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F. VARO, Las claves de la Biblia, Madrid, Ed. Palabra, 2007, p. 21.
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Egipto. Nos tempos modernos chegámos ao conhecimento dos mitos que circulavam entre esses
povos.
Ora esses mitos, com grandes semelhanças com os relatos dos primeiros 11 capítulos do
Génesis, não podem ser considerados como histórias sem verdade. Eles devem ser vistos como
expressões simbólicas de realidades que não se podem exprimir através duma linguagem conceptual,
e que também não se podem enquadrar nos esquemas da história daquilo que acontece num
determinado tempo. Estas culturas antigas, em que Israel estava imerso, recorriam a mitos para dar a
razão de ser dos deuses nas suas mútuas relações, para explicar a origem do universo e do ser
humano, assim como o actuar das forças da natureza.
Os mitos que povoavam o antigo Médio Oriente encerram páginas de grande beleza,
carregadas de luz e sentido no que se refere ao mistério das origens. E estes mitos foram escritos,
em geral, muito antes da redacção do Génesis e das suas fontes. Estas semelhanças devem-se a que
os escritores sagrados de Israel não rejeitaram sistematicamente a cultura dos povos com que
conviviam, mas, na redacção da história das origens, souberam aproveitar essa linguagem e os
elementos literários que lhes convinham para transmitir, de modo adequado e inteligível para a
mentalidade e sensibilidade da época, a mensagem religiosa que Deus queria comunicar ao seu
Povo.
No Génesis os relatos bíblicos das origens pertencem a duas tradições, a Sacerdotal e a
Javista, que hoje se pensa que foram redigidas na época do exílio de Babilónia (séc. VI a. C.) ou
depois. Sendo assim, é fácil de compreender que os autores sagrados pudessem conhecer a fundo as
tradições mesopotâmicas sobre as origens e que nelas buscassem a sua fonte de inspiração.
“É certo que a Bíblia, para expressar o mistério das origens, se serviu em grande medida
dessa linguagem tão importante na antiguidade, que é a linguagem dos mitos. No entanto, na Bíblia
essa linguagem está despojada do seu carácter politeísta e ritual, e impregnada da fé no Deus de
Israel. Deste modo foi possível manifestar, dum modo inteligível para todos, verdades fundamentais
sobre o mundo e sobre o homem, e, por conseguinte, verdades que têm uma conotação histórica,
como a criação, a dignidade do homem e a existência do mal”2.
2
Ibid., p. 24.
3
Por aqui já se vê que na redacção do relato há um artifício literário notável, que se torna
mais evidente pelo esquematismo das fórmulas utilizadas, que se repetem sistematicamente para
cada dia da criação:
– Deus disse,
– faça-se,
– e foi assim,
– o relato da execução,
– a imposição do nome (e Deus chamou)
– a bênção
– e viu Deus que era bom
– e houve tarde e houve manhã
Por outro lado está subjacente a este relato uma concepção cosmológica simplista: a terra
como uma grande ilha flutuante; a água do mar em comunicação com a as águas superiores; o
firmamento como uma abobada de cristal em que giravam os astros.
É fácil de ver que há umas características comuns de todos os relatos cosmogónicos com o
relato bíblico. Assim:
a) todos atribuem ao seu deus a criação do mundo visível,
b) todos concebem o mundo de forma semelhante;
c) todos falam duma massa caótica inicial com águas que vêm a ser separadas por meio
dum firmamento que dá lugar ao espaço aéreo entre as águas superiores e as águas
inferiores.
Mas no relato bíblico não há luta de deuses, pois Deus é único, e os elementos cósmicos que
neles apareciam personificados, na Bíblia são criaturas que obedecem a Deus. Por outro lado há
outro elemento que não aparece fora da Bíblia, a saber: a criação do mundo em 6 dias e o descanso
de Deus no sétimo dia.
4. Interpretações do Hexaeméron
Se tomássemos à letra o relato da criação em 6 dias, teríamos que reconhecer que o homem
apareceu na terra quando não havia mais que três dias de obra criadora, quando a ciência fala de
muitos milhões de anos! A formação da crosta terrestre também implica milhões de anos, quando o
Génesis fala de poucos dias, para já não falarmos da formação dos astros. As plantas teriam nascido
antes da criação do Sol, etc.
