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Um romance criminal
Terra bô sabê!
Fotografias: do autor
Tipo de letras: Calibri 12
1ª. Edição: Setembro 2019
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem prévia
autorização da editora.
Contacto: domingosdidi@gmail.com
Todos os direitos reservados
Um homem chamado Renato Silos Cardoso estava a ser incómodo para muita
gente e, por isso, devia ser excluído dentre os vivos.
Numa tarde de Setembro de 1989, disparou um revólver em Quebra-Canela.
Numa outra em 2009, duas amigas, juntaram-se para recordar um amigo co-
mum, que foi morto a tiro e que fazia neste preciso ano, vinte anos sobre a sua
morte. A tarde toda foi usada para reflectir sobre os possíveis atalhos do crime
cometido e quem o cometeu, sobretudo, para satisfazer a vontade própria e a
do povo cabo-verdiano.
Um homem bem-trajado de nome Nero, ocupara um quarto seguro na cidade da
Praia, com vista para o Seminário de São José. Dispunha de um aposento bem
apetrechado, com um estilo ultramoderno. Acabara de se barbear e usava um
perfume de marca francesa…
Na Cidade Velha, dois dos satanistas, Aquiles e Diogo discutiam sobre a melhor
forma de esconder os documentos. Não só pelo valor que representam, mas
também, porque podem vir a servir como relíquias no futuro. A expressão Por-
ton d’nós Ilha, reflecte algo de muita importância para a vítima de toda esta en-
grenagem.
Badiu Boxero surgiu no dúbio cenário para justificar a morte executada por um
outro, para preencher a lacuna existente e impor um silêncio desconfortável
para confundir a opinião pública.
Um encorajamento
Espero que a publicação de uma obra deste cariz, não esteja, nos dias de hoje,
sujeita a qualquer tipo de perseguição ideológica no seio da sociedade cabo-
verdiana, podendo qualquer pessoa expressar livremente o seu ponto de vista em
relação ao sucedido.
Conteúdo
Um encorajamento ...................................................................................................................... 9
Prefácio ................................................................................................................................. 13
Introdução ............................................................................................................................. 15
Uma tarde tenebrosa ............................................................................................................ 19
Um Poema estirado na areia ................................................................................................. 19
Um dia agitado ...................................................................................................................... 25
O contratado ......................................................................................................................... 41
Hotel Crioulândia! ................................................................................................................. 63
As lições de Paín .................................................................................................................... 81
Uma tertúlia de amigos ......................................................................................................... 87
Escapadela............................................................................................................................. 97
Antes do disparo da bala mágica ........................................................................................ 115
Os documentos ................................................................................................................... 159
A triste notícia correu célere ............................................................................................... 163
Marta e Fátima .................................................................................................................... 165
Um encontro desagradável ................................................................................................. 177
Sobre a igreja satânica – Aquiles, o chefe ........................................................................... 179
Um investigador de poucas palavras .................................................................................. 183
Diogo, Sombra, Penumbra, Dário e Aquiles ........................................................................ 187
O guardador de Projectos ................................................................................................... 195
O que é uma ideia? ............................................................................................................. 199
O ano que mudou o mundo ................................................................................................ 205
A ti meu amigo .................................................................................................................... 208
O pequeno mundo de Djonzinho ........................................................................................ 211
A primeira audiência ........................................................................................................... 217
A audiência final .................................................................................................................. 233
Marta e Fátima (10 anos depois) ........................................................................................ 249
Anno vigesima ..................................................................................................................... 257
A investigação – uma responsabilidade do Estado ............................................................. 261
Djonzinho num simples raciocínio ...................................................................................... 267
As espectativas de Marta .................................................................................................... 273
Pressentimento ................................................................................................................... 295
Um caso esquecido ............................................................................................................. 299
Habeas história – Habeas justiça ......................................................................................... 303
Prefácio
Esta é uma história da minha autoria, baseada em factos reais, onde a fantasia
procura tocar a realidade. Ela é apoiada por investigações privadas e pelo livro A
Bala Mágica que matou Renato Cardoso. A estranha morte de um político é um
romance – um brincar com o pensamento na zona intersticial situada entre a
ficção e a realidade, a fantasia e os factos. Contém também, acontecimentos
verídicos, baseados em documentos amplamente divulgados e conhecidos do
público, todos eles envoltos em obscuros véus de mistérios, enlaçados em in-
trincados nós que apenas deixam transparecer os contornos desfocados da rea-
lidade. Algures foi urdida uma emaranhada teia de segredos, deliberada e/ou
planeada, o que ocultou muitas informações que nos pudessem levar a um des-
vendar do assassinato. Esses traços nebulosos dificultaram o afastamento do
manto de silêncio que deixou atrás de si um longo rasto de pistas contraditórias.
Não pretendo resolver nem destrinçar o mistério relacionado com o assassinato
de há mais de trinta anos. Coloco-me, simplesmente, no meu mundo de fantasia,
ponho um radar social na mente para escutar o que foi dito e feito nas últimas
três décadas no solo natal sobre um acontecimento hediondo e dei azo ao que
pessoas entendidas me relataram. Um acontecimento que merece uma melhor
atenção. A minha intenção é fundir ou juntar as linhas que existem entre a ficção
e a não-ficção, entre a poesia e a prosa, entre o espírito e a mente, entre o corpo
e a alma e entre a biografia e a política dum indivíduo altamente relacionado
com o mundo real e outros mundos imaginados. É acima de tudo, vontade de
escrever para apaziguar uma dor, para relaxar as tensões do corpo, pensar, re-
pensar, fazer-me reflectir, contemplar e ligar diferentes ideias desligadas e des-
conectadas sobre factos e ficção, pois factos e ficção são duas coisas insepará-
veis como o corpo e a alma, a sombra e a luz, o sonho e a realidade, o tempo e o
lugar ou o espaço.
As ideias viajam a uma velocidade tremenda na nossa mente quando estamos
mergulhados no silêncio, quando estamos sós. Sentimo-las passar como barulho
no nosso cérebro, como uma voz intensa que só nós nos apercebemos. É tão
satisfatório e aprazível pegar aquilo que atravessa a nossa cabeça à velocidade
da luz e utilizá-lo para algo concreto. Pegar ou aperceber este fenómeno pode,
certas vezes, criar problemas com as pessoas à nossa volta. Elas podem descon-
fiar que estamos a escrever sobre os seus segredos, que estamos a amar outras
pessoas, ou a criar-lhes problemas, ou ainda, que nos queremos apoderar dos
seus próprios pensamentos, esquecendo que, para muitos indivíduos, o acto de
escrever é libertador, é como respirar o ar fresco das florestas, é sentir-se reali-
zado e é uma atividade mental e física. É emergir da escuridão para a luz do co-
nhecimento, suplantar o mundo injusto e caminhar em direcção ao mundo da
justiça, da liberdade e da fraternidade.
Imagino sempre um mundo existente, mas inexpressivo. Um mundo submerso
da verdade, onde a justiça se sobrepõe à injustiça. Muitos procuram penetrar
este mundo universal com um desejo, também ele universal, de conquistá-lo à
procura de algo. Podemos chamar-lhe mundo de opressão intrínseca ou de au-
topunição. Procuro palavras adequadas para descrever este mundo inacessível e
não as encontro no interstício do espírito e da mente ou do corpo e da alma.
Nesta tentativa de procurar exprimi-lo com frases cognoscíveis, descobri que se
estas palavras existissem, elas não deveriam servir para agradar aos outros, para
ocultar as feridas no nosso corpo ou na nossa psique, para camuflar os vergo-
nhosos momentos da nossa vida, da nossa era ou da nossa história. Elas, as pala-
vras, para que possam cumprir as suas missões no mundo de opressão, de desi-
gualdade, de descriminação, de injustiça, devem ferir os sentimentos e causar
dor aos outros, mas sobretudo, obrigar-nos a questionar sobre o que nós, inge-
nuamente, temos aceitado como verdades universais durante mais de trinta
anos, ou melhor, durante milhares de anos no campo das relações humanas.
Quando desvendarmos as razões da nossa vivência oprimida pela força intrínse-
ca que se acumula no mundo subliminar da razão, ficaremos mais livres, mais
criadores de valores universais, capazes de resolver problemas que assombram a
mente, de colocar-nos na posição de fechar a brecha que existe entre classes,
entre grandes e pequenos, entre bonito e feio, justiça e injustiça, entre os ideais
de uns e a política de outros.
Esta é a linha de pensamento que está na génese da criação desta obra que não
tem a pretensão de ser completa nem reveladora da verdade. Se alguma passa-
gem aqui descrita coincidir com qualquer outra passagem histórica, apresento
desde já as minhas mais sinceras desculpas, tratando-se, no entanto, de uma
simples coincidência.
Noruega, 29 de Setembro de 2019
Introdução
1
Espécie de arbusto de fruto em Cabo Verde
I
Uma tarde tenebrosa
2
O autor
lhau, as aves a falarem a linguagem que só elas entendem, as folhas das árvores
a caírem como que se adivinhassem a chegada do Outono e alguns répteis a cor-
rerem indiferentemente de um lado para outro.
Renato só tinha 38 anos. Balbuciei dentro de mim ao ouvir um grito lá longe. Um
grito que ecoou de uma praia distante. Gostaria imenso que só fosse um sonho.
Não, não estava a sonhar. Ainda era cedo demais. Cedo para ter um sonho deste
género.
Alguns acontecimentos ficam colados na nossa mente mais do que outros. Efer-
vescem continuamente, fazendo uma teia de memórias e recordações que to-
cam o sentido de justiça no interior de cada um de nós. Marcam-nos com o ca-
rimbo indelével no fundo insondável da alma que leva qualquer pessoa de senso
comum a pensar que seria possível desvendar o caso estranho se mais esforços
tivessem sido feitos.
Armei-me em investigador independente. Deduzi que em três dias estaria no
local para recolher os indícios à minha maneira. Contudo, pensei que outros in-
vestigadores estariam lá antes de mim, examinando o local palmo a palmo, co-
lhendo informações, recolhendo todos os indícios de que precisava. Depois de
alguns dias, frustrado, assumi uma postura como se nada tivesse acontecido.
Como se não tivesse havido um assassinato. Como se nunca tivesse existido um
Renato Cardoso. Os indícios, na minha imaginação, não foram de todo infalivel-
mente afastados.
Anotei todos os meus pensamentos num diário. O diário era grosso e, no fim,
escrevi o meu nome com letras verdes. Djonzinho Cabral.
Que espécie de investigador sou? Deduzi em poucos minutos quem foi o mata-
dor. Quem vai investigar o caso? Que tipo de investigação vai ser dedicado ao
acontecimento? Então pensei que há, pelo menos, duas espécies de investigado-
res. O histórico e o mentalista. A escavação no espírito humano. E assim, deva-
garinho, desenhei a teia das minhas ideias e reconstruções mentais, que vão ao
encontro ou, possivelmente, coincidir com a realidade dos factos. Mas que im-
porta?
Certifiquei-me de ter notado algo importante no diário depois de alguém me ter
tocado no ombro esquerdo balbuciando:
– Djonzinho em que estás a pensar?
II
Um dia agitado
pelho, tentou imaginar como seria a cara do homem que desligou o telefone. Os
últimos meses tinham deixado no seu semblante profundos vestígios e parecia
um homem de setenta anos. Aquela, não era, certamente, a cara que precisava
para recomeçar uma nova vida enterrado em dinheiro e bem-estar. Os olhos
pareciam encolhidos no fundo de umas conchas e tinham uma expressão doen-
tia como, geralmente, acontece depois de uma febre intestinal ou coisas do gé-
nero.
Naquele dia de Outono, o calendário marcava o ano de 1989. O estranho encon-
trava-se instalado num dos hotéis preferidos da cidade. Sentou-se numa cadeira,
segurando a cabeça entre as mãos e mergulhado numa profunda letargia, abs-
traiu-se de tudo ao seu redor. Aquele estado mórbido em que as funções vitais
estão atenuadas de tal forma que parecem estar suspensas, isto é, oscilando
entre o estar acordado e o sono profundo, onde a mente humana já não se en-
contra consciente e o superego se encontra profundamente aprisionado no solo
da existência. De repente sentiu como se algo o observasse de um ponto mais
alto. Imaginou largos olhos incidindo sobre ele, olhos estes que viriam a vigiá-lo
durante toda a vida. Seriam os olhos de Deus ou os do demónio? – interrogou-
se.
Naquele momento, sentiu receio de ambos. De súbito, viu-se afastado do estado
de torpor em que, por momentos se deixou cair, quando alguém bate na porta
do quarto. Ajeitou as roupas, esfregou os olhos e dirigiu-se à porta. Abriu-a de-
vagarinho sem tirar a corrente de segurança.
– Sombra, onde estiveste metido? – diz ao reconhecer o seu camarada.
Sombra era da estatura do estranho, bem constituído e parecia um lutador de
boxe. Andava sempre a comer. Lembrava um pouco a figura de Mike Tyson. Pou-
co tinha dormido na noite anterior e não tinha intenção de descansar naquela
tarde. Queria era espairecer, mas o estranho tinha outra coisa no seu pensamen-
to. Sombra tinha sempre palavras encorajadoras que lisonjeavam o amigo e nos
seus lábios pairava um sorriso fraterno e de satisfação. Falava de coisas da vida,
da viagem e do trabalho que lhe ofereceram na capital, mas o estranho não ou-
via nada do que este lhe dizia; os seus ouvidos estavam voltados para dentro; ele
escutava-se a si próprio, escutava o disparo que ia transformar a sua vida, para o
bem ou para o mal.
– Estava a certificar-me de que estás bem. - disse Sombra.
III
3
Bebida alcoólica feita de cana sacarina em Cabo Verde.
uns assuntos importantes aqui na capital. Depois disto estarei livre para aceitar
qualquer oferta de trabalho. Não acredito, de modo algum, que seja esse o moti-
vo pelo qual está no meu encalço e vigie os meus movimentos. Sabe que isto me
enerva e a qualquer momento pode acontecer uma calamidade. Entende? Sabe
que mais? Já agora, aceite mais um conselhozinho de uma pessoa experiente na
matéria: as coisas que parecem mais óbvias nem sempre o são. A melhor manei-
ra de passar despercebido é permanecer bem visível. A partir do momento que
começa a tentar dissimular-se, torna-se notado. Mas, não esqueça também, que
se souber de alguém que precise dos meus talentos, estou livre. Aqui está o meu
número de telefone.
Daniel levantou a mão direita para completar o raciocínio, mas Nero ergueu-se e
tirou do bolso da camisa um cartão-de-visita que entregou a Daniel, saindo logo
depois apressado.
A caminho do hotel preocupava-se em verificar se, durante o percurso, alguém o
seguia novamente. Chegou ao quarto e ligou o rádio. Um Panasonic com idade
avançada, mas dava para seguir o que ia acontecendo pelo mundo. Estava
exaustado quando chegou. Trocou de roupa para descansar enquanto pensava
no almoço. Gozou da madorna em mais de meia hora. O telefone tocou e levan-
tou-se precipitado sem saber onde se encontrava o aparelho. Sacudiu a cabeça
para se acordar e agarrou o dispositivo que jazia ao seu lado.
– Sim, estou.
– Queria falar com Nero. Nero Bettencourt.
– É o próprio. Quem está a falar?
– Chegou aos meus ouvidos que está desempregado e que anda à procura de
trabalho.
– Bem, tudo depende do tipo de trabalho.
Nero tentou identificar a voz masculina do outro lado da linha e imaginar o ho-
mem pela inflexão do seu tom de voz. Deduziu tratar-se de uma pessoa alta,
magra, jovem, prudente, formal e culta. Pensou também, que deveria compor-
tar-se decentemente, já que se tratava de um emprego eminente.
– Digamos que é de natureza confidencial. Sei que trabalhou na Polícia e que os
seus talentos são valiosos.
– Certo. Trabalhei lá 14 anos – admitiu Nero.
uma mancha cor de catchupa seca e de catarro no lado direito do casaco, pelo
que, procurou limpá-lo com a ajuda da ponta humedecida de uma toalha. Esti-
cou os braços à distância dos olhos para verificar se a mancha tinha desapareci-
do. Revolveu todos os cantos do quarto à procura de dois pares de sapatos que
tinha trazido, mas não se lembrava onde os tinha colocado, para se verificar
quais deles lhe ficavam melhor e, assim, evitar uma possível inspecção minuciosa
dos entrevistadores. Quando localizou a velha caixa com os sapatos, soprou a
poeira, abriu-a com o cuidado dos deuses e tirou de lá uma pistola de calibre
6.35 mm. Guardou-a numa algibeira e na outra, um pequeno gravador, caso pre-
cisasse.
O Toyota estava impecavelmente limpo. Para dar melhor impressão, conduziu a
pequena distância que o separava do local e estacionou logo à porta entre ou-
tros dois Toyotas de cilindradas diferentes. Apeou-se pensando que iria ser liqui-
dado ou, possivelmente, tramado pelo futuro patrão de qualquer firma da capi-
tal. Logo à entrada, olhou para o seu relógio de pulso, faltavam 3 minutos e veio-
lhe de súbito à memória o que o homem lhe tinha dito pelo telefone: se chegar
10 minutos atrasado, não estaremos lá e pode esquecer do emprego. Entrou,
subiu os degraus de acesso e estacou na primeira porta. Não reparou em ne-
nhum sinal inscrito sobre a mesma. Esta era como se esperava de estilo colonial
e tinha uma altura desmesurada. Levantou a mão para tocar, quando a porta se
abriu.
– Entre Senhor Nero, – chamo-me Aquiles. Aquiles Cardoso.
Nero reconheceu a voz. Era o homem que lhe telefonara. Parecia uma pessoa
nos seus 50 anos, de expressão brusca, gordo, facto branco muito bem engoma-
do, camisa azul e gravata amarela. Limpava o suor com um lenço amarrotado e
trazia no fundo dos olhos um sinal de amargura ou algo do género. Na verdade,
o homem nem tinha quarenta anos de idade, mas a barba dava-lhe um ar idoso
e um pouco carcomido. Deitou um olhar curioso ao local e reparou no seu mau
estado de conservação.
– Este lugar onde estamos pertence ao Estado de Cabo Verde, aliás, ao Partido.
Na altura da Reforma Agrária, foi expropriada – disse Aquiles para arrancar um
diálogo. Mas nós alugamos o local.
– Não me diga. Conheço bem o ex-dono desta casa. Era de Santiago – retorquiu
Nero, procurando mudar de imediato o rumo da conversa, a fim de evitar cair na
tentação de desaprovar o que tinha acontecido com a casa.
– Chegou aos nossos ouvidos que anda à procura de emprego e não compreen-
demos como é que um homem com a sua capacidade se encontra sem um cargo
importante. Parece até incrível.
Nero pensou em contar-lhe a causa de estar desempregado depois de tantos
anos num emprego ao qual dedicara todo o seu brio profissional. Dizer que foi
por causa da sua consciência, iria complicar um possível emprego. Dizer a verda-
de, complicaria a situação. Avançar com argumentos dessa natureza só serviria
para lhe fazer a vida difícil. Não era uma saída louvável naquele momento. Tinha
de se sintonizar com as ondas da rádio revolucionária. Melhor era remoer em
silêncio os factos e deixar acontecer o que está para acontecer. Para os diabos,
pensa ele. Fui afastado do meu cargo, pura e simplesmente, para dar lugar a
uma pessoa que vota no partido do chefe – murmurou em silêncio. Ao invés de
contar toda a verdade que carregava em si e o consumia por dentro, deu apenas
a entender que a sua falta de emprego se devia a pouca sorte.
– Aquiles deu-me a entender que pode conseguir um trabalho para mim.
– É verdade, Nero – disse o homem de tez clara, virando-se para o seu compa-
nheiro, refletindo. Foi de guarda-costas que falámos?
Aquiesceram ambos com movimentos de cabeça. Mas não se tratava de guarda-
costas na verdadeira acepção da palavra. Implica um trabalho que vai além das
costas a guardar. Seria um trabalho rentável, mas pouco duradoiro.
– Estamos preocupadíssimos quanto ao bem-estar de uma pessoa. Queremos
que você vele pela sua segurança – balbuciou um dos presentes.
O som da palavra “segurança” saiu-lhe da garganta como um crescendo impres-
sionante. Se a pessoa em causa se encontrasse nos arredores, decerto o capta-
ria. Talvez fosse o que ele pretendia, na opinião de Nero.
– Essa pessoa encontra-se em perigo por causa de um documento que vai den-
tro em breve ser publicado e pode ser contra os interesses deste povo humilde
das ilhas, no entender de muita gente e também, contra os nossos interesses –
continuou afanosamente. – Temos de proteger essa pessoa ou evitar que esse
documento saia da gaveta. Não podemos permitir que tal aconteça. Por isso,
pensamos, que um homem com os seus talentos e antecedentes, resolveria com
discrição a questão a contento de todos. Trabalhamos aqui em assuntos de segu-
rança e, por esta forte razão, só usamos códigos e charadas. O Aquiles tem as
IV
O contratado
Estimada Judith
Não quero ser longo.
Esta carta é para te dizer que preciso conversar contigo.
Urgente.
Há algo que me tortura. Não te sei explicar. Mas
pressinto algo trágico na minha vida. Só te quero falar,
por que se amanhã me acontecer algo de mal, tenho pe-
lo menos aliviado o peso que tenho sobre mim. Logo que
possa, dou um salto até aí, mas entretanto, se for pos-
sível vires cá, antes hoje que amanhã.
Acho que meia palavra basta para uma pessoa como
tu. Pode ser tarde demais se demorares a vir e eu não
tiver a sorte de te encontrar.
Abraços
Paín
Ela pensou sobre o que estaria ele a beber naquele momento do dia. Porque
estou tão interessada naquele homem, nem me conhece, pensou para si. Ela
olhou para ele de soslaio por uns momentos e não disse nada, era melhor não
dizer nada em todo o caso.
Sentiu um mal-estar correr-lhe de novo pela espinha dorsal. Apressou-se a an-
dar, pensando para si mesma: sou maluca. Queria expor-se o mínimo possível ao
atravessar a praça pública e queria encontrar uma sombra. Olhava ansiosamente
para trás, para os lados e por cima do ombro, em cada momento. Passava-lhe
pela mente um longo filme com uma série de promessas e palavras doces.
Quando chegou a um local apropriado, perto dos correios, pousou a mala no
chão, encostou-se a uma árvore por uns momentos, para recuperar o fôlego e
renovar a sua coragem, olhando em direção ao mar. Aconchegou-se à sombra e
esquadrinhou o jornal da manhã. O mundo parecia-lhe quieto e belo naquele
instante. Perdeu-se na imaginação e, pouco tempo depois, deu por si num mo-
nólogo interno pensando que a soma do pensamento humano é capaz de mover
as rochas do sopé onde se encontrava. Bastava haver fé e coragem suficientes.
Há uma energia enorme no pensar do homem capaz de fazer as coisas acontece-
rem – pensou. Se não fosse o pensamento não estaria naquele lugar, naquela
hora a pensar, pois tudo tinha uma razão de ser. Tudo estava para acontecer. Os
deterministas assim pensam.
Ela é uma pessoa de muita coragem, senão não se encontrava naquele sítio, na-
quele momento. Havia muita energia nas suas determinações, havia muito idea-
lismo nas suas pretensões, mas havia, além de tudo isto, muita coragem. De co-
ragem se constroem grandes edifícios, grandes realizações. Só com coragem se
ganham muitas lutas. A luta que tem diante si há-de ser ganha!
O monólogo interno continuava: criatura de Deus, que estás aqui a fazer? Tens
qualquer missão nesta terra? Que destino te traz para cá? Estás enleada em al-
go? Que raio de situação embaraçosa é esta?
Deu um salto, mas abrandou os passos quando viu um homem num canto a fa-
zer xixi. Contudo, este não deu por ela. O homem cuspiu no xixi. Ela ficou a ima-
ginar o acto de cuspir e questionou-se sobre o porquê de todos os cabo-
verdianos o fazerem. O que significa esta mistura de dois líquidos corporais?
Recordou que alguém já lhe tinha revelado este segredo. A sorte dos homens.
Pois, é a sorte! Cuspindo sobre o xixi fica a sorte naquele que faz xixi. É um códi-
go cultural que pouca gente compreende, mas que está patente na cultura. O
homem passou a mão direita nos cabelos, como se fosse um acto de limpar os
dedos, e seguiu em direcção à Igreja matriz sem se dar pela presença de alguém.
Sentiu-se só por um momento e deu-se conta da rarefacção do ar. Fechou os
olhos, sentiu-se estranha, meio suspensa. Parecia que a sua alma saía do corpo e
pairava por cima de si mesma a observá-la. Começou a rir dentro de si, pois o
riso não lhe saía da boca. Não quero perder mais tempo, balbuciou para si.
Um estalido próximo fê-la voltar à realidade, lembrou-se da amiga e, levantan-
do-se com um salto, correu para casa dela. Estava apenas à espera que a hora
combinada chegasse para ir lá ter.
Dez minutos depois bateu à porta da amiga. Levou uma eternidade para que a
porta se abrisse. Sentiu, naquele momento, como se todo o mundo a estivesse a
perseguir. Elevou a mão para bater de novo quando a chave do outro lado fazia
um semicírculo com o ponteiro de relógio.
– Olá, querida, como estás? - Perguntou a amiga, acrescentando - estás mesmo
gira!
– Olá, estou bem, muito obrigada. E tu?
– Mais ou menos, querida. Conta-me as últimas notícias!
– Não tenho muito que contar. É a mesma coisa de ontem. O tagarelismo na
sua forma moderna. O mexeriquismo, portanto, coisas de gente de lugares taca-
nhos.
– Então vamos tomar um café, filha? Deves estar cheia de fome.
– Não digo que não. Estou a morrer de fome. O que tens para comer? – pergun-
tou.
– É um segredo. Mas sei que tu vais gostar muito...
– Então vamos lá que o tempo vai passando. Tenho muito que fazer. Estou em
serviço e não tenho lá muito tempo.
– Eu também vou trabalhar dento de alguns minutos. Tens aqui a chave e de-
pois vemo-nos mais tarde. Mas conta-me como foi o voo? E aquela malta toda?
– O voo foi bom. Estava um pouco nervosa durante a viagem. Ainda sinto os al-
tos e baixos descritos pelo avião, as turbulências e o barulho insuportável do mo-
tor. O estômago ainda não está no seu lugar. A malta anda por lá naquela rotina
diária. Já sabes, a maioria sem trabalho. Ai, como estou nervosa.
– Depois tomas um uísque e tudo se recompõe. Vamos jantar juntas?
– Não, uísque não. Estou em serviço. O jantar fica para a próxima vez. Vou es-
tar ocupada até mesmo muito tarde.
– Conta-me, como vai o Daniel?
– Sempre o mesmo Daniel Delgado. Teimoso, mas vai bem! Anda sempre atare-
fado.
As duas conversaram sobre a vida conjugal, antigos namorados, viagem aos Es-
tados Unidos da América, a vida na capital, a ilha natal e projectos para o futuro.
Judith olhou para o relógio e recordou à amiga a importância de chegar cedo ao
trabalho. Mesmo sendo chefe, ela deve servir de exemplo. As duas apressaram-
se a arrumar os pratos e as chávenas e o resto de catchupa4 guisada com ovo
estrelado, moreia fritada e bolo caseiro. Depois de uns minutos, sem dizer na-
da, a amiga despediu-se com um até logo e com a promessa de se encontrarem
mais tarde. Judith sentiu como se fosse um alívio ficar só naquele momento de
reflexão. Retirou do bolso um pedaço de papel com algo codificado. Não conse-
guiu descodificar a charada durante a viagem e queria usar um pouco de tempo
para o fazer. Sentiu-se mal por não saber o que lá estava escrito ou por ainda
não o ter decifrado. Contudo, estava confiante que não seria difícil decifrá-lo
antes do grande encontro. Pegou no papel e leu-o de todas as maneiras possí-
veis. Usou do espelho, nada. Leu de traz para diante, nada adiantou. Recordou
as instruções que recebeu anteriormente. Meta estes códigos dentro da sua car-
teira. Vamos precisar deles! Se perder este pedaço de papel, memorize a segun-
da cifra que vai instrui-la sobre o propósito da primeira. A outra pessoa com
quem vai travar conhecimento tem os mesmos códigos e vai conseguir, sem mui-
to esforço, decifrá-los.
1
Comida típica cabo-verdiana feita à base do milho.
Ovtamnoesreolriamni
Não era um segredo indecifrável, mas era algo de importância capital. Ela falava
para si mesma com uma voz forte e nítida. Não hesitava nas palavras. Era uma
mulher destemida. Não usava maquilhagem e vestia-se muito bem. Uma figura
de culto na terra. Defendia ferreamente os direitos da mulher, uma feminista
autêntica. Reparou que na margem do pedaço de papel se encontrava uma ou-
tra palavra igualmente ilegível e voltou a folha de todas as maneiras sem conse-
guir decifrar o que lá estava. Alguém vai precisar da primeira cifra daqui a pou-
cas horas.
Tnreuroocbneett
VI
– Tchau, beijinhos. Admiro-te muito. Boa sorte e que tudo corra bem!
– Também eu. Vemo-nos mais tarde – concluiu Paín.
Judith sabia que sair com ele, iria mais cedo ou mais tarde, despertar a curiosi-
dade da gente tacanha da ilha. A nossa cultura é estranha. Andar acompanhada
por alguém do sexo oposto é sempre malvisto, mesmo quando este andar é pla-
tónico, relacionado com trabalhos de interesse público. Mexeriquismo dos luga-
res pequenos. Sabes o que vai pelas ruas hoje? Fulano e Beltrano estão... Paín
não queria que ela pensasse que a estava a rejeitar, era apenas um passeio de-
pois do trabalho. Como representante de uma nação, tem que respeitar as re-
gras de jogo e observar os códigos morais. Judith pensava nas suas relações con-
jugais e Paín nas dele. Por estas razões, ambos têm de tomar muito cuidado,
para não dar ao mundo o que falar. O tagarelismo da nossa terra é perigoso.
Quando desligaram o telefone, pensou Paín acerca do enorme interesse que ia
despertar com o Projecto sobre a restruturação do poder e o Caminho para o
pluripartidarismo em Cabo Verde. O projecto não estava maduro para a sua pu-
blicação e, se chegar ao conhecimento do público antes da sua maturação, so-
frerá um desgaste no seu status quo que não é bom para um homem do seu
calibre e para o futuro da nação. Sabe que muita gente quer denegrir o seu no-
me em proveito próprio. Qualquer passo em falso, remontará à mais alta res-
ponsabilidade e desmoronará tudo.
Judith ficou impaciente por não saber ao certo se iriam sair ou não. Tinha já alu-
gado um carro. Os companheiros de trabalho já tinham comentado sobre o seu
nervosismo e pediram-lhe para se acalmar um pouco. Mas quem cai no mar tem
que nadar.
VII
Estava condenado a não dizer nada ou a dizer mal, pois sentiu-se fraco e não
tinha forças para continuar a conversa. Ainda não tinha entendido o propósito
do encontro e os nervos estavam a ponto de explodir.
– Tenho um assunto delicado para esclarecer consigo – interrompeu Delgado,
dando à voz um tom suplicante e melífluo, mas baixando a voz, como se alguém
pudesse ouvi-lo no silêncio e na solidão daquele quarto. - Este assunto é extre-
mamente confidencial...um trabalho médico cujo dia, lugar e hora ser-lhe-ão
comunicados dentre em breve.
– Sim, senhor, farei o que estiver ao meu alcance, embora a minha consciência
não tarde em me acusar e apontar para algo que está acima do que é permiti-
do...
Seguiu-se um curto silêncio e os dois entreolharam-se por breves minutos, sem
dizer nada, mas nada, como a lerem na alma, um do outro, as prescrições do
destino e da ética. Umberto levantou-se e sem poder dizer mais palavras, desceu
as escadas, particularmente irritado, sem saber para onde virar a cara. A conver-
sa com o agente deixara-o nervoso e quando a proposta começou a desenhar-
se-lhe no espírito, sentiu os seus passos tornarem-se pesados e com todos os
olhos do mundo postos sobre si. Podia dizer mais coisas ao eventual futuro pa-
trão se desde o princípio tivesse conseguido ler mais a fundo o coração dele.
Chegou à praça pública sem saber como lá foi ter. Olhou algum tempo à sua vol-
ta e, mentalmente, visualizou o patrão com quem havia falado há poucos minu-
tos. Mas o espírito tentou fugir-lhe da realidade que o cercava. Repensou a situ-
ação e até que ponto uma recusa ao pedido iria magoar o chefe e sofrer as con-
sequências da recusa, mas varreu logo do espírito os receios que lhe nasciam de
tal interrogação, afinal tratava-se de uma ordem de um superior. Mas antes de
os arredar de si, pesou-os e sentiu-os a calcar-lhe na alma. Por mais que tentasse
arredar-se, o que o futuro chefe lhe dissera revolvia-lhe as entranhadas, trazia-
lhe à alma as lembranças de atos que não se coadunam com o seu modo se ser e
pensar o mundo. Umberto é um homem que veio ao mundo já com a ruga da
reflexão do espírito, nunca dispara um desaforo sem pensar duas vezes, sem
contar de dez até um, não se perde no redemoinho da maldade do mundo. Ele
não precisava de conselhos porque o melhor deles não é melhor que a voz do
seu próprio coração, que é o relógio da vida. Pensou enquanto fazia uma autóp-
sia, nas conversas com o Daniel Delgado e durante alguns minutos, perdeu-se no
mundo da imaginação.
VIII
Pensou na última vez que tinha entrado naquele apartamento. Tinham-se pas-
sado 6 meses desde o último falhanço na tentativa de apanhar o Ministro da
Administração Pública. Na altura, foi avisar ao chefe da operação Alcatraz que os
planos tinham sido descobertos pelos seus inimigos e de que chegara a altura de
regressar à casa para um melhor plano de acção. Passado o tempo necessário
para um novo avanço, o chefe de operação assegurara-lhe que desta vez não
ficariam sinais da sua passagem nesta ilha. O lugar seguro tinha possibilidades
de comunicação segura e situava algures na Avenida 13 de Maio. Nero dispunha
de instrumentos afinados que eram identificados logo que entrassem na linha
segura que transferia todas as informações para o Centro de Operação Central
que, por sua vez, dava ordens finais para a execução da operação. Judith seguia
de perto todos os movimentos e informações concernentes aos planos que vi-
nham do Centro de Operação.
Os preparos para o desfecho final foram breves e naquele casarão cercado com
paredes altas, brancas, telhado cor de tijolo e guardado por cães raivosos, situa-
do mesmo sobre um rochedo em que as ondas do mar constantemente batiam,
orquestrando as noites longas com as suas melodias monótonas, reuniram-se
um grupo de indivíduos encarregados pelo Plano Alcatraz. O sol de Tarrafal de
Santiago mimava as rochas altivas e as praias nos arredores, segredando aos
meninos que não se podiam banhar nas proximidades do casarão.
O Plano era codificado. Em Alcatraz há ondas de até 7,5 metros de altura nas
horas vespertinas. A utilização duma frase será interpretada pelo agente num
abrir e fechar dos olhos. Alcatraz é a luta de poder. Ondas de 7,5 metros, signifi-
ca às 19.30, Camarada Bettencourt, era um código para um agente que se en-
contrava na Praia. O KK significa o Quebra-Canela e um dia santo todos os anos,
assim como, todos os anos há uma sexta-feira santa.
Aquiles entrou a sede com passos apressados pedindo desculpas pelo atraso.
Vestia uns jeans azuis e uma camisa de caxemira de cor cinza. Estava a acertar
alguns assuntos com uma pessoa muito interessante que iria ajudá-los no Plano
Alcatraz. Penumbra avançava pelas ruelas sem gente, com apenas algumas ven-
dedeiras com cesto na cabeça a gritarem o nome do produto que vendiam, em
direção ao casarão sobre o mar. Na mesa ao lado da cadeira de Aquiles estava
um monte de jornais dispostos de forma que os cabeçalhos ficassem visíveis. O
que estava por cima foi atirado para o colo de Sombra. Quando Penumbra final-
mente entrou, já o Aquiles se encontrava impaciente e com cara de poucos ami-
gos. Não disse nada e nem se desculpou pelo atraso.
IX
Hotel Crioulândia!
– Sim mãe, estou a ver-me realmente a brincar. Mas o que significa isto? –
questionei eu novamente.
– Repete de novo e inspira o ar durante cinco segundos. Estás a ver aquele ra-
pazito que dependia de mim, frágil e vulnerável? Agora, expira todo o ar devaga-
rinho e diz para ti mesmo: eu fui frágil e dependente da mãe, agora vou sorrir
para o menino de cinco aninhos que fui, com todo o meu coração.
– Mas, por que vou fazer isto, mãe? Não quero mais – protestei.
– Só mais um bocadinho filho – insistiu. Agora mais uma coisa. Fecha os olhos e
inspira devagar o ar fresco desta rua. Vamos pensar na tua mãe como uma cri-
ança de 5 anos. Quando expiras o ar, dás um sorriso àquela criança que a tua
mãe foi. Depois, faz o mesmo imaginando o teu pai como o menino de cinco ani-
nhos que ele foi. Tanto a tua mãe como o teu pai foram frágeis e vulneráveis
quando eram crianças. Imagina essas crianças que fomos, enquanto expiras o ar,
sorris com compreensão e amor, abraçando aquelas crianças que a tua mãe e o
teu pai foram. Eles também precisavam de alguém que lhes desse amizade e
carinho como estamos a dar-te. A eles também era negado o pedido de ir dormir
com os amigos nos fins-de-semana.
Porque faço isto, meu filho? Simplesmente para te fazer compreender uma coisa
importante na vida. A tua raiva ou o teu desespero faz os outros sofrer e quando
os outros sofrem tu sofres também. Podemos aliviar a raiva ou o ódio que temos
para com os outros, simplesmente, abraçando os nossos sentimentos de raiva ou
de ódio, reconhecendo a sua presença dentro de nós. Ao respirar fundo, pensan-
do que estás com raiva e oferecendo-lhe um sorriso, acaba por acalmar a própria
raiva, a própria dor.
Vamos fazer mais um exercício, filho. Depois vais brincar à vontade. Diz para ti
mesmo:
• Vejo a minha mãe em mim – inspirando fundo e prolongadamente;
• Estou a enviar um sorriso à minha mãe em mim – expirando devagarinho;
• Vejo o meu pai em mim – inspirando fundo e prolongadamente;
• Estou a enviar um sorriso ao meu pai em mim – expirando devagarinho;
• Compreendo a vulnerabilidade e a fragilidade da minha mãe e do meu pai
em mim – inspirando fundo;
• Vou trabalhar para libertá-los e aceitá-los – expirando devagar todo o ar
dos teus pulmões.
Vai brincar à vontade, filho. Qualquer problema que surja na vida pode ser resol-
vido da mesma maneira, isto é, concentrando-te na tua própria respiração, acei-
tando o problema, abraçando-o e sorrindo para ele. Lembra-te sempre que te
amo, filho. O teu pai também! Sei que és uma pessoa forte e sei que vais conse-
guir fazer isto. Cuidando das coisas dos outros, estás a cuidar também das tuas
coisas. Tu vais ser um grande homem neste país. Por isso, respeitar, respeitar e
respeitar os outros e as suas coisas são palavras de ordem nesta casa – comple-
tou a mãe.
Ela tinha boas intenções. A nossa maneira de estar e de ver o mundo é, em
grande parte, instilada em nós pelos nossos pais, pelos nossos avôs, vizinhos,
padres e pastores da freguesia, professores e amigos durante o tempo da meni-
nice. Os carinhos recebidos do meio em que crescemos imprimem em nós o selo
ou marca do que nós desejamos ser um dia. Esta forma de educar através do
carinho ou estímulo, que podemos definir como unidade de reconhecimento,
pode ser tanto positivo como negativo, condicional como incondicional. Assim, a
educação positiva baseia-se em carinho, sorrisos, abraços de afecto, em reco-
nhecer as qualidades e aprovar comportamentos positivos, um sorrir com o co-
ração, um animar e estimular a fazer sempre mais e melhor, um acreditar que se
há-de ser uma pessoa de grande valor para a sociedade, apoiando-a em tudo
que é digno de apoiar. Por sua vez, uma educação negativa, baseada em insul-
tos, em fazer troça, dar bofetadas, desapreciar o trabalho feito, chamar de burro
a uma pessoa, dizer que ela nunca há-de ser gente, marginalizar um indivíduo
social, religiosa e politicamente, terá certamente, efeitos contrários à anterior,
causando consequências negativas na formação da personalidade do individuo e
que este, consequentemente, irá transpor para a sua vida futura. O tipo de cari-
nho recebido, por exemplo, quando criança, determina ou carimba a nossa men-
te com o distintivo da nossa vida futura, isto é, o que cada um de nós será na
vida: uma pessoa de sucesso ou um fracassado. Por outras palavras, o carinho
recebido escreve e imprime um guião, muito cedo na vida, um plano no nosso
subconsciente que determina como a nossa vida se desenrolará no futuro.
– Acredito no que estás a dizer. Eu vejo um pouco do meu pai em mim. Mas
muito pouco da minha mãe. Vejo a mim mesmo no meu filho mais velho. Não
tenho dúvidas quanto a isto – disse Fátima depois de ter escutado atentamente.
– Pois, quando os nossos pais nos amam incondicionalmente, transmitem-nos
um carinho positivo que fica impresso em nós. A palavra, amo-te, filho, sai da
criança interior que a mãe tem dentro de si. O carinho incondicional da mãe, em
fazer brotar essa semente, alcançaremos a felicidade. Não apenas isto. O discur-
so de amor pode salvar-nos do mal, o saber escutar salva-nos de preocupações
negativas e nocivas à nossa saúde. Se temos suficientes sementes de paz, de
compaixão e de entendimento no nosso inconsciente, precisamos apenas chamá-
lo à superfície para nos acudir – interceptou Fátima.
– É mesmo assim, querida amiga. Temos de relembrar a nós mesmos que há
muitas maneiras de borrifar estas sementes. É preciso primeiro entender isto,
fazer uma introspecção. Há tanta coisa, há tantas sementes não físicas, mas ao
mesmo tempo sensíveis e concebíveis dentro de nós, como o amor e a raiva.
Quando a minha mãe me disse que ia ser um grande homem neste país, meteu
dentro de mim algo importante que imediatamente foi ter ao meu subconsciente
em forma de carimbo ou guião. Essa semente transformou-se em energia orgâ-
nica em potencial, isto é, uma entidade materializável / física, um fenómeno bio-
lógico capaz de ser transformado numa outra entidade orgânica como a mate-
rialização da semente no mundo físico através do facto de me tornar, efectiva-
mente, um grande homem neste país. O que é preciso é ser inteligente, saber que
existe a tal semente dentro de nós, não ter medo do futuro e ter a vontade sufici-
ente para superar as dificuldades e as pedras no caminho.
Com este carinho positivo e incondicional que a minha mãe me deu, a semente
ficou plantada no meu íntimo, dando-me um sentido de propósito neste mundo.
Sendo uma mãe conselheira, educadora, animadora, protetora e com o poder de
imprimir em mim normas éticas, ela conseguiu transformar a criança que há
dentro de mim, numa vencedora que acredita no destino que cada um tem na
terra. Equivale ao desejo da minha mãe o facto de dizer que vou ser um grande
homem neste país. Tudo isto me transformou numa pessoa que se sente forte,
inteligente, capaz de se modificar a si mesmo, capaz de amar a todos e que gosta
de ser um grande homem e servir este país que é de todos nós. Toda a sua influ-
ência sobre mim, ressurge agora, da criança que existe em mim, em forma de
sonhos, de projectos de reconstrução da Mãe terra e de luta a travar, para fazer
destes sonhos realidade. Os sonhos precisam de persistência, coragem e pertiná-
cia para serem realizados. Portanto, Fátima, temos um potencial intelectual re-
presado ou reprimido sob os destroços das nossas dificuldades, das nossas doen-
ças psíquicas, das nossas perdas e das nossas preocupações do dia-a-dia. Felizes
são os capazes de se libertarem desses destroços nocivos, dessas sombras
malévolas, desse mal que entulha o melhor que existe em nós.
