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FORMAÇÃO PROFISSIONAL E INTERDISCIPLINARIDADE NA PRESERVAÇÃO DO

PATRIMÔNIO EDIFICADO

TEXTO DE APRESENTAÇÃO

FORMACIÓN PROFESIONAL E INTERDISCIPLINARIEDAD EN LA PRESERVACIÓN DEL


PATRIMONIO EDIFICADO

PROFESSIONAL QUALIFICATION AND INTERDISCIPLINARITY IN THE PRESERVATION OF


BUILT HERITAGE

A circulação de conceitos e teorias

Manoela Rossinetti Rufinoni


Doutora em Arquitetura e Urbanismo, Professora da Graduação e da Pós-Graduação em História da
Arte da Universidade Federal de São Paulo, rufinoni@unifesp.br
FORMAÇÃO PROFISSIONAL E INTERDISCIPLINARIDADE NA
PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO EDIFICADO
A questão da formação e da qualificação adequadas para os profissionais da preservação e o
apelo à interdisciplinaridade no tratamento de bens culturais são questões que ganharam corpo,
sobretudo, a partir do segundo pós-guerra, em ambiente europeu. A condição urbana e os
debates sociopolíticos do período da reconstrução abriram caminho para a expansão do conceito
de patrimônio cultural, processo intensificado pela emergência de movimentos políticos entre as
décadas de 1950 e 1960, incorporando novas vozes e atores sociais ao cenário patrimonial. Ao
encampar uma diversificada gama de produções culturais como testemunhos a serem
interpretados e preservados: desde objetos do cotidiano; até edifícios de tipologias nunca antes
valorizadas, como as arquiteturas fabris e ferroviárias; além de conjuntos urbanos e centros
históricos inteiros – a prática preservacionista expandiu-se consideravelmente, acentuando a
necessidade de promover relações interdisciplinares, tanto nas fases iniciais de identificação,
investigação e inventário; como nas fases de caráter propositivo e intervencionista, a exemplo de
projetos de musealização, conservação e restauração, em diferentes escalas. Neste cenário, a
contribuição de diversos saberes tornou-se fator indispensável para a apreensão das
especificidades que compõem artefatos tão complexos e dinâmicos.

A colaboração interdisciplinar no tratamento do patrimônio edificado, portanto, é tema em


discussão há várias décadas, tendo sido contemplada, direta ou indiretamente, em diversos
documentos internacionais voltados à preservação de bens culturais. Na Carta de Veneza –
redigida em 1964 e até hoje o principal referencial teórico do Icomos-UNESCO (KÜHL, 2010) –, a
questão da interdisciplinaridade é abordada no artigo 2º: “A conservação e a restauração dos
monumentos constituem uma disciplina que reclama a colaboração de todas as ciências e
técnicas que possam contribuir para o estudo e a salvaguarda do patrimônio monumental”1. Em
documentos posteriores que buscaram complementar pontos específicos da Carta de Veneza, o
tema da interdisciplinaridade é retomado a partir de diferentes abordagens. Com relação ao
patrimônio urbano arquitetônico, a Declaração de Amsterdã, datada de 1975, propõe a integração
entre os estudos da preservação e as iniciativas advindas do planejamento urbano e territorial,
cunhando a chamada “conservação integrada”, método de atuação que conclama a contribuição
interdisciplinar tanto na fase de estudo das preexistências urbanas a serem preservadas; como
nas fases propositiva e executiva, quando se deve buscar um esforço conjunto na elaboração de
projetos que abarquem, concomitantemente, tanto as exigências da preservação do patrimônio,
como aquelas do desenvolvimento urbano e territorial. A Declaração aponta, ainda, para a
necessidade de buscarmos melhores programas de formação e de qualificação profissional,
“flexíveis, multidisciplinares” e que ofereçam “um aprendizado que permita adquirir uma
experiência prática sobre a matéria”2. Na Carta internacional para a salvaguarda de cidades
históricas, a Carta de Washington3, redigida em 1987, apregoa-se, uma vez mais, que “o

1
Carta de Veneza. Carta Internacional sobre Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios. Veneza: Conselho
Internacional dos Monumentos e Sítios (Icomos), 1964. In: CURY, 2000, p.92.
2
Declaração de Amsterdã. Congresso do Patrimônio Arquitetônico Europeu. Amsterdã: Conselho da Europa, 1975. In:
CURY, 2000, p.210.
3
Carta de Washington. Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas. Washington: Conselho
Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), 1986. In: CURY, 2000, p.283.
planejamento da salvaguarda das cidades e bairros históricos deve ser precedido de estudos
multidisciplinares”, compreendendo a análise de dados “arqueológicos, arquitetônicos, técnicos,
sociológicos e econômicos”.

A partir da leitura dos documentos acima citados, podemos considerar que a colaboração
interdisciplinar destacada sugere duas escalas de abordagem: a articulação entre os diferentes
campos profissionais necessários à preservação – Arquitetura, Engenharia, Arqueologia, História,
História da Arte, Sociologia etc. –; e, no caso específico da Arquitetura, a relação de
complementaridade entre as próprias disciplinas e saberes que compõem o escopo desta
profissão: a história da arquitetura e da cidade, o projeto arquitetônico, o planejamento urbano, o
estudo dos sistemas construtivos, a prática de canteiro etc. A atuação interdisciplinar que aqui
buscamos destacar, portanto, pressupõe uma adequada formação profissional em cada área do
conhecimento, apta a promover o diálogo e a articulação, criteriosa e respeitosa, com as demais
especialidades envolvidas na preservação e na restauração.

Entretanto, na atividade prática de tratamento dos bens culturais, a desejada interdisciplinaridade,


nos moldes acima destacados, não tem sido efetivamente alcançada. Os motivos são vários.
Neste colóquio, buscaremos apontar para uma das causas desta dissociação entre campos
disciplinares: a excessiva compartimentação do conhecimento em nossa cultura de formação
acadêmica e profissional, fato observado não apenas na desarticulação entre distintos campos
profissionais, mas também entre os estudos teóricos e a aplicabilidade prática no interior destas
mesmas disciplinas.

No campo da preservação, esta dissociação entre saberes parece descender da velha polaridade
oitocentista entre as tendências conservativa e intervencionista. Segundo Marco Dezzi Bardeschi,
nas primeiras décadas do século XX, disputavam espaço duas vertentes divergentes com relação
à forma de tratamento do patrimônio edificado: de um lado a vertente ligada à cultura técnico-
científica de arquitetos e engenheiros (a exemplo de Gustavo Giovannoni), leitura que privilegiaria
os aspectos documentais da obra, de acordo com os pressupostos do restauro histórico ou
filológico; e, de outro lado, a cultura formalística-iconográfica dos historiadores e críticos de arte
(como Venturi, Toesca ou Salmi), autores de grandes enciclopédias visuais, nas quais os
monumentos eram catalogados por meio das “clássicas imagens ideais e frontais, (..) como
supostos ícones supra-históricos, fixados em seu ano de nascimento e insensíveis aos transcorrer
do tempo” (DEZZI BARDESCHI, 2003, p.87). Esta vertente, por estar associada à conservação de
obras de arte, desconsideraria os acréscimos e poderia tender às restaurações em estilo. Apesar
dos desdobramentos teóricos do segundo pós-guerra, das contribuições do restauro crítico e da
teoria brandiana – discussões que levariam à redação da Carta de Veneza e de diversos
documentos internacionais, conforme citamos –, estudiosos como Arianna Spinosa sugerem a
repercussão dessa mesma polaridade na prática contemporânea de restauração, quando se
privilegia os aspectos histórico-estéticos da obra a restaurar, de um lado; ou os seus dados físico-
materiais, de outro. (SPINOSA, 2011, p. 274).

Entre as décadas de 1980 e 1990, Miarelli Mariani (1988, p.16; 1991, p.136) discorreu sobre as
dificuldades de se trabalhar numa chave interdisciplinar, propondo que o diálogo entre saberes
fosse promovido pela universidade, ou seja, por ações de formação de profissionais e de
construção e difusão do conhecimento. Para o autor, se cada disciplina desenvolver a sua etapa
isoladamente, a “parte que lhe cabe”, sem buscar o entendimento e o contato com os demais
campos de conhecimento envolvidos na preservação; a compreensão e a interpretação da obra a
preservar estarão seriamente comprometidas, assim como o imprescindível vínculo entre a prática
de intervenção e os fundamentos conceituais da restauração.

A partir do exposto, o presente colóquio pretende desenvolver reflexões sobre a formação


profissional e a interdisciplinaridade na preservação do patrimônio edificado – em um contexto de
interlocuções globais, nacionais e locais –, explorando tanto abordagens teóricas sobre o tema
como discussões sobre experiências práticas de formação e qualificação em universidades
brasileiras.

O primeiro trabalho, “Referências teóricas e seus reflexos nas práticas do campo da preservação
do patrimônio arquitetônico”, de Eneida de Almeida, investiga as conexões entre conceitos e
práticas na formação e atuação profissional, ressaltando que as relações entre o ensino, a
pesquisa e a prática na área da conservação e restauro dependem de uma estreita conexão entre
o exercício intelectual e o operacional. Busca, ainda, explorar aproximações críticas entre as
discussões e experiências italianas e a realidade brasileira.

O segundo trabalho, “O ensino no trato dos bens culturais: a experiência italiana e a problemática
brasileira”, de Ana Paula Farah, analisa criticamente as questões envolvidas na formação do
arquiteto para que ele possa atuar de forma consciente e fundamentada na preservação de bens
culturais, apresentando as primeiras discussões e iniciativas práticas voltadas ao ensino e
habilitação de profissionais, na Itália e no Brasil, e as principais dificuldades que ainda
enfrentamos para alcançar uma formação adequada e criteriosa neste setor.

Finalmente, o terceiro trabalho, “Arte e Arquitetura, entre imagem e matéria: a história da arte e a
preservação do patrimônio edificado”, de Manoela Rossinetti Rufinoni, discute a questão da
interdisciplinaridade entre arte e arquitetura na formação dos profissionais que atuarão no campo
da preservação, destacando, de um lado, a importância do conhecimento das teorias e dos
métodos da história da arte para o profissional arquiteto; e de outro, a compreensão do objeto
arquitetônico na formação do historiador da arte.

REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, Eneida de. O ‘construir no construído’ na produção contemporânea: relações entre teoria e
prática. Tese de Doutorado. São Paulo: FAUUSP, 2009.
CURY, Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000.
DEZZI BARDESCHI, Marco. “Conservare, non restaurare”. Hugo, Ruskin, Boito, Dehio e dintorni. Breve
storia e suggerimenti per la conservazione in questo nuovo millenio. Restauro, n.164, pp. 69-108, 2003.
FARAH, Ana Paula. Restauro arquitetônico: a formação do arquiteto-urbanista no Brasil para a preservação
do patrimônio edificado – o caso das escolas do Estado de São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo:
FAUUSP, 2012.
KÜHL, Beatriz Mugayar. Notas sobre a Carta de Veneza. Anais do Museu Paulista, v.18, n.2, jul./dez. 2010.
MIARELLI MARIANI, Gaetano. Qualche pensiero effimero sul restauro dei monumenti architettonici. Storia
Architettura, ano XI, n.1-2, 1988.
________. Su alcune attuali difficoltà del recupero urbano e territoriale. In: Atti del Convegno Nazionale: una
normativa e un centro regionale per il recupero dei centri storici calabresi. Rivista semestrale del
Dipartimento Patrimonio Architettonico e Urbanistico: Storia Cultura e Progetto, anno I, n.1,1991.
RUFINONI, Manoela Rossinetti. Preservação e restauro urbano: intervenções em sítios históricos
industriais. São Paulo: Fap-Unifesp, Edusp, Fapesp, 2013.
SPINOSA, Arianna. Piero Sanpaolesi: contributi alla cultura del restauro del novecento. Firenze: Alinea,
2011.
FORMAÇÃO PROFISSIONAL E INTERDISCIPLINARIDADE NA PRESERVAÇÃO DO
PATRIMÔNIO EDIFICADO

REFERÊNCIAS TEÓRICAS E SEUS REFLEXOS NAS PRÁTICAS DO


CAMPO DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO

REFERENCIAS TEÓRICAS Y SUS REFLEXIONES EN LAS PRÁCTICAS DEL CAMPO DE LA


PRESERVACIÓN DE LO PATRIMONIO ARQUITECTÓNICO

THEORETICAL REFERENCES AND ITS REFLECTIONS ON THE PRACTICES OF THE FIELD


OF THE PRESERVATION OF ARCHITETONIC HERITAGE

A circulação de conceitos e teorias

Eneida de Almeida
Doutora em Arquitetura e Urbanismo, Professora da Graduação e da Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo na Universidade São Judas, eneida.almeida@uol.com.br

Resumo:
O trabalho propõe o estudo da interação entre conceitos fundamentais da preservação do patrimônio
edificado e as práticas de restauração vigentes na atualidade. O relato aborda o desenvolvimento do campo
disciplinar, recorrendo a reconhecidas referências teóricas da área e procurando explorar as articulações
entre as discussões conceituais e as experiências operacionais, a partir da aproximação entre os ambientes
culturais da Itália e do Brasil.
Palavras-chave: Patrimônio arquitetônico, Preservação e restauração, Conceitos e práticas.

Resumen:
El trabajo propone el estudio de la interacción entre conceptos fundamentales de la preservación del
patrimonio edificado y las prácticas de restauración vigentes en la actualidad. El relato aborda el desarrollo
del campo disciplinario, recurriendo a reconocidas referencias teóricas del área y buscando explorar las
articulaciones entre las discusiones conceptuales y las experiencias operativas, desde la aproximación entre
los ambientes culturales de Italia y Brasil.
Palabras-clave: Patrimônio arquitectónico, Preservación y restauración, Conceptos y prácticas.

Abstract:
This work proposes the study of the interaction between fundamental concepts of the preservation of the
built heritage and the current restoration practices. The report deals with the development of the disciplinary
field, using recognized theoretical references of the area and trying to explore the articulations between the
conceptual discussions and the operational experiences, starting from the approximation between cultural
environments of Italy and Brazil.
Keywords: Architectural heritage, Preservation and restoration, Concepts and practices
REFERÊNCIAS TEÓRICAS E SEUS REFLEXOS NAS PRÁTICAS DO
CAMPO DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO

INTRODUÇÃO

Este trabalho se detém na relevância da cultura do restauro na Itália como referência e parâmetro
para o debate internacional com clara repercussão nas discussões do panorama nacional. De
modo geral, considera indispensável ao campo específico do restauro de bens culturais a estreita
correlação entre um consistente preparo teórico e histórico-crítico e um domínio técnico-
construtivo quer dos sistemas construtivos tradicionais, quer das técnicas modernas e atuais. Da
mesma forma, pressupõe um vínculo indissociável entre os princípios teóricos e as práticas de
intervenção, que conecte as diferentes etapas, desde a fase de levantamentos preliminares e
investigações históricas, interligando-a com as de análises de laboratório e com o projeto de
restauro, validando-o ou reformulando-o, conforme o prosseguimento do processo de investigação
e das atividades do canteiro. Toda essa sequência de operações deve ter coerência na
fundamentação teórica, clareza e unidade de métodos.

Para que essas práticas sejam concatenadas umas às outras e se desenvolvam com consistência
e maturidade mostra-se, portanto, desejável que a articulação entre o exercício intelectual e o
operacional esteja presente nas diversas instituições que desempenham alguma função nessa
cadeia de atividades e parcerias, de modo a atuarem com coesão de objetivos e estratégias, ou
ao menos, com disposição ao diálogo e ao intercâmbio de informações, sejam elas instituições de
ensino e pesquisa, organismos públicos de tutela patrimonial, repartições ligadas à legislação e ao
planejamento urbano, empresas de construção civil, especializadas ou não, técnicos e
profissionais liberais, especializados ou não.

O estudo transita por referências teóricas consideradas fundamentais para traçar um relato da
formulação e desenvolvimento dos conceitos na área e de seus desdobramentos nas práticas de
preservação e restauro, tendo a produção italiana como parâmetro de caráter especulativo,
procurando encontrar eventuais pontos de reverberação, ou possíveis descompassos com os
princípios e aplicações mais largamente difundidos no ambiente nacional.

