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Fotobiografia:

uma proposta antropológica e estética


FABIANA BRUNO*

Resumo
Neste artigo pretendemos problematizar a compreensão de Fotobiografia, a partir
da expansão de sua noção em direção às narrativas humanas. O ponto de partida
para essas reflexões são experimentos de pesquisa que nos apresentam a escolha
de conjuntos de imagens e nos surpreendem pela potência dessas fotografias a nos
convidarem a pensar na existência de histórias visuais, como camadas de
significações, quer seja de memórias, quer seja de imaginação, quer
correspondam a sensíveis e instigantes descobertas imagéticas. Uma espécie de
arqueologia visual de histórias de vida. A imagem, não como um mero objeto,
mas como um “acontecimento” – ora epifania, ora fenômeno no sentido
etimológico das palavras –, um campo de forças que se cruzam e um sistema de
relações que coloca em jogo diferentes instâncias enunciativas (o verbal),
figurativas e perceptivas (o visual).
Palavras-chaves: imagem; fotobiografia; antropologia; imaginação; histórias
de vida.
Abstract
In this article we aim to discuss the understanding of Photobiography, from the
expansion of its notion towards human narratives. The starting point for these
considerations are research experiments that present the choice of sets of images
which surprise us for their power while inviting us to wonder about the existence
of visual histories. Such histories could be seen as layers of meanings, whether
they are memories, imagination or sensitive and provocative imagery discoveries:
some sort of visual archeology of life histories. The image, not as a mere object,
but as an “event” – sometimes an epiphany, sometimes a phenomenon in the
etymological sense of words – a field of intertwined forces and a system of
relations that puts in place different declarative (the verbal), figurative and
perceptive (the visual) instances.
Key words: image; photobiography; anthropology; imagination; life stories.

*
FABIANA BRUNO é Doutora em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas; pós-
doutora pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e atualmente é
pesquisadora Pós-doc no Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da Unicamp.

“Exumar os objetos do passado, significa modificar tanto o presente


como o próprio passado. Não existe, na cultura como na psiquê, nem
destruições completas, nem restituições completas: é por essa razão que
o historiador deve ser atento aos sintomas, às repetições e às
sobrevivências. As marcas nunca são plenamente apagadas; mas elas
nunca nos são dadas, também ao idêntico”
(Didi-Huberman, 2002a, p.328).

O que poderiam nos dizer cinco pontos de interrogações se multiplicam.


fotobiografias de pessoas anônimas? A O que não significa que as fotografias
questão nos parece fundamental diante de que estamos vendo não dizem nada. 10
uma problematização acerca de outras Falam demais, talvez. Determinadas
indagações relacionadas a interrelações fotografias podem nos remeter àquelas
do visual e do verbal na perspectiva de que temos na nossa memória, mas que
uma Fotobiografia. É necessário lembrar são nossas e não do personagem,
que, neste artigo, o termo fotobiografia é podemos nos fascinar por outras e tentar
empregado para remeter a um conceito descobrir porque nos fascinam,
alinhado a narrativas humanas, e que por evidentemente, porque as associamos aos
sua vez, movimenta-se para além da nossos próprios fascínios. Por exemplo, o
utilização unicamente descritiva ou alpendre da fotografia de um personagem
ilustrativa da imagem fotográfica, nos pode me conduzir ao alpendre da minha
convidando a pensar na existência de antiga casa e, mais profundamente, me
histórias visuais, que têm como origem lembra o sítio tão saudoso de minha
camadas de significações, quer seja de infância, onde passei a maior parte do
memórias, de imaginação, quer sejam de tempo na companhia também de meus
descobertas imagéticas. Uma espécie de avós paternos. A fotografia – sobretudo
arqueologia visual de histórias de vida. E no horizonte de uma Fotobiografia – nos
então, a partir deste entendimento interpela, ressuscita e deixa aflorar outros
indagamos: como devemos ler uma instantes de nossa própria existência. Por
Fotobiografia? natureza, uma Fotobiografia será sempre
uma interrogação sobre a nossa
Essa evocação, aparentemente ingênua,
existência. É por esta razão que nos
nos levou a realizar algumas experiências
cativa e, ao mesmo tempo, nos atormenta
visuais com imagens fotográficas, na
e nos questiona.
direção do que nomeamos como
Fotobiografias. A tentativa de ler Notamos que geralmente não se vê e não
fotografias de um conjunto, cujos os se compreende por que não se dá
personagens são para nós desconhecidos, verdadeiramente atenção às imagens.
primeiramente, nos faz trabalhar com Não chegamos a lê-las, pois não temos
hipóteses e pontos de interrogações. Quer aprendido a lê-las, a tomar o tempo de
dizer, que ao mostrar (figuras, lugares, procurar decifrá-las. Nessa analogia
situações), a mesma fotografia “cega” e podemos nos perguntar: ao nos
lança-se na aventura do imaginário. alfabetizarmos, será que foi num único
Nelas, queiramos ou não, estamos dia que aprendemos a ler uma palavra,
cooptados de antemão. uma frase? E, qual terá sido o caminho
que percorremos para ler essas letras
A Fotobiografia de uma pessoa
(consoantes e vogais, vírgulas e pontos
desconhecida não afasta os caminhos da
de todos os tipos...) agrupadas, umas ao
nossa própria fotobiografia. Pelo
lado das outras, formando uma palavra...
contrário, nos alicia! E, portanto, os

