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CDD: 100
IMAGENS DO OUTRO NA FILOSOFIA:
O DESAFIO DA DIFERENÇA1
Sílvio Gallo2
Resumo
Este artigo tem por objetivo problematizar a tematização do outro pela Filosofia. Dialogando com
imagens do cinema e da televisão, procura identificar quais as imagens ou os conceitos do outro,
produzidos na história da Filosofia. De forma esquemática, apresenta as imagens do outro como
bárbaro (Aristóteles); exótico (Montaigne); civilizado (Voltaire); inferno (Sartre), para, ao final,
ensaiar uma “não-imagem” do outro como diferença radical, proposta pela filosofia da diferença de
Deleuze.
Abstract
This article aims to discuss the theme of the other at Philosophy. Dialoguing with images of cinema
and television, it seeks to identify the images or concepts of other produced in the history of
Philosophy. In a schematic form, it presents the images of the other as barbarian (Aristotle), exotic
(Montaigne), civilized (Voltaire) hell (Sartre), for at the end to rehearse a “no-image” of the other as
radical difference, proposed by the philosophy of the difference of Deleuze.
DUAS IMAGENS
1
Texto originariamente preparado para a mesa-redonda “Contribuições para se pensar a Educação: o outro da
história e da filosofia”, no V Seminário Internacional As Redes de Conhecimentos e as Tecnologias: os outros
como legítimo outro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, junho de 2009. O texto foi revisto para a
presente publicação.
2
Professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas e Pesquisador do CNPq.
Coordenador do DiS – Grupo de Estudos e Pesquisas Diferenças e Subjetividades em Educação – FE-Unicamp.
E-mail: gallo@unicamp.br – Campinas, SP, Brasil.
3
Lost é uma série criada em 2004 por Jeffrey Lieber, J.J. Abrams e Damon Lindelof, produzida por ABC
Studios, Bad Robot Productions e Grass Skirt Productions. Em 2010 foi exibida a sexta e última temporada. No
Brasil foi e tem sido exibida na TV por assinatura pelo canal AXN. A TV Globo já apresentou algumas
temporadas.
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Com o passar dos episódios, os personagens vão se delineando e, uma surpresa: aos poucos,
vão sendo apresentados sujeitos com nomes sugestivos, como John Locke, Rousseau, David
Hume, Jeremy Bentham, Bakunin...
Intrigas pretensamente filosóficas à parte, a imagem que quero destacar com a
lembrança desta série é que, num dado momento, os sobreviventes percebem que não estão
sozinhos na ilha. Crianças começam a sumir; um sujeito do qual ninguém se recorda ter visto
no avião está entre eles; murmúrios são ouvidos por entre a vegetação. Sem saber de quem se
trata, a caracterização é imediata: trata-se dos “outros”, isto é, aqueles que não somos nós. E
os outros só podem ser nossos inimigos. Instaura-se a guerra.
Nas cinco temporadas até aqui exibidas pela série, mantém-se a tensão entre o grupo
dos sobreviventes e “os outros”. Nunca se sabe quem são efetivamente os outros, quais são
suas intenções, se eles são bons ou maus. Sabe-se, apenas, que eles não podem ser confiáveis.
Corte.
Uma nova imagem: em um belo filme de 2004,4 o diretor M. Night Shyamalan nos
apresenta uma outra situação inquietante. A ação se passa numa pequena vila rural norte-
americana, aparentemente no final do século dezenove. Esta vila é rodeada por bosques e
neles habitam criaturas estranhas e perigosas, que os adultos denominam “aqueles sobre os
quais não falamos”. Quando começam a aparecer animais mortos e estranhos sinais pintados
nas portas, é um indício de que as criaturas estão invadindo a vila. Os aldeões evitam a cor
vermelha, a “cor má”, que atrai “aqueles de quem não falamos” e usam amarelo, a “cor boa”,
para espantá-los, para mantê-los a distância.
