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D. Martyn Lloyd-Jones afirma em seu livro Pregação e Pregadores que "a mais urgente
necessidade da Igreja hoje é de verdadeira pregação; e como é a maior e a mais urgente
necessidade da igreja, é também, obviamente, a maior necessidade do mundo".(1) Essa
necessidade certamente não mudou de figura desde a primeira publicação de Pregações e
Pregadores em 1971.(2) O que mudou, no entanto, foi o interesse na pregação nos
últimos vinte anos. Percebeu-se, no mundo cristão,(3) que não há substituto para a
pregação. Antigas escolas liberais e tradicionais, que defendiam o uso de outras formas
de ensino como substituto para a pregação, perceberam que esta antiga prática, de fato
"não inventada pelo homem mas graciosamente criada por Deus",(4) ainda é, e sempre
será, o mais efetivo meio de proclamar as Boas Novas.(5)
Creio que o declínio na prática da pregação surgiu como fruto de vários fatores(6): (a)
descrença na autoridade das Escrituras; (b) valorização exagerada da arte de falar
(retórica); (c) confusão entre pregação e exposição filosófica de uma verdade
("helenização" do evangelho)(7); (d) massificação do evangelho (cultura "pop" e
entretenimento). O despertamento para a pregação nos últimos vinte anos deu-se em
reação a várias destas causas, porém nem sempre pelas razões corretas e de formas
corretas. Por exemplo, o interesse de vários teólogos e pregadores modernos na
pregação é uma reação à helenização do evangelho, porém, sem retorno à crença na
autoridade das Escrituras.(8) O fato é que existe um "movimento" de pregação na igreja
ao redor do mundo e também na igreja evangélica brasileira.
Ora, se a prática da pregação que efetuamos não é apenas uma opção apresentada nas
páginas do Novo Testamento, mas sobretudo uma ordem direta nos Evangelhos (Mc
3.14; 16.15), nos ensinos apostólicos (2 Tm 4.2), e uma prática clara em ambos (Mc
1.38; At 5.42), o que devemos pregar e como devemos pregar, isto é, o conteúdo e a
forma da pregação, são assuntos de fundamental importância para a vida do pregador e,
conseqüentemente, para a vida da igreja. Presumo que os leitores interessados neste
artigo crêem na pregação e na autoridade das Escrituras. Este artigo tem a ver com o que
devemos pregar, ou seja, o conteúdo da pregação.
(1) Em primeiro lugar, deve-se considerar que, para uma exposição clara a respeito de
Jesus e de todos os seus atributos como a Segunda Pessoa da Trindade e filho de Deus
encarnado, é necessário entender o Antigo Testamento. Ambos, o Antigo e o Novo
Testamentos, são incompletos na ausência um do outro. Jesus não é uma figura obscura
vinda do nada para salvar a humanidade. Jesus é o Messias prometido a Israel por Deus
Pai para salvar o seu povo. O caráter de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, é revelado nas
páginas do Antigo Testamento de maneira grandiosa e gloriosa. No entanto, nos púlpitos
e nas congregações ao redor do mundo, existe uma tremenda ignorância a respeito do
Antigo Testamento e do seu conteúdo. Facilmente percebe-se neles um conhecimento do
conteúdo do Novo Testamento, ao mesmo tempo em que demonstram uma falta de
conhecimento do Antigo Testamento. O conhecimento do Novo Testamento que não é
correspondido pelo conhecimento do Antigo, é uma contradição e uma impossibilidade. As
Escrituras do Novo Testamento começam com uma referência ao Antigo Testamento e
centenas de outras referências são feitas no seu corpo. A falta de entendimento do
conteúdo do Antigo Testamento implica em uma falta de entendimento claro do texto do
Novo Testamento. O próprio Senhor Jesus, quando pregava, começava "por Moisés,
discorrendo por todos os profetas" e assim, "expunha-lhes o que a seu respeito constava
em todas as Escrituras" (Lc 24.27).
(2) Para se entender corretamente o papel da Igreja como Corpo de Jesus Cristo é
necessário entender o propósito de Deus na criação de Israel. O ensino do Novo
Testamento a respeito de Israel só pode ser entendido à luz de toda a revelação de Deus,
e não em compartimentos estanques. Não é sem motivo que se encontram tremendas
divergências teológicas na área de eclesiologia, visto que o papel de Israel no Antigo
Testamento é extremamente mal entendido. Um dos grandes perigos para a Igreja
moderna é o de repetir os mesmos pecados da Igreja no Antigo Testamento, mesmo
tendo à sua frente o exemplo de como não se deve agir. O mesmo problema se desdobra
na área de escatologia, onde o Antigo Testamento, quando citado, na maioria das vezes é
usado de maneira inadequada, senão absurda. É necessário que se compreenda que
Jesus é o descendente de Abraão, pai de Israel, e sucessor de Davi, rei de Israel. Uma
tentativa de se entender o papel da Igreja à parte destes fatos, levará a uma
interpretação incorreta do seu papel. A verdadeira igreja de Jesus Cristo é edificada
"sobre o fundamento dos apóstolos e profetas" (Ef 2.20). Grandes estudiosos do Novo
Testamento são de fato aqueles que têm grande conhecimento do Antigo Testamento.
(3) O povo de Deus não pode, de forma relevante, entender, participar e cumprir seu
papel como filhos de Deus no mundo, sem uma compreensão adequada das Escrituras do
Antigo Testamento. É óbvia, para pregadores e pastores com formação acadêmica, a
necessidade de se compreender a criação e a queda da humanidade para se pregar, de
forma coerente, pelo menos, a respeito de qualquer tema nas Escrituras. No ato da
criação, Deus deu ao homem três mandatos: espiritual, social e cultural.(10) A
possibilidade do cumprimento apropriado destes mandatos é proporcional ao que o povo
de Deus conhece deles. Infelizmente, o conhecimento dessas ordens divinas é muitas
vezes negado ao povo de Deus por seus pregadores. O Antigo Testamento é rico em
ensinamentos sobre família, sociedade, culto e serviço, áreas em que o povo de Deus
necessita grandemente de instrução. Em suma, para um ensino equilibrado e qualificado
sobre vida cristã, é essencial que o povo de Deus conheça as Escrituras do Antigo
Testamento.
Muitos aspectos da resposta a esta pergunta estão incluídos nas respostas à pergunta
anterior. Entretanto, um outro é abordado aqui: Teologia Bíblica.
Também um só Deus se revelou e isto nos mostra a unidade das Escrituras como
revelação lógica e coerente.(14) Apesar deste conceito ser estudado freqüentemente sob
o título de Teologia Dogmática (Sistemática), ele é parte do conceito central da Teologia
Bíblica. Gerhardus Vos define Teologia Bíblica como "o ramo da teologia exegética que
lida com o processo da auto-revelação de Deus depositada(15) na Bíblia".(16) Para uma
exposição fiel da verdade das Escrituras é necessário que haja entendimento da Teologia
Bíblica como um todo e equilíbrio na exposição dessa teologia. Para isto é necessário que
haja equilíbrio na exposição entre Antigo e Novo Testamentos. Creio que uma Teologia
Bíblica sem o devido equilíbrio é um dos principais motivos porque não há pregação mais
consistente e sistemática das Escrituras do Antigo Testamento.
Penso que diante dos fatos devemos rever algumas de nossas tradições. Tradições podem
ser benéficas ou maléficas, dependendo de como são passadas e recebidas por novas
gerações. Em muitos casos, boas tradições sofrem distorção e acabam sendo praticadas
sem objetivo, ou até mesmo hipócritamente. Basta ler as páginas do Novo Testamento e
as críticas feitas por Jesus quanto às várias tradições dos israelitas da época. Se sabemos
porque devemos pregar o Antigo Testamento e qual é a maior dificuldade de aproximação
às Escrituras do Antigo Testamento, devemos também rever a nossa tradição quanto à
pregação do mesmo. Essa revisão precisa acontecer em dois níveis: individual e coletivo.
O nível individual concerne aos padrões que se adota quanto à pregação do Antigo
Testamento. Temos mesmo o desejo de ensinar, como pregadores da Palavra, "todo
conselho de Deus", e a convicção de que devemos fazê-lo? De que modo a congregação
que nos escuta constantemente como pregadores da Palavra percebe as riquezas dos
ensinamentos do Antigo Testamento? Como algo obscuro, sem sentido e até mesmo
terrível de se ouvir e ler, e que só serve para algumas partes do exercício litúrgico? Uma
parte das Escrituras que deve ser relegada a segundo plano? Se a resposta a estas
questões é positiva, então a pregação das Escrituras no Novo Testamento também
precisa ser revista.
O nível coletivo concerne aos que estão a nossa volta e ministram a outros que são ou
serão os pregadores da Palavra. Qual o papel e a importância da Teologia Bíblica? Como
ela é ensinada nas instituições de sua igreja? Quais os frutos da mesma na proclamação
do Evangelho? Qual a ênfase dada ao ensino de uma Teologia Bíblica que reflete a
unidade das Escrituras? As respostas a estas questões devem nos ajudar a perceber quais
as tradições que precisam de revisão.
__________________________
Notas
6 M. Lloyd-Jones expõe vários destes fatores de forma clara e mais extensa no capítulo 1
de Pregação e Pregadores, entitulado "A Primazia da Pregação." O capítulo introdutório da
obra de John R. W. Stott, Between Two Worlds (Grand Rapids: Eerdmans, 1981) é
também rico em demonstrar os motivos do declínio da pregação depois da segunda
metade do século XX.
14 Para uma ampla discussão do conceito de unidade das Escrituras na área de Teologia
Bíblica, verificar a descrição em Gerard Hasel, Teologia do Antigo Testamento: Questões
Fundamentais no Debate Atual (Rio de Janeiro, RJ: JUERP, 1975) e Brevard S. Childs,
Biblical Theology In Crisis (Philadelphia: Westminster, 1970). Para uma perspectiva mais
evangélica, ver Van Groningen, Revelação Messiânica.
16 G. Vos, Biblical Theology: Old and New Testaments (Grand Rapids: Eerdmans, 1948)
13.
17 Clowney (Preaching and Biblical Theology, 9-19) discute com bastante clareza estes
argumentos no primeiro capítulo de seu livro.
FIDES REFORMATA 1/1 (1996)
O debate na Igreja brasileira sobre o batismo com o Espírito Santo tem sido às vezes
conduzido em torno das figuras do (já falecido) Dr. Martyn Lloyd-Jones e do Dr. John
Stott.1 Mais particularmente, o debate tem girado em torno das suas interpretações da
conhecida passagem de Paulo em 1 Coríntios 12.13, Pois, em um só Espírito, todos nós
fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a
todos nós foi dado beber de um só Espírito.2 A passagem é crucial para o debate, já que
é a única, fora dos Evangelhos e de Atos, que traz juntas palavras como "todos",
"Espírito", "batizar", "corpo", e "beber". Alguns defensores do batismo com o Espírito
Santo como uma experiência distinta da conversão, referem-se ao Dr. Lloyd-Jones como
exemplo de um teólogo reformado e puritano que defende essa posição. Os do campo
contrário, referem-se ao Dr. Stott como um teólogo de renome mundial que sustenta ser
o batismo com o Espírito Santo idêntico à conversão.
Duas observações iniciais sobre esta realidade. Primeira, o debate sobre o batismo com o
Espírito Santo tem encontrado muito mais participantes ilustres do que apenas Lloyd-
Jones e Stott. Existem muitos livros e artigos defendendo uma e outra posição, escritos
por teólogos conhecidos e de diferentes persuasões teológicas. O fato de que, no Brasil,
esta polêmica desenvolve-se em torno dos nomes de Lloyd-Jones e de Stott deve-se ao
simples fato de que ambos tiveram suas obras traduzidas para o português, e outros não.
E a segunda observação decorre deste último ponto: a doutrina do batismo com o Espírito
Santo não é a principal ênfase dos ministérios de Lloyd-Jones e Stott.3 Ambos falaram e
escreveram sobre muitos outros assuntos. Mas o fato é que, no Brasil, por falta de
autores nacionais que escrevam claramente sobre o assunto, e que tomem uma posição
definida, e também por causa das poucas traduções em português de livros sobre o tema,
o debate desenvolveu-se mesmo em torno desses dois nomes.
Também é importante lembrar que esses dois importantes líderes não se envolveram
pessoalmente em disputa pública sobre esse ponto específico. São alguns de entre os
seus seguidores e admiradores que têm usado seus escritos para debater as diferenças
que a discussão moderna sobre o assunto tem levantado. Lloyd-Jones e Stott, na
verdade, estiveram envolvidos em outro tipo de polêmica, mais especificamente com
relação a eclesiologia, e a unidade dos evangélicos.4
Partindo então da inevitável realidade de que teremos de lidar com Lloyd-Jones e Stott ao
nos referirmos à questão do batismo com o Espírito Santo em um artigo destinado a
pastores e líderes brasileiros, tentaremos aqui dar uma colaboração ao debate através de
uma apresentação e análise da posição de ambos, particularmente à luz da maneira como
interpretam 1 Co 12.13.
• Lloyd-Jones e 1 Co 12.13
Vamos começar com Martyn Lloyd-Jones, por uma questão de cronologia. Sua opinião
sobre o batismo com o Espírito Santo, e sua interpretação de 1 Co 12.13, podem ser
encontradas em três de suas obras principais. Primeiro, em God’s Ultimate Purpose, o
primeiro volume de sua famosa série de sermões na carta aos Efésios, pregados nos anos
1954-1955, durante seu ministério na Capela de Westminster, Londres.5 Ele expõe
Efésios 1.13 em seis capítulos, quando então aborda o tema do batismo com o Espírito
Santo.6 Segundo, no volume da sua série em Romanos, entitulado The Sons of God, onde
ele expõe Romanos 8.5-17.7 Esse volume contém os sermões pregados em Romanos
durante os anos 1960-1961, dos quais oito tratam de Rm 8.16, uma passagem que,
segundo Lloyd-Jones, refere-se ao batismo com o Espírito Santo.8 Por fim, em seu livro
Joy Unspeakable, publicado em 1984, que é a transcrição de vinte e quatro sermões
pregados em 1964 na Capela de Westminster, Inglaterra, numa série em João 1.26-33.9
Nesta obra, Lloyd-Jones trata de forma detalhada da sua posição sobre o batismo com o
Espírito Santo, e de 1 Co 12.13.10 Procuraremos resumir, partindo destas fontes, a sua
interpretação da passagem.11
Devemos estar conscientes do contexto em que Lloyd-Jones aborda esse assunto. Ele
estava reagindo a duas tendências de sua época, as quais considerava perniciosas para a
vida da Igreja. Em primeiro lugar, contra o nascente movimento de "línguas", em
Londres, cujos proponentes reivindicavam terem sido "batizados com o Espírito", e
colocavam a ênfase maior no dom de línguas. Lloyd-Jones freqüentemente adverte contra
os perigos do fanatismo, misticismo, e abusos nesta área,12 fato que às vezes tem sido
esquecido por alguns que usam seus escritos para promover conceitos e práticas
carismáticos.
Para Lloyd-Jones, esse tipo de ensino era responsável em grande parte pelo fato de a
maioria dos cristãos na Europa desconhecerem um Cristianismo vigoroso,
"experienciável", e de praticarem uma religião fria, sem emoções, e destituída de vigor e
vida. Como pastor de formação puritana, Lloyd-Jones reagiu fortemente a esse tipo de
ensino que acabava por negar o caráter "experienciável" da fé em Cristo, e o lugar das
emoções na experiência cristã. Mas, o seu maior conflito com esses teólogos era que tal
ensinamento, na sua opinião, não deixava lugar para reavivamentos espirituais, para
novos derramamentos do Espírito sobre a Igreja.