e, logo depois, associando-se a outras e, assim, por diante... até chegar a ler
letras, acentos etc. para decifrar outras uma frase inteira.... frases... ou melhor,
letras (consoantes e vogais) formando até contar uma outra história.
uma outra palavra, associada à primeira

A seleção que origina o conjunto


A experiência em montar Fotobiografias nos levou a considerar a importância da escolha
ou seleção, como critério essencial para a condução de toda narrativa visual. Durante a
pesquisa1 com fotobiografias, nossos cinco personagens participantes do trabalho fizeram
diversas escolhas fotográficas e após cada seleção, discorreram livremente sobre as 11
fotografias selecionadas. Para tornar visível, esses comentários, que acompanharam a
mesma fotografia ora eleita na primeira escolha, ora na segunda, resolvemos apostar em
alguns ensaios estéticos iniciais, que acabaram por originar, mais tarde, as primeiras ideias
conceituais de nossas composições fotobiográficas.
Na proposta que veremos a seguir (Figura 1) utilizamos a marcação na cor “azul” para
destacar o texto relativo à primeira entrevista, concedida pelo interlocutor em torno da
fotografia escolhida, e em seguida a cor “rosa” para ressaltar o texto, referente à “fala” do
mesmo informante sobre a mesma fotografia, durante a segunda entrevista realizada
meses depois, ambos acompanhados da memória da fotografia, comentados livremente
pelo personagem, partindo da escolha realizada de um conjunto de 28 fotografias (Figura
2).

Figura 1 Figura 2


1 Refere-se à tese de doutorado, intitulada: “Fotobiografia, por uma metodologia da estética em

Antropologia”, defendida em 2009, sob a orientação do Prof. Dr. Etienne Samain, no Programa de Pós-
Graduação em Multimeios, Instituto de Artes da Unicamp.