Descobrimos depois que as criaturas são uma farsa. Os adultos, que fundaram a vila
para se isolar da violência do mundo, não querem que suas crianças atravessem os bosques e
conheçam o mundo lá de fora, querem protegê-las a qualquer custo. Por isso inventaram
“aqueles sobre os quais não falamos”, como forma de garantir a obediência pelo medo.
Novo corte.
Estas duas imagens, da televisão e do cinema, são emblemáticas de como
percebemos o outro, de como nos relacionamos com o outro. Uma primeira reação é a de
medo frente ao desconhecido: o outro é aquele que não sou eu, e eu nunca posso saber o que
ele pensa, o que deseja, como agirá ou como reagirá às minhas ações. O outro é aquele em
quem não posso confiar; o outro é aquele que me faz perceber que é sempre melhor atacar,
4
A Vila (The Village, Touchstone Pictures, 2004), roteiro e direção de M. Night Shyamalan. O livro
Fundamentalismo e Educação – A Vila (2009), organizado por mim e por Alfredo Veiga-Neto reúne ensaios
sobre o tema fundamentalismo na educação, motivados pelo filme de Shyamalan.
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evitando, assim, ser atacado. Em meu pavor frente ao outro, é melhor matá-lo, eliminá-lo,
permanecer num mundo em que existamos apenas eu e meus semelhantes, apenas aqueles em
quem se possa confiar.
Mas o outro é também uma máscara. O outro é também aquele que me habita, o
outro de mim mesmo. O outro é aquele em quem me torno, aquele que se torna eu. O outro é
meu próximo, sou eu mesmo. Como, então, conviver com este outro?
A série de televisão e o filme de Shyamalan são emblemáticos de nossa percepção e
de nossa relação com os outros.
Sendo o outro uma evidência, a Filosofia preocupou-se com ele desde muito cedo.
Vários filósofos, ao longo da história, pensaram o outro. Vejamos, então, algumas imagens do
outro que pontuam a história da Filosofia. Quem é este outro? Como foi tematizado?
Uma primeira percepção do outro levou a Filosofia grega a caracterizar os demais
povos como bárbaros, incultos, justamente por não dominarem a razão no nível que os
próprios gregos o faziam. Na modernidade, vimos uma tentativa de aceitação do outro, nem
que fosse como figura exótica. Depois, seu reconhecimento como civilizado, como uma outra
civilização. No âmbito da filosofia da consciência, o outro foi tratado como representação,
sempre uma representação do eu. Uma filosofia da diferença, por fim, pôde fazer o outro
emergir como diferença radical, como definidor das possibilidades. Acompanhemos algumas
peças deste quebra-cabeça, tentando construir um mosaico de imagens do outro, produzidas
na história da Filosofia.
ARISTÓTELES E OS BÁRBAROS
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Vemos, assim, que, para os gregos, os bárbaros não são exatamente uma ameaça,
pois eles, gregos, são “naturalmente” superiores, o que é confirmado, segundo o filósofo,
inclusive por sua posição geográfica, que permite que participem das duas virtudes: a
coragem daqueles dos climas mais frios e a inteligência daqueles dos climas mais quentes. Os
gregos seriam os mais bem “temperados”, que poderiam, assim, dominar todo o mundo, caso
pudessem estar unidos. Os outros, os bárbaros, são aqueles para os quais falta alguma das
virtudes possuídas pelos gregos; a uns falta a coragem, a outros falta a inteligência.
Caracterizar o outro como bárbaro constitui-se, assim, numa forma de diminuí-lo, de
excluí-lo do círculo daqueles que podem ocupar o poder.
MONTAIGNE E O EXÓTICO
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No mesmo ensaio, comenta o fato de que alguns desses habitantes do Novo Mundo
estiveram visitando a Europa e, de seu ponto de vista, estranharam os costumes dos anfitriões.