– Renato, estou a sentir-me cada vez mais próximo do teu ideal – disse Fátima
– olhando para ele com comoção. Sei que és capaz de tudo isto e mais - continu-
ou. A história ensina-nos que muitos dos que sobem alguns degraus da escada do
sucesso, depois de pouco tempo de trabalho, tornam-se inacessíveis. Mas acho
que a tua mãe te treinou bem para ser acessível. Na época em que vivemos, po-
demos contar pelos dedos os que são acessíveis. Os outros, em quantidade tre-
menda, têm sucesso à sua agenda. Para estes, quanto mais for a índice de popu-
laridade, maior é a arrogância e o distanciamento do povo humilde. Este torna-
se aos olhos daqueles, mais um número de identidade para colocar votos nas
urnas, mais um trampolim para eles chegarem ainda mais alto, mais uma conta
bancária, mais um consumidor dos serviços públicos, uns chatos a perturbar a
ordem pública e nunca um ser humano ímpar, inigualável, com dignidade, com
direitos e deveres como eles. O distanciamento cria problemas comunicacionais,
cria arrogância e prepotência. O nosso país não avança com este tipo de pessoas
que sabem tudo e nada têm a aprender com os outros.
Antes de abraçarmos uma visão do tamanho dos nossos sonhos, penso também,
que será útil, contribuir para instalar no nosso país uma psicologia preventiva no
campo da criminalidade, porque num mundo onde a discriminação, o terrorismo
e a criminalidade se espalham como fogo na palha seca e a vida vale tão pouco,
como se nota na nossa sociedade, inserir uma psicologia preventiva no nosso
meio é brindar à vida, é glorificar o homem cabo-verdiano, é salvar a sociedade e
contribuir também para salvar a humanidade. Precisamos, por exemplo, de uma
política capaz de por termo ao estado de terror, de medo, de falta de liberdade
individual. Isto só é possível através de um controlo rigoroso onde a tolerância
zero é a palavra de ordem do Estado. A polícia e os militares nas ruas munidos de
poderes necessários, contribuiriam para por termo a muitos crimes – acrescentou
Fátima.
– Olha que estou a gostar do que tu estás a dizer. Este país precisa de mulheres
e homens capazes de pensar como estás a pensar, isto é, alguém que se coloque
dentro do mundo das pessoas para analisar as suas necessidades, as suas dificul-
dades na perspetiva delas e não ao contrário. Pessoas que se treinem em ouvir o
que o povo diz no silêncio do seu mundo, o que as palavras não dizem e a ver,
pelo menos um pouquinho, o que as imagens não revelam. Mulheres e homens
que compreendam as causas e não a reacção exterior, que entendam o que está
por detrás de cada comportamento humano, que sejam tolerantes e conheçam a
arte de compreensão. Estas pessoas devem possuir a capacidade de aceitar as
suas próprias limitações, com a coragem suficiente para não se posicionar como
semideuses. Pois quem se assume como semideus será sempre uma pessoa ex-
clusivista: rápido a julgar e menosprezar os outros e tardio a respeitá-los. Julga
sem ter em mente o sentido de justiça. Não tendo todas estas classificações
apontadas desrespeitam até a sua própria mãe. Mas a minha mãe preparou-me
para enfrentar a vida em situações péssimas, desfavoráveis e tempestuosas.
Aproveitar para fazer germinar a semente que ela introduziu dentro de mim é
uma honra em seu nome. Enquanto eu viver, vou esforçar-me para alcançar o
maior objectivo que tenho: ver esta Pátria de todos nós, desenvolvida, mudada e
os desejos legítimos do Povo respeitados. Isto é, dar a cada cimbrom a sua gota
de água.
Fátima não disse nada, mas ficou pensativa. Estava neste momento mergulhada
nos seus pensamentos. Deu uns passos sem pensar onde se encontrava, mas
Renato trouxe-a ao presente, segurando-lhe num braço.
– Muitas vezes, a criança dentro de nós adapta-se a situações vividas numa
família. Tal criança intrínseca encerra ou enclausura proibições não escritas, não
faladas no meio familiar. Contém um contracto não-verbal e não escrito – conti-
nua Renato. Para exemplificar isto, podemos dizer que na família ROBERTO nun-
ca se fala de relações sexuais, mas descobre-se pouco a pouco que são coisas
secretas e estabelece-se um contracto não-verbal e não escrito entre os membros
da família. Isto é, estabelece-se um contracto secreto de não falar determinadas
coisas no meio familiar. Mas no meio de camaradas já se fala disso. Outro exem-
plo. O facto de não ter o direito de chutar a bola em direcção à propriedade dos
outros, quando estamos com raiva, dá-nos a ideia de que uma semelhante acção
também é proibida pelas mesmas razões. Assim, este contracto secreto estabele-
ce-se no meio familiar. Isto acontece porque na estrutura da nossa personalidade
existe algo que se chama criança adaptada, isto é, que se adapta às situações e
obedece às regras de comportamento que interiorizou e aceitou previamente. A
minha mãe com o receio de explicar-me muitas coisas como elas são, cria uma
atmosfera de segredo. A criança adaptada da minha mãe comunica directamen-
te com a minha criança adaptada, sob forma de códigos deontológicos, não es-
critos e não verbalizados. Mais tarde quando já crescido, vim a aperceber-me
deste código de que também faço uso para comunicar secretamente com os
meus filhos, mas que ninguém antes me tinha contado directamente.
– Ocorre-me, neste momento, uma situação bastante triste que gostaria que
me explicasses a razão de tudo que aconteceu depois. Quando eu estudava no
liceu a minha vizinha de 14 anos foi violada pelo seu padrasto. A mãe sabia da
situação, mas silenciou-se e até pedia à filha que não dissesse a ninguém. Dizia
sempre à filha para se vestir bem e para se comportar de forma correcta em to-
das as circunstâncias.5 O padrasto continuou a abusar dela até aos seus 19 anos.
Ela, a filha, ainda com 25 anos passava a vida entre os braços de diferentes ho-
mens. Apesar de ser bastante inteligente, e hoje ocupar um lugar muito privilegi-
ado na sociedade, ela é inconscientemente atraída por situações que reflectem o
mesmo padrão de vida com o qual cresceu, embora não goste de o fazer.
– Vou explicar a situação usando uma linguagem pouca usada no nosso meio.
Vou tentar explicar isto de tal maneira que qualquer pessoa possa entender o
fenómeno. A tua vizinha não se encontra sozinha no mundo dos frustrados e vio-
lados. Quando a mãe da vizinha pronunciara a frase: “que não dissesse a nin-
guém, que se vestisse bem e que se comportasse de forma correcta em todas as
circunstâncias...”
– A jovem, de facto, andava sempre bem vestida o que reflectia os conselhos da
mãe para se vestir bem, quando aquela era pequena. O pai da miúda abandonou
a mãe e foi viver com uma amante na Ribeira Grande, em Santo Antão. Mas ela
visitava ao pai frequentemente e este dedicava-lhe incondicionalmente muita
atenção – interrompeu a amiga.
– A certa altura a mãe da jovem, através da sua autoridade, imprimia uma or-
dem, um conselho ou um constante pedido à filha, o que ficou gravado na crian-
ça intrínseca adaptada da filha. Esta ordem ou conselho prescreve à filha como
viver o resto da vida, como ela se apresenta ao resto do mundo. Isto significa,
ainda, uma instrução de como a filha se deve vestir para ficar bonita perante os
amigos, conhecidos e todo mundo, camuflando assim o facto de ser uma pessoa
abusada sexualmente, compensando a psicologia da filha e também da mãe.
Estes conselhos da mãe não constituem estímulos incondicionais. Estes conse-
lhos, e o facto de a mãe ter aconselhado a filha a não dizer nada aos outros so-
bre o problema de violação, fazem com que a filha continuasse a procurar carí-
cias condicionais e incondicionais dos braços de diversos rapazes de vida fácil.
Não digas a ninguém, senão..., se te vestires bem toda a gente vai gostar de ti...
São todos conselhos condicionais.
5
http://www.jutdemo.com/miscellaneous.htm
– Obrigada, entendi perfeitamente. Isto basta para bem entender, mas agora
quero-te falar sobre um outro assunto. Na última vez tínhamos falado sobre as
tuas poesias e sobre os teus sonhos. Como ligas os teus sonhos àquilo que escre-
ves e pensas?
– É apenas deixar o que estamos a falar neste momento, pois, são coisas im-
portante à vida, para passar para outro assunto sem aprofundarmos no tema.
De qualquer maneira, vamos mudar de assunto. Como já te disse várias vezes, no
curso da minha vida, tenho sido visitado por grandes e diversos sonhos. Estes
sonhos são reflexos dos conselhos, das carícias da minha mãe. As carícias incon-
dicionais fazem-nos sonhar com grandes coisas. Pois, quando as crianças não
estão condicionadas, são mais livres e criativas. Quando te falo disso, quando
escrevo poesias líricas, é precisamente para tentar acertar com a interpretação
do sonho que me visita constantemente. Não tenho escrito muitas poesias e nem
dou preferência a elas. Muitos me pedem para cultivar esse dom, mas eu conhe-
ço melhor o que quero fazer. Ao compor um poema, estou apenas a obedecer a
um sonho menor que o sonho de que te costumo falar. Um verdadeiro poeta é
aquele que ultrapassa os seus discursos líricos e inventa algo que sirva à popula-
ção deste pequeno país, fazendo-a sair da pobreza e da forma de vida mesqui-
nha, “nhanida” como se diz na nossa terra, ajudando a mesma a adquirir um
sentido de vida mais digno, mais humano e mais transcendente. Não te quero
meter na cabeça coisa de pouca monta, Fátima, e se me prestares ouvidos, vou
discorrer sobre...
Os dois silenciaram-se durante alguns segundos. Os pensamentos de ambos es-
tavam cheios de imagens inéditas, de vontade de dialogar, mas algo mexia na
consciência de Renato, o que o preocupava desmedidamente. Sentiu uma emo-
ção, ou melhor, um campo de energia em contínuo estado de transformação a
invadi-lo. Gostaria que esse campo de energia se transformasse num sentimento
de paz, de quietude e em algo contemplativo, mas sabia que isso não era de to-
do possível. Sentiu prazer de falar e de libertar-se de algo que lhe dava um nó na
garganta, mas não sabia por onde começar. Na vida do ser humano, o prazer
muitas vezes se converte em dor, a alegria em tristeza, a paz em guerra e assim
por diante. As emoções alternam-se. A sua mãe incutira-lhe na alma que uma
emoção é mais saudável quanto mais estável for. Sabe que a tolerância faz equi-
librar as energias emocionais de tal forma que começamos também, a compre-
ender as limitações dos outros. Fátima sentiu o peso do silêncio a invadi-la. Con-
tudo, mantinha o olhar distante. Suspirou fundo e sentiu o ar a trespassar os
XI
No antigo caminho íngreme que dava acesso à Achada de Santantónio nos anos
70, mesmo na base de um outro Plateau menor, numa bifurcação que dá para
Prainha e Terra Branca, foi erigido o hotel Lapónia, a escassos metros do hotel
Crioulândia, construído com o dinheiro de dois emigrantes cabo-verdianos que
trabalharam no norte da Escandinávia. O estranho foi ter com o chefe das ope-
rações secretas para ver se conseguia ajuda para decifrar a charada. Mas não
podia conseguir essa ajuda. Tinha de o fazer sozinho.
Lembrou-se de que o Sombra era muito esperto na área de criptoanálise e des-
pediu-se do chefe das operações sem mais conversa. Desceu uma escada longa,
saiu do hotel sem olhar para o recepcionista.
Quando encontrou o Sombra, na Achadinha, este mandou-o entrar sem muita
demora. Entrou sem dizer nada e fixou os olhos nos dele.
– Que estás a fazer a estas horas por estas bandas? – perguntou o Sombra.
– Preciso da tua ajuda – respondeu.
AbcdefghIjklmnopqrstuvwxyz
ou Ivmzgl
– O I ocupa o décimo oitavo lugar contando da direita para esquerda. Este lu-
gar é ocupado pelo R, contando da esquerda para direita. As três letras seguintes
já as sabemos e temos então, Rena. Só nos resta a letra G para decifrar. Ela é a
sétima letra e a sétima contada do fim é o T. RENATO é a palavra codificada!
Bingo! Já temos o resto – sentenciou o estranho.
XII
As lições de Paín
sito na vida. Renato dizia-nos sempre que “assim a natureza exibe a felicidade e
sentido e insiste sempre que escolhamos o caminho”, que imprimamos sempre
um sentido humano em todos os nossos atos. A nossa escolha é decisiva na vida.
Ele, Renato, escolheu o sentido, isto é, o sentido da vida. Por isso, ele se encon-
trava ali, naquela Igreja, de pé, frente aos da mesma fé, confiante no que tinha a
dizer e sabia o que o levava até ao local do convívio fraternal.
Depois de fazer a sua meditação, agradeceu a todos pela presença amiga, pene-
trou um olhar na audiência e disse:
Hoje, meus caros amigos, vamos falar sobre o diálogo inter-religioso. Semelhanças
entre religiões e possibilidades de coexistência pacífica. Parto do princípio de que
todos os presentes seguem o princípio da tolerância, respeitando os que pensam de
maneira diferente e os que não confessam a mesma doutrina que nós.
A tão chamada civilização branca tem, durante séculos, tomado uma posição de des-
taque na sociedade mundial. Para ser mais claro: o ocidente branco atingiu um nível
de desenvolvimento mais avançado, tanto na técnica de produção, no uso de armas
de fogo e na indústria em geral. Não só se tornou superior na força bélica, mas tam-
bém, na economia – duas forças importantes, necessárias e suficientes para dominar
os outros. Portanto, um poder e uma força que os outros não possuíam. Ao mesmo
tempo a sociedade ocidental foi organizada de tal maneira que possibilitou o uso de
poder à custa dos outros. Ela tornou-se exemplo a seguir, por conseguinte, muito in-
vejada pelos outros. O bem-estar, a maneira de ser, o consumo excessivo, o desen-
volvimento industrial e mais, são vistos e invejados pelos outros não pertencentes à
mesma sociedade. Isto marcou as cooperações e as relações internacionais com os
seus ideais quase indeléveis. Esses ideais tomaram a forma de padrões ou de mode-
los a serem seguidos pelos outros.
Não é fácil explicar o que se passou na humanidade e nas relações entre as diferen-
tes raças humanas a ponto de clarificar e justificar os problemas relacionados com a
escravidão, o racismo e a discriminação. Uma coisa que sabemos com elevada preci-
são é que é mais cómodo comportar-se como os outros se comportam. Estar ao lado
dos outros, pensar como os outros, vestir como os outros, comer a mesma coisa que
os outros comem, detestar o que os outros detestam, desejar a mesma coisa que os
outros desejam são coisas ou fenómenos que nos conferem a máxima segurança
neste mundo. É mais fácil seguir do que liderar, pois quando se segue um caminho
previamente traçado, conhecemos de antemão, o lugar onde este nos conduz. É co-
mo viver através de uma espécie de GPS colectivo.
Ser judeu, católico, protestante, adventista, budista, político, emigrante, preto, bran-
co, amarelo ou pertencer ao hinduísmo, candomblés, orixás, etc., representa uma
maneira de estar no mundo, de ser diferente dos outros, portanto, proibido aos que
não se incluem nesses grupos.
Podemos dizer com mais plausibilidade que para os que não estão incluídos na lista
acima e pensam de forma diferente, tendem a considerar os outros como desviados
sociais, incrédulos, pecadores e que devem ser excluídos de entre os vivos. Ser dife-
rente dos outros tornou-se uma vergonha que fere a decência, a honestidade ou a
modéstia do próprio grupo. Portanto, pensar diferentemente do estabelecido amea-
ça o status quo e, em certas circunstâncias, ameaça o pão-de-cada-dia de certos in-
divíduos ou grupos.
Muitas vezes raciocino assim: com que direito se determina que um grupo é mais lí-
cito do que outro? Ou que se comporta com mais decência? Quem lhe confere tais
direitos? Quando é assim perguntamos: não estamos a exigir mais dos outros do que
de nós mesmos? Não estamos a violar a própria natureza quando negamos aos ou-
tros os direitos de cada um e que reconhecemos em nós mesmos?
Ora, a antropologia e sociologia ensinam-nos que são os outros que nos dizem quem
somos, isto é, que a primeira identidade social de uma pessoa lhe é conferida pelos
demais. E daí, aprendemos a ser quem nos dizem que somos.
Bem, não quero entrar na filosofia sobre identidade, direitos e deveres. Mas uma
coisa é certa. Vale a pena lutar contra preconceitos, arrogância, falsidade, ignorância
e prepotência. Há uma distância enorme entre o tempo da escravidão e o do dia de
hoje, mas ainda existe no meio de nós uma intolerância no campo da consciência
humana e a sua expressão na sociedade. Há uma tendência e um espírito de revolta
nos países libertados do jugo colonial e noutros contra a sociedade ocidental, contra
a hegemonia do ocidente. Em algumas partes do globo, muitos já estão fartos da im-
posição de normas e padrões alheios. A China, a Índia e o Japão mostram hoje um
desenvolvimento demográfico, tecnológico e económico sem precedentes, portanto,
actualmente o Ocidente não conduz a locomotiva do progresso. Está sim, a sentir-se
ameaçado pelos valores dos outros. Alguns na Ásia fazem demonstração de força de
maneira pouco correta, mas tudo sob uma forma de protesto resultante de uma
opressão secular.
Para que se possa estar seguro no lugar onde cada um se encontra é preciso muita
tolerância. Respeitar os outros e seus valores intrínsecos, porque todos “os outros”
estão certos e têm a convicção de que o que eles pensam e fazem está correto. É
preciso que nós não preguemos a doutrina que ensina que a nossa perspectiva é me-
lhor e mais válida do que a que se ensina na igreja ao lado. Por isso, qualquer resolu-
ção de conflitos ideológicos ou religiosos deve partir do princípio de que o bem este-
ja a enfrentar o bem do outro lado e não o mal a combater o bem com o propósito
cínico de usar a violência para alcançar o poder individual ou a mentira para cobrir a
verdade. Devemos, primeiramente, cultivar o que nos une e não o pouco que nos
separa.
Martin Luther King Jr. fala ao mais íntimo de todos nós quando diz, mais ou menos, o
seguinte:
• As pessoas odeiam-se porque têm medo de uma das outras.
• Receiam umas às outras porque não se conhecem.
• Não se conhecem por que vivem sem contacto entre si.
• Não têm contacto porque vivem separadas.
Ele estava a referir-se aos americanos brancos e pretos. No entanto, a mensagem
contida no que ele diz pode ser extrapolada para o caso da nossa igreja, da igreja dos
outros, da nação, da política, da sociedade e de cada um de nós neste pequeno país.
Seria elevada vaidade da minha parte criticar ou fazer emendas aos dez Mandamen-
tos que Moisés recebeu de Deus. Gostaria, contudo, de acrescentar mais um que
surge do texto da própria Bíblia. Muitos hão-de protestar e dizer que não é fácil
cumprir todos os que foram decretados pelo Altíssimo e que os dez são mais que su-
ficientes. Mesmo assim, acrescento a proposta de um texto para servir do décimo
primeiro Mandamento.
No Terceiro Livro de Moisés, chamado Levítico, um dos livros do Pentateuco, isto é, os
cinco primeiros livros da Bíblia, no capítulo 19, verso 18 encontramos a seguinte
mensagem:
Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu
próximo como a ti mesmo.6
Esta é a essência da visão humana que herdamos do nosso passado. Se toda a gente
procedesse desta maneira não haveria problemas de homicídios, de inveja, de ódio e
de terror que arrasam o nosso mundo. Não haveria perseguição religiosa nem políti-
ca. Todavia, nada é mais difícil neste mundo do que precisamente isto, algo que pa-
rece inconciliável com a natureza humana. Mesmo assim, vale a pena tentar! O texto
encontra-se em todas as três religiões abraâmicas, isto é, no judaísmo, no cristianis-
mo e no islão. O hinduísmo e o budismo formulam votos semelhantes ao que se en-
contra no livro de Moisés. Portanto, as cinco maiores religiões, apesar das diferenças
que se acentuam nos meios de comunicação de massas, apresentam similitudes que
vão, lado a lado, defendendo o amor ao próximo como uma tradição humanista e
universal.7
6
Bíblia Sagrada
7
Jo Benkow, Det ellevte bud, Gyldendal Norsk Forlag – Oslo, 1994
Esta é a mensagem que vos queria transmitir para ampliar um pouco o panorama da
nossa alma quanto à tolerância e ao respeito para com os outros. Ao respeitar os di-
reitos e a liberdade dos outros, estamos também a respeitar a nós mesmos.
E assim terminou a sua última mensagem. Acrescento aqui o que o Papa João Paulo II
disse na sua encíclica sobre o convívio fraterno, uma semelhante lição de vida, que
veio completar a do Renato: 8
Variados são os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento da
verdade, tornando assim cada vez mais humana a sua existência. De entre eles so-
bressai a filosofia, cujo contributo específico é colocar a questão do sentido da vida e
esboçar a resposta: constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da humanidade. O
termo filosofia significa, segundo a etimologia grega, «amor à sabedoria». Efectiva-
mente a filosofia nasceu e começou a desenvolver-se quando o homem principiou a
interrogar-se sobre o porquê das coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes mo-
dos e formas, que o desejo da verdade pertence à própria natureza do homem. Inter-
rogar-se sobre o porquê das coisas é uma propriedade natural da sua razão, embora
as respostas, que esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que eviden-
cia a complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.
8
Carta encíclica, Fides et Ratio – do sumo pontífice – João Paulo II – aos bispos da Igreja Católica
– Sobre as relações entre Fé e Razão.
XIII
– Estamos a ouvir-te com interesse – cortou Marta, ficando com os olhos fixos
nos de Renato.
– O assunto em apreço, atormentou-me a mente quando, muitos anos atrás,
visitei a Cidade Velha, na ilha de Santiago. Foi no mês de Julho e as ruínas da
cidade pareciam uma casa de formigas. Centenas de turistas conglomeravam a
ruína através do portão imenso, aberto ao mar, aos céus e a tudo o que existe,
com olhares penetrantes, engolindo secamente os ecos do passado. Multidões de
gente rodeavam as paredes da ruína num silêncio sepulcral. Japoneses, america-
nos, franceses, italianos, alemães e cabo-verdianos fotografavam, febrilmente,
para levar consigo um pedaço da história, um pedaço de cabo-verdianidade, uma
nesga da obra feita pelas mãos dos nossos antecessores. - Disse Renato.
– Todos os que hoje visitam a Catedral experimentam algo especial e sem limi-
te, algo extraordinário, algo que ultrapassa o entendimento humano – comentou
Djonzinho.
Renato sorriu, levantando a cara, leu a expressão que banhava a face do Djonzi-
nho e, depois de alguns segundos, disse:
– Sabemos que a Cidade Velha nasceu e desenvolveu-se por conta do tráfico
negreiro, tendo sido a primeira capital de Cabo Verde até 1770, quando esta fun-
ção, mais tarde, foi transferida para a Praia de Santa Maria – actualmente Cida-
de da Praia. O que não se sabe é como se parecia a catedral na sua forma origi-
nal. Desconhece-se quantos torres formavam a sua cúpula. Quantas janelas en-
feitavam a sua fachada. Possivelmente, quem sabe, haveria uma torre alta que
simbolizava Cristo, 12 pequenas torres que representavam os apóstolos e, ainda,
4 outras torres mais pequenas que simbolizavam os evangelistas. Tinha 20 ou 50
metros de altura? Um sonho cabo-verdiano, uma arte cabo-verdiana? Um sonho
do futuro da nação, erigido como protótipo do património cabo-verdiano?
O político manteve o olhar alto, como se o peso daquela história o envergonhas-
se ou talvez lhe trouxesse muito orgulho e continuou sem fixar os olhos no seu
interlocutor.
– Como qualquer outra obra, a Catedral tem um passado histórico muito inte-
ressante. Ela é, acima de tudo, um símbolo cristão. Neste contexto, é importante
lembrar a todos que esta Catedral é a mais cabo-verdiana de todas as outras
obras. O Cristianismo foi um elo de ligação entre raças diferentes que moldaram
a comunidade cabo-verdiana, a argamassa que cimentou os costumes, as tradi-
ções e as crenças ou grupo de família, o conteúdo do conceito que hoje é Cabo
Verde. Imaginemos a Catedral com uma fachada voltada para o oriente. Deve ter
sido pintado com algumas imagens que simbolizavam o nascimento de Cristo em
Belém, exactamente como todas os santuários das igrejas cristãs são construí-
dos. Isto engloba tudo o que simboliza as várias passagens bíblicas. Nela, podiam
observar-se as imagens da fuga de José e Maria para Egipto, a descrição das ma-
ravilhas relacionadas com o nascimento, retratos da natureza, a árvore da vida.
Tudo construído sobre os fundamentos da crença religiosa. No meio, situava-se o
portão da misericórdia, rodeado dos portões da Esperança e da Fé. À volta da
Catedral podemos imaginar palmeiras e outras árvores, arbustos e plantas raste-
jantes. O nascimento e o sofrimento, a vida e a morte num quadro só. Pelas ban-
das do ocidente e do pôr-do-sol, podemos imaginar um quadro de sofrimento
nificação pelos piratas em 1712, tendo ficado em ruínas, tal como é hoje obser-
vável, não removeu a sua existência histórica. Hoje, o nome da Cidade Velha,
está para sempre ligado à escravidão, mas está sobretudo, ligado à história ca-
bo-verdiana e à cabo-verdianidade. E, o conceito de Cabo Verde, encontra-se
eternamente ligado ao conceito da paz, da amizade sem fronteiras, da morabe-
za9 e de irmandade ou fraternidade. Com o andar do tempo vai, pouco a pouco,
adquirindo o significado que liga Cabo Verde aos conceitos de democracia, direi-
tos humanos, liberdade de expressão, livre de tortura, de crime, de marginaliza-
ção e com segurança individual entre as primeiras opções políticas. Agora, cabe
a todos, lutar para que esses valores se alastrem e perdurem no meio do povo.
Os construtores da Catedral são representantes dos cabo-verdianos. Simbolizam
cada indivíduo, um universo insubstituível. Demostram que uma pessoa pode
criar algo que ultrapassa as limitações impostas pela vontade humana, que um
indivíduo, em si, tem valor ilimitado e é merecedor da vida eterna na sua acep-
ção cristã. Os motivos para a sua deterioração poderão ser vários. Há quem diga
que sempre houve um movimento contra a escravidão no mundo, mas há outros
que justificam o seu estado de degradação com a hegemonia política dos france-
ses. Eu acredito mais na primeira hipótese, pois não havia riquezas na nossa ter-
ra e partiram sem nada.
A história de Cabo Verde, de maneira geral, é uma história sangrenta de milhares
de indivíduos que foram sacrificados no altar da colectividade: em nome da Mãe-
pátria, do rei, do partido e do interesse próprio. A própria Catedral é símbolo ou
memória colectiva de tal altar da colectividade – a casa da carnificina. Nos sécu-
los que se seguiram, cresceu o respeito pelo indivíduo anónimo. Mas só muito
tarde, no século XX, é que o valor individual cresceu. Ao indivíduo, foram dados
direitos individuais inalienáveis. Ele tem, portanto, em princípio, o mesmo valor
que um rei ou um príncipe tem. Nenhum dos turistas que visitaram a Sé, mencio-
naram uma só palavra positiva sobre a escravidão, sobre a opressão, sobre o
colonialismo ou sobre os desafortunados que construíram a Catedral. No entan-
to, quase todos falaram e, ainda falam, sobre Cesária Évora, Amílcar Cabral, so-
bre Cabo Verde, em particular, sobre os cabo-verdianos e sobre a Cidade Velha,
em geral – raciocinou Renato.
9
Derivada da palavra amorável, na Ilha Brava, morabi, uma maneira especial de ser cabo-
verdiano.
O que estou a contar-vos não se trata de Cabo Verde como ideia, como concei-
to, mas sim, das pessoas que viveram nos primórdios da história de Cabo Verde e
que, pouco a pouco, formaram ou deram origem ao conceito de cabo-
verdianidade. Homens e mulheres que sofreram na pele a escravatura, as intem-
péries da carestia – a epidemia da fome, da seca, da doença, os problemas de
amor proibido entre diferentes raças, a discriminação, os abusos de poder, entre
outros. Trata-se, numa só palavra, de nós. Cabo Verde venceu a crise e experiên-
cia hoje o crescimento em muitas áreas, devido a novas tecnologias, novas idei-
as, novas formas de governo e uma nova ordem mundial. Alguns chamam a isto,
Claridade. Despertar, digo eu. Despertar de uma crise social – uma crise humana.
Nós precisamos de eternizar esta luta ferrenha, este modo de sentir cabo-
verdiano e esta tarefa de transformar as coisas para melhor e para o bem de
todos nós – acrescentou Renato.
A tertúlia de amigos descontinuou aqui. A presença de outros indivíduos criou
um mal-estar e a conversação foi perdendo ênfase, ou melhor, a conversa to-
mou um rumo diferente. Fátima deixou cair os ombros e virou os olhos para o
mar. Soergueu o sobrolho e optou, prudentemente, por não tecer comentários.
A partir do momento em que Aquiles entrou na cena da nossa conversação, sen-
ti algo de estranho a mexer dentro de mim. Não sei bem onde nem o quê, mas
alguma coisa começou a saracotear ali dentro. Tentei puxar um músculo facial
para daí extrair um sorriso e respondi boa tarde à sua saudação. No mais pro-
fundo do meu ser, qualquer coisa se encontrava estagnada, como um carro num
parque de estacionamento escuro. O meu corpo diz não à sua presença, apesar
de mantermos toda a cordialidade. A minha mente disse um total não e assim
também o fez aquela estranha, escura e intangível coisa, meio-anjo, meio-diabo
que peleja dentro do meu corpo e que, comummente, chamamos de espírito.
Até ao dia de hoje, não sei explicar porque o detestei tão violentamente logo à
primeira vista. De qualquer maneira, detestei-o com todo o meu ser. O ódio,
assim como o amor, acontece às vezes sem nenhuma razão aparente, ou talvez
tenha a sua própria razão que não pertença ao domínio da nossa mente e nem
possa ser imaginado por ela. Ódio e amor são iguais a todas as verdades impor-
tantes e eternas na vida, mas que, por vezes, escapam ao entendimento da men-
te humana. Como a existência de Deus, como a existência do Bem. As verdades
importantes são sempre rodeadas de dúvidas. Mas eu, naquele momento, não
duvidei dos meus sentimentos para com o homem à nossa frente, aquele senti-
mento que nasceu à primeira vista. Os nossos olhos encontraram-se durante uns
segundos. Os olhos para mim são iguais às janelas. Através delas, mergulho o
meu olhar na profundidade das coisas, no fundo daquilo que outras pessoas,
muitas vezes, chamam alma. Depois de eu passar a vista pelas janelas, fiquei
certo de que encontrei qualquer coisa que não me agradou. Seguindo-se os ges-
tos, os músculos faciais, os ossos da face e da boca que completam a imagem
que formei na minha mente sobre a pessoa que paralisou a nossa conversa. Ele
deve ter ficado um pouco paralisado e sentido a minha aversão. Não sei da sua
sensibilidade, mas a experiência da vida, muitas vezes, descobre muito mais ver-
dades do que a própria ciência é capaz de fazer.
Além do mais, a observação do indivíduo, o seu modo de ser, a pose e as suas
palavras, permitiam-me lê-lo melhor. Configurá-lo no espaço que cercava o nos-
so grupo de amigos que vivia na sombra de Renato, um indivíduo carismático,
amante da liberdade, da igualdade entre os homens e que, além disso, era muito
simples.
Aquiles era conhecido por todos como o amigo da onça. Não tinha papas na lín-
gua, não guardava segredo e estava sempre pronto a condenar qualquer amigo
que pensasse de forma divergente. Ele desafiava qualquer argumento que se
opusesse à obediência cega aos princípios do partido único como luz e guia do
povo. Para mim, a palavra obediência fere os meus sentidos, soa como uma
ofensa, um insulto à dignidade humana quando ligada a qualquer partido políti-
co, ou mesmo a qualquer religião, uma característica da escravidão, do servilis-
mo e da opressão. A obediência neste sentido, é um veículo da opressão e serve
para dominar os outros. Os grandes dizem que a obediência é uma virtude, mas
fora do contexto, soa ao contrário. Para que parecesse verdade no contexto polí-
tico de então, eu teria que abolir a minha razão, a minha vontade humana e fa-
zer o que os outros me dissessem para fazer. Isto levar-me-ia a perder ou a ven-
der a minha alma, a minha capacidade de pensar como um ser humano e a
transformar-me em animal doméstico que vive atrás duma parede com medo de
desobedecer os seus donos.
Quando aquele homem falava, dava a impressão de ser o detentor da verdade e
acabava sempre os seus discursos com aplausos. Ele era o primeiro a aplaudir-se
e os outros seguiam-no com um sentido de dever. Aplausos, são provas de leal-
dade para com o poder estabelecido ou para com aquele que o representa. Para
ele, significava o mesmo que patriotismo. Se as mãos de alguém aplaudissem
frouxamente ou, por descuido, deixassem de o fazer, essa pessoa seria de imedi-
acto vista com suspeitas. Os seus nomes não tardariam a aparecer na lista das
pessoas não desejadas no Ministério do Interior. Aquele que não chora a perda
do seu líder, acaba por ser persona non grata, pessoa não desejada, num país ou
numa sociedade, que se diz de crentes de razão pura, uma vez que, os seus
comportamentos passam a ser observados cuidadosamente e, mais cedo ou
mais tarde, vê-se o resultado de tal observação, isto é, o preço de não chorar.
Choros e aplausos são, nestas circunstâncias, sinónimos, são provas de lealdade,
de patriotismo, de obediência e de afiliação ao sistema estabelecido.
Enervado com a presença que a olho nu, parecia amigável, percebi que estava a
proceder de modo pouco correto, assim, endireitei-me e segurei as rédeas das
minhas emoções.
XIV
Escapadela
– Naquele determinado dia, tinha a janela aberta onde a aragem vespertina cici-
ava os furores do dia. As fragrâncias das flores do jardim balsamizavam as dores
de Nqunta e seus camaradas. Com Corte Real nas proximidades, prestes a deixar-
se embalar numa soneca, acendiam na retina de Nqunta as últimas esperanças e
passavam imagens de sonhos caprichosos.
Pensava nos seus companheiros de luta, no medo estratificado na alma, nos hor-
rores que devastavam as peripécias do dia-a-dia, nos olhos empedernidos e de-
sumanos que penetravam o gosto de viver, desmoronando as esperanças de um
dia melhor e na desumana invenção da escravatura. Pensava também, em como
vivenciar a felicidade de que os outros usufruíam sem um mínimo de esforço.
Não a felicidade que o poeta canta ou que os jovens príncipes sonham, nem
aquela que se imagina no estado de delírio ou sob efeito de estupefacientes ou,
ainda, a que nasce daquilo que é proibido. Era pura e simplesmente, o alcance da
alegria do dia-a-dia, a única alegria que confere o sentimento de profunda felici-
dade e que proporciona uma contribuição para um mundo mais justo, mais re-
conciliável e mais unido.
Mergulhado naquele mundo de sornice e cantar dos pássaros, Nqunta raciocina-
va como se entrasse numa passagem da poesia de Goethe: não estaria ele a li-
bertar forças sobre as quais não tinha qualquer controlo? Não iria uma avalan-
che causar outras avalanches? Não iria um Mal causar outro Mal; violência gerar
ainda mais violência e transformar tudo num pesadelo sem igual? Não iria uma
existência pacífica de escravos, com os seus segredos e as suas dores recalcadas,
repletos de rica civilização e cultura, transformar-se num campo de carnificina
humana? O pensamento deslizou para a luta do Bem contra o Mal. Esforçou-se
para juntar as forças de concentração e de atenção e empurrou tudo para o lado
escuro da consciência. Ainda assim, aflorava-se-lhe novamente no íntimo, a ideia
de ser ele próprio, exatamente como nasceu, nu e livre. Não queria ser mais des-
crito com metáforas médicas como parasita, bacilo, bactéria, nem como pregui-
çoso, raça inferior, feio e outras expressões depreciativas.
Nqunta era muito preocupado com a linguagem usada na época. E com toda a
razão para o fazer. Pois a linguagem desliza suavemente e penetra a subconsci-
ência, criando uma predisposição ou um estado mental que, pouco a pouco, se
torna determinante para o nosso comportamento, isto é, condiciona o nosso
modo de ver e de estar no mundo em consequência de tal fenómeno. Portanto,
não é o mero significado conceptual das palavras contidas na linguagem falada
ou pela expressão escrita utilizadas, que determina o nosso comportamento, mas
sim, a intenção contida, reiterada e asseverada a cada vez que são proferidas. É
isto que nos guia nas nossas ações na vida! É esta nota sustenida, aquilo que
está escrito entrelinhas e que dá cor ao nosso modo de ver e de estar no mundo.
Ele acha que se não teimar-nos na luta para conquistar aquilo que os outros ad-
quirem sem fazer esforço, isto é, a valorosa liberdade, os nossos destinos conti-
nuam a ser administrados por terceiros, acabando por cair numa teia de dificul-
dades e enredo complicado, sem nunca mais de lá sair, pois os nossos compor-
tamentos são a nossa própria prisão com a repetição constante da linguagem
que enjaula e que ecoa da nossa subconsciência.
Imaginava os lugares por onde iam passar, ao mesmo tempo que aproveitava
para receber ou inspirar um pouco de brisa que pela janela passava, procurando
cristalizar no tempo a fonte inspiradora dos seus segredos. Os últimos raios do
sol daquela tarde poisavam-lhe na fronte como um diadema da verdadeira corte
real. Pegou no balde do jardineiro e começou a regar as plantas ao redor da ca-
sa, enquanto no beirado da casa, uma avezinha no seu ninho temerário, chilrea-
va a sua última canção da tarde. Com este panorama vespertino, de tamanha
paz, parecia que Deus imobilizara todas as almas vivas, com excepção de Nqun-
ta, da avezinha no beiral e das galinhas na capoeira.
Torna-se, assim, evidente que se tratam de assuntos para os quais o homem pro-
cura uma explicação e que, à medida que vai construindo a sua verdade, encon-
tra também, possíveis soluções para os desafios que a vida lhe propõe. Esses de-
safios, são também eles, o que nos ajuda a compreender o sentido da marcha,
isto é, por onde segue o nosso caminho, mesmo depois do triunfo das ciências
modernas, pois nenhuma delas nos fornece verdades universais, uma vez que, as
ciências respondem somente a perguntas sobre a parte e não sobre o todo.
Por todas estas razões, podemos, portanto, integrar o pensamento de Aristóteles
que defendia que não apenas na origem, mas também, agora e sempre, a velha
pergunta sobre o todo tem sentido — e terá sentido enquanto o homem se ma-
ravilhar diante de tudo o que existe e diante de si mesmo, enquanto parte de um
todo.
Renato remeteu-se, momentaneamente, ao silêncio com os olhos fixos na lonju-
ra a digerir o que na sua mente constituía um panorama a ser descrito por pala-
vras bem ponderadas. Ao fim de uns segundos, porém, recompôs-se e voltou a
encarar os amigos.
– Não sei se sonho ou se é minha imaginação criadora. Sei que nem sempre os
sonhos são definidos no palco da mente. Sei, também, que algumas vezes eles
nascem, fogem e desaparecem. Outros tomam forma ao longo do tempo e as
grandes mudanças no mundo surgem por causa dos grandes sonhos. Porém, o
que sinto é uma retrospeção, uma navegação em águas passadas.
Não há dia em que não pense na nossa história. Nenhuma madrugada surge sem
que oiça uma voz estranha no fundo da minha alma. Não durmo sequer uma
noite sem conversar comigo e com Deus. Não poucas vezes, uma dor profunda
insiste em visitar-me e dilacera todo o meu ser. A voz é estranha e não é recog-
noscível. Vem de todos os lados e toca o meu ser.
– Irmãos, temos de acordar – diz essa voz estranha.
Era a voz maviosa de Nqunta que tinha os olhos arregalados onde reluzia o me-
do.
Uma mão invisível tocou-me no ombro e disse algo baixinho ao meu ouvido, algo
que me transportou no tempo, aquele tempo da cegueira humana.
Nesta visão retrospetiva recuo no tempo e experimento a dor, a febre, a disente-
ria, o medo, a adrenalina no sangue, a dificuldade na respiração com os pulmões
E, como que se a voz quisesse dar uma argumentação lógica a Deus, acrescen-
tou: pois, se morrermos pelo caminho, quem é que irá contar a história daqueles
que todos os dias morrem sem saber por quê?
A voz continuou a perseguir-me, como um fantasma. De repente, senti de novo
uma faísca acender dentro de mim. Olhei demoradamente para o homem à mi-
nha frente. Tinha um brilho nos olhos e as mãos trémulas.
Nqunta olhou para o céu cheio de estrelas e previu se haveria, ou não, vento ou
mau tempo no dia seguinte. O seu pensamento era o guia mais certeiro que po-
dia haver sob o céu estrelado. Não sabia para onde fugir, mas de qualquer ma-
neira, pensava em fugir para longe. Fugir até onde os pés o pudessem levar. Não
pregou olho durante a noite com medo de adormecer ou que o plano fosse des-
coberto. As cabras e as vacas esperavam por ele todas as madrugadas. O Nqun-
ta, o Bafu, a Memenga, Badour, Safeya, Bafuá, Lulua e Quintana eram quem de-
las tomava conta. As outras centenas de escravos andavam nos seus afazeres e
outras dezenas dormiam sem saber o destino que o amanhã lhes trazia.
Renato, mais tarde, numa das tertúlias de café de que me lembro com muita
nitidez, continuou a dar-nos uma grande lição da história da nossa terra e do
nosso povo. Tinha uma visão muito clara sobre a formação da nossa língua, dos
nossos costumes e tradições, da miscigenação de raças, da cultura, da nossa re-
volta contra o poderio e do processo da primeira liberdade que nos conduziu até
onde hoje estamos. Ele contava com desembaraço e detalhes como as coisas,
possivelmente, aconteceram num passado bastante longínquo.
sobre os topos das colinas. Depois todos correram para fixar os arreios e segui-
ram montados nas suas alimárias. O ar tremia com o embate dos trovões e, em
poucos minutos, o céu tornou-se claro de novo. Retomaram o caminho da liber-
dade.
Djonzinho escutava o homem com muita atenção e respeito. Sentia-se transpor-
tado no tempo e identificava-se com todos da comitiva... Aquele dia não ama-
nheceu como todos os outros dias.
XV
de em que vivemos está apta a exaltar os que têm sucesso rápido na vida, na
própria economia, os que enriquecem em poucos meses, mas é rápida a zombar
dos que pensam de forma diferente, a manchar a vida honesta daqueles que não
fracassam no caminho da vida. Quem sonha melhorar este país, este mundo,
quem almeja atingir uma meta, não deve esperar muito dos outros – disse Ju-
dith.
– Não conto com muita gente neste momento. Acho que tens muita razão.
