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Thomas Ogden e a Alteridade

em Psicanálise

Thomas Ogden and the Otherness in Psychoanalysis

Resumo Este artigo apresenta as ideias centrais da teorização


psicanalítica de Thomas H. Ogden por meio de dois de seus prin-
cipais conceitos, a posição autista contígua e o terceiro analítico
e de duas vinhetas clínicas do autor. O objetivo central é des-
tacar as contribuições de Ogden para o tema da alteridade na
teoria e na clínica psicanalíticas.
Palavras-chave Psicanálise; alteridade; terceiro analítico;
posição autista contígua.

Abstract This article presents the main ideas of the psychoa-


nalytic theory of Thomas H. Ogden by two of its main concepts,
the autistic contiguous position and the analytic third, as well as
two clinical vignettes from the author. The main objective is to Nelson Ernesto Coelho Junior
highlight the contributions of Ogden to the theme of otherness Universidade de
in theory and clinical psychoanalysis. São Paulo (USP)
Keywords Psychoanalysis; otherness; the analytic third; autistic ncoelho@usp.br
contiguous position.

Introdução

T
homas H. Ogden é um dos principais psicanalistas contem-
porâneos. Autor criativo e de fundamental importância
neste que podemos denominar de período pós-escolas da
história da psicanálise. Apoiado em leituras originais, principal-
mente das obras de Freud, Klein, Winnicott e Bion (embora cite
com certa frequência também os trabalhos de Green, Fairbairn,
Searles, Loewald e Lacan, entre outros), Ogden demonstra
como pode ser fértil, sem ser eclética, uma forma de pensar e
trabalhar as ideias do campo psicanalítico para além das fron-
teiras rígidas que marcaram o período das grandes escolas em
psicanálise. Thomas Ogden trabalha em São Francisco, Califór-
nia, E.U.A. Membro pleno da IPA (International Psychoanalytical
Association), fez sua formação no Amherst College, Faculdade
de Medicina da Universidade de Yale e no Instituto de Psicanáli-
se de São Francisco, tendo sido paciente de W. R. Bion. Foi psi-
quiatra associado da Tavistock Clinic, em Londres e é diretor do
Centro para Estudos Avançados da Psicose, em São Francisco.
É supervisor e analista didata no Instituto Psicanalítico do Nor-
te da Califórnia. Publicou oito livros amplamente reconhecidos
no meio psicanalítico internacional, tendo recebido o prêmio
do International Journal of Psychoanalysis, em de comunicação mais evocativas e do pleno
2004, por Outstanding Paper. reconhecimento ético da alteridade.
A obra de Ogden é, acima de tudo, uma Os diferentes artigos escritos por Ogden
rigorosa e minuciosa reflexão teórico-clínica que, em sua maioria, foram republicados em
sobre as formas de comunicação (verbal e seus oito livros, depois de terem sido original-
não verbal), que constituem a prática psicana- mente publicados nos principais periódicos
lítica. O seu grande diferencial encontra-se na de psicanálise do mundo, podem ser divididos
qualidade imagética e descritiva de situações em seis categorias principais:
clínicas complexas, que acabam por se consti-
tuir em um solo fértil para desenvolvimentos 1. Artigos centrados na exposição de
teóricos originais. Ao lado disso, precisa ser conceitos já estabelecidos na teoria
destacado o seu interesse pela literatura (em psicanalítica, originalmente criados
particular pela poesia de Frost e pela obra de e desenvolvidos por outros autores
Borges) e pelo trabalho hermenêutico (Og- (por exemplo, identificação projeti-
den faz um uso original das ferramentas de va; réverie; espaço potencial, etc.);
interpretação de textos em seus ensaios de- 2. Artigos centrados na exposição de
dicados a investigar o estilo que emerge de conceitos originais, criados por ele
obras de grandes psicanalistas que o prece- (por exemplo, posição autista-contí-
deram). Mais complexa é sua relação com a gua; o terceiro analítico; falar como
filosofia, em que se destaca o uso da noção se estivesse sonhando, etc.);
de dialética, a partir de Hegel e da noção de 3. Artigos sobre formas de comunica-
intersubjetividade, oriunda da tradição feno- ção em análise;
menológica inaugurada por Husserl. Neste 4. Artigos sobre formas de leitura e es-
caso, Ogden nem sempre parece estar nave- crita em psicanálise;
gando com a mesma tranquilidade e precisão 5. Artigos dedicados a uma leitura pró-
que demonstra quando seu foco está voltado xima de textos singulares de gran-
para os conceitos propriamente psicanalíti- des autores da psicanálise que o
cos. Porém, o recurso à filosofia se justifica precederam.
pela necessidade em fazer que o conjunto da 6. Artigos centrados na articulação da
teoria psicanalítica possa se ver defrontado experiência clínica/relatos de casos
com seus próprios limites. com a dimensão conceitual por ele
Como ele mesmo afirma, “a teoria psica- desenvolvida.
nalítica sofre em função da pobreza de lingua-
gem e de conceitos que possam descrever o Vou expor, a seguir, dois dos conceitos
interjogo entre o fenômeno na esfera intrap- centrais de sua teorização, a posição autista
síquica e o fenômeno nas esferas da realidade contígua e o terceiro analítico, acompanha-
exterior e das relações interpessoais” (OG- dos de dois casos clínicos apresentados por
DEN, 1982, p. 11). É com essa frase que Ogden Ogden, com o objetivo de destacar sua contri-
abre o primeiro capítulo de seu primeiro livro, buição para o tema da alteridade na literatura
Projective Identification and Psychotherapeu- psicanalítica.
tic Technique, demonstrando já no início de
seu percurso o papel que a alteridade terá A Posição Autista Contígua
em sua reflexão. Os textos que periodicamen- Ogden, em seu livro The Primitive Edge of
te foram surgindo, nos 28 anos seguintes, Experience (1989), apresenta pela primeira vez
apresentam um autor com grande capacida- em maiores detalhes a sua noção de posição
de literária para a exposição da difícil trama autista contígua. A ideia já tinha começado a
que rege o cotidiano da clínica psicanalítica, ser desenvolvida em um artigo anterior (OG-
sempre em uma busca constante das formas DEN, 1988). Próximo da tradição kleiniana e