Três dentre eles (e como lastimo que se tenham deixado tentar pela novidade e
trocado seu clima suave pelo nosso!), ignorando quanto lhes custará a tranquilidade
e felicidade o conhecimento de nossos costumes corrompidos, e quão rápida será sua
perda, que suponho já iniciada, estiveram em Ruão quando ali se encontrava Carlos
IX. Entreteve-se o rei com eles, longamente; mostraram-lhes como vivíamos no
cotidiano; ofereceram-lhes grandes festas; ensinaram-lhes como era uma cidade
grande. Alguém lhes havendo perguntado mais tarde o que pensavam da cidade e o
que ela lhes tinha reservado, citaram três coisas. Esqueci a terceira, e o lamento, mas
lembro-me das duas outras. Disseram antes de tudo que lhes parecia estranho tão
grande número de homens de alta estatura e barba na cara, robustos e armados e que
se achavam junto ao rei (provavelmente se referiam aos suíços da guarda) se
sujeitassem a obedecer a uma criança e que fora mais natural se escolhessem um
deles para o comando. Em segundo lugar observaram que há entre nós gente bem
alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens
emagrecidos, esfaimados, miseráveis, mendigam às portas dos outros (em sua
linguagem metafórica a tais infelizes chamam de “metades”); e acham
extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se
revoltarem e incendiarem as casas dos demais. (MONTAIGNE, 1984, p. 105)
Vemos, assim, que Montaigne faz uso dos outros, os canibais habitantes do Novo
Mundo, para fazer a crítica aos costumes e situações europeus. Um povo chamado de
“bárbaro” estranha que um povo dito “civilizado” seja governado por uma criança, quando
tem tantos guerreiros grandes e fortes. Mas, mais do que isso, se espantam com o fato de
haver tanta desigualdade: como alguns podem ser homens “inteiros”, quando tantos outros se
limitam a ser “metades” de homens, e como estas metades não se revoltam. Como pode a
civilização estar fundada na desigualdade e na exploração dos semelhantes, sendo os
“selvagens” que se espantam com isso?
O filósofo conclui seu ensaio sobre os canibais, dizendo que chegou a conversar
bastante com um deles, considerado um rei ou um chefe, apesar dos problemas de tradução
que teve com o intérprete. E, após relatar essa conversa sobre como o estrangeiro exercia sua
liderança, o narrador exclama: “tudo isso é, em verdade, interessante, mas, que diabo, essa
gente não usa calças!” (MONTAIGNE, 1984, p. 106).
O que vemos aqui, portanto, é o outro como exótico, como diferente, como curioso.
Um outro que nos serve justamente para olharmos para nós mesmos e fazer a crítica de nossa
cultura. Se o outro é este que nos faz olhar nossas próprias mazelas, ele, no entanto, também
tem as suas. Como pode alguém que me faz ver as injustiças de meu país não usar calças?
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os chineses, escreveu Voltaire (2004, p. 100) que “...nada [...] impede porém que há quatro
mil anos, quando sequer sabíamos ler, já estivessem os chineses de posse de todas as coisas
essencialmente úteis de que fazemos alarde”. Segundo ele, o governo chinês era o melhor que
o mundo já conheceu, posto tratar-se de um Estado pacífico e harmonioso, baseado na
identidade da ordem pública com a organização familiar5. A sua conclusão é a de que
devemos respeitá-los em sua antiguidade, como uma civilização distinta da nossa, mas nem
por isso menos importante.
Deixemos, pois, nós que somos de ontem, nós descendentes dos celtas, nós que mal
acabamos de surribar as florestas de nosso selvagem habitáculo, deixemos os
chineses e hindus desfrutarem em paz de seu maravilhoso clima e de sua
antiguidade. Sobretudo deixemos desta história de xingar de idólatras o imperador
da China e o subabe do Decã. (VOLTAIRE, 2004, p. 99-100)
5
Miranda (2006, p. 44) cita a seguinte passagem do Ensaio sobre os costumes: “O respeito dos filhos por seus
pais é o fundamento do governo chinês. A autoridade paterna jamais é enfraquecida [...] Os mandarins letrados
são considerados os pais da cidade e das províncias e o rei o pai do império. Essa ideia, enraizada nos corações,
faz desse Estado uma família”.
