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Organização

Yanet Aguilera
Vivian Berto
Rosangela Fachel

Que histórias desejamos contar?

Livro Eletrônico
1ª Edição

São Paulo
2018
Que História desejamos contar [recurso eletrônico] /
Organizadoras: Yanet Aguilera, Vivian Berto e Rosangela Fachel
São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2019.
ePub e PDF

ISBN 978-85-8201-018-1

1. Sociedade 2. Política 3. Guerrilhas 3. Inclusão social


4. Políticas sociais 5. Análise sociológica I. Aguilera, Yanet, org.

CDD – 791.43098

Ficha Catalográfica elaborada por Rejane do Desterro de Moura Alves CRB8 ª-6169

Fundação Memorial da América Latina


Av. Auro Soares de Moura Andrade,
664 - Barra Funda
CEP 01156001 - São Paulo - SP
Tel: (11)3823-4600
www.memorial.org.br
Que histórias desejamos contar?

Governador Secretário da Cultura


João Doria Sérgio Henrique Sá Leitão Filho

Fundação Memorial da América Latina


Conselho Curador

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Presidente do Conselho

Sérgio Henrique Sá Leitão Filho


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Presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas.

Diretoria executiva
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Diretor Presidente

Fabrício Raveli
Diretor de Atividades Culturais

Ana Lídia Santana Schroeder


Diretora do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina

Antônio Eduardo Colturato


Diretor Administrativo e Financeiro

Edição e-book
Eduardo Rascov
Editor

Ana Maitê Lanché


Arthur Moraes
Eduardo Rascov
Design e revisão

Rafael Richard Bezerra


Capa sobre foto de Hernán Reig

Índice

Apresentação Centro Brasileiro de Estudos da América Latina

Introdução Yanet Aguilera

Parte 1 Cinema, Arte e Modernidade


Capítulo 1 O som ao redor: arqueologia da verticalização moderna no Recife Ismail Xavier

Capítulo 2 A Desidéria: Comédia urbana e condição feminina no Chile dos anos 1940 Fabián
Nuñez

Capítulo 3 Modernidad mexicana: cine y literatura en la transición de los años sessenta Javier
Ramirez

Capítulo 4 Música e som em três documentários brasileiros curtas-metragens, 1959 Luíza Bea-
triz Alvim

Capítulo 5 Rossellini nos trópicos Mariarosaria Fabris

Capítulo 6 Que histórias desejamos contar da América Latina? Yanet Aguilera

Parte 2 Cinema, Arte e Política

Capítulo 7 Aclamação e censura ao filme A Batalha de Argel no Uruguai, em 1968: o perigo do


‘cinema insurgente’ Mariana Villaça

Capítulo 8 Joana D’Arc: a verdade não está nos autos Bruno Konder Comparato

Capítulo 9 Apontamento sobre violência e audiovisual: estudo de sociologia e cinema Mauro


Rovai
Capítulo 10 O cinema como resistência à violência direcionada aos jovens negros na sociedade
brasileira Jacquelina Maria Imbrizi e Eduardo de Carvalho Martins

Capítulo 11 Arte em imanência ou da insensibilidade à sensibilidade: Postais para Charles Lyn-


ch Ciro Lubliner

Capítulo 12 A representação da guerriha no cinema argentino (1968-1971) Estevão Garcia

Capítulo 13 O cinema de zumbi na América Latina: Luchadores e guerrilhas e outras formas de


resistência Lúcio Reis Filho e Alfredo Suppia

Capítulo 14 Estratégias de mobilização de ativismo a partir da retórica do excesso no audiovi-


sual Adil Giovanni Lepri

Capítulo 15 Para uma história do experimental no cinema brasileiro: momentos obscuros, desa-
fio crítico Rubens Machado Jr.

Capítulo 16 Tempo suspenso: a repressão sob o olhar superoitista brasileiro e mexicano Marina
da Costa Campos

Capítulo 17 Biopoder e Cinema: a pobreza como potência Vladimir Lacerda Santafé

Capítulo 18 Adélia Sampaio: trajetória e obra de uma pioneira Giovanna Picanço Consentini

Parte 3 Documentário, Política e História

Capítulo 19 El Cine Documental y los Movimientos Sociales en México Aleksandra Ja-


blonska Zaborowska

Capítulo 20 Saberes y quehaceres: Documental interactivo Ana Teresa Arciniegas

Capítulo 21 Coreografia de la protesta y figuraciones del conflicto social en el documental bo-


liviano de la década del ochenta: de Las Banderas del Amanecer (Grupo Ukamau, 1983) a La
Marcha por la Vida (Alfredo Ovando e Roberto Alem, 1986) Maria Gabriela Aimaretti

Capítulo 22 Villas y cantegriles, la representación de los otros y una mirada sobre el cine social
Mariana Amieva

Capítulo 23 Mi Hermano Fidel: a emoção como estratégia no documentário político Marcelo


Priost

Capítulo 24 Uma análise de No Paiz das Amazonas: pasado e futuro vislumbrado num filme Sá-
vio Luís Stoco e Ricardo Agum

Capítulo 25 Convívios familiares inscritos em ambientes domésticos do cinema argentino pós-


-dictadura – Aristarain, Martel e Trapero Aline Vaz

Capítulo 26 Archivos y documentos del cine político de América Latina: consideraciones sobre
el devenir de las fuentes Mariano Mestman

Parte 4 Imagem e Conceitos, Arte e Cinema

Capítulo 27 Em busca do pai perdido Annateresa Fabris


Capítulo 28 Para além da sala escura: encontro entre cinema e escola a partir da criação de
imagens Marina Mayumi Bartalini e Wenceslao Machado de Oliveira Júnior.

Capítulo 29 Documentário; videoarte: do Brasil para o mundo, do mundo para o Brasil André
Hallak

Capítulo 30 (Trans)tornar (a)o tempo e (a)a imagem Danusa Depes Portas

Capítulo 31 Imagens retomadas: a experimentação no filme Nhande Iwy Ana Lúcia Ferraz
Capítulo 32 Duas pedagogias ou o cinema como abertura para o outro Samuel Leal

Capítulo 33 Por uma subjetivação dos sons no mundo: análise sobre a estética sonora do Novo
Cine Argentino Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho

Capítulo 34 O sorriso barroco: ironia e melancolia em Júlio Bressane Fábio Camarneiro

Capítulo 35 O cinema do Entrelugar Angelita M. Bogado


Apresentação

O Centro Brasileiro de Estudos da América Latina (CBEAL), da Fundação Memorial da


América Latina, tem a honra de lançar o livro eletrônico Que histórias desejamos contar?, orga-
nizado pelas professoras Yanet Aguilera, Vivian Berto e Rosangela Fachel. A obra é um desdo-
bramento da quarta edição do Colóquio de Cinema e Arte da América Latina - que se realizou
pela primeira vez fora do Brasil, na cidade do México, nas dependências da Cinemateca Nacio-
nal daquele país - no âmbito do II Encuentro Internacional de Investigadores de Cine Mexicano
e Iberoamericano, em 2016.
Vários autores se integraram ao projeto num segundo momento, resultando num tomo
digital de quase um milhão e meio de caracteres ou 230 mil palavras. Isso corresponde a mais
de 800 páginas. Não é pouco. São textos de 39 pesquisadores oriundos de importantes universi-
dades, a maioria pública, e centros de pesquisa da América Latina e da Península Ibérica, como
USP, Unicamp, Unesp, Unifesp, UFF, UFRJ, PUC (RIO, SP, Campinas), UFBA, UFEP, Univer-
sidad Nacional Autonoma de Mexico, Universidad de Buenos Aires, Universidad de La Prata,
Escola Superior de Cinema e Audiovisuais da Catalunha, Universidad Autonoma de Madrid,
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (Portugal), Universidad Politecnica de Valencia
(Colômbia), entre outras.
Tantas formações e pontos de vistas diferentes constroem um olhar instigante sobre a ci-
nematografia contemporânea da nossa região. A crítica filosófica, estética, sociológica, histórica
e antropológica que trazem estas páginas são uma lufada de ar fresco no ambiente carregado
que nos coube viver e enfrentar. O Memorial da
América Latina, por meio do seu CBEAL, sente-se feliz por editar e circular um livro que traz
no título uma interrogação e na capa uma mulher grávida. Em seu aniversário de 30 anos (1989
– 2019), o Memorial endossa a pergunta Que histórias desejamos contar ou, para dizer em ou-
tras palavras, que futuro queremos construir.

Centro Brasileiro de Estudos da América Latina


Introdução

Yanet Aguilera

Que histórias desejamos contar? é o resultado de uma seleção de artigos que foram
apresentados no IV Colóquio de Cinema e Arte da América Latina. O questionamento sobre a
nossa história, que está presente no título, é o resultado da inquietação da maior parte dos ensaios
sobre a maneira como pensamos, analisamos e historiamos nosso cinema e arte. Acrescente-se
que esta pergunta nos obriga a situar-nos e pensar de que lugar estamos falando. Como acadêmi-
cos somos levados a considerar o lastro teórico e crítico desenvolvido pela academia e que, neste
livro, se desdobrou em várias direções. Uma delas é a relação intrínseca que os estudos universi-
tários estabeleceram entre cinema arte e modernidade; outra, seria a ligação entre o cinema, a arte
e a política; a terceira trata da problemática do gênero documentário; e a última se desdobra em
duas hermenêuticas: aquela que privilegia a narrativa e o texto e outra, icônica, ligada às imagens
e aos son. A esta problemática se somam esforços de cunhar conceitos diversos para repensar
a maneira de abordar o cinema e a arte. Os artigos deste livro foram agrupados contemplando
essas quatro trilhas e, embora elas não sejam as únicas, nos permitem ter uma visão, ainda que
parcial, bastante significativa de um panorama histórico daquilo que se está escrevendo sobre
nosso cinema.

1. Cinema, arte e modernidade


Pensar esta relação coloca de chofre a relação entre o campo e a cidade, dado que a moder-
nidade cinematográfica se colocou como
uma superação do contexto rural “atrasado” do nosso subcontinente em direção a um espaço ur-
bano “em desenvolvimento”. Do ponto de vista dos estudos de cinema, esta oposição tem uma
marca temporal clara que divide o nosso cinema entre aquele que se fez na primeira metade do
século XX e o que foi produzido depois. Esse primeiro cinema, que vai até o fim da 2a Guerra
Mundial, exaltava o mundo agreste e foi qualificado pela crítica como conservador, produto de
uma elite intelectual que seguia a tradição deixada pelo colonialismo.
Entre outros exemplos temos a análise de Som ao Redor, realizada por Ismail Xavier, na qual
a relação entre passado e presente se condensa naquela entre campo e cidade. É o caso também
do criollismo (filho de espanhóis nascidos na América) chileno citado por Fabian Nuñez, quando
analisa a importância da comédia chilena para a história de nosso cinema, que teria se voltado
“para as camadas populares rurais, calcando-se na tradição herdada dos tempos coloniais”. Outro
exemplo é o estudo do cinema mexicano, desenvolvido por Javier Ramirez, que pensa a moder-
nidade a partir de um ímpeto acadêmico que teve como figura central Luís Buñuel e que se des-
dobrou em duas sendas diferentes: a de Carlos Fuentes e a de Juan Rulfo. Elas também podem
ser resumidas no embate entre o ambiente urbano e o campo. Ou ainda no artigo de Luíza Beatriz
Alvim, que repercute esta questão ao destacar, na análise da trilha sonora de três documentário
do Cinema Novo (considerado como o cinema moderno), a figura do Gilberto Freyre e sua obra
Casa Grande e Senzala, além da figura de Heitor Villa-Lobos.
Entretanto, aqui se delineia um horizonte inamovível e uma história um tanto incômodos:
a ideia de que há um fundo metafísico preenchido por uma modernidade a ser alcançada e que
foi fraudada na história da América Latina. Já é tempo de colocarmos na berlinda, de maneira
clara, a própria noção de modernidade. É ela que inexoravelmente nos coloca como subalternos,
subdesenvolvidos ou atrasados. E não como povos subalternizados que têm como principal luta
o reconhecimento da internalização de um colonialismo que nos fez e ainda nos faz sentir-nos
inferiores. Já é tempo também de problematizar o nosso pertencimento, inquestionável para mui-
tos, à dita “cultura ocidental”, que coloca a modernidade como ápice de um progresso histórico,
mas nos recusa (nas experiências vividas – nos países europeus muitos de nós da América Latina
já tiveram a experiência de se sentirem ridicularizados quando nos reivindicamos ocidentais – e
também nos textos, basta consultar Jacques Aumont, Hans Belting, entre outros). É o momento
de repensar-nos com todas as heranças que nos constituem, inclusive a da própria “cultura oci-
dental”.
Uma via interessante para recolocar estes assuntos é aquela que se insinua no artigo de Ma-
riarosaria Fabris. Ao estudar a passagem de Roberto Rossellini pelo Brasil, Fabris propõe uma
triangulação composta pelo “pai do cinema moderno”, Pier Paolo Pasolini e Glauber Rocha, me-
diada pelas diversas maneiras como se trata o tema/conceito da fome.

2. Cinema, arte e política


A relação entre cinema arte e política, neste livro, tem como fundo a reflexão dos períodos das
ditaduras da América Latina. Mariana Villaça os aborda pelo viés inesperado e muito importante
do público: a recepção favorável e a censura política que, em Uruguai, teve o filme Batalha de
Argel, prenuncia o recrudescimento do autoritarismo que culminaria com a ditadura e que, logo
depois, provocaria a luta armada como uma das formas de resistência. A temática da violência
política é um tópico também presente no livro.
Bruno Comparato analisa o filme Joana D’Arc, de Bresson, para pensar as contingências
jurídicas que permeiam as reavaliações das Comissões da Verdade das ditadura Latino-america-
nas. Mauro Rovai também discute a violência por meio do filme Quem Matou Eloá?, destacando
o acontecimento, a cobertura televisiva e o depoimento dos entrevistados. A interrogação não
remete a um thriller amoroso, mas à urgência da especificidade do crime: aquele cometido contra
a mulher. Um debate que precisa retirar este tipo de assassinato da esfera doméstica ou privada,
onde também atua a violência. Outra abordagem que se debruça sobre a violência é a realizada
por Jacquelina Maria Imbrizi e Eduardo de Carvalho Martins. Este autores congregam política,
cinema e racismo se perguntando se o cinema é capaz de ser uma forma de resistência que se co-
loque contra ou que pelo menos manifeste um tipo de mal-estar diante da situação da população
negra, principalmente dos jovens, no Brasil. Uma espécie de exorcismo das imagens de violên-
cias, como aquelas de linchamentos veiculadas na internet, é feita pelo coletivo Garapa, como
destaca Ciro Lubliner. A noção de recomposição ou deformação criadora permite pensar a arte
como uma potencia da repetição que através de pequenas variações nos leva a novos sentidos e
sensações, possibilitando leituras críticas reveladoras.
O conceito de guerrilha e experimentalismo é utilizado para pensar os grupos guerrilheiros
do passado e uma forma de ativismo do presente. Estevão Garcia analisa a representação da guer-
rilha das décadas de 1960 e 1970 no cinema argentino, fazendo uma comparação entre La Hora
de los Hornos e Alianza para el Progresso, a fim de entender o que está em disputa nesse jogo
entre política e experimentalismo ou entre Cine Subterráneo e Cine Liberación. Lúcio Reis Filho
e Alfredo Suppia analisam o cinema Zumbi no Brasil, considerando-o como uma espécie de guer-
rilha dos jovens realizadores para criticar e resistir à sociedade atual. Há outro tipo de militância
muito atual, quase guerrilheira, bastante inquietante e que é prerrogativa do audiovisual brasileiro
feito para a internet. Adil Giovanni Lepri analisa este tipo de trabalho destacando a retórica do
excesso, a imaginação melodramática e a noção de cinema de atrações que grupos conservado-
res, organizados em torno do impeachment de Dilma Rousseff, usaram como estratégias a fim de
conseguir engajar ou criar uma militância nas redes.
O cinema experimental, passando pela produção superoitista, é abordado por Rubens Machado
em seus desdobramentos estéticos e políticos. Uma pequena história sobre o experimental muito
oportuna e fundamental numa bibliografia escassa para uma produção tão importante como é o
experimental. O artigo traz para o âmbito cinematográfico um intercâmbio muito profícuo e pou-
co explorado como é o com as artes plásticas. Marina da Costa Campo trabalha a relação entre
pesquisa histórica e análise fílmica, pensa igualmente a produção superoitista, centrada no Brasil
e no México da década de 1970, buscando aproximações que passam pelo experimentalismo, a
ironia, a metáfora e o discurso crítico, a fim de tratar os problemas latentes das transformações
política, culturais e sociais desta época de ditaduras e efervescência social.
Pensa-se também a política para além das manifestações históricas dos grupos e formas ci-
nematográficas, por meio de conceitos novos de muito interesse, como o de potência dos pobre
e biopoder, desenvolvidos por Vladimir Lacerda Santafé. Trabalhados na análise das cinemato-
grafias de Glauber Rocha e Pier Paolo Pasolini, estes conceitos ampliam a forma de interpretar,
além de repensar campos cognitivos como o da psicanálise e da produção de subjetividade que
compõem a base da composição social.
E, finalmente, política e visibilidade, classe e raça são trabalhados no artigo de Giovana
Picanço Consentini ao tratar da luta e estratégias pela sobrevivência da produtora e cineasta ne-
gra Adélia Sampaio. Realizado por uma mulher negra, o longa-metragem Amor Maldito revela
também os processos de uma micropolítica que exige cada vez mais ser levada em consideração.
Afinal, para um meio elitista como foi o cinema é muito significativo que a “filha da empregada”,
tal como se denomina Sampaio, chegue a direção do filme.

3. Documentário: um debate político e de gênero


É de extremo interesse os debates que aparecem nas reflexões atuais que se fazem sobre o
documentário. Aleksandra Jablonska Zaborowska coloca em questão a relação entre documentário,
militância e experimentalismo. Os documentários dos movimentos sociais mexicanos, analisados
pela estudiosa, ao problematizar as duas vertentes que foram as que dominaram a história do
cinema documentário em América Latina, as substituem por outras concepções mais adequadas
às reivindicações políticas atuais. A primeira, a do “cinema compromisso”, que se concebe como
um instrumento de agitação cultural ou de militância política, vai ceder espaço a uma classificação
que remete estes filmes a uma “arte popular”. Entenda-se esta nova classificação como a defesa
de saberes que se contrapõem a um tipo bem tradicional de militância política, que neste caso se
direciona a uma defesa ambiental. Trata-se de um enfrentamento de cosmovisões diversas, a dos
povos originários, que consideram a natureza sagrada, e aquela cujos esquemas conceituais ten-
tam vincular progresso e preservação. A segunda vertente repensa a arte subversiva, pois não se
subverte mais nem a linguagem fílmica nem a estrutura narrativa “clássica” do cinema, tal como
acontecia nos cinemas das vanguardas. Apesar disso, este cinema se reivindica como político, já
que responde a demandas políticas bem atuais e precisa, como o direito a autodeterminação dos
povos, a ausência de democracia, a reivindicação de justiça etc. Ana Teresa Arcienaga destaca
os filmes documentais que, precisamente, divulgam estes saberes outros e que fazem parte do
patrimônio cultural imaterial da Colômbia e, portanto, da América Latina.
A relação entre documentário e memória é também pensada politicamente no artigo de Maria
Gabriela Aimaretti, na medida em que esta memória cinematográfica permite intervir política e
culturalmente no processo histórico da ditadura boliviana da década de 1980.
O debate sobre como analisamos e historiamos o nosso documentário é colocado por Maria-
na Amieva ao propor uma análise deste cinema que escape da construção linear, que coloca os
filmes num processo que privilegia a influência entre cineastas. A estudiosa planteia uma relação
complexa entre filmes e gênero, que passa especificamente pela relação com o cinema etnográ-
fico, tendo o cuidado no uso dos esquemas teóricos/metodológicos nessa maneira de abordá-los.
Nesta reavaliação do gênero documentário, também se busca uma ampliação de seu campo,
introduzindo materiais e interpretações que anteriormente eram ignoradas ou apareciam muito
timidamente. É o caso de Marcelo Prioste, que analisa o filme de Santiago Álvarez, Mi Hermano
Fidel, destacando seu teor propagandístico, que visa transformar Fidel Castro em herdeiro de
José Marti. É também a direção que Sávio Luís Stoco toma ao destacar os discursos comerciais e
visuais do documentário No Paiz das Amazonas, de Silvino Santos.
Políticas impostas por governos repressivos desestruturam os espaços públicos, colocando
o ambiente doméstico como alternativa de relacionamento. No levantamento do convívio fami-
liar em algumas obras cineastas do Nuevo Cine Argentino, que Aline Vaz fez em seu artigo, fica
evidente que estes filmes apresentam a casa como um lugar que num primeiro momento promete
proteção para em seguida oprimir.
Por último, mas não menos importante, a republicação do artigo de Mariano Mestman, em-
bora sem o ineditismo dos outros ensaios, se torna fundamental, principalmente para uma maior
divulgação entre o público brasileiro, já que discute as fontes na historiografia do Novo Cinema
Latino-americano para problematizar as alterações de documentos originais.

4. Imagem, conceitos, arte e cinema


Hoje em dia se tornou irreversível o debate que, para além da narrativa e do texto, reivindica a
independência e importância da imagem e o som no cinema. Circunscritos aos estudos semióticos
que limitavam a imagem e sons ao signos, planos e sequências visuais e sonoros nos obrigam a
repensá-los em processos descritivos e interpretativos que diferem da maneira como fomos habi-
tuados na análise dos filmes e do próprio cinema. Na trilha de repensar o cinema e a arte por meio
de uma hermenêutica que contemple a imagem e o som, alguns estudiosos retomam conceitos
que colocam o filme num campo multidisciplinar próprio ao cinema, que foi considerado como
a junção de todas as artes.
Annateresa Fabris reflete sobre a relação entre fotografia, imagem e morte por meio do projeto
artístico que Mariela Sancari fez em torno da figura do pai morto. Processo alegórico em que a
busca de alguém na multidão manifesta uma tensão entre a homogeneidade e a heterogeneidade
ou entre indivíduo e massa que está implícita em uma arte/técnica como é a fotografia. É também
a criação de imagens o ponto de partida de Marina Mayumi Bartalini para pensar o encontro en-
tre cinema e escola. A estudiosa propõe experienciar a escola cinematograficamente, colocando
como “problema” a claridade deste espaço e sua relação com os vários dispositivos de criação
de imagens. André Hallak destaca a entrada da imagem em movimento ou cinematográfica nas
galerias, já que ela permeia as exposições de arte contemporâneas nos últimos anos. A associação
cinema e artes visuais se impõe, de modo que é necessário pensa-la num vaivém desestabilizador
para as duas expressões.
A inflação das imagens na contemporaneidade é outro assunto que é trabalhado para além do
apelo iconofóbico que geralmente este assunto provoca. Danusa Depes Portas quer recompor e
responder ao tempo e à imagem, por meio do ensaio, teorizado não como uma categoria ou gêne-
ro, mas como um modo retórico e poético. O propósito é arguir à memória inquieta das imagens
os disparates da cultura visual e os desastres da história atual.
Finalmente, a imagem é pensada em outro regime cultural/conceitual que não aquele proposto
pelo cinema e pelo modo habitual de analisa-lo. Esta outra maneira de ver a imagem nos obriga a
questionar a relação que se estabeleceu com aquele outro, o objeto dos filmes. A imagem do outro
problematiza a relação entre sujeito e objeto que o conhecimento e a ciência ocidental tentaram
imputar como sendo o de todo processo cognitivo. O ensaio da cineasta Ana Lúcia Ferraz, ao
falar de seu filme, Nhande Ywy, coloca as relações de alteridade em primeiro plano, que se ma-
nifestam na articulação das imagens captadas por ela e aquelas gravadas pelos jovens guarani no
conflito da retomada das terras em Matogrosso do Sul. Imagens como visão onírica e uma lógica
xamânica determinam as ações com relação aos fazendeiros branco. Samuel Leal compara duas
pedagogias das imagens, que no filme Oi’ó: a luta dos meninos permite um contato intercultural,
aquele da plateia e a dos meninos xavantes.
A respeito do som, o debate se complexifica porque se reivindica a autonomia sonora não
apenas em relação à narrativa, mas a da própria imagem. Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho
destaca os filmes do Nuevo Cine Argetino que trabalham o som de forma autónoma e criativa,
sem subordina-lo à significação imagética. A ambiência sonora se torna um aspecto determinante
da produção de sentido dos filmes.
Novos conceitos são cunhados ou apropriados para estudar o cinema na sua necessária in-
terdisciplinaridade, assim como para ir além das “caixinhas” ou categorias que o limitam. Fábio
Camarneiro trabalha o conceito de “sorriso barroco” para pensar o encontro entre a ironia e a
melancolia, entre o cinema, literatura, música e dança no cinema de Bressane. Angelita M. Bo-
gado usa o conceito do “entrelugar” para pensar o cinema de Adirley Queirós nos seus elementos
fronteiriços do lembrar e esquecer e da ficção e do documentário.
Parte 1

Cinema, Arte e Modernidade


1. O som ao redor: arqueologia da verticalização moderna no Recife
Ismail Xavier

A. O passado no presente

O som ao redor, de Kleber Mendonça (2012), pelos seus aspectos formais e temáticos, se
caracteriza como um ponto de convergência que permite, em retrospecto, nova articulação de um
conjunto de filmes pernambucanos da “retomada” que, em formas narrativas distintas, trabalhou
motivos centrais aí presentes, como a relação entre passado histórico e presente, tradição rural e
modernização urbana, marcos balizadores de relações de classe e de gênero.

Nesta lida com o cotejo entre o passado e o presente, há no filme de Kleber uma arqueologia
que permite observar as camadas de tempo que se acumulam no tecido social da grande cidade,
evidenciando a sobrevivência de relações de poder e formas de sociabilidade que outros filmes
tematizaram colocando em foco personagens que fazem um movimento da cidade grande para
o interior, encontrando uma ordem social e relações de família que os desafiam, marcando uma
diferença de referenciais na condução da vida. Esta diferença vale como um confronto entre
distintos momentos históricos ativado por um conjunto de “motivos” narrativo-dramáticos que
incidem sobre a forma de trabalhar com gêneros do cinema.

Este vai e vem cidade-campo pode ser fruto de um incidente como no caso da incursão de uma
adolescente de classe média urbana no mundo do Outro de classe (numa passagem do urbano ao
rural) que faz da travessia por um território social desconhecido um romance de formação, como
ocorre em Eles voltam, de Marcelo Nordello (2011). Em Boa sorte meu amor, de Daniel Aragão
(2013), seguimos o percurso de figura masculina que, à procura de sua amada em função de sua
misteriosa ausência, viaja do Recife para o interior e adentra a região onde moram os pais dela,
para então ver frustradas suas indagações num terreno marcado pela violência de uma tradição
patriarcal tal como vivida por uma família socialmente acanhada, o que, para o jovem urbano, ele
próprio herdeiro da Casa Grande, é um retorno ao locus de uma tradição moralista em sua versão
ressentida, vinda dos que estão fora da esfera do poder.1 Há os casos de um movimento contrário
no qual o percurso de uma moça de província é marcado pela complementaridade entre duas
violências – a vivida no interior (exploração sexual na esfera doméstica) e a vivida na grande
cidade em que, migrante vulnerável, ela se torna mercadoria, como em Deserto Feliz (2007), de
Paulo Caldas, e Baixio das bestas (2006) , de Cláudio Assis . Árido movie (2006), de Lírio Fer-
1 O filme de Daniel Aragão é posterior ou simultâneo a O som ao redor, mas vale esta referência no painel
que atesta a presença do motivo temático do “passado no presente” no cinema contemporâneo realizado em
Pernambuco.
reira, traz outra variante com a figura do jovem âncora do noticiário da TV que vive na grande
cidade e recebe a notícia da morte do pai. Ele volta à cidade natal e enfrenta a pressão familiar
para que assuma a tarefa que lhe cabe segundo a lei da tradição: a vingança do pai assassinado.

Baile perfumado, de Paulo Caldas &Lírio Ferreira, cujo impacto em 1996 marcou o início
desta constelação de filmes, é um exemplo deste cotejo passado-presente tal como trabalhado no
plano do próprio estilo, ao tratar a experiência do cangaço numa chave que incorpora o espírito
Mangue Beat, incluindo trilha sonora com a presença de Chico Science. O filme, em sua dimen-
são historiográfica, articula a homenagem ao pioneiro Benjamin Abrahão, exibindo fragmentos
de seu documentário dos anos 1930 que traz imagens de Lampião, Maria Bonita e os cangaceiros,
um material de arquivo que adquire uma feição pop ao ser acompanhado por uma sonoridade
moderna. A tradição popular do sertão encontra uma nova representação de seus maiores ícones,
Lampião e Maria Bonita, evidenciando o acesso dos cangaceiros a um circuito amplo de merca-
dorias que inclui perfumes e bebida importada, um mundo de conexões que tem seu momento
decisivo neste contato com o cinema. Este momento de consagração ampliada que o filme de
Abrahão lhes propiciou, mas, na contracorrente, mobilizou forte do pressão do Governo Central
na sua captura e morte.
Considerada esta constelação, O som ao redor assume uma posição estratégica neste pro-
cesso, ao retrabalhar este motivo do encontro entre o passado e o presente que o cinema per-
nambucano recente tem reiterado. Uma de suas forças é justamente gerar um movimento retros-
pectivo inovador nesta conexão entre cidade e campo, passado e presente. Vale neste destaque
ao filme de Kleber Mendonça a consistência de sua opção formal e do modo como tais motivos
recorrentes encontram nele sua expressão mais aguda, considerada a lida com a arqueologia dos
espaços da modernidade como acumulação de tempos históricos que se justapõem, convivendo
de forma singular em plena grande cidade. Nele, o paradigma patriarcal e as questões de classe
não se articulam como relação entre o urbano, como ícone do moderno, e o rural como locus do
arcaico, uma vez que é no próprio seio da grande cidade que se acentua, num ponto avançado da
verticalização e da sociedade afluente, a presença hoje de formas de poder e de relações de classe
supostamente arcaicas. A experiência contemporânea recolhe aí os dados de uma modernização
truncada.

B. A crônica do bairro.

Kleber conduz de forma notável a encenação da vida de um bairro da alta classe média do
Recife, de modo a caracterizar esta permanência do passado, ou seja, a vigência de tradições pa-
triarcais de mando na vida de um bairro nobre do Recife. O filme compõe um painel de persona-
gens e situações pela articulação de episódios que se sucedem como fatias de um cotidiano que,
no andamento sem pressa da crônica, tipifica com muita nitidez o território esquadrinhado por
uma notável mise-en-scène feita de deslizes que introduzem o insólito no cotidiano.
Antes de mergulhar neste mosaico e suas pequenas tramas, o filme traz na sua abertura – no
momento dos créditos – uma montagem de fotos de arquivo que traz uma série de imagens que
evocam a história da zona rural de Pernambuco, com imagens da Casa Grande e da Senzala,
retratos da vida comum e dos festejos, de modo a traçar um percurso de tensões que se faz mais
nítido na parte final deste painel de fotos, quando há um movimento em direção a momentos de
confronto mais recentes, com destaque para as imagens referentes às lutas das ligas camponesas
em torno de 1960.
Composta esta moldura histórico-temática, mergulhamos na cena de uma manhã ensolarada
num condomínio. Seguimos uma menina de patins pela área da garagem do prédio e chegamos
à área de lazer que está bem animada, com meninos jogando bola ou na piscina. Tal momento
com nítido sabor de feriado contrasta com o forte ruído de uma maquineta a vibrar nas mãos de
um operário que trabalha no espaço contíguo à área de lazer. Temos aí um primeiro momento
em que uma cena de tranqüila sociabilidade de moradores é tensionada por uma presença que
compõe uma dissonância. Este forte ruído só se dissolve quando planos de transição – o asfalto
com uma declaração de amor para ser lida da sacada de um apartamento, a vista de prédios da
região, namorados que se beijam num espaço murado entre edifícios - nos levam à imagem de
uma ocorrência fortuita do dia a dia: um carro se afasta da câmera em baixa velocidade e se diri-
ge para a esquina que está no ponto de fuga; lá, encontra outro vindo na transversal que também
parece em ritmo de passeio e, de forma inusitada, os dois carros se chocam. O que gerou o aci-
dente? Um cochilo? O excesso de confiança na aparente pasmaceira à volta? Este choque, nem
bem consumado, é logo suprimido pelo corte seco que traz o mesmo plano desta rua à noite e
a inscrição “Primeira parte: Cães de guarda”. É assim anunciado o primeiro dos três atos desta
“comédie dramatique” habitada pela fórmula “tudo em paz, porém há algo que, de repente, pode
vir ao centro da cena”. Se vier, no entanto, não se fará de todo visível, pois não será necessário.
Este primeiro lance minimalista de choque inesperado pode ser observado como a célula discreta
de um tecido complexo que levará muito além suas formas de contaminação do trivial cotidiano
pelo insólito.

C. Cães de guarda.

A indicação do letreiro é seguida literalmente, pois advém de imediato o episódio que intro-
duz a figura de Bia e sua família de classe média em ascensão, mas que parece estar ainda por
consolidar seu status sócio-econômico, portanto menos remediada do que a maioria dos seus
vizinhos. Nesta cena noturna, nós a encontramos insone, exasperada com os latidos do cão no
quintal do vizinho, uma versão literal do som ao redor que dá ensejo à comédia alimentada pelos
seus curiosos estratagemas em sua luta pelo silêncio que inclui jogar pela janela uma pílula de so-
nífero para o cão ingerir, o que dá certo. Tem início a crônica familiar cujos episódios compõem
um subplot que pontua a progressão da narrativa central que envolve João, seu avô Francisco e
sua família. A presença peculiar de Bia ao longo do filme dá a nota de humor em lances inusi-
tados, marcando um contraponto de idiossincrasia e leveza ao que de mais dramático ganhará
realce na crônica do bairro. Personagem de destaque, ela tem suas performances solo, como a
masturbação com o sexo apoiado na quina da máquina de lavar roupa que vibra com o motor
ligado, ou seu esquema de disfarce quando fuma um baseado expirando a fumaça no cano de um
aspirador de pó para evitar que o cheiro se espalhe. E tem os variados lances da vida doméstica
com seu marido (este sempre em segundo plano), o casal de filhos que são seus parceiros no
tempero do dia a dia e a empregada, não excluída as visitas de um entregador de gás – e também
de maconha - e de um professor de chinês que vem dar aulas particulares para as crianças, numa
medida de “atualização”, preparo para a vida futura, anseio que se debate no cotidiano com o hu-
mor instável que solicita zonas de escape. A variedade de situações jocosas não exclui momentos
em que seu comportamento autoritário entra em sintonia com o dos vizinhos chiques quando no
trato da empregada no momento de insatisfação com qualquer deslize.

Do episódio de Bia com o cão de guarda, saltamos para a cena de João no seu apartamento
com a namorada Sofia. Deitados no sofá da sala, eles correm para o quarto quando ouvem a em-
pregada que chega, mas esta ainda os vê passar, sorrindo com ar maternal de quem faz parte da
família há muito tempo; neste ambiente, é natural a presença dos filhos dela, adultos que vêm
para fazer um serviço ou outro, e há as netas que sentam no sofá para assistir à TV. Cúmplice do
jovem patrão, ela conhece as regras, sabe toda a história, como vemos na sua conversa com João
e Sofia na hora do café. Esta é a primeira observação sobre a relação entre quarto de empregada,
área de serviço e sala de visita, algo que veremos se reiterar nas cenas domésticas da família em
suas várias propriedades, seja neste apartamento de João, no do avô Francisco ou nos de seus
tios. O avô é proprietário de muitos apartamentos e de casas remanescentes do bairro que ainda
não foram vendidas para empreiteiras que as colocarão abaixo para seguir na marcha inexorável
da verticalização. João é corretor que trabalha para o avô na negociação das propriedades. Mais
tarde veremos que Sofia havia herdado uma casa neste quarteirão na qual ela morou por pouco
tempo no passado, casa que foi vendida há alguns anos. Está agora de passagem e João, que sabe
estar sua antiga casa de novo à venda para abrigar uma nova torre, a leva para uma última visita.
Ela comenta as mudanças do bairro que avança em sua feição burguesa nouveau riche, com forte
presença do seu Francisco, o Senhor de Engenho já instalado na cidade e com eventuais retornos
às suas terras.
No papo matinal com a empregada, vamos sendo informados das coordenadas familiares e
estatuto do clã neste território, até o momento em que a conversa muda de tom quando é trazida a
informação de que o carro de Sofia teve o seu tocador de CDs roubado. Neste momento, João fala
de deu primo Dinho que tem lá suas perversidades de moço rico de família poderosa: ele suspeita
ter sido ele quem roubou o aparelho. Esta informação é confirmada somente quando João con-
versa com os “flanelinhas” que estão lá na rua durante o dia, mas têm ouvidos para o que circula.
Ele vai ao apartamento do primo e o pressiona para devolver o objeto. Este incidente que pontua
a apresentação de João e seu mundo é um dos pequenos episódios que expõe o teor das relações
entre proprietários e prestadores informais de serviços que definem os pontos extremos de uma
estratificação social observada no território.
Na sucessão de imagens do bairro, há o momento em que a câmera se instala na cobertura
de uma das torres para seguir João em seu trabalho de corretor, nos trazendo a vista da massa ver-
tical e seu efeito urbano catastrófico, somado à vista de uma favela, nas adjacências, e à de uma
variedade de imóveis que incluem habitações ainda menos imponentes que indicam as nítidas
diferenças de classe e de poder de consumo que define os termos do convívio no bairro.
João e seus movimentos funcionam como um mediador neste mapeamento e na apresentação
das personagens que compõem a sua família e de outras figuras que desenham o perfil dos que
circulam pelo bairro, inclusive os interessados em comprar imóveis. Como parte dos episódios
curiosos, na conversa com uma cliente para quem ele mostra um apartamento ele inclui a referên-
cia de que houve ali o suicídio de ex-moradora, ao que ela responde com a pergunta se isto não
deve acarretar um desconto no preço do imóvel, numa passagem rápida para o interesse em meio
ao seu teatro de consternação pelo ocorrido.

Em foco a questão da segurança, a tônica é a privatização, nos prédios e na área pública, e


o tom das relações se torna mais tenso e cheio de reticências na medida em que o painel avança.
E o momento em que entram em cena Clodoaldo e seus dois amigos que compõem a equipe de
guardas noturnos que vêm oferecer sua proteção aos moradores é, sem dúvida, um dos pontos de
inflexão na tonalidade da mise-en-scène. João visita um de seus tios e comenta os últimos lances
do primo Dinho, mas logo a conversa segue outros caminhos. Eles são interrompidos pela chega-
da de Clodoaldo que toca a campaninha e é recebido pelos dois na frente da casa junto à pequena
cerca que a separa da rua onde fica o que está lá para vender seus serviços de segurança. Ele tem
boa lábia e conduz bem a conversa com os proprietários, sendo às vezes digressivo, sempre com
um misto de simpatia e ironia em suas respostas. Depois de indagações e reticências, o tio de João
termina por aceitar a proposta do pagamento mensal. Quando o segurança se afasta, pai e filho se
olham e seus gestos mantêm uma indagação que reforça o senso de que nem tudo é tão simples,
mas isto logo se dissolve e a vida continua.
Na conversa, menção enfática foi feita pelos donos da casa ao Seu Francisco e sua influência
no bairro, dado que Clodoaldo confirmou e, com um sorriso, disse estar já bem a par das regras
do jogo local. A visita ao avô de João tem logo lugar, com os seguranças entrando pela área do
serviço do prédio em que ele mora e tendo a conversa na cozinha, todos de pé. Há um reconhe-
cimento mútuo da linguagem que trazem de outras paragens e a visita responde bem aos desafios
do dono da casa. Este deixa claro quem manda no bairro e é enfático na ordem para que “não
mexam com Dinho, ele é problema meu”. Mais para o final da conversa ele provoca um dos par-
ceiros de Clodoaldo com um comentário sobre a sua condição de caolho como eventual problema
para a função a ser assumida, recebendo como resposta a referência a Lampião, num embate com
réplica e tréplica sem subserviência. Seu Francisco sorri ao dizer “gostei deste cabra”, selando o
código comum que os aproxima na oposição de classe e função. Em suma, uma conversa feita de
sorrisos, porém tensa. Os seguranças passam no teste e saem de lá com a benção do manda chuva
local. Podem começar seu trabalho como guardas noturnos na área sob a tutela do Seu Francisco.
Não demora, este telefona para o neto João que está na cobertura de um prédio cumprindo sua
tarefa de corretor. Lá em baixo, ao fundo, ganha destaque a imagem de uma favela incrustada no
bairro. João comenta algo do trabalho, mas o tom da conversa é de assuntos de família, havendo
a promessa do neto de ir visitar o engenho.

D. Guardas noturnos.

A primeira cena do segundo ato se passa na casa de Bia, com a família à mesa em conversa
que tem, ao lado dos assuntos ligados à gerência da educação dos filhos, o comentário sobre Clo-
doaldo e sua forma de chegar bem no momento em que teria havido uma dose maior de furtos no
bairro, como se ele estivesse por trás do acontecido para preparar o que de chantagem haveria em
sua oferta de segurança para os moradores. Enfim, tudo em volta é conspiração.
Já estamos em novo clima no andamento da trama depois de as primeiras cenas envolvendo
a equipe de Clodoaldo terem mudado a feição dos subentendidos, pois cada novo episódio pas-
sou a tencionar as relações. Uma opção de estilo que vai ganhar maior ênfase no final explora o
domínio do tempo esgarçado nas conversas e também nos planos de transição com seus espaços
vazios, um dispositivo que vem junto com a notável modulação de silêncios e de “sons ao redor”
que tonifica o reiterado “plano a mais” que insiste no momento em que a cena parece estar ter-
minada. O filme vai criando um clima de “estranho familiar” e de tensão que marca o painel, até
que no final venha à tona uma das tramas subjacentes que, quando emerge, é resolvida em direção
inesperada.
A trama a passos lentos e as supostas digressões que dão andamento à crônica do bairro vão
deslocando sua tônica para compor uma imagem do território que, sem dispensar os lances de
humor, assenta a sua arqueologia na tensão entre as classes que, no presente, reproduzem formas
de mando neocoloniais que marcam a sua permanência ao longo do filme, desde a evocação tra-
zida pelas fotos na abertura.
Um crescente mal estar se insinua, tanto pelos lances no espaço público, quanto pelos jo-
gos de inveja que temperam o consumismo, desde a cena em que Bia é vítima da agressão in-
tempestiva de uma figura familiar que mora no bairro quando esta se dá conta de que Bia fez a
compra de um televisor de 24 polegadas, enquanto ela só conseguiu comprar um mais modesto.
Pequenos conflitos como este compõem a comédia que pode vir da reação histérica movida pelo
ressentimento, ou pode vir de um achaque arbitrário quando os seguranças, em plena luz do dia,
interpelam um passante na calçada como se fosse uma infração caminhar por ali. Quando ele ex-
põe a sua razão para estar ali, mobilizam walk-talkies e sondagens para confirmar a versão dada
por ele na conversa, um aparato fora de propósito e ridículo que alimenta um senso constante de
ameaça, fonte de receita desta pequena indústria do medo. Os que prestam serviço para os donos
da rua precisam reforçar ações que revelam o quanto a violência endêmica na cidade está ali na
esquina, a qualquer hora e, dada a propalada ausência do Estado no território, deve ser controlada
pelos ricos num afã de autodefesa que se mostra uma versão menos explícita, mas de natureza
semelhante ao que hoje se define como a “cultura do condomínio” segundo Cristian Dunker. 2
No prédio onde mora, João participa de uma reunião de condomínio que exibe os ressen-
timentos e a arrogância dos comentários quando o tema é a possível dispensa do porteiro que
fica na recepção à noite. Um morador exibe com orgulho as imagens que seu filho, uma criança,
captou do funcionário dormindo na recepção; outra moradora indignada reclama do fato de sua
revista Veja ter sido entregue sem o plástico. João traz argumentos contra a dispensa, não rece-
bendo apoio; na hora da decisão, o celular toca, ele atende e se retira sem participar da votação.
Não era importante, e sua tônica é sempre um sair pela tangente. O principal era ir ao encontro de
Sofia, corroborando sua postura de não se envolver até o fim com a questão social ali implicada,
não obstante sua simpatia pelo funcionário.
Colocada em pauta a questão da segurança, esta se expõe em O som ao redor como mais
um aspecto da problemática de fundo que tem mobilizado cineastas que, guardadas as diferenças
de estilo, exploram certos motivos dramáticos, justapondo as camadas de tempo que se acumu-
lam na experiência contemporânea de modernização incompleta, marcada pelas permanências do
mundo do “homem cordial”, de gentileza com os “seus” e mandonismo e violência com os “ou-
tros”, lembrando a formulação de Sérgio Buarque de Holanda. É um mundo que trava a formação
da cidadania, embaralhando o público e o privado, repondo a hegemonia de classe e as tradições
patriarcais de mando na vida da cidade.
Dentro desta privatização dos embates, Clodoaldo oferece um exemplo de ação mais incisiva
que vem do subalterno que usa de recursos táticos de confronto mais direto que, não obstante,
incorporam uma franja de ambigüidade. Ele não se resume a assumir seu ponto de olhar e de
escuta na rua, no seu estilo cheio de maneiras e da fala daquele “que se supõe saber”. Num certo
momento, parte para o desafio a Dinho com uma ligação anônima feita do orelhão da rua em que,
de forma ofensiva, o desqualifica pelos lances de cleptomania, e o ameaça de modo enfático. Só
poderia ser dele esta ligação ousada e, em resposta, o moço rico não demora em caminhar até o
abrigo dos guardas noturnos lá na rua para mostrar que sabe muito bem quem ligou para ele e
devolver a ameaça apoiada no seu poder vicário amparado na família. Sua fala, no entanto, não
2 Ver Cristian Dunker, Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São
Paulo, Boitempo, 2015.
vai além de uma precária exibição do orgulho e do preconceito de classe que só faz evidenciar
sua insegurança e precariedade.
Escurece a tela, e a repetição do plano da rua vazia à noite traz nova ocorrência insólita, com
um carro a dar um cavalo-de-pau na esquina. Passamos ao letreiro “Guarda costas” que nos leva
ao terceiro ato, quando João e a namorada finalmente pagam a visita prometida ao avô que está
lá no engenho.

E. Guarda costas

A ida ao engenho é ocasião para o descanso na rede da varanda, o almoço tranqüilo em que o
avô não resiste em perguntar quando será o casamento para testar o teor deste namoro. João não
hesita e diz “vamos com calma”. Não é para tanto este caso que, como veremos, logo terá fim, no
momento em que a namorada encerrar sua temporada no bairro, embora haja sinais evidentes do
envolvimento dele com ela. Mais tarde, na seqüência final do filme, na grande festa de aniversário
de uma das netas de Seu Francisco, João dirá meio sem graça ao primo Dinho que tudo acabou
entre ele e Sofia, pois “ela tinha outra história”.
A visita ao engenho se faz desse relaxamento e de uma visita guiada pelas ruínas ao redor,
seja num depósito com a sucata dos velhos equipamentos não mais em uso, seja nas ruínas de um
cinema local que tinha fachada imponente e ora é cenário de um passeio bem humorado como
se das ruínas viesse o som de um filme de horror. Em cena, vale a brincadeira de Sofia a assustar
João nestas ruínas do cinema. Esta alusão jocosa ao horror ganha uma rima no plano seguinte
quando vemos os dois jovens e Seu Francisco a tomar um banho embaixo de forte queda d’água,
cena que no seu final destaca João a receber o jato de água tingido de vermelho, escancarado
efeito especial que flerta com o gênero e como que culmina a invasão do insólito no fluxo natural
já presente em passagens anteriores. Está preparado o clima da seqüência seguinte.
Desta imagem de João na cachoeira, tomando o banho de jato vermelho, com a boca aberta
e o olhar dirigido à câmera, saltamos para o apartamento no Recife onde o vemos sentado na
cama, acordado, ao lado de Sofia que dorme. Com ar de recém-desperto, está pensativo, de modo
a induzir uma leitura da cachoeira em chave onírica. Não demora e vemos a menina, filha da
faxineira, que encostada na soleira da porta aberta olha para ele a sorrir e alterando a atmosfera
da cena antes que as nossas especulações sobre a cachoeira ganhem curso.

Esta forma de dissolver um impulso de ansiedade interpretativa terá mais adiante uma versão
mais elaborada na qual estranhamento e senso de ameaça ganharão maior espessura. Retornamos
à casa de Bia em nova cena noturna, desta vez para acompanhar a relação entre sua filha Fernanda
que dorme enquanto imagens e ruídos sugerem uma invasão das casas do bairro. Ela acorda e ob-
serva o movimento da janela do quarto. Esta passagem alude ao que poderia ser uma ação coleti-
va dos moradores de uma favela próxima. A cada plano, eles vão se tornando mais numerosos na
ocupação do terreno contíguo. A montagem alternada entre Fernanda e a cena ao redor sugere, de
início, um pesadelo seguido do despertar como experiência noturna de menina insegura que, ao
som cada vez mais forte dos ruídos, se dirige ao quarto dos pais e encontra a cama vazia. Quando
ela volta ao seu quarto um movimento de câmera centra foco no vazio, preparando o corte seco
para uma nova imagem dela dormindo. Tudo um sonho? É o que parece, mas a estranheza na
montagem e o tom furtivo da observação renovam um estilo que marcou o regime noturno das
imagens e sons calibrado para manter vivo o senso de ameaça, uma inquietação no ar.
Nestas passagens em que se cria este estranhamento trazido pelo recurso a “atrações” inseri-
das a fórceps pela montagem, não temos um efeito dramático, uma vez que permanece ambíguo
o estatuto deste tipo do evento-atração que termina por se dissolver sem deixar rastro. As ocor-
rências anteriores nesta direção foram muito breves, mas tiveram seu papel de, aos poucos, fazer
deslizar o que antes tinha um tom de crônica do cotidiano e de escoamento do tempo para este
clima mais insólito. Por exemplo, houve a passagem muito rápida de um menino pelo corredor
de uma casa do bairro no momento em que Clodoaldo, supondo estar ela vazia e tendo em mãos
a sua chave, está lá a transar com a empregada do Seu Francisco num quarto. Mais adiante, outro
menino – ou o mesmo? - foi visto pela insone Bia à distância, subindo no telhado do vizinho em
plena noite, enquanto ouvimos um ruído off vibratório, desagradável. Por duas vezes, o plano
rápido e a distância não permitiram a clara identificação da figura, mas houve ainda outra cena
noturna em que um menino, parecendo ser este mesmo, foi surpreendido na rua em cima de uma
árvore pelos dois guardas noturnos da equipe de Clodoaldo. Sendo negro e pobre, tornou-se a ví-
tima escolhida para a agressão arbitrária, levando um soco no rosto para entender que “não deve
voltar aqui”.
O lance efetivo da trama que traz o “ponto de virada” no terceiro ato é a chegada do irmão de
Clodoaldo que, em cena anterior, o havia anunciado como vindo do Paraná e dissera aos amigos
que eles dois tinham um assunto a tratar. Ao chegar, o irmão salta da garupa da moto que o trouxe
e veste o colete dos guardas noturnos. Seu irmão o apresenta aos amigos. A cena desta chegada
se passa durante o dia. Sendo rápida e vista à distância, não ouvimos o diálogo, embora o início
dela tenha sido acompanhado pela curiosa repetição do ruído off antes ouvido na cena noturna de
Bia a observar as casas vizinhas de sua sacada.
Logo saltamos para a noite da grande festa de aniversário de uma das netas de seu Francisco,
seqüência que faz convergir os diferentes focos de interesse trabalhados ao longo do filme. Há
o núcleo que se organiza em torno da família do patriarca que, uma vez reunida na casa de um
dos seus filhos, compõe um autorretrato nos variados diálogos envolvendo diferentes gerações e
suas formas de sociabilidade. O clima ameno da festa não exclui ironias a um estilo de vida e de
formação dos jovens, agora ressaltado o seu contato com a ficção secretada pela televisão. Bia
e sua família não fazem parte deste círculo social, mas sua presença nesta seqüência final se dá,
novamente, pelo paralelismo em que ela conduz o pólo da comédia, um contraponto estratégico
no momento em que tudo chega à sua tensão máxima no mundo de Seu Francisco. Antes de cui-
dar da ciranda social no ambiente da festa, o filme a havia acompanhado em sua compra de uma
caixa de bombinhas de alto calibre para se divertir com seus filhos.
Nesta noite, o avô da aniversariante tem pressa em resolver uma questão, e interrompe sua
presença na festa para atender a Clodoaldo que viera até ali atendendo a seu chamado. O encontro
se dá junto à cerca de entrada, no limite da rua, como na primeira conversa com o guarda noturno.
A presença do deste dá um toque especial à cena pela tensão permanente em seu semblante desde
que é apresentado a Seu Francisco. Já observamos um ou outro travo nas relações familiares ou
entre as classes que compõem o painel do bairro onde não estiveram ausentes as figuras do res-
sentimento. O irmão de Clodoaldo neste momento é quem recolhe essa carga, e sua presença vale
como promessa de algo de mais grave no horizonte.3
Seu Francisco de início reclama do fato de não ter sido atendido quando ligou várias vezes
para Clodoaldo, deixando recado. Sem demora, esclarece que precisa ter uma conversa com eles,
definindo o encontro para dali a pouco lá no seu apartamento. Eles se despedem e voltamos à
festa.
Chegado o momento do encontro, os guardas noturnos voltam a entrar pela área de serviço,
mas desta vez a conversa se dá na sala onde o anfitrião os convida a sentar. Ao explicar os moti-
vos deste chamado, o senhor de engenho se refere a episódios violentos ocorridos em área de suas
propriedades no campo, com destaque para o assassinato de seu ex-capataz. Isto indica possível
ameaça a ele próprio, dado que este crime se insere numa engrenagem de vinganças, com toda
certeza. Está explicado porque os convocou; quer que passem cuidar de sua segurança pessoal,
sendo os “guarda costas” anunciados no letreiro que abre este último ato do drama. Clodoaldo
se faz de desentendido e diz algo que supõe haver um convite para substituir o capataz morto, o
que gera a reação impaciente do patriarca que supõe seus interlocutores não estarem entendendo
a situação, em verdade, não se colocando no seu devido lugar de meros “guarda costas” que lhes
é devido. Trazendo novo rumo à conversa, o irmão revela que eles dois estiveram com o capataz
no dia em que a sua morte se deu. Clodoaldo respira fundo. A tensão aumenta, pois se anuncia o
momento em que veremos se definir o sentido das trocas de olhares, informações indiretas e reti-
cências. Em verdade, é Seu Francisco quem precisa entender melhor o que se passa, e os irmãos
lhe trazem à lembrança uma data que em princípio não diz nada ao patriarca, mas diz muito a
eles. Nesta data, foram mortos o pai e tio deles por ordem do senhor de engenho, “por causa de
uma cerca”. Eles eram crianças, mas se lembram muito bem. Conhecendo as regras do jogo, Seu
Francisco se levanta enquanto os dois se aproximam prontos para cobrar a dívida. Corte seco, e
saltamos para a casa de Bia que está preparando suas bombinhas para uma espetacular explosão

3 A presença de protagonistas marcados pelo ressentimento tem dado a tônica numa parcela razoável de filmes bra-
sileiros desde os anos 1990, dando ensejo a uma reflexão exposta, por exemplo, em meu texto “Figuras do ressentimento no cinema
brasileiro dos anos 90”, in Afrânio Catani, Fernão Ramos, José Gatti & Maria Dora Mourão (orgs), Estudos de Cinema 2000 Socine,
Porto Alegre, Editora Sulina, 2001), pp.78-98.
em série, forte o suficiente para iluminar o ambiente e, dado importante, para perturbar o cão
do vizinho que faz seu protesto enquanto ela e as crianças tapam os ouvidos e se curvam como
quem precisa de proteção diante do show que eles mesmos promovem. No detonar das bombas, o
espectador ao final ouve um estampido diferente, mais forte, sinal de que os irmãos Nascimento
liquidaram a fatura na sala do Seu Francisco. Está cumprido o plano de vingança.

