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O povo do Rio de Janeiro: bestializados ou bilontras?

O povo do Rio de Janeiro:


bestializados ou bilontras?*
José Murilo de Carvalho **

Resumo - O trabalho condensa resultados de investigações do autor sobre a participação


política da população fluminense nos primeiros anos da República e sugere uma explica-
ção para o fenômeno. Parte-se do contraste entre a total ausência de participação popular
dos mecanismos formais do sistema político, particularmente das eleições, e a intensa
participação social, especialmente por meio das organizações de assistência mútua. De um
lado, a ausência do povo; de outro, a abundância de povo. Ressalta-se também como
característica do Rio de Janeiro a atitude pragmática, cínica, carnavalizada, perante o
poder. Haveria um pacto não-escrito, informal, entre o cidadão e o Estado, que passava à
margem das formalidades do sistema político. O que parecia apatia, alienação, “bestialização”,
era, na verdade, pragmatismo, sabedoria, astúcia. A explicação é buscada nas especificidades
culturais ibéricas e nas características sociais da cidade do Rio de Janeiro.
Palavras-chave
Palavras-chave: participação popular; sistema político; Rio de Janeiro.

O povo assistiu bestializado à Proclama- as, especialmente nas celebrações de 1º de


ção da República, segundo Aristides Lobo; não maio. Quando se tratava do próprio carnaval,
havia povo no Brasil, segundo observadores os anarquistas não hesitavam em usar a ex-
estrangeiros, inclusive os bem informados pressão forte de Aristides Lobo: a festa revela-
como L. Couty; o povo fluminense não existia, va, do lado dos assistentes, ignorantes e imbe-
afirmava Raul Pompéia. cis; do lado dos participantes, uma turba de
Visão preconceituosa de membros da eli- bestializados. Nos dois casos, um povo inca-
te, progressistas embora? Etnocentria de fran- paz de pensar e de sentir.
ceses? Mais do que isto. A liderança radical do Havia, evidentemente, algo no comporta-
movimento operário também não parava de mento popular que não se encaixava no mo-
se queixar da apatia dos trabalhadores, de sua delo e na expectativa dos reformistas, tanto da
falta de espírito de luta, de sua tendência para elite como da classe operária. Modelo e ex-
a carnavalização das demonstrações operári- pectativa que, apesar das divergências, tinham
*
Este artigo foi publicado originalmente na Revista Rio de Janeiro, n.3, maio/ago. de 1986, p.5-15.
**
Professor do IUPERJ e Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa.

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em comum a idéia do cidadão ativo, consci- as festas da Penha e da Glória. A festa da Pe-
ente de seus direitos e deveres, capaz de orga- nha, que continua até hoje mobilizando mi-
nizar-se para agir em defesa de seus interes- lhares de pessoas da Zona Norte nos domin-
ses, seja pelo reformismo parlamentar, seja gos de outubro, era sem dúvida a mais impor-
pelo radicalismo da ação econômica. Este ci- tante da cidade. Milhares de romeiros (calcu-
dadão de fato não existia no Rio de Janeiro. lados, em 1899, em 50 mil), após subirem o
Passado o entusiasmo inicial provocado pela outeiro, organizavam imensos piqueniques
Proclamação da República, nem mesmo a eli- acompanhados de vinho carregado em chi-
te conseguia, no campo das idéias, chegar a fres, de roscas de açúcar em cordéis, de gali-
certo acordo quanto à definição de qual deve- nhas e leitões. A festa evoluía para grandes
ria ser o relacionamento do cidadão com o bebedeiras, “uma orgia campestre”, na ex-
Estado. No campo da ação política, fracassa- pressão de Raul Pompéia, com muita música,
ram sistematicamente as tentativas de mobili- misturando-se ritmos portugueses, brasileiros
zar e organizar a população dentro dos pa- e africanos: o fado, o samba, a tirana, a caninha
drões conhecidos nos sistemas liberais. Fra- verde. Não raro, capoeiras navalhavam romei-
cassaram os partidos operários e de outros ros. Eram também tradicionais na Penha os
setores da população; as organizações políti- conflitos entre forças da Polícia e do Exército.
cas não-partidárias, como os clubes republi- Policiar a festa era quase uma operação de
canos e batalhões patrióticos, não duravam guerra. Em 1899, foram necessários nove de-
além da existência dos problemas que lhes legados, 56 praças de cavalaria e 86 de infan-
tinham dado origem; ninguém se preocupava taria da Brigada Policial, além de uma força
em comparecer às urnas para votar. de cavalaria do Exército. As festas da Penha,
Por outro lado, estes cidadãos inativos re- tomadas aos poucos aos portugueses pelos
velavam-se de grande iniciativa e decisão em negros, foram também um dos berços do
assuntos, em ocasiões, em métodos que os moderno samba carioca desenvolvido em tor-
reformistas julgavam equivocados. Assim é que no de Tia Ciata e seus amigos.
pululavam na cidade organizações e festas de A festa da Glória (15 de agosto), que tam-
natureza não-política. Em 1846, o americano bém ainda sobrevive, embora sem a força de
Ewbank ficou fascinado pelo peso que a reli- antigamente, era freqüentada por um público
gião ocupava na vida das pessoas. Ou antes, algo diferente, mais diversificado socialmente,
emenda o protestante que era ele, aquilo que abrangendo tanto os pobres do centro da ci-
aqui se chamava de religião, isto é, principal- dade como as camadas mais ricas. Durante o
mente os aspectos externos do ritual e das fes- Império, ela se distinguia por ser um momen-
tas. Eram famosas ainda na virada do século to de encontro da família real com o povo. No