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dos autores da escola britânica de psicanálise pelas transformações sensoriais ocorridas no
(pós-kleinianos e independentes), ele procura curso dessas interações. Ao objeto (na forma
dar forma a um nível bastante primitivo de ex- de impressões sensórias) é atribuído sentido
periência psíquica, a qual já encontrava, segun- e a ele se responde de um modo organizador
do ele, descrição principalmente no trabalho e organizado, em um modo que envolve um
de Esther Bick, Donald Meltzer e Francis Tustin jogo transformativo mútuo entre os nascen-
e, secundariamente, em autores como Anzieu, tes self e objeto.
Bion, Brazelton, o casal Gaddini, Mahler, Mil- Ogden sugere que na posição autis-
ner, Rosenfeld, Searles, Spitz, Stern e Winni- ta contígua é a experiência da sensação, da
cott. Ogden afirma que “este modo de orga- sensorialidade, em particular da superfície da
nizar a experiência é caracterizado por formas pele, que são o principal meio para a criação
específicas de defesa e formas específicas de de sentido psíquico e para o os rudimentos ini-
relação objetal e por uma qualidade de angús- ciais da experiência de um self. A contiguidade
tia e por um grau de subjetivação específicos” sensorial da superfície das peles, ao lado do
(1989, p. 48). Embora se trate de uma posição elemento da ritmicidade, são as bases funda-
que tem a sua primazia em um período ante- mentais para o estabelecimento daquilo que
rior às duas organizações descritas por Klein podemos chamar de relações objetais infantis.
(esquizoparanoide e depressiva), coexiste dia- É pelo toque, pela sensorialidade da pele, em
leticamente com as duas posições assim ditas relações de contiguidade sensória (o rosto do
“posteriores”. Para Ogden, quadros psicopa- bebê no seio da mãe), que a organização de
tológicos emergem do colapso do jogo dialéti- um rudimentar sentido de “eu-dade”, de “si-
co entre estas três formas de experiência. -mesmi-dade”, pode se estabelecer, gerando
A posição autista contígua está associada paulatinamente o sentido de uma superfície
a um modo específico de se atribuir sentido à sensória de fronteira, que permitirá ao sujeito
experiência, na qual dados sensoriais predomi- uma experiência de si – aquilo que Winnicott
nam na formação de conexões pré-simbólicas denomina de “o lugar em que se vive”. Trata-se
entre diferentes impressões sensoriais, geran- de um lugar em que o bebê sente, pensa e vive;
do superfícies com fronteiras e delimitações. um lugar que tem forma, dureza, frieza, calor
É nessas superfícies que a experiência do self e textura, que são o início das qualidades que
tem origem. Ogden lembra a passagem clássi- fazem que alguém seja.
ca em que Freud afirma que o ego é primeiro Pode-se dizer que a natureza da angústia
um ego corporal, para insistir na ideia de que o que predomina na posição autista contígua é a
ego é derivado de sensações corporais, aque- de uma angústia pela ruptura da sensação de
las que emanam da superfície do corpo. coesão sensorial, gerando ausência de frontei-
Ogden considera que sua noção preci- ras. É uma angústia de aprisionamento em um
sa ser diferenciada da noção de Margareth sistema fechado de sensações corporais de
Mahler, de um “autismo normal”. Em con- aniquilamento de superfícies, que gera sensa-
traste com esta última noção que enxerga o ção de despedaçamento, de desaparecimento
bebê em seus primeiros meses de vida como em um espaço sem formas e fronteiras, o que
existindo em um sistema monádico fechado, impede a formação de um espaço potencial,
autossuficiente em seu modo de realização como descrito por Winnicott. São comuns
de desejo alucinatório, Ogden não propõe a em pacientes que têm sensações corporais
posição autista contígua como um sistema de despedaçamento, de queda no vazio sem
fechado no qual o bebê estaria isolado do forma nem fronteiras. Ao mesmo tempo, po-
seu mundo objetal. Em sua concepção, as de-se descrever os modos de defesa que pre-
relações de objeto, nesta posição, são expe- dominam na posição autista contígua como
rienciadas em termos de superfícies geradas sendo as defesas que buscam restabelecer a
pelas interações do bebê com seus objetos e continuidade das fronteiras por meio da reto-

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mada das sensações produzidas na superfície Assim, não seria “mais necessário formular
sensorial. São defesas que buscam também nossas questões em termos de oposições mu-
retomar a ritmicidade na qual repousa a in- tuamente excludentes. A questão de saber se
tegridade inaugural do self. Podem ser reco- o bebê está-em-um com a mãe ou separado
nhecidas em pacientes que durante a sessão dela torna-se uma questão sobre a natureza
retomam formas sensórias que reconstituem da inter-relação entre experiências simultâne-
o que ele chama de um “solo” sensorial de se- as de estar-em-um e de estar separado” (OG-
gurança: o enrolar ritmado do cabelo durante DEN, 1994, p. 174).
toda a sessão, o pé que bate um ritmo, morder Para propor a ideia de um isolamento ain-
os lábios, a bochecha. São formas de se autoa- da mais primitivo que o descrito por Winnicott,
calmar por meio de formas autísticas. Ogden recorre à ideia de uma matriz de sensa-
Alguns anos mais tarde, indo um pouco ção autogerada, que viria a substituir a matriz
além no uso dessa noção, Ogden (1994) deu interpessoal. É a partir da investigação dos fe-
como título ao capítulo 9 de seu livro, Subjects nômenos autísticos que ele se propõe a formu-
of Analysis, a seguinte sentença: “Personal lar “um vocabulário sobre a noção de isolamen-
Isolation: the breakdown of subjectivity and to auto-sensual” (1994, p. 175). Para isso ele
intersubjectivity”. Nesse capítulo, procura recorre aos trabalhos de Francis Tustin sobre
abordar experiências patológicas de isola- o autismo. O ponto central é que em experi-
mento muito precoces na vida de um ser hu- ências muito primitivas o bebê tenderia a viver
mano, anteriores às descritas por Winnicott, os objetos como sensações e não como coisas
ao mesmo tempo em que pretende sublinhar e, nesse sentido, “formas autísticas” são “for-
a necessidade de experiências de isolamento mas sentidas”, como propõe Tustin (1984, p.
“como uma condição necessária para a saúde 280). Nas experiências sensoriais inaugurais do
psicológica” (OGDEN, 1994, p. 167). O colapso bebê, “a contiguidade de superfícies cutâneas
da subjetividade e da intersubjetividade an- cria uma forma idiossincrática que é o bebê na-
cora-se, para Ogden, muitas vezes, em “uma quele momento. Em outras palavras, o ser do
forma primitiva de isolamento que implica a bebê recebe, dessa forma, uma definição sen-
desconexão do indivíduo, não só em relação sorial e uma sensação de lugar” (OGDEN, 1994,
à mãe como objeto, mas também ao próprio p. 174). Para exemplificar ainda mais a origem e
tecido da matriz interpessoal humana” (OG- o funcionamento desse processo de isolamen-
DEN, 1994, p. 167). to autossensual, o autor recorre a um exemplo
Em consonância com suas concepções clássico, reinterpretando-o:
epistemológicas sobre a experiência inter-
subjetiva (como procurarei mostrar a seguir), (...) o conforto que o bebê experi-
Ogden (1994) recusa a necessidade de uma menta ao chupar o dedo não deriva
escolha quando deparado com a oposição apenas do valor representacional
clássica dos estudos psicanalíticos sobre as do dedo como substituto do seio;
experiências iniciais do bebê: o bebê está- há, além disso, uma dimensão no
-em-um (at one) com a mãe e assim não tem chupar o dedo que pode ser en-
consciência da existência separada dela e de tendida como parte de uma rela-
si próprio, ou o bebê é capaz desde o início ção com uma forma autística, por
de sua existência de reconhecer a diferença intermédio da qual uma sensação
entre ele mesmo e o outro? Ogden afirma que do self-como-superfície-sensorial se
devemos considerar “a experiência infantil (e gera (OGDEN, 1994, p. 175)
a experiência humana em geral) como o re-
sultado de um processo dialético que envolve Ogden considera o tipo de isolamento
múltiplas formas de consciência (cada uma viabilizado por experiências como a descrita
coexistindo com as outras)” (1994, p. 173). como envolvendo a desconexão mais radical