Em que medida a experiência italiana pode ser aproximada àquela desenvolvida no plano
nacional? Não há como negar que entre nós ainda persiste a tendência às reconstruções, como
práticas inevitáveis em função da degradação ou mesmo do grau de descaracterização a que
chegam muitos edifícios depois de um tortuoso percurso de ausência de manutenção ordinária, de
abandono, quando finalmente são submetidos à intervenção. Como superar a ambiguidade entre
restauração e repristinação, quando a necessidade de substituição é incontornável, quando as
lacunas são numerosas a comprometer a integridade e autenticidade do conjunto? Essas são
algumas das questões a serem exploradas neste trabalho como contribuição à reflexão acerca
das relações entre conceitos e práticas.
FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO CAMPO DISCIPLINAR DA CONSERVAÇÃO
DOS BENS CULTURAIS NA ITÁLIA

Na origem da reflexão teórica do campo da preservação dos bens culturais e de seus


desdobramentos em uma prática de restauração, desenvolvidos durante o século XIX, prevalecia
uma clara diferenciação profissional entre quem se dedicava à indispensável pesquisa científica
ligada à prevenção e ao restauro e quem, dotado de habilidade técnico-manual, atuava
diretamente no objeto a ser conservado, sem uma adequada aproximação histórico-crítica e um
específico preparo científico.

Na atualidade, entende-se que as relações entre o ensino, a pesquisa e a prática na área da


conservação e restauro dos bens culturais dependem de uma estreita conexão entre o exercício
intelectual e o operacional, presentes em cada uma dessas três instâncias de atuação,
considerando que a prática se subdivide em três ações essenciais: o projeto de restauro, as
experiências de laboratório e as atividades do canteiro de obras.

O presente estudo atenta à relevância da cultura do restauro na Itália como referência e


parâmetro para o debate internacional com clara repercussão nas discussões do panorama
nacional. Considera a presença de posturas distintas oriundas dos diferentes contextos
acadêmicos, entre os quais, destaca Roma, Napoli, Florença e Milão.

Junto às instituições acadêmicas, ressalta o papel relevante dos institutos artísticos na formação e
na prática profissional, a exemplo do Instituto Central de Restauro de Roma (ICR), fundado em
1939, por Giulio Carlo Argan e Cesare Brandi. Essa instituição inaugura um modelo pioneiro de
entidade pública de pesquisa e experimentação com o objetivo de unificar, no plano nacional, as
metodologias do restauro em obras de arte e em peças arqueológicas, de modo a superar o
tradicional conceito empírico conduzido pela grande parte dos restauradores até aquele momento.
São definidos, nesse contexto, princípios metodológicos claros, condizentes com o preparo
científico, propiciando a inserção do restauro no campo crítico das disciplinas históricas, extraindo-
as do reduto artístico, ligado exclusivamente à habilidade técnico-manual. Outro papel importante
desempenhado por essa instituição é a concepção de que o restauro deveria ser enfrentado como
atividade multidisciplinar que congregasse historiadores e críticos de arte, arqueólogos e
restauradores, tendo o imprescindível suporte de laboratórios científicos.

Se nos institutos artísticos a direção coube a um historiador, crítico, e estudioso de estética do


calibre de Brandi, no meio arquitetônico as atividades de formação e discussão teórica permanece
restrita ao circuito universitário, especialmente desenvolvidas nas faculdades de arquitetura,
graças às contribuições: de Gustavo Giovannoni em Roma, de Roberto Pane em Napoli, de Piero
Sanpaolesi de Florença, de Ambroggio Annoni em Milão, ou seja, submetidas à batuta de
arquitetos projetistas, se bem que atuantes, de modo igualmente respeitado, como historiadores,
críticos e teóricos de arquitetura (CARBONARA, 2011, p. 1).

A propósito da atuação profissional no ambiente italiano, Marco Dezzi Bardeschi assinala a


presença de duas vertentes representadas, de um lado, por Piero Sanpaolesi (1904-1980); de
outro, por Renato Bonelli (1911-2004), cuja origem remonta aos anos 1930, período da
formulação da Carta de Atenas: uma ligada à cultura técnico-científica dos arquitetos-engenheiros
e outra ligada à cultura formalista-iconográfica dos historiadores e críticos da arte (SPINOSA,
2005, p. 274).
Seria pertinente considerar essa cisão que, de um lado, prioriza os aspectos histórico-estéticos, e,
de outro, aspectos da relação matéria-estrutura, como uma das raízes do problema a ser
enfrentado ao discutir a formação? Seria válido indagar em que medida essa divisão se reflete na
práxis operativa?

Parte-se da premissa de que é indispensável ao campo específico do restauro de bens culturais


conciliar um consistente preparo teórico e histórico-crítico com um domínio técnico-construtivo,
que abarque tanto os sistemas construtivos tradicionais, quanto as técnicas modernas. Segundo
Renato Bonelli (1995), a cultura do restauro deve estar submetida a uma constante reavaliação
das ideias e das experiências de conservação nos diversos setores da produção artística,
interligando princípios e procedimentos de intervenção, com o objetivo de fortalecer a coerência
da reflexão produzida ao longo do tempo e cotejá-la com o núcleo central do problema posto à
origem dessa produção intelectual: “a imanência do criticismo sobre a historicidade da cultura
artística moderna, solicitada a perseguir o fim primário da compreensão do objeto, entendido seja
como memória de um tempo reencontrado, seja como reconquista de uma forma autêntica e
significante” (BONELLI, 1995, p.69).

É igualmente fundamental reforçar a necessidade de interlocução com outras áreas do


conhecimento envolvidas nas diferentes fases da investigação e da prática profissional: a título de
exemplo, pode ser mencionada a pesquisa histórica, documental e arquivística que antecede
qualquer intervenção em bem cultural; a avaliação de desempenho de materiais e das condições
de estabilidade e segurança de componentes da estrutura de edificação; as prospecções e
análises técnico-laboratoriais de materiais e componentes construtivos; o levantamento e
avaliação de lesões e patologias, a elaboração de diagnósticos, a identificação das causas, o
mapeamento de danos, a definição dos tratamentos adequados e dos procedimentos técnicos
indicados para a conservação e restauro.

A discussão amplia-se ao considerar que os princípios gerais devem compreender de modo


coerente e coeso o universo da produção artística, sem discrepâncias entre o restauro
arquitetônico, o de pinturas e de esculturas, de forma a constituir um campo globalmente unitário
para as artes visuais.

A cultura histórico-conservativa, segundo Bonelli, expressa, ao longo de mais de dois séculos de


reflexão, alguns conceitos recorrentes que aproximam arquitetura, pintura e escultura,
parcialmente reelaborados nos diversos momentos históricos, “sem que a sucessão dessas fases
constitua um verdadeiro processo histórico desenvolvido segundo uma linha de progressivo e
lógico amadurecimento”. O autor afirma que esse enfoque prevalece desde o final do século XVIII,
reconhecendo a historicidade e a artisticidade do bem cultural ora na unidade estilística, ora na
poética que emana da obra de arte, ora no palimpsesto, ora no valor documental transmitido. Esse
desenvolvimento evidencia a fragilidade “de uma adequada compreensão da atividade artística,
alterando ou corrompendo o processo histórico-crítico com a intrusão de elementos estranhos ou
secundários, elevados de maneira imprópria à condição de fundamentais e determinantes”
(BONELLI, 1995, p. 69).

Para Bonelli, entre todas as posições teóricas, a que se mantém coerente com a estrutura lógica
do sistema e que parece depreender a herança intelectual e histórica, é aquela do restauro crítico,
apresentada com base na dialética brandiana das duas instâncias: história e arte. Essa
compreensão, segundo Bonelli, “reconduz o restauro – processo crítico em ato – aos dois
momentos essenciais da presença histórica e do valor formal – memória e forma – que delimitam
criticamente o campo do procedimento mental e da intervenção operativa” (Id., p.69).

Com relação aos aspectos técnicos, Bonelli chama a atenção para as intervenções de
consolidação das estruturas na medida em que, com frequência, são feitas de modo descuidado,
adotando soluções, por vezes, rudimentares, que comprometem a integridade da estrutura
preexistente. Tal concepção tecnicista do restauro estático, afirma Bonelli, considera a
consolidação de modo abstrato, como operação distinta e separável do restauro arquitetônico em
sentido estrito, determinando uma fratura grave a ser superada, no sentido de recompor
conceitualmente a unidade e a organicidade da intervenção. Para se obter esse resultado, é
necessário retomar o conceito da obra arquitetônica entendida como especial unidade, na qual
cada componente mental e física constitui uma presença histórica traduzida na forma figurada.

TENDÊNCIAS ATUAIS NA ITÁLIA: RELAÇÃO ENTRE CONCEITOS E PRÁTICAS

A posição de Renato Bonelli, em discordância com um excessivo tecnicismo, vai de encontro às


colocações de Giovanni Carbonara (2000)1 ao indicar ressalvas aos procedimentos que reduzem
“a fase de conhecimento à simples interrogação analítica, instrumental e com técnicas de
laboratório da edificação, negligenciando a aproximação direta e imediata do levantamento
arquitetônico”. Esse apoio incondicional a soluções “totalmente científicas”, aparentemente
objetivas, muitas vezes, podem ser explicados pela inexperiência ou limitação analítico-crítica. A
condição mais favorável para uma intervenção de qualidade é que o arquiteto restaurador possua
conhecimentos humanísticos tão sólidos quanto suas competências técnico-científicas, e que
esses instrumentos possam ser confrontados com o contato direto com a obra, de modo a
coordenar e mediar o aporte de cada especialista e conduzir investigações científicas com
propósitos bem específicos (CARBONARA, 2000, p. 536). Especialmente porque a relação entre
história, ciência e técnica no restauro, incluindo as decisões referentes às consolidações
estruturais, aos equipamentos em geral, de climatização, segurança e comunicação, não podem
ser consideradas como variáveis independentes, ainda que isso se verifique com frequência na
prática.

Ao comentar o papel da crítica, Carbonara alerta para o fato que as revistas de arquitetura mais
difundidas no exterior nem sempre aprofundam as matérias relacionadas ao tema da restauração,
enfatizando o enfoque predominante: “muito do que se mostra como restauro, aproximado
frequentemente ao nome de grandes profissionais, não é de fato tal, mas um conjunto de
operações realizadas com fins econômicos e comerciais, senão especulativos, ou ao máximo de
boa recuperação2”.

1
In: Secondo Supplemento della Enciclopedia Universale dell’Arte, Novara, 2000. Critica, estetica, metodologia e
conservazione: le tendenze attuali del restauro in architettura – tavv. 156-157, pp. 533-541. Disponível em
<http://www.webalice.it/maurizio.berti1/bertirestauro/03restaurmanut1/indirizzirestauro.html>. Acesso em 07/06/2017. O
autor ocupa-se da análise das tendências que se apresentam a partir do último quarto do século XX, cotejando-as com
o desenvolvimento da reflexão amadurecida no campo da conservação dos bens culturais.
2
As recuperações, segundo a compreensão de G. Carbonara presente nesse escrito, correspondem a intervenções
“nas quais prevalecem interesses econômicos e sociais, não culturais”, colocando a reutilização como finalidade da
intervenção. O autor observa que se afirmam como procedimentos dirigidos a reaver algo que se tinha perdido,
associados a fortes conotações políticas e a reivindicações sociais, geralmente empregados como contraposição a
Indica o autor que as três tendências principais a dominar o debate reiteram o aprofundamento de
procedimentos investigativos e metodológicos que se desenvolveram no âmbito disciplinar, são
elas: a “pura conservação”, ou “conservação integral”; a “manutenção-repristinação” ou
“hipermanutenção”; a “crítico-conservativa”.

A conservação integral baseia-se no interesse renovado pela pesquisa filológica e pelo respeito à
obra em sua totalidade, no mais diminuto aspecto documental. Nessa perspectiva, investe contra
qualquer formulação crítica que pretenda interpretar ou revelar valores estéticos da preexistência,
e declara que até mesmo a superfície dos edifícios evidencia as suas mutações, a sua história, e,
portanto, deve ser considerada por seu valor de documento “irrepetível”. Para Marco Dezzi-
Bardeschi, o principal postulante dessa vertente, uma nova intervenção se legitima depois de
assegurada de modo absoluto a conservação do bem cultural, pois considerar exclusivamente a
conservação, especialmente para os edifícios gravemente danificados, implicaria abdicar da
possibilidade de restituir ao objeto de intervenção sua plena identidade, ou seja, sua capacidade
de viver de modo completo no presente e no futuro.

A segunda postura, a “manutenção-repristinação”, tendo Paolo Marconi entre os principais


defensores, propõe a intervenção basicamente por meio de operações de manutenção ou
reintegrações, sejam essas ordinárias ou extraordinárias, retomando-se as técnicas tradicionais
com o propósito de eliminar o aspecto fragmentário das obras do passado que persistiram até
nossos dias. Segundo esses parâmetros, a superfície do edifício, à semelhança da epiderme dos
organismos vivos, deve ser considerada uma ‘superfície de sacrifício’, destinada a se renovar
ciclicamente.

A terceira tendência, a crítico-conservativa, com a qual se posiciona Giovanni Carbonara,


comparece como uma superação das posturas anteriores nitidamente contrastantes, com base na
compreensão de que a intervenção não pode ser enquadrada em categorias preestabelecidas,
mas que deve ser apropriada a cada caso, apoiada nos valores de memória, de imagem, de
documentação técnica, de forma a “interrogar com viva consciência histórica a obra, na sua
natureza figurativa e material, nos problemas de degradação e conservação que manifesta, para
que essa mesma responda sugerindo o caminho a seguir na específica contingência” (Id., p. 535.
Tradução da autora).

O posicionamento do restauro crítico-conservativo coloca-se como uma variante mais contida do


restauro crítico-criativo proposto por Renato Bonelli nos anos 1940-50, registrado no verbete
‘restauro’ da Enciclopedia Universal dell’Arte (1963). Pontua as motivações dessa conduta que,
nos anos 1960, por influência da corrente de pensamento conhecida como nouvelle histoire, tende
a ampliar a atenção às expressões de ‘cultura material’, ou seja, aos ‘testemunhos materiais
portadores de valores de civilização’, um alargamento dos interesses de tutela, para além das
tradicionais ‘obras de arte’.

Nessa perspectiva, explica Carbonara, o restauro caracteriza-se por um dúplice papel, de um lado
“conservativo”, de outro “revelativo”, no sentido de “facilitar a leitura” dos testemunhos de história
e de arte. Dessa visão, descende a definição de Paul Philippot de “restauro como hipótese crítica
não expressa verbalmente, mas concretizada em ato”, com todos os problemas ligados à remoção

‘restauro’, como se os bens mais modestos e os tecidos urbanos requeressem, ao contrário dos grandes monumentos,
uma forma de intervenção simplificada e menos rigorosa (CARBONARA, 2000, p. 534. Tradução da autora).
de acréscimos e à reintegração de lacunas, ou ao controle dos êxitos formais da criatividade
exercida. “Tal valor de hipótese e não de dogmática certeza”, evidencia Carbonara, torna claro o
sentido dos critérios de orientação amplamente aceitos: a distinguibilidade, a mínima intervenção
e o respeito à autenticidade (Id., p. 533).

É nesse contexto que insere a problemática da aproximação entre os termos “restauro” e


“modificação”, este último admitido como “lícita modificação”, não como a uma alteração arbitrária,
ao contrário, a uma ação consciente e criticamente controlada, dotada de uma conotação positiva,
em oposição à degradação e à própria descaracterização do bem submetido à intervenção.

Essa discussão chama a atenção para um aspecto que tende a ser ignorado na atualidade tanto
pela reflexão teórica, quanto pela prática da restauração, ou seja, a restauração com intervenção
que extrapola a simples e pura conservação da preexistência para admitir um papel de “revelação”
ou de “facilitação da leitura” do objeto de intervenção, já reconhecida por Paul Philippot
(CARBONARA, 2011, p. 393).

