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o livro é um compêndio à O grupo de pesquisa sobre Estudos Territoriais da UEPG, que “Fazemos um discurso não

humanização dos discursos


Joseli Maria Silva
já se consolidou como referência no campo de Geografia e autorizado e dissidente”.
sociais e acadêmicos em Marcio Jose Ornat Com esta afirmação, o livro
Gênero no Brasil, com articulações também a nível internacional,
torno dos 'malditos' e à coloca-nos neste livro frente a uma grande questão: como Alides Baptista Chimin Junior 'Geografia Malditas: corpos,
ampliação da inclusão na sexualidades e espaços'
transformar as 'Geografia mal-ditas' de indivíduos posicionados (Orgs)
definição de agendas muitas vezes num dos extremos da marginalização e do instiga os pesquisadores das
políticas que ainda estão

GEOGRAFIAS MALDITAS corpos, sexualidades e espaços


preconceito social, como travestis e transexuais, numa 'Geografia universidades brasileiras,
longe da dignidade sobre a bem-dita' de sujeitos que têm voz e sensibilidade e reivindicam seu notadamente os das
qual os direitos civis devem lugar no mundo. Destaca-se assim o caráter inovador e instigante Ciências Sociais e,
se apoiar. Em uma época de seu projeto, ao começar por dar voz aos próprios sujeitos em sua especialmente, os da
de ampliação das tensões prática de construção do espaço que é também, sempre, e mais Geografia, a fugirem da
sociais nas representações ainda neste caso, pois literalmente disputam espaço a construção homogeneidade discursiva
instituídas do Estado de da vida. Um trabalho que é desafiador num duplo sentido: dominante, ainda hoje, na
Direito, os confrontos epistemológico, pela inserção definitiva de uma problemática e de academia brasileira. Nesta
também se fazem sentir nos uma metodologia tantas vezes menosprezadas na Geografia obra, o Grupo de Pesquisa
meios midiáticos e nas redes brasileira, e político, pela convocação que nos faz para superar GETE (UEPG) amplia a
sociais da internet, entre os ideias preconcebidas. Fica assim o convite para, despidos de todo investigação sobre as
que lutam por conquistas preconceito e julgamentos a priori, ingressarmos no espaço desses ordens discursivas nos temas
inclusivas mais amplas Outros que, por não conhecermos ou, pior, por não querermos de Geografia, Gênero e
(como os direitos dos conhecer , alimentamos sua invisibilidade e estigmatização. Nas Sexualidades, e apresenta a
homoafetivos) e os que palavras de Débora Lee, rejeitada pela família, 'ser travesti é sua pesquisa de maneira
disseminam discursos aguentar o preconceito, porque a maior parte que a travesti vive corajosa, não temendo ser
discriminatórios e todo dia é a discriminação, a falta de oportunidade de trabalho, e o condutor do discurso
homofóbicos que beiram o ter que cair na prostituição para sobreviver'. daqueles que não têm voz
criminoso (como os grupos político-institucional, e ainda

GEOGRAFIAS
da Direita religiosa). Neste são invisíveis pela
contexto, o livro se torna Prof. Dr. Rogerio Haesbaert da Costa (UFF) academia, além de
mais do que necessário execrados pela sociedade
para estimular a luta contra brasileira: as pessoas que se
as homogeneidades
discursivas, e, sobretudo,
para que a nova geração
de geógrafos e demais
mALDITAS
corpos, sexualidades e espaços
autodeclaram 'travestis'.
Com competência e
suporte teórico-conceitual
de ponta, esta publicação
pesquisadores sociais em inova o campo
diversos níveis possam refletir metodológico sobre este
sobre seus objetos de tema no país, ao mesclar as
investigação e sobre o linguagens política e
papel que lhes cabe como científica ao coloquial dos
pesquisadores do espaço sujeitos investigados. Sem
geográfico e da sociedade. GRUPO RENASCER medo de gerar uma 'heresia
International Geographical Union no santificado mundo da
Prof. Dr. Augusto Cesar
The World in Geography
ciência geográfica',
Pinheiro da Silva
Geografias
malditas:
corpos, sexualidades e espaços
TODAPALAVRA EDITORA

EDITOR
Hein Leonard Bowles

COEDITOR
José Aparicio da Silva

CONSELHO EDITORIAL
Dr. Alexandro Dantas Trindade (UFPR)
Dra. Anelize Manuela Bahniuk Rumbelsperger (Petrobrás)
Dr. Carlos Fortuna (Universidade de Coimbra)
Dra. Carmencita de Holleben Mello Ditzel (UEPG)
Dr. Christian Brannstrom (Texas A&M University)
Dr. Claudio DeNipoti (UEPG)
Dr. Constantino Ribeiro de Oliveira Junior (UEPG)
Dra. Divanir Eulália Naréssi Munhoz (UEPG)
Dr. Edson Armando Silva (UEPG)
Dr. Hein Leonard Bowles (UEPG)
Ms. José Aparicio da Silva (IFPR)
Dr. José Augusto Leandro (UEPG)
Dr. José Robson da Silva (UEPG)
Dra. Joseli Maria Silva (UEPG)
Dr. Kleber Daum Machado (UFPR)
Dr. Luis Fernando Cerri (UEPG)
Dra. Luísa Cristina dos Santos Fontes (UEPG)
Dr. Luiz Alberto Pilatti (UTFPR)
Dr. Luiz Antonio de Souza (UEM)
Dra. Manuela Salau Brasil (UEPG)
Dr. Marcelo Chemin (UFPR)
Dra. Maria José Subtil (UEPG)
Ms. Maria Zaclis Veiga (Universidade Positivo)
Dra. Patrícia da Silva Cardoso (UFPR)
Dr. Sérgio Luiz Gadini (UEPG)
Dra. Silvana Oliveira (UEPG)
Ms. Vanderlei Schneider de Lima (UEPG)
Dra. Vera Regina Beltrão Marques (UFPR)
Dr. Vitoldo Antonio Kozlowski Junior (UEPG)
Dr. Wolf Dietrich Sahr (UFPR)
Joseli Maria Silva
Marcio Jose Ornat
Alides Baptista Chimin Junior
Organizadores

Geografias
malditas:
corpos, sexualidades e espaços
© 2013 Todapalavra Editora

REVISÃO
Hein Leonard Bowles

CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Dyego Marçal

DEPÓSITO LEGAL NA BIBLIOTECA NACIONAL


Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação BICEN/UEPG

Geografias malditas: corpos, sexualidades e espaços / org. por Joseli


G345 Maria Silva, Marcio Jose Ornat e Alides Baptista Chimin Junior.
Ponta Grossa: Todapalavra, 2013.
400p.

1. Travesti. 2. Transgênero. 3. Geografia e sexualidades.


4. Geografia Queer. I. Silva, Joseli Maria. II. Ornat, Marcio Jose.
III. Chimin Junior, Alides Baptista. III.T.

CDD: 306.778

ISBN : 978-85-62450-29-7

Todapalavra Editora
Rua Xavier de Souza, 599
Ponta Grossa – Paraná – 84030–090
Fone/fax: (42) 3226–2569 / (42) 8424–3225
E–mail: todapalavraeditora@todapalavraeditora.com.br
Site: www.todapalavraeditora.com.br
Para a travesti negra e soropositiva
Scarlett O’Hara (em memória).
A sociedade lhe negou quase tudo,
e ela retribuiu na forma de luta, generosidade e
esperança de um mundo menos desigual.
SUMÁRIO

9 Prefácio
Jon Binnie

Para além da apresentação das Geografias


Malditas: uma análise da resistência às
descontinuidades científicas no campo
11 científico da Geografia no Brasil
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat e
Alides Baptista Chimin Junior

PARTE I
GEOGRAFIAS TRAVESTIS, POR ELAS MESMAS

A geografia de uma travesti é uma barra,


27 é matar um leão a cada dia
Débora Lee

O que mais me marcou na vida é ser barrada


e não poder entrar nos lugares: esta é a
39 geografia de uma travesti
Leandra Nikaratty

A vida da travesti é glamour, mas também é


55 violência em todo lugar
Fernanda Riquelme

Vida de travesti é luta! Luta contra a morte, luta


contra o preconceito, luta pela sobrevivência
69 e luta por espaço
Gláucia Boulevard
PARTE II
TRAJETÓRIAS DE CONHECIMENTO CONJUNTO
PRODUZIDO PELO GRUPO DE ESTUDOS
TERRITORIAIS E AS TRAVESTIS

O corpo como elemento das geografias


feministas e queer: um desafio para
a análise no Brasil 85
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires
Regina Aguiar de Oliveira Cesar, Alides
Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Espaço interdito e a experiência urbana travesti 143


Joseli Maria Silva

A instituição do território paradoxal na atividade


da prostituição travesti 183
Marcio Jose Ornat

Território descontínuo paradoxal e prostituição


na vivência travesti do sul do Brasil 207
Marcio Jose Ornat

Interseccionalidade e mobilidade transnacional


entre Brasil e Espanha nas redes de prostituição 243
Joseli Maria Silva

Espaço e morte nas representações sociais


de travestis 273
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e
Marcio Jose Ornat
PARTE III
DIVERSOS ESPAÇOS, MÚLTIPLAS REALIDADES TRANS

Identidades e cidadania em construção:


historização do ‘T’ nas políticas de
311 antiviolência LGBT no Brasil
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

Geografias trans(icionais): corpos,


339 binarismos, lugares e espaços
Lynda Johnston e Robyn Longhurst

Prácticas subversivas en espacios interdictos,


en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de
357 Santiago de Chile
Martin Ignacio Torres Rodríguez e
Raul Borges Guimarães

395 Sobre os autores


PREFÁCIO

Este livro constitui uma intervenção importante


no estudo das geografias de gênero, sexualidade e do corpo. O título Geo-
grafias Malditas reflete a extensão em que travestis e transgêneros estão
sujeitos a violência física e simbólica na vida cotidiana. Além disso, as
experiências de travestis e transgêneros continuam significativamente
pouco estudadas e marginais no âmbito das geografias de gênero e sexu-
alidades. Essa marginalização torna o livro uma intervenção particular-
mente bem-vinda no debate geográfico sobre gênero e sexualidade.
Geografias Malditas está organizado em torno de três seções dis-
tintas. A primeira seção, “Geografias travestis, por elas mesmas”, consis-
te de capítulos de autoria de travestis, em que narram as suas próprias
geografias. A segunda seção, “Trajetórias de conhecimento conjunto pro-
duzido pelo Grupo de Estudos Territoriais e as travestis”, foi escrita por
pesquisadores acadêmicos que trabalham com travestis como voluntá-
rios em ONGs. A terceira seção, “Diversos espaços, múltiplas realidades
trans”, inclui ensaios sobre geografias travestis e transgêneros escritos
por estudiosos de fora do Brasil.
Geografias Maldidas contém uma variedade de perspectivas so-
bre as geografias de travestis e trangêneros. O livro apresenta ensaios
baseados em experiências vividas por travestis e transgêneros em um
número de localidades que vão desde o Brasil e a Espanha até o Chile e a
Nova Zelândia. Eles também examinam essas experiências em uma série
de escalas espaciais – por exemplo, em cidades de pequeno porte, como
Hamilton, Nova Zelândia, passando por cidades regionais, como Ponta
Grossa, até chegar a cidades maiores, como Santiago de Chile. Também
é notável que alguns capítulos contemplam as dimensões transnacionais
Prefácio

das geografias de travestis e transgêneros. Por exemplo o capítulo de Jo-


seli Maria Silva trata da migração transnacional de travestis brasileiras
para a Espanha. Este ensaio é baseado em entrevistas com travestis brasi-
leiras profissionais do sexo a respeito de suas experiências cotidianas de
vida na Espanha.
Um aspecto particularmente inovador deste livro é a primeira
seção, em que travestis narram suas próprias experiências de espaço e
lugar. As vozes de travestis, trangêneros e outras minorias sexuais estão
muitas vezes ausentes das discussões acadêmicas, o que faz com que suas
vidas possam ser coisificadas e exotizadas. É, portanto, uma contribui-
ção particularmente importante deste livro que geografias travestis são
abordadas a partir das perspectivas de travestis. Esta seção (e o próprio
livro, de um modo mais geral) demonstra a necessidade de uma presença
muito maior das vozes múltiplas e diversificadas de travestis e transgê-
neros dentro das geografias de gênero e sexualidades.
Geografias Malditas é um volume pioneiro de ensaios que faz uma
intervenção original e inovadora nas geografias de sexualidades. O livro
demonstra o dinamismo e a riqueza das geografias de sexualidades no
Brasil. Ele também representa um desafio para as geografias de sexuali-
dades, internacionalmente, no sentido de empenhar-se e reconhecer de
maneira mais ampla a diversidade das experiências cotidianas de traves-
tis e transgêneros.

Jon Binnie
Reader in Human Geography
School of Science and Environment
Manchester Metropolitan University
Chester Street
Manchester
M1 5GD
United Kingdom

10
Geografias malditas
PARA ALÉM DA APRESENTAÇÃO
DAS GEOGRAFIAS MALDITAS:
UMA ANÁLISE DA RESISTÊNCIA ÀS
DESCONTINUIDADES CIENTÍFICAS
NO CAMPO CIENTÍFICO DA
GEOGRAFIA NO BRASIL
Joseli Maria Silva
Marcio Jose Ornat
Alides Baptista Chimin Junior

A apresentação de um livro é um aspecto formal a ser


cumprido pelos organizadores, cuja função é justificar e esclarecer sobre
o processo de produção e o conteúdo da obra. Para nós, esta apresenta-
ção é mais do que isso. É a explicitação do prazer e da dor, par relacional
e contraditório que caracteriza nosso fazer geográfico cotidiano. Somos
viciados em fazer geografia, isso porque só o prazer vicia. Ninguém con-
some tanto tempo na preparação de uma obra se ela não for um ato de
prazer autêntico, alegria genuína e desejo de compartilhar nosso jeito
próprio de criar o mundo e a nós mesmos como geógrafos.
Para além do prazer, escrever esta apresentação também nos
provoca certo desassossego, e isso é comum a qualquer pessoa que inicia
um discurso sobre suas ideias e sabe que a audiência de seu pronuncia-
mento gera consequências. Michel Foucault relata essa mesma sensação
em sua aula inaugural “A ordem do discurso”, proferida no Collège de
France em 2 de dezembro de 1970, quando se apercebe dragado pela or-
dem, sentindo uma imensa vontade de escapar a ela. Diz ele: “existe em
muita gente, penso eu, um desejo semelhante de não ter de começar, um
desejo de se encontrar, logo de entrada, do outro lado do discurso, sem
ter de considerar do exterior o que ele poderia ter de singular, de terrível,
Para além da apresentação das Geografias Malditas: uma análise da resistência
às descontinuidades científicas no campo científico da Geografia no Brasil

talvez de maléfico” (FOUCAULT, 1996/1971, p. 6). Mas, afinal, o que um


enunciado pode ter de maléfico? Qual a razão do mal-estar de Foucault
em desejar escapar à ordem do discurso? Explica ele: “A essa aspiração
tão comum, a instituição responde de modo irônico; pois que torna os
começos solenes, cerca-os de um círculo de atenção e silêncio, e lhes im-
põe formas ritualizadas, como para sinalizá-los à distância” (Ibid., p. 7).
Esse relato é um desabafo da vontade de escapar às amarras do discurso,
encontrando-se inevitavelmente fazendo parte dele.
Propor uma obra, mesmo que não tenhamos esperança de ela
ser bem recebida pela comunidade científica geográfica brasileira, é um
ritual acadêmico. Lembra-nos que, como geógrafos, nosso exercício cien-
tífico é julgado, avaliado, e o seu valor é conferido ou negado pela insti-
tuição científica. Sendo assim, nossas proposições científicas não valem
por si, mas seu valor se faz na relação com os(as) outros(as) geógrafos(as)
e a instituição, cuja ordem é onipresente.
A produção de um discurso divergente do campo discursivo da
geografia brasileira, como é o caso da abordagem das sexualidades dissi-
dentes, tem gerado experiências ímpares para nós pesquisadores do Gru-
po de Estudos Territoriais (GETE), tanto com a sociedade em geral como
com o meio acadêmico. O sentimento de desprezo, aversão e repulsa pelo
nosso discurso científico em torno das travestis nos fez perceber como
ele era considerado “maléfico”, no sentido foucaultiano, incapaz de ad-
quirir valor científico na sacrossanta e inviolável pureza da ciência geo-
gráfica. Daí surgiu o título de nossa obra, “Geografias malditas: corpos,
sexualidades e espaços”. O malefício, durante muito tempo na história,
foi considerado como um fenômeno por meio do qual a pureza era ata-
cada pelas forças demoníacas. As sexualidades dissidentes foram consi-
deradas malefícios, e muitas pessoas foram punidas por viverem desejos
considerados impuros. Assim, trazer o “malefício” como objeto científi-
co tem sido uma árdua tarefa de nosso cotidiano acadêmico, porque nós
somos os sujeitos que estão colocando em jogo a ideia da “pureza” da
ciência e maculando, desse modo, a nobreza do lugar de honra em que
todo o campo de saber se colocou, socialmente. As malditas geografias
são as práticas científicas que ameaçam a pureza da ciência geográfica,
abordando temas e sujeitos desconsiderados nesse campo por não serem
dignos de ter a espacialidade de sua existência reconhecida.
Quanto mais as resistências em torno das travestilidades foram
sendo explicitadas, mais a nossa curiosidade sobre o grupo crescia, por-
que percebíamos o quanto elas desconfortavam a sociedade como um

12
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat e Alides Baptista Chimin Junior

todo, e nós, em razão de trazermos o grupo para ser debatido cientifi-


camente, passamos a enfrentar os mesmos preconceitos dirigidos a elas.
Isso, de certa forma, reforçou nossos laços afetivos e de cumplicidade
com a luta por direitos humanos.
Uma surpreendente experiência vivenciada em nossa luta para
construir a visibilidade do grupo de travestis e seus direitos sociais foi a
repercussão de um vídeo postado no YouTube sobre a morte de traves-
tis.1 Nossa intenção era mostrar a vulnerabilidade do grupo à violência
e ao risco de morte. Para nossa surpresa, o vídeo resultou em inflamada
discussão na internet, com 695.087 visualizações e 1.326 comentários2 no
período de 17/12/2010 a 17/2/2013, entre pessoas que se manifestaram
por escrito sobre as imagens.3 Adotamos a postura de não interferir na
discussão, apesar de ter havido comentários dirigidos exclusivamente ao
pesquisador do GETE responsável pelo material visual postado no site do
YouTube, a exemplo do seguinte:

FALA A VERDADE VOCE E GAY E DA SEU CU TODO DIA NA RUA RSR


SEU VIADO FILHA DA PUTA QUEM SABE SE EU TE PEGAR PELAS
ESQUINAS EU TE ENCHER DE MUITA PORRADA SEU VIADO FILHO
DA PUTA,, E ESSES SEUS VIDEOS DE BAITOLA NAO VAI ADIANTAR
DE NADA!!!!!!1PASSE BEM VIADINHO DE MERDA. (Comentário pos-
tado no YouTube em 20/8/2012, sobre o filme Homofobia Mata e o
silêncio também!).

Certamente nos abstivemos de responder às agressões e passa-


mos a acompanhar a dinâmica discursiva que o vídeo sobre a morte de
travestis provocava, a fim de colher informações sobre o comportamento
das pessoas em relação às imagens de violência cometida contra elas.

1
Link: http://www.youtube.com/watch?v=rYp7mEytg9U. Vídeo postado sob o título
“Homofobia Mata e o silêncio também!”, em 17/12/2010, por Vinicius Cabral, pesquisador
do Grupo de Estudos Territoriais (GETE), com duração de 5 minutos e 46 segundos. Esta
produção é parte de um projeto de extensão chamado “Imagens de ausências e silêncios
da cidade: exclusão e subversão da heteronormatividade”.
2
Do total de comentários postados, 117 foram censurados pelo próprio site do YouTube
e, assim, a análise considerou apenas os 1.209 comentários disponíveis para visualização,
postados até 17/2/2013.
3
Foi mantida a forma original dos comentários postados no YouTube, com as expressões
em caixa alta e possíveis erros gramaticais.

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corpos, sexualidades e espaços
Para além da apresentação das Geografias Malditas: uma análise da resistência
às descontinuidades científicas no campo científico da Geografia no Brasil

A análise dos comentários nos permitiu organizá-los em cinco


categorias discursivas: 1) Negativa, quando o sujeito adota uma posição
explícita a favor da violência cometida contra travestis (336 comentá-
rios); 2) Neutra, quando o sujeito não expressa posição explícita sobre
o tema (302 comentários); 3) Positiva, quando o sujeito apresenta argu-
mentos em defesa do grupo de travestis (162 comentários); 4) Sem sen-
tido, quando o comentário se resume a xingamentos entre pessoas que
comentam o vídeo (317 comentários); 5) Tolerante, quando o sujeito ex-
pressa comentários contrários à agressão, preferindo, todavia, manter-
se distante ou separado de travestis e quaisquer grupos que expressem
sexualidades dissidentes ao padrão heterossexual (92 comentários). O re-
sultado da sistematização dos comentários postados sobre o vídeo pode
ser visualizado no gráfico abaixo.4

A vontade de que o grupo de travestis seja exterminado está


presente em 38% dos comentários postados. Mesmo diante de imagens de
corpos estendidos em ruas e becos da cidade, mutilados de várias formas,
a mensagem é de aprovação dos atos de violência contra as travestis, para
“sanear” a sociedade. O comentário a seguir é ilustrativo desta tendência
discursiva.

Eu mato mermo mermão gaysarada fdp, desonrando os homens


do mundo. Isso não é crueldade, é um país acordando e lembrando

4
A categoria discursiva “sem sentido” foi desconsiderada para a elaboração do gráfico, a
partir do entendimento de que ela não contribui para a análise.

14
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat e Alides Baptista Chimin Junior

dos bons e velhos tempos em q torturávamos e matávamos cruel-


mente esse gays fdp’s. Quem é menor de idade e homofóbico, que
ache um gay e mate! Você não vai preso e vai fazer um bem para o
mundo. MORTE AOS GAYS!! (Comentário postado no YouTube em
23/2/2012, sobre o filme “Homofobia Mata e o silêncio também!”).

Os comentários neutros representam 34% do total e evidenciam


elementos discursivos que não se mostram a favor de qualquer agressão,
considerando, todavia, que o grupo está exposto à violência pelas cir-
cunstâncias em que vive e escolhe. O comentário a seguir é próprio desta
tendência.

É o obvio do obvio, a partir do momento que de alguma forma eu


me exponho aos perigos la da rua, eu estou propenso a viver as
situações que ela me impõem. Eu sou gay, mas evito o máximo me
expor desta forma, afinal eu sei dos perigos que rondam as ruas.
Procuro ser uma pessoa correta e diga se a minha homossexuali-
dade não me impede de viver bem com os outros, afinal eu os res-
peito, e também me respeitam. Todos merecemos respeito, afinal
não somos nada aqui. Estamos de passagem. (Comentário postado
no YouTube em 20/6/2012, sobre o filme “Homofobia Mata e o si-
lêncio também!”).

Os comentários positivos constituíram apenas 18% do total, e


eles não expressam a mesma intensidade de emoções dos comentários
negativos, que evidenciam exasperação, com argumentos inflamados. O
comentário que se segue é uma ilustração dessa tendência.

Nenhum hétero é morto por ser hétero, diferente de quem é morto


pela raça ou pela sexualidade. Todo mundo quer segurança igual.
Se pra isso é preciso fazer mais leis pra um ou pra outro eu não
me importo. Eu só quero que todo mundo consiga ter a mesma
segurança, mas é utópico demais. (Comentário postado no You-
Tube, em 21/6/2012, sobre o filme “Homofobia Mata e o silêncio
também!”).

Os comentários categorizados como tolerantes constituíram


10% do universo analisado. Os depoimentos expressam a opinião de que
não devem ser agredidos os grupos que apresentam comportamentos di-

15
corpos, sexualidades e espaços
Para além da apresentação das Geografias Malditas: uma análise da resistência
às descontinuidades científicas no campo científico da Geografia no Brasil

ferentes. Contudo, os contatos e a explicitação da diferença devem ser


evitados, para que seja mantida a ordem heteronormativa. A tolerância,
portanto, é negativa na medida em que não reconhece os direitos sociais
dessas pessoas, embora não se possa negar sua existência. O comentário
a seguir expressa esta tendência discursiva.

Respeitemos os homossexuais. MAS Q ELES TBM NÃO TRANSEM


NO MEIO DA RUA, NÃO NOS ESCANDALIZEM COM SUAS ATITUDES
DEPLORÁVEIS. (Comentário postado no YouTube em 21/11/2012,
sobre o filme “Homofobia Mata e o silêncio também!”).

A soma dos comentários de tolerância com os comentários ne-


gativos totaliza 48% de falas que consideram o grupo de travestis como
anomalia. Os negativos são favoráveis ao seu extermínio, e os tolerantes
permitem sua existência, desde que não afrontem a ordem social. Isto
evidencia que ainda há um número muito reduzido de pessoas que con-
sideram o grupo de travestis como seres humanos detentores de direi-
tos. O preconceito e a discriminação contra elas são intensos, porque elas
afrontam a pretensa naturalidade da ordem linear entre sexo, gênero e
desejo e desestabilizam os padrões binários (masculino/feminino) da so-
ciedade ocidental.
Assim, a dissonância que elas apresentam em relação à ordem
deve ser punida.5 A naturalização social da punição que as travestis de-
vem sofrer deve-se ao fato de que elas são consideradas seres abjetos, nos
termos de Butler (1993), são vidas que não são consideradas vidas huma-
nas. A agressão e a morte são legitimadas simplesmente porque elas não
gozam do status de cidadãs.
No início de nossas pesquisas, supúnhamos que esse compor-
tamento social de preconceito e discriminação não fazia parte dos am-
bientes acadêmicos, reconhecidos pelo uso da racionalidade e pelo foco
na objetividade dos fatos. Contudo, experienciamos empiricamente o ar-
gumento de Morin (1996) sobre o peso das subjetividades das concepções
científicas produzidas nas comunidades acadêmicas. A ciência se faz por
pessoas que, mesmo fazendo parte do ambiente acadêmico, carregam
consigo seus valores e crenças. O poder de julgamento e validação de pro-

5
Uma expressão recorrente nos comentários negativos sobre o vídeo é: “O salário do
pecado é a morte”. Ou seja, o grupo deve ser punido porque é considerado transgressor.

16
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat e Alides Baptista Chimin Junior

posições científicas que sua posição de cientistas lhes confere é permea-


do por uma série de códigos morais que são acionados em momentos de
confronto com determinados temas ou objetos de pesquisa.
Nossa convivência, como cientistas, nos ambientes acadêmicos
também se faz pelas mesmas tendências encontradas na sistematização
dos enunciados presentes no site do YouTube que comentamos anterior-
mente, embora a violência física não se faça presente. Todavia, convive-
mos com piadas e deboches constantes por parte de colegas, depreciação
de nossas pesquisas por parte de avaliadores, desconsideração de nossa
capacidade intelectual por parte de companheiros de trabalho e suspei-
tas sobre nossa sanidade mental e comportamento moral e ético entre
alunos influenciados pelos comentários de outros professores a respeito
de nossas investigações e interesses.
Essas reações no meio acadêmico nada mais são do que formas
de manter a ordem discursiva geográfica, na medida em que nossas pes-
quisas representam as descontinuidades. Afinal, como alerta Foucault
(1996/1971, p. 8-9), a ordem discursiva de uma comunidade é “ao mes-
mo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo
número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e te-
mível materialidade”.
Assim, querendo ou não, fazemos parte da ordem do discurso
geográfico e partilhamos dos seus instrumentos de regulação, que ser-
vem para incluir ou excluir enunciados. Os interditos, tabus, rituais e
autoridades legítimas do discurso formam um campo de ação sutil e oni-
presente que se traduz nas materialidades concretas e burocráticas que
constituem o cotidiano de um cientista. Captar recursos financeiros para
pesquisas, publicar os resultados de investigações, ampliar o número de
pesquisadores nas tarefas do grupo, e assim por diante, são ações que
potencializam a ordem do discurso. Todas estas ações dependem de como
o campo discursivo legitima ou não as proposições científicas que são
formuladas.
Nossas pesquisas também são alvos de comentários nas listas
de discussões acadêmicas que estão disponíveis na internet. O trecho que
segue foi postado por uma pessoa do sexo masculino, graduado em Geo-
grafia. Sobre as pesquisas que realizamos sobre sexualidades no âmbito
do GETE, ele tem o seguinte a dizer:

17
corpos, sexualidades e espaços
Para além da apresentação das Geografias Malditas: uma análise da resistência
às descontinuidades científicas no campo científico da Geografia no Brasil

[...] eu jamais perderia meu precioso tempo em pesquisar assun-


tos que não têm relevância/utilidade para a sociedade. Enquanto
perde-se tempo em pesquisas fúteis e inúteis, Geógrafos saem das
universidades sem saber fazer um diagnostico ambiental, estudo e
relatório de impacto ambiental, análise de planejamento urbano,
plano de controle ambiental, RCA, e outros procedimentos essen-
ciais para a qualidade e até mesmo a condição da vida humana nes-
te planeta. Agora se vc se resumiu à pesquisas de cunho exótico e
não aceita críticas peço-te desculpas. Digo a vc que não sou louco,
simplesmente consciente do meu papel como geógrafo e penso to-
dos deveriam ser. Abraços!!!6 (Fonte: https://www.facebook.com,
3/3/2012, [nome ocultado], pessoa do sexo masculino, graduado
em Geografia).

Se para a sociedade as travestis são seres abjetos, os nossos pa-


res consideram nossas pesquisas fúteis, inúteis e de cunho exótico. Esses
constrangimentos, aos quais somos constantemente submetidos, não são
cometidos apenas por aquelas pessoas que ainda não verticalizaram a
sua formação acadêmica, como é o caso do sujeito do enunciado anterior,
mas também por pessoas que já concluíram o mais alto grau acadêmico,
o doutorado. Elas usam altas doses de sarcasmo e revelam uma surpreen-
dente ignorância da produção científica geográfica mundial, pois a cor-
rente epistemológica feminista já faz parte do campo científico geográfi-
co há mais de três décadas e a geografia queer, há duas. A circulação desse
tipo de enunciado é, nos termos de Foucault (1996/1971) a “apropriação
social dos discursos”. Vejamos o comentário a respeito do crescimento
das abordagens feministas na Geografia emitido por uma geógrafa, mu-
lher, no dia em que se comemorava o Dia internacional da Mulher.

Da minha parte digo eu: e a Geografia Machista? Estou curiosa so-


bre o seu formato científico. Agradeço os elogios ao nosso gênero
feminino, esse arretado... Confesso meu desconhecimento sobre
investigações de geografia feminista, e do mesmo modo deve ter
a geografia machista. Parece que agora é assim: põe na frente o
nome GEOGRAFIA e depois dele o que quer que se invente. Olhe,
são tantos que já perdi a conta. (Fonte: http://br.groups.yahoo.
com/group/listageografia, 8/3/2012 [nome ocultado], pessoa do
sexo feminino, doutora em Geografia)7

6
Foi mantido o formato original do comentário postado na internet.
7
Idem.

18
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat e Alides Baptista Chimin Junior

Os meios informais de enunciação, como vários canais da inter-


net em que nossas pesquisas são alvos de comentários, pelo menos são
mais democráticos, já que, de algum modo, as pessoas acabam se identi-
ficando e, assim, permitem contra-argumentos. Contudo, existem instru-
mentos de regulação travestidos de “formas neutras e objetivas de vali-
dação científica” que são muito mais eficazes como meios de regulação
da ordem discursiva: os pareceres científicos.
Como já dissemos anteriormente, por mais que desejemos es-
capar à ordem discursiva, estamos submetidos, como pesquisadores geó-
grafos, às regras de produção científica, atualmente pautada pela produ-
tividade acadêmica, e, assim, buscamos as “revistas de melhor qualidade”
no ranking do Sistema Qualis da Capes. Em uma cultura acadêmica pro-
dutivista, a necessidade de publicar artigos científicos é diretamente
proporcional à necessidade de não destoar do discurso que vem sendo
legitimado pelo campo científico. É preciso, assim, não criar problemas e
dissidências para ser aceito com mais frequência e facilidade. Entretanto,
o medo da não aceitação dos discursos descontínuos, de que fala Michel
Foucault, cala e silencia, gerando homogeneidade discursiva e, por con-
sequência, a morte do campo científico que se quer tanto controlar.
Trazemos, a título de ilustração de uma tendência de experiên-
cias, a situação de um artigo na área de travestilidades submetido para
avaliação em um periódico científico brasileiro em abril de 2009. Depois
de dezessete contatos com os responsáveis pelo periódico científico, fei-
tos por iniciativa dos autores, recebemos resposta sobre a situação do
artigo submetido apenas em maio de 2011. Um dos pareceres trazia o se-
guinte trecho, com argumentos pouco científicos, mas impregnado de
preconceito por parte do(a) avaliador(a) em relação à forma como os re-
latos do grupo social pesquisado, no caso, as travestis, foram utilizados
no artigo submetido:

[...] vejo que há diversas passagens com termos sexuais considera-


dos fortes ao longo do texto. Entendo que essa discussão vem sen-
do introduzida na Geografia brasileira recentemente, necessitan-
do de reflexões maiores. Considero importante manter o conteúdo
em detrimento da forma. Algumas expressões que trazem à tona a
dramaticidade dos sujeitos envolvidos podem ser substituídas por
citações indiretas ou termos menos agressivos.8

8
Trecho da avaliação recebida da revista [nome ocultado], em 6/5/2011.

19
corpos, sexualidades e espaços
Para além da apresentação das Geografias Malditas: uma análise da resistência
às descontinuidades científicas no campo científico da Geografia no Brasil

As expressões consideradas agressivas no texto do artigo fazem


parte do vocabulário do grupo; eram os trechos de transcrição direta das
falas das pessoas pesquisadas, respeitando sua forma de linguagem. En-
tretanto, para que os avaliadores não se sintam “insultados”, é preciso
transformar a linguagem dos grupos pesquisados em uma forma de ex-
pressão “aceitável” no mundo acadêmico. Os procedimentos de regula-
ção da linguagem são um valioso instrumento de coerção no que toca ao
tipo de discurso que pode ser proferido e aos tipos de sujeitos que podem
falar na arena acadêmica.
Fazer geografias significa participar de um campo discursivo
controlado por procedimentos de regulação que buscam manter a ordem
vigente. A instituição, como detentora do poder de validar os enunciados,
cria regras, hierarquiza temas, determina formas de pronunciamento,
sejam orais ou escritos, e estabelece os rituais acadêmicos. Esses procedi-
mentos internos do discurso, além da importante função de determinar
o funcionamento do interior do campo discursivo, têm também a incum-
bência de impedir que todos os sujeitos tenham acesso às regras esta-
belecidas. Para Foucault (1996/1971, p. 37), trata-se de um processo de
“rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam; ninguém entrará na ordem
do discurso se não satisfizer a certas exigências ou não for, de início, qua-
lificado para fazê-lo”.
O anonimato, como regra básica dos pareceres científicos dos
periódicos, cria uma redoma de poder e proteção. Poder de ditar as re-
gras e homogeneizar o discurso científico conforme suas próprias cren-
ças e teorias. Proteção porque ele permanece imune a responder às crí-
ticas que desfere em direção a proposições científicas que ele julga. Esta
cômoda posição, contudo, é ritualizada pela ideia de que os pareceres
são unicamente baseados em critérios neutros e objetivos de cientifici-
dade, e isso, como já vimos, não é comum. A estrutura burocrática de
disseminação do conhecimento científico tem relutado em abrir espaço
para a abordagem das sexualidades na geografia brasileira, simplesmente
porque essa temática ainda é considerada como anormalidade no campo
científico. E os conselhos editoriais se valem do status do “discurso com-
petente” para criar, por via da oficialidade, as interdições, as fronteiras e
os limites para manter a coesão do campo e não permitir a proliferação
de discursos “não autorizados”.
Fazemos um discurso não autorizado e dissidente. Sendo assim,
a ordem clama para que aquilo e aqueles que são identificados com o

20
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat e Alides Baptista Chimin Junior

mal sejam constantemente submetidos à prática de eliminação pública. É


apenas nessa lógica que as reações em relação à existência das travestis
bem como às pesquisas que desenvolvemos sobre elas podem ser com-
preendidas. As formas de constrangimento, agressão e exclusão nada
mais são do que a incapacidade de conviver com a pluralidade de com-
portamentos, pensamentos e ideias. Contudo, é o próprio campo que cria
os sistemas legitimadores daqueles que estão sempre prontos para “sal-
vaguardar aquilo que é a verdadeira geografia”. Assim, em nome da pu-
reza científica e da manutenção da ordem, os hereges devem ser exem-
plarmente punidos, para delimitar as boas e as más geografias. Afinal, é
preciso organizar internamente o trabalho intelectual para que aquilo
que é discrepante e aleatório não seja apropriado socialmente.
É importante destacar que toda forma de verdade instituída he-
gemonicamente pelo campo discursivo produz violência e tende a gerar
oposição por parte daqueles que não se enquadram ou não concordam
com ela. E essa verdade hegemônica leva sempre à exclusão, assim como
temos vivenciado no campo científico geográfico brasileiro.9 A violên-
cia que sofremos não é apenas simbólica, de sorrisos de canto de boca,
de desmerecimento de nossas pesquisas, mas ela também é material,
quando pareceres negativos sobre nossos artigos não apontam fraquezas
metodológicas e epistemológicas, formulando, ao invés disso, opiniões
subjetivas dando conta de que nossos textos representam um discurso de
heresia no santificado mundo da ciência geográfica.
Que sejam malditas, desalojadas, inúteis, hereges e exóticas,
mas esta é a geografia que escolhemos fazer, mesmo frente a outras es-
colhas e experiências laborais que já desenvolvemos em campos de saber
já consagrados na geografia brasileira.10 Decidimos escrever esses textos
malditos porque, como amantes da Geografia, acreditamos que é preciso

9
Binnie e Valentine (1999), em sua obra Geographies of sexuality: a review of progress,
analisam o crescimento do número de trabalhos associados à sexualidade e ao espaço,
falando dos limites de sua expansão. Afirmam que a temática é alvo de posicionamentos
homofóbicos dentro da academia. Valentine (1993) denuncia a presença da homofobia
nos ambientes científicos, afirmando que, neste universo, o preconceito e a negatividade
que são muitas vezes associados aos temas ligados às sexualidades dissidentes acabam por
não atrair pesquisadores ao campo de pesquisa, dificultando também o recrutamento de
participantes em projetos de investigação.
10
A trajetória laboral dos organizadores da obra esteve fundamentada na gestão e no
planejamento urbano, com experiências de coordenadoria na elaboração de planos
diretores e domínio de geotecnologias.

21
corpos, sexualidades e espaços
Para além da apresentação das Geografias Malditas: uma análise da resistência
às descontinuidades científicas no campo científico da Geografia no Brasil

desafiar a monotonia e dar atenção à polifonia das existências, para cons-


truir uma ciência social competente.
As verdades que dão sentido à vida podem estar em muitos lu-
gares, diferentes, inclusive, daquele de nossa posição de pesquisadores.11
É a partir desta convicção que organizamos o livro, visto como uma des-
continuidade nas palavras de Foucault (1996/1971). Os autores dialogam
com a geografia hegemônica, mas também desafiam e provocam descon-
tinuidades.
Hegemonias e descontinuidades aqui se cruzam, mas também
se ignoram ou se excluem, como reflete a estrutura interna desta obra,
ao reunir diferentes linguagens − a linguagem política, a linguagem cien-
tífica e a linguagem comum, coloquial − ainda que, academicamente, elas
sejam consideradas incompatíveis. Aqui, cientistas, ativistas políticos e
travestis, todos falam a partir de seus pontos de vista, porque, para nós,
toda realidade é relativa, provisória e parcial. A verdade não se faz da
conformidade com o real, mas do que os sujeitos vivem, sentem e expres-
sam em sua construção simbólica.
Este texto pode ser tachado de infiel às regras do discurso aca-
dêmico e julgado nos tribunais científicos. Contudo, queremos apenas
que o leitor veja nessa mescla de linguagens uma necessidade de a ciência
se mostrar mais humilde e humana, e menos arrogante e desumana. Es-
peramos que o texto desaloje o leitor de sua zona confortável de concei-
tos preestabelecidos e provoque desorientação, desconforto e hesitação
sobre aquilo que já estava consolidado em seus valores culturais. Deseja-
mos que o livro crie de uma vez por todas uma crise que venha a colocar
a funcionar o desejo e o prazer da descoberta de sujeitos que lutam pela
sua visibilidade social.
Enfim, desejamos que o leitor, ao se debruçar sobre as páginas
desta obra, não reafirme apenas aquilo que já julgava conhecer, mas que
se abra para a alegria do encontro com o outro, com o aleatório e o dis-
sidente. Afinal, se o melhor pensador não é aquele que segue a receita
geral, mas aquele que supera a esterilidade da monotonia discursiva, o
melhor leitor é aquele que se deleita com o desejo produtivo que se faz
no encontro das diferenças.

11
A convivência científica e fraternal de mais de oito anos com o grupo de travestis nos
autoriza a fazer esta afirmação.

22
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat e Alides Baptista Chimin Junior

REFERÊNCIAS

BINNIE, Jon; VALENTINE, Gill. Geographies of sexuality: a review of progress.


Progress in Human Geography, v. 23, n. 2, p. 175-187, 1999.
BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. London:
Routledge, 1993.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pro-
nunciada em 2/12/1970. São Paulo: Loyola, 1996. (Original publicado em 1971).
MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade. Sintra, Portugal: Euro-
pa-América, 1996.
VALENTINE, Gill. (Hetero)sexing space: lesbian perceptions and experiences of
everyday spaces. Environment and Planning D: Society and Space, v. 11, n. 4, p.
395-413, 1993.

23
corpos, sexualidades e espaços
PARTE I
Geografias travestis,
por elas mesmas
A GEOGRAFIA DE UMA
TRAVESTI É UMA BARRA,
É MATAR UM LEÃO
A CADA DIA1

Débora Lee

APRESENTAÇÃO

Débora Lee certamente não é o nome que recebi de


meus pais quando nasci. Mas é o nome com o qual me identifico hoje e
que gratamente recebi de minha madrinha, Cassandra Rios. A madrinha
para uma travesti como eu não é “mãe por parte de Deus”, como são de-
signadas as madrinhas por diversas religiões. A madrinha é aquela pessoa
que me ensinou, juntamente com a vida, a ser o que sou, uma travesti.
Nasci na cidade de Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul, como menino.
Hoje tenho quarenta anos, vividos em meio a várias transformações e
trânsitos corporais. Conto minha trajetória a partir das geografias que
produzi ao longo da vida, feitas pela busca de identidade, pela vivência
de sofrimentos, mas também pela esperança de um futuro mais alegre e
acolhedor.

SOBRE SENTIMENTO DE DIFERENÇA:


A ESCALA DO CORPO E OS OUTROS

Quando eu me olho, eu não penso, eu me acho, assim, uma tra-


vesti. Eu sou uma travesti. Um corpo feminino com pênis. Em momento
algum passou pela minha cabeça a vontade de fazer readequação de sexo,
essas coisas, porque eu me sinto uma travesti. Independentemente de eu

1
Este texto é a transcrição de um depoimento oral feito por Débora Lee.
A geografia de uma travesti é uma barra, é matar um leão a cada dia

ser casada com uma mulher, eu vivo vinte a quatro horas por dia vestida
de mulher. Então isso não interfere em nada, eu sou uma travesti. Eu acho
que travesti é aquela que vive vinte quatro horas vestida de mulher, e
tem vontade de viver vestida de mulher, independente se está com ho-
mem ou com mulher. Então eu me considero uma travesti.
Desde criança eu sentia que era diferente. Eu acho que eu tinha
de seis para sete anos. Eu já pensava diferente, eu não pensava como os
meus irmãos. Eram sete irmãos, comigo, e três irmãs. Eram dez filhos. E
eu era a criança caçula de todos, dos irmãos e das irmãs. Era diferente,
porque eu não gostava de me vestir como homem, eu não gostava de jo-
gar bola, eu não interagia com os meus colegas, com os meus irmãos. Eu
brincava com as minhas irmãs, de casinha, de boneca, de pintar, de fazer
comidinha, essas coisas, eu brincava com brincadeiras de menina.
Foi difícil todo esse processo de aceitação e transformação por-
que eu não tive o apoio da minha família. Eu me sentia afeminada, minha
mãe sabia que eu era afeminada, mas aos dez pra onze anos eu perdi a
minha mãe, a única pessoa que me dava apoio. Depois que eu perdi minha
mãe, eu tentei assumir o que eu era perante minha família, meu pai, meus
irmãos, e como resultado fui escorraçada de casa. Eu tive que estudar
em colégio de padre, de homenzinho, sempre fui homenzinho, eu nunca
mostrei que era gay, ou alguma coisa assim. Acho que, se a minha mãe
estivesse viva, e se eu tivesse o apoio da minha família, eu não teria caído
na prostituição, e talvez nem me tornado uma travesti. Eu acho que em
uma família conservadora, eu ia ficar reprimida e guardada, sendo ape-
nas um gay. Mas depois que eu fui expulsa de casa, eu não iria matar, eu
não iria roubar, eu não iria vender drogas. Minha escolha foi vender meu
corpo e me assumir.
Depois que eu perdi minha mãe eu morei com uma de minhas
irmãs em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, e com quatorze para os
quinze anos eu comecei a trabalhar em uma firma. Eu me sentia afemi-
nada, mas ainda trabalhava nesta firma como um homem. Com o tem-
po esta situação começou a ficar insuportável, devido ao convívio com
meus colegas de trabalho, por causa da pressão e dos deboches. Lá no Rio
Grande do Sul é muito deboche, chama, assim, seu barrão, seu gay, estas
coisas. Aí conheci uma travesti e resolvi me assumir, lá em Caxias do Sul.
Resolvi assumir minha identidade e minha sexualidade, isto com uns de-
zesseis anos, pois trabalhei dois anos e meio nesta firma.

28
Geografias malditas
Débora Lee

A minha transformação se baseou em relação ao que a minha


madrinha me ensinou, a Cassandra Rios. Ela foi me ensinando, e aí eu
fui trabalhar na rua. Também sofri, mas também eu vi que o dinheiro
era mais rápido, e não tinha aquela pressão em cima de mim por causa
da minha sexualidade. E aí eu fiquei vários anos trabalhando na rua em
Caxias do Sul, uma cidade muito perigosa, na época muito perigosa, pois
eram de duas a três travestis assassinadas por semana. Nesta cidade tinha
muita travesti, tinha mais de setenta travestis.
Depois eu saí da firma e fui morar na zona do meretrício, que é
uma famosa zona que tem lá. Esta zona existe até hoje. Nesta zona tinha a
casa da Santa Maria, que era uma cafetina que tinha um cabelo pelos pés,
e ela dava abrigo só para travestis. Para que as travestis pudessem ficar
na casa dela, elas tinham que pagar diária, que na época era bem cara.
As travestis drogadas vinham de São Paulo, Rio de Janeiro, e se
instalavam tudo lá. E ali eu fiquei acho que uns dois anos na casa da San-
ta Maria e batalhando2 na rua. Foi nesta época que eu comecei a tomar
“bola”3 com as mais velhas. O meu corpo sempre foi assim, um corpo não
masculino, porque eu sempre tive hormônio mais feminino, até acho que
por causa desta mudança, porque eu sempre tive mais hormônio mais
feminino do que masculino no corpo. Tanto que até hoje eu não tenho
nem barba nem nada de pelo no corpo. Então, o processo foi assim, de
tomar hormônio para melhorar a pele, o cabelo, crescer o peitinho, que
eu não tinha peito, e ficar com um corpo mais feminino, mais desenhado.
Eu tomava só hormônio, porque o silicone eu fui colocar agora de pouco,
quatro anos atrás. Coloquei no seio, no quadril, nas pernas, com bomba-
deira4.
Naquela época as travestis mais velhas pressionavam as traves-
tis mais novas para se prostituir e para comprar droga, para comprar
“bola”. A “bola” é o moderador de apetite para emagrecer. Então eu to-
mava muita “bola”, que lá no Rio Grande do Sul é um frio muito intenso.
Para ir para a batalha a gente tomava uma dose de “paulista”, que é tipo
uma cachaça ou conhaque bem concentrado. Nós tomávamos esta bebida
junto com a “bola”. As duas coisas juntas davam aquele pancadão, e a

2
O verbo “batalhar” e o substantivo “batalha” dizem respeito à atividade da prostituição.
3
Moderador de apetite, para emagrecer.
4
Uma mulher ou uma travesti que vende clandestinamente serviços de aplicação de
silicone industrial nas travestis.

29
corpos, sexualidades e espaços
A geografia de uma travesti é uma barra, é matar um leão a cada dia

gente ficava de dez a doze horas ligadas, sem precisar cheirar cocaína.
A gente cheirava cocaína, porque naquele tempo era só cocaína, a gente
cheirava e já passava. Com a bola, não, a gente tomava e ficava doze horas
chapada para enfrentar o frio da rua.
Eu penso que uma coisa marcante que aconteceu comigo, o que
mais me marcou mesmo foi um tiro que eu levei no pescoço, que quase
morri, em Caxias do Sul, um tiro de um cliente. Ali eu fiquei mais pra lá do
que pra cá. Ali eu fui ver o sentido da minha vida. Foi uma coisa que ficou
marcada. Disse: não quero isso. Tanto que as minhas amigas do meu tem-
po, todas já morreram. As únicas que se salvaram de Caxias do Sul, e isto é
fato, foram eu e a minha madrinha. O resto foi tudo assassinada, ou mor-
reu com o vírus da AIDS. Então isso me marcou muito, o tiro que eu levei.
Depois disto eu pensei: não é essa vida que eu quero, e eu vou embora
daqui. Eu saí de Caxias do Sul e fui para Santa Catarina, para trabalhar em
boate. Eu não tinha apoio, nem família, nem ninguém. Eu senti a morte,
e me senti uma pessoa sozinha naquele momento. O interessante é que o
apoio que eu não tive da sociedade, eu tive de uma travesti, a Cassandra.
Naquela época que eu trabalhava na firma, eu estava dentro de
um ônibus indo para o trabalho, e me deparei com uma travesti, e achei
ela muito linda. Eu pensei comigo: é isso que eu quero, me tocou por den-
tro. Ela estava de vestido, e como eu queria estar naquele vestido, queria
estar vestindo aquele sapato, queria me sentir assim, encarar a socieda-
de, dar a minha cara a tapa, e enfrentar o preconceito. Esta travesti era a
Cassandra.
Então, foi ela que me incentivou bastante, sabe, que me deu
aquele apoio. Que eu era uma pessoa infeliz. Dentro de mim eu era infe-
liz. Eu sorria para os outros, mas eu não era aquilo que eu passava. Por-
que eu não era realizada sexualmente. A partir do momento que eu tive
a força dela, que o primeiro dia que eu fui para a “zona”, ela me levou
no quartinho dela, me deu sapato para colocar, uma mini-saia que tinha
até o Mickey na frente, e uma camisetinha. E eu fui batalhar com aquela
roupa. Naquela noite eu fiz muitos programas. Eu disse: é isso mesmo. Eu
me senti bonita, os homens me elogiavam, diziam: você é muito bonita,
que pernas bonitas você tem. E aquilo foi um passo importante para mim,
pois a Cassandra me deu o apoio que a minha família não me deu.
Depois que a minha mãe morreu, que eu fui para esta casa da
minha irmã em Caxias do Sul, nunca mais eu tive contato com a minha
família, depois que eles descobriram que eu era homossexual. Eles eram

30
Geografias malditas
Débora Lee

preconceituosos e, devido a isto, eles viraram as costas para mim. Vai


fazer mais de vinte e quatro anos que eu não vejo ninguém da minha fa-
mília. Eu lembro que, quando eu era criança, os meus irmãos eram aquela
coisa, de irmão mais velho, uns pegavam e, assim, falavam: − Você não
seja gay, não seja barrão! − Mas eu não sou! E eu chorava. Mas dentro de
mim eu sabia que eu era. Mas fora isto, meus irmãos sempre me trata-
ram de forma igual. Daí, depois que eu me transformei, eles mostraram
que eles eram preconceituosos, que eles não queriam uma travesti, um
homossexual ou um gay dentro da família. Aí, quando foi na hora que eu
mais precisei deles, que foi na época que eu estava na rua, que eu não ti-
nha mais para onde ir, não tinha nem onde morar, telefonei para os meus
irmãos de Porto Alegre, eles não quiseram me dar apoio. Então, a época
que eu mais precisei deles eles não me ajudaram. Daí, depois eu corri
atrás dos meus objetivos e consegui. Jurei nunca mais. Quando eu precisei
deles, eles não me deram apoio, agora eu não vou atrás. E não fui mais.
Depois de tudo que eu vivi nesta vida, eu aprendi o que é ser
travesti. Ser travesti é uma barra. É matar um leão a cada dia. Hoje, nem
tanto, mas, quando eu caí, sim. Tanto que eu levei tiro, levei facada, era
drogada, alcoólatra, então tudo isso influencia. E a maior dificuldade da
gente é enfrentar a sociedade, pintar, se maquiar, se vestir de mulher,
para sair de dia, entendeu, para pegar e enfrentar a sociedade. E travesti
é ser eu, vestida de mulher, botou silicone, transformou o corpo. Passou
por várias dificuldades, eu que vou fazer já vinte e oito anos que sou tra-
vesti. Então, isso é ser travesti. Ser mulher vinte e quatro horas, e passar
pelas dificuldades. Eu penso que se vestir de mulher é o de menos, para
fechar o nosso ego. Ser travesti é aguentar o preconceito, porque a maior
parte que a travesti vive todo dia é a discriminação, a falta de oportunida-
de de trabalho, e ter que cair na prostituição para sobreviver.

SOBRE A ATIVIDADE DA PROSTITUIÇÃO:


A VIVÊNCIA TERRITORIAL

O meu início na prostituição foi bem difícil. Eu tive mais pes-


soas me empurrando para o buraco do que me ajudando, pois, quando eu
comecei, era bem diferente de agora. Quando as novas caem agora, elas
têm muita facilidade, elas têm ajuda. Na minha época, não, eu apanhei,
eu levei tiro, eu levei facada, cortei meus braços, por causa de “bola” que

31
corpos, sexualidades e espaços
A geografia de uma travesti é uma barra, é matar um leão a cada dia

eu tomava, fui presa, etc. Na época eu era menor de idade, fiquei uma se-
mana presa. Mas as minhas amigas que já eram mais velhas ficaram dois
anos presas. Não tive ajuda de ninguém, passei fome, frio, muita dificul-
dade. Isto tudo em Caxias do Sul. Em Caxias do Sul foi onde eu passei mais
dificuldade. E apanhei, dormi na rua, no relento. Em Caxias do Sul eu sofri
demais. Aí, depois que eu levei o tiro, logo depois que eu melhorei, eu fui
embora para Santa Catarina, para uma boate em Tubarão.
Este começo foi muito difícil. Eu conhecia apenas a Cassandra
Rios, e foi ela que me ajudou, lá na Avenida Dezoito do Forte, em Caxias
do Sul. Lá batalhavam mais de setenta travestis, de toda parte do Brasil.
Isto porque lá era uma cidade industrial, e que tinha um grande número
de pessoas, e dinheiro também. Quando eu caí na prostituição, as traves-
tis mais velhas me colocavam para roubar, e se eu não roubasse eu saía
do carro do cliente e apanhava delas. Então, eu era obrigada a fazer o que
elas mandavam. Na época que eu comecei na prostituição eu não tive re-
sistência. O que nós tínhamos que fazer é ser capacho delas. Se não fosse
capacho, não ficava.
Tinha que fazer o que elas queriam, batalhar e dar dinheiro
para o consumo da droga delas, ou beber, ou assaltar os clientes. Isso é,
pajear elas. Hoje não tem mais nada disso, hoje é só nas cidades grandes,
nas capitais que existe isso, e olhe lá. Nessa resistência eu apanhei muito
delas. Eu apanhei muito. Aí, de tanto apanhar, apanhar, apanhar e levar
na cara, elas me botaram na droga, eu comecei a tomar “bola”, inibidor
de apetite, isso em Caxias do Sul. Tomava um moderador de apetite com
“fogo paulista”, e ficava doida, me cortava. E, por fim, elas não estavam
me aguentando. Porque daí eu virei a bandida.
Aí eu batia até nas mais velhas, virando o feitiço contra o fei-
ticeiro. Nesta época eu já tinha uns dezessete anos, já tinha virado uma
mafiosa. Eu já entrava dentro do carro, já pedia o meu tempo, já roubava
o homem e nem queria fazer programa, por causa da droga. Ali eu já me
cortava, já cortava o homem. Aí elas foram me deixando: “Essa aí está
mais bandida que a gente!”. Elas não podiam com a minha vida. Aí cada
uma na sua. Assim, eu comecei a fazer o mesmo que elas, entrei no ritmo
delas. As que iam entrando tinham que “pagar pau”5 pra mim, porque eu
sofri, então as que iam entrando tinham que sofrer também.

5
Submeter-se.

32
Geografias malditas
Débora Lee

Lá em Caxias do Sul tinha uma travesti que tinha por nome Mô-
nica. Esta Mônica era de São Paulo. Ela veio de lá para fazer a máfia em
Caxias do Sul, tanto que ela se matou. Porque ela usava muita droga, e
um monte de traficantes foi atrás dela, e ela se atirou em uma vitrine,
quebrou a vitrine. Ela era enorme, toda feita, uns peitão, toda plastifica-
da, tinha ido para a Itália e tudo, naquela época. E ela pegou um pedaço
de caco de vidro da vitrine e enfiou na barriga e abriu a barriga para não
ser morta pelos traficantes. Ela preferiu se matar do que os traficantes
matarem ela. Essa era tenebrosa, ela era bandida, desde carro ela rouba-
va e tudo. Fazia chantagem, saía com os homens e assaltava os clientes
que davam cheque. Naquele tempo não tinha isso, agora é mais seguro
esse negócio de cheque, elas iam no banco e eles davam o endereço do
homem, o telefone do homem. Eu cansei de fazer isso, de telefonar para o
cliente e fazer chantagem: − “Olhe, eu saí com você ontem, eu estou com
o teu cheque, assim, assim, assim, vou falar para a tua mulher que você
saiu com uma travesti.” − “Mas eu já te paguei!” − “Não! Agora eu quero
mais este tanto para ficar quieta.”
Na maioria das vezes as travestis mais novas, elas tinham que
entrar dentro do carro e dar voz de assalto. E muitas pegavam e se amas-
savam com o cliente. Eu cansei de fazer isso, o cliente deixa a gente ex-
citada, o cliente perguntava quanto que a gente cobrava um programa,
e a gente pedia um preço alto já para o cliente não ir. Aí ele falava que
estava muito caro. − “Então você vai pagar meu tempo, porque você dei-
xou meu pênis duro.” − “Não, eu não vou pagar!” − “Não, eu quero meu
tempo!” Aí nisso já vinha outra na janela para fazer a janela, que era a
Mônica, e as mais velhas. E ali já tinha a parte delas. Aí elas vinham e
roubavam tudo. Nós éramos as iscas, porque éramos as mais novas, ninfe-
tinhas. Essa Mônica tinha peitos muito grandes, que naquele tempo você
ia na bombadeira, jogava anel, relógio, corrente de ouro, e fazia o corpo
inteiro. Foi assim que ela se fez. Ela pegava e entrava dentro do carro do
cliente, jogava os peitos, e já saía com anel, corrente, relógio, tudo. Só de
amassar, só no dedo. Ela roubava quietinho, ela tirava anel, tirava tudo.
Ela jogava os peitos, começava a beijar o pescoço do homem, já tirava a
corrente, só de se esfregar. Mas depois que eu quase morri, mais de vinte
anos atrás, eu fui embora. E pensando, eu não morri mesmo porque eu saí
de lá, porque todas as minhas amigas das antigas já estão mortas. Até a
última vez que eu fiquei sabendo, todas estão mortas já, ou pelo HIV, ou
foram assassinadas.

33
corpos, sexualidades e espaços
A geografia de uma travesti é uma barra, é matar um leão a cada dia

Depois disto eu conheci a minha companheira Joice, em Tu-


barão, em Santa Catarina. Nesta época eu já tinha dezoito anos. Em São
Bento do Sul, em Santa Catarina, foi a última boate antes do passo em
direção a Ponta Grossa, no Paraná. Só trabalhei na rua em Caxias do Sul
e em Ponta Grossa. O resto dos outros lugares, só em boate. Na boate era
mais seguro, a gente ganhava para se vestir bem, ir no salão todo dia,
fazer as unhas. Claro que de noite a gente tinha que se apresentar muito
bem, vender bebida, dar lucro para o dono da casa e fazer programa. Mas
a segurança era quase cem por cento. Contudo, a gente não dava valor
ao dinheiro, porque nossa principal preocupação era estar bem vestida,
mesmo não tendo um teto próprio para morar.
Faz aproximadamente quinze anos que eu moro aqui em Ponta
Grossa, e em todo este tempo muita coisa mudou. Quando eu batalhava
em boate, eu nunca tive nada. A minha casa era quatro paredes do meu
quarto na boate, minha e da Joice. O quarto era a nossa casa. Ganhava
dinheiro horrores e nunca aproveitava nada. Viemos para Ponta Grossa
para trabalhar na rua. Daí eu comecei a dar valor ao dinheiro, no Cemité-
rio e na rua da Caixa Econômica, em Ponta Grossa. Na rua da Caixa Eco-
nômica eu fiquei uns seis anos. Foi neste momento que eu comecei a dar
valor ao dinheiro, comecei a juntar dinheiro. Consegui comprar minha
casa, comprar um carro, ter uma vida mais estável.
Mas foi com bastante dificuldade aqui também, porque, na épo-
ca que eu cheguei, os policiais estavam agredindo as travestis, não dei-
xavam travesti batalhar porque isto era considerado vadiagem, um tipo
de crime. Então agora está maravilhoso. E sempre digo: quem conseguiu
alguma coisa na noite até agora, conseguiu. Quem não conseguiu, não
consegue mais. Porque decaiu bastante. Decaiu tudo, por causa do valor
do programa, por causa das doenças. Então, quem conseguiu conseguiu,
quem não conseguiu não consegue mais.
Nós travestis não temos muitos conflitos com outros grupos
que vivem da prostituição. Uma diferença que penso é que as prostitu-
tas ganham mais dinheiro que as travestis. Mas o problema é a grande
utilização de drogas. Elas ganham com uma mão e dão para a mão do
traficante com a outra. As mulheres usam drogas, e parece que, usando
drogas, dá liga, parece que chama os homens. Aí elas vão. Se o programa
é trinta reais, elas fazem por quinze, por causa da droga. Mas existe uma
outra diferença na prática da prostituição. Melhor, é uma vantagem, que
não é nossa, mas do cliente. Se o homem quiser fazer programa comigo,

34
Geografias malditas
Débora Lee

o normal é eu fazer sexo passivo e oral por trinta reais. Mas se o homem
quiser um completinho, ou seja, oral, passivo e ativo, um programa com-
pleto é cinquenta reais. Eu penso que isto é uma vantagem, porque ele
vem procurar em nós o que a mulher não tem. Daí o programa é mais
caro, porque ele quer coisa diferente. Então, o que a mulher tem, eu não
tenho, o que eu tenho, a mulher não tem.
Hoje as coisas são mais tranquilas. Antigamente era bem difícil,
porque os policiais chegavam agredindo. Neste tempo a prostituição era
vadiagem. Eles chegavam agredindo, com cachorro pastor alemão, atrás
da gente, a gente tinha que correr de uma avenida para outra. Mas as
coisas foram melhorando, porque foram também melhorando os direi-
tos humanos. Nesta época não existiam ONGs em Ponta Grossa. Tinha o
Reviver, que começou com as travestis, mas depois deixou as travestis
de lado, aí ficou sem instituição. Depois disso abriu o Renascer, que aí foi
melhorando, falando de direitos humanos, homofobia, preconceito, etc.
Eu já sabia da existência de ONGs, pois eu trabalhava como voluntária em
Caxias do Sul, no grupo Igualdade. Mas aqui na cidade não. Esta é uma ci-
dade muito católica e preconceituosa, que coloca aquela venda nos olhos
e só olha para a frente, não olha para os lados. Só que muita coisas mudou
aqui na cidade.
Perante tudo que eu vivi até hoje, e pensando sobre isto, eu vejo
que a rua, e, mais especificamente, a rua na prostituição em Ponta Grossa,
foi muito importante para mim. Que eu dei muito valor para o meu dinhei-
ro, que eu ganhei. Comprei a minha casa, graças a Deus, meu carro, tenho
minha vida social, assim, legal. Em outros lugares, nos outros anos que eu
vivi em boates, me ensinaram a dar valor para o meu dinheiro, foi um di-
nheiro mais sacrificado. Mas eu dei valor e soube investir, graças a Deus!
Hoje posso falar de peito aberto, eu consegui tudo que eu tenho,
a minha boa casa, meu bom carro, minha vida social, graças à rua. Eu
não tenho mais o prazer do close6. Eu dependo financeiramente da rua
porque eu tenho que sustentar minha família e minha casa. Mas eu não
desejo esta vida para ninguém. É um dinheiro amaldiçoado, porque, se a
gente não tiver o controle, entra por uma mão e sai pela outra. A gente

6
A palavra “close” (assim como a expressão “dar o close”) diz respeito a mostrar uma
aparência e desenvolver atitudes que são capazes de atrair olhares de admiração e desejo.
Além disso, significa demonstrar superioridade, em beleza e feminilidade, frente às
outras travestis.

35
corpos, sexualidades e espaços
A geografia de uma travesti é uma barra, é matar um leão a cada dia

tem que saber administrar. Outras travestis ainda têm o prazer do clo-
se. Têm porque a safra nova está naquela ilusão, do deslumbre, de andar
bem vestida, bem pintada, acha que tudo é luxo, ser desejada, mas não é.
Eu sempre falo para as travestis mais novas, vocês aproveitem a vida de
vocês agora, pra ver se vocês conseguem alguma coisa. Que é difícil, mas
para ver se vocês conseguem. Que, depois de velha, a maioria das traves-
tis vai virar doméstica, vai ter que limpar chão, sem ter carteira assinada,
sem nada. E acaba às vezes sozinha em asilo, às vezes em uma cama de
hospital, sem família, sem nada.

SOBRE A LUTA POR DIREITOS:


CONQUISTAS ESPACIAIS

Nossa vida é feita de luta, uma luta constante contra o sofri-


mento. Um sofrimento muito pesado. E um destes sofrimentos é a falta de
oportunidade que estrutura nossas vidas. Nestes quarenta anos de vida,
vivi mais de vinte e cinco anos na prostituição. Esta vivência na prostitui-
ção é devida às poucas oportunidades que tive na vida, a falta de oportu-
nidade de uma profissão.
Muitas travestis sonham em se transformar, assumir suas tra-
vestilidades, mas não pensam no cair na prostituição, e isto se relaciona
à falta de oportunidade da sociedade, falta de oportunidade em tudo. Eu
acho que, tendo um trabalho, já é digno. Você enfrentar a sociedade e a
sociedade ver você com outros olhos. Ela não se prostitui, ela trabalha,
independente da roupa que ela está usando, vinte e quatro horas vestida
de mulher. Eu penso que isso ia puxar o cordão e iria amenizar vários
outros problemas, até mesmo o preconceito.
Uma de nossas lutas é por mais oportunidades de trabalho, pois
a prostituição não pode ser a nossa única possibilidade de sobrevivência,
pois é pela falta de oportunidades de trabalho que somos empurradas
para a margem da sociedade. Mas, por outro lado, aqui em Ponta Grossa
nós já tivemos várias conquistas. Uma elas é a utilização do nome social
nos atendimentos de saúde. Assim, a gente pode exercer um de nossos
direitos, que é o atendimento de saúde de respeito. Se pensarmos em
nossas histórias, é uma grande conquista podermos utilizar nestes aten-
dimentos de saúde os nossos nomes sociais. Ou seja, quando uma travesti

36
Geografias malditas
Débora Lee

solicita ser chamada pelo nome social, não passamos mais pelo constran-
gimento de sermos chamadas pelos nossos nomes de batismo.
Outras coisas também melhoraram para as travestis aqui em
Ponta Grossa. A saúde é boa, ela aceita a gente, eu acho que vai de travesti
para travesti corrigir e cobrar o direito. Outra conquista é o respeito que
temos hoje enquanto ONG na Prefeitura Municipal de Ponta Grossa. Sin-
to-me feliz porque hoje, enquanto uma travesti, eu sou reconhecida, as
pessoas me respeitam, na área da saúde, nossos gestores, isso para mim já
é um grande passo. Mas, da mesma forma, outra conquista pessoal que te-
nho é a compra de minha casa. Me sinto feliz na minha casa, cuidando dos
meus bichos, da minha família, da minha mulher. Assim, sou muito feliz
tanto trabalhando na ONG Renascer quanto cuidando da minha família.
A prostituição tem seu lado perverso, mas também tem seu lado
de aprendizado. Tem seu lado econômico, pois precisamos sobreviver. A
gente não tem outra oportunidade de renda. Mas eu não acho importan-
te a prostituição. Eu acho importante para a gente crescer como pessoa.
Sair daquelas quatro paredes em que a gente só vê a família da gente,
ou até mesmo os vizinhos, e ver as pessoas de fora, o porquê de estarem
ali. Porque a gente tem uma história, a gente foi empurrada para aquela
esquina, esquina em que a gente fica à mercê. O que a gente aprende é
só sofrimento, é que a gente vê as dificuldades e tudo. Mas eu acho que
ninguém gostaria de aprender desse jeito.

SOBRE SONHOS E ESPAÇOS


DE SOLIDARIEDADE

O meu sonho, mesmo que seja visto como uma coisa mesquinha
em relação ao sofrimento que outras travestis têm, é poder parar de ba-
talhar. Esse é meu sonho. De eu não precisar vender o meu corpo. O meu
sonho é esse. Eu tinha o sonho de ter a minha casa, ter meu carro, mas já
realizei. Pelo meu lado ativista, minha expectativa para o futuro, depois
destes mais de dez anos de ativismo, lidando com o preconceito, discrimi-
nação e com a homofobia, é que diminua o preconceito e que a sociedade
comece a visualizar a travesti como um ser humano, pois cada um tem o
seu valor. Espero a abertura de mais campos de trabalho para a travesti,
e que a prostituição deixe de ser a única alternativa que ganhamos da
sociedade, pois, sem outras oportunidades de trabalho, a prostituição só

37
corpos, sexualidades e espaços
A geografia de uma travesti é uma barra, é matar um leão a cada dia

tende a aumentar. Estas são minhas esperanças para o futuro. E isso de-
pende não apenas de mim, e esse sonho poderia ser um sonho de toda
sociedade, e só assim ele pode ser concretizado.

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Geografias malditas
O QUE MAIS ME MARCOU NA VIDA
É SER BARRADA E NÃO PODER
ENTRAR NOS LUGARES: ESTA É
A GEOGRAFIA DE UMA TRAVESTI1

Leandra Nikaratty

APRESENTAÇÃO

Meu nome é Leandra, tenho trinta e dois anos, nas-


ci em Ponta Grossa e vivo da prostituição há mais de doze anos. Como
a maioria das travestis, não tenho muito tempo de escolaridade, con-
seguindo, com muito esforço, ir além da média de tempo de estudo de
outras travestis. Da mesma forma que elas, tenho coisas não concluídas
na vida. Uma delas é o curso Técnico em Enfermagem. Desisti do curso
devido ao preconceito vivido no próprio curso. Não pensava em fazer En-
fermagem por dinheiro, mas por amor, queria ajudar as pessoas. Queria
trabalhar como voluntária na África. Todavia, todas as coisas que passei
na vida endureceram meu coração. Antes eu tinha o desejo de ajudar o
próximo, ajudar o próximo por amor. Eu tinha o coração puro. Hoje não
penso mais assim. Mas ninguém nasce com esta ou aquela característi-
ca. Vamos nos constituindo ao longo da vida. Assim, trago neste texto a
minha trajetória, a partir dos acontecimentos que me constituem hoje
como uma travesti.

SOBRE SENTIMENTO DE DIFERENÇA:


A ESCALA DO CORPO E OS OUTROS

Eu sabia desde criança que eu não era, entre aspas, muito nor-
mal. E mesmo que pareça estranho, desde os meus treze anos eu já sabia

1
Este texto é a transcrição de um depoimento oral feito por Leandra Nikaratty.
O que mais me marcou na vida é ser barrada e não poder entrar
nos lugares: esta é a geografia de uma travesti

que ia ser uma travesti. Quando via em programas de televisão a Roberta


Close ou a Thelma Lipp, eu tinha certeza do que seria no futuro. Contudo,
minha transformação não foi da noite para o dia, muito menos tranquila.
A primeira coisa que fiz, que foi uma coisa bem simples, mas que chocou
a escola inteira, foi tirar as sobrancelhas. Uma coisa totalmente simples,
mas que incomodou todo mundo na escola.
Eu ia para a escola vestida de menino, mas maquiada, maquiada
mesmo, de rímel, batom e tudo mais. Se de um lado os professores não
falavam nada, por outro, eu sofria muito na mão das crianças, elas riam
muito de mim. Se hoje eu vivo da prostituição, mais da metade é por-
que eu não pude estudar como eu queria. Eu não queria fazer programa,
eu queria trabalhar. Existiram fases na minha vida, quando eu era mais
nova, que eu estava feliz na prostituição. Mas hoje eu não estou feliz,
eu queria ter trabalhado. Mas por que eu não estudei? Entre ter preocu-
pação em tirar notas boas, ou matar a última aula para não apanhar na
saída, eu matava a última aula.
Caiu a ficha mais ou menos com uns oito anos de idade. Eu vi
que eu era diferente porque eu comecei a apanhar na escola. Não que eu
vi, as outras crianças me obrigaram a ver. Porque para mim eu era uma
pessoa normal, eu era um ser humano. Aí com oito anos eu já comecei a
apanhar, apanhei até a oitava série. Apanhei apanhado mesmo. Eu nun-
ca tentei bater, porque eu sempre fui da paz, eu só chorava. Eu tinha a
resposta que uma menina teria. Se uma menina apanha na escola, o que
ela faz, ela chora. E eu chorava. Para os olhos das pessoas era um menino
chorando, mas para o meu coração, eu era uma menina.
Teve uma vez que eu apanhei na frente da professora. Eu apa-
nhei e a professora perguntou para o menino que estava batendo em
mim: por que você está batendo nele? Aí o menino que estava me agre-
dindo falou: porque ele é viado! E ela não falou nada. Até hoje isto me
incomoda muito. Por que ela não falou nada? Podia ter falado: não bata
nele! Ou: deixe que seja viado, pois as pessoas são diferentes, e pessoas
diferentes devem ser respeitadas! Mas não, sei que ela ficou bem quieta e
eu apanhei muito. Foi a primeira vez que eu chorei perto de outras crian-
ças. Não aguentei aquilo e chorei perto de todo mundo. Isto aconteceu
quando eu estava na oitava série, eu tinha quatorze para quinze anos.
Chorei igual criança, de soluçar.
Em relação à minha família, as coisas foram acontecendo. Eles
foram percebendo que aos poucos eu estava assumindo o que eu era, no

40
Geografias malditas
Leandra Nikaratty

fato de tirar a sobrancelha, não usar mais camisa e sapato. Calça jeans e
camiseta eu continuei usando, mas sapato e camisa eu usei apenas uma
vez, quando eu fiz a primeira comunhão, depois nunca mais. Quando eu
era adolescente, eu sempre usava calça jeans e camiseta, e de preferência
uma calça jeans com lycra, bem justinha. A minha mãe fingia que não via,
isto até uns treze anos, mas ela sabia. Ela sabia por que eu brincava de
boneca desde criança.
Quando eu era criança eu ganhava brinquedos de menino do
meu tio e do meu avô, que tinham mais posses que minha mãe. Aí quan-
do eu ganhava estes brinquedos, eu não brincava e dava eles para o meu
irmão. Eu preferia pegar um pedaço de madeira, enrolar com lã como
se fosse cabelo e brincar como se fosse boneca, ou pegava escondido as
bonecas da minha irmã. Só que ela não gostava. Eu tenho uma irmã mais
velha e um irmão mais novo e meus relacionamentos com eles sempre
foram tranquilos.
Apenas uma vez que ela me ofendeu muito. Uma vez eu pequei
a roupa dela, a roupa de menina que ela tinha, mas eu não peguei para
sair, eu me vesti para me ver no espelho, para me ver de menina. Só que
ela me encontrou no quarto vestida de menina, me xingou de viado e
falou que eu não poderia fazer isso. Em relação ao meu irmão, ele é mais
novo que eu, e penso que ele me respeita porque sempre o irmão mais
novo respeita o mais velho. A única vez que ele tocou neste assunto foi
quanto éramos quase adolescentes. Ele falou que eu podia, se eu quisesse,
me vestir de mulher, mas eu não podia pisar na esquina. Caso isto acon-
tecesse, ele ia me bater. Eu devia ter onze anos e ele uns sete ou oito anos.
Ele tocou neste assunto porque um dia antes nós estávamos
hospedando nosso tio, que morava na cidade de Botucatu − São Paulo.
Nós saímos passear com ele e passamos na rua Balduíno Taques, local
onde batalhavam2 várias travestis. Meu tio ficou caçoando das travestis e
meu irmão sabia o que estava acontecendo. Ele sabia que eu era diferente,
como aquelas travestis. Ele sabia, porque, toda vez que nós brincávamos,
ele era o Superman e eu era a Mulher Maravilha, ou ele era o guerreiro
e eu era a Cleópatra. Sempre brincávamos assim. E até hoje nós somos
muito unidos. Então ele sabia que eu seria diferente quando crescesse.
Mas de forma geral eu nunca tive atrito com a minha família.
Nunca tive problema com a minha mãe porque ela é uma pessoa muito

2
O verbo “batalhar” e o substantivo “batalha” dizem respeito à atividade da prostituição.

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corpos, sexualidades e espaços
O que mais me marcou na vida é ser barrada e não poder entrar
nos lugares: esta é a geografia de uma travesti

educada. E meus irmãos também. A única coisa que meu irmão e minha
mãe falavam é que eu não poderia ir para a esquina, viver da prostituição.
Eu poderia ser travesti, mas longe da prostituição. Só que todo mundo via
que eu sofria. Eu não gosto de viver em sociedade. Eu prefiro ficar passan-
do frio na esquina do que ficar um minuto perto de uma pessoa maldosa,
preconceituosa.
Todos os meus familiares me aceitam. Um exemplo era meu
avô, que era ferroviário, uma pessoa bem machista, a ponto de bater na
esposa. Mas lembro que uma vez meu tio falou que eu era gay, e meu avô
corrigiu ele, falando que eu era homossexual e que eu merecia respeito.
Penso que eles me respeitavam porque todo mundo via que não era safa-
deza, que tinha alguma coisa diferente. Eu brincava com bonecas desde
os meus três anos de idade. Nunca brinquei de carrinho, não sei o que é
ser homem.
Mas apenas com dezoito anos que caiu a ficha que eu era de fato
uma travesti, porque até os dezoito anos eu pensava que eu era uma mu-
lher. Uma mulher diferente. Foi por este sofrimento em relação às outras
pessoas que me fechei para o mundo. Prova disto é que nunca namorei.
Não gosto de namorar. Na verdade eu queria ser travesti para ser o que eu
sou hoje, ter a aparência de uma mulher, com modéstia, bonita, ir numa
loja e comprar roupas bonitas. É isso que gosto. É essa a minha cabeça, ter
a aparência de uma mulher vaidosa. Poder entrar em uma loja e comprar
roupas bonitas.
Nesta época comecei a correr atrás de tudo. Com dezoito anos
comecei a correr atrás das informações que precisava, e continuei a es-
tudar, porque com dezenove anos ainda fazia Enfermagem. Saía só aos
finais de semana. Só que foi assim, comecei a me vestir de mulher, vestia
mini-saia e saía passear, não fazia programa, e os carros paravam para
mim. E eu rejeitava. Eu rejeitei durante uns oito meses, isto bem no início.
Mas já tinha amizade com as travestis, porque já sabia o que era silicone,
queria saber como que fazia para me tornar uma mulher.
A minha mãe frequentava uma reunião e eu ia com ela, uma
reunião de igreja. Quando nós voltávamos pela Balduíno Taques, eu via as
travestis. Era uns “negão loco de peruca”, mas eu achava a coisa mais lin-
da do mundo. Achava aquilo maravilhoso, achava lindo demais. Eu passa-
va à noite e via elas na Balduíno Taques. Daí comecei a ir, comecei a fazer
amizade, comecei a perguntar o nome dos hormônios, cheguei e comecei
a conversar: oi, tudo bom? Falei que não fazia programa e que nem queria

42
Geografias malditas
Leandra Nikaratty

fazer, que era estudante de Enfermagem e só queria ficar bonita, queria


ter uma aparência feminina.
Elas falaram que no meu caso eu teria que fazer o nariz, teria
que colocar peito, aumentar o quadril. Elas começaram a me ensinar, e
mesmo que as pessoas pensem que as travestis têm inveja uma das ou-
tras, que uma quer ser mais bonita que a outra, as coisas não são bem
assim. Muitas delas querem mesmo é ensinar os truques para as travestis
novas.
Por tudo que eu mostrei até agora, parece que minha transição
foi tranquila, mas inversamente, tudo foi muito difícil, pois, sendo mui-
to sincera, eu chorei até os meus dezoito anos, eu só chorava. Eu vivia
chorando. Não tinha amizade, não gostava de ficar com os meninos, e as
meninas não gostavam de ficar comigo. Quando eu tinha amizade com al-
gumas meninas, eu sentia que elas tinham vergonha de mim quando che-
gávamos perto de algumas pessoas. Até hoje é assim, tenho poucos ami-
gos ou amigas heterossexuais. Prefiro ter travestis como amigas, porque
às vezes a gente tem um amigo ou uma amiga, e não sabemos se podemos
cumprimentar eles na rua. Eu fico pensando: será que eu cumprimento
ou não cumprimento? Porque às vezes a gente cumprimenta e as pessoas
fingem que não conhecem. Eu tinha uma amiga que fazia Enfermagem
comigo, eu idolatrava ela. Só que um dia entrei na Maxitango, e ela estava
com o filho dela. Chamei ela pelo nome e ela virou a cara para que o filho
dela não percebesse que ela tinha uma amiga travesti. Depois disso eu
pensei: não quero mais gente assim comigo. Estas coisas nos embrutecem
ao ponto de eu ser simpática apenas com as pessoas que me pagam, como
os clientes. Aqueles que não me pagam, eu não olho na cara.
A violência também é uma constante na vida das travestis, e na
minha vida não foi diferente. Com dois meses de rua eu fui esfaqueada.
Mas depois que eu melhorei eu voltei para a rua, com os pontos do corte,
mas estava lá. Depois disto eu vi que aquilo era o meu destino e que seria
difícil eu sair de lá. Outro momento sofrido foi quando eu coloquei a pri-
meira prótese e tive rejeição. Foi quando eu mais sofri na vida. Tive que
tirar. Eu fiz seis cirurgias em meus seios. Mas eu insisti. Lembro-me que
foi na época que eu mais ganhei dinheiro. O médico não cobrava a parte
dele, mas eu tinha que pagar o centro cirúrgico. Eu tenho silicone clan-
destino no bumbum, que é o da bombadeira3, o que eu coloquei e em uma

3
Uma mulher ou uma travesti que vende clandestinamente serviços de aplicação de

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corpos, sexualidades e espaços
O que mais me marcou na vida é ser barrada e não poder entrar
nos lugares: esta é a geografia de uma travesti

semana estava bom. Mas eu levei um ano e meio mexendo. E, pensando


bem, eu sempre soube que ia ser uma travesti. Desde criança eu sabia. Já
me imaginava na prostituição.
Eu aprendi o que é ser travesti quando caí na esquina. A ficha
caiu quando caí na esquina, quando tive que ser ativa, quando tive que
usar meu lado masculino. Até aí eu pensava que era uma mulher. Nem
sabia que o meu pênis tinha ereção. Fui saber na rua, porque para mim
tinha que passar a faca naquilo. Eu queria fazer a operação. Na rua que eu
fui descobrir que travesti é diferente. Mas também eu não era nenhuma
patética, pois desde criança já sabia que era um menino com espírito de
mulher.
Eu sofri, mas meu maior sofrimento foi quando eu estudava e
vivia em sociedade. Depois que eu me tornei aquilo que sou hoje, apren-
di que ser travesti não é só ter uma aparência de mulher, ser travesti é
enfrentar a vida como mulher, é não ser uma mulher marginalizada, que
foge da polícia, ou que tem medo, não é nada disso. É enfrentar tudo, es-
tar pronta para tudo. Então, para mim tanto faz, se as pessoas me olham
com maus olhos ou com bons olhos.
Todo mundo vê que sou uma travesti, mas de dia uso roupas
discretas, daí no meu trabalho coloco roupas mais exuberantes. Mas saio
de casa discreta e troco de roupa em um bar que fica próximo do local
onde batalho. Então, por respeito aos vizinhos e por respeito às pessoas
que são usuárias do terminal central de ônibus, eu coloco roupas mais
discretas. É raro escutar uma piadinha. É bem raro, digamos, duas vezes
por ano. Mas também, eu passo uma imagem, porque quem me vê na rua
pensa que ela é uma nojenta ou ela é o poder, porque eu não olho para
os lados.
Eu passo esnobando todo mundo, porque isto é o meu escudo.
Então, ao invés das pessoas me tratarem de forma preconceituosa, elas
ficam com ódio, porque eu passo jogando o cabelo, eu passo fazendo cara
de belíssima. Então, ao invés do preconceito, eles ficam com ódio, é ao
contrário. Mas eu prefiro isto. Eu olho para as mulheres com olhar de
nojo, e para os homens eu não olho. Não por mal, só que isto é o meu es-
cudo. Porque quem conversa comigo vê que eu sou uma pessoa humilde e
simples. Uso isto para minha autodefesa, porque eu vejo que as travestis

silicone industrial nas travestis.

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Geografias malditas
Leandra Nikaratty

que passam sorrindo para as pessoas são motivo de riso. Eu nunca quis
isto para mim, eu nunca quis ser a palhaça da história. Eu sempre quis ser
uma mulher bonita e nunca uma palhaça.
Eu tento ser igual à minha mãe, eu não consigo, mas eu tento.
Ser uma pessoa boa e generosa, ter um bom coração, desejar o bem para
os outros, acreditar em Deus, mas é difícil, ainda mais sendo uma travesti.
As pessoas não nos obrigam a sermos ruins, mas sim a sermos esnobes.
Porque, quando eu saio de dia e faço uma cara de “sou poderosa”, “me
deixem”, eu não escuto nada. Quando eu estou mais aberta para conver-
sas, eu sempre escuto piadas. Então, quando eu faço uma aparência de
poderosa, olhando para as pessoas como se elas fossem lixo, eu não es-
cuto nada. Então, eu sou obrigada a fazer uma personagem, um escudo,
mas no meu normal, assim, o meu normal eu sou uma pessoa simples e
humilde. Mas, internamente falando, eu penso que nós travestis somos
mais mulheres, pois, pelo fato da vida ser grosseira conosco, nós acaba-
mos sendo grosseiras, com personalidade forte.

SOBRE A ATIVIDADE DA PROSTITUIÇÃO:


A VIVÊNCIA TERRITORIAL

Eu comecei a batalhar em Ponta Grossa, Paraná, com dezoito


anos. Aliás, eu comecei a ficar na esquina mesmo com dezenove anos,
mas com dezoito eu já fazia eventualmente alguns programas. Nesta épo-
ca existia muita resistência das travestis mais velhas de rua em relação às
mais novas. E foi sabendo da existência desta resistência que eu busquei
conquistar as travestis que já estavam lá.
Com dezessete para dezoito anos, eu comecei a passear nos lo-
cais onde as travestis batalhavam, mas minha mãe não sabia. Eu pulava
a janela e saía escondido. Nesta época já estava me transformando, eu
já tinha peito de hormônio, já era bem feminina. Nesta época eu estava
terminando o segundo grau e me preparando para o curso Técnico em
Enfermagem. Eu saía passear, com algumas amigas que se vestiam de mu-
lher, mas que não eram ainda travestis. Mesmo que elas fossem um pouco
mais velhas que eu, nós estávamos no mesmo processo de transformação.
Lembro que elas falavam que eu tinha que fazer programa pelo fato de
ter uma aparência legal. Elas sempre falavam que eu estava perdendo di-
nheiro. Mas sempre que falavam isto, eu respondia que não queria viver

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corpos, sexualidades e espaços
O que mais me marcou na vida é ser barrada e não poder entrar
nos lugares: esta é a geografia de uma travesti

da prostituição, pois na minha cabeça, quando eu ficasse mais velha, eu


iria me tornar uma mulher normal, iria estudar, trabalhar, encontraria
um namorado e seria fiel a ele.
Lembro que foram várias vezes que eu estava na esquina, no
centro da cidade, com as minhas amigas, os carros paravam e eu não
atendia. Eu não queria fazer programa, eu só passeava à noite, ia nos bar-
zinhos. Na época tinha uma boate gay, a Enigma Bar, na Paula Xavier, e
eu ia também lá. Eu só passeava, eu tinha uma vida de mulher. Lembro
que eu ficava esperando chegar a sexta-feira ou o sábado, só para sair.
Saía para passear, eu não tinha relação sexual com ninguém. Teve uma
vez que fiquei com um rapaz na Magic, mas só fiquei com ele, não tive
relações sexuais. Agia assim porque na minha cabeça eu era uma mulher.
Contudo, depois de alguns acontecimentos eu tive que realizar outras es-
colhas para a minha vida. Eu estava fazendo o curso de Técnico em Enfer-
magem, e rodei pela primeira vez. O dinheiro com que eu estava pagando
o curso era de uma poupança que meu pai havia deixado para os filhos
após falecer. Aí eu rodei e minha mãe não tinha a possibilidade de pagar
o curso. Foi neste momento que eu pensei: por que não?! Foi este o meu
começo, fazendo programa para custear o meu curso.
O motivo de eu ter rodado no curso foi preconceito, pois, mes-
mo que não pareça, nós que vivemos uma vida de exclusão sabemos o
que não é e o que é uma atitude preconceituosa. Eu tinha uma professora
enfermeira que era muito preconceituosa. A disciplina que ela lecionava
era Introdução à Enfermagem. E mesmo que existisse a necessidade de
um atendimento igualitário pelo fato dela ser enfermeira, o preconceito
existia. Eu entendo que não existe perdão para alguns erros, como a pre-
paração de medicamentos. Se não preparamos de forma correta a dosa-
gem dos medicamentos, podemos matar uma pessoa. Mas existem outras
coisas que podem ser perdoadas. Podemos ter uma segunda chance para
algumas coisas na área da enfermagem, e uma delas é a aplicação de inje-
ções. Eu reprovei porque eu não conseguia aplicar injeções. Mas o estra-
nho de tudo isto é que hoje em dia sou eu que aplico hormônio em muitas
travestis, e nunca aconteceu de empelotar alguma aplicação minha. Eu
sei que ela poderia ser maleável, e não foi. Ela me perseguiu pelo fato de
eu ser diferente, e eu reprovei. Nesta situação eu tinha que arrumar uma
forma de custear meu curso. Trabalhei um tempo de babá, mas o que eu
recebia era pouco para as necessidades que eu tinha. Minha solução foi ir

46
Geografias malditas
Leandra Nikaratty

para a rua. Neste começo foi complicado, porque minha mãe sabia, mas
eu penso que ela não queria saber.
Eu saía apenas aos finais de semana e conseguia o dinheiro, cus-
teando o curso e finalmente conseguindo ser aprovada na disciplina de
Introdução à Enfermagem. Com o dinheiro da prostituição eu passei nas
disciplinas e consegui chegar na atividade do estágio. Pelo fato de não ir
a semana toda e ir apenas aos finais de semana, só após a meia-noite, as
travestis que iam embora cedo não me viam. Mas as travestis que eram
as mais ferozes e que chegavam apenas após a meia-noite, estas eu tinha
que conquistar.
As travestis que mandavam na rua eram quatro: a Cláudia, a
Priscila, a Farrá e a Jéssica. A Jéssica e a Farrá iam depois da meia-noite
para os bares da vida, e as outras, que se consideravam finas, mas que
não deixavam a gente ficar e que nos agrediam, iam embora à meia-noi-
te. Analisando esta conjuntura, eu construí as seguintes estratégias: eu
vou depois da meia-noite e vou conquistar as travestis ferozes, pagando
bebida para elas. Também não paguei tanta bebida, pois eu ia para a rua
apenas aos finais de semana.
Depois de um tempo, percebi que estava envolvida com a pros-
tituição, que estava gostando de ganhar “dinheiro fácil”. Não que seja um
dinheiro fácil, mas para quem está começando na prostituição, pensa que
é, como também para quem está fora. No começo eu pensei que era fácil
porque na minha cabeça tudo não passava de uma brincadeira. Minha
vida na noite relacionava-se a batalhar aos finais de semana, e, com esse
dinheiro, pagar o curso e as despesas, como ônibus, material, uniforme,
etc. Não era como hoje, que, se não batalhar, não come.
Quando eu conquistei a amizade das travestis que ficavam de-
pois da meia-noite, elas me adotaram. Lembro que elas falavam assim:
essa travesti é humilde, ela é simples. Para o grupo das travestis, a ação
de adotar é como se uma ou várias travestis escolhessem ser sua mãe de
rua. Naquela época a gente chamava mãe de rua, mas hoje tem pouco
disso, hoje em dia o respeito entre as travestis é menor. Por outro lado,
nós pagávamos a proteção que tínhamos de nossas mães pagando o que
elas pediam, um lanche, uma bebida. Mas a minha aceitação no grupo
não nasceu apenas dos lanches que eu pagava para elas. O fato de eu ser
educada também ajudou na minha aceitação. As travestis abriram assim
o grupo mais rápido, nisto eu tive sorte.

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corpos, sexualidades e espaços
O que mais me marcou na vida é ser barrada e não poder entrar
nos lugares: esta é a geografia de uma travesti

Penso que o meu mergulho completo na prostituição esteve re-


lacionado ao curso de Técnico em Enfermagem. O segundo momento de
sofrimento foi quando eu estava no estágio e algumas pessoas do hospital
perguntavam se eu era um homem ou um viado. As pessoas liam o meu
nome de homem no crachá e, vendo minha aparência feminina, pergun-
tavam que bicho que eu era. Teve outra vez que um paciente falou que,
mesmo que eu fosse um viado, eu era um ótimo enfermeiro. Foram várias
vezes que eu passei por estas circunstâncias. E cada ação de preconceito
matava um pouco minha vontade de ajudar as pessoas, matava o desejo
de ajudar o próximo. Hoje todos estes sonhos estão mortos. Eu comecei a
estudar menos, para reprovar, e acabei tendo o que queria. Recebi várias
ligações do Senac para retornar para o curso. Só que eu já estava cansada.
Mesmo que eu soubesse que eu tinha um dom, tudo que vivi mostrou que
todas as pessoas, desde as que mais tinham dinheiro até as mais humil-
des, iriam me tratar mal, e que eu sofreria muito quando fosse uma auxi-
liar de enfermagem. Aí, com dezoito para dezenove anos desisti do curso
e decidi colocar silicone. Eu vou ficar estudando para quê? Vou estudar,
vou estudar, vou estudar, vou estudar, e essas pessoas vão sempre me
pisar, e eu vou servir estas mesmas pessoas que estão me pisando? Então,
chega! Fui atrás de um cirurgião plástico e coloquei prótese no seio, pois
minha decisão era definitiva.
Eu abandonei a Enfermagem, pois a gota d’água foi a irmã do Hos-
pital Vicentino falar que eu poderia ser o que quisesse da porta para fora
do hospital. Mas eu não sou uma artista, eu sou o que sou. Às vezes eu pos-
so até atuar com os clientes, mas eu sou eu, eu não consigo fingir que gosto
de uma cor se gosto de outra cor. Se eu fosse enfermeira, eu iria colocar
jaleco branco, roupa branca e cabelo preso como uma enfermeira mulher.
Não conseguiria andar firme e falar grosso dentro do hospital para poder
me soltar só fora dele. Não sou uma transformista, não sou assim, não sei
ser assim. Tudo isso passava pela minha cabeça, o olhar das pessoas. Das
pessoas que estavam doentes não era tanto, mas dos familiares, porque
eu trabalhava na parte pública do Hospital Vicentino. Eu ficava olhando
o olhar dos familiares me olhando. Aí eu pensei: eu não quero isso! E o di-
nheiro foi pesando, fazendo com que eu fizesse a escolha pela prostituição.
Depois que eu caí de fato na prostituição que eu fui ver o que
era de verdade a prostituição para uma travesti. Antes era uma grande
brincadeira, porque até aí eu não tinha sido ainda ativa em um programa.
Eu penso que os clientes viam que eu era nova, eu era muito boba. Muita

48
Geografias malditas
Leandra Nikaratty

coisa que eu faço hoje eu não fazia quando eu comecei, pois antes eu agia
como se fosse um namoro, e eles pagavam para aquilo. Algumas coisas eu
não me submetia a fazer, porque eu não precisava cem por cento. O pri-
meiro programa que eu fiz precisando de dinheiro foi com um homem de
Kombi. E ele queria que eu fosse ativa. Só que eu dei muita risada porque
nunca eu pensei que uma travesti fazia isto. Na minha cabeça eu era uma
mulher. Eu peguei aquele dinheiro e pensei comigo: agora este dinheiro
é o da responsabilidade.
Contudo, a palavra responsabilidade não foi seguida muito ao
pé da letra. Quando eu caí na prostituição, eu conheci várias travestis
mais velhas que não eram muito certas. Elas eram “bagaceira”, loucas,
drogadas, ladronas. Elas paravam um carro e entravam em cinco para
roubar os clientes. E se eu queria ficar na rua, queria ser aceita pelo gru-
po, eu tinha que entrar na onda das piores, eu tinha que ganhar elas. Na
minha cabeça as travestis que falavam que eram as donas da rua, mas que
tinham medo de ficar batalhando depois da meia-noite, não eram donas
de nada. Hoje eu não madrugo, porque você corre muito risco, mas na-
quela época eu madrugava. Mas o que eu queria mesmo é me enturmar
com as ferozes. Já que vou, eu quero ir para o ninho das cobras.
Depois de tudo que passei junto com as travestis, elas começa-
ram a falar que eu era uma delas e que eu poderia ir batalhar à hora que
eu quisesse. Todavia, não foi isto que aconteceu. Pelo fato de ser nova,
eu comecei a “bater porta”, que é, assim, vamos dizer, fazer muitos pro-
gramas. Só que isto começou a incomodar as travestis, elas começaram
a ficar com inveja, e a que mais se incomodou comigo foi a Duda, que
Deus a tenha. Ela ficou tão irritada comigo que ligou para a minha mãe
falando que eu fazia programa por três, cinco reais, e que ela ia cortar o
meu rosto. Sei que, quando cheguei em casa, vi a minha mãe desligando
o telefone e falando o que ela tinha prometido para mim. Eu vi o quanto
ela era calculista no outro dia, quando eu cheguei na rua. Ela estava com
duas roupas, uma que ela estava usando para brigar comigo, e outra que
estava escondida no mato.
Quando a vi, atravessei a rua e fui cega nela. Eu ia apanhar dela,
só que, Deus é grande! Aliás, Deus não tem nada a ver com essa história,
né? A minha sorte foi grande. O que aconteceu é que, quando fui nela, eu
tropecei e caí sobre ela, derrubando ela sobre uma cerca viva que tem
bem na frente da Caixa Econômica Federal, que se chama “coroa-de-cristo”.
Sei que comecei a dar murros nela bem desajeitados. Só que, pelo fato de

49
corpos, sexualidades e espaços
O que mais me marcou na vida é ser barrada e não poder entrar
nos lugares: esta é a geografia de uma travesti

ter caído sobre ela, eu a machuquei. Ela começou a gritar que eu podia
ficar e, depois disso, nós duas ficamos na rua, em esquinas diferentes.
Existiram outros conflitos, mas este é o principal, em que ganhei meu pri-
meiro respeito da maioria das travestis. Foi através disto que eu comecei
a conquistar de fato meu espaço.
Só que tive que ficar ainda três anos na frente da Caixa Econô-
mica. Só podia ficar ali. Se eu fosse algumas quadras em direção à Santa
Casa de Misericórdia, a Cláudia me tocava, se eu fosse para outra esquina,
a Michele e a Priscila me tocavam, se eu fosse para baixo, a Jéssica e a
Farrá me tocavam. Se eu tinha batido em uma travesti ali, era ali que eu
tinha que ficar, ali era o meu território. Hoje não tem mais quem mande,
hoje tem quem mais se garante. Tem as que se garantem, as que têm carta
verde. Carta verde é, tipo assim, eu posso abrir caminho para uma traves-
ti nova entrar na rua. Uma travesti nova não pode chegar na rua e, tipo
assim, cheguei! Não fica. As que têm carta verde são, tipo assim, as mais
antigas. E uma delas sou eu.

