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Prezado leitor do MISTÉRIO MAGAZINE:

De tal monta tem sido o encarecimento das utilidades e servi-


ços que o leitor por certo não se surpreendeu ao pagar seis cruzei-
ros pelo seu exemplar do MISTÉRIO MAGAZINE. Já há de ter nota-
do (e sentido) que o fenômeno abrangeu a totalidade dos órgãos de
imprensa. As razões são conhecidas e não vamos repeti-las. Tam-
bém não constitui segredo para ninguém que o personagem central
de todo este drama continua sendo o PAPEL, cada vez mais caro
e escasso e de importação dia a dia mais problemática. Esta ma-
téria essencial à indústria gráfica atingiu um nível de preço quase
proibitivo, circunstância que veio agravar ainda mais o crônico e
debatidíssimo problema do livro brasileiro. O papel, em verdade, é
um dos grandes culpados. Mas não queremos atribuir-lhe toda a
responsabilidade pela situação. Continuam subindo os salários, o
custo das diferentes matérias-primas, as despesas gerais de fabri-
cação. Nada há que contenha a maré montante.
E não se pode prever qual será o desfecho da presente con-
juntura (esta palavra caiu na moda e esconde evidentemente muita
coisa misteriosa). A esfinge — será a inflação? — aí está, pronta
para devorar-nos, se não a decifrarmos. E quem, afinal de contas,
mais indicado para decifrá-la que o sagaz leitor do MISTÉRIO MA-
GAZINE?
Que neste Ano Novo de 1952 a paz se torne uma realidade
e que você, caro leitor, realize todos os planos que sonhou, são os
votos sinceros que faz o editor

Henrique d’Ávila Bertaso

osebodigital.blogspot.com
MISTÉRIO - MAGAZINE
EDIÇÃO BRASILEIRA DO ELLERY QUEEN’S MYSTERY MAGAZINE
HISTÓRIAS DE DETETIVES
O Comissário Danwood em
CRIME NA PREFEITURA - H. A. Z. Carr
Nick Glennan em
O POLICIAL “TICO TICO” - MacKinlay Kantor
Dr. Frank Belling em
IN VlNO VERITAS - Lawrence G. Blochman
Sam Spade em
SÓ SE PODE SER ENFORCADO UMA VEZ - Dashiell Hammett

HISTÓRIAS DE CRIMES

O HOMEM QUE AMAVA OS CLÁSSICOS - Valma Clark

O HOMEM MAIS PERIGOSO DO MUNDO - Lord Dunsany

O CRIME PERFEITO - Ben Ray Redman

OS CRIMES DO ESPANTALHO - A. E. Martin

MITRÍDATES O REI - RobeRts Morley

OH TEMPO, EM TUA FUGA - Vincent Cornier

N0 32 JANEIRO DE 1952
Mistério-Magazine é a edição brasileira do “Ellery Queen’s Mystery Magazine”, Copyright de “Mer-
cury Publications, Inc.” É publicado mensalmente pela “Revista do Globo S. A.” Henrique d’Ávila
Bertaso, diretor, João Freire, gerente. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, Redação, Gerência e
Oficinas, Rua Barros Cassal, 82 e 86, Tel. 9-1112. End. Tel. “Reviglobo”. Preço: número avulso em
todo o Brasil, Cr$ 6,00; Assinatura anual, Cr$ 70,00. Escritório no Rio de Janeiro: Rua México, 128
(sobreloja) — Fone 22-9382. Escritório em São Paulo: Rua Fortaleza, 35 — Fone 32-1103. Escritório
em Curitiba: Rua Barão do Rio Branco, 41. Caixa Postal, 612. Agentes e correspondentes nas princi-
pais localidades do país. Todos os direitos, inclusive o de tradução em outras línguas, reservados pelo
“Mercury Publications Inc.” nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Austrália, México e todos os outros
países qúe participaram na Convenção Internacional e da Convenção Pan-Americana de Direitos Au-
torais.

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MISTÉRIO MAGAZINE

N.° 32

Direitos Autorais

O POLICIAL “TICO-TICO”, por MacKinlay Kantor, direitos reserva-


dos em 1933 pela Detective Fiction Weekly; CRIME NA PREFEI-
TURA, por A. H. Z. Carr, direitos reservados em 1951, por Mer-
cury Publications, Inc.; O HOMEM QUE AMAVA OS CLÁSSICOS,
por Valma Clark, direitos reservados em 1923 por Valma Clark; O
HOMEM MAIS PERIGOSO DO MUNDO, por Lord Dunsany, direi-
tos reservados em 1951 por Mercury Publications, Inc.; O CRIME
PERFEITO, por Ben Ray Redman, direitos reservados em 1928, por
Ben Ray Redman; SÓ SE PODE SER ENFORCADO UMA VEZ, por
Dashiell Hammett, direitos reservados em 1932 pela Crowell-Collier
Publishing Co.; OS CRIMES DO ESPANTALHO, por A. E. Martin,
direitos reservados em 1948 por Mercury Publications, Inc.; IN
VINO VERITAS, por Lawrence G. Blochman, direitos reservados em
1941, por Crowell-Collier Publishing Co.; MITRÍDATES O REI, por
Morley Roberts, direitos reservados em 1949, por Mercury Publica-
tions, Inc.; OH TEMPO, EM TUA FUGA, por Vincent Cornier, direi-
tos autorais reservados em 1951, por Mercury Publications, Inc.

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A. H. Z. CARR

VENCEDOR DE UM SEGUNDO PRÊMIO

A maior parte dos leitores do Mistério Magazine não esquece-


rá tão cedo “O Julgamento de João-Ninguém”, de A. H. Z. Carr, que
conquistou o segundo prêmio no nosso Quinto Concurso Anual. Na
opinião dos Editores, essa foi uma das melhores e mais originais
histórias por nós lidas na última década, e que tivemos o privilégio
de publicar nestas páginas, desde a criação do Mistério Magazine.
No concurso do ano passado, A. H. Z. Carr novamente conquis-
tou um segundo prêmio, mas desta vez com uma história detetivesca
muito diferente. Como o próprio Carr escreveu aos Editores, “Crime
na Prefeitura foi a minha primeira tentativa de fazer uma história
detetivesca formal, e ao escrevê-la, senti um respeito ainda maior
pelos mestres da arte!’
Não se deixem, porém, enganar pela modéstia de Mr. Carr.
Sua primeira tentativa, que é a história que se segue, “repleta de
pistas, de suspeitos e de deduções”, é uma das quais se orgulharia
qualquer “mestre da arte”. ‘
Como todas as histórias de Mr. Carr, “Crime na Prefeitura”
tem a sua origem, sua causa aproximada, numa combinação dos
incidentes da vida real e de uma imaginação fértil. Há alguns anos,
num feriado, Mr. Carr encontrou-se com um grupo de altos políticos,
e ficou fascinado com a visão específica que tinham da vida. Então,
mais tarde, teve uma palestra com um funcionário de um Instituto
Meteorológico que lhe expôs as complicações comerciais, provenien-
tes das previsões do tempo, e da chuva artificial. E nestas duas fon-
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tes de informações, Mr. Carr colheu os ingredientes essenciais para
fazer a sua “sopa”. Mas da maneira como se formou exatamente o
enredo da sua história, Mr. Carr já a esqueceu no fundo da memória,
bem como a origem certa do seu narrador —- muito embora Babe
Higgins, o narrador, seja indubitavelmente a síntese da todos os
policiais que Mr. Carr conheceu e gostou no decorrer da sua própria
vida. . .

CRIME NA PREFEITURA

H. A. Z. Carr

CONFIDENCIALMENTE, fui eu que conduzi o Comissário à


conclusão do caso Holcombe. Se você não acredita, pergunte a êle.
Êle sempre diz que gosta de ter-me por perto por causa da minha
boca de bebê. Êle está brincando, é claro. . . Na polícia me chamam
de Babe Higgins, pois tenho seis pés e duas polegadas de altura, e
peso cento e dez quilos.
Recebemos a notícia sobre Holcombe, pouco antes das elei-
ções. O Comissário precisava ir lá, naturalmente. Política. E eu
atrás, na qualidade de seu guarda-costa, e sob as ordens de Sua
Excelência, o Prefeito, Johnny Connors, para estar sempre no ser-
viço. E isto acontecia desde que o Comissário terminara com o sin-
dicato do jogo. e soubemos que alguns daqueles tipos tinham-no
ameaçado. O Prefeito disse que não queria se arriscar a perder o
melhor Comissário de Polícia que a cidade já tivera.
Na reunião, Johnny Connors estava sentado perto de nós.
Usava gravata marrom, segurava a piteira vazia, inclinada para um
lado à sua maneira habitual, e em seus lábios bailava um sorriso,
mas podia-se ver os círculos em volta dos seus olhos tornarem-se
cada vez mais escuros à medida que o tempo passava. Os rapa-
zes estavam fazendo força pela vitória, e o quinto orador repetiu a
mesma coisa que tinham dito os quatro primeiros: “cada voto tem
valor, o partido tem que arrecadar votos amanhã, e vencer”, e por
minha vez, fiquei pensando:

