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ssw e767 junto 2014 28 Escola de Psicandlise dos Féruns do Campo Lacaniano — Brasil st lus REVISTA DE PSICANALISE eee A causa do desejo e suas errancias I escola de psicandlise dos féruns do campo lacaniano - brasil Stylus revista de psicandlise Stylus | Rio de Janeiro | n°28 | p.1-160 junho 2014 © 2014, Escola de Psicanslise dos Foruns do Campo Lacaniano (AFCL/EPFCL-Brasil) ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista podera ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permisslo por escrito Stylus Revista de Psicanslise £ uma publicagao semestral da ASsOCIAGAO FORUNS DO CAMPO LACANIANO/ESCOLA DE PSICANALISE DOS FORUNS DO CAMPO LACANIANO ~ Brasil. Rua Goethe, 66 ~ 2° andar. Botafogo. Rio de Janeiro, RJ Brasil. CEP 22281-020 - www.campolacaniano.com.br ~ revistastylus@yahoo.com.br ‘Comissio de Gestao da afcl/epfcl-Brasil CONSELHO EDITORIAL Diretora: Delma F. Gongalves Ana Laura Prates Pacheco (EPFCL-Sao Paulo) Secretéria: Andréa Milagres Andréa Fernandes (UFBAJEPFCL-Salvador) Tesoureira: Madalena Kjuri Angela Diniz Costa (EPECL-Belo Horizonte) Angela Mucida (Newton Paiva/EPFCL-Belo Horizonte) Angélia Teixeira (UPBA/EPFCL-Salvador) Equipe de Publicagao de Stylus Bernard Nominé (EPFCL-Franga) Ida Freitas (coordenadora) Clarice Gatéo (FIOCRUZ/EPFCL-Rio de Janeiro) Angela Costa Conrado Ramos (PUC-SP/EPFCL-Sio Paulo) Conrado Ramos Christian Ingo Lentz Dunker (USP/EPFCL-Sao Paulo) Geisa Freitas Daniela Scheinkman-Chatelard (UNB/EPFCL-Brasilia) Lia Carneiro Silveira Edson Saggese (IPUB/UFRJ-R10 px Janeiro) Luis Achilles R, Furtado Eliane Schermann (EPFCL - Rio de Janeiro e Petropolis) Silvana Pessoa Elisabete Thamer (Doutora em filosofia Universidade de Paris TV - Sorbonne) Indexagao Eugenia Correia (Psicanalista-Natal) Index Psi periddicos (BVS-Psi) Gabriel Lombardi (UBA/EPFCL-Buenos Aires) www.bvs,psiorg br Graga Pamplona (EPFCL-Petropolis) Helena Bicalho (USP/EPFCL-Sio Paulo) Editoragao Eletronica Henry Krutzen (Psicanalista/Natal) Bde Designs Comunicagiio Kéitia Botelho (PUC-MG/ EPFCL-Belo Horizonte) Luiz, Andrade (UFPB/EPFCL-Paraiba) Tiragem Marie-Jean Sauret (U. Toulouse le Mirail-Toulouse) 500 exemplares ‘Nina Aratijo Leite (UNICAMP/Escola de Psicandlise de Campinas) Raul Albino Pacheco Filho (PUC-SP/EPFCL-Sio Paulo) Sonia Alberti (UERWEPFCL-Rio de Janeiro) Vera Pollo (PUC-RJ/UVA/EPFCL-Rio de Janeiro) FICHA CATALOGRAFICA STYLUS: revista de psicanalise,n. 28, junho de 2014 Rio de Janeiro: Associagio Féruns do Campo Lacaniano Escola de Psicandlise dos Féruns do Campo Lacaniano ~ Brasil - 17x24em Resumos em portugués e em inglés em todos os artigos, Periodicidade semestral, ISSN 1676-157X. 1. Psicanslise. 2. sicanalistas ~ Formacdo. 3. Psiquiatria social. 4. Psicanslise lacaniana, Psicandlise e arte, Psicandlise¢ literatura. Psicanalisee politica DD: 50.195 sumario 07 EDITORIAL: Ida Freitas CONFERENCIA 13 Colette Soler: Desejo no singular, desejos no plural ENSAIOS 25 Ronaldo Torres: O Campo Lacaniano ¢ 0 desejo 33. Maria Helena Martinho: Mishima: entre o amor e 0 desejo 41 Raul Pacheco: Dom Quixote, Sancho Panga, a errancia do desejo e mais-além. TRABALHO CR{TICO COM CONCEITOS 51 Ana Paula Lacorte Gianesi: A inexisténcia e a insensate7: hiancia causal e 0 gozo do falasser 59 Beatriz Elena Maya Restrepo: Relagio entre sublimagao ¢ desejo 67 Dominique Fingermann: Desejo ¢ repetigio 79 Manel Rebollo: Desejo: dasein lacaniano 91 Marcia Assis: Sobre o amor, o desejo ¢ 0s parceiros DIREGAO DO TRATAMENTO 99 Silvia Lira Staccioli Castro: 0 importante papel do humor na dire¢ao da cura 109 Luciana Guarreschi: As exigéncias do manejo transferencial €0 desejo do analista 117 Miriam Ximenes Pinho: Na vertigem da dor: oluto na zona entre os vivos e os mortos ENTREVISTA 133 Colette Soler entrevistada por Dominique Fingermann, RESENHAS 141 Jairo Gerbase: A crianga em nds Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 2 p1-160 junho 2014 contents 07 EDITORIAL: Ida Freitas CONFERENCE 13 Colette Soler: Desire in the singular, desires in the plural ESSAYS 25 Ronaldo Torres: The Lacanian Field and the desire 33. Maria Helena Martinho: Mishima: in between love and desire 41 Raul Pacheco: Don Quixote, Sancho Panza, the wandering of the desire and far beyond CRITICAL PAPER WITH THE CONCEPTS 51 Ana Paula Lacorte Gianesi: Inexistence and foolishness: casual hiatus and jouissance of the speakbeing 59 Beatriz Elena Maya Restrepo: Relationship between desire and sublimationy 67 Dominique Fingermann: Desire and repetition 79 Manel Rebollo: Desejo: dasein lacaniano 91 Marcia Assis: About love, desire and partners THE DIRECTION OF THE TREATMENT 99 Silvia Lira Staccioli Castro: The important role of humor in the direct of the cure 108 Luciana Guarreschi: The demands of the transferring maneuvering and the desire of analyst 116 Miriam Ximenes Pinho: In the vertigo of the pain: mourning in the zone between the living and the dead INTERVIEW 132 Colette Soler interviewed by Dominique Fingermann REVIEWS 141 Jairo Gerbase: The child in us Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 2 p1-160 junho 2014 Editorial Quando os membros da Escola de Psicanslise dos Foruns do Campo Lacaniano, em 2012, definicam como tema para o VIII Encontro Internacional da IF EPFCL “Os paradoxos do desejo”, pareceu a alguns, a prinefpio, que estarfamos optan- do por certo retrocesso no ensino de Lacan, um retorno ao campo lacaniano da linguagem sem, as implicagdes e avangos que as Gitimas formulagdes lacanianas do objeto a, do real, ¢ do campo do gozo trouxeram a teoria ¢ & pratica analitica No entanto, 0 que pudemos constatar ao longo desses dois anos de trabalho, tendo 0 desejo como tema principal de nossos estudos, pesquisas e transmissio, foi o quanto 0 conceito de desejo, seus paradoxos, suas errancias, indetermina- hese determinagoes, especialmente se situado numa perspectiva que vai além do Eedipo, levando em conta a auséncia de correspondéncia entre os sexos, mantém. sua centralidade e atualidade Isso se demonstrou no XIV Encontro Nacional da EPFCL - Brasil, ocorrido em Belo Horizonte em outubro de 2013, momento em que partilhamos 0 que desenvolvemos até aquele momento, sobre o tema “O desejo e suas errancias”, que por isso dé o titulo para a Stylus 28, que traz em sta maioria, textos apre- sentados nesse encontro. Mais uma vez, nesse niimero de Stylus, contamos com a experiencia, o rigor € 4 propriedade com que Colette Soler desenvolve e apresenta suas ideias a respeito da psicandlise de orientacdo lacaniana. Durante o referido encontro, Colette So- ler realizou trés conferéncias que iremos publicar, sendo a primeira no presente iimero de Stylus e as outras duas na Stylus 2. A primeira das trés conferéncias, que abre os textos da Stylus 28, recebeu o titu- lo de “Desejo no singular e desejos no plural”, em que a autora desenvolve o tema a partir da biparticao do desejo em desejo com objeto e desejo sem objeto, desejo finito e desejo infinito, para mostrar as claboragées, a0 longo de uma década, fei- tas por Lacan sobre o fundamento de que o desejo ¢ produzido pela falta Outra formulagio importante que Soler comenta é a de que “o desejo & sempre desejo de outra coisa", que ¢ um desejo mais préximo ao wunsch, a0 voto, & as piracZo, E que a insatisfagio caracteristica dessa forma de expressio do desejo é muito destrutiva, na medida em que “esvazia o cotidiano de sua substancia, em nome de uma vaga aspiragio. Assim ele engendra a inelicécia, a inadaptagao ¢, também, a dor”. O ponto central da Conferéncia “Desejo no singular e desejos no plural” esta no destaque a evidencia de que nao hé desejo que nao vi em diresa0 um mais-de-gozar. Na seco Ensaios, esto dispostos trés textos. Escolhemos, para abrir essa se- ‘40, 0 ensaio “O Campo Lacaniano e o desejo”, exatamente porque, fazendo jus Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p7-10 junho 2014 FREITAS, Ido 20 titulo, o autor, Ronaldo Torres, ressalta a pertinéncia do retorno ao tema do desejo, demonstrando como Lacan, para além da dimensio clinica, ocupou-seem sustentar @ psicandlise no mundo com base em seu proprio discurso. E pergun- tando-se sobre o que se transmite em um tratamento analitico, o autor articula ato, desejo € lago social. ‘A seguir, Maria Helena Martinho recorre & literatura com muita propriedade, para expressar seus argumentos que versam sobre a divisdo subjetiva entre amor € desejo, E assim que, por meio do romance do virtuoso escritor japonés Yukio Mishima, Confissdes de uma méscara, a autora vai circunserevendo a cada etapa da vida do escritor, jf que esse é um romance autobiogrfico, a presenga da cliva- gem determinada a partir de seus investimentos libidinais, para demonstrar uma aproximagao muito cara ao ensino de Lacan, entre 0 movimento pulsional do escritor, que passa do amor ao desejo, ¢a topologia da banda de Moebius. Encontramos no terceito ensaio “Dom Quixote, Sancho Panga, a errancia do desejo e mais-além”, de Raul Pacheco, que também recorre & passagens da lite- ratura clissica para ilustrar seus arguments, uma pergunta central em torno do que é passivel de transformagao na relagio do sujeito com seu modo de gozo, para além da repeticio do mesmo que a crrancia do desejo implica. Na secio Trabalho critico com os conceitos, contamos com cinco artigos que, & maneira prdpria de cada autor, vao trazendo elementos importantes para a am- pliagao da reflexdo em torno do desejo. Comecamos com “A inexistencia ¢ a in- sensatez: hiincia causal ¢ 0 gozo do falasses”, que iniciando com um poema € concluindo com outro, procura em seu desenvolvimento demonstrar por meio de algumas formulagées ~ chaves de Lacan, como o Real subverte o gozo filico. A autora, Ana Paula Lacorte Gianesi articula de modo claro e consistente a praxis com a teoria, percorrendo um trajeto que vai do goz0 filico ao gozo nao - todo por meio das categorias do necessério, contingente, possivel e impossivel. Em “Relacio entre sublimacio e desejo”, a autora opera uma revisio considers- vel do conceito de sublimagao. Parte das nogdes de sublimagao, desejo e saber re- ferenciando-se ao seminario A ética, para se perguntar quais as possiveis relagées ¢ diferencas entre essas nogdes. Beatriz. Elena Maya Restrepo apresenta e discute dois paradoxos: um relative & sublimagio e 0 outro ao desejo. Dominique Fingermann apresenta suas elaboragdes referentes ds possiveis ax- ticulagdes entre os conceitos de Repeticdo e desejo, termos dispostos no titulo de seu artigo. Procede a seu desenvolvimento entre os conceitos em trés tempos. No primeiro tempo por meio da pergunta: “Como a questao da repeti¢aa se apre- sentou na clinica do desejo tanto para Freud, quanto para Lacan?”. No segundo, demonstrando como “Lacan retomou a articulagao topologica dos dois: 0 desejo como efeito da repetigdo e a repetigao como efeito do dizer, ou seja, a repetigao do Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p7-10 junho 2014 Editorial traco undrio como efeito do Um-Dizer e causa do sentido do desejo, Um de senti- do”. Eno terceiro, fazendo coro aos autores em Stylus 28, que recorrem literatura, confirmando a profunda afinidade da psicanilise com a arte, comenta alguns dos romances de Marguerite Duras, por considerar que “sua obra permite vislumbrar a articulagdo da ética da repeticao com a extravagancia do desejo: pas-de-deus”. No quarto artigo dessa seco, o autor parte do wunsch freudiano, percorrendo diversos momentos do ensino de Lacan para demonstrar sua tese presente no titu- lo “Desejo: Dasein lacaniano”. Distingue duas concepedes do Dasein como “ser ai” como Das Fin, “O Um, o qual iré relacionar ao final da anilise. ustifica 0 uso do termo heideggeriano, na sua concepgao de interpretagao, como o que localiza o de- sejo do sujeito em um instante precedente, depois do qual o sujeito jé nao esté af, a interpretagio daseina do desejo do sujeito. Nesse trajeto, 0 autor procura localizar as virias maneiras com que Lacan situou o desejo nas dimensdes imaginaria, sim- bolica e real, elacionando-o aos quatro conceitos fundamentais, e também com os quatro discursos, fazendo uma aproximacio do desejo com sua escritura, Rebello finaliza seu desenvolvimento, destacando a fungao desejo do analista. “Sobre o amor, o desejo e os parceiros” é 0 artigo que conelui a segao Trabalho critico com os conceitos, onde Marcia de Assis aposta nos efeitos de uma anilise sobre a questio amorosa. A autora tece uma declinacio do amor em sua relacio com 0 desejo como respostas ao axioma “nao hi relagdo sexual”, partindo do amor em sta ignorancia do desejo, passando pelo amor de transferéncia, enquan- to condicao e obstaculo do tratamento ¢ chegando a um amor mais digno, aquele que nao acredita no parceiro, porém o reconhece em stia “tinicidade solitaria’ A segao Diregao do tratamento retine mais tres promissores artigos que apre- sentam precisas articulagdes da teoria com a praxis. Perguntando-se sobre o que Lacan quis demonstrar com as formulagdes em torno do conceito de transferén- cia e seu manejo clinico, como a do fechamento do inconsciente como efeito do amor de transferéncia, e a respeito da fungao obturadora do objeto a, bem como 420 apontar para a instalagao do sujeito suposto saber, Luciana Guarreschi, que intitula seu trabalho de “As exigéncias do manejo transferencial eo desejo de ana- lista” entrelaca fragmentos clinicos com a teorizacao da transferéncia, chegando & fungao do desejo do analista nesse percurso. Em “Na vertigem da dor: o luto na zona entre os vivos ¢ os mortos", Miriam Ximenes Pinho, baseada na singularidade de um caso clinico que traz a questo da claboracio psiquica do luto, recorre as obras de Freud, Lacan ¢ Allouch sobre fo tema, a fim de articular e extrair trés aspectos envolvendo teoria e clinica do luto, que nomeia de “na vertigem da dor”, “o estatuto do morto” e “o luto entre 0 recordar €0 repetir’. Encerramos essa segio com “O importante papel do humor na diregao da cura’, Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p7-10 junho 2014 FREITAS, Ida em que a autora procura articular um caso clinico de um sujeito obsessivo, que padece da tirania superegoica, ao personagem Giovani Mazonni, interpretado no filme A familia, sendo 0 humor o lago que amarra ficgdo e realidade psiquica. A Entrevista com Colette Soler aqui publicada, realizada por Dominique Fin- german, & consequéncia de uma solicitagio da Comissio Cientifica do XIV Encontro Nacional da EPFCL ~ Brasil, “A causa do desejo e suas errancias”. Na ocasito do encontro @ entrevista foi publicada parcialmente no jornal O Estado de Minas, ¢ consideramos oportuno apresenti-la na integra na Stylus 28, que tem como fio condutor 0 mesmo tema do referido encontro. Conclutindo mais este ntimero de Stylus, temos a satisfagao de apresentar na se- «0 Resenha, nas palavras de Jairo Gerbase, olivro A crianga em nds e sua autora, a psicanalista Sonia Magalhaes, que, ao reunir uma série de artigos referentes & psicandlise e crianga, demonstra sua extensa contribuigao a psicandlise e ao Cam- po Lacaniano, para elinica com criangas Esperamos, com os trabalhos aqui reunidos, oferecer ao leitor um caminho para redescoberta ¢ atualizagao da nogao de desejo no Campo Lacaniano. (Oproximo niimero da revista, Stylus 28, continuardabordando esse mesmo tema, € encontraremos, além de outros instigates trabalhos, as segunda e terceira con- feréncias pronunciadas em Belo Horizonte por Colette Soler, em outubro de 2013, Em nome da Equipe de Publicagao de Stylus, desejo a todos boa leitural Ida Freitas Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p7-10 junho 2014 conferéncia Desejo no singular, desejos no plural Colette Soler Vou falar, hoje, aqui, em Belo Horizonte, sobre o tema “Desejo no singular, Desejos no plural”. Eo titulo que escothi, Farei primeiro um pequeno panorama para chegar ao que estou desenvolvendo mais, atualmente, Os paradoxos do desejo foram percebidos na Filosofia e na Literatura antes da Psicanilise. Mas, é ela, a Psicanilise, que permite dar conta do desejo. Esses paradoxos jd estdo presentes nas das expressoes de Freud que falam de um tinico desejo no singular, inconsciente, desconhecido, portanto, do sujeito e, além disso, indestrutivel. Com Lacan, compreendemos que esses paradoxos tem sua légica. EB todos esses paradoxos provém do seguinte:a causa do desejo nao &0 objeto do dese- jo, Em outros termos, 0 desejo enquanto tal, nio tem objeto que lhe seja apropriado. Concretamente, ha duas grandes formas do desejo: ha desejos sem objeto ~ so ‘os que erram, no sentido de errancia, precisamente, e ha os desejos com objeto, que sao desejos de algo. Os primeiros portam a marca da infinitude. Os segun- dos, ao contratio, sio os que Lacan (1962-63/2005) chamava, no Semindrio 10: a angistia, de desejos finitos, ou seja, no sentido de fixados em um objeto preciso. "Toda a questo & saber como € que esses desejos finitos se constroem, Se observarmos 0 ensino de Lacan, ele insistiu, no inicio, sobre a dimensao de infinitude do desejo, © desejo como simples voto, aspiragio, que participa de ‘uma vaga espera, sem objeto, e que inventa objetos imagindrios sem consisténcia, E por isso que ele pode dizer que o tédio, a prece, a vigilia, sfo todos nomes do desejo. E até mesmo o nada é objeto do desejo. © fundamento estrutural desse desenvolvimento que agradou muito e conti- nua, alids, agradando, € simplesmente o fato de que o desejo é engendrado a par- tir da falta. E podemos seguir passo a passo as elaboracdes de Lacan sobre esse assunto: inicialmente, ele disse que o desejo € feito, negativamente, de lingua- ‘gem; portanto, o desejo como efeito do significante, pelo fato de falarmos. Sobre esse ponto nés encontramos uma bela formula no texto A Direcdo do Tratamento (LACAN, 1958/1998): 0 desejo é trazido pela morte, isto é, ele € trazido pela morte que alinguagem veicula. Dessa forma, ele é um vetor que nao sabe para onde vai Um passo a mais no ensino de Lacan & sua conceitualizagio sobre 0 objeto a como causa do desejo. Causa do desejo, porque ele ¢ 0 objeto que falta. A expres- Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p13-21 junho 2014 SOLER, Colette sho que define o objeto a como objeto que falta se encontra em 1976 no Preficio 4 edigao inglesa do Seminério 11 (LACAN, 2003, p. 569). Em seguida, ele diz “objeto subtraido pela operagao de linguagem’; isso esti no Semindrio 10: a an- giistia, Depois ele diz, em Radiofonia, em 1970: “E o maior efeito da linguagem” (LACAN, 2003). Lacan elaborou por uma década o fundamento de falta no desejo e éesse fundamento de falta que determina a fenomenologia e a temporalidade do desejo, com seus paradoxos. © primeiro deles, poderiamos enuncié-lo: “o desejo € uma fénix’, ele renasce de suas cinzas, apés cada satisfacdo. E o que fez, sem diivida, com que fosse construida uma grande oposigdo entre o desejo sempre insatisfeito e o gozo, que € uma experiencia de satisfagao. Como dizia um comediante inglés ~ acho que é Bernard Shaws, mas nao tenho certeza ~ existem duas coisas terriveis na vida: nao satisfazer seu desejo e satisfa- zé-lo. Em seguida, e isso também faz parte do paradoxo, a formula mais eminente do desejo: 0 “desejo de outra coisa”. Lacan falou muito sobre isso, Que éum desejo mais perto do Wunsch do que do Wille, mais perto do voto, da aspiracao, do que da vontade. Temos muitos exemplos disso na literatura. Pensei em dois exemplos, mas no sei se voces conhecem: O Deserto dos Tartaros' ¢ © Marinheiro de Gi- braltar, de Marguerite Duras, dois romances onde se espera 0 que nunca vem. O desejo de outra coisa & muito deletério, destrutivo. O desejo de outra coisa recusa todos os objetos atuais, assim como a ago que o presente exigiria. Ele esvazia 0 cotidiano de sua substancia, em nome de uma vaga aspiracio. Assim ele engendra a ineficécia, a inadaptagao e, também, a dor. Lacan dizia: “podemos querer nao gozar, mas nao podemos querer nao desejar”. Pois querer nao desejar 0 possivelmente desejével é uma forma de desejo. Mas é um desejo vazio. £ claro que o neurético, na sua estratégia, se serve desse paradoxo que consiste, em geral, em escolher mais o desejo insatisfeito do que o desejo satisfeito. E, mais precisamente, em suspender as satisfagdes para sustentar o desejo. Quer seja sob a forma de se furtar, do histérico, da mortificagao, do obsessivo, ou do evi- tamento fobico. E Lacan, na época em que exaltava o desejo, dizia que 0 neurstico nao esta tio mal colocado na escala humana, porque ele leva em conta os parado- x0s do desejo. E um cumprimento feito ao neurético, Depois ele mudou de ideia Bom, todo esse desenvolvimento de Lacan, que eu resumo rapidamente, ele mesmo o corrigiu, ou melhor, o completou. E por isso que nao basta dizer que 0 desejo & sua interpretagao para se dispor da teoria lacaniana do desejo. Nao posso seguir todo 0 scu trajeto, mas & um trajeto que permite colocar em evidéncia que no ha desejo que nao va em direcJo a um mais-de-gozar, em direcdo a um goz0, 1 Romance escrito pelo italiano Dino Buzzati em 1940. Us file homuimo fi produzido em 1976 pelo diretor, também italiano, Valerio Zurn Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p.13-21 junho 2014 Conferéncia de abertura do XIV Encontro Naclonal da EPFCL~ Bras 25/10/2013, que, no entanto, ndo o estanca. Fo que significa a extraordinéria formula de Lacan que qualificava o desejo como a “aporia encarnada”. Aporia é uma referéncia a lin- ‘guagem e causa linguageira, eo encarnada € uma referencia ao que € vivo e& carne. No Semindrio LL, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicandlise, Lacan (1964/2008, pp. 235-6) foi bastante explicito ao responder uma pergunta de Sa- fouan: “compreenda”, diz ele, “que o objeto do desejo é o objeto causa e que esse objeto causa € 0 objeto da pulsio”, Lacan diz, ainda, que nem tudo do desejo € agido na pulsio. Hé também desejos vazios, desejos loucos. Podemos dizer, entao ~ eu nao sigo todo o trajeto ~ que desejo é um vetor infinito em razo da sua cauisa que ndo cessa de faltar. Mas, para cada um, 0 desejo fica dando voltas em. um pequeno perimetzo. Ou seja, 0 vetor infinito fica dando voltas sobre si mesmo. £ isso que a formula da fantasia escreve: a fixagao a um objeto que satisfaz, mas nao preenche a hiancia; um mais-de-gozar sempre indissociavel de um menos. Bom, agora vou fazer uma pequena digressio. En penso que esquecemos facil- mente dessa estrutura em todas os comentarios que pululam hoje em dia sobre capitalismo. Porque se fala, frequentemente, do capitalismo como o regime do gozo 2 qualquer preco. As vezes podemos nos perguntar se a dimensio do desejo nio desapareceria em nome de uma vontade de gozo. Nao é a leitura de Lacan. E também isto nao corresponde aos fatos. Na verdade, creio que é uma aberracio falar isso da estrutura. E claro que é certo que 0 capitalismo oferece os pequenos mais-de-gozar de sua produgao. E chega, mesmo, a impor sua tirania por toda sorte de procedimentos. Mas é justamente o oposto do que seria um gozo total, todo, Supondo que se soubesse o que &0 g070 todo. Esses produtos do capitalismo que produzem as fixagdes podem chegar até a adicao. Fala-se muito da adigao aos objetos do capitalismo, mas eles so, assim como o objeto da fantasia, estritamen- te sindnimos de uma falta de gozo, Essa tese & explicita no texto de Lacan que se chama Radiofonia, quando ele nota que a regencia da causa que 0 mais-de-gozar, assinala, eu cito, a “sede da falta-de-gozar” (LACAN, 1970/2003, p. 434). E justa- mente 0 contrério do que as pessoas vem dizendo por ai Isso € 0 que diz. Lacan. Vamos aos fatos. © que se vé nos fatos? Em todo lugar onde o capitalismo prospera, nao ha realmente nada que evoque que estio todos banhados no gozo. Mas, o que vemos? Depressio, morosidade, angiistia, tédio, desvario, dispersio, impoténcia geral. Tantos afetos, que voces poderiam me con- testar: mas existem também figuras triunfantes do capitalismo. Por exemplo, do lado do successful, do sucesso, o que temos € a excitacio competitiva que quando cessa, af aparece a depressao. Sao todos esses afetos que indicam a presenga in- discutivel do fato de que em todo lugar onde consegue resolver as necessidades primarias de sobrevivencia, o capitalismo faz arder 0 desejo de outra coisa. Eisso € um desejo perigoso, como eu dizia antes. Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p13-21 junho 2014 SOLER, Colette Bom, para a Psicandlise, o problema central nao & qual é 0 bonus do capitalis- mo. Ha um problema que se desdobra: é saber o que fixa o desejo em cada caso particular. E, especialmente, o desejo sexual. Porque quando se fala do desejo no discurso comum, a gente pensa logo em sexo. E 0 sexo nio é uma forma indeter- minada do desejo, ao contrario, é um desejo fixado. E. muitas vezes sob condighes muito precisas. Na Psicanilise trata-se de saber como esse desejo sexualmente fixado se instaura, E uma questo, porque os desejos agidos na pulsio, dos quais, Lacan falava em 1964, esses desejos nao conduzem ao parceito sexual. Eis 0 pro- blema. “A pulsao”, dizia Lacan, “é a realidade sexual do inconsciente”, Ou seja, € 6 go70 que resta para o falante. Porém, Lacan acrescentava: “essa é uma verdade insustentavel”. Mas por que insustentavel? Acho que ¢ insustentivel justamente porque a pulsdo ndo conduz a0 parceiro sexual, quer seja homo ou hetero, esse parceiro. As pulsdes procuram, eventualmente, 0 objeto do lado do parceiro, Lacan dizia mesmo que ele s6 tem acesso ao corpo do parceiro pelas pulsées parciais, mas nao sio elas que condu- zem ao corpo. Sabemos que as pulsdes se satisfazem de intimeras maneiras fora da relagio com o parceiro sexual. Para comecar, aquelas que se qualificavam de perversas na época clissica: voycurismo, exibicionismo, sadismo ete. Porém, as pulses se satisiazem, sobretudo, na deriva metonimica ~ termo de Lacan ~ da linguagem. Isso significa que elas se satisfazem bem além do erotismo, na politica, na literatura, na arte... sem colocar em jogo 0 corpo a corpo com 0 casal. No fundo, podemos dizer, de outra forma, o fato de que as pulsdes nao condu- zem ao parceito. Lacan dizia, “voces sabem, sem dtivida, que a pulsio € 0 eco no corpo do fato de haver um dizer”. E necessirio precisar: hd um dizer de oferta que parte do Outro. E, com efeito, o corpo responde a esse dizer. E isso que engendra as pulsées. Um dizer que demanda que a boca va ingerir 0 alimento e entio 0 corpo responde, Ou seja, ele repercute, responde, através da erogeneizagao da boca. A boca, que a partir de entio, nao sera preenchida por alimento algum. No que con- cerne & pulsio oral, anal, escpica e invocante, todas vem do dizer do Outro, mas no ha nenhum dizer dirigido aos érgios genitais, ao qual 0 corpo responderia, faria eco através da erogencizacio genital. Dai a questi: afinal, o que leva & rela- «a0 de corpo a corpo sexual, a0 fato de existir um desejo sexual? Se nao éa pulsio, devemos pensar que ¢ 0 proprio desejo, que leva a0 outro corpo. Mas, rumo a qué o desejo se dirige? Parece, as vezes, que ele se dirige ao parcei- ro, homem ou mulher. Mas, na verdade, cle se dirige ao mais-de-gozar que se aloja ai, E isso vale, inclusive, para a relagao de corpo a corpo. O que Lacan formulow de forma simples e categérica, em Radiofomia: ele dizia que a relagao tomada pelo sexo & como qualquer uma, articulada a partir do mais-de-gozar. Para o homem, {sso supée identificar 0 parceiro ao objeto a; e para a mulher, reduzi-lo a0 falo, isto Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p.13-21 junho 2014 Conferéncia de abertura do XIV Encontro Naclonal da EPFCL~ Bras 25/10/2013, &, como o penis reduzido ao drgdo da detumescéncia, ou seja, a0 inverso da sua fungio real. Fis 0 que ele diz acerca do que seria 0 parceiro de cada lado do sexo. Eu sublinho esse termo de reducdo. O desejo que se diz sexual parece conectar 0 desejante como seu desejado, mas a grande descoberta da Psicanilise, com Lacan, E que o desejo s6 conecta o desejante a0 objeto a. Por estrutura, entdo, o desejo nao 6 sexual. Entio, mesmo quando aproxima os corpas, ele nao faz relacio. “Todo esse desenvolvimento, eu resumo aqui: na copulagao dos corpos a que 0 desejo parece conduzir, o que esta em jogo mesmo é 0 mais-de-gozar. Com tudo isso ainda nao se sabe o que é necessario para que um desejo tome a forma de um desejo sexual. E necessario, é claro, a causa como objeto que falta, que procure um, ‘mais-de-gozar, mas nao & uma condigao suficiente, porque o mais-de-gozar tem. outras formas além da forma sexuada. A questao é, portanto, muito simples e até rua, O que é necessario para que o desejo leve para a cama? A cama mais do que a outros lugares, A cama, mais do que ficar fazendo prospecgao do continente, ou. fazer a guerra, escalar uma montanha ou fazer carreira, procurar a novidade na iencia, ou o belo ¢ o trash na arte. © que é preciso para que 0 outro corpo, notadamente o corpo do Outro sexo, vire causa de desejo, jé que as pulses nao bastam? Quais sio, enti, as respostas, possiveis da Psicandlise? As de Freud so conhecidas. Ele respondeu: “é preciso 0 Edipo comas identificagdes que produze que no fundo permitem, mal ou bem, e apesar de todos os acidentes sintométicos, a0 menino ou & menina saber mais ou. menos o que tém que fazer para abordar o outro sexo". Esta éa primeira resposta de Freud, que desenvolvo, e Lacan a retoma com a Metifora Paterna, em 1955. Ele reevoca em 1964 em Posigdo do Inconsciente (LACAN, 1998), ¢ isso poderia ‘querer dizer: é preciso 0 Nome-do-Pai. Bom, é um tema bastante extenso, mas eu gostaria de falar algumas palavras so- brea Metifora Paterna, Antes de tudo, se trata de uma metifora social que coloca © pai como o Outro da mie. Pai e mie é 0 par social, porém, ao mesmo tempo, é uma metéfora sexual. Se voces estudaram esses textos sobre a metfora em ques- to, viram que a operagéo dessa metéfora é fazer aparecer que o desejo da mie, que é simbolizado pela sua auséncia, ou seja, pelos seus vaivens ~ pela operagio de metifora; esse desejo da mie se torna desejo determinado pelo falo, ou seja, um desejo filico, que a partir dai pode ser enderecado aquele que nao € privado do falo. Assim, a metéfora nos constréi um modelo de casal hete- rossexual, que era suposto orientar desejo dos meninos ¢ das meninas para a descendéncia, indicando aonde deveria ser encontrado 0 falo que the faltava. E preciso dizer que essa metifora fazia do Nome-do-Pai a condicao do casal heterossexual, dando a esse casal um status diferenciado daquele do lago social da familia. Evidentemente, temos que nuangar um pouco ¢ levar em conta as mil- \determinado Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p13-21 junho 2014 SOLER, Colette tiplas adverténcias de Lacan, que insiste em dizer que o Nome-do-Pai nio € 0 Pai. Isso deve ficar claro, Nao é o chefe de familia. Isso nio impede que o proprio Lacan (1956-57/1995) no Semindrio 4: a relagao de objeto, no momento em que estava construindo a Metifora Paterna utilizando a fobia, nos explique que o que faltou da funcdo paterna do pequeno Hans foi o pai real, ou seja, aquele que come a mie. Com isso, a gente apreende que a Metéfora Paterna é uma metifora do casal heterossexual, construfda sobre © modelo social. és vemos, logo, as dificuldades que se apresentam, imediatamente. Com essa metafora, & impossivel conceber a homossexualidade a nao ser como anomalia. © que é um drama para os psicanalistas lacanianos que nao conseguiram seguir Lacan até o fim. E mesmo para aqueles que nao leram Freud suficientemente, jé que Freud (1905/1996) desde 1915 em uma nota que actescentou aos Trés Ensaios Sobre a Sexualidade, dizia de forma extremamente categérica e embasada que a homossexualidade nao é uma perversio, nao € uma anomalia. Em geral, nenhu- ma escolha de objeto pode decidir qual a estrutura clinica Por outro lado, como nao perceber que essa metafora esta em perfeita conti- nuidade com aquilo que o discurso do mestre faz desde que ele existe? Ou seja, conceber ¢ organizar a relagio entre os sexos como um lago social, no qual, como Lacan definiu, sempre ha um termo que comanda 0 outro, como o mestre coman- dao escravo, Temos casais homélogos a isso: 0 rei ea rainha, 0 esposo e a esposa. E, alifs, todo o vocabulirio sobre o amor na literatura do século pasado é um vo- cabulirio de relagdes de dominacio. E, as vezes, mesmo de relagies de guerra, en- tre um que cede e outro que domina, mesmo que o papel possa ser intercambiado entre os dois. Por exemplo, no caso do amor cortés o poder é da dama. Portanto, foi crucial passar, como Lacan o fez, para além do Edipo, ou seja, para além da Metafora Paterna, que tornava 0 casal heterosexual homem e mulher solidario como casal social pai e mae. ‘Além disso, Lacan foi, nao somente pluralizando 0 Nome-do-Pai. Ele traz 0 Nome-do-Pai, que € 0 pai que nomeia, 0 pai do nome. Essas teses, forgando um, pouco, ainda poderiam estar de acordo com a Metifora Paterna. A grande obje- cio consistentea Metifora Paterna enquanto metéfora sexual éa formula “Nao ha relagio sexual” que a gente repete, e temos que ver o que cla implica. Ela implica que nao hé lago social entre os corpos sexuados, Lacan (1974/2003) formula isso em Televisio, dizendo: “as histérias de amor” ele fala de amores sexuados ~ "sho clivadas dos lagos sociais”. Ou seja, ndo basta 0 corpo a corpo para fazer lago social, A formula “Nao hé relagao sexual” indica que o goz0, seja hetero ou ho- mossexual isso vale para ambos -, é ou bem gozo tinico, filico, ou Outro Gozo, ‘Mas em nenhum dos casos constitui relagao entre eles. © “para além da metafora’, entdo, é o fim da metifora sexual. Mas esse “para Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p.13-21 junho 2014 Conferéncia de abertura do XIV Encontro Naclonal da EPFCL~ Bras 25/10/2013, além” tem um alcance mais geral. Implica também a propria concepedo do in- consciente. A metafora, que junto com a metonimia, é a estrutura fundamental da linguagem, € solidiria do inconsciente que Lacan definiu como estruturado como uma linguagem. E 0 inconsciente tal como ele se decifra sob transferéncia £, portanto, o inconsciente simbélico. Podemos mesmo dizer: oinconsciente taga- rela, Lacan dedicou a ele mais de uma década de elaboracio. E 0 inconsciente tal como podemos inferi-lo a partir da prética freudiana. No entanto, o inconsciente, na medida em que ¢ efeito de linguagem - tese fundamental de Lacan -, esse in- consciente ex-siste fora da transferéncia, antes de qualquer decifragdo. Ou sea, ele existe desde sempre, Nao é um discurso, nao é simbélico, ignora a metitfora e me- tonimia. Lacan diz: “ele & saber", Isto é:significante que afeta 0 corpo e que provérn de alingua. E um saber que engata, se engancha no corpo, que € 0 inconsciente real Evidentemente que 0s efeitos desse inconsciente nao esperaram por Lacan para serem conceitwalizados, ees foram reconhecidos e nomeados na psicanslise freu- diana, Os nomes freudianos do inconsciente real sio: desejo ~ & o primeiro efeito real da linguagem -~, pulsdo, repetigdo e sintoma. Lacan condensa esse conjunto dizendo: “é um saber que despedaca 0 gozo, que o recorta e que produz as quedas das quais eu faco 0 objeto a, ou entio, a causa primeira do descjo”. Aqueles que perguntam ~ que é uma pergunta que frequentemente escuto ~ “sera {que 0 inconsciente reinventado de Lacan suprime ou muda o desejo, ¢restaria so- mente a referéncia 20 gozo?”, temos aqui a resposta: o saber inconsciente despedaca © gozo recorta a causa do desejo, assim o desejo esta inscrito no campo do gozo. ‘Mas isso nao resolve completamente a questo de como o desejo leva para a cama, Se nao é a metéfora que leva & cama — que € 0 que acabei de mostrar a voces ~, Lacan finalmente dé outra resposta: “é 0 sintoma”. Mas nao é o sintoma no senti- do dos primeiros sintomas dos quais Freud falava. O sintoma no sentido que ele di de que “o parceiro é o sintoma”. Depois que ele diz “parceiro objeto causa’, ele diz: “parceiro sintoma”, Sintoma quer dizer: produto da inconsciente; produto do qual se goza. E - um ponto muito importante que acrescento ~ que se instala de maneira contingente, através de um encontro. Ou seja, nio esté programado pela estrutura. Bom, vou lembrar uma observacio que Lacan fez nos Estados Unidos em 1975, a qual, creio eu, fazia eco a outra observagio, de Freud, que dizia que toda capacidade cerética do sujeito proviria do lago com a mie. Em 1975, Lacan diz aos americanos “parece que € necessério ter tido uma mae para amar as mulheres”. £ engracado, isso me surpreendeu, pois nfo evoca o pai. Quer dizer, nio aparece nada da Meti- fora Paterna, F claro que isso nao é exatamente uma tese consistente, € apenas uma observagao en passant, Mas, as observagdes de Lacan sio raramente gratuitas. E, finalmente, isso parece que vai em par com sua tiltima tese sobre o Edipo, Para além da Metéfora, para além do Edipo, o que ha? O sintoma. Ble diz:“o casal Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p13-21 junho 2014 20 SOLER, Colette edipiano, nada mais é do que sintoma”, © Edipo é um sintoma. Quer dizer que € uma modalidade de desejo e de goz0, mas uma modalidade entre outras possiveis, igamos, um tipo de sintoma, Porém, hé outros. Vou terminar com uma frase em, forma de pergunta: quem ousard dizer que um tipo de sintoma vale mais do que outro? Existe um Outro do Outro para dizer qual ¢ o melhor? Tudo 0 que pode- mos tentar dizer, a partir da Psicanilise, é qual o destino que cada sintoma que 0 determina provoca no sujeito. ‘Tradugdo: Anténio Quinet ‘Transcrigao ¢ revisao: Pollyana Almeida, Marcus do Rio Teixeira ¢ Caio Tavares Revisio final: Sonia Magalhies referéncias bibliograficas FREUD, S. (1905). Trés ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras psicolé: gicas completas de Sigmund Freud: Edigio Standard Brasileira. Tradugio sob diregao de Jayme Salomao. Vol. VIL. Rio de Janeiro: Imago, 1996 LACAN, J. (1956-57). O Semindrio, livro 4: a relasiio de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. _— . (1958). A diregao do tratamento ¢ os principios de seu poder. 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Dentre estes, situa 0 desejo de outra coisa Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p.13-21 junho 2014 Conferéncia de abertura do XIV Encontro Naclonal da EPFCL~ Bras 25/10/2013, como destrutivo. Questiona se 0 capitalismo conduziria a uma exacerbagio do .g020, lembrando os sinais de insatisfagio. Segundo Soler, para a Psicanilise, o problema central & saber 0 que fixa 0 desejo em cada caso particular, o que leva A relacdo de corpo a corpo sexual, 20 fato de existir um desejo sexual. Coloca em. seguida as respostas de Freud e Lacan ~ 0 Edipo, para o primeiro, ¢ a Metifora Paterna, para o segundo ~ apontando para a impossibilidade de localizar 0 casal homossexual nessa l6gica. Propde outra resposta de Lacan: € sintoma que leva & cama, Desse modo, a Metifora Paterna ¢ o Edipo sio modalidades de desejo e de 070, entre outras possiveis. Soler finaliza com o questionamento: quem ousaré dizer que um tipo de sintoma vale mais do que outro? Existe um Outro do Outro para dizer qual é o melhor? palavras-chave ‘Desejo; oz; metéfora paterna; sintoma. abstract ‘The author entitles her speech “Desire in the singular, desires in the plural” as she argucs there arc two ways of desiring: those without an object (desires which commit mistakes) and those with an object (desire for something). She places these last ones as destructive, approximating them to the Capitalist Discourse. According to Soler, for psychoanalysis, the main challenge is to establish what fixes the desire in cach particular case, what takes to the sexual body to body relationship, to the fact of an existing sexual desire. In the sequence, she places Freud’s and Lacan's answers ~ the Oedipus for the first, and the Paternal Meta- phor for the latter ~ highlighting the impossibility of localizing in this logic the homosexual couple. The author also proposes another of Lacan’s answer: itis the symptom which directs it to bed. Thus, the Paternal Metaphor and the Oedipus are modalities of desire and jouissance, among other possible ones. Soler conclu- des with the questioning: Who will dare to say that a type of symptom is worth, more than another? Is there an Other of the Other to tell who is best? keywords Desire; jouissance; paternal methaphor; symptom. Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p13-21 junho 2014 a ensaios O Campo Lacaniano e o desejo Ronaldo Torres Inicio este texto ratificando a pertinéncia do relangamento da questo sobre 0 desejo que a Internacional dos Féruns do Campo Lacaniano propos para o traba- Iho no bignio 2013/14. Retomar o tema do desejo, esse termo fundador da expe- riéncia psicanalitica desde Freud, nado parece algo que se possa fazer com trivia- lidade. Basta ver, rapidamente, como isso se apresentou de forma pouco simples desde o titulo dado ao Encontro Nacional de 2013 (Belo Horizonte) dos Foruns do Campo Lacaniano no Brasil: “A causa do desejo e suas errancias”. Por um lado, causa e por outro, errancia. Causa e errancia, mesmo que ambos relativos ao de- sejo, nao sio termos que possam se confundir, embora guardem relagdes entre si. Mais que isso, parece-me que entre a errdncia e a causa encontramos as coorde- nadas de um longo percurso que Lacan fez trilhar a nogio de desejo, sempre em. obscrvacio da clinica ¢ sua direg3o, mas nio s6, pois também ocupado em sus- tentar a Psicanslise no mundo através de seu préprio discurso. Ou, poderiamos dizer, de forma mais afeita & nossa questo atual, sustentar a psicanilise com base no enderegamento que sta pritica di ao desejo. £ esta vertente de sustentagao da Paicandlise baseada em seu discurso que orienta o recorte que farei neste traba- tho, buscando tratar mais detidamente a dimensao do lago que se liga de algumas, maneiras & nogao de desejo. Lacan trouxe avangos sensiveis sobre a estrutura do desejo que soube ler eresgatar «em Freud. Lembremos que foi Freud quem fundou o desejo partindo de sua estrutura cerrante, marcada desde a experiencia original com o Outro pela perda de objeto. ssa estrutura do inconsciente e o sujeito que é seu efeito sio as formas de relacio com a lei do desejo, essa lei que & a mesma do significante. Formas de relago que partem. do desejo, mas que também se marcam como estratégias de negagio da castragao. Em determinado ponto importante de seu ensino, Lacan pade formalizar como é a estrutura da fantasia que vem responder & castragio do Outro através de uma -montagem entre sujeito e objeto a, tomado enquanto objeto real da pulsio. Foi ba- seado nessa formalizagao que Lacan pode propor a diregao da cura pela travessia da fantasia, ato psicanalitico. © ato psicanalitico € correlato a0 desejo do psicanalista, Um ato contratio & determinagio do universal da estrutura simbélica, ao universal da lei, o que Ihe 444 contornos de uma margem de liberdade proxima ao real; causa. Assim, temosa cernincia derivada da lei ea causa enquanto ato. Neste sentido o ato seria o aconte- Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p.25-31 junho 2014 25 26 TORRES, Ronaldo cimento de uma singularidade, ato de criagao, causa de desejo. A estrutura do dis- curso do analista, proposta por Lacan parece demonstrar como tal singularidade pode ser encontrada no objeto a em fungao de causa como agente do discurso, articulado & escrita do furo no saber que o sustenta: impossivel a —~ $ 82 Si Fig. 1: Discurso do analista Pois trata-se, fundamentalmente, de uma escrita singular, uma resposta que pode se dara cada vera nao relagao sexual com a qual se consentiti operar na estrutura, Mas se isso configura um lago social, um lago que, por exemplo, sustenta uma anilise, € porque se trata de um lao que implica transmissdo. “O que se transmite em uma cura psicanalitica? A histéria do movimento psicanalitico o demonstra claramente: o que se transmite em uma cura psicanalitica éa propria psicandlise” (NOMINE, 2012, p. 223). Poderiamos desdobrar a afirmagio do autor que o que se transmite ¢ o discurso do analista. Todavia, que haja transmissi0 € singularidade no ato psicanalitico, conforma um paradoxo que s6 se observa no discurso do analista. Pois a genealogia que se pode ver presente na transmis- io relativa ao discurso do mestre, transmissao pela via do Nome-do-Pai, em sua vertente de comando de gozo, que € transmissio de uma alienagio prépria a lin- guagem, nao acontece na transmissao relativa ao discurso do analista. O que a Paicandlise transmite € sua estrutura de discurso, uma transmissio interessante, porque nao é possivel a ela se alienar nem sob a vertente positiva, nem negativa. Positivamente, porque o ato que atesta sua transmissio, o ato psicanalitico, é um ato de ruptura com a alienagdo. E negativamente, porque sua estrutura nao ofe- rece nada a que se possa se alienar. A hiancia, 0 furo no saber, base da fungio de causa marcada pela escrita do $1 no lugar da produgo, nio se oferece, por sua estrutura, a alienacio. Dai que o ato de final de anélise seja um ato de ruptura com o Outro, Ato de solidao absoluta, mas que inaugura uma modalidade de lago social. Uma modalidade de lago social que ndo se estrutura por Um conjunto. Nem do Umi da unificagio (do universal como totalidade), nem do Um da unici- dade (que funda o universal, 0 discurso do universo, pela via da repetiga0), mas do Um enquanto escrita da borda do furo no saber que faz litoral entre centro € auséncia (LACAN, 1971/2003). Lacan quis insistir no fato de que o discurso do analista transmite algo, o que endo Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p.25-31 junho 2014 (0 Campo Lacaniane e o desejo € também afirmar e procurar as razdes dos efeitos desse discurso, O ato psicana- litico, enquanto passagem de analisante a analista, levou-o a formalizar um lago social afeito a Psicanilise e isso dirigiu a maneira pela qual quis que sua Escola se orientasse. Indagar-se sobre o que & uma escola de psicanalistas € também se perguntar 0 que € 0 laco social do discurso do analista, & colocar & prova 0 acon- tecimento de tal liame. F a partir dessa aposta que Lacan pretendea fazer girar a Escola em torno do Passe e do Cartel na Proposigdo de 9 de outubro de 1967 (LACAN, 1967/2003). ‘Tentar desenhar a borda sem garantias, como pode fazer com sett ato contingencialmente, E assim que ele retoma 0 ato ¢ o discurso, ou seja, 0 Ato de Fundagao (1964) no Discurso na Escola Freudiana de Paris (LACAN, 1970a/2003, p. 267):! Mas se de fato estive s6, sozinho ao fundar a Escola, tal como, ao enunciar esse ato, et disse com audacia - “tao sozinho quanto sempre estive em minha relagio com a causa psicanalitica” -, ter-me-ei nisso acreditado o tinico? Eu ja no o era, partir do momento em que um ao menos me seguisse 0 passo... Com. todos vocés naquilo que fago sozinho, haverei eu de me afirmar isolado? Que tem, esse passo, por ser dado sozinho, a ver com o ser 0 tinico, que se acredita ser a0 segui-lo? Nao me fiei eu na experiéncia analitica, isto é, naquilo que me chega, de quem com ela se virou sozinho? Acreditasse eu sero tinico até-a, nesse caso, para quem falaria? Antes, é por alguém ter a boca cheia da escuta, sendo a sua Ainica, o que ver por outra serviria de mordaca. Nao existe homossemia entre 0 * {Le seul] e “sozinho” (seul). Minha solidao foi justamente aquilo a que renuncici ao fundar a Escola, e que tem ela a ver com aquela em que se sustenta 0 ato psicanalitico senao poder dispor de sua relagio com este ato? “nic ‘Trata-se entao, na aposta, daquilo que Lacan formulard logo depois como dizer do discurso do analista. Tal dizer ganha formalizacio mais precisa com as for- mulas da sexuagao com as quais nao trabalharemos aqui. Mas é partindo delas que Lacan consegue formular aquilo que denomina como campo do uniano. O uniano nao se relaciona ao um da unificagao ou da unicidade. Trata-se de uma forma de dizer aquilo que indica o bifido do gozo. O campo que Lacan desejou. que fosse lacaniano, O campo do uniano se coloca pela nao relagdo sexual entre 08 uns contiveis ¢ 0 gozo que resta nao contvel, mas que pode ser cingido. E isso que separa o dito do dizer e que faz que este tiltimo esteja ligado ao que Lacan 1 0 Discurso... fi redigido em dezembro de 1967, porém publicado em 1970, ampliado por um comentario, Fatemos sua citagso come de 1970, mas devernos guardar que ele écontempor’neo | Proposicaic.. Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p.25-31 junho 2014 2 28 TORRES, Ronaldo formula como “Y a d’T'un, algo que nao pode ser assimilado ao um da unificagio (da totalizagio) e nem ao um do contivel, dos ditos, mas que pode se dizer a partir da transmissio. Colette Soler diz que “Lacan 0 nomeia (o trago undrio] deo Um da repeticao, Ele insistiu em dizer que se trata do Um contivel e dai advém o porque Lacan recorreu aos problemas do incontivel ea Cantor” (SOLER, 2011, p. 18). Elogo depois neste texto diz que o um da repeticio se distingue do um da totalidade e do “Um do‘Yad’Tun' no sentido do um Um-dizer, do falasser” (SOLER, 2011, p. 18) A estrutura do campo lacaniano é, portanto, a estrutura do campo do gozo. ‘Tomar 0 gozo como campo € uma passagem cujo fandamento € légico, mas que também carrega importantes implicagoes éticas. Entendo que houve um esforgo de Lacan em demonstrar como tal campo se constitui por uma nao proporsio logica. Portanto, nao se trata de uma espécie de campo que é preenchido por algo que se chama gozo, mas, antes, de que a légica que o gozo implica na sua nao univocidade constitui o préprio campo. A dimensio deste campo para Lacan & aberta por seu ato psicanalitico. Todavia isso nao foi o bastante. Pois restava a Lacan construir a lgica do discurso para dar lugar ao ato que revela tal ndo-u vocidade do gozo. Assim, 0 discurso do analista, que sustenta o ato psicanalitico, €o dinico discurso no qual o impossivel, que se coloca para os quatro discursos, evidencia-se a partir de sua dominante, o objeto a. Com a teoria dos discursos, Lacan acabou por estabelecer uma estrutura que porta o real, mas que, a0 mesmo tempo, possibilita formas distintas de relacdo com este impossivel. Isso, segundo a mancira como entendo, faz que © campo do gozo fundamentado em uma légica se revele, também, um campo de pritica ética, Pois os discursos referem formas distintas de montagem em relagao ao gozo. Fica evidente que o terreno primordial sobre o qual esta questao incide é a pro- pria experiencia psicanalitica; o analista sustenta a diregao da cura por sew ato, pela estrutura do discurso do analista. Isso coloca no centro da questio a inter- pretagio, Mas nao é apenas sobre a clinica que as implicagées éticas da légica do discurso se manifestam. Devemos retomar que uma das questdes que a teoria do ato psicanalitico de Lacan the deixou caminhava no sentido de indagar 0 que seria uma ética do lago social para além da realidade posta pela fantasia, para além, podemos dizer, do discurso do mestre. Pois como ele afirma em Radiofonia “No discurso do mestre, €0 mais-de-gozar que s6 satisfaz o sujeito ao sustentar a realidade unicamente pela fantasia” (LACAN, 1970b/2003, p. 445) Que as coletivizagdes nio escapem ao empuxo do Um, esse Um da unificagio que promete a relagio sexual, que se langa pelo semblante de S1 como excecao, mas que se sustenta naquilo de fantasia que se repete nos ditos dos uns contaveis, 20 infinito, disso temos experiéncias suficientes. Porém, nossa experiéncia tam- bbém nos da provas de que o lago social nao se sustenta exclusivamente por tal for- Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p.25-31 junho 2014 (0 Campo Lacaniane e o desejo ma discursiva. A causa como furo do desejo, digo, o desejo enquanto furo, aquilo que Lacan buscou transmitir, dizer, com o desejo do discurso do analista, desejo de analista, ou também, transferéncia de trabalho, ato do psicanalista e outras invengdes, est ai no coragao de nossa experiencia para se dizer. Entendo que Lacan, 20 propor os pilares de sustentacdo de sua Escola baseado nos dispositivos do Passe e do Cartel, tenha indicado uma aposta ra do lago social concernente ao discurso do analista. Pois ndo € que tais dispositivos sejam apenas formalizados por Lacan com base em uma estrutura que nao dé lugar ao mestre e & fantasia; mas antes, que eles so propostos para que, a cada vez, 0 impossivel do real possa se colocar como tal, verificando ou nao 0 ato do psicanalista, ou seja, a destituigao subjetiva ea travessia da fantasia. Daia dimen- sao radical de aposta; uma sustentagdo de um campo a partir deste tipo de aposta diante da qual nio ha “valor verdade” verdadeiro, ou seja, uma aposta que tem © indecidivel, quanto a verdade, em seu horizonte. Isso marca 0 campo do real assimilado a esta aposta. “Donde eu haver designado por Passe essa verificagao da historisterizagao da andlise, abstendo-me de impor este passe a todos, porque ndo hi todos no caso, mas esparsos dispatados. Deixo-o A disposicao daqueles que se arriscam a testemunhar da melhor maneira possivel sobre a verdade mentirosa” (LACAN, 1976/2003, p. 569). Entendo que a transmissio concernente d Psicanslise seja, na realidade, aforma de apresentagao do proprio lago social no qual o discurso do analista se sustenta. Ina forma Se Lacan se referiu aos seus esforgos relativos a légica ¢ 4 matemitica para pro- por uma transmissao integral assimilada a Psicandlise (LACAN, 1972-73/1985, P. 161), foi porque fez equivocar este integral como campo do gozo, ou seja, a transmissio do discurso do analista se transmite integralmente, porque é trans- missio que se faz com o furo que Lacan denomina como impossivel. £ com base rnisso que devemos retomar o que seja 0 desejo do analista, refer€ncias bibliograficas LACAN, J. (1967). Proposigio de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, In: Outros escrites. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. pp. 248-264. ______. (1970a). Discurso na Escola Freudina de Paris. In: Outros escritos, : Jorge Zahar, 2003. pp. 265-287. (1970b), Radiofonia, In: Outros escritas, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, pp. 400-447, __________. (1971). Lituraterra. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp. 15-25. 