SOBRE A LUTA POR DIREITOS:


CONQUISTAS ESPACIAIS

Pensar sobre conquistas na minha vida é pensar sobre as coisas


que eu tentei fazer e eu não tento mais. Então, não são bem conquistas.
Antigamente eu gostava de ir em danceterias e era barrada. Uma vez fui
barrada na padaria, na padaria Vila Velha, fui barrada, aliás, não eu, mas
a minha amiga Betina, mas foi como se eu tivesse sido também, porque eu
estava junto. Minhas dores relacionam-se mais ao fato de ser barrada nos
lugares. Foram estas coisas que fizeram com que eu me fechasse para a
sociedade.
Quando saio de dia, eu saio, literalmente, uma vez por mês, só
para comprar o que quero, só para ir nas lojas, porque sou viciada em
roupas, para comprar o que quero, literalmente uma vez por mês, evi-
tando horário que tenha muita gente. Eu não vou mais para o terminal
central de ônibus. Quando eu vou trabalhar, graças a Deus, no meu ho-
rário, o ônibus vai vazio, mas, quando eu morava na Coronel Cláudio, eu
subia a pé para não pegar ônibus. Ponta Grossa inteira é um espaço de
sofrimento para mim.

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Geografias malditas
Leandra Nikaratty

O único local em que me sinto protegida e feliz é em casa. Exis-


tem apenas dois momentos felizes na minha vida, quando estou na mi-
nha casa e quando estou voltando para minha casa. Eu não considero o
território da prostituição um espaço em que eu me sinta bem. Se eu falei
alguma vez que eu me sinto bem lá é porque eu estava viajando. Eu não
me sinto bem, é ruim, é bem ruim. Uma vez eu estava assistindo um pro-
grama da Sílvia Poppovic. Ela falava que na prostituição não é apenas a
tua honra que vai embora, mas a tua autoestima. Porque às vezes, não de
se sentir melhor do que os outros, a gente paga para alongar o cabelo,
ou alguma coisa assim, e os clientes deixam de sair com a gente para sair
com uma coisa mais inferior porque é novidade. Então, a gente perde um
pouco do orgulho próprio.
É pelo preconceito que vivo em sociedade que a prostituição é
e não é importante ao mesmo tempo. É complicado, pois, o mesmo local
em que sofro, o território da prostituição, é o que se coloca como a única
possibilidade de renda. Além disso, é uma das únicas possibilidades de
eu ser aquilo que gostaria de ser vinte e quatro horas por dia, cortejada,
admirada, respeitada. Mas às vezes, quando saio de dia também, também
sou desejada. Mas eu não sou o que eu sou na esquina. É como uma más-
cara, uma personagem, eu sou o que eu sou conversando com as amigas
na esquina. Se um cliente passa gritando “gostosa”, eu não olho.
Às vezes passam vários rapazes jovens e bonitos, estudantes,
querendo trocar ideias conosco, e nós esnobamos. Fazemos a antipáti-
ca, não conversamos. Mas por quê? Porque não vemos sinal de dinheiro
neles. E quando o sinal de dinheiro aparece, por mais que eu tenha nojo
dele, eu sorrio para ele, atuo para ele, sou uma gueixa total. Então, não
somos o que somos na nossa profissão. Como qualquer outra profissão,
acho que todo mundo atua na vida. Uma vendedora atua também, todo
mundo atua, é normal.
Se pensarmos nas amizades e na aceitação enquanto conquis-
tas, a prostituição nos proporciona isto. Eu me sinto bem, estou com essas
pessoas que são como eu, estou na minha tribo, e, tirando alguns igno-
rantes, as pessoas que vão ali vão porque gostam da gente. Então é bom, e
a maioria dos clientes, por mais que sejam meio frios, também nos tratam
bem. É um lugar em que eu me sinto um pouco bem, hoje, digamos que é o
meu lugar. Mas se pudesse voltar no tempo, se eu tivesse outras chances,
eu teria aproveitado melhor. Eu queria ter estudado.

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corpos, sexualidades e espaços
O que mais me marcou na vida é ser barrada e não poder entrar
nos lugares: esta é a geografia de uma travesti

Aconteceu uma coisa muito chata tempos atrás. Eu participei


de um Fórum da ONG Renascer. Neste evento estavam várias enfermeiras
que fizeram o curso comigo, mas que se formaram. Uma palestrante do
evento foi uma mulher que é enfermeira padrão, e hoje é professora. Fi-
quei com depressão de participar do evento, não que estivesse com inveja
da mulher, mas fiquei com depressão quando vi aquilo. Era para eu estar
ali também, sendo uma das palestrantes. Não precisava ser uma pessoa
que precisa daquela ajuda, poderia estar ali ajudando. Mas sei que não
é comum travestis com muita escolaridade. Todavia, com dezoito anos
e meio eu estava com prótese de silicone. Então, naquela época, entre
estudar e fazer a cirurgia plástica, eu preferi fazer a cirurgia plástica. Mas
não me preencheu a cirurgia plástica. O que me preencheria mais seria a
questão de que eu deveria ter estudado.

SOBRE SONHOS E ESPAÇOS


DE SOLIDARIEDADE

O meu sonho era − ainda acho que é − ir para a Europa e trazer


de lá um ou dois apartamentos em dinheiro, para não depender mais da
rua. Eu tinha um sonho de ser voluntária na África, mas penso que para
isto eu tinha que ter curso superior. Ser voluntária não era bem um so-
nho, pois sabia que isto estava muito longe da minha realidade, por ser
travesti. Mas o meu sonho hoje é fazer mais umas duas ou três cirurgias
plásticas, quero fazer o nariz mais uma vez, eu quero afinar ele. Quero
fazer o meu nariz, quero aumentar o quadril, que isto não é um sonho, já
é realidade, que já está tudo certo, que eu vou colocar silicone no quadril,
vou aumentar o quadril, já está marcado. Eu quero fazer estas pequenas
cirurgias plásticas, quero ir para a Europa, e quero trazer dois aparta-
mentos para eu poder alugar eles, para poder ir de vez em quando para
a esquina. Assim, vou para a rua só para me satisfazer com os homens, e
trabalhar em um trabalho voluntário.
Gostaria de trabalhar em uma ONG, com pessoas soropositivas
ou com ex-dependentes químicos. Este é o meu sonho. Não quero traba-
lhar com travestis, pois sei que não dá certo. Prefiro trabalhar em uma
instituição assim como as Irmãs Sheila. Um dia quero trabalhar em servi-
ço voluntário, mas é do tipo da Irmã Sheila, ou um grupo que eu veja que

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Geografias malditas
Leandra Nikaratty

tenha aceitação entre as travestis. Eu também sei desenhar muito bem,


gostaria de desenhar para as crianças, ensinar elas a desenhar.
Ir para a Europa é o que está mais fácil para mim. Tenho uma
amiga na Europa, a Fabíola. Se eu for, fico com ela uns dois ou três anos. A
Fabíola faz mais de quatro anos que está lá. Porque ela perdeu tempo, ela
ficou sete meses casada. Ela casou com um marroquino. Ela falou que per-
deu muito tempo e dinheiro. Ela trabalhava para uma agência em Madri.
Eu vou porque eu estou vendo que a idade está chegando, tenho medo do
futuro, eu preciso ter uma estabilidade. Se eu tenho uma conta de cem
reais para pagar, eu vou para a esquina hoje e ganho, mas amanhã? E de-
pois? Hoje em dia eu sou uma das mais bonitas da rua, mas amanhã, e de-
pois? Poderia tirar dinheiro das travestis na rua, mas daí Deus não ajuda
a gente. E toda a vida eu ganhei bem porque eu sempre tive um coração
humano. Eu sou aquele tipo de pessoa que só ajuda as pessoas, se eu não
pude ajudar, eu não atrapalhei.
Quando eu vejo uma bicha reclamar, eu ajudo. É assim o meu
coração, e não estou dando uma de Cinderela, eu sou assim mesmo. Eu
aprendi isto com a minha mãe. Desde criança, às vezes eu acordava e
tomava café com pessoas estranhas, que eu nunca tinha visto na minha
vida, que minha mãe tinha ficado com pena e havia recolhido para dar
de comer. A minha mãe tinha casa de aluguel e os inquilinos que não pa-
gavam, a minha mãe nunca despejou eles. Então eu herdei isto da minha
mãe. Teve um ano-novo que minha casa estava cheia de travestis. Todas
as travestis que moravam em hotel, ou que não eram da cidade, eu trouxe
para a minha casa, para ter um ano-novo decente. Eu fiquei com dó delas.
É por isso que eu quero ir para a Europa, comprar uns dois apartamentos
e ir para a esquina só de vez em quando, porque é gostoso você ir para lá.
Eu posso estar me sentindo gorda, mas tem cara que levanta a
tua autoestima nas nuvens. Eu sempre vou querer ir, mas eu quero uma
estabilidade. É só alugar o apartamento e ficar sossegada, porque eu não
pago INSS. Mas, pensando em aposentadoria, eu não conheço nenhuma
travesti que tenha sessenta e cinco anos. A idade limite de uma travesti
se aposentar é com quarenta anos. Eu estou com trinta e dois anos, se eu
não conseguir o que eu quero até uns trinta e cinco, eu não consigo mais.
Você até consegue se manter bonita com esta idade, mas comendo bem
e dentro de casa, não na rua. Isso não é maldade, as travestis morrem
cedo de problema pulmonar, de hepatite, de meningite. Eu tenho uma

53
corpos, sexualidades e espaços
O que mais me marcou na vida é ser barrada e não poder entrar
nos lugares: esta é a geografia de uma travesti

amiga, ela foi para a Itália e ficou oito meses. Ela voltou com um carro
importado, na época era um carrão, e um apartamento no Água Verde em
Curitiba. Ela não chegou a desfrutar o que ela conseguiu na Europa. Dois
meses depois, morreu de meningite, por causa da variação de tempera-
tura entre aqui e lá. Tudo ficou para a família dela, que tocou ela de casa
quando ela era adolescente. Valeu a pena ficar rica? Não valeu! Daí, no dia
do velório, a gente foi lá, daí a irmã dela perguntou para um cara: cadê o
carro da Melissa? Daí ele falou que estava ali. Daí a gente viu aquele Eclip-
se prata, com as rodas cromadas.
Foi triste saber que ela não pôde usufruir. E ela era outra pes-
soa maravilhosa, bonita por fora e por dentro. Essa Melissa é pouca coisa
antes de mim. Se eu caí em 1998, ela caiu em 1996. Só que ela ficou muito
pouco em Ponta Grossa, porque a família dela não queria ela aqui. Enfim,
é difícil ter sonhos com uma vida dessa como eu tenho.

54
Geografias malditas
A VIDA DA TRAVESTI
É GLAMOUR, MAS
TAMBÉM É VIOLÊNCIA
EM TODO LUGAR1

Fernanda Riquelme

APRESENTAÇÃO

Hoje me chamo Fernanda Riquelme. Falo “hoje”


porque na vida da travesti o nome tem muita importância, estando rela-
cionado àquilo que vivemos. É devido a isto que algumas travestis mudam
de nome, dependendo do tempo ou do local em que estão. Meu primeiro
nome foi Mila Moreira, para depois utilizar o nome de Fahah Fawcett.
Tinha este nome porque eu era parecida com a atriz que tinha o mesmo
nome e que era uma das detetives particulares das chamadas “Panteras”.
Já fui Fernanda Kimball e agora sou Riquelme, que é meu nome de família.
Acho que agora adotei meu nome de família porque voltei para a casa da
minha mãe, para cuidar dela.
Tenho quarenta e sete anos, vividos em várias cidades do sul
do Brasil. Me criei solta. Mas hoje moro com minha mãe. Lembrando de
tudo que vivi, vejo que muita coisa mudou desde que me transformei na
travesti que sou hoje. Passei por momentos de violência, mas nada com-
parado a ter visto a morte de perto, como na violência que sofri há alguns
anos. Assim, este texto trata da minha vida, feita por paradoxos de gla-
mour e de violência.

1
Este texto é a transcrição de um depoimento oral feito por Fernanda Riquelme.
A vida da travesti é glamour, mas também é violência em todo lugar

SOBRE SENTIMENTO DE DIFERENÇA:


A ESCALA DO CORPO E OS OUTROS

Eu não sabia que era homossexual. Eu era delicada, desde crian-


ça. Toda a vida eu fui delicada, isto desde os meus sete anos. Penso que
minha família me colocou para estudar em um seminário já pelo fato de
eu ser afeminada desde criança. Estudei no Seminário [nome ocultado].
Eles me colocaram lá já pela tendência que eu tinha, desde o primeiro
ano do primário. Eu não gostava de ficar no meio da piazada, jogar bola e
brincar de carrinho, estas coisas. Isso não era a minha área. A minha par-
te era ficar no meio das meninas, brincar com coisas de meninas. Então,
eu fui crescendo assim, e a minha família foi deixando. Mas naquela épo-
ca não tinha travesti. Você era enrustido, como se dizia, escondido, ou se
vestia de mulher só no carnaval, que era a festa do povo. Neste momento
os homens aproveitavam e soltavam a franga. E eu fui crescendo assim,
vendo aquilo.
Quando fiquei um pouco mais adulta, com uns doze anos, eu
já comecei a descobrir que existiam homens que eram diferentes. Nós
não falávamos homossexual naquela época, falávamos perobo2, ou viado
mesmo. Fui crescendo e descobrindo com o tempo que existiam traves-
tis, descobri o mundo das travestis, que elas tomavam hormônio, e que
ele fazia crescer os seios, mudar a pele, mudar a voz, fazer a gente mais
feminina.
Antes era muito difícil conversar com os outros sobre isso. En-
tão, você tinha que guardar aquilo que você era. Naquela época eu não
podia me assumir, porque o povo batia muito, perseguia muito, no colé-
gio mesmo a gente era chamado de marica. Os amigos de colégio nos cha-
mavam de marica. Isto acontece assim até hoje, porque os pais ensinam
para os filhos que homem que não gosta de mulher, que gosta de homem,
é marica, afeminado, e que não é para ter amizade. Então, você já é ex-
cluído do lado das pessoas. O preconceito não era apenas dos colegas de
estudo, ele vinha também dos diretores, dos professores. Mas penso que
o preconceito também nascia do fato de eu ser muito aviadado, muito
afeminada.
Fiz meu primário internada no seminário. Só que, no próprio
seminário, os próprios superiores, os padres e os adultos já induziam a

2
Sinônimo de pederasta.

56
Geografias malditas
Fernanda Riquelme

gente a ser mesmo homossexual. A influência é muito grande, pois eles


usavam a gente como a menina deles. Tanto os professores como os cole-
gas mais velhos. Aí eu saí do internato e continuei no primário. Comecei o
meu ginásio, naquele tempo se falava assim, no colégio [nome ocultado].
Naquela época era misturado o científico e o ginásio. Aí eles sempre me
chamavam de viadinho, de bichinha, dessas coisas. Os mais velhos, do
científico, que hoje é o segundo grau, não, o ensino médio, me judiavam
demais.
Era aquela perseguição, não podia entrar no banheiro, porque
eles já queriam fazer coisas absurdas com a gente dentro do banheiro.
Então, eu sempre me preservei muito, justamente por ser discriminada,
por ser a bicha da história. Então, já para não ser perseguida, eu não ia
no banheiro. Na sala de aula eu sempre estava isolada, sempre estava ou
na última ou na primeira carteira. Na hora do recreio sempre estava so-
zinha. Quando fazia Educação Física, tive que aprender a ser a melhor
jogadora de bola para ser aceita. Nesse momento eu já era totalmente fe-
minina, já tinha o seio pequeno, já tinha as pernas mais grossas e o corpo
mais feminino, e também tinha o cabelo bem comprido.
Eu virei uma travesti com aproximadamente quatorze anos. Eu
descobri um grupo, uma turma de travestis aqui em Ponta Grossa, que já
tinha se arrumado, se assumido. Naquela época tinha um clube chamado
Castelinho, que era lá na estrada, da Santa Paula em direção ao antigo
Posto Presidente. Então, elas se vestiam, usavam vestido longo, se arru-
mavam e iam no Castelinho dançar no final de semana. Como falavam, lá
era o bailão, o “risca-faca”. Quem entrava lá sabia que entrava, mas não
sabia se saía, porque era muito perigoso. Além deste lugar, também exis-
tiam travestis que moravam nas boates naquele tempo. Isso lá pelos anos
80. Aliás, naquela época não chamávamos de boate, era zona mesmo, ti-
nha muita zona aqui em Ponta Grossa.
A primeira travesti que conheci na vida foi a Baby. O nome de
ocó3 dela é [nome ocultado], da família [nome ocultado] de Ponta Grossa,
gente grande aqui na cidade. Enfrentou muito preconceito a vida toda.
Até hoje enfrenta. Faz muitos anos que ela não vem para Ponta Grossa.
Ela existe ainda e está em Curitiba. Só que, depois de tudo o que acon-
teceu na vida, não quis mais saber de Ponta Grossa. Ela era uma bicha
linda. Ela foi um cabeleireiro famoso daqui. Maquiava miss, maquiava as

3
No vocabulário das travestis, o nome de homem.

57
corpos, sexualidades e espaços
A vida da travesti é glamour, mas também é violência em todo lugar

pessoas em todos os eventos finos. Durante o dia era o [nome ocultado]


gay, e à noite se produzia e saía como travesti. Ela era muito bem situada,
tinha carro, tinha tudo.
Depois eu conheci a Néri, que trabalhou com a [nome ocultado],
que tinha um salão de beleza. A Néri era confeiteira daquele mercado que
tinha lá no São José, o Mercado Catarinense. Era uma travesti mesmo,
porque a Baby se montava, se produzia, se transformava numa mulher, e
a Néri era uma mulher. Ela tinha seio, ela tinha dentes lindos, um cabelo
comprido, ela era muito linda. Só que ela morreu aqui em Ponta Grossa,
se acidentou ainda quando existia o Posto Presidente. Ela foi a um casa-
mento com a patroa dela e elas se acidentaram perto do Posto Presidente.
Só que ela não morreu no acidente, ela faleceu porque o hospital [nome
ocultado] não quis atender ela. Levaram ela para outros hospitais e acon-
teceu a mesma coisa, nenhum hospital quis atender ela, justamente por
ser homossexual e por ser uma travesti assumida. Ela morreu por falta de
assistência.
Também convivi com a falecida Cacá, que tinha uma casa per-
to do Mercado Municipal. Foi a partir desta convivência que comecei a
aprender o que é a vida de uma travesti. Naquela época não existia uma
prostituição avançada, as travestis só batalhavam4 de vez em quando.
Com este aprendizado, comecei a tomar hormônio, tomava o Lindiol 2.5,
que vinham com vinte comprimidos no vidro.
Depois disto que eu fui descoberta em Ponta Grossa. Quando
eu comecei, eu era conhecida como Mila. Eu escolhi o nome porque eu
era parecida com a Mila Moreira. Ela era modelo, eu achava ela linda. Eu
sempre me espelhei em modelos ou artistas. O momento do começo da
hormonização correspondeu com a época em que eu estava crescendo,
estava em desenvolvimento, com os pelos crescendo, estas coisas. Daí o
comprimido me tirou tudo aquilo, me deixou muito feminina. Ninguém
acreditava, porque eu fiquei muito bonita, e ninguém acreditava que eu
era uma travesti. Daí eu comecei a trabalhar na Status, que era uma boate
finíssima da época.
Mesmo que a minha cabeça estivesse um turbilhão com o pro-
cesso de transformação, decidi continuar meus estudos. Lembro que a
diretora me perseguia pelo fato de eu ser uma travesti. Minha irmã, que
estudava junto comigo no colégio, comprava todas as brigas. A minha

4
O verbo “batalhar” e o substantivo “batalha” dizem respeito à atividade da prostituição.

58
Geografias malditas
Fernanda Riquelme

irmã brigava com os homens, com as mulheres, tudo por causa de mim.
Ela tentava me proteger do preconceito das outras pessoas.
Eu estudava à noite e, de lá, eu ia para a boate Gaiola. O [nome
ocultado], que era o dono do Gaiola, ia me buscar na frente do colégio de
carro, e me levava para o Gaiola. Eu estudava no colégio até as dez horas
e no Gaiola eu trabalhava a partir das onze da noite. Naquela época tinha
um restaurante, não é como agora, nós jantávamos primeiro, depois que
eu ia fazer o salão, trabalhar na boate. Eu aprendi a fazer show lá. Eu fa-
zia show, fazia programa, bebia com os clientes, nas mesas, como se diz,
acompanhava, e fazia programa. Só que o programa não acontecia lá, nós
íamos para o motel. Não fazíamos nada lá, o cliente pagava uma porcen-
tagem para o dono e nós saíamos com o cliente. Nesta época eu tinha de
dezesseis para dezessete anos.
Tenho na lembrança várias cenas da minha vida. Uma delas é
que tive uma namorada. Tive esta experiência para ver qual é que era.
A minha namorada era uma mulata muito bonita, inclusive ela é minha
amiga hoje em dia. Ela é casada, tem os filhos dela, me dou com ela, me
dou com o marido dela, é uma linda mulata, até hoje é muito bonita. É
que antigamente era assim, ou você tentava, ou você enlouquecia com
a pressão, com a cobrança da família. Mas, junto com esta namorada, eu
tinha um namorado, que ia comigo levar a minha namorada em casa. Na
volta eu vinha namorando ele no caminho.
Outra cena tem relação com meus primeiros anos de estudo.
Quando eu estudava no seminário de padre eu já tinha relações sexuais.
Porque os próprios seminaristas que estudavam no colégio, que davam
aula, que eram internos, já tinham relações. Então já era uma experiência
que eu estava tendo, sem saber o que estava fazendo. Mas minha pri-
meira relação homossexual consciente foi quando eu tinha nove anos. O
rapaz era vizinho. O homem que saía comigo era caminhoneiro e casado.
Foi a minha primeira relação consciente, para mim homossexual mesmo,
porque ele era adulto.
Quando eu era criança não tinha aquela coisa, era mais esfre-
gação. E lá no seminário, se eles descobrissem, nos batiam, nos deixavam
de castigo, nos proibiam de ter amizades. Mas quando eu tive a relação
sexual com aquele homem, eu já me apaixonei, aquele homem me le-
vava passear de caminhão, me levava viajar com ele quando a viagem
era perto, então tudo isso foi sendo experiência que eu fui tendo quando
eu era criança. Todas as experiências que tive na vida serviram para me

59
corpos, sexualidades e espaços
A vida da travesti é glamour, mas também é violência em todo lugar

constituir na pessoa que sou hoje, tanto na minha infância quanto na


convivência de aprendizado que tive com a Néri, a Baby, a falecida Cacá
e tantas outras travestis. Dessas três travestis, a única que ainda é viva é
a Baby. Ela mostrou ser uma pessoa de muita coragem, frente a toda re-
jeição que recebeu da família. Por tabela ela revolucionou Ponta Grossa,
pois sua coragem inspirou muitas travestis. Sua vivência deu coragem
para muita gente assumir e aparecer: eu sou homossexual! Foi depois que
eu trabalhei na Boate Status e no Gaiola que eu me assumi como uma
travesti. Nesta época tinha muita travesti, como a falecida Cármen, a fa-
lecida Sônia, a falecida Marilu, todas eram travestis bonitas também, já
hormonizadas. Mas eu fui a primeira travesti a colocar silicone no corpo
aqui em Ponta Grossa. Coloquei silicone no corpo com uma bombadeira5
de Curitiba.
Minha transformação não foi fácil, inclusive para a minha famí-
lia. Foi um choque quando resolvi me assumir e aparecer de cabelo loiro,
de mulher mesmo. Eu tinha uns quinze, dezesseis anos. Continuei os es-
tudos com a minha irmã, porque eu não quis abandonar os estudos, pois,
mesmo que estivesse decidida a ser uma travesti, eu pensava no meu fu-
turo, em ser alguma coisa. Quando eu me formei eu estava no Gaiola. Eu
fui proibida de ir no meu baile de formatura, que foi no clube Guaíra. Fui
proibida de entrar porque eles sabiam que eu ia de vestido longo igual às
mulheres, e não vestida de homem.
Passei muitos anos de dificuldade com a minha família, pela mi-
nha transformação. O meu irmão mora no Rio Grande, é delegado lá. Ele
sempre esteve longe, mas sabia, e sempre queria me agredir. As minhas
irmãs tinham aquele carinho, mas tinham medo da minha mãe, de como
ela ia me aceitar. Desde criança, eles tinham um irmão e, de repente, apa-
rece uma irmã. Tudo foi muito difícil e acho que antigamente era tudo
mais difícil, a compreensão das pessoas era mais difícil do que é hoje em
dia. Pelo menos é o que eu acho.
Demorei para ter a aceitação da minha família. Hoje em dia mi-
nhas irmãs são maravilhosas comigo. Elas são casadas, meu irmão tam-
bém é casado, mas eu não tenho relação com o meu irmão mais velho,
justamente por eu ser homossexual. Ele nunca aceitou e não quis mais
falar comigo. Mas toda vida ele se criou longe. Mas com as minhas irmãs

5
Uma mulher ou uma travesti que vende clandestinamente serviços de aplicação de
silicone industrial nas travestis.

60
Geografias malditas
Fernanda Riquelme

não, eu convivi com as minhas sobrinhas desde que nasceram, cuidei, e


como uma travesti. Mas nunca deixei elas me chamarem pelo nome de
mulher, mas pelo nome de homem. Me chamavam de “tio”. Nunca admiti
que minha família me chamasse pelo nome de mulher. Uma vez eu bri-
guei com a minha mãe e, para fazermos as pazes, ela me deu um buquê de
flores. Nas flores tinha um cartão com o meu nome de mulher, mas foi a
única vez que ela me chamou de mulher. Mas escrito, nunca falado. Isso
é uma complicação, sabe, e acho que uma forma de respeito para com
minha família.
Mesmo que eu seja travesti, eu sei que não sou mulher ao mes-
mo tempo. Assim, eu acho que é muito difícil a família aceitar, princi-
palmente a mãe. Porque uma mãe ter um filho homossexual, deve ser
horrível. Hoje em dia eu penso isso porque, para uma mãe aceitar um
filho não ser homem, ser afeminado, é complicado. Porque hoje em dia
elas já nascem lindas, mas na minha época não, na minha época a gen-
te ia se construindo devagarinho, aprendendo devagarinho. Penso que é
difícil porque toda mãe quer ter um filho homem. E todo irmão também
quer ter um irmão homem também, não quer ter um irmão afeminado,
homossexual.
Mas quando eu era nova, não pensava assim. A única coisa que
tinha na cabeça era ser uma mulher. A primeira vez que eu botei silicone
foi no meu rosto. Foi em 1982. Eu fui a primeira travesti da cidade a colo-
car. O meu silicone é o Barra 1.0006, não é o Barra 500, que a maioria das
travestis tem. O meu é o mais forte, o mais consistente, o mais terrível
de dor quando você coloca. Depois, com o tempo, aquilo ali parece como
uma droga, o silicone é uma droga, ele vicia você. Eu coloquei 1cc7 de
cada lado do rosto, daí coloquei 2cc, coloquei 3cc, para ficar feminina. O
silicone que eu coloquei é um óleo que é usado em aviões. Ele é dez vezes
mais grosso que óleo de cozinha. Não é por qualquer agulha que ele passa.
Eu fui feita com agulha de veterinário. Aquela agulha de ferro grossa. É
uma dor muito grande. Naquela época a moda era a travesti ter quadril
grande, só o quadril, peito e bochecha grande. Era a moda. Para ser tra-
vesti, ser julgada como uma travesti, nós tínhamos que ser daquele jeito,

6
Silicone industrial usado para vários fins, desde lubrificante de máquinas a motores
de avião. A especificação 1.000 equivale à viscosidade. Quanto maior o valor, maior a
viscosidade.
7
Centímetro cúbico.

61
corpos, sexualidades e espaços
A vida da travesti é glamour, mas também é violência em todo lugar

daquele modelo. Depois fiz o quadril, fiz as pernas até o joelho. Fiz o seio


de silicone, fiz a boca.
Com todas essas transformações, eu nunca me pensei uma tran-
sexual, apesar de me sentir uma mulher, sabe? Eu não quero ser uma
transexual. Tem travesti que faz a cirurgia, mas eu acho que elas não fi-
cam bem. Pois, como pode um homem deitar em uma mesa de cirurgia
e levantar uma mulher? Eu não sei se sou antiga demais, ou eu não sou
transexual mesmo, mas eu acho uma coisa fora do normal com o teu or-
ganismo. Não é a mesma coisa que o silicone, porque você não tira nada.
A cirurgia de transgenitalização é uma mutilação. Para mim é uma muti-
lação. Eu não queria ser outra pessoa, queria ser eu mesmo, com o corpo
que eu tenho, sem mutilação. Meu corpo é assim, feminino, mas com um
pênis.
Pensando nisto, vejo que pertenço a outra geração de travestis,
das antigas. Nós passamos por muito preconceito e dificuldade, tanto na
transformação, para assumir-se travesti, os conflitos com a família, com
toda a sociedade. As travestis que caem hoje na rua acham que a vida é
fácil, mas não sabem que a história delas foi construída pelo nosso sofri-
mento, foi nosso sofrimento que construiu o caminho que elas caminham
hoje. Nós enfrentamos a sociedade em primeiro lugar. Naqueles tempos
de fim de ditadura, a polícia era outro problema. Corríamos e apanháva-
mos quase que cotidianamente da polícia. Os homens nos queriam, dese-
javam, mas não nos queriam ao mesmo tempo. Nos amavam, nos deseja-
vam. Mas também nos perseguiam, nos odiavam. A única coisa bonita era
a união entre as travestis.
Podem falar hoje que estou velha, que meu tempo passou, mas
nestes mais de trinta anos de vida travesti nunca deixei crescer os pelos
do rosto, sempre fui mulher vinte e quatro horas. Sempre acordei com a
pinça na mão, tirando os pelos do rosto. Mesmo tendo um pênis, sempre
fui mulher. Me fiz mulher com muito sofrimento. Primeiro colocando si-
licone no corpo, aguentando a cirurgia de colocar o líquido, injetando o
silicone no corpo. Isto é muito difícil, tem que ter muita coragem para
fazer. E, depois, você encarar uma sociedade inteira!
Até hoje é muito difícil a vida para as travestis aqui em Ponta
Grossa. Eu acho que as pessoas não evoluíram. Os homens ficam encan-
tados com a gente, pois, se fosse o contrário, não existiria prostituição de
travestis, porque não haveria clientes. Mas no geral não existe respeito.
Eu vivi em Londrina e lá era completamente diferente, éramos idolatra-

62
Geografias malditas
Fernanda Riquelme

das. Nos perguntavam o que tínhamos vivido, como tinha sido a nossa
história. As próprias travestis queriam saber o que tínhamos passado, o
que tínhamos encarado, se tínhamos estudado, como tínhamos vivido até
ali. Mas Ponta Grossa sempre foi e sempre vai ser uma cidade agressiva,
conservadora. Não adianta. O preconceito aqui é muito grande. Mas, se
o mundo começasse novamente, eu queria ser novamente outra travesti.
Eu queria voltar a ser o que eu sou, porque eu sou feliz assim. Mesmo
com todo o preconceito e discriminação, eu sou feliz assim, eu aprendi a
gostar de mim como sou.

SOBRE A ATIVIDADE DA PROSTITUIÇÃO:


A VIVÊNCIA TERRITORIAL

Para uma travesti, a única escolha que ela tem, dependendo do


lugar em que ela se assume, é a prostituição. A sociedade joga a travesti
para a prostituição. Hoje em dia, graças a Deus, ela pode estudar, ela pode
ser o que ela quiser ser, entre aspas. Mas, mesmo que as coisas sejam di-
fíceis hoje, elas não enfrentam as mesmas coisas como nos anos 70 e 80.
Tive que me acostumar com a prostituição, pois precisava do dinheiro
que vinha dela. Meu início não foi como o de muitas travestis, que come-
çam a se prostituir na rua. Meu início foi em boates. Penso que, pelo fato
de batalhar em uma boate de mulheres, o fato de ser diferente, desper-
tava o desejo dos homens, e aprendi com este desejo, aprendi a ser pros-
tituta. Quando eu fazia programa, eu sabia como agradar o cliente, o que
ele gostava que eu fizesse. Batalhei em várias boates, como na Status, no
Gaiola, na Stilus, no Batacã e no Le Bateau. A boate foi um local muito im-
portante no meu aprendizado de ser travesti. Convivia com as travestis
mais velhas, as que vinham de fora. Estas travestis vinham de fora fazer
show, eram muito mais valorizadas, já eram estrelas.
Em todo este tempo de vida travesti, muita coisa mudou. Antes
uma travesti sempre ensinava a outra o que era bom e o que era ruim.
Hoje em dia a gente não vê mais isso. Hoje em dia você vê a competição
e a maldade que todas têm dentro de si. Se a fulana é mais bonita, então
ela não vai ficar na rua. A fulana é a mais alta, a fulana é a mais gorda, a
fulana é a mais magrinha. Mas na minha época não era assim. Isso mudou
de 1980 para cá. Se elas queriam te corrigir, elas te ensinavam a ser mais
feminina, como se comportar. Hoje em dia não é assim, hoje em dia você

63
corpos, sexualidades e espaços
A vida da travesti é glamour, mas também é violência em todo lugar

aprende na louca mesmo. Hoje em dia você aprende vendo. Hoje em dia,
se você quer se transformar, você descobre o número da travesti que co-
loca silicone, vai lá e se enche de silicone. Mas na minha época não era
assim, elas faziam questão de te levar, para você melhorar o teu visual, o
teu físico. Para você realmente virar uma menina, uma mulher mesmo.
Caí na prostituição no tempo em que o glamour era muito gran-
de. Depois de batalhar em boates, fui para a rua. Como nas boates, a rua
também era o close8, o vestir-se bem, os vestidos longos, as plumas e pae-
tês. Tinha treze para quatorze anos quando caí na prostituição. Faz muito
tempo. Caí quando na cidade não tinha nada. Como minha falecida amiga
Jéssica falava, Ponta Grossa ainda era Tupiniquim. Também fui Miss Tra-
vesti, isto em 1982. Fui miss em uma época em que a palavra travesti era
pouco conhecida.
Comecei a batalhar na Avenida Balduíno Taques, bem na es-
quina do que é hoje o prédio do Mitaí. As outras travestis batalhavam
na Avenida Vicente Machado, perto do que é hoje a sede dos Correios.
Naquela época elas ficavam na frente da Casa Buri, isto em 1978, 1980.
Trabalhávamos em muitas travestis. Só que as travestis que ficavam nes-
tes dois locais não se davam muito bem. Para evitar brigas, sempre fui
batalhar depois da meia-noite. Primeiro fazia um rodízio nas lanchone-
tes, nos bares, em tudo que era “fervo” eu ia. Depois que as “executivas”
iam embora, porque elas se nomeavam de finas executivas, eu ia para a
rua, voltando para casa só pela manhã. Quando eu caí, as travestis não
faziam programa no escurinho, na rua. Só fazíamos programa em hotel.
Lembro que a Balduíno Taques inteira era tomada pelas travestis, desde o
antigo mercado Tuma até a Igreja dos Polacos. Na Balduíno Taques tinha
bar, tinha hotel, tinha tudo ali. Nós ficávamos todas juntas, porque anti-
gamente existia muita violência, tanto da polícia quanto da população no
geral. A gente ficava junto porque era mais seguro.
Mas quando você está nessa vida de prostituição, você tem que
rodar. Eu já batalhei no Paraná e em Santa Catarina. Aqui do Paraná já
batalhei em Londrina, Ponta Grossa, Cascavel, porque a travesti é assim,
quando você vira uma guria da noite, que você faz programas, você fica
um tempo num território que está te dando lucro. Se você fica um mês,
dois meses, você está se garantindo. Do terceiro mês em diante você já

8
Atitude que uma travesti tem em relação a outra travesti, considerando-se superiora em
beleza e feminilidade.

64
Geografias malditas
Fernanda Riquelme

fica conhecida. Então, já não é tão procurada quanto no começo. Daí você
descobre outra cidade e é pra lá que você vai.
No litoral do Paraná, eu batalhei em Guaratuba e Matinhos.
Também batalhei em Guarapuava, mas em boate, não na rua. Eu dava um
tempo em cada cidade. De um a três meses é ótimo! Depois de três meses
já começa a fracassar, porque você começa a ficar conhecida demais. E
geralmente o cliente que está na rua, ele quer uma novidade, ele quer
uma coisa diferente, é isso que ele está procurando. Em Santa Catarina,
eu fui para Balneário Camboriú, Joinville, Blumenau, Rio do Sul, São Fran-
cisco do Sul. No Rio Grande do Sul, eu fui para Porto Alegre, Passo Fundo,
Vacaria e Lagoa Vermelha. Um dos estados em que as travestis têm mais
dificuldade para ficar é o Rio Grande do Sul. Você passa na esquina e vê a
travesti e fala: nossa, como elas são lindas! Mas você não sabe a agressi-
vidade que cada uma tem como arma para se defender. Para não deixar
você ficar na esquina, elas são muito violentas. No Rio Grande do Sul é
horrível para você ficar. Hoje em dia existem muitas travestis que fazem
isso, muitas. E não apenas no Brasil, como em toda a Europa. As travestis
querem ser assim, elas querem sempre ser novidade e, para ser novidade,
elas têm que ficar indo de um lugar para o outro, sempre rodando.
Mas não basta querer ir para uma cidade. Primeiramente temos
que ser aceitas pelas outras travestis. Quando você vai para uma cidade,
você tem que ir direto na casa da cafetina que é a chefe da cidade, a que
comanda a cidade. Em primeiro lugar, você tem que agradar ela, cumprir
as regras, porque geralmente toda a casa tem suas regras. Hoje em dia é
assim. Tem casa de cafetina que você não pode usar droga, você não pode
beber, etc. Isto acontece porque elas não querem chamar a atenção da
polícia, e aquela que está bem, faz mais dinheiro e dá mais dinheiro para
a cafetina.
Geralmente a dona da casa de travestis não mora na casa. Elas
vão durante o dia para receber a sua diária e ver como estão as coisas den-
tro da casa. Mas existem lugares que elas moram e lugares que elas não
moram. Dando um exemplo, eu estou em Ponta Grossa, na casa de uma
cafetina que manda na cidade. Daí eu quero ir para Curitiba. Aí, como ela
conhece a travesti que comanda em Curitiba, ela já me indica. Na maioria
das vezes as próprias donas de casas ligam e falam: olhe, estou mandando
uma filhinha minha para ficar um tempo com você. Então uma cafetina
indica para outra cafetina. É como se fosse uma rede, tem uma rede. Nós,
aqui no Brasil, temos uma rede nacional, igual à Europa. Na maioria das

65
corpos, sexualidades e espaços
A vida da travesti é glamour, mas também é violência em todo lugar

vezes, as que vão com tudo pago para a Europa, estão com tudo certo,
onde vão morar, onde vão trabalhar, com segurança e tudo.
A cafetina, gostando da travesti, ela não quer perder essa filhi-
nha. Daí ela te leva em um cirurgião plástico que ela já tem acesso ou em
uma bombadeira de silicone. Aí a travesti faz uma dívida com ela. Ela
paga toda a transformação do corpo e a travesti vai poder sair da casa
dela apenas quando tiver pago o último tostão. Enquanto não pagar, tem
que ficar ali, é uma regra. A ideia é você responder a uma obrigação com
ela, mas também tem o respeito dela, o cuidado dela. E no fundo cada
travesti está pagando um serviço de hospedagem, com alimentação, rou-
pa, tudo que a gente quer, tudo isso. Como em Londrina, a maioria das
travestis são europeias, já estiveram na Europa e estão indo direto para
lá. Então, as que chegam diferente, as outras querem um sapato, uma
maquiagem, uma coisa de fora. Daí, aquela própria cafetina que está te
orientando também está te vendendo as coisas. Coisas que custam vinte
reais, elas te cobram oitenta, cem reais, e elas também lucram aí. Isso te
deixa finíssima, em uma semana você está linda, maravilhosa.
Só que isto tem consequências. Se uma travesti não paga o que
deve e foge, ela tem consequências, pois existe uma grande comunicação
entre as pessoas entre as cidades. Na mesma hora que você está viajando
no ônibus, a dona da casa já está no telefone, comunicando para a dona da
casa de outra cidade que a fulana saiu devendo dinheiro. Aí, quando você
chega neste lugar que já sabe disto, você não é aceita. E é por isso que as
coisas funcionam. Tem uma rede de poder que funciona na informalida-
de, mas funciona bem.

SOBRE A LUTA POR DIREITOS:


CONQUISTAS ESPACIAIS

Depois de todo este tempo, eu vi muita evolução na discussão


sobre homossexualidade e como há mais conquistas e aceitação. Os jo-
vens hoje em dia não são iguais aos da minha época, e as travestis pare-
cem que já nascem lindas, já nascem criadas como mulher. Hoje em dia
existe o preconceito, é lógico, mas tem muitas famílias que já aceitam e
cuidam do seu gay como ele é. Um gay já estuda, pode ser um profissio-
nal, ele pode estudar o que ele quiser. Hoje em dia você tem mais direitos
como ser humano, e isso é muito diferente do que era para minha época.

66
Geografias malditas
Fernanda Riquelme

SOBRE SONHOS E ESPAÇOS


DE SOLIDARIEDADE

Eu queria continuar meu trabalho de ativista, trabalhar. Arru-


mar um emprego e trabalhar. Não apenas de ativista, em qualquer área.
Arrumar um emprego e trabalhar, para poder ajudar a minha mãe. Mos-
trar para a minha família que não tive uma vida gasta apenas na prosti-
tuição. Eu tenho capacidade para ser alguém, para ser uma profissional.
Em relação à homossexualidade, uma vez eu li em um livro que
no futuro os homens andariam de mãos dadas na rua e que isto seria
normal, não existiria preconceito em relação a isso. Mas, olhando para a
minha vida e para a vida das travestis, vejo que isto está muito longe de
acontecer. O preconceito sempre vai existir. E o preconceito não está só
na sociedade, está também entre as travestis e os próprios homossexuais.
As travestis estão enfrentando a sociedade e estão se fazendo notar nas
escolas, lojas, universidades e mostrando sua capacidade, mas ainda são
poucas que conseguem sair do mundo da prostituição. Mas temos que
olhar para estas conquistas e espero que no futuro a sociedade se acostu-
me e que a gente possa ser reconhecida como ser humano e com direitos,
é isto que eu quero para nosso futuro. Será que esse futuro vai demorar
muito a chegar?

67
corpos, sexualidades e espaços
VIDA DE TRAVESTI É LUTA!
LUTA CONTRA A MORTE,
LUTA CONTRA O PRECONCEITO,
LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA
E LUTA POR ESPAÇO1

Gláucia Boulevard

APRESENTAÇÃO

Meu nome é Gláucia Boulevard. A prostituição faz


parte da minha vida há muitos anos. Comecei a viver da prostituição bem
cedo, desde ter sido expulsa de casa com doze anos, e minha saída de casa
foi bem complicada. Lembro até hoje da cena. Meu pai havia chegado em
casa muito tarde da noite e, para completar, bêbado. Logo que ele entrou
em casa, começou a gritar, acordando todo mundo, falando que, se eu
era travesti, se eu era uma bicha, ele não aceitaria um viado na família.
Ele disse que era para eu ir até o bar em que ele estava, para ter relações
sexuais com os amigos dele. Claro que fiquei assustada e paralisada. Ele
tirou o pênis para fora da calça e falou que, se eu não queria ir com ele no
bar, teria que fazer sexo oral nele. Sei que fiquei chorando e não fiz nada,
e então ele me tocou de casa. Isso foi lá em Maringá. Eu não tinha o que
comer, morei muito tempo na rua, dormia em casas abandonadas. Hoje
estou aqui para falar sobre as minhas geografias com vocês e dizer que,
mesmo que o mundo desejasse que eu tivesse morrido, hoje ainda estou
aqui, bem viva!

1
Este texto é a transcrição de um depoimento oral feito por Gláucia Boulevard.
Vida de travesti é luta! Luta contra a morte, luta contra o preconceito,
luta pela sobrevivência e luta por espaço

SOBRE SENTIMENTO DE DIFERENÇA:


A ESCALA DO CORPO E OS OUTROS

Quando era menino, eu não gostava muito de vestir roupas de


homem, eu já tinha uns oito anos. Inclusive, eu vestia as roupas das mi-
nhas irmãs, porque lá em casa são quatro meninas, mais eu de menino.
Só que elas não gostavam. Eu sei que o preconceito está aí. Só que eu me
sentia bem de me vestir de mulher. Eu já tinha uns dez anos e eu pensava
comigo: deixem que falem, deixe que olhem, porque eu não estou nem ai!
Só que as coisas não eram tão fáceis assim. Na escola era terrí-
vel, eu tive até que parar de estudar porque o preconceito era terrível.
O pessoal esperava eu sair da escola para me pegar na saída, me bater.
Me batiam porque eu era homossexual. Não consegui terminar nem o
primeiro grau. O segundo grau sempre foi uma coisa muito distante pra
mim, pois pensava que o preconceito seria muito maior. Hoje faço suple-
tivo, pois o preconceito é menor. Lá, é bem tranquilo, mas, quando eu era
criança, a coisa era difícil.
Tive que parar de estudar também porque fui expulsa de casa,
com uns doze anos. Depois que eu não quis fazer sexo por dinheiro com
os amigos do meu pai, nem fazer sexo oral com ele, fui tocada de casa. Era
umas três horas da manhã. Ele pegou uma mochilinha que eu tinha da es-
cola, pequenininha, colocou uma calça jeans, uma camiseta, uma jaqueta
jeans e falou para mim: pode ir embora. Isso aconteceu de madrugada.
Daí eu comecei a sair de casa chorando, tentei ligar para os meus paren-
tes em Maringá, liguei para as minhas tias, para os meus primos, para
todo mundo lá. Só que ninguém me aceitou porque eu era homossexual,
viado. Eles falavam que não iam me aceitar porque eu tinha que tomar
jeito na vida e virar homem.
Fiquei largada na rua, dormindo em casas abandonadas, em
praças. Para tomar banho, quando estava cheirando muito mal, eu toma-
va banho de chafariz em Maringá. Lá tem uma praça que tem um chafa-
riz, que fica ao lado da Catedral, um pequeno espelho d’água. Eu esperava
anoitecer e me enfiava dentro do chafariz para tomar banho. Eu tirava
minha roupa e tomava banho e me enxugava com a mesma roupa que
estava vestindo. Outra luta é para comer. Lá em Maringá tem bastante
feiras. Eu esperava terminar a feira e comia os restos. Até, inclusive, eu
tenho úlcera no estômago porque, durante muito tempo, comi os restos
da feira. Só que, depois de um tempo, aquilo não me sustentava mais. Foi

70
Geografias malditas
Gláucia Boulevard

aí que a mendicância começou. Eu ia nas casas e pedia comida. Eu tinha


virado uma mendiga. Tinha pessoas que davam, pessoas que não davam,
outros ainda queriam acionar o conselho tutelar, e eu não queria. Uma
vez fui adotada por uma senhora, e, para pagar o que ela me dava, eu
ajudava ela a cuidar da casa. Ela achava que eu era uma menina que não
tinha formado o corpo ainda. Pensava que eu era uma menina largada, e
quis me dar uma chance. Eu agarrei esta ajuda e dormia em um quarto
que ela tinha nos fundos da casa. Eu cuidava da casa, lavava e passava. Só
não cozinhava, porque ela tinha medo, ela falava que eu era muito meni-
na ainda para cozinhar.
Só que esta melhoria não durou mais que duas semanas. Um dia
eu fui no banheiro fazer xixi, e, sem noção, fiz xixi em pé e com a porta
aberta. Eu era uma criança. Só que o filho dela me viu fazendo xixi em pé
e contou para a mãe. A mulher pensava que eu era uma menina mesmo.
Eu tinha cabelo comprido, ela tinha me dado algumas saias para usar, eu
não tinha pelos no corpo. Depois disso, a mulher me chamou no quarti-
nho em que eu dormia e falou que não sabia que eu era assim. Falou que
pensava que eu fosse uma menina de verdade, que ela me ajudou porque
pensava que eu fosse uma mocinha, e que não sabia que eu era um pia-
zinho. Falou que eu não poderia morar lá, porque eu não seria uma boa
influência para os filhos dela. Ela tinha um filho de dezoito anos e um
de quinze. Falou que isto iria influenciar os filhos e que isto iria pegar
muito mal para ela. Falou que, se não tivesse filhos, não teria problema,
mas, como ela tinha dois filhos, não dava. Daí me mandou embora. Mas
me lembro que eu pude levar todas as roupas que ela tinha me dado, mas
retornei para a rua, sem ter onde morar.
O único local que encontrei para ficar foi o Parque do Ingá, lá
em Maringá. Eu já estava mais arrumadinha, peguei as minhas malas,
duas malinhas cheias de roupa e calçados, e fui para o Parque do Ingá, e
me escondi no meio daquele matagal e voltei a tomar banho no espelho
d’água da praça. Um dia, cheguei lá no mato e haviam sumido todas as
minhas roupas. Então, fiquei sem nada de novo, só com a roupa do corpo.
Então, foi aí que comecei a roubar para comer. Eu via que estava entran-
do na vida do crime. Entrava nas casas para roubar. Mas roubar para co-
mer, para conseguir uma roupa, o que eu conseguisse eu levava.
Depois eu pensava: meu Deus, estou virando uma marginal! Eu
vou virar uma travesti marginal. Eu me via como uma extraterrestre, não
me conformava com a situação que estava vivendo. Tanto que tentei me

71
corpos, sexualidades e espaços
Vida de travesti é luta! Luta contra a morte, luta contra o preconceito,
luta pela sobrevivência e luta por espaço

matar várias vezes. Sei que um dia eu estava dormindo na praça e apa-
receram algumas travestis que batalhavam na Avenida Brasil. Elas me
viram deitada e falaram: vamos ajudar essa bichinha aqui, este viadinho.
Daí, me levaram para morar na casa delas. Era uma casa em que elas pa-
gavam diária, era casa de cafetina. Diferente de todo mundo que me ex-
cluiu, elas me deram comida, me deram roupa, me deram hormônio e
tudo, me aceitaram como eu era.
A transformação do meu corpo começou a partir deste encontro,
pois comecei a ter peito, a ter um corpo mais definido, mais feminino. De-
pois disso, estas travestis falaram: agora você já está arrumadinha, está co-
meçando a crescer peitinho, agora vamos dar um jeito na tua vida, porque
não podemos ficar sustentando você para o resto da vida, pois temos a nossa
vida também. Daí, comecei a me prostituir. Foi mesmo na rua que eu perdi a
minha virgindade. Morava nesta casa da cafetina e batalhava à noite.
Só que nesta época existia muito roubo em Maringá. As traves-
tis mais velhas de rua estavam roubando, e eu já estava me enfiando no
roubo junto com elas. Já estava tão prática que eu pegava corrente de
ouro de cliente sem ele ver, tirava coisas de clientes, carteira e tudo, es-
tava profissional. Elas mandavam eu ficar batendo os dedos o dia inteiro
na parede para que eu ficasse com a minha mão leve, um treinamento, e
nessa eu fui ficando ligeira. Roubava corrente, relógio, pegava a carteira
e devolvia ela sem o dinheiro, e o cliente nem percebia. Eu deixava o
cliente me amassar, me beijar, pegava no pênis dele, e então eu limpava
o cara. Só que esse não é um bom caminho. Comecei a pensar comigo:
isso não é vida, eu não quero mais isto. Chegou num ponto que eu estava
ficando como as bandidonas.
Um dia, estava na casa da cafetina e apareceu um cafetão que
era dono da boate La Barca, aqui em Ponta Grossa, uma boate que fica-
va perto do Gaiola. O homem já é falecido, e o La Barca já foi demolido.
Ele estava procurando meninas e travestis para trabalhar na boate dele.
Aceitei o convite, peguei minhas coisas e vim embora com ele. E, na mi-
nha inocência, perguntei para ele: como que faz para pagar estas coisas,
como que eu vou pagar a viagem para o senhor, a comida e a estadia, o
senhor falou que daria tudo, mas como que eu vou pagar para o senhor?
Ele falou que ia pagar em bebida. Mas, como assim? Você bebe bastante
com os clientes na boate, que daí você já está pagando. Se é só beber,
então tá bom! Daí eu comecei a beber como uma louca, beber e fazer
striptease.

72
Geografias malditas
Gláucia Boulevard

Cheguei aqui no La Barca com dezesseis anos. Do La Barca eu fui


para a boate Gaiola e depois para a boate Stilus. Na minha vida eu traba-
lhei mais em boate que na rua. Do La Barca eu fui para o Gaiola, por inter-
médio de uma amiga que trabalhava lá, e depois fui para a Stilus. Decidi ir
para a rua batalhar quando o movimento na boate começou a ficar fraco.
A gente não ganhava mais nada, os clientes não pagavam mais bebida,
porque era muito caro. Daí fui para a rua, com esta amiga que me ajudou
a entrar no Gaiola. Ela já estava na rua há algum tempo. Eu falava para ela
que a rua era perigosa, mas ela falava que eu estava perdendo tempo na
boate, que a rua era tranquila e que ela estava conseguindo comprar as
coisas que ela queria com o dinheiro da rua. Então, eu entrei nessa, e fui
com ela para batalhar na rua.
De toda a minha vida, um momento que foi muito marcante foi
quando eu coloquei silicone no corpo, quando fiz todo o meu corpo. Co-
loquei silicone no meu rosto, fiz preenchimento de gordura nos lábios,
porque eu não tinha lábio, eu tinha que desenhar a boca. Eu sempre quis
ficar com lábios grossos, eu achava que isto era tudo de bom. Fiz tudo
isso em Curitiba. Depois que eu fiz, eu não acreditei naquilo que eu tinha
feito. Quando me olhei, eu pensei: meu Deus do céu, me transformei toda!
Já estava com peito, com quadril, estava com o rosto todo transformado.
Só que minha cabeça entrou em parafuso, porque eu olhava no espelho e
não me via mais. O meu rosto era mais fino, eu arredondei, fiz tudo, peito
e tudo, fiquei uma outra pessoa.
Quando me olhava no espelho, eu não via mais aqueles traços
masculinos, tinha me transformado completamente em uma travesti.
Isto foi muito marcante para mim. Pensei até em me matar. Achei que
minha transformação tinha sido um absurdo. Esta fala parece que é de
uma pessoa louca, não é. Porque eu queria me transformar, mas havia
me transformado demais. Saí de casa sem peito e cheguei em casa com
peitão. Se a pessoa não tiver um psicológico bom, ela acaba se estranhan-
do, porque eu era um rapaz, agora eu estou com peito, com quadril, es-
tou com o rosto mudado. Mas eu queria, ao mesmo tempo. Lembro que
pensei em escrever no espelho que tinha me transformado demais e que
tinha me matado por causa disto. Só que eu comecei a me tratar com uma
psicóloga de outra ONG aqui em Ponta Grossa e acabei tirando o suicídio
da cabeça.
Mas uma travesti tem isso. Nós mudamos o tempo todo, a forma
como olhamos o mundo, nossos corpos e a relação de nossos corpos com

73
corpos, sexualidades e espaços
Vida de travesti é luta! Luta contra a morte, luta contra o preconceito,
luta pela sobrevivência e luta por espaço

este mundo. Antes eu não queria fazer uma operação de transgenitali-


zação. Não tinha cabeça para isto, pois achava que seria uma mutilação.
Este momento mexeu com a minha cabeça, porque eu queria me matar.
Só que fui gostar da minha mudança, depois de uns quatro anos. Hoje eu
gosto do meu corpo, se eu escolhi esta opção, eu tenho que gostar. Gosto
tanto do meu corpo agora que eu faço tratamento psicológico para poder
fazer minha cirurgia de mudança de sexo.
Mas, na época, quando eu fiz todas aquelas mudanças, a trans-
formação foi muito rápida. Mas depois fui me acostumando com a trans-
formação, porque não existia outro remédio mesmo, porque eu me sen-
tia feminina. Comigo a transformação não foi aos poucos, como acontece
com muitas travestis. O meu peito, por exemplo. Ao invés de eu colocar
um copo de silicone em cada seio, eu coloquei dois copos. Eu já saí de lá
com um peito bem grandinho. Não satisfeita, juntei dinheiro e coloquei
mais dois copos em cada seio. Não satisfeita ainda, coloquei mais silico-
ne. Hoje tenho ao todo um litro de silicone em cada seio. No quadril, é
um litro de cada lado. Coloquei meio litro e, não satisfeita, coloquei mais
meio litro. Eu ia para Curitiba e colocava um pouco de silicone. Voltava
para Ponta Grossa, esperava cicatrizar e voltava para Curitiba para colo-
car mais silicone.
A bombadeira2 em que eu ia, a July, um dia me disse: Gláucia,
tem que esperar desinchar! Daí eu falei: não, eu quero mais! Eu vou pagar
você, July! Daí ela disse: então, se você quer colocar, eu coloco! Ela falou
que eu estava fazendo as mudanças de forma muito rápida, que eu deve-
ria fazer aos poucos, para ir acostumando. E ela estava certa. Quando eu
terminei, eu entrei em parafuso, fiquei pensando: meu Deus do céu! O que
eu fiz da minha vida! Eu continuei a batalhar, mas sempre com aquele
pensamento do que eu tinha feito comigo. Eu sempre procurava motivo
para alguém fazer alguma coisa comigo, arrumava briga, sempre louca.
No fundo mesmo, o que eu queria era a morte.
Mas sabe, o que foi mais estranho foi como minha família en-
carou minha transformação. Eles não vivenciaram, assim, o processo da
minha transformação. A minha mãe não me conhece como estou hoje, ela
não viu meu rosto transformado como estou agora. Mais ou menos há uns
seis anos atrás, eu fui para a casa da mãe. Já tinha transformado o peito

2
Uma mulher ou uma travesti que vende clandestinamente serviços de aplicação de
silicone industrial nas travestis.

74
Geografias malditas
Gláucia Boulevard

e o quadril. Mas eu não tinha o peito tão grande assim, ele era menor.
Eles eram de dois copos e meio. No quadril eu tinha meio litro, mas no
rosto ainda não tinha nada. Quando cheguei na casa da minha mãe, eles
ficaram me olhando de baixo a cima, comentavam muito. A minha mãe
chorou muito. Eu fui para lá porque eles haviam me avisado que o meu
pai havia falecido.
Mesmo que tivesse sofrido nas mãos do meu pai, eu fui para
Maringá pelo meu pai, que tinha falecido. Não deu tempo para ir no en-
terro dele. Quando cheguei lá, ele já havia sido enterrado. Sei que, quan-
do cheguei lá, eles começaram a comentar sobre minha transformação,
e minha mãe ia para o quarto chorar. Depois de algumas horas vivendo
este estranhamento, falei: olha só, vocês não me aceitam como eu sou, eu
já tentei, e vocês não me aceitam. Então, vou procurar viver a minha vida,
não vou ficar correndo atrás da senhora se a senhora não me aceita. Hoje
não tenho mais contato com eles. Há algum tempo atrás eu ligava para
a minha mãe, e ela ficava chorando no telefone. Só que, depois disto, eu
desisti. Não vou ficar correndo atrás de pessoas que não me querem, que
não me aceitam como sou.
Gosto muito do meu corpo, mas apenas da cintura para cima,
pois, quando estou nua, tenho muito estranhamento com meu pênis. Não
gosto de me ver nua com o pênis de fora, porque acho aquilo um absurdo.
Eu acho aquilo horrível, porque você não sabe se é uma mulher ou se é
um homem. É muito estranho ter peito, quadril, rosto de mulher, e um
pênis no meio das pernas, é uma coisa estranha. Hoje estou bem, graças a
Deus, de tanto pedir para Deus me ajudar. Então, já que eu me enfiei nesta
vida, então que Deus me ajude, eu peço que o meu psicológico aguente
isso.
Mesmo que as pessoas olhem para mim espantadas, eu estou
satisfeita com meu corpo. Eu acho que você tem que estar contente. As
mulheres me olham com inveja, pelo corpo que tenho, pois, quando eu
coloco um sutiã meia-taça, ficando com os seios como que em uma ban-
deja, junto com uma blusa degotada, eu sei que fico muito provocante, e
os clientes gostam. Então, eu passo batido por mulher, só quem conhece
mesmo uma travesti para falar que é. Eu procuro discrição quando saio
de dia, até mesmo porque eu sou casada, não quero que os vizinhos fi-
quem falando. Outra coisa é que não quero mais aquela vida de close3, eu

3
A palavra “close” (assim como a expressão “dar o close”) diz respeito a mostrar uma

75
corpos, sexualidades e espaços
Vida de travesti é luta! Luta contra a morte, luta contra o preconceito,
luta pela sobrevivência e luta por espaço

não preciso mais disso, não estou mais com idade para isto, eu quero que
me respeitem como uma senhora.
A única marca que tenho que denuncia contra a minha femini-
lidade é a marca dos pelos de barba, que ainda tenho um pouquinho. Este
é o meu único constrangimento. Todo dia eu tiro os pelos do rosto, me
cutuco tanto que chego a me machucar. Eu tiro com pinça, fio por fio, eu
não quero que pareça, tiro os pelos até do nariz. É constrangedor, porque
mulher não tem pelos no rosto. Nunca tive um modelo específico de fe-
minilidade para a minha transformação, apenas sempre quis ser muito
feminina. Mas almejava ter o peito maior do que eu tenho hoje. Sempre
falei para uma travesti que já é falecida, que queria comer com os peitos
no prato. Ela falava que eu estava louca, mas sempre gostei de mulheres
com seios fartos. Toda travesti almeja ter o corpo de uma atriz, com seus
belos corpos. Mas nenhum corpo é igual ao outro, nenhum corpo fica
igual ao outro. Por mais que você queira ter um peito igual ao meu, um
corpo igual ao meu, nunca você vai ter. O corpo que eu queria é o corpo
que tenho hoje.

SOBRE A ATIVIDADE DA PROSTITUIÇÃO:


A VIVÊNCIA TERRITORIAL

Meu início na prostituição não foi muito bom, porque as tra-


vestis não gostavam de mim. Isso acontece com quase toda travesti que
é nova na rua. Eu começava a sair muito com os clientes, pelo fato de ser
nova na rua, e elas ficavam incomodadas comigo, falando que eu fazia
programa por preços menores que os delas. Isto acontecia aqui em Ponta
Grossa, porque em Maringá era diferente. Eu era amiga das travestis mais
velhas. Mas aqui foi bem difícil.
Aqui em Ponta Grossa existia a falecida Cláudia. Ela nunca me
aceitou, me chamava de viadinho. Falava que eu era viado de boate e que
eu não podia ficar na rua. Sempre falou: o que estes viadinhos de boate
querem na rua! Pelo fato da concorrência estar aumentando, elas não
queriam a gente na rua. Outra travesti de quem eu vivia correndo era a

aparência e desenvolver atitudes que são capazes de atrair olhares de admiração e desejo.
Além disso, significa demonstrar superioridade, em beleza e feminilidade, frente às
outras travestis.

76
Geografias malditas
Gláucia Boulevard

falecida Betina. Teve uma vez que ela me pegou atrás do Cemitério Mu-
nicipal e me ergueu um meio metro do chão, me pegou pelo colarinho e
falou: seu viadinho, você quer ser mulher? Então toma na cara! Você não
é mulher, é viado igual a todas nós! Eu falava que não estava pensando
que era mulher. Mas, mesmo assim, ela falava que eu estava me compor-
tando como uma, e que tinha que apanhar.
Penso que ela queria que eu me comportasse como ela, uma es-
candalosa. Eu era assim quando mais nova, mas, quando você vai ficando
com uma certa idade, você começa a se comportar, você vai vendo que
tem que se comportar, porque isto não combina com você. A Betina me
agredia por causa disso. Ela falava que viado muito mulher não dava mui-
to certo perto dela. Lá em Maringá foi mais tranquilo, porque as travestis
mais velhas me ensinavam como era ser uma travesti. Mas, quando eu
cheguei aqui em Ponta Grossa, a Betina já estava na rua. Alias, quando
eu cheguei, a Betina não estava na rua, quem estava na rua era a falecida
Cláudia. Depois da chegada da Betina que ela começou a mandar, passan-
do por cima da falecida Cláudia.
A falecida Betina era terrível! Teve um dia que queríamos bater
nela. Era eu, a Débora, a Michelly, a falecida Priscila e a falecida Cláudia.
Nos reunimos, e quem iria bater na Betina era a falecida Cláudia, a fale-
cida Priscila, a Débora e a Michelly. Só que eu saí “avoada”, saí correndo,
porque fiquei com medo. A gente queria bater nela, porque não aguentá-
vamos mais. Depois de tudo combinado, eu peguei uma carona e “voei as
tranças”, fui embora. Sei que o resultado da briga foi que a Michelly levou
uma chicotada no peito. A Betina pegou um chicote, não sei de onde que
ela conseguiu um chicote. Ela rodeava aquele chicote, e com ele chico-
teou a Michelly e a Cláudia. A única que enfrentou ela foi a Débora. A
Priscila acabou fugindo também na hora.
Ela ficou com raiva de todas as travestis, mas ficou com mais
raiva de mim. Isso porque eu combinei de surrar ela e, depois, ter fugido,
porque isso não é coisa certa. A Débora não apanhou porque chegou per-
to dela e falou: olha viado, você quer me bater, me bata! Mas quero deixar
claro que não tenho nada contra você. As bichas se reuniram para bater
em você e eu vim junto e não fujo. Então, se você quer me bater, me bata,
mas nós vamos rolar nesta rua! Sei que, depois disto, pelo que outras tra-
vestis comentaram, as duas conversaram e a Betina começou a respeitar
a Débora como pessoa e como travesti. As únicas travestis que ela respei-
tava eram a Débora e a Leandra. A Leandra tinha muita admiração pela

77
corpos, sexualidades e espaços
Vida de travesti é luta! Luta contra a morte, luta contra o preconceito,
luta pela sobrevivência e luta por espaço

Betina. Até hoje, se comentamos sobre a Betina na frente dela, seus olhos
enchem de lágrimas. Ela sente muita falta dela. Todavia, a Betina vivia
correndo atrás de mim, vivia querendo me bater. Assim, como eu gosta-
ria dela? Não é porque ela morreu que vou sair por aí falando que eu gos-
tava dela. Só que, depois que a Betina morreu, a rua ficou uma maravilha.
Mas antes da Betina morrer, a vida no território da prostitui-
ção era difícil, pois vivia correndo ou me defendendo para não apanhar.
Mas continuei insistindo, até elas cansarem. A falecida Cláudia boquejava
comigo, e eu nem ligava, continuava na esquina. Saía daquele ponto e ia
para outra esquina. Ela ia atrás e novamente boquejava, e novamente eu
ia para outra esquina. Eu sempre falava para ela: olhe, me desculpe, mas
eu vou ficar porque eu preciso ganhar também, eu tenho aluguel para
pagar, tenho água, luz, tenho comida para comprar, então me desculpe.
Falava que ela conseguiria me tirar dali apenas se ela batesse em mim,
e, se ela fizesse isto, eu iria procurar meus direitos. Assim, fui ficando,
na teimosia. Não pedi para ninguém para ficar na rua, fui chegando, fui
chegando, fui me enfiando. Geralmente, as que pedem permissão são de
outras cidades. Não pedi porque eu já conhecia a falecida Cláudia e a fa-
lecida Priscila, conhecia antes de começar a batalhar na rua. Mas, se eu
tivesse chegado direto de Maringá para a rua em Ponta Grossa, eu tinha
que pedir permissão, não poderia chegar e ficar.
Antes da briga entre a falecida Cláudia e a falecida Betina, quem
mandava mesmo era a falecida Cláudia. Só que ela foi se cansando, ela
viu que não adiantava sua resistência, pois ninguém estava pedindo per-
missão para ela. Sei que ela perdeu tanto a moral, e ficou tão perturbada
com isso, que acabou cometendo suicídio. E, pensando sobre a vida dela,
antigamente eu era muito parecida com ela. Ela tinha preconceito com
ela mesma, não se aceitava. A falecida Cláudia virou travesti no impulso,
adorava transar com mulheres e com homens, era mais ativa que passiva,
e virou travesti.
Depois de um tempo, ela começou a frequentar outra ONG em
Ponta Grossa, que não era o Renascer nem o Reviver. Nesta ONG eles ti-
nham uma história de que as travestis deviam virar homem. Eles pertur-
baram demais a cabeça da coitada. Falaram que iam levar ela para São
Paulo, para tirar os peitos, drenar o silicone, drenar isso e aquilo, para ela
virar homem novamente. Com toda esta perturbação na cabeça, somado
ao fato dela não se aceitar, uma vez ela falou em uma conversa: olhe,
Gláucia, eu me arrependo de ter virado travesti. Mas por que Cláudia?

78
Geografias malditas
Gláucia Boulevard

Porque eu não sou assim como vocês, eu não sou feliz. Eu não me sinto
bem, os outros me olham, eu já quero brigar. Mas Cláudia, eu não estou
nem ai! Se querem me olhar, que me olhem! Eu faço que não é comigo,
eu esnobo! Mas ela falou que tinha pouca paciência e que já queria brigar
quando as pessoas olhavam com preconceito para ela. A gente conhece
bem esse olhar. Sei que várias gotas d’água encheram este copo. Uma
destas situações é que ela tinha um namorado, ela amava este rapaz, e ele
saiu com outras travestis. Além disso, não ajudava ela, e, pelo contrário,
tirava o dinheiro que ela conseguia da prostituição. Ele não morava com
ela, e era casado ainda. Ele falava que ia se separar. Eles ficaram um bom
tempo juntos. Como resultado de tudo isto, ela ficou com depressão, co-
meçou a ficar calva e, para uma travesti, a calvície é o fim do mundo. Um
dia ela foi na varanda que ficava atrás de sua casa e se enforcou.
Com a morte da Cláudia, a Betina começou a mandar de fato. Só
que este reinado não durou muito tempo. Uma vez a Betina roubou mil
reais de um cliente. Ela roubou e voltou para a rua. O cliente voltou, que-
rendo o dinheiro dele, mas ela falou que não ia devolver, e foi para cima
dele. Só que ele estava armado e apontou um revólver nela. Ela começou
a correr e levou um tiro na perna. Todavia, ela era muito forte e, se levan-
tando, foi novamente em cima dele. O final desta história foi o tiro que ela
levou na testa. Hoje ninguém manda mais como antigamente, hoje o que
existe é respeito, muita coisa mudou de tempos para cá.

SOBRE A LUTA POR DIREITOS:


CONQUISTAS ESPACIAIS

A vida de travesti é uma luta sem fim. Luta contra a morte, luta
contra o preconceito, luta pela sobrevivência. Acho que o direito de ser
quem você quer ser, de transformar o próprio corpo, é o que gera a neces-
sidade de lutar pelas outras coisas. Fico pensando por que não sou aceita
em uma escola, em um hospital, porque sou travesti? Afinal, continuo a
ser humana e tenho meu caráter e minha personalidade. Mas qualquer
qualidade que você possa ter cai por terra quando alguém olha para você
e estranha sua forma de ser. Ninguém te dá a chance de te conhecer. Mi-
nha luta foi sempre buscar o máximo de feminilidade e muitas vezes me
esqueço que sou uma travesti porque me comporto como uma mulher o
tempo todo e me lembro que ainda tenho uma parte de mim que é ho-

79
corpos, sexualidades e espaços
Vida de travesti é luta! Luta contra a morte, luta contra o preconceito,
luta pela sobrevivência e luta por espaço

mem apenas quando vejo as marcas de barba em meu rosto, coisa que tiro
todo santo dia, e quando tenho vontade de fazer xixi e vejo meu pênis.
Só que ser uma travesti neste mundo não é uma coisa muito
boa, pois o preconceito que nós vivenciamos todo dia não é bom. É colo-
car o pé para fora de casa e começar a ouvir piadinha, ouvimos comen-
tários maldosos em todos os lugares que vamos. No lugar que moro, todo
mundo sabe quem eu sou, todo mundo olha, todo mundo comenta. Aqui
na vila eles olham, comentam. Tenho amizade com algumas pessoas, com
outras não tenho, tenho algumas falsas amizades, outros me respeitam.
Um dia destes estava no ponto de ônibus e passou um cara com sua espo-
sa. Daí eles ficaram me olhando, e eu cumprimentei. O cara ficou olhando
com cara de nojo para mim e disse: pouca vergonha isso daí! O preconcei-
to é grande em qualquer lugar que você vai e é preciso conquistar espaço
todo santo dia, porque nós não somos bem-vindas.

SOBRE SONHOS E ESPAÇOS


DE SOLIDARIEDADE

O meu sonho é sair da noite, da prostituição, estou cansada já.


Em relação ao futuro, eu não procuro planejar muito, senão a gente fica
louca. Eu procuro deixar, eu peço para Deus encontrar o caminho melhor
para mim. O que tenho são planos para o futuro, quero ter a minha casa,
já tenho carteira de motorista, quero comprar o meu carro, conseguir um
emprego e sair da rua. Saindo da rua, para mim já está ótimo, porque não
é mais vida para mim. Em um momento da minha vida foi porque eu pre-
cisava. Ainda preciso, mas gostaria muito de viver fazendo outras coisas.
O close sempre foi importante, te chamarem de gostosona é
tudo de bom. Mas, para acontecer isto, você tem que ir para a rua gla-
mourosa, não pode ir de qualquer jeito. Se eu fosse de qualquer jeito para
a rua, não ganharia nem para o fumo. E isso é importante para mim. Se
você vai para a rua, você tem que ir sempre bem arrumada. Entretanto,
gosto que as pessoas me admirem como pessoa, porque aquilo lá não sou
eu. Lá na esquina eu sou uma pessoa, porque lá eu estou produzida, estou
maquiada, estou prostituta. Aqui em casa eu sou outra pessoa. Talvez,
aqui em casa, acho que eu estou eu, entende?
Mas saio de dia, e também me visto glamourosa, arrumada, com
salto. Portanto, não é só na esquina que eu me sinto glamourosa. Um dia

80
Geografias malditas
Gláucia Boulevard

eu saí para ir ao banco e me chamaram de gostosona: olhe o viadão gos-


tosão! Então, isso é um elogio, um viadão gostosão. Então, não precisa só
estar na esquina para você ser gostosa. Mesmo quando eu tiver uns se-
tenta anos, eu vou me sentir assim. Mesmo quando eu sair da rua, eu vou
me sentir assim. Porque, se você não se sentir bonita, gostosa e glamou-
rosa, quem vai se sentir? Você tem que se achar bonita para os outros te
acharem.
Mas a prostituição já era. Antigamente era bom, antigamen-
te eu vinha para casa com muito dinheiro. Vinha para casa com o bolso
cheio de dinheiro. Em uma noite eu ganhava trezentos e poucos reais.
Fazia horrores de programa, bolos e mais bolos de dinheiro. Hoje você
vai para a rua e vem com cinquenta reais, setenta reais, tem vezes que
você ganha só dez. Tem vezes que você ganha só vinte. A rua não é como
antes, antigamente dava dinheiro, mas agora não dá mais, e a gente tem
que entender isso, que a idade chega e a concorrência também.

81
corpos, sexualidades e espaços
Para além da apresentação das Geografias Malditas: uma análise da resistência
às descontinuidades científicas no campo científico da Geografia no Brasil
PARTE II
Trajetórias de
conhecimento conjunto
produzido pelo Grupo de
Estudos Territoriais
e as travestis
O CORPO COMO ELEMENTO
DAS GEOGRAFIAS FEMINISTAS
E QUEER: UM DESAFIO
PARA A ANÁLISE NO BRASIL
Joseli Maria Silva
Marcio Jose Ornat
Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar
Alides Baptista Chimin Junior
Juliana Przybysz

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A ciência geográfica para nós pesquisadores do Gru-


po de Estudos Territoriais (GETE) é um campo de saber/poder em que se
estabelecem, por meio de disputas e tensionamentos, determinados co-
nhecimentos legitimados pela comunidade científica em diferentes espa-
ços e tempos. Portanto, este capítulo não tem a preocupação de discutir
a ontologia da Geografia, mas evidenciar como ela tem se manifestado no
Brasil na forma de produtos científicos, ou seja, artigos, teses e disserta-
ções de mestrado, privilegiando as geografias feministas e queer em sua
relação com o corpo.
A maneira como a historiografia da geografia brasileira se faz,
tanto em seu processo de produção como de circulação, tem omitido a
discussão de algumas importantes vertentes do pensamento geográfico.
Entre elas estão as geografias feministas e queer. Tal omissão não se deve
à ignorância, mas, sobretudo, ao desprezo que estas formas de imagina-
ção geográfica provocam no meio acadêmico brasileiro.
O modo como construímos a memória de nosso campo científi-
co expressa não apenas a maneira como observamos a produção da geo-
grafia brasileira, mas também como ela é narrada, comunicada por meio
de livros e disciplinas específicas, normalmente chamadas de epistemo-
logia, história do pensamento geográfico e denominações similares. Um
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

levantamento das ementas e programas destas disciplinas foi realizado


em 2008 pelo GETE, a partir de trinta universidades brasileiras que desen-
volviam o nível de pós-graduação. A análise dos conteúdos ministrados
nestas disciplinas aponta para algumas afirmações sobre o modo como
nós, profissionais da Geografia, observamos e contamos nossa própria
história científica no processo de formação de estudantes.
Primeiramente, a história da geografia no Brasil é contada de
forma etapista, obscurecendo as tensões existentes entre diferentes
perspectivas científicas e a sua coexistência. Em geral, evidenciam-se as
versões geográficas de sucesso em alguns períodos do tempo, e são no-
meados os personagens heroicos de nossa história. Em segundo lugar,
há uma característica de hierarquização locacional que privilegia algu-
mas localidades ou centros hegemônicos de produção geográfica em cada
uma das etapas temporais. Essa forma de construir a memória da Geogra-
fia destaca determinados locais de enunciação geográfica e torna outros
invisíveis. Em terceiro lugar, as ementas e programas de disciplinas que
se colocam como instrumentos de reflexão sobre a trajetória científica
da Geografia apresentam também uma forte característica geracional,
remontando à noção de “progresso da ciência”.
Para contribuir com as reflexões em torno de nossa história
científica, este texto traz alguns elementos que estiveram fora do inte-
resse da narrativa oficial da geografia brasileira expressa em disciplinas
e livros, mas que nem por isso deixaram de existir. Tal como pensa Bell
(2011), ao lado da versão da memória oficial presente nos currículos geo-
gráficos há também narrativas alternativas, como é o caso das geografias
feministas e queer. Não temos a pretensão de reparar nenhum suposto
esquecimento sobre as narrativas da história do pensamento geográfico
brasileiro, mas, sobretudo, evidenciar algumas descontinuidades, com a
esperança de que possamos superar as batalhas entre perspectivas cien-
tíficas e possibilitar a coexistência de pensamentos.
Para a elaboração deste capítulo, além de um levantamento
bibliográfico internacional envolvendo a relação entre corpo e as geo-
grafias queer e feministas, utilizamos o banco de dados que vem sendo
construído pelo GETE desde 2008, em que já estão armazenados 6.904
artigos coletados de periódicos científicos brasileiros disponíveis na in-
ternet e mantidos por instituições de cunho geográfico.1 As revistas que

1
Ver a lista de revistas investigadas no Apêndice 1.

86
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

fazem parte do universo pesquisado cobrem um período temporal de


1981 a 2012, e elas estão classificadas segundo o Sistema Qualis da Capes
do triênio 2010-2012 como pertencentes aos estratos A1, A2, B1 e B2. Os
artigos que fazem parte do banco de dados do GETE são classificados por
palavras-chave, o que permite o resgate dessas informações por termos
de busca.2 Além desse procedimento, foi realizado um levantamento no
banco de teses da Capes e na biblioteca digital do Instituto Brasileiro de
Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), tomando como base os mes-
mos critérios de busca utilizados para o levantamento dos artigos no ban-
co de dados do GETE.
Os resultados obtidos estão organizados em duas seções. A
primeira explora as proposições geográficas feministas e queer que
desenvolveram aproximações a partir de análises da relação entre corpo
e espaço, tendo como contexto a geografia anglo-saxã. Na segunda parte
do texto estão registradas algumas trajetórias de pesquisas geográficas no
Brasil, feministas, queer, de gênero e sexualidades, que potencializaram a
emergência das discussões sobre os corpos. Com a intenção de construir
o registro de alguns trabalhos científicos na história do pensamento
geográfico brasileiro e também colaborar com pesquisadores(as) iniciantes
na área, foram incluídos, no final deste texto, apêndices que registram o
panorama temporal e espacial deste perfil de produção científica.

AS GEOGRAFIAS FEMINISTAS E QUEER


E AS ABORDAGENS SOBRE O CORPO

Apesar de a vertente feminista da Geografia centrar suas análi-


ses na categoria de gênero, durante várias décadas não houve uma vincu-
lação deste enfoque com o corpo. Foi apenas no final do século XX e início
do século XXI que o corpo passou a ser alvo de um exame minucioso no
campo da Geografia, juntamente com as demais ciências sociais.
Os corpos são materiais, possuem forma e tamanho e, inegavel-
mente, “ocupam” um espaço físico. Por meio de ações, os corpos produ-
zem mercadorias. Sendo assim, estados corpóreos, como saúde, doença,

2
As palavras e segmentos de busca foram: “travesti”, “sexo”, “gay”, “lésbica”,
“homossexualidade”, “homoerotismo”, “sexualidade”, “LGBT”, “diversidade sexual”,
“raça e etnia”, “queer”, “prostituição”, “gênero”, “masculinidade”, “corpo” e “mulheres”.

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corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

força física, capacidade reprodutiva e habilidades manuais, são elemen-


tos de intensa associação entre o corpo e a sociedade e, portanto, o espa-
ço. As energias despendidas e incorporadas ao maquinário e as tarefas
que os corpos executam envolvem espaço, como propõe Callard (1998),
ao examinar as contribuições do primeiro volume de O Capital, de Marx,
para os estudos do corpo.
No entanto, apesar de sua expressão material e em que pese ter
sido incorporado pela teoria marxista, amplamente utilizada na Geogra-
fia, o corpo manteve-se como uma perspectiva irrelevante para o meio
científico geográfico durante muito tempo, ganhando gradativamente
importância na última década do século XX. McDowell (1999) aponta que
o corpo recebeu atenção por parte da sociedade e também do meio cien-
tífico devido às transformações materiais que foram produzidas, notada-
mente nos países industriais avançados.
A transformação da natureza do trabalho e do ócio, conforme
McDowell (1999), situou o corpo no centro do interesse das pessoas e da
sociedade, de modo que ele é tanto o motor do desenvolvimento eco-
nômico como fonte de prazer e dor individuais. O argumento da referi-
da autora é que, com a transformação da economia industrial para uma
economia de serviços, a corporeidade do trabalhador deixou de ser força
muscular para ser convertida em produto de intercâmbio. Os trabalhos
corporais relacionados com o setor de serviços formam parte de proces-
sos de intercâmbio que convertem o “corpo produtor” em um “corpo de-
sejante”, capaz de dar vazão ao consumo crescente. O ócio nas sociedades
pós-industriais desenvolveu várias atividades e recursos para criar e cul-
tivar corpos esbeltos, saudáveis e desejantes, como academias de ginásti-
ca e clínicas de medicina genética e estética, com o objetivo de adequar os
corpos aos padrões desejados de cada lugar. Além disso, a relação entre
a indústria de alimentos e a indústria farmacêutica, com foco em distúr-
bios alimentares e no sobrepeso da população, passou a ser discutida no
âmbito do vínculo entre corpo e espaço.
No campo da Geografia, as vertentes que realizaram esforços no
sentido de problematizar a relação entre corpo e espaço foram as femi-
nistas e queer, as relativas à Nova Geografia Cultural, e a fenomenológica.
Foi justamente a desconstrução da herança moderna da oposição entre
corpo e mente que construiu um caminho investigativo jamais visto an-
tes. Longhurst (1997), no artigo “(Dis)embodied geographies”, publicado
na revista Progress in Human Geography, desenvolve uma reflexão a respei-

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Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

to das abordagens sobre o corpo e examina a contribuição da Geografia


nesse processo, defendendo a ideia de que essa literatura emergente tem
um imenso potencial para ampliar a compreensão do conhecimento so-
bre o poder e as relações sociais entre pessoas e lugares.
A vertente feminista voltou sua atenção para o corpo apenas
depois que foi superada a tendência tradicional de não se reconhecer a
importância corporal ao se pensar o ser humano. A tradição de negar o
corpo nas análises de geógrafas feministas esteve fundamentada na ideia
da supremacia da cultura na construção dos papéis de gênero, e o corpo
era entendido até então como algo estático, biológico e essencializado.
Tratava-se de uma barreira ao avanço das lutas sociais, na medida em que
os argumentos sobre a inferioridade feminina em relação aos homens es-
tiveram em grande parte sustentados pelo discurso médico e biológico a
respeito das características corporais.
Kirsten Simonsen (2000), em editorial para o periódico Transac-
tions of the Institute of British Geographers sob o título “The Body as Battle-
field”, estabelece um interessante fio condutor para analisar a emergên-
cia do corpo como uma abordagem na Geografia, afirmando que, apesar
de outros campos geográficos também terem contribuído para a abor-
dagem do corpo, a contribuição feminista tem sido substancial. Ela de-
senvolve sua análise reunindo as contribuições de geógrafos(as) em três
eixos: “As geografias do armário”, “Outros corpos” e “Transcendendo
dualismos”.
O primeiro eixo de abordagem geográfica exposto por Simon-
sen (2000) explora a forma como os corpos são constituídos e usados, ten-
do como preocupação a inscrição do poder e a capacidade de resistência
dos corpos envolvendo as questões de performatividade3, a política do
corpo e o corpo como um local de contestação. Em particular, a luta fe-
minista em torno do direito ao corpo-espaço, envolvendo sexualidade,
aborto, gravidez e medo de violência.
O segundo eixo baseado nas ideias do feminismo, do pós-estru-
turalismo e do pós-colonialismo aborda a necessidade de reconhecer as
diferenças e as relações de poder corporificadas, ligadas à sexualidade,
racialidade e origem étnica. A cultura dominante classifica e rotula va-

3
A ideia de performatividade, com base em Butler (2003), diz respeito a normas
socialmente construídas que se impõem às pessoas e que são incorporadas por elas em
atos repetitivos no cotidiano.

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corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

lores e significados para minorias étnicas, idosos, mulheres, negros, ho-


mossexuais, deficientes físicos e obesos, sempre considerados “outros”.
Os grupos dos “outros” são definidos por seus corpos, e as normas so-
ciais os designam, de forma degradante, como desviantes, impuros, feios,
repugnantes, doentes e fora de ordem. Ao aprisionar o “outro” em seu
corpo, os grupos dominantes (tendo como referente o homem, branco,
ocidental) estão aptos a tomar sua posição como sujeitos desincorpora-
dos, sem marcas, porque eles se constituem como referência positiva a
que todos os demais são comparados. Essa abordagem tem evidenciado
os espaços de dominação e de possibilidades de apropriação espacial por
meio de lutas e movimentos para reconhecimento social.
O terceiro eixo de trabalhos tem tido a preocupação de descons-
truir as dicotomias mente/corpo, mas também outras, como cultura/na-
tureza, essencialismo/construtivismo. A separação teórica entre mente
e corpo é historicamente sexualizada. O feminino foi o polo corporal do
dualismo, representado pela natureza, emocionalidade, irracionalidade
e sensualidade, contrastando com o polo da mente, metaforicamente re-
presentado pelo masculino, que evoca o intelecto, racionalidade e auto-
controle das emoções. Assim, na relação dual e oposicional entre corpo
(polo feminino) e mente (polo masculino), o corpo precisa ser comanda-
do pela razão.
As reflexões em torno do desmantelamento da dicotomia cor-
po/mente, além de possibilitarem estudos sobre a representação cultural
dos corpos em diferentes contextos, também permitiram a emergência
das ideias de instabilidade e fluidez das identidades corporais, ultrapas-
sando a ideia de corpo, entendido tradicionalmente como algo fixo, para
a ideia de corporeidade, a fim de produzir a perspectiva de mutabilidade
e movimento.
Uma relevante contribuição metodológica para a superação da
dicotomia mente/corpo foi a concepção de que o cientista, ser humano
produtor de conhecimento, é corporificado, e, assim, aquilo que é pro-
duzido como ciência se realiza de um determinado ponto de vista, de
alguém que tem um corpo generificado e racializado. Novas formas de
“conhecer o conhecimento”, ou seja, novas epistemologias, foram possí-
veis, notadamente o reforço de que “o conhecimento é sempre situado”,
conforme argumenta Haraway (1991). O conceito de conhecimento situa-
do tem produzido um caminho teórico-metodológico bastante promissor
nas geografias feministas, evidenciando que a pesquisa concreta se faz

90
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
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por meio de cientistas que têm cor, gênero, corpo, sexualidade, posição
política, e assim por diante. A posicionalidade de quem questiona o mun-
do é fundamental para conceber as perguntas passíveis de serem formu-
ladas, e, sendo assim, os resultados de uma trajetória de pesquisa devem
conter a autoavaliação de como a posicionalidade da pessoa que investiga
influencia os resultados obtidos.
O corpo foi um elemento de difícil interpretação na teoria fe-
minista porque as diferenças físicas e materiais dos corpos de mulheres
e homens pareciam constituir um fato evidente e natural. A ideia de se-
parar sexo de gênero, sendo o primeiro concebido como um atributo do
corpo e, portanto, imutável, e o segundo, uma construção cultural e, as-
sim, cambiante, gerou várias polêmicas a respeito do corpo, notadamen-
te a sua relação com o sexo e o gênero na sociedade ocidental.
Thomas Laqueur (2001), baseado em relatos médicos conserva-
dos desde a era clássica, afirma que a organização binária dos sexos, tão
naturalizada na sociedade ocidental moderna, ocorreu apenas no século
XVIII.4 Antes da era moderna havia um discurso sobre os corpos que se
baseava na teoria de “um só sexo” (isomorfismo), e as diferenças ana-
tômicas entre homens e mulheres eram compreendidas apenas como
graus de perfeição dentro da concepção da “economia corporal genérica
de fluidos e órgãos”. Nessa concepção, homens e mulheres tinham uma
mesma raiz de criação, e os corpos dos homens representavam o máximo
da perfeição, enquanto os corpos femininos eram considerados menos
desenvolvidos, ou “homens imperfeitos”.
O conceito moderno de uma divisão da humanidade em “dois
sexos” (dimorfismo) surgiu no Ocidente no bojo de outras transforma-
ções sociais e culturais, notadamente o progressivo distanciamento da
vida doméstica da vida social. Enfim, foi na era moderna da sociedade
ocidental que se instituiu um modelo hegemônico em que as identidades
sexuais dos seres humanos foram diretamente vinculadas às formas das
genitálias, e, assim, o corpo acabou sendo sinônimo de sexo.

4
Segundo Laqueur (2001, p. 16-17), “nesse mundo, a vagina é vista como um pênis
interno, os lábios como prepúcio, o útero como escroto e os ovários como testículos”. O
corpo feminino não havia sido nomeado pela ciência médica, recebendo denominações
semelhantes ao corpo masculino, e o termo “vagina” apareceu apenas em 1700 nos
vernáculos europeus, com a seguinte definição: “tubo ou bainha na qual seu oposto, o
pênis, se encaixa e através da qual nasce o bebê”.

91
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Dessa forma, na sociedade ocidental o sexo adquire sentido de


essencialidade, fixidez e universalidade, agregado ao corpo enquanto
algo natural e do qual a humanidade não pode escapar. Contudo, os estu-
dos feministas e queer produziram um movimento de desconstrução des-
sa ideia, evidenciando que a anatomia não poderia ser considerada como
um destino inexorável para a classificação de corpos. Assim, procurou-se
compreender os corpos como objetos discursivos que se diferenciam em
cada espaço-tempo.
Obviamente, a abordagem do corpo na Geografia não ficou res-
trita a questões relativas à sexualidade. Os estudos são ricos e suas temá-
ticas, variadas. Foram desenvolvidas pesquisas sobre o corpo e espaços
de trabalho (MCDOWELL, 1995), nacionalidade e corpo (SHARP, 1996),
saúde/doença, espaço e corpo, como em Moss e Dyck (2002) e Alves e
Guimarães (2010), espaço e corpos gestantes (LONGHURST, 1996), cor-
po, raça e espaço, como em Anderson (1996) e Gottschild (2003). Existem
ainda várias análises envolvendo corpo e cidade, como os trabalhos de
Pile (1996), Nast e Pile (1998), Johnston (1996) e Smith (1992), bem como
corpo e espaço religioso (SILVA, 2009). Este pequeno número de referên-
cias certamente não reflete a totalidade dos trabalhos na área, e ele nem
mesmo é fruto de um levantamento sistemático. Tem apenas a intenção
de ilustrar alguns caminhos analíticos já explorados, evidenciando que
a Geografia já percorreu longa trajetória de abordagem da relação entre
corpo e espaço. Contudo, foi a contribuição dos estudos das sexualidades
que aprofundou as análises que envolvem o corpo, e sobre este tópico
específico trataremos a seguir.
O campo das sexualidades construiu uma crítica em relação à
concepção do corpo como um elemento dado, natural e fixo que define, por
meio da forma da genitália, a sexualidade humana. A partir desta ótica, os
espaços associados aos corpos “naturalmente” dotados de um sentido bi-
polar (masculino/feminino) reproduzem essas mesmas características de
dualidade e oposição, como público/privado, sagrado/profano, produção
econômica/reprodução familiar, local/global, e assim por diante.
Para derrubar as hierarquias produzidas pela razão moderna,
era necessário “desnaturalizar” a organização binária dos sexos e dos
desejos atrelada às formas corporais. Afinal, foi a pretensa naturalida-
de identificada nas características materiais dos corpos que constituiu as
justificativas para a manutenção dos privilégios de alguns, com a margi-
nalização e subordinação de outros.

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Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
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Michel Foucault e Judith Butler são teóricos influentes na pro-


dução geográfica em torno das sexualidades, do corpo e do espaço. A
sexualidade, como entende Foucault (1988), é um conjunto de desejos,
identidades e condutas sexuais influenciadas pelas ideias que promovem
a regulação da atividade sexual concreta, e ela está relacionada com os
prazeres do corpo. A sexualidade, nesse sentido, não é um “instinto natu-
ral”; ela está ligada à cultura e aos costumes de um determinado espaço-
tempo.
A concepção foucaultiana de corpo foi amplamente utilizada no
campo das geografias feministas, assim como a sua própria concepção de
ciência, de acordo com a qual “não há constituição de poder sem consti-
tuição correlata de um campo de saber, nem saber que não constitua, ao
mesmo tempo, relações de poder” (FOUCAULT, 1996, p. 29-30). Assim, a
corrente feminista entende o próprio campo de saber geográfico cons-
tituído como forma discursiva de conceber um espaço eminentemente
marcado pelo poder masculino, branco e heterossexual, suplantando a
visibilidade de outras espacialidades conformadas por mulheres, homos-
sexuais e negros. Nesse sentido, fazer ciência é também fazer política,
pois a Geografia, como todas as outras formas de aliança entre saber e
poder, é um suporte epistemológico de múltiplos interesses, resultante
de poderes próprios de sujeitos, rearranjados no tempo e no espaço.
O corpo foucaultiano, cuja inspiração para a corrente feminista
da Geografia foi relevante, é uma materialidade, um campo de batalha de
uma rede complexa de saberes e poderes que o constitui. O poder inter-
vém na realidade mais concreta das pessoas − o corpo −, que é simultane-
amente sociedade e que penetra a vida cotidiana de cada pessoa, confor-
mando hábitos, emoções e desejos por meio de dispositivos de controle
como a vigilância, as perícias médicas e as confissões. A Geografia, ao
trazer o corpo para o centro do debate acadêmico, com inspiração em
Michel Foucault, explora as minúcias e singularidades próprias do cor-
po, como o desejo, o amor e os hábitos, rastreando o corpo como uma
complexa teia que articula saberes e poderes. Assim, o corpo é concebido
tanto como princípio e finalidade. Afirma Foucault (1984c, p. 22):

O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto


que a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar de dis-
solução do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial),
o volume em perpétua pulverização. A genealogia, como análise

93
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

da proveniência, está portanto no ponto de articulação do corpo


com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de
história e a história arruinando o corpo.