Não espero muito dos outros, apesar de tudo. Sou amigo dos que argumentam
contra os meus argumentos, mas os argumentos passam, primeiro, pelo filtro da
minha razão crítica, pelo senso comum que os meus antecessores imprimiram
em mim, antes de me atingir o fundo da alma. Sinto-me neste momento, apesar
de tudo, mais forte e com coragem para ultrapassar a mesquinhez de muitos
amigos. Esta coragem é o combustível que mantém acesa a chama dos meus
sonhos. Recentemente, não aceitei um contracto de milhões de dólares para tra-
balhar fora do país porque não reflecte quem sou. Refutei a oferta para dar o
meu contributo a este povo que tanto amo. Se perco a vida nesta travessia, neste
caminho espinhoso, espero que este povo venha um dia a reconhecer o meu tra-
balho. Não quero o sucesso pelo sucesso, no meu projeto. Não. Não sou um polí-
tico dominado pela coroa da vaidade, da arrogância e do poder. São indignos do
poder os que o amam cegamente. Não pretendo ter grande sucesso para estar
acima dos outros, isso é um insano e injusto.
– Tens uma ambição muito legítima, Paín. O que pretendes é ajudar o teu po-
vo. Ajudar o ser humano. Ajudar os cabo-verdianos a saírem da escuridão, do
vale da miséria física e emocional onde se encontram. Os teus sonhos são legíti-
mos, Paín. Sonhar com o dia em que todos serão tratados com dignidade huma-
na sem ter em conta a cor da sua consciência, é um acto belo, digno e nobre.
– Sabes uma coisa, Judith? Sou conselheiro a nível governamental, mas o que
sinto neste momento, é que estou a ser aconselhado a não dar muitos conselhos.
Quer dizer, eu devia conformar-me com o status quo, com os meus fracassos,
mudar-me da nossa pequena cidade, emigrar para longe, isto é, aceitar o convite
que me foi feito e deixar o emprego ou psicoadaptar-me ao estado das coisas.
Isto não é justo nem admissível. Esta terra é nossa como a Lua pertence a todos.
Sinto-me, também, muito feliz em ter alguém que partilhe comigo o que sente no
fundo da alma. Nós não somos aqueles rebanhos que obedecem a um só pastor,
queremos ser rebanhos com ideias e opiniões próprias porque as ideias e as opi-
niões do pastor podem esgotar-se, podem tornar-se obsoletas e vazias de conte-
údo. O mal deste país não é ter muitos sonhadores, mas sim, muitos pensadores
que neutralizam ou espezinham os nossos pensamentos, espezinhando os sonhos
dos cidadãos. Temos bons sonhadores e pensadores, só que dentre eles, há os
que gritam mais alto porque têm do seu lado a faca para cortar o queijo. Têm a
foice empenada contra a garganta do povo. Não respeitam um pensar diferente,
nem sonhos que ultrapassam os deles. Isto é muito mau. É desrespeitar os so-
nhos legítimos de cada individuo. Não se vislumbra o limite entre a justiça e vin-
gança. Não toleram os legítimos interesses dos outros. Ora, o Art.º 19 das Decla-
rações Universais dos Direitos Humanos diz:
Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liber-
dade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e
ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.
O grande mal deste país, é não estar em sintonia com os direitos e deveres dos
outros. No momento em que, a justiça e a vingança mexem com as emoções das
pessoas, devemos fazer um esforço enorme para não confundir as duas coisas. A
justiça, é um valor universal como a dignidade, a liberdade, a democracia e a
solidariedade, o fundamento sobre o qual a nossa civilização se encontra edifica-
da. A justiça está em deficit na nossa querida terra. Há uma desigualdade no
acesso à justiça, há uma grande morosidade na mesma e não há independência
nos tribunais. Eu defendo a igualdade para todos no acesso à justiça. Ao falar
sobre direito e igualdade, sob igual consideração, é preciso ter honestidade inte-
lectual para reconhecer que há um grande deficit entre nós. Quando os cidadãos
cabo-verdianos buscam o serviço público de justiça ou outros serviços, nem todos
são tratados com igual consideração. Precisamos de um sistema judiciário célere,
efectivo e justo. Isto é um problema com tendência a tornar-se crónico no meio
de nós. De nada valem os discursos sumptuosos, sofisticados sistemas de comu-
nicação e de informação se, naquilo que é essencial, a justiça falha. Precisamos
de reforçar a independência do juiz, afasta-lo desde o ingresso na carreira, das
nocivas influências que podem arruinar-lhe o discernimento e a isenção. Estas
más influencias podem manifestar-se tanto a partir da própria hierarquia interna
a que o jovem juiz se vê submetido, como também, através dos laços políticos
que contribuem para o fazer ascender no exercício da função e da profissão.
10
Advogado Amadeu Oliveira na sua viagem aos Estados Unidos e numa entrevista no dia do
julgamento que foi adiado, 2019.
XVI
cios Estrangeiros, pelo largo do Hospital e foi dar ao Liceu. O ar fresco sabia-lhe
bem e, em poucos minutos, já o fígado teria transformado o álcool etílico em
subprodutos menos nocivos ao organismo. O homem, segundo consta, tinha
uma inclinação especial para a pinga. Adquirira esse hábito durante os tempos
turbulentos da vida. Parou e raciocinou um pouco. Lançou um olhar ao outro
lado da ladeira e reconheceu intimamente que não lhe restava qualquer alterna-
tiva, pois sabia que o seu chefe não abandonaria o caso tendo já chegado àquele
ponto, não havia volta a dar.
Deu mais uma olhadela para as bandas de Lem-Ferreira e voltou pelo mesmo
caminho até encontrar um táxi. Restaurante o Poeta – disse ele para o taxista.
Frente à situação que o esperava em Quebra-Canela, dominando o desejo de
eliminar o sorriso do interlocutor com um murro na cara ou com uma bala mortí-
fera, respondeu à pergunta que lhe foi colocada pela própria consciência: O que
faço aqui? A pergunta surgia-lhe várias vezes! O que estou a fazer aqui?! De re-
gresso ao hotel onde se hospedara, retirou o papel do interior das calças e estu-
dou de novo os códigos. Entrou de novo em pânico. Sentou-se na poltrona. O
corpo não se moveu. Conservava-se sentado, um pouco inclinado para a frente,
com um copo de whisky entre as mãos. Fixou os olhos na janela. Julgou detectar
um som dentro de si. Estaria mais alguém naquele quarto? Alguém que ele não
queria ver e que o esperava noutro lugar? Sentiu a intensidade das palpitações
cardíacas a aumentar e esforçou-se por repelir o nervosismo e as suposições
crescentes que ameaçavam converter-se em histerismo, algo de transcendente o
rodeava naquele momento. Desejava gritar a plenos pulmões até que alguém o
sacudisse com brandura, dizendo que tivera um pesadelo. Levantou-se e esprei-
tou as outras divisões do seu quarto de hotel, mas nada encontrou. Certificou-
se, de novo, de que não havia ali ninguém para o perturbar. Encontrava-se ali
sozinho, ninguém lhe preparava uma emboscada nem estava prestes a ser ata-
cado.
Por fim, sentou-se e quase que ia caindo no sono, mas o relógio biológico tocou
depois de alguns minutos. Deu um salto, saiu da poltrona e foi ao quarto de ba-
nho.
XVII
Um projecto diferente
Renato Cardoso era um homem de ideias inusitadas. Viveu a maior parte da sua
vida na escassez da água potável. Tinha dezenas de planos para Cabo Verde.
Eram planos para desenvolver o país e tinham que primeiro passar pelo crivo
político. Aquele desejo inato de pensar por si próprio era, muitas vezes, esmaga-
do por quem detinha o poder nas mãos, usando a força. Podemos dizer que,
quando isto acontece, é como se nos apertassem os miolos com uma corda gros-
sa, como fazem quando enfaixam os pés dentro dos sapatinhos, como faziam na
China às meninas pequenas, metendo-lhes os pés à força dentro duns sapatos
minúsculos, para os impedir de crescer. Mas como conselheiro, sentia-se um
pouco mais receptivo pelo poder e, também, confiante para apresentar as suas
propostas. Era, portanto, preciso passá-las pelo filtro da censura e do poder.
Num encontro com a Fátima, explicou demoradamente um dos seus planos para
o futuro próximo, sendo interrompido na sua descrição de um projecto da se-
guinte maneira:
– Estás maluco! – Exclamou Fátima e continuou – Isto custa quase 10 vezes
mais o orçamento do país. Isto é, portanto, uma loucura tua. Nem penses aven-
tar ou divulgar esta ideia, porque as pessoas hão-de pensar que és maluco!
– Bem, acho que não se trata de loucura. As pessoas estão com medo de pen-
sar em coisas novas.
Fátima cravou-lhe um olhar de quem insinua a demência de um homem que até
o momento era, pela amiga, considerado um erudito, um sabedor das coisas da
vida. Renato olhou-a com um ar hesitante e sentiu as palavras da amiga sair do
eu inconsciente, cortando a comunicação. Não sentia coragem para contradizê-
la com um contra-argumento convincente, com o receio de ali ficar sozinho a
remoer os pensamentos. Não neste momento, pensou. Dentro do silêncio per-
turbador, escolheu cuidadosamente as palavras para se sentir em terra firme e,
também, sentir-se bem-disposto por saber que ia, possivelmente, mudar a opi-
nião da amiga. Endereçando os seus argumentos ao modo ou estado da razão
que analisa as situações e o conteúdo do diálogo, pondo-os no prato da balança
da justiça, antes de fazer qualquer julgamento ou atirar-se em contra defesa, ele
sabia que ia sair vencedor ou, pelo menos, ficar de acordo com a amiga.
Inclinou-se sobre a mesa, penetrou um olhar amigo nos olhos da Fátima, man-
tendo-se quieto. Depois de alguns segundos, replicou:
– Compreendo a tua reacção e hesitação, querida amiga. É melhor desarmar-
mos aqui e agora as nossas diferenças quanto a isto, pois conheço bem os teus
desejos de avanço do nosso país. Isto é apenas uma proposta que visa resolver os
problemas da água a longo prazo na ilha que nós amamos. A ilha de Santo Antão
é rica em água de boa qualidade. A de São Vicente também tem muita água,
mas não tem água de boa qualidade. Uma proposta deste calibre, não só serviria
para desenvolver a terra, como também, serviria de exemplo para outros países
com semelhantes problemas. Aliás, há muitas ilhas no mundo com este tipo de
problema resolvido da maneira que proponho. Não é vergonha nenhuma retro-
ceder neste meu caminho. Mas primeiro temos de fazer uma proposta bem pen-
sada. Se der deu, se não der não deu – disse ele firmemente.
– Vou ver se me aprofundo mais nisto, caro amigo. Penso que és mais pragmá-
tico do que eu. Deixa-me dormir com este projecto debaixo do travesseiro duran-
te uma semana – disse Fátima.
– O tempo que queiras. Não tenho pressa. Quanto mais apoio moral tiver, tan-
to melhor será quando o momento chegar. Mas não te deixarei em paz quanto
ao assunto em questão. Sabes que quando temos um projecto baseado em ideias
próprias, sentimo-nos felizes e satisfeitos. Por que faço isto? A razão principal
desta felicidade e satisfação é que regamos a semente da felicidade inserta no
cerne da nossa mente ou da nossa subconsciência com o líquido do bem-estar e
da satisfação. Quando esta semente começa a brotar com a ajuda do meio am-
biente, a felicidade torna-se mais palpável, mais real, portanto, maior. Assim, a
energia ou a semente da criação fica iluminada pelo sentimento da felicidade.
Aproximamo-nos da natureza na sua forma mais brilhante – a criação. Se a pró-
pria natureza é sinónimo de criação, também nós, quando criamos algo, estamos
a copiar o que é natural nela.
Somos a continuidade das gerações anteriores a nós. Somos a continuidade des-
te país e ele precisa de nós como precisam os nossos filhos e nós deles. Nós e este
país somos um, assim como, os nossos filhos e nós somos um. Se estamos a so-
frer eles sofrem. Se eles sofrem, sofremos também. Se inventarmos algo, é para o
bem de todos nós. Se não fizermos nada para melhorar a nossa condição huma-
na ou a do país, sofreremos as consequências de não termos feito nada. Reco-
nheço que tanto eles, os nossos filhos, como nós sofreremos os efeitos de inani-
ção, da imobilidade e da indolência.
– Estou de acordo contigo. Da minha parte vou fazer o melhor que possa – in-
trometeu Fátima.
– Acho que devemos apoiar uma causa comum para encontrar soluções para
os grandes problemas que a ilha enfrenta. Podemos falar sobre estes problemas?
Se é loucura, que seja então chamado de projecto louco. Quero comunicar ao
mundo os problemas relativos à água nesta pequena ilha, pois, não posso fazer
nada sozinho. Preciso, em primeiro lugar, da tua ajuda e da tua compreensão.
Preciso do auxílio de muita gente. Quanto maior for este apoio, maior a possibili-
dade de regarmos a semente da criação com a água da esperança, da fé e do
amor. O amor posto na criação contribui para a felicidade e para o bem-estar de
muitos, pois o amor é a energia potencial que criou o nosso universo. Em tudo o
que nós fazemos, deve-se acrescentar uma dimensão humana! Deus criou o
mundo por amor à criação. E nós fomos criados para criar.
Muitas vezes, quando me retiro para longe dos meus colegas e amigos, não o
faço pelo facto de não querer estar perto deles, mas faço-o por necessidade exis-
tencial, para reflectir e sobreviver. Alguns chamam isto isolamento. No entanto,
eu chamo-lhe retiro, descanso para encher o meu espírito com uma nova energia
criadora. Uso o tempo para reflectir profundamente no meu projecto de vida, nas
ideias que emergem do fundo da minha mente. Faço-o uma espécie de medita-
ção e reconhecimento por ter este dom de pensar, por ter oportunidade para
estes momentos de refúgio que são momentos de receber claridade na mente e
de exercitar a inteligência, o que considero ser uma manifestação do que flui no
fundo da minha mente. Porém, quando alguém nos irrita com coisas irrelevantes,
quando só pensam nos seus interesses mesquinhos e nos transmitem uma men-
sagem de egoísmo, de desencorajamento, sentimos que essas pessoas perderam
a capacidade de reflectir, de criar, de ser iluminado e de ser inteligente. Precisa-
mos, também, de momentos para sentir que estamos emersos no reconhecimen-
to de termos o privilégio de possuir alguns talentos que outros não possuem.
Temos milhares de desafios a confrontar-nos diariamente. Penso que devemos
criar condições propícias para a invenção e para a reinvenção. Contudo, temos
primeiro de nos preparar, de fazer planos e reorganizar a vida de tal maneira que
possamos usufruir da nossa inteligência e do momento da iluminação da nossa
mente.
Fátima estava neste momento mais virada para dentro de si do que para as len-
galengas do amigo. Sentiu-se submersa numa fonte de inteligência e de erudi-
ção. Quase que um mal-estar se apoderou dela, mas voltou rapidamente à reali-
dade. Respirou fundo sem nada dizer. Olhou de soslaio para um lado, levantou-
se bruscamente e disse:
– Como queres fazer isto? Em que te posso ser útil? Acho que estás a ser exi-
gente demais para comigo. Se este projecto te traz felicidade, o prazer é, tam-
bém, todo meu – retorquiu ela.
– Ouve, Fátima. Alegra-me muito ouvir-te dizer isto. Ao compartilhares deste
prazer comigo é mais uma alavanca propulsora dos meus pensamentos. Sabes,
há um barco que nos transporta rapidamente do estado da miséria para o da
felicidade, de uma praia para a outra. Um barco que nos leva para a outra mar-
gem do rio que tem mais beleza e mais segurança. Já que existe esta possibilida-
de, por que ficar aqui sentados do lado de cá, se o barco nos pode levar para o
lado do bem-estar, do belo e da segurança? Acho que não devemos deixar a tira-
nia do medo reinar a nossa mente. Convido-te a apanhar o barco para o outro
lado. Não fiques aqui no lado do medo, da confusão, da dúvida, da ira, da menti-
ra e da injustiça. Temos todo o direito de sermos felizes. O germe desta conquista
encontra-se dentro de nós, no fundo da nossa mente.
– Apanho o barco que apanhares. Se eu naufragar, conto com os teus braços
fortes. Se do outro lado do rio se encontra uma vida melhor para todos nós, nada
há a perder, só há a ganhar – garantiu Fátima.
– No meu tempo de menino e moço, tempo bem recente, transportava-se água
em pequenos barcos de Santo Antão para São Vicente. Depois veio a dessaliniza-
ção da água do mar. Depois as despesas relacionadas com tudo isto. Hoje, fala-
se mundialmente na poluição, redução de consumo de energia fóssil, da econo-
mia mundial que afecta grandemente os países pequenos como o nosso. O meu
sonho de sempre é trazer a água de forma subaquática até São Vicente. Isto é,
ligar ou canalizar essa água boa que temos lá na Mesa, Santo Antão, através de
um tubo não corrosível na linha submarina mais curta que liga as nossas duas
ilhas. Não digo que temos muito dinheiro para tal, mas contamos com a coope-
ração, ou melhor, com a ajuda internacional. Tenho muitos amigos que nos po-
dem estender fraternalmente as mãos neste sentido. Tenho a certeza de que será
um trabalho que exige muita perícia e tempo, mas é um trabalho durável a longo
prazo. Antigamente, havia ligação telefónica com as outras ilhas através de ca-
bos submarinos! Por que não utilizar tubos para trazer a água?
O problema da água é mais simples. Vamos lá ver isto. O direito à água, como o
direito à luz e à higiene está a ser ameaçado. Estamos a enfrentar uma profunda
crise de água e luz nas terras de Cabo Verde. Este problema, conduz-nos obriga-
toriamente, para o problema da saúde (higiene) dado a implicação que os pri-
meiros têm neste último. São recursos necessários para a preservação da vida no
planeta, mas, muitas vezes, são negligenciados por grande parte da população
mundial. Na Declaração Universal dos Direitos da água, encontra-se o seguinte:
A água é a seiva do nosso planeta. Ela é a condição essencial de vida e de todo o ser
vegetal, animal ou humano. Sem ela não poderíamos conceber como seria a atmos-
fera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura. O direito à água é um dos direi-
tos fundamentais do ser humano: o direito à vida, tal qual é estipulado no Art.º 3º da
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No futuro, um dos objectos principais de cobiça será a água e não o petróleo.
Num país pequeno como o nosso que não possui nenhum potencial hidroeléctri-
co, a não ser o mar à nossa volta, portanto, sem muitas possibilidades de cons-
trução de barragens para a produção de electricidade, deve-se apostar naquilo
que são os nossos recursos naturais e que temos em abundância: o sol, o vento e
as ondas do mar, transformando-os em combustível propulsor de desenvolvi-
mento sustentável para a nossa ilha.
– O nosso povo não pode continuar a sofrer por causa da luz e da água. Os
principais interessados deviam ser as empresas engarrafadoras de água e os fa-
bricantes de bebidas que demandam muita e boa água – cortou Fátima.
– Claro, o Estado deve tomar a responsabilidade pela situação da água e da luz,
não como gestor, por que ele é mau gestor, mas como mediador, de forma a
garantir que estes recursos são colocados ao serviço do bem-estar da população
cabo-verdiana. O Estado deve neste sentido:
• Consagrar a água como propriedade comum e a igualdade de direito ao
seu usufruto como direito de cidadania.
• Garantir o acesso de todas as pessoas à água potável como serviço público.
• Garantir a manutenção dos serviços de água sob propriedade e gestão pú-
blicas e sem fins lucrativos.
XVIII
11
Op. cit. Ref. Machado de Assis.
reais e daquilo que se encontra dentro de mim, que é maior do que eu mesmo.
Não quero deixar-me levar pela pressa. Sei que todos aqueles que pensam desta
maneira e que acreditam que existe algo dentro de si, que é muito maior do que
si mesmo, acabam por ter pouca sorte na vida.
– Ainda não estou a entender-te!
Renato alçou um sorriso leve e encolheu os ombros. Segurou, de novo, o ante-
braço da acompanhante e olhou-a fixamente, dando alguns passos paralelos à
língua das ondas.
– Bem. Primeiro não vivo na solidão, para te ser muito claro. Tenho amigos por
todos os cantos da terra. Uma família estabelecida. A minha opção por uma vida
que tu chamas solitária, não adveio do facto de eu estar a viver sem uma posição
política que se enquadre dentro da dos meus “inimigos”. Veio de longe. Mas pos-
so-te dizer que, lá dentro de min, ali no abrigo do ser, lá onde me sinto feliz e só,
onde escuto atenciosamente a voz do silêncio como uma música maviosa que
cria uma quietude dentro da alma, lá nutro paz e serenidade. É uma harmonia
sem igual!
A serenidade do Renato parecia morar-lhe na alma e refletir-lhe no rosto, mas
estava longe de pensar sobre a dimensão de todo o alcance do “rendez-vous”
daquele encontro e acerca do rumo que as coisas estavam a tomar. Falava num
tom pensativo, tão frio, tão nu e transparente, mas tão cheio de sentimentos
humanos. Comportava-se como um filósofo, com serenidade. Dava lições da
vida.
– Este momento está longe de ser o que pensava, Renato. Vim de longe para...
– Para ouvir-me ou para fazer outras coisas...
– Não, Renato, estás a ser injusto comigo...
Irritados com o curso que a conversa iria tomar, ambos tecendo e destecendo
mil planos para evitar que a taça de cicuta se enchesse e derramasse o seu líqui-
do fatal sobre um amigo de longa data, um amigo que tinha nas suas mãos, o
único remédio que ela, nessa ocasião, pedia – a chave do seu coração. Nada
mais queria ela. No entanto, Renato queria mais do que entregar a chave. Queria
ensiná-la o valor da liberdade e da responsabilidade. Pois, quem tem prática
dessas coisas de amor, fareja uma paixão a mil léguas de distância. Ele virou-se
para ela, pondo-lhe as mãos nos ombros, encarando-a nos olhos, e por fim rom-
pendo nestas palavras, meias suspiradas:
– Vou-te dizer uma coisa importante. A liberdade custa muito. Ela é um diade-
ma oculto para muitos. Ela é uma divisa que muitos carregam sobre os ombros
sem saber. Só é visível na cabeça de um indivíduo quando ele não é livre, quando
está aprisionado, espezinhado, marginalizado e pisoteado.
– Estás a ser um pouco injusto para comigo…
– Não. Não estou. A espada da lei não deve distinguir entre forte e fraco, gran-
de e pequeno, bonito e feio, pobre ou rico. Por exemplo, a lei contra a exploração
duma minoria para proveito de alguns, deve ser uma das prioridades da Nação.
A Justiça é um bem maior que se faz primeiro em casa. Não se faz apenas no tri-
bunal jurídico, mas também no fundo da nossa consciência, pois lá não se apaga
a visão de um acto cometido. O peso da consciência pode aprisionar um indiví-
duo a ponto de, mais tarde, fazer uma confissão. Muitas das acções do homem
devem-se, frequentemente, a certos impulsos ou instintos “animais” que residem
na sua natureza. Já há muito que pressinto um mal que me está a atingir de fren-
te e que este mal é inevitável. Por isso, procuro minimizar estas possibilidades ou
probabilidades, optando pelo que chamas de solidão. Eu chamo isto outra coisa -
afirmou.
Judith estremeceu. Virou a cara para o mar num movimento rápido, voltando-se
depois para Renato, furiosamente:
– O que é que se está a passar contigo, Renato? O que é que estás a insinuar?
Estou a ser levada a crer que, neste momento, me odeias. O que pensas de mim?
Não podes estar aqui a culpar-me pelos teus problemas.
– Não. Nada disso. Fui ensinado a não ter lugar para o ódio no meu coração. Tu
não tens culpa nenhuma. São os meus desabafos neste momento! Peço-te per-
dão se estou a ofender-te – acrescentou, olhando fria e longamente para ela.
– Compreendo a tua frustração, Renato, mas...são assuntos que se pode tratar
entre nós os dois, sem inconveniência para nenhum de nós, sem interpor a tua
posição política e outras coisas.
Renato ficou pensativo por instantes.
– Deixa-me contar uma coisa que não sabes, já que trouxeste à baila este pon-
to. No convite disse que tinha algo a revelar-te e que serias a única pessoa neste
12
A Bala Mágica que matou Renato Cardoso, de José Manuel Veiga, Setembro de 1994.
13
Ibidem.
– Há um clivo no seio da política vigente. Este clivo existe e vive silenciado pelo
medo e pela falta de coragem de muitos aqui na terra. Há o “grupo de Lisboa” e
há o grupo de “direcção da luta”. Apesar de eu ser claramente marginalizado por
ambos os grupos, sou identificado como pertencente ao grupo de Lisboa que,
para muitos, está associado ao trotskismo aqui neste país. Eu, para te dizer a
verdade, não pertenço nem a um, nem a outro quanto à ideologia que defendem
porque, para mim, são práticas que não se coadunam com aquilo que nesta terra
pobre nós chamamos de Morabeza, com a nossa maneira de ser, ver e de estar
no mundo. Acima de tudo, com a minha visão do mundo. O nosso país ainda não
está preparado para ser depositário de uma ideologia marxista. A África não
está, no meu entender, preparada para algo deste género. Não acredito na ideia
de ascensão do partido sobre o Estado. Este é um órgão supremo da Nação. O
Estado inclui todos sem excepção, enquanto o partido representa alguns, logi-
camente exclui muitos. Muitos falam da democracia antes da eleição, mas de-
pois de eleitos, subjugam o povo que os colocou no poder. Isto é, em si, muito
mau. Destrói a confiança que o povo deposita na política. Se admitirmos a ideia
de ascensão do partido sobre o Estado, estamos também, a admitir a ascensão
de medíocres na estrutura de poderes, paternalismo social e uma gestão político-
burocrática da cultura e de outros males na sociedade. Sou, neste caso, conside-
rado um crítico de dentro e, por isso, muito perigoso. A minha diferença ideológi-
ca com o grupo de Lisboa não me salvou de ser apelidado de trotskista. Contínuo
a posicionar-me como homem de esquerda e defensor ferrenho da abertura polí-
tica, preocupadíssimo com as questões sociais e sou partidário da concepção da
política como jogo.14 Tudo isto, Judith, pesa muito no seio da política nacional,
em toda a sua estrutura, e isto parece promissor se a razão não for vilipendiada
pelos nossos homens no poder. Compreendes agora a minha preocupação, Ju-
dith? Esta é a minha confissão a ti. É isto e muito mais que está nos documentos
que vais ler.
– Perfeitamente, caro amigo. Fala-me mais sobre o Estado como órgão supre-
mo – pediu Judith, já com um alívio na voz.
– O Estado é uma unidade política básica que equivale a uma comunidade hu-
mana fixada num território onde exerce o poder político. Os fins do Estado são,
nomeadamente, a segurança, o bem-estar económico, a justiça social, etc. As
funções do Estado são: legislativas (elaboração das leis), a executivas ou admi-
14
Ibidem.
15
Max Weber, Sociological Writings. Edited by Wolf Heydebrand, published in 1994.
16
Idem
Acho que estás a sentir-te menosprezado pelos outros, ao mesmo tempo que
estás a ser mesquinho, isto é, a ter autopiedade.
– Há um pouco de verdade no que acabaste de dizer. Quando se dá uma rosa a
uma pessoa, fica sempre um pouco de perfume na mão de quem dá, como dizem
os chineses. Quero que o mundo à minha volta reconheça que sou capaz de pen-
sar com minha própria cabeça, isto é, sem me impregnar de outras ideologias.
Tudo o que tenciono fazer pode perfeitamente ser o trabalho de um só homem
ou uma só mulher. Quero expor a minha opinião ao mundo e não quero impor
nada. É o que proponho no meu projecto. Não, Judith. Não concentro a minha
atenção em coisas mesquinhas da vida. Ponho-a numa coisa que é nobre, que é
maior do que eu mesmo, em algo que é transcendente na alma de Cabo Verde.
Queres saber mais?
– Quero, estou curiosíssima.
– Suponhamos que tens uma alma que é a essência imaterial da tua vida. Uma
alma que deriva da palavra anima. Não sei se acreditas na sua existência, mas eu
acredito. Tenho esta convicção de que ela existe. Chegou até mim com o leite
materno. O conceito da alma como algo transcendente é tão claro para mim
como a água cristalina. Então, vamos pensar num outro conceito da alma, em
que, não precisas de fazer lá muitos esforços nem comprometer o teu modo de
ver o mundo, com a tua religião ou a tua cor política.
– Não tenho compromissos nessa área – interrompeu Judith.
Os dois estiveram ali silenciosos alguns segundos. Ele despertou, enfim, das re-
flexões e voltou-se para ela:
– Então escuta. Nós, aquela casa, esta praia, aquelas árvores, aquelas pedras,
todos, temos uma alma. Mas é um outro tipo de alma. Uma alma que é o conjun-
to de qualidades inerentes a cada ser e a cada coisa. E em cada alma há uma
paisagem. Anima ou alma, aqui, é o conteúdo interior ou valor intrínseco de
qualquer coisa ou ser, morta ou viva, que existe. Podemos dizer que aqueles ob-
jectos são a alma desse edifício, aquela área é a alma desta praia. Aquelas casas
são a alma da Prainha. Aquele seminário é alma da cultura cabo-verdiana. Da
mesma maneira podemos dizer que tal rio é vivo. A onda do mar é viva.
– Isto é filosofia, homem. Não sei onde queres chegar com isto. Para mim uma
pedra é apenas uma pedra com valor instrumental e nada mais.
alma, tem o valor intrínseco da justiça como alma do tribunal. Portanto, a pró-
pria justiça é a alma – o lado feminino do tribunal judiciário e do tribunal da
consciência. Os documentos que vais ter na mão daqui a pouco têm uma alma.
Portanto, guarda-os bem. Pois, és a única pessoa com quem posso falar sobre o
assunto e, por enquanto, fechados a sete chaves.
Ela assentiu sem hesitar, baixando o olhar de maneira comovida. Silenciou-se
durante alguns segundos. Não apenas sentiu, mas também, ouviu como o seu
próprio pulso batia na cavidade do pescoço abaixo do ouvido esquerdo. Não
estava a escutar as palavras do Renato naquele momento. Ela tentou pegar-lhe
na mão, mas hesitou desta vez. Ela não disse nada durante uns instantes, como
se pesasse os prós e os contras do que tencionava dizer. Pareceu lisonjeada pelo
lugar privilegiado que lhe foi atribuído, pelo menos, foi o que os seus sentimen-
tos deixaram transparecer. Naquele momento, apresentava alguns dos atributos
que a deusa possuía, mas era porventura apenas uma impressão?
– Garanto-te a confidencialidade deste segredo. Se o mundo vier a saber disto
só se deverá aos teus descuidos. Agradeço-te pela confiança. Aliás, esta é uma
confiança que vem de longe e é recíproca.
– Agradeço-te bastante por essa garantia. Já era de esperar dado a nossa lon-
ga amizade. Mas antes de terminar esta narração sobre o mito, vou-te contar
mais uma história antiga, também grega, sobre o deus Hermes segundo as re-
presentações homéricas. Isto só para te poder narrar, mais tarde, sobre os pro-
blemas da nossa sociedade. Homero descreve Hermes como uma deidade cuja
figura teria sido revelado aos gregos na época da epopeia, e que se tratava de
uma lógica em que Hermes anima e governa um mundo completo e não um
fragmento; ele não vem do céu pedindo coisas, quem quer os seus favores tam-
bém precisaria saber perder, pois ele ensina que uma coisa não existe sem o seu
oposto. Ele era, na maioria dos casos, o oposto de Héstia. Hermes, então, enten-
deria de ganâncias e perdas, mostrando-se bom e complacente nos infortúnios.
Isso poderia parecer ambíguo moralmente falando, mas é a realidade e a essên-
cia da totalidade encerrada por ele. Hoje, encontramos sinais de ganância de
Hermes em todas as sociedades. A ganância política, a ganância económica, a
droga e o desrespeito pelos direitos dos outros. Dentro destes vícios negativos,
vivem muitos seguidores do modelo de Hermes nos nossos dias.
Ele não se importa com a fama e está longe de ser um herói. Sua mestria é outra,
a do “ladrão”, que rouba Ares de sua prisão e rouba o cadáver de Heitor quando
os deuses concordam. Ele mata e sabe justificar o por quê da matança, pois com
a sua arte de bem falar consegue convencer toda a gente.
Hermes é deus dos rebanhos, da sorte, mensageiro dos deuses, que concede gra-
ças, guia e doador de boas coisas, o mensageiro em constante movimento. Mais
uma característica de Hermes é o equilíbrio de opostos. É justiceiro, mas também
traz injustiça aos outros.
Portanto, Hermes foi deus do negócio, da liberdade da expressão, da retórica, do
ladrão, do caminhante, do traidor e do mentiroso. Como tinha muito apetite pa-
ra comer, roubou a Apolo 50 vacas e apagou as pegadas e todos os indícios, de
tal maneira que, ninguém o pudesse descobrir. Matou duas das vacas e cortou-as
em doze bocados, estabelecendo, pela primeira vez, na história dos deuses, o
costume ou ritual de oferecer carne a todos os deuses, incluindo-se a ele mesmo
como um dos 12, comendo a sua parte e queimando o resto.
Quando regressou a “casa”, a mãe ralhou com ele por ter sido pouco correto,
mas como ele conhecia e dominava bem a arte de falar, defendeu-se brilhante-
mente, o que se pode constatar num dos hinos homéricos. Quando, momentos
depois, Apolo passou à frente do buraco onde Hermes morava com a mãe, des-
cobriu as peles das vacas. Apolo foi com toda a fúria ter com ele. Hermes disse a
Apolo que tinha nascido ontem e nem sequer sabia o que significa uma vaca.
Mas Apolo não se deixou ser enganado e levou Hermes com ele para que Zeus
fizesse justiça. Quando chegaram a Olímpia, Zeus recomendou a Hermes que
chegasse a um acordo com Apolo e, assim, com a sua arte de bem falar, estabe-
leceram um acordo entre si dentro de minutos, de tal maneira que, ambos fica-
ram satisfeitos. Fizeram um contracto de amigos.
A acompanhante tinha já a cabeça às voltas com tanta informação, mas queria
ainda saber mais sobre o conteúdo da conversa do Renato com o Presidente da
República. Coçou a garganta para despistar o seu companheiro e virou a cara
para ele num movimento ligeiro:
– O que dissestes ao Presidente para que as coisas se tornassem de cabeça pa-
ra baixo?
– Disse-lhe pouca coisa. Falei-lhe do mimetismo. Entreguei-lhe os projectos e
comecei a explicar concisamente o seu conteúdo. Pregou os olhos nos documen-
tos e não sei se me estava a ouvir. Disse também, que o nosso partido precisa de
ser liberalizado internamente, sendo este, um primeiro passo a dar em Cabo
Acrescentei que nós precisamos dos outros para completar a nós mesmos. Os
outros definem-nos. Precisamos de um desenvolvimento sustentável. Uma polí-
tica de desenvolvimento fundada sobre os interesses e necessidades do homem
africano, pressuporia uma adequação estrutural do sistema herdado, que perpe-
tua a dependência do nosso país de terceiros. Implica a adopção de valores no-
vos, uma correcção da dinâmica social, uma revisão das relações com o exterior,
uma correcção das relações sociais estabelecidas no tempo da colonização e que
ainda persistem em muitos países. Efectivamente, a África, em geral, e Cabo
Verde, em particular, herdou estruturas de dependência e, mesmo, de subordi-
nação que não lhes têm permitido fazer escolhas próprias. Libertar-se dessa de-
pendência excessiva é uma das palavras de ordem contidas no Plano de Acção
de Lagos. Cinco anos após este plano de acção, a União Africana constatou que
poucos progressos haviam sido realizados nesse domínio.
Nós continuamos ainda a ser dependentes do exterior porque estamos amarra-
dos ao sistema estrutural herdado. É só ver a percentagem das importações em
relação ao PIB. Há uma presença exagerada de pessoal estrangeiro na nossa
economia, o que mostra que não estamos no caminho da auto-suficiência. Mais
ainda: reflecte-se no plano político e social, em inúmeras distorções e perver-
sões e consubstancia, em muitos casos, uma subordinação completa do país em
relação ao exterior. A impossibilidade de alterar essas estruturas no nosso país,
em particular e em África, em geral, significa, na prática, absoluta incapacidade
de promover o desenvolvimento económico e social real e autocentrado.18
Ademais, a nossa estrutura política está fragilizada porquanto se encontrar sobre
alicerces fracos. Vejamos: disse e bem, incapacidade de promover um desenvol-
vimento económico e social real e autocentrado. Real, porque os laços económi-
cos estabelecidos, as estruturas de produção dirigidas pelo exterior e para o ex-
terior, as servidões políticas de diversa natureza, os valores retrógrados domi-
nantes nas administrações, a fraqueza de meios humanos e materiais, tendem a
perpetuar o subdesenvolvimento. Na verdade, a África é forçada a gerir uma
estrutura económica, social e administrativa geradora de subdesenvolvimento,
um sistema preparado para regredir. Nós, como parte dessa África, sob esta es-
18
Renato Cardoso – Cabo Verde – Opção para uma política de PAZ, Instituto cabo-verdiano do
livro, 1986.
19
Ibidem
como político, mas tudo se misturou com o medo da morte e tornou-se uma
confusão tremenda. Em forma de concha juntou as duas mãos como que em
prece e ouviu um distante piar de um mocho em desamor. Depois sentiu um
arrepio correr-lhe pelas veias, passando friamente pelo coração cada vez menos
palpitante. Entrou de novo em transe. Por um instante, recordou de novo a últi-
ma conversa política num fresco raciocínio e arregalou os olhos em direcção à
formação grotesca que as rochas formavam. Como relâmpago, passou na sua
mente a última conversa com o Presidente e o que podia ser a origem da sua
perseguição, se política ou passional. Veio-lhe à mente algumas réplicas da con-
versa do último encontro:
– Acredito mais no diálogo e na compreensão como uma forma de resolver
problemas de entendimento humano, problemas que se situam fundo no espírito
das pessoas. Talvez não esteja a acreditar em mim, julgando que estou a falar de
modo pouco científico, mas vou explicar uma coisa importante e básica. O ho-
mem não é um complexo mecânico. Ele é mais do que isso. Na sua unicidade, é
considerado como um ser muito complexo, com direitos, deveres e dignidade
humana, com milhares de impulsos invisíveis e não detectáveis...
Repito: é melhor abandonares os teus projectos! Tudo isto são tretas.
– Uma questão muito complicada. Se me permita continuar...
– Boas intenções de facto, mas como é que nós podemos ver o interior das pes-
soas? Estamos a perder tempo, homem! É melhor esquecer o assunto!
– Tem algo a ver com a entrega, afecto e devoção. Se queremos alcançar o co-
ração das pessoas...
– Vamos dar por terminado a nossa conversa. Temos coisas mais importantes a
fazer.
Depois de voltar ao mundo da dor, queria fazer um esforço para chegar ao veícu-
lo, mas começou de novo a sentir uma dor dilacerante e uma corrente fria a des-
cer-lhe pelas costas. Sentiu-se rodeado de silhuetas que assombravam uma vida
penosa, projectados na escuridão do céu como pano de fundo. Recordou mo-
mentos anteriores e pensou: Judith porque me abandonaste? Sentiu como se
acordasse dum sono pesado ou voltasse dum sonho demorado, pensando que
talvez tivesse decepcionado uma nação inteira, a sua família, os seus amigos, os
seus irmãos, sim, todos aqueles que nele depositavam uma enorme confiança. O
sentimento de culpa, de trair os seus melhores amigos, mas especialmente a
nação, causara-lhe ainda mais dores. Além disso, traí-los, é inaceitável e imper-
doável. Aumentar as suas dores, isto é, as dores de ter perdido ou fracassado
para com os amigos íntimos, as suas ânsias, os seus desesperos, as suas decep-
ções, as suas tristezas, acorrentá-los numa profunda lamaceira são coisas que o
perturbavam. Ele é o único culpado da situação e nada neste mundo poderia
livrá-lo dessa responsabilidade. Sentiu a presença da morte, um medo intenso
gotejando friamente sobre o peito, entrando e transpondo o portal do pensa-
mento, recordando-lhe o mundo que vai deixar. O cheiro da maresia invadiu as
suas narinas e sentiu a condensação do vapor a repousar sobre as pedras, sobre
a areia, sobre as árvores e sobre a escuridão que se baixou sobre a então funesta
Prainha e Quebra-Canela, tudo harmonizado com o espectro da sombra da mor-
te. Os insectos da noite rodopiavam velozmente numa forma circular para de-
pois morrer. Depois de morrer surgirão novas vidas, novos insectos. As aves si-
lenciaram-se e tudo se tornou soturno.
Por uns instantes, estava a vislumbrar o mascarado afastar-se a coxear. O seu
destino era um carro parado na estrada mais próxima. O inimigo do mascarado
estaria morto dentro alguns minutos e com a sua morte viria a esperança para
muitos. Ele já não se ouvia nas proximidades. Desaparecera.
O carro que o esperara e o conduziria até Chã d’Areia onde tinha o seu Toyota
Rav4. Abriu a porta do mesmo e ligou o motor. Deu um suspiro de satisfação e
olhou para o espelho retrovisor quando acedeu à estrada principal e verificou
que ninguém o seguia. Não havia nenhuma luz de veículos a circular. Travou à
frente do Hotel, subiu as escadas com a passos largos, entrou no seu quarto e
estirou-se na cama. Em seguida levantou o telefone e marcou o número privado
de Renato.
– Casa do senhor Renato Cardoso!
– Posso falar com o Dr. Renato?
– Não. Ele não se encontra em casa neste momento. Telefone mais tarde – dis-
se uma voz feminina noutro lado do fio.
O mascarado desligou o telefone. A caminho do Plateaupolis, Renato estava a
ser assistido pelos paramédicos. As guinadas da dor dilaceram-lhe o peito e as
têmporas. O cheiro do sangue e do ódio a invadiram-lhe as narinas. Não conse-
guiu libertar-se das garras da morte. A dor lancinante cortou-lhe o coração como
uma lâmina. Sentiu como se um pontapé o atingisse na zona púbica, mais um no
É possível que seja isso que acontece quando encontramos aquela pessoa com
quem desejamos viver juntos. É possível que uma pessoa, intuitivamente, sinta
ou experimente o seu próprio espírito na mente de outra pessoa.
Dido, no silêncio da noite, sob o céu escuro da cidade de Cartago, podia imaginar
Eneias sentado sobre um trono alto e elevado. Acima dele estavam, Lúcifer e
Serafins, cada um com seis asas. Eles chamavam-se uns aos outros: Santo, Santo,
Santo, Senhor dos exércitos, o céu e a terra estão cheios da sua glória. Ao som
desse brado, as dobradiças das portas estremeceram e o templo enchera-se de
fumaça. O pensamento dela foi para o da viúva Judite sobre o pescoço de Ho-
lofernes, com o propósito de salvar uma nação inteira. Ela curvou-se sobre os
joelhos e disse: sou a nova Judite. Sou a filha de Mattan I, rei de Tiro e irmã de
Pigmalião que mandou matar o seu primeiro marido, Sicheus, de quem cobiçava
a riqueza. Aquele que fugir da minha presença vai ter o destino de Holofernes.
O coração de Renato palpitava ainda mais lento, sentiu o vento frio a entrar-lhe
de novo pelas narinas enquanto rememorava a declamação, em sinopse, de um
poema de Castro Alves numa aula de história:
A noite era escura, o mar revolto e o mocho continuava a piar algures. Segurava
rijamente a mão de um dos paramédicos. A sombra do desespero passou-lhe na
fronte nebulosa. A caminho de Plateaupolis, fisicamente abatido, pegou o fio do
raciocínio de há pouco e sem esperança de executar o seu projecto ouvia a pró-
pria voz interna a recitar:
20
O poema foi escrito pelo poeta brasileiro, Castro Alves, em 1869, encontra-se publicado no
http://www.culturabrasil.pro.br/navionegreiro.htm
que nos tirasse duma situação incerta acerca do assassinato em que até hoje se
vive, a não ser que o assassino era alto, preto e forte.
