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R V O

Marco Morel
Professor adjunto do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em História pela Universidade de Paris I.

Palavras Além das Letras


Apontamentos sobre imprensa e oralidade
na primeira metade do século XIX

O artigo se propõe a analisar formas de The purpose of the article is to analyze


circulação e transmissão relacionadas à circulation and transmission related
imprensa que não se limitam ao espaço to the press, but not limited to it. The focus
impresso. Com enfoque na interseção entre lies of intersection between the spoken
as palavras impressa e falada, o autor toma and the written words. The author studies
como estudo de caso jornais do Rio de Janeiro dos the newspapers in 1920’s Rio de Janeiro, besides
anos 1820, além de relatos de diplomatas franceses French diplomats’ accounts of the “public voices”,
sobre as “vozes públicas”, tendo, criticamente, como considered critically as a reference to the recent
referência, a recente historiografia cultural francesa. French cultural historiography.
Palavras-chave: história da imprensa; oralidade e Keywords: history of press; orality and press;
imprensa; história cultural. cultural history.

É
difícil estudar a imprensa além da palavras faladas sobre o espaço impresso.
palavra impressa. O objetivo deste Tal movimento compõe uma via de mão du-
trabalho, porém, é justamente pla incluindo o trajeto no sentido inverso,
chamar atenção para formas de circulação ou seja: o “transbordamento” das palavras
e transmissão que, relacionadas à impren- do papel para as vozes – que, entretanto,
sa, não se limitam a ela: a “invasão” de não será abordado aqui. Não é apenas um

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esquema dual: mais precisamente, trata-se P osições historiográficas índice

A
de um campo de várias vias e cruzamentos. se col
análise da inter-relação entre
O enfoque, portanto, centra-se na nem sem- as rela
a palavra escrita e a falada,
pre visível área de interseção entre palavras que e
no âmbito dos impressos, não
impressa e falada. radora
é exatamente novidade no campo da
realid
Recorrendo à conhecida fórmula introdu- historiografia. Descartando aqui outros
são (n
tória e defensiva do antes-que-me-digam: gêneros de estudo, como os antropoló-
relaçõ
não intenciono supervalorizar e tomar tais gicos, linguísticos ou literários (embora
expressões extra letra como forma única comp
tais contribuições sejam preciosas para
e predominante de transmissão, pois não poder
os historiadores), há algumas indicações
seria adequado perder de vista as especi- em qu
a assinalar na segunda metade do século
ficidades de universos tão distintos, ainda letras
XX. Veja-se, por exemplo, um conjunto
que interligados, como a escrita, a impres- alfabe
de autores anglo-saxônicos que nos anos
são e a oralidade – com seus respectivos 1960-70 considerou que o advento da Outra
protocolos, paradoxos e complexidades. imprensa, ao invés de separar, ao contrá- Brasil
Mas o objetivo aqui é assinalar interações rio, aproximou universos até então mais bito d
entre estes universos num contexto dado, nitidamente apartados, como as elites a Fran
ou seja, o Brasil da primeira metade do letradas e as populações pobres, ou a atuan
século XIX, mais particularmente em torno escrita e a oralidade, através do que cha- estud
da imprensa periódica da cidade imperial maram “intercâmbio cultural cruzado”. domín
do Rio de Janeiro. E assinalando, neste Compreendendo a imprensa não ape- Franc
recorte, o papel de agentes intermediários nas como fonte de ideias, mas também bre o
franceses na elaboração de percepções como geradora de relações, tais autores mada
sobre este entorno de palavras que circula- detinham-se preferencialmente no estudo reperc
vam em diferentes espaços, seja pelos tes- do Renascimento, na Europa, e tomavam fins d
temunhos da época, seja pelo diálogo com como objeto os efeitos da recente cria- do aq
a recente historiografia sobre o cultural. ção da imprensa em ambientes popula- para o
O texto está apresentado da seguinte ma- res como definidora de novas relações duas
neira: inicialmente, uma breve discussão culturais e políticas. Ao mesmo tempo, no in
historiográfica sobre o tema, com foco nas a perspectiva de estudo destes autores, fica. R
historiografias francesa e brasileira. Em ainda que com diferenças e nuances entre Bourd
seguida, serão tratadas questões relativas à si, enfatizava a alfabetização e a leitura entre
oralidade que aparecem no papel impresso como for mas de acesso à escrita, até discu
por meio do relato dos agentes diplomáticos porque compreendiam que as estruturas media
franceses e, consecutivamente, em periódi- e hierarquias sociais e suas respectivas entre
cos cariocas dos anos 1820-30. Ao fim, rá- visões de mundo é que determinam as estud
pidas conclusões e esquemas explicativos. expressões culturais e condicionam os textos

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índices de acesso à cultura letrada. Não ticas, mas são formas de acesso a elas.
se colocavam, portanto, paradoxalmente, Chartier reforça o argumento de que o
entre
as relações estabelecidas pela imprensa, historiador atual só pode ter acesso às
alada,
que eles próprios destacavam, como ge- falas e vozes daquelas épocas estudadas
s, não
radoras e com potencial de interferir na através do registro escrito. 2
po da
realidade social, mas, sim, como expres-
outros Ainda no âmbito desta história cultural,
são (não usavam o termo “reflexo”) de
opoló- Robert Darnton fez a instigante escolha
relações sociais predeterminadas, nem
mbora de estudar indivíduos e grupos não “ilu-
compreendiam o peso que a oralidade minados” durante o Iluminismo francês,
s para
poderia ter neste conjunto, na medida procurando demarcar-se da história das
ações
em que privilegiavam o acesso direto às ideias – onde eram abordados, preferen-
éculo
letras por pessoas das camadas pobres cialmente, autores consagrados e obras
njunto
alfabetizadas. 1 escritas. Ou seja, enfoca não o pensamen-
s anos
to da Outra tendência – bem mais difundida no to formalizado e concatenado em tendên-

ontrá- Brasil – sobre a mesma temática no âm- cias e autores filosóficos, mas as visões

o mais bito da historiografia francesa (ou sobre de mundo, no cotidiano, das camadas

elites a França) das décadas de 1970-80, ainda pobres da população. Darnton compreen-

ou a atuante nos dias de hoje, baseou seus de, em linhas gerais, os modos de pensar

e cha- estudos preferencialmente nos amplos destes setores como se fossem textos a

zado”. domínios do Iluminismo e da Revolução serem analisados e contextualizados. Na

ape- Francesa do século XVIII, bem como so- esteira de Michel Foucault e do diálogo

mbém bre o século XVII, caracterizando a cha- com a linguística, pode-se dizer que ele