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dizer de Raul Pompéia, era “ocasião de grupos étnicos; as estaduais, em local de ori-
rendez-vous dos Príncipes com a arraia miú- gem; quase a metade das organizações operá-
da”. Tipicamente, o encontro de governantes rias era baseada em fábricas ou empresas; as
com o povo se dava fora dos domínios da po- dos empregados públicos e operários do Es-
lítica. tado, na maior parte, definiam-se por fábrica,
Não é preciso também insistir na impor- ministério, setor de trabalho ou repartição.
tância das festas do entrudo e do carnaval, já Mesmo entre as associações que classificamos
bastante estudadas. Eram festas que já à épo- de “outras”, e que na maioria não se limita-
ca dominavam a cidade por inteiro. De tal vam a um setor da população, havia as que
modo a deixar o inglês Charles Dent perplexo. tinham por base bairros da cidade.
Ao presenciar o carnaval de 1884, sua im- Assim, se é verdade, como observa M.
pressão foi a de que “todo o mundo parecia Conniff e como o mostra a Tabela, que houve
ter perdido a cabeça”. O carnaval deu tam- ao longo do tempo mudança na natureza das
bém origem a algumas das associações cario- associações, perdendo terreno as de caráter
cas de maior longevidade, como os Tenentes religioso em favor das de conotação civil ou
do Diabo e os Fenianos. Mesmo associações mesmo política, não é menos verdade que,
operárias mobilizavam-se para a pândega, em 1909, ainda predominavam amplamente
para irritação e desespero das lideranças anar- os associados às instituições tradicionais. Mes-
quistas. O espírito associativo manifestava-se mo as associações modernas mantinham ain-
principalmente nas sociedades religiosas e de da o aspecto de grupo primário e assistencial.
auxílio mútuo. O número e a dimensão dessas O ponto era mais visível nas associações ope-
sociedades são surpreendentes. Segundo le- rárias. Foi grande a luta das lideranças para
vantamento encomendado pela prefeitura, transformar organizações de assistência e co-
havia na cidade, em janeiro de 1912, 438 as- operação em “órgãos de luta” ou “de resis-
sociações de auxílio mútuo, cobrindo uma tência”, como se dizia na época. O levanta-
população de 282.937 associados. Isto repre- mento da Prefeitura indica que, ainda em 1909,
sentava, aproximadamente, 50% da popula- grande número de associações operárias era
ção de mais de 21 anos, um número impressi- de assistência mútua; no máximo, combina-
onante. Ponto importante nessas associações vam assistência com resistência. A luta da lide-
era a base em que eram organizadas. Vê-se na rança radical contra o assistencialismo, o
Tabela 1 que a grande maioria era baseada cooperativismo, era árdua e freqüentemente
em grupos comunitários de pertencimento. As inglória.
associações religiosas eram fundadas em ir- Quanto à ação política popular, ela se dava
mandades e paróquias; as estrangeiras, em fora dos canais e mecanismos previstos pela

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legislação e pelo arranjo institucional da Repú- aspecto defensivo, desorganizado, fragmenta-
blica. Na maior parte das vezes, era reação de do da ação popular. Revelou antes convicções
consumidores de serviços públicos; reação a sobre o que o Estado não podia fazer do que
alguma medida do Governo, antes que tentativa sobre suas obrigações.
de influir na orientação da política pública. De modo geral, não eram colocadas de-
O movimento que mais se aproximou de uma mandas, mas estabelecidos limites. Não se
ação política clássica foi o jacobinismo. Mesmo negava o Estado, não se reivindicava participa-
assim, não possuía organização, tendia ao fana- ção nas decisões do Governo; defendiam-se
tismo e perdia-se em intermináveis contradições. valores e direitos considerados acima da esfera
Epítome dos movimentos de massa da épo- de intervenção do Estado, ou protestava-se con-
ca, a Revolta da Vacina mostrou claramente o tra o que era visto como distorção ou abuso.

