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Nº 541 | Ano XIX | 16/9/2019

Planos de saúde e o SUS


Uma relação predatória

José Sestelo
Ligia Bahia
Alcides Miranda
Élida Hennington
Lisiane Bôer Possa
Carlos Ocké

Leia também
■ João Ladeira
■ Cris Serra
EDITORIAL

Planos de saúde e o SUS.


Uma relação predatória

O
s planos de saúde privados estão gestan- tivação da assistência pública, que empurram
do uma nova ofensiva sobre o sistema pú- usuários para o sistema privado. O caminho, se-
blico. Ao contrário do que se imagina, e gundo a professora, passa pelo “fortalecimento
que normalmente ocorre quando o tema é a priva- de uma consciência crítica que favoreça a defesa
tização, a ideia não é acabar com o SUS e conceder daquilo que é público, do uso adequado dos im-
a empresas a gestão e a assistência à saúde. O so- postos que pagamos, do compromisso dos go-
nho das operadoras é liberdade de mercado para vernantes para o direcionamento dos recursos
venderem e entregarem somente o que quiserem, para as políticas sociais”.
empurrando para o sistema público o que é mais Professora do curso de graduação em Saúde
oneroso e que compromete os seus lucros. Cons- Coletiva da UFRGS, Lisiane Bôer Possa ana-
titui-se uma espécie de relação parasitária entre lisa como para os planos privados é importante
planos privados de saúde e o SUS. ter o domínio sobre a regulação estatal. “A in-
A edição da revista IHU On-Line desta sema- terferência que querem que diminua é da regu-
na debate o tema com especialistas e gestores lamentação sobre as suas responsabilidades as-
que atuam na área da saúde pública. sistenciais, para ampliar sua clientela através da
José Antonio de Freitas Sestelo, dentista venda de planos e seguros baratos com ofertas
e doutor em Saúde Coletiva, compreende essa de cestas básicas assistenciais para os pobres, e
ação dos planos privados como uma manifesta- sobre os reajustes”, resume.
ção do capitalismo de nosso tempo, aplicado ao Carlos Octávio Ocké-Reis, doutor em Saú-
2 campo da saúde. Para ele, “o comércio de pla- de Coletiva, também chama a atenção de que,
nos e seguros de saúde não quer se apresentar, e na mesma medida em que a regulação estatal
não se apresenta, como uma ameaça de extinção vai sendo cooptada, o SUS vem sendo desidrata-
para o sistema público”. O que de fato se quer é do pelas orientações tecnocráticas e neoliberais
“controlar, ajustar e subordinar o funcionamen- de muitos governos. “A estratificação de cliente-
to do SUS à lógica de acumulação privada de la acabou sendo, portanto, um espinho na car-
capital e concentração de recursos assistenciais. ne dos sanitaristas: superamos o seguro social,
A professora da UFRJ Ligia Bahia, doutora mas caímos nas garras do seguro privado, na
em Saúde Pública, chama atenção para a ideia contramão do modelo universal”, pontua.
de criação dos chamados “planos de saúde po- Também pode ser lido o artigo de João La-
pulares”, que escondem um alto custo e baixa deira, em que analisa o filme Bacurau (2019),
efetividade em atendimento e assistência. “São e a entrevista com Cris Serra, psicóloga, so-
mercadorias que denominamos ‘Melhoral e bre os desafios da inserção da comunidade
copo d’água’, pois os clientes pagam mensal- LGBT na Igreja.
mente e quando precisarem terão que recorrer
A todas e a todos uma boa leitura e uma exce-
ao SUS”, destaca.
lente semana!
Diante dessa ofensiva, o sistema privado de saú-
de naturaliza o fato de o SUS ser relegado a um
plano complementar. É o que aponta o médico
Alcides Silva de Miranda, doutor em Saúde
Coletiva. “Em função de subfinanciamento crôni-
co e de sucessivos erros estratégicos de políticas
governamentais (alguns intencionais), o SUS se
tornou ‘complementar’ ao setor privado (consti-
tucionalmente deveria ser o inverso)”, sintetiza.
Élida Azevedo Hennington, pesquisado-
ra da Fundação Oswaldo Cruz, toca num ponto
delicado: a defesa que se faz do SUS, enquanto
se busca atendimento dos planos privados. Para
ela, são movimentos que têm origem no subfi- Capa: arte Jonathan
nanciamento do SUS e na dificuldade de efe- Camargo/IHU

16 DE SETEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Cris Serra | O impacto dos gestos concretos de acolhimento de Francisco para
a comunidade LGBT+
14 ■ Tema de capa | José Antonio de Freitas Sestelo: A relação predatória e concorrencial
dos Planos de Saúde com o SUS
22 ■ Tema de capa | Ligia Bahia: Os riscos dos planos de saúde que só oferecem “Melhoral
e copo d’água”
26 ■ Tema de capa | Alcides Silva de Miranda: O SUS reduzido a sistema complementar
do setor privado
34 ■ Tema de capa | Élida Azevedo Hennington: Defensores do sistema público, mas usuários
de planos de saúde
38 ■ Tema de capa | Lisiane Bôer Possa: Regulação estatal sim, mas só se for para aumentar
o lucro de planos privados

48 Tema de capa | Carlos Octávio Ocké-Reis: Ferindo os pressupostos constitucionais do SUS,
governo federal amplia a desigualdade de acessos à saúde
52 ■ Cinema | João Martins Ladeira: Os muitos êxitos de Bacurau
55 ■ Outras edições
3

Diretor de Redação Patrícia Fachin, Cristina Guerini,


Inácio Neutzling Evlyn Zilch, Stefany de Jesus Rocha,
(inacio@unisinos.br) Wagner Fernandes de Azevedo e
Amanda Bier.
Coordenador de Comunicação - IHU
Ricardo Machado – MTB 15.598/RS
(ricardom@unisinos.br)
Redação
João Vitor Santos – MTB 13.051/RS
(joaovs@unisinos.br)
ISSN 1981-8769 (impresso)
Patricia Fachin – MTB 13.062/RS
ISSN 1981-8793 (on-line) (prfachin@unisinos.br)
Wagner Fernandes de Azevedo
(wfazevedo@unisinos.br)
A IHU On-Line é a revista do Institu-
to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Revisão Instituto Humanitas Unisinos - IHU
publicação pode ser acessada às segun- Carla Bigliardi
das-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e Av. Unisinos, 950 | São Leopoldo / RS
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Ricardo Machado Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128
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Editoração
A versão impressa circula às terças-fei- Gustavo Guedes Weber
ras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O Diretor: Inácio Neutzling
conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Atualização diária do sítio Gerente Administrativo: Nestor Pilz
Inácio Neutzling, César Sanson, (nestor@unisinos.br)

EDIÇÃO 541
TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana.

Os sociólogos distraídos e a invasão


ideológica nas Ciências Sociais
De acordo com o professor José de Souza Martins, a distração dos soci-
ólogos brasileiros com os rumos do país sinaliza um outro problema: a
invasão ideológica neutralizou a ciência.
José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Uni-
versidade de São Paulo - USP. Disponível em http://bit.ly/2kc7lAN.

Amazônia e os militares: a tríade ocupação-


desenvolvimento-soberania é indissociável
A “preocupação” dos militares com o Sínodo Pan-Amazônico “remete às
divergências já bastante documentadas entre o setor progressista da Igre-
ja Católica, as pastorais e as Forças Armadas durante a luta pela demar-
cação das terras indígenas no Brasil”.
Adriana Marques leciona no Bacharelado em Defesa e Gestão Estratégica Internacional da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Disponível em: http://bit.ly/2mc8WXX.

4 Os desafios da Defensoria Pública

O maior desafio da Defensoria Pública “é demonstrar que muito mais do


que ‘defender bandido’, a Defensoria faz um longo trabalho de constituição
e reconhecimento da moradia digna, de empoderamento das comunidades
e das mulheres vítimas da violência”.
Isabel Wexel é defensora Pública do estado do RS e integrante do Núcleo pela Moradia. Disponível
em: http://bit.ly/2lSVvvF.

A milícia avança nos territórios do Comando


Vermelho
“O padrão da milícia é entrar, eliminar o CV, dar entrada para o Ter-
ceiro Comando Puro e fazer o acordo com ele”, relata o sociólogo José
Cláudio Alves.
José Cláudio Alves é doutor em sociologia pela USP e professor na Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro. Disponível em: http://bit.ly/2lNzwGJ.

A empresa do tráfico de drogas e a


proliferação da pobreza no Norte e Nordeste
Os altos índices de violência nos estados do Norte e Nordeste podem ser
explicados pelo fato de que essas regiões foram privadas de “políticas pú-
blicas de desenvolvimento regional”.
Roberto Reis Netto é professor do curso de graduação em Direito, na Escola Superior Madre
Celeste - ESMAC, e instrutor no Instituto de Ensino de Segurança Pública do Pará - IESP. Disponível
em: http://bit.ly/2lKaM1W.

16 DE SETEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

A desatenção e as “Aversão profunda” de ‘Quem mora na periferia


ideologias que inebriam Bolsonaro aos indígenas recebe a maior dose de
entendimento de um define políticas do poluição’, alerta médico
Brasil real governo, diz sertanista

José de Souza Martins, em Para Sydney Possuelo, in- “Onde tem mais carro, tem
sua palestra na Unisinos, digenista e ex-presidente da mais poluição. Mas quem
disse que é preciso estar Funai, Bolsonaro é influen- leva o carbono nos pulmões?
atento à realidade local, com ciado por corrente militar Quem mora na periferia”,
as suas particularidades. que se opõe a Rondon e pre- afirma Paulo Saldiva. “É
Por isso, se torna inviável ga a extinção das culturas justamente esse pessoal que
a simples aplicabilidade de indígenas. tem menos condições de con-
teorias importadas. “Não dá A reportagem é de Vasconcelo Qua- trolar doenças cardíacas, a
para aplicar, porque somos dros, publicada por Agência Pública, saúde respiratória, diabetes,
outras sociedades. As socie- 4-9-2019 e reproduzida nas Notícias é quem vai receber a maior
do Dia de 10-9-2019, disponível em
dades têm originalidade. E o http://bit.ly/2kEp4kv.
dose de poluição.”
Brasil tem a sua”, reitera. A entrevista é de Mariana Alvim, publi-
Reportagem de João Vitor Santos, cada por BBC Brasil, reproduzida nas
publicada nas Notícias do Dia de Notícias do Dia de 9-9-2019, disponível
11-9-2019, disponível em http://bit. em http://bit.ly/2kGLS2Z.
ly/2mbcdXt.

O Papa Francisco e a “A desigualdade é “O reacionário quer ser


crise climática: “Vamos ideológica e política”: o mestre da história”.
salvar as florestas” extratos do novo livro de Entrevista com Mark Lilla
Thomas Piketty

Francisco fala ao mundo: O economista francês pu- Em Esprit de réaction (Es-


se é verdade, de fato, que blica, nessa quinta-feira, 12 pírito de reação, Desclée de
algumas atividades que in- de setembro, pelas edições Brouwer), o cientista polí-
terferem no meio ambiente Seuil, Capital e Ideologia, tico norte-americano Mark
“são aquelas que garantem um livro que investiga a for- Lilla se pergunta por que a
no momento sua sobrevivên- mação e a justificativa das nostalgia está experimen-
cia”, é igualmente evidente desigualdades. Le Monde tando um reavivamento en-
que o próprio ambiente pre- publica alguns extratos. tre os dirigentes populistas.
cisa de “proteção”. Os fragmentos do novo livro de Tho- A entrevista é de Pascale Tournier,
A reportagem é de Paolo Rodari, mas Piketty foram reproduzidos nas publicada por La Vie, reproduzida nas
publicada por La Repubblica, reprodu- Notícias do Dia de 12-9-2019, disponí- Notícias do Dia de 13-9-2019, disponí-
zida nas Notícias do Dia de 9-9-2019, vel em: http://bit.ly/2mbGPYN. vel: http://bit.ly/2m8V3JV.
disponível em http://bit.ly/2mbdFsT.

EDIÇÃO 541
AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Ecofeira Unisinos A exploração do EAD: Jesus e o Reino


Rio Grande do Sul no Evangelho
como nova fronteira de Marcos
mineral para empresas
transnacionais

18/set 19/set 22/set


Horário Horário Quarta etapa:
13h às 14h 17h30min Formação dos discípulos e
compromisso para hoje –
Cine-vídeo Conferencista Quem é Jesus? O que
Liberação de agrotóxicos Dr. Caio Santos – UFRGS significa o seguimento
pode causar epidemia de pela cruz? (Mc 8,27–13,37)
doenças em humanos Local
Sala Ignacio Ellacuría e
Local Companheiros – IHU
Corredor Central – Campus Unisinos
Em frente ao IHU São Leopoldo
Campus Unisinos
São Leopoldo

6
Oficina das bases de Cinedebate: Oficina: Construindo
dados do DataSUS Farenheit 451 sua horta
(Direção: François
Truffaut. Reino
Unido, 1966)

24/set 24/set 25/set


Horário Horário Horário
14h30min às 17h 16h às 19h30min 14h às 16h
Conferencistas Conferencista Conferencista
Profa. Dra. Veralice Maria Profa. Dra. Nísia Martins Daiani Fraporti dos Santos,
Gonçalves – Escola de do Rosário – UFRGS Denise Maria Schnorr e
Saúde Pública do RS Gelson Luiz Fiorentin –
Local PASEC – Unisinos
Local Sala Ignacio Ellacuría e
Sala de Informática – Companheiros – IHU Local
B09 008 Campus Unisinos Horta da Gastronomia
Campus Unisinos São Leopoldo Campus Unisinos
São Leopoldo São Leopoldo

16 DE SETEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

“ GIG - A Uberização Ecofeira Unisinos Direito à cidade,


do Trabalho” colonialidade e
Exibição e debate do território. A disputa
filme documentário de pelo Cais Mauá
Carlos Juliano Barros

25/set 02/out 02/out


Horário Horário Horário
17h às 19h 13h às 14h 17h30min
O debate será coorde- Cine-vídeo Conferencista
nado pelo Prof. Dr. Rafael Projeto PANCs – plantas Dra. Karina Macedo
Grohmann – Unisinos alimentícias não conven- Fernandes – TJ-RS
cionais (Valdely Kinupp,
Local Coletivo Catarse) Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Local Companheiros – IHU
Campus Unisinos Corredor Central – Campus Unisinos
São Leopoldo Em frente ao IHU São Leopoldo
Campus Unisinos
São Leopoldo

EDIÇÃO 541
ENTREVISTA

O impacto dos gestos concretos


de acolhimento de Francisco
para a comunidade LGBT+
Para Cris Serra, o pontífice “não se limita a defender uma ‘Igreja
em saída’; ele demonstra o que diz com seus atos
Ricardo Machado | Edição: Patricia Fachin

A
“imagem gay-friendly” do papa tãs e salienta os desafios no interior do
Francisco, construída em con- cristianismo. “Os desafios são muitos;
traste com seus dois últimos an- contudo, de longe o principal, hoje,
tecessores, não contempla as declara- no tocante aos cristianismos em geral
ções do pontífice condenando a teoria e ao catolicismo romano em particu-
de gênero. Apesar desta posição aparen- lar, são os ataques antigênero, a partir
temente antagônica, a mudança de en- da criação da famigerada ‘ideologia de
foque pastoral de seu pontificado “é ine- gênero’. Essa expressão, criada para
gável”, pontua Cris Serra, pesquisadora deslegitimar simultaneamente o campo
do Centro Latino-Americano em Sexua- de estudos de gênero, os movimentos
lidade e Direitos Humanos – CLAM, co- LGBTI+ e feminista e as lutas pela ga-
ordenadora nacional da Rede Nacional rantia e expansão de direitos sexuais
de Grupos Católicos LGBT e ativista de e reprodutivos, foi forjada e elaborada
8 Católicas pelo Direito de Decidir. “Fran- inicialmente em ambientes católicos, a
cisco não se limita a defender uma ‘Igre- partir dos anos 1990, e depois adotada
ja em saída’, uma Igreja que vá em dire- e disseminada também por segmentos
ção às periferias, uma Igreja de ‘pastores de outras igrejas cristãs – bem como
com cheiro de ovelha’. Ele demonstra o por movimentos, grupos e atores que se
que diz com seus atos ao receber em au- apresentam como cristãos e/ou se va-
diência o homem trans espanhol e sua lem de um vocabulário e uma retórica
companheira; ao lavar os pés da travesti (supostamente) cristãos”.
numa Quinta-feira Santa; ao dizer para
o gay chileno vítima de abuso por sa- Cris Serra é psicóloga, graduada pela
cerdotes que Deus o fez assim e o ama Pontifícia Universidade Católica do Rio
como ele é; ao receber o grupo de cató- de Janeiro – PUC-Rio, mestre e douto-
licos LGBT ingleses; entre tantas outras randa em Saúde Coletiva pelo Instituto
iniciativas”, afirma. de Medicina Social da Universidade Es-
tadual do Rio de Janeiro - UERJ, com
Na entrevista a seguir, concedida por
pesquisa em gênero e religião. Ela es-
e-mail para a IHU On-Line, Cris Serra
teve no Instituto Humanitas Unisinos
ressalta que “esses gestos concretos de
– IHU no dia 20-8-2019, apresentando
acolhimento por parte do Papa, por mais
seu livro Viemos pra comungar: Os
que ele afirme e reafirme que não passa
grupos de católicos LGBT brasileiros
de ‘um filho da Igreja’ e que ‘a doutrina
e suas estratégias de permanência na
da Igreja é uma só e permanece a mes-
Igreja (Rio de Janeiro: Metanoia edito-
ma’, têm um impacto efetivo justamente
ra, 2019).
por entrarem em profunda contradição
com toda a atitude moralista, de conde- A entrevista foi originalmente pu-
nação e exclusão, que foi preponderante blicada nas Notícias do Dia de 13-09-
nos dois pontificados anteriores”. 2019, no sítio do Instituto Humanitas
A psicóloga também reflete sobre o Unisinos – IHU, disponível em http://
ativismo em prol da diversidade sexu- bit.ly/2kyBgn3
al e de gênero nas comunidades cris- Confira a entrevista.

16 DE SETEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

“O sintagma “ideologia de gênero” serve


para amalgamar todos os elementos
que escapam, questionam ou criticam
um determinado ordenamento
normativo de gênero e sexualidade”

IHU On-Line – De onde vem a rantia e expansão de direitos daque- e irmãs, filhos, primos, sobrinhos,
ideia de que diversidade sexu- la parcela da população hoje abriga- amigos, amigas, vizinhos, conheci-
al e religião são dimensões in- da sob siglas como LGBT, LGBTQI, dos de pessoas LGBTQI+. Historica-
compatíveis?  LGBTI+ e afins vem sendo invisibi- mente, cristãos e cristãs se sentiram
lizado tanto quando se conta a his- e sentem chamados a refletir, de ma-
 Cris Serra - A oposição entre “se-
tória dessas lutas quanto quando se neira sistemática ou não, sobre iden-
xualidade” e “religião” como dimen-
rememora a trajetória recente dos tidades, sexualidades, orientações
sões dicotômicas e inconciliáveis é
cristianismos. De fato (e a despeito sexuais, experiências de gênero, des-
uma característica muito central e
desse apagamento), à medida que se de suas próprias vivências religiosas
peculiar da visão de mundo ociden- organizava, ao longo do século XX, e concepções cristãs – e, do mesmo
tal moderna. Predomina na moder- um ativismo em prol da diversidade modo, sobre suas vivências religio-
nidade ocidental uma representa- sexual e de gênero, e à medida que sas e concepções também desde suas
ção da “religião” como um domínio emergiam e se consolidavam novas próprias identidades, sexualidades,
antiquado (quando não retrógrado, identidades, despontaram em dife- orientações sexuais, experiências 9
ou mesmo obscurantista) e pudico rentes ambientes cristãos iniciativas de gênero. E essas reflexões, em
(ou mesmo francamente repressi- de atenção pastoral e debates acerca seu conjunto, são muito mais ricas,
vo). Em contraste, a “sexualidade” das concepções vigentes sobre a se- matizadas e multifacetadas do que
corresponderia ao que há de mais xualidade em geral, e a diversidade a ênfase de alguns na univocidade,
expressivo e autêntico em termos sexual e de gênero em particular. na unidirecionalidade e na ortodoxia
da “verdade de si” dos sujeitos. En- Inaugurou-se, assim, uma interlo- das doutrinas cristãs, dos discursos
tretanto, tanto essas duas categorias cução constante, que se deu – e con- eclesiásticos oficiais e da autoridade
quanto o antagonismo entre elas são tinua se dando – nos mais diversos magisterial podem nos levar a crer.
resultado de uma construção cul- âmbitos: nas orações e elaborações Para além do discurso hegemônico
tural que é situada historicamente, pessoais e comunitárias dos cristãos sobre sexualidade e gênero nos cris-
como nos lembra o antropólogo Ta- e cristãs; nas atividades paroquiais; tianismos, há uma multiplicidade
lal Asad. Há que se ter em mente que nas pastorais da família, da juventu- de concepções contra-hegemônicas
esse entendimento do que seja o “re- de e outras; nos seminários e outras que atravessam desde as atividades
ligioso” tem raízes no Iluminismo, esferas de formação de religiosos; pastorais mais “pé no chão” até as
quando se consolidou a atribuição nas instituições de ensino cristãs; na elaborações teológicas mais sofis-
de um caráter “ilusório” à “religião”, academia; em diferentes campos da ticadas – e se somam aos discursos
entendida como sendo da ordem da teologia; e muitos outros. oficiais para compor uma vasta rede
“crença” e, portanto, identificada de linhas de força que se cruzam e se
com o domínio da subjetividade. Es- Trata-se de um diálogo multilate-
ral e multidimensional, no sentido tensionam, em permanente negocia-
tabeleceu-se, assim, a inferioridade ção e busca de legitimação.
de que não são apenas cristãos re-
da “religião” em relação à “ciência”
fletindo sobre a “diversidade sexu-
como fonte de conhecimento sobre o  
al” como algo que lhes é estranho e
mundo “objetivo”. IHU On-Line – Quais são os
alheio. Cristãos e cristãs são também
desafios no mundo contempo-
No caso da diversidade sexual e de pessoas lésbicas, gays, bissexuais,
râneo no que concerne às rela-
gênero, sua suposta incompatibili- travestis, transexuais, transgênero,
ções entre sexualidade e confis-
dade com o que seja o “religioso” é queer, intersexo – e acrescente-se
sões religiosas? 
reforçada pela maneira como o cons- aqui quaisquer outras identidades
tante diálogo entre a religião – espe- que venham a se constituir e se con-   Cris Serra - Os desafios são mui-
cialmente os cristianismos, que nos solidar socialmente. Cristãos e cris- tos; contudo, de longe o principal,
interessam aqui – e as lutas pela ga- tãs são também pais e mães, irmãos hoje, no tocante aos cristianismos

EDIÇÃO 541
ENTREVISTA

em geral e ao catolicismo romano Em termos retóricos, é uma estraté- cia do estigma, que leva à vergonha,
em particular, são os ataques anti- gia muito inteligente. Ao insistir em ao medo, à culpa, ao silenciamento
gênero, a partir da criação da fami- caracterizar como “ideológico” todo e à invisibilização. O fantasma do
gerada “ideologia de gênero”. Essa e qualquer alvo de seus ataques, a “pecado” ou o temor de ser uma
expressão, criada para deslegiti- posição antigênero – ainda mais por “abominação” acompanha a pessoa
mar simultaneamente o campo de ser articulada em linguagem cristã mesmo quando ela já foi expulsa ou
estudos de gênero, os movimentos – reforça sua própria sacralidade. se autoexilou de sua comunidade de
LGBTI+ e feminista e as lutas pela Afinal, “ideologia” é sempre o que “o origem, de sua família, das referên-
garantia e expansão de direitos se- outro” defende. O que “eu” defendo cias religiosas, dos símbolos sagra-
xuais e reprodutivos, foi forjada é “ordem natural”, “ordem sagrada”, dos e da experiência de fé em que foi
e elaborada inicialmente em am- “ordem divina”, “transcendente”. socializada. A pessoa muitas vezes é
bientes católicos, a partir dos anos Evidentemente, trata-se de uma in- convencida de que carrega algo tão
1990, e depois adotada e dissemi- verdade. A norma cis-heterossexual maligno que se crê indigna do amor
nada também por segmentos de é tão arbitrária, construída social e de Deus ou, de resto, de qualquer
outras igrejas cristãs – bem como culturalmente e situada historica- forma de amor. Crendo-se condena-
por movimentos, grupos e atores mente – e, portanto, “ideológica” – da à danação eterna, na tentativa de
que se apresentam como cristãos quanto qualquer outra. se salvar, deixa-se submeter – ou se
e/ou se valem de um vocabulário e submete espontaneamente – a todo
Desse modo, a “ideologia de gêne-
uma retórica (supostamente) cris- tipo de mutilações, do corpo e da
ro” vem se configurando como o ró-
tãos. Sobretudo na Europa (onde alma, chegando não raro ao suicídio.
tulo ideal sob o qual arregimentar o
é chamada também de “teoria do Os grupos de católicos LGBT bra-
que quer que se queira definir como
gender”) e América Latina, tor- sileiros trabalham na perspectiva
aberrante, abjeto ou abominável.
nou-se uma arma crucial no debate de um segundo desafio, que repre-
Sejam pessoas LGBT ou feministas,
público, servindo de “aglutinante senta, em parte, uma superação do
ou seus aliados e aliadas, ou a quem
simbólico” para consolidar alian- primeiro: a autonomização moral.
quer que interesse a alguém em dado
ças que agregam os mais diferentes momento atribuir a pecha de “ideo- Como ultrapassar a concepção ecle-
interesses e grupos os mais distin- logia de gênero”, esta tem o dom de siológica que deposita a prerroga-
10 tos em torno de agendas que vão tiva da verdade última sobre Deus
converter pessoas e grupos inteiros
diretamente de encontro à pers- em inumanos, justificando e endos- e do sentido da existência humana
pectiva dos direitos humanos e à sando seu extermínio, simbólico ou na autoridade magisterial e encon-
lógica democrática. Vem sendo, in- real. Nesse sentido, a cruzada antigê- trar uma posição de maior autono-
clusive, um dos eixos em torno dos nero em curso vem se configurando mia pessoal, através do diálogo e do
quais tem se articulado a escalada como uma nova perseguição a “feiti- encontro com Deus no sacrário da
do populismo de extrema direita ceiras” e a “hereges”, cuja definição consciência (Constituição Dogmá-
nesses dois continentes. foi atualizada para nossos tempos. E, tica Gaudium et Spes, §16) de cada
como toda “caça às bruxas”, deve ser um, de cada uma? Como apropriar-
O sintagma “ideologia de gêne-
inequivocamente condenada por sua se da autoridade sobre si mesmo,
ro” serve para amalgamar todos os
intolerância, virulência e capacidade da responsabilidade de enunciar a
elementos que escapam, questio-
de destruição.  verdade sobre si, a ponto de supe-
nam ou criticam um determinado
rar a atitude apologética e, em vez
ordenamento normativo de gênero
  de pedir permissão para entrar ou
e sexualidade. Tal ordenamento ba-
IHU On-Line – Em especial, permanecer na Igreja, ao contrá-
seia-se na essencialização e natura-
de que ordem é o desafio de rio, afirmar não só sua presença,
lização do que seja ou signifique ser
superar o preconceito comum mas o direito inalienável de quem
“homem” e “mulher”; na suposta
de que não é possível ser cris- simplesmente já está aí e cujo lugar
universalidade e compulsoriedade
tão e LGBT ao mesmo tempo? à mesa não será tirado? A inver-
da cis-heterossexualidade; em uma
Como as pessoas que se iden- são promovida por essa mudança
concepção reificada de família, redu-
tificam com essas duas dimen- de perspectiva é de tal ordem que
zida única e exclusivamente àquela
sões – cristã e LGBT – lidam permite a esses grupos questionar,
composta por um casal heterosse-
com a questão da religiosida- ao contrário, qual a legitimidade
xual e seus filhos e organizada se-
de na construção das próprias de uma Igreja que se diz seguidora
gundo uma hierarquia que sobrepõe
identidades? de Cristo mas promove a violência
os homens às mulheres e os adultos
e a exclusão. 
aos jovens e crianças, nessa ordem.  Cris Serra - O desafio mais ime-
Qualquer alternativa que escape a diato é o da violência. Além da vio-
tais normas, assim estritamente de- lência psicológica e, não raro, física IHU On-Line – De que forma se
finidas, é inferiorizada – quando não das tentativas de “exorcismo”, das caracterizam os grupos católi-
patologizada, ou mesmo criminali- orações de “cura e libertação”, das cos LGBT no Brasil? Quantos
zada – e marginalizada. “terapias de reversão”, há a violên- existem?