utores mada História Cultural, com expressiva trata de práticas discursivas e práticas não

studo repercussão na historiografia brasileira de discursivas. 3

mavam fins do século XX e início do XXI. Olhan- Percebe-se, portanto, a diferença, neste as-
e cria- do aqui – e de modo sintético – apenas pecto, entre Chartier e Darnton no tocante
opula- para o objeto do presente artigo, vemos à maneira de compreender e abordar as
ações duas principais posições se delinearem relações entre letras e vozes. Essa ques-
empo, no interior desta tendência historiográ- tão resvala para outra discussão ampla e,
tores, fica. Roger Chartier, na esteira de Pierre em geral, de posições cristalizadas, que
entre Bourdieu, aponta para a irredutibilidade é a da cultura popular. Embora evidente-
eitura entre a lógica da prática e a lógica do mente relacionada ao tema deste estudo,
a, até discurso, considerando o texto como tal discussão não será levada em conta
uturas mediação: seja intermediando a relação aqui. Identidade nacional, identidade de
ctivas entre o historiador e o objeto que ele classe social, identidade cultural, identida-
am as estuda, seja como metáfora, isto é, os de étnica – no plural ou no singular, tais
am os textos não constituem as próprias prá- identidades são relevantes e cruciais, mas

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formam um oceânico arcabouço teórico e parece destacada das relações sociais? falas q
político que foge aos objetivos deste arti- Respondendo rapidamente: acredito que aquele
go. Por ora, gostaria apenas de assinalar não. As expressões orais e impressas se e a
que considero problemático tomar como estão marcadas pela clivagem social, dos te
referência coesa a noção de “popular” mas não se confundem simetricamente depen
como portadora quase natural de projetos com estas – como o próprio Ginzburg ca, me
políticos e visões de mundo, muitas vezes deve concordar. Não sendo, pois, redutí- que a
confundidos de forma “i-mediata” com veis entre si tais dimensões, o enfoque perspe
posições na hierarquia social. a ser escolhido pode variar, sem criar Franço
incoerências: seja estudar oral/escrito povo,
Outra referência marcante – e, igualmen-
marcados pelos conflitos sociais, mas ção do
te, com forte repercussão no Brasil – veio
com dinâmicas próprias, seja proceder dos es
do historiador italiano Carlo Ginzburg,
por meio da categoria de circularidade. inversamente. Além do mais, com todo o Na me
Na síntese do próprio autor: “(...) termo potencial criativo que a categoria de circu- impor
circularidade: entre a cultura das classes laridade efetivamente contém, ao abrir a Danie
dominantes e a das classes subalternas compreensão para a circulação da palavra rarem
existiu, na Europa pré-industrial, um re- em diferentes espaços e instâncias, con- ou se
lacionamento circular feito de influências vém deixar a ressalva de que a noção de estrut
recíprocas, que se movia de baixo para círculo (denota um campo limitado) bem das se
cima, bem como de cima para baixo (...)”. 4 como a dualidade “de baixo para cima e (veícu
de cima para baixo” (implica em hierar- formu
Esta é uma perspectiva fecunda, na medi-
quia) podem não dar conta da polissemia persp
da em que admite e ressalta as relações
complexa e dos caminhos muitas vezes como
não somente entre a oralidade e a escrita,
inusitados das palavras faladas e gravadas
mas entre as diferentes condições sociais. Igualm
no papel.
Ginzburg não limita, pois, sua compreen- histor
são de cultura a uma simples associação Assinalo a contribuição da historiadora podem
entre oral/popular de um lado e erudito/ francesa Arlette Farge, que, em seus tra- aqui u
letrado de outro, o que seria uma falsa balhos sobre as camadas pobres da França mula
dicotomia, já que indivíduos de ambas as do século XVIII, chama atenção para as histor
condições podem se expressar oralmente marcas que a oralidade deixa na escrita Ilumin
ou por escrito, ou se apropriando da escri- e destaca o que nomeia como “opinião presso
ta impressa. Mas procura compreender as pública popular”. Deste modo, é possível mente
interações, partindo da clivagem social. superar a visão de que os textos (mesmo as co
Diante da concepção de Ginzburg, cabe os gerados pelo aparelho repressivo poli- pelas
a indagação: seria a abordagem centrada cial e judiciário, como os que ela estudou) defini
na divisão entre oralidade e escrita (im- são monolíticos, mas que, ao contrário, signifi
pressa) incompleta, na medida em que encontram-se atravessados por vozes e difund

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ciais? falas que, aprisionadas muitas vezes como direito de liberdade de expressão. 8 Este
o que aqueles que as pronunciam, intrometem- somatório, portanto, carrega a noção de
essas se e até subvertem, em parte, o sentido “imprensa” de conteúdos distintos que,
ocial, dos textos produzidos para coibi-las – a deste modo, se aproximam e parecem
mente depender, está claro, da perspectiva teóri- sempre interligados. A compreensão da
zburg ca, metodológica e política do historiador imprensa como portadora de luzes para
edutí- que as estuda. E, da mesma forma, a
5
os despossuídos delas, tão marcante no
foque perspectiva do historiador hispano-franco, ideário iluminista e assídua nas intenções
criar François-Xavier Guerra, sobre as vozes do dos próprios redatores de periódicos,
scrito povo, destacando a importância da circula- pode ser matizada justamente no estudo
, mas ção dos rumores e falas como integrantes deste complexo e ainda pouco conheci-
ceder dos espaços públicos. 6
do campo de interseção, cruzamento e
odo o Na mesma linha de reflexão, acredito ser circulação entre palavra falada e palavra
circu- importante assinalar a contribuição de impressa.
abrir a Daniel Roche e Robert Darnton ao conside- Na ainda recente renovação historiográfica
alavra rarem a imprensa como agente histórico, brasileira sobre a imprensa, em boa medi-
, con- ou seja, não apenas discurso, reflexo de da marcada pela história cultural francesa
ão de estruturas socioeconômicas determina- acima citada, a questão tem aparecido,
) bem das sem disputas ou, ainda, mero canal embora não seja rigorosamente uma novi-
ima e (veículo) simplificado de ideias políticas dade. Em trabalhos anteriores, como os de
hierar- formuladas em outras instâncias. Esta Nelson Werneck Sodré e Arnaldo Contier,
semia perspectiva facilita o estudo da imprensa o tema já era abordado. Em outros mais
vezes como objeto, não apenas como fonte. 7
atuais, como os de Isabel Lustosa e Lúcia
vadas
Igualmente, este conjunto da recente Bastos Pereira das Neves, para citar alguns

historiografia cultural francesa, se assim dentre os mais representativos, também.