O corpo é marcado por elementos práticos e discursivos de for-


mas de poder na produção das verdades, a alma. Para Foucault (1996, p.
30), a alma é “efeito e instrumento de uma anatomia política: a alma,
prisão do corpo”. Assim, se a alma é o conjunto de verdades que se inscre-
vem nos corpos, tais verdades estão em constante embate, produzindo
um movimento constante e um “campo de batalha”.
As ideias de Foucault permitiram a concepção do corpo como
algo que não é fixo e nem mesmo passivamente submetido ao poder. O
corpo, que é alvo do poder, pode ser também o lugar de subversão de toda
a disciplina que o impõe. As marcas físicas, como a anatomia sexual, a cor
da pele e outras só podem ser compreendidas por meio do jogo de forças
que constituiu o saber/poder sobre elas, suas significações e sentidos.
O discurso da verdade, a alma, inscreve no corpo seus efeitos.
Entretanto, não há aí uma relação de causa e efeito, não há fixidez nessa
relação, mas instabilidade constante do movimento. Não há como esca-
par das relações de poder, mas ele nunca ocorre de forma dual e oposi-
cional, pois “a partir do momento em que há uma relação de poder, há
uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder:
podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e
segundo uma estratégia precisa” (FOUCAULT, 1984c, p. 241).
A corporeidade, assim, se dá na articulação dos embates entre
alma e corpo, que criam dispositivos estratégicos entre ambos, consti-
tuindo futuros incertos. A corporeidade se faz de extrema maleabilidade,
e ela tem sido utilizada na Geografia para captar a fluidez e as transfor-
mações constantes do corpo, superando o sentido biológico e essenciali-
zado tradicionalmente atribuído a ele. McDowell (1999) argumenta que o
corpo não pode ser concebido como entidade fixa e acabada, mas plásti-
ca, maleável e, portanto, passível de assumir inúmeras formas em vários
momentos, compondo, assim, várias geografias.
Um dos conceitos geográficos derivados da influência de Michel
Foucault está exposto na obra de Gillian Rose (1993), em sua teoria do “es-
paço paradoxal”. Esta geógrafa constrói uma perspectiva teórica para es-
capar às abordagens tradicionais relativas a macho/homem/dominador
e fêmea/mulher/submissa, oposição que, para ela, constitui uma simpli-

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Geografias malditas
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ficação das relações de poder, inviabilizando a possibilidade de eviden-


ciar momentos de centralidade do poder feminino. Ela considera o poder
como um feixe de relações, tal qual Foucault (1988, p. 105-106).

[...] que lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor,


por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterio-
ridade em relação ao poder [...] Não existe, com respeito ao po-
der, um lugar da grande recusa − alma da revolta, foco de todas
as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim, resistências no
plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis,
espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violen-
tas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fa-
dadas ao sacrifício; por definição não podem existir a não ser no
campo estratégico das relações de poder. Mas isso não quer dizer
que sejam apenas subproduto das mesmas, sua marca em nega-
tivo, formando por oposição à dominação essencial, um reverso
inteiramente passivo, fadado à infinita derrota. [...] Elas não são o
outro termo nas relações de poder; inscrevem-se nestas relações
como interlocutor irredutível.

Na perspectiva de Rose (1993), no território do conquistador há


também o conquistado. Mas este último não é passivo a um poder uni-
versal e absoluto; ele resiste. Mesmo porque só há razão para o exercício
de poder onde há resistência. Assim, há uma relação que é sempre con-
traditória/complementar de interdependência entre poder e resistência.
Em sua teoria, o “outro” que resiste não é outsider, simplesmente porque
ele não está fora, mas compõe as relações de poder que instituem o terri-
tório. O espaço paradoxal considera a multiplicidade de identidades dos
seres humanos, contemplando a sua plurilocalidade, assim como as múl-
tiplas dimensões que se configuram com o acionamento das identidades
tensionadas, numa relação contraditória e complementar entre “nós”
(considerados centro da configuração) e os “outros” (considerados mar-
gem da configuração). Para Rose (1993), é necessário considerar que essas
posições não são fixas; elas estão sempre tensionadas pelos dois polos da
configuração social/espacial (centro/margem) e podem mudar de posi-
ção, de modo que constituem um processo sempre em transformação. É
o movimento permanente e múltiplo que pode provocar uma desestabi-
lização da configuração estabelecida e gerar uma nova posição e, assim,
novas configurações espaciais ou territoriais.

95
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

A análise dos corpos fluidos e em constante transformação nas


geografias feministas possibilitou romper com a ideia de que a anatomia
da genitália e o gênero são elementos de coerência. A obra de Judith Butler
(2005, 2006) foi de fundamental importância para construir uma base teó-
rica que fosse capaz de refutar os argumentos “da natureza” a respeito da
morfologia das genitálias, que definiam as diferenças sociais de gênero e as
normas a serem impostas nas práticas sexuais. Apesar da inegável realida-
de material, para esta autora o corpo não passa de carne, se não for apro-
priado e significado por uma sociedade/cultura. Nesse sentido, ela questio-
na se o corpo é uma base sólida para a inscrição do gênero e dos sistemas de
sexualidade ou se o corpo é, ele mesmo, modelado por forças políticas para
mantê-lo limitado e constituído por marcadores sexuais.

En este sentido, lo que constituye el carácter fijo del cuerpo, sus


contornos, sus movimientos, será plenamente material, pero la
materialidad deberá reconcebirse como el efecto del poder, como
el efecto más productivo del poder. Y no habrá modo de interpre-
tar el ‘género’ como una construcción cultural que se inpone sobre
la superficie de la materia, entendida o bien como ‘el cuerpo’ o
bien como su sexo dado. Antes bien, una vez que se entiende el
‘sexo’ mismo en su normatividad, la materialidad del cuerpo ya no
puede concebirse independientemente de la materialidad de esa
norma reguladora. El ‘sexo’ no es pues sencillamente algo que uno
tiene o una descripción estática do que lo uno es: será una de las
normas mediante las cuales ese ‘uno’ puede llegar a ser viable, esa
norma que califica un cuerpo para toda la vida dentro de la esfera
de la inteligibilidad cultural. (BUTLER, 2005, p. 18).

A aceitação da identidade de gênero baseada na anatomia cor-


poral é uma “falácia” que se constrói como realidade. Ser um homem ou
uma mulher não é um fato natural, mas uma representação cultural em
que a “naturalidade” se faz por meio de um conjunto de atos impostos
por um discurso que produz um corpo por meio de categorias de sexo. A
finalidade dessa criação é justamente criar uma identidade coerente para
uma realidade estável. Com atos, gestos e vestimentas, construímos iden-
tidades que, ao mesmo tempo, se criam, se manifestam e se sustentam
graças aos significados corporais. Portanto, o gênero para Butler é per-
formático, sendo compreendido como uma identidade instável no tempo
e instituída espacialmente por meio de uma repetição estilizada de atos.

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Geografias malditas
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O efeito do gênero se produz pela estilização do corpo, criando a ilusão de


um ser permanente e sexuado.
A construção do sexo não pode ser compreendida como um
dado natural sobre o qual se inscreve o gênero como dado cultural, mas
como uma norma cultural que governa a materialização dos corpos. Na
concepção performativa de gênero que uma pessoa assume, ela se apro-
pria e adota uma norma corporal, não como algo a que deve se submeter,
mas como um processo em que ela se constitui em virtude de passar por
uma trajetória de assumir um sexo. A identificação, ou não, com os meios
discursivos que empregam o imperativo heterossexual permite algumas
identificações sexuadas e exclui outras, construindo aqueles que são nor-
mais e aqueles que são considerados anormais.
A corporeidade sexuada está intimamente relacionada com o
espaço, gerando acolhimento, indiferença ou exclusão. Por exemplo, as
demonstrações de afeto heterossexuais são “ações neutras” e perfeita-
mente toleradas em espaços públicos, mas as manifestações homoeró-
ticas são interditadas e permitidas somente nos espaços privados ou em
locais claramente identificados como permissíveis ao afeto homossexual.
As geógrafas Lynda Johnston e Robyn Longhurst (2010) dedica-
ram um capítulo de seu livro ao corpo, com o título de “Geografias ínti-
mas”. Segundo elas, a Geografia pode analisar o corpo como espaço e o cor-
po no espaço, argumentando que nossos corpos fazem diferença em nossas
experiências de espaço e lugar. Elementos como tamanho, aparência, saú-
de, vestimenta, comportamento, sexualidade e práticas sexuais afetam a
forma como nos apresentamos aos outros e também a forma como os ou-
tros nos representam. Assim, os corpos dissonantes das representações he-
gemônicas de gênero e práticas sexuais foram especialmente estudados na
chamada geografia queer, já que esses corpos, que não obedecem ao modelo
dual da sexualidade heteronormativa, constituem vidas “fora de lugar”.
Bell e Valentine, em seu livro Mapping desire (1995), uma impor-
tante produção geográfica pioneira na vertente queer, discutem como a
heterossexualidade tem sido apropriada e ao mesmo tempo resistida nas
escalas espaciais do indivíduo, da comunidade e da cidade. Para estes au-
tores, a sexualidade não é um elemento do espaço privado, mas de or-
dem pública, já que a matriz hegemônica é excludente e produz os seres
“abjetos”, ou seja, aqueles que não são considerados “sujeitos”, aqueles
que habitam os espaços invisíveis. Nesse sentido, os corpos abjetos são
entendidos por Butler (2005, p. 20) como aqueles que não encontram in-

97
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

teligibilidade social e cujas existências não gozam do estatuto de sujeitos.


Para ela, o objeto:

[…] designa aquí precisamente aquellas zonas ‘invisibles’, ‘inhabi-


tables’ de la vida social que, sin embargo, están densamente pobla-
das por quienes no gozan de la jerarquía de los sujetos, pero cuya
condición de vivir bajo el signo de lo ‘invisible’ es necesaria para
circunscribir la esfera de los sujetos. Esta zona de inhabitabilidad
constituirá ese sitio de identificaciones temidas contra las cuales
- y en virtud de las cuales - el terreno del sujeto circunscribirá su
propia pretensión a la autonomía y a la vida.

A relação entre corpo e espaço é tema central do livro Pleasure


zones: bodies, cities, spaces (BELL et al., 2001). No texto de seu prefácio, os
geógrafos Jon Binnie, Robyn Longhurst e Robin Peace identificam o cor-
po claramente com a perspectiva butleriana. Eles afirmam que, embora o
corpo apresente uma materialidade, essa materialidade é sempre consti-
tuída pelo discurso, assim como o espaço. Deste modo, tal como o corpo, o
espaço também é produzido discursivamente. A materialidade do espaço
apresenta toda a força do discurso heteronormativo, mas ele também não
é passível ao exercício do poder regulatório, podendo apresentar fissuras,
pelas quais emergem as forças de subversão das normas estabelecidas.
Enfim, o desenvolvimento das concepções sobre o corpo na
Geografia esteve profundamente vinculado aos estudos das sexualidades,
mesmo porque a vertente queer lutava para vencer a ideia de que existe
uma linearidade natural entre sexo, gênero e desejo. Sendo assim, o corpo
tornou-se um elemento de fundamental importância para esta vertente,
o que ampliou o escopo temático da Geografia, que agora traz a escala
corporal como mais uma possibilidade de análise geográfica.

A PRODUÇÃO GEOGRÁFICA BRASILEIRA:


GÊNERO, MULHERES, SEXUALIDADES
E A INVISIBILIDADE DO CORPO

Nos países anglo-saxões, os estudos geográficos feministas e


queer trouxeram inquietações a respeito da relação entre espaço e corpo,
produzindo uma série de questionamentos e ampliando o escopo inves-
tigativo da Geografia. Nesta seção, exploraremos o desenvolvimento de

98
Geografias malditas
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tais vertentes teóricas no Brasil, observando de que forma o corpo vem


sendo tratado por este campo de saber.
As características que marcam as trajetórias verificadas
das geografias feministas e queer nos países anglo-saxões não são
coincidentes com as observadas no Brasil. Oberhauser et al. (2003) chamam
a atenção para o fato de que as geografias feministas inglesas foram
fundamentais na crítica ao pensamento positivista ocidental. Além disso,
as autoras apontam que as geografias feministas anglófonas apresentam
movimentos epistemológicos marcados por hegemonias conceituais
e metodológicas ao longo de sua trajetória. Em seu início, a corrente
feminista empreendeu uma abordagem geográfica centrada na categoria
mulher, focando, basicamente, a diferença corporal. Posteriormente,
a noção do gênero como socialmente construído, associado à ideia de
patriarcado, ganhou hegemonia e constituiu importante aliança com a
geografia crítica de bases marxistas, trazendo para o debate as relações
de trabalho e de propriedade. A noção desconstrucionista do gênero se
desenvolveu de forma associada à Nova Geografia Cultural, instituindo a não
linearidade entre sexo, gênero e desejo. A narrativa de Oberhauser et al. (2003)
sobre a trajetória das geografias feministas anglófonas e seus movimentos
teórico-metodológicos não pode ser mecanicamente transposta para a
compreensão da forma como as geografias feministas se desenvolveram na
realidade brasileira. Afinal, cada espaço de produção científica é influenciado
por especificidades políticas, sociais e econômicas próprias.
O Brasil passou por um longo período de regime ditatorial, en-
tre 1964 e 1985, que instituiu um modelo de planejamento centralizado
no governo central, moldando, em grande medida, os centros de pesquisa
e de ensino superior brasileiros. Foi apenas no final dos anos 80, com a
Constituição de 1988, que teve início um movimento de descentralização
do poder federal, acompanhado por uma incipiente política educacional
superior que previa a expansão de unidades educacionais e a abertura
de novos programas de pós-graduação no país. Segundo o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), no final dos anos 90 e na primeira
década do século XXI o Brasil passou a desenvolver uma política de inte-
riorização das universidades pelo território nacional, processo que fez
surgir vários cursos de pós-graduação, os quais hoje concentram grande
parte da produção científica do país.5

5
Disponível em http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&vi
ew= article&id=1274:reportagens-materias&Itemid=39. Acesso em: 10 set. 2013.

99
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Todavia, durante muitos anos a estrutura da produção científica


brasileira permaneceu centralizada e rigidamente hierarquizada, com
apenas alguns importantes polos de produção de saber científico, a partir
dos quais o conhecimento se irradiava para áreas mais remotas do país.
Portanto, não é de se surpreender que durante quase duas décadas a
geografia brasileira tenha apresentado um discurso monotônico e coeso,
baseado grandemente nas lutas de classe. Assim, outras categorias,
como gênero, raça e sexualidade, não fizeram parte das preocupações da
geografia brasileira até os anos 90 do século XX.
Nosso levantamento de dados no banco de teses e dissertações
da Capes e da biblioteca digital do Instituto Brasileiro de Informação em
Ciência e Tecnologia (IBICT)6 aponta que foi apenas no século XXI que
ocorreu um impulso na produção de trabalhos científicos com base em
categorias sociais como gênero, mulheres e sexualidades.7 O Gráfico 1,
abaixo, ilustra esta questão.

Gráfico 1 – Dissertações e teses com temas relativos a gênero


e sexualidades, defendidas no Brasil (1990–2011).

Fonte: Banco de teses e dissertações da Capes e do IBICT.

6
As palavras de busca foram: “travesti”, “sexo”, “gay”, “lésbica”, “homossexualidade”,
“homoerotismo”, “sexualidade”, “LGBT”, “diversidade sexual”, “raça e etnia”, “queer”,
“prostituição”, “gênero”, “masculinidade”, “corpo” e “mulheres”.
7
Ver os Apêndices 2 e 3.

100
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Segundo informações disponibilizadas no Geocapes8, no período


entre 1991 e 2011 foram defendidos nos programas de pós-graduação em
Geografia brasileiros 6.703 trabalhos científicos, sendo 3.992 dissertações
de mestrado e 2.711 teses de doutorado. Neste mesmo período, somente
40 trabalhos científicos envolvendo os temas gênero e sexualidades fo-
ram defendidos nesses programas.9 Ou seja, no âmbito da Geografia no
Brasil, os trabalhos na área de gênero e sexualidades representam ape-
nas 0,87 % das dissertações e 0,18 % das teses defendidas. Todavia, ainda
que o número absoluto de trabalhos nessa área seja pequeno em relação
aos totais produzidos no país, o ritmo de crescimento se mostra intenso.
Em relação a 1996-2000, o período 2001-2005 apresenta um crescimento
de 400%. Assim, também, 2006-2010 mostra um crescimento de 262,5%
em comparação com o período 2001-2005. E, finalmente, se forem com-
parados entre si apenas o primeiro (1996-2000) e o último (2006-2010)
períodos, observa-se um crescimento de 1050% de trabalhos científicos
produzidos no campo de gênero e sexualidades na geografia brasileira.
Uma importante característica da produção geográfica brasilei-
ra sobre gênero, mulheres e sexualidades é que ela não se orienta por
hegemonias conceituais − identificadas em diferentes temporalidades −,
como detectado por Oberhauser et al. (2003) em seu estudo sobre as geo-
grafias feministas anglófonas. Verifica-se, na verdade, uma coexistência
das categorias mulher, gênero e sexualidades que constituem esse campo
de saber, e elas inclusive são interdependentes, embora a categoria “se-
xualidades” tenha sido abordada posteriormente às outras duas. A Figura
1, abaixo, que se baseia no Apêndice 2, ilustra esta tendência.

8
Disponível em http://geocapes.capes.gov.br/geocapesds/#
9
É importante registrar que o banco de dissertações e teses da Capes disponibiliza dados
apenas a partir de 1987.

101
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Figura 1 – Configuração temporal das categorias mulher, gênero e


sexualidades na geografia brasileira.

Fonte: Banco de teses e dissertações da Capes e do IBICT.

Essa pluralidade, ou seja, a coexistência das categorias mulher,


gênero e sexualidades na produção científica brasileira evidencia alian-
ças entre os pesquisadores da área, notadamente para o fortalecimen-
to do campo feminista e queer frente à Geografia enquanto disciplina. A
abordagem temática também se mostra diversificada, embora o espaço
urbano seja claramente privilegiado como referencial de análise (ver
o Apêndice 2). Além disso, as perspectivas teórico-metodológicas não
apresentam uma linearidade temporal do modo como constatado por
Oberhauser et al. (2003) nos trabalhos de língua inglesa.
Ainda na esfera da produção geográfica brasileira sobre gênero,
mulheres e sexualidades, a produção científica de teses e dissertações se
mostra espacialmente pulverizada no Brasil, e ela tem, claramente, um

102
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

perfil periférico, concentrando-se em cursos de pós-graduação criados


mais recentemente, fora dos centros tradicionais, como pode ser visto na
Figura 2, abaixo.

Figura 2 – Distribuição espacial dos trabalhos científicos elaborados nas


áreas de gênero, mulher e sexualidades no Brasil (1991–2011).

Fonte: Banco de teses e dissertações da Capes e do IBICT.

103
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Este fenômeno da distribuição geográfica das dissertações e teses


relacionadas aos temas de gênero, mulher e sexualidade reflete, sem dúvi-
da, a descentralização da pós-graduação no Brasil, bem como o processo de
democratização do país, mas ele também se sustenta em elementos locais.
Monk (2011), ao analisar a distribuição espacial mundial dos grupos de pes-
quisa de gênero, chama a atenção para dois importantes elementos locais
que influenciam tal espacialidade. Um deles é a força da atuação de lide-
ranças locais, evidenciando a ação de pessoas que assumem papéis de es-
truturadoras de redes de relacionamentos entre pesquisadores, propician-
do um contexto favorável ao fortalecimento de pesquisas feministas. Outro
elemento local a ser considerado na distribuição espacial da produção
científica feminista consiste nas relações de poder em torno das tradições
acadêmicas que são configuradas de diferentes formas em cada localidade.
Assim, locais configurados a partir de relações de poder concentradas em
torno de tradições epistemológicas tendiam a ser mais resistentes ao de-
senvolvimento de vertentes feministas e queer.
No Brasil, os centros tradicionais de produção de saber geográ-
fico, como a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), não se constituíram como expressivos no campo
feminista e queer. O primeiro trabalho acadêmico na área de gênero, to-
davia, foi defendido na USP, em 1991. Trata-se de uma tese de doutorado,
de Sonia Alves Calió, intitulada “Relações de gênero na cidade: uma con-
tribuição do pensamento feminista à Geografia Urbana”, com orientação
de Maria Adélia Aparecida de Souza. É interessante observar que este
trabalho pioneiro não abriu caminho para novas abordagens, já que so-
mente uma década mais tarde foi defendida uma dissertação de mestrado
nesta área (ver Apêndice 2).
Na UFRJ, o tema tampouco ganhou destaque. O trabalho pionei-
ro, em 2000, foi uma dissertação de mestrado intitulada “Os territórios
da prostituição na cidade do Rio de Janeiro, 1841-1925”, de Jan Carlos da
Silva. O trabalho seguinte, intitulado “Território descontínuo e multi-
territorialidade na prostituição travesti através do sul do Brasil”, é uma
tese de doutorado que Marcio Jose Ornat defendeu vários anos depois,
em 2011. Em suma, observa-se que, tanto na USP quanto na UFRF, que são
universidades tradicionais e importantes referências na produção geo-
gráfica brasileira, os campos feminista e queer não prosperaram.
Foi em cursos de pós-graduação criados mais recentemente que
tais abordagens foram desenvolvidas, como mostra a Figura 2, com destaque

104
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

para a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), a Universidade


Federal de Goiás (UFG), a Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita,
em Presidente Prudente (UNESP), e a Universidade Federal de Rondônia
(UNIR). Assim, e como bem aponta Monk (2011), em meios acadêmicos
tradicionais a manutenção da hegemonia de determinadas formas de
concepção geográfica e as fortes relações de poder inibem a expansão
dos estudos de gênero e sexualidades. Por outro lado, em instituições
universitárias novas, onde o poder é mais difuso, programas de pós-
graduação nesta área têm maiores possibilidades de prosperar. Enfim, a
ideia de que a inovação surge nos grandes centros de produção científica
para então ser reproduzida na periferia acadêmica não se confirma no
caso das geografias feministas e queer. Em cada uma destas universidades
citadas há um grupo de pesquisa que sustenta o ritmo de produção, como o
Grupo de Estudos Territoriais (UEPG), o Laboratório de Estudos de Gênero,
Étnico-Raciais e Espacialidades (UFG), o Centro de Estudos de Geografia do
Trabalho (UNESP de Presidente Prudente) e o Grupo de Estudos e Pesquisas
sobre a Mulher e as Relações de Gênero (UNIR).
A subversão da ordem de inovação do discurso geográfico, com
a agregação de gênero, mulheres e sexualidades na geografia brasileira,
tem sido realizada pelos programas de pós-graduação criados mais re-
centemente. A característica periférica da produção científica sobre gê-
nero e sexualidades gera resistências à sua legitimação pela comunidade
científica, que valoriza a produção científica proveniente dos grandes
centros acadêmicos.
Apesar da expansão da pesquisa acadêmica na área em questão,
com o aumento de dissertações e teses, é possível dizer que, no Brasil, o
corpo não despertou interesse da Geografia. Neste sentido, a dissertação
de mestrado “A cidade inscrita no meu corpo: gênero e saúde em Presi-
dente Prudente − SP”, de Natália Cristina Alves, defendida em 2010, é pio-
neira no estudo da relação entre corpo, gênero e espaço. Sua abordagem
escalar da relação entre a cidade e o corpo constrói uma interessante
possibilidade de imaginação geográfica.
A publicação de artigos científicos constitui um outro instru-
mento importante de análise das transformações do padrão de produção
científica na geografia brasileira no que respeita às abordagens de gêne-
ro, mulher e sexualidades.
Neste particular, o Grupo de Estudos Territoriais da UEPG vem
organizando um banco de dados, que hoje armazena 6.904 artigos, coleta-

105
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

dos a partir de periódicos científicos brasileiros mantidos por instituições


de cunho geográfico, disponíveis na internet e classificados nos estratos
A1, A2, B1 e B2 de acordo com o Sistema Qualis da Capes. A classificação
dos artigos por palavras-chave permitiu organizar informações sobre a
produção científica brasileira por meio de termos de busca.10 Desse total
levantado, apenas 150 artigos abordam temas vinculados com mulheres,
gênero, sexualidades e raça/etnia, representando 2,17% do universo pes-
quisado.11 O Gráfico 2, abaixo, apresenta detalhes.

Gráfico 2 – Publicações geográficas, no Brasil,


com temas relativos a gênero (1996–2012).

Fonte: Sistema Qualis da Capes, periódicos


científicos relativos ao triênio 2010–2012.

Observa-se, assim, que a abordagem de gênero é crescente na


geografia brasileira. No universo de periódicos científicos pesquisados,
foi em 1998, na Revista do Departamento de Geografia da USP que apareceu a
primeira publicação sobre gênero, de autoria de Rosa Ester Rossini, com

10
As palavras de busca foram: “travesti”, “sexo”, “gay”, “lésbica”, “homossexualidade”,
“homoerotismo”, “sexualidade”, “LGBT”, “diversidade sexual”, “raça e etnia”, “queer”,
“prostituição”, “gênero”, “masculinidade”, “corpo” e “mulheres”.
11
Foram encontrados 101 artigos sobre gênero, sendo quatro sobre masculinidades, 97
sobre feminilidades e 35 sobre sexualidades. Houve ainda 14 artigos sobre raça/etnia que
não tinham relação com sexualidades e gênero, como pode ser visto no Apêndice 3.

106
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

o título “As geografias da modernidade – Geografia e Gênero – Mulher,


Trabalho e Família. O Exemplo da Área de Ribeirão Preto – SP”. As sexu-
alidades também têm sido abordadas recentemente pela produção cien-
tífica em forma de artigos. O Gráfico 3 ilustra a transformação temporal.

Gráfico 3 – Publicações geográficas, no Brasil, com


temas relativos a sexualidades (1990–2012).

Fonte: Sistema Qualis da Capes, periódicos


científicos relativos ao triênio 2010–2012.

O primeiro artigo científico a abordar as sexualidades foi “Ter-


ritórios da prostituição nos espaços públicos da área central do Rio de
Janeiro”, de Rogério Botelho de Matos e Miguel Angelo Campos Ribeiro,
publicado no Boletim Goiano de Geografia, em 1995. O tema ganhou maior
relevância em periódicos científicos brasileiros na primeira década do
século XXI.
A expansão dos temas de gênero e sexualidades deve-se em
grande parte à criação de um periódico específico, em 2010, a Revista Lati-
no-Americana de Geografia e Gênero, como mostra a Figura 3, abaixo.

107
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Figura 3 – A distribuição de artigos científicos sobre gênero


e sexualidades em periódicos científicos geográficos brasileiros.

Fonte: Sistema Qualis da Capes, periódicos científicos


relativos ao triênio 2010–2012.

A concentração de artigos na área de gênero e sexualidades nos


periódicos científicos Revista Latino-Americana de Geografia e Gênero, Terr@
Plural e Pegada corrobora os argumentos de Monk (2011) a respeito da im-
portância de lideranças locais no desenvolvimento do campo feminista.
Os dois primeiros periódicos são oriundos da Universidade Estadual de
Ponta Grossa, sede do Grupo de Estudos Territoriais, e o terceiro é prove-
niente da UNESP de Presidente Prudente, sede do Centro de Estudos do
Trabalho.
A produção sobre gênero e sexualidades, contudo, está concen-
trada em periódicos qualificados nos estratos B1 e B2, de acordo com o
Sistema Qualis da Capes, como se observa no Gráfico 4.

108
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Gráfico 4 – Distribuição de artigos científicos sobre


gênero e sexualidades de acordo com o Sistema Qualis da Capes.

Fonte: Sistema Qualis da Capes, triênio 2010–2012.

Tendo em vista que a abordagem de gênero não tem sido de-


senvolvida nos centros de maior prestígio acadêmico, os artigos sobre
gênero, mulheres e sexualidades praticamente não ganham acesso aos
periódicos científicos classificados nos estratos mais altos pelo Sistema
Qualis da Capes (A1, A2), o que evidencia uma desvalorização da temá-
tica pelos instrumentos legitimadores da academia. Além disso, apesar
do crescimento do número de artigos sobre a temática em foco, esses
trabalhos se concentram grandemente em um único periódico científico
específico, o que produz um isolamento da produção científica do grupo
de pesquisadores.
Todavia, e ainda que as sedes dos periódicos científicos que pu-
blicam a maioria dos artigos sobre gênero, mulheres e sexualidades este-
jam localizadas nas cidades-sede dos grupos de pesquisa que têm se dedi-
cado à temática, a distribuição espacial das instituições a que os autores
pertencem é mais pulverizada e, inclusive, internacional. Isso evidencia
que a temática já logrou alcançar um diálogo internacional, mesmo sem
ainda ter aberto diálogo com os centros hegemônicos no próprio territó-
rio nacional, o que nos dá a real dimensão da resistência do campo cientí-

109
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

fico brasileiro à temática. Assim, o comportamento de diálogo científico


rompe mais uma vez com o modelo hierárquico nacional de organização
da produção científica, constituindo uma relação entre a periferia acadê-
mica e o exterior, sem passar pelos centros dominantes nacionais.
A Figura 4, a seguir, apresenta a distribuição espacial da produ-
ção científica na área de gênero, mulheres e sexualidades em periódicos
brasileiros.12 Ou seja, ele aponta a procedência institucional dos autores
que neles publicam. É possível afirmar que nos locais que concentram
maior número de instituições de nível superior, como é o caso de Rio de
Janeiro e São Paulo, a produção é pulverizada. Ela vem de pesquisadores
isolados, e essa característica de isolamento dificulta o apoio cotidiano
na prática de pesquisa. Nos locais onde se formam grupos de pesquisa, é
maior a potencialidade de a ciência geográfica se mostrar permeável aos
temas feministas e queer. E nos locais onde há um número menor de ins-
tituições, a dinâmica de produção é mais concentrada espacialmente, e
intensiva. Isso tem potencializado o caráter colaborativo que se faz pelas
alianças entre pesquisadores. Essa forma de organização espacial poten-
cializa as discussões teóricas e metodológicas, ao mesmo tempo em que a
proximidade espacial fortalece os pesquisadores para lutar pela abertura
do campo na geografia brasileira.

12
Para a elaboração desta figura, a escala de intensidade de publicação de artigos foi
estabelecida a partir de intervalos naturais dos dados. Destaque-se que, como as cidades
do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador concentram várias instituições a que diferentes
autores pertencem, o tamanho das esferas é resultado da somatória dos artigos publicados
em diferentes instituições localizadas nestas cidades.

110
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Figura 4 – Distribuição espacial da produção científica


sobre gênero e sexualidades no Brasil, segundo a origem da autoria.

111
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

O diálogo internacional é mais forte com os países europeus,


notadamente com pesquisadores de instituições espanholas. A configu-
ração espacial da procedência institucional dos autores na área de gêne-
ro, mulheres e sexualidades evidencia que, nos locais onde se constituí-
ram alianças, redes e grupos de pesquisa, a produção científica frutificou,
a ponto de tensionar as fronteiras teóricas e metodológicas da geografia
brasileira.
O tema corpo apareceu pela primeira vez em um periódico
científico nacional em 2008, com o artigo “A cidade dos corpos trans-
gressores da heteronormatividade”, de Joseli Maria Silva, publicado na
revista GeoUERJ. Em 2010, esta mesma autora publicou, na Revista Espaço
e Cultura, o texto “Geografias feministas, sexualidades e corporalidades:
desafios às práticas investigativas da Ciência Geográfica”. Além destes,
mais dois artigos foram publicados, em 2010, na Revista Latino-Americana
de Geografia e Gênero (ver Apêndice 3).
Assim, em que pese o desenvolvimento das abordagens sobre
mulheres, gênero e sexualidades, o corpo e sua relação com o espaço é
ainda um vasto campo a ser explorado pela geografia brasileira, o que
deve trazer inúmeros desafios à nossa ainda restrita imaginação geo-
gráfica. Afinal, não se pode negar que o corpo ocupa espaço e é espaço,
razão pela qual ele é passível de ser abordado na Geografia. Todavia, é
necessário, para tanto, que sejam levantados os questionamentos e que a
comunidade geográfica brasileira construa os caminhos teóricos e meto-
dológicos que permitam compreender o corpo e sua geograficidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente texto explorou as abordagens geográficas sobre o


corpo, apontando a emergência desse campo investigativo juntamente
com as geografias feministas e queer. Evidenciou, também, que a geo-
grafia brasileira, embora tenha apresentado uma importante expansão
do campo de estudo sobre gênero, mulheres e sexualidades, ainda não
explorou o corpo como um aspecto geográfico. A relação entre corpo e
Geografia constitui um caminho produtivo que poderá contribuir para
a compreensão da relação entre o espaço e o ser humano. Certamente,
o corpo não é algo que pertence ao ser humano, mas é o próprio ser,

112
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

que ganha existência social por meio da experiência corpórea. O corpo é


também lugar onde um ser humano desenvolve a noção de limite com os
outros seres, e a forma como esse corpo se apresenta e ao mesmo tempo
é percebido pelos outros varia de acordo com o espaço e o tempo que o
compõem. Nesse sentido, a Geografia tem um longo e instigante caminho
científico a ser percorrido. Este texto, então, constitui também uma pro-
vocação à comunidade geográfica, no sentido de trilhar novas veredas.
Talvez elas sejam trabalhosas e desgastantes, mas são também potencial-
mente transformadoras de nossas imaginações geográficas.

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APÊNDICES

Apêndice 1 – Relação de periódicos científicos investigados por meio


do Sistema Qualis da Capes, triênio 2010-2012.

Nome das revistas pesquisadas Classificação


GEOUSP A1
Revista Brasileira de Geomorfologia (UGB) A1
Cidades (Presidente Prudente) A2
Confins (Online) A2
Geografia (UNESP de Rio Claro) A2
GEOgraphia (UFF) (Online) A2
Geosul (UFSC) (Online) A2
Mercator (UFC) (Online) A2
Revista da ANPEGE (Online) A2
Sociedade & Natureza (UFU) A2
Terra Livre (AGB) A2
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (ANPUR) A2
Agrária (USP) (Online) B1
Boletim de Geografia (UEM) (Online) B1
Boletim Goiano de Geografia (UFG) B1

115
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Nome das revistas pesquisadas Classificação


Campo-Território (UFU) B1
Revista Brasileira de Climatologia B1
Cadernos PROLAM/USP B1
Espaço e Cultura (UERJ) B1
Formação (UNESP de Presidente Prudente) B1
GeoUERJ (2007) B1
RA’E GA (UFPR) B1
Revista do Departamento de Geografia (USP) B1
Estudos Avançados (USP) (Online) B1
Hygeia: Revista Brasileira de Geografia Médica e da Saúde (UFU) B1
Ateliê Geográfico (UFG) B2
Espaço e Geografia (UnB) B2
Geografia (UEL) B2
Geografias (UFMG) B2
Geotextos (Online) B2
Pegada (UNESP) B2
Revista de Geografia (Recife) B2
Revista Latino-Americana de Geografia e Gênero B2
Revista NERA (UNESP) B2
Terra Plural (UEPG) B2

Apêndice 2 – Relação de teses e dissertações brasileiras no campo das sexualidades,


gênero, raça e etnia, período 1987-2011.

Ano e nível Autoria Título Universidade


Relações de gênero na
1991 - cidade: uma contribuição
Sonia Alves Calió USP
Doutorado do pensamento feminista
à Geografia Urbana

O trabalho da mulher nos


assentamentos rurais: o
1995 - exemplo das glebas XV
Lucimar de Araújo UNESP
Mestrado de Novembro, Rosana e
Areia Branca no Pontal do
Paranapanema

116
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Ano e nível Autoria Título Universidade


Os territórios da prosti-
2000 -
Jan Carlos da Silva tuição na cidade do Rio de UFRJ
Mestrado
Janeiro, 1841-1925
Mercado de trabalho
Denise Leonardo industrial e a questão do
2000 -
Custodio Machado ‘gênero’: uma análise do UNESP
Mestrado
de Oliveira trabalho feminino em in-
dústrias de Rio Claro - SP
As mulheres da cidade
d’oxum: relações de
2001 - Antônia dos Santos gênero, raça e classe e
UFBA
Mestrado Garcia organização espacial do
movimento de bairro em
Salvador - BA
A participação da mulher,
o crescimento das
2001 - Rosalina Alves da
religiões/crenças e a USP
Mestrado Silva
produção do espaço em
São José do Rio Preto
A condição homossexual e
2002 - Benhur Pinós da
a emergência de UFRGS
Mestrado Costa
territorializações
‘Passos perdidos’: um
2002 - Patrícia dos Santos estudo sobre a
UnB
Mestrado Dias prostituição feminina na
cidade de Planaltina - DF
A questão de gênero nos
2003 - Terezinha Brumatti
sindicatos de Presidente UNESP
Mestrado Carvalhal
Prudente - SP
Espaços femininos no
2004 - Leilane de Moura
bairro das Mercês/ UFPR
Mestrado Paegle
Curitiba - PR
O espaço que ousa dizer
2005 - Alemar Moreira de
seu nome: territórios UFG
Mestrado Sousa
GLBTS de Goiânia
Do poder às margens e
das margens ao poder: um
olhar geográfico sobre os
2005 - Luciana Rachel
territórios da prostitui- UFPE
Mestrado Coutinho
ção feminina na Avenida
Conselheiro Aguiar, Boa
Viagem - Recife - PE

117
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Ano e nível Autoria Título Universidade


O lugar das ocupantes do
2006 - Vanessa Almeida
mercado de trabalho de UFSM
Mestrado do Porto
Santa Maria - RS em 2004
A participação da mulher
2006 - Renata Cristiane
na luta pela terra: uma UNESP
Mestrado Valenciano
questão de classe e gênero
Relações de gênero e meio
ambiente no espaço urba-
2007 - Maria Luiza Oliveira no de Presidente Prudente
USP
Doutorado de Francisco - SP: o trabalho da mulher
e da criança nos resíduos
sólidos urbanos
Mundo das mulheres no
2007 - Aline Parente
mercado de trabalho em UFC
Mestrado Oliveira
Fortaleza - CE

A complexidade espacial
da exploração sexual
2008 - comercial infanto-juvenil
Almir Nabozny UEPG
Mestrado feminina: entre táticas e
estratégias de
in(visibilidade)

Território da prostituição
2008 -
Marcio Jose Ornat e instituição do ser traves- UEPG
Mestrado
ti em Ponta Grossa - PR
De casa para outras casas:
trajetórias socioespa-
2008 - Renata Batista ciais de trabalhadoras
UFG
Mestrado Lopes domésticas residentes em
Aparecida de Goiânia e
trabalhadoras em Goiânia
Por uma geografia do coti-
2008 - Benhur Pinós da
diano: território, cultura e UFRGS
Doutorado Costa
homoerotismo na cidade
2008 - Telma Fortes Geografia e gênero: um es-
UNIR
Mestrado Medeiros tudo no contexto escolar
O papel da mulher na
organização alternativa
2009 - Valkíria Trindade
do trabalho: um estudo no UEM
Mestrado de Almeida Santos
município de
Guaporema - PR

118
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Ano e nível Autoria Título Universidade


O espaço como compo-
nente da vulnerabilidade
aos atos infracionais
2009 - Alides Baptista
desenvolvidos por adoles- UEPG
Mestrado Chimin Junior
centes do sexo masculino
em conflito com a lei em
Ponta Grossa - PR
Territórios invisíveis:
2009 - Jean Moreira territorialidades de
UFAM
Mestrado Alcântara garotos de programa na
área central de Manaus
A luta pela terra e a
construção do território
2009 - Alecsandra Pereira
remanescente de quilom- UFPB
Mestrado da Costa Moreira
bo de caiana dos crioulos,
Alagoa Grande - PB
Políticas públicas, espaço
e gênero: um estudo de
2009 - Sandra Regina caso sobre autonomia
UNIR
Mestrado Nunes dos Santos financeira das mulheres
do bairro Mariana em
Porto Velho
2009 - Marxleme Bezerra Relações de poder e gêne-
UNIR
Mestrado Vieira ro na gestão educacional
‘Malucos da quebrada’:
territórios urbanos na
2010 - complexidade espacial
Rodrigo Rossi UEPG
Mestrado cotidiana dos adolescen-
tes em conflito com a lei
em Ponta Grossa - PR

Princesas do sertão: o
2010 - Matteus Freitas de universo trans entre o
UFBA
Mestrado Oliveira espelho e as ruas de Feira
de Santana - BA
Do Salto Luiz XV à Bota
2010 - Kelly Cristina da Bico de Ferro: o trabalho
UFG
Mestrado Silva feminino na empresa
Fosfertil de Catalão - GO
2010 - Marise Vicente de Sob o manto azul de Nossa
UFG
Doutorado Paula Senhora do Rosário

119
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Ano e nível Autoria Título Universidade


A cidade inscrita no meu
2010 - Natália Cristina
corpo: gênero e saúde em UNESP
Mestrado Alves
Presidente Prudente - SP
Há homens que têm pa-
troa, há homens que têm
2010 - mulher, e há mulheres
Gabrielle Pellúcio UNIR
Mestrado que escolhem o que que-
rem ser: perspectiva de
gênero na Geografia
Articulando os espaços
público e privado: trans-
formações das espacia-
2011 - lidades vividas por mu-
Juliana Przybysz UEPG
Mestrado lheres responsáveis pelo
domicílio após a dissolu-
ção conjugal na cidade de
Ponta Grossa - PR
O espaço carcerário e a re-
estruturação das relações
2011 - Karina Eugenia socioespaciais cotidianas
UEPG
Mestrado Fioravante de mulheres infratoras na
cidade de Ponta Grossa
- PR
Geografia e gênero:
2011 - Márcia Maria de mulheres na política do
UFG
Mestrado Paula Lemes município de Catalão (GO),
entre 1970 e 2011
Territorialidade quilom-
Jussara Manuela bola: um olhar sobre o
2011 -
Santos de Santana papel feminino em Caiana UFPB
Mestrado
dos Crioulos,
Alagoa Grande - PB
As mulheres de Roça
2011 - Cristina Luiza Cze- Velha - Araucária - PR: as
UFPR
Doutorado rwonka Surek do lugar e as que
chegaram
Território descontínuo
2011 - e multiterritorialidade
Marcio Jose Ornat UFRJ
Doutorado na prostituição travesti
através do sul do Brasil
2011 - Flávio Bezerra da Turismo e lazer sexual na
USP
Mestrado Silva cidade de São Paulo

120
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Apêndice 3 – Relação de artigos em periódicos científicos A1, A2, B1 e B2 investigados


por meio do Sistema Qualis da Capes, período 1995-2012.

sexualidades

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Rogério Botelho Territórios da pros-
IBGE/ Boletim
de Matos; Miguel tituição nos espaços
1995 Departamento Goiano de
Ângelo Campos públicos da área central
de Geografia Geografia
Ribeiro do Rio de Janeiro
Universidade de Espacios disidentes en
Xosé M. Santos
2003 Santiago de los procesos de Pegada
Solla
Compostela ordenación territorial

Constrangimentos
espaciais: a concepção
Universidade
legal de infância e as tá-
2007 Almir Nabozny Estadual de Terr@ Plural
ticas desconstrucionis-
Ponta Grossa
tas desenvolvidas pelas
profissionais do sexo

Universidade A cidade dos corpos


2008 Joseli Maria Silva Estadual de Ponta transgressores da GeoUERJ
Grossa heteronormatividade

Universidade Território e prosti-


Marcio Jose
2008 Estadual de tuição travesti: uma Terr@ Plural
Ornat
Ponta Grossa proposta de discussão
Entre territórios e
Universidade redes geográficas:
Marcio Jose
2009 Estadual de considerações sobre a Terr@ Plural
Ornat
Ponta Grossa prostituição travesti no
Brasil meridional
Espaço social,
Universidade cultura e território: o
Benhur Pinós da Espaço e
2010 Federal de processo de
Costa Cultura
Santa Maria microterritorialização
homoerótica
Geografias feministas,
Universidade sexualidades e corpo-
Espaço e
2010 Joseli Maria Silva Estadual de ralidades: desafios às
Cultura
Ponta Grossa práticas investigativas
da Ciência Geográfica

121
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Do território instituído
Universidade ao território instituinte
Marcio Jose Espaço e
2010 Estadual de do ser travesti: algumas
Ornat Cultura
Ponta Grossa reflexões teóricas e
metodológicas

Institute of Tolerância das Revista


Geography, School performances de raça Latino-
2010 Anthony Furlong of Geosciences e classe na Zona Sul Americana
University of entre homens queers de Geografia
Edinburgh do Rio de Janeiro e Gênero

Geografias das
interações culturais no
Revista
espaço urbano:
Universidade Latino-
Benhur Pinós da o caso das
2010 Federal de Santa Americana
Costa territorializações
Maria de Geografia
das relações
e Gênero
homoeróticas e/ou
homoafetivas

Revista
Universidade Geografias das Latino-
Benhur Pinós da
2010 Federal de Santa representações sobre o Americana
Costa
Maria homoerotismo de Geografia
e Gênero

Cartografias dos corpos Revista


Secretaria de
estranhos: narrativas Latino-
Eder Rodrigues Estado da
2010 ficcionais das Americana
Proença Educação de
homossexualidades no de Geografia
São Paulo
cotidiano escolar e Gênero

Geografias pós- Revista


Universidade coloniais: imigração Latino-
2010 Joseli Maria Silva Estadual de Ponta ilegal e as brasileiras Americana
Grossa na atividade comercial de Geografia
sexual na Espanha e Gênero

Revista
Universidade Descortinando a cidade: Latino-
Juliana Frota da
2010 Federal do Ceará a ‘montagem’ da Americana
Justa Coelho
Fortaleza ‘babado’ de Geografia
e Gênero

122
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Demandas
habitacionais de
famílias monoparentais
com responsabilidade Revista
Juliana Thaisa Universidade feminina e as Latino-
2010 Rodrigues Estadual de Ponta políticas públicas Americana
Pacheco Grossa municipais de Geografia
desenvolvidas pela e Gênero
PROLAR entre 2004 e
2007 em
Ponta Grossa - PR
Revista
‘Não te prives’ - Aeminiumqueer, a
Latino-
Paulo Jorge Grupo de Defesa cidade armário:
2010 Americana
Vieira Dos Direitos quotidianos lésbicos e
de Geografia
Sexuais gays em espaço urbano
e Gênero
Revista
Desejos, conflitos e pre-
Universidade Latino-
Paulo Reis dos conceitos na constitui-
2010 Estadual de Americana
Santos ção de uma travesti no
Campinas de Geografia
mundo da prostituição
e Gênero
Geografia da diver- Revista
Escola Nacional
Rafael Chaves sidade: breve análise Latino-
de Ciências
2010 Vasconcelos das territorialidades Americana
Estatísticas -
Barreto homossexuais no Rio de de Geografia
ENCE/IBGE
Janeiro e Gênero

Revista
Atitude dos educadores
Universidade do Latino-
Rita de Cássia frente à expressão da
2010 Estado de Minas Americana
Costa Teixeira sexualidade da pessoa
Gerais de Geografia
com deficiência mental
e Gênero
A rua e o medo: algu- Revista
Universidade mas considerações so- Latino-
Thiago Barcelos
2011 Federal do Rio de bre a violência sofrida Americana
Soliva
Janeiro por jovens homossexu- de Geografia
ais em espaços públicos e Gênero
Territórios sexuais: Revista
Universidade análise de sociabilida- Latino-
2011 Bruno Puccinelli Federal de São des homossexuais no Americana
Paulo Shopping Gay de de Geografia
São Paulo e Gênero

123
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Revista
Processos rituais e
Guilherme Universidade Latino-
homossexualidade:
2011 Rodrigues Federal do Mato Americana
cultura, territórios e
Passamani Grosso de Geografia
representações
e Gênero
Revista
Sexualidade juvenil:
Universidade Latino-
Helaine Pereira vivências nas ocupa-
2011 Católica de Americana
Souza ções do Movimento dos
Salvador de Geografia
Sem Teto da Bahia
e Gênero
Miguel Angelo Revista
Dinâmica e espacialida-
Ribeiro; Rafael Universidade Latino-
de das saunas de boys
2011 da Silva Oliveira; Estadual do Rio de Americana
na cidade do Rio de
Gessé da Silva Janeiro de Geografia
Janeiro
Maia e Gênero

Lésbicas = ‘afeto’ / gays Revista


= ‘sexo’?: discutindo Latino-
Ramon Pereira Universidade
2011 práticas homoconjugais Americana
dos Reis Federal do Pará
no seriado Queer as de Geografia
Folk e Gênero

Liberdade, diversidade
Carlos Eduardo
Universidade e excessos sob as cores Boletim
Santos Maia;
2012 Federal de Juiz de do arco-íris: reflexões Goiano de
Raphaela
Fora sobre a rainbow fest Geografia
Granato Dutra
juizforana
Pequenas cidades e
diversidades culturais
Revista
no interior do Estado
Universidade Latino-
Benhur Pinós da do Rio Grande do Sul:
2012 Federal de Santa Americana
Costa o caso das
Maria de Geografia
microterritorializações
e Gênero
homoeróticas em Santo
Ângelo e Cruz Alta - RS
Pequenas cidades e
diversidades cultu-
rais no interior do Revista
Universidade Estado do Rio Grande Latino-
Benhur Pinós da
2012 Federal de Santa do Sul: o caso das Americana
Costa
Maria microterritorializações de Geografia
homoeróticas de Santa e Gênero
Maria, Bagé, Alegrete,
Uruguaiana e Itaqui

124
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Revista
Acorda Alice, aluga
Latino-
Helder Thiago Universidade um filme pornô: uma
2012 Americana
Cordeiro Maia Federal da Bahia leitura dos banheiros
de Geografia
masculinos da UFBA
e Gênero
Espaços interditos e a Revista
Universidade constituição das identi- Latino-
Marcio Jose
2012 Estadual de Ponta dades travestis através Americana
Ornat
Grossa da prostituição no sul de Geografia
do Brasil e Gênero
Martin Ignacio Los espacios urbanos Revista
Torres de sociabilización de Latino-
Universidade
2012 Rodríguez; Raul los transexuales en la Americana
Estadual Paulista
Borges ciudad de Santiago de de Geografia
Guimarães Chile e Gênero
As microterritorialida-
Universidade des nas cidades: refle-
Benhur Pinós da
2012 Federal de Santa xões sobre as convivên- Terr@ Plural
Costa
Maria cias homoafetivas e/ou
homoeróticas
Universidade Festividade e territoria-
Carlos Eduardo
2012 Federal de Juiz de lidades na parada LGBT Terr@ Plural
Santos Maia
Fora goianiense

raça e etnia

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Universidade
Canaã: o horizonte Estudos
1991 José Paulo Paes Estadual de
racial Avançados
Campinas
Instituto
Geográfico da Estudos
1991 Gerd Kohlhepp Espaço e etnia
Universidade de Avançados
Tübingen
Lilia Moritz Universidade de Espetáculo da Estudos
1994
Schwarcz São Paulo miscigenação Avançados
Fundação
A participação dos
André do Amaral Armando Estudos
1995 negros escravos na
de Toral Álvares Avançados
Guerra do Paraguai
Penteado

125
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Democracia
racial brasileira,
George Reid University of Estudos
1997 1900-1990: um
Andrews Pittsburgh Avançados
contraponto
americano

O urbanismo e o seu Revista


José Tavares de Universidade de outro: raça, cultura Brasileira de
1999 Lira São Paulo e cidade no Brasil Estudos Urbanos
(1920-1945) e Regionais

Comunidade
Gilmar Alves de Universidade Kalunga: trabalho e
2003 Avelar e Marise GEOgraphia
Vicente de Paula Federal de Goiás cultura em terra de
negro

Imaginário, espaço
Maurício Universidade de
2003 e discriminação GEOUSP
Waldman São Paulo
racial

Culturas da
juventude e a
mediação da Revista
University of Brasileira de
2008 Edgar Pieterse exclusão / inclusão Estudos Urbanos
Cape Town
racial e urbana no e Regionais
Brasil e na África
do Sul
Universidade
Rosemberg Leitura sobre o
de São Paulo /
Ferracini e negro na cidade de Boletim Goiano
2010 Universidade
Carlos Eduardo Goiás a partir da de Geografia
Santos Maia Federal de Juiz
capoeira Angola
de Fora
Dos territórios de
reforma agrária à
Karoline dos Universidade territorialização
Santos Monteiro
2010 Federal da quilombola: o caso Pegada
e Maria Franco
Garcia Paraíba da Comunidade
Negra de Gurugi,
Paraíba
Raça, etnia e
Universidade negritude: aportes
Patrício Pereira Ateliê
2010 Federal de Minas teórico-conceituais
Alves de Sousa Geográfico
Gerais para debates
etnogeográficos

126
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional

Trajetórias
socioespaciais
Talita Cabral dos militantes
Machado e Universidade Ateliê
2012 do Movimento
Alecsandro J. P. Federal de Goiás Geográfico
Ratts Negro na região
metropolitana de
Goiania

Cultura, trabalho
Maria do
Socorro Gomes Universidade e alimentação
de Araújo e Tecnológica em comunidades Ateliê
2012 Domingos Leite Federal do negras e Geográfico
Lima Filho Paraná quilombolas do
Paraná

gênero

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional

As geografias da
modernidade:
Revista do
geografia e gênero,
Rosa Ester Universidade de Departamento
1998 mulher, trabalho e
Rossini São Paulo de Geografia
família. O exemplo
(USP)
da área de Ribeirão
Preto - SP

Setor de
O caminho
Relações
2000 Dulcinéia Pavan feminino para a Revista NERA
Internacionais
reforma agrária
do MST

Universidade Gênero e jornada de


Elisabete Josefa Estadual Paulista trabalho em
2001 Pegada
de Melo de Presidente assentamentos
Prudente rurais

Terezinha A questão de
Universidade
2001 Brumatti gênero sob a Pegada
Estadual Paulista
Carvalhal perspectiva sindical

127
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional

Mercado de traba-
Denise Leonardo
lho industrial e a
Custodio
Universidade questão do “gêne- Geografia
Machado de
2002 Estadual Paulista ro”: uma análise do (UNESP de Rio
Oliveira; Silvia
de Rio Claro trabalho feminino Claro)
Selingardi-
em indústrias de
Sampaio
Rio Claro, SP

Nas atividades eco-


nômicas a moder-
nidade tecnológica
Rosa Ester Universidade de exclui homens e
2002 GEOUSP
Rossini São Paulo mulheres. Incorpo-
ra mais a mulher na
cidade e menos no
campo

O gênero como
Universidade
perspectiva de
María Franco Estadual Paulista
2002 análise na discussão Pegada
García de Presidente
sobre as
Prudente
localizações

A organização das
mulheres
Universidade
assentadas no
Renata Cristiane Estadual Paulista
2002 Pontal do Pegada
Valenciano de Presidente
Paranapanema:
Prudente
o caso da
OMAQUESP

Renata O papel da mulher


Universidade
Cristiane na luta pela terra:
Estadual Paulista
2002 Valenciano; uma questão de Pegada
de Presidente
Antonio Thomaz gênero e/ou
Prudente
Júnior classe?

Universidade A inserção da
Terezinha
Estadual Paulista mulher no mercado
2002 Brumatti Pegada
de Presidente de trabalho e a
Carvalhal
Prudente questão de gênero

128
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional

Gênero e trabalho:
Universidade a participação da
Terezinha
Estadual Paulista mulher nos
2002 Brumatti Pegada
de Presidente sindicatos de
Carvalhal
Prudente Presidente
Prudente - SP

El mercado laboral
Irma Escamilla Universidad
en México desde la
Herrera; Nacional
2003 perspectiva de Pegada
Clemencia Autónoma de
geografía del
Santos Cerquera México (UNAM)
género

Universidade
Gênero e geografia
Maria Franco Estadual Paulista
2003 no espaço do Pegada
García de Presidente
vir-a-ser
Prudente

Impactos da
Pontifícia reorganização
Renata Universidade de espacial dos
2004 Revista NERA
Gonçalves São Paulo novos modelos de
assentamentos nas
relações de gênero

Trabalho produ-
tivo a domicílio e
trabalho reprodu-
tivo doméstico em
Marechal Cândido
Universidade
Terezinha Rondon (PR):
Estadual Paulista
2005 Brumatti horizontalização do Pegada
de Presidente
Carvalhal capital e as novas
Prudente
expressões da dinâ-
mica territorial do
trabalho precari-
zado feminino no
século XXI

129
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional

História de mulhe-
res: breve comen-
Josoaldo Lima
tário sobre o terri-
Rêgo; Universidade de
2006 tório e a identidade Agrária
Maristela de São Paulo
das quebradeiras
Paula Andrade
de coco babaçu no
Maranhão

Revista do
Desqualificação
Lúcia E. Tohoku Departamento
2006 profissional: nikkeis
Yamamoto University de Geografia
brasileiras no Japão
(USP)

Amor, paixão
Universidade e honra como
Joseli Maria
2007 Estadual de elementos da Espaço e Cultura
Silva
Ponta Grossa produção do espaço
cotidiano feminino
A condição
feminina na agri-
Universidade de Revista Agrária
2007 Laura De Biase cultura e a viabili-
São Paulo
dade da
agroecologia
O modo de
Universidade produção capitalis- Revista
2007 Silvia Correia
Estadual Paulista ta: o exemplo do Formação
trabalho feminino

O trabalho domi-
Universidade ciliar feminino
Terezinha
Estadual Paulista como estratégia de
2007 Brumatti Pegada
de Presidente sobrevivência e/
Carvalhal
Prudente ou imposição do
capital?

María Ángeles Transportes y


Díaz Muñoz; Universidad de movilidad: ¿necesi-
2007 Terr@ Plural
Francisco José Alcalá dades diferenciales
Jiménez Gigante según género?

130
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Gênero e
Universidade
Joseli Maria sexualidade na
2007 Estadual de Geosul
Silva análise do espaço
Ponta Grossa
urbano
Lorena Raça e gênero sob
Francisco de Universidade uma perspectiva Boletim Goiano
2008
Souza; Alecsandro Federal de Goiás geográfica: espaço e de Geografia
J. P. Ratts representação
Espaço urbano:
do acesso pelos
Universidade
direitos formais à
2008 Almir Nabozny Estadual de RA’E GA
coerção velada da
Ponta Grossa
participação
política feminina

Sônia de Souza A produção de


Mendonça Universidade queijos no sertão
2008 Menezes; Maria Federal de sergipano troca de RA’ E GA
Geralda de Sergipe mãos: uma questão
Almeida de gênero

Redefinições do
mercado de tra-
balho na perspec-
Universidade tiva da dinâmica
Estadual Paulista geográfica da Revista
2008 Silvia Correia
de Presidente desterritorialização Formação
Prudente e reterritorialização
das trabalhadoras
domésticas de
Presidente Prudente

Universidade O trabalho domici-


Terezinha
Estadual Paulista liar feminino como Revista
2008 Brumatti
de Presidente forma da horizon- Formação
Carvalhal
Prudente talização do capital

Anita Brumer; Universidade Gênero e reprodu-


2008 Gabriele dos Federal do Rio ção social na agri- Revista NERA
Anjos Grande do Sul cultura familiar

131
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional

Uma ontologia dos


movimentos sociais
Maria Orlanda Universidade
2008 de massas e o pro- Pegada
Pinassi Estadual Paulista
tagonismo atual das
mulheres

Universidade Sobre espaço e gê-


Marcio Jose
2008 Estadual de nero, sexualidade e Terr@ Plural
Ornat
Ponta Grossa geografia feminista
Democracia, género
Universidad
María y participación
Nacional del
Magdalena política en el
2008 Centro de la Terr@ Plural
López Pons; territorio argentino
Provincia de
Diana Lan a principios del
Buenos Aires
siglo XXI
Lorena
Espaço, cultura e
Franciso de Souza;
Universidade poder: gênero e Ateliê
2009 Alecsandro José
Federal de Goiás raça em análise na Geográfico
Prudêncio Ratts
Geografia

Joseli Maria
Geografia e gênero
Silva; Alides
Universidade no Brasil: uma
Baptista Chimin Ateliê
2009 Estadual de análise da
Junior; Emilson Geográfico
Ponta Grossa feminização do
Peracetta Filho;
campo científico
Rodrigo Rossi
Maria Carla Glass ceiling and
Universidade de Cadernos
2009 Fontana Gaspar the Latin American
São Paulo PROLAM/USP
Coronel law firms
Geografia e gênero:
Almir Nabozny; Universidade da crítica à
2009 Marcio Jose Estadual de racionalidade à Mercator
Ornat Ponta Grossa aproximação
pós-estruturalista

Desafios à análise
Almir Nabozny;
Universidade do espaço urbano:
Joseli Maria
2009 Estadual de interpretando Terra Livre
Silva; Marcio
Ponta Grossa textos marginais do
Jose Ornat
discurso geográfico

132
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional

Articulando os
espaços privado e
Universidade
público: gênero e
2009 Juliana Przybysz Estadual de Terr@ Plural
famílias
Ponta Grossa
monoparentais
femininas

Espaço, atos
Alides Baptista Revista Lati-
Universidade infracionais e a
Chimin Junior; no-Americana
2010 Estadual de criação social dos
Joseli Maria de Geografia e
Ponta Grossa adolescentes em
Silva Gênero
conflito com a lei

A afirmação do
trabalho feminino
Luana Nunes
na trajetória
Martins; Ana
Universidade histórico-cultural Boletim Goiano
2010 Paula Fernandes
Federal de Goiás de Vila Boa de de Geografia
Lopes de Souza;
Goiás: uma perspec-
Gilda Guimarães
tiva para o planeja-
mento turístico

Empregadas
domésticas e
relações de traba-
Universidade Revista
2010 Silvia Correia lho nos loteamen-
Estadual Paulista Formação
tos fechados de
Presidente
Prudente - SP

La territorialización
de las mujeres
Universidad mapuches en la Revista Lati-
Daniela Franco;
Nacional de la ciudad de Trelew: no-Americana
2010 Julieta
Patagonia San sus tejidos como de Geografia e
Sourrouille
Juan Bosco forma de resisten- Gênero
cia que se imprime
al habitar la ciudad

133
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Centro de
Investigaciones El circuito espacial Revista
Geográficas de la violencia Latino-
2010 Diana Lan Facultad de domestica: análisis Americana de
Ciencias de casos en Geografia e
Humanas - Argentina Gênero
UNCPBA
Revista
A Geografia Cultural
Universidade Latino-
e as representa-
2010 Emerli Schlögl Federal do Americana de
ções simbólicas do
Paraná Geografia e
sagrado feminino
Gênero
Relações de gênero
Revista
e produção de
Faculdade Nobre Latino-
Jucélia Bispo dos cerâmica na Comu-
2010 de Feira de Americana de
Santos nidade Quilombola
Santana Geografia e
da Olaria, em Irará
Gênero
- Bahia
La maternidad ado- Revista
lescente: un caso de Latino-
UNICEN -
2010 Liliana Coronel exclusión socioter- Americana de
Argentina
ritorial en Lomas de Geografia e
Zamora Gênero
O lugar do gênero
Revista
na produção de
Latino-
Universidade de gentrificação e de
2010 Luís Mendes Americana de
Lisboa novas procuras re-
Geografia e
sidenciais no centro
Gênero
histórico de Lisboa
Rumo à construção Revista
de uma agenda de Latino-
Margarida Universidade de
2010 investigação Americana de
Queirós Lisboa
‘género e ambiente’ Geografia e
em Portugal Gênero
La violencia de género
Universidad en el territorio Revista
María Nacional del latinoamericano, a Latino-
2010 Magdalena Centro de la través de la ocur- Americana de
López Pons Provincia de rencia creciente de Geografia e
Buenos Aires los feminicidios en Gênero
la región

134
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Revista
Natália Cristina Universidade
Escala geográfica, Latino-
Alves; Raul Estadual Paulista
2010 câncer de mama e Americana de
Borges Júlio de
corpo feminino Geografia e
Guimarães Mesquita
Gênero
Roberta Análise da parti-
Revista
Carnelos cipação política
Universidade Latino-
Resende; María feminina nas as-
2010 Federal do Americana de
Alejandra sembleias legislati-
Paraná Geografia e
Nicolás; Larissa vas da região sul do
Gênero
Rosevics Brasil (1998-2006)

Geografia e gênero:
recuperando a
memória de uma
Revista
pesquisa sobre a
Latino-
Rosa Ester Universidade de força de trabalho
2010 Americana de
Rossini São Paulo na agricultura
Geografia e
canavieira na ma-
Gênero
croárea de Ribeirão
Preto (SP - Brasil)
1977-2008
Um olhar sobre as
Valkiria potencialidades Revista
Trindade Universidade produtivas locais Latino-
2010 Almeida; Márcio Estadual de para o desenvolvi- Americana de
Mendes Rocha Maringá mento: as artesãs Geografia e
do município de Gênero
Guaporema
Revista
Universidade do Espaço e educação Latino-
2010 Zeny Rosendahl Estado do Rio de feminina na Americana de
Janeiro Geografia Cultural Geografia e
Gênero
Criminalidade
feminina, perfil e
Karina Eugenia processo de
Universidade
Fioravante; re-inserção Revista da
2011 Estadual de
Joseli Maria socioespacial de ANPEGE
Ponta Grossa
Silva egressas do Sistema
Penitenciário de
Ponta Grossa - PR

135
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional

Mulheres
criminosas: uma
Karina Eugenia discussão sobre o
Universidade
Fioravante; perfil socioespa- Ateliê
2011 Estadual de
Joseli Maria cial de mulheres Geográfico
Ponta Grossa
Silva infratoras na cidade
de Ponta Grossa,
Paraná

Hygeia: Revista
A Saúde Pública e as
Secretaria Brasileira de
Aiane Mara questões de gênero:
Municipal de Geografia
2011 Silva; Maria reflexões para o
Saúde de Santa Médica e da
Isabel Silva enfrentamento da
Juliana Saúde
violência doméstica

Uma análise das


relações de gênero
Universidade
Emmy Lyra e classe: o papel
2011 Federal da Pegada
Duarte diferenciado do sin-
Paraíba
dicalismo rural em
Alagoa Grande - PB

Questões de gênero
Revista
e a situação de
Ana Luisa Latino-
Universidade de retorno de brasi-
2011 Campanha Americana de
São Paulo leiras e brasileiros
Nakamoto Geografia e
do Japão: algumas
Gênero
considerações

Anderson
Rodrigues Revista
Universidade Latino-
Corrêa; Letícia A escola em
2011 Federal do Rio Americana de
Fonseca diáspora Geografia e
Grande do Sul
Richthofen de Gênero
Freitas

A presença e au- Revista


sência do debate de Latino-
Carmem Lúcia Universidade
2011 gênero na Geografia Americana de
Costa Federal de Goiás
do Ensino Funda- Geografia e
mental e Médio Gênero

136
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Revista
Socialização e
Catarina Latino-
Universidade de modos de ser jovem
2011 Malheiros da Americana de
Brasília em área rural na
Silva Geografia e
Bahia
Gênero

Candomblé no Bra-
sil: traçando uma Revista
Pontifícia
nova geografia so- Latino-
Estela Martini Universidade
2011 cial de gênero, raça Americana de
Willeman Católica do Rio
e classe, a partir de Geografia e
de Janeiro
uma proposta de Gênero
sociabilidade outra

Flavia Fernandes
Carvalhaes;
Marcio Alessandro
Territórios, ge-
Neman do Revista
rações & cultura:
Nascimento; Faculdade Latino-
(des)continuida-
2011 Marli Machado Pitágoras de Americana de
des das expressões
Lima; Livia Gon- Londrina Geografia e
de gênero entre
salves Toledo; Gênero
lésbicas
Roberta Duarte
Manhas; William
Siqueira Peres
Refazendo nós
Revista
numa terra ar-
Izabel Cristi- Universidade Latino-
rasada: a prática
2011 na dos Santos Federal do Americana de
ecológica em terra
Teixeira Tocantins Geografia e
sonâmbula, de Mia
Gênero
Couto
Dimensões políticas
e afetivas do con- Revista
Universidade ceito de espaço/ Latino-
Izabel F. O.
2011 Federal de lugar: reflexões a Americana de
Brandão
Alagoas partir de textos Geografia e
literários do século Gênero
XX
Revista
Jackeline Universidade Latino-
Feminicídio na
2011 Aparecida Estadual de Americana de
cidade
Ferreira Romio Campinas Geografia e
Gênero

137
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Cotidiano e ter-
João Carlos Revista Lati-
Universidade ritorialidade: um
Saldanha do no-Americana
2011 Federal do estudo de usos do
Nascimento de Geografia e
Espírito Santo tempo entre assen-
Santos Gênero
tado(a)s

O gênero na imigra- Revista Lati-


João Carlos Universidade de ção: redefinições de no-Americana
2011
Tedesco Passo Fundo papéis e dinâmicas de Geografia e
étnicas Gênero

Gênero e partici-
Karina Eugenia Revista Lati-
Universidade pação feminina no
Fioravante; no-Americana
2011 Estadual de tráfico de drogas
Joseli Maria de Geografia e
Ponta Grossa na cidade de Ponta
Silva Gênero
Grossa, Paraná

Revista Lati-
Luiza Simões Universidade de Género y cambio no-Americana
2011
Cozer Salamanca climático de Geografia e
Gênero

Trajetórias, formas
Revista Lati-
Maria das Graças Universidade de conjugalidade e
no-Americana
2011 Lucena de Federal do Rio relações sociais de
de Geografia e
Medeiros Grande do Norte gênero entre casais
Gênero
binacionais
Diáspora negra: Revista Lati-
Maria Inácia Universidade
desigualdades de no-Americana
2011 D’Avila Neto; Federal do Rio
gênero e raça no de Geografia e
Claudio Cavas de Janeiro
Brasil Gênero
Maria Luíza Geografia de gênero Revista Lati-
Faculdades
Oliveira e trabalho familiar: no-Americana
2011 Adamantinenses
de Francisco algumas conside- de Geografia e
Integradas
rações Gênero
Tecendo redes pela
igualdade: meninas
adolescentes de co- Revista Lati-
Telma Silva Low;
Universidade de munidades de baixa no-Americana
2011 Danielly Spósito
Valencia renda debatendo de Geografia e
Pessoa de Melo
sobre as relações de Gênero
gênero e a violência
contra as mulheres

138
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional

Revista
Pontifícia Repercussões do
Ana Paula Latino-
Universidade trabalho masculino
2012 Tatagiba Americana de
Católica do Rio nas instituições de
Geografia e
de Janeiro educação infantil
Gênero

Aqui jaz o amor:


Revista
Pontifícia o nascimento do
Latino-
Diego Santos Universidade homem, a produção
2012 Americana de
Vieira de Jesus Católica do Rio das masculinidades
Geografia e
de Janeiro e as relações
Gênero
internacionais

Rafael Ernesto Revista


Universidad
Sánchez Suárez; Espacios mascu- Latino-
Nacional
2012 María del linos de Juchitán, Americana de
Autónoma de
Carmen Juárez Oaxaca Geografia e
México Gênero
Gutiérrez

Espaço carcerário,
Universidade
Karina Eugenia gênero e cinema: as Ateliê
2012 Estadual de
Fioravante imagens prisionais Geográfico
Ponta Grossa
em Leonera

A mulher e a
Emerlinda extração
Universidade de
2012 Lopes; Lucio clandestina de Mercator
Coimbra
Cunha inertes em Cabo
Verde

Andressa
Cristiane Trabalho e moradia:
Colvara Almeida; Universidade o caso das áreas de
2012 João Batista Federal do Rio expansão portuária RA’E GA
Flores Teixeira; Grande do porto do Rio
Susana Maria Grande - RS
Veleda da Silva

Terezinha O trabalho domici-


Universidade
Brumatti liar das mulheres
Estadual Paulista
2012 Carvalhal; em Terra Roxa/PR: Pegada
de Presidente
Antonio Thomaz o caracol reencon-
Prudente
Júnior tra sua concha

139
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Trabalho, moradia
Andressa e chefia familiar: o
Revista Lati-
Cristiane Universidade caso do processo de
no-Americana
2012 Colvara Almeida; Federal do Rio expansão portuária
de Geografia e
Susana Maria Grande no Bairro Getúlio
Gênero
Veleda da Silva Vargas -
Rio Grande (RS)

Las relaciones
Antoni Tulla;
de género en las Revista Lati-
Antonia Casellas; Universitat
políticas locales no-Americana
2012 Marta Autònoma de
y en el desarrollo de Geografia e
Pallares-Blanch; Barcelona
económico del Gênero
Ana Vera
Pirineo Catalán
Judeus de
Bruna Krimberg Pontifícia bombachas: marcas Revista Lati-
von Mühlen; Universidade de gênero na no-Americana
2012
Marlene Neves Católica do Rio imigração judaica de Geografia e
Strey Grande do Sul no Rio Grande Gênero
do Sul
Reestruturação
produtiva,
precarização e Revista Lati-
Carmen Lúcia Universidade feminização do no-Americana
2012
Costa Federal de Goiás trabalho docente de Geografia e
em Catalão, Gênero
Goiás: algumas
considerações

Las divergencias
Carme Miralles de género en las Revista Lati-
Universitat
Guasche; pautas de movilidad no-Americana
2012 Autònoma de
Montserrat en Cataluña, según de Geografia e
Barcelona
Martínez Melo edad y tamaño del Gênero
municipio

A relação generifi-
cada entre o zone-
Revista Lati-
amento urbano do
Clara Henrietta University of the no-Americana
2012 transporte público
Greed West of England de Geografia e
e as implicações
Gênero
para a provisão de
banheiros públicos

140
Geografias malditas
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat, Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar,
Alides Baptista Chimin Junior e Juliana Przybysz

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Denise Pini Feminização
Rosalem da Pontifícia Revista Lati-
territorial e gestão
Fonseca; Inês Universidade no-Americana
2012 comunitária na
Maria Silva Católica do Rio de Geografia e
Maciel; Courtney Roupa Suja, Rio de
de Janeiro Gênero
Price Ivins Janeiro
‘Mulheres fortes e
com estilo’: prota-
gonismo musical Revista Lati-
Universidade
Diogo da Silva e territorialidades no-Americana
2012 Federal do Rio
Cardoso femininas no de Geografia e
de Janeiro
movimento Gênero
underground
cristão
Mujeres, barrio
e investigación:
ejercicio de Revista Lati-
Fábia University of autoreflexión desde no-Americana
2012
Díaz-Cortés Leeds una trayectoria de Geografia e
investigadora Gênero
y activista en
Geografía (2002-2011)
Juliana Freitas Questão ambiental
Revista Lati-
de Cerqueira Centro e gênero: algumas
no-Americana
2012 Guedes; Ihering Universitário aproximações ao
de Geografia e
Guedes Jorge Amado longo do tempo e
Alcoforado Gênero
do espaço
Articulando os
espaços público e
privado: transfor-
mações das espacia-
Revista Lati-
Juliana Universidade lidades vividas por
no-Americana
2012 Przybysz; Joseli Estadual de mulheres morado-
de Geografia e
Maria Silva Ponta Grossa ras de periferias
Gênero
pobres após a
dissolução conjugal
na cidade de Ponta
Grossa - PR
Maria Reflexões sobre
Medianeira identidade judaica Revista Lati-
Universidade
dos Santos; e gênero no seu no-Americana
2012 Federal do Rio
Paulo Roberto processo de (re) de Geografia e
Rodrigues Grande do Sul
territorialização no Gênero
Soares Rio Grande do Sul

141
corpos, sexualidades e espaços
O corpo como elemento das geografias feministas e queer:
um desafio para a análise no Brasil

Origem
Ano Autoria Título Revista
institucional
Los lugares de la
Maria Prats amistad y la vida Revista Lati-
Universitat
Ferret; Mireia cotidiana de chicas no-Americana
2012 Autònoma de
Baylina; Anna y chicos adolescen- de Geografia e
Barcelona
Ortiz tes en un barrio de Gênero
Barcelona
De escrava a em-
Revista Lati-
Universidade pregada doméstica:
Marise Vicente no-Americana
2012 Estadual de o fenômeno da (in)
de Paula de Geografia e
Goiás visibilidade das
Gênero
mulheres negras

Representações
sociais no território
Revista Lati-
de Elísio Medrado
Renilton da Silva Universidade do no-Americana
2012 marcadas pelas
Sandes Estado da Bahia de Geografia e
práticas de prosti-
Gênero
tuição das mulheres
‘rapa-bolso’
Un estudio de
género con enfoque
Revista Lati-
territorial: la parti-
Universidad de no-Americana
2012 Rossana Vitelli cipación femenina
la República de Geografia e
en pequeñas comu-
Gênero
nidades rurales de
Brasil y Uruguay
Universidade Revista Lati-
Mulheres infames
Tania Regina Estadual do no-Americana
2012 em notícias no
Zimmermann Mato Grosso de Geografia e
oeste do Paraná
do Sul Gênero
Mulher rima com
dor? Algumas con- Revista Lati-
Verônica
Universidade siderações sobre no-Americana
2012 Daminelli
Nova de Lisboa a nação do prazer de Geografia e
Fernandes
‘masculino’ e do so- Gênero
frimento ‘feminino’
Viviane
Abordagem sobre
Guimarães Revista Lati-
Universidade os processos suces-
Pereira; Liana no-Americana
2012 Federal de sórios do campe-
Sisi dos Reis; de Geografia e
Lavras sinato a partir das
Maria de Lourdes Gênero
relações de gênero
Souza Oliveira

142
Geografias malditas
ESPAÇO INTERDITO
E A EXPERIÊNCIA
URBANA TRAVESTI

Joseli Maria Silva

INTRODUÇÃO

Este texto analisa as tensões estabelecidas entre


a produção do espaço urbano heteronormativo e as vivências das tra-
vestis na cidade de Ponta Grossa (PR)1. O trabalho teve a participação de
seis pessoas2 que se autodeclararam travestis, por meio de entrevistas
semiestruturadas contemplando três questões que nortearam suas nar-
rativas, além de discussões sobre o tema com o grupo focal. Os eixos do
roteiro foram: a definição de sua autoidentificação social, as experiências
espaciais aversivas e as experiências espaciais de maior integração social.
A história da elaboração desta pesquisa tem uma longa trajetó-
ria, cujo resgate é necessário para que se possa compreender o proces-
so de construção discursiva aqui retratado. No ano de 2005, estabeleci,
juntamente com alguns pesquisadores do Grupo de Estudos Territoriais
(GETE), um primeiro contato com a organização não governamental

1
Ponta Grossa é uma cidade média do Paraná, com uma população urbana que gira em
torno de 270 mil habitantes, e está situada a uma distância de 100 quilômetros da capital
do estado, Curitiba. A cidade teve sua ocupação inicial ligada à tradicional sociedade
campeira, e, posteriormente, tornou-se um importante entroncamento rodoferroviário
do sul do Brasil, articulando importantes fluxos de mercadorias, bens e transportes. Sua
função articuladora atraiu grande fluxo populacional em trânsito, o que criou condições
para a emergência de um mercado sexual e a atração de uma importante parcela de
personagens deste mercado, as travestis.
2
Quero deixar claro meu agradecimento para Diamante, Pérola, Ametista, Topázio, Opala
e Safira. Sem seu brilho, coragem e solidariedade, jamais eu teria realizado esta pesquisa.
Com admiração, meu muito obrigado a todas. Embora todas se reconheçam em suas
falas aqui transcritas e autorizem a utilização de seus nomes originais, prefiro manter os
nomes fictícios – de pedras preciosas – adotados por mim para escrever este texto.
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

(ONG) Renascer, que atua na luta pelos direitos humanos da população


gay, das lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis (LGBTT), e de profis-
sionais do sexo, bem como na realização de trabalhos de prevenção de
doenças sexualmente transmissíveis.
Nessa época, tínhamos o objetivo de desenvolver pesquisas jun-
to aos grupos de pessoas que não estavam enquadradas na ordem hete-
rossexual dos gêneros bipolarizados, feminino e masculino. Essa apro-
ximação, para nós, tinha o desafio de elaborar argumentos relativos à
construção social dos gêneros e de como nossa sociedade pouco ques-
tionava a divisão binária estabelecida, concebendo-a como algo natural
e encobrindo os mecanismos reguladores da pretensa ordem de gênero
estabelecida, que vigora na vida cotidiana. Ornat (2008a, 2008b) estava
preocupado em explorar o território da prostituição travesti, faceta mais
visível da espacialidade travesti na sociedade brasileira, e eu, Silva (2008),
me ocupava em explorar outras vivências cotidianas fora da atividade da
prostituição.
Uma declaração de Pérola nas dependências da ONG Renascer
− “Não tem lugar para travesti. Nós somos um grupo que não existe. Não
existe espaço para travesti” − foi decisiva para o nosso trabalho. Sua fala
foi acompanhada por vários sinais de aprovação por parte das demais
travestis ali presentes, que balançavam as cabeças positivamente, ex-
pressando também certo pesar.
Iniciamos então uma relação entre o Grupo de Estudos Ter-
ritoriais (GETE) e a ONG Renascer, que já dura seis anos. No início da
convivência, ouvi Pérola dizer: “Eu não gosto de hétero!”. E continuou:
“porque tem intelectual que vai lá com aquela cara de bonzinho, mas
também não aceita a gente. Nunca vão contratar a gente para um tra-
balho e nunca vão contratar a gente para cuidar de um filho deles, sabe,
como babá, por exemplo. Então eu não vou incentivar essa palhaçada! Eu
não! Tá entendendo?”. Resistências iniciais ao nosso trabalho, como esta,
com o passar dos anos foram sendo derrubadas, e minha presença e a do
GETE foram sendo ressignificadas junto às travestis. Um dia, Diamante
me disse: “Você é a única mulher que todas as travestis gostam! Talvez
você tenha, assim, uma alma travesti”. Nesse momento, pensei o quanto
eu realmente me identificava com elas e que nossas diferenças sexuais,
de gênero e intelectuais não eram mais uma barreira. Ao longo do tempo
e das pesquisas, nossa convivência nos transformou também em ativistas
políticos na área LGBTT.

144
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

A aproximação entre dois campos de minha vida, de um lado,


o ativismo político, e, de outro, a pesquisa, me alertou para vários as-
pectos da produção do conhecimento que no início de minha carreira
intelectual eram elementos secundários. Um deles é o reconhecimento
de que todo o conhecimento produzido é posicionado, implicando poder
em torno da construção do dado da pesquisa que opõe pesquisador e
pesquisado de forma hierarquizada. As representações que ambos cons-
troem um do outro e o contexto espaço-temporal do dado produzido
estão na origem do produto (ou resultado da pesquisa). Nesse sentido, o
processo de pesquisa é parte integrante do resultado e deve ser minucio-
samente explicitado e debatido. Outro elemento é a corresponsabiliza-
ção sobre a influência que o resultado da pesquisa exerce na existência
do grupo social pesquisado, o que supõe a legitimação de minhas pesqui-
sas junto às travestis.
As pessoas selecionadas para a presente pesquisa congregam
duas características bastante importantes, já que elas assumem a iden-
tidade travesti tanto no campo do exercício da sexualidade no comércio
sexual como na luta por seus direitos sociais, com todas as suas implica-
ções. Nesse sentido, o grupo é formado por pessoas especiais que, apesar
do difícil cotidiano da prostituição, ainda encontram energias para de-
bater seu papel social. Assim, todas as travestis entrevistadas trabalham
como profissionais do sexo e, de forma mais frequente, ou não, fazem
parte da ONG. As entrevistas foram gravadas nas residências das traves-
tis, enquanto as discussões tiveram lugar na própria ONG Renascer.
A mediação entre as discussões coletivas junto ao grupo focal e
o fato de as entrevistas ocorrerem nas residências das travestis, evitando
o contexto grupal, como o território da prostituição e a ONG, trouxeram
a vantagem da emergência de elementos particulares que, em geral, são
tratados pelas pessoas componentes do grupo de forma regulada, tendo
como referência um modelo travesti ideal.
O texto está estruturado em três partes. Na primeira, desenvol-
vo uma discussão sobre a definição de travesti3 adotada para este traba-
lho, a fim de posicionar o termo na composição de meus argumentos. Na
segunda parte, exploro a potencialidade da ideia de discurso e interdição
de Michel Foucault, para propor uma imaginação geográfica capaz de

3
Tendo em vista a autoidentificação de gênero do grupo pesquisado, empregamos o
termo “travesti” no feminino.

145
corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

captar as experiências urbanas das travestis, propondo a noção do “es-


paço interdito”. Na terceira parte do texto, ao invés de falar pelas traves-
tis, prefiro deixar que elas falem por si mesmas sobre suas experiências
espaciais urbanas. As vozes das travestis ressignificam suas existências
na sociedade brasileira e dão visibilidade às suas versões socioespaciais.
Assim, suas falas estão presentes no texto como autoras − e não como
citação −, razão pela qual elas não se encontram em parágrafos recuados,
conforme dispõem as normas técnicas de redação científica.
Valentine (1993a) faz um apelo ao aprofundamento das análises
das sexualidades e afirma haver homofobia nos ambientes acadêmicos.
Segundo esta autora, o preconceito e a negatividade associados a temas
ligados a sexualidades dissidentes acabam por não atrair pesquisadores
ao campo de pesquisa e, inclusive, dificultam o recrutamento de partici-
pantes em projetos de investigação.

SER TRAVESTI: DIFERENÇAS CULTURAIS


E LINGUÍSTICAS NA GEOPOLÍTICA
DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

A utilização da palavra “travesti” em minhas pesquisas tem


gerado uma série de dificuldades para o diálogo com pesquisadores de
culturas euro-americanas, já que eles costumam traduzi-la para a língua
inglesa como transvestite. Ora, o termo transvestites refere-se a pessoas, de
ambos os sexos, que vestem roupas do gênero oposto em apenas algumas
ocasiões, sejam elas de fetiche sexual ou de manifestação de irreverência
social. As travestis brasileiras buscam a expressão integral da feminili-
dade, incluindo-se além da vestimenta, da maquiagem e de adereços, o
conjunto de comportamentos sociais. Elas também fazem transforma-
ções em seus corpos, como mediante o uso de hormônios e silicones, para
modificar suas formas e chegar o mais próximo possível da feminilidade
desejada, sem que essa condição caracterize, entretanto, uma transgeni-
talização. Portanto, isso pouco se aproxima do conceito de transvestite.
A palavra utilizada pelos pesquisadores anglo-saxões para defi-
nir pessoas que vivem papel de gênero oposto ao que a sociedade espera
de seu corpo sexuado é transgender, que, traduzida para o português, é
“transgênero”. A palavra inglesa transgender designa, na literatura anglo-
americana, pessoas que transitam entre os gêneros e de alguma forma

146
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

transgridem a ordem hegemônica. Nessa categoria estão incluídos: drag


queen, drag king, cross-dresser, transexual, transgênero M-F (male-female,
ou mulher-trans) e transgênero4 F-M (female-male, ou homem-trans),
conforme Doan (2007). Nesse caso, as travestis estão enquadradas na ca-
tegoria transgênero M-F (male-female), sendo consideradas transwomen
ou “mulheres-trans”.
Contudo, no Brasil as pessoas que são identificadas como “mu-
lheres-trans” de acordo com as classificações dos estudos em língua in-
glesa se autoidentificam como travestis, e o termo “travesti” é também
adotado nos movimentos pela diversidade sexual que atuam no país. Ou
seja, a sociedade e o meio acadêmico brasileiros, bem como as próprias
travestis, rejeitam a denominação “mulheres-trans” para designar as tra-
vestis, porque eles a têm como genérica, simplista e insuficiente para dar
conta dessa complexa identidade de gênero, que é tipicamente brasileira.
A identidade travesti é plenamente assumida nos movimentos
políticos que lutam pela diversidade sexual, nos quais a participação tra-
vesti é bem expressiva. A sigla LGBT, que deriva da Conferência Nacional
de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros, foi questionada pelos inte-
grantes do movimento, sendo, então, modificada para LGBTT, que passou
a incluir, além dos grupos já citados, o das travestis. A inclusão de um
segundo T marca a necessidade de explicitar a diferença entre traves-
tis e transexuais. Outras duas siglas importantes a serem consideradas
são a do Encontro Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros que
Atuam na Luta Contra a AIDS (ENTLAIDS)5 e a da Articulação Nacional de
Travestis, Transexuais e Transgêneros (ANTRA).6
A persistência em tornar visível o grupo de travestis dentro do
movimento pela diversidade sexual no Brasil tem produzido o fortale-
cimento de sua identidade, e isso mediante o próprio termo “travesti”,
ao contrário de evitar a sua utilização, como sugerem os pesquisadores
anglo-americanos. São comuns brincadeiras de travestis a respeito do
termo “transgênero”, e elas fazem piadas com um termo similar, “trans-
gênico”, dizendo: “Eu não sou soja para ser transgênica, sou travesti!”.

4
Os transgêneros podem ser masculinos que se transformam em femininos (M-F) ou
femininos que se transformam em masculinos (F-M).
5
Movimento que marca a organização da comunidade travesti brasileira, em 1993.
6
Informação disponível em: http://www.antrabrasil.com. Acesso em: 24 set. 2009.

147
corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

Don Kulick, antropólogo sueco que fez uma pesquisa etnográ-


fica junto a um grupo de travestis em Salvador, chama a atenção para o
fato de que a subjetividade travesti constitui uma identidade brasileira.
Para ele,

[...] sexo e gênero não são estados ontológicos, e sim realizações


contingentes, decorrentes da prática. [...] Assim, o transgenderis-
mo não ocorre ‘naturalmente’ ou arbitrariamente, mas emerge em
contextos sociais específicos, tomando formas sociais específicas
− formas que refletem as estruturas que as estruturam. (KULICK,
2008, p. 27).

De fato, existem diferenças entre a cultura euro-americana e a


brasileira que permitem o surgimento de subjetividades específicas. Para
Kulick (2008), nos Estados Unidos e na Europa o sistema de gêneros fun-
damenta-se nas diferenças anatômicas dos sexos, e disso resulta a noção
de que a dissonância entre corpo e gênero deve ser corrigida mediante a
transformação da genitália. Para o autor, as travestis brasileiras, no en-
tanto, organizam o sistema de gêneros com base na “sexualidade”:

No Brasil, embora as diferenças anatômicas sejam certamente le-


vadas em conta, a genitália parece estar fundamentalmente inter-
relacionada com sua função, ou melhor, com sua capacidade de ser
utilizada desta ou daquela maneira. Na configuração brasileira de
sexo e gênero, o critério determinante para identificar homens e
mulheres não é tanto a genitália em si, mas o papel que a genitália
desempenha no intercurso sexual. Aqui, o lócus da diferença de
gênero é o ato da penetração. Se a pessoa “só” penetra, é homem.
Se a pessoa é penetrada, é diferente de homem − e aí pode ser um
“viado” ou uma mulher. (KULICK, 2008, p. 236).

A pesquisa de Don Kulick traz elementos importantes para sus-


tentar a ideia de que a travesti constitui uma identidade própria no con-
texto cultural brasileiro. Contudo, quando o autor expressa suas ideias
sobre as identidades das travestis brasileiras, acaba por simplificar sua
existência, desconsiderando a possibilidade de que o universo travesti
pode configurar inúmeras outras composições entre sexo, gênero e dese-
jo. Argumenta o autor:

148
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

A todo instante, é a penetração que dá a chave de explicação e de-


finição das identidades travestis. A penetração constitui a moldura
interpretativa da qual elas se valem para estar e agir no mundo, e
para compreender o estado e a ação dos outro. [...] Assim, a dife-
rença relevante em um sistema desse tipo não é entre “homens”
e “mulheres”, a diferença relevante é entre “comer” (penetrar) e
“dar” (ser penetrado); é entre quem come e quem dá, em um siste-
ma em que o ato de ser penetrado tem poder transformativo.

Uma leitura dos conceitos de Kulick junto com o grupo focal


que participou da pesquisa acabou gerando polêmicas, notadamente en-
tre aquelas que não se sentiram contempladas no modelo de Don Kulick.
Diamante expressa sua indignação com as seguintes palavras:

Mas como? Eu passei uma vida inteira para saber que eu sou uma
travesti. E agora vem esse tal de... Como é mesmo o nome dele? Sei
lá! Vem dizer que eu não sou o que eu penso que eu sou? Eu vou
falar com ele, porque eu sou sim uma travesti e como eu faço pra
falar isso para ele?

Embora haja um código moral entre as travestis, que organiza


os gêneros com base na penetração, as identidades travestis extrapolam
esta organização binária e oposicional. Este é um código válido na ati-
vidade de prostituição, como aponta Ornat (2008a), já que o território
da prostituição constitui suas identidades e sociabilidades. Contudo, a
convivência com as travestis evidencia que, além de se autoidentificarem
como travestis, elas constituem configurações muito mais ricas e diver-
sas do que as propostas simplistas de Kulick (2008). Há conjugalidades
entre travestis, entre travestis e mulheres, e entre travestis e homens,
cujas práticas sexuais têm sido plurais, para muito além da barreira do
binarismo de penetrar/ser penetrada(o).
Os estudos de Peres (2005 e 2007) apontam que as travestis vi-
vem vários tipos de conjugalidades, chamadas de “conjugalidades dissi-
dentes”. O autor argumenta que a comunidade, embora relute em aceitar
tais configurações, não pode mais ignorar as conjugalidades que fogem do
tradicional binarismo “travesti/homem”. Essas conjugalidades escapam ao
ideal de relação criado pelo grupo de travestis estudado por Kulick (2008),

149
corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

em que a travesti é a penetrada e o homem é aquele que penetra. O de-


poimento de Rubi, uma travesti que vive maritalmente há mais de quinze
anos com uma mulher7, é claro nesse sentido.

Eu sou uma travesti, claro, jamais poderia passar por homem, te-
nho o corpo transformado e tudo mais. Eu adoraria colocar mais
seios, mas a [nome da companheira] não aceita. Mas eu vivo com
ela e amo ela. E nossa relação é comum como todas as outras, en-
tre, digamos assim, um homem e uma mulher, eu penetro e eu me
sinto bem e realizada. E não é por isso que eu deixo de ser travesti.
Mas eu enfrento preconceito das outras travestis, que me criticam
por eu estar casada com uma mulher.

Ou, ainda, a fala de Topázio, que vive uma experiência conjugal


com um homem8 e diz:

As outras ficam com essa de que a gente tem que ser só penetrada
pra estar com o marido da gente. Isso é tudo mentira. No rala e rola
é tudo misturado, um dia é você que come, um dia é o outro, e a
gente brinca com isso. Mas para as outras não pode ficar falando
isso assim, se não elas acham que você não pode ser travesti, sabe,
ou que está vivendo com bicha e não com um homem.

Assim, embora as falas evidenciem um código moral entre o


grupo das travestis, para a construção da inteligibilidade de suas iden-
tidades em uma sociedade marcada pelo binarismo sexual, há também a
revelação de práticas que extrapolam as normas travestis, evidenciando
de forma contundente a possibilidade aberta e plural das configurações
possíveis entre sexo, gênero e desejo.
Nesse sentido, meu posicionamento é adotar o termo “travesti”
para caracterizar as pessoas que colaboraram com esta pesquisa, porque
é esta a sua autoidentificação. Alinho-me à definição de Peres (2007), ao
definir as travestis como

7
Do ponto de vista anatômico, corpo considerado socialmente como feminino.
8
Do ponto de vista anatômico, corpo considerado socialmente como masculino.

150
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

[...] pessoas que se identificam com a imagem e estilo feminino,


que desejam e se apropriam de indumentárias e adereços de sua
estética, realizam com freqüência a transformação de seus corpos
através da ingestão de hormônios e/ou da aplicação de silicone
industrial, assim como pelas cirurgias de correção estética e de
próteses, o que lhes permitem se situar dentro de uma condição
agradável de bem-estar bio-psico-social. (PERES, 2007, p. 4).

Apesar de concordar com os colegas pesquisadores anglo-sa-


xões e alguns outros setores da sociedade que a palavra “travesti” tem
ainda uma conotação negativada, acredito que o processo histórico das
lutas das pessoas que assim se identificam deve provocar a atualização do
conceito, trazendo uma significação contemporânea, digna de seus direi-
tos cidadãos na sociedade brasileira.

TRAVESTILIDADES NA GEOGRAFIA QUEER


E A IDEIA DO ESPAÇO INTERDITO

A discussão empreendida na seção anterior, sobre as tensões


semânticas em torno do termo “travesti” é um forte indicativo de que a
geografia queer, amplamente desenvolvida nos países anglo-saxões desde
os anos 90, não desenvolveu um caminho investigativo a respeito do grupo
de travestis. Mesmo se for considerado o termo transgender para detectar
a produção científica em torno desse grupo social, pode-se afirmar,
conforme apontam Binnie e Valentine (1999) em seu artigo “Geographies
of sexuality: a review of progress”, que as pesquisas são ainda incipientes.
Esses autores afirmam que as análises geográficas estiveram centradas
nos grupos de gays e lésbicas, sendo raros os estudos de outros grupos,
como transexuais, bissexuais, transgêneros, e assim por diante.
Considerando o fato de que a academia é parte da sociedade
heteronormativa, estudos associados a sexualidades encontram grandes
dificuldades para se expandir, notadamente porque a temática é alvo de
posicionamentos homofóbicos dentro do campo de produção científica,
como verificado por Valentine (1993a). A autora argumenta que o pre-
conceito e a negatividade atribuídos aos temas ligados às sexualidades
dissidentes acabam por não atrair pesquisadores ao campo de pesquisa
e, inclusive, dificultam o recrutamento de participantes em projetos de

151
corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

investigação. Mesmo assim, há pesquisadores que lutam por desenvolver


a temática, que já possui uma trajetória epistemológica própria, iniciada
com a denominação “geografia das sexualidades”, e que, posteriormente,
foi inspirada pela teoria queer.
Binnie e Valentine (1999) afirmam que a teoria queer trouxe de-
safios aos geógrafos que vinham desenvolvendo a geografia das sexuali-
dades de forma descritiva, com base na expressão material do espaço e
na objetividade. Os estudos da relação entre espaço e sexualidades passa-
ram então a sofrer grande influência das ideias de Michel Foucault (1984,
1985, 1988), Judith Butler (1990, 1993), Teresa de Lauretis (1987) e Donna
Haraway (1991), desenvolvendo assim um ramo da ciência geográfica que
passou a ser denominado geografia queer.
Esta vertente geográfica baseia sua produção científica na ideia
da não linearidade entre sexo, gênero e desejo e do gênero performático
que se faz em uma sociedade heteronormativa. A heteronormatividade e
a performatividade são dois termos fundamentais no desenvolvimento
das análises geográficas queer. Por heteronormatividade entende-se uma
tendência no sistema ocidental contemporâneo de considerar as relações
heterossexuais como sendo a norma, de modo que todas as outras rela-
ções não correspondentes à norma são concebidas como desviantes. Já a
performatividade, conceito fundamental nas obras de Judith Butler, é um
termo utilizado para descrever a forma com que o gênero é produzido
como sendo um efeito de um regime regulatório que exige uma repetição
ritualizada de formas específicas de conduta.
Butler (2004), em Undoing Gender, concebe o gênero como uma
construção discursiva, um mecanismo criado para regular a existência
humana e naturalizar as noções de feminilidade e de masculinidade. Para
a autora, o gênero é uma regulação que incorpora leis e mecanismos que
norteiam as construções identitárias, tornando-se, portanto, referências
para a ação das pessoas, sendo concretizado por meio de ações que cons-
troem a realidade generificada. Contudo, afirma ela, as normas incorpo-
radas que regem as ações jamais podem ser consideradas a mesma coisa.
Entre a norma, que é a referência incorporada, e a ação humana concreta
há diferenças. Na ação, as pessoas não apenas reproduzem as normas de
gênero, mas também as transformam, abrindo a possibilidade para mu-
danças e configurações inesperadas. Nesse sentido, a identidade de gêne-
ro é constantemente subvertida pelas ações humanas, sendo impossível a
reprodução dos ideais de masculinidade e/ou feminilidade.

