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FIDES REFORMATA 1/1 (1996)

Pregação no Antigo Testamento:


É mesmo necessária?
Mauro Meister

D. Martyn Lloyd-Jones afirma em seu livro Pregação e Pregadores que "a mais urgente
necessidade da Igreja hoje é de verdadeira pregação; e como é a maior e a mais urgente
necessidade da igreja, é também, obviamente, a maior necessidade do mundo".(1) Essa
necessidade certamente não mudou de figura desde a primeira publicação de Pregações e
Pregadores em 1971.(2) O que mudou, no entanto, foi o interesse na pregação nos
últimos vinte anos. Percebeu-se, no mundo cristão,(3) que não há substituto para a
pregação. Antigas escolas liberais e tradicionais, que defendiam o uso de outras formas
de ensino como substituto para a pregação, perceberam que esta antiga prática, de fato
"não inventada pelo homem mas graciosamente criada por Deus",(4) ainda é, e sempre
será, o mais efetivo meio de proclamar as Boas Novas.(5)

Creio que o declínio na prática da pregação surgiu como fruto de vários fatores(6): (a)
descrença na autoridade das Escrituras; (b) valorização exagerada da arte de falar
(retórica); (c) confusão entre pregação e exposição filosófica de uma verdade
("helenização" do evangelho)(7); (d) massificação do evangelho (cultura "pop" e
entretenimento). O despertamento para a pregação nos últimos vinte anos deu-se em
reação a várias destas causas, porém nem sempre pelas razões corretas e de formas
corretas. Por exemplo, o interesse de vários teólogos e pregadores modernos na
pregação é uma reação à helenização do evangelho, porém, sem retorno à crença na
autoridade das Escrituras.(8) O fato é que existe um "movimento" de pregação na igreja
ao redor do mundo e também na igreja evangélica brasileira.

Ora, se a prática da pregação que efetuamos não é apenas uma opção apresentada nas
páginas do Novo Testamento, mas sobretudo uma ordem direta nos Evangelhos (Mc
3.14; 16.15), nos ensinos apostólicos (2 Tm 4.2), e uma prática clara em ambos (Mc
1.38; At 5.42), o que devemos pregar e como devemos pregar, isto é, o conteúdo e a
forma da pregação, são assuntos de fundamental importância para a vida do pregador e,
conseqüentemente, para a vida da igreja. Presumo que os leitores interessados neste
artigo crêem na pregação e na autoridade das Escrituras. Este artigo tem a ver com o que
devemos pregar, ou seja, o conteúdo da pregação.

É realmente necessário pregar em passagens do Antigo Testamento? A pergunta


pareceria desnecessária. Porém, é fato que pregações no Antigo Testamento são a
exceção e não a regra nos púlpitos de nossas igrejas (as exceções servem para
comprovar a regra). Se é verdade que os mestres da igreja, os pregadores da Palavra,
devem anunciar "todo o desígnio de Deus", como Paulo havia feito durante seu ministério
em Éfeso (At 20.27), então creio que a exposição das Escrituras do Antigo Testamento
está faltando nos púlpitos de nossas igrejas. Duas questões pertinentes devem ser
levantadas: (a) Por que devemos pregar em passagens do Antigo Testamento? (b) Por
que não se prega tão freqüentemente textos do Antigo Testamento quanto se esperaria?

Por que devemos pregar em textos do Antigo Testamento?

Gostaria de levantar apenas três aspectos sobre a necessidade de se pregar em textos do


Antigo Testamento.(9)

(1) Em primeiro lugar, deve-se considerar que, para uma exposição clara a respeito de
Jesus e de todos os seus atributos como a Segunda Pessoa da Trindade e filho de Deus
encarnado, é necessário entender o Antigo Testamento. Ambos, o Antigo e o Novo
Testamentos, são incompletos na ausência um do outro. Jesus não é uma figura obscura
vinda do nada para salvar a humanidade. Jesus é o Messias prometido a Israel por Deus
Pai para salvar o seu povo. O caráter de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, é revelado nas
páginas do Antigo Testamento de maneira grandiosa e gloriosa. No entanto, nos púlpitos
e nas congregações ao redor do mundo, existe uma tremenda ignorância a respeito do
Antigo Testamento e do seu conteúdo. Facilmente percebe-se neles um conhecimento do
conteúdo do Novo Testamento, ao mesmo tempo em que demonstram uma falta de
conhecimento do Antigo Testamento. O conhecimento do Novo Testamento que não é
correspondido pelo conhecimento do Antigo, é uma contradição e uma impossibilidade. As
Escrituras do Novo Testamento começam com uma referência ao Antigo Testamento e
centenas de outras referências são feitas no seu corpo. A falta de entendimento do
conteúdo do Antigo Testamento implica em uma falta de entendimento claro do texto do
Novo Testamento. O próprio Senhor Jesus, quando pregava, começava "por Moisés,
discorrendo por todos os profetas" e assim, "expunha-lhes o que a seu respeito constava
em todas as Escrituras" (Lc 24.27).

(2) Para se entender corretamente o papel da Igreja como Corpo de Jesus Cristo é
necessário entender o propósito de Deus na criação de Israel. O ensino do Novo
Testamento a respeito de Israel só pode ser entendido à luz de toda a revelação de Deus,
e não em compartimentos estanques. Não é sem motivo que se encontram tremendas
divergências teológicas na área de eclesiologia, visto que o papel de Israel no Antigo
Testamento é extremamente mal entendido. Um dos grandes perigos para a Igreja
moderna é o de repetir os mesmos pecados da Igreja no Antigo Testamento, mesmo
tendo à sua frente o exemplo de como não se deve agir. O mesmo problema se desdobra
na área de escatologia, onde o Antigo Testamento, quando citado, na maioria das vezes é
usado de maneira inadequada, senão absurda. É necessário que se compreenda que
Jesus é o descendente de Abraão, pai de Israel, e sucessor de Davi, rei de Israel. Uma
tentativa de se entender o papel da Igreja à parte destes fatos, levará a uma
interpretação incorreta do seu papel. A verdadeira igreja de Jesus Cristo é edificada
"sobre o fundamento dos apóstolos e profetas" (Ef 2.20). Grandes estudiosos do Novo
Testamento são de fato aqueles que têm grande conhecimento do Antigo Testamento.

(3) O povo de Deus não pode, de forma relevante, entender, participar e cumprir seu
papel como filhos de Deus no mundo, sem uma compreensão adequada das Escrituras do
Antigo Testamento. É óbvia, para pregadores e pastores com formação acadêmica, a
necessidade de se compreender a criação e a queda da humanidade para se pregar, de
forma coerente, pelo menos, a respeito de qualquer tema nas Escrituras. No ato da
criação, Deus deu ao homem três mandatos: espiritual, social e cultural.(10) A
possibilidade do cumprimento apropriado destes mandatos é proporcional ao que o povo
de Deus conhece deles. Infelizmente, o conhecimento dessas ordens divinas é muitas
vezes negado ao povo de Deus por seus pregadores. O Antigo Testamento é rico em
ensinamentos sobre família, sociedade, culto e serviço, áreas em que o povo de Deus
necessita grandemente de instrução. Em suma, para um ensino equilibrado e qualificado
sobre vida cristã, é essencial que o povo de Deus conheça as Escrituras do Antigo
Testamento.

Por que não se prega tão freqüentemente no Antigo Testamento quanto se


deve?

Muitos aspectos da resposta a esta pergunta estão incluídos nas respostas à pergunta
anterior. Entretanto, um outro é abordado aqui: Teologia Bíblica.

A despeito da pressuposição básica com respeito à revelação proposicional e à


infalibilidade das Escrituras na teologia de nossa igreja,(11) existem fatores que não
permitem uma visão global do ensino das Escrituras. Entre estes, estão a dicotomização
teológica entre Antigo e Novo Testamentos e a compartimentalização teológica dentro dos
testamentos. É comum encontrar-se nos nossos currículos de seminário e literatura
teológica a dicotomia Teologia Bíblica do Antigo Testamento vs. Teologia Bíblica do Novo
Testamento. Essas divisões não são apenas reflexo de uma necessidade prática, porém,
de um pressuposto teológico nem sempre muito claro: o de que existe mais de uma
Teologia Bíblica. A prova mais evidente desse fato são nossos púlpitos, onde, via de
regra, o Novo Testamento é destacado em prejuízo do Antigo Testamento. Em geral,
Antigo e Novo Testamentos são colocados tão à parte um do outro que é necessária uma
explicação complexa dos elos que os unem. Também dentro dos próprios testamentos a
divisão é evidenciada quando se fala de teologia joanina, paulina, sinaítica, etc.(12) É
natural que existam barreiras em termos históricos devido à distância temporal e cultural
entre os Testamentos e a apropriação destes no cânon da Igreja. Essa barreira é também
evidenciada pelo fato da revelação ter um caráter progressivo. Porém, o valor teológico
de ambos os testamentos não é para ser comparado. Creio que este conceito está
implícito nas Escrituras (Hb 1.1-4), assim como está explicitamente descrito no capítulo I
da Confissão de Fé de Westminster. Deus se revelou progressivamente e é extremamente
importante que as Escrituras sejam lidas e entendidas nesta perspectiva. Nas palavras de
E. Clowney, "Essa revelação não foi dada em um só tempo nem na forma de um
dicionário teológico".(13)

Também um só Deus se revelou e isto nos mostra a unidade das Escrituras como
revelação lógica e coerente.(14) Apesar deste conceito ser estudado freqüentemente sob
o título de Teologia Dogmática (Sistemática), ele é parte do conceito central da Teologia
Bíblica. Gerhardus Vos define Teologia Bíblica como "o ramo da teologia exegética que
lida com o processo da auto-revelação de Deus depositada(15) na Bíblia".(16) Para uma
exposição fiel da verdade das Escrituras é necessário que haja entendimento da Teologia
Bíblica como um todo e equilíbrio na exposição dessa teologia. Para isto é necessário que
haja equilíbrio na exposição entre Antigo e Novo Testamentos. Creio que uma Teologia
Bíblica sem o devido equilíbrio é um dos principais motivos porque não há pregação mais
consistente e sistemática das Escrituras do Antigo Testamento.

Um pressuposto que leva ao desequilíbrio na Teologia Bíblica é o de que a familiaridade


com a Teologia Sistemática é suficiente para promover um conhecimento abrangente das
Escrituras. Teologia Sistemática e Teologia Bíblica são disciplinas distintas, porém
interdependentes. A Teologia Sistemática séria não é apenas um amontoado de "textos-
prova" descontextualizados. Quando elaborada com seriedade, ela leva em consideração
a contribuição da Teologia Bíblica como matéria exegética. A Teologia Bíblica, quando
também elaborada com seriedade, considera sempre a perspectiva abrangente da
Teologia Sistemática. Assim, ambas as disciplinas são mantidas em uma tensão constante
e renovada, conduzindo ao desenvolvimento de uma teologia sadia e relevante que, por
sua vez, deve ser ministrada ao povo de Deus do púlpito de nossas igrejas, através da
exposição equilibrada do Antigo e do Novo Testamentos.(17)
O que devemos fazer?

Penso que diante dos fatos devemos rever algumas de nossas tradições. Tradições podem
ser benéficas ou maléficas, dependendo de como são passadas e recebidas por novas
gerações. Em muitos casos, boas tradições sofrem distorção e acabam sendo praticadas
sem objetivo, ou até mesmo hipócritamente. Basta ler as páginas do Novo Testamento e
as críticas feitas por Jesus quanto às várias tradições dos israelitas da época. Se sabemos
porque devemos pregar o Antigo Testamento e qual é a maior dificuldade de aproximação
às Escrituras do Antigo Testamento, devemos também rever a nossa tradição quanto à
pregação do mesmo. Essa revisão precisa acontecer em dois níveis: individual e coletivo.

O nível individual concerne aos padrões que se adota quanto à pregação do Antigo
Testamento. Temos mesmo o desejo de ensinar, como pregadores da Palavra, "todo
conselho de Deus", e a convicção de que devemos fazê-lo? De que modo a congregação
que nos escuta constantemente como pregadores da Palavra percebe as riquezas dos
ensinamentos do Antigo Testamento? Como algo obscuro, sem sentido e até mesmo
terrível de se ouvir e ler, e que só serve para algumas partes do exercício litúrgico? Uma
parte das Escrituras que deve ser relegada a segundo plano? Se a resposta a estas
questões é positiva, então a pregação das Escrituras no Novo Testamento também
precisa ser revista.

O nível coletivo concerne aos que estão a nossa volta e ministram a outros que são ou
serão os pregadores da Palavra. Qual o papel e a importância da Teologia Bíblica? Como
ela é ensinada nas instituições de sua igreja? Quais os frutos da mesma na proclamação
do Evangelho? Qual a ênfase dada ao ensino de uma Teologia Bíblica que reflete a
unidade das Escrituras? As respostas a estas questões devem nos ajudar a perceber quais
as tradições que precisam de revisão.

__________________________

Notas

1 D. Martyn Lloyd-Jones, Preaching and Preachers (London: Hodder and Stoughton,


1981) 9. Traduzido para o Português como Pregação e Pregadores (São Paulo: Editora
Fiel, 1984). As citações são da obra original em inglês, traduzidas pelo próprio autor.

2 O livro é a transcrição de uma série de palestras feitas por Lloyd-Jones no Westminster


Theological Seminary, na Filadélfia, USA, em 1969.

3 Uso o termo "cristão" aqui da forma mais genérica possível.

4 R. Mohler, A Theology of Preaching, em Handbook of Contemporary Preaching, ed.


Michael Duduit (Nashville, TN: Broadman Press, 1992) 13.

5 M. Duduit comenta: "Durante a década de 60 muitos `especialistas' proclamaram a


morte do púlpito; proclamavam que a pregação havia deixado de ser relevante às
necessidades da população média americana. Ironicamente, as últimas duas décadas
presenciaram uma explosão de interesse na pregação dentro da igreja americana" (M.
Duduit, ed., Handbook of Contemporary Preaching, 47). J. Holbert afirma: "O sermão,
considerado às portas da morte como uma forma de comunicação fora de moda, está de
volta" (Preaching the Old Testament: Proclamation and Narrative in the Hebrew Bible
[Nashville: Abingdon Press, 1991] 9).

6 M. Lloyd-Jones expõe vários destes fatores de forma clara e mais extensa no capítulo 1
de Pregação e Pregadores, entitulado "A Primazia da Pregação." O capítulo introdutório da
obra de John R. W. Stott, Between Two Worlds (Grand Rapids: Eerdmans, 1981) é
também rico em demonstrar os motivos do declínio da pregação depois da segunda
metade do século XX.

7 Chamo de "helenização do evangelho" a crença de que a forma de pregação deve se


submeter a princípios de exposição comuns nos tempos do Novo Testamento e próprios
da cultura greco-romana. Se estes princípios devem ser tomados por normativos, não há
pregação no Antigo Testamento onde o ensino do povo de Deus era principalmente feito
através de narração de eventos e da explicação dos atos de Deus na história.

8 Um exemplo representativo desta escola é J. Holbert, Preaching the Old Testament:


Proclamation and Narrative in the Hebrew Bible. A lista de livros sobre pregação desta
escola de pensamento é enorme, principalmente na área de Antigo Testamento.

9 Para um ponto de vista diverso a respeito de pregação no Antigo Testamento ver E.


Achtemeier, Preaching from the Old Testament (Louisville: Westminster / John Knox
Press,1989) 21-26.

10 Para um desenvolvimento mais completo destas idéias ver G. Van Groningen,


Revelação Messiânica no Velho Testamento (Campinas, SP: Luz Para o Caminho, 1995).

11 Falo como ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil, denominação confessional, e


parte da chamada "linha evangélica" no Brasil. Definições, descrições e estereótipos
variam em diferentes países.

12 Observe que esta dicotomização e compartimentalização é natural na teologia liberal


onde o conceito de revelação proposicional e de unidade das Escrituras é totalmente
desacreditado.

13 E. Clowney, Preaching and Biblical Theology (London: Tyndale, 1962) 15.

14 Para uma ampla discussão do conceito de unidade das Escrituras na área de Teologia
Bíblica, verificar a descrição em Gerard Hasel, Teologia do Antigo Testamento: Questões
Fundamentais no Debate Atual (Rio de Janeiro, RJ: JUERP, 1975) e Brevard S. Childs,
Biblical Theology In Crisis (Philadelphia: Westminster, 1970). Para uma perspectiva mais
evangélica, ver Van Groningen, Revelação Messiânica.

15 O termo empregado por Vos "deposited" é certamente infeliz no debate teológico


contemporâneo. Porém, isto não implica em que Vos não cria que toda a Escritura do
Antigo e Novo Testamentos fosse a Palavra de Deus.

16 G. Vos, Biblical Theology: Old and New Testaments (Grand Rapids: Eerdmans, 1948)
13.

17 Clowney (Preaching and Biblical Theology, 9-19) discute com bastante clareza estes
argumentos no primeiro capítulo de seu livro.
FIDES REFORMATA 1/1 (1996)

Martyn Lloyd-Jones, John Stott, e 1 Co 12.13:


O Debate sobre o Batismo com o Espírito Santo
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Augustus Nicodemus Lopes*

O debate na Igreja brasileira sobre o batismo com o Espírito Santo tem sido às vezes
conduzido em torno das figuras do (já falecido) Dr. Martyn Lloyd-Jones e do Dr. John
Stott.1 Mais particularmente, o debate tem girado em torno das suas interpretações da
conhecida passagem de Paulo em 1 Coríntios 12.13, Pois, em um só Espírito, todos nós
fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a
todos nós foi dado beber de um só Espírito.2 A passagem é crucial para o debate, já que
é a única, fora dos Evangelhos e de Atos, que traz juntas palavras como "todos",
"Espírito", "batizar", "corpo", e "beber". Alguns defensores do batismo com o Espírito
Santo como uma experiência distinta da conversão, referem-se ao Dr. Lloyd-Jones como
exemplo de um teólogo reformado e puritano que defende essa posição. Os do campo
contrário, referem-se ao Dr. Stott como um teólogo de renome mundial que sustenta ser
o batismo com o Espírito Santo idêntico à conversão.

Duas observações iniciais sobre esta realidade. Primeira, o debate sobre o batismo com o
Espírito Santo tem encontrado muito mais participantes ilustres do que apenas Lloyd-
Jones e Stott. Existem muitos livros e artigos defendendo uma e outra posição, escritos
por teólogos conhecidos e de diferentes persuasões teológicas. O fato de que, no Brasil,
esta polêmica desenvolve-se em torno dos nomes de Lloyd-Jones e de Stott deve-se ao
simples fato de que ambos tiveram suas obras traduzidas para o português, e outros não.
E a segunda observação decorre deste último ponto: a doutrina do batismo com o Espírito
Santo não é a principal ênfase dos ministérios de Lloyd-Jones e Stott.3 Ambos falaram e
escreveram sobre muitos outros assuntos. Mas o fato é que, no Brasil, por falta de
autores nacionais que escrevam claramente sobre o assunto, e que tomem uma posição
definida, e também por causa das poucas traduções em português de livros sobre o tema,
o debate desenvolveu-se mesmo em torno desses dois nomes.

Também é importante lembrar que esses dois importantes líderes não se envolveram
pessoalmente em disputa pública sobre esse ponto específico. São alguns de entre os
seus seguidores e admiradores que têm usado seus escritos para debater as diferenças
que a discussão moderna sobre o assunto tem levantado. Lloyd-Jones e Stott, na
verdade, estiveram envolvidos em outro tipo de polêmica, mais especificamente com
relação a eclesiologia, e a unidade dos evangélicos.4

Partindo então da inevitável realidade de que teremos de lidar com Lloyd-Jones e Stott ao
nos referirmos à questão do batismo com o Espírito Santo em um artigo destinado a
pastores e líderes brasileiros, tentaremos aqui dar uma colaboração ao debate através de
uma apresentação e análise da posição de ambos, particularmente à luz da maneira como
interpretam 1 Co 12.13.

• Lloyd-Jones e 1 Co 12.13
Vamos começar com Martyn Lloyd-Jones, por uma questão de cronologia. Sua opinião
sobre o batismo com o Espírito Santo, e sua interpretação de 1 Co 12.13, podem ser
encontradas em três de suas obras principais. Primeiro, em God’s Ultimate Purpose, o
primeiro volume de sua famosa série de sermões na carta aos Efésios, pregados nos anos
1954-1955, durante seu ministério na Capela de Westminster, Londres.5 Ele expõe
Efésios 1.13 em seis capítulos, quando então aborda o tema do batismo com o Espírito
Santo.6 Segundo, no volume da sua série em Romanos, entitulado The Sons of God, onde
ele expõe Romanos 8.5-17.7 Esse volume contém os sermões pregados em Romanos
durante os anos 1960-1961, dos quais oito tratam de Rm 8.16, uma passagem que,
segundo Lloyd-Jones, refere-se ao batismo com o Espírito Santo.8 Por fim, em seu livro
Joy Unspeakable, publicado em 1984, que é a transcrição de vinte e quatro sermões
pregados em 1964 na Capela de Westminster, Inglaterra, numa série em João 1.26-33.9
Nesta obra, Lloyd-Jones trata de forma detalhada da sua posição sobre o batismo com o
Espírito Santo, e de 1 Co 12.13.10 Procuraremos resumir, partindo destas fontes, a sua
interpretação da passagem.11

• O contexto do ensino de Lloyd-Jones

Devemos estar conscientes do contexto em que Lloyd-Jones aborda esse assunto. Ele
estava reagindo a duas tendências de sua época, as quais considerava perniciosas para a
vida da Igreja. Em primeiro lugar, contra o nascente movimento de "línguas", em
Londres, cujos proponentes reivindicavam terem sido "batizados com o Espírito", e
colocavam a ênfase maior no dom de línguas. Lloyd-Jones freqüentemente adverte contra
os perigos do fanatismo, misticismo, e abusos nesta área,12 fato que às vezes tem sido
esquecido por alguns que usam seus escritos para promover conceitos e práticas
carismáticos.

Lloyd-Jones enfrentava ao mesmo tempo um tipo de ensino aparentemente ortodoxo que


ele considerava ainda mais pernicioso à vida da Igreja do que os excessos dos
carismáticos. Basta que leiamos os capítulos 21—25 do seu livro God’s Ultimate Purpose
para verificarmos que, na maioria das vezes, ele está reagindo, não aos excessos do
movimento carismático nascente, mas ao tipo de ensino que dizia que os crentes já
tinham recebido tudo por ocasião da sua conversão, e que não mais precisavam buscar a
plenitude do Espírito ou um nível maior de vida espiritual.13 Era esse Cristianismo
antiemocional e intelectualista que prevalecia nas Igrejas evangélicas da Inglaterra. Para
muitos pastores e estudiosos daquela época, todos os crentes já haviam recebido tudo do
Espírito na sua conversão, e o que restava era irem se apropriando destes benefícios
gradativamente, na vida cristã.14 Para eles, quase todos os aspectos da obra redentora e
santificadora do Espírito Santo ocorriam num âmbito não "experienciável",15 e atividades
do Espírito como o "selo" (Ef 1.13) e o "testemunho ao nosso espírito" (Rm 8.16) eram
encarados como se processando em um nível intelectual, ou acima da nossa capacidade
de sentir ou experimentar. Outros ensinavam que todas estas coisas eram para ser
tomadas "pela fé", independentemente dos sentimentos ou das emoções.

Para Lloyd-Jones, esse tipo de ensino era responsável em grande parte pelo fato de a
maioria dos cristãos na Europa desconhecerem um Cristianismo vigoroso,
"experienciável", e de praticarem uma religião fria, sem emoções, e destituída de vigor e
vida. Como pastor de formação puritana, Lloyd-Jones reagiu fortemente a esse tipo de
ensino que acabava por negar o caráter "experienciável" da fé em Cristo, e o lugar das
emoções na experiência cristã. Mas, o seu maior conflito com esses teólogos era que tal
ensinamento, na sua opinião, não deixava lugar para reavivamentos espirituais, para
novos derramamentos do Espírito sobre a Igreja.

Por esse motivo, ele abordou o assunto do batismo com o Espírito Santo muito mais em
reação à frieza espiritual da sua época, do que em reação ao movimento carismático, que
estava apenas em seus inícios naqueles dias.

