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Recife, 2019
Sumário
O risco de desenvolvimento pode ser entendido, de acordo com Alvim, como o “risco
que não pode ser conhecido no momento da colocação do produto no mercado, só vindo a
1
sê-lo posteriormente, em razão do desenvolvimento tecnológico” . Dessa forma, o tempo
representa fator determinante para revelar se o serviço ou produto, de fato, oferecem algum
risco ao consumidor.
Para João Calvão da Silva, os riscos de desenvolvimento afetam, tais quais os defeitos
de concepção e informação, “podendo ser ilegitimamente inseguro em razão de riscos ou
defeitos incognoscíveis diante do estado da ciência e da técnica ao tempo de sua colocação no
comércio” 2. Os efeitos colaterais prejudiciais de novos medicamentos, por exemplo, são um
dos mais citados exemplos desse risco, uma vez que são descobertos após sua inserção na
cadeia de consumo, ainda que tenham sido, previamente, testados à exaustão. Assim,
questiona-se o seguinte: a quem cabe a responsabilização pelo risco de desenvolvimento, ao
fornecedor ou ao credor? Tal debate será abordado, no presente trabalho, posteriormente.
1
ALVIM, Eduardo Arruda P. Responsabilidade Civil pelo fato do produto no Código de Defesa do Consumidor.
Revista de Direito do Consumidor. vol. 15/1995. p. 132-150. jul-set. 1995.
2
SILVA, J. C. Responsabilidade civil do produtor. Coimbra: Almedina, 1999.
3
KLEE, A. E. L. Risco de desenvolvimento: estudo comparado entre o direito do consumidor brasileiro e o
direito norte-americano. Monografia (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. 2003.
risco para os direitos de outrem, deve sofrer as consequências provenientes da mesma. De
acordo com Nelson Nery Jr., "no regime da responsabilidade objetiva pelo risco da atividade,
4
(...), não há lugar para as causas ou cláusulas de exclusão dessa responsabilidade” .
4
NERY JÚNIOR, N. Da Proteção Contratual. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos
autores do anteprojeto. Ada Pellegrini Grinover [et al.]. - 12 ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. p.
468.
Cumpre ressaltar, por fim, que, apesar de a Diretiva nº 85/374/CEE ser aplicável em
toda a CEE, a mesma estabelece algumas ressalvas. O seu art. 15, 1, b autoriza qualquer
Estado-membro a prever, em suas respectivas legislações, a responsabilidade do produtor,
mesmo se provar que, no momento da colocação do produto em circulação, em razão do
estado dos conhecimentos científicos e técnicos não lhe permitiu a percepção do defeito.
Por efeito disso, pode-se afirmar que na Europa há três grupos: o dos países que
adotaram o regime da exclusão total da responsabilidade pelo risco de desenvolvimento; o dos
países que adotaram o regime parcial de exclusão da responsabilidade, responsabilizando
apenas em casos específicos; e o dos países que não adotaram a exclusão, responsabilizando
5
os produtores até mesmo em razão dos riscos de desenvolvimento .
Nessa toada, verificou-se que as normas gerais do Direito Civil não seriam suficientes
para tutelar plenamente os direitos do consumidor, tampouco o fariam as normas do Direito
Comercial, tradicionalmente voltadas para o bem-estar do empresário, daquele que fornece
para o consumo. Por conseguinte, dogmas do Direito Privado, onde estava inserida a temática
do consumo, foram relativizados e o Estado passou a atuar ativamente nessa área, ditando
regras mínimas a serem seguidas para que sejam salvos os direitos daqueles que consomem.
5
SILVA, J. C. Responsabilidade civil do produtor. Coimbra: Almedina, 1999.
consumidor. A partir dessa ótica, o Código de Defesa do Consumidor, posterior à CF, prevê
que os fornecedores têm o dever de inserir serviços e produtos de qualidade no mercado, ou
seja, produtos e serviços seguros para o consumo e que correspondam plenamente ao seu fim.