Por esse motivo, ele abordou o assunto do batismo com o Espírito Santo muito mais em
reação à frieza espiritual da sua época, do que em reação ao movimento carismático, que
estava apenas em seus inícios naqueles dias.
Ao expor Ef 1.13, fostes selados com o Santo Espírito da promessa, Lloyd-Jones segue a
interpretação de alguns teólogos Puritanos (Thomas Goodwin, John Owen, Charles
Simeon, Richard Sibbes), e do famoso Charles Hodge de Princeton, que defendiam que
esse "selo" não é a mesma coisa que a conversão, e pode ocorrer depois.16 A principal
ênfase de Lloyd-Jones em sua exposição da passagem é que esse "selo" é algo que pode
ser experimentado, sentido e identificado pelos crentes, e que não se trata de algo que já
ocorreu automaticamente com todos eles na sua conversão. Como demonstração, ele
menciona experiências de personagens famosos na História da Igreja, como John Flavel,
Jonathan Edwards, D. L. Moody, Christmas Evans, George Whitefield e John Wesley.17
Trata-se de uma experiência, diz Lloyd-Jones, e não de um processo. Assim, é algo que
deve ser buscado por cada um.18 Também não devemos confundir o "selo" com a
plenitude do Espírito, e nem com a santificação;19 o "selo" também não é algo a ser
"apropriado pela fé", como ensinam alguns pregadores e escritores:20 ele funciona como
uma autenticação de Deus de que de fato pertencemos a ele, algo semelhante ao
ocorrido com o Senhor Jesus quando foi batizado (comparar Jo 1.32-34 com 5.27).21
• 1 CoRÍNTIOS 12.13
Lloyd-Jones está consciente de que alguns apelarão para 1 Co 12.13 para contradizer seu
ponto de vista. Para ele, a passagem ensina de fato que o Espírito Santo batiza o crente,
colocando-o no corpo de Cristo que é a Igreja, e que isto ocorre na conversão, e que,
portanto, todos os cristãos já foram objeto desta atividade do Espírito. Porém, ele
argumenta, esse "batismo" de 1 Co 12.13 não é o mesmo "batismo" ou "selo" do Espírito
mencionado nos Evangelhos e em Atos. O que ocorre é que a palavra "batismo" é
empregada no Novo Testamento com vários sentidos diferentes.25 Para ele, o batismo
pelo Espírito em 1 Co 12.13 significa o ato pelo qual o Espírito nos incorpora à Igreja, e
que portanto é idêntico à conversão, ao passo que, nos Evangelhos, e principalmente em
Atos, o batismo com o Espírito refere-se a uma experiência pós-conversão, confirmatória
e autenticadora em sua essência.26
Em resumo, para Lloyd-Jones, o batismo com o Espírito Santo é uma experiência na qual
o Espírito concede ao crente plena certeza de fé, e que deve ser identificada com o selo e
o testemunho do Espírito mencionados por Paulo. Esta experiência resulta em poder e
ousadia, que por sua vez, capacitam o crente a testemunhar eficazmente de Cristo.
Passemos agora para a opinião de John Stott. Conhecido pregador e escritor, Stott é
ministro da Igreja Anglicana da Inglaterra. Em 1964 ele fez uma série de estudos numa
conferência para líderes evangélicos sobre a obra do Espírito Santo, os dons espirituais, e
especialmente, sobre o batismo com o Espírito Santo. Estas palestras foram uma reação
de Stott ao crescente Pentecostalismo dentro da sua própria paróquia.31 As palestras
vieram ao grande público em 1966, num livrete intitulado The Baptism and Fullness of
the Holy Spirit,32 após os sermões de Lloyd-Jones sobre o assunto já terem sido
impressos. Dez anos após Stott publicou uma segunda edição, entitulada Baptism &
Fullness: The Work of the Holy Spirit Today,33 onde ampliou algumas partes que
precisavam de mais clareza e fundamentação, sem, entretanto, alterar seus pontos de
vista.34 Esta obra foi traduzida e publicada em Português em 1986, como Batismo e
Plenitude do Espírito Santo.35 Nela, Stott trata dos principais aspectos da obra do Espírito
relacionados com a polêmica moderna, tais como a promessa do Espírito, o batismo do
Espírito, a plenitude, o fruto e os dons do Espírito. Procuraremos nos concentrar na sua
interpretação de 1 Co 12.13.
Stott argumenta que a expressão "batismo com o Espírito Santo", que ocorre sete vezes
no Novo Testamento, é equivalente à expressão "o dom do Espírito Santo" que ocorre em
At 2.38, e refere-se à experiência iniciatória da qual participam todos os que se tornam
cristãos.36 O próprio conceito de "batismo com água" é iniciatório, como sendo o ritual
público de introdução na Igreja, e está intimamente associado ao batismo com o Espírito
Santo, como sugere At 10.47, 11.16 e 19.2-3.37 Ele argumenta que a linguagem
empregada por Paulo para descrever a experiência cristã com o Espírito, como "estar no
Espírito", "ter o Espírito", "viver pelo Espírito", e "ser guiado pelo Espírito", é aplicada nas
cartas do apóstolo a todos os cristãos, indistintamente, até mesmo para os recém
convertidos, a partir do momento em que se tornam cristãos. O Novo Testamento,
continua Stott, presume que Deus tem dado o Espírito a todos os cristãos, cf. Rm 8.9; Gl
5.25; Rm 8.14.38
Das sete vezes em que a expressão "ser batizado com o Espírito Santo" ocorre no Novo
Testamento, somente uma vez é fora dos Evangelhos e de Atos (ou seja, em 1Co 12.13).
Stott lembra que, nos Evangelhos, a expressão aparece quatro vezes nos lábios de João
Batista, ao descrever o ministério do Senhor Jesus, "ele vos batizará com o Espírito
Santo" (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16; Jo 1.33). Em Atos, uma vez é aplicada pelo Senhor a
Pentecostes (At 1.5), e outra é aplicada por Pedro à conversão de Cornélio, citando as
palavras do Senhor Jesus (At 11.16).
Stott aponta para o fato de Paulo estar enfatizando a unidade no Espírito no contexto da
passagem, em contraste deliberado à variedade dos dons espirituais, assunto que o
apóstolo havia discutido na primeira parte de 1 Co 12. Esse ponto é evidente pela
repetição da palavra "todos" (todos...foram batizados, todos...beberam) e da expressão
"um só" (um só Espírito... em um só corpo... de um só Espírito). O que Paulo está
fazendo aqui, afirma Stott, é sublinhar aquela experiência com o Espírito Santo que todos
os cristãos têm em comum. Esta é a diferença entre "o dom do Espírito" (quer dizer, o
próprio Espírito Santo), e "os dons do Espírito" (isto é, os dons espirituais que ele
distribui). Neste capítulo Paulo emprega várias vezes uma terminologia onde a unidade
dos cristãos é destacada, cf. 12.4,8,9,11,13. O clímax é 12.13, onde o apóstolo afirma
que em um só Espírito todos nós fomos batizados em um corpo. A expressão de Paulo,
quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres, bem pode ser uma alusão a "toda a
carne" mencionada na profecia de Joel. Stott conclui que o batismo com o Espírito Santo
não é uma segunda experiência, nem uma experiência subseqüente desfrutada somente
por alguns cristãos, mas a experiência inicial desfrutada por todos.39 Ou seja, o batismo
com o Espírito é o mesmo que conversão.
No seu recente comentário em Atos, Stott procura deixar claro que não nega que haja
experiências mais profundas e mais ricas após a conversão. Porém, ele rejeita a idéia de
que tais coisas possam ser chamadas de "batismo com o Espírito", uma terminologia que
ele reserva apenas para a conversão, a obra inicial do Espírito no crente.40 É importante
notar que, para ele, as passagens nos Evangelhos e em Atos devem ser interpretadas à
luz da passagem de Corintios, e portanto, devem se referir à conversão, quando o crente
recebe tudo o que lhe é dado receber do Espírito. É sintomático que no seu livro Baptism
& Fullness não exista nem uma palavra sobre reavivamento espiritual. Stott
aparentemente não nega a possibilidade da ocorrência de um reavivamento em nossos
dias, mas certamente não é um dos seus proponentes mais entusiastas.
Em seguida, Stott passa a responder às objeções que geralmente são levantadas contra
sua interpretação de 1 Co 12.13. Inicialmente, ele aborda o argumento de que as outras
seis passagens, que se referem ao "batismo com o Espírito Santo", tratam do batismo
feito por Jesus em, ou com, o Espírito Santo, enquanto que 1 Co 12.13 trata do batismo
realizado pelo Espírito no corpo de Cristo, algo completamente diferente. Os defensores
desta posição, esclarece Stott, concordam que o Espírito Santo batizou a todos os crentes
no corpo de Cristo, mas isto não prova, para eles, que Cristo batizou a todos com o
Espírito Santo. Stott afirma que esse tipo de argumentação é um exemplo de se tentar
defender o indefensável, e passa, então, a refutá-la como se segue.41
Ele então defende esse ponto com o argumento de que em qualquer tipo de batismo
existem quatro partes: (1) o sujeito, que é o batizador, (2) o objeto, que é a pessoa
sendo batizada, (3) o elemento em, ou no qual a pessoa é batizada, e (4) o propósito
com o qual o batismo é realizado. Como exemplo, ele cita o "batismo" dos israelitas no
Mar Vermelho (cf. 1 Co 10.1-2). Deus foi o batizador, os israelitas foram os batizandos, o
elemento em que foram batizados foi água, ou vapor que caia das nuvens, e o propósito
é indicado pela expressão "batizados em Moisés", isto é, para um relacionamento com
Moisés como o líder apontado por Deus. O batismo de João, igualmente, tem quatro
partes: João (o sujeito) batizou as multidões que vinham de Jerusalém e regiões
circunvizinhas (os batizandos) nas (e)n) águas do Rio Jordão (elemento) para (ei)j)
arrependimento e, portanto, remissão de pecados, cf. Mt 3.5,11. O batismo cristão é
similar, continua Stott. O pastor (sujeito) batiza o candidato (objeto) na, ou com, água
(elemento), e o batismo é ei)j, "para" o nome da Trindade, ou mais especificamente, para
o nome de Cristo (Mt 28.19; At 8.16). O batismo do Espírito não é exceção a esta regra,
conclui Stott. Se colocarmos as sete referências juntas, verificaremos que Jesus Cristo é o
batizador (sujeito), todos os crentes (1 Co 12.13) são os batizandos (objeto), o Espírito
Santo é o "elemento" com o qual (e)n ) somos batizados, e o propósito (ei)j) é a
incorporação do crente no corpo de Cristo.43
Stott reconhece que alguém poderia objetar que estas quatro partes não aparecem
claramente em todos as sete passagens mencionadas. Por exemplo, o sujeito (o
batizador) não aparece em 1 Co 12.13. Para Stott, isto não é problema: Jesus Cristo é o
batizador implícito da passagem, assim como também em At 1.5 e 11.16. Ele não é
mencionado porque nestas passagens o verbo "batizar" está na voz passiva, e a ênfase
recai sobre as pessoas sendo batizadas, enquanto que o sujeito da ação recua para os
bastidores.
Ele ainda argumenta que, se o Espírito é quem batiza em 1 Co 12.13, então, onde está o
elemento com o qual ele batiza? Stott considera a falta de resposta a esta pergunta como
sendo conclusiva de que sua interpretação é a correta, já que a metáfora do batismo
requer um elemento. De outra forma, "batismo não é batismo".44 Ele conclui que 1 Co
12.13 refere-se a Cristo batizando com o Espírito Santo, e nos fazendo beber do Espírito,
e que "todos nós" temos participado desta bênção (cf. Jo 7.37-39). Esta conclusão é
reforçada pelo tempo dos dois verbos, "batizar" e "beber", ambos no aoristo, e que se
referem, não a Pentecoste, mas à bênção pessoal recebida pelos cristãos em sua
conversão.45
O quadro abaixo poderá nos ajudar a visualizar o pensamento destes dois eminentes
servos de Deus sobre 1 Co 12.13.
QUADRO 1
Não há diferença entre eles quanto aos batizandos (aqueles sendo batizados) de 1 Co
12.13, e nem de fato deveria haver. Com a expressão todos nós Paulo se refere aos
crentes em geral, e não somente a si mesmo e aos coríntios. Paulo está descrevendo na
passagem uma experiência que une todos os cristãos, independente de raça, sexo, ou
status social, e que isto o apóstolo faz porque seu objetivo, na segunda parte de 1 Co 12,
é enfatizar a unidade dos cristãos, em contraste com a diversidade dos seus dons.
Colocado dentro desta perspectiva, fica pouca dúvida de que 12.13 esteja se referindo a
uma experiência na qual todos os cristãos participam.
Da mesma forma, o propósito deste batismo é claramente indicado pela preposição ei)j.46
Ou seja, "colocar" o crente no corpo, que é a Igreja. Ambos concordam que esse é o alvo
do batismo na passagem, e portanto, também concordam que o batismo mencionado é o
mesmo que a conversão.
A tradução de e)n
A favor de Stott está o fato de que, nas demais ocorrências da expressão, a preposição
pode ser traduzida por "com" ou "no" Espírito. Ao analisar 1 Co 12.13 à luz das seis
outras ocorrências da expressão "ser batizado com o Espírito Santo", Stott utiliza-se de
um princípio sadio e sólido de exegese bíblica: uma passagem da Escritura deve ser
interpretada à luz de outras passagens que tratem do mesmo tema. Contra sua
interpretação está o fato de que, em última análise, sua posição exige que a conversão
dos apóstolos, dos samaritanos e dos discípulos de João Batista, narradas em Atos, tenha
ocorrido na mesma ocasião em que foram batizados com o Espírito. Esta posição é
insustentável, do nosso ponto de vista, já que, pelo menos no caso dos apóstolos, é
evidente que eles já eram regenerados quando foram batizados com o Espírito Santo.
Porém, se considerarmos as experiências de Atos como exceções, o caso muda de figura.
É isto que Stott eventualmente faz.48
Em segundo lugar, ambos divergem com respeito à relação entre 1 Co 12.13 e as demais
passagens paralelas nos Evangelhos e Atos. Como vimos, Lloyd-Jones sustenta que se
tratam de experiências diferentes: em 1 Coríntios "batismo pelo Espírito" se refere à
conversão, enquanto que, em Atos, "batismo com o Espírito" se refere a uma experiência
de confirmação e autenticação. Por outro lado, Stott afirma que em 1 Coríntios e em
Atos, a expressão designa a mesma coisa, ou seja, conversão.
Não podemos entrar de forma profunda aqui neste artigo na questão do batismo com o
Espírito Santo nos Evangelhos e no livro de Atos, mas podemos no mínimo afirmar que,
em alguns dos casos narrados em Atos, o batismo com o Espírito ocorreu com pessoas
que já eram crentes, como os discípulos em Pentecostes (At 2.1-4; cf. Jo 13.10; 15.3; Lc
10.20), e provavelmente os samaritanos (At 8.14-18; cf. 8.12). Somente em uma
ocasião o batismo com o Espírito ocorreu claramente ao mesmo tempo que a conversão,
que foi durante a pregação de Pedro na casa de Cornélio.