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— Tomara que esta seja a última vez que eu tenha de assistir
a estas coisas, por dois anos, vença quem vencer.
Mas um policial uniformizado apareceu e alcançou-me um
bilhete, murmurando: “Para o Comissário Danwood”.
Dei-o ao Comissário. Êle leu. Levantou-se e desceu calma-
mente para a platéia. E eu atrás dele. Quando passou pelo Prefeito,
vi que este piscou para o Comissário e cochichou: “Para onde vai,
Danny?” O Comissário sorriu e foi saindo. Na sala de espera esta-
va o Inspetor Stotter, que é um camarada esperto, embora fale e
pareça-se com um professor de colégio. Êle disse:
-— Comissário, cheguei agora mesmo da Prefeitura, e creio
que o senhor deve saber logo. Atiraram no Dr. Holcombe.
Precisei de alguns instantes para me lembrar de quem êle
estava falando. Holcombe é o sujeito que faz chuva — aliás, fazia,
porque Stotter disse que êle estava morto.
O Comissário franziu as sobrancelhas e disse:
— Que coisa! Êle era um rapaz tão direito!
Quando o Prefeito requisitara Holcombe da Universidade do
Estado, muito embora fosse do partido oposicionista, os jornais
falaram muito. Aquela foi uma ótima ocasião para o Prefeito se
esquecer dos partidos políticos, porque a seca que nos apareceu,
parecia não ter mais fim. Os reservatórios estavam com o nível
baixo, não só os do estado, como também os dois outros grandes
localizados dentro dos limites da cidade. Embora o povo achasse
graça em não tomar banho, também andava meio preocupado, e
na Prefeitura todo o pessoal andava tonto, tentando atender às
queixas. Foi então que Holcombe, pilotando o seu avião, começou
a espalhar gelo seco sobre as nuvens, e toda vez que isto acontecia,
lá vinha uma chuvarada. Alguns diziam que êle tinha sorte, e que
fazia algum passe de mágica antes de jogar a cartada. O nível dos
reservatórios subiu um pouco, Holcombe tornou-se então uma es-
pécie de herói popular, e Johnny Connors granjeou a confiança do
povo, por tê-lo empregado.
O Comissário ficou ali na sala e pensou durante um segundo.
Sempre que olho para êle, imagino o modo pelo qual os detetives
dos livros têm a petulância de afirmar que conhecem uma pessoa
só pela aparência. Além do seu aspeto envelhecido, o Comissário
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tem um rosto comum: cabelos grisalhos, aliás, os que sobraram, e
que são muito poucos; nariz pontudo, queixo largo e olhos firmes
e azuis. No seu casaco solto, que estava usando àquela noite, po-
deria ser tomado por qualquer coisa: um homem de negócios, um
advogado ou um político. Na realidade, êle era apenas um policial.
E nunca passou disto: recruta, paisano, sargento-detetive, tenen-
te, inspetor, inspetor-chefe, mas sempre policial. Quando Johnny
Connors mandou chamá-lo, dizendo que o queria para novo Co-
missário de Polícia, creio que ninguém se surpreendeu mais do
que o próprio Comissário. Mas foi um gesto inteligente do Prefei-
to. Naquela ocasião êle vinha sendo atacado pelos jornais, porque
o Departamento estava cheio de empistolados e mal-organizado:
cheio de trapaças e coisas esquisitas. Ele sabia que o Comissário
era popular entre os repórteres, que os jornais chamavam-no de
policial honesto, e diziam que se alguém pudesse limpar a Força
Policial, este alguém só poderia ser êle. Tinham razão. Êle despediu
os que protegiam a jogatina e reorganizou o Departamento. Dois
anos depois não se reconhecia mais a Força, pois fora moralizada.
Todo o mundo estava satisfeito, menos o Comissário. Êle não
gostava ficar sentado numa escrivaninha a dar ordens. E continu-
ava lamentando não estar mais lá com os rapazes. Certa vez êle me
disse, muito sério: — “Babe. se alguém me trouxer outro relatório-
hoje, dê-lhe um tiro”. É claro que estava brincando porque mesmo
quando está cansado e aborrecido, êle diz: — “Babe, a política é um
negócio sujo. Sinto raiva só em pensar o que vai ai pela cidade, e no
que está sendo encoberto. Graças a Deus que o meu Departamento
está limpo”.
— Claro que está, chefe — respondi, e êle bateu no ombro,
sorrindo.
Agora, disse a Stotter:
— Como foi que Holcombe morreu?
— Com uma bala na fonte esquerda. Não pode ter sido sui-
cídio. A arma desapareceu, bem como a cápsula detonada. Pelo
orifício, parece que foi um calibre 32. O médico-legista estava exa-
minando o ferimento quando saí.
Um homem baixo, usando um paletó bem cortado, e trazendo
uma pasta, saiu do auditório e acendeu um cigarro. “Era baixo e o
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seu cabelo era escuro, e por um instante pensei que fosse o Prefei-
to, mas depois verifiquei que era Lloyd Thompson, seu cunhado, e
seu assistente. Quando Johnny Connors nomeou-o seu assistente,
depois da morte de Mrs. Connors, há alguns anos atrás, alguns
reclamaram que era proteção, mas disseram-me que Thompson é
mesmo bamba no seu cargo.
Ao avistar Thompson, o Comissário lembrou-se de perguntar
a Stotter:
— Os jornais já souberam disto?
— Não — retrucou Stotter. — Achei que era melhor guardar
segredo durante algumas horas.
— Muito bem — concordou o Comissário. Voltando-se para
Thompson disse:
— Mr. Thompson, depois que o Prefeito terminar o discurso
desta noite, poderá dar-lhe um recado meu? Peça-lhe para ir à Pre-
feitura, assim que a reunião terminar. Não quero perturbá-lo antes
do discurso.
— Terei o máximo prazer, Danny — respondeu Thompson.
Eis como é êle: chamando o Comissário pelo apelido, como fazia
o Prefeiro. Imita Connors em tudo.
— Importa-se de dizer sobre o que se trata, Danny? — per-
guntou êle.
O Comissário hesitou, mas por fim disse:
— Verá como é imprescindível que isto não transpareça antes
do Prefeito ter falado. O Dr. Holcombe foi assassinado esta noite,
na Prefeitura.
Thompson deu um assobio.
— Céus! Não imagina os cabeçalhos de amanhã? “CRIME NA
PREFEITURA”!
— Temo que sim — concordou o Comissário.
— Diabos! — exclamou Thompson. — Não pense que não
sinto a morte de Holcombe, mas a eleição está tão próxima, que
alguns milhões de votos, de um modo ou de outro, poderiam abalá-
la. Poderia arruinar-nos, a menos que tomemos providências ime-
diatas — disse êle, todo sorrisos e amabilidades para o Comissário.
— Mas sei que podemos contar com a sua cooperação, Danny.
—- O primeiro passo — disse o Comissário — é dar o meu
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recado ao Prefeito.
— Isto será um golpe para Johnny — acrescentou Thompson.
— Estamos trabalhando desde as quatro horas da tarde, e apesar
daquele sorriso. sei que êle está exausto.
— É, eu sei — disse o Comissário. — Mas é melhor começar-
mos.
Saímos para o carro que estava esperando por Stotter. Era
uma noite escura e cheia de nuvens, mas estava quente e o Comis-
sário não me deixou buscar o seu chapéu e o sobretudo. O chofer
ligou a sirena e o carro adquiriu velocidade.
— Vamos, conte tudo — pediu o Comissário.
Stotter contou:
— O médico-legista disse que a morte se deu entre as seis
e as sete desta noite, talvez perto das sete, no escritório de Hol-
combe, na Prefeitura. Uma Mrs. Barkowsky encontrou-o. Ela é a
arrumadeira. Isto foi por volta das nove e meia, quando entrou no
escritório para limpá-lo. Êle estava sentado, ou melhor, debruçado
sobre a escrivaninha.
— Bill — disse o Comissário — há pouco você disse que o
doutor estava examinando o ferimento, à procura da bala. Creio
que um 32, disparado contra uma têmpora, bem de perto, faria
com que a bala saísse pelo outro lado.
— Isto também tem me preocupado Stotter. — Quando per-
guntei ao doutor, êle disse que a bala podia ter-se desviado pela
parede craniana, e assim, seguido a curva interna do crânio, em
vez de atravessá-lo. Mas o que realmente me deixou abismado, é
que não havia sinais de pólvora em volta do ferimento. Quem quer
que tenha atirado, parece que acertou o alvo, mesmo de longe.
— Alguém ouviu o tiro?
— Ninguém, até agora — respondeu Stotter. — Mandamos
chamar a secretária de Holcombe, uma moça chamada Maxine
Austin. E também o camarada que tem escritório ao lado de Hol-
combe: Dr. Kreedlin.
Eu conhecia aquele camarada, Kreedlin. Lá na Prefeitura era
uma farra, porque quando Johnny Connors estava em apuros, con-
tratava logo um novo consultor, e o tal Kreedlin foi o primeiro que o
Prefeito agarrou, quando a seca começou a tornar-se uma ameaça.
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Era engenheiro, e tinha grandes idéias e fazia muitos planos, mas
nada aconteceu até que Johnny deu pela história, e mandou cha-
mar Holcombe, que fêz chover.
— Pensei que o Prefeito já não tratava mais com Kreedlin há
muito tempo — continuou o Comissário. Mas eu não fiquei surpre-
endido. Johnny Connors tinha horror de despedir os que trabalha-
vam para êle, mesmo que fossem incompetentes.
— Não, Kreedlin ainda está na lista de pagamento — comen-
tou Stotter. — Dizem que êle tem muito boas relações aqui na Pre-
feitura. Além dele e da secretária, mandei chamar mais dois ou-
tros, um dos quais pode bem ser o assassino. Um deles é Frankie
Coletti.
Dei um assobio, porque Coletti era um dos membros do sin-
dicato do jogo, sujeito duro, que ainda trabalhava pela cidade, em-
bora não fosse no mesmo setor.
Stotter continuou:
— Holcombe escreveu uma carta a Coletti, marcando encon-
tro entre as cinco e seis horas de hoje. Encontrei a cópia na sua
escrivaninha. E às sete estava morto.
— Ah! — exclamou o Comissário. — Quem é o outro que você
mandou chamar?
— Uma mulher. Vera Loomis. Conheceu Bill Loomis, dono do
Parque de Diversões Mohawk, do outro lado do rio? É a viúva dele,
e creio que agora está dirigindo o parque. Encontrei uma carta dela
para Holcombe. Estava escrita num tom ameaçador. Achei que era
melhor chamar a ambos, Coletti e Mrs. Loomis para fazer algumas
perguntas, sem contudo expor as razões.
— Isto mesmo. Mais alguma coisa, Bill?
Stotter meneou a cabeça.
— Nada foi tocado no escritório. Nem sinal, de luta. O trinco
da porta estava limpo. É claro que teremos que nos concentrar
no motivo, e esperar uma oportunidade. Infelizmente isto teve que
acontecer bem na véspera das eleições. A imprensa terá um dia
cheio. E Johnny. . .
— O Prefeito — emendou o Comissário.
— Isto é, o Prefeito — repetiu Stotter — há de querer o retrato
do assassino na primeira página dos jornais, amanhã de manhã
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cedo.
O Comissário concordou. Desembarcamos do carro em fren-
te à Prefeitura, onde estavam mais dois outros carros policiais, e
lá dentro as luzes estavam acesas. Stotter nos conduziu por uma
porta lateral a um corredor comprido, de mármore, no fim do qual
chegamos a uma porta onde se lia: Dr. Richard Hotcombe, Consultor
Meteorológico do Prefeito. Era uma sala estreita e comprida, limpa e
asseada, pintada de verde-claro e com caixílho branco na porta. As
escrivaninhas de Hokombe e da secretária, eram de nogueira.
Os encarregados de tirar as impressões digitais e o doutor já
tinham terminado as suas tarefas e ido embora, quando entramos.
No meio da sala, coberto por um lençol, estava um cadáver. O Te-
nente Harris, que é um bom sujeito, esperava para apresentar o
seu relatório. Fêz continência ao Comissário e disse para Stotter:
-— O caso vai ser difícil. Nenhuma impressão digital sobre
a escrivaninha, além das dele. A cápsula detonada era a de um
32, conforme o senhor disse, e mandei-a para o Departamento de
Balística.
— Então tudo o que sabemos — disse Stotter com fisionomia
sombria — é que alguém atirou em Holcombe, na têmpora esquer-
da, enquanto êle estava à escrivaninha, e que morreu instantane-
amente?
— Isto mesmo — concordou Harris.
Neste meio tempo, o Comissário levantou a ponta do lençol
e olhou para o cadáver. Holcombe tinha sido um sujeito possante.
O que se notava mais eram suas sobrancelhas escuras e muito
cerradas, e o seu queixo, que denotava grande força de vontade.
Vendo-o ali, morto, lembrei-me do camarada das notas de dez dó-
lares. Como era mesmo o seu nome? Hamilton.
Depois de alguns momentos o Comissário disse com um sus-
piro:
— É melhor tirá-lo daqui.
Harris deu a ordem a um policial que estava do lado de fora e
em seguida entraram outros e o levaram. O Comissário sentou-se
na cadeira de Holcombe, e olhou para a escrivaninha. No mata-
borrão cinza havia uma mancha de sangue, onde descansara a
cabeça de Holcombe. Os outros objetos eram o que se poderia es-
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perar: um jogo para escritório, uma dúzia de cachimbos, um pote
de fumo, alguns livros, uma caixa de madeira, contendo alguns
papéís, e umas tabelas de aparência técnica.
— Estas são as cartas de que lhe falei — disse Stotter, che-
gando-se à caixa de madeira. — Estavam na gaveta da escrivani-
nha.
O Comissário leu-as, e quando terminou, passei uma vista
d’olhos. Uma era uma cópia em papel amarelo, de uma carta para
Mr. Frank Coletti, Hotel Lancaster, Park Avenue, e dizia:
Prezado senhor Coletti. Minha secretária disse-me que o se-
nhor telefonou, pedindo que eu o chamasse por telefone na segunda-
feira à tarde. Se deseja me ver, estarei no meu escritório na Prefeitu-
ra, segunda-feira, entre cinco e seis horas. Atenciosamente.
A outra carta era timbrada em azul e vermelho: Parque de
Diversões Mohawk — Administração. Estava escrita em tinta azul,
numa caligrafia ampla:
Prezado Dr. Holcombe. Se o senhor não ouvir a razão, terei que
tomar providências, como já o avisei. Atenciosamente, Vera Loomis.
— Eles já vieram? — perguntou o Comissário.
— Falei com Mrs., Loomis pelo telefone, e ela disse que talvez
não possa sair do parque antes da uma hora que é quando fecha.
Então perguntei, e amanhã de manhã? Ela quis saber por que era,
mas disse-lhe apenas que tornaria a chamá-la. Ainda estamos pro-
curando por Coletti. Kreedlin, Mrs. Barkowsky e a moça estão ali
no outro escritório.
O Comissário continuou na cadeira, e pôs-se a olhar em volta
do aposento, sem perder nada. Um escritório comum. Arquivos,
cadeiras com assento de couro, e algumas fotografias de nuvens
na parede. Tive a impressão de que o Comissário estava contente
por entrar novamente no campo de um outro assassinato. O modo
como virava os olhos e passava a mão pelo queixo, fazia-me lem-
brar um gato arquitetando um plano para apanhar um peixinho
dourado. Ninguém dizia nada.
Depois, ele se levantou, foi até a porta. Percebi então, que no
caixilho branco, do lado de dentro da porta, havia um pequeno ris-
co escuro, à altura dos olhos do Comissário. Ninguém notaria, se
não estivesse prestando muita atenção. O Comissário tocou-o com
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a ponta dos dedos e exclamou: “Ah!”
— Vi isto — disse o Tenente Harris. — Parece-me que alguém
encostou um cigarro, ou um charuto aí.
O Comissário voltou à escrivaninha e disse a Stotter:
— Teremos que tentar sobre o motivo, como você disse, Bill.
Encarregue-se do interrogatório, que eu ficarei ouvindo, se estiver
de acordo.
— Ótimo — respondeu Stotter.
— Mrs. Barkowsky está levando a coisa muito a sério — co-
mentou Harris.
— Muito bem — disse Stotter.
— Então falaremos com ela em primeiro lugar.
Quando entrou, vi que era baixa e gorda; tinha um rosto ver-
melho e uma fisionomia triste; e seu sotaque era polonês. Chorou,
porque pensava suspeitássemos dela. Mas Stotter falou com suavi-
dade, e ela contou como entrou no escritório, acendeu a luz, viu o
cadáver, gritou e saiu correndo, à procura de um policial.
Stotter olhou para o Comissário, que indagou:
— A senhora gostava do Dr. Holcombe, Mrs. Barkowsky?
— Oh, sim — balbuciou ela. — Era um homem muito direito.
Tão bonito, e sempre com um sorriso nos lábios. Quando traba-
lhava até mais tarde, e eu entrava, sempre me dava boa-noite, e
perguntava como ia o meu filho, que está doente há seis semanas.
— Compreendo — disse o Comissário. — E creio que a senho-
ra sempre limpava o escritório dele com todo o cuidado, não é?
— Como se fosse a minha própria casa — retrucou ela. —
Sem uma sujeirínha. Êle sabia que eu limpava bem. Uma vez êle
disse que eu era “A Duquesa da Limpeza”.
— Quando arrumou o escritório pela última vez? — pergun-
tou êle. — Ontem?
—- Não. Ontem era domingo. Limpei-o sábado de tarde.
Êle quis saber se ela se recordava de ter limpado o caixilho
da porta, e ela disse:
— Sim, pois sábado é o dia da faxina. Então eu lavei até a
porta.
O Comissário foi até lá e apontou para o pequeno risco.
— Se isto estivesse aqui no sábado, a senhora acha que teria
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notado e passado um pano?
—- Oh, sim — respondeu ela — eu não deixo nada sujo neste
escritório.
— Muito obrigado — disse o Comissário, e ela saiu, sentindo-
se melhor.
Stotter ficou espantado.
— Não percebi nada, Comissário.
— Um detalhe insignificante. Talvez nem seja nada. Eu es-
tava apenas tentando descobrir, quando foi que esse cigarro, ou o
que quer que tenha sido, encostou-se ao caixilho, É natural que ela
tivesse deixado passar um fiozinho destes, mas o resto está ima-
culado, portanto, suponho que foi feito depois que ela limpou pela
última vez. É só isto.
— Mas o que se pode conseguir de um cigarro que foi en-
costado ao caixilho de uma porta? — perguntou Harris, de cenho
cerrado.
— Estou apenas tateando — disse o Comissário. — Quem é
o seguinte?
— Maxine Austin — respondeu o Inspetor. E poucos minutos
depois entrou uma moreninha que teria atraído qualquer um de
nós, uma Vênus pequenina, embora fosse pálida, e tivesse círcu-
los vermelhos em volta dos grandes olhos escuros. O seu vestido
era vermelho escuro. Trajava um casaco de fazenda preta e um
chapéu, nada espetacular, mas nela, ambos pareciam elegantes.
Seu corpo era todo cheio de curvas suaves, onde a gente gosta que
elas estejam. Por um instante pensei que ela ia fraquejar, quando
olhou ao redor do escritório, mas conseguiu controlar-se Stotter
foi muito delicado, e o Comissário ofereceu-lhe um cigarro, que ela
aceitou logo, e em seguida vieram os fatos. Tinha vinte e quatro
anos. Morava num apartamento com mais duas moças. Trabalha-
va na Prefeitura havia três anos. Seis semanas atrás, fora contra-
tada por Holcombe, como estenógrafa. Não o conhecera antes, e
gostava bastante dele.
— Farei tudo o que estiver ao meu alcance para encontrar o
assassino! — exclamou ela. — Qualquer coisa!
Stotter conseguiu saber que Holcombe passara fora do escri-
tório todo o dia, e que não recebera visitas. Ela saíra de lá às cinco
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horas, um pouco mais cedo do que de costume, porque precisava
fazer umas compras, e Holcombe dissera que estava bem.
— Êle estava aqui quando a senhorita saiu? — perguntou
Stotter.
— Sim, sentado diante da escrivaninha. Estudando os seus
relatórios sobre o tempo. Quando eu disse “até logo”, êle olhou para
mim e disse: “Até logo, Maxine”.
— A senhorita o chamava de Richard? — perguntou Stotter.
— Oh, não. Sempre de Dr. Holcombe. Mas êle me chamava
de Maxine. Dizia que era bastante idoso para ser meu tio. Mas não
era verdade. Tinha somente trinta e seis anos.
— Que espécie de homem era êle? — perguntou o Comissá-
rio.
Ela hesitou.
— Na aparência, despreocupado —- disse ela devagar. — Mas
levava muito a sério o seu trabalho, e às vezes era até muito seve-
ro.
— Alguma vez foi severo com a senhoríta? — perguntou Stot-
ter.
— Oh, não. Sempre foi muito bom para mim. Era apenas
uma coisa que eu pressentia em sua personalidade. Não creio que
êle era muito religioso, mas mesmo assim, tinha princípios rígidos,
como uma pessoa religiosa.
Stotter olhou-a de cima para baixo, e isto era o que eu estive-
ra fazendo desde que ela entrara no aposento, e disse:
— O Dr. Holcombe era solteiro, compreendo. Êle saiu com a
senhoríta alguma vez?
Seu rosto enrubesceu e ela falou:
— Sim, duas vezes. Só para jantar, quando tivemos que tra-
balhar até tarde da noite. Mas foi só isto.
Ela remexeu-se na cadeira, descruzou as pernas bem-feitas e
tornou a cruzá-las novamente.
— Compreendo — murmurou Stotter. — Suponho que êle
saía com outras moças de vez em quando. Ouviu-o telefonando
para elas?
Ela não gostou daquilo.
— Eu não tinha ciúmes dele, se é isto que o senhor quer di-
16
zer. Eu gostava dêle, gostava muito, mas os seus encontros eram lá
com êle. Nunca procurei escutar as suas conversas particulares.
Bem se podia ver que Stotter não acreditava nela.
— Ora, Miss Austin, a senhoríta está querendo nos dizer que
não ouvia quando o Dr. Holcombe telefonava a outras mulheres...
— Não! — exclamou ela. — Eu tinha o meu trabalho para
fazer. Não sei quais eram as suas amiguinhas.
Então ela tomou fôlego e exclamou:
— O senhor está supondo que eu. . . que eu. . .
— Não estou supondo nada — retrucou Stotter. — Apenas
tentando formar um quadro.
Mas ela estava furiosa quando o Comissário fêz uma pergun-
ta.
— Estou interessado nas tabelas que o Dr. Holcombe esta-
va examinando quando a senhoríta deixou esta sala, Miss Austin.
Eram aquelas que estão sobre a escrivaninha?
Isto a acalmou. Controlou-se, olhou para as tabelas e res-
pondeu:
— Sim, creio que sim. — E depois continuou, como se sen-
tisse orgulho de saber tanto. — São comunicações de umidade e
temperatura de hora por hora, nos diferentes lugares e á diferentes
altitudes. Êle as usava para decidir se faria ou não um vôo. Sábado
elas indicavam que as condições eram favoráveis e êle subiu no
avião, e foi por isto que sábado de tarde e à noite tivemos aquele
grande aguaceiro. Uma vez êle disse que iria ficar mal perante os
jogadores de golfe, porque já era o terceiro sábado seguido que êle
sacudia as nuvens.
— Êle estava planejando outro vôo para breve? — indagou o
Comissário.
— Oh, sim. Disse que a formação de cumulus sobre a cida-
de era muito prometedora. Ouvi-o dizer a diversas pessoas pelo
telefone, que com um pouco de gelo seco pensava poder garantir
outra chuvarada sobre a área metropolitana, o que ajudaria os re-
servatórios da cidade. Estava estudando os últimos comunicados
quando eu saí.
— E sobre este tal Coletti? — perguntou Stotter.
— Quem? Oh, Mr. Coletti. A semana passada êle telefonou
17
duas vezes e disse que desejava que o Dr. Holcombe fosse até a sua
casa. Sábado de manhã, segundo penso, o Dr. Holcombe escreveu-
lhe uma carta dizendo. . .
— Sim, eu a vi — interrompeu Stotter. — Holcombe sabia
qnem era Coletti?
— Não, creio que não. Êle disse que o nome não lhe era estra-
nho, mas não podemos saber de onde.
— A senhorita nunca ouviu falar no famoso gangster Frankie
Coletti? — perguntou Stotter.
— Oh, aquele Coletti? — exclamou ela. — Nunca sonhei. . .
não não pensamos nisto.
— Então não viu Coletti?
— Não — retrucou ela. — O senhor pensa que êle. . . que êle
atirou...
— Ainda não fomos tão longe — disse Stotter. — E acerca
de Mrs. Loomis?
— Não sei nada a respeito dela — respondeu a moça — exceto
que ela telefonou ao Dr. Holcombe e eles tiveram uma discussão.
— Sobre?
— Não tenho certeza. Ouvi apenas o que dizia o Dr. Holcom-
be. Tudo o que êle dizia era que estava atendendo ao interesse
público, e a filosofia dêle era a seguinte: “Puxar a corda e deixar a
chuva cair onde era preciso”. Êle disse a ela que, se uma vez come-
çasse a ceder a qualquer pressão, de qualquer fonte, não teria mais
fim. Disse que Mrs. Loomis teria simplesmente que fingir que êle e
o seu gelo seco faziam parte da natureza.
— Ouviu outras conversas que podem ter relação com o cri-
me? — perguntou Stotter. — Nada?
Ela parou e pôs-se a pensar.
— Bem — disse por fim. — Eu saí do escritório por um ins-
tante antes das cinco horas, e quando voltei, o Dr. Holcombe esta-
va falando com alguém. Não sei com quem era. Ouvi alguma coisa
porque eu não estava batendo à máquina e ela estava falando séria
e asperamente para êle.
— Que dizia? — indagou Stotter.
— Era sobre o reservatório de Long Park. Ouvi-o dizer:
“Não pode me dizer que o nível do reservatório de Long Park está
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baixo devido à seca”. Depois continuou: “Não tente dizer a mim o
que devo fazer. Se eu quiser me encarregar disto, fá-lo-ei. Não pode
me eliminar.”
— Êle não disse mais nada sobre isto? — perguntou Stotter.
— Nem uma palavra. Voltou a ler os relatórios e eu disse até
logo e saí.
O telefone tocou. Harris foi atender, escutou por uns minutos
e disse:
— Muito bem, espere aí. — Voltou-se para o Comissário. Co-
letti. Está em casa, podemos ir até lá e êle estará esperando com
o seu advogado, mas não virá aqui, a menos que seja com uma
ordem, porque não fêz nada.
— Diga-lhe que iremos.
Harris obedeceu. Então o Comissário voltou-se para Maxine:
— Alguém esteve aqui neste escritório sábado à noite ou do-
mingo?
— Não — exclamou a moça. — Só o Dr. Holcombe e eu tí-
nhamos as chaves. Eu não estive aqui, e depois de fazer a chuva,
sábado, êle foi para o campo, passar o fim de semana com seus
amigos.
— O Dr. Holcombe fumava cigarros? — quis saber o Comis-
sário.
— Nunca o vi fumar nada além de cachimbo — respondeu
ela.
— Muito obrigado -— disse o Comissário, e deixaram-na ir
para casa.
Stotter ficou olhando para o chefe como se tivesse algumas
perguntas a fazer, mas o Comissário falou:
— Vamos dar uma olhadela em Kreedlin.
Antes que mandassem chamá-lo, ouvimos passos no corre-
dor de mármore, e a porta abriu-se e surgiu Sua Excelência,
Johnny Connors.
Era da mesma altura do Comissário, mas a semelhança li-
mitava-se aí. O Comissário parecia-se com qualquer outra pessoa,
mas Johnny era um só e o único. Parado ali, no seu casaco solto,
e usando chapéu preto, os cabelos crespos e grisalhos, sobrance-
lhas escuras, e rosto firme, era tão elegante como qualquer galã de
19
cinema.
— É um caso muito triste, Danny — exclamou êle. — Não
preciso dizer-lhe que gostava de Holcombe. Quero que se faça uma
prisão rápida do criminoso. Onde estamos?
— Apenas nos fatos — respondeu o Comissário.
Thompson, que estava logo atrás, carregando o sobretudo do
Prefeito, deu o seu parecer:
— Temos esperança de que o senhor venha a prender o crimi-
noso esta noite, Sr. Prefeito. Deixando de lado o nosso sentimento
por Holcombe, e falando claro, isto poderia nos custar uma porção
de votos.
— Isto não tem importância, Tommy — retrucou o Prefeito.
— Uma boa quantidade deles dependerá da declaração que
fizermos, — acrescentou Tommy. — Poderíamos encontrar um gru-
po político que fizesse piorar mais ainda a falta dágua, e isto preju-
dicaria o resultado da eleição.
-— Não se preocupe por minha causa, Danny — explicou o
Prefeito. — Mas tiraria um grande peso das nossas cabeças, se esta
história aparecesse completa e solucionada, nos jornais de ama-
nhã. Tem alguma idéia de quem poderia ter feito isto?
— Ainda não, Sr. Prefeito — respondeu o Comissário. Sempre
chamava Johnny pelo seu título.
— Bem, sei que tendo você como encarregado, tudo o que fôr
possível fazer, será feito. Se souber de alguma coisa, mande-me
avisar imediatamente. Tommy e eu estaremos no escritório. Tere-
mos que mandar o caso para a imprensa, e acertar alguma coisa.
Mas em primeiro lugar, precisamos descobrir quais são os parentes
mais próximos de Holcombe, e dar-lhes a notícia da maneira mais
suave possível. Vamos, Tommy.
— Saíram para o vestíbulo, enquanto eu segurava a porta
aberta para eles. Pelas costas, com os casacos soltos e os chapéus
pretos, êle e Thompson pareciam uma dupla de dançarinos: Fred
Astaire e Gene Kelly, ou outra dupla qualquer.
Depois que êle se foi, Stotter falou:
— Com tudo o que êle tem na cabeça, ainda pode se lembrar
dos parentes de Holcombe.
O Comissário concordou.
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— Vamos ver Kreedlin.
Um policial sai para chamá-lo e neste meio tempo o Comis-
sário diz para Stotter:
— Que foi que você disse acerca de Kreedlin ter boas rela-
ções?
Era uma pergunta sensata, porque ninguém gosta de pisar
nos calos de quem tem boas relações, se pode evitá-lo. No entanto,
Stotter não podia auxiliar muito. Disse apenas:
— Foi o que ouvi — que um graúdo o recomendou ao Prefei-
to.
Kreedlin entrou. Era magro, estatura mediana, tinha o rosto
ossudo e usava óculos; seu modo de falar era áspero e agressivo.
— Sinto que Holcombe tenha morrido, mas não vejo ra-
zões para que isto nâo possa esperar até amanhã. Tiraram-me da
cama.
— Sente-se — falou Stotter.
Kreedlin sentou-se, jogou fora um toco de cigarro e em segui-
da acendeu outro que retirou de um maço amarrotado que estava
no seu bolso, e colocou-o no canto da boca. Stotter começou. O
sujeito disse que estívera no seu escritório até quase sete horas.
Sabia que Holcombe estava vivo logo depois das seis, porque êle
tinha ido ao toilette dos homens e passara pela porta de Holcombe”
naquela hora e ouvira vozes. Não, não sabia se uma das vozes era
de Holcombe, pois só ouvira um leve murmúrio. Não sabia quem
estava no escritório com Holcombe. Ainda falavam quando êle vol-
tara. Não ouvira o tiro. Achava que Holcombe estava vivo quando
fora para casa, porque embora não ouvisse vozes, quando passou
pela porta, ouvira-o espirrar.
— Viu alguém no corredor quando saiu? — perguntou Stot-
ter.
— Não — respondeu Kreedlin. — Estes empregados sempre
saem cedo. Nunca trabalham à noite. Todos os escritórios estavam
vazios.
O seu tom de voz era desdenhoso.
— Então não viu ninguém?
Comecei a pensar que as coisas não estavam muito boas para
o lado de Kreedlin. O doutor dissera que Holcombe morrera antes
21
das sete — e segundo o próprio testemunho de Kreedlin, Holcombe
ainda estava vivo quando saiu do escritório pouco antes das sete. O
assassino deveria estar por ali àquela hora, mas Kreedlin disse que
não o vira e nem ouvira o tiro. Talvez tivesse se apercebido disto,
porque de repente mudou a cantiga:
— Espere. Eu vi alguém. Uma mulher. Uma mulher alta. Ti-
nha me esquecido dela até agora. Eu a vi do lado de fora, no cor-
redor. Ela estava olhando para as placas do edifício, e quando eu
passei por ela, pôs-se a caminhar.
— Pode descrevê-la? — perguntou Stotter.
— Bem — falou Kreedlin, meio receoso. — Eu não olhei de
perto para ela, mas tenho a impressão que tinha os cabelos verme-
lhos e sardas. Agora é que estou recordando.
Bem pude ver que Stotter não deu muita importância ao fato,
mas disse a Harris:
— Veja se consegue saber de alguma mulher alta, cabelos
vermelhos e sardenta, que tivesse andado por aqui por volta das
sete horas.
O Comissário fêz uma pergunta:
— Gostava do Dr. Holcombe?
Kreedlin hesitou um pouco, mas respondeu:
— Sim.
— Aprovava o seu método de evitar a falta dágua?
Meu amigo, isto foi a conta. Foi o mesmo que furar uma bo-
lha. Saiu uma porção de coisas. Kreedlin achava que Holcombe era
um impostor. A chuva que caía toda a vez que êle subia de avião
era porque sabia que iria chover mesmo, mas fingia que era o autor
do fenômeno.
— Truque de publicidade — dizia Kreedlin cada vez mais ex-
citado. Largou o cigarro e acendeu outro, e disse ao Comissário:
— Isto não era método para evitar a falta dágua. Deve-se
procurar a origem do problema. Erosão do solo. Drenagem. Reflo-
restamento.
Começou a expor os seus planos de abastecer o suprimento
dágua da cidade, por muito tempo, e a dizer que êle era um enge-
nheiro de verdade e não um farsante.
O Comissário interrompeu:
22
— Creio que o Prefeito não favoreceu o seu plano, não foi?
— Êle disse que não era politicamente prático na ocasião —
respondeu Kreedlin.
— Mas o manteve no emprego. Kreedlin ficou vermelho:
— Êle deve saber que os meus serviços um dia serão úteis à
cidade.
— Há poucos momentos, Mr. Kreedlin, o senhor falou nos
empregados públicos com um tom de voz que eu reconheci bem.
Não se considera um empregado público, também? —- perguntou
o Comissário.
— Claro que não — exclamou Kreedlin. — Não um emprega-
do comum. Estou aqui como consultor.
— E ainda assim — continuou o Comissário. — Como con-
sultor, evidentemente continua a esperar que lhe seja pago o salá-
rio depois que suas idéias foram rejeitadas?
Kreedlin ficou nervoso.
— Isto é comigo. Sei que serei útil ao Prefeito.
— Sem dúvida — disse o Comissário. — Mas o senhor se con-
sidera um engenheiro ou profissional, mais do que um empregado
público?
— O que tem isto a ver com este assassinato? Já lhe disse
que não ouvi o tiro. E isto é tudo o que lhe interessa.
O Comissário continuou como se fosse uma máquina:
— Em que trabalhava antes de vir para a Prefeitura?
— Era engenheiro consultor da Companhia de Construção
“Kreedlin”, antes de vir para cá. Meu irmão é o presidente. Isto
chega para o senhor?
Naturalmente eu conhecia o nome. Eles trabalhavam muito
para a cidade, mas nunca liguei o nome com este Kreedlin.
O Comissário aquiesceu:
— E o senhor deixou um emprego de tanta importância só
para trabalhar para a cidade?
— Era o meu dever de cidadão — disse Kreedlin — ajudar a
enfrentar a falta dágua.
O Comissário ficou a olhar para êle sem dizer palavra, por
alguns segundos. Depois falou:
— Falou com o Dr. Holcombe pelo telefone esta tarde?
23
— Não. Por que haveria de falar pelo telefone quando o meu
escritório fica bem aqui ao lado?
— Foi a Companhia Kreedlin que construiu o reservatório de
Long Park? — indagou o Comissário.
Kreedlin franziu as sobrancelhas e perguntou:
— Sim, e que tem isto?
— O senhor ouviu alguma coisa sobre um defeito na cons-
trução do reservatório? — perguntou o Comissário. — Assim como
uma rachadura na base de cimento, e que faria o nível dágua estar
anormalmente baixo?
— Mentira! Isto foi apenas uma desculpa de Holcombe, por-
que não era capaz de elevar o nível de lá.
— Ah! — exclamou o Comissário. — Então ouviu falar nisto.
Quem lhe contou?
— Não me lembro. Foi apenas um rumor, desses que a gente
ouve por aí.
Stotter pegou a deixa:
— É melhor dizer que o senhor tinha um ressentimento con-
tra o Dr. Holcombe.
Isto aplacou Kreedlin. Êle olhou cautelosamente em volta.
— Eu estava sentido, mas não direi que tivesse um ressenti-
mento profundo.
— Apenas uma pergunta de praxe — disse Stotter. — O se-
nhor possui alguma arma?
Kreedlin exaltou-se:
— Isto é ridículo, mas vá lá, se é isto que o senhor quer: não.
Não tenho nenhuma arma e nem acesso a nenhuma.
Stotter disse-lhe que podia ir embora, mas que ficasse de
prontidão de manhã bem cedo, e Kreedlin saiu sem dizer mais
nada.
— Êle poderia ter um motivo — disse Stotter para o Comis-
sário — mas se êle é o nosso homem, creio que teremos dificuldade
em prová-lo.
— Vamos ver Coletti — disse o Comissário.
Coletti morava num hotel grã-fino e tinha um apartamento
muito agradável. Quando chegamos êle trajava um roupão de seda
e fumava charuto. Era um homem forte, de rosto magro e bigodi-
24
nho fino. Bem que eu gostaria de amassar-lhe a cara, porque foi êle
um dos que ameaçaram o Comissário, mas aquela não era ocasião
para tal. Com êle estava um advogado gordo e baixo, que quase não
dizia palavra, apenas ficava sentado escutando.
— Ora vejam — disse Coletti. — O Comissário em pessoa! A
que devo tão imerecida e inesperada honra?
— Pare com a farsa —- disse Harris, e Stotter prosseguiu:
— Queremos apenas umas respostas a certas perguntas.
Você visitou o Dr. Prichard Holcombe na Prefeitura esta tarde?
Coletti levantou o rosto e olhou para Stotter e depois para o
Comissário, antes de responder.
— Sim. E daí?
— A que horas?
— Um quarto para as seis. Por quê? — perguntou Coletti co-
meçando a ficar inquieto.
— Quanto tempo ficou com êle? — perguntou Stotter.
— Talvez uns dez minutos, talvez quinze — respondeu Coletti
agora preocupado. — Desde quando existe algum mal, em um ci-
dadão visitar um empregado público?
Stotter sorri, mas não é um sorriso bonito.
— Nenhum mal, a menos que este empregado público venha
a ser assassinado por volta da hora em que o cidadão o foi visitar.
—- Assassinado! — gritou Coletti. — Com os diabos! Que é
que vocês estão querendo empurrar para cima de mim?
— Se você não o praticou, não tem nada que se preocupar
— disse calmamente o Comissário. — O que queremos saber na
realidade, é por que você foi ver Holcombe?
Coletti pôs-se a falar ligeiro:
— Eu o conhecia há anos. . .
— Não seja bobo — interrompeu o Comissário. — Holcombe
escreveu-lhe marcando um encontro. Êle não sabia quem você era.
Pense bem e diga a verdade, se não quiser ser preso como testemu-
nha importante. O que tinha a dizer a Holcombe?
— Espere um pouco —- disse Coletti e foi conferenciar com o
advogado. Depois falou:
— Pois bem, vá lá. Não há nada ilegal sobre isto. Eu tinha
uma pequena transação e queria discuti-la com Holcombe.
25
— Que espécie de transação? — perguntou o Comissário.
— É que eu jogo um pouquinho no prado.
Isto era até engraçado, porque sabíamos que êle ainda anda-
va às voltas com apostas.
— As vezes a gente pode ganhar algum dinheiro, se se conhe-
ce os cavalos e se chove na hora exata. Eu queria apenas ter uma
idéia de quando Holcombe planejava gelar as nuvens perto do local
das corridas. Perfeitamente legal, como eu disse. Seria muito bom
para mim, se eu soubesse da informação.
—- Compreendo -— disse o Comissário. — Uma pequena
transação comercial.
— Claro, é isto. Um pequeno negócio particular.
O Tenente Harris ficou impaciente e perguntou:
— Que disse Holcombe?
Coletti sorriu:
— O idiota não quis saber de nada. Ofereci-lhe uma quantia
razoável, mas êle fêz uma conversa comprida, que era um cientista
disposto a servir o público e que não queria juntar dinheiro para
si, nem para ninguém mais. Pensei que talvez conseguisse, fazendo
mais pressão, mas vi que êle era um desses sujeitos cabeçudos,
por isso, resolvi desistir. Nada de mal-entendidos, disse-lhe eu, en-
quanto ficar de boca fechada e não contar a ninguém a minha pro-
posta. Foi tudo o que aconteceu. Então eu fui embora. Êle estava
bem quando eu saí, sentado à escrivaninha.
Aquela era a sua versão, e não mudou nem uma palavra,
quando Stotter lhe fêz as outras perguntas. Êle disse que, depois
de deixar Holcombe, poucos minutos depois das seis, foi direta-
mente para um night club: O Papagaio Vermelho, do qual é um dos
donos. Lá tomou umas bebidas, jantou, assistiu ao primeiro show.
Uns vinte camaradas poderiam prová-lo. Por fim Stotter pergunta:
— Você tem um revólver ou uma pistola calibre 32?
O pequeno advogado pulou:
— A menos que o senhor tenha justificativas para suspeita,
que não pode ter, êle não responderá perguntas sobre armas,
— Não faz mal — disse o Comissário para Stotter. — Não ar-
ranjaremos mais nada aqui. Oh, espere. — Voltou-se para Coletti:
— Você fuma cigarros?
26
Coletti olhou para o Comissário como se o achasse tolo:
— Não, tenho horror a êles. Só charutos.
E foi tudo, exceto que, depois do Comissário ter passado pela
porta, eu tropecei e pisei com toda a força no pé de Coletti, que
estava de chinelos, e êle soltou um urro. Então eu disse com muita
polidez:
— Desculpe, Mr. Coletti. Queira perdoar. Foi um acidente. É
engraçado como os acidentes acontecem aos sujeitos que falam em
atacar o Comissário. Era melhor você se lembrar disto.
Então eu fui embora, enquanto êle ficou dizendo coisas
feias.
No carro, o Comissário olhou para o relógio e disse:
— Que tal uma corrida até o Parque de Diversões Mohawk,
Bill? Ainda é cedo.
— Boa idéia — concordou Stotter, e disse ao chofer para an-
dar ligeiro. A sirena começou a gemer e logo chegamos ao túnel do
centro da cidade e subimos por uma estrada de onde se viam as
luzes da roda-gigante e da montanha russa.
Chegando ao parque, fomos diretos para o escritório, que fica
à entrada, logo atrás da bilheteria, e perguntamos por Mrs, Loomis.
Um homem que estava contando a féria da noite, nos disse que ela
estava lá pelo parque e foi até a porta para nos indicar o caminho.
— Não posso deixar este dinheiro aqui — disse-nos êle — mas
com certeza os senhores a encontrarão na primeira barraca de tiro
ao alvo, logo na primeira esquina.
— Ela gosta de atirar? — perguntou o Comissário.
— Se gosta! -— exclamou o sujeito. —- Ela costumava fazer
um ato de tiro mágico num circo, e depois comprou a concessão de
tiro ao alvo nesta parte. Foi assim que ela conheceu Loomis. Agora
é dona de tudo.
Havia uma multidão em volta da tenda de tiro ao alvo, e po-
dia-se ver o brilho dos olhos de Stotter, porque a mulher que eles
estavam admirando era alta, com o rosto coberto de sardas e o
seu cabelo era avermelhado, preso para trás. Ficamos ali parados
a assistir ao espetáculo. Que mulher! Andava pelos trinta e cinco
anos, e era do tipo que poderia me agradar — um pouco forte de-
mais, talvez, mas com uma cara mais ou menos. E era grande em
27
tudo, sem no entanto ser gorda. Vestia slacks azuis e uma blusa de
lã cinzenta, que lhe desenhava um belo perfil e eu ouvi o Tenente
Harris dar um leve assobio. Mas apesar de tudo, continuei a olhar
para os tiros. Atirava com dois revólveres antigos e fazia todas as
peripécias: apagava seis velas com seis tiros; olhando por um es-
pelho, atirou por sobre o ombro, derrubando uma carreira de ca-
chimbos; abanava a arma e acertava todas as vezes num alvo. Um
homem atrás do balcão era encarregado de renovar a munição das
armas, e toda a vez que ela atirava, a multidão aplaudia.
— Que tal, rapazes? — perguntava ela numa voz grave, que
soava como a do Texas, e eles gostavam e ela ficava contente.
Harris murmurou ao meu ouvido:
— Se ela atirou em Holcombe, não provaremos nada com um
teste de nitrato para encontrar grãos de pólvora.
Percebi logo o que êle queria dizer. Por fim ela pára, e quando
a multidão se alinhou em frente ao balcão para tentar alguns tiros,
ela se voltou para nós e Stotter falou com ela. Ela nos fitou com um
olhar azul e frio e disse:
— Não sei o que querem comigo, mas venham ao meu escri-
tório.
Era um lugar confortável, com boas cadeiras, e quando está-
vamos sentados, Stotter tomou a palavra:
— Mrs. Loomis, a senhora pode nos ajudar, respondendo
apenas a algumas perguntas, e não lhe roubaremos muito tempo.
Primeiro, para apressar as coisas, quer nos dizer onde esteve esta
tarde, entre as seis e as sete horas?
Mrs. Loomis franziu a testa, mas respondeu:
— Na minha casa, em River Drive.
— Conhece o Dr. Richard Holcombe?
— Falei com êle pelo telefone. Mas suponhamos que o senhor
me diga para que é tudo isto.
Ela falava como um homem, diretamente. E Stotter respon-
dia da mesma maneira.
— O Dr. Holcombe foi assassinado.
— Assassinado?! — exclamou Mrs. Loomis. — Sinto muito.
Êle parecia ser um bom homem, quando falei com êle. Mas e que
tem isto a ver comigo?
28
— A senhora escreveu ontem uma carta ao Dr. Holcombe —
continuou Stotter — mostrando-lhe a mesma. — O que queremos
da senhora, é uma explicação.
— Certamente. É muito simples. Como sabe, sou dona do
Parque de Diversões Mohawk, herdei-o do meu marido. Talvez não
saiba, mas é um negócio muito próspero. No comêço deste ano,
com bastante despesa, renovei o parque todo. Até mesmo mandei
construir um pavilhão de danças, e instalei aquecimento interno
e um jardim tropical. Fica tão quente, quando está ligado, que os
freqüentadores podem dançar todo o ano, mesmo no inverno, como
se estivessem viajando para o sul. Eu trouxe uma banda famosa e
comprei uma licença para bebidas, e tivemos um bom início. Uma
das nossas atrações é o concurso de danças nas noites de sábado.
Arranjei tudo e fiz propaganda e, francamente, é aí que fazemos
mais dinheiro, porque o perdemos durante a semana. O senhor
bem pode imaginar, que prejuízo eu tenho quando chove três sá-
bados seguidos.
— Atribui isto às atividades do Dr. Holcombe?
— A que mais? Por que tinha êle de escolher as noites de sá-
bado para os seus vôos? Por que não nos dias de semana? Estou
tão ansiosa como qualquer outra pessoa para terminar de uma vez
com esta falta dágua, mas por que teria o meu negócio de sofrer?
Foi isto que eu pedi a êle pelo telefone.
— Que disse êle? —- perguntou Stotter.
— Disse que escolhia a ocasião em nue houvesse grandes
formações de nuvens sobre a cidade, e aconteceu que elas estavam
boas, nas noites de três sábados consecutivos. De qualquer forma,
êle estava mais interessado em encher os reservatórios da cidade,
disse-me êle, do que encher o meu parque de diversões.
— Quando foi esta conversa? — quis saber Stotter.
— Na semana passada — têrça-feira — disse ela. — Pedi-lhe
pelo amor de Deus que me desse uma oportunidade e deixasse
passar o sábado, e êle apenas fêz uma referência acerca de dei-
xar a chuva cair onde quisesse. Então no sábado, quando choveu
novamente, fiquei muito aborrecida. Foi aí que eu lhe escrevi esta
carta.
— Referiu-se a tomar providências — falou Stotter.
29
— Oh. Eu queria dizer providências legais. Disse a Holcombe
que se êle continuasse assim, eu iria exigir dele e da cidade uma
indenização de um milhão de dólares. Com franqueza, eu não pen-
sava ter a oportunidade de arrecadá-los, mas imaginei que a publi-
cidade valeria alguma coisa.
— Foi só isto? — perguntou Stotter. — Não teve outro contato
com Holcombe?
— Nenhum — respondeu ela.
— Nunca o visitou em seu escritório?
— Não.
Stotter olhou-a nos olhos e não disse nada por uns instantes.
Ela permaneria têsa e quieta. Então o Inspetor falou:
— Não é melhor a senhora pensar outra vez, Mrs. Loomis?
— Que quer dizer?
— Suponhamos que eu lhe diga — explicou Stotter em voz
muito baixa —- que por volta das sete horas desta noite uma tes-
temunha a viu no corredor da Prefeitura, em direção ao escritório
de Holcombe.
Stotter estava em parte blefando, é claro — e eu, aceitaria a
palavra de Mrs. Loomis, em vez da de Kreedlin. Mas ela se descon-
trolou.
— Oh, meu Deus! — e seu rosto ficou branco, sob as sardas.
Stotter ficou tão contente que quase bateu no próprío peito, porque
aquêle parecia ser o desenlace que êle estivera almejando.
— Vamos ver os fatos — ordenou. — O que aconteceu quando
a senhora viu Holcombe?
Mrs. Loomis passou a mão sobre os cabelos vermelhos e
mostrou-se desesperada.
— Não fui eu — exclamou ela em voz baixa. — Tenho três
filhos. Sou uma mulher de negócios. Eu nem conhecia Holcombe.
Pareço ser capaz de assassinar um estranho? Ou qualquer pessoa,
por este motivo?
Stotter disse apenas:
— Vejamos os fatos.
— Não esconderei nada. Esta questão era muito importante
para mim. Estou devendo muito aos Bancos, e estava contando
com a seca para ajudar o negócio. Estas chuvas freqüentes, princi-
30
palmente nos sábados, estavam me danando. No sábado passado
eu achei que devia fazer alguma coisa. Foi então que escrevi uma
carta ao Dr. Holcombe. Esta tarde telefonei-lhe outra vez.
— A que horas? — interrompeu o Tenente Harris.
— Um pouco depois das cinco, creio eu — disse ela. — E eu
lhe falei em mover uma ação. Não iria ficar de lado e deixá-lo arrui-
nar o meu negócio. Se tivesse que fazer chuva, que o fizesse tarde
da noite, quando os clientes do parque já tivessem ido para suas
casas. Deu-me a mesma resposta: precisava colocar o bem público
acima de qualquer interesse particular. Mas não se mostrava zan-
gado, e eu pensei que talvez pudesse convencê-lo. Perguntei-lhe,
que tal se eu o fosse ver aquela noite, e se êle poderia esperar até
que eu chegasse lá. Disse-me que estava bem, que de todo jeito
precisava estar no escritório, e então marcamos encontro para as
sete horas. Cheguei à Prefeitura pouco antes das sete, e procurei
o número do seu escritório, nas placas da sala de espera. Lembro-
me de ter visto um homem. Com certeza foi aí que fui vista. Então
eu entrei no corredor. Na minha frente, lá no fundo do corredor,
alguém saía daquele escritório, mas êle andava muito depressa, e
quando cheguei em frente, já tinha dobrado para o outro lado, de
modo que não cheguei a vê-lo bem. Estava carregando qualquer
coisa, uma valisa talvez.
— Tem certeza que era um homem e não uma mulher carre-
gando uma bolsa? — perguntou Stotter.
— Tenho uma idéia de ter visto calças compridas — disse
Mrs. Loomis, pensativa. — Deve ter sido homem. De roupa escura.
A não ser que fosse uma mulher de slacks.
— Que aconteceu depois?
Mrs. Loomis continuou:
— Bati e não obtive resposta. Então experimentei a maçaneta
e a porta se abriu. A luz estava apagada, mas da janela vinha bas-
tante claridade para que eu pudesse ver que havia alguém sentado
à escrivaninha, meio debruçado sobre ela. Pensei que Holcombe
estivesse dormindo e disse: “Boa-noite”. Quando êle não respon-
deu, tornei a falar: “Desculpe, mas creio que é melhor acender a
luz”. Procurei o comutador e quando olhei para Holcombe nova-
mente, vi que estava morto.
31
— Tocou nele? — perguntou Stotter.
— Não. Fiquei horrorizada. Quando cheguei perto vi o orifício
na cabeça dele, e percebi que não havia mais nada que eu pudes-
se fazer por êle, coitado! Então fiz uma asneira. Fiquei com medo
de que suspeitassem de mim, se soubessem da discussão que eu
tivera com êle. Agora, bem quando estou tentando pagar os em-
préstimos dos Bancos, uma publicidade má, como a de eu estar
metida num assassinato, poderia arruinar-me. Olhei para fora e
não havia ninguém, então fui embora. Não pensei que alguém ti-
vesse me visto.
— A senhora limpou o trinco da porta e o comutador com o
seu lenço? — perguntou Harris.
— Ora, não!
— Não ficou preocupada de deixar impressões digitais?
— Estava muito assustada para pensar nisto. Além do que,
eu estava de luvas — voltou-se para Stotter e prosseguiu. — Eu
não queria fazer nada errado, estava apenas tentando proteger a
mim e a minha família.
Stotter interrogou-a acerca de uma arma. Ela nos mostrou
um Colt 45, que guardava na escrivaninha, e também uma licença
para usá-lo, mas afirmou que nunca usara um 32.
— Mais um ou dois pontos, Mrs. Loomis — pediu o Comissá-
rio. — A senhora fuma?
— Não muito — respondeu ela, mostrando-se surpreendida.
— Uns cigarros de vez em quando.
— Fumou enquanto esteve no escritório de Holcombe? — per-
guntou o Comissário.
— Não, senhor.
— Sobre o homem que a senhora disse ter visto no corredor.
Pode lembrar-se de alguma coisa mais sobre êle? Era alto ou bai-
xo?
Ela hesitou.
— Creio que não era alto. Mas não me lembro bem. Foi ape-
nas um relance.
— Mrs. Loomis, não vou prendê-la desta vez, mas a senhora
deve compreender que se colocou muito mal, não comunicando
este crime — disse Stotter. — Agora a senhora vai para a sua casa
32
e lá permanecerá até que possamos ver em que pé ficam as coisas.
Amanhã saberá qualquer coisa.
— Muito. Mas eu lhe disse a verdade. Toda a verdade. É tudo
o que eu sei.
De volta ao escritório de Holcombe, na Prefeitura, Stotter dis-
se:
— Para mim a história de Mrs. Loomis parece verdadeira.
Pessoalmente, neste momento estou mais interessado em Kreedlin.
Êle estava bem perto quando Holcombe levou o tiro. Êle tinha
ciúmes de Holcombe. E se estava tentando evitar a propagação do
caso de Long Park, tinha um forte motivo para o crime.
— O que diz a respeito de Kreedlin é verdade, Inspetor —
disse Harris. — Mas há um ponto que me atormenta. Duvido que
êle seja um atirador tão bom que consiga acertar na têmpora de
Holcombe, a uma distância considerável, para não deixar nenhum
vestígio de queimadura de pólvora. Mas. Mrs. Loomis poderia tê-lo
feito.
— O motivo dela não é bastante forte — comentou Stotter.
— Não sei — disse Harris. — As chuvaradas de Holcombe es-
tavam arruinando-a. Ela ficou desesperada por causa do negócio.
E ela já conhecera o lado árduo da vida, isto bem se pode ver. Um
crime não seria muita coisa para ela embora o fosse para muitos
homens. Ela falou com Holcombe, e não ficou satisfeita. Pois bem,
levantou-se e foi até a porta. Naquele instante êle virou a cabeça,
talvez para apanhar algum papel, ou o telefone. Ela retirou um re-
vólver, e a uns quinze passos, alvejou-o na fonte. Para ela isto teria
sido uma canja. Depois, foi embora.
— Holcombe era do tipo de homens que se levantariam quan-
do uma dama fosse sair do escritório. Neste caso, êle não teria vira-
do a cabeça, e não teria sido encontrado à escrívaninha, debruçado
sobre ela, — comentou o Comissário.
— Talvez dessa vez não se tivesse levantado — falou Harris.
— Talvez não tivesse gostado da atitude dela. Para mim, o impor-
tante é que ela tem habilidade de atirar, tem o motivo e qualidade.
De um certo modo, ela estava lutando pelos filhos. Tal qual o faria
uma leoa. Ela seria capaz de eliminar Holcombe, se achasse que a
morte dele pudesse lhe trazer algum benefício, como por exemplo
33
o de impedir que o Banco lhe fechasse as portas, ou para salvar o
parque, ou ainda, se isto trouxesse conforto aos seus filhos. Além
disso, creio que aquela história de ter visto alguém na sua frente,
no corredor, não passa de invenção.
— Você está de acordo com isto, Babe? — perguntou-me o
Comissário.
— Não, senhor. Para mim foi Coletti. Segundo imagino, pro-
vavelmente Holcombe ameaçou espalhar a proposta de Coletti aos
jornais, ou quem sabe, às autoridades das corridas. Isto teria dei-
xado Coletti em ridículo, e isto é uma coisa que aquele sujeito não
poderia tolerar. Êle não precisaria nenhum outro motivo. Êle é do
tipo que mataria logo um camarada, se achasse que poderia sair-se
bem. Não daria oportunidades a Holcombe para fazê-lo alvo de cha-
cotas. Talvez fingisse que ia sair, desse uma espiada no vestíbulo,
visse que não havia ninguém, voltasse ao escritório e atirasse em
Holcombe. Havia bastante barulho na rua, devido ao trânsito, de
modo que se Kreedlin ouvisse o tiro, julgaria tratar-se da descarga
de algum caminhão, e não daria muita importância. Depois Coletti
saiu, e ninguém o viu.
— E o homem que Mrs. Loomis viu, levando uma valisa? —
indagou o Comissário.
— Se é que houve tal homem — continuei — talvez fosse
qualquer funcionário que ficasse trabalhando até tarde.
— Não sei — confessou o Comissário. — Coletti foi bastante
convincente quando falamos com êle.
— Uma farsa — insisti. — Provavelmente êle estava até rindo
por dentro, de ter deixado um assassinato nas suas mãos e nas do
Prefeito, numa ocasião tão inoportuna como esta. A meu ver, se
investigássemos bem o álibi de Coletti, veríamos que êle esteve com
Holcombe mais tarde do que nos disse, e que chegou ao Papagaio
Vermelho depois das sete horas. Um daqueles vermes que pululam
naquele antro, talvez desembuche qualquer coisa, se apertarmos
com êle.
O Comissário sacudiu a cabeça.
— Não estou convencido — disse êle. — Há alguns pontos
que eu gostaria de ver esclarecidos. Um deles é aquele risco no
caixilho da porta.
34
Stotter levantou as sobrancelhas, mas o Comissário prosse-
guiu.
— O outro ponto, é o espirro que Kreedlin ouviu. Deve ter sido
um espirro muito alto, se é que êle ouviu através da porta. A propó-
sito, já chegou algum resultado do departamento de balística?
— Já vamos saber — disse Harris, encamínhando-se para o
telefone. Pouco depois largou o fone ao Comissário:
— Pelo menos já temos alguma coisa definida. O departa-
mento informou que a bala que matou Holcombe, foi disparada por
um revólver munido de silenciador.
— Bom — disse Stotter. Como eu já dissera, êle era um es-
pertalhão.
—- Isto explicaria o espirro. Para Kreedlin talvez o tiro soasse
como um espirro. Mas isto não quer dizer que êle não atirou em
Holcombe, Poderia muito bem fingir que ouvira o tiro do lado de
fora da porta, e assim, despistar.
— O silenciador reduziria a velocidade da bala — disse o Co-
missário — e talvez seja por isto que ela não atravessou o crânio de
Holcombe. E também seria uma arma muito grande para carregar.
Junte ao fato, alguém desaparecendo com uma valisa, e o que é
que você conclui?
-— Comissário — disse Stotter, todo excitado — é isto! Quer
dizer que Mrs. Loomis estava dizendo a verdade. Cada vez se torna
mais e mais claro que o homem que ela viu foi Kreedlin. Tudo o
que nos resta fazer é encontrar a arma, e desmentir a história de
Kreedlin.
— Talvez — respondeu o Comissário.
— Comissário, se o senhor concordar, eu gostaria de pedir
ao Juiz Rosen um mandado de busca à casa de Kreedlin. E se o
senhor não precisa de Harris, seria bom que ele me acompanhasse,
para comandar a busca. Faremos um teste de nitrato na mão de
Kreedlin, embora supondo que tenha usado luvas. Em todo o caso,
se êle tiver a tal arma, ou alguma falha na sua história, sabere-
mos encontrá-la. Êle representa a única oportunidade que temos
de esclarecer as coisas esta noite. Dá-me permissão de prosseguir,
senhor?
O Comissário ficou em dúvida, mas afinal disse que sim.
35
Pareceu-me que o Comissário queria ficar sozinho, excetuan-
do-se a mim, é claro. Tornou a sentar-se na cadeira de Holcombe,
e depois levantou-se, foi até a porta e olhou para o tênue risco.
Parecia fasciná-lo.
Daí a um pouco êle falou:
— Babe, como é que um homem faz um risco horizontal dês-
tes, com um cigarro? — Êle falou comigo, mas eu percebi que esta-
va apenas pensando em voz alta, portanto, não respondi.
— Deve ter sido um cigarro — continuou êle. — Um charuto
deixaria um friso mais largo. As chances são de que foi feito hoje.
Creio que podemos supor assim. Parece recente. Se estivesse aí há
vários dias, com a porta abrindo e fechando, e sacudindo o caixilho
todas as vezes, os grânulos de cinza teriam se desprendido e caído
ao chão, e o sinal estaria muito mais apagado. Além disto, Mrs.
Barkowsky limpou a porta no sábado. Domingo ninguém esteve
aqui. Holcombe fumava cachimbo. Segundo Maxine Austin, não
tiveram visitas hoje.
— Ela fuma cigarros — sugeri.
Êle sacudiu a cabeça.
— Ela não tem mais de cinco pés e duas polegadas. Teria que
estar segurando o cigarro acima da cabeça, para fazer um risco
desta altura. Não, Babe, parece realmente que esta marca foi feita
por alguém que entrou aqui depois que Miss Austin saiu, às cinco
horas.
— Sei o que o senhor quer dizer.
— Isto me aborrece. Num caso onde não haja pistas diretas,
não se pode negligenciar nenhuma circunstância incomum, mes-
mo que pareça pueril. Como foi que esta marca chegou aí?
— Não sei — confessei.
— Ninguém levaria um cigarro na mão, à esta altura. Com
certeza estava na boca de alguém que entrou aqui depois das cin-
co, esta tarde. Quem? Holcombe só fumava cachimbo. Coletti fuma
charutos. Mrs. Loomis disse que às vezes fuma cigarros, e que não
fumou neste escritório. Se ela estava falando a verdade sobre este
ponto, significa que alguém mais visitou Holcombe, além dos três.
— Chefe — disse-lhe eu. — Isto é bom.
Àquela era a primeira vez que eu o via bancando o Sherlock
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Holmes, mas podia ver que estava gostando.
— Se o nosso raciocínio está certo — disse êle — podemos
imaginar um homem — ou uma mulher — talvez uma pessoa de-
sesperada, um assassino, entrando por esta porta, com um cigarro
à boca, e roçando-o contra o caixilho. O risco está a três polegadas
acima da minha boca. Tenho cinco pés e seis polegadas. Isto sugere
um homem de cinco pés e nove polegadas.
— Kreedlin! — exclamei. — É mais ou menos a altura dele e
é um viciado no fumo.
O Comissário esfregou o queixo.
— Como você disse, Kreedlin é o suspeito. E assim mesmo,
Babe, quantas vezes um homem, de cigarro à boca, encosta-o ao
caixilho da porta? Encosta-o com força, para deixar um risco? Nes-
se caso, a pessoa teria que ser muito vacilante em seus passos, não
acha você, para estar tão sem equilíbrio?
—— Talvez Kreedlin tivesse tomado alguns traguínhos para
ter coragem de eliminar Holcombe. Ou talvez êle tivesse lutado com
Holcombe...
O Comissário sacudiu a cabeça.
— Kreedlin não gostava de Holcombe, poderia estar com
medo dele por causa do irmão, mas não me deu a impressão de ser
capaz de um desespero que leva um homem a matar. Minha crença
é que estamos procurando por um homem desesperadíssimo e que
tivesse um motivo muito poderoso.
— Não sei, não — disse eu.
Olhamos para o risco.
— Vamos pensar novamente — disse-me êle. — Suponhamos
um homem que tivesse aberto só uma fresta da porta para olhar
o corredor? E estivesse com um cigarro na boca? E se esquecesse
que o mesmo estava ali? Assim — acendeu um cigarro, soltou al-
gumas baforadas, entreabriu a porta, olhou para fora, e encostou-o
de encontro ao lado da porta. Sobre a pintura branca apareceu um
risco estreito, três polegadas abaixo do outro.
— O senhor acertou! Mrs. Loomis! Ela tinha um motivo, como
disse o Tenente Harris. Ela admitiu que abrira a porta para olhar
o corredor. Ela é uma mulher alta e seria ali mesmo que o cigarro
dela deixaria a marca.
37
— Mrs. Loomis —- repetiu o Comissário para si mesmo. Vol-
tou para a cadeira de Holcombe, abriu as gavetas da escrivaninha.
Logo deparou com um maço de cigarros, quase cheio.
— É possível — disse êle. — Talvez Holcombe guardasse estes
para oferecê-los às visitas. Curioso, mas eu tive que virar a cabeça
para deixar aquela marca. Isto não é natural. Geralmente um fu-
mante carrega um cigarro como se fosse parte de si mesmo.
— Mrs. Loomis não está habituada a cigarros — informei.
— Se Holcombe ofereceu-lhe um, e ela aceitou para ser polida, e
depois alvejou-o e abriu a porta para olhar para fora. . .
— Talvez. Poderia ter sido assim — disse o Comissário, reclí-
nando-se na cadeira e olhando para o teto. Calei-me e fiquei espe-
rando. Pus-me a imaginar como estaria Stotter se arranjando com
Kreedlin, mas minha aposta agora estava em Vera Loomis. Embora
não me agradasse a idéia de que ela fosse uma assassina, não po-
dia compreender por que o Comissário não mandava buscá-la para
assim se resolver tudo. Daí a pouco senti-me aborrecido e fui até à
janela e olhei para o céu coberto de nuvens. Isto também tornou-
me tedioso e resolvi lembrar ao Comissário a razão da nossa visita
ali.
— O senhor acha que vai chover amanhã sem a ajuda do Dr.
Holcombe? — perguntei.
O Comissário não respondeu, mas depois de uns cinco se-
gundos estremeceu e indagou:
— Que foi que você disse, Babe?
— Eu estava apenas imaginando se amanhã iria chover, sem
que para isso o Dr. Holcombe usasse o seu processo de gelo seco.
— Foi o que pensei ter ouvido. Muito obrigado, Babe.
— Por quê?
— Por me dar a pista de que eu necessitava — disse êle.
Mas não parecia ter ficado satisfeito com isto. No seu rosto havia
uma expressão sombria. Ficou a pensar por um instante e depois
falou:
— Penso que chegou a hora de prestarmos declarações ao
Prefeito. Êle deve estar ansioso para saber qualquer coisa.
Atravessamos os corredores, em direção ao grande escritório
de Johnny Connors. Quando batemos, o Prefeito falou:
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—- Entre.
Era uma sala enorme, com a bandeira americana hasteada
num mastro de bronze, ao lado da escrivaninha, sendo que do ou-
tro lado da mesma estava a bandeira da cidade. Havia um tapete
grosso, quadros na parede; sofás de couro, etc. Johnny estava sen-
tado lá, junto com Thompson, e estavam trabalhando num papel.
Ambos pareciam pálidos e cansados.
— Danny! — exclamou o Prefeito. -— Solucionou? Já pren-
deu alguém?
— Não, Sr. Prefeito. Creio que estamos na pista, mas ainda é
cedo para efetuar prisões.
— Quanto tempo ainda levará? — perguntou o Prefeito.
— Tudo estará terminado dentro de algumas horas -— disse-
lhe o Comissário.
— Não podemos esperar tanto, antes de dar a notícia à im-
prensa. Ficando nesse pé, seremos criticados por termos silenciado
o caso. — Voltou-se para Thompson. — É melhor deixar sair assim
mesmo — disse êle.
— Deixe que apareça.
— Está bem, Johnny — disse Thompson, pegando o papel e
saindo.
— Estou exausto — disse o Prefeito, bocejando. — Estive fa-
lando em reuniões políticas desde as quatro horas da tarde. Graças
a Deus que amanhã não haverá discursos. Creio que é melhor ir
para casa e ler os relatórios antes de dormir.
— Dizendo isto começou a retirar alguns papéis da escrivani-
nha e colocá-los na sua grande pasta, e ao mesmo tempo falando:
— Quem foi, Danny? Quem matou Holcombe?
— Ainda persiste um elemento de suposição em nossas idéias
— disse o Comissário.
Johnny Connors sacudiu a cabeça com desapontamento, fe-
chou a pasta, colocou-a no chão, atravessou a sala, foi até o porta-
chapéus, e vestiu o sobretudo e o chapéu. O Comissário levantou-
se, também, pegou na pasta, como se a fosse levar para o Prefeito.
Mas eu percebi que êle a estava examinando com cuidado, e depois
de alguns segundos, pôs o dedo num buraquinho perto do fundo
da pasta, numa das pontas, onde ficavam as pregas em foles. O
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Prefeito não deu pela coisa, porque estava ocupado em colocar ou-
tro cigarro na piteira. Disse com impaciência:
— Bem, e quem é que a sua suposição escolheu como assas-
sino?
— O senhor, Prefeito, — disse o Comissário.
A princípio julguei não ter ouvido bem. Em seguida Johnny
Connors disse, muito calmo:
— Você ficou louco, Danny?
— Talvez — disse o Comissário, — Vou lhe dizer o que pen-
so a respeito deste crime, e então, se eu estiver enganado, poderá
despedir-me e terá todo o direito de fazê-lo.
— Trata-se de uma brincadeira, não, Danny? — indagou o
Prefeito, cheio de esperanças. — Mesmo que seja, é de muito mau
gosto; estamos todos cansados e fora de nós, esta noite, portanto,
vamos esquecer isto tudo e não falaremos mais no caso.
— Gostaria muito que fosse apenas uma brincadeira — disse
o Comissário.
O rosto de Johnny ficou vermelho e êle disse:
— Eu o despediria agora mesmo, se não me desse conta de
que você é um homem velho e cansado, e que não está completa-
mente certo da responsabilidade do que está dizendo. Que diabo
quer você dizer com esta bobagem?
— Tem razão — exclamou o Comissário. — Estou cansado
e sou velho. Gostaria de ter-me demitido deste emprego há muito
tempo. Mas, Sr. Prefeito, agora que já chegamos até aqui, sente-se
e deixe-me explicar.
Johnny hesitou, olhou para o relógio e disse por fim:
— Dar-lhe-ei cinco minutos — e sentou-se à escrivaninha.
— Não demorarei muito. Há um pequeno risco de cinza de
cigarro no painel branco da porta, no escritório de Holcombe. Te-
nho certeza de que foi feito pelo assassino, quando olhava para
fora, para ver se a costa estava livre. Por um tempo eu julguei que
deveria ter sido feito por um homem umas três polegadas mais
alto do que eu ou o senhor. Depois lembrei-me da sua piteira, que
o distingue dos outros. Segundo o modo como o senhor sempre a
usa, a ponta do cigarro fica a três polegadas acima da sua boca.
E naturalmente, estas piteiras são incômodas para usar na fresta
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de uma porta. Na verdade, seria quase impossível para um homem
deixar uma marca daquelas, sem uma piteira, a menos que tentas-
se deliberadamente fazê-lo.
— Meu Deus! — exclamou Johnny Connors. — E eu que pen-
sei que você entendesse do seu negócio! Que espécie de policial é
você? Isto é evidência?
— Não — concordou o Comissário — mas é sugestivo. Siga o
meu pensamento e eu lhe darei evidência. Sabemos que a bala que
matou Holcombe, saiu de um revólver munido de um silenciador.
Assim equipada a arma fica grande demais para ser carregada num
bolso ou num coldre. O assassino tinha que trazê-la escondida
num invólucro grande, de qualquer espécie. Se Holcombe tivesse
visto a arma, teria lutado, e não há sinais disso. Em vista disso, te-
mos que supor que o assassino manteve o revólver escondido todo
o tempo em que esteve com Holcombe. É possível que tenha atirado
de dentro do próprio invólucro — que era uma pasta, segundo as
minhas suspeitas. Foi por isto que não encontraram pólvora no
rosto de Holcombe. Segundo eu penso, o assassino estava parado
ao lado de Holcombe, com a boca do revólver a algumas polegadas
da cabeça de Holcombe, e ao pretextar retirar alguns papeis da
pasta, puxou o gatilho. Logo em seguida, um homem saiu apressa-
damente do escritório de Holcombe. Não era um homem alto — e
a pessoa que o viu pensou que poderia ter sido até uma mulher de
slacks. Raros eão os homens que têm uma figura elegante, ou que
usam roupas tão apertadas que façam lembrar, mesmo de leve, o
corpo de uma mulher. Este homem levava qualquer coisa seme-
lhante a uma pequena valisa, mas que, no caso, poderia ser uma
pasta grande.
— E daí? — perguntou o Prefeito, olhando diretamente nos
olhos do Comissário. — Você está perdendo tempo. Fêz uma acu-
sação idiota. Prove, ou cale-se.
— Esta sua pasta grande — disse o Comissário — tem um
buraquinho perto do fundo, bem onde deveria estar, caso um revól-
ver fosse disparado de dentro dela.
O Prefeito riu, mas foi uma risada nervosa.
— Um buraquinho na minha velha pasta — disse êle — e isto
me torna um assassino.
41
— Não somente isto — continuou o Comissário. — Mas se
examinarmos o interior da pasta e encontrarmos vestígios de pól-
vora em volta do orifício, isto nos aproximaria mais, não é?
— Isto está indo muito longe — disse Johnny. — Minha pa-
ciência tem limites. Dê-me a minha pasta. Vou para casa. Na qua-
lidade de Prefeito, falando para o seu Comissário de Polícia, estou
desapontado com você. Com toda esta conversa à-toa, você não
sugeriu nem mesmo um motivo ou uma evidência. Amanhã trata-
remos da sua demissão.
— Um momento — disse o Comissário. — O motivo. Isto atra-
palhou-me, confesso. A não ser que se tratasse de um criminoso
inveterado, o assassino poderia ser um homern desesperado. E o
que levaria qualquer pessoa a tal desespero para matar Holcombe?
Nada que eu pudesse imaginar tinha sentido, até que Babe pergun-
tou se amanhã choveria sem a intervenção de Holcombe.
— E que tem isto agora a ver com tudo? Decididamente você
ficou louco — disse o Prefeito.
— O senhor acreditou em Holcombe — prosseguiu o Comis-
sário com firmeza. — Sabia que êle estava planejando voar ama-
nhã, e que êle esperava fazer cair uma chuva prolongada. O senhor
não podia suportar a idéia de ter chuva no Dia da Eleição, com as
corridas paralisadas, cada voto valia muito, e com chuva a comis-
são ficaria aborrecida. Uma chuvarada seria a sua ruína certa. Sua
única esperança era ter muitos votos, e a chuva sempre mantém
muitos eleitores longe das urnas.
— Seu idiota — disse Johnny, tornando-se furioso. — Pensa
que eu seria capaz de cometer um crime por alguns milhares de
votos? Julga que eu assassinaria um ótimo rapaz como Holcombe,
ou qualquer outro, por política? Pensa que se eu tencionasse as-
sassinar alguém, eu mesmo praticaria tal delito? Imagina que eu
iria matar um homem na véspera das eleições, quando uma notícia
má poderia arruinar-me? Você não diz coisa com coisa, Danny.
O Comissário conservou-se silencioso por uns instantes. De-
pois falou, muito devagar:
— O senhor precisa vencer nesta eleição. Certas coisas ruins
têm sido encobertas na sua administração. Caso vença a oposição,
ela poderá desvendar alguns escândalos que o arruinariam.
42
O Prefeito olhou para êk:
— Você está de fato me acusando de assassino — disse êle,
como se não pudesse acreditar.
— Holcombe era um problema para o senhor — continuou o
Comissário. — Sem dúvida pediu-lhe, gentilmente, que não voas-
se amanhã. E depois, verificando que êle não ligava importância
à sua eleição, e não queria suspender o seu trabalho pela cidade
— achando-se apenas um cientista honesto, que tentava executar
o que fora incumbido de fazer pelo povo. Por detrás daquela ma-
neira amigável, êle tinha um ideal rígido e aferrado, que o senhor
não esperava encontrar. Êle estava sendo pago para fazer chuva,
portanto, toda a vez que havia bastante nuvens no céu, subia e
espalhava gelo nelas — sem olhar para quem gostasse ou não. Pro-
vavelmente êle lhe disse o mesmo que já dissera aos outros: que se
uma vez começasse a ceder a qualquer pressão, de qualquer fonte,
não teria mais fim. As nuvens estavam se aglomerando esta noite,
assim, êle planejava voar amanhã para encher os reservatórios, e
não deixaria que a política interferisse. Assim êle pensava, e deve
ter sido isto o que êle disse, principalmente por não estar ao seu
lado, politicamente.
— Continue — disse o Prefeito. — É uma boa história. Talvez
possa se fazer na vida, escrevendo histórias de mistério, depois que
fôr despedido.
O Comissário suspirou:
— Holcombe estava esperando em seu escritório — talvez ti-
vessem pedido para que êle esperasse. O revólver foi para dentro
da pasta. Tenho ódio só em pensar no estado de espírito que levou
a pessoa a aprontar aquela arma, adaptando-lhe o silenciador. O
edifício estava vazio, ou pelo menos, parecia. De qualquer forma
o assassino tinha que se arriscar a ser visto. Estava desesperado.
Talvez tenha feito uma última tentativa para persuadir Holcombe e
então, nada conseguindo, alvejou-o.
— Já ouvi bastante — disse o Prefeito.
— Creio que não — retrucou o Comissário. — Talvez esteja
interessado em saber que o assassino teve uma escapada muito
mais curta do que pensou, porque um homem passou pela porta
pouco antes que êle puxasse o gatilho. Depois o criminoso apa-
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nhou a cápsula vazia, apagou a luz, abriu a porta e olhou para fora.
Foi aí que o cigarro, colocado numa longa piteira, deixou a marca.
Creio que esta é a pior cena do crime, Sr. Prefeito — um assassino
olhando pela porta, e usando a piteira da maneira habitual: num
dos cantos da boca.
O Prefeito umedeceu os lábios, mas não disse nada. Olhava
para o Comissário como se estivesse hipnotizado.
— O vestíbulo estava vazio — continuou o Comissário. — O
criminoso limpou a maçaneta e o comutador da luz, deixou a sala e
apressou-se a sair. Não percebeu que atrás dêle uma mulher apa-
recera no corredor e o vira antes dêle dobrar a esquina do mesmo.
— Ela não me poderia ter visto — disse o Prefeito, e sua voz
estava áspera pela primeira vez. — Eu não estava lá.
— Não? — perguntou o Comissário. — De toda a maneira,
está é uma exposição crua de como o crime foi praticado, Sr. Pre-
feito.
O Prefeito fêz uma profunda inspiraçâo, e quando falou, o
seu antigo tom voltara-lhe à voz:
— É tempo de terminar com esta bobagem. Existe um erro
fatal na sua bela história. Acontece que até saber da morte de Hol-
combe, não estive na Prefeitura desde as quatro da tarde, quando
falei numa sessão na cidade alta. Desde então estive sempre com
outras pessoas. Cada minuto do meu tempo pode ser identificado.
Não matei Holcombe, e se você fôr bastante louco para me exigir
um álibi, poderei fazê-lo.
O Comissário aquiesceu:
— Era isto o que eu queria ouvi-lo dizer. Acredito. Deu-me o
último argumento de que eu precisava.
— Que quer dizer? — perguntou o Prefeito.
— Uma das coisas que me amarraram neste caso — disse o
Comissário — á que o crime estava fora de cogitação para o senhor.
Sempre o considerei um homem fundamentalmente bom e decente.
Não podia imaginá-lo assassinando deliberadamente um homem
bom, por um motivo egoísta.
— Bem, então. . . — disse o Prefeito.
— Se o senhor não matou Holcombe — prosseguiu o Comis-
sário — então foi alguém cujo cigarro deixaria uma marca da altura
44
do seu. É uma farra dentro da Prefeitura como Lloyd Thompson o
imita em tudo: o modo como o senhor fuma, ou como se veste. De
costas, êle tem a sua mesma aparência elegante. Êle utiliza tam-
bém a sua pasta. Tinha um motivo muito mais poderoso do que o
seu.
— Deixe o Tommy fora disto — disse o Prefeito. — Você não
tem mais evidência contra êle do que tem contra mim.
O Comissário continuou, como se não tivesse ouvido:
— A derrota nesta eleição teria sido talvez pior para Thomp-
son do que para o senhor. Considero que o senhor é um homem
honesto, mas não é segredo para ninguém que anda rodeado por
homens envolvidos em trapaças. A sua lealdade para com os ami-
gos teria sido muito adequada a qualquer outro cargo, menos ao
seu. Creio que agora ela o arruinou.
— Você acha. . . você pensa! — ironizou Johnny Connors. —
Suspeitas e mais suspeitas. Onde estão os fatos?
— Sim — concordou o Comissário. — Ainda não temos bas-
tante fatos. Ainda não tive tempo de descobrir se foi Thompson
quem trouxe Holcombe para o seu serviço, mas creio que sabere-
mos que êle era uma importante relação de Kreedlin. Ainda não tive
tempo de descobrir o que Thompson e Kreedlin estavam querendo
encobrir na construção do reservatório de Long Park, mas creio que
descobrirei que era alguma coisa escandalosa e ao mesmo tempo
perigosa para Thompson, bem como para a Companhia Kreedlin;
alguma coisa que poderia mandá-los para a cadeia. Talvez não nos
seja possível provar, mas minha suposição é de que foi Thomp-
son quem telefonou para Holcombe, falando sobre o reservatório de
Long Park, esta tarde, e tentou dissuadi-lo. Talvez tenha sido en-
tão, quando Holcombe recusou-se a aceitar a pressão, que Thomp-
son decidiu que êle devia morrer, antes que surgisse o escândalo.
Este motivo passou-me pela cabeça, bem cedo. Mas eu não podia
imaginar porque Thompson assassinaria Holcombe na véspera da
eleição, quando isto poderia afetar as suas chances de ser reeleito,
Sr. Prefeito. Não poderia esperar mais um dia, até que o senhor
voltasse para o seu posto? Então aquela pergunta de Babe fêz-me
lembrar de outro motivo, e que requeria ação imediata: caso cho-
vesse amanhã, isso causaria a sua derrota.
45
O Prefeito acendeu um cigarro, e sua mão estava trêmula.
— Tommy esteve comigo na cidade toda a tarde.
— Sem dúvida — prontificou-se o Comissário. —- O crime foi
cometido por volta da hora em que o senhor tinha ido para casa, a
fim de trocar de roupa para a reunião desta noite. Creio que foi aí
que Thompson voltou à Prefeitura, trazendo a sua pasta, e cometeu
o assassinato. Com Holcombe fora do caminho, e não contando
com uma chuva natural amanhã — e isto êle tinha que aguardar
com ansiedade — êle pensava que o senhor venceria nas eleições.
Na realidade, não supôs que a notícia do crime afetaria a confiança
que os eleitores depositavam no senhor. Ao contrário, iria convertê-
lo numa publicidade de última hora, e usá-lo como método para
conquistar para o senhor a simpatia do povo. Uma vez que o se-
nhor fosse reeleito, êle poderia recobrar-se no caso Kreedlin.
— Você não provou nada — disse Johnny Connorg.
— Ainda encobrindo-o? Mesmo num crime? -— perguntou
o Comissário. — Eis como eu vejo Thompson depois do crime, Sr.
Prefeito. Êle devia estar preocupado, sem saber o que fazer com a
arma. Suspeito que a tenha conservado dentro da sua pasta du-
rante toda a reunião desta noite. Andou com a pasta sempre agar-
rada, mesmo quando foi até a sala fumar. Isso lhe parecia muito
mais seguro do que esconder o revólver. Oh, Thompson foi inteli-
gente: quem se atreveria a examinar a pasta do Prefeito, à procura
da arma do crime? Se o senhor quisesse algum papel da pasta,
êle apenas os alcançaria. Sem dúvida êle ainda trazia a pasta que
continha a arma, debaixo do seu sobretudo, quando o senhor foi
até ao escritório de Holcombe esta noite. Não posso crer que o se-
nhor soubesse disto, então. Parecia dizer a verdade, quando pediu
a imediata prisão do rato que matara Holcombe. Talvez Thompson
só lhe tivesse confessado, depois que ficaram a sós, no seu escritó-
rio. Talvez o senhor tivesse visto a arma dentro da pasta. Ou talvez
êle lhe contasse voluntariamente o que tinha feito, porque contava
com a sua lealdade pessoal para protegê-lo, e mesmo porque, nisto
tudo está o seu próprio interesse. Êle sabia que se fosse preso, o
escândalo o arrastaria com êle. E a primeira coisa que necessitava
era um bom esconderijo para o revólver.
O rosto do Prefeito estava cinzento.
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— Tudo isto é uma rede de suposições. Onde está a sua pro-
va?
— O revólver não está mais na pasta — disse o Comissário,
olhando em volta do escritório — e Thompson não o estava carre-
gando quando saiu do escritório há pouco. Far-lhe-ei uma proposta
amigável. Dê a pasta a Babe, e dê-me as chaves, e deixe-nos revis-
tar o seu escritório. Se não encontrarmos vestígios de pólvora quei-
mada dentro da pasta, e se não encontrarmos a arma, confessarei
que não posso provar nada, e pedirei demissão, e pronto.
— Por que deverei me submeter a isto? — perguntou o Prefei-
to. — É um insulto ao meu escritório.
— O senhor pode recusar — disse o Comissário — mas en-
tão terei que deixar Babe aqui, para ter a certeza de que o senhor
não levará a pasta e o revólver, e direi aos rapazes que prendam
Thompson, e consigam um mandado de busca. E se os repórteres
me perguntarem por que estou pedindo uma ordem para revistar o
seu escritório, terei que dar-lhes os motivos.
— Chantagem! — exclamou o Prefeito. Colocou outro cigarro
na piteira e acendeu-o. Sua mão estava trêmula, mas ainda con-
servava a piteira na mesma posição oblíqua.
— Danny — disse êle depois de alguns segundos — não me
diga que você é outro Holcombe. Não me venha com uma porção
de bobagens acerca do serviço público, nem do seu dever. Você
me deve alguma coisa. Fiz de você o que é hoje. O partido tem que
vencer amanhã. Você me deve lealdade, portanto, espero que não
continue com isto. Você e eu estamos metidos em muita coisa.
Lembre-se, se eu cair, você cairá também.
O Comissário não disse nada, só ficou olhando para êle com
firmeza e daí a um instante Johnny Connors estendeu as mãos:
— Está bem — disse êle. — Você venceu. Não precisa procu-
rar.
Abriu uma gaveta da sua grande escrivaninha, uma que ne-
cessitava de duas chaves para abri-la, e retirou um Smith e Wes-
son com um silenciador adaptado.
O Comissário levantou-se: —- Então é tudo. Diremos aos ra-
pazes que prendam Thompson.
— Um momento — pediu.o Prefeito. — Isto me liquidará. Não
47
tenho calma suficiente para aturar a sujeira que virá. Não há nada
que eu possa fazer por Tommy — e Mrs. Connors está morta. . . —
êle ínterrompeu-se e disse:
— Você foi sempre um bom amigo, Danny.
O Comissário ficou ali parado, pensando.
— Sou apenas um policial — disse êle por fim — e não é da
minha conta fazer julgamento morais, mas compreendo o que quer
dizer.
Quando eu ia me aproximar da arma para apanhá-la, o Co-
missário afastou-me.
— Obrigado, Danny.
— Está bem — disse o Comissário. — Vamos, Babe.
Comecei a fazer objeção, mas êle me interrompeu e dirigimo-
nos para a porta.
— Adeus, Danny — disse o Prefeito.
— Adeus, Johnny — disse o Comissário, e foi aquela a única
vez que eu o ouvi chamar o Prefeito de Johnny.
Saímos para o vestíbulo, fechando a porta atrás de nós. O
Comissário ficou quieto, esfregando o queixo com a mão e pare-
cendo muito triste. Depois de alguns segundos ouvimos um ruído
como se fosse um espirro no escritório do Prefeito.
— Eu gostava dêle — disse o Comissário. — Mas agora gosto
dêle mais do que nunca.