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existencial. Deter-me-ei em apenas um autor: justamente aquele que afirmou que “o inferno
são os outros”, Jean-Paul Sartre6.
Para Sartre, eu sempre sou para o outro. Se, para o cartesianismo, que inaugurou na
modernidade uma “filosofia da consciência”, a chave estava na interioridade, para a
fenomenologia a chave está na exterioridade. Explico: Descartes estabeleceu sua “cadeia de
verdades” como exercício de pensamento dedutivo. Exercendo o mecanismo da dúvida sobre
tudo o que há e que se conhece, descobriu na interioridade da consciência a certeza da
existência, pelo exercício do pensamento. E tudo o mais foi deduzido desta “verdade
originária”. Na fenomenologia, por outro lado, a consciência se percebe no ato de perceber o
outro – um objeto, uma coisa, outra consciência. O primeiro movimento é para fora: a
percepção do mundo; nesta percepção, a consciência se percebe percebendo e, só então, volta-
se para a interioridade, em busca de seu ser. Mas, para a fenomenologia – e para Sartre, em
especial – não há interioridade da consciência: ela consiste justamente neste ato de sair de si
para perceber o outro. A consciência – que Sartre, hegelianamente, chamada de Para-Si,
enquanto o corpo, os objetos físicos são o Em-Si –, portanto, é essencialmente a relação com
o outro.
As coisas se invertem. Se, no cartesianismo, o outro era uma função do eu, da
consciência – um conceito, como afirmei antes –, na fenomenologia de Sartre, o eu é uma
função do outro. A consciência descobre-se a si mesma olhando o outro; descobre-se presa do
outro, descobre-se objetivada pelo outro. Que resta, então, de mim e de minha liberdade, se o
outro me captura, se é o outro quem, mais do que eu, sabe quem sou? É neste sentido que
Sartre afirma que o outro sempre leva vantagem sobre o eu: “...o outro me olha e, como tal,
detém o segredo de meu ser e sabe o que sou; assim, o sentido profundo de meu ser acha-se
fora de mim, aprisionado em uma ausência; o outro leva vantagem sobre mim [...] Sou
experiência do outro: eis o fato originário.” (SARTRE, 1999, p. 453).
Assim, na filosofia sartriana, o outro tem um destaque imensamente maior que na
filosofia cartesiana, uma vez que é apenas através do outro que uma consciência – um eu –
pode vir a ser. Mas isto está longe de significar uma positivação do outro; como já vimos, o
6
Em tradução livre, sem qualquer pretensão literária: “GARCIN: – O bronze... (Ele o acaricia.) E assim, eis o
momento. O bronze está aqui, eu o contemplo e compreendo que estou no inferno. Eu vos digo que tudo foi
previsto. Eles previram que eu me deteria diante desta lareira, pressionando minha mão sobre este bronze, com
todos estes olhares sobre mim. Todos estes olhares que me devoram... (Ele se vira bruscamente.) Ah! Vocês são
apenas dois? Eu os imaginava muito mais numerosos. (Ele ri.) Bem, isto é o inferno. Eu jamais teria acreditado...
Vocês se lembram: o enxofre, a fogueira, a grelha... Ah, que piada. Não há necessidade de grelha: o inferno são
os Outros.” (SARTRE, 1991, p. 93).
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Tudo o que vale para mim vale para o outro. Enquanto tento livrar-me do domínio
do outro, o outro tenta livrar-se do meu; enquanto procuro subjugar o outro, o outro
procura me subjugar. Não se trata aqui, de modo algum, de relações unilaterais com
um objeto-Em-si, mas sim de relações recíprocas e moventes. As descrições que se
seguem devem ser encaradas, portanto, pela perspectiva do conflito. O conflito é o
sentido originário do ser-Para-outro. (SARTRE, 1999, p. 454).
