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Four Quartets
T. S. Eliot
Durante uma estadia na cidade de Colônia em 2000, para reunião acadêmica sobre o
impacto da mída na memória social, tive a oportunidade de visitar duas exposições
que me marcaram profundamente: a Körperwelten (Mundos Corpóreos), organizada
por Gunther von Hagens, e um conjunto de pinturas anônimas no Römisch
Germanisches Museum, a retratar a Peste Negra do século XV. A partir do sentimento
aflorado, catalisando as emoções da morte de minha mãe cerca de dois anos antes
(algo que eu havia buscado negar), resolvi ofertar, em meu retorno ao Brasil, a
disciplina “Formas e Motivos na Literatura Brasileira” focada no tema da morte, a
partir de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa e vários
poetas (especialmente Álvares de Azevedo e João Cabral de Melo Neto), no Programa
de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina.
1
Verso 490 do Livro II das Geórgicas
2
BERMAN, Jeffrey; SCHIFF, Jonathan. “Writing about Suicide”. Anderson, Charles M., Ed.; MacCurdy,
Marian M., Ed. Writing and Healing: Toward an Informed Practice. Refiguring English Studies. Disponível
em https://eric.ed.gov/?id=ED436788
extensão aos alunos universitários, são formas de cuidado. Parece-me que tais
circunstâncias censórias estão fundadas em dois modelos a tratar da influência da
comunicação na sociedade: aquele do cultivo, pela gradual acumulação de fatos pelo
indivíduo, proposto por Gerbner3 (1967), e o modelo da agulha hipodérmica, proposto
por Schramm4 (1982), capaz de transtornar as percepções da realidade e
comportamentos da sociedade. Obviamente, há uma longa história de tentativas de
segredo sobre o suicídio, evidenciando a larga preocupação com o assunto.
Lidar com o suicídio e literatura, quer como tabu quer como negação dele, como é o
caso dessa coletânea, se insere na tradição brasileira recente de uma crítica literária de
índole temática. Claro está que os primeiros textos estavam mais fundados nas
questões da raça, da cor, da pobreza, ou talvez, em síntese, das origens e motivações
nacionais. Vários autores, desde o Modernismo, criaram uma esteira de observação
macroscópica do universo literário. Importa menos o autor ou o momento,
prevalecendo as relações de causa e efeito. Mais recentemente, algumas abordagens
também pinçaram a nossa condição subalterna ou subdesenvolvida, que tanto
preocupou o romance regionalista de 30, como é o caso de David Brookshaw e de
Roberto Schwarz. No advento de uma crítica universitária mais engajada e mais
provocativa, as figuras femininas e feministas, a literatura gay, a violência contra
negros e pobres (ou negros pobres), no conjunto, mostram análises e interpretações
ideologicamente marcadas. Por outro lado, surgem tentativas de destaque de
marginalidades mais distantes, como a loucura e os hospícios, os males da saúde
contemporânea, e, por fim, o suicídio.
A parte inicial desse livro, sob a tutela de William André, Gustavo Ramos de Souza, Ana
Cecília de Carvalho e Rodolfo Rorato Londero, organizam, nos limites possíveis, a
presença do suicídio na literatura, o contexto do escritor suicida e sua motivação
psicanalítica. Muito da discussão introdutória funda-se na obra seminal de A. Alvarez,
com pinceladas de Maurice Blanchot, Albert Camus, Jacques Derrida e Jacques
Rancière; não poderia ser de outra forma, dada a sua condição já estabelecida.
Interessantemente, André aponta as abordagens amplas a tratar de muitos autores e
obras, partindo para um leque de especificidades que chama de operadores de leitura,
a fazer um punctum em obras e autores específicos. De ordem mais técnica, salta aos
olhos o material intitulado “Sobre o Conceito do Suicídio”, a que voltarei mais adiante.
Recomendo, com particular destaque, a visitação feita por Ana Cecília Carvalho ao
cânone dos escritores suicidas. Escrever pode ser uma solução, criar é também existir
ou não morrer. Há um perigo, obviamente, tentar usar do texto para encontrar a
3
GERBNER, G. “An Institutional Approach to Mass Communications Research.” In: Lee Thayer, ed.
Communication: Theory and Research: Proceedings of the First International Symposium. Springfield, Ill.:
Thomas, 1967.
4
SCHRAMM, W.; PORTER, W. E. Men, Women, Messages and Media. 2ª ed. New York: Harper & Row,
1982
motivação do suicida, algo por demais denso e indevassável. Os argumentos de
Carvalho fundam-se na teoria freudiana da sublimação, tornando-se matéria de
dúvida, logo de conhecimento acerca da escrita criativa, mesmo que disfuncional. A
fazer um decalque de sua proposição final, escrever é um ato a provocar o término da
vida, pois que exaurida.