Não vamos fazer aqui a história da interpretação dos 6 dias da criação, apenas referir que já
os judeus da diáspora, em especial em Alexandria recorriam a uma interpretação simbólica, para se
coadunarem com a cultura grega. Santo Agostinho arranjou maneira de manter que Deus criou
simultaneamente todas as coisas, mas afirmava que os 6 dias deviam ser entendidos de forma
alegórica: Deus ao criar tudo ao mesmo tempo, infundiu na matéria as rationes seminales (a
semente) de todos os seres que se haveriam de desenvolver no tempo simbolizado naquele 6 dias do
Génesis.
Nos nossos dias, embora isto pareça incrível, ainda há quem mantenha a criação do mundo
em 6 dias e já num estado perfeito! Trata-se de grupos reduzidos de fundamentalistas, que
procuram demonstrar cientificamente a sua teoria e sobretudo rebater teorias como a da evolução e a
do Big Bang, apelando para certas incongruências que nelas encontram. Estas posições
fundamentalistas encontram-se nos Estados Unidos, em certos ambientes protestantes, o que se pode
explicar pelo valor absoluto dado à Bíblia, ao prescindirem de mais outra autoridade. Apelidam-se
indevidamente da designação de “criacionistas”, como se não houvesse outra alternativa ao
evolucionismo radical ateu. De facto a fé bíblica não se opõe a teorias científicas como a do Big
Bang ou a da evolução, desde que estas não excluam a acção criadora e providente de Deus. Como
já dizia Galileu, a Bíblia não diz “como vai o céu, mas como se vai para o Céu”.
A interpretação hoje corrente entre os católicos é a chamada interpretação histórico-
artística-litúrgica: Histórica porque mantém o carácter histórico do relato quanto à criação de todas
as coisas por Deus; artística pelo esquema literário artificiosamente concebido; e litúrgica, porque
obedece à intenção de apresentar a obra de Deus e o seu descanso como uma imagem do trabalho
semanal e do descanso sabático.
Como ensinamentos fundamentais deste primeiro relato da criação podem ser considerados
os seguintes:
– Todas as coisas foram criados pelo Deus Único (não se fala aqui expressamente da
criação a partir do nada, como nos Escritos Sapienciais da Bíblia, mas fala-se de modo
equivalente duma acção exclusiva só de Deus; o verbo hebraico bará (criou), diz-se
apenas de Deus).
– Ficam em evidência os atributos divinos: a sua transcendência, pois Ele não se confunde
com a matéria e o seu actuar é descrito como o de quem é o Senhor que está acima de
5
tudo (assim, os verbos hebraicos em hifil: não se diz que Deus faz, mas que manda
fazer!); a sua omnipotência ao criar tudo com a força da sua palavra; a sua sabedoria ao
ordenar todo o universo e declarando a bondade de todas as coisas saídas da sua mão; a
sua providência ao prover o sustento dos animais e dos homens.
– Sublinha-se a supremacia do homem sobre todas as coisas, que é constituído como
colaborador de Deus com o trabalho no desenvolvimento da criação e como o seu guarda
e com domínio sobre ela.
– Apresenta a mais elevada concepção antropológica do ser humano, como imagem e
semelhança de Deus, bem como a dignidade do matrimónio.
3
Cfr ibid. p. 26: “Assim como Deus deixou impresso o desígnio da sua sabedoria nas leis que regem a Criação
com uma ordem admirável, assim também tem um projecto de amor para cada ser humano. A todos Ele chama à Bem-
aventurança do Céu. Mas fez cada um de nós com uns traços e psicológicos singulares, que configuram uma
personalidade irrepetível e também lhe marca um caminho pessoal para vir a alcançar a sua perfeição humana e chama-o
a percorrer esse caminho. Somente seguindo esse itinerário pessoal é possível realizar plenamente todas as capacidades
que o Senhor lhe pôs no coração”
4
As explicações aqui apresentadas correspondem à notas que publicámos na revista «Celebração Litúrgica».