16 DE SETEMBRO | 2019
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Cris Serra - Os grupos de católi- e da Igreja”. Em 2018, aconteceu o da iniciativa de católicas e católi-
cos LGBT no Brasil têm perfis e tra- II Encontro Nacional de Católicos cos leigos que se identificam como
jetórias bastante distintos, refletin- LGBTI, em São Paulo, com repre- LGBT e procuram criar espaços de
do uma riqueza e diversidade muito sentantes de quinze grupos, de qua- partilha, acolhimento e vivência da
grande de experiências. O primeiro, tro regiões do país. Nesse encontro fé em comunidade. Em sua maioria,
por exemplo, foi o Diversidade Ca- criou-se uma constituição para a os grupos contam com a direção es-
tólica do Rio de Janeiro, que surgiu Rede, elegeu-se uma equipe de co- piritual, acompanhamento pastoral
em 2007 a partir de um pequeno ordenação para o biênio 2018-2020 e/ou o apoio de algum padre ou frei-
grupo de pessoas que começaram e estabeleceram-se metas para esse ra, às vezes mais de um. O Diversi-
a se reunir para refletir sobre como período, a fim de tornar a Rede mais dade Cristã de Brasília, por exemplo,
viver o que chamavam de uma “du- atuante e efetiva. Pouco mais de um desde o começo foi acolhido pelos
pla identidade” – ser católico e ser ano depois, neste início de setembro jesuítas daquela cidade, e inclusive
LGBT. A proposta inicial era criar de 2019, o número de grupos reuni- realizam eventos abertos e são res-
um site com subsídios para apoiar a dos na Rede Nacional já chega a 21: ponsáveis, uma vez ao mês, por uma
possibilidade de conciliar essas duas dois no Rio de Janeiro, um em Nova das missas realizadas no seu centro
dimensões; só que, uma vez no ar, o Iguaçu (RJ), dois em São Paulo, um cultural. De fato, a maior parte dos
site começou a atrair interessados em Campinas (SP), um em Ribeirão grupos se reúne em espaços cedidos
que entravam em contato pergun- Preto (SP), dois em Belo Horizonte, por religiosos – embora haja expe-
tando se havia encontros presen- um em Passos (MG), dois em Brasí- riências peculiares como a do grupo
ciais. As reuniões mensais começa- lia, um em Curitiba, um em Londri- Filho de Davi, de Iguatu (CE), que
ram a partir dessa demanda. na (PR), um em Maringá (PR), um hoje se reúne no centro pastoral de
em Brusque (SC), dois em Fortaleza, uma paróquia, mas, durante boa
Já o primeiro grupo de São Paulo
um em Iguatu (CE), um em Teresi- parte de sua história, reuniu-se nas
surgiu por iniciativa do Pe. James
na e um em Mossoró (RN). Uma das praças e espaços públicos da cidade.
Alison, que à época morava aqui
tarefas dessa equipe de coordenação Também há experiências de reuni-
no Brasil. O Diversidade Cristã, de
é organizar subsídios pastorais para ões em casas de membros dos gru-
Brasília, e o Diversidade Católica
facilitar a formação de novos núcle- pos; foi assim que o Filho de Davi,
de Fortaleza surgiram, ambos, por 11
os, mas alguns grupos, como o Porta por exemplo, celebrou um tríduo
iniciativa de membros do Diversida-
da Misericórdia (o segundo grupo de de Santa Maria Madalena. O Gru-
de Católica do Rio que se mudaram
Fortaleza) e o Prisma da Fé (grupo po de Ação Pastoral da Diversidade
para essas cidades. Outros grupos
ecumênico de Brasília) vieram se - GAPD, o primeiro coletivo de São
surgiram a partir do contato sobre-
juntar à Rede já consolidados. Paulo, se reúne em um espaço dos
tudo com esses coletivos pioneiros.
franciscanos. O Movimento Pastoral
Nesse sentido, a internet em geral Assim, as características dos gru- LGBT Marielle Franco - MOPA, que
e as redes sociais em particular, es- pos, como suas origens e formação, celebrou seu primeiro aniversário no
pecialmente o Facebook (e, mais são bastante distintas, embora qua- último 14 de julho, nasceu acolhido
recentemente, aplicativos como o se todos procurem promover encon- e integrado à comunidade da paró-
WhatsApp), têm desempenhado um tros presenciais regulares, em sua quia de Nossa Senhora do Carmo,
papel muito importante de agrega- maioria mensais, e muitos realizem em Itaquera (Zona Leste de São Pau-
ção e formação de comunidade. Gra- eventos abertos ao público, ou par- lo), com o apoio e incentivo de seu
ças a elas, pessoas e grupos distantes ticipem da sua organização junto pároco e de uma irmã salesiana.
fisicamente conseguem se encontrar com outros parceiros. Na maioria
e partilhar experiências e o conheci- dos casos, a partilha de experiên-
mento produzido e acumulado atra- cias e o acolhimento são partes im- IHU On-Line – Como se dá a re-
vés das práticas e especificidades de portantes desses encontros, como lação destes grupos com a Igre-
cada coletivo. também a oração, a busca de desen- ja em nível institucional?
Em 2014, representantes de sete volvimento espiritual e, sempre que Cris Serra - São crescentes a de-
grupos existentes na época – al- possível, a celebração eucarística. manda e o interesse de religiosas e re-
guns já consolidados, outros ainda Alguns desses coletivos surgiram ligiosos ordenados por informações,
em formação – se reuniram no Rio a partir do interesse de religiosos subsídios e orientação para a realiza-
de Janeiro no I Encontro Nacional ordenados ou mesmo de leigos que ção de um trabalho de acompanha-
de Católicos LGBT. Naquela oca- desejavam realizar um trabalho pas- mento pastoral de pessoas LGBTI+
sião, foi fundada a Rede Nacional toral junto a pessoas LGBT. O segun- verdadeiramente baseado na escu-
de Grupos Católicos LGBT e lan- do grupo do Rio de Janeiro, o Abra- ta, no acolhimento e no respeito em
çado um manifesto, que começava ço Cristão, foi criado numa paróquia relação a suas experiências de Deus
afirmando: “nós,  cristãs e  cristãos do bairro do Recreio (Zona Oeste) e à prerrogativa de suas consciên-
católic@s LGBT reunid@s em nosso a partir da movimentação de paro- cias. Essa tendência se manifestou
I Encontro Nacional, no Rio de Ja- quianos que eram pais de pessoas e acentuou claramente a partir do
neiro, somos filhas e filhos de Deus LGBT. Entretanto, a maioria nasce início do pontificado de Francisco,

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ENTREVISTA

com suas críticas duras ao clericalis- “iniciativa faz parte da nova postura Porém, o mesmo Francisco even-
mo e ao moralismo e sua insistência do papa e da revisão da Igreja sobre tualmente dava declarações conde-
no respeito e no diálogo. Esse mo- configurações da família” – um bom nando a “teoria do gender” (como
vimento de abertura e acolhimen- exemplo do “efeito Francisco” visto é conhecida a “ideologia de gênero”
to, que é observado nos ambientes na prática. Um ano e meio depois, na Itália e na França) e denunciando
eclesiais não só no Brasil, vem sen- porém, ao ser atacado por um you- tentativas de “colonização ideoló-
do chamado de “efeito Francisco” e tuber, que o acusou de estar pro- gica” – quer dizer, de imposição de
não se restringe aos fiéis LGBTI+. movendo “ideologia de gênero” na valores “alienígenas” à sociedade. Ao
Por outro lado, mesmo no pontifica- diocese, o bispo responsável voltou mesmo tempo, como sublinhei – e
do de Francisco continua sendo um atrás e desautorizou os dois grupos. nunca é demais reiterar –, é inegável
desafio para os religiosos ordenados, As duas situações são muito emble- o impacto da sua mudança de enfo-
sobretudo nos níveis inferiores da máticas das tensões e paradoxos que que pastoral, da sua ênfase no diá-
hierarquia, assumir publicamente se observam hoje no campo eclesial logo e no acolhimento e, sobretudo,
um trabalho pastoral voltado para católico romano.  de seus gestos concretos. Francisco
pessoas LGBTI+, e mais ainda pro- não se limita a defender uma “Igre-
por qualquer questionamento da ja em saída”, uma Igreja que vá em
doutrina expressa no Catecismo.
Ademais, temos visto o quanto esse “A ‘ideologia de direção às periferias, uma Igreja de
“pastores com cheiro de ovelha”. Ele
mesmo “efeito Francisco” vem ten-
sionando o próprio tecido eclesial gênero’ vem se demonstra o que diz com seus atos
ao receber em audiência o homem
católico, como se deduz das críticas
agressivas e da feroz oposição ao configurando trans espanhol e sua companhei-
ra; ao lavar os pés da travesti numa
Papa – que culminaram com a acu-
sação de heresia que lhe foi feita em
como o rótulo Quinta-feira Santa; ao dizer para
o gay chileno vítima de abuso por
maio. O pomo da discórdia, não à toa,
é justamente o afastamento de Fran-
ideal sob o qual sacerdotes que Deus o fez assim e o
ama como ele é; ao receber o grupo
12
cisco em relação à tradição teológica
sobre matrimônio, família e sexua-
arregimentar o de católicos LGBT ingleses; entre
tantas outras iniciativas.
lidade que vinha se impondo como
hegemônica nos dois pontificados
que quer que Esses gestos concretos de acolhi-
anteriores. O acirramento das dispu- se queira defi- mento por parte do Papa, por mais
que ele afirme e reafirme que não
tas em torno desses temas “morais”
– tanto no campo católico romano nir como aber- passa de “um filho da Igreja” e que
“a doutrina da Igreja é uma só e per-
rante, abjeto ou
quanto nos cristianismos em geral,
manece a mesma”, têm um impacto
no contexto da cruzada antigênero
efetivo justamente por entrarem em
em curso – e sua mobilização nos
debates públicos mais amplos tem abominável” profunda contradição com toda a
atitude moralista, de condenação e
tido como consequência um certo
exclusão, que foi preponderante nos
fechamento e silenciamento desses
dois pontificados anteriores. Vão de
debates. O “efeito Francisco” come-
encontro ao ordenamento de gênero
ça a ser, de certo modo, compensado IHU On-Line – Você cita o aco- defendido por meio dessa atitude e
pela desconfiança decorrente do cli- lhimento às pessoas LGBT por justificado por uma teologia muito
ma de “caça às bruxas” e pelo medo parte da Igreja como uma das doutrinária – uma teologia norma-
de denúncias e perseguições. evidências do “efeito Francis- tiva, abstrata, distante da vivência
Um exemplo foi a criação, em 2017, co”. Mas, de outro lado, o papa cotidiana das pessoas e cada vez me-
de Pastorais da Diversidade em duas Francisco também critica o nos capaz de ouvir, reconhecer como
dioceses brasileiras, uma delas a de que ele chama de “ideologia de legítimas e responder às questões
Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro – gênero”. Como interpreta as concretas da vida concreta dos fiéis.
manifestações dele sobre essa
cujo bispo à época, D. Luciano Ber- Essa contradição abala as estruturas
questão? Quais as tensões en-
gamin, chegou a conceder entrevis- consolidadas e provoca o recrudes-
tre esse acolhimento e essa re-
ta a um jornal de grande circulação cimento das tensões. Nesse sentido,
cusa à ideia de gênero?
para divulgar a iniciativa. É ilustra- entendo que o chamado “efeito Fran-
tivo o contraste com a situação das Cris Serra - Desde o início de cisco” vai muito além da figura do
duas Pastorais da Diversidade cria- seu pontificado, a partir do célebre papa Francisco em si, de suas ideias
das em outra diocese naquele mes- “quem sou eu para julgar?”, foi se pessoais, de suas escolhas como
mo ano. Significativamente, uma construindo a imagem de um papa pontífice, de suas estratégias políti-
delas chegou a ser noticiada por um “gay-friendly”, em contraste com cas. O “efeito Francisco” diz respeito
grande jornal nos seguintes termos: seus dois antecessores imediatos. não só às repercussões do que este

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Papa diz e faz, e às respostas a ele, eclesiais em geral que na figura do Cris Serra - O livro foi fruto da
mas também a todo o contexto mais Papa. Ainda que não seja possível, minha pesquisa de mestrado, e par-
amplo que permitiu a própria emer- evidentemente, ignorar a impor- tiu do meu interesse em investigar
gência deste Papa, neste momento. tância e o impacto do que fazem as as estratégias desenvolvidas pelos
autoridades da Igreja, meu foco é grupos de católicos LGBT brasileiros
Por isso, tendo a encarar certos
mais em como as diferentes linhas para permanecer na Igreja. É dividi-
paradoxos de Francisco como indi-
de força tensionam o tecido eclesial do em três partes. Na primeira, dis-
cadores visíveis dos paradoxos da
e como essas tensões afetam as ba- cuto como vem se estabelecendo essa
Igreja de Roma como um todo. Ao
ses da Igreja. oposição entre “religião” e “sexuali-
falar em “Igreja”, me refiro não ape-
dade” no debate público no Brasil, e
nas aos hierarcas, mas à totalidade Outro paradoxo: o mesmo Francis-
procuro entender e desconstruir esse
do campo católico romano – e não co que faz denúncias relativamente
antagonismo. Na segunda, traço um
podemos perder de vista que esse recorrentes da “teoria do gender”
panorama da Igreja Católica Roma-
campo católico romano é permeá- tem como oponentes mais ferozes,
na hoje, na tentativa de contemplar
vel, suscetível a trocas e influências e não por acaso, os mais ferrenhos
sua complexidade e heterogeneida-
mútuas e constantes com as redes críticos do que chamam de “ideolo-
de, fazendo contraponto ao lugar
sociais em que se insere. Nunca é gia de gênero” – os ultracatólicos e
comum de que “a Igreja” é um bloco
demais lembrar que todos os do- os atores e grupos de extrema direi-
monolítico, destituído de conflitos e
cumentos da Cúria sobre questões ta, não raro indistinguíveis entre si. contradições. Na terceira, abordo os
de gênero e sexualidade – desde a Em meio à cruzada moral antigênero católicos LGBT propriamente ditos e
encíclica Humanae Vitae (1968), protagonizada, em grande medida, mostro como se dá seu processo de
passando pela declaração Persona por atores e grupos cristãos (e não “tomar a palavra” e dizer, por si mes-
Humana (1975) e pela carta Ho- só hierarcas, mas também leigos); mos, quem são – e o impacto político
mossexualitatis Problema (1986), face à pressão dos ultracatólicos; e dessa estratégia.
até chegar ao recente “Homem e com o recrudescimento do pânico
mulher os criou”, da Congregação moral, do clima de “caça às bruxas” Estamos em um momento da his-
para a Educação Católica (2019) – e da paranoia daí decorrente – acho tória do Brasil em que vem se desve-
vieram à luz em resposta e reação possível que Francisco acabe por lando de maneira cada vez mais ex- 13
a uma multiplicidade de debates, aderir mais estritamente ao discurso plícita a truculência contra os mais
inclusive e sobretudo dentro das antigênero como estratégia para rea- vulneráveis e desprivilegiados que
fronteiras católicas romanas, em firmar sua ortodoxia. Por outro lado, marca nossa construção como país.
diálogo com discussões mais am- me parece pouco provável que ele vá São tempos em que cristãos e cristãs
plas em curso no mundo. É próprio moderar seus gestos concretos em abusam da linguagem religiosa para
da finalidade normativa desses do- direção aos LGBT e à ampliação da justificar a própria intolerância ge-
cumentos que se apresentem como participação das mulheres – e, por nocida. Nesse contexto, refletir sobre
expressões legítimas e excludentes todos os motivos citados, sua atitu- a experiência daquelas e daqueles
de posições inequívocas e uníssonas de pastoral fala mais alto e tem tanto que, na materialidade de sua própria
da “Igreja”, tratada como um cor- ou mais impacto que suas palavras. existência, põem em xeque as dico-
po monolítico e homogêneo. Muito O que constitui, no fim das contas, tomias consideradas intransponíveis
ao contrário, porém, eles não só se mais um paradoxo. de que falamos aqui pode ser crucial
inserem nesse fluxo de negociações para disputar narrativas tanto sobre
e contradições (inclusive, ou prin- religião e cristianismo quanto sobre
cipalmente, internas), como estão IHU On-Line – Você poderia “gênero”; e para possibilitar uma
longe de representar, como pre- falar um pouco mais sobre seu reapropriação do “religioso” e do
tendem, uma resolução e um ponto livro Viemos pra comungar? “cristianismo” em termos favoráveis
final para elas. Daí minha atenção Do que se trata? Qual o públi- à liberdade e à diversidade sexual e
se concentrar mais nos ambientes co-alvo?  de gênero.

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TEMA DE CAPA

A relação predatória e concorrencial


dos Planos de Saúde com o SUS
José Sestelo analisa como planos privados manifestam a voracidade do
capital de nosso tempo, em que empresas buscam liberdade de atuação
em detrimento dos interesses dos clientes e do orçamento público
João Vitor Santos

A
saúde pública e a saúde privada assistenciais para uso preferencial dos
no Brasil nascem quase como seus clientes situados nos estratos mais
irmãs, mas na medida em que o altos de renda”. Por isso diz que não se
Estado começa a conceber um sistema pode perder a perspectiva política des-
universal, a saúde privada inicia movi- sa relação. “A voracidade das empresas
mentos de subsistência que vão além precisa ser compreendida também em
da oferta de alternativas suplementa- seu componente político e nos riscos
res. “Não há uma verdadeira relação de produzidos pelo aviltamento das con-
suplementaridade entre o SUS e os pla- dições básicas de reprodução da força
nos e seguros de saúde, nem tampouco de trabalho de grandes contingentes
uma lógica sanitária sistêmica no fun- populacionais”, salienta.
cionamento deste espaço de transações José Antonio de Freitas Sestelo é
comerciais. A lógica dominante é a do graduado em Odontologia pela Univer-
14 ‘cada um por si’”, observa o doutor em sidade Federal da Bahia - UFBA, possui
Saúde Coletiva José Antonio Sestelo. A especialização em Cirurgia e Traumato-
questão se complexifica quando o Esta- logia Buco-maxilo-facial pela Univer-
do vai agir na regulação desse comér- sidade Metodista de São Bernardo do
cio e, nesse novo cenário, as empresas Campo, em São Paulo. Também é ana-
passam por uma metamorfose em que lista judiciário – apoio especializado
precisam tanto do lucro da relação com em odontologia, do Tribunal Regional
clientes como da expropriação do Esta- do Trabalho da 5ª Região e membro
do para assegurar a rentabilidade. do Comitê de Saúde do Trabalhador da
Na entrevista a seguir, concedida por mesma instituição. Mestre em Saúde
e-mail à IHU On-Line, Sestelo ob- Comunitária pela UFBA, é, ainda, dou-
serva que “o comércio de planos e se- tor em Saúde Coletiva pelo Centro de
guros de saúde não quer se apresentar, Ciências da Saúde/Instituto de Estudos
e não se apresenta, como uma ameaça em Saúde Coletiva da Universidade Fe-
de extinção para o sistema público”. O deral do Rio de Janeiro - UFRJ. Entre
que de fato se quer é “controlar, ajus- suas publicações, destacamos o livro
tar e subordinar o funcionamento do Planos de Saúde e dominância finan-
SUS à lógica de acumulação privada ceira (Salvador: EDUFBA, 2018).
de capital e concentração de recursos Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor íses industrializados e urbanizados, ao padrão de distribuição dos recur-
observa a relação entre os pla- mas em geral este tipo de iniciativa sos disponíveis, ou seja, os sistemas
nos de saúde privados e o SUS ocupa um espaço limitado dentro ficam mais caros e a oferta de recur-
no sistema de saúde nacional? dos sistemas de saúde porque sabe- sos se concentra nos estratos mais
José Antonio Sestelo – Existem se que resultam em um aumento nos altos de renda. A grande exceção é
esquemas de intermediação privati- custos gerais de transação e em uma o modelo estadunidense. Não por
va de assistência na maioria dos pa- tendência regressiva no que se refere acaso este país tem um gasto em

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“Só é possível vender planos de saúde de uso


privativo para tanta gente com uma oferta
exclusiva e abundante de serviços porque
existe uma articulação íntima com a esfera
pública como garantia de última linha”

saúde como percentagem do PIB embora seja de uso privativo, é be- se configurar como uma amea-
quase duas vezes maior do que a neficiário de uma série de subsídios ça ao sistema público?
média dos países de mesmo nível de à demanda, na forma de renúncia
José Antonio Sestelo – As em-
desenvolvimento econômico, mas fiscal e compartilhamento da infra-
presas de planos e seguros de saúde
não dispõe dos melhores indicado- estrutura do sistema público, de tal
costumam identificar o seu mito de
res de saúde/doença. forma que, na prática, o SUS e o or-
origem com as iniciativas mutua-
çamento público funcionam como
A discussão política sobre modelos listas de grupos de trabalhadores
uma espécie de resseguro para o seu
de organização do sistema de saúde organizados para proteção contra
funcionamento. Em outras palavras,
tem ocupado o centro da cena em os riscos de adoecimento e morte
todas as campanhas eleitorais nos só é possível vender planos de saú-
durante o processo de expansão das
EUA, pelo menos desde a primei- de de uso privativo para tanta gente
revoluções industriais, mas, a rigor,
ra eleição dos Clinton1, e continua com uma oferta exclusiva e abun-
a intermediação administrativa de
dante de serviços porque existe uma
a mobilizar partidos políticos e or-
articulação íntima com a esfera pú-
processos assistenciais com caráter 15
ganizações sociais nos dias de hoje. comercial compõe um leque de ino-
As despesas catastróficas com as- blica como garantia de última linha.
vações que provavelmente surgiram
sistência hospitalar são uma causa Obviamente os usuários desse es- nos EUA durante a grande depressão
importante de falência de pessoas quema privativo levam vantagem dos anos 19302. Naquele período,
físicas por lá. Uma busca rápida nos sobre o conjunto da população, empresas hospitalares e as primeiras
roteiros da produção cinematográfi- mas quem realmente se apropria clínicas de especialidades médicas,
ca e das séries de TV estadunidenses do grosso dos recursos que circu- ou medicinas de grupo, procuravam
contemporâneas vai revelar muitos lam pelo espaço de transações das suprir a ociosidade da sua estrutura
personagens que sofrem com pro- empresas que comercializam planos de atendimento oferecendo a possi-
blemas no sistema de saúde, o que é e seguros de saúde são os controla- bilidade de pré-pagamento na forma
um indicador da relevância do tema dores desse oligopólio. É digno de de planos de saúde para trabalhado-
para as pessoas comuns. nota o fato de que mesmo em um res desempregados e suas famílias.
No Brasil, vivemos uma situação ambiente macroeconômico de re-
peculiar porque, diferente dos EUA, cessão e desemprego estrutural os
temos um sistema público de saúde balanços dessas empresas são posi-
tivos e seus lucros ascendentes. Em 2 Grande Depressão: também chamada de Crise de 1929,
(o SUS) acessível, em tese, a qual- foi uma grande depressão econômica que teve início em
quer cidadão, mas ao mesmo tempo resumo, a relação entre as empre- 1929 e que persistiu ao longo da década de 1930, termi-
nando apenas com a Segunda Guerra Mundial. A Grande
um enorme esquema de intermedia- sas de planos e seguros de saúde e o Depressão é considerada o pior e o mais longo período de
SUS é predatória e concorrencial e, recessão econômica do século 20. Este período de depres-
ção assistencial privativa que favo- são econômica causou altas taxas de desemprego, quedas
rece cerca de 28% da população e se ao contrário do que anuncia a retó- drásticas do produto interno bruto de diversos países,
bem como na produção industrial, nos preços de ações e
apropria, em média, de quatro vezes rica oficial, não alivia a demanda ao em praticamente todo medidor de atividade econômica,
sistema público, mas dificulta uma em diversos países no mundo. O dia 24 de outubro de
mais recursos assistenciais do que 1929 é considerado popularmente o início da Grande De-
aqueles que estão disponíveis para a distribuição mais equitativa dos pressão, mas a produção industrial americana já havia co-
meçado a cair a partir de julho do mesmo ano, causando
população em geral. Esse esquema, recursos disponíveis e aumenta os um período de leve recessão econômica que se estendeu
custos gerais de transação do siste- até 24 de outubro, quando valores de ações na bolsa de
valores de Nova York, a New York Stock Exchange, caíram
1 William “Bill” Jefferson Clinton (1946): nascido ma, encarecendo o seu custeio. drasticamente, desencadeando a Quinta-Feira Negra.
William Jefferson Blythe III e mais conhecido como Bill Assim, milhares de acionistas perderam, literalmente da
Clinton, é um político dos Estados Unidos que foi o 42º noite para o dia, grandes somas em dinheiro. Muitos per-
presidente do país, por dois mandatos, entre 1993 e 2001. deram tudo o que tinham. Essa quebra na bolsa de valores
Antes de servir como presidente, Clinton foi governador de Nova York piorou drasticamente os efeitos da recessão
do estado do Arkansas por dois mandatos. Tomou pos- IHU On-Line – Qual a origem já existente, causando grande deflação e queda nas taxas
se aos 46 anos, sendo o terceiro presidente mais jovem. da saúde suplementar no Brasil de venda de produtos, o que levou ao fechamento de inú-
Ele tomou posse no final da Guerra Fria e foi o primeiro meras empresas comerciais e industriais, elevando as taxas
presidente da geração baby boomer. (Nota IHU On-Line) e quando (e como) ela passa a de desemprego. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