152
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

Judith Butler constrói uma base teórica à qual é possível incor-


porar a existência de pessoas que não se encaixam na visão restritiva e
simplista da dualidade macho/homem e fêmea/mulher. O gênero, consi-
derado performático, é um mecanismo, uma ficção reguladora através da
qual se naturalizam as noções de masculinidade e feminilidade, mas ele é
constantemente desconstruído na experiência da ação concreta. A ideia
da linearidade entre sexo, gênero e desejo é uma falácia, pois os seres hu-
manos, em sua vivência concreta, compõem inúmeras variações desses
elementos, instituindo complexidades permanentemente abertas e em
transformação constante.
Assim, na concepção de Judith Butler, o gênero é uma contínua
repetição de atos estilizados de seres humanos, que, ao atuarem, incor-
poram uma série de significados socialmente construídos e legitimados,
criando uma pretensa preservação do gênero em estruturas binárias e
estáveis. Contudo, as normas de gênero são representações que, quando
interiorizadas pelas pessoas no processo de atuação, jamais são repro-
duzidas em sua plenitude; portanto, são continuamente transformadas,
subvertidas e, assim, desconstruídas. Nesse sentido, não existem em si
as masculinidades e as feminilidades essencialmente verdadeiras, pois o
gênero é performático; ele se institui mediante atuações contínuas que,
se de um lado expressam as normas de gênero, de outro comportam sua
desconstrução no processo de atuação, gerando configurações fora dos
eixos restritivos da bipolaridade e da heterossexualidade compulsória.
São inúmeras as configurações possíveis entre sexo, gênero e
desejo. As travestis constituem uma configuração entre genitália mas-
culina, feminilidade e desejo plural9, embora o padrão seja o desejo por
homens masculinos.
A produção geográfica10 queer, sob a influência do gênero per-
formático de Butler, teve progresso significativo quando considerou em
suas análises a compreensão da diversidade das culturas sexuais e a ne-
cessidade de evidenciar a exclusão social, econômica, política e espacial
de determinados grupos sociais, como resultado da homofobia.

9
O desejo das travestis pode ser dirigido a várias pessoas, como homens, mulheres, gays,
lésbicas, travestis, e assim por diante.
10
Apesar de haver um reconhecimento da importância de trabalhos precursores que
tinham como foco mapeamentos de espaços gays e lésbicos, geógrafos das sexualidades
insistiam na necessidade de superação das metodologias descritivas.

153
corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

Ainda que raros, há alguns geógrafos que se preocuparam


com grupos “trans”. O artigo “Genderbashing: sexuality, gender, and
the regulation of public space”, de Namaste (1996), por exemplo, de-
senvolve uma análise da violência em espaços públicos em Montreal.
Seus resultados demonstram que as pessoas que transgridem a norma
hegemônica da relação entre sexo, gênero e desejo são mais vulneráveis
a agressões, demonstrando que há diferenças para cada grupo, de gays,
lésbicas e transgenders11. Entre os subgrupos analisados, a autora aponta
que o grupo de transgenders é o que mais sofre com a violência, associan-
do a vulnerabilidade ao exercício de sua atuação como profissionais do
sexo nas ruas e outros locais públicos.
Doan (2009), ao contemplar a situação de vulnerabilidade de
transgenders em São Francisco, na Califórnia, argumenta que pessoas
cujos corpos apresentam visivelmente sua transgressão de gênero atri-
buído socialmente recebem uma carga muito maior de discriminação do
que outros grupos. A autora é incisiva ao dizer que estas pessoas têm sido
tão estigmatizadas e marginalizadas pela sociedade, que, muitas vezes,
não há outra opção a não ser trabalhar no comércio sexual como prosti-
tutas. Além disso, as áreas em que estas pessoas atuam têm sido objeto de
intervenção do Estado, a fim de se erradicar a atividade, sem que sejam
construídas novas alternativas de trabalho para elas.
A hostilidade dirigida a pessoas que apresentam uma dissonância na
relação entre corpo biológico e gênero foi foco de estudo de Browne (2004), em
“Genderism and the bathroom problem: (re)materialising sexed sites, (re)
creating sexed bodies”. Sua pesquisa revela as situações de discriminação
vividas por mulheres cujos corpos são lidos socialmente como mascu-
linos quando utilizam os banheiros públicos. As experiências espaciais
relatadas por elas envolvem interdições ao uso do banheiro, questiona-
mentos de seu enquadramento de gênero e outros constrangimentos que
revelam a forte relação entre estes espaços e seu papel no desempenho
da regulação social das normas hegemônicas de gênero.
As consequências sociais das transgressões das normas de gê-
nero e as percepções de grupos sociais que escapam da matriz heterosse-

11
O termo transgenders não é facilmente traduzido para a língua portuguesa como
“transgêneros”, que acaba por adquirir novos significados na cultura brasileira. Em nossa
cultura, o termo mais adequado para denominar o grupo social estudado pela autora é
“travestis”, entendidos como seres cujos corpos são biologicamente categorizados como
masculinos e que exercitam a identidade feminina de gênero.

154
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

xual, sobre determinados espaços da cidade, é o foco de análise de Doan


(2007) em seu artigo “Queers in the American city: transgendered per-
ceptions of urban space”. A autora concentra sua análise em pessoas que
se autodenominam transgender12, por considerar que este grupo é o que
mais sofre com o estigma social. Sua apresentação de gênero é diferen-
te da classificação social de seu corpo, e isso torna difícil, segundo Doan
(2007), a manutenção de trabalho remunerado, porque as leis antidiscri-
minação não asseguram a proteção do direito de o indivíduo manter a
aparência desejada quando ela é considerada dissonante do corpo bioló-
gico. A autora afirma ainda que são justamente estas pessoas, cujos direi-
tos cidadãos são negados, que ocupam áreas de prostituição, vivenciando
o risco de sofrer toda sorte de violência física e psicológica.
Enfim, as pessoas cujas aparências corporais apresentam uma
dissonância em relação à ordem heterossexual dominante vivenciam a
cidade de forma marginal, construindo experiências espaciais marcadas
pela violência, desrespeito e discriminação. Esses grupos tornam visível
a falácia da linearidade entre sexo, gênero e desejo. Contudo, constituem
o grupo mais invisibilizado dentro do conjunto da população queer, até
mesmo quando se observam espaços criados pela e para a referida popu-
lação, como argumenta Namaste (2000).
A habilidade de se apropriar de e dominar espaços, bem como a
de influenciar o seu uso, segundo Valentine (1993b), não são apenas pro-
dutos da heteronormatividade, mas também de sua força expressa no es-
paço. O espaço compõe a realidade heteronormativa, podendo também,
por outro lado, subvertê-la. Segundo a autora, para que isso ocorra é ne-
cessário superar a noção simplista da expressão material das paisagens e
prestar atenção ao exercício das espacialidades sutis com grande poten-
cial subversivo. Afinal, é por meio das ações espaciais concretas desem-
penhadas pelos seres humanos que se dão as contínuas transformações
da realidade socioespacial.
Tomando por base a ideia expressa por Valentine (1993b) de
que o espaço é componente da norma heterossexual e que tal norma se
estabelece por meio de um discurso, podemos dizer que o espaço é hege-
monicamente heteronormativo. O espaço heteronormativo é, portanto,
parte do discurso hegemônico que concebe a ordem social bipolarizada

12
A decisão de manter a palavra conforme ela foi utilizada pela autora deve-se ao fato de
que sua tradução poderia trazer interpretações que não condizem com o significado da
palavra em língua inglesa.

155
corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

entre homens e mulheres, marginalizando aqueles que fogem à pretensa


linearidade entre sexo, gênero e desejo.
A imaginação geográfica do espaço enquanto um discurso foi
concebida pelo geógrafo James Duncan (1990), em The city as text. O au-
tor considera a paisagem urbana como um sistema de significados e, tal
qual a linguagem expressa em texto, ela é depositária de informações e
as transmite. A “paisagem/texto” para ele é um discurso, uma estrutura
social de inteligibilidade dentro da qual todas as práticas são comunica-
das, negociadas e desafiadas. Assim, os discursos estão sempre permitin-
do recursos e limites dentro de certas direções de pensamento e ações
que “aparentemente” são naturais. A pretensa naturalidade da ordem do
mundo e, portanto, da dimensão espacial da sociedade, para James Dun-
can, é resultante de vários embates e lutas entre os grupos sociais.
A compreensão do espaço enquanto produção discursiva tam-
bém encontra apoio nas ideias de Foucault, especialmente na obra A ordem
do discurso (1971/1996). O discurso na perspectiva foucaultiana ultrapas-
sa a ideia de linguagem, constituindo uma trama de ações que possuem
significados e articulam outros elementos para além da linguagem. Os
discursos formam os objetos dos quais eles tratam de forma simultânea.
Assim, o espaço é simultaneamente formado pelo discurso e parte dele,
constituindo um contínuo movimento da realidade espacial impregnada
pelas relações de poder. O poder produz determinados saberes sociais
que se fazem nas práticas espaciais cotidianas e, sendo assim, os discur-
sos são irredutíveis à linguagem.
Existe uma interdependência entre as práticas e o saber/poder,
ou seja, as palavras são também construções, na medida em que a lingua-
gem é constitutiva de práticas. Portanto, o discurso não é apenas uma for-
ma de se referir a um objeto por meio de palavras. O discurso apresenta
uma ordem própria, e esta se realiza por meio de uma trama conceitual que
lhe dá sentido e se impõe a todos aqueles que fazem parte de um determi-
nado campo discursivo. Entretanto, tal processo deve ser regulado, pois,

[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo


controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo nú-
mero de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes
e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pe-
sada e temível materialidade. (FOUCAULT, 1971/1996, p. 8-9).

156
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

Os discursos são controlados e regulados para que o poder seja


legitimamente exercido e a pretensa “naturalidade” se mantenha. Entre
os diversos procedimentos de controle do discurso figura a interdição.

[...] sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não
se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer
um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual
da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que
fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se
reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que
não cessa de se modificar. Notaria apenas que, em nossos dias,
as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros
se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política.
(FOUCAULT, 1971/1996, p. 9).

As formas de interdição indicadas de maneira interdependente


pelo autor como tabu do objeto, ritual da circunstância e direito privile-
giado do sujeito que fala constituem os elementos fundamentais para se
pensar geograficamente a ideia da interdição. Para Foucault, a sexualida-
de é um tema proibido, sobre o qual não se pode falar, e a norma é não
torná-lo presente no discurso (Tabu).
Mesmo que o discurso sobre a sexualidade seja regulado, isso
não impossibilita a criação e o pronunciamento sobre ela, pois, afinal, o
pensamento sobre o tema não pode ser vedado. Se não se pode impedir
totalmente a existência da sexualidade e, assim, dos pensamentos sobre
ela, é necessário determinar as condições de funcionamento do discurso,
já que o poder de que fala Foucault (1971/1996) não apenas cerceia, vigia
ou proíbe, mas também incita e é produtivo na ação. Assim, colocam-se
em jogo tanto o poder como o desejo. Portanto, há discursos que só po-
dem ser comunicados em determinadas situações (Ritual da circunstân-
cia). Além disso, não é qualquer pessoa que pode anunciar um discurso,
mas aquele que detém determinada posição de poder legitimada social-
mente (Direito privilegiado do sujeito que fala).
A imaginação geográfica proposta aqui com base na ideia fou-
caultiana de discurso é que o espaço é tanto discurso como faz parte de-
le.13 Se o espaço discursivo se produz em meio de relações de poder, pode-
se afirmar que o espaço é heteronormativo, já que o padrão instituído na

13
A mesma analogia pode ser feita com a ideia de Duncan (1990).

157
corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

sociedade moderna ocidental é a linearidade entre sexo, gênero e desejo.


Qualquer sujeito ou grupo que seja dissonante do padrão espacial discur-
sivo heterossexual, produzido pelo discurso de sujeitos privilegiados – no
caso, a sociedade heteronormativa –, sofre com o jogo que se estabelece
em torno dos três tipos de interdições propostas pelo autor (Tabu do ob-
jeto, Ritual da circunstância e Direito privilegiado do sujeito que fala).
Os espaços, do ponto de vista relacional, formam uma grade
densa e complexa que impede ou dificulta que os grupos dissonantes da
sexualidade hegemônica produzam seus próprios discursos espaciais, os
quais são permitidos apenas em algumas circunstâncias específicas.14 As-
sim, o espaço discursivo travesti, entendido como uma trama de ações
que possuem significados que são lidos e interpretados por outros gru-
pos, é constantemente interditado.
Os corpos travestis são ininteligíveis na ordem discursiva de
linearidade entre sexo, gênero e desejo. Eles não possuem um lugar de
poder de onde falam para que seus discursos sejam reconhecidos como
válidos e, por fim, são constantemente impedidos de participar das rela-
ções de qualquer espaço. As travestis são impedidas de estar em determi-
nados lugares. Isso pode ocorrer de maneira sutil, por meio de constran-
gimentos, como olhares acusatórios, sorrisos de deboche e humilhação
ou atos de rejeição ou exclusão explícita que culminam na sua expulsão
de determinados locais. Todas estas ações fazem parte do discurso insti-
tuído pela sociedade heteronormativa que expressa a sua ordem espacial,
e todos aqueles que não fazem parte da trama discursiva devem sofrer as
sanções sociais.
O espaço interdito às travestis não é algo que possa ser facil-
mente detectado materialmente, pois não se podem colocar placas e avi-
sos proibitórios à sua entrada. Mas esse espaço se faz no efeito das ações
regulatórias, um conjunto de práticas que são lidas e interpretadas por
elas como sendo espaços dos quais elas não têm o direito de fazer parte.
Assim, o espaço interdito é concebido como o efeito da ordem
discursiva espacial em que práticas regulatórias são desempenhadas por
aqueles que se julgam dentro da ordem e possuem o poder de exercê-la,
bem como o de estabelecer as formas com que determinados sujeitos de-

14
No caso das travestis, uma dessas circunstâncias cuja expressão a sociedade ocidental
permite é o território da prostituição travesti como estudado por Ornat (2008).

158
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

vem ser excluídos. O espaço interdito é efeito das relações de poder que
são onipresentes e, assim, sua constituição é vista como algo natural, sen-
do incorporado por todos os que fazem parte do campo discursivo. Ele se
revela com toda sua força quando a ordem é desafiada, e as tentativas de
transgressão da ordem revelam os limites espaciais que não devem ser
ultrapassados para que a ordem se mantenha.
Na seção seguinte, as travestis tomam para si o lugar da enun-
ciação e relatam por si mesmas a constituição dos espaços interditos.

A AUTORIDADE DO DISCURSO É DELAS:


O ESPAÇO URBANO INTERDITO NAS
VIVÊNCIAS TRAVESTIS

As travestis que participaram desta pesquisa são pessoas de bai-


xa renda, com idade entre 25 e 42 anos, e elas se autoidentificaram como
travestis. Suas narrativas e discussões em torno dos eixos investigativos
– definição de sua autoidentificação social, experiências espaciais aversi-
vas e experiências espaciais de maior integração social – evidenciam que
elas apresentam um maior número de relatos de medo, insegurança e de
experiências negativas do que positivas.
As travestis tensionam a pretensa naturalidade da relação sexo,
gênero e desejo, e elas vivem espacialidades que contrariam as mensa-
gens expressas pela ordem hegemônica. Contudo, isso não ocorre de for-
ma tranquila, mas em meio a angústias, sofrimentos e também enfrenta-
mentos e subversões. Por considerar necessário privilegiar o ato criativo
de interpretação e leitura dos espaços interditos da cidade, as travestis
expressam seus próprios depoimentos sobre eles.
Em ordem de maior significação negativa de suas experiências
espaciais figuram: escola, hospital/instituições de saúde, clubes/dance-
terias/restaurantes, penitenciárias/delegacias de polícia, exército e igre-
jas. As experiências positivas estão relacionadas ao território da prosti-
tuição, às suas casas e às ONGs.
As ações mais simples do cotidiano de qualquer pessoa são vi-
venciadas pelas travestis sob o signo da vigilância e da reprovação, e isso
influencia a reflexão que elas fazem sobre si mesmas e sobre as razões de
suas existências, tal qual evidenciado em seus relatos.

159
corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

PÉROLA: Sei lá, eu me fechei muito. Veja, tudo que é normal pra
qualquer pessoa pra mim é um sacrifício. Pegar um ônibus, por exemplo.
É horrível! As pessoas já ficam olhando e dando risada da cara da gente.
As pessoas me olham estranho. E eu fico pensando. Não é normal! Não
tem como dizer que é tudo normal, porque não é! Então, eu não luto por
uma coisa que eu sei que não vou conseguir, sabe? Eu mesmo penso no
meu corpo, em mim, penso em que é que eu sou. Travesti, o que será...
É um homem que quer ser mulher? Que coisa mais doida eu sou, e então
eu acho que não tem mesmo como as pessoas me aceitarem. Tem outras
horas que eu não penso nada, penso que sou normal. Eu acho que eu não
me penso como travesti. Eu me acho normal. [...] Falo pra você, de cora-
ção, não queria ser travesti. Queria ser um homem ou uma mulher. Se
eu pudesse voltar na barriga da minha mãe, eu não queria nascer assim!
Queria ser homem homem ou mulher mulher, tanto faz. Porque uma tra-
vesti não vive! Sofre bem mais na vida. A gente não tem nem força pra
viver. Pensa até em besteira de se matar e tem muitas na droga também,
ninguém aceita a gente, não tem lugar pra travesti nesse mundo.
DIAMANTE: Minha família já sofreu comigo porque já é difícil ter
um filho homossexual, e daí ainda virar uma travesti. Virar uma mulher e
colocar tudo que a gente põe no corpo pra virar mulher é difícil para eles,
sabe? Como eles vão pôr isso na cabeça, sabem que eu não sou uma moça de
verdade. Como minha mãe. Ela sabe que eu não sou mulher porque ela me
deu banho quando criança, trocava fralda, sabe que eu não sou uma mulher
de verdade. Eu não tenho rejeição com o meu pênis, já vi amigas que são
transexuais que rejeitam o pênis, mas eu não, sou travesti mesmo.
TOPÁZIO: Outro dia num programa de televisão, não sei se você
soube daquela gay que deu uma entrevista na televisão. Perguntaram pra
ela qual era a diferença entre homossexual e travesti e ele disse que tra-
vesti é o homossexual que se veste de mulher para roubar os clientes.
Veja, e ele é homossexual, o apelido dele é [nome da pessoa]. Querendo
ou não, a sociedade vê a gente assim.
AMETISTA: As pessoas não veem que isso eu não posso controlar.
É assim. Não sei por que, mas eu nasci assim. Eu só tenho chance de ser
diferente se eu nascer de novo. Não adianta. Eu posso ter o corpo de ho-
mem, mas eu tenho cabeça de mulher. Eu sou sensível, eu sou delicada,
eu sou como uma mulher. A única diferença é que eu tenho um pênis.
Eu sou uma mulher de pênis. [...] Mas é estranho porque quando eu era
uma gay eu não me sentia bem comigo mesma. Mas era mais bem tratada

160
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

pelos outros. Depois eu me assumi uma travesti. E agora me sinto melhor


comigo, mas sou muito mais rejeitada. Eu achava horrível me vestir como
homem, horrível, e quando eu comecei me aceitar e me vestir com eu
queria, eu me senti melhor, mas é muito mais constrangedor.
O corpo das travestis, além das marcas das transformações cor-
porais voluntárias, apresenta também as marcas do preconceito que es-
sas pessoas vivem. É raro não encontrar marcas de agressão, cicatrizes
e lesões. Essas marcas no corpo e na alma, além da violência e riscos a
que estão submetidas todos os dias, trazem a certeza da vida curta, como
pode ser visto nos relatos seguintes.
PÉROLA: Minha mãe dizia que eu devia voltar a estudar, que não
queria me ver na prostituição. Dizia: não quero doença e nem violência!
Mas é isso que eu vivo na rua. Eu sofri muita violência, meu corpo é todo
marcado. Veja aqui [mostra o corpo com cicatrizes]: essa aqui é um tiro,
sou toda cortada. Veja aqui outra, sou toda cortada. O joelho todo arre-
bentado de correr e cair. Até hoje, se eu marcar eu apanho na rua. Eu já
apanhei por vários motivos. Teve um cara que queria um programa com-
pleto por três reais e eu não quis, ele me bateu. O pior são os estudantes.
As piazadas. Eles são covardes porque nunca pegam a gente sozinhos.
Eles juntam cinco, oito e daí vêm pra cima da gente machucar, só pra se
divertir. Uma vez vi na televisão que isso é homofobia, né? Mas sei lá, se a
pessoa não gosta da gente, não devia chegar nem perto. Eu, por exemplo,
não gosto de futebol, nem vejo, nem assisto. Todo o tipo de violência que
uma pessoa na rua passa eu já sofri, já fui estuprada também. Eu saí com
um cara e ele juntou mais uma gangue e já viu [mostra mais cicatrizes].
Eu sou uma pessoa perdida! Sabe, eu não preciso ter uma bola de cristal
pra saber do meu futuro. Meu futuro vai ser morrer numa esquina.
DIAMANTE: Para qualquer travesti é muito fácil ser agredida, xin-
gada. Dessa vez que eu fui agredida, foi quebrada a minha clavícula [mos-
tra as marcas do corpo]. Meu rosto, veja, essa caixa do rosto foi destruída
inteirinha. Eu tive que colocar platina no queixo e meu pé, veja aqui só,
foi todo queimado com acendedor de cigarros de carro. Eu já tinha sido
agredida por clientes antes, mas de quase me matarem essa foi a pior.
Nunca pensei que isso ia acontecer comigo. Eu fiquei um mês na UTI. Eu
morri e nasci de novo!

161
corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

A ESCOLA

PÉROLA: Minha preocupação quando eu estava na escola não era


estudar. Minha preocupação era correr dos piás depois na saída da escola.
Minha preocupação era me esconder durante o recreio. Era essa minha
preocupação na escola. Eu não sei como é que eu consegui terminar o
segundo grau, sinceramente eu não sei. Minhas notas eram péssimas,
não sei como me passaram. Eu não conseguia estudar muito bem. Minha
preocupação era sempre essa: como é que eu vou fazer pra não apanhar
hoje? Eu não me preocupava em tirar dez na prova, minha preocupação
era não ser agredida. Minha cabeça estava sempre pensando: o que é que
eu vou fazer? Ou matava a última aula no [nome da escola]. Uma vez eu
apanhei até na frente de uma professora na sala de aula, uma professora
de história. Eu tinha quatorze anos, por aí. O cara me bateu na sala de
aula. Essa foi a única vez que eu chorei na escola. Não chorava nunca na
escola. Eu chorava muito em casa, depois, sozinha, mas na escola nunca!
Não queria que ninguém me visse chorando. Ele me bateu e a professora
perguntou: Por que você está batendo no [nome]? Daí ele falou: Porque
ele é viado! Daí ela virou para o quadro e ficou quieta. Daí eu não aguen-
tei e chorei. Essa vez eu não aguentei segurar o choro. Chorei muito. Daí
eu fui lá na diretora. A dona [nome] foi legal comigo, porque me lem-
bro que ela disse que graças às pessoas serem diferentes tem coisas boas
no mundo. Depois, quando eu estava adulta, fui fazer o curso de auxi-
liar de enfermagem. Só que, por eu não ter estudado bem no passado, eu
tinha muita dificuldade. Não conseguia raciocinar bem as coisas, sabe?
Eu me acho ignorante. Eu sei ler, sei escrever e tudo mais, mas se você
perguntar qualquer coisa para mim do conteúdo da escola, eu me sinto
uma ignorante, porque eu não me lembro de absolutamente nada. Eu não
me lembro de nada importante que eu aprendi na escola, só de fugir, do
medo [pausa e lágrimas].
PÉROLA (cont.): Se eu pudesse, eu não teria estudado, porque de
toda a minha vida o lugar que mais me fizerem sofrer foi na escola. Por-
que eu não conseguia passar por homem. Eu queria, eu tentava, mas não
conseguia, e isso era pior. Eu tenho fotos de mim tentando ser homem,
mas eu era muito feminina, mais feminina que agora que fiz plástica. Mi-
nha mãe ainda me colocou numa escola que era assim, tipo a casa do
menor, que era só pra menino, porque ela queria que eu fosse homem.
Lá foi muito pior, porque eles me surravam muito. Durante o recreio eu

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Geografias malditas
Joseli Maria Silva

vivia escondida. Eu me escondia num lugar que era tipo um vestiário que
os professores guardavam as bolas, as coisas de educação física. Eu ficava
lá durante o recreio todo. Depois, assim do pátio que eu ficava escondida,
outro tormento era o banheiro. Mas eu nunca fui no banheiro da escola.
Eu não fazia xixi a aula inteira, ficava me segurando. Eu nem sei como era
o banheiro dessa escola. Porque eu tinha medo, porque eu sabia, ou uma
ou outra. Ou eu vou apanhar, ou os meninos vão querer me fazer alguma
coisa. Eles me assediavam. Era essa a relação com os meninos: ou eles me
batiam ou me cantavam. Ou queriam se aproveitar ou me bater, era isso.
Nenhum menino foi meu amigo. Quando eu era piazinho, eu tinha amigas
mulheres. As meninas são muito legais. Só que, quando eu virei travesti,
as minhas amigas me cortaram. Na escola, eu acho que a figura da traves-
ti assusta, os professores não estão preparados para ensinar uma travesti.
Tudo bem, eu não ia para a escola para ter amigos. Então, se tinha gente
que não me aceitava, tudo bem, mas eu ia pra escola para estudar e os
professores não estavam preparados para lidar comigo.
PÉROLA (cont.): Eu ia pra escola pra estudar, mas não conseguia
por causa da violência. Eu nunca contava pra minha mãe. Eu tinha medo
dela sofrer. Quando eu contei pra ela que eu ia ser travesti ela chorou
muito, não por eu ser travesti, mas porque ela sabia que eu ia sofrer. Na
verdade, eu tinha uns dez anos e disse pra ela que eu não gostava de me-
nina, e ela sabia o que me esperava. Então, eu não contava pra ela o que
eu sofria na escola, porque eu não queria que ela chorasse, sofresse. Eu
fazia de conta que estava tudo bem, eu passava de ano, não sei como, mas
eu passava. Quando eu estava na quarta série, teve um professor que ia
dar uma aula de educação sexual. Ele apontou o dedo pra mim e disse:
você preste bem atenção no que eu vou te falar. Isso na frente de todos
os alunos. Disse assim: tem menino, assim, que fica andando com menino
e quando crescem, viram gay. Mas eu nem sabia o que era um gay. Sei lá,
eu nem podia virar um gay, porque talvez eu já fosse gay desde pequeno.
Sei lá, eu acho que a escola é importante e eu acho que eu estou na pros-
tituição por causa da escola.
PÉROLA (cont.): Se eu não sofresse tanto na escola, eu teria estu-
dado mais, seria mais culta, e vou te contar, meu verdadeiro sonho mes-
mo era ser auxiliar de enfermagem na África, assim, ajudar as pessoas, eu
adoro ajudar os outros. Esse é meu sonho, mexer com saúde, esse é o meu
dom! É isso que eu queria ser na vida. Teve uma vez que uma professora
tentou me defender. Mas veja. Me xingaram de bichinha! Bichinha! Daí a

163
corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

professora disse: Parem, não falem isso, ele é homem! E olhou pra mim e
disse: Né que você é homem? Vamos, diga que você é homem! E eu fica-
va mal, porque eu não queria dizer que era homem. Porque eu nem me
sentia homem. Daí eu dizia: é, eu sou homem! Daí ela completava assim:
Viram? Ele é um homem. Só que ele é muito delicado, é assim, um homem
delicado! Então, veja como as professoras tratam disso. Eu vou te dizer,
pra mim não tem mais chance, eu não vou sair da prostituição. Prefiro
morrer do que viver em sociedade. Mas acho que outras crianças não pre-
cisam seguir esse caminho. Na aula de educação física, então, menino pra
cá e menina pra lá... Eu não fazia exercício nenhum, mas daí nessa época
eu já tava com quatorze anos e já era mais agressiva, me defendia. Mas
tudo na escola é ruim pra mim. Sabe, na aula de ciências, quando diziam
que os meninos iriam ficar com a voz grossa e coisa e tal, eu achava es-
tranho, eu achava que isso nunca ia acontecer comigo porque eu nem me
sentia menino. Sabe, demorou muito cair a ficha de que eu era menino.
Não é isso, mas não sei explicar, eu sabia que eu era piá, desde pequeni-
ninho, mas eu achava que quando crescesse meu pinto ia cair e que eu ia
ser uma mulher [risos].
TOPÁZIO: Tudo começa na escola, depois é no trabalho. E [...] o
preconceito começava assim pelos professores já quando percebiam mi-
nhas diferenças. Até meus dezessete anos de idade, eu achava que era
transexual, eu queria ser mulher e me operar. Eu tinha cabelo de mulher,
cara de mulher, tudo de mulher. Não tinha nada de homem. Minhas per-
nas eram diferentes, não tinha nada de pelo. Os professores, na educa-
ção física, então, era horrível! Eu tinha mil apelidos, como gilete. Gilete
porque eles diziam que eu depilava as pernas. Bombril feminino porque
eu tinha o cabelo enrolado por ser negra. Daí diziam: chegou o bombril
rosa. Sei lá, era horrível, sabe? Os professores não falavam nada, e, pelo
contrário, para os professores eu era o marginalzinho da escola, porque,
como eu sofria preconceito com os meus colegas, era muito raro quando
eu não surrava um ou outro na hora da saída da escola. Eu fazia questão
de dar assim na cara, dizendo: Agora quem é o viadinho, o bombrilzinho
feminino? Eu surrava mesmo e fazia questão de falar, olha você tá apa-
nhando do viadinho! Tá apanhando do bombrilzinho feminino! Eu era
muito mal-vista na escola. Literalmente, os professores não me aceita-
vam. Faziam questão de me expor e falar lá na frente, só pra ver como a
bicha se sai. Assim que foi minha escola. Teve só uma professora que foi
bem legal e perguntou se eu não queria fazer um tratamento psicológico,

164
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

já que eu achava que era mulher e era homem. Eu falei pra ela que era
complicado porque minha mãe via uma moça na frente dela e jurava que
era homem. Minha mãe era uma tortura. Dizia para mim: vai fazer essa
barba pra ver se cresce logo. Então eu disse pra professora que eu não
tinha condições porque minha mãe não aceitava. Ela queria falar com
minha mãe e eu não aceitei, fiquei com medo. Agora, em matéria de que
os professores ficavam jogando minha diferença, viviam me expondo. Só
essa professora que falou que eu devia ir ao psicólogo para eu descobrir o
que eu realmente queria da vida.
TOPÁZIO (cont.): Dentro da escola tinha o banheiro, que era com-
plicado, porque eu tinha que ir ao banheiro dos meninos e lá não tinha,
assim, muita reserva, e eu sempre ia assim naquela parte do reservado.
Daí, me chamavam de cagão, porque pensavam assim: esse só caga né,
porque eu não queria fazer xixi na frente deles. E também no banheiro
masculino não tinha espelho e eu ficava louca porque não tinha espelho
no banheiro masculino. Era uma tortura, porque eu passava e os meninos
ficavam todos olhando. Eu levei duas advertências por usar o banheiro
feminino. Quando não tinha ninguém lá dentro, eu entrava lá, fazia as
necessidades. Me sentia bem mais à vontade lá dentro, me olhava no es-
pelho, passava um gloss, dava um close. Depois das advertências, eu me
obrigava a ir no banheiro masculino. Eu vivia me soqueando com os piás
dentro do banheiro, porque eles passavam a mão na gente, tipo assim, be-
liscava, diziam: oh! Gostosa, viadinho gostoso! Venha aqui! Vamo ali no
cantinho e tal. Isso não foi nem uma, nem duas, nem três! Foram muitas
vezes. Daí me atracava e saía rolando. E já vinha o inspetor e lá ia a bicha
pra diretoria. Eu vivia mais na diretoria. Eles me viam como marginal,
que gostava de brigar e agredir o povo, que eu estava na escola para fazer
o fervo no banheiro. Na educação física, então! Dava muita briga, porque
eu gostava de vôlei e eles queriam que eu jogasse futebol, e eu odiava
futebol. E vôlei não dava, porque o vôlei era para as meninas. Depois mu-
dou, começou a ser mais misto. Mas no começo não era assim. E eu odiava
futebol, tinha que colocar shortinho curto, e eu tinha perninha roliça de
mulher, e daí gritavam: olha a gostosa, chuta a bola pro gol, e foi a linda,
a bicha foi pro gol! Eles ficavam narrando em voz alta só pra provocar, e
eu odiava aquilo. Nunca atendiam meu pedido de não querer jogar. Só na
oitava série, tinha um professor que atendia tudo que eu pedia. Mas era
uma maricona safada e depois me cantava na hora da saída. Essa é que
é a verdade. Ele tinha uns quarenta anos e eu uns quatorze. Ele era um

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corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

pedófilo. Bem mais tarde, bem mais tarde, eu vi a maricona na rua. Daí eu
peguei a maricona safada e ele conseguiu o que queria [risos].
DIAMANTE: O banheiro da escola era horrível pra mim. Quando
eu comecei a me sentir mal, constrangida, eu não sabia muito bem por
que me sentia constrangida. Depois eu entendi. Eu não podia ir no ba-
nheiro feminino. Eu tinha sempre que ir no masculino, mas eu não me
sentia bem porque era todo aberto. Mas para eles tudo bem, porque eram
todos homens. Assim como no banheiro das mulheres são todas mulhe-
res, então tudo bem. Naquele tempo, chamavam a gente de mariquinha.
Aquele ali é menina, mariquinha. A gente se sentia mal, sabe? Agora isso
era em todo lugar, no banheiro, na sala de aula, e quando ficavam só os
alunos sem as professoras era ainda pior. As professoras tinham uma
orientação tão precária que nem as professoras tinham uma noção do
que a gente era, não sabiam o que eu era. As professoras sabiam que a
gente era afeminado. Acho que hoje em dia não, elas sabem, né? Depois
de adulta, eu fui estudar de novo. Eu fiz o segundo grau ali no [nome da
escola]. A diretora dali era homossexual também e foi ela que me pediu
para eu me retirar da escola. Eu estudava lá e depois ia trabalhar na boa-
te. Ela chegou pra mim e disse: olha, não é que você não seja bem-vindo,
mas você não tem uma orientação normal para viver no meio dos alunos.
Eu, como travesti, não podia ficar no meio dos alunos. Eu já me vestia
de mulher. Já era uma mulher. Eu sempre me achei feminina, e como
eu era uma mulher, eu não podia ficar ali. Ela me dizia: veja, para você
é ruim, porque na chamada você é chamada com nome de menino, mas
você está vestida de menina. Eu vou chamar você de [nome masculino].
Não posso chamar de outro nome. Ela continuou, dizendo: você deve se
retirar porque você vai ser muito maltratada aqui. Você vai ser o alvo de
todo mundo, vai ser melhor assim. Naquele tempo, chamavam a gente de
tudo! Ficavam tirando sarro, chamavam de boiola, viado, e não queriam
saber se você gostava ou não. Os professores, assim, na hora da chamada,
diziam: [nome masculino]. Daí era a morte, dava aquele mal-estar. Todo
professor se quiser tem aquele jeitinho de perseguir sem ninguém perce-
ber. Eu terminei o segundo grau, mas foi muito sofrido.
OPALA: A escola foi um sofrimento. Posso dizer, assim, que apa-
nhar feio, assim, nunca apanhei. Mas eu não podia chegar perto dos guri,
porque eles chamavam de tudo, de cabritinho, viadinho. Eu não gostava
de ir para a escola. Mas eu era obrigado, eu tinha que ir. Mas daí, eu não
ficava na aula. Eu ficava fazendo outra coisa, brincando sozinho, escon-

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Geografias malditas
Joseli Maria Silva

dido. [...] Dentro da escola, no pátio, na hora da educação física era hor-
rível, porque eu tinha que jogar aquelas coisas que eu não queria. Então,
porque era dividido menino e menina. E sempre queriam me colocar com
os meninos, e eu não queria. Eles queriam que eu jogasse futebol e eu não
queria. Depois, o professor me deixou de lado. No banheiro também era
horrível, porque lá os guris ficavam xingando de cabritinho, viadinho, e
no banheiro das meninas eu não podia entrar. Resultado, eu ficava me
segurando até chegar em casa pra ir ao banheiro. Eu ficava quatro horas
sem fazer xixi. Já aconteceu de um dia eu estar muito apertada e eu ir
no banheiro dos piás e brigar. Eles me batiam e eu saía chorando. Boca
aberta. Eles me batiam muito, mas, assim, nunca de me machucar pra
valer, entendeu? Daí eu parei de estudar. Depois de adulta eu consegui
terminar. Mas já como adulta, já era assumida travesti. Mas no período da
escola, eu chorava quase todo o dia e minha mãe também sofria. Ela ia na
escola e brigava, e dizia que eu era assim e coisa e tal, que tinha nascido
assim. Mas nunca adiantou.
AMETISTA: Na escola é quando você tem certeza que é diferente.
Porque a gente descobre que é diferente quando é pequeno. Com seis
anos, você já sabe que tem algo diferente. [...] Na escola era muito difícil
porque os piás esperavam na saída pra me pegar e gritavam: vamo pegá o
viado! Vamo pegá o viado! E eu corria, mas não adiantava. Então, no final
do expediente da escola, eu já me preparava e saía correndo feito uma
louca, como se tivesse feito algo errado. Como uma bandida! Às vezes,
minhas irmãs me defendiam. Elas ficavam na minha frente e diziam: no
meu irmão ninguém vai bater! Eu, às vezes, nem falava pra elas porque
eu ficava com pena delas. Pena de elas ter um irmão viado. Eles sempre
me pegavam em bastante assim, em cinco ou seis, assim. Nunca sozinhos.
Os professores não se metiam, deixavam pra lá. Para fazer xixi eu ficava
espiando, esperava o que eles tinham que fazer, ficava de olho, pra depois
eu entrar. Eu ia por último, ou quando não aguentava mais, eu ia atrás lá
num lugar atrás do colégio. Eu ficava muito constrangida. Imagina eu lá,
no meio de todos aqueles piás. Eu me sentia bem mesmo junto com as
meninas, mas eles não deixavam eu entrar no banheiro das meninas. Aí,
minha filha, você não sabe quanta dificuldade é fazer um xixi na escola.
Quando tinha menino e eu entrava no banheiro, eles diziam: o que você
tá fazendo aqui, viado! Teu lugar não é aqui, teu lugar é do outro lado.
Daí eu apressava e saía rapidinho. Porque eles ficavam ameaçando de ba-
ter. Era tudo terrível e tanto que eu parei de estudar, né? Porque sem-

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corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

pre aquela história, menina joga vôlei e menino joga futebol. Eu odiava
isso. Imagina, eu não queria jogar futebol com um monte de marmanjo,
iam quebrar minha canela e deixar minha perna toda roxa. E daí, quando
eu tinha que jogar com eles, eles quase me quebravam inteira. Então, eu
sempre ficava no banco, porque com as meninas eu não podia ir e com os
meninos, eles me detonavam, aproveitavam pra me bater. Então eu fica-
va sempre de lado, não tinha amigos. Eu nunca tive um amigo na escola.

HOSPITAIS/INSTITUIÇÕES DE SAÚDE

PÉROLA: Uma vez que eu fui tomar soro, me colocaram na sala


dos homens, junto com os homens. Mas eu fiquei lá, conversando, e tudo
bem. Da outra vez, eles me colocaram com as mulheres. Nunca sabem o
que fazer. Eu fui mais bem tratada no setor de atendimento aos depen-
dentes químicos. Nossa, me trataram como uma dama, foi muito legal!
Na vez que eu ficava tomando soro na sala masculina, era aqueles que
bebiam demais. Então, eles olhavam pra mim e coçavam a cabeça [risos].
Era engraçado! Acho que eles ainda estavam sob o efeito de bebida e não
entendiam bem se eu era homem ou mulher, ou porque eu estava ali, na
sala masculina [risos]. [...] Sabe Jô, se eu tivesse meu nome de [nome femi-
nino] reconhecido pelas pessoas, eu não ia mais ter medo de ir em hospi-
tal. Se eu ficar doente eu morro, porque não vou ao hospital! Quando fico
doente, prefiro tomar um chá em casa do que procurar um médico. Além
do problema do nome, tem o lance do HIV. Na saúde é assim, vê um “tra-
veco” e já dizem: é soropositivo! Não que não tenha. Mas também tem
homem e mulher soropositivo, não é? É assim, travesti não tem câncer,
não tem úlcera. Só tem AIDS. A figura da travesti na saúde tá associada à
AIDS. Por isso não vou, não gosto de ir. Sabe que eu tenho um amiga que
morreu em casa por causa disso, do preconceito. A finada [nome da ami-
ga] morreu em casa! Ela também tinha pavor de ir no hospital. Ela tinha
tanto pavor que dizia que iam botar veneno no soro dela pra ela morrer,
só porque era travesti e soropositivo. [pausa e lágrimas]. Veja só, morreu
em casa com trinta e quatro anos de idade, com pressão alta, sem auxílio
de ninguém. [pausa] Mas é assim, sabe?
DIAMANTE: Quando vai no médico e você é travesti, é diferente.
São olhares que você percebe, e frases: ih, o travesti tá aí! No dentista

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Geografias malditas
Joseli Maria Silva

também é difícil. Sempre quando alguém vê que você é travesti, já tratam


diferente. Olha, antes de acontecer o acidente comigo eu fui pegar uma
guia de médico e fui ao Pronto Socorro. Eu tava com pneumonia e não
sabia. O atendente me olhava estranho. Daí eu falei: pode me chamar por
“ela”. Ele era um gay e não disse nada. Me mandou direto pro médico.
O médico disse que eu não ia embora e eu fiquei no corredor porque não
tinha vaga. Quando abriu uma vaga, foi na enfermaria feminina. Só que a
enfermeira disse: não, “ele” não fica aqui, porque aqui é lugar de mulher.
Eu disse: veja, mas eu não sou homem e nem mulher. Então, vocês vão me
pôr aonde? Eu tô doente e quero que alguém me diga onde eu vou. Eu sei
que fui meio grossa, deselegante. Mas daí, depois de um tempo, ela disse:
tá bom eu vou recolher “ela”. Mas disse aquele “ela” com um tom de quem
tira sarro, sabe, para humilhar. Depois, quando eu tava internada, vinha
uma série de enfermeiros para me ver. Eles não vinham ver minha doença,
mas me ver. Ver meu corpo, ver “o que é” o ser que estava ali. Veja, isso
foi no Pronto Socorro. No outro dia, eu fui de ambulância para o Hospital
[nome]. Quando eu cheguei no hospital, foi outra situação terrível. Fiquei
esperando na ambulância um tempão, porque ninguém sabia onde me co-
locar. Quer dizer, veja, uma travesti não tem lugar. Eles olhavam para mim
e diziam: onde vamos colocar ela? Outros diziam “ele”. Eu dizia: olha, vo-
cês podem me colocar em qualquer lugar, eu preciso só que me cuidem.
Eu preciso sarar, pra mim tanto faz [pausa e lágrimas]. Eu tava lá e dizia:
podem me colocar onde vocês quiserem, não importa, desde que vocês cui-
dem de mim. Daí, me colocaram numa enfermaria que cabiam mais três
pessoas, mas eu fiquei sozinha. Veja, com tanta falta de vaga, né, e eu fiquei
ali sozinha [risos]. Olha, daí tinha também muitos estagiários. Cada troca
de turno vinha outra turma de estagiários. E rolava a fofoca: olha, tem uma
travesti ali e sempre vinham querendo me dar banho, com aquela curiosi-
dade. Eu dizia: não, pode deixar que eu tomo banho sozinha. Uns vinham
porque eles dão banho nos pacientes e achavam que tinham que dar banho
em mim. Mas eu não queria, porque me sentia mal. Outros, porque viam
que eu tinha seio e tinham curiosidade sobre o meu corpo. Primeiro, eu me
choquei com tudo isso. Depois, acabava achando engraçado. Sabe, isso é co-
mum entre nós, porque eu já tinha vivido isso com outras travestis que eu
encaminhei em Londrina para o hospital, através da ONG que trabalhava, e
eu acompanhava essa mesma coisa.
TOPÁZIO:
Assim, com o médico que agora eu tive que ir, a gente
percebe alguma coisa. Assim, quando ele vai examinar você, eles só te

169
corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

olham. Nem se aproximam, põem a mão na gente. Ontem mesmo, que eu


me machuquei, o médico não queria me pegar e ver o que eu tinha. Eu
cheguei mancando e ele me perguntou: machucou o pé? Eu disse: não,
machuquei a bacia, veja aqui ó! Ele disse: ih! Nem precisa me mostrar nada!
Vai, vai para o raio X. Quando as outras me contavam essas coisas, eu acha-
va que era história exagerada, mas vi que não é. A [nome de uma amiga
travesti], quando foi no médico, porque ela tava com problema no ânus, o
médico disse: eu não quero ver teu ânus! Vai, vai fazer exame de HIV!
OPALA: No hospital, meu Deus! Eu odeio, porque a gente fica na
fila. Depois eles chamam a gente pelo nome da identidade. Isso eu não
gosto, fico morrendo de vergonha porque o meu nome é de homem, e
daí levanto eu, assim, toda feminina... Não, ninguém merece, é horrível
mesmo. Porque daí você já vê as risadas, as piadas. Teve uma vez, quando
eu me internei, meu irmão tava junto e ele disse para a enfermeira: ela
vai para a ala feminina, e discutiu. Daí, eles aceitaram. Depois achei legal,
porque até o médico colocou uma placa em cima da minha cama com o
meu nome: [nome feminino]. E ainda mandou todo mundo me respeitar e
me chamar de [nome feminino]. Me senti tão bem! [risos].

CLUBES/DANCETERIAS/RESTAURANTES

PÉROLA: Olha, eu quase não saio mais. Parei de sair, porque estou
cansada de ser barrada em muitos lugares, em danceterias. Agora mesmo
eu não saio, mas até os vinte e três anos eu ainda tentava. Fui barrada lá
no [nome de uma danceteria], porque eu era travesti. Eles me disseram
isso na cara. E veja que estranho, que um dos sócios de lá é gay. É o [nome
do sócio]. Pois é, ele é gay e tem preconceito com travesti. Ele era um dos
donos e ele é gay, não me conformo. Fui barrada também no [nome de
danceteria]. Tipo assim, dá pra contar nos dedos os lugares que eu não fui
barrada. Eu não fui barrada no [nome de danceteria], também no [nome
de danceteria] e no [nome de danceteria], e só. No resto, fui barrada. O
resto fui tudo barrada e é por ser travesti. Outras mulheres profissionais
do sexo entram lá, que eu via, mas eu não! Mas, sabe, Jô, em todo lugar
é assim. Dizem que aqui é mais conservador. Mas eu já trabalhei em São
Paulo e achei ainda pior. Lá tem boate de gay que travesti é proibida de

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Geografias malditas
Joseli Maria Silva

entrar, sabia? E ainda é assim: se a entrada é R$ 10 para o público gay, pra


travesti é R$ 50, só para a gente não entrar.
DIAMANTE: Bom, a primeira coisa que eu me senti muito mal foi
quando eu era sócio de um clube aqui em Ponta Grossa, mas nesta época
não estava transformada e eu era ainda uma gay. Mas eu já me vestia
de vez em quando de mulher, e daí descobriram. Quando descobriram
que eu me vestia de mulher, daí eles fizeram uma reunião no clube para
me tirar como associado, porque eu era homossexual. Era ali no clube
[nome do clube]. Depois disso é que eu virei travesti mesmo, nem tava
mais nem aí. Porque eles não deixavam entrar mesmo, daí, por que eu
ficar me reprimindo né? Virei travesti mesmo, e daí nunca mais deixa-
vam eu entrar. Antigamente era assim e ainda até hoje é, não pense que
está muito melhor. Eu fui barrada em vários lugares e isso é muito duro,
muito triste, você se sente um lixo. Se você também não tem uma situ-
ação financeira para se bancar, eles te barram. Porque, se eu fosse rica,
será que seria igual? Eles chegam e pedem pra você se retirar. Dizem as-
sim, claramente: você não é bem-vindo. Teve uma vez, eu e a [nome de
outra travesti], que você conhece, sabe que é. Nós queríamos muito ir na
[nome da danceteria] porque era famosa. Nós pagamos o ingresso e nós
passamos pela portaria por meninas. Ninguém notou, porque nós somos
muito femininas. Depois que nós estávamos lá dentro, o segurança veio e
pediu nossos documentos. Daí eu falei: por quê? Você acha que nós somos
de menor? Veja nossa cara! Daí ele falou para nós: vocês não podem ficar
aqui porque vocês são travestis e esse lugar não é de travesti. Daí eu falei
pra ele: tudo bem, mas então você vá lá no banheiro dos homens e tire
todos os gays que estão lá dentro se comendo. Tire todo mundo para fora!
Os donos eram dois gays, você conhece, o [nome da pessoa] e o [nome da
pessoa]. Eles mandaram tirar nós duas lá de dentro, dizendo que a gente
estava incomodando. Chamando atenção! Coisa que os gays que ficavam
mexendo com os rapazes no banheiro não eram censurados. Por que nós
que estávamos só tomando nosso drink, quietas, numa boa, dançando,
estávamos incomodando, e eles não? Para você ver como é esse negócio
de preconceito.
TOPÁZIO: Em danceterias, por exemplo, já fui barrada em mui-
tas. Tem o [nome de danceteria], o [nome de danceteria], tem o [nome
de danceteria]. Umas já até fecharam. Mas o [nome de danceteria] era
o pior pra nós. Teve uma vez, a dona do [nome do estabelecimento], ao

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corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

perceber que eu era travesti, me barrou na porta e disse: você não pode
entrar porque você é travesti. E eu nunca quis ser uma travesti vulgar. Há
locais para tudo. Se eu vou numa boate, eu não vou escandalosa, vou com
calça jeans, blusinha. Eu dizia para ela, veja eu sou fina, discreta, por que
eu não posso entrar? Ela dizia: porque você é travesti. Declaradamente,
com todas as letras. Na [nome de danceteria] era assim: a gente entrava
normal, tomava drink, e ia pra casa, eu e meu marido. Mas depois teve o
sócio lá que disse que eu não entraria mais porque era homossexual e tra-
vesti. Disse assim, na minha cara: se você quiser entrar aqui pode entrar
de cabelo preso, sem maquiagem e de roupa masculina. Se você quiser, é
assim, vestido de homem. Daí eu dizia: mas veja, eu tenho meus direitos,
sou um ser humano e coisa e tal, e ele disse: então, me processe. Procurei
ajuda e não obtive. Daí eu liguei na rádio, naquele programa do padrão
de qualidade, e contei o que aconteceu comigo na rádio. Todo mundo
ouviu. [risos] Não adiantou nada, mas eu falei. [risos]. Depois, teve uma
vez na [nome da danceteria]. Primeiro, tentaram me barrar e eu disse
que ia chamar a polícia! Que iria dar queixa, porque eles estavam sendo
preconceituosos, e nada, não adiantou. Depois eu disse que ia entrar de
qualquer jeito. E entrei! Daí ele disseram: tudo bem, mas não pode usar
o banheiro feminino. E daí eu fui obrigada a usar o banheiro masculino.
E esse foi o maior constrangimento da vida naquele banheiro. Foi horrí-
vel. Eu fui amassada, pisoteada, beliscada. Só não fui rasgada porque o
segurança veio e ficava em volta de mim, mas eles davam tapa na minha
bunda, puxavam meu cabelo pra ver se era cabelo ou peruca. Foi terrível!
Foi humilhante! Daí, consegui sair e, quando fui para a pista dançar, fui
retirada pra fora porque alegaram que eu estava assediando não sei quem
lá dentro. Sem eu nem ter olhado para o lado! Acho que foi a pior coisa
que me aconteceu naquela noite lá na [nome da danceteria].
TOPÁZIO (cont.): Ah! Esqueci de te contar que eu tentei ir no ba-
nheiro feminino. Eu entrei e a mulher que cuida do banheiro não per-
cebeu que eu era travesti. Mas os seguranças já estavam orientados que
tinha uma travesti na casa. Ficavam de olho, e eles ficam assim [fez ges-
tos], literalmente, Jô, andando atrás de mim, observando, vigiando o que
eu estava fazendo. Quando eu entrei no banheiro, eu vi que o seguran-
ça estava me seguindo. Ele entrou e disse para a mulher que cuidava do
banheiro: olha, tem uma travesti no banheiro, a senhora bata na porta
ali e diga para ela sair. Daí ela disse: não vi nenhuma travesti entrar. O
segurança disse: era uma travesti de macacão jeans. A mulher disse: é,

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Geografias malditas
Joseli Maria Silva

tem uma moça vestida assim. O segurança disse: não é moça, é homem. E
daí ele disse: mulherada, dá licença que eu tô entrando! Daí ele bateu na
porta e disse: ô, cara, sai daí. Daí eu saí e perguntei: qual é o problema?
Ele disse: o problema é que você não pode usar esse banheiro, e me pegou
pelo braço e foi me tirando, me pegou pelo colarinho e foi me empur-
rando. Eu disse: tire a mão de mim, eu não sou marginal, não fiz nada de
errado. Eu fui no banheiro feminino porque fui agredida no masculino!
Eu passei esse constrangimento. O segurança, quando me tirou pra fora,
disse: nós estamos de olho em você. Eu disse, toda venenosa: é, eu percebi
que vocês não param de me olhar, porque eu sei, devo ser muito linda né?
[risos]. Daí, quando fui para a pista e comecei a dançar, logo eles vieram e
disseram que a direção da casa mandou me tirar. Eu perguntei: por quê?
Eles disseram que eu estava chamando atenção com a minha dança. E
eu disse: o quê? Mas eu sou uma mulher casada, de respeito. Daí eu não
aguentei mais, não resisti mais, saí, porque não queria sair dali arrastada,
porque é muito constrangedor.
OPALA: Faz uns seis meses eu fui barrada ali no restaurante do
posto. Eu fui lá, acho que já era umas quatro horas da manhã, pra com-
prar meu cigarro. Eu peguei minha garrafinha, meu litrinho de vinho e
fui. Chegou um guardinha, com um pedaço de pau, e deu assim [gestos] e
quebrou minha garrafa de vinho. Os cacos foram longe. Daí, eu pergun-
tei: o que foi? Tá louco? O cara disse: você não sabe que você não pode
entrar? Eu disse: ih! Não vi placa nenhuma de proibição! [risos]. Ele disse:
se arranque já daí! Só que o rapaz que tava servindo as mesas falou: hei!
Deixa ela, ela pode entrar. A gente conhece ela, faz ponto aqui perto, ela
paga direito, é comportada, pode deixar. O guardinha disse: não, a ordem
é que todas não podem entrar! Virou para mim e disse: se arranque, por-
que, se não sair, vou te dar uma surra. Eu disse: você não é homem pra
isso! Sabe, Jô, eu sou feminina, mas se precisar eu sei bater muito bem.
Mas depois pensei e fui embora. Os caminhoneiros ficaram falando alto:
nossa, pra que fazer isso, só porque ela é travesti! O dinheiro dela vale o
mesmo que o nosso! Os caminhoneiros ficaram revoltados e chamaram
a atenção do guardinha. No outro dia, o gerente do posto me chamou e
pediu desculpa, perguntando se eu ia dar queixa. Foi horrível!

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corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

PENITENCIÁRIAS/DELEGACIAS DE POLÍCIA

DIAMANTE: Eu já fui detida. Olha, para o policial, a travesti é zero.


Eles passam com a viatura, buzinam e mexem com a gente. Uns até con-
tratam programa. Mas, quando vão dar uma geral, eles põem a gente jun-
to com os homens e não junto com as mulheres. Você vai para o paredão
junto com os homens. Quer dizer, você pode ser feminina na aparência,
mas fica junto com os homens, e é o policial homem que te revista. A po-
licial feminina não quer tocar na gente, sei lá, tem nojo. Eu já fui presa.
Mas lá dentro, da prisão, é diferente, os presos, eles me trataram como
uma mulher, porque eu me dou ao respeito. E veja, eu chego lá na prisão
onde estavam dois mil homens presos, e eu lá. Todo mundo queria me
ver. Eu era uma atração, porque eu sou muito feminina. Eu fui para Curi-
tiba, no presídio em Curitiba por um crime que eu cometi, um latrocínio.
Paguei muitos anos da minha vida por isso. [...] Eu fiquei dez anos num
sistema penitenciário masculino. Fiquei dois anos aqui em Ponta Grossa,
ali na cadeia onde era o bombeiro, lembra? Depois fui para Curitiba. No
começo, sofri muito, porque fui muito perseguida pelos chefes de segu-
rança, porque eu era travesti. No Ahú, uma outra penitenciária, tinha um
isolamento para travestis. Mas eu fiquei na penitenciária que não tinha.
Eu já tinha ficado junto com os homens aqui em Ponta Grossa, então, tudo
bem, já estava acostumada. Daí fiquei na Penitenciária de Piraquara. Na
penitenciária eu já tinha meu companheiro, eu trabalhava lá, fazia arte-
sanato. Ele me protegia lá dentro. E o segredo é esse: se você não quiser
sofrer muito, tem que ter alguém que seja mandão lá dentro e que te
proteja. Mas assim mesmo é difícil.
DIAMANTE (cont.): Se uma travesti chega numa penitenciária pre-
sa e não tiver proteção, todo mundo tira proveito e daí está perdido, já era.
Mas quando chega a travesti, tem que se impor, dizer não e brigar. Porque,
para eles você é uma mulher. Lá eu era tratada como uma mulher. Me
chamavam de [nome feminino]. Imagina, eu era a única mulher no meio
de dois mil homens! Imagina, dois mil homens para você controlar! No
setor onde eu trabalhava tinha sessenta. Tinha os gays lá dentro também,
mas eles tinham o lugar deles. Eles eram chamados por nome de mulher
também. Mas cada um tinha que ter seu companheiro, e daí tinha respeito
entre eles, os outros presos. Às vezes, lá dentro, eu tinha mais respeito
do que aqui fora. Depois, quando eu fui para outra penitenciária, a penal
agrícola, lá eu tive que ter outro companheiro. O outro depois tentou uma

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Geografias malditas
Joseli Maria Silva

fuga e depois não soube mais dele. Eu tive estas paixões dentro da prisão.
Mas amor mesmo eu tive um, lá dentro, mas ele só ficava comigo lá den-
tro. Nunca saiu para fora um dia passear ou visitar a família.
TOPÁZIO: Eu sou sempre abordada pela polícia. Sempre aborda-
da. Ih! Horrores! Eu sempre era apalpada por policial homem. Só depois
de muito tempo que eu descobri que agora a gente tinha direito de rei-
vindicar uma policial feminina para revistar. Agora eu não deixo o cara
pôr a mão em mim. Daí, nunca mais deixei pôr a mão em mim. Quando
tem blitz, eu já digo: pode olhar minha bolsa, mas pôr a mão em mim,
só se for mulher. Antes não! Eu não sabia e ficava quieta. Eles vinham e
davam chute nas pernas, mandavam calar a boca e colocar a mão na cabe-
ça. Depois que eu descobri que tinha direito de ser revistada por policial
feminina, quando eles param a viatura eu já digo: não põe a mão em mim!
Cadê a policial feminina? Se não tem mulher, só olha minha bolsa e me
libera! Mas pra delegacia eu nunca fui, evito entrar e nem mesmo dou
queixa. Quando tem briga na rua, a gente resolve ali mesmo, no braço, e
pronto. Briga ali, morre ali mesmo, não vai pra delegacia, não. Porque é
pior prestar queixa, porque daí a gente apanha mais.
OPALA: Quando eu fui presa, eu fiquei na parte masculina. Mas,
sabe, não foi tão sofrido, porque lá dentro eles me tratam como mulher.
Sabe, Jô, sabe que lá dentro você não pode se envolver com todo mundo,
tem que ser um só. Porque travesti na cadeia é assim, a gente é vendido
por um pouco de açúcar ou café. Por exemplo, acabou o café daquele,
ele te passa pra outro e pega o café, entendeu? Por exemplo, assim, eles
dizem: me dá o café que a loira vai com você. Mas eu já sabia que era
assim. Mas eu fiquei depois com um lá dentro que me protegeu. É assim,
os policiais, quando sabem que vem uma travesti que vai ser presa, eles
já vendem você pra alguém lá dentro, negociam o teu passe. Eu me apro-
ximei de um cara bem poderoso e fiquei com ele. Ele era o bandidão, e
todo mundo respeitava ele. Posso dizer que ele me sustentou lá dentro
e me protegeu também. Agora, ih! Policial, lá dentro, já viu, não querem
saber! Tratam a gente mal mesmo, fazem questão de tratar a gente como
homem mesmo. Aqui fora os policiais são melhores do que lá dentro.
AMETISTA: Batida de polícia é ruim. Sempre tem na rua e a gente
tá acostumada. Antigamente era pior, agora já melhorou um pouco. Mas
era horrível! Gritavam: mão pra cima! E vinham pegando na gente e se
aproveitavam. Hoje eles são mais respeitosos. Acho que as coisas estão
mudando com os policiais.

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corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

O EXÉRCITO

TOPÁZIO: No exército eu tive várias fases. Porque eu fui como


homem. Eu queria seguir carreira, não que eu gostasse de lá, porque aqui-
lo não tinha nada a ver com meu mundo, né, mas eu achava que dava
segurança financeira. Depois, eu não consegui seguir carreira. Eles des-
cobriram que eu era homossexual e deu uns escândalos lá dentro. [...]
Daí eu raspei minha cabeça e fiz questão de entrar para o exército para
mostrar para meu pai que eu tinha capacidade de entrar. [...] Eu acabei
não ficando no exército. Lá eu tive muitos relacionamentos. Tanto na-
moros assim mais sérios, quanto ficar por ficar. Namorei um sargento e
um oficial do exército. Mas tudo por debaixo dos panos. Lá é uma per-
versão [risos]. Uma maricona casada até ficava comigo, mas tudo bem.
No primeiro e segundo mês de quartel, eu fazia de tudo para parecer um
homem. Falava grosso, cuspia no chão, coçava o saco [risos]. Depois, não
conseguia disfarçar mais. Daí, comecei a sofrer preconceito lá dentro, e
tinha um casal de gays que namoravam lá dentro. E tinha um que queria
ficar comigo, e eu não queria, porque, na época, eu namorava o sargento
e procurava ser fiel. Eu pensava: nossa, vou casar e vou ter uma família, e
nessa época eu pensava assim, eu era novinha e romântica [risos]. O sar-
gento dizia: eu vou largar da minha mulher e vou ficar com você, e tipo
assim, eu acreditava. Teve um dia, eu entrei no banheiro e peguei aquele
cara que queria ficar comigo se atracando com outro lá dentro. Daí, ele
ficou pegando no meu pé. Acho que de medo de eu contar para alguém.
Mas eu falei: olha, eu não tenho por que contar da intimidade de vocês,
porque eu também sou homossexual. Só que ele começou a notar que o
namorado dele dava muito em cima de mim, e daí começou me ameaçar.
Dizia: eu vou tirar você daqui porque meu namorado tá a fim de você. Por
causa disso eu saí da companhia que eu tava e fui trabalhar na cozinha.
Mostrei que eu sabia cozinhar e tal. Eu ganhei cinco medalhas lá dentro.
Eu sempre cozinhei bem. Me sentia ótima cozinhando para aquele bando
de homens [risos].
TOPÁZIO (cont.): Sabe, quando era para eu receber a boina, eu
quebrei o pé e não pude ir receber, e o tenente me chamou e me humi-
lhou. Me chamou de viadinho, e eu prometi que seria o melhor soldado
do pelotão, porque, se era ou não era diferente de todo mundo por causa
da minha sexualidade, para mim eu era igual e mostraria que os machos
não trariam as medalhas e sim eu! Porque ali era isso que imperava, se eu

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Geografias malditas
Joseli Maria Silva

era ou não era mulher ou homem, mas eu queria mostrar que eu traria
as medalhas assim mesmo. Depois, quando eu tava na cozinha, eu passei
a sair com um coronel, que viu que eu era diferente. Quando a esposa
dele viajava, ele dizia: passe lá em casa depois. Quando eu chegava, ele já
estava lá, de cueca, me esperando. Um velho caindo aos pedaços. Eu não
namorei com ele, só comi. Na verdade, era uma espécie de troca de favo-
res. Na verdade, era tipo um programa. Porque eu queria ficar lá dentro
e o coronel me protegia, prometeu que faria isso. Eu virei o peixe dele.
[...] Teve um dia eu cheguei lá e tinha tomado umas. E o cara que te falei
que me perseguia disse: lembra que eu te disse que eu ia te tirar daqui?
Eu falei: lembro, mas e daí? Eu não dei motivo. E daí ele disse: agora tem!
Eu fui dormir e, no outro dia de manhã, todo mundo me olhava estranho.
Daí, o coronel me chamou e disse: você assediou o soldado [nome do sol-
dado]. Daí, eu disse: como? Ele tem testemunha? Ele disse: tem, o soldado
[nome de outro soldado]. Eu disse: Ah! O casalzinho! Então daí virou co-
mentário pelo batalhão inteiro e foi aberto uma sindicância. E daí aquele
coronel que me protegia foi transferido para a Bahia e veio um carrasco
homofóbico. Daí, por mais que eu provasse os meus horários, com que
eu falei e também o fato dele não ter acionado o segurança no momento
do problema, não adiantou. Mas, daí, veja o fato dele não ter acionado a
segurança; sim, porque isso era crime de pederastia lá dentro. O fato é
que ele tinha que ter acionado a segurança e não fez. Daí, eu provei que
o cara estava mentindo. Daí, ele, o outro namorado dele e eu fomos todos
mandados embora.
OPALA: Eu não tive que servir o exército, mas tive que me alistar.
Foi divertido. Eu fui lá com dezessete anos, mas eu já me transformei com
treze anos, eu era uma moça. Fui lá, fiz alistamento e exame de saúde.
Depois, tinha um negócio de jurar a bandeira. Tava todo mundo lá no tal
juramento. Eu cheguei atrasada, louca, mas eu tava me arrumando pra
ficar linda, né? Daí, quando cheguei, me apresentei para um coronel, e
ele disse: mas eu estou esperando um homem! Eu disse: sou eu mesma
quem você espera. Daí, ele me tirou de lado, meio sem jeito. Me deu um
papel para eu assinar e me dispensou, disse para ir embora e eu fui, feliz
da vida.
AMETISTA: Eu não tive condições psicológicas. Não servi o exér-
cito. Quando tive que me alistar, eles me dispensaram. Mas foi horrível,
porque na época eu já tava toda transformada. Você sabe que não tenho
minha carteira de reservista até hoje? É porque não tenho coragem de

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corpos, sexualidades e espaços
Espaço interdito e a experiência urbana travesti

voltar lá para pegar, acredita? Eles ficavam dando risada da minha cara
e diziam assim: o que é que “isso” quer aqui! Eles me inibiram tanto que
depois eu tinha que voltar lá e não voltei. Fiquei com muita vergonha,
porque lá é cheio de homem e eles deixam a gente constrangida. Você
sabe que, quando eu virei as costas, eles riam e diziam: nós vamos é tirar
sua roupa e te deixar pelada junto com outros homens. Eu fiquei com
medo. Não voltei mais lá. Então, eu não tenho minha carteira de reservis-
ta por causa disso.

A IGREJA

DIAMANTE: Nas igrejas tem muito preconceito com homossexual.


Você é barrado. Não, assim, você pode entrar, assistir uma missa, mas
você não pode comungar. Na comunhão eu já fui barrada pelo padre. O
padre não me deu a hóstia. Ali no centro, na igreja [nome da igreja]. O
padre não quis me dar a comunhão. Isso faz um ano e pouco. Eu ia todo
dia naquela igreja porque eu morava ali perto. Eu ia todo dia, acendia mi-
nha velinha e ia rezar. Assistia até a novena com as beatas. Mas o padre
já me tratava com indiferença porque ele sabia que eu não era uma moça
de verdade. Mas isso passa, porque a gente acostuma a ser tratada assim,
mas é difícil. Imagine, você tá na rua. Você não tá na rua porque quer.
Minha mãe às vezes fala por que esses vagabundos não trabalham. Mas
ninguém sabe o quanto é difícil a gente arranjar um sempre.
OPALA: Igreja. Igreja é horrível porque, quando você vai se con-
fessar, o padre já fala que você é um pecador, um homem vestido de mu-
lher, o que é isso! Eu não sou católica, sou luterana, mas não gosto de ir na
igreja, o padre já fica olhando diferente. O sermão já começa e falam tudo
pra gente. Eu acho que, se a gente não estivesse lá, o sermão até seria
outro. Só ficam falando de pecado, o que ou não é pecado e pecado. Por
que não falam mais de Deus? É só a gente entrar na igreja que o sermão
é sobre pecado. A gente sabe que é pra gente que estão falando, e eu não
gosto de igreja por isso. Eu, em casa, faço minhas orações e leio a bíblia,
mas não vou mais na igreja.
AMETISTA: A igreja. Eles falam que Deus é bom, essas coisas, mas
quando um homossexual entra na igreja, eles dão risada e falam da gente.
Eu fui expulsa da igreja [nome da igreja]. Me tiraram de lá. Teve uma épo-

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Geografias malditas
Joseli Maria Silva

ca que eu estava me sentindo muito mal, e eu precisava de ajuda porque


eu queria só me matar, menina! Fui lá para orar e, daí, quando eu sentei,
percebi que tinham uns dois lá, que eles chamam de obreiros. Começa-
vam me olhar e eu já vi e pensei: meu Deus, só falta me tirarem daqui! E
daí a moça me chamou e disse que eu não era bem-vinda lá daquele jeito.
Falou que, se eu quisesse frequentar a igreja deles, só de rapaz, de cabelo
comprido. Maquiagem e unha pintada eu não podia ir. Ela me falou que
eu parecia uma palhaça. Mas eu falei assim: Mas aqui não é a casa de
Deus? Eu não vou sair. Daí, eles chamaram mais dois rapazes, e eles dis-
seram: você vai ter que sair. Porque, se você quer a palavra de Deus, você
tem que se vestir direito, tirar esse esmalte e colocar roupa de homem, e
não desse jeito, porque desse jeito você está possuída pelo diabo. Isso foi
um horror!

ESPAÇOS DE INTEGRAÇÃO E ACEITAÇÃO SOCIAL

PÉROLA: Olha, eu só me sinto aceita na noite, na prostituição.


Na rua, na prostituição não é legal, mas é o único lugar que eu posso ter
minha identidade feminina. Lá, por algumas horas, eu consigo ser tratada
como mulher, pelo menos por algumas horas. Lá, eu consigo ser a [nome
feminino].
DIAMANTE: Ah! Eu me sentia bem na ONG que eu trabalhei em
Londrina. Nossa! Eu me sentia um ser humano. Lá a gente fazia coisas
para as outras travestis, encaminhava para o hospital, cuidava delas
quando estavam com HIV. Lá eu fiz até uma peça de teatro numa oficina.
Começou com trinta travestis e, no final, ficamos em três. Participamos
do Festival Internacional de Teatro e ficamos em cartaz um ano como
artistas. Eu nem acredito que vivi isso! Como era bonito aquilo. Eles me
tratavam como travesti. Sabiam que eu era travesti e me tratavam bem,
com respeito. Mas também sou bem aceita na rua, no meu ponto. Eu me
sinto bem porque a gente é muito assediada na rua, se sente importante,
nem que seja naquele momento do desejo, sabe?
TOPÁZIO: Eu me sinto realizada dentro da minha casa. Porque
meu marido me aceita como eu sou. Para ele, eu sou a [nome feminino].
Aí que eu me sinto pessoa de verdade, sabe, importante. Aí sou eu inteira.
Na rua, assim, me sinto mais ou menos. No nosso meio, tem muita concor-

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Espaço interdito e a experiência urbana travesti

rência. Cada uma quer ser mais linda que a outra. Veja minha foto [mostra
fotos]. Olha como eu era, no início da carreira [mostra mais fotos]. Veja
agora, me reformei, sou assim, feminina, sem um pelo no rosto, isso dá
inveja. Sabe, no meio das travestis a beleza e a feminilidade conta muito.
OPALA: Agora, de dia eu evito sair, quase não saio em lugar ne-
nhum. Me sinto mal. De noite me sinto melhor e, como não sou uma santa
[risos], eu me defendo. Na rua, de noite, eu viro bandida, e ai de quem me-
xer comigo à noite, apanha. Porque a gente tem que se defender na noite.
Mas, sabe, pra falar bem a verdade, Jô, só na minha casa eu me sinto bem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este texto analisou as tensões estabelecidas entre a produção


do espaço urbano heteronormativo e as vivências das travestis. As falas
aqui privilegiadas envolvem sofrimento, exclusão e toda sorte de violação
de seus direitos cidadãos, evidenciando a instituição do espaço interdito
como efeito e, simultaneamente, como elemento fundamental de regula-
ção e manutenção das normas hegemônicas de gênero. As consequências
sociais das transgressões das normas de gênero são por demais penosas
para aqueles que ousam escapar da matriz heterossexual, notadamen-
te pessoas cuja aparência corporal expõe uma dissonância com a ordem
dominante. As travestis são seres que muito sofrem o poder heteronor-
mativo em experiências espaciais marcadas pela violência, desrespeito e
discriminação. Tais vivências expõem a falácia da linearidade naturaliza-
da entre sexo, gênero e desejo, construída para sustentar o padrão biná-
rio e hierarquizado de gênero. Contudo, as travestis resistem, lutam por
visibilidade e desafiam a ordem e as interdições espaciais. Suas práticas
subvertem a organização espacial heteronormativa e abrem caminhos
para a criação de subjetividades capazes de transformar essa realidade
socioespacial violenta e excludente. Afinal, como nos alerta Foucault
(1971/1996), o poder cerceia e proíbe, mas também é produtivo, porque
incita atos de resistência.
Não um poder que somente cerceia, desmantela, vigia, surpre-
ende ou proíbe; mas um poder que suscita, incita e produz, um poder que
“não é apenas olho e ouvido”, mas que, sobretudo, “faz agir e falar”, como
diz o filósofo.

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Geografias malditas
Joseli Maria Silva

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182
Geografias malditas
A INSTITUIÇÃO DO
TERRITÓRIO PARADOXAL
NA ATIVIDADE DA
PROSTITUIÇÃO TRAVESTI

Marcio Jose Ornat

O objetivo central desta reflexão é evidenciar a ins-


tituição do território paradoxal, segundo as vivências espaciais do grupo
de travestis que desenvolve atividades comerciais sexuais na cidade de
Ponta Grossa (PR). Onze pessoas colaboraram com a pesquisa e concede-
ram entrevistas que trouxeram à tona suas memórias e experiências. As
memórias articulam os acontecimentos passados, mas são interpretadas
à luz do presente, permanentemente negociadas intersubjetivamente
na construção identitária e espacial do grupo, como argumenta Pollak
(1992). O total de narrativas produzidas pelo grupo de travestis que fo-
ram entrevistadas foi analisado segundo a proposta de Bardin (1977).
Esta autora propõe a sistematização do discurso por meio da análise de
conteúdo, capaz de estabelecer redes semânticas que expressam as es-
pacialidades vivenciadas pelos sujeitos ao longo de suas trajetórias de
vida. Assim, o conteúdo das falas foi organizado segundo espacialidades
discursivas (casa, cidade, território), que se constituíram de categorias
discursivas. Tais categorias estruturaram-se por meio de elementos que
foram definidos nas evocações durante as narrativas.
O conceito de território na Geografia foi constituído por uma
polissemia de perspectivas, como propõe Haersbaert (2004). De modo ge-
ral, a forma privilegiada foi aquela que se relaciona com os Estados-na-
ção, que, segundo Souza (1995), empobreceu a compreensão do conceito.
Esta área espacial de controle estatal seria território durante todo o tem-
po, invisibilizando outras formas de manifestação territorial.
A articulação de áreas apropriadas por agentes políticos que en-
volvem o domínio de recursos econômicos é antiga, sendo base de aná-
A instituição do território paradoxal na atividade da prostituição travesti

lise de Ratzel, já em 1882, em sua obra Anthropogeographie1, implicando


uma noção de expansão espacial política para a manutenção de recursos
econômicos de determinado grupo social, com apoio no aparato político
estatal. A perspectiva de controle de áreas também foi desenvolvida por
Gottmann (1973), em The Significance of Territory, trazendo a importância
do domínio de área como fonte de sobrevivência e acumulação de capital,
fundado no poder do Estado-nação.
Entre as obras que fogem dos determinismos discursivos que
relacionam territórios ao Estado-nação figuram as de Raffestin (1993)2
e Sack (1986). De um lado, Raffestin (1993) problematiza este conceito a
partir de uma perspectiva política, mediante a associação entre espaço e
poder. Segundo o autor, o território constitui-se como um espaço político
por excelência. Ele pondera que espaço e território não são equivalentes
e que o segundo é posterior ao primeiro, formado a partir dele. Sendo
assim, o território é um espaço apropriado, territorializado e marcado
por relações de poder, não se restringindo ao Estado-nação. Por outro
lado, segundo Sack (1986), o território, enquanto espaço segmentado, é
uma fonte primordial de poder, entendido como posse de área. Os três
processos de territorialização, ou seja, as atividades de tomada de posse
do espaço, seriam a comunicação pela fronteira, a classificação por área e
o controle interno de acesso a este espaço, que iria do simples cômodo de
uma casa até o Estado-nação.
Como afirma Souza (1995), o espaço é de fundamental impor-
tância na manutenção, na conquista e no exercício do poder social. Sua
perspectiva avança para além do poder estatal, incluindo a possibilidade
de análise do poder através da ação de diversos grupos sociais. Essa li-
nha de argumentação do autor implica compreender que a manifesta-
ção do poder necessita de uma espacialidade, conformada pelos agentes
que mandam ou influenciam, e, nesse sentido, pela forma como desem-
penham e mantêm seu poder. O autor agrega também a perspectiva de
variabilidade espacial e temporal na constituição do território. Essa pers-
pectiva potencializa a análise da realidade espacial através do conceito de
território, evidenciando seu caráter transitório, fluido e em permanente
movimento, tendo em vista que este pode ser constituído e desconstitu-

1
Uma parte dessa obra foi traduzida para o português por Antônio Carlos Robert Moraes,
em 1990, e publicada pela Editora Ática.
2
RAFFESTIN, Claude. Pour une géographie du pouvoir. Paris, 1980.

184
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

ído nas mais variadas escalas espaciais e temporais, podendo ainda ser
permanente ou cíclico.
A proposição de Souza (1995) foi adotada como modelo concei-
tual de território para guiar a análise da prostituição travesti em Ponta
Grossa (PR). Durante o trabalho de campo junto ao grupo de travestis, um
dos pressupostos da definição do referido autor foi tensionado, aquele
que diz respeito à organização binária entre os grupos considerados “de
dentro” (insider) e “de fora” (outsider) do território. É sobre o tensiona-
mento entre a teoria e a análise do referencial empírico que este texto é
construído.
Assim, na primeira seção será abordada a vivência espacial
cotidiana das travestis3, cujos elementos são de grande importância na
instituição de seus territórios na atividade de prostituição. Na segunda
seção serão analisadas a tensão das posições binárias propostas por Souza
(1995) e os limites desta perspectiva teórica para a compreensão do terri-
tório da prostituição travesti, trazendo para esta análise a proposição de
Rose (1993), pensada a partir de um território paradoxal.

O COTIDIANO DA CIDADE NA VIVÊNCIA TRAVESTI

A vida cotidiana das travestis que retiram seu sustento da ati-


vidade da prostituição em Ponta Grossa (PR) tem uma dimensão espa-
cial importante para o grupo. Essa vivência espacial pode ser concebida
e experienciada, como visto por Corrêa (1995), de forma continua e/ou
descontínua, com rupturas brutais ou bloqueios espaço-temporais. Da
mesma forma, segundo afirma McDowell (1999), o espaço é uma dimen-
são social fundamental para a reprodução social. O espaço não é um mero

3
Tendo em vista a autoidentificação de gênero do grupo pesquisado, empregamos o
termo travesti no feminino. Além disso, é importante esclarecer que os nomes das
travestis são fictícios, baseados nas figuras femininas da mitologia grega. Hera (rainha do
paraíso e guardiã do casamento), Atena (deusa da sabedoria e da guerra), Ártemis (deusa
da caça e dos animais selvagens), Afrodite (deusa do amor), Héstia (deusa do coração e
da chama sagrada), Deméter (deusa da agricultura), Eirene (personificação da paz para
os gregos), Eos (deusa que enunciava a chegada do Sol), Nike (deusa grega da vitória),
Pandora (doadora de todos os talentos divinos ou de todos os males da humanidade) e
Têmis (deusa da justiça).

185
corpos, sexualidades e espaços
A instituição do território paradoxal na atividade da prostituição travesti

receptáculo ou substrato para as ações sociais, mas componente tanto


das ações quanto da identidade dos grupos sociais.
O conjunto de práticas materiais e simbólicas de sujeitos e gru-
pos sociais é tão variado quanto a plêiade de experiências individuais e
coletivas. Harvey (2002) afirma que o espaço apropriado pela memória e
pela imaginação não se coloca como indiferente, mas passa a fazer parte
das práticas sociais. Sendo assim, quando o grupo compartilha ou socia-
liza suas experiências de vida permeadas pelo espaço, cria-se uma nova
experiência espacial. Portanto, o espaço é componente dos discursos, as-
sim como o discurso é por ele composto.
A investigação da vivência travesti evidenciou 906 evocações
referentes a relações na família, relações de conjugalidade, relações en-
tre as travestis e relações das travestis com moradores e policiais. Desse
total de evocações, as principais espacialidades discursivas relacionadas
com as travestis dizem respeito a Território, Casa e Cidade, como se ob-
serva no Gráfico 1, a seguir.4

Gráfico 1 – Espacialidades da vivência travesti em Ponta Grossa (PR).

As narrativas desenvolvidas pelo grupo de travestis evidenciam


os espaços que compuseram sua existência ao longo de suas vidas. Cada
espaço rememorado está carregado de significados, que constroem um

4
O percentual relacionado à espacialidade discursiva Outras espacialidades pulveriza-se
em: Boate, Casa de cafetina, Exército, ONGs, Rua, Trabalho e Vizinhança.

186
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

sentido específico de suas experiências, pois, como argumenta Harvey


(2002), toda memória é também uma memória espacial. Embora o Gráfico
1 apresente uma hierarquia quantitativa de frequência de evocações do
discurso, o texto será organizado internamente com base na sequência
espacial discursiva que estrutura as narrativas do grupo.
A espacialidade discursiva Casa, que representou 17% das evo-
cações do discurso das travestis, foi rememorada a partir de experiên-
cias de dois períodos de suas vidas: infância/adolescência e fase adulta.
Cada um desses dois períodos obteve 50% das evocações ligadas a essa
espacialidade. O Esquema 1, com esferas de diferentes tamanhos, mostra
a variação de importância das categorias discursivas evocadas. Assim, a
categoria mais marcante no discurso travesti na espacialidade discursiva
Casa diz respeito a Relações familiares, e assim sucessivamente.

Esquema 1 – A espacialidade Casa.5

A categoria Relações familiares é constituída majoritariamente


por aspectos negativos, marcados pelo conflito familiar que nasce da dis-
sonância do comportamento de gênero esperado pelos demais integran-

5
Os tamanhos das esferas em todos os esquemas expressam as intensidades das evocações.

187
corpos, sexualidades e espaços
A instituição do território paradoxal na atividade da prostituição travesti

tes do grupo familiar. São relatados preconceito, violência e cobrança do


exercício da masculinidade, a fim de corresponder à sua genitália. Os re-
latos de aceitação e compreensão de sua identificação com a feminilidade
ocorrem, notadamente, quando elas já estão em fase adulta e passam a
ser importante suporte financeiro para o grupo familiar, que depende
dos recursos advindos da prostituição, assim como também evidenciado
por Pelúcio (2005). É por meio da ajuda financeira prestada à família que
as travestis têm uma forma de resgate de carinho e aceitação dos fami-
liares.
Outra categoria discursiva que compõe a espacialidade discur-
siva Casa é Relações companheiro. Essas relações foram apresentadas
por meio de várias expressões que opõem o “sexo com amor”, que seria
aquele praticado com o companheiro em casa, e o “sexo por dinheiro”,
que seria aquele praticado com os clientes. Embora elas argumentem este
limite, há vários casos em que elas se apaixonam por seus clientes ou,
ainda, cedem ao “vício”6. O discurso das travestis em vários momentos
aponta para a impossibilidade de conciliar a vida de prostituta com uma
vida marital e, em outros momentos, evidencia um processo de negocia-
ção entre o casal. Elas interiorizam vários traços presentes em qualquer
casal que corresponda à sociedade heteronormativa. Há, por exemplo, a
cobrança de papéis de gênero entre os componentes do casal, a cobrança
da fidelidade, bem como a cobrança de guardar determinadas práticas
sexuais que possam ser praticadas apenas com o companheiro. O dis-
curso travesti revela algumas negociações entre o casal, que devem ser
obedecidas e que são reguladas pelos seus companheiros. A fidelidade,
por exemplo, é entendida como não trazer clientes para casa, já que este
local é considerado como exclusivo do casal. A travesti não deve beijar
seus clientes na boca, tampouco obter prazer nas relações sexuais. Essas
normas de fidelidade conjugal estabelecidas pelo grupo para as travestis
“casadas” constituem um código moral que nem sempre é cumprido, ten-
do em vista que os limites entre cliente e companheiro às vezes não são
tão fáceis de serem colocados.
As travestis, apesar de toda a dissonância que apresentam em
relação à sociedade heteronormativa, incorporam uma série de valores
hegemônicos. Possuem seus códigos de honra, que definem o que é ser

6
Este termo é utilizado quando a travesti pratica sexo com alguém que a atrai e não cobra
pelo serviço prestado, mesmo que a pessoa ainda se enquadre na condição de cliente.

188
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

uma “travesti fiel ao marido”, como aponta Cançado (2001). O papel com
que elas em geral se identificam em um relacionamento conjugal é o fe-
minino, que incorpora as normas de gênero da sociedade ocidental, tal
como visto em Rougemont (2003). Pelúcio (2005) afirma que, nas relações
amorosas das travestis, mesmo que não exista uma trajetória facilmente
identificada com os padrões de um casal de classe média heterossexual,
há influência dos códigos conjugais heteronormativos, e elas “almejam
uma vida conjugal nos moldes instituídos: casa, marido, homem de ver-
dade, tranquilidade financeira, trabalho normal” (2005, p. 236).
Nike e Hera evidenciam, nos trechos de relatos que se seguem,
a reiteração de um conjunto de normas convencionadas na sociedade
heteronormativa, mesmo que as travestis sejam vistas como um grupo
dissidente.

O maior diferencial disso tudo é fazer com amor, e fazer por di-
nheiro. Lá na esquina, no meu profissional, eu vou para a cama
com o cara, e obviamente que eu não vou por prazer. Vou apenas
pelo nosso trato ali. [...] faz quatro anos que eu sou casada, hoje em
dia na esquina, o que conta para mim é o dinheiro. Eu dou prazer,
mas não tenho prazer. [...] Com meu companheiro, faço com amor,
com carinho. Espero aquilo, sinto desejo daquilo, já fico pensando
como vai ser a próxima, que horas, quando. Já na esquina, não.
Se o cliente vai voltar ou não, não importa. Se o dinheiro dele vai
voltar, aí importa. (Acervo documental GETE / fontes orais − En-
trevista feita em Ponta Grossa, PR, com Nike, em 1/2/2007).
A diferença básica é que tem sentimento. É porque com o meu ma-
rido eu não faço sexo, eu faço amor. Esta é a diferença. E na rua
eu faço sexo, sexo por sexo. Uma coisa mecânica, bem comercial
mesmo. Sou estritamente profissional assim. (Acervo documental
GETE / fontes orais − Entrevista feita em Ponta Grossa, PR, com
Hera, em 28/3/2007).

Outra importante característica das relações com os compa-


nheiros é a interiorização de normas de gênero da sociedade ocidental,
baseadas em uma forte divisão de papéis femininos e masculinos. Desta
forma, as evocações declararam que o papel do companheiro no relacio-
namento deveria ser o de provedor da casa, que na relação sexual a tra-
vesti deveria ser passiva e o companheiro, ativo, e que a travesti deveria
ser responsável pelos afazeres da casa e do cuidado com o companheiro.

189
corpos, sexualidades e espaços
A instituição do território paradoxal na atividade da prostituição travesti

Como evidenciado nas falas das travestis, os papéis orientados


a homens e mulheres nos relacionamentos existentes na sociedade hete-
ronormativa são performaticamente buscados nos relacionamentos das
travestis. Na mesma busca, quando a travesti tem um relacionamento
com uma mulher, ela deve ocupar o papel atribuído ao homem na rela-
ção, como tratado na fala a seguir.

Se a travesti é casada com uma mulher, que é minoria, mas tem,


como o exemplo da Têmis, ela tem que fazer como ela faz, ela
tem que se virar, tem que ser o homem da relação. Ela tem que ir
para a rua, conseguir dinheiro, tem que sustentar a esposa, como
o homem sustenta a esposa. Agora, a travesti que é casada com
homem, acho que o homem tem que sustentar a travesti. E se a
travesti quiser ir para a rua, para gastar dinheiro nas futilidades,
ela vai, se não quiser, não. Se eu fosse casada eu seria assim. Seu
eu fosse casada, o meu marido bancaria tudo. (Acervo documental
GETE / fontes orais − Entrevista feita em Ponta Grossa, PR, com
Afrodite, em 20/3/2007).

A categoria discursiva Relação materna, componente da espa-


cialidade Casa, traz narrativas que mesclam aceitação e rejeição. A posi-
tividade da relação materna se vincula com a possibilidade de assumir
a sexualidade e envolve respeito, bondade, generosidade e aceitação. A
negatividade da relação diz respeito à cobrança da masculinidade e en-
volve não aceitação, rejeição e violência. Tais paradoxos estão presentes
nas falas abaixo.

[...] a minha mãe sempre me repudiou. Sempre fez questão de falar


que eu era homem, e que ela queria um filho homem, que ela tinha
posto um filho homem no mundo, e era o que ela queria. Cada vez
que eu vou fazer uma visita pra minha mãe, parece que eu fui fazer
uma visita ao médico. A gente conversa coisas superficiais, nada a
ver, ninguém fala de ninguém. [...] sempre tive uma relação assim
com a minha mãe. Hoje em dia que eu vivo há seis anos fora da casa
da minha mãe, a minha relação é bem melhor do que era antes, de
quando eu convivia com ela, eu apanhava todo dia, nós brigáva-
mos todo dia, porque ela sempre me rejeitou. A rejeição, pelo que
eu sei até então, a rejeição que ela tem comigo vem desde o ventre.
(Acervo documental GETE / fontes orais − Entrevista feita em Pon-
ta Grossa, PR, com Nike, em 1/2/2007).

190
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

Eu tenho a minha mãe como referência de pessoa. Tipo assim, eu


tento ser igual a ela, eu não consigo, mas eu tento. Ser uma pessoa
boa e generosa, ter um bom coração, desejar o bem para os outros,
acreditar em Deus, mas é difícil, ainda mais sendo uma travesti.
(Acervo documental GETE / fontes orais − Entrevista feita em Pon-
ta Grossa, PR, com Afrodite, em 20/3/2007).

A espacialidade discursiva Casa também envolve a categoria Re-


lação paterna. Nesta relação, apesar de ela também ser marcada pelo pa-
radoxo da aceitação e rejeição, como ocorre nas relações maternas, pre-
domina, sem dúvida, a rejeição, calcada no preconceito da exigência do
exercício da masculinidade, bem como na vergonha que os pais sentem
em razão de as travestis não corresponderem à sua expectativa de padrão
de masculinidade desejada. São mais comuns os relatos que envolvem a
violência física e sexual na relação paterna do que na materna.
A categoria discursiva Sentimento de diferença, que faz par-
te da espacialidade Casa, expressa no Esquema 1, remonta às primeiras
sensações de inadequação de seu corpo biológico ao comportamento so-
cial esperado, com lembranças relativas à faixa de cinco a doze anos de
idade. As brincadeiras de infância consideradas impróprias para elas são
comuns em seus depoimentos, tal como relata Héstia.

Eu não sabia que eu era homossexual. Eu era delicada. Desde crian-


ça, toda a vida eu fui delicada. Isso desde os sete anos. Eu estu-
dei no Seminário [nome ocultado]. É onde é agora aquele colégio
[nome ocultado]. A minha família me colocou ali já pela tendência
que eu tinha, desde o primeiro ano do primário. Porque eu já não
gostava de ficar no meio da piazada, jogar bola e brincar de car-
rinho e estas coisas, isso não era a minha área. A minha parte era
ficar no meio das meninas, brincar com coisas de meninas. Então,
eu fui crescendo assim, e a minha família foi deixando. (Acervo do-
cumental GETE / fontes orais − Entrevista feita em Ponta Grossa,
PR, com Héstia, em 15/3/2007).

Segundo Chateau (1987), brincadeiras e jogos são maneiras pe-


las quais as crianças se relacionam com o mundo, construindo sua autoi-
magem perante o mundo e elaborando individualmente esperas de com-
portamento futuro. Para o autor, a brincadeira é uma ação direcionada
ao sujeito em prejuízo do objeto, não sendo o jogo uma atividade em si,

191
corpos, sexualidades e espaços
A instituição do território paradoxal na atividade da prostituição travesti

mas colocando-se como o processo por meio do qual o indivíduo se iden-


tifica com a atividade. Para Welzer-Lang (2001), é ao longo da vida que as
pessoas vão experienciando os papéis sociais que se iniciam na infância.
A casa é o espaço em que as travestis vivenciam as primeiras
relações sociais, nas quais captaram um sentimento de distinção em rela-
ção aos outros. Elas buscam inteligibilidade de si em uma sociedade que
constrói modelos sociais bipolares (masculino/feminino) nas quais elas
não se enquadram plenamente. A família busca impor aos corpos sexua-
dos a linearidade entre sexo, gênero e desejo, e é nesse jogo conflituoso
que as travestis vivenciam suas casas.
A Cidade, outra espacialidade discursiva que constitui o discur-
so travesti, é utilizada para rememorar predominantemente a fase adul-
ta. As categorias discursivas vinculadas com ela figuram no Esquema 2,
em diferentes esferas, que evidenciam a variação de intensidade da fre-
quência de evocações: Ser travesti, Autoimagem, Sentimento de diferen-
ça e Prostituição.

Esquema 2 − A espacialidade Cidade.

192
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

A categoria discursiva Ser travesti, que compõe a espacialidade


Cidade, traz as características evocadas pelo grupo. Para elas, ser travesti
é sinônimo de luta, resistência e coragem, sendo central na vida da tra-
vesti o silicone, a busca constante pelo corpo feminino, a aceitação da
identidade de gênero e a ideia de um indivíduo que congrega simultane-
amente a força masculina e a fragilidade feminina.
Elas constroem explicações para evidenciar o que é ser travesti
em duas direções. A primeira relaciona-se com justificativas médicas e
biológicas, sempre se referindo ao fato de as travestis terem maior quan-
tidade de hormônios femininos que masculinos no corpo. A segunda bus-
ca uma espécie de divinização da travesti, associando-a à espiritualidade
e referindo-se a anjos sem sexo definido. Ainda no campo da espirituali-
dade, elas insistem na ideia de que ser travesti é ter um corpo de homem
e uma alma feminina.
A cidade experienciada pelas travestis aqui retratadas espelha o
sofrimento de exclusão espacial, assim como estudado por Silva (2009b).
É a partir deste panorama de rejeição que a presença das travestis na
cidade é naturalizada, notadamente à noite, durante o exercício da pros-
tituição.
A cidade é multidimensional, composta por vários textos, con-
forme a perspectiva de Duncan (1990). Cada grupo social estabelece di-
ferentes relações com o espaço urbano, que, para o autor, são os textos.
Corrêa (1995) considera que é por meio da cidade que as pessoas “pro-
duzem, circulam, consomem, lutam, [amam, odeiam]7, sonham, enfim,
vivem e fazem a vida caminhar” (CORRÊA, 1995, p. 44). As relações das
travestis com a cidade não se fazem dissociadas deste calidoscópio con-
traditório e complementar, demonstrando a sua intensa luta por sobre-
vivência, em meio a todas as adversidades. A experiência de ser travesti
está relacionada com a interdição de acessar vários locais da cidade que
lhes possibilitariam ascensão social e econômica, como escolas e locais de
trabalho. É da interdição vivenciada na cidade que se constrói para elas,
como alternativa de sobrevivência, a atividade de prostituição, e, assim, a
categoria discursiva Ser travesti remonta à ideia de prostituta.
A categoria discursiva Autoimagem, na constituição da espa-
cialidade Cidade, se faz por evocações contraditórias. Elas imaginam que
sua imagem é admirada, pela feminilidade que apresentam, e, ao mesmo

7
Segmento acrescentado, pelo autor deste ensaio, ao excerto de Corrêa (1995, p. 44).

193
corpos, sexualidades e espaços
A instituição do território paradoxal na atividade da prostituição travesti

tempo, desprezada, por serem vistas como desavergonhadas ao exibir uma


dissonância tão nítida entre um corpo com pênis e a expressão feminina
marcante. Elas relatam o sentimento de inveja, advindo de mulheres, e o de
desejo, por parte de homens. Afirmam o desejo de continuar produzindo
a sua feminilidade, apesar das dificuldades que esta mesma feminilidade
buscada coloca para conquistar postos de trabalho fora da prostituição.
Narram seu sucesso, fama e glamour, ao lado do abandono da sociedade.
A categoria discursiva Sentimento de diferença, que constrói a
narrativa travesti sobre a espacialidade Cidade, vincula-se à ideia de que
a sociedade as concebe como pessoas doentes e defeituosas. Seu corpo,
segundo Prins e Meijer (2002), não é considerado como humano, e ele se
situa fora do âmbito dos direitos sociais. Nesse sentido, vejamos os depoi-
mentos de Nike e Têmis.

Neste momento a maior importância do território para mim é por


causa da discriminação da sociedade. Eu não ser uma travesti que
possa se impor durante o dia, por causa do meu trabalho. Não que
eu não possa. Talvez eu queira evitar algumas feridas, que eu não
vou saber lidar com elas. Talvez eu queira evitar isso. [...] A socie-
dade me vê como uma aberração da natureza, entendeu? E outra,
nós vivemos em um capitalismo selvagem, em uma selva capitalis-
ta. Se eu começar a causar problema em meu trabalho por causa
da minha imagem, meu patrão vai se obrigar a me demitir. (Acervo
documental GETE / fontes orais − Entrevista feita em Ponta Grossa
PR, com Nike, em 1/2/2007).