48
Se você conhece esta, então nada feito. . .
Quando MacKinlay Kantor veiu para Nova York em 1931 ou
1932 ainda mantinha no carro uma placa do Estado de Iowa, Uma
vez, quando dirigia pelas proximidades do Holland Tunnel, seu carro
foi detido por um pelotão inteiro de polícias de Jersey City que revis-
taram tanto o carro como Mr. Kantor com uma meticulosidade que
somente poderia ser encontrada num romance de ficção. Mr. Kantor
perguntou-lhes se andavam a procura de um carro roubado. Não,
mas a verdade é que andavam a procura de um homem, um homem
perigoso. (Era naqueles dias que Dilinger e outros bandidos anda-
vam às soltas pelo país afora).
Cerca de um ano mais tarde, MacKinlay Kantor se havia tor-
nado um assíduo colaborador da revista “Detective Fiction Weekly”.
Uma noite, quando saia de automóvel de Nova York, Mr. Kantor co-
meteu uma pequena infração dos regulamentos do tráfego (e quem
poderia censurar-lhe por isto depois de conhecer o tráfego de New
Jersey?), fazendo com que lhe caísse em cima outro batalhão de po-
lícias de Jersey City. Mais uma vez fizeram Mr. Kantor sair do carro
e realizaram uma busca em regra.
Aconteceu, porém, que vários dos polícias eram os mesmos
que haviam detido Mr. Kantor um ano antes, e quando “Mac” se
identificou, os zelosos policiais, com suas memórias fotográficas,
lembraram-se dele. Além disso, conheciam Mr. Kantor muito bem.
Como é fácil de imaginar, durante o ano anterior, haviam fica-
do conhecendo Mr. Kantor através das páginas da revista. Todos,
sem exceção, eram maníacos por histórias de detetives, e gostavam
dos contos de Mr. Kantor. E foi assim que eles fizeram com que Mr.
Kantor se detivesse no posto policial, e passasse ali toda a noite a
49
ouvi-los contar-lhe suas experiências pessoais.
Eis aqui uma destas histórias reais, contadas petos próprios
policiais, e que causou tanto sucesso entre os detetives de verda-
de...

O POLICIAL “TICO-TICO”

MacKinlay Kantor

DOIS homens se detiveram em frente à porta de um aparta-


mento barato, nos fundos do segundo piso de um edifício de uma
rua de Acola, e tocaram a campanhia. Ambos traziam revólveres.
A três quadras de distância, num restaurante na esquina das
ruas Lead e Bellman, o Inspetor Nick Glennan levantou-se e diri-
giu-se para o balcão de cigarros, exibindo suas botinas de verniz
e seus punhos duros de goma, e comprou um pacote de goma de
mascar.
— Um dia e tanto — disse Nick Glennan à caixeira.
— Formidável — concordou ela.
— Porque — continuou Glennan — há uma espécie de prima-
vera num dia assim. Mas não vai durar muito. — Meteu o pacote
de goma no bolso de dentro e alisou algumas rugas imaginárias do
uniforme.
— Ora esta! — disse uma voz atrás dele.
— E haverá algo de extraordinário num dia de primavera em
março? — perguntou outro.
Glennan mudou de côr. Conhecia aquelas vozes. . . Conhecia
as duas.
Voltou-se e lançou um olhar de desprezo para os dois homen-
zarrões que numa mesa saboreavam os últimos pedaços de um bife
de filet mignon.
— Como vai o “Tico-tico?” — perguntou o maior dos dois. Era
o irmão de Nick, o Sargento Dave Glennan do Departamento de In-
vestigações. Era quinze anos mais velho do que Nick e vinte quilos
mais pesado, com notável parecença a um bugio atarracado.
— O “Tico-tico” vai tão bem de saúde e tão satisfeito como se

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se exibisse no seu Cadillac. . .
Dave deu uma risadinha.. Seu companheiro, Pete MacMahon,
sorriu também para o jovem e atirou-lhe amistosamente um pali-
to.
-— Você sempre leva Dave a sério demais, garôto.
— E por que êle não acaba com esta história de “Tico-tico?”
Êle também já usou os arreios, no seu tempo.
— Mas não servindo no Jardim Zoológico — grunhiu Dave.
— E o que há de mal no Jardim Zoológico? Você acha que não
há necessidade de proteção policial nos parques?
— Há sim — concordou o irmão. — Afinal de contas a gente
nunca sabe as surpresas que os ursos podem pregar à gente. Po-
dem fugir e morder alguém. E já uma vez foi uma velha que caiu
de cabeça no lago. Além disso alguém poderá roubar a estátua do
General Sherman de seu pedestal diante do aquário, um dia des-
tes. E se algum fedelho se apresentar de nariz sujo, não se esqueça
de assoá-lo. Está nos regulamentos. Pràticamente, é como uma
postura municipal.

Mas, no edifício da rua Acola, alguém abriu a porta daquele


apartamento barato, e um dos homens levantou a coronha do re-
vólver e fê-la descer, depressa e com muita força.

Nick sacudiu os ombros e ajeitou-se dentro do uniforme.


— Algum dia ainda vou mostrar p’ra vocês, narigudos, que
trabalhar no parque, como “Tico-tico”, é tão importante como o
serviço que vocês fazem.
— Sim, qualquer dia destes. . . — concordou Dave de boa
vontade. Bocejou e deu uma palmadinha na barriga arredonda-
da. Nick pensou na grande cicatriz côr-de-rosa e proeminente que
adornava aquele protuberante abdômen, e se sentiu um tanto en-
vergonhado. Dave era um sujeito e tanto, não havia dúvida, e como
irmão não poderia haver melhor. Mas êle, Nick, nem sempre podia
evitar de aborrecer-se com as caçoadas do outro, que o tratava
como criança.
Nick estava na polícia havia apenas seis meses. E não seria
um “Tico-tico”, não trabalharia no parque a vida inteira. Dave tinha
51
de saber disso. E só porque Dave era polícia havia doze anos, e ti-
nha sido ferido, promovido e condecorado, e meio morto e apareci-
do nos jornais, não era motivo para que fizesse troça dele, e assim,
em público ainda por cima.. .
— Vamos andando, Dave? —— perguntou MacMahon, olhan-
do para o relógio.
Pagaram a conta e se dirigiram para a porta. Nick ajustou o
boné, espanou com os dedos um microscópico átomo de poeira do
uniforme e seguiu-os.
— A que horas você entra? — perguntou MacMahon a Nick
Glennan.
— Daqui a hora e meia.
Dave Glennan abriu a bocarra, num sorriso divertido.
— Mas que devoção ao dever! Você poderia estar muito bem
em casa, com Alice, e já anda a estas horas por aqui, com os arreios
em cima, e pronto para uma inspeção.
— Alice gosta de me ver cuidar do serviço — disse Nick alti-
vamente.
— Mas isto é o mesmo que trabalhar uma hora e meia a mais,
de graça. — Dave cortou com os dentes a extremidade do charuto,
e deu uma palmada no ombro do irmão. Nick tornou a lançar-lhe
um olhar entre zangado e desconfiado. — Meu filho, — disse-lhe
Dave — você é um polícia e tanto. Olha só estes punhos, Pete! Es-
tão como espelhos.
O jovem Glennan tentou vencer seu crescente aborrecimen-
to.
— Mas o que é que vocês dois vêm de extraordinário? — per-
guntou êle.
— A magreza um tanto suspeita. Mas espera até que chegues
aos trinta e oito. Então não caminharás mais, vais rolar. Todos os
Glennan juntam carne para aquentar-lhes os ossos.
— Mas comigo não vai se dar isto — assegurou-lhe Nick.
Os dois detetives dobraram em direção à rua Bellman, e Nick
tomou a direção oposta, onde o parque mostrava seus arbustos, ao
sol do meio dia, a uma quadra mais adiante.
— Dá um adeusinho a Alice por mim. Qualquer noite destas
eu apareço por lá para comer uma sopinha feita por ela.
52
— Espero que ela prepare a sopa para você com óleo de ríci-
no. Até logo, MacMahon. Até logo, gordinho.
—- Não vás te perder no parque, “Tico-tíco”.
Nick Glennan não se dignou a retrucar a tais conselhos. Ca-
minhou pela rua afora, magoado e com seu orgulho ferido. “Tico-
tico”! Ora, aqueles dois montes de banha! Disse de si para si que de
qualquer modo êle bem desprezava as linhas do corpo de qualquer
um deles, desde os grandes pés chatos, e continuando pelas proe-
minentes até as cabeças carecas.
Ora, só porque Dave era sargento e usava roupas civis e teve
seu retrato nos jornais. . . Dave bem lhe parecia um colchão com
pernas e braços.
Nick continuou a caminhar em direção ao parque, o boné
inclinado um pouco para um lado, os braços balançando-se com
elegância, os passos leves e ligeiros. Quando passava pelos carros
estacionados junto ao cordão da calçada, dava uma olhadela nos
números deles. Afinal de contas, o seguro morreu de velho, e algum
dêles poderia ser um carro roubado, constante da última lista que
lhe havia sido fornecida, e que êle recordava mentalmente.
Embora somente entrasse de serviço às duas horas da tarde,
e tivesse uma hora e meia de descanço, o entusiasmo pelo serviço
o afastara do pequenino apartamento onde êle e Alice passavam o
seu segundo ano de casados. E aquilo êle fazia diariamente. Gosta-
va de andar fardado. Gostava de estar de serviço, mesmo antes da
hora. Os Glennan eram assim. Houve um avô de cara avermelhada
que chegou mesmo a meter-se no meio de uma horda de anarquis-
tas, há muito tempo. O pai de Níck e Dave estava agora oficialmen-
te aposentado, mas algo mais que a necessidade fazia com que se
metesse num fardamento de polícia de um banco particular, embo-
ra seu cabelo já fosse tão branco como algodão.
Nick mantinha o queixo elevado. Seus olhos viam tudo. e
achavam tudo em ordem: o céu muito azul do fim do verão, o sol
quente despejando-se sobre as paredes de tijolos nus, a caravana
de criança e suas amas que se dirigiam para o parque. Com os de-
dos bateu no revólver azulado que pendia de encontro ao quadril,
dentro do coldre polido. . . “Tico-tico”, hein! Eles ainda veriam. . .

53
O homem de casaco marrom segurava a mulher, torcendo-
lhe os braços, enquanto ela se debatia.
— Amarra-a, Jack. Depois trataremos de abrir aqui por esta
dobradiça.
— Vocês podem matar-me — soluçou a mulher por entre os
dedos que lhe comprimiam a boca, — Podem matar-me... matar-
me...

Pete MacMahon e Dave Glennan chegaram à interceção das


ruas Acola e Bellman, e voltaram-se para a direita.
— Qual é o número, Dave?
— 3419.
— Sim, e que há de novo?
— Apperson disse que devemos observá-la. Apartamento
Doze. Alguém telefonou e disse que havia algo estranho ali.
—- Teria sido algum da quadrilha?
— Não. Apenas um vizinho. Nada de mais, pois do contrário
eu teria trazido uma patrulha. Apperson disse-me que se eu andas-
se por aqui nos próximos dias, que desse uma olhadela. Pois já está
em tempo, e andamos por aqui, de sorte que não seria de mais se
a gente desse uma espiada.
MacMahon cuspiu fora um pedaço meio mascado de charu-
to:
— Êste negócio devia ficar afeto à delegacia do distrito.
— É verdade; e vais ver que tudo isto resulta em nada.
— Acho que é isto mesmo — concordou Pete. — Lá está. Deve
ser aquela casa lá, do outro lado da rua.
Caminharam por detrás de um carro que se encontrava esta-
cionado e se aproximaram da entrada da frente do número 3419 da
rua Acola. Era um edifício pobre e de aparência feia, de uns cinco
anos, mas já manchado e de reboco quebrado nos cantos. Dave
Glennan não teve dúvidas de que havia de cheirar a uma mistura
de gin, couve-flor, e panos molhados, logo que meteu o pé pára o
lado de dentro. Meio pensão, meio casa de apartamento, sua
presença prejudicava toda a fileira de pequenos e sóbrios edifícios
da vizinhança.
-— Parece um buraco de ratos — murmurou MacMahon.
54
— Pelo menos tem o cheiro. É, parece. E é mesmo um buraco
de ratos — grunhiu Dave.
Avançaram para o vestíbulo, empurraram para um lado um
sujo carro de criança e um velocípede, e examinaram a engordura-
da caixa de endereços e campanhias.
— Apartamento Doze — leu Glennan. — Frank R. Johnson.
— Devia ser Jones ou Smith — observou MacMahon. — Os
Johnsons estão ficando muito comuns hoje em dia.
— Bem, provavelmente é um vagabundo que bate na mulher,
ou coisa parecida — o volumoso polegar avançou para comprimir
a campanhia, depois hesitou. — Os vizinhos estão sempre se me-
tendo quando há encrencas de família — filosofou êle. — Provavel-
mente foi assim que a coisa veiu a furo. Mas de qualquer modo,
não gosto da aparência disto aqui. Experimenta aquela porta do
vestíbulo.
Pete torceu o trinco.
— Fechada — informou.
— Não vou tocar a campanhia — disse Dave, surpreso de sua
própria obstinação. — Vamos pelos fundos. . .
— Aí vem alguém — disse MacMahon, dando um passo para
trás quando uma mulher de meia-idade, com um cesto de com-
pras abriu a porta pelo lado de dentro. A manopla de MacMahon
segurou a porta, mantendo-a aberta quando a mulher passava. A
mulher voltou-se e soltou uma exclamação de surpresa.
— Da polícia — informou simplesmente MacMahon.
A mulher murmurou alguma coisa em italiano, e sacudiu a
cabeça.
— Vá andando, dona — ordenou Dave.
— Há alguma coisa com ela? — perguntou MacMahon.
— Nada. Uma velhota dos confins da Sicília. E não há dúvida
de que não se chama Johnson.
— Bem — disse Pete — de qualquer modo nos abriu a porta.
— Eu me encarrego da porta dos fundos — disse Glennan.
Uma certa suspeita começava a nascer-lhe no cérebro; êle não
acreditava em premonições, e na realidade nada sabia a respeito
disso. Mas havia sido guardião da segurança pública nos últimos
doze anos, e aquele edifício não lhe cheirava bem. Nem tampouco o
55
nome de Frank R. Johnson, junto à campanhia.
Em tais circunstâncias, sabia que um criminoso encurralado,
surpreendido quando o chamavam pela porta da frente, geralmen-
te tenta fugir pelos fundos. Com sua inclinação natural, escolheu
para si o posto de perigo.
— Você pelos fundos, e eu na porta da frente — recitou Mac-
Mahon. Tirou o relógio. — Quanto tempo?
— Tenho de encontrar a escada dos fundos e me postar junto
à porta — disse Dave. — Pelo menos cinco minutos. Sete será me-
lhor; sete minutos. Então você bate e dá um adeusinho p’ra eles na
porta da frente.
— Tenho a impressão que você vai ter trabalho com o tal
sujeito.
Glennan deu de ombros e olhou para o relógio.
— Pois a uma e dez você dá um toque na campanhia.

A mulher de cabelos côr de palha estava amarrada numa


cadeira, uma mordaça na boca, e os olhos arregalados. Quando
mudava a direção do olhar, voltava-o para a pilha feita pelo lado de
dentro da porta do apartamento. . .
Jack esvaziou a gaveta de uma escrivaninha no meio do ta-
pete, mexendo rapidamente no meio das coisas que caíram da
gaveta.
— É o diabo. Êles o esconderam em alguma parte, Spando.
O homem de sobretudo marrom dirigiu-se à porta da cozi-
nha. Nos cantos da boca tinha rugas brancas, feias.
— Então ela terá de falar. De qualquer modo eu gostaria de
saber onde estava aquele garôto.
— Eu ouvi a porta da cozinha fechar-se pouco antes dela
entrar.
— Era ela. Ela fechou a porta, quando batemos em Al.
— Quando você bateu, isto sim. Não devia ter batido tão for-
te.
— Mas como poderia saber que êle tinha cabeça de vidro?
— Mas teria sido melhor, agora temos um cadáver nas
mãos.
— E haverá dois, se ela não falar. . . e se não falar depressa.
56
O guarda Nicholas Glennan caminhava pelo largo passeio do
lado oeste, que conduzia justamente ao coração do parque. Ca-
minhar não é bem o têrmo. O guarda Nicholas Glennan desfilava
em parada. Não estava, entretanto, com um uniforme por demais
decorativo, nem estava inútil. Era jovem e bonito, e de porte aus-
tero, e naquele momento, como em todos os outros, parecia-lhe
que Deus havia sido bondoso para com êle, deixando-o viver e ser
guarda civil. Sim, mesmo que fosse um simples guarda de parque,
um “Tico-tico”.
Dave. . . grandalhão. . . gordo. . . Bah. . .
Por toda a parte garotos armaram brigas: garotos já cresci-
dos, às dúzias, formando grupos e quadrilhas. Garotos em bicicle-
tas, zigue-zagueando perigosamente por entre os lagos e piscinas;
meninas com vestidos de cores vivas. E regimentos de bebês, todos
muito bem acomodados em seus carrinhos. Quando Nick olhava
para aquelas crianças, aparecia em seu rosto uma expressão que
era mais do que simpatia, ou prazer pelo serviço, ou entusiasmo:
Algo mais elevado e também um pouco triste.
Êle e Alice sempre haviam querido ter um pequeno. Mais de
um. Mas agora estavam casados havia quase dois anos e o garoto
que tanto queria nem sequer havia sugerido a sua vinda. . . Alice
chorava, às vezes. Queria um menino, e tinha a intenção e chamá-
lo Nick. Aliás, desde que se casaram que ela planejava pôr ao filho o
nome de Nick. Bem, mas dois anos não são ainda uma vida. Afinal
de contas ainda podia vir.
Êle se conformava com aquela vã esperança. Pois não podia
esquecer-se do que lhe havia dito o velho Dr. Fogarty, que êle ja-
mais poderia ser pai. A vida era coisa engraçada. Não havia razões
para coisas como esta... Dave era solteiro, e talvez assim nem hou-
vesse mais nenhum Glennan para ser polícia.
O quartel da polícia do parque ficava situado mais para o
norte, mas Nick Glennan caminhou na direção do sul. Tinha a in-
tenção de atravessar o Jardim Zoológico, contornar a ampla curva
da lagoa, e por aí chegar ao quartel na hora.
Naturalmente haveria os grupos de sempre, diante das jaulas
dos ursos, tanto no passeio de cima como de baixo, Nick desceu al-
57
guns degraus e passou para o passeio inferior que era por um lado
flanqueado pelas jaulas dos lobos e raposas. Como cheirava muito
mal por lá, não se formavam grupos de curiosos.
O garotinho estava metido no meio de uma touceira, no outro
lado do canteiro, quando Glennan o viu. Era ainda muito pequeno,
vestia um macacão azul e uma suéter barata; não trazia chapéu e
evidentemente o mundo era mau para êle. Chorava com uma vozi-
nha monótona, meio sufocada.
Os braços compridos de Glennan estenderam-se na direção
do pequeno e retiraram-no da touceira.
— Que é isto, Buddy? — perguntou.
Os olhos cheios de lágrimas do pequeno brilharam de admi-
ração. Nick tomou a criança no colo.
-— Como é que você sabe o meu nome, polícia? — perguntou
a vozinha quebrada.
— Bem, eu mesmo nem sabia. Então tu te chamas Buddy,
hein? Bonito nome. Estás perdido?
-— Eu mesmo vim pra cá — disse Buddy, soluçando forte-
mente.
— Aposto que tua mamãe não sabe disso — sorriu Nick.
Buddy sacudiu a cabeça, num gesto sério.
— Não. Ela não sabe. Ela foi embora, uma vez. Os homens
levaram ela numa caixa grande.
— Ah, sim? — resmungou Glennan, embaraçado. — Bem,
mas aposto que o teu pai também não sabe que vieste para cá.
— Não tenho pai, não. Tenho um boneco grande, chamado
Popeye.
— Sim, — disse Nick, — e estás também com as mãos frias.
Mas onde é que moras, Buddy.
O rapazinho apontou na direção da entrada da rua Bellman.
— Moro lá. Deve ser muito longe daqui. Vi um homem dar na
cabeça do tio Al, e disparei para o Jardim Zoológico.
Aquela informação perturbou a serenidade de Glennan. Es-
queceu-se de que um menino perdido devia ser levado imediata-
mente para o quartel da polícia do parque. Esqueceu-se de que
ainda não estava de serviço. . . o que aliás não tinha nenhuma
importância. Esqueceu-se mesmo das mãos frias de Buddy.
58
—- Então, — perguntou Nick — viste um homem dar uma
pancada na cabeça do tio Al? Quando? E quem é o tio Al?
— Êle é ruim — disse o menino. — Me surra. Olhe aqui.
Havia uma mancha roxa no rostinho do pequeno.
— Ah, sim? — fez Nick, suavemente. — Então êle te bateu,
hein? Quando?
— Umas seis vezes, ou dez, ou quatro vezes. A tia Ida chorou.
Eu gosto da tia Ida. Mas não gosto do velho tio Al. Eu gostava que
a mamãe viesse de volta, daquela caixa grande.
Glennan murmurou, mais para si mesmo:
— Pudera! É claro que havias de gostar. — Nick Glennan
pigarreou, sorriu e sacudiu o garotinho nos braços. — Olha aqui
— disse-lhe êle. — Goma de mascar! — Com alguma dificuldade
conseguiu tirar o pacote de goma de dentro do bolso da túnica, e
Buddy agarrou-o logo com a mãozínha suja.
— Agora escuta aqui, rapaz — disse Nick, olhando-o com se-
riedade. — Tu sabes que os polícias gostam sempre de saber como
é esta história de homens que dão pancada na cabeca dos outros,
não é? Que é que sabes a respeito deste tal que deu no tio Al? Afinal
de contas quem é?
— Ê um homem grande. Não gosto do jeito dele... Gosto de
goma.
Caminhou pela alamêda com o trêmulo rapazinho nos bra-
ços, Glennan foi se informando a respeito daquela história. Buddy,
pelo que parecia, morava num edifício muito grande. Estava brin-
cando com seu boneco Popeye na escada, e estava muito quietí-
nho, quando viu os homens tocarem a campanhia da porta do seu
apartamento. Parece que o garoto, num lugar meio escondido da
escada pôde observar sem ser visto. O tío Al abriu a porta, e um
dos homens desferiu-lhe um golpe na cabeça, derrubando-o junto
a porta.
De qualquer modo, Buddy não ficou mais ali para ver o que
acontecera depois que a porta se fechara, com a entrada dos dois
homens. Buddy correra para o Jardim Zoológico. Tia Ida já o trou-
xera uma vez ao Jardim Zoológico e êle conhecia o caminho. Fica-
va, pensava o garoto, a uns cem quilômetros de distância da sua
casa, ou talvez a seis, ou mesmo a dez. E êle gostava mesmo era de
59
goma de mascar.
— Sim — concordou o guarda Glennan, abstratamente. —
Goma de mascar é uma coisa boa.
Estavam agora no passeio lateral do parque, e quando o guar-
da Glennan levantou a mão, um táxi se deteve rapidamente junto
ao cordão do passeio.
Nick suspendeu a criança em direção à porta aberta.
— Escute aqui, seu guarda, — disse o chofer — agora mesmo
tenho um chamado. . .
—- Claro, — interrompeu Glennan, — e foi este o chamado.
Torne a direção oeste, para a rua Bellman. Não vá muito depres-
sa... nem muito devagar. — Subiu no carro e se colocou ao lado do
garoto.
— É um carro e tanto — disse Buddy.
— É verdade — concordou Glennan, pondo o garoto sentado
sobre o joelho, quando o carro passava pelas árvores da avenida. —
Vamos ver agora, Buddy, se tu sabes mesmo onde fica a tua casa.
Quando vieste pra cá atravessaste uma rua?
— Sim — respondeu Buddy — mas eu olhei antes p’ros la-
dos.
Glennan disse então ao chofer:
— Continue, então. Atravesse a rua Lead.
— O caminho é este — disse Buddy. — A gente vai por aqui.
Sei ou não sei o caminho para o Jardim Zoológico? — e os olhinhos
cinzentos olharam sérios para o polícia. — Mas se nós formos para
casa, voltamos outra vez para o parque?
— Claro que voltamos. Mas passaste também por esta esqui-
na, hein?
— Por aqui mesmo — o dedinho sujo apontou na direção da
rua Acola. — Mas não gosto de tio Al. Gosto mais de você.
Glennan assentiu com um gesto de cabeça, e acrescentou:
— E de goma de mascar, não?
— Sim, — respondeu Buddy, sinceramente, — de goma de
mascar também.

Spando olhava para Ida Carrier, aliás Irene McCoy, aliás


Ida Johnson. Sua boca torceu-se com desprezo quando passou
60
os olhos pelo corpo caído do homem, Albert Carrier, aliás Lutero
McCoy, aliás Franck R. Johnson. Voltou-se então para a mulher
amarrada na cadeira.
— Êle se apagou, como uma vela — disse. -— Bateu a bota,
compreende? Liquidamos com êle. Que diabo! o homem tinha a
cabeça mais mole que uma casca de ôvo. Agora você vai dizer onde
está a bolada, e vai falar ligeiro, está ouvindo? Vocês são dois ta-
peadores...
Jack Novack afrouxou a mordaça na boca machucada de Ida.
A resposta veio então, raivosa: — Eu ainda vou ver vocês dois mor-
rerem como ratos. . .
— Pode ser — riu Spando. — Tira os sapatos dela, Jack. —
Que tal um cigarrinho na sola do pé, hein? — acendeu um cigarro
e inclinou-se. O homem não estava blefando. A expressão do seu
rosto era a de um torturador num calabouço medieval.
A mulher soluçou.
— Ah! meu Deus. Não posso... não adianta — o cotovelo,
amarrado, tentou mover-se grotescamente. — Está lá. Naquele
aquecedor. É ôco. Al parafusou aquilo no chão. Tirando a tábua
detrás a gente abre. Está lá dentro, ainda na pasta.
— Todo? — Havia vinte e seis mil na pasta do pagador da
companhia.
— Al tirou dois mil. E eu tirei um pouco, também, quando a
coisa andava ruim. O resto está lá — a mulher começou a chorar,
com voz rouca.
Spando deu uma risadinha. Dirigiu-se à cozinha em busca de
uma chave de fenda, e voltou, começando a afrouxar os parafusos
do assoalho enquanto Jack puxava a estufa para cima. O aparelho
desprendeu-se com um baque seco, e Spando começou a examinar
a tábua que o fechava pela parte de trás.
No corredor, acariciando com a mão o seu grande relógio de
bolso, Pete MacMahon ouviu o rumor de vozes. Não podia perceber
as palavras, mas somente aquele rumor de vozes excitadas. O pon-
teiro dos minutos alcançou o número dez do mostrador, justamen-
te quando o aquecedor desprendeu-se lá dentro, com ruído.
Pete tornou a colocar o relógio no bolso, e premiu o botão da
campanhia ao lado da porta.
61
Spando moveu-se rapidamente pela sala colocando-se ao
lado de Ida Carrier. Através do bolso do casaco marrom, o cano
duro de uma pistola encostava à cabeça da mulher.
— Pergunta quem é — comandou em voz baixa.
Os dedos de MacMahon bateram na almofada da porta.
— Quem é? — perguntou uma voz que poderia ter sido a Ida
Carrier.
— É da polícia — disse Pete MacMahon.
Os olhinhos de Spando como que sorriram:
— Diga-lhe que já vai abrir — murmurou.
— Já vou abrir.
Jack Novack tirou sua pistola automática e apontou para
Ida, de uma posição abrigada. Com uma das mãos no bolso, Span-
do dirigiu-se calmamente para a porta, desprendeu a corrente do
“pega-ladrão” e abriu rapidamente a porta.
MacMahon encarou-o admirado. Conhecia aquela cara, mas
não teve tempo. Spando não lhe deu muito tempo. Meteu-lhe duas
balas através do bolso do casaco. Pete cambaleou contra a porta
que ficava em frente, do outro lado do corredor e a pistola de Span-
do continuou a funcionar. Pete era um osso duro, mesmo gordo
assim, e levou bastante tempo para morrer.
Os joelhos começaram a curvar-se e o sangue saltou-lhe da
boca e do nariz, mas, apesar de tudo, conseguiu tirar o revólver e
puxar o gatilho antes de cair, de bruços. A bala atravessou a mão
de Spando e foi atingir Ida Carrier, que se encontrava justamen-
te atrás dele. Ela não chegou mesmo a ficar sabendo o que ocor-
ria. Tudo foi muito rápido, e surpreendente. A cabeça caiu-se para
diante, Ida soltou um pequeno gemido, débil como um lamento.
A porta fechou-se com violência.
Spando sacudiu a mão que sangrava. Soltava imprecações e
seus olhos giravam nas órbitas.
— A bala acertou nela — exclamou Novack. — Acertou
nela...
— Bem — disse Spando. — Muito bem. Agora não poderá
dizer nada. Segura aquela pasta.
Inclinou-se sobre a mesa, fêz saltar o pente vaziu da pistola e
colocou outra carga. Seu casaco estava completamente manchado
62
de sangue.
Dave Glennan batia na porta dos fundos. Somente então êle
compreendera, pois os estampidos da pistola de grosso calibre ain-
da ressoavam em seus ouvidos. Dave agarrou uma pesada lata de
lixo e batia com ela de encontro à porta, enquanto com a mão es-
querda continuava a empunhar o revólver.
Da porta da cozinha Novack disparou sobre êle, para matar.
Tinha agora nas mãos uma pasta cheia de dinheiro e estava an-
sioso por ver-se livre daquela incômoda montanha de carne que
se encontrava em seu caminho, de maneira que Spando pudesse
descer pela escada dos fundos. Poderia muito bem haver reforços
da polícia na frente.
A bala atravessou a lata de lixo e raspou na ilharga de Dave.
— Chega — exclamou este. — Larguem as armas ou então
eu. . .
Dois tiros soaram, como resposta.
Glennan então atirou também. O primeiro tiro atingiu a porta
logo acima da cabeça de Novack, que retrocedeu. Então o corpulen-
to policial avançou, mantendo o seu inútil escudo, e mandou para
frente mais um mensageiro sob a forma de uma carga de chumbo.
A porta da cozinha fechou-se por um momento, e isto deu a
Spando á oportunidade que desejava. Jack continuava atirando,
da entrada, mas Spando passara para a despensa, onde havia uma
pequena janela, pelas costas de Dave, e foi fácil meter uma bala
entre os ombros do detetive. Dave caiu junto à soleira da porta,
com a lata de lixo e tudo.
— Pela frente — gritou Novack para seu companheiro ferido.
— Nosso carro está lá. Não há mais polícias lá embaixo, porque
senão já estariam aqui.
— Então não sei? — rosnou Spando, passando por sobre o
corpo, de Pete atravessado na porta da frente. Embaixo uma mu-
lher soltava gritos enquanto gente amedrontada corria escadas
abaixo.
— Mrs. Franchetti — gritava uma menina. — Mrs. Franchet-
ti, chame a polícia.
— Saia do caminho! — gritou Novack, e com um empurrão
atirou a garota para fora do corredor. Spando deixou um rastro de
63
sangue, contorcendo-se de dor enquanto corria.
Os dois chegaram ao vestíbulo do edifício justamente no mo-
mento em que o guarda Nicholas Glennan saltava de um táxi ama-
relo. Já ao dobrar a esquina ouvira a gritaria. Mrs. Franchetti, de-
bruçada numa janela do segundo andar gritava para todo o mundo
o que estava acontecendo.
Nick era apenas um “Tico-tico”, um polícia do parque, e natu-
ralmente alheio ao caso. Aquilo tudo acontecera tão rapidamente!
Mas seu rosto tomara uma expressão séria; empalidecera e seu
olhar era duro. — Desça! —- ordenou a Buddy, e saltou pela porta
aberta do táxi. O chofer levantou as duas mãos e sumiu-se atrás
do guidom.
Spando e Novack saíram correndo do vestíbulo para topar
cara a cara com Nick Glennan. Viram a odiada sarja caqui do uni-
forme e a estrela brilhante. E o guarda estava justamente tirando
o revólver.
— Toma conta deste! — gritou Spando.
Novack começou a atirar, mas Nick avançava muito depres-
sa. Novack tinha o hábito de fazer pontaria baixa, um hábito muito
ruim. Um pedaço de fazenda saltou da aba da túnica de Glennan,
mas o seu punho já atingira Novack no queixo. E quando este caiu,
chocou-se em Spando, e a bala dirigida contra o coração de Nick
Glennan bateu contra o concreto do pavimento.
O homem do casaco marrom ensangüentado soltou um grito
que era ao mesmo tempo um gemido e uma imprecação. Êle e Nick
Glennan estavam agora a dois metros de distância, com as armas
disparando ininterruptamente. Nick pensou que alguém chegara
por trás e lhe desferira uma cacetada no quadril; alguém também
lhe atirara um tijolo sobre o ombro esquerdo.
Mas êle estava muito ocupado em meter seis azeitonas de
chumbo no corpo de Spando e não entregou os pontos enquanto
não tivesse realizado tal coisa. Quando isto aconteceu, Nick Glen-
nan deixou-se cair sentado no chão, tornou a carregar seu revólver
com a mão direita, mantendo o cano na direção da cabeça de Jack
Novack até que de dentro de um carro da patrulha policial alguém
lhe gritasse:
— O. K. Agora deixe a coisa conosco. . .
64
Sentia-se como que aliviado e tinha até vontade de rir, e pe-
diu que não assustassem Alice quando lhe telefonassem, e então
puzeram-no deitado sobre um tapete, dentro do edifício, até que
uma uivante ambulância chegasse.
Trouxeram também, de dentro da casa, uma coisa enorme e
gorda que se sacudia e soltava pragas. Virou o rosto e encarou o
irmão, Dave.
— Estou mais ou menos — informou. — Onde está Pete?
— Fizeram o serviço nele — murmurou o Sargento Dave
Glennan. — Morreu. . . Mas. . . estão dizendo que você liquidou a
dupla...
— Um só — respondeu-lhe Nick — mas derrubei o outro, e de
qualquer modo não escapa. Quem eram?
— Um deles era Jack Novack — informou Dave — e acho que
o outro deve ser Micky Spando. Sempre achávamos que foram eles
que fizeram o serviço no pagador da Packing American. . . Lá em
cima ficaram um homem e uma mulher mortos. Acho que deve ser
toda a troupe.
— Um deles trazia uma pasta.
— Por ter sido por causa de uma trampolinagem lá entre eles,
que brigaram por causa do roubo.
Uma mulher curvou-se sobre Nick Glennan e murmurou:
— Mister, aquele garotinho no táxi. . . A tia e o tio dele. . .
estão mortos, no décimo segundo.
— Quem é? — perguntou Dave.
Os médicos entraram c começaram a examiná-los. Do lado
de fora, começaram a soar sirenas por toda a parte. Nick girou a
cabeça, de maneira a poder sorrir para Dave:
— Um garotinho perdido, no parque. Êle me disse qualquer
coisa e eu vim cair aqui nesta enrascada.
— “Tico-tico”! — disse suavemente Dave, e fechou os olhos.
— Bah! Um garoto perdido no parque... , Deus meu! — e então,
voltando-se para o médico: — Que é que o senhor acha do furo,
doutor? Será que estou. . . liquidado?
— Deixe-se disso, homem — atalhou o doutor. — O chumbi-
nho está aí dentro, no peito. P’ra liquidar você seria preciso cortar
o coração pela metade.
65
Uma mulher segurava Buddy no colo, enquanto Dave e Nick
eram levados, nas padiolas.
— Escuta, Dave -— disse Nick, apontando para o garoto. —
Aquele é o pequeno. Alô, Buddy!
— Ouvi os tiros — disse Buddy, — Que barulhão!
Os vizinhos aproximavam-se do pequeno, lamentando a si-
tuação:
— Ora, o coitadinho. . . Sem ninguém no mundo.
— Sem ninguém? Vocês vão ver — disse-lhes o guarda Nick
Glennan, — esperem até que eu fique bom — e, voltando-se para
Buddy: — Nós vamos passear bastante no Jardim Zoológico, hein,
Buddy?
Dave sacudiu a cabeça, ao ouvir isto, e murmurou:
— No Jardim Zoológico... Bah... o “Tico-tico”!
— Mas tão duro de roer quanto você — disse-lhe Nick, rindo.
E os dois estenderam as mãos, que, unidas formaram uma ponte
entre as duas padiolas.
As ambulâncias que os levaram afastaram-se, uivando.

66
IN VINO VERITAS

Lawrence G. Blochman

O GORDO xerife tirou os pés de cima da mesa e fitou curio-


samente o homenzinho de óculos e de atitudes corretas que se
postava diante de si.
— O senhor não tem absolutamente a aparência de um po-
licial, Dr. Belling — disse êle. — Nem mesmo de um policial dos
Estados da costa do Atlântico.
O Dr. Belling sorriu.
— Para falar a verdade — explicou — fui designado pela po-
lícia estadual especialmente para este caso. Em realidade sou pro-
fessor de viticultura da Escola Agrícola, e a polícia julgou que meus
conhecimentos especiais poderiam ser de utilidade no caso Tolman.
Diga-me agora o que sabe o senhor a, respeito de Henry Tolman.
— Bem. . . — hesitou o xerife. — Toda a gente por aqui natu-
ralmente conhecia o Velho Tolman — disse êle. — E conhecíamos
Henry, o filho dele, quando era apenas um garoto. Mas quando
Henry começou a crescer estava fora daqui a maior parte do tempo,
no colégio. Então, quando fêz vinte e um anos, foi mandado para
a Europa para aprender o negócio de vinhos na França e na Itália.
Três anos depois o velho morreu e deixou a Henry estes vinhedos.
Henry voltou para a Califórnia seis meses depois de lhe têrmos
telegrafado. Usava uma barba meio ruiva — parece que todos os
rapazes americanos que passam uns tempos na Europa voltam de
lá com barbas. Era muito natural que êle nos parecesse diferente,
mesmo que não fizesse mais de três anos desde a última vez que o
67
vimos. O que é que faz com que o senhor julgue que se trata de um
impostor, Dr. Belling?
— Se êle não fôr um impostor, pode bem ser um assassi-
no — replicou o Dr. Belling. — Faz poucas semanas, a polícia de
Nova York encontrou um esqueleto nos matos situados a uns trinta
quilômetros dá cidade. Evidentemente o esqueleto já se achava lá
havia vários anos e os poucos fragmentos de roupa e outros restos
não foram suficientes para estabelecer a identidade do morto. Não
havia maneira alguma de identificar-se mas o caso é que, dentro
da caixa craniana havia uma bala. A Delegacia de Desaparecidos
informou que o esqueleto poderia ser de um malandro e ex-contra-
bandista de bebidas chamado Rusty Hull, que havia desaparecido
seis anos antes. Hull não tinha prontuário policial, de forma que a
polícia não podia se basear senão na sua altura aproximada e na
cór dos cabelos, o que, aliás, combinava muito bem com os dados
de Henry Tolman, segundo descobri depois. A polícia voltou aos
matos onde o esqueleto fora achado, e a uma centena de metros do
local em que os restos haviam sido encontrados achou um relógio
de ouro com a seguinte gravação: A Henry Tolman, no dia de seu
vigésimo-primeiro aniversário.
Continuando suas investigações, a polícia descobriu que Tol-
man e Rusty Hull haviam sido vistos juntos em Nova York. pou-
co antes de Hull haver desaparecido. Tal fato era perfeitamente
natural, uma vez que Hull tinha muitas ligações com fabricantes
de vinho e que datavam dos tempos da Lei Sêca. Era possível que
Tolman tivesse matado Hull e deixado cair o relógio quando escon-
dia o cadáver no mato. Muito mais provável, entretanto, é que Hull
tivesse assassinado Tolman a fim de apresentar-se como o herdeiro
de um rico proprietário de vinhedos, e que o relógio tivesse caído
enquanto carregava o corpo de Tolman de um automóvel para o
mato. Estou averiguando esta última hipótese, e é por isto que
quero avistar-me com Tolman.
O xerife dirigiu-se para o seu carro.
—- Eu o levarei até os vinhedos — disse. — Mas para mim,
parece-me nada haver contra Henry Tolman. Naturalmente êle teve
seis anos para arranjar o seu álibi, mas êle conhece tudo o que o
pai fazia a respeito de viticultura.
68
— É justamente para verificar isto que estou aqui -— disse o
Dr. Belling. — Posso não entender de investigações policiais, mas
conheço o meu ofício. Foi por isto que telefonei a Tolman hoje de
manhã, dizendo-lhe que represento um consórcio de leste interes-
sado em comprar-lhe as vinhas.
— E o senhor acha que se êle fôr um impostor acreditará
nesta história?
-— Espero que não; acho porém que êle ficará desconfiado.
Vamos?
O xerife conduziu o Dr. Belling por uma distância de oito
quilômetros pela estrada ensolarada. O vale do norte da Califórnia,
com suas casas de pedra como que aninhadas em meio às encos-
tas cobertas de vinhedos, poderia bem parecer uma paisagem de
algum pais europeu, refletiu Belling quando o carro deixou a es-
trada principal e enveredou por um caminho que subia a encosta
cultivada.
— Êste é o vinhedo de Tolman — anunciou o xerife.
— Pare um momento aqui, faça o favor — pediu o Dr. Belling,
e saltou do carro, caminhando um pouco entre as vinhas. Exami-
nou os troncos, as folhas e os cachos que amadureciam.
— Uvas Sylvaner — disse, quando tornava a subir no carro.
— Delas se faz um vinho branco muito agradável.
— Por aqui chamam estas uvas de Riesling da Califórnia -—
disse o xerife.
— Há poucos vinhedos de Riesling verdadeira, na Califórnia
— explicou o Dr. Belling, — e estas aqui não são. A verdade é que
a uva Sylvaner dá um vinho que se parece bastante com o Riesling,
no seu aspecto geral.
O carro gemeu engrenado em segunda quando subia em di-
reção às casas de pedra no alto da colina, onde o barbado Henry
Tolman os esperava. Convidou os dois homens a entrarem para
uma sala de estar muito fresca, cheia de um mobiliário antigo, fo-
tografias desbotadas de pessoas da família, e cortinas com laços.
Uma carta, pela metade, jazia em cima da mesa.
Depois de terem conversado a respeito de vinhos em geral, e
em particular des vinhedos de Tolman, este disse:
— O senhor pode dizer aos seus chefes, Dr, Bellíng, que mi-
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nhas vinhas não sofreram nunca falta de cuidados. Meu pai não
participou do pânico que se apoderou da Califórnia por ocasião da
Lei Sêca. Continuou sempre a fabricar vinho, e do bom. Não teve,
portanto, de recomeçar tudo, quando a lei foi suspensa. Lembro-
me muito bem que, pouco antes de eu ir para a Europa, meu pai
engarrafou um vinho que disse ser o melhor Riesling já feito neste
Estado. Vou ver se posso encontrar uma garrafa. Sei que ainda res-
tam algumas, e gostaria que o senhor provasse. Lembro-me ainda
de ter escrito os rótulos.
Quando Tolman saiu da sala, o xerife piscou os olhos para
Belling:
— E eu não lhe disse? Êle vai provar que há dez anos morava
aqui.
Tolman voltou com uma garrafa empoeirada e coberta de
teias de aranha e colocou-a ao lado da carta que ficara pela me-
tade. Saiu então em busca de copos e de um saca-rolhas, dando
a Belling e ao xerife plena oportunidade para comparar o talhe de
letra da carta com o das palavras escritas no rótulo empoeirado da
garrafa. A letra era idêntica.
— Vê? — perguntou o xerife.
Tolman voltou para servir o vinho. O Dr. Belling mantinha
seu copo levantado contra a luz. Aspirou a fragrância que dele se
exalava. Admirou-lhe a côr pálida, seu exquisito bouquet antes de
sorvê-lo. Encheu então a boca e moveu a língua.
O vinho era excelente, com um gosto próprio bem acentua-
do.
— Magnífico vinho, não é mesmo Dr. Belling? — perguntou
Tolman.
Bellíng tomou outro gole, fechando os olhos para melhor
apreciar o sabor da bebida.
— Perfeito — disse por fim. — Perfeito demais para servir à
sua história. Prenda este homem, xerife.
— Como?. . . O quê?
— Você vai voltar para Nova York, Rusty Hull, para ser julga-
do pelo homicídio de Henry Tolman.
— Mas Henry Tolman sou eu!
— Você é Rusty Hull — insistiu Bellíng — e este magnífico
70
vinho foi feito, engarrafado e rotulado nos últimos três ou quatro
anos. Se você fosse Henry Tolman, você saberia mais sobre o as-
sunto para não vir tentar dizer que este vinho tem dez anos. Você
então saberia que o vinho branco feito de uvas Sylvaner alcança o
máximo de sabor aos três anos, e que, ao contrário da maioria dos
vinhos que mantêm suas qualidades durante dezenas de anos, de-
pois de engarrafados, as melhores qualidades deste desaparecem
após alguns anos. Este vinho é brilhante. Depois de dez anos da
garrafa estaria um vinho ordinário, sem brilho, insípido.
O xerife baixou o copo e fêz tilintar um par de algemas.
— Um momento, xerife — disse o Dr. Belling. — Antes de vol-
tarmos ao trabalho, vamos terminar esta garrafa.