Tabela 1
Associações de auxílio mútuo existentes em 1912
Por data de fundação, natureza e número de associados (porcentagens)
Natureza Data de Fundação
Até 1879 1880/1889 1890/1899 1900/1909 Total
Religiosa 46,4 53,0 12,2 6,3 13,3 19,8 11,1 6,8 19,9 29,0
De estrangeiros 17,6 36,0 14,6 6,9 2,2 3,3 1,0 0,2 7,5 18,0
De estados 1,8 0,4 4,9 1,2 8,9 3,0 3,0 1,0 4,1 0,9
De operários 14,3 1,7 9,8 7,9 15,6 16,1 23,2 20,4 17,4 9,5
De operários do
- - 14,6 24,5 24,5 22,3 32,3 36,2 20,3 16,6
Estado e funcionários
públicos
De empregados do
- - 2,4 29,4 - - 3,0 5,7 1,7 6,3
comércio
De empregadores 1,8 0,6 2,4 2,6 2,2 2,5 4,1 1,1 2,9 1,3
Outras 17,9 8,3 39,0 21,2 33,3 32,0 22,3 28,6 26,2 18,4
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
(Número) 56 138.174 41 46.840 45 25.127 99 90.290 241 300.431

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É importante não interpretar os movimen- dade. A conclusão do estudo é que se queixa-


tos de revolta popular em sentido liberal clás- vam quase só pessoas de algum modo relaci-
sico como exigência de redução ao mínimo onadas com a burocracia do Estado, seja os
da ação do Estado, ou de ilegitimidade desta próprios funcionários e operários, seja as víti-
ação em que coubesse a iniciativa particular. mas dos funcionários, especialmente da Polí-
Estudo de Eduardo Silva sobre queixas do cia e dos fiscais. Reclamavam funcionários,
povo durante a primeira década do século artesãos, pequenos comerciantes, uma ou
confirma este ponto. A fonte usada – uma co- outra prostituta. Mas as queixas não revela-
luna de jornal em que as pessoas podiam re- vam oposição ao Estado. Eram antes reclama-
clamar do Governo – é importante por reve- ções contra o que se considerava ação inade-
lar a atitude do cidadão em momentos não quada, arbitrária, por parte dos agentes do
críticos, em seu cotidiano de habitante da ci- Governo. Ou então contra a falta de ação do

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Poder Público. Revelavam que havia entre a população parecia reconhecer-se como co-
população certa concepção do que deveria munidade.
constituir o domínio legítimo da ação do Esta- Seria a cidade a responsável pelo fenôme-
do. Pelo conteúdo das reclamações, pode-se no? Neste caso, como caracterizá-la, como dis-
deduzir que este domínio girava em tomo de tingui-la de outras? Entramos aqui na vasta e
problemas elementares como segurança in- rica literatura sobre o fenômeno urbano, em
dividual, limpeza pública, transporte, particular sobre a cultura urbana, de que não
arruamento. poderemos dar conta neste texto. Não temos
Permanece, no entanto, o fato de que en- também ainda conclusões assentadas. As ob-
tre as reivindicações não se colocava a de par- servações que seguem devem ser tomadas
ticipação nas decisões, a de ser ouvido ou re- antes como um tatear na direção de possíveis
presentado. O Estado aparece como algo a linhas de explicação.
que se recorre, como algo necessário e útil, Os conhecidos estudos de Max Weber so-
mas que permanece fora de controle, externo bre a cidade ocidental podem servir-nos de
ao cidadão. Ele não é visto como produto de ponto de partida. Segundo ele, a cidade oci-
concerto político, pelo menos não de um con- dental medieval representou uma revolução
certo em que se inclua a população. É uma na História e contribuiu poderosamente para
visão antes de súdito do que de cidadão, de o desenvolvimento da moderna sociedade in-
quem se coloca como objeto da ação do Esta- dustrial capitalista. A cidade medieval, em con-
do e não de quem se julga no direito de a traste com a cidade antiga, desenvolveu-se
influenciar. como coletividade de produtores individuais
Como explicar este comportamento políti- que introduziram nova concepção e nova prá-
co da população do Rio de Janeiro? De um tica de legitimidade política. A nova legitimida-
lado, a indiferença pela participação, a ausên- de baseava-se na associação de interesses dos
cia de visão do governo como responsabilida- burgueses, que com isto se tornavam cidadãos.
de coletiva, de visão da política como esfera Foi ela a primeira entidade política moderna,
pública de ação, como campo em que os ci- precedendo o próprio Estado moderno ao
dadãos se podem reconhecer como coletivi- qual se opunha. Tornou-se autônoma, com
dade, sem excluir a aceitação do papel do Es- direito próprio, justiça própria, finanças pró-
tado e certa noção dos limites deste papel e de prias, defesa própria, governo próprio. E que-
alguns direitos do cidadão. De outro, o con- brou a base associativa da sociedade anterior,
traste de um comportamento participativo em ignorando condicionamentos estamentais,
outras esferas de ação, como a religião, a as- eclesiásticos, familiares. O novo cidadão era
sistência mútua e as grandes festas em que a admitido em termos estritamente individuais.