• O selo do Espírito e o batismo com o Espírito

Ao expor Ef 1.13, fostes selados com o Santo Espírito da promessa, Lloyd-Jones segue a
interpretação de alguns teólogos Puritanos (Thomas Goodwin, John Owen, Charles
Simeon, Richard Sibbes), e do famoso Charles Hodge de Princeton, que defendiam que
esse "selo" não é a mesma coisa que a conversão, e pode ocorrer depois.16 A principal
ênfase de Lloyd-Jones em sua exposição da passagem é que esse "selo" é algo que pode
ser experimentado, sentido e identificado pelos crentes, e que não se trata de algo que já
ocorreu automaticamente com todos eles na sua conversão. Como demonstração, ele
menciona experiências de personagens famosos na História da Igreja, como John Flavel,
Jonathan Edwards, D. L. Moody, Christmas Evans, George Whitefield e John Wesley.17

Trata-se de uma experiência, diz Lloyd-Jones, e não de um processo. Assim, é algo que
deve ser buscado por cada um.18 Também não devemos confundir o "selo" com a
plenitude do Espírito, e nem com a santificação;19 o "selo" também não é algo a ser
"apropriado pela fé", como ensinam alguns pregadores e escritores:20 ele funciona como
uma autenticação de Deus de que de fato pertencemos a ele, algo semelhante ao
ocorrido com o Senhor Jesus quando foi batizado (comparar Jo 1.32-34 com 5.27).21

Lloyd-Jones identifica esse "selar" do Espírito com o "batismo" do Espírito, experimentado


pelos apóstolos no dia de Pentecostes, e ainda pelos samaritanos, Cornélio e sua casa, e
os discípulos de João Batista em Éfeso.22

• O testemunho do Espírito e o batismo com o Espírito

Em sua exposição de Romanos 8.16, Lloyd-Jones afirma que o testemunho do Espírito ao


nosso próprio espírito é mais do que o resultado de um processo racional, pelo qual o
crente chega à certeza da salvação. Segundo ele, trata-se de uma certeza dada de forma
imediata (sem o uso de meios) pelo Espírito, diretamente à nossa consciência. Portanto, é
algo da mesma ordem que o "selo" ou batismo com o Espírito.23 É algo distinto da
conversão, que ocorre após a mesma, às vezes em um intervalo de tempo extremamente
breve.24

• 1 CoRÍNTIOS 12.13

Lloyd-Jones está consciente de que alguns apelarão para 1 Co 12.13 para contradizer seu
ponto de vista. Para ele, a passagem ensina de fato que o Espírito Santo batiza o crente,
colocando-o no corpo de Cristo que é a Igreja, e que isto ocorre na conversão, e que,
portanto, todos os cristãos já foram objeto desta atividade do Espírito. Porém, ele
argumenta, esse "batismo" de 1 Co 12.13 não é o mesmo "batismo" ou "selo" do Espírito
mencionado nos Evangelhos e em Atos. O que ocorre é que a palavra "batismo" é
empregada no Novo Testamento com vários sentidos diferentes.25 Para ele, o batismo
pelo Espírito em 1 Co 12.13 significa o ato pelo qual o Espírito nos incorpora à Igreja, e
que portanto é idêntico à conversão, ao passo que, nos Evangelhos, e principalmente em
Atos, o batismo com o Espírito refere-se a uma experiência pós-conversão, confirmatória
e autenticadora em sua essência.26

Lloyd-Jones argumenta que uma das diferenças decisivas entre 1 Co 12.13 e as


passagens em Atos sobre o batismo com o Espírito Santo, é quanto ao agente do
batismo, ou seja, a pessoa que batiza. Ele acredita que na expressão e)n e(ni/ pneu/mati
h(mei=j pa/ntej ei)j e(\n sw=ma e)bapti/sqhmen a preposição e)n tem força instrumental, e que
deve, portanto, ser traduzida "por um só Espírito", e não "em um só Espírito". Ele
argumenta que "por" é a tradução da maioria das versões em Inglês, e que a preposição
e)n ocorre em várias outras ocasiões no Novo Testamento com a mesma força
instrumental (ele cita Mt 7.6; 26.52; Lc 1.51; Rm 5.9). Ele cita ainda várias outras
autoridades na área de exegese que mantém esta opinião.27 Ele conclui que, em 1 Co
12.13, é o Espírito quem nos batiza no corpo de Cristo. Nas demais passagens, o agente
é o Senhor Jesus, o que é algo muito diferente. A confusão existe pelo fato de que a
mesma palavra "batismo" é usada.28 Em 1 Co 12.13 ela se refere à conversão, mas nas
demais passagens, a uma experiência posterior à conversão, e portanto, distinta da
mesma.

• Era Lloyd-Jones um Carismático?

Em resumo, para Lloyd-Jones, o batismo com o Espírito Santo é uma experiência na qual
o Espírito concede ao crente plena certeza de fé, e que deve ser identificada com o selo e
o testemunho do Espírito mencionados por Paulo. Esta experiência resulta em poder e
ousadia, que por sua vez, capacitam o crente a testemunhar eficazmente de Cristo.

É extremamente importante notar que o pensamento de Lloyd-Jones sobre o selo ou


batismo do Espírito, é essencialmente diferente da posição pentecostal clássica, e da
posição neopentecostal. Lloyd-Jones não vê nenhuma evidência bíblica de que esta
experiência deva ser acompanhada pelo falar em línguas e pelo profetizar, ou por
qualquer outra manifestação extraordinária. Na verdade, ele chama a atenção para o fato
de que muitos dos dons que foram concedidos no início da Igreja Cristã não haviam sido
mais concedidos no desenrolar desta mesma história. Ele aponta para o fato de que
nenhum dos grandes nomes da História da Igreja, conhecidos como tendo passado por
experiências profundas com o Espírito (que ele considera como tendo sido esse "selar" ou
"batizar" do Espírito) terem manifestado dons como línguas, profecia, ou milagres. Para
Lloyd-Jones, o ponto essencial desta experiência também não é a capacitação de poder,
como enfatizado em círculos pentecostais e carismáticos, mas a certeza dada de forma
direta, pelo Espírito, de que somos filhos de Deus.29

Como já mecionamos, ao mesmo tempo em que estava reagindo contra o Cristianismo


frio e árido de sua época, Lloyd-Jones também estava em combate contra várias ênfases
do nascente movimento carismático. Talvez o único ponto em que ele estivesse em
acordo com eles é que o "selo" (batismo) do Espírito é algo distinto da conversão, e que
ocorre após a mesma.30 As diferenças quanto ao propósito e às evidências deste evento
são por demais distintas das convicções pentecostais-carismáticas, para que venhamos a
classificar Lloyd-Jones como um carismático.

• Stott e 1 CoRÍNTIOS 12.13

Passemos agora para a opinião de John Stott. Conhecido pregador e escritor, Stott é
ministro da Igreja Anglicana da Inglaterra. Em 1964 ele fez uma série de estudos numa
conferência para líderes evangélicos sobre a obra do Espírito Santo, os dons espirituais, e
especialmente, sobre o batismo com o Espírito Santo. Estas palestras foram uma reação
de Stott ao crescente Pentecostalismo dentro da sua própria paróquia.31 As palestras
vieram ao grande público em 1966, num livrete intitulado The Baptism and Fullness of
the Holy Spirit,32 após os sermões de Lloyd-Jones sobre o assunto já terem sido
impressos. Dez anos após Stott publicou uma segunda edição, entitulada Baptism &
Fullness: The Work of the Holy Spirit Today,33 onde ampliou algumas partes que
precisavam de mais clareza e fundamentação, sem, entretanto, alterar seus pontos de
vista.34 Esta obra foi traduzida e publicada em Português em 1986, como Batismo e
Plenitude do Espírito Santo.35 Nela, Stott trata dos principais aspectos da obra do Espírito
relacionados com a polêmica moderna, tais como a promessa do Espírito, o batismo do
Espírito, a plenitude, o fruto e os dons do Espírito. Procuraremos nos concentrar na sua
interpretação de 1 Co 12.13.

• Uma experiência iniciatória

Stott argumenta que a expressão "batismo com o Espírito Santo", que ocorre sete vezes
no Novo Testamento, é equivalente à expressão "o dom do Espírito Santo" que ocorre em
At 2.38, e refere-se à experiência iniciatória da qual participam todos os que se tornam
cristãos.36 O próprio conceito de "batismo com água" é iniciatório, como sendo o ritual
público de introdução na Igreja, e está intimamente associado ao batismo com o Espírito
Santo, como sugere At 10.47, 11.16 e 19.2-3.37 Ele argumenta que a linguagem
empregada por Paulo para descrever a experiência cristã com o Espírito, como "estar no
Espírito", "ter o Espírito", "viver pelo Espírito", e "ser guiado pelo Espírito", é aplicada nas
cartas do apóstolo a todos os cristãos, indistintamente, até mesmo para os recém
convertidos, a partir do momento em que se tornam cristãos. O Novo Testamento,
continua Stott, presume que Deus tem dado o Espírito a todos os cristãos, cf. Rm 8.9; Gl
5.25; Rm 8.14.38

Das sete vezes em que a expressão "ser batizado com o Espírito Santo" ocorre no Novo
Testamento, somente uma vez é fora dos Evangelhos e de Atos (ou seja, em 1Co 12.13).
Stott lembra que, nos Evangelhos, a expressão aparece quatro vezes nos lábios de João
Batista, ao descrever o ministério do Senhor Jesus, "ele vos batizará com o Espírito
Santo" (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16; Jo 1.33). Em Atos, uma vez é aplicada pelo Senhor a
Pentecostes (At 1.5), e outra é aplicada por Pedro à conversão de Cornélio, citando as
palavras do Senhor Jesus (At 11.16).

A sétima vez é em 1 Co 12.13, Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em


um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado
beber de um só Espírito. Stott contesta que, aqui, Paulo esteja se referindo ao Dia de
Pentecoste, já que nem ele, nem os coríntios, participaram daquele evento histórico.
Paulo está se referindo à participação nas bênçãos que Pentecoste tornou possível aos
cristãos. Ele e os coríntios tinham recebido o Espírito Santo; aliás, para usar a
terminologia de Paulo, tinham sido "batizados" com o Espírito Santo, e tinham "bebido"
deste mesmo Espírito.

Stott aponta para o fato de Paulo estar enfatizando a unidade no Espírito no contexto da
passagem, em contraste deliberado à variedade dos dons espirituais, assunto que o
apóstolo havia discutido na primeira parte de 1 Co 12. Esse ponto é evidente pela
repetição da palavra "todos" (todos...foram batizados, todos...beberam) e da expressão
"um só" (um só Espírito... em um só corpo... de um só Espírito). O que Paulo está
fazendo aqui, afirma Stott, é sublinhar aquela experiência com o Espírito Santo que todos
os cristãos têm em comum. Esta é a diferença entre "o dom do Espírito" (quer dizer, o
próprio Espírito Santo), e "os dons do Espírito" (isto é, os dons espirituais que ele
distribui). Neste capítulo Paulo emprega várias vezes uma terminologia onde a unidade
dos cristãos é destacada, cf. 12.4,8,9,11,13. O clímax é 12.13, onde o apóstolo afirma
que em um só Espírito todos nós fomos batizados em um corpo. A expressão de Paulo,
quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres, bem pode ser uma alusão a "toda a
carne" mencionada na profecia de Joel. Stott conclui que o batismo com o Espírito Santo
não é uma segunda experiência, nem uma experiência subseqüente desfrutada somente
por alguns cristãos, mas a experiência inicial desfrutada por todos.39 Ou seja, o batismo
com o Espírito é o mesmo que conversão.

No seu recente comentário em Atos, Stott procura deixar claro que não nega que haja
experiências mais profundas e mais ricas após a conversão. Porém, ele rejeita a idéia de
que tais coisas possam ser chamadas de "batismo com o Espírito", uma terminologia que
ele reserva apenas para a conversão, a obra inicial do Espírito no crente.40 É importante
notar que, para ele, as passagens nos Evangelhos e em Atos devem ser interpretadas à
luz da passagem de Corintios, e portanto, devem se referir à conversão, quando o crente
recebe tudo o que lhe é dado receber do Espírito. É sintomático que no seu livro Baptism
& Fullness não exista nem uma palavra sobre reavivamento espiritual. Stott
aparentemente não nega a possibilidade da ocorrência de um reavivamento em nossos
dias, mas certamente não é um dos seus proponentes mais entusiastas.

• Batismo "pelo", "com", ou "no" Espírito?

Em seguida, Stott passa a responder às objeções que geralmente são levantadas contra
sua interpretação de 1 Co 12.13. Inicialmente, ele aborda o argumento de que as outras
seis passagens, que se referem ao "batismo com o Espírito Santo", tratam do batismo
feito por Jesus em, ou com, o Espírito Santo, enquanto que 1 Co 12.13 trata do batismo
realizado pelo Espírito no corpo de Cristo, algo completamente diferente. Os defensores
desta posição, esclarece Stott, concordam que o Espírito Santo batizou a todos os crentes
no corpo de Cristo, mas isto não prova, para eles, que Cristo batizou a todos com o
Espírito Santo. Stott afirma que esse tipo de argumentação é um exemplo de se tentar
defender o indefensável, e passa, então, a refutá-la como se segue.41

Em todas as sete ocorrências da frase, a idéia de batismo é expressa pelas mesmas


palavras gregas bapti/zw, e)n, pneu=ma, e portanto, a priori, deve ser entendida como
se referindo à mesma experiência de batismo. Esta é uma regra sadia de interpretação,
diz Stott, e cabe aos que pensam o contrário apresentar provas de que ela não se aplica
aqui. A interpretação natural é que Paulo estaria em 1 Co 12.13 ecoando as palavras de
João Batista, como Jesus e Pedro haviam feito antes dele (At 1.15; 11.16). É estranho
tomar Jesus como o batizador nas seis primeiras passagens, e então, na sétima, tomar o
Espírito como sendo o batizador, já que as expressões são idênticas. A preposição grega
em 12.13 é e)n, como nos demais versículos, onde é traduzida como "com". Por quê,
pergunta Stott, deveria ser traduzida diferentemente?42

• Os quatro elementos de todo batismo

Ele então defende esse ponto com o argumento de que em qualquer tipo de batismo
existem quatro partes: (1) o sujeito, que é o batizador, (2) o objeto, que é a pessoa
sendo batizada, (3) o elemento em, ou no qual a pessoa é batizada, e (4) o propósito
com o qual o batismo é realizado. Como exemplo, ele cita o "batismo" dos israelitas no
Mar Vermelho (cf. 1 Co 10.1-2). Deus foi o batizador, os israelitas foram os batizandos, o
elemento em que foram batizados foi água, ou vapor que caia das nuvens, e o propósito
é indicado pela expressão "batizados em Moisés", isto é, para um relacionamento com
Moisés como o líder apontado por Deus. O batismo de João, igualmente, tem quatro
partes: João (o sujeito) batizou as multidões que vinham de Jerusalém e regiões
circunvizinhas (os batizandos) nas (e)n) águas do Rio Jordão (elemento) para (ei)j)
arrependimento e, portanto, remissão de pecados, cf. Mt 3.5,11. O batismo cristão é
similar, continua Stott. O pastor (sujeito) batiza o candidato (objeto) na, ou com, água
(elemento), e o batismo é ei)j, "para" o nome da Trindade, ou mais especificamente, para
o nome de Cristo (Mt 28.19; At 8.16). O batismo do Espírito não é exceção a esta regra,
conclui Stott. Se colocarmos as sete referências juntas, verificaremos que Jesus Cristo é o
batizador (sujeito), todos os crentes (1 Co 12.13) são os batizandos (objeto), o Espírito
Santo é o "elemento" com o qual (e)n ) somos batizados, e o propósito (ei)j) é a
incorporação do crente no corpo de Cristo.43

Stott reconhece que alguém poderia objetar que estas quatro partes não aparecem
claramente em todos as sete passagens mencionadas. Por exemplo, o sujeito (o
batizador) não aparece em 1 Co 12.13. Para Stott, isto não é problema: Jesus Cristo é o
batizador implícito da passagem, assim como também em At 1.5 e 11.16. Ele não é
mencionado porque nestas passagens o verbo "batizar" está na voz passiva, e a ênfase
recai sobre as pessoas sendo batizadas, enquanto que o sujeito da ação recua para os
bastidores.

Ele ainda argumenta que, se o Espírito é quem batiza em 1 Co 12.13, então, onde está o
elemento com o qual ele batiza? Stott considera a falta de resposta a esta pergunta como
sendo conclusiva de que sua interpretação é a correta, já que a metáfora do batismo
requer um elemento. De outra forma, "batismo não é batismo".44 Ele conclui que 1 Co
12.13 refere-se a Cristo batizando com o Espírito Santo, e nos fazendo beber do Espírito,
e que "todos nós" temos participado desta bênção (cf. Jo 7.37-39). Esta conclusão é
reforçada pelo tempo dos dois verbos, "batizar" e "beber", ambos no aoristo, e que se
referem, não a Pentecoste, mas à bênção pessoal recebida pelos cristãos em sua
conversão.45

• Uma avaliação crítica

O quadro abaixo poderá nos ajudar a visualizar o pensamento destes dois eminentes
servos de Deus sobre 1 Co 12.13.

QUADRO 1

COMPARAÇÃO DAS POSIÇÕES DE STOTT E LLOYD JONES


• Em que Lloyd-Jones e Stott concordam

Não há diferença entre eles quanto aos batizandos (aqueles sendo batizados) de 1 Co
12.13, e nem de fato deveria haver. Com a expressão todos nós Paulo se refere aos
crentes em geral, e não somente a si mesmo e aos coríntios. Paulo está descrevendo na
passagem uma experiência que une todos os cristãos, independente de raça, sexo, ou
status social, e que isto o apóstolo faz porque seu objetivo, na segunda parte de 1 Co 12,
é enfatizar a unidade dos cristãos, em contraste com a diversidade dos seus dons.
Colocado dentro desta perspectiva, fica pouca dúvida de que 12.13 esteja se referindo a
uma experiência na qual todos os cristãos participam.

Da mesma forma, o propósito deste batismo é claramente indicado pela preposição ei)j.46
Ou seja, "colocar" o crente no corpo, que é a Igreja. Ambos concordam que esse é o alvo
do batismo na passagem, e portanto, também concordam que o batismo mencionado é o
mesmo que a conversão.

• Em que Lloyd-Jones e Stott diferem

A tradução de e)n

Em primeiro lugar, analisemos a tradução da preposição e)n e a sua relação com o


batizador, ou o agente do batismo. Não é fácil decidir sobre quem está certo, se Lloyd-
Jones com a tradução "por", ou se Stott, com a tradução "com" ou "em". Todas são
gramaticalmente possíveis. A decisão, finalmente, não será uma questão de gramática ou
sintaxe, mas de teologia, das pressuposições teológicas que cada exegeta traz consigo ao
analisar a passagem.

A favor da tradução "por um só Espírito" (Lloyd-Jones) está o fato de que esta é a


tradução adotada pela maioria das traduções nas línguas modernas.47 Contra, está o fato
de que esta tradução faz com que a passagem seja a única no Novo Testamento a fazer
do Espírito Santo o agente do batismo, e não o elemento com o qual o crente é batizado.
Mas, para Lloyd-Jones, isto não é dificuldade, pois o batismo "pelo" Espírito é de fato
distinto do batismo "com" ou "no" Espírito. E esta é a pressuposição com a qual ele se
aproxima de 1 Co 12.13, ou seja, que o batismo com o Espírito mencionado nos
Evangelhos e no livro de Atos é uma experiência distinta da conversão.

A favor de Stott está o fato de que, nas demais ocorrências da expressão, a preposição
pode ser traduzida por "com" ou "no" Espírito. Ao analisar 1 Co 12.13 à luz das seis
outras ocorrências da expressão "ser batizado com o Espírito Santo", Stott utiliza-se de
um princípio sadio e sólido de exegese bíblica: uma passagem da Escritura deve ser
interpretada à luz de outras passagens que tratem do mesmo tema. Contra sua
interpretação está o fato de que, em última análise, sua posição exige que a conversão
dos apóstolos, dos samaritanos e dos discípulos de João Batista, narradas em Atos, tenha
ocorrido na mesma ocasião em que foram batizados com o Espírito. Esta posição é
insustentável, do nosso ponto de vista, já que, pelo menos no caso dos apóstolos, é
evidente que eles já eram regenerados quando foram batizados com o Espírito Santo.
Porém, se considerarmos as experiências de Atos como exceções, o caso muda de figura.
É isto que Stott eventualmente faz.48

• A relação entre 1 Co 12.13 e as experiências


no livro de Atos

Em segundo lugar, ambos divergem com respeito à relação entre 1 Co 12.13 e as demais
passagens paralelas nos Evangelhos e Atos. Como vimos, Lloyd-Jones sustenta que se
tratam de experiências diferentes: em 1 Coríntios "batismo pelo Espírito" se refere à
conversão, enquanto que, em Atos, "batismo com o Espírito" se refere a uma experiência
de confirmação e autenticação. Por outro lado, Stott afirma que em 1 Coríntios e em
Atos, a expressão designa a mesma coisa, ou seja, conversão.

Não podemos entrar de forma profunda aqui neste artigo na questão do batismo com o
Espírito Santo nos Evangelhos e no livro de Atos, mas podemos no mínimo afirmar que,
em alguns dos casos narrados em Atos, o batismo com o Espírito ocorreu com pessoas
que já eram crentes, como os discípulos em Pentecostes (At 2.1-4; cf. Jo 13.10; 15.3; Lc
10.20), e provavelmente os samaritanos (At 8.14-18; cf. 8.12). Somente em uma
ocasião o batismo com o Espírito ocorreu claramente ao mesmo tempo que a conversão,
que foi durante a pregação de Pedro na casa de Cornélio.

Os estudiosos têm tirado conclusões diferentes destes fatos. Lloyd-Jones, como vimos,
conclui que tais fatos estabelecem a norma e a terminologia para todas as épocas da
Igreja. Contudo, parece-nos que as experiências narradas em Atos são melhor entendidas
à luz do contexto histórico em que ocorreram, à luz daquele período especial de
transição, em que o Evangelho estava se universalizando, passando dos judeus para os
gentios, um processo onde era necessário que manifestações extraordinárias
acompanhassem os diferentes estágios desta transição, como uma forma de autenticação
das mesmas. Esta é a convicção de Stott. Entendemos que MacArthur expressa bem esse
ponto de vista, ao escrever o seguinte sobre a experiência dos samaritanos:

• Aqueles crentes em particular tiveram de esperar pelo Espírito Santo, mas não
lhes foi dito que deviam buscá-lo. O propósito daquela exceção era demonstrar
aos apóstolos, e fazer ouvir entre os crentes judeus em geral, que o mesmo
Espírito que havia batizado e enchido os crentes judeus, agora havia feito o
mesmo com os crentes samaritanos, exatamente como, em pouco tempo, Pedro e
outros judeus crentes, haveriam de ser enviados como testemunhas à casa de
Cornélio, do fato de que "o Espírito havia também sido derramado sobre os
gentios" (At 10.44-45).49

Não entendemos que as experiências narradas em Atos, onde houve um intervalo entre
conversão e batismo com o Espírito, sejam a norma para as demais etapas da Igreja de
Cristo, após o período de transição ter-se completado, e nem que a terminologia "batismo
com o Espírito" deva ser usada para experiências posteriores à conversão. Se tivéssemos
de tomar algum evento como normativo, tomaríamos a experiência dos três mil no dia de
Pentecostes, que num mesmo evento se converteram, receberam o Espírito, e foram
batizados com aquele mesmo Espírito (cf. At 2.38).

Parece-me, concluindo, que a dificuldade com a posição de Lloyd-Jones é essencialmente


uma questão de terminologia. Creio que ele está correto em sua tese fundamental. Ou
seja, que a plenitude das bênçãos espirituais que recebemos em nossa conversão não
esvaziam, necessariamente, a possibilidade de termos experiências espirituais profundas
após a mesma, que envolvam o crente como um todo, que atinjam as suas emoções e
transformem a sua vida, que o conduzam a níveis ainda mais elevados de vida cristã. A
História Eclesiástica demonstra eloqüentemente a possibilidade destas experiências.

Porém, não estou convencido de que possamos usar a terminologia do "batismo com o
Espírito Santo" para designá-las. Esta terminologia, na minha opinião, foi utilizada para
expressar no início da Igreja os eventos únicos relacionados com as etapas da
universalização do Reino, relatos esses expostos no livro de Atos. À parte do que está
narrado no livro de Atos, as Escrituras não aparentam reconhecer qualquer intervalo
entre a conversão e o batismo com o Espírito Santo. Assim, a expressão é corretamente
empregada hoje para designar a experiência universal de todos os crentes, ao receberem
a Cristo pela fé em seus corações. Ao mesmo tempo, é de se lamentar profundamente
que, ao reagir contra os abusos e exageros de muitos que professam ter recebido um
"batismo com o Espírito", vários estudiosos conservadores tenham adotado uma posição
onde há pouco, ou nenhum, lugar para novos derramamentos do Espírito, para
reavivamentos e experiências espirituais profundas e ricas com Deus.

___________________________

* O autor é pastor presbiteriano, coordenador do Departamento de Novo Testamento do


Centro de Pós-Graduação Andrew A. Jumper, em São Paulo. Tem mestrado em Novo
Testamento pela Potschefstroom University for Christian Higher Education, na África do
Sul, e doutorado em Hermenêutica e Estudos Bíblicos pelo Westminster Theological
Seminary, Filadélfia, USA, com cursos especiais na Universidade Teológica da Igreja
Reformada da Holanda..

1 Por exemplo, em 1994 um Presbitério da Igreja Presbiteriana do Brasil encaminhou


uma consulta ao Supremo Concílio, onde perguntava: "O batismo com o Espírito Santo é
um revestimento de poder para o serviço (como defende o teólogo D. Martyn Lloyd-
Jones), ou é algo que todo cristão recebe uma única vez no momento de sua conversão
(como defende o teólogo John Stott)?"

2 As citações bíblicas são da versão Almeida Revista e Atualizada, salvo onde indicado
diferentemente.

3 Lloyd-Jones só tratou deste assunto ao se deparar, no decorrer de suas mensagens em


série sobre um livro da Bíblia, com uma passagem diretamente relacionada com o tema,
como por exemplo, Ef 1.13 e Rm 8.16.

4 As diferenças entre ambos chegaram a um ponto crítico em 1966, durante o culto de


abertura da Evangelical Alliance, em Londres. Lloyd-Jones era o conferencista principal, e
Stott era o chairman do evento. A diferença se deu após a mensagem de abertura de
Lloyd-Jones, quando Stott publicamente repudiou a sua sugestão de se formar uma nova
união de evangélicos. Veja os detalhes em Iain Murray, David Martyn Lloyd-Jones: The
Fight of Faith 1939-1981 (Edinburgo: Banner of Truth, 1990) 522-7.

5 D. Martyn Lloyd-Jones, God’s Ultimate Purpose: An Exposition of Ephesians 1.1 to 23


(Grand Rapids: Baker Book House, 1978; reimpressão, 1979).

6 Lloyd-Jones, God’s Ultimate Purpose, 243-300.

7 D. Martyn Lloyd-Jones, Romans: An Exposition of Chapter 8.5-17: The Sons of God


(Grand Rapids: Zondervan, 1974; oitava reimpressão, 1982).

8 Lloyd-Jones, The Sons of God, 285-399.

9 D. Martyn Lloyd-Jones, Joy Unspeakable: Power & Renewal in the Holy Spirit ( Illinois:
Harold Shaw Publishers, 1984) 13.

10 Os demais sermões da série foram publicados no livro Prove All Things (Londres:
Kingsway, 1985), onde Lloyd-Jones apresenta os critérios bíblicos através dos quais
podemos avaliar as manifestações espirituais quanto à sua autenticidade. No Brasil, Joy
Unspeakable tem recebido muito mais ênfase, enquanto que Prove All Things, que é o seu
complemento indispensável, é praticamente desconhecido.

11 Para uma exposição e análise do ensino de Lloyd-Jones sobre o batismo com o Espírito
Santo, ver Michael A. Eaton, Baptism with the Spirit: The Teaching of Dr. Martyn Lloyd-
Jones (London: Intervarsity Press, 1989). Também, Murray, Lloyd-Jones, 483-92.

12 Ver, por exemplo, Prove All Things, 47-49; 57-59; 85, 95-97; etc. Também, ver Joy
Unspeakable, 18.

13 Murray, Lloyd-Jones, 486.

14 Estas idéias haviam sido defendidas particularmente por Stott em seu livro Baptism
and Fullness of the Spirit (ver adiante nota 50). Lloyd-Jones havia lido e anotado esta
obra, antes de pregar a séries de mensagens que deram origem ao livro Joy
Unspeakable.