F. Epílogo.

Tendo instituído em seu território, na zona chique da grande cidade, um comportamento auto-
ritário que lembra as prerrogativas de seu mandonismo no sertão, Seu Francisco encarnou, numa
certa medida, a presença do passado no presente, regendo o encontro de camadas da história que
encontram ali no bairro de Boa Viagem uma superposição que, no entanto, ganha uma nova efeti-
vidade e o surpreende, pois significa a presença concreta, ao seu redor, do mundo do engenho que
comparece aí para surpreendê-lo com esta vingança. Vale aí lei que ele conhece muito bem mas
que a ele retorna com todas as suas conseqüências na figura destes camponeses imigrados para o
bairro chique como efetiva presença do passado no presente, trazendo o desfecho de um plano
bem urdido. Ao mesmo tempo, se revela, neste último confronto, mais um encontro inesperado
que vem retomar um mote narrativo muito presente no cinema brasileiro contemporâneo. Tal
mote foi tecido sem pressa ao longo do filme e vem se ajustar ao que de intrigante se delineou nas
maneiras e no fraseado de Clodoaldo, algo que encontrou sua contraparte somente na iminência
do desfecho, quando o ar sisudo do irmão como que anunciou uma nova inflexão no enredo.
O essencial é que a rarefação, o escoamento do tempo, define a cadência do percurso mar-
cado por premonições e momentos insólitos. Num momento em que finais abertos, com interro-
gações, já viraram quase que uma norma de época, o gesto de Kleber é contracorrente, atando o
prólogo e a última cena com este retorno do reprimido. A vingança dos irmãos vem consumar a
permanência de uma ordem de relações do passado a se manifestar em pleno centro urbano, por
outro lado imerso na ordem do mercado que o próprio Seu Francisco, no plano da gestão de seu
capital, está muito bem inserido, . A vingança que se consuma não é um gesto político, muito
menos de superação das regras do jogo postas pela tradição. O lance corajoso traz um senso de
justiça e vale como uma vitória da astúcia do oprimido que traz simpatia, mas sua função maior
é completar o círculo de reposição do mundo arcaico de Seu Francisco, levando enfim às últimas
conseqüências a incidência do passado no presente.
Estamos aqui na camada em geral submersa de uma peculiar sobreposição de ritmos na
atual conjuntura urbana, onde ainda se verifica a diferença, às vezes radical, entre o movimento
acelerado da globalização e a persistência de estratos de tempo locais, compondo um quadro em
que o pólo mais espetacular, emblema efetivo da época, é a vida das metrópoles em seu estágio
avançado de crescimento (inchaço). Este, raras vezes planejado, exibe seus efeitos nas variadas
formas de convivência problemática entre os citadinos às voltas com um exasperante cotidiano,
notadamente nas capitais dos Estados, dentro de um processo que, embora se insira num campo
transnacional de circulação, ainda dá lugar para experiências como esta que as personagens de O
som ao redor radicalizam.

No contexto da produção brasileira, o filme desloca a tônica do debate sobre a violência e


as mazelas urbanas, em geral associadas à crise da família e focalizando uma juventude “sem
pai” cuja condição social vivida nas favelas induz à entrada no crime organizado, como aconte-
ce em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles (2001), entre outros. Kleber devolve a questão
da violência ao autoritarismo da tradição patriarcal, de modo que não se trata apenas de culpar
a urbanização selvagem porque dissolve a família, mas dar ênfase a outro ângulo do problema:
mostrar que ele está na tradição familiar dos de cima, que sobrevive, notadamente na relação com
o Outro de classe.
No início deste texto, comentei o quanto o cinema de Pernambuco, na sucessão destas gera-
ções recentes, vem compondo um conjunto que apresenta fortes conexões, algo não encontrado
com a mesma força em outros focos produtores. O filme de Kleber Mendonça Filho traz uma
síntese em que o passado no presente, o paradigma patriarcal e as questões de classe se articulam
de modo a animar uma recapitulação do percurso desse cinema no período da chamada retoma-
da, assinalando suas constantes, tal como citei na abertura deste artigo. O som ao redor tem esta
notável capacidade de gerar um movimento retrospectivo, ou seja, “criar os seus precursores”,
para citar uma fórmula de Jorge Luis Borges que sobrepõe, à cronologia, uma ordem de relações
em que o diálogo entre as obras expõe de forma mais nítida uma configuração do campo quan-
do surge aquela que, como ponto de convergência, acumulação de motivos e espécie de síntese,
consolida uma nova percepção do conjunto. O foco recai naquele aspecto central do filme que
destaca, de modo revelador, uma problemática que tem mobilizado cineastas que, guardadas as
diferenças de estilo, exploram o motivo temático da permanência do passado no presente, pondo
em cena as camadas de tempo que se acumulam na experiência contemporânea, esta mesma que
resulta de uma modernização incompleta marcada pelas permanências daquele mundo do “ho-
mem cordial” que herdamos do Brasil colônia.
Referências bibliográficas

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Bresciani, Stella & Naxara, Márcia (0rgs.) (2001). Memória e (res)sentimento: indagações sobre
uma questão sensível. Campinas, Editora da UNICAMP.

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sileiro de Resultados. Novos Estudos. CEBRAP, v. 75, p. 139-155, 2006
Ismail Xavier - Possui graduação em comunicação social com habilitação em
cinema (1970), mestrado e doutorado em letras (teoria literária e literatura comparada,
nos anos 1975 e 1980, ambos na USP, orientado por Paulo Emilio Salles Gomes
e Antonio Candido, respectivamente) e pós-doutorado em cinema studies na New
York University (1986). Professor da Universidade de São Paulo. Tem experiência na
área de comunicação, com ênfase em cinema, atuando principalmente nos seguintes
temas: cinema, cinema brasileiro, cinema moderno e contemporâneo, teoria e
história do cinema, cinema e teatro, cinema e pintura, cinema e fotografia, cinema
e fotografia. Seu pensamento e análise do cinema brasileiro influencia o debate
cultural contemporâneo. Publicou os livros O olha e a cena, O cinema brasileiro
moderno, O cinema no século, A experiência do cinema, Sertão Mar: Glauber Rocha
e a estética da fome, O olhar e a cena, entre outros. É membro do conselho consultivo
da Cinemateca Brasileira e conselheiro editorial das revistas Novos Estudos Cebrap
e Literatura e Sociedade.
2. A Desideria: Comédia urbana e condição feminina no Chile dos anos 1940

Fabián Núñez

Santa Cruz Achurra (2011), ao estudar a representação do nacional-popular no cinema


chileno dos anos 1940, década considerada áurea dessa cinematografia durante o período clássico,
constata a diminuição de filmes históricos, gênero comum na produção silenciosa, e o grande
sucesso de comédias e melodramas com sequências musicais, em cujos filmes podemos encontrar
o protagonismo de personagens populares. Tais filmes abordam tanto o ambiente rural quanto o
urbano. Assim, a figura do popular presente nas telas é encarnada sob as duas personas típicas
da chilenidade: o huaso e o roto. No entanto, Santa Cruz Achurra identifica nessa produção
uma presença maior de filmes rurais do que urbanos, enquanto que a sociedade chilena, desde a
década anterior, sofria um forte êxodo rural em direção aos centros urbanos. Além disso, a década
de 1940 é caracterizada pelo domínio do Partido Radical, principal força política que condensou
as aspirações de uma ascendente classe média. A dissolução da república oligárquica e de seu
modelo econômico agroexportador desde os anos 1920, agudizada com o Crash da Bolsa de
Nova York no final dessa década, não apenas pôs na cena política novos atores sociais, como
tornou evidente a amplos setores da sociedade chilena, dos mais variados matizes ideológicos,
a necessidade de reorganizar a economia nacional em outros moldes. Isso significa incentivos à
industrialização em vias a uma substituição de importações e a produção de mercadorias com
alto valor agregado para a exportação - e, desse modo, reequilibrar a balança comercial do país.
Frente a tais desafios, tornou-se consensual uma presença maior do Estado na economia. Nesse
sentido, podemos afirmar que a chegada dos radicais ao poder central, em 1938, pela Frente
Popular, uma coalização de partidos de centro-esquerda, é a culminância de um processo iniciado
desde os anos 1920. E entre tais fatores, um forte discurso modernizador e industrializante, o
que aparentemente entra em contradição com a imagem de um país agrário e vinculado às suas
tradições locais. Portanto, a constatação de Santa Cruz Achurra aparenta indicar um descompasso
entre a sociedade chilena e o seu cinema, já que nos anos 1940 vemos um país se modernizando
sob a égide do Estado, enquanto que boa parte de sua produção fílmica se voltava ao universo
rural, incluindo os seus filmes de maior sucesso de bilheteria. Em suma, apesar do êxodo rural e
do importante papel da classe média urbana e do operariado como força política no país, o huaso
teimava em dar as suas caras nas telas.
No entanto, a constatação de Santa Cruz Achurra de maior volume de filmes rurais se coaduna
com o nacionalismo modernizador que caracterizou o âmbito cultural chileno da primeira metade do
século passado. Como frisa Peirano (2015:47), “o criollismo foi um movimento fundamentalmente
de classe média, que coincidiu com a crise da oligarquia chilena”. Trata-se de um movimento que
buscou criar as bases da identidade nacional chilena, ao consagrar as tradições e os hábitos das
classes populares, sobretudo a camponesa. Assim, apesar dos intelectuais criollistas exaltarem
o ambiente rural, espaço tradicionalmente associado à oligarquia, eram autores em sua expressa
maioria dos extratos médios urbanos. Nesse sentido, não há um descompasso entre a sociedade
chilena e a sua produção fílmica, pois o elogio ao campo vai ao encontro da corrente criollista.
Por sua vez, como frisa Peirano, existe, sim, uma contradição na intelectualidade chilena da
primeira metade do século XX ao testemunharmos dois discursos sobrepostos e antitéticos: um
discurso modernizante, que busca alçar o país ao status de nação avançada, buscando criar uma
imagem do Chile como um país radicalmente distinto de uma “republiqueta das bananas”, com o
intuito de se autopromover como um país civilizado com um povo ordeiro, e o discurso criollista,
de exaltação à tradição e à geografia local. Porém, podemos afirmar que tais discursos não entram
em contradição, pois como frisa Gutiérrez (2008), a exaltação do mestiço chileno encarnado sob
a imagem do “roto patriota”, fruto do sangue entre os belicosos espanhóis e os índios araucanos,
denota um elogio ao papel do “povo” na formação e consolidação da Nação chilena, em especial,
à sua ação nas Guerras da Independência (1812-1826), contra a Confederação Peru-Boliviana
(1836-1839) e do Pacífico (1879-1883). Assim, o roto é caracterizado como um tipo popular, uma
pessoa humilde, ingênua, bem-humorada e brincalhona, mas que não se isenta ao ser chamado
pelo dever, sendo capaz de atos de bravura, movido por sua índole altruísta. Em suma, o elogio
às camadas populares dialoga com a ideia desejada de o povo chileno ser “ordeiro”, apesar de sua
latinidade. É sob esse olhar glorioso que o roto foi literalmente monumentalizado, quando, em
outubro de 1888, é inaugurado o Monumento ao Roto Chileno, localizado na Praça Yungay, em
Santiago. Em 1888, ano da inauguração do monumento, é instituída a data de 20 de janeiro como
o “Dia do Roto Chileno”, oficialmente comemorado até hoje na referida praça com a deposição
de flores por autoridades civis e militares.
Santa Cruz Achurra (2008) identifica nos filmes históricos do cinema silencioso chileno a
presença dessa face do roto. Portanto, é o roto patriota que é digno de estar presente nas telas
nacionais, i.e, o personagem popular que combate e morre anonimamente pelo país e não o roto
alzado, “insolente e rebelde, que questiona ou resiste (...), figura que na virada do século se
associou à ação do agitador estrangeiro”. Por sua vez, Gutiérrez (2008) chama a atenção de que
o elogio ao roto por parte dos intelectuais no começo do século XX se refere a um momento do
passado, como um tipo popular em extinção, o que pressupõe que a classe trabalhadora chilena
perdeu (ou estava perdendo) o seu caráter singelo, bonachão, valoroso e ordeiro. Portanto, de
ofensa a símbolo nacional, a figura maltrapilha do roto chileno jamais foi uma unanimidade
entre a intelligentsia nacional, pois um tom pejorativo sempre o espreitava. Nesse sentido, é
bastante diverso em relação à figura do huaso, considerado sem controvérsias como um símbolo
positivo de chilenidade. Isso se deve ao fato de que o criollismo se voltou para as camadas
populares rurais, calcando-se na tradição herdada dos tempos coloniais. Portanto, a contradição
apontada por Peirano se deve ao aspecto cosmopolita da modernidade que se choca com o caráter
tradicionalista do criollismo. Inclusive, Peirano interpreta como um dos pontos da crise da
Chilefilms, essa contradição discursiva presente em seu projeto de cinema.
Também podemos citar como um sintoma da dissolução da república oligárquica a criação de
uma legislação trabalhista no país, o que denota o papel dos movimentos sociais. Assim, nos anos
1920, vemos a promulgação de tais leis, durante a presidência de Arturo Alessandri Palma, que
finalmente ganha um ordenamento jurídico com o Código de Trabalho decretado com força de
lei em 1931, durante a ditadura do general Carlos Ibáñez del Campo. No entanto, como afirmam
os estudiosos, tal legislação não foi executada de modo pleno e satisfatório. Por outro lado, é
importante ressaltar que ambos mandatários citados, Alessandri e Ibáñez, são simplesmente as
duas principais figuras políticas chilenas da primeira metade do século XX, logo, associados à
reorganização socioeconômica do país provocada pela crise da república oligárquica. Apesar
de ambiguidades ideológicas e, no caso de Ibáñez, do caráter autoritário de seu governo, são
mandatários que receberam apoio popular e, não por acaso, são figuras que a historiografia
associou ao fenômeno do populismo na América Latina.
Podemos também entender como um sintoma de transformação da sociedade chilena os
direitos conquistadas pelas mulheres. Desde fins do século XIX, podemos constatar a ação de
grupos femininos em prol da conquista de direitos para as cidadãs chilenas, sendo uma das
primeiras conquistas importantes o direito ao ensino superior em 1877. No entanto, o sufrágio
feminino no Chile se dará bem mais tarde e de modo gradual. Em 1934, conseguem o direito ao
voto para eleições municipais. Em seguida, passa a tramitar no Congresso Nacional um projeto
de lei para o sufrágio pleno feminino, apoiado por parlamentares de vários partidos, mas, no
entanto, o projeto não é aprovado em 1941 para surpresa geral. O que se postula é a apreensão por
parte da classe política sobre o comportamento do eleitorado feminino, que poderia desestruturar
a frágil correlação de forças políticas, sobretudo no período citado, o governo da Frente Popular.
Como frisam López Varas e Gamboa Valenzuela (2015), é por esse viés que podemos entender
a negação ao sufrágio pleno feminino, uma vez que as eleitoras chilenas tendiam a posições
políticas conservadoras. Aliás, a literatura sobre o tema chama a atenção para a relação entre o
eleitorado feminino e a vitória de Ibáñez del Campo nas eleições presidenciais de 1952, apoiando
a sua campanha eleitoral em um discurso moralista de crítica à classe política nacional. Trata-se
das primeiras eleições presidenciais às quais participaram as cidadãs chilenas, uma vez que o
sufrágio pleno feminino é conquistado somente em 1949. Assim, o Chile é o décimo-segundo
país latino-americano a ter o voto feminino.
Portanto, se o Chile estava se modernizando, ainda que os aspectos autoritários do país
permanecessem bastante ativos, como pensar então a figura do roto nesse processo? Como analisa
Salinas Campos (2006), o roto presente na indústria cultural do Chile do começo do século XX
(imprensa, teatro de revista, rádio, cinema) deita raízes a uma vasta tradição satírica de tom social
e político que existe na imprensa chilena desde o período colonial, oriunda do universo picaresco
tão fortemente entranhado no imaginário espanhol. Desse modo, essa faceta do roto chileno é
uma versão criolla do pícaro, devidamente (sub) urbanizado, sendo possível aproximá-lo então
das figuras do pelao mexicano e do golfo espanhol. No entanto, Santa Cruz Achurra interpreta a
picardia do roto dos filmes de José Bohr como “a imagem do popular subordinado, mas simpático,
ainda que posto nos marcos do urbano e do moderno, sem abandonar o fundamental da matriz
identitária conservadora” (2011:139). No entanto, o autor faz uma distinção entre as personagens
interpretadas por Eugenio Retes, considerado o principal ator cômico a encarnar o roto no
cinema chileno, e Ana González, especialmente a sua personagem Desideria, de origem teatral
e, posteriormente, migrada para a rádio e o cinema. Assim, geralmente, o roto protagonizado por
Retes expressa o “popular subordinado”, enquanto que a personagem da empregada doméstica
interpretada por Ana González, a Desideria, expressa um discurso profundamente crítico.
Ana González é uma atriz de prestígio, com carreira no teatro, rádio, cinema e televisão.
Autodidata, é considerada uma “grande dama do teatro chileno”, ao ter-se iniciado profissionalmente
no teatro popular e, posteriormente, se incorporar ao chamado “teatro universitário”, que se inicia
nos anos 1940, criado no governo da Frente Popular. Começa a sua carreira em peças cômicas
encenadas pelos chamados Conjuntos Obreros, companhias de teatro formadas por trabalhadores
e voltados para o público popular. Segundo Ruiz Vera (2002: 35-36), a personagem Desideria é
fruto da sensibilidade de sua criadora, a atriz Ana González, em relação às recentes transformações
ocorridas na sociedade chilena. Uma delas é a promulgação da Lei nº 4.054, em 1924, que cria o
primeiro mecanismo legal de seguro social dirigido aos trabalhadores, o que também incluía as
empregadas domésticas. Tanto que em seus diálogos, Desideria demandava aos seus patrões o
recolhimento exigido pela lei. Assim, Desideria surge nos palcos em monólogos cômicos, textos
usados como “entreato”, quando a cortina era baixada para as mudanças de cenário durante o
espetáculo. Contratada para a companhia de teatro de revista do dramaturgo Carlos Cariola,
González começa a conhecer o êxito de sua personagem em 1939. Após uma das sessões, o
roteirista e produtor Gustavo Campaña convida Ana González a encarnar a personagem para
um programa que estava em vias de produção para a Rádio Pacífico. Inicialmente, o programa
humorístico se intitula La família Verdejo, mas depois muda o nome com o qual fica consagrado
na história da radiofonia nacional: La família chilena. E assim, Desideria emite a sua voz pela
primeira vez em 1º de junho de 1940. Segundo Ruiz Vera (2002: 38-39), Ana González havia
feito uma exigência aos produtores do programa - que em sua estreia atrás do microfone radial,
ela estivesse, assim como nos palcos, caracterizada como Desideria. E o seu desejo foi atendido.
O sucesso da personagem é imediato, tanto que em 1941, Ana González retorna aos palcos
para protagonizar a revista Las locuras de la Desideria, escrita por Amadeo González e Roberto
Retes. Segundo Peirano, é após uma sessão dessa peça, que José Bohr convida Ana González
a levar Desideria para as telas, o que de fato ocorre em dois filmes, P’al otro lao (1942) e El
relegado de Pichintún (1943). Ressaltamos que em La dama de las camelias (José Bohr, 1947),
apesar da personagem se chamar Desideria de los Ríos, não é a persona da empregada doméstica
que encontramos, mas uma atriz de teatro popular às voltas com uma produção cinematográfica,
o que encerra um teor biográfico entre a personagem e Ana González. Produção da Chilefilms,
o filme La dama de las camelias pode ser entendido como uma autoparódia da empresa, o que é
mais um motivo para interpretá-lo como um dos filmes mais impressionantes da cinematografia
chilena. No entanto, a estreia de Ana González no cinema se dá antes do surgimento de Desideria.
Trata-se de Entre gallos y medianoche (Eugenio De Liguoro, 1940), adaptação da peça de Carlos
Cariola, no qual González interpreta um papel secundário, mas que foi fundamental nos rumos
de sua carreira: a empregada doméstica Catita. Segundo Ruiz Vera (2002: 34), meses depois, Ana
González cria a Desideria nos palcos. Mas diferente de sua personagem interpretada no filme, a
sua criação é mordaz com os preconceitos de seus patrões.
Assim como a expressa maioria de suas colegas reais de profissão, a empregada doméstica
Desideria migrou do interior para a capital, mas de caipira boba e ingênua não tem nada. Desideria
possui um ar de sabichona, trejeitos de “boas maneiras”, de uma suposta “boa educação” que nunca
teve, também expressa pelo uso de expressões em Inglês e Francês, pondo-se em geral acima dos
demais empregados da casa. Ou seja, vemos uma ironia aos ares esnobes típicos da oligarquia
chilena emulados por sua vez pela classe média arrivista. Nesse sentido, também podemos
entender a Desideria como uma brincadeira com o estereótipo do chileno em seu tom esnobe,
zeloso pela formalidade e pelos bons modos, o que não deixa de manifestar uma autoatribuída
superioridade em contraste com os seus vizinhos, os galego-italianizados argentinos e os cholos
peruanos e bolivianos.
Também podemos aproximar o linguajar de Desideria com a chamada “cantinflada”, o
linguajar verborrágico de Cantinflas. Oriundo do teatro de variedades e dos espetáculos
circenses, Mario Moreno, o Cantinflas, migra para as telas com esse humor picaresco surgido nos
arrabaldes de uma Cidade do México em plena expansão, sob o ensejo do projeto modernizador
do Estado pós-revolucionário mexicano. Como frisa Bragança (2003), Cantinflas é um pelao, um
peladito, personagem do folclore urbano mexicano, uma figura da periferia da Cidade do México,
socialmente excluído, de um falar grosseiro e popularesco. No entanto, assinala Bragança,
“Cantinflas apresenta um peladito mais cômico, mais burlesco, menos agressivo, mas não menos
inquieto e incômodo”. Nesse sentido, podemos abrir como chave de interpretação à figura de
Desideria um tom crítico ao projeto modernizador capitaneado por um Estado ilustrado, que
almeja educar as massas – no caso chileno, associado ao governo da Frente Popular do presidente
Pedro Aguirre Cerda.4 Voltamos a repetir, é apenas por esse viés de leitura, pois a forma de falar
4 Sublinhamos que o lema da campanha presidencial de Aguirre Cerda era “Governar é educar”.
Seu governo ocorre de 1938 até a sua morte, ocorrida em 25 de novembro de 1941, sem concluir seu
mandato. São convocadas novas eleições, sendo eleito Juan Antonio Ríos, prosseguindo a perma-
nência dos radicais no poder central. Ríos tampouco conclui o seu mandato presidencial, pois falece
em si de Desideria nada tem a ver com a metralhadora verborrágica de Cantinflas.5
A personagem de Desideria nos faz lembrar a célebre personagem, também de origem
radiofônica e posteriormente migrada para o cinema, de Cándida, protagonizada pela atriz
argentina Niní Marshall. Por isso, entendemos que um estudo comparativo entre Desideria e
Cándida, logo, entre González e Marshall, merece ser realizado. Ou o caso da Índia María no
cinema mexicano, interpretada por María Elena Velasco, um fenômeno mais tardio, a partir dos
anos 1970, uma personagem surgida na televisão que também migrará para as telas grandes. Assim,
como é promissor pensar em demais análises comparativas em relação a outras personagens
de empregadas domésticas no cinema latino-americano, como são os casos das personagens
de empregadas domésticas encarnadas por Dercy Gonçalves e Zezé Macedo nas chanchadas
brasileiras.
Para finalizar, analisaremos o filme P’al otro lao (José Bohr, 1942).6 É uma coprodução
chileno-argentina, rodada nos Estúdios de La Plata e processada nos Laboratórios Alex, ambos
em Buenos Aires.7 A trama se inicia com Desideria, escutando no rádio, enquanto está na cozinha,
uma promoção cujo prêmio é uma viagem a Buenos Aires. No entanto, o sonho de Desideria em
conhecer a capital argentina imediatamente ocorre, mas de um modo inusitado. Os seus patrões,
Sara (Sara Barrié) e o seu afilhado bon-vivant Jorge (Alberto Closas), recebem um telegrama de
Blás Pastrana, o tio rico de Jorge que vive na Argentina, solicitando a ida de ambos para o outro
lado dos Andes, e deixando bastante claro que a empregada Desideria deveria ir junto com eles.
Em terras rio-platenses, são recebidos pelo primo Silvio (Enrique Vico) e pela sua bela filha
Mabel (Mabel Urriola). Literalmente em seu leito de morte, o tio Blás, diante de Sara, Silvio e do
tabelião Don Lorenzo, se diz arrependido de seus erros do passado, tendo sido o maior de todos,
o não reconhecimento de uma filha, fruto de um “deslize” com uma criada. É claro que Desideria
é a herdeira, mas como frisa o tabelião, há uma cláusula no testamento: Desideria só deve tomar
conhecimento de sua verdadeira origem quinze dias após a morte de Blás e ela somente herdará a
fortuna de 27 milhões de pesos argentinos se, no momento em que ela for comunicada, Desideria

em 1946. Em novas eleições, é eleito Gabriel González Videla, o último dos mandatários da hegemo-
nia radical, que governa até 1952.
5 Segundo Kriger (2005: 86-87), citado por Mestman (2005: 24), o modo de falar de Catita, a
célebre personagem criada pela atriz argentina Niní Marshall, caracterizado pelo cocoliche (o linguajar
oriundo da mistura do Castelhano com dialetos italianos, forjado pelos imigrantes em Buenos Aires),
traz para a tela setores sociais até então invisíveis, aproximando, desse modo, Catita a Cantinflas.
No entanto, voltamos a repetir, entendemos a comicidade de Desideria como uma sátira ao caráter
pernóstico e arrogante do linguajar das elites e camadas médias chilenas.
6 Agradecemos a Mónica Villarroel, diretora da Cineteca Nacional de Chile, e, em especial, a
Marcelo Morales, funcionário da Cineteca e diretor e webmaster do site Cinechile - Enciclopedia del
cine chileno, o acesso ao filme em questão.
7 Frisamos que o filme tem dois títulos. A obra foi lançada na Argentina com o título 27 millones.
A estreia chilena ocorreu em Santiago, em 15 de dezembro de 1942, enquanto que a estreia argenti-
na, ocorrida em Buenos Aires, foi em 8 de maio de 1947. Informações retiradas dos sites Cinechile e
Cinenacional. Disponível em: <http://www.cinechile.cl/pelicula-676> e <http://www.cinenacional.com/
pelicula/27-millones>. Acesso em: 29 abril 2018.
estiver legalmente casada. Caso contrário, a fortuna irá para o Estado e Desideria terá direito
apenas a uma pensão mensal de 300 mil pesos argentinos.
Imediatamente, a empregada se torna alvo de planos “caça-fortunas”. O tabelião sugere a
Silvio, que se encontra com dificuldades financeiras, que se case com Desideria, mas Silvio crê
ser difícil, pois o jovem primo chileno Jorge está no páreo. Como competir contra a juventude?
Ora, o tabelião esperto tem a resposta: empurre a jovem Mabel para Jorge, deixando o caminho
livre para Silvio conquistar Desideria. Caso se conclua o plano, o tabelião receberia a sua parte,
10% da fortuna. Por sua vez, Mabel se mantém fiel a um namoradinho de juventude, o primo Tito,
que mora na fazenda da família. Há dez anos, ambos não se veem, trocando juras de amor por
correspondência. Em um determinado momento, ao invés de disputa, é proposta por Sara uma
junção de esforços: Jorge se casa com Desideria e a sua madrasta Sara se casa com Silvio, ficando
assim “tudo em família”. Para bagunçar mais o coreto, o primo Tito chega a Buenos Aires, vestido
de gaucho (interpretado pelo ator cômico argentino Tono Andreu). O encanto entre ele e Mabel
se quebra e é imediato o interesse mútuo entre Tito e Desideria – obviamente, o par cômico
forma um casal. Porém, ocorre um quiproquó, estrutura cômica típica, pois em um determinado
momento, Mabel crê que Jorge está de fato interessado em Desideria, o que seria de agrado à sua
madrasta Sara. Mas o mal entendido é logo dissipado e os correspondentes casais ficam juntos em
segredo (Jorge e Mabel, Desideria e Tito e Sara e Silvio). No dia seguinte, todos têm um anúncio
a fazer, mas Desideria é surpreendida ao ser cumprimentada por sua patroa, que agora crê ser
sua sogra. Imediatamente, Desideria acha graça da situação e anuncia que seu marido é Tito, não
Jorge. Desesperados, Silvio, Sara e o tabelião, crentes que o laço matrimonial, realizado na noite
anterior, tinha sido feito com Jorge, gritam para Desideria de que ela é agora uma milionária,
herdeira de 27 milhões de pesos. Atormentada, Desideria fica confusa... No entanto, tudo se
desvanece ao sabermos que toda a história não passa de um sonho. Assim, Desideria acorda na
cozinha, cujo sono tinha sido embalado pela voz do rádio.8
Destacamos a transformação sofrida por Desideria ao longo do filme. Com o pretexto de
deixá-la mais à vontade na viagem, a sua patroa Sara junto com o primo argentino Silvio, dão
um “banho de loja” à empregada. Em uma sequência, sob a marca da música do início do filme,
cuja letra versa sobre a dura vida de empregada doméstica em sua labuta diária, vemos Desideria
passar pelo cabeleireiro e pela manicure, preparando-a para a agitada vida noturna de Buenos
Aires. Transformada, Desideria exagera em seus trejeitos de madame, tornando-se em alvo de
galanteios tanto de Silvio quanto de Jorge. E, assim, todos vão a uma boate, situação dramática
para inserção de números musicais – uma das quais é uma apresentação da atriz e cantora Tita
Merello.
Em suma, vemos uma comédia centrada numa herança deixada a uma pobretona e um troca-
8 Podemos interpretar o sonho de Desideria como uma crítica às promessas de ascensão social
difundidas pela indústria cultural? Em Hollywood es así (Jorge Délano, 1944), um dos filmes chilenos
mais instigantes dos anos 1940, ao lado do citado La dama de las camelias, a jovem María Contreras
(María Maluenda), moradora da cidade de Los Andes, ganha um concurso de rádio que lhe permite
troca de casais. No entanto, além do aspecto social, podemos afirmar que há também uma questão
geracional, pois são justamente os mais velhos (Silvio, Sara e o tabelião) os mais interessados no
dinheiro, enquanto que em determinado momento os ditames do coração falam mais alto entre os
jovens (Jorge e Mabel e Desideria e Tito). Assim, é possível afirmar que vemos marcas de uma
estrutura clássica que deita raízes na comédia latina, nos textos de Plauto e Terêncio, na qual é
comum a presença de percalços de um jovem casal em confronto com os interesses egoístas de
um antagonista mais velho, que geralmente encarna uma ordem decadente.
No entanto, apesar do filme possuir um tom conservador em termos sociais, destacamos o
temor que abate Desideria no início da trama, antes das tribulações ocorridas na capital argentina:
a súbita perda de desejo pelo seu affair Arturo, posteriormente readquirido. Em suma, se no final
das contas é destinado a Desideria um companheiro de sua mesma classe social, impedindo-a,
desse modo, a ascensão social mesmo que seja pelo matrimônio - como, por exemplo, nas
chanchadas Cala a boca, Etelvina (Eurides Ramos, 1958) e Minervina vem aí! (Eurides Ramos,
1959), protagonizadas por Dercy Gonçalves, ou em Cándida millonaria (Luis Bayón Herrera,
1941), estrelada por Niní Marshall, comédias nas quais a empregada doméstica muda de vida,
pois um ricaço se apaixona por ela -, Desideria conquista a felicidade pela via do desejo. Uma das
gags do filme é que, toda vez que Desideria está “interessada” por um homem, ela tem soluços.
Ou seja, uma piada de forte tom erótico – os espasmos em seu corpo -, que é apresentada logo
no começo do filme, quando na cozinha, recebe Arturo com as compras do armazém. Desideria
reclama que não tem mais soluços quando está com ele. Inclusive Desideria pede que Arturo a
abrace bem forte, o que não surte nenhum efeito, o que a deixa desolada. Porém, quando está
em Buenos Aires, Desideria retoma os seus soluços. No final do filme, de volta à realidade - ou
seja, ao Chile e à sua condição de empregada -, Desideria encontra a felicidade, mas não pelo
dinheiro, mas por ter recobrado a sua capacidade de “ter soluços”. Assim, é instigante pensar
como o tema da sexualidade feminina aparece em uma comédia aparentemente tão singela. Em
suma, precisamos assistir com mais apuro aos filmes latino-americanos em seu período clássico.
Ainda bem que, recentemente, estamos nos detendo com mais cuidado a esse período.

viajar aos Estados Unidos. Abandona o seu noivo (Pedro de la Barra), um jovem médico que se opõe
aos sonhos da moça de se tornar uma estrela de cinema. Após vários percalços na América do Nor-
te, volta ao Chile e aos braços de seu amado, convencida do quão ilusório é a vida em Hollywood.
É possível uma leitura de viés conservador ao filme, ao destinar à jovem artista o papel de esposa,
mas também podemos interpretá-lo como uma sagaz crítica aos papéis reservados aos latinos em
Hollywood. Lembremos que o diretor Jorge Délano havia passado pelos estúdios californianos no
começo dos anos 1930, com o objetivo de estudar in loco a recente tecnologia do cinema sonoro. Em
relação a P’al otro lao, caso entendermos o sonho de Desideria como uma crítica à indústria cultural, é
curioso essa crítica ser feita justamente pela presença de uma estrela da rádio, i.e., Ana González - e
a própria personagem Desideria, um fenômeno radiofônico.
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Filmografia
P’al otro lao, José Bohr, Chile/Argentina, 1942.
El relegado de Pichintún, José Bohr, Chile,1943.
La dama de las camelias, José Boh, Chile, 1947.
Entre gallos y medianoche, Eugenio De Liguoro, Chile, 1940.
Hollywood es así ,Jorge Délano, Chile, 1944.
Cala a boca, Etelvina, Eurides Ramos, Brasil, 1958.
Minervina vem aí!, Eurides Ramos, Brasil, 1959.
Cándida millonaria, Luis Bayón Herrera, Argentina, 1941.

Fabián Nuñez - Professor do departamento de cinema e vídeo da Universidade


Federal Fluminense (UFF), onde também leciona no Programa de Pós-Graduação
em Cinema e Audiovisual (PPGCine). Sua formação acadêmica foi inteiramente
realizada na Universidade Federal Fluminense: bacharel em comunicação social
(habilitação em cinema), em 2000, mestre em comunicação, imagem e informação,
em 2003, e doutor em comunicação, em 2009. É membro da Associação Brasileira
de Preservação Audiovisual (ABPA), fazendo parte de sua direção durante a gestão
2012-2014. É pesquisador vinculado à PRALA (Plataforma de Reflexão sobre o
Audiovisual Latino-Americano), além de atuar no projeto de extensão Cineclube
Sala Escura, focado na difusão do cinema latino-americano.
3. Modernidad mexicana: cine y literatura en la transición de los años sesenta

Javier Ramirez

Con el final de la Guerra Mundial en 1945, terminan también algunas de las condiciones eco-
nómicas que favorecieron el desarrollo de la industria fílmica nacional en los años del conflicto.
Lentamente, los países hegemónicos de la década anterior recuperan su ritmo de producción y,
con ello, su peso en los mercados hispanoamericanos. México conservará una inercia positiva por
los siguientes años, pero a mediados de la década siguiente la situación será de un franco estanca-
miento. Este proceso coincide con otro en sentido inverso: la economía mexicana, impulsada por
las condiciones de la guerra se desenvuelve con solidez y el crecimiento impacta en el desarrollo
general de la clase media urbana que se ve favorecida y alentada por el desarrollo económico.
Hacia finales de los años cincuenta este desarrollo se refleja en la presencia de la clase media
urbana mediante grandes proyectos habitacionales. El conjunto habitacional Nonoalco Tlatelol-
co, al norte de la ciudad de México, se erige como el primer paso de la modernización de una
ciudad que deseaba renunciar a su talante premoderno, a su perfil rural y que, con ello, deseaba
mostrarse como una urbe progresista, en órbita con las tendencias mundiales. Diseñada por el
arquitecto Mario Pani, la unidad habitacional formaba parte de un proyecto más ambicioso cuya
finalidad era ir paulatinamente eliminando las zonas marginales que rodeaban el centro de la
capital, para ello se construyeron grandes edificios en los terrenos que habían pertenecido a la
estación de ferrocarriles y que ocupaban cientas de construcciones miserables. La inauguración,
en 1964, incluía la ampliación de la Avenida de la Reforma, desde el poniente de la ciudad hacia
el Norte, que vinculaba a dos zonas altamente contrastantes en cuanto al nivel de ingreso de sus
habitantes. El evento sucedía justamente en los últimos meses del gobierno de Adolfo López
Mateos, un presidente cuyo periodo está marcado al mismo tiempo por un constante discurso de
modernización del país y por una fuerte represión a los sectores populares, cuyas reivindicacio-
nes hacían notar que el proceso modernizador de las últimas décadas había beneficiado de manera
desigual a la población mexicana.
Esta tensión era quizá el reflejo de otra existente entre tradición y modernidad, y que en el
cine mexicano de la época iba a encontrar un escenario privilegiado para mostrarse. Si bien la
industria mexicana de la llamada “época de oro” mostraba una gran afinidad al gobierno revolu-
cionario y al discurso oficial, y las críticas que se mostraban en la pantalla tenían más que ver con
la existencia de agentes del pasado que impedían la transformación nacional, muy pronto nuevos
participantes de la industria del cine tomarían la voz para contradecir el proceso. La llegada de
Luis Buñuel hacia 1947, sería uno de estos puntos de inflexión.
1.
Pocos años atrás, y justamente en los terrenos en que se construiría la Unidad Habitacional de
Tlatelolco, Luis Buñuel filmaría Los olvidados, una reseña descarnada de la vida en aquel arrabal
a través de las anécdotas de un grupo de niños en condiciones de miseria. La cinta ponía a cuadro
una visión muy alejada de la que el cine nacional había proyectado, enfatizando la miseria moral
de los personajes, subrayando la pobreza como causa de la condición moral de los personajes y
cuestionando algunas de las figuras que desde el cine mexicano anterior se habían enaltecido,
como el ciego bueno o la figura de la madre abnegada. En una escena de la cinta, el grupo de
jóvenes liderados por el “jaibo”, siguen al ciego Don Carmelo hacia un descampado donde lo
atacan. La escena transcurre justo en esos terrenos: al fondo, la estructura de una construcción
atestigua los hechos mientras se sintetiza, en esa imagen, la contradicción entre una ciudad que
aspira a modernizarse y los lastres que enfrenta.
El estreno en México de Los olvidados en 1950, provocaría una reacción muy airada de diver-
sos sectores de la sociedad mexicana que veían denigrada la dignidad de la patria y amenazaban
con expulsar del país a los autores del agravio. La presencia de la cinta en el Festival de Cannes
al año siguiente se convertiría en la oportunidad de resarcir el daño, al proyectar la película en
un medio diferente que con su juicio validaría su factura. El poeta mexicano Octavio Paz, quien
trabajaba en la embajada de México en París, tomó la causa como propia, aprovechó todos los
contactos y medios posibles, hizo que fuera vista, imprimió y repartió volantes. El jurado otorgó
el premio de mejor director de ese año a Luis Buñuel y ese hecho significó un cambio importante
en la percepción que en el país se tenía de la propia película. Paz se encargó de la defensa de la
cinta también en México y a la distancia: hizo que don Fernando Benítez, director del suplemento
cultural más importante de la época, publicara varios textos al respecto y, a partir de ahí la cinta
fue revalorada por el público mexicano. Octavio Paz defendía la película y a su realizador pues
consideraba que ella contenía el “desenlace” del surrealismo, pues lograba juntar al relato tradi-
cional “las imágenes irracionales que brotan de la mitad oscura del hombre”, y escribió: (Sheri-
dan LL)

“Sorprende sobre todo el rigor con que Buñuel lleva hasta sus límites extremos sus pri-
meras intuiciones. Por una parte, Los olvidados representan un momento de madurez
artística; por la otra, de mayor y más total desesperación: la puerta del sueño parece cer-
rada para siempre; solo queda abierta la de la sangre. Sin renegar de la gran experiencia
de su juventud, pero consciente del cambio de los tiempos –que ha hecho más espesa
esa realidad que denunciaba en sus primeras obras–, Buñuel construye una película en
la que la acción es precisa como un mecanismo, alucinante como un sueño, implacable
como la marcha silenciosa de la lava.” La cinefilia no es patriótica, Octavio Paz 1951
Este episodio significó el inicio de una relación fundamental entre el artista de origen arago-
nés y la intelectualidad mexicana de la posguerra. Paz, quien era amigo cercano de los surrealis-
tas, fue también una presencia dominante en la cultura mexicana de aquella época. De tal forma
que este acercamiento produjo otro entre el medio cinematográfico y la intelectualidad del medio
siglo. Así, en 1954 la Universidad Nacional de México, cuyo departamento de difusión cultural
estaba encabezado por otro poeta, Jaime García Terrés, comenzó un vínculo con la cinematogra-
fía que continúa hasta la actualidad y que daría muchos frutos en los siguientes años. En un con-
texto donde el cine se intelectualizaba y, bajo la influencia europea, se le comenzaba a considerar
no sólo un arte, sino incluso una forma de pensamiento, en la Facultad de Filosofía se propuso
hablar con la mayor seriedad posible del medio fílmico, mediante una serie de conferencias que
fueron inauguradas nada menos que por el propio Buñuel quien, desde ese momento, va a ejercer
un fuerte liderazgo moral en los jóvenes escritores y aspirantes a cineasta que se agrupan en las
aulas universitarias.

2.
La historia de la cultura en América Latina está marcada a lo largo del tiempo por una tensión
constante entre tradición y modernidad que se materializa en formas diferentes. Por ejemplo la
tensión existente entre nacionalismo y universalismo que marcó muchos debates de la primera
mitad del siglo XX. El medio mexicano de la posguerra atestiguó la irrupción de una generación
de jóvenes insertos en la vida cultural con el énfasis crítico en el nacionalismo hegemónico desde
la Revolución y en su proceso de anquilosamiento como retórica oficial. Los discursos “revolu-
cionarios” en el arte, particularmente en la plástica, pero con derivaciones diversas en otras dis-
ciplinas, se veían cada vez con mayor desconfianza como formas válidas de expresión artística.
Así, cuando en 1956, se publicó el manifiesto de “La cortina del nopal”, los jóvenes pintores
agrupados en torno a José Luis Cuevas, proponían un enfrentamiento directo con la retórica de
la pintura mural. Actitud que se repetiría con el grupo Nueva Música de México y más adelante,
con el cine. Ciertamente, la actitud crítica de la intelectualidad tenía que partir de un distancia-
miento con el modelo nacionalista y en ese sentido les venía muy bien la figura de Buñuel, ar-
tista con un amplio reconocimiento en Europa, con una trayectoria ya muy importante y cuyos
criterios fílmicos, modos de producción y obsesiones temáticas estaban formados en un medio
distinto al doméstico. Una crítica de este tipo implicaba, en alguna medida, la aceptación de la
imposibilidad de generar un modelo nuevo sin tener el referente europeo, pero implicaba sobre
todo la necesidad de asomarse a Europa en contraste con el arte de la Revolución al que la nueva
generación veía como anquilosado y como discurso de un régimen que representaba el pasado.
Ser moderno es una obsesión de esta generación, y el cine uno de sus caminos.
Pero la llamada modernidad fílmica no fue nunca una forma de discurso que se opondría a
otra, como el discurso clásico hegemónico de las décadas anteriores por ejemplo. Era, es cierto,
una actitud crítica hacia el modelo anterior, pero que propone una diversidad de respuestas posi-
bles; para el caso mexicano, los caminos aclaraban muy bien el objeto de la crítica pero no uni-
ficaban la respuesta posible. Los jóvenes aspirantes a cineastas de finales de los años cincuenta
tenían claro qué cine no querían hacer, el de los años anteriores en México, y gracias a Buñuel
ya sabían qué actitud sí querían adoptar y cuál cine querían desarrollar. Buñuel es la modernidad
que esa generación buscaba.
Sin embargo, el propio cineasta se veía a sí mismo como un artista alejado de una actitud
en ese tenor, era un creador individual, con una fuerte conciencia crítica y un claro objeto de su
quehacer: denunciar la moral burguesa, pero distante del movimiento propio del cine que se suele
etiquetar como moderno, como militante del surrealismo pertenecía directamente al movimien-
to vanguardista y desconfiaba tanto del modernismo fílmico como del cine clásico en el que se
inspiraba. Era, por ejemplo, un fuerte crítico del movimiento neorrealista en el que veía el peso
de un catolicismo irresuelto, la vanguardia italiana de la posguerra, militantes comunistas pero
también del catolicismo.9

3.
Para 1960 se reúnen una serie condiciones para proponer una renovación del cine mexica-
no, que se suman a un fuerte retroceso en los ingresos de la industria que han caído por varios
años consecutivos. La puntilla es un intento de una ley de censura que acaba por amalgamar a
diferentes sectores culturales que, en lo individual o en grupo, querían rescatar al cine nacional
mediante su “modernización”. Estas reuniones acabarían por conformar un grupo de escritores y
artistas de otras disciplinas que se denominaría ejemplarmente “Nuevo Cine”. Un año más tarde
publicarían una revista y un manifiesto en los que propondrán una serie de medidas concretas
para lograr la ansiada renovación y la superación de lo que denominaron “el deprimente estado
del cine mexicano”.10
Dos personajes centrales en este movimiento que no llegan a firmar el manifiesto son el
propio Buñuel, quien participa en las reuniones preparatorias y con su presencia afirma en los
jóvenes el potencial de cambio, y el escritor Carlos Fuentes. Fuentes contaba con treinta y dos
años y había cobrado una presencia incuestionable incluso a nivel internacional a partir de la
publicación en 1958 de La región más transparente del aire, novela experimental, innovadora y
muy arriesgada, que se erigía como la gran crónica de una ciudad de México que había vivido un
vertiginoso proceso de crecimiento. La novela fue un testimonio, como pocos, de las dialécticas
de la modernización y los procesos urbanos de la ciudad. Relato monumental, que ponía el acento
en las tensiones entre cambio y tradición, en las diferencias de clase que determinan el devenir de
la ciudad y, para ello, en las diferencias de los modos de expresión de los personajes. Las formas
9 Neorrealismo
10 José de la Colina, Rafael Corkidi, Salvador Elizondo, J. M. García Ascot, Emilio García Rier, J.L. González de León, Heriberto Lafranchi, Car-
los Monsiváis, Julio Pliego, Gabriel Ramírez, José María Sbert, Luis Vicens “Manifiesto del grupo nuevo cine”, Nuevo cine, núm. 1 (Abril 1961): 3.
del habla son expuestas como formas de pensar y actuar, de vivir y habitar la urbe.
Fuentes tenía en su joven pero importante trayectoria una relación intensa con el cine, había
ejercido la crítica y en sus relatos incluía diversas referencias que daban cuenta de una cinefilia
y de un gusto muy actuales que incluían citas de Truffaut o de Antonioni. Pronto comenzaría a
colaborar directamente como dialoguista y adaptador también. Su novela Las buenas conciencias
publicada en 1962, tenía la siguiente dedicatoria:

A LUIS BUÑUEL,
gran artista de nuestro tiempo,
gran destructor de las
conciencias tranquilas,
gran creador de la esperanza
humana.

Si Fuentes no fue participante directo de Nuevo Cine, sí era una voz presente en el mismo
sector cultural, y serían varios más los escritores de esa misma generación quienes harían el tra-
bajo en la Revista, entre ellos Jomi García Ascot, José de la Colina o Salvador Elizondo. Elizondo
firmó el manifiesto en 1961 y en el primer número de la revista publicó el artículo “Moral sexual
y Moraleja en el cine mexicano”. En él, reafirma el diagnóstico de que el mal de nuestro cine tie-
ne que ver con una moral mal entendida manifestada en una distinción temática entre dos polos:
la mujer y la prostituta, frente a las cuales, el hombre “actuante” cavila en actitud dubitativa.
Unos números más adelante es Jomi García Ascot, el artista polifacético, poeta, cineasta y
pintor, quien en un ensayo muy notable desarrolla su crítica con el mismo punto de partida y lle-
gada. Comienza citando al propio Buñuel, quien en una entrevista afirmaba que “La misión del
cine, como la de todo arte, es que después de haber estado en contacto con la obra, el espectador
tenga la noción de que no todo estaba tan bien en este mundo como se quiere aparentar, de que,
en definitiva, no estamos en el mejor de los mundos posibles.”11
A pesar de que el grupo se disuelve y, con él, la revista apenas un año más tarde, y aunque
en términos de renovación de la producción de la época su aporte es diminuto, la contribución de
Nuevo Cine tiene que ver con un impulso reformador e institucional que propició la creación de
archivos, escuelas, formas de crítica y estudio del cine.12 Incluso, los miembros del grupo y, de
forma más amplia el núcleo intelectual que conformaban, tiene que ver en la incipiente produc-
ción que de diferentes maneras intenta la renovación de la industria en aquellos años.

4.
En 1965 tiene lugar en México el Primer Concurso de cine experimental, que propone poca
11 Jomi García Ascot, “Sobre el anticonformismo y el conformismo en el cine”, Nuevo cine, núm. 3 (Agosto 1961): 10.
12 Institucionalización
experimentación formal, si bien, en las propuestas se desarrolla un impulso de renovación temá-
tica y alguna innovación con la forma narrativa , cuyo origen se puede ubicar en la literatura del
medio siglo mexicano o en algunas asimilaciones del trabajo de Alain Robbe Grillet o de otros in-
tegrantes de la vanguardia europea, realizadas por los jóvenes narradores mexicanos; entre ellos
ciertos descentramientos del sujeto de la narración en Tajimara (escrita por Juan García Ponce)
o en La sunamita (de Inés Arredondo), donde el relato es el lugar de una fuerte experimentación
que parte de la tematización de ciertos issues ausentes del cine anterior, pero que aterriza en la
forma narrativa propiamente. Ya de entrada se sugiere que la experimentación está dada por la
ruptura con las formas anteriores y en la disolución de las fronteras entre formas de la expresión
artística.
En el concurso se da la irrupción de dos modelos de modernidad con un punto de partida y una
conciencia diferente y que, en cierta forma, se pueden sintetizar a partir de dos escritores: Carlos
Fuentes y Rulfo. Ambos participaron en el concurso de formas particulares: de Fuentes se adap-
taron dos cuentos sin su participación oficial,13 mientras que Rulfo aportó unas líneas, por demás
importantes, para la película triunfadora del certamen. El contraste es notable. Fuentes representa
en buena medida las inquietudes de una generación que está en pleno asalto de las instituciones
culturales que dominarán en las siguientes décadas, sus preocupaciones se aproximan al existen-
cialismo y sus propuestas abundan en el punto de vista subjetivo. Las dos elenas y Un alma pura
son dos relatos centrados en un problema generacional y en la irrupción de nuevos temas antes
ajenos para el cine nacional, como el incesto o el cuestionamiento a la institución familiar. Las
preguntas que a través de Gámez revela Rulfo son de una naturaleza completamente social y
propenden hacia la politización del cine.

5.
En el marco de este concurso, Ruben Gámez filma La fórmula secreta. Formado en el ámbito
de la publicidad y los noticieros, Gámez había incursionado en la realización con Magueyes en
1960, breve cortometraje realizado para acompañar la exhibición de la película Viridiana, del
mismo Luis Buñuel.14 Gámez afronta su cinta, estructurándola con base en cuadros no narrativos
que ponen en escena la disputa por la esencia de lo mexicano frente a la pérdida de la identidad,
acosada por la confrontación con el imperialismo norteamericano y sus productos industriales
–el subtítulo de la película es Coca-Cola en la sangre–. Las secuencias se basan mayormente en
el uso de material de registro directo y el cineasta construye su película en el montaje, ausente
la narración, conformando imágenes de gran fuerza ensambladas en una pugna constante, en un

13 Se trata de los cuentos Las dos Elenas y Un alma pura, pertenecientes al libro Cantar de ciegos, publicado en 1964. El primero fue llevado a la
pantalla por José Luis Ibáñez y presentado en el concurso como parte de la cinta Amor, amor, amor, que agrupaba otros tres mediometrajes: La viuda,
Lola de mi vida y La sunamita. Había dos filmes más que formaban parte de esta antología, pero que fueron separados de ella debido a la larga duración
del producto final, conformando así Los bienamados, adaptación de dos relatos literarios: Un alma pura de Carlos Fuentes (dirigida por Juan Ibáñez) y
Tajimara de Juan García Ponce.
14 En 1961, Viridiana se presentó el último día del Festival de Cannes, causando gran revuelo entre el jurado que, a pesar de ya haber decidido
qué cintas serían premiadas, volvió a reunirse para deliberar y otorgar la Palma de Oro a la película de Buñuel.
enfrentamiento de fuerte violencia. Juan Rulfo escribió algunos textos que se leen en off en dos
secuencias de la película, como aquella donde la tierra yerma, completamente seca de una ladera
que presumiblemente le han entregado a los campesinos es vista por la cámara mientras la voz
de Jaime Sabines lee: “Ustedes dirán que es pura necedad la mía, que es un desatino lamentarse
de la suerte, y cuantimás de esta tierra pasmada donde nos olvidó el destino. La verdad es que
cuesta trabajo aclimatarse al hambre”. La cámara panea y el campesino se desplaza para quedar
nuevamente en cuadro; la cámara vuelve a panear y el hombre, obstinadamente, insiste en seguir
en el cuadro, en visibilizarse. Poesía visual y textual confluyen en el espacio de la denuncia, en el
punto de encuentro entre dos formas de retórica para hacer funcionar un discurso complejo entre
el cineasta y el escritor.
Rulfo remite a su propia literatura, a sus cuentos “Nos han dado la tierra” o a “Es que so-
mos muy pobres”, entre otros compilados en El llano en llamas y publicados una década atrás.
Hay aquí un desplazamiento de la preocupación meramente formal o del individualismo de las
preguntas que atormentan a toda aquella generación, fuertemente influidas por el existencialis-
mo, hacia una cuestión eminentemente política: son las clases desplazadas, los perdedores de la
Revolución, aquellos que según el pintor Tamayo sólo habían triunfado en los murales,15 quienes
exigen ser visibilizados en la cinta de Gámez. Aquellos que, dice, “somos porfiados...”. Rulfo,
y Gámez con él, ponen el acento en la desigualdad y la injusticia que el aparato retórico oficial
hacen callar, pero lo hacen a través de una forma novedosa. Unos años antes, Rulfo había viajado
al Valle del Mezquital, una región muy pobre del centro de México, para contar, en complicidad
con los cinefotógrafos Rafael Corkidi y Antonio Reynoso, El despojo, una historia breve pero
compleja, donde la tragedia se vuelve a presentar como ineludible, producto de la desigualdad, y
la forma es fuertemente innovadora, utilizando una serie de recursos que en la obra de Rulfo son
detectables como una ruptura con la linealidad y una fractura con las formas convencionales de
construir sentido.