Na década de 1960 essas inovações de vantagens salariais indiretas, eurocêntricas elaboradas pela Or-
foram transpostas para o Brasil com como cestas básicas e planos de saú- ganização para a Cooperação e De-
adaptações e as condições políticas de. Na década de 1990, o sucesso do senvolvimento Econômico - OCDE,
e institucionais posteriores a 1964 esquema comercial de intermedia- é conveniente para as empresas por-
fomentaram o seu desenvolvimento. ção despertou o interesse das gran- que se apropriam da legitimidade
As primeiras empresas eram de em- des seguradoras que até então não institucional do Sistema Único de
presários/médicos descapitalizados haviam conseguido transformar o Saúde (aquilo que é suplementar ao
e disputavam com a assistência pre- seu seguro-saúde em um produto SUS é convergente com o SUS e não
videnciária subfinanciada e precari- vendável. A atuação política desse contraditório), mas não expressa a
zada a clientela de trabalhadores do segmento empresarial do setor fi- verdadeira natureza deste objeto. É
polo dinâmico de atividade indus- nanceiro foi importante para a cons- importante dar nome aos bois e não
trial nas grandes cidades. Na década trução de um espaço de transações chamar bezerro de cabrito.
de 1970, surgiram as cooperativas híbrido e protegido que incluísse
de trabalho médico que adotaram medicinas de grupo, cooperativas Cada um por si
uma estratégia de atuação análoga à médicas e seguradoras.
das medicinas de grupo e surgiram Não há uma verdadeira relação de
também as primeiras organizações Venda comercial de planos suplementaridade entre o SUS e os
empresariais para a defesa das posi- planos e seguros de saúde, nem tam-
Foi também nos anos 1990 que a pouco uma lógica sanitária sistêmi-
ções políticas e ideológicas daqueles
disseminação da venda de planos e ca no funcionamento deste espaço
agentes econômicos.
seguros de saúde conferiu uma di- de transações comerciais. A lógica
Em 1975, houve uma discussão mensão de escândalo nacional às dominante é a do “cada um por si”.
sobre organização de sistemas de contradições e desvios éticos relacio- Atualmente, há diversos interesses
saúde no Brasil influenciada pela nados com a negação de cobertura a contraditórios implicados com a ma-
Organização Pan-Americana da Saú- pacientes crônicos, idosos e portado- nutenção e expansão da venda de
de - OPAS/OMS e se delineou um res de condições consideradas, pelas planos e seguros de saúde no Brasil
modelo embrionário de Sistema Na- empresas, inconvenientes do ponto envolvendo corporações de trabalha-
16 cional de Saúde composto de subsis- de vista comercial. O SUS, portanto, dores, partidos políticos, corporações
temas articulados. É no bojo dessa surgiu em um momento de consoli- de prestadores de serviço, distribui-
discussão que a atividade comercial dação desse tipo de prática comercial dores e fabricantes de insumos, do-
de intermediação assistencial passa e, paradoxalmente em um momento nos de empresas hospitalares e um
a se apresentar como um subsistema em que os problemas decorrentes da oligopólio de controladores do es-
“supletivo” à assistência previden- estratificação da clientela segundo quema de intermediação em si, que
ciária e, assim, autoatribuir alguma sua capacidade de pagamento e seu ocupa um lugar estratégico nessa es-
legitimidade institucional a uma perfil atuarial ganharam evidência. trutura e vincula-se aceleradamente
atividade que crescia sem qualquer A providência tomada pelos interes- com o capital de grupos econômicos
tipo de regulação formal ou contra- sados no esquema foi mudar para financeirizados de escopo global.
partida social. É nessa época que conservar o essencial.
O comércio de planos e seguros
surge o argumento falacioso de que
Regulação de saúde não quer se apresentar, e
a atividade “supletiva” das empresas
não se apresenta, como uma ameaça
médicas alivia a demanda sobre o
A Lei dos Planos de Saúde e a cria- de extinção para o sistema público.
sistema público e, portanto, permite
ção da Agência Nacional de Saúde Mas, de fato, pretende controlar,
uma melhor utilização dos recursos. Suplementar - ANS como agente ajustar e subordinar o funcionamen-
Nada mais distante da realidade. do Ministério da Saúde (e não da to do SUS à lógica de acumulação
Está aí a história a nos mostrar. Fazenda) representaram uma con- privada de capital e concentração de
quista dos usuários porque vinculam recursos assistenciais para uso pre-
Planos de saúde como be- a regulação da atividade comercial ferencial dos seus clientes situados
nefícios ao trabalhador à questão sanitária e estabelecem nos estratos mais altos de renda.
Com a crise dos anos 1980, ao con- limites à atuação das empresas. En-
trário do conjunto da economia que tretanto, representaram também a
validação e legitimação institucional IHU On-Line – Como compre-
afundava na recessão, com hiperin-
definitiva de um esquema predatório ender a voracidade do mercado
flação e desemprego, acelerando a
que vai disputar com o sistema pú- de saúde suplementar na atual
derrocada do regime militar, o es-
blico pelo controle dos recursos as- conjuntura?
quema de comércio de planos de
sistenciais disponíveis.
saúde prosperou ainda mais, porque José Antonio Sestelo – É difícil
as principais categorias de trabalha- O uso da expressão “saúde suple- definir em poucas palavras a atual
dores passaram a incluir em suas mentar” ou “sistema de saúde suple- conjuntura no Brasil, mas é possível
pautas corporativas a incorporação mentar”, transposto das tipologias afirmar que vivemos uma quadra de

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intensificação da exploração do tra- de transações global conectado em parâmetros à prática comercial das
balho pelo capital com tendência de tempo real por tecnologia de proces- empresas de planos e seguros de
redução nas médias salariais, assim samento de informações e com uso saúde. O que existia antes de 1998
como precarização nas relações de de inteligência artificial em tomada era um laissez faire bárbaro que, no
trabalho. Entendendo a assistência de decisões de compra e venda é limite, prejudicava os interesses das
à saúde como um salário indireto é uma inovação que coloca os detento- próprias empresas. O esquema de
de se esperar uma concentração ain- res dos meios de troca em um outro intermediação corria o risco de ser
da maior dos recursos assistenciais patamar, o patamar da dominância comparado aos piores processos de
disponíveis para uso daqueles com financeira, que determina uma nova fraude com a venda de uma promes-
maior capacidade de pagamento, o escala de acumulação. Esse novo sa de segurança que, quando reivin-
que é convergente com a lógica dos modo de ser do capital não revoga dicada, se transformava em um pe-
planos e seguros de saúde. o desenvolvimento industrial “pro- sadelo para os clientes.
Entretanto, a contradição essen- dutivo”, mas subordina este, assim
Entre os principais aspectos con-
cial entre capital e trabalho sem- como outros aspectos da vida social,
templados pela nova lei estavam a
pre vem à tona: como vender mais à sua lógica de acumulação voraz.
vedação às exclusões de cobertura,
planos de saúde a trabalhadores em Não se pode, entretanto, simplificar de tal modo que os contratos de-
um ambiente de desemprego estru- as explicações em um determinismo veriam atender pelo menos as en-
tural e queda nos níveis salariais? desprovido de nuances e contradi- tidades nosológicas discriminadas
Segmentar ainda mais a oferta as- ções. É verdade que já faz algumas na Classificação Internacional de
sistencial dos pacotes com o apoio décadas que o setor saúde foi alçado Doenças, as condições de urgência
do governo tem sido a proposta en- à condição de locus estratégico para e emergência, e a necessidade de re-
genhosa das empresas. a acumulação de capital inicialmen- abilitação quando necessário; veda-
Desde 2014, os planos de saúde te com a venda de insumos e equi- ção à discriminação ou seleção pré-
voltaram a ter um destaque negativo pamentos, mas agora também com via na venda de planos em função
nos noticiários da classe média em a venda direta e a intermediação na da idade ou condição preexistente,
uma onda semelhante àquela que venda de serviços. A voracidade das embora seja possível estabelecer
ocorreu na década de 1990. A opi- empresas precisa ser compreendida uma carência para atendimento de 17
nião pública identifica uma “voraci- também em seu componente políti- determinadas condições como, por
dade” na atitude das empresas que co e nos riscos produzidos pelo avil- exemplo, gravidez e parto; regula-
a cada dia cobram mais e oferecem tamento das condições básicas de ção dos reajustes anuais do preço
menos (aumento da exploração do reprodução da força de trabalho de dos planos individuais e limites
trabalho) e passam a tratar os ido- grandes contingentes populacionais. para o reajuste por mudança de
sos e crônicos explicitamente como A saúde continua sendo um tema faixa etária; limites para cobranças
“problemas” que devem ser elimi- central no tabuleiro político global, adicionais a título de coparticipa-
nados com a imposição de barreiras mas as soluções adotadas no Brasil ção; previsão de cobrança de ressar-
pecuniárias ao acesso. Temo que têm suas peculiaridades que só po- cimento ao SUS por procedimentos
essa mudança de patamar no nível dem ser entendidas a partir da in- eletivos realizados em clientes das
de exploração não possa ser compre- vestigação do caso concreto. empresas na rede pública; previsão
endida apenas como um fenômeno de cobrança de multas às empresas
As explicações para o fato de o Bra- por infrações administrativas.
conjuntural ou como mais uma das sil ter interditado o financiamento
muitas crises cíclicas históricas de adequado do seu sistema público Com o tempo, as empresas se adap-
acumulação resolvidas às custas dos de saúde desde os anos 1990 e ao taram à legislação e passaram a se
estratos mais baixos de renda. mesmo tempo sucessivos governos aproveitar das brechas legais para
terem estimulado o crescimento do reforçar suas posições. O ressarci-
Dominância financeira comércio de planos e seguros de saú- mento ao SUS, por exemplo, nunca
de a níveis que tornam disfuncional foi efetivamente pago, seja devido a
A lógica da dominância financeira
a gestão do conjunto do sistema de- falhas no processo administrativo de
parece estar ocupando todos os espa-
vem ser buscadas também na esfera cobrança por parte da ANS, seja de-
ços de sociabilidade e determinando
da ciência política. vido a expedientes protelatórios ou
um novo modo de ser nas relações
questionamentos judiciais por par-
que nos distancia de referências hu-
te das empresas. A cobrança nunca
manistas e iluministas e projeta uma
IHU On-Line – Em que consis- alcançou os procedimentos ambu-
perspectiva de fragmentação e des-
te a Lei dos Planos de Saúde? latoriais e boa parte das internações
construção das estruturas de prote-
Que avanços ela traz e quais os hospitalares também ficou de fora.
ção social mais complexas como os
seus limites?
sistemas de saúde. A acumulação fi- A regulação de preços foi driblada
nanceira não é uma novidade histó- José Antonio Sestelo – A Lei com a diminuição na oferta de pla-
rica, mas a existência de um espaço 9.656/98 estabeleceu uma série de nos individuais e aumento da ofer-

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TEMA DE CAPA

ta de contratos coletivos de adesão José Antonio Sestelo – Com to- sito de representantes das empresas,
com imposição de condições des- das as brechas da lei e todo o know ou de pessoas com evidente conflito
favoráveis aos clientes sem inter- how acumulado na burla e nas estra- de interesse, para o primeiro escalão
ferência da ANS. Ao mesmo tempo tégias de adaptação à fraca regulação de agências de governo.
diversos expedientes de negação de existente, desde 2014 presenciamos
Os interesses corporativos da Qua-
cobertura, principalmente de proce- uma nova investida das empresas
licorp, por exemplo, em um dado
dimentos cirúrgicos com internação no plano político para ampliação
momento, deixam de ser os interes-
hospitalar, tornaram-se prática cor- de sua liberdade de atuação às cus-
ses de uma pequena corretora criada
rente, ainda que judicialmente ques- tas dos interesses dos clientes e do
na periferia da região metropolitana
tionáveis. Esse mecanismo funciona orçamento público. A rigor nunca
de São Paulo com um capital inicial
atualmente como uma válvula de houve tempo ruim para o esquema
de R$ 2.000,00 em 1997. Passam a
redução de despesas operada pelas de intermediação assistencial desde
representar os interesses dos fundos
empresas em função do seu fluxo de que as medicinas de grupo e coope-
de investimento participantes da sua
caixa operacional, ou seja, as empre- rativas passaram a atuar de forma
composição societária que, por sua
sas passaram a deter amplo controle concatenada com as seguradoras.
vez, estão articulados com outras
sobre sua receita com liberdade de Sucessivos governos tiram do SUS
empresas no setor de assistência
reajuste, já que a maioria dos con- com uma mão para dar para as em-
à saúde e fora dele. Ou seja, temos
tratos são coletivos e, portanto, não presas com a outra.
aí a presença de um novo elemento
regulados pela ANS, e, ao mesmo
Entretanto, nos últimos anos esse com escopo de atuação abrangente,
tempo, controle sobre as despesas
processo assumiu cores mais inten- provido de um nível elevado de po-
por meio de mecanismos de negação
sas com o aumento da influência der econômico/financeiro e político
de cobertura, sempre com o objetivo
política de facções vinculadas dire- atuando no interior do sistema de
de não comprometer suas margens
tamente às empresas ou financiadas assistência à saúde. A sequência do
operacionais.
por elas. Um breve roteiro dessa mu- roteiro contempla a mudança na Lei
dança de patamar pode ser montado Orgânica da Saúde que permitiu a
pelo menos desde a criação das refe- participação de capital estrangei-
18 rências normativas sob medida para ro em empresas hospitalares com a
“A lógica da a atuação do modelo de negócios
das administradoras de benefícios e
anuência da liderança do governo
Dilma na Câmara.
dominância dos planos coletivos por adesão. No
caso concreto do episódio que envol- Abertura para “planos po-
financeira ve as NRs 195/196 da ANS, temos pulares”
um cenário em que fundos Private
parece estar Equity sediados nos países centrais Com Michel Temer, o Ministério
da Saúde assumiu definitivamente a
ocupando
e atuantes na Bovespa identificaram
na Qualicorp e em outros grupos pauta das empresas como programa

todos os econômicos com atuação no sistema de governo e foi criado um Grupo de


de saúde brasileiro um potencial de Trabalho para encaminhar uma pro-

espaços de faturamento por meio de operações


financeiras de compra de ativos em
posta de flexibilização da legislação
para permitir a venda dos chamados

sociabilidade e participação societária para reestru-


turação e revenda por meio de ofer-
“planos populares” ou “planos aces-
síveis”, em que se aumenta o nível de

determinando tas públicas de ações em bolsa com


realização de lucro.
segmentação dos pacotes de assis-
tência para permitir a redução nos
um novo modo Simultaneamente à súbita mudan-
preços e avançar sobre a clientela
dos decis mais baixos de renda. Esse
de ser nas
ça de patamar no nível de capital
episódio marcou também o início de
dessas empresas e ao estabeleci-
um processo de perda de relevância
relações” mento de vínculos de participação
societária cruzadas entre grupos de
política da ANS que hoje assume
contornos mais claros.
empresas de prestação de serviços
hospitalares, empresas de serviços Posteriormente houve a tentativa
auxiliares ao diagnóstico clínico, de mudança na Lei 9.656/98 pela via
IHU On-Line – Atualmente, o empresas de planos de saúde e admi- parlamentar em uma comissão que
que está em discussão acerca nistradoras de benefícios, transcorre pretendia, em um injustificado regi-
da legislação que regulamenta o aumento no volume de recursos me de urgência, revisar e, na prática
e fiscaliza os planos de saúde? destinados pelas empresas ao finan- revogar, os principais instrumentos
E como o senhor avalia essas ciamento de campanhas políticas de de defesa dos interesses dos clientes
propostas? candidatos a cargos eletivos e o trân- das empresas. O fato é que, devido a

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conflitos internos entre os interessa- assistência das pessoas, mas ao pulação. Trata-se precipuamente de
dos nas mudanças e sob pressão da contrário, trata-se de retirar recur- propostas para ampliação da escala
opinião pública de classe média, o sos de uma área socialmente im- dos negócios que utilizam o sistema
processo foi interrompido. portante para favorecer processos de saúde como um trampolim para
tipicamente financeiros controla- transações comerciais e financeiras.
Nova ameaça dos por grupos econômicos.
Na época da liberação do capital
Agora, veio à luz, por meio de uma Como justificar, por exemplo, que estrangeiro para empresas hospita-
notícia veiculada3 pelo jornalista uma empresa de intermediação de lares, por exemplo, muito se falou
Elio Gaspari4, uma nova proposta processos administrativos que come- que esse aporte aumentaria a oferta
ainda sem autoria conhecida, mas çou com R$ 2.000,00 de capital ini- de leitos hospitalares e por isso era
coerente com o espírito das propos- cial em uma pequena sala comercial muito bem-vindo. Na verdade, o
tas anteriores de aumento na seg- na periferia da região metropolitana muito pouco de estrutura nova que
mentação dos pacotes, restrições a de São Paulo passe a movimentar re- se construiu foi na direção de incre-
idosos e crônicos, alívio de multas cursos da ordem de grandeza dos bi- mentar o segregacionismo sanitário
para as empresas, fim do ressarci- lhões de reais em pouco mais de dez que separa unidades assistenciais
mento ao SUS e quejandos. Marile- anos com a anuência de agências de com padrão sofisticado de incorpo-
na Lazzarini5 do Instituto de Defesa governo? Qual teria sido a contribui- ração de tecnologia industrial de uso
do Consumidor - Idec, Lígia Bahia6 ção dessa empresa para o desenvolvi- exclusivo dos estratos mais altos de
da Universidade Federal do Rio de mento econômico e social do conjunto renda, de unidades convencionais
Janeiro - UFRJ, e Mário Scheffer7 da sociedade brasileira para merecer pauperizadas para a população em
da Universidade de São Paulo - USP tanto crédito? Certamente o sistema geral. Não creio que se possa chamar
publicaram uma nota crítica8 que faz de saúde não se tornou melhor, ao isso de um avanço em nosso sistema
uma análise preliminar, mas bastan- contrário, os bilhões que poderiam de saúde.
te completa do material. estar circulando na esfera econômica
As questões de fundo relacionadas
da prestação efetiva de serviços pas-
Minha avaliação sobre o conjun- com os interesses das empresas po-
saram a circular na esfera financeira
dem ser analisadas em duas grandes
to das propostas em circulação, e da compra e venda de ativos de parti- 19
considerando também as mudan- vertentes. A primeira contempla o
cipação societária com pagamento de
ças incrementais que vêm sendo objetivo estratégico de ganhar esca-
comissão para um elenco de interme-
implementadas nos últimos anos, é la comercial com a venda de planos
diários com interesse em ganhar no
de que o tema “saúde e assistência” populares segmentados e com oferta
volume das transações.
aparece apenas como uma paisa- limitada de serviços. A segunda está
gem em que o centro da cena é ocu- Trata-se de um descolamento ab- voltada a puncionar o orçamento pú-
pado pelo processo de acumulação surdo da função precípua de um blico em um mecanismo de acumu-
de capital e apropriação privada de sistema de saúde que é prover uma lação primitiva, que pretende trans-
um bem de relevância pública. Não melhor distribuição dos recursos formar, em um passe de mágica, o
existe nada ali que aponte para uma assistenciais. Em outras palavras, que ontem era de domínio público
melhoria nas condições de saúde e novos bilionários ficaram ricos às em ativos privados vendáveis.
custas da piora do nosso sistema de
3 O texto da notícia pode ser acessado em https://outline. saúde e quotistas de fundos de parti-
com/sTWJT5. (Nota da IHU On-Line) cipação sediados em países que não IHU On-Line – Quais os riscos
4 Elio Gaspari (1944): escritor e jornalista brasileiro. É co-
mentarista do jornal Folha de São Paulo, sendo seus arti- têm nenhum interesse na melhoria da privatização do sistema pú-
gos difundidos para outros jornais, dentre os quais O Glo-
das nossas condições sociais passa- blico de saúde?
bo do Rio de Janeiro e Correio do Povo de Porto Alegre.
Entre seus livros, destacam-se: A ditadura envergonhada ram a auferir lucro com transações José Antonio Sestelo – Todo
(São Paulo: Companhia das Letras, 2002), seguido de A
ditadura escancarada (São Paulo: Companhia das Letras, em uma escala inflada de forma arti- sistema de saúde moderno possui
2002), A ditadura derrotada (São Paulo: Companhia das
Letras, 2003) e A ditadura encurralada (São Paulo: Compa- ficial sem contrapartida efetiva para uma dimensão pública e uma di-
nhia das Letras, 2004). (Nota da IHU On-Line)
5 Marilena Lazzarini: presidente do Conselho Diretor do
o conjunto da população. mensão privada em sua estrutura de
Instituto de Defesa do Consumidor – Idec, graduada em
Engenharia Agronômica pela USP (Universidade de São
funcionamento. A questão central
Paulo), é especialista em Economia Regional e Urbana pela nesse caso está relacionada com um
mesma universidade. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line – Como compre-
6 Ligia Bahia: professora associada da Universidade Fe- modelo de organização que assegure
ender as questões de fundo na
deral do Rio de Janeiro - UFRJ. Possui graduação em Me- que o interesse público seja preser-
dicina pela UFRJ, mestrado e doutorado em Saúde Pública discussão proposta pelas ope-
pela Fundação Oswaldo Cruz. Ela é uma das entrevista- vado nas situações de conflito dis-
das na presente edição da IHU On-Line. (Nota da IHU radoras de planos privados?
On-Line) tributivo. Em outras palavras, que
7 Mário Scheffer: professor Doutor do Departamento de
Medicina Preventiva - DMP da Faculdade de Medicina da
José Antonio Sestelo – Está o sistema de saúde assegure uma
USP - FMUSP, na área de Política, Planejamento e Gestão claro que esta discussão não gira distribuição equitativa dos recursos
em Saúde. É mestre e doutor em Ciências da Saúde pelo
DMP- FMUSP. (Nota da IHU On-Line) em torno da melhoria da oferta de assistenciais a partir de uma lógica
8 A íntegra da nota está publicada no site do Centro Bra-
sileiro de Estudos em Saúde - Cebes, disponível em http://
assistência e, muito menos, da me- sanitária em que as necessidades
bit.ly/2lPVit7. (Nota da IHU On-Line) lhoria das condições de saúde da po- de saúde e não a capacidade de pa-

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TEMA DE CAPA

gamento determinam o acesso. Em Onde está o público? E o dividual em um mercado livre. As


uma sociedade tão desigual como a privado? empresas quase não oferecem pla-
nossa, a importância de um modelo nos a pessoas físicas para fugir da
de organização que assuma essa es- Se não tomamos cuidado, nessa fraca regulação de preços praticada
tratégia é ainda maior, do contrário fronteira nebulosa da articulação pela ANS. Daí as novas propostas
teremos uma situação em que será entre o público e o privado em saúde em discussão que visam flexibilizar
difícil manter um ambiente de con- podem surgir argumentos inacredi- e fracionar os pacotes assistenciais
vivência social pacificado. táveis como a ideia de que quanto de modo a viabilizar o aumento das
mais pessoas têm planos de saúde vendas de planos individuais para
Essa tese tem sido defendida pelo melhor é para aqueles que não têm, desempregados ou para o enorme
movimento sanitário e está bem fun- ou a ideia de que este esquema de in- contingente de trabalhadores in-
damentada a partir de experiências termediação privativa constitui um formais. Nesse cenário o SUS passa
bem-sucedidas de sistemas financia- verdadeiro sistema (ou subsistema) a ser um resseguro ou uma política
dos por políticas tributárias progres- de assistência suplementar ao SUS. pública subsidiária que complemen-
sivas em que os ricos pagam mais ta as lacunas e o problema de escala
com impostos diretos sobre renda e Os trabalhadores também têm
interesses corporativos e têm inte- dos esquemas privativos.
propriedade e os pobres pagam me-
nos. Isso não significa dizer que o sis- resses privados, recebem salários,
tema de saúde seja um espaço vedado eventualmente têm acesso a uma
a qualquer tipo de experiência pri-
vada, mas trata-se de impor limites
consulta médica que sempre é um
espaço privado de interlocução, “É importante
razoáveis a esta dimensão de modo
que o conceito de saúde como bem de
mesmo quando ocorre em uma uni-
dade assistencial pública. O risco que se diga que
relevância pública seja preservado. que corremos é defender ideias que
são contrárias aos nossos próprios
essa parcela
A hipertrofia do esquema de in-
termediação assistencial privativa
interesses quando não somos ca-
pazes de definir com precisão onde
minoritária que
20
verificada no Brasil torna disfuncio-
nal a gestão do conjunto do sistema
está o público e onde está o privado
em cada situação concreta.
tem acesso
de saúde e reforça as desigualdades
históricas da nossa formação so-
a esquemas
cial colocando em risco o interesse
nacional. A discussão sobre priva-
IHU On-Line – Hoje, dado que
muitas empresas oferecem pla-
privativos
tização sempre aparece carregada nos de saúde privados e tam-
bém muitas pessoas pagam au-
também
de um forte conteúdo ideológico e
vinculada a uma leitura dicotômica tonomamente, já não vivemos
na prática uma privatização do
utiliza o SUS
naquilo que
que divide o sistema de saúde em
dois compartimentos mutuamente sistema de saúde? Por quê?
impermeáveis, um público e outro
privado. A ideologia vai definir cada
José Antonio Sestelo – Existe
um contingente importante da popu- lhe convém”
um como bom ou ruim segundo cri- lação que utiliza algum tipo de plano
térios opinativos. ou seguro de saúde, cerca de 28%,
Há diferenças qualitativas entre es- sem contar outros esquemas privati-
sas duas grandes dimensões que pre- vos como a assistência a militares e IHU On-Line – Quais os ca-
cisam ser reconhecidas e destacadas servidores públicos estaduais, entre- minhos para a manutenção e
até para que se possa identificar as tanto a maioria da população utiliza financiamento do sistema pú-
nuances e zonas de intercessão que exclusivamente o SUS ou paga por blico de saúde? E como imagina
desembolso direto. É importante ser a ação estatal ideal na regu-
se apresentam concretamente na
que se diga que essa parcela minori- lação de planos privados?
realidade empírica. O mundo não é
tária que tem acesso a esquemas pri-
black and white, sempre há nuances José Antonio Sestelo – O SUS
vativos também utiliza o SUS naqui-
e intercessões. Por esse motivo é im- foi concebido como um sistema ple-
lo que lhe convém, ou seja, transita
portante um certo rigor conceitual namente sustentável financiado pelo
livremente pela fronteira nebulosa
no trato dessa questão. Quando fala- Orçamento da Seguridade Social -
entre o público e o privado.
mos de privatização, a qual privati- OSS em conjunto com a previdência
zação concretamente nos referimos? Por outro lado, a maioria dos con- pública e a assistência social. Entre-
Os planos de saúde são um fenôme- tratos comerciais de planos ou segu- tanto, a nossa história política e ins-
no exclusivo da esfera privada ou ros de saúde está vinculado à relação titucional está repleta de grandes e
existe um componente público em de trabalho do beneficiário e não se pequenos golpes nada republicanos
articulação com este objeto? trata de uma decisão de compra in- em que decisões são tomadas de for-

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ma arbitrária e sem controle social. te regressivo que só faz aumentar a cia de governo enxuta e profissionali-
De golpe em golpe chegamos ao des- desigualdade em nosso país. zada apta à tarefa de regulação como
monte do Orçamento da Seguridade agente do gestor federal do SUS não
Quanto aos planos de saúde, não há
Social e consequentemente ao des- se viabilizou e a impressão que passa
problema algum na existência de em-
monte do SUS, da Previdência públi- é a de que o Estado não consegue im-
presas que se dediquem ao comércio
ca e das políticas de assistência social. por limites às empresas.
desse tipo de produto desde que as-
Se o OSS fosse deficitário certa- sumam os riscos inerentes ao negócio Talvez, como diz o professor José
mente não seria possível subtrair que são, obviamente, altos. Da mes- Carlos Braga (economista brasileiro
30% dele pelo mecanismo de Des- ma forma, não haveria problema que pioneiro no estudo da dominância fi-
vinculação de Receitas da União - particulares com capacidade de pa- nanceira), “a crise seja também a crise
DRU para composição de um supe- gamento se dispusessem a comprar das formas de regulação extra merca-
rávit primário que, ao fim e ao cabo, pacotes assistenciais de uso privativo. do. A crise das formas públicas de regu-
se destina ao pagamento de juros da Em condições normais poucas pesso- lação que tiveram vigência na expansão
dívida pública. Portanto, os cami- as poderiam pagar por isso. pretérita. Sua eficácia dissolve-se na
nhos para a manutenção e o finan- crise, e assim as formas públicas tor-
ciamento do SUS estão dados desde ANS nam-se cúmplices da crise”. Um novo
a sua origem, as explicações sobre o modelo de regulação será necessaria-
destino final e os beneficiários dos A ANS passa por um momento de mente uma novidade histórica, porque
recursos que deveriam financiar esvaziamento e perda de relevância o novo patamar em que se estabeleceu
a Seguridade Social é que não são política e as causas estão relaciona- o capital no século XXI se situa fora do
claras. Sucessivos governos desde a das com o fracasso no cumprimento alcance dos modelos tradicionais de
década de 1990 implantaram e apro- da sua missão institucional. O mode- regulação de inspiração weberiana que
fundaram esse mecanismo altamen- lo anunciado nos anos 1990 de agên- prevaleceram desde o pós-guerra.■

21
Leia mais
- A inanição de um organismo desidratado. Entrevista com José Antonio Sestelo, publica-
da na revista IHU On-Line número 491, de 22-08-2016, disponível em http://bit.ly/2kGXxyN.