6
Insistimos em que o “relato” bíblico das origens não pode ser lido ingenuamente como um
relato histórico daquilo que sucedeu no início do Universo e do ser humano, porque, como ensina o
Catecismo da Igreja Católica, “não se trata de saber quando e como surgiu materialmente o cosmos,
nem quando é que apareceu o homem; mas, sobretudo, de descobrir qual o sentido de tal origem: se
foi determinada pelo acaso, por um destino cego ou uma fatalidade anónima, ou, antes, por um Ser
transcendente, inteligente e bom, que é Deus. E, se o mundo provém da sabedoria e da bondade de
Deus, qual a razão do mal? De onde vem o mal? Quem é responsável pelo mal? E será que existe
uma libertação do mesmo?” 5
7 “Pó da terra… sopro de vida”: a narrativa tem como ponto de referência não só o facto de
que, pela sua corporeidade, o homem pertence à terra e, ao morrer, se reduz a pó, mas também o
facto de que, na língua hebraica, “homem” (adam) se diz com o mesmo vocábulo com que se
designa a terra avermelhada (adamáh); mas, ao mesmo tempo, o homem está animado por um
princípio (“sopro”) de vida, que não vem da terra. A representação de Deus como “oleiro”,
independentemente das notáveis semelhanças com outros relatos extra-bíblicos, parece sugerir que o
homem está nas mãos de Deus como o barro nas mãos do oleiro (cfr Is 29, 16; Jer 18, 6; Rom 9, 20-
21; Job 34, 14-15).
8-9 Um jardim. Nos LXX lê-se “parádeisos”; daqui a habitual designação de “paraíso
(terrestre)”. O jardim de “delícias” (éden) permite que o leitor pense, mais que num lugar
geográfico, num estado de felicidade original e de comunhão com Deus; a “árvore da vida”
simboliza a vida em plenitude e a imortalidade (cfr Gn 3, 22); “a árvore da ciência do bem e do
mal” é o símbolo da fonte do recto actuar moral, o projecto do Criador, que o homem não pode
manipular nem alterar a seu bel-prazer sem cavar a sua ruína.
5
Catecismo da Igreja Católica, nº 284.
7
sentido intrínseco, não arbitrário, e que não foi introduzida no mundo por nenhum princípio
maléfico misterioso.
18-20 Deus é apresentado em linguagem antropomórfica, isto é, à maneira humana, como um
“oleiro”, e a deliberar no sentido de ir aperfeiçoando a sua obra, num texto que se presta a veicular
ricos ensinamentos de antropologia teológica. “Não é bom que o homem esteja só”: a solidão do
homem, sentida por ele (v. 20) e reconhecida por Deus (v. 18), traduz, por um lado, a interioridade
do ser humano, capaz de perceber a sua própria solidão (coisa de que os animais não são capazes), e,
por outro lado, como este foi criado por Deus para a comunhão inter-pessoal.
“Um auxiliar semelhante”. O facto de se dizer auxiliar, ou ajuda, não contradiz a dignidade da
mulher, como se esta ficasse reduzida a uma simples muleta para o homem, pois estamos perante
uma complementaridade que é mútua; de qualquer modo, não se diz que é uma serva ou uma
propriedade do marido, destinada dar-lhe frutos, à maneira de uma terra fecunda, como então se
pensava. Por outro lado, também de Deus se diz que Ele é um auxiliar para o homem; além disso, a
palavra hebraica (‘ézer, auxílio), ao designar habitualmente o socorro que Deus concede ao seu
povo (15 em 21 vezes no A. T.), indicia que o relato está redigido com base na noção de aliança: a
relação homem-mulher aparece então como um reflexo da relação Deus-homem, uma relação de
aliança (M. Merode).
“O homem deu nome a todos os animais”, é uma forma de pôr em relevo a superioridade do
homem e o seu domínio sobre eles, que ficam postos ao seu serviço (cfr Gn 1, 28). Adão aparece
como um rei que passa revista a todos os seus súbditos. Impor o nome significava frequentemente
ter direito sobre algo ou alguém, assim como o mudar o nome correspondia a assinalar uma nova
missão. Não se pretende ensinar que os animais foram criados só depois do homem (nem antes!),
apenas o autor visa dramatizar a situação do homem solitário e enaltecer a Providência amorosa de
Deus, que instituiu a sociedade conjugal para bem do próprio homem e num plano de grande
dignidade, sublinhando que até os próprios animais maiores eram “behemáh”, isto é, (animais)
mudos, que não estavam ao nível do homem. Nesta encenação poderia haver também, em segundo
plano, a condenação da bestialidade, frequente entre os cananeus e os egípcios (cfr. Lv 18, 23-25) –
um pecado que a Lei punia drasticamente (Ex 22, 18; Lev 20, 15-16; cfr Dt 21, 21) –, e ainda a
rejeição do paganismo, que com frequência prestava culto a animais divinizados, uma aberração
absurda, dado que Adão é superior e nem sequer encontra algum que, ao menos, lhe seja
semelhante.