6.
Fuera de ese concurso, en 1967 Carlos Fuentes participó en uno de guión lanzado por el sin-
dicato de trabajadores de la industria cinematográfica. Entre los premios y las menciones que se
otorgaron, solamente su propuesta llegó a filmarse y llevó el título de Los caifanes. En la direc-
ción de la cinta estuvo Juan Ibáñez, quien había hecho mancuerna con Fuentes en la adaptación
de su cuento Un alma pura, que resultó en una película importante dentro del primer concurso de
cine experimental un año atrás, pues la colaboración entre artistas del teatro (como Ibáñez), con
la literatura (como Fuentes), más algunos artistas destacados en la industria mexicana del cine
(como Gabriel Figueroa), habían resultado en un nuevo repto.
Esta nueva colaboración no partía de una adaptación sino de una historia original que en
buena medida sintetizaba algunas de las preocupaciones temáticas del escritor, particularmente
15 Tamayo
las expresadas en La región más transparente del aire o en Aura, donde a partir de las diferencias
en el habla de los personajes se hacía notar la división de clases e, incluso, algunas formas tajan-
tes de circunscribir la ciudad a ciertos guetos insalvables, a reductos diferenciados por un fuerte
contraste económico, racial y cultural.
Los caifanes pone el acento en estas diferencias al hacer coincidir de manera circunstancial y
forzosa, a un grupo de personajes pertenecientes a medios sociales marcadamente distintos. Por
una noche, los rufianes de barrio deben convivir con una pareja de la clase media alta e intelec-
tual. Ellos no tienen ni nombre, pues sólo se les conoce por sus apodos y, por tanto, pareciera que
no tienen nada que perder, mientras que la pareja sí es nombrada: Paloma y Jaime.
La convivencia comienza cuando la lluvia obliga a la pareja a guarecerse en un coche que
parece abandonado, en una circunstancia donde él ha intentado seducirla, pero ella lo ha rechaza-
do por el deseo de intentar vivir una aventura diferente a la sexual, exponer a ambos a un límite,
pero sin imaginar cómo se darían los acontecimientos. El vehículo resulta ser el de “los caifanes”,
un grupo de mecánicos que vienen por una noche a divertirse con la vida nocturna de la ciudad.
Después de un breve enfrentamiento, el “capitán Gato”, líder del grupo, ofrece llevarlos a donde
puedan tomar un taxi, pero ante la imposibilidad de hacerlo, deben continuar juntos por toda la
noche.
Desde el principio se establece una tensión sexual entre ambos bandos: Paloma se convierte
de inmediato en el objeto de las miradas lascivas de los caifanes, mientras Jaime intenta infruc-
tuosamente poner fin a la convivencia. Ante la insistencia de ella, el grupo se dirige a un cabaret
de barrio donde Paloma se relaciona con un grupo de prostitutas que se maquillan en el baño y
disfruta haciéndose pasar por una de ellas. El contraste de la ropa, el maquillaje y los accesorios
es ineludible y la comparación inevitable. Se subraya aún más cuando una de ellas muestra su
barbilla, torcida por una mala operación plástica que, según dicen sus compañeras, le costó una
fortuna.
Como en La región más transparente del aire, en esta cinta los modos de hablar marcan con
claridad el lugar que ocupa cada individuo en la sociedad, un lugar signado por una identidad que
está determinada por una serie de pertenencias: étnica, social, de clase o geográfica. Y ese modo
de hablar es también el espacio desde donde se pueden transgredir dichas pertenencias. “¡Vamos
a hacer otra jalada!” es la frase con la cual Paloma induce a sus compañeros a continuar la aven-
tura y, al utilizar su lengua, traspone una frontera y se interna en el mundo de los caifanes, en el
territorio de ellos, los sin-nombre.
Al integrarse así, la pareja parece reconciliar sus mundos distantes. Pero la serie de eventos
que suceden no resuelven la tensión, por el contrario, la incrementan porque hay una diferencia
estructural que no se puede salvar: el origen de la envidia es una diferencia mucho más profunda
que no se puede cruzar sólo por la voluntad de hacerlo. El deseo sexual acabará por resolver la
historia de una manera distinta: casi al amanecer el grupo debe dispersarse y Paloma terminará
con uno de los caifanes en un segmento que no revela si entre ellos ocurrió algo más que la con-
vivencia, con lo cual la envidia que fluye de los caifanes hacia Jaime se invierte en unos celos
incontenibles en sentido contrario.
La película plantea así una situación diferente, reconoce que hay diferencias insalvables
como componente fundamental de la sociedad mexicana y que esas diferencias articulan formas
de comportamiento y de inserción en la vida social a todos los niveles. Hay, nuevamente, una
propuesta que desde lo narrativo trata de articular renovación, pero en un entorno que es político.
No en un sentido alegórico o de metáfora, sino de denuncia directa. La cinta en lugar de subrayar
el lugar de los anónimos, como lo hacía Gámez en La fórmula secreta, lo hace individualizando a
los personajes. Una tensión que se desarrolla al obligar a convivir a los diferentes en una situación
improbable, pero plausible que hace que los personajes se comporten de maneras específicas.
Convivencia que quizá marca también algo de lo que caracteriza al cine de la época. Como
pocos momentos, artistas de diferentes disciplinas habían convivido y una parte fundamental de
la experimentación que se dio, tiene que ver con el cruce de ciertas fronteras disciplinares entre
territorios del arte, pero posibilitados por la convivencia de una generación de artistas que en-
cuentran en el cine un lugar de confluencia.

7.
Los artistas plásticos y los cineastas tendrían un nuevo espacio de intercambio, apenas unos
meses después del estreno de Los caifanes. En 1968, a pocos meses de la inauguración de la
Olimpiada en México, estalla un conflicto entre un sector de los estudiantes universitarios de
México y el gobierno de la República. De esta coincidencia derivan varias consecuencias: por
una parte, el gobierno federal tiene una respuesta fuertemente violenta pues deseaba que no se
“contaminara” la competencia con el movimiento estudiantil, y por otro, es en el marco de esos
juegos que se organiza una “olimpiada cultural” de la que tomarán parte muchos de los mismos
jóvenes que participaban en el conflicto.
En ese entonces, en la plástica se enfrentaban aquellos que seguían los preceptos de la escuela
mexicana de pintura y sus detractores, agrupados como generación de la ruptura. Unos y otros
se sintieron víctimas cuando el Comité organizador de la Olimpiada Cultural lanzó una convo-
catoria para participar en el “Salón solar”, que se llevaría a cabo en el Palacio de Bellas Artes de
la capital del país. Por ello, organizaron de manera alterna “Obra 68”, evento que se inauguró en
agosto de aquel año, cuando ya el conflicto estudiantil estaba en desarrollo, pero sin ningún sig-
no de protesta social. Sobre la marcha algunos de esos cuadros se intervinieron por sus propios
autores para incluir consignas en apoyo a los estudiantes. Las diferencias entre ambos sectores
quedarían de lado, más aún cuando en septiembre, y en el marco del conflicto, se unen para pintar
las láminas con las que se protegía la malograda estatua del presidente Miguel Alemán en la ex-
planada de la rectoría.16 Tomada la Universidad, durante algunos domingos se hicieron festivales
16 Salon solar vs Obra 68.
culturales, y en ese marco se llevó a cabo la intervención: un grupo de pintores se organizó, con-
siguió andamios (pues la superficie a pintar era muy alta), y estuvo decorando las láminas durante
varias jornadas, hasta que la entrada del ejército a la Ciudad Universitaria imposibilitó continuar
estos trabajos.
El joven cineasta Raúl Kamffer toma su cámara y registra lo sucedido en esas jornadas la-
borales. Con ese material montaría Mural efímero, testimonio del acontecimiento, y testimonio
también de la confluencia entre plástica y cine, en el marco del conflicto. Las imágenes muestran
el trabajo colaborativo entre los artistas, la convivencia con otras experiencias durante aquellos
días, para reflexionar finalmente, a través del montaje, de la música y la narración, sobre los re-
sultados fatales del movimiento estudiantil.
En ese mismo año los estudiantes de la escuela de cine de la Universidad se suman a la
huelga, toman las cámaras y el material disponible y salen a las calles. Durante aquellos meses
registran las manifestaciones, la presencia policiaca, las asambleas y montan algunos comunica-
dos para dar a conocer la situación, ante la cerrazón de la mayoría de la prensa, que únicamente
reproduce la retórica oficial. Tras la represión de octubre algunos de estos muchachos son presos,
además de que la vida universitaria tardará muchos meses en reanudarse. Al reabrirse la escuela,
una asamblea nombra a Leobardo López Aretche como el director encargado de ensamblar el ma-
terial y con ello se realiza El grito, un documental cuya importancia radica en ser testimonio del
movimiento desde su interior, uno de los primeros documentales políticos y primer largometraje
producido por la escuela. Estructurado en episodios, coincidentes con los meses del conflicto,
es el episodio de octubre el momento medular de la película. En él, con el hilo de la narración
en off de la periodista italiana Oriana Falacci, se reseña la masacre del día dos de aquel año. El
escenario es la Plaza de las Tres Culturas, corazón de la Unidad Habitacional Tlatelolco, sitio
donde se pretendió consumar un proyecto modernizador, donde se denunció su imposibilidad y
donde, ahora, se ejecuta su fracaso. La modernidad mexicana es una modernidad frustrada por
la imposibilidad de erigir algo nuevo mientras se ignoran los lastres del pasado, sin resolverlos,
tratándolos de enterrar por la violencia. El cine atestiguó el proceso de modernización, mientras
vivía sus propios procesos de transformación.
Javier Ramirez - Licenciado en ciencias de la comunicación por la Facultad de
Ciencias Políticas y Sociales, maestro y doctor en historia del arte por la Facultad de
Filosofía de la UNAM. Autor de Ibargüengoitia va al cine (Universidad de Guanajua-
to, 2013). Profesor de tiempo completo en la Escola Nacional de Estudios Superio-
res, ENES, unidade Morelia ha impartido clases en la Facultad de Ciencias Políticas
y Sociales de la UNAM, el Centro de Capacitación Cinematográfica y el Centro de
Estudios en Ciencias de la Comunicación entre otros.
4. Música e som em três documentários brasileiros curta-metragens de 195917

Luíza Beatriz Alvim

Em três documentários curtas-metragens brasileiros do ano de 1959 – O mestre de Apipucos e


O poeta do Castelo, de Joaquim Pedro de Andrade, e Arraial do Cabo, de Paulo Cezar Saraceni e
Mário Carneiro –, observamos, como características sonoras comuns (algumas bastante presentes
em curtas-metragens como um todo da época): o uso de música preexistente ao longo de todo ou
quase todo o filme, em especial, peças de Villa-Lobos e Bach, voz over e pouco ou nenhum ruído.
Villa-Lobos foi o único compositor a ter participado da Semana de Arte Moderna de 1922
porque era considerado de vanguarda. Suas obras, principalmente as que foram compostas após
suas primeiras estadias em Paris, tinham também características da estética nacionalista e foram
bastante utilizadas nas trilhas musicais de vários filmes do Cinema Novo, especialmente em Deus
e o diabo na terra do Sol (Glauber Rochar, 1964), em que funcionavam, tal qual observado por
Irineu Guerrini Júnior (2009), como uma “alegoria da pátria”.

Analisamos, então, os elementos sonoros desses três curtas-metragens, levando em conta


também suas relações com o Cinema Novo brasileiro, de que são considerados precursores, além
de aspectos que tais elementos e suas associações com as imagens evocam sobre nacionalismos,
modernismos, tradição e identidade brasileira.

1. O díptico de Joaquim Pedro de Andrade

Joaquim Pedro de Andrade foi uma figura essencial do Cinema Novo brasileiro. Em 1959, com
a Saga Filmes (produtora fundada por ele, Sérgio Montana e Gerson Tavares) e financiamento do
Instituto Nacional do Livro, filmou os curtas-metragens documentários O poeta do Castelo e O
mestre de Apipucos. Na verdade, os dois foram concebidos e realizados como um só, mas logo
houve um desmembramento em partes separadas18 e foi a esse formato que tivemos acesso para
a nossa análise.
Havia uma conexão de base de Joaquim Pedro de Andrade com o modernismo e a cultura

17 Uma versão dessa pesquisa foi publicada na revista DOC-Online com o título “Música e som
em três documentários brasileiros curta-metragem de 1959: nacionalismos, tradição, modernismos e
identidade brasileira”
18 O desmembramento ocorreu por decisão do próprio diretor porque, segundo ele, os dois cur-
tas-metragens juntos proporcionavam um contraste não intencional entre a pobreza de Bandeira e a
riqueza de Freyre (como veremos em nossas análises), o que aborreceu Gilberto Freyre e o motivou à
escrita do artigo Esnobe da riqueza na revista Cruzeiro, em 12 de março de 1960 (SILVA, 2016). Este
artigo pode ser lido na íntegra em http://www.contracampo.com.br/85/artfreyre.htm. Acesso 29 abril
2018.
brasileira, representados por essas personagens dos seus primeiros curtas, o poeta Manuel Bandeira
e o sociólogo Gilberto Freyre. Joaquim Pedro era filho de Rodrigo Mello Franco de Andrade,
“guardião do tesouro modernista” (BENTES, 1996: 3), fundador, junto com Mário de Andrade e
Gustavo Capanema, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). A casa
da família era frequentada por figuras importantes do modernismo brasileiro, como o próprio
Manuel Bandeira, padrinho de crisma de Joaquim Pedro (BENTES, 1996). Gilberto Freyre
também fazia parte do círculo de amizades de seu pai, estando o nome de Rodrigo M. F. de
Andrade num agradecimento, no final do prefácio da primeira edição de Casa Grande & Senzala
(ARAÚJO, 2013).
Quanto à forma geral dos documentários em si, observamos que os personagens são captados
em atividades de seu cotidiano. Diferentemente da voz over onisciente, bastante comum em
documentários até então – no chamado “modo expositivo” de Bill Nichols (2005) –, são as vozes
dos próprios documentados que narram um texto produzido por eles, tal como foram solicitados
pelo diretor: no caso de Gilberto Freyre, um texto narrando o seu cotidiano e, no de Manuel
Bandeira, constituído inteiramente por poemas do escritor. Tal procedimento de Joaquim Pedro
de dar voz aos retratados tem semelhanças com o que acontecia no chamado cinema-verdade do
cineasta francês Jean Rouch, que começava a se desenvolver no final dos anos 50 na França.
O poeta do castelo e O mestre de Apipucos foram gravados antes da chegada do Nagra 3 ao
Brasil, portanto, sem som direto, e seus elementos sonoros (em que se destacam a música e a voz
over) foram colocados na pós-produção. Mesmo assim, há uma preocupação de Joaquim Pedro
em sonorizar O poeta do Castelo com ruídos do cotidiano.
Em relação à música, ambos tiveram sua trilha musical escolhida por Zito Batista e Carlos
Sussekind, contam com uma peça de Villa-Lobos e uma de Bach, assim como os créditos dos dois
estão ao som de parte da Introdução da Suíte n.1, O Descobrimento do Brasil, de Villa-Lobos.
Essas características já nos revelam aspectos importantes quanto às indicações de pertencimento
e questões identitárias dos filmes. Os créditos, por exemplo, já tornam clara a filiação reivindicada
mais tarde pelo Cinema Novo à figura de Humberto Mauro, diretor do filme O descobrimento
do Brasil (1937), cuja trilha musical foi de responsabiidade de Villa-Lobos. O próprio caráter
gráfico dos créditos remete a uma “estética modernista”, com estilo semelhante ao do Suplemento
Dominical do Jornal do Brasil (ARAÚJO, 2013). A relação com o Modernismo também estará
nos créditos de Arraial do Cabo, sobre gravuras de Oswaldo Goeldi.
Além disso, o fato de contarem tanto com uma peça de Villa-Lobos (Prelúdio/Modinha
das Bachianas Brasileiras n.1 no início do Poeta do Castelo e o Prelúdio n.2 para violão em O
mestre de Apipucos) quanto com uma de Bach (o Quinto Concerto de Brandenburgo BWV 1050,
em O poeta do Castelo, e o Concerto para violino e oboé em dó menor BWV 1060, em O mestre
de Apicucos) também apontam para a relação entre o próprio Villa-Lobos e o compositor barroco
alemão19, evidente, por exemplo, na série Bachianas Brasileiras já no próprio nome e presente,
19 A própria obra de Bach só foi resgatada cem anos após sua morte pelo compositor romântico
de forma geral, em diversas outras obras de Villa-Lobos.

1.1 O mestre de Apipucos

A banda sonora de O mestre de Apipucos é constituída inteiramente pela voz over de Gilberto
Freyre e peças musicais (tabela 1), uma se seguindo à outra, na totalidade do filme (o início de
cada uma é geralmente indicado por olhares do protagonista ou raccords de movimento), sem
sonorização com ruídos.

Tempo Peça musical Imagem e voz over

0´46´´- 1´52´ Suíte n.1 Descobrimento Créditos iniciais


do Brasil de Villa-Lobos
Introdução
1 ´ 5 3 ´ ´ - Música de coro misto não Casarão. Passeio matinal no
2´22´´ identificada jardim.
2´22´´-3´22´´ Música orquestral não Passeio matinal no jardim
identificada
3 ´ 2 2 ´ ´ - Adagio do Concerto para Na biblioteca
4´32´´ violino e oboé em dó menor
BWV 1060, de Bach.
4 ´ 3 3 ´ ´ - Música orquestral não Toma café com a mulher.
5´43´´ identificada
5´48´´ - Sonata para violino n.1 em sol Vai para a porta da cozinha e olha
6´43´´ menor, Sicilliana de BACH- para fora. Plano seguinte: o mar
Segovia. e Gilberto Freyre na praia.
6 ´ 4 3 ´ ´ - Prelúdio n.2 para violão de Ele na cozinha observando o
8´13´´ Villa-Lobos trabalho da empregada ao fogão.
Ele próprio prepara uma bebida.
8 ´ 1 7 ´ ´ - Sesta na rede (terceira parte da Deitado na rede, com o gato.
9´01´´ Série Brasileira), de Alberto
Nepomuceno.
Tabela 1: Peças musicais em O mestre de Apipucos.

A segunda incursão musical começa com o primeiro plano do filme, o casarão de Apipucos
onde vive Gilberto Freyre. É uma peça de coro misto, que traz um significado religioso e, desta
maneira, relaciona-se com a fala over de Freyre, já sobre o trecho musical seguinte, que menciona

Felix Mendelssohn. Nessa apropriação romântica do século XIX, Bach foi transformado numa figura
central da autoconsciência nacional, num gênio que sintetizava a identidade alemã.
“os meus vizinhos, os maristas, acordam cantando”. Porém, ao mesmo tempo em que se configura
uma função referencial da música, bastante comum no cinema clássico (GORBMAN, 1987),
assim como uma tentativa de simular uma música diegética, justificada no mundo narrativo, por
outro lado, o fato de ser o coro “misto” não condiz com o que se esperaria de uma congregação
de irmãos, em que tenderíamos a ouvir canto gregoriano em uníssono de vozes masculinas.
A emenda da música coral com a música orquestral seguinte se faz de maneira fluida tanto no
som quanto na imagem (com raccord de movimento, quando Gilberto Freyre abaixa uma folha
em plano-detalhe com a bengala). Não identificamos também essa música20, mas ela apresenta
semelhanças com peças escritas para cinema em sequências passadas no campo, com uso de
instrumentos como o oboé. Mais uma vez, a música funciona de maneira referencial ao local: o
jardim.
Já a peça seguinte, o Adagio do Concerto para violino e oboé em dó menor BWV 1060 de
Bach, confirma o que tanto as imagens do filme quanto a narração de Gilberto Freyre denotam:
o sociólogo como um grande intelectual, possuidor de imenso tesouro cultural (pensando-se em
Bach como representante da tradição cultural ocidental), com a imagem de suas estantes e sua
fala: “Os livros, espalhados por várias salas, chegam a 20 mil”.
O próximo trecho é uma música orquestral (também não identificada) de andamento rápido e
com um caráter alegre que combina com a felicidade do momento de convívio familiar cotidiano,
quando Gilberto Freyre toma café com sua mulher.21
No momento em que o sociólogo, à porta da cozinha, olha para fora, começa a Siciliana da
Sonata para violino n.1 de Bach em transcrição para violão de Andrés Segóvia. Há uma elipse,
pois, no plano seguinte, vemos o mar e o escritor na praia da Boa Viagem. Apesar da tonalidade
maior (Si bemol maior) da Siciliana, sentimos, no arranjo e sua interpretação, certa lentidão e
gravidade, e, talvez por isso, uma melancolia nas imagens de Gilberto Freyre na praia, sozinho.
Tal melancolia está presente já nos primeiros quatro compassos da música, mesmo antes dos
compassos 5 e 6, em que ela vai para a tonalidade de sol menor..
Ainda ouvimos, portanto, esses últimos compassos quando vemos o escritor passando a mão
na barriga: a “deixa” para a indicação da fome e a volta para o ambiente da cozinha da casa. Na
imagem do peixe sendo frito, os últimos sons da Siciliana são emendados com os da Prelúdio n.2
para violão de Villa-Lobos.
Levando-se em conta essas duas últimas peças, ambas para violão, é importante considerar
que Andrés Segovia foi um dos grandes virtuoses do instrumento na Espanha, ao passo em que,
no Brasil, o violão era execrado no meio erudito do início do século XX por ser associado à
20 Entramos em contato com a família do diretor, mas não havia material de produção indicando
essas peças. Também não foi possível identificá-las mesmo com o uso de programas e aplicativos
existentes para esse fim.
21 Essa sequência, em que aparece Manuel, o empregado, de libré, foi um dos motivos por que
Gilberto Freyre e sua mulher Magdalena não gostaram do filme, por estarem sendo apresentados
como esnobes. Magdalena observou que a sequência foi completamente encenada e irreal em rela-
ção aos verdadeiros hábitos da família (ARAÚJO, 2013).
marginalidade. Acabou se tornando um símbolo de brasilidade e teve em Villa-Lobos um de seus
maiores difusores e reabilitadores.
O Prelúdio n.2 tem como título “Homenagem ao homem capadócio” e há uma série de
elementos que remetem ao choro, como o caráter brejeiro (AMORIM 2007). No filme, a sua
primeira parte, em que esses elementos estão mais presentes, é ouvida duas vezes: primeiramente,
sobre as imagens de Gilberto Freyre observando a cozinheira no preparo do peixe; depois, quando
ele mesmo prepara “uma batida de pitanga, maracujá e hortelã”, culinária e bebida típicas locais.
A última peça é Sesta na rede, da Suíte Brasileira (1887 – 1897) de Alberto Nepomuceno.
Seu título se remete com função referencial ao que acontece na imagem: o escritor se balança
em sua rede após o almoço, na compainha de seu gato. O balançar da rede é evocado na música
pelo naipe de cordas, havendo também um balanço entre o V e o I grau. Além disso, Gilberto
Freyre menciona, em seu comentário over, que ele se deita numa “rede do Ceará”, tendo sido
o compositor também cearense (Nepomuceno foi, na verdade, um dos primeiros compositores
brasileiros a escreverem obras em estética nacionalista).

O último plano mostra a capa do livro que Gilberto Freyre está lendo: Poesias, de Manuel
Bandeira. Era o gancho para o começo da parte sobre o poeta, antes do desmembramento dos dois
curtas-metragens.

1.2 O poeta do Castelo

Na tabela 2, vemos o esquema das entradas musicais em Poeta do Castelo.

Tempo Peça musical Imagem e voz over

0 ´ 4 0 ´ ´ - Suíte n.1 “Descobrimento Créditos iniciais


1´17´´ do Brasil” de Villa-Lobos,
Introdução.
1´18´´ - 3´00 Prelúdio/Modinha (II) das Bandeira no beco do Castelo.
Bachianas Brasileiras n.1 de Prédios. Poema “Belo Belo”.
Villa-Lobos.
4 ´ 5 5 ´ ´ - Pavane para orquestra e flauta Bandeira à janela, depois na
6´22´´ op.50, de Gabriel Fauré biblioteca.
6´23´´- 8´ Affettuoso (II), do Quinto Bandeira no quarto.
Concerto de Brandenburgo BWV
1050 de Bach.
8 ´ 0 0 ´ ´ - Allegro (III), do Quinto Concerto Bandeira levanta da cama e
8´52´´ de Brandenburgo BWV 1050 de começa a recitar “Passárgada”.
Bach
8´52´´ até fim Music for a Farce, Allegro (IV) , Bandeira na rua. Continua a
de Paul Bowles recitar “Passárgada”
Tabela 2: peças musicais em O poeta do Castelo

Embora os créditos de O poeta do Castelo tenham como trilha musical a mesma peça de
Villa-Lobos (e os mesmos grafismos) que em O mestre de Apipucos, é interessante que, aqui,
a transição para o Prelúdio (Modinha) das Bachianas n.1, também de Villa-Lobos, mal se faça
notar, dando uma maior continuidade ao que se segue. Em parte, tal sensação de continuidade
pode ser explicada por ser uma peça do mesmo compositor, mas, além disso, há características
semelhantes de textura rítimicas, melódicas e de andamento.
Assim, depois dos créditos iniciais, enquanto ouvimos a progressão cromática ascendente do
Prelúdio (Modinha), vemos Manuel Bandeira caminhar da esquerda para a direita por um beco
do Castelo até uma mercearia, onde entrega uma garrafa vazia. O tema pungente e lírico em tom
menor, a partir do compasso 14, começa no plano próximo de Bandeira, logo após a sua tosse
(cujo som não ouvimos) e corrobora o sentimento de melancolia perante a finitude, indicada pela
tosse e pela idade avançada do poeta. O plano seguinte, o chão cheio de papeis e lixo, também
se relaciona com uma sensação de decrepidude. Depois disso, vários planos dos prédios vazios,
destacando a sua arquitetura, imagens que reforçam ainda mais a melancolia e a solidão.
Esses sentimentos são propiciados mais ainda porque a música é o único elemento sonoro
em todo esse início do filme. É somente depois, no plano de Bandeira na mercearia recebendo a
garrafa com leite, quando o poeta olha para o céu como que buscando inspiração, que ouvimos
os primeiros versos do poema Belo Belo: “Belo belo minha bela/ Tenho tudo que não quero/
Não tenho nada que quero”. A beleza mencionada no verso inicial de Bandeira contrasta com as
imagens de lixo até aí e as seguintes, em que vemos o poeta caminhando por entre os prédios num
beco, ao passo em que o sentimento de frustração dos outros versos também está em sinergia com
essas imagens.
O corte do trecho do Prelúdio/Modinha de Villa-Lobos coincide com o término dessa sequência
inicial e o começo da seguinte, em que vemos Bandeira em seu apartamento. Diferentemente de
O mestre de Apipucos, temos, então, quase dois minutos sem música, só com os sons e as imagens
do cotidiano de Bandeira, caracterizado pela simplicidade e pela solidão, além de sua voz over
recitando seu poema Testamento. O caráter cotidiano dessa sequência é marcado por uma série de
ações prosaicas, agora sonorizadas: Bandeira, de roupão, pega uma panela, derrama o leite, acende
um fósforo, sopra a boca do fogão para aumentar o fogo, coloca ali à panela, pega duas fatias de
pão no armário e as põe na torradeira, o leite ferve, as torradas ficam prontas, o poeta coloca o
leite numa xícara, põe sua refeição sobre a mesa e abre a janela. Como observa Flores (2015),
essa exposição do cotidiano está em consonância com a proposta do Cinema Novo de focar seus
personagens na vida comum do dia-a-dia. Embora essa proposta esteja evidente também no curta
anterior, em O poeta do Castelo há uma aproximação maior com o Neorrealismo italiano, como
observa Araújo (2013), por conta do olhar afetuoso e demorado sobre ações banais.
Flores (2015: 17, tradução nossa do espanhol) considera que essas duas primeiras sequências do
filme denotam a presença “do novo e do velho que caracterizariam a arte modernista representada
por Bandeira: a visita ao leiteiro (e não a um grande mercado), assim como o seu sopro para
avivar o fogo se contrapõem ao uso de aparelhos modernos como a torradeira”. Essa união do
tradicional e do novo está também em muitas das músicas escolhidas para o filme. É o caso da
já citada peça de Villa-Lobos, compositor que, a grosso modo, faz uma releitura da tradição
europeia representada por Bach (este, por sua vez, com duas obras no filme), conferindo cores
locais, assim como da peça que estará na sequência seguinte, a Pavana para orquestra e flauta
op.50 de Fauré22.
A Pavana começa ainda no plano de Bandeira à janela de sua cozinha. Uma panorâmica para
a esquerda, efetuada num tempo bastante condizente com o andamento lento da música, vai nos
revelar outra janela da casa do poeta, a de sua biblioteca, que ele abre a seguir. Vemos, então,
Bandeira pegando um livro de uma estante sobre a qual está seu próprio busto. A câmera faz
várias panorâmicas da biblioteca, destacando grandes estantes e armários plenos de livros e obras
de arte. A Pavana de Fauré também corrobora o peso da tradição das imagens do acervo cultural
(universal, diríamos, embora não possamos ler os títulos) encarnado nos livros da biblioteca de
Bandeira, numa sequência que, em significado, aproxima-se da presente no curta sobre Gilberto
Freyre.
A panorâmica que inicia a passagem da janela da cozinha à biblioteca, junto com a música
de Fauré, marca o momento de uma reconsideração por parte do espectador sobre a figura de
Manuel Bandeira, assim como aponta para a reencenação da própria trajetória de vida do poeta
efetuada pelo curta-metragem. Ao chegarmos à biblioteca, deixamos de ver um homem humilde
e solitário, como o poeta da Lapa dos anos 30: não é mais o poeta do beco, mas sim o artista
reconhecido de 1959, é o Poeta do Castelo. Assim, nesse momento do filme “nos damos conta
de que o curta operou um largo recuo temporal” (PASCHOA, 2004: 152) até o poeta humilde do
beco, recuo no tempo que a panorâmica e a música de Fauré vão desfazer.
A sequência seguinte se passa no quarto de Bandeira (com um rápido plano de sua varanda)
e tem como trilha musical dois movimentos, Affettuoso (II) e Allegro (III), do famoso Quinto
Concerto de Brandenburgo BWV 1050 de Bach. Também aqui a tradição cultural representada
tanto pela música de Bach como por Bandeira é destacada: vemos, inicialmente, o poeta do
Castelo trabalhando em sua cama, ao lado de uma estante com livros, ao som do Affettuoso de
22 A pavana é uma dança europeia do período renascentista, com origem italiana ou espanhola. A Pavana op.50 de
Fauré representou uma reação a um cenário musical francês de final de século XIX dominado por compositores germâni-
cos, com um retorno ao que se considerava “nacional” francês.
Bach, de andamento lento e melodia pungente.
Enquanto Bandeira está em sua cama com a máquina de datilografar no colo e ao som
do Affetuoso, outro som é ouvido, destacando um elemento da modernidade do século XX: o
telefone. O poeta atende e dá uma risada, que não ouvimos. Joaquim Pedro de Andrade (1966)
conta ter sido a risada do poeta, tão ouvida quando ele frequentava a sua casa, a motivadora dessa
sequência. O diretor também explicita o caráter encenado dela e atribui a não sincronização
perfeita da campainha do telefone com a imagem a seu montador:

Às quartas-feiras, ele [Bandeira] vinha jantar com meu pai [...]. Vinha então
aquela risada alegre que eu quis pôr no filme e acabou resultando na única
cena que o ator Manuel Bandeira teve dificuldade de fazer.[...] Fizemos um
ensaio. Manuel riu sem vontade. No segundo e terceiro ensaios o ator se
irritava cada vez mais, quando ria. Experimentamos então o estímulo real.
Manuel telefonou a um amigo, Dante Milano, se não me engano, para pedir
que ele lhe telefonasse de volta. Mas o Dante não estava. Quando começamos
a procurar outro amigo, no caderninho de telefones do poeta, ele perdeu a
paciência. Mandou rodar a câmera, atendeu o telefone que não tinha tocado,
perguntou quem estava falando e ao ouvir a risada imaginária deu a risada,
mais alegre e espontânea do que nunca. Guardo mágoa, até hoje, porque
a campainha do telefone continuou tocando, no filme, mesmo depois do
poeta ter tirado o fone do gancho. A culpa foi do montador Baldacconi, que
num momento de mau humor resolveu me hostilizar dessa maneira insólita
(ANDRADE, 1966: não paginado).

Pouco depois que Bandeira desliga o telefone, assim que desiste de continuar trabalhando (ele
afasta a tábua com máquina de datilografar) e se levanta para trocar de roupa, começa o Allegro de
Bach. O andamento mais rápido da música combina com a série de ações de Bandeira arrumando-
se para sair de casa. O poeta confirma que “irá embora” ao recitar os primeiros versos de seu
famoso poema Passárgada: “Vou-me embora pra Pasárgada/ Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a
mulher que eu quero/ Na cama que escolherei/ Vou-me embora pra Pasárgada// Vou-me embora
pra Pasárgada/ Aqui eu não sou feliz/”.
Joaquim Pedro de Andrade (1966) conta que a alegria da risada era o elemento que, segundo o
roteiro, impulsionava o poeta para a ascensão a Passárgada no fim do filme. Mais do que ela, não
sendo ouvido o som da risada, Paschoa (2004: 153) observa que o ruído do telefone, “insistente,
reproduz o chamado do mundo, Passárgada e sua promessa de felicidade terrestre”.
A felicidade no filme é bem simples: o prazer de comprar um jornal, de encontrar um amigo na
rua e de andar pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, próximas ao seu apartamento. Sua voz over
continua recitando o poema Passárgada. É, porém, importante lembrarmos, como salientamos
anteriormente, que Bandeira já aparece para o espectador como um poeta reconhecido e não é à
toa que o vemos passando em frente à Academia Brasileira de Letras, de que fazia parte há quase
20 anos.
A peça musical que acompanha tudo isso desde a primeira imagem da sequência (os jornais
e revistas da banca) é o quarto movimento, Allegro, de Music for a Farce, peça de 1938 de Paul
Bowles. O andamento rápido, o caráter brejeiro dado em parte pelo ritmo e pelos timbres da
clarineta e do trompete e os traços jazzísticos são características comuns e costumeiramente
associadas, no uso de música no cinema, a um ambiente urbano e à modernidade.

2. Arraial do Cabo

Arraial do Cabo foi dirigido por Paulo Cezar Saraceni, produzido por Joaquim Pedro de
Andrade e sua montagem ficou a cargo de Mário Carneiro, o fotógrafo do filme. Foi Mário
Carneiro quem colocou a trilha musical do filme, feita quase que completamente com obras de
violão de Villa-Lobos e, por conta desse grande papel no resultado final, foi creditado também
como diretor (SARACENI, 1993). Sobre a música, Saraceni conta:

Eu tinha pensado em colocar no filme as músicas que ouvíamos muito


nos alto-falantes das ruas de Arraial. Eram músicas de Lindomar Castilho,
Jackson do Pandeiro, como aquela do fim do filme, chamada “Aurora”23,
no bar do Juca. Mas Mário me mostrou os exercícios para violão de Villa-
Lobos, os choros de Villa-Lobos, e como eram lindos! (SARACENI, 1993:
55).

O filme trata das mudanças ocasionadas entre pescadores da cidadezinha de Arraial do Cabo
pela instalação de uma fábrica de álcalis. Há um texto over, escrito por Claudio Mello e Souza
e lido pelo ator Ítalo Rossi, admirado por Saraceni justamente porque “não tem voz de narrador,
nem é impostada” (SARACENI, 1993: 55), como habitual nos documentários da época. O filme
foi realizado sem som direto, embora se note uma fascinação de Saraceni pelos ruídos locais.
Essa presença dos ruídos marca a anunciação da chegada do “progresso” com o caminhão
(e seu som) percorrendo as ruas que antes eram atravessadas somente por um cavalo, além das
imagens a seguir da fábrica de álcalis, seus ruídos e sons de bateria. Tudo isso é ouvido assim que
a música da primeira sequência (o Prelúdio n.1 de Villa-Lobos, tabela 3) se cala.

23 Parece se tratar da peça Aurora gravada por Nelson de Castro e Orquestra Tupã no disco Es-
quentou o baile, de 1959. Porém, não conseguimos o áudio dela para confirmar.
Tempo Peça musical Imagem e voz over

0´- 1´03´´ Não identificada Créditos – imagens de Goeldi


1´03´´- 2´52´´ Prelúdio n.1 em mi menor Homens tomam café. Mulheres
para violão de Villa-Lobos carregam baldes de água. Barcos e
os pescadores. Mulheres em suas
atividades diárias.
3´43´´- 4´08´´ Estudo n.8 de Villa-Lobos, (Depois da menção à fábrica no
Introdução comentário) Os pescadores se
afastam para praias mais distantes.
5´55´´- 7´38´´ Prelúdio n.4 em mi menor Atividades dos pescadores
de Villa-Lobos
7´38´´- 8´48´´ Estudo n.1, Animé, de Atividades dos pescadores
Villa-Lobos, em mi menor
8´48´´- 11´17´´ Estudo n.11 em mi menor, Atividades dos pescadores
de Villa-Lobos, parte
Animato e Lento final.
11´17´´ - Sonata para violino n.1 em Atividades dos pescadores
12´23´´ sol menor, Sicilliana de
BACH- Segovia .
12´23´´-13´43´´ Estudo n.5, Andantino, em Atividades dos pescadores
Dó Maior, de Villa-Lobos
1 3 ´ 4 4 ´ ´ - Estudo n.8 em dó ♯ menor Atividades dos pescadores. Voz
15´11´´ de Villa-Lobos, parte depois over.
da introdução
15´19´´até fim Aurora, Nelson de Castro e Após pescador ligar o rádio no
Orquestra Tupã (?) bar. Homem discursa.
Tabela 3: peças musicais em Arraial do Cabo

Na primeira sequência, portanto, vemos atividades cotidianas tradicionais da comunidade de


Arraial ao som da música de Villa-Lobos. O Prelúdio 1 em mi menor tem o título de “Homenagem
ao sertanejo brasileiro” e, no filme, funciona como evocação saudosista daquele modo de vida
“primitivo” (mesmo que sem deixar de expor suas mazelas) em vias de desaparição pela chegada
do progresso. No filme, ouvimos um pedaço da primeira parte A do Prelúdio e a parte B seguinte.
Na parte A, Villa-Lobos explora a região grave do violão (AMORIM, 2007) e a tonalidade menor
dá um sentido melancólico às imagens, que revelam a penúria daqueles habitantes: o desjejum
resumido a uma xícara de café numa casa de parede esburacada e a necessidade de se buscar água
num poço e carregá-la em latas na cabeça, os barcos em que os pescadores se lançam à batalha
diária. Na parte B do prelúdio, há a evocação de um ponteio de viola (AMORIM, 2007): e vemos
principalmente as mulheres em sua atividade diária de passar e costurar, assim como meninas
dançando em roda.
Essa dualidade tradição (agora, associada a Villa-Lobos) X progresso (ruídos) continua com
a breve incursão da Introdução do Estudo n.8 de Villa-Lobos sobre as imagens dos pescadores
e de um barco. Assim como a parte A do Prelúdio 1, ela é construída no registro grave do violão
e é bastante modulante, corroborando a necessidade de mudança dos pescadores para lugares
mais afastados, evocada pelo narrador. A seguir, voltamos a ouvir o som de bateria e a ver as
imagens da fábrica. Tal som permanece ainda sobre imagens do barco e dos pescadores, como se
indicasse uma batalha entre o antigo e o novo. Então, são ouvidos vários sons maquínicos, não
necessariamente sincrônicos com as imagens.
Até que, depois de sons de burburinho e vozes dos pescadores, começamos a ouvir o Prelúdio
n.4 de Villa-Lobos. Daí até quase o final do filme teremos um seguimento de estudos para violão
de Villa-Lobos e a mesma Siciliana de Bach na transcrição de Segovia, já utilizada em O mestre de
Apipucos (tabela 3). Como relata Amorim (2007), Villa-Lobos encontrou Segóvia pela primeira
vez em Paris, em 1924, e esse contato fez com que rasgueios e outros elementos típicos do violão
espanhol fossem incorporados à escrita de alguns de seus estudos.
Observamos que, com a presença dessa peça, Arraial do Cabo também coloca em evidência
a relação de Villa-Lobos com Bach (passando por Segovia), como nos dois curtas-metragens
de Joaquim Pedro. Por outro lado, a predominância de peças de violão no documentário como
um todo em associação às atividades cotidianas dos habitantes de Arraial do Cabo corrobora
o significado do violão como instrumento representativo da identidade brasileira (embora, na
verdade, fosse originalmente uma identidade mais urbana e carioca).
Analisamos, então, a grande sequência que começa com o Prelúdio n .4 a vai até os 15
minutos de filme. Como os prelúdios 1 e 2 de Villa-Lobos, o Prelúdio n.4 também tem uma
“homenagem” em seu título, agora ao “índio brasileiro”. É ouvido desde o seu início, lento,
e, como as peças anteriores, também no registro grave do instrumento e em mi menor, sobre
imagens do mar, dos pescadores preparando a rede e de um pescador fumando e observando
a paisagem. Vem a sua parte B, Animato, com arpejos muito rápidos e as imagens mostram os
pescadores com movimentos apenas um pouco mais rápidos que os das atividades anteriores, até
que a parte A modificada volta a imagens e gestos mais contemplativos. Alterna-se novamente
com arpejos rápidos, agora do Estudo n.1 de Villa-Lobos, também em mi menor, sobre imagens
também com um pouco mais de movimento (pescadores correndo, puxando seu barco, remando,
mexendo nas redes e fazendo sinais da terra para os companheiros no mar). A transição para a
parte Animato do Estudo n.11 é bem fluida, até porque o trecho ouvido também é mi menor. É a
volta dos pescadores do mar, finalizada no Lento do estudo.
Depois dessas alternâncias “lento-rápido”, geralmente na tonalidade de mi menor, a emenda,
exatamente na nota si bemol, é com a Siciliana de Bach-Segóvia, no caso, com sua segunda
parte, indo para o tom de sol menor, até o começo da volta para a tonalidade maior principal.
Aqui, diferentemente do que evoca o trecho em Si bemol Maior no filme de Joaquim Pedro de
Andrade, mesmo com a tonalidade menor, a Siciliana resvala uma leveza condizente com a
aparente “vitória” dos pescadores sobre a natureza, com imagens de muitos peixes nas redes,
homens sorrindo e crianças participando desse final de dia.
Ouvimos, a seguir, o Estudo n.5 em Dó maior com as imagens de grandes peixes em planos
detalhe. O Estudo n.5 é escrito a três vozes, sendo a sua voz central constituída por um ostinato,
que dá um caráter de inexorabilidade à prática tradicional da pescaria e à agonia dos peixes
morrendo. Quando a voz superior vai para um registro mais agudo, passamos a ver uma alternância
de planos médios e próximos de pescadores conversando entre si. Com o término da condução
melódica no agudo, vemos imagens dos homens e crianças na praia ao fim do dia.
Junto com o Estudo n.8, (em sua parte mais melódica) temos a volta da voz over. Ela
anuncia o processo de salga dos peixes retirados do mar, que vemos nas imagens seguintes do
documentário, iniciando-se com dois planos de peixes sendo puxados.
O final do filme tem uma música de banda (provavelmente a Aurora mencionada por
Saraceni), vinda do rádio do bar onde se reúnem os pescadores. Ela destaca o caráter provinciano
de Arraial do Cabo e evoca os bailes comuns nas pequenas cidades brasileiras.

Conclusão

Observamos que a escolha do repertório preexistente para as trilhas musicais dos três
documentários reforçam a relação de Villa-Lobos com o compositor barroco alemão J.S.
Bach, além de apontarem para questões discutidas desde a Semana de Arte Moderna de 22: o
nacionalismo e a relação da tradição e do moderno, aspectos também presentes nas músicas de
Nepomuceno e Fauré.
Tanto a música preexistente (especialmente de Villa-Lobos) quanto a ênfase no cotidiano
dos desvalidos (como em Arraial do Cabo) serão características do Cinema Novo brasileiro. A
primeira foi um aspecto comum nos filmes do cinema moderno do final dos anos 50 e nos anos
60.
Por outro lado, a predominância da música na banda sonora junto com a voz over revela as
limitações tecnológicas de orçamento desses três curtas-metragens. Mesmo assim, a voz over
tem um emprego mais próximo àquele encontrado em documentários modernos, seja com o uso
da narração dos próprios personagens retratados, seja pela voz pouco impostada do narrador em
Arraial do Cabo e sua ausência em grande parte do documentário.
Referências bibliográficas

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violonística. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Federal do Estado do Rio de
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Curitiba: Appris, 2016.
Luíza Beatriz Alvim é doutora em comunicação e cultura pela UFRJ, com
pesquisa (sanduíche) na Universidade Paris 3. Graduada em comunicação social
(habilitações jornalismo e cinema) pela UFF. Foi professora substituta da Escola de
Comunicação da UFRJ, está terminando novo doutorado em Música na UNIRIO e
faz também pós-doutorado em Música no PPGM-UFRJ. É uma dos coordenadores
do Seminário Temático de Teoria e Estética do Som no Audiovisual da SOCINE, é
vice-coordenadora do GP Cinema da Intercom e organizadora da JISMA (Jornada
Interdisciplinar de Som e Música no Audiovisual).
5. Rossellini nos trópicos24*

Mariarosaria Fabris

Introdução

Se Roma, cidade aberta (Roma, città aperta, 1944-45) chegou às nossas telas em dezembro
de 1946, Roberto Rossellini veio ao Brasil doze anos depois, quando foi cogitada a transposição
cinematográfica de Geopolítica da fome, de Josué de Castro. Uma primeira visita do cineasta ita-
liano já havia sido anunciada em outubro de 1954 por Fernando de Barros, que o teria convidado
para realizar um filme sobre os Muckers, tendo Sergio Amidei como roteirista e Ingrid Bergman
como intérprete principal (cf. CALHEIROS, 2003: 26).
A essa viagem de 1958, seguiram-se, salvo engano, mais duas: em 1965, para participar – ao
lado de outros grandes nomes da crítica e da produção cinematográficas, como Lotte H. Eisner,
Henri Langlois, Louis Marcorelles, Robert Benayon, Freddy Buache, Lino Micciché, Fritz Lang,
Jean Rouch e Marco Bellocchio – do Festival Internacional de Cinema, organizado no Rio de
Janeiro por Moniz Viana e José Sanz (cf. SARACENI, 1993: 195; ALEXANDRE, 2008: 158),
ou seja, cinco anos depois do grande festival intitulado História do Cinema Italiano, realizado
pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e pela Cinemateca Brasileira de
São Paulo, cuja edição paulistana apresentou, na sessão de abertura no Cine Astor, De crápula a
herói (Il generale Della Rovere, 1959), de sua autoria25; e em 1968, como um dos representantes
da UNESCO na Mesa-Redonda sobre Pesquisa em Cinema e Televisão na América Latina, ocor-
rida, em São Paulo, de 24 a 28 de junho.
O presente texto pretende relembrar as duas passagens mais importantes do cineasta italiano
entre nós e ensaiar uma leitura do diálogo que com ele manteve Glauber Rocha, a partir das re-
flexões desenvolvidas em Revisão crítica do cinema brasileiro (1963) e em O século do cinema
(1983).

1958

A primeira viagem de Rossellini ao nosso país revestiu-se de particular importância em


24 *
As ideias contidas neste texto já foram parcialmente expostas em “Relendo Rossellini à luz
de Rocha” (Olhar, São Carlos, ano 7, n. 12-13, jan.-jul. e ago.-dez. 2005, p. 159-162) e em “Roberto
Rossellini e Josué de Castro: um diálogo truncado” (Anais do VI Seminário Nacional Cinema em Pers-
pectiva, Curitiba, 2018, recurso eletrônico).
25 A edição carioca foi inaugurada com a projeção de O abismo de um sonho (Lo sceicco bian-
co, 1952), de Federico Fellini.
termos de um intercâmbio cultural entre Itália e Brasil, ao criar expectativas quanto a um filme
baseado na obra de Josué de Castro.
Considerado o pai do neorrealismo, não sem contestações, e o pai do cinema moderno, talvez
com maior unanimidade, Rossellini foi sempre uma figura polêmica, pois, como grande experi-
mentador, buscou inúmeras vezes novos caminhos.
Entre 1957 e 1958, ele havia visitado a Índia e dessa viagem resultaram o docudrama Índia,
mãe terra (India matri bhumi)26 e o documentário em dez episódio A Índia vista por Rossellini
(L’India vista da Rossellini)27, os quais deram início à virada talvez mais ousada da carreira do di-
retor, que passou a dedicar-se à produção de filmes para a televisão, por ter visto nesse meio uma
nova forma de atingir e educar o público, depois da falência do projeto pedagógico neorrealista.
Índia, mãe terra poderia ser considerado uma “tentativa de cinema enciclopédico geográfico”,
segundo Adriano Aprà (2012, p. 128), uma tentativa que não será única, como explicitou este
mesmo autor:
A enciclopédia geográfica deveria ter continuado, logo depois de Índia, mãe
terra, com Geografia da fome (Geografia della fame), uma adaptação do en-
saio Geopolítica da fome (1951), de Josué de Castro, sociólogo e etnólogo
brasileiro, que Rossellini havia lido provavelmente na versão italiana editada
pela Leonardo da Vinci de Bari, em 1954, com prefácio de Carlo Levi28; para
este projeto, que tinha herdado de Cesare Zavattini e Sergio Amidei, Ros-
sellini foi ao Brasil em agosto de 1958, onde encontrou Castro29.

De fato, a convite de Josué de Castro, Samuel Wainer, Assis Chateaubriand e produtores


brasileiros (cf. SARACENI, 1993: 31; ROCHA, 2003: 30), o cineasta desembarcava no Rio de
Janeiro, de onde prosseguiria para Pernambuco, Bahia e São Paulo. Segundo Maria do Socorro
Carvalho (2003: 28), além do trabalho de Josué de Castro, Rossellini trazia em sua bagagem cul-
tural “outras referências da sociologia brasileira, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, [Alberto]
Guerreiro Ramos e Nelson Carneiro” e, na viagem por nossas terras, “reuniu informações, estu-
dos e imagens filmadas em 16mm como fontes de pesquisa para a preparação dos futuros filmes”.

26 Lançado entre 1959 (na França) e 1960 (na Itália).


27 Apresentado pela RAI entre janeiro e março de 1959, sua versão francesa Fiz boa viagem (J’ai
fait un bon voyage) foi exibida pela ORTF entre janeiro e agosto daquele mesmo ano.
28 O “Catalogo del Servizio Bibliotecario Nazionale” registra duas ocorrências para Geografia della
fame: uma é a citada por Aprà (e na ficha consta o título original, Geopolítica da fome, mas não o nome
do tradutor); outra, publicada pela mesma editora, no mesmo ano, da qual não consta o título original,
mas aparecem os nomes de Donato Rasca, como tradutor, e de Giuseppina Savalli, como revisora
técnica, mas não o de um prefaciador. É provável que se trate da tradução de Geografia da fome, pois
não faria sentido a mesma editora lançar duas vezes o mesmo livro num ano.
29 Rodolfo Nanni, que residia na capital italiana naqueles anos, dá a entender que os dois já se conheciam e relata:
“Me lembro que o Rossellini ficou muito impressionado com o livro Geografia da Fome [...]. Ele e o Cesare Zavattini [...]
propuseram então ao Josué que fizessem um filme a partir do livro. [...] A ideia era fazer um filme que relatasse a fome não
só no Brasil, mas em todo o planeta, incluindo o sul da Itália e parte da Espanha. Eu ficaria com a parte brasileira” (BARILE,
2008). Não foi bem assim.
O projeto sobre o mapeamento da fome em todos os continentes encontrou forte resistência,
como recordou Paulo César Saraceni (1993: 32-33):

Vi Rossellini falando para um público de surdos na ABI. O público não podia


entender que ele quisesse cantar a miséria brasileira [...]. Pensando, agora,
no que senti quando Rossellini falava do Nordeste, acho que ele pensava no
seu filme Índia.

Com efeito, a imprensa local posicionou-se contra (MARGARIDO, 2014):

O Globo perguntava o que vinha fazer o diretor no Brasil senão uma obra


comunista para “mostrar ao mundo que o país do futuro de Stefan Zweig é na
verdade do presente, da miséria e da fome”. O Jornal do Brasil conclamava
o diretor a se entusiasmar por O Guarani, de Carlos Gomes, em vez de se
interessar por livro “de pouca repercussão”.

E Carlos Lacerda, por sua vez, desferiu seu ataque contra “uma burguesia progressista que
concorda em abrir para o comunismo as portas da sociedade”, tachando Josué de Castro de char-
latão (MARGARIDO, 2014). A associação com o comunismo é bem estranha, uma vez que o di-
retor italiano pregava ideias humanistas e não esquerdistas. Como explica José Umbelino Brasil
(MARGARIDO, 2014):

Não era uma visita propícia naquele momento em que o País queria se ver e
ser visto como moderno [...]. Rossellini incomodava, ainda mais associado
à obra de Castro, homem de esquerda, [que será] cassado pelo golpe militar
quando embaixador e obrigado a se exilar.

Embora ainda haja divergências quanto ao livro no qual se basearia o roteiro de Rossellini
– Geopolítica da fome, como apontado por Aprà, ou Geografia da fome (1946), como repetido
pela maior parte dos pesquisadores brasileiros, confusão talvez causada pelo título do documen-
tário, Geografia della fame –, o que importa salientar é que deve ter sido o caráter enciclopédico
da obra de Josué de Castro a atrair o cineasta, porque em consonância com ideias sobre a função
pedagógica do cinema, que ele havia ensaiado em Índia, mãe terra e que levará adiante nos pro-
jetos televisivos, realizados ou não, nos quais seguirá “o método didático-informativo”, como ele
mesmo o denominou (ROSSELLINI2, 2011, p. 13). Por ocasião do lançamento de O Messias de
Rossellini (Il Messia, 1975), o diretor explicava:

Há quatorze anos que, através do cinema e da televisão, tenho perseguido um


só objetivo: a informação. E digo precisamente a informação, não a didáti-
ca, porque em minha opinião não é preciso ensinar, mas limitar-se a fornecer
dados brutos a fim de que cada um, em seguida, possa elaborar por si mes-
mo” (OLIVEIRA, 2016).

Nesse sentido, as pesquisas do médico nutricionista e geógrafo pernambucano correspondiam


a suas expectativas. De fato, já em 1937, Josué de Castro, em colaboração com Cecília Meirelles,
havia lançado um livro para ensinar às crianças os princípios de uma boa alimentação: A festa das
letras (cf. RAMOS, 2016: 416-429). Coincidentemente, entre 1935 e 1941, Rossellini havia fil-
mado seis curtas-metragens com esse propósito pedagógico, dentre os quais dois destinados mais
a um público infantil: O peru prepotente (Il tacchino prepotente) e Teresa, a travessa (La vispa
Teresa), ambos de 1940 e tendo como tema o universo dos animais, o que permitiria estabelecer
um paralelo entre o realizador italiano e Humberto Mauro30.
Se ainda há discordância sobre a obra a ser filmada, ela também existe quando se trata de
estabelecer como Rossellini tomou conhecimento da obra de Josué de Castro. Enquanto José
Umbelino Brasil “levanta a hipótese de que Sergio Amidei [...] recomendou-lhe uma versão fran-
cesa” (MARGARIDO, 2014)31, o filho de Rossellini afirmou, em 2014, ter sido ele, quando jo-
vem, a indicar o livro ao pai, ao regressar de uma viagem ao Brasil, aonde veio visitar parentes
(MARGARIDO, 2014):
Quem me recomendou a leitura, assim como de Os sertões, foi Gilberto
Freyre. Quando voltei, descobri que havia uma tradução italiana. Meu pai en-
tão pensou em realizar iniciativa semelhante àquela na Índia. Como Amidei
era colaborador frequente, possivelmente tivessem conversado a respeito.