O assassino tomou um banho rápido e trocou de roupas. Da garrafa de Black
Label entornou meio copo de uísque que engoliu num trago e saiu do hotel.
Imobilizou o Toyota junto da esquina que dá para o hospital da Praia e apeou-se.
Passado mais de uma hora, encontrava-se na praça pública a passear quando um
carro da Polícia deslizou com velocidade de uma flecha cortando o ar e, por um
instante, sentiu um impulso irresistível de fugir velozmente ou de sucumbir num
abismo que mentalmente se abriu logo à sua frente, mas resistiu a ambas as
alternativas. A ideia de suicídio fincou-se-lhe mais adentro no espírito e imagina-
ra ele mesmo metido nas estreitas tábuas de pinho que constituía um caixão a
caminho do cemitério, prevendo e olhando para os rostos dos que o iam, piedo-
samente, acompanhando nas suas dores à sua última morada. Sacudiu de si es-
sas imagens que lhe bailavam no cérebro. Foi apenas uma edição aumentada do
que tinha pensado em outras ocasiões, poucas horas antes, mas agora com mai-
or fundamento, com maior peso na consciência. Foi uma fiel tradução do que lhe
bailava no espírito e a razão das suas preocupações, patente no modo pensativo
de há pouco, como um raio de sol filtrado por entre nuvens negras de tempesta-
de. Porventura, este pensar que deixa sulcos profundos na memória do homici-
da, venha a ser a sua maior condenação no Tribunal da Consciência. Mais tarde,
não podendo suportar a presença de outras pessoas, voltou ao hotel. Pegou no-
vamente do telefone e digitou um número de telefone.
– É o senhor...
– Sim sou eu, caro amigo. Estou aqui apenas à espera da tua mensagem. Cor-
reu tudo bem?
– Sim tudo perfeito. Preciso de um bilhete de viagem amanhã antes das onze.
– Não será melhor um dedo de conversa hoje mesmo?
– Para quê?
– Queria fazer-te umas perguntas...
– Não quero mais perguntas. O senhor sabe perfeitamente do que sou ou não
capaz. Nenhuma outra pessoa das minhas relações me conhece tão bem como o
senhor. Estarei amanhã no aeroporto à espera. Não é preciso ir lá pessoalmente,
pois não tenho mais declarações a fazer. Qualquer pergunta sobre o caso pode
fazer-me saltar do telhado e isto é pouco aconselhável para ambos. Boa noite.
Nero sentiu-se mal devido ao que tinha feito. Sentiu-se só naquele momento.
Sentiu-se enjoado e muito maldisposto. Se lhe acontecesse algo de mal naquele
momento, não haveria ninguém que o socorresse.
– Então, faz as malas e desaparece. Já nem eu te quero ver mais – disse o ho-
mem doutro lado da linha.
Nero Bettencourt fechou os olhos. Sentiu-se anormal, meio suspenso. Parecia
que o seu espírito saía do corpo e pairava por cima a observá-lo. Pensou que se
fechasse os olhos conseguiria ver os pormenores nítidos da acção daquela tarde.
Sentia-se, de qualquer maneira, muito realizado. Era quase meia-noite e tudo
tinha corrido bem desde o início da tarde: o dinheiro, a viagem e a nova oportu-
nidade estavam aí à espera.
XVII
XIX
Era já tarde quando o agente Roberto se apressou entre grupos de curiosos que
se encaminhavam em direcção ao hospital para se inteirar da tragédia da tarde.
O agente seguia absorto em seus pensamentos e não foi impedido pela polícia
que orientava o fluxo de pessoas na subida do Plateaupolis e de todos os cami-
nhos que convergiam para o hospital. Passou o portão frontal e foi directamente
ao local onde se encontrava o malogrado. Deu várias voltas ao defunto sem dizer
uma palavra. Retirou um caderno de anotações da sua pasta onde tinha já regis-
tado os suspeitos e acrescentou qualquer coisa.
O agente contornou mais uma vez o cadáver e anotou mais umas notas rabisca-
das, mais informações no seu caderno. Depois de poucos minutos observando o
corpo e as lesões, saiu sem dizer nada. Quando na rua, acendeu um cigarro Prin-
ce, enquanto dava uns passos largos e apressados no largo do hospital meio dis-
traído e meio aturdido, estava decidido a apanhar o assassino o mais urgente
possível. Não tinha qualquer dúvida, se nada o impedisse de ter acesso ao lugar
do crime, resolveria o caso. Apagou o cigarro, tirou de novo o seu caderno da
pasta e dirigiu-se ao portão do nosocómio e ali estacou. Poucos segundos de-
pois, voltou, nervosamente, ao passeio do outro lado da rua. Escreveu à frente
de cada suspeito as suas possíveis conexões e envolvimento na morte de Paín.
Dirigiu-se ao seu carro estacionado no largo do liceu. De volta ao seu gabinete,
sempre absorto nos seus pensamentos, sentou-se sem dizer nada à sua secretá-
ria. Depois tirou uma cópia das anotações e entregou a Glória, dizendo:
– Preciso de entrevistar todas a pessoas desta lista urgentemente.
– Entendido – disse Glória.
– Deixa-me saber o resultado dos teus contactos o mais urgente possível.
– Preciso de uns poucos minutos – assegurou Glória.
A secretária olhou para a lista de nomes e ficou confusa. Olhou para o chefe que
já não estava sentado na sua poltrona. O agente levantou-se e tornou-se a sen-
tar meio confuso e sem palavras! Sem dizer mais nada, saiu ainda mergulhado
As letras são definitivamente gregas. Vamos substitui-las com as letras do nosso
alfabeto:
Tnreuroocbneett
XX
Os documentos
21
Nome local duma fruta de um arbusto frutífero. Aqui se refere ao próprio arbusto.
prever o futuro para criar um mundo novo que bate constantemente no Porton
d’nós Ilha com uma mão, tendo na outra um projecto de transformação de Cabo
Verde? O que há de mal neste projecto? Não, algo não bate certo.
– Temos de conseguir arrancar das suas mãos este projecto de abertura – Pro-
jecto sobre a restruturação do poder e o Caminho para o pluripartidarismo em
Cabo Verde. Mas como, não sei. Se não o fizermos, estão nossos interesses ame-
açados. Um mundu novu stâ tâ konkô na Porton d’nós Ilha (um mundo novo está
a bater no portão das nossas ilhas). Tenho uma ideia...
– Estou curioso em ouvir-te – reagiu Aquiles. Neste momento, apoio-te em tudo
– disse virando-se para o seu companheiro.
– Não vou revelar esta ideia. Deixa-me remoê-la para ver se faço um plano
mais convincente. Depois fazemos uma reunião aqui mais tarde. Mas o que te
posso adiantar é que nem verdade nem consequência resultarão daí.
Aquiles e Daniel separaram-se sem mais uma conversa. Cada um a pensar à sua
maneira. Se Porton d’nós Ilha constituísse a primeira pedra lançada ou o alicerce
para o Projecto sobre a restruturação do poder e o Caminho para o pluripartida-
rismo em Cabo Verde, teríamos de quebrar o código antes da sua publicação. O
problema maior aqui é quebrar o código do segredo, sabendo que há uma pro-
posta nacional neste sentido. Quem cria um mundo novo somos nós e não ele.
Somos a lanterna que ilumina este caminho. Aquiles sentou-se na cadeira e cru-
zou os braços enquanto se inclinava para traz olhando para o tecto. Virou-se,
estendeu a mão e carregou no botão do tocador de CD para ouvir mais uma vez
a música My Way de Frank Sinatra. Fechou os olhos enquanto escutava a música
e concentrou a sua atenção nas frases:
E agora o fim está próximo,
Meu amigo, vou dizer claramente
E então eu encaro a última cortina.
Abriu os olhos e, enquanto o Sol seguia pelo meio do céu, pensava em sair para
uma corrida doida na praia Gamboa, não só para se esquecer de tudo, mas para
atenuar os nervos plexos. Voltou a sua atenção à música, começou a imitar o
cantor e de novo com os olhos fechados:
Vou expor minha situação
Da qual eu tenho a certeza
E mais, muito mais do que isso,
XXI
XXII
Marta e Fátima
– Reconheço esse gérmen de que estás a falar. Mesmo debaixo das cinzas do
passado pode haver uma faísca, uma só, é suficiente para repetir o incêndio de
ódio. O ódio é o contrário do amor e é um sentimento intenso de raiva. Ele apa-
rece sempre em forma de antipatia, desgosto, inimizade ou repulsa contra uma
pessoa, seja ela amada ou não. Ele é tão primitivo como o amor. O amor são os
braços fortes da mãe divina, quando estes braços se estendem, caiem neles to-
das as almas. Padre António Vieira reduziu as inúmeras paixões do coração hu-
mano a duas paixões capitais: amor e ódio. E acrescenta: são dois afectos cegos
e são dois polos em que se revolve o nosso mundo. Mas esses polos são mal go-
vernados e mal geridos. Se os nossos olhos vêem com amor, até o próprio diabo é
formoso. Se escolhem colocar a lente do ódio, até o anjo mais puro se torna feio
e desfigurado. Com amor, o anão e o pigmeu, agigantam-se. Com ódio, o gigante
torna-se pigmeu. Se os olhos vêem com amor, têm o poder de transformar o ob-
jecto amado no seu máximo potencial, no entanto, se escolhem a perspectiva do
ódio, aquilo que vêem é um pequeno fragmento que se espelha a si mesmo, en-
fatizando, a cada vez que se olha de frente, toda a ira que carrega dentro de si. –
disse o famoso padre.
– É nosso dever ou obrigação moral investigar esta tragédia que se abateu so-
bre nós neste momento. Este dever pesa-me na consciência e vai continuar a
pesar na consciência da nação. Para mim, este dever é como a religião. A verda-
deira religião é o sentimento de dever. O dever não é, necessariamente, a luz da
minha vida, mas é a luz da alma ou algo maior que nós mesmos, que nos guia
dizendo: eis aqui o rumo que deves seguir, aqui é o caminho recto, eis aqui o
trilho que conduz ao teu destino. Pode não significar, necessariamente, o desti-
no final de negativa conotação que comummente se lhe atribui, mas sim, um
lugar onde se chega quando se caminha pela vida ouvindo a voz da intuição e
deixando-se conduzir por um propósito que nos transcende. Dever, no sentido
de ter por obrigação; de ser provável e mais favorável se agir de tal forma; de ter
de agir de determinada maneira em estreito compromisso com a sua alma; de
estar obrigado a; ser devedor de; estar em agradecimento a alguém, etc. Isto é, a
obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, imposta por lei, pela moral,
pelos usos e costumes ou pela sua própria consciência. Trata-se do dever impos-
to pela consciência que fala. Assim como, temos dever de escolher os nossos
governantes, temos o dever de os tirar do poder. Temos também, o dever de
cumprir as leis, de respeitar os direitos inalienáveis de outras pessoas; educar e
proteger os nossos semelhantes; proteger a natureza; proteger o património
Suponho neste momento que o leitor amigo estará curioso em saber quem era o
infeliz ou a infeliz que matou Renato Cardoso e de quem as duas amigas falam
no diálogo que se segue, se é que já não tenha suspeitado que esse ou essa não
era nem mais nem menos que o Fulano ou Beltrano. O melhor é contentar-se
com a realidade. Se esta é brilhante, como a suspeita acima, tem pelo menos, a
vantagem de existir um(a) criminoso(a) e este (a) encontra-se nas imediações
das suspeitas. Não será preciso dizer ao leitor arguto que o autor mais se ocupa
em mencionar duas ou três causas ou móbeis e em expor, dentro do possível,
alguns sentimentos humanos e, até certo ponto, a lógica implicada, sendo ape-
nas e só este o motivo que o move na elaboração desta obra. Outra coisa não o
animaria ou se atreveria a fazer ou a dizer. É muito arriscado. Pelo menos foi na
altura, muito arriscado. No entanto, o que se atreveria, com muita coragem,
seria por na boca das duas amigas destemidas, as gotas de ódio que destilaram
de um amor antigo. Fosse este amor de teor político ou passional, para consolar
a si mesmo e ao leitor interessado em desvendar o caso em questão.
Marta confiava muito na sua intuição. Fechou os olhos para abrir as cancelas do
seu espírito, abriu a boca para falar, mas não achou palavras que dissessem o
que intimamente sentia; levou a mão ao peito para certificar se o coração batia e
ficou a olhar para Fátima com os olhos esbugalhados, secos e parados, a voz ex-
tinta, como se a alma lhe fugisse. Caiu nos braços da amiga com rítmicos soluços.
Esta consolou-a no que pôde. A serenidade parecia morar-lhe na alma e reflectir-
se-lhe na cara, mas os sentimentos da amiga eram tal qual os da Marta. Ambas
se sentiam penalizadas e esses sentimentos eram punhais que se lhes cravavam
no peito. Como se reproduzisse os sentimentos interiores da amiga, muda como
uma pedra, sacudiu-a dando-lhe uma leve palmada na cara que a trouxe de volta
para o mundo real.
– Vamos dar um passeio para te sentires melhor – balbuciou Fátima.
Saíram em direcção à antiga Rua Sá da Bandeira. Contornaram a esquina que dá
para a praça pública. Deram duas voltas à praça e dirigiram-se para o miradouro
de Serpa Pinto, o lugar preferido onde costumavam conversar. Certificaram-se
de que tudo estava bem com a saúde e começou a desenhar-se-lhes no espírito
a ideia de como contribuir para aclarar a situação de desespero. Pensaram que a
responsabilidade tinha de estar algures. Toda a gente se questionava sobre isso,
se a responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão.22 Uns,
22
Adão e Eva de Machado de Assis, www.bibvirt.futuro.usp.br.
dizem que cabia a Eva, outros, a Adão. Mas, com mais plausibilidade, a ambos.
Ambos deviam ou devem assumir a responsabilidade. Portanto, ambos são cul-
pados. A culpa tem sempre duas faces.
As duas amigas levantaram-se e, num silêncio de campo-santo, moveram-se em
direcção à saída, mas não saíram. Voltaram ao ponto de partida. Se alguma vez
tivessem de ser uma esponja de choque, era naquele momento. Estavam melin-
dradas! Estavam a tentar reconstruir na mente, com toda a concentração e cla-
reza, aquela tragédia que chegara sem avisar e sem dar tempo para despedidas.
Procuravam encontrar significado nas imagens que lhes acorriam à mente ines-
peradamente. Nada claro que indicasse sequer remotamente uma causa, um
móbil, uma ligação passional ou uma ligação ao Governo, mesmo munido de um
arsenal tão vasto de conhecimento e de numerosas suspeitas. Tinham medo de
descobrir se se tratava, de facto, de um assassino contratado. Medo de mencio-
nar os móbeis e as consequências que dai advêm. O medo estratificado na textu-
ra social, o medo que não se expressa em linguagem simples, mas sobretudo não
se exterioriza porque o povo é considerado mentecapto, incapaz de saber deci-
dir o seu próprio destino, de raciocinar e tirar as suas próprias ilações. Marta
cravara na amiga, um par de olhos castanhos como se fossem punhais do mais
duro metal fundido nos magmas do nosso vulcão. Esse medo entranhado no
espírito do povo era comentado, em voz baixa, nas esquinas, nas cabeleireiras,
nas barbearias, nas repartições públicas e nos bares, e transformou-se num ro-
mance do destino, correndo de boca em boca nas ruas, nos caminhos e nas es-
tradas do nosso país, num fatalismo sem par. Os amigos do Renato sabiam dessa
aleivosia, dessa deslealdade que o medo acomete aos braços fracos do povo.
Mas que fazer? Fátima sabia de muitas coisas que se passavam ao nível do po-
der, mas não tinha coragem para denunciá-las, nem que fosse com a sua amiga
do peito. Porém, o momento era propício a desabafos. Desabafar era o único
lenitivo para a sua dor no momento e interrompeu o silêncio:
– Há quem faça de tudo nesta terra para salvar e conservar o poder e até dizem
que preferem andar sobre cadáveres a ceder o poder a outros, que fazem tudo
para conservar a ideologia partidária. Estou só a pensar alto. Ao mesmo tempo,
temos de dar uma nesga do nosso cuidado e pensamento aos familiares deixa-
dos. Também temos de pensar no nosso pão de cada dia.
– É e foi uma tristeza, meu Deus. Que pena. Quem me dera ter-lhe podido valer
naquele momento. Prestava-lhe, pelo menos, a assistência na altura em que
mais necessitava dela. Gritava pelo socorro, emprestava-lhe um pouco do meu
fôlego, pedia-lhe o favor de não nos deixar, executava tudo segundo o esquema
que fazia parte da nossa maneira habitual de proceder com qualquer doente –
disse Fátima angustiada e com a mão sobre a cabeça.
– Ocorreu-me agora uma coisa interessante, Fátima. Lembras-te de Daniel e
Judith terem-se zangado connosco naquele dia, nas vésperas de São Pedro, só
porque tu e eu questionámos sobre a fragilidade das suas relações?
- Claro que lembro, Marta. Eu nunca mais toquei no assunto. Não quero voltar
a falar sobre isso. Dói-me até os ossos ao lembrar-me da atmosfera criada na-
quele dia que se pretendia que fosse de festa.
O silêncio que se seguiu, começou a sentir-se, excessivamente, pesado. Marta
esfregava-lhe inconscientemente com a mão direita as costas. Não tinha muito a
dizer. Estava a etiquetar um homem que tinha na sua mente de vestuário amar-
rotado e olhos negros, de expressão bravia e uma outra pessoa que o ajudou,
também, de indumentária mal-arranjada. Começava a chuviscar quando, de re-
pente, a luz da cidade se apagou. O apagão era uma coisa normal naquela cidade
e, por isso, não sentiram medo. Continuaram sentadas mais alguns minutos.
– Sabes uma coisa? - Inquiriu Marta. – Estávamos a falar sobre o medo. Vive-
mos aqui atabalhoados entre um medo que nos entra olhos dentro e a escravi-
dão dos nossos temores. Perdemos, assim, a liberdade, a nossa total liberdade,
porque agimos mergulhados no medo. É um medo que nos cerca nas ruas, um
medo que encontramos nas esquinas da cidade com tamanhas orelhas e que
captam as vozes que ecoam das paredes vizinhas. Temos duas opções a fazer: ter
coragem ou ter medo. Estamos todos aqui predispostos a escolher ter medo,
porque é mais confortável a curto prazo. É o conformismo na sua forma mais
simples. Adaptamo-nos psicologicamente ao estado das coisas. Há, também, o
que podemos, claramente, chamar de medo político, isto é, um medo de deixar
de poder controlar o rumo das coisas, um medo da justiça e da liberdade, te-
mendo um dever que a todos cabe. Sabes porquê? Porque somos escravos dos
nossos temores, porque perdemos a liberdade e o senso de justiça. A verdade é
simples. E, por ser simples demais, a nossa alma não a atrai, porque a nossa vida
é assim. Valorizamos mais o que custa muito a obter. Simples e muito simples:
neste momento, passeia o assassino algures aqui perto, fazendo de conta que
nunca há-de ser julgado. E nós estamos psicoadaptados e conformados com este
estado de coisas. O país inteiro está psicoadaptado, portanto, tudo soa bem. E
melhor ainda para quem o matou ou o mandou matar.
– Roberto – Acho que este ano vou votar num candidato da esquerda.
– Djonzinho – És um comunista! – Exclamou apontando o dedo, com os olhos
fora de órbita.
– Roberto – Então, vou votar num candidato da direita.
– Djonzinho – És um conservador danado! – exclamou, sublinhando com um
gesto de mão.
– Roberto – Talvez seja melhor não votar.
– Djonzinho – Tu és um omisso!
– Roberto – O irmão vai para aquela parte?
– Djonzinho – Tu és um indeciso! Mal-educado!
Desde os primeiros dias depois do assassinato que se questiona se existe vonta-
de política para desvendar a morte de Renato. Pensamos que não. Em lado al-
gum existe o mínimo de vontade quando o regime é único e totalitário. Se exis-
tisse tal vontade, mandar-se-ia chamar a acompanhante, cujo testemunho ainda
constitui uma incógnita. Abrindo esta caixa, saltaria aos olhos de todos as infor-
mações de que precisamos sobre quem matou ou mandou matar Renato. Esta é
pura e simplesmente, a solução do mistério. O código inicial da resolução do
23
https://pt.wikipedia.org/wiki/Alemanha_Oriental
XXIII
Um encontro desagradável
Aquiles teve o feliz reencontro com Daniel Delgado. Este informou-o da situação
num briefing. Do exagero ou da atenuação da verdade, resultara aquele perene
estado de luta interna, uma luta abafada de receios, de indecisão e de amargu-
ras secretas. Para dar o último traço ao perfil das coisas e pôr à prova a sua natu-
ral sagacidade, contribuindo para levar a cabo uma operação delicada e difícil
que exigia muita discrição e perícia, Daniel percebeu que, uma diplomacia de
grande alcance, deveria ser aplicada e, se as coisas corressem bem, podia contar
com um lugar de alta responsabilidade ou com um futuro brilhante no estrangei-
ro ou mesmo no país, com a esposa.
– Quero sair do país e encerrar as coisas de uma vez por todas. A partir deste
momento, nós não nos conhecemos. Não quero mais ser parte disto tudo. Guar-
darei para sempre o segredo profissional, mas nada mais – disse determinante-
mente.
Aquiles, percebendo a narração e os sucessos obtidos, compreendeu, como ho-
mem que não tinha nenhuma comoção na voz porque não tinha coração, que
tudo tinha corrido como planeado. Olhou de frente para Daniel, como se o per-
furasse com o olhar e disse com frieza e sequidão:
– Vai a casa descansar e arrumar as tuas coisas.
Daniel sentiu que a torre que lhe tinha caído em cima, evaporara-se naquele
instante. Levantou-se e saiu apressadamente. Aligeirou os passos e quando
Aquiles se consciencializou do que tinha dito não viu mais que a ponta do casaco
que se perdia por detrás de uma porta. Aquiles causa-lhe desgosto através da
capa rota da sua importância, via-se-lhe palpitar a triste vulgaridade. Possuía
apenas um espectáculo brilhante de grandezas sociais embrulhado num saco de
pompas e amor-próprio. Mas Daniel Delgado, atravessando a rua, sentiu como
se todos os olhos do mundo estivessem a incidir sobre si e precisava urgente-
XXIV
Nos princípios dos anos noventa, uma amiga e colega do Djonzinho, que era uma
ferrenha Testemunha de Jeová, contou-lhe que o país em que mais aumentou o
número de Testemunhas de Jeová (TJ) era Cabo Verde. Não acreditava, mas anos
depois, confirmou que era verdade, que uma série de seitas religiosas surgiram
no país e que estavam todas em crescimento. Este aumento do número de seitas
religiosas veio explicar uma série de outros acontecimentos no país. A liberdade
religiosa é uma coisa boa, mas é boa a consequência desta liberdade? Vive o
povo mais feliz? É esta felicidade parte do desenvolvimento do país? Aquiles e
Dário, apesar de pertenceram ao mesmo grémio de amigos, tinham ideias dife-
rentes relativamente à maneira de alcançar a felicidade numa sociedade. Dário
não é membro activo da seita, mas conhece bem os contornos da organização e
simpatiza com ela. No dia em que a igreja satânica completou 2 anos, houve pa-
lestras e orgias. Depois do jantar, o senhor Delgado e membros de outra congre-
gação, travaram uma acesa discussão sobre a existência de um deus diferente.
Delgado começou por perguntar aos outros a seguinte questão:
– Qual é a função da vossa congregação e quais são as estratégias de satanás
para destruir o homem?
– Deixa-me primeiro iniciar-te numa coisa muito importante. Há aqueles fenó-
menos do Mal contra o Bem que preocupam o ser humano. É uma luta constan-
te. Nós, que estamos na tribuna do Mal, pensamos que o Bem não existe e, se
existe, anda muito fraco. Basta olhares à tua volta. Tantas coisas temíveis que
acontecem! Mas, frente à frente, encontra-se a tão chamada tribuna do Bem a
desafiar-nos constantemente. Os satanistas prevêem o futuro e sabem que não
podem vencer Deus nem o Bem, mas trabalham em colaboração com os seus
anjos com muito afinco para levarem o maior número possível de pessoas para o
lado do fogo do inferno, aquela prisão eterna.24 Portanto, não temos nada a per-
der no nosso grupo. O nosso propósito é desviar o máximo número de pessoas.
Nosso objectivo maior é afastá-las de Deus. Isto é possível através de uma estra-
tégia bem camuflada, estimulando-as a praticar o mal e confundindo suas ideias
com um mar de filosofias, pensamentos e religiões cheias de mentiras, mistura-
das com algumas verdades. Pedimos ao Lúcifer e seus mensageiros travestidos,
para confundir aqueles que procuram Deus. Tornamos a mentira parecida com a
verdade, ao repeti-la centenas de vezes, induzindo o homem ao engano e a ficar
longe de Deus, achando que está perto. Além disto, fazemos com que a mensa-
gem de Jesus pareça uma tolice anacrónica, tentamos estimular o orgulho, a
soberba, o egoísmo, a inimizade e o ódio dos homens. Trabalhamos arduamente
com o nosso séquito para enfraquecer as Igrejas, queimando-as, profanando-as,
lançando divisões, desânimo, críticas aos líderes, adultério, mágoas, friezas espi-
rituais, avareza e falta de compromisso. Tentamos destruir a vida dos pastores,
principalmente com o sexo, ingratidão, falta de tempo para Deus e orgulho. 25
– Quem criou o satanás?
– Foi criado pelo próprio Deus, bem antes da existência do homem.26
– Como era o satanás quando foi criado?
– Veio à existência já na forma adulta e, como Adão, não teve infância. Era um
símbolo de perfeição, cheio de sabedoria e formosura e suas vestes foram prepa-
radas com pedras preciosas.27
– Onde morava o satanás?
– Ele morava no Jardim do Éden e caminhava no brilho das pedras preciosas do
monte Santo de Deus. [Ezequiel 28:13].
– Qual era a sua função no reino de Deus?
– Era como querubim da guarda, ungido e estabelecido por Deus, sua função
era guardar a Glória de Deus e conduzir os louvores dos anjos. Um terço deles
estava sob o seu comando.28
57
Ezequiel 28:19; Judas 6; Apocalipse 20:10,15
58
1Pedro 5:8; Tiago 4:7; Gálatas 5:19-21; 1 Coríntios 3:3; 2 Pedro 2:1; 2 Timóteo 3:1-8; Apocali-
pse 12:9.
26 Ezequiel 28:15.
27
Ezequiel 28:12,13.
ção ao satanás se o próprio criador nos adverte de tal perigo. Diz, também, que
ninguém tem maior amor do que Aquele que dá Sua vida em favor dos Seus ami-
gos [João 15:13] e nos ensina a amar os nossos próprios inimigos. Portanto, Jesus
no Novo Testamento, mudou tudo aquilo que contribuía para dividir os povos,
lapidação, olho-por-olho...
– Sim, naturalmente.
– Vamos ver uma coisa importante sobre a tua vida privada: és membro da
igreja satanista ou és membro da igreja protestante?
– Sou membro das duas.
– Pode uma pessoa ser membro de dois partidos ao mesmo tempo? Apesar de
serem contraditórios os seus ideais?
– Não está escrito em lugar algum que é proibido ser membro de dois partidos
ao mesmo tempo.
– Por que é que és membro na igreja satânica e protestante ao mesmo tempo?
– Porque eu creio que tanto Deus como Satanás existem. Preciso de ambos. Pa-
ra poder estar mais seguro pertenço a ambos partidos já que não é proibido.
– Então vives no temor por toda a eternidade. Vives na hipocrisia, pois não há
remédio que cura este mal – asseverou Delgado.
– Não, vivo na certeza de que tudo existe, apesar das minhas declarações feitas
anteriormente que dizem o contrário. É para vos baralhar – concluiu Aquiles.
Muitos dos membros do grupo satânico não acreditavam na existência do Mal
nem do Bem e que não se pode julgar os outros pelas suas opções ideológicas.
Vivem num vácuo pertencente ao maniqueísmo, o relativismo moral que precei-
tua a não existência do Mal e nem do Bem, pois para eles, não existe nem a sa-
nidade moral nem decência humana. Por isso, o mundo pode disseminar os ma-
les sociais, pode aceitar de mãos cruzadas tudo de grotesco que acontece por-
que tudo está determinado desde o princípio do tempo.
XXV
tar às mulheres. Elas podem passar horas a arranjá-lo com grampos, fivelas e
com engenhosidade. Em tempos remotos, o cabelo definia-nos como seres hu-
manos, na medida em que, definia o nosso estatuto social e o nosso lugar na
sociedade. Os egípcios, os romanos, os gregos e até os Vikings, com a ferocidade
no cabelo e na barba, destruíram e invadiram outras culturas que não ostenta-
vam o mesmo tipo de cabelo. Na época renascentista, os agitadores sociais da
época, usavam sempre cabelo longo. Para os barrocos e os romancistas, os gre-
gos e troianos e em povos em todas as épocas, o cabelo e o penteado foram
importantes marcadores sociais. Roberto ao deixar o seu cabelo crescer daquela
maneira, mostrava ao mundo o lugar que ocupava na sociedade segundo os que
o criticavam. Não só. O cabelo, em certos meios, mais do que a cor da pele, defi-
ne as pessoas como sendo de classe mais alta ou mais baixa. Se são longos e se
estendem até às costas, são da classe alta, se encaracolam, são da classe baixa,
segundo a psicologia da classe que colonizou as nossas cabeças.
Lembremo-nos da barba do rei que pagou todas as dívidas duma nação. A barba
é usada em quase todas as religiões como símbolo de poder, de ser diferente e,
muitas vezes, de beleza e marcador social. Aqueles que pretendem ser diferen-
tes cortam o cabelo curto, talvez como forma de protesto, de diferenciação. Al-
guns cortam o cabelo curto para irradiar uma masculinidade que, simultanea-
mente, indica conformidade com determinados grupos sociais que os distanciam
do status quo estabelecido. Por que insistem os ramos militares em todos os
países para que os soldados andem com o cabelo curto? O cabelo curto, neste
caso, incorpora um indivíduo no anonimato de massas, na submissão de classe,
na inferioridade hierárquica. Porém, Roberto não dava atenção a nenhuma des-
sas categorias, não tinha pretensão de ser diferente. Não tinha, simplesmente,
tempo para o cortar.
Roberto questionava certas atitudes que surgiam na sociedade actual e dizia
sempre que era difícil imaginar a coragem que era necessária para enunciar um
projecto ou projectos que embatiam contra o comportamento Todo-Poderoso
que cimentava a estrutura política de então. Isto é, propor um projecto nacional
que contrariasse o que todos os bons militantes aceitariam como a palavra que
vinha da Luz e Guia, palavra que transcendia todas as verdades e valores do
mundo. Quem iria crer nas promessas desses projectos?
A ousadia de Renato era grande. A sua boa índole e o seu brilhante aproveita-
mento nos estudos, continuaram a granjear-lhe, no entanto, a simpatia e o
aplauso dos seus melhores amigos que também estavam perto da cúpula do
poder.
A tormenta das lutas políticas e religiosas que ensombrou a vida de muita gente,
mas principalmente a de Renato Cardoso, estava prestes a desencadear-se. Já na
época decorria a profanação das igrejas. Os criminosos não eram perseguidos
como deveriam ser. Uma onda de profanações abateu-se sobre lugares santos e
a nação inteira tremia de medo. Bem, era uma gigantesca luta interna. Os movi-
mentos satânicos estavam já estabelecidos no país. Era então de esperar que
quem ousasse contradizer as normas estabelecidas correria o risco de apanhar
uma boa sova. Se a verdade de um projecto chocasse contra a verdade da Luz e
Guia, então aconteceria o que aconteceu com Giordano Bruno, que foi condena-
do a morrer na fogueira por ter sustentado que o espaço é infinito e está povoa-
do de estrelas tão grandes quanto o Sol. Dizer que existe uma verdade que
transcende as da Luz e Guia, era um problema que desafiava uma elite que não
queria largar o poder absoluto.
Renato, como pessoa de cariz religioso, discutia frequentemente com Aquiles e
seus acólitos, mas sempre que os deixava, dizia umas palavras dentro de si e
orava. Assim fez, também, naquele dia em que deixou o gabinete do Presidente
da República. Orava com o fervor de um santo. Mais duradoiro do que qualquer
monumento que se possa erigir para perpetuar a memória de uma pessoa que
foi o legado da sua coragem. A vida de Renato Cardoso, tão cheia de esforços e
dificuldades, tão cheia de fé e de esperança, tão cheia de clareza espiritual, pode
sintetizar-se na expressão: per aspera ad astra, que significa: através das dificul-
dades, a caminho das estrelas. Como cristão, foi sempre firme na sua crença e
nas suas palavras. Sempre que acabava de fazer um projecto, ter uma conversa
difícil, ler um livro ou terminar o trabalho diário, recordava a oração de Johannes
Kepler: Meu Deus, graças Vos sejam dadas por nos guiardes para a luz da Vossa
glória, pela luz da Natureza. Realizarei a tarefa que me destes e regozijo-me na
Vossa criação, cujas maravilhas me permitistes que revelasse aos homens.
Amem.
Porém, as sombras do infortúnio estariam a girar à sua volta. Pressentiu-as por
várias vezes. No entanto, o seu ideal era maior do que a própria vida, algo maior
que si mesmo. Tinha muito claro na sua mente o cenário de um país plantado no
Atlântico, onde cada um tem direito à sua gota de água, à sua colher de sopa, à
sua catchupa,33ao seu pedaço de terra, ao seu bom nome, à liberdade de se ex-
primir, de pensar, de agir, sem vender a sua consciência para ter estes direitos. O
seu modo de agir nascia do amor pela pátria. O amor mantinha os seus desejos
unidos. Desejos de criar uma nova pátria de todos e para todos. Comportava-se
como um homem comum, não para julgar os homens de estrelas ao peito, mas
para levar e transmitir a mensagem dos homens da rua. Para levar a poesia solta
na rua aos homens do poder, mas estes, bastantes vezes, foram surdos e cegos.
Para ele, a Luz e Guia é, no momento actual, algo mítico usado para desprezar a
noção da dignidade, de direitos humanos e da justiça social, para se distanciar do
povo cabo-verdiano. Renato desprezava esta visão do mundo que contradiz a
sua noção tradicional da justiça. Era um homem de costumes, de tolerância, mas
sobretudo, de Paz.
No documento que constituía o Projecto sobre a restruturação do poder e o ca-
minho para o pluripartidarismo em Cabo Verde, a parte que mais embatia contra
ou desafiava as instituições estabelecidas era A Estrutura do Sistema Político,
onde propunha uma reestruturação do sistema vigente. Estava escrito numa
linguagem que só os intelectuais entendiam. Foi feito, propositadamente, para
evitar ser importunado pelos principiantes na política. Ele sabia que a maior ale-
gria que existe no mundo é a de construir uma ponte entre o sonho e a realida-
de. Estava em vias de uma luta para construir tal ponte de ligação e sabia como
fazê-lo, mas estava também com medo, sentimento este que enfrentou até ao
último fôlego da sua vida, medo.
Daqueles míticos “filhos melhores”
Antes, estrelas entre estrelas no oriente,
Mas, filhos da terra, de outros amores
Que guiaram liberdade a um povo crente.
33
Comida típica cabo-verdiana feita à base de milho.
XXVI
muns, capazes de te ensinar a fazer uma rápida limpeza. Eles têm prática de so-
bra! Quanto a isso de limpeza, acho que estás a mostrar demasiada honestidade.
A honestidade, neste caso, está em razão directa com a tua estupidez – afirmou
Dário.
– Não estou a entender-te. Pensava que tu andavas a defender os interesses do
teu patrão, como eu ando a salvaguardar os da comunidade. Quero continuar a
ser honesto, perante Deus e minha consciência. Esta é a minha riqueza – contra-
argumentou.
Dário engoliu a resposta secamente, mas não podia deixar de fazer qualquer
comentário sobre a postura do amigo e prosseguiu:
– Já viste algum honesto rico a não ser que tenha ganho uma lotaria ou tenha
herdado uma fortuna? Eu nunca vi um. Essas coisas de consciência e Deus estão
somente na tua cabeça. São tropeços para ti – retorquiu.
– Já viste algum ricaço feliz? Talvez contados nos teus dedos! A maior parte de-
les vivem condenados pelo Tribunal da Consciência. É o pior tribunal que existe.
Se eu roubar hoje, pode ser que amanhã sejas a primeira pessoa que me vai acu-
sar e atirar pedradas. Não esqueças que onde há amor e amizade há, também,
ódio e inveja. Além disso, vivo bem na minha humildade, com uma casa pequena,
mas coração grande, com alegria na minha miséria e escassez. Quero que os
meus filhos brinquem na companhia dos que exigem pouco para serem felizes,
mas conseguem fazer uma grande festa com quase nada. Isto tudo lhes dará
mais prazer de viver e incutirá neles criatividade para viver a vida de forma ale-
gre – respondeu Diogo.
– Faz o que mais te apetecer. Se a miséria para ti é melhor que a riqueza, tudo
bem.
– É o que vou fazer, meu caro amigo. Não quero viver dessa maneira. Sabes, há
muita coisa na vida que à primeira vista parece contradição. Não há nada pior
para os nossos filhos que crescer na ausência completa de conflitos, de crescer
sem dificuldades, de viver superprotegidos, sem encontrar dificuldades nos cami-
nhos, sem adquirir uma gripe porque dessa maneira adquirem defesas para so-
breviver na sociedade de hoje. Olha para os jovens de hoje! São todos superpro-
tegidos, os pais dão-lhes tudo o que eles apontam com o dedo indicador, mas
são insatisfeitos e ansiosos. Muitos deles são hipersensíveis. Não querem levan-
tar um dedo para adquirir algo ou para ser alguém, não querem estudar, procu-
rar trabalho, porque não é preciso. Por outro lado, as dificuldades da vida, as
roçaduras e atritos com os irmãos, as brincadeiras com simples brinquedos in-
ventados pela própria criança estimulam-na a inventar coisas, a sonhar, a criar
na escassez e a ser forte na defesa das doenças e outras dificuldades. Quem não
põe o dedo no fogo, não sabe se é quente ou frio. Quem não tenha sofrido misé-
ria, não sabe se a riqueza é boa.
O coração do Diogo palpitava, as faces estavam rosadas, o cabelo revolto de tan-
ta irritação. Diversas emoções saiam-lhe do coração em torrentes. Pequenos
gestos marcam uma vida e palavras suaves podem, muitas vezes, ser cortantes
mesmo para corações duros. Ele sentia-se responsável pelos seus actos e não
queria ser intimidado pelo amigo. Achava que Dário com a sua visão altruísta,
estava enganado.
Ambos eram amigos de Aquiles. Dário era um homem que não acredita em Deus
e não tolerava a presença de padres. Mas era um religioso daqueles que ia à
missa todos os domingos. Mesmo assim, era um grande amigo de Aquiles, bas-
tava que não falassem sobre coisas de Deus e da Igreja.
Aquiles terminara uma formação intermediária em chefia, haviam já passado 3
meses. Fora então, destacado para um posto de chefia pelo primo que era um
ministro, mas não tinha experiência de liderança. Uma coisa que o distinguia dos
outros chefes era o seu coração de pedra. Mas, apesar de tudo, já era chefe exe-
cutivo, isto é, supremo do departamento de investigações. Quando lhe foi dado
o cargo, foi sublinhada a importância do mesmo. Era o CHEFE com letras maiús-
culas. Despachava tudo o que lhe caía nas mãos o mais rapidamente possível. O
seu antecessor era uma pessoa humilde, um católico fervoroso, pio e de muita
paciência. Na altura da entrega da chave do departamento de investigações, o
predecessor abençoou o novo chefe, dizendo que Deus havia de ajudá-lo, ao
que, o seu sucessor respondeu com um olhar desprezível como quem diz que
aqui Deus sou eu.
Aquiles não tinha diplomacia alguma. Não tinha grandes sonhos. Mas tinha uma
enorme vontade de mandar. E o poder satisfazia-lhe essa vontade. A sua delica-
deza em situações que exigem carinho era comparada com a de um elefante a
atravessar uma loja de copos e porcelanas. Não era inteligente, mas tinha uma
apurada capacidade de observação e um desejo ardente de fugir da mesmice e
da tradição. O poder só servia para o fazer sentir-se forte e receber aplausos,
revelando-se tímido para satisfazer as necessidades dos outros. Ele não conse-
guia matar o monstro enorme, o monstro psíquico, que trazia dentro de si e, por
isso, projectava-o em todos ao seu redor.
No seu primeiro despacho sobre um caso alfandegário, em que, um funcionário
foi apanhado em flagrante delito numa situação de roubo, despachou o caso
com um traço de lápis e mandou arquivar o processo.
Aquiles reparou que o homem à sua frente estava mais calmo e decidiu fazer
uma nova investida, apoiando o Dário.
– Então homem, ganha juízo e pensa no que o Dário te propôs!
– Mas senhor Chefe – intrometeu o primo – esse funcionário está a fazer a vida
difícil a muita gente nesta ilha...
– Não me faças queixinhas, primo. Vai lá pensar em outras coisas – comandou
Aquiles.
Tinha o coração agitado. Bateu com a mão sobre a mesa. Que diabo teria feito
para ter empregados idiotas e incompetentes? Estes estupores não sabem com
quem estão a brincar – pensou. O que era preciso agora, nos primeiros dias, era
uma demonstração de força, mas raios, que força se pode mostrar a um punha-
do de mentecaptos que andam à luz do dia a convencer o mundo que sabem
muito e conhecem a justiça porque Deus os guia? Aquiles era da opinião de que
devia sempre atacar primeiro e impor as suas ideias. Vou atacar à minha manei-
ra e não quero que eles me estraguem os planos – raciocinou. Ele não conseguia
manter os olhos fechados, pensando na estratégia a adoptar. Quanto mais dura
a decisão, melhor para se posicionar perante os seus súbditos.
Diogo aproximou-se do Dário e, baixinho, disse-lhe ao ouvido, em forma de con-
selho, o que este não queria ouvir.
– Sabes, amigo. Há modos de ver o mundo que não se coadunam com a minha
maneira de ver e perceber o mesmo. Há uma força dentro de mim que clama
pelo bem, que é contrário do mal, uma força no meu espírito que serve de filtro e
não deixa entrar esta tua maneira de pensar. Devemos parar pelo caminho da
vida e deixar as lágrimas, que nunca tivemos coragem de chorar, correr silencio-
samente pela nossa face em prol daqueles que não tiveram coragem de conti-
nuar na corrida da vida porque lhes faltou coragem, porque desesperaram, ou
porque não encontraram um significado na vida e desistiram dela. Pára, amigo.
Faz uma pausa na caminhada, procura novos atalhos que conduzam aos reman-
sos da vida, tantas vezes quantas forem necessárias. Ambiciona ser feliz com o
pouco que possuis, sonha com coisas maiores, persiste em ser feliz e serás feliz.
Escreve os mais belos poemas da vida – disse-lhe.
– Não te estou a entender. Sabes que as oportunidades podem desaparecer e
não voltam mais. Muitas pessoas nascem com o destino de miséria e nunca saem
dela. Eu não acredito nessas tuas lengalengas. Olha para o teu compadre. Em
menos de um ano anda por aí a somar as cifras. Ele não tem medo das longas
noites que a vida lhe traz. Tem uma vida garantida. Não sofre de insónias e não é
tratado como mentecapto – acrescentou Dário.