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possível em relação aos seres humanos com nalysis (2005), a partir do qual pretendo ilus-
quem um bebê (ou um ser humano de qual- trar o resgate da unicidade do par analítico,
quer idade) convive. no solo primordial relacional a partir do qual
a constituição dos sujeitos (analista e ana-
O tipo de isolamento que tenho em lisando) pode ocorrer. Por meio da réverie
mente não é uma forma de morte (conceito que se refere a formas de enso-
psicológica (...). O que estou ten- nhamento durante a sessão, como proposto
tando descrever é uma suspensão por Bion) do analista, vivida em dois princi-
da vida no mundo dos vivos e a pais momentos da primeira sessão de um
substituição desse mundo por um analisando, emerge o que Ogden denomina
mundo autônomo de ‘relações’ de a verdade de uma experiência emocional
com sensações ‘perfeitas’ (OGDEN, inconsciente, que pode ser utilizada pelo par
1994, p. 178). analítico para transformações psíquicas, ou
seja, para a constituição do sujeito. Ao discu-
Como Winnicott, Ogden considera essa tir os acontecimentos dessa sessão fazendo
forma de isolamento parte essencial do de- uso da noção do “terceiro analítico” (OGDEN,
senvolvimento emocional e relacional de um 1994), o autor ilustra processos constitutivos
bebê, ao afirmar que deixar “o bebê entrar de natureza fundamentalmente interacional.
nessa forma de isolamento e resgatá-lo, de Ele também aborda o caráter interacional da
modo compassado e periódico, é uma parte própria verdade de uma experiência emocio-
essencial da qualidade rítmica do desenvol- nal inconsciente, de forma a não ser possível
vimento humano” (OGDEN, 1994, p. 178). atribuir nem ao analista nem ao analisando a
Nesse panorama, as experiências de autismo verdade que é comunicada pela interpretação
patológico precisariam ser entendidas como do analista, verdade que emerge e que tam-
tendo como uma de suas características ori- bém vai se transformando pela experiência
ginais, falhas na relação mãe-bebê, no que diz de ambos no transcorrer da sessão.
respeito à apreensão e suporte dessa qualida- A vinheta clínica relatada por Ogden
de rítmica entre momentos de isolamento e trata da primeira sessão de Mr. V., em que o
ações de resgate. analista vai fazendo interpretações cujo con-
teúdo é em grande parte derivado dos dois
O Estabelecimento de Níveis Preco- momentos de réverie. Mr. V. hesita em entrar
ces de Integração na Relação Analí- na sala de espera do consultório do analista,
tica: O Caso do Sr. V. caminhando algumas vezes no corredor entre
Thomas Ogden insiste que, como analistas duas portas, uma externa à casa e outra que
dá acesso à sala de espera, alguns minutos an-
tentamos ajudar o analisando em tes de seu primeiro encontro com Ogden. Nes-
seus esforços para livrar-se de for- se primeiro encontro, o analista irá deter-se no
mas de experiência organizadas acontecimento anterior à entrevista, embora
(seus ‘conhecimentos’ conscientes inicialmente Mr. V. tenha uma tendência a
e inconscientes de si mesmo), que evitar o assunto. No transcorrer da sessão,
o aprisionam e o impedem de tole- porém, ele vai se sentindo mais encorajado a
rar a experiência de não conhecer, abordar o ocorrido, fazendo várias colocações
por tempo suficiente, para permitir relacionadas aos sentimentos que vão sendo
a criação de uma compreensão de si inicialmente nomeados pelo analista.
de um modo diferente (1989, p. 1). Entre o primeiro e o segundo momento
de réverie do analista, ocorre uma mudança
Gostaria de retomar aqui um caso clínico significativa no clima emocional da sessão.
publicado por Ogden em This Art of Psychoa- Essa mudança ocorre após o analista ter co-

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municado sua primeira interpretação, formu- mo e do amigo, e não de um ponto de vista
lada logo após a primeira réverie. exterior e estático como antes. Havia, então,
Ogden tem uma fugaz lembrança de um maior proximidade com os sentimentos em
episódio de sua própria infância com um ami- jogo e maior vividez em sua imaginação. Não
go, na forma de uma série emocionalmente se tratava de uma série de poses, mas do des-
intensa de imagens estáticas, como em fotos. dobramento de uma experiência, com grande
Ele e o amigo, ambos com oito anos, brinca- realismo e impacto emocional. Ogden sentia
vam em um lago congelado, quando seu ami- que não havia escolha senão precisar tornar-
go cai na água, por ter pisado em um peda- -se mais crescido do que era naquele momen-
ço que havia descongelado. Os sentimentos to, alguém que ele temia não conseguir ser.
evocados pela lembrança de sua infância são Sentia-se consciente de que não podia sequer
de medo, culpa e vergonha, vividos de forma conceber aquela versão de si mesmo, mais
não-compartilhada entre ele e seu amigo. crescido. Ogden, nesta réverie, pôde ter uma
Emergia, portanto, também uma sensação de versão mais compreensível e compartilhável
profunda solidão, isolamento e tristeza. do evento, sentindo-se menos receoso em
Em meio a essa presença emocional evo- experienciar os sentimentos em jogo. O sen-
cada, Ogden diz a Mr. V. que, pelo som de seus timento de vergonha pela imaturidade era
passos no corredor, havia suspeitado que ele uma versão nova de um sentimento evocado
estivesse vivendo certo tumulto ao se aproxi- na primeira réverie, em que aparecia intenso
mar daquele primeiro encontro entre eles. Mr. medo, vergonha, culpa e solidão.
V. contribui com colocações a respeito desse O analista, em um tom que comunica
episódio, o que é seguido de colocações do também os sentimentos envolvidos, fala so-
analista sobre o quão sozinho se sentira na- bre a vergonha de Mr. V. de sentir-se como
quele momento antes de conhecê-lo, sentin- criança, no corredor, ao se ver sem o papel
do-se em uma espécie de “terra de ninguém” com as orientações que Ogden havia lhe
naquele corredor, impedido tanto de chegar dado ao telefone e que, para ele, sentir-se ou
até Ogden para conhecê-lo e iniciar uma aná- comportar-se como criança era algo verdadei-
lise (atravessando a porta de vidro) quanto de ramente vergonhoso. Essa fala do analista é
fazer parte da vida lá fora onde imaginava que seguida de visível alívio da tensão corporal de
as pessoas eram capazes de viver. Mr. V. Este diz então, em um tom que apare-
Mr. V. tem a tendência a fazer genera- ceu ali pela primeira vez e que seria raro ao
lizações, evitando falar sobre seus sentimen- longo dos primeiros anos de sua análise: “’Lá
tos mais profundos, vinculados ao episódio fora eu me senti tão perdido...’” (2005 p. 73).
no corredor e ao aqui-e-agora da sessão. Mas Ogden enfatiza o tom com que o paciente diz
na metade final da sessão, Mr. V. pareceu essa frase: havia suavidade e ao mesmo tem-
ter se interessado em discutir o que tinha se po vivacidade nas palavras e as palavras esco-
passado com ele e parecia também menos re- lhidas também comunicavam algo essencial.
ceoso em fazê-lo. Alguns minutos de silêncio Havia um lá fora que transmitia o sentimento
foram sentidos por Ogden como um longo de que também começava a existir um “aqui
tempo, mas não percebido como um silêncio dentro” do espaço analítico e da relação vita-
ansioso. Durante esses minutos, o analista re- lizada com o analista, na qual Mr. V. já não se
torna ao episódio ocorrido em sua infância. sentia mais tão perdido.
Desta vez, porém, a experiência dessa lem- Um universo marcado por dimensões
brança foi totalmente diferente, porque ha- de experiências se abre a partir da fala do
via emergido em um contexto emocional da analista sobre a breve hesitação de Mr. V.
relação presente com Mr. V. que também era ao chegar ao consultório. Este, inicialmente,
diferente. Havia uma sensação maior de estar não se detém nesse breve, mas significativo
vendo e sentindo coisas de dentro dele mes- episódio e tende a evitá-lo no contato mais