71
SÓ SE PODE SER ENFORCADO UMA VEZ...

Dashiell Hammett

SAMUEL Spade disse:


— Chamo-me Ronald Ames. Desejo falar com o Sr. Binnett...
Sr. Tímothy Binnett.
— O Sr. Binnett está reposando, senhor — respondeu ime-
diatamente o mordomo.
— Pode saber quando poderei falar com êle? Trata-se de as-
sunto importante. — Spade pigarreou: — Eu. . . acabo de voltar da
Austrália, e se trata de uma das propriedades do Sr. Binnett, no
além-mar.
O mordomo girou nos calcanhares, dizendo:
— Vou ver senhor — e já começara a subir a escada principal,
antes mesmo de terminar a frase.
Spade enrolou um cigarro e acendeu-o.
O mordomo voltou.
— Lastimo ter de dizer-lhe que o Sr. Binnett não pode ser
perturbado neste momento, mas o Sr. Wallace Binnett, sobrinho
do Sr. Tímothy, receberá o senhor.
— Obrigado, — respondeu Spade, seguindo o mordomo es-
cada à cima.
Wallace Binnett era um homem esguio, elegante e moreno,
mais ou menos da mesma idade de Spade — trinta e oito anos —
que se levantou sorridente de uma poltrona forrada de brocado,
dizendo:
— Prazer em conhecê-lo, Mr. Ames. — Indicou com um ges-
72
to uma outra poltrona, e tomou-se a sentar. — O senhor vem da
Austrália?
— Cheguei hoje de manhã.
— O senhor tem negócios com o Tio Tim?
Spade sorriu e abanou a cabeça:
— Bem... não se poderia chamar propriamente de negócios,
mas tenho uma informação que penso que êle precisa conhecer. . .
sem perda de tempo.
Wallace Binnett fitou pensativamente o chão por alguns ins-
tantes, depois olhou para Spade, e respondeu:
— Farei o possível para persuadi-lo a receber o senhor, Mr.
Ames, mas, francamente, não sei se terei êxito.
Spade sorriu, um tanto surpreendido:
— Por quê? — perguntou.
— Êle tem atitudes. . . singulares, em certas ocasiões. Não é
que. . . Sim, êle está perfeitamente bem, mas tem excentricidades
de uma pessoa de idade e. . . às vezes se torna difícil tratar com
êle.
Spade perguntou então, devagar:
— Ê1e já se recusou a receber-me?
— Sim.
Spade levantou-se da cadeira. Seu rosto de diabo louro era
inexpressivo.
Binnett levantou uma das mãos, num gesto brusco:
— Um momento, por favor — disse. — Farei o possível para
que êle mude de idéia. Talvez, se. . . — seus olhos escuros muda-
ram subitamente de expressão: — O senhor não está simplesmente
tentando vender-lhe algo?
— Não.
A nova expressão dos olhos de Binnett desapareceu imedia-
tamente:
— Bem, então acho que posso. . . Uma jovem entrou, excla-
mando, zangada:
— Vally, aquele velho idiota. . . — e interrompeu a frase, le-
vando uma das mãos ao seio, quando viu Spade.
Spade e Bínnett se haviam levantado simultaneamente. Bin-
nett falou, com brandura:
73
— Joyce, apresento-lhe Mr. Ames. Minha cunhada, Joyce
Court.
Spade curvou-se.
Joyce Court riu-se, um tanto contrafeita, e disse:
— Peço-lhe desculpar a maneira intempestiva como entrei
aqui.
Era uma mulher alta, de olhos azuis, morena, de uns vinte
e quatro ou vinte e cinco anos, ombros bem postos, e um corpo
forte e esbelto. Suas feições tinham um calor que compensava o
que nelas faltava de regularidade. Vestia um pijama de cetim, com
calças largas.
Binnett sorriu-lhe bem humorado e perguntou:
— Mas a que vem tôda esta agitação?
A cólera enegreceu novamente os olhos da jovem e ela come-
çou a falar. Depois olhou para Spade e disse:
— Mas não devemos aborrecer Mr. Ames com nossos ma-
çantes problemas domésticos. Se êle quisesse... — aí Joyce Court
hesitou.
Spade curvou-se novamente:
— Claro — disse. — Sem dúvida.
— Voltarei dentro de um minuto — prometeu Binnett, saindo
da sala em companhia da moça.
Spade dirigiu-se à porta aberta por onde os dois haviam saído
e, permanecendo justamente do lado de dentro, pôs-se à escuta. As
passadas de Binnett e sua cunhada tornaram-se inaudíveis. Nada
mais se podia ouvir. Spade permanecia ali, com uma expressão
sonhadora nos olhos cinzentos, quando ouviu o grito. Era um grito
de mulher, agudo e trêmulo de terror. Spade estava atravessando
a porta quando ouviu o tiro. Era um tiro de pistola, que ecoou, au-
mentado, pelas paredes da casa.
A uns oito passos da porta. Spade encontrou uma escada, e
lançou-se por ela, galgando os degraus de três em três. Dobrou à
esquerda. A meio caminho, no corredor, uma mulher jazia de cos-
tas, no chão.
Wallace Binnett estava ajoelhado ao lado dela, segurando-lhe
uma das mãos, desesperadamente, e lamentando-se baixinho, em
tom suplicante:
74
— Molly, querida, minha querida!
Joyce Court permanecia de pé ao lado dele, torcendo as mãos,
com lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
A mulher caída ao chão parecia-se com Joyce Court, mas era
mais velha, e o seu rosto tinha uma dureza que o da mais moça
não possuía.
— Está morta; mataram-na — disse Wallace Binnett, in-
crèdulamente, levantando para Spade o rosto empalidecido. Quan-
do Binnett moveu a cabeça Spade pôde ver o furo redondo no ves-
tido marrom da mulher bem sobre o coração, e a mancha escura
que aumentava rapidamente de extensão.
Spade tocou o braço de Joyce Court:
— A polícia. . . O Pronto Socorro. . . Telefone.
E logo que ela correu para a escada, Spade dirigiu-se a Walla-
ce Binnett:
— Quem fêz isto. . .
Atrás de Spade uma voz gemeu fracamente, e êle voltou-se,
rápido. Através de uma porta aberta podia ver um velho de pijama
branco deitado de través numa cama desarrumada. A cabeça, um
dos ombros, e um braço pendiam para fora do leito. A outra mão
apertava fortemente a garganta. Gemeu novamente e suas pálpe-
bras moveram-se, mas não abriu os olhos.
Spade levantou a cabeça e os ombros do velho, recostando-o
sobre travesseiros. O velho gemeu novamente e retirou a mão da
garganta. O pescoço estava vermelho e com meia dúzia de arra-
nhões. Era um homem magro, emaciado, com o rosto sulcado de
rugas que provavelmente lhe exageravam a idade.
Sobre a mesa de cabeceira havia um copo com água. Spa-
de borrifou o rosto do velho e quando os olhos dele se moveram,
inclinou-se e perguntou brandamente:
— Quem foi que fêz aquilo?
As pálpebras do velho ergueram-se o suficiente para mostrar
uma nesga de olhos injetados de sangue. O velho então falou com
dificuldade, levando novamente a mão à garganta:
— Um homem. . . éle. . . — a tosse interrompeu-o.
O rosto de Spade contraiu-se de impaciência. Seus lábios
quase tocavam o ouvido do ancião.
75
— Para onde foi êle? — perguntou.
A mão magra do velho moveu-se pesadamente para indicar a
parte dos fundos da casa e tornou a cair sobre o leito.
O mordomo e duas mulheres aterrorizadas vieram juntar-se
a Wallace Binnett, ao lado da mulher morta no corredor.
— Quem fêz isto? — perguntou-lhes Spade.
Os outros ficaram a olhá-lo inexpressivamente.
— Alguém deve ficar cuidando do velho — disse êle, e se di-
rigiu pelo corredor.
Na extremidade do corredor havia uma escada que dava para
os fundos. Desceu dois lances e chegou, através de uma copa, até a
cozinha. Não viu ninguém. A porta da cozinha estava fechada, mas
quando êle a experimentou, viu que não estava fechada a chave.
Atravessou um pequeno pátio em direção a um portão, que tam-
bém, embora cerrado, não estava fechado à chave. Abriu o portão.
Na área para qual o portão abria não havia ninguém.
Spade olhou, fechou o portão e voltou para a casa.
Sentou-se confortàvelmente na ampla e macia poltrona de
couro numa sala da parte da frente do segundo andar da casa de
Wallace Binnett. Havia estantes de livros e as luzes estavam ace-
sas. A janela mostrava a escuridão exterior, quebrada apenas pela
fraca luminosidade de um distante lampião de iluminação pública.
Diante de Spade, o Sargento Detetive Polhaus, um homenzarrão
mal barbeado, e de roupas escuras que testavam precisando ser
passadas a ferro, sentava-se com os joelhos separados, esparrama-
va-se em outra poltrona de couro; o Tenente Dundy — um homem
de pequena estatura, cheio de corpo e rosto quadrado estava de pé,
as pernas afastadas, a cabeça um pouco inclinada para a frente,
no meio da sala.
Spade estava dizendo:
— E o médico apenas me deixaria falar com o velho uns mi-
nutos. Podemos tentar novamente depois que êle tiver descansado
um pouco, mas não me parece que êle sabia muito. Estava cochi-
lando quando despertou com as mãos de alguém a segurar-lhe a
garganta e a puxá-lo pela cama. O mais que pôde ver foi uma rá-
pida olhadela no sujeito que o agarrava. Um homem corpulento,
diz ele, com um chapéu mole caído sobre os olhos, moreno, com a
76
barba por fazer. Pelo jeito, se parece com Tom.
O sargento fez um muxoxo, mas Dundy atalhou simples-
mente:
— Continue.
Spade sorriu e prosseguiu:
— Já se encontrava longe, quando ouviu Mrs. Binnett gritar,
à porta. Retirou então as mãos da garganta e ouviu o tiro justa-
mente antes de desmaiar. Pôde ainda ver o sujeito corpulento diri-
gindo-se para os fundos da casa e Mrs. Binnett caindo no corredor.
Êle diz que nunca vira antes o sujeito corpulento.
— De que calibre era o revólver? — perguntou Dundy.
— Trinta e oito. Bem, ninguém na casa é capaz de forne-
cer mais detalhes. Wallace e sua cunhada, Joyce, enontravam-se
no quarto dela, pelo que dizem, e somente viram a mulher morta
quando correram, embora julguem terem ouvido as passadas de
alguém correndo para baixo, pela escada dos fundos.
— O mordomo — chama-se Jarboe — estava aqui quando
ouviu o grito e o tiro, segundo consta. Irene Kelly, a empregada,
estava no andar térreo, ao que diz. A cozinheira, Margaret Finn,
achava-se em seu quarto, no terceiro andar, e, pelo que diz, não
ouviu nada. É surda como um poste, segundo todos dizem. A porta
dos fundos e o portão não estavam fechados a chave; mas, pelo que
todos dizem, julgava-se que o estivessem. Ninguém diz encontrar-
se na ocasião perto da cozinha ou do pátio.
Spade estendeu as mãos, num gesto que significava ter ter-
minado seu relatório.
— Isto é tudo que pude saber.
Dundy sacudiu a cabeça.
— Não é bem assim —- disse, — E que fêz com que o senhor
viesse aqui?
O rosto de Spade iluminou-se:
— Talvez o meu cliente a tivesse matado — disse êle. — Êle é
primo de Wallace, Ira Binnett. Conhece?
Dundy sacudiu a cabeça. Seus olhos azuis tinham uma ex-
pressão dura de desconfiança.
— É um advogado de São Francisco — disge Spade — res-
peitável, etc. etc. Faz uns dois dias que veio procurar-me com uma
77
história a respeito de seu tio Timothy, um velho sovina, podre de
rico e bastante arrebentado pela vida que levou. Era a ovelha negra
da família. Nenhum deles tinha notícias do homem havia anos.
Mas há uns seis ou oito meses ele apareceu, muito alquebrado,
exceto financeiramente, pois parece ter arranjado dinheiro a valer
em seus negócios na Austrália, e querendo passar o resto dos dias
com seus únicos parentes vivos, isto é, seus sobrinhos Wallace e
Ira. Para eles estava tudo certo. “Únicos parentes vivos” significava
“únicos herdeiros”, na linguagem deles. Mas pouco a pouco os so-
brinhos começaram a pensar que seria melhor haver um herdeiro
do que um par de herdeiros — duas vêzes melhor, em realidade
— e começa — a procurar conquistar o lado fraco do velho. Pelo
menos foi o que Ira me contou referindo-se a Wallace, e eu não
me surpreenderia se Wallace me contasse a mesma coisa a respei-
to de Ira, embora Wallace me pareça o mais esperto dos dois. De
qualquer modo, os sobrinhos foram afastados, e então o Tio Tim
que estava morando com Ira, veio para cá. Isto foi há cerca de dois
meses, e desde então Ira não mais se avistou com Tio Tim, e não
pôde mesmo entrar em contato com êle nem por telefone nem por
carta. Foi por isto que êle queria um detetive particular por aqui.
Não que êle julgasse que o velho pudesse vir a ser molestado, isto
não! e êle bem que fêz questão de frizar tal coisa, mas êle pensava
que o velho pudesse ser alvo de alguma pressão indevida por parte
de interessados, e que alguém pudesse vir a intrigar com o velho
o seu sobrinho Ira. Êle queria saber o que por ventura viesse a
acontecer. Esperei até hoje, quando um navio acabou de chegar da
Austrália, e vim até aqui, como Mr. Ames, trazendo uma hipotética
informação importante a respeito das propriedades de Tio Tim, na
Austrália. Tudo o que eu queria era ficar quinze minutos a sós com
êle. — Spade franziu os sobrolhos, pensativamente. — Bem, não
consegui os quinze minutos. Wallace me disse que o velho recusava
receber-me. Não sei.
A suspeita aprofundou-se nos frios olhos azuis de Dundy.
— E onde se encontra agora este tal Ira Binnett? — pergun-
tou.
A expressão dos olhos cinzentos de Spade era tão vaga quan-
to sua voz:
78
— Também o quisera saber — respondeu. — Telefonei para
a casa dele e para o escritório e deixei-lhe um recado para vir aqui
imediatamente, mas temo que. . .
Na porta do lado oposto da sala, ouviu-se a batida de nós de
dedos.
Os três homens que se encontravam na sala voltaram-se
para a porta.
Dundy falou:
— Entre.
A porta foi aberta por um polícia louro, de pele tostada de sol,
cuja mão esquerda segurava o pulso de um homem gorducho de
cêrca de quarenta e cinco anos, trajando roupas bem talhadas. O
polícia empurrou o gorducho para dentro da sala.
— Encontrei-o mexendo na porta da cozinha — disse.
Spade levantou os olhos e disse:
— Ah! Mr. Ira Wallace, apresento-lhe o Tenente Dundy e o
Sargento Polhaus.
Ira Binnett falou ràpidamente:
— Mr. Spade, queira dizer a este homem que. . .
Dundy dirigiu-se ao policial:
— Você fêz um trabalho bem-feito. Pode deixá-lo aqui.
Ira Binnett corou. Pigarreou, embaraçado.
— Bem. . . eu explicarei. Não foi culpa minha, naturalmen-
te, mas quando Jarboe — o mordomo — telefonou-me que o Tio
Tim queria falar comigo, disse-me que deixaria a porta da cozinha
somente encostada, de modo que Wallace não precisaria ficar sa-
bendo.
— Por que queria êle ficar com o senhor? — perguntou Dun-
dy.
— Não sei. Êle não disse. Disse somente que era muito im-
portante.
— O senhor não recebeu meu aviso? — perguntou Spade.
Os olhos de Ira Binnett tiveram uma expressão de espanto.
— Não. Sobre o quê? Aconteceu alguma coisa?
Spade dirigiu-se para a porta.
— Continue — disse êle a Dundy. — Voltarei dentro de um
instante.
79
Fechou a porta cuidadosamente atrás de si e subiu para o
terceiro andar.
O mordomo Jarboe estava de joelhos junto a porta do quarto
de Timothy Binnett, com o olho metido no buraco da fechadura. No
chão ao lado dele havia uma bandeja com um ôvo, uma taça, um
bule de café, talheres e um guardanapo. Spade disse-lhe:
— As torradas assim vão esfriar.
Jarboe, erguendo-se sobressaltado, quase fêz derramar o
café. Tinha o rosto avermelhado:
— Des... desculpe-me, senhor. Eu queria ter a certeza de que
Mr. Timothy estava acordado antes de entrar — levantou a bande-
ja. — Eu não queria perturbar-lhe o repouso.
Spade, que já havia chegado até a porta, disse:
— Sim, evidentemente — e, inclinando-se, espiou também
pelo buraco da fechadura. Quando se ergueu, disse em tom entris-
tecido:
— Mas você não pôde ver a cama, mas somente uma cadeira
e uma parte da janela.
O mordomo respondeu imediatamente:
— É verdade, sim senhor. Descobri isto agora mesmo.
Spade riu-se.
O mordomo abafou uma tosse, parecia que queria dizer qual-
quer coisa, mas se manteve calado. Hesitou, e então bateu leve-
mente na porta.
Uma voz cansada respondeu:
— Entre.
Spade perguntou rapidamente em voz baixa:
— Onde está Miss Court?
— Creio que no quarto dela, senhor. A segunda porta, à es-
querda — disse o mordomo.
Uma voz cansada, de dentro do quarto, disse com paciência:
— Então, entre!
O mordomo abriu a porta e entrou. Através da porta, antes
do mordomo fechá-la, Spade pôde dar uma olhadela em Timothy
Binnett recostado em travesseiros, em cima da cama.
Spade dirigiu-se para a segunda porta a esquerda, e ba-
teu. A porta abriu-se quase imediatamente e apareceu Joyce Court.
80
Permaneceu, na porta, sem dizer palavra.
Spade falou:
— Miss Court, quando a senhora entrou na sala onde eu me
encontrava com o seu cunhado, a senhora disse: “Wally, aquele
velho idiota...” referia-se a Timothy?
A moça fitou Spade um momento, c depois respondeu:
— Sim.
— Teria algum inconveniente de dizer-me qual teria sido o
resto da frase?
Ela respondeu, lentamente:
— Não sei exatamente quem é o senhor ou por que me faz tal
pergunta, mas não tenho nenhum inconveniente em dizer-lhe. O
resto da frase seria: “mandou chamar Ira”. Jarboe acabara de me
contar.
— Obrigado.
Ela fechou a porta antes mesmo que êle se retirasse.
Êle dirigiu-se para a porta do quarto de Timothy Binnett e
bateu.
— Quem está aí, agora? — perguntou a voz do velho.
Spade abriu a porta. O velho estava sentado na cama.
Spade disse:
— Este Jarboe estava olhando pela fechadura da porta deste
quarto há poucos minutos.
Voltou então para a biblioteca.
Ira Binnett, sentado na cadeira que antes havia sido ocupada
por Spade, dize a Dundy e Polhaus:
— E Wallace foi apanhado no craque, como a maioria de nós,
mas pelo que parece êle havia feito compras falsas, acima de suas
posses, tentando salvar-se. Por isto foi expulso da Bolsa.
Dundy fêz com a mão um gesto largo, mostrando a sala e a
mobília.
— Isto aqui está bastante cômodo para um homem arruina-
do, hein?
— A esposa dele tinha algum dinheiro — disse Ira Binnett —
e êle sempre viveu acima de suas posses.
Dundy perguntou então a Binnett:
— E o senhor realmente acha que êle e a esposa não se da-
81
vam bem?
— Não penso — respondeu calmamente Binnett. Eu sei.
Dundy fez com a cabeça um sinal de assentimentco.
— E o senhor sabe também se êle andava meio caído pela
cunhada, esta tal de Court?
— Isto não sei. Mas a respeito ouvi muitos rumores.
Dundy pigarreou, e depois perguntou, rudemente:
— E o que consta no testamento do velho?
— Não sei. Não sei mesmo se êle fêz testamento — e, dirigin-
do-se a Spade, disse, inquieto: — Já declarei tudo o que sei, abso-
lutamente tudo.
— Não é o bastante — disse Dundy, apontando para a porta.
— Mostra-lhe o lugar em que deve ficar esperando, Tom, e traz aqui
outra vez o viúvo.
O grandalhão Polhaus levou Ira Binnett para fora da sala, e
voltou com Wallace Binnett, cujo rosto estava pálido e tinha uma
expressão dc sofrimento.
Dundy perguntou-lhe.
— Seu tio escreveu algum testamento?
— Não sei — respondeu Binnett. Spade fêz, então, lentamen-
te, a segunda pergunta:
— E a sua esposa, o fêz?
Os lábios de Binnett contraíram-se num sorriso amargo. Pe-
sando as palavras, êle falou:
— Vou dizer-lhe algo a que não devia referir-me. Minha es-
posa, realmente, não tinha dinheiro. Quando tive algumas dificul-
dades financeiras, há algum tempo, passei algumas propriedades
para o nome dela, a fim de garantir. Ela vendeu-as sem que eu
soubesse, pouco depois. Com o dinheiro ela pagava nossas contas,
nossas despesas domésticas, mas ela se recusou a me devolver o
dinheiro, e me declarou que em qualquer caso, quer esteja viva ou
morta, quer continuássemos casados ou nos divorciássemos, ela
jamais me devolveria um centavo. E eu acreditava e ainda acredito
que tal seja verdade.
— Você queria divorciar-se? — perguntou Dundy.
— Sim.
— Por quê?
82
— Não era feliz no casamento?
— Joyce Court?
Binnett corou, e disse, rapidamente:
— Admiro Joyce Court enormemente, mas de qualquer modo
eu haveria de querer divorciar-me.
Spade falou:
-— O senhor tem a certeza, a certeza absoluta, de que não
sabe de homem algum que possa corresponder à descrição feita por
seu tio do homem que o agrediu?
— Tenho certeza absoluta.
O som da campanhia se fêz ouvir fracamente na sala.
Binnett saiu.
— Na minha opinião, este sujeito, afinal de contas. . . — co-
meçou a falar Polhaus.
Do andar térreo, veio, então o estampido de um tiro de pisto-
la, disparado dentro de casa.
As luzes apagaram-se.
Na escuridão os três detetives colidiram uns com os outros
quando se lançaram pela porta, para o hall escuro. Spade foi o
primeiro a alcançar a escada. Havia atrás dele o barulho de pisa-
das, mas não se podia ver até o momento de ele alcançar a curva
da escada. Então, pela porta da rua vinha luz suficiente para ver o
vulto negro de um homem de pé, com as as costas voltadas para a
porta aberta.
Uma lanterna acendeu-se na mão de Dundy, que se encon-
trava nos calcanhares de Spade, lançando um feixe de luz sobre o
rosto de Ira Rinnett. Êle piscou ao encontrar-se sob o feixe de luz e
apontou para algo no chão, diante dele.
Dundy voltou o feixe de luz da lanterna para o chão. Jarboe
jazia ali, de bruços, sangrando por um furo de bala na nuca.
Spade murmurou alguma coisa.
Tom Polhaus chegou, depois de descer barulhentamente as
escadas. Wallace Binnett chegou também logo atrás. A voz ame-
drontada de Joyce Court:
— Que aconteceu? Oh! Wally que aconteceu?
-— Onde é que fica a chave geral?
— Do lado de dentro da porta do porão, embaixo desta escada
83
— respondeu Wallace Binnett: — O que é que há?
Polhaus dirigiu-se para a porta do porão, empurrando Bin-
nett para um lado.
Spade pigarreou novamente e, empurrando Wallace Binnett,
lançou-se escada acima. Passou por Joyce Court e continuou, a pe-
sar de seu grito de surpresa. Estava na metade da escada quando
se ouviu lá em cima novo tiro.
Spade correu em direção à porta de Timothy Binnett. A porta
estava aberta. Entrou.
Algo duro e de forma angular golpeou-o por cima do ouvido
direito, fazendo-o ajoelhar-se no meio do quarto. Algo caiu do chão,
com ruído, junto a porta, pelo seu lado de fora.
As luzes acenderam-se.
No chão, no centro do quarto, Timothy Binnett jazia de cos-
tas, sangrando de uma ferida a bala no antebraço esquerdo. O ca-
saco do pijama estava rasgado. Tinha os olhos fechados.
Spade levantou-se e levou uma das mãos à cabeça. Olhou
para o velho caído no chão, olhou em volta para o quarto, para a
pistola automática preta, no chão do corredor.
Disse:
— Levanta-te, velho bandido. Levanta-te e senta-te numa ca-
deira que eu vou ver se posso parar esta sangria ate que chegue
um médico.
O homem deitado no chão não se moveu.
Ouviram-se passos no corredor e Dundy entrou, seguido pe-
los dois Binnett mais jovens. O rosto de Dundy estava escuro e
furioso.
— A porta da cozinha completamente aberta — disse com voz
interrompida. — Entraram e saíram sem ser molestados. . .
— Nada disso — replicou Spade. — O Tio Tim é o pássaro que
estamos procurando — não prestou atenção ao gesto de surpresa
de Wallace Binnett, ao olhar incrédulo de Dundy e de Ira Binnett.
— Vamos, levanta-te —..... disse ele ao velho caído no assoalho
— levanta-te e conta-nos que viu o mordomo quando olhou pelo
buraco da fechadura.
O velho não se moveu.
— Êle matou o mordomo porque eu lhe disse que o mordo-
84
mo havia espiado pelo buraco da fechadura — explicou Spade a
Dundy. — Eu também espiei, mas só vi aquela cadeira e a janela,
embora já então tivéssemos feito um barulho capaz de assustá-lo e
levá-lo novamente para a cama. E que tal se você afastasse a cadei-
ra enquanto eu me encarrego de examinar a janela — dirigiu-se à
janela e começou a examiná-la cuidadosamente. Sacudiu a cabeça,
estendeu uma das mãos para trás e disse: — Dá-me a lanterna.
Dundy pôs a lanterna na mão dele.
Spade levantou a janela e debruçou-se para fora, voltando a
luz para o lado de fora do edifício. Pouco depois resmungou qual-
quer coisa e estendeu para fora também a outra mão, trazendo de
lá um tijolo que tirou de pouco abaixo do peitoril. Colocou sobre a
janela o tijolo e enfiou a mão pelo buraco que ficara na parede com
a retirada do tijolo, e de lá tirou, uma coisa de cada vez, um col-
dre de pistola, preto, vazio, uma caixa de cartuchos parcialmente
cheia, e um envelope não selado.
Segurando estes objetos, Spade voltou-se para olhar para as
demais pessoas. Joyce Court entrou com uma bacia dágua e um
rolo de ataduras e ajoelhou-se ao lado de Timothy Binnett. Spade
colocou o coldre e os cartuchos em cima da mesa e abriu o envelo-
pe. Dentro dele havia duas folhas de papel, cobertas de ambos os
lados com letra manuscrita, a lápis. Spade leu um parágrafo para
si mesmo, riu, e recomeçou, lendo em voz alta:
“Eu, Timothy Binnett, em perfeita sanidade física e mental,
declaro ser o que aqui escrevo a minha última vontade e testamen-
to. A meus caros sobrinhos, Ira Binnett e Wallace Bourke Binnett,
como reconhecimento pela amável bondade com que me receberam
em suas casas e pelos cuidados que me dispensaram na velhice, eu
dou e lego, em partes iguais, todas as minhas propriedades neste
mundo, de qualquer espécie, ou sejam, minha carcaça e as roupas,
com que estou vestido.
Lego-lhes, também, a despesa com meu enterro e as seguin-
tes recordações: Primeiro: a lembrança de sua credulidade, acredi-
tando que os quinze anos que passei em Sing Sing fossem vividos
na Austrália; segundo: a recordação de seu otimismo, ao suporem
que esses quinze anos me fizeram senhor de grande fortuna, e que
se eu vivi a custa de ambos, tomei emprestado dinheiro deles e ja-
85
mais gastei um centavo de meus próprios haveres devia-se ao fato
de que eu era um avarento cujo tesouro eles haveriam de herdar,
e não porque eu não tivesse dinheiro algum a não ser aquele que
eu os fiz me darem; terceiro: pela sua vã esperança de que eu, se
tivesse alguma coisa, lhes deixasse algo; e, finalmente, porque a
lastimosa falta de qualquer senso de humor em ambos os impedirá
ver, em tempo algum, o quanto divertido foi tudo isto. Assina e sela
o presente documento. . .”
Spade levantou o olhar e disse:
— Não traz data, mas está assinado Timothy Kíeran Binnett,
e com uns floreios.
Ira Binnett estava rubro de cólera; o rosto de Wallace tinha
uma palidez mortal e o corpo todo lhe tremia. Joyce Court parara
de pensar o braço de Timothy Binnett.
O velho soergueu-se e abriu os olhos. Olhou para os sobri-
nhos e desatou a rir, e em seu riso não havia histeria, nem loucura;
era um riso sadio, franco, que foi cessando pouco a pouco,
Spade disse-lhe:
— Muito bem, você já se divertiu. Vamos agora falar dos as-
sassinatos.
— Do primeiro não sei nada mais além do que já lhe disse, e
este aqui não é um assassinato, pois que eu apenas. . .
Wallace Binnett, ainda tremendo violentamente, disse com
dificuldade, entre os dentes,:
— É mentira. Você matou Molly. Joyce e eu saímos do quarto
dela quando ouvimos Molly gritar, e ouvimos o tiro e vimos quando
ela caiu do lado de fora da porta do quarto de você, e que ninguém
mais saiu daqui de dentro.
O velho falou, calmamente:
— Bem, vou contar-lhe: foi um acidente. Disseram-me que
havia aí um sujeito vindo da Austrália que desejava falar-me a res-
peito de algumas de minhas propriedades por lá. Eu sabia que
havia gato escondido em tudo isto, uma vez que eu jamais havia
estado lá. Não sabia se algum de meus caros sobrinhos começava
a suspeitar e que me preparava uma cilada ou coisa parecida, mas
eu sabia que embora Wally não estivesse metido nela êle de qual-
quer maneira faria entrar o cavalheiro australiano para me ver, e
86
eu talvez com isto perdesse uma das pensões em que me hospeda-
va gratuitamente — disse o velho, soltando uma risadinha.
— Assim — continuou — pensei que devia entrar em contato
com Ira de modo a que pudesse voltar para a casa dele se as coisas
ficassem mal paradas por aqui; e, de qualquer modo, faria o pos-
sível para me livrar do tal australiano. Wally sempre pensou que
eu fosse meio maluco, e temia que me internassem num hospício
antes que eu tivesse feito testamento em seu favor, ou que não me
deixassem gerir meus Deus. Como sabem, êle ficou tendo péssima
reputação, com todo aquele negócio da Bolsa de Títulos, etc, e bem
sabia que nenhum tribunal haveria de nomeá-lo curador de meus
negócios se eu ficasse de miolo mole. . . pelo menos enquanto eu ti-
vesse outro sobrinho. . . um respeitável advogado. Assim, eu sabia
que ao invés de me envolver numa situação que afinal de contas
poderia fazer com que eu batesse com os costados num hospício,
Ira poria porta fora esta visita, e por isto procurei dar a Molly a
impressão que havia enlouquecido, e justamente porque era ela
quem estava mais à mão para presenciar o espetáculo de minha
repentina loucura. O caso é que ela tomou a coisa a sério demais.
Eu segurava uma pistola e, fulo de raiva, falava a respeito de
estar sendo espiado por meus inimigos australianos, e que iria des-
cer e meter bala no tal sujeito. Mas o caso é que ela ficou assustada
e tentou arrebatar-me a pistola. Foi então que a arma disparou, e
depois eu tive de fazer estas marcas no pescoço e arranjar a histó-
ria do homenzarrão moreno — olhou com desprezo para Wallace, e
continuou: — Eu não sabia que êle estava querendo proteger-me.
Por mais baixo que fosse o meu juízo a respeito dele, nunca pen-
sei que fosse capaz de descer ao ponto de proteger o assassino de
sua esposa, mesmo que não gostasse dela... e tudo somente por
dinheiro.
Spade falou:
— Deixemos isto. E que me diz do mordomo?
— Nada sei a respeito do mordomo, — replicou o velho, fitan-
do Spade com firmeza.
— Você tinha de matá-lo sem perda de tempo — disse Spa-
de — antes que êle tivesse tempo de fazer ou dizer alguma coisa.
E por isto você desceu sorrateiramente a escada dos fundos, abriu
87
a porta da cozinha para enganar, foi até a porta da frente, tocou
a campanhia, fechou a porta e escondeu-se na sombra da porta
do porão embaixo da escada da frente. Quando Jarboe foi abrir a
porta você o matou. O furo da bala foi feito na nuca. Depois desli-
gou a chave geral, que fica justamente por trás da porta do porão,
e voltou rapidamente pela escada dos fundos, e disparou a arma
cuidadosamente contra o seu braço esquerdo. Cheguei porém cedo
demais, e por isto você me desferiu um golpe com a pistola, ati-
rou-a pela porta, e deitou-se no chão enquanto eu me recuperava
do choque.
O velho resmungou novamente.
— Ora, você está simplesmente...
— Um momento — disse Spade, com paciência. — Não vamos
discutir. A primeira morte foi acidental, vá lá. A segunda não podia
ter sido. E será muito fácil provar que todas as balas, a que feriu o
seu braço esquerdo e as outras duas foram disparadas pela mesma
arma. Que diferença que seja um ou outro o homicídio que viermos
a provar?
Você será enforcado apenas uma vez.
E, sorrindo, satisfeito, terminou:
— E será enforcado.

88
O VASO GREGO

Onde poderá um editor, dominado pela mania de casos de ho-


micídio, descobrir boas histórias antigas sobre este assunto? Onde
poderá encontrar histórias que, por uma década ou mais, talvez
mesmo por uma geração, tenham sido esquecidas, deixadas de lado
ou, de qualquer modo, ignoradas? As fontes, como sabemos, são
muitas, embora somente nos lembremos de algumas. . . Às vezes,
um leitor prestimoso trava da pena e, dirigindo-se a um editor agra-
decido faz referência a uma história lida por acaso há muitos anos,
e de que ainda se recorda. Em geral, este é um bom teste, pois se
a impressão causada pela história, ou se o seu conteúdo permane-
ce em nossa mente, é porque o conto tem realmente algo digno de
ser novamente apresentado ao público, e perpetuado; além disso, é
também bastante provável que, se a história foi capaz de agradar a
um leitor de bom-gôsto, também há de agradar a outros. Assim, com
elementos fornecidos pelo leitor, procuramos localizar a história...
Acontece, também, que sejam os próprios autores que despertem a
atenção dos editores para seus antigos trabalhos; e os autores são
geralmente bons juizes para decidir sobre o que, no passado, reali-
zaram de melhor. Quando um autor olha com carinhosa preferência
para determinado trabalho, escrito há muito tempo, podemos quase
apostar que bem vale a pena reler-se tal história.
E, naturalmente, há também a busca permanente, incessante,
feita pelos editores, relendo velhas revistas, livros e jornais. É quase
sempre um trabalho de desanimar, pois para cada história que me-
reça ser reeditada, é preciso ler cinqüenta ou mesmo cem que não o
merecem.
89
Volta e meia, ainda, os editores topam com uma referência
num velho livro didático ou num livro de crítica literária. Foi assim
que encontramos a história que aqui apresentamos ao leitor. Fazia
parte de uma “lista honrosa de contos escolhidos”, organizada há
quase trinta anos. De início, tentamos encontrar a velha revista que
o publicara. . . e não tivemos êxito. Procuramos, então, localizar a
autora, Valma Clark, e finalmente fomos encontrá-la, residindo em
Paris.
Pois bem, tivemos sorte, pois a autora, segundo, a carta que
nos escreveu, retornara ao apartamento onde todos os seus perten-
ces haviam sido depositados durante os longos anos da ocupação
alemã. Poucas esperanças tinha de encontrar, após vários anos, um
exemplar que contivesse a história; mas, detendo-se em meio àque-
la verdadeira loja de velhas curiosidades — chaleiras, vassouras,
cadeiras e todos os pertences acumulados de diferentes casas —
meteu a mão dentro de uma caixa de madeira que trazia o rótulo
“originais” e — vejam só — lá veio um exemplar da velha revista,
com a história que procurávamos,
A autora prosseguiu, dizendo que o assassinato, por curioso
que pareça, se havia misturado com o seu problema de moradia.
Por três anos, Valma Clark tentara encontrar uma peça sem mobília
onde ela e a irmã pudessem estabelecer-se novamente. Na mesma
semana em que teve notícia de nós, que lhe indagávamos a respeito
do conto que escrevera, Valma Clark achou uma casa numa cidade-
zinha fora de Paris — St. Martin les Nogelles, na Normandia. Para
falar verdade, era um casarão velho e feio, mas que dispunha de
todos os “confortos”: água fria e quente, e banheira, Havia, não obs-
tante, algo profundamente sinistro no ar, como uma aura. As janelas
abriam para uma das mais aprazíveis paisagens campestres que se
possa imaginar, a que não faltava sequer uma bela igreja antiga; o
jardim, entretanto, estava abandonado, com a vegetação crescida e
desordenada em meio à qual se elevavam pinheiros melancólicos. O
porão da casa era uma verdadeira catacumba parisiense.
Valma Clark disse à irmã que gostaria de tomar de uma lan-
terna e explorar aquele porão, uma vez só que fosse, pois encon-
traria provavelmente um ou dois cadáveres; depois, satisfeita sua
curiosidade, fecharia muito bem fechada a porta, e jamais tornaria
90
a descer lá.
Então, quando as irmãs estavam prestes a alugar a casa, um
amigo americano que se encontrava em Paris advertiu-as de que
não o fizessem. Segundo parecia, o homem que morava por cima da
garagem era um assassino às soltas. A polícia não tinha dúvidas
de que matara a amante, a sangue frio. Mas o sujeito dera sumiço
ao cadáver com tal habilidade e tão completamente que, depois de
passar seis meses na cadeia, teve de ser posto em liberdade. Nunca
pôde a polícia encontrar o corpo, e sem isso, segundo a lei francesa,
o homem não podia ser condenado.
Pois bem, Valma Clark é capaz de apostar que sabe onde se
encontra tal senhora.

O HOMEM QUE AMAVA OS CLÁSSICOS

Valma Clark

FOI num mês de agosto, era Cape Cod, quando andava eu a


esquadrinhar lojas de antigüidades, em busca de um tipo especial
de trempe colonial para um de nossos clientes, que topei com o
Velho Erudito.
Ali, numa alva casa de campo cujos fundos davam para o
King’s Highway, entre um amontoado de lanternas do Cabo e de
bojadas garrafas de licor verdes e âmbar, de velhas chaleiras e trin-
cos de bronze e de infalíveis castiçais, foi que encontrei, por acaso,
uns apertadores de livros nos quais, pintadas de alaranjado claro,
se viam algumas ninfas a brincar, sob um fundo de veludo negro.
Os detalhes do rosto e dos cabelos eram desenhados com a máxima
delicadeza em castanho e púrpura, como se tivesse sido usado um
pincel de apenas um fio, muito fino. Era um trabalho requintado, e,
em conjunto, o efeito era encantador. Subitamente, porém, algo me
surpreendeu. Sim, por Júpiter! O objeto era do mesmo tipo daque-
les vasos gregos — belos, antigos, com figuras em tinta escarlate.
Era realmente de um estilo clássico!
Também as ninfas eram clássicas. À mais esguia era, sem