Os marcadores visuais aplicados ao texto entanto, foram nos permitindo encontrar


foram nos revelando aspectos revelações mais significativas, acerca de
importantes em torno do trabalho da cada fotografia, caminhando para o quê,
memória dessas pessoas idosas. de fato, poderiam representar em termos
Comparando ou fazendo sobreposições de histórias de vida, se associadas a um
sobre essas “falas”, começamos a conjunto maior, o fotobiográfico.
perceber características da enunciação As “histórias de vida” que estudamos –
dos informantes, em diferentes priorizando as imagens – representam
momentos separados por intervalos de deste ponto de vista, no nosso
tempo, acerca de uma mesma fotografia. entendimento, pequenos filmes
Passamos a observar mais concretamente 12
compostos por fotogramas escolhidos em
palavras, ideais, histórias que se três momentos (20, 10, 03 imagens) que,
mantinham, se repetiam ou eram efetivamente, os participantes se
reafirmadas e outras que desapareciam, dispuseram a “montar”, por meio de
se escondiam, se perdiam ou, supomos, fotografias, que eles próprios escolheram
eram esquecidas e ainda aquelas que e organizaram.
surgiam como acréscimos, nunca antes
imaginados. Assim sendo, a Fotobiografia pensa a
imagem – predominantemente
De toda maneira não tínhamos a fotográfica no nosso caso – não como um
pretensão, nestes ensaios, de realizar um mero objeto, mas como um
estudo aprofundado, sob a ótica da “acontecimento” – ora epifania, ora
linguística, para analisar aspectos da fenômeno no sentido etimológico das
enunciação/evocação dos informantes, o palavras –, um campo de forças que se
que reconhecemos poderia ter sido cruzam e um sistema de relações que
valioso. Da mesma forma, não nos coloca em jogo diferentes instâncias
debruçamos a tecer reflexões precisas no enunciativas (o verbal), figurativas e
campo da História Oral, apoiando-nos perceptivas (o visual).
nas referências sobre o contexto dos
processos de rememoração ou
reminiscências. Para ambas as áreas, no A montagem de uma Fotobiografia
entanto, esperamos, com este material,
oferecer subsídios para pesquisadores Se pretendemos realçar algumas das
interessados no futuro em realizar uma funcionalidades singulares da
análise comparativa e minuciosa em “montagem”, quando relacionadas a
torno das enunciações, recorrências, fotografias e na elaboração de
repetições, evocações de cada informante Fotobiografias, como já dissemos, será
em três tempos de registro dos relatos por razões peculiares que surgiram no
orais. decorrer dessa pesquisa. A primeira está
relacionada ao contexto de que no
Para as Fotobiografias, esse exercício percurso do trabalho de campo não
nos sugeriu um trabalho, que nos parece adotamos o imperativo para que as
ser relevante, à medida em que passamos pessoas ordenassem os seus conjuntos
a contar com camadas de histórias, que fotográficos (aproximadamente 20 para
vão se completando, se suplementando começar, de dez, em seguida, e depois
ou desarticulando-se ainda mais. três), aos quais nos remetiam, em
Reforçadas pela dupla particularidade momentos temporalmente distantes. A
dos suportes de expressão humana – realidade foi de outra ordem. Foram eles
palavra e imagem – essas camadas, no que nos despertaram para a importância

dos arranjos (“montagens”) que exemplo, descobrimos que uma prancha,


constituíam, por vezes, com hesitações, outrora composta por 28 fotografias
resistências e outras saudades. (Figura 3), por Dona Celeste, uma ex-
artista de circo, foi, de repente,
A segunda razão é, paradoxalmente, mais
segmentada, recortada, desfragmentada.
tangível e visível, de um lado, e mais
complexa e provocadora, de outro. Por

13

Figura 3

Das 28 fotografias escolhidas Ou, ainda, ‘fantasmas’ que se foram e


originariamente, 11 delas permaneceram voltaram a habitar as sinapses da
expostas – aliás, quase “perdidas” – no memória e do imaginário das pessoas,
meio de 17 “janelas” (Figura 4) que se confabulando o quê e como seriam e se
abriram de repente: janelas, telas, dariam suas próximas reminiscências e
brancuras, quadros, transparências reaparições? Suas “sobrevivências”. Suas
opacas, buracos, perdas, desaparições? “supervivências”.

Figura 4

Esta “remontagem” ecoa como uma reordenação das 11 fotografias restantes


explosão, uma espécie de ‘terremoto’ da (Figura 5). Onze fotografias não apenas
primeira montagem, uma espécie de privadas agora das relações que
dissolução e de desaparecimento de uma mantinham até lá com as demais, mas
primeira Fotobiografia e, ao mesmo também 11 fotografias, que conduzem a
tempo, a necessidade de se reconstruir uma nova e necessária “montagem”, uma
outra. Essa perturbação exigiu a uma “outra Fotobiografia”.

14

Figura 5

É assim – recorrendo mais uma vez às Celeste (observação válida, aliás, para os
escolhas de Dona Celeste – que outros informantes), devemos ir, mais
descobrimos que o pequeno rosto, com adiante, no tocante à(s) significação(ões)
olhos grandes, marcas de sua primeira possível(eis) dessas reformulação e
entrada na vida do circo (foto CF04) no reorganização de suas fotografias, da
primeiro arranjo de 28 fotografias, primeira à segunda montagem. Em qual
passará, no segundo arranjo, a ser a sentido? No sentido de que Dona Celeste
primeira do novo lote. Da mesma não apenas teve de condensar e
maneira, notar-se-á que, quando Dona conglomerar marcos importantes de sua
Celeste elabora esse outro conjunto, ela existência, mas teve também de
desloca a foto CF03 – vestida de renunciar e eliminar outros momentos,
Carmem Miranda, apoteose de sua que faziam parte da prancha inicial de
existência no circo – e dispõe a mesma suas 28 fotografias.
ao lado da fotografia de celebração de O conjunto das fotografias assim
seu casamento (foto CF18). Essa segunda “abandonadas”, no caso desta, a fala de
montagem realça, nas sete primeiras quais lugares, de que épocas da sua vida,
fotografias encadeadas por Dona Celeste, de quais figuras continuam vivendo na
algo que as quatro últimas ressignificam sua memória? Há de se ir mais longe.
num outro patamar existencial. Falam, de Será que as 17 fotografias retiradas– na
um lado, da “grande família do circo”; de ordem – não se constituiriam num roteiro
outro, da “grande família humana” que possível de sua vida, num outro florilégio
Dona Celeste construiu, sendo mulher e importante de sua vida, numa outra
vivendo em outra época cultural. parcial Fotobiografia. Eis o que não
Descobrimos ainda que, no caso de Dona podemos definir a priori, mas que, no