Os estudiosos têm tirado conclusões diferentes destes fatos. Lloyd-Jones, como vimos,
conclui que tais fatos estabelecem a norma e a terminologia para todas as épocas da
Igreja. Contudo, parece-nos que as experiências narradas em Atos são melhor entendidas
à luz do contexto histórico em que ocorreram, à luz daquele período especial de
transição, em que o Evangelho estava se universalizando, passando dos judeus para os
gentios, um processo onde era necessário que manifestações extraordinárias
acompanhassem os diferentes estágios desta transição, como uma forma de autenticação
das mesmas. Esta é a convicção de Stott. Entendemos que MacArthur expressa bem esse
ponto de vista, ao escrever o seguinte sobre a experiência dos samaritanos:
• Aqueles crentes em particular tiveram de esperar pelo Espírito Santo, mas não
lhes foi dito que deviam buscá-lo. O propósito daquela exceção era demonstrar
aos apóstolos, e fazer ouvir entre os crentes judeus em geral, que o mesmo
Espírito que havia batizado e enchido os crentes judeus, agora havia feito o
mesmo com os crentes samaritanos, exatamente como, em pouco tempo, Pedro e
outros judeus crentes, haveriam de ser enviados como testemunhas à casa de
Cornélio, do fato de que "o Espírito havia também sido derramado sobre os
gentios" (At 10.44-45).49
Não entendemos que as experiências narradas em Atos, onde houve um intervalo entre
conversão e batismo com o Espírito, sejam a norma para as demais etapas da Igreja de
Cristo, após o período de transição ter-se completado, e nem que a terminologia "batismo
com o Espírito" deva ser usada para experiências posteriores à conversão. Se tivéssemos
de tomar algum evento como normativo, tomaríamos a experiência dos três mil no dia de
Pentecostes, que num mesmo evento se converteram, receberam o Espírito, e foram
batizados com aquele mesmo Espírito (cf. At 2.38).
Porém, não estou convencido de que possamos usar a terminologia do "batismo com o
Espírito Santo" para designá-las. Esta terminologia, na minha opinião, foi utilizada para
expressar no início da Igreja os eventos únicos relacionados com as etapas da
universalização do Reino, relatos esses expostos no livro de Atos. À parte do que está
narrado no livro de Atos, as Escrituras não aparentam reconhecer qualquer intervalo
entre a conversão e o batismo com o Espírito Santo. Assim, a expressão é corretamente
empregada hoje para designar a experiência universal de todos os crentes, ao receberem
a Cristo pela fé em seus corações. Ao mesmo tempo, é de se lamentar profundamente
que, ao reagir contra os abusos e exageros de muitos que professam ter recebido um
"batismo com o Espírito", vários estudiosos conservadores tenham adotado uma posição
onde há pouco, ou nenhum, lugar para novos derramamentos do Espírito, para
reavivamentos e experiências espirituais profundas e ricas com Deus.
___________________________
2 As citações bíblicas são da versão Almeida Revista e Atualizada, salvo onde indicado
diferentemente.
9 D. Martyn Lloyd-Jones, Joy Unspeakable: Power & Renewal in the Holy Spirit ( Illinois:
Harold Shaw Publishers, 1984) 13.
10 Os demais sermões da série foram publicados no livro Prove All Things (Londres:
Kingsway, 1985), onde Lloyd-Jones apresenta os critérios bíblicos através dos quais
podemos avaliar as manifestações espirituais quanto à sua autenticidade. No Brasil, Joy
Unspeakable tem recebido muito mais ênfase, enquanto que Prove All Things, que é o seu
complemento indispensável, é praticamente desconhecido.
11 Para uma exposição e análise do ensino de Lloyd-Jones sobre o batismo com o Espírito
Santo, ver Michael A. Eaton, Baptism with the Spirit: The Teaching of Dr. Martyn Lloyd-
Jones (London: Intervarsity Press, 1989). Também, Murray, Lloyd-Jones, 483-92.
12 Ver, por exemplo, Prove All Things, 47-49; 57-59; 85, 95-97; etc. Também, ver Joy
Unspeakable, 18.
14 Estas idéias haviam sido defendidas particularmente por Stott em seu livro Baptism
and Fullness of the Spirit (ver adiante nota 50). Lloyd-Jones havia lido e anotado esta
obra, antes de pregar a séries de mensagens que deram origem ao livro Joy
Unspeakable.
19 Ibid., 261-3.
20 Ibid., 294-5.
21 Ibid., 246-7; ver ainda p. 265.
24 Ibid., 310.
25 Cf. Lc 12.50.
26 Lloyd-Jones, God’s Ultimate Purpose, 267-68. Ver ainda The Sons of God, 314; Joy
Unspeakable, 173-9.
30 Mas, mesmo assim, Lloyd-Jones deixa claro que o intervalo de tempo entre as duas
coisas pode ser extremamente curto, cf. Ibid., 253-4.
32 John R. W. Stott, The Baptism and Fullness of the Holy Spirit (Illinois: Intervarsity
Press, 1964).
33 John R. W. Stott, Baptism & Fullness: The Work of the Holy Spirit Today (Illinois:
Intervarsity Press, 1975).
35 John R. W. Stott, Batismo e Plenitude do Espírito Santo, trad. Hans U. Fuchs (São
Paulo: Vida Nova, 1966; 2ª edição, 1986). As referências serão feitas à obra original em
Inglês, em sua 2ª edição.
37 Ibid., 37.
38 Ibid., 38.
39 Ibid., 38-40.
42 Ibid.
43 Ibid., 40-42.
44 Ibid., 42-43.
45 Ibid., 43.
46 É interessante observar, porém, que a preposição ei)j ligada ao verbo bapti/zw nem
sempre indica o propósito do batismo. Em Mc. 1.9 indica o elemento do batismo, ou seja,
o rio Jordão. Às vezes, indica referência ou relação, como por exemplo, onde o nome ou a
pessoa de Jesus é mencionada, cf. Mt. 28.19; At 8.16; 19.5; Rm. 6.3. E mesmo pode
indicar o tipo de batismo, ver At 19.3 ou a causa do batismo, Mt. 3.11. Em1 Co 12.13
indica o alvo do batismo, que é incorporar o crente no corpo de Cristo.
47 Entre as traduções modernas em Inglês que adotam "por" estão: KJV, NKJV, AV, RSV,
NEB, NIV, NAS, TEV, GNB, NCV, Phillips, Mofatt, etc. Em Português, quase que a maioria
das traduções prefere "em". Os comentários estão divididos. Alguns preferem "por"
(Calvino, Clark, Hodge, Kistemaker, Chafin, MacArthur, Bengel, Alford); outros, "em" ou
"com" (Morris, Findlay, Lenski, Goud, Grosheide, Robertson & Plummer).
O Catecismo de Heidelberg:
Sua História e Influência
Alderi Mattos*
Uma das principais características da Reforma Protestante do século XVI foi a produção
de um grande número de declarações doutrinárias na forma de confissões e catecismos.
Estas declarações resultaram tanto de necessidades teológicas quanto pastorais, à
medida em que os novos grupos definiam a sua identidade em um complexo ambiente
religioso, cultural, social e político. Mark Noll observa que esse fenômeno é típico da
Reforma, uma vez que o termo "confissão", em seu sentido mais comum, designa as
declarações formais da fé cristã escritas especialmente por protestantes, desde o início do
seu movimento.(1)
Antecedentes históricos
Frederico precisava de teólogos que pudessem trabalhar juntos. Ele encontrou uma dupla
notável em Zacarias Ursino e Gaspar Oleviano, talentosos teólogos de orientação suíça,
ambos com menos de 30 anos. Ursino foi nomeado professor de teologia ele havia
iniciado a sua educação teológica com Melanchton, mas também estudara pessoalmente
com Calvino. Oleviano era um protestante reformado francês que também havia estudado
com Calvino e apreciava os escritos de Melanchton. Ele tornou-se o pastor da principal
igreja de Heidelberg.
Noll comenta que "juntos eles formaram uma equipe de rara compatibilidade (...) Ambos
estavam ansiosos para trabalhar juntos a fim de apresentar uma frente protestante
comum. E ambos tinham o dom de discernimento pastoral."(8) Seus nomes ficariam
permanentemente associados ao produto mais influente do movimento reformado alemão
o Catecismo de Heidelberg, publicado a 19 de janeiro de 1563.
Os Contribuidores
Zacarias Ursino
Zacarias Ursino (1534-1583) nasceu na cidade silésia de Breslau (hoje na Polônia). Seu
pai era um homem de recursos modestos, mas Zacarias teve uma excelente educação
preparatória graças às suas conexões e ao apoio de um benfeitor Dr. João Crato, o
médico da família.
Na sua juventude, Ursino foi grandemente influenciado pelo seu pastor, Miobano, um
luterano com tendências calvinistas. Ursino passou quase sete anos em Wittenberg
(1550-57) sob a orientação de Filipe Melanchton, ao qual se apegara fortemente. Ali ele
estudou lógica, dialética e teologia.
Quando Melanchton foi para a conferência de Worms (1557), levou Ursino consigo. Ao
terminar a conferência, Ursino passou dez dias em Heidelberg com o eleitor Oto Henrique.
Em 1557-58 ele foi para a Suíça e a França numa viagem de estudos, e visitou todas as
figuras conhecidas que pode, inclusive Calvino. Logo após regressar para Wittenberg foi
chamado para ensinar em sua cidade natal, mas teve de partir em abril de 1560 durante
uma controvérsia a respeito da Ceia do Senhor. Ele então foi para Zurique, onde Pedro
Mártir o conduziu a um calvinismo explícito.
"Com 27 anos, Ursino era um estudioso altamente preparado, apreciador dos clássicos e
da poesia, e familiarizado com todo o campo da teologia."(9) Ele foi para Heidelberg em
setembro de 1561. Com a reação luterana que se seguiu à morte de Frederico III, ele
mudou-se para Neustadt, onde passou os últimos cinco anos da sua vida, ensinando na
escola fundada por João Casimir.
À semelhança de Calvino, Ursino era um estudioso retraído que tinha a modesta ambição
de levar uma vida tranqüila; porém, a sua posição em Heidelberg tornou isto
impossível.(10) O conselho afixado à sua porta em Neustadt é bastante revelador da sua
personalidade: "Meu amigo, seja você quem for, torne a sua visita breve, vá embora, ou
ajude-me no meu trabalho."(11)
Ursino sempre afirmou que pertencia à igreja evangélica. Derk Visser observa que "ele
não pode ser categorizado como pertencente a nenhuma escola ou movimento que não
seja a igreja evangélica."(12) Ele esteve sempre ansioso por encontrar fórmulas
conciliatórias e lutou sinceramente pela paz teológica.
Zacarias Ursino escreveu ou editou algumas das obras mais fundamentais da Igreja
Reformada Alemã. A exposição mais sistemática da sua teologia pode ser encontrada no
seu comentário sobre o Catecismo de Heidelberg. Peter A. Lillback argumenta que outra
importante contribuição feita por ele à teologia reformada foi "a primeira apresentação
claramente articulada do pacto das obras, que Ursino denominou como o `pacto da
criação' ou o `pacto da natureza'."(13)
Gaspar Oleviano
Kaspar von Olewig (1536-1587) nasceu em Treves, na fronteira de Luxemburgo. Seu pai
era o chefe da associação de padeiros da cidade. O jovem Oleviano freqüentou escolas
católicas; aos quatorze anos foi para Paris e mais tarde, à semelhança de Calvino,
estudou direito em Orleans e Bourges (1550-57). Quando estava em Bourges, conheceu
o futuro eleitor ao tentar, em vão, salvar o filho de Frederico quando o mesmo se
afogava. Durante aqueles anos ele foi influenciado por estudantes huguenotes e tornou-
se um calvinista.(14)
Após a sua formatura, Oleviano estudou com vários líderes protestantes na Suíça (Pedro
Mártir, Beza e Calvino) e foi incentivado a voltar para Treves. Não havia nenhuma igreja
protestante na cidade. Oleviano ensinou por um ano e meio na academia local e em
agosto de 1560 pregou um sermão eletrizante no qual atacou a missa, o culto dos santos,
procissões e outras práticas católicas. Ele suplicou ao povo que observasse os
ensinamentos das Escrituras. Dois meses depois foi preso juntamente com o prefeito e
outras pessoas que o apoiaram.
A Produção do Heidelberger
Com respeito a Oleviano, Lyle Bierma observa que a historiografia dos últimos 350 anos o
havia ligado a pelo menos duas fases da obra: a redação dos esboços iniciais e a redação
final da primeira edição alemã.(19) Ele mesmo acredita que o papel de Oleviano foi o de
um redator intermediário ele teria preparado um esboço do texto alemão baseado em
grande parte na Catechesis Minor de Ursino (1562), que então apresentou o referido
esboço a um grupo maior de teólogos e pastores para a elaboração final.(20)
O catecismo foi publicado inicialmente sob o título Catecismo ou Instrução Cristã como
tem sido transmitida nas Igrejas e Escolas do Palatinado Eleitoral.(21) Questões
controvertidas quanto à Ceia do Senhor foram evitadas e o conceito calvinista da
predestinação foi apresentado de uma forma mais moderada.
Uma edição latina publicada em 1563 foi usada como base para várias traduções para o
inglês. O Catecismo Palatino, como veio a ser chamado, teve ampla aceitação na Escócia.
A sua aprovação pelo Sínodo de Dort (1618) aumentou grandemente a sua autoridade.
A Recepção do Heidelberger
O próximo eleitor, Luís VII (1576-83), filho de Frederico, agiu visando abolir a Igreja
Reformada e restaurar o luteranismo estrito. Cerca de 600 pastores e professores foram
expulsos, entre os quais Oleviano, que foi para Nassau-Dillenburg, e Ursino, que
refugiou-se na corte do eleitor João Casimir. Casimir sucedeu a seu irmão e restaurou o
calvinismo. Mais tarde, Frederico IV (1592-1610) continuaria a favorecer a Igreja
Reformada e a fortalecer a sua organização.(23)
O Heidelberger teria uma influência ainda maior na Holanda. Por volta de 1586 os
ministros da igreja protestante holandesa precisavam subscrevê-lo como expressão de
sua fé, e ele tornou-se a base da "pregação catequética" semanal tanto na Holanda
quanto na Alemanha.
Principais características
O Catecismo de Heidelberg tem sido destacado como a mais bela das confissões de fé
produzidas pela Reforma Protestante, e a mais generosa e pessoal dentre as exposições
do Calvinismo.
O documento tem três divisões principais: a Primeira Parte - Nosso Pecado e Culpa: A Lei
de Deus (perguntas 3 a 11), é uma confissão da pecaminosidade humana e do desprazer
de Deus. A Segunda Parte - Nossa Redenção e Liberdade: A Graça de Deus em Jesus
Cristo (perguntas 12 a 85), revela o plano de redenção e inclui uma exposição do Credo
dos Apóstolos. A Terceira Parte - Nossa Gratidão e Obediência: Nova Vida através do
Espírito Santo (perguntas 86 a 129), apresenta a gratidão obediente como o fundamento
das boas obras e inclui uma exposição dos Dez Mandamentos e da Oração Dominical.
Esta seção vê a vida cristã como a resposta de gratidão do crente às bênçãos de Deus. O
catecismo constitui-se em um "pequeno clássico da vida devocional."(26)
Os estudiosos têm destacado algumas outras características que tornam este documento
especialmente notável:
(a) O uso do pronome da primeira pessoa, muitas vezes no singular, "confere ao seu
testemunho evangélico um tom caloroso e pessoal."(27) Bons exemplos disto são a
pergunta n° 1: "Qual é o teu único consolo, na vida e na morte?" Resposta: "Que eu
pertenço corpo e alma, na vida e na morte não a mim mesmo, mas ao meu fiel Salvador,
Jesus Cristo..."; e a definição de fé encontrada na resposta à pergunta n° 21: "É não
somente um conhecimento seguro pelo qual eu aceito como verdadeiro tudo o que Deus
nos revelou em sua Palavra, mas também uma confiança plena de que o Espírito Santo
cria em mim através do evangelho..."