Então eu espero que diminua o preconceito, a sociedade pegue


e enxergue a travesti como um ser humano. Acho que cada um
tem o seu valor, não é verdade? Espero que tenha mais campo
de trabalho, que diminua a prostituição. Que, sem oportunidade
de serviços, a prostituição só tende a aumentar. Eu acho que a
sociedade tem que ser mais unida e pegar, e olhar para o ser hu-
mano, olhar para a travesti, olhar para a prostituta, como um ser
humano que está ali porque precisa. (Acervo documental GETE /
fontes orais − Entrevista feita em Ponta Grossa, PR, com Têmis,
em 7/3/2007).

A categoria discursiva Prostituição na espacialidade discursiva


Cidade é marcada pela interdição. Ou seja, a discriminação impede que
elas tenham melhores inserções laborais, e a prostituição é uma oportu-

194
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

nidade que lhes garante certo ganho financeiro, em virtude do desejo que
seus corpos despertam.
O processo de vinculação de cada travesti ao grupo se faz pelo
que é rememorado nas experiências de exclusão social e espacial. Além
disso, agregam-se outros elementos comuns ao grupo de pertença, que
apropriam áreas da cidade por meio da atividade da prostituição. Esse
processo é tema da próxima seção.

SUPERANDO AS DUALIDADES INSIDER/OUSIDER POR


MEIO DA COMPREENSÃO DO TERRITÓRIO PARADOXAL

A proposição de Duncan (1990), em The City as Text, é produti-


va para a abordagem da vivência travesti. O autor analisa o espaço para
além das suas apresentações materiais, considerando-o como um sistema
de significados, da mesma forma como um texto, ou seja, recebendo e
transmitindo informações. Analisando o Reino de Kandy, no Sri-Lanka,
Duncan apresenta uma cidade polivocal, argumentando que é por meio
desta cidade enquanto texto que as práticas sociais são comunicadas, ne-
gociadas e desafiadas. Assim, Duncan (1990) dá visibilidade a uma rede de
relações que são compostas e compõem o espaço, colocando as pessoas
como seres ativos e criativos através dos processos de leitura e interpre-
tação do espaço. Outra evidência lançada pelo autor é a dificuldade de
interação interpretativa do espaço entre grupos que não comungam dos
mesmos códigos culturais.
O entrecruzamento de textos promove a “intertextualidade”
proposta por Duncan (1990), de forma permanentemente transformada. A
cidade-texto se faz a partir de dinâmicas relacionais e processuais entre
um conjunto de sistemas de significados e práticas temporalmente mutá-
veis. É fundamental a evidência da construção de diferentes significados a
respeito de um mesmo objeto, bem como de seus contrastes e assimilações,
admitindo a existência de forças que atuam na produção simbólica do es-
paço. A consideração da cidade enquanto um texto, produzida por inter-
textualidades, representa uma possibilidade de tornar visíveis textos que
não são hegemônicos, com sua correspondente dimensão espacial.
Os textos urbanos coexistem, se interceptam, se conectam, se
sobrepõem ou se justapõem uns aos outros. Convém salientar que o texto
que é composto/compõe o território da prostituição travesti é um texto

195
corpos, sexualidades e espaços
A instituição do território paradoxal na atividade da prostituição travesti

situado à margem do poder hegemônico, mas que, paradoxalmente, se


relaciona com aqueles que detêm a hegemonia.
O território da prostituição travesti, visto como um dos textos
que compõem a cidade, é um elemento fundante da vida adulta das tra-
vestis. Esta espacialidade discursiva é composta pelas categorias discursi-
vas Prostituição, Controle do território, Autoimagem e Ser travesti, como
se observa no Esquema 3, abaixo, em que esferas de diferentes tamanhos
representam a intensidade da frequência com que elas aparecem nas nar-
rativas.

Esquema 3 – Território da prostituição travesti.

Na espacialidade discursiva Território predominam as catego-


rias Prostituição e Controle do território, com frequências menores para
Autoimagem e Ser travesti.
As evocações relativas às categorias Autoimagem e Ser travesti
indicam que as travestis obtêm aceitação de suas feminilidades pela so-
ciedade por meio do território. Os elementos do universo feminino que
constituem o corpo das travestis são lidos como marcas simbólicas e ma-
teriais, que são motivo de admiração ou de repulsa, tendo em vista que,

196
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

conforme afirma Louro (2004), é no corpo e através dele que a heteronor-


matividade ou a sua transgressão ocorrem.
Essas marcas simbólicas femininas − ingestão de hormônios,
colocação de silicones, intervenções cirúrgicas, depilação e utilização de
roupas femininas − nos corpos considerados biologicamente masculinos
são julgadas imorais e/ou patológicas. Assim, preconceito e admiração
compõem o paradoxo da vivência territorial travesti.

Os que saem comigo falam que eu sou bonita, só que eles podem
falar isso pra mim como falam para os bagulhos. [gargalhada] [...].
Já as travestis novatas falam que queriam ter o meu corpo. As mais
antigas não falam nada. As que estão começando perguntam: como
que você conseguiu este corpo? O que tem que fazer para conse-
guir este corpo? [...] E, assim, eu nunca me inspirei em nenhuma
travesti, eu me inspirava em mulheres bonitas, Carla Peres, Feiti-
ceira, as da mídia e da televisão, porque pessoalmente eu nunca vi
uma mulher bonita. Sempre as da mídia e da televisão. Aquilo que
é mulher pra mim. E até hoje, pra mim, mulher é aquelas. E eu me
espelhei nelas. Seio grande, cintura fina, coxas grossas, era esse o
modelo de corpo que eu queria. As pessoas enquadram a travesti
como se todas fossem iguais, e não é. Cada uma tem uma persona-
lidade. Pro mundo a travesti é um homem que se veste de mulher
e que quer sexo. É isso que as pessoas pensam. Que é essa a vida da
travesti, se vestir de mulher, e ter bastante relação sexual. (Acervo
documental GETE / fontes orais − Entrevista feita em Ponta Gros-
sa, PR, com Afrodite, em 21/3/2007).

Quando você passa, as pessoas mexem. A trajetória de você che-


gar no ponto, porque tinha uma trajetória, que você passava pelo
terminal, então os homens mexiam, e isso era bom. É bom você
ser desejada. Ao contrário, quando você passava e os outros te
criticavam, te xingavam, então isso deixava você mais para baixo.
(Acervo documental GETE / fontes orais − Entrevista feita em Pon-
ta Grossa, PR, com Eos, em 7/3/2007).

As marcas incluem ou excluem corpos de espaços e grupos es-


pecíficos, de modo que, dependendo da espacialidade vivida pelas traves-
tis, seus corpos podem ser aprovados, tolerados ou rejeitados. O trabalho
de Cabral, Ornat e Silva (2011) evidencia que a dissonância entre os cor-
pos masculinos das travestis e a feminilidade que elas expressam gera
grande hostilidade social, o que as torna vulneráveis a atos de violência.

197
corpos, sexualidades e espaços
A instituição do território paradoxal na atividade da prostituição travesti

Por outro lado, dentro do próprio grupo de travestis que compartilham


o território da prostituição existe um padrão de feminilidade a ser atin-
gido, e aquelas que não alcançam esse ideal são criticadas como sendo
“boys vestidos de mulher”.
A categoria discursiva Controle do território, que compõem a
espacialidade Território, revela as práticas desenvolvidas pelas travestis
para manter o poder sobre o espaço apropriado, tal como visto por Silva
(2002). A apropriação pode ser de uma rua ou de um conjunto de ruas,
durante determinado tempo. É a constituição de redes de relações sociais
que comungam de normas comuns para a transformação do espaço em
território, como apontam Mattos e Ribeiro (1996).
A violência física e verbal constitui importante elemento da ca-
tegoria discursiva Controle do território. Esta mesma tendência aparece
na pesquisa de Ribeiro (2002). Todavia, apesar dos constantes conflitos, o
território da prostituição também se faz de diferentes afetos. Existe uma
simultaneidade de elementos que constituem os paradoxos do territó-
rio, pois as disputas de locais privilegiados do território entre as travestis
também são permeadas por ações de solidariedade entre elas.
A conquista e manutenção do “ponto” no território da pros-
tituição é um relato frequente em suas narrativas. O “ponto” constitui
uma referência na conquista de uma posição de visibilidade para atrair os
clientes da prostituição. Assim, quando uma travesti desafia a apropria-
ção de um ponto, ocorre conflito, que pode culminar em violência física.
A violência vivida no exercício territorial funciona também
como um ritual de passagem para as travestis que pretendem ingressar
na área. As regras são instituídas pelas travestis mais velhas ou pelas con-
sideradas mais fortes.
Para serem aceitas, as travestis mais novas devem respeitar a
hierarquia estabelecida pelo grupo, mostrando sua resignação frente a
esse poder. Por mais que uma nova travesti seja rejeitada inicialmente
pelas veteranas, por causa da concorrência, é necessário que ela resista
e mostre sua força. A resistência nesse contexto demonstra a vontade, a
resignação e a aceitação das normas convencionadas no grupo das tra-
vestis, possibilitando a participação nas dinâmicas territoriais.
A espacialidade discursiva Território, evidenciada a partir de
seu controle, produz um texto que é lido e interpretado por sujeitos que
compõem ou que almejam compor as dinâmicas territoriais do grupo de

198
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

travestis. E esse texto, conectado ao texto da heteronormatividade, per-


mite que, como grupo, elas consigam viver, paradoxalmente, o espaço
urbano a partir da prostituição.
As falas das travestis demonstram que o território significa
mais do que o ganho financeiro obtido com o comércio das práticas se-
xuais. O território se faz do compartilhamento de suas experiências de
discriminação e preconceito e, além disso, da possibilidade de vivenciar
o desejo e a feminilidade sonhada. Portanto, o território se caracteriza
como elemento fundante da identidade das travestis.
A Prostituição é a principal categoria discursiva da formação da
espacialidade Território, como mostra o Esquema 3. As evocações que es-
truturam a prostituição estão relacionadas com os seguintes elementos:
atividade comercial, possibilidade de aceitação social e admiração, rela-
ções de aprendizado (tanto de práticas convencionadas, no grupo, como
de técnicas de transformação do corpo), contato e uso de drogas e álcool,
bem como violência e preconceito. Assim, esses elementos geram uma
justaposição de sentidos que faz do território da prostituição, muito mais
do que um local de obtenção de renda, uma fonte de existência.8
O território da prostituição está conectado aos espaços interdi-
tados à existência travesti. É a exclusão da escola, da casa e do trabalho
que cria os elementos de constituição do território da prostituição tra-
vesti. Ou seja, há espaços permitidos a elas, como o território da pros-
tituição, em que podem manifestar sua feminilidade e serem desejadas.
Contudo, o desejo e a admiração devem ser banidos de outros espaços,
que são considerados impróprios à sua existência social.9
É também no território da atividade da prostituição que as tra-
vestis aprendem as técnicas de transformação corporal, notadamente,
por meio de contatos com as especialistas que aplicam as injeções de si-
licone, chamadas de “bombadeiras”, e mediante a indicação de hormô-
nios. Nessa mesma vivência territorial, ensaiam-se as formas de compor-
tamento, os significados linguísticos e os sinais corporais que permitem
provocações, assédios, disputas e rivalidades. Os elementos comuns são a

8
Peres (2005), ao estudar o grupo de travestis, afirma que a sociedade não tem construído
possibilidades laborais para as travestis fora da atividade comercial sexual.
9
Benedetti (2000) aponta para a necessidade de não se associar a ideia de travesti à
de prostituição. Entretanto, e, infelizmente, no Brasil ainda são raras as travestis que
sobrevivem fora da atividade comercial sexual.

199
corpos, sexualidades e espaços
A instituição do território paradoxal na atividade da prostituição travesti

esperteza, a força e a malícia, sempre lembrados e considerados na com-


posição do ser travesti. No processo de aprendizagem, é comum a figura
da “madrinha”, geralmente uma travesti experiente e de valor moral re-
conhecido segundo os códigos identitários do grupo.
A madrinha possibilita um aprendizado mais rápido para a tra-
vesti, além de avalizar seu ingresso, de uma maneira mais tranquila, nes-
se território repleto de conflitos. Afinal, a vivência cotidiana dessas pes-
soas é marcada por situações de insegurança, descaso e abandono. Assim,
as adversidades as tornam mais decididas, mais firmes, fortes e espertas,
guerreiras em defesa de suas vidas, criando uma couraça espessa para
suportar o sofrimento, a violência e a intolerância social.
A multiplicidade de teias sociais evidenciadas pelas travestis
em suas narrativas levou à necessidade de buscar uma base conceitual
que dê conta dessa complexidade. Encontramos essa base nas proposi-
ções de Gillian Rose (1993), para quem os sujeitos são multifacetados e
vivenciam simultaneamente várias categorias que a sociedade científica
criou. Ou seja, os seres humanos vivenciam o gênero em constante rela-
ção com outras esferas identitárias dos sujeitos, como raça, classe e se-
xualidade. Isto institui um sujeito múltiplo, que vivencia espacialidades
multidimensionais, contingentes e em movimento contínuo de tensão.
E toda relação pressupõe poder, compreendido pela autora, nos moldes
de Foucault (1988), como constituído de feixes multidirecionais que, em
processo constante de tensão, reposicionam sujeitos em relação.
Nesse sentido, a figura que se segue (Tipo ideal 1) apresenta
uma proposta de ultrapassar a ideia de território que coloca sujeitos em
relação oposicional (insider/outsider) para conformar uma proposta de
território paradoxal, baseada em Rose (1993).

200
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

Tipo ideal 1.

Como se observa na figura do tipo ideal delineado acima, que


contraria o conceito de território marcado por inclusão e exclusão − tão
presente nas reflexões da geografia brasileira −, a vivência espacial das
travestis apresenta uma configuração distinta, que inclui o cliente nas
relações territoriais, embora de forma periférica nas relações de poder.
Essa relação entre centro e margem também ocorre com outros grupos
sociais com que as travestis se relacionam, como moradores, policiais,
transeuntes, outros profissionais do sexo, etc.
A relação territorial que ocorre entre travesti e cliente é feita
pelo posicionamento da travesti no centro das relações de poder. Afinal,
é através de seu comportamento e de suas roupas e adereços que ela des-
perta o desejo do cliente, representado acima como a margem da confi-
guração de poder, já que ele a procura para viver o prazer que é proibido
pela sociedade heteronormativa.
Esse cliente faz parte do conjunto da sociedade que exclui as
travestis, mas ele compõe simultaneamente o território da prostituição
travesti numa situação de margem. Além de temer ser identificado vi-
vendo uma sexualidade que não corresponde ao conjunto das normas

201
corpos, sexualidades e espaços
A instituição do território paradoxal na atividade da prostituição travesti

de práticas sexuais socialmente estabelecidas, o cliente deve contratar o


preço e os serviços que envolvem o programa, ainda que possua vanta-
gens monetárias.
Depois que o contrato entre travesti e cliente é firmado, ocorre
o deslocamento dos corpos a outras espacialidades, notadamente locais
privados em que a travesti deixa a centralidade da configuração de rela-
ções de poder, tornando-se muitas vezes vítima da violência de seu clien-
te. Esta configuração de margem compõe simultaneamente sua posicio-
nalidade central através do território, interferindo nas práticas grupais
de proteção contra a violência de clientes.
Desta forma, o deslocamento da mesma configuração para ou-
tros espaços reposiciona os sujeitos, e, portanto, o espaço segregado a
que as travestis estão submetidas é, contraditoriamente, um elemento
ativo na composição de seu poder. Tais colocações podem ser claramente
visualizadas na frase de uma das travestis colaboradoras: “são os mesmos
homens que fecham suas portas durante o dia que abrem as pernas du-
rante a noite”.
Esta mediação da experiência travesti produz a concepção de
que o território é composto de um poder multidirecional que é inter-
cambiado entre os sujeitos que compõem a(s) configuração(ões), dando
sentido à própria apropriação espacial. Este território se institui de plu-
rilocalizações de sujeitos que não são fixos em suas posições de centro e
margem, mas constantemente tensionados, já que ocupados simultane-
amente.
Tal apreensão sugere um calidoscópio de configurações, devido
ao fato de que as travestis se constituem nas relações com outros sujeitos,
em configurações espaciais vantajosas ou desvantajosas. As forças postas
em ação nessas dualidades chamam atenção à mobilidade das próprias
relações de poder na formação de territórios, pois, como propõe Foucault
(1988), as relações de poder são exercidas segundo inúmeros pontos, em
relações desiguais e móveis.
Entendemos o poder, segundo Foucault (1988), como uma prá-
tica discursiva e impregnada de espaço. Ele não existe em algum lugar ou
em alguma coisa, mas é produzido por relações sociais, segundo feixes de
relações que são mais ou menos organizados, piramidalizados e coorde-
nados. A possibilidade de existência socioespacial das travestis se vincula
com o território da prostituição travesti, a partir de uma espacialidade

202
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

definida, portanto, e com uma temporalidade também definida, que é,


notadamente, noturna.
A vivência travesti evidencia o distanciamento das clássicas
formas de visualização do território como simples resultado de uma ação
grupal que objetiva delimitar e controlar, produto da junção de espaço,
fronteira e poder, demandando ações de manutenção. A definição suge-
rida pela vivência travesti é de que o território paradoxal da prostituição
travesti é um espaço apropriado por um grupo que exerce a centralidade
das relações de poder a partir de uma complexa relação territorial para-
doxal que institui sujeitos, espaço e poder e que é simultaneamente por
eles instituída, por meio do cotidiano.
A existência das travestis é atravessada por espaços interdita-
dos e por territórios, locais de exclusão e de acolhida, em processos con-
traditórios e complementares. A capacidade de interdição socioespacial
proporciona o fortalecimento de seu território, já que este é um espaço
que lhes possibilita reconhecimento social, seja de que forma for. Como
evidenciado, exclusão e inclusão não são oposicionais, mas complemen-
tares, compondo um território paradoxal da prostituição travesti.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta reflexão evidenciou a instituição do território paradoxal


da prostituição travesti segundo suas vivências cotidianas. O território
paradoxal coloca-se como um texto urbano construído pelas travestis,
formado por um conjunto de vivências contraditórias. Um cotidiano per-
meado de interdições espaciais e resistências, que se transformam em
territórios, passando de indivíduos com restritas espacialidades, notada-
mente noturnas, a pessoas que potencialmente desestabilizam normas
heterossexuais.
Devemos ter claro que, além da multiplicidade de dimensões da
vida das travestis, cada posição deve ser imaginada não apenas como lo-
calizável em múltiplas espacialidades, mas também no tocante aos polos
das relações sociais de poder.
O território paradoxal é constituído por múltiplas e variadas di-
mensões e espacialidades da vivência travesti, posicionando sujeitos ora
no centro, ora na margem de relações de poder, dependendo das marcas

203
corpos, sexualidades e espaços
A instituição do território paradoxal na atividade da prostituição travesti

que esses corpos carreguem e das relações sociais realizadas. Um terri-


tório que se faz da separação e conexão entre eu e outro, entre centro e
margem, em constante movimento. Além disso, tal território é altamente
transitório, em construção permanente. Sua configuração deve ser com-
preendida para além de uma mera área apropriada e controlada, consti-
tuindo-se também como instituída e instituinte das identidades do grupo
social que lhe dá sentido, desvelando as inúmeras geografias paradoxais.

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206
Geografias malditas
TERRITÓRIO DESCONTÍNUO
PARADOXAL E PROSTITUIÇÃO
NA VIVÊNCIA TRAVESTI
DO SUL DO BRASIL
Marcio Jose Ornat

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente texto tem por objetivo compreender a re-


lação entre a vivência travesti1 e a instituição do território descontínuo
paradoxal. Tal proposição foi construída no âmbito do Grupo de Estudos
Territoriais, a partir da análise de conteúdo de um conjunto de dezeno-
ve entrevistas realizadas com travestis que atuam na atividade sexual2,
sendo que três delas foram realizadas na Espanha.3 Além destas, foram
realizadas também sete entrevistas com pessoas atuantes em ONGs que
contemplam o grupo de travestis. Todo o universo de entrevistas foi
analisado segundo a proposta de Bardin (1977), cujo resultado produziu
eixos semânticos que deram sentido às vivências espaciais do grupo in-
vestigado. O universo total das falas4 foi sistematizado a partir quatro

1
Com o objetivo de proteger a identidade das fontes, decidimos utilizar nomes de figuras
femininas da mitologia grega e romana. Além disso, é fundamental destacar que os
nomes são femininos em respeito à identificação de gênero feminino que estas pessoas
expressam, ainda que seus corpos apresentem genitália masculina.
2
Catonné (2001) afirma que a prostituição, além de ser uma das mais antigas atividades da
humanidade, atualmente envolve milhões de pessoas em todo o mundo. Segundo Edlund
e Korn (2002), apoiados em estudos da Organização Internacional do Trabalho, estima-se
que entre 0,25% e 1,5% das populações de países como a Indonésia, Malásia, Filipinas e
Tailândia retiram seu sustento da atividade da prostituição. Esta atividade representa
entre 2% e 14% do Produto Interno Bruto (PIB) de cada um desses países.
3
Entrevistas cedidas pela pesquisadora Joseli Maria Silva (Pós-Doutorado em Geografia e
Gênero na Universidade Complutense de Madrid, 2008).
4
Destaque-se que 23% das evocações discursivas deste universo foram desconsideradas
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

espacialidades discursivas que apresentaram diferentes intensidades de


evocação no discurso do grupo, a saber: Casa (12%), Cidade (5%,), Territó-
rio intraurbano (22%) e Território descontínuo (38%).
Apesar da importância das espacialidades discursivas elencadas
e de sua interdependência, este texto versa especificamente sobre o de-
nominado “território descontínuo” da atividade de prostituição travesti.
Esta espacialidade discursiva foi criada a partir da observação realiza-
da pelo grupo na busca de conquistas territoriais cada vez mais amplas,
atingindo várias escalas espaciais que ultrapassavam os limites munici-
pais. Tais conquistas territoriais estavam relacionadas ao fenômeno da
prostituição e, nesse sentido, este passou a ser o foco de exploração. O
fenômeno da prostituição, apesar de altamente complexo do ponto de
vista espacial, não despertou interesse por parte de geógrafos, como afir-
ma Howell (2001). Assim, as chamadas Feminist Geographies e Queer Geogra-
phies, não obstante tenham como foco de interesse a relação entre sexo,
gênero e desejo, também não privilegiaram o tema da prostituição. No
Brasil, todavia, existem vários estudos da relação entre espaço e ativida-
de comercial sexual, como os de Mattos e Ribeiro (1996), Ribeiro (1997),
Campos (2000), Silva (2008) e Ornat (2009).
A observação da mobilidade das travestis, entre várias cidades,
para o exercício da atividade comercial sexual, ensejou que se levantasse
a hipótese de que os fluxos estabelecidos por elas compunham uma rede
hierarquizada de cidades. Assim, as cidades de maior tamanho seriam
aquelas que reúnem os principais elementos de atração e vantagens lo-
cacionais para a obtenção de maiores ganhos financeiros. Contudo, já nas
primeiras entrevistas esta ideia inicial foi descartada, pela inexistência
de um padrão hierárquico possível de ser cartografado de forma objetiva,
considerando apenas o tamanho e as funções das cidades envolvidas nos
fluxos de deslocamento das travestis. Todavia, das entrevistas explorató-
rias emergiu, com muita força e intensidade, um outro elemento, relativo
às relações interpessoais que as travestis desenvolvem no processo de
mobilidade entre cidades no exercício da prostituição.
Nesse sentido, duas pistas investigativas foram estabelecidas.
A primeira diz respeito à necessidade de ultrapassar os padrões comuns
encontrados nas teorias de redes urbanas, em que o tamanho e a função
das cidades determinam a centralidade ou a importância de um centro

por não constituir um eixo semântico.

208
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

urbano que se torna convergência de fluxos. A segunda pista aponta para


a inevitabilidade de abordar os elementos de subjetividade que compõem
as relações interpessoais desenvolvidas pelo grupo de travestis. Assim
sendo, o presente texto está organizado em duas partes. A primeira parte
promove uma discussão sobre o uso do território descontínuo paradoxal
como ferramenta para compreender o fenômeno da prostituição traves-
ti, a fim de encontrar um suporte teórico-conceitual capaz de construir
a inteligibilidade do fenômeno abordado, e a segunda parte explora as
conexões pessoais e territoriais que dão sentido à realidade vivenciada
pelo grupo de travestis investigadas.

O TERRITÓRIO DESCONTÍNUO PARADOXAL


NA EXPERIÊNCIA TRAVESTI

O território5 é um importante foco de interesse da Geografia,


notadamente na área política, vinculado à noção de fronteiras do Esta-
do-nação, conforme afirmam Wastl-Walter e Staeheli (2004). As autoras
argumentam que o território, tanto quanto a territorialidade e a frontei-
ra, são elementos que remetem às relações de poder ligadas à soberania
e à segurança. Esta tendência tem obscurecido a possibilidade do uso da
ideia de território e poder pelo viés da sexualidade e de outros marcado-
res sociais como gênero e raça, por exemplo. Não obstante, a reivindica-
ção do uso do conceito de território que extrapole a sua relação com o
poder de Estado tem sido feita na Geografia.
Nagar (2004) e Martin (2004) trazem para o debate científico os
territórios e sua conexão com as práticas sociais em que ocorre a imposi-
ção de ideias de um indivíduo ou grupo sobre outros, tendo como base o
estabelecimento de diferenças entre as pessoas. Souza (1995), por sua vez,
constrói seu fundamento sobre as relações de poder na constituição do
território a partir de quem manda e influencia e como manda e influencia
o espaço. É o poder sobre o espaço que estabelece as inclusões ou exclu-
sões de objetos, indivíduos e comportamentos. Estas propostas conceitu-

5
A tradição do território calcada no Estado-nação foi amplamente discutida na obra
clássica de Ratzel, Antropogeografia, publicada em 1882, que foi parcialmente publicada
por Moraes (1990). Além deste, Gottmann (1973) apresenta importante discussão sobre
o território.

209
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

ais possibilitaram a expansão de pesquisas que têm como foco relações


de poder de diversas naturezas, como a cultura, a religião, a economia e
a política.6 Apesar disso, a sexualidade não foi ainda suficientemente ex-
plorada em sua relação com o espaço e tampouco com o território.
As críticas de geógrafos de várias tendências se fundamentam
na ideia de que o território vai além de uma mera ação biológica, por ser
uma construção social, política e cultural. Assim, é possível instituir inú-
meros territórios, dependendo do interesse do pesquisador em determi-
nado fenômeno que envolva relações de poder. Assim, pode-se dizer que
o território e suas fronteiras delimitadoras refletem e condizem com as
relações de poder que o produziram; ele é forjado em situações particula-
res e se projeta para fins estabelecidos.
Nesse sentido, a atividade de prostituição travesti é um fenô-
meno que pode ser compreendido por meio do território, na medida em
que ela é extremamente hierarquizada e se compõe de tensionamentos
constantes entre os sujeitos que fazem parte do desenvolvimento dessa
atividade.
Existem, por exemplo, algumas especificidades na prostituição
travesti que a diferem da prostituição feminina. As travestis são seres que
contradizem o padrão linear entre sexo, gênero e desejo, e aqueles que
procuram seus serviços − em sua grande maioria homens − costumam
guardar mais sigilo do que se mantivessem relações com prostitutas mu-
lheres. Isso porque manter relações sexuais com uma pessoa que, apesar
da aparência feminina, tem um pênis, pode comprometer a imagem de
masculinidade do cliente. Outra especificidade é o fato de o grupo apre-
sentar a característica de ser dissonante do padrão heteronormativo. Há
uma trajetória de exclusão e discriminação ao longo de suas vidas, desde
a infância até a fase adulta. Este aspecto é comum entre essas pessoas e
suas histórias de sofrimento acabam sendo os elementos constituidores
dos laços de afeto entre elas, como relatado em Silva (2008).
A pesquisa de Ornat (2009) conclui que o território da prosti-
tuição travesti é, além de uma possibilidade de sobrevivência financeira,
um espaço de sociabilidade em que se desenvolve uma série de afetos e
identidades entre as travestis. Se a prostituição é uma das poucas possi-
bilidades que a sociedade ocidental oferece para as travestis, elas fazem

6
Uma parte dessas pesquisas se apoiou na ecologia humana e em fatores biológicos para
compreender o comportamento humano, vertente que não será explorada aqui.

210
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

desse espaço de prostituição seu território. É nesse espaço que elas po-
dem viver sua feminilidade e ser fonte de desejo. Para o autor, o território
de prostituição travesti também pode ser considerado um espaço de re-
sistência, na medida em que elas desenvolvem táticas e estratégias para
defendê-lo.
A complexidade que envolve a instituição do território da pros-
tituição travesti é formada por sentimentos de pertença, a partir de ex-
periências positivas, mas também de exclusão, a partir de experiências
negativas. Ao mesmo tempo em que constituem redes de amizade no co-
tidiano da prostituição, as travestis também praticam ações de competi-
ção e violência. Pode-se assim dizer que o território se faz por esses dois
elementos, que se contrapõem de várias maneiras.
Os espaços intraurbanos apropriados por travestis não se esgo-
tam em si mesmos. Eles dependem da mobilidade que as travestis prati-
cam entre diferentes municípios para oferecer “novidades” aos clientes,
que geram curiosidade e desejo. A rentabilidade da atividade da prosti-
tuição travesti na atualidade é produto da alta rotatividade das travestis,
ou seja, quando elas chegam a um local, conseguem atrair maior quanti-
dade de clientes, movidos pela fantasia de vivenciar novas experiências
sexuais. Os fluxos da mobilidade travesti entre os vários territórios de
prostituição localizados em diferentes municípios estabelecem conexões
entre eles e conformam uma configuração que Souza (1995) chama de
território descontínuo.
Para Souza (1995), o território descontínuo articula variadas es-
calas espaciais, e em todas elas se desenvolvem ações de controle e poder
que geram as fronteiras delimitadoras e os processos de inclusão ou exclu-
são de pessoas e comportamentos, visão esta que também é compartilhada
por Wastl-Walter e Staeheli (2004). Os elementos fronteira (limite delimi-
tador do território), excluídos (outsiders) e incluídos (insiders), tão presen-
tes nas teorias sobre o território, não podem se limitar a apenas uma in-
terpretação. Toda configuração depende de “qual é o ponto de partida”
ou da mirada com que se constrói a inteligibilidade do fenômeno. Ou seja,
um sujeito que observa a atividade de prostituição de fora daquela reali-
dade pode conceber uma determinada configuração territorial que muitas
vezes é diferente daquela percebida por sujeitos que olham o fenômeno a
partir de dentro da atividade. Assim, uma mesma realidade, dependendo
da posição de quem observa, pode compor diferentes configurações envol-
vendo fronteira, insider e outsider, ou seja, variados territórios.

211
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

Por exemplo, a atividade da prostituição travesti, quando ob-


servada por um sujeito pesquisador, pode ser compreendida por um ter-
ritório conformado pelos limites espaciais dentro dos quais as práticas do
grupo de travestis são impostas aos demais. Nesta situação, o território se
constitui pelo grupo de travestis (insiders), e todos os outros sujeitos que
compõem a realidade, mas que não fazem parte do grupo, são considera-
dos outsiders. Contudo, se a mesma atividade de prostituição travesti for
observada por um sujeito que olha o fenômeno de dentro da realidade,
pode conformar-se um território completamente diferente, em que os
elementos insider e outsider são outros. Assim, um homem supostamen-
te heterossexual, casado (perfil costumeiro da prostituição travesti), que
ocuparia a posição de outsider na visão do sujeito-pesquisador que olha o
fenômeno de uma posição externa, pode ser considerado insider na com-
preensão de uma travesti-prostituta que está posicionada dentro da rea-
lidade em foco. Mesmo porque uma prostituta só se estabelece como tal
na relação com o cliente, e, assim, o cliente não estaria fora, mas compon-
do o território da prostituição travesti.
A visão relacional dos fenômenos espaciais foi desenvolvida por
Massey (2008). Para ela, nada é definitivo ou estático, ou seja, tudo está
sempre em movimento, de forma interdependente, como resultado de
um processo que é consequência de quem observa o fenômeno, e de onde
o faz. Nesse sentido, a atividade da prostituição travesti não configura
um único território, que pode ser revelado como verdade universal, mas
múltiplas possibilidades. E a possibilidade escolhida para esta pesquisa é
evidenciar a configuração territorial do ponto de vista das próprias tra-
vestis.
As travestis constituem uma parte da sociedade que as exclui.
Isso porque, para que a sociedade heteronormativa possa se manter
como tal, é preciso criar os seres desprezíveis, aqueles a que a sociedade
deve negar o direito à existência social. Butler (2008) usa a denomina-
ção sujeitos abjetos para definir aquelas pessoas que são desconsidera-
das socialmente. Segundo esta autora, os seres abjetos produzem tanto
o questionamento da matriz de produção de corpos e seus significados
sociais quanto a delimitação do que seria considerado válido enquanto
existência social.
Os corpos das travestis são identificados negativamente pela
sociedade ocidental, já que eles contrariam as normas de linearidade en-
tre sexo, gênero e desejo. Assim, as travestis experienciam o mundo de

212
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

forma paradoxal, tensionando constantemente a sociedade da qual fa-


zem parte. Esta característica é fundamental na forma como elas con-
cebem suas vidas. Fora da existência social, elas constroem suas vidas
esquivando-se da legalidade que não as comporta. A informalidade é
traço marcante na constituição de seus territórios de prostituição. Isso
porque, enquanto desprezadas socialmente e desejadas sexualmente,
elas estabelecem suas táticas de sobrevivência por meio de várias ações
informais em que os códigos morais próprios do grupo e a pessoalidade7
são elementos fundamentais para a conquista de posições hierárquicas e
espaços de maior amplitude.
O exercício do poder se dá no controle dos elementos que
constituem as redes de pessoalidade e os códigos morais da atividade
de prostituição travesti. Entretanto, o poder aqui considerado não está
organizado em uma oposição entre dominados e dominadores. O poder
considerado nesta pesquisa baseia-se em Foucault (1988), para quem o
poder é uma correlação múltipla de forças que nunca se esgotam e que
são inseparáveis do domínio onde elas são exercidas. Para ele, tais forças
estabelecem

[...] o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes a


transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de
força encontram uma nas outras, formando cadeias ou sistemas
ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre
si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral
ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais,
na formação da lei, nas hegemonias sociais. […] Onipresença do
poder: não porque tenha o privilégio de agrupar tudo sob sua in-
crível unidade, mas porque se produz a cada instante, em todos
os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro. O
poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque
provém de todos os lugares. E ‘o’ poder, no que tem de permanen-
te, de repetitivo, de inerente, de auto-reprodutor, é apenas efeito
do conjunto, esboçado a partir de todas essas mobilidades, enca-
deamento que se apóia em cada uma delas e, em troca, procura

7
A ideia de pessoalidade foi desenvolvida em Silva (2002) para evidenciar que o
conhecimento entre pessoas que compartilham um mesmo código de valores é um
elemento determinante nas relações sociais que se desenvolvem em espaços de
pequenas dimensões, sobrepondo-se, inclusive, às relações formais e neutras, típicas da
impessoalidade preponderante na grande cidade da moderna sociedade ocidental.

213
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

fixá-las. […] o poder não é uma instituição, não é uma certa potên-
cia de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação
estratégica complexa numa sociedade determinada. (FOUCAULT,
1988, p. 102-3).

Assim, o poder exercido não concebe a oposição insider/outsi-


der em um território, já que eles são interdependentes e só existem um
em relação ao outro. As noções de poder de Michel Foucault foram fun-
dantes da proposta de Rose (1993). Esta geógrafa desafia a ideia dual e
oposicional de constituição de territórios. Ela cria o conceito de “espa-
ço paradoxal”, para evidenciar a multiplicidade e a plurilocalidade dos
sujeitos permanentemente tensionados em relações de poder, os quais
podem estar na situação de centro e/ou margem da configuração territo-
rial, dependendo do perfil de relação que se estabeleça. Para Rose (1993),
as pessoas ocupam simultaneamente polos de centro e de margem de re-
lações de poder a partir das mais variadas possibilidades espaciais, e isso
depende da posição do sujeito que olha o fenômeno. Pode-se ilustrar a
proposição da autora mediante a situação retratada em Collins (1990),
sobre mulheres negras.
Collins (1990) discute a situação de uma mulher negra empre-
gada na casa de uma família branca nos Estados Unidos. A autora sugere
a simultânea posição de insider e outsider, frequentemente vivida pelas
trabalhadoras domésticas. Estas mulheres, mesmo não pertencendo ao
grupo familiar, acabam estabelecendo relações de intimidade e confiança
com as crianças das famílias. Ao mesmo tempo, elas estão/não estão ali.
A marginalidade social vivenciada pelas travestis também pode
servir para elucidar a simultaneidade das posições insider/outsider. Em
entrevista sobre a atividade de prostituição, Pítia diz:

[...] se eu fosse uma pessoa normal eu não saberia que isso exis-
tia, este outro mundo, que a sociedade sabe que tem, mas fecha
os olhos, dorme no seu travesseiro de pena de ganso e acha que o
mundo dele é outro. Dentro da cidade existem outros mundos, que
a pessoa sabe que existe, mas não sabe como funciona. Eu sei como
que funciona e eu vivo em um deles. (Entrevista feita com Pítia, em
Porto Alegre, RS, em 21/12/2010).

214
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

Pítia fala de sua posição de marginalidade quando considera a


sociedade heteronormativa, em que ela é “anormal”. Contudo, seu dis-
curso evidencia centralidade quando afirma que, no mundo da prosti-
tuição em que vive ela sabe muito bem como tudo funciona, ou seja, ela
tem domínio das táticas e dos elementos que devem ser mobilizados para
influenciar aquele espaço.
A sugestão de simultaneidade de posições e de interdependên-
cia do par relacional insider/outsider é de grande potencialidade para a
compreensão da dinâmica da prostituição travesti, notadamente porque
a pesquisa busca adotar o ponto de vista das pessoas envolvidas na referi-
da atividade. Assim, a proposição conceitual aqui estabelecida é a de que
o território descontínuo paradoxal se define como um espaço produzido
discursivamente, simultaneamente conectado/desconectado, instituído
por difusas e instáveis relações de poder, exercidas de forma multiesca-
lar, gerando, assim, a plurilocalização dos diversos sujeitos que reivindi-
cam para si o direito ao espaço.
Os deslocamentos entre diversos locais praticados pelas traves-
tis na atividade de prostituição conectam espaços, formando redes com
diversos padrões de vínculos de várias naturezas, e é sobre este fenôme-
no que a próxima seção tratará.

CATEGORIAS DISCURSIVAS INSTITUIDORAS


DO TERRITÓRIO DESCONTÍNUO
PARADOXAL NA VIVÊNCIA TRAVESTI

O discurso das travestis sobre a atividade de prostituição e a


mobilidade espacial produziu um total de 380 evocações, conforme o
Gráfico 1, abaixo, que foram organizadas em quatro diferentes catego-
rias discursivas: Fatores motivacionais de deslocamento (17,4%), Fatores
espaciais de conectividade (23,4%), Fatores estratégicos de deslocamento
(17,1%) e Fatores de controle do território da prostituição (35,5%).

215
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

Gráfico 1 – Categorias discursivas que estruturam o território descontínuo


paradoxal da vivência travesti.

As categorias discursivas e estruturantes do território descon-


tínuo paradoxal serão analisadas a seguir, levando em conta um orde-
namento que constrói a lógica argumentativa do discurso travesti, e
não, portanto, a hierarquia quantitativa de evocações. Assim, o texto
apresenta a seguinte ordem argumentativa: 1) os fatores motivacionais
de deslocamento entre locais no exercício da prostituição travesti, para
compreender as razões de tal dinâmica espacial; 2) os fatores espaciais
de conectividade nos fluxos de travestis para o exercício da prostituição,
a fim de compreender os interesses que cada localidade desperta para
o desenvolvimento da atividade do comércio sexual; 3) os fatores estra-
tégicos utilizados pelas travestis no processo de deslocamento espacial,
estabelecendo a forma de suas ações para alcançar seus objetivos; e, por
fim, 4) os fatores de controle do território descontínuo paradoxal travesti
na prostituição, com a finalidade de trazer para a compreensão as formas
de manutenção da configuração territorial estabelecida.

216
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

Figura 1 – Mapa conceitual do território descontínuo


paradoxal instituído pelo discurso travesti.

217
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

FATORES MOTIVACIONAIS DE
DESLOCAMENTO ENTRE LOCAIS NO
EXERCÍCIO DA PROSTITUIÇÃO TRAVESTI

A categoria discursiva Fatores motivacionais de deslocamento


apresentou os seguintes elementos: Motivos financeiros (33%), Manuten-
ção da novidade (21%), Transformação do corpo (12%), Fuga de espaciali-
dades (12%) e Busca da ampliação de relacionamentos (12%).8 As travestis
justificam sua grande mobilidade espacial pelas vantagens econômicas,
tanto nos deslocamentos entre cidades brasileiras como para outros paí-
ses, e também entre cidades no exterior. Elas apontam que esses desloca-
mentos são facilitados pela figura da cafetina, que centraliza as relações
com as travestis, ao mesmo tempo em que estabelece ligações com outras
cafetinas. Essa conexão entre as cafetinas estabelece uma rede que funda
códigos morais próprios, os quais devem ser seguidos por todos os mem-
bros do grupo que querem permanecer em determinada localidade.9
Existe, assim, uma interdependência de cafetina e travesti. A
cafetina precisa que a travesti desenvolva um trabalho sexual intensivo,
já que, em geral, fica com um percentual dos ganhos da travesti. Por ou-
tro lado, a travesti depende da capacidade da cafetina para colocá-la em
diferentes localidades, em curtos espaços de tempo. A travesti, portanto,
precisa da indicação positiva que uma cafetina pode fazer a outra, em di-
ferentes cidades. A mobilidade espacial está relacionada com a demanda
de serviços sexuais, já que “ser nova” no local é uma vantagem junto aos
clientes. Assim, tanto as cafetinas como as travestis têm grande interesse
em aumentar a rotatividade da “novidade” em diferentes locais, e, para
que isso ocorra, as cafetinas estabelecem uma rede de pessoas capazes de
fazer as trocas necessárias.
A rotatividade entre locais de prostituição, geralmente em dife-
rentes municípios, é um elemento fundamental a ser considerado dentro da
categoria discursiva Fatores motivacionais de deslocamento. As travestis de-
vem ser vistas com desejo, e isso se relaciona diretamente com a possibilida-
de de se mostrarem como algo ainda a ser conhecido e descoberto, invocan-
do a fantasia do corpo, como explica Pile (1996). Ártemis relata este processo:

8
Os 10% de evocações restantes são dispersos e não puderam constituir um eixo semântico
próprio.
9
Entrevista feita com Dine, em Londrina (PR), em 27/3/2009.

218
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

Então, a estratégia é essa, você fica na cidade por um tempo, um


mês nessa cidade, fica um mês em Curitiba, aí já pegou os clientes,
já saiu, já fez todos os contatos e tudo mais, aí muda pra outra
cidade, pra dar um tempo. Aí muda pra outra cidade pra dar ou-
tro tempo, e muda pra outra e pra outra, aí volta pra Curitiba. Aí,
depois de um bom tempo volta pra Curitiba, aí voltei a Curitiba e
tô trabalhando aqui, daí os clientes já são diferentes, ou pode até
ser os mesmos de quando ela veio, mas o tempo é outro, entendeu?
(Entrevista feita com Ártemis, em Curitiba, PR, em 26/6/2010).

A busca por novos corpos, como argumenta Binnie (2001), faz


parte das possibilidades eróticas da cidade, de materialização espacial do
desejo sexual. As espacialidades relacionadas com a prostituição travesti
dizem respeito à materialização de desejos sexuais relacionados aos con-
tratos entre travestis e clientes. Assim, o território descontínuo parado-
xal da prostituição travesti também comporta a materialização do desejo
e das fantasias sexuais.
Como aponta Binnie (2001), são as fantasias que nos permitem
criar contextos e espaços orientados aos nossos desejos. A distinção entre
fantasia e realidade funde-se a partir das espacialidades relacionadas à
prostituição travesti, materializando, assim, a fantasia, ou, no mínimo,
potencializando a sua realização.
O acesso a tecnologias de transformação do corpo (elemen-
to Transformação do corpo, da Figura 1) também faz parte do discurso
das travestis, e este elemento foi alocado na categoria discursiva Fatores
motivacionais de deslocamento. O deslocamento constante, que faz com
que elas aumentem seus rendimentos, permite o acesso às tecnologias
de transformação corporal, como plásticas, colocação de próteses e até
mesmo a injeção de silicone industrial. Atena expõe a relação entre des-
locamento e modificação corporal: “Eu já cheguei em Balneário Cambo-
riú toda feita, a dez anos atrás. Por exemplo, Santo André me deu o corpo,
Avenida Industrial em Campinas me deu a prótese, e Balneário Camboriú
me deu tudo que eu tenho”. (Entrevista feita com Atena, em Balneário
Camboriú, SC, em 26/5/2009).
A necessidade constante de atingir um ideal de feminilidade que
corresponda ao conforto psicológico e social da travesti envolve grandes
somas de dinheiro. Assim, o deslocamento proporciona um aumento de
ganhos, permitindo a conquista de formas corporais desejadas.

219
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

O elemento Fuga de espacialidades se vincula com o preconcei-


to da família e relações de proximidade. A fuga também ocorre quando a
travesti está sendo ameaçada e quando sofre alguma violência ou corre
risco de morte. Já o elemento Ampliação de relacionamentos, também
componente da categoria discursiva Fatores motivacionais de desloca-
mento, se atrela à necessidade de estender sua rede de conhecimento de
pessoas, principalmente aquelas que podem viabilizar seu deslocamento,
como mostra o seguinte trecho de entrevista.

Conhecer outras travestis e as amizades, isso é o mais precioso.


Criar uma rede, mais amigas, saber se um dia você for pra aquele
lugar, e elas tiverem lá, elas vão te ajudar, isso é o principal. (En-
trevista feita com Hipólita, em Ponta Grossa, PR, em 11/7/2008).

A ampliação de relacionamentos é uma tática fundamental que


garante à travesti uma série de vantagens, como ser indicada para uma
vaga em casa de uma cafetina por uma amiga, ter local onde ficar quan-
do se desloca e obter proteção frente às demais travestis. Enfim, quanto
mais uma travesti amplia suas redes de relacionamento, com mais facili-
dade ela desenvolve seus deslocamentos, constituindo as densas redes de
pessoalidade de que necessita. A decisão a respeito de para onde se deslo-
car também está relacionada com a categoria discursiva Fatores espaciais
de conectividade, identificada nas entrevistas com as travestis.

FATORES ESPACIAIS DE CONECTIVIDADE


NOS FLUXOS DE TRAVESTIS PARA O
EXERCÍCIO DA PROSTITUIÇÃO

A categoria discursiva Fatores espaciais de conectividade apre-


sentou os seguintes elementos: Relação com a cafetinagem (68%), Ajuda
de travestis (14%), Relação entre militância e cafetinagem (8%), e Relação
entre ONGs (5%).10

10
Os demais percentuais se relacionaram com os seguintes elementos: Repressão policial
e cafetinagem, Ajuda de travestis e cafetinas, Cidade Industrial, e, finalmente, Bons
relacionamentos familiares como elementos de não conectividade espacial.

220
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

O elemento Relação com a cafetinagem é, sem dúvida, hegemô-


nico na formação desta categoria discursiva. As travestis se referiram à
cafetinagem11 com os seguintes sentidos: importância da cafetina nas re-
lações de poder de cada local, necessidade de existência da casa de cafeti-
nas e intensas relações entre cafetinas de diferentes locais.
As táticas estabelecidas na relação entre cafetina e travestis sig-
nificam a possibilidade de existência para as duas partes, já que, em geral,
as cafetinas de travestis são travestis mais velhas, ou, raramente, mulhe-
res. Para atingir a centralidade das redes de pessoalidade e tornar-se uma
cafetina, há um longo caminho a ser percorrido, e as principais funções
da cafetina na organização e manutenção das redes de prostituição es-
tão relacionadas com as seguintes atividades: viabilizar deslocamentos,
indicando uma travesti para outra cafetina de outra localidade, adiantar
recursos financeiros, às vezes, para depois cobrar somas ainda maiores, e
exercer a maternagem12 e a proteção, mas também a coerção e a violên-
cia, para manter as regras impostas.
Erínia13 afirma que Afrodite, uma “proprietária de pensão para
travestis”14, tinha como principal atividade resolver problemas nas espa-
cialidades da prostituição travesti em sua cidade. E isso não se relacio-
nava apenas com a utilização da força e da violência, mas também com
o respeito que havia conquistado junto às travestis pelo desempenho do
papel da maternagem e proteção.
Segundo Erínia, Afrodite conquistou esse respeito quando era
responsável por uma rua de prostituição travesti na Itália. Erínia afirma
que Afrodite tinha o projeto de estabelecer uma nova pensão para tra-
vestis na Europa, criando a partir disto uma rede transnacional de pros-
tituição travesti.

11
Cafetinagem, segundo a Lei 12.015, de 2009, é sinônimo de lenocínio, definido como
prática da exploração sexual, segundo qualquer forma, havendo relação direta ou
indireta com o retorno econômico da prostituição. Importante destacar que este sentido
de ilegalidade não foi reconhecido nos discursos das travestis.
12
A palavra “maternagem” diz respeito à construção da relação entre uma figura materna
e uma figura filial, sem, no entanto, compreender o fator biológico da maternidade.
13
Entrevista feita com Erínia, em Ponta Grossa (PR), em 30/7/2010.
A denominação “proprietária de pensão para travestis” é utilizada por muitas cafetinas
14

para aliviar o significado pejorativo associado à cafetinagem.

221
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

A própria Afrodite, ao refletir sobre sua posição como “proprie-


tária de pensão para travestis”, afirma que o sucesso que obteve, alcan-
çando a centralidade das relações de pessoalidade que possibilitam os
deslocamentos das travestis em redes de prostituição, foi decorrente da
“propaganda” feita pelas próprias travestis, que valorizavam seus servi-
ços, marcados por relações de afeto. Ela relata que muitas vezes é reco-
nhecida pelo papel materno junto às travestis que acolhe em sua casa.

Eu montei minha casa, foi chegando uma, foi chegando outra, tan-
to que todas me consideram mãe, mãe daqui, mãe dali. Todos [os
benefícios], um sorriso, a alegria de uma delas, me faz mais do que
feliz. Esse reconhecimento de mãe é incrível. Porque eu acabo me
sentindo mãe delas de verdade. Porque se elas têm que chorar,
elas vêm chorar para mim. Se elas precisam de uma confidência,
eu ouço. Elas me procuram pra tudo. Pra pedir uma opinião, pra
pedir uma resposta, uma solução. E sem contar que é o meu traba-
lho, mas vai além do financeiro. (Entrevista feita com Afrodite, em
Curitiba, PR, em 31/7/2008).

No grupo, as cafetinas desempenham um papel ambíguo, que


envolve exploração, mas também proteção e acolhimento. As falas das
travestis não trazem significados negativos em relação às cafetinas. As-
sim, ao contrário do que se possa imaginar, elas figuram como elementos
positivos na existência das travestis, pelo acolhimento, por lhes possi-
bilitar ganho financeiro, mas também por lhes oferecer certos serviços
para a transformação do corpo em um ambiente exclusivo, sem que elas
precisem se expor em outros locais da cidade, nos quais poderiam sofrer
preconceito. Esses serviços exclusivos oferecidos são mais caros do que
o comércio convencional, e, além disso, quando financiados pelas cafeti-
nas, acabam sendo adquiridos por valores ainda maiores.

[...] nós aqui temos um lazer muito bom, mesmo se, no dia do lazer,
se elas não tiverem dinheiro, eu empresto, elas vão me pagando
naquela semana. [...] Aí eu tenho uma amiga também que acabou
de me escovar, que coloca megahair nelas, aí, se tiver alguém pre-
cisando, eu coloco, elas vão me pagando aos pouquinhos. Eu tento
fazer elas bonitas, pra ir pra rua e se sentirem bem. Não ir pra rua
aquele cão feio, aquele homem vestido de mulher, mas tem que
ser feminina pra conseguir viver. (Entrevista feita com Atena, em
Balneário Camboriú, SC, em 26/5/2009).

222
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

As cafetinas são identificadas como figuras maternais e, muitas


vezes, elas são chamadas de “mãe” ou “madrinha”; além disso, são o prin-
cipal instrumento de deslocamentos das travestis. Íris15, por exemplo,
afirma que o deslocamento das travestis acontece quando elas conhecem
cafetinas. Segundo ela, as indicações e referências de outras travestis
permitem acessar esses “pensionatos”. Depois de inserida nesta rede de
pessoalidade, a travesti vai de uma pensão a outra. Isso porque as cafeti-
nas estabelecem redes de pessoalidade que propiciam os deslocamentos
de travestis dentro do Brasil e também para e no exterior, como pode ser
visto na fala de Íris:

Por exemplo, eu tô em Ponta Grossa, na casa de uma cafetina que


manda na cidade. Daí eu quero ir pra Curitiba. Aí, como ela co-
nhece a travesti que comanda em Curitiba, ela já me indica. Na
maioria das vezes, elas próprias ligam e falam: Olhe, tô mandando
uma filhinha minha pra ficar um tempo com você. Então, uma ca-
fetina indica pra outra cafetina. É tipo uma rede, [...]. Nós aqui no
Brasil, é uma rede nacional, igual na Europa. Na maioria das vezes,
as que vão pra Europa, hoje em dia elas vão, mas, quando chegam
na Europa, já tá pago o lugar onde elas vão trabalhar, o lugar onde
elas vão morar, pra elas ter segurança. (Entrevista feita com Íris,
em Ponta Grossa, PR, em 8/8/2008).

A atividade de cafetinagem é o principal elemento da categoria


discursiva Fatores espaciais de conectividade, constituindo nós de uma
rede de pessoalidade que funciona mediante códigos morais do grupo,
possibilitando os fluxos intensos de travestis.
Tendo em vista que as travestis constituem um grupo que vive
na informalidade, as relações pessoais são de grande importância, e, sen-
do assim, elas consideram um fator fundamental o fato de receberem aju-
da de outras travestis para realizar seus deslocamentos (elemento Ajuda
de travestis, com 14% das evocações). Quando as travestis conhecem um
grande número de outras travestis, amplia-se a sua capacidade de acessar
outros locais. Assim, e, diferentemente da característica de fixidez que
a cafetina representa, o constante deslocamento das travestis configura
uma possibilidade fluida de conexão.

15
Entrevista feita em Ponta Grossa (PR), em 8/8/2008.

223
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

A categoria Fatores espaciais de conectividade também apre-


senta os elementos Relação entre militância e cafetinagem e Relação
entre ONGs. O fato de as travestis sobreviverem predominantemente da
atividade comercial sexual e também lutarem politicamente por direitos
humanos cria um interessante imbricamento das instituições de organi-
zação civil que militam pelos direitos LGBT com as redes de pessoalidade
de cafetinas e travestis.
A mesma cafetina que estrutura a prostituição travesti pode ser
uma importante militante política na luta por direitos humanos e cida-
dãos. Assim, é impossível separar os contatos que possibilitam a prosti-
tuição dos eventos em que as travestis se reúnem para atuação política.
Desse modo, a atuação política das travestis permite a ampliação de suas
redes de relações no país, imbricando ações de legalidade e ilegalidade
em sua existência. O depoimento de Erínia é ilustrativo desta afirmação.

Ela [Afrodite] me explicou certinho quando a gente tava no


ENTLAIDS16 no Rio de Janeiro. Ela tá montando um apartamento
lá na Espanha [...]. Porque daí ela vai mandar as que tão na pensão
dela, as que querem, pra lá, pra Espanha. Que eu não digo cafetina-
gem, como que falei pra você [...], é uma oportunidade pra gente.
(Entrevista feita com Erínia, em Ponta Grossa, PR, em 30/7/2010).

Enfim, pode-se afirmar que os discursos das travestis que cons-


tituíram a categoria discursiva Fatores espaciais de conectividade evi-
denciam que a conexão entre diferentes locais, por meio do fluxo de tra-
vestis, tem como elemento fundamental as relações de pessoalidade em
torno da cafetinagem.

FATORES ESTRATÉGICOS DE DESLOCAMENTO


UTILIZADOS PELAS TRAVESTIS

O discurso das travestis também constituiu a categoria discur-


siva Fatores estratégicos de deslocamento, na significação do território
descontínuo paradoxal. Para se deslocar entre localidades, buscando me-
lhorar seu rendimento, as travestis precisam dominar algumas impor-

16
Encontro Nacional de Travestis e Transexuais.

224
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

tantes estratégias. Os elementos que constituem esta categoria discursiva


são: Ajuda de travestis (45%), Relação com cafetinagem (29%) e Conve-
niência (17%).17
A análise das entrevistas evidencia uma forte inter-relação das
travestis com a cafetinagem. Como argumentado anteriormente, em ge-
ral a cafetinagem de travestis não é feita por homens ou mulheres, mas
por travestis. É importante lembrar que há um longo caminho a ser per-
corrido para que uma travesti se torne uma cafetina ou “proprietária de
pensão”. Em geral as cafetinas são ex-prostitutas, que, quando conse-
guem algum montante de dinheiro, desenvolvem práticas que as tornam
cafetinas. Esse processo cria uma espécie de cumplicidade entre elas e as
travestis, ou seja, como ex-prostituta, a cafetina conhece a vida de uma
travesti, e esta, por sua vez, projeta-se no futuro com o sonho de tornar-
se uma cafetina.
O elemento Ajuda de travestis está vinculado com as recomen-
dações que se pautam pelo afeto e a amizade entre elas, ou, ainda, com
indicações de amigas de amigas para conseguir colocação junto às ca-
fetinas. Utilizar o nome de uma travesti que goza de prestígio entre as
demais pode ser um grande auxílio no exercício da prostituição. Assim, a
posição central da travesti utilizada como referência nas relações de po-
der das quais ela faz parte é a chave de entrada para determinadas espa-
cialidades. O aval de travestis mais velhas, ou de “madrinhas”, respeita-
das pelos membros da rede, também pode servir como importante fator
estratégico para fazer deslocamentos espaciais. Os elementos de afeto e
amizade podem ser vistos no trecho da entrevista que segue.

Eu sempre tive ajuda de amigas que tavam batalhando em outros


municípios, que já conhecem, são de lá ou passaram por lá, ou co-
nhecem alguém que tá lá. Eu acho assim, sabe? Mais forte ou mais
fraca não existe, porque a que tem força pode não ter dinheiro, e
quem tem dinheiro talvez não tenha força. Quando a gente vai na
cidade, tem uma travesti que te dá o mapa, como as coisas funcio-
nam lá. Dá o mapa da situação lá, claro! Daí, você não chega crua lá,
já chega conhecendo lá. (Entrevista feita com Hecate, em Florianó-
polis, SC, em 25/5/2009).

17
Os 9% restantes das evocações não constituíram um eixo semântico e foram desprezados.

225
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

Outro elemento importante da categoria discursiva Fatores es-


tratégicos de deslocamento é Relação com cafetinagem. A ajuda entre
travestis constitui um elemento estratégico no deslocamento espacial,
mas ele é mais expressivo em escala nacional. Quando se trata da escala
internacional, a cafetinagem aparece com maior intensidade, apesar de
ser também bastante importante na esfera nacional. Como já evidencia-
do, as redes de conhecimento possibilitam a indicação de nomes, endere-
ços e telefones, que constituem uma importante fonte de troca de infor-
mações nesse ramo de atividade. Mesmo que as redes de conhecimento
pessoal possam sugerir uma aparente falta de organização, pode-se dizer
que elas são extremamente eficientes na garantia da sua reprodução, ul-
trapassando, inclusive, a escala nacional.
As estratégias de deslocamento internacional se desenvolvem a
partir do empréstimo de somas em dinheiro, adiantamentos para compra
de passagens aéreas e preparação de documentação, bem como mediante
a disponibilização de meios para facilitar a entrada em países da Europa,
em geral, Itália, Espanha e Portugal. A dívida contraída é cobrada poste-
riormente, com valores que muitas vezes ultrapassam o dobro daquilo
que foi emprestado.
Febe e Estige apontam em suas entrevistas que o volume da
dívida é bastante superior aos gastos necessários para o deslocamento.
Segundo Febe, apesar de ela ter conseguido entrar na Europa com 1.300
euros, a dívida com seu “facilitador” era de 7.000 euros. Ela afirma que,
para entrar na Europa, algumas amigas suas contraíram dívidas de 10.000
ou 15.000 euros, ainda que nos seus deslocamentos tivessem sido gastos
apenas 2.000 euros. Silva (2011) indica que as travestis desenvolvem um
conjunto de estratégias de deslocamento, driblando os mecanismos de
regulação presentes nas fronteiras entre os países. Portanto, elas nego-
ciam cotidianamente com as estruturas legais hegemônicas em suas táti-
cas de sobrevivência, muitas vezes ilegais, e, assim, fazem parte dos cir-
cuitos internacionais da globalização, assim como afirma Sassen (2003).
Outro elemento da categoria discursiva Fatores estratégicos de
deslocamento é o de Conveniência, denominação usada por Mayol (1996).
As relações entre cafetinagem e travestis são reguladas por um conjunto
de valores e práticas instituidoras de comportamentos que possibilitam
a manutenção das travestis nas redes de pessoalidade, e, assim, colher as
vantagens nas relações de poder instituídas. Assim, cada travesti deve
portar-se segundo as convenções do grupo para ser reconhecida como

226
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

pertencente a ele. A conveniência, enquanto rol de regras tácitas contra-


tadas dentro do grupo, é significada pelas travestis a partir dos seguintes
comportamentos e atitudes: humildade frente a travestis mais fortes e
estabelecidas no centro das relações de poder; conquista de amizades;
escamoteamento de intrigas; não dependência de drogas, para não atrair
a atenção de policiais; e pagamento pontual das diárias à “proprietária
da pensão para travestis”. Um aspecto interessante sobre a conveniência
é o respeito às travestis mais fortes ou centrais, que geralmente se dá
por meio de atos de violência, ou por respeito à idade de travestis mais
velhas. Os atos de violência entre travestis são marcados pela honra de
“não fugir do conflito” e enfrentar com coragem os desafios colocados.
Enfim, saber gerir com habilidade as relações interpessoais, re-
conhecendo as conveniências e as hierarquias do grupo, constitui estra-
tégia fundamental para a ampliação de vantagens no estabelecimento de
atividades de prostituição.

FATORES DE CONTROLE DO TERRITÓRIO DESCONTÍNUO


PARADOXAL DA PROSTITUIÇÃO TRAVESTI

A categoria discursiva Fatores de controle do território da pros-


tituição foi a mais evocada no discurso das travestis relativo à instituição
do território da prostituição. Seus elementos fundantes são: Cafetinagem
(29,2%), Relação entre travestis (26,1%), Deslocamento espacial (25%) e
Conveniência (19,7%). A instituição do território nunca está plena e aca-
bada. Pelo contrário, está permanentemente em processo e, justamente
por isso, os fatores de controle são acionados para que o poder se mante-
nha centralizado em determinados sujeitos. O controle envolve o poder
que se estabelece nas relações interdependentes, desiguais, móveis e in-
trínsecas às travestis e cafetinas.
No contexto da categoria discursiva Fatores de controle do ter-
ritório da prostituição, o elemento principal é Cafetinagem. As chamadas
“proprietárias de pensão para travestis” afirmam que organizaram suas
atividades após terem passado algum tempo como travestis prostitutas
no exterior, angariando com isso os recursos necessários para seus ne-
gócios. Assim, tornar-se uma travesti cafetina é algo que demanda certo
tempo, para captar recursos financeiros, fazer investimentos e estabele-
cer uma forte rede de conhecimento de pessoas. Logicamente, também

227
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

existem cafetões homens, e cafetinas mulheres. Contudo, a cafetina tra-


vesti é mais comum na organização do grupo.
Quando se trata de fatores de controle do território, conside-
rando a escala internacional, também é preponderante o elemento da ca-
fetinagem. Para enviar uma travesti do Brasil para o exterior, é necessá-
rio ter o dinheiro para investir adiantado na compra de passagem aérea,
providenciar a documentação e também acionar um ponto da conexão
em outro país, para viabilizar o deslocamento. Geralmente, todos estes
elementos estão controlados em algum momento do tempo, mas, em ou-
tros, o controle se desfaz. O caso de Tétis, que acabou perdendo contato
com pessoas do exterior, o que a impediu de enviar travestis para fora do
país, é ilustrativo: “É difícil para mim, porque as pessoas que eu conhecia
lá não existem mais. Uma tá na cadeia, outra morreu, outra tá no hospi-
tal”. (Entrevista feita com Tétis, em Florianópolis, SC, em 25/5/2009).
Uma cafetina precisa estabelecer redes para manter sua posição
de centralidade no controle do território da prostituição e, quando esse
território ultrapassa a escala nacional, as redes devem ser bastante ágeis,
envolvendo pessoas de diferentes nacionalidades, para permitir várias
direções de deslocamento, como evidencia o seguinte relato de Nêmesis.

[...] eu vim por um cafetão mesmo e tive que pagar dez mil euros.
[...] eu já sabia que, se eu viesse com dinheiro dos outros, ia ser
difícil. Que eu ia pagar muito caro por isso. A minha sorte é que
depois que paguei seis mil o cara foi preso [na Itália] e eu fugi pra
cá pra Espanha. [...] Quando eu vim, cheguei primeiro em Berga-
mo, no apartamento de um cafetão na Itália. A pessoa me pegou
no aeroporto e me levou direto pro apartamento. Sempre tem, né?
Ou já tem papéis porque tá bastante tempo aqui, ou tem alguém
do país mesmo. No meu caso, era um casal, e ela era italiana. [...]
Eu entrei por Milano, e tudo bem, sabe? Toda a minha papelada
quem arrumou pra mim foi uma cafetina no Brasil, e ninguém me
perguntou nada. Vim na pinta menina, até com dinheiro no bolso.
Depois eles pegam tudo da gente, mas cheguei na pinta, sabe? [...]
Mas o principal é encontrar uma pessoa certa que goste de ti e te
traga, sabe? Não é você que vai atrás. Veja, esse homem mesmo
que eu conversei com ele na segunda, na Itália, na terça, na quarta
eu já tava dormindo na casa da mulher dele pra vir pra cá. Você
tem que ter conhecimentos e amizades. Então, é sempre assim.
Por exemplo, tem uma travesti daqui que vai para o Brasil e tem

228
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

amizade com as melhores cafetinas do Brasil. (Entrevista feita com


Nêmesis, em Madri, Espanha, em 14/5/2008).

Quando a cafetinagem é alvo do discurso travesti na escala do


país, os relatos giram em torno de outras práticas de controle do terri-
tório da prostituição, relacionadas com o pagamento de diárias (pensão
onde as travestis se hospedam), o pagamento de pedágios (para obter
permissão de ficar na rua), atos de violência (para a demonstração de
poder ou para se proteger) e até mesmo acordos espaciais entre cafetinas
para a organização da atividade em alguns municípios. A periodicidade
também marca as ações de controle do território entre cafetinas, já que
nas temporadas de verão, por exemplo, há um fluxo que se destina às
áreas de veraneio.
Quando a atividade de prostituição se desenvolve na rua, as ca-
fetinas se apropriam de determinados locais e cobram pela permanência
das travestis. Aquelas que estão hospedadas em suas casas são nomeadas
“filhas”, e a violência se instaura quando ocorre algum tipo de ameaça a
elas ou quando alguma travesti qualquer que não seja sua “filha” se nega
a pagar por estar em um espaço apropriado pela cafetina. Selene conside-
ra injusta a cobrança, dizendo:

[...] se você vai ter que pagar ali pra ficar comercializando parte
do que é teu, então, eu já acho meio cruel esta exploração da pros-
tituição. Eu acho que a pessoa tem o direito de fazer o que bem
entender com o corpo dela [...]. (Entrevista feita com Selene, em
Sapiranga, RS, em 20/12/2010).

Contudo, essa liberdade reivindicada por Selene é impossível


em espaços de prostituição controlados por cafetinas, conforme o rela-
to de Hipólita a respeito da possibilidade de desenvolver a atividade de
prostituição sem passar pelo crivo de uma cafetina, seja pela hospedagem
em sua pensão ou pelo pagamento por atuar em sua área de controle.

[...] descer e ficar, jamais! Em cidade nenhuma, não existe isso.


Tipo assim, vou descer em uma cidade e vou ficar na rua e não vou
pagar cafetina e não conheço ninguém, mas vou ficar porque a rua
é pública! Isso não existe, a rua não é pública. Isso não existe! Para

229
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

as travestis a rua não é pública. A rua é pública e eu vou ficar, isso


não existe. (Entrevista feita com Hipólita, em Ponta Grossa, PR, em
11/9/2008).

Para algumas cafetinas, uma interessante forma de manter o


controle do território da prostituição é camuflar suas ações de cafetina-
gem mediante o emprego da denominação “proprietária de pensão para
travestis”. Ela tem sido utilizada notadamente por travestis que estão en-
volvidas nos movimentos políticos LGBT, tendo em vista que a cafetina-
gem é criticada do ponto de vista dos direitos humanos. Assim, esse eufe-
mismo foi criado para contornar a contradição. Mesmo assim, as travestis
reconhecem que as duas denominações se referem às mesmas práticas.

Por isso que a Afrodite fala que o que ela faz não é cafetinagem.
Mas ela é cafetina. […] uma travesti que fica na casa dela fica mais
fácil de descer na rua. Só que é uma coisa meio que camuflada.
[…] uma travesti que não tá na casa dela, não vai descer na rua,
jamais isso! (Entrevista feita com Hipólita, em Ponta Grossa, PR,
em 11/9/2008).

Éris constrói argumentos na mesma direção que Hipólita, fazen-


do uma associação entre cafetinas, pensões e a cobrança de “pedágio”.

Olhe, antigamente se dizia aqui em Porto Alegre que existia ca-


fetina. E o que é cafetina. Antes se dizia: eu vou morar na casa da
cafetina, e isso pegou muito. O nome cafetina pegou muito. Uma
vez eu perguntei para o delegado o que era uma cafetina. Cafetina
é aquela que cobra pra tu se prostituir. O que que tu sabe fazer?
Eu não sei nada. Então tu vai lá e se prostitui. Como tem as cafe-
tina aqui da rua aqui, no Paraná também tem, mas aqui tem, elas
cobram 30 reais pra tu ficar na rua. (Entrevista feita com Éris, em
Porto Alegre, RS, em 21/12/2010).

A figura contraditória das cafetinas também remete à noção de


maternagem, como explica Deméter:

Afrodite desce e quebra, compra a briga. [....] A cafetina funciona


como uma mãe que cuida. Vamos considerar que alguma travesti

230
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

queira me incomodar lá, a Afrodite desce lá e resolve. (Entrevista


feita com Deméter, em Curitiba, PR, em 30/7/2008).

A cafetinagem pode constituir uma justaposição de vários ter-


ritórios na cidade, e os limites de ação de cada cafetina são contratados
tacitamente. As travestis hospedadas na casa de Afrodite, por exemplo,
não precisavam pagar para ficar na rua que outra cafetina gerenciava.
Isso porque eram “filhas de Afrodite”, e qualquer ameaça era resolvida
com o enfrentamento entre cafetinas. As travestis que não se hospeda-
vam na pensão de Afrodite, no entanto, tinham que pagar o valor de cin-
quenta reais por semana para a cafetina que dominava a área, e Afrodite
não interferia nessa relação. Segundo Hipólita, é possível identificar um
contrato estabelecido entre elas para a organização da área e dos lucros.

[...] a [nome ocultado de cafetina] deixava claro pra Afrodite que


ela só podia ter uma quantidade X de travestis. […] o resto é tudo
minha. A [nome ocultado de cafetina] falava pra [Afrodite] que,
quando ela tinha muitas, ela tinha que mandar umas pra ela. (En-
trevista feita em Ponta Grossa, PR, em 11/9/2008).

As relações entre cafetinas a respeito da manutenção do con-


trole do território da prostituição nem sempre são tranquilas. Alguns re-
latos de travestis dão conta de atos de violência entre elas, de delação à
polícia, bem como de assassinatos. Enfim, a ação das “proprietárias de
pensões para travestis”, ou cafetinas, potencializa a atividade da prosti-
tuição de forma paradoxal, envolvendo tanto a coação como a proteção
das travestis.
O elemento Relação entre travestis também compõe a categoria
discursiva Fatores de controle do território da prostituição. As travestis
criam sólidos laços identitários e compartilham as mesmas histórias de
vida, sofrimento e discriminação, envolvendo a infância, a adolescência
e a fase adulta. Todavia, apesar de elas se reconhecerem como um grupo
que compartilha muitos valores, a competição também é uma marca for-
te de suas relações.
Além disso, elas têm plena consciência de que fazem parte de
um grupo marginal, excluído socialmente, de modo que, para sobreviver,
precisam manter-se dentro das redes de pessoalidade que estruturam
a atividade de prostituição. Elas argumentam que algumas atitudes são

231
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

fundamentais em suas relações para que possam usufruir determinadas


vantagens na rede de prostituição, entre as quais figuram: ser gentil, ofe-
recer cigarros e bebidas e reconhecer as relações de hierarquia e poder.
Entretanto, elas disputam entre si as posições de hierarquia que
envolvem beleza, feminilidade, poder aquisitivo e capacidade de seduzir
os clientes. A disputa entre elas é permeada pelo espaço, que evidencia
determinadas regras e convenções sociais. O relato de Erínia traz para o
contexto de conquista de clientes o uso da nudez dos corpos, que não é
convencionada em todos os municípios.

[...] a concorrência, porque tem cidade que tem horrores de traves-


tis. Aqui em Ponta Grossa deve ter hoje umas oito travestis, umas
oito ou dez travestis, duas ou três trabalham pelada. E o resto com
roupa. Então, vai muito da concorrência, onde tem muita travesti
tem que explorar o corpo, e bastante. E Santa Catarina tá bem li-
beral, assim como em Curitiba elas trabalham peladas, mostrando
o corpo, porque exige, porque tem horrores de travestis, porque é
muita concorrência. (Entrevista feita com Erínia, em Ponta Grossa,
PR, em 30/7/2010).

A relação simultânea que envolve identidade e disputa entre


travestis ocorre também em outros países, e ela agrega ainda um outro
recurso, que é o da nacionalidade. Os relatos de travestis que atuaram em
outros países evidenciam que ser brasileira traz vantagens em relação às
travestis de outras nacionalidades. Elas afirmam que a brasilidade é ex-
tremamente desejada pelos clientes estrangeiros, já que são consideradas
mais sensuais, belas, dóceis e cativantes.
Enfim, as relações entre travestis contêm ingredientes que
as unem e as afastam de forma simultânea. Assim, tendo em vista que
constituem um grupo marginalizado e, por este motivo, extremamente
interdependente, elas precisam buscar um equilíbrio em suas relações.
É o domínio desse equilíbrio que lhes permite ampliar suas redes de rela-
cionamentos e, consequentemente, ampliar seu deslocamento espacial.
O elemento Deslocamento espacial também figura na categoria
discursiva Fatores de controle do território da prostituição. As narrativas
das travestis trazem o nome de noventa e oito cidades vivenciadas pelo
grupo no desempenho da atividade da prostituição, incluindo cidades de
outros países, como Argentina, Itália e Espanha. Um dado curioso a res-

232
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

peito das cidades envolvidas nos processos de deslocamento das travestis


é que 75% delas têm uma população de até 490 mil habitantes, contra-
riando a ideia inicial de que as grandes cidades seriam seus destinos pre-
ferenciais.18
A organização das trajetórias de deslocamento relatadas pelas
travestis entrevistadas evidenciou três tendências básicas.19 A primeira
relaciona-se com conexões entre municípios, sem a ocorrência de movi-
mentos pendulares entre eles. A segunda tendência refere-se aos deslo-
camentos entre territórios intraurbanos da prostituição travesti, agora
constituídos pela existência de movimentos pendulares. E a terceira e
última tendência diz respeito à existência de uma constituição transna-
cional de deslocamento na atividade da prostituição travesti.
A Tendência 1 de deslocamentos foi constituída a partir das en-
trevistas de oito travestis. Ela apresenta uma variação de intensidade de
deslocamentos − entre quatro e dezoito movimentos −, estabelecendo
uma média de onze deslocamentos entre cidades neste grupo de pessoas.
Da mesma forma, a variação do número de municípios conectados pe-
los fluxos de travestis oscila de quatro a dezessete cidades por travesti,
sendo a média de nove cidades. A configuração estabelecida dos desloca-
mentos tem como base as categorias discursivas Fatores motivacionais
de deslocamento e Fatores espaciais de conectividade, já apontadas ante-
riormente. Para ilustrar esta tendência, encontram-se demonstradas na
Figura 2, abaixo, as conexões criadas a partir da entrevista de Circe.

18
É importante lembrar que a área de investigação é o sul do Brasil. Nesse sentido, é
esperado que a maior parte das cidades citadas nos deslocamentos realizados pelas
travestis esteja localizada na referida região.
19
As tendências não representam tipos ideais, necessariamente, que possam ser
utilizados para os deslocamentos de qualquer travesti, restringindo-se, portanto, ao
universo investigado. É importante salientar que duas das travestis entrevistadas não
fazem deslocamentos para desenvolver a atividade de prostituição, razão pela qual foram
desconsideradas.

233
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

Figura 2 – Tendência 1, território descontínuo paradoxal Circe.


Entrevista feita em Curitiba, PR, em 19/5/2009.

A Tendência 2 de deslocamentos foi constituída a partir das


entrevistas de quatro travestis. Este grupo evidenciou seis deslocamen-
tos como média de conexão entre um total de dezenove municípios. Os
fatores motivacionais de deslocamento bem como os fatores de conec-
tividade se repetem, do mesmo modo como verificado na Tendência 1.
Contudo, o que se mostrou marcante nesta tendência foi a ampliação dos
deslocamentos do grupo pela participação no movimento político LGBT
nacional. A Figura 3, abaixo, tem como base o depoimento de Selene e
elucida o perfil desta tendência de deslocamentos.

234
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

Figura 3 – Tendência 2, território descontínuo paradoxal Selene.


Entrevista feita em Sapiranga, RS, em 20/12/2010.

Por último, a Tendência 3 de deslocamentos foi constituída a


partir das entrevistas de oito travestis. Ela configura um padrão de des-
locamentos com menor intensidade de movimentos pendulares entre
municípios. O principal elemento na Tendência 3 diz respeito aos deslo-
camentos transnacionais que as travestis fazem: França, Portugal, Suíça,
Alemanha, Espanha, Itália e Argentina, com maior concentração de cida-
des dos três últimos países citados. Além de apresentar os fatores moti-
vacionais de deslocamentos e de conectividade que justificam os movi-
mentos de travestis, esta tendência tem a especificidade de acentuar a
importância da cafetinagem em seu processo de deslocamento interna-
cional. Para ilustrar a Tendência 3, a Figura 4, abaixo, apresenta a confi-
guração de deslocamentos constituída a partir da entrevista de Afrodite.

235
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

Figura 4 – Tendência 3, território descontínuo paradoxal Afrodite.


Entrevista feita em Curitiba, PR, em 31/7/2008.

236
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

As possibilidades de deslocamentos em diferentes locais, alcan-


çando inclusive a escala internacional, estão estreitamente relacionadas
com a capacidade de as travestis reconhecerem os códigos de conveni-
ência acordados tacitamente pelo grupo na atividade de prostituição.
Assim, o elemento Conveniência compõe a categoria discursiva Fatores
de controle do território da prostituição. No contexto desta categoria
discursiva, a conveniência, além de congregar o sentido de reconhecer
os valores e as formas de comportamento, significa também utilizar os
atos de violência com maior frequência para a conquista de espaço. No
controle do território, é fundamental exercer a força física e submeter
os outros membros que fazem parte do grupo, com vistas a aumentar as
chances de acessar a centralidade das relações de poder da atividade de
prostituição, ou seja, tornar-se uma cafetina. O seguinte relato de Hipóli-
ta esclarece este argumento.

Então, a Tia Ivone era a mãe da [nome de travesti ocultado] que


tava presa. Então, como a [nome de travesti ocultado] tinha mata-
do o marido da cafetina que era a dona de Curitiba. [...] e deu uns
tiro na cafetina, essa cafetina foi pra Balneário Camboriú e fugiu
de Curitiba. Quando a [nome de travesti ocultado] deu os tiros na
cafetina, ela ficou a dona de Curitiba, porque ela teve coragem de
dar uns tiro. Só que ela foi presa, porque ela matou o marido da
cafetina. Aí pegaram a [nome de travesti ocultado] e ela foi presa.
Aí, da cadeia a [nome de travesti ocultado] falou: olhe mãe, agora
eu sou a rainha de Curitiba. Eu tô presa, mas a senhora vai cobrar
as bicha na rua, e ai da bicha que não te pagar! Quando sair vai ter!
É que ela sempre saía no final do ano por bom comportamento. Aí,
a Tia Ivone começou a cobrar. Só que a Tia Ivone, pra conseguir o
poder de cobrar, tinha três negão na Kombi. Então, era uma máfia
babadeira. (Entrevista feita com Hipólita, em Ponta Grossa, PR, em
11/9/2008).

Outro código de conveniência marcante no controle do territó-


rio é o respeito que determinadas travestis mais velhas angariam median-
te o reconhecimento da importância de suas experiências na atividade de
prostituição. Assim sendo, é comum a referência a nomes de cafetinas.
Isso evidencia que a posição da cafetina é paulatinamente construída, e
ela vai além do simples da violência.
Enfim, os elementos que constituem a categoria discursiva Fa-
tores de controle do território da prostituição devem ser considerados

237
corpos, sexualidades e espaços
Território descontínuo paradoxal e prostituição na vivência travesti do sul do Brasil

em movimento constante, já que as relações de poder tensionam o posi-


cionamento dos sujeitos, que conquistam maior ou menor centralidade
no processo de controle territorial.

REFLEXÕES SOBRE TERRITÓRIO


E PROSTITUIÇÃO TRAVESTI:
ALGUMAS PROPOSIÇÕES FINAIS

Esta pesquisa discutiu a relação entre a vivência travesti e a ins-


tituição do território descontínuo paradoxal. As evidências do trabalho
de campo realizado são os elementos fundamentais para a elaboração de
uma avaliação das contribuições teóricas que podem ser produzidas no
campo científico da Geografia.
Um importante postulado consagrado na Geografia para com-
preender a apropriação espacial como “território descontínuo”, de acor-
do com Souza (1995), foi aqui reafirmado. Isso porque a prostituição
travesti se organiza em conexões de diferentes territórios intraurbanos,
localizados em diferentes municípios, e até mesmo em escala nacional
e internacional. A ideia de território descontínuo também é reafirmada
na medida em que Souza (1995) evidencia que os limites ou fronteiras
podem ser móveis e que os territórios se fazem e desfazem em diferentes
temporalidades. Essas proposições também foram válidas na construção
da inteligibilidade da atividade de prostituição travesti, pois são as ações
travestis que configuram no tempo e no espaço seus territórios, que são
extremamente móveis.
Contudo, a exploração do material empírico esclareceu a ne-
cessidade de agregar a ideia de “paradoxo”. O paradoxo é aqui entendido
como algo que se faz de forma surpreendente, não previsível, como nos
termos de Rose (1993). A proposição de pensar que a prostituição travesti
pode ser analisada pelo que aqui chamamos de território descontínuo
paradoxal (ver Figura 1) se sustenta nos seguintes argumentos:
− O território é resultado do discurso produzido pelas próprias
travestis em atividade de prostituição. Assim, ele não é preexistente,
tampouco passível de ser concebido por aqueles que observam o fenôme-
no de fora, mas se faz na ação dos sujeitos que o vivenciam.
− Certamente o poder é componente fundamental na apropria-
ção espacial. Contudo, ele não é oposicional na relação insider/outsider,

238
Geografias malditas
Marcio Jose Ornat

mas um feixe de tensionamentos entre sujeitos que pode produzir dife-


rentes posições móveis, de centro e margem, nas relações de poder, como
evidenciado nas relações entre travestis e cafetinagem, por exemplo.
− Os elementos que compõem cada uma das categorias discur-
sivas do fenômeno concebido como território descontínuo paradoxal não
apresentam um sentido unívoco, ou uma única posição, como pode ser
observado na Figura 1. A cafetina, por exemplo, pode ser um elemento
positivo quando considerada como componente da categoria discursiva
Fatores espaciais de conectividade, mas ela constitui um fator negativo
quando compõe a categoria Fatores de controle do território da prosti-
tuição. Enfim, um mesmo elemento pode ocupar diferentes posições na
organização discursiva de determinado espaço e tensionar de diversas
maneiras as relações entre os sujeitos.
− Além disso, a multiescalaridade do fenômeno também evi-
denciou a posição móvel e indeterminada das relações de poder entre
travestis e cafetinas, o que mais uma vez afirma a ideia do paradoxo. O
elemento Ajuda de travestis é preponderante na composição da catego-
ria discursiva Fatores estratégicos de deslocamento quando se observa
o fenômeno em escala nacional. Contudo, esse elemento não é central
quando considerado na categoria discursiva Fatores espaciais de conecti-
vidade, notadamente na consideração da escala internacional.
Enfim, esta pesquisa traz desafios aos geógrafos na medida em
que supera as noções de fixidez e de oposição dual entre categorias e
complexifica as relações entre os sujeitos e seus espaços. O grupo de tra-
vestis em atividade comercial sexual está plurilocalizado na constituição
do território, já que as travestis são simultaneamente centro e margem
das relações de poder, e é sua posição paradoxal que evidencia sua re-
sistência à sociedade heteronormativa que ao mesmo tempo as deseja e
despreza.

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241
corpos, sexualidades e espaços
INTERSECCIONALIDADE E
MOBILIDADE TRANSNACIONAL
ENTRE BRASIL E ESPANHA NAS
REDES DE PROSTITUIÇÃO

Joseli Maria Silva

O CONTEXTO DE CONSTRUÇÃO DA
PESQUISA E O CAMINHO METODOLÓGICO

O objetivo deste texto é compreender o movimento da


interseccionalidade entre raça, classe, gênero e sexualidade acionado por
travestis brasileiras no processo de sua mobilidade transnacional para a
Espanha.1
Desde o ano de 2005, o Grupo de Estudos Territoriais, do qual fa-
zemos parte, vem desenvolvendo atividades na Organização Não Gover-
namental Renascer2, cujas ações contemplam, além de outros grupos, as
travestis3. Durante nosso envolvimento com travestis na cidade de Ponta
Grossa (PR), ouvíamos suas dificuldades, dores, mas também planos e an-
seios. Entre alguns dos sonhos mais acalentados por elas, ainda que fosse
inatingível para algumas, o maior era ir para a Europa, atuar no merca-

1
Esta reflexão jamais seria possível sem a generosidade de algumas pessoas que
constituíram os nós das redes sociais que pudemos acessar no desenvolvimento da
pesquisa em Madri, com recursos provenientes da Capes. Nossos sinceros agradecimentos
a Isidro Garcia Nieto e Lola, do Programa de Informação aos Homossexuais e Transexuais
da Comunidade de Madri, a Joeli, do Colectivo de Lesbianas, Gays, Transexuales y
Bisexuales de Madrid (COGAM), e a July, bombadeira (termo que designa a pessoa que
injeta o silicone líquido no corpo das travestis para construir as formas femininas)
brasileira, falecida no início de 2011, em Curitiba (PR).
2
Ponta Grossa (PR).
3
Embora na língua portuguesa o termo “travesti” se reporte a sujeito masculino, este
texto o trata como feminino, em respeito à autoidentificação do grupo social pesquisado.
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

do sexual. Essa ideia era expressa como algo que poderia modificar suas
vidas definitivamente. Nomes de travestis classificadas de “europeias”,
bem como seus feitos, associados ao enriquecimento, eram lembrados com
profunda admiração e, por que não dizer, com certa inveja. Entre elas, era
comum o uso da locução “sou europeia, mona!”4, para expressar superio-
ridade. Iniciamos um projeto de investigação em 20075 sobre a imigração
ilegal de brasileiras para o comércio sexual na Europa e percebemos que a
Espanha ainda era um dos destinos preferenciais nos anos que iniciavam o
século XXI, conforme também evidenciado por Colares (2004).
O relato de que um de nós iria para a Espanha provocou uma
série de propostas de trocas de favores. Segundo elas, nós poderíamos fa-
cilitar sua entrada na Espanha e, em troca, elas poderiam “sustentar-nos”
com dinheiro que conseguiriam fazendo programas sexuais. Explicamos
que teríamos recursos do governo brasileiro e que nos tornarmos “pes-
quisadores cafetinas” não fazia parte de nossos planos. Essas propostas
acabaram ensejando várias brincadeiras, que revelaram a naturalidade
com que vários atos ilícitos − como a entrada na Espanha para viver ile-
galmente e o repasse de somas de dinheiro fruto da prostituição, em tro-
ca de hospedagem e proteção − eram vistos, ou seja, constituíam ações
perfeitamente condizentes com os códigos morais do grupo. Essa natura-
lização, como destacam Silva (2009) e Ornat (2009), se constitui a partir
de uma vivência cotidiana de exclusão, preconceito e violência que elas
sofrem por parte da família, da escola, do Estado e da sociedade brasileira
como um todo. São pessoas cujos direitos cidadãos são violados constan-
temente e, assim, não têm muito a perder aventurando-se em um outro
país em situação de ilegalidade.
A escolha do destino do deslocamento envolve uma conjuntura
que é avaliada pelas pessoas migrantes, julgando as perdas e ganhos entre
os países de origem e destino. O Brasil, nos anos 80 e 90, tinha a economia
estagnada, com salários corroídos por elevados índices inflacionários, e
apresentava altas taxas de desemprego.6 A Espanha, por outro lado, após

4
O termo “mona” é utilizado pelo grupo de travestis como uma forma de tratamento
entre si.
5
Projeto financiado pela Capes, em 2008, para a realização de estágio pós-doutoral na
Universidade Complutense de Madrid.
6
De acordo com os Indicadores Econômicos Consolidados do Banco Central do Brasil, a
taxa média de crescimento nas décadas de 80 e 90 foi de -0,56% e 0,95%, respectivamente
(http://www.bcb.gov.br/?INDECO)

244
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

ingressar na Comunidade Econômica Europeia em 1986, recebeu grandes


investimentos externos e apresentou forte expansão de seu produto in-
terno bruto (PIB), ampliando oportunidades de ganhos econômicos. Esse
quadro se manteve até por volta de 2006, quando a crise econômica atin-
giu o país.7. Assim, a diferenciação espacial entre os dois países promoveu
a atração de grupos de travestis brasileiras para a Espanha, já que no Bra-
sil as oportunidades de emprego eram raras e a atividade de prostituição
poderia ser mais lucrativa num país em plena ascensão econômica.
Já no início da pesquisa, detectamos a impossibilidade de precisar
o número de travestis brasileiras que estavam em situação de prostituição
na Espanha8. As travestis brasileiras figuravam apenas em sites e jornais
que publicam anúncios de venda de serviços sexuais ou, ainda, em notícias
policiais divulgadas pela Guardia Civil relativas a ações classificadas como
de combate ao “tráfico de seres humanos”. A corporalidade9 móvel da exis-
tência travesti impossibilita sua visibilidade num mundo em que a classifi-
cação dos gêneros está organizada de forma rígida e bipolar (masculino e
feminino), fundamentada na forma dos órgãos genitais. Os possíveis dados
e registros das travestis brasileiras em instituições da Polícia Nacional da
Espanha e órgãos alfandegários são masculinos, embora essas pessoas te-
nham uma identificação de gênero feminino.
A invisibilidade das travestis brasileiras nas estatísticas dos órgãos
oficiais da Espanha contrasta fortemente com a visibilidade “glamourosa”
das propagandas de prestação de serviços sexuais em panfletos, sites de in-
ternet10 e jornais11. Nesse sentido, o desenvolvimento da pesquisa exigiu

7
O PIB da Espanha, que apresentou índice médio de 3% entre os anos de 1986 e 2008
(exceto nos anos de 2002 e 2003), dobrou em apenas oito anos (2001-2008), passando de
U$ 677 bilhões para U$ 1,3 trilhão. (http://www.indexmundi.com/pt/espanha/produto_
interno_ bruto _% 28pib%29_taxa_de_crescimento_real.html)
8
Um interessante documento textual publicado em 2009 pela associação Médicos
del Mundo − España dá destaque a um número de travestis brasileiras em situação de
prostituição que são atendidas pela associação. Contudo, são estatísticas apenas parciais,
que estão longe de representar o grupo na Espanha.
9
McDowell (1999) tem argumentado que os corpos estão em constantes transformações,
considerando a idade cronológica, o adoecimento, as capacidades e aprendizados, inclusive
a plasticidade das modificações corporais em uma sociedade repleta de tecnologias
médicas. Assim, é preciso, segundo esta geógrafa, pensar em termos de corporalidade que
dá a ideia de movimento, ao invés de corpo que constrói a noção de um estado de fixidez.
10
http://www.travestiguide.com e http://www.rincontranny.com
11
El país e El mundo.

245
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

estratégias qualitativas, como entrevistas e observações, além da explo-


ração de anúncios de jornais e sites na internet. As entrevistas tiveram
a participação de dez travestis brasileiras atuantes como prestadoras de
serviços sexuais na Espanha. O roteiro de entrevista seguiu três eixos
investigativos: 1. características do Brasil que impulsionam o desejo de
ir para a Europa; 2. estratégias para ultrapassar fronteiras nacionais; 3.
brasileiras que praticam atividade comercial sexual na Espanha. As en-
trevistas foram sistematizadas por meio da análise de conteúdo, como
proposto por Bardin (1977), e as observações, realizadas entre fevereiro
e setembro de 2008, foram registradas em um diário de campo. O quadro
12 13

a seguir traz uma síntese de algumas características das participantes da


pesquisa.

Nome Procedência Local de


Idade Autoidentificação
fictício do Brasil prostituição
Ágape 26 travesti Maranhão rua12
interior do
Andrômeda 33 travesti rua
Ceará
Tália 26 travesti Novo Hamburgo rua
Moiras 20 travesti Rio de Janeiro rua
transexual/ interior da
Íris 20 piso13
travesti Paraíba
Pandora 38 travesti Porto Alegre piso
Tétis 31 travesti São Paulo piso
Eudora 28 travesti Natal piso
transexual/
Eurídice 25 João Pessoa piso
travesti
piso (atua como
a encarregada e
não
Divina transexual Bagé não faz
declarou
programas
sexuais)

As informações a respeito da autoidentificação de gênero apre-


sentadas no quadro merecem um esclarecimento. Apesar de as travestis

12
Ruas paralelas à Gran Via, como Calle del Desengaño, La Puebla, Valverde, Fuencarral e
Paseo de la Castellana.
13
A denominação “piso” diz respeito a apartamentos privados em que são desenvolvidas
as atividades de prestação de serviços sexuais.

246
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

brasileiras estarem vivendo em um contexto político espanhol de con-


quistas de direitos sociais da população LGBT14, elas rejeitam os termos
“transgénero” e “mujertrans”, largamente utilizados pelas instituições
políticas. O termo “travesti” é considerado pejorativo e atrasado, sen-
do aconselhável sua substituição na sociedade espanhola. As brasileiras,
no entanto, não concordam com as denominações consideradas corretas
pela cultura espanhola. Com exceção de Divina, que vive na Espanha des-
de 1974 e realizou cirurgia de transgenitalização, as outras duas pessoas
que disseram se identificar como transexuais declararam que “ainda são
travestis”, mas que sonham um dia poder fazer a referida cirurgia. Nesse
sentido, o uso do termo “travesti” pelas brasileiras tem por base a ideia
de ter um pênis e fazer uso dele.
Desta forma, o presente texto, cujo objetivo é compreender o
movimento da interseccionalidade entre raça, classe, gênero e sexuali-
dade acionado por travestis brasileiras no processo de sua mobilidade
transnacional para a Espanha, está estruturado em quatro momentos. O
primeiro discute a necessidade de ultrapassar a imaginação geográfica do
espaço para construir a visibilidade científica do grupo de travestis. No
segundo momento, são contemplados, por meio de seus depoimentos, os
elementos estruturadores das redes transnacionais da prostituição tra-
vesti. Em seguida, são exploradas as espacialidades por elas constituídas
e, por último, aborda-se a sua versão sobre o tráfico internacional de pes-
soas.