– Bem, o sol não deixa de brilhar para os amigos da paciência, da consciência
livre e limpa. Para mim, a sinceridade, vale milhões e respeitar aquilo que per-
tence ao bem comum é brindar a vida com um valor mais alto do que milhões de
cifras no banco. Muitos dos que sobem apenas alguns degraus da escada do su-
cesso económico ou social tornam-se inacessíveis pelos mais necessitados. Tor-
nam-se distantes dos demais e ninguém tem acesso às suas agendas. Vêm o po-
vo como um mero número de identidade, um título académico, uma conta ban-
cária e não como um ser humano inigualável, com a sua unicidade, com a sua
dignidade humana, com seus direitos, deveres e responsabilidades – explicou
Diogo.
– A estatística dos últimos tempos demonstra que a maior parte dos que mete-
ram a mão nos cofres do Estado não sofreram consequências algumas...
– Alto lá. A estatística pode ser manipulada. Ela pode apresentar uma resposta
feita à martelada, mas nunca responde às perguntas, por exemplo, da psicologia
e da consciência. Pobre da estatística! Sabe muito, mas conhece tão pouco sobre
a vida do homem. Ela somente aquieta a alma dos que pensam pouco. Não en-
gana aos que pensam além da ponta do seu nariz – cortou Diogo.
– Caramba! És teimoso como um elefante.
– Não é teimosia! É, antes, uma virtude nata. Um homem honrado vale muito.
Desde os tempos idos, a honra exerceu uma enorme influência na vida de muitas
gerações. É uma virtude incomensurável como muitas outras. Ela constitui um
grande valor na vida do ser humano, especialmente quando representa um gru-
po, um povo ou uma nação. Em outras palavras, os que servem a causa do bem
comum adquirem méritos pelas suas boas acções. Não quero estar aqui com ar
de erudito para explicar o que tenho a dizer. Mas quero falar das virtudes do ca-
tiada e instável perante os comportamentos dos outros que têm uma opinião
diferente, possui menos capacidade de perdoar, pois ser intolerante é um sinal
de fraqueza humana. Aquiles tem todos os dotes de intolerante, mas superfici-
almente, é forte e inteligente.
Diogo deu sinais de desconforto no grupo de amigos, que além de terem ideias
políticas coincidentes, também pertenciam à mesma seita religiosa. Mas, para
Aquiles era necessário manter o grupo coeso e faria tudo para sacrificar os seus
desacordos.
XXVII
O guardador de Projectos
Diogo não se sentiu bem quando recebeu ordem para cuidar do manuscrito até
que uma segunda ordem fosse dada. Ele estava cheio de medo e não sabia como
tratar os documentos e onde os ia guardar. Numa situação destas, o próprio ba-
ter das asas de uma borboleta podia causar um tornado, o voar de uma mosca
podia gerar um terramoto, o próprio respirar causaria uma avalanche. Assim
descrevem os matemáticos: uma pequena variação no lado esquerdo de uma
equação causa variação no lado direito. Ele queria telefonar à polícia para dizer
algo sobre a sua situação. Mas, que consequência teria sofrido? O melhor é estar
calado. O melhor é fugir e esquecer tudo. A quem poderia telefonar? Quem po-
dia tratar do assunto com a seriedade necessária? Não confiava em ninguém
para pedir conselhos.
Recebeu um telefonema enquanto cogitava acerca dos documentos que tinha
retirado do porta-luvas do veículo que tinha transportado Renato a Quebra-
Canela. Escutou silenciosamente o que a pessoa tinha a dizer. A sua voz era co-
mo um barítono suave:
– Senhor Diogo, poderia vir ao meu escritório amanhã cedo? Preciso de uma in-
terpretação nos documentos de Renato – acrescentou.
– Aquiles, eu sou jurista, não sou linguista!
– Não importa o que és. O nosso segredo é que conta aqui. Estou desesperado
e preciso de tua ajuda e dos teus conselhos!
– Seria melhor contactar uma pessoa com mais interesse e expediente no as-
sunto.
– Senhor Diogo, não estará um jurista interessado em assuntos criminais?
Parte II
XXVIII
De onde me veio esta ideia de escrever sobre uma pessoa que foi excluído de
entre os vivos há mais de 30 anos? De que matéria bruta surgiu a própria ideia,
esta luz que cai sobre as coisas como forma moldadora? De onde? Que forma
tomou ao atingir o meu cérebro? Mas sobretudo, que forma não tomou? Forma
de fotões? Forma de moléculas que se desprendem dos nós dos nervos e se es-
palham nas criptas misteriosas que constituem as ruelas do meu encéfalo? Não
sei dizer. Todavia, deve vir de algo misterioso que esbarra no vibrar do pensa-
mento activo, correndo até aos dedos calcinados que lhe dão vida numa página
de papel em branco.
Mas afinal o que é uma ideia? Um fenómeno transitório e efémero que escapa a
muita gente em momentos de reflexão. O que fica depois da ideia se ter evapo-
rado ou escapado à nossa atenção? Vazio, nada, zero? Ou fica empacotada no
cacho do silêncio até se cruzar com outras mentes? Ninguém fica com saudades
das ideias que se escapam. Ninguém está disposto a ficar com saudades de algo
transitório. É como se esta viesse revelar-se a nós como uma tentação. É a con-
dição humana que determina a captação das ideias e a forma como são usadas
para o bem ou para o mal da humanidade?
No dia em que completou 20 Outonos de ausência física de um homem do povo,
comecei a sentir a energia dos fotões a atravessar o meu corpo, a mexer com os
meus nervos, a trespassar o meu peito e a escorregar sobre este papel através
dos meus dedos, dando vida aos soluços de quem carrega na alma as dores do
mundo, as dores de todos aqueles que amam Renato Silos Cardoso.
Daí surgiu uma obra, um esforço tremendo da imaginação criadora, uma tentati-
va de aproximar a realidade ao modo como desapareceu, uma realidade escon-
dida no crivo secreto das pessoas de consciência anestesiada pela acção do me-
do, do interesse económico ou outros. Talvez político? Talvez social? Talvez pas-
sional?
Numa tarde de 2009, Djonzinho encontrava-se numa coordenada da terra a 73º
Norte e numa estação do ano em que o sol mal se vê. As nuvens altas escondiam
o sol que, timidamente, tentava espreitar, descendo com vagar para a linha do
horizonte nórdico. Dos casarios cintilavam luzes tremeluzentes à medida que a
réstia do sol se despedia do dia agonizante.
Djonzinho passou os olhos sobre os casarios que se preparavam para aguentar
as maçadas do inverno que teimosamente se mergulhava no tempo. Os seus
pensamentos dardejaram pelas ruas da pequena cidade e sentiu, momentanea-
mente, o calafrio da nostalgia e saudades da sua terra natal. Deu por si com um
nó na garganta e com um medo estranho a apertar-lhe o peito. Uma voz estra-
nha surgiu do seu íntimo com uma especial advertência: todo o cuidado é pouco
no que estás a pensar.
O ter demasiado cuidado é um dom que, muitas vezes, nos acarreta preocupa-
ções desnecessárias. Conduz, frequentemente, a comportamentos esquizofréni-
cos, caracterizados por uma cisão ou dissociação psíquica típica de uma mente
dividida. Isto leva-nos a tentar esquivarmo-nos de tamanha responsabilidade. O
esquizofrénico é, na maior parte das vezes, marginalizado. Ser ostracizado e re-
fugiar-se na sua própria consciência, é estar num estado mental igual ao que se
adquire quando se rouba, se executa um crime ou se participa numa tentativa de
algo deste género. Ter medo da própria liberdade é roubar a si mesmo o direito
de ser livre para pensar e para agir. O mundo, muitas vezes, parece-nos injusto,
isto é, nós os homens, os autores desta injustiça, somos incitados a pensar e a
agir de uma determinada maneira que promove e perpetua a iniquidade. A justi-
ça cala-se na sombra do medo. A injustiça triunfa onde este predomina. O medo
assombra de sobremaneira a mente humana. A mente adapta-se e tudo se torna
normal e permitido, no ciclo que cristaliza na vida diária do povo, este sentimen-
to perturbador.
Vinte anos depois, enquanto matutava e filosofava sobre o medo e os problemas
da vida, entrou uma abelha pela janela do meu quarto que pousou sobre o livro
que estava a ler. O livro era A Bala Mágica que matou Renato Cardoso.34Voltou-
se em direcção à janela e bateu as asas desesperadamente, tentando fugir. Para
34
A Bala Mágica que matou Renato Cardoso, de José Manuel Veiga, Setembro de 1994.
a frente e para trás zunindo e batendo as asas contra o vidro. Não tinha a míni-
ma ideia da prisão e da falta de liberdade atrás do vidro, pousando de novo so-
bre o livro. Já estava incomodado com o zunir das asas do insecto. Pus-me de pé
para evitar o embate. Ela já devia ter expelido alguns sinais (feromonas)35no in-
tento de pedir socorro. Através da janela podia ver o vaivém de pessoas a cami-
nho dos seus afazeres, a silhueta do campanário de uma igreja, uma planta ras-
tejante que cobria as paredes do vizinho, o teto das casas vizinhas, o cume de
um monte distante. O medo entrou em mim e estremeci por um instante.
Qual a razão deste medo? O que tenho feito? São perguntas que, imediatamen-
te, me surgiram na mente. Fiquei confuso por uns segundos. Comecei a escrever
sobre o assunto num pedaço de papel azul, algo sobre a liberdade e o medo es-
tava a invadir o meu espírito. Por que? Qual a razão de ter medo?
O zunir da abelha irritou-me. Para a frente e para trás, encarcerado, um pânico
total. Até que chegou o momento, em que, simpatizei com ela porque vi que
cada bater de asas era uma tentativa incansável para se libertar. Estava frustrada
por não poder libertar-se. Desespero total. A minha simpatia abriu a janela e
libertou-a. Desapareceu, instantaneamente, como fumo. Foi apenas uma abelha,
uma espécie de mosca grande. Identifiquei-me com ela. Tenho esta tendência
natural de me identificar com tudo que existe. Até com as pedras de uma calça-
da. Com os mais fracos. Com os pobres nas estradas do mundo. Com os trapos
pendurados nas cordas de secar roupas. Com as folhas que caiem no Outono da
vida. Com a vida que foi ceifada deste mundo antes que chegasse a hora. Injus-
tamente. É uma forma de ressonância da dor dos outros em mim.
Esta capacidade que tenho de sentir por outras pessoas, de sentir as suas emo-
ções, tal como sentimos as nossas, chama-se empatia e quanto sentimos empa-
tia, tais emoções fazem ressonância dentro de nós. Sinto intuitivamente os sen-
timentos dos outros, qual a sua força e, também, aquilo que os provocou. É co-
mo se conseguisse, literalmente, ler os sentimentos de uma pessoa como se fos-
se um livro.
Estava já farto do meu refúgio no medo. Medo de quê? Esta era outra pergunta
que me surgia frequentemente.
35
Hormonas ou proteínas segregadas pelas abelhas quando se sentem ameaçadas com o fim de
pedir ajuda.
Um silêncio longo. Um sítio perfeito para se refugiar. No silêncio das coisas. Por-
que é mais cómodo. Para a abelha, não foi e não é. Para mim, é. Para ti, não sei.
Medo de pessoas, de perseguições infundadas, de vinganças autorizadas e da
ignorância. Dos homens que pensam que são donos deste mundo e que gover-
nam a consciência dos outros. Um reflexo da consciência balbuciou-me que algu-
res no interstício do poder, há mãos invisíveis a trabalhar para perpetuar esse
medo, esse silêncio. Há mentes invisíveis algures a pensar por aqueles que recei-
am exprimir as suas vontades.
De quem tenho medo? Para quê o medo? São outras perguntas que talvez, tam-
bém, te surjam na mente. Por que é que temos medo da verdade? Porque é que
fere as nossas emoções? Porque é que dói? Não sei muito bem!
O tempo corre devagar quando se vive no medo, no silêncio, na dor, mas de-
pressa na alegria, num bom ambiente e na companhia dos anjos. Na dor e no
medo, o próprio tempo não avança. Anda a rodopiar à volta de si mesmo, à volta
do medo e à volta da dor. O tempo adquire uma qualidade imóvel e torna cada
minuto da nossa vida igual, cada estação é idêntica, sendo sempre caracterizada
por este castrador sentimento. Até mesmo o nosso pensamento acaba por es-
tagnar, por solidificar e congelar.
Peguei do meu Laptop depois da abelha ter desaparecido e encontrado a liber-
dade. Vasculhei as páginas da Internet para encontrar informações capazes de
me elucidar sobre o assunto e ajudar a compreender um pouco mais. Melhor
talvez. Notei nomes de pessoas conhecidas e não conhecidas. Gente entendida
no assunto. Jornais, revistas, publicações diversas, familiares e amigos. Confi-
dencialmente, escrevi cartas electrónicas e pedi ajuda e discrição. Muitos res-
ponderam, com medo. Outros não se mexeram. Nenhuma, mas nenhuma, das
respostas me esclareceu. O melhor é ficar como está. O melhor é calar-se. Man-
ter-se embrulhado no silêncio aterrador. O que estás à procura, homem? A per-
gunta que talvez te surja de novo na mente. Para alguns, uma investigação pro-
funda de um caso, é uma prova que há liberdade de acção, de expressão e de
pensamento. Para outros, ela tem uma carga negativa, de medo e de falta de
liberdade. Acho mais correto a primeira.
Gosto de estar sozinho. Às vezes não gosto. Fico com a ideia de que algo me per-
segue, algo que se encontra na escuridão que o medo cria, que a imaginação
dilata em proporções tremendas, principalmente, quando a escuridão tomba
sobre as coisas. Algo que me vigia de noite e de dia, algo invisível e esta vigia é
infindável. Muitas vezes, prefiro ficar no escuro, deixar a luz apagada e fechar as
persianas do mundo. Fecho, também, as persianas da mente. Porém, as do cora-
ção ficam escancaradas ao mundo. É mais confortável. Decerto mais cómodo.
Existem lobisomens? – pergunto, muitas vezes, a mim mesmo. Naquele dia, en-
cerrei-me no quarto escuro do meu dormitório com a cabeça entre as mãos a
pensar numa bala mágica que assassinou um grande homem. O que lhe terá
acontecido em Quebra-Canela há vinte anos? Comecei com a ousadia de quem
quer abrir as persianas da mente e deitar para fora o medo.
O que aconteceu? Outra pergunta que talvez te surja. Talvez. Ou nem por isso!
Talvez estejas psicoadaptado à situação. E o mundo fica a dever-nos um esclare-
cimento. E nós ficamos convencidos que assim é o mundo, assim são as coisas,
conformando-nos com elas e incorporando-as na nossa visão do mundo como
verdades absolutas, julgando não existir mais nada que justifique o amor que
devíamos ter para com os outros. Ou o dever de esclarecer ao mundo o que
aconteceu em Quebra-Canela no ano fatídico de 1989.
XXVIX
Aconteceu há 30 anos atrás e terminou como a maior parte dos crimes deste
género. Foi a 29 do mês de Setembro do ano de 1989, uma sexta-feira agoirada.
A verdadeira história do que aconteceu na praia de Quebra-Canela nunca foi
devidamente contada. Na mente de muita gente ficou a imagem icónica do au-
tor de Porton d´nós Ilha, cantando no alto Cutelo das nossas ilhas, olhando para
a frágil estrutura sobre a qual ainda hoje se encontra erigida a Administração
Pública, mirando o Artigo 4º da Constituição da Primeira República, ouvindo os
rumores vindos lá do Muro de Berlim, da gente batendo com marretas, pedindo
a liberdade. E não tardou que o Muro do Artigo 4º e o de Berlim fossem abaixo,
simbolizando o fim de uma era, uma era conturbada e turbulenta. Este foi, ver-
dadeiramente, o ano que mudou o mundo, marcando o fim da Guerra Fria e o
início de uma época de globalização e livre mercado.
Trinta anos depois, os amigos de Renato procuram desconstruir os mitos que
cercaram o acontecimento, à procura da verdadeira história por detrás das notí-
cias dos jornais, das versões oficiais, para mostrar os efeitos do assassinato nos
dias de hoje. Nesse ano, houve um fervilhar de acontecimentos que levaram à
queda, não só, do Artigo 4º, como também, ao colapso do império soviético, à
morte de Renato Cardoso, entre muitos outros casos. Os ideais comunistas não
souberam pactuar com as necessidades da sociedade de consumo e acabaram
por se suicidar ou ser devorados por ela.
Foi um ano de acontecimentos políticos que podemos sintetizar como se segue:
• A Cortina de Ferro caiu;
• O Protesto na Praça da Paz Celestial (Tian'an Men), mais conhecido como
Massacre da Praça da Paz Celestial, ou ainda, Massacre de 4 de Junho que
consistiu numa série de manifestações lideradas por estudantes na Repú-
blica Popular da China;
36
Com a devida permissão, publicado na Internet – os amigos de Renato Cardo-
so.africandar.blogspot.com/2009/07/renato-cardoso-e-os-seus-amigos.htlm
ção pública que acabáramos de traçar com um expert das N.U, Guido de We-
erd.37 Nunca me esqueço daquela manhã, do toque daquele telefone (eu ainda
deitada) e da voz do meu marido anunciando-me o acontecimento. Os meus so-
luços continuam vivos aqui no meu peito e lamento não poder dar a vida ao meu
amigo. Fiz um poema que nunca difundi porque não sou poetisa e, também, por-
que as vozes sonoras não pertencem a todos. Não interessa, fi-lo para ele.
Sei, também, que o Renato não pode estar feliz, pois ele tinha todo um projecto
de vida que não escondia e que fazia questão de anunciar: eu não pretendo mor-
rer, nem vou imigrar, a não ser que me dêem um tiro e eu não possa fazer nada...
foi o que ele dissera quando o técnico lhe disse que o país precisava dele para
defender o Projecto acabado de assinar...38 – disse.
O poema de que fala Celeste é o seguinte, escrito no dia 2 de Outubro de 1989,
que transcrevemos com a devida autorização da autora.39 Soa assim:
A ti meu amigo
A todo o momento
Esperei
Ver-te levantar daquele caixão
E dizeres:
-"Bzôte bá pudiab
Um ca morrê né nada"!
...Mas...nada!
Ali, naquele local
Onde foram deixar teu corpo
Tão escuro, tão escuro...
Adivinhei mais que "senti"
Terra caindo em cima daquele caixão
Esperei, acreditei,
Que me dissesses: Aqui estou!
E nada!!!
E pensei:
37
Ibidem.
38
Ibidem.
39
Ibidem.
Decepcionas-me deveras!
Porém, antes de deixar o local
Vi uma estrela, uma única
Lá bem alto no Céu
E compreendi o teu sinal.
Vi que ali estavas
Bem vivo ainda,
Brilhando, brilhando sempre.
Parti tranquila, limpei os olhos.
Este mundo não te merece
Esta coisa tão podre,
São cacos onde temos de continuar
Pagando as nossas dívidas...
Tu, meu amigo, brilhas em paz!
Tu, meu amigo, mereces pureza
Que tanto tentaste dar
E não souberam receber.
Tu, querido amigo,
Continuas vivo em tudo que deixaste
E até no que não deixaste.
Amigo meu, estrela nossa
Brilha! Brilha! Ilumina-nos!
E ensina-nos merecer
Esse caminho!
Até lá amigo, que saudades!!!
Quanta vontade de te falar e não poder!!!
Por um minuto sequer
Volta amigo, volta!!!
XXX
O meu pai dizia sempre que o mundo tem pé comprido. Não sabia o significado
da expressão, mas hoje compreendo-o melhor. Ai, se o mundo fosse mais justo!
Toda a observação do comportamento humano é pouca para iluminar a nossa
mente. De qualquer maneira, o meu pai tinha razão! Entretanto, a razão dele
não é a mesma que a minha! Mas concordo com ele.
Procurei por toda a parte, na psicologia de Jung, Freud, Kant e Spinoza, não en-
contrei qualquer coisa que me esclarecesse sobre o comportamento dos mais
achegados, amigos, inimigos e dos políticos quanto à morte do Renato. Os meus
pais ensinaram-me a arte de comover, de entrar na pele dos outros, de simpati-
zar com os mais humildes. Nené de Canquinha era amigo deles e vinha com con-
selhos que serviam para os filhos. António do Rosário, meu padrinho, era outro
cuja postura metia respeito, tanto na sua própria casa, como na dos outros. A
influência de amigos dos meus pais, serviu para me inculcar na mente o respeito
pelos outros, o valor da vida e a forma de vivê-la. Aconteceu, muitas vezes, ter
pensado e sonhado estudar a arqueologia do espírito para esgravatar e analisar
os cromossomas dos antepassados desses amigos para poder colmatar o vazio
existente entre eles e a nova geração que nem se importa com vida dos seus
melhores amigos. Parece que me adaptei a uma psicologia de mesa de cozinha.
Estou, possivelmente, muito embriagado e ocupado com o passado para evitar
pactuar com a realidade presente ou futura. Tento compreender a psicologia
moderna, mas não mergulho suficientemente a fundo para a entender. A psico-
logia, neste sentido, é como se fosse uma escavação arqueológica na mente co-
lectiva ou individual dessa gente. Não encontro a justificação suficiente do pen-
sar moderno. Será que é um pensar moderno? Ou um premeditado comporta-
mento abonado pelo silêncio que o medo impõe? Preciso de uma escavação
profunda na gruta da alma. Quanto mais interpreto a psicologia acima como
uma escavação na caverna da alma, quando mais leio Freud e Jung, menos com-
preendo a mim mesmo. Fico como um peixe que não tem a mínima ideia de que
vive num aquário. Ou, talvez, eu não queira compreender. Terei, certamente, as
minhas razões. Não tenho os pré-requisitos para ser um arqueólogo da alma e
nem, tampouco, um sociólogo de gema.
O meu pai chamava-me Djonzinho. Ele já não vive. Para ele, o nome de casa era
o nome familiar e amoroso. É o nome morábi de muita gente e eu merecia tal
nome, o nome que me dava o rótulo de homem que é amado, que virá a amar o
povo e que por ele, também, é amado. O nome de casa, em Cabo Verde, expri-
me a familiaridade, a amizade, a capacidade de adesão sentimental a problemas
e situações alheias e de sintonia afectiva com o seu semelhante. O meu pai tinha
um convívio amigo e familiar com as pessoas e até com as coisas, o que lhe facili-
tava uma vontade irreprimível de diálogo.
Umas vezes, chamavam-me de Djonzinho Branco e outras de Brancão ou B.
Branco. O B de burro. Os nomes de casa tornaram-se enfadonhos e até margina-
lizantes. Os amigos e colegas chamavam-me de B. Branco quando a situação lhes
era propícia. Não gostava de ser tratado assim. A palavra branco tornou-se um
conceito detestável para mim. Preferia, então, refugiar-me na solidão, o que
veio justificar a minha necessidade de ter sempre um pouco de tempo sozinho
para reflexão. É assim que todos nós somos influenciados pelo nosso passado.
Algo, aparentemente, sem importância pode marcar-nos como um carimbo in-
delével para toda a vida, pelo que, nada deve ser menosprezado.
Eu lembro-me das palavras que ecoavam nos becos como um barítono. Corria
atrás das pessoas que me provocavam com nacos de pedra na mão. Depois,
crescendo, adaptei-me ao nome e já ninguém se importa em usá-lo. Caiu em
desuso. Djonzinho voltou a ser, somente, Djonzinho. Os amigos voltaram a res-
peitá-lo, a pedir conselhos, a colaborar com ele e até a convidá-lo para palestrar
nas festas. Renasceu, assim, a capacidade de simpatizar com os outros, de valo-
rizar a camaradagem e adocicar os momentos com toques de violão e canções
improvisadas.
Muitos anos depois, acorreu à minha mente um monte de coisas da meninice,
isto é, do passado. Uma das ocorrências que já se encontra nos arquivos sub-
conscientes é o caso de Quebra-Canela. Estendeu-se, então, na minha consciên-
cia como um pano de retalhos onde cada nesga reflecte as pegadas, as lembran-
ças das tardes corriqueiras, o espairecer no ruído das ondas, a leitura dos livros
liceais, o decorar das palavras francesas, o correr dos colegas em direcção às
40
Em sentido inverso da estalactite
XXXI
A primeira audiência
– Então, por favor senhor doutor, não fale do que não sabe. Só sabe o que o seu
cliente lhe contou.
A juíza anotou qualquer coisa num caderno e depois voltou-se para os jurados e
para os magistrados, avisando-os acerca do impacto da leitura dos jornais e das
notícias na decisão final de uma audiência ou de um julgamento:
– É verdade. Mas não se esqueça do princípio da presunção da inocência, isto é,
o princípio da não-culpabilidade, no qual que toda a gente é inocente até que se
prove o contrário. É um princípio jurídico de ordem constitucional, aplicado ao
direito penal, que estabelece o estado de inocência como regra em relação ao
acusado da prática de infracção penal. Está previsto expressamente na Constitui-
ção da nossa jovem nação, regras que preceituam que "ninguém será considera-
do culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Isso signi-
fica dizer que, somente após a conclusão do processo em que se demonstre a
culpabilidade do réu, é que o Estado poderá aplicar uma pena ou sanção ao indi-
víduo condenado. Devo aqui relembrar ao senhor doutor que não temos, neste
momento, uma ré à nossa frente! Só temos um réu.
– Muito bem senhor advogado, tem muita razão neste aspecto. Peço perdão
por ter sido bastante precipitado e usado palavras menos corretas nesta ocasião,
mas uma pessoa que seja convocada a testemunhar e mentir durante uma audi-
ência, pode ser posta na prisão por falso testemunho! O que também se encon-
tra, explicitamente, na Constituição da nossa República. Disse que as conclusões
lógicas apontam para uma situação penosa. Não significa, necessariamente, que
as conclusões sejam verdadeiras, mas apontam... caso continue a esconder algo
ou a mentir perante este Tribunal.
Estava sentado a uns metros da mesa da acusação quando vi a expressão incó-
moda no rosto do acusador. O representante da acusação não pôde ficar calado
perante a situação embaraçosa em que se colocou, virando-se então, outra vez
para a testemunha.
– Senhora testemunha, tinha relações passionais com o malogrado político…
A testemunha ficou irritada pela pergunta e reagiu imediatamente sem deixar
que a acusação a completasse.
– Excelência, deixe-me dizer uma coisa, se tinha ou não isto faz parte da minha
vida privada e não pertence à esfera pública. Não quero falar sobre o assunto, se
me é permitido.
– Não me parece que seja muito privado já que se trata de uma relação com
uma pessoa pública – contrapôs o advogado da defesa. – Mas, é um direito que
lhe assiste – acrescentou.
– A minha amizade era puramente platónica, se os senhores querem saber.
A juíza pediu contenção nas palavras e tentou direccionar o tribunal para o caso
em apreço:
– Comecemos pelas alegações dos advogados da acusação. Estas alegações
não podem ser tidas como provas. Servem para a defesa e a acusação dizerem
ao júri o que esperam que as provas demostrem. Os magistrados irão ouvir este
resumo durante a audiência e julgamento. Caberá ao conselho, apresentar pos-
teriormente as provas e as testemunhas a partir das quais o júri fará as suas de-
liberações finais.
– Certo, meritíssima. As provas são importantíssimas. Vamos então a elas.
– De que provas está o senhor a falar?
O advogado da acusação levantou-se do lugar onde se encontrava, avançou para
a tribuna que se situava entre a mesa da defesa e a bancada dos jurados.
– Ora bem, passemos adiante, a senhora possui uma arma, uma pistola, um re-
vólver?
– Arma, como? O senhor está a pensar que fui eu que atirei contra o meu ami-
go? Nunca tive uma – asseverou a testemunha – e nem tenciono adquirir ne-
nhuma.
– Conhece a senhora um homem de nome, Nero Bettencourt?
– Nunca ouvi este nome!
– Mas sabia que foi encontrado um buraco feito por uma bala de calibre 6,35
no peito do seu amigo de passeio? – inquiriu o advogado de acusação.
– Disto sei muito bem por que foi na minha presença que tudo aconteceu, se foi
um revólver de tal calibre não sei. Sei que a partir daquele momento, não me
recordo de nada nem vos posso descrever o mais próximo do real o que aconte-
ceu – disse com uma calma impressionante.
– A única coisa que queremos aqui é descobrir a verdade, senhora testemunha.
Peço o favor de nos descrever, com todo o pormenor, o que se passou nesse dia?
– Pediu.
A depoente pensou rapidamente se recusaria ou não prestar declarações. Pres-
tando declarações dava a impressão de que não tinha nada a temer. Não pros-
seguindo a diligência, ficaria sem saber o que o representante da acusação tinha
contra si. Então, resolveu a prestar declarações. Olhou, demoradamente, para as
anotações que tinha à sua frente. Suspirou e bufou.
– É evidente que quero expor com todo o pormenor tudo o que eu recordo.
Quem não deve não teme. Fazendo isto, estou também, a prestar um serviço em
prol do meu amigo falecido.
– A senhora disse-nos que no momento do acontecimento se sentiu, também,
ameaçada e perseguida pelo homem alto, preto e forte, correndo em direcção às
ondas para evitar ser apanhada. Como se explica que o homem alto, preto e for-
te não tenha disparado um tiro contra si para evitar que alguém, mais tarde,
venha testemunhar contra ele? Não teria a senhora um contracto com o assassi-
no?
O advogado de defesa remexeu-se no seu assento, preocupado.
– Protesto, meritíssima. O colega está a insinuar algo aqui e a direccionar a tes-
temunha, levando a tirar conclusões que não lhe compete.
O advogado da acusação retirou a questão antes que a juíza aceitasse a objec-
ção. Não fazia sentido pô-la do lado da defesa diante do júri.
– Não sei explicar. A mim também me ocorreu essa ideia! Eu fiquei desorienta-
da a ponto de desmaiar. Não lhe consigo explicar mais do que isto, sua excelên-
cia – respondeu a testemunha.
– Muito bem. Explique-me como é que tendo desmaiado e estando um pouco
desorientada, conseguiu aperceber-se da iminência do perigo de modo a correr e
fugir de uma morte certa com um homem armado no seu encalço, tendo este,
depois, desistido da perseguição e desaparecido como fumo sem sequer um fe-
rimento que comprove tal perseguição? – Interrogou o acusador.
– Não sei explicar. Foi uma sorte. Deve ser o instinto de sobrevivência que
acordou em mim. Mais não lhe sei explicar. Estava confusa e queria, certamente,
safar-me dele.
A testemunha principal pareceu reflectir sobre as questões do representante da
acusação e viu que este tinha estabelecido uma rede incriminatória da qual ela
XXXII
Muito antes da juíza chamar o júri para entrar, o advogado de defesa do réu,
levantou-se do seu assento, aproximou-se da tribuna e pediu ao tribunal um
veredicto no sentido da absolvição do seu cliente. Disse que o Estado falhara na
sua obrigação de apresentar provas capazes de atingir o critério para além da
dúvida razoável. Badiu Boxero já se encontrava a caminho da sala de audiência
quando a juíza levantou a mão para o advogado de defesa e pediu que o guarda
não deixasse entrar o réu até que ela sinalizasse com a mão.
Chamou a acusação e a defesa para uma consulta e depois mandou-os sentar.
- O tribunal considera que os indícios apresentados pela acusação ainda não
são suficientes para a deliberação do júri. Senhor advogado de acusação, está
preparado para o trabalho em curso?
- Estou, excelência.
- Muito bem, chamamos então os jurados e depois o réu.
Ela fez um sinal ao guarda para que mandasse entrar os que estavam à espera
no corredor.
– O senhor tem algum depoimento de abertura, senhor advogado de defesa?
– Tenho, excelência
– Muito bem, vou passar-lhe a palavra em seguida.
Os jurados entraram e ocuparam os seus respectivos lugares. Depois de dar as
boas–vindas aos jurados, a juíza entregou a sessão ao advogado de defesa.
– Senhoras e senhores, membros do júri, muito bom dia. Vamos começar uma
nova fase do julgamento do caso Renato Cardoso, em que trouxeram ao banco
deste Tribunal um suposto réu que encontraram nas proximidades da praia de
Quebra Canela, depois de muito tempo passado, para com ele justificar a morte
de um grande político. Entramos na fase de defesa e vamos contar-vos o nosso
lado para contradizer o que a acusação vos ofereceu nos últimos meses. Espero
que oiçam com muita atenção os argumentos da defesa e que vos permita ver o
cenário global do que se terá passado na praia de Quebra Canela a 29 Setembro
de 1989. Se ouvirem e observarem bem e com atenção, verão a verdade emergir.
Este caso – continuou o magistrado – trata de uma coisa: dos segredos mais obs-
curos no sistema jurídico cabo-verdiano de onde só se vislumbra um ténue vestí-
gio pela apresentação da acusação. Hoje, vão conhecer a verdade crua e nua:
que o Badiu Boxero é, aqui e hoje, a verdadeira vítima que vai servir de bode ex-
piatório durante as audiências.
A juíza compreendeu que a defesa chegou a um ponto parágrafo e olhou para a
mesa de acusação. O advogado de acusação levantou o olhou ao seu redor e
ajeitou a sua gravata.
– Meritíssima. Este julgamento é sobre um monstro que assassinou um homem
do povo e deixou um vazio na nossa sociedade. Este julgamento é, também, so-
bre a honra de uma família e de uma nação inteira. Um monstro que orquestrou
um plano para matar, esconder o crime e depois apontar o dedo a uma pessoa
inocente – a minha cliente.
Ao proferir a última frase apontou para Badiu Boxero num jeito acusatório.
– Badiu Boxero, importa-se de se levantar? – Pediu o acusador.
O arguido pôs-se de pé, com a face virada para os jurados com um sorriso ino-
cente atravessado na cara, os dentes saltitados na boca, o corpo delgado e cur-
vado e olhos de carneiro mal morto a inspeccionar fixamente os jurados.
O advogado de defesa agitou a mão do seu assento e pôs-se de pé.
– Meritíssima, este homem é inocente. Está apenas a servir de bode expiatório.
É um inocente apanhado num plano orquestrado para esconder um dos piores
crimes de sempre desta moderna nação.
O defendente sentou-se enquanto a juíza anotava algumas palavras no seu ca-
derno de notas. Ouvia-se um burburinho na sala que depois acalmou.
A juíza virou-se para a mesa da acusação e fez um sinal ao advogado ali sentado
para prosseguir com a sua inquirição.
– Boxero, no dia em que foste preso nas proximidades de Quebra Canela, o que
é que foste lá fazer?
Badiu Boxero coçou a cabeça e olhou para cima com os seus olhos de carneiro
mal morto. Pôs o dedo indicador sobre a têmpora e olhou para o lado direito
onde não se encontrava ninguém.
– Não me lembro bem!
– Mas o senhor lembra-se dos polícias que o arrastaram para dentro do veículo
naquele dia?
– Ah, isso sim. Aquele estupor que me bateu...
– Porque achas que te bateu?
– Eu perguntei-lhe se foi ele que me mandou um bilhete para vir até cá comprar
crack.
Puxou do bolso das calças e tirou um pedaço de papel amarrotado com algo es-
crito. Estendeu o pedaço de papel ao seu interlocutor. Este leu o bilhete e entre-
gou-o à juíza. Depois de um momento de silêncio voltou às perguntas.
– Disseram-te porque te bateram?
– Não. Acho que deve ser por causa da pergunta.
– Que pergunta foi essa?
– Sobre a compra de crack, droga.
– O que significa compra de crack!
– Significa, compra de droga.
– E depois, o que fizeram contigo?
– Levaram-me para a esquadra da polícia e continuaram a bater-me sem dizer
por que me estavam a castigar. Mais tarde, disseram-me que eu tinha assassina-
do um homem na praia de Quebra Canela há uns meses.
– É o que fizeste?
– O quê? Eu nem sei se foi morto um homem naquela praia. Sou toxicodepen-
dente, doutor, e uso muitas drogas, incluindo álcool. Mas matar alguém, não... A
única coisa de que me lembro bem é de um miúdo me ter levado um bilhetinho
num dia em que eu estava a descansar debaixo do Pontão da praia Gamboa.
XXXIII
A audiência final
– Estamos aqui, minhas senhoras e meus senhores, para continuar a nossa au-
diência – dizia. Faremos o nosso melhor possível, com as informações que temos
e outras que vamos apurar no decorrer desta audiência, para trazer a limpo a
verdade dos factos. Sim, a verdade é a nossa razão principal de aqui estar. Temos
um réu à nossa frente e várias testemunhas. Vamos ouvir algumas, embora a
nossa atenção até agora, tenha sido concentrada no réu. Mas hoje, a testemu-
nha principal vai ser de novo ouvida durante esta audiência. Ela é a testemunha
por excelência e, portanto, para esclarecimento de todos, não é considerada nes-
te momento, arguida ou ré.
Vamos, portanto, dar continuação ao processo de julgamento do caso Renato
Cardoso. De acordo com o que apuramos das investigações e das conclusões ti-
radas da sua relação com o malogrado, a acompanhante é, assim como muitas
outras pessoas aqui presentes, uma testemunha muito importante para a resolu-
ção do caso. Assim, embora até este momento, ninguém saiba indicar quem foi o
assassino, uma pessoa que presenciou os acontecimentos, deveria saber identifi-
cá-lo. Se foi sua coadjuvante; se viu o homicida; se conhece os motivos do assas-
sino; se reconhece no réu, aqui sentado à nossa frente, algum sinal que se coa-
dune com a sua observação no local do assassinato que nos elucide de tudo o
que seja possível para aclarar a verdade, etc. Estamos aqui, precisamente, para
apurar e constatar estes factos – explicou a juíza.
O defendente levantou a mão.
– Excelência, a minha cliente não tem a ver com a morte do malogrado, apesar
da sua boa relação com o finado – disse o advogado da acompanhante. – Para
dizer a verdade ela não sabe neste momento ao certo quem o matou. Está cheia
de dúvidas. Sabe que houve confrontos perigosos em que ela também esteve em
perigo e que a estatura do réu coincide com a do seu perseguidor. Além disso,
temos um suspeito à mão que deve ser julgado antes de mais nada – disse.
– A acompanhante estava com Renato, na praia de Quebra-Canela, na tarde e
no momento em que foi atingido pela bala mortal, como se explica o facto de
não saber de nada quanto à morte do malogrado? O senso comum interroga
constantemente: como é possível não saber? Como? Como é possível que seja de
outra forma? Não estou a julgá-la. Estou a pensar alto.
– Excelência, ela estava com ele e todo o mundo o sabe – entremeteu o defen-
sor.
Portanto, agradecemos os vossos esforços para nos contar tudo, o mais minucio-
samente que puderem, começando por nos dizer de que rumores fala o defensor
– inquiriu o Tribunal.
– Bem, segundo os rumores de que, por ter sido a antiga namorada, em quem
tinha muita confiança, era fácil criar uma situação semelhante a que foi criada
nos meios de comunicação de massas. O facto de o marido ter aconselhado a
esposa a não manter qualquer relação com Renato, induz em interpretações er-
radas que os meios de comunicação de massas do país têm explorado a este res-
peito. Todas estas questões são afastadas quando temos um arguido. Pergunta-
mos, portanto, por que é que não se faz justiça já que temos um suspeito no ca-
so? – Questionou de novo o defensor.
– Vamos colher mais informações antes de fazer qualquer juízo de valor acerca
do arguido. Contudo, gostaríamos de saber como descreve, a sua cliente, os
momentos à volta do ataque – interveio de novo o Ministério Público.
A acompanhante saltou do seu lugar, pondo-se de pé e, sem pedir autorização
ao seu advogado, abriu-se para com os jurados:
– Os momentos em que estive com ele e que precederam ao ataque, foram ex-
traordinários. Mas os que se seguiram depois, foram de confusão e pânico. Assis-
tir a uma situação tão confusa que envolveu um amigo que me era tão caro, sem
ter a possibilidade de o defender, era e continua a ser uma grande tristeza.
A juíza advertiu a todos que não se pode falar directamente aos jurados.
– O que nos pode dizer mais sobre a escolha do local do vosso encontro? – In-
quiriu o lado da acusação?
O defensor pediu à acompanhante para pronunciar algum parecer sobre a esco-
lha do local, mas para fazê-lo resumidamente.
– Bem, o Renato e eu tínhamos o costume de, nas vezes que nos encontráva-
mos, fazer uma proposta sobre o local de encontro e Quebra-Canela é um dos
lugares preferidos. Alguns dias antes, porém, reunimo-nos um pouco mais tarde,
dado que ele tinha um encontro importante, marcado com o Presidente da Re-
pública e tinha que se preparar. No último encontro, combinámos entre nós o
lugar habitual, mas eu preferi, dessa vez, ir buscá-lo de carro e fomos para Que-
bra-Canela.
alguém. Embora prazeroso para quem minta, não o é para aquele que é vítima
da mentira. Mentir, neste caso, é algo imoral. Imoral principalmente quando a
mentira é aplicada a uma situação de homicídio. Falso testemunho pode tramitar
em prisão! – Interveio a acusação.
A equipa de acusação ficou ansiosa em ouvir mais alguma coisa do MP, mas con-
tentou-se com o que foi pronunciado.
– Que prazer tem a minha cliente quando se sabe que ela é a maior amiga do
malogrado? Quando a sua própria vida se encontrava no fio de uma espada? Ou
na boca de um revólver? O Tribunal está a tratá-la como masoquista quando dá
a impressão de que ela sente prazer em mentir, castigar e matar numa situação
destas?
A juíza interveio dizendo que o tribunal está apenas a levantar hipóteses para
servir de base para o julgamento.
– Não estamos sequer a pensar em actos masoquistas, nem de suspeitas. Es-
tamos apenas a analisar as possibilidades de existência de indícios próximos e
distantes, no caso de se tratar de um crime de honra. Este tipo de crime designa
actos de extrema violência, geralmente homicídio, perpetrados por membros de
uma família, geralmente contra um indivíduo do mesmo núcleo familiar, pelo
facto de considerarem a sua conduta imoral e nociva para a honra da família.
Neste caso, é uma mulher que está em apreço, uma amiga íntima, fenómeno não
muito raro na nossa sociedade. Os motivos pelos quais este crime é observável
hodiernamente, são diversos: recusa da mulher em aceitar um casamento impos-
to pela família; ineficiência na esfera doméstica; pretensão de divórcio; adultério
ou o facto de ter sido vítima de violência sexual; ciúmes; quando os homens ar-
ranjam 2-3 mulheres e a esposa vai contra esse comportamento, etc. Cada um
destes factores é considerado um atentado à honra familiar e o modo privilegia-
do de restabelecê-la é eliminar o membro que a denegriu. Repugna até os mais
insensíveis, mas para muitos, parece ser a solução mais apropriada. Se ela não
casar comigo, ninguém vai tê-la, se ela não me quer, ninguém a vai querer. Ela
foi criada só para mim, se não serve para mim, não vai servir para mais ninguém,
e assim por diante. As palavras da acompanhante podem ser doces como mel e,
ao mesmo tempo, amargas como fel, senhor defensor. Os indícios distantes mor-
dem, penetram e devoram a consciência nacional, atingem e explodem o coração
da família do malogrado. Queremos que nos forneça informação que nos permi-
ta condenar a pessoa certa.
vos posso descrever o que sinto porque não encontro palavras adequadas, pro-
vavelmente não hei de encontrá-las em lado nenhum. Devem estar guardadas no
meu íntimo, num lugar que nem eu sei o código de entrada. Se têm uma justiça a
fazer, há que acalmar ideias acusatórias contra mim, voltar à realidade e agir no
sentido de não mais perder tempo e conduzir uma investigação mais aprofunda-
da, agora com mais força de raciocínio e sentido de responsabilidade. Sabem,
senhores, os tesouros desta vida são as insignificâncias que nos atropelam todos
os dias e teimamos em não ver. As inquirições no lugar do tiroteio não são uma
dessas insignificâncias, antes pelo contrário. Do nosso encontro resultaria, cer-
tamente, algo de muito útil para esta Nação. Mas infelizmente, não tivemos essa
oportunidade. Agora é o momento de cuidar dos valores que incutiu em nós, re-
gar a sua alma com compreensão de um sábio, alimentá-la com confiança, dei-
xar florir nela a coragem, com a paciência de Job e colher o fruto da sua sabedo-
ria, do seu esforço e do seu trabalho para que se multipliquem em esforços con-
tagiantes.