Foi à luz desse questionamento que a doutrina consumerista pensou a teoria do risco
do desenvolvimento, a qual possui diversos conceitos e é aplicada de diversas formas ao redor
do mundo. Segundo James Marins, o risco de desenvolvimento seria a possibilidade de um
produto ser inserido no mercado sem que possua defeito cognoscível, ainda que testado
inúmeras vezes, diante do grau de conhecimento científico possível à época da sua inserção,
no entanto, após certo tempo de circulação, algum defeito é detectado por novas técnicas e
descobertas científicas, descobrindo-se que o produto causou ou irá causar danos aos
consumidores. Com base nesse conceito, a teoria do risco do desenvolvimento postula o
seguinte: 1) o produto foi inserido no mercado sem que tivesse manifestado nenhum vício ou
defeito; 2) o produto foi exaustivamente testado pelo fornecedor antes de ser introduzido para
consumo, constatando-se apto para tal; 3) foram utilizadas as melhores técnicas científicas
para o teste do produto, dentro do que estava disponível no momento; 4) o produto funciona
normalmente até que se verifica algum dano associado à sua utilização; 5) o defeito ou vício
só pode ser descoberto após algum tempo de circulação e por meio de técnicas científicas não
disponíveis à época da fase de testes e posterior inserção do produto no mercado.
6
“Swiss Billionaire Stephan Schmidheiny Convicted Over Italy Asbestos Deaths”, por David Dawkins em
Forbes Magazine. Maio 2019. Disponível em:
<https://www.forbes.com/sites/daviddawkins/2019/05/23/swiss-billionaire-stephan-schmidheiny-convicted-over-
italy-asbestos-deaths/#12fc1ba278cc>;
7
“Na Itália, Justiça condena “magnata suíço do amianto” à prisão”, por Conceição Lemes em Vio Mundo. Maio
2019. Disponível em
<https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/na-italia-justica-condena-magnata-suico-do-amianto-a-prisao.html
>;
Risco de Desenvolvimento explanada nos itens 1.1 e 1.2. A empresa teve a oportunidade de
entender os efeitos prejudiciais do manuseio do amianto e, no momento que começaram a
surgir os estudos, já completava mais que o dobro o período de incubação das doenças
demonstradas, pois as atividades iniciaram em 1903.
Os fatos mencionados acima embasam a opinião emitida pelo procurador do Trabalho
e gerente nacional do Programa de Banimento do Amianto no Brasil, Luciano Leivas.
Luciano afirma que a história do amianto na Europa pode ser lida em três momentos.
“Primeiro – fase de inauguração e desenvolvimento da tecnologia poluidora do amianto.
Segundo – exposição e contaminação de trabalhadores e do ambiente natural pelo amianto.
Terceiro – banimento da tecnologia aliado à responsabilização civil e criminal das lideranças
empresariais responsáveis pelo desastre ambiental.”
Em 2009 iniciou o julgamento contra Stephan Schmidheiny e Louis De Cartier8
(falecido em 2013 aos 92 anos), sendo estes, respectivamente, o ex-acionista majoritário e o
diretor da empresa nos anos sessenta.
Em 2012 Stephan Schmidheiny e Louis De Cartier foram condenados a 18 anos de
prisão por crime de desastre doloso e culpados pela morte de 3 mil pessoas. Na corte de
Turim ficou comprovado que eles sabiam do potencial cancerígeno do amianto e mesmo
assim foram omissos, mantiveram indústrias abertas e ignoraram medidas de proteção aos
funcionários. Entretanto, em 2014, a Suprema Corte Italiana anulou a sentença, dizendo que o
caso era inválido, pois o prazo prescricional havia sido decretado.
Os promotores de Turim entraram na ofensiva com 258 novos casos, exigindo uma
nova ação coletiva, porém a tentativa foi rejeitada. O julgamento mais recente dizia respeito
apenas a dois casos que não tinham prazo de prescrição.