(c) Possui um caráter inteiramente bíblico; toda a sua estrutura é moldada pela
perspectiva bíblica. O catecismo deixa a Bíblia falar e não procura substituí-la.
Outros temas importantes são a sua ênfase na bondade e providência de Deus, sua forte
preocupação soteriológica e sua insistência numa "interioridade que não se torna em
mera subjetividade."(32) Joseph Hall comenta que "o Catecismo de Heidelberg presta-se
a uma pedagogia holística. Ele contém perguntas cognitivas com respostas
devocionais."(33) Isto pode ser visto nas perguntas e respostas sobre a Oração Dominical
(119-129).
Influência duradoura
Por mais de quatrocentos anos o Catecismo de Heidelberg tem sido uma fonte de
conforto, encorajamento e alimento espiritual para muitas gerações de cristãos em vários
continentes. Ele não só tem proporcionado inspiração a homens e mulheres que
enfrentam pressões externas e lutas interiores, mas também tem sido um poderoso
incentivo ao diálogo e à aceitação mútua entre diferentes grupos e tradições cristãs. Isto
se tornou possível, por um lado, graças às circunstâncias peculiares que contribuíram
para a sua composição e, por outro lado, devido à maneira feliz com que seus autores
expressaram as antigas verdades de um modo que se tornou relevante e significativo
para os seus contemporâneos naqueles dias turbulentos.
Espera-se que as igrejas reformadas deste final do século XX possam conhecer e utilizar
melhor mais este valioso elemento de nossa herança evangélica.
___________________________
NOTAS
1. M. Noll, Confessions and Catechisms of the Reformation (Grand Rapids: Baker, 1991)
13.
2. Ibid., 14.
3. Learning Jesus Christ through the Heidelberg Catechism (Grand Rapids: Eerdmans,
1964) 22.
4. John T. McNeill, The History and Character of Calvinism (New York: Oxford University
Press, 1954) 268. (Nota do Editor: A Renânia é aquela parte da Alemanha que fica a
oeste do rio Reno, encompassando diversas regiões, como o Vale Superior do Reno, o
Palatinado, etc. As principais cidades desta área são Bonn, Colonia e Aachen).
5. Euan Cameron, The European Reformation (Oxford: Clarendon House, 1991) 369.
10. Christopher J. Burchill, "On the Consolation of a Christian Scholar: Zacharias Ursinus
(1534-83) and the Reformation in Heidelberg," em Journal of Ecclesiastical History 37/4
(1985) 565-83, 583.
14. McNeill, History and Character of Calvinism, 270; Edward J. Masselink, The Heidelbeg
Story (Grand Rapids: Baker, 1964) 64.
17. Joseph H. Hall, "Reformed Catechetics," em Concordia Journal 5/6 (November) 205-
207.
19. Lyle Bierma, "Olevianus and the Authorship of the Heidelberg Catechism: Another
Look," em Sixteenth Century Journal 13/4 (1982) 17-27, 17.
21. Thomas F. Torrance, The School of Faith: The Catechisms of the Reformed Church
(New York: Harper & Brothers, 1959) 67.
31. B. Vassady, "Our Only Comfort," em Theology and Life 6/1 (1963) 7-16, 10-11.
De uns poucos anos para cá, quase da noite para o dia, se compararmos à idade do
cristianismo, alguns setores da igreja evangélica têm sido tomados de um desejo
incontido de crescimento a qualquer custo. O Movimento de Crescimento de Igreja (1)
tem surgido em toda a sua força, e o crescimento tem sido exigido a qualquer preço. Por
essa razão, uma coletânea enorme de metodologias e técnicas tem sido empregada para
que o sucesso da igreja apareça.
O mais lamentável é que o crescimento de algumas igrejas locais tem sido conseguido às
custas do sacrifício da verdadeira doutrina e do abandono de uma liturgia sadia. Com
isso, os templos e os salões têm ficado lotados em suas reuniões. Como a evangelização
moderna tem sido antropocêntrica, dizendo ao ouvinte aquilo que se pensa que o
incrédulo quer ouvir, também a forma do culto tem sido elaborada de modo a atrair
pessoas para adorar a Deus. A adoração moderna é planejada para atrair pessoas (os
consumidores de música contemporânea) ao invés de ser promovida para que as pessoas
levantem os olhos para o céu para cultuar corretamente o verdadeiro Deus. Ao invés de
prepararmos pessoas para serem membros do sacerdócio real, da nação santa, povo de
propriedade exclusiva de Deus, para aprenderem sobre o verdadeiro Deus e a vida eterna
em Cristo Jesus, estamos estimulando essas pessoas a apurarem o paladar por aquilo que
o entretenimento moderno já lhes apresentou. Antes que verdadeiros adoradores,
estamos vendo pessoas preocupadas com o consumo musical e litúrgico, querendo ouvir
o que lhes agrada, e não o que agrada a Deus.
Atualmente, muitas pessoas, inclusive membros de igreja, não estão dispostas a usar a
mente, o corpo, a alma, enfim todo o seu ser, numa congregação onde existe um sólido
ensino da sã doutrina, uma pregação expositiva fiel da Santa Escritura e uma adoração
racional e reverente. Elas preferem uma reunião em que a Palavra é deixada de lado,
mas o "louvor" é a tônica, num encontro de fato movimentado, ao paladar do tempo
presente. Não há o verdadeiro compromisso com o reino de Deus, mas ainda assim, o
crescimento da igreja é a maior preocupação do movimento que utiliza esse nome,
mesmo que seja com o prejuízo de elementos fundamentais da verdadeira adoração e da
sã doutrina.
O Movimento de Crescimento de Igreja tem se concentrado numa forma de culto ao gosto
do espírito de nosso tempo e de uma evangelização barata, ao invés de ser o produto da
obra soberana do Espírito de Deus no meio do seu povo, e dum posicionamento correto
do seu povo para com a Palavra de Deus.
Contudo, todos os cristãos sensatos entendem que a igreja deve crescer qualitativa e
quantitativamente. Qual é, então, o modo pelo qual uma igreja deve crescer? Precisamos
de uma reforma ou de um reavivamento?
Esta pergunta não é a forma correta de levantar a questão. É absolutamente certo que
precisamos de ambos em nossa igreja contemporânea. Estas duas coisas têm que andar
necessariamente juntas. Do contrário, o reavivamento será um fracasso em termos de
correção da verdade e a reforma poderá ser um fracasso porque a verdade poderá ser
apresentada com aridez doutrinária. Portanto, há que se ter em mente as duas coisas
para o bom andamento da igreja de Deus no final deste segundo milênio.
A palavra Reforma é mágica para o meu coração, assim como estou certo que é para o de
vocês. Quando vocês falam em Reforma, imediatamente pensam naquele heróico tempo
do séc. XVI, quando muitos eventos momentâneos aconteceram e que ainda brilham
ardentemente em nossa imaginação.(2)
A Reforma foi um movimento histórico do séc. XVI, mas ela precisa acontecer de novo,
sempre que necessária, na vida da igreja. Precisamos desesperadamente dela outra vez
em nossas igrejas, porque estamos em tempo de confusão doutrinária, tempos de
vacilação teológica, tempos de incerteza cúltica. Alguns ministros, porém, nem sequer
sonham com uma reforma novamente. Provavelmente, eles acreditam possuir razões
teológicas para essa posição.
Para tristeza nossa, o nome "Reforma" levanta suspeitas na mente de alguns ministros
que querem o crescimento de igreja a qualquer custo, porque o nome "Reforma"
relembra um estudo sério da Palavra, compromisso inequívoco com o reino de Deus,
rompimento com o erro e com a falsa adoração. A idéia de reforma não é bem-vinda
porque vai exigir dos ministros um estudo sério das suas posições, uma reavaliação da
sua conduta litúrgica e teológica. Foi isto que a Reforma Protestante exigiu dos ministros
de Deus no séc. XVI. E nós estamos longe daquilo que foi proposto no passado. Não
obstante a opinião deles, temos que dar uma grande ênfase à necessidade de verdadeira
reforma na vida da igreja contemporânea. Muitas coisas da Reforma histórica já foram
esquecidas e deixadas de lado. Temos que resgatar a nossa herança Reformada e trazer
de volta as belas coisas perdidas.
Definição de Reforma
Reforma é a descoberta da verdade bíblica que conduz à purificação da teologia. Ela
envolve a redescoberta da Bíblia como o juiz e o guia de todo pensamento e ação; ela
corrige os erros de interpretação; ela dá precisão, coerência e coragem para a confissão
doutrinária; ela dá forma e energia à adoração corporativa do Deus triúno.(3)
É disto exatamente que precisamos para que a verdade de Deus seja honrada e o povo
de Deus devidamente instruído. Quando Lutero foi confrontado com a verdade de Deus,
ele nunca mais a abandonou. Mesmo quando ameaçado pelas autoridades religiosas do
seu tempo, apegado ao paradigma da verdade de Deus, Lutero dizia:
A menos que vocês provem para mim pela Escritura e pela razão que eu estou enganado,
eu não posso e não me retratarei. Minha consciência é cativa à Palavra de Deus. Ir contra
a minha consciência não é nem correto nem seguro. Aqui permaneço eu. Não há nada
mais que eu possa fazer. Que Deus me ajude. Amém.(4)
Ao invés de analisarmos o evento da Reforma do século XVI, que alguns tomam como
sendo simplesmente um evento humano, analisaremos uma reforma descrita na história
inspirada da redenção, que teve exatamente as mesmas características da Reforma do
séc. XVI, porque ambas foram causadas pelo mesmo Deus, o Espírito.
O exemplo bem claro do que acabamos de dizer está registrado na Escritura em eventos
ocorridos no tempo do rei Josias (2 Rs 22), que passo a analisar:
Ela estava escondida por falta de interesse na Palavra. O povo ignorava a Lei de Deus
porque a liderança não estava interessada nela. Se estivesse, ela procuraria uma cópia da
Lei para dar ao povo, mas não havia qualquer interesse, da parte da classe dominante,
em que as coisas fossem mudadas. A Lei de Deus, porém, quando levada em conta
seriamente, causa mudanças nos paradigmas de um povo. Imaginem como os sacerdotes
da época poderiam conduzir o povo de Israel sem o código de fé e prática. A que ponto
pode chegar um povo sem a bússola que lhes aponta o norte! Por essa razão havia uma
enorme impiedade no meio do povo.
1. Para que haja verdadeira Reforma a Palavra tem que ser redescoberta
Mas o Livro da Lei foi descoberto "casualmente" pelo sacerdote Hilquias. Esta foi a missão
do sacerdote Hilquias: Então disse o sumo sacerdote Hilquias ao escrivão Safã: Achei o
Livro da Lei na casa do Senhor. Hilquias entregou o livro a Safã, e este o leu (2 Rs 22.8).
O Livro da Lei estava perdido dentro do próprio templo. Isso me faz lembrar da velha
senhora que não lia a Bíblia porque havia perdido os óculos, quando estes haviam sido
deixados dentro da própria Bíblia. Muitos ignoram a Escritura, quando ela está bem
próxima deles, à disposição deles nos lugares onde vivem e adoram.
Os chamados "crentes", se é que são de Deus, têm que redescobrir o valor da Palavra de
Deus. Para haver uma reforma genuína, é condição indispensável que haja uma
redescoberta do valor da Santa Escritura.
2. Para que haja verdadeira Reforma a Palavra tem que ser devidamente
interpretada
Esta foi a missão da profetiza Hulda: Ide, consultai o Senhor por mim, pelo povo e por
todo o Judá, acerca das palavras deste livro que se achou; porque grande é o furor do
Senhor, que se acendeu contra nós, porquanto nossos pais não deram ouvidos às
palavras deste livro, para fazerem segundo tudo quanto de nós está escrito (2 Rs 22.13).
Percebam que o rei Josias queria saber o significado correto daquilo que o Senhor havia
escrito no Livro da Lei. Por essa razão, os homens do rei foram enviados para a profetiza,
para que ela lhes dissesse o significado das palavras do Livro da Lei. A palavra da
profetiza ali era considerada cheia de autoridade, e ela sabia o sentido que o Senhor
queria dar às palavras. Não é importante somente ler a Escritura, mas também entender
o seu significado.
A situação da igreja hoje não é muito diferente da situação dos tempos do rei Josias. É
verdade que a Bíblia não está escondida literalmente do mesmo modo como ficou no
tempo de Josias, mas o seu real sentido e sua real mensagem estão escondidos de
muitos crentes hoje. As pessoas têm a Bíblia à sua disposição, mas não conhecem o
conteúdo real, nem possuem a hermenêutica correta para a sua devida interpretação. A
reforma de uma igreja implica na redescoberta da Palavra de Deus. A conditio sine qua
non para que a igreja cresça é o conhecimento correto da verdade de Deus. Os crentes,
em geral, precisam redescobrir a verdade de Deus. Este é um desafio que todos nós
precisamos aceitar.
Todos hoje usam a Escritura para defender os seus pressupostos. O grande problema,
contudo, não é a citação da Escritura, mas o modo como a abordamos. A tarefa
hermenêutica da igreja é algo supremamente determinante para o correto entendimento
da verdade de Deus.
3. Para que haja verdadeira Reforma a Palavra tem que ser urgentemente
proclamada
Ela (Hulda) lhes disse: Assim diz o Senhor, o Deus de Israel: Dizei ao
homem que vos enviou a mim: Assim diz o Senhor: Eis que trarei males
sobre este lugar, e sobre os seus moradores, a saber, todas as palavras do
livro que leu o rei de Judá. Visto que me deixaram, e queimaram incenso a
outros deuses, para me provocarem à ira com todas as obras das suas
mãos, o meu furor se acendeu contra este lugar, e não se apagará (2 Rs
22.15-17).
A distância da Palavra de Deus faz com que um povo se afaste de Deus. Não é possível
ter uma ética sadia sem que se conheça a Palavra do Senhor que dita as normas de
comportamento. Por essa ausência da Palavra o povo estava prestes a receber o castigo
de Deus. A mensageira de Deus não teve nenhum constrangimento em trazer a verdade
da Palavra aos seus contemporâneos. Era uma mensagem dura, mas eles precisavam
ouvir o que Deus lhes tinha a dizer. A reforma proposta pela Palavra de Deus tem que ser
urgentemente proclamada por aqueles a quem Deus chama para serem ministros da sua
Palavra.
4. Para que haja verdadeira Reforma tem que haver arrependimento de pecados
Essas coisas não devem ser diferentes hoje. A igreja de Deus tem que voltar-se para ele,
tem que chorar os seu pecado de ignorância da Santa Escritura. Somente quando houver
verdadeiro arrependimento é que a Reforma terá sido eficazmente processada.
Não há crescimento quantitativo nem qualitativo da igreja sem que haja a redescoberta
da verdade de Deus, sem que haja a interpretação correta da Palavra de Deus, sem que
haja a proclamação fiel dela e o conseqüente genuíno arrependimento de pecados, como
produto das três primeiras proposições.