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Em seguida, toma a teoria dos discursos como um primeiro movimento de Lacan para abordar formas particulares de gozo, a par- tir dos lagos que os discursos estabelecem, formando aquilo que designou como ‘campo lacaniano, Ha que se pensar sobre o estatuto do desejo afeito ao passe do ato € a0 giro para o discurso do analista. Isso tem implicagdes diretas para a ex- periéncia clinica, mas nio s6. Diz também respeito & forma como Lacan decidiu apostar em sua Escola como lugar para se por i prova um laco to especifico como esse que se Janga a partir do ato psicanalitico. A causa como furo do desejo, quer dizer, 0 desejo enquanto furo, aquilo que Lacan buscou transmitir, dizer, com 0 desejo do discurso do analista, desejo de analista, ou também, transferéncia de trabalho, ato do psicanalista e outras invengdes, esti af no coracao de nossa expe- rigncia para se dizer, transmitir palavras-chave Desejo, causa, discurso do analista, lago social, transmissao. abstract ‘The article indicates the difference between wandering and cause relating to de- sire. Lacan proposes the cause as rupture of law of desire and states the psychoa- nalytic act as a traverse of a form of jouissance. Then, takes the Lacan's theory of discourse asa first movement to address particular forms of jouissance, from the bonds that discourses establish, forming what he termed as Lacanian field. We must think about the status of desire after the psychoanalytic act or the turn to the discourse of the analyst. This has direct implications for clinical experience, but not only. Also relates to how Lacan decided to bet in your School as a place to proof for such a specific bond like this comming from the psychoanalytic act. The cause of desire as a hole, what Lacan sought to convey as desire of the discourse of Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p.25-31 junho 2014 (0 Campo Lacaniane e o desejo the analyst, desire of analyst, or also, transference of work, psychoanalytic act and other inventions of terms, is where the heart of our experience to say, to transmit keywords Desire, cause, discourse of analyst, social bond, transmission. recebido 07/02/2014 aprovado 10/04/2014 Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p.25-31 junho 2014 31 Mishima: entre o amor e o desejo Maria Helena Martinho Yukio Mishima (1925-1970), 0 mais famoso dos autores nipdnicos de sua épo- ca, declarou no catilogo da Exposigao Yukio Mishima (Téquio, 1970), aberta a0 pliblico dias antes de seu suicidio, que sua arte pode ser dividida em quatro gran- des correntes, os rios: da Literatura, do Teatro, do Corpo e da Agao (KUSANO, 2006). Ao navegar nesses “tios", Mishima constituiu polos de pureza ¢ perfeigio, dois absolutos - “o amor e o desejo”, “a carne eo espirito”, “o corpo eas palavras’, “a beleza e a feiura’, “a arte literdria e a arte marcial” ~ por uma separacio que exclu a mistura deles. Em compensagio, ele quis unir esses polos contraios fa- zendo que se juntassem nos extremos. O proprio Mishima se dé conta de que hi no cu uma “polaridade”. Minha mente concebeu um sistema que instalando dentro do eu dois elemen. tos que fluiam alternadamente em diregdes opostas tinha a aparéncia de pro- duzir um hiato cada vex. mais amplo na personalidade [..] A assungio de uma polaridade dentro do eu € a aceitagio da contradigao e do choque - essa era a minha combinagio (MISHIMA, 1968a, p. 48) ‘Ao desvelar esse mistério, Mishima parece estar descrevendo o entrelagamento de dois temas trabalhados por Freud: a “divisao do eu” ea nogao de “desmentido” (Verleugnung), lustrando o que Freud ressaltou sobre a conexao existente entre 0 “desmentido” e “o complexo de castragio” As confissdes feitas por Yukio Mishima, em seu romance autobiogréfico Con- {fissdes de uma mascara (1949), sero tomadas neste artigo para ilustrar como ele passa do amor ao desejo em um movimento circulante ~ tal qual em uma banda de Moebius ~ “como uma daquelas argolas feitas com um tinico giro numa folha de papel e cujas pontas s4o coladas depois. O que parecia ser 0 interior era o exte- rior, € © que parecia o exterior era o interior” (MISHIMA, 1949, p. 127). Nesse romance, Mishima confessa que em sta infancia ele se divide entre amor de stia avd ¢ o desejo sexual por principes e soldados. Em sua juventude, ele se divide entre 0 amor espiritual por Sonoko - uma jovem de dezoito anos de ‘dade, irma de seu melhor amigo ~ ¢ 0 desejo carnal, homosexual, por um colega Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p.33-39 junho 2014 33 34 MARTINHO, Maria Helena de escola, chamado Omi. A clivagem que se desvela entre o amor ¢ 0 desejo é subsumida pela clivagem da “carne e do espirito”. De um lado a “carne”, 0 desejo homosexual carnal, o desejo por aquilo que se imprime na masculinidade, forca, ignorancia, gestos rudes, fala descuidada; de outro, o espirito, tudo aquilo que ¢ da ordem da intelectualidade, como o amor “espiritual”,a propria encarnagao por coisas do espirito, por coisas eternas protagonista do romance descreve algumas impresses que em sua juven- tude Omi the causou: “O que realmente obtive dele foi uma definicao precisa da perfeigdo da vida e da masculinidade, personificadas em stas sobrancelhas, testa, othos, nariz, nuca, pescogo, a cor de sua pele, sta forga” (MISHIMA, 1949, p. 48). Por causa de Omi ele nunca pode amar uma pessoa intelectual, jamais se sentit atraido por uma pessoa que usasse dculos. Por causa de Omi ele comecou aamar a forca,a ignorancia, os gestos rudes, a fala descuidada. A carne nao podia, de modo algum, ser maculada pelo intelecto, O desejo sextal se encontra marcado pela con- dicdo carnal, onde o intelecto nao comparece, ha uma cisio entre a carne e 0 es- pirito, hd uma exigencia que carne e espirito mantenham distancia um do outro. “Assim que comecava a compartilhar minha compreensio intelectual com uma pessoa que me atraisse, meu desejo por essa pessoa logo arrefecia. Nao tinhaa m: ténue ideia de que havia uma conexio entre amor e desejo sexual” (Ibid. p. 84). A “sensagio carnal” que ele sentia por Omi nao era causada apenas pela proeza de sua forca, mas pela abundancia de pelos nas axilas, estas se constituiram em tum fetiche para ele. "Sem diivida, foi a vista de pelos sob os bragos de Omi que fez da axila um fetiche para mim” (Ibid., p. 61) Ele desejava se tornar “uma réplica de Omi” (Ibid., p. 64). Comegou a procurar em seu corpo franzino o reflexo da suntuosa virilidade de Omi, Um dia descobriy a beira-mar, ao ver as préprias axilas, que os pelos exuberantes de Omi, objeto de sua cobiga, comecaram a crescer em set corpo. Um misterioso desejo sextial logo 6 invadiu e, tomando 0s pelos de suas axilas por objeto, sozinho pela primeira vez ao ar livre, se masturbou, como costumava dizer, se entregou ao seu “mau habito”, Set corago nunca fora tocado pela beleza de uma mulher. Sonoko parecia “o reflexo de uma alma imaculada ¢ simples” (Ibid. p. 105). © amor por Sonoko tornou-se uma obrigacio moral para ele, e de repente ele foi invadido pela id de que estava apaixonado pela moga. Contudo, uma voz interior zombou dele bombardeando-o de perguntas: amor 0 que vocésente por ela? Mas voctsente desejo por nnlheres? Js teve alg sma vezo mais eve desejo de ver uma mulher nua? Jd imaginou Sonoko nua? Durante 6 dia, vocé anda pela rua emio vé ninguém além de marinheiras ¢soldados. Quantos desses ovens vocé no despit mentalmente ontem? (Ibid. p. 125). ‘Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no, 28 p.33-39junho 2014 ‘Mishima: entre o amor eo desejo Pois foi justamente entre o desejo homosexual por Omi ¢ o amor por Sonoko que se instaurou, segundo o préprio Mishima, um movimento circulante, uma banda de Moebius. O que ele sentia por Sonoko nao tinha nada a ver com desejo. Contudo, 0 seu desejo sexual pelos rapazes o consumia. Para suporté-lo ele tinha que recorrer ao seu “mau habito” até cinco vezes num dia. ‘A excitagdo por um efebo limitava-sea mero desejo sexual. Minha alma ainda pertencia a Sonoko, Havia uma luta, uma ruptura entre carne ¢ espirito, Para mim Sonoko aparecia como a encarnagio do meu amor pela prépria normalida de, meu amor por coisas do espirito, meu amor por coisas eternas (Ibid. p. 172). essa forma Mishima se dividia entre “a carne e 0 espirito”. Sonoko represen- tava a encarnagdo do amor, coisas do espirito. Enquanto Omi, a encarnagao do desejo, coisas da carne. A descoberta, na juventude, de seus gostos pederastas representa © momento constituido na cena com Omi. Ele comegou a procurar em seu corpo franzino 0 rellexo da suntuosa virilidade de Omi; doravante gosta nos rapazes de um outro cle mesmo. Com Sonoko, a mulher idealizada, encarnagio do seu amor por coisas eternas, Mishima reproduz o envolvimento de um amor embalsamado; identifi- cado 4 avé, ele gosta em Sonoko “de sua alma imaculada e simples” (Ibid, p. 105), ele gosta de um outro ele mesmo, do neto que ele foi para sua avd. A divisio vivida por Mishima se assemelha aquela vivida por André Gide. Em sua infincia, Gide se divide entre juliette ~ a mae do amor -, e tia Mathilde ~ a mie do desejo. Em sua juventude essa divisao também se evidencia em dois polos: de um lado, Madeleine ~ sua prima, sua esposa, o objeto do amor, a mulher ideal, © anjo dessexualizado -, e do outro, o objeto do desejo, os pivetes, os menininhos de pele morena, sexualizados Quando crianga, o invélucro mortal que Gide havia conhecido no amor ma- terno muda com a sedugio salvadora da bela tia Mathilde, sedugdo esta que foi narcisicamente fundadora para Gide, Ihe despertou o desejo, Mas, entre os dois lugares constituintes da cena originaria, a subjetividade de Gide rejeitou aquela que fazia dele o objeto do desejo ferninino para identificar-se com a sedutora. A descoberta, aos vinte e quatro anos, de seuss gostos pederastas representa 0 mo- mento constituido pela cena com tia. Gide assume o desejo do qual ele foi objeto © que nio péde suportar, ficando para sempre ¢ eternamente apaixonado pelo ‘mesmo menino que fora por um instante nos bragos da tia dentificado & mae do amor ¢ do dever, ele doravante gosta em Madeleine de um outro ele mesmo, do filho que ele foi para sua mae, frégil, objeto do amor que necesita de protesio contra o mal e contra a vida, Madeleine passa a ser a Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p.33-39 junho 2014 35 36 MARTINHO, Maria Helena muther idealizada, a ponto de se tornar a tinica; ele dedica-lhe um amor puro, infinito e imével. Vive com ela durante vinte anos, um casamento que nunca foi consumado. Madeleine nao podia ser nem o objeto nem o agente de uma seduga0 aque the dava horror. Gide se coloca numa dependéncia mortal em relagao a Ma- deleine, 0 que o faz.exclamar: “Vocé nao tem como saber 0 que é 0 amor de um uranista. E qualquer coisa como um amor embalsamado” (GIDE apud LACAN, 1957-1958/1999, p. 271) Da mesma forma que Gide ficou submetido ao amor embalsamado de Made- leine, Mishima também ficou submetido a um amor embalsamado, o de sta av6. Estar entregue a essa avé era estar fadado & morte, condenado a permanecer pri- sioneiro desse amor. “Na idade de doze anos, eu tinha uma namorada sincera e apaixonada, de sessenta anos” (MISHIMA, 1949, p. 31). Aperversio de Mishima nao se deve ao fato de ele s6 poder desejar 0s meninos, ‘mas 20 fato de que ele conste6i a mulher ideal, nao castrada. Mishima tenta fazer A Mulher existir. Sua avé é “toda para ele” e Sonoko é tinica do amor. Mishima tentou constituir dots polos de pureza e perfeigio, dois absolutos. Ele perseguitl a solugio da divisio do eu que se apresentava nas polaridades, mas 0 abismo que 0 dividia entre “o amor ¢ 0 desejo” nunca se preencheu, Em um verdadeiro tratado sobre o corpo, uma obra-prima, intitulada Sol e aco (1968a), Mishima confessa: “Sou um que sempre s6 esteve interessado nos extre- mos do corpo e do espirito [..] Opostos conduzidos a seus extremos tendem a se assemelhar; ¢ coisas separadas ao maximo, aumentando a distancia entre elas, aca- bam por se aproximar” (Ibid, p. 89). Essa é uma verdadeira definigao do desmen- tido, Mishima tentou aproximar a carne ¢ espirito ao longo de toda a sua vida, mas [uo] corpo e espitito nunca deram boa combinagao. Eles nunca foram pareci dos. Nunca experimentel na agao fisica nada que se assemelhasse & satisfagio arrepiante eaterradora proporcionada pela aventura intelectual, Nem senti nun a na aventura intelectual o calor impessoal, a cilida escuridao da agio fisica (Em algum lugar deve haver um principio maior onde os dois se encontrem e facam as pazes. Esse principio maior, eu pensei, era a morte (hid, p. 90). referéncias bibliograficas FREUD, S. (1912a). Sobre la mas generalizada degradacién de la vida amorosa (Contribuciones a la psicologia del amor, 11). In: Obras completas. Buenos Ai- res; Amorrortu, 2004. v. 11, pp. 169-184. . (1912b). Contribuciones para un debate sobre el onanismo. In: ‘Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no, 28 p.33-39junho 2014 ‘Mishima: entre o amor eo desejo Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2004. v.12, pp. 247-263, (1914), Introduccién del narcicismo. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. v.14, pp. 65-98. __________. (1915). Pulsiones y destinos de pulsién, In; Obras completas. Bue- nos Aires: Amorrortu, 2006. v. 1, pp. 105-134. (1927). Fetichismo, In: Obras completas, Buenos Aires: Amorrortu, 2004. v.21, pp. 141-152. ______. (1940 [1938)). La escisién del yo en el proceso defensivo. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrorta, 2004. v. 23, pp. 271-178. GIDE, A. (1902). O imoratista, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. __. (1909). A porta estreita, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. (1925). Os moedeiros falsos. S4o Paulo: Francisco Alves, 1985. (1926), Se 0 gro néo morre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, (1929). escola das mulheres. Porto Alegre: Livraria do Globo, (19-2) KUSANO, D. Yukio Mishima: 0 homent de teatro e cinema. Si Paulo: Perspecti- va: Fundagio Japao, 2006. LACAN, J. (1958). Juventude de Gide ou a letra ¢ 0 desejo. In: Eseritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998, pp. 749-775. (1963). Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998, pp. 776-806. ______. (1957-1958). 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A clivagem. que se desvela entre o amor e o desejo € subsumida pela clivagem da “carne e do Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p.33-39 junho 2014 37 38 MARTINHO, Maria Helena espirito”. De um lado a “carne”, 0 desejo homosexual carnal, o desejo por aquilo aque se imprime na masculinidade, forca, ignorancia, gestos rudes, fala descuidadas, de outro, o espirito, tudo aquilo que é da ordem da intelectualidade, Mishima tentou constituir dois polos de pureza e perfeicao, dois absolutos, desmentindo, assim, a cas- tracdo do Outro. Fle perseguiu a solugdo da divisio do eu que se apresentava nas po- laridades, mas o abismo que o dividia entre “o amor e o desejo” nunca se preencheu. palavras-chave Perversio, amor, desejo, abstract ‘The confessions made by Yukio Mishima in his autobiographical novel Cor: Jfissées de uma mudscara (1949), are included in this article to illustrate how this subject passes ~ just like in a Moebius band ~ the love to desire in a circulating motion. In his childhood he was divided between the love of his grandmother and sexual desire for princes and soldiers. In his youth, he was divided between the spiritual love for Sonoko and the carnal desire, homosexual, for Omi. ‘The cleavage that unveils between love and desire is subsumed by the cleavage be- tween “flesh and spirit”. On one sic the desive for what is printed in masculinity, strength, ignorance, rude gestures, careless talk, on the other, the spirit, all that which is of the order of the intellectu- ality. Mishima tried to constitute two poles of purity and perfection, two absolute, belying the castration of the Other. He pursued the solution of division of the I which appeared in polarities, but the chasm that divided him between “love and desire” never filled. The confessions made by Yukio Mishima in his autobiogra- phical novel “Confessions of a mask” (1949), are taken in this article to illustrate how this subject moves — just like in a Moebius band - from love to desire in a circling movement. In his childhood, he was divided between his grandmother's love and the sexual desire for princes and soldiers. In his youth, he was divided between his spiritual love for Sonoko and the carnal homosexual desire for Omi ‘The deavage that is unveiled between love and desire is subsumed by the cleavage of “flesh and spirit”. On one side, “flesh”, the carnal homosexual desire, the desire for what is imprinted in masculinity, strength, ignorance, rude gestures, careless talk, on the other, spirit, all that which is related to intellectuality. Mishima tried to constitute two poles of purity and perfection, two absolutes, denying, thus, the castration of the Other. He pursued the solution of division of the self, which presented itself in polarities, but the chasm that divided him between “love and desire” was never filled out. the “flesh”, the homosexual carnal desire, ‘Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no, 28 p.33-39junho 2014 Mishima: entre o amor eo desajo keywords Perversion, love, desire. recebido 11/02/2014 aprovado 15/03/2014 Stylus Revista de Psicanalise io de Janeiro no. 28 p.33-39 junho 2014 39 Dom Quixote, Sancho Panga, a errancia do desejo e mais-além Raul Pacheco Afirma Kojéve, logo no intcio de sua Introducao a leitura de Hegel (1947/2002), que 0 homem, absorvido pelo objeto que contempla, s6 pode voltar a si mesmo por meio do desejo, Apenas o desejo pode transformar o ser, revelado a si mes- mo por si mesmo, “em um objeto revelado a um sujeito, por um sujeito diferente do objeto oposto a ele”. Consequentemente, “é como seu desejo que o homem se constitu e se revela”. & também a partir do desejo que ele sai da passividade, inquieta-se e age sobre o mundo. Mas, para que haja “conscienca-de-si” (Selbstbewusstsein) & mister que 0 desejo se dirija a um objeto ndo-natural e ultrapasse a realidade. Dai que “o desejo que se dirige a um outro desejo, considerado como desejo, vai criar, pela agio negadora @ assimiladora que o satisfaz, um Eu essencialmente diferente do ‘Eu’ animal” (KOJBVE, Ibid, p. 12). Sabemos: s6 pode ser desejo humane o desejo mediatiza- do pelo desejo de outro ser humano. £ preciso que intervenha a demanda, com 0 incondicional de seu objeto (o amor), para que a perda da especificidade do objeto do instinto se traduza na condigao absoluta a que o desejo eleva o seu objeto. Capturado nas malhas do significante ~ como ilustrado por Freud, com 0 jo- guinho do Fort-Da de seu netinho, e assinalado por Lacan, no Semindrio LI ~ “alguma coisinha do sujeito” se destaca e “é com seu objeto que a crianga salta as, fronteiras de seu dominio transformado em pogo e que comesa a encantagao.” (LACAN, 1964/1988, p. 63). Da fenda produzida pela extragio do objeto, a par- tir da operagdo automutiladora constituinte do sujeito, emerge 0 vetor pulsional que vai em busca dos objetos do mundo. Dai que, como ja propunha Heidegger, © ser do Dasein nao seja estatico, mas sim ckstatico, no sentido do verbo latino ceksistere, de “dar um passo 4 frente, para fora” (TEIXEIRA, 2006, p. 23); ou seja, de insistr, de estender-se para fora e para além de si mesmo, ultrapassando-se. Porém, seo desejo escava no homem a cicatriz de sua eksisténcia e 0 ultrapassa- mento de si proprio, em direcio aos objetos do mundo, sabemos que ele responde também pela sua errancia, nao como acontecimento transitério e fortuito, mas como componente essencial da sua abertura ao mundo. “O caminhar historial do homem é essencialmente errante. Isto se torna compreensivel pelo carter ontolé- gico in-sistente e ek-sistente do homem” (BATISTA, 2005, p. 4). Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no.28 p-4-48 unho 2014 a PACHECO, Raul Erra aquele que busca o segredo do desejo humano nos entes do mundo com queeste se encanta e distrai: aquilo que éda ordem do das Wohl da critica kantiana a razdo pritica’. Por maior que seja a fascinagdo com as coisas do mundo, ea des- peito da sta importancia ou poténcia de sideragao sobre o sujeito, ainda assim, por razdes de compromisso da precisio terminoldgica com o que é de ordem estrutu- ral, cumpre sempre grafar essas coisas do mundo com o cé minisculo de tudo que a fantasia dispde em sua tela para cobrir a janela do real: ou seja, os objetos que 0 sujeito vai encontrando no caminbo da errincia ditada pelo desejo. O desejo é a metonimia do discurso da demanda, ¢ 0 né do problema nao é 0 encanto de cada novo objeto e sim a prépria nuudanga de objetos, em si mesma. O verdadeiro segre- do do desejo tem que ser procurado na forma que suibjaz a essa distracao, encanto, fascinagao, errancia: € na Coisa com cé maitisculo (das Ding) que, é mister, ele seja procurado. E no ontolégico, e nao no Ontico, que a errancia deve ser procurada, diria Heidegger, jf que “a errancia ocupa, no pensamento de Heidegger sobre a esséncia da verdade, o lugar antitético da ‘antiesséncia fundamental que se opée & verdade essencial” (BATISTA, 2005, p. 4. Isto mostra que nem sempre a Filosofia tem que se opor ao que a Psicanslise descobre em sua clinica E quem poderia, na Literatura, melhor do que Dom Quixote, de Cervantes, oferecer uma alegoria para os paradoxos e a errancia do desejo? Dom Quixote, o cavaleiro exrante, e suas andangas na busca do amor de Dulcineia: 0 objeto de seu amor cortés. Dom Quixote, 0 cavaleiro da triste figura, montado no pan- garé Rocinante ¢ usando como capacete uma cuia para fazer a barba; criado por Cervantes para fazer ironia as ordenagdes do discurso do amo, em uma Espanha decadente ¢ em crise ¢ com uma Inquisigao intolerante e violenta. A derrota da “Invencivel Armada” em 1588 ¢ apenas um dos muitos episédios que haviam feito a Espanha da passagem do século XVI para 0 XVII duvidar de si mesma (JERPHAGNON, 2009) e, como que para denunciar isto por an- tinomia, Dom Quixote s6 tem certezas. Dom Quixote, cuja importincia para © questionamento do desejo nao passou despercebida de Freud, que se dedicow a aprender 0 espanhol tendo como objetivo precipuo a leitura da obra em sew idioma original. Dom Quixote, que, embora louco, as vezes dé mostras, como no trecho a seguir, de conhecer os paradoxos do desejo e as contradigdes entre, de em lado, a realidade e a fantasia que a sustenta, ¢, de outro, o lécus recondito € impossivel da causa do desejo: = Nao! ~ disse ele, acreditando sta imaginacao e com vor que pudesse ser oui da, - Nao hi de ter forga a maior formosura da terra para que eu deixe de adorar 1 Vejarse 0 Semindrio 7 (LACAN, 1959-1960/1988) eo texto Kant com Sade (LACAN, 1963/1988). 2"Rerténcia ‘éuma componente essencial da abertura do ser-al(ld) Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p.4T-88 junho 2014 Dom Quixote, Sancho Panga, erréncia do desejo e mals-além a que tenho gravada ¢ estampada no meio do coracdo e no mais escondido das, entranhas, ora estejas, senhora minha, transformada em repolhuda lavradora, ora em ninfa do dourado Te, [.J Pois onde quer que seja és minha e onde quer que seja eu fuie hei de ser teu (CERVANTES [SAAVEDRA], 1615/2007, p. 557). Dom Quixote, 0 engenhoso fidalgo, cuja provincia, La Mancha, evoca para ‘ds, analistas, a mancha do quadro Os embaixadores, de Holbein (um contem- poraneo do mesmo século), estampada na capa do Semindrio 11, € que remete 20 objeto a como olhar, Olhar, como objeto real, que deve desaparecer do mes- mo modo que o feixe de raios luminosos do experimento de Gelb e Goldstein, para que surjam as imagens dos objetos em seu estatuto de realidade. Como diz Lacan no Semindrio 11, “em sua relagao a0 desejo, a realidade s6 aparece como marginal” (1964/1988, p. 105). Porém, se ao longo da obra Dom Quixote traga seu percurso errante, alienado na produgio imagindria de suas loucas fantasias, no capitulo final do Segundo Livro recupera o juizo, desautorizando a desfacatez. de pseudointerpretagdes psi- canaliticas aplicadas de qualidade duvidosa, que pudessem pretender limitar 0 alcance da obra a uma excmplificacio da Verwerfung. Ai o encontramos na hora da morte, impotente e resignado: ~ Jano sou Dom Quisote de La Mancha, mas sim Alonso Quijano [.J.J4 me sio odiasas todas as historias profanas de cavalaria andante;jé conhego a minha nes- cidade e o perigo em que me pas o téls ldo; jé por misericdrdia de Deus e bem escarmentado, as abomino. {..] ~ 0s contos, que até agora tém sido verdadeiros sé em meu prejuizo ~ respondew Dm Quixote espero quea minha morte os mude, com oauxitio docéu,em meupro- ‘eito, Sino senhores, que a morte vem correndo; deixem-se de burlas etragam-me tum padre quem eu confesse eum tabelio que faga meu testamento (CERVANTES [SAAVEDRA], 1615/2005, p. 910) — As misericérdias, [.]sio as que neste momento Deus teve comigo, sem as impe- direm [os meus pecados. Tenho ojuzo jive claro, sem as sombrascaliginosas dlaignorncia com que o ofuscou a minha amarga e continua leitura dos detestveis livros das cavalarias. Ji conbego os seus disparates eos seus embeecos esd me pest ter cheyado tio tarde este desengano, que jé nto me desse tempo para me emendar, Jendo outros qu fossem huz da alma, Sito-me |, hora da morte; quereria passila dde modo que mostrase nao ter sido tio ma a minha vida, que deixasse renome de Jouco, pois, apesar de o ter sido, nio quereriaconfirmar-se essa verdade expirando. CChama-me os meus bons amigos, o cura, o bacharel Sansio Carrasco, e mestre Ni olay, obarbeiro, ue me quero confesare fazer o meu testamento (Ibid, p. 909). Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no.28 p-4-48 unho 2014 PACHECO, Raul E aqui quero dirigir o contexto alegérico de Dom Quixote para uma interroga- ao sobre o que pode fazer o percurso de uma andlise em relagio & errancia cons- titutiva do ser humano e sew encantamento com os objetos do desejo. O objeto da pulsao é in-diferente, ainda que nele a pulsio encontre sua satisfagao e ainda que Heidegger atribua a0 homem (Dasein) a fungio de “pastor do ser”, encarregado de guardar e de cuidar de todas as coisas do mundo. Porém, embora o percurso de ‘uma andlise ndo se faga sem a massa de mira colocada sobre os objetos do desejo, © final de uma andlise ¢ o atravessamento da fantasia tém que contar com 0 que se encontra em outro lugar, que nao nas coisas para as quais a Psicanélise reserva, como primeira letra, o cé mimisculo, Sem isso, erra o sujeito, mas erra também 0 analista, j4 que, como jé disse Lacan, les non-dupes errent [os nio-tolos também erram] e sua errancia toma o lugar de [Freud], 0 Nome-do-Pai [le Nom-du-Pére] (LACAN, 1973-1974). Em tudo que para o Daseint importa, em tudo em que ele investe sua libido, a Coisa encontrada que o move sera sempre a mesma ¢ exige a letra maiiiscula para sua grafia: e é do real que essa causa provém. Como opera ‘uma analise para fazer, desse circunvolucionar em torno ~ € afagar ~ do objeto do esejo, um mais-além do simples retorno do “mesmo” e um sinalizar na diregi0 de alguma transformagao cfetiva do sujeito ¢ de seu modo de gozo? Pensar-se que a Psicanalise opera pela do com que o desejo humano se relaciona é um equivoco. £ equivocado pensar-se que a in-diferenca dos objetos pulsionais possa conduzir a uma des-valorizacao ples subestimagao das coisas do mun- de tudo que cai, clareira que cada homem escava ao redor do lugar que ocupa no mundo. E verdade que na via de toda andlise nao existe objeto ou sentido que me- rea o estatuto de sagrado e que, por essa condigao, deva ser resguardado do ques- tionamento mais radical. Nao ha o intocavel que ndo possa ser eventualmente colocado em questio. Assim como por tris do fetiche de toda mercadoria, Marx descobre o equivalente geral ea mais-valia, por tris de todo objeto com que o ser humano se entretém (por tras de todo objeto da pulsio), Freud e Lacan descobrem © mais-de-gozar. Mas no nos enganemos: a Psicandlise ndo & uma prtica de ascese, uma teologia negativa ou a apologia da resignagao. Dom Quixote arrepende-se ¢ renega a falsidade ¢ mentira de suas fantasias, responsiveis por sua errancia, Para Heidegger e também para a Psicanilise, 0 ho- ‘mem erra e move-se na errincia porque isto lhe € ontologicamente constitutive: cle “in-siste ek-sistindo, agindo inquietamente de um objeto para o outro na vida cotidiana ¢ desviando-se do mistério ~ isto € 0 errar” (BATISTA, p. 3). Porém, abominar e “esquecer a errancia, isto &, nao levé-la a sério, é esquecer 0 esque- cimento do mistério: a decisao enérgica pelo mistério se poe em marcha para a errancia que se reconheceu como tal” (Ibid, p. 4). Lembra-nos Soler (1993/1995, pp. 102-103), que uma anélise tem que despir 0 Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p.4T-88 junho 2014 Dom Quixote, Sancho Panga, erréncia do desejo e mals-além sintoma de sua mentira significante e reduzi-to a seu ser de gozo, pois a mentira é inerente & cadeia significante: uma ver que falamos, mentimos. Contudo, o falso do sintoma implicado pela “identificagdo ao sintoma” do final de anlise ndo & a mentira que o acompanha ao longo das sucessivas declinacdes em seu trajeto: “nao 0 falsus com conotagio de mentira, de oposto A verdade, mas do falsus coma conotacio de caido, ou seja, o que fica para 0 deciframento de sua mentira, © que resta de idéntico a si mesmo”, Escreve Lacan em O aturdito: “falso, leva a uma ideia do real que eu diria ser verdadeira. Infelizmente, nao é essa a palavra que convém ao real. Preferirfamos poder provicla falsa, se com isso se entendes- se ‘decaida’ (falsa), ou seja, escorregando dos bragos do discurso que a estreita” (1973/2008, p. 478). No mesmo texto, ele afirma que s6 se atinge o fim de uma andlise quando o ana- lisante faz, do objeto a, o representante da representacao de seu analista. Enquanto dura o seu hito pelo objeto a, a0 qual ele reduiziu seu analista, ele continua a causar seu desejo: mas “sobretudo maniaco-depressivamente” (Ibid. p. 489). Porém, nao sio.a depressio ea morte, o que deve estar espera no ponto final do percurso ana- litico, Falando a respeito da morte do Homem dos Ratos nas trincheiras da guerra mundial de 1914, Soler assinala que Lacan “percebe em algum lugar que Freud considera que essa morte nao aconteceu por acaso ¢ esti correlacionada & anilise” (1993/1995, p. 115). Teria sido a solueao pela morte real, enquanto que uma anilise levada a seu termo tem como solugdo a “identificagao com o sintoma”. Para esse sujeito que nio atravessou seu fantasma, a morte realizou a mortifi- cago interna existente em seu fantasma; realizou o desejo impossivel, com sas formas de gozo (..). Com a morte vem 0 fim das consequencias ¢, nesse sentido, ela é um ato falho, um ato que nao pode ser provado. Nao ha ‘passe’ para 0 cadi- ver, 0 falecido. A morte torna todo passe imposstvel” (Ibid. p. 116). A melhor alegoria para um Cervantes reconciliado com seu sintoma, no final da saga de Cervantes, ~ um mais-além da errincia do desejo que nao seja a morte ou a depressio ~ ndo é 0 Dom Quixote abatido, impotente e resignado, descul- pando-se com seu companheiro por conduzi-lo a aventuras insensatas. & Sancho Panca, contestando-o ¢ buscando conduzi-lo novamente ao entusiasmo, que me- Ihor representa essa posigio, Recuperemos esse diilogo: [Dom Quixote] - Perdoa-me, amigo, o haver dado ocastio de pareceres doido como cu, fazendo-te cair no crro, em que eu cai, de pensar que houve ¢ hé cava- leiros andantes no mundo. ~ Ail respondeu Sancho Panga, chorando ~ nao morra Vossa Merce, senhor ‘meu amo, mas tome o meu conselho € viva muitos anos, porque a maior lou- cura que pode fazer um homem nesta vida é deixar-se morrer sem mais, sem. Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no.28 p-4-48 unho 2014 PACHECO, Raul ‘ninguém nos matar, nem darem cabo de nds outras mos que ndo sejam as da melancolia, Olhe, nao me seja Vossa Mercé preguicaso, levante-se dessa cama e ‘vamos para o campo vestido de pastores, como combinamos. Talvez em alguma mata encontremos a senhora dona Dulcineia |...] (CERVANTES [SAAVEDRA], 1615/2008, pp. 912-913). ‘Termino com o epitifio aposto por Sansio Carrasco na sepultura de Dom Quisote: Jaz aqui o fidalgo forte, que a tanto extrema chegou, Valente, ¢ de tal sorte, quea morte nao triunfou, sobre sua vida, com sua morte, Tevea todo o mundo, em pouco, Foio espantalho mais mouco, Deum mundo em tal conjuntura, que acreditou ser sta ventura, morrer sio e viver louco (CERVANTES [SAAVEDRA], 1615/2007, pp. 847). referéncias bibliograficas BATISTA, Joao Bosco. (2005). A verdade do ser como alétheia ¢ errancia. Exis- téncia e arte: Revista Bletronica do Grupo PET - Ciencias Humanas, Est cae Artes, Universidade Federal de Sio Joi Del-Rei, ano 1, n. 1, jan./dez. 2005. Disponivel em: . [9 fev. 2014] CERVANTES [SAAVEDRA], Miguel de (1615). D. Quixote de la Mancha (Segun- da Parte). eBooksBrasil, 2005, Disponivel em: . [9 fev. 2014) CERVANTES [SAAVEDRA], Miguel de (1615). O engenhoso cavaleiro D. Quixote de la Mancha (Segundo Livro). Sao Paulo: Editora 34, 2007. JERPHAGNON, Thérése (2009). Dom Quixote escapa da Inquisicio, Histéria Viva, So Paulo: Duetto, n. 1, set. 2009, KOJEVE, Alexandre (1947). Introdugdo d leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contra- ponto/EDUERJ, 2002. Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p.4T-88 junho 2014 Dom Quixote, Sancho Panga, erréncia do desejo e mals-além LACAN, JACQUES (1959-1960/1988). O semindrio, livro 7: ética da Psicandlise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. (1963/1988). Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 (1964). 0 seminéirio, livro II: os quatro conceitos fundamentais da Psicanélise. 3, ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, - (1973).O aturdito, In: Outros escritos. Rio de Janeizo: Jorge Zahar, 2003. __________ (1973-1974). 0 semindrio, livro 21: Les non-dupes errent, Disponivel em: . [9 fev. 2014]. SOLER, Colette. (1993). Varidveis do fim da andlise. Campinas: Papirus, 1995. ‘TEIXEIRA, SOnia Maria Platon, (2006). A nogdo de habitar na ontologia de Hei- degger: mundanindade e quadratura, Dissertagao (Mestrado de Filosofia) ~ Programa de Pés-Graduagio em Filosofia, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2006, resumo © objetivo deste artigo é discorrer sobre a errancia constitutiva do ser humano em seul encantamento com os objetos, circunscrevendo ¢ explorando a interroga- fo sobre o que é que pode fazer desse circunvolucionar em torno ~ ¢ afagar ~ do objeto do desejo um mais-além do simples retorno do “mesmo” e um sinalizar na diregdo de alguma transformagio efetiva do sujeito € de seu modo de gozo. Al- gumas passagens do Dom Quixote, de Cervantes, oferecem 0 contexto alegérico apropriado para reflexdes sobre o tema palavras-chave Desejo, g0z0, errancia, causa, objeto. abstract ‘The aim of this article isto discuss the constitutive wandering of the human being in his/her enchantment with the objects, marking and exploring the interroga- tion about what it is possible to do of this circling around ~ and fondling - of the object of the desire a far beyond of the simple return ofthe ‘same’ and a signaling towards some effective transformation of the subject and his/her way of jouissan- ce, Some passages from Cervantes’ Don Quixote offer the appropriate allegorical context for reflections on the topic. keywords Desire, jouissance, wandering, cause, object. Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no.28 p-4-48 unho 2014 a7 PACHECO, Raul recebido 15/02/2014 aprovado 31/03/2014 Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p.4T-88 junho 2014 trabalho critico com conceitos A inexisténcia e a insensatez: hiancia causal e o gozo do falasser Ana Paula Lacorte Gianesi Partirei de um poema-analisante, qual seja: [0 vazio é um tempo, / Um tempo que parece, / Parece 6 nada] para pensar alguns pontos cruciais de nossa prixis. Lacan, algumas vezes, asseverou que vazio nao ¢ o nada. Distinguir 0 nada e 4 imexisténcia me parece um passo em uma anélise, Circunscrever a inexistencia pode configurar-se um ato (contingente) que prova o impossivel e, por isso mesmo, faz escrever a nao relagao sexual, O que nao ocorre sem forgamento (forcing) Para isso é preciso tempo, operacées e algumas voltas, Em Palavras sobre a histeria, de 1977, encontramos a afirmagdo de que nossa pratica consiste em aproximarmo-nos de como operam as palavras. Lacan nos lembrava de que Freud ja ha dade. A sexualidade esta tomada em palavras. Aqui, localizamos o possi- vel do gozo enquanto castragao. Como sabemos, a castragao permite e possibilita 0 gozo filico. Estando 0 falo tomado por uma Bedeutung, significagao sem necessidade de sentido. Genitivo neutro. Significante da falta que faz girar o desejo. Para o sujeito, um Outro nao consistente propicia que a enunciagao assuma a forma da demanda. Uma pergunta converge no né do desejo e precipita a resposta fantasmatica que, por sta ve7, diverge para o significado do Outro e para a recusa (ou falta de resposta) do significante do Outro barrado, ou melhor, do significante da falta do Outro. Desejo e gozo distinguem-se e se articulam, muito embora seja preciso alguma reflexdo sobre como se dao tais articulagdes. Interessante pensarmos que a apresentagio da castragio enquanto fungio que permite o gozo parece problematizar uma primeira concepcio de Lacan: referente Aquilo que recusaria 0 gozo para que o mesmo fosse atingido na “escala invertida da Lei do desejo” (LACAN, 1960/1998, p. 841). Se em principio o gozo foi coloca- do fora do corpo, ele passou a ser no corpo. E justamente a linguagem que permitea diferenca entre desejo ¢ gozo, entre a falta 0 mais-de-gorar. Entrementes, apés as assergbes de Lacan segundo as quais 0 sig- nificante esté no gozo, mais precisamente enquanto sta causa (ele retoma as quatro to que hd a maior relacao entre as palavras ¢ a | Termo da logica, referente a uma técnica proposta por Paul Cohen. Stylus Revista de Psicanslise Rio de Janeiro no. 28 p.51-57 junho 2014 31 32 GGIANESI, Ana Paula Lacorte causasaristotélicas para justificar sua afirmacac), como recolocarmas asarticulagdes entre desejo e gozo? Como poderiamos pensar as articulagées entre desejo e corpo? Sigamos Escrevemos: (Dx = fungao da castragao. O que isto quer dizer? Em seu Semtindrio 19, Lacan diz: “O que quer dizer € que aquilo que 0 Ox es- creve tem como efeito nao mais podermos dispor do conjunto dos significantes” (LACAN, 1971-72/2012, p. 33). Gozo filico, gozo insensato. A insensatez do amor. Que voce fez? O colorir do 070 félico com o qual cada sujeito pretende se proteger da morte. Fez chorar de dor, 6 seu amor. Qualificagao freudiana a identificagao a0 Pai (LACAN, 1976-77), Um amor tio delicado2 Quantas cangdes que cantam o amor? Que cantarolam o desejo/ falta, o amor necessario ea insensatez gozosa? Qual tratamento possivel a este go70? Lacan nos propée, clinicamente, um mais, ainda, No corpo. Ele nos indica uma divisao no campo do goz0: Gozo filico, Outro gozo. Parte do principio de que é como siginificantes que nos tornamos sexuados: Nés nos distinguimos. £ por esta razio que coloco 0 x no lugar do Furo que fago no significante. Coloco o x ai como varidvel aparente. O que quer dizer que, toda ver que et lidar com esse significante sexual, isto &, com esse algo que se relacio 1a com o goz0, estareilidando com @x (LACAN, 1971-72/2012, p. 31). E toma cuidado ao enfatizar que x € uma funcio que nao precisa ter senti- do algum. “A significagao de homem ou de muther” sera destacada “conforme 0 prosdiorismo escolhido” (Ibid, p. 54). Existe ou nao existe ~ todo ou nio-todo. A inscrigdo nos modos de gozo nao se refere ao sentido. Igualmente merece nossa atengao que esta mesma fungao seja obsticulo a rela- «a0 sextial. x € a tum s6 tempo o que a relagao do significante como gozo produz ¢ obstaculiza. Enquanto causa final, o significante realiza um “alto ki” a0 gozo. E, ao mesmo tempo, ele o produz. A sexualidade tomada em palavras produz 0 gozar, o gozar de um corpo, inclusive. Conforme Lacan: “Gozar é usufruir de um corpo. Gozar é abracé-lo, éestreité-lo, é picé-lo em pedacos" (Ibid., p31) A distingao no campo do gozo, que aponta um além do goze filico, parece tam- bém um mais além da divisao do sujeito do desejo, Um gozo sexual para além do falo. O que € consonante com a orientagao feminizante de uma andlise. Se a neurase se exibe precisamente com a questio: “Onde estou eu no dizer?” (ibid, p. 89). Como uma resposta, pela impoténcia fantasmitica, ao desejo do Outro que erra rasgando-se pelas demandas em re-petigdes infindas, De algo que 2 Insensatez, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janciro no. 28 p.51-57 junho 2014 Anexisténciae ainsensatez: hidncla causal eo gozo do falasset diz: porque nao & isso! O qué? O que eu desejo! Como atravessi-lo? Como um desejo errante (insatisfito, impossivel ou cabreiro) pode decidir-se? Como um. .g0z0 paralisante, excessivo, pode dizer: satisfagao! Pois bem, dizemos que a orientagdo pelo Real subverte o cAlculo félico, Lacan de fato apontou um passo Aqueles que nao saem daquilo que se passa do lado do pai. Sera “do impossivel como causa” que chegaremos a apontar 0 além do muro, afirmando “que o acesso 4 mulher € possivel na sua indeterminagao” (LACAN, 1971-72, ligfo de 12 de janeiro de 1972). Um passo em diregao a0 Outro 070, além do falo, Por esse passo, por esse efeito, feminizante, Lacan pareceu apostar na possibilida- de de um dizer que fosse interpretante (LACAN, 1971-72/2012, p. 226), uma aposta de Lacan inspirado por Pierce. Um dizer-signo. Esta aposta, de um dizer que pro- duza um efeito de intradugio (HARARI, 2004) ou de extrapolagao dos significados. Seguir o fio do discurso analitico nao tende para nada menos do que refratu rar, encurvar, marcar com uma curvatura prépria [J aquilo que produz como tala falha, a descontinuidade. Nosso recurso é, na lingua, 0 que a fratura (LA- CAN, 1972-73/1985, p.61) O que fratura, o que claudica,o que descontinua: 0 préprio ambito causal. A indeter- ‘miinago da causa, o encontro altoso que prova aquilo que nao cessa de nao seescrever. Podemos apontar as articulagées clinicas entre 0 necessério, o contingente ¢ 0 impossfvel (ou possivel). Desassossegados com a indagagao de Lacan sobre uma “apreensio experimentada da inexisténcia’. A inexistencia, enquanto impossibi- lidade € possivel. Para falarmos sobre a inexisténcia precisamos do vazio, do zero e do Um. Lacan perguntou-se “como a inexisténcia pode inexistir?”. Ela pode inexistir por meio do simbolo zero, propriamente o nada. Eeste sim, existe, o zero. O interessan- te € que ele diz que 0 vazio, enquanto aquilo que nao comporta objeto algum, é 0 inexistente. O zero (simbolo) ~ nada ~ dé-the um nome. E, entio, conta-se 1 ‘Tem-se que 0 conccito =a zero da um niimero diferente do que vem a ser 0 zero, ou seja, diferente daquele ao qual convém nao a igualdade com 0 zero, mas o nit- mero zero, Zero como a extensao do conceito daquilo que nao ¢ idéntico a si. Nao € uma questio de igualdade, mas sim de identidade. O zero é identico a 1. Desta feita, acompanhamos a seguinte afirmacio: o | € o significante da inexisténcia (LACAN, 1971-72/2012), Lembremos algumas afirmagdes de Lacan sobre o SI, talvez enquanto produto do discurso do psicanalista, S indice 1. © S indica o Um podendo nada conter. ‘A questio: o que ha de Um em cada significante? Ou, ainda, o SI-etra enquanto Stylus Revista de Psicanslise Rio de Janeiro no. 28 p.51-57 junho 2014 33 sa GGIANESI, Ana Paula Lacorte uma fungao que nao se predica ou qualifica, que é homéloga ao objeto a quanto ao ab-senso, mas que porta uma identidade de sia si. Pistas para o que mais tarde designaré como identificagao a letra do sinthoma, Zero idéntico a Um, os supor- tes da inexistencia (propriamente o vazio). Lacan cuidou, entretanto, para que nao caissemos em posigdes ineféveis ou idealistas. “A inexisténcia s6 se produz na posteridade da qual surge primeiro a necessidade” (Ibid. p. 51). A necessidade material aponta/prova a inexisténcia. Entre necessidade e inexistencia de fato adentramos no terreno da causa. A causa enquanto hiancia que se produz a posteriori pela contingéncia/necessi- dade significante. A biancia causal pode ser abordada em sua articulaglo como real e desdobrada em seus vetores, um que aponta 0 gozo, outro que indica o desejo, Penso que a causa pode propriamente articular desejo e gozo! Pois bem, se 0 desejo em seus citcuitos é errante, sta causa é hiante! E a assun- «20 da causa pode implicar,eticamente, o desejo do psicanalista. Desejo decidido. Nao se trata do desejo puro da falta, mas de um desejo decidido que pode levar © amor para além dos limites da lei (do pai). Um desejo que se abre & pulsdo, aos orificios do corpo. Fenda, buraco, tropeco, surpresa, rachadura, vacilacao, descontinuidade, alguns dos termos escolhidos por Lacan para referir-se & causa. Conforme nos propés, a causa seria justamente uma fungdo. E haveria, nesta fungao, uma hian- cia. Ele o disse, hiancia causal ¢ ainda acrescentou: a Fungo de que se trata éuma fangao do impossivel (LACAN, 1964) A.causa, pertinente ao objeto real, objeto a, encontra-se, justamente, nos inter- valos esburacados entre 0s significantes. Nos pontos fora-do-sentido que separam ‘uma manifestagao do inconsciente de seu sentido. A causa real, posta no objeto a, implica o vazio de sentido. ‘Ainda Lacan: “Nao é sendo na medida em que o real é esvaziado de sentido que 1nés podemos apreendé-lo um pouco [...”. E para enganchar alguma coisa, Lacan din: “é a Légica do Um que resta como ex-sisténcia” (LACAN, 1975-76, inédito, ligio de 8 de margo de 1977). Ou, antes: “Trata-se de saber no como surge o sentido, mas como é de um nd de sentido que surge 0 objeto [..] objeto pequeno a” (LACAN, 1971-72/2012, p. 85) Algumas operacdes se fazem necessarias. E a interpretagdo assume seu papel fundamental pela via do equivoco. Interpretagio forcamento. No Semindrio De unt Outro ao outro, Lacan afirmou: “Ir o mais longe possivel na interpretagao do campo do Outro como tal permite perceber sua falha numa série de niveis diferentes” (LACAN, 1968-69/2008, p. 82). Donde vem a dimensio do indecidivel. $1 como o que se engancha alguma coisa, $2 como o que nao se Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janciro no. 28 p.51-57 junho 2014 Anexisténciae ainsensatez: hidncla causal eo gozo do falasset alcanga. $2.como tendo duplo sentido para que SI tome seu lugar (15). “Ir o mais longe possivel”, eis um forgamento (forcing) que pode fazer 1 (esse Um) enganchar alguma coisa que nao o sentido ¢ S2, esse saber operar com as, palavras, com o duplo sentido, com 0 equivoco, com o que trabalha em prol do 4070, tim gozo-saber. Isso permite cavar um furo, Outra citagdo de Lacan: Se vocés sio psicanalistas, vocés vero que é 0 forgamento por onde um psi- canalista pode fazer ressoar outra coisa, outra coisa que o sentido [..] 0 sentido, {sso tampona; mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética vocés podem ter a dimensio do que poderia sera interpretagao analitica [..] Nao que toda poesia sejatal que a possamos imaginar pela escritura, pela escritura poéti cachinesa [.] é que eles cantarolam, é que les modulam, é que ha o que Frangois, Cheng emunciow diante de mim, a saber, um contraponto ténico, uma modulagao que faz. com que isso cantarole, porque da tonalidade & modulagio ha um desli zamento. Que vocés sejam inspirados por alguma coisa da ordem da poesia para intervir, é bem em direcdo a que vocés devem se voltar [.] se a linguistica se soergue é na medida em que Roman Jakobson aborda francamente as quests de poética (LACAN, 1976-77, inédito, aula de 18 de abril de 1977). Se 0s estudos sobre a fungdo poética (Jakobson) nos possibilitam bons debates acerca do fundamento do equivoco, de lalingua ¢ do poema analisante, o tonema nos traz a cangao, 0 cantarolar, o modular... 0 tom, 0 som, o silencio... as resso- nancias do corpo. A hesitacdo entre o som ¢ o sentido, a queda do referente (pré- prios a fungdo poética) e as modulacées no corpo (da tonalidade). Nao obstante, isso nao passa sem a légica, ndo passa sem a prova do impossivel. Para fazer ressoar outra coisa que o sentido (como um golpe de sentido), para isso parece ser preciso um forgamento ~ forcing. Conforme Badiou propos: for- amento ao indecidivel, © forgamento revela um indiscernivel (ou inexistente), pois, como uma técnica, le parte de uma operagao na qual se obtém uma extensio por adjungdo de uma parte indiscernivel, uma parte genérica, que é desconhecida na situaco, mas que existe, Mais ainda, ndo obstante desconhecida, nomeada (BADIOU, 1996). ‘Trata-se mesmo de uma operagdo sobre axiomas de determinada teoria dos conjuntos, ¢ isto se d por nomeagio. Podemos forgar um axioma por Vazio (ine~ xistente, indiscernivel) O “sujeito passa a forga num ponto em que a lingua falha (..] aquilo para o que ele abre ¢ uma des-medida, [..] porque o vazio foi convoca- do” (BADIOU, 1996, p. 335). Lembremos que a fantasia é um axioma para 0 neurético. Dai que por forgamen- Stylus Revista de Psicanslise Rio de Janeiro no. 28 p.51-57 junho 2014 55 56 GGIANESI, Ana Paula Lacorte to um sujeito possa atravessar sua verdade mentirosa e articular “o indiscernivel & decisio de um indecidivel” (Ibid, p. 326). Segundo Badiou, o resultado mais im- portante da técnica do forgamento é que é possivel forgar veridicidades sem que as ‘mesmas sejam absolutas. O saber sobre a verdade (ndo-toda) que se sustenta a partir do discurso do psicanalista convoca o vazio (inexisténcia), prova o furo. ‘A aposta de Lacan: ao forcarmos o inexistente, para que este possa inexistir, podemos fazer ressoar outra coisa... as modulagdes do corpo, os efeitos de furo. Ressoar outra coisa e viver a pulsao. Um desejo que se decide e faz do corpo “Encore”. Porque gozar de lalingua produz seus efeitos, o savoir y faire & posto como responsabilidade. Responsabilidade sobre o go70, 0 goz0 (do falasser) que se refere & letra do sinthoma, este nosso necessério reduzido a uma fungio, sem 4qualidades ~ 0 enganche de alguma coisa. Algo de des-medido, que a desmaneira singular trata de inventar a cada vez Da verdade a variedade do Sinthoma. Uma variedade do conhecer. Conhecer 0 som, o tom e o siléncio da voz. Como nos indica um grande poeta russo: “Conhega, pelo menos, os sons que outrora te foram caros” (Pushkin) referéncias bibliograficas BADIOU, A. O Ser eo Evento, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, 402p. HARARI, R. Intraduccién del psicoandlisis ~ Acerca de L'insu... de Lacan. Ma- drid; Edotorial Sintesis, 2004, 332 p, LACAN, J. (1960). Subversao do sujeito ¢ dialética do desejo. In: LACAN, J. Escri- tos, Tradugao de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 807-842. - (1964). 0 Semindrio, ivro 11: Os quatro conceitos fundamentais da sicandlise, Versio brasileira M. D, Magno. 2*ed, Rio de janeiro, Zahar, 1985, 269p. . (1968-69). O Seminério, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Jorge Zahar, 2008, 412p. . (1971-72). © Seminério, livro 19: .. ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012, 249p. _. (1971-72), © Seminério: .. ou pior, aula de 12 de janeiro de 1972, versdo do Centre de Estudos do Recife. _ . (1972-73). O semindrio, livre 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, 201p. - (1976-77). O Semindrio, livro 24: Pinsu que sait de Vune-bévue saile a mourre. Inédito, . (1977). Palavras sobre a Histeria, Inédito. Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janciro no. 28 p.51-57 junho 2014 Anexisténciae ainsensatez: hidncla causal eo gozo do falasset resumo ‘O texto parte de um poema-analisante, qual seja: [O vazio é um tempo, / Um tem- po que parece, / Parece o nada.) para pensar alguns pontos cruciais da praxis psi- canalitica, Lacan, algumas vezes, asseverou que o vazio nao é o nada. Distinguir ‘nada ea inexisténcia parece um passo em uma andlise, Circunscrever a inexi téncia pode configurar-se um ato (contingente) que prova o impossivel e, por isso mesmo, faz escrever a nao relacdo sexual. O que nao ocorre sem forgamento: um forcing para fazer ressoar outra coisa que 0 sentido (neurdtico). Para isso é preciso ‘tempo, operagdes e algumas voltas. © forgamento revela o inexistente (propria- mente 0 vazio). E possivel, entdo, forgar 0 vazio para qute este possa efetivamente inexistir ¢, desta feita, fazer ressoar as modulagdes do corpo e os efeitos de furo através dos quais cada sujeito (singular) poderd inventar. palavras-chave Vazio, nada, desejo, gozo, causa e forgamento. abstract ‘The text departs from an analyzing-pocm, that is: [The void is a time, | A time that seems, / Seems like nothing | in order to reflect upon some crucial aspects of our praxis, Lacan has emphasized that the void is not the nothing. To distinguish the nothing from the inexistent seems a step in an analysis. To circumseribe the inexistence, it can be configured as an act (contingent) that proves the impossible and, for this very reason; it makes it write the non sexual relationship. This does not happen without forcing: forcing to make resonate something else. For this it is needed time, operations and some turns. Forcing reveals nonexistent (empty properly). You can then force the empty so that it can effectively inexistent and, this time, to echo modulations of the body and the effects of hole through which each subject (singular) can invent. keywords Void, nothing, desire, jouissance, cause and forcing recebido 15/02/2014 aprovado 28/03/2014 Stylus Revista de Psicanslise Rio de Janeiro no. 28 p.51-57 junho 2014 37 Relacao entre sublimacao e desejo' Beatriz Elena Maya Restrepo 1.A pergunta Ao final do Semtindrio 7, A ética da psicandlise, encontramos este pardgrafo: Na definigao da sublimagao como satisfagao sem recalque hi, implicito ou explicito, passagem do nao-saber ao saber, reconhecimento disto, que 0 desejo nada mais é do que a metonimia do discurso da demanda, & a mudanga como tal. Insisto ~ essa relagio propriamente metonimica de um significante ao outro que chamamos de desejo, nto & 0 novo objeto, nem o objeto anterior, 6a prépria :mudanga de objeto em si (LACAN, 1959-60/2011, p. 352) ‘Vemos estreitamente articuladas trés nogdes:a sublimacio, o desejo eo saber. Ea referéncia & mudanga que articula sublimacao e desejo. Nao se sabe muito bem sea ‘mudanga refere-se & sublimagio, ao desejo ou a ambos, o que sugere uma pergunta qual a relagio estabelecida entre o desejo ea sublimacao? E qual sua diferenga? 2. Do desejo Desde a primeira ligio do Semindrio 7, Lacan fala do desejo como o que dé a _génese a dimensao ética; um desejo que se apoia no polimorfismo perverso e, so bretudo, em sua realizagdo aluicinatéria, gragas a perda original inaugurada pela linguagem € que se instaura como das Ding. Tendo situado nesse lugar a mae, Freud falara do desejo incestuoso como fundamental, sobre o qual se funda a lei que da origem a cultura. Depreende-se disso que a fungio do principio do prazer seja “fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas, que nao poderd atingir” (Ibid,, p. 87). Situar a Coisa ou das Ding como mira do desejo € aproximar essa nogao de desejo a de gozo: ja que o desejo surge como um paradoxo, uma busca orientada por um objeto que nunca poder ser alcaneado, porque fazé-lo implicaria a morte, 0 campo da destruigao absoluta, A mesma lei | Trabalho apresentado na ornada de encertamento sabre Semindrio7 Aética dapsicandlise,em, W6de margo-de 2013, no Forum de Medelin. Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28 p.59-66 junho 2014 38 60 RESTREPO, Beatriz Elena Maya que empurra a busca do desejo, se € reforcada para proibi-lo, traz consigo mais goz0 e, do mesmo modo, quando se tenta obviar a lei indo em direcao ao gozo, 60 que se encontra sao obsticulos, isto é, “a transgressio no sentido do gozo 96 se efetiva apoiando-se no principio contrario, sob as formas da Lei” (Ibid., p. 217). Por isso, 0 que se pode fazer & girar em circulos, obtendo uma satisfacdo curta. Aqui vai ficando claro aquilo que, sobre 0 desejo e o gozo, parecia ser um pouco confuso nesse seminério, Entao, chega-se ao desejo pela interdigao do gozo. Uma das formas de girar em circulos ¢ aquela que permite a sublimacao. Lacan introduz a realizagdo humana a partir do desejo. Assim, faz uma expo- sigdo de principios, sittando a razao ou articulagao significante, desde o inicio, como anterior a0 sujeito; € depois disso que o homem situa suas necessidades, assim ele é capturado pelo campo do inconsciente que tem em sua estrutura uma spaltung, um buraco, uma divisio, ao redor da qual se organiza o desejo. Spaltung que, por sua vez, tem a ver com o go70, porque esse campo, que éa mira do desejo, converte-se em algo central, escuro, inacessivel, campo do gozo. O significante entdo, introduzindo a falta, inscreve o mortifero, mas, ao mesmo tempo, © espago para o desejo, ou seja, ha desejo porque hi significante e falta 3. Da sublimagao Nao € uma nogio simples em Freud; é Lacan quem a esclarece ao longo de sua obra. Antes mesmo do Semindrio 7, indaga em suas relagdes com a idealizacao, do mesmo modo, a situa como um processo imaginario de uma identificagao do eu com 0 Outre (LACAN, 1956-57/1994). Mas nao deixard as coisas assim. Lacen avanga relacionando a sublimagao com a letra como materialidade significante, especificamente na obra literaria, Desde esse seminirio, questiona o tratamento que Freud deu a essa nocio; pergunta se, com Freud, é possivel defini-la como uma atividade sexual enquanto esta dessexualizada e prepara o terreno para aquilo que ird desenvolver no Semindrio 7. Define a sublimagao como a forma na qual se “es- oa” 0 desejo ea relaciona coma pulsio descrita como o jogo significante. Termina Lacan (1958-59/inédito, p. 516 ), no Semindrio 6, O desejo e sua interpretacai {i que nogio é esta se no podemos defini-la como a forme mesma na qual se escoa 0 desejo! J que o que se Ihes indica & justamente que ela pode esvaziar-se da pulsio sexual enquanto tal, ou mais exatamente que a nogo mesma de pulsio, Tonge de confundir-se com a substancia da relagao sexual, é esta forma mesma que cla &: jogo de significante, fundamentalmente ela pode se reduzir a este puro jogo do significante. E€ assim mesmo que podemos definira sublimagio. Este algo por «qual, como jd escrevi em algum lugar, podem equivaler-se 0 desejo ea letra Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 8 p.59-66 junho 2014 Relagio entre sublimacio e desejo Desde este seminirio Lacan tira a pulsdo do plano biolégico, ponto em que Freud tropecava, fazendo-a equivalente & sublimacio na relacio ao significante, mas, além disso, nos diz que ali se escoa 0 desejo. Para Lacan, a sublimagio tem a ver coma criacao significante de um objeto que Ihe permite “nao evitar a Coisa como significante, mas representa-la na medida em que esse objeto é criado” (LACAN, 1959-60/2011, p. 151). Aqui, Heidegger, com sua conferéncia A Coisa, na qual fala do vaso como criagao do vazio e do pleno, inspira Lacan. Uma criagio a partir do nada, 0 que Lacan chama de ex nihilo, Nesse sentido, a criagao permanente, a partir do nada, que é a sublimagio, implica 0 movimento de mudanga permanente que a caracteriza, E com sua aproximagio em A ética da psicandlise, que empreende sua critica contra esse tratamento socializante que foi dado a sublimagao. Nao é sem impor- tancia a razao disso, para dar-lhe um lugar central no objetivo deste seminari no qual se faz indispensaivel essa nogao, ja que Freud a introduz como outra via do sentimento ético. Lacan detém-se minuciosamente nela e busca ver 0s pro- {gtessos que o proprio Freud fez em Introducio ao narcisismo, texto em que inclui problemas ao interior de stia definiglo. A fim de esclarecé-la, recorret A nosao de das Ding ¢ & de objeto, Entende das Ding, a Coisa, como um lugar em que se manifestam os primeiros esbocos de organizagao psiquica a partir das Vorstellun- _grepresentanz, ou representantes da representagao, objeto que orienta a tendéncia da pulsto e do desejo, o que determina seu circuito, diferente do objeto narcisico com o qual se engana sobre das Ding. Detenhamos-nos nessa expressio: enganar. H4 uma pequena observagao que Lacan faz sobre a anamorfose que nos orienta muito em relagdo 4 importancia da obra de arte. Ele diz: “trata-se, de uma maneira analégica, ou anamérfica, de tornar a indicar que o que buscamos na ilusao € algo em que a ilusio, ela mesma, de algum modo transcende a si mesma, se destr6i, mostrando que ela Id nao esté senio enquanto significante” (LACAN, 1959-60/2011, p. 170). Nota esclarecedora sobre a posigdo da arte; mais além do ilussrio ou do imagindrio, estaria a ordem significante, necessiria a obtengio de prazer por via das facilitagdes das Vorstel- lungen freudianas, lidas por Lacan como moldura significante. Assim, a arte é uma via para a obtencio de prazer por meio da simbolizacio, nio da repressio. E também o que lhe permite dar preeminencia & arte poética, Por causa disso, Lacan introduz uma formula sobre a sublimacdo que enuncia da seguinte forma: “Ea férmula mais geral que thes dou da sublimagio ¢ esta - ela ele- vva um objeto ~ e aqui nao fugirei is ressonancias de trocadilho que pode haver no emprego do termo que vou introudizir ~ dignidade da Coisa” (Ibid, pp. 140-140), © paradigma disso éa dama do amor cortés, puro significante que representa a Coisa inacessivel, velada, vazio central. Ja vemos vislumbrar a triade: Real, Sim- Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28 p.59-66 junho 2014 61 RESTREPO, Beatriz Elena Maya bélico, Imaginario, que se esclareceré ao final de seu ensino, no Semindrio 23, que os trés registros enlagam a obra de arte. Porém, no Semindrio 7, é possivel ver que 6 real seria esse vazio que se representara por um objeto imaginério. $e 0 que faz. é representar, perde sua qualidade de objeto para ser um significante, de tal forma que os trés registros se articulem., Esse exemplo permite esclarecer que a sublima- cio tem a ver com as satisfacdes da poténcia, isto é, a manutencio do desejo em perspectiva, pois a dama ¢ proibida, tem caracteres despersonalizados e 0 objeto feminino esta vazio de toda substancia real. Ademais, tem uma fungio poética ou simbélica, é um puro significante. De sua anslise sobre 0 fenomeno do amor cortés e da sublimagao, Lacan pode concluir que aquilo que o homem demanda ¢ ser privado de algo. Esse algo seria a Coisaem si, o que permite deduzir que a sublimagio tende a isto, a que aparega um limite em relagao a das Ding. E dizer, o sujeito, em sua criagdo sublimatéria, garan- te-0 desejo, e n20 0 acesso a0 gozo absoluto, Trata-se entao de uma ética do desejo. Contudo, se nao ha acesso a0 goz0 absoluto, nao se pode escapar do paradoxo «que implica a satisfagdo. Vejamos como Lacan o enuncia: Ora, o paradoxo do que se pode chamar, na perspectiva do principio do prazer, de o efeito do Vorlust, dos prazeres preliminares, é justamente que eles subsis tem de encontro a diregao do principio do prazer. E na medida em que se sustenta o prazer de desejar, isto é, para dizer com todo o rigor, o prazer de experimentar tum desprazer, que podemos falar da valorizagao sexual dos estados preliminares, do ato do amor (1959-60/2011, p. 189). A partir disso, podemos inferir que 0 prazer esta em manter o prazer de de- sejar, 0 que é equivalente a experimentar um desprazer. Trata-se do prazer no desprazer. Sabemos que a isso Lacan det o nome de gozo, ou melhor, o préprio Freud. Contudo, vemos também uma aproximagio da nocio de sublimagao com a de desejo. Nosso encontro internacional convida a falar dos paradoxos do de- sejo. Encontramos esbogado de maneira clara um deles: 0 desejo implica manter a tendéncia em perspectiva, 0 que traz consigo um desprazer, ou melhor, como dira Lacan (1976-77)inédito), em outro seminario, muito mais tarde, “aquilo que a psicanalise chama de prazer, € padecer, sofrer 0 menos possivel”, ‘Até aqui, vemos claramente que tanto a pulsio quanto a sublimagao ¢ 0 desejo sio colocados em marcha pela articulacao significante, a qual, ao mesmo tempo, traz consigo a pulsio de morte. Lacan define como suspeita a nogao freudiana de pulsio de morte, mas nao diz que nao exista, a situa como “uma sublimacao criacionista” (LACAN, 1959-60/2011, p. 260). © que isso quer dizer? A meu ver, se a mira do gozo, que é 0 campo da destruigio, é a Coisa, para onde tende 0 Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 8 p.59-66 junho 2014 Relagio entre sublimacio e desejo desejo pelo movimento pulsional, entenderiamos a pulsio de morte como uma vontade de destruicio. Porém, na medida em que esta ligada a ordem significante, também é uma vontade de criagdo a partir do nada, ex nihilo, por intermédio da sublimagao. Essa vontade de criaglo ¢ a que coloca limite ao objetivo do desejo, ou seja, 8 Coisa, 0 que estabelece uma relacao estreita entre desejo e gozo. E neste ponto que a nogao de criagio faz-se inseparivel da de sublimagio, dado que é a partir do campo de destruicao, que ¢ das Ding, para o qual tende a pulsio, que se cria, pela via significante, como explicado anteriormente, algo que represente dito campo. £ importante reiterar que, se 0 representa, esté criando um limite no acesso a ele, jf que no 0 aproxima ao campo inacessivel, mas somente o repre- senta, mais precisamente, 0 contorna. A fim de garantir a satisfagao, deve haver uma destruigdo que dé lugar & criagdo de um novo objeto, ou seja, manter-se em estado de mudanga, que ¢ 0 que facilita a satisfagdo e 0 que caracteriza a criagao sublimatéria e, a0 mesmo tempo, 0 desejo, No pardgrafo que deu origem a meu trabalho, Lacan situa a sublimagie como um saber. Mesmo que para decifrar essa frase seja necessirio outro trabalho, po- demos dizer algo a respeito, A manutengao da tendéncia, que ¢ © que 0 sujeito persegu, 6 € possivel se o gozo da Coisa € deixado como inacessivel, isto é, se se introduz um limite que dard origem a ordem do desejo pela via dos objetos eriados, os significantes, o que permite, no inconsciente, reconhecimento da estrutura, do buraco enquanto contornado como limite. No ato da sublimagao hi entio a manifestagao de um saber: nao hé um objeto que satisfaca a pulsio, ou melhor, que a pulsio pode satisfazer-se medianamente, em seu trajeto mesmo. Se o objeto que se eleva & dignidade de Coisa € imaginério, operando como significante, temos a formula do fantasma, $ 0 a, que seria a mola da sublimagao ,20 mesmo tempo, o suporte do desejo. Sublima-se com as pulsdes, diré Lacan mais adiante (1968-69/2006). Formula que nado somente articula a sublimagao e © desejo, mas também a pulsio aos dois anteriores, dado que os objetos com os 4quais se engana sobre das Ding sto os parciais da pulsdo, que devem ser elevados, por intermédio da obra de arte, a dignidade da Coisa. Essa formula deve ser demonstrada, ¢ para tanto Lacan refere que “para que © objeto se torne assim disponivel é preciso que algo tenha ocorrido no nivel da relagao do objeto com o desejo” (LACAN, 1959-60/2011, p. 142). Assim, subli- macio € desejo ficam absolutamente relacionados por intermédio do objeto. O que ocorreu no nivel da relacio do objeto com o desejo? A resposta temos muito depois, quando nos descreve o desejo como uma relagao metonimica entre os significantes, sem levar em conta o novo objeto, ¢ sim a mudanga. Claramente, Lacan define o desejo como uma metonimia, uma busca metonimica na ordem significante, busca intermindvel que obriga a presenga de inumeriveis objetos, Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28 p.59-66 junho 2014 8 68 RESTREPO, Beatriz Elena Maya ‘mas nio slo esses propriamente as objetos do desejo, sendo “a mudanga”. E ina- creditivel que Lacan defina o objeto do desejo como a mudanga de objeto; assim, poderiamos pensar que a sublimagdo é um meio para a manutengdo do desejo. Contudo, dissemos anteriormente, que & desde aquilo que suporta a0 desejo, isto 6 0 fantasma, que se cria, que se faz a sublimacio. Entdo, voltando & nossa pergunta inicial, vemos despontar sua resposta, arti- culando nao 6 o desejo e a sublimagio, mas também esses dois a pulsio. Assim, poderiamos dizer que a sublimagao ¢ um saber-fazer-com a pulsio de morte, com © campo da destruigao, colocando um limite que se prefigura como um contorno significante, o que implica suistentar o desejo, sem repressao. Dissemos que um dos paradigmas da sublimacao ¢ o amor corteés. Porém, foi com aarte que Lacan mais 0 vinculou ao longo de sua obra. Creio que é por isso que j4 nao falaré de sublimagdo, mas sim de arte e poesia, colocando-os como modelos para nosso ato, Por isso, chama a atengao que Lacan diga que a arte tem como mecanismo a repressio, urvedragun, quando, com Freud, sustentou que é sem repressao. A possivel saida para isso é que nao se pode confundir a repressi0 propriamente dita com a repressio origindria, que seria estrutural, eas secunds- rias que estio determinadas por essa. Dito de outro modo, nao haveria incons- ciente sem repressio e, portanto, nio haveria arte sem repressio. Agora demos um salto ao peniiltimo seminério em que Lacan fala de sublimagio. Refiro-me a0 Semtindrio 16, De um Outro ao outro, no qual encontramos virias pre- cisdes que permitem esclarecer mais a nogio que tratamos. O primeiro ponto & que Lacan assinale que nao se sublima a pulsio, mas que s sublima cont as pulsdes, 0 que é bem diferente. O segundo ponto é que faga uma figura da Coisa como um vactiolo, imagem que lhe permite pensara estrutura de borda da sublimasao. O extimo interdi- to, centro do campo do gozo, entendido aqui como “tudo que provém da distribuigdo, de gozo no corpo”. Porém, se se sublima com as pulsdes e essas implicam 0 gozo se- xual, sublimacio seria um gozo sexual. Trata-se da articulacio da légica ea corpo- reidade, uma logica da defesa empurrada pelo principio do prazer ou pela satisfagao. Aqui, a importancia da obra de arte estriba-se que ela, como objeto a, com suas distintas formas, oral, anal, escopofilico ¢ 0 sadomasoquista, é dizer, a voz, 0 clhar, as fezes, vem ao interior do vactiolo ou coisa “fazer cécegas em seu interior”. Assim, a sublimagao surge como um paradoxo diante do gozo porque, ao mes- mo tempo que 0 transgride, coloca-the um limite, criando 0 campo do desejo; contrariamente ao neurdtico que suspende 0 gozo, mas, ao mesmo tempo, de modo paradoxal, reforga-o. Ter clareza de quea sublimagao implica 0 gozo sexual porque o que se alcanga ¢ finalidade, ainda que nao o objeto sexual, implica nao desvid-la pelas vias da dessexualizacao. Por outro lado, no Semindrio 14, Lacan (1967/inédito) situa a estrutura da su- Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 8 p.59-66 junho 2014 Relagio entre sublimacio e desejo blimagdo como partindo da falta ¢ reproduzindo-a, o que implica que possamos relacioné-la com o desejo de final de anlise, em que a falta brilha como produto. Ali mesmo, Lacan situa a sublimagao nao s6 na arte, mas também no préprio falar, experiencia do ato analitico, Mas voltemos as relacdes que a sublimacao tem com o saber, pois slo centrais em minha proposta de pensar o final de analise, ou seja, o desejo do analista como um ato sublimatério por ser criador. A tiltima intervengao de Lacan (1968-69/2006) sobre a sublimagio, com exce- do de uma no Seminario 20, Mais, ainda, é no Semindrio 16, Na ocasido, articula sublimagao e saber pela via de diferenciar a sublimagao do sintoma, isto é, 0 neu- rético nao renuncia ao gozo que supde ser o saber do sujeito suposto saber, um saber que est no Outro e, portanto, uma submissio ao goz0 do Outro. O criador de arte, aquele que pode sublimar, estabelece, por sua vez, uma relagio diferente como saber. Assim, quem chega ao final da experiencia, a consecugao do desejo como desejo de analista, estabelece uma relagio com o saber desprendido do A, como possibilidade de um sentido, para enfrentar a estafa psicanalitica que 0 con- fronta com o real e com a possibilidade de saber-fazer-ai-com. Isso quer dizer que o artista nao é neurético ou deixa de -lo por suaarte? Pode ser qualquer tipo de estrutura, mas, em seu ato criador, comporta-se de maneira distinta da que se comporta fazendo sintoma. O importante € mostrar que o neurstico, em seu querer saber, comporta-se apa- gando a falta que o criador de arte desvela, Nos esforcos de abolir o apagamento de seu ser, 0 qute 0 neurético faz é reforgé-o, distinto de quem pode sublimar, jé que se trata de um reconhecimento daquilo que ele €: no mais que falha do sentido. Para terminar, nao confundo o desejo do analista com o artista, nem o inverso; nio suponho que o artista seja um analista. Digo que o ato do artista & homélogo 20 ato de final de andlise. E por isso que Lacan nos convida a consultar os poetas para aprender com eles. ‘Tradugdo: Maria Claudia Formigoni Revisio: Conrado Ramos ¢ Ida Freitas referéncias bibliograficas LACAN, J. (1956-57). EI Seminario, libro 4: La relacién de objeto. Traduccién de Enric Berenguer. Buenos Aires: Editorial Paidés, 1994, 438p. ______. (1958-59). El Seminario, libro 6: el deseo y su interpretacién. Inédito. (1959-60), El Seminario, libro 7: la ética. Traduccién de Diana S. Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28 p.59-66 junho 2014 66 RESTREPO, Beatriz Elena Maya Rabinovich. Buenos Aires: Editorial Paidés, 2011, 350p. . (1967). El Seminario, libro 14: la légica del fantasma. Inédito. . (1968-69). El Seminario, libro 16: De un Otro al otro, Traduccién de Nora A. Gonzilez, Buenos Aires: Editorial Paidés, 2006, 202p. . (1976-77). El Seminario, libro 24: Vinsu que sait de lune-bévue saile 4 mourre. Inédito. resumo © presente trabalho orienta-se pelos ensinamentos de Jacques Lacan, especialmente pelo Seminario 7, A ética da psicanalise, para esclarecer as relagbes existentes entre a sublimagio e o desejo, partindo da sublimagao como um paradoxo diante do gozo: porque, ao mesmo tempo que o transgride, coloca-Ihe um limite, criando o campo do desejo. Mas também assinalando a presenga do desejo como outro paradoxo, ja aque exige manter a tendéncia em perspectiva, o que introduz certo mal-estar. palavras-chave Sublimacio, gozo, desejo, paradoxo. abstract ‘The present work is oriented by Jacques Lacan’s teachings, especially in the semi- nar seven, Ihe Ethics of Psychoanalysis, to clarify the relations that exist between. sublimation and desire, starting out from sublimation as a paradox in relation to jouissance, because at the same time that transgress it it puts a limit creating the field of desire. But also indicating the presence of desire as another paradox since it requires to keep the tendency in perspective, which introduces certain discontent. keywords Sublimation, jouissance, desire, paradox. recebido 06/02/2014 aprovado 26/03/2014 Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 8 p.59-66 junho 2014 Desejo e Repeticao Dominique Fingermann O convite para participar das primeiras Jornadas Conjuntas da América Latina Sul da IF-EPECL “Posicdes do ser no desejo", me permitiu desenvolver e compartilhar esta questio tio delicada, que éa relagio do desejo com a repetigio. Cada ver que dizia que estava trabalhando esta questao, respondiam um pouico constrangidos: “E mesmo? Que problema dificil”, ou entio precisavam: “Mas nao seria melhor dizer repeti¢ao ou desejo?”. Estava traduzindo e trabalhando em meu seminério 0 curso de Colette Soler sobre a repeticao (SOLER, 2010/2013), ¢ parecia evidente a articulagao da repeti- 0 com o desejo, tema do encontro “Os paradoxos do desejo”: a ponto de chegar a conclusdo de que o paradoxo do desejo (entre menos e mais-gozar) eraa repeti- ‘lo! Logo almejei precipitar a articulagao do Dizer com o désir (desejo], ¢ conec- tar 0 Dizer-do-Um com o desejo via a repeticio “comemoragio do gozo perdido!” (LACAN, 1969-70/1992, p. 73). Por ora triharei um caminho mais ento de demonstragao, desde 0 infcio da ques- ‘to, € em trés tempos: 1. Como a questio da repetigio se apresentot na clinica do desejo tanto para Freud, quanto para Lacan; 2. Como Lacan retomou a articulagao topoldgica dos dois: o desejo como efei- to da repetigdo e a repetigdo como efeito do dizer, ou seja, a repetigao do trago ‘undrio como efeito do Um-Dizer e causa do sentido do desejo, Um de sentido. ‘Trago undrio, Um-Dizer, e Um de sentido: trés formas do Um para nao dizer, talvez, trés posicoes do ser. ‘Talvez possamos emprestar d’alingua francesa uma palayra tinica para condensara D) Alinha do enunciado: entre s(A) ¢ A. A interpretagio deve tocar o dito em seu dizer, deve surpreender 0 sujeito como dizente de algo que supera o que tentava dizer. Nessa época, Lacan o apresen- ta como uma cruz de cadeias significantes: a da enunciagao inconsciente € a do enunciado consciente. O analista deve dar conta dessa cruz, & espera da resposta do sujeito. Nao se trata de acrescentar um enunciado por parte do analista, sendo de tocar o dito onde houve interferéncia. Nao é preciso dizer que o analisante faz eco de si mesmo e contribui A interpretagao, porém é esta a aposta lacaniana: a in- terpretagdo é um efeito que se produz no sujeito, do contrério nao é interpretagao. E, nesse segundo caso, pode ser simplesmente uma invasio do discurso do sujeito por parte do dizer do analista, ou seja, uma interveneao do sujeito analista, e pela via de seu desejo. Esta era, com frequencia, a pritica com que Lacan se encontrava por parte de seus pares, e contra a qual se posicionava. A este respeito cabe assinalar a anedota acerca da andlise do paciente de Ella Sharpe (1971) que Lacan comenta nesse mesmo seminatio. A anal se trata de um paciente a quem nunca ouve chegar e em certa ocasiio 0 ouve tossir antes de entrar. Considera que ¢ um elemento novo, porém nao o assinala porque entende que nao est no momento da anilise que permita fazer comentarios acerca dos acontecimentos corporais, sem dar mais precisdes de quando seri o momento. Porém, é o proprio paciente quem indica que se deu conta de sua tossezinha e esclarece que isso deve significar algo, desenvolvendo a partir de suas associagdes toda uma trama que dard conta de certa posigio fantasmatica, e de um desejo de sair de cena, de nao estar ai (Dasein), evitando a intervengio do outro. Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28-79-90 junho 2014 8 82 REBOLLO, Manel Quis fazer esse apontamento por virias raz0es: em primeiro lugar, por este de- sejo de “estar em outro lugar”, com suas conexdes com o tema que nos ocupa~ 0 lugar do desejo ~ e por outra parte pelo assinalamento de Lacan de que €0 proprio sujeito que supde uma significagao na tossezinha, adiantando-se a analista. Evi- dencia-se, entao, que na entrada em andlise, que Lacan situa precisamente neste momento para o paciente de Ella Sharpe, depende do que acontece no proprio analisante, do que se formula como sujeito suposto saber, e cuja responsabilidade cai do lado do analisante. £ o proprio paciente quem, contra toda suposigao da analista ~ ainda ndo chegou o momento ~ assinala sua abertura ao inconscien- te com este “isso deve significar algo”. Vemos o suijeito localizando-se em set enunciado (a tosse) ¢, portanto, “descendendo” da linha da enunciagdo & linha do enunciado e dando logo a interpretagao a partir de suas associagdes. O mais inte- ressante, diz Lacan, é que a analista no havia assinalado essa eventualidade, que contradiz sta entinciagao doutrindria, O momento de dar ou nao a interpretagao vem anunciado pela entrada em transferéncia. Antes da mesma, da suposicao de ‘um sujeito e um saber por parte do analisante, toda interpretagio nao € mais que dizer vio do analista, que nao vai ressoar no dizer do analisante. Esta é a conside- racio do timing por parte de Lacan. E a interpretagio que localiza o desejo do sujeito em um instante precedente, depois do qual o sujeito do desejo jd nao estd af. Por isso tomei o termo Dasein, para e(qui)vocar um ser-estar ai fugitivo, Podemos dizer que a interpretagio da- seina o desejo do sujeito, Dia ele uma localizagio que nao tinha antes desse efeito da interpretagao, nem tera depois. Parece-me muito pertinente a mengio de La- can do “efeito” com referencia & interpretacao, pois lhe atribui consisténcia nao a0 dizer do analista,e sim ao que esse dizer produ no analisante, Somente se houver feito haveré interpretagio. Nao podemos toms-la como um “saber” acerca do de- sejo, um saber prévio que o analista anunciaria ao dar sua interpretagao. Em todo aso, nos vem bem aqui a expressio “saber vio de um ser que se furta” (LACAN, 1968/2003, p. 260). Se ha efeito de interpretagao, este se manifesta do lado anali- sante como tum saber, porém vao por sta imediata evanescéncia. Entdo, a interpretacio é to evanescente como o proprio desejo a que diz res- peito, questo que o termo “efeito” recolhe fielmente, E tio somente um “efeito de interpretagao”, um “efeito de saber” passageiro sobre o desejo. A modalidade de intervengio do analista a respeito da interpretagao do desejo vai se tornando cada vez menos de saber € mais de som. Podemos dizer que o ana- lista opera em seu ato resonhabliemente, e nao tao razoavelmente como pretendia © didatismo de Ella Sharpe.! ANT: Mais adiante em seu texto, 0 autor explica 0 jogo homofénico que est fazendo. Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p.79-90 junho 2014 Desejo:daseinlacanlano “FE preciso tomar o desejo ao pé da letra” (LACAN, 1958/1998, p. 626) Esse conselho lacaniano, precoce em suas formulagdes, se produz em um tempo em que enfatiza a divisao entre letra e significante, e em que a escritura daria 0 con- texto da palavra. O titulo de um escrito do ano anterior, “A instancia da letra no te..” da boa conta do dito. Nao por acaso, em seu seminario O saber do psicanalista (1971-72/inédito) se refere a este escrito, a este titulo, para assinalar que o real é“o que nio cessa de nao se escrever”, e ndo “o que no cessa de nao dizer-se” Encontramos o precedente no proprio Freud, que nos ensinow a tomar o sonho como 0 texto do desejo, ea considerar também como parte do texto todas as no- tas marginais, constituidas pelos comentarios do sonhador no momento em que relata seu enunciado, Conhecemos as vicissitudes nas referéncias 8 escritura, desde a Interpretagdo dos Sonhos (FREUD, 1900/1976) até a Uma nota sobre o blaco mégico (FREUD, 1925 [1924]/1976). Nesse pequeno artigo, Freud exalta as virtudes de um produto que acaba de ser comercializado na Inglaterra, que consiste em uma lousa que permite escrever e apagar sem fazer desaparecer totalmente 0 contetido escrito. A lousa é uma tabuleta de cera ou resina de cor escura, emoldurada com pape- io; sobre ela hé uma folha delgada, transparente. Aplicando uma pungio sobre a lamina, se consegue que a superficie do papel encerado pressione a cera sobre a tabuleta e seus tragos escuros tornam visivel a escritura, Separando de novo a folha, se consegue apagar 0 escrito, porém a inscri¢ao sobre a cera permanece, ainda que nao seja visivel. De todo modo, as inscrigdes vindouras deformarao em. algum grau o anteriormente escrito. Estas caracteristicas permitem dar um modelo do aparato mnémico, permi- ‘indo uma continua armazenagem de novas inscrigdes sem perder as anteriores, embora se dé essa afetacao do anteriormente escrito sobre o que vird mais adiante (efeito Nachtriichlig, segundo Freud; aprés coup para Lacan). Derrida (1989) se baseou nesses trabalhos freudianos para documentar seu archiescritura como previa a palavra na constituigio do inconsciente. Lacan (1971/2009, p. 84) nega tal precedéncia do escrito & palavra, a partir da simples definigio da escritura como representagio da palavra, sem restar importancia & escritura em sua definigao do inconsciente. A este respeito, cita a anedota de um. paciente que em cinco minutos chamou sua mie de “minha mulher” umas vinte vezes, Para Lacan nio se trata de nada falho nessa palavra, mas sim de uma pala va lograda. Est escrito que sia mae é stia muller. Ou seja, em nivel inconsciente, 5 A tradugdo melhor para pizarta & quadro-negro, louse, porém no texto de Freud em portugues esté traduzide por bloco magico: "Uma nota sobre o bloco magico” (192511924). Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28-79-90 junho 2014 83 a REBOLLO, Manel sua mae ocupa para ele o gar de sua esposa, Por iso diz, no mesmo seminério, que mais que um “lapsus linguae” se trata de um “lapsus calami”,atendendo ao célamo, a cana com que se escreve na tabuleta romana, a “lousa nao tao magica” daquele tempo, Com esta metifora, Lacan indica que um lapso linguae & um lapso de escri- tura, do que estdescrito no inconsciente e que segue “insistindo” mediante sua letra De todo modo, para fazer falar a escritura hé que transformié-la em palavra, Ai Lacan diferencia claramente escritura e palavra: 0 escrito nio se dirige ao Outro, a palavra, sim. Para afetar a escritura inconsciente & preciso supor um dizer, um sentido, no escrito, ¢ isso nos leva ao algoritmo da transferéncia como questio preliminar para produzir um dito sobre o dizer, entendendo que o dizer & uma escritura no meio do dito, que nio é evidente que vi ser localizada pelo sujeito. relato do sonho exemplifica o fato: ha um escrito no texto do sonho, sua enun- iagdo, que é possivel localizar fazendo do mesmo texto uma mensagem dirigida a0 outro, o analista, para poder escutar, aprés coup, a mensagem mediante 0 que © Outro, o inconsciente, devolve ao sujeito que fala, “sua propria mensagem de forma invertida”. Poderfamos comentar esta operagdo a partir da perspectiva do “eu sei que ele sabe” (LACAN, 1976-77/inédito), sendo “ele sabe” uma formula do discurso do Outro, o inconsciente, insu que sai: isso fala em meu dito, Quando no Semindrio 18, Lacan (1971/2009) aborda o tema da escritura, o faz colocando em convivéncia com o aspecto fonico da palavra. E uma época em que se aproxima da lingua japonesa ¢ assinala alguns aspectos que o estudo dessa lingua Ihe trouxe, como @ afetacao da escritura no desenvolvimento da propria lingua, Um dos caracteres que assinala na escritura é que deverd ter em conta as distintas sonoridades de uma mesma letra conforme esteja escrita, como as cinco modalidades de pronunciar o i em chines, por exemplo, Comenta, entao, que a escritura serve para indicar 0 som que corresponde a palavra Chegando até aqui, podemos colocar em relagao a “instancia da letra” no in- consciente com a intervencao fonica do analista, modulando o dito do analisante no que ver a ser a interpretagdo. Lacan sempre foi muito dado aos jogos homofonicos e os transladou muito ra- pidamente a seu ensino. Hé uma espécie de “dizer mocbiano” que permite produ- zir distintos efeitos de sentido, em funcio de como se leiam os dizeres. ‘Um exemplo célebre € 0 titulo do semindrio que nao chegou a dar precisamente por sua expulsao da IPA: Les noms du pére. Anos mais tarde, depois de anunciar repetidamente que nunca daria esse seminario, ditou seu seminério Les non-du- pes errent (LACAN, 1973-74/inédito). Nesta homofonia entre dois enuunciados de escritura distinta e de sentidos também distintos, se escutam diferentes efeitos segundo o sujeito intérprete, mais além de seu “saber”, pois ressoa em seu dizer, afetando a isso que Lacan disse acerca do sonho: uma enuunciagao ~ escrita ~ no Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p.79-90 junho 2014 Desejo:daseinlacanlano interior do enunciado. Chamo “dizer moebiano” por recolher a nogio de “unilateralidade” da banda € 0 efeito que produz: percorrendo-a somente uma vez por inteiro, parece que se percorre duas faces. Assim, Les non-dupes errent evoca e inelui Les noms du pare Posteriormente, teremos uum exemplo para mim mais sugestivo, como Linsu que sait de l'Une-bévue Saile & mourre (LACAN, 1976-77/inédito), titulo a ser divi em trés fragmentos de distintas combinacdes possiveis. Assim, em L'insu que sait se escuta L'insuceés, fundando no fracasso do enunciado inconsciente sua per- manéncia como nao saber que sabe. Em L’Une-bévue ressoa L'Unbewusst, nome freudiano do inconsciente, e em saile d mourre podemos ouvir cest Namour, A diversidade de “saberes" que se conjugam nesse percurso moebiano de uma mesma tira fonica € muito mais rica em contetido que uma grande conferencia sobre o tema, e ademais se acrescenta o beneficio de tocar a cada um, segundo seu Ins, em um ou outro sentido, ou seja, em uma ou outra verdade mentirosa. Entendo que este é 0 modelo que Lacan prope a interpretacao: fazer escutar, na caixa de ressonincia do sujeito, o escrito do desejo. Nao como saber, e sim como murmiirio [resdn]. Podemos dizer que a interpretac2o opera reson-hable-miente mais que razoavelmente. Nesta modalidade de interpretacio, se exercita a metifora segundo 0 mode- lo do chiste, tao bem explicado por Lacan (1957-58/1999) em O Semindrio 5: As Jormacdes do inconsciente com um precioso jogo homofnico: O pas de sens. 0 feito de chiste, de transmissio, se produz por uma queda de sentido ao emergir ‘um novo sentido no segundo tempo do chiste. © intervalo produz um efeito de sem sentido (pas de sens) que se revela como um passo de sentido (pas de sens), um novo sentido. © exemplo é 0 do milionario a que um grupo de pessoas trata com obséquio, comentando alguém com seu interlocutor “como adoram ao bezerro de ouro!". Ao {que este responderia: “Nao te parece um tanto mais velho para bezerro?”. O passo de enfatizar 0 ouro do “bezerro” a enfatizar sua idade € 0 que levaria ao efeito e 0 afetado do riso, sempre que haja, isto sim, certa cumplicidade em nivel inconsciente. Agente, semblante, desejo ‘Uma das tiltimas acepgdes do desejo no ensino de Lacan ¢ quando se situa no lugar superior esquerdo de sua escritura dos discursos: os quadropodos ou fetra~ ‘pedos, como ele disse preferir chamé-los para usar termos bastardos, de pai latino € mie grega ou vice-versa, em seu inesgotivel brincar com as linguas, © termo mais usado em seu Semindrio 17 (LACAN, 1969-70/1992), para esta localizagao € 0 de “agente”, pois € quem opera. No discurso do mestre é 0 SI, 0 Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28-79-90 junho 2014 85 86 REBOLLO, Manel mandato do mestre; no discurso universitério, o $2, ou seja, 0 saber ~ que por sua ver, funciona como mandato ~; no discurso do suj sujeito dividido; e no discurso do analista € o objeto a. Creio que o termo agente Ebastante preciso e facil de entender. Porém, Lacan ndo se detém ai. Usa 0 termo semblante para esse mesmo lugar, € se somente 0 menciona explicitamente a respeito de alguns dos discursos, po- demos tentar extrapoli-os aos demais. Assim, no discurso do analista o a é um semblante, pois o analista nfo é o objeto a em causa, somente se presta como semblante, convergindo este entre o simbélico e 0 imaginério, excluindo-se 0 real, Creio que no discurso universitério podemos afirmar também que 0 $2 € um semblante, pois os saberes vio se constituindo ao longo da histéria, segundo 6 estado do sintoma que afeta a um grupo. O saber que comanda nossa Europa ‘merkelizada nao é 0 mesmo da Itilia fascista ou do Maio francés. Acerca deste iiltimo, Lacan se referiu bastante em Vincennes, sugerindo que propor a revo- lucéo ¢ simplesmente voltar ao mesmo lugar, solicitar outro mestre, No discurso do mestre, o SI é um semblante? E 0 &, 0 $ no discurso da histérica? Deixo estas perguntas. Passemos ao desejo. No discurso do analista, o desejo est efetivamente a cargo do analista. Aqui me parece evidente a coincidéncia entre agente, semblante e desejo. Nao hi anélise a no ser que se coloque em jogo o desejo do analista por meio de seu ato. A trans- feréncia, o sujeito suposto saber, corre a cargo do analisante, ¢ & algo necessario para que © discurso analitico se desdobre, porém nao é suficiente, ¢ isto exige 0 desejo do analista No discurso universitério, podemos pensar que 0 “desejo de saber” comanda Ha que saber, €0 escravo, que astude, forma passiva, participio do suposto verbo astuder — uma nova asticia de Lacan — se faz objeto desse desejo de saber. Quem detém a fungao de ensinar & quem deseja saber, porém nao o saber como objeto que satisfaria esse desejo, senao saber como causa do desejo. O saber é causa desse discurso, e nesta medida causa e desejo seriam sinOnimos. No discurso do mestre € 0 $1 quem causa. A operagio de linguagem, a intro- dugio do significante, coloca os sujeitos para obedecer & linguagem, fazendo um discurso, Com lalingua se constitui o fundo de armério a partir do qual poderé surgir o inconsciente estruturado como uma linguagem, os vestidos do parlétre.® Parece-me adequado assinalar aqui que lalingua se apresenta em Lacan como um. lapso que se refere a Lalande (LACAN, 1971-72/inédito, aula de 4 de novembro de 1972), 0 “Vocabukirio critico da filosofia”. Podemos, com isso, dar alguma volta acerca da relacio do sujeito com o saber ¢ com 0 que nao sabe. Certamente ai se histérico se trata do §, 0 6 Parlétre,em francés, inclul fale, parece esr, Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p.79-90 junho 2014 Desejo:daseinlacanlano separam as guas entre a concep¢ao filoséfica ¢ a psicanalitica. Lacan mesmo 0 menciona no contexto de seu lapso. Portanto, se trata de lalingua, e nfo de Lalan- de ~ entendido como compéndio dos saberes filoséficos ~ poderiamos concluir. Por tiltimo, o discurso do sujeito histérico. Certo, o desejo do sujeito & 0 que 0 comanda, é seu agente. Esse desejo que Lacan define como “desejo de fazer desejar", e que tanto saber produz. Mediante 0 mesmo, colocado originalmente na figura de Sécrates, sujeito histérico por exceléncia, ao Mestre se instilou o desejo de saber, € isso produz uma mudanga de discurso e uma mudanga no discurso do mestre. Desejo do analista Agora ainda uma linha para um termo lacaniano que se assenta plenamente no desejo: o desejo do analista. E considerado produto genuino de uma anilise € cauisa de outras possiveis andlises. O passe, procedimento inventado por Lacan, prova transmissivel do desejo do analista de seu promotor, pretende dar conta desse desejo particular, como prova de que “ha analista” em quem levou uma anilise a seu termo. Desejo aqui citar um fragmento dessas mesmas “Entretiens de Sainte-Anne”: 0 passe € 0 que proponho a quem se dedicou o bastante para expor-se com fim somente de informacao sobre um ponto delicado: que & completamente a-normal ~ objeto a normal ~ que alguém que faz uma psicanslise queira ser psicanalista Faz falta uma espécie de aberragao que vale a pena oferecer... para saber por que alguém que sabe o que €a psicandlise por sua diddtica, ainda queira ser psicana- lista (LACAN, 1971-72/inédito, aula de 01 de juno). ‘Uma aposta para remitir esta “aberracao” & concepgao aristotélica do desejo como fora do campo do humano. Creio, nesse ponto preciso do “desejo do ans ta”, Lacan nao deixa de ser um tanto nicomaqueo. E, para finalizar, quero tomar brevemente a outra face moebiana do Dasein, 0 Das Ein: © Um. desejo constitui o indestrutivel do sujeito por fazé-lo Um, e 80 Um que o faz resistente ao Outro e ao Dois, os dois termos que podemos colocar como opostos significantes ao Um. E certo que a andlise costuma iniciar-se sob os auspicios do Um da unidade. Um deseja unificar-se, e também deseja alcangar o Dois da relagao sexual, Porém, também & certo que outro Um, este jd no uniano, mas singular, para cada-um, €o que resiste no desejo, que obstaculiza o Um unificador, ¢ que se impor, no methor dos casos, ao fim da anlise. Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28-79-90 junho 2014 87 88 REBOLLO, Manel Ha Um, disse-nos Lacan, ¢ por isso no hé Outro nem por fim, relaco sexual. Este é o Das Ein que nos coloca ao final de uma anélise: 0 desejo, Para mim, o interesse deste percurso é 0 de sustentar que, se bem “deseo” & um conceito freudiano, e se bem & equivalente em Lacan, ou seja, 0 conceito genuina- mente lacaniano € 0 de “gozo”, este tiltimo deve muito ao primeiro, ¢ ndo esgota, com todos seus desenvolvimentos, a vigéncia do desejo no ensino de Lacan. Lacan no somente vai mais além de Freud, com todos os desenvolvimentos conceituais, € terminol6gicos que chega a produzir, bem como abandona esse termo, pois os tentaculos do termo freudiano seguem abragando mais além do que o préprio Freud escreveu sobre o mesmo, Entendo, entdo, o desejo como a pedra angular de todo 0 edificio psicanalitico, se Lacan, em seus tiltimos anos em Caracas, se confessou frediano, algo se deve a0 indestrutivel desse desejo, seu impressionante valor conceitual, © que implica que aqueles, convocados pelo mesmo Lacan, nés, que nos dizemos lacanianos, 0 somos custa de comungar coma primazia do desejo: Das Ein em nossa formacio. ‘Tradugdo: Andréa Brunetto Revisio: Conrado Ramos ¢ Ida Freitas referéncias bibliograficas DERRIDA, Jacques. La escritura y La diferencia, Barcelona: Anthropos, 1989. FREUD, S. (1900). interpretacdo dos sonhos. ESB, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. FREUD, S. (1925{1924]). Uma nota sobre o bloco magico. 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LACAN, J. 0 Seminério, livro 17: 0 avesso da Psicandlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahat Editor, 1992, LACAN, Jacques. (1971). O Semindrio,livro 18: de um discurso que nio fosse sem- blante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. (1971/72). O saber do psicanalista, Inédito, 4). O Seminario, livro XI: les non-dupes errent. Inédito. LACAN, Jacques. (1976-77). O Semindrio, livro 24: Vinsu que sait de 'une-bévue Saile & mourre. Inédito, SHARPE, Ella, Anidlise dos sonhos, Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1971. resumo © autor parte do Wunsch freudiano, percorrendo diversos momentos do ensino de Lacan para demonstrar sta tese presente no titulo “Desejo: Dasein lacaniano” Distingue duas concepgdes do Dasein como “ser ai” e como Das Fin, “O Um" 0 qual iré relacionar ao final da anilise. Justifica o uso do termo heideggeriano na sua concepgio de interpretagao como 0 que localiza o desejo do sujeito em um instante precedente, depois do qual o sujeito jé nao esta ai, a interpretacao daseina do desejo do sujeito, Nesse trajeto, 0 autor procura localizar as varias maneiras ‘que Lacan situou o desejo nas dimensdes imaginétia, simbélica e real, relacionan- do-o aos quatro conceitos fundamentais, assim como com os quatro discursos, fazendo uma aproximacao do desejo com sua escritura. Rebollo finaliza seu de- senvolvimento, destacando a fungao desejo do analista, palavras-chave Desejo, desejo do analista, enunciasao, semblante, Um. abstract ‘The author departs from the Freudian Wunsch, privileging several moments of Lacan’s teaching to demonstrate his thesis in the work Desire: Lacanian Dasein. He distinguishes two conceptions of the Dasein such as “being there” and Das, Ein, “The One", which will relate to the conclusion of the analysis. He justifies the use of the Heideggerian term, in its conception of interpretation like the one that locates the subject's desire ina previous moment, after which the subject is no lon- ger there, the daseina interpretation of the subject's desire. In this trajectory, the author tries to find the several ways Lacan has placed the desire in the imaginary, symbolic, and real dimensions, relating it to the four key concepts, as well as the four discourses, in the approximation of the desire with his scripture. Rebollo concludes his thought, highlighting the function desire of the analyst. Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28-79-90 junho 2014 89 90 REBOLLO, Manel keywords Desire, analyst's desire, enunciation, likeness, One. recebido 04/02/2014 aprovado 05/04/2014 Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p.79-90 junho 2014 Sobre o amor, o desejo e Os parceiros Marcia Assis Introdugao Nao hé relagao sexual: eis o impossivel que nao cessa de nao se eserever. Porém, ha “uma relagao de amor possivel que, desta vez, reconhece 0 outro” (SOLER, 2012, p. 183). 0 trecho citado, recortado de Lacan, o inconsciente reinventado, foi o ele- mento provocador, instigando esta elaboragao. O capitulo O amor eo Real nos faz pensar sobre os efeitos da anélise diante da questo amorosa. Sendo o amor uma paixdo amiga da ignorancia, que nao quer saber nada disso, aposta-se na mudanga, considerando-se que a experiencia analitica desvela o real irredutivel da castragao. © goz0 nao é ligante por sis6. No nivel do gozo nao ha par. Impossivel escrever 0 dois do sexo, Mas hé o par da fantasia, esteio do desejo. Ressalto, no entanto, que 0 desejo ndo comporta uma relagao subjetiva simples com o objeto, tal como repre- sentado pelo losango no matema da fantasia, No seminério A angistia, Lacan pro- pos ler este matema da seguinte maneira: $ desejo de a (1962-63/2005, p. 59). Eis o casal que se apresenta no nivel do desejo, $ em suas relagdes possiveis com o objeto ‘a mais-de-gozar. Isto envolve um gozo, certamente, 0 g0z0 filico ao redor do qual tudo gira, segundo o que se demonstra na experiencia analitica, justamente por ser tal gozo obsticulo, Paco referencia ao seminario Mais Ainda, onde Lacan explicita que 0 goz0 filico obstaculiza o homem gozar do corpo da mulher, pois do que ele .goza é do gozo do drgio (1972-737 1985, p. 15). Ou seja,“o gozo enquanto sexual, & falico, quer dizer, ele nao se relaciona 20 Outro como tal” (Ibid. p. 18). O amor ignorante do desejo Do que se trata no amor? Seri que ¢ fazer um s6? Estas so questdes trazidas por Lacan no semindrio citado acima, as quais acrescento mais uma: qual é 0 par no nivel do amor? Oamor é sempre reciproco, pois “o amor demanda o amor” (Ibid., p. 12). “Amar € querer ser amado” (1964/1988, p. 239), afirmativa de Lacan que denuncia a es- sencia narcisica do amor, salientada desde Freud. Fis a baixeza do amor, revelada por Alcibiades em sua busca pelo agalma (LACAN, 1964/1998, p. 867). Stylus Revista de Psicanslise Rio de Janeiro no. 28 p91-96 junho 2014 1 92 ASSIS, Marela Ainda no Semindrio 20 (op. cit, p. 12), ao falar sobre o amor, Lacan nos diz ser este uma paixao ignorante do desejo, impotente e reciproco, pois “ignora que & apenas 0 desejo de ser Um, que nos conduz ao impossivel de estabelecer a rela- «a0 dos dois sexos” (Ibid, p. 14), Para ilustrar este impossivel, Lacan recorret a0 paradoxo de Zendo, onde Aquiles s6 pode ultrapassar a tartaruga e nao em(par) chhar-se a ela, Eis 0 dito para o que concerne ao gozo sexual: de Dois nao se faz ‘Um, Esse Um s6 se aguenta pela via do significante. O gozo é solitirio. Os coxpos copulam porque as palavras copulam. “Um corpo, isso se goza. Isso se goza por corporizé-lo de maneira significante” (LACAN, 1972-73/1985, p. 35). A lingua- gem € obsticulo a0 gozo pleno. Este é da ordem do impossfvel ao ser falante. Resta © goz0 limitado, castrado, gozo ferido. Entre os seres falantes, 0 ato de amor é a perversio polimorfa do macho, ou seja, sendo falante, aquele que se vé macho aborda a mulher, no entanto, o que ele aborda € 0 objeto a, causa de seu desejo, Nao ha acesso 20 Outro a nao ser pela via das pulsdes parciais. E em revolver esses objetos para neles resgatar, restaurar em si sua perda original, que se empenha a atividade pulsional (LACAN, 1964/1998, p. 863), Porém, os corpos que gozam, solitariamente, vem a se atrair cletivamente. Sem esquecer que ha reciprocidade entre o amar € 0 ser amado, pressupondo um par. No entanto, que par é este? Havers outro par que nao seja o da fantasia, se 0 parceiro do sujeito nao ¢ o Outro, mas o que vem substituir-sea ele na forma de cau- sa de desejo, forma a-sextiada? Dito de outro modo, 0 objeto que causa o desejo nao € nenhum parceiro em particular, apenas a contrapartida do sujeito na fantasia. O aque nos leva a reafirmar que o amor é enganador, pois ele mente sobre o verdadeiro parceiro. Soler enfatiza este ponto, o parceiro do casal & sempre o lugar-tenente do verdadeiro parceiro: Dante s6 obtém de Beatriz, um batimento de cilios, um othar, objeto de sua fantasia (SOLER, 2012, p. 186). Tal exemplo diz.o que vale em Beatriz, invélucro do objeto « mais-de-gozar, mas nao diz por que Beatriz e nao Julieta verdadeiro parceiro, 0 objeto a, nao tem nome, nem imagem. “Ele ¢ causa de angtistia, justamente por ser andnimo e desconhecido” (Ibid, p. 170). Ble causa 0 desejo, mas como indeterminado, A causa faz. desejar, langa o vetor, deixando 0 alvo em branco, quer dizer, nio diz sobre 0 descjével, sobre o parceiro eleito, de onde extrair 0 mais-de-gozar visado. Soler nos convida & releitura do seminrio A angtistia (op. cit) para alcangarmos a distingdo estabelecida por Lacan entre 0 ob- jeto a como pura causa de desejo ¢ 0 objeto a passado ao campo do Outro, quando ‘um investimento ¢ transferido para objetos historizados, vestidos com as imagens © 08 significantes do discurso. A fantasia, portanto, € o produto desta transfusio dea para o campo do Outro. Mais tarde, no seminério Mais ainda, Lacan refere- se A imagem como vestimenta que envolve o objeto a, causa de desejo, afirmando que 0 amor se dirige ao semblante (op. ct. p. 125). ‘Stylus Revista dePsicanalise io de Janeiro no. 28 p.91-96 junho 2014 Sobre o amor, o desejo.e os parcelros. Ao objeto tornado alvo do desejo, Soler ira designé-lo objeto sintoma. Af se encontra 0 que Lacan enunciou como modelo do pai que apresenta o exemplo de uma solugio para a indeterminagdo do desejo, sendo a condigdo de superagao de anglstia, pois hi para ele um a assegurado, fixado, Portanto, um pai éa figura de uma solugao sintomaitica que aponta a via da supléncia, a partir de seu sintoma. Ele pode ter outros sintomas, mas é por esse que ele traz a fungio de enodar o ICSR A verdade da fantasia, com seu dizer de nomeacio. S6 hi amor por um nome ¢ s6 ha superagao da angiistia quando 0 Outro € nomeado. Cito Lacan, no seminario A angistia (op. cit, p. 366). Melhor tradugao de tais frases, encontrei no verso “eadoro, Teodora’, do poeta Manuiel Bandeira, inventor do verbo feadorar! Duas afirmativas se esclarecem: 0 sintoma supre a ausencia da relagao sextial ea segunda, enunciada no seminario Mais ainda: “O que vem em supléncia a relagao sexual é precisamente o amor” (op. cit, p. 62) A passagem ao espaco do Outro é 0 que fundamenta a transferéncia, considera Soler, que afirma ser o $sS (no qual o objeto esté latente) um outro nome ao que Lacan denominou campo do Outro. “O que faz da andlise uma aventura singular €a busca do agalma no campo do Outro” (1962-63/2005, p. 366) Oamor de transferéncia: condicao e obstaculo do tratamento E pela via do amor que a anilise opera, sabemos disso desde Freud (1915{1914] 11986), que nao duvidava da autenticidade deste amor, ainda que nao reciproco. ‘Também Lacan nao duvidou, chegando a afirmar que sua formulagao sobre 0 SsS mostra que a transferencia nao se distingue do amor, pois “aquele a quem eu suponho o saber, et 0 amo” (1972-73/1985, p. 91), sendo, portanto, condigio do tratamento por ser um amor que se ditige ao saber. No entanto, em sua vertente resistente obstaculiza 0 processo analitico, ao nio querer saber nada disso. No Seminrio 10, apresenta 0 amor de transferéncia como um amor presente no real (op. cit, p. 122), alertando que nada alcangaremos a respeito do conceito de transferéncia, se ignorarmos que cla também € consequéncia desse amor presen- te, ressaltando a questo central da transferéncia, sabre 0 que falta ao sujeito, pois €a partir da falta que ele ama. No semindrio A transferéncia (1960-61/1992), Lacan buscou o Banquete de Plato para nos mostrar do que se trata na transferéncia, que nio pode ser apreendida fora do registro indicado como o lugar de a, 0 objeto mais-de-gozar, o agalma, na relagao | Referéncia ao poema Neologismo, de Manuel Bandeita Stylus Revista de Psicanlise Rio de Janeiro no. 28 p91-96 junho 2014 93 ASSIS, Marela de desejo2 “Mesmo que o sujeito nao o saiba, jé é no outro que o pequeno a funciona” (ibid, p. 194). Este é um efeito legitimo e irredutivel da situagao transferencial Lacan jé nos alertara no Semindrio A Anguistia (op. cit. p. 170), paraa fungéo do desejo no plano do amor; ele intervém no amor, sendo seu pivo essencial, porém 0 desejo nao diz respeito ao objeto amado. O analista, aquele que passou pela expe riéncia, sabe sobre a funco do desejo e do objeto-causa. Fle sabe sobre o segredo chocante do funcionamento do desejo, dissimulado pelo amor de transferéncia, em sua versio resistencia: 0 Outro se reduz ao objeto a. Desejar 0 Outro nunca é senio desejar 0 a (Ibid. p. 198). O desejo aiza o parceiro.? Um amor mais digno Soler (2012, p. 188) se refere ao termo empregado por Lacan em Carta aos Italia ‘nos: “amor mais digno” (1973/2003), a0 qualificar que a anélise nao é sem efeito so- bre o amor. Portanto, podemos apostar que uma anilise orientada para o real possa fazer surgir um amor mais digno, aquele que nao acredita no parceiro, uma forma de sintoma socializante, A Psicanilise nio o prescreve. Este amor ate, menos ta- garela, pode acontecer, pois a anilise é capaz de provocar mudanca, mas 0 bom encontro, ela nao pode prometer, embora possa criar as condigées de possibilidade, a0 provocar as des-identificagdes, liberando o sujeito das restrigoes que a repetigao impunha. A anilise revela que o amor é repetitivo, sempre a mesma decep¢io, a0 esperar um efeito de ser. E.0 amor repetitivo trabalha na diregio da conformidade. Porém, ha escolhas discordantes que nao obedecem nem ao ideal, nem a fantasia, Lacan afirma no seminario Mais ainda que o reconhecimento de sujeito a su- jeito, onde sujeito é apenas efeito do saber inconsciente, é a maneira pela qual a relagio dita sexual para de nao se escrever (op. cit, p. 198). Ponto de suspensio, contingencia, instante “infinito enquanto dura’.' Momento em que nosso desejo estende a mao para a acha ardente e, da chama, por um instante, outra mao se estende para nés, bem como seu desejo. © termo reconhecimento indica a fungio nova que o amor assume, revelar a presenga c 0s efeitos do inconsciente real (SOLER, 2012). indice nao de uma inter~ subjetividade, mas de um inter-reconhecimento entre dois falasseres que trazem, cada qual, as marcas de seu exilio, pois quem fala s6 tem a ver com a solidao, no que diz respeito ao impossivel da relagdo sexual. Dois falasseres, duas disparidades desejantes. Afinidade que nao faz identificaco, nem traz uma identidade. A partir 2 Lacan faz uma equivaléncia entre agalma e objetos parciais no Seminario A transferéncia. 3 Expressio de Lacan, utlizada no Seminario A angistia, 4 Referéncia a0 poema Soneto de Fidelidade, de Vinicius de Moraes. ‘Stylus Revista dePsicanalise io de Janeiro no. 28 p.91-96 junho 2014 Sobre o amor, o desejo.e os parcelros. de tais consideragdes, talvez se possa alcangar a frase que instigou esta produgdo: uma relagio de amor possivel, que desta vez reconhece o outro, unicidade solitaria © amor € posto a prova ao se defrontar com 0 impossivel. Diante da impossi- bilidade, pode surgir a relagao de amor possivel, alternativa a0 amor que visa a0 complemento de ser, ao cessar os amores com a verdade e a miragem de comple- tude, uma vez consentida a sorte de falasser. refer€ncias bibliograficas FREUD, S. (1914), Puntualizaciones sobre el amor de transferencia. Obras Com- pletas de Sigmund Freud. Tradugao de José Luis Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, vol. XII, 1986, pp. 159-174. LACAN, J. (1960-61). © Seminario, livro 8: a transferéncia, Traduga0 de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. 386p. (1962-63). 0 seminério, ivro 10: anguistia. Traducao Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 367. (1964). Posi¢ao do inconsciente. In: LACAN, J. Escritos. Tradugao io de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 843-864 __________. (1964), Do “Trieb” de Freud e do desejo do psicanalista. In: LA- CAN, J. Escritos, Tradugao Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 865-868. (1964). 0 Semindrio, livro LI: 0s quatro conceitos fundamentais da psicandlise. Versio brasileira de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 269p. (1972-73). O Seminario, livro 20: mais ainda, Versio brasileira de M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 201p. (1973). Nota italiana, In: LACAN, J. Outros escritos. Tradugao Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 311-315. SOLER, C. Lacan, o inconsciente reinventado. Tradugao Procépio Abreu. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2012. 234p. Vera Ribeiro, resumo (O presente trabalho traz as articulagdes entre amor ¢ desejo e, partindo do prin- cipio que no nivel do gozo nao ha par, aponta o parceiro do desejo ¢ a parceria amorosa, enquanto apresenta o amor em trés versdes: o amor paixio ignorante do desejo, que mente sobre o verdadeiro parceiro; o amor de transferéncia, condigao € obsticulo da andlise; ¢ 0 amor mais digno, que nao acredita no parceiro mas reconhece 0 outro como unicidade soli Stylus Revista de Psicanlise Rio de Janeiro no. 28 p91-96 junho 2014 95 96 ASSIS, Marela palavras-chave Amor, desejo, gozo, objeto a. abstract the present work discusses the articulations between love and desire and, depar- 1g from the principle that, at the level of jouissance there is no pairing, it points out the partner of the desire and the love partnership while it presents love in three versions: love as passion, ignorant of desire, which lies about the true part- ner, love of transference, condition and obstacle to the analysis, and the more dignified love, which does not believe in the partner, but acknowledges the other as solitary uniqueness. keywords Love, desire, jouissance, object a ‘Stylus Revista dePsicanalise io de Janeiro no. 28 p.91-96 junho 2014 diregao do tratamento ‘© importante papel do humor na diregéo da cura O importante papel do humor na direcao da cura Silvia Lira Staccioli Castro Gostarfamos de apresenté-los a um personagem muito interessante chamado Giovanni Manzoni, Sait dos livros e tomou vida em um filme intitulado A fa~ milia, dicigido e produzido pelo francés Lue Besson, com produgio executiva de Martin Scorsese. Grande parte de seu carisma se deve a bela atuagao de Robert De Niro, um brilhante ator que soube encenar as nuances desse ex-mafioso, pro- tegido dasameagas de morte pelo FBI. Dizemos nuances porque ele nos faz rir em. diversas situagSes grotescas em que percebemos o seu cuidado em disfarcar o que fizera de errado, como quando espancou severamente um sujeito que o deixara irado numa circunstancia banal do dia a dia. Preocupado com as consequéncias de scu ato, levou-o ao hospital ¢ no o deixou no quarto sozinho por nenhum momento. Enquanto 0 sujeito descansava na maca todo quebrado, o médico ex- plicava a Manzoni as iniimeras lesdes ocorridas e 0 indagava como aquilo havia acontecido. O espanto de De Niro diante da gravidade das fraturas, ¢ a alternan- cia do tipo de olhar, ora simpatico, dirigide ao doutor, ¢, ora ameacador, endere- ado aquele homem, causa gargalhada nos telespectadores. Assim, Giovanni Manzoni é um homem dividido entre o impulso de praticar ‘o mal, isto é, em dar vazao ao seu dio, e o dever de proteger a sua amada esposa « sets queridos filhos adolescentes. Uma ver. tendo delatado parentes e amigos em. Nova lorque e assim evitado sua pristo, ganhara como prémio a liberdade. Fora levado dos Estados Unidos para a Franca, a fim de que ninguém o reconheces- se, mudanga essa financiada pela Policia Federal americana, Dessa forma, fora instalado com a familia numa easa, curiosamente sem niimero, ¢, a0 seu lado, moravam os policiais responsaveis em vigié-l. © humor negro norteia 0 enredo desde o inicio, ¢ logo observamos que havia ‘mais uma pessoa no carro, além de Manzoni, sta esposa e seu casal de filhos, mais, exatamente, um corpo no porta-malas. Num flashback, ficamos sabendo de quem se tratava a vitima, um mero vendedor de frutos do mar, que ousou querer Ihe empurrar lagostas estragadas. De madrugada, enquanto sua familia cochilava, Manzoni pegou uma pi e se Os a cavar um buraco para enterrar o sujeito morto no quintal. Ao seu lado, se colocou seu amado cachorro de estimago, com quem Giovanni Manzoni é um. Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p:99-107 junho 2014 99 109 ‘CASTRO, Silvia Lira Staccoll verdadeiro doce, ¢ de quem ele acusava vir 0 cheiro podre, sentido pela familia, durante a viagem para o novo endereco de residencia Nos primeiros dias, Manzoni ficava recluso em casa, ndo chegava nem a tiraro pl jama, Tentava parecer 0 menos suspeito possivel. Entretanto, um vizinho de porta, ‘muito curioso com o morador recém-chegado, enquanto cuidava do jardim, procu- rou perguntar-Ihe sobre sua profissio, Decide dizer que é um escritor aposentado, imbuido de um novo projeto. Surpreso com sua prpria resposta, Giovanni se vé disposto a escrever suas membérias, que passam a ser narradas no filme. Por meio de sua histéria de vida, comegamos a entender como esta peculiar familia americana de origem italiana foi parar ali naquele vilarejo e mais, do que ela é capaz, Aqui, neste ponto do trabalho, devemos fazer uma pausa na discussio sobre esse personagem a fim de retomar os comentarios de Kupermann (2003) sobre © humor, mais propriamente sobre o efeito psiquico da piada. © autor afirmou que esta permite a manifestagao das pulsdes sextais e agressivas inibidas pelo recalque. Alids, essa foi uma ligfo aprendida com Freud (1905/1996) no inicio da construgao de seu arcabougo tedrico; 0 chiste tem o poder de abrir fontes de prazer que, de outra forma, seriam inacessiveis. Sendo assim, uma vez suspensa a inibicdo, obtém-se uma cota de satisfacio. E, este ¢ justamente o efeito que 0 filme A familia provoca. Rimos diante da dificuldade de Giovanni em se manter do lado do bem, e de toda a sua tentativa, imtimeras vezes em vao, de controlar a raiva. Tem uma cena hiléria em que, estando & frente de um churrasco oferecido em sua casa, numa politica de boa vizinhanga, por estar sendo inquerido sobre a forma de preparar a churrasqueira, se vé golpeando todos aqueles franceses in- trometidos. No lugar de agir como um frio assassino, Giovanni sorri e retoma 0 preparo dos hambiirgueres. © que mais nos chama a atengio na produgo cinematografica nao & 0 contras- te entre o pragmatismo americano e o secularismo europe do Velho Mundo, presente na tela, destacado pelos criticos, nem o erotismo da Lolita virgem encar- nada por sta filha adolescente, que seduz. seu introspectivo professor, conforme indicam alguns cinéfilos; mas a reprodugao do que ocorre em alguns sujeitos que ficam a mercé do édio que emana de si. Giovanni no é apenas um criminoso, mas um sedutor escritor e um persona- gem muito inteligente e carismatico, que, em muitos momentos, deixa-se levar pela emogao da raiva, Tanto é cruel em certas ocasides, como amoroso em outras. Curiosamente, ocorre uma cena no filme, na qual a realidade ¢ a fantasia se misturam, Manzoni é convidado na condi¢ao de escritor de ficgao para um even- to importante numa cidade vizinha, um debate sobre um filme, cuja cépia nao chega & cidade, e ¢ substituida por outro, justamente sobre a méfia, Trata-se de 0s bons companheiros, do qual o proprio De Niro faz parte, dirigido por Martin Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 8 p:99-107 junho 2014 ‘© importante papel de humor na diregéo da cura Scorsese. Quem 0 acompanha ao evento ¢ o chefe do grupo de policiais, responsé- vel por sua guarda, interpretado por Tommy Lee Jones. Apés a exibicao do filme, Manzoni toma a palavra e traga um perfil psicolégico dos gangsters retratados na tela, Associa algumas marcas do passado de um mafioso, de quem teria pesqui- sado a histéria familiar, com sua impulsividade e brutalidade contumaz na idade adulta. O diretor nos leva a crer que ao tecer seus comentarios, Manzoi verdadeira catarse, relembrando seus traumas infantis; assim, ao final do evento € ovacionado. Jé 0 telespectador fica coma certeza de que mais uma vez podemos utilizar a expressio “Freud explica’. Eo policial do FBI, perplexo com tamanha desenvoltura e exibicionismo de Manzoni, decide que aquela seria a iltima noite da familia na Normandia. Afinal, seria impossivel a partir dali mante-lo no anonimato. Dai em diante, ocorre uma série de eventos que culminam no final do filme, que nos furtamos a descrever, para nao estragar a surpresa de quem nao o assist. A graca dessa producio esta na humanizacao de seus protagonistas, cuja divi- so subjetiva fica evidenciada, de tal forma, que nao se vé na tela um perverso, ou, para usarmos um sindnimo carregado de estigma, um carrasco, como Anthony Hopkins em 0 siléncio dos inocentes, por exemplo. A comédia da o tom das cenas, de brutalidade. Elas sio mostradas ora em cimera répida, ora recortadas, as vezes em ordem invertida, o que nos poupa de um possivel voyeurismo. Giovanni Manzoni nao é um homem mau, que no sabe amar sua esposa ou seus filhos. Sim, € destemperado, raivoso, impulsive, mas também tem um lado ador’- vel. A sti esposa também nos sediuz com sta inocéncia a despeito de suasatitudes criminosas. Por isso, talvez, tenham escolhido Michelle Pfeffer para fazer este pa- pel. Embora muitos anos tenham se passado desde que strgit'em Hollywood, con- ‘tinua com um semblante angelical, de menina. Quando nao esté aprontando, seria esta a palavra cabivel, pois esta remete a brincadeira (ali, nada pode ser levado tao a sério), é uma dona de casa prendada, uma mie dedicada a seus filhos, grata aos policiais que estao ali para cuidar de suas vidas. Estranhamente, sente-se proxima deles, cativa uma intima amizade. Sempre vai até a casa da dupla, levar uma apeti- tosa macarronada, momento em que aproveita para tomar um café e conversar. Ela é,ainda, uma catélica praticante, que vai a igreja no meio do dia. Notamos ser ainda dificil, nos dias de hoje, para nés, psicanalistas, lidarmos com comportamentos transgressores, que pervertem a lei, Quando perguntam. onde é 0 ambulatério piblico no qual trabalho e respondo que é na Policia Mi- litar, dentro de um batathao, as pessoas fazem o seguinte comentario: “deve ser pesado, né?", A que se referem? A essa face sAdica que pode ser acentuada em alguns sujeitos? Estdo se referindo ao trago perverso que imaginam ser facilmente identificado nos policiais militares de forma geral? Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p:99-107 junho 2014 101 102 ‘CASTRO, Silvia Lira Staccoll Na clinica, temos de suspender as balizas do asco, da vergonha e da moral, que a cultura nos impde. Simplesmente, nio podemos reagir como o padre, outro personagem interessante na pelicula, que se colocou a escutar a Sra, Manzoni no confessionirio, encorajando-a a se abrir ¢ dias depois, expulsou-a da igreja, chocado com o que ouvira ‘A violéncia produzida pelos Manzoni assusta por ser brutal, contudo nos faz rir da forma como € retratada pelo diretor e produtor. Igualmente, por meio do humor, foi conduzida a anslise com um paciente, que se apresentou nas primeiras entrevistas deprimido, habitado por muita angustia, culpado e atormentado por ideias suicidas, Freud (1927/1996) nos ensinou que o humor retira a severidade do supereu, que na neurose obsessiva é cruel e espezinha 0 eu. Tem a fungio de consolar esta instancia, protegendo-a do sofrimento. Retomando mais uma vez. Kuper- ‘mann (2003), ele mostrou ser o supereu, em stia qualidade afivel, modificado pelo riso, por se bendizer a vida, um contraponto em relagio ao supereu cruel e sidico, que nos manda gozar. Esse paciente, de aproximadamente 45 anos, chegou a tentar 0 suicidio quando tinha 18 anos. Usou drogas, vindo a perder a medida do quanto podia consumir;¢ chegou a ter uma overdose. Falava nas sessbes sobre uma impulsividade atroz que co colocava em situagdes de risco constantemente. Reproduzia em sua mente cenas de duelo, estava sempre situado entre o matar e 0 morrer. Notava que, de alguma maneira, antecipava a morte; aliés, se via morrendo. Enfim, habitualmente, sua mente era invadida por pensamentos recorrentes, em que se imaginava envolvido em acidentes tragicos e fatais. Sabemos © quanto o obsessivo se ocupa com suas fantasias, que “podem assumir, em alguns sujeitos, uma forma realmente invasi- ‘va, absorvente, cativante, capaz de tragar pedagos inteiros de sua vida psiquica, de sua vivencia, de suas ocupagdes mentais” (LACAN, 1957-1958/1999, p. 423) Para Lacan, a morte nao deve ser localizada no adversirio, que 0 obsessivo in- siste em desafiar. Afinal de contas, esse outro com quem joga & sempre ele mes- mo. A morte deve ser colocada pelo analista, em relagao ao obsessivo, no lado do. Outro, que é sua testemunha ocular, que observa e atesta os golpes por ele sofri- dos, para ai afirmar: “Decididamente ~ como ¢ dito em algum lugar no delirio de Schreber -, ele é um durdo” (LACAN, Ibid. p. 433). Quando Igor esbarrava em alguma dificuldade cotidiana, como quando era provocado no transito, por exemplo, era tomado pela raiva, ¢ entao ficava cego em relagao a razao, “O peito chega a arder”, disse uma ver. Nessas citcunstancias, 08 pensamentos destrutivos se iniciavam, Ora dirigidos ao outro ¢ ora a ele mesmo, Um dia, disse em andlise: “Eu me descontrolo completamente. Nao sei usar 0 bom termo”. Estranhei a expressio por ele empregada. “Teria querido dizer meio- Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 8 p:99-107 junho 2014 ‘© importante papel de humor na diregéo da cura termo?”, me perguntei, Estava ai presente um ato falho da maior importancia. Entio Ihe devolvi o ato dizendo simplesmente: “Vocé esta querendo dizer que usa 0 mau termo? Que o mal se sobressai?”. Sem hesitar,o paciente afirmou ser exatamente essa a questio; de certa forma, sentindo-se aliviado por poder ser tao sincero. Esta chave para que ele comecasse a associar: “Diante de situagdes bobas, eu perco a cabega. Sinto um verdadeiro édio, uma vontade louca de fazer mal ao outro”, afirmou. Perde a cabeca porque, ao atuar de forma sidica, goza. Igor se deu conta de que muito habitualmente buscava esse gozo a contrabando. Chegava a ligar para 0s cole- 0s ‘para comprar o bagulho dos outros”, se oferecia para ficar neste lugar. Imbuido do sentimento sidico, jf viveu cenas que remetem ao préprio Giovanni Manzoni. Certa vez, Igor veio a mim, desesperado, por ter desferido varios golpes de faca na poltrona de sua casa, apés discutir com stia ex-mulher. Ela sabia muito bem como atingi-lo, tirando-o do sério. Em vez de censuri-lo, me vi gargalhando diante de tamanho desatino. Pedi que ele repetisse a histéria a fim de que eu pu- desse entender o que havia acontecido. Entio, cle mesmo se viu rindo, Em outra situagdo, em que seu time de futebol teve uma importante vit6ria, deu tiros para 0 alto, acertando o lustre da varanda, destruindo-o. $6 depois se dera conta de que na casa havia o filho de seu amigo recém-nascido, Com o decorrer da anilise, passou a temer suas prprias reagies. Teve como estratégia isolar-se, evitando ambientes e situagdes que pudessem despertar al- guma atuagao sua. Para dar uma ideia da gravidade de seu sintoma, podemos destacar uma acasiéo vivida em sta adolescencia, Estava conversando com alguns amigos na varanda da casa de um deles, quando repentinamente, ao fazerem um comentario sem graca, que foi recebido como uma grande humilhagao, Igor arrancou com os dentes a ca- bega de uma galinha. Sera que € possivel acreditar em tal disparate? Embora tenha protagonizado cenas birbaras, dificeis de imaginar, como esta acima descrita, Igor é um homem educado, articulado e inteligente; amoroso com sua familia Como bem marcou Gazzola (2002), quando o obsessivo obtém um gozo per- verso, ele estranha sua satisfacio libidinal, no se reconhece neste ato, Esse ¢ um. {gozo estrangeiro, vindo de fora. Ao contrario do perverso, o absessivo se divide e se angustia, pois ¢ atormentado pelos escripulos e pelos valores morais. Ao ouvir seus relatos de crise, nao poderia censuré-lo, condenando-o a se punir ainda mais. Notava que vinha culpado, sentindo-se derrotado, a cada sessio. Es- pontaneamente, encontrei tuma forma de fazé-lo enxergar 0 exagero e 0 nonsense de suas atitudes. Por outro lado, questionei o fato de nunca ter sido punido por seus atos, “como safra ileso diante de tantas transgressoes cometidas?”, pergunta- ‘yaa mime aele. Talvez as pessoas se sentissem tio ameagadas por sua figura, que Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p:99-107 junho 2014 103, 104 ‘CASTRO, Silvia Lira Staccoll ‘do ousavam procurar a policia. Nao ter sido pego manteve-o preso na compul- sio a repeticdo. E certo que pagou um alto prego pelo sintoma, ja que se afastou de sua familia e amigos e entrou numa aguda depressdo. Até porque perdeu tudo que acumulou ao longo dos anos de trabalho. Inconscientemente, parece ter se imposto uma pena. Pena perpétua. Freud (1924/1996) nos mostrou que a pulsio sidica se alterna com a pulsio masoquista, Neste caso clinico, esta tese fica comprovada. Igor costuma se sa- botar profissional e emocionalmente. Certa vez, a0 se dirigir a um compromisso profissional importante, mudou de caminho muitas vezes e, inexplicavelmente, nao conseguitt chegar ao enderego marcado, caindo depois num choro copioso, do qual afirmava desconhecer a origem. ‘A sua compulsdo as droges, ao sexo, aniquilagio do outro, o tornava um mero marionete, um sujeito aprisionado ao seu sintoma. Obviamente, nao podemos desconsiderar a existencia de uma grande dose de masoquismo, pois depois de Iiberar seus impulsos agressivos, deprimia-se assolado pela culpa e pelo julga- mento de seu juiz cruel ~ supereu. Lacan (1957-1958/1999) ressaltou as “proezas” do obsessivo; ele impde a si mes- mo uma miriade de duras tarefas, diriamos penosas, das quais obtém sucesso, pois é exatamente o que busca. Hé um cariter ficticio nessas “proezas”, que evo- cam as fantasias sidicas. Quando falava de sua infancia, dizia ter sido um menino mentiroso, dissimu- lado ¢ cinico, Nunca sofreu abuso fisico ou de outra ordem, A mae sempre foi carinhosa com ele, pronta a atendé-Io em seus caprichos. © pai era firme, bastava othar para os filhos para que o respeitassem. Como eram quatro irmaos homens, as vezes se agrediam fisicamente. Sentia-se 0 mais feio de todos. Sabe a ordem de preferencia de sua mae pelos filhos e que nao ocupa nem o primeiro e nem 0 segundo lugar. Cresceu & sombra do primogénito, um génio, que soube ganhar a vida honestamente de forma a ter um rico patriménio, O seu pai encarnava a fi gura do homem humilhado, fracassado, que precisou do trabalho da esposa para sobreviver. Foi demitido do emprego por nao ter concordado em entrar num es- quema corrupto que prejudicava a empresa. Assim, ficou com a honraca verdade, mas desempregado. Nunca mais encontrou outra ocupacio. Igor sempre traz para a sessio a chivida de ceder ao dinheiro ficil, resiste em aceitar os convites que sempre esto chegando, Em nome de sua filha, do pai que quer ser para ela, evita 0 caminho mais curto ¢ tortuoso. A analista esti ali no consultério para lembré-lo de seu amor por ela, No inicio do tratamento, se perguntoui por que havia se mantido tao distante desde © seu nascimento. No ‘momento em que a barriga de sua esposa comecara a ficar evidenciada, havia se afastado fisicamente dela, evitando ter relagGes sexuais. Chegou a ficar impotente. Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 8 p:99-107 junho 2014 ‘© importante papel de humor na diregéo da cura Sabemos o horror que sentem alguns homens de transar com a mulher no estado de gravider, fruto do receio de poderem fazer mal ao feto, ou até por realizarem. desta forma algum desejo incestuoso de copular com a mae. Por tiltimo, entrow ‘nuuma situagao tio sinistra, que nfo convém mencionar aqui, em que sua vida e a de sua familia corriam risco, E nao podia contar a ninguém, além de alguns de seus pares, este segredo, Entio, decidiu sair de casa. Culpava-se pelo fim do casa- mento, Entretanto, em anilise, chegou & conclusio de que muitos problemas do casal surgiram em funcao, nao s6 de seus segredo e mentiras, mas do diffe tem- peramento de sua mulher, desafiador e provocante. Como toda histérica, queria destituir o homem eleito fico, htumilhs-1o e mostrar-se mais poderosa. Aanilise permiti que acedesse a0 desejo pela planejada e amada filha, que pa- recia necessitar, aos seus olhos neuréticos, somente da mae. Fixando-se na figura deste pai que almeja ser para ela, correto e responsvel, e temendo deixé-la 6rfa precocemente, esté podendo se salvar dos mandos do supereu. Atualmente, 0 paciente esta mais avisado quanto ao gozo, que ats movidos pelo édio podem Ihe provocar e 0 quanto a raiva pode ser destrutiva. Por essa razio, concluit a respeito de seu sintoma: “E estranho, doutora. Quando extra- vvaso esse ddio, sinto como se fosse a pripria sensagio do que ocorre no sexo, © préprio gozo”. Nesta afirmacio, o carater libidinal das atuagSes do paciente fica evidenciado, podemos aludir 8 sua fantasia perversa infantil, a qual ainda tem de ser, por ele, atravessada. Afinal, nfo se trata de pura pulsio de morte, como dito anteriormente, a pulsio sexual, isto é, a pulsio de vida, esté sempre amalgamada a pulsio de morte. Para finalizar, Igor ainda tem um longo caminho de andlise para vir a decantar esse gozo consistente. Houve alguns avangos como o fato de ter sustentado 0 sett desejo, que por muito tempo mostrou-se vacilante, pela mulher amada, que acha- vva que seria desaprovada pela familia, por ser uma pessoa que frequentava sua casa, quando era casada. Iniciou um namoro com ela, alguém que nao esperava, «que Igor ocupasse o lugar do homem corajoso, valentao e esbanjador, ao contrario de sua ex-mulher. Para ela, podia se apresentar castrado, “duro” e triste. Estar num relacionamento sério, lidando com os obstaculos surgidos aos poucos, como é proprio de toda relagio, foi fruto de sua andlise. Voltar a frequentar a casa dos seus pais também. Durante bastante tempo acreditava ser impossivel ter uma vida a teés: ele, uma mulher e sua filha. Nao podia ser pai e homem 20 mesmo tempo? Pois o pai tem de ser morto, castrado, impotente? Depois de muitas sessées, vem conseguindo incluir sta filha nas saidas com sta namorada Aanilise também o fez perceber que ele préprio se castigava pelos erros cometi- dos no passado. F claro que Igor vem descortinando a castragao, descobrindo que nio ha safda, sendo se submeter a ela. A ele s6 resta prosseguir com stas sessbes. Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p:99-107 junho 2014 105 105 ‘CASTRO, Silvia Lira Staccoll referéncias bibliograficas CASTRO, S.L.S. Aspectos tedricas e clinicos da perversao. Dissertagao de mestra- do- Faculdade de Psicologia, Pontificia Universidade Catélica do Rio de Ja- neiro, Rio de Janeiro, 2004. 87f. FREUD, S. (1905). Os chistes e sua relaco com o inconsciente. ESB, v. VIIT, Rio de Janeiro: Imago, 1996. — . (1908). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. ESB, v.X, Rio de Janeiro: Imago, 1996. . (1924). © problema economico do masoquismo. ESB, v. XIX, Rio de Janeiro: Imago, 1996. . (1927). © humor. ESB, v, XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1996. KUPERMANN, D. Ousar rir: humor, criagdo e psicanslise. Rio de Janciro: Civi- lizagao Brasileira, 2003. GAZZOLA, L. R. Estratégias na neurase obsessiva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, LACAN, J. (1957-58). O Semindrio, livro 5: as formagdes do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. __. (1963). Kant com Sade. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 776-803. MELMAN, C. A neurose obsessiva, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. resumo O artigo tem como objetivo destacar a importancia do humor na direcao da cura. Aprendemos com Freud (1927/1996) que este protege a instancia do eu do so- frimento perpetrado pelas criticas severas do supereu. Fazer rir € aludir & face afivel do supereu, em contraponto a sta face cruel. Dentro desta perspectiva, foi conduzido um caso de um sujeito obsessivo que se encontrava a mercé de seu dio e, consequentemente, de seu descontrole emocional. Com frequéncia, atuava de forma violenta e desmedida como o personagem Giovanni Manzoni, nascido na literatura e que ganhou vida nas telas do cinema recentemente. Assim como Manzoni, Igor é um sujeito dividido subjetivamente entre a con a obediéncia aos ditames maléficos superegoicos. Sofie se dé vazio a sua ira, pe- las desastrosas consequéncias indesejadas e softe se as inibe, pois entao, tem até sintomas fisicos como dores no peito, enjoos ¢ desmaios. Assim, sé resta a Igor a seguinte saida, prosseguir com sta andlise. rncia moral ¢ palavras-chave Neurose obsessiva, humor, supereu, violencia, gozo. Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 8 p:99-107 junho 2014 ‘© importante papel de humor na diregéo da cura abstract “The objective ofthe article is to highlight the importance of humor in the direction of the cure, We have learned from Freud (1927/1996) that humor is able to protect the ego from the suffering caused by the severe criticism by the superego. To make the patient laugh means to allude to the superego’ friendly facet, as opposed to its, merciless one. Under such a perspective, it was conducted a case of an obsessive patient who had been subjected of his hatred, and, consequently, to his emotional lack of control. Very frequently, he acted in a violent and unlimited way just like Giovanni Manzoni, a character from literature who recently came to life in the big screen. Thus, such as Manzoni, Igor is a subjectively divided subject between moral consciousness and obedience to the malefic super egotistical orders. On one hand, he suffers ifhe allows himself to be guided by his rage, by the unwanted and disastrous consequences. On the other hand, he suffers ifhe inhibits them, once he presents even physical symptoms like chest pains, nauisea, and faintness. So, Igor is, finally left with the following choice, to go on with his treatment. keywords Obsessive neurosis, humor, superego, violence, jouissance. recebido 11/02/2014 aprovado 30/03/2014 Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p:99-107 junho 2014 107 As exigéncias do manejo transferencial e o desejo de analista Luciana Guarreschi “Aarte de escutar equivale quase & de bem dizer” (LACAN, 1964, p. 119), Interessa-me neste texto tentar colher, com base em um caso clinico, o que La- can (1964/1988) chamou de fechamento do inconsciente como efeito do amor de transferéncia e da fungio obturadora do objeto a, bem como apontar para a ins- talagdo do sujeito suposto saber. Para tal, utilizarei citagdes diversas de Lacan, entrecortadas, coladas ¢ mescladas aos fragmentos de um caso clinico. Lacan (1964/1988) dizia que o uso natural de expresses de linguagem implicaa topologia envolvente em que o sujeito se reconhece quando fala espontaneamente. Opto entao, nao por narrar a historia de M., mas por mapear seus significantes tentando localizar ai onde ela se faz reconhecer ¢ onde delimita seu lugar na fa- milia e no mundo: herpes, pai quebrado c doente, comida aos montes, mae como irma, pai como filho, irmao como companheiro, ima maleriada, relacionamen- tos que terminam sempre ao completar trés meses, sem emprego, playboy, dificil acordar, ansiedade, panico, psiquiatras, Significantes agrupados pela fantasia do sujeito, montando seu romance fami- liar, O contettdo importa pouco, fato € que o tempo passou, algo cait € nao cola mais. Chega-se a andlise com um pedido: cola pra mim? Dizia ela, em sua primei- ra entrevista: “Tinha um sonho de casar, ter seis filhos, nao tenho mais”. Atengao 20 verbo no imperfeito — “tinha” e a negagao “nao tenho mais’ Verbo imperfeito, em sua defini¢ao, expressa 0 passado inacabado, um proces- so anterior ao momento em que se fala, mas que durou um tempo no pasado, ou ainda, um fato habitual, didrio, Portanto, ele nao indica a certeza de um fato acontecido, sendo assim chamado este tempo verbal de pretérito imperfeito, pois nio se refere a um conceito situado perfeitamente num contexto de passado. Ou. seja, algo que nao passou. Quanto & negagao, sirvo-me de Lacan: “Mas 0 que pode significar nio dese- jar? Toda a experiencia analitica nos testemunha que nao querer desejar, e de- sejar, sio a mesma coisa” (Ibid. p. 222). E assim, com um vacuo de significagio, Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28 p:109-116 junho 2014 109 10 (GUARRESCHI,Luctana entre um verbo imperfeito ¢ uma negacdo, pode-se comecar uma anilise. Para tal, o outro sentado 4 frente do paciente, nao pode recusar-se significagao, afinal é a isso que ele ¢ suposto saber. (Ibid. p. 239) Primeiro tempo Uma abertura do inconsciente, por que nao dizé-l, freudiano, Os mecanismos da estrutura da linguagem, substituigdes, condensagdes e deslocamentos, reba- tizados metifora e metonimia por Lacan, ja se apresentam na primeira sessio. Entre abundantes atos fathos, o nome da analista se transfere para o de trés Fabia- nas, Alids, esse ¢ 0 primeiro uso que Freud dé a transferéncia, um deslocamento de palavra, Palavra transferida de um lugar da fala a outro, de um lugar onde ela € esperada a outro, inesperado. Sigo a pista deixada por essa enunciacao ¢ temos: a primeira Fabiana, uma dentista “superlegal”, a segunda uma grande amiga da irma ea terceira uma amiga de infancia ‘Vemos aqui a vertente imaginaria da transferéncia ~ aquela onde o analista € rapidamente incluido na série de experiencias afetivas passadas do paciente. £ desta primeira vinculagio que poder se produzir o amor de transferéncia. Tal vinculacao se faz pelos significantes que envolvem o analista e ilustra a maxima lacaniana de que nao se pode separar o analista da manifestagao do inconsciente, posto que ele ¢ seu destinatirio (Ibid, p. 121). (0 que fazer entio com 0 que é dado, destinado, assim tio gratuitamente, pelo paciente? Lacan aponta 0 valor inestimavel da confianga que é depositada no ana- lista. © que o analista faz a partir desta confianga, a partir desse amor? Ele deve apontar, dirigir, indicar, encaminhar esse amor para o saber. © paciente, via de regra, chega com a suspeita de que ha algo que Ihe escapa, que ele nao sabe e que hh um Outro que saberia, Mas, no entanto, no momento do encontro, o amor se interpée, tapeando a busca inicial do sujeito, ficando a cargo do analista a recu- peragio dessa busca. Coloci-lo de volta no caminho, utilizar-se desse amor para a produgio de um saber. ‘Mas que saber € esse que M. imputa ao Outro? Saber que s6 pode ser de uma cordem, a mesma que Lacan aponta no Banquete: 0 momento essencial, inicial, da agao do analista, & aquele em que & dito que Sécrates jamais pretendeu nada saber, sendo o que diz respeito a Eros, quer dizer, a0 desejo (Ibid, p. 219) Pois, se hé um caminho que se deixa entrever, ou ainda entredizer, no mapea- ‘mento significante do qual a analise se ocupa, esse caminho é 0 do desejo. Eassim ‘Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 .109-116 junho 2014 ‘As exighnclas do manejo tansferenciale odesejo de analsta {que o sujeito poderé localizar-se implicado nas mazelas de sua vida, nas escolhas que fezatravessado por um desejo cuja causa se desconhece, mas que pode engen- drar uma busca pelo saber. ‘Onde mais pode se ler isso nas sessdes de M.? No enredo do encaminhamento € por meio do que diz Lacan “tudo que anima, o de que fala toda enunciacio, 0 desejo.” (Ibid., p. 134). M. é encaminhada por um conhecido, diz ela: “encontrei-o em uma festa, ficamos amigos” e avisa: “mas ele ndo me pegoul”. Que frase & essa? Ela arremata: “por que ele € todo pegador”. “Muitas sess6es depois, acrescentaré: “sou pegadora”, Lacan nos adverte quanto a isto: “ele, o paciente, retém certos elementos para que o analista nao v4 muito depressa, Pois aquele que pode ser enganado também pode enganar-se” (Ibid., p. 221). Sem problemas, é perfeitamente possivel encontrar algo da dimensio da verdade ao se enganar, ¢ isto serve para ambos. Segundo tempo Segunda sesso: “pensei em nao vir’, diz. Logo depois, emendando uma frase a outra: “a Fabiana nao tem nada a ver”. Da suas explicagdes sobre os atos falhos come tidos na primeira sessio: “6 tipo dislexia, leio errado, minha mae também é assim’. Ponto. Nao quer brincar de associar. Nas formagdes do inconsciente algo de uma sig- nificagdo se insinua, na qual o sujeito hesita em se reconhecer. Resistencia? Sim, por um lado, aquele que Freud apontava sob o nome de “resisténcia do recalcamento”, que nada mais € do que uma dificuldade de entrar em contato com material sig- nificante, Por outro lado, nio, pois ao vir falar que nao quer falar, ndo escapa a fala Mas, poderiamos ver ai jé 0 efeito de transferencia? O amor? E amar, como in- dicou Freud é, essencialmente, querer ser amado. Esse efeito afasta a revelagio da verdade do desejo inconsciente, freudianamente falando. Mas, paradoxalmente, por meio do mesmo que se poders tocar algo dessa verdade. O amor leva o enigma para longe, mas também manda buscar, trazendo-o pela mao. As relagdes amo- rosas da familia de M. se dio pelas “doengas/crises”,e & assim que se fazem amar € assim que cla comega a se apresentar & anélise, sempre em vias de “ficar pior”. Diz Lacan: “estamos presos em esperar esse efeito de transferéncia para poder in- terpretar e, ao mesmo tempo, sabemos que ele fecha o sujeito a0 efeito de nossa in- terpretagio.” (Ibid, p. 239). 