Recentemente, em maio de 20199, o Tribunal Italiano considerou Schmidheiny
culpado de homicídio involuntário pela morte de dois funcionários da Eternit em uma fábrica
de amianto perto de Turim, décadas atrás. Também foi determinado que Schmidheiny pagasse
8
Eternit, alleggerita accusa a Schmidheiny: “Omicidio colposo, non volontario”. E torna il fantasma della
prescrizione”, por Andrea Giambartolomei em Il Fatto Quotidiano. Nov 2016. Disponível em:
<https://www.ilfattoquotidiano.it/2016/11/29/eternit-alleggerita-accusa-schmidheiny-omicidio-colposo-non-volo
ntario-e-torna-il-fantasma-della-prescrizione/3225061/?_gl=1*tarqr5*_ga*YW1wLUJoWnpydGxqMmltV0FjSE
J6b19tcVNYWVJ4TzVVOHZqR1lIN2g4Z3JyMVo4RXExcFVHbjlYanhDYTN3YllGZEY>;
9
“Eternit bis, condanna: 4 anni per omicidio colposo a Stephan Schmidheiny. Il pm: “Giurisprudenza più attenta
alle vittime” por F.Q em Il Fatto Quotidiano.. Maio 2019. Disponível em:
<https://www.ilfattoquotidiano.it/2016/11/29/eternit-alleggerita-accusa-schmidheiny-omicidio-colposo-non-volo
ntario-e-torna-il-fantasma-della-prescrizione/3225061/?_gl=1*tarqr5*_ga*YW1wLUJoWnpydGxqMmltV0FjSE
J6b19tcVNYWVJ4TzVVOHZqR1lIN2g4Z3JyMVo4RXExcFVHbjlYanhDYTN3YllGZEY>
uma provisão de € 15.000 para vários grupos, incluindo a região do Piemonte, sindicatos e
associações. Processos por homicídio voluntário estão em andamento em Nápoles e Vercelli.
Além disso, há quem defenda que, por não existir legítima expectativa de segurança, o
defeito e a sua consequente responsabilização seriam refutados, uma vez que um dos
pressupostos da responsabilização estaria faltando. Esse é o posicionamento adotado por Rui
10
SOUZA, J. J. M. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto: os acidentes de consumo no Código de
Proteção e Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 112.
11
Artigo 12 do CDC: O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem
independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos [...]
12
Stoco e por Gustavo Tepedino, para quem o “conceito de defeito é relativo, contemporâneo a
13
duas noções, em determinado contexto histórico: segurança e expectativa” . Dessa forma,
não poderia haver a expectativa de segurança a respeito de algo que não cognoscível.
Assim, para esse segmento doutrinário, o fato de o fornecedor não saber ou não poder
saber da existência de um defeito não configura erro, quando determinado produto ou serviço
é inserido no mercado de consumo. Isso, pois, o presente estado técnico-científico limita a
expectativa de segurança do consumidor.
O defeito tem por pressuposto a expectativa de risco, pelo consumidor acerca dos
riscos do produto, os quais devem estar dentro de uma normalidade. Como é sabido, todo
produto é passível de causar dano, porém o que é exigido pelo CPC é a previsibilidade e a
razoabilidade deste problema. Assim, quando as condições normais para o consumidor são
extrapoladas, de modo a não corresponder à expectativa, há o defeito. Nessa concepção, a
falta de informações sobre o uso, por exemplo, torna o produto defeituoso, mesmo não
havendo nenhuma circunstância anormal neste. Podendo-se afirmar, portanto, que o conceito
de expectativa de segurança é auferido em face do consumidor e não da atitude do fornecedor.
12
STOCO, R. Defesa do consumidor e a responsabilidade pelo risco do desenvolvimento. Revista dos Tribunais.
vol. 855/2007. p. 46-53.