15 Emprego esse neologismo "experienciável" na tentativa de melhor expressar o sentido


da palavra inglesa "experimental".

16 Lloyd-Jones, God’s Ultimate Purpose, 248-49, 283.

17 Ibid., 275-8. Veja também, Lloyd-Jones, The Sons of God, 315-323

18 Lloyd-Jones, God’s Ultimate Purpose, 248-50, 267-8.

19 Ibid., 261-3.

20 Ibid., 294-5.
21 Ibid., 246-7; ver ainda p. 265.

22 Ibid., 249, 264, 274.

23 Lloyd-Jones, The Sons of God, 296-300.

24 Ibid., 310.

25 Cf. Lc 12.50.

26 Lloyd-Jones, God’s Ultimate Purpose, 267-68. Ver ainda The Sons of God, 314; Joy
Unspeakable, 173-9.

27 Lloyd-Jones, Joy Unspeakable, 174-6.

28 Lloyd-Jones, The Sons of God, 314-5; Joy Unspeakable, 177

29 Lloyd-Jones, God’s Ultimate Purpose, 280-2.

30 Mas, mesmo assim, Lloyd-Jones deixa claro que o intervalo de tempo entre as duas
coisas pode ser extremamente curto, cf. Ibid., 253-4.

31 Estes eventos se encontram narrados em Murray, Lloyd-Jones, 485. Embora essa


biografia seja sobre Lloyd-Jones, Murray narra em detalhes fatos relacionados com as
principais figuras evangélicas da Inglaterra envolvidas com o seu ministério.

32 John R. W. Stott, The Baptism and Fullness of the Holy Spirit (Illinois: Intervarsity
Press, 1964).

33 John R. W. Stott, Baptism & Fullness: The Work of the Holy Spirit Today (Illinois:
Intervarsity Press, 1975).

34 Ver Stott, Baptism & Fullness, 9.

35 John R. W. Stott, Batismo e Plenitude do Espírito Santo, trad. Hans U. Fuchs (São
Paulo: Vida Nova, 1966; 2ª edição, 1986). As referências serão feitas à obra original em
Inglês, em sua 2ª edição.

36 Stott, Baptism & Fullness, 36-38.

37 Ibid., 37.

38 Ibid., 38.

39 Ibid., 38-40.

40 John Stott, A Mensagem de Atos, em A Bíblia Fala Hoje, eds. J. A. Motyer e J. R. W.


Stott (São Paulo: ABU, 1994) 172.
41 Stott, Baptism & Fullness, 40.

42 Ibid.

43 Ibid., 40-42.

44 Ibid., 42-43.

45 Ibid., 43.

46 É interessante observar, porém, que a preposição ei)j ligada ao verbo bapti/zw nem
sempre indica o propósito do batismo. Em Mc. 1.9 indica o elemento do batismo, ou seja,
o rio Jordão. Às vezes, indica referência ou relação, como por exemplo, onde o nome ou a
pessoa de Jesus é mencionada, cf. Mt. 28.19; At 8.16; 19.5; Rm. 6.3. E mesmo pode
indicar o tipo de batismo, ver At 19.3 ou a causa do batismo, Mt. 3.11. Em1 Co 12.13
indica o alvo do batismo, que é incorporar o crente no corpo de Cristo.

47 Entre as traduções modernas em Inglês que adotam "por" estão: KJV, NKJV, AV, RSV,
NEB, NIV, NAS, TEV, GNB, NCV, Phillips, Mofatt, etc. Em Português, quase que a maioria
das traduções prefere "em". Os comentários estão divididos. Alguns preferem "por"
(Calvino, Clark, Hodge, Kistemaker, Chafin, MacArthur, Bengel, Alford); outros, "em" ou
"com" (Morris, Findlay, Lenski, Goud, Grosheide, Robertson & Plummer).

48 Cf. Stott, Atos, 172.

49 John MacArthur, 1 Corinthians, em The MacArthur New Testament Commentary


(Chicago: Moody Press, 1984) 313.
FIDES REFORMATA 1/1 (1996)

O Catecismo de Heidelberg:
Sua História e Influência
Alderi Mattos*

Uma das principais características da Reforma Protestante do século XVI foi a produção
de um grande número de declarações doutrinárias na forma de confissões e catecismos.
Estas declarações resultaram tanto de necessidades teológicas quanto pastorais, à
medida em que os novos grupos definiam a sua identidade em um complexo ambiente
religioso, cultural, social e político. Mark Noll observa que esse fenômeno é típico da
Reforma, uma vez que o termo "confissão", em seu sentido mais comum, designa as
declarações formais da fé cristã escritas especialmente por protestantes, desde o início do
seu movimento.(1)

Embora tais documentos normalmente sejam classificados como confissões e catecismos,


é importante recordar que os catecismos são também confissões de fé. A distinção é
formal, já que os catecismos são simplesmente "declarações de fé escritas na forma de
perguntas e respostas que na época da Reforma freqüentemente serviram aos mesmos
propósitos que as confissões formais." (2)

O ramo reformado do protestantismo foi pródigo na produção de tais documentos,


particularmente no período decorrido entre o primeiro catecismo de João Calvino,
Instrução na Fé (1537), e os catecismos de Westminster (1648). Uma das mais
extraordinárias declarações de fé escritas naquele período foi o famoso Catecismo de
Heidelberg, também conhecido como o Heidelberger o mais importante documento
confessional da Igreja Reformada Alemã.

O objetivo do presente artigo é refletir sobre a singularidade desse documento, tanto no


que diz respeito às circunstâncias históricas que conduziram à sua preparação, quanto no
que se refere à natureza excepcional do seu conteúdo e da sua contribuição à igreja.
Conforme destaca Karl Barth, o Catecismo de Heidelberg resultou das necessidades
imediatas da vida de uma igreja em particular.(3) Ao final, todavia, ele se tornou a mais
ecumênica das confissões de fé protestantes. Esse estudo irá abordar os antecedentes
históricos do catecismo, os dois homens mais intimamente associados com a sua
preparação, suas principais características e sua influência duradoura.

Antecedentes históricos

Foi especialmente na década de 1560 que o protestantismo reformado penetrou na


Renânia.(4) Enquanto o luteranismo debatia-se com divisões internas, a tradição
reformada suíça fez avanços em estados anteriormente luteranos. Os líderes do
movimento eram alemães que haviam sido inspirados por Zurique e Genebra, mas que
estabeleceram os seus próprios padrões. Para alguns, este era o próximo passo a partir
do Filipismo (luteranismo moderado) em direção a uma ampla restruturação do culto e da
disciplina. Este movimento algumas vezes tem sido denominado "a segunda reforma".(5)

Nas cidades-estado do Baixo Reno, o movimento teve início através de pressões


congregacionais. Ainda na década de 1540, refugiados holandeses começaram a chegar
ao Baixo Reno e esse influxo de imigrantes tornar-se-ia gigantesco após a repressão
promovida pelo Duque de Alba em 1567. Em outras áreas, as mudanças religiosas foram
promovidas pelos governantes.

A reforma em Estrasburgo, sob a liderança de Bucer (morto em 1551), já havia


manifestado algumas características reformadas. Calvino havia trabalhado ali (1538-41) e
era conhecido de muitos naquela região. Na década de 1550 Estrasburgo tornou-se
fortemente luterana e anti-calvinista.

O Palatinado Renano ou Baixo Palatinado foi o primeiro e o mais importante estado a


envolver-se com o novo movimento. Lutero havia visitado Heidelberg em 1518; naquela
época, Bucer, então um jovem dominicano, abraçara a causa protestante. Heidelberg
adotou o luteranismo sob Frederico II em 1545-46. Todavia, durante a maior parte dos
vinte anos seguintes, uma série de conflitos manteve a vida da cidade em turbulência.(6)

Sob o eleitor Oto Henrique (1556-59), o Baixo Palatinado adotou um luteranismo


moderado que tolerava o zuinglianismo e o calvinismo. No entanto, ao final da década de
1550 houve um grave conflito na Universidade de Heidelberg, no qual extremistas
luteranos atacaram aqueles de convicção melanchtoniana e reformada e introduziram
formas de culto vistas como idolátricas pelos seus oponentes. A intolerância anti-
calvinista desagradou a Oto Henrique e a seu sucessor Frederico III (1559-76).

O eleitor Frederico ficou particularmente incomodado com uma amarga controvérsia a


respeito da Ceia do Senhor ocorrida em 1560. Um pastor luterano e um diácono calvinista
discutiram violentamente diante dos cidadãos reunidos para uma celebração dominical da
Ceia do Senhor. Frederico baniu os dois antagonistas e tentou achar um caminho melhor.
Ele era um homem sinceramente religioso e inteligente que havia sido convertido ao
luteranismo através da sua esposa. Ele familiarizou-se com os pontos controvertidos de
culto e doutrina. Seu desprazer em relação a cerimônias elaboradas fizeram-no inclinar-
se em direção ao calvinismo. Era cada vez mais difícil manter o luteranismo liberal do seu
predecessor, agora que Melanchton estava morto (abril de 1560).

Depois de um debate de cinco dias realizado em Heidelberg (junho de 1560), no qual as


doutrinas calvinistas foram apresentadas de maneira convincente, Frederico começou a
tomar providências no sentido de adotar o calvinismo. Em agosto, os religiosos que não
quiseram aceitar a confissão Augustana Variata (1541) tiveram de retirar-se.

Em janeiro de 1561, uma conferência de príncipes realizada em Naumburg separou


luteranos e calvinistas de modo ainda mais dramático, e o eleitor passou a promover o
calvinismo nos seus domínios. Na realidade, tratava-se de um calvinismo marcado por
um espírito melanchtoniano.(7)

Frederico precisava de teólogos que pudessem trabalhar juntos. Ele encontrou uma dupla
notável em Zacarias Ursino e Gaspar Oleviano, talentosos teólogos de orientação suíça,
ambos com menos de 30 anos. Ursino foi nomeado professor de teologia ele havia
iniciado a sua educação teológica com Melanchton, mas também estudara pessoalmente
com Calvino. Oleviano era um protestante reformado francês que também havia estudado
com Calvino e apreciava os escritos de Melanchton. Ele tornou-se o pastor da principal
igreja de Heidelberg.

Noll comenta que "juntos eles formaram uma equipe de rara compatibilidade (...) Ambos
estavam ansiosos para trabalhar juntos a fim de apresentar uma frente protestante
comum. E ambos tinham o dom de discernimento pastoral."(8) Seus nomes ficariam
permanentemente associados ao produto mais influente do movimento reformado alemão
o Catecismo de Heidelberg, publicado a 19 de janeiro de 1563.

Os Contribuidores

Zacarias Ursino

Zacarias Ursino (1534-1583) nasceu na cidade silésia de Breslau (hoje na Polônia). Seu
pai era um homem de recursos modestos, mas Zacarias teve uma excelente educação
preparatória graças às suas conexões e ao apoio de um benfeitor Dr. João Crato, o
médico da família.

Na sua juventude, Ursino foi grandemente influenciado pelo seu pastor, Miobano, um
luterano com tendências calvinistas. Ursino passou quase sete anos em Wittenberg
(1550-57) sob a orientação de Filipe Melanchton, ao qual se apegara fortemente. Ali ele
estudou lógica, dialética e teologia.

Quando Melanchton foi para a conferência de Worms (1557), levou Ursino consigo. Ao
terminar a conferência, Ursino passou dez dias em Heidelberg com o eleitor Oto Henrique.
Em 1557-58 ele foi para a Suíça e a França numa viagem de estudos, e visitou todas as
figuras conhecidas que pode, inclusive Calvino. Logo após regressar para Wittenberg foi
chamado para ensinar em sua cidade natal, mas teve de partir em abril de 1560 durante
uma controvérsia a respeito da Ceia do Senhor. Ele então foi para Zurique, onde Pedro
Mártir o conduziu a um calvinismo explícito.

"Com 27 anos, Ursino era um estudioso altamente preparado, apreciador dos clássicos e
da poesia, e familiarizado com todo o campo da teologia."(9) Ele foi para Heidelberg em
setembro de 1561. Com a reação luterana que se seguiu à morte de Frederico III, ele
mudou-se para Neustadt, onde passou os últimos cinco anos da sua vida, ensinando na
escola fundada por João Casimir.

À semelhança de Calvino, Ursino era um estudioso retraído que tinha a modesta ambição
de levar uma vida tranqüila; porém, a sua posição em Heidelberg tornou isto
impossível.(10) O conselho afixado à sua porta em Neustadt é bastante revelador da sua
personalidade: "Meu amigo, seja você quem for, torne a sua visita breve, vá embora, ou
ajude-me no meu trabalho."(11)

Ursino sempre afirmou que pertencia à igreja evangélica. Derk Visser observa que "ele
não pode ser categorizado como pertencente a nenhuma escola ou movimento que não
seja a igreja evangélica."(12) Ele esteve sempre ansioso por encontrar fórmulas
conciliatórias e lutou sinceramente pela paz teológica.

Zacarias Ursino escreveu ou editou algumas das obras mais fundamentais da Igreja
Reformada Alemã. A exposição mais sistemática da sua teologia pode ser encontrada no
seu comentário sobre o Catecismo de Heidelberg. Peter A. Lillback argumenta que outra
importante contribuição feita por ele à teologia reformada foi "a primeira apresentação
claramente articulada do pacto das obras, que Ursino denominou como o `pacto da
criação' ou o `pacto da natureza'."(13)

Gaspar Oleviano
Kaspar von Olewig (1536-1587) nasceu em Treves, na fronteira de Luxemburgo. Seu pai
era o chefe da associação de padeiros da cidade. O jovem Oleviano freqüentou escolas
católicas; aos quatorze anos foi para Paris e mais tarde, à semelhança de Calvino,
estudou direito em Orleans e Bourges (1550-57). Quando estava em Bourges, conheceu
o futuro eleitor ao tentar, em vão, salvar o filho de Frederico quando o mesmo se
afogava. Durante aqueles anos ele foi influenciado por estudantes huguenotes e tornou-
se um calvinista.(14)

Após a sua formatura, Oleviano estudou com vários líderes protestantes na Suíça (Pedro
Mártir, Beza e Calvino) e foi incentivado a voltar para Treves. Não havia nenhuma igreja
protestante na cidade. Oleviano ensinou por um ano e meio na academia local e em
agosto de 1560 pregou um sermão eletrizante no qual atacou a missa, o culto dos santos,
procissões e outras práticas católicas. Ele suplicou ao povo que observasse os
ensinamentos das Escrituras. Dois meses depois foi preso juntamente com o prefeito e
outras pessoas que o apoiaram.

Frederico imediatamente enviou embaixadores a Treves e obteve a sua soltura. Oleviano


foi para Heidelberg no dia 22 de dezembro de 1560 e tornou-se pastor da Igreja de S.
Pedro, bem como professor na escola de teologia. McNeill comenta: "Ele era dois anos
mais moço que Ursino, mais eloqüente e menos erudito."(15)

A Produção do Heidelberger

Ursino e Oleviano trabalharam no Colégio da Sabedoria, a escola de teologia criada por


Frederico. Oleviano atuou principalmente como pregador e Ursino como professor.

Frederico III queria um catecismo conciliador que pudesse combinar o melhor da


sabedoria luterana e reformada, e que servisse para instruir as pessoas comuns nos
elementos básicos da fé cristã.(16) Anteriormente ele havia buscado o conselho de
Melanchton, que recomendou um acordo baseado na simplicidade bíblica, moderação e
paz, e advertiu contra sutilezas escolásticas.

A exata autoria do Catecismo de Heidelberg é uma questão controvertida. Joseph H. Hall


declara que Ursino tornou-se a sua principal "fonte" juntamente com Oleviano, mas "a
verdadeira autoria do Catecismo de Heidelberg permanece inconclusiva."(17) Barth vai
além e diz que "o catecismo não é obra de um autor; é obra de uma comunidade."(18)
No entanto, ele admite que os dois teólogos tiveram uma participação decisiva no
projeto.

Com respeito a Oleviano, Lyle Bierma observa que a historiografia dos últimos 350 anos o
havia ligado a pelo menos duas fases da obra: a redação dos esboços iniciais e a redação
final da primeira edição alemã.(19) Ele mesmo acredita que o papel de Oleviano foi o de
um redator intermediário ele teria preparado um esboço do texto alemão baseado em
grande parte na Catechesis Minor de Ursino (1562), que então apresentou o referido
esboço a um grupo maior de teólogos e pastores para a elaboração final.(20)

O catecismo foi publicado inicialmente sob o título Catecismo ou Instrução Cristã como
tem sido transmitida nas Igrejas e Escolas do Palatinado Eleitoral.(21) Questões
controvertidas quanto à Ceia do Senhor foram evitadas e o conceito calvinista da
predestinação foi apresentado de uma forma mais moderada.

Uma edição latina publicada em 1563 foi usada como base para várias traduções para o
inglês. O Catecismo Palatino, como veio a ser chamado, teve ampla aceitação na Escócia.
A sua aprovação pelo Sínodo de Dort (1618) aumentou grandemente a sua autoridade.

A Recepção do Heidelberger

O catecismo rapidamente obteve aceitação formal em praticamente todas as igrejas


calvinistas. "Ele tornou-se imediatamente popular naquelas partes da Alemanha que se
inclinavam na direção reformada e até mesmo alcançou algum sucesso em áreas
luteranas, durante as duas décadas seguintes..."(22)

Frederico resistiu a todas as pressões de outros príncipes e do imperador Maximiliano no


sentido de repudiar o catecismo. Em maio de 1566 ele foi convocado a explicar-se diante
da dieta imperial reunida em Augsburgo, sob a acusação de ser um violador do Tratado
de Augsburgo (1555). Em virtude de sua defesa eloqüente e convincente, nenhuma ação
punitiva foi tomada e ele passou a organizar mais plenamente a igreja palatina, a fim de
dar-lhe segurança e estabilidade.

O próximo eleitor, Luís VII (1576-83), filho de Frederico, agiu visando abolir a Igreja
Reformada e restaurar o luteranismo estrito. Cerca de 600 pastores e professores foram
expulsos, entre os quais Oleviano, que foi para Nassau-Dillenburg, e Ursino, que
refugiou-se na corte do eleitor João Casimir. Casimir sucedeu a seu irmão e restaurou o
calvinismo. Mais tarde, Frederico IV (1592-1610) continuaria a favorecer a Igreja
Reformada e a fortalecer a sua organização.(23)

A importância do Catecismo de Heidelberg como um guia para a vida cristã é evidenciada


pelas suas muitas edições e traduções. Somente durante as últimas décadas do século
XVI, 43 edições e traduções vieram à luz. Ao todo, mais de 200 versões já foram
identificadas.(24)

O Heidelberger teria uma influência ainda maior na Holanda. Por volta de 1586 os
ministros da igreja protestante holandesa precisavam subscrevê-lo como expressão de
sua fé, e ele tornou-se a base da "pregação catequética" semanal tanto na Holanda
quanto na Alemanha.

Principais características

O Catecismo de Heidelberg tem sido destacado como a mais bela das confissões de fé
produzidas pela Reforma Protestante, e a mais generosa e pessoal dentre as exposições
do Calvinismo.

Trata-se de uma confissão constituída de 129 perguntas e respostas, tendo a sua


seqüência baseada na Epístola aos Romanos. As duas primeiras perguntas são
introdutórias. A primeira pergunta, "uma jóia de confissão existencial",(25) estabelece o
teor do documento, e a segunda pergunta esboça o que vem a seguir: "meu pecado e
miséria", "como eu sou redimido" e "como devo ser grato."

O documento tem três divisões principais: a Primeira Parte - Nosso Pecado e Culpa: A Lei
de Deus (perguntas 3 a 11), é uma confissão da pecaminosidade humana e do desprazer
de Deus. A Segunda Parte - Nossa Redenção e Liberdade: A Graça de Deus em Jesus
Cristo (perguntas 12 a 85), revela o plano de redenção e inclui uma exposição do Credo
dos Apóstolos. A Terceira Parte - Nossa Gratidão e Obediência: Nova Vida através do
Espírito Santo (perguntas 86 a 129), apresenta a gratidão obediente como o fundamento
das boas obras e inclui uma exposição dos Dez Mandamentos e da Oração Dominical.
Esta seção vê a vida cristã como a resposta de gratidão do crente às bênçãos de Deus. O
catecismo constitui-se em um "pequeno clássico da vida devocional."(26)

Os estudiosos têm destacado algumas outras características que tornam este documento
especialmente notável:

(a) O uso do pronome da primeira pessoa, muitas vezes no singular, "confere ao seu
testemunho evangélico um tom caloroso e pessoal."(27) Bons exemplos disto são a
pergunta n° 1: "Qual é o teu único consolo, na vida e na morte?" Resposta: "Que eu
pertenço corpo e alma, na vida e na morte não a mim mesmo, mas ao meu fiel Salvador,
Jesus Cristo..."; e a definição de fé encontrada na resposta à pergunta n° 21: "É não
somente um conhecimento seguro pelo qual eu aceito como verdadeiro tudo o que Deus
nos revelou em sua Palavra, mas também uma confiança plena de que o Espírito Santo
cria em mim através do evangelho..."

(b) É a mais ecumênica dentre as confissões da Reforma, reunindo três correntes do


pensamento reformado. Ademais, está isenta de definições dogmáticas e é notavelmente
não-sectária.(28) A pergunta 80, sobre a diferença entre a Ceia do Senhor e a Missa, foi
inserida pelo eleitor Frederico após a primeira impressão.

(c) Possui um caráter inteiramente bíblico; toda a sua estrutura é moldada pela
perspectiva bíblica. O catecismo deixa a Bíblia falar e não procura substituí-la.

(d) Em sua posição teológica, o catecismo é cristão, evangélico e reformado, estando


plenamente radicado na tradição dos apóstolos e dos concílios ecumênicos da igreja
antiga.(29)

(e) O catecismo é um manual de religião prática. Em lugar de levantar problemas


especulativos, a fé cristã é apresentada de maneira prática, acentuando-se a sua
importância para a vida diária. Foi concebido para ser ao mesmo tempo um guia para a
instrução religiosa das crianças e jovens e uma confissão para toda a igreja.(30)

Bela Vassady comenta que o Catecismo de Heidelberg tem cumprido um quádruplo


propósito: catequético, teológico, litúrgico e querigmático. "Ele combina de modo feliz a
ênfase à necessidade humana de salvação com um testemunho ainda mais forte do
triunfo da graça e glória de Deus em Sua contínua obra de redenção."(31)

Outros temas importantes são a sua ênfase na bondade e providência de Deus, sua forte
preocupação soteriológica e sua insistência numa "interioridade que não se torna em
mera subjetividade."(32) Joseph Hall comenta que "o Catecismo de Heidelberg presta-se
a uma pedagogia holística. Ele contém perguntas cognitivas com respostas
devocionais."(33) Isto pode ser visto nas perguntas e respostas sobre a Oração Dominical
(119-129).

Finalmente, como muitas outras declarações de fé reformadas, o ensino sobre os Dez


Mandamentos vem após uma exposição do Credo dos Apóstolos (nas declarações de
Lutero é o contrário). Estas posições não são antitéticas, mas apontam para ênfases
diferentes: a Lei como parte do alegre serviço do crente a Cristo (ênfase reformada) e
como a força que impele o pecador a Ele (ênfase luterana).

Influência duradoura

Por mais de quatrocentos anos o Catecismo de Heidelberg tem sido uma fonte de
conforto, encorajamento e alimento espiritual para muitas gerações de cristãos em vários
continentes. Ele não só tem proporcionado inspiração a homens e mulheres que
enfrentam pressões externas e lutas interiores, mas também tem sido um poderoso
incentivo ao diálogo e à aceitação mútua entre diferentes grupos e tradições cristãs. Isto
se tornou possível, por um lado, graças às circunstâncias peculiares que contribuíram
para a sua composição e, por outro lado, devido à maneira feliz com que seus autores
expressaram as antigas verdades de um modo que se tornou relevante e significativo
para os seus contemporâneos naqueles dias turbulentos.

Espera-se que as igrejas reformadas deste final do século XX possam conhecer e utilizar
melhor mais este valioso elemento de nossa herança evangélica.

___________________________

NOTAS

* O autor é ministro presbiteriano, atualmente concluindo seu doutorado em História da


Igreja na Universidade de Boston, Estados Unidos.

1. M. Noll, Confessions and Catechisms of the Reformation (Grand Rapids: Baker, 1991)
13.

2. Ibid., 14.

3. Learning Jesus Christ through the Heidelberg Catechism (Grand Rapids: Eerdmans,
1964) 22.

4. John T. McNeill, The History and Character of Calvinism (New York: Oxford University
Press, 1954) 268. (Nota do Editor: A Renânia é aquela parte da Alemanha que fica a
oeste do rio Reno, encompassando diversas regiões, como o Vale Superior do Reno, o
Palatinado, etc. As principais cidades desta área são Bonn, Colonia e Aachen).

5. Euan Cameron, The European Reformation (Oxford: Clarendon House, 1991) 369.

6. Noll, Confessions and Catechisms, 133.

7. McNeill, History and Character of Calvinism, 269.

8. Noll, Confessions and Catechisms, 134.

9. McNeill, History and Character of Calvinism, 270.

10. Christopher J. Burchill, "On the Consolation of a Christian Scholar: Zacharias Ursinus
(1534-83) and the Reformation in Heidelberg," em Journal of Ecclesiastical History 37/4
(1985) 565-83, 583.

11. Ibid., 577.

12. D. Visser, "Zacharias Ursinus: 1534-1583," em Shapers of Religious Traditions in


Germany, Switzerland, and Poland: 1560-1600, ed. Jill Raitt (New Haven: Yale University
Press, 1981) 128.

13. Peter A. Lillback, "Ursinus' Development of the Covenant of Creation: A Debt to


Melanchthon or Calvin?," em Westminster Theological Journal 43 (1980-81) 247.

14. McNeill, History and Character of Calvinism, 270; Edward J. Masselink, The Heidelbeg
Story (Grand Rapids: Baker, 1964) 64.

15. McNeill, History and Character of Calvinism, 270.

16. Noll, Confessions and Catechisms, 134.

17. Joseph H. Hall, "Reformed Catechetics," em Concordia Journal 5/6 (November) 205-
207.

18. Barth, Learning Jesus Christ, 23.

19. Lyle Bierma, "Olevianus and the Authorship of the Heidelberg Catechism: Another
Look," em Sixteenth Century Journal 13/4 (1982) 17-27, 17.