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Surgia literalmente uma nova sociedade base- mos acrescentar que as cidades da Península
ada na associação livre de produtores. Ibérica sofreram ainda menos que as italianas
Tudo isto contrastava com a cidade antiga o impacto das transformações que iam pelo
ocidental, predominantemente uma cidade de Norte. As distâncias tornaram-se ainda maio-
consumidores, orientada para fins políticos e res ao passarem as sociedades ibéricas ao lar-
militares. Era uma cidade marcada economi- go da Reforma Protestante e da revolução ci-
camente pelo capitalismo comercial e de pi- entífica, fatores que vieram solidificar os no-
lhagem; e, politicamente, pelo predomínio do vos valores burgueses, particularmente os do
Estado e de sua burocracia. O mundo da pro- individualismo, com todas as suas seqüelas.
dução, além de secundário, dividia-se pela O tema da especificidade da cultura ibérica
coexistência do trabalho livre e do trabalho foi retomado recentemente com grande rique-
escravo, obstáculo à formação das za analítica por Richard Morse, no livro El espejo
corporações que tanto marcaram a vida da de Próspero. Morse coloca-se na tradição dos
cidade medieval. Na cidade antiga, o cidadão clássicos da Sociologia, ao distinguir entre for-
era antes um guerreiro, um hoplita; sua rique- mas integrativas e formas competitivas de asso-
za se baseava na posse de escravos, de terras, ciação. Ou, na linguagem de Dumont, entre a
de espólios de guerra. Sobre ela não se pode- societas e a universitas, entre o individualis-
ria desenvolver a sociedade moderna de mer- mo e o holismo. A cultura ibérica estaria
cado, nem o conceito liberal de cidadão. marcada pela ênfase na incorporação, na
A cidade medieval desapareceu. No entan- integração, na predominância do todo sobre o
to, a seguirmos Weber, ela esteve na origem indivíduo, em oposição à cultura anglo-saxônia,
do capitalismo moderno de empresa e de tra- que seria marcada pela ênfase na liberdade e
balho livre, da sociedade liberal, do na prioridade do indivíduo sobre o todo. Em
racionalismo formal, do individualismo. Vári- termos políticos, ainda segundo Morse, a cultu-
os de seus traços foram incorporados à soci- ra ibérica, particularmente a espanhola, teria
edade e ao Estado modernos, embora ela pró- feito, no limiar da Idade Moderna, a opção
pria tivesse sido bloqueada pelo desenvolvi- tomista por um Estado baseado na idéia de in-
mento do Estado burocrático, seu grande ini- corporação, de bem comum, de comunidade
migo. Para Weber, a cidade moderna típica foi hierarquizada. Mas permanecia na sombra,
a do Norte da Europa, onde predominou com como alternativa e como tensão, uma visão do
maior nitidez a função econômica e a separa- Estado como maquiavelismo, como puro po-
ção das várias esferas de atividade. As cidades der. Na visão anglo-saxônia, a tensão se dava
do Sul da Europa teriam representado que- entre a liberdade e a ordem, tendo sido possí-
bra menor com o passado medieval. Podería- vel a absorção do liberalismo e da democracia