Só que, em 2007, Renzo Rossellini (2011: 122) havia escrito:

Provavelmente, já durante as tomadas de Era noite em Roma32, Sergio Ami-


dei, que era roteirista desse filme, contou ao meu pai sobre um ensaio do
antropólogo brasileiro Josué de Castro, Geografia della fame [Geografia da
fome]. Terminado o filme, Rossellini foi tomado por um frenesi parecido
com o de um apaixonado e partiu para o Brasil, com Amidei, para encontrar
Josué de Castro em Recife e na Bahia.

Pesquisas veiculadas recentemente por Maria Carla Cassarini no alentado artigo “Il miraggio
di un film contro la fame nel mondo. Quasi un romanzo epistolare: protagonisti De Castro, Za-
vattini, Rossellini, Passeri e varie case di produzione” (publicado pela revista Cabiria – studi di

30 Aproximação sugerida pela cineasta Beth Formaggini durante o 13º Cine Ceará (Fortaleza,
7-13 de maio de 2003), quando os curtas-metragens foram exibidos.
31 A publicação de Géographie de la faim: la faim au Brésil data de 1949 e a de Géopolitique de la
faim, de 1952. Ambas saíram pelas Éditions Ouvrières, de Paris.
32 É flagrante a confusão cronológica de Renzo Rossellini, pois Era noite em Roma (Era notte a
Roma) é de 1960 e a última colaboração entre seu pai e Amidei, antes da estada brasileira, data de
1954, quando da realização de O medo (Angst / La paura).
cinema, n. 181-182, dez. 2015-abr. 2016, p. 17-85)33 e no volume Miraggio di un film. Carteggio
De Castro-Rossellini-Zavattini (Livorno: Edizioni Erasmo, 2017) mostraram, porém, que a ideia
de uma realização inspirada em Geografia della fame (Geopolítica da fome) foi do autor e do
prolífico roteirista34. Como escreveu a autora no prefácio da obra (S.A., 2017):

O filme que Josué de Castro e Cesare Zavattini decidem realizar, e que sus-
cita o interesse do grande diretor Roberto Rossellini, por sua vez arrastado
pelo mesmo impulso solidário, cruza o horizonte da obra cinematográfica
para constituir-se numa intervenção concreta dentre as possíveis providên-
cias contra a fome no mundo. Ao menos, nas intenções dos autores. Este
acontecimento cine-humanitário, com poderia ser chamado, articula-se em
vários momentos, e merece ser acompanhado como um romance de aventu-
ra, tantas são as reviravoltas que subvertem sua trama.

O projeto, no qual efetivamente esteve envolvido também Amidei, não se concretizou, mas
a ideia acabará dando origem ao roteiro de A extraordinária história de nossa alimentação (La
straordinaria storia della nostra alimentazione, c. 1964), o qual não saiu do papel, mas será
aproveitado em A luta do homem por sua sobrevivência (La lotta dell’uomo per la sua sopravvi-
venza), título de duas séries televisivas filmadas de 1967 a 196935, para as quais, segundo Roberto
de Castro Neves (2012), o diretor italiano teria se inspirado não só em Geografia da fome, mas
também em O cavaleiro da esperança (1942). Informação talvez improcedente, talvez não, pois
Renzo Rossellini (2011: 122) afirmou que seu pai havia lido o livro de Jorge Amado, traduzido
para o italiano sob o título de Il cammino della speranza, em 195436. E, encadeando o novo pro-
jeto televisivo com a experiência brasileira, explicou (ROSSELLINI1, 2011: 122):

Quando voltou a Roma, conversou muito comigo sobre o encontro com Jo-
sué de Castro, Jorge Amado, Glauber Rocha e outros jovens cineastas bra-
sileiros. Depois começou a escrever um longo roteiro para uma série de TV
intitulada La storia dell’alimentazione: eu me pus ao trabalho, e nós escreve-
mos a quatro mãos a história do homem desde o seu aparecimento no planeta

33 Como ainda não tive acesso a estas publicações e estou me baseando em dados encontrados
na internet, presumo que Passeri seja Giovanni Passeri, tradutor de autores brasileiros para o italiano
(dentre os quais Jorge Amado) e autor de Il pane dei carcamano: italiani senza Italia: parlano gli emi-
grati italiani di Rio de Janeiro, di San Paulo e delle fazendas dell’interno del Brasile: i contadini di Pe-
tropolis e della fattoria di Pedrinhas: centinaia di dolorose odissee: miseria e speranza, publicado pela
editora Parenti de Florença, em 1958. Essa enquete sobre a emigração italiana no Brasil foi prefaciada
por Amado e por Josué de Castro.
34 As pesquisas foram realizadas no Arquivo Cesare Zavattini (Biblioteca Panizzi de Régio da
Emília) e no material sobre o assunto reunido por Adriano Aprà, um dos maiores pesquisadores da
obra de Rossellini.
35 As séries foram levadas ao ar entre 1970 e 1971, na Itália, e em 1972, na Espanha.
36 A tradução esteve a cargo do antropólogo Tullio Seppilli (Roma: Edizioni di Cultura Sociale).
até os tempos modernos. Enquanto ele se concentrou sobre a agricultura e
a alimentação, tratei de outros aspectos, como os alquimistas, os metais, as
armas, Galileu, as viagens, a descoberta da América. Para poder integrar o
meu trabalho, meu pai mudou o título do projeto de Storia dell’alimentazio-
ne para La lotta dell’uomo per la sua sopravvivenza.

O problema da população mundial (A question of people ou, na versão italiana, La popolazio-


ne mondiale, 1974), documentário sobre as consequências da explosão demográfica no planeta,
produzido pela UNESCO, foi mais um fruto da enciclopédia geográfica almejada por Rossellini.
O filme alterna depoimentos de especialistas em demografia, com material de arquivos soviéticos
e da NASA, com imagens captadas na Índia em 1957 e outras filmadas por ele e seus colaborado-
res na África e no Brasil, dentre as quais é provável que haja sequencias rodadas em Pernambuco
e na Bahia em 1958. No caso destas últimas filmagens, segundo Aprà (2012: 128), talvez elas
tenham sido realizadas tendo em vista outro projeto arquivado, A civilização dos conquistadores
(La civiltà dei conquistadores, c. 1970).
Em entrevista a O Semanário do Rio de Janeiro, em fins de agosto de 1958, ao ser indagado
sobre projetos futuros e se o roteiro de seu documentário se basearia em Geografia da fome, Ros-
sellini respondeu (FINAMOUR, 1958):

Desejo realizar filmes em que haja uma revalorização do homem. Uma reto-
mada de consciência. Nestes últimos tempos, o homem foi completamente
esquecido, como ser humano. Dirão que tenho um plano utópico, ambicioso
mesmo, mas pretendo fazer uma enorme indagação nos meus filmes docu-
mentários sobre a condição do homem no mundo moderno. Enquanto a ciên-
cia e a técnica alcançaram um desenvolvimento extraordinário[,] o homem
foi totalmente abandonado. É preciso criar uma consciência em torno [d]a
condição do homem no mundo, sem o limite das fronteiras, é evidente.
[...] a magnífica obra de Josué de Castro será o primeiro capítulo de uma pes-
quisa sobre o gravíssimo problema da fome no mundo. Disse o Presidente do
Brasil, numa entrevista concedida aos jornais hoje[,] que o mais grave pro-
blema da América Latina é o problema do subdesenvolvimento econômico.
Assim, penso eu, quando os homens dos governos apontam um fato que ne-
cessita ser resolvido[,] todos os que se sentirem capazes de ajudar a esclare-
cer, a dar contorno ou evidência ao mesmo, deverão precipitar-se nesta tarefa
para estudar os diferentes ângulos dessa realidade e ajudar a dar soluções.
Pretendo[,] como veem[,] realizar uma documentação sincera, humildíssimo
[sic], um estudo sério e profundo de diferentes problemas sociais. O meu
projeto é alcançar o mundo inteiro. Na América Latina começarei pelo Bra-
sil, por ser a pátria do autor de Geografia da fome. Depois farei na África,
Europa, Ásia, etc.

Ao chegar em São Paulo, no dia 1º de setembro, a convite da Comissão Municipal de Cinema,


ainda no aeroporto, onde foi recepcionado por artistas, dentre os quais Anselmo Duarte, Aurora
Duarte, Lola Brah e Odete Lara, o diretor, conforme noticiado pela Folha da Noite,

esclareceu que, a despeito dos boatos, não pretende fazer uma adaptação
para o cinema do livro Geografia da fome, de Josué de Castro.
Afirmou que a obra despertou sua sensibilidade e curiosidade e o estimulou
a viajar para ver de perto como vive o homem.
Disse que seu objetivo é “ver o mundo” e que essa experiência poderá dar
origem a uma série de filmes.

Uma declaração algo sibilina, mas que, de certa forma já apontava para a não concretização
do projeto. De fato, também Josué de Castro passou a emitir desmentidos quanto à realização do
filme. Na opinião de José Umbelino Brasil (MARGARIDO, 2014), Rossellini recusou-se a assi-
nar um contrato a pedido de Castro: “Ele saiu da Itália sem um produtor, sem qualquer garantia de
dinheiro para adquirir Geografia da Fome”. Versão que não bate com a informação do interesse
de produtoras pela ambiciosa empreitada, dentre as quais a Arco-Film de Alfredo Bini.
Uma afirmação de Joel Pizzini, no entanto, faz supor que houve uma tentativa posterior,
de novo frustrada, quando do governo de Jânio Quadros, que se negou a apoiar o projeto: “Eles
alegaram que Rossellini era um cineasta superado e não poderia realizar uma película sobre o
livro de Josué de Castro” (MELHADO, 2007, p. 29). Fato corroborado por Arnaldo Carrilho, ao
reportar que, segundo o presidente da República37, um tal filme seria “detrimental à imagem do
Brasil” (MELHADO, 2007, p. 29).
Em todo caso, o sonho de Castro se concretizou em parte com a realização de um curta-me-
tragem (6 minutos), baseado em sua obra de 1946 e que ele mesmo narrou, O drama das secas,
de Rodolfo Nanni38. Com uma pequena verba da Associação Mundial da Luta contra a Fome,
fundada em Paris em 1957, da qual o intelectual pernambucano era diretor, e contando com dois
jipes do Departamento Nacional de Obras contra a Seca, a equipe de Nanni adentrou o Agreste e
o Sertão nordestinos, documentando também o sofrido êxodo para o Sul, provocado pela grande
seca de 1958. Nas palavras do realizador (NANNI, 2008): “Levamos uma câmera de 35mm e
algumas latas de negativo, prontos para registrar a miséria e a fome endêmica de toda uma popu-
lação. Percorremos uma grande parte dos estados de Pernambuco, Ceará e Paraíba, num percurso
37 Entre 1962 e 1964, Carrilho foi chefe da difusão cinematográfica no Itamaraty.
38 Lançado em 1959, o filme ganhou os prêmios Saci e o da Municipalidade de São Paulo. O
Diário Carioca, (1º jul.), atribuindo sua autoria a Rossellini, tachava a obra de propaganda comunista
(MELO & NEVES, 2007, p. 175-177).
de cerca de 4 mil quilômetros”. As poucas imagens que sobraram de O drama das secas pontuam
O retorno (2008), no qual o diretor voltou a percorrer as mesmas regiões de cinquenta anos antes.
Voltando à viagem de Rossellini, em Pernambuco, ele visitou o sertão do Salgueiro, na com-
panhia de Josué de Castro, e, no Recife, onde permaneceu dois dias, fez uma visita a Gilberto
Freire, na casa de Apipucos, onde provou licor de pitanga39. Há indícios de que o cineasta pensou
em levar para as telas Casa-grande & senzala (1933), assim como o romance Capitães da areia
(1937), de Jorge Amado. Quanto à intenção de transpor a obra do sociólogo, ela foi relatada pelo
próprio Freyre (1978), ao rememorar aquele encontro:

Tempos depois recebia eu um telegrama de São Paulo, de amigo comum:


Rossellini queria fazer de Casa-grande & senzala um grande filme brasilei-
ro. Épico e lírico, como me dissera em Apipucos. Louvor da morenidade. Da
metarracialidade. Era a mensagem do Brasil a um mundo dividido por ódios:
inclusive os animados por preconceitos de raça pura. [...]
Afinal, o que Rossellini desejava realizar, com esse filme que projetou, à
base do livro Casa-grande & senzala – [era] uma realidade, um fato, a reve-
lação, para muitos, de um Brasil que muitos ignoravam existir e, ao mesmo
tempo, a expressão de um novo conceito de morenidade, de além-raça, de
expressões de beleza morena ou tropical de mulher [...].
O projeto de Rossellini era grandioso. Tanto quanto sei não encontrou apoio
no Brasil. Gorou. Ainda verde, secou. Murchou. Está tendo substitutos que
evitam proclamar a prioridade que ele proclamaria.

Para Joel Pizzini (MELHADO, 2007: 29), o diretor italiano, conforme comentário de Fran-
çois Truffaut, pretendia realizar um filme intitulado Brasília: “Ele sempre tentou filmar no Brasil,
mas nunca conseguiu. Na verdade, eu suponho que ele gostaria de filmar o projeto de Brasília
como um amálgama de Jorge Amado, Josué de Castro e Gilberto Freyre”.
Ciceroneado por Di Cavalcanti, Rossellini passou dois dias em Salvador, onde, numa entre-
vista40, mencionou, dentre outras coisas, “seu planejado documentário colorido sobre o Brasil;
por causa dele, esperava passar alguns meses no país, e tal como o seu último filme, rodado na
Índia, teria parte documental e parte de ficção” (CARVALHO, 2003: 28).
Foi também em Salvador que se deu o encontro entre o consagrado cineasta e o jovem re-
pórter de um periódico carioca. No filme Di (1976), premiado no Festival de Cannes de 1977, do
39 Nessa visita, o diretor foi escoltado pelo pintor Emiliano Di Cavalcanti (que havia conhecido no Rio de Janeiro,
onde lhe teria sido apresentado por Rodolfo Nanni) e pelo poeta Carlos Pena Filho, mas não por Josué de Castro, pois
“havia animosidade histórica entre ele e o autor de Casa Grande & Senzala”, segundo Paulo Cunha: “Visitas de estrangei-
ros, como ocorreu com Orson Welles no Ceará e no Recife, tinham traço provinciano e de legitimização [sic] de tradições
e personalidades, como o beija-mão a Freyre”. (MARGARIDO, 2014).

40 “Rossellini: documentário em cores focalizando o mundo da miséria”. Estado da Bahia, 27 ago.


1958.
qual o diretor italiano foi presidente do júri, Glauber Rocha registrou esse momento, confessando
que ficou fascinado com o método de trabalho de Rossellini, com a rapidez com que filmava,
mergulhando numa realidade cultural que não era a dele:

O Di Cavalcanti eu conheci na Bahia no ano de 1958. Di Cavalcanti apa-


receu por lá com Roberto Rossellini [...]. Daí que sendo repórter do Diário
de Notícias da Bahia fui destacado para entrevistar o Roberto Rossellini e
lá conheci o Di Cavalcanti que me apresentou o próprio Roberto, com uma
câmera de 16mm saindo pelas ruas da Bahia filmando rapidamente lá, um
sarcófago e outros batuques das ruínas portuguesas barrocas da Bahia com
uma rapidez impressionante. Nunca vi ninguém filmar tão rápido, aliás ali eu
saquei realmente o negócio de ideia na cabeça e câmera na mão, quer dizer,
o Rossellini realmente fazia com a câmera de 16 o que Di Cavalcanti faria
com o pincel; filmando um Cristo morto lá, sepultado dentro de uma laje
marmórea dentro do Santo Antônio Convento do Carmo, ali não sei direito
aonde, pela Bahia zona norte, ali..., zona cristão... 41

1968

A julgar pelas notícias dos jornais, a última estada de Roberto Rossellini no Brasil não teve
uma repercussão muito positiva. O encontro patrocinado pela UNESCO, pelo Instituto Brasi-
leiro de Educação, Ciência e Cultura (vinculado ao órgão internacional), pelo Itamaraty e pela
Escola de Comunicações Culturais da Universidade de São Paulo, foi realizado dentro do pré-
dio da faculdade paulistana, ocupado pelos alunos que pleiteavam uma reforma universitária. O
congresso reuniu cerca de quarenta especialistas brasileiros e estrangeiros, com o objetivo de
“estabelecer o grau de evolução existente na América Latina no corpo da pesquisa em televisão
e cinema”, conforme reportou a Folha de S. Paulo, em 25 de junho de 1968. Além de Rossellini,
participaram Enrico Fulchignoni (representante da UNESCO), Roberto Santos, Paulo Emílio Sa-
les Gomes, Francisco Luís de Almeida Sales, o filósofo francês Edgar Morin, bem como Alfredo
Guevara Díaz, Hugo Alfaro e Luis Pico Estrada, delegados de Cuba, do Uruguai e da Argentina,
respectivamente; Glauber Rocha teria vindo só para se encontrar com o cineasta italiano, segundo
Ismail Xavier, na época um dos estudantes da instituição42. Nesse período, Rossellini, em busca
de novos caminhos expressivos, já tinha se afirmado como diretor televisivo, ao apresentar obras
de caráter didático e propagativo como A idade do ferro (L’età del ferro, 1964) e a famosíssima
Absolutismo: a ascensão de Luís XIV (La prise de pouvoir par Louis XIV / La presa di potere di
Luigi XIV, 1966).
41 Locução de Glauber Rocha, extraída de Di.
42 Depoimento à autora em 2003.
Dentre as várias exposições do congresso, a de Alfredo Guevara Díaz, foi a que mais inte-
ressou a plateia, pois ele dissertou sobre “o começo do desenvolvimento cinematográfico numa
sociedade socialista com poucos recursos”, o que vinha ao encontro das reivindicações dos jo-
vens grevistas, preocupados com a “crise brasileira, evidenciada num regime ditatorial, na luta
do governo contra os estudantes, na marginalização da nossa cultura, sobre os trustes monopoli-
zadores do mercado interno do cinema e da TV e na ação da censura terrorista”, como escreviam
num manifesto do Centro de Pesquisas e Estudos Cinematográficos. Fatos noticiados pela Folha
de S. Paulo em 26 e 25 de junho, respectivamente.
Simpatizante dos movimentos estudantis na França e nos Estados Unidos, o cineasta estava pres-
tes a revolucionar o currículo do Centro Sperimentale di Cinematografia, que presidiu entre 1969
e 1974. Nomeado comissário extraordinário do CSC em 1968, ele modificou a estrutura dos
cursos, promovendo “pesquisas interdisciplinares sobre o sistema dos meios de comunicação de
massa”, que visavam “à formação de uma espécie de ‘cineastas globais’”, e, como bom autodida-
ta, confiou aos estudantes “a autogestão dos programas de estudo” (AMICO, 2003).
Talvez por desconhecer nossa realidade, Rossellini teria se decepcionado e impacientado
com seus interlocutores, os quais, em troca insinuaram que ele estaria a serviço do imperialismo;
segundo relato de Mário Chamie (1976: 36), que se encontrou com ele na Casa de Vidro de Lina
Bo Bardi e Pietro Maria Bardi, o diretor italiano teria afirmado:

Verdadeiramente incrível a falta de ideias dos jovens cineastas brasileiros. Estão


desorientados. Perderam a noção do Brasil e da América Latina. Repetem chavões e
são incapazes de organizar um programa de luta. [...]
Ou se luta ou não se luta. E para lutar é preciso ter o domínio e a atualização das
informações. Eles não encontravam sequer a fórmula, o meio claro, de fazer uma
moção que significasse um ponto de vista a ser ouvido, atendido e respeitado. Per-
diam-se numa linguagem ideológica velha, gasta, repetida e sem nenhuma eficácia
diante dos verdadeiros problemas políticos e sociais de hoje. O texto final da moção
que devem ter encaminhado é uma recaída num blá-blá-blá vazio e de conveniência
contra os alvos fáceis do imperialismo, ditadura, capital estrangeiro, etc. Não se
entendem e não percebem o que está se passando no mundo, especialmente com a
juventude. Pelo visto, há muito pouco a esperar do cinema brasileiro.
[...] Os jovens dos países subdesenvolvidos, por girarem em torno do centro “pão-
-e-guerra”, ameaçam desvirtuar e distorcer o rumo e o impacto da transformação
que a outra juventude está imprimindo no mundo. E vocês fazem sem projeto e sem
programa definido. É preciso ter a coragem de enxergar as situações novas.
[...] Na “mesa-redonda”, acima da disposição, estavam os chavões. E com chavões
como podem os jovens libertar e defender o cinema que eles são capazes de fazer?
Que a juventude daqui, por isso, com todo o direito e o dever de viverem os seus
problemas de subdesenvolvimento, não desfigure a original ação revolucionária das
outras juventudes.

Encontros

E, o entanto, foi e será com um olhar isento de velhos chavões partidário-marxistas que dois
participantes do congresso analisaram De crápula a herói. No artigo “Il Generale della Rovere”,
publicado no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, em 13 de agosto de 1960, Paulo
Emílio Sales Gomes (1981: 240-242), embora lembrando que a obra retomava, em termos mais
comerciais, “a linhagem de crônica inaugurada em Roma, città aperta, Paisà e interrompida após
Germania anno zero”, ressaltava que ela exprimia “a busca ansiosa de uma verdade de vida, de
uma autenticidade moral”, algo que, segundo ele, caracterizava a filmografia rosselliniana. Ao
salientar esse prolongamento meditativo na obra de Rossellini, o intelectual brasileiro, evitando
entrar no mérito das considerações da crítica italiana e francesa, nem sempre favorável, fazia uma
leitura que ia além de questões ideológicas. Glauber Rocha (2006: 213) também, ao contrário de
parte da crítica italiana, a qual considerou o heroísmo do protagonista uma falsificação histórica,
em 1983, manifestará seu entusiasmo pelo filme, vendo na transformação do crápula em herói
uma exigência para se compreender que a tomada de consciência do personagem não era de
cunho ideológico, mas nascia do sofrimento e da solidão.
Nesse filme, Rossellini introduzia uma série de recursos de técnica e de estilo, base de sua
linguagem televisiva: uma iluminação multifuncional, a exploração intensa das cenografias, um
uso excessivo do travelling e do zoom. Não foi só isso que entusiasmou o cineasta baiano, havia
muito mais: esse “dirigir a câmera pela intuição antes de amordaçá-la pela razão”, que fazia de
Rossellini um “primitivo” como Humberto Mauro, esse “filmar o ‘real no seu fluir’” (ROCHA,
2003: 50; ROCHA, 1983: 152), como se estivesse pronto desde sempre para ser captado, foca-
lizá-lo com um determinado olhar, despojá-lo da retórica, aproximar-se dele diretamente, sem
recorrer a mediações formais. Como dirá, anos mais tarde, Walter Lima Júnior (NAGIB, 2002:
416): “No momento em que Rossellini tira a câmera do estúdio e mostra à vida na rua, ele redefi-
ne não somente uma estética cinematográfica, mas também uma ética cinematográfica”.
Por isso, em Revisão crítica do cinema brasileiro, Glauber (2003: 149) arrolou Roberto
Rossellini entre os cineastas que realizaram um cinema-verdade, por essa capacidade, não de
meramente registrar, mas de mergulhar no real em toda sua complexidade e capturá-lo com sua
câmera. E, em O século do cinema, explicava o que era para ele (ROCHA, 1983: 152) o método
de Rossellini:

Subverte a estética da ilusão pela estética da matéria.


Rossellini é o primeiro cineasta a descobrir a câmera como “instrumento de
investigação e reflexão”. Seu estilo de enquadramento, iluminação e seus
tempos de montagem criaram, a partir de Roma, cidade aberta (1945), um
novo método de fazer cinema.

De fato, em Rossellini, ele admirava aqueles “movimentos de câmera [que] obedecem à


realidade e não à técnica”, aquela câmera a qual “às vezes, gira como louca quando o homem
se encontra perdido”, o que lhe fez concluir que “sua estética é sua ética” (ROCHA, 1983: 153-
154). Para exemplificar, bastaria lembrar a sequência de “Il miracolo” (“O milagre”), segundo
episódio de L’amore (O amor, 1947-1948), em que Nannina é expulsa do adro da igreja por outro
mendigo da aldeia. A câmera que, em alguns planos, vai acompanhando a personagem de Anna
Magnani ao subir e ao descer a escadaria, já é a câmera na mão que, depois, caracterizará o cine-
ma de Glauber Rocha.
No diretor italiano, Glauber Rocha (1983: 154, 152) admirava ainda o constante interrogar-se,
uma busca da verdade ontológica do homem, o que o levou a afirmar que “Rossellini é a passa-
gem além do real, sem transigir com o real” ou “Rossellini é um místico antes de neorrealista”,
no sentido que buscava uma resposta para as angústias existenciais do homem.
Esse misticismo apontado por Glauber e que explode na tela com Stromboli (Stromboli, terra
di Dio, 1949-1950), presente já em realizações anteriores, traz de novo à baila a questão de um
Rossellini existencialista, não só porque, em seus filmes, o homem é o centro de sua atenção, mas
porque sua existência adquire significado quando ele se abre para um ser supremo, atingindo sua
máxima realização. Por isso, a câmera rosselliniana se demora em enquadramentos que, aparen-
temente, são tempos mortos, em que nada acontece. É como se o diretor estivesse esperando por
aqueles momentos epifânicos, por aquela revelação da presença do Criador no universo que ele
criou. O que faz parecer natural que, depois desse filme Rossellini realize Francisco, arauto de
Deus (Francesco giullare di Dio, 1950): esse homem, criatura entre outras criaturas, é o grande
ensinamento tirado dos escritos do santo de Assis.

Se, para Roberto Rossellini, a salvação da humanidade passa por essas questões existenciais,
Glauber Rocha, aparentemente, parece ter uma posição diferente, pois a urgência da luta o leva a
buscar outras soluções, de cunho mais ideológico.
Essa conjunção entre ideologia e questões existenciais, no entanto, já está presente em Glau-
ber desde seus primeiros filmes. Em artigo dedicado a A idade da terra, Ismail Xavier (1998:
180) ressaltou “o retorno da identificação do nacional com o campo da religião popular”. Se
Glauber Rocha (2006: 256) apontará para um paralelo entre Deus e o diabo na terra do sol (1964)
e O evangelho segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo, 1964), evidenciando as “comuns
identidades tribais, bárbaras”, a referência ao Cristo pasoliniano torna-se explícita no monólogo
final de A idade da terra na voz-over do próprio cineasta e num texto teórico (ROCHA, 2006:
285):

No meu último filme, A idade da terra (1978-1980), falo de Pasolini, digo


que desejava fazer um filme sobre o Cristo do Terceiro Mundo no momento
da morte de Pasolini. Pensei nisso porque queria fazer a verdadeira versão
de um Cristo Terceiro-Mundista que não teria nada a ver com o Cristo paso-
liniano.

Para Glauber – como explicitou Ismail Xavier (2006: 26) – era

revolvendo os traços ancestrais que se prepara o imaginário da revolução,


em particular, esta revolução que deve emergir em consonância com o Cris-
to multiplicado, multiétnico da periferia e dos bolsões marginais da ordem
mundial, num movimento que condensa a força dos mitos populares na luta
contra a razão burguesa, a tecnocracia e a lei do Pai.

Sem desconhecer a importância dessas afirmações, surge uma questão: A idade da ter-
ra não poderia ser lido também como uma retomada do diálogo de Glauber com o misticismo
rosselliniano em suas implicações mais profundas? Dessa forma torna-se possível a triangulação
Rossellini-Glauber-Pasolini, a qual ganha consistência ao se atentar para o fato de que, em Ga-
viões e passarinhos (Uccellacci e uccellini), o próprio diretor bolonhês reconhece sua matriz
rosselliniana, para superá-la.
Além disso, outra possível aproximação entre Glauber e Rossellini, poderia ser feita a partir
do projeto televisivo sobre a vida de Ciro da Pérsia, encomendado ao diretor brasileiro no período
em que este viveu na Itália43. Glauber deveria ter realizado o filme para a RAI, a mesma emissora
para a qual Rossellini produziu a maioria de suas obras de caráter didático. Para poder averiguar
essa hipótese, no entanto, seria necessária uma investigação aprofundada. Em todo caso, é inte-
ressante registrar a coincidência entre o título do filme de Glauber, A idade da terra, e o título
de realizações televisivas supervisionadas ou dirigidas por Rossellini: L’età del ferro e L’età di
Cosimo de’ Medici (1972), em que o termo età pode ser traduzido por idade ou por era.
Mais importante, porém, das questões acima expostas, quem sabe possa existir uma participa-
ção subjacente de Rossellini, por mínima que seja, no traçado da linha que, saindo de Geografia
da fome, de José de Castro, passa pela tese “Estética da fome” (1965), de Glauber Rocha, para
chegar a O profeta da fome (1970), de Maurice Capovilla44 Mínima, porque a fome que, para
43 Informação dada por Maria do Rosário Caetano, por ocasião do painel cinematográfico Neor-
realismo e Cinema Novo, realizado no âmbito do já citado 13º Cine Ceará.
44 O “nexo identitário” entre Castro e Rocha foi estabelecido por Paula Siega (2009: 173): ”se Josué de Castro, de-
dicando Geografia da fome aos escritores e sociólogos da fome no Brasil, indicava a formação de uma tradição cultural
nacional em torno desta temática, Glauber com sua tese insere nesta tradição os cineastas, atrelando novamente o cine-
ma à literatura”. A conexão entre Glauber e Capovilla foi feita em texto introdutório a “A estética da fome” (S.A., s.d.): “A
influência maior do artigo de Glauber sobre O Profeta da Fome de Capovilla está aí resumida: em ambos, a cultura como
ordenação da realidade através de símbolos. No circo, antes lugar do limpo e do belo, agora também chegam a fome e a
Rossellini, era uma temática, a partir de Glauber se transforma, nas palavras de Ismail Xavier
(S.A., s.d.),

na própria forma do dizer, na própria textura das obras [...] passa a ser assu-
mida como fator constituinte da obra, elemento que informa a sua estrutura
e do qual se extrai a força da expressão, num estratagema capaz de evitar a
simples constatação (somos subdesenvolvidos) ou o mascaramento promo-
vido pela imitação do modelo imposto (que, ao avesso, diz de novo somos
subdesenvolvidos).

Epílogo

Por enquanto, parece não ter sobrado muito mais das meteóricas passagens de Rossellini
pelo Brasil. Sua vinda em 1958 e seu encontro com Josué de Castro ainda continuam nebulosos,
cheios de informações desencontradas e rodeados de certo folclore. Se os textos de Maria Carla
Cassarini estão esclarecendo os fatos na Itália, tomara que a publicação do livro de José Umbe-
lino Brasil, Geografia do filme – A viagem de Rossellini45, baseado na troca de correspondência
entre os dois, e a realização de Viaggio in Brasile tragam novos elementos em relação ao nosso
país. Em seu filme Paulo Caldas incluirá a visita do diretor ao Recife: “Queremos recuperar situa-
ções como a ida dele ao mangue para conhecer os homens-caranguejo, capítulo emblemático do
livro” Rossellini amou a pensão de Dona Bombom (2007), do jornalista e escritor Cícero Belmar
(MARGARIDO, 2014)46. O filme, ainda em processo de captação de financiamento internacio-
nal, ao mesclar ficção e trechos documentais, pretende “iluminar o propósito maior da visita e da
filmagem não realizada” (MARGARIDO, 2014).
O encontro entre Rossellini e o Brasil, no entanto, deve ter sido marcante, principalmente em
1958. Bastaria rememorar a reverência com que o jovem repórter do Diário de Notícias o entre-
vistou, sendo “uma das poucas vozes de boa acolhida”, segundo Renzo Rossellini (MARGARI-
DO, 2014); a trepidante curiosidade com que um grupo de jovens cineastas brasileiros se dirigiu
ao Hotel Leme Palace para solicitar e conseguir um bate-papo com o diretor italiano, conforme
relato de Cacá Diegues (2014); o impacto que nossa realidade lhe causou, de novo nas palavras
de seu filho – “Gostaria de lembrar o grande amor dele pelo País, a sua descoberta de uma região
tão carente como o Nordeste, o amor e a misericórdia por um gigante da cultura e beleza como
dilaceração existencial e física daqueles corpos famintos, sujos e violentos – e aí não há como não fazer a analogia com
a frase mais famosa da Estética: ‘nossa cultura nasce da fome’”.
45 Pesquisa de pós-doutorado, cujos primeiros resultados têm sido apresentados em congressos,
como o da SOCINE em 2012 (BRASIL, 2012).
46 É interessante lembrar que, tendo nascido no Bairro da Madalena, região nobre do Recife,
mas próxima ao mangue, Josué de Castro, em 1935, havia escrito o conto “O ciclo do caranguejo” e,
ampliando essa temática, em 1967, publicará o romance Homens e caranguejos (São Paulo: Brasi-
liense).
é o Brasil” (MARGARIDO, 2014); sua tentativa de apreender e aprender algo de uma cultura
aparentemente tão diferente da sua. Como anotou Diegues (2014): “O registro mais comovente
dessa passagem de Rossellini pelo Rio de Janeiro está numa foto de Luiz Carlos Barreto, tirada
na beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde o cineasta italiano se diverte com meninos negros da
antiga favela da Catacumba”47.

Diante da singela beleza dessa imagem desbotada pelo tempo, as palavras se calam.

47 Provavelmente a foto seja a reproduzida abaixo, extraída da p. 16 do n. 124 do periódico cario-


ca O Semanário, 28 ago.-4 set. 1958, localizado por Annateresa Fabris, a quem agradeço.
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Mariarosaria Fabris – Professora aposentada do Departamento de Letras Mo-


dernas & Cinema, Rádio e TV da Universidade de São Paulo (USP). Graduada em
língua e literatura italiana pela USP, obteve os títulos de mestra em língua e literatura
italiana e doutora em artes (cinema) pela mesma instituição. Foi presidente da Socie-
dade Brasileira de Estudos de Cinema e Arte Visual (SOCINE).
6. Que história queremos contar de América Latina

Yanet Aguilera

É consenso entre os estudiosos que ainda não possuímos uma historiografia sólida sobre o
cinema da América Latina. Tanto melhor, visto que, nas últimas décadas, as epistemologias e os
métodos de diversas historiografias consolidadas, que fundamentam várias histórias do cinema,
estão sendo debatidas. Antes que esta área se firme seria importante colocar em discussão que
tipo de história desejamos contar sobre o nosso cinema.
Faço algumas considerações sobre o debate das historiografias ensaiando um dialogo com
Jorge Cañizares Esguerra (2011). Ele esboça a história de uma nova arte da leitura, no século
XVIII, que se constituiu a partir da experiência americana e que produziu imagens duradouras
do Novo Mundo. É no século XVIII que se sistematiza aquilo que se convencionou chamar de
pensamento moderno. Nas aproximações que faço do debate historiográfico com o cinema, me
detive na noção de modernidade por dois motivos. Primeiro, porque ela é fundamento inques-
tionável em quase todos os trabalhos sobre o cinema da América Latina. Segundo, porque é no
conceito de modernidade que se entrecruzam os fios da história e da crítica do cinema.
Para Cañizares, no século XVIII se constituem duas novas figuras no panorama intelectual,
o viajante filósofo e o compilador de relatos de viagem. As narrativas destes personagens iniciam
a formação de um pensamento moderno que depende diretamente de um novo tipo de leitura,
resultado da avaliação das narrativas sobre o Novo Mundo. Estes personagens atribuíam a suas
histórias rigor científico, supostamente baseado em fatos que desacreditavam os relatos ante-
riores, em geral, considerados exagerados e contraditórios e que, não por acaso, usavam fontes
ameríndias. É uma nova maneira de julgar o valor das fontes históricas. No Renascimento, ainda
segundo Cañizares, a validação de uma narrativa passava por uma crítica externa que valorizava
a classe da testemunha, sua experiência direta e mais prolongada com os acontecimentos relata-
dos, além de considerar os interesses nacionais do viajante, pois eles induziam o tipo de narrativa
feita. No século XVIII, substitui-se este tipo de julgamento pela crítica interna que privilegiava
a coerência dos relatos.
Ainda segundo Cañizares, George-Luis Leclerc Buffon, que aplicou formas internas de crítica
às fontes espanholas e ameríndias, concluiu que a paisagem sem cultivo e a falta de monumentos
no México e no Peru faziam com que as menções às altas densidades populacionais, tanto do
Estado Asteca como Incaico, estivessem erradas. Hoje sabemos que a Triple Aliança do México
pré-colombiano tinha mais de 20 milhões de habitantes. A partir de esse erro, colocado como
constatação, Buffon concluiu que os americanos eram povos degenerados e fracos, incluindo
os filhos de europeus que nasceram na América. Charles Marie de La Condamine, um dos mais
respeitados viajantes filósofos, chegou à conclusão que todos os ameríndios eram insensíveis e
estúpidos por natureza, autorizando a Cornelius de Pauw, um leitor-filósofo dos relatos de via-
gens, a consolidar, por meio de seus escritos, a visão de uma América degenerada. Cañizare ainda
acrescenta que a literatura inglesa sobre suas colônias não é diferente nesta infâmia.
Os organizadores das compilações, por sua vez, se apresentavam como “viajantes dotados de
muitos olhos”, com a vantagem de aplicar uma “leitura rigorosa aos relatos reunidos, retirando
incongruências e contradições”. Hoje sabemos como essas “leituras críticas” são preconceituo-
sas, e que seu pretenso rigor conceitual e a presunção de que o lugar da leitura e da fala é feita
por um espectador/leitor treinado e neutro é mera pretensão (Ferro, 1992). Nada que a crítica que
se fez à história dos historiadores não nos tenha ensinado (Lefebvre, 1991). Sabemos que o his-
toriador quase sempre escolhe o conjunto de fontes e métodos utilizados pela função que exerce
e pelos objetivos propostos, que nunca são inocentes. Qualquer versão sobre os acontecimentos
nunca é neutra, sempre tem que lutar para poder se impor. As armas da batalha são, geralmente,
as autovalorizações por diversos meios, principalmente aquele dos próprios escritos. A novidade
da nova arte da leitura do século XVIII é que a autoafirmação é solapada por declarações de rigor
e distanciamento. Acrescente-se a isso a erudição que aparece nas citações de muitas fontes que
são apresentadas como argumento de autoridade para validar a síntese proposta pela compilação.
Batalha para se impor e síntese de relatos selecionados são os dois elementos que constituem a
base desta nova arte da leitura.
Por que estas discussões históricas são importantes para pensar o cinema da América Latina?
Primeiro, repercutem sobre um caso bem concreto, o debate sobre o Nuevo Cine Latino-ameri-
cano. Nenhuma visão pretensamente distanciada e neutra pode deslegitimar a maneira como o
Cine Nuevo Latino-americano se difundiu e se afirmou. Que os cineastas tenham sido críticos e
difusores de seus filmes, e que os estudiosos tenham ecoado essas pretensões não é diferente da
maneira como a Nouvelle Vague ou Hollywood se impuseram. As revistas Cinearte brasileira e
os Cahiers du Cinéma são exemplos de como impor o cinema hollywoodiano no Brasil, e a Nou-
velle Vague, na Europa. Juntei as duas provocativamente. Segundo, “na análise cinematográfica,
a vontade de ciência é hoje um elemento determinante no encaminhamento de muitos trabalhos”,
como constatou Ismail Xavier (1977, p. 11 e 12). Como o método científico, embora questionado,
ainda hoje é critério em muitos estudos, pode-se dizer que somos continuadores da arte da leitura
que se sistematizou no século XVIII. Além disso, alguns panoramas que estamos começando a
fazer de nosso cinema são muito semelhantes às compilações que se faziam no século XVIII.
Reivindicam um distanciamento com o objeto, fundamento do rigor pretendido pelo historiador.
Porém, os recortes são arbitrários tanto com relação aos filmes estudados como com as fontes
utilizadas. Cita-se uma parte considerável de autores que estudaram o cinema de seus países,
“esquecem-se” outras. Como os compiladores do século XVIII, os panoramas têm a pretensão de
superar os relatos citados pela síntese elaborada que, no entanto, não faz jus aos trabalhos men-
cionados. As compilações sobre o Novo Mundo foram best-sellers nos séculos XVII e XVIII.
John Locke escreveu seu Ensaio sobre o Entendimento Humano influenciado por estes relatos, a
imagem da tabula rasa vem dai, segundo Cañizares. Ainda hoje são modelos para várias políticas
editoriais, reverberando na contemporaneidade a ligação entre história, crítica e modernidade48.
Como se processa a conexão entre estes três termos? Pode se faze-lo à maneira de Ismail
Xavier (1994), um bom exemplo do crítico historiador da América Latina, ou à maneira do histo-
riador crítico europeu, como Antoine de Baecque (2011).
Comecemos com o francês, apesar de ele ter escrito seu livro sete anos depois do brasileiro.
Baecque defende a história das formas como aquela que comporta a especificidade da crítica ci-
nematográfica e as diversas temporalidades da história. A crítica e a história modernas do cinema
surgem no momento em que críticos dos Cahiers du Cinéma passam a fazer uma leitura formal
dos filmes. A 2a guerra mundial teria produzido um corte traumático na história cinematográfi-
ca, mudando a maneira de ver e realizar os filmes. A análise não é mera visibilidade formal, é a
transferência para a forma cinematográfica do corte epistêmico traumático que a história teria
impresso na história do cinema. Assim, o cinema se supera a si mesmo e se transforma numa ver-
dadeira arte ao digerir os traumas da história por meio do processo formal. O único problema é
que o cinema criador de formas parece estar desaparecendo. Para os realizadores hoje, o passado
formal cinematográfico é um self service, simples reservatório de motivos e de imagens, forma
degradada e obtusa do maneirismo amaneirado. Baecque cita Quem vai ficar com Mary, de Peter
e John Farrelly, 1998, como exemplo desta desintegração e chega a sugerir que o filme já não é
mais cinema. O pós-cinema substitui “uma consciência autoral e cinéfila de prestígio pelo uso
iconoclasta” que corta com “o progressivo e constante enobrecimento cultural”. A alta cultura
teve que se associar com as pulsões corporais primitivas, porque eram a energia e a origem do
cinema. Não se negam as pulsões, se as domestica dentro de um quadro reconhecível. Esses fil-
mes que se “fazem com uma mão só são o fim da mise-en-scène, já que organizam e arrebentam
tudo”. Apesar da referência ao livro de Jean-Marie Goulemot, Baecque não percebe que a crítica
que a literatura pornográfica faz às pretensões da filosofia das luzes pode também ser dirigida à
história das formas cinematográficas. Haveria aqui uma ruptura na harmonia que a história das
formas estabeleceu entre história e crítica.
Quanto a Ismail, impossibilidade lógica (rigorosa, distante e neutra) não o impede de fazer
coexistir a ruptura crítica com a continuidade histórica. Ele aproxima dois personagens, o cineas-

48 Afinal, como Marcos Antônio Valentim afirma que “a ampliação exorbitante da cosmologia científica na
modernidade seria acompanhada por uma drástica redução da ‘política cósmica’”. “A teoria da queda do céu, In
http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=4120#_ednref2
ta/crítico e o crítico/historiador: “No Glauber Rocha de 1963, a tônica era a vontade de ruptura
a par do balanço histórico; em Paulo Emílio o que vale é um principio de continuidade, a par do
reconhecimento das oposições e conflito”. Ismail não enxerga no desejo de arrebentar com tudo,
uma máxima do cinema marginal brasileiro, o fim do cinema. Ao contrário, defende a icono-
clastia poderosa deste cinema, que difere da dissolução citadora dos filmes dos Estados Unidos.
Sei que a aproximação que faço está baseada numa mera homonímia e que as atitudes e épocas
são diferentes, mesmo porque nos anos 1990 haverá um cinema na América Latina similar ao
dos Estados Unidos, que poderia fazer pensar no mencionado pós-cinema. Mas, como levar a
sério a ideia de um pós-cinema, quando na América Latina começam a pipocar novamente filmes
instigantes, inclusive em lugares que não têm uma história cinematográfica densa, como Para-
guai, Peru e outros países? Além disso, quando Ismail Xavier ou alguém da América latina diz
“moderno” está falando de processos e relações diferentes aos dos europeus. São maneiras bem
distintas de ver e entender o cinema, a história e a crítica cinematográficas.
Mesmo que seja um conceito ambíguo ou cafona, como diz Jacques Aumont , a modernidade
para o dito “ocidente” sempre foi um critério de valor, embora haja algumas vozes discordantes
– Bruno Latour e Jacques Rancière , por exemplo. Os “verdadeiros ocidentais” teriam, portanto,
uma modernidade própria – “nossa modernidade (nós, habitantes dos países industrializados que
temos luxo do pensamento estético - p. 14) –, como afirma Aumont. Para os estudiosos europeus,
há uma ligação direta entre cinema e modernidade. É por isso que um autor brasileiro como Fer-
não Ramos escreve que moderno, mas moderno mesmo, é a Nouvelle Vague, o cinema que teve
densidade para olhar a si mesmo.
Embora desejada, a modernidade nunca foi um ponto pacífico para nós. Não precisamos espe-
rar até a 2a Guerra Mundial para vivenciar enormes traumas históricos. Aliás, quando os europeus
invadem a América, no alvor da modernidade, a experiência traumática deixa de ser exceção para
fazer parte do cotidiano das populações do continente. A ideia de progresso na América Latina
é uma piada de mau gosto. Isto fica evidente no livro de Ismail quando fala que a “relação de
Glauber com o Brasil moderno se da sob o esquema da urbanização como morte”, ou quando
menciona como projeto do Brasil moderno a transamazônica de Iracema - uma transa amazô-
nica, (1973) de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, para ficarmos apenas em dois exemplos dos
inúmeros que há no cinema do Brasil (Xavier, 119 e 122). Não é diferente no resto da América
Latina. O que nos une são experiências traumáticas comuns ligadas ao advento da modernidade:
a colonização e os sangrentos golpes de Estado.
Mas, dado que muitos de nossos filmes têm a densidade para olhar a si mesmos, poderíamos
falar de um cinema moderno latino-americano sem constrangimento?
Concluo que o aspecto problemático não concerne apenas ao meta-cinema, como é o caso
de Jogo de cena, de Eduardo Coutinho – o exemplo máximo de um voltar-se sobre si mesmo
– mas ao próprio conceito de autorreflexão. As imagens autorreflexivas são as mais diversas e
expressam valores bem diferentes. Por exemplo, O caminhante, em sua monumentalidade, ou O
pensador, em sua sublimidade trágica, são imagens poderosas que têm densidade para olhar a
si mesmas e representar a modernidade como um bem. Contudo, outra figura da auto-reflexivi-
dade, também forte, impõe-se, a de Narciso, que não vê nem escuta Eco, explicitando que esse
voltar-se sobre si mesmo instaura um processo de exclusão. Ou ainda, a terrível Medusa, que ao
se olhar nos olhos se fulmina. Exclusão e morte são dois atributos importantes da autorreflexão.
Assim, o processo autorreflexivo parece carregar o espelho de Narciso. Viveiros de Castro, ao
se referir ao pensamento dos Ameríndios, esses outros que somos nós mesmos, fala de uma au-
to-reflexividade diferente, em que as dobras de si refletem uma imagem nossa na qual não nos
reconhecemos.
Se quisermos que a história de nosso cinema nos contemple e não nos ofenda, como sugere
Cañizares, todo cuidado é pouco com as categorias de pensamentos de que lançamos mão, assim
como com as epistemologias que fundamentarão as nossas narrativas.
Referências bibliográficas

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--------------------“Paulo Emílio e o estudo do cinema”. In Estudos Avançados, São Paulo, Revista


USP, 1994.

-------------------- Cinema Moderno Brasileiro. São Paulo, Paz e Terra,


2001.
Yanet Aguilera - Professora de história do cinema do curso de história da arte da
Universidade Federal de São Paulo. Possui graduação em filosofia pela Universidade
de São Paulo (1985), mestrado em filosofia pela Universidade de São Paulo (1996) e
doutorado em filosofia pela Universidade de São Paulo (2007). Atua principalmente
nos seguintes temas: cinema, estética, ética, artes plásticas e política.
Parte 2

Cinema, Arte e Política


7. Aclamação e censura ao filme A Batalha de Argel no Uruguai, em 1968: o
perigo do ‘cinema insurgente’

Mariana Villaça

Neste trabalho focamos a repercussão do filme A Batalha de Argel (Gillo Pontecorvo, 1965),
em 1968, no Uruguai, junto ao público, ao governo e à crítica de cinema49. Procuramos analisar
historicamente esse episódio específico – o impacto do filme de Pontecorvo no Uruguai – ilu-
minando algumas questões políticas, sociais e estéticas que afloraram na imprensa ao longo da
repercussão de sua estreia e de sua censura.
O filme estreou na capital com grande sucesso e foi exibido para um amplo público, durante
quatro semanas consecutivas. O tema da Guerra da Argélia (1954-1962), por si, já despertava
grande empatia das plateias latino-americanas, uma vez que tratava de um exemplo dramático
de resistência ao colonialismo: “a Argélia refletia as principais lutas dos anos 50 e 60: direito dos
povos à autodeterminação, independência política e econômica, novas vias para se chegar ao so-
cialismo” (ARAUJO, 2017, p. 403). Porém, no auge de sua temporada em Montevidéu, devido
ao impacto que sua exibição surtia na plateia e à elogiosa repercussão na imprensa, o filme foi
proibido. Esse ato de censura, anterior ao golpe civil-militar de 1973, provocou grande comoção
pública, em um contexto de grande mobilização estudantil. A forte reação ao filme demonstrou a
preocupação do governo em refrear manifestações da cultura política de esquerda e do discurso
revolucionário, latentes no circuito cultural montevideano.
O filme, antes disso, chamara a atenção da crítica uruguaia principalmente pela forma não
panfletária como tratava o tema da revolução, ao abordar as lutas pela libertação da Argélia fo-
cando, cirurgicamente, tanto as estratégias da esquerda como as táticas repressivas, sem edulco-
rar a representação de um lado ou de outro. Segundo a análise de Marília Froment:

“O filme é riquíssimo nesse ponto, pois dispensa tanto atenção aos argelinos
quanto aos franceses; ambos são mostrados cometendo crimes, matando pes-
soas e se valendo de meios escusos. Um dos trechos mais impressionantes
do filme é a sequência em que três mulheres se disfarçam – cortam e tingem
os cabelos, se maquiam e se vestem para parecerem mulheres europeias –
para driblarem a fiscalização na saída da Casbah e explodirem alvos civis:
um milk bar, uma cafeteria e o terminal da Air France. Nessa sequência é
possível identificar a grande virtude do filme; a violência dos argelinos não é
romantizada e a cena de morte dos franceses nas explosões é impressionante,
49 Esse texto é um desdobramento da pesquisa que realizamos entre abril de 2015 e abril de
2017, com Auxílio Regular Fapesp, intitulada “As edições Marcha e a constituição de um circuito cul-
tural de resistência política frente o acirramento do autoritarismo no Uruguai (1967-1974)”.
pois consegue-se transpor o sofrimento das vítimas aos espectadores. Essa
cena, lírica e pungente, é embalada por um canto religioso de Bach, assim
como a cena em que os franceses explodem uma casa na Casbah. O emprego
da música no filme não é acidental, atribuindo a todas as vítimas a mesma
dor e o mesmo tratamento emocional”.(FROMENT, 2013: 14)

De fato, Pontecorvo desnudava as implicações da violência desmedida, mostrava que havia


franca disposição ao sacrifício humano de ambos os lados e expunha as ambiguidades de uma re-
lação colonialista, entre franceses e argelinos, que pretendia enfatizar como dialética. O cineasta,
em suas declarações sobre a obra, reforçava seu “compromisso com a realidade”, sua formação
marxista, defendendo o que chamava de “ditadura da verdade”50 . No filme, esta “ditadura da ver-
dade” teria sido buscada mediante a impressão, proposital, de que a obra fosse um documentário,
repleto de cenas primorosamente reconstituídas, captadas “in loco”, filmadas não com atores,
mas com gente do povo51. Essa pretensão de ser fiel à realidade aparece nas declarações de Ponte-
corvo: “No meu cinema, quando tive que escolher entre distanciar-me da realidade ou usar efeitos
para ganhar popularidade junto ao público, sempre renunciei a essas possibilidades e permaneci
fiel à realidade” (Apud JANOTTI, 2013: 57). Contudo, o cineasta ao mesmo tempo, evidenciava
em seu filme a inevitabilidade de se “tomar partido”, ao mostrar determinadas hesitações e as
opções da imprensa ao fazer a cobertura desse conflito. É o que nos mostra a análise a seguir:

“Representado na tela como um grande estrategista e homem de razoável


cultura, [o coronel] Mathieu sabe que a vitória apenas em seus aspectos mi-
litares não bastaria para legitimar a (re)conquista de Argel. Eram necessárias
armas mais sutis, e o discurso dos mass media contribuiria enormemente
para essa legitimidade. Quando o coronel pede para os jornalistas: “Apenas
escrevam e bem”, um pedido sutil de: “Escrevam bem sobre nós, soldados!”,
parece ecoar como um sussurro. O diálogo entre as duas forças, a imprensa
e o poder militar, se mostra de forma clara, mas também ambígua. Um certo
respeito entre ambos, mas igualmente uma certa intimidação. Quando o mi-
litar proclama que a entrevista de M’ Hidi terminou, pois teme que “produza
o efeito contrário”, novamente temos estabelecida uma tensa relação entre
50 A edição mais recente do filme foi lançada no Brasil no formato de DVD duplo, que contém
um documentário de 37 minutos onde vemos o cineasta falando desse conceito: Pontecorvo: a Dita-
dura da Verdade (Oliver Curtis, 1992)
51 Afirmou em entrevista: “Começamos com tantos problemas e achava que o único modo de
ganhar o público com esse filme tão diferente do que estava acostumado era com uma ditadura da
verdade. Ou seja, dar a impressão de documentário, de noticiário. E isso embora fosse uma obra de
ficção.” (Apud OLIVEIRA, 2011: 513). Há um denso debate que envolve a noção de verdade no cine-
ma, bem como as definições do que diferenciaria um documentário de um filme “de ficção”. Porém não
será possível abordar esses temas no presente trabalho em razão da amplitude dessa discussão.
imprensa e poder. O “espetáculo” da prisão do líder anticolonial, poderia
tanto servir para um lado quanto ao outro do conflito. Os dois personagens,
o repressor e o rebelde, parecem ter a sagacidade de ver a importância que
o apoio dos grandes meios de comunicação poderia lhes render, o que con-
tribuiria para a vitória de forma tão importante quanto a conquistada pelas
armas”. (OLIVEIRA, 2011: 526).