21-22 Ao arrepio da mentalidade da época, a mulher aparece em toda a sua dignidade, não como
os animais, que são tirados da terra (v. 19); com efeito, ela é tirada da costela do homem, isto é, “da
substância de Adão”, como esclarece S. Gregório de Nissa, igual por natureza. Para isso – não para
o anestesiar, como às vezes se diz – conta-se que adormeceu profundamente o homem (v. 21), a fim
de que, sem que ele se apercebesse, lhe satisfizesse os seus ideais e anseios: formou a mulher e
apresentou-a ao homem (v. 22). O “sono profundo” nada tem a ver com alguma espécie de sono de
anestesia; o termo hebraico – tardemah – envolve uma certa conotação de mistério, pois é a palavra
que se usa, quando durante um sono assim designado, ou logo após este, se verificam
acontecimentos de grande alcance (cfr Gn 15, 12; 1 Sam 26, 12; Is 29, 10; Job 4, 13; 33, 15), de
modo que até os LXX não traduziram este termo por hypnos, mas sim por ékstasis (êxtase). É assim
que se pode ver como a criação da mulher está envolta em mistério, pois aparece como uma especial
acção divina que se insere no âmbito do mistério da Aliança, no próprio coração da história da
salvação. Assim como em Gn 15, 12 o sono de Abraão é o sinal de que este se deixa ultrapassar por
Deus, que lhe revela a Aliança, assim também aqui o sono de Adão é o sinal de que, pela
bissexualidade humana, Deus nos revela o mistério do matrimónio como imagem de Deus (cfr Gn 1,
26-28). “Em ambos os casos, segundo os textos em que (...) o livro do Génesis fala do sono
profundo (tardemah), realiza-se uma acção divina especial, isto é, uma aliança carregada de
consequências para toda a história da salvação: Adão dá começo ao género humano, Abraão ao povo
8
eleito” (João Paulo II, Audiência Geral de 1/11/19). Note-se que costela, – em hebraico tselá‘ –
sugere um significativo jogo de palavras: o étimo sumério de tselá‘ significa vida e o nome Eva –
em hebraico haváh – também significa vida.
22 “E apresentou-a ao homem”. Também é significativo que não se diga que é o homem a fazer
aparecer a mulher ou a descobri-la: tudo é dom e iniciativa divina, e a relação do homem com a
mulher enquadra-se na relação fundamental do homem com Deus.
23 “Ao vê-la, o homem exclamou”. As palavras que o hagiógrafo coloca na boca de Adão são a
expressão dum entusiasmo eufórico, próprio dum coração enamorado, em linguagem poética, com
ritmo, elegância, paralelismo e jogo de palavras, logrando-se um belo efeito literário: Adão,
ignorando como a mulher tinha sido formada, verifica que ela corresponde plenamente ao seu ideal;
formada do lado ou da costela sobre o coração, a mulher procedia do coração do homem,
respondendo às suas profundas aspirações.
“Osso dos meus ossos...” Trata-se duma expressão corrente para designar parentesco,
comunidade de natureza (cfr Gn 29, 14; Jz 9, 2; 2 Sam 5, 1; 1 Cron 11, 1). Esta afirmação é dum
alcance extraordinário, transcendendo de longe as mais avançadas civilizações em que a mulher
sempre foi considerada um ser inferior, quanto à natureza e direitos. Ela tem a mesma natureza e os
mesmos direitos que o homem, por isso “chamar-se-á mulher”, num jogo de palavras em hebraico:
’ixáh (“virago”: a forma feminina de ’ix, “varão”); ela já não é mais a beulat-baal (a propriedade
dum senhor – Dt 22, 22). Sem diluir diferenças e peculiaridades, há uma igualdade fundamental
entre o homem e a mulher, mesmo quando o relato apresenta o homem a ser criado em primeiro
lugar; a mulher, embora surja como um auxiliar, ela é criada semelhante a ele (v. 18). Notar que as
expressões “osso dos meus ossos” e “carne da minha carne” são uma espécie de superlativo
hebraico (como “cântico dos cânticos”), equivalente a dizer que é mesmo carne e osso meu, um
“alter ego”, correspondendo a: “é igual a mim quanto à natureza e quanto aos direitos”, segundo
as categorias do nosso pensamento abstracto.