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de maneira a compatibilizá-los, embora em alimentária para o emprego público (hoje
convivência tensa. A cultura ibérica nunca teria chamada de fisiologismo). Em contraste, o
resolvido adequadamente o problema. Nela, o individualismo levava à iniciativa privada, ao
liberalismo tenderia a fortalecer o lado espírito associativo à atividade produtiva, à
maquiavélico e a democracia, a adquirir for- política de participação.
mas rousseaunianas, populistas, messiânicas . Alberto Sales e Sílvio Romero elaboraram
Curiosamente, vários pensadores brasilei- uma posição que era a de quase todos os pen-
ros da virada do século já tinham abordado o sadores representantes do liberalismo burgu-
tema das diferenças entre as culturas anglo- ês no país, de Teófilo Ottoni a Tavares Bastos,
saxônia e a ibérica em termos que muito se Mauá, André Rebouças, Joaquim Murtinho.
aproximam das abordagens modernas, inclu- Todos reclamavam da falta entre nós do espí-
sive a de Morse. Alberto Sales dizia, por exem- rito de iniciativa, do espírito de associação, do
plo, que o brasileiro era muito sociável mas espírito empresarial burguês, enfim, para usar
pouco solidário. Sua sociabilidade e a terminologia atual. Conversamente, critica-
extroversão se davam nas relações pessoais e vam a excessiva dependência em relação ao
nos pequenos grupos. Faltava-lhe o individu- Estado como regulador da atividade social e a
alismo dos anglo-saxões, responsável pela obsessiva busca do emprego público. Sílvio
capacidade de associação desses povos. Para Romero usava a expressão capitalismo que-
ele, era a consciência da individualidade, dos brado para o caso brasileiro, revelando ter
interesses individuais, que constituía a base percebido as amplas vinculações da proble-
da capacidade associativa. Pouco depois, Síl- mática.
vio Romero usaria um autor francês, Edmond Em oposição a esta visão francamente fa-
Demolins, para retomar o tema em linha se- vorável à concepção burguesa e individualista
melhante. Empregando expressão de do mundo, temos o ensaio de Annibal Falcão
Demolins, diria ele que o povo brasileiro era intitulado Fórmula da civilização brasileira,
de formação comunária, em oposição aos escrito em 1883. Pioneiro em tentar diagnos-
povos anglo-saxões que eram de formação ticar em termos culturais a problemática naci-
individualista. No Brasil (e nas culturas ibéri- onal, Falcão raciocinava dentro da visão
cas em geral), predominava a família, o clã, o positivista, antagônica ao individualismo libe-
grupo de trabalho, ou mesmo o Estado. Em ral e próxima do holismo. Mas, curiosamente,
termos coletivos, o resultado era a falta de or- seu diagnóstico das diferenças é o mesmo que
ganização, de solidariedade mais ampla, de o de Alberto Sales e Sílvio Romero. O Brasil,
consciência coletiva. No domínio específico junto com os outros povos ibéricos, caracteri-
da política, a conseqüência era a orientação zava-se pela sociabilidade, pela predominân-