entanto, a(s) montagem(ns) nos está vestida de Carmen Miranda, a


revela(m) com clareza. apoteose de sua existência no circo; a
celebração de seu casamento (foto
E, finalmente, na última escolha
CF18), que agora, na sua vizinhança, é
realizada por Dona Celeste (Figura 6),
posta ao lado da fotografia que demarca a
vemos a demarcação da presença de três
sua viuvez, por ocasião do registro
fotografias, a foto CF03, já deslocada
durante uma homenagem (in memoriam)
anteriormente de um primeiro para o
ao marido (foto CF 25).
segundo conjunto, na qual Dona Celeste

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Figura 6

Na realidade, os cinco participantes da pesquisa, ao passarem de uma primeira montagem,


para uma segunda e depois uma terceira fizeram eclodir, cada um ao seu modo, uma outra
mensagem, composta de outras facetas particulares de sua Fotobiografia. Essas fotografias
“excluídas e abandonadas” representam, a nosso ver, uma terceira montagem e uma não
menos importante “história de vida”. O que Roland Barthes (1970) teria designado de
“terceiro sentido” e que Albert Piette (1992) chamaria de “modo menor da realidade”. No
caso desta pesquisa, queríamos apenas chamar a atenção do leitor para os desdobramentos
heurísticos que as imagens nos proporcionam de uma maneira inequívoca.
Com a intenção de mostrar ao leitor a íntegra do processo compreendido em todas as
etapas de montagem dos panoramas2, dando relevo às fotografias que “desapareceram” –
as excluídas pelo informante – ou que “permaneceram” – as novamente escolhidas – no
processo de escolha e montagem, oferecemos ao leitor estes três conjuntos lado-a-lado.


2
Relembramos que atribuímos o termo Panorama aos conjuntos fotográficos eleitos pelos informantes nos
três momentos de escolhas e montagem da pesquisa: 20, 10 e 3 fotografias.