O suposto réu tirou a cara do chão e reparou que todos tinham os olhos prega-
dos na acompanhante. A juíza ficou impaciente depois de ter ouvido o longo
discurso. Virou-se para o representante do MP e não disse nada. Depois o advo-
gado de acusação pediu a palavra para um comentário.
– Como inspira piedade, minha senhora! Que quer obter deste discurso quando
os pratos da balança pesam a seu desfavor, isto é, contra si? Quando a tríplice
encruzilhada, os olhos do mundo, o seu encontro e as suas relações com o malo-
grado, apontam para si como a única testemunha credível! A senhora não quer
colaborar e está a comportar-se como uma vítima em todas as suas interven-
ções. Até agora a senhora é considerada testemunha e declarante. Mas há algo
não dito até agora. Se não foi dito é porque alguém está a proteger outros. Está
com medo da verdade. Parece-nos, que o que pede só Deus é capaz de conceder
– disse.
– Neste caso alcançarão o que desejais. Culpar-me por um crime que não co-
meti. Isto é ver a Justiça cometer assassínio – acrescentou a acompanhante.
– Não nos agrada dizer coisas sem sentido e o que não pensamos. Bem sabe
que o seu discurso não lhe assegura a felicidade na vida e nem lhe garante uma
liberdade imediata.
– Oh, meu Deus! Até quando a figura feminina continuará a ser vítima das
mais inimagináveis e hediondas injustiças?
que ocorreu o assassinato. Mantenho a minha opinião, ela sabe quem foi o as-
sassino, pensou.
Virou-se para Fátima e questionou o adiamento ou o arquivo do processo. Será
que tudo isto fica enterrado na história das nossas ilhas, na subconsciência do
nosso povo, no silêncio caprichoso dos nossos governantes e no medo colectivo
da nossa gente? Como isso é possível? O que pensar do período de tempo em
que a acompanhante estaria a correr para evitar que o assaltante a apanhasse,
sem lhe ocorrer o perigo ou a ideia de ele ter na mão um revólver que poderia
utilizar para debelar a única testemunha do acontecimento! Na linha deste raci-
ocínio, acrescenta Marta, houve provavelmente, uma espécie de colaboração a
alto nível ou uma outra a baixo nível, ou ambas as formas, arregimentada pela
própria acompanhante e pelos seus verdugos. Se, por um lado, ela não estivesse
directamente envolvida na morte, por outro, deveria saber ou pelo menos des-
confiar e descrever a situação com mais pormenores do que tem feito para se
defender melhor do que tinha feito até então. Os arranhões, a roupa molhada,
as corridas e defesas, o perseguidor, os pedidos de ajuda e o caminho que o pro-
cesso tomou, levam-nos a crer que há muitos desvios do normal, da realidade.
Qualquer um diz: ela é a culpada, meta-a no calabouço. Mas vamos dar-lhe o
benefício da dúvida, por que não possuímos a arte de adivinhar e isto é bom
para ela.41
41
Esta audiência foi inspirada numa obra clássica – Édipo – de Sófocles que se encontra no –
http://www.dominiopublico.gov.br/
XXXIV
Nos fins dos anos 80 e começo dos anos 90 houve, um baralhar de religiões no
pequeno espaço geográfico cabo-verdiano. O que mais se destaca aqui é um
pequeno agrupamento de aderentes a um deus antigo do tempo da Babilónia.
Nunca se ouvia falar de tal deus nas nossas ilhas. Era o deus dos assírios. Esse
deus era adorado por um grupo de cabo-verdianos. Alguns juntaram-se ao grupo
pela atracção e por afinidade do nome Pazuzu. Aquiles liderava o grupo que,
pouco a pouco, se tornou uma comunidade de 8-10 pessoas. Era um ateu ferre-
nho, aliás, era um agnóstico como preferiam alguns chamá-lo. Pazuzu era tanto
o deus dos assírios como o dos babilónios. Era o deus mais venerável desses po-
vos durante os primeiros milénios antes de Cristo. Para os que tiveram a sorte de
visitar o Museu de Louvre, como Aquiles, devem ter já travado conhecimento
com o deus mitológico dos assírios e dos babilónios.
Como esse deus teve impasse no país, não se sabe e as influências babilónicas
não têm precedentes na nossa terra. Pazuzu era o rei dos demónios e dos ven-
tos, filho do deus Hanbi, sendo este um deus cruel e maldoso, senhor de todos
os espíritos malignos que povoam a terra ou o inferno. O filho saiu o pai, isto é,
Pazuzu não poderia ter saído muito diferente do pai. Representava também, o
vento de sudeste, transportador da tempestade, da carência e da seca. E como a
seca é um fenómeno periódico em Cabo Verde, os aderentes deviam ter sido
influenciados por um tal fenómeno.
Este deus é normalmente ilustrado com uma combinação de vários animais e
algumas partes do corpo humano. Por exemplo, cabeça do leão ou do cão, de
falcão, pares de azas, com rabo de escorpião e um pénis serpenteado, com uma
das mãos apontada para o céu e a esquerda para baixo, indicando o céu e o in-
ferno, respectivamente.
A veneração a esse deus tem muito a ver com a onda de profanação da Igreja
Católica na altura e deve-se à coincidência que têm os acontecimentos climáti-
cos no nosso país com o que o deus Pazuzu representa. O vento de sudeste traz
a seca e a fome durante a estação seca, a miséria e gafanhotos durante a esta-
ção das chuvas. Na falta de um Deus dos cristãos que os protegesse, descobri-
ram um deus do satanás que coincidiu com o Pazuzu, por este os satisfazer me-
lhor na altura.
Dois ventos que sopravam alienadamente de direcções diferentes. O mesmo
deus era associado ao vento frio de nordeste e representava uma força que
combatia o poder dos deuses ruins, como o seu odiado inimigo Lamashtu. Este
era um demónio feminino que ameaçava as mulheres quando estavam a dar à
luz. Era um deus que causava desgraça às mães e às crianças durante o parto
porque adorava beber o sangue dos recém-nascidos. Apesar de Pazuzu possuir
um espírito mau, ele exorcizava outros espíritos maus, protegendo assim, os
homens das pragas e infortúnios causados por outros deuses numa forma con-
correncial. Portanto, Pazuzu, era, ao mesmo tempo, um antagonista dos demó-
nios e um ajudante dos que estão a ser alvo de outros demónios. Era oportunista
e hipócrita.
Segundo Aquiles e seus amigos, Nero estava a ter uma ajuda especial do deus
Pazuzu, protegendo Judith e Daniel e todos os seus colaboradores. A palavra
Pazuzu significa, nalgumas das ilhas de Sotavento, o ar ou sopro que sai do ânus
sem fazer ruído (um peido silencioso). É muito difícil identificar o dono de um
pazuzu deixado no meio de muita gente. O “criminoso” fica livre porque tanto
um como o outro pode largar um pazuzu no meio de camaradas
sem que alguém identifique a origem. Nero estava a ser possuí-
do pelo Pazuzu, o espírito mau, que o livra de todos os “perigos”
que a justiça representa. A morte de Renato foi um grande
pazuzu espalhado no meio social cabo-verdiano. O seu dono
ainda está por descobrir.
Fátima conhecia muitos dos membros da igreja satânica e sabia
algo do que se passava lá dentro. Já tinha dado muitos passos para esclarecer
sobre a morte de Paín, mas sem resultado. Estariam os membros dessa igreja
envolvidos na morte do amigo e, ao mesmo tempo, na onda de profanações da
Igreja Católica? Os pensamentos dela decorreram sobre a sanguinária morte,
sobre os problemas que se situam no âmago social e não encontrava um remé-
dio universal para os resolver, porque não havia liberdade de expressão naquele
tempo. Ela, não gosta de ver sangue a correr e só a ideia de um tiro que faz jor-
rar sangue dum amigo a faz pensar no sangue a esguichar na sua cara como uma
língua de fogo. O povo da Babilónia considerava o sangue como o espírito sagra-
do. O próprio Sócrates asseverava que o segredo da vida se encontrava no san-
gue e que o corpo humano era principalmente constituído pelo sangue, junta-
mente com alguns outros elementos como a água, sal e bílis. Se o sangue fosse
envenenado ou afectado por alguma doença, o corpo humano morreria com
isso. Fátima não pôde aguentar a ideia de viver uma vida inteira sem ter uma
resposta convincente sobre a morte dum amigo leal, nem lenitivo para a sua dor.
A sua mãe ensinara-lhe que a justiça é um conceito feminino e que a feminidade
tem muita contribuição a dar na sociedade. Assim resolveu agir de maneira dife-
rente.
– Escrevi uma carta ao senhor Presidente da República, na altura, pedindo es-
clarecimento sobre o tipo de conversa que teve com o nosso amigo comum. Não
para lhe pedir satisfações, mas para podermos chegar mais perto das causas do
assassinato. Nunca tive uma resposta, e nem sei se a carta chegou ao seu destino
ou dobrou a esquina dos Correios. Se bem que era de esperar. Tinha enviado uma
cópia aos meios da comunicação da capital e nem um fumo de lá saiu – disse
Fátima muito preocupada.
– Não era de esperar mais. Também falei com o chefe da redacção do maior
jornal do país. Sabes o que ele me disse? Que estava a perder o meu tempo! Pe-
diu-me para contactar a acompanhante e pedir explicação à polícia que investi-
gou o caso – queixou Marta.
Fátima e Marta entreolharam-se. Ficou uma impressão palpável no ar que dava a
sensação de que houve uma conspiração naquela calapitcha42 toda. As duas co-
mentaram algumas passagens durante o julgamento, principalmente quando
alguém disse que receava que a acompanhante, segundo uns zunzuns, possivel-
mente, fazia todo o possível para esconder alguma verdade. Portanto, fugir da
verdade dos factos e, ao mesmo tempo, ficar livre de futuras investigações. As
duas amigas andavam com a cabeça cheia de dúvidas. A dúvida é, às vezes, uma
chatice, mas outras vezes, elas podem ser úteis. Depois do almoço no restauran-
te, as duas foram passear juntas. À tardinha, estavam de volta ao apartamento
da Marta, tentando ajustar-se ao que lhes acontecera durante a discussão do
dia. Elas, sentiam-se como almas perdidas e uma sugestão da Fátima para inves-
42
Atrapalhada, mistura de muitas coisas.
bemos que Aquiles dirigia a congregação. Sabemos, também, que Aquiles era a
pessoa chave na coordenação de tudo o que se relacionava com a morte do nos-
so amigo.
– Esta é, então, a lista provisória das baixas que temos tido. Entre os envolvi-
dos, encontram-se os seguintes: Renato, Diogo, Sombra, Penumbra, etc. São,
com excepção de Renato, todos satanistas, segundo a lista dos membros. O que
não se compreende é porque os satanistas liquidam satanistas – queixou Marta.
- É como nos casos que envolvem narcotraficantes. Qualquer despiste de um
membro activo, acaba com a eliminação do mesmo.
A veneração de Satanás era um fenómeno muito recente na sociedade cabo-
verdiana. Arranjavam missa negra em que os rituais e símbolos de valor cristão
eram menosprezados e distorcidos. Matavam fetos, queimavam igrejas e parti-
cipavam em orgias sexuais, simplesmente para contradizer os valores cristãos.
Um satanista é por definição um indivíduo que acredita em Satanás como único
guia existencial. É mais uma filosofia do que uma religião. O lema principal de
um satanista é: fazer como quiser. O individualismo, o materialismo e hedonis-
mo são dominadores comuns dos satanistas. Hedonismo é uma palavra grega
derivada de hedoné que significa prazer, e é um antigo sistema filosófico que
considera o prazer como único fim da vida. Por outras palavras, uma doutrina
que considera que o prazer individual e imediato é o único bem possível, princí-
pio e fim da vida moral. Portanto, em primeiro lugar, cultivam o ego e o indivi-
dualismo. O cristão ama o seu próximo como a si mesmo, mas o satanista que é
individualista, ama a si mesmo acima de tudo.
– Marta, minha querida amiga. Cada dia que passa e a cada discussão que te-
mos, surgem coisas novas. É um passo de cada vez, um passo seguro na direcção
certa. Isto é uma vitória para nós. Vitória psicológica, claro, mas é uma vitória.
– Estou a ver isto, Fátima. Depois de ter aparecido uma mulher que é um génio
em questões financeiras e amiga íntima de Renato, surgiu uma situação embara-
çosa para todo o mundo cabo-verdiano. É muito possível que outros satanistas
estejam envolvidos. Disto penso que não há dúvidas. Cobriram todas as pistas,
todas as suas malditas pistas. Disto também não tenho lá as minhas dúvidas.
Penso que os investigadores não fizeram o necessário para descortinar as pis-
tas. Podemos dizer que as condições de provas foram adulteradas completamen-
te.
- Há coisas que não compreendem da Escritura e, por isso, usam alguns versícu-
los da Bíblia para justificar o assassinato. Mas Jesus anulou tudo aquilo quando
veio ao mundo. Foi Ele que nos ensinou a amar os nossos inimigos e a dar outra
face – disse Marta.
– Sim as palavras podem ser poderosas. Tão poderosas e perigosas que extre-
mistas usam-nas para matar indivíduos inocentes. Eu não compreendo esta ma-
neira de pensar. O Satanás é, para mim, uma das figuras mais discutidas na teo-
logia.
– Aprendi muito cedo que Satanás antes era um anjo – pensou Marta.
– Não apenas um anjo, mas um arcanjo expulso do céu. Job identifica-o como
filho de Deus – acrescentou Fátima.
– E príncipe do inferno. No livro de Moisés não existe a palavra satanás. É só ler
a Bíblia – disse Marta.
– Mas...estou a pensar, de onde veio o satanás desse grupo infame?
– Não só da Bíblia Sagrada, mas também, das religiões do Oriente – replicou
Marta.
43
Apocalipse, capítulo 12, versos 7-9.
Tornaram-se cegos. Para zombar dos cristãos. E Renato era um deles, um cristão
– acrescentou Marta, continuando – o curioso é que os manuscritos de Renato
desapareceram. Os projectos que tinham ficaram na escuridão.
44
Profeta Isaías, capítulo 14, versos 9-12.
XXXV
Anno vigesima
cie de imunidade que o/a coloca em cima da lei, mas com uma consciência em-
pedernida em qualquer lugar do mundo.
– Mas ó filha, como e para quê teria o homicida praticado uma acção dessas,
se não fosse feita mediante subornação? Para quem fez isso? Não paro de pen-
sar nisso. Não paro de ouvir uma voz íntima e crítica a segredar-me nos ouvidos.
É a voz do silêncio que vibra no fundo escuro, cujo lugar não sei explicar, uma voz
clara, pertinente e persuasiva, que propaga no meu ser como ecos do passado,
como o radar que toca a minha mente e volta ao ser, constantemente – subli-
nhou Marta.
– Olha, também a mim me ocorreram essas perguntas todas. O que estranho é
que, depois do assassinato, ninguém pensou seriamente em descortinar o que
aconteceu ou castigar o criminoso. Pouco interesse despertou na nossa socieda-
de. Nem mesmo os mais achegados! Sinto muita pena de dizer isto! O que impe-
diu uma investigação aprofundada do que se passara? Acho que alguém instigou
a outrem para deixar de lado os factos incertos para só pensar no que está para
diante. É a maneira mais cómoda de resolver problemas, arquivando o processo.
Tanto a culpa como a consciência já se tornaram conceitos vazios – reclamou
Fátima.
– Certamente, mas não se tem onde pegar. O que acontece se voltarmos à ori-
gem desse crime e o pusermos em evidência? O que perderíamos com isso? É do
interesse do povo cabo-verdiano encontrar e punir o assassino pelo crime come-
tido, quem quer que tenha sido o matador. Tudo isso é um flagelo que nos tortu-
ra diariamente, pois temos o espírito perturbado pelo horror e pelo desespero
que nos atormenta. Decerto que as pistas estão destruídas, o culpado já se en-
contra conciliado consigo mesmo. Oxalá que a sua consciência o esteja a martiri-
zar.
– Querida Marta, que será feito se ninguém se preocupar com um caso destes?
Ai de nós, quando todo Cabo Verde se encontra atingido pelo contágio do assas-
sinato, sem que chegue a nós recurso algum que nos possa valer e tirar desta
cilada de más práticas, sem que se veja uma só lágrima derramada e sem nin-
guém que se preocupe em encontrar o culpado! Penso que pouco avançaremos
nas nossas pesquisas, se não nos apresentam alguns indícios. Há, possivelmente,
tantos entre nós que sabem quem foi esse assassino, mas silenciam e deixam de
indicar um amigo, por mero temor ou por amiguismo, mas continuam a ser uma
XXXVI
Fátima não se conforma com o modo como as investigações são feitas no país
inteiro. Há uma lacuna a preencher que deixa muito a desejar. Exausta, suspirou
profundamente, levantou-se do assento e ergueu o indicador direito em direc-
ção à Marta, sacudindo-o, mas sem dizer nada. Continuava a não confiar por
completo na protecção dos dados recolhidos e no caminho que eles irão ter. A
investigação no nosso país está ainda constrangida e acanhada, pensou ela. O
proteccionismo reina na terra. Há situações de assassinatos em que todo o povo
conhece o assassino, mas as autoridades pouco fazem para desvendar o acto.
Elas ficam prostradas à espera de outros crimes e de outros assassinos, ao que
se junta uma fraca capacidade financeira, até que o assassino encontra a possibi-
lidade de fugir para longe, onde as forcas jurídicas do país nada podem fazer.
Isto é o resultado da política do laissez-faire e Laissez-passer. Qualquer busca ou
investigação na área criminal não está bem enquadrada em instituições credí-
veis, pois são levadas a cabo, por esforços voluntaristas e individuais que se afo-
gam na falta de verbas e acabam por ter um destino no fundo das gavetas. Na
maioria dos casos, são afogados pela tacanhez política que nem às gavetas che-
gam. Daí a falta da sua acessibilidade à comunidade se tornar um hábito de co-
mo camuflar as coisas que deveriam ter alta prioridade num país democrático.
Apontou de novo o dedo para Marta e disse:
– A investigação em Cabo Verde deve ser assumida como sendo responsabili-
dade do Estado democrático. É um factor importante no desenvolvimento do
país. As autoridades competentes deste país devem assegurar que haja uma in-
vestigação compreensiva, transparente e completa de modo a levar os culpados
deste e de quaisquer outros crimes à barra da justiça, sem demora, dado que a
ideias que não estão de acordo com o seu próprio ideal, saberia respeitar o pen-
samento de cada um. Uma pessoa assim, seria indicada para dirigir a nação.
Uma pessoa que não encara os demais com desprezo por não pensarem igual a
si, veria que no fundo de cada indivíduo, existe uma centelha divina que tenta
acender a chama no combustível do motor que o transporta para o seu ideal,
para um fim maior que a si mesmo.
Travou-se um silêncio entre as duas.
– Pára com isso. Estás a levar-me para além dos confins da terra. Estou cansa-
da e não quero ouvir mais. Devemos é ir à rádio pedir uma ajuda na reabertura
do processo que foi encerrado.
– Tenho muito medo, confesso-te – admitiu Fátima, continuando – sabes que,
quando os homens se juntam, em quaisquer circunstâncias, para defender o seu
deus, tornam-se sanguinários e comportam-se como que desprovidos de toda a
razão humana.
XXXVII
Morreu um homem político. Para muita gente, esta foi a história mais mal con-
tada no final do último século. Foi, também, uma história apaixonante que sub-
mergiu na onda da praia de Quebra-Canela na tarde de 29 de Setembro de 1989.
Leitores, ouvintes e telespectadores de todo o mundo, acompanharam-na atra-
vés da comunicação social como se fosse a morte de um cowboy. Ainda hoje se
ouve o eco do tiro naquela praia, casual e esporadicamente. Porém, nem casual
nem esporadicamente se sabe o que é feito do processo, das investigações do
assassinato do político e do homem Renato Cardoso. Para os polícias, foi uma
investigação fácil e célere, nada dolorosa por que excluíram logo em seguida um
móbil importante. A morte não foi motivada politicamente, diz o comunicado da
ordem pública. E isto contribui para que às questões políticas fosse dada pouca
atenção.
Houve pistas verdadeiras e falsas. Houve arguidos, suspeitos, mas o que é feito
das provas de sangue, do ADN, das mordeduras, dos arranhões e do detector de
mentiras? Ficou uma lacuna nos argumentos sobre os móbeis. Ou talvez não.
Mas se sim, vista sobre uma determinada perspectiva criminal, para muita gente
entendida no assunto, parece que o destino já se encontrava escrito ou traçado
nos anais da história cabo-verdiana há muito tempo. Todos os esforços do Tri-
bunal cabo-verdiano para incriminar o único arguido foram inúteis. Todas as ten-
tativas soaram a falso. Não podemos encontrar a verdade onde ela não está. As
investigações foram vulgares e de segunda categoria, o que só podia resultar em
nem verdade nem consequência. Investigações que fizeram tremer a reputação
do nosso país, porque os criminosos se encontram longe da alçada da Polícia
Judiciária, longe da condenação popular, no conforto dos seus lares, mas, prova-
velmente e penosamente, julgados pelo Tribunal da Consciência.
Qual foi a razão que levou a FSOP a declarar logo no dia seguinte, sem prévia
investigação que os motivos não foram políticos? Porque não declarou, então,
que foi passional depois de ter excluído um dos mais prováveis móbeis? Palavras
ponderosas removeram as culpas, baralharam o julgamento do povo e silencia-
ram-no. De qualquer maneira, essas palavras pronunciadas convincentemente,
soaram verdadeiras, serviram as intenções e deixaram lacunas. O que nos preo-
cupa, ainda, é o resultado das investigações. Quanto a isto, estamos no mesmo
lugar, na mesmice, com as nossas dúvidas, com as nossas interrogações, em tu-
do, igual às outras centenas e centenas de mulheres, homens e crianças que
desaparecem em todo o mundo sem os seus familiares saberem a razão e quem
foi o autor ou autores dos crimes.
Assim, podemos afirmar sem qualquer margem para dúvidas, que é um erro ca-
pital teorizar sobre coisas sérias antes de possuir todos os indícios, porquanto
distorce o nosso raciocínio e induz o povo a pensar em mistérios que não exis-
tem. Feitiçaria, destinos, fatalidades?
45
José Luís Fernandes Lopes, Artiletra de Novembro/Dezembro de 2014, A viagem que não acon-
teceu.
46
Idem
47
Dr. Carlos Veiga – Artiletra de Novembro/Dezembro de 2014
48
Jornal Terra Nova, dia 1 de Outubro de 1989.
Os primeiros detidos levados à esquadra - aqui pertinho da minha casa - eram na sua maioria
voyeurs que frequentavam o lugar do crime...
Estava eu dizendo, a polícia quando não encontra um criminoso, atira-se logo a um. Como
queriam arranjar provas a todo o custo, não tiveram desfaçatez nenhuma em apresentar es-
tas duas grandessíssimas provas: " Badiu Boxero era um desempregado e dormia na Praia de
Gamboa". Ainda bem que não foi na Praia da Gamboa o crime, senão a polícia nem precisaria
de uma só prova. Aliás, uma vez que - "dizem" - a Judiciária Portuguesa não deparou com
vestígios nenhuns na Quebra-Canela, temos todo o direito de duvidar se o crime teria sido
praticado mesmo nesta praia.49
49
Vadinho Velhinho - "Opinião", Outubro, 1990 e Artiletra de Novembro/Dezembro 2014.
50
Voz di Povo, 3 de Outubro de 1989 – extracto de um texto de Aristides Pereira, Presidente da
República de Cabo Verde.
51
Voz di Povo, 1 de Dezembro de 1990.
sobre a qual se encontra montada uma demagogia, isto é, uma acção política em
que se procura conquistar o apoio do povo através da manipulação das emoções
das massas populares, em vez de usar argumentos racionais e lógicos.
A força directriz omnipotente tem solução para todos os problemas sociais e
cresce como um tumor dominante no organismo social convencida de que não
existem remédios ou alternativas na vida para curar as células cancerosas da
sociedade, mantendo a maioria da população num estado contínuo de medo e
de ansiedade interna. Esta mesma força directriz e omnipresente, tem medo das
ideias dos outros, do conhecimento dos outros, por isso, fecham-no no casulo do
medo com uma venda nos olhos, isolados do mundo iluminado, à laia da idade
das trevas.
Como o ditador acha que ele é força directriz omnipotente, luz e guia do povo,
repetidamente pronunciada, consegue submeter a população e levar a socieda-
de a uma forte situação de insegurança, pois esta refugia-se num estado de sub-
serviência e incurabilidade sem valor instrumental para o mundo, sem nada para
contribuir, para criar e inventar qualquer que seja a coisa.
XXXVIII
As espectativas de Marta
Djonzinho sempre sonhara fazer justiça ao seu admirado amigo. Desde o dia em
que Marta lhe contou o conteúdo dos seus sonhos, não arredou os seus pensa-
mentos da solução dos problemas relacionados com a morte de Paín. Os sonhos
da Marta eram intrincados e continham impossibilidades lógicas. Eram uma ma-
neira de contornar os intricados problemas. Não lhe saiam da mente e, pouco a
pouco, aqueles sonhos foram absorvidos pelos seus próprios sonhos. Então,
Djonzinho ouvia com atenção o que Marta relatava sobre a possibilidade de en-
contrar o assassino de Renato mesmo passados muitos anos. Os recessos da
mente dele estavam povoados desses sonhos e o homem queria encontrar uma
resposta científica.
Marta era uma das amigas de Renato e é licenciada em criminologia. Juntou-se
ao grupo formado por poucos indivíduos, a pedido dos seus próprios constituin-
tes, para fazer a investigação do local do crime, muitos anos depois do assassina-
to. Ela sabia que era uma impossibilidade que não cabia na lógica dos seus ami-
gos mais chegados. Sonhou com Quebra-Canela e imaginara em transformar
essa impossibilidade em possibilidades.
Imaginou que, no dia em que completou 20 anos o episódio de Quebra-Canela,
ela foi ao lugar do crime e marcou uma circunferência com o triplo da área da
tenda à disposição. À busca de uma agulha no fundo do Atlântico, cogitou sem
dizer nada a ninguém. Os dias foram passando e a idade também. Qualquer pes-
soa que tivesse viajado o suficiente em direcção às terras do oriente, onde o sol
nasce, é capaz de experimentar um sentimento de ter perdido um dia da sua
vida. Nada, mas nada existe no mundo capaz de nos tirar o sentimento de ter
perdido o tempo entre o passado e o presente. Fechou os olhos para restituir
esse tempo perdido. As pálpebras estavam a pesar-lhe uma tonelada sobre os
olhos quando ela começou a abri-las. No dia seguinte ela foi ter com ele e con-
tou-lhe tudo.
Durante uns minutos, ficou em silêncio a imaginar o que se passava na cabeça da
Marta que tinha muita experiência em criminologia. Fechou, também, os olhos
numa retrospecção rápida e acabou por imaginar um buraco negro dentro do
esquecimento colectivo do povo. Para certificar-se da sua própria existência,
abriu os olhos num cogito ergo sum52 – reconhecimento. Estava ali, mnemoni-
camente, perto da Marta, da Fátima e do Roberto.
Imaginou e entrou nos sonhos dela, pensou como se fosse um simples investiga-
dor com a função delegada pelo grupo para controlar os achados e sistematizá-
los. O seu relógio de pulso marcava 14h13 e descrevia um círculo num tique-
taque constante. Já estava acostumado ao relógio porque é um daqueles que
não era controlado pelas ondas da rádio enviadas de Hamburgo na Alemanha.
Muitas vezes, parava vinte e quatro horas para depois recomeçar a trabalhar.
Porque não parar da mesma maneira o tempo? – Perguntou a si mesmo. Quem é
que determinou que são todos os outros relógios do mundo que estão certos?
Será que o tempo se deixa aprisionar pela nova tecnologia? Seria doido em apro-
fundar as coisas à minha maneira, mas parece-se-lhe que isto se deva à sua pro-
fissão de investigador científico. Sentiu-se como se a Terra deixasse de rodar
sobre si mesma, as casas se desmoronassem, as montanhas resvalassem e as
rochas caíssem numa avalanche sem igual.
Ainda a imaginar o cenário do sonho de Marta, no momento em que todos esta-
vam a meditar, cada um para seu lado, pareceu-me verosímil o que a Marta con-
tou. Assim, esta compreendeu que estava a filosofar e deitou um olhar curioso
na direcção de Djonzinho, mas não comentou nada. Piscou-lhe o olho esquerdo.
Djonzinho pegou no lápis e no caderno de anotações onde escreveu algo para
que não lhe escapassem os detalhes. Nos livros sobre investigação, encontram-
se recomendações úteis sobre como colher informações em casos criminais. O
registo detalhado do achado é a chave para uma correta interpretação e com-
preensão. A paciência e a minuciosidade são as principais virtudes na ciência da
investigação. Notou a hora exacta em que chamou o Roberto para consultar o
primeiro achado, este olhou para ele e disse:
52
Penso, portanto, existo.
paciente. Olhava para Marta como quem aguarda algo libertador. Algo que aju-
dasse o grupo a dar mais um passo na investigação, ficando mais perto do que
realmente aconteceu.
A voz da Marta soava amena, pingava de algo açucarado, quando pediu a aten-
ção de todos. Os nossos olhares colaram-se ao dela durante alguns segundos.
Depois disse:
– Minha gente, estamos a fazer um trabalho sério e, neste momento, ocorreu-
me à mente a necessidade de incluir no nosso grupo um agente de investigação
policial competente – pensou ela, e acrescentou – o Zé de Canjinha é a pessoa
mais indicada neste momento. Este trabalho exige muita paciência de todos nós.
Ele é capaz de nos servir e dar mais coragem.
– Não sei, Marta. Temos de ter cuidado com os servidores do Estado. Nem
sempre são neutros na tomada de decisão. O Zé é, de facto, uma pessoa íntegra,
mas todo o cuidado é pouco – comentou Fátima.
– Roberto, o que dizes tu sobre isto? – perguntou o Djonzinho.
– Acho que devemos esperar um pouco, aprofundar as nossas investigações,
remoer os resultados encontrados sem alarmismo que põe termo ao nosso traba-
lho. O envolvimento do Zé pressupõe o envolvimento dos meios de comunicação
e vai ter um grande impacto no nosso trabalho num sentido negativo – assegu-
rou Roberto.
A imaginação de Marta reflectia os seus sonhos e, assim, continua as escavações
sobre um monte de areia com mais de meio metro de altura que já havia sido
revolvida à procura de algum sinal ou indício da presença de algo que contribuís-
se para acrescentar ao repertório. Parecia uma escavação arqueológica. Mas não
estava longe disso. Só que ninguém do grupo tinha experiência no campo da
arqueologia. Roberto olhava frequentemente para o seu relógio, como se tivesse
com pouco tempo para estar ali. Só mais tarde, Djonzinho compreendeu que era
um mau costume dele. Mas o relógio de Roberto não era igual ao seu. O dele é
daqueles que andam de acordo com a maioria dos que recebem a onda radiofó-
nica do relógio atómico. Eram 14h49 quando Marta instruiu sobre a continuação
da investigação. Anotou o horário correto no seu caderno, o número de fios de
cabelo encontrados, o pedaço de fazenda e colocou tudo numa caixa de recolha
de amostras. Djonzinho pensou logo no que significariam tais amostras depois
de tanta gente ter espezinhado essa praia após tanto tempo!
inteligente. O que lhe saía da boca e do coração coadunava-se com a visão dele
do mundo.
Escutava um diálogo dentro dele, entre o agente anunciador do sonho da Marta
e ele e, ao mesmo tempo, a ver os olhos da Marta a reencontrar os seus e, tanto
a cara dela como a sua se tornaram vermelhas e embaraçadas nos momentos de
tais reencontros. Para disfarçar e desfazer a situação, ela anotou qualquer coisa
no seu caderno de notas e disse:
– Djonzinho, prepara o detector de metais para um rápido rastreio ou scanning
do local.
– Sim, já me tinha, também, passado pela cabeça – apressou-se dizer.
– Então, vamos a isso. Se precisares de ajuda, conta comigo – acrescentou ela.
Mediram-se um ao outro com o olhar. Marta anotou a magnitude dos sinais.
– Sabes o que estou a pensar em encontrar aqui?
– Uma relíquia de oiro – respondeu Djonzinho, brincando.
– Estou a falar a sério, Djonzinho. O detector de metais assinala que aqui há al-
go importante – asseverou Marta.
– Muito bem, Marta. Onde vou começar a escavar? – Perguntou.
Ela olhou para o céu. O comportamento do Djonzinho fazia-lhe confusão. Disse
algumas palavras, não dirigidas a ele, mas para algo espiritual que flutuava em
cima dela.
– Estou à espera da tua decisão. Onde vou escavar? – tornou a perguntar.
– Nesta direcção – disse ela enquanto desenhava em círculo com cerca de um
metro de diâmetro.
Começou a fazer uma abertura com muito cuidado. O calor do dia fazia-lhe
transpirar por todos os poros. Parecia um arqueólogo a aproximar-se de um
achado. Um artefacto de grande valor. Encontrar qualquer coisa neste lugar,
depois de 20 anos, pode ser considerado um milagre. A água do mar conserva
muitas coisas, mas também corrói muitas outras. A sua esperança era a de en-
contrar uma chave, uma foto plastificada à la bilhete de identidade, um pé de
sapato, um relógio ou um punhal de metal maciço. A Marta seguia-o curiosa-
mente e, de vez em quando, passava o detector de metais por cima da escava-
ção. O detector metálico fazia mais ruído. Não falha. Há uma presença de algo
metálico neste lugar.
– Vamos fazer uma pausa – sugeriu, limpando o suor na testa com as costas da
mão direita.
Marta sentou-se na areia e cruzou as pernas à la yoga. Rabiscou algo sobre o
caderno de anotações e depois, exibiu um olhar ausente. Pediu ao Roberto para
dar uma ajuda na escavação, ao que ele se prontificou sem pestanejar. Fátima
olhou para ela e depois para Djonzinho com um ar desconfiado. Esta acabou de
fechar uma caixinha de recolha de amostras e guardou os pincéis. Roberto rece-
beu ordens para ter muito cuidado. Era hora de usar a mão e os pincéis. Djonzi-
nho recebeu ordens para auxiliar o Roberto no que pudesse. A hora da verdade
aproximava-se. Todos se levantaram e Marta trouxe de novo o detector de me-
tais para mais um rastreio. Um piiiip intenso incomodou os ouvidos de todos.
Um procedimento lento e cuidadoso vai garantir bons resultados. De novo, uma
voz ecoou dentro de Djonzinho, num diálogo.
– Djonzinho, preciso de ti – comandara Marta, num tom afável e com tibieza.
– Sempre às tuas ordens – prontificara-se em forma de continência.
– Estamos num momento decisivo na investigação. Se o achado for o que estou
a pensar, não vai deslindar o assassinato, mas ajudar-nos-á muito a avançar nes-
sa direcção.
– De que estamos afinal à procura, querida?
Sentiu o coração a bater ao pronunciar a última palavra, mas ela não reagiu co-
mo ele receava. Isto deixou-o confuso e, ao mesmo tempo, receoso. Sentiu o
sangue a correr pela face. O que lhe salvou da situação embaraçosa foi o grito do
Roberto que nos obrigou todos a saltar.
– Aqui está! – Gritou Roberto
– Como esperado – asseverou Marta, mostrando um gesto de vitória. – Já ima-
ginava isto – acrescentou ela.
– Zé, tu vais cuidar disto. Já conheces as regras de jogo. Vamos preencher os
documentos onde todos vão assinar. Mas escuta, Zé, como combinado ontem,
isto é e continua a ser, uma investigação privada e, por isso, o envolvimento de
outros é totalmente excluído. Faz de conta que tu és um de nós – recomendou
Marta.
Dos nossos pensamentos colectivos, uma pistola de calibre 6.33 surgiu da areia.
O achado confirmou uma coisa que todos sabiam de antemão. Agora falta traçar
uma linha que vai ligar ao assassinato. Mas como? A arma de fogo foi encontra-
da um pouco corroída com o peso do tempo. A impressão digital não era possí-
vel encontrar! Mas a bala mágica saiu da boca da arma encontrada. Um silêncio
apoderou-se do grupo. Cada um desenhava na imaginação, a imagem do assas-
sino e os passos que nos conduziriam ao culpado ou à culpada. Se há uma arma
de fogo, há também, um assassino solto pelas ruas do mundo. Um grande avan-
ço nas investigações. Foi dado mais um passo em direcção à meta.
E onde estão os documentos? Quem os tem? Onde os têm? Qual o seu conteú-
do? Mais um quebra-cabeças. No entanto, Marta tinha ideias claras quanto ao
paradeiro de um documento tão valioso. Ainda assim, o receio batia-lhe às por-
tas do coração e da mente que ponderavam sobre como proceder para conquis-
tar o medo. Porton d’nós Ilha. Uma procura no Porton d’nós Ilha. Mas o portão é
grande demais para uma vistoria minuciosa ao local.
Djonzinho sentiu alguém passar os braços sobre os seus ombros, fazendo-o re-
gressar ao mundo real. Estava tão embrenhado no encadeamento lógico das
aspirações da Marta que se perdeu no mundo das ideias.
Estava a reconstruir o cenário final, mergulhado no onirismo em que Marta o
colocou. Estava a dar uns retoques finais a uma investigação que nunca antes
tinha sido feita. Estava acima de tudo, a reconstruir algo que compensasse a psi-
que do grupo, algo que justificasse um trabalho inédito. Sonhos são sonhos, de
qualquer maneira. Mas são, muitas vezes, o que se encontra recalcado dentro de
nós. Eles, simplesmente, sobem à superfície da mente, algumas vezes, como
uma realidade.
As aspirações da Marta eram de tal ordem que nos puseram na senda de uma
procura intensa e se tornaram realidade à medida que aproximámos do Porton
d´nós Ilha. Afinal de contas, há sonhos que se tornam realidade e há realidades
que se transformam em sonhos.
XXXIX
– A Cidade Velha foi a primeira cidade construída pelos europeus nos trópicos e
a primeira capital do arquipélago de Cabo Verde, quando era chamada de Ribei-
ra Grande. Mudou de nome, possivelmente, para evitar ambiguidade com a po-
voação da ilha de Santo Antão. A cidade nasceu e desenvolveu-se por conta do
tráfico negreiro e foi capital até 1770, quando esta função foi transferida para a
Praia de Santa Maria,53 hoje cidade da Praia – continuou Marta.
53
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_Velha#cite_note-2
– Também se diz que a Cidade Velha foi porto de parada de dois grandes nave-
gadores portugueses: Vasco da Gama (1497), a caminho da Índia, e Cristóvão
Colombo (1498), na sua terceira viagem para as Américas – intercedeu Roberto.
– Mais precisamente, em 2000, foi iniciado um trabalho de preparação do dos-
sier de candidatura da cidade a Património Mundial da UNESCO. O dossier foi
apresentado à UNESCO, em 31 de Janeiro de 2008. Neste mesmo local, encontra-
se a Igreja da Nossa Senhora do Rosário, a mais antiga igreja colonial do mundo,
construída em 1495, na Cidade Velha, Cabo Verde – completou Marta.
Marta, depois de ter discorrido sobre a história de um pedaço de terra inserido
nas coordenadas que apresentou, apontou para as Ruínas da Sé. Djonzinho sen-
tiu algo a correr-me pelos nervos e nas veias em direção ao coração ou a algum
outro lugar dentro de si. Sentiu um arrepio a apoderar-se do seu corpo. O cora-
ção batia fortemente. Sentiu agorafobia e receio de se aproximar do monumen-
to.
– Em 1520 foi erguido o primeiro pelourinho na ilha, que hoje é este monumen-
to nesta linda praça. Como disse há pouco, – prosseguiu Marta – neste local en-
contra-se a mais antiga igreja colonial do mundo, a Igreja de Nossa Senhora do
Rosário, no estilo gótico português (manuelino). A Rua Banana, que conduz à
igreja, foi a primeira rua de urbanização portuguesa nos trópicos. Vamos passar
por lá daqui a nada.
– O que significa estilo gótico ou manuelino? – Interrompeu Zé.
– Marta voltou a cara para Zé, estacou, olhou demoradamente para ele e res-
pondeu: o estilo manuelino é um estilo arquitectónico que se desenvolveu no
reinado de D. Manuel I e continuou após a sua morte. É uma variação portugue-
sa do gótico, bem como, da arte luso-mourisca ou arte mudéjar, isto é, uma mis-
tura árabe e portuguesa, simbolizando o poder régio daquele tempo. O termo
"manuelino" foi derivado de D. Manuel I. O estilo desenvolveu-se numa época
propícia da economia portuguesa e deixou marcas em todo o então chamado
território nacional.54
– Como é que queres correlacionar a história da Cidade velha com o assassina-
to – perguntou Djonzinho depois de o calafrio ter sido minimizado.
54
http://pt.wikipedia.org/wiki/Estilo_manuelino
das, mas nem um sinal do que motivara a vinda até aqui: os documentos que
continham o projecto de Renato.
As investigações cessaram depois da Marta ter recebido uma chamada telefóni-
ca anónima, com ameaças e intimidações. Estavam todos parados enquanto ela
falava ao telefone. Depois houve uns instantes tensos de silêncio quando a cha-
mada terminou.
– Minha gente, temos de cessar o nosso trabalho – ordenou Marta. – Esta
não é a primeira vez que sou vítima de telefonemas anónimos com ameaças e
truques, estamos a ser vigiados – acrescentou.
O Zé de Canjinha, chamou-a à parte para se inteirar do que se passava. Ambos
ficaram preocupados com a descontinuação do trabalho que se encontrava no
bom caminho. Revolveu o telemóvel e constatou que não era possível identificar
o número do qual lhe haviam ligado minutos antes. Ele, como polícia, é capaz de
saber de quem veio o telefonema. O Zé, que falava como um papagaio na ida,
não disse uma só palavra no percurso Cidade Velha – Praia.
Djonzinho, ao entrar no veículo, fechou os olhos e deixou que o pensamento o
levasse de volta à praia de Quebra-Canela. Caramba, se fosse real o sonho da
Marta, estariam mais perto de uma solução – analisou dentro de si.
Mesmo assim, continuou a cogitar sobre o que se tinha passado. As provas das
amostras recolhidas durante a escavação não teriam produzido algo concreto. A
identificação da recolha resultaria, certamente, em dezenas de resultados de
origens diferentes e, por isso, não podíamos usar os resultados. Em outras pala-
vras – excluímos as possibilidades do teste do ADN por causa dos recursos finan-
ceiros. O que restaria era fazer uma análise retrospectiva, tendo pela frente as
consequências, isto é, a morte a tiro de uma pessoa pública. De resto, se isso
fosse verdade, tudo ficaria abandonado no fundo de uma gaveta. Era um sonho
muito feliz. Temos de tirar daí algo frutífero.