INTERSECCIONALIDADE E ESPAÇO PARADOXAL


COMO POSSIBILIDADE DE VISIBILIDADE
CIENTÍFICA DA MOBILIDADE TRANSNACIONAL
DE TRAVESTIS BRASILEIRAS PARA A ESPANHA

A compreensão da relação entre espaço e existência travesti


torna-se impossível a partir de critérios como objetividade e materialida-
de, pois a fluidez de sua corporalidade, a invisibilidade de sua existência
formal, a amplitude e a intensidade de sua mobilidade locacional desa-
fiam o espaço material e facilmente cartografável. Contudo, as travestis

14
A sigla utilizada pelos movimentos sociais na Espanha é LGBT (Lesbianas, Gays,
Bisexuales y personas Transgénero).

247
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

brasileiras, apesar de suas vidas abjetas, constituem conexões espaciais


altamente complexas, dinâmicas e perfeitamente compatíveis com o
mundo contemporâneo globalizado. Inapropriadas, desalojadas, ilegais e
invisíveis, as travestis constituem espaços imbricados com o processo de
globalização e, ao contrário do que muitos imaginam, elas não são ano-
malias sociais ou desvios do sistema de capital por realizarem um traba-
lho informal e moralmente condenável pela sociedade burguesa. Elas são
elementos contraditórios e complementares da sociedade global.
Portanto, para construir a visibilidade espacial de travestis bra-
sileiras em seu movimento transnacional, é preciso, tal como argumen-
tam Massey (2008), McDowell (1999), Rose (1993, 1999) e Valentine (2007),
pensar o espaço enquanto relacional, definido nas práticas socioespaciais
e nas relações sociais e de poder.
Um espaço relacional implica reconhecer as relações entre pes-
soas marcadas por diferenciações sociais que constituem suas identidades
permanentemente confrontadas socialmente, cuja espacialidade é um
dos elementos dessa construção. O gênero, a classe, a raça, a sexualidade,
a idade, a religião e assim por diante são elementos de diferenciação en-
tre pessoas e grupos, e isso marca sua existência. Embora cada um desses
marcadores sociais tenha sido fragmentado nas análises científicas, há
argumentos no sentido de que o ser humano vivencia simultaneamente
vários desses elementos, de modo que eles devem ser compreendidos de
forma “interseccionada”.
Rose (1993) tem postulado a necessidade de se pensar o gênero
como uma categoria identitária interceptada por diversas outras, como
classe, raça, sexualidade, etc., evidenciando a pluralidade da vivência
humana. Cada pessoa experiencia sua existência localizada socialmente
por meio de várias categorias que se interceptam, e essa singularidade é
mediada espacialmente. Assim, por exemplo, a intersecção gênero/raça
de uma mulher negra no Brasil engendra determinadas experiências que
são muito distintas daquelas que podem ser vividas em um país europeu
ou africano. A articulação complexa de categorias sociais é chamada de
interseccionalidade, e esse conceito, já utilizado em várias outras ciências
humanas, foi defendido como importante elemento de análise geográfica
por Valentine (2007). Apesar de as pessoas se constituírem por diversos
elementos de diferenciação, há um movimento entre eles, dependendo
da relação socioespacial estabelecida com outros grupos ou seres huma-

248
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

nos. Assim, alguns elementos podem ser acionados com maior visibilida-
de para obter vantagens, enquanto outros podem ser camuflados.
O movimento de interseccionalidade explora a forma como os
elementos identitários vão sendo acionados nas diferentes relações, mar-
cadas por tempo e espaço. As travestis brasileiras que exercem atividades
de prostituição na Espanha acionam categorias sociais em um complexo
jogo de poder com outros grupos sociais, envolvendo a raça, a classe, o
gênero e a sexualidade. O espaço assim conformado pelas relações in-
terseccionais é dinâmico e a posição dos sujeitos confrontados é para-
doxal, superando a ideia que opõe sujeitos dominados e dominantes em
posições fixas. Pensar a vivência das travestis brasileiras que superam as
barreiras transnacionais em uma sociedade globalizada implica conceber
uma imaginação espacial complexa, tal qual Rose (1993) nos oferece em
sua teoria do espaço paradoxal.
O espaço enquanto entidade essencializada ou pré-discursiva
não existe. O que se convencionou chamar de espaço na Geografia nada
mais é do que criações humanas para a compreensão de nossa realidade
dentro de um campo específico de conhecimento. A palavra “espaço”,
que acabou se tornando um dos conceitos fundamentais da Geografia,
tem inúmeras interpretações, defendidas por diversos geógrafos − em di-
ferentes tempos e países −, afiliados em várias correntes filosóficas. Nes-
sa pluralidade de possibilidades interpretativas, a vivência travesti pode
ser compreendida por uma imaginação geográfica que desafia as ideias
hegemônicas e torna visível a resistência daqueles cujas identidades são
negadas.
Massey et al. (1999) sustentam que as identidades são perma-
nentemente instituídas por meio da construção/desconstrução de es-
paços. O espaço está em permanente processo de produção, e isso traz
um importante caráter de abertura para uma imaginação geográfica que
possa conceber o espaço enquanto praticado e relacional. Nessa linha de
raciocínio, Rose (1999) constrói a possibilidade de pensar o espaço como
a articulação de discursos, fantasias e corporeidades, o que o torna com-
plexo, contraditório e instável. Para Rose (1999), o espaço relacional não
se institui por meio da relação de pessoas preexistentes ou essenciali-
zadas, mas nas interações performáticas. Rose (1999) toma por base o
conceito de performatividade de Judith Butler, segundo a qual o gênero
é um fazer eterno, enquanto prática repetitiva, sendo, assim, performá-

249
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

tico. As práticas constituem as identidades de gênero e, sendo assim, são


elas que constroem a ideia do que o gênero supostamente é. Portanto, o
gênero não existe em si, mas é uma representação que ganha concretude
nas práticas cotidianas, construindo a falsa noção de estabilidade. Assim,
Rose (1999) argumenta que o espaço é também um fazer; ele não é pre-
existente ao fazer, sendo esse processo de eterno fazer espacial fruto da
articulação de performances relacionais.
O gênero performático de Butler (1990) sugere que não há gê-
nero essencializado, já que ele se faz em atos repetitivos dentro de uma
matriz de inteligibilidade social da sociedade heteronormativa, o que
lhe confere um falso caráter de estabilidade e naturalidade. Entretanto,
a matriz apresenta fissuras, e a mesma estrutura que constitui o padrão
heteronormativo é aquela que produz, de forma simultânea, os seres
abjetos. Seres abjetos são aqueles que, embora não possuam o estatuto
de humanos, são necessários, contraditoriamente, para definir o campo
constitutivo dos sujeitos. O abjeto, para Butler (1993), designa as zonas
invisíveis e inabitáveis da vida social que estão densamente povoadas por
aqueles que não usufruem do estatuto de sujeitos. Entretanto, sua exis-
tência é necessária para circunscrever o domínio do poder dos sujeitos. O
espaço produzido por essa performance é particular, fruto de um tipo de
relacionalidade. Portanto, outras relacionalidades podem instituir outros
espaços, segundo Rose (1999). O espaço, na concepção de Rose (1999), é
praticado, dinâmico, interativo, e ele se faz de performances situacionais
das relações entre si e outros. Assim, o espaço é plástico e, uma vez que ele
pode ser praticado por performances do poder heteronormativo, também
pode ser praticado pelos seres abjetos das zonas inabitáveis e invisíveis.
A imaginação geográfica de Rose (1999) já havia sido desenvol-
vida, em certos aspectos, em sua proposta de espaço paradoxal (ROSE,
1993). Para romper com a ideia do espaço praticado apenas pelas repre-
sentações dominantes, é necessário captar o sentido da relação entre si
e outros de forma mutável e passível de transformação das direções dos
eixos de poder em situações particulares. Na proposição desta geógrafa, o
espaço paradoxal é imaginado por meio da relacionalidade, ultrapassan-
do, contudo, a ideia fixa e bipolarizada sobre dominados e dominantes, e
incluindo a ideia de centro e margem da relação, cujas posições são mutá-
veis. Esse perfil de relacionalidade possibilita uma imaginação geográfica
que pode desvelar as práticas de grupos sociais de pequena expressão
material de poder.

250
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

Vários grupos sociais vulneráveis ao poder masculino, branco


e heterossexual têm sido estudados, conforme Rose (1993), por meio do
conceito de território em uma configuração oposicional entre insider/
outsider, ou seja, os de dentro e os de fora das fronteiras do espaço con-
quistado. Nessa perspectiva, o espaço conquistado pelo grupo que exerce
o poder torna o outro da relação um elemento não constitutivo do espaço
conquistado, pois está posicionado fora dele. Rose (1993) argumenta que
no espaço conquistado há também os grupos subordinados, que não es-
tão passivos, mas na margem das relações de poder, e que essa posição
pode ser situacional, pois, ainda que na margem, eles não estão passivos,
mas resistem aos poderes daqueles que conquistaram o espaço.
Sob a perspectiva de Rose (1993), no território do conquistador
há também o conquistado, que não é passivo, que coloca em ação sua
força de resistência e dá sentido ao poder exercido, gerando uma relação
simultaneamente contraditória e complementar, já que a prática do po-
der só se justifica pela ação que resiste a ele. Esta perspectiva nega a visão
simplista e oposicional insider/outsider, e ela é potencial para se construir
a visibilidade de grupos não hegemônicos, já que rompe com a visão uni-
versal do poder.
A universalidade do poder do conquistador na constituição de
territórios é uma estratégia que tem como finalidade negar a existência
de fragmentações e diferenciações internas, com o intuito de tornar invi-
síveis e neutralizar as forças que possam desestabilizar a ordem e contes-
tar o território estabelecido. O espaço paradoxal considera a multiplici-
dade de identidades dos seres, contemplando aspectos de plurilocalidade
dos seres humanos que fazem parte da análise, assim como as múltiplas
dimensões que se configuram com o acionamento das identidades tensio-
nadas, numa relação contraditória e complementar entre “nós” (consi-
derados centro da configuração) e os “outros” (considerados margem da
configuração). É necessário considerar que essas posições não são fixas;
elas estão sempre tensionadas pelos dois polos da configuração espacial
(centro/margem) e podem mudar de posição, de modo que constituem
um processo sempre em transformação. Assim, é o movimento perma-
nente e múltiplo que pode provocar uma desestabilização da configura-
ção estabelecida e gerar uma nova posição.
O espaço paradoxal proposto por Rose (1993) é complexo. Ele
envolve variadas articulações e dimensões e se constitui em uma interes-
sante construção teórica e metodológica na Geografia. Uma pessoa não

251
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

pode ser concebida apenas como constituindo um gênero, já que também


devem ser levadas em consideração a sexualidade, a raça, a religião e a
classe social, que são vivenciadas espacialmente e temporalmente. As di-
ferentes facetas identitárias são construídas e reconstruídas por meio de
um processo de mutualidade e reconhecimento envolvendo os seres hu-
manos em relação a outros seres humanos. Certamente, todos os elemen-
tos identitários citados são vivenciados simultaneamente pelas pessoas.
Contudo, é na experiência espacial e temporal que um ou outro elemento
se torna mais expressivo, tensionado com outros grupos também com-
plexos.
A experiência de travestis brasileiras que rompem as fronteiras
nacionais e acessam outros países pode ser captada apenas por uma ima-
ginação geográfica que ultrapasse a dicotomia, a simplista oposição entre
dominados e dominantes, e permita evidenciar as práticas complexas e
fluidas que têm permitido sua existência, apesar de todas as formas de
poder e violência a que estão submetidas.

SOU EUROPEIA, MONA!


FANTASIA, DESEJO E RACIALIDADE
COMO ELEMENTOS DAS REDES
TRANSNACIONAIS DE PROSTITUIÇÃO TRAVESTI

A mobilidade transnacional de travestis brasileiras para a Espa-


nha se estabelece em uma mediação de elementos entre o país de origem
e o de destino. As evocações das travestis se concentraram em três im-
portantes eixos discursivos: 50% delas se relacionaram à ideia de deixar
o Brasil devido à discriminação sofrida por ser uma travesti, 31% trouxe-
ram elementos ligados à falta de oportunidades financeiras no Brasil, e
16% diziam respeito ao desejo de “ser uma europeia”, o que ajudaria a su-
perar o preconceito e os problemas financeiros. As restantes 3% estavam
vinculadas à perspectiva de ficar distante da família e poder transformar
o corpo sem criar conflitos.

Eu deixei o Brasil porque eu queria crescer e lá estava difícil. No


Brasil, você trabalha, trabalha, trabalha e não cresce porque o go-
verno não te oferece nada para você crescer. Daí, você já sendo
uma travesti, transexual, homossexual ou sei lá o que queiram te

252
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

chamar, porque a nossa sociedade tem essa mania hipócrita em


querer te classificar, te dar rótulo, títulos. Infelizmente, no Brasil
você funciona pelo dinheiro, você vale o que você tem na cartei-
ra e você não quer passar a tua vida inteira sendo maltratada. Se
você tem a oportunidade, você sai fora mesmo. Porque no Brasil
você não vai encontrar uma travesti ou transexual assumida, tra-
balhando como uma caixa de supermercado, numa loja. Você não
vai encontrar como médica. Talvez agora já tenha porque eu estou
fora do Brasil faz 5 anos. Aliás, eu tenho uma amiga só. Uma amiga
que é enfermeira, ela é bem discretinha. Ela durante o dia se veste
bem discretinha para não chamar a atenção. Você tem que fingir
ser o que eles querem. É o tipo de hipocrisia que eu não tenho pa-
ciência de ser. (Entrevista com Pandora, em Madri, em 16/9/2008).

Olha, no Brasil se você é homem e tá vestido de mulher, você é


mesmo um viado, safado, um filho da puta, um pau no cu e tem que
levar porrada de todo mundo. Essa é que é a verdade, sabe. E é isso,
uma das coisas por exemplo que eu não quero voltar. Aqui você
vai ali na avenida principal em Gran Via e vai ver muito homem se
beijando na boca e não dá nada. E os que falam alguma coisa sabem
quem são? Romenos ou brasileiros. Ah! Viado safado, maricão de
merda, chupa pau! Vai ver é brasileiro ou romeno porque com es-
panhol não tem isso. Não tão nem aí se o pato é macho ou fêmea.
Se você quiser se jogar de cima do edifício, eles dizem “se joga, pra
mim dá igual”. (Entrevista com Tália, em Madri, em 18/5/2008).

Assim, ir para a Europa, enriquecer e voltar ao Brasil com uma


nova inserção social e familiar faz com que a representação espacial po-
sitiva a respeito dos países da Europa seja reforçada pelo desejo. Os co-
mentários que circulam dentro do grupo valorizam as experiências no
exterior, como ressaltado no trabalho de Patrício (2009), e pouco se fala
nas dificuldades encontradas. Todas as evocações relativas a informações
recebidas da Espanha por outras pessoas foram positivas, como eviden-
ciam os trechos a seguir.

Eu, por exemplo, tenho vinte anos, e os jovens da minha geração


ou das novas gerações se espelham, por incrível que pareça, nas
pessoas mais velhas. Tanto na parte boa como na parte ruim. En-
tão, como conhecemos muitas que são cafetinas, são riquíssimas,
têm muito dinheiro, poder, têm apartamento e não sei mais o quê,

253
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

então, quando você ouve: Olha, a fulana foi pra Espanha e voltou
rica. Já viu, né? Às vezes nem é tão rica assim, às vezes tem uma
bolsa Dolce Gabbana porque ganhou de um cliente, mas a gente
pensa que tá podendo. Daí a gente pensa, ah! Vou também. Enten-
deu? É aquela mesma história da ilusão. (Entrevista com Moiras,
em Madri, em 15/5/2008).

Segundo elas, há uma omissão dos fracassos das experiências


no exterior dentro do grupo, o que mantém o imaginário positivo a res-
peito desses países. O fracasso desta empreitada para elas é sinônimo de
incapacidade pessoal e não de elementos sociais. Assim, em geral, são
omitidas no grupo.

A gente sempre sabe das outras né, e é por isso que quer vir. Só
que a gente vê a parte boa, quando elas voltam com dinheiro, com-
pram carro, sabe? O lado ruim ninguém conta e nem vai contar
porque não quer parecer que não deu certo, vai parecer fracasso.
(Entrevista com Andrômeda, em Madri, em 14/5/2008).

Entretanto, a experiência concreta vivida na Espanha traz no-


vas percepções sobre o país, já que 86% das evocações revelaram frus-
trações dos sonhos a respeito do que encontrariam na Espanha, e apenas
14% corresponderam às expectativas inicias.

Olha, eu penso que tem muita ilusão com a Europa, sabe, que não
tem gente passando fome, passando mal na Europa. Na verdade,
não é assim. Claro, a Alemanha é diferente. Não posso comparar
com o Brasil, nem as pessoas, nem o formato e nada. Mas aqui na
Espanha, eu não vejo muita diferença do Brasil, não em termos
de violência, em termos de assalto, sabe? Inclusive na diferença
social. Nessa rua mesmo, se você vem de dia, tem gente fazendo
compra, gente fina, de puma, de carrão. Se você vem de noite, tem
puta, tem travesti, tem bêbado. Pra mim, o nível de vida da Espa-
nha é idêntico ao do Brasil. Em temos de violência, prostituição,
tudo. Eu pensava, assim como todos, que quem vive na Europa é
assim milionário. É verdade. As pessoas pensam assim. Dior, Dol-
ce Gabbana, principalmente viado. Cabeça de viado é assim meu
bem. Gosta de perfumes, maquiagens, roupas, na verdade gosta da
moda. E a televisão e o poder do marketing é muito grande. Então
as coisas que sabemos e conhecemos da Europa é tudo de bom,

254
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

é tudo maravilhoso. Então, quando a gente pensa que vai sair do


avião e só vai ver assim o glamour, vai ver só gente passando bem,
que não tem pobreza, que ninguém passa fome, que ninguém vive
na rua, que as casas todas são lindas e maravilhosas, que tudo são
flores. Na verdade não é. Você tem que lutar, trabalhar, batalhar,
tudo igual, como você faz no Brasil. Pra ter uma vida boa aqui é a
mesma coisa que tem que fazer no Brasil. Você tem que trabalhar,
tem que estudar e essa que é a verdade. (Entrevista com Moiras,
em Madri, em 15/5/2008).

Das dez travestis que participaram da pesquisa, apenas duas


não eram prostitutas no Brasil antes de irem para a Europa. Tália traba-
lhava em um escritório e realizou o processo de transformação corporal
na Espanha quando iniciou a atividade de prostituição, e Íris afirma ter
sido traficada. Em 75% das evocações sobre os locais de atuação no Brasil
que possibilitaram a ida para a Europa aparece o relato de que a pas-
sagem pelas capitais brasileiras constitui um nó fundamental de ligação
com o exterior. As evocações que relatam a ida direta de uma pequena ci-
dade brasileira para o exterior se restringiram aos comentários das duas
travestis que não exerciam a prostituição quando moravam no Brasil. As
estratégias para passar pelas fronteiras nacionais envolvem um grupo de
pessoas articuladas entre si, constituindo redes de pessoalidade para fa-
cilitar que elas vençam os limites fronteiriços. As dificuldades de acesso
colocadas pelos órgãos de imigração nos aeroportos são logo ultrapassa-
das, como se observa nos seguintes relatos.

Olha, eu vim com uma carta de convite e eu já era transformada lá


no Brasil mesmo. Eu entrei por Milano, e tudo bem, sabe? Toda a
minha papelada, quem arrumou pra mim foi uma cafetina, e nin-
guém me perguntou nada. Vim na pinta, menina, até com dinheiro
no bolso. Depois eles pegam tudo da gente, mas cheguei na pinta,
sabe? (Entrevista com Andrômeda, em Madri, em 14/5/2008).

Então, hoje, a Europa está muito difícil. Uma, porque a entrada


está mais difícil. E elas fazem um sacrifício para comprar um bilhe-
te para vir para a Europa e encontrar algo já meio seguro. Porque
as pobrezinhas vêm, descem na Áustria, não sei onde, daí tem um
homem que espera elas lá, que espera elas na fronteira. Tem umas
que vêm pelas montanhas. É um sacrifício, viu? Depois, imagina
você chegar e te mandarem embora? Imagina você, vinte e qua-

255
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

tro horas viajando por terra. Na Áustria tem que pegar um taxista,
tem que pagar o taxista pra cruzar pra não sei onde. Teve uma me-
nina que veio pela Itália, lá posou na casa de uma conhecida nossa
em Milão e só depois entrou aqui na Espanha. Porque os países que
fazem parte do mercado comum já não têm aduana e daí já é mais
fácil entrar por terra. Elas agora descem em países que não estão
visados pela imigração. Se vier direto para Madri, Barcelona, já no
avião já comunicam o pessoal no aeroporto. A Europa está mui-
to ruim para vir. O pessoal está vindo pela Holanda, mas também
fazem muitas perguntas por lá. As que vêm até Madri, são bem
femininas, humildes. Mas aquelas que vêm assim se mostrando,
com os peitos na bandeja, vestido rasgado e não sei o quê, têm que
voltar pra trás. É menina, é babado, um babado mesmo! Você tem
que ter aparência humilde. Ser humilde, mostrar que já tem um
hotel reservado. (Entrevista com Divina, em Madri, em 2/6/2008).

As estratégias das travestis para driblar os mecanismos de


regulação fazem parte do paradoxo que mescla relações legais e ile-
gais, constituindo um mesmo processo espacial. A dinâmica de migra-
ção transfronteiriça das travestis compõe o que Sassen (2003) chama de
“contrageografías de la globalización”, que, segundo ela, “son dinámicas
y cambiantes en sus características de emplazamiento: en algún sentido
son parte de la economía sumergida, pero también es evidente que uti-
lizan la infraestructura institucional de la economía regular.” (SASSEN,
2003, p. 42).
Os baixos rendimentos e a pouca escolaridade das travestis (SIL-
VA, 2009; ORNAT, 2009) bem como sua vida de exclusão e preconceito no
Brasil constituem fatores que as impelem a emigrar, para melhorar a sua
situação econômica e angariar respeitabilidade social. Assim, as travestis,
a partir da situação vivenciada em território brasileiro, não consideram
como instransponíveis as dificuldades e os riscos a que estão sujeitas no
exterior. Nesse sentido, então, “ser uma europeia”, mesmo que seja uma
experiência difícil no exterior, se transforma, na volta ao Brasil, em um
forte elemento de valorização, reposicionando a travesti nas relações de
poder em seu espaço de origem, conforme relatam Pelúcio (2010) e Patrí-
cio (2009) em suas pesquisas.
O mesmo corpo travesti desprezado pela sociedade brasileira
ganha novo sentido na Espanha, sociedade em que os grupos LGBT ob-
tiveram várias conquistas de direitos cidadãos, Assim, e segundo os seus

256
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

relatos, o fato de serem travestis gera menos preconceito (28,5% das evo-
cações) do que o de serem brasileiras (71,5%). No trecho abaixo, Pandora
aponta a sociedade espanhola como mais evoluída no que diz respeito à
aceitação de sua orientação sexual.

Aqui fora eu não posso dizer que sofri preconceito por minha op-
ção sexual. Apesar que eu me esforço ao máximo para parecer
mulher, me esforço fazendo minhas cirurgias. Já fiz uma série de
cirurgias plásticas para isso. E como eu tenho uma aparência femi-
nina, as pessoas não notam muito. É raro alguém passar por mim
e já perceber que eu sou uma travesti. Às vezes me chama até de
senhora ou senhorita. Agora, no Brasil, a sociedade é muito atra-
sada com relação ao preconceito. Por incrível que pareça, se você
for fazer um balanço no mundo, eu acho que o lugar que mais tem
travesti e transexual é no Brasil. E é para mim o país mais precon-
ceituoso até o dia de hoje. Isso não me entra na cabeça. Não me en-
tra. É falta de cultura, de educação e de investimento do governo.
Agora, como brasileira, às vezes quando notam sua fala, depende
da região que você vai tem mais preconceito sim. (Entrevista com
Pandora, em Madri, em 16/9/2008).

Por outro lado, na perspectiva do desejo no mercado sexual es-


panhol, ser brasileira é vantajoso para as travestis. Em comparação com
as travestis de outras nacionalidades, elas são consideradas as preferidas
dos clientes e recebem muitos elogios. As categorias discursivas utiliza-
das nas falas das travestis brasileiras a respeito de sua relação com os
clientes espanhóis evidenciam, com grande predominância, uma imagem
de desejo e satisfação associada à sua nacionalidade: sensuais (47,5% das
evocações), bonitas/lindas (19,5%), alegres/divertidas (14%), amáveis/
doces (10,5%), “bem dotadas” (7,0%), mentirosas (1,5%). Divina, adminis-
tradora de um piso de luxo de travestis em Madri, explica:

[...] as brasileiras são as mais requisitadas. Elas são as mais pedidas,


porque elas são as mais bonitas, femininas e ao mesmo tempo mais
bem dotadas, sabe, “polla gorda”15. São mais guapas16. As brasileiras
são muito diferentes das espanholas. As brasileiras são muito fe-

15
Em português, “polla gorda” significa “pênis grande”.
16
Em português, “guapa” significa “bonita”.

257
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

mininas. Qualquer brasileira é mais feminina que uma espanhola.


As brasileiras há muito tomam hormônio e se produzem. As espa-
nholas, nossa, até pouco tempo se desse um beijo, você sentia a
barba. A brasileira não, ela já vem linda, hormonada, siliconada. As
mais pedidas são as brasileiras. Tanto é que no site do piso se colo-
cou “travestis brasileñas” para fazer sucesso. Veja o “ViveMadrid”,
quanta brasileira não tem lá. Mais de 70% das mulheres lá são bra-
sileiras. Mas isso é tudo legal. Veja, o pub é legal e aporta muitas
divisas, muitas divisas mesmo. Aqui a prostituição não é crime. E
os clientes pedem mesmo as brasileiras. Nós experimentamos uma
equatoriana no piso nosso em Barcelona. Nós temos vários pisos,
Barcelona, Madri e Réus. Então, essa equatoriana se adaptou bem
ao nosso estilo. Mas mesmo assim os clientes preferem as brasi-
leiras. Tentamos algumas portuguesas e não deu muito certo não.
As brasileiras são mesmo as preferidas. Não tem para as outras.
A brasileira é muito bonita, tem bundão, peitão, são muito doces
ao falar. Das portuguesas eles não gostaram muito não. Não deu
certo. Gostam de brasileiras. De brasileiras mesmo. As portuguesas
aqui, nossa, era até estranho perto das brasileiras porque a forma
de falar, de se comportar, as brasileiras são muito mais sedutoras
mesmo. (Entrevista com Divina, em Madri, em 2/6/2008).

Como se vê, a nacionalidade brasileira vincula-se à corporali-


dade, bem como ao gestual, e as outras nacionalidades são consideradas
menos atrativas. Corrêa (1996) argumenta que a construção da mulher
brasileira está profundamente marcada por elementos presentes no dis-
curso dos colonizadores e nos relatos de viajantes, que evocam a tropica-
lidade, a amabilidade, a naturalidade com relação à nudez e a disponibili-
dade sexual dos indígenas. Nesse sentido, afirma Pandora:

[...] a brasileira não, ela tem aquela identidade tropical, alegria,


diversão. São mais carinhosas, alegres, divertidas, extrovertidas,
simpáticas, doces e mais sensuais. As brasileiras são muito mais
sensuais, e isso tudo conta. Em geral eles associam a gente ao cli-
ma tropical, quente, e, automaticamente, a uma mulher quente,
uma mulher ardente, uma mulher apaixonada. Como eu posso te
explicar, é uma mulher que se entrega completamente ao prazer.
É mais quente na cama, mais carinhosa, é mais tudo. Aqui a mulher
europeia faz sexo como manutenção do casamento, uma vez por
mês, como se fosse uma espécie de revisão de carro, sabe? Como se
fosse uma obrigação, porque na verdade elas não casam com um

258
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

marido, casam com um cartão de crédito. (Entrevista com Pando-


ra, em Madri, em 16/9/2008).

Tanto a nação como a raça são aqui compreendidas como so-


cialmente construídas. A ideia de nacionalidade brasileira foi forjada na
sua relação contraditória/complementar entre modernidade e colonia-
lidade. Schwarcz (1994) sustenta que a imagem do Brasil foi produzida
pelas impressões deixadas pelos diversos viajantes e naturalistas que ti-
veram suas ideias acolhidas por intelectuais brasileiros como sendo uma
nação mestiça, híbrida. O hibridismo racial ou a mestiçagem das raças
que constituíam os povos foi compreendido como aspecto negativo da
ideia de nação que pressupunha a pureza racial. A nação brasileira foi
concebida, portanto, como degenerada, mas com uma natureza exótica,
poderosa, bela e generosa. Assim, segundo Costa (2008), os conceitos de
raça e meio estão profundamente vinculados à ideia de nação brasilei-
ra que até hoje persiste, e, consequentemente, à imagem que se faz, na
Espanha, a respeito da brasileira. E esses significados da nacionalidade/
racialidade brasileira são utilizados pelas travestis, que mobilizam ele-
mentos de brasilidade para tirar vantagens no mercado sexual. Trata-se,
enfim, da imagem de feminilidade próxima da natureza significada como
generosa, bela, exuberante e exótica, e, ao mesmo tempo, degenerada
moralmente, profundamente sexualizada pela natureza selvagem de
uma sociedade composta da mistura de raças.
Os elementos simbólicos da nação são amplamente utilizados
pelas travestis brasileiras, assim como os elementos da natureza. A tra-
vesti (ver a Figura 1, abaixo) cujo nome é anunciado como “Anaconda
Brasil” exacerba a nacionalidade brasileira, vestindo-se com estampas da
bandeira, e seu nome inclui uma cobra sul-americana que é considerada
uma das maiores e mais perigosas do mundo.

259
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

Figura 1 – Imagem de “Anaconda Brasil”, em anúncio de prestação de


serviços sexuais, vestida com estampa da bandeira brasileira.17

Além da corporeidade de travestis brasileiras que exacerbam


sua brasilidade em anúncios sexuais, os sites de prestação de serviços
também exploram símbolos da nação que estão relacionados com a cons-
trução de uma nacionalidade racializada, como pode ser visto na Figura 2.

17
www.taiakashemales.com

260
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

Figura 2 – Site de prestação de serviços sexuais de travestis brasileiras na Espanha.18

O site é apresentado ao som de “Aquarela do Brasil”, composta


por Ary Barroso em 1939, que se tornou, a partir de 1942, por causa do
filme “Saludos Amigos”, dos Estúdios Disney, uma das canções mais exe-
cutadas no exterior para caracterizar o Brasil. Este filme apresenta, como
criação, o Zé Carioca, personagem estereotipado do povo brasileiro: di-
vertido, festeiro, vagabundo e preguiçoso. Observa-se, na figura, que na
bandeira do Brasil a expressão TRAVESTIS BRASILEIRAS substitui o lema
ORDEM E PROGRESSO.
As travestis brasileiras que fazem trânsito internacional em di-
reção à Espanha estabelecem práticas espaciais que, na mediação entre
si e os outros, conseguem jogar com desejos e fantasias, exacerbando ele-
mentos identitários que podem ser vantajosos nas relações do mercado
sexual espanhol, promovendo um intenso movimento de intersecciona-
lidade entre gênero, raça, sexualidade e classe.

18
http://travestisbrasilenas.com

261
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

A “PISTA” E A “PRAÇA”:
VIVÊNCIAS ESPACIAIS TRAVESTIS NA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS SEXUAIS

Quando a travesti brasileira chega à Espanha, ela vivencia o país


de forma restrita porque, como imigrante ilegal, sua permanência no
país e a realização do sonho de se constituir uma europeia estão constan-
temente ameaçadas. Além disso, o exercício da atividade de prostituição,
em geral, é realizado de forma clandestina e informal. Normalmente, as
travestis oscilam entre a prostituição na rua (a pista), nos apartamentos
(pisos) ou em clubes fechados. As políticas de revitalização de algumas
áreas de Madri e o avanço da política anti-imigratória expressa nas cons-
tantes abordagens policiais têm levado à reorganização espacial da pros-
tituição, com o aumento de atividades em espaços privados, como pisos
e clubes.
Na visão das travestis, as diferentes modalidades de organiza-
ção da atividade apresentam vantagens e desvantagens. A modalidade de
piso apresenta 58,9% de evocações negativas e 41,1% positivas. Entre as
características negativas figuram a vigilância constante por parte dos ad-
ministradores, trabalho extenuante e impossibilidade de dizer não a um
cliente, e entre as positivas se destacam a segurança e a comodidade, já
que são os clientes que procuram o piso. Por outro lado, as falas a respeito
das ruas são mais positivas (maior liberdade e autonomia na escolha do
cliente, com 57,1%) do que negativas (insegurança, violência e exposição
à polícia, com 42,9%). Os trechos que se seguem exprimem isso.

Olha, nas ruas você tem mais oportunidade de um cliente optar


por você, porque ele para você, vem por você e te para. No piso,
normalmente tem três ou quatro travestis. O cliente vem e o dono
do piso apresenta todas e ele escolhe. E ele paga pro dono do piso,
então é metade pra ti e metade pro dono do piso. Em piso, se cobra
não menos que setenta euros por meia hora, é mais comum cem
euros por hora e daí é metade pra você e metade pra ele desse
valor. E depois, você tem que estar vinte e quatro horas por dia dis-
ponível. Por exemplo, se você foi dormir às três da manhã e chega
um cliente, você tem que levantar correndo de novo e se apresen-
tar e você tem que estar maquiada, vestida, na pinta (risadas). En-
tão, imagina, eu ia dormir maquiada e mal vestida. Se você levanta
e está com o olho vermelho tem que dar aquela retocada e colocar

262
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

a roupa rápido. Normalmente, como te disse, durmo meia vestida,


dentro do que cabe né? Daí tem que sair correndo e se apresentar.
E daí tem que dar uma de hipócrita (risadas). Porque tu tá lá, mor-
ta de sono, já fodeu um montão e tem que aparecer descansada,
com a pele linda e ainda “toda cachonda, cachondíssima”, que é
excitada né, doida pra foder. Então é estranho, sabe? Quando você
quer ficar tranquila, relaxar, descansar, sem problemas, não dá. Eu
não gosto, eu gosto de sair, ir numa discoteca. No piso não dá, tem
que ficar ali presa porque tem que estar vinte e quatro horas por
dia à disposição. Menina, de sete dias da semana, você tem um dia
livre. No dia, você tem uma hora por dia livre e é pela manhã, que
você pode sair fazer algo, comprar uma comida no mercado. Mas
nos demais horários, tu tem que estar lá. Se você tá lá, morrendo
de sono e diz assim que não quer se apresentar lá pra um cliente
que chegou, meu Deus, a pessoa diz: “não interessa, você tem que
ir”. A gente não tem assim um contrato, mas tem um acordo verbal
assim, boca a boca. Se você liga, pede a vaga no piso, a pessoa que
te recolhe já te diz: olha o esquema é vinte e quatro horas e tem só
uma hora livre e se o cliente chegar, você se apresenta. Não dá pra
dizer não, não dá pra ser rebelde. Mas dá pra fazer uns truques né,
como, por exemplo, se apresentar toda esculachada e mulambenta
(risadas). [...] A dona, essa senhora, a (fulana) era uma bruxa. Dizia:
você tem 5 minutos pra tomar banho, senão eu desligo o aquece-
dor, ela é pão-dura, agarrada no dinheiro. Ela é brasileira, mas já
veio pra Espanha há muitos anos. Veio como prostituta também.
Agora tem um chalé, um casarão, tem seu carro. (Entrevista com
Tália, em Madri, em 18/5/2008).

Todas as travestis entrevistadas já exerceram, ou ainda exer-


cem, a atividade de prostituição organizada na rua ou em pisos, por meio
de conquista de uma vaga, conhecida como “praça”. Esse sistema exige
um deslocamento constante que constitui várias redes geográficas, cujos
nós são as pessoas, donas dos pisos, em geral cafetinas, que podem ser
brasileiras ou espanholas. Os deslocamentos ocorrem em torno de duas
a três semanas entre os pisos, envolvendo cidades diferentes. As cidades
mais citadas pelas pessoas entrevistadas têm características de turismo
ou são de médio a grande porte, como Madri e Barcelona, seguidas por
Palma de Mallorca, Valencia, Bilbao, Zaragoza, Alicante e Murcia. Segun-
do elas, os deslocamentos constantes estão associados às necessidades e
desejos dos clientes, conforme os depoimentos que se seguem.

263
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

Olha, os clientes já acostumaram ter novidade na casa. Eles que-


rem gente nova. Então, a gente tem que se deslocar. Se fica no
mesmo local, não trabalha muito. Você trabalha bem no começo e
depois começa a baixar. Daí é hora de sair. A gente entra em con-
tato telefônico e arranja as praças. (Entrevista com Eurídice, em
Madri, em 17/9/2008).

As praças, pra mim foi assim. Quando eu comecei com os hormô-


nios, sabe, me coloquei assim na internet. Menina, a internet é o
mundo. Você conhece tudo por internet. Depois a gente conhece
uma profissional do sexo aqui e chega nela e pergunta. E daí, onde
você trabalha? Como é o local? E isso e aquilo e tal. E daí ela fala: Tô
trabalhando em tal lugar, tu quer o telefone? E pá. Te dá. É assim
que é a coisa. E eu como quase não gosto de falar né (risos). Você
imagina né, eu sou um papagaio. Eu mesma não gosto de ficar via-
jando. Mas as pessoas têm que se deslocar. Por exemplo, quando
você chega, é novidade. Eu mesma, faz um ano e meio que não vou
a Barcelona e se voltar, nossa! Eu trabalhava lá em Barcelona na
rua sabe. No Campo de Barsa. Se eu chego lá, eu sou novidade de
novo, porque faz um ano e meio que não vou lá. Sabe, mas aqui na
Europa, ou você trabalha porque tem a cara bonita, ou porque tem
um peitão, ou porque você é bem dotada, sabe o que eu digo? Tem
que ter a “polla gorda”, o pinto grande, sabe? Só que eu mesma não
tenho peitão porque não sou operada ainda. Meu pinto é minúscu-
lo, mas a cara ajuda. Então eu tento favorecer o corpo na roupa e
a cara eu tento fazer que chame a atenção. (Entrevista com Tália,
em Madri, em 18/5/2008).

Os deslocamentos entre as cidades são feitos por ônibus, menos


vigiados pela polícia do que os aeroportos, e o fato de estarem sempre em
deslocamento também dificulta serem apanhadas pelas autoridades de
imigração. A vivência espacial das travestis brasileiras na Espanha, nota-
damente as que optam pela organização da atividade da prostituição em
pisos, vivencia apenas os nós das redes, que são os apartamentos onde
ficam hospedadas e realizam os programas sexuais. O espaço da cidade
como um todo não é conhecido ou desfrutado.
A atividade desenvolvida na rua envolve maior habilidade por
parte da travesti, em todos os aspectos. Desde a conquista do local frente
às outras travestis já estabelecidas na área, até a conquista do cliente, o
drible da polícia e a autoproteção.

264
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

Você no mundo da prostituição, ou você é a filha da puta que bate


em todo o mundo, tem que ser violenta, malvada, ou você faz como
eu faço com todo o mundo, dou uma de simpática: “Hola amiga,
que tal?” Tem que ser simpática, chega, oferece um cigarro. Com
amizade é mais fácil. Tanto onde eu já morei, onde eu moro hoje
é assim que eu faço. Vou te dizer que em trabalho eu sempre fui
uma boa pessoa, uma boa companheira. Por exemplo, na prostitui-
ção, você tem que fazer a linha. Intercâmbio de favores, né? Eu te
ajudo no que eu posso e você no que pode pra mim. Por exemplo,
se me convém ficar num lugar onde eventualmente eu não seria
bem aceita, eu tento buscar maneiras para ser bem recebida. Por
exemplo, na rua, a primeira vez que eu trabalhei na rua foi em
Barcelona, já chegaram em mim e falaram: Quem é você? Quem te
mandou trabalhar aqui? Fora daqui, se não te dou uma tunda! Eu
digo bem mansinho: Hola, que tal? Tu éres tal tal tal, conheces tal
persona. Pois é, é minha amiga e tal. Isso de pouco a pouco, tu te
vás adentrando. Com simpatia, amabilidade, gratidão. Se alguém
grita contigo: “Fora daqui!” Você vai, mas no outro dia, você volta
e vai tentando. No dia, quando está sendo mais aceita, já diz: “Hola,
guapa, como estás, te invito?” (mostrou um cigarro). Isso sem con-
tar que todo pessoal, digo oitenta, noventa por cento do pessoal
que trabalha na prostituição é dependente de drogas. Então, se
você chegar com um pouco de droga e dizer: “Olha, toma pra ti,
te invito a isso e tal”, pronto. Quando te encontra, diz: “Ah! Que
simpática” e já virou assim tua amiga, sabe? Se você “regala” uma
carreira [cocaína], dessa aí que eu te ofereci, meu Deus, nossa, já é
a melhor amiga. (Entrevista com Tália, em Madri, em 18/5/2008).

Em ambas as espacialidades, a droga é componente assíduo da


atividade de prostituição para todas as travestis. A mais comum é a co-
caína, apesar de ter detectado a presença do crack. Nos pisos, os clien-
tes muitas vezes não vão em busca de serviços sexuais, mas em busca de
companhia e local protegido para o uso de substâncias químicas, como
evidencia o relato que se segue.

Ela cuidava dele, ela lavava ele e cuidava muito dele, colocava ge-
linho quando ele usava muita maconha, cocaína. Porque você sabe
que é isso daqui é que manda, né? Hoje em dia é maconha e coca
e pastilhas de êxtase é que tá mandando nessa juventude, viu? É a
ordem do dia. A gente já viu muita coisa feia aqui, viu? Porque os
clientes, todos que vêm aqui, de hora em hora, eles querem chei-

265
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

rar. Se você não tem, ele vai embora. Eu vou ser sincera. Eu não
tenho aqui, mas eu mando chamar. Eu não tenho porque Deus me
livre e guarde, não quero me complicar. Mas eu chamo quem tem
pra vender. E eles querem, procuram muito aqui pra isso, se dro-
gar. Se não tem, eles não ficam. Eles perguntam: tem festa branca?
Eu já digo, olha isso aqui não tem. A gente tem medo porque hoje
em dia os telefones são todos grampeados, sabe como é. A gente
tem medo, né? O ordenador tá controlado também. Tá controlado
até o ar que a gente respira. Aqui tem um ministro aqui no terceiro
edifício depois do nosso. Ali tem uns porteiros, que você pensa que
é porteiro, mas são guarda-costas do ministro. Eles ficam de olho.
Mas nós temos câmera também. Olhe ali. Nós podemos ver todo
mundo que chega no edifício. Sabemos se é cliente, se é cabelei-
reiro, maquiador, tudo. Quando você chegou, eu já sabia que era
você. Eu tenho câmeras em várias partes, lá no salão e lá na suíte,
lá eu ponho câmera. Porque tem o problema da violência. Aqui em
Madri, graças a Deus não houve nada muito grave, porque meu
anjo da guarda é forte. Mas no piso de Barcelona já houve coisa
séria com uso de droga, de o rapaz ficar doido e agredir todo mun-
do. Depois disse que alguém havia pego alguma coisa dele e ainda
depois de tudo queria se atirar pela janela. Foi horrível. Mas veja,
ele estava há dois dias metido na suíte usando droga. Imagina, dois
dias seguidos. Cheirando, cheirando, cheirando, dois dias. Daí cha-
maram o segurança, que segurou ele. Minha nossa senhora! Deus
me livre e guarde! Tem um outro árabe que vai lá que também
é bem problemático, viu? (Entrevista com Divina, em Madri, em
2/6/2008).

Se, por um lado, a espacialidade protegida dos pisos para o uso


de drogas traz proteção e segurança para as travestis, por outro, torna-as
menos visíveis na sociedade espanhola, e todas as conquistas sociais já
obtidas pelo movimento LGBT na Espanha não atingem as travestis bra-
sileiras que estão em situação de ilegalidade naquele país. As ruas, por
meio da exposição dos corpos e de ações das travestis brasileiras, faci-
litam a visualização de sua presença pela sociedade espanhola, que é ao
mesmo tempo desejada e repulsada.

266
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

NO ‘TRUQUE’:
ENTRE AS REDES DE PESSOALIDADE
E O TRÁFICO DE SERES HUMANOS

A forma de organização das redes que possibilitam a entrada de


travestis brasileiras na Europa e as características das relações de trocas
de favores e cobranças não são reconhecidas por elas, em 75% das evoca-
ções, como sendo “tráfico de seres humanos”, e sim como “truques”19. Do
total, 12,5% das evocações estão ligadas à crença de que existem práticas
de tráfico de seres humanos, lembrando experiências de pessoas e casos
que foram vistos em programas de televisão. Outras evocações (12,5%) se
vinculam com o caso de Íris, que afirma ter sido traficada do Brasil para
a Espanha. As falas das travestis brasileiras refletem a existência de um
código moral próprio, não compreendido por elas como tráfico de seres
humanos, conforme entende a sociedade espanhola. Nesse particular, o
trecho abaixo revela alguns elementos importantes.

Sabe, a polícia muitas vezes não entende o mundo da gente, sabe?


Eles acham que é crime o que a gente faz. Eles não entendem. Di-
zem que uma pessoa que tem uma casa e, por exemplo, recolhe
uma travesti, investe nela e depois quer o dinheiro que investiu
de volta, é cafetinagem. Mas veja, vem uma travesti, quer colocar
peito, quer uma peruca e você ajuda ela se montar e ensina a vida
a ela. Como que faz o serviço, como se defender, como ser uma
travesti. Você faz a travesti e depois, é claro, quer o que investiu
de volta. Imagina, uma pessoa que geralmente nem a mãe quer, a
família rejeita e só tem a gente. Mas a polícia não entende a gente,
como é que é a vida da gente e acha que isso é crime. Mas não é, é
a forma como a gente vive, como podemos viver. (Entrevista com
Ágape, em Madri, em 14/5/2008).

As redes que se instituem para o agenciamento de travestis bra-


sileiras contêm elementos que envolvem afetividade, confiança e signi-
ficados religiosos. Isso acaba dificultando a compreensão dos policiais a
respeito de suas formas de organização. Os relatos que se seguem são
paradigmáticos nesse sentido.

19
O termo “truque” é usado pelo grupo com o significado de enganar ou falsear alguma
coisa com o objetivo de tirar vantagem.

267
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

Olha, tráfico de travesti é mais difícil. De mulher é mais comum.


Mas de brasileira, te digo, quando vem, vem já sabendo que vai
trabalhar de puta mesmo. Sabe e ainda quer trabalhar de puta,
porque dá mais. O que acontece é que o povo quer vir pra Europa
e quando não tem condições de pagar um bilhete de avião e se
manter aqui por um tempo até arrumar um trabalho, tem que se
submeter. Olha, todas as brasileiras que eu conheço aqui e que es-
tão aqui há algum tempo fazem esse tráfico. Elas acham, bah! Eu tô
na Europa e tenho dinheiro, tem brasileira que tá lá, quer vir e não
tem como vir. Elas pensam assim: “Bem, eu tô aqui, pago o bilhete
de avião para elas virem pra cá, vou no aeroporto e busco elas no
aeroporto, pra mim, isso custa mil euros pra pagar o bilhete dela
e coloco ela pra trabalhar no meu piso. Bem, eu paguei mil euros
pra trazer ela, mas vou cobrar dela seis mil”. E é assim que se faz
dinheiro. Vai cobrando por semana e normalmente é feito assim
um acordo verbal, e se você não pagar eu vou te “dar um doce”
como se fala no Brasil. Manda dar uma surra, batem e cortam o
cabelo, deixam careca. Daí é assim: Ah! você não vai pagar? En-
tão volta pro Brasil e se não voltar, amanhã tem mais “doce”. Mas
é assim que funciona, sabe? (Entrevista com Tália, em Madri, em
18/5/2008).

A pessoa que me deu o dinheiro é uma pessoa muito boa, uma


pessoa muito amiga e até hoje é uma grande amiga minha. Uma
pessoa que não te explora, não te incomoda, não te dá nenhum
tipo de problema. Inclusive, eu agradeço muito a ela. Foi ela que
me ajudou, foi ela que me deu a luz. Queira ou não, ela me deu a
luz. Cobrando ou não cobrando, ela me deu a luz. (Entrevista com
Pandora, em Madri, em 16/9/2008).

Olha, eu sonhava em vir, mas aconteceu, sabe? Foi de uma hora


para outra que aconteceu. Eu sonhava e tinha conseguido uma
casa no Brasil e daí surgiu uma oportunidade. Uma mulher brasi-
leira me convidou. Me telefonou e perguntou se eu não queria vir
para a Europa, e eu falei, quero, mas não dei muito caso, sabe? Daí,
a sobrinha dela já apareceu com a passagem com tudo e pensei
assim, bem se Deus tá abrindo as portas pra mim, eu vou, né? (En-
trevista com Ágape, em Madri, em 14/5/2008).

Essas redes informais, contudo, têm grande eficiência de orga-


nização e de ações, pois são controladas pelos seus membros a partir de

268
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

um código moral estabelecido e pactuado. Se alguém quebrar com o acor-


do estabelecido, deve receber punição exemplar, como pode ser exempli-
ficado pelo trecho da fala de uma das participantes.

Então, eu vim financiada por sete mil euros. Eu trabalhava e man-


dava o dinheiro. Se você não paga, ela dá o jeito dela. Se você não
paga, ela manda te dar um doce. Manda te pegar, você entendeu?
Então, tem o caso de uma amiga minha que foi a última filha dela,
que levou doce no ano passado. Essa minha amiga que ela trouxe
também como eu. Ela estava pagando, mas a bicha, de ti ti ti na
cabeça dela, disseram que ela não estava pagando como podia e
ela deu o doce pra ela. Foi a última filha que levou doce. Porque é
assim, ela sempre tem que pegar uma, porque ela traz muitas, ela
tem um rebanho. Pra mostrar pras outras, tanto para as que estão
aqui e para aquelas que estão chegando. Ela sempre escolhe uma e
faz algo para exemplo para todas. Isso fica, você entendeu? Então,
se você não paga, sabe que não fica bem. Porque a pessoa está aqui
e aqui não tem como se esconder, porque você trabalha e o circui-
to é o mesmo. Você tem que pôr anúncio pra trabalhar e você está
em todas as páginas, você depende disso, de publicidade. Mas você
tem que saber que no nosso meio é assim. Se você dá um grito aqui,
toda a Espanha fica sabendo. Quer dizer, as travestis brasileiras
que estão na Espanha sabem. Não tem como se esconder não. Tudo
que se passa a gente fica sabendo. Porque, na verdade, todo mundo
se conhece nesse meio e a notícia acaba correndo. (Entrevista com
Tétis, em Madri, em 20/8/2008).

Pode-se afirmar que as redes de relações que sustentam o de-


senvolvimento da atividade de prostituição de travestis brasileiras se
estabelecem por múltiplas espacialidades, as quais podem ser contra-
ditórias e complementares entre si. As mesmas redes que possibilitam
o intercâmbio de informações de praças em pisos são as que permitem
também a regulação de suas ações, em um movimento paradoxal que po-
siciona as pessoas nas redes de poder.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto teve como fio condutor evidenciar o movimento da in-


terseccionalidade entre raça, classe, gênero e sexualidade acionado por

269
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

travestis brasileiras no processo de sua mobilidade transnacional para a


Espanha. A experiência de travestis brasileiras que rompem as frontei-
ras nacionais e acessam outros países pode ser captada apenas por uma
imaginação geográfica que permita evidenciar suas práticas complexas e
fluidas, já que elas, apesar de toda forma de poder e violência a que estão
submetidas, resistem, lutam e subvertem a pretensa ordem universal que
teima em invisibilizar sua existência. E elas conseguem tornar suas vidas
possíveis, apesar do poder que oprime.
As travestis brasileiras avaliam os elementos de vantagens e
desvantagens do país de origem e de recepção e procuram tirar provei-
tos das diferenças, mobilizando elementos identitários que provocam,
paradoxalmente, desejo e repulsa. Mostram-se como brasileiras e usu-
fruem de toda a significação racializada em torno dessa nacionalidade
que desperta o desejo e a fantasia dos povos colonizadores. Essas táticas,
ao mesmo tempo, se transfiguram em vantagens econômicas que, para
pessoas com pouco rendimento e escolaridade, significam uma garantia
de ascensão financeira e também a conquista de respeito junto a uma
família pobre no Brasil.
O trabalho evidenciou que as travestis lidam com múltiplas fa-
cetas identitárias que, por sua vez, são acionadas por múltiplos espaços,
e sempre na relação entre si e outros grupos, com os quais se enfrentam.
Assim, mesmo sendo consideradas seres abjetos, não estão fora do espa-
ço dos conquistadores, mas o constituem, tensionando os elementos he-
gemônicos heteronormativos. As travestis fazem fluxos transnacionais
a fim de conquistar melhores condições de existência e voltar ao Brasil,
reposicionando-se em patamares superiores aos anteriores em suas rela-
ções familiares e sociais. O desenvolvimento dessa trajetória espacial evi-
dencia sua resistência à exclusão e ao preconceito, que as colocam em si-
tuação de invisibilidade socioespacial. Mas é a própria invisibilidade que
facilita seus fluxos e o desenvolvimento de estratégias para ultrapassar
as fronteiras nacionais. Sua vivência na Espanha é marginal, pulverizada
e dinâmica, organizada em redes informais que dificultam seu enraiza-
mento e a captação da cultura do país receptor.
Elas resistem às normas estabelecidas, já que sua usual vivência
marginal na sociedade brasileira naturaliza os elementos de ilegalidade, que
acabam fazendo parte de sua existência. A organização de suas redes de ati-
vidades de prostituição envolve vários elementos de afetividade e religiosi-
dade que dificultam a compreensão de suas práticas como sendo “tráfico de
seres humanos”, mesmo que a sociedade espanhola assim as classifique.

270
Geografias malditas
Joseli Maria Silva

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271
corpos, sexualidades e espaços
Interseccionalidade e mobilidade transnacional entre
Brasil e Espanha nas redes de prostituição

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272
Geografias malditas
ESPAÇO E MORTE
NAS REPRESENTAÇÕES
SOCIAIS DE TRAVESTIS

Vinicius Cabral
Joseli Maria Silva
Marcio Jose Ornat

INTRODUÇÃO

O texto tem por objetivo compreender as relações en-


tre espaço e morte nas representações sociais de travestis moradoras da
cidade de Ponta Grossa (PR). A busca da inteligibilidade desse fenômeno
nasceu de uma longa trajetória de pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de
Estudos Territoriais (GETE), a partir da qual foi detectada uma constante
vulnerabilidade do grupo a atos de violência, com a presença constante
do risco de morte, como em Silva (2009) e Ornat (2008). A vulnerabilidade
à morte precoce detectada de forma superficial nas pesquisas citadas ser-
viu de fio condutor para um estudo específico que pudesse explorar esse
aspecto corriqueiro da vida das travestis. O estudo se apoia em relatos
de travestis a respeito de companheiras mortas e na ideia constante de
morte prematura que permeia suas vidas.
Nesse sentido, buscamos identificar os elementos que consti-
tuem as representações travestis sobre o risco de morte, observar como
a morte se encontra representada nos relatos de suas experiências e
descobrir como o espaço compõe tais representações. Foram realizadas
oito entrevistas com um grupo de travestis que atuam, de forma ativa
ou casual, na atividade da prostituição em Ponta Grossa, e, para tanto,
utilizamos um roteiro semiestruturado (em anexo). As falas resultantes
desse processo foram analisadas a partir de redes semânticas, segundo o
modelo proposto por Bardin (1977), dando sentido aos discursos que nas-
ceram das vivências espaciais das pessoas entrevistadas. Assim, a partir
da análise de categorias de discurso, no agrupamento das evocações e
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

na quantificação de suas frequências, identificamos as espacialidades que


compõem a vivência travesti.
O capítulo está estruturado em três partes. Primeiramente são
discutidos os conceitos que conduzem o foco central da pesquisa, a saber,
espaço, morte e representações sociais. Na segunda parte são exploradas
as espacialidades que compõem as experiências de morte do grupo par-
ticipante da investigação e na última seção evidencia-se a apropriação
espacial que constitui o território da prostituição, paradoxalmente ele-
mento de vida e morte para as travestis.

ESPAÇO, MORTE DE TRAVESTIS


E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

As pessoas que se autoidentificam como travestis contrariam


as normas da organização ocidental do sexo, gênero e desejo, cujo pres-
suposto é a bipolaridade entre o masculino/macho e o feminino/fêmea
(BUTLER, 2003). As travestis são claramente identificadas com o gênero
feminino, mas seus corpos apresentam genitália masculina. Assim, elas
congregam elementos masculinos e femininos de forma complexa e flui-
da ao longo de sua existência. O corpo, conforme McDowell (1999), é algo
em eterna transformação e instável para todas as pessoas. As travestis,
contudo, evidenciam câmbios considerados impactantes socialmente,
como o desenvolvimento de seios e quadris em um corpo com um pênis.
Em busca do ideal de feminilidade, elas transformam seus corpos para
desconstruir os traços de masculinidade e produzir o gênero feminino
que desejam.
As travestis vivem espacialmente. Contudo, a complexidade
que envolve sua existência pode promover várias formas de relação com
o espaço geográfico, tal como aponta Corrêa (1995). Segundo este autor,
o espaço, em sua relação com os grupos sociais, pode ser criado, reprodu-
zido, destruído e reconstruído. Nesse sentido, o espaço não é homogêneo
e fixo para todos os grupos, mas vivo de experiências, em permanente
processo de construção/desconstrução.
Assim, o espaço como elemento social é fruto também de ten-
sionamentos. A contraposição que as travestis estabelecem com a regra
considerada “natural” em nossa sociedade, que é a organização hetero-

274
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

normativa, faz com que elas sejam alvos do poder que procura enquadrá-las
à norma ou ainda colocá-las fora de qualquer possibilidade digna de exis-
tência. Todo ser humano que escapa à linearidade entre sexo, gênero e
desejo deve ser submetido, punido, corrigido ou excluído. Afinal, para o
estabelecimento da normalidade social, é preciso que se crie o referente
do anormal ou daqueles que podem servir como o “mau exemplo” que
ninguém deve seguir. As travestis são consideradas seres humanos fora
da norma, estranhos, doentes e, em certa medida, criminosos, como visto
nas pesquisas de Ornat (2008) e Silva (2009), em que se evidencia a relação
entre sua condição de abjeção social e sua vivência espacial interdita.
Os corpos abjetos, segundo Butler (2002), são aqueles seres hu-
manos que não são considerados humanos, que não gozam do estatuto
de sujeitos e refletem as zonas inabitáveis da sociedade, simplesmente
porque fogem àquilo que é concebido como inteligível. As travestis, por
não estarem enquadradas na inteligibilidade social ocidental das regras
de gênero e de sexo, são consideradas pessoas cuja humanidade lhes é
negada constantemente por meio de vivências espaciais. A negação social
de sua existência não significa que elas sejam seres imateriais e que não
necessitam de habitação, alimentação, trabalho e, portanto, de espaço. O
fato é que sua abjeção se faz na medida em que a sociedade impede que
elas tenham acesso às condições de cidadania.
A noção de abjeção, por sua vez, pode ser interpretada median-
te a ideia de heteronormatividade de Butler (2003). Para ela, este termo
designa uma tendência do sistema contemporâneo ocidental de sexo-
gênero de considerar as relações heterossexuais como sendo a norma,
de modo que todas as outras formas de relações fora desse padrão são
vistas como desviantes. Se o padrão hegemônico é heterossexual, o es-
paço geográfico também incorpora esta característica. Valentine (1993)
argumenta que o espaço constrange as ações de sujeitos, com o objetivo
de alinhar seus atos com as configurações hegemônicas de sexo-gênero,
como é o caso da heterossexualidade. Como prática sociossexual domi-
nante na cultura ocidental moderna, a heterossexualidade não é definida
apenas pelos atos sexuais que ocorrem nos espaços privados, já que se
estabelece também a partir de relações de poder que operam em todos os
espaços cotidianos.
Embora os espaços cotidianos não sejam percebidos, de modo
imediato, como heteronormativos, eles são importantes componentes
desse poder, e a heteronormatividade espacial “naturalizada” torna-se

275
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

perceptível quando ocorrem tensões resultantes de sua transgressão. Os


espaços próprios para homens e mulheres, ou espaços divididos por sexo,
como é o caso de alas hospitalares, banheiros, entre outros, constituem
os exemplos mais nítidos da heteronormatividade espacial. Assim, a exis-
tência espacial de uma travesti é entendida como uma transgressão das
normas vigentes na estruturação dos espaços. Seus corpos são marcados
nitidamente pela dissonância entre o que a sociedade ocidental conside-
ra como “normal” e aquilo que ela considera como desvio. Sob esta ótica,
as feminilidades vivenciadas em um corpo marcado por uma genitália
masculina são aberrantes. Louro (2004), ao discutir a marca corporal, ar-
gumenta que

[...] ela terá, além de efeitos simbólicos, expressão social e mate-


rial. Ela poderá permitir que o sujeito seja reconhecido como per-
tencente a determinada identidade; que seja incluído em ou exclu-
ído de determinados espaços [...]; que possa (ou não) usufruir de
direitos; [...] que seja, em síntese, aprovado, tolerado ou rejeitado.
(LOURO, 2004, p. 83-84).

Em uma entrevista concedida a Prins e Meijer (1998), Judith


Butler afirma que os discursos sobre as marcas dos corpos habitam os
corpos, acomodam-se nos corpos, compõem os corpos como parte de seu
sangue. Assim, e apoiados em Louro (2004), acreditamos que pouco im-
porta saber quem iniciou as marcações e quais são as suas intenções, mas
o fundamental é compreender o processo de inteligibilidade social dos
corpos travestis marcados e seus efeitos.
As travestis têm corpos profundamente marcados, e os discur-
sos sociais construídos em torno deles são repletos de desaprovação. Elas
apresentam uma nítida dissonância com o gênero que a sociedade espera
de um corpo com a genitália masculina, e as fortes marcas transgressoras
da heteronormatividade são respondidas pela repulsa social.
O estudo de Namaste (2000) sobre a relação entre violência e
grupos dissidentes da heteronormatividade, desenvolvido no contex-
to anglófono, aponta que os transgenders1 constituem o grupo que sofre
maior violência, pela nitidez de sua transgressão entre sexo e gênero,
diferentemente de outras identidades como gays e lésbicas, cuja disso-

1
No contexto anglófono, o termo transgender designa travestis e transexuais.

276
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

nância não é tão marcante. O estudo de Silva (2009, p. 142) no contex-


to brasileiro também aponta a vulnerabilidade das travestis à violência,
afirmando que “as travestis sofrem maior violência e preconceito porque
a marca da transgressão é nítida, visual e, portanto, afronta o poder hete-
ronormativo, muito menos evidente no gay ou na lésbica”.
A violência é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS)
(2002) como sendo qualquer força física ou simbólica, contra si mesmo ou
grupo, que culmine, ou tenha alta probabilidade de lesão, morte, dano
psicológico ou privação. A instituição aponta que há quatro formas de
violência: a) física, que corresponde a toda manifestação com o objetivo
de ferir; b) psicológica, caracterizada pela humilhação, desrespeito, rejei-
ção, entre outros; c) sexual, quando o agressor abusa de seu poder sobre
a vítima na obtenção da gratificação sexual, sem o consentimento da ví-
tima; d) negligência, que é a omissão do responsável em proporcionar as
necessidades básicas de seu dependente.
Ainda que em contextos espaciais distintos, as pesquisas desen-
volvidas por Namaste (2000) e Silva (2009) apontam que as quatro formas
de violência caracterizadas pela OMS fazem parte do cotidiano espacial
das travestis. Os atos de violência são profundamente marcados pelo es-
paço, e Silva (2009) evidencia que as travestis possuem diferentes experi-
ências de violência ligadas aos diferentes locais. Em ordem de hierarquia,
partindo do espaço apontado como sendo aquele de maior sofrimento,
são escolas, hospitais, clubes/danceterias, penitenciárias/delegacias de
polícia, exército e igrejas. Os relatos de atos de violência sofridos pelas
travestis, associados às vivências espaciais, apresentam a violação de
muitos aspectos de direitos humanos, que vão desde a violência física,
sexual, psicológica, negligência, até a ocorrência de casos de morte.
A morte é um fenômeno comum a todo ser humano. Entretanto,
a forma de morrer é diferente para os diversos grupos sociais, dependen-
do dos padrões de qualidade de vida e do acesso a recursos ambientais,
tecnológicos, renda familiar e muitos outros elementos. Assim, pode-se
dizer que o risco de morte e a vulnerabilidade a ela são diferentes para
cada pessoa.
Ariès (1975) afirma que a morte faz parte da vida. Ele diz que sa-
bemos dela e que se vive em função desse acontecimento, que é coletivo
e público. Embora um fenômeno comum a todos, é específico para cada
grupo. A expectativa de morte, notadamente quando ela faz parte do co-
tidiano, como é o caso do grupo de travestis, faz com que elas tenham

277
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

determinados comportamentos em vida, pois a longevidade não é uma


característica comum a elas.
O autor traça seus argumentos evidenciando que o fenômeno
da morte é compreendido de forma diferente em diversas temporalida-
des e sociedades (ARIÈS, 1975). A morte, além das diferenças temporais, é
representada de forma diversa pelos grupos sociais, dependendo da rea-
lidade por eles vivida. As travestis, devido a seu cotidiano de violência e
exclusão, têm a morte como um elemento presente de forma constante
em suas vidas.
O sentimento do risco da morte de si e da dor da experiência
de morte de amigas e conhecidas está também associado a determinados
espaços. Souza (1997) chama a atenção para os aspectos subjetivos do es-
paço e sua relação com a materialidade. Nesse sentido, o afeto em relação
à morte para as travestis é um elemento que compõe a materialidade de
sua existência espacial. Não há uma relação de causa e efeito entre o ma-
terial e o imaterial, mas, como argumenta Souza (2002), há uma comple-
xidade composta de elementos de determinação e de indeterminação. A
objetividade do espaço é resultado da subjetividade compartilhada pelas
pessoas, ou seja, da intersubjetividade que se estabelece pelas trocas de
representações sociais, e tais trocas podem levar a um devir espacial, tal
como propõe Massey (2008).
A relação entre espaço e representações sociais foi desenvolvi-
da por Silva (2002), que estabeleceu um diálogo geográfico com as teorias
de Moscovici (1978). Para a escola moscoviciana de psicologia social, as
representações sociais são uma modalidade do conhecimento particular
que tem por função a criação de comportamentos e a comunicação en-
tre os indivíduos. Ou seja, as pessoas refletem sobre os fatos cotidianos
através de seus valores, informações, experiências e várias outras fontes.
As explicações construídas a partir dessas experiências são as represen-
tações sociais, sempre inventivas e em permanente processo de criação e
recriação. Para Silva (2002, p. 192):

O ato de representar é uma reconstrução e não uma repetição ou


reprodução, pois neste processo a realidade desconexa, ao ser re-
construída, faz circular e reunir experiências dos indivíduos, tor-
nando o que é estranho em algo familiar para, assim, naturalizá-lo.

278
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

A morte como um acontecimento comum na vida cotidiana das


travestis é alvo de discursos e explicações que acabam constituindo re-
presentações sobre ela, e essas representações possuem componentes es-
paciais. Assim, como argumenta Duncan (1990), as representações sociais
de travestis em relação à morte podem ser compreendidas como um tex-
to ou um discurso da cidade. Os discursos e as representações intercam-
biadas entre os diferentes grupos sociais constituem a intertextualidade
da cidade, e esse processo se faz de forma complementar, conflitante ou
justaposta.
As travestis experienciam a cidade de uma forma específica,
diferente da de outros grupos sociais, e, portanto, suas experiências da
relação entre espaço e morte também apresentam características par-
ticulares, a serem exploradas pela Geografia. Contudo, esta pesquisa
pretende ultrapassar a materialidade visual, a exploração quantitativa
das mortes ou o mapeamento do local de ocorrência da morte. A ideia é
constituir uma cartografia de referência das interpretações travestis da
relação entre morte e espaço, trazendo para a visibilidade o texto urbano
construído por elas.

AS INTERPRETAÇÕES ESPACIAIS
DE TRAVESTIS E A RELAÇÃO COM A
VULNERABILIDADE À MORTE

Tomando como base os argumentos de Duncan (1990), este en-


saio traz a leitura possível que as travestis fazem da relação entre sua
existência espacial e a vulnerabilidade à morte. As travestis entrevista-
das, como pode ser observado no Quadro 1, dependem da prática da pros-
tituição para sua sobrevivência, são pessoas de baixos rendimentos e, em
geral, têm também baixa escolaridade formal.2

2
Para proteger as fontes, todos os nomes constantes neste quadro são fictícios.

279
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

A prostituição
Identidade Atua em
Nome Idade Ocupações é sua principal
de gênero³ ONG?
fonte de renda?
profissional
Lírio 20 travesti não sim
do sexo
profissional
Jasmim 26 transexual não sim
do sexo
profissional
Violeta 28 travesti não sim
do sexo
profissional
do sexo,
cabeleireira,
Azaléia 34 travesti sim manicure e sim
designer de
sobrancelhas
profissional
do sexo,
Íris 40 travesti sim
cabeleireira e sim
costureira
profissional
do sexo,
Tulipa 42 transexual sim
cabeleireira e não
massagista
profissional
do sexo,
cabeleireira,
Margarida 48 travesti sim não
manicure e
aposentada

profissional
Rosa 52 transexual sim casual do sexo e não
aposentada

Quadro 1 – Perfil do grupo entrevistado.

O discurso das pessoas entrevistadas resultou em um total de


3

328 evocações, que foram organizadas no Gráfico 1, as quais remontam


às espacialidades vinculadas à leitura que as travestis fazem da cidade e

3
Em resposta à pergunta de como se autoidentificavam, algumas das entrevistadas
usaram o termo “transexual”. Na verdade, algumas ora se definiram como “travesti”, ora
como “transexual”. No fim, diziam que a denominação “travesti” seria mais correta, a
partir do argumento de que ainda não tinham realizado a cirurgia de transgenitalização.

280
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

suas experiências cotidianas que trazem a perspectiva da vulnerabilidade


ao risco de morte.

Gráfico 1 – Configuração espacial das evocações sobre


a vulnerabilidade ao risco de morte.

Cada um dos espaços que se constituíram em referências para


o discurso das travestis será analisado a partir das representações sociais
que dão sentido às suas interpretações espaciais compostas de elementos
de vulnerabilidade à morte.

A CIDADE

Para as travestis, a cidade é interpretada pelas representações


sociais que estão organizadas no Gráfico 2. Vários elementos de exclusão
e violência são nele elencados como estruturantes da visão que as traves-
tis têm sobre o espaço urbano.

281
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

Gráfico 2 – A cidade e os elementos constituidores das


representações sociais sobre a vulnerabilidade ao risco de morte.

As representações sociais das travestis sobre a cidade se cons-


tituem majoritariamente pela relação de violência, interdição e morte
a que elas estão sujeitas. Em seguida, são evidenciados o preconceito, o
uso de drogas e a superação enquanto representações sociais periféricas
sobre a cidade.4 Assim, vamos explorar detalhadamente cada um destes
elementos elencados no discurso das pessoas entrevistadas.
A categoria Violência compõe o elemento de maior significân-
cia sobre a cidade, com 32% do total de evocações. Este elemento está re-
lacionado com os diversos tipos de violência apontados pela OMS (2002),
como a violência física, psicológica e sexual. A violência psicológica é re-
latada como algo recorrente e cotidiano no desenvolvimento de ações

4
A categoria Outros, que representa 20% do total das evocações sobre a cidade, apresenta
um padrão discursivo disperso, o que não permite construir um eixo semântico. Esta
categoria se relaciona com elementos como o acesso livre à cidade, a admiração que as
pessoas sentem em relação às travestis, a família, a injustiça, a transformação do corpo, o
reconhecimento e a militância.

282
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

corriqueiras, como andar pelas ruas, ir ao supermercado ou estar em um


ponto de ônibus, como pode ser visto no depoimento de Margarida.

[...] porque o simples fato de você passar na rua e uma pessoa dizer
“olha lá o viado sem vergonha, safado, olha lá a bicha, olha lá o
traveco”, cada forma de dizer horrível que eles têm com a gente
é violência. Não é só a violência física, agressiva, deles machucar
você de verdade. Mas é também a violência no sentido moral, de
palavras, é muito dolorido, você chegar num lugar e ser agredida.
(Entrevista feita com Margarida, em sua residência, em 6/8/2011).

A violência física e sexual aparece nas falas das travestis como


algo a que todas elas estão sujeitas, e qualquer descuido de sua vigilância
as coloca em sérios riscos. O trecho de entrevista de Azaleia é exemplar
nesse sentido. O simples fato de ser travesti chama a atenção, e seus cor-
pos são representados como passíveis de violação e agressão.

Foi na vinda do clube que minhas amigas me abandonaram e eu


vim sozinha pela BR, que era distante da boate. Me pegaram em
cinco homens. Daí, destes cinco homens eu tentei fugir. Eu tive
luta corporal com eles, até que não resisti e eles me levaram para
um barracão abandonado, e todos tiveram relações sexuais comi-
go. O único que não teve foi um [...] que queria fazer o pior, colo-
car uma garrafa em mim. Tinha até um segurança do clube que eu
tava. Até o segurança se aproveitou. Daí o segurança viu que ele
queria colocar uma garrafa em mim e disse: “assim não dá, assim
não pode, a gente só falou que ia fazer isto e ponto final”. Depois,
um deles, viram que eu comecei a gritar e pedir por socorro. Eles
me bateram, me bateram horrores, deixaram meu olho assim, in-
chado. Eu pensei que tinha perdido a minha lente verde, e tive
que fingir que tava morta, se não eles iam me matar […], mas só
me bateram. (Entrevista feita com Azaleia, no Grupo Renascer, em
8/12/2011).

A categoria Interdição, que aparece como outro elemento sig-


nificativo, com 18% do total de evocações sobre a cidade, é interpretada
por elas como a ausência de oportunidades de sobrevivência, de ascensão
social e econômica, associada a uma sociedade que lhes deseja a morte.
E a categoria Morte compõe 10% do total de evocações sobre a cidade,

283
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

evidenciando o sentimento de menos valia da travesti em relação à socie-


dade, como argumenta Íris.

[…] elas pensam que a gente é a escória da sociedade. Então, pra


elas tanto faz, como tanto fez. Quando morre uma travesti, pen-
sam “é uma a menos”. Eu acho uma injustiça isto, né? Os que fazem
isto é porque não têm nem um caso na família, porque, a partir do
momento que tiver um caso na família, eles vão ter outra visão,
não é verdade? Porque, quem tá de fora, é fácil falar, criticar. (En-
trevista feita com Íris, no Grupo Renascer, em 7/12/2011).

A categoria Preconceito compõe 8% das representações sociais


das travestis sobre a cidade, vinculando-se à associação do grupo com a
AIDS, como relata Margarida.

[...] geralmente, quando sabem que uma travesti morre, é de AIDS.


É a praga gay, ninguém quer saber. Tem muitas que batem o carro,
são tudo louca da cabeça. Se entrar debaixo do caminhão, bater
num poste, ninguém quer saber. Uma travesti morreu, já pensam:
“esta praga morreu de AIDS”. Ninguém tem um pensamento bom.
(Entrevista feita com Margarida, em sua residência, em 6/8/2011).

Em seguida, a categoria Drogas, que também corresponde a 8%


do total de evocações sobre a cidade. Ela está associada ao uso do crack,
que, segundo o grupo, tem tornado as travestis muito mais vulneráveis à
morte do que em épocas anteriores, já que a dependência química as leva
a cometer furtos para sustentar o vício, e elas passam a ser alvo da polícia
ou até mesmo de vingança. Além disso, o uso de drogas faz com que elas
diminuam sua atenção às situações de perigo a que estão expostas na rua,
como a aproximação de grupos violentos ou de pessoas que se fazem pas-
sar por clientes para roubá-las ou, ainda, cometer atos violentos contra
elas.
Por fim, a categoria Superação, que corresponde a apenas 4% do
total de evocações sobre a cidade. Diz respeito às conquistas do grupo na
cidade, às situações de resistência ao preconceito e à vitória frente às ad-
versidades que o grupo enfrenta. Margarida fala com orgulho de histórias
de sucesso de travestis que conquistaram ascensão social e econômica
fora da prostituição.

284
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

[...] hoje em dia nós temos travestis aqui em Ponta Grossa que es-
tão na universidade, lá na SECAL. Ela tá estudando e não se pros-
titui. [...] É uma loira, muito bonita. Quer dizer, ela se prostituiu e
achou que não era o lance dela e encarou o povão. [...] Nós temos
uma transexual aqui em Ponta Grossa que é professora, a [nome
omitido]. Hoje em dia, ela trabalha dentro da Prefeitura, na ouvi-
dora da Prefeitura. Quer dizer que isto é uma conquista aqui em
Ponta Grossa. Nós temos poucas, mas em Curitiba, em Londrina,
em São Paulo, no Rio de Janeiro, tem travesti advogada, tem tra-
vesti dentista, tem travestis em profissões que você não acredita,
mas elas tão lá [...]. (Entrevista feita com Margarida, em sua resi-
dência, em 6/8/2011).

OS HOSPITAIS

As representações sociais relacionadas aos hospitais orientam-


se a partir de eixos semânticos que não trazem a morte física no hospital,
mas, sim, um caminho que leva à morte pela interdição e pela negação
ao atendimento e ao tratamento das doenças ou de lesões que são resul-
tantes de agressões. O Gráfico 3 apresenta a forma como o hospital está
estruturado a partir das representações sociais do grupo de travestis.5

Gráfico 3 – Hospitais e os elementos constituidores das


representações sociais sobre a vulnerabilidade ao risco de morte.

5
A categoria Outros, que apresenta 9,1% do total de evocações sobre o hospital, foi criada
para reunir relatos que não se enquadram em um eixo semântico.

285
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

Nas representações sociais das travestis a respeito de hospitais,


a categoria Interdição aparece como o principal elemento, com 60,6% do
total de evocações relacionadas a este espaço. Ela ocorre quando a equipe
médica e/ou de enfermagem evidencia preconceito por meio de ações
discriminatórias como relação às travestis. Então, estas atitudes costu-
mam gerar medo, de modo que, consequentemente, as travestis deixam
de retornar ao hospital. A interdição é fruto das espacialidades heteros-
sexuais (VALENTINE, 1993), que são hegemônicas também no campo da
saúde.

[...] a falecida [nome omitido], eu levei ela pro Pronto Socorro. Os


enfermeiros trataram ela mal dentro do Pronto Socorro, e os mé-
dicos também. É aquela coisa, enquanto você não precisa de um
serviço de saúde, tá lá numa esquina, pensam “ai como é bonita,
ai como é gostosa, ai como é linda”. Mas, a partir da hora que você
precisou, a discriminação é a primeira coisa que aparece. (Entre-
vista feita com Margarida, em sua residência, em 6/8/2011).

[...] geralmente eles não atendem. Quando eles verem que é uma
travesti, eles já falam “ai, é um viado”! Já vai todo mundo para
ver o viado ali. Quer dizer, em vez de atender, tentar ver qual é o
problema, medicar, não. Primeiro, todo mundo vem ver que é um
viado. A primeira palavra que você escuta “sem-vergonha tem que
morrer mesmo”. (Entrevista feita com Margarida, em sua residên-
cia, em 6/8/2011).

Sobre o atendimento médico e hospitalar em decorrência de


agressões físicas sofridas, os relatos também evidenciam interdição,
como se observa no seguinte depoimento:

[...] Não procuram. Só quando é um caso muito grave mesmo, ou


alguém leva. Mas, caso contrário, se tratam em casa. Já vi vários
casos de travestis que sofreram um tiro e conviveram com um tiro
no braço e ficou com defeito no braço, a [nome omitido] foi uma
dessas. Ela morava na mesma casa que eu morava, ela tinha um
defeitinho no braço, por ter levado um tiro e não ter procurado
um médico. Tudo por medo de ir no médico, ou procurar a policia,
porque poderiam perguntar como é que foi. Naquele tempo era as-
sim, se agente procurasse a justiça, a gente ficava presa lá, enten-
deu? (Entrevista feita com Rosa, em sua residência, em 5/7/2012).

286
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

A categoria Saúde apresenta apenas 15,2% do total de evocações


sobre o hospital. Em geral, diz respeito a casos de prestação de serviços
que as travestis tiveram. Por outro lado, a categoria Melhora no atendi-
mento (9,1%) aparece associada ao fato de que atualmente as instituições
de direitos humanos e ONGs têm pressionado as instituições de saúde a
cumprir um atendimento digno. Rosa, uma travesti de 52 anos que ex-
perienciou por vários anos os serviços públicos de saúde, fala a respeito
disso.

Hoje em dia tá bem melhor! Antigamente eles não estavam nem


aí! Mas hoje em dia, sim. Hoje em dia, se aparecer algum caso de
violência, eles procuram atender bem, né? Eu acho que muitas
fundações tão em cima. Daí, eles têm medo de ser cobrado. Então,
por isto eles estão atendendo melhor a gente. (Entrevista feita com
Rosa, em sua residência, em 5/7/2012).

Por fim, a categoria Superação está presente em 6,1% do total


de evocações das pessoas entrevistadas, associando-se à resistência a atos
de violência e discriminação praticados nos hospitais por atendentes de
saúde. As travestis afirmaram que, muitas vezes, em situações de fragili-
dade extrema de saúde, eram maltratadas dentro dos hospitais, e, então,
para elas a recuperação significava uma vitória frente aos maus tratos. O
relato de Margarida é exemplar nesse sentido.

[...] aqui no hospital, eu me vinguei do enfermeiro. Fui lá e mostrei


pra ele que eu tava de pé. Olhei bem na cara dele “lembra que você
falava que eu era viado e que tinha que morrer? Olhe aqui o viado
aonde é que tá!” (Entrevista feita com Margarida, em sua residên-
cia, em 6/8/2011).

As representações sociais construídas pelas travestis demons-


tram que o hospital é hegemonicamente caracterizado pela negligência,
discriminação e interdição. Assim, ele não foge às regras da sociedade
heteronormativa, que penaliza os “corpos transgressores”.

287
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

A CASA

A casa é representada de forma hegemônica na estruturação


do discurso das travestis sobre a morte, e os elementos estruturadores
das representações sociais ligadas à casa são: família, velhice, violência,
morte, expectativa, amizade, rejeição da família, entre outros. O Gráfico
4 evidencia as proporções de tais elementos constitutivos das represen-
tações sociais.6

Outros 23,53% Família 20,59%

Amizade 8,82%
Velhice 17,65%

Expectativa 8,82%

Morte 8,82% Violência 11,76%

Gráfico 4 – Casa e os elementos constituidores das


representações sociais sobre a vulnerabilidade ao risco de morte.

A categoria Família corresponde a 20,6% do total de evocações,


revelando-se como uma categoria ambígua. Se, por um lado, a família
pode proteger as travestis da violência e afastar o risco de morte, por
outro, pode também promover a sua vulnerabilidade. Isso porque a maio-
ria das famílias das travestis não aceitou sua identificação feminina e as
rejeitou desde a adolescência. As falas mesclam mágoa e amparo, como
pode ser visto no seguinte trecho da entrevista com Margarida:

[...] que tem muita travesti que sai de casa. Isso porque a família
não admite ter uma travesti dentro de casa [...]. Mas, daí, no dia

6
Os relatos esparsos, que não puderam ser reunidos em eixos semânticos, foram
classificados como Outros (23,5%).

288
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

que perde, valoriza a pessoa e ficam sentindo [...]. (Entrevista feita


com Margarida, em sua residência, em 6/8/2011).

A categoria Velhice é um elemento que compõe as represen-


tações sociais das travestis ligadas à casa, com 17,6% do total de evoca-
ções. A velhice nesse contexto discursivo é composta por duas frentes de
representações sociais. Uma se refere às travestis mais jovens e outra,
às mais velhas. Para as jovens, a velhice é evocada de forma a traçar ob-
jetivos para a vida futura, temendo a perda da beleza e a diminuição dos
recursos provenientes da prostituição. Para as mais velhas, a velhice é o
período em que elas não necessitam mais atuar na atividade da prostitui-
ção. Devido à grande violência e interdição que as travestis sofrem, pou-
cas conseguem chegar à velhice. Vejamos os dois depoimentos a seguir,
o primeiro, de uma travesti jovem (Violeta, 28 anos), e o outro, de uma
travesti com mais idade (Margarida, 48 anos).

[...] Sei lá, vou estar velha, feia, sem dente [risos]. Mas eu quero es-
tar bem. Eu tô tentando construir uma coisa agora pra mim e estar
estabelecida no futuro. Eu corro atrás das coisas agora, eu trabalho
na rua, mas eu tenho um planejamento por detrás de tudo isto. Eu
sei que a beleza não dura pra sempre. (Entrevista feita com Viole-
ta, em sua residência, em 30/5/2012).

Na minha velhice eu pretendo continuar trabalhando, porque


agora eu tenho os cursos que eu fiz. Vou continuar trabalhando,
inventando alguma coisa. Se não, eu vou trabalhar de diarista ou
fazer alguma coisa em casa, algum salgadinho pra vender, pra
continuar a sobreviver. [...] Porque é o destino de todas, a beleza
acaba, não é eterna. Passou aquela fase, acabou. Veja, quem revo-
lucionou esta cidade fui eu e, hoje em dia, alguém lembra de mim?
(Entrevista feita com Margarida, em sua residência, em 6/8/2011).

A categoria Violência corresponde a 11,8% do total de evoca-


ções. A violência em relação à casa ocorre por meio da discriminação de
vizinhos, usualmente através da violência psicológica. A categoria Morte
corresponde a 8,8% do total de evocações sobre a casa. A morte ligada à
casa diz respeito a doenças, já que grupo, em geral, trata de suas enfermi-
dades em casa, evitando o hospital.

289
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

Há ainda alguns elementos positivos relacionados às represen-


tações sociais da casa, como a Expectativa e a Amizade. A categoria Ex-
pectativa corresponde a 8,8% do total de evocações e está vinculada a
planos sobre a casa, relacionando-se com os anseios da travesti de poder
ter condições financeiras suficientes para ter uma casa e deixar a prosti-
tuição. A categoria Amizade, com 8,8% do total de evocações sobre a casa,
diz respeito aos aprendizados com outras travestis, com as quais dividi-
ram uma mesma casa durante algum tempo.

OUTROS ESPAÇOS NÃO HEGEMÔNICOS


DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
SOBRE A MORTE

O discurso das travestis entrevistadas traz ainda outras espa-


cialidades ligadas à morte, que, embora não sejam centrais, devem ser
consideradas como estruturadoras da relação entre espaço e morte. Con-
siderando o total de evocações, essas espacialidades são: delegacia (4,3%),
boate (3%), velório (1,5%), ONG (0,9%) e vizinhança (0,3%).
A delegacia é a espacialidade mais significativa por causa do
sentimento de “não justiça”, medo e interdição, apesar de que raramente
lembram do fato de que o tratamento dos atendentes nas delegacias me-
lhorou muito em relação ao passado. A boate está relacionada ao discurso
das travestis mais velhas, nos relatos em que a boate era local central
da atividade de prostituição. O velório é significado pela negligência dos
familiares em relação às travestis que morrem, bem como pela solida-
riedade de outras travestis para pagar seus custos. Finalmente, as ONGs
aparecem como elementos de auxílio para as travestis e de luta por direi-
tos humanos, e a vizinhança aparece como espaço de fofoca e violência
psicológica.
A convivência com o grupo de travestis ao longo do processo de
pesquisa evidenciou que a mesma sociedade heteronormativa que exclui
as travestis da maioria das espacialidades de convivência social cotidiana
diurna possibilita a constituição dos territórios da prostituição durante
a noite. Os territórios de prostituição travesti constituem complexidades
existenciais e espaciais, pois, conforme Foucault (1988), as relações de
poder não constituem uma contraposição simples entre grupos de domi-
nadores e grupos dominados, ou, em outras palavras, grupos com práti-

290
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

cas que correspondam à linearidade entre sexo, gênero, prática sexual e


desejo, de um lado, e grupos com gênero e sexualidades dissidentes, de
outro, e essa complexidade é o fio condutor da próxima seção.

A MORTE ESPERADA E A SOBREVIVÊNCIA


DESEJADA NA INSTITUIÇÃO DO
TERRITÓRIO DA PROSTITUIÇÃO

Como vimos, a prostituição é resultado de várias interdições


espaciais ao longo da vivência travesti, decorrentes do conflito entre
a sexualidade travesti e a heteronormatividade hegemônica do espaço
geográfico, conforme argumenta Valentine (1993). Foi evidenciado
anteriormente que a vivência das travestis é marcada pela exclusão e pelo
preconceito. Ou seja, diversos espaços que são necessários para a conquista
de direitos sociais, como hospitais, delegacias e escolas,7 aparecem como
espacialidades interditas. A maioria das travestis tem a prostituição
como única possibilidade de ocupação e, no contexto brasileiro, são raros
os casos em que as travestis ocupam atividades fora do mercado sexual.
Portanto, como uma das poucas chances de sobrevivência, o território da
prostituição é fundamental na estruturação do discurso sobre a morte,
como pode ser visto no Gráfico 5.8

7
A este respeito, ver proposta de Silva (2009).
8
Na categoria Outros, houve várias evocações isoladas que não constituíram um eixo
discursivo, e, assim, não há como analisar esse grupo de informações de forma coerente.
Apesar disso, há um aspecto que merece especial atenção. Houve apenas uma evocação
que contemplou a expectativa de futuro fora do mundo da prostituição, o que sinaliza que
as travestis têm poucas esperanças com relação a isso.

291
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

Gráfico 5 – Território da prostituição travesti e os elementos constituidores


das representações sociais sobre a vulnerabilidade ao risco de morte.

A violência física, que corresponde a toda manifestação que tem


por objetivo ferir, pode ser observada nos relatos de Íris e Margarida,
abaixo, em que elas descrevem suas experiências de violência física ao
fazerem parte do território da prostituição.

[...] a primeira que foi o tiro que eu levei no pescoço. Foi de um


cliente. Sabe, assim, nós fizemos o programa e depois ele disse que
não ia me pagar, e atirou achando que ia me matar. Mas ele não
conseguiu me matar, e a segunda, eu tava na esquina, parou um
carro, cheio de milico, e me botou pra dentro do carro e começa-
ram a me esfaquear dentro do carro. Começaram a me esfaquear.
Aí, também, graças a Deus não morri. [...] Eu levei treze facadas.
(Entrevista feita com Íris, no Grupo Renascer, em 7/12/2011).

[...] em 2007 eu sofri uma violência muito grande aqui em Pon-


ta Grossa. Eu saí para fazer um programa com quatro clientes, e
quebraram minha costela, furaram meu pulmão, quebraram meu
maxilar, quebraram todos os meus dentes, queimaram meus pés,
me afogaram na poça d’água, “me mataram”, você entendeu? Daí
[...] pediram para a presidente do Renascer que fosse fazer reco-

292
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

nhecimento de uma travesti que tava morre, não morre, porque o


médico deu três dias de vida para mim, de tão agredida que eu fui.
(Entrevista feita com Margarida, em sua residência, em 6/8/2011).

A violência sexual ocorre quando o agressor abusa de seu poder


sobre a vítima na obtenção da gratificação sexual, sem o consentimento
da mesma. Ela está associada à violência física e psicológica. A violência
sexual pode ser observada abaixo. nas falas de Tulipa.

[...] eu já fui estrupada. Faz anos já. Eu saí com um cara e ele tava
nestas bestas, carrão, tipo furgão. Daí eu achei que era só ele que
tava ali. Mas, quando eu fui ver, quando eu olhei pra trás, tinha
mais cinco. Daí eu tive que dar pros cinco. Eles me levaram lá no
centro de eventos, naqueles matos, bem pra lá. Daí eles fizeram o
que quiseram comigo, chegaram a me machucar. Até porque fi-
quei sangrando. A minha parte íntima sangrou. Eu tive que ir no
médico pra costurar. Rasgaram, até porque era um atrás do outro.
Daí me deixaram no meio da rua toda machucada, sangrando as
pernas, assim, foi horrível! (Entrevista feita com Tulipa, no Grupo
Renascer, em 7/12/2011).

[...] daí ele pegou a [nome omitido]. Ela foi estrupada por cinco.
Fizeram ela beber, daí foi estrupada. Duas horas eles ficaram tran-
sando com ela e fizeram ela beber e estragaram todo o carro dela.
Era o fusca que ela tinha na época. Abriram o negócio do fusca
atrás, e tiraram todos os fios. Ela fez isto para me proteger, porque
ela falou: vai [nome omitido], vai embora, que o fulano tá vindo.
Daí pegaram ela e não eu. (Entrevista feita com Tulipa, no Grupo
Renascer, em 7/12/2011).

A violência psicológica caracteriza-se pela humilhação, desres-


peito, rejeição, entre outros. Na vivência travesti, essa violência é bem
frequente, como relatam Rosa e Jasmim.

[...] eles queriam irritar. Passavam e gritavam “ô João, vamos jogar


bola”, mesmo sabendo que eu era travesti. Eles falavam “filha da
puta”. Outros eram mais agressivos, ou mandavam criar vergonha,
caçar um trabalho, sabe, este tipo de coisa assim. [...] Outros joga-
vam caixinha de leite, jogavam água ou sei lá o que, se era xixi.
(Entrevista feita com Rosa, em sua residência, em 5/7/2012).

293
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

[...] você estar trabalhando e eles passam jogando ovo, extintor.


Chegam ao ponto de jogar fezes e urina em você. Chegam a este
ponto [...]. E daí você não pode reagir, bater, jogar pedra, porque
a qualquer momento eles podem voltar e te matar. Então, você
tem que aguentar isto quieta, né? Apesar de que muitas são revol-
tadas, ficam loucas, pegam pedras e atacam mesmo. Eu sou uma,
né? Imagina, eu tô quieta ali e isso acontece. Aí passam e jogam
um ovo. O que você vê, você joga também. Aqui, mês passado, eles
tavam jogando bomba, bombinha, aquelas bombas que explodem.
E vai que um troço deste pega no teu olho? (Entrevista feita com
Jasmim, na casa de Violeta, em 30/5/2012).

Como visto anteriormente, a violência contra o grupo de tra-


vestis é resultado do heterossexismo9.. Todos aqueles que fogem à norma
sofrem as mais variadas sanções. Tulipa evidencia em seus relatos as di-
ficuldades que a sociedade tem de desvincular os significados hegemôni-
cos do corpo sexuado, em uma sociedade heteronormativa, das múltiplas
possibilidades de expressão generificada: “Ah eles acham errado, que
nem eu falei, eles acham que a travesti, transexual, tem que ser homem,
porque quem nasceu homem tem que ser homem”.
Outro elemento que se relaciona com a categoria discursiva
Violência através do território da prostituição travesti é a forma como a
violência é praticada. Para as travestis, existe uma diferença na forma em
que homens e mulheres praticam a violência contra elas. Essa violência,
quando produzida por meio da identidade de gênero do agressor, pode
ser observada na fala de Tulipa, ao ser questionada sobre as diferenças de
atos de violência praticados por homens e mulheres.

Mais homens. Mas tem mulheres também, mas poucas. As mulhe-


res praticam mais quando estão com os homens, né? Eu já vi caso
de homofobia10 que elas jogavam lixo, extintor, porque elas estão
junto com os rapazes, mas sozinha, eu acho que só vi uma vez, em

9
O heterossexismo pode ser entendido como “um sistema em que a heterossexualidade
é institucionalizada como norma social, política, econômica e jurídica, não importa se de
modo explícito ou implícito.” (RIOS, 2009, p. 62).
10
Bryant e Vidal-Ortiz (2008) lembram que o termo “homofobia” foi cunhado por George
Weinberg (1972), em seu livro Society and the healthy homosexual. Diz respeito a atitudes e
ações de exclusão promovidas por grupos, por causa da orientação sexual de outros. Além
disso, a homofobia pode ocorrer também dentro do grupo homossexual.

294
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

toda a minha vida. Ela veio me xingar, assim, e passou dando risa-
da, assim, só assim mesmo, uma vez que eu vi. Mais vezes que vi
foi homem. Jogam lixo, jogam ovos, jogam limão, passam xingan-
do, jogam pedras. Se bobear, eles descem do carro com pedaço de
pau pra dar em você. Todas as formas que você imaginar contra as
travesti eles podem fazer. (Entrevista feita com Tulipa, no Grupo
Renascer, em 7/12/2011).

A categoria Violência é o elemento de maior representatividade


dentro do território, com 44,6%. Ela está estruturada pela violência física,
sexual e psicológica, sendo o resultado da intolerância do agressor para
com a não linearidade entre sexo, gênero, desejo e prática sexual da víti-
ma. A violência é ainda relatada pelas travestis como sendo diferenciada,
já que existem diferenças entre homens e mulheres que praticam atos de
violência contra elas.
A categoria Vulnerabilidade/Medo é o segundo maior elemento
de intensidade nas evocações que constituem as representações sociais
das travestis sobre o território da prostituição, com 21,6%. Embora esta
categoria seja composta por dois elementos, ou seja, vulnerabilidade e
medo, eles foram agrupados porque se vinculam e foram evocados de
forma conjunta. As travestis sentem-se vulneráveis à morte no território
da prostituição e tal sentimento está entrelaçado com o medo.
Vulnerabilidade e medo estão presentes no cotidiano das tra-
vestis, sendo marcante a sua relação com o território de prostituição.
Em geral, a vulnerabilidade é evocada quando elas relatam a morte ou a
violência ocorrida com amigas ou colegas. Algumas vezes, presenciam o
fato, e, outras, ficam sabendo dele por meio de uma rede de comentários
e notícias em jornais que publicam mortes violentas de travestis nas ruas
das cidades. A cada situação de morte ou violência que é presenciada ou
conhecida pelas travestis, elas sentem medo e pensam em sua própria
vulnerabilidade à morte violenta. Os trechos de fala que se seguem, de
Íris e Rosa, revelam a vinculação entre vulnerabilidade e medo da vio-
lência e a possível morte, associada ao território da prostituição, quando
elas foram questionadas sobre a relação entre vulnerabilidade ao risco de
morte e espaço urbano.

[...] na rua, na rua com certeza. [...] Eu acho que é a rua porque a
gente fica mais à mercê, e ali a gente lida com todo tipo de gente.
Então, a gente não sabe qual o carro que a gente vai entrar. A gente

295
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

sabe que vai entrar, mas, se vai voltar, a gente não sabe. Então, é
uma corda bamba. (Entrevista feita com Íris, no Grupo Renascer,
em 7/12/2011).

[...] eu acho que na rua. Medo! Pavor! Agonia! (Entrevista feita com
Rosa, em sua residência, em 5/7/2012).

A vulnerabilidade e o medo também aparecem nos relatos em


que elas os associam ao risco de morte e ao sofrimento de violência ou
tortura, elementos bastante comuns nas mortes de travestis nos territó-
rios da prostituição, conforme evidenciado nos relatórios anuais do Gru-
po Gay da Bahia (MOTT et al., 2002). As situações em que se tornam alvos
de pessoas ou grupos transfóbicos11 são comuns em seus depoimentos. O
relato de Jasmim é ilustrativo da associação entre morte e violência.

Na verdade, eu não tenho medo de morrer, se chegar e matar, ma-


tou! Mas é da tortura. É, tenho pavor à tortura. Eu nunca sofri,
já tive um pouquinho de experiência, mas deve ser isto. Que nem
foi aquela menina que sofreu a agressão, que era mulher mesmo,
mulher de programa. Morreu com vinte e um anos. Que levaram
lá no Parque dos Pinheiros e mataram. Torturaram ela, e ela foi lá
viva. Arrancar a tua cara, o teu olho, e o que é isto? Tortura! [...] Se
te matam e começam a te depenar, beleza, você tá morta! Agora,
você em vida ver teu olho sendo arrancado, teu couro cabeludo,
tua pele, teu seio? Tá louco! Deus me livre! (Entrevista feita com
Jasmim, na casa de Violeta, em 30/5/2012).

A referência direta da categoria Morte é o terceiro elemento


mais representativo sobre o território da prostituição travesti, e ela foi
evocada em um contexto de lembranças que emergiram durante o ma-
nuseio de fotografias que as travestis guardam das amigas que fizeram
durante sua trajetória de vida. As fotos mostradas por elas são repletas de
falas sobre saudades, pesar e até mesmo admiração, quando comentam a
realidade vivenciada pelas falecidas. Além disso, aparecem as estratégias
utilizadas pelas travestis para tirar vantagens dos clientes, com o aumen-

11
O termo “transfobia” tem o mesmo sentido da homofobia, como já esclarecido
anteriormente, mas é especificamente dirigido às travestis, como evidencia o trabalho de
Cabral, Ornat e Silva (2011).

296
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

to de risco de sofrer represálias. É interessante observar que, antes de as


depoentes falarem o nome da travesti que é o exemplo de morte, o termo
“falecida” aparece com frequência, adjetivando a travesti. Os relatos de
Jasmim e Rosa são ilustrativos nesse sentido, enquanto elas manuseavam
as fotos para falar de suas trajetórias de vida e as experiências de morte.

