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SONHOS DO ABSURDO

Por: Jorge Raskolnikov

Personagens: Nonato, Nádia. Ele deve aparentar entre vinte e oito a trinta e dois anos.
Ela não deve aparentar mais que dezessete, dezoito anos.

O cenário é constituído única e exclusivamente de um quarto. Há uma cama de


casal do lado esquerdo do público, um criado mudo, sobre este uma garrafa de vinho e
livros (entre estes deve estar o romance de Dostoievski, Crime e castigo), do lado
direito um guarda-roupas e uma cadeira, onde visivelmente, se dispõe uma camisa
desabotoada. Estes elementos – os móveis - são obrigatórios, mas sua disposição
apenas sugerida, cabendo também ao diretor definir que estética esses móveis
apresentam – se reais, sugeridos ou construídos com outros materiais - apenas deve o
diretor com seu cenógrafo preocupar-se com sua fácil identificação.

ATO ÚNICO

Cena1
(O espetáculo se inicia totalmente no escuro. Nonato e Nádia estão dormindo na cama,
usam roupa de baixo. Luz crescente. Nonato desperta repentinamente, se ergue num
susto ao mesmo tempo em que a luz o ilumina juntamente com Nádia)

NONATO: (Sem fôlego, suado) Ah... Caramba... (Sentando-se na cama, afastando um


pouco o lençol) Que horrível... (Passa a mão na testa, limpa o suor) Caralho! Parecia
de verdade...
(Nádia se ergue, olha atenta para Nonato)
NÁDIA: (Sonolenta) Que foi? Pesadelo?
(Nonato a encara)
NONATO: Foi... Sonhei que... (Pensa um pouco)
NÁDIA: (Divertida) Sonhou que tinha perdido o pinto!? (Gargalha)
NONATO: (Sentando-se na cama) Deixa de falar bobagem... (Procura ainda se
recompor)
NÁDIA: Tudo bem, meu querido... (Acaricia as costas dele) Que foi que sonhou?
NONATO: (Tentando recordar) Eu sonhei que...
NÁDIA: Nonato, cê já imaginou se a gente tivesse um sonho que não pudesse
acordar? Provavelmente a gente pensaria que a vida real é que era sonho, não acha?
NONATO: (Ficando de pé) Você e essas suas especulações filosóficas...
NÁDIA: (Se animando. De joelhos na cama) Já te disse que um dia vou cursar
filosofia?
NONATO: (Indiferente, procurando algo no bolso da camisa sobre a cadeira) Já. Um
milhão de vezes, eu acho.
NÁDIA: (Infantil) Ah... Você devia era me incentivar...
NONATO: (Com uma carteira de cigarros na mão, agora em busca dos fósforos.
Depois de achá-los, veste a camisa) Você já é uma filósofa... A menina de dezessete
anos mais velha que eu conheço. Sabe tudo, já leu os principais clássicos da literatura
mundial.
NÁDIA: Ainda falta muita coisa... Nietszche dizia que há ainda muita coisa não dita e
não pensada.
(Nonato senta-se na cadeira e começa a fumar. Parece perturbado)
NONATO: Caralho! Estou tentando lembrar de uma coisa importante e não consigo...
Ultimamente...
NÁDIA: (Imitando ele) ...não consigo lembrar de nada! (Em outro tom) Você já disse
isso mil vezes.
NONATO: Pois é... Pior que tenho certeza de que devo lembrar de uma coisa
importante...
NÁDIA: Esquece isso, vem pra cama, vem...
NONATO: Não. Não vou mais conseguir dormir.
NÁDIA: (Se insinuando) E quem disse que é pra dormir, bobo... Vem, você não quer
mais um pouco da sua puta mirim? (Gargalha escandalosamente)
NONATO: (Fazendo uma careta de desgosto) Dá um tempo, Nádia... Eu tô com um