0 analista segue tentando, por meio dos cortes, trazer & tona o que esté soterrado pela fala cotidiana, tal qual indicou Augusto Massi (http:/ ‘www! folha.tol.com br/fsp/ilustrad/q1709201115 htm) sobre o trabalho do poeta: a poesia, discretamente indica que o ouvido do poeta pode desocupar outras falas. Nao sei muito bem como fazem os poetas, mas os analistas, supostos saber par- tirao encontro do tal desejo inconsciente, deveriam contar com o que Lacan (Op. Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28 p:109-116 junho 2014 m m (GUARRESCHI,Luctana Git, p. 222) chamou de desejo de analista. Sabemos de cor ¢ salteado a defini¢ao de desejo de analista, nao é puro, é desejo de obter a diferenca absoluta etc. Mas, como funciona? Quando funciona, € claro. Encontrei-me com algo que me possi- bilitou entrever algo desse funcionamento. E assim, diz. Lacan: Sera que nao ha, reproduzido aqui (na anzlise), o elemento de alienacao que Ihes designe no fundamento do sujeito como tal? E 0 que nao é nem levantado nem a ser levantado, pois a experiéncia analitica nos mostra que & de ver fun- cionar toda uma cadeia no nivel do desejo do Outro que o desejo do sujeito se constitui (Ibid.,p. 223). E preciso essa primeira alienacdo, pois ao ver funcionar toda uma cadeia no nivel do desejo do Outro, 0 desejo do sujeito se constitui. Isso me possibilitow uma aproximagao acerca do desejo de analista em sua fungao dita “operador”. Ou seja, contra inércia da transferéncia ~ a ferramenta é 0 desejo de analista. Uma tentativa, diz ela: “termino meus relacionamentos sempre em tres meses", Ensaiando uma articulacao simbélica, aponto o inicio, indicando uma localizaga0 outra do sujeito, onde ele nao se vé, dizendo: “sera que eles comecam?”. Corte. Qui ze dias depois um “ficante” vira namorado, Neste momento, a libido se desloca um. pouco impondo novas circunstancias ao trabalho analitico, que, no entanto, segue. Ao mesmo tempo, sua vida comeca a fazer outros, pequenos, movimentos. Ar- uma algum trabalho, deixa a arrumagio da casa um pouco de lado... Endo € assim. ‘amor? Assuijeitado a0 desejo do outro, tentando engané-lo dessa sujeigao, fazemo- ‘nos amar por ele, propondo essa falsidade essencial que & 0 amor. (Ibid, p. 240). As entrevistas seguem, com demandas diversas. Atrasos, esquecimento do pa- gamento, bocejos, surdez: “o que voce disse? Nao escutei.”. Numa sessio, esquece © dinheiro ¢ reclama, “custava me organizar?”. E, questionada sobre o esqueci- mento, explica-se: "Acho que essas coisas é falta de desorganizagao!”. Como? Ela escuta, diz: “Nao! £ organizagao..”. No movimento de trazé-la a0 que escapou, cla: “hum... me saboto..? Nao, nao”. Tampando rapidamente e brigando “comigo” se eu insinuasse algo. Isso aconteceu muitas, muitas € muitas vezes. Penso que ha alguns para os quais a experiéncia da clivagem é sentida com mais horror. O sujeito paralisa perante o que escuta de sie diz nao! Isso nao! Impossivel! A pos- sibilidade de escutar o ato falho ¢ interrompida por um julgamento antecipado acerca do que se desconhece ¢ que, de imediato, é tido como negative. Mas, nio nos esqutegamos do amor, parece que este também impedia que ela se mostrasse assim... Tao dividida, digamos. Cabe aqui um apontamento sobre o titulo do texto ~ exigéncias de manejo transferencial ~ pois nao foram poucas as sessées que M. vinha para brigar, onde ‘Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 .109-116 junho 2014 ‘As exighnclas do manejo tansferenciale odesejo de analsta © “amédio” da transferéncia imaginaria ficava patente. Neste momento, segui uma pista errada, entendendo esse movimento como fechamento do inconsciente =a resistencia, o que me levou a tentar precisar melhor esses conceitos e, conse- quentemente, a escrita deste texto. Bom, o inconsciente fala. Mas essa fala nao é homogenea, continua. Diz Lacan: “0 que é éntico, na fungio do inconsciente, éa fenda por onde esse algo é por um instante trazido & luz ~ por um instante, pois o segundo tempo, que é de fecha- mento, dé a essa apreensio um cardter evanescente” (Ibid, p. 35). Freud disse que o inconsciente nao conhece contradigdo, nem a fungao do tem- po, porém 0 tempo que ele desconhece é 0 das horas, do passado, do presente. Lacan introduz a nogio de tempo logico, um batimento, um pulsar, uma hiancia, Nessas descontinuidades insinua-se a posigio fantasmatica do sujeito. Diz ele: “Podemos conceber o fechamento do inconsciente pela incidencia de algo que de- sempenha o papel obturador — 0 objeto a, chupado, aspirado, 20 orificio da nassa” (Ibid, p. 138). Esse “meio-tempo”, essa pulsagio, essa alternancia de sucgio, aci- ma de tudo temporal, é dada pela fungao encobridora do objeto. Ao analista cabe tentar reabri-lo, num acordar As avessas com o discurso do paciente, mantendo 0 ritmo, zelando pela “presentificagio dessa esquize do sujcito realizada aqui, efeti- vamente, na presenca (do analista)” (Ibid, p. 126). Quanto a resistencia, “€ sempre resistencia do analista’, Gosto da dica de Co- lette Soler, quando diz que nao hé contratransferéncia, antes, o problema consiste em ir contra a transferéncia, Trata-se entéo de manejé-la, tarefa do analista, nem sempre muito fécil de cumprir. Outros tempos A antiga surdez cede lugar a um principio de escuta, M. me diz: “a frase ‘sera que eles comegam’ que vocé disse nao sai da minha cabeca’. A pulsagio do in- consciente brinca de par ou impar com as intervengdes do analista no discurso do paciente, Abre-se uma nova série de associagées, nestas tentarei demonstrar a particularizacio da transferéncia, ou ainda o enderegamento de uma questio a0 Sujeito Suposto Saber. $85, eis o denominador comum que Lacan extrai das trés formulagdes freudia- nas sobre a transferéncia, Sendo como sugestdo, repetigao ou resistencia, a trans- feréncia € sempre consequéncia de uma fala, como tal dirigida a alguém, alguém no lugar de Outro, lugar do saber. Pouco tempo depois de relatar a frase infiltrada na sua cabega, M. vem com um nel simples na mao direita, ¢ como nunca usava aderecos, tal objeto reluzia em. seu dedo. Questionada sobre do que se tratava, sua resposta incluiu uma lembran- Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28 p:109-116 junho 2014 1B m4 (GUARRESCHI,Luctana ca envolvendo alguns novos significantes, dentre eles “solitério” e “alianca”. Na sesso seguiinte, um sono, Nele, pedia & mie para nao se mudar de cidade, falava para ela nao ir, Conta o sonho e pergunta: “por que yocé me perguntou sobre a alianga?”. Pergunta prontamente devolvida, ela responde: “achei que voc? falou que eu queria casar ¢ eu nao queria nfo. Era uma alianca comigo mesma’. Retomo entio o “solitirio”, ela diz: “um solitéri de ser uma pessoa $6”. A intervengdo foi sublinhar o s6, numa tentativa de fazer aparecer a conjungao-disjuncdo entre o enunciado ¢ o ato de enunciar, entre o que se diz e 0 que se pode ouvir do que de fato se disse. Apés esses desdobramentos, uma queixa se impée: “nao consigo mais ficar so- zinhal ~ em casa nao dA”. Baseada em fatos circunstanciais de sua vida, esse € 6 sentido que da a essa queixa: muitas pessoas & minha volta, logo, nao posso ficar sozinha. Bom, sabemos que o lago que une o significante ao significado & arbitrario em relagao ao significado, com o qual nao tem nenhum lago natural na realidade. Assim, interrogo sua frase, repetindo-a, acentuando sozinha e 0 “casi no da”, Ela responde questionando-me: “como vou ficar sozinha morando com alguém? £ isso que eu vim te perguntar”, E ainda: “eu preciso ficar sozinha com alguém perto, ¢ isso que eu preciso fazer aqui”. Resposta de analista: diva. Poderiamos dizer que houve ai uma entrada em anslise? Sua fala parecia indi- car que sim, a partir do significante da transferéncia, solitério, abriu-se um ponto de interrogagio, um lugar vazio, deixando entrever um impasse: ou sou sozinha ou sou colada aalguém. O significante da transferéncia, um significante qualquer, nao é tio qualquer assim, trata-se de um trago que se encontra o mais préximo possivel do vazio onde reina o objeto da fantasia fundamental. Seria preciso uma anilise, e tempo, para ultrapassar esse impasse, M. vem mais duas sessdes, nao ‘vem a mais duas e volta para dizer que nao viria mais. ‘Tentarei rever agora estas duas tiltimas sessoes antes das “faltas”. Seguem-se crises de angiistia, tonturas e os efeitos de amor e édio da transferéncia imagi- ndria ~ “36 queria uma mae e voce nao me dé carinhot”, e ainda: “jé falei que te odeio?”. A abstinéncia por parte do analista faz que 0 sujeito tente evocar sew amor. Di io consigo viver sozinha, quero ter alguém para contar, que nao vai te abandonar”. Deslizamento do me para te, nio ouvido a época, mas onde se anuncia sta repetigao, todos seus ex-namorados, e foram muitos, foram “aban- donados” por ela. Precisio lacaniana: para o lado do recalcado nao hé resistencia alguma, ha apenas tendéncia a repetir-se (LACAN, 1954/1985). Quanto As tonturas e vertigens, a imagem que o sujeito tem de sivacila, “a pe- gadora” s6 quer ser pega no colo, Lacan diz: “o sujeito experimenta, por exem- plo, reagves de decepelo, mal-estar, vertigem, em seu préprio corpo, em relagao & imagem ideal que tem dele” (LACAN, 1957-58/1999, p. 473). um anel com diamantes, mas é também ainda “ ‘Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 .109-116 junho 2014 ‘As exighnclas do manejo tansferenciale odesejo de analsta So sessdes em que a cada acontecimento narrado se poderia ouvir um apelo desesperado “nao faz um, nao faz. um, nao faz. um” ou ainda “sé hé um, um, um”. Denire outras falas, queixa-se do namorado, “desligado como o irmao”, ¢ diante da marcagao do par ligado/desligado, diz: “Nao quero ser desligada. Vou conti- nuar casada com meu irmao. Vou ficar sozinha!”. Digo: jd se esté, encerrando a sessio, © desvelamento abrupto do buraco que ha, e que de fato sempre houve, na relagao com o Outro, foi demais. Ab... O bem dizer. ‘Tentando cernir o que poderia ter ocorrido, encontro com Lacan: ‘Vemios que se trata de atingir, nessa linha, um esclarecimento das relagoes do sujeito com a demanda, que revela que toda relagio com essa demanda ¢ funda- ‘mentalmente inadequada para permitir que 0 sujeito tenha acesso a realidade efetiva do efeito que o significante tem nele isto é, que se cologue no nivel do complexo de castragao (LACAN, 1957-58/1999, p. 454, grifo nosso) Para quem ainda demandava 0 fazer Um amoroso, 0 “ja se esta” talvez tenha sido opaco e angustiante demais. Quando volta, duas semanas depois, esta decidida a parar o tratamento. Afinal, 4 sta questo sobre como se ligar ao Outro, a partir da nao relagdo e do desampa- ro radical, a qual estamos sujeitos, continuava sem resposta € 0 “jé se esta” nao foi 14 muito encorajador para a construgao de um saber sobre parcerias possiveis, as que incluissem a solitia. Bom, acabei encontrando, ao final, o que tentava abordar no inicio, Abertura ¢ fechamento, Pulsagao temporal que acompanha todo o tratamento, ¢ onde 0 momento de fechar nao “poderia” ser 0 momento de parada, mas impulso para outro pulso, relangamento de dados na aposta analitica, nao infinitamente, mas até quea busca de sentido se esvazie ea construcao de um singular sobre a falta de si possa amarrar de maneira menos sofrivel o caminhar da vida. Mas, a despeito do cuidado do analista, que se encontra a favor do sujeito, ainda que contra seus caprichos, ha aqueles que saem antes do fim do filme. E assim ela deixa a sesso: “hom, acho que no preciso ficar até 0 fim”. referéncias bibliograficas LACAN, J. (1964). O Semindrio, livro LI: 0s quatro conceitos fundamentais da psi- candlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. _________. (1957-58). 0 Seminério, livro 5: as formagies do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. Stylus Revista de Psicandlise Rio de Janeiro no. 28 p:109-116 junho 2014 us 16 (GUARRESCHI,Luctana — . (1954-55). O Semindrio, livro 2:0 eu na teoria de Freud e na técnica da psicandilise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. MASSI, A. Estilo tardio exibe radicalidade de Francisco Alvim. Disponivel em: http: www! folha.uol.com.br/fep/ilustrad/fq1709201115-htm. Acesso em: 21 de margo de 2014. resumo Baseado em fragmentos de um caso clinico, o presente artigo pretende discorrer sobre a instauragdo do sujeito suposto saber, bem como delimitar o que Lacan (1964) designou como fechamento do inconsciente, feito do amor de transferén- cia e da fungao de obturadora do objeto a, o fechamento do inconsciente é 0 lugar onde o analista € suposto saber operar, via desejo de analista, a reabertura do in- consciente, a cada vez, sustentando o ato constituinte do sujeito, sua causa hiante. palavras-chave ‘Transferencia, sujeito suposto saber, desejo de analista. abstract From fragments of clinical case, the present article intends to discuss the settle- ment of the subject supposed to know, therefore limit what Lacan (1964) designa- ted as closing of the unconscious. Effects of the transference of love and the fune- tion of object-obstructing, the closing of the unconscious it's where the analyst is supposed to operate, by the analyst's desire, the reopening of the unconscious every time, sustaining the constituent act of the subject, your gaping cause. keywords ‘Transference, subject supposed to know, analyst’ desire. recebido 18/01/2014 aprovado 22/03/2014 ‘Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 .109-116 junho 2014 Na vertigem da dor: o luto na zona entre os vivos e os mortos"? Miriam Ximenes Pinho Eestranho, sem dtivida, nao habitar mais a terra, abandonar os habitos apenas aprendidos, ds rosas e as outras coisas singularmente promissoras ‘ido atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano; 0 que se era, entre maos trémulas, medrosas, néio mais o ser [..] ~ Os vivos cometem o grande erro de distinguir demasiado bern Os anjos (dizem) muitas vezes ndo sabem se caminham entre vivos ou mortos. Rainer Maria Rilke, Flegias de Duino, 2001 O poeta nos adverte que os mortos nao desaparecem por completo, so 0s vivos «que, por equivoco, separam em demasia o mundo dos vivos ¢ dos mortos. Diante de uma perda inconsolivel, os (sobre)viventes assemelham-se aos anjos por vaga- rem em uma zona de liminaridade, sem distinguirem ou talvez sem se importa- rem se estio entre 0s vivos ou os mortos. Em A transitoriedade, Freud (1916/2010) escreveu que o luto pela perda de algo que amamos ou admiramos “é um grande enigma, um desses fenomenos que em. si nao sio explicados, mas a que se relacionam outras coisas obscuras” (p. 250). Em geral, nossa atitude cultural-convencional diante da morte nao € franca: por ‘um lado, sustentamos que a “morte € desfecho necessirio de toda a vida” e por outro, manifestamos “a inconfundivel tendéncia de pdr a morte de lado [.. 1A versio final deste trabalho deve muito &supervisse precisa e generasa de Conrado Ramos & {Rede Clinica do Férum do Campo Lacaniano-SP que concedeu a oportunidade de apresentar € , Acesso em 08 abr. 2011. Outras dividas poderao ser sanadas consultando-se a versio original da ABNTT (6023, como dito anteriormente, ou eventualmente enderegadas Equipe de Publi- cacao da Revista Stylus (EPS) para o e-mail revistastylus@yahoo.com.br Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 2 p1-160 junho 2014 151 Sobre autores e tradutores Ana Paula Lacorte Gianesi Membro da Escola de Psicanilise dos Péruns do Campo Lacaniano (EPFCL) ¢ do FCL Sio Paulo, Doutora em Psicologia Clinica pelo IPUSP End: R, Haroldo Gurgel, 167. Butanta, Sao Paulo ~ SP. Email: anapaulagianesi@ yahoo.com br. Andréa Brunetto Psicanalista, AME da Escola de Psicanélise dos Féruns do Campo Lacaniano, membro do Agora Instituto Lacaniano de Campo Grande, membro do Forum de Campo Grande. Autora de Psicanalise ¢ educacao: sobre Hefesto, Edipo e outros desamparados dos dias de hoje e Sobre amores e exilios. Na fronteira da psicand- lise com a literatura (Escuta) E-mail: brunetto@terra.com.br Antonio Quinet Psicanalista, Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris VII (Vincennes), Professor do Mestrado de Psicandlise Saiide e Sociedade (UVA). AME da Escola de Psicandlise dos Foruns do Campo Lacaniano ~ Forum Rio de Janeiro, Drama- turgo € Diretor da Cia. Inconsciente em Cena (RJ). E autor, entre outros, de As 4+1 condigées da anélise (JZ), A descoberta do inconsciente (JZ), Teoria e cli- nica da psicose (Forense Universitéria). Um olhar a mais (JZE), A ligio de Charcot (JZE), Os Outros em Lacan (JZE) E-mail: quinet@openlink.com.br Beatriz Elena Maya Restrepo Professora de catedra, departamento de psicandlise Universidade de Antioquia Psicanalista A.M.E. da Escola dos Foros do Campo Lacaniano. Magister Univer- sidade de Antioquia. Publicacdes: Poesia e psicanslise: um deciframento do bem-dizer. Varios artigos em revistas de psicanilise. Rua 10 No. 30-160 ed. Rosedal ap. 612 E-mail: belemare@une.net.co Cicero Alberto de Andrade Oliveira Graduado em Letras (Portugués/Francés) pela FFLCH-USP. Mestre em Lingua € Literatura Francesa pela mesma instituigao. E-mail: ciceralb@gmail.com Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 2 p1-160 junho 2014 153, 154 Colette Soler Doutora em Psicologia (Paris VID). AME da Escola de Psicanilise dos Féruns do ‘Campo Lacaniano ~ Franga. Professora de FCCL ~ Paris. Autora de virios livros, entre 0s quais Psicandlise na Civilizagdo (Contra Capa), O que dizia Lacan das mulheres (JZE), edigao bilingue do Caderno Stylus 1: 0 corpo falante, 0 incons- iente. Que é isso? (Annablume), Lacan, 0 inconsciente revisitado (Cia de Freud), Declinagdes da Angiistia (Escuta), Semindrio de leitura de texto: A angistia, de Jacques Lacan (Escuta), A repetigao na experiéncia analitica, (Escuta). E-mail: sole@wanadoo.fr Dominique Fingermann Psicdloga. Psicanalista. AME da Escola de Psicanalise dos Féruns do Campo La- caniano Brasil | Férum Sao Paulo. Coautora de Por causa do pior (Iluminuras). E-mail: dfingermann@terra.com.br Jairo Gerbase Piquiatra, Psicanalista, AME da Escola de Psicanélise dos Féruns do Campo La- caniano Brasil | Forum Salvador. Membro da Associacio Cientifica Campo Psi canalitico ~ Salvador. Autor de Comédias Familiares, Paradigmas da psicandlise eA hipdtese lacaniana. Organizador de O saber do psicanalista e Avatares do supercu. E-mail: : jsgerbase@icloud.com Luciana Guarreschi Paicloga. Membro do Férum Sio Paulo, Rua Arthur de Azevedo 255, Pinheiros, Sio Paulo. E-mail: guareschi.lu@gmail.com Marcia de Assis Psicanalista, membro da IF-EPFCL, Forum Rio de Janeiro e Forum Niteréi, atual coordenadora do FICL-Nitersi. E-mail: marcia.assis@gmail.com Manel Rebollo Licenciado em psicologia pela Universidade de Barcelona. Especialista em Psi- cologia Clinica. AME da Escola de Psicanalise dos Foruns do Campo Lacaniano ~ Fértum Psicoanalitico Tarragona, Mestre em Antropologia da Medicina e Satide Internacional pela Universidade Rovira i Virgili. Docente de Formagbes Clinicas do Campo Lacaniano ~ Seminario de Psicanslise de Terragona. Unié 46, 1° andar. 43001 Tarragona, Espanha. E-mail: mrebollo@spt.cat Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p-160 junho 2014 Maria Claudia Formigoni loga e Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Cli- nica também pela PUC-SP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HC-FMUSP. E-mail: melaudiaformigoni@yahoo.com.br Maria Helena Martinho Doutora e Mestre pelo Programa de P6s-Graduagao em Psicandlise do IP/UER) Professora dos Cursos de Doutorado ¢ de Mestrado em Psicandlise, Satide e So- ciedade da UVA. Professora e Supervisora Clinica do Curso de Especializagao em. Psicandlise da UVA, Professora e Supervisora Clinica do Curso de Especializa- ‘glo em Psicologia Clinica da PUC - Rio. Coordenadora e Supervisora Clinica do SPA/UVA. Psicanalista Membro da Escola de Psicandlise dos Féruns do Campo Lacaniano ~ Brasil. Psicanalista Membro do Colegiado de Formagées Clinicas do Campo Lacaniano ~ Rio de Janeiro, Rua Gildsio Amado 55, sala 909 ~ Barra da Tijuca. 22631-020. Rio de Janeiro/RJ. Tel.: 21 2494 8505/ 999253636. E-mail: mhmartinho@yahoo.com.br Miriam Ximenez Pinho Paicanalista. Doutoranda do Niicleo de Pesquisa Psicanilise e Politica do Progra- ma de Estudos Pés-Graduados em Psicologia Social da Pontificia Universidade Catélica de So Paulo, Mestrado em Ciencias (Universidade Federal de Sao Paulo, 2009). Analista participante das Formagdes Clinicas ¢ da Rede Clinica do Férum do Campo Lacaniano-Sao Paulo (FCL/SP), E-mail: miriampinho@yahoo.com Raul Pacheco Professor Titular da Faculdade de Ciencias Humanas e da Satide da Pontificia Uni- versidade Catélica de Séo Paulo (PUC-SP), atuando no Curso de Psicologia e no Pro- ¢grama de Estudos Pés-Graduados em Psicologia Social, onde coordena 0 Nuicleo de Pesquisa, Psicandlise ¢ Sociedade (inscrito no Diretorio dos Grupos de Pesquisa no Brasil - CNPq). Psicélogo com graduacio pela PUC-SP ¢ Mestrado ¢ Doutorado pelo Instituto de Psicologia da USP. AME dos Foruns do Campo Lacaniano (EPFCL. ~ Brasil) eda Internacional dos Féruns do Campo Lacaniano (Férum de Sao Paulo). E-mail: raulpachecofilho@uol.com.br Ronaldo Torres Psicanalista. Membro do Férum do Campo Lacaniano de Sto Paulo, Mestre € Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo. R, Haroldo Gurgel, 167. Butanta - So Paulo Capital E-mail: ronaldotorrescl@gmail.com Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 2 p1-160 junho 2014 155 156 Silvia Lira Staciolli Castro Doutora em psicologia clinica (PUC-Rio ~ 2009); Mestre em psicologia clinica (PUC-Rio - 2003); Psicloga militar do corpo de satide da Policia Militar do Esta~ do do Rio de Janeiro (desde 2002); Psicanalista participante da FCCL-Rio: Endereco: Estrada dos Trés Rios 1173 ~ Sala 406 ~ Jacarepagud ~ Rio de Janeiro ~ RJ - CEP: 22745-004 E-mail: silviastaccioli@gmail.com Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 28 p-160 junho 2014 stylus, m. 1. (Em geral) Instrumento formado de haste pontiaguda, 2. (Em especial) Estilo, ponteiro de ferro, de osso ou marfim, com uma extremidade afiada em ponta, que servia para escrever em tabuinhas enceradas, e com a outra extremidade chata, para raspar (apagar) 0 que se tinha escrito / | stlum vertere in tabulis, Cic., apagar (servindo-se da parte chata do estilo). 3. Composicao escrita, escrito, 4. Maneira de escrever, estilo. 5. Obra litera. 6. Nome de outros utensilios: 2) Sonda usada na agriculturas b) Barra de ferro ou estaca pontiaguda cravada no chio para nela se espetarem os inimigos quando atacam as linhas contrérias. Stylus Revista de Psicanalise Rio de Janeiro no. 2 p1-160 junho 2014 157 Pareceristas do numero 27 Angela Diniz, Costa (EPFCL ~ Belo Horizonte) Angela Mucida (Newton Paiva / EPFCL - Belo Horizonte) Conrado Ramos (PUG - SP/ EPFCL - Sio Paulo) Daniela Sheinkman Chatelard ( UNB / EPFCL - Brasilia) Katia Botelho ( PUC - MG / EPFCL - Belo Horizonte) Luis Achilles Rodrigues Furtado (UFC - Sobral/ EPFCL) Mareus do Rio Teixeira (Editor Agalma / Campo Psicanalitico ~ Salvador) Silvana Pessoa (EPFCL -Sao Paulo) Sonia Borges (EPFCL - Rio de Janeiro) “0 desejo, desde seu aparecimento, sta origem, manifesta-se nesse intervalo, nessa abertura ‘que separa a articulacao pura e simples, liguageira da fala, disso que marca que o sujeito realiza af algo de si mesmo que nao tem alcance, sentido, sentdo em relacdo a sua emissao da fala, e € propriamente falando que a linguagem chama seu ser. & entre os avatares da demanda e naquilo em que esses avatares 0 tomaram, ¢ por outro lado essa exigencia de reconhecimento pelo Outro, que neste caso se pode chamar exigéncia de amor, em que se situa um horizonte de ser para o sujeito, tratando se de saber se o suleito, sim ou ngo, pode atingi-lo. E nesse intervalo, nessa abertura, que se situa uma experiéncia que é a do desejo, que é primeiramente apreendida ‘como sendo aquela do desejo do Outro ¢ no interior da qual o sujeito tem que situar seu proprio desejo, Seu proprio desejo como tal nfo pode se situar senao nesse espaco” Jacques Lacan 0 Sexumateio, Liveo 6, O peseyo x sus wrexpeetacio (1958-59) "0 que chamo ceder de seu desejo acompanha-se sempre no destino do sujeito de alguma trai¢ao. Ou o sujeito trai sua via, se trai a si mesmo, e é sensivel para mesmo. Ou, mais simplesmente, tolera que alguém com quem ele se dedicou mai ‘ou menos a alguma coisa, tenha traido sua expectativa, nao tenha feito com respeito a ele o que o pacto comportava qualquer que seja 0 pacto, fausto ou nefasto, precério, de pouco alcance, ou até mesmo de revolta, ou mesmo de fuga, pouco importa.” Jacquss Lacan 0 Sevemvsrto, Livro 7, A Erica ns Pstcanstise ( 1959-60) A castracao significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo” Jacques Lacan ‘SuaveRsso Do suseiTo & DLALETICA DO DESEJO No IWcONScIENTE FREUDIANO (1960) “Para todo ser falante, a causa do desejo ¢ estritamente, quanto a estrutura, equivalente, se posso dizer, & sua dobradura, quer dizer, ao que chamel sua divisao de sujelto. £0 que nos explica que, por tanto tempo, o sujeito tena podido crer que 0 mundo sabia tanto quanto ele, 0 mundo € simétrico ao sujeito, o mundo disso que chamel da ultima vez de pensamento e 0 equivalente a imagem em espelho, do pensado. & por isso mesmo que nada houve sendo fantasia quanto ao conhecimento, até o advento da ciéncia mais moderna’, Iacquss Lacan 0 Seunvsnro, Livro 20, Mars, amvoa ( 1972 - 73)

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