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TEMA DE CAPA

Os riscos dos planos de saúde que só


oferecem “Melhoral e copo d’água”
Ligia Bahia analisa como a saúde é tratada como mercadoria por
planos privados; é o caso dos chamados “planos populares”,
que cobram caro e oferecem pouca cobertura
João Vitor Santos

Q uem é mais velho deve se


lembrar de um antigo medi-
camento chamado Melhoral.
Era um verdadeiro sucesso de marke-
so de captura permanente a enfraque-
ceu. Atualmente, a ANS tem um quadro
técnico qualificado, mas está destituída
de legitimidade para se afirmar como
ting, pois se dizia que era bom para locus de uma regulação pautada pelas
todos os males. Mas não é preciso ser necessidades de saúde”.
especialista na área para saber que Para ela, precisa ficar claro o que os
não existe remedinho mágico. A pro-
planos oferecem. “Interesses empresa-
fessora Ligia Bahia retoma a metáfora
riais são legítimos, o que deve ser com-
do Melhoral para lançar luzes sobre
batido é a promiscuidade entre público
o que muitos planos de saúde priva-
e privado”, avalia. O caminho, segun-
dos têm feito: tratado a saúde como
do a professora, é fortalecer o SUS. E,
mercadoria e vendendo o que não
22 para isso, “encarar o fato de que somos
entregam. “São mercadorias que de-
mais de 200 milhões de habitantes, a
nominamos ‘Melhoral e copo d’água’,
maioria de renda baixa e média e não
pois os clientes pagam mensalmente e
podemos entregar a saúde para grupos
quando precisarem terão que recorrer
empresariais, que são atraídos aos lo-
ao SUS”, destaca. “Os empresários da
cais em que se situam segmentos de
saúde estão querendo posar de refor-
maior renda e não pelas condições sa-
madores do sistema de saúde e esse
nitárias prioritárias”.
lugar não lhes pertence. Vender mais
planos de saúde não é sinônimo de so- Ligia Bahia é professora associa-
lução para um país como o Brasil, que da da Universidade Federal do Rio de
está às voltas com imensos problemas Janeiro - UFRJ. Possui graduação em
de saúde”, acrescenta. Medicina pela UFRJ, mestrado e dou-
Na entrevista concedida por e-mail à torado em Saúde Pública pela Funda-
IHU On-Line, Ligia também analisa ção Oswaldo Cruz. Tem experiência
as relações do sistema privado com os na área de Saúde Coletiva, com ênfase
dispositivos estatais de regulação. “As em Políticas de Saúde e Planejamento,
empresas criticam a Agência Nacional principalmente nos seguintes temas:
de Saúde Suplementar - ANS seletiva- sistemas de proteção social e saúde, re-
mente, ou seja, manifestam desacordo lações entre público e privado no siste-
apenas quando a intervenção estatal ma de saúde brasileiro, mercado de pla-
ameaça seus lucros. Os representantes nos e seguros de saúde, financiamento
das operadoras posam de liberais an- público e privado, regulamentação dos
tiestatistas, mas querem mais subsí- planos de saúde. Entre suas publica-
dios, créditos e empréstimos públicos”, ções, destacamos Planos e seguros de
revela. Assim, percebe-se que a lógica saúde. O que todos devem saber sobre
não é acabar com a agência reguladora, a assistência médica suplementar no
mas mantê-la sob controle. “A regula- Brasil (São Paulo: Unesp, 2010) e Saú-
ção caminhou sempre de lado porque a de, desenvolvimento e inovação (Rio
ANS tem sido fortemente orientada pe- de Janeiro: Cepesc, 2015).
las agendas empresariais e esse proces- Confira a entrevista.

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“Não é fato que qualquer plano


resolve problemas de saúde”

IHU On-Line – Quais os limi- te (há panfletos de propaganda que dimento seguro e de qualidade. As
tes da saúde suplementar como incluem hospitais públicos como se operadoras têm feito de tudo e mais
forma de garantir acesso a ser- fossem credenciados pelas empre- um pouco para vender um plano-im-
viços de saúde de qualidade e sas), ou implicitamente por meio de proviso. A última tentativa está re-
de desafogar o Sistema Único solicitação de autorizações demora- gistrada em projeto de lei apócrifo.
de Saúde - SUS? das, informações sobre inexistência O documento, que prevê a desregu-
de vagas e demora para marcação de lamentação da obrigatoriedade de
Ligia Bahia – Os limites dos pla-
atendimentos. Outra limitação das coberturas, explicita uma proposta
nos e seguros de saúde privados são
empresas de planos aqui localiza- de cobrar antecipadamente e não
de três ordens. A primeira é comum
das é o não investimento em ciência, garantir assistência.
a todos os países e diz respeito à na-
tecnologia e inovação que são essen-
tureza contratual entre entes priva- Ao contrário da propaganda das
ciais para os sistemas de saúde mo-
dos, que combinam entre si o que é operadoras, planos sem coberturas
dernos, deixando inteiramente para
ou não incluído como garantia nos não desafogam o SUS. Estão pro- 23
o SUS as tarefas de pesquisa e mo-
contratos. Essas garantias e exclu- metendo que dão conta do recado
dernização tecnológica e o acusando
sões de cobertura definidas ex ante e sugerem transferir mais recursos
do oposto. Na aparência, os serviços
variam entre países; por exemplo, públicos para as empresas privadas.
públicos são ultrapassados e os pri-
nos EUA os planos asseguram medi- O SUS fica ainda mais subfinancia-
vados, inovadores, e essa inversão
camentos e prevenção e tratamento do e ocorrerá (o que já começamos a
perversa funciona como propaganda
prolongado para problemas de saú- assistir) redução de coberturas vaci-
anti-SUS.
de mental e no Brasil não. nais, surtos de sarampo e uma rede
pública cada vez mais sucateada,
O segundo e o terceiro elemen- mas que é a responsável pela assis-
tos têm características nacionais. O IHU On-Line – O avanço dos
planos privados de saúde con- tência a casos muito graves de quem
que estimula ou restringe o fluxo de tem e não tem plano.
clientes de planos à rede de serviços figuram uma ameaça ao SUS?
do SUS é o tipo de plano. No Brasil Por quê?
existem planos “melhores e piores”; Ligia Bahia – Porque não é fato IHU On-Line – No Brasil, um
os mais abrangentes e muito caros ou que qualquer plano resolve proble- dos maiores desejos da popu-
exclusivos para executivos de gran- mas de saúde; a verdade é que os lação é o acesso a planos pri-
des empresas, cujos clientes devem planos realmente abrangentes, os vados de saúde. Como compre-
representar no máximo 5% dos que muito caros, permitem diagnósticos ender essa lógica? E em que
têm planos, permitem que os pacien- e tratamentos adequados. Mas, em medida ela potencializa o “po-
tes tenham atendimento para quase um país que tem SUS, a comerciali- der de fogo” das operadoras
todos os problemas de saúde na rede zação de planos menos que básicos, diante do Estado?
privada. Ainda assim, esse segmen- tal como pleiteiam determinadas
Ligia Bahia – As pesquisas de
to populacional recorre ao SUS para empresas, estabelecem uma pseudo-
opinião indicam três tendências con-
receber medicamentos de alto custo concorrência com a rede pública que
sistentes e reiteradas: 1) o principal
e realizar transplantes, bem como se não se efetiva.
problema é saúde; 2) mais de 80%
beneficia das ações de vigilância epi-
Plano de saúde, como diz o nome, dos entrevistados são favoráveis ao
demiológica e sanitária.
serve para evitar improvisação. É financiamento público, por meio de
No polo oposto, situam-se os pla- um contrato de pré-pagamento que impostos, para o SUS e que a saúde
nos básicos que, ao restringir acesso assegura aos pacientes duas condi- deva ser direito para todos; 3) o de-
e uso de serviços de saúde, termi- ções: a certeza de onde ir e, ao che- sejo de ter planos de saúde, que se
nam por empurrar deliberadamen- gar em unidades de saúde, ter aten- situa abaixo da vontade de adquirir

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TEMA DE CAPA

casa própria. São resultados contra- postas em discussão no que diz teriza por ser público (financiamen-
ditórios, portanto admitem interpre- respeito ao marco legal da saú- to, gestão e prestação de serviços).
tações igualmente díspares. de suplementar? No Reino Unido, pobres e classes
médias, inclusive alta classe média,
Considero que indicam o seguin- Ligia Bahia – A proposta das
são atendidos pelo NHS.
te: a população é a favor do SUS, operadoras é a desregulamentação
mas conhece suas deficiências. das coberturas, restrição radical O SUS aprovado pela Constituição
Essas informações sugerem forte- da escolha de prestadores de ser- de 1988 foi inspirado no modelo
mente que se a pergunta fosse: ou viços, não ressarcimento ao SUS, inglês com as devidas adaptações.
plano ou SUS?, haveria uma enor- fim das penalidades impostas pela Entretanto, logo após sua inscrição
me confusão. Na realidade, o que legislação e redução do poder de na Constituição foi considerado in-
se deseja é SUS e plano e há clareza definição de reajustes de preços e viável por sucessivos governos. Atu-
que se o SUS fosse efetivo seria me- fiscalização da ANS. Ambicionam almente, os ingleses se orgulham de
lhor que os planos. Mas é preciso vender mais planos. Planos sem seu sistema público e o Brasil conti-
reconhecer que o desejo por planos atendimento a emergências, rea- nua às voltas com as pressões do se-
é uma realidade e tem sido bem lização de exames, diagnósticos e tor privado.
utilizado pelas empresas de planos tratamentos para cânceres.
para obter desde benesses fiscais
São mercadorias que denomina- IHU On-Line – Nos Estados
até anistia de multas.
mos “Melhoral e copo d’água”, pois Unidos, a gestão de Barack
os clientes pagam mensalmente e Obama trouxe uma alternati-
IHU On-Line – Até 1998, os quando precisarem terão que recor- va à assistência em saúde. Mas
planos de saúde privados não rer ao SUS. O objetivo é ampliar o esse sistema não foi bem aceito
eram regulados no Brasil e, mercado mediante a comercialização e o atual governo tenta desfigu-
desde a implementação dessa de produtos segmentados por oferta rá-lo. Por que o “Obamacare”
regulação, as empresas cri- assistencial e localidade e problemas gerou e ainda gera tanta polê-
ticam a incidência do Estado de saúde. A lei atual prevê o atendi- mica? O que essa experiência
sobre os planos. Como avalia mento aos problemas de saúde cata- norte-americana pode legar à
24 logados no Código Internacional de
essa regulação hoje? Quais os realidade brasileira?
avanços e os limites da ANS Doenças - CID. Isso atrapalha quem
nessa área? pretende reduzir cobertura porque Ligia Bahia – O Obamacare foi
os investidores, especialmente os uma reforma importante e muito
Ligia Bahia – As empresas cri- controvertida, foi aprovado pelo
estrangeiros, exigem estabilidade
ticam a Agência Nacional de Saúde congresso com três votos de diferen-
legal. Determinados lobbies empre-
Suplementar - ANS seletivamente, ça (houve senadores democratas que
sariais sabem que atrairão mais in-
ou seja, manifestam desacordo ape- votaram contra) e a maioria da po-
vestimentos se conseguirem reduzir
nas quando a intervenção estatal pulação (53%) se posicionava tam-
as coberturas e apregoar que assim
ameaça seus lucros. Os represen- bém contrária ao projeto. As princi-
ajudam o SUS.
tantes das operadoras posam de li- pais polêmicas se concentraram em
berais antiestatistas, mas querem torno da ampliação da intervenção
mais subsídios, créditos e emprés- IHU On-Line – O modelo bri- estatal na saúde. Os EUA construí-
timos públicos. O setor privado não tânico de gestão de saúde públi- ram um sistema de saúde orientado
é contra a ANS, faz questão de in- ca é tomado como referência. pelo mercado e o Obamacare abalou
tervir na escolha de seus diretores No que consiste a lógica desse os alicerces da dinâmica de grandes
e políticas regulatórias. A regulação sistema e que analogias pode- grupos empresariais.
caminhou sempre de lado porque a mos fazer com a concepção do
ANS tem sido fortemente orientada Apesar das imensas dificuldades e
SUS brasileiro?
pelas agendas empresariais e esse vaivéns, o Obamacare logrou uma
processo de captura permanente a Ligia Bahia – O Reino Unido tem imensa vitória. O patamar dos de-
enfraqueceu. Atualmente, a ANS um sistema universal de saúde (Na- bates sobre saúde hoje nos EUA é
tem um quadro técnico qualificado, tional Health System)1 que se carac- completamente diferente. Os demo-
mas está destituída de legitimidade cratas propõem um sistema de saúde
para se afirmar como locus de uma
1 Serviço Nacional de Saúde (em inglês: National Heal-
th Service - NHS): é o nome habitualmente utilizado para
ainda mais público e os republicanos
regulação pautada pelas necessida- referir-se aos quatro sistemas públicos de saúde do Reino admitem preservar garantias de co-
Unido coletiva ou individualmente, embora atualmente,
des de saúde. em geral, seja apenas ao serviço de saúde da Inglaterra bertura do Obamacare. A experiên-
que é corretamente chamado de Serviço Nacional de Saú-
de sem qualquer outra qualificação. Três serviços (Ingla-
cia norte-americana, a despeito das
terra e País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte), foram imensas diferenças entre ambos os
criados por legislações separadas e começaram a fun-
IHU On-Line – Quais são as cionar em 5 de julho de 1948; anteriormente a essa data, países, indica que os sistemas de
propostas das operadoras de serviços públicos de saúde mais limitados eram operados
por autoridades locais e por outros organismos. (Nota da
saúde públicos são mais efetivos. Se
planos privados que têm sido IHU On-Line) um país de renda alta como os EUA

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caminha para um sistema público, serviços públicos e privados. Nesse Ligia Bahia – Interesses em-
o Brasil deveria tratar de valorizar e período se cristalizou um impasse: presariais são legítimos, o que
reafirmar o SUS. os serviços privados, subsidiados deve ser combatido é a promiscui-
com recursos públicos, se recusam dade entre público e privado. Os
ao atendimento universal e os públi- empresários da saúde estão que-
IHU On-Line – O SUS já tem cos subfinanciados atendem todos rendo posar de reformadores do
mais de 30 anos2. Nesse perío- de modo insatisfatório. sistema de saúde e esse lugar não
do, quais os mais significativos lhes pertence. Vender mais planos
avanços, impasses, retrocessos de saúde não é sinônimo de solu-

“Os ingleses
e adaptações na compreensão ção para um país como o Brasil,
da articulação do SUS com o se- que está às voltas com imensos
tor privado?
Ligia Bahia – Os principais
se orgulham problemas de saúde.

de seu sistema
Para fortalecer o SUS é necessário
avanços são a compreensão sobre encarar o fato de que somos mais
a diferença entre público e estatal.
O SUS é público, significa que sua público e o de 200 milhões de habitantes, a
maioria de renda baixa e média e
rede pode ser constituída por servi-
ços de qualquer natureza desde que Brasil continua não podemos entregar a saúde para
grupos empresariais, que são atra-
atenda a todos. Os retrocessos gra-
vitam em torno da fragilidade do às voltas com ídos aos locais em que se situam
segmentos de maior renda e não
SUS para se afirmar como uma rede
de serviços de qualidade. Ao longo
as pressões do pelas condições sanitárias priori-
tárias. O financiamento e a gestão
de trinta anos, os serviços públicos
não conseguiram se tornar exem-
setor privado” do SUS precisam ser revistos. O
SUS requer um volume de recur-
plos de limpeza, bom atendimento, sos muito superior ao atual, que
atendimento personalizado. Há uma poderiam ser obtidos com o fim
diferença notória entre a conserva- IHU On-Line – Quais os de- dos subsídios públicos ao setor pri- 25
ção de prédios, procedimentos de safios para evitar que lógicas vado. A modernização da gestão,
recepção, tempos de espera entre os mercantilistas ditem as regras incluindo fim das influências po-
na gestão de saúde pública e lítico-partidárias para a nomeação
2 Em 2018, quando o SUS completava 30 anos, a IHU
On-Line preparou uma edição especial, intitulada Sistema para fortalecer o SUS, inclusive de cargos técnicos, avaliação, pres-
público e universal de saúde – Aos 30 anos, o desafio de dando um melhor aporte nas tação de contas e transparência, é
combater o desmonte do SUS. Acesse em ihuonline.unisi-
nos.br/edicao/526. (Nota da IHU On-Line) suas formas de financiamento? tarefa inadiável. ■

Leia mais
- “O SUS nos tornará mais humanos e, portanto, mais brasileiros”. Entrevista com Ligia
Bahia, publicada na revista IHU On-Line, número 376, de 17-10-2011, disponível em http://
bit.ly/2kikrfY.
- O sucateamento do SUS é consequência da lógica das empreiteiras e dos esque-
mas político-partidários. Entrevista especial com Ligia Bahia, publicada nas Notícias do
Dia de 16-5-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2k01NsW.
- Decisão do STF sobre planos de saúde é histórica e determina que planos de saúde
não podem usar o SUS a seu bel-prazer. Entrevista especial com Ligia Bahia, publicada
nas Notícias do Dia de 1-3-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/2jXpRg0.
- O entrecruzamento de interesses políticos e econômicos locais e o desafio de enfren-
tar o déficit de médicos em regiões inóspitas do país. Entrevista especial com Lígia Bahia,
publicada nas Notícias do Dia de 24-6-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2k02l1Y.

EDIÇÃO 541
TEMA DE CAPA

O SUS reduzido a sistema


complementar do setor privado
Segundo Alcides Silva de Miranda, há um mercado especializado
em doenças por trás dos planos privados de saúde que jogam
para o sistema público, entre outras despesas, as de alto custo
João Vitor Santos

J
á é quase lugar comum entre os tecnologias e recursos terapêuticos”,
especialistas afirmar que o Sis- define. “O mercado especializado em
tema Único de Saúde – SUS está doenças concentra os seus investi-
sob riscos e que os planos privados de mentos e capitais no trabalho médi-
saúde são um elemento importante co e nas últimas décadas promoveu
nesse processo de desidratação. Po- uma alteração significativa do modo
rém, ao contrário do que se possa su- de produção clínico e artesanal, an-
por, o mercado de planos privados não tigamente denominado como ‘prática
quer acabar com o SUS. O professor liberal’, para um modo de produção
Alcides Silva de Miranda observa que mais taylorizado, buscando incre-
a intenção é manter o sistema público mentar segmentações e fragmenta-
como uma espécie de aposto, mas que ções subespecializadas com ênfase no
seja capaz de arcar com tudo aquilo controle e seriação dos processos de
26 que dá despesas ao sistema privado. trabalho médico”, detalha.
“Em função de subfinanciamento crô- É por isso que considera que “os
nico e de sucessivos erros estratégicos Planos de Saúde como alternativa de
de políticas governamentais (alguns mercado e modalidade organizativa da
intencionais), o SUS se tornou ‘com- prestação de serviços assistenciais es-
plementar’ ao setor privado (consti- pecializados nunca foram uma ameaça
tucionalmente deveria ser o inverso)”, para o SUS. O mercado e os mercado-
sintetiza, na entrevista concedida por res especializados em doenças, sim”.
e-mail à IHU On-Line. Ele ainda Assim, tão importante quanto relegar
explica que “para o mercado espe- ao sistema público procedimentos de
cializado em doenças o SUS tem sido alto custo, é assegurar que a interven-
convenientemente útil para arcar com ção do Estado sob sistemas privados
despesas de alto custo (transplan- seja cada vez mais irrisória. “A regu-
tes, hemodiálises, outras terapias ex- lação estatal das operadoras de planos
cepcionalmente caras) que gerariam de saúde estabelecida e efetuada a par-
eventuais prejuízos financeiros. Assim tir da ANS é quase uma piada de mau
como para alguns dos mercadores de gosto, uma tragicomédia que reforça
doenças o SUS tem sido conveniente o sentido abrangente do que significa
como suporte ambivalente para paga- realmente o Estado brasileiro para os
mentos adicionais”. oligopólios historicamente parasitá-
Para Miranda, é preciso compre- rios e tutelares”, dispara.
ender essa ideia de “mercado espe- Alcides Silva de Miranda é gradu-
cializado de doença” que está por ado em Medicina pela Faculdade Esta-
trás do sistema mercantil de saúde. dual de Medicina do Pará - FEMP/PA,
“No mundo inteiro, o setor privado com especialização em Medicina de Fa-
e o mercado especializado em doen- mília e Comunidade, pelo Programa de
ças concentram seus investimentos Residência Médica do Serviço de Saúde
na indução de demandas e, por isso, Comunitária do Grupo Hospitalar Con-
têm aumentado consideravelmente a ceição - SSC-GHC/RS, mestrado em
classificação de novos eventos mórbi- Saúde Pública pela Universidade Esta-
dos a requerer novas especialidades, dual do Ceará - UECE e doutorado em

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Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde A entrevista foi originalmente pu-


Coletiva da Universidade Federal da blicada nas Notícias do Dia de 11-09-
Bahia - ISC-UFBA. Atualmente, é pro- 2019, no sítio do Instituto Humanitas
fessor associado da Universidade Fede- Unisinos – IHU, disponível em http://
ral do Rio Grande do Sul - UFRGS, nos
bit.ly/2mgpzSk.
cursos de graduação e pós-graduação
em Saúde Coletiva. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compre- alternativas de escolha de profis- de empresarial dos Planos de Saú-
ender o surgimento da saúde sionais e estabelecimentos de saú- de. Esta modalidade de cooperativa
suplementar no Brasil? de preestabelecidas pelas empresas profissional constitui atualmente a
contratadas; em vez de autonomia maior proporção das Operadoras de
Alcides Silva de Miranda – A
na escolha por parte da clientela e planos assistenciais médicos.
constituição e regulamentação legal
do pagamento posterior à prestação
dos processos de mercantilização em SUS e os planos privados
de serviços, típico da modalidade de
escala da assistência médica especia-
Seguros de saúde.
lizada, notadamente sob a forma de Desde 1988, com a advento do
securitização, remontam do início do A modalidade contratual de Planos Sistema Único de Saúde - SUS, os
século XX, principalmente a partir de Saúde tornou-se predominante serviços sem vínculos com o setor
dos EUA. No caso brasileiro, a con- no país e, mantido o artifício da re- público, como aqueles contratados
juntura propícia ocorreu na década núncia fiscal (devolução no Imposto pelos Planos de Saúde, passam a ser
de 1970, período da ditadura militar, de Renda de Pessoas Físicas e Jurí- classificados como “suplementares”, 27
inicialmente por iniciativa das gran- dicas de um limite de valores pagos ou seja, adicionais, mas sem com-
des montadoras de automóveis se- como contrapartida pela prestação plementaridade para com as políti-
diadas em São Paulo, que buscaram de serviços privados de educação e cas públicas. Convém destacar que
ofertar procedimentos de assistência saúde), obteve progressivo incre- tal classificação é aplicável aos ser-
médica aos seus operários e familia- mento, principalmente na década de viços de saúde e não propriamente
res pela via da contratação de em- 1990. Ao longo do tempo também se aos estabelecimentos prestadores.
presas especializadas (denominadas complexificaram as intermediações Ou seja, um mesmo estabelecimen-
como “Medicina de Grupo”). Como administrativas e os agenciamentos to de saúde privado, com ou sem
também, para viabilizar tal oferta, as operacionais dos procedimentos as- fins lucrativos, pode ao mesmo tem-
referidas montadoras demandaram sistenciais contratados, sendo insti- po administrar, operar e produzir
compensações tributárias ao gover- tucionalizadas e regulamentadas as serviços complementares ao SUS
no federal, que foram obtidas pela Operadoras de Planos de Saúde. (contratados ou conveniados) e ser-
regulamentação legal de modalidade viços suplementares, como aqueles
Inclusive, a modalidade de con- contratados pelos Planos de Saúde e
de renúncia fiscal para Pessoas Jurí- tratação e prestação de serviços a
dicas e Físicas. agenciados por diversas Operadoras.
partir de trabalho cooperativado de
Inicialmente, em razão da ênfase profissionais de saúde, como o caso Em 1998, o governo de Fernando
das Cooperativas Unimed1 (existen- Henrique Cardoso criou a Agência
na diminuição de custeio pelas em-
tes desde o final da década de 1960), Nacional de Saúde Suplementar -
presas contratantes e em função da
passaram a ser agenciados e a operar ANS com o propósito de regular o
insuficiência para uma oferta abran-
com a mesma logística e racionalida- setor suplementar de serviços de
gente de procedimentos assisten-
saúde, notadamente as Operadoras
ciais especializados (ambulatoriais,
1 Confederação Nacional das Cooperativas Médicas e os Planos de Saúde privados.
hospitalares, apoio diagnóstico e te- (Unimed): é a maior operadora de planos de saúde do
rapêutico) pelas empresas assisten- Brasil. Fundada em 28 de novembro de 1975, o sistema
de cooperativas médicas, que teve um faturamento de 33 Números dos planos
ciais contratadas, prevaleceu a op- bilhões de reais em 2012, é líder no mercado privado na-
cional (40% do mercado doméstico de planos de saúde) e
ção pela modalidade contratual de está presente em 83% do território brasileiro. É também Dados provenientes da ANS e rela-
Planos de Saúde, em vez de Seguros considerada a maior cooperativa de saúde do mundo. São tivos ao mês de junho de 2019 dão
347 cooperativas em todo o país (comparáveis a subsi-
de saúde. Grosso modo, os Planos diárias, mas geridas de maneira autônoma), controladas conta de que no Brasil havia o regis-
pelos 113 mil médicos cooperados, além de 34 coope-
de Saúde consistem na contratação rativas regionais, que fazem o meio de campo entre as tro de aproximadamente 47 milhões
restrita de predeterminados pro- subsidiárias e a Unimed nacional. O sistema conta com 18 de beneficiários de planos assisten-
milhões de beneficiários, 2.611 hospitais credenciados e
cedimentos assistenciais, com as 114 hospitais próprios. (Nota da IHU On-Line) ciais médicos (correspondente a cer-