91
dúvida, Nausica jogando bola com suas aías. Havia também outros
motivos clássicos: uma encantadora Afrodite cavalgando graciosa-
mente um forte cisne; ágeis Silênios saitítando numa gangorra. . .
A mitologia pagã, em confusão e confinada em tão pequeno
espaço, nesta casa de antigüidades de Nova Inglaterra. . . Estra-
nho!
Em meio à minha surpresa, meu olhar se deteve sobre outro
objeto, e meu sentimento transformou-se em verdadeira admira-
ção, aguçada ao ponto de se transmutar numa viva curiosidade a
respeito do artista que havia realizado obra de tão cativante beleza
com materiais tão grosseiros. Era uma pintura partida, como vê-
nus sem um dos braços. Representava Palas Atenas, e a cabeça
e os ombros de um jovem que para ela tocava uma flauta de dois
tubos. A cabeça da deusa, que usava ainda o elmo dos guerreiros,
inclinava-se como se estivesse a escutar a música, e sua atitude
era de lassidão e de quietude, depois de árduo combate.
Aquela pintura dava uma impressão geral de serenidade,
com linhas tranqüilas e naturais, mau grado as bordas ásperas e
irregulares que cortavam as figuras pouco acima da cintura. Até
certo ponto, ela possuía a dignidade e a sinceridade de uma obra
de arte religiosa. E então notei que havia outras Atenas idênticas,
que a pintura partida revelava em toda a metade dos apertadores
de livros.
— Mas sòmente um profundo conhecedor da mitologia grega,
e entusiasta, seria capaz de fazer isto!...
— Como disse, o senhor? — perguntou a jovem que atendia
a loja.
— Isto. Mas é notável! Quem é êle? Diga-me alguma coisa a
respeito. . . — supliquei-lhe impulsivamente.
— Não lhe posso dizer muito. Mora sozinho, na praia, e nos
traz isto para vender. Chama-se Twining. . . Twining o funileiro,
como dizem.
— Mas isto aqui... assim quebrado... que significa?
Ela sacudiu a cabeça.
— Êle nunca diz nada a respeito disso. Afirma apenas que
não tem o modelo do resto, e que seria um sacrilégio terminar os
desenhos sem as linhas verdadeiras.
92
— Hum. . . respeito e consciência. — murmurei eu, — o que
é bem raro hoje em dia. Fico com os dois apertadores. Quanto cus-
tam?
— Cinco dólares.
— E um par de ninfas — acrescentei, pois aquilo me parecia
absurdamente barato.
— Infelizmente temos sòmente um exemplar, que está sendo
usado para calçar a porta, como o senhor está vendo.
— Mas não é possível! Para calçar a porta! — lamentei. —
Mas eu usarei as minhas como apertadores de livros, e colocarei
entre elas os Poetas Românticos.
— Bem. . . — disse a moça, procurando subitamente reme-
diar a situação, — o senhor pode deixar conosco uma encomenda
para o Sr. Twining. Êle terá prazer em pintar-lhe a outra.
— Ou talvez eu mesmo possa fazer a encomenda diretamente
ao Sr. Twining — exclamei. — Estou com meu carro aí, e disponho
de tempo. Como é que se vai até a casa dele?
— Mas o senhor não poderá ir de carro. Deve seguir a es-
trada de areia até o fim e então tomar por um estreito atalho que
vai direito ao mar. Fica a cinco quilômetros adiante; não há outra
casa. . .
— Não tem importância. Me meti na cabeça que havia de
visitá-lo. Ah! mas vejo que a senhora não me aconselharia.
— Não é bem isto. . . É que o homem é uma espécie de eremí-
ta — disse ela, corno que hesitando. — É um ancião muito polido,
mas ninguém o visita.
— Pois então é tempo que alguém comece.
Agradeci-lhe, procurei uma hospedaria sossegada, estacionei
meu carro para passar a noite, e nas últimas horas da tarde co-
mecei o longo passeio em direção ao mar e a casa de Mr. Twining,
o funileiro.
Segui por um sendeiro de areia que se alongava como um tra-
ço de giz entre touceiras de arando silvestre, arbustos de roble do
campo e pinheiros, através de uma paisagem desolada. Finalmente
me encontrei, de súbito, em cima de alta penedia que se debruçava
sobre o Atlântico.
As nuvens embaciaram o firmamento, e ao invés da clarida-
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de do poente, havia estranha luminosidade amarela pairando por
sobre todas as coisas.
O mar estava muito calmo, com tonalidades verdes e de púr-
pura desmaiada, e uma larga orla de espuma, abaixo do promontó-
rio onde eu me encontrava, tinha uma coloração acinzentada. Mais
acima, no alto da penedia, e muito próximo à borda, via-se uma
dessas casas de Cape, acaçapadas e batidas pelos ventos. Subi em
sua direção, e avançando com certo esforço por entre os arbustos
silvestres, cheguei até a porta dos fundos.
Então, tendo como fundo uma janela mais afastada que emol-
durava o mar e o céu, vi o perfil de um homem idoso, de cabelos
brancos.
Sentava-se numa banqueta de trabalho, e na mão, em boa
postura, tinha um pincel; mas não estava pintando. A cabeça man-
tinha-se erguida e o homem escutava. Parecia quase como se es-
tivesse escutando aquela estranha luminosidade amarela de que
todo o ar estava embebido. Chamou-me imediatamente a atenção
a extrema delicadeza e a expressão de sofrimento que lhe transpa-
reciam do rosto.
Bati à porta e o velho moveu-se.
— Boa-tarde — disse-lhe.
Êle se dirigiu vagarosamente para a porta.
— Na loja de antigüidades “Ao Ferrôlho Aberto”, disseram-me
que poderia encontrá-lo aqui. Gostaria que o senhor me conseguis-
se outro apertador de livros.
— Apertador de livros? — murmurou ele.
— Espero que o senhor não terá inconveniente em pintá-lo e
mandar entregar-me.
— Ah! sim — fêz o ancião, e não havia dúvida de que me
seguia apenas com os olhos, enquanto seu espírito continuava a
ouvir seus próprios pensamentos.
Comecei a ficar intrigado sobre como poderia despertar-lhe
atenção. Uma espécie de cheiro de coisas antigas parecia envolver
aquele homem, um cheiro que se evolava não somente de seu velho
e surrado traje preto, de um talhe fora de moda, mas igualmente
de suas maneiras e da própria inflexão de sua voz, como que rema-
nescente da antiga escola.
94
— As ninfas — insisti — uma das Nausicas.
Com isto sua atenção foi despertada:
— Ah! Nausica. . . então o senhor conhece?
— Sim, . . Creio que sim.
— Pois, em geral, isto não acontece; para o público comum
elas são apenas umas mocinhas brincando com uma bola -— e
o velho sorriu como se ouro puro emanasse de seus próprios so-
frimentos; era um sorriso diferente e amável que me conquistou
imediatamente.
— Terei prazer em pintar uma Nausica para o senhor —
acrescentou com formalidade, esperando que eu continuasse a
manifestar minha satisfação.
— Aqui está meu nome — disse-lhe eu — talvez o senhor qui-
sesse assentar o nome e endereço.
-— Sim, naturalmente. . . seu nome. — Docilmente, trouxe
um bloco de notas e um lápis, e com bonita letra erudita escreveu:
“Mr. Claude Van Nuys”, com o meu novo endereço em Nova York.
Com ar distraído, deixou-me que pagasse, e ficou pronto para
despedir-se,
Mas não arredava pé. — São Silênios, é a deusa com o cisne
é Afrodite, não é?
— Você já pode ser considerado aprovado na série A, meu
filho — disse o ancião, sorrindo.
— E aquela Palas Atenas. . . um trabalho esplêndido. En-
tretanto. . .
— A! Atenas! —- um tremor de pesar passou de leve sobre a
físionomia do velho, que se tomou novamente reticente e vago.
Eu teria desistido de continuar, se uma terrível e imprevista
lufada de vento não viesse em meu auxílio, levando em torno de
nós nuvens de areia.
— Puxa! — exclamei — cobrindo o rosto contra os impactos
de areia fina.
— Teremos temporal, não? — perguntei-lhe.
Mas fiquei como que boaquiaberto diante da expressão de
horror e de inalterável tensão da fisionomia de Mr. Twíníng.
— Uma noite má. . . — murmurou — vento e o mar, revôlto...
Foi justamente numa noite assim. . . — como que tornou a notar
95
subitamente minha presença, e um alívio que me permitiria avan-
çar em nossa palestra, pensei.
— Mas o senhor não pode ficar aí fora, com este vento — ar-
gumentou êle, mais para si mesmo do que para mim -— será então
necessário... O senhor... — disse, passando facilmente para o pa-
pel de anfitrião cortês — quer aceitar o abrigo do meu teto até que
passe a tempestade?
Esperou que eu o precedesse na entrada da casa, fêz com que
eu me sentasse na única poltrona confortável que havia naquela
sombria sala de estar, e, depois de desculpar-se, sentou-se em seu
banco de trabalho e tomou novamente do pincel.
A pouco e pouco a peça se foi escurecendo. O velho esqueceu-
se de minha presença e tornou ao seu murmurar, tremendo a cada
lufada de vento, e detendo-se para escutar os gemidos do mar, lá
embaixo.
Assim ficou trabalhando até não mais poder enxergar, e
acendeu então uma vela, voltou-se para o traçado de um modelo
tirado da estampa colorida de um livro. Ao seu lado havia vários
volumes semelhantes, e tomei a liberdade de apanhar um deles e
folheá-lo. Havia, como eu imaginara, estampas dos mais famosos
vasos gregos, a maioria dos quais do período do colorido vermelho.
“Douris”. . . “Eufrônlo”. . . “Híeron”. . . — li em voz alta. -— Ah! e
estes magníficos lécitos brancos!
O efeito sobre o ancião foi instantâneo. Aqueles nomes — Hie-
ron. . . lécitos brancos — foram como senhas mágicas.
— Então o senhor os conhece, aos decoradores de vasos gre-
gos! — e deixou cair sobre mim uma torrente de entusiasmo cientí-
fico, de detalhes técnicos e de datas, cheios de reverência e de amor
pela beleza pura daqueles vasos.
— O senhor conhece! Conhece! — exclamou, exultando. —
Veja agora a Atenas de Douris. . .
— Mas em realidade eu não conheço nada. . . —- interrom-
pi, impelido àquela franqueza, pela sua manifestação de intensa
sinceridade. — O conhecimento que tenho dos clássicos é geral.
Trabalhamos somente com as obras dos períodos francês e inglês,
em nossa casa de Harrow, de que sou comprador para atender a
nossa clientela da Quinta Avenida.
96
Mas o homem não queria ouvir.
— O senhor fala a linguagem de quem conhece o assunto —
insistiu êle — “saiba que há quase meio século não conversava com
ninguém que falasse minha própria linguagem. . . Há quase meio
século que não encontrava um homem que tivesse ouvido falar de
Eufrônio, o mestre pintor de cerâmica. Deus, como isto me faz re-
cordar!
O velho riu-se.
— O senhor me fêz uma pergunta a respeito da minha Ate-
nas! Foi o primeiro homem que compreendeu. Espere!
Sorrindo como uma criança que se refere a um segredo, di-
rigiu-se à cômoda e dela tirou algo enrolado em papel. Com muito
carinho desembrulhou o objeto e apresentou diante de mim a me-
tade partida de um cálice grego, um cylix pintado de vermelho ao
qual uma das asas estava ainda presa mas a que faltava o suporte.
O velho esperou, em triunfo, a minha admirada exclamação.
Ah! — disse eu, desajeitadamente — a parte inferior é aquela
mesma Atenas com o toucador de flauta. Parece. . . um belo frag-
mento. . .
— Belo!? — repetiu com desdém. — Belo! Mas senhor, é o me-
lhor que se conhece. . . um aristocrata dos vasos gregos. Veja! As
linhas para completá-lo desenvolviam-se mais ou menos assim.
Tomou de um lápis, deitou o fragmento sobre uma folha de
papel branco, e completou as figuras quebradas de Atenas e do jo-
vem. Observei suas mãos, enquanto êle trabalhava: eram finas, de
dedos longos, nervosos, mas seguros do que faziam.
— Vê? — perguntou. — Agora, na parte externa do cylix te-
mos Atenas em sua quadriga depois da batalha. Não formam um
contraste, aquela Atenas pacífica e esta outra aqui? Não é, real-
mente, um artista de recursos, o homem que pôde realizar a am-
bas, e tão perfeitamente. Observe o senhor os cavalos — as linhas
audazes e vigorosas. Que força e leveza! É realmente uma pintura
máscula. . . Eufrônio. . . — o velho Twining se deteve, e tornou a
dar à exposição um cunho mais preciso. — A outra metade da taça,
a exterior, mostrava Atenas atirando sua lança contra o gigante
Anquelados. . .
— Mas onde está a outra metade? — perguntei. — O senhor
97
deve tê-la visto, pois conhece a decifração do enigma.
— Sim — respondeu êle lentamente. — Eu o vi; Deus sabe
como conheço a decifração do enigma. . .
Mas êle voltou-se para mim. . . ou melhor, para o seu querido
fragmento de taça grega.
— Veja o colorido! — sussurrou. — Este tom alaranjado es-
curo, e o aveludado negro e o magnífico verniz de toda a peça. . . O
segredo dos ceramistas gregos morreu com eles. É perfeito até os
mínimos detalhes. . .
Sentado ali, perdeu-se em reverente admiração de seu peda-
ço de cylix. . . Não tocava nele; era como se aquele fragmento fosse
por demais precioso para ser manuseado; mas, através dos olhos,
lhe dedicava a alma. Esquecera-se dos uivos do vento que aumen-
tava de intensidade e do ribombar da arrebentação cada vez mais
forte.
— Isto — anunciou êle calmamente por fim — é a metade de
um Eufrônio legítimo, até agora desconhecido do público.
Olhei para o objeto.
— Então o senhor diz que se trata de um Eufrônio. . . até
agora desconhecido?
— Sim, a assinatura estava no outro pedaço.
— Mas, por Deus, achada a outra parte (e o senhor deve sa-
ber onde pois parece tão familiarizado com ela!) este fragmento vale
o resgate de um rei!
— A outra metade perdeu-se; perdeu-se para sempre — disse
o velho. Mas este pedaço, por si só, é digno do resgate de um rei;
não em ouro, mas na moeda do conhecimento, o conhecimento que
êle trará ao mundo da arte grega.
Seus olhos cinzentos alargaram-se como se enxergassem
uma visão; o poeta se transmudava em cientista imaginativo.
Naquele instante eu me senti em presença de um nobre. Mas
a dignidade do ancião desfez-se abruptamente. Com a velocidade
de uma locomotiva que se aproximasse, o impacto em cheio da ar-
rebentação do Atlântico nos atingiu, abalando, sacudindo e fazen-
do gemer a velha casa até estalar como um saco de ossos soltos,
No mesmo momento a chuva começou a cair torrencialmen-
te, batendo nos vidros das janelas e tamborilando infernalmente
98
sobre o telhado. Afirmo que não sou covarde, mas naquele mo-
mento agarrei-me à pesada banca de trabalho como se estivesse
em busca de uma âncora. À luz trêmula da vela, vi o ancião colado
à parede, as mãos apertadas de encontro aos olhos. Parecia estar
em agonia.
Alcancei-o em dois passos.
— Que tem, senhor?. . . Mr. Twining?
Êle tartamudeava trechos desconexos de uma oração. Pus-
lhe a mão em cima do ombro, e subitamente êle agarrou-se a mim,
como uma criança que encontra uma mão inesperada no escuro.
Falava rapidamente, incoerentemente:
— Não, não; não é a tempestade. São as coisas que ela traz
aqui, em minha cabeça. . . imagens. Cenas que nenhum ser nunca
deveria ter vivido. Eu as vivi mais uma vez. . . torno a revivê-las ain-
da. . . como Macbeth. Não me deixe sozinho! É a Sua vontade. Foi
Êle que o enviou aqui, e a tempestade o detém aqui. . . É impossível
o senhor alcançar a vila hoje de noite. Deverá ficar aqui comigo e
ser o meu primeiro hóspede nesses últimos quarenta anos. Ouvirá
minha história. . . e me julgará.
— Sim, sim. — disse-lhe eu, para acalmá-lo, levando-o para
uma cadeira — naturalmente que ficarei, Mr. Twining.
Acalmou-se então, com a cabeça pendida sobre os braços que
apoiava na banca diante de si. Tendo o vento amainado um tanto,
êle pouco a pouco recuperou o controle de si mesmo.
— É uma loucura minha — suspirou, olhando por fim. — Às
vezes temo estar ficando um pouco maluco. Mss tenho vontade de
contar-lhe. . . contar a história de como encontrei o fragmento de
Eufrônio. O senhor, um estranho, há de ser imparcial. Mas o se-
nhor deve estar com fome.
Tornou-se novamente o anfitrião solícito, mas não molesto.
Começou a preparar as coisas habilmente, na cozinha; pôs sobre a
mesa uma toalha de linho branco e os talheres, e serviu-me caldo
de ostras tirado de uma sopeira azul, pão preto e mel, e uma espé-
cie de vinho com um bouquet digno de uma ode de Horácio.
Por fim, preparou-se para contar a história.
“Eu me encontrava no estrangeiro — começou — lá por 1885,
com um ano de licença no colégio que cursava, e em companhia de
99
um amigo — vamos chamá-lo Lutz, Paul Lutz. Devo dizer-lhe que
eu não tinha o direito de fingir-se seu amigo, pois, sinceramente,
eu o desprezava, e desprezava seus métodos e suas crenças. Sendo
um de meus colegas, mais jovem do que eu, parecia ter especial
predileção por mim.
Era estranho, pois era de uma família rica, e a não ser nosso
comum interesse em arqueologia e assuntos clássicos — interesse
que para êle era apenas um capricho, suspeitava eu — éramos
como pólos opostos. Êle era astuto, brilhante mesmo, mas, . . como
poderei descrevê-lo. . . Tinha os dedos grossos. Era do tipo bonito
e gâté de Byron: sanguíneo e moreno.
Lutz e eu éramos rivais em mais de um sentido. Havia. . .
uma jovem na cidade onde se achava nossa escola: nos recebia a
ambos. Chamava-se — já agora não importa mais dizer-lhe o nome
—- chamava-se Lorna, e era como o nome, uma bela jovem de ca-
belos cinzentos prateados. Tinha um belo espírito, e nos olhos um
brilho que era como o verso inesquecível de um poema.”
O velho ficou sentado em silêncio por algum tempo, como es-
tivera diante da maravilhosa beleza daquele vaso grego, e seu rosto
estranho e frágil era iluminado pelo mesmo brilho interior.
“Lutz e eu estávamos juntos em Atenas, na primavera, a ser-
viço do museu da Universidade, que então mal começava a formar-
se. Tínhamos à nossa disposição uma verba destinada a algum
espécime valioso e rondávamos os lugares onde se realizavam es-
cavações, e os mercados de antiguidades. Foi absolutamente um
acaso o fato de termos ido à Acrópole justamente quando se inicia-
va o trabalho de desentulho dos destroços anteriores à destruição
causada pelos persas. E foi também o mero acaso que nos levou ao
lugar, e justamente no momento, em que os trabalhadores desen-
terravam o vaso, em dois pedaços.
Um vaso, obra do ceramista Eufrônio — e a assinatura era
realmente visível através da camada formada pelo depósito de terra
— ali se encontrava, no meio daqueles destroços que datavam de
antes do saque perpetrado pelos persas no ano de 480! Ora, a exis-
tência de Eufrônio havia sido fixada numa data consideravelmente
posterior. Aquela diferença de datas era importante, e eu acabava
de topar com uma descoberta capaz de fazer época! Via diante de
100
mim aberto o caminho da fama.
Falei com o jovem grego que dirigia as operações, e consegui
dele a promessa de que me seria permitido examinar cuidadosa-
mente o objeto logo que o mesmo fosse completamente limpo. Lutz
mantinha-se junto de mim, e eu notei que também êle se entu-
siasmara com o vaso, embora escondesse seus sentimentos sob
um ar de indiferença. Mas eu não tinha tempo para tratar de Lutz.
Afastei-me dele. Segui minhas deduções através das ruas de Ate-
nas, e então fixei minhas conclusões na biblioteca de clássicos da
Escola Americana. Não havia erro algum nos elementos que eu co-
ligira, nenhuma falha em minha lógica. Então, no pleno entusias-
mo daquela façanha de mestre, voltei para o pequeno hotel onde
estávamos hospedados.
Abri a porta do nosso quarto e encontrei Lutz inclinado sobre
a mesa. Olhava avidamente para alguma coisa.
— Que maravilha! — disse. — E poder ajustar sem nenhuma
falha...
— Santo Deus! É o cylix — exclamei.
— Ê isto mesmo, meu velho! —-disse Lutz, sorrindo para
mim. — Acabo de dar-lhe um banho com água-forte. . . não, meu
cuidado foi extremo, não tenha receio. E agora, que é que você
acha?
— Que acho? Que posso eu achar? As cores eram como você
as vê agora, brilhantes, como um esmalte negro e laranja. Esque-
ça-se de teorias, e sinta simplesmente toda a beleza disso.
Estávamos ali, dois rapazes tão entusiasmados como se ti-
vessem achado o tesouro do Capitão Kidd. Lembro-me que come-
çamos acalorada discussão: Lutz preferia aquela Atenas forte e be-
licosa que atirava a lança ao gigante, enquanto eu afirmava que a
Atenas calma, sentada com a cabeça inclinada para a música de
seu tocador de flauta, constituía uma expressão mais elevada de
arte. Rindo, apanhei minha parte favorita do vaso, deixando Lutz
de posse de sua deusa selvagem.
Então a importância da descoberta do vaso e do artigo que eu
pretendia escrever voltaram a impor-se, e eu retomei a terra.
— Mas por que artes do demônio conseguiste apossar-te
dele? — perguntei.
101
Lutz pôs-se a rir, lançando um olhar apreensivo para o cor-
redor.
— É uma longa história. Bem... Mas queres fazer o favor de
passar a chave na porta, sim? Obrigado. Ora, pouco importa que
aquele trabalhador grego fosse um tolo, ou se tratasse de uma
questão de dracmas, ou das duas coisas ao mesmo tempo. . . O
certo é que o cylix está aqui. . . é meu. . .
— Mas, de direito, pertence ao governo grego. . . ao Museu da
Acrópole — protestei, dèbilmente.
— Sim, é claro que sei disso — riu-se Lutz. — Mas o caso é
que êle não vai nem para o governo grego nem para a Acrópole. Afi-
nal de contas, por que discutir, Twining? Você bem sabe que estas
coisas acontecem todos os dias.
— Bem sei. Apesar das leis, valiosas peças clássicas são con-
tinuamente embarcadas para os Estados Unidos, e na verdade,
nossa própria escola já comprou espécimes de origem duvidosa.
Então a emoção de minha descoberta apoderou-se novamen-
te de mim.
— O seu valor é maior do que você supõe, Lutz. Você não
acha nada de estranho em encontrar um vaso de Eufrônio no
meio de destroços da invasão persa? Mas como! Acorda, homem!
Se Eufrônio e seus contemporâneos viveram e pintaram antes dos
persas, quer dizer simplesmente que toda a cronologia dos vasos
gregos deve ser empurrada para trás cerca de meio século. E isto
significa também que a pintura grega se desenvolveu antes da es-
cultura grega, ao invés do contrário, como em geral se acredita.
Compreende você, agora? Compreende como este pequeno cylix é
capaz de revolucionar todos os ‘nossos padrões de arte grega? Mas
é colossal! Quando aparecer o meu artigo. . . quando fôr publicado
será citado, discutido e discutido e todos os jornais. . .
— Espere um momento! — comandou Lutz. — Não vamos
ainda apresentar este vaso, Você quer adiar um pouco este seu
artigo? Promete?
— Não sei. onde você quer chegar — respondi, com firmeza.
— Não sei a que deva fazer-lhe promessas. . .
Os olhos negros de Lutz apertaram-se, e sua face tomou uma
expressão de astúcia:
102
— Pelo que vejo, sua teoria depende de poder você, provar
que o vaso foi encontrado sob um monte de destroços que datam
da Invasão persa. A menos que possa garantir isto, toda a teoria
cai por terra, Penso que você não encontrará ninguém que queira
afirmar tal coisa. E se a coisa chegar a um impasse, então todo o
mundo se voltará contra o que dissermos.
— Mas o vaso foi retirado dos destroços persas; você mesmo
o viu hoje de manhã!
— Talvez.
— Mas então você ia. . . mentir?
— Talvez.
— Mas por quê? Eu simplesmente não compreendo!
— Você — disse Lutz suavemente — é que não compreende.
Será que me esqueci de dizer-lhe que paguei pelo vaso com cheque
contra minha própria conta bancária?
— Então você não retirou o dinheiro da verba da escola?
— Não. E como você vê, meu velho, você não me estava com-
preendendo bem. O vaso é meu.
— O que é que você quer dizer?
Lutz enrubesceu um pouco sob a pele morena.
— Não é para o museu da escola. É. . . para minha coleção
particular. Pretendo fazer dele o começo da mais bela coleção par-
ticular dos Estados Unidos. — E estendeu a mão para apanhar a
minha metade.
Mas eu recolhi o fragmento, apertando-o de encontro ao pei-
to.
— Pare com isto, Lutz, e diga-me de uma vez que de cientista
você não tem nada, mas que é simplesmente um gozador. Lembre-
se de que você está aqui em benefício da escola, enviado pela es-
cola. . .
— E com os diabos, como tenho trabalho para ela! — inter-
rompeu êle rudemente. — E continuarei a trabalhar pelos canais
regulares. Mas isto é outra coisa, algo fora do comum. É completa-
mente irregular, e neste caso o único responsável sou eu. Eu ficarei
com este cylix e suportarei as consequências. Agora, queira ter a
bondade de me devolver esse pedaço.
— Isto é que não! — respondi-lhe eu. — Se você pensa que
103
pode me reduzir ao silêncio. . . me calar vendo você tirar proveito,
disso. . . Não, eu vou guardar esta metade do cylix como uma ga-
rantia de que você acabará compreendendo qual a atitude certa e
agindo direito.
Nossa discussão tornou-se acalorada, pois Lutz pagara o
cylix com seu próprio dinheiro e não tocara absolutamente na ver-
ba instituída pela escola. Respondi-lhe então que se êle insistisse
em se apoderar do fragmento em meu poder, eu daria parte às
autoridades gregas que cuidavam para que nenhuma peça de arte
fosse retirada do país sem a sanção do governo grego.
Isto o deteve. Desistiu, e até mesmo tentou chegar a bom
termos comigo. Provavelmente, Lutz apenas retardou o desenlace
da questão até que estivéssemos a salvo, fora da Grécia. Quanto a
mim, eu estava firmemente resolvido a fazer com que minha opi-
nião prevalecesse.
Entrementes, partimos para os Estados Unidos. Tomamos
passagem, como havíamos planejado, num pequeno barco mercan-
te que faria uma viagem em volta de algumas ilhas do Atlântico e
tocaria em certos portos sul-americanos em sua rota para Nova
York. Ainda mantínhamos a trégua. Cada um de nós guardava ava-
ramente a sua metade do cylix e cada um de nós se mantinha
alheado do outro.
Havia um entendimento implícito entre nós de que o ajuste
de contas se faria quando desembarcássemos nos Estados Unidos.
Mas o navio estava fadado a jamais chegar.
Estávamos no meio do Atlântico, a cerca de oitocentas milhas
ao largo das ilhas do Cabo Verde, em rota para a Bahia quando se
deu o choque.
Era de noite, e como soprasse um forte vento, a princípio
pensei que o violento safanão que quase me lançou fora do beliche
era uma vaga particularmente violenta. Então todo o arcabouço
do navio começou a estalar e o ruído do motor cessou de repente,
despertando-me completamente. Segurei-me a beira do beliche.
— Que é isto?
— Não sei — bocejou Lutz, embaixo, saindo de um sono pe-
sado. — É melhor verificar. . . Que aborrecimento. . .
Tateei à procura de uma luz, e nos vestimos quando o navio
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já adernara tanto que era impossível, manter-se alguém em pé.
Não trocamos mais palavra, mas Lutz parou de vestir-se para tirar
debaixo do travesseiro a caixa que continha a sua metade do pre-
cioso cylix. Eu havia segurado a minha metade, colocando-a junto
de mim enquanto terminava de atar os sapatos. Cada um de nós
olhava para o outro com suspeita; e Lutz seguiu-me rapidamente
quando eu, com meu tesouro, subi para o tombadilho do navio.
Segundo parecia, a tripulação enlouquecera, e o capitão tam-
bém havia perdido completamente a cabeça, pois no tombadilho
passamos por ele e o vimos soluçando, incapaz de dizer qualquer
palavra coerente. Os homens lutavam para alcançar os botes sal-
va-vidas, que tentavam baixar ao mar.
— Por aqui não conseguimos nada — resmungou Lutz. — Por
Deus, vamos sair desta confusão!
Seguí-o, avançando contra o vento e as ondas que arrebenta-
vam em cima do tombadilho.
Tropecei sobre um brutamontes que se pusera de joelhos, e
choramingara como uma criança. Dei-lhe um safanão e lhe per-
guntei:
— No que foi que batemos?
— Recifes. O barco está afundando. . . está afundando. Que
o bom Deus, misericordioso, tenha piedade de nós. . .
Lutz encontrava-se agora muito adiante, olhando pela amu-
rada do navio. Coloquei-me bem a seu lado, e segui-lhe o olhar.
Lá abaixo de nós, apertado contra o costado do navio, ba-
lanceava-se um pequeno caíque, que parecia tão frágil como uma
casca de ôvo por sobre aquela imensa massa preta de água que se
elevava. Tinha sido arriado provavelmente no primeiro momento
de confusão e depois abandonado pelos botes salva-vidas mais se-
guros.
— Uma possibilidade — disse Lutz. — Vou arriscar!
Voltou-se para mim, e seu olhar se deteve interrogativamente
no bolso de meu paletó onde se encontrava a metade do vaso.
— Mas não sozinho! — disse eu asperamente. — Correrei o
risco com você.
Ficamos a medir-nos com o olhar. Por todos os lados, em tor-
no de nós, havia o terror da tempestade, estes mesmos vagalhões
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e arrebentamentos e estrondos que estamos vendo agora. Concen-
trando minha atenção sobre Lutz, observando-o, sentia meu cora-
ção encher-se de ódio, lenta mas seguramente, como um jarro que
se enche sob uma corrente dágua... um ódio que ameaçava trans-
bordar — um ódio mortal! Então, naquela noite como a de hoje, a
idéia dé assassiná-lo nasceu em mim. . . Sim, assassiná-lo!
A crise passou. Inesperadamente, Lutz cedeu.
— Pois bem. Continuaremos ainda juntos. . . por algum tem-
po. . .
Uma onda nos envolveu. Erguemo-nos novamente, procuran-
do verificar se o pequeno caíque não havia afundado. Não, lá estava
ele, sobre as ondas, com o bojo miraculosamente para cima.
— Vamos então! — gritou Luiz. — Não há tempo a perder
— disse ainda, tomando dos remos. Conseguimos nos afastar do
costado do navio que afundava, e nos distanciamos rapidamente
levados pelo mar.
O resto está como que borrado em minha lembrança. Recor-
do-me de formas escuras. . . pedaços de destroços flutuantes, e o
círculo branco de um salva-vidas vazio. Não vi o vapor afundar.
Com o romper de uma alvorada sombria, o vento parou, dan-
do lugar a uma chuva contínua, enquanto os vagalhões, pouco a
pouco, foram-se também acalmando e se transformando em ondas
espaçadas que, após as tempestades, continuam às vezes ainda
por muitas horas. . .
De qualquer modo, para encurtar a narrativa, vogamos du-
rante todo aquele dia sem avistarmos sinal de um único navio.
Molhado até os ossos e duro de frio, senti-me contente quando
tomava dos remos enquanto Lutz dormia. Vimos que as provisões
encontradas no caíque consistiam em meio balde de biscoitos, um
lampião sem óleo, algumas cordas e encerados, e só.
Comíamos parcimoniosamente os biscoitos e bebíamos água
da chuva apanhada no balde. Verificamos que nosso barquinho fa-
zia muita água através da emenda das tábuas, na proa, e por isso
juntamos na popa todo o lastro possível, e eu me ocupei em tirar o
mais que podia a água do fundo.
No fim da tarde, quando a situação parecia ainda pior, per-
cebemos um ponto preto no horizonte. Depois, quando a corren-
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teza nos aproximou, o ponto transformou-se numa pilha de ro-
chas escuras, nuas e desabitadas. Conseguimos, com dificuldade,
aproximar-nos do lado abrigado da ilha, e então, numa estreita
enseada, desembarcamos. A massa de rochedos tinha talvez uns
quatrocentos metros de comprimento por uns duzentos de largura.
Os únicos seres que ali viviam eram gaivotas, insetos e aranhas, e
alguns peixes nas águas circunvizinhas.
Estivemos juntos na ilha durante quatro dias.
Durante aqueles quatro dias, meio mortos de fome e desabri-
gados como estávamos, Lutz e eu acalentávamos cada um a sua
metade do cylix e mantínhamos um olhar atento sobre a outra me-
tade. A tensão nervosa criada pela situação tornou-se intolerável.
E, pelo que se seguiu, nem sei o que dizer de mim mesmo. Antes
daquela crise eu nunca havia sido, em toda a minha vida, um ho-
mem perverso.
Você compreende, procurando determinar nossa posição pelo
mapa do navio da melhor maneira que podia recordar, cheguei à
conclusão de que esta rocha solitária era justamente aquela que
Darwín visitara e descrevera em sua investigação de ilhas vulcâni-
cas. Se era realmente a ilha que eu julgava, encontrava-se fora das
rotas oceânicas e por ela raramente passavam navios. As probabi-
lidades de sermos recolhidos, se permanecêssemos na ilha, eram
pequenas.
Não revelei tais conclusões a Lutz. Nem tampouco, depois
de êle ter comido nosso último biscoito, lhe fiz referência à minha
pequena reserva de carne concentrada, que eu então carregava
sempre no bolso para me poupar o incômodo de refeições muito
freqüentes.
Então, na segunda noite, quando Lutz dormia sob a coberta
de um encerado, e eu lutava contra a fome, vi a situação com clare-
za, Lutz seria o primeiro a sucumbir à fraqueza. Eu me aguentaria
por mais tempo do que êle. O barquínho era nossa maior probabi-
lidade de êxito, mas fazendo água como estava, não poderia servir
para dois homens. Mas um só, se se colocasse na popa. . . Havia
pois somente uma possibilidade. E o cylix. . . o cylix inteiro. . . em
meu poder. E o artigo que eu havia de escrever. . .
Cuidadosamente, parti um pedaço da carne concentrada em
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que até aquêle momento eu não tocara.
Talvez eu devesse ter vencido meu ódio e dividido com Lutz
minha magra provisão. . . não sei. Mas na manhã seguinte, deita-
do de barriga para baixo sobre um rochedo, ele conseguiu, com o
canivete atado numa vara, espetar um pequeno peixe. Não dividiu
comigo o produto de sua pesca. Desesperado de fome, devorou o
peixe, cru, e aquela cena me causou náuseas e tornou ainda mais
forte minha resolução.
Invejei a resistência que daquela maneira êle havia arma-
zenado, mas não duvidei do resultado final. Apesar de toda a sua
constituição atlética, Lutz não tinha resistência, acostumado como
estava a uma vida sem dificuldades.
— Entrementes, êle mantinha uma certa aparência de ami-
zade e me tratava de forma cordial. Insistiu em juntar lenha seca
para fazer um fogo no caso de um navio se aproximar, e eu o enco-
rajei naquele esforço; embora não tivéssemos fósforos, êle pensou
que pudesse conseguir produzir uma faísca, e conquanto eu sou-
besse que aquela rocha era branda demais para servir como pedra
de fogo, concordei com ele.
Eu o observava queimar energia e se tornar mais fraco de
hora em hora, e esperei. . . esperei. . .
A idéia de homicídio pairava no ar, entre nós, e uma vez que
tais coisas nascem, não me admiro que um ódio mortal semelhante
ao meu se desenvolvesse na cabeça dele.
Mas não, e embora algumas vezes parecesse que me olhava
de modo estranho, Lutz permaneceu cordial. Êle estava tão resol-
vido quanto eu a conseguir a outra metade do cylix, mas afora isto
continuava meu amigo na sua maneira descuidada, egoísta — tão
amigo quanto havia sido antes. Como meu amigo, Lutz, grosseiro
e inescrupuloso como era, jamais poderia ter imaginado o que me
passava pela cabeça. Foi esse o meu grande pecado; o crime que
me faz duplamente amaldiçoado: era meu amigo que eu atraíçoava,
um homem ligado a mim pela amizade.
Quando, no quarto dia, cessou a chuva, um quente sol tro-
pical apareceu secando as poças dágua nas rochas, que forneciam
a nossa água. Senti que estava enfraquecendo. O calor naquelas
rochas nuas é pior do que a chuva fria. Comecei a ter febre. Não po-
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deria esperar mais tempo. Enquanto meu companheiro mergulha-
va numa espécie de modôrra, reuni umas poucas coisas dentro do
caíque, guardei o meu fragmento do cylix numa reentrância oculta
na proa, e então me dirigi cuidadosamente para Lutz.
Fui tomado de uma tontura. . . mas continuei. Havia en-
saiado aquilo cinqüenta vezes, compreende, de modo que conhecia
já todos os movimentos que havia de fazer; e embora minha lem-
brança dos acontecimentos propriamente ditos não seja clara, devo
ter realizado o que eu planejara. É possível que quando eu estava
afastando o caíque, o despertasse, pois tenho, uma vaga lembrança
de uma luta.
E quando voltei a mim, sozinho no caíque, num calmo mar
azul, senti dor na garganta e mais tarde encontraria ali marcas de
dedos, que perduraram por vários dias. Talvez eu o tenha realmen-
te matado, e deixado naquele amontoado de rochas... não posso
lembrar-me. Mas quer eu o tenha matado com minhas próprias
mãos ou não, não tem importância; não há dúvida que eu o matei
ao abandoná-lo lá naquela ilha esquecida e reservando-me a única
possibilidade de salvamento. Eu era assassino por intenção e por
frio cálculo, assassino de meu amigo e colega!”
— E o que aconteceu com o senhor? — perguntei eu ao velho
Twining o funileiro.
— Fui apanhado vários dias depois, num estado de semi-
consciência, por um pequeno vapor de passageiros, exatamente
como eu havia previsto. Na longa viagem para os Estados Unidos,
vivi como em pesadelos. Senti-me impelido a confessar a verdade
ao capitão e suplicar-lhe que voltasse para apanhar Lutz, mas sa-
bia que já agora era demasiado tarde. Sofri sozinho, como merecia
ter sofrido.
“Havia noites em que eu sentia meus dedos afundarem-se
na carne de sua garganta; outras em que eu olhava para minhas
próprias mãos e não podia crer no que acontecera. Quanto à minha
metade do cylix. . . Já lhe disse que não consegui apoderar-me da
metade pertencente a Lutz, apesar de toda minha determinação,
pois somente este fragmento foi encontrado no caíque, escondido
embaixo da proa, onde eu o colocara? Este pedaço, embora em mi-
nha reação eu o odeie, sempre o mantenho diante de mim como a
109
lembrança, como as cinzas do meu pecado.
O vapor deixou-me em Boston, e eu vim para aqui: Como o
Agrícola afundara com todos que se encontravam a bordo, para o
resto do mundo eu era considerado morto. E isto era justo, como
castigo por ter assassinado meu amigo por um pedaço de cerâmi-
ca. Eu era inato para a sociedade humana. A pena para meu crime
seguiu-se como uma seqüência natural: ser jogado fora do mundo
e do trabalho que eu amava; não mais ler qualquer livro nem pôr
mais os olhos em qualquer revista que tratasse do assunto que me
interessava; em resumo, eu devia renunciar àquilo que era mais
vital para mim. Isso seria para mim a prisão, uma prisão pior do
que a que muitos criminosos já conheceram.
Encontrei esta casa afastada, entrei em contato com meu ad-
vogado, e, tendo obtido dele o compromisso de manter segredo,
consegui que minha pequena renda anual fosse paga regularmente
a uma pessoa com o nome de T. Twining neste endereço.
Assim me instalei aqui, suplementando minha renda por
meio desta pintura. Embora eu próprio tenha fixado os termos de
minha prisão, tenho vivido sempre de acordo com eles. Ao todo,
durante estes quarenta anos, jamais me permiti quaisquer inves-
tigações e nunca ouvi notícias de ninguém que conheci nos velhos
tempos. Virtualmente, eu me enterrei vivo.
Sim, o senhor está pensando que foi um erro de minha parte
eu enterrar aqui, também, a metade deste valioso cylix, pois, embo-
ra seja apenas um fragmento, teria sido suficiente para provar um
fato histórico. Talvez eu estivesse errado. Mas, não compreende o
senhor, que eu não poderia afirmar nada sem revelar minha identi-
dade e dar minha palavra de cientista de que o cylix foi retirado dos
destroços da invasão persa? Este caminho era perigoso. . . havia
o perigo de deixar-me conduzir para os velhos tempos. E também,
haveria nesse caminho honra para mim, para mim que não mereço
senão desprezo.
E, sempre, no fundo do quadro, havia a história de Lorna.
Não, as tentações eram muitas; não poderia correr o risco de en-
frentá-las. Mas leguei minha descoberta à humanidade; deixei uma
confissão escrita e uma declaração. Diga-me — o senhor veio re-
centemente do mundo — não acha que seria demasiado tarde, de-
110
pois de minha morte?
Embora eu tivesse alguma vaga idéia das grandes descober-
tas feitas no terreno das pesquisas clássicas nos últimos anos, as-
segurei ao velho Twining que talvez não fosse tarde demais.
— E desta forma — concluiu êle sua história — o senhor tem
diante de si um assassino! Qual seria, pois, o seu veridicto?
—- Mas como pode o senhor ter certeza? — redargüi eu. —
Se o senhor não se recorda mais dos detalhes a respeito do cylix,
o senhor também deve ter esquecido outros pontos. Além disso, as
probabilidades de salvamento de Lutz na ilha eram tão boas quan-
to as do senhor num caíque fazendo água. Quem poderia dizer?
O velho Twining meneou simplesmente a cabeça.
O vento voltou a aumentar de intensidade, e o velho deixou
cair a cabeça nas mãos. Eu o vi, naquela noite, sofrer as torturas
de um espírito eternamente condenado por uma consciência extra-
ordinariamente sensível.
Passada a tempestade, voltou o velho a ser o mesmo dono da
casa hospitaleiro quando se despediu de mim na manhã seguinte.
Saí com o sentimento de que estivera na presença do homem mais
polido que jamais encontrara; de que sua história da noite anterior
era absolutamente incongruente para um homem como êle. Acre-
ditei haver em sua história algum fator cujo alcance eu não pudera
apreender, e prometi a mim mesmo tornar a visitá-lo.
Mas o tempo foi passando. Estive no estrangeiro, na Inglater-
ra e na França. Então, dois anos depois, outra vez em Nova York,
achei o elo que estava faltando na história do velho erudito.
Era inevitável, suponho, que, como comprador da Casa de
Harrow, eu viesse topar, mais cedo ou mais tarde, com Max Bauer.
Durante um leilão particular apresentei despreocupadamente uma
oferta contra a daquele rico colecionador, e com bom humor perdi
para êle. Conversamos, e quando insistiu comigo para que jantasse
em sua companhia naquela noite e visse seus tesouros, acedi.
Não sei por que aceitei seu convite, pois não simpatizei com
êle; mas estava um tanto curioso a respeito de sua coleção, e sozi-
nho na cidade, em pleno verão, de sorte que aceitaria de bom grado
qualquer distração.
Foi assim, pois, que êle me fêz jantar bem, e especialmente
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beber muito bem, até à saciedade, na ornada sala de jantar de seu
luxuoso apartamento.
Terminada a refeição, tendo sempre a seu lado a garrafa de
licor, levou-me através de salas literalmente cheias de quinquilha-
rias orientais. Blasonando, contou a história de uma ou outra das
peças de sua coleção, como havia roubado um homem ali, como
enganara outro acolá. Sua voz tornava-se mais grave à medida que
seu entusiasmo aumentava, e eu me sentia completamente a con-
tragosto, pensando em como podia pôr fim àquela visita, e retirar-
me.
Evidentemente o homem trazia ali poucos amigos em situa-
ção de apreciar os seus tesouros de arte, e por sob minha aprova-
ção superficial, êle se tornou cada vez mais parlador, até finalmen-
te convidar-me a ver sua mais apreciada relíquia, a pequena sala
onde guardava as peças mais preciosas de sua coleção,
Detivemo-nos diante de uma aquarela que representava uma
esguía jovem, em cinzento.
— Minha espôsa — disse o velho Bauer com um galanteio. —
É o seu retrato mais recente.
Voltei-me incrédulo, desviando o olhar daquele rosto muito
pálido, onde pairava um sorriso fino e sutil, meio irônico, meio fati-
gado, e fitando a cara grande de meu anfitrião. . . Dei de ombros.
— Bela mulher — murmurou êle. — O quadro não lhe faz
justiça. O rosto é assim, assim, mas o corpo, . . um corpo digno de
ser pintado por um artista.
Desviei dele os olhos e segui o olhar cinzento da jovem até
o objeto junto a ela e para o qual ela sorria ironicamente: era um
vaso grego com figuras vermelhas.
Então, algo que me era conhecido naquele vaso chamou-me
a atenção... como o modelo partido de um sonho já esquecera. Era
o fragmento de um vaso, a metade de um cylix, no qual havia uma
deusa, pintado em alaranjado, tendo na mão uma lança em riste.
— Ah! -— exclamei eu — a Atenas. . . Eufrónio!
— Então você entende disso, hein? — tartamudeou o velho
Bauer, — Não são muitos os que entendem. Coisa clássica. Eu tive
outrora a intenção de colecionar obras de arte puramente gregas,
mas desisti. Não que eu não tivesse conseguido, se não mudasse
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de idéia, compreende, porque eu em geral consigo o que pretendo,
arranjando as coisas como convém. Este aqui — disse êle, levan-
tando os supercílios em direção ao vaso — foi meu único fracasso.
Mas êle tem uma história — serviu-se de mais um uísque. — Quer
escutá-la?
Olhei-o com atenção: os dedos rechonchudos, os lábios
cheios, sensuais, a pele morena. Como era mesmo aquele nome?
Sim, Lutz, era isto!
Decididamente, eu gostaria de ouvir aquela história!
— Meu único fracasso — acentuou êle, recostando-se numa
poltrona. — Mas a culpa também não foi minha. Foi de um pobre
diabo, um maluco. Agarrou-se a mim, representando um papel pa-
ternal, e eu o tolerei como se tolera a tal gente. Mas me aproveitei
bastante dele, pois naquela época eu era apaixonado pelos clássi-
cos, e êle sabia alguma coisa do assunto. Alem disso, andava caído
por Lorna, e ninguém poderia saber o que isto significava... Há gen-
te de gosto engraçado! Mas é melhor contar a história falando do tal
sujeito. Nós viajávamos juntos sob o patrocínio da Universidade...
Você nem poderia imaginar que eu já fui professor universitário,
hein? Pois eu topei com o tal vaso por pura sorte, e um Eufrônio
autêntico, partido ao meio, mas completo. Eu queria consegui-lo,
e consegui. Mas o tal sujeito — o Bonzinho — achava que o vaso
devia ser entregue ao museu da Universidade. Meteu-se também
na cachola de querer provar um certo ponto histórico. . . Era um
sujeito esquisito, pedante, sabe como é? Foi um caro custo. Eu não
tinha intenção de tornar público então a descoberta do meu Eufrô-
nio. Mas o sujeito se tinha metido na cachola que havia de escrever
algo a respeito. . . E você nem imagina como o homenzinho estava
resolvido! E como eu não podia causar uma discussão em Atenas,
onde estávamos, tive de tapeá-lo.
“Mas logo que saímos da Grécia . . . Bom, a verdade é que o
navio em que viajávamos nunca terminou sua viagem. Foi ao fun-
do! — e Bauer fêz floreio com o copo que tinha na mão. — Bem, pois
fomos dar numa ilha deserta. Ficamos dependurados numa rocha
no meio do oceano, nós dois, e o Bonzinho sempre agarrado com
uma das metades do vaso, enquanto eu ninava a outra metade.
Nunca passei dias menos confortáveis em tôda minha vida.”
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Bauer tomou da garrafa e despejou mais uísque no copo.
— Pobre idiota. . . — continuou Bauer. — Você pensa que ele
se dava conta para onde me estava levando? Não, êle não era capaz
disso. Eu tinha alguns fósforos no bolso, escondidos, compreende?
E fiz uma pilha de lenha para fazer sinal ao primeiro navio que
passasse. Mas eu não tinha intenção de salvar também a êle. Não,
o que eu pensava era fazer com que êle saísse à deriva, no caíque.
“E era fácil, pois o homem já estava mais fraco que um gato,
compreende? Chegava a estar cinzento.,, e afinal de contas êle não
era nenhum fortão. Eu preferia correr o risco de ficar na ilha com
um monte de lenha seca para fazer uma fogueira, e ficar com as
duas partes do vaso. ..
— Assassinato? — contíuou Bauer, rindo. — É uma palavra
feia, náo é? — perseguiu com o dedo trêmulo uma mosca ferida que
se arrastava por suas calças. — Ora! a gente vê um sujeito matar
por ódio, outro por amor. . . sempre bons e nobres motivos. Mas
um verdadeiro colecionador mata por causa de um vaso. Matar é
natural. . . é a coisa mais fácil do mundo. . . quando a gente tem
pressa. E eu tinha pressa, compreende? Havía um barco passando,
porque vi a fumaça. Meti o sujeito no caíque, mas foi preciso lutar;
êle ainda tinha um resto de vida, embora o sol já o tivesse abatido
bastante. Naquele caíque furado. . . ah! êle não tinha muita pro-
babilidade de escapar, sem dúvida. Empurrei-o suavemente, sim,
com toda a gentileza. . . assim — e Bauer mostrou como fizera,
esmagando a mosca entre o polegar e o indicador — assim, até
que deixou de respirar. Procurei então a outra metade do vaso, e
não pude encontrá-la. Mas o fumo se aproximava, e eu não podia
esperar. Talvez ela ainda esteja lá, escondida nos rochedos. Então
empurrei, o barquinho, e a maré arrastou-o, afastando-o do navio
que passava...
“Corri e meti fogo nos meus gravetos que fizeram uma foguei-
ra dos diabos. Ao mesmo tempo procurava por toda a parte a meta-
de do vaso que estava faltando. . . procurei por todas as fendas das
pedras, e nada. O caíque já aparecia apenas como um pontinho, e
eu nada encontrara. Todo meu trabalho fora inútil! Você compre-
ende, eu tinha matado um homem... e afinal de contas, para quê?
Bem, mas que fosse para o inferno; afinal, não valia muito. . .
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Mas como? O senhor ainda não vai embora. . . Pois esse foi
meu único fracasso. . . Quanto ao resto, consegui tudo: Lorna e
esta coleção aqui. . . tudo! Só aquela metade do vaso quebrado é
que não. Pena, não é?
Eu saí daquela casa deixando Bauer a acariciar sua metade
do cylix da mesma forma como o velho Twining o funileiro havia
acariciado a sua com o olhar. Mas, antes de sair, meus olhos caí-
ram novamente sobre o retrato da esposa de Bauer, e lembrei-me
das palavras do outro homem a respeito dela: “Tinha um belo es-
pírito, e nos olhos cinzentos um brilho que era como o verso ines-
quecível dc um poema”.
— Amor carnal e amor espiritual — murmurei eu.
Bauer foi procurar-me na manhã seguinte.
— Que foi que lhe contei ontem de noite? — perguntou-me.
Relatei-lhe brevemente.
— Ficção! — disse êle, sacudido por um riso contrafeito. —
Bem, mas tenho de ir andando. — Poderá. . . esquecer-se disso?
Apressei-me em tranquilizá-lo.
— Sim — concordei. — Esquecerei. . . mas com uma condi-
ção: que o senhor vá comigo até o Cabo. . . para ajudar-me a ajui-
zar o valor de uma obra antiga, e me dar seu conselho honesto de
entendido. . . sem despesas.
Êle consentiu imediatamente, pois despertara em si a vaida-
de do conhecedor.
Foi assim que nos dirigimos para o Cabo naquela clara ma-
nhã azul, depois da chuva.
Na aldeia fiz investigações a respeito do velho Twining o fu-
nilero, e preparei-me para o que havia de encontrar. Chegara a
tempo, disse-me uma mulher; ela estava preocupada com o ancião,
embora este não permitisse a ninguém permanecer na casa para
cuidar dele.
Tomamos pelo caminho que ia dar à praia, e eu mantive
Bauer alheado do assunto, respondendo vagamente às suas per-
guntas. Era um dia diferente daquele em que eu pela primeira vez
trilhara aquele caminho; uma manhã estranha.
O encontro fora planejado unicamente para favorecer o velho
estudioso, embora, ao ajudar Twining a limpar sua consciência,
115
eu também limpava a consciência de Bauer, o que aliás não podia
evitar. Mas Bauer, eu assegurava a mim mesmo, não tinha cons-
ciência. De qualquer modo aquilo não teria qualquer importância
para êle.
Mesmo assim, era uma situação sem paralelo, pensava eu:
dois homens, ambos vivos, cada qual acreditando haver assassina-
do o outro. E colocar estes dois homens, frente a frente. . .
Mas a vida é poucas vezes tão espetacular como julgamos.
Meus prognósticos falharam.
Além de uma faixa de grama que orlava a praia, que se torna-
ra prateada sob o luar, e mais adiante, erguendo-se precariamente
sobre o areal, encontrava-se a mesma casinhola cinzenta e rústica.
A porta estava entreaberta, e a banqueta de trabalho, deserta. En-
contramos o velho num quarto do lado do mar, deitado numa cama
de nogueira preta coberta por uma colcha de retalhos.
Êle estava recostado nos travesseiros, e o rosto cansado for-
mava como que uma silhueta, tendo por fundo o oceano, naquele
dia de uma côr azul, tingida de manchas pálidas, tirando a prate-
ado sob o sol. O velho erudito delirava, com o espírito errando em
torno daquele seu antigo pecado; continuava penando pelo crime
de um homicídio imaginário.
— Meu amigo — murmurou êle — o homem estava ligado a
mim pela amizade. . . aquilo era a morte certa. . .
— Escute! — disse-lhe eu. — Este aqui é Max Bauer, o ho-
mem que o senhor pensa haver matado! O senhor não o matou,
apenas pensa que matou. Êle está aqui, bem vivo!
Mas o velho não compreendia. Repetiu apenas o nome “Max
Bauer”, e voltou-se para o outro lado, com um longo estremeci-
mento.
Então Bauer tagarelava ao meu ouvido:
— O Bonzinho!. . . O velho Bonzinho em pessoa!
— Era assim que o senhor o chamava. . . ao homem que o
senhor matou. Agora nada mais adianta, nada mais. Êle ainda está
sob a ilusão. . . Jamais poderemos fazer com que compreenda o
que aconteceu realmente.
— Mas como?. . .
Voltei-me, impaciente, ante a insistência de Bauer, e dei-lhe
116
rapidamente os elementos que faltavam para que êle entendesse
tudo.
Bauer sentou-se.
— Então êle tentou matar-me! O velho. . . coitado! — e pouco
depois, continuou: — Por Deus! Mas é uma sombra do que foi!
Olhei para Bauer, sentado ali, corpulento e pesadão.
— Sim — repliquei. — Uma sombra.
Mas os olhos de Bauer já se haviam desviado de Twining e
fixado uma coisa que se encontrava sobre a colcha, e que a princí-
pio êle não vira, confundida com a côr dos retalhos, uma coisa de
tonalidades alaranjadas e negras.
— Mas como! É a metade que estava faltando! — exclamou
êle, e agora havia realmente emoção em sua voz.
Eu me encontrava entre Bauer e o objeto, guardando o tesou-
ro de Twining. E mais uma vez tentei fazer com que o velho Twining
recobrasse a memória.
— Aqui está Max Bauer — insisti.
Devo ter conseguido o que desejava, porque quando Bauer se
aproximou e quando eu segurei a metade do vaso, o velho fitou o
rosto moreno e sensual do outro com uma expressão que revelava
recordar-se de algo. Deve ter de certo modo compreendido a situ-
ação.
— Sim. . . — murmurou o velho. — Que fique com ela.
Tomou o fragmento de minha mão, segurou-o carinhosamen-
te durante um momento em suas velhas mãos fracas e belas, e
então colocou-o nas mãos grossas de Max Bauer. Este acertou avi-
damente o objeto.
— Matei-o! — tartamudeou Twining.
— Matou-me coisa nenhuma! — disse Bauer, rindo, pois ago-
ra, de posse do vaso, podia dar-se ao luxo de ser generoso. — Está
tudo bem, meu velho; estamos quites.
Mas Twining tateava, procurando um pedaço de papel.
— Aqui está! — exclamou. — Diga-lhes como foi que. . . sim...
a pintura antes da escultura. . .
— Mas por Júpiter! Há quarenta anos que o mundo sabe
disso! — explodiu Bauer, olhando cuidadosamente a declaração
escrita. — Ora, pois encontraram fragmentos de outros Eufrônios
117
naquele mesmo monte de destroços da invasão persa. Já provaram
exatamente a mesma coisa, e Deus sabe quantas coisas mais. Fo-
ram apenas fragmentos, compreende você, nada tão perfeito como
este cylix.
Bauer deixou o papel cair-lhe das mãos, e eu rapidamente
apanhei a confissão escrita de Twining, e mais tarde atirei-a na
lareira. O velho tornou a cair no miserável estado em que antes se
encontrava, sem que parecesse recordar-se do episódio.
Bauer saiu pouco depois.
— Foi um bom dia para mim, Van Nuys, e eu o devo exclu-
sivamente ao senhor. Meus agradecimentos — disse, cortêsmente,
da porta.
Sopitei minha aversão que lhe sentia. E assim, triunfan-
te e sem preocupações, partiu para a cidade Max Bauer, a quem
somente circunstâncias fora de seu controle haviam salvado de ser
realmente assassinado. Iria agora acrescentar aos seus vários te-
souros o vaso do velho Twining.
Eu permaneci ao lado do velho erudito, cujos instintos todos
o teriam empedido realmente de cometer o homicídio que havia
planejado, e fiquei a observar-lhe a agonia, vendo-o sofrer até o
último momento seu pecado imaginário.
E minha esperança é que Deus, no ajuste final de contas,
leve em consideração a sensibilidade dos espíritos que Êle há de
julgar, e determine, assim, a cada um o castigo que merece.

118
O leitor não precisa tremer. O conto premiado, de Lord Dun-
sany, “O Homem Mais Perigoso do. Mundo”, embora tenha como
personagens o detetive Linley e o homem mais perigoso do mundo,
não é o tipo da história que o leitor deva evitar quando se encontre
sozinho. Não se trata de uma única mulher, ou de um único homem,
em perigo. Não acenda todas as luzes, ou feche todas as portas.
Não olhe para baixo da cama, nem chame a polícia. Não, este é um
conto completamente diferente. É simplesmente uma história em que
milhares de seres humanos estão em jôgo — centenas de milhares,
se não toda a raça humana. . .

O HOMEM MAIS PERIGOSO DO MUNDO

Lord Dunsany

JÁ DECORREU algum tempo, desde que escrevi sobre Mr.