13
EPEDINO, G. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. Revista
T
Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora DADMAA, vol. 2. P. 41-75. Abril-junho de 2000.
14
CARVALHO, R. N. O risco de desenvolvimento na relação de consumo. Monografia (Bacharelado em
Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília. Brasília, p. 48. 2011.
Todavia, críticos da tese de que o Ordenamento Jurídico nacional adota a já citada
teoria como elemento que exime o fornecedor da responsabilidade objetiva pelo risco
defendem que: “o risco do desenvolvimento é especial do gênero defeito de concepção. Aqui
o defeito decorre de carência informativa, À época da concepção sobre o risco da adoção de
15
determinada tecnologia” . Portanto, a afirmativa de que se trata de um defeito não procede,
assim como a de que o fornecedor não é responsável.
Faz-se patente, ainda, afirmar que o próprio STJ entendeu que o Direito Consumerista
nacional não exime de responsabilidade o fornecedor pelo risco advindo de determinado
produto, conforme pode ser exemplificado no julgamento do REsp nº 971.845-DF:
15
BENJAMIN, A. H. V. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor. São Paulo: Saraiva. p. 67. 1991.
16
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11.9.1990 – Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.
17
Paulo R. Roque Khouri apud TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V.2: Direito das Obrigações e
. 533, São Paulo, 2016.
Responsabilidade Civil; 11 ed., p
do CDC), o que não ocorre na hipótese, já que a própria bula do medicamento não
indicava os riscos associados à sua administração, caracterizando culpa concorrente
18
do laboratório .
É importante, ainda, fazer referência ao diálogo das fontes que se opera no âmbito do
Direito do Consumidor. O Código Civil em seu o art. 931, estabelece que: “Ressalvados
outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem
independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação” .
Quanto ao citado artigo, o Enunciado nº 43 da I Jornada de Direito Civil diz que: “a
responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil,
também inclui os riscos do desenvolvimento.” 19.
18
STJ - 3ª T.; REsp nº 971.845-DF; Rel. Min. Humberto Gomes de Barros; j. 21/8/2008; m. V.
19
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10.1.2002 – Código Civil brasileiro.
20
RASIL. Ministério da Saúde. Talidomida: orientação para o uso controlado. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.
B
registrados os primeiros casos de focomelia no país, mas somente em 1962 a licença do
produto foi cassada pela governo federal por meio do Serviço Nacional de Fiscalização de
Medicina e Farmácia, estabelecendo formalmente em 30 de junho de 1964 um Termo de
Inutilização do Medicamento.
Todavia, em 1965, foi descoberto o efeito benéfico da talidomida no tratamento de
hanseníase, fazendo com que o produto voltasse a ser utilizado por alguns pesquisadores. Em
1971, a Organização Mundial de Saúde comprovou este efeito e liberou o uso do
medicamento para tratar a eritema nodoso hansênico. Diante disso, alguns países retomaram o
uso do fármaco, inclusive o Brasil. Até 1990, a talidomida era apenas contraindicada por seus
efeitos teratogênicos na gravidez, somente neste ano o Ministério da Saúde decidiu proibir o
seu uso em mulheres grávidas ou em idade fértil. Contudo, o medicamento não deixou de ser
amplamente utilizado, mesmo após causar mais de 10 mil casos de deformações em bebês ao
redor do mundo entre os anos de 1957 e 1962, quando foi retirado do mercado mundial. Entre
2005 e 2010, cerca de 5.8 milhões de pílulas foram distribuídas pelo país, gerando mais e
mais casos de síndrome da talidomida.
As vítimas mais recentes da são chamadas de terceira geração da talidomida21,
pessoas nascidas entre os anos de 2005 e 2010. Mesmo condicionada à definição de
protocolos clínicos muito rígidos, a prescrição da talidomida em casos de hanseníase e AIDS
e muito recorrente, ocasionando, por conseguinte, a persistência dos seus efeitos adversos.
