FILOLOGIA E LITERATISMO
(CRITICA E SISTEMA)
A iiteratura é produto cultural moderno. Assim, na Antiguidade, nao
houve literatura. Nao ha «Literatura Antigas, a nfo ser que a palavra
dlteraturay cmodamente designe um conjunto de escritos, circunstancial-
mente qualificado, e, entdo, seja quase o sinénimo de «bibliografias, —
ou que pretenda significar a comunidade dos géneros denominados litera-
rios, permanecendo, neste caso, o seu conceito, inerte dentro de um cir~
culo vicioso.
Ascender, da representag%o vaga, ao conceito rigoroso ; inferir, da
existéncia eventual, a esséncia necessiria da literatura, exigira, antes de
tudo, a possibilidade de determinar a «realidades, digamos assim, do
literdrio. Deparam’se-nos, porém, em lugar que niio compensa, histérias
da literatura ou criticas literdrias, que ndo preenchem a falta daquela
indispensdvel determinagio.
A hist6ria da literatura, — de um povo, de uma época, de todos os
povos e todas as épocas, — deixa sempre chegar & extravagincia 0 con-
ceito de literatura. Quando muito, define os géneros «épico», «dramitico»,
diricos, eret6rico», chistricos, eromanescon, filoséficos, etc.. Define por-
tanto, a literatura, por assim dizer, como o «lugar comums de todos esses
géneros. O «comum» é a «letra»
Nenhum mal-entendido proviria da confusa comodidade do pré-con-
ceito histérico-literario, se, modernamente, nio tivesse surgido o mais con-
fuso e mais cémodo pré-juizo critico-literdrio.
A critica literaria 6 funcao do aliteratismo».
Denominamos dliteratistay a infundamentavel traslacgio da litera-
tura, — fenémeno cultural moderno, repetimos, — para além do respectivo
circulo de existéncia ; ao sistema, segundo o qual se adjectiva de literdrias,
auténticas expresses da consciéncia humana. Por outras palavras, deno-
minamos «literatismo» 4 infundamentada superlagio da critica literéria
a esferas gnoseolégicas, As quais sé a verdadeira filologia de dircito e de
facto, pode ascender, — nomeadamente, ao contetido noético das expres-
sbes escritas da consciéncia religiosa, poética e filos6fica.
Tal como 0 «cientismo», assim o «literatismo» sinala uma perigo-
sissima vertente da cultura moderna, que a especulacio auténtica deverd
evitar, sob pena de incorrer nos mais funestos equivocos.
Esta vertente cultural segue paralelamente 4 de uma ilus6ria faci-
lidade de acesso & verdadeira ciéncia. Deste ponto de vista, o jornalismo
54¢ a imprensa podem e devem ser considerados como os progenitores ime-
diatos da literatura. A maior restri¢&io do circulo dogmatico, dentro do
qual se move a critica literdria da obra literdria, parece, efectivamente,
definir-se pela inversa da progressiva vastidio do piiblico létrado: a exten-
so em superficie exige a restrigdo em profundidade.
Repare-se que nfo julgamos, nem condenamos, 0 exercfcio da acti-
vidade critico-literaria, Seria isso tio pretencioso e initil como pretender
abolir a licenga de opinitio, Tao pouco condendvel é o juizo critico, como
a divulgacdo cultural ou a propaganda politica. Tentamos, sim, compreen-
der num género, todas estas espécies de actividades culturais ou politicas ;
procuramos delimita-las dentro do cfrculo mental que justifica o respectivo
exere(cio. Assim, quanto a literatura, apenas interessa aludir 4 deficiéncia
Iogica dos critérios (?) de comparagao, de influéncia, de reaccao, de gosto
€ de outros congéneres, usados pela critica; e, mais interessa denunciar
a opacidade de qualquer destes critérios, singularmente, ou de todos eles,
conjuntamente, desde que a visio pretenda atingir o principio e o funda-
mento de obras tais como a epopeia de Homero, Milton e Camdes, ou a
tragédia de Euripides e de Shakespeare.