EDIÇÃO 541
TEMA DE CAPA

ca de 22,5% da população estimada profissionais médicos é a existência tem sido os “Planos de Saúde”. Ao
para o período) e aproximadamente de ocupações no segmento privado mesmo tempo em que essa modali-
25 mil beneficiários de planos as- e suplementar, sendo que, na maior dade se constitui pela segmentação
sistenciais odontológicos (cerca de parte das vezes, esses profissionais subespecializada por economia de
11,8% da população estimada). Dos trabalham também em serviços vin- escala e sob o controle do mercado
beneficiários de planos assistenciais culados ao SUS (em junho de 2019, assistencial focado em doenças, ven-
médicos registrados, a proporção de havia uma média de 2,8 ocupações de a ilusão de “autonomia” relativa
67,3% havia contratado a modalida- para cada médico cadastrado em es- para uma corporação cada vez mais
de “Coletiva Empresarial” e 19,1% a tabelecimentos de saúde). insegura pela massificação e concor-
modalidade “Individual/Familiar”. rência de seu trabalho, mais insatis-
Apresentei sumariamente alguns
Estavam registrados na ocasião feita com a perda de poder técnico
quantitativos para argumentar que
54.445 planos assistenciais médicos (em disputas acirradas com outras
qualquer análise razoável sobre o
e quase cinco mil planos assisten- corporações profissionais) e com o
surgimento, o crescimento e a con-
ciais odontológicos, os quais eram desgaste de sua aura de carisma ins-
solidação do setor suplementar de
administrados por 1.219 Operado- titucionalizado.
Saúde no Brasil precisa levar em
ras, estando a maioria das mesmas
conta os termos de reconstituição Claro, eu necessitaria de mais sub-
(61,3%) sediadas na Região Sudeste
de um mercado assistencial especia- sídios, elementos e argumentos para
(onde vive cerca de 42% da popula-
lizado… Eu diria, não propriamente justificar essa tese, o que não caberia
ção brasileira) e a minoria (somen-
especializado na produção de saúde, em breve resposta. Entretanto, apre-
te 4,4%) sediadas na Região Norte
mas, sim, no consumo de procedi- sento tal provocação não somente
(onde vive cerca de 9% da população
mentos biomédicos e, portanto, de- para explicar parcialmente o surgi-
brasileira). Consideradas apenas mento e consolidação do setor suple-
pendente de doenças e doentes.
as Operadoras exclusivas de planos mentar, como também para explicar
assistenciais médicos, a proporção Reciclagem das formas de a reciclagem das formas de corpora-
de modalidades administrativas era corporativismo autoritário tivismo autoritário dentre os profis-
respectivamente de: 31,6% de Coo- sionais médicos (digo, de passagem,
perativas Médicas, 28,7% de “Medi- No mundo inteiro, o setor privado minha formação profissional).
28 cina de Grupo”, 17,5% de “Empresas e o mercado especializado em doen-
de Autogestão”, 16,6% de “Admi- ças concentram seus investimentos
nistradoras de Benefícios”, 4,5% de na indução de demandas e, por isso, IHU On-Line – Quando os pla-
“Operadoras Filantrópicas” e so- tem aumentado consideravelmen- nos privados de saúde vão se
mente 1% de “Seguradoras”. te a classificação de novos eventos configurar como uma ameaça
Como o setor privado suplementar mórbidos a requerer novas espe- ao Sistema Único de Saúde -
e particularmente o seu segmento de cialidades, tecnologias e recursos SUS?
Planos de Saúde estão muito focados terapêuticos. O mercado especiali-
Alcides Silva de Miranda –
e dependentes do trabalho profis- zado em doenças concentra os seus
Creio que os Planos de Saúde como
investimentos e capitais no trabalho
sional médico, convém dimensionar alternativa de mercado e modali-
médico e nas últimas décadas pro-
uma tendência correlata. De acordo dade organizativa da prestação de
moveu uma alteração significativa
com dados do Cadastro Nacional de serviços assistenciais especializados
do modo de produção clínico e ar-
Estabelecimentos de Saúde - CNES, nunca foram uma ameaça para o
tesanal, antigamente denominado
nos últimos dez anos (2010-2019) SUS. O mercado e os mercadores es-
como “prática liberal” (em razão de
houve um aumento significativo pecializados em doenças, sim. Refi-
maior autonomia dos Clínicos), para
(38,5%) na oferta de ocupações mé- ro-me a um mercado “especializado
um modo de produção mais taylo-
dicas (empregos) no país, entretan- em doenças” como uma política fo-
rizado, buscando incrementar seg-
to, enquanto as taxas populacionais calizada (nas doenças e no lucro ge-
mentações e fragmentações subes-
de oferta em serviços vinculados ao rado pelo seu manejo mercantil), em
pecializadas com ênfase no controle
SUS obtiveram um incremento de distinção com a necessária direcio-
e seriação dos processos de trabalho
3,3 para 3,9 ocupações médicas por nalidade de uma política pública: a
médico, visando melhor eficiência
1.000 hab. (20,5%), nos serviços produção social e a atenção integral
em termos de economia de escopo e
privados suplementares o incremen- em Saúde, a partir de estratégias in-
de escala.
to variou de 1,0 para 1,9 ocupações tegradas em sistemas institucionali-
médicas por 1.000 hab. (91,1%). Não No caso brasileiro, as tendências zados de ações e serviços orientados
é preciso muito discernimento para e evidências consubstanciam a tese para intervir sobre determinantes
constatar que prevalece a tendência de que a alternativa mercantil mais dos processos de saúde (prevenção,
de maior expansão do segmento su- compatível com a mudança do modo promoção); para proteger os indiví-
plementar de mercado para o traba- de produção e de controle do tra- duos e grupos sociais mais vulnerá-
lho médico. Atualmente a principal balho médico, estritamente assis- veis e expostos a riscos e desgastes
variável associada com a fixação de tencial e especializado em doenças, (biológicos, sociais, ambientais, de

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trabalho etc.); para garantir assis- reito Privado, Sociedades de Econo- especializado em doenças não opera
tência no caso de eventos (doenças e mia Mista) e agenciamento empre- sob controle público (aos moldes dos
outros agravos, gestações etc.), mas sarial (contratação de associações Conselhos de Saúde), buscando dis-
também para garantir medidas e privadas em regime especial, como farçar formas figurativas e tuteladas
intervenções para a reabilitação e a Organizações Sociais e congêneres). de regulação estatal.
reintegração. Esse fenômeno implica na transfe-
Em suma, as ameaças e riscos para
rência de prerrogativas de gestão
Afirmo isso porque nas experiên- o SUS provêm principalmente das
pública e de autoridade sanitária es-
cias históricas de consolidação efeti- iniciativas e tentativas, inclusive go-
tatal para a égide do Direito Privado,
va de políticas e sistemas universais vernamentais, de reificação do di-
de Saúde, a existência de subsiste- com a introjeção da racionalidade
reito social com ênfase em seu valor
mas suplementares mercantis nun- de gestão empresarial de mercado e
de troca e consumo, sob a forma de
ca constituiu ameaça. No passado, com ênfase no “direito de consumo
mercadoria. Uma espécie de “qua-
alguns países do hemisfério norte de procedimentos biomédicos”, à re-
se-mercado” dependente de oligo-
optaram pela universalização de po- velia do direito social e princípios da
pólios e de uma corporação profis-
líticas públicas de saúde (sob a égide política pública de Saúde.
sional especializada e autoritária.
do welfare state) e estabeleceram O contrato social estabelecido cons- Os Planos de Saúde são uma das al-
regimes e vínculos contratuais di- titucionalmente de direito ao cuida- ternativas deste mercado, contando
retamente com médicos, buscando do (universal, equânime, integral, para a sua expansão e consolidação
preservar alguns aspectos de sua participativo, sob controle público com a depreciação (de fato e simbó-
“prática liberal”, com adscrição de etc.) vai sendo gradualmente substi- lica) do SUS.
clientelas, contudo, também com tuído por “contratos de gestão” para
maior regulação estatal. Em tais a produção especializada, desinte-
experiências, o setor privado suple-
“A regulação
grada e o consumo de procedimen-
mentar não vicejou e a oferta de pla- tos biomédicos assistenciais. Dito de
nos de securitização ou de “pacotes”
com programação de procedimentos
outro modo, mesmo na esfera públi-
ca, o mercado de doenças ameaça e estatal das
operadoras
biomédicos se tornou algo raro. avança célere em contraposição aos 29
No Brasil, a opção inicial no SUS fundamentos ético-sociais e princí-
foi de incluir o trabalho profissional
sob a forma de serviço público (esta-
pios de direcionalidade do SUS.
de planos
tutário ou regido pela CLT), em al-
guns casos, em regime de dedicação
Dificuldades e subfinancia-
mento
de saúde
exclusiva. Entretanto, isso ocorreu
Dentre outras dificuldades, o crô- estabelecida
sem que tenham sido efetivadas re-
formas e garantias burocráticas ele-
nico subfinanciamento e o progres-
sivo desfinanciamento do SUS têm
e efetuada
a partir da
mentares (no sentido weberiano),
acentuado a sua fragilização institu-
como a regulamentação de um plano
cional, criando lastro para as “alter-
nacional de cargos, carreiras e salá-
rios; a descentralização de recursos
nativas de mercado”. Por exemplo,
a proposta de oferta de “Planos de
ANS é quase
e a desverticalização de estratégias
programáticas etc.
saúde populares” com subvenções uma piada de
públicas pode até soar como alterna-
Do Direito Público para o tiva viável para o consumo fragmen- mau gosto”
Direito Privado tado de procedimentos ambulato-
riais de baixo custo, entretanto, fere
Nos últimos anos, parcialmente em de morte as garantias de integralida-
função da não ocorrência de necessá- de (promoção da Saúde, proteção,
IHU On-Line – Qual a sua ava-
rias reformas na Administração Pú- reabilitação, reintegração… Para
liação quanto às formas de re-
blica Direta, muitos gestores gover- além da assistência imediata de de-
gulação do Estado brasileiro
namentais do SUS têm acentuado a mandas individuais e eventuais) e de
acerca da saúde suplementar?
transferência de estabelecimentos e melhor equidade (prioridade para
Quais os avanços e os limites
serviços de saúde da égide do Direito os mais expostos a riscos, vulnera-
que a Agência Nacional de Saúde
Público para o Direito Privado, prin- bilidades e desgastes biológicos, so-
- ANS trouxe a essa regulação?
cipalmente pelo seu “empresaria- ciais, ambientais) tensionadas pelos
mento” (mudança da instituciona- princípios e diretrizes do SUS. Além Alcides Silva de Miranda – Ul-
lidade de estabelecimentos estatais disso, mesmo quando introjetada na timamente, a regulação estatal das
para as modalidades de empresas institucionalidade estatal, a racio- operadoras de planos de saúde esta-
públicas, fundações estatais de Di- nalidade empresarial do mercado belecida e efetuada a partir da ANS

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TEMA DE CAPA

é quase uma piada de mau gosto, Alcides Silva de Miranda – Em lio, a atual tutela sobre ANS tem a
uma tragicomédia que reforça o sen- prosseguimento com a resposta an- vantagem de disfarçar os termos de
tido abrangente do que significa re- terior, não creio que exista tal inten- direcionalidade das dinâmicas re-
almente o Estado brasileiro para os cionalidade, pelo menos em pers- gulatórias do setor e ensaiar, de vez
oligopólios historicamente parasitá- pectiva estratégica. Já existe tutela em quando, algumas medidas sim-
rios e tutelares. Evidentemente não do referido oligopólio e mera “gover- bólicas de controle e punibilidade
me refiro ao conjunto de técnicos e nança procedimental” na ANS. Ou com apelo popular (processadas e
trabalhadores da ANS, que muito seja, a direcionalidade e a metarre- divulgadas pelo oligopólio da gran-
têm se esforçado para estabelecer gulação já estão estabelecidas pelo de mídia, parceiro que muito lucra
um marco regulatório minimamen- oligopólio de Operadoras dos Pla- com o pagamento de propagandas
te republicano e para executar com nos de Saúde, enquanto competem das Operadoras).
responsabilidade as suas funções de à ANS os termos procedimentais de Aproveitar a conjuntura de ofen-
fiscalização, controle e regulação. governança e de regulação. siva ultraliberal para esvaziar a ins-
Refiro-me preliminarmente à opção
O que pode haver de intencionali- tância já instrumentalizada (ANS) e
política, ensejada no governo FHC,
dade circunstancial, em oportunismo “escancarar” a ilusão de autorregula-
que vai além da política setorial de
tático para com a atual conjuntura ção mercantil pode ser um risco mal
Saúde, de uma regulação agenciada
de ofensiva ultraliberal distópica, calculado estrategicamente (embora
e sem controle público, sob gover-
alinha-se às pretensões de maior “fle- devamos admitir que cálculos estra-
nança intercorporativa e sob a tutela
xibilização” procedimental em nome tégicos de longo prazo nunca foram
dos oligopólios concorrentes ou pa-
da “autorregulação” mercantil. o forte deste oligopólio). O ultrali-
rasitários das políticas públicas.
beralismo em voga no Brasil possui
No caso da regulamentação da natureza distópica e caráter indigen-
ANS, fica claro o propósito de de- te e precipitado, se pensarmos nos
legação de autoridade dissociativa
(para com o Ministério e Secretarias “O SUS termos mais substanciais da agenda
de reformas neoliberais preconizada

30
Estaduais e Municipais de Saúde,
que constitucionalmente deveriam ainda não foi para a periferia do capitalismo. O
oportunismo da aposta precipitada
compor a direcionalidade única,
em termos regulatórios) e de alie-
legitimado pode contaminar o setor com a mes-
ma distopia.
nação das instâncias de Controle
Social do SUS (Conselhos de Saú-
socialmente
de). Conjunturalmente, refiro-me
aos fatos inequívocos de escolhas
e apropriado IHU On-Line – De que forma
as crises econômicas do Brasil
burlescas de altos dirigentes para
a ANS. Dirigentes com biografias e
pelo seu valor dos últimos anos têm impacta-
do o setor de saúde suplemen-
“folhas corridas” de serviços pres-
tados para Operadoras de Planos
de uso, muito tar? E como isso tem repercuti-
do no SUS?
de Saúde, intermediários da tutela menos por Alcides Silva de Miranda – As
deste oligopólio sobre tal instância
de regulação agenciada. seus valores contemporâneas “crises econômi-
cas” têm fragilizado o capital produ-
Como afirmei anteriormente,
dada a característica histórica da
redistributivos” tivo em sua interdependência dialé-
tica para com o capital especulativo
relação pública e privada no país, e rentista. No Brasil as ditas “crises”
da tutela e parasitismo de oligopó- têm aumentado a concentração de
lios e de corporações autoritárias renda e diminuído o poder aquisi-
(da sociedade política e civil) sobre IHU On-Line – O que desejam tivo de quase todos, mas, particu-
o Estado brasileiro, seria surpreen- as operadoras de planos priva- larmente, do estrato denominado
dente se a regulação do setor pri- dos? Qual a questão de fundo vulgarmente como “classe média”,
vado e suplementar de Saúde ocor- ao levantar esses pleitos diante principal consumidor dos serviços
resse de outra forma. da atual conjuntura? vendidos pelas Operadoras de Pla-
nos de Saúde. Tendencialmente a
Alcides Silva de Miranda – O diminuição do poder aquisitivo (e
IHU On-Line – O que está por de sempre, nos termos de sua pro- de custeio para necessidades expres-
trás da intenção das operado- pensão ideológica: mais autonomia sas) da “classe média” deve impactar
ras de saúde privadas de reti- para autorregulação mercantil. O negativamente o mercado das Ope-
rar da ANS o poder de regula- que chega a ser irônico, porque lem- radoras de Planos de Saúde, o que
ção e fiscalização dos Planos de bra um dito popular: “Se ficar me- só pode ser melhor dimensionado
Saúde? lhor, estraga...”. Para este oligopó- em ciclos e períodos mais longos. O

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problema é que a rápida sucessão custo (transplantes, hemodiálises, IHU On-Line – Muitos espe-
de “crises econômicas” em curso, outras terapias excepcionalmente cialistas alegam que o SUS não
que capitaliza e nutre o mercado fi- caras) que gerariam eventuais pre- teve completado o seu processo
nanceiro, prenuncia mudanças es- juízos financeiros. Assim como para de criação. Em que medida a
truturais profundas, cujos impactos alguns dos mercadores de doenças não completude desse proces-
devem ser projetados com cautela, o SUS tem sido conveniente como so – agenda incompleta da Re-
principalmente em se tratando de suporte ambivalente para pagamen- forma Sanitária, limitações do
“mercados” específicos. tos adicionais (“agiliza-se” o que financiamento, insuficiências
deve ser feito, mas demoraria muito da regionalização, incipiente
Enquanto isso, o setor privado de
pela “fila do SUS”, no caso de que se mudança nas práticas assisten-
Saúde Suplementar no Brasil inte-
“pague por fora” um adicional pelo ciais e na burocratização dos
gra o condomínio de oligopólios que
procedimento, assim mesmo, enca- modelos e processos de gestão
aposta e investe nas disrupções e im-
minhando os exames, as internações – contribui para os avanços das
posições ultraliberais conjuntural-
etc. “pelo SUS”). lógicas de privatização sobre o
mente em curso. Torna-se inevitável
sistema de saúde pública?
a lembrança de outra alegoria: aque- Com tal utilidade acessória, a
la do parasita afoito que termina por “privatização” do SUS seria incon- Alcides Silva de Miranda – An-
matar o hospedeiro. veniente para o mercado especia- teriormente já respondi algo sumá-
lizado em doenças, melhor seria rio sobre tais insuficiências e incom-
mantê-lo como se encontra: instru- pletudes para a consolidação do SUS
mentalizado e parasitado. Manten- como política pública e republicana.

“Reitero que do a circunscrição acessória e com-


plementar do SUS, nada impediria
Muitos têm sido os constrangimen-
tos (financeiros, de gestão intergo-

o processo que o mercado especializado em


doenças abrisse campo para a mas-
vernamental, de modelagem tecno-
assistencial etc.) que deformaram a
de criação do sificação e venda de “planos meia
boca” e “populares”.
arquitetura constitucional do SUS,
substituindo-a por “puxadinhos” e
SUS nunca Para os chicago boys que estão (e
“penduricalhos” de arranjos gover-
namentais (em vez de políticas de
31

se completa sempre estiveram) em altos escalões


da política e da institucionalidade
Estado). Mesmo assim, a experiên-
cia incremental e incompleta dessa
e nem se econômica governamental, a pro-
posta é outra: transformar o SUS
política pública de Saúde tem sido
um dos melhores exemplos de res-
esgota, o que é num “grande plano de saúde” com
a programação de uma “universali-
ponsabilidade social e efetividade
equânime na história do nosso país.
dialeticamente dade básica” (“carteira de procedi-
mentos” para todos, com “comple-
É impressionante, mesmo para a óti-
ca internacional, como uma política
imprescindível” mentações” a cargo dos mercados) e
gestão agenciada empresarialmente:
pública tão constrangida recursiva-
mente, tão parasitada e comprome-
um “SUS” reciclado sob os auspícios tida por interesses privados e cor-
da “Av. Paulista”. Mais uma distopia porativos, tenha atingido tamanha
anunciada, que revela o seu grau de cobertura e tenha diminuído signi-
IHU On-Line – Quais os riscos irresponsabilidade e de individualis- ficativamente iniquidades de acesso
de privatização do SUS, conver- mo utilitário e autoritário. e de utilização de serviços públicos.
tendo-o nos moldes de Planos No entanto, considerando a atual Existem muitos indicadores epide-
de Saúde privados? conjuntura brasileira e mundial, pro- miológicos e sociais que dimensio-
pícia para distopias e neofascismos, nam e consubstanciam o alcance, a
Alcides Silva de Miranda – Em
sim, existe tal risco, que deve ser en- abrangência e os resultados do SUS,
função de subfinanciamento crônico
frentado não somente com alternati- seja em termos de produção de ser-
e de sucessivos erros estratégicos de
vas de “redução de danos” ao SUS ou viços (outputs) ou de impactos sobre
políticas governamentais (alguns in-
ao setor público de Saúde, mas com o estado de saúde da população (ou-
tencionais), o SUS se tornou “com-
tcomes).
plementar” ao setor privado (consti- a busca de convergências republica-
tucionalmente deveria ser o inverso). nas e transetoriais para as políticas O SUS ainda não foi legitimado
Mais do que isso, tornou-se conve- públicas. Dito de outro modo: o risco socialmente e apropriado pelo seu
nientemente útil para a transferên- não se restringe às políticas setoriais valor de uso, muito menos por seus
cia de custeios. Por exemplo, para o de saúde (ao SUS), trata-se de risco valores redistributivos. Além de suas
mercado especializado em doenças abrangente (societário, democrático, dificuldades e insuficiências, enfren-
o SUS tem sido convenientemente republicano, civilizatório) e assim ta ainda a guerra de desinformações
útil para arcar com despesas de alto deve ser enfrentado. promovida pelo mercado especiali-

EDIÇÃO 541
TEMA DE CAPA

zado em doenças, que, evidentemen- sistente, contínua e inequívoca ten- APS do sistema público e
te, busca realçar midiaticamente a são política que disputa pretensões do sistema privado
ineficácia simbólica do “SUS”, para de reforma estratégica institucional
continuar capitalizando as vanta- com ênfase na APS; entretanto, com No SUS a APS está definida pela ads-
gens decorridas de tal depreciação. os mesmos percalços, insuficiências crição de responsabilidades (clínicas
Mas é bom lembrar que mesmo em e incompletudes do conjunto das es- e de Saúde Coletiva) de uma equipe
experiências de reformas mais rápi- tratégias institucionais e programá- multiprofissional e interdisciplinar
das e substanciais, como o caso do ticas do SUS. em relação a populações e territó-
sistema de saúde do Reino Unido rios; na APS corporativa e mercantil
Da mesma forma, existem versões e preconiza-se a adscrição de clientelas
(NHS), o processo de legitimação
proposições mais corporativas e mer- para especialistas médicos (os outros
social implicou em décadas de dis-
cantilizadas para a ênfase na APS, profissionais de saúde dependeriam
putas estratégicas e ideológicas.
geralmente veiculadas em discursos dos especialistas médicos). Na APS do
Reitero que o processo de criação tecnocráticos e disfarçadas em com- SUS busca-se ênfase na priorização de
do SUS nunca se completa e nem petências instrumentais (no sentido necessidades sociais visando o enfren-
se esgota, o que é dialeticamente habermasiano do termo). As próprias tamento de iniquidades e as priorida-
imprescindível. Evidentemente, as Operadoras de Planos de Saúde têm des de proteção em razão de riscos e
lacunas e os termos de suas insu- investido em procedimentos típicos vulnerabilidades abrangentes; na APS
ficiências ou incompletudes estão de APS (Homecare etc.), visando mais corporativa e mercantil priorizam-se
em disputa. Ao mesmo tempo em a racionalização na contenção de cus- os protocolos de classificação de riscos
que se torna preocupante o futuro tos operacionais (APS de gatekeepers estritamente biológicos visando a efi-
de tão frágil e débil política pública, para a triagem de demandas e coor- ciência alocativa de recursos. Na APS
torna-se contraproducente subesti- denação de referenciamentos), do do SUS busca-se a gestão do cuidado
má-la, mesmo diante de conjuntu- que propriamente a constituição de no âmbito local, a partir da mediação
ras tão adversas. atributos inerentes a tal estratégia de entre custos e benefícios sociais, indi-
cuidado como política pública. viduais e comunitários; na APS corpo-
rativa e mercantil há ênfase em efici-
32 “O SUS vive O mercado das doenças tem induzido
a formação e atuação de uma corpo-
ência estritamente orçamentária (na
condição de política governamental,
e pulsa e ração médica especializada em APS,
inclusive, muitos dos seus expoentes
a equação seria de custo orçamentário
sobre benefício eleitoral)…
continuará ocupam cargos diretivos governamen-
tais, de onde buscam traficar reformas Enfim, poderia alongar as compa-
sendo de interesse corporativo e mercantil,
amparadas em discursos tecnocráti-
rações em vários aspectos, mas im-
porta realçar que se trata do matri-
defendido cos e medidas autoritárias, verticais.
Inclusive, na conjuntura atual esse viés
ciamento da APS a partir da política
pública do SUS ou do mercado espe-
com ousadia corporativo, autoritário e tecnocrático,
pautado em discurso reformista da
cializado em doenças.

e criatividade” APS, tem se configurado como uma das


tensões mais influentes, proeminentes IHU On-Line – Plano de saúde
e atuantes no Ministério da Saúde do privado é o sonho de consumo
governo Bolsonaro. de muitos brasileiros. Como
compreender essas lógicas?
IHU On-Line – A privatização
Claro, se analisarmos as especia-
da saúde pública pode ameaçar Alcides Silva de Miranda – A
lidades médicas orientadas pela e
a Atenção Primária à Saúde? sociedade de mercados investe no
para a APS no Brasil, notadamente
Por quê? individualismo (sob o disfarce do
a “Medicina de Família e Comunida-
de”, constataremos disputas, muitas “empreendedorismo” individual) e
Alcides Silva de Miranda – A
vezes subliminares, entre aqueles na insegurança compensada pelo
necessidade de mudança do mode-
consumismo. Os “Planos de Saúde”
lo tecnoassistencial com ênfase na que têm implicação e compromisso
são um produto de consumo compa-
Atenção Primária à Saúde - APS é um com os princípios ético-sociais e di-
tível com tal ideação e governamen-
consenso internacional. Entretanto, retrizes do SUS e aqueles que estão
talidade (no sentido foucaultiano do
para todos os consensos “genéricos e mais alinhados em perspectiva cor-
termo), pois vendem a ilusão de au-
generalizáveis” é importante termos porativa e de mercado especializado.
tonomia de escolha diante de neces-
o devido cuidado com as particulari- Portanto, a questão mais pertinente
sidades, desejos e sofrimentos que
dades e singularidades de cada pro- não seria se a APS encontra-se em
podem ser reais ou induzidos.
cesso social, de cada práxis política, risco diante da ofensiva de “privati-
dos interesses em disputa. No con- zação da Saúde Pública”, mas, sobre Aliada a esta egrégora ideológica há
texto brasileiro tem havido uma per- qual APS estamos referindo. a disseminação do desprestígio, inefi-

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cácia e desvalia do SUS, o que gera si- No ano de 2018, os valores fiscais não está nem um pouco preocupado
tuações curiosas: muitas pessoas pre- “renunciados”3 pela declaração de em canalizar os recursos tributários
ferem ser reificadas pelos “Planos de gastos com serviços privados de saú- adicionais para financiar políticas pú-
Saúde” (que também têm filas, des- de no Imposto de Renda e por aba- blicas, como o SUS. Em verdade, ope-
tratos, constrangimentos, insuficiên- timentos e isenções tributárias para ra em sentido inverso, ou seja, visa
cias etc.) do que se “submeterem” ao entidades “sem fins lucrativos” atin- aumentar os recursos orçamentários
SUS. Em todo o caso, persiste o desa- giu o montante de aproximadamente de governo que tem nutrido a agiota-
fio ideológico em disputa societária: R$ 27,1 bilhões (se acrescentarmos as gem do mercado rentista a partir dos
o “sonho de consumo” individual ou isenções tributárias aplicadas às im- serviços de juros da chamada “dívida
grupal versus o valor redistributivo portações de matérias-primas para pública”. Os recursos orçamentários
da política pública. produtos fabricados pela indústria para as políticas públicas permanece-
farmacêutica privada, o montante rão contingenciados ao teto imposto
atingiu R$ 32,2 bilhões), enquanto pelos síndicos governamentais dos
IHU On-Line – Muitas empre- o gasto orçado pelo governo federal rentistas, agiotas e “atravessadores”,
sas passam a aderir a planos para o programa “Bolsa Família” foi da mesma estirpe do sr. ministro.
coletivos de saúde privada e o de aproximadamente R$ 28,7 bi-
oferecem como um dos grandes lhões. Considerando quais têm sido
benefícios aos seus funcioná- os estratos de renda que, desde a dé- IHU On-Line – E quais os de-
rios. Em que medida essa lógi- cada de 1970, mais têm obtido “com- safios para conceber lógicas
ca também enfraquece o SUS? pensações” tributárias e financeiras que valorizem a saúde coletiva
com a renúncia fiscal aplicada aos pública?
Alcides Silva de Miranda – De
gastos privados em serviços de saúde, Alcides Silva de Miranda –
fato, o que deveriam ser direitos so-
é possível se insinuar que também Creio que não são desafios específi-
ciais com garantia universal a partir
existe uma espécie de “bolsa classe cos ou restritos de políticas setoriais.
de políticas públicas passam a ser
média-alta” no país, bem anterior ao Eu diria que são desafios societários,
capitalizados como gratificações ou
“Bolsa Família”. Entretanto, não há republicanos e civilizatórios (des-
compensações “voluntárias” de em-
registros de alguém em algum “bairro considerado o viés etnocêntrico do
presas aos seus empregados. O que 33
nobre” protestando com veemência termo) em um momento histórico
os empresários não referem e nem
ou “batendo panelas” contra tal ar- crucial. Não entendo que a neces-
divulgam são os “ganhos secundá-
tifício compensatório, que em muito sidade de consolidar as políticas
rios” com tal “benemerência”. tem induzido a adesão aos “Planos de públicas de saúde seja um desafio
De acordo com dados da Receita Saúde” e ao progressivo lucro de suas maior do que outras pendências his-
Federal2, de 2013 a 2018 houve sig- Operadoras. tóricas de direitos sociais e civis, mas
nificativo incremento de recursos Como prepondera a regressividade enfatizo a afirmação original do Mo-
tributários devolvidos em função da na política tributária brasileira (os vimento Sanitário brasileiro, que há
renúncia fiscal por gastos privados mais pobres pagam proporcional- gerações e décadas tem lutado pela
especificamente com serviços de saú- mente mais tributos), cada centavo consolidação do SUS: democracia é
de, respectivamente: 57% no Imposto devolvido, em função de “renúncia saúde, saúde é democracia.
de Renda de Pessoas Físicas (de R$ fiscal” da parte de quem possui maior
7,4 bilhões para R$ 11,6 bilhões), 97% poder aquisitivo e de custeio familiar,
no Imposto de Renda de Pessoas Ju- IHU On-Line – Deseja acres-
deixa de ser contabilizado recursi-
rídicas (de R$ 2,3 bilhões para R$ 4,5 centar algo?
vamente para as políticas públicas,
bilhões). Além de valores decorrentes como o SUS. Os recursos tributários Alcides Silva de Miranda –
de isenções tributárias para entida- que deixam de ser pagos em função Temo que minhas respostas es-
des “sem fins lucrativos” que, embora da renúncia fiscal com gastos priva- tejam contaminadas por um viés
prestando serviços complementares dos de serviços de saúde equivalem pessimista de análise conjuntural e
ao SUS, operam concomitantemen- ao custeio atual do SUS com a sua contextual. Por isso, desejo acres-
te com “Planos de Saúde” (próprios Atenção Primária, que poderia ser centar que o pessimismo da análise
ou agenciados), que tiveram um in- significativamente aumentado, caso responsável não pode servir para
cremento de 98% (de R$ 2,2 bilhões houvesse maior aporte orçamentário. nos paralisar ou reduzir as nossas
para R$ 6,6 bilhões) no mesmo perí- pretensões aos termos de redução
odo. Por exemplo, em média, do total O atual ministro da Economia, Pau-
de danos na disputa política. Como
lo Guedes, tem proposto agora limitar
de gastos declarados no Imposto de recomendou o velho filósofo sardo:
os termos de “renúncia fiscal”, mas
Renda, aproximadamente 70% cor- pessimismo na análise política re-
respondem ao pagamento de Planos quer otimismo na ação...
3 Sobrinho WP. “Renúncia bilionária. Governo federal congela
de Saúde. gastos com o SUS enquanto abre mão de bilhões de impos-
tos da saúde privada...”. Folha de São Paulo, 19/12/2018. Em: O SUS vive e pulsa e continuará
2 Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde
https://noticias.uol.com.br/reportagens-especiais/governo-
congela-gastos-com-o-sus-enquanto-abre-mao-de-bilho-
sendo defendido com ousadia e cria-
(CNES), julho de 2019. (Nota do entrevistado) es-em-impostos-a-saude-privada/ (Nota do entrevistado) tividade. ■