Londero trata de assunto tangente àquilo que busquei como primeiro ponto dessa
digressão: a escrita literária é menos poluente e mais explicativa da emoção? Se em
outras áreas, usamos da ficcionalidade como forma de viver algo sem ter de ser, o
fingimento pessoano, no suicídio é o silêncio a única saída, ou há de se tratar do
assunto, falar, discutir, desta forma sentir-se menos solitário e menos sozinho? É pela
percepção estética que nos conhecemos, entendemos quem somos, mesmo em face
de estados depressivos ou melancólicos.
5 HIGONNET, Margaret. “Frames of female suicide”. Studies in the Novel, vol. 32, n. 2, summer 2000, pp.
229-242.
6
BERMAN, Jeffrey. Surviving Literary Suicide. Amherst: University of Massachussets Press, 1999.
resilientemente se mostra no que se sente deixado. Somos todos deixados de uma
forma ou de outra por aqueles que se foram, daí o adágio pesado elegíaco do ubi sunt
qui ante nos fuerunt. Quando pensamos triste e saudosamente naqueles que se foram,
precisamos perceber que também fomos, deixamos de ser, nascemos com outra
figuração, aquela de carregar, como Teresa Batista ou Paulo Honório, os mortos. Nada
mais a propósito que a expressão em Lucas 9: 59-62 – que os mortos enterrem seus
mortos. Essa consciência de que há aqueles que se supõem vivos, entretanto mortos,
na fala de Cristo, nos agride frontalmente por termos aversão à noção de nossa
própria finitude. Entretanto, anotando a ilustração dada a mim por Orna Levin, não há
aí uma sobrevivência, em geral termo que denota a culpa daqueles que passaram por
circunstâncias absurdas, quer em acidentes quer em holocaustos, quando seguem
vivendo quando não mais deveriam viver. Insisto na figura do deixado pela sensação
do vazio provocado, na ordem natural das coisas, quando a primavera também resulta
na aceitação da morte do que não pode mais viver, como se lê no trecho de “The
Burial of the Dead”, a segunda epígrafe desse texto.
A outra figura psicológica importante, ainda que rara em termos literários, é daquele
que tenta o suicídio e não morre. Quer dizer, pária, caminha com o estigma do
insucesso e o pecado de ter atentado contra a própria vida e contra Deus, se aceito
esse último contexto. Essa culpa imensa, que vemos em alguns textos literários
daqueles que tentaram o suicídio várias vezes até ter sucesso, os transtorna, como
mortos que são e não são, distanciados da vida, marcados pela tristeza e pelo
abandono, inclusive e principalmente familiar.
A segunda e mais larga parte desse livro, com capítulos de Gabriel Pinezi, Lara Luiza
Oliveira Amaral, Renan Pavini, Gustavo Ramos de Souza, Ricardo Augusto Lima,
Adriana Soares de Almeida e Luzia Aparecida Berloffa Tofalini, é uma recolha e uma
visitação de autores e obras, alguns já muitas vezes citados por esse matiz, o do
suicídio como solução, mesmo que moralmente reprovável para muitos de nós. As
ilações e apontamentos, apesar do cânone, têm o poder de discutir a qualidade da arte
enquanto exercício de futurição, quer dizer, de enfrentamento da morte. Claro que há
novidades nas páginas seguintes, mas noticiá-las aqui significa talvez ler erroneamente
a sua capacidade significativa. Essa condição da visita feita pelos autores marca um
elemento historiográfico importante – a aura de orgulho e de admiração pelas obras
de escritores que cometeram o suicídio. Mais que a vida ceifada antes da hora, quando
diante de genialidades como foi o caso da doença de Álvares de Azevedo e do acidente
de Mário Faustino, o suicídio de escritores transtorna o cânone literário pela qualidade
singular, tanto pelo fim de vida inesperado, abrupto e devastador quanto pela
profundidade psicológica que muitos trouxeram para seus textos, com é o caso de
Cesare Pavese e Sylvia Plath.
Fico ao cabo com o título desse texto, não há mais que o nada, mas isso não quer dizer
que seja ruim – é uma conclusão, a vida com sentido seria vivida. Albert Camus (2010:
42) diz que “um homem sem esperança e consciente de sê-lo não pertence mais ao
futuro”7, aquela condição em que o homem se vê vazio. Talvez seja um argumento que
motiva a contemplação do suicídio como apenas um episódio, mas que dói demais em
nós que aqui estamos.
7
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.