adora podemos chamar, sobre o qual não cabe Ocorre que, apesar das evidentes diferen-
us tra- aqui uma resenha crítica ou síntese, for- ças entre tais trabalhos, cada qual com sua
França mula a possibilidade de libertação, pelos contribuição original, a tendência comum
ara as historiadores, de parâmetros caros ao é, por um lado, reconhecer a importância
escrita Iluminismo, como o de que os papéis im- e o peso da oralidade diante da imprensa
pinião pressos são portadores de luzes potencial- recém-criada no território brasileiro (reto-
ssível mente transformadoras e que influenciam mando os argumentos da precariedade da
mesmo as consciências e, assim, espalham-se alfabetização e das tiragens reduzidas, por
o poli- pelas sociedades. A própria Encyclopédie exemplo) e, por outro, não desenvolver
udou) definia imprensa ( presse) num feixe de de modo efetivo as possíveis ligações e
trário, significados: máquina de imprimir, arte de marcas recíprocas entre a oralidade e a
zes e difundir o discurso, fonte de progresso e escrita impressa. 9

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Na historiografia brasileira, há obras de A intermediação francesa: tenha


cunho sociopolítico que tratam das rela- (des)caminhos das Luzes que es

E
ções entre os diversos grupos e setores destin
m trabalho anterior, eu já havia
sociais evidenciando que, apesar dos Relaçõ
assinalado que, mesmo após o
conflitos e distâncias, havia justamente re- quais
surgimento da imprensa periódi-
lações entre eles, ainda que assimétricas. ca no Brasil, havia um complexo universo co Fra
Essas concepções da sociedade brasileira de palavras – manuscritas ou faladas – que funda
oitocentista ajudam a compreender que se mantinham em circulação, sobretudo hoje a
as elites culturais, mesmo formando um nos espaços urbanos. 12 A imprensa recém- revela
universo peculiar, não estavam totalmente produzida no território brasileiro era como lítica e
isoladas do contexto em que viviam, ainda ilha num mar de oralidade; não havia como ra daq
que pretendessem, em sua autoimagem, evitar contatos recíprocos. Por outro lado, como
este distanciamento e superioridade como é sabido que a mesma imprensa traria mu- elites
forma de distinção. 10
Tais relações ocor- danças importantes e um reordenamento Novo
riam também por meio desta circulação nos espaços públicos e na forma de cir- de pr
de palavras. culação das palavras. Trata-se, a seguir, presen
não propriamente de compará-las, como a infer
Arnaldo Contier, em seu trabalho pioneiro,
dimensões estanques, mas de indagar tiça, q
cita Antonio Candido, que, em instigante
como se relacionavam. Resta, porém, uma afirma
análise sociológica da literatura, aponta
questão preliminar: como acessar hoje tal partid
justamente o transbordamento da palavra
universo da oralidade do início do século
impressa em direção à oralidade, através Vale d
XIX? A resposta não deixa opções além
de diferentes formas de retórica, espraia- repres
dos registros escrito e iconográfico.
das em espaços urbanos, no século XIX períod
brasileiro. 11 Trata-se, nesta linha, do estu- Cabe ressaltar que, entre as narrativas in- oriund
do de gêneros escritos que intencionam a tencionais (não muito numerosas) destas rio (ul
expressão oral, como declamação literária, expressões, estavam as de agentes diplo- justam
retórica política ou jurídica, edição de ser- máticos franceses dos anos 1820-30 no ca (18
mões, entre outros. Ao mesmo tempo, tal Rio de Janeiro.13 Os relatos de tais repre- Monar
movimento do impresso que transborda sentantes da França podem ser lidos não eram
para a verbalização pode ser estudado no estritamente no sentido diplomático, mas, mas a
próprio formato do jornal, preço, tiragem, neste caso, como testemunho, à maneira afetad
iconografia etc., além da vontade expres- dos escritos de viajantes estrangeiros – inclus
sa pelos redatores de atingir um público ainda que “viajantes” com perfil e inserção cesa,
específicos naquela sociedade.
carente de letras e luzes. Essa vertente, Quase
como já foi anunciado, não será tratada A escrita desses agentes governamentais, conde
no presente artigo, embora constitua uma a princípio não destinada à publicação ou ser
das vias do cruzamento aqui abordado. (embora um deles, o conde de Saint-Priest, admin

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tenha publicado, posteriormente, livros, nham, portanto, posição determinada nes-


que estão a merecer atenção), tinha como tes cruzamentos culturais e políticos, não
destinatários os sucessivos ministros das raro aliando-se a interesses econômicos e
havia
Relações Exteriores na França, entre os políticos dos grupos dirigentes brasileiros.
pós o
quais o conhecido escritor e homem públi- Expressaram, a seu modo, determinado
eriódi-
co Françoise-René Chateaubriand, um dos perfil do que seria uma identidade nacio-
iverso
fundadores do Romantismo.14 Acessíveis nal brasileira – expressões presentes em
– que
hoje a pesquisadores, tais documentos parcela significativa das elites culturais e
etudo
revelam-se como instigante crônica da po- políticas europeias e que ajudaria a for-
ecém-
lítica e dos costumes da sociedade brasilei- mar, de certo modo, a identidade nacional
como
como ra daquele momento – e, destacadamente, forjada pelas mesmas elites brasileiras.

o lado, como expressão das visões de setores das Se, ainda assim, insistíssemos em des-
ia mu- elites europeias face às jovens nações do tacar as Luzes francesas sobre o Brasil,
mento Novo Mundo. 15 Os relatos são pontuados seria preciso admitir que elas passavam
de cir- de preconceitos e estereótipos, alguns pelo filtro da Restauração monárquica, do
seguir, presentes ainda hoje, como o racismo e ponto de vista político, cultural e até edi-
como a inferioridade da população negra e mes- torial – como no caso do livreiro e editor
dagar tiça, queixas sobre o calor dos trópicos e francês Pierre Plancher no Rio de Janeiro
m, uma afirmação da inexistência de verdadeiros do mesmo período, que tinha como prin-
oje tal partidos políticos, entre outros pontos. cipal filão editorial a venda e edição de
século obras contrárias à Revolução Francesa.16
Vale destacar que o perfil geral de tais
além
representantes franceses no Brasil neste Ainda levando em conta tais mediações
.
período pós-Independência era de homens entre o olhar dos agentes franceses e as
vas in- oriundos do ambiente contrarrevolucioná- expressões que eles narravam, ou seja,
destas rio (ultra-royaliste) francês e que serviam, compreendendo esses testemunhos tam-
diplo- justamente, sob a Restauração monárqui- bém como integrantes daquele contexto,
30 no ca (1814-1830) e, em seguida, durante a eles nos trazem pistas interessantes.
repre- Monarquia de Julho (1830-1848). Ou seja, Associavam, com frequência, a “agitação
os não eram não apenas agentes diplomáticos, crescente dos espíritos” com papéis que
, mas, mas atores históricos que haviam sido eram pregados e apregoados pelas ruas,
aneira afetados, prejudicados e combateram, nas portas de residências, igrejas ou esta-
iros – inclusive militarmente, a Revolução Fran- belecimentos comerciais. A expressão de
serção cesa, seus princípios e consequências. rumores, gritos, tensões nas ruas, entreou-
Quase sempre nobres (conde de Gestas, vidas nas casas e palácios, era literalmente
entais, conde de Pontois, conde de Saint-Priest) narrada como se essas vozes tomassem
cação ou servidores da Coroa ligados ao aparelho conta das ruas e compusessem parte ativa
Priest, administrativo e militar (coronel Maler), ti- do cenário e das discussões políticas.