Adverte Carbonara que, embora não explicitamente mencionado, esse tema persiste nas duas
tendências atuais: para os restauradores alinhados com a vertente ‘manutenção-repristinação’, a
intervenção criativa se coloca como reconstituição em chave retrospectiva, ou “tardo-estilística”,
enquanto que para aqueles que se posicionam pela ‘pura conservação’, ainda que se negue
verbalmente, o ‘dado novo’ é reintroduzido de modo velado, por meio do recurso da separação
entre o ‘momento conservativo’ e aquele ‘inovativo’, entendido como ‘livre e moderno projeto do
novo’, lícito, segundo seus propositores, por não subtrair matéria, mas unicamente, acrescentá-la,
como um novo estrato que se adiciona ao material histórico.

O autor enfatiza que são imprescindíveis para o bom êxito da restauração, ao menos dois fatores:

(...) o justo tempo concedido ao estudo e às análises preliminares, ao projeto e ao


desenvolvimento do canteiro; a contratação da sucessão de estudo histórico,
projeto e direção de trabalhos à mesma pessoa ou ao mesmo grupo de pessoas,
tratando-se de um ato continuado e coerente de avaliação crítica e de uma
‘projetação permanente’ também no curso da obra, que não tolera artificiosas
divisões de responsabilidade (CARBONARA, 2000, p. 535. Tradução da autora).

Essa questão representa uma das fragilidades mais recorrentes no panorama brasileiro,
especialmente nos processos que envolvem obras de requalificação e reutilização, em que, na
maioria dos casos, há pelo menos duas equipes trabalhando concomitantemente, mas de forma
praticamente independente: uma dedicada à conservação e restauro da materialidade
preexistente e outra envolvida com o projeto do novo. Também frequentes são os relatos de
conflitos de interesses e posicionamentos contrários entre os técnicos dos organismos públicos de
preservação e os profissionais da área de projeto, que se dizem tolhidos nas possibilidades de
proposição, em virtude de limitações que lhe são indevidamente impostas. Trata-se do clássico
embate conservação/projeto, dificilmente solucionado se as premissas de intervenção não
amplamente discutidas e, por fim, compartilhadas entre os vários profissionais envolvidos.

No que se refere à formação e exercício profissional, Carbonara reconhece algumas falhas


existentes no próprio âmbito dos organismos públicos de tutela dos bens culturais, que não se
sentem aptos para elevar o nível de solicitação de conhecimento histórico-crítico dos
monumentos, temendo que não sejam acompanhados pelos profissionais que operam no campo,
dotados geralmente de uma preparação absolutamente genérica e insuficiente (Id., p. 547). A
situação se agrava, aponta o autor, pelo fato de que, ao ampliar as oportunidades de trabalho,
voltaram-se às práticas de restauro, empresas e profissionais antes ligados à experiência da
construção civil mais corriqueira.

Recorre, por fim, à unidade do ‘fazer restauro arquitetônico’ com o ‘fazer arquitetura’ tout-court, na
medida em que tanto o restauro quanto o projeto arquitetônico representam a prefiguração de
resultados funcionais, técnicos e estéticos que se pretende atingir por meio de um desempenho
profissional específico próprio do arquiteto especializado nessa matéria. É inegável, segundo o
parecer de Carbonara, que o restauro tem uma estreita ligação com o instrumento e a
metodologia do projeto pelas mesmas modalidades de formação, pela exigência de resolução
estética, pelo controle e definição das combinações espaciais, linguísticas e ornamentais, do
conjunto e do detalhe, pela natural continuidade entre o projeto e o canteiro. A seguir conclui,
separar a conservação da atuação no campo do projeto, como se propôs nas recentes propostas
de reforma universitária, seria danoso aos dois lados, o do antigo e do novo, causaria o
empobrecimento da própria disciplina arquitetônica.

Nas premissas de seu livro Architettura d’oggi e restauro (2011), ao examinar como se manifesta
a cultura arquitetônica contemporânea no enfrentamento das relações entre as novas
intervenções e as preexistências de interesse patrimonial, tema atual que reverbera no campo
específico da conservação e do restauro, Carbonara observa que, em um contexto de profundas
diversidades de pontos de vista, vigora a postura de se circunscrever a decisão de projeto
exclusivamente ao arbítrio do autor, ignorando que se trate de um desempenho profissional
especializado, expresso mediante um juízo crítico rigorosamente circunstanciado, com clareza de
princípios e coerência de métodos.

A esse respeito, Mario Dalla Costa sustenta que

(...) nem todos aqueles que exercem papel de crítico na cultura arquitetônica
contemporânea são propensos a atuar na tutela dos bens culturais e dos valores
arquitetônico-ambientais, exercitando uma adversa influência no confronto dos
estudos e da profissão do restauro, subestimando toda distinção entre as
diversidades projetuais do novo com respeito às da intervenção sobre o construído
(DALLA COSTA, 2005, p.92)

Admite Dalla Costa que, em parte, essa posição pode ser atribuída ao dissenso em relação às
exigências teóricas e operativas do restauro, o que dificulta a compreensão do significado de
síntese do restauro – e as atividades afins, como a reabilitação, a requalificação, ou a reutilização
–, enquanto maturação crítica dos aspectos históricos e técnicos, e que necessariamente
condicionam as decisões compatíveis, ligadas ao conhecimento e à atribuição de valores à
preexistência de interesse cultural.

Segundo a visão de Carbonara, os posicionamentos conservacionistas, criados na passagem do


século XIX para o XX e consolidados nas décadas seguintes, apresentam-se hoje muito mais
como “uma cenografia de parada, bem-culturalista”, atrás da qual os mais inescrupulosos
interesses econômicos e políticos corroem convicções em favor da integridade e autenticidade
dos bens culturais urbanos.
Para contrapor-se a essa tendência, melhor seria, finaliza Carbonara, confiar “nos novos
percursos abertos pela arquitetura contemporânea, tornando-a capaz de confrontar-se e dialogar
com o antigo, em suas mais variadas expressões, como demonstra a produção arquitetônica de
arquitetos muito diferentes entre si, como Paolo Portoghesi, Aldo Rossi e Francesco Venezia”
(CARBONARA, 2000, p. 541).

REFLEXOS DAS DISCUSSÕES TEÓRICAS DO AMBIENTE ITALIANO E EUROPEU


NAS PRÁTICAS DO CENÁRIO NACIONAL

Um artigo de Paulo Ormindo de Azevedo na revista RUA, (jul./dez. 2003), do Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, expõe seu posicionamento em favor da postura
crítico-conservativa, apresentando uma sucinta retrospectiva das principais posturas adotadas no
campo da conservação dos bens culturais, no panorama cultural brasileiro, a partir dos anos 1940,
com a criação do SPHAN3, em diálogo com as discussões do cenário internacional. Embora
Azevedo não se detenha nos critérios adotados nessa fase inicial, assinala que esse tema foi
bastante explorado em fontes bem conceituadas, como: Antônio Arantes, Vera Millet e Maria
Cecília Fonseca.

A esse respeito, Fonseca relembra que a participação do Estado nas questões de proteção dos
patrimônios históricos brasileiros foi iniciada em 1936, quando se solicitou a Mario de Andrade a
elaboração de um anteprojeto, que serviu como base para que Rodrigo Melo Franco de Andrade
preparasse o texto do Decreto-Lei nº 25 (1937), criando o SPHAN, como órgão federal
responsável pela tutela dos bens culturais de valores históricos e artísticos, como também os
etnográficos e paisagísticos. Como uma das primeiras determinações, estabeleceu-se o critério de
seleção do patrimônio histórico ancorado em atributos que refletissem as principais etapas de
formação social do Brasil. Desse modo, as manifestações barrocas passaram a ser consideradas
como referência singular da origem da tradição cultural brasileira.

Andrade (1993) associa a institucionalização do patrimônio histórico brasileiro, sob a égide do


Serviço do Patrimônio Histórico Nacional (SPHAN), com a instauração do Estado Novo. Assim
como Fonseca, enfatiza o modelo político alicerçado na afirmação de uma identidade nacional.
Destaca ainda a busca por integrar as raízes culturais históricas aos processos de modernização,
promovidos por Getúlio Vargas. Identifica que naquele momento procurava-se, pela primeira vez,
uma interpretação afirmativa da herança cultural do período colonial, ou seja, referências
simbólicas do passado que pudessem assegurar aos cidadãos, matrizes positivas de
pertencimento e enraizamento.

Relacionado a esse momento, Paul Meurs4 reconhece a descoberta de uma herança cultural
brasileira realizada não propriamente por historiadores e arqueólogos, mas por escritores,

3
Em 10 de Maio de 1938, foi realizada a sessão inaugural do Conselho Consultivo do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional no gabinete do MES, momento em que Rodrigo Melo Franco de Andrade, diretor do SPHAN, foi
nomeado pelo ministro Gustavo Capanema presidente do Conselho Consultivo. A função do Conselho, até os dias
atuais, é examinar e decidir sobre questões relacionadas à proteção do patrimônio.
4
O texto de Paul Meurs, “Modernismo e tradição. Preservação no Brasil”, foi escrito em 1995 e reunido na antologia de
textos críticos intitulada Textos fundamentais sobre história da arquitetura moderna brasileira – parte 2, organizada por
Abílio Guerra, lançada em 2010.
arquitetos e artistas plásticos alinhados com o movimento moderno. Indica que a interação entre a
preservação histórica e o ideário da vanguarda tenha contribuído para que a arquitetura moderna
concebida naquele contexto apresentasse um caráter identitário muito peculiar, tornando-se
“irrefutavelmente brasileira” (MEURS, 2010, p. 71).

Voltando ao texto de Azevedo, o autor destaca que a partir dos anos 1960, com o desafio da
urbanização acelerada, “os serviços de proteção ao patrimônio se voltam, prioritariamente, para a
preservação de grandes setores urbanos deteriorados e sítios naturais ameaçados”. Menciona os
principais encontros e documentos produzidos nesses eventos, tais como, Compromisso de
Brasília (1970), o de Salvador (1972), a Carta de Pelotas do ICOMOS-BR (1987). Elenca as
intervenções da Matriz de Olinda, do Paço Imperial do Rio de Janeiro, do Mercado Modelo de
Salvador, da Pinacoteca do Estado de São Paulo, da Estação Júlio Prestes, entre as mais
comentadas. Ainda que se observe, à primeira vista, não haver unidade de critérios nesse
conjunto de intervenções, o autor lamenta a dificuldade de conhecer em detalhes as ações, pelo
fato de serem escassas as publicações interessadas em incentivar a criação de um arcabouço
crítico sobre a prática da conservação e de intervenções afins no Brasil.

Ao comentar sobre a prática mais recente da restauração na América Latina, Azevedo identifica
três tendências principais.

A primeira, de caráter museificante, procura congelar o edifício com o auxílio


das novas técnicas de consolidação estrutura. São intervenções que procuram
conservar o edifício como um objeto de arte do passado, integrado à sua função
primitiva ou a usos passivos, como memorial, museu, biblioteca. É uma tendência
que privilegia o valor documental (...) em detrimento, na maioria dos casos, de
suas potencialidades como obra de arte.

A segunda procura integrar o monumento na vida contemporânea,


flexibilizando seus usos e intervenções, introduzindo novos serviços e funções,
para torná-lo viável e autossustentável. Essa tendência, sem negar o caráter
documental do edifício, lhe atribui uma função contemporânea, isto é, reconhece
não apenas o seu valor como testemunho da história e das artes passadas, mas
como arte e arquitetura vigentes. Inspirada, diretamente ou indiretamente em Alois
Riegl, essa linha de ação procura conciliar a oposição entre as duas categorias de
valores: uns ditos de “rememoração”, relacionados com o passado, e outros ditos
de “contemporaneidade”, relativos ao presente.

A terceira linha, de caráter modernizante, tende a criar uma composição nova


em que o antigo entre nesse conjunto não necessariamente por seu valor histórico
ou estético, senão pelo exotismo e função de contraponto valorativo do moderno,
como acontece na maioria das cidades contemporâneas, onde edifícios industriais
são preservados em meio a uma clareira aberta na floresta de espigões ou, em
alguns casos, usados apenas como portadas ou saguões de arranha-céus, na
linha do “fachadismo” norte-americano (AZEVEDO, 2003, p. 22. O grifo é nosso).

O autor identifica que cada uma dessas vertentes está associada a uma concepção de patrimônio:
a primeira dirigida anacronicamente ao passado, a segunda pautada pelo presente e a terceira
apontada prevalentemente ao futuro. A seguir, indica inadequações de postura associadas, de um
lado, à valorização crescente da “tecnificação”, em detrimento do debate crítico sobre objetivos e
critérios da intervenção; de outro, à burocratização e especialização profissional que acentua
divergências, ao invés de propiciar entendimentos com base em princípios gerais que poderiam
ser detalhados no enfrentamento dos casos específicos.

Beatriz Kühl, ao discutir a respeito da preservação e dos critérios de restauração difundidos no


Brasil nota que, embora no plano administrativo e legal tenha se consolidado um quadro
suficientemente abrangente da tutela dos bens culturais por ação dos órgãos públicos das
diferentes esferas nacional, estadual e municipal, persistem dificuldades de se colocar em prática
esse aparato teórico e legal. Sinaliza entre os principais entraves a falta de agilidade dessas
entidades, a escassez de recursos financeiros e humanos, a coincidência e sobreposição de
atribuições dos órgãos municipais e estaduais em relação ao IPHAN, tanto na identificação dos
bens a serem conservados, como na autorização e na fiscalização das intervenções, sem, no
entanto, haver uma centralização das informações (KÜHL, 2008, pp. 111-115).

Kühl aponta que os critérios de intervenção, assim como a qualidade da execução das obras
sofrem grandes variações, mesmo quando estão sob a responsabilidade do Estado e dos órgãos
de preservação, pois muitas vezes os projetos e a execução ficam a cargo de profissionais e
empresas que não tem a formação, nem a experiência consolidada no campo específico da
restauração. Se isso ocorre para obras públicas, nas obras pertencentes a particulares os
descompassos são ainda maiores.

Um problema bastante comum, no âmbito da administração pública, é, segundo a autora, a


discrepância de critérios na elaboração dos pareceres técnicos, ou mesmo a sua não aceitação
nas instâncias dos conselhos deliberativos dos órgãos, por estarem esses conselhos
frequentemente sujeitos a vários tipos de pressões de setores políticos ou imobiliários, estranhos
aos interesses de preservação.

Não obstante os órgãos de tutela do patrimônio cultural tenham sido criados há várias décadas, a
autora lamenta não ter se consolidado uma ampla formação de profissionais altamente
qualificados para atuar nessa área. De modo equivalente, são praticamente inexistentes empresas
verdadeiramente qualificadas e dotadas de mão-de-obra com preparo adequado. Em grande
medida as dificuldades são resultado de um círculo vicioso que articula uma tímida reflexão crítica
a uma insuficiente formação de quadros profissionais dedicados seja ao projeto que à execução
das obras, o que influi tanto na falta de robustez conceitual, quanto na escassez de instrumentos
apropriados para atuar nas intervenções.

Nesse sentido, Beatriz Kühl tece uma comparação com o ambiente francês, encontrando algumas
semelhanças, como:

uma reflexão aprofundada sobre alguns aspectos da preservação vinculados à


historiografia, sociologia, antropologia, ao papel da memória nesses campos e
para a sociedade, que não encontra contrapartida proporcional na reflexão sobre
os princípios teóricos que deveriam guiar as atuações práticas, lembrando-se,
porém, que a legislação e a práxis na França é muito mais estruturada e coerente
do que aquilo que se verifica no ambiente brasileiro (KÜHL, 2008, p. 113).

Ao analisar a prática, Kühl avalia que se tenha passado de uma “fase repristinatória” a uma fase
de alinhamento com o restauro crítico – em que se contemporizam os aspectos documentais e
formais da obra submetida à intervenção –, “sem atravessar, como no ambiente italiano que
incubou o restauro crítico, por uma fase verdadeiramente ‘filológica’, ou seja, de atenção
primordial aos aspectos documentais” (Id., p. 114), como ocorreu na Itália. Assinala a autora que a
‘não-compreensão’ dos bens culturais como documentos históricos conduz a arbítrios e danos
irreparáveis. Isso pode ser evitado somente se as alterações ou apagamentos forem feitos de
modo cauteloso e fundamentado, sem descaracterizar ou destruir os testemunhos documentais
considerados dignos de preservação.