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automatizado que estabelece inicialmente ao modo de Ogden trabalhar as relações en-
com o analista. Profundidade e vitalidade se tre a clínica e a teorização em psicanálise.
fazem presentes, no entanto, quando os dois
falam sobre essa experiência em que apare- Terceiro Analítico (e Identificação
ce o contato estéril de Mr. V. com o mundo. Projetiva)
O modo relacional defensivo inicialmente vi- Gostaria de iniciar a apresentação do con-
venciado por Mr. V. vai na direção contrária ceito de terceiro analítico por meio de um re-
da experiência relacional significativa estabe- torno à concepção de identificação projetiva.
lecida na sessão. Em suas generalizações há Como se sabe, a identificação projetiva rece-
fundamentalmente o distanciamento – da ex- beu uma grande ampliação tanto em sua defi-
periência do próprio sujeito e da experiência nição quanto no papel que ela pode represen-
dos outros, que lhe pareciam tão diferentes tar nas relações humanas desde sua primeira
dele próprio. formulação. Experiência já reconhecida em vá-
Nesse fragmento clínico, é possível rios textos da literatura psicanalítica anterio-
identificar a instauração de uma experiência res à década de quarenta (GROTSTEIN, 1995),
fecunda, para ambos, que corresponde a um foi, no entanto, inicialmente proposto como
nível de integração precoce ego-realidade. A um conceito por Melanie Klein (1946/1991).
experiência de contato emocional com o ou- Vale lembrar que, ao menos inicialmente na
tro, vivida pelo analista em sua réverie pos- obra de Klein e de seus colaboradores, esse
sibilita uma identificação com o sentimento conceito não ocupava uma posição de maior
de profunda solidão, medo, vergonha e iso- destaque que outros mecanismos de defesa
lamento do paciente. Neste momento, níveis da posição esquizoparanoide.
psíquica e emocionalmente precoces emer-
gem na relação e lembram a tenra experiência Junto com os excrementos nocivos,
do bebê quando a mãe, em sintonia com ele, expelidos com ódio, partes excindi-
é capaz de identificar seus estados de ser. A das do ego são também projetadas
imersão nesse nível primordial de relação, um na mãe, ou, como prefiro dizer,
nível fundamental da experiência humana, para dentro da mãe. Esses excre-
possibilita a apreensão de sentidos. mentos e essas partes más do self
A descrição e discussão detalhada de são usados não apenas para danifi-
Ogden, que incluem as razões pelas quais car, mas também para controlar e
ele diz o que diz ao paciente, bem como as tomar posse do objeto. Na medida
mudanças no clima emocional da sessão vei- em que a mãe passa a conter as
culado tanto pela réverie do analista quanto partes más do self, ela não é senti-
por sua fala e a do paciente, são tentativas do da como um indivíduo separado, e
autor mostrar como o campo estava sendo sim como sendo o self mau. Muito
configurado mutuamente pelo par analítico. do ódio contra partes do self é ago-
Também existe uma preocupação em mostrar ra dirigido contra a mãe. Isso leva a
uma dimensão da interpretação que vai além uma forma particular de identifica-
do seu conteúdo, abrangendo elementos sen- ção que estabelece o protótipo de
soriais que comunicam estados afetivos, pro- uma relação de objeto agressiva.
ximidade, intimidade e distanciamento entre Sugiro o termo ‘identificação pro-
analista e analisando. jetiva’ para esses processos (KLEIN,
A seguir, vou apresentar o segundo 1946/1991, p. 27)
conceito, terceiro analítico, em sua referência
direta às dimensões de alteridade presentes Nessa proposta de Klein, tanto o ato de
na clínica, como apresentadas por Ogden. Por colocar partes do self dentro do objeto quan-
fim, mais uma vinheta clínica para dar relevo to o poder que assim se adquiria sobre ele

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eram apenas fantasiados. Era na fantasia do não esteja consciente dessa comunicação,
projetor que o outro indivíduo, alvo da iden- nem da “invasão” e do controle que o bebê
tificação projetiva, se tornava uma extensão consegue através dela.
de seu próprio self. Essa concepção fez que Para Grotstein (1993), as contribuições
Grotstein considerasse que “Klein e seus se- de Bion permitiram que se
guidores enfatizaram os aspectos intrapsíqui-
cos da identificação projetiva” (1995, p. X). transcendesse a perspectiva de
A concepção de Bion (1962) do Conti- uma-pessoa (one person) e se invo-
nente-Contido, postulando que a mãe em um casse a perspectiva transacional. (...)
estado de réverie dá sustentação às identifica- O que foi importante nesse segundo
ções projetivas de seu bebê, por meio de sua desenvolvimento é que a identifi-
própria identificação parcial com o sofrimen- cação projetiva não podia mais ser
to deste, amplia consideravelmente o campo vista exclusivamente como um pro-
de compreensão da experiência das identifi- cesso intrapsíquico e sim como um
cações projetivas. Ou, como sugere Spillius: processo grupal (1993, p. XI).

[Bion], mais do que Klein o fizera, Ainda segundo Grotstein (1993) a modi-
trouxe o objeto – a mãe ou o ana- ficação introduzida por Bion no que diz res-
lista – para dentro da concepção peito ao significado da identificação fez que
do processo de identificação pro- se constituísse um modo interpessoal de com-
jetiva. Seguindo Klein, Bion pensa preender a identificação projetiva, em que a
que, quando o bebê se sente as- identificação não mais se aplica ao sujeito que
saltado por sentimentos que não projeta, mas sim ao objeto que contém.
pode governar, ele tem fantasias de Assim, portanto, o papel da identifica-
evacuá-los para dentro de seu obje- ção projetiva na relação analista-analisando
to primário, a mãe. Se for capaz de passa a ser pensado de novas maneiras. Um
compreender e aceitar os sentimen- paciente, ao tomar seu analista como objeto
tos sem que seu próprio equilíbrio de sua identificação projetiva, não só fanta-
seja por demais perturbado, a mãe siará que este é invadido por seus sentimen-
poderá ‘conter’ esses sentimentos tos e se torna uma extensão de si mesmo. O
e comportar-se em relação ao seu paciente, tal como o bebê em relação à mãe
bebê de um modo que fará com que (segundo Bion), procurará realmente provo-
os sentimentos difíceis sejam mais car esses sentimentos no analista e induzi-lo a
aceitáveis para ele, que pode então agir de forma compatível com eles. Isso pode
toma-los de volta para dentro de si ocorrer de formas extremamente sutis, po-
numa forma com a qual pode lidar dendo o analista se deixar efetivamente ma-
melhor (SPILLIUS, 1994, p. 75). nipular e, por meio dessa atuação inconscien-
te, manter inacessíveis à análise os aspectos
Não só a finalidade da utilização da iden- do analisando aí envolvidos; ou, caso resista a
tificação projetiva pelo bebê é aqui amplia- essa manipulação, manter seu paciente enre-
da, como o nível em que ela ocorre já não é dado no esforço para consegui-la.
apenas o da fantasia: a mãe passa realmen- Aceitar essas possibilidades de relação
te a conter os sentimentos perturbadores com o analisando pode ter diversas consequ-
do bebê e reage de forma apropriada à sua ências. Por um lado, o analista pode procurar
presença. Encontra-se envolvida nessa con- meios de impedir que a identificação projeti-
cepção uma forma especial de comunicação, va ocorra e garantir que todos os elementos
por meio da qual a mãe pode compreender (e que o analisando tenta “expelir” para dentro
conter) os sentimentos do bebê, mesmo que do analista sejam expressos em palavras pelo