24 “Por isso, o homem deixará pai e mãe...” Os laços que unem marido e mulher são mais fortes
ainda do que aqueles que unem os filhos aos pais: a união matrimonial é estável, (perpétua e
indissolúvel, segundo a explicação de Jesus no Evangelho de hoje). É uma união total e íntima, tão
profunda que abarca toda a pessoa, desde o físico até ao espiritual, segundo a expressão do original
hebraico, “wedabaq”, que a Vulgata traduziu por “et adhærebit”, melhor que a nossa tradução:
“para se unir à sua esposa”. O texto permite ver a unidade do matrimónio – um só homem com
uma só mulher (a sua mulher) – e a indissolubilidade, pois os dois passarão a ser “uma só carne”. A
expressão hebraica “lebassár ehád” (“in carnem unam”) indica não apenas o corpo, mas tudo o que
constitui a natureza do homem: corpo e espírito, pensamento e amor, sentimentos e vontade, o que
dá azo a João Paulo II para falar do significado esponsal do corpo humano, um significado que só se
pode compreender dentro do contexto da pessoa: “o corpo tem o seu significado esponsal porque o
homem-pessoa é uma criatura que Deus quis por si mesma e que, ao mesmo tempo, não pode
encontrar a sua plenitude senão mediante o dom de si próprio” (Audiência Geral de 16/1/80). O
Papa acrescenta que no celibato pelo Reino dos Céus esse significado não se perde, mas é ainda
mais pleno, pois se torna mais expressiva a liberdade do dom no corpo humano; o homem só é capaz
de doação enquanto pessoa e é doando-se que se realiza como pessoa; e a sua máxima doação é a
entrega total (corpo e alma) a Deus.
nem tocar-lhe, senão morrereis’”. 4A serpente replicou à mulher: “De maneira nenhuma! Não
morrereis. 5Mas Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis
como deuses, ficando a conhecer o bem e o mal”. 6A mulher viu então que o fruto da árvore era
bom para comer e agradável à vista, e precioso para esclarecer a inteligência. Colheu o fruto e
comeu-o; depois deu-o ao marido, que estava junto dela, e ele também comeu. 7Abriram-se então
os seus olhos e compreenderam que estavam nus. Por isso, entrelaçaram folhas de figueira e
cingiram os rins com elas.
Num relato simbólico, numa linguagem cheia de imagens muito expressivas, seja qual for a
origem literária destas figuras, deixa-se ver que os males de que o ser humano padece não procedem
de Deus, mas do pecado, que, desde a origem, destruiu a harmonia do homem com Deus, consigo
próprio e com a criação, com consequências desastrosas que afectam toda a humanidade (cfr Rom 5,
12-19). Note-se, porém, que uma interpretação literal fundamentalista desta narrativa corre o perigo
de levar ao absurdo de considerar a lei moral como algo caprichoso e extrínseco à natureza humana.
1 “A serpente”, um símbolo do demónio, cfr Apoc 12, 9, onde se fala da “serpente antiga”, o
inimigo de Deus e dos amigos de Deus, que aqui aparece também como “caluniador” (este é o
significado do seu nome grego, “diábolos”), ao apresentar a ordem divina como má, uma
prepotência da parte de Deus (v. 5). Note-se a profunda observação psicológica posta na encenação
do processo da tentação: estão aqui representadas as tentações de sempre; primeiro, uma insinuação
inocente – “é verdade que Deus vos proibiu...”, a que se segue o efeito de começar a prestar atenção
àquele a quem não se pode dar ouvidos; finalmente, uma vez aberto o diálogo, no momento preciso,
o tentador entra a matar, mentindo descaradamente (cfr Jo 8, 44) – “de maneira nenhuma! Não
morrereis! Mas Deus sabe que...” (v. 5). A Escritura e a Tradição da Igreja vêem no demónio,
satanás, ou diabo, um anjo criado bom por Deus, mas que se tornou mau.