[...] Tem uma aqui em Ponta Grossa que morreu assim. A falecida
[nome omitido]. [...] Ela era das antiga, já vai fazer uns oito anos
que ela morreu. Só que ela era muito respeitada aqui também. Com
a gente assim ela não era muito bruta, ela era de mexer com as no-
vinha. Se tivesse uma novinha, ela já começava. Mas, com o passar
do tempo, ela se acostumava com você e não mexia mais com você.
Mas de bater, de roubar, isto ela não aprontava. Era mais assim
com os cliente. Daí ela saiu com o cara, daí o cara na “entrevista”
achou que era mulher. Só que achou que ela era alta. Tem travestis
que você se confunde, mas ela tinha “três metros de altura”. Tem
travestis que têm rostos que confundem. Mas aquilo era desculpa,
que nem o Ronaldinho lá, saiu com a moça lá e achou que era mu-
lher? Não tem esta! Daí tá, ele saiu com ela, fez o programa lá. Só
que acho que ele sentiu falta da carteira dele, daí se pegaram os
dois no braço. Daí ele não conseguiu pegar a carteira dela, porque
no braço não tinha quem podia pra [nome omitido]. Ela já bateu
em dois policiais militares, para você ter ideia. Daí o cara não pôde
com ela. Voltou na casa, pegou um revólver e voltou, e, no que ele
voltou, ela tava sozinha na esquina. Ele pediu de novo a carteira,
ele não queria o dinheiro, queria a carteira por causa dos docu-
mentos. Daí, como ele sabia que não podia com ela no braço, ele
deu um tiro na perna, e outro na testa, que acabou matando ela.
Mesmo assim, não conseguiu a carteira. Acho que ele se apavorou
e foi embora sem a carteira. Daí ela foi pro IML. Daí, quando tira-
ram a roupa dela, a carteira dele tava dentro da luva dela, e foi a
partir dali que conseguiram o endereço dele. Tava ali, identida-
de, CPF, tudo ali dentro da luva. Daí, eles conseguiram o endereço
dele, chegaram em casa e ele tava dormindo ao lado da esposa. Ele
ficou preso três dias e já foi solto. Acho que pagaram uma fiança
de três mil reais. Acho que foi a mãe dele que pagou. Ela com dois
metros de altura e o cara que matou ela tinha a minha altura, de
um e cinquenta e seis. Mas ela era terrível! (Entrevista feita com
Jasmim, na casa de Violeta, em 30/5/2012).

297
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

[...] Ah, são tantas! Tantas! Teve tantas, tantas, tantas! Tiveram
sim. Nossa! Tem várias travestis assassinadas com um tiro, que
tava na esquina, homem passava e dava tiro, ou mesmo apanha-
va até morrer, ou eram encontradas, corpo jogado. A última foi a
Margarida. A Margarida, aqui em Ponta Grossa. Esta barbaridade
que aconteceu com ela né, há uns três anos atrás. A última foi ela.
(Entrevista feita com Rosa, em sua residência, em 5/7/2012).

A morte é evocada para descrever o fato ocorrido como sendo


o ápice da violência. Contudo, é importante ressaltar que as categorias se
apresentam totalmente conectadas entre si. Morte, Violência e Vulnera-
bilidade/Medo fazem parte da configuração de uma rede de sentidos que
faz do território da prostituição o grande paradoxo vivido pelas traves-
tis. Em uma sociedade heteronormativa ocorre a interdição da vivência
travesti em todas as espacialidades que lhes possibilitariam acesso a uma
vida cidadã. Essa mesma sociedade permite sua existência como prostitu-
tas, e isso significa que há desejo pelos seus corpos, práticas e fantasias, e
é assim que o território da prostituição travesti ganha um sentido e a pos-
sibilidade de existir socialmente. Assim, simultaneamente, o território da
prostituição significa possibilidade de existência e de morte, compondo
uma complexa e paradoxal espacialidade no universo simbólico do grupo
de travestis entrevistadas.
A categoria Velhice é um elemento periférico ligado à morte.
Ainda que, em geral, o estado da velhice seja uma aproximação da morte,
essa vinculação não é central para o grupo de travestis. O processo de
“extremo” envelhecimento não é comum entre elas.12 A mortalidade das
travestis é precoce, pela sua vulnerabilidade social e devido ao precário
acesso que elas têm aos bens e serviços urbanos. Assim, não é comum en-
contrar travestis velhas, e elas têm consciência de que suas expectativas
de vida são baixas, o que faz com que vivam o presente com toda a in-
tensidade, sem se preocupar com o futuro, como se observa no seguinte
depoimento:

Olha, se você me perguntasse uns dez anos atrás, eu não me veria


há dez anos atrás com trinta anos. Eu nem achei que chegaria aos
quarenta anos. Hoje, com quarenta anos eu já tenho uma perspec-

12
A travesti mais velha que vive em Ponta Grossa tem cinquenta e dois anos. As demais
travestis do grupo afirmaram que não conhecem travestis mais velhas que ela.

298
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

tiva de vida mais avançada, que eu tenho condições de alcançar


a velhice, porque eu sou uma das poucas. Eu acho que aqui em
Ponta Grossa tem três travestis que fazem parte desta população
que está entrando na “terceira idade”, porque eu tô com quaren-
ta anos, mas eu tô quase lá. Aqui em Ponta Grossa deve ter umas
trinta travestis, mas acho que só três que chegou até esta idade.
(Entrevista feita com Íris, no Grupo Renascer, em 7 /12/2011).

A velhice tem um forte impacto na atividade de prostituição,


pois a energia e a beleza são elementos fundamentais na competição
pelo cliente, e, por consequência, pelos lucros da atividade comercial. A
beleza, que é um atributo importante na competição entre as travestis
na conquista de clientes, também é resultado de muitas transformações
corporais, que as colocam em risco de morte. Elas praticam uma série de
ações de intervenção no corpo, como a injeção de silicone industrial, que
é muito perigosa para a saúde. O relato de Margarida, uma travesti que já
tem quarenta e oito anos, é reflexo de sua experiência de rejeição pelos
clientes e das dificuldades financeiras de quem sobrevive da atividade
comercial sexual.

A sociedade empurra nós para onde? Pra rua, pra se prostituir. En-
quanto você tá bonita, tá se arrumando bem, que você não tá se
drogando, nossa, você é maravilhosa! Depois que chega vinte anos,
já tá bonitinha, remediada. Trinta anos, já começa o negócio ficá
meio... Daí aparece outras novas. Daí o que os clientes vão fazer?
Vão ficar com as novas e vão deixar as que têm uma idade mais
avançada de lado. Daí você não tem opção, daí você vai desaniman-
do, e vai desistindo de viver, porque é horrível. (Entrevista feita
com Margarida, em sua residência, em 6/8/2011).

A prostituição, logicamente, é a atividade que dá sentido ao


território, a partir da apropriação realizada pelas travestis em relação
à cidade. Contudo, a prostituição, quando associada ao risco de morte,
aparece como uma representação periférica, já que esta é a atividade que
lhes permite a sobrevivência. Assim, o impacto da velhice na vida de uma
travesti que vive da prostituição a leva a tentar outras alternativas, em-
bora menos rentáveis, como relata Margarida: “Me prostituindo, não me
prostituo mais, porque ninguém me olha mais. Não tem jeito, né, porque
já deu o que tinha que dar e não adianta a gente querer forçar também.”
(Entrevista feita com Margarida, em sua residência, em 6/8/2011).

299
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

A categoria Drogas é um elemento que compõe as representa-


ções sociais das travestis sobre o território. O uso de drogas é relatado
como experiência própria ou pelo uso que os clientes fazem da droga em
sua presença durante o desenvolvimento do programa sexual. Muitas ve-
zes, os clientes buscam a droga com as travestis para não recorrer dire-
tamente ao traficante. Além disso, as travestis podem se constituir em
companhia para o uso de drogas ou até mesmo em proteção para o caso
de algum problema de saúde. Jasmim relata a utilização de drogas por
parte de alguns clientes.

[...] eu já saí com vários. Eu tô indo aí, mas eu fumo crack, posso ir
aí fumar? Pode vir, amor, só que eu não fumo. Você fica comigo,
faz o programa. [...] Outros que vêm e dizem: Oh Jasmim, eu trou-
xe você aqui, mas eu vou dar uma bola, quer experimentar? Não
obrigado, fique à vontade, nada contra. Mas, assim, do cara forçar
a fumar, isto nunca me aconteceu. (Entrevista feita com Jasmim,
na casa de Violeta, em 30/5/2012).

As representações sociais das travestis a respeito das drogas se


relacionam com travestis colegas de trabalho que perderam suas vidas
devido ao uso de drogas. Além disso, há uma preocupação com as ge-
rações mais novas, por causa do uso sem controle de drogas. Jasmim e
Margarida relatam a perda de amigas pelo uso indiscriminado de drogas
e falam de seus perigos para as travestis jovens.

[...] quem morreu por último foi a [nome omitido]. [...] mas foi por
causa de drogas. Começou dar uns derrame. Daí, na terceira vez
deu uma parada nela. Daí ela já morreu. Mas por causa de droga.
Hoje em dia, elas tão usando drogas muito cedo. As que tão no co-
meço, começando a ser travesti, já estão começando a experimen-
tar o fim da carreira. Elas tão começando de trás pra frente. Não
que a gente no final da carreira vá usar, mas elas estão usando
muito cedo. Elas caem no mundo da prostituição e já começam a
usar drogas, são muito novas para isto. (Entrevista feita com Jas-
mim, na casa de Violeta, em 30/5/2012).

[...] a [nome omitido] usava muita droga, como tem muitas que
ainda usam aquilo na nossa cidade. Mas quem é a gente pra dizer:
você não pode ser assim, você não pode! Lógico que a gente acon-

300
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

selha pra elas não usar. Eu já fui dependente química, já fui usuá-
ria. Hoje em dia eu não bebo. A única droga que eu uso é o cigarro.
Não sinto falta nenhuma. Eu vejo as pessoas perdidas e me cortam
o coração. Porque saber que o destino de todas é o mesmo, é a
morte, não adianta. Porque ou você fica devendo demais pro tra-
ficante, ou você vai roubar uma coisa e vai morrer, ou o traficante
vai te matar, porque você tá devendo demais. (Entrevista feita com
Margarida, em sua residência, em 6/8/2011).

A análise evidencia que há um núcleo representacional com-


posto por violência, vulnerabilidade/medo e morte. Esses elementos são
interdependentes e constroem o sentido da representação criada pelas
travestis em relação ao território da prostituição. Outros elementos com-
ponentes das representações da relação entre espaço e morte, vinculados
ao território, são periféricos, como a velhice, a prostituição e as drogas. A
velhice não é uma expectativa marcante do grupo das travestis, quando
vinculada ao território da prostituição. A prostituição está relacionada à
possibilidade de vida, e as drogas parecem ser um mal que já faz parte de
sua realidade, cada vez mais cedo. Enfim, o território da prostituição foi a
espacialidade hegemônica ligada ao risco de morte para o grupo social in-
vestigado. Paradoxalmente, é a partir da existência do território que lhes
é permitido viver. Assim, as travestis existem em nossa sociedade hetero-
normativa e transfóbica, sendo permanentemente levadas à morte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente reflexão evidenciou a relação entre espaço e morte


nas representações sociais de travestis em Ponta Grossa (PR). O processo
investigativo mostrou que o espaço geográfico se produz pela lógica da
sexualidade heteronormativa, como aponta Valentine (1993). Assim, as
pessoas que não se enquadram nesta sexualidade hegemônica vigente,
como é o caso do grupo das travestis, são punidas com interdição, violên-
cia e a própria morte. A vivência espacial travesti é repleta de sofrimen-
to, resultante do processo de interdição espacial, conforme aponta Silva
(2009). As travestis são interditas à educação e ao trabalho formal, tendo
a prostituição como uma das poucas ocupações que a sociedade heteros-
sexual lhes permite, para que possam obter dinheiro para sua existência.

301
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

Há certas espacialidades urbanas que são marcadamente rela-


cionadas com a morte para o grupo de travestis, como é o caso dos hospi-
tais e da casa. Esses espaços, em geral, são sinônimos de cura, cuidado e
proteção. Para as travestis, todavia, esses significados não correspondem
à realidade, já que estão vinculados com a interdição e o preconceito.
Outras espacialidades que foram marcantes no discurso das travestis na
relação entre espaço e morte foram: delegacia, boate, velório, ONG e vi-
zinhança. As travestis não interpretam as instituições de justiça, cuidado
e conhecimento como meios de acesso a vantagens ou a direitos sociais.
Pelo contrário, sua vivência é de não acesso à justiça e à conquista de
direitos cidadãos.
O espaço de maior vinculação com a morte no discurso das tra-
vestis foi o território da prostituição, amplamente estudado por Ornat
(2008). A partir das experiências vividas na atividade de prostituição, são
relatados os riscos, as vulnerabilidades e os medos relacionados à morte.
Contraditoriamente, o território da prostituição é também sua possibili-
dade de existência em uma sociedade transfóbica. Portanto, o território
da prostituição é um espaço complexo, que articula tanto a vida como a
morte do grupo de travestis.
A cidade pode ser interpretada de inúmeras maneiras, por di-
ferentes grupos sociais, conforme argumenta Duncan (1990). O grupo de
travestis interpreta a cidade por meio da dor, do preconceito, da violên-
cia e da exclusão. Construir a visibilidade de sua versão do espaço urbano
é uma forma de lutar por uma sociedade mais humana e justa, capaz de
conviver com a pluralidade social.

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303
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

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304
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

ANEXO I

ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADO

Pesquisador: Vinicius Cabral


Data:
Local da entrevista:

IDENTIFICAÇÃO DO ENTREVISTADO
1. Nome fictício:
2. Idade:
3. Atividade profissional:
4. Atua na atividade de prostituição? Como atividade principal de renda/
casual?
5. Autoidentificação de gênero:
6. Você participa de alguma instituição política, tipo ONG ou grupos de
direitos humanos?

EXPERIÊNCIAS DE MORTE COM PESSOAS DE SEU CONVÍVIO COMO TRAVESTI


– Você tem fotografias de travestis que já faleceram? Pode me mostrar?
– Quantas pessoas das que aparecem na foto são travestis? Quantas delas
já faleceram?

305
corpos, sexualidades e espaços
Espaço e morte nas representações sociais de travestis

– Fale sobre cada uma das que já faleceram.


Você a conhecia bem?
Como ela era?
Como ela faleceu? Onde? Com que idade?
Como a família reagiu?
Como os amigos reagiram?
Ela recebeu socorro médico?
Se foi homicídio, quem foi a pessoa?
A polícia puniu os culpados?
– Quantas pessoas travestis, pelo que você sabe, já sofreram graves vio-
lências, chegando ao risco de morrer? Quem foram? Como foi a violên-
cia? Quem foi o(a) agressor(a)? Como ela foi tratada?
– Quantas pessoas travestis você viu morrer ou soube da morte? Você
consegue dizer a causa da morte de cada uma?

SUAS EXPECTATIVAS SOBRE A VIOLÊNCIA E A MORTE


– Como você avalia a violência na vida de travestis? Fale sobre a frequên-
cia, os tipos e os seus maiores temores.
– Em que espaços você se acha mais vulnerável à violência e à morte?
Existem espaços que você evita frequentar por causa do medo de violên-
cia contra você?
– Você já sofreu graves violências, chegando ao risco de morrer? Como
foi a violência? Quem foi o(a) agressor(a)? Como foi tratada?
– Que tipo de violência você tem mais medo de sofrer?
– Como você avalia sua vida no futuro? Quais são as suas expectativas?
– Você se vê no futuro como uma pessoa idosa?
– Você está se preparando para a sua velhice em termos financeiros e de
saúde?

306
Geografias malditas
Vinicius Cabral, Joseli Maria Silva e Marcio Jose Ornat

– Você pensa sobre sua morte?


– Se você pensa, qual é a sua ideia de morte? Tipo de morte, local, expec-
tativas em relação à sua família, amigos e a sociedade?
– Como você pensa que as instituições de saúde tratariam casos de violên-
cia que poderiam levar você à morte?
– O que você imagina que a sociedade pensa sobre a morte de travestis?

AVALIAÇÃO LIVRE
– Como você avalia a relação entre vida e morte de pessoas travestis?

307
corpos, sexualidades e espaços
Para além da apresentação das Geografias Malditas: uma análise da resistência
às descontinuidades científicas no campo científico da Geografia no Brasil

308
Geografias malditas
PARTE III
Diversos espaços,
múltiplas realidades
trans
IDENTIDADES E CIDADANIA
EM CONSTRUÇÃO: HISTORIZAÇÃO
DO “T” NAS POLÍTICAS DE
ANTIVIOLÊNCIA LGBT NO BRASIL

Jan Simon Hutta


Carsten Balzer
Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT)

INTRODUÇÃO

O que tá na mídia é isso: é a... repressão contra os homos-


sexuais. Hoje nitidamente, né? Naquele época era uma coisa mais
resguardada, uma coisa mais... oculta. Hoje não. Hoje as pessoas
fazem questão de dizer: “Não gosto de gay!”. As pessoas fazem
questão de passar e tacar uma lâmpada na cara... ou fazer isso ou
fazer aquilo. Que considero assim, é... dentro da favela, considero
que seja maior... né? Porque não tem uma lei que assegure aquele
indivíduo. Ter, tem. Mas aqui dentro não funciona! Se eu sofrer
homofobia e levar uma lâmpada na cara, vai ter que ficar por isso
mesmo e pronto e acabou! Eu não vou ter que... eu não posso ir,
chegar no Centro de Referência e denunciar. Não posso porque eu
moro aqui. Tenho família aqui.1

Esta declaração do ativista Gilmar, que se identifica como tra-


vesti e mora na favela Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, chama aten-
ção para uma série de questões sobre violência que este capítulo exami-
nará.2 (A identidade travesti está entre essas questões). Conforme será

1
Entrevista com Gilmar, em 12/1/2011.
2
Texto original escrito para a seguinte obra: TAYLOR, Yvette; ADDISON, Michelle (Eds.).
Queer presences and absences: time, future and history. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013.
Tradução de Bruna Wagner para o português. Basingstoke: Palgrave Macmillan. [no prelo].
Identidades e cidadania em construção: historização do ‘T’
nas políticas de antiviolência LGBT no Brasil

explicado brevemente, a declaração pontua a necessidade de se ter uma


compreensão historicizada e espacialmente bem definida, não apenas
das manifestações de violência que chegaram ao conhecimento público
na última década, mas também das subjetividades que sofreram violência
e as formas de ativismo político desenvolvidas em resposta. Referimo-
nos à violência direta às pessoas nas quais expressões e perfomances de
gênero são percebidas como uma ameaça às normas hegemônicas, uma
questão que tem ganhado notoriedade, nos últimos quinze anos, entre os
ativismos trans e LGBT (de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transe-
xuais) no Brasil. O gênero científico crescente dos estudos vitimológicos,
por exemplo, foi usado para realçar a prevalência de agressão verbal e
física contra lésbicas, gays, bissexuais e trans3 − sublinhando a particular
vulnerabilidade deste último grupo.4
O Grupo Gay da Bahia (GGB), que documentou assassinatos de
pessoas LGBT desde os anos 80, tem repetidamente realçado o alto núme-
ro de travestis entre as vítimas. Em um relatório de 2009, ativistas des-
te grupo sugerem, com base em suas descobertas, que travestis têm 256
vezes mais chances de serem assassinadas do que homens gays (GRUPO
GAY DA BAHIA, 2009). No ativismo LGBT internacional e no debate pú-
blico, violência letal contra pessoas trans brasileiras tem recebido aten-
ção devido ao projeto Trans Murder Monitoring (TMM) da organização
Transgender Europe, que os autores estão conduzindo em colaboração
com organizações locais, como o GGB (BALZER e HUTTA, 2012). Em nú-
meros absolutos, de acordo com esse projeto, o Brasil teve o maior núme-
ro de mortes registradas de trans em todo o mundo, somando 440 entre
2008 e novembro de 2012.5

3
Usamos o termo “trans” para designar pessoas que têm uma identidade de gênero
diferente daquela que lhe foi atribuída no nascimento e que expressam seu sexo por meio
da linguagem, roupas, acessórios, cosméticos e/ou modificações do corpo. Esta definição
inclui, entre várias outras, transexuais, transgêneros e pessoas queer, além de identidades
brasileiras locais, como travestis, transformistas, etc.
4
A pesquisa de Carrara et al. (2003), realizada em colaboração com o Grupo Arco-Íris
do Rio de Janeiro, foi um marco nessa vertente de pesquisa vitimológica. Os autores
apontam, por exemplo, que 16,6% das pessoas entrevistadas relataram agressão física,
e este universo apresentou predominância de pessoas trans (42%), seguidas de homens
homossexuais (20%) e lésbicas (10%).
5
Para detalhes a respeito do observatório de pessoas trans assassinadas, ver também:
<http://www.transrespect-transphobia.org/en_US/tvt-project/tmm-results.htm>.
Acesso em: 16 jan. 2013.

312
Geografias malditas
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

Embora tenha aumentado a conscientização da violência contra


pessoas trans brasileiras entre ativistas e acadêmicos nacional e interna-
cionalmente, tentativas de compreender e encontrar uma resposta polí-
tica viável para a questão têm esbarrado em desafios numerosos. Neste
capítulo, nos encarregamos de dois deles. Primeiramente, na esteira do
livro de Don Kulick (1998) sobre travestis trabalhadoras sexuais, deba-
tes acadêmicos em países anglofônicos tendem a tratar a subjetividade
travesti no singular e a focar em formas específicas de performance de
corpo e de gênero. A real multiplicidade de identidades trans brasilei-
ras tem sido amplamente negligenciada, assim como seu contexto his-
tórico e social mais amplo, eclipsando da visão como essas identidades
foram moldadas pela discriminação, opressão e violência. Em segundo
lugar, a violência contra trans tem sido muitas vezes separada das res-
postas para tal violência, fazendo apenas genéricas e indiferenciadas re-
ferências aos ativismos LGBT e trans. As transformações históricas, tanto
no ativismo LGBT quanto no trans − resultantes especialmente de uma
mudança em direção ao ativismo centrado no Estado, biopolítico, no fim
dos anos 1990 −, e potenciais e limitações que se seguiram a isso, têm,
portanto, passado despercebidas. Como resultado, verificou-se um en-
tendimento precário da capacidade − parcialmente negada − de trans
ganharem e praticarem sua “cidadania”, tanto no cotidiano quanto sob o
ponto de vista do Estado.
Este capítulo tem, por conseguinte, três objetivos principais. O
primeiro é obter uma compreensão complexificada e historicizada das
culturas e identidades trans brasileiras. Argumentamos que problemas
contemporâneos de violência transfóbica precisam ser vistos em relação
a práticas contingentes e identificações que têm historicamente evoluí-
do em resposta à violência, opressão e discriminação. Em segundo lugar,
queremos chamar atenção para respostas políticas para tal violência, que
ganharam novos impulsos com a militância biopolítica que emergiu no
final dos anos 90, levando a novos desafios. Na sequência de uma reflexão
sobre esses desafios, queremos finalmente realçar as utilizações práticas
de cidadania das pessoas trans, que apelam a esforços políticos renovados
para efetivamente combater a violência. Utilizaremos pesquisa empírica
que foi conduzida entre 2000 e 2011 no Brasil e teve dimensões históricas
e atuais, conforme será descrito posteriormente.
Voltemos à declaração feita por Gilmar, que foi uma das pessoas
entrevistadas. Gilmar tem vinte e seis anos e é cofundador do primeiro

313
corpos, sexualidades e espaços
Identidades e cidadania em construção: historização do ‘T’
nas políticas de antiviolência LGBT no Brasil

grupo LGBT estabelecido em uma favela, o Grupo Conexão G, voltado prin-


cipalmente para as questões de travestis. “Travesti” se refere a pessoas
que foram designadas como do gênero masculino no nascimento e vivem
suas vidas, ou a maior parte delas, como mulher, parcialmente como mu-
lher ou ainda outro gênero, usando geralmente várias práticas expressi-
vas e de modificação do corpo, sem necessariamente ter como objetivo
assumir corpo e identidade “totalmente femininos”, seja por meio de ci-
rurgia de redesignação sexual ou através de esforços para simplesmente
“passar” como mulher. Uma particularidade de identificação de muitas
travestis é que elas também se reconhecem como homossexuais, usando
“homossexual” como um termo mais genérico.
É de se notar que tal fusão de conceitos vistos como distintos no
discurso anglo-americano é uma característica das identidades queer6 em
subculturas do Rio de Janeiro. Balzer mostrou que − ao contrário do hábi-
to ocidental dominante de diferenciação e combinação de orientação se-
xual e identidade de gênero (como, por exemplo, na diferenciação entre
gay, lésbica e pessoas trans) − há também, entre os diversos conceitos de
identidade, uma que atribui específicas identidades trans para uma de-
terminada identidade sexual. Muitas das pessoas entrevistadas por Bal-
zer definiram a si mesmas como “homossexual do gênero travesti” ou
“homossexual do gênero transformista” (BALZER, 2007, p. 342-71). Como
observação, vale destacar que, embora Gilmar mantenha seu nome mas-
culino, faz referência a si empregando adjetivos no feminino.
Uma nota sobre a utilização, por Gilmar, do termo “homofobia”
pode ser útil aqui. Dada a identificação de Gilmar como homossexual, o fato
de ele usar o termo homofobia, enquanto cita pontualmente a violência

6
Entendemos queer como um termo político e analítico que desafia as normas relativas a
sexualidade e gênero, juntamente com as relações de poder associadas, as quais tomam
forma no contexto histórico e espacial. Além do mais, queer sugere uma afirmação de
certas práticas, corpos e identidades que foram marcadas como desviantes, anormais
ou imorais (ver: HALBERSTAM, 2005; HUTTA, 2010a, p. 33-5; MUÑOZ, 1999). No Brasil, o
uso do termo queer tem se limitado a debates acadêmicos, ainda que, nos últimos anos,
alguns ativistas e artistas tenham começado a promover a sua utilização. Enquanto
nossa abordagem constitui uma “análise queer”, dizendo respeito a questões de gênero,
sexualidade e poder, as subjetividades que nos concernem aqui têm largamente desafiado
a sua integração ao universo semântico queer, insistindo em sua singularidade. Quando
usamos as expressões “pessoa queer” ou “identidades queer” em relação ao contexto
brasileiro, estamos, dessa maneira, fazendo uma tradução particular, convocando uma
noção de queer que não está amplamente moldada ainda.

314
Geografias malditas
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

contra travestis, não é de surpreender. Homofobia é também um termo


genérico padrão usado pelo ativismo LGBTQ globalizado. Durante a última
década, reconheceu-se, no Brasil e em outras partes do mundo, a neces-
sidade de diferenciar a transfobia, no sentido de violência, hostilidade e
injustiça relacionada a identidades e expressões de gênero não normatiza-
das, da homofobia, que é geralmente relacionada com a orientação sexual.
Isso porque trans enfrentam específicas e às vezes particularmente proble-
máticas e extremas formas de violência, discriminação e opressão.
De uma maneira interessante, após realçar o problema da ho-
mofobia aberta no Brasil, Gilmar pontua que isto é agravado pelo fato de
que, em locais como a Maré, “não tem uma lei que assegure aquele indi-
víduo. Ter, tem. Mas aqui dentro não funciona!”. Gilmar parece especial-
mente considerar que a mobilização da segurança pública não é viável,
já que agressores poderiam se vingar dele ou de sua família, o que, por
sua vez, o Estado não é capaz de evitar. Isso aponta para complexidades
que os militantes têm enfrentado devido à já mencionada virada para
as formas de ativismo biopolítico, levantando questões sobre quais tipos
de agency7 e cidadania sujeitos trans como Gilmar podem ser capazes de
praticar − ou, na verdade, já praticam.
Os métodos empíricos em que nos baseamos compreendem
entrevistas, oficinas em grupo, observação participante e pesquisa de
arquivos. Os dados de Balzer foram coletados durante seis meses de
trabalho de campo etnográfico no Rio de Janeiro, entre 2000 e 2001. Este
trabalho de campo se baseou em uma pesquisa multilocal com observação
participante e concentrada em trabalho sexual nas ruas, vida noturna,
show business e militância social, assim como na vida diária das pessoas
entrevistadas. Sendo transgênero e conhecendo muitas pessoas do meio,
Balzer foi calorosamente recebida em todos os lugares. Entre mais de
oitenta pessoas trans que ela veio a conhecer durante sua observação
participante e conversas informais, entrevistou trinta e um indivíduos ao
total, focando em aspectos bibliográficos, autoimagens, auto-organização
e estratégias políticas. Além disso, análises de documentos históricos
(gravações em vídeo, panfletos, publicações alternativas) e publicações
atuais (ver: BALZER, 2007, p. 36-54). Hutta conduziu uma pesquisa
de campo durante nove meses no Brasil, entre 2007 e 2009 (HUTTA,

7
Usamos a palavra “agency” em inglês para denotar a capacidade de alguém agir e
intervir em sua própria condição de vida.

315
corpos, sexualidades e espaços
Identidades e cidadania em construção: historização do ‘T’
nas políticas de antiviolência LGBT no Brasil

2010a, p. 235-47). Centrais foram duas séries de oficinas participativas


conduzidas na grande Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O foco era
na experiência das pessoas em vários lugares habitados nas suas vidas
cotidianas. As atividades também compreendiam passeios e caminhadas
pela cidade e resultaram na gravação de quarenta e cinco indivíduos,
incluindo cinco travestis e vários sujeitos que se identificaram, de acordo
com expressões de gênero locais, como “bichaboy”. Como gay e queer,
com atividades sociais, políticas e de pesquisa intersectadas, Hutta teve,
além do mais, percepções únicas em uma série de circunstâncias menos
formais. Uma segunda vertente da pesquisa mirou no ativismo trans
e LGBT e envolveu observação participante, análise de documentos e
dezessete entrevistas, que incluíram quatro ativistas trans. Além disso,
iremos fazer uso da pesquisa que realizamos conjuntamente como parte
de um projeto de pesquisa ativista do Transgender Europe, que é chamado
de Transrespect versus Transphobia Worldwide (Transrespeito versus
Transfobia no Mundo), (TvT, ver BALZER e HUTTA, 2012).8 O referido
monitoramento das pessoas trans assassinadas faz parte do projeto TvT.
Como participantes deste projeto, também realizamos outras entrevistas
com ativistas, incluindo Gilmar. Devido ao foco da nossa pesquisa,
na sequência iremos nos centrar principalmente na grande Região
Metropolitana do Rio de Janeiro. Como vai ficar claro, especialmente na
nossa discussão sobre o ativismo antiviolência de a partir dos anos 90, o
Rio também desempenhou um papel importante no desenvolvimento de
novas estratégias políticas.

IDENTIDADES E ATIVISMOS MOLDADOS


NO CONTEXTO DE DITADURA,
VIOLÊNCIA E OPRESSÃO

A complexidade e a diversidade das identidades trans brasi-


leiras que evoluíram no século XX são frequentemente reduzidas a uma
única e simplificada identidade: a travesti (ver, por exemplo: SILVA, 1993;
OLIVEIRA, 1994; KULICK, 1998). Travesti é, contudo, apenas uma identi-
dade no espectro de identidades queer e trans, e o significado do termo

8
Para detalhes sobre o projeto de pesquisa TvT, ver também o website bilíngue: <www.
transrespect-transphobia.org>.

316
Geografias malditas
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

mudou no decorrer das últimas décadas e suporta sua própria complexi-


dade. Entendimentos reduzidos das travestis brasileiras como prostitu-
tas também proliferaram fora do Brasil devido ao já mencionado livro de
Kulick e graças também às ondas de migração de travestis, que viajaram
no período da ditadura militar e no pós-ditadura para cidades europeias
como Paris e Milão, nos anos 80 e 90. Entretanto, isso diz respeito a uma
série muito específica de experiências, que estão diretamente conecta-
das a formações históricas de violência, repressão, discriminação, assim
como uma cultura de consumo voltada ao sexo, que, de diferentes ma-
neiras, foi centrada ou moldada nas travestis. Para entender a diversi-
dade das identidades trans brasileiras na forma como evoluíram nas úl-
timas cinco décadas, assim como o contexto no qual foram moldadas, é
necessário olhar para trás, começando em tempos anteriores à última
ditadura brasileira. Em particular, uma abordagem situada historicamen-
te é fundamental para contextualizar a questão da violência transfóbi-
ca e estratégias políticas que têm sido desenvolvidas em resposta a ela.
A breve revisão histórica que vem na sequência serve para uma melhor
compreensão das conexões e das separações entre o movimento LGBT e
as organizações trans, e reconsiderar o sentido e o significado do T na
sigla prevalecente, a LGBT.
Durante o período democrático brasileiro do pós-Segunda Guer-
ra Mundial e especialmente no fim dos 1950 e começo dos 1960, identi-
ficáveis bares gay abriram em Copacabana, no Rio de Janeiro. O que, em
lugares como na cidade de Nova York, era conhecido como sendo de drag
ou de female impersonation (caracterização feminina) e no Brasil foi asso-
ciado aos bailes de carnaval, chegou a adquirir aceitação de um maior pú-
blico fora dessa época do ano (BALZER, 2007, p. 312). O historiador James
Green nos informa que “glamourosas cross-dressers emergiram destes bai-
les de drag para fazer performances em produções teatrais mainstream,
que atraíam uma alta audiência” (1999, p. 148).
Entre as pessoas chamadas cross-dressers estava Rogéria9, que foi
a primeira estrela drag do Rio de Janeiro, na década de 1960, e que hoje
em dia é conhecida no Brasil como a mais famosa travesti ou transformis-
ta. Naquele tempo, pessoas como Rogéria eram chamadas de travesti, no
sentido de travestida. No entanto, o que estavam fazendo não era apenas

9
Com exceção de Gilmar, Rogéria, Hanah Suzart e Keila Simpson, todos os nomes das
pessoas entrevistadas foram alterados por uma questão de anonimato.

317
corpos, sexualidades e espaços
Identidades e cidadania em construção: historização do ‘T’
nas políticas de antiviolência LGBT no Brasil

“female impersonation”. Em uma entrevista com Balzer, Rogéria expli-


cou que, desde a infância, sempre se sentiu “mulher”. No fim dos anos
60 e começo dos 70, como a maioria das travestis do Rio naquela época,
ela tomou hormônios femininos. No começo dos 1960, entretanto, muitas
identidades femininas diferentes evoluíram na cada vez mais aberta e or-
ganizada cena gay, que inclusive publicava seus próprios jornais. Em um
dos jornais gays cariocas, O Snob, um discurso começou em 1963 sobre a
variedade das diferentes identidades de gênero que podiam ser observa-
das na cena gay do Rio de Janeiro: “bichas, bofes, bonecas e entendidos”
(BALZER, 2007, p. 312-14). A identidade travesti de Rogéria era, portanto,
apenas uma da série de múltiplas identidades trans e queer.
A carreira de Rogéria traz à tona como culturas e identidades
trans mudaram desde 1960 no contexto de transformações sociais no
Brasil. Sua fama coincidiu com outro evento que ia ter um enorme im-
pacto na cultura brasileira nas décadas seguintes, o chamado de golpe de
Estado de 1964, que resultou em mais de vinte anos de ditadura militar.
A repressão militar, que começou em meados de 60 e atingiu seu pico em
70, tinha dois alvos principais: todo aquele visto como “ameaça comu-
nista” e qualquer pessoa que representasse ameaça à “moral da família
brasileira”. Sendo esta última “ameaça” associada principalmente a ho-
mossexuais e, claro, travestis, que eram as pessoas homossexuais mais
reconhecíveis naquela época. A censura militar proibiu qualquer show
de travesti na televisão e no teatro, e homens foram presos por parece-
rem homossexuais, isto é, femininos. Judy e Theo, duas pessoas entrevis-
tadas de Balzer, explicaram que, durante a ditadura militar, elas foram
perseguidas e presas várias vezes pela polícia devido à sua aparência fe-
minina. Em 1972, vinte e cinco travestis que vestiam biquínis foram pre-
sas em uma praia da Zona Sul carioca (BALZER, 2007, p. 315-19; GREEN,
1999, p. 251).
Rogéria deixou o país, assim como outras travestis que tinham
condições financeiras para fazê-lo.10 Uma boa parte das que ficaram para
se sustentar como trabalhadoras sexuais formou grupos e redes subcul-
turais marginalizados. Por exemplo, em 1974, a carioca Rebecca, então

10
Isso levou a uma espécie de êxodo de travestis brasileiras. Pouco depois de Rogéria e
outras travestis famosas irem para Paris, cerca de 200 travestis as seguiram. No final de
1970, até 500 travestis brasileiras viviam em Paris, aumentando de 1.000 para 2.000 na
década de 1980 (BALZER, 2007, p. 319-20).

318
Geografias malditas
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

com quinze anos, deixou sua família por ser homossexual e travesti. Por
consequência, viveu nas ruas com outras travestis, tomando hormônios
femininos e aprendendo a fazer trabalhos sexuais. Em uma entrevista,
Rebecca explicou que começou a ser trabalhadora sexual porque não ti-
nha outra opção e não queria passar fome. Outro exemplo é Cora, uma
travesti do Rio de Janeiro que começou no trabalho sexual porque queria
vestir uma saia e ser independente. A maioria das pessoas entrevistadas
de Balzer que se assumiu durante a ditadura militar relatou histórias si-
milares de dificuldade.11 A própria família foi frequentemente parte do
problema e, às vezes, chegou a ser uma ameaça, como o relato poderoso
de uma travesti demonstra. Sendo colocada por seus pais em um mani-
cômio, ela foi tratada com drogas e “terapia de eletrochoque” “para per-
der a vontade de ser travesti”. No começo dos anos 80, quase no final da
ditadura, mais de 5.000 travestis viviam como trabalhadoras sexuais em
cidades brasileiras como São Paulo e Rio de Janeiro (BALZER, 2007, p. 315-
29; PENTEADO, 1980, p. 2; OLIVEIRA, 1994, p. 92).
Enquanto, no início dos 1960, trabalho sexual não era um papel
proeminentemente desempenhado por travestis, durante a ditadura pôde-
se observar a formação de um mercado sexual independente para elas. O
aumento de travestis no trabalho sexual está diretamente relacionado
à repressão da época da ditadura, de várias maneiras. Primeiramente,
performances de drag, a primeira profissão de travestis, foram proibidas,
e elas foram excluídas não apenas do mercado de trabalho, mas também
do mercado imobiliário, o que as levou à auto-organização da cena sexual
emergente. Esse desenvolvimento foi intensificado pela inclinação da
ditadura ao capitalismo internacional e à cultura de consumo, bem como
à promoção da urbanização, para projetar o Brasil no mercado mundial.
Com o desenvolvimento do mercado sexual para travestis, di-
nâmicas de oferta e demanda provocaram mudanças em suas identidades
e em seus corpos, elas próprias emaranhadas dentro de um consumismo
emergente e mudando seu imaginário sobre gênero e beleza. Por exem-
plo, para melhor atrair seus clientes, assim como também para satisfa-
zer seus próprios desejos, trabalhadoras sexuais travestis transformaram
seus corpos com hormônio feminino e injetaram silicone industrial, mas

11
Esta continuou a ser uma triste história, conforme explicou Cátia, uma ativista trans
que cuidava de menores travestis que deixaram suas famílias para viverem nas ruas
fazendo trabalho sexual. Entrevista com Cátia, em 6/2/2000.

319
corpos, sexualidades e espaços
Identidades e cidadania em construção: historização do ‘T’
nas políticas de antiviolência LGBT no Brasil

não quiseram fazer cirurgia de redesignação sexual. Elas, portanto, tive-


ram que assumir enormes riscos à saúde para sobreviver e encontrar pa-
péis no mercado sexual emergente. Além do risco de lesão hepática grave
por tomarem hormônios femininos sem supervisão médica, é acima de
tudo a injeção de silicone industrial que causa, até hoje, graves proble-
mas à saúde e às vezes a morte. Rebecca, que sobreviveu à injeção de
silicone industrial, explica: “É a história de aplicar silicone: já morreram
muitos por aplicar o silicone” (BALZER, 2007, p. 331-2).12
No final da ditadura, em meados de 1980, o termo travesti, anti-
gamente positivo, tornou-se algo associado à prostituição e ao crime, e as
travestis foram frequentemente vistas como marginais. Quando Rogéria
voltou ao Brasil e começou seu retorno profissional, ela se desassociou
“das travestis de rua” ao se chamar de transformista. No começo dos anos
2000, muitas das pessoas entrevistadas de Balzer concordaram que Ro-
géria foi a primeira a usar o termo transformista, que não era conhecido
antes dos 80. Portanto, Rogéria, que havia inicialmente tornado o termo
travesti famoso, mais tarde popularizou o novo e menos nocivo termo
transformista.
Nos dez últimos anos da ditadura brasileira, de 1975 até 1985, na
fase da chamada abertura, vários movimentos por libertação (como os de
estudantes, sindicatos, mulheres, negros e homossexuais) emergiram. A
ligeira redução da repressão contínua tornou inclusive possível que uma
imprensa alternativa voltasse à vida. Durante a abertura, entretanto, tra-
vestis vivenciaram ainda mais repressão e brutalidade policial. Em mea-
dos dos anos 70, em São Paulo, uma caçada sistemática a trabalhadoras
sexuais travestis começou, levando 2.000 delas à prisão, onde recebiam
o mesmo tratamento de presos políticos. Em 1981, uma operação militar
chamada Operação Rondão, voltada principalmente contra travestis, que
eram chamadas de “lixo humano”, levou à prisão 1.500 delas em uma se-
mana. O fato de travestis enfrentarem a mais nítida repressão gerou uma
onda de solidariedade do movimento brasileiro LGBT, então em cons-
trução. Um dos mais importantes e influentes jornais do movimento era
o Lampião da Esquina. Vários artigos foram endereçados ao sofrimento das
travestis e à repressão que enfrentavam, e autores lamentaram a ausên-

12
Aqui é importante destacar que a cirurgia de transgenitalização era ilegal no Brasil até
1997 e que, em 1978, um cirurgião que realizava o procedimento foi sentenciado a dois
anos de prisão (ver: BALZER, 2007, p. 479-80; BALZER, 2010, p. 83, 89).

320
Geografias malditas
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

cia delas no I Encontro Brasileiro de Homossexuais, em 1980 (BALZER,


2007, p. 324-26).
Após o fim da ditadura, na segunda metade de 1980, a situação
para as travestis tornou-se ainda pior. A polícia militar continuou a ca-
çada a elas, agora tendo o suporte dos chamados esquadrões de morte e
grupos de extermínio. Cidadãos “enojados” não foram julgados quando
jogaram um carro em cima de um grupo de trabalhadoras sexuais traves-
tis à noite e quando caçaram algumas delas com barras de ferro e tábuas.
No fim dos anos 80 e no começo dos 90, o número de assassinatos de tra-
vestis e gays cresceu enormemente. No começo dos 90, quando a histeria
gerada pela AIDS viveu seu auge, e com o aumento da homofobia e da
transfobia, travestis eram não apenas associadas à prostituição, crime e
drogas, mas também à AIDS (BALZER, 2007, p. 333-4).
Enquanto nos anos 1980 travestis exiladas, como Rogéria, vol-
tavam para casa e se reinventavam como transformistas, e trabalhadoras
sexuais travestis transformavam suas identidades no contexto do mer-
cado sexual; nos 90, algumas transformistas mais jovens se beneficiaram
da fama global das drag queens e se reinventaram como “não sexuais” e
divertidas, adicionando uma nova persona ao espectro de identidades
trans brasileiras (BALZER, 2005, p. 120-3). Ao mesmo tempo, a profissio-
nalização da auto-organização de travestis no contexto dos direitos civis
começou em 1992, com a fundação da primeira ONG de travestis no Bra-
sil, a ASTRAL (Associação de Travestis e Liberados), no Rio de Janeiro.
Rebecca, uma das ativistas da Associação entre 1990 e o começo dos 2000,
explicou que a ASTRAL foi fundada por cinco travestis, que começaram
escrevendo cartas de protesto ao Comando Geral da Polícia Militar e orga-
nizando demonstrações para reclamar da violência policial.13 A ASTRAL
também começou a organizar congressos nacionais de travestis, o que le-
vou à formação de novas ONGs de travestis em todo o Brasil. Em 1995, os
membros da ASTRAL participaram do VII Encontro Nacional GLT, duran-
te o qual a ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis) foi
criada. (Hoje, a sigla é Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais). Enquanto a ASTRAL continuamente conduzia a
prevenção da AIDS e o seu aconselhamento, antiviolência e justiça eram
os focos principais de sua agenda política. Em uma manifestação trans em
1999, na frente do conselho da cidade, membros da ASTRAL declararam:

13
Entrevista com Rebecca, em 16/12/2000.

321
corpos, sexualidades e espaços
Identidades e cidadania em construção: historização do ‘T’
nas políticas de antiviolência LGBT no Brasil

“As travestis do Rio de Janeiro e Brasil afirmam: a polícia mata mais do


que AIDS!” (BALZER, 2007, p. 340-1).
Nesta época, em 1999, no Rio de Janeiro uma instituição chama-
da Disque Defesa Homossexual (DDH) foi criada pela Secretaria de Esta-
do de Segurança Pública, em colaboração com ativistas LGT e pesquisa-
dores (RAMOS e CARRARA, 2006). Ativistas tinham três representantes
do movimento LGT no DDH. Seu foco principal era a transformação da
Polícia Militar e da Polícia Civil, de instituições que ameaçavam pessoas
LGT para uma instituição que as protegesse (BALZER, 2007, p. 384-384;
HUTTA, 2010a, p. 315-20; SOARES, 2006, p. 155-6). Essa transformação era
um desafio, o que foi destacado pela falecida Hanah Suzart, a primeira
representante travesti do DDH, que deu treinamentos à Polícia Militar
sobre como tratar respeitosamente pessoas trans:

E quando fui dar uma palestra num grupo da Polícia Militar, um


policial me disse: “Como eu me refiro a você? Senhor? Senhora?
Senhorita?”. E é sempre muito brincalhão, né? Muito divertido.
[...] Eu disse para ele: “Eu estou travestido de mulher, gostaria que
você se refira a mim no feminino, preferiria Senhorita, porque
sou solteira”. Ele disse: “Senhorita Hanah, é estranho o que vem
acontecendo com nós, que somos policiais antigos, que temos vin-
te anos na Polícia Militar. É engraçado para a gente, é muito difí-
cil para a gente, porque antigamente a gente pegava as bichas no
Campo de Santana, levava eles para a delegacia para lavar privada.
[...] E hoje em dia esses gays podem chegar entrar na delegacia pela
porta da frente e dizer ao policial, assim, assim, assim, me tocou e
[pegou] tantos reais ou isso, isso, isso”. E no dia seguinte o policial,
quando chega no batalhão, é preso.14

A criação do Disque Defesa Homossexual no Rio, em 1999, mar-


ca o começo de uma nova formação de saberes e práticas políticas em
relação à violência homofóbica e transfóbica no Brasil. Tendo delineado
especialmente a trajetória das travestis, tanto como subjetividade do cor-
po quanto como identidade política que tem sido moldada por violência
aguda, assim como por desejos e lutas para viver feliz e ganhar respeito,
iremos agora analisar respostas atuais para essa violência.

14
Entrevista com Hanah Suzart, em 30/1/2001.

322
Geografias malditas
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

ATIVISMOS CONTEMPORÂNEOS LGBT


E TRANS NA LUTA CONTRA A
VIOLÊNCIA E A DISCRIMINAÇÃO

Enquanto no início dos anos 1980 o ativismo antiviolência fo-


cava na denúncia e no protesto da violência cometida pela polícia, pelo
Estado e pela sociedade (por exemplo, uma lendária marcha de protesto
contra a já mencionada Operação Rondão, em 1981), com novas colabora-
ções entre o Estado e os atores do movimento social que surgiu no âmbito
do DDH, ativistas começaram a ver a polícia e o Estado como recursos
potenciais na batalha contra a violência. Esses recursos consistiam em
tanto ser capaz de mobilizar a polícia para a prevenção e a repressão da
violência quanto no acesso a meios para educar os próprios policiais, que
continuavam a ser responsáveis por uma grande parcela da violência
(RAMOS, 2007). Rebecca, ativista da ASTRAL que nos anos 90 foi submeti-
da à violência policial várias vezes, afirmou, em 2000, que, embora a vio-
lência policial estivesse diminuindo, ela ainda existia e continuava sendo
um desafio.15 Em 2007, Roxane apontou as práticas arbitrárias e ilegais de
“punição coletiva” a travestis − muito comum nos anos 1990 − em grande
parte cessadas, pelo menos no Centro do Rio e na Zona Sul. Diferenças
espaciais, contudo, são indicadas por Sasha, que vive em uma pequena
cidade da periferia da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, e afirma:
“Você conta nos dedos quem [policial] dali respeita a gente. Porque na
madrugada, se eles podem fazer, eles fazem”.16 Por “eles podem fazer”,
tomamos que Sasha fala do comportamento abusivo da polícia. Na alvo-
rada, entre a noite e o dia, os policiais podem fazer tudo o que quiserem,
sem se importarem com as leis e políticas formais que possam existir.
Esta declaração evidencia um dos desafios para o ativismo antiviolência
que queremos discutir, em particular no que diz respeito às diferenças
espaciais. Além disso, enquanto a violência policial contra pessoas trans
diminui, a violência geral contra elas, incluindo práticas extremas que
permaneceram, continua a ser um grande problema, como ilustram os
estudos e os dados citados no início (ver também: BALZER, 2007, p. 130-1;
BALZER, 2009, p. 148; BALZER e HUTTA, 2012).

15
Entrevista com Rebecca, em 16/12/2000.
16
Gravação na Baixada Fluminense, em 2/8/2008.

323
corpos, sexualidades e espaços
Identidades e cidadania em construção: historização do ‘T’
nas políticas de antiviolência LGBT no Brasil

A travesti Marcelly Malta, cinquenta anos, de Porto Alegre, es-


tava entre as primeiras ativistas quando, em 1999, começou a dar cursos
de direitos humanos, minorias sexuais e trabalho sexual para a Polícia
Militar e Polícia Civil (BÖER, 2003). Após ter estado em uma posição abje-
ta durante décadas, quando, sem oportunidade para empregos formais,
foi trabalhadora sexual e acabou presa, humilhada e maltratada inúme-
ras vezes pela polícia, Marcelly foi então capaz de passar para a posição
de expert, mesmo que sua situação de vida continuasse precária.17 Hanah
conta suas experiências no âmbito do DDH e destaca os tipos de questões
que essa mudança provocou nas instituições públicas. Muitas pessoas
trans, do começo dos anos 2000 até hoje, temem denunciar crimes da po-
lícia. Como uma represente do DDH, Hanah foi à polícia por travestis que
temiam fazer denúncia. Certa vez, quando foi à delegacia e o funcionário
responsável não se mostrou disposto a ouvi-la ou a tomar qualquer ação,
ela pegou seu celular e telefonou para um contato seu na Secretaria de
Estado de Segurança Pública. Uns poucos minutos depois, seu contato
na Secretaria chamou o oficial de polícia em questão, lembrando-o de
suas funções e ameaçando-o com sanções. Daquele momento em diante,
Hanah disse, ela passou a ser tratada respeitosamente, capaz de fazer sua
denúncia, e até lhe ofereceram uma xícara de café.18
O cenário discursivo mais amplo para essa reorientação do ati-
vismo foi fornecido por debates em torno de uma “democratização” do
país e uma crescente conscientização por parte dos políticos de esquerda
de que a polícia brasileira, com a sua separação entre Polícia Civil e Po-
lícia Militar, manteve seu aspecto grosseiramente antidemocrático e seu
agressivo caráter machista, adquiridos durante a ditadura militar (SO-
ARES, 2006). Debates sobre democratização, direitos humanos e cidada-
nia abriram possibilidades práticas para lésbicas, gays e ativistas trans
começarem seu engajamento com a segurança e a polícia de dentro do
governo, já que estes inicialmente estavam limitados a atividades na área

17
Esta precariedade se tornou evidente em maio de 2008, quando Marcelly foi espancada
e gravemente ferida pelos seguranças de um centro de saúde onde ela tinha contatos
profissionais (o fato veio à tona através de um e-mail aberto enviado pela organização
LBGT SOMOS, de Porto Alegre, para o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul,
em 15/5/2008). Ver também Böer (2003), por conta do preconceito a que Marcelly foi
exposta por parte da polícia e de oficiais públicos depois de começar a dar cursos para a
Polícia.
18
Entrevista com Hanah Suzart, em 30/1/2001.

324
Geografias malditas
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

do HIV/AIDS (HUTTA, 2010a, p. 175-80). De particular importância foram


as tentativas de estudiosos de esquerda e políticos para reapropriar e re-
definir a noção brasileira de “segurança pública” − que nos anos 70 sig-
nificou aversão à “ameaça comunista” e à “ameaça aos valores morais da
família brasileira” − no sentido da “segurança do público”, da segurança
“da coletividade, dos cidadãos” (SOUZA, 2008, p. 150, ênfase no original)
(ver: HUTTA, 2010a, p. 207-16).
Mas não apenas ativistas viram novas possibilidades de engaja-
mento político surgindo no campo da segurança pública; também atores
do Estado − esquerdistas como Luiz Eduardo Soares, que foi coordenador
de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro quando o DDH foi criado
− viram no ativismo anti-homofóbico um meio de democratização da se-
gurança pública. Os problemas notórios do aparato brasileiro do Estado
de segurança pública estavam, para Soares, diretamente ligados ao seu
violento caráter machista, o que levou a uma desvalorização de tudo o
que se desviasse da hegemonia masculina. Engajar-se positivamente com
as minorias sexuais, para ele, mostrou um potencial de combater este
ethos, sintetizando o projeto mais amplo de democratização da seguran-
ça (HUTTA, 2010a, p. 317).
No DDH, o desejo dos ativistas de educar a polícia juntou-se, por-
tanto, ao desejo de políticos esquerdistas como Soares de democratizar a
segurança pública brasileira, pavimentando o caminho não apenas para a
proliferação de centros de referências no estilo do DDH por todo o Brasil,
mas também para elaborar uma detalhada agenda de segurança pública
LGBT em escala municipal, estadual e nacional, com base no conjunto
híbrido Estado/ativismo. Em 2007, o movimento LGBT do Rio organizou
o I Seminário Nacional de Segurança Pública e Combate à Homofobia, que
foi financiado pelo governo brasileiro e que foi seguido por vários semi-
nários estaduais. A muito elogiada I Conferência Nacional LGBT, de 2008,
em Brasília, que foi a primeira conferência nacional organizada pelo Es-
tado e aberta pelo presidente Lula da Silva, continha um bloco temático
em segurança pública, que depois virou uma série de propostas concretas
(ver: SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS HUMANOS, 2008). Em nível de
campanhas públicas, o movimento LGBT colocou em foco (até agora sem
sucesso) a legislação da “criminalização da homofobia”, que torna crime
vários tipos de discriminação e preconceito em relação à orientação se-
xual e identidade de gênero. (A proposta foi originalmente lançada em
2001 e então virou o projeto de lei PLC 122/2006, em 2006.).

325
corpos, sexualidades e espaços
Identidades e cidadania em construção: historização do ‘T’
nas políticas de antiviolência LGBT no Brasil

A ascensão dos compromissos com políticas LGBT de segurança


pública coincidiu e contribuiu para a consolidação de uma nova aborda-
gem e um autoconceito do movimento LGBT brasileiro, que nós já pon-
tuamos em relação ao ativismo trans de 1990. Desde meados dos anos
1990, a cada vez mais profissionalizada advocacy (advocacia), no estilo
das ONGs, veio substituir as velhas formas de conscientização e protesto
de rua, um processo que já havia começado nos anos 1980 e que ainda
ganhou novo impulso em meados e fins dos anos 1990 (DEHESA, 2010;
FACCHINI, 2005; HUTTA, 2010b). A sigla MHB (Movimento Homossexual
Brasileiro) foi sendo gradualmente substituída; primeiro, no começo e
em meados dos 1990, pelo MGL (Movimento de Gays e Lésbicas) e pelo
movimento GLT (Movimento de Gays, Lésbicas e Travestis), e, mais re-
centemente, pelo selo movimento LGBT (ou LGBTTT, etc.).
Esta renomeação é também expressão das mudanças em ní-
veis epistemológicos e discursivos. Como os engajamentos políticos au-
mentaram ao redor das políticas na área de segurança pública, saúde,
emprego, vida familiar, e assim por diante, o que antes estava afirmado
como uma coletividade política de “homossexuais”, que ganhou unidade
através de uma luta comum contra a opressão e a violência, agora tinha
que ser diferenciado de acordo com as “demandas” que as específicas
“subpopulações” de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais ar-
ticulam em relação ao Estado, tais como o acesso às instituições, a garan-
tia de securitização e várias outras formas de assistência. O enquadra-
mento epistemológico e discursivo das “pessoas LGBT” como populações
minoritárias reivindicando acesso a instituições, à segurança pública e
à assistência do Estado anuncia uma inserção no que Michel Foucault
(1998, 2008) caracteriza como “biopolítica” − uma política de estados li-
beral-democráticos que é centrada nas várias dimensões das vidas das
populações e seus órgãos constituintes. Foucault argumenta que tal bio-
política permite ao Estado aumentar a produtividade dessas populações
e que ela vem junto com determinadas formações de saberes e práticas.
Somente através do conhecimento das vulnerabilidades e dos riscos a
que determinadas subpopulações estão expostas, as instituições estatais
podem fazer intervenções em várias áreas nos diversos campos relativos
à vida delas. Importante ressaltar que tal conhecimento não está sendo
produzido simplesmente pelo Estado com o objetivo de controlar as po-
pulações em questão, mas sim no contexto do próprio ativismo LGBT,
isto é, um híbrido conjunto de movimento social e atores do Estado, bem

326
Geografias malditas
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

como vários lugares − o público, o privado e o ativista − de produção


de conhecimento.
A sigla LGBT, então, serve como uma taquigrafia unificadora
para um grupo de “minorias” que precisa de atenção especial do Estado
e para demandas muito diferentes daquelas que as distintas populações
que compõem essa “minoria” articulam.
A letra “T” tem ocupado uma posição ao mesmo tempo proemi-
nente e precária dentro desta sigla e no âmbito das atividades políticas
realizadas sob essa bandeira. Conforme mencionado anteriormente, já
na circunstância do encontro de homossexuais em 1980, a ausência de
travestis foi lamentada, indicando simultaneamente sua marginalização
em relação a lésbicas e gays e sua presença em alguns debates políticos.
A representação tripartida no DDH do Rio, quando foi lançado,
em 1999 (uma lésbica, um gay e uma pessoa trans), indica a importante
posição que as ativistas trans tinham, desde o início, dentro do ativismo
LGT (posteriormente chamado LGBT) sobre segurança pública. Hanah
Suzart explicou que houve discussões, no final dos anos 1990, dentro do
movimento LGT carioca, que levaram ao consenso de que “precisamos de
três representantes, um representante gay, uma representante lésbica
e uma representante travesti”.19 Um comunicado de imprensa publica-
do pela ABGLT em julho de 2010 expressa novamente um grande inves-
timento em questões trans. Ele menciona o alto número de homicídios
dessas pessoas no Brasil e propõe uma campanha sobre várias questões,
incluindo, para além da referida legislação contra a homofobia, por exem-
plo, também o apoio à campanha para o uso do nome social das trans, a
aprovação de um projeto para melhorar o acesso delas ao emprego e a
implementação de um serviço de assistência telefônica antiviolência.
Ao mesmo tempo, entretanto, o “T” foi constantemente margi-
nalizado, como várias de nossas entrevistadas reiteraram. Tensões sobre
tal marginalização também se tornaram mais claras durante vários even-
tos ativistas de que Hutta participou. Durante a Conferência Nacional
LGBT de 2008, por exemplo, uma ativista trans interveio em uma discus-
são sobre segurança pública ao expressar sua irritação com o jeito como
alguns ativistas gays usavam o termo “homofobia”, o que, no ponto de
vista dela, não contemplava as questões que ela enfrentava como uma
pessoa trans.

19
Entrevista com Hanah Suzart, em 30/1/2001.

327
corpos, sexualidades e espaços
Identidades e cidadania em construção: historização do ‘T’
nas políticas de antiviolência LGBT no Brasil

Esse paradoxo de reconhecimento/participação e marginaliza-


ção também reaparece em formas concretas de saberes que emergiram
no campo discursivo da segurança pública, como nos estudos de vitimo-
logia.20 Essa vertente tem sido de particular relevância para a constitui-
ção da reorientação biopolítica no ativismo. A especificidade da utiliza-
ção de uma metodologia vitimológica é que ela não se limita às vítimas
de discriminação e violência, mas visa a fornecer uma visão geral das
populações estudadas. Ramos e Carrara (2006) apontam que essa aborda-
gem ajuda a abrir a visão, além do cenário marcial de assassinatos, a for-
mas cotidianas de violência e discriminação que afetam partes maiores
da população. Além disso, variadas formas de discriminação e violência
são consideradas como potencialmente relacionadas a diferenças de gê-
nero, cor ou identidade racial, proporcionando assim uma imagem mais
diferenciada de como a violência afeta a vida de certos grupos sociais.
Estudos como o de Carrara et al. (2003) sugerem a prevalência de certas
formas de violência e discriminação física, verbal e estrutural em espaços
públicos e privados, instituições e ambientes escolares ou de trabalho.
Assim como as pessoas negras, trans relatam mais frequentemente tais
experiências em uma gama de domínios. Não obstante, em seus relató-
rios de pesquisa, os autores tendem a subsumir experiências trans sob o
rótulo de orientação sexual, contribuindo para o discurso predominante
sobre a homofobia. A inclusão das experiências trans nos casos de vio-
lência tem aumentado a taxa geral. Se fossem considerados apenas os
casos de violência contra gays, lésbicas e bissexuais, certamente as taxas
seriam menos expressivas. Mesmo considerando o grande peso da vio-
lência contra pessoas trans, as reivindicações e a visibilidade desse grupo
acabam sendo mascaradas pelo genérico termo da homofobia.
Fora a sigla LGBT, o ativismo trans autônomo − que é constituído
por um enorme número de organizações locais e, desde o ano 2000, também
organizado na Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgê-
neros (ANTRA) − só esporadicamente se traduziu em projetos políticos
que se endereçam à segurança pública e à violência transfóbica.21 (Além
da já mencionada educação da polícia por ativistas trans e de várias de-
monstrações e projetos de diversos grupos trans locais, vale a pena men-

20
Inúmeros estudos podem ser acessados no site da ABGLT: <www.abglt.org.br/port/
pesquisas.php>. Acesso em: 20 jul. 2010.
21
A observação é baseada em especial na entrevista com a presidente da ANTRA, Keila
Simpson, em 8/12/2010.

328
Geografias malditas
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

cionar uma iniciativa da ativista trans Valkyria, de Minas Gerais. Em 2009,


Valkyria fez uma campanha bem-sucedida por uma ala separada nas pri-
sões para trans e gays, que sofrem violência transfóbica e homofóbica na
cadeia.). Como resultado do financiamento público, o ativismo trans au-
tônomo, durante as últimas décadas, tendeu a concentrar-se em questões
de saúde, bem como, mais recentemente, em uma imagem mais positiva
de pessoas trans em geral e na possibilidade de pessoas trans usarem seu
nome social em documentos oficiais (o que retomaremos mais tarde).
O engajamento contemporâneo de ativistas com segurança pú-
blica e violência transfóbica e homofóbica é orientado principalmente em
direção às mudanças no nível de biopolítica do Estado. Esse engajamen-
to mira instituições como a Polícia, além de mecanismos de securitiza-
ção em escala municipal, estadual e nacional. A relevância de abordagens
biopolíticas, orientadas em direção ao Estado, decorre de possibilidades
políticas práticas e discursivas que se abriram assim que pessoas LGBT
começaram a se tornar população reconhecida, cuja vida importa ao Es-
tado; e, simultaneamente, ao fato de que intervenções agora podem ser
feitas diretamente em nível biopolítico das instituições que se destinam
a securitizar e dar atenção a essa população, mas que não conseguem
fazê-lo na prática.
Ativismos biopolíticos relacionados ao Estado na área de segu-
rança pública introduzem alguns dilemas que, ao mesmo tempo, provo-
cam mal-estar e ambivalência dentro do ativismo, e vis-à-vis a ele. Esses
dilemas decorrem de duas experiências comuns. Primeiro, as Polícias Ci-
vil e Militar brasileiras são muitas vezes consideradas instituições irre-
mediavelmente antidemocráticas, arbitrárias e machistas, onde sonoros
debates sobre direitos LGBT e trans não serão capazes de causar mudan-
ças de maneira substancial. Em segundo lugar, e mais importante na nos-
sa presente discussão, as instituições biopolíticas do Estado visadas pelos
ativismos tiveram reduzido valor na vida atual de lésbicas, gays, trans e
outras pessoas marginalizadas, especialmente nos contextos em que o
Estado não assume o papel de fato de agente soberano de governo. No
município do Rio de Janeiro, por exemplo, existem mais de 1.000 fave-
las,22 um grande número delas sendo governado por traficantes ou pe-

22
Um projeto governamental da cidade do Rio de Janeiro voltado para assentamentos
irregulares e precários (SABREN), em 2010, listou 1.021 favelas, com base em imagens
recentes de satélites (SABREN, 2010). Nas últimas décadas, favelas e espaços formais da
cidade têm, no entanto, se tornado cada vez mais entrelaçados em termos sociais e de

329
corpos, sexualidades e espaços
Identidades e cidadania em construção: historização do ‘T’
nas políticas de antiviolência LGBT no Brasil

las chamadas milícias (ver: RIBEIRO, C. et al., 2008). Em uma variedade


de contextos, o governo do Estado liberal é radicalmente limitado ou
entrelaçado com tecnologias não liberais. Na próxima seção, queremos
interrogar ainda mais a relevância prática do ativismo político ao olhar
para algumas estratégias práticas usadas por pessoas trans onde não se
sentem capazes − ou então dispostas − a contar com o poder do Estado
para sua securitização.

AÇÕES PRÁTICAS DE CIDADANIA

Hutta conduziu pesquisa na Baixada Fluminense, onde especial-


mente pessoas trans têm sofrido um alto grau de violência. A Baixada
Fluminense é caracterizada por idiossincráticas relações de poder, que
são marcadas pelo clientelismo e relações de dependência, assim como
pela atividade de grupos de extermínio que são pagos por comerciantes
para aniquilar a “desordem” ou desafios ao status quo, formando conjun-
tos intrincados com instituições do Estado (ver: HUTTA, 2013). Preocu-
pações políticas com a democratização da Polícia ou tecnologias públicas
de prevenção enfrentam desafios particulares em tais contextos, em que
o Estado liberal não tem uma soberania de facto de governo e nem de
securitização. Essa questão diz respeito não apenas às políticas LGBT ou
aos contextos mencionados. Chatterjee (2004) argumenta que a gover-
namentalidade liberal, do modo como surgiu na modernidade ocidental,
sempre foi complicada por práticas políticas que excedem o quadro libe-
ral no que ele chama da “maior parte do mundo” (most of the world). Ele
chama atenção para intrincadas formas de política que emergem em in-
tersecções formais ou informais, legais e ilegais, liberais e não liberais de
governo. Em nossa presente discussão, queremos realçar especialmente
como trans e queer conseguem afirmar uma presença legítima, por meio
de formas práticas de agency e de cidadania. Enquanto ativismos centra-
dos no Estado continuam em relevância, estas são formas de agency que
diferem da ideia de um cidadão LGBT mobilizando instituições estaduais
de securitização sempre que direitos das pessoas estiverem sendo infrin-
gidos. A própria noção de “cidadania” precisa ser reconsiderada aqui,
de modo a incluir múltiplas formas em que reivindicações por espaços

infraestrutura. (PERLMAN, 2005, p. 9-10).

330
Geografias malditas
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

coletivos são concretamente articuladas, além de leis formais e de insti-


tuições que estão ligadas à biopolítica do Estado (securitização, votação,
serviços de saúde, etc.).23 A tais articulações concretas de cidadania, em
sentido processual, é que queremos recorrer.
Uma questão que Gilmar, juntamente com várias outras pessoas
gays e trans com quem falamos na nossa pesquisa, tem repetidamente
destacado é a necessidade de ganhar respeito e reconhecimento, tanto no
imaginário público quanto nos contextos concretos das cidades, das co-
munidades e dos bairros. Ganhar respeito é uma forma prática de desen-
volver cidadania que implica a possibilidade de gerar presença legítima
e participar de reivindicações para espaços coletivos. Mesmo onde tais
afirmações não implicam diretamente uma participação nas instituições
do Estado, elas podem servir como condição ou como um primeiro passo.
Em resposta a nossa indagação sobre o que poderia ser feito para melho-
rar a situação, Gilmar afirma:

A gente fala muito da mobilização do SUS, mas eu considero que a


comunidade tem que passar por um processo de humanização, de
entender que aquele indivíduo, ele é um ser humano, assim como
qualquer um, né? E merece ser respeitado. Eu sempre falo na ques-
tão do respeito, porque eu acho que é a principal [...] O principal
passo a se tomar, para que [...] possamos construir um espaço de
melhor qualidade de vida. Desde que eu respeite, eu tenho outros
olhos e aí vai vendo, daí agregando outros benefícios. Por isso eu
considero que a educação, ela é importante.24

Gilmar desafia o discurso político quando diz “a gente fala mui-


to da mobilização do SUS” (Sistema Único de Saúde), que é em teoria
responsável por inúmeras questões importantes para pessoas trans, in-
cluindo hormônios, tratamentos relativos ao silicone, cirurgias, preven-
ção e tratamento contra doenças sexualmente transmissíveis, e muito
mais. Gilmar acredita que, apesar de os regulamentos formais existirem,
se eles serão realmente aplicáveis na prática é uma questão totalmente
diferente. O “principal passo a se tomar” é ganhar respeito dentro da co-

23
Nossa abordagem processual para a cidadania é inspirada na noção de Isin (2008) para
atos de cidadania (ver: HUTTA, 2010a, p. 30-1, 166-7).
24
Entrevista com Gilmar, em 12/1/2011.

331
corpos, sexualidades e espaços
Identidades e cidadania em construção: historização do ‘T’
nas políticas de antiviolência LGBT no Brasil

munidade, o que pode, afinal de contas, levar a uma “melhor qualidade


de vida” e “outros benefícios”.
Gostaríamos de examinar as complexidades envolvidas neste
processo de ganhar respeito ao centrar em uma conversa com Sasha e
Josué em uma pequena cidade da região da Baixada Fluminense (anoni-
mizada aqui). Josué se identifica como um “bichaboy”, um termo nor-
malmente usado para jovens gays femininos, e Sasha, como “travesti” e
“bicha”. No momento da entrevista, a apresentação de gênero de Sasha é
anunciada como masculina, o que se relaciona ao fato de que começou a
treinar como enfermeiro e seu ambiente estabelece normas sobre apre-
sentação de gênero. Isso já indica a pressão social a que Sasha precisa se
adaptar no trabalho para ganhar seu sustento. O diretor e ativista Vag-
ner de Almeida tem documentado em seus filmes, como Borboletas da Vida
(2004) e Basta um Dia (2006), alguns dos problemas agudos de violência
que em particular travestis e gays femininas (monas, bichas boys, homos-
sexuais, gays) sofrem na Baixada Fluminense. Muitas têm medo de sair de
casa e precisam atuar como trabalhadoras sexuais na rodovia Presidente
Dutra, onde estão expostas a insultos, ataques violentos e até estupros.
Sasha também menciona vários ataques homofóbicos e transfóbicos, as-
sim como assassinatos, perto do lugar onde ela vive.
Curiosamente, porém, em uma série de situações do cotidiano,
Sasha e Josué afirmam abertamente uma presença travesti e queer. Sasha
convocou reuniões de ativistas em sua casa, o que levou à organização da
primeira parada local LGBT. Apesar das advertências que Sasha recebeu
(“vão jogar tomates em você!”), elas foram adiante com o evento, e Sasha
se entusiasmou com as reações positivas e com a atmosfera alegre que ge-
rou. Ela também indica, no entanto, que precisaram assumir uma postura
bastante intrépida (“Vamos levar tomatada na cara!”). Josué, que viveu
na cidade de Sasha por vários anos, aponta para os desafios que muitas
vezes se colocam, afirmando: “Quando sai, sai todo mundo em bando”, e
“A gente impõe respeito”. Isso também destaca a importância de grupos
subculturais, que, como visto anteriormente, começaram a se formar es-
pecialmente durante a reação repressiva da ditadura militar. Respeito é
enquadrado aqui como algo que precisa ser “imposto” de uma maneira
contestada e conflituosa.
Para Sasha, foi, entretanto, ao mesmo tempo importante alcan-
çar formas mais solidárias de respeito dentro da comunidade e ir além dos
guetos. Esse processo levou anos, e é algo a que ela se refere como uma

332
Geografias malditas
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

“luta”. Também envolveu a mobilização e a rearticulação de relações in-


terpessoais afetivas e registros morais, por exemplo, através do trabalho
de atenção e assistência. Como está treinando como enfermeiro, Sasha
tem acesso especial a médicos e medicação, o que usa para ajudar pes-
soas de seu bairro. Significativamente, devido ao fato de que este tipo
de trabalho de assistência é tradicionalmente codificado como femini-
no, Sasha alcança respeitabilidade como travesti. Josué inclusive afirma
que “a comunidade não se vê mais sem Sasha”. A “luta” de Sasha para al-
cançar respeito envolve, assim, um trabalho prático que responde à pai-
sagem moral de gênero. Embora não haja espaço aqui para discutir essa
questão em detalhe, é interessante notar que esse panorama moral está
sendo simultaneamente rearticulado no processo. Sasha menciona inú-
meras relações e aventuras eróticas com rapazes jovens da comunidade.
Por exemplo, quando há churrascos na casa dela, depois que mulheres e
crianças saem, travestis e gays se relacionam com os homens que per-
manecem, ou seja, com aqueles que normalmente desempenham papéis
heterossexuais em suas vidas familiares (ver: HUTTA, 2010a, p. 297-8).
Apesar de viver em uma região conhecida por sua violência,
Sasha conseguiu, ao longo dos anos, ganhar respeito dentro de sua co-
munidade, o que ainda lhe permitiu reivindicar visibilidade pública. To-
davia, ainda que pareçam, sob muitos aspectos, relações locais sólidas de
respeito, elas são, na verdade, altamente contingentes e precárias. Não só
levou anos para Sasha ganhar respeito, como ela precisa ainda desempe-
nhar uma respeitável tarefa (na assistência) e sente-se obrigada a adotar
uma persona masculina, por uma questão de educação profissional.
É notável que travestis afro-brasileiras, negras e pardas são
particularmente vulneráveis. Rebecca nos lembra de que elas enfrentam
discriminações múltiplas, na medida em que vivenciam não apenas ho-
mofobia e transfobia, mas também formas do racismo brasileiro de todos
os dias. Em uma entrevista, e em várias conversas informais, Rebecca ex-
plicou que, para ela, ganhar respeito envolve múltiplos níveis, incluindo
respeito à identidade afro-brasileira. Curiosamente, no entanto, como al-
gumas outras travestis − as já mencionadas Cora e Hanah, por exemplo −,
ela simultaneamente cumpriu um papel importante no estabelecimento
de ligações entre grupos de travestis que pertenciam a diferentes classes
sociais, bairros ou categorias profissionais. A base da amizade e das redes
informais de travestis resultantes de tais ligações forneceu aos indivídu-
os respeito mútuo, apesar das diferenças étnicas, de classe ou localidade

333
corpos, sexualidades e espaços
Identidades e cidadania em construção: historização do ‘T’
nas políticas de antiviolência LGBT no Brasil

(BALZER, 2007, p. 388-391). Dessa forma, estruturas comunitárias acaba-


ram ensejando relações de respeito de várias maneiras.

CONCLUSÕES

Em nossa pesquisa, descobrimos que ativistas trans brasileiras


são muitas vezes precariamente situadas, tanto dentro do movimento
LGBT unificado quanto no que respeita às abordagens dominantes cen-
tradas no Estado, que parecem ter pouca relevância no contexto das des-
favorecidas. Ao mesmo tempo, atuando a partir de uma multiplicidade
de posições e identidades provisoriamente situadas, que estão ligadas
umas às outras, elas têm desde cedo desenvolvido articulações e estra-
tégias políticas formais e informais para responder às relações ferozes
e historicamente moldadas de violência. Mesmo em contextos aparen-
temente periféricos, como no Complexo da Maré e na região da Baixada
Fluminense, ativistas trans criaram grupos políticos e sociais e também
redes, dando assim visibilidade a problemas agudos que são muitas vezes
deixados de lado no debate político. Em nível nacional, vale a pena men-
cionar que a rede trans ANTRA tem, desde 2006, focado na campanha por
uma legislação que permita às pessoas trans usarem seus nomes sociais
em documentos oficiais. Essa campanha é particularmente importante
porque também afeta pessoas que não querem recorrer à cirurgia de
transgenitalização para obter o direito ao nome feminino.25 Se as ativistas
conseguirem tal legislação em escala nacional − o que elas já obtiveram
em diversos estados, incluindo o Rio de Janeiro −, seria uma situação pro-
pícia para ganhar respeito local e institucionalmente.
Embora tenhamos assinalado a precária posição das ativistas
trans dentro do ativismo LGBT brasileiro, de uma perspectiva internacio-
nal a presença e o reconhecimento positivos delas ainda nos parecem ex-
traordinários. Nos países europeus, por exemplo, embora pessoas trans
enfrentem uma intensidade diferente de violência em comparação com
as brasileiras, elas vivenciam crimes transfóbicos de ódio com três ve-
zes mais frequência do que lésbicas e homens gays vivenciam violência
homofóbica, conforme sugerem estudos recentes (TURNER et al., 2009,

25
Esta informação é parcialmente baseada na entrevista com a presidente da ANTRA,
Keila Simpson, em 8/12/2010. Ver também: ABGLT (2012).

334
Geografias malditas
Jan Simon Hutta e Carsten Balzer

p. 19). Tendo em conta este fato, é surpreendente que somente nos últi-
mos anos − e em parte devido aos esforços da rede europeia Transgender
Europe − a situação de pessoas trans, bem como crimes transfóbicos e
homofóbicos de ódio, tenham sido devidamente reconhecidos em relató-
rios e estudos LGBT europeus por ONGs e instituições, como a ILGA-Euro-
pe, o DIHR (Instituto Dinamarquês de Direitos Humanos), a FRA (Agência
dos Direitos Fundamentais da UE), a OSCE (Organização para a Segurança
e Cooperação na Europa) ou o Comissário para os Direitos Humanos do
Conselho da Europa. Em nível nacional, em muitos países da Europa pes-
soas trans ainda estão lutando arduamente para se tornar visíveis no ati-
vismo LGBT de antiviolência e anticrime de ódio. Essa ausência pôde ser
exemplarmente observada no projeto Tracing and tackling hate crimes
against LGBT persons (Rastreamento e combate a crimes de ódio con-
tra pessoas LGBT), que foi conduzido em 2010 e 2011 em nove cidades
europeias. Nenhuma das ONGs LGBT participantes enviou ativista trans
para as conferências e reuniões de projeto, e a maioria das organizações
não incluiu a transfobia e a situação de pessoas trans no quadro local do
projeto.
Se o ativismo e as identidades trans brasileiros se moldaram,
sob a perspectiva internacional, em um contexto social e espacial de
constrangimento e violência, articulações políticas no Brasil têm, no
entanto, e talvez por isso mesmo, conseguido uma presença discursiva
e corpórea notável. Na década de 1990, a auto-organização começou a
tornar-se em parte profissionalizada, e, especialmente no fim dos anos
1990, a questão da violência transfóbica também foi abordada em vários
contextos dentro do ativismo LGBT. Ativistas trans formaram uma parte
integral de debates políticos, mesmo que a sua posição dentro do LGBT
continue ambivalente e precária.

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338
Geografias malditas
GEOGRAFIAS
TRANS(ICIONAIS):
CORPOS, BINARISMOS,
LUGARES E ESPAÇOS1

Lynda Johnston
Robyn Longhurst
Universidade de Waikato

INTRODUÇÃO

Em uma entrevista conjunta, Cindy, de setenta e


três anos, e Sara, de cinquenta e quatro anos, falaram sobre suas expe-
riências da transição de homem para mulher e explicaram que agora é
possível ser designado de ‘X’ ao invés de ‘M’ (masculino) ou ‘F’ (femini-
no) nos passaportes da Nova Zelândia. Cindy disse: “isso significa que seu
sexo é indeterminado”. Enquanto este movimento para usar o ‘X’ pode
ser visto como um passo positivo no sentido de reconhecer que o sexo
e o gênero são fluidos, Cindy explicou: “[mas] não é ideal porque muitos
computadores não irão reconhecê-lo”. Sarah acrescentou: “Não é total-
mente internacional”. Cindy relatou que, quando voltou de Sydney para
a Nova Zelândia, enfrentou um problema: “O computador não calculou o
traço e não emitiu um cartão de embarque”. Cindy, desde então, mudou
seu passaporte para a ‘F’ de feminino. A questão do cartão de embarque
foi resolvida chamando um supervisor, e nós começamos este capítulo
com a história de Cindy e Sarah sobre passaportes porque ela reporta
alguns desafios e resistências colocados para a diversidade de gênero de
pessoas trans (ver também: DOAN, 2010).
Browne, Nash e Hines (2010, p. 573), em uma edição temática
intitulada “Rumo às geografias trans”, argumentam que: “as geografias

1
Texto traduzido do inglês para o português por Silvana Pereira.
Geografias trans(icionais): corpos, binarismos, lugares e espaços

de gênero se concentraram em homens e mulheres normativamente


generificados, negligenciando as formas pelas quais os gêneros binários
podem ser contestados e problematizados”. Nós concordamos, e neste
capítulo sobre ‘geografias trans(icionais)’ argumentamos que há muito
espaço para se envolver não só com os vários campos teóricos que envol-
vem “corpos binários generificados e sexualizados, espaços e lugares”,
mas também com as experiências vividas por pessoas trans.
Começamos por apontar brevemente algumas das contribui-
ções já realizadas na Geografia que visam a desafiar o pensamento biná-
rio. Em segundo lugar, destacamos a processo metodológico usado para
coletar informações de duas participantes da pesquisa, Cindy e Sarah,
que vivem em Hamilton, Nova Zelândia. Na terceira seção, Cindy e Sarah
mostram ricas reflexões sobre suas jornadas nos espaços cotidianos de
compras, trabalho, ‘trabalho nos clubes de homens’, bares e banheiros.
Achamos que é importante oferecer relatos cultural e historicamente es-
pecíficos das vidas trans. Browne, Nash e Hines (2010, p. 574) observam:
“Conforme os pesquisadores trans deixam claro, as vozes trans precisam
ser ouvidas e novos conhecimentos criados a partir da compreensão es-
pecífica adquirida através de experiências vividas”. Estamos de acordo
e, portanto, procuramos, neste capítulo, contribuir com esta compilação
sobre as experiências de duas pessoas que vivem na pequena cidade de
Hamilton, na Nova Zelândia.

PENSANDO POR MEIO DE CORPOS TRANS,


BINARISMOS, LUGARES E ESPAÇOS

Nas últimas duas décadas, geógrafos e outros cientistas sociais


têm argumentado que o pensamento binário simplifica questões comple-
xas, como uma estratégia adotada por indivíduos e coletivos em muitos
contextos ocidentais (CLOKE e JOHNSTON, 2005). O pensamento binário
envolve a divisão de um espectro contínuo em diferentes elementos au-
tossuficientes que existem em oposição um ao outro. Por exemplo: nós /
eles, eu / outro, privado / público, local / global, preto / branco, e agên-
cia / estrutura. Esta oposição binária impede que dois tipos diferentes
de ‘coisas’ possam ser compreendidos como mutuamente constituídos
(GROSZ, 1994). Teóricos têm argumentado que é importante desconstruir
os pares binários, pois isso pode ajudar a motivar diálogos em que uma

340
Geografias malditas
Lynda Johnston e Robyn Longhurst

nova linguagem seja empregada, a fim de abrir espaço para novas formas


de vir a ser. Uma maneira de pensar sobre novas maneiras de vir a ser é
fornecida pela noção de “Terceiro Espaço” de Homi Bhabha (1990, 1994).
Bhabha explica que, “ao explorar este terceiro espaço, podemos
iludir a política da polaridade e emergir como os outros de nós mesmos”
(BHABHA, 1994, p. 39). Na mesma perspectiva, ver também: Pile (1994) e
Soja (1996). Na mesma linha, Gillian Rose (1993) defende a noção de ‘espa-
ço paradoxal’, um espaço em que é possível ocupar tanto o centro como a
margem (masculino e feminino).
Na verdade, filósofas feministas como Bordo (1986), Kirby
(1997), Lloyd (1993) e Grosz (1993, 1994) e geógrafas feministas como
Rose (1993), Bondi (1992), Johnston (2005) e Longhurst (1995, 1997) têm
feito importantes contribuições para debates sobre a necessidade de des-
construir o pensamento binário. Em particular, elas têm chamado aten-
ção para os pares binários como: homem / mulher, masculino / feminino,
corpo / mente, racional / irracional, sexo / gênero, heterossexual / ho-
mossexual e cultura / natureza. Por exemplo, Vicki Kirby (1997) discute
os pares binários mente / corpo, cultura / natureza e significação / car-
ne. O corpo, argumenta Kirby, é tanto escrito como escreve o texto cultu-
ral. Isto é, os corpos são mais do que inscritos pelos campos representa-
cionais, ao invés de apenas ‘carne’ moldada pela linguagem. Os contextos
culturais não somente circundam os corpos sexuados e generificados,
mas os habitam.
Em vez de reiterar ainda mais estes já bem conhecidos argu-
mentos sobre os binarismos que ocorreram dentro e fora da disciplina de
Geografia, nós agora queremos nos concentrar nas teorias trans (HINES,
2007, 2010; HINES e TAYLOR, 2011; NASH, 2010) e em como o conheci-
mento trans se cruza com as geografias queer.
A noção de ‘trans’ é útil para salientar que o gênero é fluido e,
por vezes, incompreensível. Ela perturba o enquadramento binário do-
minante mencionado acima como homem / mulher, masculinidade / fe-
minilidade e sexo / gênero e desafia geógrafos a pensar novamente sobre
tais oposições e como não há fácil separação possível (por exemplo, ver:
BUTLER 1990 e 1993, sobre a performatividade de gênero).
Browne e Lim (2010, p. 616) descrevem os estudos trans como
“um campo crescente de investigação, que procura reparar a ausência
das vidas trans na teoria queer (apesar da distribuição conceitual das sub-
jetividades trans por todo o campo)”. Sally Hines (2010, p. 609) utiliza o

341
corpos, sexualidades e espaços
Geografias trans(icionais): corpos, binarismos, lugares e espaços

termo ‘trans’ de modo a incluir a diversidade das identificações de gêne-


ro. Nem sempre é possível “sair com facilidade e sem problemas de biná-
rios, tais como homem/mulher” (JOHNSTON, 2005, p. 120), mas a noção
de ‘trans’ pode funcionar de forma produtiva para desestabilizar estes
termos, levando a um questionamento de sua suposta ‘naturalidade’.
Sally Munt (1995) ilustra em sua pesquisa sobre flâneur lésbico
que as posições dos sujeitos nunca são completamente fixas. Esta fluidici-
dade afeta de forma contundente como as pessoas vivenciam espaços dife-
rentes em diversos tempos (DOAN, 2007, 2010). Assim, é importante enten-
der mais sobre a vida das pessoas trans, suas experiências de saúde, lazer,
trabalho, política, viagens, ocupando uma variedade de espaços e lugares
(HINES, 2010; ROOKE, 2010)2. Antes de discutir algumas destas questões
através das vidas de Sarah e Cindy, porém, explicaremos um pouco sobre
a pesquisa a partir da qual as histórias de Sarah e Cindy foram retiradas.

SARAH E CINDY:
COMPARTILHANDO HISTÓRIAS

Em 2009 foi desenvolvida uma pesquisa intitulada “Orgulho


Hamilton: Espaços de Igualdade e Diferença”, realizada juntamente com
a Hamilton Pride Incorporated Society3. Nós, pesquisadoras, estivemos
envolvidas de diferentes maneiras na referida pesquisa. Enquanto Lynda
tem feito parte da Hamilton Pride Community Group desde a sua fun-
dação em 2007, Robyn tem uma atuação como participante de algumas
atividades políticas e sociais organizadas pelo grupo. O grupo Hamilton
Pride objetiva “acompanhar, comemorar e apoiar a diversidade da comu-
nidade LGBT de Hamilton”.
O projeto de pesquisa conduzido por Lynda teve como foco
compreender a relação entre identidade sexual, lugar, sentimentos e po-
der para as pessoas das comunidades gays, lésbicas, bissexuais e trans de
Hamilton. A pesquisa foi desenvolvida por meio de metodologias partici-
pativas, durante a promoção de eventos, dos festivais anuais do orgulho
gay, do Dia Mundial da AIDS e do Dia Internacional de Lembrança dos

2
Hines (2010) está interessada em mapear algumas especificidades das experiências trans
vividas no Reino Unido, e Rooke (2010) explora os espaços virtuais trans.
3
Ver: www.hamiltonpride.co.nz

342
Geografias malditas
Lynda Johnston e Robyn Longhurst

Transgêneros. Além disso, foram realizadas treze entrevistas individuais


e uma entrevista conjunta. A entrevista conjunta, realizada com Sarah e
Cindy4, sustenta os argumentos deste capítulo, e nós nos concentramos
apenas nela porque as pessoas entrevistadas ocupam um lugar único em
Hamilton e nas comunidades trans da Nova Zelândia. Elas são líderes ati-
vas na base nacional do grupo Agender New Zealand (ver: agendernz.
matrx.co.nz) e do grupo de base local Hamilton Pride Incorporated. Outra
razão é a de que a entrevista conjunta é excepcionalmente rica. Ambas as
entrevistadas foram capazes de transmitir de maneira eficaz muitas das
complexidades, ou seja, os preconceitos enfrentados e as alegrias vividas,
da transição vivida entre o masculino e o feminino. Cindy e Sarah iden-
tificaram-se como Pãkehã/Europeias5. Cindy tem setenta e três anos de
idade, é aposentada e descreve-se como transexual. Sarah tem cinquenta
e quatro anos de idade, trabalha como gerente de um hotel e define sua
sexualidade como lésbica. Ambas definem seu sexo/gênero como femini-
no e ambas têm rendimentos razoavelmente modestos.
Nenhuma de nós pesquisadoras experimentou pessoalmente a
sensação de disjunção entre os sentimentos e a aparência corporal ou en-
tre o sexo e o gênero e ainda o desejo de mudar tal situação. No entanto,
cada uma de nós experimentou o sentimento de marginalização e exclu-
são por causa de outras características corporais destoantes do padrão
geral, tais como sexualidade, gênero e tamanho do corpo.
Na cidade onde vivemos, e onde Sarah e Cindy vivem, Hamilton,
Nova Zelândia, não é comum haver muitos espaços para a ‘diferença’,
embora algumas pessoas estejam aceitando calorosamente. Hamilton é
uma cidade pequena para os padrões internacionais, com pouco menos
de cento e trinta mil habitantes. Dentro do contexto da Nova Zelândia,
no entanto, é a quarta maior cidade. O primeiro assentamento da região
na qual está localizada Hamilton foi feito pelos maori. A iwi Tainui (tribo
Tainui) chamou uma área na margem oeste do rio Waikato de Kirikiri-
roa, que significa ‘longo trecho de cascalho’. Colonizadores europeus mu-
daram o nome da área para Hamilton, em homenagem ao capitão John
Charles Fane Hamilton, que foi morto em uma batalha em 1864. Os maori
viveram e cultivaram jardins e agricultura ao longo do rio Waikato por

4
Entrevista feita em 31/7/2009, com 1h40 de duração, transcrita na íntegra.
5
Pākehā é uma palavra do idioma maori (dos nativos da Nova Zelândia) que designa os
descendentes de europeus.

343
corpos, sexualidades e espaços
Geografias trans(icionais): corpos, binarismos, lugares e espaços

cerca de setecentos, oitocentos anos, mas em 1860 mais de um milhão de


hectares de terras foi confiscado na região de Waikato, e parte desta ter-
ra serviu de base para a colonização Pãkehã/europeia (HAMILTON CITY
COUNCIL, 2011).
Atualmente Hamilton tem uma população maior do que a mé-
dia nacional em relação aos povos maori, jovens e migrantes (STATISTICS
NEW ZEALAND, 2006). Apesar disso, a cidade tende a ser relativamente
conservadora, dadas as suas raízes históricas. É identificada como uma
‘cidade de colonos’, cresceu em grande parte para atender às necessi-
dades de famílias de agricultores no distrito. No extremo norte da cida-
de, há uma estátua de uma família de agricultores Pãkehã/europeia, que
consiste de um marido, esposa e dois filhos, bem como um cão, uma vaca
e uma ovelha. A estátua materializa um sentimento de uma ‘cidade do
interior’, pois está situada ao sudeste de Auckland6, que fica a uma hora
e meia de carro ao norte. Apesar de Hamilton ser considerada relativa-
mente pequena e conservadora, Sarah e Cindy viveram, muitas vezes, em
lugares ainda menores e sem dúvida mais conservadores.

PRIMÓRDIOS: DE CIDADES PEQUENAS


A CIDADES MAIORES

Sarah começou a entrevista explicando:

Eu sabia desde os sete anos de idade que eu tinha um desejo de ves-


tir roupas femininas e isto só cresceu desde então. Eu me casei aos
vinte e oito anos e quando eu me casei eu pensei ‘oh, isso vai me
curar’. Eu não tinha tido qualquer experiência sexual até então. Ele
diminuiu nos primeiros dois anos, depois ele voltou. Eu não sabia
por que, e minha esposa teve três filhos, então eu, imediatamente,
tive três filhos.

Finalmente, Bob, como Sarah era reconhecida então, e sua es-


posa se separaram. Sarah diz:

6
Auckland é a maior área metropolitana da Nova Zelândia, com uma população de 1,5
milhão de pessoas. Embora Wellington seja a capital, Auckland é a cidade mais importante,
por ser a mais populosa e a capital financeira do país.

344
Geografias malditas
Lynda Johnston e Robyn Longhurst

Ela descobriu [que Bob se travestia], ela encontrou algumas das


minhas roupas doze anos antes de nos separarmos. Eu tenho que
tirar o chapéu para ela. Ela ficou comigo por doze anos, imaginan-
do que ela iria me ajudar a me curar. Sim, nós tentamos, mas eu
acho que todos nós sabemos agora, não há cura. No ano que nos
separamos ela simplesmente não aguentava mais. Eu posso enten-
der, e então, eu fiquei em Whakatane por cerca de um ano e então
eu vim pra cá [Hamilton].

Em Whakatane, uma pequena cidade na Baía de Plenty Oriental


com uma população de 18.700, Sarah ainda se travestia, mas apenas em
particular. Ela comenta que, em cidades pequenas, se você se travestir:

[...] de repente você está transparente. Você é a única pessoa da-


quela cidade pequena que é assim. Então você se destaca com qual-
quer coisa e as pessoas vão lhe atormentar... Elas correm com você
da cidade... Embora eu saiba de uma ou duas pessoas em pequenas
cidades que sobreviveram... Eu acho que depende muito da atitude
da pessoa que fez a transição. Eu acho que se você tem a atitude
certa você provavelmente vai sobreviver.

A atitude de realizar a transição do masculino para o feminino


não aconteceu até Sarah mudar de Whakatane para Hamilton. Mais três
anos e meio se passaram, até que ela tomou a decisão de ‘revelar-se em
tempo integral e viver como uma mulher’. O que ela descobriu com esta
atitude foi:

Há um novo mundo lá fora e eu ainda estou passando pelo pro-


cesso de descobrir isso. Foi inacreditável. Quero dizer, é apenas
um ano e tem sido uma jornada incrível para partilhar e eu ainda
estou aprendendo coisas novas todos os dias. Eu conheci literal-
mente centenas de pessoas que eu não teria conhecido, se eu não
tivesse... Você é obviamente uma delas [referindo-se a Cindy] se
eu não tivesse feito a transição de gênero. Eu não teria tido essas
experiências de outra maneira. Eu estou incrivelmente feliz e acho
que sou uma pessoa melhor e mais confiante.

Mas a transição de sexo de Sarah não foi totalmente fácil. Ela


não teve contato com sua família por cinco anos, e o processo de apro-

345
corpos, sexualidades e espaços
Geografias trans(icionais): corpos, binarismos, lugares e espaços

ximação continua lento com alguns membros da família, como sua filha
mais velha em Dunedin. A filha de Sarah escreveu para ela, dizendo: “Eu
não conheço Sarah, só conheço Bob. Eu não sei como Bob se sentiu man-
tendo este grande segredo por tantos anos das pessoas que ele amava e o
amavam”. Sarah pensa que ainda é um desafio trabalhar estas questões
com a filha.
Cindy também viveu por um período em uma pequena cidade,
com uma população de aproximadamente doze mil pessoas, quando ti-
nha entre treze e dezesseis anos. No final de 1949, início 1950, sua família
mudou-se para Hamilton. No entanto, o mundo de Cindy não se expan-
diu propriamente, até que ela descobriu a Internet. Isto permitiu a ela
se conectar com os outras pessoas em Auckland, a maior cidade da Nova
Zelândia.

Eu tinha um primo que me deu algum dinheiro e eu trouxe um PC


e todo o mundo se abriu para mim quando eu digitei ‘cross dres-
sing’... isto simplesmente me surpreendeu. O número de pessoas
lá e o número de locais para cross dressers, e desde então eu me
juntei com um grupo chamado Auckland Cross Dressers. Eu colo-
quei uma nota lá: ‘alguém de Hamilton deseja ter um encontro?’
E eu recebi essa resposta de Dot. E Dot e eu nos tornamos grandes
amigos... costumávamos ir a todos os lugares juntos.

Apesar de querer conhecer outros cross-dressers em Hamilton,


havia poucas pessoas na pequena cidade dispostas a revelar-se. Então,
Cindy visitava Auckland regularmente, que oferecia mais oportunidades
e suporte. Juntamente com as novas amizades, Cindy ia visitar Karan-
gahape Road (comumente referida como K’ Road e conhecida pelas suas
lojas, cafés e boates), Starbucks café, e uma lanchonete de hambúrguer,
antes de voltar para Hamilton no dia seguinte.
Embora não se possa presumir que os lugares das cidade maio-
res proporcionem mais liberdade do que os das cidades menores para as
pessoas trans, é possível afirmar que, para nossos participantes, Sarah e
Cindy, este parecia ser o caso. Pequenos assentamentos rurais não foram
cômodos para elas no período de tempo de sua juventude. Auckland, no
entanto, proporciona mais oportunidades para pessoas trans. Hamilton,
como uma cidade de médio porte pelos padrões da Nova Zelândia, ofere-
ce desafios e afirmações de várias formas em diversos momentos.