Segundo a autora, embora as discussões acerca das cartas patrimoniais internacionais tenham se
difundido e ampliado no país, a assimilação dos princípios básicos não teve desdobramentos
efetivos na prática, não resultando, portanto, na consciência de se preservar os artefatos em sua
complexa estratificação, considerando que apenas o registro gráfico ou escrito possa ser
suficiente. Conclui reiterando o caráter multidisciplinar da restauração, contrariamente à somatória
de competências independentes, e conclama para a elaboração de uma carta patrimonial
nacional, que possa desencadear uma discussão de princípios e práticas atinentes ao ambiente
cultural brasileiro atual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As primeiras formulações teóricas e as práticas de conservação ganham expressão em um


cenário cultural movido por rápidas e profundas mudanças, como um necessário compromisso
para evitar perdas irreparáveis na transmissão da herança cultural do passado às futuras
gerações, através de um processo construído sobre bases culturais. Em outras palavras, vale
ressaltar que o interesse pela preservação da arquitetura não nasce de um fenômeno natural,
nem corresponde a um simples capricho momentâneo, tampouco se apresenta como um efêmero
modismo.

É oportuno, entretanto, relembrar que a noção moderna de restauro, ratificada pela concepção
brandiana, formulada nos anos 1960, ao contrário do que pode inferir uma primeira aproximação
ao tema, admite que o interesse de preservação, atrelado à ideia de restauro, surge não
propriamente como forma de estabelecer uma continuidade com o passado, mas decorre
justamente da percepção de uma nítida separação entre passado e presente propiciada pela
investigação da história, isto é, pela atitude crítica do indivíduo frente a seu passado. É da ruptura
com a tradição e com o fluxo ininterrupto do tempo, portanto, que se configura também a
interrupção de uma prática comum de apropriação das obras herdadas do passado para adaptá-
las sem restrições às necessidades do presente.

Vale destacar que as tendências atuais do campo do restauro compartilham de uma premissa
básica: os bens legados do passado requerem uma aproximação de cunho cultural que deve
prevalecer em relação às exigências práticas e às questões de ordem econômica. As ações
voltadas à preservação dos bens culturais entendidos como patrimônio a se deixar enquanto
herança cultural para as gerações futuras envolvem um leque muito amplo que compreende:
registros, levantamentos, inventários, medidas de manutenção e conservação (que, a rigor,
retardam ou evitam intervenções mais invasivas). Incluem ainda a própria reflexão teórica, as
providências legais, as políticas públicas e as atividades de educação patrimonial.
Como bem expressa Carbonara, a atenção analítica consente observar os antigos testemunhos
não só como expressão artística ou documentos relacionados ao gosto da época, mas genuínos
documentos históricos, artefatos ricos de informação, portadores de conhecimento técnico e
científico. Essa conduta exige do arquiteto um aprofundado conhecimento humanístico, mas
também competências técnicas e científicas, que devem ser acompanhadas do contato direto e
frequente com os monumentos, que lhe dê a capacidade de operar e mediar as contribuições dos
diversos especialistas. Nesse sentido, é conveniente que a discussão crítica seja conduzida por
uma equipe, por discussões coletivas, para que as soluções delas decorrentes apoiem-se em
decisões colegiadas e não em um único profissional.

Uma das questões fundamentais que se colocam é a reclamação por uma necessária dimensão
de projeto – de inevitável transformação – incorporada à ação de restauro, desde que não conflite
com a premissa de conservação. É a proposição de equilíbrio contida na postura de conciliação
entre permanência e transformação.

Como adverte Beatriz Kühl, apesar de a reflexão sistemática no campo disciplinar do restauro
existir há pelo menos dois séculos, observa-se mesmo na Itália, mas com maior intensidade no
Brasil, que grande parte das intervenções atuais nos bens de valor patrimonial não considera os
preceitos consolidados ao longo dessa experiência. Não raras vezes, prevalece o desrespeito ao
bem que se declara querer preservar. Parece plausível atribuir a recorrência dessa conduta
exatamente ao fato de que persiste uma visão pragmática que enfatiza os aspectos técnicos e
funcionais da intervenção sobre preexistências de interesse histórico-cultural, destituindo-as de
seu caráter histórico-crítico.

Um dos possíveis aspectos a se levantar, à luz das reflexões do campo do restauro, ao se


analisar os procedimentos mais comuns da prática corriqueira no Brasil, refere-se justamente ao
questionamento acerca da reconstituição de estruturas preexistentes, expresso desde a Carta de
Restauro de 1931, referendada pela Carta de Veneza (1964) e pela acepção do restauro crítico-
conservativo, em que se priorizam as ações de conservação e manutenção, refutando-se, de
consequência, as “reconstituições integrais”. Sendo assim, as resoluções dos documentos
recomendam o respeito à autenticidade dos elementos originais e a diferenciação dos acréscimos
introduzidos para completar partes ou lacunas.

Mais do que respostas seguras, este trabalho repropõe algumas interrogações. Em casos como
esse seria oportuno admitir a reconstrução com o propósito didático de se fazer conhecer as
características do conjunto arquitetônico originário? Como proceder quando os vestígios
remanescentes não passam de resíduos descaracterizados?

Decerto seria adequado indicar que entre os prováveis motivos do descompasso entre a
manifestação dos princípios e a própria experiência, no âmbito nacional, esteja a frequente
descaracterização ligada às contínuas modificações a que foram submetidos no transcorrer do
tempo, assim como à falta de conservação dos monumentos, antes de serem submetidos à
intervenção. Não é possível, entretanto, admitir nos dias de hoje que negligenciar a conservação
continue a ser a justificativa sempre apresentada para as ações de reconstrução ex-novo.

REFERÊNCIAS
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São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP, Tese de Doutorado, 2010.

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Dalla Costa, Mario e Giovanni Carbonara. Memoria e restauro dell’architettura.Saggio in honore di Salvatore
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Fonseca, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em Processo: trajetória da política federal de preservação no
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Kühl, Beatriz M. Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização: problemas teóricos de


restauração. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008.

Spinosa, Arianna. Piero Sanpaolesi: contributi alla cultura del restauro del novecento. Firenze: Alinea, 2011.
FORMAÇÃO PROFISSIONAL E INTERDISCIPLINARIDADE NA PRESERVAÇÃO DO
PATRIMÔNIO EDIFICADO

O ENSINO NOS TRATOS DOS BENS CULTURAIS: A EXPERIÊNCIA


ITALIANA E A PROBLEMÁTICA BRASILEIRA

LA ENSEÑANZA EN EL TRATO DE LOS BIENES CULTURALES: LA EXPERIENCIA ITALIANA Y


LA PROBLEMÁTICA BRASILEÑA

THE TEACHING IN THE TREATMENT OF CULTURAL PROPERTIES: THE ITALIAN


EXPERIENCE AND THE BRAZILIAN PROBLEMS

A circulação de conceitos e teorias

Ana Paula Farah


Doutora em Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP), Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, ana.farah@puc-campinas.edu.br

Resumo:
A presente comunicação visa abordar a formação do arquiteto-urbanista para atuar no patrimônio construído
e em construções de interesse para preservação, legitimando a importância do arquiteto como o profissional
responsável pela elaboração do projeto de restauro arquitetônico e enfatizando que, este mesmo
profissional, tenha base adequada e o conteúdo suficiente no âmbito de sua formação acadêmica, pois a
consequência da falta do ensino tem tido por resultado a deturpação ou destruição de documentos
históricos que são a base para memória coletiva, afetando assim a transmissão do legado das gerações
passadas para as gerações futuras. Serão expostos os pensamentos dos principais teóricos do território
italiano, ambiente com larga tradição de discussões relacionadas ao campo disciplinar do restauro, por ter
sido o primeiro país a criar a disciplina de Restauro dos Monumentos no âmbito da formação do arquiteto e
pelo fato de o pensamento oriundo desse ambiente fundamentar os documentos internacionais mais
relevantes do campo em questão. Em seguida, será comentada a problemática no território brasileiro.
Palavras-chave: Restauro Arquitetônico e Urbano, Formação, Ensino.

Resumen:
La presente comunicación pretende abordar la formación del arquitecto-urbanista para actuar en el
patrimonio construido y en construcciones de interés para la preservación, legitimando la importancia del
arquitecto, como siendo el profesional responsable de la elaboración del proyecto de restauración
arquitectónica y enfatizando que, ese mismo profesional, que tiene la base adecuada y el contenido
suficiente en el ámbito de su formación académica, pues la consecuencia de la falta de enseñanza ha
tenido como resultado la deformación o destrucción de documentos históricos que son la base para la
memoria colectiva, afectando así a la transmisión del legado de las generaciones pasadas las generaciones
futuras. Se expondrán los pensamientos de los principales teóricos del territorio italiano, ambiente que tiene
una larga tradición de discusiones relacionadas al campo disciplinario de la restauración, por haber sido el
primero país a crear la disciplina de Restauración de los Monumentos en el ámbito de la formación del
arquitecto y por el hecho de que el pensamiento oriundo de ese ambiente fundamenta los documentos
internacionales más relevantes del campo en cuestión. A continuación se comentará la problemática en el
territorio brasileño.
Palabras-clave: Restauración Arquitectónica y Urbana, Formación, Enseñanza.

Abstract:
This paper aims to approach the formation of the contemporary architect-planner to treat the built,
legitimizing the importance of the architect as the professional responsible for the preparation of the
architectural restoration project and emphasizing that this same professional, should have adequate
knowledge in the course of their academic education, because the consequence of the lack of education has
resulted in the corruption or destruction of historical documents that are the basis for collective memory, thus
affecting the transmission of the legacy of past generations to future generations. However, we will show the
thoughts of the leading theorists of the Italian territory, locality which has a long tradition of discussions
related to the disciplinary field of restoration, for being the first to create the discipline of Restoration of
Monuments in the training of the architect and by the fact that Italian theories substantiate the most relevant
international documents of the field in question. Then, the issue will be discussed in the Brazilian context.
Keywords: Architectural and Urban Restoration, Training, Education.
O ENSINO NOS TRATOS DOS BENS CULTURAIS: A EXPERIÊNCIA
ITALIANA E A PROBLEMÁTICA BRASILEIRA1
A formação no campo disciplinar do restauro [arquitetônico e urbano] é fundamental para o papel
do profissional arquiteto-urbanista na sociedade contemporânea. Atualmente, há uma exigência
significativa para a reflexão sobre a formação do profissional no Brasil, no que se refere às
questões voltadas aos bens culturais. As principais questões envolvidas têm várias condicionantes
e determinantes, porém a questão central é a formação. Deparamo-nos com fatores concorrentes
para a atuação criteriosa no campo: a força do mercado imobiliário, como “[oportuno] cômodo
desconhecedor” (RUFINONI, 2013. p. 198) das prioridades de uma intervenção com princípios e
critérios coerentes, pautada por um rigor científico-metodológico; a atuação, por parte dos próprios
profissionais arquitetos-urbanistas, conduzida por interpretações falhas; e a falta de um
conhecimento de fato do campo disciplinar do restauro [arquitetônico e urbano]. O problema que
se coloca é elevar a qualidade das intervenções, que têm aumentado consideravelmente no nosso
país, mas com resultados danosos (muitas vezes desastrosos) e, ainda, adotando posturas
projetuais obsoletas em relação ao contexto contemporâneo. Nesse sentido, o objetivo dessa
explanação é abordar essas questões, visto que não são debatidas com frequência no contexto
brasileiro.

Portanto, para entendermos a constituição desse campo, foram estabelecidas comparações, em


especial com a experiência na Itália, pois é o país que mais tem tradição de formação no campo,
havendo uma discussão mais intensa e sistemática sobre o arcabouço teórico e sua repercussão
na formação dos profissionais. Através da discussão que acontece atualmente no âmbito italiano,
e tentando trazer essas vivências e essas experiências para o contexto brasileiro, será necessário
discutir a importância da formação do arquiteto-urbanista para a área do patrimônio arquitetônico
e urbano. Nota-se que a responsabilidade para atuar nesse campo cabe, primeiramente, ao
profissional com a formação em arquitetura e urbanismo, que deve ter papel de articulador das
demais competências envolvidas no campo disciplinar do restauro [arquitetônico e urbano].

A PROBLEMÁTICA DO ENSINO NOS TRATOS DOS BENS CULTURAIS

As questões sobre o ensino de arquitetura e urbanismo, vinculadas ao tema do patrimônio


edificado, vêm sendo discutidas ao longo de anos, sobretudo na Europa entre o final do século

1
O presente artigo retoma investigações desenvolvidas no doutorado que se desdobraram em artigos com enfoques
particulares e que aqui são revistos de modo aprofundado, ressaltando principalmente as considerações sobre o
Restauro Urbano como algo intrínseco ao Restauro Arquitetônico. O Restauro Urbano é proveniente do Restauro
Arquitetônico, ou seja, o campo disciplinar do restauro requer a necessidade de abordar tanto a Arquitetura quanto o
Urbanismo, compreendendo que se restaura edifícios e monumentos não somente para estudá-los ou interpretá-los
com o intuito em si mesmo e de forma a transmiti-lo da melhor maneira possível para as futuras gerações, mas,
sobretudo, para estabelecer – para além da transmissão do legado para as próximas gerações – o diálogo entre a
imagem da cidade e do ambiente, no qual este monumento está inserido (RACHELI, 2003), para que, de fato, possa
conduzir, de maneira fidedigna e efetiva, a preservação dos aspectos documentais, materiais, formais, memoriais e
simbólicos do ambiente construído preexistente. Outro fator preponderante é entender que o campo, como disciplina
autônoma, configura-se num caminho interrogativo, permitindo compreender que sua assimilação depende da imediata
mudança no panorama da atividade formativa do arquiteto-urbanista, para que os profissionais saiam providos de
"consciência histórica" e de “consciência cultural” e que tenham instrumentos teórico-críticos e técnico-operacionais
suficientes para enfrentar as demandas das soluções projetuais para os ambientes construídos preexistentes.
XIX e início do século XX. A historiografia, principalmente no ambiente cultural italiano, em que as
discussões e reflexões sobre o campo disciplinar do restauro [arquitetônico e urbano] são mais
consolidadas, repercute numa amadurecida metodologia de aproximação às obras, de
sistematização do projeto e de formas de intervenção. Importante salientar que, quando se faz
uma comparação com os ambientes culturais de outros países, como nos casos francês, inglês e
espanhol, é possível verificar que, embora haja algumas diferenças, as principais discussões
remetem aos postulados teóricos e críticos italianos. Desse modo, abordaremos a discussão de
alguns autores italianos para a reflexão acerca da problemática do ensino nos tratos de bens
culturais (FARAH, 2012).

Paolo Torsello expõe que o campo das intervenções no preexistente é extremamente complexo e
que há um número considerável de profissionais com competências, concepções e linguagens
totalmente diversas e distanciadas entre si. Esse fato resulta na perda da percepção do campo,
que assume significados genéricos e ambíguos. Uma das causas, que resulta nesses efeitos
maléficos, é o problema da formação, não somente dos arquitetos, mas de todos os profissionais
que atuam no campo em questão (LUMIA, 2003. pp. 22-24).

Os princípios norteadores para atuar nos bens culturais referentes ao patrimônio edificado, a
saber, as construções de interesse para preservação e a cidade preexistente, devem ou deveriam,
obrigatoriamente, ser pautados por instrumentos teórico-críticos. Esses instrumentos não são
regras fixas, são princípios e critérios que constituem um mecanismo regulador para que
conduzam as soluções adequadas de intervenção, e que, de fato, possam promover a efetiva
preservação dos aspectos documentais, materiais, formais, memoriais e simbólicos das obras. Ou
seja, para que os profissionais tenham instrumentos adequados para o desenvolvimento de um
projeto coeso, lógico e ético, e para que sejam valorizados todos os aspectos supracitados, é
necessária uma formação apropriada ao campo (FARAH, 2012).

Como supracitado, a Itália é o país que mais tem tradição de formação no campo, havendo uma
discussão mais intensa e sistemática sobre o arcabouço teórico – que deveria, sempre, guiar as
ações práticas – e a repercussão na formação dos profissionais.