20. Ibid., 27.

21. Thomas F. Torrance, The School of Faith: The Catechisms of the Reformed Church
(New York: Harper & Brothers, 1959) 67.

22. Noll, Confessions and Catechisms, 134.

23. McNeill, History and Character of Calvinism, 274-76.

24. Visser, "Zacharias Ursinus," 135.

25. Allen O. Miller e M. Eugene Osterhaven, trads., The Heidelberg Catechism


(Philadelphia: United Church, 1962) 6.

26. McNeill, History and Character of Calvinism, 271-72.

27. Ibid., 271.

28. James I. McCord, "The Heidelberg Catechism: An Ecumenical Confession," em


Princeton Seminary Bulletin 56/2 (1988) 12-18, 13-14.

29. Miller e Osterhaven, Heidelberg Catechism, 7.


30. McCord, "Heidelberg Catechism," 12.

31. B. Vassady, "Our Only Comfort," em Theology and Life 6/1 (1963) 7-16, 10-11.

32. McCord, "Heidelberg Catechism," 15.

33. "Hall, "Reformed Catechetics," 207.


FIDES REFORMATA 1/1 (1996)

Crescimento de Igreja: Com Reforma


ou com Reavivamento?
Heber Carlos de Campos

De uns poucos anos para cá, quase da noite para o dia, se compararmos à idade do
cristianismo, alguns setores da igreja evangélica têm sido tomados de um desejo
incontido de crescimento a qualquer custo. O Movimento de Crescimento de Igreja (1)
tem surgido em toda a sua força, e o crescimento tem sido exigido a qualquer preço. Por
essa razão, uma coletânea enorme de metodologias e técnicas tem sido empregada para
que o sucesso da igreja apareça.

O mais lamentável é que o crescimento de algumas igrejas locais tem sido conseguido às
custas do sacrifício da verdadeira doutrina e do abandono de uma liturgia sadia. Com
isso, os templos e os salões têm ficado lotados em suas reuniões. Como a evangelização
moderna tem sido antropocêntrica, dizendo ao ouvinte aquilo que se pensa que o
incrédulo quer ouvir, também a forma do culto tem sido elaborada de modo a atrair
pessoas para adorar a Deus. A adoração moderna é planejada para atrair pessoas (os
consumidores de música contemporânea) ao invés de ser promovida para que as pessoas
levantem os olhos para o céu para cultuar corretamente o verdadeiro Deus. Ao invés de
prepararmos pessoas para serem membros do sacerdócio real, da nação santa, povo de
propriedade exclusiva de Deus, para aprenderem sobre o verdadeiro Deus e a vida eterna
em Cristo Jesus, estamos estimulando essas pessoas a apurarem o paladar por aquilo que
o entretenimento moderno já lhes apresentou. Antes que verdadeiros adoradores,
estamos vendo pessoas preocupadas com o consumo musical e litúrgico, querendo ouvir
o que lhes agrada, e não o que agrada a Deus.

Se perguntarmos aos proponentes do Movimento de Crescimento de Igreja, "Por que


muitas pessoas hoje não freqüentam aos cultos?" A resposta pronta será: "porque a
mensagem e as músicas não são apresentadas ao gosto do público. Nada é feito para que
o público seja atraído aos cultos". A culpa toda recai sobre a falta de atualização ou
contextualização da adoração cristã. Então, no afã de se ter a igreja lotada, tudo é
formulado para agradar aos freqüentadores em potencial. Esse é o método que os
ministros ansiosos por sucesso logo buscam. Mas eles se esquecem de que as pessoas
não adoram a Deus porque não o amam verdadeiramente, nem têm qualquer disposição
para com o verdadeiro Deus, por causa da sua natureza pecaminosa, que é oposta a
Deus. Elas amam a si mesmas e querem ser agradadas naquilo de que participam,
quando Deus é quem deveria ser amado e agradado no culto que lhe prestamos.

Atualmente, muitas pessoas, inclusive membros de igreja, não estão dispostas a usar a
mente, o corpo, a alma, enfim todo o seu ser, numa congregação onde existe um sólido
ensino da sã doutrina, uma pregação expositiva fiel da Santa Escritura e uma adoração
racional e reverente. Elas preferem uma reunião em que a Palavra é deixada de lado,
mas o "louvor" é a tônica, num encontro de fato movimentado, ao paladar do tempo
presente. Não há o verdadeiro compromisso com o reino de Deus, mas ainda assim, o
crescimento da igreja é a maior preocupação do movimento que utiliza esse nome,
mesmo que seja com o prejuízo de elementos fundamentais da verdadeira adoração e da
sã doutrina.
O Movimento de Crescimento de Igreja tem se concentrado numa forma de culto ao gosto
do espírito de nosso tempo e de uma evangelização barata, ao invés de ser o produto da
obra soberana do Espírito de Deus no meio do seu povo, e dum posicionamento correto
do seu povo para com a Palavra de Deus.

Contudo, todos os cristãos sensatos entendem que a igreja deve crescer qualitativa e
quantitativamente. Qual é, então, o modo pelo qual uma igreja deve crescer? Precisamos
de uma reforma ou de um reavivamento?

Esta pergunta não é a forma correta de levantar a questão. É absolutamente certo que
precisamos de ambos em nossa igreja contemporânea. Estas duas coisas têm que andar
necessariamente juntas. Do contrário, o reavivamento será um fracasso em termos de
correção da verdade e a reforma poderá ser um fracasso porque a verdade poderá ser
apresentada com aridez doutrinária. Portanto, há que se ter em mente as duas coisas
para o bom andamento da igreja de Deus no final deste segundo milênio.

Estudemos a necessidade tanto da reforma quanto do reavivamento para o crescimento


de nossas igrejas:

I. A Necessidade de Reforma para o crescimento da Igreja

Aqueles de nós que valorizam os acontecimentos espirituais extraordinários ocorridos


durante a Reforma no séc. XVI, anseiam tê-los repetidos na igreja do tempo presente.
Juntamo-nos a J. I. Packer que disse:

A palavra Reforma é mágica para o meu coração, assim como estou certo que é para o de
vocês. Quando vocês falam em Reforma, imediatamente pensam naquele heróico tempo
do séc. XVI, quando muitos eventos momentâneos aconteceram e que ainda brilham
ardentemente em nossa imaginação.(2)

A Reforma foi um movimento histórico do séc. XVI, mas ela precisa acontecer de novo,
sempre que necessária, na vida da igreja. Precisamos desesperadamente dela outra vez
em nossas igrejas, porque estamos em tempo de confusão doutrinária, tempos de
vacilação teológica, tempos de incerteza cúltica. Alguns ministros, porém, nem sequer
sonham com uma reforma novamente. Provavelmente, eles acreditam possuir razões
teológicas para essa posição.

Para tristeza nossa, o nome "Reforma" levanta suspeitas na mente de alguns ministros
que querem o crescimento de igreja a qualquer custo, porque o nome "Reforma"
relembra um estudo sério da Palavra, compromisso inequívoco com o reino de Deus,
rompimento com o erro e com a falsa adoração. A idéia de reforma não é bem-vinda
porque vai exigir dos ministros um estudo sério das suas posições, uma reavaliação da
sua conduta litúrgica e teológica. Foi isto que a Reforma Protestante exigiu dos ministros
de Deus no séc. XVI. E nós estamos longe daquilo que foi proposto no passado. Não
obstante a opinião deles, temos que dar uma grande ênfase à necessidade de verdadeira
reforma na vida da igreja contemporânea. Muitas coisas da Reforma histórica já foram
esquecidas e deixadas de lado. Temos que resgatar a nossa herança Reformada e trazer
de volta as belas coisas perdidas.

Definição de Reforma
Reforma é a descoberta da verdade bíblica que conduz à purificação da teologia. Ela
envolve a redescoberta da Bíblia como o juiz e o guia de todo pensamento e ação; ela
corrige os erros de interpretação; ela dá precisão, coerência e coragem para a confissão
doutrinária; ela dá forma e energia à adoração corporativa do Deus triúno.(3)

É disto exatamente que precisamos para que a verdade de Deus seja honrada e o povo
de Deus devidamente instruído. Quando Lutero foi confrontado com a verdade de Deus,
ele nunca mais a abandonou. Mesmo quando ameaçado pelas autoridades religiosas do
seu tempo, apegado ao paradigma da verdade de Deus, Lutero dizia:

A menos que vocês provem para mim pela Escritura e pela razão que eu estou enganado,
eu não posso e não me retratarei. Minha consciência é cativa à Palavra de Deus. Ir contra
a minha consciência não é nem correto nem seguro. Aqui permaneço eu. Não há nada
mais que eu possa fazer. Que Deus me ajude. Amém.(4)

O norte de uma reforma dentro da igreja de Deus está, inquestionavelmente, relacionado


à volta aos princípios sadios de fé e prática, propostos pela Santa Escritura. A fé tem que
ser fundamentada numa consciência cativa à Palavra, para que a verdadeira reforma
aconteça em nosso meio.

Ao invés de analisarmos o evento da Reforma do século XVI, que alguns tomam como
sendo simplesmente um evento humano, analisaremos uma reforma descrita na história
inspirada da redenção, que teve exatamente as mesmas características da Reforma do
séc. XVI, porque ambas foram causadas pelo mesmo Deus, o Espírito.

O exemplo bem claro do que acabamos de dizer está registrado na Escritura em eventos
ocorridos no tempo do rei Josias (2 Rs 22), que passo a analisar:

A. A redescoberta da verdade de Deus conduz à Reforma da teologia

Há períodos na vida da igreja em que a verdade de Deus fica escondida, ocasionando


aridez, sequidão e distância de Deus. Um exemplo bem típico disto está na história da
igreja do VT, nos tempos do rei Josias. Naqueles dias, os homens andavam às
apalpadelas, sem o conhecimento da lei do Senhor, que lhes estava encoberta.

Ela estava escondida porque os homens ignoravam a verdade da Escritura. As pessoas


comuns do povo nem sabiam da existência do Livro da Lei. E essa ausência da Palavra
causa a distância de Deus.

Ela estava escondida por falta de interesse na Palavra. O povo ignorava a Lei de Deus
porque a liderança não estava interessada nela. Se estivesse, ela procuraria uma cópia da
Lei para dar ao povo, mas não havia qualquer interesse, da parte da classe dominante,
em que as coisas fossem mudadas. A Lei de Deus, porém, quando levada em conta
seriamente, causa mudanças nos paradigmas de um povo. Imaginem como os sacerdotes
da época poderiam conduzir o povo de Israel sem o código de fé e prática. A que ponto
pode chegar um povo sem a bússola que lhes aponta o norte! Por essa razão havia uma
enorme impiedade no meio do povo.

1. Para que haja verdadeira Reforma a Palavra tem que ser redescoberta

Mas o Livro da Lei foi descoberto "casualmente" pelo sacerdote Hilquias. Esta foi a missão
do sacerdote Hilquias: Então disse o sumo sacerdote Hilquias ao escrivão Safã: Achei o
Livro da Lei na casa do Senhor. Hilquias entregou o livro a Safã, e este o leu (2 Rs 22.8).

O Livro da Lei estava perdido dentro do próprio templo. Isso me faz lembrar da velha
senhora que não lia a Bíblia porque havia perdido os óculos, quando estes haviam sido
deixados dentro da própria Bíblia. Muitos ignoram a Escritura, quando ela está bem
próxima deles, à disposição deles nos lugares onde vivem e adoram.

Os chamados "crentes", se é que são de Deus, têm que redescobrir o valor da Palavra de
Deus. Para haver uma reforma genuína, é condição indispensável que haja uma
redescoberta do valor da Santa Escritura.

2. Para que haja verdadeira Reforma a Palavra tem que ser devidamente
interpretada

Esta foi a missão da profetiza Hulda: Ide, consultai o Senhor por mim, pelo povo e por
todo o Judá, acerca das palavras deste livro que se achou; porque grande é o furor do
Senhor, que se acendeu contra nós, porquanto nossos pais não deram ouvidos às
palavras deste livro, para fazerem segundo tudo quanto de nós está escrito (2 Rs 22.13).

Percebam que o rei Josias queria saber o significado correto daquilo que o Senhor havia
escrito no Livro da Lei. Por essa razão, os homens do rei foram enviados para a profetiza,
para que ela lhes dissesse o significado das palavras do Livro da Lei. A palavra da
profetiza ali era considerada cheia de autoridade, e ela sabia o sentido que o Senhor
queria dar às palavras. Não é importante somente ler a Escritura, mas também entender
o seu significado.

A situação da igreja hoje não é muito diferente da situação dos tempos do rei Josias. É
verdade que a Bíblia não está escondida literalmente do mesmo modo como ficou no
tempo de Josias, mas o seu real sentido e sua real mensagem estão escondidos de
muitos crentes hoje. As pessoas têm a Bíblia à sua disposição, mas não conhecem o
conteúdo real, nem possuem a hermenêutica correta para a sua devida interpretação. A
reforma de uma igreja implica na redescoberta da Palavra de Deus. A conditio sine qua
non para que a igreja cresça é o conhecimento correto da verdade de Deus. Os crentes,
em geral, precisam redescobrir a verdade de Deus. Este é um desafio que todos nós
precisamos aceitar.

Todos hoje usam a Escritura para defender os seus pressupostos. O grande problema,
contudo, não é a citação da Escritura, mas o modo como a abordamos. A tarefa
hermenêutica da igreja é algo supremamente determinante para o correto entendimento
da verdade de Deus.

3. Para que haja verdadeira Reforma a Palavra tem que ser urgentemente
proclamada

Esta era também a tarefa da Profetisa Hulda:

Ela (Hulda) lhes disse: Assim diz o Senhor, o Deus de Israel: Dizei ao
homem que vos enviou a mim: Assim diz o Senhor: Eis que trarei males
sobre este lugar, e sobre os seus moradores, a saber, todas as palavras do
livro que leu o rei de Judá. Visto que me deixaram, e queimaram incenso a
outros deuses, para me provocarem à ira com todas as obras das suas
mãos, o meu furor se acendeu contra este lugar, e não se apagará (2 Rs
22.15-17).

A distância da Palavra de Deus faz com que um povo se afaste de Deus. Não é possível
ter uma ética sadia sem que se conheça a Palavra do Senhor que dita as normas de
comportamento. Por essa ausência da Palavra o povo estava prestes a receber o castigo
de Deus. A mensageira de Deus não teve nenhum constrangimento em trazer a verdade
da Palavra aos seus contemporâneos. Era uma mensagem dura, mas eles precisavam
ouvir o que Deus lhes tinha a dizer. A reforma proposta pela Palavra de Deus tem que ser
urgentemente proclamada por aqueles a quem Deus chama para serem ministros da sua
Palavra.

A missão de trazer de volta a Palavra de Deus ao povo está na responsabilidade dos


verdadeiros ministros da Palavra, aqueles que lidam hoje com o ensino e com a pregação,
que são os profetas de Deus. Se os ministros negligenciarem o ensino e a pregação fiel
daquilo que o Senhor diz, jamais a igreja será Reformada.

4. Para que haja verdadeira Reforma tem que haver arrependimento de pecados

Esta foi a tarefa de Josias:

Porquanto o teu coração se enterneceu, e te humilhaste perante o Senhor,


quando ouviste o que falei contra este lugar, e contra os seus moradores,
que seriam para assolação e para maldição, e rasgaste as tuas vestes, e
choraste perante mim, também eu te ouvi, diz o Senhor (2 Rs 22.19).

Josias foi o primeiro a arrepender-se de seu pecado de ignorância da verdade de Deus. O


verso 19 foi dito ao rei Josias, e o que aconteceu a ele, veio a acontecer ao seu povo. Foi
um arrependimento produto da obra do Espírito de Deus no rei e no seus súditos.

Essas coisas não devem ser diferentes hoje. A igreja de Deus tem que voltar-se para ele,
tem que chorar os seu pecado de ignorância da Santa Escritura. Somente quando houver
verdadeiro arrependimento é que a Reforma terá sido eficazmente processada.

Não há crescimento quantitativo nem qualitativo da igreja sem que haja a redescoberta
da verdade de Deus, sem que haja a interpretação correta da Palavra de Deus, sem que
haja a proclamação fiel dela e o conseqüente genuíno arrependimento de pecados, como
produto das três primeiras proposições.

O crescimento genuíno da igreja está vinculado a estas reformas que a Palavra de Deus
traz. É tolice pensar em crescimento da igreja sem que a base ou o fundamento
estabelecido pelos apóstolos e profetas seja devidamente redescoberto, interpretado,
proclamado e crido. Sem estas coisas há o inchaço, não o genuíno crescimento da igreja.

O segundo grande acontecimento da vida do povo de Deus adveio da reforma da


teologia:

B. A Reforma da Teologia conduz à Reforma da verdadeira adoração

Uma teologia sadia leva à prática sadia. Nos tempos de Josias o culto estava deturpado
por causa de uma teologia destituída da verdade da Palavra de Deus. Este é o resultado
natural mesmo nos dias de hoje. Quando se abandona o ensino da Escritura, quebram-se
os padrões de comportamento de um povo, inclusive os elementos constituintes da
verdadeira adoração.

Depois da descoberta, da interpretação correta e da proclamação da Palavra de Deus, e o


conseqüente arrependimento da liderança do povo, houve algumas alterações muito
preciosas no culto que o povo passou a prestar a Deus:

A primeira atitude tomada pelo rei Josias foi convocar todo o povo para que subisse à
casa de Deus, para ouvir a leitura do livro da Palavra de Deus que fora encontrado por
Hilquias (2 Rs 23.2). Após ouvirem a leitura, o rei e todo povo se dispuseram a seguir a
Palavra do Senhor de todo o coração e de toda a alma. A beleza dessa atitude, é que o
povo se dispôs a obedecer a todas as palavras, e não somente aos textos que
combinavam com o que eles pensavam (2 Rs 23.4).

O resultado principal dessa disposição de obediência, após ouvirem a leitura e a


interpretação correta da Palavra, foi a reforma do culto. O culto é essencial para a vida da
igreja. Não pensem os caros leitores que o culto é de somenos importância. É no culto
que ensinamos e aprendemos. Nos hinos e nos coros é que somos mais indelevelmente
marcados doutrinariamente. Portanto, o culto tem uma importância fundamental para a
nossa fé. Nesse caso, podemos afirmar categoricamente que, em razão de muitas coisas
que estamos percebendo nas reuniões de nossas igrejas, a reforma do culto é
extremamente necessária para a vida sadia da igreja cristã.

Para que haja a restauração da verdadeira adoração à luz da verdade bíblica, algumas
providências têm que ser tomadas:

1. A eliminação do que é errado do culto

Estas atitudes do rei foram muito duras, mas extremamente necessárias. Provera a Deus
que as autoridades eclesiásticas tivessem a mesma santa energia para tomar as
providências necessárias para sanar os males existentes na presente adoração cristã,
para o benefício do povo de Deus, e para a honra dele.

• •1a. A eliminação dos sacerdotes que ministravam no culto pagão


(2 Rs 23.5)

Está evidente do texto sagrado que a atitude extrema do rei Josias com relação aos
sacerdotes idólatras, isto é, a sua eliminação do meio do povo de Deus (2 Rs 23.20), não
está em consonância com o espírito do tempo presente, mas ao menos podemos dizer
que temos que reagir fortemente aos homens que tentam implantar algo que não
combina com o que Deus prescreve na Sua Palavra com respeito ao culto. Não se pode
ficar passivo quando está em jogo o verdadeiro culto a Deus.

O que Josias fez com relação aos sacerdotes que não cultuavam verdadeiramente a Deus
é algo que as autoridades eclesiásticas deveriam fazer. Os ministros infiéis no serviço do
culto deveriam ser destituídos de sua função por não obedecerem os padrões gerais
devidamente estabelecidos pela Escritura. Há muitos ministros que fazem o que bem
entendem e ninguém lhes põe a mão. Andam à vontade, gesticulam como lhes agrada e
agem como agrada ao povo. A falta não é somente dos que erroneamente inovam no
serviço divino, mas também daqueles que fazem vista grossa ou que não possuem a
devida coerência e noção de disciplina cristãs para destituírem esses ministros de suas
funções.

• •1b. A eliminação dos objetos e utensílios usados no culto pagão


(2 Rs 23.4,6,7)

Tudo o que é estranho ao culto do Senhor deve ser eliminado dos lugares de verdadeira
adoração. Deus deveria ser adorado com os instrumentos prescritos por Ele próprio. Era
assim a regra para os cultos prescritos na Escritura do VT. Todos os objetos que eram
estranhos ao culto divino, por pertencerem aos cultos de deuses estranhos, deviam ser
terminantemente abolidos do templo e das atividades cúlticas.

Hoje, nos tempos da adoração cristã, devemos ter o mesmo cuidado e o mesmo zelo. Não
existe a idolatria nos mesmos moldes daquela época, mas há coisas que se evidenciam
bastante estranhas ao culto de nosso Deus e do Salvador Jesus Cristo. Não me refiro
simplesmente a objetos como os mencionados no texto analisado, embora os leitores já
tenham ouvido de lenços ou copos de água serem ungidos, ou ainda óleo trazido de Israel
servindo de amuleto para a cura de muita gente, ou ainda vinho de Israel, e coisas que
tais. Com relação ao culto, então, há a introdução de elementos estranhos que são uma
imitação clara daquilo que é usado para as mais loucas manifestações musicais de que se
tem notícia em todas as épocas, músicas essas que servem não só para o
entretenimento, mas também para manifestações cúlticas ligadas ao maligno.
Certamente há algumas coisas que precisam ser revistas em nossa adoração hoje. O
problema não é de simples inovação, mas também é de desprezo ao que é antigo, um
desprezo à história, ao que nossos ancestrais na fé nos legaram, que podem
perfeitamente ser preservados. Da mesma forma que no tempo de Josias os sacerdotes
se esqueceram das prescrições antigas, assim os de hoje se esquecem, também.

1c. A eliminação dos altares que eram usados para o culto pagão
• •
(2Rs 23.8-15)

Josias também aboliu as cerimônias pagãs que campeavam em todo o seu reino. Num
tempo assim, as reformas tinham que ser drásticas. Não havia meio de se suportar
elementos dos cultos pagãos misturados com o santo culto divino.

As reformas propostas por Josias foram radicais e, conseqüentemente, benéficas para


todo o povo. Antes de reimplantar o que era santo, Josias teve que eliminar o que era
impuro. Esta era uma atitude óbvia. Não há modo de se implantar o certo sem retirar o
errado.

É assim que a igreja de Cristo tem que proceder. Não podemos mais tolerar aqueles que
querem permanecer no nosso meio alterando aquilo que é certo pelo errado, e ainda
colocando-nos na posição de errados, como se estivéssemos na qualidade de "coisas
antigas", coisas ultrapassadas. Antigüidade não é sinônimo de obsolescência. Se assim
fosse, o que haveríamos de fazer com o evangelho? Se o problema é a importação de
cultura estrangeira a americanização ou a europeização em nosso culto, temos de
abandonar a cultura judaico-cristã, que tanto influenciou a nossa maneira de pensar e de
cultuar a Deus. O que é estranho ao culto cristão tem que ser tirado, não as influências
benéficas que recebemos de outros povos que nos trouxeram o santo evangelho.

2. A restauração do que é certo no culto divino


Na reforma do culto, não houve a necessidade de inovação, mas da restauração daquilo
que era antigo e verdadeiro. Essas coisas precisavam ser trazidas de volta. Eles haviam
se esquecido das santas prescrições, das ordenanças antigas da Palavra de Deus. Josias
ordenou a volta da celebração cerimoniosa da Páscoa, o ritual que lhes lembrava a
redenção! (2 Rs 23.21-22) Aquele momento de culto foi o mais significativo de todas as
celebrações desde os dias dos juizes de Israel. Eles celebraram a páscoa do Senhor
conforme estava prescrito no livro do Pacto, que provavelmente era o Pentateuco. As
celebrações cúlticas devem sempre ser de acordo com as regras de Deus: há preceitos
gerais estabelecidos, há regras a serem obedecidas. E elas são bem antigas. Tudo deveria
ser feito com ordem e decência, para que o Senhor fosse honrado pela maneira dos
homens Lhe cultuarem. Será que hoje tem que ser diferente?

Uma reforma, contudo, tem que ser acompanhada de um verdadeiro espírito de amor a
Deus e de serviço cristão. A Reforma do séc. XVI não foi uma mera purificação teológica
ou litúrgica, mas ela foi acompanhada e seguida de um doce espírito de amor a Jesus
Cristo, o Salvador, e um grande amor pelos pecadores ignorantes. Milhares de milhares
foram trazidos a Cristo naquela época. O Santo Espírito varreu aquelas regiões onde a
Reforma chegou. Sem dúvida, foi um tempo de grande reavivamento espiritual.

Um período de reavivamento costumeiramente é precedido de um período de reforma.


Um reavivamento sem reforma pode trazer distúrbios teológicos muito grandes, assim
como uma reforma sem reavivamento pode ser comparado ao que aconteceu à igreja de
Éfeso, que possuía solidez doutrinária, mas sem o primeiro amor (Ap 2.2-4).

A Escritura inspirada tem exemplos dessa natureza. Um deles é o acontecido nos tempos
do rei Asa. A reforma que veio ao povo de Israel nos tempos do rei Asa durou algum
tempo antes do reavivamento começar. Primeiro Asa fez as reformas religiosas instando o
povo a buscar a Palavra do Senhor (2 Cr 14.4), fazendo também a reforma do culto
(como no tempo de Josias), que constou da derrubada dos altares (2 Cr 14.3, 5). Após
essa reforma que trouxe prosperidade ao povo (2 Cr 14.6-7) e vitória sobre as outras
nações inimigas (2 Cr 14.9-15), começou o despertamento espiritual do povo, a começar
do rei.

Este orou humildemente ao Senhor confessando a impotência deles e o poder ilimitado de


Deus (2 Cr 14.11). A reforma pode começar com o apego à Lei de Deus, que leva aos
atos de retidão, mas o reavivamento começa no coração das pessoas com o senso de sua
própria impotência e o conseqüente reconhecimento do poder de Deus. Por isso é dito
que Asa "clamou ao Senhor". Estas não são palavras jogadas ao vento. Elas expressam o
grito inquieto de um coração anelante de Deus e reconhecimento que de Deus vêm todas
as coisas, e que a Ele deve ser dada a glória de todas as coisas. O reavivamento do
tempo de Asa também foi vinculado à Palavra de Deus que veio ao povo. Isto aconteceu
através do profeta Azarias (2 Cr 15.1). Após a palavra profética de Deus, houve grande
alegria no meio do povo, porque eles aprenderam que Deus manda reavivamento não
somente quando o povo está abatido, mas também quando o povo está cheio de vitórias
e de coragem (2 Cr 15.1-19).