Linley, e não acredito que alguém se recorde do nome de Smithers.
É este o meu nome. Mas todo o mundo conhece Num-numo, o pi-
ckles para carnes e aperitivos. E eu o coloco. Quer dizer: viajo e
tomo pedidos para a fábrica, ou, melhor, costumava fazê-lo, antes
da guerra transtornar tudo. Alguns devem lembrar-se da história
que escrevi a respeito dele, a respeito de Num-numo, quero dizer,
pois Mr. Linley apareceu nela e êle é um homem que a gente não
esquece com tanta facilidade; mas, se isso sucedeu, você talvez não
esqueceu Steeger e o que aconteceu a Unge. Foi uma coisa horrível.
Narrei tais fatos no meu conto intitulado Dois Frascos de Pickles.
Mais tarde Steeger surgiu de novo: foi quando alvejou o comissário

119
Slugger. Pois ninguém pôde prendê-lo por nenhum dos dois casos.
Fato curioso, realmente. A polícia sabia perfeitamente que êle ha-
via cometido ambos os crimes, e Linley viera e lhes contara de que
maneira. Apesar disso, não o podiam prender. Bem, a polícia podia
prendê-lo sempre que quisesse, mas o que eu quero dizer é que
houve um veredicto de “Não Culpado”, e a polícia mostrava-se mais
assustada com isso do que um criminoso com um veredicto con-
trário. Assim, Steeger permanecia solto. E sobreveiu, então, o caso
de um homem que cometeu três crimes, e Linley prestou, de novo,
sua colaboração às autoridades. Prenderam o homem. Deflagrou,
em seguida, a guerra, e o crime passou a ser considerado uma
coisa insignificante, e ninguém mais ouviu falar de Steeger por um
longo espaço de tempo. Mr. Linley foi nomeado para uma comissão,
e quando descobriram sua capacidade, êle foi para o Ministério
da Guerra, e eu fui ser o que nunca imaginara antes, ou seja, um
soldado raso. Não se ouviu mais falar de Num-numo, exceto através
das pequenas lamentações dos anunciantes, quando se referiam
aos velhos bons tempos. Sim, fui convocado no verão de 1940, e fui
estagiar num quartel próximo a Londres. Muitas vezes permanecia
desperto, à noite, sob meus cobertores cinza, pensando nas bata-
lhas que a Inglaterra já travara, em coisas que ouvira na escola, e
nas coisas que os instrutores nos ensinavam, e procurando figurar
como se pareceriam as batalhas de outrora e como é que soavam.
Enquanto isso, uma batalha era travada sobre a caserna. Cheguei
à conclusão de que essas velhas batalhas deveriam ser extraordi-
nariamente calmas comparadas com aquelas noites. Mas não te-
nho muita certeza.
Bem, aquela batalha terminou decorrido um ano. Nós a ven-
cemos; nossos pilotos, quero dizer. Não tínhamos, então, tempo a
perder. Foi uma época difícil. Não penso que os alemães estejam
se comportando agora como então. Ultimamente eles têm fetio be-
las manifestações no sentido de que sejam preservados os bens
da cultura e da civilização. Não era assim, porém, que eles com-
preendiam o problema, naqueles dias, em que costumavam falar
na eliminação de nossas cidades. Mas não vou escrever sobre a
guerra: talvez alguém se abalance a isso daqui a cem anos, e que,
começando em 1914, omita os anos que vão de 1919 a 1939, e
120
prossiga até que ela cesse. Desta guerra pode surgir uma história
muito interessante. Vou escrever de novo sobre Mr. Linley. Isso me
faz voltar ao ano de 1943. Eu estava de folga, e tinha conseguido
carona num caminhão que se dirigia para Londres. Lá chegando,
a primeira coisa que fiz foi dar uma volta até Lancaster Street para
olhar os velhos edifícios. Queria olhá-lo simplesmente para con-
vencer-me de que não vivera sempre num quarto de caserna. Ora,
os velhos edifícios tinham desaparecido. Havia apenas uma quadra
de capim e macegas floridas. E havia quantidade de cardo-morto.
De um certo modo gostei do espetáculo, se bem que não fora isso
que eu viera ver. Os edifícios — lembro-o agora — eram um tanto
sujos e sombrios e tinham o nome de Clarence Gardens. Estavam
agora transformados realmente em jardins; ali surgira o sol, pelo
menos, e algumas variedades de flores. Presumo que não há nin-
guém em Londres que de vez em quando não suspire pelo campo,
e ali havia uma boa porção de campo, absolutamente silvestre. Fi-
quei satisfeito, por um momento, de ver aquela quantidade de sol e
de vegetação no meio de milhas de calçamento, até que pensei em
todo o morticínio que se fizera necessário para que crescesse aque-
les cardos. Olhei então para o ar para ver se conseguia localizar o
ponto exato em que existira o nosso apartamento, pois me pareceu
estranho pensar que eu já andara caminhando naquele espaço, e
que estivera sentado e ouvindo Mr. Linley num determinado ponto
do céu azul. Quando levantei meus olhos da vegetação, observei
que um oficial, que se achava próximo, me observava atentamen-
te. Perfilei-me e fiz-lhe a saudação regulamentar, ao que o oficial
replicou:
— Mas então é você, Smithers!
— Não pode ser Mr. Linley! — exclamei eu, pois êle parecia
tão diferente de uniforme.
— Sim, sou eu mesmo — respondeu êle. — Apertamos as
mãos. E, num instante, estávamos a falar do velho apartamento.
De repente êle me surpreendeu com esta declaração:
— Você é justamente o homem de quem precisamos.
Ora, eu já tinha desempenhado toda espécie de tarefas desde
que me haviam feito soldado, toda espécie de tarefas, mas nunca
ninguém me dissera aquilo. E aqui estava Mr. Linley me fazendo
121
aquela declaração, bem como se fosse verdade.
— Mas para quê? — indaguei.
— Dir-lhe-ei — respondeu êle. — É que aquele Steeger está
agindo de novo.
— Steeger — exclamei. — O homem que comprou dois fras-
cos de Num-numo?
— É esse o homem — disse Linley.
— Em que é que êle anda metido agora? — perguntei. — Nas
suas velhas trapaças?
— Em coisas piores.
— Piores! Mas em que, caramba, se o homem já é um assas-
sino?
— Êle apenas matou duas pessoas, é pelo menos o que sa-
bemos. Êle era apenas um assassino a varejo. Mas agora é um
espião.
— Ah, percebo. Meteu-se agora no negócio por atacado.
— Sim, e precisamos que você nos ajude a vigiá-lo.
— Teria prazer em prestar-lhes o auxílio que pudesse. Onde
é que êle se encontra?
— Oh, êle está aqui, está em Londres.
— Mas então por que não o prendem? — perguntei.
— Esta é a última coisa que devemos fazer — replicou Linley.
— Isso serviria para prevenir vários outros.
— O que foi que êle fêz desta vez? — inquiri.
— Ora — respondeu Linley — descobriu-se outro dia que êle
recebeu recentemente mil libras. Somerset House é quem infor-
ma.
—- Terá ele assassinado outra pequena e roubado o dinhei-
ro?
— Não, a coisa não foi feita com tanta facilidade — esclareceu
Línlley. — Êle encontrou a pobre Nancy Elth com as suas duzen-
tas libras, mas êle não pode encontrar uma pequena com dinheiro
todos os dias,
— Então de onde é que vieram as mil libras? — perguntei.
— Foi o dinheiro mais fácil do mundo -— declarou Linley.
— Espionando?
— Exatamente. É o mais bem remunerado de todos os negó-
122
cios escusos que existem no mundo. Especialmente no princípio:
são capazes de pagar qualquer coisa para terem um homem nas
garras, se êle lhes puder ser de qualquer utilidade. E Steeger pode-
ria prestar ótimos serviços. Êle é realmente um criminoso hábil, e
poderia ser um ótimo espião.
— E onde é que êle está? — perguntei de novo.
— Nós o localizamos — explicou Linley. — Aliás, nunca houve
muita dificuldade em se encontrar Steeger. A dificuldade sempre
esteve em provar-se que êle fêz alguma coisa. Sim, aí é que está o
problema, como diria Hamlet.
— E que coisa êle terá mandado dizer? — perguntei.
— Nada, por enquanto — informou Linley. — Eis porque de-
sejamos que você nos ajude a vigiá-lo. Mil libras é um bom paga-
mento, e deve ser por boa informação. E naturalmente o dinheiro
foi entregue por algum alemão que reside neste país, ou por algum
quisling ou qualquer outra peste deste tipo. Mas ainda não conse-
guiram levar a informação para fora do país.
— Como é que sabe? — indaguei,
— Porque há apenas uma coisa pela qual os alemães paga-
riam tanto — explicou Linley — e nós sabemos que eles ainda não
a sabem.
— De que se trata, posso saber?
— Onde será aberta a segunda frente — informou-me Linley.
— Presumimos que êle tenha descoberto a coisa e que outro espião
lhe tenha feito um pagamento antecipado. A informação valerá um
milhão se êle puder transmiti-la para a Alemanha. Cem milhões
seria atribuir-lhe um preço baixo, mas eles provavelmente iriam
pagar cinqüenta mil libras por ela. De qualquer maneira, sabemos
que eles ainda não têm a informação, e as mil libras constituem um
simples sinal. Mas o conhecimento torna Steeger o homem mais
perigoso do mundo.
— Mas de que modo pôde êle descobri-lo? — perguntei.
— Ainda não sabemos — foi a resposta de Linley.
— Compreendo — disse eu. — Vocês precisam então que êle
seja vigiado a fim de que não abandone o país?
— Oh, êle não pode sair — esclareceu Linley. — O que preci-
samos evitar é que êle transmita as informações.
123
— Como tentaria êle fazê-lo? — perguntei.
— Pelo telégrafo sem fio, provavelmente.
— Mas de que modo?
— Bem, nós conseguimos localizar todas as estações trans-
missoras — informou Linley — que operaram desde que a guerra
irrompeu; mas pode muito bem haver ainda, algumas ocultas, em
silêncio, esperando para a transmissão de grandes notícias como
esta. E penso que localizamos todos os pombos correios, embora
possa haver ainda um ou dois de que não tenhamos conhecimento.
Mas é mais fácil esconder um telégrafo sem fio do que um pombo,
porque você não precisa alimentá-lo.
-— E você deseja que eu o vigie?
— Apenas de vez em quando — respondeu Linley. — Êle está
em Londres, e sabemos mais a respeito de todas as casas aqui do
que você pode imaginar. Realmente não temos medo de que êle
faça qualquer transmissão de Londres, mas não podemos respon-
der pelo campo aberto, de modo que êle precisa ser vigiado para
onde quer que se movimente.
— E quanto ao outro homem, o espião que o estipendiou?
— Êle está muito por baixo — explicou Linley — e não pude-
mos ainda identificá-lo. Mas é apenas porque êle anda por baixo.
Se êle se metesse por aí a fazer coisas com um aparelho transmis-
sor, nós já o teríamos identificado. Eis porque achamos que êle não
tentará desempenhar essa missão, mas a confiará a Steeger. Afinal
de contas, Steeger é um sujeito espertíssimo, e não é qualquer um
que depois de cometer dois crimes pode andar à solta pela Inglater-
ra, Escócia e Irlanda do Norte.
— Gostaria de controlá-lo —- observei eu — se acha que po-
derei fazer alguma coisa.
Mas falei de um modo um tanto hesitante, porque, embora
Mr. Linley fosse tão amável a ponto de me oferecer tal tarefa, eu
estava começando a perceber que ela era muito importante — man-
ter em silêncio o homem mais perigoso do mundo — e, para falar a
verdade, eu não era o homem próprio para receber uma tarefa tão
melindrosa como aquela. Talvez pudesse se tivesse recebido melhor
formação, e tivesse tido oporunidade de manejar grandes negócios
desde cedo. A realidade é que passei toda minha vida, até então,
124
vendendo Num-numo e nunca tive nada maior, em matéria de ne-
gócio. De um riiodo ou de outro parecia que eu tinha me diminuído
para ficar do tamanho de minha função; ou talvez a função tivesse
somente o meu tamanho, e fora essa a razão porque ma deram,
e nunca me ofereceram outra de maior significação. E agora aqui
estava Mr. Línley a me oferecer uma incumbência que poderia
não parecer muito importante se eu a executasse bem, mas que, se
me houvesse com infelicidade e permitisse que o homem transmi-
tisse suas notícias sobre onde seria aberto a segunda frente, isso
podia custar a vida de centenas de milhares de criaturas. Foi por
isso que frisei “se o senhor pensa que posso fazê-lo”, e pelo modo
que enunciei a restrição eu mostrava a Mr. Linley que não poderia:
pareceu-me que era uma maneira decente de colocar a questão.
Mas Linley retorquiu: “Não há dúvida, você é o homem indicado
para a tarefa.”
— Farei tudo que estiver a meu alcance. Deverei andar far-
dado?
— Não — respondeu Linley. — Esse é o ponto. Não quere-
mos dar a impressão de que o exército o está controlando. Ou que
quem quer que seja o está observando por tal motivo. Mas de um
modo ou de outro, embora você represente o perfeito soldado, nes-
sa farda, à paisana você há de dar-lhe justamente a impressão que
desejamos.
Claro que eu não tinha absolutamente nada de “perfeito sol-
dado”, mesmo de uniforme, nem o queria, aliás. Foi bondade dele
dizer aquilo, mas percebi logo sua intenção.
— Muito bem — disse eu. — Recuarei alguns anos, colocan-
do-me nos dias de Num-numo e me acomodarei perto dele, e terei o
cuidado para não parecer muito “militar”.
— Bem — informou Linley -— devo dizer-lhe mais uma coisa.
Não precisamos de você agora. Nós o temos sob rigoroso controle.
Mas se éle se aproximar de um ponto de transmissão, vamos pre-
cisar de alguém extra para vigiá-lo. Êle então terá de ser observado
muito de perto. Êle poderia fazer a coisa em cinco minutos, e po-
deria muito bem destruir toda a Europa. Quer dizer, as partes que
ainda não estão destruídas.
Estes fatos, posso dizê-lo, passaram-se em fins de junho de
125
1943, quando todos os planos para a invasão da Europa estavam
prontos, e os alemães estavam ainda fazendo conjeturas. E en-
quanto procuravam adivinhar tinham de reforçar uma frente, de
cinco ou dez mil milhas. Uma palavra de Steeger, se êle tivesse des-
coberto a verdade, a reduziria a uma centena de milhas, e poupar-
lhes-ia uma porção de aborrecimentos. Tal era a situação quando
me despedi de Linley naquele dia estival, depois de um belíssimo
lanche que me fêz servir num grande hotel, êle no seu elegante
uniforme e eu um simples soldado raso. Lá não tocamos mais no
nome de Steeger, mesmo quando não havia ninguém escutando.
Êle não iria dizer uma única palavra sobre o assunto num recinto
fechado.
Agradeci-lhe por tudo quanto fizera por mim, por se ter lem-
brado de mim daquela maneira e por me ter proporcionado um lan-
che tão magnífico, feito o que apanhei um ônibus e regressei para a
caserna. Pouco tempo mais tarde recebi uma carta de Linley. Dizia
apenas isto: “O assunto está assentado e seu comandante já rece-
beu a necessária comunicação. Na manhã seguinte fui chamado
ao Comando, onde me deram um passaporte e mandaram que me
apresentasse ao Ministério da Guerra no mesmo dia, em serviço
especial, que me seria dado a conhecer quando lá chegasse.
Assim, toquei-me para Londres e para o departamento do Mi-
nistério da Guerra onde fui ordenado a comparecer. Lá recebi um
traje civil e uma entrada para um concerto no Albert Hall. O que
eu tinha a fazer era sentar-me na poltrona cujo número constava
da entrada e tomar o máximo de interesse na música, ao mesmo
tempo em que devia observar o homem sentado à minha direita.
Foi tudo o que me disseram enquanto me faziam experi-
mentar o novo traje. Estavam a escovar meu cabelo quando Linley
entrou. Entendiam que meu cabelo estava com um aspecto por
demais militarizado. Linley me deixou tudo bastante claro. O con-
certo — explicou êle — devia ser irradiado, e Steeger escolhera um
lugar exatamente sob o microfone. Estavam também seguramente
informados de que êle continuava retendo o segredo da segunda
frente, e era quase certo que diria alguma coisa a respeito durante
um dos intervalos, e o mundo inteiro poderia ouvi-lo. Claro que êle
precisava ser observado durante todo o tempo, mas provavelmente
126
poderia fazê-lo durante um intervalo.
— E como poderei detê-lo, senhor?
— Bem, estarei lá — respondeu Linley — do outro lado dele,
e penso que poderei detê-lo, mas gostaria de ter sua cooperação,
especialmente se êle começar a berrar o nome do país que está
para ser atacado. Terá então de fazê-lo calar ou de detê-lo de qual-
quer maneira. Mas não pensamos que êle procederá desse geito.
Em verdade, as probabilidades são de 1000 contra 1, porque, se o
fizer, chamará a atenção e será enforcado, o que naturalmente não
lhe passa pela cabeça. O que êle deve estar certo é da possibilidade
de fazer algum sinal. Estarei atento, mas gostaria de contar com o
seu auxílio.
Bem, isso aconteceu de manhã, e na mesma noite eu me
encontrava na Albert Hall, sentado numa poltrona do meio, preci-
samente na frente da orquestra, vendo um pequeno objeto pendu-
rado num fio, diante de mim. Era o microfone. Reconheci-o logo,
porque não se parecia com nada que eu tivesse visto antes, e um
microfone devia parecer-se com aquilo. Apareceu então Linley e
sentou-se à minha direita, deixando entre nós dois uma poltrona
vasia. Nem sequer me olhou. Olhava para a direita e para a esquer-
da, mas quando olhava para a esquerda fixava um ponto a milhas
além de mim.
Entrou, então, Steeger.
Nunca o vira, antes; mas se me permitem dizê-lo, sem causar
ofensa a ninguém, eu posso identificar um criminoso numa sim-
ples olhada. Era Steeger em carne e osso. A orquestra começou a
tocar. Era o que chamam uma sinfonia. De Beethoven. Sua quinta
sinfonia, segundo entendi, e devia haver três intervalos.
Sim, estava muito bonita, e Steeger permanecia sentado,
atento e sem fazer nada. Enquanto durou a primeira parte êle não
fêz o menor movimento. Nem sequer abriu os lábios.
Deu-se o primeiro intervalo. Eu o observei como um gato es-
preitando um cachorro. Num momento cheguei a relancear Linley,
mas êle aparecia absorto na música, como se a estivesse acarician-
do no espírito, e com a mão direita sob o casaco. Estava também à
paisana. Observei Steeger de novo. Neste momento êle pôs a mão
no bôlso interior do seu casaco, abriu a bôca e aspirou o ar. Ia tos-
127
sir. Uma ou duas pessoas também tossiam um pouco, pequenos
pigarros que haviam podido conter enquanto a orquestra tocava.
Mas Steeger ia tossir fortemente. Podia-se prever pelo tamanho de
sua respiração. No mesmo instante Linley tirou do bolso um lenço
encarnado. Dirigiu-me, então, um rápido olhar e me fêz um leve
sinal com a mão, dizendo-me para não fazer nada, pois eu estava
justamente me inclinando para a frente procurando saber se devia
tomar qualquer iniciativa. Linley reclinou-se de novo e começou a
pensar na música novamente. Parecia, pelo menos, muito satisfeito
e bem acomodado. Steeger tossiu, e eu o deixei, diante do sinal de
Linley. Assoou o nariz um tanto ruidosamente uma e duas vezes e
tossiu novamente. E, tossindo de novo, outra vez assoou o nariz,
guardando, finalmente, o lenço.
Permaneceu, depois disso, tão quieto quanto Linley. Passa-
dos alguns instantes a música recomeçou. E Steeger não mais se
moveu ou abriu os lábios enquanto ela durou. Quando sobreveiu
o segundo intervalo, olhei para Linley e êle apenas sacudiu a cabe-
ça. Steeger, então, aspirou profundamente o ar e puxou do lenço,
o mesmo fazendo Linley. Steeger tossiu de novo e assoou o nariz,
repetiu a tossida, e novamente aspirou o ar, terminando com uma
tossida e com uma assoada, precisamente como fizera antes.
E então a orquestra começou de novo. Uma bela música,
imagino, se fosse possível ouvi-la. Eu, porém, estava por demais
ocupado: observava Steeger. Não que êle fizesse mais alguma coisa,
durante a música ou no último intervalo, ou enquanto ainda durou
o espetáculo: não chegou sequer a espirrar mais.
Em verdade não há muito mais o que dizer: Linley me con-
tou depois o que se passou; o que Steeger fêz, quero dizer. Poucos
dias depois ocorreu a invasão da Sicília, e então Linley me falou.
Obteve-me outro dia de licença, em recompensa ao útil auxílio que
disse eu haver prestado, embora eu pense que o auxílio não foi tão
útil assim. De fato, eu em verdade não fiz coisíssima nenhuma,
mas, não obstante, aproveitei a licença e fui a Londres ver Linley.
Êle me proporcionou outro almôço o qual foi muito apreciado, pois
me fêz lembrar os velhos tempos, antes da guerra. Explicou-me,
nessa ocasião, que sinais Steeger havia feito. Êle o fizera em código
Morse. Cada tossida representava um ponto e cada assoada um
128
traço. E a palavra por êle transmitida fora Etna.
— Por que Etna? — perguntei.
Porque era uma palavra muito mais curta que Sicília. Apenas
seis pontos e traços, explicou êle, enquanto a palavra Sicília exigi-
ria pelo menos doze. Etna, ou por outro lado, era mais do que sufi-
ciente. Êle, porém, não conseguiu. Havia um homem no palco com
o dedo colocado num botão e observando Linley durante o tempo
todo; no momento em que êle viu o lenço encarnado de Linley, seu
dedo comprimiu o botão e interrompeu a irradiação. Esta, natural-
mente, foi reiniciada quando a orquestra começou a tocar de novo;
e tudo o que os ouvintes perderam — quer dizer, o mundo — foi o
ruído da assistência se agitando na platéia, e aqui e ali um músico
preparando o instrumento e os pequenos ruídos que se ouvem nos
intervalos. Assim, nem sequer houve necessidade de se explicar o
que sucedeu. Mas a explicação estava pronta para o caso de se ter
de interromper a música.
— Qual era a explicação?
— Um contratempo técnico — esclareceu Linley.
Oh, há ainda outra coisa a acrescentar. Haviam-me recomen-
dado que eu me tornasse tão insignificante quanto possível e que
não me parecesse com um soldado e que, por outro lado, não pa-
recesse que o estava observando. Assim, o que me pareceu melhor
foi apresentar-me exatamente como sou — como sou agora, quero
dizer — voltando ao antigo eu, que é o meu eu real. Isso quer dizer,
se quiserem saber minha opinião, que talvez ninguém conheça re-
almente muita coisa sobre si próprio, ou o que realmente seja. Pois
bem, abordei Steeger quando êle estava saindo e disse-lhe como
estes tempos estavam ruins para os negócios, e para tudo o mais,
já que ninguém podia obter coisa alguma, nem mesmo Num-numo.
Tempos melhores, porém, haveriam de vir e Num-numo reapare-
ceria no mercado. E eu era um bom vendedor, o que pude provar,
pois trazia um ou dois formulários de pedido no bolso. Gostaria êle
de autorizar um pedido? Êle receberia um frasco logo que a guerra
terminasse, e pelo preço antigo, e até mesmo abaixo daquele preço
se êle ficasse com meia dúzia. Nenhum pagamento seria necessá-
rio antes da entrega da mercadoria. E consegui ordem para meia
dúzia, e êle preencheu o formulário indicando o nome e o endereço.
129
Cornelius Westerhouse, foi o que êle escreveu, residente em Ba-
pham Road, 94, Wandsworth. Claro que eu sabia que não existia
tal estrada e que nunca existiu ninguém com o nome de Cornelius
Westerhouse. Mas de um certo modo me era agradável estar de
novo realizando o meu antigo trabalho. . ,

130
O CRIME PERFEITO

Ben Ray Redman

O MAIOR detetive do mundo sorveu complacentemente uns


goles daquele vinho do porto alguns anos mais velho do que êle
próprio e fitou com insistência, por cima da mesa, o mais íntimo de
seus amigos. Por muitos anos o detetive não se permitira o luxo de
ter amigos. Gregory Hare correspondeu, atento ao olhar.
— Não há dúvida — reiterou Trevor, pondo o cálice sobre a
mesa — o crime perfeito é possível; requer somente um criminoso
perfeito.
— Naturalmente — concordou Hare com um dar de ombros
— mas o criminoso perfeito. . .
— Você quer dizer que o criminoso perfeito é um mito, a que
não se pode encontrar em carne e osso?
— Exatamente — disse Hare, assentindo com um gesto de
sua volumosa cabeça.
Trevor suspirou, tornou a bebericar o seu vinho, e ajustou os
óculos sobre o nariz fino e aguçado:
— Sim, admito que até agora não o encontrei, mas sempre
tenho esperanças.
— Esperanças de ser logrado?
—- Não, tenho esperança é de ver os métodos perfeitos de
investigação postos à prova até os limites de suas possibilidades.
Você sabe, um investigador bem dotado é algo mais do que um
policial inspirado com um pouco de sangue de cão rastreador nas
veias, algo mais do que um cientista meticuloso; é também um crí-
131
tico de arte, e nenhum crítico de arte gosta de ser condenado a uma
prolongada dieta de materiais de segunda ordem.
— Perfeitamente.
— Este material de segunda ordem é realmente deplorável,
mas o pior não é isto. Pense você nestes crimes de segunda, tercei-
ra, quarta, e Deus sabe lá de que ordem, com que nos deparamos
todos os dias! E mesmo as obras-primas, os “clássicos”, são ainda
trabalho malfeito quando examinados de perto: uma falha aqui,
outra ali, sempre algo falso, malfeito.
— A maioria dos assassinos é feita de tolos — interrompeu
Hare.
— Tolos! Naturalmente que são, e você deve sabê-lo, pois já
defendeu a muitos deles. A dificuldade para a existência do cri-
me perfeito é que o homicídio nunca evoca os melhores esforços
produzidos pelos melhores cérebros. De regra, é trabalho de uma
mente inferior, esforçando-se com astúcia por alcançar uma perfei-
ção acima de suas possibilidades, ou então de um cérebro superior
tão cego pela paixão que suas faculdades ficam temporariamente
prejudicadas. Naturalmente há os doentes mentais homicidas, que
são em muitos casos inteligentes, mas não têm imaginação e não
variam seus métodos, e cedo ou tarde sua incapacidade para faze-
rem outra coisa senão repetir-se a si mesmos leva-os a um passo
em falso.
— A repetição é estupidez — murmurou Hare — e a estupi-
dez, como já acentuou alguém, é o único pecado imperdoável.
— Certo — concordou Trevor — é; e um sem-número de cri-
minosos têm pago por tal pecado. Mas, quase no mesmo número
de casos, pagaram também por sua vaidade. Praticamente todos os
criminosos, a menos que sejam impelidos ao crime acidentalmente,
são refinados egoístas. Você sabe disso tão bem quanto eu. Têm
uma tremenda confiança em sua própria força, e via de regra não
são capazes de se manterem calados.
Os óculos do Dr. Harrison Trevor brilhavam, e ele não cessava
de puxar o fio negro que deles pendia, enquanto falava com rapidez
e precisão. Estava no seu próprio chão, e sabia do que estava fa-
lando. Durante vinte anos fizera dos criminosos sua especialidade
e sua presa legítima. Havia-os caçado por todos os países, e caçado
132
com êxito. No andar de cima, na gaveta da cômoda de seu quarto
de dormir, encontrava-se uma grande caixa de couro vermelho que
guardava os símbolos visíveis desse êxito: pequenas condecorações
de ouro e prata ornadas de fitas coloridas eram testemunhas mu-
das da gratidão de vários governos europeus, em ocasiões notáveis,
para com o maior caçador de homens de sua geração. E se Trevor
falava “ex cathedra” a respeito de homicídios era porque lhe assis-
tia tal direito.
Hare, por outro lado, era um ouvinte atento e respeitoso,
mas, como advogado criminal de longa experiência, era homem de
idéias próprias; e sempre as expressava quando não havia nenhu-
ma vantagem legal em conservá-las apenas para si. E, com voz
suave, expressou uma delas:
— Com que então todos os assassinos são grandes egoístas,
não? E que dizer dos grandes detetives?
Trevor piscou os olhos, e depois sorriu friamente, puxando
pelo fio preto das lunetas:
— A maioria dos detetives são uns asnos, concordo com você;
asnos completos e presunçosos como pavões. Muito poucos são
grandes. Somente conheço três. Um está agora em Viena, o segun-
do em Paris, e o terceiro está. . .
Hare interrompeu-o com um gesto:
— O terceiro, ou melhor, o primeiro, está nesta sala.
O maior detetive do mundo assentiu com um gesto brusco
de cabeça.
— Evidentemente. Aqui não cabe falsa modéstia, não é mes-
mo?
— Sem dúvida. E seria difícil manter tal atitude logo depois
do caso Harrington. Puseram fim aos padecimentos do rapaz faz
duas semanas, não foi?
Trevor fêz um gesto de desdém.
— Sim, se você quiser chamá-la de “pobre rapaz”; era um as-
sassino intencional. Mas voltemos a esse nosso crime perfeito.
— Seu — corrigiu polidamente Hare. — Ainda não aceitei a
possibilidade de um crime perfeito. E como poderia você saber que
tal crime houvesse sido cometido? O criminoso nunca seria desco-
berto.
133
— Se êle tivesse um pouco de orgulho artístico, deixaria um
relatório completo para ser publicado depois de sua morte. Além
disso, você se esquece dos métodos perfeitos de identificação de
criminosos.
Hare emitiu um ligeiro assobio.
— Há um problema teórico para você. Que aconteceria quan-
do o detetive perfeito fosse lançado à procura do criminoso perfeito?
Mas a difidade está em que não existe perfeição em parte alguma.
O Dr. Trevor, sentado muito têso, fitava seu interlocutor.
— Na investigação do crime existe a perfeição.
— Bem, talvez exista — admitiu Hare, rindo amistosamente.
— Você deve saber, Trevor. Mas penso que o que você realmente
pretende dizer é que existe um método perfeito para desvendar cri-
mes imperfeitos.
A rigidez do doutor desapareceu, e agora êle ria com seu me-
lhor bom humor.
— Talvez seja realmente isto que quero dizer, sim. Mas há
uma experiência que eu gostaria de fazer, de qualquer modo.
— E qual é?
— É, ou melhor, seria, a experiência de exercer toda a minha
inteligência na perpetração de um crime, e depois, esquecendo-me
inteiramente de todos os detalhes, usar minha habilidade e meus
conhecimentos para resolver o enigma de minha própria criação.
Eu me prenderia a mim mesmo ou escaparia de mim mesmo? Aí é
que está a questão.
— Seria um belo acontecimento esportivo — concordou Hare
— mas temo que não possa ser realizado. A dificuldade está nesta
ninharia de esquecer-se dos detalhes. Mas seria interessante ver o
resultado.
— Sim, seria — disse o outro, falando de modo um pouco
mais sonhador do que o habitual — mas nunca podemos enxergar
tão longe quanto desejamos. O meu japonês, Tanaka, tem um dito
a que recorre sempre que lhe fazem uma pergunta difícil. Sorri e
responde: “Fuji san ni nobottara sazo toku made miemasho”, e que
significa: “Creio que se alguém subisse ao Monte Fuji veria mais
longe.” A dificuldade está que, como no caso de muitos problemas,
não podemos subir a montanha.
134
— Sábio Tanaka! Mas, diga-me, Trevor, qual é a sua concep-
ção de crime perfeito?
— Talvez não seja bem formulada, mas tenho mentalmente
um esboço grosseiro que lhe descreverei tão bem como puder. Ini-
cialmente, porém, vamos até à biblioteca: lá estaremos mais à von-
tade, Tanaka terá assim oportunidade para limpar a mesa. Apanhe
o seu charuto e venha.
Juntos, os dois homens subiram a estreita escada, o Dr. Tre-
vor adiante. A casa era uma construção pesada, de tijolos nus, pelas
alturas da rua 50 Leste, não longe da Madison Avenue. Seu aspecto
pitoresco não poderia servir de característica de seu proprietário,
mas o asseio combinava perfeitamente com êle. Não era uma casa
grande, medida de acordo com os padrões da classe rica de Nova
York, mas era perfeitamente mobiliada e consideravelmente mais
espaçosa do que parecia da rua, pois o médico havia construído
uma parte que cobria inteiramente o terreno que outrora servira de
pátio. E estas novas dependências, além de incluírem a cozinha e
os apartamentos dos criados, tinham um laboratório e uma sala de
trabalho cujo pé direito correspondia à altura de dois andares. Um
químico industrial ou um pesquisador haveria de invejar o equipa-
mento que se encontrava naquele laboratório; e os fichários que se
alinhavam, circundando completamente a galeria poderia fornecer
a qualquer jornal um completo arquivo. Uma porta se abria da
biblioteca para o laboratório, e a biblioteca propriamente dita bem
poderia ser considerada o quarto ideal de estudioso. A casa do Dr.
Harrison Trevor era, em suma, o lugar ideal para um solteirão, e éle
jamais fora tentado a transformá-la em algo diferente. Mais de um
visitante havia encontrado motivo para exclamar: “O velho Trevor
sabe passar bem.”
A mesma idéia passou pela mente de Hare ao tirar as pri-
meiras baforadas do excelente charuto que o amigo lhe oferecera e
provar o licor que Tanaka havia colocado na mesa ao lado de sua
poltrona. Também Hare desfrutava os prazeres do celibato, mas
jamais tivera a habilidade de aprender a gozá-los tão completamen-
te. Enfim, haveria de tomar algumas medidas que representassem
melhor na rotina de sua vida. Podia dar-se ao luxo de fazer tal
coisa.
135
— O crime perfeito tem, naturalmente, de ser um homicídio
— disse Trevor, rompendo o silêncio.
Hare torceu um pouco o busto e inquiriu:
— Sim? Por quê?
— Porque, de acordo com nossos padrões de julgamento, o
homicídio é o mais reprovável de todos os crimes, e, além disso,
segundo meu interesse, o melhor. A vida humana é o que mais va-
lorizamos e em cuja proteção mais atentamente nos empenhamos;
tirar a vida humana com uma arte que evite toda a capacidade de
investigação é inquestionavelmente o ideal da ação criminosa. Há
nela um grau de beleza maior do que em qualquer outro crime.
— Bah! — murmurou Hare — você está fazendo disto uma
coisa agradável.
— Falo ao mesmo tempo como amador e como professor de
crime. Você já ouviu cirurgiões falar em “casos belos”. Pois bem,
esta é precisamente a minha atitude, e em meus casos invariavel-
mente, como na maioria dos outros, o paciente morre.
— Compreendo.
Trevor piscou os oihos, puxou, mais uma vez pelo fio que
prendia as lunetas, e continuou:
— O crime tem de ser um assassínio, e um assassínio de
modalidade particular, do tipo mais puro. Bem, qual é o tipo mais
puro? Vejamos. O crime passional pode ser posto de lado imediata-
mente, pois é quase impossível que possa ser perfeito. A paixão não
auxilia a arte, e o sangue, quente demais, leva a um sem-número
de erros. E que me diz do homicídio com finalidade de proveito
material. Os assassinos desta espécie fazem o homicídio um meio,
não um fim em si mesmo. Matam não propriamente para eliminar
a vítima, mas a fim de tirar vantagens de sua morte. Não, não po-
demos considerar o assassino por dinheiro como o tipo ideal capaz
de produzir nosso crime perfeito.
O médico de nariz aguçado fêz uma pausa e manteve o cha-
ruto por alguns instantes presos entre os lábios delgados. Hare
observava-lhe a fisionomia com curiosidade. A completa falta de
emoção daquele homem ao discutir tais assuntos não era de todo
agradável — refletiu.
Trevor tirou o charuto da boca.
136
— Bem, e os assassínios por motivos políticos e religiosos?
Podem ser descartados imediatamente pela simples razão que, em
tais casos, o homicida está sempre convencido de servir o bem pú-
blico ou a Deus, e, portanto, poucas vezes faz qualquer tentativa
para esconder sua culpabilidade. Mas há outra espécie a ser con-
siderada: os que matam pela pura alegria de matar, os que são
dominados pela avidez de sangue. Sem dúvida irá você pensar que
estes constituiriam o tipo mais puro. Mas, como disse antes, os
dementes invariavelmente se repetem, e esta repetição conduz à
sua descoberta. E ainda mais importante é a consideração de que
o artista deve possuir a faculdade de escolha, faculdade esta que o
homicida nato não tem. Suas ações não são produto de sua volição,
são ações obrigadas. Ora, o crime perfeito deve ser uma obra de
arte, não uma necessidade.
— Você parece ter riscado muito bem todas as possibilidades
— observou Hare.
O médico sacudiu rapidamente a cabeça:
— Absolutamente. Há ainda um tipo de assassino, e este é o
tipo que estamos procurando: o assassino que deseja simplesmen-
te a eliminação de sua vítima, que mata com o único e puro objetivo
de remover sua vítima deste mundo, de livrar-se de uma pessoa
cuja existência não lhe é desejável.
— Mas isto traz você de volta para o seu crime passional, não
é verdade? Praticamente, todos os assassinos por ciúme — para
exemplificar — são assassinos que desejam simplesmente a elimi-
nação de sua vítima, não é?
—- Em certo sentido, sim, mas não no sentido mais puro. E,
como disse antes, a paixão jamais pode produzir o crime perfeito.
Êle tem de ser estudado, meditado cuidadosamente, e levado à prá-
tica no mais absoluto sangue frio. De outro modo é absolutamente
certo que há de ser imperfeito.
— Você trata desse assunto como se tivesse sangue de barata
— observou Hare, quando o médico fazia uma pausa.
— Naturalmente, e este é o único jeito de se cometer o crime
perfeito.
Bem, agora posso imaginar um homicídio de eliminação,
puro, que seria ideal pelo menos quanto aos motivos e circunstân-
137
cias. Imagine que você passou quinze anos procurando interpretar
uma certa passagem duvidosa de uma ode de Píndaro.
— Ora essa! — interrompeu Hare jocosamente! — É boa!
— E imagine — continuou o Dr. Harrison Trevor, não to-
mando conhecimento da interrupção — que outro estudioso tivesse
sido capaz de conceber uma argumentação de molde a invalidar
completamente a sua interpretação. Imagine, depois, que êle tenha
revelado a você as provas que possui, e que não as tenha mostra-
do a ninguém mais. Você teria aí um motivo perfeito e um perfeito
conjunto de circunstâncias; somente ficaria faltando para ser ela-
borado o método para levar a cabo o homicídio.
Gregory Hare sentou-se, de um salto.
— Por Deus, homem! Que quer você dizer com o “método
para levar a cabo o homicídio?”
O médico piscou.
— Mas então, não compreende? Você teria excelentes razões
para eliminar seu rival e dessa forma salvar a própria interpreta-
ção do texto, impedindo que ela sofresse uma confrontação. E nin-
guém, após a morte de sua vítima e da destruição das provas, po-
deria suspeitar de que você tivesse qualquer motivo. Você poderia
trabalhar com absoluta liberdade; poderia concentrar-se em dois
pontos essenciais: o método pelo qual a eliminação seria realizada,
e, naturalmente, a maneira de dar sumiço ao cadáver.
—- Dar sumiço ao cadáver? — fez Hare, parecendo um eco
involuntário das palavras do outro.
— Claro. Trata-se de um ponto muito importante, sem dúvi-
da. Mas posso gabar-me de ter realizado algumas pesquisas muito
valiosas neste setor.
— Sim? — murmurou Hare. — E que foi que você desco-
briu?
— Eu lhe direi mais tarde — assegurou-lhe Trevor —- e não
creio que diria a qualquer outro homem, porque, realmente, é mui-
tíssimo simples e muitíssimo perigoso. Mas por ora quero que você
compreenda muito bem que a maneira de dispor do cadáver é tal-
vez a medida mais importante de todas para a realização de um
crime perfeito. A ausência de um corpo de delito é curiosamente
perturbadora para a polícia. Harrington poderia realmente ter con-
138
seguido livrar-se do corpo de West, embora isto provavelmente não
o tivesse livrado de sentar-se na cadeira elétrica há duas semanas.
Êle foi muito descuidado.
Mais uma vez Hare soergueu-se na cadeira e exclamou:
— Era? E por falar nisso, era sobre o caso Harrington que eu
queria principalmente falar a você esta noite.
— Ah, sim? Pois bem, poderemos tratar dele, daqui a pouco.
E, por falar nisso, o caso pode ser classificado como muito próximo
de um homicídio de eliminação; mas o elemento dinheiro figurava
nele, dinheiro grosso, e o ouro tem a propriedade de deixar um
cheiro muito forte sempre que se mistura com o crime. O motivo
de Harrington foi facilmente descoberto, mas sua posição tornava,
impossível tocar nele até que não houvesse, no caso, a menor pos-
sibilidade de dúvida.
— A menor possibilidade de dúvida? Era justamente isto que
eu queria saber. Compreenda, eu estive no estrangeiro até a sema-
na passada, e só fiquei sabendo mesmo da prisão de Harrington
pouco antes de embarcar. Os jornais da África do Norte não são lá
muito informativos. Eu estava particularmente interessado porque
conhecia muito bem os dois homens, e conhecia ainda mais a mu-
lher de West.
— Sim, sim, a esposa. . . Mulher interessante. Eles estavam
separados, e ela está na Europa desde há uns dois anos e meio.
— Sim, eu sei que ela tem estado lá. . . a maior parte do tem-
po.
— Todo o tempo. Nunca esteve nos Estados Unidos durante
este período.
— Não? Pois bem, eu a vi pela última vez em Monte Carlo,
mas isto não tem importância, no momento. Desejo saber como foi
que você conseguiu descobrir a pista de Harrington.
O Dr. Harrison Trevor sorriu complacente, ajustou suas lu-
netas, e respondeu então, com sua maneira peculiar:
— Jamais houve coisa mais simples. A única falha foi que,
finalmente, Harrington confessou. Isto até me aborreceu, porque
não precisamos de confissão; as provas circunstanciais eram com-
pletas.
— Circunstanciais?
139
— Naturalmente. Você sabe tão bem quanto eu de que a
maior parte das condenações por homicídio baseiam-se em provas
circunstanciais. Ninguém envia convites para as pessoas compare-
cerem como testemunhas a um homicídio.
— Não, claro que não. Desculpe.
— Bem, como você provavelmente sabe, Ernest West, agente
da Wall Street e multimilionário (pelo menos segundo os jornais),
foi encontrado com o coração atravessado por uma bala uma noite,
há pouco mais de um ano. Êle possuía um barracão em Long Is-
land, perto de Smithtown, que usava em suas caçadas e pescarias.
A única pessoa que êle mantinha lá para servi-lo era uma velha
zeladora, habitante da localidade. West gostava de levar uma vida
simples, quando podia. Nem mesmo se fazia acompanhar por um
chofer. Na noite em que foi morto, a zeladora se achava ausente,
passando a noite com uma de suas filhas, que estava doente. Em
seu depoimento, a mulher declarou que West a havia dispensado
do serviço naquela noite, dizendo-lhe que êle podia tratar do pró-
prio jantar e do café na manhã seguinte. Ela voltou no outro dia e
quase morreu do choque. West foi assassinado numa sala em que
conservava suas armas de caça e alguns livros, e que por sinal era
a melhor peça da casa. Não havia sinais de luta. Foi encontrado
caído sobre uma poltrona. A bala que o matou era de calibre 25.
Fust, do Departamento de Homicídios, chamou-me logo que os ins-
petores de serviço não conseguiram localizar qualquer indício, e eu
me toquei para lá imediatamente. West era um homem importante,
como você sabe.
O doutor puxou vaidosamente o fio que lhe prendia as lune-
tas, e continuou:
— Fui para lá imediatamente, e descobri várias coisas. Em
primeiro lugar, a casa era isolada, e não havia nas vizinhanças
ninguém que pudesse prestar qualquer informação. O cadáver fora
descoberto por um mensageiro que levou um telegrama, às sete
e meia; o exame médico indicou que o assassinato fora cometido
cerca de uma hora antes. Dentro de casa encontrei apenas uma
coisa que me pareceu útil. Depois de mandar recolher a poeira do
chão no local do crime, encontrei vários minúsculos pedaços de
fio que muito obviamente deviam ter pertencido a uma roupa de
140
casimira; e tais fios não combinavam com nenhum traje dos que fo-
ram encontrados no guarda-roupa de West. Mas podiam ter vários
meses, e de início eu não concentrei neles minha atenção. Fora da
casa havia mais coisas em que ocupar minha atenção. O terreno
era úmido, e duas espécies de pegadas estavam visíveis: uma de
homem, outra de mulher. . .
— De mulher? — Hare era agora toda atenção.
— Sim, da zeladora, naturalmente.
— Ah, claro; da zeladora.
— Sem dúvida. Mas era difícil identificá-las, porque o homem,
segundo parece, em conseqüência do seu nervosismo, caminhou
para cima e para baixo no sendeíro que conduzia à estrada, várias
vezes antes de deixar finalmente a cena de seu crime; e assim pi-
sou, reformando, quase todas as pegadas deixadas pela mulher,
mal restando algumas intatas.
— Coisa estranha, não é?
— Muito, a primeira vista, mas em realidade bastante sim-
ples quando se pensa melhor. O assassino apressou-se em afastar-
se da casa logo que disparou o tiro mortal, depois hesitou. Sentia-
se confundido e não se resolvia sobre o que havia de fazer, mesmo
tendo um automóvel a esperá-lo no fim da vereda. Então caminhou
de um lado para outro durante alguns minutos, a fim de acalmar
os nervos, e poder coordenar as idéias. Era um sendeiro estreito, e
a deformação das pegadas existentes foi, é lógico, coisa acidental
e inevitável.
— Êle tinha um automóvel à sua espera?
Sim, um pesado carro de turismo. As marcas dos pneus eram
lisas, como também o eram as do táxi que West chamara naquela
tarde para levar a zeladora. Mas havia algo interessante naque-
las marcas de pneus. Havia uma excrescência dura e volumosa
num deles, que deixava uma marca perfeitamente identificada na
lama da estrada, cada vez que correspondia a um giro completo da
roda.
— Compreendo. E ambas as espécies de pegadas terminavam
no mesmo lugar?,
— Naturalmente. O táxi se detivera ali para apanhar a zela-
dora, exatamente no mesmo lugar do outro.
141
— Hum — fez Hare, acendendo outro charuto, e tirando uma
baforada, como para refletir melhor, antes de perguntar. — E você
está absolutamente certo de que a mulher não entrou no carro com
o homem?
Trevor fitou Hare, sem compreender, e exclamou:
— Você está dando largas à sua fantasia, Hare. A mulher era
a zeladora, e ela saiu num táxi de aluguel pelo menos duas horas
antes do crime ter sido cometido. De qualquer modo, Harrígton
confirmou serem corretas todas as minhas deduções, quando fi-
nalmente confessou.
O Dr. Harrison Trevor estava evidentemente exasperado.
— Ah! sim, naturalmente, êle confessou. Esqueci-me; descul-
pe. Mas conte-me como você o apanhou.
Durante um momento o detetive olhou, incrédulo, para seu
amigo, como se temesse que o outro pudesse estar a lançar-lhe
uma isca, pois as perguntas de Hare não eram as que seu espíri-
to alerta geralmente fazia. Parecia que êle escondia alguma coisa.
Mas Trevor pôs de lado sua suspeita e voltou à agradável tarefa de
descrever seu triunfo.
— Com a bala, as pegadas, as marcas dos pneus, e os fios de
lã, eu já dispunha de elementos para avançar consideravelmente.
Tudo que tinha a fazer era adaptá-los de forma inequívoca a um só
homem, e teria descoberto o assassino. Mas a pista nos levou logo
a setores em que deveríamos mover-nos com cuidado. Com meus
elementos de prova diante de mim, eu tinha de fazê-los cair sobre
um indivíduo que pudesse ter tido um motivo para matar West.
Pelo menos segundo todas as aparências, êle não tinha inimigos;
mas, por outro lado, tinha poucos amigos. Acreditava na máxima,
segundo a qual viaja mais depressa quem viaja sozinho. Não obs-
tante, havia arruinado a vários homens com suas operações na
Wall Street, e foi a respeito de suas operações financeiras que eu
concentrei minha atenção. Lá, com às facilidades de investigação
de que dispunha, descobri alguns fatos interessantíssimos. Duran-
te as três semanas que precederam à morte de West, as ações ao
portador da Elliott Light and Power Company haviam subido cin-
qüenta e sete pontos; quatro dias depois de seu assassinato, elas
caíram nada menos do que sessenta e três pontos. As investigações
142
revelaram que no dia em que West foi morto, Harrington anunciara
a venda de cento e trinta mil ações daquela companhia, abaixo do
preço. Êle vendera abaixo do preço corrente nos dias anteriores,
enquanto West comprava todas as que eram oferecidas. Os recur-
sos de Harrington, embora muito grandes, não eram iguais aos de
seu rival, e êle bem sabia que a menos que pudesse fazer com que
as ações da Elliott tivessem realmente uma baixa espetacular, êle
seria um homem arruinado. Assim, resolveu seguir o único cami-
nho que lhe parecia certo: eliminar West. Foi um homicídio por
causa de milhões.
Trevor deteve-se de modo a causar impressões ao outro. Hare
não disse palavra.
-— Isto é mais ou menos toda a história, o resto é apenas
rotina. Um dos meus homens encontrou quatro pneus, três em
perfeitas condições, que haviam sido tirados do carro de turismo de
Harrington e substituídos no dia seguinte ao assassinato. Foram
postos numa pilha na garagem da casa de campo de Harrington.
Três pneus perfeitos, veja bem; e no outro havia uma grande ex-
crescência dura. Os sapatos de Harrington se adaptavam às pega-
das existentes na vereda do barracão de West, e as pontas de fios
de lã combinavam com o material de um dos ternos de Harrington.
E, por cima de tudo, depois do homem ter sido preso, encontra-
mos um revólver calibre 25, de cabo de madrepérola no seu cofre
de parede. Havia sido disparado um tiro e a arma não havia sido
limpa desde então. O chofer de Harrington depôs afirmando que
Harrington havia levado o carro grande, de turismo, e que saíra
sozinho na tarde do crime; o homem lembrava-se da data porque
era o dia de aniversário de sua espôsa. Foi tudo muito simples, e
mesmo os elementos de interesse existentes tiveram em parte seu
valor diminuído pela confissão de Harrington. A imprensa exagerou
muito a parte que representei nessa prisão. Na realidade não havia
mistério algum, e se os homens que se encontravam envolvidos no
caso não fossem tão ricos e tão preeminentes, o assunto teria sido
virtualmente esquecido. Mas o agarramos bem a tempo; na semana
seguinte ele deveria viajar para a Europa.
— Que espécie de revólver você disse que era? — Hare lançou
esta pergunta tão abruptamente que Trevor teve um gesto de so-
143
bressalto antes de responder.
— Ora, um calibre 25, niquelado, de cabo de madrepérola.
Uma arminha bastante bonita. Harrington parecia um tanto enver-
gonhado de possuir aquela espécie de brinquedo.
— Também creio que êle devesse sentir-se envergonhado.
Mas. .. o cabo estava levemente lascado do lado direito ?
Trevor inclinou-se para a frente, subitamente.
— Sim, estava. Mas como diabo sabe você disso?
— Ora, lascou-se quando Alice o deixou cair sobre uma pe-
dra, em Davos. Nós quatro estávamos fazendo tiro ao alvo nos fun-
dos do hotel.
— Alice! -— exclamou Trevor. — Que Alice? E que quer você
dizer com “nós quatro?”
Hare respondeu em seguida:
— Alice West, meu caro. Compreenda você, o revólver era
dela. E nós quatro éramos West, Alice, Harrington e eu. Parávamos
todos no mesmo hotel na Suíça, há quatro anos.
— O revólver dela? — O médico falava agora em voz excitada.
— Você quer dizer que ela deu-o a Harrington?
— Duvido-o... pelo muito que ela o amava... — murmurou
Hare.
— Êle provavelmente tirou a arma das mãos dela... tarde de-
mais.
— Você está falando por meio de enigmas — exclamou o de-
tetive. — Que quer você dizer?
— Simplesmente que o revolverzinho serviu para executar
um inocente — disse Hare, em tom cansado.
— Como, um inocente?
— Bem, é que neste caso eu estou convencido de que o “cul-
pado” era uma mulher.
A visível excitação de Trevor desaparecera abruptamente, e
êle estava agora calmo corno uma esfinge.
— Diga-me exatamente qual a sua opinião — pediu.
Hare pôs de lado a ponta de charuto.
— A coisa começou em Davos, há quatro anos. Harrington
apaixonou-se por Alice West, e ela por êle. West representou o pa-
pel de “empata”, não aceitando o divórcio que ela propunha. Se-
144
pararam-se, naturalmente, mas isto não facilitava muito a Alice e
Harrington, que queriam casar-se. No começo eu estava envolvido
no caso, compreende. A princípio, por casualidade, e depois porque
todos êles fizeram de mim seu confidente, em graus diversos. West
portou-se como um canalha, porque não mais amava realmente
Alice, simplesmente resolveu que nenhum outro homem a teria,
legalmente pelo menos. E se manteve nesta atitude. . . até que ela
o matou.
— Ela o matou? — repetiu lentamente o grande detetive.
— Tenho disso tanta certeza como se o tivesse visto. Para
começar, foi o revólver dela que disparou o tiro, como você mesmo
o provou. Eu vi aquela arma uma centena de vezes, quando atirá-
vamos em garrafas e não sei mais o que, por distração. Não havia
nenhum motivo para que Harrington o tomasse emprestado; êle
tinha um lindo arsenalzinho próprio, não tinha?
— Sim, encontramos uns dois ou três revólveres pesados e
uma pistola automática.
— Exatamente. Êle nunca teria usado um brinquedinho da-
queles, em toda a sua vida; e além do mais, êle jamais teria cometi-
do um homicídio. Era equilibrado demais para isto. Por outro lado,
Alice é de um tipo extremamente histérico. Eu a vi ficar completa-
mente fora de si, de cólera. Bonita, ah! sem dúvida, mas perigosa,
e, em última análise, uma covarde. E deu provas de que era. Nunca
invejei Harrington.
—- Mas ela estava na Europa, homem, quando o crime foi
cometido.
— Não estava, Trevor. Estava em Montreal naquele mesmo
mês, e disso tenho certeza, e Montreal não fica longe de Long Is-
land. Harry Sands encontrou-se com ela no Ritz. Quando estive
pela última vez em Monte Carlo vi ambos recordarem tal encontro.
Ela se encontrava na Europa antes e depois do crime, mas não es-
tava lá quando se verificou o crime. Além do mais, isto não é toda
a história.
— Bem, e qual é? — perguntou Trevor, apertando os lábios,
num ricto.
Os dedos de Hare brincavam com uma caixinha de prata, es-
tôjo para fósforos. Hesitou um momento antes de responder. Então
145
falou rapidamente e foi logo ao assunto.
— O resto é o seguinte; como lhe disse, Alice é histérica, e
nos últimos anos, a bebida e os entorpecentes ainda a abalaram
mais. Pois bem, uma noite, em Monte Cario, pouco antes de eu
me despedir dela, ela chegou até o extremo. Falávamos a respeito
da morte de seu marido, e eu fazia conjeturas a respeito de quem
poderia ter cometido o crime. Harrington ainda não havia sido pre-
so. Eu lhe perguntei, também, se ela e Harrington não estavam
fazendo preparativos para o casamento. Ela desviou a pergunta,
evidentemente perturbada. Então, subitamente, irrompeu em in-
vectivas contra o morto, chamando-o de todos os nomes feios ima-
gináveis, e finalmente meteu a mão na bolsa e tirou uma carta. Era
dirigida a ela, e o carimbo do correio indicava uma data de mais de
um ano atrás; estava quase rasgada nas dobras de tanto dobrada
e desdobrada. Mostrou-me e insistiu para que eu a lesse. Era de
West; uma carta cruel como jamais vi; de um gato para um rato,
de um carcereiro para seu prisioneiro. Alice estava presa a West,
e êle tinha bem a intenção de conservá-la assim. Não perdia a o-
portunidade de magoá-la, de feri-la. Era realmente tão ruim que
eu não quis terminar a leitura mas ela insistiu e me fêz prosseguir
até o fim. Quando lhe devolvi a carta, os olhos de Alice estavam em
chispas, e ela tomou-me da mão e exclamou: “Que faria você a um
homem destes?” Eu evitei a resposta por um minuto, e então ela
mesma respondeu: “Matava! Matava-o! Não é mesmo que você o
matava?” Com a maior calma que podia aparentar, fiz-lhe ver que
alguém já fizera exatamente aquilo. Então ela prorrompeu num
acesso de riso perverso, como eu jamais vira. Ela então acalmou-se
e disse tranqüilamente: “É engraçado que a gente possa arrebentar
a cabeça de tantas inocentes garrafas sem que ninguém diga uma
palavra, mas se a gente mata uma víbora humana, é enforcada. E
eu não quero ser enforcada, não, muito obrigada.”
Hare fêz uma pausa, como se a narrativa o tivesse fatigado
muito, e acrescentou, depois:
— Foi mais ou menos tudo o que aconteceu, e não se pode
dizer que foi elogiável. Parti no dia seguinte para a África, e quase
nem li os jornais enquanto estive lá. Mas eu não tinha dúvida algu-
ma sobre quem havia liquidado Ernest West.
146
Durante o tempo em que o ponteiro dos minutos do relógio
colocado sobre o consolo da lareira fêz três pequenos saltos, houve
silêncio na sala forrada de livros. Trevor então falou, e sua voz era
tensa:
— Você acha que eu errei?
Hare fitou-o nos olhos:
— Que acha você?
O detetive refugiou-se em outra pergunta:
— Você tem alguma hipótese a respeito de como aquilo real-
mente aconteceu?
— É difícil dizer exatamente, mas tenho a certeza de que foi
ela quem cometeu o crime. Sua referência às garrafas indicava que
ela sabia qual a arma que havia sido usada; a arma que ela já usa-
ra em centenas de garrafas em várias ocasiões. Meu palpite é que
ela e Harrington foram juntos visitar West, a fim de ver se podiam
fazê-lo mudar de opinião, afinal de contas. Mas não o consegui-
ram. Então ela teria sacado daquele seu brinquedinho. Sempre o
trazia consigo, na bolsa. Várias vezes eu lhe disse que era um mau
costume. Atirou em West antes que êle pudesse fazer qualquer mo-
vimento. E ela atirava melhor do que Harrington; este nunca teria
acertado no coração de West. Saíram então da casa e tomaram o
carro de Harrington; mas antes êle voltou e obliterou todas as mar-
cas de suas pisadas, e, para ficar certo de que não lhe escapara
nenhuma, caminhou também sobre as pegadas da zeladora. Ha-
via três marcas de sapatos no caminho, Trevor, e não duas, posso
apostar. Então Harrington tirou-lhe o revólver, se já não o hou-
vesse tirado antes, e levou-a em seu carro para onde ela quisesse
ir. Ela o deixou; deixou-o que aguentasse as consequências caso
a polícia suspeitasse dele, e era próprio dele fazer o que fez. Êle a
amava estremecidamente, e ela também o queria, a seu modo, que
aliás não era um modo muito louvável de querer bem. Amava mais
ao seu belo e alvo pescoço. — Hare teve um sorriso contrafeito, e
continuou: — Ela se esquecera de que no Estado de Nova York a
pena de morte não se executa por enforcamento. De modo geral,
não é uma história bonita. Mas Harrington, pobre diabo, queria
salvá-la mesmo que ela não fosse digna do sacrifício. Bem, o caso é
que, para êle, ela merecia.
147
— Mas é impossível! — exclamou Trevor, deixando escapar,
as palavras a despeito de si mesmo.
-— O que que é impossível?
— Que eu tenha cometido um erro.
Todos nós cometemos erros, meu caro.
— Não eu. — E os lábios apertados de Trevor fecharam-se
ainda mais.
— Sim, é uma vergonha. Mas o que está feito está feito, —
disse Hare, dando de ombros.
Trevor olhou-o com um olhar frio.
— É evidente que você não compreende. Minha reputação
não me permite cometer erros. Eu simplesmente não posso come-
tê-los, aí está.
Hare esboçou um sorriso de simpatia; sentia-se sinceramen-
te penalizado de ver Trevor tão perturbado e tentou tranqüilizá-lo:
—- Mas a sua reputação não irá sofrer com isto. A realidade
não aparecerá. Alice West morrerá dentro de uns dois anos, vítima
de sua toxicomania, e ninguém jamais saberá da verdade.
— Mas você sabe.
— Sim, sei. Mas podemos esquecer tudo isto.
Trevor fêz com a cabeça, nervosamente, um gesto afirmati-
vo.
— Sim, devemos esquecer. Compreende, Hare, precisamos
esquecer.
Hare ficou a olhá-lo, intrigado.
— Não se preocupe, meu velho, sua reputação está a salvo
nas minhas mãos. Não direi palavra.
Trevor assentiu novamente com um gesto de cabeça:
— Sim, sim, sei que você nada dirá, naturalmente. Você nada
dirá.
—- E que me diz se tomássemos um trago? — perguntou
Hare, erguendo-se da poltrona.
— Está ali, em cima da mesa. Não faça cerimônia. Vou ao
laboratório durante um minuto.
O médico desapareceu através da porta baixa, e Hare passou
a ocupar-se com as garrafas de bebidas. Aborrecia-lhe saber que
Trevor ficara tão perturbado: mas que colossal amor-próprio! Tal-
148
vez tivesse sido melhor que êle, Hare, não houvesse falado naqui-
lo, pois nenhuma vantagem trouxera. De qualquer modo, jamais
voltaria a tratar do assunto. Servido um cálice do familiar brande,
Hare olhou a bebida demoradamente contra a luz, com as costas
voltadas para a porta do laboratório. Mas nunca chegou a beber,
pois deixou cair o cálice quando sentiu os dedos delgados aperta-
rem-se em sua garganta e a pasta de algodão com clorofórmio com-
primida contra a boca e as narinas. Conseguiu apenas dizer duas
palavras: — Meu Deus!
Cerca de quinze minutos depois, o Dr. Harrison Trevor olhou
cuidadosamente por sobre o corrimão da escada de sua própria
casa. Não havia ninguém lá embaixo, e êle então desceu rapida-
mente. Na cozinha, Tanaka ouviu a porta da frente abrir-se quase
imediatamente depois a voz do amo, chamando-o do patamar do
primeiro piso, Tanaka atendeu sem demora.
— O Sr. Hare acaba de sair — disse o doutor — e esqueceu-se
de sua cigarreira. Corre atrás dele; deve ainda estar perto.
Tanaka apressou-se em cumprir as ordens. Sim, na esquina
estava um homem alto, evidentemente o Sr. Hare, mas acabava de
entrar num táxi. Tanaka correu, mas antes de alcançar a metade
da quadra, o auto já se afastara. Tanaka voltou para prestar contas
do fracasso de sua missão.
— Que pena! — disse-lhe o amo, que o encontrou no pata-
mar. — Mas não tem importância, realmente. Telefona ao aparta-
mento do Sr. Hare e avisa seu criado que o Sr. Hare esqueceu-se
aqui de sua cigarreira, e que êle não se preocupe. Poderás levá-la
amanhã de manhã.
Tanaka desceu a fim de obedecer as determinações do Sr.
Trevor, e este ficou a pensar na coincidência representada pela
presença na esquina do homem parecido com Hare, que acabara
de tomar um táxi. Aquela prova acidental poderia vir a ser útil, mas
era desnecessária, absolutamente desnecessária; êle não precisava
de nenhuma ajuda acidental. À porta da biblioteca, o detetive se
deteve, e, com olhar crítico passou em revista o local da cena. Tudo
estava em seu devido lugar, e de modo confortável, convencional,
absolutamente no mesmo lugar. No chão não havia fragmentos do
cálice quebrado; somente era visível, sobre o tapete, nódoa escura
149
e úmida, que secava rapidamente. Brande e soda não deixariam
mancha. Pelas feições do Dr. Harrison passou um sorriso frio, e
então êle caminhou resolutamente para o laboratório, onde deveria
realizar nova tarefa. Fechada a chave a porta, seu primeiro ato foi
ligar o ventilador elétrico que deveria levar para um exaustor oculto
todos os odores que pudessem comprometer. Então trabalhou até
o clarear do dia.
O desaparecimento de Mr. Gregory Hare, eminente crimina-
lista, menos de uma semana depois de seu regresso do exterior,
forneceu à primeira página dos jornais matéria para prolongadas
especulações. Foi o Dr. Trevor o primeiro a insistir em que se trata-
va de um crime, e foi também o Dr. Trevor que trabalhou de modo
absorvente no caso, com toda a assistência que a polícia lhe podia
emprestar. Naturalmente que ficara profundamente sentido com o
acontecimento, pois Hare fora seu amigo íntimo, e êle fora um dos
últimos a ver Mr. Hare. Mas o cadáver jamais foi encontrado, e não
havia provas por onde começar uma pista. Tanaka repetia o que
sabia, reiterando a história do táxi, e um guarda de serviço na rua
confirmou o testemunho do japonês. O senhor alto viera da direção
da casa do Dr. Trevor, e o táxi partira justamente quando o criado
do Dr. Trevor corria para a esquina. Mas tudo isto nada esclarecia.
Um certo Louie Coxo, a quem Hare, anos antes, quando promotor,
levara a uma sentença de longos anos de prisão, foi apanhado na
rede policial; mas tinha um álibi perfeito. O mistério permaneceu
mistério.
O Dr. Trevor e o Inspetor Furst discutiam uma tarde aque-
le caso, muito depois de ter sido abandonado pelas investigações
policiais. Furst ainda brincava com a idéia de que poderia não se
tratar de um crime, mas o médico apegava-se à certeza de um ho-
micídio.
—- Tenho absoluta certeza disso, Furst. Certeza absoluta:
Hare foi assassinado.
— Bem — disse o Inspetor — se o senhor tem tanta certeza,
estou inclinado a aceitar. O senhor nunca se enganou.
O doutor abriu as mãos, num gesto de modéstia:
— Até agora não, Furst, até agora não; mas o excesso de con-
fiança é perigoso. Aceita um cigarro? — e estendeu uma cigarreira
150
de ouro.
Sob o ponto de vista da criminalogia, é de lastimar-se, e mui-
to, que, alguns anos depois, quando o Dr. Trevor estava prepa-
rando suas memórias para uma publicação póstuma, a morte lhe
tenha arrancado a pena da mão justamente quando havia escrito o
título de um novo capítulo.
E isto porque o novo capítulo se chamava “O Crime Perfei-
to”.
— O que eu gostaria de saber — disse Furst quando passou
os olhos pelo manuscrito inacabado — e que crime seria esse?