problema. (Pausa enquanto apaga o cigarro na perna da cadeira) Agora além de perda
de memória, essa insônia...
NÁDIA: Ah, não tem nada de importante pra lembrar. O que realmente valia a pena,
nós fizemos e sentimos, não precisa lembrar.
NONATO: (Fazendo uma careta de impaciente) Eu sonhei que...
NÁDIA: (Sentando-se na borda da cama) Por um lado deve ser bom esquecer as
coisas, Nonato, você viverá só o presente e o futuro. Não deve ter coisa melhor que
isso! O passado é uma merda mesmo, não serve pra nada a não ser pra lamentar.
NONATO: Não preciso do passado pra lamentar, acho tudo uma merda mesmo.
Passado, presente e futuro... Essa vida toda!
NÁDIA: (Aproximando-se dele) Você é tão maravilhoso... Devia escrever um livro
baseado nessas suas inquietações...
NONATO: (Encarando-a) Sou um simples motorista de táxi, não lembra? Quem curte
filosofia aqui é você. (Olhando para o lado oposto a Nádia) Não tenho o mínimo
interesse em escrever nada.
NÁDIA: (Ao lado dele, acariciando seu cabelo) Que pena! Você tem uma visão de
mundo singular, uma belíssima crise existencial. Um tormento digno de uma tese de
filosofia ou um clássico da literatura.
NONATO: Pra mim a coisa toda não passa de decadência e morte... (Levanta-se
repentinamente e vai até o criado mudo. Abre a gaveta e procura alguma coisa, desiste,
pega a garrafa de vinho, toma um gole)
NÁDIA: Belo material para uma obra.
NONATO: Então escreve você.
NÁDIA: Talvez escreva mesmo... Penso igual a você. Pra mim tudo caminha pro fim
e a única coisa a ser feita e aproveitar o máximo.
NONATO: (Examinando sem interesse o rotulo da garrafa) A isto chamamos
hedonismo, não?
NÁDIA: Hum hum...
NONATO: Pois eu não sou hedonista. Pra mim tudo é decadência e morte, sem
qualquer objetivo...
NÁDIA: (Aproximando-se dele) Então não sente nenhum prazer na vida? (Irritada)
Não acredito!
NONATO: Problema seu. (Toma outro gole)
(Ela o puxa até ele sentar na cama. Senta-se de frente para ele sobre suas coxas, pega a
garrafa toma um gole, coloca a mesma no chão, põe as mãos em volta da nuca dele)
NÁDIA: Não vai dizer que não sente um mínimo de satisfação quando tá me fodendo?
(O encara com o rosto próximo ao dele)
(Ele procura não encara-la diretamente)
NONATO: Não é isso, Nádia... Não é que desprezo as fontes de prazer, só não tenho
contentamento algum depois... (Pausa) Contentamento algum por essa vida sem
explicação.
NÁDIA: E queria o quê? Que um manual caísse do céu com todas as respostas que
procura?
(Nonato permanece calado, parece cabisbaixo)
NONATO: (Depois de um tempo) Nunca encontrei muito contentamento na vida,
sabe... Desde que era criança... A falta de explicação das coisas sempre me
atormentou.
NÁDIA: Nossa! Isso é lindo. O mais belo material para filosofia...
NONATO: (Desvencilha-se de Nádia, pega a garrafa de vinho e volta para a cadeira e
olha para o guarda roupas) Você só pensa em teorizar a coisa. Sabe muito bem que
tenho é desprezo por esses seus pensadores.
NÁDIA: Só gosta do Camus.
NONATO: Nem dele. (Com ar solene) Só gosto da maneira como ele fala de Sísifo.
Da maneira como ele descreve o sofrimento dele quando desce a montanha para pegar