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cia dos aspectos morais, afetivos, integrativos, da cultura ocidental a partir da distinção entre
colaborativos. Os povos de tradição protes- as cidades do Norte e do Sul, da Reforma Pro-
tante eram individualistas, egoístas, voltados testante e do desenvolvimento do capitalismo
para aspectos materiais, para a ciência, para a moderno, todos fenômenos interligados. Po-
competição. Falcão distinguia-se dos outros, demos voltar agora à cidade. A cultura ibérica
e estava aqui naturalmente na companhia de seria algo capaz, por si só, de explicar O Rio
todos os positivistas, ao valorizar o lado ibéri- de Janeiro, tornando o fenômeno urbano em
co por ser ele, segundo Comte, o que melhor si irrelevante? Parece-nos que não. A cidade é
correspondia à direção em que evoluía a hu- capaz, seja de criar cultura nova, seja de con-
manidade, isto é, para a integração, a síntese solidar traços da cultura herdada, seja de
geral dentro da religião. Na política, Falcão modificar estes traços em novas direções. Uma
não hesitava em tirar as últimas conseqüênci- vasta literatura já mostra também que, apesar
as de sua posição. O individualismo resultava dos traços comuns, as cidades da América
no conflito e na dispersão democrática, con- Latina em geral, e mesmo do Brasil, apresen-
siderados indesejáveis. A cultura integrativa, tam características distintivas. Qual seria então
pelo contrário, levava à ditadura republicana a característica do Rio de Janeiro e como
de natureza coletiva e integrativa. explicá-la?
A coexistência de vários conceitos de ci- Novamente, os estudos de Weber podem
dadania por ocasião da proclamação da Re- sugerir algumas idéias. O Rio de Janeiro, ao
pública corrobora os termos desta dicotomia. contrário de São Paulo, ou mesmo de Buenos
De um lado, a visão liberal, individualista; de Aires, era, do ponto de vista econômico, uma
outro, as visões positivista e rousseauniana, cidade predominantemente consumidora e de
integrativas, comunitárias. Na prática política, pesada tradição escravista. Em 1906, por
verificamos a ausência entre a população da exemplo, a população ocupada em serviços
ética individualista associativa. Sempre que (comércio, transporte, administração, servi-
havia espírito de associação - seja nas irman- ço doméstico) correspondia ao triplo da po-
dades religiosas, seja nas organizações bene- pulação manufatureira. A capital era o grande
ficentes, seja nas organizações operárias -, ele entreposto comercial de uma vasta região e
se concretizava no estilo comunitário. As gran- derivava boa parte de sua riqueza da produ-
des festas religiosas e profanas tinham igual- ção agrícola das áreas vizinhas, outro tanto
mente o mesmo sentido integrativo de solida- vindo do comércio e das finanças, ocupando
riedade vertical. a indústria posição menos relevante. Acresce-
Começamos com a idéia de Weber sobre a se a isto a condição de capital política da colô-
cidade ocidental. Passamos para a bifurcação nia e do país independente. A função política

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e administrativa gerava uma dominância do para retomar as expressões de Morse. As trans-
Estado sobre a cidade, invertendo a relação formações de fim-de-século, particularmente
existente na cidade medieval descrita por a Abolição e a República, vieram complicar o
Weber. Tudo isto são traços mais próximos da quadro, introduzindo elementos da tradição
cidade antiga do que da moderna, da cidade liberal individualista. Como observou Sílvio
política antes que econômica, da cidade sem Romero, a cultura brasileira era de tradição
autonomia, castrada, pré-burguesa. Na comunária, mas uma tradição já em crise. Em
tipologia de Redfield e Singer, poder-se-ia dizer crise, podemos acrescentar, principalmente
que o Rio seria uma cidade ortogenética, um nas cidades e, entre essas, principalmente no
centro administrativo e político, sustentáculo da Rio de Janeiro. O período que estudamos
grande tradição cultural. São Paulo, em con- marcou uma exacerbação do conflito entre
traste, seria uma cidade heterogenética, comer- estas tradições antagônicas. O que resultou não
cial e industrial, culturalmente inovadora. foi a vitória de uma delas; antes, um novo hí-
Mas, naturalmente, o Rio não era uma ci- brido. O avanço liberal não foi acompanhado
dade “antiga” na plena expressão do termo. de avanço igual na liberdade e na participa-
.Por um lado, embebera-se na cultura cristã ção. O Estado republicano perdeu os restos
medieval pré-reforma, uma cultura familista, de elementos integrativos que possuía o Esta-
religiosa, integrativa, hierarquizada. Por ou- do monárquico (lembre-se do monarquismo
tro, esta cultura já se vira praticamente abala- das classes proletárias), sem adquirir a base
da pelo processo de colonização, feito dentro associativa do Estado liberal democrático. Não
da tradição antes maquiavélica do que tomista, era fraternitas nem societas.

