aprofundados por novas
Flexner propôs também articular as escolas médicas aos ccn
!,"sas norteadas pelo ideal de conhecer a causa última e mais
tros universitários para proporcionar ao médico uma formação
holística que incluía as ciências humanas e a incorporação di III\.I da doença.

saberes e práticas de prevenção. Porém, a formalização do S<.'II


c .111' ressaltar, no entanto, que o campo da saúde está imerso

projeto conduziu à organização de um ensino que viabilizou 11


I 1II11a realidade em que concorrem conhecimentos de nature-

núcleo central da prática médica consolidada até então: estímulo li mífica e não científica, práticas e instituições diversas, lutas
[ 57
56 1
políticas, valo~es e crenças. Enfim, o gue se entende por saúde
os mod~s de 1ntervenção terapêutica são, muitas vezes, o resul 3 PREVENÇÃO DE DOENÇAS E PROMOÇÃO
ta~o da 1nteração de diferentes forças e ideologias. esse sentid DA SAÚDE NO SÉCULO XX
al~m de um conjunto de disciplinas científicas voltadas para
saude e a doença de' di ld -
. . in VI uos e populaçoes, o campo da saúd
se consnnu como uma pluralidade de saberes e modos de agir
sempre em mudança, permanentemente aberto ao novo. O
\ proposta de uma medicina preventiva surgiu entre o perí-
processos de transformação persistiram como
ítul . ' veremos no ca I,. ti . 1920 e 1950 na Inglaterra, EUA e Canadá, em um con-
P' o seguinte.
I•• de crítica à medicina curativa, caracterizada pelo uso inten-
,. I I . tecnologias de altos custos, e à chamada 'desumanização'
, uendimento em saúde. Surgiu como movimento orientado à
,,1.111 a da prática médica por meio de uma reforma no ensino
.II! 0, para formar profissionais com uma nova atitude nas
lu 'I 'S com os órgãos de atenção à saúde. Ressaltou a respon-
I,1111 l.ide dos médicos pela promoção da saúde e a prevenção
I, .('nças, e, por fim, introduziu a epidemiologia dos fatores de
, ',.1 cntuando a importância da estatística como critério cien-
" ti • causalidade (Arouca, 2003).
.irias circunstâncias influenciaram o desenvolvimento da
\aI ma preventiva. Uma delas foi o discurso da higiene; outra
I 11(' essidade de adeguar a educação médica às novas deman-
los serviços de saúde. Em uma realidade de custos crescen-
1I .IS istência médica, impôs-se a redefinição das responsabi-
,11's médicas para atender a necessidades não apenas curativas,
I uunbém voltadas à prevenção.
I sa elaboração surge em um contexto de críticas à prática
111 .1, por não estabelecer conexões apropriadas com outras

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