Uma das causas dessa persistência é a desinformação da população, pois, apesar de
amplamente divulgados os estudos e matérias sobre o caso, a hanseníase é uma doença que
acomete pessoas mais pobres no Brasil, que muitas vezes não têm acesso à internet ou
televisão, ficando à mercê dos médicos e das secretarias de saúde, que pode facilmente ser
negligentes e deixar de prestar as informações.
Conclui-se, portanto, que a Talidomida permanece em circulação no Brasil, mas sob
rígido controle, sendo prescrito apenas para o tratamento de hanseníase, AIDS e doenças
crônico-degenerativas como o lúpus eritematoso sistêmico. A principal causa da continuidade
de ocorrências da síndrome da talidomida é, sem dúvidas, a falta de informação. Os usuários
mais frequentes possuem hanseníase, doença mais comum na população pobre que vive em
lugares onde a saúde pública é de péssima qualidade ou quase inexistente. Por conseguinte, o
21
“Talidomida continua a causar defeitos físicos em bebês no Brasil.” por G1 Globo, Julho 2013. Disponível
em:<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/07/talidomida-continua-a-causar-defeitos-fisicos-em-bebes-no-bra
sil.html>
medicamento pode ser ministrado de forma errada ou até por outras pessoas que não a que
está doente, diante da frequência da automedicação no país. É, então, de suma importância
que o Estado mantenha políticas públicas de controle do uso da talidomida, divulgando
amplamente os seus riscos em todos os meios de comunicação possíveis, para evitar que seja
ministrado erroneamente e continue beneficiando pessoas que utilizam dele no tratamento de
outras doenças.
dotado de direitos e garantias, além dos deveres impostos, haja visto que sua posição na
relação jurídica consumerista, frente ao polo do fornecedor, é de parte hipossuficiente. Afora
discussões que questionam a validade dessa afirmação, sabe-se que este entendimento traz
influência para a forma como seus direitos e garantias serão configurados, de modo a efetivar
a garantia constitucional de proteção do consumidor pelo Estado22, posteriormente tutelada
pelo Código de Defesa do Consumidor.
Um desses direitos que, no cotidiano consumerista, e nas pendências litigiosas do
Sistema Judiciário brasileiro, se vê mitigado é o direito à informação. O direito à informação
vem como protetor da parte contratante mais fraca, em termos de expertise de fornecimento
de serviços e à condições econômicas. É a partir dessa proteção que se busca também a oferta
de paridade de armas e a proteção da liberdade do consumidor.
Tendo em vista que os padrões de consumo estão em gradual crescimento ao longo
dos anos, também acompanha, ou deveria acompanhar, essa dinâmica o complexo de normas
protetivas ao consumidor, cristalizada, principalmente, no Código de Defesa do Consumidor.
Ocorre que, com a grande extensão de fornecimento de produtos e serviços, o consumidor,
não raramente, percebe-se sem aporte financeiro e econômico para o adimplemento de todos
seu débitos perante os respectivos fornecedores. Diante dessa situação surge a ferramenta dos
cadastros negativos de crédito.
22
Artigo 5º, XXXII da Constituição Federal de 1988
Os Sistemas de Proteção de Crédito consistem, teoricamente, em mecanismos de
cadastros de consumidores inadimplentes, os quais, uma vez inseridos, não conseguem crédito
em outro estabelecimento comercial. Esse registro de restrição é que se denomina negativação
do nome do consumidor.
A problemática aparece na prática de abusos cometidos por estes sistemas de proteção,
como são os casos, por exemplo, de permanência da restrição mesmo após a quitação do
débito, de negativação de consumidores que não estão inadimplentes, ou até mesmo de não
observância de regras que impõem o procedimento de negativação dos dados do consumidor,
abrangendo, inclusive, violações do direito à informação garantido ao consumidor. São pontos
como esses que a doutrina e a jurisprudência discutem em torno dos casos concretos que
surgem no âmbito dos litígios consumeristas. É, ainda, nessa perspectiva que são
incontornáveis os direitos básicos do consumidor, especificamente, como protagonista, o
direito à informação.