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Um destes testemunhos é particularmen- marcantes e das intrigas e disputas da a ser


te significativo, para esclarecer o ponto Corte imperial, às quais os diplomatas ti- (mas
de vista dos diplomatas diante das vozes nham acesso privilegiado. Tomados assim dios d
públicas por eles presenciadas: em conjunto, reconstituídos criticamente assum
a partir dos olhares dos diplomatas euro- identif
J’ai lu hier un placard manuscrit affiché
peus, podemos afirmar que esses papéis oposiç
à la porte de M. François de Paula, qui
e vozes tinham papel preponderante na de Jan
y demandait la tête des personnes les
constituição dos espaços públicos da esta fo
plus distinguées et on veut envoyer aux
época. tual, o
galères en Afrique la plupart des indivi-
tura. D
dus attachés auprès de la personne du
As vozes marcam a imprensa conte
souverain. J’ai vu toute espèce de Gens

A
o reco
en faire des copies avec une effronterie o lado desses relatos dos
tente
inconcevable.17 agentes franceses, a marca da
da ora
oralidade na imprensa pode ser
Percebem-se, nesta citação, elementos próxim
captada nos próprios periódicos. Trata-se,
instigantes. O folheto manuscrito, afixado não em
como é sabido, de fonte documental de
à porta de uma residência, portanto volta-
dimensões oceânicas, mesmo nas primei-
do para a rua, trazia proposições políticas
ras décadas do século XIX. Ainda assim,
ousadas e contundentes – eram lidas e,
são frequentes tais marcas, e a seguir
sobretudo, copiadas “por toda espécie de
apresentarei uma reduzida amostragem,
gente”, isto é, por pessoas fora do habitu-
à guisa de exemplo pontual, consciente
al público leitor de periódicos ou livros,
pelo menos aos olhos desta autoridade de que justamente este outro oceano, o

europeia. Era mais um trajeto da palavra da oralidade, mescla suas palavras com

– manuscrita, lida coletivamente, afixada a imprensa.

nas ruas e copiada – que se delineava. Para capturar o universo da oralidade na

É curioso verificar que o registro da cir- imprensa dessa época, nada melhor do

culação de papéis anônimos, em geral que escolher um contexto de crise política

qualificados de “incendiários” e portando ou social aguda, quando as expressões

conteúdos polêmicos e políticos, quando ficam mais visíveis e intensas, ou, ainda,

não ofensivos, era constantemente acom- periódicos que se envolvem diretamente

panhado das falas que os narradores cha- em tais momentos, sobretudo os que se
mavam de turbulentas ou ameaçadoras. propõem a mobilizar e tomam partido nos
Tais papéis e vozes ocupavam espaço conflitos. Vozes da rua aparecem aí em
considerável na correspondência destes alto diapasão. Porém, contrariando esta
diplomatas franceses, ao lado das publica- relativa facilidade metodológica, apresen-
ções dos jornais (muitas vezes anexados to aqui como exemplo principal um jornal
ao relato), dos acontecimentos políticos que não se propunha, naquele instante,

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as da a ser um mobilizador de ações imediatas ou mudanças – como foram, por exemplo,


atas ti- (mas de consciências), e fora de episó- os anos 1821-22, e também 1831-33, que
assim dios de turbulências políticas (embora propiciaram não só um aumento quantita-
mente assumindo uma posição definida): Astréa, tivo de papéis em circulação, mas de uma
euro- identificado com os liberais moderados, de ampliação da palavra pública, logo, de
papéis oposição ao governo de d. Pedro I, no Rio maior visibilidade do objeto aqui tratado.18
nte na de Janeiro, em 1828. Em complemento a
Diferentes tipos de expressão oral apa-
os da esta fonte acrescento, de modo bem pon-
recem nas páginas do jornal Astréa. Um
tual, outros periódicos da mesma conjun-
deles é a leitura coletiva de papéis, por
tura. Dessa forma, escolhendo periódico e
meio da circulação de mão em mão e da
contexto fora dos padrões esperados para
repercussão junto a um grupo definido.
o recorte temático, parece-me mais consis-
s dos
tente comprovar e analisar esta “invasão” Zeloso do crédito, e honra do meu
rca da
da oralidade no papel impresso, num ritmo Comandante de quem sou amigo por
de ser
próximo ao cotidiano daquela sociedade, conhecer nele probidade, não posso
ata-se,
não em um momento de maiores tensões deixar de tributar-lhe este ofício de ami-
tal de
rimei-
assim,
seguir
agem,
ciente
ano, o
s com

de na
or do
olítica
ssões
ainda,
mente
que se
do nos
aí em
o esta
resen-
jornal
tante, Edição n. 249 do jornal moderado Astréa , do Rio de Janeiro, 1828