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próprio analisando. O trabalho do analista se- Evidentemente, muitas são as questões
ria então o de fornecer ao analisando as con- que podem ser levantadas diante desse pon-
dições necessárias para “conter” e expressar to de vista. Que meios seriam utilizados para
esses sentimentos. A identificação projetiva que tal comunicação em um nível pré-verbal
se apresenta, aqui, unicamente como um ris- possa ocorrer? Que condições são necessárias
co, que deve ser levado em conta apenas na para que ela ocorra e para que o analista seja
medida em que se pretende evitá-lo. Na base capaz de se dar conta daquilo que seu incons-
dessa postura parece estar a justificada e pru- ciente (ou seu pré-consciente) foi capaz de
dente noção segundo a qual: captar do analisando? E, ainda, como pode o
analista distinguir os sentimentos que lhe são
o que se pode ouvir de si mesmo em próprios daqueles que são despertados nele
meio ao silêncio – seja na forma de pelo analisando?
contratransferência (JACOBS, 1991)
ou de réverie (OGDEN, 1997) – car- Ogden e o Terceiro Analítico1
rega a inevitável marca da própria Thomas Ogden aborda essas questões
subjetividade, uma consideração por outro ângulo ao propor o conceito de ter-
que merece ênfase, já que conexões ceiro analítico:
com o que se passa no interior do
paciente são, no máximo, escassas O processo analítico reflete a inter-
e incertas (MEISSNER, 2000, p. 349). -relação de três subjetividades: a
subjetividade do analista, a do ana-
Nesse caso, a comunicação é mantida lisando e a do terceiro analítico. O
fundamentalmente no nível verbal, sendo es- terceiro analítico é uma criação do
sencialmente uma comunicação “de ego para analista e do analisando, ao mesmo
ego”. Mas, como se sabe, uma forte tradição tempo que ambos (na qualidade
psicanalítica admite que certos sentimentos de analista e analisando) são cria-
não podem ser “contidos” pelo analisando, dos pelo terceiro analítico. (Não há
não podem ser pensados ou elaborados e analista, analisando ou análise na
nem mesmo “sentidos” por ele. São senti- ausência do terceiro) (1994, p. 93).
mentos ainda “sem forma” que não podem,
por isso, ser expressos em palavras. Para que Para Ogden, a identificação projetiva
tal expressão em palavras e para que a ela- deve ser compreendida como “uma dimen-
boração desses sentimentos seja possível, é são de toda intersubjetividade, às vezes como
preciso que antes eles sejam de algum modo qualidade predominante da experiência, ou-
transformados e lhes seja dada uma “forma”. tras somente como um sutil pano de fundo
E isso só seria possível através da relação ou (subtle background)” (1994, p. 99). Ou ainda:
comunicação pré-verbal com o analista que
Na identificação projetiva há um co-
ocorre na identificação projetiva:
lapso parcial do movimento dialéti-
O objetivo do analista é permitir-se co da subjetividade e intersubjeti-
experimentar e responder interna- vidade individuais, e disso resulta a
mente a tais pressões do paciente criação de um terceiro analítico sub-
[para induzir sentimentos e pen- jugador (dentro do qual as subjetivi-
samentos no analista], de modo
dades individuais dos participantes
suficiente a tornar-se consciente
estão em grande medida incluídas).
da pressão e de seu conteúdo para
poder interpretá-lo, mas sem ser 1
As ideias aqui apresentadas, com algumas
impelido a uma atuação grosseira. modificações, foram originalmente publicadas em
(SPILLIUS, 1994, p. 77) Coelho Junior, (2002).

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Um processo analítico bem sucedi- cação e da relação analíticas. Ainda que, de
do envolve a superação do terceiro um ponto de vista realista e/ou empírico, a
e a reapropriação das subjetivida- situação analítica nunca deixe de ser a situa-
des (transformadas) pelos partici- ção de dois sujeitos separados e distintos, em
pantes como indivíduos separados comunicação um com o outro, o que Ogden
(e, ainda assim, interdependentes). nos propõe é que abandonemos esse ponto
Isso se dá por via de um mútuo re- de vista em nossa tentativa de compreender
conhecimento que, muitas vezes, os fenômenos analíticos. Dessa forma, aquilo
é mediado pela interpretação, por que antes identificamos como sentimentos e
parte do analista, da transferência- pensamentos comunicados de forma incons-
-contratransferência e o uso que o ciente, ou induzidos inconscientemente pelo
analisando faz da interpretação do analisando no analista, Ogden descreve como
analista (OGDEN, 1994, p. 106). sentimentos e pensamentos que são sim-
plesmente sentidos e pensados pelo terceiro
Com isso, podemos afirmar que o pro- sujeito intersubjetivo. O problema deixa de
blema que se apresentava ao analista quanto ser, assim, o da natureza e dos meios de uma
a diferenciar, em suas próprias reações emo- comunicação qualificada de inconsciente,
cionais, os elementos que pertenciam exclusi- para tornar-se o problema da natureza des-
vamente à sua própria subjetividade daqueles se “sujeito intersubjetivo”. A relação entre
que eram despertados nele pelo analisando analista e analisando enquanto sujeitos ple-
recebe agora uma solução fundamentalmen- namente constituídos e separados continua
te diferente das que puderam ser identifica- a ocorrer no nível verbal e consciente. Por
das em outros autores: outro lado, ao considerarmos a intersubjeti-
vidade, conforme concebida por Ogden, não
Tanto na relação entre a mãe e o encontramos mais relação, nem comunicação
bebê quanto na relação entre o envolvidas. A intersubjetividade, compreendi-
analista e o analisando, a tarefa da como um “terceiro sujeito intersubjetivo”,
não é desembaraçar os elementos não é uma relação entre dois sujeitos, mas jus-
constitutivos da relação, num esfor- tamente um novo sujeito. Aquilo que, de certo
ço para determinar que qualidades ponto de vista, ocorria na relação entre os su-
pertencem a cada indivíduo que jeitos, agora ocorre como experiência de um
participa dela; pelo contrário, do terceiro sujeito.
ponto de vista da interdependên- Também não parece justificado dizer
cia (interdependence) entre sujeito que simplesmente se transferiu o problema
e objeto, a tarefa analítica envolve da relação e da comunicação entre analista e
uma tentativa de descrever o mais analisando para o problema de uma mesma
completamente possível a natureza relação e comunicação entre analista e o ter-
específica da experiência de inter- ceiro sujeito. É a situação como um todo que
jogo (interplay) da subjetividade se transfigura quando se passa a considerar
individual e da intersubjetividade. a criação do terceiro: analista e analisando
(OGDEN, 1994, p. 64). não existem mais puramente como sujeitos
isolados, passando a se constituir a partir da
Pode-se notar que há aqui mais do que relação dialética (ou seria melhor dizer, suple-
uma nova resposta para as mesmas questões, mentar – como sugere o filósofo francês Jac-
um novo conjunto de pressupostos, a partir ques Derrida – ou então de uma dialética sem
do qual novas questões se apresentam. É síntese – como propõe outro filósofo francês,
assim que Thomas Ogden realiza uma inte- Merleau-Ponty) entre subjetividade e inter-
ressante inversão no problema da comuni- subjetividade. E essa relação dialética é uma