A ordenação de um conjunto de 20 ensinaram os teóricos russos da


fotografias, depois de 10 e finalmente de montagem (Koulechov, Alexandrov,
3 fotografias, híbridas, já que, em ambas, Poudovkine, Vertov) (EISENSTEIN
tratavam-se ao mesmo tempo de apud JOLY, 2002, p. 77). Transcrevemos
operações de desmontagem (de corte), o que o próprio Jacques Aumont afirma
além de uma operação de remontagem, com relação à montagem em Amnésies:
isto é, de uma nova reunião organizada e “O que se monta no cinema, não é
significativa de fotografias. As operações sem vida: são imagens, conjuntos já
revelaram, de um lado, “evidentes complexos, já comparáveis a
perdas”, e de outro, “acentuados organismos mais do que a
reforços” de um provável movimento elementos. Uma imagem capaz de 16
existencial. Em outras palavras, ser montada é uma imagem que, pelo
entendemos que a montagem é sempre menos, possui um traço através do
uma operação de ordem processual de qual, ela vai poder entrar em relação
“seleção, de modificação e de articulação com outras: uma imagem que
de partes heterogêneas já existentes” contém um reserva virtual que não
se esgota no que ela comunica ou
(FONTANILLE e PÉRINEAU, 2002,
expressa. A montagem é a
vol. 7, p. 7-14). atualização deste virtual: montar
Se for verdade que uma imagem significa ajustar imagens de modo a
colocada ao lado de outra (ou de outras) fazer surgir o virtual que elas
sugere e proporciona novos lugares continham” (AUMONT,1999a).
passíveis de perceptos e de afetos, há de Essas operações de montagem,
se convir que o conhecimento por desmontagem e remontagem, no nosso
imagem pode diferir de uma montagem caso, fortaleceram nossa determinação a
para outra, por via de novas levantar a questão: o que viria a ser uma
configurações formais. As mensagens, Fotobiografia? Como defini-la ou,
consequentemente, que emanarão desses melhor dizendo, como poderíamos tentar
sucessivos e múltiplos (re)arranjos – nos aproximarmos de sua dimensão
diversificados, reorganizados, cada vez única e de sua carga existencial? Uma
mais, no caso, rarefeitos (20,10,03) Fotobiografia é, pensamos, esse esforço
permitem pensar que os traços principais intenso de ordem arqueológica, essa
das histórias de vida que procuramos tentativa de descobrir e, na medida do
revelar, privilegiando o conhecimento possível, desvendar, camada após
por imagens – tomaram configurações de camada, imagem após imagem – dentro,
ordens diferenciadas. Fato que pode embaixo, em cima, nos arredores, nos
enriquecer a qualidade das “histórias de entrecruzamentos de figuras de ordens
vida”, preferencialmente encaradas a múltiplas – traços e vestígios de
partir de um sistema de imagens que emoções, sensibilidades, sentimentos,
condensa, ao mesmo tempo em que vai sempre, fragmentos da vida de uma
revelando – de modo mais preciso que pessoa ímpar. Para Didi-Huberman:
em relação à fala – uma realidade vivida. “tentar uma arqueologia é sempre tomar
Quer se queira ou não, “as aproximações o risco de pôr, uns aos lados dos outros,
texto-imagem, as justaposições imagem- pedaços de coisas que sobreviveram,
imagem interagem umas com as outras e coisas necessariamente heterogêneas e
produzem sentido que não aparece em anacrônicas, já que provenientes de
nenhum dos elementos tomados lugares separados e de tempos disjuntos
separadamente, exatamente como nos por lacunas. Ora, esse risco tem como
nome: imaginação e montagem” (2006,

p.26-27). Para Christin, a escrita não reproduz a


palavra, ela a torna visível. Acrescenta:
O autor acrescentará: “A montagem será
precisamente uma das respostas “A mutação da imagem em escrita
fundamentais a esse problema de confirma de forma bem clara, mas
construção da historicidade” (DIDI- também bastante enigmática, uma
HUBERMAN, 2006, p.26-27). E observação, no entanto, simples: o
acrescentaríamos, uma resposta também espaço 4 é o único dado formal que
aos problemas das culturas, das permanece idêntico em cada uma delas.
sociedades, das pessoas. “À medida em Como se esse [o espaço] constituísse um
que a montagem não está simplesmente princípio comum a ambas, a imagem e a 17
orientada, ela escapa às teleologias 3 e escrita, e como se a ele se devesse até
torna visíveis as sobrevivências, os mesmo a redução da figura em signo”
anacronismos, os encontros de (CHRISTIN 1995, p. 17, grifos nossos).
temporalidades contraditórias que afetam Ao entrar nas propostas de Christin, cujo
cada objeto, cada acontecimento, cada projeto fundamental de pesquisa é a
pessoa, cada gesto. Assim sendo, o presença da imagem nos diferentes
historiador renuncia a contar ‘uma sistemas de escrita, em especial, na
história’ mas, ao mesmo tempo, civilização do ideograma japonês
consegue mostrar que a história não se devemos circunscrever, primeiro, a sua
faz sem todas as complexidades do tese central: a escrita é uma dupla
tempo, todas as camadas da arqueologia, imagem. A palavra nasceu da imagem. A
todos os ponteados, os interstícios do escrita nasceu da imagem. Ambas devem
destino” (DIDI-HUBERMAN, 2006, sua existência e sua eficácia à imagem.
p.27). Eis o que, resumidamente, Christin
(1995) nos diz.
As Fotobiografias das cinco pessoas com
as quais trabalhamos não escaparam a Para existir, quer seja um retrato, um
esse processo, cuja singularidade repousa texto escrito – que é uma outra imagem -,
precisamente na constatação de que a é necessário dispor de um “suporte” ou
“construção da historicidade” de cada para dizê-lo, em termos menos técnicos,
uma dessas vidas se dará principalmente de uma “tela” (branca ou escura), de um
a partir de imagens, que elegeram e “quadro”, de um “fundo”, de um
montaram. Não denegaremos esse “espaço”. Sem este “vazio”, capaz de
processo de montagem às palavras. engendrar, as escritas não poderiam ter
Sabemos, com efeito, como as palavras – surgido. O “branco” de uma folha de
ao se concatenarem – conseguem, papel é o palco necessário para que possa
também, se constituir em frases, em emergir uma figura, isto é, uma outra
períodos, conseguem formar capítulos. imagem. Christin, que dentre muitas
outras obras, é autora de Poétique du
Blanc: vide et intervalles dans la
3
Doutrinas filosóficas que procuram explicar os
seres pela finalidade aparentemente destinados na civilisation de l’alphabet (2000, reedição
construção, por exemplo, de discursos, romances, ampliada 2009), assunto que é retomado
biografias, livros de memórias. O que, então, será pela autora também em “Pensée écrite et
essencial observar é a maneira como se dará a comunication visuelle” (2007, p.15-24).
montagem – por vezes através de imagens, de
palavras ou de ambas – e o modo cognitivo e a
dimensão estética de cada um desses suportes
4
oferecidos em “termos” e “figuras” de eclosão, Esse espaço, a autora qualifica ainda como
construção e configuração dessas “histórias de “fundo”, como “tela”, “quadro”, “vazio capaz de
vida”. engendrar uma forma inédita”.