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zade, refutando quanto se acha exarado (ele não especificava qual, nem onde, Mescl
n’um Papel Grande que andou por várias mas a afirmação parecia ter endereço tamen
mãos, dias antes do Entrudo, e em cujo certo), relata ter visto leitura coletiva de gredie
papel se diz haver o dito Comandante jornal: em meio a esse grupo de pessoas, palavr
cometido um erro de Ofício (...). 19
um indivíduo que “tirou d’algibeira a dita
Em ou
folha e se nos pôs a ler o artigo”. E, na
Não cabe destacar aqui, evidentemente, o pse
mesma edição, o jornal destacava que
esta querela no âmbito militar, que teve prime
“mandaram afixar pelas ruas desta cidade
desdobramentos nas edições seguintes e de qu
varios pasquins” de cunho “anarquista”. 20
referia-se à vida pessoal do dito comandan- mente
Não por acaso, a publicação governista
te. Aliás, era comum que papéis anônimos,
assinalava, simultaneamente, a palavra
impressos ou manuscritos, apresentassem
impressa que se oralizava e os papéis que
conteúdos que dificilmente apareciam na
fugiam ao circuito dos periódicos estabe-
imprensa regular, como críticas políticas
lecidos – ambos registrados no jornal, ge-
e sociais mais contundentes e/ou ataques
rando, mais uma vez, esta movimentação
pessoais e injuriosos. É sugestivo o modo
das palavras que não se limitavam a seus
como o papel circulava e era lido pelo
suportes ou vias iniciais, comunicando-se
grupo, bem como sua proximidade com o
reciprocamente.
Entrudo (conhecido festejo carnavalesco).
Não se tratava, pois, de leitura individual, Estas dimensões da oralidade que pude

e seu conteúdo poderia, mais facilmente, perceber no Astréa referem-se, justamen-


Prosse
chegar a ouvidos não alfabetizados. Além te, às marcas das vozes das ruas sobre o
corres
desse fator, a dinâmica da vida urbana, papel: movimentações, conversas, diálo-
o retir
que se alterava com a proximidade do gos e desentendimentos.
“A ind
Entrudo animando as ruas, imbricava-se, Ainda envolvendo um quartel (além da distrai
ainda que indiretamente, com a circulação finalidade militar, era também local de so- pude d
do papel – conjunto que aparecia narrado ciabilidade), registrava-se outra conversa, de de
no jornal. Estabelecia-se, então, um elo, desta vez em um “ajuntamento”: dos Pa
naquele instante, entre o papel que cir-
Chegando a minha noticia, que há dias A segu
culava e era verbalizado coletivamente, a
eu fora censurado (em um ajuntamen- torno
trepidação urbana e o periódico, marcado
to onde se achavam três Oficiais do são qu
assim pelas vozes.
1 e 2 Corpo d’Artilharia de Posição
o o
discus
Corroborando o testemunho do Astréa d’esta Corte, aliás honrados e dignos dos po
no tocante à leitura coletiva, o redator d’estima por seus livres sentimentos) no, di
do Diário Fluminense , órgão de apoio ao de morolo [moroso?] em patentear ao – des
governo imperial (portanto, em posição respeitável Público, pelo Prelo, as abo- cussã
política oposta) também registrava que, mináveis tramas do dito primeiro Corpo se tra
ao se encontrar no meio de um grupo d’Artilharia (...). 21
doutri

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onde, Mesclavam-se na página do jornal: ajun- ca, em uma evidente crítica aos poderes
ereço tamento, conversa, prelo e intriga – in- atribuídos a d. Pedro I.
iva de gredientes constantes deste trajeto das
Está claro que o desenrolar do relato
ssoas, palavras entre oralidade e escrita.
não é a descrição fiel de uma conversa
a dita
Em outra correspondência, assinada com de rua – a qual pode ter sido total ou
E, na
o pseudônimo Mascoto,22 que ocupava a parcialmente imaginada pelo redator da
a que
primeira e a segunda páginas (num total carta como pretexto para externar suas
cidade
de quatro) do jornal, relatava-se, inicial- posições políticas. Trata-se de recurso tra-
sta”. 20
mente, uma procissão: dicional no estilo panfletário e doutrinário
rnista
Era Sexta-Feira e contavam-se sete do de difusão: uso de diálogos, personagens
alavra
corrente mês, quando eu achava-me e cenas mais ou menos fictícias. Mas sem
is que
à tarde no Terreiro do Paço para ver a dúvida tal narração foi embasada em um
stabe-
Procissão. Apenas me achava eu assim evento recente e ocorrido ao ar livre – a
al, ge-
colocado, apareceu com todo o aparato procissão do Senhor dos Passos e, quem
ntação
religioso o Pendão dos Paços, e a sua sabe, em fragmentos de diálogos travados
a seus
presença fez-me recolher o espírito até nesta ou em outra ocasião. De qualquer
ndo-se
então distraído pela multidão de obje- modo, o texto deste periódico usa como
tos pitorescos, que desafiavam-me os recurso – literal ou ficcional – a oralidade
pude
sentidos. 23
e sua transmissão em espaços coletivos,
amen-
Prosseguindo a narrativa, o redator da ligados à vida urbana.
obre o
correspondência reclama que conversas No mesmo jornal, outra passagem merece
diálo-
o retiraram da pretendida concentração: atenção: “Corre por esta Cidade um Soneto
“A indiscrição porém dos meus vizinhos impresso na Tipografia do Diário do Rio de
ém da distraiu-me de tal forma o espírito, que não Janeiro, e que foi lançado no Teatro sobre
de so- pude desempenhar como queria, a qualida-
a Plateia no dia 8 do corrente mês (...)”. 24
versa, de de observador da Procissão do Senhor
Registra-se fugazmente, como em uma
dos Passos injustamente condenado”.
síntese, este trajeto: poema manuscrito,
há dias A seguir, a conversa dos “vizinhos” gira em
em seguida impresso, declamado para a
amen- torno de iniciais no estandarte da procis-
plateia do teatro, circulando pela cidade e
ais do são que, lidas de maneira dúbia, geraram
transcrito no jornal – que não finalizaria,
osição discussão sobre o respeito e a amplitude
necessariamente, esta andança da palavra
dignos dos poderes do monarca enquanto sobera-
que “corre” pela cidade.
entos) no, diálogo no qual o redator se envolveu
ear ao – descambando para uma acirrada dis- Nota-se, aliás, que o “Teatro” (nesse caso
as abo- cussão política que, no decorrer da carta, denominava a casa de espetáculos oficiais
Corpo se transforma, da parte de seu autor, em do Rio de Janeiro) teve, nas primeiras dé-
doutrinação constitucional e antidespóti- cadas do século XIX, papel relevante nes-

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tes espaços públicos em transformação. um elemento para pensar criticamente a al ent