Esse premiado filme italo-argelino52, devemos lembrar, foi realizado a partir de um roteiro
de Franco Solinas, baseado nas memórias de Saadi Yacef (líder da Frente de Libertação Nacio-
nal que interpreta a si mesmo, no filme, e contribui para essa produção), publicadas com o titulo
Souvenirs de La Bataille D’Alger, (1962). Sobre o filme e seu diretor é possível encontrar inú-
meros estudos, de diversas naturezas53. Nosso objetivo neste breve texto, conforme mencionado,
é apenas focar o impacto de sua repercussão no Uruguai, onde foi premiado como o melhor
filme estrangeiro pela Asociación de Críticos Cinematograficos (ao lado do curta Me gustan los
Estudiantes, eleito o melhor filme nacional) e pela crítica do semanário Marcha54. Sua proposta
respondia a certo incômodo da crítica uruguaia com obras artísticas bem intencionadas, mas con-
sideradas simplistas por aderirem a discursos muito esquemáticos, incômodo que se expressava
em diversas notas e resenhas sobre LP’s, peças teatrais e filmes, publicadas em Marcha, em suas
páginas destinadas à cena cultural. Nesse sentido, um colunista do periódico, Raul Gadea elogia-
va, no filme, o fato de não fazer concessões a “facilidades retóricas” assumindo uma “sobrieda-
de neorrealista”. Segundo ele: “Por primera vez, quizás, el cine se concreta a mostrar al pueblo
en lucha contra sus opresores sin sentirse obligado a justificar esa lucha (...) Muchos cineastas
futuros habrán de avanzar por el desafiante camino que abre, hoy, La batalla de Argelia”55. Em
termos formais, o uso de atores não profissionais (com exceção do Coronel Mathieu, interpretado
pelo ator francês Jean Martin), a linguagem ágil, que lembrava uma reportagem televisiva den-
samente documentada, as locações no “cenário real” da Casbah, bairro árabe de Argel, a trilha
sonora impecável de Pontecorvo e Ennio Morricone eram atributos comumente elogiados pela
crítica. Hoje podemos dizer que, a exemplo do filme cubano Memórias do Subdsenvolvimento
(Tomás Gutiérrez Alea, 1968), produzido um pouco depois de A Batalha de Argel mas exibido no
Uruguai nessa mesma época, a obra de Pontecorvo era competente em traduzir a complexidade
de muitas questões que envolviam a defesa da revolução por meio de personagens sofisticados,
abordando as tensões e diferenças de classe, sem sucumbir a maniqueísmos, opção ideológica
52 “O filme venceu o Leão de Ouro no Festival Internacional de Veneza, o Grande Prêmio da
Crítica Internacional e o Prêmio de La Ville de Venise, em 1966. Além disso, foi indicado ao Oscar de
melhor diretor, roteiro original e filme estrangeiro”. (FROMENT, 2013, p. 32.)
53 Como se vê na Bibliografia, localizamos, para citarmos apenas a produção acadêmica nacional , trabalhos pro-
venientes do campo da História, do Cinema e do Direito.

54 “Marcha elige”.Marcha núm. 1431, 27 de diciembre de 1968, pp. 26-28, 30.


55 GADEA, Raul “El cine como arma explosiva”. Marcha núm. 1428, 06 de diciembre de 1968,
p. 25.
muito frequente em filmes politicamente engajados dos anos 1960.

Em 1968, no Uruguai, A Batalha de Argel estreou na capital cercado de grande expectativa,


ao fazer parte da programação extraordinária do Festival de Cinema de Marcha. Esse festival
encontrava-se em sua 11ª edição, e desde o ano anterior era predominantemente composto por
uma mostra de filmes documentais considerados “de combate”, dos quais eram exibidos apenas
trechos (em geral, os mais dramáticos e contundentes, capazes de despertar reações fervorosas
na plateia) num único dia56. Para melhor compreendermos o papel que esse festival passou a
desempenhar a partir de 1967, vale destacarmos a opinião de um de seus realizadores, Hugo
Alfaro, que também era colunista da seção “Espectaculos” e administrador do semanário Marcha:

“En 1967 el Festival Cinematográfico de Marcha advierte la urgencia con


que una tarea de conscientización (...) debe empreenderse entre nosotros. (...)
en aquella inolvidable madrugada de junio de 67 en el cine Censa – la voz de
Lena Horne [referência à trilha musical do curta Now, de Santiago Alvarez]
recorriendo electricamente la sala colmada – liquidamos unos cientos mitos
del pasado y apostamos al porvernir”57.

Devido ao rápido esgotamento das entradas do festival, seus produtores decidiram fazer novas
exibições, substituindo alguns títulos ou acrescentando outros (caso de A Batalha de Argel, que
não constava da programação original)58; além de levar a programação a cidades do interior do
país, em parceria com os cineclubes locais. Assim, uma nota no semanário Marcha datada de 25 de
outubro de 1968 anunciava, agradecendo o público “sensível e fervoroso” que vinha prestigiando
o festival, que “mientras los filmes de nuestro primer programa cumplen su ciclo de exhibiciones
en el Interior, uma segunda muestra del genero habrá de ofrecerse el domingo, 3/11 a las 10 de la
mañana en la sala del Plaza” . Seguia-se o programa dessa sessão, na qual constavam os seguintes
filmes: o curta cubano El caso Arguedas (Santiago Alvarez), o documentário chinês sobre a
Revolução Cultural: Mao, un sol rojo; o já referido longa La Batalla de Argel; o documentário
mexicano Cuarto Comunicado59, o alemão Comando 52 (Walter Heynowski,1964) produzido na

56 Abordamos detalhadamente as edições de 1967 e 1968 no capítulo intitulado Os Festivais de Cinema de Mar-
cha e seu papel na constituição de um circuito cultural de resistência política (Uruguai, 1967 e 1968). In: MORETTIN,
Eduardo et al. (orgs) . Cinema e História: circularidades, arquivos e experiência estética. Porto Alegre: Editora Sulina,
2017, p. 275-304.
57 ALFARO, Hugo. “La larga marcha del Festival”. Marcha núm. 1431, 27 de diciembre de 1968,
p. 31.
58 Na programação original figuravam os seguintes filmes, dos quais eram exibidos trechos, em geral, projetados
em sequência: La sexta cara del Pentágono (Chris Marker, 1968), Laos, la guerra olvidada (Santiago Álvarez ,1967); Me
gustan los Estudiantes (Mario Handler, 1968), Nossa terra (Mario Marret, 1966); Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos,
1963); Ollas populares en Tucumán (Gerardo Vallejo 1967), El Paralelo 17: la guerra del pueblo (Joris Ivens 1968) e, por
fim, Now (Santiago Álvarez, 1965).
59 Não encontramos a data ou maiores referências sobre os documentários El caso Arguedas;
Mao, un sol rojo e Cuarto Comunicado . Acreditamos que os três sejam curta-metragens. O primei-
ro, supomos, talvez seja uma reportagem feita para o Noticiero ICAIC Latinoamericano, uma vez que
Alemanha Oriental, o venezuelano Pozo Muerto, (Carlos Rebolledo, 1967) e, fechando a sessão,
o curta uruguaio Me gustan los estudiantes (Mario Handler, 1968).
O ano de 1968 vinha sendo animador para o cinema uruguaio: além do êxito do Festival
e da turnê que estava sendo realizada pelo interior do país60, o periódico Marcha havia criado,
com diversos colaboradores, seu Departamento de Cine (embrião do Cineclube de Marcha que
se converteria na Cinemateca del Tercero Mundo, no ano seguinte). Deste departamento faziam
parte, entre outros, o cineasta Mario Handler, o produtor Walter Achugar e o crítico de cinema
José Wainer, os três muito ativos na organização do Festival de Marcha e empenhados em garantir
a participação uruguaia em eventos internacionais, caso da Primera Muestra de Cine Documental
Latinoamericano em Mérida, na Venezuela, no qual compareceram, viabilizando a participação
dos documentários nacionais Elecciones (Mario Handler e Ugo Ulive, 1967) e Me gustan los
Estudiantes (Mario Handler, 1968), ambos ganhadores de menções especiais do júri, do qual José
Wainer era integrante61.
Após o sucesso no Festival, A Batalha de Argel entrou em cartaz no Cine Trocadero, onde
foi exibido, durante quatro semanas consecutivas, para um amplo público, estimado entre 25.000
e 35.000 pessoas62. A plateia que comparecia a essa grande sala de cinema reagia com muito
entusiasmo à exibição da película, ovacionando ao longo e ao final da projeção. O crítico José
Wainer demonstrou sua surpresa, à época, ante um comportamento que, até então, era pouco
comum público uruguaio. “Contra una larga tradición de inhibiciones uruguayas, la asistencia
del film solía identificarse ruidosamente con sus episódios, a traves de expansivas ovaciones”63.
A calorosa recepção que envolveu o filme A Batalha de Argel remetia, inegavelmente, à
capacidade mobilizadora de algumas obras daquele período, fossem filmes, peças de teatro ou
canções64. Havia grande adesão a todo tipo de obra que defendesse a revolução e grande interação
o “Arguedas” em questão era o ministro boliviano Antonio Arguedas que havia enviado , em 1967, o
diário de Che Guevara a Fidel Castro, na ocasião da morte do guerrilheiro.
60 Há diversas notas publicadas nas edições dos meses de outubro, novembro e dezembro, que
informam as cidades onde ocorreriam exibições da programação do Festival de Marcha : Paysandú,
San José, Durazno, Mercedes, Tacuarembó, Paso de los Toros foram algumas delas, totalizando
cerca de 20 localidades.
61 “Uruguayos en Mérida”. Marcha núm. 1418, 27 de septiembre de 1968, p. 27.WAINER, José.
“Cine latinoamericano en Mérida, Venezuela”. Marcha núm. 1419, 04 de octubre de 1968, p. 28.
62 Mariana Abreu afirma que “entre el 21 de noviembre y el 17 de diciembre de 1968 pasaron a verla por el cine
Trocadero 25.000 personas” . ABREU, Mariana. “Argel y otras batallas”, s/d. Disponivel em: http://zur.org.uy/content/ar-
gel-y-otras-batallas Acesso em 10 de julho de 2017. Já Eduardo Terra, em entrevista a Susana Vellegia, menciona 35.000
pessoas: “Tuvimos casos como el de la Batalla de Argel con unos 35.000 espectadores y no es el único caso en que ob-
tuvimos un êxito de público tan importante”. “Una cinemateca para el Tercer Mundo. Entrevista a Eduardo Terra” (1969) .
Cine Cubano, núm. 63-65 (Apud (VELLEGGIA, 2009: 404-406). Disponível em http://www.cinemateca.org.uy/Documentos.
Acesso em 10 de julho de 2017.
63 WAINER, José. ”Proiben La Batalla de Argelia. La estratégia del Coronel Mathieu.” Marcha
núm. 1430, 20 de diciembre de 1968, p. 27.
64 Em um artigo sobre o II Festival Internacional da Canção, no Brasil , em outubro de 1968,
celebrava-se a repercussão da canção Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré,
que vinha sendo entoada por muitos nas ruas, causando, inclusive, a prisão daqueles que cometiam
essa ousadia. O tom da reportagem parece ilustrar o quanto determinadas obras catalisavam esse
impulso mobilizador (e o quanto eram desejadas). SELSER, Gregorio. “Brasil: los militares contra
entre as diferentes linguagens artísticas na cena cultural montevideana: músicos uruguaios
identificados com o “nuevo canto” se envolveram fortemente com o Festival de Marcha de 1968,
a ponto de gravarem trilhas sonoras ou canções inspiradas em alguns filmes65.
No mês anterior à estreia do filme, havia ocorrido em Montevidéu vários eventos em
homenagem a Che Guevara, por ocasião do primeiro aniversário de sua morte. Muitos deles
integraram a “Semana del Guerrillero heróico” composta por peças (como Libertad, Libertad,
que já havia se tornado um clássico do grupo teatral El Galpón)66, recitais de poesia, o lançamento
de um disco de Daniel Viglietti com canções dedicadas a Che (Canciones para el hombre nuevo,
1968), diversas reportagens e homenagens na imprensa de esquerda, bem como várias publicações
no mercado editorial. Pairava, enfim, um clima de comoção e mobilização67. Este encontrava
eco na obra de Pontecorvo, uma vez que, apesar da crueza com que abordava a violência e as
contradições de ambos os lados, não deixava dúvidas quanto à celebração da vitória argelina. Ao
final do filme, vemos o triunfo da luta pela independência da Argélia, que ocorrera em 1962, com
o povo portando bandeiras improvisadas e festejando acaloradamente nas ruas.
Sabemos hoje que, se o filme atendeu ao fervor pela via armada que pairava na juventude
uruguaia, tendo sido utilizado para a compreensão de métodos e táticas “revolucionários” por
grupos de esquerda, por outro, também foi material valioso para que Estados repressores e seus
respectivos serviços de inteligência, como o argentino, nos anos 1970 estudassem as táticas de
guerrilha e as melhores estratégias para seu desmantelamento. (FROMENT, 2013) Segundo o
crítico Rubens Ewald Filho: “Se o filme mostra como age a guerrilha, ele também é muito preciso
ao descrever como agem as forças anti-guerrilhas. É igualmente didático ao mostrar a teoria
das pirâmides, a comparação do movimento a uma tênia (se não eliminar a cabeça, voltará a
germinar) e a técnica do interrogatório em massa, selecionando e torturando as pessoas ao acaso,
até encontrar suspeitos e chegar às cabeças da organização clandestina”68. 
Diversos trabalhos atestam a importância da experiência rancesa na Argélia para a formação

uma canción. “ Marcha núm. 1421, 18 de octubre de 1968, pp. 18, 30. Esse aspecto da interação
artística na cena montevideana abordamos em outros trabalhos, ao apresentarmos o circuito cultural
de esquerda que se constituiu, nessa época, na capital uruguaia. Cf: VILLAÇA, Mariana. O semaná-
rio Marcha, Carlos Quijano e a configuração de um circuito cultural de resistência no Uruguai (anos
1960-70). Hydra - Revista Discente de História da Unifesp, v. 1, núm. 3, pp. 1-16, 2017.
65 Daniel Viglietti compôs Cruz de luz, inspirado no filme no filme Camilo Torres (Jean Pierre
Sergeant e Bruno Muel, 1965) , e Dahd Sfeir gravou Funeral de um lavrador (Chico Buarque /João
Cabral de Melo Neto, 1965 ) e Carcará (João do Vale / José Candido, 1965) , canções que faziam
parte do espetáculo teatral Morte e vida Severina que estreara em novembro, em Montevidéu, cujos
temas se conectavam ao do filme Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), obra que inte-
grou a programação do Festival. “Cine, música y opiniones comprometidas en el Festival de hoy”.
Marcha núm. 1426, 22 de noviembre de 1968, p. 27.
66 “Semana del guerrillero heroico”. Marcha núm. 1419, 04 de octubre de 1968, p. 23.
67 O número 1420 de Marcha, de 11 de octubre de 1968, trazia, na primeira página, a manchete
“A un año de la muerte de Che” e, em seu corpo, várias notas e reportagens em sua homenagem.
68 EWALD Filho, Rubens. “A Batalha de Argel (1965)”. Disponível em: https://cinema.uol.com.br/resenha/tes-
te/1965/a-batalha-de-argel.jhtm . Acesso em 27 de julho de 2017.
dos métodos da Escola das América e a capacitação de militares sul-americanos69. Mencionam
o uso do filme fcomo material instrucional para a formação de agentes, demonstrando métodos
eficazes, como a tortura, para obtenção de informações. Sua repercussão, portanto, de algum
modo manteve a dialética que marcara a construção da obra: o filme encantou a juventude e serviu
de inspiração e estudo dos grupos de esquerda, tanto quanto ao refinamento da chamada “guerra
anti-subversiva”, calcada no principio da identificação do inimigo interno, eixo da Doutrina de
Segurança Nacional.
A importância desse filme para a história do meio cinematográfico no Uruguai também reside
no fato de ter sido considerado por alguns críticos “o primeiro caso de censura política”, em um
país que se orgulhava das garantias existentes à liberdade de expressão, ainda mais considerando
o contexto repressivo vivido por seus vizinhos, Argentina, Brasil e Paraguai. O crítico uruguaio
Manuel Martínez Carril afirmou ter sido esse filme a “primeira vítima” da censura política, em
tempos que ainda eram “más o menos democráticos”. Lembremos que no Brasil, por exemplo, o
filme já se encontrava proibido, sendo liberado apenas em 198270. Segundo Guillermo Zapiola,
o filme inaugurou esse tipo de censura em um cenário no qual imperava geralmente, o veto
por questões “morais”. Nesse sentido, outros casos se sucederam e também foram considerados
subversivos, posteriormente, no país, filmes como Estado de sitio (Costa-Gavras, 1972) e O
poderoso Chefão (Francis Ford Coppola, 1972)71 . Independentemente de ter sido ou não o
“primeiro” caso de censura oficial, o que nos parece improvável, tendo em vista, inclusive, os
muitos dissabores enfrentados pelos próprios cineastas uruguaios, a exemplo da repercussão do
filme Elecciones (Mario Handler e Ugo Ulive, 1967) que já exploramos em outra publicação,
interessa-nos aqui ressaltar o peso que é conferido ao fato e à denúncia do mesmo.
Em resposta às reações apaixonadas da plateia, como enfatizamos, o filme teve efetivamente
sua exibição proibida pelo Ministério do Interior72. Essa atitude não era muito comum no meio
cultural uruguaio, país que até então vinha mantendo razoavelmente preservada a liberdade de
expressão. Esse quadro se alterava substancialmente com a promulgação, seis meses antes, das
Medidas Prontas de Seguridad, em 13 de junho de 1968, ato que se configurou como uma das
marcas do autoritarismo do governo de Pacheco Areco. Tais Medidas incluíram um pacote de
ações de repressão a movimentos sociais, mobilizações estudantis, greves, além de medidas
econômicas recessivas como o congelamento de preços e salários. Invasões e “inspeções”
policiais na Universidade de la República, instituição antes respeitada em sua autonomia, foram
69 JANOTTI, M. L. M. Op. Cit, pp. 47-82. Ver também: ROBIN, Maire Monique. “Como La Batalla de Argel enseñó a
torturar a los argentinos”. 8/02/2011. Disponível em: http://www.mdzol.com/nota/271904-como-la-batalla-de-argel-enseno-
-a-torturar-a-los-militares-argentinos/. Acesso em 10 de julho de 2017. FEBBRO, Eduardo. “La batalla de Argel en Baires.”
24/05/2001. Disponível em: http://memoriaviva5.blogspot.com.br/2008/12/la-batalla-de-argel-en-baires.html. Acesso em
31 de julho de 2017.
70 EWALD Filho, Rubens. “ A Batalha de Argel (1965)” . Disponível em: https://cinema.uol.com.br/resenha/tes-
te/1965/a-batalha-de-argel.jhtm. Acesso em 31 de julho de 2017.
71 ZAPIOLA, Guillermo. “Historias de cine, tijeras y prohibiciones”. s/d Disponivel em :
http://www.elpais.com.uy/divertite/teatro/historias-cine-tijeras-prohibiciones.html. Acesso em 31 de julho de 2017.
72 Sobre la prohibición de La Batalla de Argelia”. Marcha núm. 1431, 27 de diciembre de 1968, p.
21.
atitudes inesperadas, recebidas com indignação pela comunidade acadêmica e pela imprensa73. A
proibição do filme de Pontecorvo, nesse clima, mobilizou jornalistas, críticos de cinema, diretores
de cineclubes, realizadores e políticos que saíram em defesa da arte, da democracia, da cinefilia
uruguaia e do direito à mobilização juvenil74. Associações diversas também compartilharam sua
indignação por meio de notas publicadas na seção de cartas do jornal, na semana seguinte à
proibição. Contra a censura se alegava que a medida era insólita, sem precedentes no Uruguai,
contrariando a tradição política de um país que sempre respeitara a liberdade de expressão.
Destacava-se a qualidade da obra, premiada e aclamada pela crítica e pelo público internacional,
agora inacessível a muitos uruguaios75. Por fim, se indagava, de forma muito direta, a verdadeira
razão da proibição:

“Me queda alguna acerca de quales son los episódios determinantes de la


prohibición. Serán realmente las escenas relativas a los actos de acción directa o, más
probablemente, las imágenes de las torturas que evocan procedimientos similares
de nuestros gloriosos torturadores? Más bien pienso que el gobierno prohibe la
película por lo que significa como exaltación de la solidariedad de um pueblo, de su
espírito de lucha y de la fe inquebrantable de su liberación, todo lo cual promovió
la identificación de los espectadores en cada una de las exhibiciones efectuadas”.76

Somava-se a essa ferina indagação (acrescida da denúncia da vigência de tortura no país),


uma informação, que introduzia as notas de protesto, publicadas pelo jornal, face à informação de
que gente da marinha, do exército e da aviação havia assistido ao filme em uma sessão exclusiva
e matinal, no sábado seguinte à proibição da obra. É possível que tal sessão já tivesse a finalidade
didática que anos depois se comprovou ter sido usual na formação de agentes para o combate à
subversão, aspecto que retomaremos adiante.
Algumas manifestações de repúdio à censura estatal ao filme, contudo, não se limitaram apenas
às autoridades responsáveis pela proibição: o cineasta Mario Handler, por exemplo, aproveitou
a deixa para protestar contra a “apatia” e a debilidade generalizadas do meio cinematográfico,
procurando valorizar a nova geração, mais combativa e engajada que a anterior, ainda que
dentre os cineastas ditos “antigos”, alguns fossem militantes do Partido Comunista, caso de
73 “La UdelaR a la opinión pública”. Marcha núm. 1419, 04 de octubre de 1968, p. 17-18.
74 Rodolfo Tálice (diretor do ICUR – Instituto de Cinematografia de la Universidad de la Repú-
blica), os cineastas Ferruccio Musitelli e Mário Handler, a atriz Lilian Olhagaray, o catedrático da Uni-
versidade de la República Prof. Pablo Carlevaro, além do presidente da Câmara dos Deputados Luis
Riñón Perret se manifestam no jornal. “Sobre la prohibición de La Batalla de Argelia”. Marcha núm.
1431, 27 de diciembre de 1968, p. 21.
75 São publicadas cartas da Federación Uruguaya de Teatros Independeintes, da Asociación de
Críticos Cinematográficos del Uruguay, do Servicio Católico del Espectáculo. Marcha núm, 1431, 27
de diciembre de 1968, p. 3.
76 Nota de Pablo Carlevaro, “Titular de la cátedra de biofísica de la Facultad de Medicina”. “Sobre
la prohibición de La Batalla de Argelia”. Marcha núm. 1431, 27 de diciembre de 1968, p. 21.
Ferruccio Musitelli, que também assinava uma nota de repúdio à proibição do filme nessa mesma
reportagem. Segundo Handler, era preciso partir para a ação, o que incluía disposição para fazer
filmes realmente combativos:

“Nuestros puntos más débiles son los cineclubistas de Montevideo, los críticos
de diários y una gran parte de los realizadores. Creo que a los primeros hay que
abandonarlos, pues es peder el tiempo luchar contra ellos, y no son rescatables;
los segundo tienen um porcentaje rescatable: a la reación a los golpes algunos
responderán, pocos; en cuanto a los realizadores, tenemos que incorporar gente
nueva. Somos pocos, pero alcança com unos pocos más, suficientemente creativos”77.

Vemos, portanto, que nesse episódio também esteve em pauta, além da reação às medidas
autoritárias, certa disputa por espaço no meio cinematográfico, que ecoava e compunha o debate
político (e algo “geracional”) entre a velha e a nova esquerda uruguaia (TRISTÁN, 2006). Em
consonância com esse clamor pela renovação do campo cinematográfico explícito no depoimento
de Handler (campo esse onde, segundo ele, só caberiam os “fortes”, ainda que “poucos”, em
termos de número, mas verdadeiramente dispostos à luta), a capa da edição na qual foi publicada
essa crítica, no último número do ano de 1968, trazia, sintomaticamente, a seguinte chamada, em
letras garrafais: “1969: Resistir y Adelante”.
Segundo o crítico Manuel Martínez Carril, após toda essa grita no final de 1968, o filme
voltou a ser exibido no ano seguinte, 1969 (mesmo ano em que Marcha estimula a criação da
Cinemateca del Tercer Mundo, reunindo e exibindo de forma independente filmes politicamente
engajados) e só foi proibido novamente em 1973, assim permanecendo até o fim da ditadura78.
As razões para que o governo voltasse atrás permanecem não desvendadas, mas acreditamos
que a repercussão tão negativa, nos órgãos de imprensa, dessa medida de censura a uma obra
estrangeira exerceu pressão considerável.
Finalizando, cabe destacar, em primeiro lugar, que os aspectos do filme ressaltados e valorizados
pela crítica uruguaia (em um jornal combativo como Marcha) nos permitem constatar que havia
uma cobrança por maior sofisticação estética e ideológica das obras engajadas, não se mostrando
complacente com o discurso maniqueísta, ainda que a “causa” defendida por este fosse nobre – a
exemplo da temática das lutas anti-imperialistas, tão cara a esse periódico. Em segundo lugar,
acreditamos que esse episódio e outros que se sucederam no meio cultural, até a ocorrência do
golpe, em 1973, demonstraram uma inegável disposição dos uruguaios à resistência à ditadura e à
defesa da democracia. Tal disposição se comprova também na insistência dos cinéfilos e cineastas

77 “Sobre la prohibición de La Batalla de Argelia”. Marcha núm. 1431, 27 de diciembre de 1968,


p. 21.
78 Mariana Abreu cita Manuel Martínez Carril, mencionando que o filme voltou em 1969, ao circuito, sem maiores
explicações, sendo proibido novamente entre 1973 e dezembro de 1984. ABREU, Mariana. “Argel y otras batallas”, s/d.
Disponivel em: http://zur.org.uy/content/argel-y-otras-batallas Acesso em 10 de julho de 2017.
em manterem-se fiéis ao cinema dito “insurgente”, bem como na perseverança da equipe de
Marcha em manter o jornal como tribuna e base para a oposição. Poderíamos lembrar, ainda, o
engajamento de muitos (inclusive dos militantes favoráveis à luta armada) na formação de uma
frente partidária ampla para deter a ditadura, em 1971, apostando na via democrática para deter
o já previsível golpe. Tais ações, a nosso ver, não evitaram a repressão, mas influenciaram na
definição dos moldes do regime civil-militar que precisou construir um discurso que justificasse
a violência, apostando na “teoria dos dois demônios”, não muito distante de algumas leituras, à
época, de A Batalha de Argel.
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___________. O semanário Marcha, Carlos Quijano e a configuração de um circuito cultural de


resistência no Uruguai (anos 1960-70). Hydra - Revista Discente de História da Unifesp, v. 1,
núm. 3, 2017, pp. 1-16.

Ficha Técnica

La Battaglia di Algeri (Gillo Potecorvo, Itália/Argélia ,1965). P&B. Drama. Duração: 117’.
Estúdios: Igor Film e Casbah Film. Distribuição: Lumière. Roteiro: Franco Salinas e Gillo Pon-
tecorvo. Produção: Antonio Musu e Saadi Yacef. Música: Ennio Morricone e Gillo Pontecorvo.
Fotografia: Marcello Gatti. Desenho de Produção: Sergio Canevari. Figurino: Giovanni Axerio.
Edição: Mario Morra e Mario Seandrei.
Mariana Villaça - Professora de história da América na Universidade Federal
de São Paulo, onde coordena o Laboratório de Pesquisas em História das Américas
(LAPHA). Integra os grupos CNPq “Cinema latino-americano” e “História e Audio-
visual: circularidades e formas de comunicação”. É autora, entre outros livros, de
Cinema Cubano: Revolução e política cultural (Ed. Alameda) e Polifonia tropical
(Ed. Humanitas). Pesquisa atualmente a política cultural e o cinema uruguaios nos
anos 1960 e 1970.
8. Joana d’Arc: a verdade não está nos autos

Bruno Konder Comparato

Elle n’en fonde pas moins sur l’échafaud le droit de la conscience,


l’autorité de la voix intérieure (MICHELET, 1974, p. 38)

“Joana d’Arc morreu em 30 de maio de 1431. Não teve sepultura e não temos nenhum re-
trato dela. Mas temos algo melhor que um retrato: suas palavras perante os juízes de Rouen.”
Com essas palavras na tela, inicia-se o filme O Processo de Joana d’Arc, de Robert Bresson,
lançado em 1962. O que o espectador passa então a assistir é a distância entre as frases inspiradas
com que Joana d’Arc responde aos seus juízes e a frieza das perguntas dos seus interrogadores.
O argumento deste texto é que o filme de Bresson sobre o martírio de Joana d’Arc permite
refletir sobre a impossibilidade de descrever os fatos da vida por meio do vocabulário jurídico
dos tribunais, e em última instância, de descrever a verdade por meio de palavras. A cada um a
sua verdade, portanto, pois esta depende da crença que cada um de nós atribui a determinados
acontecimentos como constituindo a verdade. Esta reflexão se inscreve no contexto das reavaliações
sobre as ditaduras latino-americanas, nas quais os limites impostos pelas contingências jurídicas
à expressão da verdade nas comissões da verdade fazem com que esta seja melhor expressa em
filmes ou romances do que pela transcrição dos depoimentos recolhidos junto às vítimas e aos
seus algozes.
A própria história de Joana d’Arc ilustra o argumento, pois mesmo após cinco séculos e uma
quantidade considerável de trabalhos escritos sobre ela, ainda há muita incerteza sobre os fatos
concretos da existência desta jovem francesa que se tornou um símbolo de heroísmo e da resis-
tência contra os invasores estrangeiros. Os fatos que conhecemos sobre a vida de Joana d’Arc
foram deformados pela lenda hagiográfica, apropriados pela propaganda monárquica, reinterpre-
tados posteriormente pelo patriotismo republicano, e capturados pela Igreja Católica de forma tão
sistemática que acabaram por adquirir um status de verdade histórica (MINOIS, 2010, p. 432)
Joana d’Arc era analfabeta e, não sabendo nem ler nem escrever, não deixou nenhuma carta por
meio da qual pudéssemos conhecer o seu pensamento, mas temos algo melhor: a transcrição mi-
nuciosa dos interrogatórios a que foi submetida.

As visões de Joana d’Arc


Para o historiador Joseph Calmette, Joana d’Arc constitui uma personagem extraordinária da
história francesa, pois “foi a heroína que, falando em nome do Céu, projetou, sobre uma situação
obscura e desesperada, a luz da verdade salvadora, e, estendendo à França caída no grau mais
baixo uma mão salvadora e forte, a ajudou a subir a ladeira do abismo”. O papel da virgem de
Orléans é ainda mais extraordinário que o de Saint Louis, como era conhecido o rei Luís IX, cuja
política toda, externa ou interna, foi ditada unicamente pela consciência cristã.

Com ela, o misticismo se torna a mola principal da história. Uma atmosfera de con-
fusão, de equívocos e de misteriosos enigmas mantém as consciências em suspense.
Subitamente a luz brilha nas tenebras e dissipa as sombras. Duvida-se da legitimi-
dade de Carlos VII; o próprio Carlos VII duvida do seu nascimento: Joana faz com
que as dúvidas paralisantes se esvaneçam, pois ela garante, em nome dos santos e
das santas que a enviam, a filiação e o direito do “gentil delfim”; ela condena em
nome do “Rei do Céu” a dominação inglesa sobre a França que se esconde atrás
de uma justificativa falsa; ela anuncia que os intrusos serão expulsos e eles de fato
o são, quando tudo levava a prever humanamente a sua vitória final inelutável. Os
seus contemporâneos, contendo o fôlego, acreditam estar diante de um milagre; eles
veem o sobrenatural em ação a dirigir repentina e abertamente diante dos seus olhos
admirados os assuntos deste mundo” (CALMETTE, 1950, p. 5-6).

Para poder avaliar adequadamente o significado dos episódios da história de Joana d’Arc, é
preciso conhecer o contexto no qual se deram os fatos da sua vida curta, mas aventurosa. Vida
esta que só é compreensível no contexto conturbado da França dos séculos XIV e XV. O pano de
fundo é a série de conflitos que passaram para a posteridade como a Guerra de Cem Anos. “Ao
longo da Idade Média, um só, dentre os vizinhos da França, ameaçou a sua existência e quase a
conquistou: a Inglaterra. A mais longa das guerras medievais foi uma guerra entre a França e a
Inglaterra. Ela ficou conhecida como a Guerra de Cem Anos.” (CALMETTE, 1950, p. 10)
As desavenças começaram como um conflito dinástico em 1328 quando o rei Carlos IV o
Belo morreu sem descendentes homens, o que foi o estopim de uma guerra entre duas facções
pela sucessão. Ao surgirem os primeiros sintomas da loucura do rei da França Carlos VI, ini-
ciou-se uma guerra civil entre os Armagnacs e os Bourguignons em 1411. O futuro carrasco de
Joana d’Arc, Pierre Cauchon, era uma autoridade universitária tornada bispo alguns anos antes e,
como todos os poderosos da universidade de Paris à época, optou pelo lado dos Bourguignons e
dos ingleses. Quando os líderes de ambos os lados, o duque de Orléans e João Sem Medo, foram
assassinados, o rei da Inglaterra Henrique V decidiu invadir o reino já dividido de Carlos VI. Em
1420, o tratado de Troyes deserdou o delfim e futuro rei Carlos VII e designou como herdeiro de
Carlos VI o rei da Inglaterra. Com a morte de ambos em 1422, a coroa francesa foi atribuída ao
jovem inglês Henrique VI, mas continuava a ser reivindicada por Carlos VII. Ao invés de resol-
ver os problemas, o tratado exacerbou o conflito que deixou de ser uma guerra civil para se tornar
uma guerra entre duas nações vizinhas.
Em 1429, a irrupção da jovem Joana d’Arc neste cenário mudou o curso da história. Ao li-
derar os soldados franceses, ela derrotou as forças de Henrique VI, libertou a cidade de Orléans
e levou o rei Carlos VII para ser sagrado em Reims. Em 1430 Joana foi traída e feita prisioneira
pelos ingleses em Compiègne. Julgada por crime contra a fé, ela foi interrogada entre janeiro e
maio de 1431 em Rouen. Após ser condenada por heresia, foi queimada viva a 30 de maio de
1431. Segundo relatos, na mesma noite do crime o carrasco foi se confessar temendo ir para o
inferno, convencido que estava de ter queimado uma mulher santa (Pernoud, 1995, p. 13). Vinte e
cinco anos depois, o rei Carlos VII reabilitou Joana d’Arc com apoio do papa Calixto III. Iniciou-
-se, a partir deste momento, a lenda da heroína de Orléans que passou a inspirar artistas, oradores,
poetas, historiadores, cineastas.
Joana d’Arc foi imortalizada desde então em muitas obras da literatura, principalmente para
o teatro. O escritor católico Charles Péguy fez dela a figura central da sua obra, na qual ela re-
presenta a alma camponesa e piedosa da França (Mystère de la Charité de Jeanne d’Arc). Dentre
as mais conhecidas, podemos mencionar as peças escritas por Shakespeare (Henry VI, 1596),
Voltaire (La Pucelle d’Orléans), Schiller (Die Jungfrau von Orléans, 1801), George Bernard
Shaw (Saint Joan, 1923), Jean Anouilh (L’Alouette, 1952) e Bertolt Brecht (Santa Joana dos
abatedouros, 1929).
Joana d’Arc também inspirou quase uma centena de filmes para o cinema ou a televisão,
dentre os quais se destacam Domrémy (1899), um curta metragem dos irmãos Lumière; Jeanne
d’Arc (1899), também curta metragem de Georges Méliès; Joan the Woman (1916), de Cecil B.
De Mille, concebido como propaganda para convencer os americanos a apoiar a entrada do seu
país na Grande Guerra ao lado dos aliados, todos ainda na era do cinema mudo. Foram realizados
também Joan of Arc (1948), de Victor Fleming, com Ingrid Bergman; Giovanna d’Arco al rogo
(1954), de Roberto Rossellini, também com Ingrid Bergman; Saint Joan (1957), de Otto Premin-
ger, com Jean Seberg, baseado na peça de teatro de George Bernard Shaw; e Procès de Jeanne
d’Arc (1962), de Robert Bresson, que inspirou este texto por colocar na boca de Florence Delay,
a atriz que interpretou Joana d’Arc, os diálogos transcritos no autos do processo de 1431. Conta-
bilizam-se ainda 24 óperas, oratórios e musicais inspirados na história de Joana d’Arc, dentre as
quais se destacam Giovanna d’Arco (1845), de Verdi, Jeanne d’Arc (1873–1877), de Gounod, e
The Maid of Orleans (1878), de Tchaikovsky.
Que personagem é essa que inspirou tantos artistas? De acordo com Jules Michelet, o histo-
riador da França profunda, trata-se de:

Uma menina de doze anos, jovenzinha, portanto, que confunde a voz do seu coração
com a voz do céu, concebe a ideia estranha, improvável, absurda até, de executar
o que os homens não souberam fazer: salvar o seu país. Ela acalenta essa ideia por
seis anos sem dizer nada a ninguém, nem mesmo a sua mãe ou a seu confessor. Sem
nenhum apoio do padre ou de parentes, ela caminha durante todo esse tempo sozi-
nha junto com Deus na solidão do seu grande destino. Ela espera ter dezoito anos
quando, determinada, executa esse destino contra tudo e contra todos. Atravessa a
França destruída e abandonada à própria sorte, as estradas infestadas de bandidos;
se impõe à corte de Carlos VII, se atira à guerra; e em campos que ela nunca viu,
trava combates sem que nada a intimide; ela se joga intrépida em meio às espadas;
sempre ferida, nunca desanimada, encoraja soldados experientes, arrasta todo um
povo que se faz soldado junto com ela, e ninguém ousa mais ter medo de nada. Tudo
está salvo. A pobre menina, de carne pura e santa, com seu corpo delicado e jovem,
embotou o ferro, rompeu a espada inimiga, cobriu com seu seio o seio da França
(MICHELET, 1974, p. 38).

Para os que acham a história por demais fantasiosa, Michelet lembra que não era raro, na-
quela época, ver mulheres pegarem em armas. Elas combatiam com frequência nos cercos de
cidades. Este autor também sustenta que a originalidade da história de Joana d’Arc não está nas
suas visões, pois no século XV o excesso de sofrimentos exaltava os espíritos, e muitos foram os
que afirmavam conversar diretamente com Deus. É preciso levar em conta a mentalidade mística,
individual ou coletiva, daqueles tempos.

O processo de Joana d’Arc, do qual dispomos de todas as peças, nos esclarece so-
bre a convicção íntima da acusada. Ele nos permite penetrar nas profundezas da
sua consciência, conhecer seus pensamentos secretos; podemos dizer mais ainda:
escutar as vozes como ela as escutou. Estes documentos irrecusáveis, aos quais se
acrescentam textos narrativos ou diplomáticos, nos permitem perceber o ambiente
místico e religioso dos seus contemporâneos. Para eles só havia nesse drama duas
hipóteses possíveis: inspiração celeste ou inspiração diabólica. Qualquer outra ex-
plicação não era concebível nem foi concebida. Nem um homem, nem uma mulher
daquele tempo podia enxergar as coisas sob um outro ângulo (CALMETTE, 1950,
p. 8-9).

O fundamental da história de Joana d’Arc está, portanto, no seu processo.

Os interrogatórios
Desde a sua aparição na cena pública no teatro de operações da Guerra de Cem Anos, Joana
d’Arc foi submetida a interrogatórios. Ao se apresentar na corte do rei Carlos VII, na cidade de
Chinon, a 6 de março de 1429, como enviada de Deus com missão de libertar Orléans, coroar o
rei e expulsar os ingleses da França, uma das primeiras providências da corte foi encontrar meios
de descobrir se era seguro confiar naquela jovem de origem simples da qual ninguém tinha ouvi-
do falar. Ela se dizia enviada de Deus e vestia roupas masculinas. “Não seria ela um destes falsos
profetas de que falam todos os predicadores: o Anticristo nascerá do diabo em tempos de guerra,
e quando a luxúria e o orgulho seduzirem todos os jovens, homens e mulheres, a se disfarça-
rem com suas roupas?” indagava um contemporâneo que assinava como “um burguês de Paris”
(THIELLAY, 1963, p. 177). Assim, o período da vida de Joana d’Arc que conhecemos, por ter
sido documentado e contado por seus contemporâneos poderia ser resumido como um longo teste
no qual foi colocada à prova a verdade de sua convicção de que ela se comunicava diretamente
com os céus. Esse teste começou com o exame da sua virgindade, pois, uma vez que as bruxas
fornicavam com o demônio, e que este não poderia fazer pacto com uma virgem, era preciso se
assegurar que ela era de fato virgem. Foram designadas duas comissões de inquérito para esta
finalidade que comprovaram que ela era, de fato, virgem.
Joana d’Arc não hesitava em afirmar aos eclesiásticos encarregados pelo rei Carlos VII de
interrogá-la na cidade de Poitiers, antes do cerco de Orléans, a sua capacidade de comunicar dire-
tamente com o céu e com as suas visões, o que eles jamais poderiam compreender: “Mestres, há
mais nos livros do Nosso Senhor do que nos vossos. O Senhor Deus tem um livro no qual nenhum
bispo jamais leu” (CALMETTE, 1950, p. 54).
O processo de Joana d’Arc é um combate em torno da verdade. Os juízes insistem para que
ela jure dizer a verdade. Ao que ela responde que a verdade dela é a verdade de Deus, que não
corresponde com a verdade deles. Os seus algozes estão decididos de antemão a condená-la por
ela acreditar em outra verdade que não a deles. O processo tem por única razão de ser justificar
e legitimar a sua condenação e execução como herege. Após a sua captura pelos ingleses, ela foi
submetida a 6 interrogatórios públicos e 9 secretos.
No dia seguinte à sua captura diante da cidade de Compiègne, a 24 de maio de 1430, os
doutores da universidade de Paris solicitaram o comparecimento ao Tribunal da Inquisição de
Joana d’Arc, “veementemente suspeita de vários crimes cheirando à heresia” (DUBY, 1973, p.
20). O mecanismo estava pronto e funcionava desde havia dois séculos: o Tribunal da Inquisição
era atrelado ao poder episcopal em cada diocese com o objetivo de desmascarar e confundir por
todos os meios possíveis aqueles que se desviavam da crença e da disciplina da Igreja. Qualquer
contestação, ato de indisciplina, ou aparente não conformismo era interpretado como indício de
cumplicidade com o demônio (DUBY, 1973, p. 19). O processo de Joana d’Arc se desenrolou
de 21 de fevereiro a 30 de maio de 1431, na capela real do castelo de Rouen, sob o comando do
bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, assistido de 43 eclesiásticos. Frente a todo esse aparato de
poder destinado a intimidá-la, Joana d’Arc manteve uma postura firme e desafiadora. “São Mi-
guel falava francês?, perguntou este doutor, com um forte sotaque do Limousin. – Melhor que o
seu, respondeu ela” (TREMOLET de VILLERS, 2016, p. 13).
O primeiro teste a que Joana d’Arc foi submetida, no seu interrogatório, foi o do juramen-
to. Tratava-se de uma rotina no Tribunal da Inquisição, com o objetivo de detectar os heréticos
que se recusavam a jurar. Joana d’Arc jura dizer a verdade, mas se reserva um jardim secreto,
pois não se considera autorizada a revelar a integralidade das suas visões e das vozes que ouvia.
Trata-se de uma armadilha na qual ela cai, pois os juízes pretendem condená-la justamente por
ela se recusar a se enquadrar nas regras da Igreja. O que ela se obstina em dissimular não seria
justamente a parte maldita da sua consciência?
Como podemos perceber a partir dos diálogos do filme de Robert Bresson, reconstituídos a
partir dos relatórios diários elaborados durante o julgamento e de trechos das falas traduzidos do
processo e transcritos em outros documentos, Joana d’Arc manteve-se firme e altiva diante dos
questionamentos do juiz:

Bispo: Jure dizer a verdade.


Joana: Juro
Bispo: Dito isto, nós, bispo, proibimos Joana de sair da prisão que lhe foi designada no
castelo de Ruão.
Joana: Não aceito essa proibição.
Bispo: Você já tentou escapar antes, e várias vezes.
Joana: Como é direito de todo prisioneiro.
Joana: E se me pedir que diga alguma coisa que jurei não dizer, seria perjúrio, o que o
senhor não poderia desejar.
Bispo: Deve dizer a verdade a seu juiz.
Joana: Tenha cuidado, ao se intitular meu juiz. Assume uma grande responsabilidade.
Bispo: Exigimos que preste juramento.
Joana: É preciso jurar duas vezes no tribunal?
Bispo: Quer fazer o favor de jurar pura e simplesmente?
Joana: Pode muito bem dispensar o juramento.
Bispo: Exigimos que jure dizer a verdade.
Joana: Direi a verdade, mas não direi tudo.
Bispo: Torna-se suspeita não querendo jurar dizer a verdade.
Joana: Não me fale mais nisso.
Bispo: Exigimos que jure clara e simplesmente.
Joana: Direi o que sei, mas nem tudo. Vim da parte de Deus e não tenho o que fazer aqui,
e peço que me reenviem a Deus, de quem vim.
Podemos considerar que, ao longo de todo o processo, trava-se uma disputa entre duas auto-
ridades. De um lado há a autoridade do Tribunal da Inquisição, personificada na figura do bispo
Pierre Cauchon, e alinhada à posição da Universidade de Paris identificada aos interesses ingleses
que controlavam a parte norte do território francês. Autoridade esta que era desafiada por Carlos
VII que, graças aos feitos e à fama de Joana d’Arc, havia recuperado a coroa e sido sagrado rei
na cidade de Reims. O julgamento de Joana d’Arc se transformou num julgamento político. Ao
provar que se tratava de uma impostora, os seus adversários atacavam a legitimidade de Carlos
VII e abriam caminho para afastá-lo definitivamente do poder. Do outro lado há a autoridade
pessoal de Joana d’Arc, apoiada na sua consciência interior e na sua fé nas revelações que rece-
beu de Deus por meio das visões. Ao insistir na preservação de uma esfera íntima dentro da qual
os inquisidores não conseguem penetrar, “direi a verdade, mas não direi tudo”, ela afirma a sua
individualidade diante do poder avassalador dos que, no seu ponto de vista, oprimem a França.
Se de um lado há os bispos e os juízes da Inquisição, convencidos que defendem os interesses da
Igreja, do outro lado há Deus, São Miguel e os demais anjos, que ela interpreta como defensores
da verdadeira religião. Os primeiros se expressam com o vocabulário do direito e das leis, próprio
dos tribunais, enquanto que os segundos se expressam por meio de revelações, vozes, visões, e
a linguagem dos anjos, que só são compreensíveis para quem às souber interpretar. Os juízes e
inquisidores exigem provas. Para Joana d’Arc, basta a sua fé:
Bispo: Que prova nos dá de que recebeu essas revelações de Deus?
Joana: Creia-me se quiser. (...)
Jean Beaupère: Sempre fez o que as vozes mandavam?
Joana: Com todas as minhas forças, cumpri a ordem de Deus ditada pelas vozes, de acor-
do com minha compreensão.
Jean Lemaître: E contra a ordem e a vontade das vozes, nunca fez nada?
Joana: Sim, o salto da torre, em Beaurevoir. Mas quando elas me viram em perigo, sal-
varam-me a vida e impediram que eu me matasse. Sempre me socorreram quando
precisei. Sinal de que são bons espíritos.
Jean Lemaître: Tem outros sinais de que sejam bons espíritos?
Joana: São Miguel me assegurou disso antes que as vozes viessem.
Bispo: Em que trajes lhe apareceu São Miguel?
Joana: De suas roupas, nada sei.
Jean Lemaître: Estava nu?
Joana: Pensa que Deus não tem com que vesti-lo?
Jean Lemaître: Ele tinha cabelos?
Joana: Por que os teria cortado?
Bispo: Como sabe que era São Miguel?
Joana: Por seu modo de falar, e por sua linguagem de anjo.
Bispo: Como sabe que era linguagem de anjo?
Joana: Acreditei logo. Tive vontade de acreditar.
Jean Lemaître: Se o demônio tomasse a forma de um anjo, como saberia se é um bom
ou um mau anjo?
Joana: Na primeira vez, duvidei se era São Miguel.
Jean Lemaître: O que a fez reconhecê-lo nas outras vezes em que acreditou que era ele,
depois da primeira?
Joana: Na primeira vez, eu era criança. Depois, ele me ensinou muitas coisas.
Jean Lemaître: O que lhe ensinou?
Joana: Uma boa parte do que ele me ensinou está nesse livro. (Indica o registro do no-
tário)

Outra revelação surpreendente do depoimento de Joana d’Arc, tal qual se pode depreender
do diálogo transcrito acima, é que a sua fé não anula o seu livre arbítrio, sintetizado na fórmula
extraordinária “tive vontade de acreditar”. Está em jogo aqui uma fé pessoal, que não se submete
à autoridade de bispos, aos julgamentos, ao Tribunal da Inquisição ou à própria Igreja enquanto
instituição de poder.
A sua fé é tão grande que Joana d’Arc mantém as suas convicções, mesmo quando o inquisi-
dor ameaça recorrer à tortura:
Pierre Cauchon: Joana, eu lhe aviso e insisto que tem que dizer a verdade. Há no seu
processo pontos numerosos e diversos sobre os quais se recusou a responder ou
respondeu de maneira mentirosa. Temos sobre isso informações seguras, provas e
presunções convincentes. Vamos ler e expor vários desses pontos. Se sobre essas
questões não confessar a verdade, será submetida à tortura. Veja os instrumentos
de tortura que estão aqui já preparados. Bem à sua frente, os carrascos só aguar-
dam a nossa ordem e estão prontos para fazer o seu trabalho. Vamos torturá-la
para trazê-la de volta no caminho da verdade que desconhecia e para lhe assegurar
assim a dupla salvação da sua alma e do seu corpo, que foram expostos a graves
perigos por suas invenções mentirosas.
Joana: Mesmo que me esquarteje e me arranque a alma do corpo, não mudarei o que
disse. E se eu dissesse outra coisa, depois diria sempre que o senhor forçou-me a
dizê-la.

O interrogatório se baseia em fatos, no esclarecimento dos fatos, e não consegue atingir


a consciência do interrogado. Há um limite claro e perigoso de ser ultrapassado aí, pois o que
atinge diretamente a intimidade e a consciência dos interrogados é a tortura. Justamente por esta
razão é que a tortura faz com que o torturado perca sua crença na humanidade e na sua razão de
ser no mundo do qual ele, de certa forma, deixa de fazer parte. Os defensores da tortura como
método de investigação, mesmo que usualmente condenem a consequência inevitável do sofri-
mento que esta impõe às vítimas, afirmam tratar-se de uma forma eficiente de obter informações.
O problema desta argumentação, contudo, é que a tentação é grande de passar da obtenção de
informações para a confirmação de uma convicção dos interrogadores. Neste caso, como destaca
Pierre Vidal-Naquet, que escreve sob o impacto da descoberta pela sociedade francesa do uso da
tortura em larga escala na guerra da Argélia, terminada em 1962, o mesmo ano no qual Robert
Bresson lançou o filme O processo de Joana d’Arc, a tortura se transforma num instrumento de
poder, pois “o torturador reconhece na sua vítima um homem que ele pretende obrigar a falar,
mas a palavra da vítima deve ser apenas o que espera o carrasco. Este só pede à vítima que fale
apenas para lhe confiscar esta palavra. Nestas condições, a informação (...) é apenas um aspecto
da política da tortura. (...) Pela sua “confissão”, a vítima faz mais do que entregar uma “informa-
ção”, ela reconhece o seu carrasco como mestre e dono da sua fala, isto é, da sua humanidade”
(VIDAL-NAQUET, 1972, p. 12-13).
Se a questão principal era se livrar de uma rebelde incômoda e desafiadora, e se os seus jul-
gadores estavam prontos a empregar a tortura para obter dela uma confirmação das suas teses, o
leitor pode muito bem estar a se perguntar o porquê Joana d’Arc não foi simplesmente executada
após um rápido simulacro de julgamento, e porque foram necessários quinze interrogatórios que
mobilizaram uma centena de assessores cujas despesas tiveram que ser pagas pelo tesouro real
(DUBY, 1973, p 25). Acontece que na Idade Média, até a tortura tinha os seus limites e as suas
regras, baseadas da lei da prova do direito romano, constituída a partir de três regras fundamen-
tais. Em primeiro lugar, uma corte só podia declarar culpado e condenar um acusado com base no
depoimento de ao menos duas testemunhas oculares do crime. Em segundo lugar, na ausência de
duas testemunhas oculares do crime, o acusado só podia ser condenado com base na sua própria
confissão. Em terceiro lugar, evidências circunstanciais não eram suficientes para levar a forma-
ção da culpa e consequente condenação do acusado. O interrogatório sob tortura era permitido
apenas quando da existência de meia prova contra o suspeito, que podia consistir na existência
de apenas uma testemunha ocular ou de evidências circunstanciais razoavelmente graves, de
acordo com critérios estabelecidos pelos juízes. Uma confissão obtida sob tortura não era admis-
sível como prova suficiente para condenar um suspeito, a não ser que já houvesse elementos de
sobra para constituir meia prova e se o interrogatório sob tortura permitisse elucidar detalhes do
crime que só pudessem ser conhecidos pelo seu autor (LANGBEIN, 2006). Daí a insistência dos
algozes de Joana d’Arc em saber o que eram as vozes que ela dizia ouvir e em conhecer os deta-
lhes das suas visões. Mas Joana d’Arc se manteve firme e se recusou firmemente a deixar que os
juízes penetrassem na esfera da sua alma e da sua intimidade, o que poderia abalar a sua verdade
interior.
O estabelecimento da verdade

Trata-se, portanto, de fazer uma reflexão sobre o conceito de verdade, seu sentido e até a
sua possibilidade. Popularizou-se, nas últimas três décadas, o discurso em defesa do direito à
verdade e à memória, situado no âmbito mais amplo do debate sobre a justiça de transição. Se-
gundo a definição proposta por John Elster, a justiça de transição “é constituída dos processos de
julgamento, purgamento e reparação que se realizam após a transição de um regime político para
outro” (Elster, 2004: 1). Em contextos de transição de regimes autoritários para democracias, es-
tabelece-se uma disputa acirrada sobre o direito de narrar o que se passou. Se de um lado tem-se
a narrativa e o discurso oficial dos que deixaram o poder, mas nem por isso aceitam abandonar
facilmente a sua interpretação sobre os acontecimentos, do outro lado há o estabelecimento de
uma nova explicação para os fatos que passa a constituir a nova “verdade oficial”. Naturalmen-
te, este processo não é simples e pode resultar num processo polêmico e bastante doloroso que
tem passado pela constituição de comissões da verdade encarregadas de dizer claramente o que
aconteceu. Sem esta etapa fundamental, a consolidação da democracia estará permanentemente
hipotecada, uma vez que as gerações futuras terão dificuldades em interpretar o passado e terão
grandes chances de incorrer nos mesmos erros que seus predecessores. “Reconstituir a verdade,
e isto vale também para a revisão das leis de anistia, consiste num diálogo entre várias gerações,
entre as que viram os crimes acontecerem, que puderam adivinhar as suas razões, os mecanismos,
seu funcionamento, e as que, tendo nascido depois, não têm como se lembrar” (COMPARATO,
2011, p. 18).
A expressão “Comissão da Verdade” é sugestiva, pois pressupõe que seja possível definir
uma verdade única que venha a se contrapor à verdade dos vencedores, das autoridades no po-
der, sejam elas os ditadores do passado ou os democratas de hoje, que sempre estão sujeitos à
tentação de estabelecer a verdade por decreto. É a “verdade oficial”, aquela que é ensinada nas
salas de aula e que está inscrita nos livros didáticos. É a verdade dos monumentos oficiais, a
que é constituída pelas leis e decisões judiciais e é reafirmada cotidianamente no diário oficial.
Quem a desafia corre o risco de ser processado pelo Estado. No tempo de Joana d’Arc aqueles
que desafiavam a verdade oficial eram acusados de heresia, hoje os que ousam questionar o dis-
curso oficial são considerados como agitadores e subversivos. Diante desta verdade totalizante,
as comissões da verdade pretendem se constituir como um processo de construção coletiva da
verdade. O objetivo é alcançar uma segunda concepção de verdade, que se entende como uma
verdade estabelecida coletivamente a partir de fatos, eventos, acontecimentos, e construída a
partir de vários pontos de vista. Aqui a verdade é o que se considera adequado e que pode ser
alcançado a partir de deliberações e acordos coletivos. Contudo, como adverte Allen Feldman, no
seu estudo sobre a violência na Irlanda do Norte, “o evento não é o que acontece, o evento é o que
pode ser narrado” (FELDMAN, 1991, p. 14). Assim, o estabelecimento da verdade não depende
tanto dos fatos, mas de quem controla o discurso sobre os fatos e tem a capacidade de influenciar
a narrativa sobre os fatos.
O que a experiência de Joana d’Arc nos traz é uma terceira ideia de verdade, baseada na con-
vicção pessoal, que pertence à esfera do íntimo, da consciência. Uma verdade iniciática que só
pode ser alcançada após um processo de viagem interior. Nos relatos e obras literárias da Idade
Média, segundo Jean Verdon,

“as viagens fazem parte da vida dos heróis, por ser sinônimo de aventuras e fama. Naquele
contexto, deixar de viajar era o mesmo que se recusar a assumir responsabilidades e de-
sempenhar o papel esperado pela sociedade e, portanto, falhar no plano moral. No limite,
o caminho cheio de provações conduzia a Deus. Este é o sentido da busca do Santo Graal”
(VERDON, 1998, p. 21).