Com a inscrição do consumidor em bancos de dados de consumidores, resulta-se a
negativação do seu nome junto aos órgãos restritivos de crédito - como SPC, SERASA,
CADIN, entre outros, que possuem natureza jurídica de entidade de direito público-, que irão
impedir a realização de certos atos da vida civil, como o financiamento de determinado bem
em banco, abertura de conta corrente. Esse mecanismo se mostra um direito do credor, para a
proteção do seu crédito contra um mau pagador. Pra esse entendimento contribuem o artigo
188, I, do Código Civil de 200223 e o artigo 4324 do Código de Defesa do Consumidor, como
uma proteção também aos fornecedores de serviços e produtos. É sabido, em adição, que essa
inscrição só pode ocorrer preenchidos os requisitos formais de débito vencido (e de existência
incontestável) exequível, líquido e certo do devedor perante o credor, além do dever de
atuação conforme o princípio da boa-fé, com intuito de evitar inscrição indevida do
devedor-consumidor nesse cadastro restritivo de crédito.
Em razão dessas garantias para os dois pólos das relação consumerista que se pondera
a garantia de crédito do fornecedor com o direito à informação e à não violação de quaisquer
23
Art 188. Não constituem atos ilícitos: I- Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito
reconhecido
24
Art. 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em
cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas
respectivas fontes.
dos direitos do consumidor. Com base nessa linha de fundamentação que dispõe o artigo 43,
§§1º e 2º do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às
informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo
arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.
25
REsp 1.620.394-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, por unanimidade, julgado em 15/12/2016, DJe
6/2/2017, Terceira Turma.
responsabilização. Por exemplo, um fornecedor de bens e serviços só teria responsabilidade
atribuída a si, se se deu causa ao produto ou serviço estar colocado no mercado de consumo,
ignorando a existência de culpa para a reparação dos danos causados aos consumidores ou
inadequação do bem fornecido e posto em circulação.
Destaca-se, quebrando essa perspectiva, a conduta abusiva do fornecedor que cobra
seu crédito indevidamente perante o consumidor, parte hipossuficiente da relação jurídica
formada. Já dispõe, nesse sentido, o artigo 940 do Código Civil de 2002, sobre o excesso de
pedido por parte do fornecedor26, que
“Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem
ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a
pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o
equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.”
De acordo com Antônio Herman V. Benjamin (2013, p. 299), a pena rege-se por três
pressupostos objetivos e um subjetivo. No aspecto objetivo, a cobrança deve ser extrajudicial,
além de dever ser caso de cobrança de dívida de origem de consumo, haja visto que o CDC
aplica-se apenas no âmbito das relações consumeristas.. Já no plano subjetivo, tem-se que não
deve ser um engano justificável, que não decorre de dolo ou culpa, pois a cautela foi exercida.
Ou seja, tanto a má-fé, quanto a culpa dão ensejo à repetição do indébito, de forma a seguir a
linha da responsabilidade subjetiva a ser imputada ao fornecedor. Isso tudo de forma que a
cobrança de dívida, direta ou indireta, fora da atuação judicial, abre margem para a sanção
civil da multa em dobro, desde que o consumidor tenha, efetivamente, pago indevidamente.
26
MARQUES, CLAUDIA LIMA; BENJAMIN, Antonio Herman V; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de
Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 299.
27
Idem.
Nesse sentido, o STJ entende, conforme seus julgados que a repetição do indébito ao
consumidor depende da comprovação de má-fé ou culpa por parte do fornecedor, ou seja,
requer-se o afastamento da hipótese de engano justificável para que seja realizado. Salienta-se
também que é da iniciativa do fornecedor o ônus de comprovar que não houve culpa por parte
de seus atos. Exemplo dado por Benjamin (2013, p. 302) de engano não justificável são casos
de cobranças por computador, de modo que “a automação de cobranças não pode levar o
consumidor à sofrer prejuízos”. Dessa forma, erros correlatos ao manuseio pessoal do
computador são imputáveis ao fornecedor, pois cabe a ele conferir todas as suas cobranças
(BENJAMIN, 2013, p. 302).