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relação de mútua constituição, onde não faz “Abaixo” do nível em que ocorrem
sentido falar em comunicação ou em qual- as comunicações e interações entre
quer forma de relação entre polos puramente analista e analisando, há a estrutu-
exteriores um ao outro. É aqui que encontra- ração de um campo intersubjetivo
mos claramente a possibilidade de uma inter- no qual não faz sentido falar em co-
subjetividade transubjetiva (COELHO JUNIOR municação; nem mesmo comuni-
e FIGUEIREDO, 2003) no trabalho de Ogden. cação inconsciente, ou de incons-
De resto, vale lembrar, que para Ogden ciente a inconsciente. A questão
a comunicação analítica permanece sempre aqui é que a intersubjetividade
num nível de ego para ego; mas há em sua de Ogden não se refere ao “entre
proposta uma verdadeira novidade que pode subjetividades”, mas ao que talvez
sugerir a defesa da ideia de comunicação possa ser chamado de uma inter-
entre inconscientes: trata-se da ideia de que subjetividade primordial: uma situ-
toda comunicação sempre se dá sobre o fun- ação na qual as subjetividades se
do de uma série de relações dialéticas envol- constituem mutuamente, de forma
vendo as subjetividades isoladas de analista e que não há anterioridade dos sujei-
analisando e o terceiro sujeito intersubjetivo. tos individuais em relação à inter-
Tais relações se dariam, predominantemente, subjetividade, nem o inverso. Isso
em um nível inconsciente. Mas isso só é vá- é visível no fato de que o analista
lido de um ponto de vista descritivo: não há entra em contato com esse campo
transmissão de representações recalcadas intersubjetivo justamente através
de um sujeito para outro. “Uma análise não “dos próprios meios pelos quais
é simplesmente um método de descoberta ele é inextricavelmente dado a si
do oculto; é principalmente um processo de mesmo” e de suas “mais privadas
criação de um sujeito analítico que não existia dimensões” (REIS, 1999, p. 390).
antes” (OGDEN, 1994, p. 47).
Com Ogden, podemos afirmar que o que E essa compreensão da intersubjetivida-
está envolvido na formação da intersubjetivi- de envolve uma correspondente revisão do
dade (transubjetiva) é um nível da existência conceito de subjetividade individual.
e da experiência ainda pré-representacional e
até mesmo pré-pessoal (a partir do qual o sujei- A concepção analítica do sujeito foi
to é criado), no qual não se pode, e não se deve tornando-se cada vez mais uma te-
tentar, “determinar que qualidades pertencem oria da interdependência entre sub-
a cada indivíduo” (OGDEN, 1994, p. 64). Na ex- jetividade e intersubjetividade. O
periência do terceiro analítico, estão em jogo sujeito não pode criar a si mesmo; o
desenvolvimento da subjetividade
formas simbólicas e proto-simbóli- requer experiências de formas es-
cas (baseadas em sensações) atribu- pecíficas de intersubjetividade. No
ídas à experiência não-articulada (e começo, a subjetividade e a psique
muitas vezes ainda não sentida) do individual não coincidem: ‘um bebê
analisando, quando estas estão ga- é algo que não existe’. A constitui-
nhando forma na intersubjetividade ção do espaço entre mãe e bebê é
do par analítico (isto é, no terceiro- mediada por eventos psicológicos–
-analítico) (OGDEN, 1994, p. 82). interpessoais (psychlogical-inter-
personal), tais como a identificação
Talvez as observações de um comenta- projetiva, a preocupação materna
dor possam ajudar a elucidar ainda melhor primária, a relação especular, o
estes aspectos: relacionamento com objetos tran-

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sicionais e as experiências de uso vés da identificação com o outro,
do objeto e de compaixão (ruth). A não é ainda intersubjetividade. Para
apropriação do espaço intersubjeti- Hegel, a subjetividade permanece
vo pelo bebê representa um passo equacionada com o sujeito conscien-
crítico no estabelecimento da capa- te em competição com o outro. Em
cidade do indivíduo de gerar e man- contraste, o modelo que quero intro-
ter as dialéticas psicológicas (por duzir aqui trata a intersubjetividade
exemplo, consciência e inconscien- como uma condição tão elementar
te, eu e não-eu, eu e mim, eu e tu), e primária que a competição já re-
por meio das quais ele é simultane- presentaria uma diferenciação entre
amente constituído e descentrado sujeito e objeto (REIS, 1999, p. 378).
como sujeito. (OGDEN, 1994, p. 60)
Segundo esse autor, Ogden teria supera-
É importante insistir que a afirmação de do tanto os limites de um modelo baseado num
que há, a partir de certo momento, uma “apro- simples espelhamento quanto a insuficiência
priação do espaço intersubjetivo” por parte do do modelo dialético hegeliano de relação:
bebê, sugere que a constituição da subjetivida-
de faz-se permanentemente e que a dialética O bebê está consciente [aware] de
entre subjetividade e intersubjetividade nunca uma pluralidade de sujeitos no que
se interrompe. O mesmo fato é apontado por Ogden denominou ‘uma relação de
Ogden ao tratar do processo analítico: relativa semelhança, e, portanto, de
relativa diferença’ antes de se tor-
O término de uma experiência psi- nar consciente [aware] de sujeitos
canalítica não é o fim do sujeito da individuais. A experiência intersub-
psicanálise. O sujeito se apropria da jetiva precede a experiência pesso-
intersubjetividade do par analítico e al e está fundada sobre a experiên-
a transforma num diálogo interno cia corporal (REIS, 1999, p. 384).
(um processo de mútua interpre-
tação que se dá no contexto de um A presença da “sombra” de Merleau-
sistema de uma única personalida- -Ponty em interpretações como essa de Reis
de) (1994, p. 47). do trabalho de Ogden implica, inevitavelmen-
te, que seja necessário abandonar inclusive a
Mas, talvez valha relembrar, que ao de- própria noção de intersubjetividade e substi-
fender a ideia de um nível de existência pré tuí-la pela de intercorporeidade, ou ainda de
e intersubjetivo permanentemente susten- co-corporeidade, como sugeri recentemente
tando a existência do sujeito como entidade (COELHO JUNIOR, 2010).
isolada e definida, Ogden não está sozinho. A seguir, mais um caso clínico de Og-
Bruce E. Reis (1999), por exemplo, aproxima den em que as questões levantadas citadas
suas ideias do trabalho de Merleau-Ponty, de- ganham novas dimensões no modo singular
fendendo que o modelo dialético hegeliano, com que o autor consegue expressar seu aco-
utilizado amplamente por Ogden, não é capaz lhimento à diferença. Diferença colocada pela
de dar conta das próprias experiências que radical alteridade de outro, com seus reflexos
ele procura descrever e compreender: tanto nos níveis clínicos como nos teóricos.

A metáfora do espelhamento é pro- Falar como se Estivesse Sonhando: o


blemática por não levar em conta Caso da Sra. L.
a subjetividade única do outro. (...) O caso clínico que apresento a seguir
Interdependência, estabelecida atra­ foi publicado por Thomas Ogden em 2007 no

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artigo “On Talking-as-dreaming” (algo como samento do processo primário de
”Sobre o falar como se estivesse sonhando”) forma considerável... Quando uma
no Intenational Journal of Psychoanalysis e re- análise é um ‘going concern’ – Win-
publicado em seu último livro, Rediscovering nicott – (um reconhecimento em
Psychoanalysis, de 2009. marcha – refere-se à fase de vida
Ogden, de maneira provocativa, abre o do bebê que Winnicott considera
seu texto com as seguintes frases: como uma fase depressiva em que
o bebê já tem alguma noção do mal
Eu tomo como fundamental para a que pode fazer à mãe e que inclui
compreensão da psicanálise a ideia uma capacidade inicial de diferen-
que o analista precisa inventar a psi- ciação eu-outro, embora ainda não
canálise de novo com cada paciente. de forma plena; já há um espaço
Isto é atingido em grande medida potencial) paciente e analista são
por meio de um experimento sem- capazes de se engajar, tanto indivi-
pre em andamento, no contexto dualmente, como um com o outro,
dos termos de uma situação psica- em um processo de sonhar (OG-
nalítica, na qual analista e paciente DEN, 2007, p. 575).
criam formas de conversar um com
o outro que são singulares a cada Ainda, para o autor:
par analítico em um dado momento
da análise (OGDEN, 2007, p. 575). A área de sobreposição do sonhar do
paciente e do sonhar do analista é o
A partir de sua experiência clínica, o au- lugar em que a análise ocorre. O so-
tor sugere que muitos pacientes são incapa- nhar do paciente, sob estas circuns-
zes de se engajar em um sonho-acordado no tâncias, manifesta-se sob a forma da
setting analítico, seja na forma de associações associação livre (ou em análises com
livres, seja em qualquer outra forma. Em fun- crianças, na forma do jogar); o so-
ção disso, Ogden passou a reconhecer modos nhar acordado do analista em geral
de trabalho, de conversa, que à primeira vista, toma a forma da experiência de ré-
verie. Quando um paciente é incapaz
podem parecer não-analíticas por- de sonhar esta dificuldade torna-se
que paciente e analista conversam o aspecto mais difícil da análise (OG-
sobre coisas como livros, poemas, DEN, 2007, p. 576).
filmes, regras gramaticais, etimo-
logia, a velocidade da luz, o gosto Ogden entende que o “sonhar é a mais
de um chocolate, e assim por dian- importante função mental, em termos psica-
te. Apesar das aparências, diz ele, nalíticos: aonde há o ‘trabalho do sonho’ in-
tenho tido como experiência que consciente há também ‘trabalho de compre-
este tipo de conversa não-analítica ensão’ inconsciente” (2007, p.576).
permite ao paciente e ao analista, A base teórica para este trabalho, suge-
que eram incapazes de sonharem re Ogden, são as ideias de Bion, que determi-
juntos, a serem capazes de fazê-lo. naram a radical transformação na concepção
Chamarei esta forma de conver- psicanalítica sobre o sonhar e sobre incapaci-
sa de ‘falar-como-se-estivesse-so- dade de sonhar. Assim como Winnicott modi-
nhando’. Assim como a associação ficou o foco da teoria e da prática psicanalíti-
livre (e diferente das conversas co- ca do jogo (como representação simbólica do
muns), o ‘falar-como-se-estivesse- mundo interno da criança) para a experiência
-sonhando’ tende a incluir o pen- do jogar, Bion mudou o foco do conteúdo