II. A Necessidade de Reavivamento para o Crescimento da Igreja

A palavra "Reavivamento" soa mais docemente aos ouvidos dos crentes hoje por causa
dos santos anelos de vigor espiritual que muitos crentes realmente possuem, mas
infelizmente, esse termo tem sido usado impropriamente por alguns advogados
aficionados ao movimento do crescimento da igreja. Precisamos desesperadamente de
um reavivamento genuíno, e é por isto que verdadeiramente oramos. Sem ele, a igreja
do tempo presente, sob muitas pressões teológicas e litúrgicas estranhas de todos os
lados, está destinada ao amargamento ou ao conservadorismo árido, do qual todos nós
queremos ficar longe.

Definição de Reavivamento

Uma definição de reavivamento pode ter várias conotações, dependendo do ângulo


abordado. Uma reavivamento tem tantas facetas maravilhosas, que poucos podem defini-
lo exaustivamente.

O historiador da igreja James Buchanan disse que "reavivamento é a comunicação da


vida àqueles que estão mortos, e a comunicação da saúde àqueles que estão
moribundos."(5) Esta é uma idéia absolutamente correta, mas reavivamento vai muito
mais além disso.

Alguns têm confundido reavivamento com campanhas evangelísticas ou com conferências


missionárias. Essas coisas são organizadas pelos homens e Deus pode abençoá-las ou
não. Um reavivamento também não é um movimento onde muitas pessoas se encontram
para um entretenimento religioso, para que multidões fiquem delirantes com as músicas
cantadas e loucamente executadas pela parafernália instrumental muito comum
hodiernamente, levantando as mãos como sinônimo de adoração verdadeira. Estas coisas
atingem somente um grupo de interessados e amantes das coisas que são apresentadas.
Diferentemente de tudo isso, reavivamento é algo provocado pelo Santo Espírito, não o
produto daquilo que os homens fazem. Reavivamento é uma onda do Espírito que varre
sem que alguém tenha domínio sobre o que Ele faz.

O sentido estrito de Reavivamento

Estritamente falando, reavivamento é algo que acontece unicamente no meio da igreja,


pois a própria palavra trata de tornar vivo aquilo que já vivera antes. Reavivamento é
uma palavra da igreja; ela tem a ver com o povo de Deus. Você não pode reavivar o
mundo; ele está morto em delitos e pecados; você não pode reavivar um cadáver. Mas
você pode revitalizar onde há vida...(6)

Neste sentido, a igreja amortecida e tristemente doente é a beneficiária direta do


reavivamento.

O sentido lato de Reavivamento

Contudo, falando de um modo mais lato, o reavivamento é o movimento de Deus no meio


do Seu povo, mas que tem um impacto extremamente positivo na comunidade onde o
povo de Deus vive. As pessoas em geral, nunca dantes interessadas em coisas
espirituais, voltam-se para Deus num ato-resposta de fé à Sua maravilhosa atuação.

Reavivamento é a restauração graciosa daquele primeiro amor, do entusiasmo do crente


pela expansão do reino, do desejo de viver santamente por amor a Deus, coisas essas
que têm sido perdidas na igreja de Deus no correr dos anos, e também consiste no doar
divino de uma disposição espiritual intensa e extensa àqueles que nunca tiveram qualquer
interesse nas coisas de Deus. Em outras palavras, o reavivamento começa na igreja e
termina na comunidade maior onde ela vive. Os efeitos do reavivamento são muito mais
perceptíveis nas mudanças morais que acontecem na região ou num país onde ele
acontece. Ele não se limita simplesmente aos membros das igrejas atingidas pela obra de
Deus. Ele causa impacto em toda a comunidade onde a igreja de Deus está inserida.

Caraterísticas de um Verdadeiro Reavivamento

1. Ênfase na Palavra de Deus

Um reavivamento que é produto da obra do Espírito Santo na igreja, certamente tem sua
ênfase naquilo que têm sido esquecido por muito tempo: a Palavra de Deus. A autoridade
da Palavra de Deus passa ser algo extremamente forte num movimento genuíno de
reavivamento. A Bíblia passa novamente a ser honrada como a única Palavra inspirada de
Deus.

A reforma religiosa e o despertamento espiritual estão intimamente ligados à busca que o


povo tem da Palavra do Senhor. O rei Asa "ordenou a Judá que buscasse o Senhor Deus
de seus pais, e que se observasse a lei e o mandamento" (2 Cr 14.4). Um reavivamento
sem a palavra fica sem norte, sem um rumo a seguir. Por isso, os grandes homens de
Deus em tempos de reavivamento, sempre conduziram o povo dentro das prescrições das
Santas Escrituras.

2. Experiência aplicada da Palavra de Deus

Os ensinos da Bíblia não são verdades que atingem meramente o intelecto, mas elas
descem ao coração, fazendo com que elas se evidenciem em matéria prática de vida. Nas
palavras de Nettles, "reavivamento é a aplicação da verdade da Reforma à experiência
humana."(7) Via de regra, um reavivamento genuíno vem com internalização das
doutrinas apreendidas pela Reforma. Uma igreja e uma comunidade atingidas pelo
Espírito de Deus possuem verdade descoberta na Reforma experiencialmente crida e
vivida pelos seus membros.

O reavivamento é a descida ao coração humano da verdade de Deus que está clara na


Escritura, por obra do Santo Espírito. É a teoria tornada experiência. A maioria dos
grandes despertamentos espirituais mencionados na Escritura é uma preciosa
combinação de verdadeira reforma e reavivamento.

3. Desejo pelas realidades eternas prometidas na Palavra de Deus

As pessoas atingidas pela obra do Espírito passam a viver santamente, tendo seriedade
com as verdades das Escrituras como um todo e levam a serio o destino eterno delas. Um
senso de profundo arrependimento pelos pecados e anelos de santidade enchem o
coração dos atingidos pelo reavivamento. Isso diz respeito à vida dos crentes que até
então estavam amortecidos.

Com respeito à comunidade maior, aos alienados da igreja, surge uma preocupação pelas
coisas espirituais nunca outrora vista. O espírito de seriedade para com o destino eterno
dessas pessoas é produto direto de uma ação de Deus nelas. Então, elas passam a buscar
a verdade e a ter um real desejo da salvação em Cristo. O evangelho lhes é pregado, e
muitos são trazidos a Cristo Jesus.
4. As pessoas são impactadas por uma obra repentina de Deus

O VT está cheio de exemplos da atuação especial de Deus na vida do povo. O texto de 2


Cr 29.36, dá-nos uma descrição típica de um reavivamento, porque nos diz que Deus fez
algo subitamente no meio do povo. Um reavivamento não é provocado por nada neste
mundo e, freqüentemente, nem é esperado. Ele vem de repente, numa manifestação
graciosa do Todo-Poderoso. Ele simplesmente acontece! A igreja não pode criar
reavivamento. Ele é obra exclusiva de Deus, o Senhor.

Quando há esse impacto da obra do Espírito de Deus na vida da igreja e da comunidade


maior, os resultados imediatos do reavivamento na vida da igreja e da comunidade são
sentidos: senso inequívoco da presença de Deus; oração fervente e louvor sincero;
convicção de pecado na vida das pessoas; desejo profundo de santidade de vida;
aumento perceptível no desejo de pregação do evangelho.

A Necessidade de Reforma e Reavivamento juntos

Não há meio de se separar reforma de reavivamento. São irmãos gêmeos nas grandes
obras de Deus. Esta talvez seja a ênfase que mais nos interessa neste momento, porque
as muitas coisas que estão acontecendo no meio da igreja brasileira necessitam de uma
definição como esta, que lhes faça plena justiça.

Quando falamos de crescimento de igreja temos que olhá-lo como uma moeda com dois
lados. De um lado é a Reforma; do outro e o Reavivamento. A primeira traz a solidez e a
pureza doutrinárias, elementos essenciais para que a igreja cresça qualitativamente; a
segunda traz a verdade doutrinária extrema viva e ardente em nossos corações,
impulsionando o povo de Deus a uma vida limpa e de testemunho sincero e voluntário da
experiência vivida com Deus e a pujante proclamação da verdade da Escritura, elementos
absolutamente vitais para o crescimento da igreja. Isto faz com que a igreja também
cresça quantitativamente. Perceba que os dois elementos, reforma e reavivamento, são
entrelaçados e inseparáveis, porque são causados pelo mesmo Deus. Não há volta à
verdade sem Deus e muito menos amor à verdade sem Ele. O curioso é que esses dois
elementos estavam presentes em todas os grandes movimentos da história do povo de
Deus no VT, no NT , na Reforma Protestante do século XVI, no período dos Puritanos, do
Pietismo e do Metodismo, além dos reavivamentos posteriores na Grã- Bretanha e nos
Estados Unidos.

Reforma e Reavivamento dizem respeito à volta às antigas e sãs doutrinas e zelo ardente
e cheio de amor por elas e pelo povo de Deus. Não é disso que precisamos novamente?
Ainda pairam dúvidas na mente dos leitores sobre a necessidade dessa "dobradinha" de
Deus, reforma e reavivamento, para que haja o crescimento genuíno da igreja no Brasil?
Por que, então, continuar na ênfase de movimentos que não trazem crescimento
qualitativo? Isso não é justo para com o povo de Deus e, muito menos, com o Deus desse
povo, de Quem tanto precisamos!

Conclusão

A tônica tanto de reforma como de reavivamento é vinculada à Palavra de Deus. A


Palavra de Deus é referencial tanto para uma coisa quanto para outra. A Escritura é a
norma de conduta para toda a igreja, e quando o Espírito a usa como a espada, ela causa
tanto a purificação da doutrina na reforma como a descida dessas verdades à experiência
cristã no reavivamento.

Portanto, embora reforma e reavivamento sejam absolutamente necessários para a vida


do povo de Deus, logicamente aquela precede este. Cada um desses movimentos de per
se não basta. É necessário que um venha acompanhada do outro. Esse foi o caso de Asa,
mas sempre deverá ser a regra em todos os casos para que haja equilíbrio, sensatez, e a
verdade seja manifesta de uma forma experiencial.

Numa reforma sem reavivamento pode haver uma exatidão dos conceitos, mas
certamente haverá aridez no pensamento; num reavivamento sem reforma, poderá haver
o desequilíbrio emocional e o perigo da distorção da verdade. Na verdade, estas coisas
vêm juntas, inseparáveis, como dois dons gêmeos de Deus para o enriquecimento do Seu
povo. O poder de Deus num reavivamento tem que ser experimentado à luz das próprias
diretrizes doutrinárias que têm origem numa reforma teológica e litúrgica sadias
baseadas na Santa Escritura.

Essas duas coisas absolutamente necessárias para a vida sadia da igreja são causadas
pelo Espírito Santo mediante o uso de Sua Palavra. Perceba que é difícil estabelecer uma
linha divisória absoluta entre reavivamento e reforma. Por isso ambos devem andar
juntos e inseparáveis.

O que você pode fazer para que essa dobradinha de Deus venha em sua igreja? Comece
a estudar a Escritura muito seriamente. Leve em conta tudo o que Deus diz em Sua
Palavra. De resto, continue em compasso de esperança, mas fazendo o que fez
Habacuque, dizendo incansavelmente: Aviva Senhor a tua obra, ó Senhor, no decorrer
dos anos, e no decurso dos anos, faze-a conhecida; na tua ira, lembra-te da misericórdia
(Hc 3.2).

___________________________

Notas

1 Esse movimento teve início nos Estados Unidos com o missionário Donald A. McGavran.
Coube a C. Peter Wagner, que o substituiu como diretor e professor da Escola de Missões
Mundiais e do Instituto de Crescimento de Igreja, ambos ligados ao Seminário de Fuller,
sistematizar e popularizar os conceitos de Crescimento de Igreja. Seus livros têm sido
traduzidos e distribuidos no Brasil. Para uma avaliação crítica do atual movimento ver
ainda Theological Perspectives on Church Growth, editado por Harvey Conn (Philadelphia:
Presbyterian and Reformed, 1977).

2 J.I. Packer, Laid Back Religion? (Leicester, England: Intervarsity Press, 1993) 145.

3 Tom Nettles, "A Better Way: Church Growth Through Revival and Reformation", em
Power Religion, editado por Michael Scott Horton, (Chicago: Moody Press, 1992) 162.

4 Citado por Packer, Laid Back Religion?, 145.

5 Citado por Brian H. Edwards, Revival! A People Saturated with God (England:
Evangelical Press, 1990) 26.
6 Ibid., 27.

7 Nettles, "A Better Way," 166.


FIDES REFORMATA 1/1 (1996)

Calvinistas Também Pensam:


Uma Introdução à Filosofia Reformada
Ricardo Quadros Gouvêa

O que acontece quando um cristão reformado reflete nas implicações filosóficas,


científicas e práticas da sua fé? Uma revolução do pensamento teórico com drásticas
conseqüências práticas! Nada pode ser mais salutar à igreja do que ser confrontada com
os resultados da fé bíblica conforme expostos pela filosofia reformada. Minha expectativa
é que isto se torne também a convicção dos leitores ao completarem a leitura deste
artigo.

Pensamento antitético: marca da filosofia reformada

"Nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis". Os homens, inimigos de Deus, "jamais
podem chegar ao conhecimento da verdade" (2 Tm 3.1-7). Paulo não poderia imaginar a
sutileza de raciocínios em que tal inimizade se revelaria. O discurso no Areópago (At
17.22-31), tão necessário hoje quanto no dia em que foi proferido, é mais desprezado
que nunca pelos cultos doutores que, em rebeldia contra seu Criador (Rm 1.18-21),
repetem o motejar dos atenienses: "Sobre isso, Paulo, nós te ouviremos numa outra
ocasião" (At 17.32). A filosofia não-cristã sofre de um racionalismo ingênuo desde suas
origens helênicas, e a intelectualidade moderna abraçou definitivamente a utopia do ideal
científico e o mito da objetividade empírica, a falácia autofágica dos pressupostos
humanistas, como a autonomia do pensamento, que implica na rejeição de toda
autoridade e na absolutização do juízo crítico.(1) Hoje temos assistido à consumação
inevitável de tais compromissos anti-cristãos. O homem se mostra confiante na sua
racionalidade a qual supõe potencialmente onisciente, adorando-se como criador e
provedor, arquiteto e intérprete do universo, centro de toda a realidade, e o sentido do
mundo e da existência. Ele ouve a voz que lhe sussurra: "Certamente não morrerás; pelo
contrário, tu serás como o próprio Deus!" (Gn 3.4-5).

Possibilidade e necessidade de uma filosofia reformada

Ettiene Gilson considerou uma filosofia calvinista impossível.(2) O ponto-de-vista


reformado de que o homem é totalmente corrupto,(3) e que não pode, portanto, chegar à
verdade, exceto tendo por base a revelação divina, impediria a ereção de uma filosofia
cristã. Os calvinistas assumem a revelação de Deus como absolutamente determinativa, e
rejeitam a idéia de uma teologia natural. Assim, sugere Gilson, é impossível fazer
filosofia, e resta espaço apenas para a teologia.(4) Todavia, a noção reformada da
revelação não só dá amplo espaço para o pensamento filosófico, como também é o único
solo adequado para o florescimento de uma verdadeira filosofia cristã,(5) uma filosofia
que pode ser genuinamente objetiva, como as filosofias imanentistas jamais podem
ser.(6)

Precisamos de uma filosofia porque o pensamento teórico não é possível sem a estrutura
filosófica que o sustenta. Não é possível fazer teologia, nem ciência, sem um fundamento
filosófico.(7) Mas a deficiência das antigas filosofias cristãs, nas quais as teologias cristãs
vem se baseando por séculos, tornou-se patente. O pensador reformado não pode mais
agüentar os pressupostos platônicos, aristotélicos, tomistas, cartesianos, kantianos, ou de
qualquer outra espécie espúria que serviram e servem de sustentação para a sua
ponderação teórica. O pensador reformado tornou-se epistemologicamente consciente, e
exige um novo fundamento que se mostre de acordo com a sua fé. Mas onde podemos
encontrar uma filosofia que nos sirva? A filosofia de Tomás de Aquino de fato não nos
serve. Trata-se de uma filosofia de síntese, em que a fé cristã é submetida a um
desconfortável processo de adaptação ao aristotelismo. Nela, Deus não se distingue
inteiramente da sua criação posicionando-se meramente no topo da grande escala dos
seres. O elemento transcendente na filosofia tomista não é Deus, mas sim o "Ser". O
deus do tomismo não é o trino Deus auto-suficiente das Escrituras, mas sim a causa-não-
causada, mecanicamente ligado ao cosmos e dependente dele. Que fazer? Retornamos a
Agostinho? Sim, sem dúvida, naquilo em que o bispo de Hipona é irrepreensivelmente
evangélico, naquilo em que foi um verdadeiro precursor do pensamento reformado; mas
também Agostinho se deixou levar pelo "canto das sereias" grego, e nos oferece uma
filosofia cristã que carrega os farrapos tresandantes e desnecessários de um platonismo
decadente, em vez da nudez genuína de Jesus Cristo na cruz.

Que opções nos restariam então? As novas sínteses modernas e pós-modernas? O


racionalismo de Descartes? O empiricismo de Berkeley? Ou somos obrigados a sucumbir
diante da crítica kantiana, pretensamente redentora da fé cristã? Ou resta-nos, apenas, o
desespero irracional e subjetivista de Kierkegaard e seus sucessores? Ou por fim
devemos nos render à disseminação plurívocado sentido,(8) e ao consequente relativismo
absoluto apregoado por Jacques Derrida?(9) Não será esta uma causa perdida? Não será
nossa única saída a opção dialética do irracionalismo barthiano? Não seria melhor
abraçarmos um fideísmo aparentemente confortável, e deixarmos questões tão
complexas e abstratas para o banquete intelectual dos incrédulos? De forma nenhuma!
Opções irracionais e fideístas não são menos filosóficas que qualquer outra. Não há
pensamento que não seja fundamentado em pressupostos filosóficos. E se não é possível
escaparmos da abstração teórica, da estruturação filosófica, das pressuposições
aprioristas, então o melhor é que tomemos o cuidado de abraçarmos pressupostos
escriturísticos, através de uma filosofia bíblica e reformada, que teoriza para a glória de
Deus, e com os olhos fixos no Senhor Jesus Cristo.

Origens da filosofia reformada: os primeiros mestres

Os frutos filosóficos do Iluminismo não trazem alento ao coração do pensador reformado,


o qual não pode senão horrorizar-se diante das diferentes opções que se lhe apresentam
quando se trata de adotar uma filosofia cristã moderna. Será então que filosofia tornou-
se hoje sinônimo de apostasia, e temerária rejeição da revelação de Deus? Será verdade,
por outro lado, que a mentalidade Reformada se encontra em tal estado de embotamento
que não tenha uma resposta antitética que seja também positiva e atual? Será possível
que nossa única opção seja o obscurantismo dos iletrados, e o isolacionismo dos
indispostos? De forma nenhuma! É minha convicção que o nosso Deus tem dado início em
nossos dia àquilo que podemos chamar de um novo movimento do Espírito, levantando
homens aptos a contrargumentar e a derrotar especulações e sofismas, trazendo todo
pensamento à obediência de Cristo (2 Co 10. 3-5).

Refiro-me aos proponentes da filosofia reformada, cuja nau há muito navega com todas
as velas enfunadas em meio às ondas bravias do pensamento apóstata, e segue em alto
mar, clamando à intelectualidade contemporânea um retorno à sanidade do fides
quaerens intellectum, da distinção fundamental Criador-criatura, da submissão do
pensamento humanamente deficiente à autoridade revelacional de Deus em Jesus Cristo.
Num tempo em que o paganismo se agiganta e a cristandade se fragmenta, se corrompe,
e se emascula, eles surgem como apregoadores de uma nova apologética e de uma
filosofia reformada, fundamentada na Escritura, erguida sobre os cânones calvinistas, que
surge para eliminar uma lacuna que há muito traz um quase sempre indiagnosticável
incômodo ao pensador cristão que se posiciona na linha de João Calvino.

A filosofia reformada é praticamente desconhecida na nossa pátria.(10) Fundada pelo


renomado teólogo, filósofo e estadista holandês Abraham Kuyper (1837-1920), pensador
original e enciclopédico,(11) ela foi desenvolvida por Herman Bavinck (1854-1921) que
lançou, juntamente com Kuyper, os fundamentos da filosofia reformada,(12) Herman
Dooyeweerd (1894-1977), o grande sistematizador da filosofia Reformada, mestre da
crítica transcendental, pai da filosofia cosmonômica,(13) Dirk H. Theodor Vollenhoven
(1892-1978),(14) Hendrik G. Stoker (1899-1994),(15) e Cornelius Van Til (1895-
1987).(16)

Princípios elementares da filosofia reformada

Neste artigo introdutório não será possível fazer muito mais além de apresentar ao
pensador reformado brasileiro os princípios básicos da filosofia e da apologética
reformada. Muitos conceitos parecerão estranhos, e as idéias poderão criar dúvidas. Faz-
se necessária uma explicitação conceitual mais aprofundada que ficará para outra
ocasião. O que segue, portanto, é meramente uma vista panorâmica e propedêutica dos
fundamentos da filosofia reformada.

Calvinismo integral: uma visão completa da vida e do mundo

Para o pensador calvinista, tudo na vida é religião. O calvinismo é uma biocosmovisão


completa que envolve todos os aspectos da vida e todas as áreas do conhecimento
humano.(17) O calvinista não pode se satisfazer apenas com uma teologia reformada; ele
busca uma filosofia igualmente reformada, uma ciência, uma arte, uma cultura, uma
política reformada. Todas as áreas da ciência podem e devem ser exploradas a partir de
pressupostos cristãos reformados, através da examinação pressuposicional (dos
fundamentos teóricos) e estrutural segundo o motivo bíblico elementar da criação-queda-
redenção(18) (da sua ordem criada, das disfunções resultantes do pecado, e da
retauração pós-lapsariana em Cristo).(19) Como dizia Van Til: "Não há um centímetro
quadrado da vida da qual Cristo não diga `é meu'"(20) (Mt 28.18). Deus é absolutamente
soberano sobre toda a criação bem como sobre todas os aspectos da realidade e todas as
esferas da vida humana. A soberania absoluta de Deus (Sl 139; Is 46.9-10; Ef 1.3-14) é
o conceito central e fundamental do pensamento reformado.

A distinção Criador-criatura: diferença qualitativa infinita

Deus não pode, evidentemente, ser confundido com a criação.(21) A filosofia calvinista é
teísta. Em oposição aos sistemas monistas que identificam o cosmos criado com Deus
(panteísmo), ou eliminam a idéia de Deus inteiramente (ateísmo), ela pode ser também
considerada dualista. Existe uma diferença qualitativa infinita entre a mente de Deus e a
mente humana (Is 55.8). Não é que Deus saiba infinitamente mais que o homem, mas
sim que o saber divino é de qualidade diferente do saber humano.(22) A revelação divina
é a fronteira entre Deus e o cosmos.(23) A revelação de Deus traz sentido ao cosmos
criado, e exerce uma função legisladora sobre o mesmo. Deus não se limita à revelação;
Deus é o criador do cosmos e das leis que o regem, e não está sujeito às leis cósmicas,
nem mesmo às leis da lógica.(24)
Filosofia do pacto: tudo na vida é fundamentalmente religioso

O conceito de religião representa, na filosofia calvinista, não a noção popular de


religiosidade, mas sim o verdadeiro sentido da palavra, isto é, a religação do indivíduo
com o seu Criador. Ora, só há um caminho para a redenção e a reconciliação com Deus:
a fé em Jesus Cristo. Para o pensador reformado, portanto, a religiosidade é uma função
do ser humano, e todos os seres humanos são essencialmente religiosos, uma vez que
todos os homens se posicionam em submissão ou em rebeldia contra Deus, respondendo
positiva ou negativamente à salvação em Cristo oferecida pela graça divina, segundo a
soberania do próprio Deus. O pensamento humano é controlado e guiado por princípios
fundamentais que refletem uma atitude religiosa básica. Esta é, na verdade, uma noção
básica da teologia do pacto: nós somos criaturas religiosas. Nós fomos criados para
conhecer a Deus e ter comunhão com ele. Nós temos que depender de Deus. Quando não
o fazemos, não é que deixamos de ser religiosos, mas sim que desviamos nossa fé em
direção de algum outro objeto, e tornamo-nos idólatras, infiéis para com Deus, adorando
a criatura em lugar do Criador (Rm 1.25). O "coração" humano se dirige a Deus ou se
afasta dele em rebeldia (Rm 3.10; 8.7-8; Ef 2.3). Ele é o centro da existência humana e
do relacionamento com Deus. Do coração do homem procedem as fontes da vida (Pv
4.23), isto é, tudo na vida depende e é também resultado deste posicionamento religioso
do coração em submissão ou em rebeldia contra Deus.

Pressuposição da filosofia calvinista: só o cristianismo dá sentido ao mundo

Ninguém, segundo a filosofia reformada, pode prestar contas de coisa alguma em si


mesmo ou no mundo exceto se fundamentado na revelação.(25) Desse ponto de vista, é
absolutamente irracional defender qualquer outra postura que não seja a da fé cristã.
Somente o cristianismo não sacrifica a razão no altar da deusa contingência.(26) A
filosofia reformada é, portanto, pressuposional: ela sustenta que a única "prova" da
posição cristã é que, a não ser que ela seja pressuposta como verdade, não é possível
provar coisa alguma.(27) Pela graça comum, todavia, os incrédulos têm chegado a
descobertas espantosas. Só que, segundo a filosofia calvinista, o não-cristão não tem
nenhum direito sobre qualquer destas verdades, que Van Til chama de "capital
emprestado".(28) Todas as verdades sobre o cosmos pertencem àqueles que reconhecem
o cosmos e suas leis como criação de Deus. Até mesmo conceitos filosóficos de origem
não cristã podem ser utilizados pela filosofia cristã reformada, uma vez que eles, quando
verdadeiros, pertencem de direito ao cristão, que tem a obrigação de resgatar e purificar
a verdade, e trazê-la à obediência de Cristo (2 Co 10.3-5). Esse processo é oposto ao
processo de síntese comumente utilizado por filósofos cristãos (ex.: Tomas de Aquino,
Paul Tillich) que realizam o processo inverso através de uma adaptação forçada do
pensamento cristão ao pensamento apóstata.