Em outros países existem discussões de grande relevância sobre temas ligados aos bens
culturais, mas o debate sobre os princípios teóricos do restauro é mais limitado, sendo a ação
voltada prevalentemente aos aspectos práticos e operacionais, que muitas vezes resultam em
extensos refazimentos, como é o caso da Inglaterra. Na França2, existe em âmbito universitário,
em especial nos cursos de humanidades, uma produção da maior importância tratando do
patrimônio histórico e sua relação com a historiografia, com a memória etc., mas a repercussão
desse debate na prática de restauração e na formação dos arquitetos na graduação é
praticamente inexistente (DETRY; PRUNET, 2000).

No Brasil, há uma dificuldade em entender a importância desse campo disciplinar na formação do


arquiteto-urbanista, principalmente no âmbito da graduação. É essencial salientar a importância
dessa formação de base – na graduação em arquitetura e urbanismo – para atuar na cidade
contemporânea, ou seja, para operar no preexistente. Não se discute, atualmente, uma formação
basilar adequada e um conteúdo eficiente. Logo, pretendemos evidenciar que, se não houver essa
2
Segundo Alessandro Campanelli, na França, um país de uma longa tradição, no que se refere à restauração de
monumentos, não existem disciplinas relativas à “Restauração dos Monumentos” nos cursos de graduação
(CAMPANELLI, 2009. pp.50-52).
abordagem dos princípios fundamentais que regem o campo disciplinar do restauro na formação
do arquiteto, os profissionais não terão instrumentos teórico-críticos, e tampouco técnico-
operacionais, para que os bens culturais sejam preservados como documentos fidedignos e,
assim, atuarem com o efetivo suporte do conhecimento e da memória coletiva. Por meio desse
aparato teórico, é possível obter um referencial crítico e conceitos fundamentais para as ações de
salvaguarda dos bens culturais e para a sua transmissão para as gerações presentes e futuras.

Giovanni Carbonara esclarece a importância de uma boa formação do arquiteto e urbanista no


trato dos bens culturais, ao elucidar que as várias profissões envolvidas – gestores públicos,
políticos, arquitetos-urbanistas, engenheiros, sociólogos, arqueólogos, geólogos, historiadores,
físicos, químicos, ou seja, uma gama enorme de profissionais que operam no campo – devem
tomar consciência de que trabalhar na área é sempre “pesquisa, cautela na execução e um
contínuo aprofundamento” no campo. Nesse sentido, precisamos ressaltar que os procedimentos
a serem adotados não podem ser conduzidos apenas por meras soluções técnicas, mas devem,
sim, ser embasados em preceitos científicos através de estratégias integradas, nas quais estão
entrelaçados valores culturais, sociais, econômicos, políticos, funcionais e de uso, para que a
ação resulte numa real e autêntica sobrevivência do bem e não em seu congelamento
(CARBONARA, 2009. pp.31-32).

Um fator recorrente no cenário brasileiro, que Carbonara considera umas das principais causas da
degradação dos bens culturais, é o abandono e a ausência de manutenção, ainda mais prejudicial
do que as guerras ou os desastres naturais. Nessa linha de raciocínio, o autor expõe que, em
muitos casos, além das degradações supracitadas, existe uma dinâmica habitual nas imposições
de funções não compatíveis com a natureza física e a vocação do bem, resultando em “cattivi
restauri” (restauros ruins), lamentavelmente frequentes – tanto no âmbito italiano quanto no
brasileiro. Afirma ainda que todos os profissionais que atuam no campo necessitam de formação
correta, ética e coesa, pautada por princípios científicos e metodológicos do restauro para que se
chegue a uma solução projetual crítica, capaz de responder às diversas exigências
contemporâneas (CARBONARA, 2009).

Note-se que a responsabilidade ao se atuar nesse campo é grande. Ao arquiteto-urbanista cabe


papel relevante na articulação das várias competências envolvidas. É de suma importância que o
arquiteto-urbanista tenha, pois, consciência da responsabilidade envolvida, que seja sensibilizado
na graduação (formação superior), e que tenha noção do tipo de instrumentos que deverá
dominar, em seguida, preferencialmente através de formação de pós-graduação, para atuar no
campo, tanto nas intervenções em obras isoladas quanto em qualquer tipo de intervenção feita no
contexto urbano.

A responsabilidade da formação no campo do restauro não compete apenas aos cursos de


especialização3, ou seja, aos cursos feitos após a graduação (como o próprio nome o revela):
esses cursos são de caráter complementar, devendo acrescentar conhecimentos a um
determinado profissional já formado, capaz de manifestar, através de orientações e do
conhecimento, as próprias instrumentalizações do arquiteto-urbanista contemporâneo. É
indispensável que o conteúdo do campo disciplinar do restauro [arquitetônico e urbano] seja
3
Segundo Alessandro Pergoli Campanelli é um equívoco muito perigoso o uso das atribuições procedentes das
especializações, pois o profissional da arquitetura e urbanismo necessita de uma formação integral com os
conhecimentos basilares que a profissão exige e também os conhecimentos no campo disciplinar do restauro.
(CAMPANELLI, 2009. pp. 50-52).
abordado na graduação, visto que o profissional “deve aprender corretamente a confrontar a
relação com o preexistente e, sobretudo, a considerar a específica ‘forma mentis’ do arquiteto”
(CAMPANELLI, 2009. pp. 50-52), pois os profissionais têm dificuldade – e isso é essencial – em
dominar as matérias que dizem respeito à História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria e
História do Restauro [Arquitetônico e Urbano], Planejamento Urbano, entre outras, que são
contempladas nos cursos de Arquitetura e Urbanismo. Se esses conteúdos não forem oferecidos
nos cursos de graduação, os profissionais serão privados dos meios indispensáveis para atuar, de
maneira coesa e coerente, em projetos de arquitetura e urbanismo contemporâneos.

Um dos principais problemas no ensino de restauro arquitetônico e urbano é a definição do seu


conteúdo programático nos vários níveis de formação. Certamente, no âmbito da graduação, não
é possível transmitir todo o conhecimento dessa disciplina, que exige conhecimentos
aprofundados de vários temas que não são adequadamente adquiridos em uma graduação. Daí a
importância de haver uma pós-graduação nesse campo específico.

Tomando-se por base as colocações existentes na publicação de Chiara Lumia (LUMIA, 2003.
pp.89-93), a maior dificuldade apontada é a formação do arquiteto-urbanista. Lumia realiza várias
entrevistas com os principais professores e teóricos de restauro da atualidade italiana, abordando
a questão da formação do arquiteto-urbanista no campo do restauro arquitetônico e urbano. A
pergunta formulada foi: “Em relação à formação, qual é o perfil, institucionalizado ou não, que
vocês aconselhariam a quem queira se ocupar de intervenções no construído, também em relação
às reformas que atualmente se estão concretizando?” (LUMIA, 2003. p.89).

Segundo Carbonara (LUMIA, 2003. p.89), o problema da formação do arquiteto no âmbito do


restauro arquitetônico e urbano requer trabalho mais aprofundado: compara com a formação no
campo da medicina (TRECCANI, 1996. pp. 133-138), em que se necessita de uma formação de
base e de uma especialização, ou seja, uma formação na graduação e um “sério” trabalho
especializado com pelo menos dois anos de curso. O ideal seria três anos na pós-graduação,
como hoje acontece nas escolas de especializações e nos doutorados em conservação existentes
na Itália (LUMIA, 2003. p.89). A formação do arquiteto-restaurador exige, antes de tudo, a
formação de um arquiteto-urbanista e depois, especialização nas áreas específicas, não
relegando a responsabilidade somente aos cursos de “post lauream” para tal formação. Devemos
amadurecer esse tipo de discussão no contexto brasileiro, evidenciando, ainda, o número
reduzido dos cursos de pós-graduação no país4.

Seguindo o mesmo viés de pensamento, Salvatore Boscarino (LUMIA, 2003. pp. 90-91) levanta
outro tema importante a ser discutido e analisado: a formação dos responsáveis no âmbito do
restauro arquitetônico e urbano, que não pode ser resolvida com alguns cursos fora da
universidade. Isto significa que são necessários cursos de graduação em arquitetura e urbanismo
que abranjam conteúdos condizentes ao campo disciplinar em questão, e cursos de pós-

4
Dispomos, atualmente, de cursos de especializações apoiados pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional
(IPHAN) e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) nos estados da
Bahia e Pernambuco. No estado de São Paulo temos o curso de pós-graduação “lato sensu” na cidade de Santos; no
estado de Minas Gerais, há cursos técnicos e de pós-graduação nas cidades de Ouro Preto e Belo Horizonte,
respectivamente. Existem também na cidade do Rio de Janeiro e Porto Alegre. Ou seja, torna-se claro que, num país de
uma grande extensão geográfica, não há cursos suficientes para suprir a necessidade do profissional arquiteto-
urbanista para atuar no mercado de trabalho na área dos bens culturais.
graduação, tanto nas especializações quanto nos mestrados e doutorados, sendo o arquiteto-
urbanista o responsável pelas atividades do patrimônio construído.

Para Paolo Torsello (LUMIA, 2003.pp. 92-93), o restauro [arquitetônico e urbano] é um campo
disciplinar altamente especializado; por esse motivo requer preparação cuidadosa, teórica, técnica
e prática. Esse trinômio a que, muitas vezes, o profissional, assim como os próprios cursos de
arquitetura urbanismo, não dão a devida importância. Torsello critica a crescente demanda do
“mercado”, à qual corresponde grande oferta de trabalho e baixa qualidade profissional. Destaca
que, ao mesmo tempo em que se disponibilizam cursos de alta qualidade para a formação dos
arquitetos-urbanistas, também se deve pensar na formação dos outros profissionais que atuam no
campo:

A reforma universitária, portanto, abre nova oportunidade de formação, certamente


de relevante interesse em princípio; mas a pergunta é: saberemos acertar? Além
disso: é suficiente melhorar a preparação dos arquitetos restauradores e formar
bons especialistas, sem mudar também a formação dos quadros nos outros
setores envolvidos nesta delicada disciplina? (LUMIA, 2003.p. 93).

Outro ponto importante na discussão é a questão no âmbito técnico da disciplina e além da


preocupação com a formação do arquiteto-urbanista, temos o dever de preparar corretamente os
outros profissionais que atuam na área como geólogos, arqueólogos, geógrafos, historiadores,
historiadores da arte, químicos, físicos, engenheiros, mestres de obras, pedreiros, eletricistas,
encanadores, etc., numa gama de atuação interdisciplinar.

Através dessa discussão que acontece atualmente no âmbito italiano, e tentando trazer essas
vivências e essas experiências para o contexto brasileiro, é necessário discutir a importância da
formação do arquiteto-urbanista para a área do patrimônio arquitetônico e urbano. Nota-se que a
responsabilidade para atuar nesse campo cabe primeiramente ao profissional com a formação em
arquitetura e urbanismo, que deve ter papel como articulador das demais competências
envolvidas no campo disciplinar do restauro.

Contudo, verifica-se que a ausência do ensino da disciplina referente ao restauro arquitetônico e


urbano resulta em profissionais que não possuem consciência em relação à responsabilidade que
é trabalhar com bens de interesse para a preservação e no ambiente preexistente, não tendo
instrumental teórico-crítico e técnico-operacional necessário para atuar no campo. O resultado
mais visível tem sido a constante deformação e destruição das obras arquitetônicas isoladas e do
tecido urbano, que são base importante de transmissão do conhecimento e suporte da memória
coletiva, tendo por consequência um instrumental limitado para as gerações presentes e futuras.

O ENSINO NO BRASIL

As práticas de restauro [arquitetônico e urbano] iniciaram-se de maneira mais sistemática no país


com a criação do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN, antigo Serviço do
patrimônio Histórico Artístico Nacional – SPHAN), em 1937, ainda que algumas iniciativas
existissem desde o século XIX e início do século XX.
No estado de São Paulo, houve tentativas da criação de um órgão do patrimônio desde meados
da década de 30 e a iniciativa encontrou condições de desenvolvimento no quadro da valorização
do patrimônio como objeto do turismo, somente no final da década de 60. O projeto tornou-se a
Lei n. 10.247, em 22 de Outubro de 1968, criando o Conselho de Defesa do Patrimônio Artístico,
Arqueológico e Turístico (CONDEPHAAT), promulgada por Abreu Sodré em dezembro do mesmo
ano (KAMIDE e PEREIRA, 1998. pp.11-12). No que se refere ao ensino de restauro [arquitetônico
e urbano], o IPHAN, junto com as escolas de Arquitetura e Urbanismo do estado de São Paulo, na
década de 1960 e 1970, promoveu o amadurecimento das ideias preservacionistas dos “futuros
profissionais completada pela prática, em estágios no ‘Patrimônio’” (RODRIGUES, 2000. p. 29).

A falta de mão de obra especializada no campo do restauro [arquitetônico e urbano], no Brasil, no


final da década de 1960, impulsionou o IPHAN a trazer especialistas para contribuir nos projetos
de intervenção de edificações e centros históricos. Assim, houve a colaboração de Michel Parent,
Viana de Lima e Limburg Stirum, entre outros especialistas da UNESCO, e resultou na elaboração
de relatórios contendo as diretrizes básicas para implementar os projetos em algumas cidades,
como Ouro Preto, São Luís, Paraty e Salvador (SPHAN/Pró-Memória, 1980. pp.32-33).

Logo após a elaboração desses relatórios, em 1970, houve o I Encontro de Governadores dos
Estados Brasileiros5 que deu origem ao Compromisso de Brasília, em que se propõe,

Para remediar a carência de mão de obra especializada nos níveis superior, médio
e artesanal, é indispensável criar cursos visando à formação de arquitetos,
restauradores, conservadores de pinturas, escultura e documentos,
arquivologistas e museólogos de diferentes especialidades, orientados pelo
DPHAN e pelo arquivo nacional os cursos de nível superior ( CURY, 2000, p. 137-
141).

Segundo Lia Mayumi (2008. p.148-155), o CONDEPHAAT, por meio da Secretaria de Esportes e
Turismo e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP)6,
promoveu um convênio para a realização do curso para arquitetos-urbanistas em Restauração e
Conservação de Monumentos e Conjuntos Arquitetônicos, que se realizou em 1974 (12 de agosto
a 20 de dezembro de 1974, no edifício da rua Maranhão em período integral)7. Mayumi aponta
que esse curso constitui um marco na história da preservação do patrimônio no Brasil, por vários
aspectos, dentre os quais: a discussão que se abriu, pela primeira vez, para uma vasta gama de
profissionais, sobre o problema da conceituação do campo disciplinar do restauro [arquitetônico e
urbano]; a difusão desse campo no meio acadêmico e profissional; e o início de um modelo de
formação profissional. Foi o primeiro curso, em colaboração com o Instituto do Patrimônio

5
Segundo Júlio Sampaio, houve, em 1971, o II Encontro de Governadores, resultando no documento “Compromisso de
Salvador”, que reitera a proposta para implementar cursos profissionalizantes, sugerindo a colaboração da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. A efetivação dos dois encontros deu origem
ao Programa Cidades Históricas – PCH, que, com orientação técnica do IPHAN, realizou convênios com as
Universidades Federais de Pernambuco e Minas Gerais, propondo três cursos de conservação de bens imóveis
(especificamente para arquitetos), móveis (para técnicos de nível superior) e de mestres de obras. Os dois primeiros
foram de pós-graduação e o último, de nível médio. Todos capacitaram 119 técnicos. In. SECRETARIA DE
PLANEJAMENTO – SEPLAN, Revista Planejamento & Desenvolvimento – Suplemento Espacial: patrimônio histórico,
S.i., S.e., S.d. p. 40. Apud. SAMPAIO, 2006. p.5).
6
Contudo, em 1964, a FAU-USP organizou um curso de pós-graduação em Preservação e Restauração de
Monumentos, mas com objetivo diferente ao que se propunha esse curso, era destinado somente aos docentes da
faculdade com intuito de atender as exigências do Ministério da Educação e Cultura (MAYUMI, 2008. p.148).
7
Sobre a organização do curso e o conteúdo dado, consultar MAYUMI, 2008. pp.149-152.
Histórico Artístico Nacional (IPHAN) e a UNESCO, que introduziu os conceitos de patrimônio
cultural, mediante as aulas ministradas pelo Hugues de Varinne Bohan, da UNESCO (BAFFI,
2006, pp. 169-191).