O crescimento genuíno da igreja está vinculado a estas reformas que a Palavra de Deus
traz. É tolice pensar em crescimento da igreja sem que a base ou o fundamento
estabelecido pelos apóstolos e profetas seja devidamente redescoberto, interpretado,
proclamado e crido. Sem estas coisas há o inchaço, não o genuíno crescimento da igreja.
Uma teologia sadia leva à prática sadia. Nos tempos de Josias o culto estava deturpado
por causa de uma teologia destituída da verdade da Palavra de Deus. Este é o resultado
natural mesmo nos dias de hoje. Quando se abandona o ensino da Escritura, quebram-se
os padrões de comportamento de um povo, inclusive os elementos constituintes da
verdadeira adoração.
A primeira atitude tomada pelo rei Josias foi convocar todo o povo para que subisse à
casa de Deus, para ouvir a leitura do livro da Palavra de Deus que fora encontrado por
Hilquias (2 Rs 23.2). Após ouvirem a leitura, o rei e todo povo se dispuseram a seguir a
Palavra do Senhor de todo o coração e de toda a alma. A beleza dessa atitude, é que o
povo se dispôs a obedecer a todas as palavras, e não somente aos textos que
combinavam com o que eles pensavam (2 Rs 23.4).
Para que haja a restauração da verdadeira adoração à luz da verdade bíblica, algumas
providências têm que ser tomadas:
Estas atitudes do rei foram muito duras, mas extremamente necessárias. Provera a Deus
que as autoridades eclesiásticas tivessem a mesma santa energia para tomar as
providências necessárias para sanar os males existentes na presente adoração cristã,
para o benefício do povo de Deus, e para a honra dele.
Está evidente do texto sagrado que a atitude extrema do rei Josias com relação aos
sacerdotes idólatras, isto é, a sua eliminação do meio do povo de Deus (2 Rs 23.20), não
está em consonância com o espírito do tempo presente, mas ao menos podemos dizer
que temos que reagir fortemente aos homens que tentam implantar algo que não
combina com o que Deus prescreve na Sua Palavra com respeito ao culto. Não se pode
ficar passivo quando está em jogo o verdadeiro culto a Deus.
O que Josias fez com relação aos sacerdotes que não cultuavam verdadeiramente a Deus
é algo que as autoridades eclesiásticas deveriam fazer. Os ministros infiéis no serviço do
culto deveriam ser destituídos de sua função por não obedecerem os padrões gerais
devidamente estabelecidos pela Escritura. Há muitos ministros que fazem o que bem
entendem e ninguém lhes põe a mão. Andam à vontade, gesticulam como lhes agrada e
agem como agrada ao povo. A falta não é somente dos que erroneamente inovam no
serviço divino, mas também daqueles que fazem vista grossa ou que não possuem a
devida coerência e noção de disciplina cristãs para destituírem esses ministros de suas
funções.
Tudo o que é estranho ao culto do Senhor deve ser eliminado dos lugares de verdadeira
adoração. Deus deveria ser adorado com os instrumentos prescritos por Ele próprio. Era
assim a regra para os cultos prescritos na Escritura do VT. Todos os objetos que eram
estranhos ao culto divino, por pertencerem aos cultos de deuses estranhos, deviam ser
terminantemente abolidos do templo e das atividades cúlticas.
Hoje, nos tempos da adoração cristã, devemos ter o mesmo cuidado e o mesmo zelo. Não
existe a idolatria nos mesmos moldes daquela época, mas há coisas que se evidenciam
bastante estranhas ao culto de nosso Deus e do Salvador Jesus Cristo. Não me refiro
simplesmente a objetos como os mencionados no texto analisado, embora os leitores já
tenham ouvido de lenços ou copos de água serem ungidos, ou ainda óleo trazido de Israel
servindo de amuleto para a cura de muita gente, ou ainda vinho de Israel, e coisas que
tais. Com relação ao culto, então, há a introdução de elementos estranhos que são uma
imitação clara daquilo que é usado para as mais loucas manifestações musicais de que se
tem notícia em todas as épocas, músicas essas que servem não só para o
entretenimento, mas também para manifestações cúlticas ligadas ao maligno.
Certamente há algumas coisas que precisam ser revistas em nossa adoração hoje. O
problema não é de simples inovação, mas também é de desprezo ao que é antigo, um
desprezo à história, ao que nossos ancestrais na fé nos legaram, que podem
perfeitamente ser preservados. Da mesma forma que no tempo de Josias os sacerdotes
se esqueceram das prescrições antigas, assim os de hoje se esquecem, também.
1c. A eliminação dos altares que eram usados para o culto pagão
• •
(2Rs 23.8-15)
Josias também aboliu as cerimônias pagãs que campeavam em todo o seu reino. Num
tempo assim, as reformas tinham que ser drásticas. Não havia meio de se suportar
elementos dos cultos pagãos misturados com o santo culto divino.
É assim que a igreja de Cristo tem que proceder. Não podemos mais tolerar aqueles que
querem permanecer no nosso meio alterando aquilo que é certo pelo errado, e ainda
colocando-nos na posição de errados, como se estivéssemos na qualidade de "coisas
antigas", coisas ultrapassadas. Antigüidade não é sinônimo de obsolescência. Se assim
fosse, o que haveríamos de fazer com o evangelho? Se o problema é a importação de
cultura estrangeira a americanização ou a europeização em nosso culto, temos de
abandonar a cultura judaico-cristã, que tanto influenciou a nossa maneira de pensar e de
cultuar a Deus. O que é estranho ao culto cristão tem que ser tirado, não as influências
benéficas que recebemos de outros povos que nos trouxeram o santo evangelho.
Uma reforma, contudo, tem que ser acompanhada de um verdadeiro espírito de amor a
Deus e de serviço cristão. A Reforma do séc. XVI não foi uma mera purificação teológica
ou litúrgica, mas ela foi acompanhada e seguida de um doce espírito de amor a Jesus
Cristo, o Salvador, e um grande amor pelos pecadores ignorantes. Milhares de milhares
foram trazidos a Cristo naquela época. O Santo Espírito varreu aquelas regiões onde a
Reforma chegou. Sem dúvida, foi um tempo de grande reavivamento espiritual.
A Escritura inspirada tem exemplos dessa natureza. Um deles é o acontecido nos tempos
do rei Asa. A reforma que veio ao povo de Israel nos tempos do rei Asa durou algum
tempo antes do reavivamento começar. Primeiro Asa fez as reformas religiosas instando o
povo a buscar a Palavra do Senhor (2 Cr 14.4), fazendo também a reforma do culto
(como no tempo de Josias), que constou da derrubada dos altares (2 Cr 14.3, 5). Após
essa reforma que trouxe prosperidade ao povo (2 Cr 14.6-7) e vitória sobre as outras
nações inimigas (2 Cr 14.9-15), começou o despertamento espiritual do povo, a começar
do rei.
A palavra "Reavivamento" soa mais docemente aos ouvidos dos crentes hoje por causa
dos santos anelos de vigor espiritual que muitos crentes realmente possuem, mas
infelizmente, esse termo tem sido usado impropriamente por alguns advogados
aficionados ao movimento do crescimento da igreja. Precisamos desesperadamente de
um reavivamento genuíno, e é por isto que verdadeiramente oramos. Sem ele, a igreja
do tempo presente, sob muitas pressões teológicas e litúrgicas estranhas de todos os
lados, está destinada ao amargamento ou ao conservadorismo árido, do qual todos nós
queremos ficar longe.
Definição de Reavivamento
Um reavivamento que é produto da obra do Espírito Santo na igreja, certamente tem sua
ênfase naquilo que têm sido esquecido por muito tempo: a Palavra de Deus. A autoridade
da Palavra de Deus passa ser algo extremamente forte num movimento genuíno de
reavivamento. A Bíblia passa novamente a ser honrada como a única Palavra inspirada de
Deus.
Os ensinos da Bíblia não são verdades que atingem meramente o intelecto, mas elas
descem ao coração, fazendo com que elas se evidenciem em matéria prática de vida. Nas
palavras de Nettles, "reavivamento é a aplicação da verdade da Reforma à experiência
humana."(7) Via de regra, um reavivamento genuíno vem com internalização das
doutrinas apreendidas pela Reforma. Uma igreja e uma comunidade atingidas pelo
Espírito de Deus possuem verdade descoberta na Reforma experiencialmente crida e
vivida pelos seus membros.
As pessoas atingidas pela obra do Espírito passam a viver santamente, tendo seriedade
com as verdades das Escrituras como um todo e levam a serio o destino eterno delas. Um
senso de profundo arrependimento pelos pecados e anelos de santidade enchem o
coração dos atingidos pelo reavivamento. Isso diz respeito à vida dos crentes que até
então estavam amortecidos.
Com respeito à comunidade maior, aos alienados da igreja, surge uma preocupação pelas
coisas espirituais nunca outrora vista. O espírito de seriedade para com o destino eterno
dessas pessoas é produto direto de uma ação de Deus nelas. Então, elas passam a buscar
a verdade e a ter um real desejo da salvação em Cristo. O evangelho lhes é pregado, e
muitos são trazidos a Cristo Jesus.
4. As pessoas são impactadas por uma obra repentina de Deus
Não há meio de se separar reforma de reavivamento. São irmãos gêmeos nas grandes
obras de Deus. Esta talvez seja a ênfase que mais nos interessa neste momento, porque
as muitas coisas que estão acontecendo no meio da igreja brasileira necessitam de uma
definição como esta, que lhes faça plena justiça.
Quando falamos de crescimento de igreja temos que olhá-lo como uma moeda com dois
lados. De um lado é a Reforma; do outro e o Reavivamento. A primeira traz a solidez e a
pureza doutrinárias, elementos essenciais para que a igreja cresça qualitativamente; a
segunda traz a verdade doutrinária extrema viva e ardente em nossos corações,
impulsionando o povo de Deus a uma vida limpa e de testemunho sincero e voluntário da
experiência vivida com Deus e a pujante proclamação da verdade da Escritura, elementos
absolutamente vitais para o crescimento da igreja. Isto faz com que a igreja também
cresça quantitativamente. Perceba que os dois elementos, reforma e reavivamento, são
entrelaçados e inseparáveis, porque são causados pelo mesmo Deus. Não há volta à
verdade sem Deus e muito menos amor à verdade sem Ele. O curioso é que esses dois
elementos estavam presentes em todas os grandes movimentos da história do povo de
Deus no VT, no NT , na Reforma Protestante do século XVI, no período dos Puritanos, do
Pietismo e do Metodismo, além dos reavivamentos posteriores na Grã- Bretanha e nos
Estados Unidos.
Reforma e Reavivamento dizem respeito à volta às antigas e sãs doutrinas e zelo ardente
e cheio de amor por elas e pelo povo de Deus. Não é disso que precisamos novamente?
Ainda pairam dúvidas na mente dos leitores sobre a necessidade dessa "dobradinha" de
Deus, reforma e reavivamento, para que haja o crescimento genuíno da igreja no Brasil?
Por que, então, continuar na ênfase de movimentos que não trazem crescimento
qualitativo? Isso não é justo para com o povo de Deus e, muito menos, com o Deus desse
povo, de Quem tanto precisamos!
Conclusão
Numa reforma sem reavivamento pode haver uma exatidão dos conceitos, mas
certamente haverá aridez no pensamento; num reavivamento sem reforma, poderá haver
o desequilíbrio emocional e o perigo da distorção da verdade. Na verdade, estas coisas
vêm juntas, inseparáveis, como dois dons gêmeos de Deus para o enriquecimento do Seu
povo. O poder de Deus num reavivamento tem que ser experimentado à luz das próprias
diretrizes doutrinárias que têm origem numa reforma teológica e litúrgica sadias
baseadas na Santa Escritura.
Essas duas coisas absolutamente necessárias para a vida sadia da igreja são causadas
pelo Espírito Santo mediante o uso de Sua Palavra. Perceba que é difícil estabelecer uma
linha divisória absoluta entre reavivamento e reforma. Por isso ambos devem andar
juntos e inseparáveis.
O que você pode fazer para que essa dobradinha de Deus venha em sua igreja? Comece
a estudar a Escritura muito seriamente. Leve em conta tudo o que Deus diz em Sua
Palavra. De resto, continue em compasso de esperança, mas fazendo o que fez
Habacuque, dizendo incansavelmente: Aviva Senhor a tua obra, ó Senhor, no decorrer
dos anos, e no decurso dos anos, faze-a conhecida; na tua ira, lembra-te da misericórdia
(Hc 3.2).
___________________________
Notas
1 Esse movimento teve início nos Estados Unidos com o missionário Donald A. McGavran.
Coube a C. Peter Wagner, que o substituiu como diretor e professor da Escola de Missões
Mundiais e do Instituto de Crescimento de Igreja, ambos ligados ao Seminário de Fuller,
sistematizar e popularizar os conceitos de Crescimento de Igreja. Seus livros têm sido
traduzidos e distribuidos no Brasil. Para uma avaliação crítica do atual movimento ver
ainda Theological Perspectives on Church Growth, editado por Harvey Conn (Philadelphia:
Presbyterian and Reformed, 1977).
2 J.I. Packer, Laid Back Religion? (Leicester, England: Intervarsity Press, 1993) 145.
3 Tom Nettles, "A Better Way: Church Growth Through Revival and Reformation", em
Power Religion, editado por Michael Scott Horton, (Chicago: Moody Press, 1992) 162.
5 Citado por Brian H. Edwards, Revival! A People Saturated with God (England:
Evangelical Press, 1990) 26.
6 Ibid., 27.
"Nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis". Os homens, inimigos de Deus, "jamais
podem chegar ao conhecimento da verdade" (2 Tm 3.1-7). Paulo não poderia imaginar a
sutileza de raciocínios em que tal inimizade se revelaria. O discurso no Areópago (At
17.22-31), tão necessário hoje quanto no dia em que foi proferido, é mais desprezado
que nunca pelos cultos doutores que, em rebeldia contra seu Criador (Rm 1.18-21),
repetem o motejar dos atenienses: "Sobre isso, Paulo, nós te ouviremos numa outra
ocasião" (At 17.32). A filosofia não-cristã sofre de um racionalismo ingênuo desde suas
origens helênicas, e a intelectualidade moderna abraçou definitivamente a utopia do ideal
científico e o mito da objetividade empírica, a falácia autofágica dos pressupostos
humanistas, como a autonomia do pensamento, que implica na rejeição de toda
autoridade e na absolutização do juízo crítico.(1) Hoje temos assistido à consumação
inevitável de tais compromissos anti-cristãos. O homem se mostra confiante na sua
racionalidade a qual supõe potencialmente onisciente, adorando-se como criador e
provedor, arquiteto e intérprete do universo, centro de toda a realidade, e o sentido do
mundo e da existência. Ele ouve a voz que lhe sussurra: "Certamente não morrerás; pelo
contrário, tu serás como o próprio Deus!" (Gn 3.4-5).