Não era apenas lugar de representação repercussão e presença das referências tipo d
teatral ou musical, nem unicamente palco da França no Brasil, naquele período ponto
para declamações literárias, mas também, pós-Independência e de afir mação de tipogr
e sobretudo, um local de embates polí- identidade nacional – não somente pelas a que
ticos, por parte da plateia. 25
Na falta de ideias impressas, mas também no âmbito e se i
locais previstos institucionalmente para de gestos e falas. mais
assembleias ou manifestações explicita- elites
Na mesma Praça do Rocio onde ficava o
mente políticas, este teatro, situado no teatro (que se chamou, sucessivamente, Ainda
centro da capital do Império, foi como São João, São Pedro e Constitucional, de pre
que apropriado por setores da população nos períodos joanino, Primeiro Reinado anedo
– nem sempre os habituais espectadores e Regências, expressando assim as mu- reitera
– como campo de embates e afirmação danças e lutas políticas), ocorriam outros ções a
de posições. Tornou-se, assim, um espaço destes transbordamentos da leitura da pa- humo
híbrido entre reuniões a quatro paredes e lavra impressa, registrados, também, pela humo
as vozes da rua, mesclando ambas e ge- própria imprensa, ainda que com intuito caráte
rando um ponto privilegiado de circulação de polêmica. Anote-se, aliás, que, infor-
e propagação das palavras. malmente, esta localidade era conhecida

As reações à cultura francesa tomavam como Praça do Teatro, oralidade registrada

aspectos nem sempre esperados no am- pela imprensa.

biente da plateia do teatro. Veja-se, por O conhecido livreiro, jornalista e líder


exemplo, o relato consternado do conde político dos liberais moderados, Evaristo
de Pontois sobre: “(...) cris proférés pen- da Veiga, assinalava, em tom de denúncia,
dant quelques jours au spectacle contre o hábito de “lerem-se Periódicos grátis na
les femmes habillées à la mode Française Praça da Constituição”. A crítica tinha alvo
et coiffées de chapeaux Français; l’arrivée certo e foi prontamente respondida por
au thêatre de l’Impératrice portant un de outro conhecido livreiro e editor, Francisco
ces chapeaux a suffi pour faire ceper ces de Paula Brito: “jamais em minha casa se
indécens tumultes”. 26
lerão Periódicos de graça, e eu não posso
privar que um Freguês que paga com seu
As vestimentas como emblemas políticos
dinheiro qualquer folha se apresse a lê-
foram marcantes no início do período
la; eis o que às vezes acontece”. Ao que
regencial (1831) no Brasil. Tal significado
o mesmo Evaristo rebateu: “É costume
atribuído à cultura das aparências impli-
nas casas, aonde se vendem Periódicos,
cava na escolha de certas vestimentas a
facilitar-se a leitura aos que desejam”.27
serem exibidas, assim como na crítica a
outros padrões culturais – no caso, aqui, Esta pequena contenda, que fazia parte
à moda francesa. Estamos diante de mais de um desentendimento político e pesso- Jornal A

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ente a al entre ambos, serve para revelar outro curavam passar, através da linguagem co-
ências tipo de difusão da leitura que ocorria nos loquial e divertida, determinados valores e
ríodo pontos de venda de jornais, nas próprias propagar sentimentos e convicções. Várias
ão de tipografias e livrarias: o acesso facilitado anedotas tratavam de temas anticlericais,
pelas a quem não podia pagar, mas que sabia envolvendo padres em situações dúbias,
mbito e se interessava em ler. Marca-se assim, embaraçosas ou francamente antipáticas –
mais uma vez, a especificidade entre as numa perspectiva, portanto, de laicização
elites econômicas e as culturais. da política, embora sem a virulência (aliás,
ava o
mente, Ainda no Astréa encontra-se outro modo pouco comum) que caracterizaria a Ques-

ional, de presença da oralidade: a transcrição de tão Religiosa quatro décadas mais tarde.

inado anedotas.28 Era um recurso sistemático e Outras piadas versavam sobre situações
s mu- reiterado, mostrando que mesmo publica- do cotidiano, como trapaças, desonestida-
outros ções a princípio não caracterizadas como des e pessoas enganadas. Em todo caso,
da pa- humorísticas podiam conter sua dose de as anedotas, como se sabe, são típicas da
m, pela humor. Parte expressiva das piadas tinha transmissão oral. Contadas em grupos ou
ntuito caráter político-pedagógico, ou seja, pro- circulando de boca a ouvido, percorriam
infor-
hecida
strada

líder
aristo
úncia,
átis na
a alvo
da por
ncisco
asa se
posso
m seu
e a lê-
o que
stume
dicos,
m”.27

parte
pesso- Jornal Aurora Fluminense , editado por Evaristo da Veiga, Rio de Janeiro

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ruas e botequins, casas particulares e bo- contrário: eram vozes que marcavam o recon
ticas, locais de encontro ou de trabalho papel impresso. Entre os muitos exemplos, todos
no meio urbano. Assentadas no papel im- houve o rumoroso (não se perca pela pala- neces
presso, vinham em forma de vozes e, daí, vra) caso envolvendo Cipriano Barata e as e perí
prosseguiria a propagação pelas falas que acusações de “haitianismo” na Bahia em matiza
faziam rir e distrair. A anedota aparecia em 1831, propagando-se até o Rio de Janeiro. 29
Esses
diversos jornais do mesmo período, não Muitos papéis foram impressos para se
(cuja
só no Rio de Janeiro. Outras facetas deste contrapor a este rumor, aparentemente sem
velam
verdadeiro caleidoscópio da inter-relação sucesso. O rumor pode ser considerado
as tram
entre palavra falada e impressa podem uma versão mais contundente e intensa da
entre
aqui ser assinaladas (apenas como pista chamada “fama pública” ou “voz pública”,
po, sã
para futuras pesquisas) para o período e invocada assiduamente pelos redatores
que b
local tratado – embora não se limitem, do período, quando não queriam se com-
lhes s
evidentemente, a eles. prometer com determinadas posições ou
afirmações, e por isso se referiam a falas Numa
Uma delas é o rumor. Superando-se a tratad
não gravadas no papel.
estreita e literal perspectiva que associa dade
Vale ainda incorporar nessa breve lista,
rumor-boato-mentira, em contraponto às apont
para o Rio de Janeiro e cidades portuá-
informações ou fatos que poderiam ser ver- entre
rias do período, a chegada de navios, do
dadeiramente comprovados, é instigante leitor
estrangeiro ou de outras províncias. Não
compreender a aproximação e repercussão
apenas pelos papéis que o navio transpor-
recíproca entre a imprensa e aquelas falas
tava (correspondência privada, jornais e
relativamente coesas, isto é, com certa
afins), era uma cena comum moradores
coerência e objetivos, que se espalhavam
se aglomerarem no cais para interrogar
facilmente (e febrilmente) pela cidade,
tripulação e passageiros e, assim, saberem
percorrendo diversos grupos sociais, rea-
das notícias atualizadas. Os jornais que,
propriadas e reproduzidas como rastilho de
por sorte, se faziam imprimir naquele dia,
pólvora no ambiente urbano. Tais rumores,
ostentavam algumas destas novidades,
às vezes oriundos de personagens específi-
citando até como foram colhidas.
cos e visando determinados interesses ou
alvos, poderiam ter mais impacto do que a A (quase) impalpável trajetória

imprensa. Eram, pois, tão concretos quan- das palavras

O
to esta, e não apenas falsidade, embora historiador Robert Darnton tra-
seus conteúdos pudessem ser falsos. Apa- çou, visualmente, um esquema
reciam, com frequência, nos periódicos: do que ele chama de “rede de
contestados ou, ao contrário, propagados. comunicação”, pensando em Paris de
Poderiam ser gerados ou reforçados pela meados e fins do século XVIII (ver or-
Circuito
imprensa, mas em geral faziam caminho ganograma a seguir). Como ele mesmo Robert