Palingênese: a restauração integral em Cristo (29)

Orientado pela revelação, o cristão pode interpretar o mundo corretamente, ainda que
não exaustivamente. O cristão pode e deve explorar o cosmos criado, bem como suas
próprias capacidades intelectivas. Essa atividade é, na verdade, um mandato bíblico (Gn
1.28). Na verdade, só o cristão, graças ao processo palingenético, genuinamente pode,
quer, e sabe fazê-lo, no poder do Espírito (Cl 3.10).(30) O pensamento não-cristão põe-
se em rebeldia contra o Criador, e afirma a autonomia da razão humana, a qual passa a
ser o tribunal supremo da verdade. Mas a pretensa razão autônoma não é realmente
livre. Ela é a razão escravizada pelo pecado que carrega o ser humano inevitavelmente
para a escravidão da idolatria. Somente a ação redentora do Espírito de Deus pode tornar
o homem livre da escravidão do pecado para a obediência de Cristo. E assim libertado, o
cristão recupera a capacidade de explorar de forma proveitosa a criação de Deus, pois
agora ele compreende que de Deus, por Deus, e para Deus são todas as coisas (Rm
11.36; cf. At 17.28).

Fica claro que um obstáculo para a filosofia reformada é o biblicismo.(31) O pensamento


biblicista é uma distorção da doutrina calvinista da Palavra de Deus. A filosofia calvinista
se fundamenta na Bíblia e se responsabiliza por permanecer sempre biblicamente
orientada. Mas se a Bíblia é compreendida como a única fonte de conhecimento seguro
para o cristão, e exclue-se a possibilidade de investigar-se o cosmos criado através da
iluminação do Espírito, então de fato as portas se fecham para a investigação científica e
filosófica, o que é sem dúvida uma tragédia. O biblicismo é, entretanto, uma distorção
que não representa fidedignamente o pensamento calvinista. Para Calvino, a revelação
especial de Deus são as lentes que nos permitem compreender a criação como o próprio
Deus a compreende. Ao colocarmos as lentes da Escritura em frente aos nossos olhos
somos capazes, pela primeira vez, de enxergar a criação de Deus de modo apropriado.

Calvino compreendeu os efeitos radicais da queda, inclusive o efeito noético do pecado,


que tornou a razão humana incapaz de chegar ao conhecimento da verdade por si mesma
(Tt 1.15). E uma vez que a queda é primordialmente uma tragédia ética, a desobediência
é a característica de tudo o que fazemos, dizemos ou pensamos. Mas Calvino também
compreendeu o sentido radical da redenção em Cristo, que restaura o homem
palingeneticamente, em todos os aspectos do seu ser.(32) A investigação do cosmos
criado e da revelação geral de Deus é, todavia, executada segundo os pressupostos
bíblicos explicitados teoricamente pela filosofia reformada. O pensador calvinista não
principia em um "fato" supostamente neutro. Segundo Van Til, o que o não-cristão
entende pela existência de um "fato", é a sua existência independentemente de
Deus.(33) O "ser" é a noção transcendental por excelência do pensamento não-cristão (e
de formas inconsistentes do cristianismo). Mas o "ser" e a "existência", segundo a
filosofia reformada, não podem sequer ser discutidos sem que seja considerada a
pressuposição ainda mais fundamental da existência ou do "ser" de Deus. Todas as coisas
são inexplicáveis se não fôr pressuposto o Deus da Escritura.(34)

Defesa da fé: Uma filosofia reformada implica em uma apologética reformada

Paralela à insatisfação reformada com as chamadas filosofias cristãs, desenvolveu-se


paulatinamente uma insatisfação semelhante com os métodos apologéticos empregados
pelos defensores da nossa fé. O surgimento de uma filosofia reformada implica em uma
revolução na nossa apologética. Coube a Van Til desenvolver um sistema apologético que
ele considerou genuinamente reformado. Van Til chamou seu método de
"pressuposicional", e seu lema é o de Anselmo: credo ut intelligam (eu creio para que eu
possa compreender). O método pressuposicional de Van Til opõe-se radicalmente ao
método tradicional evidencialista-racionalista, que sugere exatamente o oposto: "eu creio
porque eu compreendo".(35) A apologética tradicional acredita na habilidade e
confiabilidade da razão humana, e procura fundamentar a fé em argumentos racionais e
empíricos. O método tradicional, portanto, não leva devidamente em consideração os
efeitos radicais da queda. O método pressuposicional sustenta que a fé em Deus precede
o entendimento de qualquer coisa, e que a elucidação teórica da verdade é subseqüente à
fé; e que a corrupção total do homem foi a causa da razão humana se tornar incapaz de
ancorar-se, autonomamente, e de modo satisfatório, em algo objetivamente indubitável.
A ação regeneradora do Espírito é conditio sine qua non tanto para o despertar da fé
quanto para a iluminação intelectual genuína que, radicada na fé em Deus, pode chegar à
interpretação correta dos fatos. Analisaremos em seguida os três princípios elementares
da nova apologética reformada.

Pensamento pressuposicional: Deus como pressuposto filosófico

A apologética é a justificação da nossa esperança, a qual somos chamados a apresentar


àqueles que nos indagam (1 Pe 3.15). É, segundo Van Til, "a defesa da filosofia de vida
cristã contra as várias formas da filosofia de vida não-cristã".(36) O mandato
escriturístico é bastante claro, mas resta saber qual é a melhor metodologia para
executá-lo. A apologética tradicional principia no esforço de provar a existência de Deus.
Alguns apologistas buscam demonstrar a existência de Deus através de argumentos
lógicos, e alguns apresentam evidências históricas. A apologética reformada é chamada
"pressuposicional" porque ela não procura provar a existência de Deus, mas antes a
pressupõe. Ela ainda pressupõe que todas as pessoas já sabem de antemão que Deus
existe, mesmo que afirmem o contrário (Rm 1.18-20). Além disso, a apologética
reformada não pressupõe um deus, ou melhor ainda, a possibilidade da existência de um
deus. A apologética reformada não se satisfaz senão com o pressuposto do trino Deus das
Escrituras, e este não existe possivelmente, mas certamente é! Deus é ontologica e
racionalmente necessário!(37) Para o apologista tomista, a possibilidade torna-se a
origem de Deus; mas para o apologista reformado, Deus é a origem de toda e qualquer
possibilidade. A apologética reformada, portanto, em vez de tentar provar a existência de
Deus por meios racionalistas e empiricistas, pressupõe a existência de Deus desde o
princípio. E isso não é embaraçoso, porque os incrédulos também baseiam a sua
incredulidade em alguma espécie de autoridade não-confirmável. Ambos, cristãos e não-
cristãos, possuem pressuposições. Os chamados bruta facta (fatos brutos, nus e crus)
não existem. Tudo que "existe" já existe interpretado, hermeneuticizado pelo homem
segundo pressupostos previamente estabelecidos. A neutralidade do pensamento é uma
utopia que nem é possível nem desejável, pois almejá-la é iludir-se e submeter-se
invariavelmente, consciente ou inconscientemente, sob a égide de um conjunto específico
de pressuposições.

O efeito noético do pecado: a corrupção da razão

A apologética reformada entende que a corrupção do pecado estende-se a todas as áreas


da vida do homem, inclusive a seus pensamentos e atitudes, sua razão, suas emoções,
sua vontade. É somente pela graça de Deus, através da regeneração pelo novo
nascimento em Cristo, que o ser humano pode, pelo poder do Espírito, renovar a sua
mente, e adquirir a capacidade de repensar os pensamentos de Deus, e de entender o
mundo conforme a interpretação dada por Deus em sua revelação. A apologética
reformada não minimiza a lógica (mas também não a eleva acima de Deus, que a criou)
nem as evidências, mas ela as incorpora em um esquema de compromissos básicos
(pressuposições) no qual elas passam a fazer sentido.(38) O pensamento não-cristão
(bem como o pensamento cristão inconsistente) não possue um legítimo ponto de
transcendência, e acaba por permanecer preso dentro dos confins do cosmos criado. A
apologética reformada afirma a finitude e a pecaminosidade do homem, e a incapacidade
humana de compreender o universo. Mas ela também apresenta Deus como o Criador. Só
um mundo que tem sua interpretação definida pelo Deus vivo faz sentido (Jó 38.4).(39)

Ponto-de-contato: a religiosidade inerente ao homem

A apologética reformada baseia-se no fato de que todos os homens intuem Deus (sensus
divinitatis). O homem rejeita seu conhecimento de Deus e o nega. Quando apresentamos
o evangelho aos incrédulos, estamos-lhes comunicando aquilo que eles em grande parte
já sabem, mas tentam ignorar e suprimir (Rm 1.18-25).(40) Este é, segundo a
apologética reformada, o nosso único ponto de contato (Anknüpfungspunkt) com os
incrédulos. Eis porque são vãos os apelos da apologética tradicional às "noções comuns" a
cristãos e não-cristãos, e à neutralidade da razão. Contrário ao que diz a apologética
clássica, a racionalidade humana não serve como ponto-de-contato.(41) Não há acordo
entre cristão e não-cristão em nenhuma área do conhecimento humano, em nenhum
aspecto de sua biocosmovisão.(42) A apologética pressuposicional ataca, portanto, o
coração do incrédulo, e consequentemente o coração da questão. Pensamento e fé são
funções do ser humano que operam unidas movendo-se em direção à obediência a Deus
ou à apostasia. A apologética calvinista busca, portanto, expôr os pressupostos básicos
que controlam o pensamento e a vida das pessoas. Isso envolve identificar e desmascarar
os motivos que direcionam as tendências por trás do estilo-de-vida de um indivíduo, de
uma família ou de toda uma sociedade. Eis porque a apologética e a filosofia reformadas
formam a base necessária e convidam o pensador cristão para se engajar na formação de
uma psicologia reformada, uma sociologia reformada, uma antropologia reformada, e
assim por diante. Assim como a filosofia reformada é antitética e bíblica, assim também
devem ser as ciências sob o ponto-de-vista calvinista. A filosofia reformada forma a
sustentação teorética necessária para o levantamento destes edifícios científicos. Fica
claro, portanto, que não estamos propondo a criação de glossas e apêndices, mas sim
uma verdadeira revolução na história do pensamento cristão, para maior glória do nome
de Cristo.

Conclusão

Neste ensaio procuramos em breves palavras apresentar ao pensador reformado


brasileiro os fundamentos da filosofia e da apologética reformadas. Só Deus sabe os
efeitos que tal empreendimento pode promover na igreja de Cristo. Só podemos adiantar
que são efeitos revolucionários, transformadores, e verdadeiramente significativos para a
teologia, a prática eclesiástica, e a vida cristã de cada irmão em Cristo. Nossa esperança
é que o pensamento reformado se agigante em nossa pátria, e que possa ter sobre nossa
terra e nosso povo um efeito salvador e restaurador, em particular na cultura e na política
brasileiras. Nossa proposta é que o brasileiro calvinista abrace uma biocosmovisão
completamente calvinista, para que possamos de fato, e coerentemente, reclamar o
Brasil para Cristo, em todas as áreas da vida, da cultura, e do pensamento. Na minha
opinião, O calvinismo é a mais perfeita apresentação da fé cristã. Como disse B. B.
Warfield, "o calvinismo é o cristianismo que se achou".(43) Se pregarmos a fé reformada
segundo os princípios básicos da biocosmovisão calvinista, estaremos pregando a fé cristã
em sua mais perfeita expressão, e estaremos portanto, servindo a causa de Jesus Cristo
da melhor maneira possível.

___________________________

Notas

1 Para definições desses e de outros conceitos filosóficos mencionados no presente artigo,


ver Estêvão Cruz, Compêndio de Filosofia (Porto Alegre: Globo, 1932); Theobaldo
Miranda Santos, Manual de Filosofia: Introdução, Filosofia Geral, História da Filosofia, e
Dicionário de Filosofia (São Paulo: Nacional, 1966; 14a. ed.); Norman L. Geisler e Paul D.
Feinberg, Introdução à Filosofia (São Paulo: Vida Nova, 1989).
2 Cf. Robert D. Knudsen, Calvinistic Philosophy (obra não publicada) 4.

3 A corrupção total do homem causada pela queda é um dos cinco fundamentos do


calvinismo. Os outros quatro são: eleição incondicional, expiação limitada, graça
irresistível, e a perseverança dos santos. São estes cinco fundamentos que distinguem a
teologia reformada de outras formas de teologia cristã que são, do ponto de vista
calvinista, inerentemente inconsistentes.

4 Citado em Knudsen, Calvinistic Philosophy, 4. Karl Barth, seguindo Kierkegaard,


também chegou à mesma conclusão de Gilson, chamando até mesmo o conceito de
"filosofia cristã" de um conceito bastardo. No seu pensamento, o caminho da filosofia e do
cristianismo se opõem como os caminhos respectivamente da imanência e da
transcendência paradoxal. Para Barth, assim como para Kierkegaard, a fé é irracional, um
salto no escuro, e fundamentalmente subjetiva. Veja Cornelius Van Til, The New
Modernism (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1947); e G. C. Berkouwer, The
Triumph of Grace in the Theology of Karl Barth (Grand Rapids: Eerdmans, 1956).

5 A obra-prima de Herman Bavinck, Philosophy of Revelation (Grand Rapids: Baker,


1979; 1a. edição - 1909), foi uma resposta a Gilson. Veja William White Jr., Van Til:
Defender of the Faith (Nashville: Thomas Nelson, 1979), 225.

6 H. G. Stoker, "The Possibility of a Calvinistic Philosophy" em The Evangelical Quarterly 7


(1935) 22.

7 Joel R. Beeke, "Cornelius Van Til and Reformed Apologetics" em Reformed Herald 51
(1995), 7. Veja Herman Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought (Jordan
Station: Paideia, 1984); e L. Kalsbeek, Contours of a Christian Philosophy (Toronto:
Wedge, 1975).

8 Plurívoco refere-se àquilo que tem sentido múltiplo, que é passível de ser interpretado
de formas diferentes. Posiciona-se, em tese, contra aquilo que é unívoco, que tem sentido
único, uma só interpretação possível.

9 Jacques Derrida, nascido em 1930, é filósofo francês e crítico literário. Ele é professor
da Ecole Normale Superieure em Paris. Suas teorias, conhecidas como pós-estruturalismo
e deconstrucionismo, embora relativamente desconhecidas no Brasil, são largamente
influentes nos Estados Unidos e na Europa. Em contraste ao estruturalismo de Fernand de
Saussure e seus seguidores, Derrida mantém que o sentido da linguagem é elusivo e
oculto, e que nenhuma interpretação definitiva pode ser estabelecida. Seu método crítico
consiste em "deconstruir" um texto pela exposição das pressuposições lingüísticas e
filosóficas ocultas no mesmo (Nota do Editor).

10 A nobre exceção é Francis Schaeffer, cuja obra de alcance mundial chegou também à
mão dos brasileiros, infelizmente em traduções irregulares. O mestre de L'Abri nunca
pretendeu fazer filosofia cristã a nível acadêmico. Schaeffer, todavia, prestou ao mundo
cristão o inestimável trabalho de popularizar a apologética Reformada pressuposicional
através de sua imaginativa obra. Veja The Complete Works of Francis Schaeffer 5 vols.
(Wheaton: Crossway, 1982). Nem todos estudiosos, entretanto, entendem que Schaeffer
era um pressuposicionalista coerente. Ver, por exemplo, o artigo de William Edgar, "Two
Christian Warriors: Cornelius Van Til and Francis Schaeffer Compared", em Westminster
Theological Journal 57/1 (1995) 57-80.
11 Knudsen, Calvinistic Philosophy, 10-17. Veja Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism
(Grand Rapids: Eerdmans, 1931).

12 Veja Cornelius Van Til, "Bavinck the Theologian" em Westminster Theological Journal
27 (1961) 1.

13 Veja David Hugh Freeman, Recent Studies in Philosophy and Theology (Philadelphia:
Presbyterian and Reformed, 1962); e Vincent Brümmer, Transcendental Criticism and
Christian Philosophy (Franeker: T. Wever, 1961).

14 Veja John H. Kok, Vollenhoven (Sioux Center: Dordt College Press, 1992).

15 Veja Knudsen, Calvinistic Philosophy, 70-75.

16 Muitos outros ilustres pensadores calvinistas poderiam figurar em uma lista mais
detalhada: J. Woltjer, J. M. Spier, J. P. A. Mekkes, S. U. Zuidema, K. J. Popma, Hendrik
van Riessen, Pierre Charles Marcel, Robert D. Knudsen, K. Scott Oliphint, John Frame,
William Edgar, Vern S. Poythress, David A. Powlison, Rousas Rushdoony, Greg Bahnsen,
Hendrik Hart, James Olthuis, Calvin Seerveld, Bernard Zilstra, H. Evan Runner, entre
muitos outros. Ainda que os filósofos reformados estejam hoje espalhados por todo o
globo, algumas escolas de pós-graduação destacam-se por sustentar, ao menos em
parte, a filosofia calvinista, como por exemplo a Vrije Universiteit de Amsterdam, o
Westminster Theological Seminary de Philadelphia, o Calvin College e o Calvin Theological
Seminary de Grand Rapids, e o Institute for Christian Studies de Toronto.

17 Os reformadores e seus sucessores obtiveram grandes conquistas na área teológica,


mas foi somente através da pena de Abraham Kuyper que os calvinistas puderam
encontrar uma filosofia reformada que proporcionasse uma completa biocosmovisão
(Weltanschauung) perfeitamente coerente com o pensamento calvinista. Entre as obras
de Kuyper, há duas que apresentam de forma mais distinta a gênese da filosofia
reformada: Lectures on Calvinism, 9-40; e Encyclopedia of Sacred Theology (New York:
Scribner's, 1898), 56-227.

18 Dooyeweerd sugeriu que há quatro motivos elementares nos quais se fundamentam


todas as diferentes escolas da história da filosofia. Três deles são apóstatas: o esquema
dualista matéria-forma da filosofia grega, o esquema da síntese medieval natureza-graça,
e o esquema moderno natureza-liberdade. Em oposição a todos estes, há o esquema
cristão radicalmente bíblico criação-queda-redenção. É somente sobre este último motivo
elementar que o edifício da filosofia cristã genuína poderá ser erguido.

19 Beeke, "Cornelius Van Til and Reformed Apologetics", 6.

20 Robert D. Knudsen, "The Legacy of Cornelius Van Til" em New Horizons 16 (1995), 3.

21 Há duas realidades: a) Deus e b) tudo o mais; e no princípio só havia Deus. Cf.


Thomas E. Tyson, "The Two Circles" em New Horizons 16 (1995), 4.

22 Veja Cornelius Van Til, The Defense of the Faith (Phillipsburg: Presbyterian and
Reformed, 1967), 31-50.

23 Dooyeweerd criou o nome peculiar de "princípio cosmonômico", ou ainda "idéia-lei",


para a revelação de Deus enquanto esta executa a função de fronteira entre Deus e o
cosmos criado. Os conceitos dooyeweerdianos receberam críticas e aplausos por parte de
outros filósofos calvinistas. Veja sua obra A New Critique of Theoretical Thought; e L.
Kalsbeek, Contours of a Christian Philosophy.

24 É de Calvino a expressão "Deus ex lex est", cf. Knudsen, Calvinistic Philosophy, 8-9.

25 Scott Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics
(Scarsdale: Westminster Discount Book Service), 5.

26 White Jr., Van Til: Defender of the Faith, 199.

27 Ibid.

28 Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics, 25.

29 "Palingênese" significa "uma mudança brusca". Para o emprego do termo na


linguagem filosófica reformada ver a nota 32 (Nota do Editor).

30 "Há dois tipos de pessoas, e ambos se propõem a ser os intérpretes da raça humana
na sua normalidade, e . . . não podem abandonar a pretensão de que só o resultado de
sua investigação científica leva ao conhecimento do objeto. . . . A diferença entre estes
dois grupos pode ser brevemente descrita pela palavra `palingênese'". Abraham Kuyper,
Encyclopedia of Sacred Theology, 219.

31 Cf. Knudsen, Calvinistic Philosophy, 5-6. Biblicismo é a teoria epistemológica cristã


que sugere que só a Bíblia pode fornecer ao homem um conhecimento verdadeiro sobre
qualquer coisa. A Bíblia torna-se a única fonte, não apenas do conhecimento de Deus, de
sua relação com o homem, e de conhecimento teológico, mas também de conhecimento
científico e filosófico. O biblicismo vai um passo além da doutrina da inerrância, pois
enquanto esta afirma ser a Bíblia destituída de erro, o biblicismo afirma ser a Bíblia a
única fonte de conhecimento confiável. Trata-se de uma absolutização que não tem
fundamento nem na própria Bíblia, e de uma distorção do ensino de Calvino, que nunca
negou o valor da pesquisa científica empírica, e julgava valioso o conhecimento
proveniente dos estudos humanistas da literatura grego-romana clássica.

32 A. Kuyper sugere que a regeneração em Cristo, segundo os princípios calvinistas, só


pode ser compreendida como uma palingênese, isto é, como um recomeço amplo, geral,
e irrestrito, que afeta todas as áreas do homem e de todo o cosmos criado.

33 Cornelius Van Til, Survey of Christian Epistemology (Nutley: Presbyterian and


Reformed, 1977), 117.

34 Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics, 6.

35 A apologética reformada de Van Til opõe-se também a sistemas apologéticos não-


racionais (por exemplo, o barthianismo) cujo lema poderia ser o credo quia absurdum
(creio porque é absurdo) de Tertuliano.

36 Cornelius Van Til, Christian Apologetics (Phillipsburg: Presbyterian and Reformed,


1976), 1.

37 White Jr., Van Til: Defender of the Faith, 195.

38 William Edgar, "Why I Am a Presuppositionalist" em New Horizons 16 (1995), 7.

39 Ibid.

40 White Jr., Van Til: Defender of the Faith, 199.

41 Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics, 7.

42 Abraham Kuyper, Encyclopedia of Sacred Theology, 225.

43 Oliphint, Cornelius Van Til and the Reformation of Christian Apologetics, 29.
FIDES REFORMATA 1/1 (1996)

Música: Explicatio Textus,


Prædicatio Sonora
Parcival Módolo

Quando Martinho Lutero referiu-se à música de boa qualidade como eficiente veículo para
explicação do texto, serva, portanto, e não espetáculo por si mesma, estava, na verdade,
refletindo parte do pensamento de sua época: música boa agradava a Deus, música má
agradava a Satanás, independente de ela estar associada ao culto ou não. Os critérios
que definiam a qualidade e a conseqüente utilidade da música eram absolutamente
claros. Falava-se, assim, objetivamente, em música própria para adoração a Deus e em
música objetivamente imprópria para o serviço litúrgico.

Se Lutero enfatizava a importância da anunciação da Palavra de Deus através da prédica


no culto, entendia que boa música poderia fixar as verdades teológicas anunciadas. É
neste contexto que deve-se entender sua concessão: "Depois (ao lado) da teologia, à
música o lugar mais próximo e a mais alta honra".(1) É que, para ele, teologia e música
pertencem-se, relacionam-se estreitamente, já que música é veículo apropriado para
anunciar a Palavra de Deus, e o faz de forma especial, em sons. Entendeu Lutero que do
maravilhoso presente divino (donum divinum et excellentissimum) dado exclusivamente
aos homens, a união dos sons vocálicos (vox) à palavra (sermo), de música e canto,
deviam ser corretamente utilizados para que esses mesmos homens adorassem seu
Deus.(2)

"As notas musicais vivificam o texto".(3) Elas intensificam a força da palavra. Na tradição
musical reformada luterana, a música revela o texto. Ela o explica (explicatio textus).
Nesse sentido ela deverá ser uma espécie de exegese, uma explanação do texto, um
"sermão em sons" (prædicatio sonora). Segundo Lutero, "Deus mesmo fez com que o
evangelho fosse anunciado com música".(4) O cântico congregacional só atingirá seu
objetivo se a Palavra de Deus puder ser anunciada, absorvida e preservada pelo povo por
meio dele.(5) É este o "cântico popular" defendido por Lutero para o culto. Um cântico
que explicasse o evangelho para o povo e o interiorizasse. "Cântico popular", neste
contexto, não se refere à música profana da época, se considerada música má, e
portanto, agradável apenas aos ouvidos de Satanás. A música que se canta no culto deve
"fortalecer e intensificar o Santo Evangelho e também impulsioná-lo".(6)

• Boa música, música má

O conceito de "qualidade", ou a definição do que seria bom ou mau no que se referia à


música, era, nos séculos XVI a XVIII, bastante objetivo e claro. Falava-se em música boa
e má usando-se parâmetros muito bem determinados e que iam além da beleza do
produto final, da intenção de quem o produzira e, até mesmo, da finalidade da obra.

No ano de 1700 foi editado em Hamburgo uma espécie de método de estudo para o
Baixo-cifrado, técnica musical bastante comum na época. O editor, Friedrich Erhard Niedt,
escreveu no prefácio:

...a finalidade e a razão de toda música devem ser somente a glória de Deus e a
recreação sadia da alma. Onde isto não é levado em conta, não há música propriamente,
e aqueles que abusam desta nobre e divina arte são "musicantes" do demônio, pois
Satanás tem seu prazer em ouvir tais coisas infamantes. Para ele, tal música é boa o
suficiente, mas para os ouvidos de Deus, são berros infamantes. Quem deseja, na sua
profissão de músico, ter a graça de Deus e uma consciência limpa, não desonra esta
grande dádiva de Deus, pelo seu abuso.(7)

Niedt nos revela aqui parte do pensamento corrente do seu tempo e que, por sua vez, era
uma síntese do pensamento dos dois séculos anteriores. Seguindo-se seu raciocínio, toda
música, mesmo a secular, devia ser escrita "para a glória de Deus". Para isso, devia
preencher, naturalmente, alguns requisitos. Se o fizesse agradaria a Deus. Mas se não o
fizesse, agradaria a Satanás, mesmo que houvesse sido composta para agradar a Deus!

• O Princípio da ordem e do número

No período do barroco, "boa música" estava associada ao princípio da ordem e do


número. Falava-se em "harmonia sonora", uma arte baseada em regras bem
determinadas. O princípio da ordem, musical ou não, era divino. O princípio do caos,
musical ou não, era satânico. Satanás era, aliás, o principal desestruturador da ordem
divina. A música que recebia aceitação e aprovação como "boa" era aquela possível de
ser racional e intelectualmente decodificada. Devia "falar ao intelecto". Quando isto
acontecia, então podia-se falar em uma verdadeira Ars, ou seja, em Arte no sentido mais
restrito da palavra. A Ars Musica baseava-se no princípio da ordem e do número. Se não
o fosse era objetivamente má.