Precisamos de uma filosofia porque o pensamento teórico não é possível sem a estrutura
filosófica que o sustenta. Não é possível fazer teologia, nem ciência, sem um fundamento
filosófico.(7) Mas a deficiência das antigas filosofias cristãs, nas quais as teologias cristãs
vem se baseando por séculos, tornou-se patente. O pensador reformado não pode mais
agüentar os pressupostos platônicos, aristotélicos, tomistas, cartesianos, kantianos, ou de
qualquer outra espécie espúria que serviram e servem de sustentação para a sua
ponderação teórica. O pensador reformado tornou-se epistemologicamente consciente, e
exige um novo fundamento que se mostre de acordo com a sua fé. Mas onde podemos
encontrar uma filosofia que nos sirva? A filosofia de Tomás de Aquino de fato não nos
serve. Trata-se de uma filosofia de síntese, em que a fé cristã é submetida a um
desconfortável processo de adaptação ao aristotelismo. Nela, Deus não se distingue
inteiramente da sua criação posicionando-se meramente no topo da grande escala dos
seres. O elemento transcendente na filosofia tomista não é Deus, mas sim o "Ser". O
deus do tomismo não é o trino Deus auto-suficiente das Escrituras, mas sim a causa-não-
causada, mecanicamente ligado ao cosmos e dependente dele. Que fazer? Retornamos a
Agostinho? Sim, sem dúvida, naquilo em que o bispo de Hipona é irrepreensivelmente
evangélico, naquilo em que foi um verdadeiro precursor do pensamento reformado; mas
também Agostinho se deixou levar pelo "canto das sereias" grego, e nos oferece uma
filosofia cristã que carrega os farrapos tresandantes e desnecessários de um platonismo
decadente, em vez da nudez genuína de Jesus Cristo na cruz.
Refiro-me aos proponentes da filosofia reformada, cuja nau há muito navega com todas
as velas enfunadas em meio às ondas bravias do pensamento apóstata, e segue em alto
mar, clamando à intelectualidade contemporânea um retorno à sanidade do fides
quaerens intellectum, da distinção fundamental Criador-criatura, da submissão do
pensamento humanamente deficiente à autoridade revelacional de Deus em Jesus Cristo.
Num tempo em que o paganismo se agiganta e a cristandade se fragmenta, se corrompe,
e se emascula, eles surgem como apregoadores de uma nova apologética e de uma
filosofia reformada, fundamentada na Escritura, erguida sobre os cânones calvinistas, que
surge para eliminar uma lacuna que há muito traz um quase sempre indiagnosticável
incômodo ao pensador cristão que se posiciona na linha de João Calvino.
Neste artigo introdutório não será possível fazer muito mais além de apresentar ao
pensador reformado brasileiro os princípios básicos da filosofia e da apologética
reformada. Muitos conceitos parecerão estranhos, e as idéias poderão criar dúvidas. Faz-
se necessária uma explicitação conceitual mais aprofundada que ficará para outra
ocasião. O que segue, portanto, é meramente uma vista panorâmica e propedêutica dos
fundamentos da filosofia reformada.
Deus não pode, evidentemente, ser confundido com a criação.(21) A filosofia calvinista é
teísta. Em oposição aos sistemas monistas que identificam o cosmos criado com Deus
(panteísmo), ou eliminam a idéia de Deus inteiramente (ateísmo), ela pode ser também
considerada dualista. Existe uma diferença qualitativa infinita entre a mente de Deus e a
mente humana (Is 55.8). Não é que Deus saiba infinitamente mais que o homem, mas
sim que o saber divino é de qualidade diferente do saber humano.(22) A revelação divina
é a fronteira entre Deus e o cosmos.(23) A revelação de Deus traz sentido ao cosmos
criado, e exerce uma função legisladora sobre o mesmo. Deus não se limita à revelação;
Deus é o criador do cosmos e das leis que o regem, e não está sujeito às leis cósmicas,
nem mesmo às leis da lógica.(24)
Filosofia do pacto: tudo na vida é fundamentalmente religioso
Orientado pela revelação, o cristão pode interpretar o mundo corretamente, ainda que
não exaustivamente. O cristão pode e deve explorar o cosmos criado, bem como suas
próprias capacidades intelectivas. Essa atividade é, na verdade, um mandato bíblico (Gn
1.28). Na verdade, só o cristão, graças ao processo palingenético, genuinamente pode,
quer, e sabe fazê-lo, no poder do Espírito (Cl 3.10).(30) O pensamento não-cristão põe-
se em rebeldia contra o Criador, e afirma a autonomia da razão humana, a qual passa a
ser o tribunal supremo da verdade. Mas a pretensa razão autônoma não é realmente
livre. Ela é a razão escravizada pelo pecado que carrega o ser humano inevitavelmente
para a escravidão da idolatria. Somente a ação redentora do Espírito de Deus pode tornar
o homem livre da escravidão do pecado para a obediência de Cristo. E assim libertado, o
cristão recupera a capacidade de explorar de forma proveitosa a criação de Deus, pois
agora ele compreende que de Deus, por Deus, e para Deus são todas as coisas (Rm
11.36; cf. At 17.28).
A apologética reformada baseia-se no fato de que todos os homens intuem Deus (sensus
divinitatis). O homem rejeita seu conhecimento de Deus e o nega. Quando apresentamos
o evangelho aos incrédulos, estamos-lhes comunicando aquilo que eles em grande parte
já sabem, mas tentam ignorar e suprimir (Rm 1.18-25).(40) Este é, segundo a
apologética reformada, o nosso único ponto de contato (Anknüpfungspunkt) com os
incrédulos. Eis porque são vãos os apelos da apologética tradicional às "noções comuns" a
cristãos e não-cristãos, e à neutralidade da razão. Contrário ao que diz a apologética
clássica, a racionalidade humana não serve como ponto-de-contato.(41) Não há acordo
entre cristão e não-cristão em nenhuma área do conhecimento humano, em nenhum
aspecto de sua biocosmovisão.(42) A apologética pressuposicional ataca, portanto, o
coração do incrédulo, e consequentemente o coração da questão. Pensamento e fé são
funções do ser humano que operam unidas movendo-se em direção à obediência a Deus
ou à apostasia. A apologética calvinista busca, portanto, expôr os pressupostos básicos
que controlam o pensamento e a vida das pessoas. Isso envolve identificar e desmascarar
os motivos que direcionam as tendências por trás do estilo-de-vida de um indivíduo, de
uma família ou de toda uma sociedade. Eis porque a apologética e a filosofia reformadas
formam a base necessária e convidam o pensador cristão para se engajar na formação de
uma psicologia reformada, uma sociologia reformada, uma antropologia reformada, e
assim por diante. Assim como a filosofia reformada é antitética e bíblica, assim também
devem ser as ciências sob o ponto-de-vista calvinista. A filosofia reformada forma a
sustentação teorética necessária para o levantamento destes edifícios científicos. Fica
claro, portanto, que não estamos propondo a criação de glossas e apêndices, mas sim
uma verdadeira revolução na história do pensamento cristão, para maior glória do nome
de Cristo.
Conclusão
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Notas
7 Joel R. Beeke, "Cornelius Van Til and Reformed Apologetics" em Reformed Herald 51
(1995), 7. Veja Herman Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought (Jordan
Station: Paideia, 1984); e L. Kalsbeek, Contours of a Christian Philosophy (Toronto:
Wedge, 1975).
8 Plurívoco refere-se àquilo que tem sentido múltiplo, que é passível de ser interpretado
de formas diferentes. Posiciona-se, em tese, contra aquilo que é unívoco, que tem sentido
único, uma só interpretação possível.
9 Jacques Derrida, nascido em 1930, é filósofo francês e crítico literário. Ele é professor
da Ecole Normale Superieure em Paris. Suas teorias, conhecidas como pós-estruturalismo
e deconstrucionismo, embora relativamente desconhecidas no Brasil, são largamente
influentes nos Estados Unidos e na Europa. Em contraste ao estruturalismo de Fernand de
Saussure e seus seguidores, Derrida mantém que o sentido da linguagem é elusivo e
oculto, e que nenhuma interpretação definitiva pode ser estabelecida. Seu método crítico
consiste em "deconstruir" um texto pela exposição das pressuposições lingüísticas e
filosóficas ocultas no mesmo (Nota do Editor).
10 A nobre exceção é Francis Schaeffer, cuja obra de alcance mundial chegou também à
mão dos brasileiros, infelizmente em traduções irregulares. O mestre de L'Abri nunca
pretendeu fazer filosofia cristã a nível acadêmico. Schaeffer, todavia, prestou ao mundo
cristão o inestimável trabalho de popularizar a apologética Reformada pressuposicional
através de sua imaginativa obra. Veja The Complete Works of Francis Schaeffer 5 vols.
(Wheaton: Crossway, 1982). Nem todos estudiosos, entretanto, entendem que Schaeffer
era um pressuposicionalista coerente. Ver, por exemplo, o artigo de William Edgar, "Two
Christian Warriors: Cornelius Van Til and Francis Schaeffer Compared", em Westminster
Theological Journal 57/1 (1995) 57-80.
11 Knudsen, Calvinistic Philosophy, 10-17. Veja Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism
(Grand Rapids: Eerdmans, 1931).
12 Veja Cornelius Van Til, "Bavinck the Theologian" em Westminster Theological Journal
27 (1961) 1.
13 Veja David Hugh Freeman, Recent Studies in Philosophy and Theology (Philadelphia:
Presbyterian and Reformed, 1962); e Vincent Brümmer, Transcendental Criticism and
Christian Philosophy (Franeker: T. Wever, 1961).
14 Veja John H. Kok, Vollenhoven (Sioux Center: Dordt College Press, 1992).
16 Muitos outros ilustres pensadores calvinistas poderiam figurar em uma lista mais
detalhada: J. Woltjer, J. M. Spier, J. P. A. Mekkes, S. U. Zuidema, K. J. Popma, Hendrik
van Riessen, Pierre Charles Marcel, Robert D. Knudsen, K. Scott Oliphint, John Frame,
William Edgar, Vern S. Poythress, David A. Powlison, Rousas Rushdoony, Greg Bahnsen,
Hendrik Hart, James Olthuis, Calvin Seerveld, Bernard Zilstra, H. Evan Runner, entre
muitos outros. Ainda que os filósofos reformados estejam hoje espalhados por todo o
globo, algumas escolas de pós-graduação destacam-se por sustentar, ao menos em
parte, a filosofia calvinista, como por exemplo a Vrije Universiteit de Amsterdam, o
Westminster Theological Seminary de Philadelphia, o Calvin College e o Calvin Theological
Seminary de Grand Rapids, e o Institute for Christian Studies de Toronto.
20 Robert D. Knudsen, "The Legacy of Cornelius Van Til" em New Horizons 16 (1995), 3.
22 Veja Cornelius Van Til, The Defense of the Faith (Phillipsburg: Presbyterian and
Reformed, 1967), 31-50.
24 É de Calvino a expressão "Deus ex lex est", cf. Knudsen, Calvinistic Philosophy, 8-9.
25 Scott Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics
(Scarsdale: Westminster Discount Book Service), 5.
27 Ibid.
28 Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics, 25.
30 "Há dois tipos de pessoas, e ambos se propõem a ser os intérpretes da raça humana
na sua normalidade, e . . . não podem abandonar a pretensão de que só o resultado de
sua investigação científica leva ao conhecimento do objeto. . . . A diferença entre estes
dois grupos pode ser brevemente descrita pela palavra `palingênese'". Abraham Kuyper,
Encyclopedia of Sacred Theology, 219.
39 Ibid.
43 Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics, 29.
FIDES REFORMATA 1/1 (1996)
Quando Martinho Lutero referiu-se à música de boa qualidade como eficiente veículo para
explicação do texto, serva, portanto, e não espetáculo por si mesma, estava, na verdade,
refletindo parte do pensamento de sua época: música boa agradava a Deus, música má
agradava a Satanás, independente de ela estar associada ao culto ou não. Os critérios
que definiam a qualidade e a conseqüente utilidade da música eram absolutamente
claros. Falava-se, assim, objetivamente, em música própria para adoração a Deus e em
música objetivamente imprópria para o serviço litúrgico.
"As notas musicais vivificam o texto".(3) Elas intensificam a força da palavra. Na tradição
musical reformada luterana, a música revela o texto. Ela o explica (explicatio textus).
Nesse sentido ela deverá ser uma espécie de exegese, uma explanação do texto, um
"sermão em sons" (prædicatio sonora). Segundo Lutero, "Deus mesmo fez com que o
evangelho fosse anunciado com música".(4) O cântico congregacional só atingirá seu
objetivo se a Palavra de Deus puder ser anunciada, absorvida e preservada pelo povo por
meio dele.(5) É este o "cântico popular" defendido por Lutero para o culto. Um cântico
que explicasse o evangelho para o povo e o interiorizasse. "Cântico popular", neste
contexto, não se refere à música profana da época, se considerada música má, e
portanto, agradável apenas aos ouvidos de Satanás. A música que se canta no culto deve
"fortalecer e intensificar o Santo Evangelho e também impulsioná-lo".(6)
No ano de 1700 foi editado em Hamburgo uma espécie de método de estudo para o
Baixo-cifrado, técnica musical bastante comum na época. O editor, Friedrich Erhard Niedt,
escreveu no prefácio:
...a finalidade e a razão de toda música devem ser somente a glória de Deus e a
recreação sadia da alma. Onde isto não é levado em conta, não há música propriamente,
e aqueles que abusam desta nobre e divina arte são "musicantes" do demônio, pois
Satanás tem seu prazer em ouvir tais coisas infamantes. Para ele, tal música é boa o
suficiente, mas para os ouvidos de Deus, são berros infamantes. Quem deseja, na sua
profissão de músico, ter a graça de Deus e uma consciência limpa, não desonra esta
grande dádiva de Deus, pelo seu abuso.(7)
Niedt nos revela aqui parte do pensamento corrente do seu tempo e que, por sua vez, era
uma síntese do pensamento dos dois séculos anteriores. Seguindo-se seu raciocínio, toda
música, mesmo a secular, devia ser escrita "para a glória de Deus". Para isso, devia
preencher, naturalmente, alguns requisitos. Se o fizesse agradaria a Deus. Mas se não o
fizesse, agradaria a Satanás, mesmo que houvesse sido composta para agradar a Deus!
As raízes desta concepção vão até a Idade Média, ou ainda mais longe. Não só a música,
como também outras formas de expressão artística, pareciam tentar refletir essa
dualidade quase maniqueísta do bem e do mal, do bom e do ruim. Obras da pintura,
escultura, relatos de visões que se conservaram escritas, mitos e lendas a partir de
figuras bíblicas, nos revelam sempre um universo bipolarizado. Se os templos abrigam
imagens de santos e anjos em seu interior, admitem também dragões, górgones e
demônios esculpidos no seu exterior. Se as telas, afrescos e retábulos retratam coros de
anjos tocando belos instrumentos nos céus, retratam também o lamento e o ranger
caótico da música do diabo em esferas mais baixas.
Por causa da sua estrutura ordenada numericamente, a música era apropriada para
refletir e até mesmo para representar o cosmos, o universo, a criação divina, que, da
mesma forma, estavam ordenados à partir do número. Já no tratado anônimo de música,
surgido antes do ano 900, Musica Enchiriadis, encontra-se o princípio: "Na formação da
melodia, o que é gracioso e gentil será determinado pelo número, aos quais os tons se
condicionam. O que a música oferece [...], tudo é formado a partir do número. Os tons
passam rapidamente, mas os números [...], esses permanecem".(8) Em 1538 escreveu
Lutero em seu "Encomion musices": "Nada há sem [...] o número sonoro".(9)
Quase dois séculos mais tarde, em 1707, na época de J. S. Bach, Andreas Werckmeister
escreveu: "As proporções musicais são coisas perfeitas que o intelecto pode
compreender. Por isso são agradáveis. Mas o que o intelecto não compreende, o que
confunde e perturba, isso o ser humano abomina".(10)
Eis aí, em todos esses registros, de diferentes períodos históricos, a definição de boa
música e de música má. Era a essa boa música que Lutero se referia quando dizia querer
vê-la "explicando o texto" e "pregando através de sons".
Walther não estava dizendo nada novo. Estava, antes, refletindo o pensamento de sua
época, que entendia boa música como aquela que, organizada numericamente,
representasse o texto da qual devia ser serva. Só assim agradaria a Deus.