Este autor também explica que na Idade Média, viajar tinha um significado inteiramente
diverso do atual, pois era relacionado sobretudo com expedições militares e o cumprimento de
obrigações religiosas. Os caminhos eram difíceis e perigosos, viajar custava caro, e quando o
trajeto percorrido era superior a 15 km, o viajante era obrigado a encontrar abrigo para passar
a noite no meio da jornada, pois não havia possibilidade de voltar para casa no mesmo dia. Os
homens da Idade Média eram apegados aos seus vilarejos e às terras onde nasceram e viviam. Os
trabalhos, o lazer e a vida religiosa se circunscreviam numa área que não ultrapassava 5 km de
distância em média. Os que precisavam se deslocar para distâncias mais longas eram sobretudo
soldados e padres. As florestas dominavam ainda parte considerável dos territórios e tornavam os
trajetos difíceis, incertos. Viajar era uma aventura, pois os viajantes se perdiam com frequência e
podiam ser atacados ao atravessar as florestas (VERDON, 1998, p. 9-14). Por mais que o périplo
de Joana d’Arc nos impressione nos dias de hoje, ele só foi empreendido para confirmar uma
convicção adquirida numa viagem anterior, a experiência mística a que foi submetida pelas vozes
que a prepararam durante anos, ela e sua fé, pela qual adquiriu uma crença inabalável na verdade
que lhe foi desvendada pelo arcanjo São Miguel. Aqui a verdade é uma revelação e se aproxima
do conceito de Alêtheia dos gregos antigos, de acordo com o qual a verdade era concebida como
o contrário do esquecimento. Trata-se, portanto, de desvendar a verdade, tirar a venda que impede
que a verdade seja vista e reconhecida como tal. Tudo se passa como se a verdade existisse desde
sempre, e só pudesse ser revelada aos iniciados, que merecem conhecê-la.
Isto explica a força das convicções de Joana d’Arc nas suas visões, que a mantiveram firme
mesmo diante das mais terríveis provações e do seu último suplício, atitude esta que tanto im-
pressionou os seus contemporâneos e que mantém a sua memória viva até os dias de hoje pois,
como lembra Michelet,
“a recompensa, ei-la. Traída, ultrajada por bárbaros, submetida à tentação por fariseus que
tentam em vão condená-la por suas palavras, ela resiste a tudo neste último combate, se
supera acima das suas forças, irrompe em palavras sublimes, que farão chorar eternamen-
te... Abandonada por seu rei e por seu povo que salvou, ela retorna pelo caminho cruel das
chamas ao seio de Deus. Ela funda no cadafalso o direito da consciência, a autoridade da
voz interior. Nenhum ideal que o homem poderia ter jamais se aproximou desta realidade.
Não se trata aqui de um doutor, de um sábio escaldado pela vida, de um mártir convicto das
suas doutrinas, que por elas aceita a morte. Trata-se de uma moça, uma menina, cuja única
força é o coração” (MICHELET, 1974, p. 38).
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VIDAL-NAQUET, Pierre. La torture dans la République. Paris: Les Éditions de Minuit, 1972.
Bruno Konder Comparato - Possui graduação em ciências sociais (FFLCH,
1998) e engenharia naval (Poli, 1991), ambas na USP. Possui mestrado e doutorado
em ciência política (2001 e 2006, ambos na USP). Atualmente é professor no curso
de ciências sociais da UNIFESP. Tem experiência na área de ciência política, atuando
principalmente nos seguintes temas: cidadania, direitos humanos, ouvidorias, segu-
rança pública, polícia, formas de controle do poder, movimentos sociais, movimento
dos trabalhadores rurais sem terra (MST), democracia participativa e justiça de tran-
sição. É autor de um livro didático para o ensino de sociologia no ensino médio.
9. Apontamentos sobre violência e audiovisual: Estudos de Sociologia e Cinema

Mauro L. Rovai

Prólogo

O objetivo desta apresentação é discutir o complexo jogo de espelhos que é instaurado pelo
filme entre os seguintes elementos: 1. Televisão e cotidiano, 2. Os programas televisivos e o pró-
prio filme, 3. História de amor e questão de gênero, 4. Crime de amor e crime hediondo. Em vista
disso, não será possível neste texto explorar a fundo cada um desses elementos na sua complexi-
dade, mas, como apontamos, o jogo de espelhos por eles instaurado no filme.
Sobre o uso da expressão jogo de espelhos, metáfora que serve como ponto de partida para a
abordagem do nosso problema, é importante mencionar que ela não deve ser entendida no regis-
tro, por exemplo, de Giacomo Marramao (1994), que a utilizava para caracterizar a relação em
que uma das partes assume a prerrogativa (o que é próprio) do outro, mas no jogo de espelhos
presente; por exemplo, em uma casa dos espelhos, como as que existiam antigamente nos circos
ou, para uma referência cinematográfica, como a da sequência no Magic mirror maze que apa-
rece no final de A dama de Shanghai. No filme de Welles, as imagens das personagens não eram
deformadas, mas multiplicadas pela disposição de espelhos, tomando toda a tela e reforçando a
ideia de labirinto (maze). Tal sequência, tomada como metáfora (uma vez que não temos espe-
lhos e nem nos referimos à multiplicação de imagem de personagens específicas em Quem matou
Eloá?), deve nos ajudar a explorar o aspecto sociológico específico sobre o qual gostaríamos de
nos debruçar neste texto, o da relação tecida na construção do filme (a construção incluída), en-
tre telespectadores, imprensa e poder público por meio de suas várias faces. A hipótese central é
que o título do filme, composto na sua forma interrogativa, embora o tempo todo dialogue com
a presença da morte e torne incerto quem foi o autor do crime, dirige a sua interrogação, na ver-
dade, a qual tipo de crime foi cometido. Em outros termos, como, partindo de um caso particular
de amor, ciúme e morte, o filme coloca em perspectiva a especificidade do crime e o seu caráter
mais geral: um crime cometido contra a mulher. As análises passarão rapidamente pela tripla
abordagem sugerida pelo filme, a saber, a do acontecimento (o sequestro e o assassinato), a da
cobertura televisiva do acontecimento e a da presença de convidados e entrevistados, de modo a
apontar como uma nova abordagem surge e persevera ao longo do filme, tornando-se decisiva e
dominante a partir dos 3 minutos finais.

O filme
Um ruído repetido que parece ser o de um motor acompanha as telas escuras nas quais des-
pontam, além dos patrocínios, o apoio cultural (da ECA) e a produção (Doctela). O ruído avança
pela primeira sequência do filme, um plano de céu aberto, azul com manchas plúmbeas, em que
uma ave, logo a associaremos a um urubu, sobrevoa um conjunto habitacional. O plano é móvel,
aéreo e reproduz o ponto de vista de uma pessoa que olha para o céu, o que sugere uma primeira
acoplagem: a das aves com helicópteros. A associação é clichê, se pensamos na metáfora que ela
evoca, mas bastante eficaz, assim nos pareceu, como cartão de visitas, como para deixar claro,
desde o início, que se trata de um filme que lida com a morte e com os que se “alimentam” dela,
ou ainda, para sugerir uma atmosfera de mau agouro. Como veremos da abertura até as sequên-
cias do enterro, próximas ao final, o par urubus-helicópteros acopla não apenas a presença da
polícia e da imprensa (como telespectadores, aprendemos a identificar o helicóptero, chamado
de “globocop”, como um veículo pilotado por militares e acompanhado por jornalistas de uma
empresa de comunicação), mas também os (tel) espectadores, como se esses três elementos com-
pusessem três linhas de intensidade que, se em um primeiro momento, convergem para a ideia de
espetacularização da violência, ao final do filme escapam em outro sentido, não menos instigante,
o de colocar a ocorrência individualizada como o caso da menina Eloá sob uma perspectiva social
mais ampla, a da violência contra a mulher.
A qualidade desse acoplamento começa a ser construída e paulatinamente ajustada logo no
início do filme, com a inserção de trecho de um dos programas televisivos que cobre os eventos
no qual acompanhamos o diálogo entre a apresentadora e Eloá, a menina sequestrada, durante o
seu próprio sequestro. Veremos que o destaque dado pelo filme não recai sobre a “imprensa” de
modo geral, mas sobre a cobertura televisiva do evento por parte de alguns programas de varie-
dades, em particular o A tarde é sua, que é onde tem lugar a conversa telefônica – como reforça
os letreiros na base da tela: “Garota mantida refém fala ao vivo com Sonia Abrão!”.
A breve sequência nos permite supor não só a presença da polícia (ela ainda não apareceu
até o momento), mas também a existência de telespectadores, a audiência. Se é certo que no caso
Eloá a cobertura da imprensa foi posta em xeque, em Quem matou Eloá? O protagonismo parece
ser o de programas como A tarde é sua (sucessor do A casa é sua) e Hoje em dia (exibidos no
período da tarde e da manhã, respectivamente). Daí o aspecto significativo que, na montagem,
ganha a frase de um dos âncoras desses programas sobre o trabalho realizado: “cobertura intensa,
mas nunca sensacionalista”, caracterizada pela “Ética total”.
Uma série de cortes rápidos mostram planos de apresentadores de vários canais, sugerindo
a escalada temporal do sequestro e, em decorrência, o suspense em torno do desfecho vindouro.
Entre esses blocos, planos do céu aberto, agora com mais urubus. A associação entre tais aves,
a cobertura televisiva, a polícia e telespectadores encontra o seu plano no minuto 1 min 30 s,
quando um parapeito repleto de pássaros (uma referência a Hitchcock?), e, mais do que isso, às
sequências de suspense do filme Os passáros, é seguido pela menção: “o brasileiro não tirou os
olhos da televisão”. Tal associação é arrematada mais adiante, ao final do filme, quando uma das
entrevistadas convidada pelo filme comenta acerca da presença de 40 mil pessoas no enterro da
menina.
A presença da televisão, pois, é constante no filme, seja como dispositivo que ocupa espaço
na casa das pessoas ou nos lugares que as pessoas frequentam (lanchonete, restaurante etc.), seja
pela programação que veicula, ocupando também o tempo das pessoas. A onipresença da tela na
vida cotidiana mereceria atenção particular, o que não será possível aqui, pois nos afastaria do
filme. Mesmo assim, Quem matou Eloá? Permite-nos explorar um pouco os programas de varie-
dades ou aqueles que misturam notícia e entretenimento, pois a inserção das sequências desses
programas são recorrentes e fundamentais para que compreendamos as falas dos entrevistados
trazidos pela produção do filme para comentar o caso. Tais convidados falam acerca de vários
temas - a atuação da polícia, a relação polícia, TV e reféns, o papel mais geral da televisão, a
violência contra a mulher etc, mas o fazem, boa parte das vezes, a partir daqueles programas. O
que nos coloca ante o primeiro jogo de espelhos. Vejamos.
O modo como esses comentadores, convidados da produção do filme, são apresentados, lem-
bremo-nos, uma série de cortes em que várias pessoas de perfil, contra um fundo escuro, assistem
a uma tela de televisão, traz circunspecção à cena. Isso, no entanto, em grande medida, decorre
do jogo que esses planos estabelecem com a programação televisiva às quais tecem comentários.
Notemos que não se trata do super-enquadramento – tela dentro da tela –, cuja função plástica nos
pareceu mínima, mas da utilização do fundo escuro, recurso que se contrapõe a dois aspectos ca-
racterísticos desse tipo de programação. O primeiro é a decoração, uma vez que o cenário desses
programas, mormente colorido, remete-nos, em alguma medida, a uma sala de estar. O segundo,
o movimento, pois eles, os convidados do filme, estão sentados, ao passo que os apresentadores
e as chamadas de reportagem estão sempre prestes a mudar de lugar ou de assunto. O fundo es-
curo, nesse sentido, mais do que luto e circunspecção, serve para realçar, criticamente, o jogo de
espelhos operado no filme, aquele entre os comentadores selecionados pela produção do filme e
os selecionados pela produção dos programas. Os convidados de ambos os grupos, vale a pena
sublinhar, têm algo a dizer – seja sobre o que aconteceu em Quem matou Eloá? , seja acerca do
que estava acontecendo à época, durante a cobertura ao vivo do sequestro com cárcere privado,
narrado como a desdita de um ex-casal de namorados. O jogo de espelhos não para aí, contudo.
O título Quem matou Eloá só aparece aos 2 min 09 s. Na primeira sequência após o título,
uma repórter de rua aparece mostrando o prédio em que estão sequestrador e reféns, um conjunto
habitacional, cujo desenho e localização nos remete a um tipo de moradia voltado para pessoas
de baixa renda na cidade de Santo André79. As câmeras, diferente do telefone usado pela polícia
79 Trata-se da CDHU - Empresa do governo do Estado de São Paulo, a Companhia de Desenvolvimento
Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo, que tem por finalidade, como informa na sua página online de
apresentação, “executar programas habitacionais em todo o território do Estado, voltados para o atendimento ex-
clusivo da população de baixa renda - atende famílias com renda na faixa de 1 a 10 salários mínimos”. Podemos
e pela imprensa, não têm acesso ao interior do apartamento, mas têm acesso à porta e às janelas,
concentrando nelas a atenção para pontuar os momentos agudos da trama. A porta é por onde
Nayara, a amiga de Eloá, retorna para o cativeiro a pedido da polícia. A janela, por sua vez, várias
vezes citada e mostrada (ficaríamos tentados a dizer que seria outra referência a Hitchcock), não
apenas ficou associada ao drama vivido pelas reféns (a tomada icônica do caso, como vemos na
ilustração do acontecimento que consta na página da wikipedia, é uma imagem em que Eloá está
à janela), mas era a abertura de onde a notícia poderia escapar. No seu texto Bridge and door,
falando sobre a construção de caminhos entre dois lugares, Simmel identifica na janela certa
relação com os significados da ideia de porta, dado que aquela permite a ligação entre o espaço
interior e o mundo exterior. Mas se no caso da porta a direção é importante, pois entrar e sair
implicam significados distintos, na janela temos a primazia de apenas uma direção, do interior
para o exterior. Olhando o modo como portas e janelas aparecem no filme (montado a partir do
material obtido dos programas televisivos), se é na porta fechada que a tensão se aglutina (é por
ela que as pessoas entram e saem, inclusive, de forma violenta, dado que há invasão e arromba-
mento), a janela, por seu turno, parece ser a única passagem de mão dupla entre interior e exte-
rior: é para lá que as câmeras estão voltadas, é por ela que sequestrador e reféns olham para fora
(SIMMEL, 2000, p. 73 – principalmente)80. Se a porta separava o interior do exterior (e era para
onde as câmeras miravam no quinto dia do sequestro), as janelas, por sua vez, aparecem seguidas
vezes, seja para reenquadrar a cena sugerida, mas nunca registrada, isto é, a cena que tinha lugar
no interior do apartamento, seja como a fenda através da qual quem estava dentro do apartamento
nos “olhava”. Outro aspecto do jogo de espelhos. Mas há mais.
Fixemos nossa atenção no recorte feito pelo filme do programa A tarde é sua e o diálogo que
este parece entabular com o cotidiano da cidade. Não emitiremos juízo ou avançaremos quais-
quer análises sobre a audiência desses programas, mas chama atenção a maneira intrincada como
a prevalência da esfera privada é construída e mostrada, em virtude da montagem com os trechos
do programa de televisão, em Quem matou Eloá?. Embora a polícia, responsável pela segurança
pública, estivesse lá e mantivesse organizado o espaço que circunda o conjunto habitacional (e
pelo qual, podemos supor, circulavam, entre outros, moradores e não moradores e equipes de im-
prensa), a dimensão mais geral do evento não é tematizada. A política inexiste na discussão des-
ses programas. O sintoma desse esvaziamento é justamente evidenciado no modo como o acon-
tecimento é construído como pertencente à esfera privada, talvez à íntima, um amor adolescente,
recheado de brigas e crises de ciúmes. Tal narrativa combina com a disposição dos cenários dos
programas de TV, que remetem a uma “sala de estar”. Em outros termos, um espaço doméstico.
Detenhamo-nos na decoração da sala de um desses programas e que aparece aos 8 min 50 s,
ler na mesma página, e isso é importante destacar, que a empresa “também intervém no desenvolvimento urbano
das cidades, de acordo com as diretrizes da Secretaria da Habitação”. Para isso, ver http://www.cdhu.sp.gov.
br/a_empresa/apresentacao-cdhu.asp . Acesso em 29/03/2018.
80 Mesmo considerando que a comunicação ocorre pelo telefone e que há televisão no apartamento, é a
janela a abertura entre o dentro e o fora.
cuja apresentadora, anfitriã, conselheira de todas as tardes, conversou por telefone, ao vivo, com
os envolvidos. Ela entra em um ambiente decorado com um grande tapete de listras coloridas e
um jogo de sofás. Mais além, um segundo ambiente, para onde ela pode se deslocar, de parede
vermelha e quadros no fundo à direita. À esquerda, uma ampla janela por onde vemos os prédios
de uma metrópole. A parede de tijolinho à vista, com pintura de branco caiado descascado é o
detalhe aconchegante de uma sala que, no meio de uma grande cidade, imagem codificada pela
concentração de edifícios que observamos pela janela do cenário, apresenta-se como alheia à
violência e aos crimes que noticia - que ocorrem nas ruas. Um cenário que remete a um ambiente
privado que se dirige a outros ambientes privados, os da sua audiência, como o dos apartamentos
do jardim Santo André (ainda que estes não contem com decoração tão cara). O que conta nesse
jogo é o eixo em torno do qual a reprodução do ambiente gira, uma vez que é referido e dirigido
ao mundo interno, doméstico da audiência (mesmo nas lanchonetes). É essa espécie de diálogo
entre “salas de estar” que é arruinado pelo fundo escuro em Quem matou Eloá?, abertura que per-
mitirá ao filme, paulatinamente, incidir sua crítica contra a violência (tortura) física e psicológica
cometida contra duas meninas (Eloá tem 15 anos, 7 a menos do que o ex-namorado), no interior
de um apartamento, violência esta que, como tal, deveria permanecer privada, no espaço privado,
do interior da casa, na sombra – pois como apontara Hannah Arendt, em A condição humana, “As
palavras gregas e latinas que designam o interior da casa, megaron e atrium, têm forte conotação
de escuridão e treva” (ARENDT, 1998, p. 71)81. O fundo escuro no filme, ao suprimir o caráter
privado e doméstico associado à presença de uma tela de televisão, vai aos poucos construindo o
caminho que faz do crime de amor, que nunca teria deixado de ser privado, íntimo, um crime que
prenuncia uma discussão política, portanto, da esfera do público, por excelência. Diferente, pois,
do que o ponto de interrogação do título nos sugere pensar, o filme não se volta para quem matou,
mas sobre o tipo de crime cometido.

Considerações finais

Como vimos, é possível observar várias entradas para a análise sociológica em Quem ma-
tou Eloá: a do acontecimento, a da cobertura televisiva do acontecimento, as falas a respeito do
acontecido e da cobertura feita à época pela televisão, a da discussão a respeito da ação da polícia
militar durante o sequestro. Há outra, porém, que é a do crime cometido - que é para onde o fil-
me parece apontar em determinados momentos, mas para onde só caminha definitivamente um
pouco antes de terminar.
Para isso, é determinante o trabalho da montagem que começa a partir do minuto 20 min 10

81 Trata-se da nota número 78, referência que a autora retira da obra de Theodor Mommsen. No original,
“The Greek and Latin words for the interior of the house, megaron and atrium, have a Strong connotation of
darkness and blackness”.
s, quando vários casos de assassinato, ou melhor, casos em que o homem mata a mulher pela qual
está apaixonado, enamorado ou com a qual mantém ou manteve relacionamento íntimo durante
certo tempo, são aproximados, quase sobrepostos, amplificando o volume de um crime que, visto
como fait divers, separadamente de outros, encaixa-se perfeitamente no que seria chamado de
crime passional, aquele no qual uma das partes, movido pela torrente de afetos que lhe transborda
a alma, tira a vida da outra. Justapostos no filme, os planos que trazem a fala límpida de noticio-
sos de vários telejornais de várias partes do país (notemos que não é mais o tom de voz dos pro-
gramas vespertinos que dominam tais sequências) narrando tais mortes ajudam a construir a ideia
de que as mulheres são assassinadas não por amor, mas após contínuo assédio. Essa construção
dá ao Quem matou Eloá? outro sentido para a sua interrogação, e era justamente o que gostaría-
mos de sublinhar: o de um crime que precisa ser discutido.
Os três minutos e meio da montagem final são determinantes para que o caso acontecido em
Santo André saia do registro da fatalidade, da individualidade, da discussão sobre os limites do
jornalismo, da atuação da PM, e venha à luz como um problema que tem gênero. E se optamos
por não mencionar o termo femicídio foi justamente para realçar como o filme se aproxima e
constrói a questão a partir do caso Eloá.
A morte da menina, em outubro de 2008, pode fazer par com aqueles sobre a atuação da im-
prensa e da polícia, como mostram os casos recentes e rumorosos do sequestro do ônibus 174 (12
de junho de 2000), o caso dos Nardoni (29 de março de 2008), bem como os mais antigos, como
o da Escola de Base (março de 1994), e o suicídio filmado pelo Aqui e agora em 5 de julho de
1993. A novidade em Quem matou Eloá?, no entanto, é a construção de um crime sobre o qual
é preciso falar. Daí a interrogação que, segundo nossa leitura, foi dirigida ao crime (cometido
contra uma menina que volta da escola e cresce em um bairro periférico). Daí a dimensão públi-
ca dessa discussão, abrindo-a para o debate e retirando-a da sombra doméstica, também um dos
lugares onde a violência atua.
Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. The human condition. 2a. edição. Chicago  : University of Chicago Press,
1998.
MARRAMAO, Giacomo. Cielo e terra. Genealogia dela secolarizzazione. Roma-Bari: Laterza,
1994.
SIMMEL, Georg. Bridge and door. In Simmel on culture (ed. David Frisby and Mike Featherstone).
London – Thousand Oaks – Nova Delhi : Sage, 2000, pp. 170 – 174.

Referências da WEB

CDHU. Apresentação. http://www.cdhu.sp.gov.br/a_empresa/apresentacao-cdhu.asp . Acesso


29/03/2018.

Filme trabalhado

Quem matou Eloá? Direção Lívia Perez. Brasil, 2015, 24 min. son., color. Disponível em http://
portacurtas.org.br/filme/?name=quem_
matou_eloa. Acesso em 20/03/2018.

Filmes apenas citados

A dama de Shanghai. Orson Welles. EUA, 1947 (The lady from Shanghai).
Janela indiscreta. Alfred Hitchcock. EUA, 1954 (Rear window).
Os pássaros. Alfred Hitchcock. EUA, 1963 (The birds).

Mauro Rovai - Possui graduação em ciências sociais (1987), mestrado (1995)


e doutorado em sociologia (2001), todos pela Universidade de São Paulo (USP), e
pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP - 2006), com es-
tágio pós-doutoral no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia - ISCTE Lis-
boa (2006) e no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS - 2012), ambos
com bolsa FAPESP. Durante o mês de novembro de 2010 esteve na Universidad de
Valencia, com bolsa da Fundación Carolina. Atualmente é professor da Universidade
Federal de São Paulo, no Departamento de Ciências Sociais (graduação e pós-gradu-
ação). Tem experiência na área de sociologia, atuando principalmente nos seguintes
temas: teoria social, cinema e audiovisual (arte, técnica e política), literatura e “sub-
jetividade” contemporânea.
10. O cinema como resistência à violência direcionada aos jovens negros na
sociedade brasileira

Jaquelina Maria Imbrizi


Eduardo de Carvalho Martins

Introdução

Podemos afirmar que a violência contra o jovem, negro, de classe socioeconômica baixa e
que mora nos territórios apartados das grandes cidades é um dos maiores problemas na sociedade
brasileira atual, refletindo certo mal-estar na contemporaneidade. O cinema poderia ser uma
forma de resistência a este tipo de violência e um modo de manifestar esse mal-estar? O que as
Intervenções Psicanalíticas Clínico-Políticas (ROSA, 2017) podem contribuir para a análise dos
discursos produzidos por narrativas cinematográficas que abordam a violência contra o chamado
PPP (preto, pobre e de periferia)? Este ensaio tem como objetivo problematizar tais questões a
partir da análise de dois filmes de diretores brasileiros: Bróder (JEFERSON DE, 2009) e Os 12
trabalhos (ELIAS, 2006). Os longas têm em comum a abordagem do cotidiano de jovens que
vivem nas periferias e que sofrem com a violação rotineira dos seus diretos sociais. As trajetórias
destas personagens estão submetidas a iminentes acontecimentos-ruptura, que podem acometer
suas vidas, evidenciando tanto a falta de suportes sociais quanto os sofrimentos sociopolíticos
que vivenciam (ROSA, 2016). O método que será utilizado para a análise das narrativas fílmicas
dialoga com as relações entre Psicanálise e Política. A intenção é produzir intervenções que
articulam a dimensão da singularidade às condições políticas com vistas a localizar a implicação
do sujeito com seu desejo. Os conceitos que servem de referências são: responsabilidade social
e moral (ROSA & CERRUTI, 2014; SCHUCMAN, 2014); humilhação social (GONÇALVES-
FILHO, 1998); violência subjetiva, simbólica e sistêmica (ZIZEK, 2015); e acontecimento-
ruptura (CARRETEIRO, 2003). Aqui podemos assinalar ao menos duas dimensões presentes
neste ensaio, intimamente relacionadas ao compromisso ético, estético, social e político de
algumas produções cinematográficas que visam contribuir com as transformações das condições
históricas, econômicas e sociais da segregação social. A primeira dimensão diz respeito a angariar
esforços de todos os setores da sociedade para reduzir os índices de violência e erradicar as
mortes de jovens negros, periféricos e de classes subalternizadas, juntamente com os inúmeros
sofrimentos causados por estas perdas. A segunda se refere à importância de se problematizar e
produzir visibilidade para o fato de que estas modalidades mais frequentes de violência recaem
incisivamente sobre a população em situação de vulnerabilidade social. A violência recai sobre
as vidas nuas (AGAMBEN, 2010), entendidas como vidas matáveis e consideradas como resto
social que não são contadas (RANCIÉRE, 2014), em decorrência da fé cega no progresso e no
crescimento ilimitado da riqueza própria ao modo de produção capitalista.

O filme de Ricardo Elias - Os Doze Trabalhos

O filme Os Doze Trabalhos (ELIAS, 2006) traça a trajetória de um jovem negro chamado
Heracles (Sidney Santiago), que ficou internado por dois anos na antiga Fundação Estadual pelo
Bem-Estar do Menor (FEBEM), em decorrência de um roubo de carro, e que é indicado para
ocupar a vaga de motoboy na mesma empresa em que trabalha seu primo Jonas (Flávio Bauraqui).
O cotidiano destes motociclistas é apresentado no filme: condições precárias de trabalho; risco
de vida nos acidentes de trânsito nas ruas da grande cidade; humilhação social (GONÇALVES-
FILHO, 1998) sofrida por exercer função considerada menos qualificada; espera, por ordem
de chegada, pela atribuição de entregas e viagens cuja produtividade depende de certa pressão
interna e externa para executar a tarefa just in time etc.
A humilhação é definida por Gonçalves-Filho (1998:15) como “uma modalidade de angústia
disparada pelo enigma da desigualdade de classes”. Este sentimento é suscitado pelos olhares
direcionados a: pessoas que exercem função cujo salário não garante o mínimo para a sobrevivência
do mês. Além de não suprir as necessidades básicas de uma família ou até de não poder realizar o
sonho de se casar com a namorada, há outros fatores que produzem o sentimento de humilhação:
a vestimenta que não se enquadra nos padrões dos prédios de classe média alta onde as entregas
são realizadas; a banalização da visibilidade dos acidentes de moto nas grandes cidades, nas
quais os transeuntes culpabilizam quem dirige a moto (“eles é que são uns loucos mesmo”), sem
considerar a desproporção explícita nos equipamentos de segurança entre os que dirigem a moto
e os que conduzem o carro.
O outro sofrimento social que ocorre pari passu com o de humilhação social e que acompanha
estes trabalhadores é o da falta de reconhecimento pelo resultado do trabalho: a rapidez da entrega.
Assim, nos diversos espaços públicos por onde o nosso herói precisa circular parece constituir-se
um olhar de desprezo ou indiferença a seu respeito. O filme transmite o clima misto de tensão,
competitividade e desanuvio na sala onde os motoboys aguardam ser chamados pela secretária
responsável por distribuir os serviços. O clima descontraído entre os entregadores, por meio
das piadas acerca de suas condições de vida, parece diluir um pouco da angústia advinda da
percepção dos riscos constantes inerentes à profissão.
No filme, o nosso personagem enxerga o trabalho como uma possibilidade de mudar o seu
destino: ele precisa desenvolver doze tarefas no transcorrer do dia para conseguir o emprego. A
humilhação social que Heracles sofre vem de todos os lados: dos clientes da empresa, que não
o vêm por detrás de sua função, dos colegas, que fazem alusão ao fato de que ele foi internado
em uma instituição para menores em conflito com a lei. A atmosfera de constrangimento quando
esse assunto vem à tona demonstra o quanto é difícil para este jovem reconstruir sua vida em
outras bases que não as das atividades criminosas. Em uma das cenas, Heracles, ao sair para o
seu primeiro dia de trabalho, encontra um amigo, que parece trabalhar no tráfico de drogas e
que o intima a ir a um determinado bar para garantir que não entregará o nome de seus antigos
companheiros de crime para a polícia. O roteiro da película não deixa de fazer alusões ao fato
de que para a vida dos nossos jovens da periferia, negros e de classe subalternizada – os PPPs
(pretos, pobres e da periferia) – as opções são mínimas. As alternativas são: ou se entregar à
guerra no tráfico ou se submeter às condições precárias de emprego, como as de um motoboy, um
mal, por assim dizer, menor.
Os telespectadores podem sentir e compartilhar, por meio das expressões no rosto do ator, um
clima de ameaça que solapa os cenários. Uma sensação de estranhamento frente a tudo o que vive
é o que o ator Sidney Santiago consegue transmitir ao telespectador: frente à funcionária pública
que se recusa a carimbar um documento e, com isso, confirmar oficialmente que este foi entregue;
diante o pedido da professora que solicita a Heracles levar o seu gatinho na garupa da moto e
entregar à filha – em uma freada brusca da moto o gato escapa da caixinha e o motoboy teve que
fazer estripulias para resgatá-lo; perante o motociclista que sofre um acidente e tem que esperar a
ambulância e que implora, com a perna machucada, a companhia da nossa personagem principal
para garantir minimamente que o atendimento da equipe de saúde ocorra a contento; ante o
segurança trajado de terno, também negro, que obedece ordens superiores e, assim, ocupa o posto
de regulador das normas sociais e distribui os lugares das pessoas de modo a obedecer à clássica
característica brasileira de produzir desigualdade social em detalhes inusitados, no caso, o acesso
aos elevadores sociais e de serviço. Em uma das entregas do motoboy, o elevador de serviço
de um prédio está quebrado e o segurança diz que Heracles deverá subir mais de vinte andares
porque é proibido aos serviçais utilizar o elevador social. O nosso herói não apenas questiona o
guarda como dribla a situação e entra no elevador social do primeiro andar e consegue entregar o
envelope em tempo hábil e encarar a próxima tarefa. A ironia está na cena em que o entregador,
depois de utilizar o elevador social, encara o guarda, que fica impassível diante do fato de que
pelo tempo transcorrido ele não poderia ter subido e descido todos os lances da escada. A despeito
de passar por todos estes “perrengues”, há mais um acidente no trânsito que faz nosso herói parar
na sua corrida contra o tempo: agora quem está sendo atendido no meio da rua é o seu primo que
morre no asfalto sob o olhar de Heracles. O que fazer? Nosso protagonista vai à empresa para
avisar aos seus colegas sobre a morte do primo. Depois dirige sua moto meio a esmo, estaciona
perto de uma praia e caminha lentamente em direção ao mar. Nos momentos finais do filme, a
imagem de Heracles, de costas para a câmera e de frente para o mar, vai se distanciando na tela
e aos telespectadores resta desvendar o enigma que encerra a narrativa: ele vai cometer suicídio?
É só um banho de mar como parte do processo de elaboração da morte do primo? Ou, trata-se de
realizar o desejo, de morar em uma cidade no litoral?
De que mal-estar na contemporaneidade trata o filme de Ricardo Elias? O episódio da fuga do
gato é uma alegoria para a cadeia de opressões a que os sujeitos estão submetidos no capitalismo
tardio: a professora sabe do risco de perder o gato, a empresa reconhece o prejuízo caso perca a
cliente, e Heracles percebe que pode perder a oportunidade do emprego. Ao telespectador sensível
às questões sociais resta um gosto amargo na boca: a morte do primo, o único suporte afetivo
do protagonista apresentado na película, é o acontecimento-ruptura (CARRETEIRO, 2003)
que emperra as chances de mudança de vida do jovem Heracles. Ele perde seu único ponto de
ancoragem (BROIDE; BROIDE, 2015) depois de enfrentar humilhações sociais e preconceitos
e, literalmente, parece morrer na praia no final do filme. A verdade foi desvelada: no capitalismo
tardio, aos jovens pobres e negros que moram nas periferias das grandes cidades – alijados do
acesso às instituições sociais de qualidade como as de educação, cultura, saúde –, está reservado
um lugar específico na trama cultural e econômica: o de resto social (ROSA, 2016). O cinema
aqui exerce sua função estética e política: proporciona visibilidade à fragilidade e à potência de
um jovem negro frente às desigualdades e injustiças sociais.
Outro ponto emblemático na narrativa é o de que os pais da personagem não aparecem na
tela, mas o telespectador fica sabendo que ele não conheceu o pai e que a mãe trabalha como
faxineira em casa de família. Esta situação representa grande parte das brasileiras (in) visíveis,
cujo cuidado dos filhos fica exclusivamente a cargo das mulheres que, por sua vez, são mães e
únicas provedoras do lar, mesmo recebendo salários exímios em funções com pouco ou nenhum
reconhecimento social. Há, portanto, uma reprodução da desigualdade social no transcorrer
de várias gerações em uma família, bem como a transmissão do sofrimento sociopolítico e de
um destino social calcado em uma vida de errância e certo desenraizamento na trajetória da
personagem principal. O ponto de ancoragem na vida de Heracles é o laço fraterno com o primo,
que o ensinou a dirigir a moto, e que, por ser mais velho e de outra geração, lança-lhe um olhar
de acolhimento e confiança, transmitindo a ideia de que é possível outro modo de viver. É nesse
sentido que o cinema exerce sua contribuição para a transformação social, ao inscrever uma
crítica radical do modo de produção capitalista, ao fazer uma intervenção direta na cultura e ao
contribuir para desconstruir o discurso hegemônico que culpabiliza e patologiza o jovem em
conflito com a lei (ROSA, 2016).
A contribuição do filme “Os doze trabalhos” para a discussão sobre a resistência à violência
simbólica representada pelas imagens do negro em algumas produções cinematográficas pode
ser localizada no fato de que: o jovem protagonista negro tenta driblar todos os empecilhos que
aparecem, se responsabilizando por suas ações e com certo bom-humor tentando criar estratégias
para enfrentar a violência sistêmica do capitalismo, arraigada em uma sociedade hierarquizada,
burocratizada e dividida em classes sociais. Para Zizek (2015), a violência sistêmica é responsável
pela ordenação estrutural do funcionamento muitas vezes catastrófico de nossos sistemas políticos,
sociais e econômicos. A reprodução da desigualdade econômica é um exemplo desta violência,
incentivada pelos mecanismos de acumulação do capital presente nas sociedades capitalistas.
O autor critica as visões que atribuem uma condição essencialmente exógena da violência no
contexto de um sistema econômico que, no núcleo de seu funcionamento, é estruturalmente
violento e produtor de profundas desigualdades, como se a violência fosse algo a ser erradicado
sem levar em conta a necessidade de alteração das condições sociais e econômicas que contribuem
para a sua manutenção. A violação de direitos dos jovens periféricos é também um exemplo deste
tipo de crueldade estrutural no capitalismo. No filme, a maioria dos atores que trabalham como
motoboys é negra e, cada um à sua maneira, tenta encarar as agruras da vida criando dispositivos
inusitados de sobrevivência. A cena na qual um dos entregadores mostra a cicatriz na perna em
decorrência de um acidente no trânsito é bem importante para ilustrar esta questão, como também,
as imagens que explicitam a diferença entre os locais onde as pessoas almoçam. O machucado e
a dor na perna revelam que é só com o corpo que é possível se interpor à violência estrutural do
capitalismo, no qual os homens são “livres” para venderem sua força de trabalho, mesmo à custa
de uma tarefa perigosa e sem sentido. A desigualdade social, por sua vez, é visibilizada no tipo de
comida e no espaço reservado aos serviçais: o rapaz vai buscar o almoço do chefe e da secretária
em um restaurante japonês, mas ele e seus colegas só podem almoçar um sanduíche ao lado de
um carrinho de lanches improvisado na calçada.
Cabe assinalar outro momento no filme Os Doze Trabalhos, no qual o diretor destaca cenas
recorrentes dos semáforos das grandes cidades brasileiras, onde os ambulantes tentam vender
objetos para os motoristas dentro dos carros parados no sinal vermelho. Como uma intervenção
dentro do filme, estas pessoas comuns são convidadas a falar e participar da película, como cenas
de um documentário inserido no longa-metragem de ficção, e um deles revela o seu sonho de
ter um emprego com carteira assinada. A visibilidade para o fato de que a população que sofre
a violação de seus direitos sociais está diretamente vinculada à cor da pele, mora nos bairros
periféricos e localiza-se na classe pobre. Neste contexto, como não nos lembrar da frase de
Heracles: “Dependendo de onde você nasceu tua história já está escrita antes mesmo de ela
começar” (ELIAS, 2006).

O genocídio contra o negro brasileiro: uma história apagada e silenciada

Abdias Nascimento (2017: 97) confirma a frase de Heracles apresentada na telona ao fazer
referência ao destino social articulado às condições de habitação na cidade do Rio de Janeiro na
década de 1950: “(...) os negros compõem menos da metade da população total da cidade, mas
a proporção que ocupam nas favelas alcança mais do dobro da cifra apresentada pelos brancos.
Assim se caracteriza uma indiscutível segregação habitacional”. Para o autor:

As feridas da discriminação racial se exibem ao mais superficial olhar


sobre a realidade social do país. A ideologia oficial ostensivamente apoia
a discriminação econômica – para citar um exemplo – por motivo de raça.
Até 1950 a discriminação em empregos era uma prática corrente, sancionada
pela lei consuetudinária. Em geral os anúncios procurando empregos se
publicavam com a explícita advertência: ‘não se aceitam pessoas de cor’.
Mesmo após a lei Afonso Arinos, de 1951, proibindo categoricamente a
discriminação racial, tudo continuou na mesma. (...) Com lei ou sem lei, a
discriminação contra o negro permanece difusa, mas ativa. (NASCIMENTO,
2017: 100)

Para Nascimento a insígnia “pessoas de cor” é substituída por “pessoas de boa aparência” nos
anúncios para ocupar cargos de trabalho com carteira assinada; deste modo, são o desemprego
e os trabalhos menos qualificados que estão reservados à população negra. Ribeiro (2017: 40),
filósofa e ativista pelos direitos da mulher negra brasileira, atualiza os dados da década de 1950
indicados por Abdias, apresentando a pesquisa desenvolvida em 2016 pelo Ministério do Trabalho
e Previdência Social, em parceria com o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas):
“mulheres brancas ganham 30% a menos do que homens brancos. Homens negros ganham menos
do que mulheres brancas e mulheres negras ganham menos do que todos”. As mulheres negras
são “o maior contingente de pessoas desempregadas e no trabalho doméstico”. Para a autora: “Se
não se nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que segue
invisível”.
A importância das ideias e das lutas de Abdias Nascimento (1914-2011) está personificada em
seu seminal livro O Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (2017: 93),
no qual ele afirma o apagamento das atrocidades cometidas contra a população negra na história
da construção da nação brasileira. Ele resgata a figura do ministro das finanças Rui Barbosa, no
ato de 1899, que ordenou a incineração de todos os documentos pertinentes à escravização, ao
tráfico negreiro e aos africanos escravizados, dificultando hoje a análise “da experiência africana
e de seus descendentes no Brasil”.
Abdias Nascimento (2017), entre suas várias frentes de luta para tornar visível a opressão
e o racismo em território brasileiro, criou o Teatro Experimental do Negro (TEN), que tinha
como objetivos: resgatar os valores da cultura africana; construir uma pedagogia calcada na arte
e cultura, de modo a desconstruir valores etnocentristas vinculados à superioridade europeia,
cristã, branca, latina e ocidental; colocar o negro como protagonista em papéis que exigiam a
qualidade dramática do intérprete e longe de estereótipos e caricaturas.
Esse movimento iniciado na década de 1940, no âmbito das artes cênicas na história
brasileira, demorou a se espraiar para o cinema. Mais de cinquenta anos depois, somente no final
da década de 1990, é que diretores, que se autorreferenciavam como afrodescendentes e que se
sentiam pertencentes à cultura africana, encampam a luta contra a violência simbólica por meio
da instauração do debate sobre a imagem transmitida do negro nas produções audiovisuais e,
sobretudo, no cinema brasileiro (CARVALHO & DOMINGUES, 2017).

Os regimes de visibilidade reservados aos artistas negros nas produções audiovisuais

Carvalho (2005: 30) aponta a decupagem como técnica que produziu certa eugenia racial no
cinema brasileiro, nas décadas de 1920 e 1930, nas quais as imagens de negros e mestiços foram
paulatinamente eliminadas. Era o cinema reproduzindo os ideais de branqueamento da população
brasileira. A dupla formada pelo ator negro Grande Otelo e o ator branco Oscarito, ao mesmo
tempo em que demonstrou o convívio harmonioso entre brancos e negros na tela, apresentou nos
bastidores certa disputa entre os dois atores, a ponto de Grande Otelo recusar-se a ser sempre
“escada nas cenas cômicas”.
Na década de 1950, dois filmes de Nelson Pereira dos Santos trouxeram a realidade da favela
à tona, com seus jogos de solidariedade para a sobrevivência e, em contraponto, mostrou uma
classe média branca, individualista e agarrada a seus privilégios. O diretor comenta o impacto do
filme Rio, Zona Norte (1957) e afirma em entrevista: “Pra direita era um filme que tinha muito
negro, muito pobre, muita criança descalça. E o cinema não podia pintar a realidade, tinha que
fazer propaganda” (CARVALHO, 2005: 50).
Em 1960, os filmes do Movimento Cinema Novo, principalmente os de Glauber Rocha, foram
marcados por adeptos dos cultos afro brasileiros, quilombolas e sambistas: “Apostando numa
noção de cultura nacional-popular como resistência à cultura colonizada, os cineastas vinculados
ao movimento viam o negro como metáfora de povo – pobre, favelado e oprimido” (CARVALHO
& DOMINGUES, 2017: 11).
Na década de 1970, a agenda das reivindicações do movimento negro incluía várias
manifestações artísticas e culturais, cuja bandeira era a de criação de modelos positivos de auto-
representação da população negra (CARVALHO & DOMINGUES, 2017).
É somente no final da década de 1990 que “(...) cineastas e atores negros se mobilizaram
para reivindicar novas formas de representação racial no cinema e na televisão” (CARVALHO,
2005: 94-95). No campo do audiovisual cabe destacar os trabalhos de Joel Zito Araújo, que
dirigiu o documentário A negação do Brasil, lançado em 2000, cujo objetivo é o de analisar o
tratamento estereotipado do negro nas produções audiovisuais brasileiras no período de 1963 a
1997, principalmente nas telenovelas. Os resultados apresentados pelo diretor se referem ao fato
de que quase sempre os artistas negros eram chamados a desempenhar papéis subalternizados,
como o da empregada doméstica e alcoviteira, o jardineiro, motorista e operário subservientes,
ou, em seu lado oposto, a mulata bela, fogosa e sedutora e o malandro que leva a vida na flauta.
Segundo Carvalho (2005: 95), trata-se de “(...) um manifesto audiovisual sobre a necessidade de
se construir representações democráticas do Brasil”.
A problematização do tipo de visibilidade do negro no cinema brasileiro é um dos temas
de interesse de Jeferson De, que participou das mobilizações dos cineastas afrodescendentes
na década de 1990. No ano 2000, o diretor escreve e apresenta o manifesto Dogma Feijoada –
Gênese do Cinema Negro Brasileiro. Jeferson se inspirou no movimento Dogma 95, que visava
um cinema mais realista e menos comercial, liderado pelos diretores dinamarqueses Thomas
Vinterberg e Lars Von Trier. Ele elencou regras para a construção do cinema negro brasileiro,
cujos mandamentos são: tanto o diretor quanto o protagonista devem ser negros; o filme deve
ter um orçamento exequível e se referir à cultura africana; o dualismo heróis e bandidos e os
personagens caricatos são proibidos; deve-se privilegiar o negro comum como brasileiro. Para
Carvalho (2015: 97):

(...) só os mais atentos entenderam o tom provocativo de seu manifesto e o


seu modo jocoso, chanchadesco e simpático (tão brasileiro e nada europeu,
enfim) de tratar de temas sérios. No melhor sentido tropicalista, o Dogma
Feijoada canibalizou o Dogma europeu e, de quebra, abriu a discussão sobre
a possibilidade de um cinema brasileiro feito por negros, sem o rancor e
as queixas que caracterizam esses movimentos. De forma direta, objetiva
e rápida tentava criar uma agenda mínima para pensar um cinema negro
brasileiro.

Jeferson De leva a sério os mandamentos que criou e já dirigiu e roteirizou vários curtas
metragens premiados em festivais nacionais e internacionais, como Carolina (2003), que tem
como protagonista a escritora negra Carolina Maria de Jesus (Zezé Mota), autora de Quarto de
despejo: diário de uma favelada (JESUS, 2014). O diretor lançou, em março de 2018, o filme
“Correndo Atrás” – com elenco, direção e equipe de produção toda formada por afrodescendentes
(RFI, 2018) –, em Los Angeles, no Pan African Film Festival, a maior e mais prestigiada mostra
de arte e de cinema negro das Américas.

O filme de Jeferson De: Bróder

A produção cinematográfica de Jeferson De destacada neste ensaio é Bróder (2009), cujos


protagonistas são dois amigos negros e um branco: Jaiminho (Jonathan Haagensen) é jogador
de futebol e tem situação econômica mais confortável comparada à condição de vida de seus
dois amigos; Pibe (Sílvio Guindanecu) mora com a mulher e a filha e trabalha duro para pagar
as contas da casa, já com a energia elétrica cortada; por último, vem Macu (Caio Blat), que
planeja um sequestro junto aos seus comparsas da vida no crime. A mãe de Macu (Cássia Kiss)
prepara uma festa de aniversário para o filho, como mote para o reencontro entre os amigos, mas
ele é assassinado no mesmo dia porque desiste no último instante de continuar com o plano de
sequestrar o filho do empresário de Jaiminho. Macu, como bom representante da língua portuguesa
falada no Brasil, diz “eu sou mano e não bróder” e demonstra que é possível uma escolha ética
em meio a tanta violência e humilhação social. Ele se recusa a participar do crime e se alegra ao
saber que Jaiminho é escalado para compor a equipe da seleção de futebol brasileira. Portanto, o
cineasta Jeferson De propõe uma inversão dos estereótipos da nossa cultura em seu filme, no qual
é o homem branco, vivido pela personagem Macu, que está envolvido com o mundo do crime.
Uma cena emblemática do filme Bróder pode ser destacada quando os três amigos vão
passear no carro importado de Jaiminho, sendo que Macu é quem dirige e tem que parar o
automóvel por conta de uma blitz policial: todos são revistados menos Macu, que na percepção
dos policiais estaria sofrendo um sequestro relâmpago. Na abordagem dos homens da lei, há uma
nítida discriminação entre os negros e o branco, pois os dois primeiros são suspeitos por causa da
cor de sua pele. Esta personagem de tez branca embaralha a distinção entre irmãos na epiderme,
tem uma boa relação com o padrasto (Airton Graça), que é negro, e é o único dos três que se
envolveu com atividades ilícitas.
De que mal-estar na contemporaneidade trata Bróder? Jeferson De aponta para a linha sutil
de demarcação de cor no Brasil e toca na ideia de responsabilidade moral daqueles que estão
sendo beneficiados direta ou indiretamente pelo racismo. Fica aqui a questão que não quer calar:
a personagem Macu poderia ser considerada responsável por seu privilégio de cor ao não sofrer
a revista dos policiais?
Cabe ressaltar o fato de que se a personagem Macu é branca, a sua postura e reivindicação é a
de se posicionar como uma pessoa negra, pois tem muitas coisas em comum com seus amigos de
infância, entre elas, a precariedade de morar em um bairro periférico e as dificuldades financeiras
de sua origem de classe social. É possível a um homem branco se indignar e se posicionar contra
a violação dos direitos sociais de um jovem negro? Pensamos que sim, desde que o branco se
reconheça como quem está ocupando o lugar de privilegiado por causa da cor de sua pele, em
detrimento de outras pessoas de tez negra; além disso, mais do que se reconhecer, é preciso
também se responsabilizar por ocupar este lugar.
O racismo como categoria relacional e a responsabilidade moral do homem branco

No filme de Jeferson De, a arte imita a vida e, assim, como afirma Munanga:

‘Dizem’ para nós que não há história do negro no Brasil, que não há cultura
negra no Brasil. Há apenas uma única história e uma única cultura resultante
do sincretismo. Quem é negro no Brasil, um país mestiço e sincrético? (...)
Algo como se todos os gaúchos e descendentes de italianos nos estados do Sul
do Brasil se considerassem mestiços. Já a questão ‘quem é branco no Brasil?’
Pouco entra nesse debate. Pois bem, se os intelectuais, jornalistas e políticos
não sabem distinguir os negros dos demais brasileiros, evidencia-se que os
policiais ou zeladores dos prédios nunca tiveram dificuldade. (MUNANGA,
2017: 41)

Esta é uma questão polêmica que suscita debates acalorados sobre a diferença entre o que
é abrir mão do privilégio de raça e o que significa distribuição equitativa dos direitos sociais,
como os de moradia, saúde, educação, cultura e livre circulação pela cidade. Schucman (2014)
afirma que há privilégios relacionados à cor de pele no Brasil. Existe, por exemplo, o medo do
branco de perder seu status diante das políticas públicas afirmativas, entre elas, as cotas raciais
para a admissão nas universidades públicas brasileiras, que podem trazer o fantasma de que os
brancos estão perdendo as vagas para os negros nos cursos gratuitos de graduação. A psicóloga
social coloca em questão a responsabilidade moral do branco diante de seus privilégios raciais e
apresenta os resultados de suas pesquisas, trazendo vários elementos da vida cotidiana presentes
nas falas dos seus entrevistados - a opção dos empregadores por contratarem pessoas brancas;
as desigualdades dos negros frente ao acesso aos recursos materiais e simbólicos produzidos
historicamente pela humanidade –, apresentando reais desvantagens na disputa às vagas
universitárias e aos melhores postos de trabalho. Portanto, para a autora é preciso situar o racismo
como base para o entendimento da forma como se estrutura o poder nas sociedades.

Outra pergunta direcionada às pessoas entrevistadas sobre a possibilidade de abrirem mão de


algum privilégio de cor sempre vinha seguida de uma retomada do discurso da meritocracia. Dois
dos entrevistados argumentaram que o problema da desigualdade: “(...) é um problema de classe
social que pode atingir a todos, e aí o discurso do mérito de que todos somos iguais reaparece”
(SCHUCMAN, 2014: 138). A autora identifica que este é um discurso ambíguo e fragmentado: “A
ambiguidade aparece como artifício fundamental para que os sujeitos mantenham os privilégios,
eximindo-se da responsabilidade moral”.
A autora conclui que o racismo é relacional e, assim, se a sociedade capitalista está cimentada
na exploração da força do trabalho e em relações competitivas entre seus integrantes, este tipo de
preconceito pode aparecer como “mecanismo para que os brancos se mantenham em posições de
vantagens nesta competição” (SCHUCMAN, 2014, p. 145).
No Brasil a discussão sobre a responsabilidade moral do branco diante das desiguais
oportunidades de escolarização e emprego se torna mais complexa quando nos deparamos com
os dados referentes aos direitos à vida. Os dados estatísticos são explícitos: em 2016, o Mapa da
Violência (WAISELFSZ, 2016) indicou que estamos vivendo uma “guerra civil” generalizada,
mas, sobretudo, um genocídio muito bem direcionado contra um perfil econômico, etário e étnico-
racial delimitado: “De cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras. Jovens
e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem
em situação de guerra” (CERQUEIRA et. al., 2017: 30). Assis Filho, então chefe da Secretaria
Nacional de Juventude (SNJ), afirma no lançamento do mapa da violência que: “A violência tem
cor, faixa etária e moradia”, referindo-se à violência contra a população negra, jovem e periférica
(ONU, 2017).
Estes dados nos ajudam a compreender outra forma perversa de manifestação de privilégio do
homem branco, que se refere ao fato de que ele é menos visado pelos policiais e tem se mantido
vivo quando comparado aos altos índices de mortalidade dos jovens negros.
Se o branco não tem culpa de estar em uma posição de privilégio, caberia aos homens brancos
minimamente a responsabilidade moral de desconstruir as verdades estabelecidas sobre a suposta
democracia racial brasileira. Ao enfrentar o nosso racismo estrutural nos deparamos com o fato
de que ele é negado cotidianamente nas falas e praticado rotineiramente. Schwarcz (2017: 115),
ao analisar os dados da pesquisa realizada em 1988, em São Paulo, indicando que 97% das
pessoas disseram não ter preconceito e 98% afirmaram conhecer pessoas que eram racistas, sendo
estes parentes ou amigos muito próximos dos depoentes, chegou à seguinte conclusão: “todo
brasileiro se sente como uma ilha de democracia racial, cercada de racismo por todos os lados”.
Ainda segundo a autora:

Tudo indica que estamos diante de um tipo particular de racismo; um


racismo silencioso e ambivalente que se esconde por trás de uma suposta
garantia de universalidade e da igualdade das leis, e que lança para o terreno
do privado, para o vizinho, para o outro o jogo da discriminação. Em uma
sociedade marcada historicamente pela desigualdade, pela larga vigência da
escravidão, pelo paternalismo das relações e pelo clientelismo, o racismo se
afirma prioritariamente na intimidade ou na delação alheia (SCHWARCZ,
2017: 117).