346
Geografias malditas
Lynda Johnston e Robyn Longhurst

‘SAIR DO ARMÁRIO’ EM HAMILTON:


DISCRIMINAÇÃO E APOIO

Sarah explica que, quando ela ‘saiu do armário’ em Hamilton,


ela saía em público:

[...] foi como subir uma colina, como o supermercado, a leiteria,


Chartwell Square [centro comercial], o banco, em todos os lugares!
Eu costumava passar o meu tempo, no início, olhando nos olhos
das pessoas para ver se elas estavam olhando para mim e a maioria
delas não estava. Eu ainda faço isso ocasionalmente... Foi realmen-
te muito difícil, quer dizer, eu estava com medo, assustada, mas
animada... Eu não sabia como Hamilton seria, eu não tinha ideia.

Sarah foi apoiada em suas experiências no espaço público ves-


tida como mulher por Cindy, que ela conheceu antes de ‘sair do armário’.
Sarah gerencia um hotel e exerceu esta atividade por três anos e meio
como Bob e, apenas no ano passado, como Sarah. Ela explica:

Eventualmente eu tinha que sair e passar um dia inteiro em cada


hotel do nosso grupo [franquia] e dizer-lhes pessoalmente que eu
estava saindo do armário. Eu acho que foi uma coisa boa para mim,
[isto] me deu um pouco mais de confiança e também acho que me
deu mais credibilidade aos seus olhos também, em vez de apenas
escrever e dizer o que eu estava fazendo. Então eu acho que foi
muito bom.

Da mesma forma, Sarah sentiu a necessidade de falar com os


amigos e os conhecidos, nos espaços de lazer, onde ela passa seu tempo.
Ela diz:

Eu disse para um cara do meu clube, o Cubby Hole. Ele disse: “tudo
bem, você ainda é a mesma pessoa”. Eu ainda vou lá com absoluta
segurança e conforto. Eu acho que ele realmente me protege, na
verdade, eu sei que ele faz... Quando ele me vê com alguém novo,
ele verifica se eu estou bem. Eu tenho muita sorte.

347
corpos, sexualidades e espaços
Geografias trans(icionais): corpos, binarismos, lugares e espaços

Sarah gosta especialmente de ir às noites de karaokê e Ladies


Night nas quintas-feiras, que ela descreve como “maravilhosa”, porque
ela gosta de “estar entre todas essas garotas lindas e elas não sabem que
eu sou uma lésbica”. As coisas não foram sempre tão ‘maravilhosas’ em
alguns outros bares e clubes, incluindo um em uma pequena cidade aon-
de Sarah agora já não vai mais. Ela explica:

Quando eu era Bob eu costumava ir lá [Castelo de Nottingham,


Morrinsville]. É muito conservador... e eu não ia lá, mesmo acom-
panhado, porque é um ambiente estranho para qualquer mulher,
para mim, eu acho que estaria andando em um ninho de vespas.
Esse é o único lugar que eu conheço na minha vida em que eu es-
tive e eu não voltaria.

Sarah e Cindy têm desfrutado de uma socialização privada ou


trabalhado em clubes de homens que tendem a ter uma clientela mais
velha. Cindy diz: “Eu vou até o Cossy [Cosmopolitan] Club, o RSA [Retur-
ned Services Association], mas o meu principal clube é o Clube dos Ope-
rários.” Cindy relembra a primeira vez que ela foi para este clube vestida
de mulher:

Eu tinha uma amiga que era lésbica... tivemos uma festa uma noite
e ela me agarrou e disse: “você vai descer toda vestida” e eu disse:
“Ok”. Então eu desci toda vestida... Era como caminhar na Antár-
tida. (Lynda: Foi gelado?) Estava muito frio lá! [risos] − Mas, hei,
eu tenho sido um membro por dez anos e aqui estou eu, andando
como uma mulher pela primeira vez e um monte de caras, claro,
nos conhecia, oh Deus! [risos].

Finalmente, ambas, Cindy e Sarah, foram aceitas pela maioria


das pessoas em seus clubes, embora a utilização de banheiros femininos
tenha levado a algumas inquietações. Sarah explica que no “Clube dos
Operários, na RSA, mesmo no Cossie [Cosmopolitan] Club, houve mui-
ta resistência para nós usarmos o banheiro das senhoras”. As mulheres
disseram que elas deveriam “usar o banheiro para deficientes físicos”.
Sarah respondeu que ela não era “deficiente” e, portanto, opôs-se a usar
o banheiro feminino. Ela disse ao gerente:

348
Geografias malditas
Lynda Johnston e Robyn Longhurst

Eu sou uma mulher, sou legalmente uma mulher. Eu espero ter o


direito de usar o banheiro das senhoras. Nós educamos essas pes-
soas na medida em que agora somos capazes de usar confortavel-
mente os banheiros femininos, mas quando eu comecei a ir neles,
eu costumava ir lá e esperar quando não houvesse ninguém lá ou
esperava até que todo mundo fosse embora antes de eu sair nova-
mente, não mais.

As experiências de Cindy são semelhantes. Ela conta a história


de um gerente de um outro clube dizendo a ela: “Eu não sei como colocar
isso, mas tivemos uma reclamação de alguém sobre você usar o banheiro
feminino”. Cindy respondeu: “Eu não sei por que, eu sou uma mulher,
você não pode me discriminar porque eu sou legalmente uma mulher”.
Ela então mostrou ao gerente a sua certidão de nascimento, que dizia
“Karen Cindy Jones”, nascida em Takapuna, do sexo feminino. O gerente
então riu e disse: “Oh, nós vamos ter que mudar a base de dados”. No
entanto, ele acrescentou que ainda preferia que Cindy usasse o banhei-
ro dos fundos, a fim de “evitar aborrecimentos”. Sarah explicou: “Eu fui
para os fundos, agora não, eu uso o banheiro feminino principal, muito
desagradável!”
Algumas das histórias de Cindy e Sarah sobre seus clubes trans-
mitem situações difíceis, mas outras transmitem experiências mais posi-
tivas. Esta mistura de narrativas ilustra uma ordem complexa de nego-
ciações em torno de corpos, espaços e lugares. Com o tempo, Cindy parou
de usar calças nos clubes e começou a usar vestidos e saias, e ela diz que
algumas pessoas, como as “garçonetes”, preferem agora. Cindy explica:
“Como Sarah sabe muito bem, eu fiz mais amigos lá desde que sou mu-
lher do que eu já havia feito antes. Os meus antigos colegas de trabalho
vinham até a mim e me davam um tapinha nas costas e diziam ‘a você, eu
vou brindar uma cerveja a você!’. E muitos fizeram isso”.
Sarah responde que a atmosfera mudou muito nos clubes e que
elas curtem a companhia do pessoal do bar, mas também dos “ex-ferrovi-
ários... até os mais velhos” que parecem reconhecer que não é a calça ou
a saia que importa, mas “o que está dentro”. Sarah comenta:

Eu tenho ido lá por, talvez, seis ou sete meses e, como eu disse, hou-
ve grandes mudanças. Quando eu entrava lá no início, as pessoas me
olhavam de forma terrível sim e iam embora. Agora eles me dão um
sorriso, ou falam, mas pelo menos me dão um sorriso, agora mudou.

349
corpos, sexualidades e espaços
Geografias trans(icionais): corpos, binarismos, lugares e espaços

Cindy acrescenta que ainda existem algumas pessoas que não


falam com elas. Mas elas têm “vários defensores, que dizem ‘deixe-as em
paz!’”. Cindy diz: “Eles nos defendem e dizem: ‘não há nada de errado,
elas são apenas quem elas são e elas estão vivendo a vida delas. Apenas
deixe-as viver a vida delas e você viva a sua! Elas estão fazendo tudo cer-
to!’ Sim, nós temos vários defensores lá”. Ela continua:

Eu tenho um grande apoio do pessoal do bar. Bem, quando eu estava


em transição, claro, eu furei minhas orelhas e, claro, isso causou um
pouco de diversão e brincadeiras. Eles disseram: ‘por que você furou
suas orelhas?’ Eu disse: ‘Eu fiquei bêbado uma noite e alguém me de-
safiou para furá-las.’ Assim é que saí dessa, mas quando eu comecei a
usar relógios femininos, me perguntaram: ‘Por que você está usando
um relógio feminino?’ e eu disse: bem, eu sou assim e eles ‘oh, ok!’.
Em seguida, eles começam a ver os seios crescerem ‘o que diabos
está acontecendo aqui?’ e eu disse: bem, eu estou mudando.

Parece que não foram apenas Cindy e Sarah, que estavam en-
volvidas em um período de transição, mas também as pessoas que intera-
giram com os espaços e lugares de suas vidas cotidianas. No entanto, nem
todo mundo tem sido capaz de fazer essa transição. Cindy observa: ‘nós
temos algumas de nossas meninas que nem mesmo falam com a gente
enquanto estamos no Clube dos Operários’. Sarah acrescenta: ‘existem
caras que não chegam nem perto de nós’, ao que Cindy responde: ‘Um em
especial’. A conversa continua:

Sarah: Por que eles pensam que, se eles falarem conosco, as pessoas
vão pensar... que eles são parte de nós. Isso é terrível!
Cindy: Um é paranoico, especialmente um paranoico. O outro não
é tão ruim, ele vai vir e falar, como ele veio até mim. Mas este
outro, ele disse ‘você nunca fale comigo, nem sequer diga olá no
Clube dos Operários.’
Sarah: É uma discriminação primitiva, é assim que eu vejo.
Linda: Internalização, eles internalizam.
Cindy: Mas, como eu digo, a transição em Hamilton foi grande.
Lynda: Isso é incrível.
Cindy: Eu costumava andar com uma peruca. É claro que ela nunca
parecia certa, até que meu cabelo começou a crescer. Quando eu
fui para Phuket [Tailândia] depois que eu fiz a minha operação eu
fui e coloquei extensões e eu tinha um bonito cabelo longo mais

350
Geografias malditas
Lynda Johnston e Robyn Longhurst

ou menos por aqui [gestos até um pouco abaixo dos ombros], e era
definitivo, e, claro, quando eu ia ao Clube dos Operários, eu sem-
pre amarrava e eu costumava ir ao cabeleireiro aqui, claro, even-
tualmente, eles caíam e o cabeleireiro não conseguia arrumá-los.
Ela está fazendo o meu cabelo por um bom tempo agora. Ela não
conseguia entender o quanto meu cabelo cresceu. Eu tinha uma
careca aqui em cima, bem grande, e ela está desaparecendo, quase.
Ainda há um pouco ali, mas está desaparecendo. Ela não conseguia
entender como, o cabelo ficou mais grosso e eu não consigo enten-
der. Eu estou com quase setenta e três e meu cabelo está crescendo
[risos].

Comprar roupas oferece ainda um outro espaço potencial de


muita tensão e aceitação para Cindy e Sarah. Cindy explica que foi, e
continua a ser, um desafio, especialmente a compra de roupas íntimas,
embora ela não tenha sido maltratada em lojas. Sarah diz que antes dela
sair do armário ela comprava sutiãs e outras roupas íntimas na Trade Me
(um conhecido site online de compras e vendas da Nova Zelândia). Agora,
porém, Sarah vai às lojas comprar roupas íntimas, embora ela ainda não
esteja completamente confortável com isto:

Eu ainda me sinto constrangida quando vou lá e isso é porque eu


costumava passar tantos anos de minha vida indo lá e esperando
até a loja estar vazia, me escondendo atrás dos mostruários [ri-
sos]... e esperando saber o tamanho certo.

Clínicas de saúde tendem a ser um espaço aceitável para Sarah.


Quando ela sentia que precisava de alguma ajuda, ela ligava para a clíni-
ca de saúde sexual do hospital local e foi colocada em contato com uma
conselheira que Sarah descreve como “uma senhora brilhante”. Sarah
visitou-a por aproximadamente um ano e a conselheira colocou Sarah em
contato com um médico, que receitou a Terapia de Reposição Hormonal
(TRH). Sarah fez a terapia por quase seis meses antes de sair do armário.
Além disso, a clínica abriu portas importantes para Sarah, como conhe-
cer outras pessoas e compartilhar experiências. Ela diz:

Eu tenho sorte, eu conheci [nome do amigo] e eu conheci a Cindy,


e pelo menos eu conheci algumas outras pessoas que eram como
eu e que realmente me ajudaram muito. Isso me deu muito mais

351
corpos, sexualidades e espaços
Geografias trans(icionais): corpos, binarismos, lugares e espaços

confiança. Eu não sei como eu teria lidado, embora logo que eu


comecei a dizer aos meus amigos, eu me senti confiante, porque
eles me apoiaram.

CONCLUSÃO: A AGRICULTURA
FAMILIAR E RIFF RAFF

Susan Stryker (2006) aponta que ‘trans’ não diz respeito apenas
a questões de gênero. É também sobre sexo e sexualidade. É sobre como
corpos generificados, sexuados e sexuais problematizam e transgridem os
binarismos de espaços e lugares. Neste capítulo, contamos com as histórias
de Cindy e Sarah para transmitir algo da complexidade das vidas e expe-
riências trans. Nós não reivindicamos representar as muitas vozes de uma
gama diversificada de trans, mas, ao invés disso, tentamos nos aprofundar
nas experiências vividas de apenas duas pessoas que se dispuseram a con-
tar suas histórias sobre a transformação de um homem em uma mulher,
com clareza, convicção, inteligência e bom humor. Cindy e Sarah, apesar
de terem histórias separadas, também têm em comum o fato de que elas
experimentaram tanto a discriminação como o fortalecimento.
Kath Browne e Jason Lim (2010), com foco em Brighton, a “ca-
pital gay do Reino Unido”, argumentam que os lugares e as formas como
os imaginamos fazem a diferença na vida das trans. Curiosamente, nesta
pesquisa, Hamilton, como uma pequena cidade na Nova Zelândia, parece
suficientemente grande para que nem Cindy e nem Sarah se sentissem
apontadas pelas pessoas por conta de suas diferenças. Ao mesmo tempo,
pequena o suficiente para que elas ainda se sintam à vontade em apenas
algumas comunidades, como a organização Pride Hamilton e suas comu-
nidades em vários clubes.
Hamilton é um espaço que não determina os vários encontros
de Cindy e Sarah, mas certamente os influencia. É interessante observar
que Hamilton não tem apenas a estátua de uma família de agricultores
representando “valores familiares” coloniais (como mencionado an-
teriormente). Hamilton tem também a estátua de Riff Raff, um perso-
nagem que representa um mordomo travesti no filme e musical Rocky
Horror Picture Show7, escrito por Richard O’Brien, que cresceu em Hamilton

7
Ver: www.riffraffstatue.org

352
Geografias malditas
Lynda Johnston e Robyn Longhurst

(ver: JOHNSTON e LONGHURST, 2010, p. 2-3). Esta estátua, que provavel-


mente funciona para queerizar a paisagem de Hamilton, tem sido o local
de muitos eventos, como a festa de aniversário de sessenta anos de Ri-
chard O’Brien, uma apresentação artística da semana do orgulho gay, em
que a estátua foi embrulhada com cachecóis de lã nas cores do arco-íris.
A estátua fez também parte das atividades do Dia Internacional da Come-
moração Transexual8, no qual Cindy e Sarah participaram e descreveram
como “brilhante” e “gratificante devido ao afluxo de pessoas”. A estátua
se tornou parte da identidade da cidade.
Como Cindy e Sarah, a cidade de Hamilton em si também pas-
sou por uma espécie de geografia trans(icional). “A decisão de Hamil-
ton em apoiar a estátua de Riff Raff foi ousada e questionada, porém o
apoio prevaleceu, e a condição foi estabelecida em 2004” (JOHNSTON e
LONGHURST, 2010, p. 3). Espaços e corpos estão intimamente ligados. As
experiências de Sarah e Cindy não podem ser extraídas a partir dos lu-
gares diários que habitam. Sexo, gênero e sexualidade, bem como outros
marcadores de subjetividade, estão constantemente sendo mapeados e
remapeados por uma variedade de paisagens sociais e culturais, e já é
hora de este mapeamento ir além de divisões binárias. Como Petra Doan
(2010, p 64) argumenta de forma tão eloquente: “a tirania da dicotomia de
gênero é um artefato da estruturação patriarcal do espaço generificado
e é hora de colocá-la de lado, não apenas para as pessoas trans, mas para
todos nós”.

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8
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355
corpos, sexualidades e espaços
PRÁCTICAS SUBVERSIVAS
EN ESPACIOS INTERDICTOS,
EN LAS EXPERIENCIAS MÚLTIPLES
Y COTIDIANAS DE PERSONAS
TRANSEXUALES DE LA
CIUDAD DE SANTIAGO DE CHILE
Martin Ignacio Torres Rodríguez
Raul Borges Guimarães

INTRODUCCIÓN

Este capítulo presenta una discusión entre el pro-


ceso que viven las personas transexuales en relación con el espacio ur-
bano de Santiago. Entendiendo así como estas relaciones entre el cuerpo
transexual y el espacio urbano se manifiestan mediante la existencia de
espacios interdictos, comprendidos por el discurso hegemónico – opre-
sor, y a su vez como estas fugas de cuerpos no binarios ni heteronormati-
vos genera prácticas subversivas/sumisión dentro del sistema. Colocando
en el tapete académico de la geografía del género, como las experiencias
entre los distintos individuos de una misma comunidad no son lineales,
sino que múltiples y diversas, expresando las plurales identidades trans.
Siendo así el objetivo central de este capítulo el comprender
la experiencia espacial de las personas en proceso transexualizador en
la ciudad de Santiago de Chile. Para ello se evaluaran las espacialidades
interdictas (SILVA, 2009a) dentro de la ciudad para las personas transe-
xuales, y a su vez los mecanismos de subversión al sistema hegemónico.
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

Para realizar este capítulo fue necesario usar las entrevistas re-
alizadas en la investigación de 36 personas transexuales viviendo en la
ciudad de Santiago de Chile. Para esto la metodología abarca desde una
profunda lectura de la geografía del género, como también en lo que es la
visión del espacio, el cual se crea mediante simbolismos de la cultura que
prevalece en esa sociedad.
Generando así una discusión en autores de la Nueva Geografía
Cultural como Duncan (1990), Massey (2005), y para colocar al género
se utiliza Preciado (2002) y Butler (2005, 2006), discutiendo siempre lo
prohibido con Foucault (1998, 2000), mezclando a este último autor en
cada una de las aristas tanto del género como del espacio. Esta meto-
dología tiene como parte innovadora el hecho de ser una producción
de primera fuente, otorgando así un material inédito, el cual no es solo
comparativo sino que más bien produce un conocimiento nuevo, enten-
diendo que las entrevistas son un material obtenido gracias a la posicio-
nalidad privilegiada del autor en relación a la comunidad entrevistada,
dando así un carácter situacional y de localidad al conocimiento (ROSE,
1997), marcando además que la temática tocada es sin duda subversiva
en si para una academia que excluye materias y cuerpos poco estudiados,
generando de esta manera una producción de conocimiento que viene a
llenar enormes lagunas académicas en el área de la geografía, otorgando
un aporte a las geografías Latino Americanas, tan opacadas en las mate-
rias del género por las geografías Anglosajonas.
De esta forma este capítulo muestra una realidad Latino Ameri-
cana, tanto en la academia, como en los temas geográficos sociales, expo-
niendo una preocupación contingente la cual está en boga dado su carác-
ter de problema social. Se entiende que la transexualidad es una cuestión
social que afecta diversas ramas de la geografía humana; es lamentable
como ciencia social no dar la debida importancia a una situación que cada
vez cobra más vidas, arriesgando la calidad de vida (y la vida misma) de
las personas transexuales que habitan las ciudades de nuestra cultura oc-
cidental.
Para dar la debida importancia a este tema, es necesario hacer
un análisis escalar. Esto quiere decir lo siguiente. Las escalas son dimen-
siones de fenómenos que se manifiestan como exteriorizaciones de con-
flictos inherentes a las relaciones sociales que conforman lo instituido,
sea este el cuerpo, la familia inmediata por el, al mismo tiempo en que
se exponen contradicciones de lo global, tales como que son desnudados

358
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

por lo global: la ciudad, la religión, el país, el continente, en general el


mundo; a la ves lo global quiere tapar esta situación, invisibilizandola.
Esas escalas son, por lo tanto, escalas de conflictos políticos. Las relacio-
nes entre ellas también son conflictivas, pues los discursos hegemónicos
conformadores de escalas ocultan lagunas, vacíos que se explican en las
negaciones inter-escalares. Si un hecho impresiona al mundo capitalis-
ta de tradición judeo-cristiana, también lo hace con los actores políticos
responsables de este tipo de tradición.
El punto neurálgico de esta cuestión esta en el método, en el
recorte del mundo sensible, en el abordaje de las cosas que la razón des-
conoce, pero sobre las cuales pretende revelar la verdad posible. Si el mé-
todo no consigue incorporar en la historia del objeto estudiado, al propio
sujeto que conoce, entonces, el método será incapaz de ser un vector de
la ciencia. Esto quiere decir que, si la geografía no comparte campos con,
la historia, la economía, la sociología, la antropología, etc. el dialogo de
entre los estudios del ser humano siempre será limitado, y es más este
dialogo será carente de vivencias realmente humanas, generando que sea
una producción científica insípida e infructífera.
Reflexionar sobre escala, principalmente en el campo de la geografía,
exige la mirada critica sobre nuestras propias creencias sustentadas en fe-
tiches que nos acompañan en todo el proceso de socialización que pasamos
desde la infancia. Uno de ellos es que el concepto de escala y su propia utili-
zación solo se aplican a la representación geográfica. Es una medida del es-
pacio, artificio para mantener correspondencia de las cosas expuestas con
las cosas representadas, una herramienta para manifestar objetivamente
el mundo sensible en el espacio mediante una carta. La percepción de esa
escala es visual, escala para los ojos.
Además de esta, se admiten, a lo máximo, escalas musicales. Son
escalas para oídos, escalas sonoras y, por lo tanto, auditivas: escalas del
Do mayor, La menor, Si bemol, etc. Hay, con todo esto, otras escalas. Pen-
samos, por ejemplo, en la escala de la casa en relación al cuerpo, y en la
escala del hogar, o sea, de la interlocución, para no decir correlación de
fuerzas políticas en las relaciones marido-mujer, hijos-padres. Hay, de
otro lado, y en esa misma línea, escalas de amplitudes variadas hasta la
escala planetaria.
La escala geográfica de la que nos ocupamos en este momento
es la escala política, la escala de relaciones sociales en el espacio. Hay un
abanico de conceptos inventados e por inventar para situar ese campo de

359
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

abstracción y objetivación del inmediato de relaciones sociales: relaciones


de poder, relaciones entre desiguales, relaciones conflictivas, relaciones
contradictorias, relaciones de espacio en disputa, territorialización
de relaciones sociales, expansión socio-territorial, especialización de
conflictos sociales, etc. Desde que consideramos al ser humano como
ser ontológicamente creativo, nada debe sorprender ante las infinitas
posibilidades de volver objetivo y tangible el mundo vivido por la
meditación de los conceptos con potencial explicativo según la vertiente
teórica y el campo de ejercicio de la razón, en este caso la Geografía.
El tema trans será tratado justamente así por durante el artícu-
lo, ya que se entenderá que lo trans puede ser transexual, transgénero,
travesti − es un tema que presenta un lamentable desconocimiento. La
transexualidad pasa a ser una de las formas más marginalizadas, estig-
matizadas e incomprendidas de la gama de diversidades sexuales LGBT-
TI, incluso colocándola como una de las más discriminadas dentro de las
mismas comunidades LBGTTI. La presencia de esa discriminación endó-
gena por parte de comunidades LGBTTI también será tocada en este artí-
culo al presentar espacialidades interdictas, algunas de ellas catalogadas
como espacios de libertad, sin embargo prohibitivas para estos cuerpos
no catalogados bajo los cánones binarios de la sociedad hegemónica oc-
cidental.
En este sentido se analizará dentro de este capítulo como la
geografía del género toca todas las formas de geografía humana y social,
entendiendo como cada situación humana está dada también según el
género, siendo este determinante dentro de nuestra sociedad occidental
y capitalista, dándonos a entender las diferencias que coloca la ciudad en
los distintos cuerpos, haciendo de estos a veces cuerpos importantes y a
veces cuerpo no abyectos (BUTLER, 2005).

LAS ARISTAS DE LA GEOGRAFÍA


DEL GÉNERO

La geografía del género tiene una interface en donde se puede


ver la mezcla de las tres grandes aristas de la geografía humana, tanto
la política, la cultural y la económica. La geografía política se relaciona
con todos aquellos procesos que se dan entre el Estado y los ciudadanos,

360
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

haciendo de esta relación un importante entendimiento de las manifes-


taciones y contextos políticos que abarcan un país determinado. En este
sentido se puede entender como las políticas de Estado rigen estricta-
mente lo que es el poder ejercido sobre los cuerpos y por ende el género
y el sexo, y para la temática a tocar, que es la transexualidad, el Estado y
su poder ejercido sobre los ciudadanos es fundamental, ya que el Estado
chileno coloca al género como una situación completamente binaria, por
ende, aquellos que salen de esa norma son penalizados moralmente. Si
bien esta penalización puede ser tangible, por lo general es una penaliza-
ción simbólica, la cual tiene que ver, por ejemplo, con la desmoralización
de las identidades trans, dejando estas como si fueran espectáculos de
show. También acontece que el Estado es uno de los principales respon-
sables del nombre de los ciudadanos y por lo tanto también del cambio
de este nombre impartido en la acta de nacimiento. Las personas tran-
sexuales, las cuales en su mayoría deciden cambiar el nombre, y algunos
también el nombre y el sexo colocando en la partida de nacimiento, tiene
que pasan un proceso en Chile en el cual deben de hacer una deman-
da al Estado, el cual si falla a favor del demandante este podría cambiar
su cedula de identidad, pero sin embargo este proceso es engorroso, se
debe cumplir con un sinnúmero de requisitos, el tema gratis es aún más
demoroso, llegando a ser desde dos años a cinco años en proceso, y por
supuesto siempre existe la posibilidad de que el fallo sea desfavorable
para el demandante.
En cuanto a lo legal, de los 36 transexuales entrevistados solo 8
han realizado su cambio de nombre, y ya sea que los otros 28 no lo hayan
realizado porque no han podido o por el libre albedrio de no sentir la ne-
cesidad de cambiarlo, esto no significa un motivo para ser discriminados
fuertemente en la mayoría de las entidades al momento de presentar su
identidad, como tampoco es justificable la mofa que se hace en algunos
recintos al recibir una identidad con un nombre no acorde según el dis-
curso binario a la apariencia del portador o la portadora. Es importante
decir que según las entrevistas la mayoría de los 28 transexuales entre-
vistados que no ha realizado su cambio de nombre se debe principalmen-
te a la falta de dinero. Y en menor proporción el motivo ha sido la falta
de información. En este sentido las políticas de Estado, las leyes que se
promulgan en un país, son determinantes para la facilitación o para la
dificultad de generar este tipo de trámites. Es así como se entiende la
intervención fundamental de la política en los temas de la transexuali-

361
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

dad, dando a conocer como el Estado rige y controla los cuerpos que lo
habitan.
La geografía del género toca a la geografía cultural. Dado que
el género es meramente una expresión de las diferentes culturas, ser
hombre o ser mujer en culturas occidentales es muy distintito de serlo
en culturas orientales, es mas ser transexual en una cultura occidental
a una oriental, manifiestan inmensas diferencias. De esta misma manera
se puede colocar que ser transexual en una sociedad occidental como la
chilena, es sin duda diferente a ser transexual en una cultura occidental
de por ejemplo Inglaterra, la cual manifiesta una mayor apertura a las
comunidades LGBTTI, así también es diferente serlo en una cultura oc-
cidental brasileña, en donde según estadísticas se encuentran la mayor
cantidad de muertes por crímenes de odio no solo a la comunidad transe-
xual, sino que a toda la comunidad LGBTTI.
La cultura determina la visión de los géneros y como estos to-
maran y expresaran las performances (BUTLER, 2005) que decidan hacer
día a día. La cultura occidental es hegemónica en sus bases, ha sido re-
productora de un discurso heteronormativo y con cánones de cuerpos
binarios, dejando fuera a aquellos cuerpos que pasan a ser no acepta-
dos, abyectos socialmente (BUTLER, 2005), tales como lo son los cuerpos
trans, entendiendo como trans a todo aquello que envuelve a transexu-
ales, travestis, y transgéneros. En este sentido la cultura occidental se
manifiesta completamente patriarcal y machista.
Siguiendo esta línea se podría decir que la geografía del géne-
ro toca de manera tal vez impensada a la geografía económica, ya que
al ser esta sociedad basada en la hegemonía patriarcal, también es evo-
lucionista, siendo así como los binarismos y la heteronormatividad to-
man sentido económico, en la búsqueda constante de la reproducción
de mano de obra para mantener un sistema capitalista imperante en la
sociedad occidental. Es así como el discurso hegemónico de dispositivos
de la heterosexualidad (FOUCAULT, 1998) cobra fuerza en las lecturas de
Foucault (1998, 2000, 2003) al colocar que las sociedades en su afán por
reproducirse han generado un discurso repetitivo de en donde se intenta
naturalizar a las sexualidades heterosexuales y a los cuerpos binarios,
dejando como no naturales a aquellas sexualidades que se salen de una
norma heterosexual, y dejando como cuerpos no aceptados y sin duda
discriminados a aquellos que se fugan de la norma binaria de hombres o
mujeres. En este sentido el discurso hegemónico es imperante en las so-

362
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

ciedades en las cuales es fundamental reproducir el capitalismo, y la idea


de la familia con un padre proveedor, una mujer sumisa y dueña de casa,
y en donde por lo general hay dos hijos, la fiel imagen del capitalismo y
de la heterosexualidad social.
De esta forma se logra entender que la geografía del género más
allá de traspasar barreras interdisciplinarias, ella se encuentra dentro de
las otras geografías humanas, siendo indiscutible la indispensabilidad de
hablar de la geografía del género.

RELACIÓN ENTRE EL ESPACIO URBANO Y


PERSONAS EN PROCESO TRANSEXUALIZADOR

Este capítulo coloca en evidencia que la ciudad puede ser ex-


perimentada de múltiples maneras, tal cual como es argumentado por
la corriente de la Nueva Geografía Cultural, al analizar la ciudad y los
espacios como un conjunto de redes culturales y vivencias espaciales,
las cuales están cargadas del paisaje visible e invisible, desarrollando así
simbolismos que categorizan los diferentes espacios (DUNCAN, 1990).
Así el concepto de Duncan (1990), de la ciudad como un texto,
el cual es escrito en los cuerpos que viven estos espacios. Estos simbolis-
mos, paisaje entendido bajo un prisma tanto en conjunto con el ambien-
te como con sus vivencias cotidianas y puntuales, llenan así también los
espacios corporales, dando emocionalidad a los espacios, y la ciudad se
transforma así en un proceso conjunto de sociedad y hábitat, generando
espacialidades entendidas, prohibidas y aceptadas. Un conjunto que dará
un marco para entender como los espacios urbanos y la ciudad pueden
transformarse en un cotidiano hostil para las vivencias de cuerpos abyec-
tos para la sociedad.
De este análisis sobre la pluralidad de las vivencias que coloca
Duncan (1990), sobre el contexto cotidiano las expresiones de la ciudad, y
su forma de ser entendida por las personas que lo habitan, y las influen-
cias del discurso hegemónico y heteronormativo que expresa Foucault
(1998) es que Silva (2009a) genera un complejo análisis de cómo aquellos
cuerpos abyectos (BUTLER, 2005) y catalogados bajo prismas no binarios
ni heteronormativos, son presa de la interdicción, vale decir, las espa-
cialidades interdictas serán el conjunto de los simbolismos intangibles

363
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

entendidos en los inconscientes colectivos sociales, para dar cuenta de


aquellos espacios prohibidos y/o hostiles para personas que se fugan de
la norma de géneros binarios y heteronormativos, como lo es la comuni-
dad estudiada. Trans.
Estas vivencias cotidianas, en conjunto con la integración de los
espacios urbanos y la revelación de aquellos espacios como interdictos
en un cotidiano transexual, son el enfoque de este capítulo, el cual des-
menuzará cómo las personas transexuales sienten en su cuerpo el discur-
so hegemónico de la heteronormatividad en la prohibición de aquellos
espacios vedados para cuerpos no catalogados en la norma binaria.
Los discursos del grupo de personas que participó en esta inves-
tigación muestran una ciudad que poco los acoge, dando en sus declara-
ciones experiencias urbanas cargadas de dolor y exclusión. Vivir una vida
corporalmente al margen, según la teoría de Butler (2005), en Cuerpos que
importan, estos sujetos abyectos − abyectos para la sociedad en lo corpo-
ral y por ende abyectos en los espacios − cargan experiencias singulares
que deben ser rescatadas por la ciencia, a fin de criticar la construcción
de los espacios interdictos, y que se dejan ver de forma prohibitiva, de
forma entendida sin necesidad de decir nada, ya que son los simbolismos
de la ciudad (DUNCAN, 1990) los que dejan ver aquellos espacios inter-
dictos para ciertos cuerpos, y abiertos para aquellos cuerpos aceptados;
simbolismos y formas de cultura aparentemente tan complicadas y di-
fíciles de explicar en un contexto académico, sin embargo tan notorias,
recurrentes y cotidianas para el ojo ciudadano común, indispensable así,
rescatar las declaraciones de interdicción cotidiana vivenciadas por los
participantes de la investigación. La interdicción o prohibición es aquí
comprendida a través de la teoría del poder de Foucault (1998), que crea
prácticas discursivas que impiden que determinados cuerpos sean acep-
tados en diversos lugares del espacio urbano; acompañado de las viven-
cias cotidianas de los y las entrevistadas.
Para Duncan (1990) los simbolismos − en este caso la discrimi-
nación, la cual está escrita de forma simbólica en los espacios urbanos,
en la sociedad y la educación − marcan la manera en que la comunidad
integra el concepto de territorio con su espacio urbano habitado, tran-
sitado y vivido. Estos actos generan una forma de relacionarse con el
espacio y una forma de entender cuáles son los espacios interdictos para
la sociedad. Estos espacios interdictos, según Silva (2009a) en análisis de
los discursos de Foucault (1998) y Duncan (1990), se generan por aque-

364
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

llos espacios hostiles (leídos y entendidos en un inconsciente colectivo)


para ciertos cuerpos. Así es como aquellos cuerpos abyectos (BUTLER,
2005) para la sociedad heteronormativa saben explícitamente cuáles son
aquellos lugares en donde se vivirán situaciones hostiles; en general es-
tos cuerpos marcados, ya sea por experiencias particulares, cotidianas, o
por simple saber colectivo inconsciente, suelen generar barreras, meca-
nismos de defensa o simple alejamiento, alejamiento que es simple en su
práctica pero no en su concepto, ya que la lejanía de lugares específica-
mente hostiles e interdictos para ciertas comunidades refleja un no de-
recho a la ciudad, lo cual está completamente en contra de los derechos
y deberes de los ciudadanos los cuales pueden sin duda ejercer su poder
civil como cualquier otro transeúnte.
Los actuares y pasividades de la población generan una creación
en conjunto de lo que es la espacialidad urbana. En este sentido se afirma
lo pensado por Duncan (1990) y por lo analizado según Silva (2008), en
cuanto a cómo la sociedad y sus creaciones también forman la ciudad
y esta repercute en los cuerpos, o sea una simbiosis entre el espacio y
la sociedad, situación acogida por las nuevas tendencias de la geografía
cultural, la cual sin duda incluye lo humano como parte fundamental del
paisaje urbano. Silva lo coloca de esta forma:

Os seres humanos são tanto agentes de mudança social e, por-


tanto, espacial, quanto seus produtos. Ao considerar o aspecto da
intertextualidade, o autor1 incorpora a construção de diferentes
significados de um mesmo objeto, assim como apresenta seus con-
trastes e assimilações, e, além disso, admite que há uma conjunção
de forças que age sobre a produção simbólica do espaço, conside-
rada enquanto forma de conhecimento que orienta as ações coti-
dianas. (SILVA, 2009a, p. 138).

Así, afirmando cómo las prácticas cotidianas generan textos en


el paisaje y cómo estos se imprimen en los cuerpos, es importante to-
mar en cuenta los simbolismos de la heteronorma, cómo el paisaje y la
sociedad generan textos, discursos reproducidos en la hegemonía; estos
discursos hegemónicos se implantan en la sociedad que los reproduce y

1
Al hablar del “autor” se refiere a James Duncan, en cuanto a su libro: La ciudad como texto.
En original: DUNCAN James. The city as text: the politics of landscape interpretation in the
Kandyan kingdom. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

365
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

así se genera la naturalización del discurso, una naturalización basada en


binarismos. Esto genera espacios interdictos, el no derecho a la ciudad,
el encogimiento de los derechos civiles y de su libre ejercicio en la urbe.
Los espacios de visibilidad y sociabilización son pocos para la
población transexual dado que la sociedad tiende a ser heteronormativa,
como explica Foucault (1998); por lo tanto las libertades del tránsito (tan-
to el tránsito entre la ciudad como el tránsito de géneros) son escasas o
nulas. Los espacios son el reflejo de la sociedad y al mismo tiempo son el
lugar de reproducción y creación del discurso hegemónico de la sociedad
que se caracteriza como heteronormativa, como binaria, y con espacios
interdictos, basados en la prohibición ya sea esta simbólica, invisible y
en otras oportunidades explicitas para los cuerpos que no cumplen los
estándares sociales normados por occidente, como también para los
cuerpos que no cumplen el binarismo estipulado por hilos de poderes pa-
triarcales, prohibiendo así también las expresiones de deseo (orientación
sexual) de los cuerpos que transitan supuestamente libres por las calles.
Estos espacios urbanos y esta población no está salva de ser un
blanco de situaciones discriminatorias denominadas transfobia2. Y otros
casos similares de homofobia3. Tanto en los espacios urbanos abiertos
como cerrados, la población transexual se ve afectada diversas veces por
su condición corporal a ser discriminados, acusados, violentados o sim-
plemente no atendidos.
Los límites resguardados heteronormativos y patriarcalistas
del sexo y su anatomía son rotos en los casos propuestos, y la geografía se
ha inserido dentro de esta discusión desde hace décadas, como veremos
posteriormente con el sin número de bibliografías referentes al tema de
la geografía, cuerpo, género y sexualidades.

Nacer así es algo tan difícil, es casi como aceptar que se padece de
algo grave por lo que se está condenado a depender de químicos,
como también es así con variada gama de enfermedades. Lamen-
tablemente esta sociedad “BABILONIA” no está hecha para que la

2
Es la fobia, o vale decir el miedo inexplicable, a las personas transexuales, manifestando
este miedo y/o rechazo, alejándose, no aceptando a las personas transexuales, como en
los casos más extremos manifestando agresivamente el rechazo, lo que puede ir desde
verbalmente hasta la agresión física, y en algunos casos el asesinato.
3
La palabra se aplica con la misma definición anterior, pero con respecto a las personas
homosexuales.

366
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

gente sea feliz. Tan solo crea seres dispuestos a desligarse de sus
vidas y sucumbir a una muerte cuyo destino es caer en el pozo sin
fondo de un charco donde los que son más duros despiadados y
fuertes merecen flotar mientras que el resto se ahoga en la mierda
que comemos, vemos y disfrutamos a diario. (Sujeto n. 30)4

La vivencia material de la vida cotidiana se da por diferentes


prácticas y significados; los simbolismos que envuelven los espacios ur-
banos, según la Nueva Geografía Cultural, y la teoría de la ciudad como un
texto en Duncan (1990), afirman desde la década de 1970 la multiplicidad
de formas de entender y vivir los mismos espacios, las identidades y re-
des que desarrollan y reproducen un concepto vivenciado en la ciudad, y
como estas vivencias otorgan marcas en los cuerpos que transitan estos
espacios. En este sentido Duncan (1990) va más allá de las materialida-
des, su abordaje se rige por un concepto de paisaje avanzado en donde
lo intangible y los significados de los patrones simbólicos entendidos en
el inconsciente e imaginario colectivo toman peso nuevamente y emer-
gen como una estructura significativa para los cuerpos que habitan estos
espacios. El importante aporte de Duncan se hace referente en diversos
textos del área de la geografía del género. Silva (2009a) hace un análisis
de cómo Duncan (1990) entiende el paisaje como un texto, cuando expo-
ne que:

Ele considera a paisagem urbana como um sistema de significa-


dos que, tal qual a linguagem expressa em texto, é depositária e
transmite informações. A “paisagem/texto” é um discurso, uma
estrutura social de inteligibilidade dentro da qual todas as práticas
são comunicadas, negociadas e desafiadas. Para o autor, a pretensa
naturalidade da ordem do mundo e, por conseguinte, da dimensão
espacial da sociedade, é resultante de vários embates e lutas entre
os grupos sociais. (SILVA, 2009a)5

4
Así como este, todos los demás fragmentos de entrevista contenidos en el presente
texto figuran en: TORRES, Martin R. Vivencias de sujetos en procesos transexualizadores
y sus relaciones con el espacio urbano de Santiago de Chile. 2012. Dissertação (Mestrado em
Produção de Espaço Urbano) − UNESP de Presidente Prudente, 2012.
5
SILVA, Joseli Maria. A cidade dos corpos transgressores da heteronormatividade. In:
______. (Org.). Geografias subversivas: discursos sobre espaço, gênero e sexualidades. Ponta
Grossa: Todapalavra Editora, 2009.

367
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

Silva expresa de esta manera como la ciudad puede ser creada y


recreada en las experiencias cotidianas de sus habitantes, así como tam-
bién se entiende que aquella ciudad genera y reproduce estas experien-
cias cotidianas grabando sus simbolismos en los cuerpos que transitan
libres/oprimidos por las calles ciudadanas.
Estas experiencias cotidianas y los simbolismos que cada perso-
na percibe son sin duda múltiples, haciendo de estas vivencias cotidianas
un material plural en cuanto a las identidades transexuales investigadas.

INTERDICCIÓN, INADECUACIÓN Y SUBVERSIÓN

La ciudad, al expresarse como un texto (DUNCAN, 1990), genera


un discurso que puede ser leído por todos sus habitantes. En este sentido
los discursos pueden ser de aprobación o de negación para las diferentes
situaciones que van a manifestarse dentro de la ciudad. Es así, como co-
loca Silva (2009a), se generan para algunos cuerpos espacios interdictos,
los cuales basan su interdicción y prohibición en la lectura intangible e
invisible, pero entendida por todos en un inconsciente colectivo, de los
discursos hegemónicos que rigen el orden social (FOUCAULT, 1998).
De esta forma los espacios interdictos son entendidos y acata-
dos por todos (quien no obedece es penalizado de forma moral), generan-
do así una vigila de parte de todos los ciudadanos, para enfrascar aquellos
que se fugan (BUTLER, 2005) y causan fisuras (PRECIADO, 2002) en el gé-
nero binario.
En este sentido, los espacios interdictos para las personas trans
son aquellos lugares a los cuales no pueden acceder libremente, o sin
recibir algún tipo de discriminación, sujetos silenciados, ocultos, dismi-
nuidos en sus facultades ciudadanas. Las espacialidades, si bien viven-
ciadas de formas plurales para cada individuo, forman una espacialidad
cotidiana que se impregna y manifiesta en los inconscientes colectivos,
el cual según el discurso imperante, han sido para las culturas occidenta-
les entendidos como espacios heteronormativos, generando así espacios
interdictos para aquellos cuerpos no binarios y no heteronormativos,
dejando a cuerpos trans expuestos a continuas interdicciones del medio
social (SILVA, 2009a).
Esta lectura de los espacios interdictos, si bien compleja, se basa
en el entendimiento de la ciudad como un texto que si bien genera una

368
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

lectura individual, esta puede ser entendida con colectivos y generalida-


des que se naturalizan en discursos respetivos. Es así como de los análisis
de Silva (2009a) respecto a la visión de paisaje y ciudad de Duncan (1990),
en sus estudios sobre las espacialidades percibidas por las experiencias
travestis, genera la siguiente colocación respecto de los espacios inter-
dictos:

Nos jogos da intertextualidade que produzem a cidade há o texto/


cidade da experiência espacial que chamamos de “produção do es-
paço interdito”. O texto urbano de que fala Duncan estrutura-se
tanto por meio do visível, expresso na paisagem, como median-
te seu contraditório complementar, o invisível. (SILVA, 2009a, p.
143).

Los espacios interdictos dentro de Santiago y en general en


toda ciudad tienen una gran relación con la invisibilidad de las personas,
el querer hacer invisibles a una masa de cuerpos catalogados como no
aceptados, o abyectos (BUTLER, 2005); en este caso la interdicción está
dada por una situación, característica y/o performances de género, por
una manifestación de la sexualidad determinada y no catalogada como
heterosexual, en este sentido para esta investigación se toma en cuenta
la interdicción provocada por la invisibilidad de los cuerpos transexuales
que habitan la ciudad de Santiago.
Según diversas declaraciones de los entrevistados, se puede ver
como el centro de la ciudad investigada se presenta como un escondite
para las diversas dificultades de vivir como un cuerpo abyecto y margi-
nalizado; se puede ver que la cantidad de gente que vive en el centro hace
las veces de barrera para la visión de aquello que queremos ocultar, y a su
vez el constante movimiento de un ciudad cosmopolita genera que todo
pueda ser escondido y menos estigmatizado en un Gran Santiago. Coin-
cidentemente también muchos bares y discotecas LGBTTI están localiza-
dos en el centro de Santiago. Lo cual en algunos casos de interdicción no
significó menos discriminación para la población transexual. Se presenta
el gráfico de los porcentajes por comuna de la población transexual en la
ciudad de Santiago, dando una visión más clara de la gran cantidad que
habitan el centro de la urbe.

369
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

Gráfico 1 – Pregunta n. 2: Comuna de Santiago donde vive.

Fuente: los 36 entrevistados. Elaboración: propia. Autor: M. Torres Rodríguez, 2012.

De los transexuales entrevistados la mayor parte vive en el cen-


tro de Santiago, siendo este grupo un 49% del universo encuestado, coin-
cidentemente con la concentración de lugares de esparcimiento LGBTTI.
Tanto aquellos lugares LGBTTI como también los transexuales
que viven en el centro de Santiago tienden a tener un anonimato. Esto
se debe ya sea a la cantidad de habitantes del centro de Santiago, como
también a la clara individualidad que otorga un centro urbano tan grande
y en constante movimiento, lo que da paso a un saberse no identificado y
a poder sumergirse en lo invisible del centro capitalino.
De alguna forma las personas que han escogido vivir en el cen-
tro de Santiago son, por lo general, personas solas y que viven anónimas
en su transexualidad. Esta invisibilidad no sólo tiene un doble filo, ya que
por una parte ésta puede ser buena, pero finalmente deja el tema del gé-
nero, una vez más, sumergido en los espacios oscuros de la sociedad. Esta
invisibilidad también genera una concentración de la muestra, y a su vez
también soledad.
También, se puede ver que la discriminación está en otras en-
tidades, espacios, territorios, y realmente en todo lugar. Por ejemplo,
cuando de la entrevista se desglosa que los entrevistados, en su gran
mayoría, han sentido una gran discriminación en las entidades legales,

370
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

como también la mayor parte ha sufrido discriminación en la escuela,


llevando esta última a que muchas de las personas transexuales, en espe-
cial las transexuales femeninas, no terminen sus estudios o simplemente
nunca los comiencen, lo cual ha generado una creciente pobreza entre
las mujeres transexuales, como también el menoscabo moral. También
está la tendencia a sentir discriminación e incluso la no atención en las
instituciones médicas, dejando así muchas veces a los transexuales sin
sus necesidades médicas cubiertas. Es por ello que, en palabras de ellos
mismos, muchas prefieren simplemente no ir al médico y auto medicar-
se, como también seguir su proceso transexualizador por su propia cuen-
ta o con la ayuda de amigos.
En este sentido de los entrevistados se pudieron identificar algu-
nos espacios interdictos, los cuales fueron mencionados repetidas veces
en distintas instancias de la entrevista, tales como: la casa, en donde se
relata la sumisión y poder ejercido por la institución familiar; en ese sen-
tido también el dolor de no poder tener acceso a un hogar producto de
ser transexual. El colegio, lugar nombrado infinitas veces durante las en-
trevistas por ser un centro de reproducción en micro escala de la ciudad,
generando dentro del colegio espacios de poder y sumisión, vivencias de
frustración, dolor, abuso, y represión sexual-corporal-género. El colegio
es una reproducción de los textos hegemónicos entendidos en la ciudad
heteronormativa (SILVA, 2009a), generando así una estructura que si bien
pretende incluir a todos, termina por generar discriminación a aquellos
que generan una fisura en la hegemonía naturalizada por un discurso he-
teronormativo occidental. Otros estudios sobre espacios interdictos basa-
dos en las experiencias travestis genera que este espacio sea uno de los de
mayor confrontación. Así lo expresa Silva cuando coloca que:

A escola aparece como uma instituição que silencia a dor sofrida


e legitima as normas e valores hegemônicos da sociedade hetero-
normativa, bem como a agressão aos seres que não se enquadram
na ordem de gênero instituída. Os gestos e ações cotidianas ex-
pressam a mensagem de que o espaço educacional não os acolhe,
e isso atinge a sua autoestima e acaba por produzir uma autoima-
gem de ser anormal. (SILVA, 2009a, p. 144).

En este sentido los entrevistados colocan también otras espa-


cialidades como percibidas interdictas, las cuales también generan esa

371
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

sensación de anormalidad. Entre ellas están: la calle, por ser aparente-


mente un lugar de expresión libre, en el cual no solo entrega una libertad
falsa para el transexual, sino que además lo coarta aun mas ya que la calle
suele ser un lugar desprotegido, entregando así pocas herramientas de
resguardo ante la discriminación verbal y física de los transeúntes; y el
medico, lugar catalogado como privativo ya sea por el mal trato, el no
trato, y por la poca especialidad que tienen los médicos en relación a la
transexualidad, como también privativo en cuanto a los recursos econó-
micos, dejando ver la falencia del sistema en relación a cirugías y nece-
sidades medicas en áreas históricamente ocultas para la sociedad. (Ver
Gráfico 2).

Gráfico 2 – Pregunta n. 30: En general en su vida, ¿usted podría decir que ha sentido
discriminación en alguna de estas instituciones y/o lugares?

Fuente: los 36 entrevistados. Elaboración: propia. Autor: M. Torres Rodríguez, 2012.

Es sin duda en la calle en donde la gran masa de transexuales se


ve constantemente excluida, siendo ya por ataques verbales, como tam-
bién algunos lamentables casos de violencia física (especialmente a mu-
jeres transexuales); es también una realidad el decir que se ha coartado la
libre entrada, acceso y tránsito a algunos lugares públicos.

372
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

El ser humano de por sí es un animal territorial, el cual ya sea


por naturalización del discurso hegemónico o por simple necesidad pa-
rental necesita sentir un resguardo, resguardo que la sociedad ha tra-
ducido como lo conocido, lo seguro, el territorio en donde comparte
supuestamente con sus iguales-similares-pares. Dentro de un discurso
hegemónico heteronormativo el ser humano delimita el contorno de su
espacio basado en conceptos binarios, los cuales atienden al miedo de lo
abyecto (BUTLER, 2005), dejando así fuera del entorno a lo abominable,
por considerarlo como peligroso. Así es como Foucault (2003) explicaba
el constante castigo hacia lo temido, en este caso las sexualidades abyec-
tas, las performances queer, los cuerpos no binarios que “amenazan” a la
sociedad con generar trasformaciones de las cuales posteriormente no
podrá salvarse. En este sentido Foucault (2003) hace un análisis basado
en como la sociedad entiende las sexualidades abyectas como peligrosas
y “contagiosas”, generando así repudio y por ende discriminación a todo
el que no caiga en el binarismo heteronormativo; lo cual se ve de mani-
fiesto en la práctica social más conocida por la comunidad LGBTTI, vigilar
y castigar6 son las piedras angulares para controlar los cuerpos abyectos,
ya que el sistema vigila toda forma no binaria, vigilando así, todas las per-
formances de género no heteronormativas; para así poder castigar a esos
cuerpos a ser abyectos y recluidos en espacios interdictos.
La sociedad, para vigilar y empelar castigos apropiados a la so-
ciedad no binaria, necesita mecanismos explícitos e implícitos colocan-
do simbolismos en los distintos lugares, y simbolismos en los actuares y
prácticas cotidianas de la opresión social. Trata de colocar una seguridad
a aquel espacio que será ocupado por el o los habitantes “no abyectos”.
Al territorializar espacios desea (internamente) dejar fuera
aquellos cuerpos no permitidos, por ende genera mecanismos de enlace,
entre aquellos espacios completamente prohibidos, y aquellos que serán
de apertura, espacios en donde se podrán desplegar gamas de abyección
permitida, espacios supuestamente sin interdicción, para generar una
supuesta libertad, y así no causar lo que podría ser peor, un enloqueci-
miento e histeria colectiva. Así el sistema, en su manera de dar, también
refuerza su modo de hegemonía, la cual queda resguardada porque da
salidas, cabimientos a aquellas prácticas supuestamente destinadas a la

6
Analogía que se hace referente al título de la obra Vigilar y castigar, de Foucault (2002),
del original en francés Surveiller et punir (1987).

373
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

oscuridad. Así son los casos de locales LGBTTI y marchas, en donde la co-
munidad se prepara anualmente para manifestarse una vez al año como
sus cuerpos “abyectos” pueden ser visibles en la sociedad. Lo cual al ser
aceptado es aceptar el paternalismo capitalista, y el discurso hegemóni-
co. Conformase con migajas del sistema heteronormativo.
Para el caso de la transexualidad, de los cuerpos, sexo, y sus
performances de género, las instituciones sociales no necesitan ser una
entidad concreta y/o visible. Sólo con el hecho de existir en el tiempo y
el espacio basta para que ésta sea entendida por una comunidad dado la
creación de sus simbolismos; las instituciones se han organizado de tal
manera que ejercen su presión social sin necesidad de que esta sea un es-
pacio material, la institución puede ser intangible, sin embargo esta será
perceptible de cualquier manera.
Esta institución puede ser simbólica, y esta puede estar en la
casa, el colegio, la calle, la universidad, el hospital, en fin, y sin duda
ejerce una presión, un control, el cual se transmite inherentemente a los
cuerpos y las psiques humanas ya que está en los imaginarios colectivos,
esta se transmite por la cultura de una generación a otra. El control insti-
tucional está fuertemente marcado para todo lo que tiene que ver con el
ámbito sexual (FOUCAULT, 1998), desde la primera infancia estos límites
son marcados en la casa, y vale decir también dentro del colegio, exis-
te una institución basada en la heteronormatividad que debe cumplirse.
Quien se salga de esa norma, queda catalogado inevitablemente como un
extraño, un queer.
Los mecanismos de control que tiene la sociedad y el sistema
capitalista en sí dentro de la sociedad occidental, son basados en pro-
pagandas hetero-sexistas, patriarcales y cargadas de machismos; la so-
ciedad está siempre siendo resguardada y controlada bajo situaciones y
estrategias para controlar los cuerpos de quienes habitan estos espacios
urbanos, por una sociedad que se supone “aceptada”. Estos mecanismos
tienen que ver con el poder, poder que es invisible, es un poder simbóli-
co, cargado de identidades culturales y reglas colocadas en las mentes e
imaginarios colectivos desde hace siglos.
Se generan así espacios interdictos, los cuales son aquellos es-
pacios que de forma tal vez simbólica son prohibitivos para la sociedad,
en este caso para la población trans, estos simbolismos están dados en
las miradas, en los comentarios, en las burlas, en el hecho de hacer notar
que no hay cabimiento para ellos y ellas. Otras veces la interdicción es

374
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

completamente explícita, desalojando a las personas de un determinado


lugar, no dejando entrar, amenazando, causando violencia, ya sea esta
última en sus diferentes grados (de palabra o física). Si bien la interdicci-
ón explícita suele ser más mortífera, más violenta, y por ende causar un
daño mayor a nivel más mediático, la violencia simbólica y su forma de
generar la interdicción intangible es muchas veces más traumática en un
largo plazo, la deshonra y el menoscabo moral que este tipo de interdic-
ción genera es muchas veces más perjudicial a nivel emocional para las
personas transexuales.
Con esto se niega la posibilidad ciudadana de habitar espacios
públicos. Los espacios interdictos hacia la comunidad transexual son un
claro reflejo de lo que se ha entendido en la cultura occidental referentes
a los espacios y la capacidad pública de estos. Que estos espacios sean
interdictos para las personas trans se debe que al ser públicos se tienden
a gobernar por las reglas sociales estipuladas, y éstas son heteronorma-
tivas, dejando fuera a los cuerpos no binarios de la sociedad. La transe-
xualidad entra en todos estos límites y confrontaciones sociales, con sus
cuerpos no binarios, con su reproducción y subversión al modelo de se-
xos opuestos y géneros marcados, con su forma no heteronormativa de
andar, y así mismo aunque reproduzcan un discurso hegemónico están
fuera de la norma. Es esa confrontación la que la sociedad quiere dejar en
lo interdicto, en la transexualidad no hay límites y la línea de confronta-
ción es el cuerpo, la imagen, el espejo y la calle, en sí las vivencias dentro
de los espacios urbanos, y lo que entendemos como ciudad.
El territorio está cargado de lazos de poder, al igual que el cuer-
po en donde se ven expresadas las interdicciones. Pensar que los espacios
interdictos sólo afectan a la ciudad, es no pensar en la connotación social
del espacio. La interdicción afecta los cuerpos, y el cuerpo transexual está
no sólo cargado de poderes y redes sociales, sino que también mediante
la subversión de lo entendido como interdicto para ellos y ellas mismas,
posee la capacidad y el concepto de ser discordante con lo binariamente
entendido en la sociedad heteronormativa occidental, interrumpiendo
de esta forma lo interdicto. Los espacios interdictos, son lugares de máxi-
ma discriminación, y por ende son potencialmente los lugares más peli-
grosos para ser habitados por una persona trans, son en aquellos lugares
en donde quien osa entrar a salido con perjudiciales consecuencias. Los
espacios interdictos son sin duda una aberración a los derechos humanos
y al derecho civil.

375
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

Las mujeres transexuales sienten muchas veces más discrimi-


nación que los hombres transexuales; éstas se ven expuestas con mayor
facilidad a la violencia de la sociedad. Esto se debe sin duda a que cargan
el doble estigma, el ser transexual y además ser mujer. En la sociedad
machista y patriarcal ser una mujer transexual es renunciar a los “bene-
ficios” del género masculino, al bajar esa categoría es históricamente pe-
nalizado y desmoralizado ser una mujer transexual, ser una transgénera,
o una travesti, éstas son categorías desmoralizadas, desde toda la gama
tanto heterosexual como también LGBTTI.
Conforme con Foucault (1998), el poder impregna todos los
cuerpos, y como coloca Butler (2005), estos se vuelven abyectos. Siendo
esta piedra angular para las vivencias no lineales en la ciudad de Santia-
go, para Butler (2005, 2006) ser un cuerpo abyecto tiene relación absoluta
con la marginalidad de las vivencias corporales, y es así como estas se
posicionan dentro de una ciudad. Estos cuerpos abyectos marcan la pau-
ta para el próximo capítulo, y la forma de espacios interdictos de la cual
son blanco los cuerpos abyectos transexuales. Las subversiones como
también plantea Preciado (2002), vienen desde prácticas discursivas y de
performances de género, de sexualidad y contradicciones con un sistema
binario. En sí las corporalidades y sus performances fueron marcadas y
expuestas tal cual como la muestra de entrevistados lo ha manifestado.
En este sentido la interdicción causa una sensación de inade-
cuación en los cuerpos transexuales, haciendo que estos muchas veces
adquieran un discurso hegemónico, o también un discurso ambiguo, co-
locando así la idea en el propio ser de la inadecuación, la cual no es más
que la manifestación palpable en el cuerpo de las imposiciones sociales.
No hay realmente cuerpos inadecuados, como tampoco existen
cuerpos erróneos; existen sistemas equivocados, y sociedades inadecua-
das.
Sin embargo el poder que extiende sus hilos de maneras insó-
litas y desmesuradas (FOUCAULT, 1998) genera esa sensación de inade-
cuación y por ende necesidad de cambio, la idea de “curarse de una fuga
inminente”, crea así también la necesidad de generar cirugías y cambios
corporales para tratar de volver a “adecuarse” a un sistema binario y he-
teronormativo.
El sistema que nos domina, inventa estrategias para colocar y
reposicionar a los cuerpos que se fugan de las materias binarias y de la
heteronormatividad, colocando así parámetros y categorías a las perfor-

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Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

mances de género múltiples que existen, encasillando de esta forma las


diferentes maneras de manifestar el cuerpo y la sexualidad. En este sen-
tido se han colocado nuevas hegemonías, para diferenciar categorías que
no pueden ser estructuradas. El sistema siente la falta de control y ve
estos cuerpos fugados como un peligro permanente a la hegemonía de
los géneros binarios.
De esta forma se crean estructuras y caminos únicos, existien-
do para el sistema infinitas diferencias entre una persona transexual de
“verdad” y uno que no lo es, definiendo mediante estrictos parámetros
formas de identificación de lo que debe y de cómo debe ser un transe-
xual. De esta manera existen exámenes rigurosos que determinaran una
“transexualidad verdadera”, la cual sin duda no existe. ¿Cómo otro po-
dría validar la transexualidad de otra persona? De esta forma la medicina
y la psiquiatría han buscado formas de reproducir en los cuerpos trans las
hegemonías binarias y heteronormativas (STONE, 1996).
Estas formas de interrogar y examinar a lo trans, se vuelven
parte de un proceso, el cual es denominado como un proceso transexu-
alizador, el cual es compuesto de diversas facetas, las cuales han sido
muy bien delimitadas por el sistema, para evitar las nuevas fugas de los
cuerpos no binarios. Así este proceso se basa en un peritaje psicológico,
descartando cualquier homosexualidad, vale decir es aquí donde el tran-
sexual debe de saber posicionarse como heteronormativo, repudiando
su no binarismo, y de esta forma asegurar que efectuará el proceso como
la sociedad lo estipula. Dentro de eso hay que ejecutar infinitas cirugías
y tratamiento hormonal, todo para “adecuar” a los cuerpos, readecuar-
los a un sistema binario del cual se han salido. Y así también se generan
estrategias de evadir aquello que puede ser un impedimento para gene-
rar las cirugías anheladas. Como explica Bento (2006), cuando coloca que
muchos de los participantes de su investigación confesaron mentir a los
médicos para parecer más binarios y heteronormativos, y así pasar los
exámenes para ser otorgadas las cirugías que quieren efectuar.
Como también estrategias y mentiras para no revelar cier-
tas nuevas fallas del sistema, qué quiero decir con eso de nuevas fallas,
aquellos transexuales que realmente no expresan la necesidad de gene-
rar cirugías corporales, son nuevamente un desafío para el sistema he-
gemónico, ya que se niegan una vez más a entrar en las hegemonías y
“adecuarse” al binarismo que se les exige en este nuevo rol. Dentro de
esto una de las cirugías de los transexuales más irreverentes son aquellas

377
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

que colocan en riesgo la fertilidad, siendo este también un requisito para


el sistema judicial-gubernamental y el poder social para poder auto defi-
nirse y ser definido como “hombre” o “mujer” a la hora del cambio legal
de nombres ante los jueces. Es justamente aquí donde aparecen diversos
problemas, como ya hemos analizado: los precios de las intervenciones
y encontrar un médico que realice las cirugías a transexuales. Es por ello
que al preguntar cuáles son las cirugías realizadas, la mayoría no ha efec-
tuado ninguna. Así se presentan gráficos para las cirugías realizadas por
hombres transexuales, y luego para mujeres transexuales.

Gráfico 3 – Pregunta n. 22: ¿Cuáles de estas cirugías relacionadas al proceso


transexualizador ha efectuado en su cuerpo? (de mujer a hombre)

Fuente: los 36 entrevistados. Elaboración: propia. Autor: M. Torres Rodríguez, 2012.

Posteriormente de este análisis, se puede ver como la mayor


cantidad de participantes de la entrevista afirman que no se han efectua-
do ni una cirugía, y detrás de esta respuesta la mayor cantidad de cirugías
son de mastectomía, y luego la histerectomía, dejando así muy atrás las
cirugías de genitales, las cuales son además un requisito para el cambio
legal de nombre.
Ahora se analizan las cirugías realizadas por las mujeres tran-
sexuales.

378
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

Gráfico 4 – Pregunta n. 22: ¿Cuáles de estas cirugías relacionadas al proceso


transexualizador ha efectuado en su cuerpo? (de hombre a mujer)

Fuente: los 36 entrevistados. Elaboración: propia. Autor: M. Torres Rodríguez, 2012.

Estas cirugías son a la vez parte de continuar con un sistema


hegemónico, y aceptar la palabra de “adecuación” de la medicina a estos
cuerpos abyectos y no binarios. Por otra parte las cirugías también son
parte de prácticas subversivas; estas formas de generar cambios hacien-
do evidente una performance de género, son formas rupturistas.
Estas cirugías suelen ser una encrucijada, ya que por una parte
la medicina ve aberrante la extirpación de aquellos órganos reproduc-
tores estando estos en buen estado a cualquier persona y también a per-
sonas trans, pero la justicia lo exige a la hora del cambio legal de sexo
y nombre ante un tribunal. Esta es la exigencia máxima: la infertilidad.
Negando así dos cosas, primero, lo complicado que se transforma hacerse
una cirugía como esa en Santiago de Chile, vale decir encontrar un médi-
co y un hospital que quiera realizar el proceso, ya que hasta el momento
la mayoría de los hospitales Santiaguinos con excepción de uno se niegan
a realizar cirugías catalogas como “inmorales y anti natura”, además en-
contrar médicos que realicen esta cirugía es aún más difícil, para el caso
de otras cirugías como extirpación de mamas existen al menos un par
de médicos dispuestos y al igual que para realizar vaginoplastia existe
un solo médico en Chile que lo realiza, olvidando también el alto costo
de estas cirugías, ya que al ser la demanda muy alta y la oferta escasa,

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corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

poca o nula, estas cirugías se vuelven de elite, además pasando por alto
que para llegar a esa instancia de cirugía se debe pasar primero por un
sinfín de exámenes que ratifiquen la veracidad de la transexualidad y así
poder acceder a la cirugía; y la segunda negación con esta contradictoria
exigencia de parte de la ley es que también es completamente negada e
invalidada cualquier posibilidad para que esa persona sea padre o ma-
dre, negando así el derecho de reproducción, o libre decisión de si quiere
o no realizar una cirugía.
Cualquier caso en donde se les escape a la sociedad una persona
transexual que ya luego de no poder ser obligada a “encausarse” en el
modelo que se le asignó al nacer, y ahora no desee cumplir a cabalidad el
modelo nuevo que la sociedad quiere asignar para ella, entonces es ahí,
cuando una persona transexual no desea realizar todas las cirugías esti-
puladas ahora por el modelo heteronormativo que intentará (ya que esta
persona no se “adecuó” al momento de nacer en el binarismo) hacer que
esta persona se encasille binariamente en su nuevo estereotipo. Quando
la persona trans decide que no realizará la cirugía para la infertilidad, y
aun mas no realizará la cirugía para mudar su sexo, entonces se produce
el desbalance social; esta es una persona potencialmente “riesgosa”, ya
que su performance de género no será acorde a lo binario estipulado para
su sexo.
Esta encrucijada genera que las personas trans también repro-
duzcan un discurso hegemónico, este está dado por experiencias de vida
marcadas por el dolor, es aquí donde lo binario cobra una real potencia,
creando dispositivos transexuales (BENTO, 2006).
Sin embargo cuando una persona transexual niega su transe-
xualidad y se clasifica como hombre, no parte de una diversidad sexual,
también está haciendo un juego de subversión de géneros, ya que para la
sociedad no es catalogado como heterosexual y éste sí lo sostiene, entran-
do así en una categoría de prácticas subversivas ya que no se identifica
con lo propuesto por el sistema y aunque el sistema le diga que es trans,
este se denomina hombre sin importar lo que diga su identificación al
nacer. En este sentido los trans que de alguna forma rehúsan lo no bina-
rio, también se enmarcan en posiciones que para la sociedad nunca serán
las heteronormativas, por ello decir que no son trans, sino sólo hombres,
y que además no son parte de una gama infinita de diversidad sexual, al
igual que proclamar su heterosexualidad, es una subversión en sí misma.
Por ejemplo cuando se expone el siguiente fragmento:

380
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

Desde niño siempre sentí que no era mujer, sino hombre, incluso
como me habían enseñado a orar a Dios, yo a Él le preguntaba, ¿por
qué yo no tenía pene? Eso fue como de los 5 a 7 años. (Sujeto n. 1).

Por ejemplo en este caso el participante siente que es hombre,


expresa así su sexualidad y su identificación de género. En sí muchos su-
jetos afirman esta situación y aunque es continuar avalando un sistema
binario en donde si no te sientes mujer no queda otra experiencia razo-
nable más que pensar que eres hombre, esto también significa una sub-
versión, ya que como él dice, “¿Por qué no tenía pene?”. Situación que
para lo heteronormativo es una clave que define completamente el géne-
ro. En sí, este sujeto se siente hombre normativamente y binariamente,
sin embargo su auto declaración es des-validada por una sociedad no solo
binaria de géneros sino que binaria en los cuerpos y los sexos: si el indi-
viduo no tiene pene, no es hombre. La sensación de no concordar con un
género, o un sexo, son discursos que las personas transexuales asumen
como ciertas, ya que se imponen desde pequeños esos dispositivos hege-
mónicos, reproduciendo relatos como los siguientes:

La verdad sentí que no estaba acorde mi sexo con mi género a los


17 años. (Sujeto n. 3).

Siempre supe que era hombre, pero supe que era ser transexual a
los 20 años. (Sujeto n. 4).

Desde que tengo conciencia mi identidad de género no correspon-


día al sexo que me habían asignado. Si tuviera que decir una edad
específica sería a los 5 años cuando entré al colegio. (Sujeto n. 12).

Esta sensación de no concordar viene, sin duda, de una imposi-


ción hegemónica de poder (FOUCAULT, 1998), invisible, que se impreg-
na desde la infancia, la cual, como expresan los participantes, comienza
desde la infancia, y se terminan de dar cuenta en la adolescencia. Estas
incongruencias de las cuales ellos hablan tienen relación, más que con
la realidad, con la imposición de que hay cosas y deseos propios de las
niñas y otros de los niños, y así si uno de ellos o ellas no calza dentro de
estos parámetros se comienza a sentir como que nunca estuvo acorde su
cuerpo, el cual ha sido durante su infancia y adolescencia marcado por la
abyección del repudio cotidiano y continuo de una sociedad que les exige
sentirse en un determinado sexo u otro, generando así una performance

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corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

de género “adecuada” y no una performance abyecta, queer, no binaria,


y/o subversiva.
En este sentido es común oír hablar de la sensación de sentirse
“raro”, lo cual es una auto discriminación. Auto denominarse como raro
es un proceso fuerte de marcar, desear en cierta forma marcar una hege-
monía y un binarismo anhelado para no ser más blanco de discriminacio-
nes, así lo expresan estos relatos:

Tenía desconocimiento del tema a los 20 años me entere, pero


siempre supe que había algo raro en mi. (Sujeto n. 16).

El proceso de corrección anatómico es para resolver el problema


de transexualismo o síndrome de Harry Benjamín, no es una op-
ción, la persona se opera o debe suicidarse, una vez corregido los
defectos físicos y el cambio de nombre la persona pasa a ser como
cualquier persona normal, puede que con limitaciones físicas pero
por lo menos es mejor que tener una identidad física inconsisten-
te. (Sujeto n. 14).

El primer relato explica esa sensación de “rareza” ante la sexua-


lidad, es así como muchos trans se catalogan desde la infancia, escuchar
un trans decir: “me sentí raro desde siempre” es cotidiano en las entre-
vistas, y esto demuestra cómo el discurso, el poder hegemónico, penetra
las creencias incluso personales de cada individuo sobre su propio ser. El
segundo relato, el participante por una parte habla bajo un prisma com-
pletamente hegemónico, además de asumir lo trans como parte de una
enfermedad, catalogando bajo los prismas de Harry Benjamín, aseguran-
do que los trans deben operarse, y que esta sería la única vía de alcanzar
la felicidad; también deja ver que estas cirugías otorgan el pase a una
vida como la de cualquier otra, dejando ver así que un trans no puede
tener una vida como otros, por el hecho de no realizar una cirugía, esto
sin duda tiene relación con la discriminación. Si a la vez esto reproduce
de alguna forma un discurso hegemónico, aseverando así lo planteado
por Bento (2006) sobre el dispositivo heteronormativo de los transexua-
les. También genera una presión en el sistema cuando habla de cirugías,
exigiendo de tal forma que se debe operar. Esto es una manera de otorgar
una tecnología como propia, generando una especie de ciber hombre (o
una ciber mujer − utilizo hombre porque es el caso expuesto), así como
lo plantea Preciado (2002), cuando expresa que todos somos de alguna
forma seres tecnológicos.

382
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

Se puede además hacer un hincapié en cómo las personas tran-


sexuales asumen otro tipo de discurso también hegemónico, en cuanto a
su noción de la normalidad. En este sentido, se asume que hacer una vida
“normal” es hacer una vida basada en lo binario y en lo heterosexual.
Es así como también esto se manifiesta no solo en el lenguaje sino que
además en los espacios que ocupan. En este sentido los espacios urba-
nos usados, es tambíen determinantes para generar un análisis sobre las
prácticas subversivas y cómo la comunidad trans entrevistada se asocia
o desliga de las comunidades LGBTTI. Así lo manifiesta el siguiente par-
ticipante cuando se le pregunta si frecuenta lugares catalogados como
LGBTTI:

Yo no asisto mucho a discos así por un asunto de costumbre, me


consideraba siempre hombre y como el termino transexual lo co-
nozco no hace mucho… Iba a discos normales… Una vez fui a la
Blondie7, esa que tiene temática libre y no hay discriminación. (Su-
jeto n. 18).

Es de esta forma como el participante coloca que no sólo no


asiste a lugares catalogados como LGBTTI, sino que también el lenguaje
del cual se hace uso, al decir “discos normales”, es también colocar que
las demás discos (LGBTTI) no son normales. En este sentido el entrevista-
do coloca que siempre se sintió hombre, y que por ello ni participa de lo
LGBTTI, pero a su vez hace la reflexión de no conocer el término transe-
xual, y así vivió su vida fugándose al sistema y aseverando que es un hom-
bre, discurso hegemónico pero a la vez rupturista teniendo en cuenta que
este no era “un hombre” como lo estipula el discurso hegemónico, con
un cuerpo binario asumido en el modelo único de cómo es un hombre,
y además bajo parámetros heteronormativos. En sí es una forma de ex-
presar hegemonías y subversiones mezcladas en un discurso único, sin ni
siquiera catalogarlo de trans. Simplemente es.
A la misma pregunta otro participante, hace también un discur-
so complicado y con doble reflexión, por una parte un sentimiento bina-
rio, pero por otro un exponerse, incorporarse y manifestarse sin miedo,
así lo coloca otro entrevistado al preguntar si asiste a discotecas LGBTTI:

7
Blondie es una discoteque de Santiago, conocida por ser un lugar diverso en donde se
permite todo tipo de tendencias en cuanto a la moda, sexualidades y corporalidades.

383
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

La verdad que yo voy a cualquiera no tengo miedo de mostrar mi


carnet yo sé lo que soy y jamás me han discriminado de hecho no
se dan cuenta que soy transexual. (Sujeto n. 19).

Este relato es interesante, ya que manifiesta una subversión


total de la apropiación de espacios, manifiesta que “sabe lo que es”, no
especifica si esto es alguna categoría o si simplemente genera su per-
formance de género como mejor le plazca, asume que no siente miedo,
y que va a cualquier lugar, que presenta su identificación sin importar-
le las consecuencias. En fin, subversivo, una práctica poco utilizada, ya
que muchas veces el miedo genera situaciones de introspección y aisla-
miento. A su vez, de manera interesante confirma que no se dan “cuenta
que es transexual”, lo cual también no queda del todo claro, si eso es de
alguna forma una reproducción hegemónica, o más bien una situación
subversiva. Este relato es interesante porque manifiesta una ambigüedad
que no deja de ser rupturista del sistema. Y a la vez una fuga a los nuevos
sistemas internos de organizaciones trans, no es un activista, no es una
víctima del sistema social occidental, es una persona sin mayores iden-
tificaciones, lo cual es completamente atrayente para analizar prácticas
que van de lo hegemónico a lo subversivo.
En sí las múltiples formas de sentirse trans abogan a las múlti-
ples vivencias que cada ser tiene en su cotidianidad. Es así como muchos
de ellos se identifican con una identidad que trata de ser transversal a
todo un universo, sin lograrlo del todo, y por ende las identidades plu-
rales se manifiestan de distintas formas, generan fugas al sistema, fugas
tanto en lo hegemónico como en la identidad trans en la que se intenta
encasillar a todo transexual, se intenta asumir que todo trans debe de
seguir un camino, pero sin embargo todos ellos y ellas generan prácticas
para intentar calzar y “adecuarse” a un discurso en el cual se colocan las
esperanzas de dejar de ser un cuerpo abyecto. Algunos relatos manifies-
tan también cómo al informarse se abren ventanas. La subversión está
más cerca de lo que estima el sistema.

Siempre supe que yo era hombre, desde que tuve uso de razón,
porque era lo que sentía, pero cuando más me di cuenta fue más
o menos a los 11 o 12 años… Más o menos a los 13 años supe que
existían los transexuales, a través de la tele e internet y me sentí
identificado inmediatamente. (Sujeto n. 10).

384
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

Esta cadena de desinformación y patologización de la sexuali-


dad causa un no tener noción de que todas las performances de géne-
ro son válidas. Las performances queer cobran vida solo mediante una
práctica discursiva subversiva, y además en las prácticas tangibles, estas
prácticas tangibles en lo trans son si lugar a duda subversivas en su con-
junto, por mucho que el discurso se contradiga en algún punto, adop-
te un lenguaje hegemónico, se añore lo binario, se encasille lejos de lo
homosexual y se promulgue un dispositivo transexual heteronormativo,
todas aquellas nociones del discurso hegemónico que se entrecruzan con
discursos subversivos en sí mismo, son en primer lugar pasados a segun-
do plano por la máxima práctica subversiva del género: el tránsito entre
los géneros. Tránsito que es socialmente visto. No hay como ocultar el
tránsito corporal de las personas transexuales; esta es una evidente y ma-
nifiesta práctica subversiva del género, y así es como en su infinita gama
de pensamientos y en sus múltiples razones para practicar estas técnicas,
es que se encuentra una revolución, sin importar si la persona trans con-
sidera que lo hace con anhelo binario o rupturista, sin desglosar si ve su
cambio como una adecuación o como un romper los cánones estableci-
dos. En sí las prácticas de aplicación de hormonas y cirugías corporales,
performances de género, posturas trans en general son una subversión
de los cuerpos, como asegura Preciado (2002), una falla al sistema, una
fuga inminente a lo establecido, y significa romper estructuras.
En este sentido la interdicción y la inadecuación solo existen
por la razón suficiente de que también existen fugas al sistema binario −
heteronormativo, y por ende existe subversión de los géneros, sexos que
se escapan a lo estipulado por una sociedad hegemónica. Es así como lo
subversivo solo existe por generar una contra respuesta al sistema opre-
sor.
Las prácticas subversivas también pueden entenderse como
vestimentas, cirugías, y también prácticas hormonales.
Si consideramos primero que lo binario, lo heteronormativo, re-
glamenta que lo estipulado es ser hombre/mujer, con una performance de
femenino/masculino, esto encasilla desde el primer momento a los cuer-
pos. Esto según un discurso hegemónico está dado por la materialidad de
los cuerpos, el sexo, pero sin embargo, como se ha visto en la discusión,
el sexo, al igual que sus performances, son una invención discursiva de la
sociedad occidental. Y en cuanto a su binarismo materialista de supuesta
tangibilidad corporal, es que lo rebate Butler de la siguiente forma:

385
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

Consideremos primero que la diferencia sexual se invoca frecuen-


temente como una cuestión de diferencias materiales. Sin embar-
go, la diferencia sexual nunca es sencillamente una función de
diferencias materiales que no estén de algún modo marcadas y
formadas por las prácticas discursivas. (BUTLER, 2005. p. 17).

Esta verdadera inmaterialidad corporal, y supuesta forma con-


creta de los sexos según el sistema hegemónico, es lo que finalmente se
refuerza diariamente en discursos heteronormativos; si realmente el sexo
y el género fueran situaciones completamente dadas, no haría falta recal-
carlas a cada momento reproduciendo un discurso hegemónico, binario
y heteronormativo. La necesidad de ese discurso sería nula si realmente
el sexo y su género fueran cánones completamente dados y materiales;
si fueran tangibles, el discurso se disolvería en sí mismo, dado que sería
completamente absurdo pensar en replicar algo materialmente dado. Es
justamente la difusión de las fronteras sexuales y su carácter realmente
difuso e intangible lo que hace que el discurso y prácticas hegemónicas
se estén reproduciendo siempre, para así poder evitar la notoriedad de
su inmaterialidad. Así se construyen caracteres fijos del cuerpo, y se les
dan características supuestamente naturales a las conductas normadas.
De esta forma lo expresa Butler cuando coloca que:

En este sentido, lo que constituye el carácter fijo del cuerpo, sus


contornos, sus movimientos, será plenamente material, pero la
materialidad deberá preconcebirse como el efecto del poder, como
el efecto más productivo del poder. (BUTLER. 2005. p. 18).

Este poder se manifiesta tratando de resguardar completamen-


te los sexos, las sexualidades, las corporalidades, el cuerpo y sus funcio-
nes, y las performances de género se puedan ejercer libremente, limitan-
do así los deseos.
Las funcionalidades de nuestro cuerpo, los placeres y goces a
los cuales “debe” estar dispuesto nuestro cuerpo están otorgados desde
que nacemos por la sociedad y su poder legislativo, se nos impone qué
debe gustarnos y cómo deben ser nuestros cuerpos para mantenernos
dentro de un ámbito aparentemente “normal”, parámetro solo cataloga-
do por lo binario. Así es como se priva al ser humano de auto conocerse,
de no tocarse, de no sentir, quienes se permiten explorar las funciona-

386
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

lidades del cuerpo y los placeres, incluso de aquellos catalogados como


heteronormativos, binarios y hegemónicos, son condenados a ser parte
de un grupo supuestamente “pervertido”, de un grupo “sucio”, dejando
el dispositivo implantado en la sociedad de que el sexo es algo malo (FOU-
CAULT, 1998), más aun si este se sale de los márgenes de la sexualidad
heteronormativa, más aun si los cuerpos se salen de la norma binaria, si
los placeres y las performances de género no son las “adecuadas” para
reproducir un sistema patriarcal, entonces la sociedad tratará siempre de
aniquilar esta forma de sentir goce.
Las formas de placer generan practicas subversivas, ya sean
estos placeres solitarios o en conjunto, la forma de gozar puede ser ma-
terializada en una corporalidad en tránsito, y sus prácticas subversivas
trans ser cirugías y hormonas, las cuales también buscan prácticas he-
gemónicas, como ha sido visto, pero sin embargo de este transitar, se
desglosa cómo la subversión corporal genera prácticas que modifican las
performances. Es visto como la sociedad, tanto en su conjunto como en
lo individual, busca prácticas subversivas contestarías al sistema que los
domina. Estas muchas veces se ven expresadas en modificaciones corpo-
rales, como lo es el movimiento Punk, el Rock, los Hippies; últimamente
modificaciones con aparatos implantados en el cuerpo, biotecnologías
que generan estructuras nuevas, contestarías, formas cutáneas de ex-
presar opiniones (tatuajes), diversas formas y estilos que han marcado
socialmente cambio; el uso de ropas marca sin duda revoluciones, las ex-
presiones corporales son constataciones contrarias a un discurso hege-
mónico, llevando así a tomar también el tránsito trans como una práctica
subversiva en cuanto a su aplicación de hormonas y cirugías efectuadas.
Es así como se puede analizar que por ejemplo, del 67% de los participan-
tes de la entrevista utilizan algún tipo de hormonas, de ellos 18 hombres
trans y 7 mujeres trans, de los hombres el 100% menciono utilizar testos-
terona como parte de su práctica a un proceso de tránsito. Y de las muje-
res trans la distribución de combinado hormonal que usan es la siguiente:

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corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

Gráfico 5 – Pregunta n. 17: ¿Con que tipo de hormona


ha hecho su tratamiento hormonal?

Fuente: los 36 entrevistados. Elaboración: propia. Autor: M. Torres Rodríguez, 2012.

Estas prácticas subversivas con el sistema binariamente im-


puesto implican adueñarse de manera violenta y audaz del cuerpo, de los
discursos corporales y de los espacios vividos. Ellas pueden ser diversas,
y como lo manifestaron los/as transexuales entrevistados/as, generan
cambios ya sea con hormonas, con cirugías, con vestimenta, con cambio
legalmente de nombre, en fin, son infinitas las conductas corporales que
pueden dar origen a formas subversivas de enfrentar el modelo estableci-
do. Como también son infinitas las formas para encuadrarse en él.
Los procesos de tránsito corporal se ven cargados de prejuicios
sociales, de fundamentalismos patriarcalistas y normativos en el machis-
mo a la hora de querer ejercer verdaderos cambios tanto estructurales
como legales, siendo una de las mayores dificultades el hacer entender
que los cuerpos no nacieron para generar lo que la sociedad espera de
ellos, sino que son libres en su género, en sus performances y en mani-
festar el deseo.
Aquellas prácticas subversivas implican desarrollar mecanis-
mos para manifestarse de forma abierta, sin temores a la discriminación;
es así como lo trans se camufla entre lo hegemónico y lo subversivo, para
así resguardar las identidades. Muchos de los participantes expresan
sentir presión al momento de ser examinados y expuestos a su transe-
xualidad; es así como desarrollan mecanismos que los liberan de ciertas

388
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

ataduras. Pero a la vez existe un contra discurso, una forma de contestar


a las discriminaciones cotidianas. En la contestación a todos esos atro-
pellos es que está el peligro temido por la sociedad, en generar libertad y
aperturas, como lo explica Richard cuando expone que:

La apertura teórica que hace extensiva a las demás prácticas anti


hegemónicas la violencia contestataria de lo femenino para tra-
bajar con ellas, alianzas solidarias transversales a las categoriza-
ciones de sexo y género definidas linealmente tiene, para mí, la
ventaja de romper el determinismo biológico de que funciones
anatómicas (ser mujer/ser hombre) y roles simbólicos (lo femeni-
no/lo masculino) se correspondan naturalistamente, basados en
el mito de la identidad, una del cuerpo de origen. Desligar ambas
construcciones del realismo naturista del cuerpo originario, per-
mite darles movilidad de signos a lo masculino y a lo femenino;
signos que se desplazan y se transforman según la dinámica de
subjetividad que cada proceso simbólico sexual va formulando en
respuesta a los llamados del modelo social de identidad dominan-
te. (RICHARD, 1993).

Bajo estos parámetros contestatarios, se posicionan algunos


participantes de la entrevista, es así como nacen relatos completamente
subversivos, en sí mismos subversivos por ser relatos trans, y tener ante
ellos un tránsito negado por la sociedad occidental, pero también subver-
sivos (y tal vez doblemente subversivos) por la postura que toman ante lo
trans; y como llegan a visibilizarla de una manera contestaría al sistema.
Generando revoluciones y alianzas potencialmente ricas para un movi-
miento que está creciendo en Chile.
Así surgen los siguientes relatos:

No me gusta sentirme en una categoría, asumo que soy diferente,


pero no me gusta que la gente o la sociedad me cataloguen dentro
de esa diferencia, o me discriminen. Espero que alguna vez en Chi-
le se pueda caminar sin sentirse discriminado. (Sujeto n. 6).

Contestatario y esperanzador, al igual que el siguiente relato


que habla de cómo ve la transexualidad, colocando un poco en tapete el
tema de la discriminación.

389
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

Creo que en sí la transexualidad es una situación natural, la cual ha


sido muy demonizada y estigmatizada, por ende discriminada, y
lamentablemente existe una poca visibilidad del mundo transexu-
al, incluso dentro de las culturas LGBTTI tienden a quedar fuera los
transexuales, siendo estos discriminados por la sociedad hetero-
normativa y también por la población homosexual. También exis-
te una falta de cultura e ignorancia respecto al tema, tendiendo a
creer que los transexuales son solo travestís, dejando invalidadas a
las chicas transexuales como también de paso invisibilizados a los
transexuales masculinos. (Sujeto n. 5).

Aquellos discursos subversivos en cuanto a las posturas trans


en relación a como la sociedad los ve, radica en un descontento común
de sentir como una sociedad no deja ejercer ni uno de los derecho es-
tipulados por un gobierno supuestamente democrático y benefactor; es
así como quienes sienten que lo trans es una arma para revolucionar la
sociedad, emergen con discursos contestatarios que se basan en lo pedi-
do por cualquier cultura: derechos humanos. Así también nacen discur-
sos de cómo la sociedad otorga libertades a aquellos que se binarizan, a
aquellos que desean insertarse una vez más en el sistema hegemónico,
como por ejemplo expresa el siguiente participante al colocar su visión
de la normalidad estipulada por la sociedad heteronormativa:

Mientras la persona se encuadre en el concepto de lo considerado


“normal” socialmente no hay problemas. Por ejemplo, un hombre
trans que “pasa piola”. La dificultad radica cuando la expresión
de género no está enmarcada dentro de los límites que la cultura
chilena, en el caso, considera apropiado. Lo distinto, lo no común,
lo que no estamos acostumbrados… A esa persona se le discrimina
simplemente por no estar inserta dentro de patrones de “normali-
dad” construidos culturalmente (que no tienen nada de “natural”,
como muchos suelen afirmar). (Sujeto n. 17).

En este sentido el relato expuesto deja en evidencia que así


como explica Foucault (1998) siempre un acto subversivo será penalizado
por una sociedad hegemónica, haciendo de la transexualidad un foco de
disputas para un discurso binario y heteronormativo. La fuga del género
representa para nuestra cultura occidental una de las mayores subver-
siones en si mismas conocidas por hilos de poderes. Pero la fuga es ine-

390
Geografias malditas
Martin Ignacio Torres Rodríguez e Raul Borges Guimarães

vitable dentro de la multiplicidad de personas existentes. Y sus vivencias


plurales representan que la identidad no es más que única de cada ser
humano.

CONCLUSIÓN

Es claro que lo subversivo es una reflexión producto de gene-


rar una contra contestación a un sistema imperante, como explica Gar-
cía-Ramon (2009). En este sentido este tipo de geografías queda colocada
como doblemente subversiva dado su carácter de contestación a una aca-
demia geográfica tradicional y, a su vez por colocar en el tapete estudios
corporales que han sido marginados socialmente. En si lo subversivo de
este tipo de estudios radica en analizar bajo prismas no heteronormati-
vos, masculinos, ni occidentales los espacios cotidianos y los territorios
corporales de aquellos que no caben en estudios tradicionales de la geo-
grafía, como tampoco caben dentro de una sociedad hegemónica. (GAR-
CIA-RAMON, 2009).
En realidad sería interesante poder concluir algo, sin embargo
más allá de decir que este capítulo explora las diferentes vivencias coti-
dianas que poseen las personas transexuales en la ciudad de Santiago. Se
expusieron las distintas formas de interdicción y como se generan practi-
cas contestarías en contra respuesta al discurso hegemónico, generando
así géneros y performances subversivos, que van reevaluando en su sub-
versión la sensación de inadecuación, dignificando, reevaluando y repro-
duciendo nuevas formas de ver el cuerpo. Entendido este no como algo
equivocado, dejando paso a la libre expresión sin tener que sentirse ina-
decuado por alguna condición. Como se explica, sería interesante poder
concluir algo más allá de lo meramente expuesto; sin embargo concluir
es finalizar, dar un término a algo, a una investigación, dar un fin. Y en
este caso sería como concluir (finalizar) los cuerpos investigados, lo cual
sería completamente difícil, por no decir imposible, ya que concluir un
cuerpo, concluir algo tan difícil como la sexualidad, corporalidad y dese-
os, sería una negligencia social. Los cuerpos transitan, y las sexualidades
también, en este caso más aún se exponen cuerpos que transitan entre
los géneros, tanto los permitidos como los no permitidos, colocando el
transitar como verbo y sustantivo de los objetivos planteados para este
capítulo, generando así la imposibilidad absoluta de concluir algo que

391
corpos, sexualidades e espaços
Prácticas subversivas en espacios interdictos, en las experiencias múltiples y cotidianas de
personas transexuales de la ciudad de Santiago de Chile

sin duda seguirá modificándose, y finalizar esta investigación seria jus-


tamente lo que no se espera, ya que más que finalizar se espera que este
tipo de investigaciones geográficas abran paso a cubrir los vacíos que han
tenido las ciencias sociales en relación al género.

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394
Geografias malditas
SOBRE OS AUTORES

Alides Baptista Chimin Junior (alides.territoriolivre@gmail.com)


Geógrafo, pesquisador do Grupo de Estudos Territoriais, membro da Rede
de Estudos de Geografia, Gênero e Sexualidades da América Latina
(REGGSAL) e docente da Universidade Estadual do Centro-Oeste (PR).

Carsten Balzer (research@transrespect-transphobia.org)


Pesquisador-chefe do projeto de pesquisa Transphobia Worldwide (TvT),
tem doutorado e mestrado em Antropologia Cultural pela Universidade
Livre de Berlim, onde também lecionou Estudos Latino-americanos.

Débora Lee (renascer_06@yahoo.com.br)


Ativista LGBT e membro da Organização Não Governamental Renascer.
Coordenadora e executora do Projeto Faces de Vênus / SESA, PR, e exe-
cutora dos projetos de extensão “Para além da ‘batalha’ na rua: práticas
de inclusão socioespacial e promoção de direitos humanos dos grupos em
situação de vulnerabilidade social” e “Imagens de ausências e silêncios da
cidade: exclusão e subversão da heteronormatividade”.

Fernanda Riquelme (renascer_06@yahoo.com.br)


Ativista LGBT e membro da Organização Não Governamental Associação
Regional de Apoio aos Homossexuais (ARAH). Coordenadora e executora
do projeto Faces de Vênus / SESA, PR, e executora dos projetos de ex-
tensão “Para além da ‘batalha’ na rua: práticas de inclusão socioespacial
e promoção de direitos humanos dos grupos em situação de vulnerabi-
lidade social” e “Imagens de ausências e silêncios da cidade: exclusão e
subversão da heteronormatividade”.
Sobre os autores

Gláucia Boulevard (renascer_06@yahoo.com.br)


Ativista LGBT e membro da Organização Não Governamental Renascer.
Executora dos projetos de extensão “Para além da ‘batalha’ na rua: práti-
cas de inclusão socioespacial e promoção de direitos humanos dos grupos
em situação de vulnerabilidade social” e “Imagens de ausências e silên-
cios da cidade: exclusão e subversão da heteronormatividade”.

Jan Simon Hutta (hutta@gmx.net)


Geógrafo, ativista queer, doutor em Geografia Humana, pesquisador do
projeto de pesquisa Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT).
Atualmente é docente na Universidade Humboldt, em Berlim.

Joseli Maria Silva (joseli.genero@gmail.com)


Geógrafa, coordenadora do Grupo de Estudos Territoriais e membro da
Rede de Estudos de Geografia, Gênero e Sexualidades da América Latina
(REGGSAL). Docente da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG),
onde coordena o Programa de Pós-graduação em Geografia, é também
editora da Revista Latino-americana de Geografia e Gênero.

Juliana Przybysz (juliana.przybysz@gmail.com)


Geógrafa, pesquisadora do Grupo de Estudos Territoriais, membro da
Rede de Estudos de Geografia, Gênero e Sexualidades da América Latina
(REGGSAL) e docente colaboradora da Universidade Estadual de Ponta
Grossa.

Leandra Nikaratty (renascer_06@yahoo.com.br)


Ativista LGBT e executora dos projetos de extensão “Para além da ‘batalha’
na rua: práticas de inclusão socioespacial e promoção de direitos humanos
dos grupos em situação de vulnerabilidade social” e “Imagens de ausências
e silêncios da cidade: exclusão e subversão da heteronormatividade”.

Lynda Johnston (lyndaj@waikato.ac.nz)


Geógrafa e professora doutora da Universidade de Waikato, na Nova Ze-
lândia. Editora da revista Gender, Place and Culture, desde 2011, e membro
do Conselho editorial da revista Social and Cultural Geography, desde 2009.

396
Geografias malditas
Sobre os autores

Marcio Jose Ornat (geogenero@gmail.com)


Geógrafo, vice-coordenador do Grupo de Estudos Territoriais e membro
da Rede de Estudos de Geografia, Gênero e Sexualidades da América Lati-
na (REGGSAL). Docente da Universidade Estadual de Ponta Grossa e mem-
bro do Conselho editorial da Revista Latino-americana de Geografia e Gênero.

Martin Ignacio Torres Rodríguez (martin.torres.r@gmail.com)


Geógrafo, pesquisador e membro da Rede de Estudos de Geografia, Gêne-
ro e Sexualidades da América Latina (REGGSAL).

Raul Borges Guimarães (raul@fct.unesp.br)


Geógrafo e professor doutor pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho, campus de Presidente Prudente. Atua no Programa de
Pós-graduação em Geografia e tem como interesse a saúde.

Robyn Longhurst (longhurst@waikato.ac.nz)


Professora doutora da Universidade de Waikato, Nova Zelândia. Atua
como editora da revista Gender, Place and Culture e é membro do Conselho
editorial de vários periódicos da área da Geografia, como ACME, Geogra-
phy Compass e Social and Cultural Geography.

Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar (tamyitape@gmail.com)


Geógrafa, pesquisadora do Grupo de Estudos Territoriais e membro da
Rede de Estudos de Geografia, Gênero e Sexualidades da América Latina
(REGGSAL).

Vinicius Cabral (vinicius.cabral.1991@gmail.com)


Geógrafo, pesquisador do Grupo de Estudos Territoriais e membro da
Rede de Estudos de Geografia, Gênero e Sexualidades da América Latina
(REGGSAL).

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corpos, sexualidades e espaços
Geografias malditas: corpos, sexualidades e espaços foi organizado por
Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat e Alides Baptista Chimin Junior e
editado por TODAPALAVRA Editora, em Ponta Grossa, Paraná,
no ano de 2013.

Dados técnicos
ISBN: 978-85-62450-29-7
Formato fechado: 160 x 230 mm
Fontes utilizadas: Gentium Basic, Dutch 801, Helvetica
Revisão por Hein Leonard Bowles
Capa, projeto gráfico e diagramação por Dyego Marçal
Impressão por Pallotti Gráfica e Editora
Distribuição: Todapalavra Editora
Tiragem: 500 exemplares
Miolo: com 400 páginas em papel ofsete 90 g/m²
Impressão 1x1 em cor preta
Capa: cartão supremo 240 g/m²
Acabamento: costurado, laminação fosca

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