É assim que deve ser entendida, por exemplo, toda a obra de J. S. Bach. Toda ela é "Boa
música", toda ela escrita para agradar a Deus, sempre baseada no princípio do número,
sempre representando cada palavra do texto, quando música vocal. Por isso "S. D. G."
(Soli Deo Gloria), expressão que Bach invariavelmente assinalava no final das suas obras,
mesmo daquelas que não eram escritas para o serviço litúrgico.
Bach era amigo e parente de Walther: o avô de Walther era meio irmão da mãe de Bach.
Tornaram-se amigos em Weimar, onde ambos trabalharam na mesma época, Walther
como organista, Bach como músico de orquestra, e mais tarde Mestre de Capela. Bach foi
padrinho de batismo do primeiro filho de Walther. Foi em Weimar, por essa época, que
Walther escreveu seu tratado de composição musical. Bach conhecia o conteúdo do
volume e certamente trabalhou com Walther na sua elaboração.
Representar cada palavra do texto era preocupação antiga, anterior a Bach e a Walther.
Ali pelo ano de 1606, um grupo de compositores, regentes e teóricos de Hamburgo,
reuniu-se para elaborar uma espécie de catálogo de figuras retórico-musicais. Eram cinco
músicos conceituados: Nikolaus Listenius, Heinrich Faber, Johann Andreas Herbst,
Joachim Burmeister e Christoph Bernhard. O volume produzido chamou-se Musica Poetica
e utilizava-se de expressões gregas para classificar diferentes figuras musicais. Assim,
por exemplo, expressões no texto como "Ele ressuscitou" deveriam ser representadas por
uma Anabasis (em grego "subida", "ascensão"), uma linha melódica de muitas notas
ascendentes. Se o texto, ao contrário, trouxesse palavras que falassem em descida, o
Advento, por exemplo, ou quem sabe a palavra "inferno", o compositor deveria utilizar-se
de uma Katabasis (em grego "descida"), representada musicalmente por uma longa
figura de notas descendentes.(12)
Essa música agradava a Deus. Essa música era feita na igreja e servia de modelo para a
música secular praticada nas cortes da época. Compositores não sacros viajavam
distâncias enormes para aprenderem com os músicos sacros, imitarem seu estilo,
copiarem suas formas musicais. E é essa a tradição musical reformada. É dessa música
que somos herdeiros.
Entretanto, deixamos de ser "referência" há muito tempo. A música secular não mais se
espelha na nossa. Os músicos seculares não mais procuram imitar nosso estilo. Ao
contrário, nós é que corremos desesperadamente atrás da secularização de nossa música.
Nós evangélicos é que buscamos mais e mais modelos seculares para a música do nosso
culto a Deus. Não falamos mais em "boa música" e em "música má". Não mais pensamos
em música objetivamente boa para agradar a Deus, nem entendemos seu polo contrário
como música que agrada a Satanás. Não temos mais critérios objetivos que nos ajudem a
falar de um tipo de música verdadeiramente sacra.
Além disso, música não tem mais sido serva da Palavra de Deus, mas sim espetáculo nos
nossos cultos. Não mais cantamos teologia: cantamos aquilo que agrada a um ou a outro
grupo da igreja. Aliás, música, que sempre foi o elo de ligação entre diferentes gerações,
hoje tornou-se o principal fator de discórdia, quando não de separação "intra ou extra-
muros" em nossas igrejas. Não mais cantamos nossa fé reformada, não mais cantamos
aquilo em que cremos, da forma como cremos. É por este motivo que tanto faz
cantarmos os hinos dos nossos hinários ou qualquer outro cântico, de qualquer outra
seita, que diga qualquer coisa, desde que nos deixe felizes ou emocionados. E é também
por esta razão que tanto faz freqüentar a nossa igreja ou a do vizinho, ou qualquer nova
seita que vier.
Não acredito, como músico, que o problema seja, todo ele, causado pela música. Penso
que ela é apenas sintoma, reflexo. Temo que haja muito mais a considerar. Mas é
também como músico que acredito que a música verdadeiramente sacra poderá nos
ajudar a reencontrar caminhos porventura perdidos, a falar da nossa identidade e,
certamente, proclamar o nome daquele em quem cremos, por que cremos e como
cremos. Nossa música poderá ser novamente explicatio textus, praedicatio sonora.
___________________________
Notas
1 "Nach der Theologia der Musica den nähesten Locum und höchste Ehre" (M. Lutero,
"Tischreden," em D. Martin Luthers Werke, vol.6 (Weimar, 1921) n. 7030).
3 "Die Noten machen den Text lebendig" (M. Lutero, "Tischreden," em D. Martin Luthers
Werke, vol.2 [Weimar, 1913] n. 2545).
4 Ibid., n. 1258
6 "Das heylige Evangelion[...] treyben und ihn schwanck [...] bringen" (M. Lutero, no
prefácio da 1a. edição do Geistlichen Gesanbüchlein de Wittenberg, editado por J.
Walther, 1524).
9 "Nihil enim est sine [...] numero sonoro." (Luther, "Encomion musices," 369).
O autor afirma que "por muitos meses" deu carona a um homem de barba prateada, de
quem recebeu visitas freqüentes, e que finalmente pediu-lhe que taquigrafasse umas
mensagens (p.1). Essas mensagens taquigrafadas durante dezessete visitas formam o
conteúdo do livro. Nele, Scott afirma que seu estranho visitante chamava-se Seneca Sodi,
falecido fazia tempo, e agora vivendo já no corpo ressurreto. Sodi, em vida, tinha sido
grego descendente de judeus, "firme crente no Cristianismo e um dedicado estudante de
sua Bíblia" (p.2). Ele tinha sido casado, havia sido pai de seis filhos (p.101), e havia
morado na encosta das montanhas das Cascatas, na Noruega.
Durante as visitas, Sodi teria contado a Scott o que viu e experimentou no céu por
quarenta dias. A narrativa que Scott faz do depoimento de Sodi inclui um relato de como
Sodi chegou ao Paraíso e encontrou-se com sua mãe, sua esposa, sua filha (falecida
pequena, agora uma adulta de 77 anos). Narra ainda como ele encontrou-se com
profetas e apóstolos e outros grandes líderes da igreja do Velho e do Novo Testamentos,
e como foi o grande encontro com o Senhor Jesus numa das portas da Cidade Santa e a
grande convocação diante do trono de Deus. Finalmente, é narrado como a alma de Sodi
foi levada de volta à terra pelo anjo Gabriel, reunida com seu corpo ressurreto, e enviada
para a casa de Scott nos Estados Unidos, onde Sodi ditou e verificou o relato, liberando-o
para publicação antes de ser levado de volta para seu lar celestial. Tudo indica que Scott
escreveu o livro pouco antes da Primeira Guerra Mundial, por volta de 1910, os anos da
infância do movimento pentecostal. Infelizmente não foi possível localizar uma cópia do
livro original em inglês para verificar a origem e a autoria das poesias no livro (p.74; 80;
106), o que talvez teria fornecido mais indicações sobre os autores e a época em que
escreveram.
O livro tem alguns aspectos positivos. A doutrina de Deus, por exemplo, revela uma
posição bíblica do autor: não deísta, nem panteísta, e sim a posição bíblica teísta
trinitariana (p.132). Também a doutrina sobre o Senhor Jesus Cristo é muito bíblica,
tanto na confissão citada (p.134) como em todas as pressuposições e implicações, e
mesmo sobre a pessoa do Senhor. O autor crê na preexistência (p.51; 161), na
encarnação (p.134), no segredo das duas naturezas em uma pessoa, e isso, sem desviar-
se para o docetismo, o arianismo, o monofisitismo ou o nestorianismo; enfim, o autor
permanece na posição niceno-calcedônica (p.134:11). Ele também é bíblico no que
escreve sobre a obra de Cristo, seu ministério terreno, inclusive sua pregação e curas,
seu sofrimento e sua morte vicária e propiciatória pelos pecadores, sua ressurreição, o
sentar-se ao lado do Pai, a sua intercessão e a sua volta (p.38; 54; 135:15). O ensino
sobre o Espírito Santo é ortodoxo, inclusive no "filioque" (p.135:13). Não é pentecostal e
não há nenhuma referência ao falar em línguas estranhas como prova da plenitude do
Espirito Santo. A aplicação da redenção por Cristo nos corações é claramente reconhecida
como obra do Espirito Santo (p.136:17,21).
Embora a doutrina sobre o homem seja bíblica (Scott afirma tanto a Criação do mundo
quanto a criação do homem à imagem de Deus) talvez fosse melhor não usar a palavra
"divino" no parágrafo 14 da "Confissão dos Anciãos" (p.135), para evitar-se a impressão
de que o homem ou qualquer outra coisa criada possa ultrapassar a categoria de criatura.
Mutatis mutandis, evitar-se-ia a palavra "animal" (aristotélica), exatamente por haver
uma diferença de categoria dentro desse grupo, como mostra a própria descrição acima.
Por isso, devemos ter muito cuidado com revelações complementares. Se forem
"acréscimos" à Palavra de Deus, estão indo contra a clara advertência de Ap 22.18.
Apesar de neste livro essas "revelações" em geral serem mais explicações de trechos
difíceis, devemos ter muita cautela: elas poderão tornar-se facilmente em uma "teologia
do Paraíso", como alguns parecem aceitar uma "teologia de Perretti"*. Se a historia fosse
verdade, creio que, certamente, nem a metade nos foi contada. Mas, por incrível que
pareça, a história teria a sua credibilidade aumentada se fosse mais como o "Peregrino"
de Bunyan ou "O Regresso do Peregrino" de C. S. Lewis, obras que claramente se
apresentam como fictícias. Por isso, ainda acho que a última frase do livro deveria ter
sido: "Acordei, e eis que era um sonho..." (cf. p.145).
* O autor refere-se a Frank Perretti, autor dos conhecidos romances Este Mundo
Tenebroso – dois volumes –, que têm se tornado mundialmente uma das obras básicas
dos proponentes do movimento de Batalha Espiritual (Nota do Editor).
João Paulo II, Carta Encíclica de João Paulo II Sobre o Valor e a Inviolabilidade da Vida
Humana (São Paulo, Edições Paulinas, 1995) 211 páginas.
Chega às livrarias a Carta Encíclica, que, meses atrás, foi objeto de grande atenção da
imprensa, e, certamente, de muitos cristãos reformados. Divulgada nove meses antes do
Natal (em 25 de março deste ano), data em que a Igreja Católica Romana celebra a
anunciação à Maria, a carta demonstra que a data foi propositalmente escolhida, pois sua
preocupação principal é falar da vida.
A carta é endereçada "aos bispos, aos presbíteros e diáconos, aos religiosos e religiosas,
aos fiéis leigos e a todas as pessoas de boa vontade". Nasceu de um pedido unânime dos
cardeais que integraram o Consistório Extraordinário realizado em Roma de 4 a 7 de abril
de 1991, após debates e colaboração de uma parte dos bispos do mundo (a colaboração
foi solicitada a todos). Esta carta, ainda segundo o texto, possui a "autoridade do
Sucessor de Pedro" (introdução, §5).
Esse uso da Bíblia como "respaldo" ao assunto (desnecessário à luz da doutrina Romana)
não é privilégio dos grandes capítulos. Os pequenos tópicos (5 no capítulo I, 11 no
capítulo II, 6 no capítulo III, 7 no capítulo 4 e 3 na conclusão) são "aplicações" de textos
bíblicos (uma citação é o livro de Baruque).
O tema central da carta é a defesa da vida humana contra todos os tipos de agressões às
quais ela está sujeita (Aborto, eutanásia, suicídio, fecundação in vitro, manipulação de
embriões, etc.), e um enaltecimento da mesma como um dom de Deus.
Não creio que, como reformados que somos, tenhamos muito que discordar de seu tema
central. Aliás, encontramos muitos pontos comuns entre a ética que professamos e as
proposições da carta. Mas, certamente, temos muitos pontos de discórdia.
Os pontos comuns
1. Concordamos que a cultura de nossos dias (à qual o apóstolo, no início da era cristã, já
exortava a que não nos amoldássemos - Rm 12.1-2) é uma cultura que, cada vez mais,
valoriza a morte em detrimento da vida. Vivemos em um ambiente que anseia pela
apresentação espetacular da morte e encara a vida como algo rotineiro e banal. Este é
um tema que atravessa toda carta.
2. Concordamos que existe uma tendência clara a uma dicotomia entre valores íntimos e
comportamento público: cada indivíduo quer avocar a si a mais completa autonomia
moral de decisão sobre vida e morte, e, por outro lado, quer exigir que aqueles que
foram ensinado a lutar pela vida não tenham pejos morais em executar algo contrário à
própria consciência. Obviamente temos que concordar, também, que a raiz de tudo isto
está no relativismo ético. Este assunto pode ser visto no capítulo III §70.
Há ainda outros pontos com os quais concordamos. Mas não podemos deixar de
mencionar aqueles com os quais discordamos:
1. Não podemos concordar que a contracepção seja uma negação da verdade integral do
ato sexual, como se o sexo tivesse como única função a procriação (ver Capítulo I, §13).
De que modo interpretaríamos I Co 7.1-9? Ou, como entenderíamos que a mulher só é
apta para fecundação em menos de 3% de seu tempo de vida? Nos outros 97% de seus
dias ela deveria abster-se de qualquer relação sexual?
2. Não podemos concordar com a igualdade de tratamento que é dada aos métodos
anticoncepcionais e aos métodos antinatais (ver Capítulo 1, §16 e 17). Aliás, esta
distinção, tão importante, não fica muito clara. A importância da distinção reside no fato
de que, na minha opinião, os métodos antinatais, diferentemente dos anticoncepcionais,
são totalmente condenáveis.
3. Creio que a nossa principal discórdia reside nas premissas da carta. Não podemos
recebê-la como autoritativa. O que entendemos por autoritativa fica mais claro
observando os próprios decretos do Concílio Vaticano II, que dizem no §59:
E ainda no §61:
Esta infalibilidade, porém, da qual quis o Divino Redentor estivesse sua Igreja dotada ao
definir doutrina de fé e moral, tem a mesma extensão do depósito da Revelação divina,
que deve ser santamente guardado e fielmente exposto. Esta é a infalibilidade de que
goza o Romano Pontífice, o Chefe do Colégio dos Bispos, em virtude de seu cargo,
quando, com ato definitivo, como pastor e mestre supremo de todos os fiéis que confirma
seus irmãos na fé (cf. Lc 22.32) proclama uma doutrina sobre a fé e os costumes. Esta é
a razão por que se diz que suas definições são irreformáveis por si mesmas e não em
virtude do consentimento da Igreja, pois foram proferidas com a assistência do Espírito
Santo a ele prometida no Bem-aventurado Pedro. E por isso não precisam de aprovação
de ninguém nem admitem apelação a outro tribunal (itálicos meus).
Temo que, em um ambiente tão carente de boa literatura sobre ética cristã esta carta
seja uma "pedra que clama". Infelizmente não o faz de modo fiel à Palavra de Deus; mas
clama.
Muitos dos que acompanham o autor e suas obras, entretanto, mostram-se cépticos
quanto à existência de profundas transformações em seu pensamento e sua mensagem.
Com efeito, o seu livro O Sangue segue a linha dos anteriores, onde Hinn apresenta um
conglomerado de verdades bíblicas, às quais são adicionadas inferências não
substanciadas, juntamente com interpretações equivocadas de trechos da Palavra de
Deus, sobre um pano de fundo de várias experiências.