5 “Sereis como deuses, ficando a conhecer o bem e o mal”: Isto não significa alcançar a
omnisciência divina, nem adquirir o poder de discernir o bem do mal. Este “conhecer o bem e o
mal” corresponde a decidir por si o que é bem e o que é mal; trata-se, portanto, de encenar uma
tentação de soberba pela qual a criatura não se conforma com a sua condição de criatura, e não
aceita o supremo domínio de Deus.
6 “Fruto… para esclarecer a inteligência”. Sendo-nos desconhecido em que consistiu o pecado
das origens, porque Deus não no-lo revelou, alguns exegetas procuram então averiguar qual é o tipo
de pecado que o hagiógrafo aqui descreve, e vêem nesta linguagem um colorido de magia e
feitiçaria (um conhecimento oculto), ou até mesmo uma alusão ao culto das serpentes para a
fertilidade, de que o hagiógrafo pretenderia afastar os seus contemporâneos tão atreitos a estes
desvios religiosos.
7 “Compreenderam que estavam despidos”. Note-se a fina ironia latente no contraste com a
promessa sedutora: “abrir-se-ão os vossos olhos” (v. 6); os olhos abrem-se, sim, mas para
contemplarem a própria nudez. Assim fica simbolizado o desgosto e a frustração que se segue ao
gosto do pecado, e também a noção teológica da ruptura da harmonia primordial, nomeadamente
entre o homem e a mulher (cfr 2, 25).
Senhor 13Deus perguntou à mulher: “Que fizeste?” E a mulher respondeu: “A serpente enganou-me
e eu comi”. 14Disse então o Senhor Deus à serpente: “Por teres feito semelhante coisa, maldita
sejas entre todos os animais domésticos e entre todos os animais selvagens. Hás-de rastejar e
comer do pó da terra todos os dias da tua vida. 15Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre
a tua descendência e a descendência dela. Esta te esmagará a cabeça e tu a atingirás no
calcanhar”. 20O homem deu à mulher o nome de “Eva”, porque ela foi a mãe de todos os viventes.
21
E fez o Senhor Deus a Adão e à sua mulher túnicas de peles, e os vestiu. 22Então disse o Senhor
Deus: “Eis que o homem chegou a ser como um de nós, no conhecimento do bem e do mal; que
agora não estenda a sua mão e tome também da árvore da vida e coma e viva para sempre”.
23
Assim, pois, o Senhor Deus lançou-o fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora
tomado. 24E havendo lançado fora o homem, pôs ao oriente do jardim do Éden querubins
brandindo uma espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da vida.»
A narrativa não é um relato jornalístico, pois tudo é descrito numa linguagem simbólica, muito
expressiva e densa; a narrativa coloca o leitor perante realidades transcendentes que dizem respeito
ao “ser humano” – o adam –, o homem de todos os tempos. O autor sagrado, que deu forma
definitiva e inspirada ao Pentateuco, quis dar-nos um panorama coerente da história da salvação –
que arranca da eleição divina e se concretiza na aliança e nas promessas de salvação –
desenvolvendo-se por etapas correspondentes a um maravilhoso projecto divino, a que não escapa o
enigma das origens.
Se perdêssemos de vista este plano divino, que conhecemos pela Revelação, a curiosidade
científica poderia levar-nos a ficar atolados nos aspectos arqueológicos e episódicos, como poderia
suceder a alguém que, para estudar um monumento antigo, se ficasse no estudo das pedras e na
análise dos materiais de construção; por mais científica que fosse a sua análise, ficaria sem se
aperceber da harmonia do conjunto, do significado histórico desse monumento e da sua verdade
mais profunda. A doutrina da Igreja sobre o pecado original, de que Maria foi isenta por singular
privilégio, não se fundamenta na narrativa do Génesis; muito menos se pode partir do estudo das
fontes do Génesis para negar a existência desse pecado (uma ridícula ingenuidade, além do mais); a
doutrina da fé encontra a sua sólida base na obra redentora de Cristo e nos ensinamentos do Novo
Testamento, nomeadamente de S. Paulo; no entanto, a fé projecta grande luz sobre esta narrativa
simbólica das origens.