Nos momentos em que a dor mais apertava, Marta pensava que, antes de se
pensar nos aspectos morais e mentais de um assunto que apresenta as maiores
dificuldades como a morte de um amigo tão caro e fiel, o pesquisador, se é que
houve algum, devia principiar por se assenhorear dos problemas mais elementa-
res antes de fazer ou pensar noutras coisas. Pensou que, por mais pueril que
este exercício possa aparecer, aguça as faculdades de observação e ensina para
onde se deve olhar e o que procurar. Pela manga de camisa de um homem, pelas
unhas, pelos seus sapatos, pelas joelheiras das calças, pelas calosidades dos seus
dedos, especialmente, pelo indicador e polegar, pela sua expressão, pelos pu-
nhos da camisa, pelos arranhões, pelos cabelos, pelo sangue, pela mordedura,
pela fricção das partes corporais com outros indivíduos ou coisas, pelos rastos ou
pegadas... em cada uma dessas coisas, a profissão de uma pessoa é claramente
indicada. Que um conjunto delas deixe de esclarecer um investigador ou indaga-
dor competente, em qualquer coisa, é virtualmente inconcebível, isto é, não
cabe na cabeça de ninguém. Marta é da opinião de que entre todos os delitos do
mundo criminal, existe um acentuado grau de parentesco. Há sempre elementos
de amor, de ódio ou inveja que culmina em vingança. Os que ficam vivos, para
resolver o caso, devem ou têm de usar um pouco de raciocínio e uma certa por-
ção de intuição. Nos casos complexos, como o do Paín, tinham de assegurar os
indícios durante um determinado espaço de tempo, em que o local da morte
deveria ser vedado ao público, a fim de vermos as coisas de perto e com olhos
de águia. A observação é de capital importância em qualquer indagação crimino-
lógica. Quando a observação e dedução são justapostas, quase todos os móbeis
ficam um pouco mais transparentes que até uma criança do ensino primário é
capaz de os identificar. Por outras palavras, quando a observação atempada e a
dedução lógica se juntam a métodos convencionais, as coisas adquirem transpa-
rência. Como Marta comentou anteriormente numa conversa com a Fátima, é
extremamente perigoso teorizar antes de possuir dados concretos e indícios
palpáveis porque destrói o raciocínio. Pois, há coisas visíveis pelo observador
atento, treinado em investigar assuntos criminais, mas que são invisíveis para os
não treinados nesse tipo de trabalho. Ora, se uma manada de bois ou um exérci-
to de homens tivesse passado pelo local do acontecimento, nada ficaria para os
que, verdadeiramente, desejariam encontrar indícios que os conduzissem a um
esclarecimento do assassinato.55
Num lugar qualquer dentro do ser humano, isto é, no interstício entre Ego e o Eu
do individuo, existe algo que nos torna conscientes e de onde deriva toda a
compreensão, toda a inteligência, todo o potencial para criar e inventar, mas
sobretudo, para reflectir e conceber a direcção do caminho a seguir.
Na imaginação de Marta, há uma imagem nítida com mais de vinte anos, uma
imagem de um amigo semimorto, estirado na areia, com os olhos postos no fir-
mamento. Com o passar do tempo, ela aproximara-se, ainda mais dele, com o
55
Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Edições ASA II, S.A., 2009.
56
Oscar Wilde em De profundis, seguidos da balada do Cárcere de Reading, Portugália Editora,
documentos e estudos, 2008.
57
Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Edições ASA II, S.A., 2009.
58
Educação emocional – Claude Steiner e Paul Perry, Biblioteca Pergaminho, pergami-
nho@mail.telepac.pt
XL
acinzentada. No dedo anelar, trazia dois anéis de oiro. Trazia uma blusa branca
com uma saia preta e tinha no rosto um ar de preocupação. Ela pôs-se de pé e
começou a andar de um lado para outro. Depois arregalou os olhos nos do Ro-
berto e disse:
– Roberto, tens sido seguido nos últimos dias?
– Que eu saiba, não. Não estou muito convencido disso. Não ando desconfiado
de nada, mas pressuponho agora que eu deva estar vigilante – aceitou Roberto.
– Deduziste alguma coisa sobre o bilhete daquele menino? – Indagou Fátima.
– Gostaria de poder inventar uma fórmula matemática que nos explicasse tudo
aquilo que a dedução e a intuição nos apresentam como evidente e natural nas
últimas horas. Uma fórmula contraintuitiva levar-nos-ia a uma conclusão mais
certa. Por enquanto, não termos nada que se assemelhe, não podemos deduzir
nada sobre o bilhete entregue pelo menino ou sobre outra coisa neste contexto –
argumentou Roberto. – É bastante difícil porque não sou matemático, mas a si-
tuação parece bastante sombria neste momento. O menino do bilhete desapare-
ceu sem que eu pudesse interrogá-lo. A minha dedução é que alguém muito inte-
ligente se encontra por detrás disto para desviar-me do caminho que encetei. O
senso comum repara muito bem no irrealismo levado aos seus extremos nas re-
portagens policiais. Há falhas das autoridades desde a primeira hora. Para um
observador experiente, essas falhas contêm a essência vital do caso. A nota de
imprensa, estorvou-nos as investigações, estacionou muitas mentes inquiridoras
durante horas e dias. Por isso, qualquer pessoa realmente interessada, vai ter
empecilhos no seu caminho.
– A imprensa do país vai, certamente, ter um dia de festa com este aconteci-
mento e nós devemos evitá-lo. Vejamos apenas os cabeçalhos. Faleceu na Praia
um homem político…
– Uma morte não motivada por razões políticas – cortou Marta.
– Alguém vai descobrir a história mal contada, se não for amordaçado! Há
sempre alguém que se interessa por um caso como este – afirmou Roberto.
– Recebi um telefonema anónimo ameaçando o trio envolvido nas investiga-
ções e mencionando os nossos nomes em especial – explicou Marta. – Temos de
estar cientes disto daqui para frente. Temos de arranjar maneiras de nos comu-
nicarmos – acrescentou Marta.
XLI
Pressentimento
pela janela para o meio da rua e sair a correr como um doido, mas tinha fechado
a porta. Sem coragem, sentou-se numa poltrona vis-à-vis ao vulto preto que ti-
nha os olhos pregados na arma de fogo. Como se uma sombra lhe passasse pela
mente, previu os movimentos da arma e a morte a aproximar-se dele. Um as-
sombro total, um medo tremendo. Seria a morte que chegava? Seria um sonho?
Não, isto não pode ser. Estou em casa. Beliscou-se a si mesmo para se certificar
de que estava ali sentado.
Encarou o vulto de pistola e balbuciou:
– Aquiles! O que fazes aqui?
– Encontraram o que estavam à procura?
Novamente, pensou se seria uma ilusão o que estava a acontecer naquele mo-
mento. Uma partida que a memória lhe pregara? Um sonho dentro de outro
sonho? Esforçou-se muito e desejava que tudo não passasse de um truque de
mente. Djonzinho considerara como muito provável a hipótese de se tratar du-
ma invenção da memória, mas chegara à conclusão de que não devia ser porque
o homem se encontrava a uns passos dele com uma arma de fogo apontando na
sua direcção. A imagem era demasiado nítida e convincente. O modo como o
homem falava, os gestos que fazia, tudo parecia intensamente real. Não, não
podia ser falsa. O cheiro, o palpitar do seu coração, a luz, o ruído lá fora, o som
das palavras, a arma de fogo: o realismo da encenação provocava nele uma im-
pressão forte de que nenhuma imitação ou invenção da mente, por mais perfei-
ta que fosse, conseguiria transmitir. Além do mais e, partindo do princípio de
que estava ali a ouvir e a falar para um individuo de carne e osso, explicava mui-
tas coisas acerca da situação. Tanto no plano da lógica como no das emoções, a
cena era real. Com o medo a borbulhar na pele e com os olhos fora de órbita
pregados nos dele, balbuciou de novo:
– Não! Deixa-me em paz. Deixa-me dormir sossegado. Amanhã, tenho muito
para fazer e depois digo-te qualquer coisa.
Sorridente e sarcasticamente, apontou a pistola para a mesa onde se encontrava
um saco preto estendido. Djonzinho sentia a morte a aproximar-se com nitidez.
Levantou-se da poltrona, mas as pernas tremiam-lhe de tal forma que quase não
se conseguia manter de pé. Arrastava-se com dificuldade. Tremia de medo.
– Achas que vais conseguir dormir com uma pistola apontada à tua cabeça?
Pensas que estou aqui para brincar? Quero saber todos os detalhes sobre os do-
cumentos e o seu paradeiro. Tu não vais dormir nunca mais caso não me infor-
mes sobre o vosso achado. Tudo está a meu cargo a partir de agora.
– Por favor, não me faças mal. Vai embora que eu quero dormir. Tenho uma
família para cuidar. Por favor, não me faças mal.
O ar tornava-se rarefeito e custava-lhe a respirar. Os objectos que o rodeavam
convertiam-se em coisas estranhas e ficou com a sensação de que o mundo se ia
fechando, o céu ia cair em cima dele. Sentia-se a ficar às escuras e não conseguia
abrir os olhos, ficando com as pálpebras bem cerradas. O estafermo à sua frente
transformou-se num monstro diabólico. Viu dois cornos a nascer-lhe na testa,
apontando para ele que estava a estremecer de medo. Paralisado, não conse-
guiu pronunciar mais palavras.
– Não te perguntei sobre a tua família. Tu tens duas escolhas a fazer neste
momento. Morrer agora ou informar–me sobre o achado.
– Não posso morrer. Os meus amigos estão lá fora à espera de mim. Se eu mor-
rer tu também vais morrer logo depois – disse, procurando desencorajar Aquiles.
Djonzinho não queria morrer, mas também não sabia de nada concreto que o
livrasse da morte. Porém, tinha uma coisa importante a fazer naquele preciso
momento. O demónio à sua frente já lhe tinha declarado que guiava os seus des-
tinos. Sentiu o demónio a acordar dentro de si. Queria dar cabo de Aquiles. Mas
como fazê-lo com o peso do medo que paralisava os seus movimentos? Ajoe-
lhou-se e pediu-lhe o favor de sair para poder dormir. Logo compreendeu, pelos
movimentos da cabeça de Aquiles, que o pedido era inútil. Os ruídos que o rode-
avam iam-se afastando para longe, o suor irrompia de todos os poros, o corpo
começava a tremer, as pulsações tornavam-se mais rápidas e tão fortes que qua-
se se ouviam à distância do homem sentado na poltrona. Sentiu um calor infer-
nal a nascer dentro de si e uma raiva a crescer do íntimo. Como sair do enredo?
Fingia sentir-se agoniado, mas nada resolvia a situação, só servia para piorar as
coisas. Sentiu a garganta seca. Uma voz abafada vinda do seu íntimo chegou aos
seus ouvidos. Parecia vir das profundezas da terra. Agudizou os ouvidos. A voz ia
aproximando, dizendo: calma. É preciso raciocinar neste momento! Abriu por fim
os olhos e fixou o olhar na mesa ao lado. Confirmou que o mundo estava exac-
tamente no mesmo sítio e que ainda fazia parte dele. Pouco a pouco, os sentidos
voltavam à normalidade. Tinha a consciência de que o vulto à sua frente era
Aquiles.
– De acordo. Vou buscar o que tenho para que me possas deixar dormir.
XLII
Um caso esquecido
Marta foi acordada pelo barulho de veículos atravessando a rua contígua. O cla-
rão do dia coava-se através das cortinas das janelas antigas de um prédio de 2
pisos de estilo colonial, iluminando todo o quarto com uma luz brilhante que
mostrava as partículas reluzentes da poeira suspensa no ar. Ouviu o barulho de
punho a bater na porta. Não deu importância ao bater. Depois, a batida na porta
tornou-se mais intensa.
– Marta, estás aí? Como te sentes?
– Sim, estou óptima. Tu, Djonzinho, a estas horas? O que é que se passa?
– Não consegui dormir toda a noite, pensando nos documentos.
Estava, horrivelmente, quente e Marta sentiu-se banhada em suor. Não se me-
xeu durante alguns segundos. Não ouviu os passos do Djonzinho a afastarem-se,
mas um pouco depois, chegou-lhe aos ouvidos um barulho como se do acender
de um fósforo se tratasse. Encaminhou-se em direcção à porta. Abriu-a, mas não
o convidou para entrar.
– Djonzinho, ainda é muito cedo!
– Sim, eu sei Marta, sinto a cabeça pesada e tinha de sair cedo para dar umas
voltas e aliviar o mal-estar. Receio ter bebido demais ontem à tarde. Sinto-me
bastante mal e como estava aqui perto, queria aproveitar para falar contigo. Só
uma chávena de café me faria sentir mais humano e aclarar-me-ia a cabeça.
– É melhor comeres qualquer coisa! Uns ovos, talvez?
– Está bem. Deixa-me entrar só por uns escassos momentos.
– Estás ainda de cabeça tonta, homem!
– Não, é apenas uma coisinha qualquer.
– Mas, porque estás assim tão interessado nesse assunto? – perguntou Marta.
– Que assunto?
– Esse dos documentos.
– Porque sou curioso, é tudo. Mas além disso, acho que todos nós estamos inte-
ressados.
– Isso não é uma resposta convincente.
– A justiça. Ela é a resposta mais convincente que pode existir. Ela é a criança
amada, desejada e meiga para toda a gente.
– Talvez seja um mito. Ninguém sabe se existem ou não tais documentos.
– Judith sabe alguma coisa. Ela sabe que existe.
Marta não disse nada e começou a mexer uns ovos numa tijela na cozinha.
– És casada? – perguntou Djonzinho.
Ela não respondeu. Continuou a mexer os ovos.
– Os documentos preocupam-me. São como o antídoto arremessado na água
envenenada da nascente. Nós bebemos da mesma água.
– Possivelmente.
– Não vou desistir de procurá-los. Encontrá-los é fazer justiça a uma nação in-
teira.
– Não te compreendo, Djonzinho. Porquê tanta preocupação da tua parte?
– Porque ele, o autor dos documentos, representava vários tipos de ameaça pa-
ra diversos tipos de pessoas. Era considerado, por muitos, como perigoso. Não só
no sentido cabo-verdiano da palavra “perigoso” que significa tanto inteligente
como ameaçador.
– Então porque não mobilizar uma procura mais intensa para encontrá-los?
– É possível que eu esteja errado. Mas uma nação inteira não pode errar. A
consciência coletiva não pode induzir em tamanho erro. A minha intenção é mo-
bilizar todos os meus amigos para um trabalho sério.
– Nós precisamos consultar a Judith antes de mais nada – acrescentou Marta.
– Ela não nos vai esclarecer de coisa alguma, a não ser que tenhas uma grande
influência sobre ela. Além disso, não se encontra acessível, ninguém conhece o
seu paradeiro.
– Podemos tentar. Encontramo-la no Poeta depois das quatro – brincou, acres-
centado: ela está longe a gozar da liberdade que nós não temos, ela e o senhor
Delgado.
Ouve um momento de silêncio. Os ovos estavam a cheirar deliciosamente.
– Posso fazer-te uma pergunta muito pessoal? – Interrogou Djonzinho.
– Desembucha.
– O teu marido encontra-se na prisão?
Marta aproximou-se dele, com os olhos no chão, muito surpreendida, sorriu e
disse com tibieza:
– Não, ele não se encontra na prisão.
– Desculpa o meu atrevimento. Sou chato demais. Vou ver se emendo os meus
erros.
– Começa hoje mesmo.
– Prometo-te. E juro.
– Trabalhamos juntos, Djonzinho. Temos de ser objectivos e profissionais. Os
ovos estão prontos. Vamos lá tomar o pequeno-almoço juntos. Temos muito que
pensar mais tarde – disse-lhe Marta.
– Ganhaste, como sempre.
XLIII
No dia seguinte, não corria aragem pela manhã bem cedo. O mar parecia estar a
receber os abraços solares da manhã, com aquela cor linda emitida pelos refle-
xos dos raios de ângulos estritos. Nas ruas da pequena povoação, não se via se-
quer uma alma viva. Ali perto, à beira-mar, uma brisa fresca corria amenamente,
espalhando o cheiro da maresia e refrescando com salitre a face dos banhistas.
Vou tomar um banho senão fico grelhado e a cheirar a babosa (aloé vera) disse
para mim mesmo quando voltei para casa, despindo a camisa de algodão. De-
pois fui ter à Fortaleza e, aí, sentei-me sobre uma pedra. Levantei-me para ins-
peccionar o lugar. Andava de um lado para outro à procura dos documentos.
Tinha uma convicção muito grande de que algo estava escondido ali em qual-
quer lugar. Pressenti algo que não sei bem explicar.
À medida que palmilhava o terreno, sentia a diferença do eco ou do som emitido
pelo chão que pisava. Trilhava o areal de uma ponta à outra e cada vez me sentia
mais convencido de que havia diferença na intensidade do eco emitido pelos
passos. Ficava, também, cada vez mais convicto de que se fizesse um ziguezague
e me aproximasse de determinada área, sentia as ondas sonoras a aumentarem
de volume. Recordei as técnicas que o amigo, Totone, usava para descobrir um
cano de água partido a uma profundidade de mais de 2 metros. Corri para o meu
carro estacionado a cerca de duzentos metros de distância e fui à loja de bugi-
gangas para comprar um balde, uma colher de cal e outros apetrechos que julga-
ra serem necessários para o trabalho. Uma hora depois já me encontrava de
novo na mesma localidade que emitia um cheiro muito especial. Peguei do balde
de dez litros de volume e comecei a sondar o local. Virei o balde de boca para
baixo sobre o chão e, palmo a palmo, escutei os ecos emitidos subterraneamen-
te, pondo o ouvido direito directamente sobre o fundo do balde. Algo de estra-
Sentei-me no carro e pus-me a pensar. Estava nervoso e pensei três vezes antes
de pôr o veículo em movimento.
Parecia um filme que metia arqueologia, investigações policiais, arquitectura e
criminologia na mesma encenação. Tudo embrulhado em pacotes de suposições.
À porta do prédio onde morava Marta, deparei-me com um grupo de indivíduos,
um dos quais reconheci ser um dos membros duma congregação satânica muito
em voga nos dias que corriam. Estavam a discutir qualquer incidente com o por-
teiro. Felizmente, naquele momento, passou um táxi livre e o taxista parou logo
depois do grupo. O grupo meteu-se no carro e saiu dali.
Bati à porta da Marta que me recebeu amigavelmente. Podia ler o seu pensa-
mento através do vidro dos seus óculos. Senti o coração a tremer quando ela me
pegou no braço esquerdo e me deu um abraço apertado, convidando-me, de-
pois, para entrar. Sentados à mesa da cozinha estavam, a Fátima, o Roberto e o
Zé. Todos tinham um olhar curioso. Eu senti algo a mexer dentro de mim. Não
sei o quê e nem sei explicá-lo. Esperavam quaisquer alvíssaras. Não sabia como
começar. O melhor era esperar para mais tarde. Mas tinha uma notícia a dar-
lhes. Voltei a cara para a Marta e, após uma breve passagem de olhos pelos ou-
tros disse com uma voz tremulante:
– Preciso de vocês, minha gente. Parece-me que temos algo a fazer. Temos de
voltar à Fortaleza de São Filipe hoje mesmo – acrescentei.
– Não sei se faço isto – protestou Marta e saltou do assento.
– Eu também não me sinto segura porque alguém tem os olhos pregados em
cima de nós - disse Fátima.
– Zé, o que dizes sobre a ideia? – Perguntou Roberto.
– Vamos fazer o seguinte: Marta, o teu carro fica estacionado no lugar onde se
encontra. Roberto, tu vais dar um passeio à praça e depois desces até à Várzea e
eu vou ter contigo. O meu carro fica estacionado aí. Djonzinho, tu vais apanhar
cada um de nós no lugar combinado. Temos de ter discrição desta vez. Mas a luz
vai despertar a curiosidade das pessoas. Vamos dar um passeio até lá só para um
reconhecimento e certificar o que o Djonzinho encontrou – explicou Zé de Canji-
nha.
– Precisamos de alguns instrumentos, do mais simples possível. A luz é impor-
tante. Vamos ser rápidos para não despertar muito a curiosidade das pessoas.
Marta, arranja-me uma corda, uma luz forte e uma enxada. Já tenho um plano.
Vou explicar-vos mais tarde – esclareci.
Marta nasceu em Angola, mas considera-se cabo-verdiana de gema. Foi dançari-
na nos seus dias de juventude. Ninguém precisava dizer isto. Na sua maneira de
andar, pode-se detectar que alguma coisa de dança sabia. É inteligentíssima e
muito culta. Não é de estranhar que eu mostre sinais de muita amizade por ela.
É espantoso o que ela sabe sobre investigação criminal. Além de ser bonita é,
também, inteligente e simpática. Quis ficar sozinho para falar à vontade com ela
antes de partir. Não para seduzi-la, mas para preparar uma investigação minuci-
osa e meticulosa. Ela arremessou-me um olhar desconfiado que me estremeceu.
Certifiquei-me de que ninguém nos estava a ouvir e disse-lhe baixinho:
– Não estás muito à vontade comigo, Marta. Penso que temos muito a conver-
sar. Concordo que não devemos misturar a profissão com esse olhar curioso que
temos um para com o outro. Tu mesmo o tenhas dito hoje de manhã – atirei num
jeito brincalhão.
– Não estás a confundir esse olhar curioso? – replicou Marta.
– Talvez – respondi.
Ela me deu uma lição de amizade sincera. Certificou-me de que nada existe nes-
se olhar curioso e que todas aquelas formas delicadas continuavam intactas,
mesmo depois da minha confusão. Ela é muito platónica e pode induzir qualquer
pessoa em erro. Pediu-me para ir buscar a corda na varanda e depois saímos.
Pegou numa garrafa de aqua purificata que tinha na geleira e meteu no saco
juntamente com umas bananas. Partimos para a Fortaleza, conforme as instru-
ções do Zé. Ela ficou a pensar calada. Irradiava uma áurea de beleza do lugar
onde estava sentada no carro. A certa altura, depois de termos percorrido dez
minutos de caminho, achei que tinha valido a pena a conversa lá em casa e que
devíamos começar a pensar na segurança das investigações antes de ser tarde.
Eu tinha a cabeça cheia de projectos, mas fazia um esforço tamanho para expli-
car o que iriamos em poucos minutos descobrir.
Descemos do veículo e fomos apressadamente em direcção à Fortaleza. Quando
nos aproximámos, abri o caminho com as mãos e passei à frente para lá chegar
primeiro. Não podia conter-me de alegria e curiosidade quando lá chegámos.
Todos penetravam um olhar curioso sobre mim.
– Amanhã, meus amigos. Amanhã vamos remover aquela tampa. Hoje é tarde
demais para um trabalho do género. Voltaremos às quatro horas da madrugada
para lá – comandei, para disfarçar as preocupações dos presentes.
O trabalho começou às 05.20 da madrugada do dia seguinte. Quem iria cuidar da
nossa segurança era o Zé de Canjinha. Éramos, como de costume, 5 pessoas,
incluindo Zé e eu, quando começámos o trabalho de retirar a tampa de cimento
com a ajuda de um ferro maciço e grosso com cerca de um metro e meio de
comprimento. O trabalho exigia mais esforço do que imaginávamos. Roberto,
homem de força e calmo, estudou e analisou minuciosamente a tampa. As ideias
dele coincidiram com as minhas quanto à maneira de retirar aquela cobertura.
– Vamo-nos preparar para levantar a tampa – ordenei com uma certa determi-
nação na voz. – Algo especial a ter em conta neste momento, senhor coman-
dante? – perguntei ao Zé em seguida.
– Nada. Minha gente, vamos começar. Nada a ter em conta e temos tempo su-
ficiente – respondeu o Zé.
– Agora deves informar-nos sobre o que vamos encontrar aqui em baixo – in-
dagou Marta.
– Eu também estou a morrer de curiosidade – acrescentou Fátima.
Roberto não disse nada, mas parecia tão interessado como eu, o que me acres-
centou mais um punhado de ânimo ao trabalho.
– Primeiro temos de retirar a tampa antes de saber o que está lá em baixo –
disse um pouco cansado.
– Tu sabes de certeza o que nos espera atrás desta tampa de cimento – brincou
Marta.
– Claro que sei. Aliás, não é possível ter certezas numa coisa destas, mas tenho
um monte de probabilidades para acertar àquilo que tenho na cabeça. Bem, para
ser mais correto, não tenho certeza de nada, só tenho uma teoria bem funda-
mentada – acrescentei.
Eu estava eufórico, a tremer de alegria. Sentia o coração a saltitar para fora do
peito. Falava muito depressa, com a respiração descontrolada e ofegante. Cocei
na cabeça, preocupado, quando vi a tampa a mover. Era, ainda, muito cedo. Os
grilos cantavam despreocupadamente. Depois, a tampa foi movida mais uns cen-
tímetros. Nada se via, mas um cheiro húmido saiu da frincha aberta. Uma mosca
de cor azul sentou-se sobre uma pedra logo à nossa frente. Marta foi buscar
umas máscaras de papel e distribuiu-as para todos.
Quando a frincha abriu o suficientemente, a Marta deixou cair uma pedra no
buraco e não se ouviu quando atingiu o fundo. Todos estavam concentrados
numa única coisa, o vazio. Mas não pode existir vazio num lugar destes. Atirou
uma outra pedra maior e, desta vez, ouviu-se o som do impacto quando atingiu
o chão. Fez a uma rápida multiplicação e disse que o fundo estava a três metros.
– O que é que achas que vamos encontrar aqui? – Perguntou Fátima. – Os es-
cravos enterrados? A estátua de um deles que se rebelou contra o chefe? Os do-
cumentos?
– Bem, não estás longe da verdade, Fátima – disse.
Na tampa de cimento vê-se inscrito Anno 1590. Mesmo ao lado, um metal gra-
vado com um texto ilegível. O forte real de São Filipe foi precisamente construí-
do em 1590 para guardar e proteger a Ribeira Grande de Santiago. Depois, foi
arruinado pelas tropas de Francis Drake e, mais tarde, em 1712, pelos chamados
piratas franceses, sob a chefia de Jacques Cassart. Não se sabe ao certo porquê,
mas possivelmente, porque eram contra a escravidão, contra a desumanidade
do comércio de escravos. Ou talvez tivessem interesses meramente políticos!
– Mais força – comandei, puxando pela corda que segurava a barra de ferro.
– Falta pouco – gritou Zé.
Ouvimos um rinchar da fricção de cimento contra cimento. Marta olhou para
mim e piscou-me um olho e começou a bater palmas de satisfação.
– Ó meu Deus, como é isto possível? Como descobriste isto depois de 420 anos?
– Inquiriu Fátima.
Entreolhamo-nos em silêncio. Levantei-me e sacudi a poeira das mãos.
– Tenho milhares de ideias, mas nenhuma resposta convincente. Com a tampa
fora do lugar, ficou um buraco suficientemente grande para entrar uma pessoa
sem dificuldades algumas.
Um medo esquisito apoderou-se de nós. Queria descer, mas não senti a coragem
suficiente para fazê-lo.
Roberto despejou a sacola que trazia às costas, ali mesmo à frente de todos.
Cordas, lanternas, lâmpadas de bolso, lápis, papéis, máscaras, canivetes e mais.
Com a corda na mão, não vi outra alternativa. Estudei a corda por uns segundos.
O Zé mantinha-se firme e com os olhos atentos a tudo o que se mexia à nossa
volta. Fátima respirou fundo e não disse nada, mas andava preocupadíssima.
Podia ver-se como a adrenalina forçava o coração a bater com mais velocidade.
Analisei as paredes à volta.
– Temos de descer – disse a Marta.
– Porque temos de descer? – Perguntou Fátima.
– Não sei. A curiosidade explica o porquê. Espero que possamos encontrar algo
que nos aproxime daquilo que estamos à procura. Algo que certifique alguma
coisa. Mas como descemos? Isto parece fundo demais. Desces comigo, Roberto?
– Perguntou.
– Precisas de ajudas, Djonzinho? – Perguntou Marta.
Não ouvi a pergunta porque estava demasiado concentrado em solucionar um
problema de segurança. Estava à procura de um buraco ou outro sistema para
segurar a corda. De repente, surgiu-me a ideia de atar a corda na alavanca de
ferro que serviu para levantar a tampa e trancá-la na parte exterior da parede de
onde se via o mar. Enquanto o fazia, o Zé estava a iluminar o buraco de novo.
Depois, segurou a corda com as duas mãos, dando um esticão forte para se certi-
ficar de que ela estava bem segura.
Marta tinha já nas mãos uma lanterna, uma máscara e outras coisas necessárias.
Com a corda atada à parede, pedi ao Zé que ficasse de fora para controlar as
coisas. Eu fui o primeiro a meter a cabeça no buraco e depois desci cheio de cu-
riosidade. Seguiram-me os outros três. O cheiro incomodava, mas adaptámo-
nos, rapidamente, à situação. Uma parede logo à frente constituía um novo obs-
táculo, mas descobrimos, rapidamente, uma entrada numa outra parede que
fazia um ângulo recto com aquela, com uma cruz gravada na sua parte central.
Acendi uma luz e, depois, uma lanterna de mão que trazia no bolso. Fátima pas-
sou para a frente para medir a qualidade do ar. Não detectou bactérias nem ar
contagioso no espaço fechado quase hermeticamente há, certamente, centenas
de anos.
O espaço em baixo era muito maior do que imaginávamos. Passando a porta
com a cruz na parede, descobrimos logo, no lado direito, no meio da parede, um
esqueleto humano. Uma corrente circular ainda segurava o crânio, duas outras
prendiam os esqueletos nos braços. Na parte inferior, os ossos dos pés estavam,
ainda, atados por uma corrente mais grossa. Um arrepio apoderou-se de mim.
Quando me voltei para os outros, vi que se encontravam a uns metros de mim.
Por várias vezes, pensei em sair dali a correr. Segui à frente e percorri um corre-
dor comprido. Uma entrada no lado direito conduziu-nos a um outro corredor.
No fim deste, havia uma porta de ferro maciço. Estava trancada. Por mais esfor-
ço que fizéssemos para a abrir, nada resultaria. Roberto lembrou-se da barra de
ferro. Tínhamos que voltar ao exterior. No exterior, respirámos por uns minutos
o ar fresco com cheiro de maresia. Sentámo-nos em forma de círculo e traçámos
um plano alternativo.
Estávamos à procura dos documentos acerca dos Projectos sobre a restruturação
do poder e o Caminho para o pluripartidarismo em Cabo Verde. Porém, desviá-
mos a nossa atenção para uma outra investigação. Da procura dos documentos,
passámos à procura da história da nossa origem. Todos ficaram surpreendidos
com a descoberta.
A porta era centenária e não, apenas, de vinte anos de idade. Os documentos
deviam estar mais acessíveis. Não trancados atrás de uma porta destas. Mesmo
assim, não podíamos recuar. Roberto atacou afincadamente a segurança da cor-
da para se certificar de que todos estavam seguros e, assim, depositar uma
grande confiança nela. Prendeu-a num canhão centenário mais próximo e reti-
rou a barra de ferro. Da sacola, retirou um martelo e pediu que todos o acompa-
nhassem. Estando de novo lá em baixo, frente à porta, atacou-a sem demora
com a barra de ferro. A porta não se mexeu e nem cedeu. Marta, sentiu a amea-
ça de uma sombra claustrofóbica e pediu a Fátima que a acompanhasse ao exte-
rior. Ficaram as duas na parte de fora e pediram ao Zé para dar um auxílio aos
rapazes lá em baixo. O Zé não pestanejou. Desceu logo com a luz na mão. Fáti-
ma, tinha já marcado o caminho até a porta onde os rapazes se encontravam
com um pó branco que levava no bolso. Chegando lá, o Zé estudou a porta e,
pelo eco que ela emitia, disse aos outros que devia ter pelo menos dez centíme-
tros de espessura. Atacaram de novo a fechadura, mas o calor era tal que não
permitia mais de cinco minutos de trabalho sem que se seguisse uma pausa. Era
possível derrubar a porta, por muito que custasse, era possível.
O plano B estava já traçado na cabeça de Roberto. Aproximou-se e disse:
– Meus senhores, vamos atacar a parede ao lado. A lingueta da porta passa
necessariamente através de uma barra de ferro colocada nesta parede.
tínhamos visto lá em baixo. Estavam perplexas e sempre a olhar para cima e para
as paredes durante a passagem pelos corredores.
Pedi mais luz. Para o assombro de todos, havia em cada prateleira de uma rocha
tosca e rudimentar no outro lado da parede, diferentes esqueletos e muitos crâ-
nios que estavam no chão logo à frente. Mais a adiante, no lado esquerdo, podi-
am ver-se 5 pilares que seguravam o teto. Procurávamos os documentos dos
projectos, buscávamos o oiro, a prata, o bronze, mas só encontrámos a nossa
história e o destino dos nossos antepassados, escritos nos tabuleiros da gruta,
no teto que os pilares, teimosamente, seguravam no chão das ruínas e com o
cheiro incómodo do ar alquímico.
Atrás de um grande monte de ossos, logo à nossa frente, havia uma chapa de
metal prateada cravada na rocha com uma inscrição em latim, com as seguintes
palavras: Magnum opus naturalis – non plus ultra – Vobiscum Lucifer = lucem
ferre – Marc 1:13, 4:15; Lucas 10:18.
Durante uns segundos, pus-me a pensar nos esqueletos, em cada um, isolada-
mente, sem um mausoléu que documentasse o nome que carregava.
Sim um nome.
Talvez um título;
Uma data de nascimento;
O ano do nascimento e da morte;
Se era uma esposa ou esposo;
Uma filha ou um filho morto ao nascer;
Um pai cansado de viver;
Uma mãe cansada de ver os filhos a sofrer;
Um parente qualquer.
Uma catacumba, uma verdadeira biblioteca do passado, solta nas paredes sub-
terrâneas do Porton d’nós Ilha. Que passado? Que trágico momento? Que histó-
ria a contar?
A curiosidade venceu o medo. Roberto apontou com a luz para uma outra divi-
são mais à frente. Ele apressou-se a seguir o caminho, agora iluminado, nas en-
tranhas daquela terrível caverna. Assemelhava-se a um cemitério em que os
ossos se levantaram do sepulcro para uma reunião de protesto. O silêncio era
sepulcral. As paredes emitiam um cheiro insuportável e o teto parecia um céu de
metais, com correntes penduradas. Estávamos numa autêntica gruta arquitecta-
– Que mais é preciso dizer, se aquilo que vemos fala por si?! Que palavra pode
descrever o que vemos aqui? – questionei.
A pressão do ar fez com que algo se movesse no quarto contíguo. Todos se silen-
ciaram durante uns segundos. À nossa volta, os ossos da nossa história, o cheiro
húmido da terra, a nossa desorientação total. Roberto estava ainda com os ouvi-
dos atentos ao que se ouviu no quarto ao lado e já na eminência de entrar no
outro quarto. Fomos atrás dele. No lado esquerdo, havia outro monte enorme
de ossos humanos. Os ossos estavam espalhados pelo chão, sobre as pedras,
penduradas em correntes, amontoados pelo chão, nos buracos, por todo o lado.
Uma catacumba autêntica. Na parede do lado contrário, uma imagem de ho-
mens de chicote na mão. As outras paredes não tinham senão o aspecto rudi-
mentar das rochas da ilha com buracos e prateleiras. Mas logo ao subir pela cor-
da que nos içava, deparei-me com uma outra imagem que ainda carrego na
memória. Desci, novamente, com pressa e preguei os olhos na parede. Duas
imagens belas? A Fortaleza? A Sé Catedral? Não podia ser. O Forte! Tão elegante
no Alto Cutelo! Um nó na garganta silenciou-me. As palavras voltaram em rede-
moinho para dentro do meu pensamento. Pensei: uma outra vida. Uma época
diferente. Passou já muito tempo. Porém, algo procurava manifestar-se em mim.
O silêncio vibrou entre nós. Eu estremeci de contentamento e medo ao mesmo
tempo. Enchi-me de convicção de que aquela imagem estava a olhar para mim
num momento fixo no tempo. Peguei no caderno de anotações e escrevi umas
notas rabiscadas. Escutei o som emitido pela fricção do lápis contra o papel. Gos-
tei do som. Era como se estivesse a ouvir o som dos meus pensamentos. Como
se as palavras rolassem da minha imaginação através dos meus dedos. Um dos
meus pensamentos que escorreu sobre o papel, foi o destino dos projectos.
Aqui, não havia nada que sugerisse o esconderijo dos projectos.
– Vamos sair daqui! – Ordenei.
– Vamos, mas voltaremos depois – informou Marta.
O Zé ouviu com atenção tudo o que nós contámos, com os olhos esbugalhados e
ficou incrédulo. Ele tinha voltado para a superfície, logo após a abertura da pri-
meira porta, trocando de posição com Marta e Fátima, pelo que, não estava,
totalmente, a par da macabra descoberta. Quando acabei de lhe contar o que vi,
ele estava a olhar para o céu. Fiquei com a impressão de que ele não estava a
escutar ou a acreditar em nós e queria uma prova. Só depois de ter aceite o pe-
dido do Zé é que comecei a organizar as impressões.
que ponto, a maldade humana pode chegar. Procurei encontrar uma definição
da nossa história, a causa do que vimos. Não encontrei nada, não consegui en-
contrar uma só razão para as ossadas lá em baixo e nem uma resposta convin-
cente para me acalmar. Por um momento, neguei reconhecer e aceitar a carnifi-
cina como uma expressão de algo diferente do que realmente foi: barbaridade,
maldade, genocídio, estupidez, rancor humano, brutalidade, ignorância total,
etc. Dentro de mim, carregava uma grande expectativa, uma esperança e um
enorme desejo de que tudo o que corria pela minha imaginação no momento,
fosse errado, falso ou mera ilusão. Surgiram diversas perguntas e não queria
encontrar sequer uma resposta satisfatória. O que poderíamos fazer tu e eu?
Poderíamos, na verdade, fazer algo que dignificasse tudo que vimos? Bem, não
podemos devolver a vida aos esqueletos, não podemos ressuscitá-los, não temos
remédios para as suas dores, para os seus desesperos, para o seu luto nem para
o seu sofrimento. Mas, uma coisa podíamos todos fazer: podíamos, juntos, re-
cuperar aquele Cabo Verde que existia, no nosso imaginário, antes da escravatu-
ra, aquele país de Morabeza que bate no coração de todos nós e o torna uma
pérola no oceano. Só, assim, podemos voltar as costas àquele passado barbárico,
à maldade, às matanças e honrar os ideais de todas as boas pessoas que foram
arrancados, impiedosamente, da linha do tempo.
De repente, foi como se todo o interior da cave onde nos encontrávamos, se
enchesse de uma luz intensa, como se mil sóis surgissem do nada. Todo o inte-
rior desapareceu na intensidade da luz e eu tive a impressão de estar a flutuar
no espaço, tendo passado através de algo parecido com um túnel e, seguida-
mente, ouvido algo parecido com uma explosão dentro da minha cabeça. De-
pois, tudo ficou escuro. Tudo era silêncio, durante uns segundos. O ar estava
parado. Totalmente parado e rarefeito. Abri os olhos e descobri que estava ajoe-
lhado no chão.
Tudo era tão irreal. Tudo era inacreditável, surrealista. Ficámos num tremendo
silêncio e comecei a pressentir que algo estaria a escorrer sobre os nervos do Zé.
Senti outra vez um nó na garganta e, depois, um arrepio apoderou-se de mim.
Corri para o Zé e peguei-lhe na mão.
– Vamos embora daqui, Zé – disse.
O Zé não apresentou qualquer resistência. Saímos e procurámos inspirar o má-
ximo possível o ar fresco lá fora. O Zé perdeu a fala por uns instantes. Sou o cul-
pado por tudo isso – pensei. Não é o que estávamos à procura. Isto foi um desvio
janela do apartamento. Marta foi ter dele. Apoiou o seu braço direito sobre o
ombro esquerdo do Roberto, mas este não se mexeu.
– Vamos sentar-nos que temos muito que falar – cortou o silêncio aterrador.
O Zé desviou o olhar da janela, dirigindo-o para Roberto e, depois, para os ou-
tros. Voltou a olhar para a porta por onde entrara. Foi até lá, abriu-a, certificou-
se de que não havia ninguém a espreitar e tornou a fechá-la. Apressou-se em
direcção à mesa triangular. Fixou um olhar penetrante e sorriu.
– Amigos, ainda estamos a sofrer as sequelas dos acontecimentos de ontem.
Não pode ser um sonho colectivo. Aquilo foi e é, infelizmente, real. Porque é que
tudo aquilo significa tanto para nós? Foi ou não realidade o que encontrámos? –
Questionou.
– Estamos perante um achado de importância global e nós entramos num
compromisso de grande envergadura – acrescentou Marta.
Fátima respirou fundo e olhou de relance para a janela onde tinha estado Rober-
to uns minutos antes. Cogitou, profundamente, no assunto a tratar, na conse-
quência que o mesmo iria ter na sociedade, na maneira como iria prosseguir a
investigação. Queria gritar de satisfação pelo achado histórico, mas ao mesmo
tempo, também, de tristeza pela dura realidade ali presenciada. Não sabia por
onde começar a conversa. Sentiu-se desorientada e, ao mesmo tempo, sem co-
ragem. Não podia fazer nada. Havia demasiada verdade no que tinham visto no
dia anterior. Via-se nos seus olhos, sentia-se na sua voz e todos os seus gestos
mostravam o pesar que aquela descoberta causara em si. Todos estavam dema-
siado pensativos. As informações colhidas são uma relíquia a ser preservada so-
bre a história cabo-verdiana. São informações absolutamente secretas, mas dei-
xarão, dentro em breve, de o ser, chocando contra antigos dados que se enqua-
dravam numa meia dúzias de teorias existentes e que nunca tinham sido expos-
tas com tal clareza.
Marta fechou os olhos e relembrou o efémero momento do dia de ontem ao
passar pela Rua Pilon di Pó e Rua Banana, roçando nas folhas de bananeira.
Roberto lembrou-nos de que deveríamos documentar tudo o que encontrámos,
pensando que uma máquina fotográfica daria bastante jeito. Não houve um mí-
nimo desacordo quanto a isso. Roberto teve grandes dificuldades em se contro-
lar, mas nada nele transparecia qualquer nervosismo. Todos marcavam passos
curtos, todos estavam convergidos num só pensamento, talvez procurassem um
XLIV
Alguns dias depois do achado no Forte Real de São Filipe, os elementos do grupo
reuniram-se de novo para auscultar o pulso das investigações privadas. Depois
de muita conversa, a equipa acordou, entre si, como deveria prosseguir dali para
frente sem fazer alarme acerca do que aconteceu. Depois de um silêncio pertur-
bador, o Djonzinho sentiu a necessidade de retomar o caminho deixado para
traz!
- Imagine que numa viagem você se depara com duas opções de caminhos: Um
inexplorado, com uma estrada pedregosa e cheios de espinhos, inóspito, som-
brio, desconhecido. Já o segundo, um pouco mais familiar e do qual se pretende
desvendar algo conhecendo-o melhor, um pouco menos sombrio e com a luz sufi-
ciente para continuar. Qual seria a sua opção? Por onde seguiria viagem? Acredi-
to que seria o segundo – raciocinou o Djonzinho. – Retomemos o nosso raciocí-
nio. Os documentos ou as ossadas? – Perguntei por fim.
– Faremos os possíveis para os encontrar, caro amigo. Podes ficar descansado.
Já temos alguns zunzuns. O suposto criminoso não os tem. O principal homem
arrolado neste crime, também não os tem. Devem estar nas mãos dos seus cola-
boradores, conforme suspeitamos – acrescentou Roberto.
– Portanto, devem tê-los escondido num lugar seguro – comentou Djonzinho.