28
OLIVEIRA, Marcio. Propaganda testemunhal, mais presente do que se imagina. Disponível em:
<https://storage.googleapis.com/adm-portal.appspot.com/_assets/modules/academicos/academico_1455_190226
_192720.pdf?mtime=20190226162716<
29
CONAR. Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária. Disponível em: http://www.conar.org.br.
Retomando os termos do código do CONAR, o §9º do artigo 27 em seu Capítulo II,
seção 5, define os princípios que norteiam os testemunhais:
a. O anúncio abrigará apenas depoimentos personalizados e genuínos, ligados à
experiência passada ou presente de quem presta o depoimento, ou daquele a quem
o depoente personificar;
b. O testemunho utilizado deve ser sempre comprovável;
c. Quando se usam modelos sem personalização, permite-se o depoimento como
"licença publicitária" que, em nenhuma hipótese, se procurará confundir com um
testemunhal;
d. O uso de modelos trajados com uniformes, fardas ou vestimentas características de
uma profissão não deverá induzir o Consumidor a erro e será sempre limitado
pelas normas éticas da profissão retratada;
e. O uso de sósias depende de autorização da pessoa retratada ou imitada e não
deverá induzir a confusão.
Ainda de acordo com o código regulamentar do CONAR, há quatro classificações para
a propaganda testemunhal: testemunhal de perito, testemunhal de pessoa famosa, testemunhal
de pessoal comum e atestado. Esses diferentes tipos de classificações de testemunhal têm
diferentes definições, no entanto todos seguem os princípios elencados acima.
Ao se conectar os elementos determinados pelo código do CONAR juntamente com os
casos reais de propaganda testemunhal, percebe-se que esse tipo de anúncio é baseado
principalmente na retórica da testemunha usada. É uma forma de garantir que o anúncio
transmitido esteja alicerçado em um tipo de veracidade garantida pelo depoente e que por esse
motivo é preciso seguir os princípios definidos pelo §9º do artigo 27 do CONAR.
Além dos testemunhais e dos outros tipos de propagandas usados atualmente, uma das
formas mais comuns é o chamado teaser. O §2º do artigo 9º do CONAR define o teaser como
“a mensagem que visa a criar expectativa ou curiosidade no público, poderá prescindir da
identificação do anunciante, do produto ou do serviço”. Esse tipo de propaganda é muito visto
na indústria cinematográfica antes dos lançamentos de filmes, pois transmite uma tensão
baseada justamente na surpresa gerada pela teaser.
Comparativamente com o testemunhal,30 que se baseia no depoente para transmitir a
ideia, o teaser está baseado na surpresa, na revelação posterior juntamente com a expectativa
gerada para o sucesso do comercial. É importante deixar claro que mesmo que o teaser31 seja
feito para provocar e deixar o consumidor de certa forma curioso com o produto anunciado,
pelo direito básico que rege o direito consumerista o anunciante deve deixar claro aquilo que
está anunciando como é dito pelo Art. 3º, III do Código de Defesa do Consumidor.
Por fim, nota-se que a principal diferença entre a propaganda testemunhal e o teaser é
a forma de transmissão de sua ideia, enquanto que a primeira se baseia no depoente, a
segunda se baseia na surpresa. Com o aumento da complexidade do marketing, é possível ter
essas duas formas de propaganda juntas em só comercial, mas de uma forma geral continuam
sendo distintas. Além disso, é conveniente ressaltar que as mais diversas formas de
propagandas devem sempre seguir os princípios fundamentais da relação consumerista.