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Perante tal Estado, a cidade reagia, seja não só brancos pobres e estrangeiros se en-
pela oposição, seja pela apatia, seja pela com- volviam na capoeiragem. A fina flor da elite da
posição. Vimos os casos de oposição e apatia. época também o fazia. Neste mesmo mês de
Elaboremos um pouco mais os de composi- abril de 1890, foi preso como capoeira José
ção, que se davam principalmente através da Elísio dos Reis, filho do Conde de Matosinhos,
máquina burocrática dentro da lógica uma das mais importantes personalidades da
alimentária. Mesmo o movimento operário não colônia portuguesa, irmão do Visconde de
escapou a esta aproximação a que chamamos Matosinhos, proprietário do jornal O Paiz.
de estadania. A maneira mais perversa de apro- Como é sabido, a prisão quase gerou uma cri-
ximação era o envolvimento de elementos da se ministerial, pois o redator do jornal era
desordem no próprio mecanismo de compo- Quintino Bocaiúva, ministro e um dos princi-
sição da representação política. Referimo-nos pais propagandistas da República. Outro caso
ao uso tradicional de capoeiras, capangas e famoso era o de Alfredo Moreira, filho do Ba-
malandros no processo eleitoral. rão de Penedo, embaixador quase vitalício do
Mas as formas de entrosamento da ordem Brasil em Londres, onde gozava do convívio
com a desordem iam além do simples uso de com os Rothschild. Segundo o embaixador
capoeiras em eleições. Capoeiras e capangas francês no Rio, Alfredo era “um dos chefes
eram tradicionalmente usados também por ocultos dos capoeiras e cabeça conhecido de
políticos e poderosos em geral como instru- todos os tumultos”. O representante inglês in-
mentos de justiça privada. Muitos capoeiras formava em 1886 que José Elísio e Alfredo
integraram a Guarda Negra que dispersava Moreira eram vistos diariamente na rua do
comícios republicanos. A própria polícia fazia Ouvidor, a Carnaby Street do Rio, em conver-
uso deles como agentes provocadores ou in- sas com a jeunesse dorée da cidade”.
formantes. O conúbio ia além da política. Dife- O que acontecia na capoeiragem – a con-
rentemente do que se pensa, por exemplo, vivência de classes distintas – era o que se
havia entre os capoeiras muitos brancos e até dava tradicionalmente nas irmandades religi-
mesmo estrangeiros. Em abril de 1890, ainda osas e nas organizações de auxílio mútuo. E
em plena campanha de Sampaio Ferraz con- foi o que passou a dar-se cada vez mais em
tra os capoeiras, foram presas 28 pessoas sob instituições e atividades inicialmente
a acusação de capoeiragem. Destas, apenas segregadas ou mesmo vetadas e perseguidas.
cinco eram pretas. Havia dez brancos, dos quais A população do Rio foi reconstruindo algu-
sete estrangeiros, inclusive um chileno e um mas ocasiões de auto-reconhecimento den-
francês. Era comum aparecerem portugueses tro da metrópole moderna que aos poucos se
e italianos entre os presos por capoeiragem. E formava. A grande festa da Penha foi tomada

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do controle branco e português por negros, respeito pela lei por parte dos fluminenses. As
ex-escravos, boêmios; as religiões africanas Memórias de um Sargento de Milícias, ro-
passaram a ser freqüentadas por políticos fa- mance de 1853, cuja ação se passa ainda ao
mosos como, pasmem, J. Murtinho; o samba final do período colonial, revelam um mundo
foi aos poucos encampado pelos brancos; o em que a ordem e a desordem se misturam e se
futebol foi tomado aos brancos pelos negros. confundem, apesar da aparente oposição. O
Movimentos de baixo e de cima iam minando temido major Vidigal, encarnação da lei e da
velhas barreiras e derrotando as novas que se ordem, é usado pelos primos de Leonardo para
tentavam impor com a reforma urbana. se livrarem de um rival no amor das primas e se
Mas, na política, a cidade não se reconhe- deixa depois convencer pelo lobby das coma-
cia, o citadino não era cidadão, inexistia a polis. dres e pelo suborno da promessa de uma
Diante desta situação, não era de se estranhar mancebia. D. Maria diz abertamente ao Major,
a apatia e mesmo o cinismo da população em quando este insiste em mencionar a lei: “Ora, a
relação ao poder. A apatia e o cinismo, no en- lei... o que é a lei, se o major quiser?...”.
tanto, não parecem ser característica apenas Em 1891, Artur Azevedo pintaria um re-
do Rio na época. Em Buenos Aires, a participa- trato primoroso da já então capital da Repú-
ção política era também muito baixa, e o mes- blica, em sua revista O Tribofe. O autor mos-
mo provavelmente acontecia na maior parte das tra, ao longo da peça, a existência do tribofe,
capitais latino-americanas. O que marcava, e da trapaça, em todos os domínios do compor-
marca, o Rio é antes a carnavalização do poder tamento do fluminense. Havia tribofe na políti-
como, de resto, de outras relações sociais. Pou- ca, na bolsa, no câmbio, na imprensa, no tea-
cos meses após a Revolta da Vacina, ela já era tro, nos bondes, nos aluguéis e até mesmo no
objeto de celebração carnavalesca, sem falar amor. Não se obedecia nem à lei dos homens
no fato de ter a revolta começado por uma farsa nem à de Deus. Como diria o próprio Trobofe:
teatral montada por pivetes. Em maio de 1905, “Ah, minha amiga, nesta boa terra os manda-
alguém imaginou em poesia um grupo carna- mentos da lei de Deus são como as posturas
valesco aberto por Morfeu (Rodrigues Alves), municipais... Ninguém respeita!”.
tendo como destaques dos carros alegóricos o Em revista anterior, O Bilontra, de 1886,
Ministro da Justiça, Seabra, fantasiado de ma- Artur Azevedo já abordara o mesmo tema,
risco, o Chefe de Polícia, Cardoso, vestido de baseado em fato real - a venda, por um bilontra,
Javert e, ao final, O. Cruz com enorme seringa de falsos títulos de nobreza. O bilontra é o es-
respingando formol. pertalhão, o velhaco, o gozador: é o tribofeiro.
Dois textos, afastados no tempo quase 30 A auto-imagem do fluminense como levador
anos, mostram bem a atitude de completo des- da vida aparece também na revista O Cruzei-