– Como em todos os crimes, os autores esperam que, tanto a morte como a sua
fuga, venham mais tarde a cair no esquecimento, a fim de voltarem, novamente,
à sociedade e a viverem como um cidadão comum. Embora a sua consciência
devesse pesar de sobremaneira. Os documentos, provavelmente, seriam, mais
tarde, usados como textos de autoria própria, com os quais viriam a elevar-se na
sociedade – disse Marta, continuando – os documentos estão a ser difíceis de
encontrar. Não há, por enquanto, nenhuma luz sobre eles. O caminho está a ser
pedregoso. Será que temos de escolher este caminho apesar de ser pedregoso?
– E se alguém viesse a desconfiar que os textos têm o estilo próprio do seu ver-
dadeiro autor? – Intrometeu Fátima.
– Não pensam assim os autores do crime – corrigiu o Roberto. – Eles sentem-se
omnipotentes e possuem tanta autoconfiança que julgam ser impossível que al-
guém viesse a encontrar os documentos no lugar onde os tinham escondido ou a
desconfiar do seu verdadeiro autor já que afastaram todos os vestígios sobre
quem os escreveu – acrescentou.
Um dia depois, Roberto atirou-me para o colo um exemplar do semanal VOZDI-
POVO e um outro do mensal Terra Nova. O primeiro, trazia uma série de títulos
espectaculares como: “Renato Cardoso foi assassinado”! “Faleceu ontem na
Praia o Secretário de Estado da Administração Pública”. “Hora de bá ê triste”. O
segundo trazia algo um pouco mais crítico: “Terra, bô sabe”? e, no fim, estava:
“esperemos que a verdadeira história seja divulgada um dia”.
Vendo que Roberto estava mergulhado em pensamentos e muito preocupado
para dar um dedo de conversa, pus de lado os jornais, recostando-me na minha
poltrona e deixei-me absorver pelos meus pensamentos. Desenhei de novo o
palco da morte em Quebra-Canela na minha mente. Estava ausente do mundo
real quando a voz do Roberto me chamou à realidade.
– Djonzinho, acho que tens muita razão quando, há dias passados, me falavas
da irracionalidade na maneira como às vezes as pessoas resolvem os seus confli-
tos. Este modo de resolver as contendas é muito irracional. Os que têm medo da
ideia dos outros, procuram eliminá-los para poderem ter paz no espírito. Não
argumentam com antítese porque acham que estão a dar aos outros a possibili-
dade de pensar melhor. Acho que o que estás a pensar, neste momento, sobre o
palco da morte de Renato, é tudo verdade – asseverou.
Djonzinho deu um salto atlético com os olhos fora da órbita, abanando as mãos
sem sequer dizer uma palavra. Depois de ter reparado que o Roberto não fez
caso da sua reacção, retorquiu:
– O que é que estás a dizer? Irracional? – Respondeu surpreendido com o que o
amigo acabara de dizer, pois, condizia exactamente com aquilo que, neste mo-
mento, estava a pensar. – Como podes adivinhar o que estava a pensar? – Admi-
rou.
Caso estranho que ultrapassa a imaginação. O seu amigo reparou que Djonzinho
ficou perplexo. Já lia os trabalhos de alguns autores credíveis que diziam que
uma personagem pode acompanhar pelo raciocínio o pensamento do seu com-
panheiro, mas pensava que eram apenas umas frases soltas no meio de muitas
outras. A partir daí, ficou a desconfiar se o seu amigo possuía esse dom de adivi-
nhar e ler os pensamentos. Reparou no esgar de lábios de Roberto que mantinha
os olhos fixos no teto.
– Meu caro, Djonzinho, os cegos têm a capacidade de usar melhor os seus sen-
tidos porque é como que estivessem com os olhos fechados. Quando te vi com os
olhos fechados e as tuas sobrancelhas a moverem-se em todas as direcções, com
a serenidade na tua face, calculei a probabilidade de estares a pensar no que
acabaste de ler nos jornais que te trouxe, aproveitei, então, a oportunidade para
seguir os teus pensamentos e eles estavam no mesmo nível dos meus, isto é, nos
arredores da praia de Quebra-Canela. Tanto tu como eu, temos o interesse de
resolver o problema do assassinato e já sabemos, mais ou menos, quem mandou
matar o Renato, só não podemos declará-lo culpado por não possuirmos os da-
dos necessários e não podermos usar a dedução como prova isolada. Nenhum
Juiz é capaz de aceitar a nossa dedução como prova final. Temos de ter provas
científicas para juntar à nossa dedução – acrescentou Roberto.
– É muito curioso. Porque é que achas que estava ali a pensar em algo?
– Não acho nada. Assim é a natureza humana. Sei o que estavas a pensar sim-
plesmente observando a tua fisionomia. Esta é o espelho para ver as nossas
emoções. As emoções são em situações iguais, mais ou menos, semelhantes em
duas ou mais pessoas. Ora, não é preciso muito aprofundamento no assunto pa-
ra reconhecer as emoções básicas nas expressões faciais de alguém. Basta incidir
os olhos no semblante do outro para entender se ele está tenso ou nervoso, se
ele está a mentir ou dizer a verdade. Porém, quando elas se misturam, é necessá-
rio deitar um olhar mais afiado, mais atento para detectar algo mais específico.
Uma dica é concentrar-se no lado esquerdo do rosto, onde os sinais de emoções
ficam mais marcados, onde podemos ler com mais clareza os sinais emitidos pela
mente.
Djonzinho deu-se por vencido e ficou calado a cismar. Roberto ao saber que,
muito tempo depois, foi preso um individuo do sexo masculino que estava, su-
postamente, relacionado com o crime de Quebra-Canela, saltou da cadeira e
começou a praguejar.
– As coisas estão a tomar o caminho que eu previa – disse ele. – Desvio intenci-
onal de atenção – acrescentou.
– Sim, ele vai pagar o pato – comentou o Djonzinho.
– Pagar o pato? O que queres dizer?
– Pagar o pato! Pagar o que os outros fizeram, isto é, sofrer as consequências
do que foi feito por outros. A história está cheia de casos semelhantes. Curvando-
se sobre uma nova teoria ou um novo caso, os olhos da população desviam a
atenção para outros planos – explicou.
– É o que estou aqui a pensar!
– Temos de falar com os agentes policiais que prenderam o homem – sugeriu.
Saíram apressados em direcção à esquadra da polícia para falar com os respon-
sáveis pela prisão do arguido. Não era fácil obter autorização para entrevistar
qualquer que seja a pessoa. Depois de muita insistência e sem resultados, resol-
veram sair. Ao sair, deram com um dos polícias que fazia parte da caça ao ho-
mem, agora sob o olhar atento das autoridades. Este estendeu-lhes a mão de
um modo arrogante, mas Roberto apressou-se a perguntar-lhe sobre as circuns-
tâncias em que prenderam o Badiu Boxero.
– Já leram o jornal, meus senhores? – Perguntou ele.
– Sim, senhor agente, já lemos. Peço-lhe que não tome, a nossa presença aqui
como excesso de liberdade, se é que lhe podemos dar um pequeno conselho de
amigo – disse-lhe Roberto.60
O homem enraiveceu e ficou furioso, apontando um dedo ao seu próprio peito.
– Um pequeno conselho, senhores? Sabem com quem estão a falar?
– Sim, senhor agente. Temos estado a reflectir e a estudar este caso e não es-
tamos convencidos de que a equipa que prendeu o Badiu Boxero esteja num bom
caminho. Os nossos conselhos vão ser simples: devem agir com a maior calma
possível, sem desviar as vossas atenções da acompanhante e, possivelmente, de
outras pessoas, sem precipitações! O caso aparenta soluções diferentes. Tendo
agora nas mãos um suposto criminoso, ficam para trás outros elementos escla-
recedores da situação criminosa – explicou Roberto.
60
Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Edições ASA II, S.A., 2009.
– Muito obrigado pela bondade em cá virem e pela vossa presença, mas agora
tenho mais coisas a fazer – replicou o agente policial e abriu o caminho em direc-
ção ao posto de trabalho.
– Estamos a falar pelo vosso bem e pela justiça, senhor agente!
O senhor agente deitou-lhes um olhar malicioso e despediu-se. O grupo seguiu o
seu caminho até à praça pública sem dizer sequer uma palavra. Roberto virou-se
para Djonzinho e disse:
– Precisamos de reflectir mais sobre este caso, Djonzinho. Vejamos: a captura
de um delinquente reforça a nossa suposição de que existe um conluio predeter-
minado neste caso dramático. Sim, que houve uma conspiração bem arranjada.
Esse Badiu Boxero só servirá como bode expiatório. Apresentam-se enormes difi-
culdades para obtenção de certos pormenores indispensáveis para descobrir e
aprisionar os verdadeiros responsáveis e culpados. Sendo assim, o julgamento do
Badiu Boxero é e será uma farsa – assegurou Roberto.
– Sim, isto acarreta enormes dificuldades. A farsa está bem montada. Volte-
mos, em primeiro lugar, à presença inegável de uma acompanhante e ao desa-
parecimento dos documentos que se encontravam no veículo que os conduzira
até aí. Podemos, portanto, desde já, pôr de lado a hipótese de o Badiu Boxero ter
tomado parte no crime – asseverou.
– Então, estamos a raciocinar da mesma maneira. Não esqueçamos que nós
somos investigadores privados e o nosso interesse é desvendar o caso e servir a
justiça. Portanto, não temos o propósito de aprisionar qualquer pessoa. Quere-
mos estar ao serviço da verdade. Vamos lá ver uma coisa importante. Suponha-
mos que alguém, naquela tarde, pretendeu levar a efeito um empreendimento
qualquer, um acto criminoso, no decurso do qual foi morto um individuo ligado
ao poder vigente que, poucas horas antes, teve uma reunião agitadíssima com o
seu chefe. Logo, podíamos pensar que este acontecimento teria aspectos crimi-
nosos relacionados com tal reunião, porque só assim se poderia explicar com
convicção as causas da morte e/ou o seu empreendedor tivesse querido estabe-
lecer uma prova de ausência, um álibi, isto é, estando num lugar diferente da-
quele em que ocorreu o crime na ocasião em que o acto hediondo foi cometido.
Encontrado nas proximidades do local do crime, muito tempo depois, o Badiu
Boxero, parece ser, aos olhos dos agentes da polícia e dos que neles confiam, o
mais verosímil assassino!
Ora, vejamos agora uma coisa importante neste possível conluio. Se o Badiu Bo-
xero estivesse envolvido no crime, não faria ele, caso estivesse nos seus cinco
sentidos, o máximo que pudesse para estabelecer uma prova de ausência, um
álibi, nas horas e dias próximos da data do assassinato? – Perguntou Roberto.
– Estou a ver o teu raciocínio – comentou Djonzinho.
– Alguém poderia perguntar: porque é que o Badiu Boxero se encontrava no lu-
gar ou próximo do lugar do crime na altura em que foi preso? Sim, é lógico per-
guntar! A esta pergunta, responderia que há probabilidades de ele ser “planta-
do” lá com o fim de ser preso e desviar as atenções do público e das investiga-
ções. Qualquer pessoa podia atraí-lo para o local, simplesmente, oferecendo-lhe
umas gramas de narcóticos ou coisas semelhantes! Isto explicaria perfeitamente
tudo, não achas? Pois bem, se achares isto lógico, julguemos então, o caso à luz
destas informações e raciocínios. Podemos ainda, perguntar que interesse teria o
Badiu Boxero em executar tal acto e quem lhe pagaria para executar um acto tão
hediondo! Posso desde já acrescentar que devido às relações anteriores entre a
vítima e a acompanhante, nada pode afastar de mim a ideia de que pudesse,
também, haver na nossa história, alguma causa passional. Esta causa pesa de
sobremaneira na análise do caso em que estamos debruçados. Ou, podemos
imaginar uma combinação de causas tecidas e premeditadas pelo empreendedor
ou empreendedores.
Vamos, em seguida, analisar alguns casos de interesse que os meios de comuni-
cação de massas abordaram na altura, apoiando assim o raciocínio do grupo:
O jornal “Notícia” trazia na manchete o seguinte:
“Vítima de homicídio”
Renato Cardoso, 38 anos, Secretário de Estado da Administração Pública, foi assassinado com
um tiro de revólver, no dia 29 de Setembro, nas proximidades da praia de Quebra-Canela.
Renato Cardoso encontrava-se acompanhado de Judith61, sua amiga de infância, desde os
tempos que frequentou a Igreja Nazarena, em São Vicente.
Sobre as circunstâncias em que ocorreu o assassinato, pouco se sabe, para além das versões
que citam a acompanhante de Renato Cardoso, única testemunha do crime. Segundo dados
mais fiáveis, o disparo mortal ocorreu cerca das 19:30 horas. O malogrado Secretário de Es-
tado chegaria ainda vivo ao hospital cerca das 21 horas. (...)
61
Nome fictício neste romance
Ainda segundo fontes hospitalares, Renato Cardoso lutou durante uma hora contra a morte.
Foi nesse espaço de tempo que descreveu o assassino como “alto, forte e escuro”. Após essa
luta contra a morte, sucumbiu durante a operação.
A notícia da morte foi comunicada à esposa pelos ministros João Pereira Silva, Júlio de Carva-
lho e Irineu Gomes.62
Perguntemos por que não houve um simples agente da polícia judiciária que
tenha acompanhado estes políticos na comunicação do óbito à esposa da víti-
ma?
Alguns dias mais tarde o mesmo jornal, questionava:
62
“Noticias” – 1 de Outubro de 1989.
63
“Noticias”. 1 de Dezembro de 1989 – Eduíno Santos e Tozé Barbosa.
64
Moreira, José Carlos – Não há crimes perfeitos? Edições ASA II, S.A., 2009.
nada em que nos possamos basear para uma busca em terreno profundamente
lavrado, revolvido pela charrua.
Pondo todas as coisas (os cacos) no seu devido lugar, temos então, a possibilida-
de de ter havido um conluio político, um envolvimento económico ou passional.
Depois de ter sabido das diversas possíveis causas através de conversas com
pessoas da aldeia e indivíduos com relações amistosas com o assassinado, pro-
pomos então uma combinação de causas a considerar.
A acompanhante, possivelmente, não teria perpetuado o assassínio com as suas
próprias mãos, mas nós não podemos permitir que tal situação de incerteza con-
tinue, uma vez que esta se encontrava presente e, por conseguinte, sabe de tu-
do. Porque se nega, então, a testemunhar o caso hediondo perpetuado sobre o
seu melhor amigo?
– Foi, certamente, contratada e bem remunerada. Houve meditação prévia.
Deve ser a conclusão mais lógica que podemos tirar do caso – respondeu o Djon-
zinho.
– Não foi possível penetrar a fundo no mistério do acontecimento. A falta de li-
berdade de imprensa sufocava as pessoas, servindo-se do medo. Portanto, as
perspectivas não eram muito tentadoras. Isto significa que, tentando nos imiscuir
em assuntos que entravam na esfera política da altura, mesmo numa atmosfera
de crime que ainda cheirava muito a fresco, sabendo os perigos da aproximação
do alvo e o facto de nos estarmos a colocar numa situação ilegal, contribuía para
refrear o nosso entusiasmo na resolução do crime – explicou Roberto.
– O que me causa dor de cabeça e que muito me preocupa é o por quê de pren-
deram o Badiu Boxero – tornou a insistir o Djonzinho.
– Ora essa, caro amigo. Como disse antes, prenderam uma outra pessoa para
fazer o povo crer que tinham os olhos voltados para outro lado. Sendo assim,
davam aos verdadeiros criminosos um sentimento de paz espiritual e o tempo
necessário para se afastarem o mais depressa possível e de dar a impressão que
a acompanhante nada tinha a ver com o crime – explicou Roberto.
– Não estou convencido desta dedução que, no entanto, parece bastante lógi-
ca. Queria…
– Não podemos prender e ao mesmo tempo culpar alguém sem primeiro ouvir
as suas declarações. Toda a história da humanidade se encontra repleta de
exemplos de assassinos que nunca são apanhados. Contudo, algum tempo deve-
ria ainda decorrer antes que o homem “alto, forte e escuro” recebesse a sua pa-
ga. Ele ou ela e os seus colaboradores devem lembrar-se do velho axioma que
diz: quando todas as hipóteses falham, o que resta, apesar de improvável, deve
ser a verdade. Ainda não provamos todas as hipóteses. O trabalho policial, se
entendermos bem as coisas, está terminado, mas o trabalho legal, não deve ter-
minar ainda. As leis não são tão más a ponto de condenar uma pessoa sem cul-
pa. Sabemos, entretanto, que há regimes que estão sempre acima das leis, e que
há pessoas relacionadas com tais regimes que se prontificam a colocar-se acima
das leis, o que dificulta as investigações e, por isso, não podemos ser categóricos
na nossa dedução. Mas nós não estamos à procura de provas legais, porquanto
não podemos fazer nada para resgatá-las. Pensamos, no entanto, que haveria de
decorrer algum tempo antes que o tigre solto de Quebra-Canela seja apanhado –
discorreu Roberto.
– E caso não o apanhem? – Perguntou o Djonzinho num jeito frustrado.
– Aqui está o problema maior de muitos crimes. Os associados no assassinato,
com muita astúcia e audácia que os caracterizava, conseguiram, desde o primei-
ro momento, despistar os investigadores, afastando todos os vestígios necessá-
rios para uma investigação rigorosa – esclareceu Roberto.
– Só espero que a Justiça, embora demorada, venha a ter um fim feliz – comen-
tou o seu interlocutor.
– Suponhamos agora, Djonzinho, que o crime nunca seja resolvido. Sabemos,
por nossa dedução, que terá havido um cúmplice. O assassino, a companheira e
um mandante. Portanto, a trilogia para armar uma emboscada à vítima foi, pro-
vavelmente, assim:
Causa
politica
RC Nero
Jutith Bettencourt
Causa Causa
económica
passional
o seu domínio. Logo em 1975 fez a lei de boatos (decreto-lei 36/75) que punia autores de
rumores contra o Estado e seus dirigentes. Em 1976 com o decreto-lei 95/76 as forças de se-
gurança e a polícia, podiam prender qualquer pessoa durante um total de cinco meses sem
culpa formada. Em 1977 avançou com o tribunal militar (decreto-lei 121/77) constituído por
juízes nomeados sob proposta do ministro da Defesa que podia julgar civis classificados pela
polícia como subversivos. Essas leis só foram revogadas pela Assembleia Nacional Popular em
Maio de 1990. Sob o chapéu legal assim criado durante quinze anos, o exército e a polícia,
constituíram-se como força de protecção do regime e dos seus dirigentes e todos os méto-
dos, incluindo tortura, foram utilizados para reprimir dissidências e crimes. A vontade do re-
gime em usar de todo este aparato nunca foi posta em causa. Sempre que se sentiu ameaça-
do agiu forte e duramente. Por isso, toda a gente estranha que o assassínio de um membro
do governo, tenha ficado por resolver. É crença geral, e a História confirma, que não são en-
contrados culpados nos assassinatos de graúda em regimes autoritários ou totalitários (Hum-
berto Delgado, Sergey Kirov,) quando os crimes têm ramificações políticas. No caso de Rena-
to Cardoso, o porta-voz do regime apressou-se logo no dia seguinte a garantir que não havia
motivação política. O programa de viagens dos dirigentes não se alterou. O Primeiro-ministro
Pedro Pires, manteve a viagem para os Estados Unidos e o Presidente da República Aristides
Pereira, acompanhado do Ministro das Forças Armadas e Segurança, partiu para Angola dois
dias depois. Segundo relatos vindos a público, a polícia judiciária portuguesa chamada para
investigar, concluiu que a cena do crime não foi, convenientemente, salvaguarda e possíveis
indícios do crime perderam-se. A sociedade cabo-verdiana, como bem ilustra a folha de jornal
até hoje presente na montra do Djibla em S. Vicente, ainda pergunta “quem matou Renato
Cardoso"? A angústia perante o hediondo crime, contudo não impede que se celebre a vida
desta figura marcante da vida política, cultural e intelectual de Cabo Verde.65
Num outro artigo muito parecido, escrito por um jornalista de renome, intitula-
65
Publicada por Humberto Cardoso. Quinta-feira, 1 de Dezembro de 2011. Opacidade de regime
e morte de Renato Cardoso.
66
Carlos Fortes Lopes/ carlosforteslopes4@gmail.com. 22 MAIO 2015. PUBLICADO EM OPINIÃO.
XLV
Todos os aniversários são lembrados pelos amigos de peito. Todas as vezes que
sofremos os efeitos do mau funcionamento na Administração Pública, recorda-
mos o homem valente que queria desafiar a burocracia lá do Alto Cutelo, pro-
movendo que cada indivíduo tivesse acesso ao seu direito inscrito na Constitui-
ção da nossa República.
A mesma pessoa escreve em Lisboa:
Neste triste aniversário, como seu amigo, sinto-me na obrigação de informar os cabo-
verdianos que Renato Cardoso, pouco tempo antes de ter sido abatido por um profissional
que não deixou pistas, tinha sido convidado para trabalhar fora da sua terra, a troco de uma
proposta milionária – que ele recusou – porque, como dizia, a sua gente precisava dele.
E precisava mesmo. Só que já passaram quinze anos sobre o som dos tiros assassinos e a sua
gente já nem se lembra do dia. Os seus pupilos, aqueles em quem ele depositou as suas espe-
ranças, têm, pelo menos, que honrar a sua memória, a sua honradez de carácter, a sua cren-
ça num Cabo Verde para todos os cabo-verdianos.
Há um silêncio muito pesado à volta do assassinato de Renato Cardoso...
Descobrir quem foi, porque foi, não trará de volta o Renato, mas é um dever que nos cabe
sim. A minha fé de então (1989) nos cabo-verdianos e na pureza do seu carácter tornava ain-
da mais hediondo e incompreensível o crime. Mas sempre achei que caberia primeiro ao país,
aos governantes, dar a conhecer melhor quem foi Renato Cardoso. E tentar, também, provo-
car alguma pesquisa sobre a sua morte. Mas se calhar eu estava enganada. A sociedade civil
unida poderia, pelo menos, tentar informar-se e começar a agir. Nunca será tarde.67
Nunca será tarde se houver vontade dos responsáveis lá do Alto Cutelo, pois isto
é um problema de Cabo Verde e, por isso, político.
67
http://africandar.blogspot.com/2009/07/renato-cardoso-e-os-seus-amigos.html. Com a devida permis-
são.
XLVI
A trompeta do silêncio
Neste capítulo, soa a voz do silêncio. O silêncio perturbador que fala da indife-
rença votada a um ente querido, mas sobretudo, uma voz perturbadora que fala
nas poesias dedicadas post mortem ao malogrado, juntamente com a voz da sua
própria poesia.
Uma voz clara, atinente e persuasiva, que se propaga no nosso ser como ecos do
passado. Um ser que funciona como um radar que reflecte as ondas sonoras do
tiro na praia de Quebra-Canela, ondas que tocam o nosso ser, roçam os pés das
nossas almas, trazendo nas suas línguas a salitre das nossas lágrimas, os gemidos
das nossas dores, constante e teimosamente.
Quando não podemos ou não temos a capacidade de fazer o deslocamento do
inconsciente, a nossa “consciência pesada”, os lamentos e recordações, recor-
rem frequentemente ao nosso Ego, e eis um dos lamentos da nossa consciência
colectiva:
Um Silêncio perturbador
A Renato Cardoso – in memoriam
Estrangulada verdade,
Gemidos de Quebra-Canela
Indiferença
A Renato Cardoso, post-mortem
69
– O autor em 29.09.09
Uma lembrança
A Renato Cardoso, 20 anos depois
70
– Esta poesia e as seguintes tiveram influência de um poema de Augusto dos Anjos. O autor,
em 29.09.09.
71
O autor em 29.9.09.
Zanga
A Jomaveiga
72
O autor em 10.08.10
Eis aqui alguns poemas de Renato, tal qual cantadas e interpretadas por Ildo
Lobo:
73
Aludindo a Carlos Veiga
74
Escrito no dia de publicação do livro Marcas Lamentáveis da luta pela democracia em Cabo
Verde, de José Manuel Veiga, 10 de Agosto de 2010, fortemente influenciado pelos poemas de
Augusto dos Anjos.
Alto Cutelo
Na Alto Cutelo
Cimbron dja catem (dja seca)
Raiz sticado
Djobi agu c’atcha (dja seca)
Agu sta fundo
E omi ca tral (dja seca)
Mudjer um simana
Se lumi ca cendi (na casa)
Ses fidjos na strada
Só um tâ trabadja (pa dozi mirés)
Marido dja dura
Qui bai pa Lisboa (contrado)
Contratado (contratado)
Pa bai pa Lisboa
Ê bendi sé terra (metadi di preço)
Ali el ta trabadja
Na tchuba na bento (na frio)
Na Cuf na Lisnave
E na Jota Pimenta (explorado)
Terra Bô Sabê
Tera bo sabê kê mistid um xis tantu
Pa kada homem vivê sima gente
Ó tambor bazio,
N'abuze d'partidja ma renda
P'aquês ki ka trabaia.
Cremos que poucas são as homenagens deixadas a Renato Cardoso. Isto é injus-
to, porque ele merecia mais do que estas palavras curtas, mas profundas de um
amigo.
XLVII
O desfecho
Neste nosso meio pequeno, há quem conheça o assassino ou, pelo menos, tenha
ideia do seu perfil, mas não existem provas palpáveis para o incriminar. A im-
pressão digital é prova, um revólver com cheiro de pólvora é prova, mas um in-
vestigador convencido não é prova nenhuma, não importa a sua eloquência e
erudição no assunto em questão. Uma resposta convincente do por quê, nada
significa se não se encontrar um como e vice-versa. Pensamos que estávamos
numa altura avançada do processo em que uma pesquisa técnica nos forneceria
elementos importantes para nos aproximar de um melhor esclarecimento. Mas
temos sempre à nossa frente um elemento crucial que nos importuna: o motivo.
Por que mata uma pessoa outra? Qual é o motivo que a leva a tal procedimento?
Sentados na varanda da sua moradia, Roberto e Djonzinho, filosofavam sobre as
razões da morte de um grande amigo há muitos anos atrás. Queriam encontrar
uma razão convincente que justificasse a morte e quem estaria por detrás deste
projecto tão engenhoso, tão hediondo, tão desumano.
Uma simples resposta a estas perguntas, mas não de menos importância, é: por-
que ele ou ela tem algo a ganhar ou ainda, porque ele ou ela agiu com base no
ódio que alimentava contra a vítima.
Roberto meneou a cabeça, assentiu e acrescentou:
– Motivo passional: ciúmes, rejeição, vingança e outros.
Djonzinho não disse nada.
– Ou talvez, tal indivíduo, se encontre num estado de demência, de psicose… –
disse Roberto, acrescentando – de doença mental.
Djonzinho ficou em silêncio durante mais uns segundos.
– Sabemos que o estatuto de doente mental, é uma expressão que explica a
causa da maioria dos assassínios cometidos no mundo, mas na verdade, não é o
motivo principal ou causa da matança. Há pessoas que acreditam que o assassí-
nio, em si, é uma prova de demência, podendo este ser premeditado ou não, mas
a maior parte das liquidações, é racional. É intencional. Da mesma maneira que é
racional, a razão que o move pode ser a procura um ganho material, constituin-
do um tipo de criminalidade aquisitiva ou económica. Isto, também, é um pro-
cesso racional, na medida em que, envolve um raciocínio prévio sobre o acto,
sendo concretizado com base em motivações que tentam justificar a necessidade
de ser praticado. Por meio de uma razão subjectiva, procura-se expressar uma
vontade, tornando-a palpável e concreta, munindo-se de uma auto-legitimação
para alcançar aquilo que se deseja, independentemente dos meios necessários
para tal, o que podemos chamar de redenção emocional, uma vez que, nestes
casos, apesar de haver um raciocínio prévio, assente em motivações lógicas para
o assassino, este rende-se às suas próprias emoções, inibido de as controlar, ren-
de-se e age em nome delas – acrescentou o Roberto.
– O assassino pode ter uma ideia de que matar apazigua a dor derivada do
ódio, do medo, dos ciúmes, do espezinhamento, do racismo e de outras descrimi-
nações. Mas se matar é, muitas vezes, um acto racional, podes explicar ou dizer-
me com quantas pessoas assassinas e satisfeitas já te deparaste ao longo da tua
carreira?
Roberto assentiu com a cabeça sem dizer coisa alguma.
O silêncio apoderou-se do momento. Os presentes ficaram atentos à resposta. O
tribunal da consciência entrou em actividade. Se há pessoas assassinas orgulho-
sas pelo acto de ter morto outra, o Tribunal da Consciência deve estar repleto de
clientes. Roberto virou a cara para Djonzinho e disse com tibieza:
– Nenhuma. Sabemos que muitos que matam sentem-se decepcionados e arre-
pendidos depois da sua acção criminosa. Mas isto não descura a racionalidade
posta no decorrer da acção vingativa, desde que o assassino acredite que ele ou
ela alcançará a redenção emocional. A vingança, em si, é doce na fantasia, mas o
estado da consciência de estar a andar pelas ruas da cidade e das aldeias, mata
aos poucos e é amarga.
Ao rematar esta escrita, ficamos a dever ao leitor uma promessa, tantas vezes,
desejada durante a leitura deste livro, a promessa que o leitor assíduo gostaria
de encontrar ao longo de toda a obra. Não fomos capazes de satisfazer essa
promessa e temos penas de não o fazer. Entretanto, ela encontra-se implícita na
escrita de alguns amigos proeminentes da cultura cabo-verdiana, porquanto o
autor não a tem. Vejamos alguns aspectos apontados no que se segue:
O Jornal África……
Um amigo escreveu-me de Lisboa, queixando-se da falta de atenção dada à mor-
te de um grande companheiro seu, alguém que iria melhorar, consideravelmen-
te, as condições políticas, económicas e sociais de Cabo Verde. Na carta que me
dirigiu, dizia:
Devo confessar a minha surpresa por este seu contacto, sobretudo, por vir de tão longe e fei-
to por alguém que – tudo o indica – não viveu o drama que foi o assassinato de um dos Ho-
mens mais importantes de todo o século XX de Cabo Verde. A morte de Renato Cardoso rou-
bou ao país a possibilidade de, nos anos seguintes, ter podido construir uma liderança coesa,
forte, inteligente, capaz de fazer a Cabo Verde aquilo a que, em alguns dos meus textos de
então, chamava “A Suíça de África”.
A ideia de um romance policial decalcado dos acontecimentos de 29 de Setembro de 1989 e
dos dias que lhe antecederam, é capaz de – na impossibilidade de lhe dar a natureza de uma
narrativa histórica – ser útil. É que a morte do meu grande amigo está relacionada com a
conquista do poder que se seguiu (e que já vinha de outros tempos mais recuados).
Daí as suas dificuldades em obter informações. Morto, Renato Cardoso deixou o caminho
aberto.
Tive a oportunidade de falar com um inspector da Polícia Judiciária Portuguesa, que, na altura
foi a Cabo Verde para ajudar as investigações. As conclusões dele foram: foi obra de um pro-
fissional, não deixou uma pista, sequer.75
Mais, num tom, talvez de frustração, mas de uma forma independente e categó-
rica, como jornalista de grande porte internacional, desabafou num artigo intitu-
lado “O Fim de um Projecto”:
75
Leston Bandeira referindo ao Jornal “África”
vínhamos falando desde 1978, altura em que ele era delegado da ANOP na Guiné Bissau e eu
professor cooperante no Liceu da capital.
Voltarei mais tarde a estes pormenores.
Interessa, agora, falar do telefonema de Renato Cardoso, nessa dita quinta-feira, …durante o
qual, utilizando uma linguagem mais ou menos cifrada, me pediu para ir à Cidade da Praia (eu
estava em Lisboa), porque precisava muito de falar comigo.
Estava com receio… palavra esquisita para quem o conheceu. E explicou: o Presidente da Re-
pública, Aristides Pereira, tinha-o chamado para, no meio de uma conversa rendilhada, lhe
dizer que o Carlos Veiga, o jurista que mais dinheiro ganhava em Cabo Verde naquela altura,
o tinha informado que ele, Renato Cardoso, andava a manobrar nos bastidores para formar
um partido político alternativo ao PAICV.
Estávamos numa altura em que o PAICV, sob o impulso de Renato Cardoso e de Pedro Pires,
se preparava para terminar com o sistema de partido único. Ao contrário do que a maioria da
opinião pública cabo-verdiana pensava na altura, o adversário da abertura era Aristides Perei-
ra.
Renato Cardoso era uma inteligência ímpar. Em Cabo Verde, só Amílcar Cabral se lhe pode
comparar. Sabia que o sistema de partido único tinha acabado. Ele tinha feito parte de uma
delegação do PAICV que, na sequência das conversações para a Independência da Namíbia,
retirada das tropas cubanas de Angola (pormenores de que falarei lá mais para a frente), ti-
nha permanecido em Cuba durante mais de uma semana – Pedro Pires chefiava tal delegação
– tinha tentado convencer Fidel de Castro que o sistema de partido único não funcionava em
África.
Renato Cardoso, quando passava frente à multidão que se preparava para assistir ao Festival
da Baía das Gatas, em S. Vicente, de onde era natural dizia: "estão aqui trinta mil pessoas, eu
conheço 15 mil, as outras 15 mil conhecem-me a mim". E sorria!
Se havia alguma unanimidade em Cabo Verde naquele ano da graça de 1989 – em Setembro
– chamava-se Renato Cardoso. Ele poderia ter feito a transição de forma inteligente, sem ter
que dividir a sociedade cabo-verdiana como Carlos Veiga fez, apoiando a campanha da insídia
contra os dirigentes de então, feita através do boato, da calúnia, dos panfletos anónimos,
que ele nunca condenou e de que sempre se aproveitou.
Renato Cardoso foi abatido a tiro, numa emboscada em que, de alguma forma, participou
uma mulher. Foi considerado um crime passional, levado a cabo por um marginal, que nunca
chegou a ser identificado, numa situação absolutamente indefensável. Perdeu, de uma vez
só, a vida e o prestígio.
Mais tarde, conversei com um dos inspectores que a Polícia Judiciária Portuguesa mandou a
Cabo Verde para ajudar nas investigações. Estava estupefacto com o profissionalismo de
quem tinha eliminado todas as pistas...
Informações de outra natureza levam-me a concluir, de maneira insofismável, que aquele en-
contro foi preparado contra o Renato.
Sem Renato Silos Cardoso, o caminho ficou livre para Carlos Veiga, que, de resto, de forma
pública e notória, se organizava politicamente para aparecer como alternativa ao PAICV. Aca-
bou por ganhar as eleições em Janeiro de 1991.
É verdade que nesse mês de Setembro fui à Cidade da Praia, mas demasiado tarde: o Renato
já estava enterrado e a minha dor foi ampliada pelo facto de ter sabido que David Hoppfer
Almada – um dos seus mais pertinazes adversários – tinha feito o elogio fúnebre do meu
amigo.
Fui mostrar, com os olhos, o meu descontentamento. Pedro Pires estava fora, em viagem de
Estado, tínhamo-nos encontrado no aeroporto de Lisboa, sem palavras.
Aos que, de alguma maneira, estão interessados nesta narrativa, devo uma explicação: Cabo
Verde beneficiou claramente da minha actuação como jornalista: primeiro, como correspon-
dente da ANOP e depois como director de um jornal especialmente direccionado para a pro-
blemática africana (Jornal África). Todavia, esse benefício tinha como único fundamento a
convicção profunda – que hoje mantenho – de que o único povo que tinha beneficiado com a
Independência tinha sido o de Cabo Verde.
Naquele país, depois de ter deixado Angola e ter passado pela Guiné Bissau, encontrei a terra
a que gostaria de chamar minha e os homens a quem gostei de considerar camaradas. Do
ponto de vista profissional, todavia, sempre cumpri o meu dever. Para ilustrar este facto,
mais tarde, descreverei o modo como consegui entrar no domínio de alguns "top secrets" da
diplomacia cabo-verdiana, facto que lhes provocou alguns dissabores.
Este parêntesis serve igualmente para se entender a pressa que tenho de explicar a relação
do "África" com o poder saído das eleições de Janeiro de 1991. 76
76
Leston Bandeira no http://o-romeiro.blogspot.no/2005/07/o-fim-de-um-projeto.html
77
Manuel Faustino, Inforpress, 13.10.2016. AT/JMV.
Para finalizar, podemos tirar algumas ilações depois de ler o que diz a comunica-
ção de massas sobre este assunto delicado relatado ao mundo. Foi um crime
premeditado? Esta conclusão sobre a premeditação ou não, fica na posse dos
leitores atentos. Mas devia ser acima de tudo, pura e simplesmente, uma con-
clusão da Polícia Judiciária se houvesse uma PJ independente e judiciosa. Entre-
tanto, o Povo faz a sua Condenação, porque nem a mediática nem a judiciária de
então, tiveram a coragem suficiente para elaborar ou fazer um juízo de valor
sobre este assunto tão delicado e tão subestimado.
78
http://inforpress.publ.cv/politica/134096-sao-vicente-renato-cardoso-foi-vitima-do-regime-de-
partido-unico-afirma-manuel-faustino.
79Dados extraídos do livro Liberdade, ainda e sempre…,editado pela Associação dos Combaten-
tes da Liberdade da Pátria (ACOLP), em Julho de 1997.
Epílogo
Um homem chamado Renato Silos Cardoso estava a ser incómodo para muita
gente e, por isso, devia ser excluído dentre os vivos.
Um homem bem-trajado de nome Nero, ocupara um quarto seguro na cidade da
Praia, com vista para o Seminário de São José. Dispunha de um aposento bem
apetrechado, com um estilo ultramoderno. Acabara de se barbear e usava um
perfume de marca francesa. Quando deu por si à frente do espelho, estava a
limpar a nuca com a ponta de uma toalha branca humedecida. Estremeceu
quando a sineta da porta tocou. Dirigiu-se à porta com uma certa desconfiança.
Abriu-a e uma pessoa entregou-lhe uma carta. Fechou a porta quando o homem
saiu. Foi-se sentar perto da escrivaninha quando o telefone tocou. Levantou-se e
pegou no auscultador ao quinto toque, ouviu uma voz não muito familiar do
outro lado da linha. Depois as coisas aconteceram com rapidez. Algumas horas
depois, o país inteiro ficou boquiaberto. Um assassinato na praia de Quebra-
Canela. Ninguém soube quem matou Renato. Se o Nero se envolveu. Se a acom-
panhante. Se foi um crime autorizado. Se foi um crime passional. Se foi um crime
político. Até hoje nada se sabe. Uma grande dúvida foi arremessada pelos ares
do país. Depois, o mergulho no silêncio de um crime votado ao esquecimento
que é o maior inimigo da verdade e um silêncio perturbador!
Badiu Boxero surgiu no dúbio cenário para justificar a morte executada por um
outro, para preencher a lacuna existente e impor um silêncio desconfortável
para confundir a opinião pública. Num outro cenário diferente, surgiram duas
amigas a vasculhar os grandes porquês, mas sobretudo, para satisfazer a vonta-
de própria e a do povo cabo-verdiano.
Para encerrar este romance, lembremos de uma mulher histórica que decapitou
a cabeça de Holofernes para salvar sua nação. Surgiu de rompante na cena cri-
minal cabo-verdiana uma outra mulher com o mesmo nome, digamos, para sal-
var as irreverências da época, as convenções e o patrulhamento ideológico que
alastrava a passos firmes no extracto social cabo-verdiano. Era de importância
capital travar um homem e todos aqueles que com ele comungavam a mesma
opinião, isto é, romper o silêncio perturbador em que toda a sociedade cabo-
faces desumanas, deve ser contada doutra maneira. Hoje, o povo é livre. É livre
para, pelo menos, contar o que passou. Livre comparado com o povo daquele
tempo que passou. Em nome do Direito e da Justiça, deve ser ainda mais livre,
para falar no rosto dos outros sem condenação prévia. Renato continua a cantar
a mesma canção de outrora, com a mágoa original que lhe enchia o coração,
sem, porém, estar ciente do facto. O gesto de cantar a mágoa não é nem peca-
do, nem crime. Mas o gesto de se sentir espezinhado, sem voz, sem direito e
justiça, já é Pecado com letra maiúscula.
Numa tarde de Setembro de 1989, disparou um revólver em Quebra-Canela.
Numa outra em 2009, duas amigas, juntaram-se para recordar um amigo co-
mum, que foi morto a tiro e que fazia neste preciso ano, vinte anos sobre a sua
morte. A tarde toda foi usada para refletir sobre os possíveis atalhos do crime
cometido e quem o cometeu. As duas procuraram, desesperadamente, encon-
trar a verdade depois de tantos anos idos sem nenhum caminho que as condu-
zisse à meta desejada. Elas, apesar das dificuldades, negaram-se a desistir do
projeto e, pouco a pouco, obtiveram uma mais clara imagem do acontecimento,
da paixão que matou o amigo, da fantasia, da mentira acerca da morte e da em-
brulhada que fizeram do assassinato. As duas têm uma imagem quase certeira
de como o mesmo foi premeditado. Certo é que existe um assassino à solta. Cer-
to é que foi morto um grande amigo. Certo é que há uma engrenagem bem ca-
muflada. E, muito mais certo é: que houve uma meditação prévia.80 É a coisa
mais certa que existe neste nosso mundo.
Todas as investigações de cunho privado não tiveram sucesso por razões de or-
dem vária. Entretanto, não foram em vão porque tiveram um desfecho diferente
do previsto, trazendo à luz uma parte da história que ainda se conservava debai-
xo dos nossos pés.
80 A Bala Mágica que matou o Dr. Renato Cardoso, de José Manuel Veiga, 1994.
A biografia do autor
Nascido no sítio de Monte Tabor da Ilha do Fogo – Cabo Verde, iniciou os seus
estudos secundários na escola de Maria Antónia do Rosário em São Filipe e de-
pois no liceu Adriano Moreira, hoje Domingos Ramos, na cidade da Praia, inter-
rompido pelos serviços militares no Mindelo e na Cidade da Praia.
Depois dos serviços militares, ingressou como professor no ensino primário onde
exerceu esta função durante dois anos. Emigrou, nos fins de 1973, para Noruega,
onde chegou a 4 de Janeiro de 1974. Retomou os seus estudos secundários, depois
dos quais frequentou a Faculdade de Matemática na Universidade de Oslo, capital
da Noruega, depois de ter terminado o curso obrigatório de Examen Philosophi-
cum (Ex-Phil) que dá acesso a estudos académicos. A paixão pela medicina fez
com que desse um salto à Faculdade vizinha – o Instituto da Farmácia, onde se
licenciou em 1984, com uma dissertação no campo da Microbiologia que afecta
as infecções genitálias, fortemente embasadas nas doenças venéreas, saindo do
Instituto com o título formal de Master in Pharmacy.
Nos estudos de pós-graduação tem uma longa experiência e especial conhecimen-
to na área da quimioterapia – tratamento e sequelas da quimioterapia nos pacien-
tes do Hospital da cidade de Sarpsborg durante mais de um ano de serviço no
mesmo hospital.
Trabalhou durante muitos anos em diversas farmácias e em 1999 tornou-se em-
presário e proprietário de duas farmácias em Bodø, Noruega, ao norte do círculo
polar, tendo depois iniciado funções como director de uma farmácia em Oslo,
onde ainda permanece.
Foi coeditor do livro A Odisseia Crioula, com o irmão António Barbosa da Silva
em 1990 e] – 1992, publicado pela Editora Alpha-Beta- Sigma e Kulturkonfronta-
tion – Kris eller möjlighet? [Confrontação cultural crise ou possibilidade] Uppsa-
la: Alpha-Beta-Sigma, 1988. Publicou a Anatomia da Lonjura em 2015 numa
versão electrónica e em 2016 em suporte de papel.
Alguns livros a publicar:
- Eugénio Tavares e suas mornas – in printing
- Uma colectânea de poesias migratórias – in printing
- Cicatrizes – in printing
ISBN 978-82-992928-7-0
Alpha-Beta-Sigma - Norway