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vam o reconhece, esse modelo não dá conta de diferentes graus, para o qual o redator se
mplos, todos os trajetos da palavra, nem se aplica dirige e almeja, ou, mesmo à revelia deste,
a pala- necessariamente apenas àquela localidade amplia-se ou altera-se. Há vários perfis de
a e as e período. Mas vale como forma de siste- públicos possíveis de serem traçados, em
ia em matização do tema deste artigo. publicações diferentes e até numa mesma
eiro. 29
publicação. Já audiência inclui o público,
Esses quadros e suas linhas entrelaçadas
ara se mas vai além dele. Tomando a expressão
(cuja descrição aqui seria redundante) re-
e sem ao pé da letra, incorpora aqueles que ou-
velam a dificuldade em se captar e definir
erado vem (e falam).
as tramas complexas nestes cruzamentos
nsa da
entre vozes e impressos. Ao mesmo tem- Numa tentativa de fixar os agentes em
blica”,
po, são como um retrato fluido e parcial diversos pontos destas trajetórias das pala-
atores
que busca fixar as teias moventes, dando- vras, sem hierarquizá-los a priori , pode-se
e com-
lhes sentido e definindo suportes. assinalar: os redatores/escritores, os leito-
es ou
a falas Numa visão de conjunto sobre o tema res diretos, os públicos e seus espaços, e,
tratado, não se pode ignorar a especifici- ainda, o não público, isto é, aqueles que
dade da leitura e da escrita. Deste modo, não só se apropriam da palavra impressa,
lista,
aponta-se a distinção, para a imprensa, como deixam a marca de suas vozes, in-
ortuá-
entre público e audiência. 30
Público seria o diretamente, no papel. Uma síntese desta
os, do
leitor propriamente, letrado, ainda que em discussão, ao mesmo tempo chegada e
s. Não
nspor-
nais e
dores
rrogar
berem
s que,
le dia,
dades,

ria

on tra-
quema
de de
ris de
er or-
Circuito de comunicação das notícias, modelo apresentado pelo historiador
mesmo Robert Darnton em Os best-sellers proibidos da França revolucionária , de 1998

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ponto de partida, encontra-se na gravura oralidade e espaços urbanos do século XIX dos q
aqui reproduzida. num país americano de formação ibérica, transf
perpassado por desigualdades sociais e ao me
Verdade que tal gravura, de George Roux,
diversidades culturais. estabe
se refere à segunda metade do século XIX,
poder
à Venezuela, e foi publicada num livro de As notícias e os rumores corriam, como
de tai
ficção e viagens extraordinárias, do fran- então se dizia. O que equivalia às pala-
cês Júlio Verne, baseada em relatos escri- vras em movimento e transmissão de – e Enfim
tos e visuais de viajantes europeus sobre para – múltiplos pontos simultâneos. A mente
aquelas paragens, sobretudo as obras de polissemia do verbo correr, já registrada das, c
Jean Chaffanjon. 31 Mas ainda assim, com no dicionário de Moraes e Silva de 1813, luzes
todas estas mediações, ela leva a pensar incluía entre seus significados o de “andar
e a visualizar, através destes intermediá- no público”. Ou seja: correm “a moeda, as
rios franceses, a relação entre imprensa, novas, a fama, um livro”.32
N
Tal movimentação de palavras, 1. DA
incluindo a oralidade, não extra- no
Lit
polava sempre e necessariamen- Eli
lim
te um determinado meio social e Gu
podia manter-se no interior dele, 2. CH
Rio
ainda que atiçando divisões e
3. DA
contradições, até pela linguagem Rio
e temática comuns, mais facil- 4. GI
Inq
mente compreendidas e captadas
5. FA
pelos que partilham os mesmos Pa
ag
códigos. Porém, sem eliminar as
6. GU
distâncias e conflitos sociais, as Ide
his
palavras com frequência expan-
7. DA
diam-se (iam e voltavam) entre Sã
tor
diferentes setores da hierarquia ba
da sociedade. Essas palavras 8. EN
int
(impressas ou faladas, com seus
9. SO
pontos de interseção) também 19
LU
poderiam servir de canais de
Pa
contestação justamente às hierar- na

quias estabelecidas, na medida 10. GR


CA
em que não respeitavam seus Pa
Rio
limites e faziam transitar conteú- vid
RE
“Os jornais se misturam”, ilustração do livro O soberbo Orinoco , de Júlio Verne, 1898 Pa

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lo XIX dos que podiam ameaçar, incomodar ou per mitir uma compreensão com mais
érica, transformar atitudes e consciências. Mas nuances deste caleidoscópio que, mal se
iais e ao mesmo tempo, inseridas nas relações fixa diante da visão, já está de novo em
estabelecidas, as palavras em cruzamento movimento. Lutar com palavras é a luta
poderiam servir de reforço e reprodução mais vã, formulou Carlos Drummond de
como
de tais hierarquias e relações. Andrade. Mais particularmente pensando
pala-
de – e Enfim, abandonar, ainda que provisoria- na relação França e Brasil, presente em

eos. A mente, noções preconcebidas e enraiza- diferentes instâncias na temática aqui

strada das, como cima e baixo, círculo fechado, abordada, torna-se instigante não usar

1813, luzes versus ausência de letras, pode nenhuma vez a palavra “influência”.
andar
da, as