Sou possuído pelo outro; o olhar do outro modela meu corpo em sua nudez, causa
seu nascer, o esculpe, o produz como é, o vê como jamais o verei. O outro detém um
segredo: o segredo do que sou. Faz-me ser e, por isso mesmo, possui-me, e esta
possessão nada mais é que a consciência de meu possuir. E eu, no reconhecimento
de minha objetividade, tenho a experiência de que ele detém esta consciência. A
título de consciência, o outro é para mim aquele que roubou meu ser e, ao mesmo
tempo, aquele que faz com que “haja” um ser, que é o meu. (SARTRE, 1999, p.
454-455).
Eis a essência da contraditória relação com o outro: ao mesmo tempo que ele é
aquele que me faz ser, ao capturar-me com o olhar, ele é aquele que rouba meu ser, ao
transformar minha subjetividade em objetividade. Sartre identifica dois níveis de atitudes
possíveis para com o outro: primeiramente, o amor, a linguagem, o masoquismo. Em segunda
instância, a indiferença, o desejo, o ódio, o sadismo. Não é objetivo deste artigo elucidar cada
uma dessas atitudes em relação ao outro; cumpre-me apenas afirmar que, para Sartre, todas
elas são fracassadas, pois não dão conta de resolver o conflito da relação do eu com o outro.
Ao contrário, o que faz cada uma dessas atitudes é reforçar a contradição e o conflito dessa
relação.
A questão básica do conflito é que a “aceitação” do outro significa o apagamento de
minha subjetividade. Na medida em que a consciência não encontra em sua interioridade – a
subjetividade absoluta, em registro cartesiano – o fundamento de seu ser, sua identidade, ela
vai encontrá-la projetada no reconhecimento pelo outro. É na captura que o outro faz da
consciência que esta se descobre idêntica a si mesma; mas a descoberta da identidade está,
então, na objetificação. Um “eu” só pode ser idêntico a si mesmo quando reconhecido,
capturado por um “outro”. Só que, em tal captura, a subjetividade do eu torna-se objetividade
para o outro.
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Para finalizar esta passagem pela fenomenologia sartriana, apenas um destaque para
as atitudes de indiferença com o outro e de tolerância do outro. Sartre escreveu que “há
homens que morrem sem sequer suspeitar – salvo em breves e aterradoras iluminações – do
que é o Outro” (SARTRE, 1999, p. 475). Isto se deve ao fato de que uma das atitudes frente
ao outro, tentando apagar os efeitos dessa contraditória relação, é a de indiferença, que
significa estar cego ao outro. Sigamos sua descrição:
É esta atitude que denominaremos indiferença para com o outro. Trata-se, pois, de
uma cegueira com relação aos outros [...] Quase não lhes dou atenção; ajo como se
estivesse sozinho no mundo; toco de leve “pessoas” como toco de leve paredes;
evito-as como evito obstáculos; sua liberdade-objeto não passa para mim de seu
“coeficiente de adversidade”; sequer imagino que possam me olhar. Sem dúvida,
têm algum conhecimento de mim, mas este conhecimento não me atinge: são puras
modificações de seu ser que não passam deles para mim e estão contaminadas pelo
que denominamos “subjetividade padecida” ou “subjetividade-objeto”, ou seja,
traduzem o que eles são, não o que eu sou, e consistem no efeito de minha ação
sobre eles. Essas “pessoas” são funções: o bilheteiro nada mais é que a função de
coletar ingressos; o garçom nada mais é que a função de servir os fregueses [...] Em
tal estado de cegueira, ignoro concorrentemente a subjetividade absoluta do outro
enquanto fundamento de meu ser-Em-si e de meu ser-Para-outro, em particular de
meu “corpo Para-outro”. (SARTRE, 1999, p. 474).
É possível, então, passar pelo mundo ignorando o outro, sendo indiferente a ele; mas
isto é uma espécie de autoengano, ou aquilo que o próprio Sartre denomina má-fé, pois, no
fundo, sabemos que o outro está ali, que o outro nos olha, nos captura, nos objetifica.