A tela e a memória Sabendo que toda imagem leva consigo


primeiramente algo da representação de
Eis que entramos intuitivamente no
um pensamento sobre o “real”, mas é
“mundo das formas” nesta pesquisa. Não
capaz de veicular de um lado, o
em busca do pensamento discursivo
pensamento daquele que propôs a
[lógico], mas talvez, tomados pelo
imagem, e de outro, o pensamento de
pensamento estético [intuitivo].
todos aqueles que olharam para ela,
Primeiramente, foram as propostas
todos esses espectadores, inclusive cada
visuais formais, elaboradas em diferentes
um de nossos informantes, que
momentos da pesquisa – a partir de
“incorporaram” nela, seus pensamentos,
escolhas/seleções e 18
suas fantasias, seus delírios e, até, suas
montagens/ordenações dos informantes –
intervenções, passamos a reconhecer que
que se concretizaram enquanto formas –
cada Fotobiografia traria esta dupla
maneiras de ver, de ler e de produzir um
vertente, nos carregando para outros
pensamento – em torno de um conjunto
horizontes, os territórios da memória.
de fotografias oferecido pelos
Toda imagem é uma memória de
informantes para representar uma história
memória(s).
visual de vida.
Os suportes de nossas memórias são
Neste momento, de elaboração das
múltiplos como são as escrituras
propostas visuais formais, procurávamos
humanas. Não que a nossa abóbada
entender não apenas o quê um conjunto
memorial seja da mesma natureza que a
de fotografias guardadas – em álbuns,
abóboda celestial e de seus discursos
quadros, porta-retratos, gavetas, malas –
possíveis com os deuses. Nossa abóbada
escolhidas e montadas por um idoso –
é sim, a tela nobre sobre a qual se
era capaz de despertar e de revelar em
depositam, dialogam e até se enfrentam
torno de um panorama de vida na
nossas lembranças verdadeiramente
velhice, mas, como esse mesmo conjunto
vividas: a memória é o suporte,
de imagens nos permitia pensar de
fundamentalmente, imagético e
maneira singular. Valíamo-nos da
imaginário de nossas histórias de vida.
premissa de que toda imagem é
Essas lembranças não são apenas de
portadora de um pensamento, isto é,
ordem racional, mas são geralmente – e
veicula pensamentos. Portanto,
inconscientemente – os espaços e
propusemos modelos, traçados, formas
expressões de nossas sensibilidades e
de trabalhar as fotografias em
paixões ante a vida. A vida humana
disposições horizontais (lineares),
torna-se, deste modo, uma história de
verticais (colunares), circulares
vida, quando se propõe a reconhecer a
(múltiplas) e híbridos circulares
memória de seus signos, intervalos,
(múltiplos).
interstícios e esquecimentos.
Descobríamos, portanto, o mundo das
Da mesma maneira que a escrita não
formas na medida em que as histórias de
poderia se tornar visível sem “suporte”,
vida que compúnhamos com as cinco
sem um “fundo”, sem uma “tela”, as
pessoas, resultavam tanto do trabalho da
imagens escolhidas e organizadas por
memória, quanto do “pensamento” que
nossos personagens, em três momentos
as imagens produziam ao se associarem e
diferentes, não poderiam ser eleitas, não
ao dialogarem entre si, portanto, ao
fosse a pré-existência fundamental de
ganharem necessariamente outra forma
uma “tela”, de um “fundo” para essas
visual.
figurações materiais que, no caso, são,