N otas
avras, 1. DAVIS, Natalie Zemon. O povo e a palavra impressa. In: Culturas do povo : sociedade e cultura
extra- no início da França moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 157-185; GOODY, Jack (org.).
Literacy in traditional societies. Cambridge: Cambridge University Press, 1968; EINSENSTEIN,
amen- Elizabeth. Some conjectures about the impact of printing on western society and thought: a pre-
liminary report. Journal of Modern History, v. 40, p. 1-56, 1968; CLARK, T. J. Image of people:
ocial e Gustave Courbet and the second French republic, 1848-1851. New York Graphic Society, 1973.
dele, 2. CHARTIER, Roger. “Cultura popular”: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos ,
Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, 1995, p. 179-192.
ões e
3. DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa.
uagem Rio de Janeiro: Graal, 1996.
facil- 4. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes : o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
ptadas
5. FARGE, Arlette. Dire e mal dire : l’opinion publique au XVIIIe siècle. Paris: Seuil, 1992; Idem,
esmos Palavras sem história, história sem palavras. Maracanan, PPGH-UERJ, n. 2, ano II, p. 88-100,
ago.-dez. 2004.
nar as
6. GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias . Madri: Mapfre, 1992 (ver cap. 7 e 8);
ais, as Idem. “Voces del pueblo”: redes de comunicación y orígenes de la opinión publica en el mundo
hispánico (1808-1814). Revista de Indias, Madri, v. LXII, n. 225, p. 357-384, 2002.
expan-
7. DARNTON, Robert; ROCHE, Daniel (org.). Revolução impressa : a imprensa na França, 1775-1800.
entre São Paulo: Edusp, 1996; BERTAUD, Jean-Paul. Histoire de la presse et Révolution. Annales His-
toriques de la Révolution Française, Paris, n. 285, p. 281-298, juil.-sept. 1991 propõe estudo
arquia baseado na gramática e na sintaxe dos textos de época, como expressão de signos políticos.
avras 8. ENCYCLOPEDIE ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers [1751-1772]. Ed.
integral. Marsanne: Édition Redom, s.d. CD-ROM.
m seus
9. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
mbém 1978; CONTIER, Arnaldo. Imprensa e ideologia em São Paulo: 1822-1842. Petrópolis: Vozes, 1979;
LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na independência, 1821-1823. São
is de
Paulo: Companhia das Letras, 2000; PEREIRA DAS NEVES, Lúcia Bastos. Corcundas e constitucio-
hierar- nais: a cultura política da independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan; Faperj, 2003.

edida 10. GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX . Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997;
CARVALHO, José Murilo de. Os bestizalizados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São
seus Paulo: Companhia das Letras, 1991; MATOSO, Kátia de Queiroz. Bahia, uma província no Império.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992; SILVA, Eduardo. Dom Obá II d’África, o príncipe do povo:
onteú- vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 2001;
REIS, João; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito : a resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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11. CONTIER, Arnaldo, op. cit., p. 38, retoma a perspectiva de Antonio Candido, O escritor e o pú-
blico. In: A Literatura no Brasil, vol. I. Rio de Janeiro: Sul Americana, 1956, p. 102.
12. MOREL, Marco. A “voz popular” através de manuscritos, gritos e gestos. In: As transformações
dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial do Rio de
Janeiro (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 1995, cap. VII, p. 223-239. O presente artigo retoma
e dialoga com temas tratados em minha tese de doutorado, publicada no livro citado nesta nota
e em outras adiante.
13. MOREL, Marco, op. cit., p. 67-82.
14. COSTA, Wilma Peres. Entre Viena e Verona: Chateaubriand, a confluência dos tempos e dos
mundos (1815-1822). Original gentilmente cedido pela autora.
15. Cf. nota 17.
16. MOREL, Marco, op. cit., cap. 1, “As revoluções nas prateleiras da rua do Ouvidor”.
17. “Eu li ontem num cartaz escrito a mão, preso à porta do Sr. Francisco de Paula, em que se pedia
a cabeça de pessoas as mais distintas e que se pretendia enviar para a África nas galés a maior
parte dos indivíduos próximos à figura do soberano. Eu vi toda a espécie de gente fazendo cópias
com um descaramento inconcebível.” Correspondance politique du Brésil, vol. 1, Archives du
Ministère des Affaires Étrangères, Paris, despacho de 5/3/1821. Nenhuma das peças citadas por
estes diplomatas foi ainda localizada em arquivos brasileiros: utilizo aqui apenas a referência
destes agentes. Os relatos destes diplomatas e as questões sobre eles foram tratadas em MOREL,
Marco, op. cit., p. 68-83.
18. Para análise qualitativa e quantitativa da imprensa nesses períodos, ver BASILE, Marcello. O Im-
pério em construção: projetos de Brasil e ação política na Corte regencial. Tese (Doutorado em
História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2004; PEREIRA DAS NEVES, Lúcia, op. cit.; MOREL, Marco, op. cit., parte II.
19. Astréa, Rio de Janeiro, Typographia da Astréa, n. 249, 21/2/1828, p. 1.
20. Diário Fluminense, n. 23, 24/3/1830.
21. Astréa, Rio de Janeiro, Typographia da Astréa, n. 289, 3/6/1828.
22. Mascoto: grande martelo usado na fabricação de moedas.
23. Astréa, Rio de Janeiro, Typographia da Astréa, n. 261, 20/3/1830, p. 1-3.
24. Astréa, Rio de Janeiro, Typographia da Astréa, n. 269, 12/4/1830, p. 1.
25. Sobre o ambiente político no Teatro no Rio de Janeiro deste período, ver MOREL, Marco, op. cit.,
p. 233-239.
26. “(...) críticas feitas durante alguns dias no espetáculo contra as mulheres vestidas à moda fran-
cesa e de chapéus franceses; a chegada da Imperatriz ao teatro usando um desses chapéus foi
o suficiente para fazer cessar esses tumultos indecentes.” Correspondance politique du Brésil,
vol. 12, Archives du Ministère des Affaires Étrangères, Paris, despacho de 30/9/1831.
27. Aurora Fluminense, n. 564, 2/12/1831.
28. Apenas nesta amostragem, encontram-se anedotas nos seguintes números do primeiro semestre
de 1828: 249, 21/2; 266, 3/3; 273, 22/4; 274, 24/4 e 280, 8/5.
29. Ver documentos e indicações sobre este rumor e os impressos gerados a partir dele em BARATA,
Cipriano. Sentinela da Liberdade e outros escritos (1821-1835). São Paulo: Edusp, 2008, parte IV.
30. Uso como referência, reapropriando e invertendo os significantes, as categorias de audiência e
público desenvolvidas por CLARK, T. J., op. cit.
31. VERNE, Jules. Le superbe Orénoque. Paris: J. Hetzel, 1898. Coleção Les Voyages Extraordinaires.
Ilustrações em preto e branco e colorido de George Roux.
32. MORAES E SILVA, A. de. Diccionario da lingua portugueza [1813], 2 t. Rio de Janeiro: Litho-
Typographia Fluminense, 1922.

Recebido em 15/6/2009
Aprovado em 25/11/2009

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