Já no ano de 1978, a mesma FAU-USP promove um curso de Especialização “Patrimônio


Ambiental Urbano”, organizado pelos professores Carlos A. C. Lemos (arquiteto-urbanista) e
Maria Adélia de Souza (geógrafa), que contou com a presença dos professores: Milton Santos,
Ulpiano Bezerra de Menezes, Aziz Ab Saber, José Afonso de Souza, entre outros, e convidados
como James Fitch, da Universidade Columbia (NY), e Adriano La Regina, da Superintendência de
Antiguidades de Roma (MAYUMI, 2008. p.148-150).

Após o desenvolvimento desses cursos8, de extrema importância para formação de profissionais


para atuarem no patrimônio construído, foi efetivado, em 1981, um dos cursos mais importantes
do país na área, o “Curso de Especialização em Conservação e Restauração de Monumentos e
Conjuntos Históricos (CECRE)”, através de um acordo entre a Universidade Federal da Bahia
(UFBA), o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN) e a UNESCO, sediado na
Faculdade de Arquitetura da mesma universidade, que se mantém até os dias atuais (SAMPAIO,
2006. p.05).

A partir de então, o ensino de restauro arquitetônico e urbano passou a se dar unicamente no


âmbito da pós-graduação, não havendo grandes discussões sobre a matéria na graduação.
Importante salientar que um país com grande extensão geográfica dispunha apenas de um curso,
oferecido com periodicidade regular, referente à restauração do patrimônio edificado.

Somente a partir da Portaria 1770/94 foi incluída, obrigatoriamente, no currículo mínimo a


disciplina referente ao campo disciplinar do restauro, com a denominação Técnicas
Retrospectivas. Essa denominação, um tanto quanto equivocada, deriva de um conceito adotado
por Leonardo Benévolo:

A conservação dos bens culturais, dos edifícios e dos centros históricos faz,
portanto, parte de um programa mais vasto: a manutenção e reabilitação de toda a
paisagem construída no passado distante e próximo. As técnicas a que
9
podemos chamar retrospectivas – de conservação, restauro, reestruturação e
reconstrução dos artefactos – têm um peso cada vez a maior em relação à
produção contemporânea. (BENEVOLO, 1984. pp.190-191 e 2006, p. 146).

Contudo, a Portaria 1770/94 refere-se, segundo Maria Elisa Meira, “a quatro tipos de família
pertinentes ao campo de conhecimento Técnicas Retrospectivas”, conceituado por Leonardo
Benévolo:

Conservação: isto é, uma série de obras cujo fim é unicamente consolidar um


artefacto, garantir o seu tempo de duração, pôr de lado as intervenções
inadmissíveis, enfim, poupá-las às injúrias do tempo, subordinando a esse
objectivo, ou mesmo eliminando, qualquer uso moderno.

8
Segundo Lia Maymi, o curso de 1974 foi organizado em Recife em 1976, Belo Horizonte em 1978 e Salvador em 1980,
dando origem ao Curso de Especialização em Conservação e Restauração de Monumentos e Conjuntos Históricos
(CECRE) (MAYUMI, 2008).
9
Neste caso a palavra ripristino foi traduzida por conservação, porém a tradução correta seria repristinar ou refazer.
Restauro: isto é, uma série de obras destinadas a consolidar um artefacto e a
eliminar as modificações incompatíveis introduzindo, porém outras modificações
compatíveis com a estrutura originária, para garantir um uso moderno ou igual ou
análogo ao antigo.

Restruturação: isto é, uma série de obras que conduzem à transformação de um


artefacto, conservando algumas partes, substituindo ou acrescentando outras,
para permitir uma maior variedade de usos modernos, que correspondem ou não
aos antigos.

Reconstrução: quando o artefacto originário foi destruído e se deseja substituí-lo


por uma réplica, individual ou referida a um tipo recorrente, para obter, a um nível
superior, a conservação, o restauro ou a restruturação de que o artefacto faz parte
(BENEVOLO, 2006. p. 144. Segundo a publicação original: 1984. p.188).

A escolha da dicção “Técnicas Retrospectivas” parece fortuita, pois foi um tipo de proposição que
não teve repercussão no território italiano, ambiente fortemente contrário ao conceito da
reconstrução. Todo o sistema de tutela e de ações em bens culturais é contrário à repristinação e
à reconstrução, por se caracterizarem como atos anistóricos, discordantes em relação ao
entendimento que se tem do campo disciplinar no país. Desse modo, é estranho que se faça uma
escolha do gênero, por meio de uma proposta que não tem ressonância em seu próprio ambiente
cultural (FARAH, 2012, pp. 78-79).

Por meio desse aparato conceitual e legislativo, descrito acima, fundamentado em conceitos
alheios ao restauro [arquitetônico e urbano] – entendida como campo disciplinar e, portanto, com
conceitos e métodos que lhe são próprios –, foi produzida, consequentemente, uma série de
deformações e interpretações equivocadas.

No XI Congresso Nacional da Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo e no


XVII Encontro Nacional Sobre o Ensino de Arquitetura e Urbanismo, que aconteceram no Rio de
Janeiro, em 2001, foram deliberadas algumas posturas a serem adotadas, nas quais está evidente
a importância de uma formação de base adequada, no que se refere às questões do patrimônio, e
o início do entendimento, de fato, da necessidade do ensino do campo disciplinar do restauro no
âmbito da graduação:

5.3. Orientação para que as Técnicas Retrospectivas contemplem as áreas


de teoria e história, tecnologia e projeto;

5.4. Quanto à abordagem do universo concernente às Técnicas Retrospectivas,


que essa “postura” esteja explícita e necessariamente contida nos projetos
pedagógicos dos cursos, e, como tal, não seja competência de uma única
disciplina, quanto mais só tecnologia;

5.8. Envolvimento de diferentes disciplinas, visando elaboração,


materialização e normatização dos projetos de intervenção no meio urbano
(XI CONABEA & XVII ENSEA – Técnicas Retrospectivas: Manutenção e
Reabilitação da Paisagem Construída. Rio de Janeiro, 2001, grifo nosso).

A disciplina de Técnicas Retrospectivas, como estruturada em nossa legislação, abrange todas as


áreas do conhecimento no que concerne à formação do arquiteto-urbanista: Teoria, História,
Tecnologia, Projeto e Urbanismo. A orientação é que a matéria seja contemplada não somente em
uma única disciplina e, sim, que abarque outras disciplinas de vários campos do conhecimento.

Num primeiro momento, a disciplina deveria ter um cunho de fundamentação teórica, pois é a
base para que a ação prática se dê, de modo coerente e fundamentado. A teoria não é “uma
instrumentação abstrata e confusa, mas a dimensão absoluta mais ampla e genuína do concreto e
do prático”, contudo, é a dimensão exata que legitima a concretização e a prática10. Segundo
Gramsci, “um especialista conhece seu ofício não apenas praticamente, mas também teórica e
historicamente. Ele não só pensa com maior rigor lógico, com maior coerência, com maior espírito
de sistema do que os outros homens, como conhece também a história da sua especialidade”
(GRAMSCI, 1991. p.34, apud MEIRA, 2001, pp. 39-44), ou seja, os saberes pautados pela
fundamentação teórica resultam em soluções que orientaram à aplicabilidade na práxis. Portanto,
a disciplina Técnicas Retrospectiva deve, ou deverá perpassar obrigatoriamente pelas matérias de
Teoria e História (primeiramente), Urbanismo, Projeto e Tecnologia, como forma de utilizar seus
conhecimentos adquiridos, empregando-os nos exercícios projetuais, tanto acadêmicos quanto no
mercado de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De fato, não há uma efetiva compreensão das características do restauro como campo disciplinar
e dos instrumentos que lhe são próprios; a formação que está sendo oferecida aos futuros
arquitetos-urbanistas é, desse modo, no geral, insuficiente para abordar os problemas
extremamente complexos colocados por obras e por ambientes de interesse para a preservação,
que exigem preparo e consciência da necessidade de trabalhar de maneira fundamentada e por
meio de processos multidisciplinares.

Justamente essa lacuna na formação, a ausência de um instrumental mais adequado e de uma


“consciência histórica e cultural” faz com que o arquiteto-urbanista não tenha instrumentos
adequados para entender as obras de maneira plena – em seus aspectos materiais, de
conformação, documentais, memoriais e simbólicos –, e que, dessa forma, tenha dificuldades para
adquirir alicerces seguros para conduzir sua ação segundo uma sólida deontologia profissional e
para ter argumentos, inclusive, para se contrapor à especulação (imobiliária, política, etc.) e poder
contribuir de maneira socialmente responsável para a preservação. Infelizmente, essa falta de
consciência do profissional arquiteto-urbanista que ainda prevalece no Brasil – e que continuará a
prevalecer se a formação permanecer deficitária – prosseguirá como uma das causas da falta de
consistência de grande parte das intervenções aqui realizadas em bens culturais.

As questões explanadas neste artigo, sempre acompanhadas por numerosas indagações e


questionamentos, nos permitiram tecer algumas considerações para que se introduza essa
“consciência” no ambiente de formação do arquiteto-urbanista no Brasil, de modo mais efetivo.

10
Essas colocações, de Renato Rizzo, foram citadas por Beatriz Mugayar Kühl, Teoria da Restauração e patrimônio
Industrial: razões para um diálogo. O original está em: RIZZO, Renato. L’inconsapevolezza: forma della dimenticanza.
In. SEVERINO, Emanuele. Tecnica e Architettura. Milano: Raffaello Cortina Editore, 2003, p.24. A palestra de Kühl
proferida para II Encontro Nacional sobre Patrimônio Industrial – da industrialização à desindustrialização: perspectivas
para o resgate e conservação do Patrimônio Industrial realizada em 18 de junho de 2009, no Centro Universitário Belas
Artes em São Paulo.
Claro que se trata de uma primeira análise de uma temática recente, que deverá ser verificada ao
longo dos anos na prática.

Um dos pontos cuja discussão consideramos essencial é o conteúdo adequado para a disciplina.
Um ponto correlato e de grande importância, que não aparece nas exigências normativas de
maneira clara, é a qualificação do profissional responsável por essa disciplina específica. Esse
dado é de fundamental importância, pois somente um docente qualificado, que domine os
instrumentos do campo disciplinar, poderá transmitir aos estudantes os conhecimentos basilares e
promover interpretações pertinentes do instrumental do campo, uma vez que há conceitos
ambíguos no próprio aparato legislativo brasileiro, o que pode resultar em ações completamente
contraditórias entre si (e contrárias à preservação).

A restauração deveria ser, necessariamente, uma prática imbuída dos postulados teóricos do
campo; por conseguinte, o fazer deve estar conceitualmente comprometido com os princípios
teóricos, que devem guiar as escolhas das técnicas adequadas afastando-se do empirismo
pedestre. O caminho crítico de um projeto “de conservação” ou da “perpetuação do monumento”
requer pesquisa e análises rigorosas, cientes das implicações teóricas, históricas, criticas, e
também técnicas, que o campo comporta, para que as soluções adotadas sejam capazes de
controlar e orientar o ato criativo do profissional (CARBONARA, 2011. p.144).

Qual o tipo de profissional o mercado de trabalho necessita? De maneira muito sumária, um


arquiteto-urbanista que preste serviços à sociedade, produzindo uma arquitetura social e
culturalmente consciente, correta e adequada ao lugar em que é inserida e ao tempo em que é
produzida. Isso significa produzir arquitetura de alta qualidade, exigindo capacidade do
profissional de solucionar os complexos problemas a serem enfrentados. Um dos problemas do
restauro arquitetônico e urbano é entendê-lo, de fato, como projeto de arquitetura.

É necessário, e com certa urgência, que as atenções se voltem à formação desse profissional, a
pensar minuciosamente sobre a sua deontologia profissional, entendendo o papel que pode
desempenhar na sociedade do século XXI, exigindo uma formação de excelência para que tenha
instrumentos para entender e evidenciar as carências e problemas do contexto contemporâneo, e
se colocar de maneira crítica e responsável perante eles, tornando-se um profissional
comprometido com a cidade e com o ambiente, inclusive o preexistente.

No Brasil, os temas de preservação foram considerados tardiamente como de interesse no âmbito


da graduação; e, depois, foram implantados de maneira até certo ponto apressada, sem uma
discussão dos conteúdos adequados e de interesse para o país. Muitos dos “protagonistas” dessa
implementação foram arquitetos-urbanistas, que, apesar de atuarem na prática em edifícios de
interesse cultural, não tem conhecimento sobre a existência do restauro [arquitetônico e urbano]
como campo disciplinar autônomo e, muitas vezes, nem curiosidade em relação a instrumentos
existentes que possam servir de baliza para a atuação em edifícios e áreas já consolidadas.

Por se tratar de campo extremamente complexo, o conteúdo necessário para um maior domínio
não pode ser contido, todo, na graduação, que deve ser voltada, essencialmente, para a
sensibilização e para a apresentação das bases teórico-metodológicas e sua repercussão em
exercícios projetuais. Esse conhecimento deveria, depois, ser consolidado, por meio de uma
formação continuada, especialização ou mestrado profissionalizante. Mas é essencial que se
forme, na graduação, um arquiteto-urbanista com alicerces sólidos.
Percebe-se a necessidade de uma reavaliação da formação do arquiteto-urbanista e uma
reestruturação dos conteúdos pedagógicos das escolas de Arquitetura e Urbanismo, visto que os
profissionais estão “saindo” das universidades diretamente para o mercado de trabalho, muitas
vezes sem conhecimento adequado para atuar em alguns campos para os quais, legalmente, tem
atribuição profissional.

O cerne é a formação e a educação para preparar profissionais e operadores, em todos os níveis,


que sejam conscientes de suas responsabilidades; no trato de bens culturais é importante que se
tenha consciência, também, que o trabalho é sempre pesquisa, cautela no executar e que exige
um contínuo aprofundamento.

REFERÊNCIAS

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FORMAÇÃO PROFISSIONAL E INTERDISCIPLINARIDADE NA PRESERVAÇÃO DO
PATRIMÔNIO EDIFICADO

ARTE E ARQUITETURA, ENTRE IMAGEM E MATÉRIA: A HISTÓRIA DA


ARTE E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO EDIFICADO

ARTE Y ARQUITECTURA, ENTRE IMAGEN Y MATERIA: LA HISTORIA DEL ARTE Y LA


PRESERVACIÓN DEL PATRIMONIO EDIFICADO

ART AND ARCHITECTURE, BETWEEN IMAGE AND MATTER: THE HISTORY OF ART AND
THE PRESERVATION OF BUILT HERITAGE

A circulação de conceitos e teorias

Manoela Rossinetti Rufinoni


Doutora em Arquitetura e Urbanismo, Professora da Graduação e da Pós-Graduação em História da
Arte da Universidade Federal de São Paulo, rufinoni@unifesp.br

Resumo:
As escritas da História da Arte e da História do Restauro possuem elos indissociáveis. Nem sempre,
contudo, as conexões entre os instrumentos de análise de ambas as disciplinas, da arte e da arquitetura,
puderam nos conduzir a ações criteriosas na prática de preservação, tanto na fase de estudo como de
intervenção. Tomando como ponto de partida a experiência de pesquisa e de docência na Graduação em
História da Arte, este trabalho objetiva discorrer sobre a interdisciplinaridade entre arte e arquitetura no
campo da preservação do patrimônio edificado.
Palavras-chave: Arte e Arquitetura, História do Restauro, Interdisciplinaridade, Patrimônio Edificado

Resumen:
Las escrituras de la Historia del Arte y de la Historia de la Restauración tienen vínculos inseparables. No
siempre, sin embargo, las conexiones entre los instrumentos de análisis de ambas disciplinas, del arte y de
la arquitectura, pudieron conducir a acciones juiciosas en la práctica de preservación, tanto en la fase de
estudio como de intervención. Tomando como punto de partida la experiencia de investigación y de
docencia en la Graduación en Historia del Arte, este trabajo objetiva discutir sobre la interdisciplinariedad
entre arte y arquitectura en el campo de la preservación del patrimonio edificado.
Palabras-clave: Arte y Arquitectura, Historia de la Restauración, Interdisciplinariedad, Patrimonio Edificado

Abstract:
The studies of the History of Art and History of Restoration have inseparable links. Not always, however, the
connections between the instruments of analysis of both disciplines, art and architecture, could lead us to
judicious actions in the practice of preservation, both in the study phase and in the intervention phase.
Taking as a starting point the experience of research and teaching in the Degree in Art History, this work
aims to discuss the interdisciplinarity between art and architecture in the field of preservation of the built
heritage.
Keywords: Art and Architecture, Restoration History, Interdisciplinarity, Built Heritage
ARTE E ARQUITETURA, ENTRE IMAGEM E MATÉRIA: A HISTÓRIA DA
ARTE E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO EDIFICADO
Sabemos que as escritas da história da arte e da história do restauro arquitetônico possuem elos
indissociáveis. Desde as origens da História da Arte como disciplina autônoma – em meados do
século XVIII, quando surgem os escritos de Johann Joachim Winckelmann (1717-1768), e as
elaborações conceituais que levariam ao delineamento da Estética como ciência –, até os
desdobramentos teóricos do segundo pós-guerra, a redação da Carta de Veneza e as recentes
discussões sobre as interações entre arte, arquitetura e cidade, em um contexto de ampliação
significativa de conceitos e métodos no campo da preservação; os diálogos entre os estudos da
história da arte e da arquitetura e as práticas de tutela manifestaram-se em maior ou menor
intensidade, mas sempre estiveram presentes. Nem sempre, contudo, as conexões entre os
instrumentos de análise de ambas as disciplinas, da arte e da arquitetura, puderam nos conduzir a
ações fundamentadas na prática de preservação, tanto na fase de estudo como de intervenção.