mais uma vez a pedra que vai rolar novamente, o esforço inútil e o pior de tudo isso, a
consciência dessa miséria...
NÁDIA: Belo, belíssimo...
NONATO: As vezes eu paro e penso na expressão de Sísifo descendo a montanha, a
certeza de estar num empreendimento miseravelmente inútil e desgastante, deve
realmente ser nisso que pensa quando desce a montanha... E eu me sinto igual a ele...
NÁDIA: Não devia se preocupar com as respostas, com a ausência de uma explicação
ou de um Deus vigilante, mas em aproveitar a vida... (Aproximando-se dele) E fazer o
que quiser, experimentar o máximo das emoções, pois é certo que vamos morrer
amanhã. (Nonato se sente inquieto, entrega a garrafa a Nádia e acende outro cigarro.
Nádia caminha sonhadora na direção do proscênio, pára, toma um gole de vinho)
Lembra quando eu lhe disse que um dia queria cometer uma assassinato para saber
qual a sensação? Lembra? (Olha para ele e sorri) Matar um sujeitinho desses
inexpressíveis que vivem por aí...
NONATO: Como o Raskolnikov do crime e castigo fez?
NÁDIA: (Voltando-se totalmente para ele) Sim... Você lembra por que ele fez isso,
não lembra?
NONATO: (Meneando a cabeça com desprezo) Não muito, faz tempo que li aquele
troço... Devia ter uns dezoito anos... A única coisa que lembro razoavelmente é do
Marmeladov, o alcoólatra, meu ídolo particular.
NÁDIA: (Empolgada) Pois é, Raskolnikov matou aquela velha usurária por que
achava ela desprezível e se julgava um ser superior...
NONATO: Grande merda! (Pensa um pouco) E é bem capaz de sermos superiores eu
e você: um motorista alcoólatra decadente e uma putinha...
NÁDIA: Não acha que devemos fazer o que nos dá prazer?
NONATO: Talvez... Acho que sim, sei lá...
NÁDIA: (Acusando) Você age assim!
NONATO: (Ficando de pé e passeando pelo quarto com o cigarro aceso entre os
dedos, por alguns segundo se detém olhando para guarda roupas) Sim... Mas o faço
pela falta de algo melhor pra fazer, faço porque não acredito num certo e errado, faço
porque acho que não existe um Deus vigiando a gente e, sobretudo, porque acredito
que estamos aqui por acidente... Todavia isso me atormenta e trocaria tudo isso por
saber a verdade.
NÁDIA: (Divertindo-se) Trocaria uma noite de prazer comigo para saber a verdade?
(Vai e senta-se na borda da cama, coloca o vinho sobre o criado mudo)
NONATO: Claro.
NÁDIA: Não acredito!
NONATO: Acho que eu me sinto o cara mais realizado do mundo tendo uma
prostituta mirim como amante?
NÁDIA: (Ficando de pé e indo de encontro a ele) Então é assim que você pensa?!
NONATO: Não precisa levar a mal o que eu disse...
NÁDIA: (Possessa) Se é assim que pensa, tanto pior pra você, seu filho da puta! Pois,
pois... então é muito capaz de me trocar por qualquer coisa já que qualquer crença
pode ser a verdade de quem quiser... Você faria isso por qualquer verdade, achando
que seria a verdade absoluta e só então ia se dar conta de que jogou fora uma mulher
quente e maravilhosa por outra históriazinha... E aí seria tarde...
NONATO: Como você é dramática.
NÁDIA: Dramática é o caralho! Não é todo dia que se fica sabendo que o amante da
gente seria capaz de trocar a gente por qualquer coisa.
NONATO: Não foi isso que quis dizer...