EDIÇÃO 541
TEMA DE CAPA

Defensores do sistema público,


mas usuários de planos de saúde
Para Élida Hennington, o subfinanciamento e a gestão do SUS
levam à busca pelo sistema privado, mas isso não pode significar
abandono da luta pelo fortalecimento do sistema público
João Vitor Santos

Q uem busca emprego não está só


atento ao salário, mas também
aos benefícios ofertados pelos
empregadores. Entre esses benefícios,
tenhamos que conviver com essas con-
tradições”.
Além disso, ressalta que não se pode
perder a perspectiva de que a saúde é
a grande estrela são sempre os planos
um bem público e não comercializável.
de saúde. Na prática, a busca pelo sis-
“Na medida em que os trabalhadores
tema privado acaba nutrindo um mer-
optam pelos planos de saúde sem uma
cado, enquanto o Sistema Único de
visão crítica, sem perspectiva de defesa
Saúde - SUS é desestruturado. “Esta é
e fortalecimento do SUS ou até mesmo
uma questão antiga que acompanha os
negando o SUS, eles acabam fortalecen-
debates sobre a defesa do SUS e a apa-
do o privado em detrimento do público,
rente contradição que habita o seio não
a lógica da saúde como mercadoria”,
só da classe que vive do trabalho, mas
34 também do movimento sanitário e de
completa. Assim, enfatiza que é preci-
so pensar nesse fortalecimento como
todos que defendem a saúde pública,
princípio de solidariedade para quem
equânime e universal”, aponta a médi-
não conta com a possibilidade de pagar
ca e especialista em saúde coletiva Élida
a saúde como bem. E, depois, até mes-
Hennington. Na entrevista, concedida
mo quem hoje diz não usar e não querer
por e-mail à IHU On-Line, também
o SUS, pode acabar tendo esse sistema
reconhece a aparente contradição. “Eu
como única opção assistencial. “Com o
defendo o SUS e tenho plano de saúde.
crescimento da informalidade, do su-
Sabemos que os planos privados não
bemprego e do desemprego, grandes
são a solução, porém o sistema público
parcelas da população só terão acesso
de saúde ainda não funciona da manei-
ao SUS. Mais do que nunca é preciso
ra que gostaríamos e, se temos condi-
que essa discussão penetre no âmago
ções financeiras, optamos por fazer um
dos sindicatos e movimentos sociais. O
plano privado”, analisa.
empregado de hoje pode ser o desem-
Para Élida, é necessário um movimen- pregado de amanhã”.
to da sociedade que exija melhor finan-
ciamento do sistema público, assim Élida Azevedo Hennington é gra-
como a otimização da gestão e uso dos duada em Medicina pela Universidade
recursos. É como diz: “fortalecimento Federal Fluminense, possui mestrado e
de uma consciência crítica que favoreça doutorado em Saúde Coletiva pela Uni-
a defesa daquilo que é público, do uso versidade Estadual de Campinas - Uni-
adequado dos impostos que pagamos, camp e pós-doutorado no Instituto de
do compromisso dos governantes para Salud Colectiva da Universidade Nacio-
o direcionamento dos recursos para as nal de Lanús, na Argentina. Atualmente
políticas sociais”. Mesmo reconhecendo é pesquisadora titular em Saúde Públi-
que essa não é uma tarefa fácil, aponta ca da Fundação Oswaldo Cruz, docente
que “o Brasil precisa avançar muito na do quadro permanente do Programa de
valorização da coisa pública: da saúde Pós-Graduação em Saúde Pública da
pública, do transporte público, da edu- Escola Nacional de Saúde Pública Ser-
cação pública etc. A defesa tem que ser gio Arouca - PPGSP ENSP Fiocruz.
intransigente, ainda que por um tempo Confira a entrevista.

16 DE SETEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

“O que diferencia é que para


a saúde pública, saúde é
direito e não mercadoria e,
portanto, o projeto da saúde
pública é a defesa da vida”

IHU On-Line – Quais as dife- alternativa ao SUS. Recentemente, tos prestados por unidades públicas
renças e as semelhanças entre com o discurso de “ampliar o acesso de saúde a beneficiários da saúde
os projetos de saúde coletiva à saúde”, representantes da Federa- suplementar. Este montante deveria
pública e privada? ção Nacional de Saúde Suplementar ser repassado pela União a estados e
- FenaSaúde e da Associação Brasi- municípios para ressarcimento dos
Élida Azevedo Hennington leira de Planos de Saúde - Abramge gastos, mas as empresas recorrem à
– Fundamentalmente, o que dife- em artigo publicado na Folha de São judicialização, o que dificulta ou pos-
rencia é que para a saúde pública, Paulo1 advogaram pela atualização terga o repasse.
saúde é direito e não mercadoria e, do marco legal da saúde suplemen-
portanto, o projeto da saúde públi- Como dito anteriormente, o SUS
tar que hoje proíbe a oferta segmen- acaba arcando com atendimentos
ca é a defesa da vida. Ao contrário, tada de serviços de saúde. Ou seja,
o setor privado da saúde, em última que não são prestados pelos planos,
eles querem liberação para venda de como procedimentos caros e com-
instância, visa ao lucro, o que pode planos de menor cobertura, propos-
comprometer a oferta de serviços plexos não autorizados ou casos de 35
ta esta que foi prontamente contes- urgência e emergência que chegam
quando estes forem considerados tada por outro artigo publicado2 no
pouco lucrativos ou deficitários. nos hospitais públicos. Parece existir
mesmo veículo por Scheffer3, Laz- sempre o movimento de deixar para
Podemos observar que o SUS as- zarini4 e Bahia5, que denunciaram a
sume o atendimento da população o SUS os custos e tentar abocanhar
tentativa das empresas de planos de maior fatia do mercado lucrativo
em muitas situações que não são de saúde de impor a venda de “planos
interesse da saúde privada porque sem que isto signifique resolver os
pobres para pobres”. problemas de saúde dos convenia-
não geram lucro como, por exemplo,
atendimentos de alta complexidade Os autores chamaram atenção para dos, além de muitas vezes limitar a
e internações de longa duração. De o ganho de receita das operadoras de cobertura e negar atendimentos, co-
outro modo, todos nós usufruímos R$ 109 bilhões, em 2013, para R$ brar mensalidades altas e nem sem-
de importantes serviços prestados 196 bilhões em 2018, apesar da re- pre oferecer serviços de qualidade.
pelo sistema público de saúde, como cessão e da alegada perda de três mi-
as campanhas e a vacinação de roti- lhões de clientes. De outro modo, se-
IHU On-Line – Como a ideia
na oferecida nos centros de saúde, gundo a Agência Nacional de Saúde
de saúde preventiva é compre-
as ações de vigilância sanitária e Suplementar - ANS, as operadoras
endida dentro da lógica dos
ambiental, o controle da qualidade deixaram de repassar ao SUS quase
planos privados? E no sistema
de alimentos e da água, controle do R$ 2 bilhões referentes a atendimen-
público?
sangue e hemoderivados, os atendi-
mentos de urgência, transplante de 1 O artigo referido está disponível em https://outline.com/ Élida Azevedo Hennington –
sTWJT5. (Nota da IHU On-Line)
órgãos, dentre outros. 2 A íntegra da nota está publicada no site do Centro Bra- Os objetivos podem ser semelhan-
sileiro de Estudos em Saúde - Cebes, disponível em http://
bit.ly/2lPVit7. (Nota da IHU On-Line)
tes, mas as lógicas são distintas. O
3 Mário Scheffer: professor doutor do Departamento de setor privado segue a lógica do lucro
IHU On-Line – Em que medi- Medicina Preventiva (DMP) da Faculdade de Medicina da
USP (FMUSP), na área de Política, Planejamento e Gestão já citada anteriormente. Para as ope-
da os planos de saúde privados em Saúde. É mestre e doutor em Ciências da Saúde pelo radoras, prevenir significa evitar ou
podem constituir uma ameaça DMP- FMUSP. (Nota da IHU On-Line)
4 Marilena Lazzarini: presidente do Conselho Diretor do reduzir custos. A visão é reduzir a
ao sistema público de saúde? Instituto de Defesa do Consumidor – Idec, graduada em
Engenharia Agronômica pela USP (Universidade de São utilização de serviços de maior com-
Élida Azevedo Hennington – Paulo), é especialista em Economia Regional e Urbana pela
mesma universidade. (Nota da IHU On-Line)
plexidade, por exemplo. Se eu con-
Sabe-se que os planos de saúde pri- 5 Ligia Bahia: professora associada da Universidade Fe- trolo os casos de diabetes e hiperten-
deral do Rio de Janeiro - UFRJ. Possui graduação em Me-
vados atuam fortemente na disputa dicina pela UFRJ, mestrado e doutorado em Saúde Pública são, claramente isto terá um impacto
por mercado e por recursos públicos pela Fundação Oswaldo Cruz. Ela é uma das entrevista-
das na presente edição da IHU On-Line. (Nota da IHU
significativo em tratamentos mais
na medida em que se colocam como On-Line) complexos, cirurgias, internações

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TEMA DE CAPA

etc. O sistema público também ob- lhore sua performance e seus pro- de amanhã. Precisamos discutir a
jetiva reduzir custos e manter a sus- cessos, que a mídia comece a mos- saúde que queremos, como iremos
tentabilidade financeira do sistema, trar não somente os problemas, mas avançar e superar esses impasses.
mas não segue, obviamente, a lógica também os bons serviços e os gran- Os planos de saúde não cobrem aci-
do lucro, e sim visa à proteção e re- des avanços conquistados, conse- dentes de trabalho e doenças ocupa-
cuperação da saúde das pessoas. guiremos nos livrar dos planos, va- cionais, por exemplo. A Reforma da
lorizar e consolidar um dos maiores Previdência pode abrir espaço para
sistemas de saúde pública do mun- as seguradoras privadas, que estão
IHU On-Line – Por que as em- do. Isto requer fortalecer um discur- de olho nesse nicho de mercado há
presas investem em planos pri- so crítico e contra-hegemônico. muito tempo. Isto significaria abrir
vados para seus trabalhadores? mão de uma lógica contributiva e
Como compreender esse desejo O SUS tem que ser para o brasi-
solidária para o privilegiamento da
da classe trabalhadora de pos- leiro o mesmo que o NHS6 signifi-
lógica de mercado.
suir plano privado? ca para os ingleses. Uma conquista
que precisa ser aprimorada, mas da
Élida Azevedo Hennington qual não podemos abrir mão. Nesse IHU On-Line – A senhora tam-
– Esta é uma questão antiga que sentido, os trabalhadores têm que bém pesquisa acidentes de tra-
acompanha os debates sobre a defe- ser aliados do movimento sanitário balho. Qual o impacto do custo
sa do SUS e a aparente contradição – temos que conquistar corações e desse tipo de acidente no Siste-
que habita o seio, não só da classe mentes através do pensamento crí- ma Único de Saúde - SUS?
que vive do trabalho, mas também tico: todos devem ter direito à saú-
do movimento sanitário e de to- de. Devemos seguir defendendo o Élida Azevedo Hennington –
dos que defendem a saúde pública, SUS dos constantes ataques porque Segundo estimativas da Organização
equânime e universal. Eu defendo significa a defesa do bem comum, a Internacional do Trabalho, a econo-
o SUS e tenho plano de saúde. Você defesa da vida. mia global perde anualmente cerca
também deve ter. Sabemos que os de 4% do Produto Interno Bruto em
planos privados não são a solução, razão de doenças e acidentes de tra-
36 porém o sistema público de saúde IHU On-Line – Em que medi- balho. No Brasil, o Ministério Públi-
ainda não funciona da maneira que da a opção pelos planos priva- co do Trabalho estima que acidentes
gostaríamos e, se temos condições dos no mundo do trabalho im- de trabalho custaram mais de R$ 26
financeiras, optamos por fazer um pacta o sistema público? bilhões à Previdência Social entre
plano privado. 2012 e 2017, gastos no pagamento de
Élida Azevedo Hennington – auxílio-doença, aposentadoria por
O plano de saúde privado sempre Na medida em que os trabalhadores invalidez, pensão por morte e auxí-
esteve na pauta dos acordos sin- optam pelos planos de saúde sem lio acidente. Dados do Ministério da
dicais e ainda permanecerá como uma visão crítica, sem perspectiva Saúde apontam que de 2010 a 2014
desejo dos trabalhadores enquanto de defesa e fortalecimento do SUS as internações hospitalares no Brasil
não houver um amplo movimento ou até mesmo negando o SUS, eles registradas como acidentes de traba-
na sociedade que promova um ade- acabam fortalecendo o privado em lho típicos ou de trajeto geraram um
quado financiamento do sistema, o detrimento do público, a lógica da custo total de R$ 422.409,43.
uso adequado dos recursos e o for- saúde como mercadoria. Tem saúde
talecimento de uma consciência crí- quem pode pagar por ela. Porém, esses dados não expressam
tica que favoreça a defesa daquilo a realidade nem a totalidade dos
Com o crescimento da informalida- gastos tendo em vista a notória sub-
que é público, do uso adequado dos
de, do subemprego e do desempre- notificação de eventos acidentários
impostos que pagamos, do compro-
go, grandes parcelas da população no SUS, que gira em torno de 90%.
misso dos governantes para o dire-
só terão acesso ao SUS. Mais do que Serviços públicos de saúde atendem
cionamento dos recursos para as po-
nunca é preciso que essa discussão rotineiramente acidentes de traba-
líticas sociais. Não é tarefa fácil, mas
penetre no âmago dos sindicatos e lho que incluem acidentes típicos,
urgente e necessária. O Brasil pre-
movimentos sociais. O empregado violências, acidentes de trânsito e
cisa avançar muito na valorização
de hoje pode ser o desempregado doenças ocupacionais mas, infeliz-
da coisa pública: da saúde pública,
do transporte público, da educação mente, muitos não são reconhecidos
6 Serviço Nacional de Saúde (em inglês: National Heal-
pública etc. A defesa tem que ser in- th Service - NHS) é o nome habitualmente utilizado para e registrados como acidente de tra-
referir-se aos quatro sistemas públicos de saúde do Reino
transigente, ainda que por um tem- Unido coletiva ou individualmente, embora atualmente,
balho. Assim, ainda é muito difícil
po tenhamos que conviver com essas em geral, seja apenas ao serviço de saúde da Inglaterra avaliar concretamente o impacto dos
que é corretamente chamado de Serviço Nacional de Saú-
contradições. de sem qualquer outra qualificação. Três serviços (Ingla- acidentes de trabalho para o SUS.
terra e País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte) foram
criados por legislações separadas e começaram a fun-
Eu acredito que, na medida em que cionar em 5 de julho de 1948; anteriormente a essa data,
o serviço público de saúde deixe de serviços públicos de saúde mais limitados eram operados
por autoridades locais e por outros organismos. (Nota da
IHU On-Line – Como ima-
ser subfinanciado, que a gestão me- IHU On-Line) gina ser a relação ideal entre

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o público e o privado no que IHU On-Line – De que forma prejuízo e, portanto, é necessária
diz respeito à saúde coletiva, observa a regulação do Estado uma estrita regulação para evitar a
especialmente na questão da sobre planos privados de saú- discriminação, os preços abusivos e
prevenção? de? E qual a importância da as tentativas de exclusão de serviços,
regulação e do controle estatal tratamentos e outros procedimen-
Élida Azevedo Hennington – O
sobre o sistema privado? tos necessários, bem como impedir
SUS realiza prevenção de doenças e
agravos, campanhas e práticas edu- Élida Azevedo Hennington – a ingerência no estabelecimento de
cativas em saúde. Como dito ante- A regulação é fundamental não só procedimentos diagnósticos e tra-
riormente, o setor privado não tem para garantir o cumprimento das tamentos, desrespeitando muitas
compromisso com a prevenção de obrigações contratuais e evitar o au- vezes a autonomia profissional. Ob-
doenças na perspectiva do sistema mento abusivo das mensalidades, serva-se o avanço das operadoras e
público – acaba realizando ações de por exemplo, bem como para exigir de seus representantes na máquina
prevenção e de promoção da saúde o ressarcimento do SUS pelos ser- do Estado, influenciando eleições e
visando à redução de custos. Não viços prestados aos conveniados. assumindo cargos de comando na
creio que exista uma relação ideal, Os planos querem como clientes os agência reguladora. É preciso criar
porque as lógicas de funcionamento jovens e sadios porque visam ao lu- mecanismos para evitar esses vícios
e os objetivos são bem distintos. cro – pessoas doentes e idosos dão e dar poder ao controle social. ■

37

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TEMA DE CAPA

Regulação estatal sim, mas só se for para


aumentar o lucro de planos privados
Lisiane Bôer Possa analisa que o controle do Estado sobre
as empresas privadas só é visto como problema quando
exige responsabilidades assistenciais

João Vitor Santos

O
controle que se tem hoje sobre tramita no Congresso tem um só
o mercado de planos privados viés: flexibilizar as responsabilida-
de saúde se dá pela resposta des assistenciais e permitir que se
a uma série de pressões e interesses ofereçam planos mais baratos. “Não
dos usuários. “E oportunizou garan- considero que os esforços das ope-
tias importantes de acesso aos servi- radoras são no sentido de diminuir
ços e relações mais protegidas entre a interferência do Estado. Acredito
os beneficiários, os prestadores e as tratar-se de mudar a direcionalidade
operadoras. Também respondeu às desta interferência”, avalia.
demandas das operadoras por um
“A interferência que querem que di-
38 ambiente de estabilidade jurídica
minua é da regulamentação sobre as
e pela diminuição da concorrência,
suas responsabilidades assistenciais,
uma vez que regras mais rigorosas ti-
para ampliar sua clientela através da
raram do mercado muitas empresas
venda de planos e seguros baratos
que ofertavam planos e seguros bara-
com ofertas de cestas básicas assis-
tos”, completa a professora e especia-
tenciais para os pobres, e sobre os re-
lista em Saúde Pública Lisiane Bôer
ajustes. Trata-se de diminuir as regras
Possa. Na entrevista, concedida por
que limitam o aumento da sua partici-
e-mail à IHU On-Line, ainda explica
pação no mercado e sua lucratividade
que tais ações corrigiram distorções,
e manter ou aumentar as regras que
fazendo com que os sistemas privados
ampliam os subsídios públicos para a
não escolhessem apenas os tratamen-
sua atuação”, resume.
tos menos onerosos e deixassem de
lado outros, “tais como tratamento do Lisiane Bôer Possa é professora
câncer, terapias renais substitutivas, da Universidade Federal do Rio Gran-
transplante etc.” de do Sul - UFRGS, no curso de gra-
Entretanto, com o avanço desse duação em Saúde Coletiva. Graduada
mercado, não demorou para esse em Fisioterapia pela Universidade
quadro gerar novas tensões. Para Federal de Santa Maria - UFSM, é es-
Lisiane, é importante saber ler as pecialista em Saúde Pública pela Es-
críticas do setor, pois quando falam cola de Saúde Pública do RS e Escola
em interferência estatal, é especifi- Nacional de Saúde Pública - Fiocruz.
camente contra esses esforços regu- Ainda possui mestrado e doutorado
latórios que agem. Assim, a legisla- em Sociologia pela UFRGS.
ção defendida pelas operadoras que Confira a entrevista.

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“Quanto maior a participação


de fundos privados no
financiamento dos sistemas de
saúde, mais caro é o sistema e
menor é a garantia de acesso”

IHU On-Line – No que consis- Existem sistemas universais em Também há sistemas em que está
te o conceito de saúde suple- que o subsistema de assistência pri- vedada a participação da iniciativa
mentar? E como, na prática, a vada à saúde é complementar. Nes- privada, tanto no financiamento
saúde suplementar é emprega- ses casos, ao setor privado apenas é quanto na prestação de serviços.
da no Brasil? permitido vender serviços, tanto por Estes são providos apenas pelos
desembolso direto do usuário quan- fundos públicos. Por fim, sistemas
Lisiane Bôer Possa – A saúde
to para os planos e seguros privados, como o nosso, considerados suple-
suplementar é o setor econômico
nas áreas em que não há financia- mentares porque há possibilidade
que congrega o mercado de segu-
mento e oferta do sistema público da participação dos fundos priva-
ros e planos de saúde, para compor de saúde aos seus cidadãos. Dessa dos concorrendo com o Estado na
fundos privados de financiamento. forma, não há concorrência entre o
Possibilitam o acesso diferenciado prestação dos serviços. Também 39
mercado financeiro e o Estado para há possibilidade de os cidadãos,
a serviços em contextos em que os a prestação dos serviços e não há
cidadãos também têm o direito ao conforme sua capacidade de com-
segmentação da população ao acesso pra, acessar ambos os subsistemas
sistema público. Em tese, ter um àquelas ações que respondem pelos
plano ou seguro privado de saúde de assistência.
principais e mais relevantes proble-
oferece aos seus beneficiários mais mas de saúde. Nos sistemas substi-
comodidade, menores tempos de tutivos, a população tem acesso aos IHU On-Line – Mas o que es-
espera e possibilidades de escolha serviços públicos, e aqueles que op- sas diferenças significam nos
de serviços do que aqueles ofer- tam por adquirir planos e seguros de resultados do sistema e no seu
tados na assistência pública. Mas saúde privados deixam de ter o direi- financiamento?
essa condição não acontece plena- to de acessar o sistema público.
mente, uma vez que, nos lugares Lisiane Bôer Possa – O Quadro
em que o componente público do Em outros sistemas, as pessoas 1 apresenta de forma muito simpli-
sistema de saúde funciona de for- compram planos e seguros e são ma- ficada alguns dados sobre diferentes
ma mais organizada e em ações joritariamente esses fundos priva- sistemas de saúde que podem ilus-
de maior densidade tecnológica e dos que lhes possibilitam acesso aos trar os efeitos econômicos e de aten-
custo, o tempo de espera e a faci- serviços de saúde. O sistema público ção, considerando a maior ou menor
lidade de acesso são, muitas vezes, substitui os fundos privados tanto participação dos seguros privados
equivalentes ou até mais fáceis no para atender a população que está nos sistemas de saúde.­­­­
componente público. completamente excluída da possi-
bilidade de adquirir no mercado os Os dados do quadro a seguir de-
No Brasil, naturalizamos a presença planos e seguros privados de saúde, monstram que quanto maior a par-
de planos e seguros privados e, con- quanto nas situações em que não in- ticipação de fundos privados no fi-
comitantemente, a maior parte de teressa ao mercado ofertá-los devido nanciamento dos sistemas de saúde,
nós acredita na impossibilidade da à baixa lucratividade, como é o caso baseados na ideia da saúde como um
provisão da saúde pelo Sistema Úni- de idosos e pessoas com deficiências. bem de consumo, atrelado à capaci-
co de Saúde - SUS como direito uni- Ainda há parcela da sociedade que dade de renda das pessoas e também
versal. No entanto, a composição da tem como única forma de acesso à aos interesses de equilíbrio financei-
participação do público e do privado saúde o desembolso direto e, como ro e lucratividade do capital, mais
nos sistemas de saúde é diferente em os custos da assistência são proibi- caro é o sistema e menor é a garantia
cada país e é resultado do jogo de for- tivos para essas pessoas, muito fre- de acesso. Os EUA são reconhecidos
ças entre distintos interesses. quentemente ficam desassistidas. como o pior modelo a ser seguido.

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Quadro 1: Dados dos escolhidos de sistemas de saúde - ano 2018.


País Classificação Expectativa de Mortalidade Financiamento (c) Cobertura % do PIB Gasto Gasto
aproximada do Vida (a) Infantil (a) Populacional (c) gasto em Per Público
sistema Saúde (d) Capita Per
ano Capita
Total (PPP)
(PPP) (d)
(d)

Estados Majoritariamente 79,7 5,9 Predominantemente Medicaid: 19% 17 8.639 4.222


Unidos seguro privado privado Prêmios Medicare: 17% (2013) (2013)
seguros seguros privados:
privados; Medicaid 68% não
(para pobres): segurados: 11%
recursos fiscais
estaduais e
subsídios
federais; Medicare
(para idosos):
contribuições sociais
compulsórias
durante a vida ativa

Canadá Sistema universal 82,7 4,7 Predominantemente 100% Cidadãos e 11 4.718 3.465
público com público fiscal residentes
participação habituais
complementar
dos seguros
privados
Inglaterra Sistema universal 81,2 (b) 3,7 (b) Predominantemente 100% Cidadãos e 10 4.178 3.352
público com público fiscal (68% residentes
participação recursos fiscais; 15% habituais
suplementar dos contribuições
seguros privados sociais)

Brasil Sistema universal 75,9 14,0 Predominantemente 100% Cidadãos e 9 1.401 592
público com privado 57%, e estrangeiros no
40 participação públicos 42% fiscal e SUS e 24,3% da
suplementar dos contribuições população
seguros privados sociais** também coberta
por planos e
seguros privados
Alemanha Majoritariamente 81(b) 3,3(b) Predominantemente *Seguro social 11 5.463 4.626
seguros públicos público por GKV: 90%
com participação contribuições sociais Seguros privados:
substitutiva dos compulsórias 10% substitutivo
seguros privados proporcionais aos (4,4%
salários (15%) funcionários
paritárias entre públicos)
empregadores e
trabalhadores (70%
cont. sociais; 7%
recursos fiscais)

Cuba Unicamente 80,1 4,0 Predominantemente 100% Cidadãos e 12 2.458 2.202


Sistema Público e público fiscal residentes
Universal sem habituais
planos privados

Fonte: (a) PLISA Plataforma de Información en Salud para las Américas/OPS [Acessado em 28 de agosto de 2019]. Disponível em: http://bit.ly/2lO8hvm;
(b) European Health Information Gateway/OMS [Acessado 28 de agosto de 2019]. Disponível em: http://bit.ly/2ksv3sM; (c) Giovanella, Ligiaet al. Sistema
universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2018, v. 23, n. 6 [Acessado 28 de
agosto 2019], pp. 1763-1776. Disponível em: http://bit.ly/2maUBuZ. ISSN 1678-4561. http://bit.ly/2k7K2YI; (d) Global Health Expenditure Database/OMS
[Acessado 28 de agosto de 2019]. Disponível em: http://bit.ly/2k9VaV0; (e) OPAS.