Entre outros fatores, acreditamos que nossa dificuldade de perceber e explorar essas conexões –
numa atitude que poderia nos levar a uma compreensão mais criteriosa dos bens a identificar,
preservar e restaurar –, possui uma de suas origens na dissociação entre saberes que o presente
colóquio pretende problematizar. Tomando como ponto de partida a experiência de pesquisa e de
docência na Graduação em História da Arte na Universidade Federal de São Paulo,
apresentaremos nesta comunicação algumas reflexões preliminares sobre a questão da
interdisciplinaridade entre arte e arquitetura na preservação do patrimônio edificado. Cabe
destacar, portanto, que as ideias aqui reunidas não derivam de uma sequência estruturada de
análises, meticulosamente referenciadas em investigações científicas já construídas ou debatidas,
trata-se de um conjunto de pensamentos despertados pela prática didática e pelas interlocuções
profissionais junto aos historiadores da arte. Duas frentes de abordagem tem nos instigado neste
percurso preliminar: de um lado, a importância do conhecimento das teorias e dos métodos da
história da arte na atuação do arquiteto; e de outro, a compreensão do objeto arquitetônico na
formação do historiador da arte que pretende atuar no campo da preservação.

PREMISSAS

Nas origens da História da Arte como disciplina, em meados do século XVIII, a ideia de autonomia
e de subjetividade da obra de arte e de seu desenvolvimento teria sido um dos principais fatores a
abrir caminho para novas abordagens investigativas, em um campo de estudos até então
fortemente influenciado pela história dos artistas mais relevantes, como preconizava a narrativa
vasariana1. Ao longo do século XIX, paralelamente ao progresso científico e às transformações
sociais e urbanas desencadeadas pela industrialização, tal perspectiva ganharia espaço a partir
do delineamento teórico e metodológico de disciplinas que adquiriam cientificidade, como a
Arqueologia, a Estética e a própria História; processos que, como sabemos, acompanharam e
subsidiaram o desenvolvimento da restauração dos monumentos como disciplina autônoma
(CHOAY, 2001, p.126). Entre os métodos em voga para o estudo das artes, neste período,
destacava-se a figura do “perito”: o estudioso que buscava reconhecer obras de arte originais em

1
Referência à obra Le vite dei più eccellenti pittori, scultori e architetti, do pintor e arquiteto italiano Giorgio Vasari (1511-
1574), voltada à biografia dos principais artistas do Renascimento, publicada pela primeira vez em 1550.
relação às falsificações, assim como atribuir autorias, valendo-se do uso da fotografia e de
análises documentais comparativas (ARGAN e FAGIOLO, 1992, p.88-91). É importante ressaltar
que o conceito de estilo ou escola assumia grande protagonismo naquele momento, reverberando
na apreciação de obras de arte e de arquitetura que seriam submetidas a intervenções de
restauro. Ao longo da segunda metade do século XIX, foi prática corrente a busca pela
classificação de escolas específicas no campo das artes, numa aproximação às perspectivas
positivistas, originando a consequente vinculação desses estudos – e da própria restauração,
neste contexto –, às predileções de estilo. Segundo interpretações da historiografia da arte, tal
atitude deveu-se ao particular ambiente cultural do período, quando o progresso da ciência e os
seus desdobramentos alimentaram uma visão determinista da sociedade e de seus produtos
culturais.

Já no alvorecer do século XX, contudo, diversos debates teóricos levaram à proposição de novas
abordagens para o estudo das artes, buscando opor-se aos métodos até então vigentes, bem
como às preferências por conteúdos de épocas precedentes, abrindo caminho para a
interpretação das manifestações artísticas como linguagens expressivas e não unicamente como
produtos e imagens a serem classificados segundo modelos formais conhecidos e apreciados. A
partir de então, ganhariam espaço as análises voltadas à compreensão das formas, das cores e
dos valores que compõem e condicionam a imagem artística, desde as perspectivas de análise da
chamada escola de Viena, dos autores da teoria da pura-visualidade2, no início do século XX; até
as diferentes abordagens, geralmente complementares, que passaram a investigar a obra de arte
como indício histórico e sociocultural. Neste sentido – em uma síntese obviamente lacunosa,
porém suficiente para os objetivos desta comunicação –, situamos diferentes perspectivas de
análise que buscaram compreender as obras de arte: ora como artefato ou imagem portadora de
conteúdos e significados, estudos que remetem à Aby Warburg (1866-1929), nas primeiras
décadas do século XX e que prosseguem na contribuição fundamental de Erwin Panofsky (1892-
1968), cujos escritos estendem-se da década de 1930 até 19603; ora como dado visual suscetível
à percepção de um expectador não passivo que lhe atribui valores, abordagem que culminaria na
chamada “psicologia da visão”, na figura de Rudolf Arnheim (1904-2007), já na década de 19504;
ora como produto e vetor de circunstâncias históricas e sociais específicas, seja na perspectiva
sociológica de tendência marxista, como nos estudos de Arnold Hauser (1892-1978)5, seja na
conjugação entre diferentes métodos que mantêm a perspectiva histórica como fundamento
essencial da investigação6.

Em quaisquer das linhas investigativas acima citadas, a questão central que buscamos destacar é
a opção por evidenciar e estudar atributos que não são propriedades imanentes ao objeto de
estudo, como são as suas informações físico-químicas; i.e., a investigação do objeto de arte a
partir dos valores e sentidos a ele atribuídos, seja pela sociedade que o produziu, seja pela
sociedade que o estuda na contemporaneidade. Nas palavras de Argan e Fagiolo, a questão da

2
Estudiosos como Konrad Fiedler (1841-1895), Aloïs Riegl (1858-1905), Heinrich Wölfflin (1864-1945), Max Dvořák
(1874-1921), entre outros, integraram esse grupo.
3
Em obras como: Idea: a evolução do conceito de belo, de 1924; Estudos de Iconologia, de 1939; O significado nas
artes visuais, de 1955; entre outras.
4
Entre suas obras, destacamos: Arte e percepção visual, de 1954; e Para uma psicologia da arte, de 1966.
5
De Arnold Hauser, consultar, sobretudo, História social da literatura e da arte, de 1951.
6
Como nos escritos de Rudolf Wittkower (1901-1971), Andre Chastel (1912-1990), Giulio Carlo Argan (1909-1992),
entre outros.
“valorização” é a correlação fundamental, dialética, entre os percursos da história da arte como
disciplina e as ações de proteção do patrimônio artístico:

Nos tempos em que a religião imperava nos quadros ou nas esculturas pensava-
se, por exemplo, em proteger a Anunciação de Donatello, à revelia do espaço em
que estava colocada. Depois surgiu a dúvida se também a arquitetura da igreja de
Santa Croce seria de conservar e estudar nas suas estratificações seculares. Hoje
sabemos que é importante proteger também o ambiente em que a igreja
franciscana surge, para passar depois a proteger o ambiente urbano, até ao
território inteiro de Florença. Em suma, a ideia de conservação do patrimônio
artístico é antes de tudo um problema de valorização, e anda por isso a par e
passo com a nova “história da arte” (ARGAN e FAGIOLO, 1992, p.102).

A necessidade de construir alternativas aos modelos classificatórios, aos preceitos de gosto e às


regras tradicionais de representação acabou por abrir caminho, na prática teórica e na escrita da
história da arte, para novos estudos e métodos de abordagem crítica e analítica, conforme citamos
brevemente nas premissas desta comunicação; e, na prática artística, para manifestações de
rompimento a partir de diferenciadas abordagens, desde os impressionistas em meados do século
XIX, até as vanguardas artísticas da virada do século e o amadurecimento das propostas
arquitetônicas de tendência racionalista.

Considerando o objeto central desta comunicação, ressaltamos que os percursos teóricos aqui
brevemente elencados abriram caminho para a valorização de artefatos até então considerados
menores, como as artes provenientes de civilizações não europeias e as arquiteturas cotidianas,
não excepcionais ou “monumentais”. Aloïs Riegl, ao propor uma história da arte universal, sugeriu
a valorização de “toda a hierarquia entre artes maiores e menores, na medida em que todas
fazem parte da evolução humana” (ARGAN e FAGIOLO, 1992, p.91), abordagem perseguida,
sobretudo, na obra Questões de estilo, de 1893, e retomada, a partir de outros enfoques, n’O
Culto Moderno dos Monumentos, de 1903; e na explanação dos conceitos de Kunstwollen (volição
de arte) e de Volksgeist (espírito de um povo). Na escala da cidade, ressaltamos ainda as
contribuições dos teóricos da estética urbana, como Camillo Sitte (1843-1903) e Charles Buls
(1837-1914) (RUFINONI, 2012), além dos estudos de Gustavo Giovannoni (1873-1947), voltados
à conservação de conjuntos urbanos históricos (KÜHL, 2013). Essa compreensão mais alargada
dos bens de interesse para preservação ganhou corpo a partir do segundo pós-guerra, em
ambiente europeu, quando o conceito de patrimônio histórico e artístico se expandiu
consideravelmente, incorporando interpretações baseadas no valor cultural e não apenas na
antiguidade, excepcionalidade ou qualidade estética. Essa compreensão mais ampla dos valores
atribuíveis aos artefatos repercutiu diretamente nas ações de salvaguarda e de proteção jurídica a
partir de então, ocasionado uma significativa expansão das tipologias de bens a preservar. No
entanto, nem sempre se verificou essa mesma postura no ato de restaurar propriamente dito. Em
muitas situações, nos casos em que os bens protegidos necessitavam de intervenções físicas
mais incisivas, as soluções adotadas não consideraram essa ampla gama de valores, deixando de
acompanhar, portanto, os aportes teóricos advindos da História da Arte.

Retornando às considerações iniciais expostas na apresentação deste colóquio, segundo Marco


Dezzi Bardeschi, nas primeiras décadas do século XX, disputavam espaço duas vertentes
divergentes com relação à forma de tratamento do patrimônio edificado: de um lado a vertente
ligada à cultura técnico-científica de arquitetos e engenheiros (a exemplo de Gustavo Giovannoni),
leitura que privilegiaria os aspectos documentais da obra, de acordo com os pressupostos do
restauro histórico ou filológico; e, de outro lado, a cultura formalística-iconográfica dos
historiadores e críticos de arte (como Venturi, Toesca ou Salmi), autores de grandes enciclopédias
visuais, nas quais os monumentos eram catalogados por meio das “clássicas imagens ideais e
frontais, (..) como supostos ícones supra-históricos, fixados em seu ano de nascimento e
insensíveis aos transcorrer do tempo” (DEZZI BARDESCHI, 2003, p.87). Esta vertente, por estar
associada à conservação de obras de arte, desconsideraria os acréscimos e poderia tender às
restaurações em estilo.

Os estudos de história da arte citados pelo autor relacionam-se, justamente, àquela cultura
marcadamente visual e classificatória bastante usual ao longo do século XIX, cujas análises
estariam apoiadas sobre imagens icônicas e referenciais de determinados períodos ou autores,
corroborando as ideias de estilo, originalidade e autoria. Outras interpretações surgiram, como
vimos, mas sua absorção no campo do restauro demorou a repercutir. Apesar das inovadoras
elaborações conceituais provenientes da História da Arte no início do século XX, como as obras
de AloÏs Riegl e Max Dvořák – estudiosos da citada escola de Viena que elaboraram estudos
específicos voltados ao tratamento dos monumentos históricos – é importante destacar que a
repercussão dessas investigações e abordagens nas práticas de preservação e restauração foi
muito limitada naquele momento histórico, sendo retomadas com maior atenção apenas no
segundo pós-guerra7. A longa permanência de referenciais críticos de tendência positivista e
classificatória, portanto, teria contribuído para o enraizamento, na cultura de projeto de restauro,
das reconstituições estilísticas; bem como para o entendimento do bem a preservar como um
objeto hermético e isolado.

Certamente, após a segunda guerra mundial, observamos a incorporação de estudos da História


da Arte ao campo da restauração, sobretudo a partir do “restauro crítico” e da teoria brandiana
(BRANDI, 2004), em território italiano, investigações que buscaram analisar o restauro como um
ato crítico dirigido ao reconhecimento da obra e de sua individualidade, evidenciando o caráter
artístico do monumento, demanda interpretativa que se acentuara diante das destruições do
conflito bélico e do consequente limite operativo atribuído ao “restauro filológico” ou “científico”
(RUFINONI, 2013, p.127). Conforme apontou Eneida de Almeida neste colóquio, a criação do
Istituto Centrale del Restauro (ICR), em 1939, por iniciativa de Giulio Carlo Argan e Cesare Brandi,
foi de fundamental importância neste processo. A atividade iniciada pelo ICR forneceu as bases
científicas e metodológicas para as discussões que se seguiram logo após a segunda guerra. A
partir da associação entre teoria e prática desenvolvida no interior do instituto, corroborou-se a
necessidade de conceber a restauração em um ambiente interdisciplinar, com a imprescindível
participação de disciplinas humanísticas, como a história, a história da arte e a arqueologia. As
contribuições teóricas desse período subsidiaram a elaboração da Carta de Veneza e adensaram
o debate no campo da restauração, abrindo caminho para a realização de várias reuniões

7
Principalmente as obras: Questões de estilo (1893) e O culto moderno dos monumentos (1903), ambas de Alois Riegl;
e Catecismo da preservação de monumentos (1916), de Max Dvořák. Scarrocchia observa que, somente a partir da
década de 1980, o estudo da obra de Riegl ganhou repercussão na Itália e nos principais países europeus,
notadamente após as primeiras traduções d’O Culto Moderno, quando a obra adquiriu atualidade, entre outros aspectos,
a partir do diálogo com a teoria brandiana (SCARROCCHIA, 2006, p. 35-36). Carbonara destaca, ainda, como uma das
grandes contribuições de Riegl a condução dos estudos sobre conservação e restauração, como campo disciplinar, ao
mesmo patamar das contemporâneas reflexões filosóficas e estéticas. Assim como Boito fora considerado aquele que
elevaria os princípios do restauro ao nível da consciência filológica no final do século, Riegl seria aquele que superaria a
visão positivista atrelada ao campo da conservação, reportando-o às modernas conceituações estéticas, atitude que
abriria caminho para os questionamentos do chamado ‘restauro crítico’, nas figuras de Roberto Pane e Renato Bonelli,
bem como para o desenvolvimento da teoria de Cesare Brandi (CARBONARA, 1997, 261-263).
científicas, para a redação de documentos internacionais e para a fundamentação de diferentes
correntes teóricas de intervenção: a “pura conservação” ou “conservação integral”; a
“manutenção-repristinação” ou “hipermanutenção”; e a “crítico-conservativa” (CARBONARA,
1997).