NÁDIA: Foi sim... (Mudando de tom) Fique sabendo, meu caro que eu estou aqui
porque gosto, estou aqui porque resolvi investir em você, porque vi em você a
realização tanto carnal como espiritual.
NONATO: E agora acredita em espíritos?
NÁDIA: Estou me referindo a espírito na falta de uma palavra melhor, o que quero
dizer é essência, sintonia, resumindo, a gente trepar não só pela foda em si. (Afasta-se
dele e vai para o outro lado da cama ficando de costas para ele)
(Nonato termina de fumar, parece pensativo, olha para Nádia, depois para o guarda
roupas. Fica de pé depois de um tempo, voltar a encarar Nádia)
NONATO: (Num tom conciliatório) Desculpe, Nádia... Eu não quis lhe ofender, nem
dizer que trocaria você por qualquer coisa... eu simplesmente quis expressar o quanto
me incomoda a falta de objetivos na vida... (Pausa) Para ser sincero, até que você me
deu um caminho pra seguir, quer dizer, não encontrei a explicação da vida, mas pelo
menos tenho experimentado com você um enlevo carnal... e por que não dizer,
espiritual... Apesar de jovem é uma grande mulher!
NÁDIA: (Ela olha sobre o ombro para ele, parece mais tranquila) Então não é foder só
por foder?
NONATO: (Com um meio sorriso) Claro que não. Acha que eu me arriscaria trepar
com uma garota menor sem qualquer compensação extra? Afinal corro o risco de ir
pra cadeia e virar escravo sexual de algum drogado.
(Os dois riem. Ela vai ao encontro dele, se abraçam e se beijam)
NONATO: Acabei de lembrar dos detalhes do pesadelo que tive, mas agora estou
certo de que preciso me lembrar de algo... (Vai se desvencilhando dela) Algo que fiz...
NÁDIA: (Sorrindo) Eu sei o que é, mas não vou dizer...
NONATO: Sabe? (Ele se curva e procura ver o que há debaixo da cama)
NÁDIA: Algo que fizemos com bastante excitação! (Senta-se na cama)
NONATO: Mesmo? Por que é que eu estou com a sensação de que você realmente
sabe o que quero lembrar?
NÁDIA: Procura pelo quarto que você vai encontrar o que procura.
(Nonato se ergue, pega a garrafa de vinho e toma mais um gole)
NONATO: Sabe, Nádia, eu lembro de um tempo em que a vida fazia sentido pra
mim... Eu devia ter uns sete ou oito anos... Fui passar as férias no sítio de uma tia. A
noite eu ficava olhando as estrelas com uns primos e amigos, em volta da fogueira...
Foram umas férias inesquecíveis, longe de toda conturbação que era a minha casa.
NÁDIA: Tá melhor que eu, meu bem... Com essa idade eu tinha que fugir de um tio
tarado... (Pausa) O bom dessa época que eu lembro é que eu tive contato com a leitura.
Comecei a freqüentar a casa de um velhinho simpático no meu bairro. Ele era um
professor aposentado e resolveu oferecer um pouco de leitura para as crianças pobres
do bairro. (Ri) Engraçado que no principio eu pensei que ele fosse só mais outro
tarado em minha vida. (Pensativa) Eu lembro bem dele, gordo e simpático... Muito
paciente com os moleques que desarrumavam a biblioteca dele... (Ri) Era o tipo que
resolve fazer alguma coisa pelo mundo...
NONATO: (Olhando por trás do criado mudo) Sabe o que me incomoda? Imaginar
que na morte não terei a possibilidade de ter um único pensamento que fosse do tipo:
“Caralho, então não existe nada mesmo, é a podridão e o fim!” (Fica de pé e olha para