É neste sentido que a psicanálise pode subsidiar as reflexões impressas neste artigo, pois
se trata do exercício de uma política da memória (SILVA, 2018), que resgate nosso passado
escravocrata, descontrua os ideais de democracia racial brasileira e escancare a associação entre
desigualdades sociais e raciais. Quebrar com o silenciamento e explicitar as ambivalências e
fragmentações dos discursos parece ser uma tarefa cruel e não menos importante no sentido de
barrar a violência que se alastra em direção à população negra, jovem, periférica e pobre.
Portanto, aos homens e mulheres de pele branca cabe um exercício de empatia e responsabilização
no sentido de produzir uma inflexão na direção de sua perspectiva de classe e cor de pele, de modo
a se posicionar no lugar do outro que sofre preconceito por conta de seu fenótipo, enfatizando
o que há de comum entre eles. É o exercício de nossa capacidade de identificação (BRAGA &
ROSA, 2018) com o semelhante que nos possibilita criar e manter relações horizontais no espaço
comum, de modo a inventar diferentes significados para as nossas ações. Não de modo a encobrir
os laços ambivalentes que caracterizam em demasia a nossa humanidade, mas sim de maneira a
convivermos com o estranho e o familiar de nós mesmos, que se manifestam no encontro com
as diferenças. Trata-se de colocar em análise as implicações políticas de quem fala, como fala, e
qual é sua posição quando fala a favor das pessoas submetidas às consequências da segregação
social, pois colocar-se na posição de um negro, ainda que não o sendo, é importante para a luta
por modos de organizar a sociedade que não segregue e nem mate pessoas por causa da cor de sua
pele e classe social. Trata-se, ainda assim, de uma posição política no discurso que revele o fato
de que não somos todos iguais, ao contrário disso, estamos apartados na cidade e na vida. Esta
constatação pode ser um passo no caminho para diminuir e, quem sabe, eliminar as situações que
produzem humilhação social e sofrimento sociopolítico.
Schwarcz (2017:113) afirma que a ideia de raça é uma construção social “e que nada na
biologia ou na genética das populações ampara a concepção de que a humanidade tenha traços
que a distinga, dividindo-a em espécies e subespécies”. Cabe assinalar a alusão de que todos
nós fazemos parte da mesma raça, que é a humana, e que quanto mais aumentar o número de
pessoas interessadas em contribuir com a visibilidade das situações opressivas e direcionadas a
uma população específica, melhor para a causa e construção de uma sociedade justa.
Para a antropóloga, o que caracteriza o racismo à brasileira é que “o tema da cor acondiciona
elementos socioeconômicos, sociais e estéticos, e também elementos interpretativos, acusatórios
e estéticos diacríticos” (SCHWARCZ, 2017: 114). Ela parte do princípio de que, alinhada às
ideias de Benedict Anderson, uma nação é construída e inventada por pessoas inseridas em grupos
sociais. Assim, se somos capazes de inventar uma cultura, estamos também aptos para questionar
“as condições pragmáticas por meio das quais as categorias de um sistema classificatório são
definidas e aplicadas”.
Carvalho (2005:101) também está alinhado com esta posição política no modo de pensar o racismo
e ressalta a capacidade inventiva dos realizadores brasileiros nas produções cinematográficas:

A luta anti-racista é um processo de vitórias e derrotas e, portanto, um


acúmulo de experiências sobre as quais outros negros, brancos, mestiços,
homens e mulheres identificados com os valores da democracia e da
civilidade construíram suas demandas. Os realizadores negros que hoje
pautam uma nova imagem do negro e por extensão do Brasil, certamente
trazem o acúmulo das reflexões precedentes e apontam para novas formas
de entendermos e transformarmos nossa realidade, o país e cada um de nós
mesmos.

Considerações Finais

Nos dois filmes aqui em foco foi possível demonstrar que os diretores fizeram uma
opção política ao ofertarem visibilidade para a violência contra os jovens negros e pobres e
desconstruírem estereótipos vinculados à violência simbólica – a forma como a imagem do negro
foi representada historicamente em papéis subalternizados e em posição de submissão frente aos
brancos nas produções audiovisuais brasileiras. No roteiro dos dois filmes há estranhamentos dos
protagonistas frente às situações de opressão e humilhação que eles ativamente tentam burlar,
driblar e superar. Há a exibição das diversas desvantagens dos sujeitos negros em relação às
pessoas brancas e, assim, produz-se visibilidade à desigualdade racial brasileira. Portanto, nas
duas produções cinematográficas os diretores se posicionam com responsabilidade social ao
explicitarem as incongruências entre as condições de desigualdade social e os ideais que sustentam
uma suposta democracia racial no Brasil.
Portanto, o cinema pode resistir à violência direcionada aos jovens negros, periféricos e
pobres, ao oferecer o direito dos negros: de serem protagonistas nas produções audiovisuais fora
da linhagem das personagens estereotipadas; de construírem uma narrativa sobre as violências
sofridas (simbólicas, sistêmicas, estruturais; subjetivas, físicas); de transmitirem os valores
da cultura afrodescendente e de convidarem os espectadores das películas a quebrarem com
o silenciamento frente à segregação social e racial. A despeito disso, o cinema pode suscitar
indignação e estranhamento nos espectadores frente ao fato de que algumas vidas são mais
matáveis que outras.
Há que se assinalar também que as produções cinematográficas têm a potência de manifestar
e simbolizar o mal-estar contemporâneo. Em Os Doze Trabalhos há uma alegoria para a cadeia de
opressões e humilhações a que os sujeitos estão submetidos no capitalismo tardio, principalmente
no episódio da fuga do gato. Há a referência às tarefas sem sentido que devem ser cumpridas, como
também, há a exibição dos privilégios do branco frente às condições habitacionais, econômicas
e de trabalho reservados ao homem negro. Em Bróder, há alusão à linha de demarcação de cor
no Brasil, que assinala a ideia de responsabilidade moral daqueles que estão sendo beneficiados
direta ou indiretamente pelo racismo. Portanto, os dois filmes tocam na questão polêmica dos
privilégios de cor, não de modo a reforçar um sentimento de culpa paralisante, mas de maneira
a interpelar cada um de nós sobre a nossa responsabilidade moral e social frente ao racismo
estrutural brasileiro.
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Linha de Passe. Waltern Salles. Daniela Thomas, 2008 Brazil: Universal Pictures.
Os Doze Trabalhos. Elias Ricardo, 2010.
Rio, Zona Norte. Nelson Pereira dos Santos, 1957 Nelson Pereira dos Santos Produções
Cinematograficas.

Jacquelina Maria Imbrizi - Possui graduação em psicologia pela Universidade


Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1988), mestrado e doutorado ( 1997,
2001, ambos na PUC-SP) nas áreas de educação, história, política e sociedade; e
pós-doutorado pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia: Psicologia
social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Núcleo de Estudos
e Pesquisa em Psicanálise e Política (2013 - 2015). Professora associada da
Universidade Federal de São Paulo - campus Baixada , onde desenvolve atividades
na graduação e nos programas de pós-graduação stricto sensu ensino em ciências da
saúde (modalidade profissional) e interdisciplinar em ciências da saúde (mestrado e
doutorado acadêmicos). Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política
(USP) e do Laboratório de Psicanálise da Unifesp - campus Baixada Santista. Tem
experiência na área de psicologia, com ênfase em psicanálise e psicologia social,
atuando principalmente nos seguintes temas: arte, cultura e sociedade; mal-estar e
violência; narrativa de história de vida e grupo como dispositivo.
Eduardo de Carvalho Martins - Possui graduação em psicologia pela
Universidade Federal de São Carlos (2002), mestrado (2006) em ética e doutorado
(2012) em epistemologia pela Universidade Federal de São Carlos. É especialista
em gestão pública pela Universidade Federal do Tocantins (2012), com enfoque em
economia solidária e formação de grupos auto gestionários. Possui especialização
em psicologia clínica pela Faculdade de Jaguariúna (2014), com atuação em clínica
de orientação psicanalítica. Atualmente é professor-pesquisador da Universidade
Federal de São Carlos no curso de pós-graduação em coordenação pedagógica.
Atua também como psicólogo do curso de psicologia da Universidade Federal de
São Paulo - campus Baixada Santista. É membro do Laboratório de Psicanálise da
Universidade Federal de São Paulo – campus Baixada Santista, estando vinculado
ao correspondente Grupo de Pesquisa CNPQ (Laboratório de Psicanálise UNIFESP/
BS) com as seguintes linhas de pesquisa: Narrativas, arte e regimes de visibilidade;
psicanálise, cinema e produção de imagens. Participa da coordenação dos programas
e projetos de extensão universitária na UNIFESP/BS: Cinema, Subjetividade e
Sociedade: a sétima arte na produção de saberes (Coordenador); Escuta Clínico-
Política e a criação de dispositivos de cuidado (coordenador II); Teko-Porã: Direitos
Humanos e Práticas de Paz (coordenador II). Atua como membro do Conselho
Consultivo do Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência de
São Vicente/SP. Trabalha com os seguintes temas: Educação popular, escuta clínico-
política, cinema, psicologia social, psicanálise, ética, direitos humanos, formação de
grupos auto gestionários.
11. Arte em imanência ou da insensibilidade à sensibilidade: Postais para
Charles Lynch

Ciro Lubliner

1. Arte em imanência: uma tipologia da recomposição

Esse texto se insere dentro de um trabalho mais amplo de pesquisa que tensiona descrever
o processo pelo qual se desenvolve uma parte da chamada “arte da recomposição”, ou seja,
aquela que faz uso de materiais e signos prévios (não necessária e originalmente dotados de viés
artístico) para a criação e o rearranjo renovador de sentidos e sensações no já antes dado.
Paira sobre os tempos atuais – pode-se dizer desde a entrada no século XXI – o fantasma
de uma espécie de crise generalizada na possibilidade de invenção do novo, proveniente de
impressões que dizem que tudo já fora criado, havendo certo esgotamento da criatividade e da
originalidade, sendo que o que fazemos e faremos a partir de agora será apenas recriar, reutilizar
e reorganizar materiais preexistentes, como se fossemos reles emuladores de vidas e experiências
passadas.
Isso se manifesta, sobretudo e já há algumas décadas, na produção em comunicação, com
destaque na publicidade e no jornalismo. A partir da invenção, do desenvolvimento e da ocupação
da internet, o fluxo de informação é tão grande e cada vez mais instantâneo que seria impossível
a cada instante nos depararmos com efetivas novidades. Vemos então o reúso se apresentando
como ferramenta essencial e ponto de inflexão dessa crise. Atualmente, o que lemos e assistimos
é quase sempre uma recombinação, uma replicação e uma colagem de diversas fontes de texto,
imagem e som (seja implícita, escamoteada apenas como “referência” ou explicitamente, por
meio da citação e do crédito direto).
Pretendemos assim, aqui, investigar como a arte lida com essa crise, tomando uma suposta
aporia da invenção e da originalidade através do conceito-motor de “recomposição”, local onde
o fato de que “tudo já fora criado” não é mais um impedimento, mas um impulso.
Dessa perspectiva, surge um primeiro paradoxo promovido pela recomposição: o fato de ela
fazer emergir a diferença através da repetição, alçando a novos voos algo já apresentado. A questão
é que essa repetição nunca será exatamente a mesma, uma reprodutora do Mesmo, uma retomada
dos significados aderidos e fixos aos signos apropriados, mas uma repetição diferenciadora com
pequenas variações que fazem com que novos sentidos e sensações ganhem corpo através da
criação artística.
Acreditamos que, por conta da recomposição ser um processo de criação ainda relativamente
recente, há certa lacuna crítica perante as realizações artísticas provenientes do rearranjo. Apesar
de já não ser difícil encontrar fontes, artigos e ensaios sobre a recomposição (geralmente camuflada
por inúmeras nomeações técnicas: remix, colagem, sampleagem etc.), as análises que concernem
suas produções se inserem demasiado em diagnósticos e marcações históricas (posto que não
havia até pouco tempo informações que remontassem a possíveis movimentos originários da
recomposição), e em constatações e observações pragmático-analíticas (o modo de fazer e o
funcionamento de uma técnica que se mantém no final das contas como que apartada do material
que reconfigura, privilegiando o esquema de causa e efeito interior à obra [a efetuação da técnica
e os resultados obtidos], que se encontra finalmente apenas na esfera da representação).
Portanto, se fazem necessárias ferramentas de avaliação crítica que não se atenham somente
a inventários e identificações, mas que proponham uma crítica também criadora. É nessa direção
que se torna possível dizer que o apontamento de uma tipologia pode auxiliar na ampliação de
um panorama que nos fará pensar criticamente e sem absolutizações a produção que faz uso de
signos já dados.
Em uma primeira visada, constituiríamos uma tipologia da recomposição no século XXI por
meio de uma separação tripartite, sendo seus tipos formados pela recomposição formalista, pela
recomposição contextual e pela recomposição imanente.
Por conta aqui de nossa limitação, por ora nos ateremos a dizer somente da recomposição que
acreditamos a mais radical – a recomposição imanente –, renovadora simultânea tanto de sentidos
quanto de sensações, geradora de uma estética que pode ser denominada como uma “política da
sensação” ou da “sensação como política”, pois será crucial para ela a realização de uma obra que
resida sempre em um contorno ético-estético.
O uso feito da palavra “imanente” deriva do conceito de “imanência”, evocado pelo pensamento
de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Esses pensadores realizaram uma aproximação entre arte e
filosofia na medida em que para eles ambas se apresentam como atividades criadoras, sem com
isso recair em um embaçamento de suas fronteiras:

A arte e a filosofia recortam o caos, e o enfrentam, mas não é o mesmo


plano de corte, não é a mesma maneira de povoá-lo; aqui constelação de
universo ou afectos e perceptos, lá complexos de imanência ou conceitos.
A arte não pensa menos que a filosofia, mas pensa por afectos e perceptos.
Isto não impede que as duas entidades passem frequentemente uma pela
outra, num devir que as leva a ambas, numa intensidade que as co-determina.
(DELEUZE e GUATTARI, 1992: 88)

O tipo da recomposição imanente engendra uma criação artística que nos força a pensar, sem
que a construção estética seja relegada aos planos de inferioridade. É por isso que há nela tanto
a renovação de sensações, quanto a de sentidos. Isto quer dizer que a recomposição imanente
fabrica o que é o mais próprio da arte, a constituição e o trabalho de ordem marcadamente estético
(jogar com traços, cores, gestos, imagens, sons etc.), mas que também não se furta a apontar
novos sentidos para os signos apropriados, liberando-os de seus significados habituais, quase
automáticos, estancados em sua condição de utilidade.
Entrando de modo mais afetivo na criação de recomposições imanentes, é possível perceber que
sua realização se processará através de três dimensões; locais onde a arte e o pensamento entram
em conjunção, imprimindo saltos e giros radicais – anteriormente impensados – nos materiais de
que faz uso. Essas dimensões são compostas pela apropriação, pela deformação, e pela conexão.
Visualizando esses planos dimensionais procuramos como que traçar um caminho, uma linha
de produção ético-estética. Realizamos esses cortes transversais na recomposição imanente
simplesmente para buscar pensar cada camada ou dimensão do trajeto de (re)composição como
espaço dotado de elementos singulares.
Trataremos então de tentar enxergar pontos sensíveis e renovadores de sentido com o
qual se relacionam a obra Postais para Charles Lynch do Coletivo Garapa a partir da noção
de recomposição imanente. Esse trabalho tem como tema catalisador a onda de linchamentos
que ocupou o Brasil durante parte do ano de 2014, disparados por alguns eventos e notícias
específicas veiculadas em jornais impressos, televisivos e em páginas da internet, tendo reflexos
diretos na sociedade. Retomando uma prática realizada no início do século XX nos EUA, onde
pessoas de diferentes regiões e estados trocavam, via correio, cartões-postais que estampavam o
registro dos atos de linchamentos naquele país, usuários passaram a compartilhar, por meio de
vídeos amadores, uma série de linchamentos ocorridos nas ruas do Brasil do século XXI.
No trabalho produzido pelo Coletivo, foram colhidos e catalogados esses vídeos publicados
no YouTube por usuários (geralmente de forma anônima) que continham registros de violência
extrema praticada por grupos contra indivíduos isolados que eram por aqueles julgados como
culpados por supostos crimes ou roubos.
Esse material de coleta audiovisual foi todo reunido em um disco rígido do tipo LTO (do
inglês Linear Tape-Open), utilizado geralmente como um banco de dados que computadores
pessoais e notebooks comuns não abrem, não conseguindo acesso aos arquivos. Dos vídeos,
foram retirados frames específicos que tiveram seus códigos alterados pela injeção de frases de
comentários de ódio postados por usuários-espectadores (essas imagens são consideradas mesmo
como fotografias82), gerando ruídos e defeitos nas imagens. Além disso, foram escritas páginas de
um roteiro que narram alguns dos eventos ocorridos nos vídeos coletados83.
Procuraremos, doravante, observar como essa obra responde – de que modo e por quais
82 Esse trabalho foi um dos contemplados, no ano de 2014, com o prêmio da Revista ZUM de fotografia do Instituto
Moreira Salles.
83 O livro pode ser acessado no seguinte endereço, o que facilitará o acompanhamento do texto:
https://issuu.com/fehlauer/docs/postais_para_charles_lynch.
aspectos – a pergunta que o próprio Coletivo lança: “como tornar sensível àquilo que parece nos
encaminhar à insensibilidade?” (GARAPA, 2016), balizada pelas dimensões da recomposição
imanente.

2. Vórtice apropriador

O problema da cópia na arte é hoje um tema já muito discutido, principalmente por conta
do desenvolvimento, no século XX, cada vez mais restritivo e moral, dos chamados “direitos
autorais”. A obra de arte como propriedade surge para restringir e garantir o usufruto comercial
para determinadas pessoas e/ou grupos empresariais. A questão do plágio sempre foi um tabu e,
de tempos em tempos, são descobertos, por exemplo, casos em que “impostores” são convocados
para realizar, sob encomenda, cópias fiéis de pintores renomados. Na entrada do século XXI, no
entanto, alguns movimentos foram tomados para renovar e ampliar as possibilidades dentro da
relação da arte com o reuso e o consumo, sem que fosse ferida alguma legislação e valorizando
o compartilhamento84.
O exercício de copiar é recorrente e bastante realizado na arte contemporânea (talvez em
toda a história da arte), sobretudo nos casos onde o objetivo é o de transmitir e dotar alguém
de uma habilidade técnica específica. A criação baseada na cópia está ligada à reprodução de
um modelo ideal, de uma mimese inexorável, ou seja, da reprodução do Mesmo. Na arte, uma
suposta tradição da noção de cópia esteve sempre inclusa no campo da representação realista, da
demonstração por parte do artista de uma habilidade técnica. No caso da recomposição imanente,
vemos que não se trata do mero ato de copiar, mas do gesto de apropriação.
A apropriação surge como termo próprio à arte já nas últimas décadas do século XX, sendo
inclusive utilizado na definição de uma “arte da apropriação”, notadamente nos EUA a partir da
década de 1980, representada pelo trabalho de artistas como Cindy Sherman, Richard Prince e
outros (FOSTER, 2014: 140). Nela, a habilidade técnica não deixa de existir, a maioria desses
artistas se pautava em colagens, mas o foco de atenção não se concentra mais em um virtuosismo,
apoiando-se muito mais nos efeitos que obra pode alcançar, nos ecos de reflexão e na relação com
outros aspectos da vida que propõe. Na arte da recomposição, a noção de apropriação tem papel
fundamental, ganhando contornos bastante cruciais. É a partir dela que se tornam possíveis e da
qual partem reconfigurações de várias ordens.
Notamos, dessa maneira, que a cópia tem uma orientação que diz respeito ao exercício
pedagógico, ligado à utilidade e a obtenção de uma habilidade, enquanto que a apropriação
nada tem a provar, a legitimar ou a dominar, estando aberta a um livre uso. Apropriar-se na arte
concerne ao discreto anúncio de um gesto por vir, de uma sequência não linear. Quem se apropria,
se apropria com um propósito distante da utilidade, pois se inscreve na execução de uma obra
84 Nessa direção surgiram, por exemplo, as licenças creative commons e a cultura open source.
onde não há teleologia, que não objetiva nada exatamente, a não ser a sua própria produção.
A ideia de apropriação na arte é o movimento que rompe com a transposição direta, com a
tradução literal, sempre em vista. Apropriar remete a uma ação necessariamente transgressora e
criativa. É por isso que acreditamos que, na recomposição imanente, ao se fazer uso de signos
já dados, o que está em jogo não é a cópia ou o ato de copiar, mas a apropriação. A apropriação
se diferencia ainda da cópia porque não tem como característica a manutenção hierárquica do
modelo, pelo contrário, sua verve é sempre iconoclasta, já que ela não visa preservar e enaltecer
sua origem, mas romper com ela, desatar laços, distanciar-se. A recomposição imanente não lida
com cópias, não almeja se reportar ao modelo, seu ato de coleta está relacionado com a ruptura
dessa referência originária. O “tomar para si” da apropriação é força primal de recomposição:
“fazer uso de”, sem que nada seja transformado em utilitário.
O conceito de profanação do filósofo Giorgio Agamben parece se relacionar com a noção de
apropriação como constituinte de uma política da sensação na recomposição. Agamben define o
profanar como um ato que restitui o livre uso de algo que era anteriormente considerado sagrado,
que pertenceria, portanto, apenas ao reino dos deuses. Tornar profano seria então tornar possível
a utilização de algo que antes era considerado integralmente separado da vida. Nesse sentido,
o que é sagrado se define como “o princípio através do qual se criam obstáculos para a livre
circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição e recomposição da ficção”
(AGAMBEN, 2007: 50). Na arte, o sagrado é justamente o que impede a circulação, veta e
restringe o uso. Assim como no ato de profanar, a apropriação na arte da recomposição está
como que fissurando, abrindo fendas no universo da propriedade e da sacralização da autoria e
da originalidade, buscando constantemente desviar de suas ferramentas de captação, sucção e
absorção.
Aproximando e relacionando obras realizadas muitas vezes em tempos e contextos
completamente diferentes, a arte da recomposição se aproxima novamente da profanação, pois
“profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a
separação, ou melhor, faz dela um uso particular” (ibid.: 59). Um outro dado da apropriação na
recomposição que a alia ao da atividade da profanação diz respeito ao modo como a arte nela se
apresenta, para além do uso útil (domínio da cópia): “o uso a que o sagrado é devolvido é um uso
especial, que não coincide com o consumo utilitarista” (ibid.: 60).
Na esteira da profanação se encontra Postais para Charles Lynch, do Coletivo Garapa: ao se
apropriar de vídeos postados por usuários que contém imagens fortes de linchamentos ocorridos no
Brasil contemporâneo, o Coletivo não busca replicar e disseminar a barbárie exposta nas imagens
(como é o caso dos próprios usuários que, não sendo possuidores e registradores daquelas imagens
que publicam, se tornam somente reles reprodutores, divulgadores e/ou incentivadores de tais
práticas – o fetiche, o mórbido prazer pela atrocidade, é apenas uma ponta desse iceberg), nem
simplesmente denunciar a violência e o ódio que atravessam a sociedade (isto parece ser tarefa
do jornalismo, que na verdade acabou por, ao contrário, unir-se, em parte, a vetores fascistas85),
mas colocá-la em xeque, problematizá-la, escancarando os absurdos e as atrocidades do humano,
exorcizando “a imagem por meio da repetição” (GARAPA, 2016).
Acionando uma engrenagem incessante, um vórtice de coleta e catalogação dessas imagens
e áudios, para a posterior reunião desse material no disco rígido LTO, o Coletivo catalisa um
processo de apropriação de mão dupla: se por um lado há a deformação e reinvenção dessas
próprias imagens, há também o dado do armazenamento, da criação de um inventário digital,
como se aqueles vídeos agora ficassem trancafiados em códigos, mas não completamente presos,
funcionando como uma caixa de pandora que, quando aberta, libera e joga diretamente em nossas
faces a violência brutal de nossos – pretensos – semelhantes, como talvez no registro de uma
época que nunca chegou exatamente a passar (os postais trocados no início do século XX são
agora os vídeos compartilhados no XXI).

3. Deformação criadora

Outro movimento que é processado na recomposição imanente trata da ideia de deformação.


Nas últimas décadas, vemos surgir com bastante intensidade a valorização do defeito, da falha e
da imperfeição na arte. Apesar de ter seus ecos passados nas vanguardas artísticas do início do
século XX (um exemplo direto, no caso da música, é o do movimento futurista), essa perspectiva
tomou, com o desenvolvimento das artes e das tecnologias digitais, proporções ainda maiores,
quase como se a relação entre arte e tecnologia passasse necessariamente pela incorporação do
erro.
Em estudos críticos e teóricos se passou mesmo a ser defendida a perspectiva de uma estética
do erro, composta por uma série de definições, tanto técnicas quanto nocionais. Essas definições
foram concebidas não só por teóricos provenientes da academia, mas por artistas que partiam de
seu próprio repertório de trabalho e de referências (como é o caso, por exemplo, de Kim Cascone
e Ant Scott). Uma dessas noções ligadas ao erro no digital é o de glitch art.
A arte glitch se tornou bastante difundida e praticada desde a entrada no século XXI, sendo
definida como “um resultado inesperado de um mau funcionamento, um erro, um defeito, uma
falha” (GAZANA, 2013: 83). Para além dos resultados empíricos que as falham podem acarretar
– há toda uma classificação analítica no que se refere a seus efeitos (a alteração de cores, a perda
de informação em determinados trechos de imagens e sons etc.) –, é inegável que algumas das
questões que permeiam a produção artística no uso do glitch podem ultrapassar significativamente
o que está visível e/ou audível nas obras. Por esse ponto de vista, não se trata nunca somente de
representar o erro, mas de revelar o que pode ele nas imagens e nos sons, sua força de alcance de
85 Vide a exposição, no próprio livro do Coletivo, de uma figura como a jornalista Rachel Shehe-
razade.
sentido e sensação.
Em Postais para Charles Lynch, a estética do erro e o glitch se fazem presentes no processo
adotado para a captura das fotografias impressas no livro: palavras e frases de comentários de
ódio que eram escritas por usuários junto aos vídeos publicados na rede, foram incluídas nos
códigos dos frames retirados desses mesmos vídeos, o que resultou em falhas quando de sua
reprodução gráfica. A manipulação do código digital da imagem, que nesse caso é operada pelo
código linguístico, expõe acidentes altamente deturpadores.
Esse processo de inclusão de informações que não são legíveis pela máquina, acaba por
perfurar o útil, pois embaça a plena visualidade, diferenciando radicalmente as imagens de suas
fontes originais. Muitas vezes, ao folhearmos digitalmente o livro do Coletivo, esquecemos que
estamos diante de imagens que estão como que desordenadas, desorientadas visualmente (não
há mesmo naquelas fotografias uma definição realmente controlada, já que o resultado obtido
pelos artistas foi regido pelo acaso, pelo acidental), cometemos então como que atos falhos, a
esperar seus plenos carregamentos, com a impressão de que as imagens não estão com a nitidez
que possuem realmente, e como nada acontece, acabamos por atentar para o fato de que aquelas
imagens são tal como estão. A interferência na inteligibilidade é, portanto, caráter inegável nessa
obra.
Ao pensar a obra do pintor Francis Bacon, Gilles Deleuze afirmou que suas pinturas
(especificamente quando dizendo da [re]leitura que o pintor fez do Papa Inocêncio X, de Diego
Velázquez) não transformam figuras, mas as deformam. Segundo o filósofo, Bacon não pintou o
sentimento do horror, mas as forças invisíveis que impelem o grito. Assim, não se tratava de uma
transformação figural que pretendia expressar um sentimento, mas da deflagração das forças que
subjazem o grito, que acabam por deformar a figura, por sacudir as cabeças e os corpos. A técnica
se apresenta assim como uma ferramenta de captura de forças, e não como mera reprodutora da
Forma.
Por conta disso, pensamos que, na recomposição que nos provoca criticamente, não se
trata nunca da transformação de obras e coisas prévias para a (re)produção de algo, mas da
deformação de materiais anteriores para a renovação de sentidos e sensações. Escreve Deleuze
(2007: 64): “Trata-se de duas categorias muito diferentes. A transformação da forma pode ser
abstrata ou dinâmica. Mas a deformação é sempre no corpo”. Não à toa, os frames colhidos
pelo Coletivo Garapa, em sua maioria, mostram corpos, vivos ou mortos, deformados pelo erro
digital: defeitos e acasos que emanam das forças invisíveis da violência. É importante marcar
como nessa conquista do erro há certamente algum rigor implicado, o exercício árduo de coleta
e catalogação já é um indício disso, mas que não se volta à perfeição do figural, para a virtuose
empírica, mas para outras potencialidades da imagem. É toda uma nova maneira de pensar e fazer
arte que está em voga.
Temos a forte impressão de que, em seu trabalho, o Coletivo não buscou simplesmente
transformar as imagens provenientes da barbárie; expondo qualquer sentimento humanista que
fosse como poderia ser no caso da ideia de “indignação” (lembremos que os próprios grupos
enraivecidos que praticam o linchamento justificam sua atuação fazendo uso dessa palavra),
mas deformações que problematizam questões profundas86 – na arte, na história, na sociologia –
escapando de interpretações maniqueístas e julgadoras (mais uma vez, o grupo que lincha, cria
um júri independente, que julga fora da lei oficial vigente). Tornar disforme, perder a nitidez,
talvez seja uma característica das forças que movem aqueles que decidem linchar.
É como se, ao incluir os comentários de ódio de usuários nos códigos dos frames selecionados
em Postais para Charles Lynch, corrompendo os dados de sua representação gráfica, aquelas
imagens expusessem, por meio de uma revolta muda, um jogo de espelhos que reflete a própria
falência (e a falha na arte glitch é evidentemente bem diferente dessa) e o mau funcionamento da
civilização construída através dos tempos, em uma espécie mesmo de sintomatologia da sociedade
(o artista se aproxima do que disse Nietzsche quanto aos filósofos, que para ele, deveriam ser
como “médicos da civilização”):

Aquilo que, de outra forma, seria recebido passivamente – um vídeo,


fotografia ou gravação musical – agora tosse uma inesperada bolha de
distorção digital. Seja ela intencional ou acidental, a falha (ou glitch) tem a
capacidade de desnudar as estruturas (eletrônicas, econômicas, políticas) que
organizam e se impõem ao mundo. E é natural que, na medida em que somos
apresentados a uma infinita e amorfa coleção de pacotes de dados, a poética,
a estética e a ética voltem-se também para a discussão e a problematização
dessas estruturas. Na falha reside uma potência poética (e política) de atuação.
(GARAPA, 2016)

4. Tecido conectivo

Constantemente, em textos críticos sobre as expressões da arte contemporânea é mencionado o


caráter híbrido de suas atuações, da capacidade de mistura entre diversas artes para a composição
de obras que ficam sempre em um espaço fronteiriço e de definição embaçada. Para a recomposição
imanente, as marcações que indicam a arte como dotada de hibridez podem ser pensadas como
algo quase trivial, ou mesmo óbvio, pois sua criação só é possível pela mescla, pela mistura de
materiais provenientes de diferentes fontes. A invenção via recomposição está inexoravelmente
relacionada com a abertura de territórios sempre mestiços, desde sua gênese, com a construção de
moradas que são como zonas de indiscernibilidade. Nas profundezas de seus solos encontramos
86 Indicamos aqui a leitura de dois textos constantes na bibliografia: o do próprio Coletivo Garapa,
e o do crítico de arte Moacir dos Anjos.
substâncias variadas que podem chegar à superfície, dependendo da mediação dos processos que
são trazidos à tona pelos artistas.
Em Postais para Charles Lynch, essa concentração que pode ser identificada como um
compósito de hibridez, está no livro produzido, que é justamente a peça final do trabalho. Esse
livro reúne, com posição de destaque, as fotografias/imagens (os frames deformados) retiradas
dos vídeos apropriados; um breve roteiro, resultado da descrição de algumas das cenas assistidas
nos vídeos; o disco rígido LTO, que contém todo o material audiovisual coletado; e um índice,
que classifica alfabeticamente os vídeos através de seus títulos. Essa reunião é indicada como
formadora de um livro de artista.
O livro de artista se apresenta como manifestação bastante profícua por ser um objeto de arte
portador de singularidades extraordinárias, sempre escapes a definições fechadas, e que carrega
de modo elementar o aspecto da hibridez, de mistura necessária, em sua constituição. Segundo
Riva Castleman (apud SILVEIRA, 2001: 32):

O livro pode apresentar-se como livro-objeto, como livro de artista ou livro


de artista artesanal; pode fazer parte dos livros de bibliófilo ou manifestar-se
como documento de performances, de trabalhos conceituais ou experiências
de land art; pode assumir a forma de livro ilustrado por artistas ou de livro-
objeto, livro-poema ou poema-livro, e outras denominações, as quais podem
diferir a partir da concepção do referido objeto.

Ademais, podemos ver em um teaser87 publicado pelo Coletivo Garapa como, seu livro, apesar
de reunir e se apoiar primordial e inicialmente em expressões, produções e compartilhamento
digitais, foi confeccionado em parte através de uma linha de montagem também manual, artesanal
(a costura na borda das páginas explicita esse aspecto).

A conexão de diversos materiais e códigos é o que preenche este corpo múltiplo que compõe
o livro de artista do projeto Postais para Charles Lynch. Ao contrário dos grupos agressores
registrados nos vídeos publicados e coletados, aqueles que se juntam para pretensamente punir
algum indivíduo isolado e acossado, tomando a feição amorfa e homogênea do ódio, a conexão e
a multiplicidade na arte realiza um movimento de consonância heterogênea, que potencializa as
possibilidades artísticas, como em um prisma infinito de (re)invenção.
O fato das fotografias componentes do livro serem imagens/frames retirados de vídeos é
algo a ser destacado, já que esse movimento acarreta em uma espécie de decomposição, ou em
um retorno não restritivo da imagem em movimento à imagem estática – a percepção de que os
vídeos são formados por inúmeras fotografias que passam despercebidas diante de nossos olhos.

87 https://vimeo.com/140832075.
Ao retirar deles células específicas, torna-se possível enxergar o que antes talvez ficasse apenas
subentendido ou subconsciente naquelas imagens.
O entrelaçar de diversos tecidos, não se dá apenas pelo caráter artístico, mas por vieses
midiáticos (a mídia “oficial” que chegou a veicular trechos de alguns desses vídeos em
telejornais) e anônimos, aqueles alimentados através da internet, ambos pautados, sem dúvida,
na espetacularização da violência.
Além das fotografias que expõem figuras humanas, uma das imagens do livro é justamente a
de frases e palavras retiradas dos comentários dos vídeos e inseridas nos códigos de frames. Essa
imagem, além de revelar diretamente a feitura, o processo de criação que deságua no glitch, a
inserção do defeito nas imagens, parece também se aproximar da ideia de poesia visual, ampliando
seu alcance até outra forma de expressão artística.
Na pluralização de atuação nos campos da arte, imprimido pelo livro de artista, também
constam as páginas que registram um suposto roteiro. Elas estampam a descrição de um dos
vídeos coletados, nos moldes de um roteiro cinematográfico ou televisivo. Mais uma vez, vemos
uma imagem que borra qualquer tentativa de definição estanque da obra produzida. Esse breve
roteiro pode ser inclusive identificado e pensado de múltiplas maneiras: seria ele a descrição
das cenas de um documentário? O script de um programa de TV sensacionalista? O roteiro de
um filme de ficção a ser rodado? O próprio muro ilusório que teoricamente separa realidade e
fabulação parece nesse caso ser completamente apagado.
Essa escritura de uma encenação por vir, ou mesmo já encenada, nos lembra o livro do
escritor Valêncio Xavier, Remembranças da menina de rua morta nua. Nele, o autor escreve o
livro pelo processamento de uma colagem que inclui textos curtos, a descrição de um programa
de TV, as notícias e fotografias de jornais impressos, e algumas definições retiradas de dicionários
e enciclopédias; composição geradora de um choque entre a realidade e a ficção que confere
um ganho e uma reconfiguração radical de sentido nos textos e imagens apropriadas, similar ao
ocorrido no trabalho do Coletivo Garapa.
O disco rígido LTO tem ainda uma posição bastante interessante nas conexões que preenchem
o livro. Sua potência reside no fato de ser uma mídia de difícil utilização, já que computadores
e notebooks comuns, de uso pessoal, não conseguem ter acesso aos arquivos ali reunidos. Esse
armazenamento que tem o alcance de seus arquivos restrito, funciona como uma espécie de baú
enterrado para gerações futuras, se ligando com um caráter arqueológico por vir. Pelo fato dos
vídeos de linchamentos publicados serem arquivos muito voláteis – por infringirem políticas
e condições de uso do YouTube acabavam por ser rapidamente retirados do ar –, o disco LTO
se torna uma fonte guardiã de todo esse material, como se ele garantisse, ao mesmo tempo, o
esquecimento e a lembrança daquelas imagens e sons. Temos a impressão de que é importante
que aquilo se mantenha como que afastado, contido em resistentes gabinetes, mas que também
seja de alguma forma possível o seu acesso, não ignorando os lados obscuros que povoam o
humano.
Finalmente, o índice que é anexado à obra, nos deixa a impressão de termos estado, sem saber,
e durante todo o tempo de folhear do livro, diante de um catálogo, que tem seu registro histórico
garantido, expondo uma era ainda por ser pensada.

5. Da insensibilidade à sensibilidade

Tentamos nesse texto, primeiramente, apontar para uma separação tipológica na arte da
recomposição, de modo a possibilitar a avaliação, e não o julgamento, de produções artísticas
que se pautam na reconfiguração de signos prévios, como em uma ética-estética que lança novos
olhares críticos para parte da arte contemporânea.
Se, atualmente, convivemos cada vez mais com a ideia de que “tudo é um remix”88, a noção de
recomposição imanente procura dar pistas, sugerir rotas para o encaminhamento destas questões:
se há algo de realmente fértil na recomposição, o que então exprimiria suas potências? Como,
sempre caso a caso, pensar seus desenvolvimentos sem que se parta já de antemão com a ideia
de que todo e qualquer recomposição vale a pena, de que toda obra carrega em si intensidades
renovadoras? Se hoje temos a impressão de que tudo já foi criado e inventado, de que vivemos
atravessados por fluxos incessantes e infinitos de informação (na maioria das vezes considerada
perdida ou bem pouco aproveitada) a recomposição imanente é um processo artístico que traça
uma linha, que dá consistência a um plano de composição nesse caos.
O relato dos componentes do Coletivo Garapa, ao dizer dos procedimentos que foram
adotados para a composição de Postais para Charles Lynch, indicam o exercício de pensar
comparativamente as recriações que estavam dispostas a operar. Nas palavras do ensaio escrito
pelo Coletivo a partir de sua obra:

na nossa percepção, há um paralelo entre os vídeos de linchamentos publicados


hoje no YouTube e os postais que circularam nos Estados Unidos de um
século atrás. Obviamente, há diferenças de contexto, mas a comparação,
mesmo que arbitrária, parece fazer sentido por três características comuns
às duas narrativas: compreendem uma forma popular e contemporânea de
transmissão de informação (correio X internet); utilizam uma linguagem
visual realista apoiada no testemunho documental (fotografia X vídeo de
celular); estão permeados por um caráter moralizante, como se, por meio da
transmissão, buscassem legitimar as ações representadas. (GARAPA, 2016)

88 Referência à série de documentários Everything is a Remix (2010-2012) de Kirby Ferguson.


Nesse trecho observamos três pontos indicados pelo Coletivo Garapa que fazem com que
a ideia de recomposição se duplique, bifurque, pois além de se apropriarem, deformarem e
conectarem os vídeos publicados, o grupo ainda identificou a reaparição, a recriação, de uma
prática ocorrida no passado realizada através dos vídeos (os cartões-postais trocados nos EUA no
início do século XX se tornaram os vídeos compartilhados no Brasil no início do século XXI).
Essa outra recomposição (que permeia a própria obra, e que pode ser inclusive considerado como
sua base), a partir do ato comparativo, e mesmo chamado de arbitrário (mas que poderia da
mesma forma ser nomeado como fortuito ou acidental), revela imagens que podem dar pistas
para o ganho de sentido e sensação imprimidas no próprio Postais para Charles Lynch.
Se essa recomposição de base, concentra-se em: a) os meios envolvidos no compartilhamento
das imagens: o correio e a internet, b) as técnicas de registro utilizadas em cada um dos momentos:
a fotografia e o vídeo de celular, e c) a reprodução do mesmo que atravessa o caráter moralizante;
poderíamos arriscar dizer que a recomposição imanente produzido pelo Coletivo gera outros
três encontros: a) os meios envolvidos: a internet e o livro de artista, b) as técnicas de registro
utilizadas: o vídeo de celular e o processo de edição que produz o glitch, e c) a reprodução da
diferença que atravessa a problematização do caráter moralizante, tornado ético (o que permeia
aquelas atitudes? O que faz com que uma multidão aja daquele jeito? Quem são os envolvidos
[agressor e agredido]? O que faz as pessoas disseminarem este tipo de material? E por quê?).
Sob a luz desses aspectos, podemos afirmar que o trabalho Postais para Charles Lynch incide
em três quebras, rupturas renovadoras – através da arte da recomposição – que esmigalham e
rompem irremediável e definitivamente com: o caráter de utilidade da transmissão de informação
(a ideia de para além do fetiche, aquelas imagens necessitam ser replicadas); o registro puramente
realista (a ideia de que as imagens devem ser as mais “reais” e brutais possíveis, precisam
“chocar”); e a propagação de um discurso moralizante (a ideia de que se deve fazer justiça com
as próprias mãos).
Parece ser então, dessa maneira, que o Coletivo Garapa torna sensível o que nos encaminharia
à insensibilidade.
Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.


DELEUZE, Gilles. Francis Bacon – Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992.
DOS ANJOS, Moacir. A fúria contra o estranho. Disponível em: http://revistazum.com.br/
colunistas/a-furia-contra-o-estranho/. Acesso em: 18 dez. 2016.
FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: Cosac Naify,
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GARAPA. Notas de um percurso pela barbárie. Disponível em: https://medium.com/mal-
secreto/notas-de-um-percurso-pela-barb%C3%A1rie-5dfb35cc3929#.2kddx2n1w. Acesso em: 6
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GAZANA, Cleber et al. “Glitch: estética contemporânea visual e sonora do erro”. In: Cultura
Visual, n. 19, julho/2013, Salvador: EDUFBA, p. 81-99.
SILVEIRA, Paulo. A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2001.
XAVIER, Valêncio. Remembranças da menina de rua morta nua e outros livros. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.

Ciro Lubliner - Doutorando na linha de pesquisa tecnologias da comunicação


e estéticas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em estudos
comparados de literaturas de língua portuguesa na Universidade de São Paulo (USP)
e graduado em imagem e som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É
cofundador e integrante do Coletivo Casa Vazia, atuante em ações culturais voltadas
à produção de grupos de estudo, cursos e eventos.
12. A representação da guerrilha no cinema argentino (1968-1971)

Estevão Garcia

No cinema argentino a guerrilha, a priori, será representada como fato concreto e não como
alegoria ou metáfora. Dois filmes chave são La hora de los hornos (Fernando Solanas e Octavio
Getino, 1966-1968) e Invasión (Hugo Santiago, 1969). O primeiro será visto como uma influência
fundamental para a emergência do cinema de intervenção política e o segundo como precursor,
junto com The Playes vs Ángeles caídos (Alberto Fischerman, 1968), do chamado Cine Subterrá-
neo. Os dois filmes já foram comparados (Aguilar, 2009), (Oubiña, 2016) e tornou-se frequente
a interpretação dos finais de La hora de los hornos e de Invasión como a chegada da violência
política na Argentina, seja sob a forma de uma exaltação à luta armada em um filme ou sob a
forma de um profético prenúncio no outro. Logo, a violência como única saída de salvação da
pátria reuniria dois filmes com propostas tão diferentes. Alianza para el progreso (Julio Ludueña,
1971), filme considerado pertencente ao Cine Subterráneo e não um pioneiro a este como Inva-
sión, se localizará em um outro lugar.

A violência política, perpetrada pelos guerrilheiros, não será mais vista como única saída até
porque não há nenhuma saída nítida a ser indicada. Ao contrário da defesa do Che como modelo
em La hora de los hornos ou o retrato heroico dos velhos guerreiros de Invasión, em Alianza para
el progreso a guerrilha, como observaremos, não será glorificada. Os guerrilheiros serão mostrados
de maneira ambígua e não estarão imunes a críticas, apesar de serem os únicos personagens que
não são ridicularizados. Os guerrilheiros tampouco serão alegóricos como os demais personagens.
Em Alianza para el progreso, as forças políticas serão alegoricamente encarnadas por distintas fi-
guras e a alegoria se assume como o principal recurso. Notamos que mesmo em um filme alegórico
como esse a guerrilha conserva o seu aspecto representacional “concreto”, o que conectaria o filme
de Ludueña a uma espécie de “tradição” do cinema argentino moderno. Nela, estariam juntos os
opostos representados pelo grupo Cine Liberación, de um lado, e pelo Cine Subterráneo, do outro.
No entanto, apesar dessa convergência na representação não metafórica da luta armada, o olhar so-
bre a guerrilha, sobre a política e sobretudo sobre a relação entre cinema e política, os separará. A
análise de Alianza para el progreso e sua comparação à La hora de los hornos, tendo como eixo a
representação da guerrilha, nos permitirá examinar os elementos que estão em jogo e em disputa
entre um certo cinema de vanguarda e o cinema militante.

Em Alianza para el progreso é possível detectar a presença de dois grupos de personagens: o


dos poderosos e o da resistência ao poder. No primeiro, está o Empresário que representa o capi-
talismo, o General que representa o exército, USA, a esbelta loira que representa o imperialismo
estadunidense, o Sindicalista que representa os líderes sindicalistas e, no segundo, três guerrilhei-
ros, dois homens e uma mulher, que fazem parte da resistência armada. Poderíamos ainda citar
dois personagens “isolados” e pendulares que, apesar de pertencerem a nenhum desses grupos,
circulam entre eles: o Artista “engajado” que se vende ao imperialismo e à burguesia e a mulher
com ímpetos de ascensão social que representa a classe média. É interessante salientar que tanto
o imperialismo89 como a classe média são encarnados por mulheres.

Entre os dois personagens pendulares se nota uma maior atenção conferida ao Artista. Ao
contrário da Classe Média, que vende o seu corpo ao Empresário e a USA, o Artista apresenta
uma ambiguidade em seu discurso. Ele também se vende ao empresariado e ao imperialismo, ao
aceitar ser contratado por estes, porém, as suas posturas artísticas estariam afinadas aos ideais
revolucionários. Ele se promove como um artista da revolução, como um criador que luta através
de sua arte. Defende a sua especificidade como artista e se enxerga como um ser especial.

O Artista representa todos os artistas que falsamente se vendem como engajados. Não é por
casualidade que transita por quase todas as artes: é ao mesmo tempo compositor e cantor de pro-
testo, romancista e artista plástico. Compõe uma canção criticando a burguesia e clamando por
mudanças sociais; escreve um romance cujo enredo centra-se em um burguês desiludido com a
sua classe social que se identifica com o povo; faz quadros em que retrata os miseráveis e por fim
elabora cartazes repletos de slogans políticos. É um vendido ao sistema e por isso, certamente, é
um dos personagens mais execráveis pelos olhos da enunciação narrativa. As suas palavras contra
o status quo seriam inofensivas uma vez que não proporcionam nenhum abalo. O sistema as per-
mite e as controla. Através do personagem do Artista, Alianza para el progreso afirma que a arte
militante também pode ser cooptada. Em seu manifesto Hacia un Tercer Cine, o Cine Liberación
havia defendido que o sistema absorvia e neutralizava a contracultura e a vanguarda.90
89 Lembramos que um pouco antes, em Der leone have sept cabeças / O leão de sete cabeças
(Glauber Rocha, Brasil, Itália, França, 1970), o imperialismo havia sido representado por Marlene
(Rada Rassimov), uma exuberante loira. Certamente Ludueña não teve acesso ao filme de Glauber,
o que comprova que ambos respondem a uma mesma sintonia em enxergar o imperialismo como
uma entidade sedutora, hipnotizadora, disfarçada de beleza e que é capaz de despertar múltiplos
desejos. Para incorporar essa entidade, na visão dos realizadores, nada melhor que uma linda
mulher loira. O cinema militante latino-americano também lançou mão do procedimento de associar
a beleza feminina e os instintos despertados por ela ao imperialismo ou a elementos a ele vincula-
dos. Em La hora de los hornos serão justamente as belas moças dançando na festa-happening do
Di Tella que desencadearão a sequência de montagem em que um grande número de imagens será
utilizado para enfatizar o poder de sedução e encantamento do imperialismo cultural. Entre essas
imagens, veremos muitas de lindas modelos. Em Cómo, por qué y para qué se asenina a un general
(Santiago Álvarez, Cuba, 1971), a CIA é simbolizada, no inicio e no final, por imagens de mulheres
nuas.
90 “A virulência, o inconformismo, a simples rebeldia, a insatisfação, são produtos agregados ao
mercado de compra e venda do capitalismo, objetos de consumo. Sobretudo em uma situação onde a
burguesia necessita inclusive de uma dose mais ou menos cotidiana de shock e elementos excitantes
de violência controlada, ou seja, daquela violência que sendo absorvida pelo sistema se reduz em
Assim como o Cine Liberación o personagem do Artista não se contenta em ser somente
“comprometido” ou apenas “vanguardista” do ponto de vista formal. Não é por acaso que se
apresenta como Lucho Ruptura. Seu nome é curioso porque acrescenta ao seu repetitivo discur-
so em prol da singularidade da arte e do trabalho artístico a necessidade de romper com a arte
estabelecida ou oficial. Não seria suficiente ser artista e sim ser um artista de vanguarda em um
sentido integral, tanto no campo estético como no político. Lucho Ruptura, portanto, pretende
situar-se nas duas vanguardas. É necessário lembrar que a não separação entre vanguarda estética
e política era reivindicada pelo Cine Liberación?91
No filme, o grupo dos guerrilheiros é o único conjunto de personagens visto de maneira mais
ou menos positiva. Na cena em que o grupo de poderosos está no descampado, as fotografias dos
revoltosos são manuseadas. Descobrimos pela fala do General que os guerrilheiros são compos-
tos por um padre, uma operária e um estudante. O Empresário quando vê as fotografias comenta:
“ainda nem soltaram o peito da mamãe e já querem fazer a revolução”. Os guerrilheiros são, por-
tanto, formados por distintos extratos da sociedade e são jovens. Nas poucas cenas em que apare-
cem, estão sempre em ação. Para ser guerrilheiro não é necessário teorizar e sim agir. A revolução
se faz com ações. Eles apresentam treinamento militar, são eficientes na tarefa de não se tornarem
visíveis no meio dos escombros em que se escondem. Conseguiram destruir o radar enviado por
USA. Em todas as operações que resolveram empreender foram bem sucedidos. Capturam um
soldado, tiram-lhe o uniforme e o deixam amarrado. Posteriormente, em um estacionamento,
conseguem sequestrar o Empresário. No processo de captura, o guarda-costas tentou reagir, mas
os guerrilheiros foram mais rápidos no gatilho e o mataram. Tudo isso lhes confere um tratamen-
to distinto do que foi dado ao General, ao Empresário, ao Artista e à Classe Média. Enquanto os
demais são ridículos, caricatos ou fracassados, os guerrilheiros são corajosos e sempre triunfam.

É possível perceber melhor a representação dada aos guerrilheiros na sequência do cativeiro


do Empresário. Os guerrilheiros estão tomando mate e escutam ópera no rádio. Preocupam-se
com a saúde do prisioneiro, lhe oferecem mate e depois queijo. Este, primeiro recusa e depois
cede aceitando o alimento. Em seguida pergunta se há algo para beber, como resposta, um dos
guerrilheiros lhe oferece uma garrafa de Coca-Cola. Podemos ver aí um comentário irônico que
atesta a inconsistência entre teoria e práxis. Como podem ao mesmo tempo discursar contra o im-
perialismo e tomar o seu refrigerante símbolo? Essa sugestão fica mais evidente pelo fato de que,
pouco antes de perguntar se tinha bebida, o Empresário lhes havia dito que eles nunca poderão
derrotar USA. Os guerrilheiros são criticados ao não perceberem nenhuma contradição entre bra-
dar contra o imperialismo estadunidense e tomar Coca-Cola. No entanto, a maior crítica do filme
é dirigida ao Artista. A questão do conflito entre propor uma arte politicamente revolucionária

estridência pura” (SOLANAS; GETINO, 1988:37).


91 Robert Stam, anos mais tarde, publica um artigo justamente intitulado The hour of the furnaces
and two avant-gardes em que aponta que o grupo de Solanas e Getino foi bem sucedido em seu ob-
jetivo. Ver Stam, 1980-1981:7-9.
verdadeiramente a serviço da revolução e o próprio fazer prático da revolução será colocada de
maneira mais contundente na última aparição do Artista em Alianza para el progreso. Nessa se-
quência, finalmente, haverá um contato direto entre o artista “comprometido” e os guerrilheiros.

A sequência se inicia com um travelling lateral descrevendo um cenário giratório. À medida


que o cenário se move, vemos os cartazes que nele estão pregados. São cartazes com perguntas
que nos convidariam à reflexão. O primeiro deles indaga “Como vão as suas coisas? O seu traba-
lho no escritório? Na fábrica. Você acredita que morrerá feliz?”. Em seguida a câmera se desloca
para um cartaz irônico que se encontra na parte mais alta: “América Latina ano zero. Ninguém
sofre nem chora. Tudo é melhor com Coca-Cola”. A câmera desce e se depara em outro letreiro:
“Romances em primeira pessoa? Não. Antes há muito que mudar”. Segue lateralmente e se de-
têm no primeiro cartaz que tínhamos lido e nele fica por alguns segundos. O que poderia ter sido
um ciclo logo se revela uma falsa pista, pois o trajeto da câmera em torno dos letreiros continua.
Do cartaz em que lemos “Nossa gloriosa civilização progride: adota a bomba atômica em vez
das câmaras de gás” o movimento de câmera nos leva para o Artista que finaliza os dizeres de
uma última placa. Enquanto tenta pregar a sua última obra no cenário, um casal de guerrilheiros,
armados, chegam. Eles olham para os cartazes e acham graça. O guerrilheiro interpela o Artista
sarcasticamente elogiando as frases. Lucho Ruptura os saúda e, como sempre, fala de si e de sua
obra. Diz que a sua estreia será hoje e que o seu espetáculo será grandioso, uma obra importante
para se chegar à revolução. “Para que revolução?”, pergunta a guerrilheira.
O Artista responde que é para a revolução que justifica a nossa luta. O guerrilheiro o inter-
pela dizendo que não é necessário se chegar à revolução porque a revolução já está acontecendo.
E ainda diz que lhe trouxeram algo que poderá evitar a sua espera pela revolução. Esse algo são
as armas. Mais do que esperar a revolução chegar através da produção de obras artísticas que
custam tanto trabalho, esforço e que rendem tanto dinheiro, é preciso fazer a revolução aconte-
cer. A guerrilheira indica que eles precisam de alguém novo no grupo, já que tiveram uma baixa.
O guerrilheiro sublinha que essa é sua oportunidade de fazer algo real pela revolução. Os dois
tentam convencer o Artista a pegar em armas. Lucho tenta se esquivar do convite alegando que
primeiro precisava passar por um treinamento e que essa é a sua obra mais importante, já que
lhe tirou muito tempo e que se trata da consumação do seu estilo, que define como “o ápice do
estruturalismo”. Segundo ele, primeiro está a obra e o artista precisa de liberdade de decisão para
criar. Enquanto escutávamos as suas desculpas em off, Classe Média entra no teatro e se senta
em uma das primeiras fileiras. Em seguida a câmera sai da Classe Média e retorna ao Artista, que
agora está sentado comendo um sanduíche. Não é casual que a fala fora de quadro de Lucho Rup-
tura seja acompanhada visualmente pela entrada de Classe Média em cena, uma vez que ambos
os personagens são pendulares e compartilham elementos em comum. Os dois, com frequência,
caem no ridículo e agora é a vez do Artista ser ridicularizado.
O Artista come de maneira grotesca e fala de boca cheia. A sua maneira de comer, enquanto
fala, deixa o seu discurso ainda mais patético: “O artista tem que criar. O meu talento deve entrar
para a História”. A guerrilheira acredita que a melhor maneira de entrar para a História é através
da luta e mais uma vez lhe oferece a arma e ele novamente repete que o artista precisa de liber-
dade. O guerrilheiro contesta:

Em nome da liberdade convertida em democracia essa sociedade que você


diz protestar em suas obras mais importantes tem cometido os piores abusos.
A democracia é um abuso. Não se dá conta, imbecil? A liberdade é outra coi-
sa. É evitar que a democracia te exploda, seja a burguesia, o imperialismo ou
a porcaria que prefira. Mas você é um imbecil.