Muitos capítulos tratam de temas relevantes à vida cristã, como por exemplo, do trabalho
mediatório de Cristo, da justificação encontrada nele, da graça insondável de Deus, e do
selo do Espírito Santo na salvação do crente. O livro, O Sangue, não segue, entretanto,
uma progressão lógica e não tenta, pelo menos, apresentar uma exposição bíblica
popular do seu tema-título.
Conclama, por fim, os seus leitores a desenvolverem suas próprias experiências místicas
de comunhão com Cristo, na Ceia do Senhor e no poder do sangue de Cristo, traçando
uma conexão segura entre o apelo ao poder do sangue e as bênçãos carismáticas que
decorrem desse recurso. "Todas as vezes que me dirijo a uma reunião, agradeço ao
Senhor pelo sangue. E tão logo o faço, sinto a presença de Deus descer sobre nós e os
milagres ocorrem" (p. 133).
O sangue é um talismã?
Em várias ocasiões, Hinn procura afirmar que não está apresentando o sangue de Jesus
Cristo como algo "que tem um poder mágico", ou como "um talismã" (p. 20). O
tratamento que dá à questão, entretanto, resulta exatamente no que afirma não fazer.
No conceito de Hinn, o sangue de Cristo não é apenas um termo gráfico, descritivo e
simbólico da sua vida, que foi dada por sua igreja, mas é algo que se usa. Como ele
questiona na página 21: "Como podemos usar o sangue de Jesus para derrotar o inimigo
em nossa experiência diária?" Ele relata a experiência de um pastor que, na Segunda
Guerra Mundial, foi protegido juntamente com sua família de inúmeros ataques aéreos.
Dizia este pastor: "Irmãos, não sei de nenhuma ocasião em que alguém tivesse clamado
ativamente pelo sangue de Jesus em voz audível, e que ele tivesse falhado" (p. 19). Note
a semelhança desta afirmação com fórmulas mágicas e regras supersticiosas, pois até a
prescrição de que a invocação do sangue tem que ser em voz audível, está presente,
contrariando textos tais como Rm 8.26-27.
Fica claro, então, que no conceito de Hinn, a aplicação do sangue de Cristo não é apenas
o processo de regeneração efetivado pelo Espírito Santo na vida do crente, com a
conseqüente imputação dos nossos pecados a Cristo e de sua justiça a nós, mas trata-se
de algo mais. Representa uma segunda ou terceira experiência a ser buscada pelos
crentes, uma espécie de "conhecimento escondido" ou um "mistério" a ser discernido por
uma casta inquisitiva e mística de fiéis.
Nunca é demais lembrar que a idéia de que existem verdades "escondidas" a serem
descobertas, as quais fogem ao senso pleno e comum de uma interpretação contextual
(gramático-exegética-histórica) das Escrituras, foi a raiz das heresias gnósticas do
segundo século da era cristã. Formas de proto-gnosticismo foram combatidas
veementemente por Paulo, na epístola aos Colossenses, e por João, em sua primeira
epístola. Tal pensamento constitui também a característica inicial de muitos cultos e
seitas, tanto os históricos extintos, como os contemporâneos.
Em várias ocasiões, no livro, Hinn coloca-se em posição de diálogo com Deus. Nestes
diálogos, ele recebe mensagens e palavras específicas: "...ouvi Deus dizer-me algo... Ele
falou: ‘tire o anel do dedo dela’.... E o Senhor repetiu a frase, ainda com mais ênfase..."
(p. 43). "Certo dia o Senhor me disse: ‘Use sua autoridade como Cristão.’ ...então passei
a repreender Satanás." Na p. 95 o autor mantém um longo diálogo com Deus, no qual é
instruído sobre a certeza da salvação. Semelhantemente, nas pp. 101 e 102 o autor
relata outro diálogo seu com Deus e mais um outro extenso diálogo, mantido por um
pastor russo. Não se refere, o autor, à comunhão normal, mantida pelo crente com Deus,
em oração e na meditação da Palavra nem à iluminação que o Espírito Santo concede aos
crentes, para o entendimento das Escrituras.
Tal "conexão direta com Deus", característica incomum à maioria dos redimidos,
pareceria colocar o autor acima de qualquer questionamento, pois afinal é alvo de
revelação direta, enquanto que os meros leitores e os pobres resenhistas teriam que se
contentar "apenas" com os registros da Palavra de Deus. Somos testemunhas,
entretanto, de que tal inclinação teológica leva a um desprezo progressivo pelas
Escrituras Sagradas, que são transformadas em fonte secundária de conhecimento,
tornando os proponentes presa fácil de muitos desvios das verdades de Deus.
Pactos de sangue?
Conclusão
Quando o autor foge um pouco do seu tratamento atabalhoado do tema que escolheu,
chega até a desenvolver algumas lições proveitosas. No árido deserto da carência
doutrinária, encontramos aqui e ali alguns oásis de admoestações práticas.
Por exemplo: na p. 27 ele tem um bom tratamento da tentação de Jesus no deserto; nas
pp. 75-85 ele tem dois bons capítulos (10 e 11), mostrando como a redenção dos salvos
sepulta o passado, quanto à aceitação por Deus, e instruindo quanto ao custo dessa
redenção.
No cômputo geral, porém, as inferências não bíblicas do autor — por exemplo: ele
equaciona a unção do Espírito Santo com um misterioso "brilho nos olhos" (p. 122) —, as
constantes "descobertas" de pontos obscuros — por exemplo: ele "descobre" um novo
aspecto na ceia do Senhor—a comunhão física com Jesus (p. 127-128) —, as suas
contradições teológicas — por exemplo: um Arminianismo gritante é propagado na p.
117, mas na p. 118 ele faz uma magistral apresentação e defesa da segurança eterna,
enquanto prefaceia tal exposição com uma afirmação de "nossa inteira liberdade de
decisão." — e as equivocadas interpretações bíblicas — "Cristo conquistou a posição de
sumo sacerdote ao derramar seu sangue" (p. 88). "Ele só se torna o nosso advogado
depois que o sangue é aplicado ao nosso coração" (p. 89) —, que tingem a maior parte
do trabalho, tornam o livro confuso e não recomendável como base de instrução bíblica,
principalmente aos iniciantes na fé.
The Greek New Testament, Fourth Revised Edition, eds. Barbara Aland, Kurt Aland,
Johannes Karavidopoulos, Carlo M. Martini e Bruce Metzger (Stuttgart: United
Bible Society, 1993).
Em 1993 as Sociedades Bíblicas Unidas (United Bible Societies) lançaram a quarta edição
do The Greek New Testament (O Novo Testamento Grego, UBS 4), e a vigésima sétima
edição do Nestle e Aland (NA 27). Essas duas obras contém um mesmo texto grego, com
diferença apenas no aparato crítico. O texto grego publicado pela UBS tem servido nas
últimas décadas como o texto básico para tradutores ao redor do mundo, bem como para
seminários e escolas bíblicas, na formação de pastores quanto à exegese do Novo
Testamento.
A primeira edição, que surgiu em 1966 (UBS 1 e NA 24), era o resultado do esforço de
uma equipe internacional e interdenominacional, formada em 1955, de peritos em
manuscritologia bíblica, em prover para os tradutores um texto grego básico,
acompanhado das principais variantes e de uma indicação de sua certeza relativa para
facilitar a decisão dos tradutores. Já que a grande maioria de tradutores e estudiosos do
Novo Testamento não têm conhecimento das questões complexas e sofisticadas
relacionadas com escolha de variantes do texto grego, esse aparato crítico com a
indicação da equipe internacional serviria como grande ajuda. Os tradutores e estudiosos
do Novo Testamento poderiam assim se beneficiar do conhecimento da equipe de peritos.
Uma ajuda extra foi o aparato de pontuação, contendo informações sobre a estrutura das
sentenças e de seu sentido.
Em 1968 apareceu a segunda edição (UBS 2). O aparato crítico da UBS 1 continha, além
das variantes mais importantes, e que podiam modificar o sentido do texto, outras
variantes sem qualquer importância. A UBS 2 manteve o mesmo texto grego e o mesmo
aparato, apenas com algumas modificações.
A terceira edição (UBS 3, 1975) passou por profundas revisões, tanto do texto grego
quanto do aparato crítico. Ela trouxe as seguintes inovações: (1) 250 novos manuscritos
cursivos listados, apesar de apenas 50 deles serem citados no aparato crítico; (2) 500
modificações no texto grego, a maioria envolvendo a adição de colchetes []; (3) diminuiu
o grau de certeza das variantes.
A terceira edição foi revisada em 1983. O mesmo texto grego foi preservado, enquanto
que o aparato da pontuação passou por modificações. A pontuação às vezes tem
tremenda importância exegética, como o aparato de Mateus 3.17; Marcos 1.27 e João
7.37,38 indicam.
Depois de dez anos de uso por tradutores, estudiosos, pastores e seminaristas no mundo
todo, a UBS 3 reapareceu em sua quarta edição (UBS 4, 1993). O mesmo texto grego
continuou, mas o aparato crítico, com as indicações de certeza, foi profundamente
modificado. A equipe de peritos havia chegado a conclusão que o aparato contendo as
variantes e seu relativo grau de certeza deveria ser editado de acordo com a experiência
dos tradutores que haviam usado os aparatos anteriores. Uma pesquisa entre tradutores
de quinze línguas principais revelou quais variantes tinham sido realmente úteis e quais
não tinham sido de qualquer valor. O resultado foi que cerca de 300 novas variantes
foram acrescentadas, e cerca do mesmo número de variantes foi retirado do aparato
crítico.1
Testamento. A pergunta ainda é quantos deles saberão dizer qual a diferença se uma
variante aparece no Harclensis, no Evangelho Velho-Eslávico, ou em Clemente. Ou ainda,
quantos tradutores trabalhando no campo, ou mesmo pastores estudando seu Novo
Testamento grego, conhecerão o suficiente de crítica textual ou manuscritologia bíblica
para usarem de forma inteligente o aparato crítico do UBS 4 ou do NA 27.
Finalmente, esta nova edição perpetua alguns dos problemas ocorridos com as anteriores.
O alvo inicial da UBS era publicar um aparato crítico mais fácil de ler do que o da NA, que
é cheio de siglas, e contém bem mais variantes. Embora no geral esse alvo tenha sido
atingido, passagens como Gálatas 5.1 na UBS 4 tem um aparato tão complexo quanto o
da NA 27.2.
Neuza Itioka, A Igreja e a Batalha Espiritual: Você Está em Guerra! em Série Batalha
Espiritual (São Paulo: Editora SEPAL, 1994); 76 pp.
Este é o segundo livro de Neuza Itioka na série Batalha Espiritual editada pela SEPAL. Na
Apresentação é dito que, através dos seus livros nesta série, Itioka pretende esclarecer
alguns mal entendidos acerca do seu ministério e das suas posturas teológicas acerca de
"batalha espiritual". Itioka é apresentada como parte de um grupo cada vez mais
expressivo "que está produzindo muito no Reino de Deus ao aplicar os princípios da
teologia sobre batalha espiritual" (p.5). Porém, não é dito qual o tipo ou a orientação da
teologia que Itioka vai aplicar. Resta ao leitor descobrir através da sua leitura. A
Apresentação já antecipa o óbvio: "É possível que você não concorde com todas as
afirmações da Neuza neste livrete" (p.5).
O livrete é bem escrito e fácil de ler. Após uma breve introdução (pp.9-14), a autora trata
da posição e autoridade que a Igreja tem, dadas por Jesus Cristo, sobre os principados e
potestades, sobre os espíritos malignos (pp.15-22); em seguida, ela oferece uma análise
do mundo onde a Igreja está inserida, destacando o crescimento do ocultismo e da Nova
Era em várias partes do mundo, particularmente no Brasil. Essa leitura da situação
mundial é informada pela crença da autora de que todas as diversas manifestações de
miséria e decadência são resultado de opressão maligna (pp.23,34).
Em seguida, Itioka faz uma apresentação dos princípios que regem a luta contra os
principados e potestades (pp.35-50). Segundo ela, os principados e potestades se
alimentam da iniqüidade humana (p.36); exercem controle sobre as estruturas sociais,
econômicas e eclesiásticas, uma tese que defende baseada no trabalho de Robert
Linthicum (p.38); depois, Itioka procura dar embasamento bíblico para a idéia da
existência de espíritos territoriais (pp.43,44).
Alguns pontos chaves do livro ficaram sem a necessária comprovação exegética, como a
elaborada e sofisticada teologia da ocupação geográfica por hierarquias de demônios
(pp.37,42,45-50,52,53,56) — será que podemos construir toda uma teologia de
demônios territoriais baseados nas pouquíssimas passagens bíblicas que sugerem que
alguns demônios atuam em certas áreas geográficas? Não é uma boa prática exegética
tomar variantes textuais do texto Hebraico como suporte a essa tese, como Itioka faz,
seguindo sugestão de Michael Green (pp.43,44). Para Itioka, a Igreja deveria levar a
sério o pressuposto que crentes podem ter demônios ou ficar endemoninhados, mas ela
falha em fornecer qualquer evidência bíblica (p.65). Citar experiências onde pessoas
supostamente regeneradas estavam "endemoninhadas" não é evidência persuasiva.
Uma das mais sérias deficiências do livro diz respeito às suas fontes. Em sua bibliografia
(p.71), procura-se em vão por bons livros de teologia, que vem sendo usados pela Igreja
há séculos, e que possam ter informado a autora, já que este livro é apresentado como
uma aplicação "da teologia" ao assunto. É surpreendente encontrar nas notas
bibliográficas fontes como "fatos constatados e verificados nas ministrações pessoais",
depoimentos pessoais, e testemunhos de ex-pais de santos.
Uma outra deficiência do livro é a exegese defeituosa e forçada que Itioka por vezes faz
de algumas passagens bíblicas, como por exemplo tomar Efésios 1.20-22, que refere-se à
posição triunfante do Cristo ressurreto, e transferir sem qualquer qualificação para a
Igreja ainda vivendo na terra (militante), pp. 18,19. Ou ainda, tomar Efésios 6.18 para
provar que pela oração a Igreja pode manietar e amarrar as forças demoníacas (p.52). E
ainda, Itioka afirma que os anjos das cartas de Apocalipse (Ap 2-3) são anjos literais que
incorporam e absorvem o estado espiritual da Igreja, e que alguns deles são substituídos
por demônios, devido à decadência espiritual da comunidade que representam. Tudo isso,
baseada nas sugestões (sem exegese) de Walter Wink e R. Linthicum em Apocalipse 2-3
(pp.40,41).
Infelizmente, muito mais é afirmado no livro do que pode ser provado através de estudo
bíblico cuidadoso. E isso pode ser dito, com temor e tremor, e profunda tristeza, da maior
parte das práticas advogadas pelo movimento de "batalha espiritual". Não recomendo
esse livro aos pastores que procuram boa literatura sobre o assunto, para alimentar o
rebanho, e ensiná-lo acerca desse importante assunto, que o conflito da igreja com os
principados e potestades nos lugares celestiais.
Para os que desejam uma melhor literatura sobre o assunto, sugiro ainda, além da obra
de McCarthur citada, o livro de Martyn Lloyd-Jones, O Combate Cristão, publicado pela
PES, que é uma exegese de Efésios 6. E para os que podem ler inglês, recomendo o
excelente livro de David Powlison, recém-publicado nos Estados Unidos, Power
Encounters: Reclaiming Spiritual Warfare (Grand Rapids: Baker, 1995).