As raízes desta concepção vão até a Idade Média, ou ainda mais longe. Não só a música,
como também outras formas de expressão artística, pareciam tentar refletir essa
dualidade quase maniqueísta do bem e do mal, do bom e do ruim. Obras da pintura,
escultura, relatos de visões que se conservaram escritas, mitos e lendas a partir de
figuras bíblicas, nos revelam sempre um universo bipolarizado. Se os templos abrigam
imagens de santos e anjos em seu interior, admitem também dragões, górgones e
demônios esculpidos no seu exterior. Se as telas, afrescos e retábulos retratam coros de
anjos tocando belos instrumentos nos céus, retratam também o lamento e o ranger
caótico da música do diabo em esferas mais baixas.

Por causa da sua estrutura ordenada numericamente, a música era apropriada para
refletir e até mesmo para representar o cosmos, o universo, a criação divina, que, da
mesma forma, estavam ordenados à partir do número. Já no tratado anônimo de música,
surgido antes do ano 900, Musica Enchiriadis, encontra-se o princípio: "Na formação da
melodia, o que é gracioso e gentil será determinado pelo número, aos quais os tons se
condicionam. O que a música oferece [...], tudo é formado a partir do número. Os tons
passam rapidamente, mas os números [...], esses permanecem".(8) Em 1538 escreveu
Lutero em seu "Encomion musices": "Nada há sem [...] o número sonoro".(9)

Quase dois séculos mais tarde, em 1707, na época de J. S. Bach, Andreas Werckmeister
escreveu: "As proporções musicais são coisas perfeitas que o intelecto pode
compreender. Por isso são agradáveis. Mas o que o intelecto não compreende, o que
confunde e perturba, isso o ser humano abomina".(10)

Eis aí, em todos esses registros, de diferentes períodos históricos, a definição de boa
música e de música má. Era a essa boa música que Lutero se referia quando dizia querer
vê-la "explicando o texto" e "pregando através de sons".

• Exegese do texto na música vocal

Johann Gottfried Walther, em seu Praecepta der Musicalischen Composition de 1708,


afirma que se um compositor quiser "...compor música para um texto específico", deve
representar "...não só a idéia geral do mesmo mas também representar musicalmente o
significado e a expressão de cada palavra específica".(11)

Walther não estava dizendo nada novo. Estava, antes, refletindo o pensamento de sua
época, que entendia boa música como aquela que, organizada numericamente,
representasse o texto da qual devia ser serva. Só assim agradaria a Deus.

É assim que deve ser entendida, por exemplo, toda a obra de J. S. Bach. Toda ela é "Boa
música", toda ela escrita para agradar a Deus, sempre baseada no princípio do número,
sempre representando cada palavra do texto, quando música vocal. Por isso "S. D. G."
(Soli Deo Gloria), expressão que Bach invariavelmente assinalava no final das suas obras,
mesmo daquelas que não eram escritas para o serviço litúrgico.

Bach era amigo e parente de Walther: o avô de Walther era meio irmão da mãe de Bach.
Tornaram-se amigos em Weimar, onde ambos trabalharam na mesma época, Walther
como organista, Bach como músico de orquestra, e mais tarde Mestre de Capela. Bach foi
padrinho de batismo do primeiro filho de Walther. Foi em Weimar, por essa época, que
Walther escreveu seu tratado de composição musical. Bach conhecia o conteúdo do
volume e certamente trabalhou com Walther na sua elaboração.

Representar cada palavra do texto era preocupação antiga, anterior a Bach e a Walther.
Ali pelo ano de 1606, um grupo de compositores, regentes e teóricos de Hamburgo,
reuniu-se para elaborar uma espécie de catálogo de figuras retórico-musicais. Eram cinco
músicos conceituados: Nikolaus Listenius, Heinrich Faber, Johann Andreas Herbst,
Joachim Burmeister e Christoph Bernhard. O volume produzido chamou-se Musica Poetica
e utilizava-se de expressões gregas para classificar diferentes figuras musicais. Assim,
por exemplo, expressões no texto como "Ele ressuscitou" deveriam ser representadas por
uma Anabasis (em grego "subida", "ascensão"), uma linha melódica de muitas notas
ascendentes. Se o texto, ao contrário, trouxesse palavras que falassem em descida, o
Advento, por exemplo, ou quem sabe a palavra "inferno", o compositor deveria utilizar-se
de uma Katabasis (em grego "descida"), representada musicalmente por uma longa
figura de notas descendentes.(12)

O catálogo Musica Poetica fala ainda em Paranomasia, em Apocope, em Katachresis, em


Aposiopesis, em Pathopoeia, em Hypotyposis, em Anaphora, em Kyklosis, em
Hyperbaton, em Palillogia e em muitas outras expressões mais, todas elas representando
figuras musicais que descreveriam o texto ao qual estivessem associadas.

Essa música agradava a Deus. Essa música era feita na igreja e servia de modelo para a
música secular praticada nas cortes da época. Compositores não sacros viajavam
distâncias enormes para aprenderem com os músicos sacros, imitarem seu estilo,
copiarem suas formas musicais. E é essa a tradição musical reformada. É dessa música
que somos herdeiros.

Entretanto, deixamos de ser "referência" há muito tempo. A música secular não mais se
espelha na nossa. Os músicos seculares não mais procuram imitar nosso estilo. Ao
contrário, nós é que corremos desesperadamente atrás da secularização de nossa música.
Nós evangélicos é que buscamos mais e mais modelos seculares para a música do nosso
culto a Deus. Não falamos mais em "boa música" e em "música má". Não mais pensamos
em música objetivamente boa para agradar a Deus, nem entendemos seu polo contrário
como música que agrada a Satanás. Não temos mais critérios objetivos que nos ajudem a
falar de um tipo de música verdadeiramente sacra.

Além disso, música não tem mais sido serva da Palavra de Deus, mas sim espetáculo nos
nossos cultos. Não mais cantamos teologia: cantamos aquilo que agrada a um ou a outro
grupo da igreja. Aliás, música, que sempre foi o elo de ligação entre diferentes gerações,
hoje tornou-se o principal fator de discórdia, quando não de separação "intra ou extra-
muros" em nossas igrejas. Não mais cantamos nossa fé reformada, não mais cantamos
aquilo em que cremos, da forma como cremos. É por este motivo que tanto faz
cantarmos os hinos dos nossos hinários ou qualquer outro cântico, de qualquer outra
seita, que diga qualquer coisa, desde que nos deixe felizes ou emocionados. E é também
por esta razão que tanto faz freqüentar a nossa igreja ou a do vizinho, ou qualquer nova
seita que vier.

Não acredito, como músico, que o problema seja, todo ele, causado pela música. Penso
que ela é apenas sintoma, reflexo. Temo que haja muito mais a considerar. Mas é
também como músico que acredito que a música verdadeiramente sacra poderá nos
ajudar a reencontrar caminhos porventura perdidos, a falar da nossa identidade e,
certamente, proclamar o nome daquele em quem cremos, por que cremos e como
cremos. Nossa música poderá ser novamente explicatio textus, praedicatio sonora.

___________________________

Notas

1 "Nach der Theologia der Musica den nähesten Locum und höchste Ehre" (M. Lutero,
"Tischreden," em D. Martin Luthers Werke, vol.6 (Weimar, 1921) n. 7030).

2 M. Lutero, "Encomion musices," em D. Martin Luther Werke, vol.50 (Weimar, 1914)


372.

3 "Die Noten machen den Text lebendig" (M. Lutero, "Tischreden," em D. Martin Luthers
Werke, vol.2 [Weimar, 1913] n. 2545).

4 Ibid., n. 1258

5 Carta de Lutero a G. Spalatin em 1523 ("Briefwechsel," em D. Martin Luthers Werke,


Vol. 3 [Weimar, 1969] 220).

6 "Das heylige Evangelion[...] treyben und ihn schwanck [...] bringen" (M. Lutero, no
prefácio da 1a. edição do Geistlichen Gesanbüchlein de Wittenberg, editado por J.
Walther, 1524).

7 F. E. Niedt, Musicalische Handleitung [...] vom General-Bass (Hamburgo, 1700). Citado


em Bach-Dokumente II, 334
8 "Musica Enchiriadis." Scholien, em: Scriptores ecclesiastici de musica sacra potissimum,
ed. M. Gerbert, vol.1 (St. Blasien, 1784) 195

9 "Nihil enim est sine [...] numero sonoro." (Luther, "Encomion musices," 369).

10 A. Werckmeister, Musicalische Paradoxal-Discourse [...] (Quedlinburg, 1707) 13.

11 J. G. Walther, Praecepta der Musicalischen Composition (1708), ed. P. Benary (Leipzig,


1955) 14.

12 J. Burmeister, Musica Poetica (Rostock, 1606); ed. fac-simile por M. Ruhnke


(Kassel,1955).
FIDES REFORMATA 1/1 (1996)

Elwood Scott, Paraíso, a Cidade Santa e a Glória do Trono, trad. Palavra da Fé


Produções (São Paulo: Palavra da Fé Produções, sem data). — Talvez fosse
interessante lembrar que o Palavra da Fé Produções está ligado ao nome conhecido da
missionária Valnice Milhomens.

O autor afirma que "por muitos meses" deu carona a um homem de barba prateada, de
quem recebeu visitas freqüentes, e que finalmente pediu-lhe que taquigrafasse umas
mensagens (p.1). Essas mensagens taquigrafadas durante dezessete visitas formam o
conteúdo do livro. Nele, Scott afirma que seu estranho visitante chamava-se Seneca Sodi,
falecido fazia tempo, e agora vivendo já no corpo ressurreto. Sodi, em vida, tinha sido
grego descendente de judeus, "firme crente no Cristianismo e um dedicado estudante de
sua Bíblia" (p.2). Ele tinha sido casado, havia sido pai de seis filhos (p.101), e havia
morado na encosta das montanhas das Cascatas, na Noruega.

Durante as visitas, Sodi teria contado a Scott o que viu e experimentou no céu por
quarenta dias. A narrativa que Scott faz do depoimento de Sodi inclui um relato de como
Sodi chegou ao Paraíso e encontrou-se com sua mãe, sua esposa, sua filha (falecida
pequena, agora uma adulta de 77 anos). Narra ainda como ele encontrou-se com
profetas e apóstolos e outros grandes líderes da igreja do Velho e do Novo Testamentos,
e como foi o grande encontro com o Senhor Jesus numa das portas da Cidade Santa e a
grande convocação diante do trono de Deus. Finalmente, é narrado como a alma de Sodi
foi levada de volta à terra pelo anjo Gabriel, reunida com seu corpo ressurreto, e enviada
para a casa de Scott nos Estados Unidos, onde Sodi ditou e verificou o relato, liberando-o
para publicação antes de ser levado de volta para seu lar celestial. Tudo indica que Scott
escreveu o livro pouco antes da Primeira Guerra Mundial, por volta de 1910, os anos da
infância do movimento pentecostal. Infelizmente não foi possível localizar uma cópia do
livro original em inglês para verificar a origem e a autoria das poesias no livro (p.74; 80;
106), o que talvez teria fornecido mais indicações sobre os autores e a época em que
escreveram.

O livro tem alguns aspectos positivos. A doutrina de Deus, por exemplo, revela uma
posição bíblica do autor: não deísta, nem panteísta, e sim a posição bíblica teísta
trinitariana (p.132). Também a doutrina sobre o Senhor Jesus Cristo é muito bíblica,
tanto na confissão citada (p.134) como em todas as pressuposições e implicações, e
mesmo sobre a pessoa do Senhor. O autor crê na preexistência (p.51; 161), na
encarnação (p.134), no segredo das duas naturezas em uma pessoa, e isso, sem desviar-
se para o docetismo, o arianismo, o monofisitismo ou o nestorianismo; enfim, o autor
permanece na posição niceno-calcedônica (p.134:11). Ele também é bíblico no que
escreve sobre a obra de Cristo, seu ministério terreno, inclusive sua pregação e curas,
seu sofrimento e sua morte vicária e propiciatória pelos pecadores, sua ressurreição, o
sentar-se ao lado do Pai, a sua intercessão e a sua volta (p.38; 54; 135:15). O ensino
sobre o Espírito Santo é ortodoxo, inclusive no "filioque" (p.135:13). Não é pentecostal e
não há nenhuma referência ao falar em línguas estranhas como prova da plenitude do
Espirito Santo. A aplicação da redenção por Cristo nos corações é claramente reconhecida
como obra do Espirito Santo (p.136:17,21).

Também na doutrina sobre o pecado o quadro é essencialmente bíblico. O autor


reconhece o pecado original herdado, e a depravação de todos os homens. Sua explicação
é simples mas clara: "a linhagem da humanidade foi contaminada na sua fonte" (p.135).
A morte, que pode ser chamado "sono" (p.47)‚ e que é o castigo pelo pecado, constitui-se
na separação entre o corpo e alma (p.4); o que pode soar um tanto gnóstico é a
expressão "almas liberadas" (p.59). Todavia, o contexto não despreza a matéria, e nem é
panteísta, budista ou universalista. Scott reconhece ainda a concreta possibilidade do
"abismo da morte eterna", o outro "polo do ímã" (p.20, 42), o "lago que arde com fogo e
enxofre" (p.93; 159), e reconhece a perdição dos anjos caídos e dos seres humanos que
rejeitam o Senhor (p.92). A doutrina da salvação que ele abraça mostra claramente que a
salvação é por graça imerecida, e que a justiça é imputada gratuitamente. E há pessoas
que se salvam por um triz (p.85).

Há algumas deficiências e tendências na obra que trazem preocupação. Pessoalmente,


creio que falta uma frase no fim do livro, algo como João Bunyan escreveu: "Acordei e eis
que era um sonho, o sonho mais belo da minha vida..." (cf. p.145). O que Scott escreve
podia ter sido um sonho de verdade ou um sonho imaginado. Agora, porem, como está, o
conteúdo do livro é apresentado como se fosse um relato de um mensageiro celestial
(Seneca Sodi), e como se fosse informação acima de questionamento. Às vezes soa um
pouco como revelação complementar a perguntas que para nós, na terra, ficam sem
resposta até o último suspiro. Essa idéia de revelação complementar, por exemplo, está
patente na explicação do "espinho na carne" de Paulo, que, segundo o livro, teria sido um
inimigo do apóstolo (p.71); ou, ainda, nas informações sobre o anjo Gabriel (p.166), e,
especialmente, na descrição do "Livro da Vida", do qual haveria uma cópia em cada uma
das doze portas na Cidade Santa. Nessas cópias, prossegue o livro, estariam contidos
também os "Registros do Filho de Deus", com informações de fontes obviamente
apócrifas, como o ensino que Jesus teria recebido do Pai aos cinco anos (p.52, 53).

No parágrafo sobre o novo nascimento (p.137) há um certo raciocínio circular, como


ocorre em geral quando se tenta resolver problemas teológicos na "ordem da salvação".
Quem sabe teria sido melhor reconhecer que é um problema teológico além da nossa
capacidade mental (até da capacidade dos glorificados, p.133). Em geral, as descrições
são muito humanas, inclusive as descrições do céu. Eva chega até a corar, quando se
lembra que seu namoro foi breve: "Era eu ou ninguém..." (p.138). Também é muito
ocidental e nórdico, pois diz que no céu não há mais distinção de cor, visto não existir
mais negros, somente brancos (p.91). Os costumes que ele descreve como sendo
habituais no céu também são ocidentais, como o aperto de mãos e o abraço fraternal
(p.35), com seu "bom dia" (e não a "paz do Senhor" como na terra; p. 123). Essa
saudação é meramente ocidental, e não, por exemplo, indiana ou ártica. O ambiente do
céu, segundo o autor, é muito moderno, inclusive com elevadores. As carruagens são
ultra-velozes, como a dos anciãos, que se assemelham mais a um "tally-ho" (carruagem
puxada por cavalos, 130); há outras que, no apertar de um botão (p.109), voam com a
velocidade do som ou da luz (p.98; 117).

Embora a doutrina sobre o homem seja bíblica (Scott afirma tanto a Criação do mundo
quanto a criação do homem à imagem de Deus) talvez fosse melhor não usar a palavra
"divino" no parágrafo 14 da "Confissão dos Anciãos" (p.135), para evitar-se a impressão
de que o homem ou qualquer outra coisa criada possa ultrapassar a categoria de criatura.
Mutatis mutandis, evitar-se-ia a palavra "animal" (aristotélica), exatamente por haver
uma diferença de categoria dentro desse grupo, como mostra a própria descrição acima.

Finalmente, às vezes o conteúdo do livro parece um pouco espírita. Um conhecido líder


presbiteriano disse-me certa vez: "Esse livro cheira a espiritismo; nem li o último
capitulo, não agüentei mais". Apesar de concordar integralmente que o conteúdo possa
ter uma aparência espírita, creio que o livro não o é. No Brasil, sem dúvida, é mais fácil
chegar a esta impressão. Alguns poderiam mesmo usar o livro como "prova" de que seu
autor tinha convicções espíritas. Entretanto, essa heresia perniciosa, que é o espiritismo,
não deveria roubar a nossa alegria da esperança de que um dia estaremos no céu, onde
veremos coisas maravilhosas, e de que posteriormente teremos um corpo ressurreto,
passando a andar inclusive na nova terra. Sabemos que Cristo é o Primeiro, e que outros
ressuscitaram por causa dele, tanto os "santos" na hora da Sua morte (Mt 27.52-53),
como o filho da viúva de Naim, Lázaro, e Dorcas. As mentiras do espiritismo nunca nos
deveriam roubar estas verdades.

Uma outra observação, é que nas ressurreições acima mencionadas, de Lázaro, de


Dorcas, do filho da viúva de Naim, e dos "santos", não há indicação nenhuma nos relatos
bíblicos de que as pessoas que ressuscitaram já estivessem no corpo da última
ressurreição. Aliás, isto não poderia ocorrer antes da vinda do Senhor. Embora esses
ressuscitados pudessem ter contado muito sobre o tempo que passaram no céu, nós não
temos nenhum relatório nas Escrituras do que viram ali.

Por isso, devemos ter muito cuidado com revelações complementares. Se forem
"acréscimos" à Palavra de Deus, estão indo contra a clara advertência de Ap 22.18.
Apesar de neste livro essas "revelações" em geral serem mais explicações de trechos
difíceis, devemos ter muita cautela: elas poderão tornar-se facilmente em uma "teologia
do Paraíso", como alguns parecem aceitar uma "teologia de Perretti"*. Se a historia fosse
verdade, creio que, certamente, nem a metade nos foi contada. Mas, por incrível que
pareça, a história teria a sua credibilidade aumentada se fosse mais como o "Peregrino"
de Bunyan ou "O Regresso do Peregrino" de C. S. Lewis, obras que claramente se
apresentam como fictícias. Por isso, ainda acho que a última frase do livro deveria ter
sido: "Acordei, e eis que era um sonho..." (cf. p.145).

* O autor refere-se a Frank Perretti, autor dos conhecidos romances Este Mundo
Tenebroso – dois volumes –, que têm se tornado mundialmente uma das obras básicas
dos proponentes do movimento de Batalha Espiritual (Nota do Editor).

— Frans Leonard Schalkwijk


FIDES REFORMATA 1/1 (1996)

João Paulo II, Carta Encíclica de João Paulo II Sobre o Valor e a Inviolabilidade da Vida
Humana (São Paulo, Edições Paulinas, 1995) 211 páginas.

Chega às livrarias a Carta Encíclica, que, meses atrás, foi objeto de grande atenção da
imprensa, e, certamente, de muitos cristãos reformados. Divulgada nove meses antes do
Natal (em 25 de março deste ano), data em que a Igreja Católica Romana celebra a
anunciação à Maria, a carta demonstra que a data foi propositalmente escolhida, pois sua
preocupação principal é falar da vida.

A carta é endereçada "aos bispos, aos presbíteros e diáconos, aos religiosos e religiosas,
aos fiéis leigos e a todas as pessoas de boa vontade". Nasceu de um pedido unânime dos
cardeais que integraram o Consistório Extraordinário realizado em Roma de 4 a 7 de abril
de 1991, após debates e colaboração de uma parte dos bispos do mundo (a colaboração
foi solicitada a todos). Esta carta, ainda segundo o texto, possui a "autoridade do
Sucessor de Pedro" (introdução, §5).

Apresenta-se composta de 4 capítulos, mais introdução e conclusão e possui uma


estrutura diferente das demais encíclicas:

Cap. "Tema" Título

I A voz do sangue do teu irmão As atuais ameaças à vida


clama da terra até mim humana

II Vim para que tenham vida A mensagem cristã sobre a vida

III Não Matarás A lei santa de Deus

IV A mim o fizestes Por uma nova cultura da vida


humana

Esse uso da Bíblia como "respaldo" ao assunto (desnecessário à luz da doutrina Romana)
não é privilégio dos grandes capítulos. Os pequenos tópicos (5 no capítulo I, 11 no
capítulo II, 6 no capítulo III, 7 no capítulo 4 e 3 na conclusão) são "aplicações" de textos
bíblicos (uma citação é o livro de Baruque).

O tema central da carta é a defesa da vida humana contra todos os tipos de agressões às
quais ela está sujeita (Aborto, eutanásia, suicídio, fecundação in vitro, manipulação de
embriões, etc.), e um enaltecimento da mesma como um dom de Deus.

Não creio que, como reformados que somos, tenhamos muito que discordar de seu tema
central. Aliás, encontramos muitos pontos comuns entre a ética que professamos e as
proposições da carta. Mas, certamente, temos muitos pontos de discórdia.

Os pontos comuns

1. Concordamos que a cultura de nossos dias (à qual o apóstolo, no início da era cristã, já
exortava a que não nos amoldássemos - Rm 12.1-2) é uma cultura que, cada vez mais,
valoriza a morte em detrimento da vida. Vivemos em um ambiente que anseia pela
apresentação espetacular da morte e encara a vida como algo rotineiro e banal. Este é
um tema que atravessa toda carta.
2. Concordamos que existe uma tendência clara a uma dicotomia entre valores íntimos e
comportamento público: cada indivíduo quer avocar a si a mais completa autonomia
moral de decisão sobre vida e morte, e, por outro lado, quer exigir que aqueles que
foram ensinado a lutar pela vida não tenham pejos morais em executar algo contrário à
própria consciência. Obviamente temos que concordar, também, que a raiz de tudo isto
está no relativismo ético. Este assunto pode ser visto no capítulo III §70.

Há ainda outros pontos com os quais concordamos. Mas não podemos deixar de
mencionar aqueles com os quais discordamos:

Os pontos não comuns

1. Não podemos concordar que a contracepção seja uma negação da verdade integral do
ato sexual, como se o sexo tivesse como única função a procriação (ver Capítulo I, §13).
De que modo interpretaríamos I Co 7.1-9? Ou, como entenderíamos que a mulher só é
apta para fecundação em menos de 3% de seu tempo de vida? Nos outros 97% de seus
dias ela deveria abster-se de qualquer relação sexual?

2. Não podemos concordar com a igualdade de tratamento que é dada aos métodos
anticoncepcionais e aos métodos antinatais (ver Capítulo 1, §16 e 17). Aliás, esta
distinção, tão importante, não fica muito clara. A importância da distinção reside no fato
de que, na minha opinião, os métodos antinatais, diferentemente dos anticoncepcionais,
são totalmente condenáveis.

3. Creio que a nossa principal discórdia reside nas premissas da carta. Não podemos
recebê-la como autoritativa. O que entendemos por autoritativa fica mais claro
observando os próprios decretos do Concílio Vaticano II, que dizem no §59:

Esta religiosa submissão da vontade e da inteligência deve de modo particular ser


prestada com relação ao autêntico magistério do Romano Pontífice, mesmo quando não
fala "ex-cathedra". E isso de tal forma que seu magistério supremo seja reverentemente
reconhecido, suas sentenças sinceramente acolhidas, sempre de acordo com sua mente e
vontade. Esta mente e vontade constam principalmente ou da índole dos documentos, ou
da freqüente proposição de uma mesma doutrina, ou de sua maneira de falar (itálicos
meus).

E ainda no §61:

Esta infalibilidade, porém, da qual quis o Divino Redentor estivesse sua Igreja dotada ao
definir doutrina de fé e moral, tem a mesma extensão do depósito da Revelação divina,
que deve ser santamente guardado e fielmente exposto. Esta é a infalibilidade de que
goza o Romano Pontífice, o Chefe do Colégio dos Bispos, em virtude de seu cargo,
quando, com ato definitivo, como pastor e mestre supremo de todos os fiéis que confirma
seus irmãos na fé (cf. Lc 22.32) proclama uma doutrina sobre a fé e os costumes. Esta é
a razão por que se diz que suas definições são irreformáveis por si mesmas e não em
virtude do consentimento da Igreja, pois foram proferidas com a assistência do Espírito
Santo a ele prometida no Bem-aventurado Pedro. E por isso não precisam de aprovação
de ninguém nem admitem apelação a outro tribunal (itálicos meus).

Nossa única regra de fé e prática é a Bíblia. Qualquer fonte de autoridade extra-bíblica


(seja antiga como a Romana ou nova como a "carismática") não deve ter poder sobre
nossa fé ou nossa ética. Embora a carta cite repetidamente a Bíblia, as citações à
tradição, à outras encíclicas e aos livros apócrifos, além de serem constantes, são feitas
atribuindo-lhes a mesma importância. A título de exemplo veja as páginas 136 e 137:
nelas as cartas de Paulo aos Romanos (6.23; 8.11; 14.7-8) e aos Filipenses (2.8; 3.10), o
Evangelho de João (13.1) e a Primeira Carta de Pedro (2.21), são citados em pé de
igualdade com a Gaudium et Spes (que é a Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II)
e com outra Carta Encíclica do próprio João Paulo II, Salvifici doloris.

4. Entretanto, se tirarmos todas as citações extra-bíblicas ainda teríamos que lamentar o


fato de que o capítulo II, que fala de forma tão eloqüente sobre a mensagem vital trazida
ao ser humano pelo "Verbo que se fez carne", é contradito pela conclusão e
especialmente pela oração final da carta, que, dirigida a Maria, diz: "a vós confiamos a
causa da vida".

Temo que, em um ambiente tão carente de boa literatura sobre ética cristã esta carta
seja uma "pedra que clama". Infelizmente não o faz de modo fiel à Palavra de Deus; mas
clama.