predominantemente, fotografias. Nessas possibilidades e que se fazem múltiplas,


histórias de vida, as figuras/imagens fartas, da formação de conjuntos
escolhidas não se limitam então a meras fotográficos à feitura de uma
fotografias. Fotobiografia.
As escolhas realizadas são, de certo
modo – e em todas as operações de Referências
seleção e montagem – aparições
AUMONT, Jacques. À quoi pensent les films.
repentinas, raios, estouros oriundos de Paris: Séguier, 1996.
um “fundo” mais complexo e sempre em
estado de vivência. Este “fundo”, esta ______________. Amnésies, fictions du cinema
d’après Jean-Luc Godard. Paris: Ed. P.O.L, 19
“tela”, esta “superfície”, constelada por 1999(a)
mil lembranças, chamamos de memória.
É a partir desta memória que, em três .
_________________. Mon beau montage, ô ma
mémoire. In: Amnésies. Fictions du Cinéma
momentos diferentes – e com intensidade d’après Jean-Luc Godard [Amnésias. Ficções
e em contextos diversos – as fotografias do cinema segundo Jean –Luc Godard]. Paris:
passaram a ser escolhidas, re-escolhidas POL,1999(b).
ou eliminadas. BARTHES, Roland. O Terceiro Sentido In: O
Essa metáfora, retomada à problemática Óbvio e o Obtuso: ensaios críticos III. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. [original
levantada pela emergência da escritura, francês: 1970].
fica assim transposta à questão das
histórias de vida, quando priorizarmos a _____________La chambre claire. Note sur la
photographie. Paris: Cahiers du Cinéma-
imagem (as fotografias, em especial). A Gallimard- Seuil, 1980. [versão portuguesa: A
metáfora ainda nos conduz a duas outras câmara clara. Nota sobre a fotografia. Rio de
reflexões. A primeira, quais são as Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2 a ed., 1984].
relações que as fotografias – escolhidas e _____________. Le troisième sens. Notes sur
montadas – em três operações sucessivas, quelques photogrammes de S.M.Eisenstein.
entretêm tanto em nível de suas “figuras” L’obvie et l’obtus. Essais critiques III, Paris:
como no tocante a “intervalos” e Éditions du Seuil, Col. “Essais, 239”, 1982
[1970].
“interstícios” com que se apresentam?
Segunda, o que poderiam vir a significar BRUNO, Fabiana. Retratos da Velhice: um
os interstícios deixados a cada nova duplo percurso metodológico e cognitivo. 2003.
309p. Orientador: Prof. Dr. Etienne Samain.
escolha e, de outro lado, quais as novas Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Instituto
dinâmicas que vão se estabelecendo, de Artes, Universidade Estadual de Campinas,
tanto entre esses interstícios as Campinas/SP, 2003.
fotografias eliminadas), como entre as ______________. Fotobiografia. Por uma
fotografias que subsistiram. metodologia da estética em antropologia.
Orientador: Prof. Dr. Etienne Samain. Tese
Por meio de fotografias, de suas (doutorado), Universidade Estadual de Campinas,
interferências, interstícios e diálogos, Instituto de Artes, Campinas/SP, 2009.
cada vez mais apurados, na abóboda
CHRISTIN, Anne-Marie. L ́image écrite ou la
neuronal e no seu imaginário vivo, as déraison graphique, Paris: Flammarion, 1995.
imagens escolhidas, evocam e (Idées et Recherches).
representam a quintessência de sua _________________. Poétique du Blanc. Vide
história de vida. E assim temos nas et Intervalle dans la Civilisation de l’ Alphabet.
Fotobiografias, a conjugação das Leuven: Peeters, 2000(a).
grandezas derivadas da escolha de quem __________________. The first page. European
propõe conjuntos fotográficos com sua Review, vol. 8, no 4, 2000(b). p. 457-462.
pluralidade, que habita o campo das

____________________. Poétique du blanc: Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge


vide et intervalles dans la civilisation de Zahar Ed., 2002(a). [título original: The Film
l ́alphabet. Paris: Peeters-Vrin, 2000(c). Reedição Sense, 1947].
ampliada Vrin, 2009.


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