o guarda roupas por um tempo) Vai ser uma coisa deprimente, se deparar com o nada
e nem ao menos experimentar esse confronto!
NÁDIA: (Divertida, pegando o vinho da mão dele) Cê já leu o Retrato de Dorian
Gray? (Bebe um pouco e o encara)
NONATO: (Andando pelo quarto a procura de algo) Não.
NÁDIA: (Aborrecida) Ah, então com certeza não sabe quem é o Lord Henry.
NONATO: (Parecendo refletir profundamente) Definitivamente não. E você já assistiu
o Sétimo selo?
NÁDIA: Como não sabe quem é, não conhece minha versão masculina... Uma
personalidade amoral com compromisso somente no bem viver.
NONATO: (Indo em direção ao guarda roupas, parando e o olhando de alto a baixo)
No sonho que tive esta noite eu estava tentando abrir esse guarda-roupas e tudo era
igual ao visual do Sétimo selo... Tinha a certeza de que tudo que procurava estava
dentro dele...
(Nonato tenta abri-lo, insiste, mas não consegue)
NÁDIA: Devia deixar todas as suas preocupações pra lá, Nonato, devia era pensar em
viver... (Levanta-se e vai ao encontro do amante. Abraça-o por trás, acaricia suas
costas, depois lhe dá a bebida. Ele bebe um pouco) Vem...
(Os dois caminham. Ele coloca a garrafa no chão perto da cama. Deitam-se)
NONATO: Juro que queria ser como você, Nádia, não me preocupar, apenas viver,
mas não consigo me conformar...
(Ela o acaricia)
NÁDIA: Eu te ensino a viver, meu bem, eu te ensino...
NONATO: Tenho medo do que possa aprender com você.
NÁDIA: (Sorrindo) Mesmo?
NONATO: (Afastando-se dela, deita-se de lado dando-lhe as costas) Na verdade já
aprendi muito... Fiz coisas com você que nunca pensei em fazer...
NÁDIA: (Num tom mais solene) Eu nunca esperei muito dessa vida, sabe. Nunca
acreditei em Deus... Tive um pai distante e uma mãe depravada, acho que por isso
sempre vi as coisas materialmente e nada mais.
NONATO: E eu já acreditei uma vez... Tive fé, mas agora tudo se foi...
NÁDIA: Eu não. Aprendi a esperar por Deus da mesma maneira que devia esperar
pelo meu pai.
NONATO: (Se senta e depois se levanta da cama) Droga! Do que é que estou
esquecendo? (Apalpa os quadris a procura de bolsos, olha para os lados)
NÁDIA: (Voltando-se para ele) Acho que não procura nada, acho que está
esperando... (Rindo) Esperando Godot! (Ri)
NONATO: Agora é sério, Nádia... O que é que estou procurando? Agora me veio a
certeza de que você sabe...
NÁDIA: Já disse para procurar pelo quarto que vai encontrar. É como na vida, meu
bem, você tem que encontrar o que quer por sua vontade própria...
(Ele vai novamente na direção do guarda-roupas. Pára, tenta abri-lo, não consegue)
Esse negócio tá trancado, Nádia?
NÁDIA: Tá e foi você que guardou as chaves.
(Desesperadamente ele procura as chaves nos bolos da camisa, olha para os lados, vai
até o criado mudo, vasculha-o)
NÁDIA: Meu querido, deixe de procurar, encontre! Está tudo na sua mente.
NONATO: Por que é que estou com a impressão de que esse meu tormento tem algo a
ver com você, com alguma coisa que fez?
NÁDIA: (De joelhos na cama, o encarando e se divertindo) Lembra de quando eu te
disse que tinha vontade de cometer um assassinato, matar um sujeito que considerasse
desprezível?
NONATO: Então foi isso! Agora eu lembrei!
(Blackout)