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simbólico do pensamento para o processo do to limitados em sua capacidade para sonhar
pensar e do significado simbólico dos sonhos suas experiências emocionais na forma de
para o processo do sonhar (OGDEN, 2010). uma associação livre ou em outras formas de
A partir dessas noções, Ogden dá a sua sonhar. Em ambos os casos eram pacientes
própria visão (definição) do que para ele é a eventualmente capazes, com a participação
psicanálise enquanto um processo terapêutico: do analista, de iniciar um engajamento em
uma genuína capacidade de sonhar na forma
Eu vejo a psicanálise como uma ex- de “falar-como-se-estivesse-sonhando”.
periência na qual o paciente e o ana- O primeiro caso é o da Sra. L., uma mu-
lista se engajam em um experimen- lher muito inteligente e bem- sucedida, que
to no interior do enquadramento havia iniciado a análise em função dos inten-
(frame) analítico que é desenhado sos tormentos que lhe causavam o medo de
para criar as condições nas quais o que seu filho de sete anos, Aaron, pudesse
analisando (com a participação do cair e morrer. Ela também sofria muito com
analista) pode ser capaz de sonhar o medo de que ela mesma pudesse morrer,
o que até então eram experiências o que a deixava incapacitada para funcionar.
emocionais não-sonháveis (seus so- Acompanhava este medo a sensação de que
nhos não sonhados). Eu vejo o ‘falar- seu marido, muito egoísta, não seria capaz de
-como-se-estivesse-sonhando’ como cuidar de seu filho caso ela viesse a morrer.
uma improvisação na forma de uma Durante o primeiro ano de análise era só disto
conversa sem uma estruturação rí- que ela era capaz de falar. Todos os outros as-
gida (podendo se tratar virtualmen- pectos de sua vida pareciam não possuir sig-
te de qualquer assunto) na qual o nificado e importância emocional para ela. A
analista participa na capacitação do análise para ela não era para pensar sobre sua
paciente para sonhar seus sonhos vida, mas para que o analista a livrasse dos
ainda não sonhados. Ao assim pro- medos. A vida de sonhos da Sra. L. se consti-
ceder, o analista facilita com que o tuía basicamente de “sonhos” que não eram
paciente possa, mais plenamente, se sonhos, ou seja, ela não se transformava com
sonhar.(OGDEN, 2007, p. 577). a experiência repetitiva de sonhos e pesade-
los em que era incapaz de impedir uma catás-
Ele insiste que isto é bem diferente de trofe depois de outra.
uma situação em que o analista sonha pelo Ogden revela que a sua própria capaci-
paciente (ou faz pelo paciente o trabalho de dade de ensonhamento (réverie) nas sessões
sonhar) o que o paciente não é ainda capaz era esparsa e inútil para o uso do trabalho
de sonhar. Insiste também que para que essa psicológico. A Sra L. teve como característica,
forma de trabalho possa de fato se dar há que desde o início da análise, um modo de falar
se ser ainda mais rígido (e não menos) com re- espasmódico, abrupto de expelir palavras,
lação ao enquadramento analítico. A diferen- como se estivesse tentando colocar o maior
ça essencial entre os papéis do analista e do número possível de palavras em uma mes-
paciente precisa se manter como uma sólida ma expiração. O autor sugere que para ele é
presença durante o tratamento. Já que de ou- como se a Sra. L. tivesse medo de perder o fô-
tra forma o paciente seria privado do analista lego ou de ser interrompida por ele por meio
e da relação analítica de que ele necessita. de uma fala que afirmasse que ele não aguen-
Na sequência do texto, Ogden apresen- tava mais nem um minuto e não suportaria
ta dois fragmentos de análises, dos quais vou nem mais uma palavra dela.
fazer referência apenas ao primeiro. Já pelo segundo ano de análise a pa-
São duas vinhetas clínicas de casos ciente parecia ter perdido toda a esperança
atendidos em que os pacientes eram mui- de que a análise pudesse ser de alguma uti-

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lidade. Continuava com sua fala abrupta não Ele se recusa, inclusive, durante as audiências
deixando nenhuma oportunidade nem para na reitoria a repetir as palavras (uma mentira
ela nem para ele de pensar e sonhar genui- aceitável) que poderiam fazer que a situação
namente. Nesse momento da análise, Ogden pudesse ser contornada. Assim, ele acaba
disse para a paciente que ele pensava que ela sendo demitido. É como se ele sentisse a sua
se sentia como alguém que era tão pouco, era vida inteira como uma desonra e que o inci-
tão fraca, que não tinha substância suficiente dente fosse apenas a mais recente evidência
para conseguir efetuar mudanças por meio deste estado, evidência que ele não pode e
do pensamento e da fala. Depois desta obser- não irá refutar.
vação a paciente fez pausas maiores que as Ogden comenta que embora a paciente
habituais antes de continuar falando. E Ogden tivesse dito isso em seu modo característico,
então comentou que ela deve ter achado inú- era muito distinguível a mudança que ocorre-
til o que ele tinha acabado de dizer. ra: a Sra. L. estava falando com genuína vita-
Nos meses que antecederam a sessão lidade em sua voz sobre algo que não se rela-
que ele relata na sequência, a fala da paciente cionava diretamente com seus medos sobre a
pareceu estar um pouco menos pressionada. morte de seu filho ou de sua própria morte (é
Até este momento, era como se a paciente claro, escreve Ogden, que essa mudança não
sentisse que não havia “tempo” (isto é, es- ocorreu de uma hora para outra, somente
paço psicológico) para pensar e falar de qual- nesse momento da sessão relatada. Era algo
quer outra coisa que não sobre os seus esfor- que já vinha ocorrendo no correr dos anos
ços para não enlouquecer. Mas os medos da de análise, no início com um pouco de humor
paciente de que o filho morresse ou que ela aqui e ali em uma sessão ou por meio de um
mesma morresse diminuíram a ponto dela sonho ocasional com alguma vitalidade, etc.).
voltar a ler, o que ela ainda não havia feito Ele comenta ainda que não falou para a
desde o nascimento do filho. O filho nasceu paciente o que ficou pensando depois de sua
alguns meses depois de ela ter terminado o fala, ou seja, que ela ao falar do narrador do
seu doutorado. romance poderia estar falando para ela mes-
A sessão que Ogden relata é de uma ma e para ele sobre seu próprio conflito psí-
segunda-feira. A Sra. L. conta que durante o quico. Não achou que era o caso de dizer para
final de semana havia relido o romance Dis- ela que um aspecto dela (identificado com a
grace (Desonra), de J. M. Coetzee, publicado recusa do narrador em mentir) parecia lutar
em 1999. Ogden conta que ele e a Sra. L. já com outro aspecto dela (para quem medos
haviam conversado brevemente sobre o tra- de morte impediam a possibilidade de um
balho de Coetzee no ano anterior. E que assim pensamento, de um sentimento e de uma fala
como a Sra. L. ele também admirava bastante genuínos). Segundo Ogden, ter dito algo as-
Coetzee como escritor e que seguramente ela sim a Sra. L. seria o equivalente de acordar a
deve ter notado isto durante a breve conver- paciente daquela que poderia ser uma das pri-
sa que já haviam tido sobre a obra do escritor. meiras experiências de sonho na análise, com
A Sra. L. disse que havia algo sobre o li- o objetivo de contar para a paciente o seu (de
vro (que se passa na África do Sul pós-apar- Ogden) entendimento do sonho. Mas, escre-
theid) que a faz querer voltar para ele. O nar- ve Ogden, era fundamental que ele fizesse
rador (um professor universitário) tenta se esta interpretação para ele próprio, silencio-
reconduzir para uma vida mais vitalizada – se samente, já que, como ele mostrará depois,
alguma vez de fato ele esteve vivo neste sen- ele estava nesse momento do atendimento
tido – por meio de uma relação sexual com se engajando em algo bastante semelhante
uma de suas alunas. Parece inevitável que a ao que era vivido pela Sra. L., ou seja, ele tam-
menina o denuncie e quando ela acaba por bém vinha evitando e escapando formas de
fazer a denúncia, ele se recusa a se defender. pensar e sentir.