$6 a filologia, entendida como ciéncia, compete desocultar os con-
ceitos ¢ revelar as ideias, viventes nas mais belas e sublimes expresses
verbais da consciéncia humana.
Nao essencialmente, mas, apenas, gradualmente, distinguimos, pois,
a filologia da filosofia. A filologia nfio é menos que filosofia in muce, nem
a filosofia ¢ mais que filologia in fructw. Como na semente se fecha o ciclo
vital, involuindo agora 0 corpo vegetativo na finitude obscura da terra,
para logo evoluir na infinitude Iuminosa do céu, assim, no conceito se
fecha o ciclo racional, ingressando agora a consciéncia na penumbrosa
implicagiio da detras, para logo regressar & luminiscente explicagio do
«cspfritos.
B, pois, manifesto que um método filolégico floresce em sistema
filoséfico, e que um sistema filos6fico radica em método filolégico. E, por
reversibilidade ciclica, também é manifesto que todo 0 método filolégico
deve a existéncia actual & actual ou possivel esséncia de um sistema filo-
séfico. ‘:
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A actividade critica, em Portugal exercida, no intuito de penetrar
no Amago conceptual das obras de poetas contemporaineos, tais como Fer-
nando Pessoa, Teixeira de Pascoais e José Régio — para nio falar senfio
de alguns dos maiores, em elevagio ou depressio ideal, — oferece aspec-
tos que exemplificam claramente as palavras que precedem.
55Nunca uma critica a-filo-Idgica, abordard as obscuras e longinquas
regides, as ignotas terras do espirito, da alma e do corpo, que esses poetas
foram descobrir, mas deixaram encobertas. O logos dorme ainda, emba-
Jado ao ritmo, ou jaz entorpecido na cadéncia do verso. Desperti-lo, —
cis a missfio que jamais cumpriri a andlise comparativa, a pesquisa de
influéncias, a deniincia de reaccdes ao ambiente ou a questo de bom-gosto.
ee
A actividade filolégica 6 0 tinico processo de assimilagao viva da
ideia verbalmente expressa. Gragas ao sistema filoséfico sub-agente, infe-
rird a filologia, da expresso poética o cerne noético, da palavra escrita,
mais acess{vel, a menos acessivel ideia intufda. Gragas ao sistema, — pois,
sistemdtico 6, necessiriamente, todo o pensar.
Mas, a critica literdria n&o confia em sistemas...
Tal desconfianga provém de um mal-entendido de que nenhum
auténtico sistema filos6fico é responsdvel. E facilmente se depreende do
escrito e do dito acerca de «sistemas filoséficos», que a responsabilidade
cabe, de inicio, a uma obscura e obscurantista confusdo do critico.
‘Ao que parece, entende-se vulgarmente por «sistema» filoséfico,
a rigida, sélida, inabaldvel disposi¢do das respostas a toda a posstvel ou
actual problemdtica, em torno de uma pré-concebida ideia.
Ora, o sistema, o verdadeiro sistema filosdfico, ainda que pese ao
cémodo e irreflectido pré-conceito do critico... nfio é nada disso ! Isso seria
antes a morte do sistema. F certo que o esqueleto é a parte mais rigida,
s6lida e inabalavel, do corpo ; mas é também a menos viva, a que mais
resiste & corrupg%o, que ¢, na vida, a outra face da gerago.
O sistema € a forma vivente da actividade especulativa e, como
tal, aspecto, ou figura organizada da matéria sensivel, inteligivel e razod-
vel.
Estranhamos, por isso, a posig&o anti-sistematica de escritores mais
‘ou menos permedveis a nogées de raiz evitalistay, de-fronte ao anunciado
e as solugdes do problema critico-literario.
‘A nfo ser que tal posic&io esteja focada noutro centro de interesses,
nomeadamente, no da polftica cultural ou cultura political, donde talvez
a actividade critica vem descendo ao jornalismo pela inclinada vertente
pragmatica... A nao ser que o anti-sistematismo seja, de inicio, «sistemas
de combate.
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