Cena2
(A luz vai aumentando e Nonato desperta ao lado de Nádia exatamente como na
primeira cena)

NONATO: (Sem fôlego, suado) Ah... Caramba... (Sentando-se na cama, afastando um


pouco o lençol) Que horrível... (Passa a mão na testa, limpa o suor) Caralho! Parecia
de verdade...
(Nádia se ergue, olha atenta para Nonato)
NÁDIA: (Sonolenta) Que foi? Pesadelo?
(Nonato a encara)
NONATO: Foi... Sonhei que... (Pensa um pouco)
NÁDIA: Sonhou o quê?
NONATO: Não consigo lembrar... (Levanta-se da cama) Foi intenso, mas não lembro
mais... (Vai em direção a cadeira, e começa a procurar os cigarros na camisa)
NÁDIA: (Sentando-se na cama) Tudo é um sonho, sabe.
NONATO: (Senta-se na cadeira e se prepara para fumar, antes de acender o cigarro,
olha pra o guarda roupas) E acordar deve ser a morte.
NÁDIA: Exato.
NONATO: As vezes eu acho que acordar deve ser a melhor saída.
NÁDIA: (Indo na direção dele) E eu... As vezes canso de buscar esses pequenos
prazeres... Queria fazer logo algo grande e depois morrer num pacto de morte...
(Ajoelha-se ao lado dele) Você e eu.
NONATO: Seria uma boa... Alguém disse uma vez, não lembro quem, que o suicídio
seria a única atitude razoável para uma mente consciente.
NÁDIA: Isso deve ser coisa de filósofo existencialista.
NONATO: (Com desprezo) Lá vem você... Que seja!
NÁDIA: Mas antes desejaria fazer algo grande.
NONATO: (Acendendo um cigarro) O quê?
NÁDIA: Um assassinato.
NONATO: (Encarando-a) Está falando sério ou é só mais uma daquelas bravatas dos
seus pensadores?
NÁDIA: (Ficando de pé) Estou falando sério... Nos grandes clássicos da literatura
mundial vemos essas coisas, pessoas que cometem um crime por algo mais
transcendente... Crime e castigo, Os irmãos Karamázov...
NONATO: (Fica de pé subitamente) Você e essas suas coisas!
NÁDIA: Tem medo de ser preso? É isso? Acredito que não seja, do contrário não teria
uma amante menor de idade. (Aproxima-se dele. Ele se dirige para o guarda roupas.
Pára) Sei que não acredita nessa bobagem de bem e mal, certo e errado.
NONATO: Tudo bem, mas posso escolher não matar ninguém, certo?
(Um silêncio paira entre os dois durante algum tempo)
NONATO: (Num tom de lamento) Diabo, queria lembrar do sonho... Ultimamente...
NÁDIA: Já sei, não lembra mais de nada.
NONATO: Pois é...
(Nádia senta-se na cadeira. Nonato caminha pelo quarto)
NÁDIA: Nonato, já pensou se de fato a vida se repetisse indefinidamente como
naquela teoria maluca do Nietszche?
NONATO: Já pensei nisso, mas não significa nada pra mim.
NÁDIA: Como disse Milan Kundera, se as coisas se repetirem mesmo para sempre,
tudo já estaria redimido por antecipação...
NONATO: Sei, inclusive o crime que você gostaria de cometer...
NÁDIA: Hum hum...
NONATO: E a minha vida deprimente de motorista de táxi, de fumante, alcoólatra e
amante de uma puta mirim! (Senta na cama, apaga o cigarro, pega o vinho e bebe)
NÁDIA: (Aproxima-se dele e coloca a mão no seu ombro, ele a envolve pela cintura)
Tudo, até nosso pacto de morte... A escolha da leveza da vida como disse o próprio
Kundera.
NONATO: Não sei o que quer dizer.
NÁDIA: Kundera fala de dois extremos na vida, o peso e a leveza. A leveza seria a
escolha do mais fácil, sem se preocupar com a moral, o céu e o inferno... O peso seria
a responsabilidade por cada momento, cada detalhe, a preocupação... a complexidade
da vida.
NONATO: Devo estar entre os dois. (Bebe)
NÁDIA: (Ri) É difícil realmente definir sua situação. (Estende a mão e recebe a
garrafa, toma um gole)
(Ele desvencilha dela, se afastam. Ele se volta para o criado mudo e começa a procurar
algo. Ela se senta na cama)
NONATO: Depois falamos sobre o duplo suicídio.
NÁDIA: Certo... Mas quem vamos matar antes?
(Os dois riem por um momento)
NONATO: (Desistindo da busca, ficando de pé) Sei que tenho alguma coisa pra fazer