10 «Tive medo porque estava nu; e então escondi-me». Deste modo se descreve, com fina
psicologia, o sentimento de culpabilidade e de vergonha que não podia deixar de ser estranho ao
primeiro pecado e igualmente ao pecado de todo aquele que não empederniu a sua consciência; esta,
que antes de pecar era o aviso de Deus, toma-se depois uma premente censura. Este dar conta da
própria nudez parece também indicar, por um lado, a enorme frustração de quem, ao pecar, em vão
tinha tentado «ser igual a Deus» e, por outro lado, sugere o descontrolo das tendências instintivas (a
concupiscência): depois do primeiro pecado, sentem-se dominados por movimentos e apetites
contrários à razão, que tentam esconder (v. 7).
Não resistimos a citar algumas palavras da profunda reflexão antropológica de João Paulo II,
nas audiências gerais de Maio de 1980: “Por meio destas palavras (v. 10) desvela-se certa fractura
constitutiva no interior da pessoa humana, quase uma ruptura da original unidade espiritual e
somática do homem. Este dá-se conta pela primeira vez de que o seu corpo cessou de beber da força
do espírito, que o elevava ao nível da imagem de Deus. A sua vergonha original traz em si os sinais
duma específica humilhação comunicada pelo corpo. (...) O corpo não está sujeito ao espírito como
no estado da inocência original, tem em si um foco constante de resistência ao espírito e ameaça de
algum modo a unidade do homem pessoa. (...) A concupiscência, em particular a concupiscência do
corpo, é ameaça específica à estrutura da auto-posse e do autodomínio, por meio do qual se forma a
pessoa humana”.
11
6
S. MUÑOZ-IGLESIAS, Introducción a la lectura del Antiguo Testamento, Madrid, Ed. Taurus, 1965.
7
Ibidem.
12
e difícil de alcançar. Primeiramente tem de vencer os homens-escorpiões. Depois uma ninfa, Siduri,
faz-lhe ver a imensa dificuldade de passar o mar da morte, mas, ajudado pelo barqueiro de
Utnapixtim, lá consegue transpor este mar e chegar ao destino. Utnapixtim (em babilónico, longa
vida). Após muita insistência, lá lhe revela o segredo: terá de descer ao fundo do mar e apanhar uma
planta maravilhosa, chamada “velho, faz-te jovem”. Tendo-a conseguido, regressa triunfante à sua
pátria, Erek, No caminho, porém, enquanto toma banho numa fonte, uma serpente arrebatou-lhe a
planta e escondeu-lha debaixo da terra. São fáceis de ver as semelhanças com o Génesis. Em ambos
os casos estamos no início da Humanidade. No Génesis há elementos literários do poema
babilónico, mas a concepção teológica é diametralmente oposta. No poema de Guilgamex os deuses
são avaros da imortalidade que reservam só para si, e não querem que esta seja acessível ao homem,
ao passo que o Deus verdadeiro, Yahwéh, concede essa imortalidade gratuitamente: o homem tem
acesso à “árvore da vida”; se este não possui a imortalidade, fique claro que foi por sua própria
culpa. No Guilgamex o herói tem de comer o fruto da planta, mas a serpente arrebatou-lho: no
Génesis, ao contrário, o homem não deve comer o fruto da árvore que a serpente o leva a comer.
Não há, portanto, no Génesis uma cópia ou adaptação do mito babilónico, mas simplesmente
o aproveitamento de vários elementos literários, para um ensinamento teológico próprio.
Fátima, 01.11.2008
Geraldo Morujão
Bibliografia
MUÑOZ-IGLESIAS, Salvador, Introducción a la lectura del Antiguo Testamento, Madrid, Ed. Taurus,
1965, pp. 19-137
ARANDA, Gonzalo, Varón y mujer, la respuesta de la Biblia, Ed. Rialp, 1991
ARANDA, Gonzalo, El comienzo del mundo y del hombre, folhetos Mundo Cristiano n° 548.
VARO, Francisco, Las claves de la Biblia, Madrid, Ed. Palabra, 2007, pp. 19-26