151
OS CRIMES DO ESPANTALHO

A. E. Martin

MONSIEUR Roget, conceituado comerciante em Paris, certo


dia, a caminho do banco, foi interrompido na deserta rua Grenoir
por um homem alto e magro, metido num sobretudo preto que mal
lhe alcançava os joelhos. O sobretudo, embora o tempo estivesse
ameno, achava-se completamente abotoado, tendo ainda a lapela
soerguida para esconder-lhe o pescoço. Poido de tão velho, esse
casacão, nos lugares em que rasgara, fora desageitadamente re-
mendado. À primeira vista o bom merceeíro pensou que estava fa-
lando com alguém que o destino golpeara com uma triste moléstia,
pois duas manchas avermelhadas apareciam através de sua barba
preta e curta, combinando com a rosa artificial que êle ostentava
na altura da lapela. De repente, porém, passou-lhe pela cabeça que
aquele esquisito interlocutor podia ser um jovem cujo crescimento
tivesse se processado rápido demais. Mas essa hipótese foi logo
posta de lado, a um exame mais atento de suas sobrancelhas eri-
çadas. De qualquer modo, com suas luvas brancas e seu guarda-
chuva deformado, com seu chapéu absurdo, através de cujas fitas
verdes escapavam mechas de cabelo preto e liso, o homem tinha o
aspecto de um verdadeiro espantalho.
Monsieur Roget, consciente da carteira de dinheiro que tra-
zia no bolso, não se mostrou muito disposto a demorar-se, mas o
estranho se colocou diante dele, inclinou-se um pouco e bateu-lhe
familiarmente no ombro.
— Por obséquio, é ali a residência do advogado Henri Faure?
152
— perguntou êle, apontando com o guarda-chuva semelhante a
um saco.
Bem que o estranho podia ser um sujeito bizarro nas idéias
como o era na indumentária, pensou o merceeiro. — Não, não, ca-
valheiro — explicou êle com dificuldade — aquela, segundo me di-
zem, é a residência do senhor Chefe de Polícia. Aqui — êle indicou
o prédio diante do qual se encontravam — no segundo andar, está
o apartamento do advogado.
— Ah! -— exclamou o sujeito, perfilando-se. — Então agora
está tudo claro. Assim, se eu matasse o senhor Faure, bastava
atravessar a rua e apresentar-me ao Chefe de Polícia. Por outro
lado — acrescentou, sacudindo os ombros — se eu resolvesse ma-
tar o homem da polícia, não precisaria senão atravessar a rua para
assegurar-me a assistência de um advogado. Muito obrigado, ca-
valheiro.
Inclinou a cabeça, cheirou a flor artificial que trazia na lapela
e depois, tirando o chapéu delicadamente, observou:
— O tempo está esplêndido, para setembro, não lhe parece?
— Ah, sim — retorquiu Monsieur Roget, hesitante, esquecen-
do as primeiras palavras do homem ante a surpresa, que o tomou,
de ouvir alguém falar em setembro em pleno mês de maio. Con-
vencido de que estava tratando com um louco, êle, quase perdendo
a respiração, pediu “escusas ao cavalheiro”. . . e procurou afastar-
se.
— Mas não há dúvida, monsieur — respondeu o sujeito,
amàvelmente, enquanto o comerciante se afastava e seguindo-lhe
no encalço:
— Apresente meus respeitos ao seu bom pai.
Monsieur Roget, caminhando apressadamente, ia pensando
que teria assunto para muita conversa naquela tarde. Narrando
seu encontro com o original sujeito, êle percebeu que diversos fre-
gueses tinham observado a bizarra figura, rido da singularidade de
seu traje, e notado seu cacoete de cheirar a flor que trazia na lapela
e que era evidentemente artificial. Ninguém, porém, tinha conver-
sado com êle e Monsieur Roget era o único exemplo de alguém que
recebe o pedido de apresentar felicitações a um pai falecido havia
mais de trinta anos.
153
Charles, um garçon do Café Colette, estava em condições de
rivalizar com o merceeiro, como centro do mexerico, pois tivera,
ao que parece, uma conversa singular com o estranho. De acordo
com Charles, e embora, o que mais tarde ficou evidente, o homem
já tivesse colhido a informação de Monsieur Roget, êle inquiriu de
novo o garçon sobre o endereço do senhor Faure.
— É um advogado — explicou o espantalho. — Um camarada
violento, de sessenta anos, com cabelos côr de fogo.
— Mas não! — protestou Charles. -— Êle é um cidadão muito
amável, e não tem mais de quarenta e cinco anos. É um homem
distinto, se bem que um pouco gordo.
— Têm cinco filhos, sem dúvida — acrescentou o estranho,
num tom malicioso.
De novo Charles protestou. — O senhor Faure é solteiro. En-
tão não devo saber, se êle janta aqui todas as noites e eu tenho a
honra de servi-lo?
— É um farrista, certamente.
— Senhor — retorquiu Charles com certo calor —- Monsieur
Faure é de uma moralidade impecável e sua integridade profissio-
nal não se discute. Todas as noites êle sai do Café Colette e se re-
colhe ao seu apartamento, onde se dedica ao estudo dos processos
que precisa discutir no Tribunal no dia seguinte.
— Mas por que não trabalha no escritório? — indagou o es-
tranho.
— Porque, senhor — explicou Charles ao perguntador — em
seu apartamento da rua Grenoir, conforme êle já me disse várias
vezes, êle vive só, e na tranqüilidade do ambiente seu cérebro fun-
ciona com uma agudeza impossível quando a pessoa está sujeita a
interrupções.
— Não é bom que um homem viva só — disse o estranho,
com aparente irrelevância, acrescentando (Charles o lembrava),
com certa ferocidade: —- Estou cansado de ouvir falar nas virtudes
desse homem. Chegam a dar-me dor de cabeça. Se ouvir mais a
respeito dela, serei obrigado a fazer alguma coisa.
Irritado, Charles o deixou. Mais tarde ficou grandemente sur-
preendido de vê-lo derramar um pó num copo dágua e enquanto a
droga estava ainda em efervescência carregá-lo até o fio da calçada
154
onde derramou o líquido sem prová-lo sequer. Estava resolvido a
relatar a Monsieur Faure a conversa que tivera com o homem alto
e estava a ponto de citar o caso da água ao proprietário do café
quando, como se fosse o destino, uma nervosa mensagem, telefôni-
ca trouxe-lhe a comunicação do nascimento do seu primeiro filho.
Seu patrão, um bom sujeito, bateu-lhe nas costas e permitiu-lhe
que saísse por umas horas para ver a esposa e dar boas-vindas
ao rebento. Era uma garotinha encantadora, enorme, mas, pelo
menos quanto a Monsieur Faure, escolhera um momento bastante
inoportuno para chegar. Tivesse ela retardado sua vinda por meia
hora e talvez Monsieur Faure fosse poupado.
Duas horas depois de Charles sair para ver sua esposa, exa-
tamente quando o relógio dava nove horas, o absurdo personagem
penetrou no prédio da rua Grenoir, cujo segundo pavimento era
ocupado por Monsieur Faure. Seus calçados grosseiros repercuti-
ram no piso de pedra do hall de entrada, chamando a atenção de
uma senhora gorda e de meia-idade, que saía para tomar um ôni-
bus que devia partir de um ponto situado a meia quadra dali meia
hora depois. Dotada de um olho feminino para o detalhe, ela pôde,
mais tarde, na delegacia, dar a descrição de sua exata aparência, e
seu testemunho coincidiu tão perfeitamente com os dados forneci-
dos pelo senhor Roget e por Charles, o garçon, que não subsistiu a
mais leve dúvida no espírito das autoridades quanto à pessoa que
a polícia devia procurar.
Ela contou como o sujeito tirara o seu chapéu absurdo e in-
quirira por Monsieur Faure, como ela lhe dissera que o advogado
ocupava o andar superior, e como êle lhe agradecera, segurando a
flor artificial, e como, com uma polidez elegante, fizera uma alusão à
ausência de neve. Ela o tinha visto subindo as escadas, com a mão
direita, enluvada, segura no corrimão para sustentar-se. Somente
porque transpirou abundantemente, na sua pressa de apanhar o
ônibus é que ela se lembrou que era uma noite de verão e, natural-
mente, não era de causar surpresa que não estivesse nevando.
Se Monsieur não se surpreendeu com a singularidade da
criatura postada diante de sua porta, isso se deve possivelmente
ao fato de que êle estava habituado a receber pessoas esquisitas
que iam à procura de seus conselhos. Em verdade, embora poucos
155
o soubessem, êle tinha muitos encontros em seu apartamento da
rua Grenoir com pessoas de reputação suspeita que evitavam des-
pertar curiosidade procurando-o no escritório da cidade.
O visitante perguntou:
— Devo estar falando com Monsieur Faure, pois não? Posso
entrar?
E foi logo se introduzindo.
— Devo pedir-lhe desculpas por vir a esta hora, mas preciso
deixar Paris logo que o meu assunto esteja liquidado.
— E qual é o seu problema, cavalheiro?
— A fuga.
— Ah, pois, não. — Monsieur Faure considerou num breve
instante se o sujeito não teria fugido de um hospital. Seu aspecto
fazia supor isso. Se era assim, o melhor era conduzir o assunto
com humor. — Entre — disse êle, encaminhando-o até a sua mesa
de trabalho. Sentando-se, convidou o outro a sentar-se também,
em sua frente,
O magro visitante pôs de lado seu ridículo chapéu e encostou
seu bojudo guarda-chuva contra o lado da escrivaninha.
— Tenho algo para mostrar-lhe, que espero irá merecer sua
atenção, cavalheiro — anunciou êle. — Mas primeiro devo insistir
pela sua máxima reserva.
— Estamos completamente sós — assegurou-lhe o advogado.
— E não espero ninguém no espaço de uma hora.
— Uma hora? Será tempo suficiente. — Levantando-se da
cadeira, êle apresentou uma pequena chave. — Examine-a, doutor,
por obséquio — pediu êle, e enquanto Monsieur Faure segurava o
pequeno objeto, fazendo conjeturas, êle calmamente retirou uma
de suas luvas brancas e a colocou no bolso do seu casacão aboto-
ado.
— Parece não ser nada mais do que uma chave — ponderou
o advogado, restítuindo-a, sorridente.
— É como o senhor diz — aquiesceu o sujeito alto. — Mas há
ocasiões em que daríamos muito por uma chave. Quando ficamos
chaveados do lado de fora ou, talvez, do lado de dentro. -—- Enco-
lheu os ombros. — Mas eu cultivo meus passatempos. — Exibiu a
chave na palma da mão. —- Aqui está a chave . . . mas, agora, onde
156
é que ela está, Monsieur?
Não fêz mais que virar a mão, cuja palma ficou, por um ins-
tante, de face para o chão, e, revirando-a, em seguida, mostrou que
a chave tinha desaparecido.
— Muito bem — disse Monsieur Faure. Êle tinha uma curio-
sidade infantil pela mágica. A prestidigitação, particularmente,
sempre o intrigara e êle estava agora tendo a experiência de uma
exibição íntima e privada. O estranho repetiu o movimento e de
novo a chave apareceu-lhe na palma da mão; outro movimento e
ela desaparecia.
Intrigado, Monsieur Faure perguntou: — Poderei, por obsé-
quio, examinar as costas de sua mão? Sempre imaginei . . .
— Mas certamente — concordou, pronto, seu visitante, que
espalhou seus longos dedos diante do nariz do advogado, manten-
do a mão numa posição horizontal; depois, afrouxando os dedos,
permitiu que Monsieur os examinasse um a um. Não havia chave
alguma.
— O senhor realmente é muito hábil — confessou o advoga-
do, admirado.
— É necessário ser hábil quando a gente precisa libertar-se
de situações difíceis — explicou o outro. Enfiou as mãos nos bol-
sos. — Conforme já lhe disse, Monsieur Faure, eu sou um escapo-
logista. Mas, naturalmente, tudo isso é feito com trapaça. Estou
certo de que o senhor não se valerá de minha confiança.
— Claro que não — replicou prontamente o advogado.
O sujeito havia surgido com um par de algemas. — Estas
agora não são realmente tão temíveis como parecem — explicou. —
Veja, eu consigo libertar os pulsos. Prenda-os, por obséquio. — Es-
tendeu as mãos e Monsieur Faure fêz de boa vontade o que êle pe-
dira. — Agora — prosseguiu o visitante, erguendo as mãos — todo
aquele que olhasse diria que estou firmemente algemado. Não é?
— Sim, em verdade — concordou Monsieur Faure, pois êle
tinha não só engatado as algemas como experimentado sua firme-
za,
— Entretanto — observou o estranho — basta que eu deseje
e. . . voilà! — As algemas caíram fazendo um som fofo no espesso
tapete.
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— Extraordinário! — comentou Monsieur Faure, apoiando os
cotovelos na escrivaninha e descansando o queixo nos punhos fe-
chados. Afinal de contas o sujeito prometia ser interessante.
O visitante baixou-se e apanhou as algemas, pondo-as no
bolso. -— É de uma simplicidade infantil — explicou êle — mas fui
eu o único que encontrou a solução. Mas, já agora, há quem tente
roubar-me a descoberta.
“Ah, pensou Monsieur Faure”, estamos chegando agora ao
motivo da visita. Quer que eu lhe proteja os direitos. É um exíbicio-
nista e isso explica a excentricidade de sua indumentária.
— Não obstante parecer simples — continuou alegando o su-
jeito magro — gastei muito tempo para resolver o problema. Passei
uma infinidade de horas solitárias procurando uma saída. É justo
que eu não seja beneficiado?
— De modo algum — concordou advogado.
-— Veja — disse o outro, de súbito introduzindo as mãos nos
bolsos e retirando de novo as algemas. — Vou demonstrar-lhe. Dar-
lhe-ei, mesmo, este par, com o qual o senhor poderá impressionar
seus amigos e, talvez, a própria polícia. É uma questão de pressão.
Tudo que se faz preciso é estender as mãos, de preferência sobre
a cabeça, procurando afastar uma algema da outra, como se fosse
um prisioneiro procurando romper as cadeias. O segredo está no
controle do tempo. O excesso de impaciência deve ser evitado. No
momento em que as algemas são engatadas começa-se a contar até
dez. Dentro de pouco tempo o senhor verá que pode manter uma
conversa despistadora enquanto faz a contagem. Quando atingir
o número dez, faça um leve esforço e as algemas cairão. Ei-las,
experimente.
Monsieur Faure estivera inclinado para a frente, interessa-
díssimo, os cotovelos apoiados ainda no mata-borrão. Imaginara-
se, até, como constituindo a figura central de alguma reunião. Não
tinha assuntos mundanos para explorar e êle sentia que o conhe-
cimento de pequenas mágicas poderia muito razoavelmente repre-
sentar um ótimo ativo. Com estes pensamentos no espírito êle ficou
completamente surpreso quando o estranho de súbito segurou-lhe
os punhos e, antes que êle pudesse articular uma palavra de pro-
testo, o algemou. Um tanto chocado com a sem-cerimônia de seu
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cliente e secretamente aborrecido por se ter deixado colocar numa
situação tão pouco recomendável, êle, não obstante, forjou um sor-
riso tímido. — Ora, Ora. . . — exclamou.
O sujeito havia apanhado de novo a luva branca que antes
tirara e se pôs a calçá-la displicentemente enquanto falava.
—- Agora, tudo o que se faz necessário é imaginação, meu
amigo. O senhor deve dizer para os seus botões: estou a caminho
da prisão. Recebi uma sentença de dez anos. Não gosto de sentir
as algemas. Vou libertar-me delas. E, enquanto isso, deverá estar
contando.
Sentindo-se perfeitamente ridículo, Faure soergueu as mãos
algemadas sobre a cabeça. Seus lábios se moviam enquanto êle
contava baixinho. “Um, dois, três. . .”
— Oh, está indo muito depressa — interrompeu o outro. — O
tempo não passa com tanta rapidez. Imagine que está procurando
escapar da prisão — duma prisão injusta, naturalmente -—- e não
se permita mostrar-se por demais impaciente pois do contrário o
desapontamento dos primeiros insucessos o desencorajará.
Agora, de novo, Um. . . reflita; dois, reflita.
O advogado franziu as sobrancelhas. Esperava que nenhum
de seus amigos fosse escolher essa ocasião imprópria para visitá-
lo, pois êle era um homem que inspirava consideração e o mero
pensamento do ridículo o horrorizava. Desviando os olhos, come-
çou a contar de novo, os braços erguidos, a corrente das algemas
tensa. Parecia-lhe interminável o tempo até êle alcançar dez e dar
o pequeno puxão, conforme o outro recomendara.
— Dez — repetiu êle, alto e com ênfase, e esperou. Nada
aconteceu.
O escapologista o olhava gravemente. — Muito mal — obser-
vou. — O senhor terá de experimentar de novo.
— Tenho receio de que não seja muito bom nessa espécie de
truques -— confessou Monsieur Faure.
— Que nada! — interrompeu o sujeito alto. — O senhor deve
ter paciência. Não deve desistir. O senhor não se tornou um advo-
gado da noite para o dia, não é? Vamos, conte de novo. De um a
dez.
Um pouco afogueado, Monsieur Faure recomeçou silencio-
159
samente a contagem. As palmas de suas mãos estavam úmidas e
êle podia sentir o suor gotejando da extremidade de seus dedos a
escorrer-lhe pelo interior das mangas da camisa. Quando alcançou
dez e, novamente, nada sucedeu, êle deixou os punhos doloridos
cair sobre a escrivaninha.
— Desisto — disse êle. — Desprenda-as.
— Oh, o senhor não deve se deixar vencer tão facilmente —
admoestou-o o visitante. — Apenas imagine, conforme recomendei,
que o senhor está na cadeia procurando escapar. O senhor quer
voltar ao seio dos amigos. Para a sua amada, talvez. Não devia de-
sesperar logo após o primeiro insucesso.
— Mas eu não estou na cadeia — retorquiu Faure, irritado.
— Esforçou-se em, dar uma risada meio cordial. — Acho que daria
um péssimo mágico.
— Experimente uma vez mais — insistiu o outro. — Con-
te silenciosamente. Entrementes, quero mostrar-lhe mais alguma
coisa. — O sujeito ergueu o guarda-chuva, introduziu a mão sob
o pano e separou-o do cabo, o qual êle encostou contra o lado da
mesa. Seus dedos compridos e enluvados começaram a trabalhar
sobre o que havia restado, manipulando as varetas aparentemente
quebradas. A coisa informe começou a tomar forma. As varetas de
aço transformaram-se na estrutura, o pano de cetim preto nas pa-
redes de uma pequena bolsa. Colocou-a sobre a mesa.
— Perfeito, hein?
— Excelente — admitiu Faure, ofegante com o seu esforço —
mas lhe pediria o obséquio de soltar. . .
— Claro — disse o visitante, sacudindo os ombros de leve —
que é quase imaterial, mas quem o saberia?
Monsieur Faure continuava se esforçando por retirar as al-
gemas, não mais interessado em mágicas. — Algo saiu errado —
observou êle.
O outro não deu demonstração de haver ouvido. Êle apanhou
o telefone da escrivaninha e despreocupadamente o colocou numa
cadeira distante.
— Agora, esta bolsa e todos os outros utensílios deveriam ser
garantidos por copyright legal — anunciou.
— Este sobretudo, por exemplo.
160
Tirando a mísera e fúnebre peça, com rápidos e poucos movi-
mentos êle a pôs do lado do avesso. O forro, que agora se tornara o
pano externo, era um tecido do mais fino veludo. — Elegante, hein?
— murmurou vestíndo-o de novo, e baixando gola do casaco para
revelar um colarinho imaculado e uma bela gravata. — Nenhum
sinal de pobreza ou excentricidade. Mais elegante do que antes.
— Muito -— grunhiu Faure, preocupado apenas em livrar-se
das algemas. A ponta de seu nariz começou a comichar e êle foi
obrigado a levantar os punhos manietados para afastar a irritação.
Falou, então, com firmeza: — Senhor, devo insistir. . .
— Mas espere um pouquinho mais — sugeriu o escapologista,
imperturbável e pousando um olhar crítico no sobretudo. — Acho
que terei de realizar algumas operações próprias de alfaiate. Mas,
antes, vou fechar porta para evitar a entrada de intrusos. Todos os
mágicos guardam ciumentamente seus segredos — de todos, exce-
to, é claro, de seus advogados. Em largas passadas chegou até a
porta e torceu a chave. — O senhor não se importa, não é?
Monsieur Faure se importava muitíssimo. Desde o momento
em que se viu algemado, começou a sentir-se tolo e irritado. Agora
estava começando a sentir-se um pouco inquieto — para não dizer
alarmado. O fechamento da porta dera ao episódio grotesco um
toque de coisa sinistra. Mas não ocorria ao desalentado causídico
um meio de se sair da situação. O sujeito não fizera nenhuma ame-
aça, não dera nenhuma indicação de que não era mais senão um
excêntrico, excessivamente vaidoso de suas absurdas invenções, e
Monsieur Faure tentava convencer-se de que o homem era absolu-
tamente inofensivo. O olhar dele não assustava, mas, bem, sempre
é difícil saber-se. . .
Enquanto estes pensamentos lhe passavam pela cabeça — êle
nesta altura tinha posto de lado a idéia de que podia livrar-se das
malditas algemas com seus próprios esforços — o sujeito prosse-
guia: — Mas vamos remediar a curteza do sobretudo. Não podemos
encompridá-lo sem mais pano e como não podemos encompridar o
sobretudo, será necessário que encurtemos o homem.
Sentou-se num ponto em que Monsieur Faure podia vê-lo
perfeitamente, e bastante perto, pensava com inquietação o ad-
vogado, para fazê-lo manter-se na cadeira se êle fizesse qualquer
161
tentativa de movimento. Inclinou-se, então, e num instante as so-
las e os saltos dos seus toscos sapatos saltaram em suas mãos.
Não toda a sola, todavia. Monsieur Faure notou, pois ficara ainda
um solado fininho para suportar o resto do calçado. As solas falsas
tinham pelo menos quatro polegadas de espessura, com salto para
equilibrar, e êle as colocou sobre a mesa, ao lado da bolsa. Tirou,
em seguida, ambos os sapatos e removeu uma sola interna de uma
polegada de espessura.
Pondo de novo os sapatos e parando-se de pé, as calças fica-
ram compridas demais; mas, inclinando-se, êle repuxou as extre-
midades, descosendo duas tiras que apresentou ao advogado para
que este as verificasse. Abrindo a bolsa em que êle havia trans-
formado o guarda-chuva, pôs dentro dela as solas e os saltos e as
duas tiras de fazenda, fechando-a de novo. A seguir, baixou-se e
arranjou a extremidade das calças, dando-lhes uma bainha impe-
cável. Quando, mais uma vez, se pôs de pé, ele se mostrava cinco
polegadas mais baixo do que quando entrara e suas calças, sob o
sobretudo, tinham o exato comprimento de sua nova altura.
— Meu prezado senhor — declarou Faure, num tom de des-
prezo -— isto tudo é muito interessante, mas eu me sinto impossi-
bilitado de me concentrar enquanto algemado desta maneira. Quer
fazer-me a gentileza de desprender este objeto?
— Sem dúvida — disse o estranho amàvelmente — mas pri-
meiro veja uma coisa que há de provocar o seu interesse. — Re-
tirou de um bolso um pequeno lenço encarnado. Umedecendo-o
com a água da garrafa, existente na mesa de Monsieur Faure, êle
começou a esfregar as faces. Num instante as doentias manchas de
vermelho desapareceram e as faces de cada lado, sob a barba es-
cura, ficaram cadavéricas, e o rosto inteiro, percebeu, apreensivo,
o advogado, tornou-se subitamente mau.
-— A côr não aparece quando retirada com um lenço destes
— esclareceu o visitante, colocando-o na bolsa. — Mesmo o sangue
seria despistado contra um fundo assim.
Monsieur Faure sacudiu seus punhos algemados. — Eu in-
sisto. . . — iniciou êle, mas o homem levantou a mão pedindo-lhe
que se acalmasse.
— Tudo a seu tempo — prometeu êle. -— Dentro de poucos
162
minutos, se o senhor não descobrir o segredo, eu o libertarei. En-
trementes, há aqui algo que despertará sua curiosidade. — Obser-
vando sua imagem num pequeno espelho da parede, êle se pôs a
retirar cuidadosamente sua barba escura.
Pérolas de suor começaram a deslisar pela testa do advogado,
Se, no princípio, êle desejara que ninguém o viesse encontrar na-
quela situação, agora desejava ardentemente a chegada de algum
visitante inesperado. Até o momento em que o sujeito fechara a
porta, êle tivera receio, a despeito de seu constrangimento, de estar
sendo apenas ridículo. Que belo motivo para brincadeira entre os
colegas de profissão se se espalhasse a notícia de que êle se dei-
xara algemar dentro de seu apartamento por um lunático inofen-
sivo. Era uma espécie de situação que um homem nunca poderia
permitir. Agora, enquanto o estranho removia a barba, êle pensava
seriamente em pedir socorro. Lembrou-se, com um pequeno baque
no coração, que ninguém o ouviria. Madame Feuille, no andar in-
ferior, tomava o ônibus para a Avenida Clíchy às 9,30, com uma
regularidade de relógio. Ela tinha uma certa função num night-
club. E o casal do apartamento superior, três noites por semana, ia
jogar bridge com amigos, no Café Colette, às terças, quintas e sába-
dos! Para estar seguro, êle podia levantar-se e bater na porta, mas,
além da indecência que envolvia tal retirada de seu próprio gabine-
te, Monsieur Faure considerou que esta atitude podia provocar a
ira do lunático. O modo de ser do louco mudava, segundo pudera
observar, com a rapidez do relâmpago. Qualquer fracasso que o
homem pressentisse poderia provavelmente ter as piores consequ-
ências, enquanto êle estivesse lutando, algemado, para conseguir
abrir a porta. Não, êle não poderia arriscá-lo. Exigiu, em vez disso,
com o máximo de autoridade que pôde concentrar: — Tudo isto é
muito fascinante, mas insisto, senhor. . .
— Mais ou menos dentro de três minutos — prometeu o ho-
mem, e Monsieur Faure imaginou que podia perceber uma nova
nota em sua voz. Notou com alarme, que o camarada estava fican-
do excitado. Êle, agora, enquanto encarava o advogado, removia
as sobrancelhas hirsutas e a cabeleira escura e rebelde. O cabelo,
que apareceu, era grisalho. Apanhou o absurdo chapéu que an-
tes usava e retirou a fita espalhafatosa. Depois, introduzindo-lhe
163
a mão no interior, puxou uma fitinha e instantaneamente o cha-
péu tomou outra forma e tamanho. Colocou-o na cabeça cuidado-
samente, ajustando-o no ângulo certo. A cabeleira, os pêlos das
sobrancelhas e a fita do chapéu foram guardados na bolsa, feito o
que, com as mãos enluvadas cruzadas nas costas, êle se pôs diante
de Monsieur Faure. O espantalho que o advogado admitira em seu
apartamento tinha se metamorfoseado num cavalheiro elegante-
mente trajado.
Monsieur Faure improvisou um sorriso amarelo.
— Realmente, o senhor é um mágico.
— Era.
Em algum recanto obscuro do subconsciente de Monsieur
Faure algo lutava por chegar à tona. Um homem, um nome, uma
situação. — Por acaso já o conhecia? — perguntou êle.
— Sou alguém que o senhor talvez tenha esquecido. — Esta-
va agora virando as luvas brancas pelo avesso. Concluída a opera-
ção, vestiu-as de novo e o advogado viu que elas agora faziam uma
boa combinação com o seu chapéu e com o casaco. Tirou do bolso
um par de óculos com aros de ouro e ajustou-os aos olhos. Seu
olhar pousou na manta de seda de Monsieur Faure, que se achava
num cabide, pregado na parede, juntamente com seu claro sobre-
tudo. Apanhando-a, êle a alisou na palma da mão. -— O senhor
permite?
Monsieur declarou, ansioso por vê-lo terminar: — Está ao
seu dispor.
— É muita bondade sua, em verdade — disse o homem. Se-
gurava a manta em ambas as extremidades, examinando-a, experi-
mentando sua resistência. — É realmente uma manta excelente.
— Estimo que goste dela — conseguiu dizer Monsieur Faure.
— E agora, seja camarada, abra estas algemas.
— Naturalmente, naturalmente — disse o outro, como se ti-
vesse esquecido, e encaminhando-se na direção do advogado, com
a manta na mão. Mas parou, dando de ombros. — Mas onde está
a chave?
— Não seja absurdo — manifestou Faure, agora enormemen-
te assustado. — O senhor a pegou. Certamente não o esqueceu,
hein?
164
O homem franziu o sobrolho. — Não, não, os mágicos não
esquecem; esquecer é privilégio dos advogados. — Inclinou-se so-
bre Monsieur Faure e olhou-o fixamente através dos óculos, seus
olhos como que pegando fogo e na sua voz uma súbita tensão. O
advogado recuou na cadeira. — Procure lembrar-se!
— Mantenha-se afastado! — gritou Monsieur Faure. — Não
se aproxime mais. Quem é você?
— Não posso ser uma pessoa muito importante uma vez que
me esqueceu. É possível — prosseguiu êle depois de uma breve
pausa — que eu o tenha tido no espírito tantas vezes nos últimos
anos e que não me tenha dedicado nenhum pensamento? — Seu
rosto aproximou-se mais e o advogado procurou retrair-se ao seu
contato. — Não fale por um instante, pois do contrário nunca mais
pronunciará o nome que está procurando recordar. Deixe-me lem-
brar-lhe algo ao espírito, senhor, algo talvez de pouca importância
para si, mas, para mim, de enormes conseqüências. — Êle mostrou
todos os dentes e foi quase com um esgar que prosseguiu: — O
senhor consentiu que eu passasse dez anos na prisão. Eu tinha
pouco dinheiro e nenhuma influência, e o fato de eu ser inocente
provavelmente pouco significou. Minha vida e minha honra esta-
vam nas mãos de meu advogado. Eu tinha posto nele toda a con-
fiança. O senhor devia ter ido ao tribunal pronto e disposto a lutar
pela minha liberdade, mas o apareceu lá com o pensamento tur-
vado, ilógico e quase incoerente na argumentação, porque na noite
anterior tinha pensado mais no seu sensual e insaciável apetite do
que no homem que devia defender. Numa palavra, enquanto eu
passava a noite desperto de tão ansioso, o senhor se embriagava.
Esqueceu a defesa. Sua presença no tribunal foi mais um estorvo
do que uma ajuda. Bem, provavelmente me esqueceu antes mesmo
de eu entrar na cadeia, mas eu lá permaneci dez anos lembrando-
me do senhor.
Monsieur Faure estava com os olhos saltando das órbitas.
Disse num murmúrio: — Agora estou me recordando de você.
— A gente muda muito na prisão, especialmente quando se
é inocente. Mas o senhor também mudará, mas mais rapidamen-
te. Com um movimento hábil e incrivelmente rápido êle achegou
a manta à boca do advogado, mas, apesar da rapidez, antes que a
165
mordaça lhe tapasse a boca Faure gritou, não pedindo socorro, o
que é muito estranho, mas um nome. Georges Dumont, foi o nome
que êle conseguiu articular.
Não disse mais nada, pois havia um joelho parecendo uma
ponta de ferro contra o seu peito e porque a mordaça foi cruelmen-
te apertada. Tirando uma corda fina do bolso, Dumont amarrou
sua vítima à cadeira.
Foí no momento em que estava reforçando o último nó que
ele ouviu uma batida na porta. Deu umas passadas rápidas sobre
o espesso tapete e com o rosto colado à porta, esperou, escutando.
Dentro de poucos instantes a batida se repetiu timidamente. —
Quem quer que esteja batendo, deve ter ouvido Faure gritar meu
nome, pensou Dumont. Êle deve estar do outro lado da porta, fazen-
do-se perguntas. Alguns passos, vagarosos e hesitantes, imaginou
o escuta, foram dados no corredor, descendo as escadas.
Dumont reagiu rapidamente. Bastava que o homem atraves-
sasse a rua e relatasse o que ouvira ao chefe de polícia. Êle, Du-
mont, tinha suportado dez anos de horrores, tendo como único
consô1o a antecipação do seu triunfo final sobre o homem que
o desgraçara. Não ia permitir que lhe roubassem aquela vitória.
Abriu a porta, numa súbita resolução, postando-se de modo a que
ninguém pudesse olhar para dentro da peça. Havia um homem na
escada e já a meio caminho do andar inferior. Estava parado, pare-
cendo meio inclinado a voltar para trás. Dumont viu num instan-
te que era uma pessoa humilde, que reagiria timidamente a uma
demonstração de autoridade. Fêz um aceno enérgico: — Venha,
venha, — disse êle. — Monsieur Faure está agora desimpedido.
Um relógio ao longe soou a meia hora. Dentro de trinta minutos,
lembrou-se êle, o advogado teria outra visita.
O homem na escada não pronunciou palavra, mas voltou-se
e subiu vagarosamente, enquanto Dumont esperou atrás da porta
entreaberta pronto para fechá-la quando o outro entrasse. Meio
minuto mais tarde êle fechou e chaveou a porta quase que num
único movimento. O homem chegou a ver Monsipur amarrado e
amordaçado. Só conseguiu murmurar “Monsieur”, . . e nada mais.
A morte o interrompeu.
— Tinha de ser assim — reconheceu Dumont. — Não podia
166
lutar com êle. Nem sequer sei quem êle é. Para mim foi odioso
fazê-lo, mas estava em jogo a vida dele ou a minha vida. — Olhou
para Monsieur Faure, que, com os olhos esbugalhados de terror,
estava forçando as cordas e então mostrou-se mais sensível do que
pretendia e o matou imediatamente, usando o cabo que tirara do
guarda-chuva extinto, que se tinha transformado numa bengala e
de cuja extremidade se projetava uma lâmina de navalha já tinta
com o sangue de um homem que êle nunca vira antes daquela
noite.
Tirou da bolsa o lenço encarnado e úmido, que tinha usado
para remover o rouge de suas faces e limpou a parte da bengala
manchada de sangue, pô-lo de novo na bolsa e comprimiu a mola
que fêz a navalha reentrar no ôco da bengala. Tirou a mordaça da
boca de Monsieur Faure e recolocou a manta no cabide.
Depois, recolhendo a corda que amarrava o corpo, abriu as
algemas e pôs a corda, as algemas e a chave na bolsa. Olhou em
torno do quarto, tendo a satisfação de verificar que tudo se tinha
passado conforme desejara, dizendo-se que tudo ocorrera confor-
me seus planos, exceto que usara a manta de Monsieur Faure em
vez da que trouxera. Sim, tudo tinha se passado de acordo com o
plano — exceto que tinha assassinado dois homens em vez de um.
A lembrança o aborreceu e olhando com desgosto para o cor-
po do estranho, êle encheu um copo com a água da garrafa e derra-
mou nele um pó idêntico ao que usara no Café Colette na presença
de Charles, o garçom. Continuou desempenhando mecanicamente
seu plano preconcebido, mas seu espírito se fixava na segunda
vítima, e foi quase ausente que êle murmurou: “Para vossas dores
de cabeça, cavalheiros da polícia”, e, espalhando sobre a mesa os
clíps que havia numa pequena tijela, derramou nela o conteúdo do
copo.
Fechou, então, cuidadosamente, a bolsa preta e a apanhou.
Segurando a bengala sob o braço, tateou por um instante a lapela
do casaco. A coisa que êle removeu foi atirada aos pés do advogado
morto. Torceu a chave da porta sem fazer o menor ruído, abriu-a
um pouco e se pôs à escuta. Então, satisfeito com a observação,
saiu apressadamente. Ao descer as escadas não fêz ruído algum.
Dez minutos mais tarde Dumont estava sentado a uma mesa
167
defronte o Café Colette, com a bolsa a seus pés e a bengala entre os
joelhos. Tentava ler o jornal que tinha em mãos, mas continuava
pensando no homem que fora visitar Monsieur Faure num mo-
mento tão inoportuno. Como era estranho, ter gasto anos de sua
vida planejando a morte de um homem que lhe fizera um mal e de
repente, sob a pressão das circunstâncias, ser obrigado a matar
outro indivíduo que nenhum dano lhe causara.
Procurava convencer-se de que devia gozar integralmente
sua vingança, não se deixando sentimentalízar por causa de um
intruso. Não havia dúvida que o sujeito ouvira o nome de Georges
Dumont. Talvez este nome lhe tenha despertado a memória. Afinal
de contas, nenhum homem passa na prisão dez anos sem uma
pequena publicidade. Não, êle tinha de fazê-lo. Se não o fizesse, o
sujeito ia despejar a história nos ouvidos do Chefe de Polícia, na
rua Grenoir.
Pediu a Charles, o garçon, que tivesse a bondade de trazer-
lhe uma aspirina e este a trouxe, sorrindo ao lembrar-se do louco
que havia posto um pó em sua bebida e que, em vez de bebê-la, a
derramara na sargeta. Ainda estava pensando no absurdo da coisa
quando nas mesas começou a se espalhar a notícia de um duplo
assassinato. Servindo o cafezinho para Georges Dumont, o garçon
deu vasão à sua volubilídade.
— E pensar, senhor, que eu cheguei a falar com o crimino-
so! Nesta mesma mesa. Um sujeito alto e mal vestido, na certeza
um lunático. Oh, não há nenhuma dúvida quanto a isso. Muitos
o viram e consta que o pobre senhor Faure, na sua luta de morte,
arrancou do casaco do criminoso a flor artificial que eu próprio o
vi cheirar.
Dumont mal ouvia. Talvez que o pobre diabo que batera na
porta tinha uma família dependendo dele. Então, aborrecendo-se
consigo mesmo, procurou justificar a morte do homem com o velho
argumento. “Se eu o desejasse escapar, perderia também Monsieur
Faure.” Isso era inevitável. Já que Monsieur Faure devia morrer,
a sorte do outro também estava selada. Era lógico. Sua morte fora
necessária. De lamentar, mas absolutamente necessária.
Percebeu, então, que tudo saira mal. Viera ao café para re-
gozijar-se. Para ouvi-los comentar a notícia da morte de Monsieur
168
Faure e a maneira como o fariam. Para escutar, congratulando-se
com a sua habilidade. Mas, em vez disso, o que ouviu foi comen-
tários sobre a morte do outro — o inocente — e sentiu, então, no
fundo do coração, que dali por diante para ele não haveria paz, mas
somente um remorso roedor lhe perturbando a liberdade. Liberda-
de? Êle jamais seria livre.
Surpreendeu-se perguntando ao garçon: — Mas por quê?
Qual a razão deste crime?
Charles sacudiu os ombros. — Algum ressentimento contra
o advogado. Talvez contra todos os advogados. Porisso, quando fôr
chamado para dar o meu testemunho, eu terei de contar que êle
concebia Monsieur Faure como um libertino de sessenta anos, com
cabelos cor de fogo. Ah, não há nenhuma dúvida de que êle tinha
qualquer coisa na cabeça contra Monsieur Faure. Mas, pergunto-
lhe, cavalheiro, que ressentimento poderia ter um lunático contra
um sujeito surdo como uma porta, como era o pobre Jacques.