— Fôlton Nogueira da Silva


FIDES REFORMATA 1/1 (1996)

Benny Hinn, O Sangue (Minas Gerais: Editora Betânia, 1994). Tradução do


original, em inglês: The Blood (Florida: Creation House, 1993). 133 pp.

Conhecido em todo o mundo como evangelista e líder do movimento carismático, e em


anos mais recentes como um dos propagadores do chamado "Evangelho da
Prosperidade", o autor Benny Hinn nos traz agora um livro entitulado "O Sangue", no qual
apresenta experiências pessoais e trata de aspectos relacionados com o tema do "sangue
de Cristo". Este livro chega às livrarias após vários outros nos quais Benny Hinn discorre
sobre sua conversão e experiências pós-conversão, dentro de um ministério controvertido
e fluido, marcado por traços de sinceridade, de um lado, e por outro, de uma grande falta
de base doutrinária, exegética e teológica.

Para entendermos melhor o autor, é necessário saber que a falta de embasamento


exegético para as proposições que faz com tanta autoridade tem provocado mudanças em
suas convicções, algumas vezes até para melhor. Por exemplo, um periódico norte-
americano relatou que Hinn havia renunciado à suas antigas pregações e defesas da
teologia da prosperidade e do direito divino de ser curado. Diz o artigo que Benny Hinn,
perante uma congregação chocada, disse (Artigo em Christianity Today, 16 de agosto de
1993, pp. 38-39):

• ...é só fé, fé, fé e nada de Jesus. Precisamos ter fé em Jesus, o autor e


consumador da fé... Paremos de buscar a fé e comecemos a buscar ao Senhor! A
mensagem da fé é da Nova Era e não funciona. Vou parar de pregar a cura e
começar a pregar Jesus!

Muitos dos que acompanham o autor e suas obras, entretanto, mostram-se cépticos
quanto à existência de profundas transformações em seu pensamento e sua mensagem.
Com efeito, o seu livro O Sangue segue a linha dos anteriores, onde Hinn apresenta um
conglomerado de verdades bíblicas, às quais são adicionadas inferências não
substanciadas, juntamente com interpretações equivocadas de trechos da Palavra de
Deus, sobre um pano de fundo de várias experiências.

O livro procura demonstrar aos crentes o poder do sangue de Cristo. O tema é


desenvolvido a partir de experiências pessoais, e de outras, de que o autor tomou
conhecimento, e nas quais este poder do sangue foi demonstrado. Seguem-se vários
capítulos onde tais experiências são intercaladas com exposições de trechos bíblicos que
fazem referência ao tema "sangue". Em sua abordagem, o autor agrupa
indiscriminadamente inúmeras referências bíblicas à palavra sangue, traçando conexões
com o derramar do sangue de Cristo na cruz, e o seu significado redentivo para o seu
povo. Algumas dessas conexões são biblicamente justificadas, outras não.

Muitos capítulos tratam de temas relevantes à vida cristã, como por exemplo, do trabalho
mediatório de Cristo, da justificação encontrada nele, da graça insondável de Deus, e do
selo do Espírito Santo na salvação do crente. O livro, O Sangue, não segue, entretanto,
uma progressão lógica e não tenta, pelo menos, apresentar uma exposição bíblica
popular do seu tema-título.

O autor termina apresentando a presença do sangue de Cristo na Ceia do Senhor,


baseado em uma experiência vivida com um grupo de "freiras Carismáticas", com as
quais celebrou a Santa Ceia, experimentou pessoalmente o poder do sangue, recebendo
"a unção de Deus através do sangue de Jesus" (p.125-133). Ele diz: "...eu não sabia que
Deus me reservava, naquela noite, uma experiência extraordinária..." (p. 126).
"...comecei a experimentar uma espécie de dormência nos braços e no peito." (p. 126).
"...senti que as pontas dos meus dedos tocavam um manto... havia um corpo físico ali...
...encontrava-me literalmente ajoelhado aos pés de Jesus" (p. 127).

Conclama, por fim, os seus leitores a desenvolverem suas próprias experiências místicas
de comunhão com Cristo, na Ceia do Senhor e no poder do sangue de Cristo, traçando
uma conexão segura entre o apelo ao poder do sangue e as bênçãos carismáticas que
decorrem desse recurso. "Todas as vezes que me dirijo a uma reunião, agradeço ao
Senhor pelo sangue. E tão logo o faço, sinto a presença de Deus descer sobre nós e os
milagres ocorrem" (p. 133).

É inegável a importância dada na Palavra de Deus ao sangue. Teologicamente, existe


uma controvérsia se ele seria símbolo de vida, ou de morte (pelo seu derramar, ou pela
sua ausência). Leon Morris indica que, estatisticamente, as referências bíblicas ao sangue
apontam para a realidade da morte, principalmente para a conexão desta com a punição
de pecado Leon Morris, "Blood," em Baker’s Dictionary of Theology (Grand Rapids: Baker
Book House,1969) 99-100). Sem precisar entrar no âmago dessa controvérsia, sabemos
que as referências do tema sobre a pessoa de Cristo versam sobre a sua morte na cruz,
ou sobre a dádiva de sua vida, pela sua Igreja, com todos os conseqüentes benefícios
aplicados aos salvos. O seu sangue, derramado pelos escolhidos, é porta única pela qual
passa toda esperança de redenção e proteção.

Entretanto, a abordagem sem uniformidade do tema, e a falta dos embasamentos aos


quais já nos referimos, fazem com que o autor apresente no livro vários pontos
questionáveis, quando analisados do ponto de vista de uma teologia construída sobre
sólida base exegética, como é a nossa fé reformada. Tratamos de alguns desses
questionamentos, nessa resenha.

O sangue é um talismã?

Em várias ocasiões, Hinn procura afirmar que não está apresentando o sangue de Jesus
Cristo como algo "que tem um poder mágico", ou como "um talismã" (p. 20). O
tratamento que dá à questão, entretanto, resulta exatamente no que afirma não fazer.
No conceito de Hinn, o sangue de Cristo não é apenas um termo gráfico, descritivo e
simbólico da sua vida, que foi dada por sua igreja, mas é algo que se usa. Como ele
questiona na página 21: "Como podemos usar o sangue de Jesus para derrotar o inimigo
em nossa experiência diária?" Ele relata a experiência de um pastor que, na Segunda
Guerra Mundial, foi protegido juntamente com sua família de inúmeros ataques aéreos.
Dizia este pastor: "Irmãos, não sei de nenhuma ocasião em que alguém tivesse clamado
ativamente pelo sangue de Jesus em voz audível, e que ele tivesse falhado" (p. 19). Note
a semelhança desta afirmação com fórmulas mágicas e regras supersticiosas, pois até a
prescrição de que a invocação do sangue tem que ser em voz audível, está presente,
contrariando textos tais como Rm 8.26-27.

O autor indica, em sua experiência pessoal, que só se livrou da "opressão demoníaca" em


sua vida depois que começou a pedir a Deus que o cobrisse com o sangue de Jesus. Ele
descreve uma experiência pessoal que, na realidade, poderíamos chamar de apnéia
espiritual. Hinn diz ter atravessado uma situação em que "...quando orava,
experimentava pesada opressão. Tinha pesadelos e em certos momentos parecia que
algo me asfixiava". Ele afirma que já era salvo e pastor, mas mesmo assim sofria tais
"opressões" (pp. 19 e 20). Após "descobrir esta verdade", nunca mais sofreu outro
ataque deste tipo. A verdade seria "o pedir a Deus que me cobrisse com o sangue de
Jesus" (p. 20).

Fica claro, então, que no conceito de Hinn, a aplicação do sangue de Cristo não é apenas
o processo de regeneração efetivado pelo Espírito Santo na vida do crente, com a
conseqüente imputação dos nossos pecados a Cristo e de sua justiça a nós, mas trata-se
de algo mais. Representa uma segunda ou terceira experiência a ser buscada pelos
crentes, uma espécie de "conhecimento escondido" ou um "mistério" a ser discernido por
uma casta inquisitiva e mística de fiéis.

Nunca é demais lembrar que a idéia de que existem verdades "escondidas" a serem
descobertas, as quais fogem ao senso pleno e comum de uma interpretação contextual
(gramático-exegética-histórica) das Escrituras, foi a raiz das heresias gnósticas do
segundo século da era cristã. Formas de proto-gnosticismo foram combatidas
veementemente por Paulo, na epístola aos Colossenses, e por João, em sua primeira
epístola. Tal pensamento constitui também a característica inicial de muitos cultos e
seitas, tanto os históricos extintos, como os contemporâneos.

Conexão direta com Deus?

Em várias ocasiões, no livro, Hinn coloca-se em posição de diálogo com Deus. Nestes
diálogos, ele recebe mensagens e palavras específicas: "...ouvi Deus dizer-me algo... Ele
falou: ‘tire o anel do dedo dela’.... E o Senhor repetiu a frase, ainda com mais ênfase..."
(p. 43). "Certo dia o Senhor me disse: ‘Use sua autoridade como Cristão.’ ...então passei
a repreender Satanás." Na p. 95 o autor mantém um longo diálogo com Deus, no qual é
instruído sobre a certeza da salvação. Semelhantemente, nas pp. 101 e 102 o autor
relata outro diálogo seu com Deus e mais um outro extenso diálogo, mantido por um
pastor russo. Não se refere, o autor, à comunhão normal, mantida pelo crente com Deus,
em oração e na meditação da Palavra nem à iluminação que o Espírito Santo concede aos
crentes, para o entendimento das Escrituras.

Tal "conexão direta com Deus", característica incomum à maioria dos redimidos,
pareceria colocar o autor acima de qualquer questionamento, pois afinal é alvo de
revelação direta, enquanto que os meros leitores e os pobres resenhistas teriam que se
contentar "apenas" com os registros da Palavra de Deus. Somos testemunhas,
entretanto, de que tal inclinação teológica leva a um desprezo progressivo pelas
Escrituras Sagradas, que são transformadas em fonte secundária de conhecimento,
tornando os proponentes presa fácil de muitos desvios das verdades de Deus.

O poder do sangue é igual à visitação do Espírito?

O autor refere-se a um incidente na Escócia, onde a visitação "espontânea" do Espírito


ocorreu "assim que aqueles irmãos reconheceram o poder do sangue de Jesus" (p. 18).
Logo após, receberam eles a "experiência Pentecostal", e o avivamento se alastrou por
toda a Inglaterra. Uma visitação "espontânea" ligada a uma ação humana é no mínimo
uma contradição em termos. Além de limitar o Espírito, contradiz trechos tais como João
3.8.

Pactos de sangue?

Alguns pactos de sangue, entre homens, configurados por juramentos de amizade e


lealdade, e selados por cortes nos braços dos pactuantes, são relatados pelo autor, no
sentido de mostrar a importância mística do sangue (pp. 24, 32-33). Hinn erra,
entretanto, em procurar traçar um paralelo entre esses "pactos" e a "aliança de sangue
feita com Deus" (p. 24). Arbitrariamente, ele trata da questão dos holocaustos ocorridos
no período do Velho Testamento, e da circuncisão, como "alianças seladas com sangue"
(p. 32).

Conclusão

Quando o autor foge um pouco do seu tratamento atabalhoado do tema que escolheu,
chega até a desenvolver algumas lições proveitosas. No árido deserto da carência
doutrinária, encontramos aqui e ali alguns oásis de admoestações práticas.

Por exemplo: na p. 27 ele tem um bom tratamento da tentação de Jesus no deserto; nas
pp. 75-85 ele tem dois bons capítulos (10 e 11), mostrando como a redenção dos salvos
sepulta o passado, quanto à aceitação por Deus, e instruindo quanto ao custo dessa
redenção.

No cômputo geral, porém, as inferências não bíblicas do autor — por exemplo: ele
equaciona a unção do Espírito Santo com um misterioso "brilho nos olhos" (p. 122) —, as
constantes "descobertas" de pontos obscuros — por exemplo: ele "descobre" um novo
aspecto na ceia do Senhor—a comunhão física com Jesus (p. 127-128) —, as suas
contradições teológicas — por exemplo: um Arminianismo gritante é propagado na p.
117, mas na p. 118 ele faz uma magistral apresentação e defesa da segurança eterna,
enquanto prefaceia tal exposição com uma afirmação de "nossa inteira liberdade de
decisão." — e as equivocadas interpretações bíblicas — "Cristo conquistou a posição de
sumo sacerdote ao derramar seu sangue" (p. 88). "Ele só se torna o nosso advogado
depois que o sangue é aplicado ao nosso coração" (p. 89) —, que tingem a maior parte
do trabalho, tornam o livro confuso e não recomendável como base de instrução bíblica,
principalmente aos iniciantes na fé.

— F. Solano Portela Neto


FIDES REFORMATA 1/1 (1996)

The Greek New Testament, Fourth Revised Edition, eds. Barbara Aland, Kurt Aland,
Johannes Karavidopoulos, Carlo M. Martini e Bruce Metzger (Stuttgart: United
Bible Society, 1993).

Em 1993 as Sociedades Bíblicas Unidas (United Bible Societies) lançaram a quarta edição
do The Greek New Testament (O Novo Testamento Grego, UBS 4), e a vigésima sétima
edição do Nestle e Aland (NA 27). Essas duas obras contém um mesmo texto grego, com
diferença apenas no aparato crítico. O texto grego publicado pela UBS tem servido nas
últimas décadas como o texto básico para tradutores ao redor do mundo, bem como para
seminários e escolas bíblicas, na formação de pastores quanto à exegese do Novo
Testamento.

A primeira edição, que surgiu em 1966 (UBS 1 e NA 24), era o resultado do esforço de
uma equipe internacional e interdenominacional, formada em 1955, de peritos em
manuscritologia bíblica, em prover para os tradutores um texto grego básico,
acompanhado das principais variantes e de uma indicação de sua certeza relativa para
facilitar a decisão dos tradutores. Já que a grande maioria de tradutores e estudiosos do
Novo Testamento não têm conhecimento das questões complexas e sofisticadas
relacionadas com escolha de variantes do texto grego, esse aparato crítico com a
indicação da equipe internacional serviria como grande ajuda. Os tradutores e estudiosos
do Novo Testamento poderiam assim se beneficiar do conhecimento da equipe de peritos.
Uma ajuda extra foi o aparato de pontuação, contendo informações sobre a estrutura das
sentenças e de seu sentido.

Em 1968 apareceu a segunda edição (UBS 2). O aparato crítico da UBS 1 continha, além
das variantes mais importantes, e que podiam modificar o sentido do texto, outras
variantes sem qualquer importância. A UBS 2 manteve o mesmo texto grego e o mesmo
aparato, apenas com algumas modificações.

A terceira edição (UBS 3, 1975) passou por profundas revisões, tanto do texto grego
quanto do aparato crítico. Ela trouxe as seguintes inovações: (1) 250 novos manuscritos
cursivos listados, apesar de apenas 50 deles serem citados no aparato crítico; (2) 500
modificações no texto grego, a maioria envolvendo a adição de colchetes []; (3) diminuiu
o grau de certeza das variantes.

A terceira edição foi revisada em 1983. O mesmo texto grego foi preservado, enquanto
que o aparato da pontuação passou por modificações. A pontuação às vezes tem
tremenda importância exegética, como o aparato de Mateus 3.17; Marcos 1.27 e João
7.37,38 indicam.

Depois de dez anos de uso por tradutores, estudiosos, pastores e seminaristas no mundo
todo, a UBS 3 reapareceu em sua quarta edição (UBS 4, 1993). O mesmo texto grego
continuou, mas o aparato crítico, com as indicações de certeza, foi profundamente
modificado. A equipe de peritos havia chegado a conclusão que o aparato contendo as
variantes e seu relativo grau de certeza deveria ser editado de acordo com a experiência
dos tradutores que haviam usado os aparatos anteriores. Uma pesquisa entre tradutores
de quinze línguas principais revelou quais variantes tinham sido realmente úteis e quais
não tinham sido de qualquer valor. O resultado foi que cerca de 300 novas variantes
foram acrescentadas, e cerca do mesmo número de variantes foi retirado do aparato
crítico.1

O aparato contendo pontuação foi totalmente revisado na UBS 4. Com a influência do


método de "análise de discurso", a pontuação de frases e sub-frases foi deixado de lado,
e procurou-se agora marcar as divisões maiores do texto.

Creio que as reformas que apareceram no UBS 4 representam um progresso no sentido


de dar aos usuários do texto grego um aparato relevante e útil na exegese e tradução do
Novo

Testamento. A pergunta ainda é quantos deles saberão dizer qual a diferença se uma
variante aparece no Harclensis, no Evangelho Velho-Eslávico, ou em Clemente. Ou ainda,
quantos tradutores trabalhando no campo, ou mesmo pastores estudando seu Novo
Testamento grego, conhecerão o suficiente de crítica textual ou manuscritologia bíblica
para usarem de forma inteligente o aparato crítico do UBS 4 ou do NA 27.

A mudança do tipo da letra grega nos parece um retrocesso. Na UBS 3 a impressão do


texto grego é fácil de ler. O tipo foi mudado na UBS 4 para um itálico que dificulta a
leitura. Ao mesmo tempo, Nestle e Aland 27 apareceu em formato maior, e tipo maior. O
resultado é que ficou mais fácil, na minha opinião, ler a impressão do texto grego em NA
27 do que UBS 4.

Finalmente, esta nova edição perpetua alguns dos problemas ocorridos com as anteriores.
O alvo inicial da UBS era publicar um aparato crítico mais fácil de ler do que o da NA, que
é cheio de siglas, e contém bem mais variantes. Embora no geral esse alvo tenha sido
atingido, passagens como Gálatas 5.1 na UBS 4 tem um aparato tão complexo quanto o
da NA 27.2.

— Augustus Nicodemus Lopes


FIDES REFORMATA 1/1 (1996)

Neuza Itioka, A Igreja e a Batalha Espiritual: Você Está em Guerra! em Série Batalha
Espiritual (São Paulo: Editora SEPAL, 1994); 76 pp.

Este é o segundo livro de Neuza Itioka na série Batalha Espiritual editada pela SEPAL. Na
Apresentação é dito que, através dos seus livros nesta série, Itioka pretende esclarecer
alguns mal entendidos acerca do seu ministério e das suas posturas teológicas acerca de
"batalha espiritual". Itioka é apresentada como parte de um grupo cada vez mais
expressivo "que está produzindo muito no Reino de Deus ao aplicar os princípios da
teologia sobre batalha espiritual" (p.5). Porém, não é dito qual o tipo ou a orientação da
teologia que Itioka vai aplicar. Resta ao leitor descobrir através da sua leitura. A
Apresentação já antecipa o óbvio: "É possível que você não concorde com todas as
afirmações da Neuza neste livrete" (p.5).

O livrete é bem escrito e fácil de ler. Após uma breve introdução (pp.9-14), a autora trata
da posição e autoridade que a Igreja tem, dadas por Jesus Cristo, sobre os principados e
potestades, sobre os espíritos malignos (pp.15-22); em seguida, ela oferece uma análise
do mundo onde a Igreja está inserida, destacando o crescimento do ocultismo e da Nova
Era em várias partes do mundo, particularmente no Brasil. Essa leitura da situação
mundial é informada pela crença da autora de que todas as diversas manifestações de
miséria e decadência são resultado de opressão maligna (pp.23,34).

Em seguida, Itioka faz uma apresentação dos princípios que regem a luta contra os
principados e potestades (pp.35-50). Segundo ela, os principados e potestades se
alimentam da iniqüidade humana (p.36); exercem controle sobre as estruturas sociais,
econômicas e eclesiásticas, uma tese que defende baseada no trabalho de Robert
Linthicum (p.38); depois, Itioka procura dar embasamento bíblico para a idéia da
existência de espíritos territoriais (pp.43,44).

Este material é aplicado em seguida com relação a missões (pp.51-58) e ao trabalho


pastoral (pp.59-69). Nestes capítulos, Itioka ensina diversas táticas ou manobras de
batalha espiritual a serem usadas pela Igreja, como o amarrar e destronar as potestades
através da oração, identificar as entidades malignas, submeter áreas geográficas ao
senhorio de Cristo, correntes de oração, orar numa determinada área geográfica.

Abordando o trabalho pastoral, Itioka defende principalmente a tese de que crentes


podem ficar endemoninhados, e que, além da conversão, é necessário romper com os
vínculos feitos com as hostes malignas antes da conversão, através da identificação das
entidades espirituais com as quais tais vínculos foram feitos, e a rejeição vocalizada de
cada uma delas.

O livro é um exemplo bem representativo dos principais conceitos do movimento de


"batalha espiritual" tão em voga no Brasil e no mundo hoje. Um aspecto positivo é que
chama a atenção da Igreja brasileira para a realidade de que ela está, de fato, envolvida
num conflito espiritual com as hostes malignas. Um outro aspecto positivo, é a ênfase na
oração dada por Itioka.

Entretanto, o livro apenas mantém e reafirma as antigas posições de Itioka, pouco ou


nada trazendo de novo ao que já foi dito por ela em outros livros. Pessoalmente, não
fiquei mais esclarecido sobre as posições da autora, nem creio que algum possível mal-
entendido tenha sido explicado. Itioka mantém as mesmas posições básicas de obras
anteriores, em que pesem as promessas feitas na Apresentação.

O livro contém conceitos teológicos altamente discutíveis, como a possibilidade de um


crente genuíno ficar endemoninhado (pp. 29,62-64,65), o endemoninhamento de
estruturas políticas, sociais ou eclesiásticas (pp. 37, 42,52-57), ou ainda, que igrejas têm
suas próprias entidades espirituais malignas, que se alimentam dos pecados não tratados
das mesmas (pp. 36,39,40,67). A certa altura, Itioka desfecha um ataque à suficiência de
Cristo, e qualifica a confiança do crente na obra de Cristo como "ufanismo festivo" e
"triunfalismo vazio", um empecilho ao progresso da igreja (p.17). Como um bom
corretivo para essa ênfase desequilibrada de Itioka, recomendo o livro de John
McCarthur, A Suficiência de Cristo, publicado pela Fiel, especialmente o capítulo sobre
Batalha Espiritual.

Alguns pontos chaves do livro ficaram sem a necessária comprovação exegética, como a
elaborada e sofisticada teologia da ocupação geográfica por hierarquias de demônios
(pp.37,42,45-50,52,53,56) — será que podemos construir toda uma teologia de
demônios territoriais baseados nas pouquíssimas passagens bíblicas que sugerem que
alguns demônios atuam em certas áreas geográficas? Não é uma boa prática exegética
tomar variantes textuais do texto Hebraico como suporte a essa tese, como Itioka faz,
seguindo sugestão de Michael Green (pp.43,44). Para Itioka, a Igreja deveria levar a
sério o pressuposto que crentes podem ter demônios ou ficar endemoninhados, mas ela
falha em fornecer qualquer evidência bíblica (p.65). Citar experiências onde pessoas
supostamente regeneradas estavam "endemoninhadas" não é evidência persuasiva.

Uma das mais sérias deficiências do livro diz respeito às suas fontes. Em sua bibliografia
(p.71), procura-se em vão por bons livros de teologia, que vem sendo usados pela Igreja
há séculos, e que possam ter informado a autora, já que este livro é apresentado como
uma aplicação "da teologia" ao assunto. É surpreendente encontrar nas notas
bibliográficas fontes como "fatos constatados e verificados nas ministrações pessoais",
depoimentos pessoais, e testemunhos de ex-pais de santos.

É destas últimas "fontes", totalmente inaceitáveis em um trabalho que pretende ser


acadêmico, e feito por uma autora que porta o título de "doutor" em teologia, que Itioka
tira o fundamento para grande parte do seu livro. Por exemplo, a sua convicção de que
crentes verdadeiros podem ficar endemoninhados baseia-se, não em exegese das
Escrituras, mas na narrativa de várias experiências que teve (pp.29,30; 61-64).

Itioka freqüentemente usa experiências como fonte autoritativa de conhecimento. Ela


afirma, com base na sua experiência de aconselhamento, que certos demônios
"adquirem" o direito de se sentarem no pescoço das pessoas (p. 30). Com base em
testemunhos, ela afirma que as orações da Igreja diminuem o índice de criminalidade,
roubo e violência, que as entidades de uma rua podem ser atadas, etc. (pp.52,53). Uma
de suas crenças mais curiosas, a de que determinadas igrejas tem entidades malignas
que se alimentam dos pecados não resolvidos da comunidade e seus pastores, é
defendida principalmente com base em vários testemunhos (pp.67-69). O que é mais
sério, Itioka faz várias especulações sobre os demônios que dominam o Brasil baseada na
doutrina da Umbanda sobre estas entidades (p.49).

Uma outra deficiência do livro é a exegese defeituosa e forçada que Itioka por vezes faz
de algumas passagens bíblicas, como por exemplo tomar Efésios 1.20-22, que refere-se à
posição triunfante do Cristo ressurreto, e transferir sem qualquer qualificação para a
Igreja ainda vivendo na terra (militante), pp. 18,19. Ou ainda, tomar Efésios 6.18 para
provar que pela oração a Igreja pode manietar e amarrar as forças demoníacas (p.52). E
ainda, Itioka afirma que os anjos das cartas de Apocalipse (Ap 2-3) são anjos literais que
incorporam e absorvem o estado espiritual da Igreja, e que alguns deles são substituídos
por demônios, devido à decadência espiritual da comunidade que representam. Tudo isso,
baseada nas sugestões (sem exegese) de Walter Wink e R. Linthicum em Apocalipse 2-3
(pp.40,41).

Infelizmente, muito mais é afirmado no livro do que pode ser provado através de estudo
bíblico cuidadoso. E isso pode ser dito, com temor e tremor, e profunda tristeza, da maior
parte das práticas advogadas pelo movimento de "batalha espiritual". Não recomendo
esse livro aos pastores que procuram boa literatura sobre o assunto, para alimentar o
rebanho, e ensiná-lo acerca desse importante assunto, que o conflito da igreja com os
principados e potestades nos lugares celestiais.

Para os que desejam uma melhor literatura sobre o assunto, sugiro ainda, além da obra
de McCarthur citada, o livro de Martyn Lloyd-Jones, O Combate Cristão, publicado pela
PES, que é uma exegese de Efésios 6. E para os que podem ler inglês, recomendo o
excelente livro de David Powlison, recém-publicado nos Estados Unidos, Power
Encounters: Reclaiming Spiritual Warfare (Grand Rapids: Baker, 1995).

— Augustus Nicodemus Lopes

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