Tampouco esta atitude resolve o problema do conflito com o outro: ela o escamoteia, o
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esconde, mas, como o outro permanece ali, o conflito também permanece, sem condições de
ser resolvido.
Por outro lado, um dos ícones de nossos dias, quando se fala, por exemplo, em
multiculturalismo, é a atitude de tolerância. Para o convívio democrático, dizem seus
defensores, é preciso compreender o outro, tolerar o outro em sua diferença. Para Sartre, isso
não passa de uma outra tentativa – também esta frustrada – de resolver o problema que o eu
tem com o outro. Uma atitude de tolerância não significa o respeito à liberdade do outro, mas
justamente seu afrontamento, na medida em que escolho, por mim e por ele, viver em um
mundo “tolerante”.
Não se deve supor, porém, que uma moral da “permissividade” e da tolerância iria
respeitar mais a liberdade do outro: uma vez que existo, estabeleço um limite de fato
à liberdade do Outro, sou este limite, e cada um de meus projetos delineia este limite
à volta do Outro: a caridade, a permissividade, a tolerância – ou toda atitude
abstencionista – são projetos meus que me comprometem e comprometem o outro
na sua aquiescência. Realizar a tolerância à volta do Outro é fazer com que este seja
arremessado à força em um mundo tolerante. É privá-lo por princípio dessas livres
possibilidades de resistência corajosa, de perseverança, de afirmação de si, que ele
teria oportunidade de desenvolver em um mundo de intolerância. (SARTRE, 1999,
p. 507-508).
Em Mulholland Drive7, David Lynch nos apresenta uma visão inquietante do outro,
se tomamos as relações do outro com a subjetividade. Neste filme estranhamente belo, o
principal personagem é o lugar, não os sujeitos. É Los Angeles e, ali, Mulholland Drive, local
– que rouba a cena – onde estranhas transformações acontecem. Se o cinema é uma fábrica
7
Mulholland Drive (Cidade dos sonhos, na tradução brasileira), filme escrito e dirigido por David Lynch.
Produção de Les Films/Alain Sarde, 2001.
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de ilusões, a subjetividade é também uma ilusão. Se o eu é uma ilusão, o que dizer do outro?
No filme de Lynch, eu e outro se embaralham, numa perda de identidade sem fim, em que
tudo é virtualidade.
Dufour, comentando este filme, afirma:
Compreendemos que Mulholland Drive não apresenta um tempo linear, isto é, real
ou efetivo, mas unicamente uma sucessão de virtualidades, de tempos que se opõem
– logo, não um único tempo, mas diferentes temporalidades que se entrecruzam e
talvez se encontrem sem poder jamais serem unificadas, ao modo não do muito
demonstrativo Smoking-No Smoking (A. Resnais, 1993), no qual os tempos não se
misturam, mas de L’Année dernière à Marienbad. (A. Resnais, 1961) (DUFOUR,
2008, p. 89)
E, em seguida, o autor toma um filme anterior de Lynch, Lost Highway, para afirmar
que
a temporalidade destes dois filmes é análoga a um espaço em que, a partir de um
ponto, todas as vias tornam-se possíveis, abertas, de modo igual, sem que alguma
tenha um privilégio – à imagem de uma “auto-estrada perdida”, como no título do
filme, ou dos jardins que se bifurcam na novela de Borges. (DUFOUR, 2008, p. 90-
91)
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O pensamento do pensamento, uma tradição mais ampla ainda que a filosofia, nos
ensinou que ele nos conduzia à mais profunda interioridade. A fala da fala nos leva à
literatura, mas talvez também a outros caminhos, e este exterior onde desaparece o
sujeito que fala. É sem dúvida por essa razão que a reflexão ocidental hesitou por
tanto tempo em pensar o ser da linguagem: como se ela tivesse pressentido o perigo
que constituiria para a evidência do “Eu sou” a experiência nua da linguagem.
(FOUCAULT, 2001, p. 221).