169
Temos uma grande dívida com um dos “mais assíduos” leito-
res do MISTÉRIO MAGAZINE pela seleção e pelo texto do conto que
se segue. O leitor é Paul Kitchen, de Bayonne, Nova Jersey, e deve-
mos confessar que quando Mr. Kitchen chamou nossa atenção para
“Mitrídates o Rei”, de Morley Roberts, ele nos apresentou um conto
de que nunca ouvíramos falar. E estamos muito agradecidos — pois
não devíamos deixar de conhecer este conto fora do comum.
O único trabalho de Morley Roberts que conhecíamos era um
conto bastante curto denominado “The Anticipator”, reimpresso
numa das antologias de Dorothy L. Sayers. “The Anticipator” é da-
quele tipo de história que, uma vez lida, permanece para sempre na
memória. Foi incluída no raro e pouco conhecido livro do autor, The
Grinder’s Wheel (1907), que Christopher Morley certa vez descreveu
como “um achado de grande valor”.
Morley Roberts, cujo nome é raramente ouvido nestes dias de
esquecimento, morreu em 1942 com a idade de oitenta e cinco anos.
Seu primeiro livro foi publicado em 1877 e o último em 1941 — cin-
qüenta e quatro anos de esforço criador. Durante este notável es-
paço de tempo Mr. Roberts escreveu mais de cinqüenta livros, uma
média de um por ano, explorando praticamente todos os gêneros da
expressão literária — o romance, o conto, o drama, a biografia, e nos
últimos anos de sua vida, tratados sobre a política mundial. Foi ami-
go pessoal de Joseph Conrad, W. H. Hudson e Conan Doyle, e seus
“hobbies” favoritos eram o xadrez e a pesca.
Já declaramos que “Mitrídates o Rei” é um conto fora do co-
mum. Em verdade, é muito mais do que isso, O único epíteto que lhe
convém é aquele abusadíssimo qualificativo de “único”. Mas citemos
Mr. Kitchen, o verdadeiro descobridor da história: “A idéia, o pivot
170
dessa história é, por certo, tal, que não me recordo de haver lido
coisa semelhante em parte alguma, muito embora tudo se mostre
muito simples e óbvio depois de conhecermos o desfecho... Roberts,
entretanto, manipula a idéia muito divertidamente, e, além disso,
consegue o “clímax” a que os senhores se referem na nota introdu-
tória ao “The Stone Ear”, de Vincent Cornier. Mas em seu conto Ro-
berts sobreexcede Cornier — segurando a explicação do mistério até
a derradeira palavra. A solução de Cornier estava realmente em três
palavras, e estas três palavras foram empregadas no começo da
história, e não de uma maneira totalmente insignificativa, Roberts
reserva sua solução para a última palavra, e é a única vez que tal
palavra (ou significação) aparece no conto!”
Estamos de pleno acordo.
Mr. Kitchen prossegue: “Presumo que irão adotar um novo titu-
lo; o atual me parece pouco feliz e obscuro.”
Neste ponto discordamos de Mr. Kitchen. Não nos parece que
possamos melhorar o título de Morley Roberts. Concordamos que o
titulo original não seja particularmente atraente. E êle é, por certo,
obscuro. Mas o sentido do velho termo farmacêutico — mitrídate — é
absolutamente pertinente, e, se bem que a aplicação a Mitrídate o
Rei não seja perfeita, o termo faz parte do mistério. Mas não procure
a palavra mitrídate ou Mitrídates em seu dicionário ou enciclopédia
antes de ler o conto de Mr. Roberts, que se achava imerecidamente
“perdido.”

MITRÍDATES O REI

Morley Roberts

O MINISTÉRIO da Guerra acha-se à esquerda de Pall Mall,


para quem segue na direção de West. É uma compósita, complexa,
labiríntica e protoplasmática massa de salas amorfas, corredores e
cubículos, onde é fácil a um homem ou a um projeto perder-se tão
completamente a ponto de nunca mais ninguém ouvir falar deles.
Nele existem salas com estantes repletas de livros belos e raros,
dignos de serem roubados; há outras com fósseis humanos, admi-

171
ràvelmente próprios para exibição, embora não exista quem pense
roubá-los; noutras há uma boa quantidade de homens capazes,
mas ali inutilizados para a vida; há alguns não totalmente inutili-
zados; outros há, pouquíssimos, que constituem excelentes funcio-
nários, pois o próprio serviço público nem sempre consegue des-
truir a natural energia de um homem. Destes, Hetherwick Coutts,
da A. G. 15, era um. Aos olhos dos superiores seu concurso, era
inestimável. Seus subordinados, porém, o consideravam uma bes-
ta. Votavam-lhe um ódio unânime e o manifestavam sem a mínima
reserva — quando êle se achava em licença ou fora da sala.
Para alcançar o departamento conhecido tecnicamente como
o A. G. 15, entra-se na porta mais próxima ao Reform Club, e de-
pois se pende para a direita. Depois de se andar mais ou menos
cem jardas, de passar por várias portas, e de contornar cuidado-
samente pilhas de caixas de papel que são humoristicarnente des-
critas como “em trânsito”, o visitante depara com uma escada de
pedra. Nesta altura convém-lhe chamar um mensageiro e gorgeteá-
lo. Depois de uma longa e cansativa jornada o viajante alcança um
corredor escuro que se assemelha à entrada de uma catacumba, e
provavelmente inutiliza, seu chapéu de encontro a um bico de gás
apagado. Abrindo uma porta, penetra no A. G. 15, e quase colide
com eus ocupantes, que usualmente são em númeero de seis.
Hetherwick Coutts ocupava a segunda peça, com um subor-
dinado, a quem um longo estágio no serviço militar, numa posição
subalterna, tornara impermeável ao mau temperamento de qual-
quer superior, a menos que lhe aplicassem pontapés. Justo é dizer
que Coutts nunca lançou mão de tais recursos, nem jamais atirou
objetos nos seus subordinados. Um divertimento sadio consiste em
lançar papéis ao chão e pedir ao inofensivo cavalheiro, que os trou-
xe, que os apanhe de novo.
É um meio desagradável de levantar objeções, e em qualquer
emprego, salvo o de Sua Majestade, esse sistema podia dar origem
a ações por ofensas e agravos. Hetherwick Coutts porém, não era
grosseiro a esse ponto. Vestia-se bem, e procurava viver de acordo
com a moda que lhe ditava o alfaiate. Seu forte era o sarcasmo,
e uma espécie de insolência militar que adquirira de um ou dois
oficiais superiores, que haviam sido relegados para os confins do
172
Ministério da Guerra, como deputados-assistentes-ou-coisa-que-
o-valha porque eram demasiado espertos para viver com seus re-
gimentos.
É muito fácil aprender-se a zombar de alguém num grande
escritório. Há a certeza de haver pelo menos um idiota na sala e,
se êle é muito irascível, ou combativo em excesso para sustentar a
discussão verbalmente, surge um momento em que se retira para
fumar um cigarro. Então os outros podem colocar-se diante do fogo
e dizer o que pensam sem receio de uma rixa, que pode muito bem
terminar com arremêssos de tinteiros ou de exemplares da bíblia,
na edição feita para o exército, encadernada em papel vermelho.
Em alguns departamentos do Ministério do Exterior eles lutam
arremessando-se maços de mensagens de felicitações dirigidas a
Sua Majestade, nas quais nossa nobre rainha é cumprimentada
pelo seu natalício ou por qualquer outro evento. Destas mensagens
poucas, em verdade, chegam até Windsor, não obstante as cartas
que lhe acusam o recebimento. Mas em Pall Mall as maiores al-
gazarras e tumultos são feitas com almanaques militares ou com
tocos de vela. Mas deixemos de digressões, se bem que úteis, pois
foi num ambiente destes que Hetherwick Coutts ingressou na sua
primeira mocidade.
Como êle era odiado! — porque não era nenhum idiota, e ti-
nha uma memória prodigiosa.
— Havia um papel sobre este assunto, há cerca de dez anos
— lembrava êle, com facilidade, e os funcionários do empoeirado
arquivo praguejavam quando tal documento era requisitado.
— O senhor já cometeu exatamente o mesmo engano, antes,
Mr. Smith, de modo que lhe falta mesmo originalidade.
E podia recordar o erro de Mr. Smith nos seus mínimos de-
talhes, deixando indignado um homem tão zeloso no cumprimento
do dever.
Descia, então, a particulares absurdos. Um mísero escrivão
de dez pences a hora não podia cortar seus t de tal ou qual manei-
ra, a menos que quisesse procurar outro emprêgo. Procedia, tam-
bém, mesquinhamente, e mais de uma vez cometia erros com o
propósito de admoestar um funcionário por não tê-los percebido.
Às vezes tinha de assinar uma porção de papéis, anotando, em
173
cada um, “nada a observar”.
— Se me pedissem informações sobre a inteligência daqueles
que me ajudam — observava êle zombadoramente — eu teria de
requerer um novo suprimento de papel para minuta.
Sempre fingia não ver seus subordinados se os encontrava
na rua, o que o fazia naturalmente muito agradável. Se eles sou-
bessem, porém, que o diretor geral, fazia o mesmo com ele, isso re-
presentaria um bálsamo para suas feridas e os levaria a trabalhar
animadamente durante uma semana. Bufava quando, às vezes, al-
gum funcionário lhe formulava uma pergunta. Brigava com os ser-
ventes. Os mensageiros o detestavam. Os ordenanças sonhavam
surpreendê-lo à noite para arrancar-lhe as entranhas. O garçon
que lhe servia o jantar, ou melhor, o lanche, pensava envenená-lo.
Havia outros, além do garçon, que imaginavam que a melhor
coisa que podia acontecer era Hetherwick Coutts fixar residência
no outro mundo e dirigir um A. G. 15 no mais profundo inferno de
Dante, tendo Satã como comandante em chefe. É comum os su-
bordinados odiarem o chefe, se existe alguma oportunidade de me-
lhorarem de situação quando sua morte sobrevém. E quanto mais
os homens sobem, mais se aguça sua insaciável ambição. Esta é a
maldição do serviço público., Ocultos no recesso de sujos edifícios,
seus problemas não significam nada para o mundo. Sua única am-
bição gira em torno de um poder minúsculo e de uma carteira mais
cheia. E se alguém, em qualquer tempo ou circunstância, odeia o
homem que lhe ocupa um lugar superior, quanto mais — Ó Pobre
Obscuridade! — o detestará se êle lhe barra o caminho, e não é
nem velho nem incapaz, e possue uma ágil e indecente saúde. A
única esperança, então, é vê-lo morrer de apoplexia. Êle tinha um
rosto saudável e sangüíneo — o que os levava a pensar que isso
constituía um bom sinal. Havia dois, pelo menos, que esperavam
tornar-se chefes, quando Hetherwick Coutts estivesse. Odiavam-
se, mas o ódio que votavam ao outro tornava-se, para eles, uma
doença cada vez mais grave.
F. W. Palmer, ou Frederick Wentworth Palmer, era o homem
que, de acordo com a rotina oficial, tinha a melhor chance, pelo
fato de ser o mais antigo a serviço de Lyall Burke. Mas Burke era o
mais capaz dos dois, e tinha uma nítida vocação para a subservi-
174
ência. Coutts tinha melhor disposição com respeito a Burke do que
com qualquer outro em torno dele. Já procedera com êle, várias
vezes, com notável amabilidade, o que deixava Burke intrigado, à
espera de qualquer surpresa.
Diante de um propósito firme, o indivíduo deve agir de um
modo ou de outro. Pode esperar e esperar, mas, afinal, êle se abor-
rece de tanto afiar sua navalha em vão. Precisa escanhoar alguém.
Seus pensamentos evoluem conforme sua disposição. Deles brota
a flor do projeto e o fruto da ação. Numa vida mais ampla, é-nos
fácil darmos vasão a nossas energias, mas numa estreita rotina a
raiva, o ódio, e a falta de caridade não faz mais senão florescer. Se
um homem nos molesta sem saber, podemos sorrir e suportar, per-
manecendo em paz. Quando, porém, nos odeia, e nós a êle, o diabo
entra no embrulho, e todo o conteúdo odioso da panela da bruxa se
transformará no feitiço que mal murmuramos entre dentes.
Aquele homem distribuía espinhos no caminho de seus su-
bordinados. Tornara-se deshumano, bestial. Eles odiavam sua for-
çada cortezia. Sob suas línguas macias se ocultava a malícia. O
ciúme e a desconfiança que alimentavam entre si não era nada
quando pensavam nele. Cálidos sentimentos, simulando cama-
radagem, os excitavam quando pronunciavam rutilezas contra o
inimigo comum. Faziam conjeturas sobre sua força vital: quanto
tempo viveria êle? Perscrutavam todas as mudanças que ele reve-
lava: os sinais de uma noite mal dormida levantava-lhes as espe-
ranças. Quando êle se sentia realmente doente, pulso frouxo fazia
o deles acelerar; quando fraquejava, os outros se tornavam mais
fortes; quando êle saia, em licença, os dois se aproximavam. E, de
repente, a besta voltava, tão forte, corajosa e saudável que quase
desfaleciam. Congratulavam-se com êle pàlidamente como dois ve-
lhacos; e, como dois velhacos, ainda, naquela noite transformavam
dois lares num inferno.
Quem pôs a idéia em seus corações, quem os instruiu, quem
lhes deu coragem mesmo para pensar na sua morte do modo como
o fizeram? As sementes de todos os crimes se encontram em todos
os corações, como as sementes de todas as altas virtudes, de todos
os nobres desejos. Humilhe um homem, pode ser que êle não rea-
ja, falta-lhe coragem. Com o tempo, porém, êle reagirá. Esses dois
175
homens, independentemente um do outro, determinaram livrar-se
de Hetherwick Coutts. Precisavam matá-lo. E muito naturalmente
voltaram-se para o veneno. Estudaram a coisa em segrêdo.
Hetherwick Coutts, entrementes, comportava-se como uma
exigente dona de casa, que, depois de permanecer até tarde na
cama, levanta-se para descobrir pòzinhos e sujeira em todos os
cantos do apartamento. Isto aqui estava errado, aquilo também:
por que é que quando dava as costas tudo passava a ser mal fei-
to? Tirava a pele de todos, e derramava-lhes ácido nos ferimentos,
deliciado, vendo-os contorcerem-se: usava um hemisfério do seu
grande cérebro para trabalhar e outro para inventar sarcasmos.
Durante duas semanas êle se divertiu extraordinariamente, e esta-
va já caindo na sua rotina habitual depois de conseguir que Burke
e Palmer ficassem tão bons quanto suas más resoluções.
A melhor maneira de induzir seu espírito a fazer alguma coi-
sa boa, sem qualquer moleza ou lentidão, ou falta de completa de-
cisão, é fazer exatamente o contrário, e permanecer do lado de
Ahríman sem nenhuma reserva. Cinco minutos antes de iniciar este
período, li uma carta que me acusava de deixar minha imaginação
escapar com suas faculdades perceptivas. Se isso é verdade, posso
estar errado em pensar que deve estar além de qualquer arte, ou da
prática de qualquer arte, não ter consciência nem remorso e uma
paixão por envenenamento. Penso, assim, que o melhor momento
que os dois subordinados de Coutts tiveram em sua vidinha de
serviço miserável foi quando sc mostraram à altura e começaram
a agir consoante seus impulsos reais. Mas a paixão que conduz ao
crime é usualmente como a aurora de um dia úmido. Há sangue,
e fogo e uma coloração de aspecto imortal a leste, mas êle se acin-
zenteía quando o mar se torna frio e o vento e a chuva aparecem
juntos para apagar-lhe a glória vã. Esses homens, afinal de contas,
eram covardes, muito embora uma vez tenham tido a ousadia de
agir. Pois tiveram.
Eles o envenenaram no mesmo dia, à mesma hora, já que
alguma estranha simpatia os unia. Quando Hetherwick Coutts os
insultou num tom em que concentrava todo seu desprezo, eles lhe
deram uma resposta vulgar e silenciosa, pondo-lhe veneno na cer-
veja. Sentaram-se à parte, num extremo da sala, e o viram esvasiar
176
a garrafa. O sangue gelou-lhe nas veias, tremeram e murmuraram
desculpas às suas próprias consciências. Como se sentiram mal,
quando, meia hora depois das duas, êle anunciou que não estava
se sentindo bem e que iria para a casa. Estavam com a garganta
tão seca quanto as fontes do inferno, Foram invadidos pelo arre-
pendimento e começaram a suar frio. O homem, antes de praticar
um crime, deveria provar sua coragem, e não se atirar cegamente
no inferno sem conhecer sua capacidade de suportar um tormen-
to.
O medo que lhes ia na alma passou a refletir-se na expressão
espectral da fisionomia de ambos. Começaram a olhar-se furtiva-
mente, e terminaram por se temerem. — Por que será que Burke
estava olhando daquela maneira? — conjetura Palmer, e idêntica
pergunta se fazia Burke. Sob pretextos tolos, um passou a rode-
ar a escrivaninha do outro. Olhavam-se com o rabo dos olhos. O
despistamento que um notava no outro era uma confirmação. À
medida que as horas passavam, mais se confirmavam suas mútu-
as suspeitas. Quando o relógio deu cinco horas, os demais saíram
como bestas de carga satisfeitas por ter chegado o momento de
serem desatreladas. Os dois permaneceram e lavaram as mãos,
como teriam lavado suas memórias enodoadas. Burke conversava
com seus botões; diria que não se achava disposto a ir para casa;
convidaria Palmer para jantar com êle. O mesmo pensamento se
aninhava no cérebro mais lento de seu colega.
— Se quiser — disse Burke — venha jantar comigo em algum
restaurante. Não me sinto com vontade de ir para casa.
— Muito bem — respondeu Palmer, com uma voz rouca.
Burke sentiu-se um pouco melhor. — Jantaria aquele homem com
êle se soubesse? E se êle o tivesse visto?
Saíram, assim juntos e desceram Pall Mall até Charing
Cross.
— Vamos ao Gatti’s — lembrou Burke. Sentaram-se no extre-
mo do longo restaurante. Ambos procuraram esconder suas faces
na sombra. Mas havia pouca para os dois, e Palmer obteve o que
havia.
Burke encomendou um bom jantar: sopa, vol-au-vent e um
pássaro, e sugeriu champanha. Embora fosse mais miserável que a
177
própria Miséria, Palmer não se mostrou surpreso. Este fato fêz com
que o coração do seu anfitrião sofresse um baque.
Comeram como se estivessem a mastigar côdeas secas numa
prisão, e enquanto isso se olhavam furtivamente. Beberam como
se quisessem apagar um fogo interior e adquiriram mais coragem.
Por tudo isso, olhavam como dois sujeitos pálidos e estranhos,
nada simpáticos. Os jovens tolos e as garotas, os velhos tolos e
as pequenas, de modo algum tolos para a sua geração, pareciam
sensatos e grandes ao lado deles. Como há diferentes infinitos, há,
também, diferentes degradações. Sentir-se grandemente amedron-
tado depois de um ato deliberado é mergulhar nos abismos do mais
profundo inferno. Eles continuaram a beber.
Palmer insistia em encomendar mais vinho, pelo qual êle
é que pagaria. Aquilo que os levaria para a sargeta uma semana
atrás não significava nada agora para ambos. Estavam estranha-
mente concientes de que bebiam uma enormidade sem se sentirem
afetados. Puseram-se a beber conhaque, e sua triste e extraordi-
nária sobriedade fêz com que o garçon os respeitasse. Dois caniços
secos, e quanto podiam beber! Levou o fato ao conhecimento do
gerente, que os inspecionou para estimar-lhes a solvência. Saíram,
afinal, e o ar frio da noite os afetou. Desceram o Strand e entraram
num botequim para tomar um traguinho de despedida. Simulavam
amizade, Burke tornou-se mais ousado.
— Para o diabo com o velho Hetherwick Coutts! — exclamou
êle.
— Sim — aquiesceu Palmer, pálido como um defunto. Sua
língua parecia colada. Burke olhou-o, de súbito, e Palmer deu as
costas e se pôs a caminhar. Seu alegre companheiro o seguiu. Su-
biram na direção de Píccadilly em silêncio.
“Gostaria de saber se êle vai para casa”, foi o pensamento que
ocorreu a ambos. “Logo que êle se ver livre de mim, - êle informará
a polícia”, murmuraram. Entraram em Piccadilly, eram doze horas,
ou doze e meia, e véspera de 1.° de Maio. Palmer cambaleou, no
próximo cruzamento, e saiu tropeçando pela ruazinha estreita, que
conduz a Vine Street; a Delegacia de Polícia se encontra ali, no fun-
do de St. James Hall, casa da música e da moral. Burke teve um
súbito e cego acesso de raiva, soqueou Palmer fortemente e o atin-
178
giu nos queixos; o outro replicou, e ambos saíram rolando, engalfi-
nhados. Formou-se uma multidão de homens e mulheres, e gritos
e apupos trovejaram sobre eles enquanto lutavam na calçada.
“Dois janotas brigando” — exclamou uma pequena, que um
policial pôs de lado. Dentro de meio minuto eles se achavam no
interior da Delegacia, pois o policial se refreara três vezes, naquela
noite, para não prender alguém. Mesmo a tolerância de um policial
tem limites.
Quase que brigaram de novo para cada um dizer a primeira
palavra, e foram apartados rudemente por um outro policial.
— Afinal, o que houve? — indagou o delegado de plantão.
— Encontrei estes dois bêbados brigando — respondeu o po-
licial.
—- Êle envenenou um homem no Ministério da Guerra —
berrou Palmer, que na sua raiva, envolta em temor, lembrou-se de
acusar o outro do seu próprio crime.
— Foi êle quem envenenou! — retorquiu Burke prontamente.
— Eu o vi.
— Fêz o quê? — perguntou o inspetor. — Cale a boca, por
favor!
Esta advertência era para Burke, e como estivesse recupe-
rando sua calma e auto-contrôle, êle dobrou-se.
— Agora, senhor, repita o que estava dizendo.
— Estava dizendo que esse homem envenenou Mr. He-
therwick Coutts no Ministério da Guerra, nesta tarde. Eu o vi —
disse Palmer, cambaleando, pois estava completamente embriaga-
do.
— E o senhor diz que êle fêz o mesmo?
— Sim — respondeu Burke. — Eu o vi..
O inspetor deu de ombros e os examinou curiosamente. Vi-
rou-se para um sargento, pois recém assumira a função.
— Veiu alguma comunicação do Ministério cia Guerra?
— Não que eu saiba — respondeu o sargento.
— Acho que o melhor, então, é acomodar estes dois cavalhei-
ros por esta noite, pois se não envenenaram ninguém, eles, pelo
menos, estiveram se envenenando — observou o inspetor.
Foram afastados e cada um recolhido a uma cela.
179
— Coisa um tanto esquisita, não lhe parece, Bowes? — per-
guntou o inspetor, afastando sua cadeira e se aproximando do fogo
para aquecer-se.
— Parece, mesmo — respondeu o lacônico sargento.
— Acha que houve realmente alguma coisa? — O inspetor
não pôde deixar de fazer a pergunta, pois a coisa parecia de fato
muito curiosa.
— Bebedeira, chefe! — respondeu Bowes.
— Amanhã cedo mande alguém ao Ministério da Guerra in-
dagar a respeito desse homem, desse Mr. Hetherwick Coutts.
E na manhã seguinte o sargento cumpriu a determinação.
Às onze horas Mr. Hetherwick Coutts estava no seu costumeiro
lugar, e em resposta às perguntas sobre sua saúde, declarou que
se sentia muito bem, embora tivesse se sentido muito mal na tarde
e na noite anteriores. Palmer e Burke nada ficaram sabendo da
indagação.
— Mas eu lhe dei uma dose de atropina suficiente para matar
dois homens! —- ficou Palmer conjeturando.
— Mas eu lhe dei uma dose de muscarína capaz de matar um
cavalo! — disse Burke para os seus botões.
Mas acontece que estes dois venenos são antídotos.

180
PRÊMIO ESPECIAL PARA O MELHOR CONTO-MIRIM

O conto “Oh Tempo em tua Fuga’ de Vincent Cornier, tem uma


história curiosa. Quando pela primeira vez submetido ao Sexto Con-
curso Anual do EQMM, era, na versão original, uma história de fô-
lego. O enredo era complicado, mas do seu emaranhado sobressaía
um magnífico argumento. — Algo de inédito, fresco e estimulante.
Sentia-se que a principal idéia do enredo fora prejudicada ao invés
de melhorada por todas as minúcias que a sustentavam, e que aqui
se notava um exemplo onde o desenvolvimento estrutural fora preju-
dicial. Foi então sugerida a Mr. Cornier uma drástica revisão em seu
trabalho. Pedimos-lhe que extraísse a “grande idéia” da história, e
usasse aquela, e somente aquela, como única estrutura — e por que
não reduzi-la de 7000 para 2000 palavras? Nossa sugestão teve
boa acolhida. Decidiu o mesmo, finalmente, reter na nova versão
a principal idéia do enredo com mais uma chave, resultando que o
produto melhorado confirmava o acerto desta decisão: o material
suplementar dava mais riqueza à história.
Escrevia depois Mr. Cornier para a Comissão Julgadora que
a revisão “exigira um trabalho gigantesco de raciocínio, mas acre-
ditava ter conseguido este intento”. Em verdade, concordamos que
assim tenha sido. Previnir-se é armar-se; contudo, saiba o leitor que
o conto a seguir representa um trabalho de raciocínio elevado, com o
risco calculado, em forma sintética.

181
OH TEMPO, EM TUA FUGA

Vincent Cornier

TODOS os indícios faziam crer que o velho Benjamin Jaffa


fora morto com um tiro, precisamente às quatro e trinta e seis de
uma tarde de sexta-feira, dia onze de junho.
Jaffa era um rico joalheiro aposentado. O cofre em sua casa
de Manor Fields, situada no vilarejo de Layethorpe, fora violado
pelo assassino, que havia feito uso das chaves da vítima. Haviam
sido roubadas jóias, em sua maior parte ainda desmontadas, no
valor de vinte e sete mil libras. Alaric Ineby, gerente da firma de
Ben Jaffa, forneceu à polícia a lista dos quilates, identidade e ava-
liação das jóias. Ineby estivera em Layethorpe no dia fatal — con-
tudo, estava isento de qualquer suspeita de participação no crime,
tal o álibi que apresentara, Jaffa fora um vizinho amável e feliz até
fevereiro daquele ano. Ocorrera então a morte de sua irmã cega,
Leah. A dor transtornara-o: era agora um homem de vida reclusa e
sombria. Serventes e jardineiro foram despedidos, sendo contrata-
da para fazer o serviço diário a Sra. Lizzie Swires, uma mulher de
hábitos negligentes.
O corpo fora encontrado na manhã de sábado pela Sra. Swi-
res. Jaffa estava debruçado sobre a mesa de trabalho do estúdio.
Tinha em sua mão uma caneta e sobre a escrivaninha via-se um
talão de cheques aberto, estando um deles já preenchido na parte
referente à data. Na sua cabeça grisalha foram constatados dois
ferimentos. Um consistia em um sulco superficial — causado por
uma bala que raspara o couro cabeludo, indo dai alojar-se no inte-
rior de um pequeno relógio de mesa; o outro produzira uma perfu-
ração fatal e fulminante na nuca.
O relógio de mesa era de uma importância vital. Ben Jaffa
tinha sido um renomado colecionador de raros exemplares de re-
lojoaria, e este representava o seu maior tesouro “pessoal”, porque
para êle esse tinha um profundo simbolismo hebraico e também
porque o mesmo fora de grande utilidade para sua irmã cega Leah.
Era uma obra-prima saída das mãos de John Arnold, de Londres,
no século XVIII, e estivera sempre em poder da família Jaffa. O
182
relógio não possuía vidro. Em lugar de algarismos romanos ou ará-
bicos, o mostrador esmaltado consistia de pequenos pontos doura-
dos em relevo. Cada um destes ostentava o emblema de uma das
doze tribos com as letras do alfabeto hebraico em destaque: aleph,
beth, gimel, daleth, he-até yud-aleph e yud-beth, décima-primeira e
décima-segunda letras. Pelo simples toque nestas letras e pontei-
ros com a ponta dos dedos Leah sabia a hora de imediato.
Era o relógio principal de toda a coleção. A exigência de Jaffa
quanto à precisão do tempo registrado por seus relógios, inclusive
este, era tal — como relatou Alaric Ineby à polícia — que o mesmo
funcionava com a exatidão de até meio segundo. O tiro que raspara
o crânio de Jaffa fizera cessar o delicado mecanismo, inutilizando-o
instantaneamente. Já que os ponteiros com filigrana dourada es-
tavam fortemente seguros em torno de seu eixo central, nenhuma
possibilidade havia de terem os mesmos desviado, para frente ou
para trás, ainda que uma fração de segundo, em sua marcha.
O exame microscópico provara que, com exceção das mãos
de Jaffa, nenhuma outra havia tocado no relógio durante muitas
semanas — nem, aliás, as mãos grosseiras da Sra. Swires tiveram
jamais permissão para limpar o estúdio.
Também pessoa alguma poderia ter improvisado uma hora
falsa com o auxílio de instrumento apropriado ou outro qualquer.
O magnífico mecanismo de John Arnold não era regulado por bo-
tões ou controle externos. Se por ventura o marcador não mostras-
se a hora certa, o mecanismo tinha de ser parado para que fosse
acertado o tempo.
Alaric Ineby sempre visitava Layethorpe às sextas-feiras, pois
sendo de hábitos conservadores, Ben Jaffa exigia a observância
dos mesmos por parte de todos os que êle empregava. A chegada
de Ineby a Manor Fields sempre se dava ao meio-dia, passando de
imediato a conferenciar com Ben Jaffa, abandonando o local às
duas da tarde.
Um almoço retardado aguardava-o sempre no Bay Horsc Inn
— passando Ineby o resto do dia a beber, contar anedotas e jogar
damas com o hoteleiro Sam Bowker.
Esta rotina fora, como de costume, cumprida naquela sexta-
feira fatal, com apenas uma insignificante exceção. Ineby aparece-
183
ra no hotel trajando camisa e calças esporte, passando logo a usar
calções. Como seguidamente regressasse a Leeds, sua cidade natal,
tomando o rumo dos pantanais, disse a Bowker que “êle precisava
acostumar-se a andar com trajes apropriados para a travessia de
pantanais — como todo o mundo.”
Ben Jaffa ainda estava com vida às quatro horas. A Sra. Swi-
res nas sextas-feiras por essa hora costumava servir-lhe uma pe-
quena refeição, ocasião em que recebia seu salário semanal. Ela
então ia para casa e Jaffa empregava as horas restantes do dia a ler
e a meditar, preparando-se assim para as suas visitas de sábados
à sinagoga de Leeds.
O assassino devia ser conhecido do velho. Rastros num rel-
vado há muito abandonado mostravam que um homem havia piso-
teado a erva daninha que crescia por entre a grama, a fim de poder
atingir o jardim dos fundos entrando assim em Manor Fields por
trás. Jaffa teria notado esta aproximação do interior de seu estú-
dio, mesmo assim, não teria se importado com o fato. . . ficando o
assassino colocado por trás da vítima, enquanto esta permanecia
sentada em sua escrivaninha.
Isto era tudo. O inquérito policial não podia ir além. As teste-
munhas declararam, unânime, que Ineby — o único suspeito pos-
sível, fora visto entrando no Bay Horse às duas e dez, e êle não
poderia naturalmente ter saído dali senão depois das sete da noite;
e nenhum estranho fora visto perto de Layethorpe.
Eis que surge um amigo de infância do velho Ben Jaffa — um
tal de Barnabas Híldreth, um chefe graduado do Serviço Secreto.
Os homens da Scotland Yard e os policiais de Leeds ficaram sur-
presos, mas o comissário-assistente da Scotland socegou-os dizen-
do que aceitassem Hildreth como “persona grata. . .”
O investigador-chefe Newbolt foi posto às ordens de Hil-
dreth. Cada testemunha foi novamente interrogada; todas as pro-
vas e declarações recolhidas em Manor Fields foram revisadas; o
dossier foi inteiramente relido — observando-se apenas, conforme
notara o prudente Newbolt, que Alaric Ineby, não havia sido inter-
rogado. Talvez isso fosse devido à recente enfermidade de Ineby
— um tanto séria por sinal. Ineby ficara acamado por um violento
ataque de catapora na noite de treze. . .
184
Newbolt apreciava Hildreth pela sua vivacidade e maneiras
reservadas, porém impacientava-se com o seu modo curioso de
conduzir as investigações. Estas pareciam fúteis, principalmente
quando diziam respeito à anotação dos períodos exatos de irradia-
ção solar registradas em Layethorpe no dia do crime.
— Francamente, não vejo para que serve tudo isto — res-
mungou Newbolt, ao sentarem-se para beber um uísque no Bay
Horse, examinando os vários relatórios.
— Que diabo tem o sol a ver com o caso? Escute, chefe, o
senhor já se preocupou em dissecar a vida de mais de um dúzia de
pessoas simples, e para que fim?
Hildreth apontou para os boletins do tempo e delicadamente
falou: — Olhe aqui novamente o álibi de Alaric Ineby. . .
— O quê? — exclamou Newbolt, um tanto desapontado, le-
vantando-se. — Por que diabo vem isto ao caso? Com licença, Sr.
Hildreth, isso — isso não tem nenhum sentido! Ineby está inteira-
mente afastado de toda e qualquer cogitação.
— Mas não na minha opinião. Escute, Ineby é um crimino-
so astuto e diabòlicamente inteligente. Levantou em torno de si
um álibi indestrutível — e eí-lo agora a rir despreocupado de tudo
isto.
— Mas o Serviço Secreto — indagou com malícia Newbolt.
visivelmente irritado — não poderia com sua magia desconhecida
para nós, pobres policiais ignorantes, levantar uma acusação con-
tra êle — hein?
— Tem toda a razão em pensar assim. Digo-lhe, porém, que
Ben Jaffa era um grande amigo meu e Ineby o assassinou por di-
nheiro, mas êle pagará na fôrca por isto!
— De que maneira? — interrogou Newbolt, movido por um
vigor súbito, enquanto Hildreth enchia seu cachimbo num gesto
evidente de quem queria fugir àquele olhar inquiridor.
— Primeiramente, valendo-me das referências que você des-
prezou — disse Hildreth, tocando nos boletins metereológicos —
pois eles ajudam a provar a minha teoria.
Levando-a em consideração, juntamente com o relatório so-
bre a enfermidade de Ineby, que começou domingo à noite, fico
convencido ser êle o homem de quem Jaffa não tinha receio, o ho-
185
mem que atravessou o relvado — o homem que entrou em Manor
Fields pelos fundos. Aquela tarde de sexta-feira, a não ser por uma
ou duas horas de sol, esteve enublada e sufocante. Ineby primeira-
mente usou calças compridas e passou depois para calções que lhe
deixavam as pernas a descoberto. Nos meses de verão surgiam por
estas cercanias durante séculos epidemias de catapora que deixa-
vam os médicos desatinados. Dois anos atrás, vários homens da
Real Força Aérea foram gravemente atacados por este mal quando
participavam das manobras realizadas em todo país. Os cientistas
logo entraram em ação e determinaram — conforme se verifica do
relatório de julho último do Jornal Médico Britânico — a causa até
então desconhecida. . . anthriscus sylvestris, uma erva daninha..
— O quê? O senhor quer dizer que uma simples erva daninha
poderá comprometer o homem?
— Exatamente, pois esta erva existe em abundância no relva-
do que cerca a mansão de Manor Fields. O pólen desta erva, quan-
do sacudida, produz um vapor semelhante ao do gás de mostarda.
Mas nos dias de sol causticante todo aquele que expõe a pele pela
primeira vez, junto desta erva, é atingido pelo seu veneno pene-
trante, surgindo-lhe depois de quarenta e oito horas uma erupção
semelhante à da catapora. Contudo, em dias nublados, este fenô-
meno não ocorre porque a erva não emite vapor, nem tampouco as
pessoas de pele queimada pelo sol são por ela afetadas.
— Creio que é isto mesmo, chefe. Já estou bastante velho
nesta profissão para reconhecer uma verdade quando ela é dita.
— Obrigado, Newbolt — disse Hildreth. esfregando as mãos.
— Se Ineby fosse assassinar um homem para roubá-lo, como não
haveria de lhe ser útil esta simulação de atravessar pantanais
com trajes apropriados hein? Êle poderia fàcilmente ter vestido as
calças compridas que trazia na sacola, caso temesse ficar com as
pernas descobertas cheias de bolhas sangrentas, provocadas por
aquela erva, e serviria igualmente a sacola para guardar o produto
do roubo.
— Mas há o caso do álibi de Ineby, chefe, que é o mais impor-
tante de tudo — êle é indestrutível! Ineby estava no hotel precisa-
mente à hora em que foi cometido o crime.
Hildreth, refletindo um pouco, continuou. — Existiu em Lon-
186
dres, no século XVIII, um tal de John Arnold. Este fizera um relógio
especial para o rei Jorge III.
O monarca não gostou muito da encomenda e mandou-a de
volta, qualificando-a de “uma droga de panela para ferver água”.
Entretanto, saiba você, Newbolt, que este relógio ainda existe em
Greenwich, e é utilizado pela nossa emissora de rádio BBC para dar
a hora certa a todos os relógios de Londres. O autor genial desta
obra-prima foi o mesmo que fêz aquele relógio de mesa pertencente
a Jaffa, o qual comemorava a época passada pelos seus ancestrais
no Cativeiro da Babilônia. O meu amigo Jaffa, como o seu próprio
nome indica, era um judeu do Sefaradim, que se originou da antiga
Babilônia Oriental.
“Naquela época controlava-se o tempo, na Babilônia, a noite,
por meio de relógios de água, enquanto que o dia era marcado por
relógio de sol. O seu funcionamento consistia na saída lenta da
água de um cilindro, a qual produzia o abaixamento de um pon-
teiro flutuante, registrando desta forma o tempo decorrido entre
o pôr do sol até a meia-noite; o líquido entrando no outro cilindro
causava a elevação de um outro ponteiro que marcava o tempo
entre meia-noite e o nascer do sol. Entre os hebreus extremamente
ortodoxos ainda persiste êste meio de controlar o tempo em duas
fases, e o relógio de Jaffa é um destes raros exemplares.”
— Mas, ainda que tudo isto seja muito interessante, senhor,
não vejo aonde quer chegar com isto. Se o relógio era de tamanha
precisão, então êle apenas vem reforçar o álibi de Ineby. O assassi-
nato ocorreu às quatro e trinta e seis e. . .
— As duas horas de intenso brilho solar extenderam-se das
cinco e quarenta e cinco até aproximadamente oito horas. Foi du-
rante êste período que Ineby atravessou o relvado, penetrando no
estúdio de Jaffa. Calculo que êle fingisse ter esquecido algum che-
que. Surpreendeu o velho sentado à sua escrivaninha, matando-o
então com o primeiro tiro. Depois, visando propositadamente o re-
lógio com a intenção de inutilizar o seu mecanismo, sem que fosse
preciso tocar nele, atingiu de refilão o crânio da vítima. O seu álibi,
estando assim assegurado, empreendeu o roubo.
Hildreth, abrindo sua carteira de dinheiro, mostrou a New-
bolt uma fotografia do relógio hebraico. — Está vendo? Não existem
187
algarismos romanos nem arábicos.
Apontou para o ponto saliente que representava o lugar ha-
bitualmente ocupado pelo número onze num mostrador e tocou a
seguir em cada um dos pontos dourados no mostrador. — Aqui te-
mos os escudos das doze tribos com as letras do alfabeto hebraico
por cima. . .
— Espere um momento! Você está tocando nestas letras de
trás para diante!
— Não, não estou! Não sabe que em hebraico a leitura é fei-
ta, de trás para diante? Foi baseando-se no segredo desta obra-
prima de Arnold que Ineby se valeu para despistar a polícia. Estou
contando progressivamente em hebraico — um, dois, três, quatro.
. . O velho relógio de Jaffa, que marcava o tempo em hebraico,
parará não nas quatro e trinta e seis — mas sim nas sete e trinta
e quatro da noite! Ponha esta fotografia diante de um espelho e
verifique isso você mesmo, Newbolt. Este original mecanismo fazia
girar os ponteiros ao contrário no marcador. Compreendes? Para
nós o marcador mostra quatro e trinta e seis — para Jaffa e para
aquele cão ladino, Ineby, indicava a hora exata do dia. Aquela hora
de sol. . .
Newbolt, tremendo, colocou a fotografia diante do espelho.
Deixou então escapar um grito e corre a agarrar o telefone. . .
Para trás, volta para trás, Oh Tempo, em tua fuga. . .

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