30
BUCHFINK, Lígia Gabriela. Propaganda testemunhal: mais presente do que se imagina. Monografia
(Bacharelado em Publicidade e Propaganda), Universidade Rio Vale dos Sinos, 2006
31
GUGLINSKI, Vitor. Curiosidades sobre Direito do Consumidor: você sabe o que é "teaser"?. Disponível em:
<https://vitorgug.jusbrasil.com.br/artigos/451670611/curiosidades-sobre-direito-do-consumidor-voce-sabe-o-que
-e-teaser>
32
ROCHA, Amélia. Teoria da qualidade. Disponível em:< https://www.tjce.jus.br/noticias/teoria-da-qualidade/>
inciso I do Artigo 6º do CDC que diz o seguinte: “Art. 6º - São direitos básicos do
consumidor: I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por
práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos”.
Com isso, é possível perceber que a Teoria da Qualidade está atrelada à
responsabilidade que o fornecedor do produto deve ter com o consumidor. Por isso, o
fornecedor tem a obrigação, caso haja algum tipo de erro no produto entregue, de ser
responsabilizado por esse fato.
Outro fator primordial na garantia da boa relação consumerista é a transparência33.
Esse fator está ligado primeiramente com o direito do consumidor em saber aquilo que está
recebendo de forma clara, com todas as informações possíveis e é indispensável para que a
qualidade do produto seja garantida de forma satisfatória.
No CDC essa Teoria da Transparência está fundamentada no inciso III do Artigo 6º
que define os direitos básicos do consumidor:
“a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com
especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos
incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”.
33
PALUDO, Daniela Maria. Princípios adotados pelo Código de Defesa do Consumidor. Disponível
em:<https://www.univates.br/media/graduacao/direito/PRINCIPIOS_ADOTADOS_PELO_CODIGO_DO_CON
SUMIDOR.pdf>
34
THOMAZINI, Ana Paula Nickel. O Princípio da Transparência nas relações de consumo. Boletim
Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, no 181. Disponível em: <https://www.boletimjuridico.com.br/
doutrina/artigo/1332/o-principio-transparencia-nas-relacoes-consumo>
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. vol. 15/1995. p. 132-150.
jul-set. 1995. DTR\1995\567.
“Eternit bis, condanna: 4 anni per omicidio colposo a Stephan Schmidheiny. Il pm:
“Giurisprudenza più attenta alle vittime” por F.Q em Il Fatto Quotidiano.. Maio 2019.
Disponível em:
<https://www.ilfattoquotidiano.it/2016/11/29/eternit-alleggerita-accusa-schmidheiny-omicidio
-colposo-non-volontario-e-torna-il-fantasma-della-prescrizione/3225061/?_gl=1*tarqr5*_ga*
YW1wLUJoWnpydGxqMmltV0FjSEJ6b19tcVNYWVJ4TzVVOHZqR1lIN2g4Z3JyMVo4R
XExcFVHbjlYanhDYTN3YllGZEY>
“Na Itália, Justiça condena “magnata suíço do amianto” à prisão”, por Conceição Lemes
em Vio Mundo. Maio 2019. Disponível
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-amianto-a-prisao.html>
SILVA, João Calvão da. Responsabilidade civil do produtor. Coimbra: Almedina, 1999.
SOUZA, James J. Marins de. Risco de Desenvolvimento e tipologia das imperfeições dos
produtos. Revista de Direito do Consumidor. vol. 6/1993. p. 118-133. abr-jun 1993.
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“Swiss Billionaire Stephan Schmidheiny Convicted Over Italy Asbestos Deaths”, por
David Dawkins em Forbes Magazine. Maio 2019. Disponível em:
<https://www.forbes.com/sites/daviddawkins/2019/05/23/swiss-billionaire-stephan-schmidhei
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TARTUCE, Flávio. Direito Civil, V.2: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil; 11
ed., p. 533, São Paulo, 2016.