e não consigo lembrar o que é.
NÁDIA: A resposta está perto de você.
NONATO: (Encarando-a) Como assim?
NÁDIA: Deve realmente ter uma razão para esse mundo existir, um principio, mas
acredito que estamos tão longe dele quanto uma barata está de compreender
matemática. (Passa os dedos na boca da garrafa distraída)
NONATO: (Indo em direção ao guarda-roupas) Agora você falou algo que vale a pena
se levado em conta...
NÁDIA: É disso que vai se tratar o meu sistema de pensamento.
NONATO: (Verificando a carteira de cigarros, amassando-a e a atirando longe) Qual?
NÁDIA: (Sentando-se na cabeceira da cama, esticando as pernas) Esse que acabei de
falar... Não é que seja difícil de descobrir a verdade do universo, a questão é que não
temos capacidade de compreendê-la. Nenhuma língua, por melhor que seja pode fazer
entender o sentido de tudo isso.
NONATO: (Apoiando uma mão na cadeira, assuando o nariz com a outra) Agora acho
que está dizendo algo interessante.
NÁDIA: Essa é a verdade que eu acredito, a não compreensão da verdade, o nosso
Godot já veio, o problema é que não o reconhecemos nem entendemos ele.
NONATO: Bom, devia escrever isso.
NÁDIA: (Evitando olhar para ele) Não.
NONATO: Não o quê?
NÁDIA: (Melancólica) Não vou escrever nada. Essa é a nossa filosofia, destinada
somente a nós. Não vai deixar esse quarto nunca.
NONATO: É, achei que devia ser escrito, mas não importa. (Caminha de um lado para
outro, por vezes encara o guarda roupas)
NÁDIA: Tem razão, essa vida é uma merda mesmo!
NONATO: Cultivo esse pensamento faz tempo... A existência humana não é
simplesmente um absurdo é...
NÁDIA: Uma aberração.
NONATO: Bem colocado. Uma aberração, um erro monstruoso...
NÁDIA: (Solene) Estou cansada dessa vida sem graça... Não quero mais discutir ou
cursar filosofia... Quero mesmo é morrer... Morrer contigo. (Olha para ele e bebe)
NONATO: (Irônico) Pode esperar um pouco? (Ele olha para o guarda roupas. Desiste
e se volta para ela) Tem idéia de onde eu coloquei as chaves idiotas desse troço?
NÁDIA: Não.
NONATO: Não consigo lembrar de mais nada.
NÁDIA: Ainda tem cigarros?
NONATO: Não.
(Nádia faz uma cara de lamento)
NÁDIA: (Ficando animada) Nonato, cê viu aquele filme, “Eterno brilho de uma mente
sem lembranças”.
NONATO: Não.
NÁDIA: (Coloca o vinho sobre o criado mudo e pega um livro – Crime e Castigo de
Dostoievski.) Ah... Que pena.
NONATO: (Sentando-se na cama) E você já viu “Feitiço no tempo”?
NÁDIA: (Animando-se e voltando-se totalmente para ele) Já sim, gostei muito...
NONATO: Pois é, neste quarto estou me sentindo como o personagem do Bill Murray
que vivia sempre o mesmo dia repetidamente.
NÁDIA: (Irritada) Muito obrigado por fazer parte desse seu mundo repetitivo e sem
graça. (Joga o livro sobre a cama e se levanta irritada)
NONATO: (Pegando o livro) É assim que eu me sinto, mas não é culpa sua.
NÁDIA: E o nosso pacto de morte?
NONATO: (Folheando o livro) Lembra onde é aquela parte em que o Raskolnikov
tem um sonho sobre a éguazinha que não consegue puxar a carroça e que é espancada
até a morte?
NÁDIA: (Irritada, relutante, de braços cruzados) Lembro... Mas só encontro se
procurar...
NONATO: (Estendendo o livro para ela) Encontre e leia pra mim...
(Nádia recebe o livro, hesita um instante)
NONATO: Por favor...
(Nádia puxa a cadeira para perto da cama, abre o livro sobre as pernas e começa a
procurar a página)
NÁDIA: (Lendo) “Foi estranho o sonho que teve Raskolnikov. Sonhou com a sua
passada infância, na aldeia. Tinha sete anos e passeava, num dia festivo, ao cair da
tarde, com seu pai...”
NONATO: Leia mais adiante, na parte em que a éguazinha tenta puxar a carroça e não
consegue...
NÁDIA: (Estala a língua atrás dos dentes. Demora um instante procurando o parágrafo