O que interessa particularmente nesta passagem, para além da remissão que faz à
linguagem, que não é o assunto deste texto, é a afirmação de que a exterioridade da fala
possibilita um outro pensamento, distinto do “pensamento do pensamento”, que remete
necessariamente para a interioridade do sujeito. Afirmar um “pensamento do exterior”
significa, pois, afirmar um pensamento em que desaparece o sujeito, ao menos este sujeito
moderno, autorreferente e centrado em si mesmo. O exterior é, por excelência, o lugar do
outro. Um pensamento do exterior é um pensamento do outro. Mas não do outro como um
“outro eu”, e sim do outro enquanto tal, do outro que está, inclusive, no eu. Afirmar o
pensamento do exterior significa afirmar a diferença como diferença, sem um retorno ao
mesmo.
Mas foi Deleuze quem levou a filosofia da diferença às últimas consequências. Em
uma obra seminal, Diferença e repetição (2006), ele empreendeu a crítica da filosofia da
representação que, desde Platão, colonizou o pensamento ocidental. Para esta filosofia, o
pensamento é sempre recognição e, portanto, retorno ao mesmo, repetição do mesmo. O
Cogito cartesiano, continuador desta tradição, nada mais é do que “o senso comum tornado
filosófico” (DELEUZE, 2006, p. 195). Na filosofia da representação, a diferença é
tematizada, mas ela é vista sempre como conceito, portanto como representação. É o
apagamento da diferença. Isso levou Deleuze a afirmar:
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quanto mais falamos no outro ou na diferença, mais negamos o outro, mais negamos a
diferença.
Trata-se, portanto, numa filosofia da diferença, num “pensamento do exterior”, de
tomar a diferença em si mesma, o outro em si mesmo, e não como conceitos, como
representações.
Para Deleuze, a repetição gera diferença. Para explicar tal afirmação, cito um outro
filme: Blade Runner, de Ridley Scott, baseado em um instigante romance de Philip K. Dick.
A história é conhecida: o policial Deckard é um “caçador de androides”, responsável por
perseguir e eliminar máquinas que fugiram de controle. Os androides são denominados como
“replicantes”, na medida em que replicam – repetem – as formas e as funções humanas para
realizar tarefas perigosas ou estafantes. Mas a tecnologia é tão boa que, de tanto repetir a
forma humana, gera a diferença: androides da série Nexus 5 são tão perfeitamente humanos
que sentem emoções e têm sua individualidade, personalidade própria. A “certeza de si” é
dada pelo implante de memórias de uma infância e de uma família que eles não tiveram. Mas,
para que não fujam ao controle, tornando-se, talvez, além-homens, mais humanos que os
próprios humanos, são programados para morrer em cinco anos. Acontece que um grupo deles
descobre isso e sai em busca de seu criador, para garantir a continuidade da vida. Nada mais
humano. Os replicantes não são representações; são o outro, embora aparentemente iguais. Ou
seja, os replicantes, repetições da forma humana, são a própria diferença, este outro que nos
apavora e que pode ser qualquer um a nossa volta. Aí entra Deckard, o “caçador”, para
eliminá-los. A tensão da história é dada pelo fato de que ele se apaixona por Rachel, uma
replicante que ele quase não consegue identificar, e pelo fato de que ele próprio já não sabe se
é, de fato, humano, ou também um replicante.
A questão que se impõe: como conviver com este absoluto outro que, aparentemente
é o mesmo, mas que não pode ser reduzido ao mesmo?
Tratando especificamente do tema do outro, Deleuze escreveu, no final dos anos
1960, um texto-comentário ao romance Vendredi ou les limbes du Pacifique, de seu amigo
Michel Tournier8. O romance é uma releitura do clássico juvenil de Daniel Defoe, Robinson
Crusoé, em que o narrador já não é o náufrago, mas o nativo Sexta-Feira; e o personagem
central, o grande intercessor que produz os acontecimentos, é a ilha, como no seriado Lost,
citado ao início deste texto.