Em sua grande maioria, contudo, nas entrelinhas dos critérios que embasam a prática de
intervenções de restauro na atualidade, ainda vislumbramos prerrogativas que remetem às
posturas oitocentistas, aos sistemas classificatórios e à dicotomia entre arte e técnica.

Não obstante os desdobramentos teóricos do segundo pós-guerra, as contribuições do “restauro


crítico” e da teoria brandiana – discussões que levaram à redação da Carta de Veneza e de
diversos documentos internacionais voltados à preservação –, estudiosos como Arianna Spinosa
sugerem a repercussão da citada polaridade entre imagem e matéria na prática contemporânea
de restauração, quando se privilegia os aspectos histórico-estéticos da obra a restaurar, de um
lado; ou os seus dados físico-materiais, de outro (SPINOSA, 2011, p. 274). Deparamo-nos,
portanto, com a permanência de estudos que consideram a arquitetura com base em seus
aspectos visuais, em sua “imagem”; paralelamente às análises que enfatizam os aspectos
técnicos e documentais da obra a preservar, priorizando sua “materialidade”, em detrimento de
seus atributos artísticos.

ARTE E ARQUITETURA, ENTRE IMAGEM E MATÉRIA

Do exposto, evidenciamos que o diálogo interdisciplinar entre os métodos de estudo do campo


das artes e do campo da arquitetura permanece instável. Situação que evidencia, ainda hoje, a
inadequação das abordagens balizadas pela priorização da imagem da obra a preservar, de um
lado; ou de sua matéria, de outro. Certamente, tanto as arquiteturas como os objetos de arte –
pinturas, afrescos, esculturas, fotografias e até mesmo as imagens em movimento, como o
cinema e o audiovisual –, possuem ambas as informações: uma imagem, ou seja, um dado visual
a ser percebido, que pode comportar representações, narrativas, experiências cromáticas ou
abstrações; e um dado material, uma informação física e espacial que diz respeito aos materiais
de que a obra é feita e à espacialidade que ela promove. Parece-nos ingênuo afirmar, portanto,
que tanto uma apreciação descompromissada como um estudo atento de uma obra de arte /
arquitetura não se completariam na observação isolada de sua imagem, de um lado; ou de sua
matéria, de outro. Os dados visuais – o motivo ou a narrativa de uma pintura, por exemplo, e
todas as inferências históricas e socioculturais derivadas de suas especificidades de
representação e forma –; estão conectados aos dados materiais, aos elementos físicos que a
compõem: o fato de a obra ter sido criada sobre uma superfície de madeira, sobre a própria
parede, uma tela de tecido ou outro suporte; a presença de determinados pigmentos e sua
disponibilidade em cada momento histórico8; a rugosidade das pinceladas do artista, a luz
incidente na produção e na visualização da obra etc. Tais dados não são negligenciáveis, ou seja,
em uma obra de arte imagem e matéria são indissociáveis.

8
A este respeito, Felipe Chaimovich, curador da mostra O impressionismo e o Brasil, discorre sobre a repercussão das
inovações técnicas na prática de pintura entre os impressionistas: disponibilização de novos pigmentos, produção de
embalagens metálicas que permitiam transportar tintas para além do atelier, produção de telas etc.; novidades
viabilizadas pela industrialização do século XIX e que impulsionaram as experiências artísticas do período. Elementos
relacionados às “materialidades” da obra, porém diretamente envolvidos na “imagem” criada (CHAIMOVICH, 2017).
Na arquitetura, por sua vez, essa constatação não é tão evidente. Aquilo que poderíamos
denominar imagem em uma arquitetura, não é uma narrativa ou uma representação, ou apenas
uma abstração formal, resultante da conjugação entre ideia, gênio e materialidades habilmente
trabalhadas. A imagem, na arquitetura, é formada pelo conjunto de infinitas possibilidades de
experiência visual, concatenadas à experiência de adentrar, percorrer, sentir e viver o espaço,
explorando a chamada quarta dimensão wolffliniana. Diferentemente da pintura e até mesmo da
escultura, a imagem da arquitetura se conforma na própria matéria transmutada em formas
tridimensionais que constituem espaços habitáveis, passíveis de promover diversas experiências
perceptivas, corporais e memoriais, ao seu usuário e interlocutor. Em algumas arquiteturas,
detalhes e ornamentos podem comportar representações de formas conhecidas, não abstratas, a
exemplo de elementos ornamentais como frisos e capitéis com arranjos florais, esculturas e
formas em alto relevo que fazem parte de certas arquiteturas construídas entre o século XIX e as
primeiras décadas do século XX, categorizadas pela historiografia como “ecléticas”. A completude
do objeto arquitetônico, no entanto, não se lê em seus elementos de composição analisados
isoladamente, sejam ornamentais ou estruturais, e sim em sua inteireza espacial, na conjugação
entre a massa construída e seu “negativo”, o espaço habitável e experienciável. Uma arquitetura
não se compreende completamente a partir do estudo de sua representação bidimensional, como
uma fotografia ou uma cena de cinema. E Bruno Zevi nos alertou sobre isso ao relatar a
dificuldade dos historiadores e críticos de arte de compreender a arquitetura como construção do
espaço, tema abordado no texto “A ignorância da arquitetura” (ZEVI, 1978, p.9-16), que introduz o
famoso livro Saber ver a arquitetura, publicado originalmente em 1948 e ainda hoje bastante atual.

Ao discorrer sobre a dificuldade encontrada por arquitetos, historiadores ou críticos de arte para
se fazerem portadores da mensagem arquitetônica, Zevi elencou alguns temas de debate que
convergem para as distinções entre as especificidades dos objetos de arte e de arquitetura. Aqui
destacamos a questão da espacialidade e das formas usuais de representação ou exposição; e os
anacronismos próprios à historiografia da arquitetura. Segundo o autor, a história da arquitetura foi
escrita, em grande parte, por arquitetos; ao passo que a história da arte poucas vezes foi narrada
por artistas. Ou seja, a historiografia vinda da pena de arquitetos elegeu certos períodos como
gloriosos e destinou outros a segundo plano, dificultando a compreensão da produção
arquitetônica em correlação com o seu tempo histórico, com o “espaço-tempo”.

A cultura dos arquitetos modernos está frequentemente ligada a sua crônica


polêmica. Lutando contra o academismo falsário e destruidor, têm declarado
muitas vezes, ainda que inconscientemente, o seu desinteresse pelas obras
autênticas do passado, e desta forma renunciado a extrair delas o elemento
condutor vital e perene sem o qual nenhuma nova posição de vanguarda se
desenvolve numa cultura (ZEVI, 1978, p.11).

Com relação à representação, o autor discorre sobre a impossibilidade material de se realizar


exposições ou estudos gráficos sobre arquitetura sem se valer de desenhos ou fotografias, ou
seja, sem recorrer a meios de representação e de exposição usualmente empregados para as
obras bidimensionais e que não permitem que se ofereça a experiência real no espaço. Por outro
lado, discorre sobre a inadequação de se aplicar os métodos de análise da história da arte para o
estudo da arquitetura; métodos que, uma vez mais, enfatizam a visualidade e desconsideram a
espacialidade essencial das obras edificadas:

Qual é o defeito característico da maneira de tratar a arquitetura nas histórias da


arte correntes? Já foi dito repetidas vezes: consiste no fato de os edifícios serem
apreciados como se fossem esculturas e pinturas, quer dizer, externa e
superficialmente, como puros fenômenos plásticos. Em vez de uma falta de
método crítico, é um erro de atitude filosófica (...), a massa dos críticos estende os
métodos valorativos da pintura a todo o campo das artes figurativas, reduzindo
tudo aos valores pictóricos. Desta forma, esquecem o que é específico da
arquitetura e, portanto, diferente da escultura e da pintura (...). (ZEVI, 1978, p.13)

Das observações de Bruno Zevi depreendemos a dicotomia entre imagem e matéria e entre arte e
técnica, em sua relação espaço-tempo: a arquitetura vista como imagem, sem percepção de seu
espaço, ou a arquitetura vista como técnica, como obra de engenharia. Mas toda essa
explanação, afinal, não nos parece óbvia? Então por que, nos estudos teóricos e nas ações de
preservação e restauração, imagem e matéria são tratadas distintamente? Seria possível
identificar as origens dessa polarização entre os campos da história da arte e da arquitetura?

Não objetivamos, certamente, uma meta tão ousada. Além da obra fundamental de Bruno Zevi
acima citada, revisitaremos outra referência tradicional da historiografia da arquitetura, os escritos
de Leonardo Benevolo, a fim de ensaiar alguns apontamos acerca das repercussões dessas
dissociações disciplinares no tratamento do patrimônio edificado.

IDENTIDADES DISCIPLINARES, ENTRE A AUTONOMIA E O ISOLAMENTO

Ao discorrer sobre as relações entre arte e técnica, Benevolo apontou questões que podem nos
auxiliar a compreender algumas das origens da dissociação entre os estudos das artes e da
arquitetura. Para o autor, a cultura do humanismo, ao valorizar a análise das ações e razões
humanas concretas e sobrepujar o conceito medieval de “noções universais”, teria impulsionado
uma gradativa dissociação entre o momento da ideação e o momento da execução na produção
artística, pictórica e escultórica. Na ars medieval, arte e técnica conjugavam-se como faces de
uma mesma ação. A partir das transformações socioeconômicas, incluindo as formas de
organização do trabalho, impulsionadas pela cultura do Renascimento, ao longo do processo de
individuação da atividade do artista, a ideação, ao deixar de se limitar a uma única categoria de
objetos, estendeu-se virtualmente a todos, ou seja:

O escultor (capaz de realizar formas tridimensionais) e o pintor (capaz de realizar


formas de duas dimensões, mas que possui um método exato para fazer com que
as imagens pintadas correspondam àquelas em relevo) transformam-se no artista
universal, que escolhe no campo das formas visíveis – que a perspectiva tornou
equivalentes – aquelas às quais prefere dedicar-se. O arquiteto da Renascença
não é o herdeiro do arquiteto medieval, mas corresponde a uma das
especializações do novo personagem, o artista, já acima da organização
corporativa tradicional (BENEVOLO, 2004, p.85).

Assim, apesar da individuação da atividade do artista, arte e técnica, ideação e execução, ainda
conectavam-se como faces de um mesmo conhecimento. As exigências da especialização,
contudo, sobretudo a partir do final do século XVIII, sob a égide da cultura iluminista, tornariam
independentes outros conjuntos de conhecimentos que se organizariam em disciplinas
específicas, como aquelas associadas às ciências e à tecnologia, momento em que a atividade
artística, em seu isolamento disciplinar, teria se descolado de sua realidade técnica. Os frutos
desta especialização no campo arquitetônico levariam à separação entre o profissional voltado ao
atendimento das questões técnicas e funcionais: o técnico construtor (o engenheiro) e aquele
voltado aos requisitos formais, o artista construtor (o arquiteto).

Se, por um lado, a especialização e a organização disciplinares desencadeadas pela cultura


iluminista fizeram nascer a História da Arte e, décadas depois, o próprio Restauro como
disciplinas autônomas, evidenciando especificidades ontológicas, epistemológicas e
metodológicas; por outro lado, esta mesma especialização acabou por enraizar práticas e olhares
investigativos de certa forma introspectivos, levando-nos confundir autonomia com isolamento.

Este contexto de dissociação entre ideação e execução tem sido a chave de leitura da arquitetura
construída no século XIX, que a historiografia designou como “eclética”: uma produção que
evidenciaria, nas palavras de Benevolo, a destruição da “recíproca adaptação da técnica e da
arte”, quando a “técnica da construção desenvolve os seus processos neutros com relação às
opções estilísticas” e a “arte da construção”, por sua vez, “cultiva uma pluralidade de opções
estilísticas que permanecem na superfície dos artefatos e se tornam, muitas vezes, uma simples
decoração permutável” (BENEVOLO, 2004, p.87). A arquitetura do século XIX foi pautada por
modelos e referências visuais do passado reconvocadas ao presente em um contexto histórico e
sociocultural complexo, no qual, entre outros aspectos, este rico e instigante processo de
“iniciação ao mistério da história”, como sugeriu Argan (2010, p.403), é um dos temas ainda
insuficientemente estudados pela historiografia da arquitetura9. Certamente há, portanto, nas
palavras de Benevolo, um juízo depreciativo com relação aos artefatos do século XIX que os
estudos de história da arquitetura ainda precisam desconstruir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da segunda metade do século XX até os dias atuais, portanto, observamos um


descompasso desconcertante: de um lado, os estudos de patrimônio incorporaram aquisições
teóricas de diversos campos disciplinares: da História da Arte à Antropologia, da Sociologia à
Escola dos Annales, expandindo tipológica e cronologicamente os artefatos a serem preservados;
e de outro, a prática efetiva de preservação, desde as normativas de tutela até os critérios de
intervenção de conservação e restauro, ainda mantém laços com as tendências estilísticas e
classificatórias, gerando dificuldades na abordagem e no tratamento de uma obra de arte
integrada a uma arquitetura, de uma arquitetura integrada a um conjunto urbano, ou de um
patrimônio construído não “monumental”.

As desconexões disciplinares aqui apontadas têm sido agravadas, certamente, pela ampliação
conceitual do que definimos como bem cultural e pela crescente necessidade de abordar artefatos
complexos, em diferentes escalas e contextos. Essa noção mais alargada do objeto a preservar –
principalmente quando se trata de arquiteturas não excepcionais, nas quais os atributos estéticos
(visuais) não são tão evidentes, ou no caso de conjuntos edificados e de áreas urbanas –,
impulsionou a necessidade de promover relações interdisciplinares, tanto na fase de estudo como
na fase propositiva. A participação e contribuição de diversos saberes (dos campos da
conservação e do restauro, do urbanismo, do projeto arquitetônico, bem como da engenharia,
história, história da arte, estética, sociologia etc.) tornou-se, portanto, indispensável para a

9
Esta é uma linha de investigação que poderá descortinar laços projetuais entre arte e arquitetura que o pensamento de
base modernista, do qual somos herdeiros, ainda tem dificuldade de identificar e interpretar.
apreensão das especificidades que compõem artefatos tão complexos e dinâmicos. De modo
geral, contudo, cada disciplina tem procurado desenvolver a sua etapa, a “parte que lhe cabe” no
processo da preservação, sem buscar o entendimento e o contato com os demais campos do
saber envolvidos na questão. A desejada interdisciplinaridade recomendada pelos documentos
internacionais não tem acontecido de forma efetiva, pois

os vários aportes de competências não propiciam esclarecimentos; de fato, as


contribuições que deveriam concorrer para o desenvolvimento exaustivo de um
determinado tema, longe de tender a uma nova síntese, insistem geralmente em
acentuar interesses e particularidades próprias do campo disciplinar do qual
provêm, ignorando qualquer conexão e subtraindo-se à busca de denominadores
comuns (MIARELLI MARIANI, 1988, p.16, trad.nossa).

Os temas de debate aqui brevemente expostos sinalizam descompassos disciplinares que, além
de aprofundar um distanciamento perigoso entre conhecimentos imprescindíveis para a
compreensão dos artefatos de interesse para a preservação, podem ainda impulsionar projetos
equivocados de conservação e restauro. Às discussões acima apontadas, somam-se, ainda, os
desafios advindos da expansão do conceito de patrimônio cultural na contemporaneidade,
sobretudo relacionados à identificação e valorização de elementos intangíveis que qualificam e
significam o patrimônio edificado. Há, portanto, um longo caminho a ser percorrido em torno da
complementaridade disciplinar na preservação.

Acreditamos que um ponto de partida deverá ser, justamente, a construção de uma prática de
colaboração realmente interdisciplinar, teórica e prática, desde as formações universitárias, como
exposto por Ana Paula Farah e Eneida de Almeida neste colóquio, incitando os estudantes a
buscarem diálogos com as demais áreas do conhecimento envolvidas na preservação.

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