certo) “... sobem todos... com risos e gracejos. Subiram seis homens... uma mulher
gorda e pintada... Ouve-se eia! A éguazinha puxa com todas as suas forças, mas não
vai a galope... limitando-se a agitar as patas... e dobrar-se sob os golpes dos três
chicotes... Os risos redobram... Mikolka enfurece-se e com violência descarrega
golpes terríveis sobre a pobre égua, como se acreditasse verdadeiramente que
poderia ir a galope. – Deixem-me subir... – grita entre a multidão um rapaz... – Sobe!
Que subam todos! – grita Mikolka. – Levo-os a todos... – Paizinho, paizinho, - grita
Raskolnikov para o pai. – ... que ele está fazendo? Matam a pobre égua... Outros
rapazes do grupo brandiram também os chicotes e dirigiram-se para o animal para
lhe fustigarem as ilhargas. – No focinho, nos olhos, dêem-lhes nos olhos! Grita
Mikolka... Ele se dirigiu, correndo, para o animal, avançou e pôde ver como batiam
nos olhos do cavalo, nos próprios olhos! Pôs-se a chorar... – Ah, diabo! – gritava
Mikolka furioso. Larga o chicote. Torna a agachar-se e tira... um pedaço de pau
grosso e comprido, segura pela ponta com as duas mãos e, com todas as suas forças,
descarrega-o sobre a égua... – Dá-lhe... – grita uma voz... Mikolka, com todas as suas
forças, deu outro golpe no costado do infeliz animal... e novamente o pau se ergue e
cai pela terceira vez, e depois pela quarta... – Com a machada, diabo!... Mikolka,
furioso; larga o pau, torna a agachar-se na tiliega, e tira uma alavanca de ferro...
deita outra pancada na sua pobre égua...
NONATO: Chega. É suficiente... Obrigado.
NÁDIA: (Fechando o livro) Por que me fez ler isso?
NONATO: Por nada... Queria apenas lembrar esse trecho da história... Você vive
falando desse livro, me deu vontade de lembrar essa parte.
NÁDIA: (Duvidosa) Sem mais nem menos?
NONATO: (Ficando em pé, caminhando) A vida é mesmo triste, destituída de
sentido...
NÁDIA: Pelo menos pra nós.
NONATO: (Aproximando-se dela, acariciando seu rosto) Como eu queria acreditar
num outro mundo, numa outra vida, na redenção plena... Na recompensa para os bons,
num Deus misterioso e bom... Não valeria a pena morrer por isso? Ou melhor, viver
por isso?
NÁDIA: (Aflita) Não sei, não consigo pensar nisso... A vida pra mim é só uma
aberração... (Ela esfrega os olhos com os dedos)
(Ele procura as chaves mais uma vez no criado mudo, olha em volta, vai até o outro
lado da cama, abaixa-se e pega uma camisa ensanguentada)
NONATO: Que porra é essa!?
NÁDIA: (Se volta para Nonato) A camisa que usamos para limpar o sangue.
NONATO: (Solta a camisa no chão) Sangue? Que sangue?
NÁDIA: O do rapaz que matamos.
NONATO: (Terrivelmente chocado) Rapaz!? Que diabo cê tá falando? (Olha para o
guarda roupas)
NÁDIA: Matamos o seu vizinho ontem! Talvez seja disso que está tentando lembrar e
não consegue.
NONATO: Caralho! (Pausa, afasta-se andando para trás) Lembrei, foi com isso que eu
sonhei... E não foi um sonho...
(Novo blackout)

Cena 3
As luzes mais uma vez vão retornando novamente. Os dois estão mais uma vez na
cama exatamente como no inicio das cenas anteriores. Ele desperta subitamente.

NONATO: (Sem fôlego, suado) Ah... Caramba... (Sentando-se na cama, afastando um


pouco o lençol) Que horrível... (Passa a mão na testa, limpa o suor) Caralho! Parecia
de verdade...
(Nádia se ergue, olha atenta para Nonato)
NÁDIA: (Sonolenta) Que foi? Pesadelo?
NONATO: (Ele a encara muito ofegante) Sonhei que a gente tinha matado um
sujeito...
NÁDIA: (Ela sorri com ar levemente constrangido) Você tá brincando comigo, não?
(Nonato expõe as mãos. Estão sujas de sangue. Imediatamente se ergue e olha para o
guarda-roupas)
NONATO: (Grita) Caralho! Tem um cara morto no guarda-roupas!

Cai o pano.

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