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Trata-se de “Michel Tournier e o Mundo sem Outrem”, publicado como apêndice a Lógica do sentido
(DELEUZE, 1998).
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É quando o outro mostra novas possibilidades que percebemos que nosso mundo não
passa de mais uma possibilidade. Que toda esta fundamentação e concretude não passam de
aparência e ilusão. É a mesma sensação de vertigem que sentimos ao ver dissolverem-se os
sujeitos e suas identidades no filme de Lynch citado anteriormente, Mulholland Drive. Mas
somos também obrigados a admitir, envoltos na vertigem, que é o outro a condição de
possibilidade. Sem essa diferença radical não é possível meu mundo.
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Para o anarquista, o outro é em si mesmo, e é em se abrindo para este outro que cada
um traz em si, que é possível abrir-se às outras forças coletivas e recusar a
exterioridade dominadora, cega e limitada pelos laços que a ordem existente
pretende nos impor. Para o pensamento libertário, a abertura ao outro não passa pela
recusa a si, pela recusa do egoísmo e a aceitação dos entraves exteriores que nos
ligam aos outros, à obediência aos papéis e às funções que pretendem exigir o
sacrifício de nosso eu. Para o anarquismo, a abertura ao outro passa, ao contrário,
pela vontade de ir até o extremo disto que nos constitui, de nossos desejos, da
potência da qual somos portadores, desta alteridade que nós trazemos em nós
mesmos e que é a única que pode abrir-nos aos outros, torna necessário, pelo
crescimento da potência, a relação com eles, uma relação íntima, totalmente
implicada na realidade dos seres coletivos. (COLSON, 2001, p. 48-49)
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Cito apenas a última estrofe do poema escrito em 07 de junho de 1929:
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
10
Para um tratamento do conceito de singularidade, ver a obra de Deleuze, Lógica do sentido (1998), em
especial as séries 8ª, 14ª, 19ª e 30ª.
11
Bakunin produziu, ainda no século dezenove, uma concepção social de liberdade, contrapondo-se aos filósofos
liberais, que viam na liberdade um fator natural de cada indivíduo. Vejamos um trecho em que isto se evidencia:
“Só sou verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, são
igualmente livres. A liberdade do outro, longe de ser um limite ou a negação de minha liberdade, é, ao contrário,
sua condição necessária e sua confirmação. Apenas a liberdade dos outros me torna verdadeiramente livre, de
forma que, quanto mais numerosos forem os homens livres que me cercam, e mais extensa e ampla for sua
liberdade, maior e mais profunda se tornará minha liberdade [...] Minha liberdade pessoal assim confirmada pela
liberdade de todos se estende ao infinito.” (BAKUNIN, 1983, p. 32-33).
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chegar a um denominador comum. Já não há imagem do outro possível, pois sua resistência à
apreensão faz com que tudo se borre. Ficamos, assim, com uma não-imagem do outro, na
medida em que o outro não pode ser reduzido a um conceito, mas é pura afirmação, pura
possibilidade.
O outro é a própria condição da vida e da convivência, é o que nos ensina a filosofia
da diferença. Na vila ou na ilha, sem outros não somos, apagam-se as possibilidades.
E na escola?
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário. De paulicéia desvairada a café (poesias completas). São Paulo, SP:
Círculo do Livro, [1981?].
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 2006.
DUFOUR, Eric. David Lynch: matière, temps et image. Paris: Vrin, 2008.
FOUCAULT, Michel. O Pensamento do exterior. In: ______. Ditos e escritos III. Rio de
Janeiro, RJ: Forense Universitária, 2001, p. 219-242.
MONTAIGNE. Ensaios. 3.ed. São Paulo, SP: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores).
SARTRE, Jean.-Paul. Huis clos suivi de les mouches. Paris: Gallimard, 1991. (Folio).
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TOURNIER, Michel. Vendredi ou les limbes du Pacifique. Paris: Gallimard, 1972. (Folio).
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