Estudos consideram que, apesar de apenas parcela da população de cos, arrecadados através de impos-
os fundos privados desempenharem maior renda, quanto porque ofere- tos diretos ou seguros obrigatórios,
uma certa partilha de riscos de adoe- cem serviços restritos, excluindo os são estratégias de organização de
cimentos entre os seus beneficiários, que mais necessitam, ou ações com sistemas de saúde que mais possibi-
se comparados com o desembolso maior custo. Por outro lado, maiores litam a consolidação do direito, ga-
direto para financiar os cuidados gastos públicos em saúde dos países rantem o acesso aos bens e serviços
em saúde, é um modelo de finan- estão relacionados com melhores co- de forma universal e equitativa1.
ciamento insuficiente para garantir berturas de serviços, economicidade
a cobertura da atenção à saúde das e melhores resultados de saúde. Ou 1 (Jowett M, Brunal MP, Flores G, Cylus J. Spending targets
for health: no magic number. Geneva: World Health Or-
populações. Tanto porque atingem seja, a constituição de fundos públi- ganization; 2016 (WHO/HIS/HGF/HFWorkingPaper/16.1;

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Saúde suplementar da década de 1970, é da Atenção Pri- a partir da expansão de diretrizes


mária à Saúde - APS como ordena- clínicas, protocolos e necessidade de
O conceito da saúde suplementar dora dos sistemas. Apostava-se na autorização de procedimentos pres-
foi cunhado pelo mercado de pla- possibilidade de saúde para todos, critos. Para essa regulação, o objeti-
nos e seguros privados, cujo objeti- nos anos 2000, como resultado de vo é maximizar os lucros dos seguros
vo foi inicialmente capitalizar e an- sistemas públicos organizados para privados e o efeito é a subserviência
gariar lucros ao constituir-se como prover o cuidado dos principais pro- dos trabalhadores em saúde e das
uma alternativa de assistência para blemas das pessoas por equipes de necessidades dos usuários aos inte-
a parcela da população de média e saúde, ao longo das suas vidas, com resses de mercado financeiro e sua
alta renda em países com sistemas ênfase na prevenção e na promoção. lucratividade.
universais em que a saúde é um di-
reito, como é o caso do Brasil. Trata- Estudos apontam que os serviços Esses dois exemplos de perspecti-
se da financeirização e privatização de APS poderiam responder de 80 a va de sistema de saúde influenciam
da saúde, que se tornam relevantes 90% das necessidades em saúde da com menor ou maior ênfase a orga-
no contexto de políticas neoliberais, população. Nessa proposta, o limite nização dos sistemas de saúde dos
que apregoam o estado mínimo e a da atuação do capital industrial, de países, a nossa percepção acerca da
supremacia do mercado. bens e serviços, o controle sobre os saúde, de como mantê-la e recupe-
gastos crescentes e a garantia da uni- rá-la, das formas de nos proteger-
Volto a falar disso, mas antes é versalidade de acesso e qualidade da mos do risco do adoecimento, das
preciso contextualizar que, no caso “melhores” inserções no mercado de
atenção ocorreria a partir da mudan-
da saúde, as propostas neoliberais trabalho da saúde e formas de acesso
ça na organização dos sistemas pú-
também coincidem com o momento aos bens e serviços. Tanto os usuá-
blicos e nas práticas de cuidado dos
significativo dos gastos dos países rios como os trabalhadores do setor
profissionais. O uso das tecnologias e
com essa área. Estes aumentos fo- estão permanentemente influencia-
insumos bem como a sua produção,
ram influenciados pelas políticas de dos por essas ideias e interesses. En-
com maior regulação e participação
Estado de Bem-Estar do Pós-Guerra, quanto o capital industrial atua para
pública, estariam orientados para o
mas também pela ampliação da atu- ampliar a realização de procedimen-
atendimento das necessidades em
ação do capital industrial e de bens e tos e atos de assistência à saúde in-
serviços. A influência deste mercado
saúde e o interesse público. 41
duzindo a medicalização da vida, o
conformou as modelagens tecnoas- capital financeiro alardeia a insufi-
O mercado
sistenciais que orientam a organiza- ciência dos serviços e das condições
ção dos sistemas de saúde, as práti- A outra proposta de controle dos de trabalho no sistema público, in-
cas dos profissionais e sua formação, gastos crescentes na saúde toma duzindo assim o consumo de planos
de tal forma que a realização de como pressuposto as leis do mer- e seguros privados de assistência.
procedimentos e o uso de insumos, cado. Aposta-se na concorrência Ambos constituindo, nos imaginá-
medicamentos e equipamentos tor- entre o capital industrial, de bens e rios profissionais de saúde, o traba-
nou-se, paulatinamente, a partir da serviços, e financeiro, uma vez que lho liberal como melhor alternativa
década de 1940, o centro da atuação o primeiro garante a lucratividade de atuação e como possibilidade de
profissional em muitos sistemas de com consumo ampliado, com fre- enriquecimento.
saúde. As críticas a essa influência quência excessivo e injustificado, de
e a impossibilidade de esse modelo São essas ideias e interesses dis-
procedimentos e produtos de saúde tintos que conformam as agendas
responder às necessidades em saú- e o segundo amplia seus lucros com
de e serem viáveis economicamente dos organismos internacionais que
a redução desse consumo. A atua- influenciam as mudanças nos siste-
ensejaram alternativas e proposição
ção crescente dos seguros e planos mas nacionais de saúde ao longo das
de mudanças nos sistemas de saúde
privados na saúde ampliaram os décadas de 80 e 90 do século XX.
e na atuação dos profissionais.
mecanismos de microrregulação A Organização Mundial da Saúde -
do uso de tecnologias e insumos e OMS, que propunha a expansão da
Atenção Primária à Saúde
introduziram maiores controles na APS e de sistemas públicos, perde
Uma dessas alternativas, que ficou atuação dos profissionais. Visualiza- o protagonismo e sofre influências
mais conhecida como resultado da mos esses mecanismos no cotidiano para rever suas posições. O Banco
Conferência de Alma-Ata2, no final Mundial torna-se o principal orga-
Alma-Ata se compõe 10 itens que enfatizam a Atenção
primária à saúde (Cuidados de Saúde Primários), salien-
nismo a propor novos receituários
Health Financing Working Paper No. 1); http://apps. tando a necessidade de atenção especial aos países em para a organização dos sistemas de
who.int/iris/bitstream/10665/250048/1/WHO-HIS-HGF- desenvolvimento. Exortando os governos, a OMS, a UNI-
HFWorkingPaper-16.1-eng.pdf ). (Nota da entrevistada) CEF e as demais entidades e organizações, a declaração saúde, tendo atuação marcante nos
2 Declaração de Alma-Ata: Em setembro de 1978, a Con- defende a busca de uma solução urgente para estabelecer
ferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saú- a promoção de saúde como uma das prioridades da nova
países em crise econômica da Amé-
de, realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) ordem econômica internacional. Tem sido considerada rica Latina. Advogam pela oferta nos
em Alma-Ata, na República do Cazaquistão, expressava a como a primeira declaração internacional que despertou
“necessidade de ação urgente de todos os governos, de e enfatizou a importância da atenção primária em saúde, sistemas públicos de APS seletiva,
todos os que trabalham nos campos da saúde e do de-
senvolvimento e da comunidade mundial para promover
desde então defendida pela OMS como a chave para uma
promoção de saúde de caráter universal. (Nota da IHU
de baixo custo e sem compromisso
a saúde de todos os povos do mundo”. A Declaração de On-Line) com a integralidade para os pobres

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TEMA DE CAPA

e seguros e planos privados para as para a consolidação dual da assis- ta Federal para o ano (IR para pesso-
populações de média e alta renda, tência à saúde e a expansão dos pla- as físicas R$ 13,1 bilhões e Jurídicas
regulados pelo Estado para garan- nos e seguros privados tanto as po- R$ 5,3 bilhões). O que, segundo a
tir estabilidade jurídica às opera- líticas neoliberais já referidas como matéria, equivaleria a aproximada-
doras. Ganha força o discurso que a dependência de trajetória das polí- mente um terço das despesas em
aponta o Estado como ineficiente ticas prévias. Dentre elas destacam- ações e serviços de saúde pública.
para a garantia do acesso universal se: organizações e atores ligados a
e qualificado para os bens e servi- operadoras de planos e seguros de
ços de saúde. saúde privados, que foram constitu- IHU On-Line – Em que medi-
ídos a partir dos anos 1960 com in- da a saúde suplementar pode se
O “mix” do público e do pri- centivos do Estado e que têm poder converter como algo que enfra-
vado para disputar os rumos do sistema quece o SUS?
de saúde brasileiro; e a naturaliza- Lisiane Bôer Possa – A existên-
No Brasil, a Constituição de 1988 ção pela sociedade da segmentação cia da saúde suplementar é tanto
universaliza o direito à saúde e atri- da população, que é resultado da maior quanto pior for a assistência
bui ao Estado o dever de provê-lo, experiência prévia da distinção do prestada pelos serviços públicos de
de tal forma que a todo cidadão é acesso aos serviços de saúde entre saúde nos países. A principal motiva-
garantido o acesso à assistência pú- as diferentes categorias dos traba- ção das pessoas para adquirirem no
blica. No entanto, a regra constitu- lhadores formais contribuintes e mercado a pretensa segurança para
cional também mantém a liberdade destes com os demais brasileiros. enfrentar os riscos de adoecimentos
de iniciativa privada para atuar no Essa naturalização se expressa na está diretamente relacionada à insa-
setor saúde de tal forma que possi- agenda dos principais movimentos tisfação simbólica ou real com a as-
bilita a manutenção da existência do dos trabalhadores e seus sindicatos sistência pública à qual têm direito.
mercado de seguros e planos de saú- que têm na reinvindicação de planos No Brasil, a saúde suplementar tem
de, que surgiram ainda na década e seguros de saúde uma prioridade, impacto relevante na composição do
de 1960 no país, em todas as áreas afastando-se da agenda de defesa e financiamento da assistência à saú-
de assistência à saúde que também pressão pela implementação do SUS.
42 de, na concorrência com o sistema
são ofertadas pelo sistema público. A
público pelos prestadores de serviço,
presença do setor privado, prevista Regulação da saúde estatal na organização dos atores e institui-
no regramento constitucional, per-
ções de suas ideias e interesses, na
mite aos brasileiros a aquisição de O processo de regulação estatal so-
modelagem tecnoassistencial e na
planos e seguros que lhes possibilita bre a saúde suplementar, que surge
legitimidade social do SUS.
o acesso a serviços privados conco- em 1998, estabeleceu algumas regras
mitantemente aos serviços ofertados para o funcionamento deste merca- A sustentabilidade e eficiência de
pelo Sistema Único de Saúde. do. Entre elas, a criação da Agência sistemas universais de saúde, como
Nacional de Saúde Suplementar - o SUS, está associada à existência
A conformação do mix público e
ANS como reguladora das relações de fundos públicos unificados de fi-
privado do financiamento e da as-
entre as operadoras, prestadores de nanciamento. Trata-se de garantir
sistência à saúde no Brasil após a
serviços e beneficiários dos planos e recursos suficientes para o acesso
Constituição de 1988 foi objeto de
seguros de saúde. Destaca-se o con- da totalidade da população a ações e
estudo da professora Telma Meni-
trole sobre os reajustes, a obrigação serviços necessários para o cuidado
cucci3, que nos apresenta uma vasta
dos planos e seguros de ofertarem à saúde. O fracionamento dos recur-
pesquisa elucidando a incorporação
um rol mínimo de procedimentos, o sos em múltiplos fundos privados, o
do subsistema de assistência privada
ressarcimento ao SUS pelo uso dos que ocorre com a existência da saúde
da saúde suplementar como política
serviços por parte dos seus benefici- suplementar, acarreta iniquidades
pública no país através da sua regu-
ários, a impossibilidade de discrimi- nos sistemas de saúde e a inviabili-
lamentação pelo Estado na década
nar e excluir clientelas pela idade ou dade de sustentar sistemas univer-
de 1990, paradoxalmente no mesmo
por problemas de saúde. sais. Em termos simples, quando são
período de implementação do Siste-
constituídos vários fundos privados
ma Único de Saúde, que deveria pro- Outra característica da saúde su-
específicos para a parcela da popula-
ver o direito à saúde. plementar brasileira é que, desde
ção que tem maior renda, estes con-
sua origem até os dias atuais, conta
Segundo essa pesquisadora, no tam com mais recursos, para atender
com apoio direto do Estado para sua
caso brasileiro, tiveram influência menos pessoas, que têm menos pro-
manutenção através de políticas de
blemas de saúde, acrescidos ainda
isenções fiscais. Notícia da revista
3 Telma Maria Gonçalves Menicucci: possui graduação os lucros do capital financeiro ou
em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Exame de novembro de 2018 nos in-
Gerais - UFMG (1971), mestrado em Sociologia pela UFMG empresa operadora.
(1990) e doutorado em Ciências Humanas Sociologia e forma que os benefícios tributários
Política pela UFMG (2003). Atualmente é professora adjun-
ta do Departamento de Ciência Política da UFMG. (Nota
do setor saúde seriam de R$ 39 bi- Por outro lado, os fundos públicos
da IHU On-Line) lhões, conforme estimativa da Recei- contam com menos recursos para

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atender muito mais pessoas, com emergência e um ambulatório que IHU On-Line – Como analisa
mais problemas de saúde, visto que prestam serviços para o SUS ofere- as formas de regulação estatal
são aquelas com maior vulnerabili- cem ambiência bastante distinta da- sobre planos privados de saú-
dade social que recorrem ao sistema quelas oferecidas aos beneficiários de? Por que muitas empresas
público. A existência de fundo único de planos de saúde, o que produz buscam menos interferência
permite a organização de sistemas um efeito simbólico que mobiliza as do Estado?
de saúde mais equânimes. Os países pessoas a aquisição destes planos,
Lisiane Bôer Possa – O processo
com sistemas universais de saúde mesmo que esta distinção não seja
de regulação da saúde suplementar
têm acima de 70% dos recursos de verificada na assistência prestada.
no Brasil em 1998 significou o re-
saúde concentrados em fundos pú-
conhecimento e a legitimação pelo
blicos unificados, como já foi apre- Modelagem tecnoassisten-
Estado de um subsistema privado de
sentado no Quadro 1. No caso bra- cial
sileiro, contribuem ainda mais para assistência à saúde no Brasil e a ofi-
a iniquidade e desigualdade as isen- Quanto à modelagem tecnoassis- cialização da segmentação dos brasi-
ções de impostos já referidas. tencial, trata-se das diferentes per- leiros no acesso a serviços de saúde,
cepções sobre o que é central para a na contramão do sistema universal,
Disputas políticas organização do sistema, composição de acesso igualitário e equitativo
dos serviços e práticas profissionais. previsto na Constituição.
Outro aspecto são os atores e insti- Muito simplificadamente poderíamos A regulação foi uma agenda em
tuições ligados ao mercado da saúde atribuir o consumo e produção de resposta aos interesses e pressões
suplementar que compõem organi- procedimentos, insumos e tecnologias dos beneficiários de planos e se-
zações e disputam as políticas públi- como centro da modelagem tradicio- guros de saúde e oportunizou ga-
cas de saúde. Este setor do mercado nal ou hegemônica, ainda influencia- rantias importantes de acesso aos
financia inúmeros parlamentares da pelo capital industrial, de bens e serviços e relações mais protegidas
brasileiros, tem influência impor- serviços. Já a modelagem oriunda do entre os beneficiários, os presta-
tante no executivo e no judiciário. capital financeiro está centrada na re- dores e as operadoras. Também
Suas proposições contribuem para gulação, regras, protocolos e diretrizes respondeu às demandas das opera-
fragilizar o SUS, visam amealhar que controlam a atuação dos profis- doras por um ambiente de estabili- 43
mais incentivos estatais e diminuir sionais e o consumo de bens que é a dade jurídica e pela diminuição da
as regulações que inviabilizam a sua saúde. E a modelagem tecnoassisten- concorrência, uma vez que regras
expansão ou que diminuem suas cial centrada nas pessoas reconhece mais rigorosas tiraram do merca-
lucratividades. Notícias recentes insumos, tecnologias, protocolos e di- do muitas empresas que ofertavam
informam que as operadoras enca- retrizes como ferramentas de trabalho planos e seguros baratos com co-
minharam ao congresso proposta que serão utilizadas para responder às berturas restritas de serviços.
de mudanças no regramento regu-
necessidades que estão colocadas em
latório e que contam com influência Nas duas primeiras décadas do
cada momento, mas também pressu-
considerável sobre os atores estatais século XX, as políticas da ANS am-
põe que outras ferramentas precisam
do parlamento e do executivo. pliaram a regulação deste mercado
ser acionadas e desenvolvidas para
realmente responder ao cuidado das de forma que operadoras dos pla-
Dupla porta de atendimento nos e seguros de saúde assumiram
pessoas e coletividades vivas, reais e
paulatinamente mais responsabi-
Também influencia o SUS a concor- complexas e que demandam empatia,
lidades sobre o cuidado da saúde
rência das operadoras e do Estado vínculo e capacidade criativa dos tra-
dos beneficiários. Também foram
para prestação de serviços. Por exem- balhadores de saúde.
viabilizados os processos e fluxos de
plo, os serviços estatais, em geral com A legitimidade do SUS e a mobiliza- ressarcimento do SUS. Esses meca-
os mais bem conceituados ou únicos ção para a defesa de um sistema uni- nismos coibiram a utilização do sub-
equipamentos dos territórios, ofer- versal e generoso na defesa da vida sistema de assistência público que
tam assistência aos planos e seguros, conta com apoio restrito das classes anteriormente prestava assistência
mesmo acarretando desassistência e altas e médias, que têm maior possi- aos beneficiários dos planos e segu-
filas no SUS. Por outro lado, os pres- bilidade de vocalizar seus interesses ros privados, em especial naquelas
tadores privados, sejam lucrativos para influir nas políticas que reivin- ações de maior custo, tais como tra-
ou filantrópicos, que são contratados dicam o plano de saúde do que para tamento do câncer, terapias renais
pelo público e pelo privado, atendem
a qualificação do SUS. Por outro substitutivas, transplante etc. Esse
as necessidades dos usuários do SUS
lado, os usuários do SUS, tais como processo de desresponsabilização
ou dos beneficiários dos planos e se-
os mais de 25 milhões de brasileiros das operadoras pelo cuidado da saú-
guros prioritariamente?
que ficaram sem assistência com o de dos seus beneficiários aumentava
Um exemplo disso pode ser ob- fim do Mais Médicos, têm menos a lucratividade a partir de subsídios
servado nos serviços de saúde com possibilidade de que suas ideias e in- estatais indiretos. São esses esfor-
dupla porta de atendimento. Uma teresses cheguem à agenda pública. ços regulatórios que estão sendo

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TEMA DE CAPA

criticados pelas operadoras e cuja rantindo a continuidade do cuidado bres e periféricas do país. Também é
supressão e abrandamento é objeto na rede de atenção. Coloca em risco difícil garantir a formação de profis-
de projetos de lei encaminhados ao a busca da integralidade que carac- sionais em quantidade e qualidade
congresso nacional. teriza a proposta da Atenção Básica que respondam às necessidades de
brasileira, tanto as propostas de APS cuidado em saúde e sobretudo que
Não considero que os esforços das
com carteiras mínimas de serviços, tenham as competências e habili-
operadoras são no sentido de di-
dos planos privados, quanto do sis- dades centradas nas pessoas e suas
minuir a interferência do Estado.
tema público. necessidades de cuidado.
Acredito tratar-se de mudar a dire-
cionalidade desta interferência. Não A APS para pobre do sistema públi- A formação de profissionais de
há desacordo com a manutenção e co restringe acesso e possibilidade saúde é orientada pelas diretrizes
ampliação dos subsídios estatais que de resolução das necessidades das curriculares nacionais que incorpo-
são ofertados para o setor, sejam pessoas e estimula aqueles que po- raram mais recentemente, com mais
diretos, como os benefícios tributá- dem ao consumo de serviços dos se- ênfase, o SUS e suas políticas. No
rios já referidos, sejam indiretos, ao guros de saúde. Já a APS dos planos entanto, a formação cujo centro é a
delegar a assistência de maior custo populares possibilita às operadoras produção de procedimentos, sempre
dos seus beneficiários ao SUS, sem a aumentarem suas carteiras de bene- mais sofisticados, especializados e
responsabilidade de ressarcimento, ficiários com os usuários de menor em maiores volumes, que responde
ou ainda pela permissão do uso dos renda através da oferta de serviços à lógica de expansão do consumo de
equipamentos estatais, como os hos- bastante restritas e de baixo custo, bens e produtos, e de especializa-
pitais universitários que hoje são ex- além da utilização da microrregu- ção das corporações, ainda orienta
clusivos para o SUS. A interferência lação sobre o uso das tecnologias e a maior parte da formação profis-
que querem que diminua é da regu- insumos da saúde que ficam condi- sional. A mudança da formação tem
lamentação sobre as suas responsa- cionados à garantia da lucratividade sido disputada, cada vez mais, tanto
bilidades assistenciais, para ampliar e não às necessidades dos usuários. pelo SUS quanto tem sofrido inter-
sua clientela através da venda de ferências dos interesses do mercado
planos e seguros baratos com ofer- de planos e seguros de saúde priva-
44 tas de cestas básicas assistenciais IHU On-Line – Há distinções dos cujo centro é o controle de cus-
para os pobres, e sobre os reajustes. na formação de profissionais tos através da protocolização de atos
Trata-se de diminuir as regras que que atuam na saúde suplemen- e procedimentos e do controle da
limitam o aumento da sua participa- tar? Quais? atuação dos profissionais.
ção no mercado e sua lucratividade
Lisiane Bôer Possa – No sis-
e manter ou aumentar as regras que
tema educacional não há distinção
ampliam os subsídios públicos para IHU On-Line – E com relação
formal da formação dos profissio-
a sua atuação. aos usuários, quais as impli-
nais para a saúde suplementar. No
cações nas concepções de “pa-
entanto, é currículo oculto implici-
ciente cliente”, nos sistemas
IHU On-Line – A atenção bá- tamente abordado na formação em
privados, e de “paciente usuá-
sica é vista por especialistas muitas instituições o descrédito com
rio”, nos sistemas públicos?
como a melhor forma de se o sistema público e as abordagens
investir em política pública de diferenciadas de atendimento para Lisiane Bôer Possa – Faz parte
saúde, pois não só age na pre- as situações em que o paciente é do do processo de indução do consumo
venção como também atende profissional, porque este é pago pelo de serviços, insumos, tecnologias,
os pacientes nos quadros ini- atendimento, ou em que o paciente é bens e seguros privados de saúde a
ciais de doença. Na medida em da instituição, porque o trabalhador maximização dos riscos e do medo
que a saúde é mercantilizada tem um salário fixo como remunera- nas populações, sejam usuários dos
via sistemas privados de planos ção ou porque é do SUS. sistemas públicos ou privados. O de-
de saúde, as políticas de aten- sejo de consumo de procedimentos,
A grande maioria dos trabalhado-
ção básica podem ser ameaça- sempre com maior densidade tecno-
res de saúde no país tem vínculo com
das? Por quê? lógica, e o receio de não acessá-los
serviços contratados ou próprios do
influenciam a nossa capacidade de
Lisiane Bôer Possa – Estão ame- SUS, que é o maior empregador do
entender e vivenciar a morte como
açadas as políticas de atenção básica setor saúde do Brasil. As principais
um processo da natureza humana e a
que têm como pressuposto a integra- críticas relativas à gestão da educa-
saúde como potência para andar na
lidade e a tarefa de articular as res- ção e do trabalho em saúde, em se
vida relacionada às nossas condições
postas de cuidado adequadas às ne- tratando do objetivo de implementar
de existência.
cessidades de saúde da população do sistema público universal, é a difi-
território, seja ampliando o escopo culdade de direcionar a provisão dos Muitos de nós sofremos com o
dos serviços e das práticas dos pro- profissionais para a atuação na aten- medo e com a insatisfação pela for-
fissionais nestas unidades, seja ga- ção básica, para as regiões mais po- ma fragmentada e desconectada

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como somos cuidados. Estamos sub- a diferença entre o paciente ser do relacionar com esse novo papel que
metidos à justaposição e sobrecarga médico, nos hospitais privados, e da nos foi garantido com a Constituição
de atos e procedimentos. Peregri- instituição, nos hospitais públicos. de 1988. Felizmente cada vez mais
namos em diversos serviços, temos No primeiro contexto há maior res- pessoas têm atuado para exercê-lo.
receio de questionar os profissionais ponsabilidade dos profissionais pela Isso vale para os usuários beneficiá-
de saúde, afinal há uma hierarquia condução dos casos e maior víncu- rios, que com frequência abdicam e
de poder que marca nossas relações lo com os usuários e familiares. No se constrangem em ser cuidados no
e não constituímos vínculos para segundo contexto, com mais frequ- SUS, uma vez que têm melhor renda
que relações de confiança possam ência os profissionais não assumem ou outra inserção social e no merca-
ser construídas. Com frequência como sua a tarefa de gestionar o cui- do de trabalho. Apesar de que efeti-
estamos incertos se o cuidado que dado e vincular-se aos pacientes. vamente o utilizam para ter acesso
precisamos é o que efetivamente es- a um conjunto de ações que foram
Os “pacientes clientes”, na maior
tamos recebendo. universalizadas, não o reconhecem
parte das vezes, também têm o di-
(imunizações, acesso ao sangue,
Em alguma medida, estamos cer- reito à saída. Podem trocar de ope-
tos sobre esses receios, uma vez tratamentos de doenças específicas,
radora, de serviço ou de profissional
que, cada vez mais, estamos sujeitos farmácia popular, SAMU, transplan-
quando estão insatisfeitos com o
a danos por excesso de intervenção te etc.).
atendimento recebido. No caso do
de médicos e outros profissionais de serviço público, aos “pacientes usu- Também é frequente que busquem
saúde, tais como: exageros de me- ários” essa possibilidade é bem me- no SUS a garantia de acesso a pro-
dicações, cirurgias e procedimentos nos frequente. dutos e bens de que necessitam, mas
diagnósticos desnecessários. Há que não lhes são ofertados por seus
estudos da OMS que estimam que Má fama, mas boas expe- planos e seguros de saúde ou são in-
os eventos adversos da assistência riências viáveis de serem adquiridos por de-
hospitalar são a terceira causa de sembolso direto (vide judicialização
morte nos EUA. Estudo realizado Mesmo que tenhamos acesso e da saúde). Os usuários beneficiários
pela Universidade Federal de Minas qualidade do cuidado garantido em são segmentos da nossa sociedade,
Gerais - UFMG em 2016 estima que muitos serviços no sistema público, com maior capacidade de vocali- 45
no Brasil esta seria a segunda causa há um efeito produzido pelo imagi- zação dos seus interesses, mas que
de morte, matando mais que o cân- nário de insegurança e desconfiança participam pouco dos processos or-
cer. Os serviços de saúde e os atos com o cuidado, que produz sofri- ganizados de defesa e qualificação
dos profissionais, seja por precarie- mento e tensiona as relações entre do SUS.
dade, negligência, imperícia, erro os usuários e os trabalhadores de
ou pelo excesso de intervenções, saúde. Pesquisas já mostravam que
têm causado muitos danos à nossa quem não usa os serviços de assis- IHU On-Line – É possível ar-
saúde. E essa é uma experiência que tência do SUS os avalia pior do que ticular saúde suplementar com
afeta a todos, sejam pacientes, usu- seus usuários. Mais recentemente, o sistema público de saúde sem
ários ou clientes. com a perda de planos e seguros de que haja enfraquecimento do
saúde, muitos ex-“pacientes benefi- SUS? Como?
Pior para usuários ciários” passaram a acessar os ser-
Lisiane Bôer Possa – E se in-
viços do SUS, e não é incomum que
No entanto, o medo e a inseguran- vertêssemos a pergunta? É possível
possam relatar boas experiências de
ça podem ser ainda mais expressivos articular a saúde suplementar com
cuidado e são surpreendidos por um
para os “pacientes usuários”. Uma um sistema público de saúde que
atendimento que foi melhor do que
das razões é a manutenção da crença oferte acesso universal, com qua-
as expectativas que tinham.
de que o SUS é para os indigentes, lidade e que resolva os principais
despossuídos e que os serviços que No entanto, é fato que “pacientes problemas de saúde dos cidadãos
recebem são um favor que não pode usuários” têm restrições importan- dos países, sem enfraquecimento da
estar sob questionamento, pensa- tes de acesso e qualidade dos ser- saúde suplementar?
mento esse que orienta, infelizmen- viços de saúde públicos no Brasil,
Como os seguros privados e o ca-
te, a atuação de muitos trabalhado- em especial os especializados e nas
pital financeiro, para garantir sua
res de saúde. regiões mais pobres e periféricas do
lucratividade, convenceriam os ci-
país. Essas restrições ampliaram-se
Graça Carapinheiro4, pesquisa- dadãos a abrir mão dos seus recur-
nos últimos anos como efeito da di-
dora portuguesa, já demonstrava sos para compor múltiplos fundos
minuição dos recursos e do fim do
privados, que em tese poderiam ser
Mais Médicos.
4 Graça Carapinheiro: licenciada em Economia pela Fa- utilizados para comprar um “Pro-
culdade de Economia da Universidade do Porto, é doutora
em Sociologia no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa. No Brasil, o cidadão portador do duto” caso você precise dele se você
É Professora Catedrática no Departamento de Sociologia direito à saúde é um personagem confia no sistema público a que tem
da Escola de Sociologia e Políticas Públicas (ESPP) do ISC-
TE-IUL, desde 2006. (Nota da IHU On-Line) recente. Estamos aprendendo a nos acesso? Como seria o espaço da saú-