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O povo do Rio de Janeiro: bestializados ou bilontras?

ro: “[nós, os fluminenses] somos positivistas construindo um mundo alternativo de valores


e pândegos, gostamos muito de festas e mulhe- e de relacionamento.
res”. O positivismo aí não tinha naturalmente A escravidão dentro da casa minava a dis-
nada a ver com o do sisudo e místico A. Comte. ciplina da família branca, assim como corroía
Significava pragmatismo, pé no chão, saber li- os próprios padrões de relacionamento entre
dar com a realidade em benefício próprio. senhor e escravo. O predomínio de homens
Este lado carnavalesco não pode ser deri- em relação às mulheres na composição
vado das características ibéricas, nem dos tra- demográfica da cidade impossibilitava, em
ços de cidade antiga que encontramos no Rio. muitos casos, a formação de famílias regula-
Ele não é mesmo um traço comum a outras res. Mesmo que a autoridade o desejasse, se-
cidades brasileiras, exceto talvez Salvador, por ria impossível a aplicação estrita da lei. Daí
mais que se tente hoje generalizá-lo para o que, da parte do próprio poder e de seus re-
Brasil como um todo. A generalização é clara- presentantes, desenvolveram-se táticas de con-
mente forçada e falsifica a imagem do país, vivência com a desordem, ou com uma or-
talvez para melhor vendê-la, em nova forma dem distinta da prevista. A lei era então des-
de tribofe. Mas não temos explicação pronta moralizada de todos os lados, em todos os
para o fenômeno. Podemos apenas especular domínios. Esta duplicidade de mundos, mais
com algumas possibilidades. Por ser Capital aguda no Rio, talvez tenha contribuído para a
da Colônia e depois do Império, o Rio acumu- mentalidade de irreverência, de deboche, de
lou, mais que qualquer outra cidade brasilei- malícia. De tribofe.
ra, forças contraditórias da ordem e da desor- Havia consciência clara de que o real se
dem. De um lado, vasta burocracia, ociosa e escondia sob o formal. Neste caso, os que se
insaciável, um Estado de grande visibilidade, guiavam pelas aparências do formal estavam
um comércio dominado por estrangeiros. De fora da realidade, eram ingênuos. Só podiam
outro, a enorme população escrava que, aos ser objeto de ironia e gozação. Perdia-se o
poucos, juntamente com imigrantes do exteri- humor apenas quando a autoridade buscava
or e de outras partes do país, foi gerando o impor o formal, quando ela procurava aplicar
que denominamos de proletariado e que che- a lei literalmente. Nesses momentos, o acordo
gava, na época que estudamos, a 50% da po- implícito era quebrado, o poder violava o pac-
pulação ativa. Apesar dos inegáveis atritos en- to, a constituição não escrita. Então era neces-
tre as duas forças, a tradição ibérica da família sário o recurso à repressão, ao arbítrio – o
e das irmandades constituiu campos de con- que gerava a revolta em resposta. Mas, como
vivência que iam aos poucos desmoralizando vimos, eram momentos de crise, não era o
as normas legais e as hierarquias sociais e cotidiano.

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Na política, o povo sabia que o formal não da mais profundo do que o dos anarquistas,
era sério. Não havia caminhos de participa- para o povo a política era tribofe. Quem ape-
ção, a República não era para valer. Nesta pers- nas assistia, como fazia o povo do Rio por oca-
pectiva, o bestializado era quem levasse a po- sião das grandes transformações feitas à sua
lítica a sério, era o que se prestasse a mano- revelia, estava longe de ser bestializado. Era
bras de manipulação. Num sentido talvez ain- bilontra.

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