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Ogden então diz à Sra. L. que a voz de de carro (a paciente amava profundamente o
Coetzee no livro Desonra é uma das vozes pai e se sentia muito amada por ele). Ogden
mais destituídas de sentimentos que ele já leu se dá conta de como ele precisou esquecer
na vida. Coetzee deixa claro em cada sentença este relato, não conseguindo pensar/sonhar/
que ele não quer bordejar as quinas de qual- falar/lembrar o que era verdadeiro para a ex-
quer experiência humana que seja. Uma ex- periência emocional que estava ocorrendo.
periência é o que é, nem mais nem menos. Ao No seu trabalho com a paciente, por muito
dizer isto, Ogden sentiu como se ele estivesse tempo ele não foi capaz de pensar/sonhar/
entrando em uma forma de pensar e falar com lembrar e manter vivo nele a enorme (e inima-
a paciente que era diferente de todas as trocas ginável) dor que o pai da paciente e a pacien-
que haviam ocorrido previamente na análise. te viveram em relação a estas mortes. O autor
A Sra. L., para surpresa de Ogden, con- diz ter ficado completamente perplexo por
tinuou a conversa dizendo que havia algo so- sua inabilidade em manter vivo nele o impac-
bre o que aconteceu entre os personagens e to emocional destas mortes.
no interior dos personagens – não interessa o Ogden diz que começou a se sentir ca-
quão bizarro possa parecer – que é estranha- paz de sonhar (ou seja, de fazer trabalho psi-
mente correto. Ogden diz então algo que não cológico consciente e inconsciente) o que ele
parecia se seguir ao que havia sido dito: “Você agora percebia ser o sentimento de desgraça
pode ouvir nos livros iniciais de Coetzee um e de vergonha vivido pela paciente por estar
escritor que ainda não sabia quem ele era viva no lugar da primeira mulher e da filha de
como escritor ou mesmo como pessoa. Ele seu pai e no lugar das partes de seu pai que
parece desajeitado tentando isto ou aquilo. haviam morrido com elas.
Eu às vezes me sinto envergonhado por ele”. A seguir, a Sra. L. diz: “Nos livros de
[o analista comenta que isto dizia respeito Coetzee morrer não é a pior coisa que pode
mais ao que ele sentia na sessão com a Sra. L. acontecer a uma pessoa. Por alguma razão
sobre os movimentos desajeitados que ele e eu acho esta ideia reconfortante. Eu não sei
a paciente faziam para começar a pensar/so- por que, mas eu me lembrei de uma passa-
nhar/falar desta nova forma]. gem que eu adoro do livro de Memórias de
A Sra. L. continuou com outra fala que Coetzee. Ele diz, próximo do final, algo como:
parecia não dar sequência a esta: “Mesmo Tudo que podemos fazer é persistir estupi-
depois do estupro sofrido pela filha do narra- damente, como um cachorro, repetindo os
dor e da matança a tiros dos cachorros que a nossos fracassos”. A seguir a Sra. L. ri profun-
sua filha tanto gostava, o narrador achou uma damente, de um jeito que eu nunca a tinha
forma de se segurar nos fragmentos de hu- ouvido rir. Depois ela ficou mais séria e disse:
manidade que se mantinham vivos para ele” “Não há nada de glamouroso em fracassos
[nesta passagem a paciente comenta a forma repetidos enquanto eles estão acontecendo.
como o narrador, no livro de Cotzee, passa a Eu me sinto como uma fracassada como mãe.
trabalhar com uma senhora que funcionava Eu não posso mentir para mim mesma e fingir
como veterinária e sacrificava os animais que que minha obsessão com a possibilidade de
ninguém tinha coragem de matar, evitando meu filho morrer não é sentida por ele e não o
assim sofrimento maior.] ‘mata de medo’. Eu não queria colocar desta
Nesse momento da sessão, o autor co- forma, ‘mata de medo’, mas isto é o que sinto
menta que começou a pensar que a paciente que estou fazendo com ele. Eu estou terrifica-
havia lhe contando no início da análise e de da com o fato de que eu possa estar matan-
novo uns três meses antes da sessão relatada, do ele de medo e eu não consigo parar com
de perdas muito grandes que ela havia passa- isso. Esta é a minha desonra, minha vergonha,
do na vida: o pai havia perdido a sua primeira minha desgraça”. A Sra. L. chorava enquanto
mulher e a filha de três anos em um acidente falava isto. Pareceu claro, diz Ogden, neste

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momento que a resposta emocional do pai da Adelaide, na Austrália, da decepção de ambos
Sra. L. à suas “impensáveis” perdas a mata- com relação aos dois últimos livros de Coet-
ram de medo. zee e muitas outras coisas que Ogden diz não
Ogden então disse à paciente: “Eu pen- saber ao certo se foram nessa mesma sessão
so que você se sentiu desgraçada a sua vida ou nas seguintes ou mesmo o que foi falado
toda. A dor do seu pai era insuportável não por um ou por outro.
só para ele, mas para você também. Você não Ogden conclui, retomando como a con-
pode ajudar o seu pai com sua dor inimaginá- versa dele com a paciente sobre os livros
vel. A dor dele era uma coisa tão complicada serviu como uma forma de “falar-como-se-
para você, era uma dor muito além do que -estivesse-sonhando”. Era uma experiência
qualquer pessoa poderia suportar”. Este foi o de sonhar que não era exclusivamente da pa-
primeiro momento na análise em que Ogden ciente nem dele.
pôde falar da impossibilidade da paciente em As ideias de Ogden sobre o tema da alte-
ajudar seu pai, mas também de sua inabilida- ridade não se reduzem às aqui apresentadas.
de em sonhar a sua experiência em resposta Entendo que a sua forma de conceber a psica-
à dor do pai. nálise representa o exemplo mais nítido de que
A sequência da sessão mostrou a Sra. L. as descobertas de Freud não recebem plena
evoluindo em suas associações, fazendo men- justiça quando são incluídas como um exemplo
ções mais diretamente transferenciais a partir de um solipsismo filosófico, na compreensão e
de personagens de outros livros de Coetzee teorização do psiquismo humano. Longe disto,
que ela compara com a relação que ela tem a psicanálise passa a ser, cada vez mais, uma
com Ogden como analista. Conversaram ain- prática e uma forma de conhecimento em que
da sobre a escolha de Coetzee em morar em a alteridade tem lugar constitutivo.

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Dados do autor:

Nelson Ernesto Coelho Junior (USP)


Psicanalista, professor e pesquisador do Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo e doutor em
Psicologia Clínica pela PUC-SP

Recebido: 29/11/2011
Aprovado: 25/09/2012

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