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TEMA DE CAPA

de suplementar quando a maioria realmente residual, tanto no volume elas precisam as desmobilizariam
da população, dos trabalhadores de dos gastos, como na capacidade de do desejo de adquirir esse acesso ao
saúde e dos atores estatais estives- compra dos prestadores de saúde e mercado. Por outro lado, a consti-
sem convencidos acerca da garantia no imaginário da sociedade. Quanto tuição de fundos de financiamento
de um direito básico, que é a preser- maior for a capacidade do setor saú- públicos robustos garante o acesso
vação da vida, e não abrissem mão de suplementar de influir no sistema à atenção a pessoas que respondam
que este seja garantido através de de saúde, politicamente, economica- integralmente aos problemas de
fundos públicos pelo estado, tendo mente e culturalmente menos pro- saúde mais prevalentes, com maior
como perspectiva a solidariedade e vável que o Sistema Único de Saúde regulação do capital industrial, da
generosidade entre as pessoas e os seja fortalecido. provisão e gestão de força de traba-
povos na defesa da vida? lho, estando os usos de tecnologias,
Financiamento medicamentos e o saber e fazer dos
A aquisição de planos e seguros
trabalhadores efetivamente focados
privados não atraem os cidadãos Os ganhos do mercado da saúde su- nas necessidades das pessoas.
em países que possuem sistemas plementar estão alicerçados na inse-
de saúde públicos confiáveis, com gurança das pessoas quanto ao siste- Acredito que para muitos essa
legitimidade social e que garantem ma público em responder aos riscos perspectiva pareça impossível, no
acesso, mesmo que tenham proble- advindos do adoecimento e também entanto, a globalização do direito
mas e que sua comercialização não na participação direta e indireta do à saúde dos povos, assim como a
seja impedida. Qualquer articulação estado no financiamento e oferta de superação da pobreza e da iniqui-
entre o sistema público de saúde e assistência a uma parcela da popu- dade, não é uma questão econômi-
a saúde suplementar, que garanta o lação que não tem poder de compra, ca. Não se trata da insuficiência de
acesso universal aos cidadãos sem além de suportar os gastos da aten- recursos no mundo, mas sim das
riscos econômicos das pessoas com ção que requer mais densidade tec- escolhas políticas que orientam os
o adoecimento, só é possível se esta nológica e custo e que não é lucrativa usos dos mesmos. Os dados cho-
última tenha sua regulação efetiva- ao sistema suplementar. Um sistema cantes, produzidos pelos Econo-
mente submetida aos interesses da público de saúde reconhecido como mistas pela Paz e Segurança, que
46 população e do direito à saúde e à capaz de cuidar da maioria das pes- estão sistematizados no gráfico
vida. Neste cenário teriam um papel soas na maior parte das vezes que abaixo, ilustram essa afirmativa.

Fonte: BUSS, Paulo Marchiori. Globalização, pobreza e saúde. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2007, vol.12, n.6

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Esses dados são de 2003 e mostram tender a oferta de saúde pública didas de restrição de investimentos
a viabilidade econômica da expansão de qualidade a toda população públicos na saúde, como o teto de gas-
de políticas sociais no mundo, uma vez brasileira? tos e contingenciamentos orçamen-
que os recursos necessários em 10 anos tários, comprometem a possibilidade
Lisiane Bôer Possa – Vivemos
para alcançar os objetivos do milênio de constituir um sistema e evidente-
num país continental, que tem realida-
são menores que os gastos militares mente oportunizam a expansão do
des bastante distintas. A experiência
de um ano no mundo. Universalizar mercado privado e dos seus interesses
de cuidado do SUS varia de um bair-
a atenção à saúde como direito é uma no sistema de saúde brasileiro. E por
ro para outro na mesma cidade, entre
questão sociológica e ético-política, que fim a ciência, a tecnologia e a forma-
as cidades e estados. Isto é princípio
trata de como dividimos os recursos da ção dos profissionais não podem ser
constitucional, a descentralização e
humanidade. Os empecilhos para uma subjugadas aos interesses do merca-
regionalização, e é desejável, pois só
saúde global universal não estão na do. A produção do conhecimento na
assim poderíamos ter um sistema que
insuficiência financeira e sim nos crité- responda às necessidades das pesso- saúde condicionada à lucratividade
rios de priorização do seu uso. as em cada território. É um desafio impede o acesso pelos custos proibiti-
Há tensões causadas por diferentes resistir às políticas autoritárias e cen- vos dos serviços, tecnologias, insumos
atores e organizações, com interesses tralizadoras do Ministério da Saúde e medicamentos para a maior parte
e ideias distintos incidindo sobre o que estabelecem padrões que serão das pessoas, como também limita as
estado e disputando a gestão das po- sempre insuficientes, considerando a invenções que não são incentivadas
líticas de saúde. A expansão do capital realidade brasileira diversa. quando a consequência é diminuírem
financeiro, através dos seguros priva- os lucros ou quando afetam pessoas
A formação profissional que deman-
dos, amplia-se na medida em que os sem capacidade de compra.
da ampliar a provisão tem também o
sistemas públicos são questionados e desafio de ganhar corações e mentes É preciso explicitar que a política pú-
a universalização de acesso não está dos trabalhadores para construírem blica de saúde sempre está em dispu-
na agenda política e da sociedade. Os o SUS. Precisamos de mudanças no ta. Alguns acreditam, defendem e têm
atores e organizações do mercado atu- trabalho cotidiano dos serviços, so- seus interesses maximizados ao tratar
am para a manutenção destas condi- bretudo com experiências de cuidado a saúde como um bem de mercado. No
ções. Em alguma medida a má gestão, e compromisso com os usuários so- entanto, a saúde não pode ser assim 47
a falta de recursos, o imaginário de bre nossa responsabilidade e com sua considerada. Não é um bem que possa
um sistema público falido, em especial participação, trabalho alicerçado em ser submetido a leis invisíveis do mer-
produzido pela mídia, não é apenas o práticas colaborativas entre os pro- cado, de oferta e procura para equi-
resultado da atuação de um Estado fissionais, não justaposição de atos e
neutro. Ao contrário, é um projeto po- líbrio de preços, as pessoas não têm
envolvimento de todos para a qualifi- poder de escolha e barganha sobre o
lítico e econômico que disputa a agen- cação da gestão.
da das políticas de saúde no Estado. que lhes é indicado como alternativa
O financiamento do sistema de saú- para salvar-lhes a vida. A saúde é um
de é o grande desafio, gastamos mui- direito experimentado apenas através
IHU On-Line – No atual cená- tas vezes menos que países que têm do cuidado confiável, generoso e soli-
rio, quais os desafios para se es- sistemas universais. As últimas me- dário das pessoas e das coletividades.

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TEMA DE CAPA

Ferindo os pressupostos constitucionais


do SUS, governo federal amplia a
desigualdade de acessos à saúde
Para Carlos Ocké, o SUS vem sendo desidratado ao mesmo passo
que a regulação de sistemas privados vai se anulando

João Vitor Santos

A
o ser questionado sobre uma Quem pode, corre para os planos priva-
ameaça de privatização do siste- dos e passa a ter neles o ideal em aten-
ma público de saúde no Brasil, o dimento. “A estratificação de clientela
economista e doutor em saúde coletiva acabou sendo, portanto, um espinho
Carlos Ocké não hesita: “observa-se, a na carne dos sanitaristas: superamos o
um só tempo, a queda do gasto públi- seguro social, mas caímos nas garras do
co per capita e o aumento dos preços seguro privado, na contramão do mo-
dos bens e serviços privados de saúde, delo universal”, pontua.
num quadro de piora das condições de Carlos Octávio Ocké-Reis é gra-
saúde da população”. Para ele, isso vai duado em Economia pela Universi-
configurando um “modelo de proteção
48 dade do Estado do Rio de Janeiro -
social na área da saúde perversamen- UERJ, especialista em International
te excludente”, pois só quem paga tem Health Economics pelo Centre for
acesso aos serviços. Assim, observa Health Economics, University of York
movimentos de orientação neoliberal e (York, Inglaterra), mestre e doutor
tecnocrática num governo que acredita em Saúde Coletiva pela UERJ, com
que a saída para os problemas da saúde estágio pós-doutoral na Yale School
se resolve retirando o Estado de cena. of Management (New Haven, EUA).
Na entrevista concedida por e-mail à Técnico de Planejamento e Pesquisa
IHU On-Line, Ocké observa que tal do Instituto de Pesquisa Econômica
estratégia não vem somente na austeri- Aplicada - Ipea. Foi pesquisador visi-
dade de gastos em saúde pública, que tante das universidades de Yale (New
fazem minguar a vida do Sistema Único Haven, EUA), Columbia (Nova York,
de Saúde - SUS. Há uma relação direta EUA) e Mannheim (Mannheim, Ale-
com o sistema de regulação de planos manha). Ex-diretor do Departamento
privados. Para o professor, na práti- de Economia da Saúde, Investimentos
ca, a atuação da Agência Nacional de e Desenvolvimento - Desid do Ministé-
Saúde - ANS é “um fracasso”, “apesar rio da Saúde e ex-assessor econômico
da presença de uma burocracia pública da presidência da Agência Nacional
competente e comprometida com o in- de Saúde Suplementar - ANS. É autor
teresse público”, observa. do livro “SUS: o desafio de ser único”
E, com baixo financiamento do SUS, (Editora Fiocruz, 2012).
vem a desestruturação dos serviços. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em algumas Gostaria que recuperasse essa Carlos Ocké – Esse patrocínio
entrevistas concedidas à IHU ideia e detalhasse como esse se dá especialmente por meio da
On-Line, o senhor tem dito que “patrocínio” compromete o fi- renúncia de arrecadação fiscal, mas
o Estado é quem “patrocina” nanciamento do Sistema Único poderíamos falar também do ressar-
os planos privados de saúde. de Saúde - SUS. cimento, entre outros. Compromete

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“No caso brasileiro,


produzir saúde pública de
qualidade demanda mais
recursos e não menos”

porque em tese o governo troca gas- a um só tempo, a queda do gasto ímos nas garras do seguro privado,
to direto no SUS por gasto indireto público per capita e o aumento dos na contramão do modelo universal.
no mercado (subsídio). preços dos bens e serviços privados
de saúde, num quadro de piora das
condições de saúde da população. IHU On-Line – Como avalia a
IHU On-Line – Como com- Nessa direção, esse modelo de prote- atuação da Agência Nacional de
preender essa relação que as ção social na área da saúde será per- Saúde - ANS no que diz respeito
operadoras privadas de saúde versamente excludente. A literatura à regulação dos planos de saú-
estabelecem com o Estado bra- científica inclusive denuncia que a de privados?
sileiro? austeridade fiscal tem contornos ge- Carlos Ocké – Um fracasso com-
Carlos Ocké – O Estado fomen- nocidas, uma regressão brutal, típica pleto, apesar da presença de uma 49
tou a criação e favoreceu o desen- de regimes totalitários. burocracia pública competente e
volvimento do mercado de planos comprometida com o interesse pú-
de saúde. IHU On-Line – No Brasil, pla- blico. Os planos coletivos, que repre-
nos de saúde privados são obje- sentam 82% do mercado, continuam
to de desejo de muitas pessoas desregulados e podem rescindir uni-
IHU On-Line – O SUS, apesar lateralmente os contratos.
e em muitas empresas é ofere-
de todos os avanços, ainda tem
cido como um grande benefí-
uma série de problemas de ges-
cio. O que está por trás dessa IHU On-Line – Há em discus-
tão. Como compreender a raiz
lógica? Por que há tanta resis- são um projeto de lei que revê
desses problemas e como supe-
tência em ser apenas usuário
rá-los? a regulação do Estado sob as
do SUS?
operadoras privadas, inclusive
Carlos Ocké – Superar os pro-
Carlos Ocké – Dada a crise de le- cogitando retirar da ANS a fun-
blemas de gestão significa ao me-
gitimidade do SUS, em parte criada ção fiscalizadora. Como o se-
nos superar os problemas de fi-
pelo baixo financiamento, em parte nhor tem acompanhando esse
nanciamento (recursos humanos),
produzida ideologicamente pela mí- debate?
de planejamento (federalismo coo-
dia – que apoia o mercado de servi-
perativo) e da administração (des- Carlos Ocké – Desregular preço,
ços de saúde, os planos de saúde se
privatizar o Estado). No caso bra- desregular acesso, desregular cober-
constituem em uma estratégia de
sileiro, produzir saúde pública de tura. Acumular capital e radicalizar a
sobrevivência das classes médias.
qualidade demanda mais recursos e seleção de riscos. Esse é o mantra do
Como a pobreza, a desigualdade e
não menos. mercado nessa conjuntura. Está em
a violência social pressionam coti-
marcha uma expropriação significa-
dianamente o SUS, o problema das
tiva da “poupança” das famílias e dos
filas (tempo de espera) explica em
IHU On-Line – No atual cená- trabalhadores, tão violento como foi
parte essa resistência (em especial
rio do Brasil, corre-se o risco o plano Collor1.
nas consultas dos especialistas, nas
da privatização do sistema pú-
cirurgias eletivas e nos exames diag-
blico de saúde? 1 Plano Collor: foi um plano econômico que tencionava
nósticos). A estratificação de clien- acabar com a inflação que estava em níveis hiperinflacio-
nários. Foi a primeira medida econômica do Presidente
Carlos Ocké – Sim, por causa da tela acabou sendo, portanto, um Fernando Collor de Mello, sendo decretada no dia de sua
orientação neoliberal e tecnocráti- espinho na carne dos sanitaristas: posse, em 1990. O plano consistia basicamente na retirada
da moeda de circulação com um bloqueio dos numerários
ca do governo federal. Observa-se, superamos o seguro social, mas ca- depositados em bancos. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 541
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – De que forma social à saúde, ferindo de morte os Carlos Ocké – Do ponto de vista
o capitalismo de nosso tempo pressupostos constitucionais do programático, aponto os seguintes
tem se revelado no campo da SUS – em torno da universalidade, desafios: (i) revogar a Emenda Cons-
saúde? integralidade e equidade. Darei três titucional 95, para ampliar o financia-
exemplos concretos: a desidratação mento do SUS; (ii) frear a internacio-
Carlos Ocké – Como uma fron-
do Programa Mais Médicos (agra- nalização do mercado, para reduzir
teira de acumulação vigorosa (finan-
vando o problema dos vazios assis- os gastos dos trabalhadores e empre-
ceirização) impondo um modelo de
tenciais e fragilizando a estratégia gadores com bens e serviços priva-
proteção social residual (exclusão
de saúde da família), a manutenção dos de saúde; (iii) regular os planos
social), bota de cabeça para baixo as
da Emenda Constitucional 95 (con- empresariais de saúde, os hospitais
experiências do welfare2 europeu.
gelando o teto da despesa primária, privados e filantrópicos e as organiza-
Na periferia capitalista, como já su-
reduzindo o piso per capita da saúde ções sociais, para acabar com o para-
gerimos, um convite à barbárie.
e estrangulando o financiamento de sitismo do mercado sobre o SUS; (iv)
estados e municípios) e a suspensão com o dinheiro do Pré-Sal, investir,
IHU On-Line – Quais os riscos de contratos com sete laboratórios de um lado, no Programa Mais Médi-
para a população em geral caso públicos nacionais para a produção cos, no Programa Farmácia Popular
o SUS seja desidratado e a saú- de 19 medicamentos distribuídos e nos hospitais universitários, e de
de pública entregue à iniciativa gratuitamente pelo SUS (destinados outro, concluir as obras inacabadas
privada? à fabricação de remédios para pa- nas unidades de pronto-atendimento
cientes que sofrem de câncer, diabe- e unidades básicas de saúde, fortale-
Carlos Ocké – Na prática, o go- te e transplantados). cendo a atenção básica e as linhas de
verno federal amplia as desigual- cuidado das redes de atenção à saúde
dades de acesso e ameaça o direito nos estados e municípios. Finalmen-
IHU On-Line – Quais os de- te, para viabilizar o sistema, é impor-
2 Welfare State: expressão em inglês que significa “esta-
do de bem-estar” e abrange as noções de Estado de bem safios para fortalecimento do tante valorizar o serviço público no
-estar social e de políticas públicas, ou seja, o conjunto de SUS e controle maior sobre SUS, criando a carreira nacional in-
benefícios socioeconômicos que um governo proporciona
50 à população. (Nota da IHU On-Line) operadoras privadas de saúde? terfederativa.■

Leia mais
- Caminho para SUS ser único e universal passa pela política e pelo fortalecimento da
base social de apoio. Entrevista com Carlos Ocké-Reis, publicada na revista IHU On-Line
número 526 de 13-8-2018, disponível em http://bit.ly/2kk9dYo.
- Parasitismo do privado no público. Entrevista com Carlos Ocké-Reis, publicada na revis-
ta IHU On-Line número 491 de 22-8-2016, disponível em http://bit.ly/2kk8cQ2.
- A flexibilização da regulação dos planos de saúde - A privatização do sistema de saú-
de e o desmonte do SUS. Entrevista especial com Carlos Octávio Ocké-Reis, publicada nas
Notícias do Dia de 5-7-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, disponível em
http://bit.ly/2lxGFuH.

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REVISTA IHU ON-LINE

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EDIÇÃO 541
TEMA DE CAPA
CINEMA

Cena do filme Bacurau (Divulgação)

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Os muitos êxitos de Bacurau


João Ladeira

“ O
que importa está alhures, naquilo que esses ícones
pop da cinefilia fazem com todas as bestas armadas
das telas”, escreve João Ladeira
João Martins Ladeira é professor na Universidade Fe-
deral do Paraná, possui doutorado em Sociologia pelo Insti-
tuto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj,
mestrado e graduação em Comunicação pela Universidade
Federal Fluminense – UFF
Eis o artigo.

O sucesso de maior repercussão no cinema brasileiro recente talvez importe por razões que
ultrapassam os motivos pelas quais até agora foi tão admirado
Há algo curioso nas críticas sobre Bacurau (2019, de Kleber Mendonça Filho e Juliano
Dornelles), e o mais interessante parece ter sido o fato de que elas não necessariamente
viram o filme. Falou-se de tudo nesses textos: o comentário da obra sobre o momento que
vivemos; a resistência; a opressão e a violência; o extermínio de minorias. Em si, o filme
pareceu menos importante.
Na Folha de S. Paulo, surgiu uma comparação com a brutalidade do sequestro, em agosto, de
um ônibus na ponte Rio-Niterói. O Globo narrou o quanto os cineastas teriam se inspirado no
Gueto de Varsóvia para compor seu filme; e as declarações de ambos – ao menos aquelas

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apropriadas por esses grandes jornais – não se esforçaram em relativizar a primazia do


mundo concreto.
Se apenas a realidade importa, o cinema soa como coisa menor. Presume-se, então, que a vio-
lência no interior dessa arte não tenha história. De fato, no audiovisual, demanda-se sempre cer-
ta primazia para as coisas da vida. Em momentos de crise (como o nosso) a sensação se acirra:
mas Bolsonaro vai passar e a obra de nossos cineastas, não.

Sessões da meia-noite
Muito menos o próprio cinema. Foram poucos os comentários sobre o diálogo de Bacurau com
um gênero muito específico, escasso no Brasil: o filme B de terror e ficção científica, cujas marcas
parecem bem mais nítidas que as do faroeste do qual tanto se falou. Novamente, as declarações dos
cineastas voltam à tona, pois suas entrevistas não editadas concederam mais destaque para tal estilo.
Ambos expressaram a vontade de compor um filme de gênero, como na conversa com o pod-
cast Saco de Ossos. Certas cenas soam abertamente cômicas: drones em forma de discos voa-
dores; assassinos se entregando ao sexo após a violência; um matador vivido por Udo Kier, esse
eterno vilão. São imagens de um gênero difícil de levar a sério. Todavia, a crítica de Bacurau
preferiu se negar ao riso.
Por quê? A resposta passa por um traço caro ao cinema: pois tal arte vive não pela correspon-
dência com a realidade, mas por imagens destiladas durante décadas. É um ofício estranho esse
de criar tais imagens através de uma técnica que tem o mundo todo como repertório, permitindo
que qualquer fração do real caiba na tela comente para reapropriá-la.

Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!


Foi graças a tal amplitude que a cinefilia capturou essas imagens, saturando-as, manuseando
-as como se pudesse enchê-las após as ter esvaziado, apenas para logo depois esgotá-las mais 53
uma vez, sempre em direção a novas capturas. Porém, como se as contradições nunca terminas-
sem, retorna-se à indispensável referências às coisas, que ganha vida para nos enganar.
Como parte da exploração cinéfila, assassinos em série deixam de ser retratos de tragédias concre-
tas. Quando param de refletir fatos, tornam-se patrimônio do cinema. Mas não é casual que, a partir
daí, enxergue-se neles signos sobre a própria vida. E, mais uma vez, vem a pretensão de comentário
ou de alegoria. Eles devem dizer algo: ou talvez sejamos nós que precisemos demasiado disso.
Contudo, há uma outra opção. Não poderiam essas imagens bastar por si mesmas? Assim, elas
tangenciariam a abstração, exatamente nesse ofício para o qual toda abstração é inviável. É um
movimento difícil. Mas a repetição desses filmes de terror transforma monstros e assassinos em
ícones, tornando-os recursos disponíveis para sua recombinação.
E eis que, exatamente quando recuperam a própria representação, tais imagens descartam a cor-
respondência com o mundo. Para isso, precisa-se de ícones amplamente conhecidos, e o conjunto
de temas do horror soa perfeito. Há algo em Bacurau mui-
to mais importante que engajamento: é um tipo de experi-
ência como aquela que a Arte Pop tentou construir.

Monstros demais
A flexibilidade que permitiu a Bacurau se transformar
num marco da crítica ao nosso tempo decorre da diver-
sidade de perspectivas disponíveis, fruto dessa busca por
signos: logo aqui, numa circunstância na qual esses signos
talvez nem sejam o mais importante.
Pois existe de tudo um pouco nas imagens do horror. Há
o moralismo de Paul Morrisey, para quem as drogas e a ju-
ventude eram valores vazios, consequência de uma socieda-
de sadia que não conhece a doença, simulando-a ao invés de
encará-la. Seus monstros celebravam a contracultura como
Cartaz de Bacurau
fraqueza, e por isso o sangue se tornava tão importante.

EDIÇÃO 541
TEMA DE CAPA
CINEMA

Existe também a dualidade de Taxi Driver (1976, de Martin Scorsese), da reflexão humanista-cristã
de seu diretor sobre a alienação, por um lado, à exaltação da violência do roteiro de Paul Schrader,
por outro. Mas há também a pretensão de inverter a normalidade, já discutida nessa coluna ao reto-
mar a trajetória que levou a filmes como As Boas Maneiras (2017, de Marco Dutra e Juliana Rojas).
Por que procurar em Bacurau – no faroeste que ele não é – a defesa de uma civilização se
esvaindo frente à barbárie, invertendo, então, a mítica do próprio gênero: a conquista de um
território onde se vai impor tal civilização? O que importa está alhures, naquilo que esses ícones
pop da cinefilia fazem com todas as bestas armadas das telas. Dói abandonar uma chance de
falar sobre o presente, mas, talvez, seja outro o dado libertador. ■

Ficha técnica
Direção: Kleber Mendonça Filho, Julio Dornelles
Elenco: Sonia Braga, Udo Kier, Bárbara Colen, Thomas Aquino, mais
Gênero: Ação | Suspense |Western
Nacionalidade: Brasil | França
Trailer: http://bit.ly/2lQXxfM

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Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

Sistema público e universal de saúde – Aos 30


anos, o desafio de combater o desmonte do SUS
Edição 526 – Ano XVIII – 13-8-2018
No ano em que completa três décadas de implantação, o Sistema Único de
Saúde - SUS já sente as consequências do principal golpe que sofreu em
sua trajetória. Trata-se da promulgação da Emenda Constitucional nº 95
em dezembro de 2016. De autoria do governo de Michel Temer, ela limitou
os gastos públicos por 20 anos, fixando em zero o crescimento real das des-
pesas primárias. No momento, os efeitos mais notórios são a redução de
atendimento, a falta de insumos básicos e a precariedade na manutenção
de equipamentos, na distribuição de medicamentos e nos programas de
promoção e prevenção da saúde.

SUS por um fio. De sistema público e


universal de saúde a simples negócio 55

Edição 491 – Ano XVI – 22-8-2016

O Sistema Único de Saúde - SUS tem sido amplamente debatido e defen-


dido nas páginas impressas e eletrônicas do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU. A este tema foram dedicadas inúmeras entrevistas e artigos.
A revista IHU On-Line volta ao tema, pois, se é verdade que o SUS sem-
pre tem vivido em crises, nenhuma é de tal gravidade como a atual.

Sistema Único de Saúde. Uma conquista


brasileira

Edição 376 – Ano XI – 17-10-2011

Para refletir sobre os rumos do SUS, a IHU On-Line convidou alguns


pesquisadores e especialistas no tema, que contribuem com suas ideias
sobre o que é o SUS, quais seus avanços e desafios. Para Gilson Carvalho,
médico pediatra e de saúde pública, ainda não chegamos a implantar o
SUS constitucional. “Estamos longe dele”, afirma. Já o professor da Uni-
versidade Federal da Bahia, Jairnilson Paim, destaca que “o maior desa-
fio do Sistema Único de Saúde hoje, no Brasil, é político”.

EDIÇÃO 541
ihu.unisinos.br | ihuonline.unisinos.br
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