Lucho insiste: “Não, eu sou um revolucionário”. A guerrilheira intervém: “Não, você é um


perfeccionista, um pequeno perfeccionista. Quer que tudo mude um pouquinho para que os seus
interesses melhorem, nada mais”. Classe Média, na plateia, escuta tudo com atenção e aplaude.
Lucho Ruptura se define como amigo dos guerrilheiros. Subitamente entram os soldados e co-
meçam a atirar. O Artista, em vez de se esconder, levanta os braços e pede para os repressores
não atirarem porque ele é um artista, comprometido, mas ainda assim um artista. Lucho Ruptura
então é morto pela ditadura.
A crença de Lucho Ruptura na excepcionalidade do artista era tamanha a ponto de acreditar
que o simples aviso de seu “status” para os militares o pouparia da morte. Para Lucho o artista era
quase um imortal ou um semideus. As suas preocupações políticas e sociais eram de fato aces-
sórias porque, no fundo, em primeiro plano, estava o elemento artístico e não a militância. Seria
algo como um cineasta que se diz estar a serviço de uma causa, quando na realidade coloca em
primeiro lugar a sua condição de autor. Definir-se como um artista revolucionário ou a serviço
da revolução apresenta um valor de mercado, ele seria mais valorizado ou prestigiado por conta
dessa designação. Se autoproclamar revolucionário é portanto uma maneira de se autopromover,
em outras palavras, uma certeira estratégia de marketing. É importante salientar que o filme não
apresenta um artista engajado ingênuo ou bem intencionado que realmente acredita na arte como
instrumento revolucionário. Ele o apresenta como um oportunista.
Alianza para el progreso, mais que lançar suas farpas contra o artista militante, se dirige
contra o falso artista militante? Na verdade, Alianza para el progresso questiona a viabilidade de
promover a revolução política através da arte. Sendo provada a ineficácia de transformar a câ-
mera em um fuzil ou de usar a câmera como se fosse um fuzil, todo cinema militante seria falso.
Afinal, a câmera não é um fuzil. O que está sendo posto em xeque é o próprio cinema militante.
Para o filme, o cineasta militante seria mais útil à revolução se substituísse a sua câmera por um
fuzil. A provocação ao Cine Liberación é bastante clara.
Em seu texto La ficción de la ficción es la realidad (1973), Ludueña defendeu a margina-
lização como alternativa válida para superar o sistema. Permanecer fora do sistema seria então
uma forma de vencê-lo. Mas, como garantir que o filme não seja por ele cooptado? Pela recusa
ao discurso do Artista, entendemos que Alianza para el progreso rechaça ao mesmo tempo uma
arte descompromissada com o mundo e uma arte militante. O cinema militante e o cinema pelo
cinema são igualmente dispensados. Que tipo de cinema, portanto, o filme de Ludueña reivindica
para si? Alianza para el progreso quer ser um filme político? Se a melhor maneira de relacionar
cinema e política não é segundo a fórmula do cinema militante, qual seria ela então? Se a concre-
tização da revolução política está no uso das armas e não do cinema, que revolução está reservada
para o cinema fazer? Alianza para el progreso se propõe a ser um outro cinema político, cuja di-
mensão política reside em sua própria existência. Permanecer invisível ou inacessível talvez seja
o preço para continuar situado fora do sistema. No entanto, existir é preciso.

As mesmas forças negativas que Ludueña converte alegoricamente em personagens já haviam


aparecido anteriormente em La hora de los hornos: o imperialismo, a burguesia, os militares, a
classe média e o intelectual. A diferença é que no documentário o intelectual/ artista criticado é
o “colonizado” e em Alianza para el progreso é o intelectual/ artista militante. Outra diferença
é que Ludueña inclui no polo negativo o sindicalismo [notadamente peronista] através do perso-
nagem do Sindicalista92, coisa que obviamente La hora de los hornos não faz. No filme do grupo
Cine Liberación, o polo positivo é ocupado pelo povo, sempre em praça pública e sempre na zona
urbana, em combate com as forças repressivas. O povo valorizado é o que está lutando, mesmo
que ele ainda esteja no estágio do “espontaneismo”. O caminho proposto é que o povo saia des-
se estágio e ingresse na luta armada, em outras palavras, que entre para a guerrilha. Em Alianza
para el progreso, o polo “positivo” pertence aos guerrilheiros, em suma, ao “povo” já engajado
na guerrilha.

No manifesto Hacia un Tercer Cine, o cineasta revolucionário é frequentemente comparado


ao guerrilheiro. O próprio cinema que esse cineasta realiza é chamado de cine-guerrilha. O ci-
neasta revolucionário, ao contrário do cineasta comum, assumiria uma visão renovada do papel
do realizador, do trabalho em equipe e dos equipamentos utilizados. Ele seria autossuficiente na
produção de seus filmes e se capacitaria para exercer todas as funções técnicas, de modo que
estará preparado para substituir qualquer companheiro. A sua câmera seria uma inesgotável ex-
propriadora de imagens-munições e o seu projetor uma arma capaz de disparar 24 fotogramas

92 Desde a sua primeira aparição o personagem é associado a Timoteo Vandor [1923-1969],


vulgo “Lobo”, importante e influente líder sindicalista peronista assassinado enquanto trabalhava em
seu escritório da Unión Obrera Metalúrgica. A construção do Sindicalista, com revólver na cintura e
vinculado diretamente ao poder, era uma cararicatura do líder sindicalista criador do lema “peronismo
sem Perón”. Em uma outra cena o vínculo entre o personagem ficticio e o real torna-se ainda mais ní-
tido: o Sindicalista é assassinado em seu escritório da mesma forma que Lobo Vandor. Na cena, após
ser morto, o personagem subitamente se levanta e mostra para a câmera um cartaz com a pergunta
“Quem matou o Lobo?” Na época da realização do filme, e ainda hoje, os autores do crime não tiveram
comprovado o delito, o que motivou a pergunta do cartaz.
por segundo. Temos no texto, como era comum no âmbito do cinema militante, a analogia entre
equipamento cinematográfico e armas de fogo. A equipe cinematográfica se assemelha a um gru-
po guerrilheiro por conta do extremo cuidado que deve ter com os detalhes da realização e com
a segurança dos envolvidos. Um imprevisto que no cinema convencional seria normal, no cine-
-guerrilha pode acabar com um trabalho de meses, e um fracasso em um cine-guerrilha, como
na própria guerrilha, pode significar a perda de uma obra e a modificação de todos os planos.
A constante vigilância, desconfiança e mobilidade são fundamentais. O grupo Cine Liberación
reforça a comparação ao afirmar que o cineasta revolucionário trabalha “nas aparências pulando
às vezes para o vazio e se expondo ao fracasso como faz o guerrilheiro que transita por caminhos
que ele mesmo abre com golpes de facão” (Solanas; Getino,1988:50-51). Se o manifesto defende
que nossa época é uma “época de obras em processo, inconclusas, desordenadas, violentas, feitas
com uma câmera em uma mão e uma pedra na outra” (Solanas; Getino, 1988:51), podemos dizer
que Alianza para el progreso concordaria com tudo se não fosse apenas por um detalhe: o tipo de
pedra. O filme de Ludueña vê com desconfiança o artista que se define como revolucionário ou
que se diz a serviço da revolução. Se em Hacia un Tercer Cine o cineasta é mais um profissional,
assim como outros, que a partir de sua especificidade se iguala em importância ao guerrilheiro na
guerra cotidiana de libertação, em Alianza para el progreso, quem deveria fazer a revolução polí-
tica são os guerrilheiros. A sugestão, sublinhamos, que o filme oferece ao “cineasta revolucioná-
rio” é que se ele quer mesmo fazer a revolução que encoste a câmera e pegue uma metralhadora.
Apesar de nutrir simpatia pelos guerrilheiros, Alianza para el progreso, ao contrário de La hora
de los hornos, não faz uma apologia da luta armada.

No filme do grupo Cine Liberación, a única saída que resta ao povo latino-americano para
responder à violência do neocolonialismo é a prática de uma violência maior, que somente a luta
armada organizada poderá fornecer. Dos 13 blocos narrativos que estruturam a primeira parte de
La hora de los hornos três tem violência no título: “A violência cotidiana”, “A violência política”
e “A violência cultural”. O bloco 13, intitulado “A opção”, oferece como solução para acabar com
essas violências uma violência que as ultrapasse: a guerrilha. A imagem do Che-Cristo morto é o
modelo de altruísmo e autossacrifício a ser seguido. Sua figura traduz a premissa de que a única
opção do latino-americano é eleger, com a sua rebelião, a sua própria vida e a sua própria morte.
A entrada na luta pela libertação direciona o colonizado para um caminho heroico e o torna se-
nhor de seu destino. A morte, para ele, deixaria de ser a instância final e se converteria em um ato
libertador e em uma conquista. A morte seria o começo de uma nova vida e o começo do futuro. A
voz over que surge nos primeiros instantes do longo primeiro plano da face do Che-Cristo afirma
que é justamente em sua rebelião que o latino-americano recupera a sua existência.

No final de Alianza para el progreso, não vemos esse elemento trágico cristão. Em seu lu-
gar reside o humor. O embate final entre a força opressora e os guerrilheiros ocorre no espaço
do teatro, o que já nos fornece um tom de representação ou farsa. O confronto é construído em
chave antirrealista, perspectiva que o diferencia do tratamento dado à cena de tortura de um dos
guerrilheiros. Tal diferença de tom reforça a interpretação de que os guerrilheiros e a sua luta são
vistos com alguma seriedade pela instância narrativa, o que lhes retira as cores do ridículo nas
quais os demais personagens são pintados. No embate, apesar de os guerrilheiros serem uma das
partes envolvidas, o que predomina é o inverossímil, o absurdo e a comicidade. A morte ridícula
do Artista, logo no início do tiroteio, indica o tom. O som da cena é completamente antinaturalista
e a quantidade de tiros que escutamos é bem maior do que o número de armas de fogo usado pelos
personagens. Tampouco há sangue ou qualquer indicio visual que comprove, realisticamente, a
morte dos personagens atingidos. Se bem que a artificialidade do som dos disparos, a ausência de
sangue e de fumaça nas armas já haviam aparecido nas cenas de tiro anteriores, aqui, essa des-
preocupação com a verossimilhança propicia um humor que não houve, por exemplo, na cena da
morte do Sindicalista ou do guarda-costas do Empresário.

O humor é realçado. A Classe Média está desesperada e apavorada no meio do fogo cruza-
do. O Artista levanta os braços alegando ser artista e morre. No meio da batalha surge do nada
o camponês, que pega a metralhadora e ajuda os guerrilheiros. Este novo agente surge na luta
contra o imperialismo. O camponês ajuda Classe Média, que sem outra alternativa, se une aos
rebeldes e também dispara contra os soldados. A câmera vai de um lado para o outro tentando
acompanhar os tiros. O General é atingido e morre. O tiroteio continua. Na cena seguinte, ao som
da marcha militar The Caissons Go Rolling, USA pateticamente foge de barco com um de seus
capangas e promete voltar. O camponês e a guerrilheira celebram a vitória. Ela lhe pede um filho
com o objetivo de que a luta se perpetue nas novas gerações. A marcha militar que escutávamos
na banda sonora desaparece. Um jorro de lama cai no rio e nele se mistura. Se procurarmos ver
o destino que foi reservado aos personagens, constatamos que no cômputo final o Sindicalista, o
Empresário e o General foram castigados com a morte. Dos poderosos o único que escapou com
vida foi USA. Entre os personagens pendulares, o Artista mereceu a morte e a Classe Média foi
poupada. O oportunismo e o falso altruísmo parecem não ter remédio ao passo que a alienação e
a ignorância podem, através do desespero e do instinto de autopreservação, ser superados.
Alianza para el progreso, excetuando USA, acabou com os maus e proporcionou nova chance
para os bons ou para os equivocados. O único do polo “positivo” a ser morto foi o guerrilheiro
torturado. A sua morte não foi enaltecida, glorificada ou heroicizada. A morte heroica pela liberta-
ção, diferentemente de La hora de los hornos, não é o modelo. O outro guerrilheiro, em sua fala,
afirmou que não lhe interessa viver e que a sua preocupação reside na continuidade da luta após
a sua morte. Ele quer alguém que pegue a sua metralhadora e o substitua. A guerrilheira também
se preocupa com o prosseguimento da luta ao pedir um filho ao camponês. Mais importante que
a vida dos engajados na luta é a luta em si. Porém, se há voluntarismo e autossacrificio, como em
toda luta armada, o pragmatismo aparenta ser mais presente do que um sentido de libertação pela
morte. Alianza para el progreso parece não comprar esse discurso. A morte é uma punição para
os maus e não chega a ser uma conquista para os bons.
Alianza para el progreso não parece se articular integralmente em defesa da luta armada e
da guerrilha urbana. Há um distanciamento crítico ao mesmo tempo em que existe uma simpatia.
O filme vê com bons olhos o voluntarismo e o ímpeto altruísta, porém critica a ingenuidade dos
jovens militantes. O romantismo revolucionário ao mesmo tempo em que é digno ressoa como
algo fora de lugar. Ao desromantizar o cinema militante, o filme também desromantiza e vê, com
certa desconfiança, a própria militância. Em todo caso, eles são os especiais em um mundo po-
dre e corrompido. O sexo entre a guerrilheira e o camponês no final reitera a diferença entre as
demais cenas de relações sexuais. Se nelas havia interesse financeiro e dominação, como no sexo
entre Classe Média e USA e entre Classe Média e Empresário, aqui, há o desejo de gerar um filho
que possa crescer e futuramente continuar a luta contra o imperialismo. Enquanto USA foge de
barco, o coito se realiza celebrando a comunhão e o desejo de liberdade.
No entanto, a resolução supostamente feliz resulta ilusória, pois enquanto o camponês e a
guerrilheira iniciam o projeto da concepção de uma nova vida a mancha escura é despejada na
água. A guerra ainda não terminou. USA ameaça voltar. A violência continuará. Nenhuma ordem
foi transformada ou está em vias de ser transformada a curto ou longo prazo. Há uma suspensão.
Não há um caminho reto, progressivo e linear que, através da luta armada pela libertação, culmi-
nará com a revolução política, como vemos em La hora de los hornos. O que encontramos aqui
é um caminho tortuoso, caótico e labiríntico que talvez chegue próximo a uma ideia de transfor-
mação mais ampla ou a lugar nenhum.
Referências bibliográficas

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nos Aires: Santiago Arcos, 2009.

GARCIA, Estevão. Belair e Cine Subterráneo: o cinema moderno pós-1968 no Brasil e na Ar-
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1988.

Filmografia

La hora de los hornos, Fernando Solanas; Octavio Getino, Argentina, 1966-1968

The Players vs. Ángeles caídos, Alberto Fischerman, Argentina, 1968

Invasión, Hugo Santiago, Argentina, 1969

Alianza para el progreso, Julio Ludueña, Argentina, 1971

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SkbJoZ-F4QU


Estevão Garcia - Professor de cinema, realizador, crítico e pesquisador. Professor
do curso técnico integrado em produção de áudio e vídeo e do bacharelado em cinema
e audiovisual do Instituto Federal de Goiás (IFG). Foi Professor Visitante do curso
de cinema e audiovisual da Universidade Federal da Integração Latino-Americana
(UNILA), Foz do Iguaçu, Paraná, de 2012 a 2014. Foi Coordenador do projeto de
extensão da UNILA “Cineclube Cinelatino: imagens da América Latina a serem
decifradas”. Dirigiu e roteirizou quatro curtas-metragens. Doutorando em meios e
processos audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade
de São Paulo (USP). Mestre em estudos cinematográficos pela Universidade de
Guadalajara, Guadalajara, México. Graduado em cinema e audiovisual pelo Instituto
de comunicação e Artes (IACS) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói,
Rio de Janeiro.
13. O cinema de zumbi na América Latina: luchadores, guerrilha e outras formas
de resistência

Lúcio Reis Filho

Alfredo Suppia

Com o cinema nacional e latino-americano em evidência, cresce a oferta e a demanda por


cursos de cinema no país. Dentro ou fora do ambiente universitário, tem-se ampliado também
a produção de curtas-metragens, para muitos o primeiro passo rumo a uma carreira de cineasta.
Esse aumento de produção tem sido estimulado, entre outros fatores, pela maior acessibilidade a
ferramentas para realização audiovisual, bem como a meios de divulgação como a internet, via
YouTube, Vimeo e congêneres. Uma câmera HDSLR93 mais um microcomputador podem bastar
para a realização de um bom filme ou vídeo. Munidos desses equipamentos, muitos jovens têm
se aventurado a realizar seu primeiro curta-metragem (SUPPIA, REIS-FILHO, 2012). Em meio a
esse panorama, um velho personagem renasce da tumba nos curtas-metragens latino-americanos:
o zumbi.
Desde o começo do século XX, foi o cinema que deu maior dimensão ao zumbi. Inicialmente,
nas décadas de 1930 e 1940, sua representação recorreu ao folclore e à religiosidade tradicional
(DENDLE, 2001: 3). Em O Ressuscitado (The Ghoul, T. Hayes Hunter, 1933), produção britânica
da Gaumont-British Picture Corporation, foi associado aos mistérios da religião egípcia. Em
Zumbi Branco (White Zombie, Victor Halperin, 1932) — com Bela Lugosi revivendo os mortos
para que estes trabalhassem em sua plantation —, e nas produções de Val Lewton para a RKO,
iniciadas com I walked with a Zombie (Jacques Tourneur, 1943), o zumbi é aquele da religião
afro-caribenha do vodu: cadáver reanimado por espíritos escravos, do qual o sacerdote se utiliza
para o seu benefício pessoal. Tais filmes evocaram a discriminação racial através da relação de
domínio e submissão entre o zumbi e seu mentor, relação esta construída pela óptica do cinema
euramericano, “herdeiro e propagador do discurso colonial hegemônico imperialista” (STAM,
2003, p. 34).
Consideramos o zumbi a personagem de ficção que mais diretamente evoca o tabu da morte,
mais do que os fantasmas ou os vampiros. Esse personagem ganhou mais nuances graças aos

93 DSLR é a sigla em inglês para digital single-lens reflex, que em uma tradução livre seria “câmera digital de reflexo
por uma lente”. HDSLR refere-se a câmeras desse tipo, porém capazes de filmar em alta definição (high definition), como
1080p ou 1080i.
preconceitos de viajantes que, com sua visão colonialista, descreveram o Haiti como local de
sangrentos rituais de magia negra, orgias selvagens e mortos reanimados. O que acabou sendo
reforçado pela superstição nativa, sem falar na indústria de turismo e estrutura de poder haitiana.
Nos anos de 1950 e 1960 houve um redirecionamento do conceito. Neste “estranho período
de transição” (DENDLE, 2001, p. 5), o zumbi começa a perder vínculos com a religião, e o termo
(originário do quimbundo nzumbi, que significa fantasma ou espectro) passa a definir criaturas
distintas: invasores marcianos humanoides (Zombies of the Stratosphere, Fred C. Brannon, 1952),
seres subaquáticos (Zombies of Mora-Tau, Edward L. Cahn, 1957), jovens de classe média sob o
efeito de drogas hipnóticas (Teenage Zombies, Jerry Warren, 1959), peixes mutantes radioativos
(The Horror of Party Beach, Del Tenney, 1964) e androides cibernéticos (The Astro-Zombies, Ted
V. Mikels, 1968). Entretanto, a despeito dessa diversidade, certa coerência pode ser identificada
nesse pout-pourri conceitual. Em filmes como Plano 9 do Espaço Sideral (Plan 9 from Outer
Space, Ed Wood, 1959) e Invasores Invisíveis (Invisible Invaders, Edward L. Cahn, 1959), os
zumbis fogem de qualquer concepção de mente ou alma. Aspecto reconfortante para que ele
pudesse ser tratado como “Outro”, animal ou escravo, e fosse livremente trucidado sem ônus
moral ou judicial ao homem branco (DENDLE, 2001, p. 4-5).
Na década de 1960, depois que Hollywood perdeu o interesse pelo subgênero dos zumbis,
outros países reconheceram o seu apelo. Epidemia dos Zumbis (The Plague of the Zombies,
John Gilling, 1966), da britânica Hammer Films, foi o primeiro a romper o tabu referente à
exibição de cadáveres decompostos nas telas. Porém, uma onda de filmes de zumbi teve início no
México, antecipando a produção britânica. Muñecos infernales (Benito Alazraki, 1960) “lançou
um microgênero de terror zumbi ao longo dos anos 1960” (RUSSEL, 2010: 104)94. É interessante
observar que esse filme retorna ao solo haitiano. A história acompanha turistas amaldiçoados
por um sacerdote vodu após testemunharem uma cerimônia secreta. Eles não percebem o
problema em que se meteram até serem pegos, um por um, pelos “bonecos assassinos” do título,
controlados por um feiticeiro (RUSSEL, 2010: 104). Em sua arguta investigação sobre “visões do
lumpemproletariado” nos filmes latino-americanos de zumbi, Mariano Paz observa que:

O zumbi se tornou tão pervasivo na cultura popular americana, particularmente


durante as últimas décadas, que é fácil esquecer que os zumbis na verdade se
originaram nos mitos e no folclore latino-americano. Embora os fundamentos
religiosos e culturais dos zumbis possam ser buscados na cultura africana, é
no Haiti que relatos modernos acerca desses personagens foram pela primeira
vez registrados em fontes literárias e jornalísticas (PAZ, 2016: 229).

Paz refere-se a um revival mundial dos filmes de zumbi, sobretudo a partir dos anos 1990.
94 Todas as traduções de autores estrangeiros para o português foram feitas livremente pelos
autores do presente artigo.
Russel (2010: 104), por sua vez, localizando o lançamento de um “microgênero de terror zumbi
ao longo dos anos 1960” no México (2010: 104), salienta a série de filmes de zumbi estrelados
pelo lutador mascarado Santo, personagem que virou ícone pop do cinema mexicano durante os
anos 1960. Santo, el enmascarado de plata, encarou um exército de cadáveres reanimados em
Zumbis, os Mortos Vivos (Santo contra los zombies, Benito Alazraki, 1961), Santo el enmascarado
de plata y Blue Demon contra los monstruos (Gilberto Martínez Solares, 1968), O mundo dos
mortos (El mundo de los muertos, Gilberto Martínez Solares, 1969) e Santo contra la magia
negra (Alfredo B. Crevenna, 1972). Entretanto, a origem dos filmes de lucha libre mexicanos em
seu flerte com gêneros como o horror, a ficção científica ou o policial está num filme de 1956,
Ladrão de Cadáveres (Ladrón de Cadáveres), de Fernando Méndez.
Outras produções mexicanas seguiram os passos do célebre Santo, como Dr. Satán y la
magia negra (Rogelio A. González, 1968), estrelada pelo mágico Dr. Satán (Joaquín Cordero).
O personagem-título, quando não está ocupado enfrentando o arqui-inimigo Black Magic (Noe
Murayama), mostra-se um galanteador, saindo com garotas-zumbi que usam minissaias e decotes
provocativos. Em Blue Demon y Zovek en La invasión de los muertos (René Cardona, 1971), Blue
Demon, o colega de Santo, enfrenta mortos-vivos que sabem dirigir carros e pilotar helicópteros.
Por fim, em A Serpente do Terror (La muerte viviente, Juan Ibáñez e Jack Hill, 1968), um Boris
Karloff idoso e muito doente brinca com ritos vodu numa ilha do Pacífico Sul. “Dada a qualidade
dúbia dessas produções mexicanas, fica claro que a série de Santo foi provavelmente a maior
contribuição do país para o ‘cinema morto-vivo’. Uma triste constatação, seja qual for a medida”
(RUSSEL, 2010: 104). O preconceito e viés estético ficam evidentes nas observações de Russel.
Uma justificativa para esse “olhar de esgueio” ou reprovação em relação aos filmes mexicanos
de lucha libre, com zumbis ou não, está no fato de que, não bastasse se tratar de produções
apressadas e de baixo custo (eventualmente equivalentes às nossas chanchadas brasileiras),
muitas das fitas de luchadores foram acusadas de ratificar uma ideologia machista ou sexista,
explícita ou subtextualmente.
No contexto do cinema argentino, Luciano Saracino aponta que o país “não nutriu o cinema de
gênero naquelas décadas em que outros (...) o fizeram” (sobretudo Itália e Espanha), o que atribui
a diversas razões: as ditaduras, a falta de produtoras interessadas, o complexo de intelectualidade
dos autores e a necessidade de contar outro tipo de história (2009, p. 119). Saracino considera
Extraña invasión (1965), de Emilio Vieyra, o primeiro filme de zumbis argentino. Nele, as
pessoas são convertidas em autômatos pela ação dos raios catódicos que saem da televisão.
Extraña invasión pode ter sido inspirado pelo norte-americano Os invasores de corpos (Invasion
of the body snatchers, Don Siegel, 1956). Em seguida viria La venganza del sexo (Emilio Vieyra,
1972), no qual um zumbi manejado por um cientista louco sequestra jovens e a força a fazer sexo,
roubando-lhes a força vital de que necessita para conquistar o mundo. Fora esses exemplos, o
zumbi apareceria bem pouco no cinema argentino. Haveria “apenas uma aparição — ridícula,
insípida e desnecessária — no indescritível Los matamonstruos en la mansión del terror (Carlos
Galettini, 1987)” (SARACINO, 2009: 120).

É importante observar que, no fim dos anos 1960, o zumbi caminhou em direção à periferia,
servindo aos propósitos do cinema independente em A noite dos mortos-vivos (Night of the living
dead, 1968), do cineasta norte-americano George Romero. Não exatamente um único zumbi,
mas uma horda de mortos-vivos famintos de carne humana. Esse filme seminal instituiu o que
chamamos de “modelo romeriano” (REIS FILHO, 2012), posto que retirou do personagem
qualquer conotação religiosa, remodelando-o em um monstro canibal e apático que se propaga
de forma epidêmica (SUPPIA; REIS FILHO, 2011). Romero atrelou seus zumbis aos problemas
sociais contemporâneos e conferiu-lhes a função de crítica ao patriarcado capitalista. Dessa
forma, não somente criou o zumbi que conhecemos hoje, como produziu uma obra em essência
contracultural, metáfora dos Estados Unidos devorando a si próprios em tempos de crise interna
e externa. A noite dos mortos-vivos teve impacto marcante na cultura, e segue influenciando
inúmeras produções até os dias de hoje, nas mais diversas mídias.
Nas últimas décadas, os filmes latino-americanos de zumbi seguem o “modelo romeriano”.
Entretanto, a sua influência maior estaria em Resident Evil (Biohazard, 1996), reapropriação mais
moderna do zumbi romeriano que empresta ao personagem uma semântica e/ou uma sintaxe da
ficção científica. Desenvolvido pelo designer gráfico Shinji Mikami para a companhia japonesa
Capcom, com destino à plataforma Sony Playstation, essa combinação de horror e aventura, com
desenhos de Eiji Aonuma, tornou-se um dos videogames mais vendidos da década de 1990. Seu
enredo trata da epidemia desencadeada acidentalmente pela poderosa corporação farmacêutica
Umbrella, quando um vírus de laboratório foge ao controle transformando em zumbis os cidadãos
da ficcional cidade de Raccoon, no meio-Oeste americano. Resident Evil criou uma franquia
e alçou o “modelo romeriano” a nova etapa de desenvolvimento. Conforme explica Tania
Krzywinska (2008), seu arco narrativo combina os gêneros da ficção científica e do “survival
horror”,95 ambos identificados em A Noite dos Mortos-Vivos, acrescentando um estilo extra, a
dimensão conspiratória da série televisiva Arquivo X (1993-2018). Segundo Romero, os games
dessa série “despertaram as pessoas para a ideia dos mortos-vivos, que estava dormente havia um
tempo” (ROMERO apud RUSSEL, 2010: 228). Destacamos que a influência de Resident Evil
sobre os filmes de zumbi foi marcante.
De acordo com Saracino, um exemplar significativo do cinema argentino de zumbis surgiria
somente no fim dos anos 1990. Dialogando com a cultura pop pós-Resident Evil, Plaga zombie
(1997), da Farsa Producciones, pode ser descrito como uma espécie de jogo no qual uma invasão
extraterrestre desperta os mortos e um grupo de heróis deve enfrentá-los. O filme teve ao menos
duas sequências, também dirigidas por Pablo Parés e Hernán Sáez: Praga zumbi: zona mutante
95 Inspirados na ficção de horror, os games vinculados a esse subgênero enfocam na sobrevi-
vência dos personagens em ambientes que inspiram medo e terror.
(Plaga zombie: zona mutante, 2001) e Plaga Zombie: Zona Mutante: Revolución Tóxica (2011).
Contemporâneo aos dois primeiros, podemos mencionar Minha sogra é um zumbi (Mi suegra es
un zombie (2001), de Germán Favier, no qual os zumbis se limitam a algumas poucas aparições,
apesar do título. Ainda segundo Saracino, Un cazador de zombies (Gérman Magariños, 2008)
ultrapassa todos os limites do politicamente correto, e “coloca à prova o estômago dos espectadores
com algumas das cenas mais gore jamais vistas por aqui [na Argentina]. Vaticano, crianças e
zumbis. Para paladares perturbados” (2009: 21).
Mas a invasão dos zumbis na Argentina não termina por aí. Saracino enfatiza que festivais
de cinema fantástico como o Buenos Aires Rojo Sangre96 abriram espaço para que muitos
realizadores “pudessem mostrar seus curtas diante de um público ávido pelo cinema nacional de
zumbis”. O média-metragem Contagio (Mauricio G. Fernández; Martin Shirkin, 2005) “é uma
pequena pérola que narra o regresso de um grupo de amigos de uma noite de festa, enquanto o
mundo desmorona por uma epidemia de zumbis. Tudo acontece em Rosario (tanto nos arredores
quanto no campo)” (2009: 121). Rigor mortis (Marco Caorlin, 2006), um filme mais “amador”
na óptica de Saracino, narra o assédio zumbi a uma mansão e a sobrevivência do herói, cujas
aventuras podem ser vistas na continuação: Rigor mortis 2: a horda (2009), de rápida estreia e
produção mais substancial. No que se refere aos curtas-metragens argentinos, o autor considera
Los living dead (César Barrangou; Max Schneider, 2007) o mais interessante. Nessa animação
argentina, uma jovem escapa de zumbis que querem degustá-la (2009: 121-22).
Mais recentemente, foi o cinema cubano que revisitou o tropo da “invasão zumbi” no
engenhoso longa-metragem de baixo orçamento João dos Mortos (Juan de los Muertos, 2012),
de Alejandro Brugés. Para uma análise mais detida do filme de Brugés, recomendamos o capítulo
de Mariano Paz (2016). Segundo este autor,

O primeiro filme cubano de zumbi é também uma comédia, embora possa


ser dito que ele é menos farsesco e bizarro que a trilogia Plaga Zombie —
[Juan de los Muertos] parece inclusive mais próximo, em termos de efeitos
visuais e design, dos filmes americanos de zumbi do que de seus equivalentes
argentinos. A história tem lugar numa Cuba contemporânea e segue a aventura
de seu herói, Juan, junto com sua filha e um grupo de amigos, os quais devem
enfrentar uma epidemia zumbi na ilha caribenha (PAZ, 2016: 241-2).

No Brasil, personagens análogos aos zumbis já aparecem num filme da “fase psicodélica”,
ou “fase de Paraty-RJ”, do diretor Nelson Pereira dos Santos. No longa-metragem Quem é Beta?
(1972) coprodução franco-brasileira lançada fora do país com o título Pas de violence entre nous,
apresenta um futuro hippie-pós-apocalíptico em que o triângulo de protagonistas passa seu tempo
abatendo a tiros uma infinidade de andarilhos supostamente contaminados – os “contaminate”.
96 Cf. http://rojosangre.quintadimension.com/2.0/
No panorama curta-metragista brasileiro, o zumbi também parece ter encontrado ambiente
acolhedor nos últimos anos. Segundo Lúcio Piedade (In: SUPPIA, 2010), a motivação dos
realizadores brasileiros independentes vem, sobretudo, da influência do cinema estrangeiro, com
grande circulação no mercado de vídeo. É o caso do pioneiro Petter Baiestorf e seu curta Zombio
(1999). Histórias em quadrinhos e videogames como The House of Dead e Resident Evil também
acabam servindo como referências para a nova safra de filmes de zumbi brasileiros.
Dentre os vários exemplos, figuram também os curtas Crônicas de um zumbi adolescente
(André ZP, 2002), a comédia de horror Minha esposa é um zumbi (Joel Caetano, 2006), além dos
tecnicamente bem elaborados Era dos mortos (Rodrigo Brandão, 2007) e Capital dos mortos
(Tiago Belotti, 2007). Crônicas de um zumbi adolescente (2002) narra a desventura do pobre Zeca,
jovem que volta da sepultura como um cadáver repugnante que tenta se reintegrar à sua rotina
aparentemente banal. O tropo do zumbi serve aqui a um curioso comentário sobre a adolescência
brasileira, numa versão carinhosamente putrefeita de sucessos como a série Confissões de
Adolescente (1994/5), da TV Cultura. Coincidência ou não, Crônicas de um zumbi adolescente
tem como personagem principal um jovem típico representante do que se convencionou chamar
de Geração Z (ou simplesmente, em sua abreviação, Gen Z, também conhecida como iGeneration,
Plurais ou Centennials). Trata-se de uma controversa definição sociológica que se refere à geração
de pessoas nascidas em 1988 até o ano de 2010.
Alguns estudiosos apontam que as gerações Y e Z vêm sendo assombradas por um sentimento
de insatisfação e insegurança face à realidade e ao futuro da economia e da política. A geração Z
é confrontada com uma desigualdade social cada vez maior em todo o mundo, concentração de
renda e encolhimento das classes médias, conjunto de fatores globais que tem levado ao aumento
dos níveis de estresse nas famílias (ver Turner, 2015). Em resumo, desemprego e precariedade
costumam angustiar os jovens das gerações Y e Z. O que nos leva a indagar sobre a coincidência
do apelo popular do zumbi entre o público da geração Z.
Minha esposa é um zumbi, curta-metragem de 24 minutos lançado em 2006, é o maior
sucesso do cineasta paulistano Joel Caetano e sua empresa, a Recurso Zero Produções. O
filme venceu a categoria máxima do júri popular da I Mostra do Curta-metragem Fantástico de
Ilha Comprida, em 2006, e participou de mostras em São Paulo, Porto Alegre e Goiás. Minha
esposa é um zumbi conta a desventura de Tonho (Joel Caetano), um jovem que, determinado a
revigorar seu desempenho sexual, rouba de um laboratório um medicamento inventado por um
cientista. Inadvertidamente, sua esposa (Mariana Zani) ingere o remédio, que produz um terrível
efeito colateral. Tonho não vê opção além de adaptar sua vida cotidiana à nova realidade de sua
parceira. Em depoimento sobre seu curta, Joel Caetano explica que o filme foi escrito para ser
trash (FERRARAZ, 2008: 177).
Em Era dos mortos, Rodrigo Brandão se utiliza da vocação metonímica do cinema para criar,
na pequena Santos Dumont, no estado de Minas Gerais, uma cidade-fantasma assombrada por
zumbis. Trechos de telejornais e imagens de arquivo, costuradas a fragmentos da cidadezinha,
estabelecem o regime narrativo propício a uma aventura apocalíptica numa localidade
indeterminada. Guardadas as devidas proporções, o recurso assemelha-se ao utilizado por filmes
como Ensaio sobre a cegueira (2008), de Fernando Meirelles, no qual retalhos de São Paulo,
Montevidéu, Toronto etc., costuram uma cidade imaginária. Segundo o próprio Brandão (In:
SUPPIA, 2010), o principal modelo da narrativa de Era dos mortos está na dinâmica de games
como Doom (1993) ou Resident Evil. Embora esse filme não tenha sido a estreia de Brandão no
audiovisual, figura entre suas realizações mais ambiciosas. A trilha sonora original, que vai de
Ambient music a Metalcore, foi composta por AlienAqtor, Disorder of Rage (DxOxRx), Flanicx
e pelo próprio Brandão.
Outro exemplo de filme de zumbi brasileiro, desta vez em longa-metragem, é Mangue negro
(2009), do cineasta capixaba Rodrigo Aragão. Num mangue povoado por pessoas grotescas, um
casal enfrenta uma horda de zumbis que surge misteriosamente do lamaçal. O herói do filme é
Luís da Machadinha (Walderrama dos Santos), o qual defende apaixonadamente a frágil Raquel
(Kika de Oliveira) do assédio zumbi. Pouco após os primeiros ataques, descobrimos que a causa
da “zumbificação” parece estar nas ostras que habitam o mangue. Mais do que indigestão, as
ostras degustadas transformam seus predadores humanos em mortos-vivos. O horror catalisado
pelo trabalho de maquiagem de Aragão confere a seu filme uma organicidade e repugnância
comparáveis ao remake de A Coisa (The Thing, 1982) dirigido por John Carpenter. A cena da luta
em que o zumbi decapitado continua atacando Luís, enquanto outro zumbi, sem mandíbula, assedia
Raquel, lembra muito o cinema de Carpenter. A mise-en-scène de Aragão é ágil e, potencializada
pela montagem, provoca a angústia que se espera de todo filme de horror. O mangue, esse cenário
misterioso e inóspito, parece perfeito para o assédio zumbi. Mais do que isso, o mangue se revela
um personagem desse filme por ser ele próprio um zumbi, uma região morta, em decomposição,
num estado de putrefação irreversível, conforme se depreende da fala dos pescadores e de Dona
Benedita (André Lobo). Destacamos também o trabalho de fotografia de Rodrigo Aragão e a
trilha sonora de Jaceguay Lins.
Parece que Rodrigo Aragão, além de diretor, fotógrafo e maquiador habilidoso, tem uma
queda por histórias de indigestão. Daí ter dirigido anteriormente outras aventuras de zumbi em
curta-metragem, Peixe podre (2005) e Peixe podre 2 (2006), nos quais a zumbificação resulta
da ingestão de frutos do mar ou de água doce. Nos filmes de zumbi de Aragão, especialmente
Mangue negro, percebemos novamente a influência do cinema de George Romero, numa curiosa
transposição do típico zombie film norte-americano pós anos 60 para o contexto do interior do
Brasil, cenário de subdesenvolvimento explícito. Contudo, Mangue negro parece menos investido
de um viés alegórico ou de um subtexto político mais efetivo, conforme se verifica, por exemplo,
em A Noite dos Mortos-Vivos, de Romero, ou mesmo Candidato maldito (Homecoming), de Joe
Dante, episódio da série para TV americana Masters of horror (2005). O substrato político, no
caso de Mangue Negro, cede lugar a um tênue discurso ecológico no tropo do mangue morto-
vivo, prenhe de criaturas malignas e sanguinolentas, supostamente resultantes da poluição e
interferência humana no ecossistema.

A despeito da influência do modelo romeriano e da cultura pop, uma parcela da produção


brasileira de curtas-metragens se volta para o folclore regional. A antiga lenda do “corpo seco”,
morto-vivo maléfico que aterrorizava diversas regiões do país, segundo relatos da tradição oral,
tem sido recontada em adaptações audiovisuais disponíveis na Web. O personagem aparece no
episódio-piloto de Historietas Assombradas (para crianças malcriadas) (2005), série concebida
pelo animador e ilustrador Victor-Hugo Borges em animação stop-motion e 3D. Por sua vez, o
curta Corpo Seco (2008), escrito por Sandro Doraciotto e dirigido por André Rebello, explora os
relatos orais sobre estranhas aparições no campo. Outro curta homônimo reinventa o mito: Corpo
Seco (2013), escrito e dirigido por Vinícius J. Santos, da produtora independente V Produções,
de Jacareí, em São Paulo, retrata o personagem como uma criatura que se agarra aos troncos das
árvores, e que ataca os desavisados sugando todo o seu sangue (REIS-FILHO, 2015: 265).

Considerações finais

No contexto de um cinema de difícil inserção comercial e mesmo sustentabilidade, o


personagem do zumbi parece servir perfeitamente aos propósitos de guerrilha de alguns jovens
realizadores independentes brasileiros. Um personagem impessoal, teleguiado, que prescinde de
maquiagem ou caracterização sofisticada, de fácil manipulação e inserção em qualquer cenário,
e de grande afinidade em relação ao conteúdo de novas mídias como o videogame ou a internet.
Enfim, um personagem-coringa que oferece boa margem de manobra para os impulsos iniciais de
qualquer jovem realizador fã de cultura pop, cinema de gênero e vida digital. Não por acaso, talvez
toda uma geração Z, se é que esse rótulo faz sentido, identifica-se com narrativas envolvendo
zumbis, haja vista o sucesso internacional de séries como a norte-americana The Walking Dead
(2010- 2018), narrativa pós-apocalíptica desenvolvida por Frank Darabont baseada na série em
quadrinhos de mesmo nome, de Robert Kirkman, Tony Moore e Charlie Adlard.
Zumbi é pop. Zumbi é barato. Zumbi é descartável. Zumbi é explorado. Zumbi é latino-
americano. É oportuno que Mariano Paz observe alegorias ou visões do lumpemproletariado
(em termos marxistas) a propósito de sua análise de filmes de zumbi latino-americanos como a
trilogia argentina Plaga Zombie e o longa cubano Juan de los Muertos. Segundo Paz:

(…) é pertinente notar que tanto a trilogia Plaga Zombie como Juan de los
Muertos vão além da expressão de respectivas ansiedades e preocupações
conjunturais que são relevantes apenas às sociedades nas quais os filmes
foram produzidos. De acordo com Todd Platts, zumbis poderiam não ter
adentrado a cultura popular americana não fosse pela ocupação militar
americana do Haiti (1915-1934), a qual produziu descrições jornalísticas
xenofóbicas daquele país (2013: 549). Nesse sentido, a tradição do zumbi não
é meramente um empréstimo cultural do folclore haitiano, mas o resultado
de uma intervenção política e imperialista naquele país. (…) [O]s filmes aqui
discutidos [notadamente a trilogia Plaga Zombie e o filme cubano Juan de
los Muertos] articulam uma crítica que se endereça às relações desiguais
de poder entre os Estados Unidos e o restante das Américas, bem como às
continuadas tentativas de controle político, econômico e militar que os EUA
têm tradicionalmente tentado impor em toda a América Latina. (…) Oxalá
um número cada vez maior de filmes de zumbi latino-americanos venha
a subverter, ainda mais, versões mainstream do gênero, aprofundando o
criticismo acerca das relações desequilibradas de poder na América Latina,
não apenas no nível nacional, mas também hemisférico (PAZ, 2016: 248-9).

Muito provavelmente, os filmes de zumbi continuarão a proliferar na vizinhança. E se você


nunca assistiu a um, prepare-se: chegará o dia em que algum filme desses ainda vai bater à sua
porta, faminto pela sua carne.
Referências bibliográficas

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Lúcio Reis Filho - Doutor em Comunicação (Cinema e Audiovisual) pela Uni-
versidade Anhembi, mestre em comunicação pela Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF, 2012). Especialista em estudos clássicos pelo Departamento de Filosofia
da Universidade de Brasília | Cátedra UNESCO Archai (UnB/UNESCO, 2013). Es-
pecialista em jornalismo científico pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jor-
nalismo da Universidade Estadual de Campinas (LABJOR/UNICAMP, 2010). Li-
cenciado em história pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG/FCCP,
2008). Foi Professor do curso de história da Universidade do Estado de Minas Gerais
(Unidade Acadêmica de Campanha/MG), entre 2012 e 2016, e Professor Assistente
da disciplina teoria do cinema no curso de bacharelado interdisciplinar em artes e
design da Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2011. É tutor do curso de his-
tória EAD da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (CEAD/UNIRIO)
desde 2013 e professor do ensino básico (níveis fundamental e médio) desde 2009.
É membro do grupo de pesquisa imagens da morte: A morte e o morrer no mundo
Ibero-Americano (na UNIRIO).

Alfredo Suppia é graduado em comunicação social - jornalismo pela Pontifícia


Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas, 1998), mestrado (2002) e dou-
torado (2007) em multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (Instituto de
Artes, UNICAMP). Membro da Sociedade Brasileira para Estudos do Cinema e do
Audiovisual (SOCINE) desde 2001. Membro da Science Fiction Research Associa-
tion (SFRA) desde 2007. Autor dos livros: A Metrópole Replicante: Construindo um
Diálogo entre Metropolis e Blade Runner (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2011) e Atmosfera
Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro (São Paulo: Devir, 2013), orga-
nizou os volumes Cinema(s) Independentes: Cartografias para um Fenômeno Audio-
visual Global (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2013) e Zelimir Zilnik e a Black Wave (São
Paulo: Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, 2014), este último
pela coleção Cinusp.
14. Estratégias de mobilização de ativismo a partir da retórica do excesso no
audiovisual

Adil Giovanni Lepri

Introdução

O ativismo na internet tem se tornado uma importante dimensão na organização de causas


e lutas relevantes na sociedade brasileira como um todo. Apesar de seu advento não ter sido nas
chamadas Jornadas de Junho de 2013, foi então que de certa forma tomou corpo o peso das redes
sociais como ferramentas de mobilização e debate político, se configurando como um espaço
onde a ação política adquire traços particulares. Nesse sentido o audiovisual tem se tornado uma
faceta importante da forma de comunicação nos sites de redes sociais, como o Facebook, e os
avanços tecnológicos certamente tem um papel fundamental no que tange ao alcance do aparato
de captura de imagens e sons nas mãos de boa parte da sociedade. Mesmo que esse alcance não
seja pleno e tão amplo como possa se pensar, é possível tratar a câmera de filmagem como algo
muito mais corriqueiro na vida das pessoas a partir de sua instalação em cada vez mais aparelhos
celulares.
Pierre Levy, em seu livro “Cibercultura” (1997), atenta para a questão da técnica, no seu
sentido condicionante.

Dizer que a técnica condiciona significa dizer que abre algumas


possibilidades, que algumas opções culturais ou sociais não poderiam
ser pensadas a sério sem sua presença. Mas muitas possibilidades são
abertas, e nem todas serão aproveitadas. As mesmas técnicas podem
integrar-se a conjuntos culturais bastante diferentes. (LEVY, 1997, p.
24)

A técnica, então, é condicionante, mas não determinante (Ibidem), é preciso pensar a


tecnologia como ferramenta que possibilita mudanças sociais e saltos civilizatórios relevantes,
mas não as gesta nem as protagoniza. Levy levanta o exemplo do estribo no período histórico que
precede o feudalismo e como este é um condicionante para permitir que existissem os exércitos
feudais que lutam grandes e longas batalhas em cima de seus cavalos. Para o autor,
(...) sem o estribo, é difícil conceber como cavaleiros com armaduras
ficariam sobre seus cavalos de batalha e atacariam com a lança em riste...
O estribo condiciona efetivamente toda a cavalaria e, indiretamente,
todo o feudalismo, mas não os determina. (Ibidem, p. 24)

Então, para pensar a questão do ativismo nos sites de redes sociais, sobretudo aquele que
utiliza o audiovisual como ferramenta discursiva e de mobilização, é importante pensar a técnica
como condicionante para isso, mas não determinante da forma como se organiza o meio de
comunicação constituído. Ou seja, sem o celular que é câmera, sem o site de rede social que
aceita vídeos e sem ferramentas como a possibilidade de postagem direta de vídeos em qualquer
perfil no Facebook, não podemos pensar em uma paisagem audiovisual tão ampla composta por
vídeos de pessoas ordinárias compartilhando suas visões de mundo ao toque de um botão. No
entanto, as ferramentas não determinam o processo político que se segue.
É preciso então definir as coordenadas históricas nas quais se centra a análise pretendida aqui.
Trata-se do período em torno do pedido de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff que
começa a se gestar publicamente a partir de 2015, quando é formalizado, e se conclui na segunda
metade de 2016 com o afastamento definitivo da presidenta votado pelo senado federal. A reflexão
acerca dos sentidos sócio-políticos deste processo foge ao escopo deste artigo, porém parece
importante uma contextualização do mesmo. Escolho por fazê-la a partir do cientista político
André Singer, que em seu artigo “Cutucando onças com varas curtas: o ensaio desenvolvimentista
no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014)” (2015), defende que uma ampla aliança se
rompe e outra se forma entre as forças sociais brasileiras no período.

(...) o ensaio desenvolvimentista de Dilma teria, assim, seguido às


pegadas da década de 1960. Na partida, a burguesia industrial pede
ofensiva estatal contra os interesses estabelecidos, pois depende de
política pública que a favoreça. Para isso, alia-se à classe trabalhadora.
No segundo ato, os industriais descobrem que, dado o passo inicial
de apoiar o ativismo estatal, estão às voltas com um poder que não
controlam, o qual favorece os adversários de classe, até há pouco
aliados. No terceiro episódio, a burguesia industrial volta-se “contra
seus próprios interesses”(Cardoso) para evitar o que seria um mal maior:
Estado demasiado forte e aliado aos trabalhadores. Une-se, então, ao
bloco rentista para interromper a experiência indesejada. Tal como em
1964, as camadas populares não foram mobilizadas para defender o
governo quando a burguesia o abandonou. Mais uma vez o mecanismo
burguês pendular ficou sem contrapartida dos trabalhadores. (SINGER,
2015, p. 66)
Para o autor, o rompimento da aliança histórica avalizada pelo lulismo entre a fração
organizada da classe trabalhadora e burguesia industrial então se rompe, ao passo que a burguesia
especulativa e rentista vai trazer para seu lado os setores produtivistas do país, na criação de um
bloco histórico que vai jogar peso na deposição da presidenta. Mas o que é importante notar é
o elemento massivo que é ativado como sustentáculo fundamental deste processo. Ainda que
seja importante perceber o papel de entidades como a FIESP na defesa do impeachment, é claro
o papel desempenhado por uma massa que vai as ruas e precisa de uma narrativa coerente para
aderir. Nesse sentido os audiovisuais entram como índices relevantes para a construção de uma
narrativa e de mobilização de amplos setores das classes médias que vão as ruas.
A intenção deste artigo então, é a de pensar os audiovisuais feitos para a internet que
carregam em si discursos políticos em torno do impeachment da presidenta Dilma Rousseff e
como esses textos fílmicos trazem códigos do melodrama e da imaginação melodramática, o
excesso convertido em retórica. Para o pesquisador Peter Brooks (1995), uma das principais
facetas do melodrama, além do seu caráter excessivo é que “(...) melodrama não só aplica, mas
é centralmente sobre repetidas mistificações e recusas da mensagem e sobre a necessidade de
repetidas clarificações e reconhecimentos da mensagem.” (BROOKS, 1995, p. 28).
O melodrama, registro narrativo próprio da modernidade, pode então ser pensado como uma
forma de contar que restaura certezas, que, em tempos de crise e polarização se recondiciona.
Neste artigo pretende-se investigar alguns exemplos de audiovisuais que parecem retomar alguns
códigos e registros mencionados. A opção por analisar vídeos produzidos por personagens e
movimentos mais identificados com valores conservadores e favoráveis ao impeachment da
presidenta Dilma Rousseff se dá pela necessidade de compreender como e porque se estabelece
engajamento com esse tipo de audiovisual. Neste trabalho pretende-se analisar dois exemplos de
vídeos da página do Facebook e movimento Revoltados ONLINE e dois exemplos da jornalista
e militante pelo impeachment Joice Hasselman.

O audiovisual como instrumento político e o ódio como dimensão discursiva

É preciso identificar o audiovisual como importante ferramenta e instrumento de luta política


e transmissão de discursos e narrativas. As imagens em movimento têm potência, inclusive
aquelas que retratam acontecimentos factuais, como passeatas, acidentes, brigas, etc. A autora
Jane Gaines analisa um certo gênero de filme documentário que ela chama de “documentário
radical”, aquele que deseja sobretudo produzir mobilização em torno de uma determinada causa.
Para a análise dos audiovisuais produzidos para a internet, portanto, é possível tomar alguns
apontamentos feitos em seus textos.
(...) o filme documentário que usa realismo para fins políticos tem
um poder especial sobre o mundo do qual é cópia por que deriva seu
poder daquele mesmo mundo. (A cópia deriva seu poder do original). O
filme radical deriva seu poder (magicamente) dos eventos políticos que
retrata. (GAINES, 1999, p. 95)

Logo, é necessário compreender como a ilusão de realismo engendrada pelas imagens em


movimento é relevante para a construção de narrativas que desenvolvem uma série de certezas
acerca de um assunto em particular e, mais do que isso, podem produzir um engajamento no
mundo das imagens. A autora, porém, segue por dizer que “(...) só em conexão com momentos
ou movimentos que filmes poderiam fazer uma contribuição para a mudança social, e que neles
mesmos, não tinham nenhum poder para afetar situações políticas”. (ibidem, p. 85). Ou seja,
Gaines trata os filmes – e neste caso podemos pensar o mesmo dos vídeos em questão – como
índices para a mudança de uma determinada situação política.
Nesse sentido é importante pensar como o caráter corpóreo desses filmes pode suscitar uma
resposta similar do espectador no mundo real. Trazer então o pensamento de Sergei Eisenstein
é importante na medida em que sua conceituação da Montagem de Atrações, ainda como um
procedimento teatral, baliza boa parte da reflexão posterior acerca da mobilização corpórea dos
espectadores com relação ao que está sendo encenado, ou o que está na tela.

Colocar o sensual de volta na teoria de estética política iria requerer


reconceituação significativa. Na teoria de mudança social e cinema
de Eisenstein, os sentidos corpóreos direcionam o espectador, o
qual envolvimento não é estritamente intelectual – política não é
exclusivamente uma questão da cabeça mas pode também ser uma
questão do coração. Relevante aqui, eu acho, é a observação de
Jaques Aumont que no vocabulário crítico de Eisenstein, “atração” era
suplantada por “pathos”. (ibidem, p. 88)

Com essa definição em mente é interessante trazer um conceito proposto por Gaines e que
traz possibilidades de análises relevantes para os objetos em questão.

O que eu estou chamando de mimetismo político tem a ver com a


produção de afeto dentro e através da imagética convencional da luta:
corpos ensanguentados, multidões marchantes, polícia zangada. Mas
claramente tal imagética não terá ressonância sem política, a política que
tem sido teorizada como consciência, no marxismo como consciência
de classe, o protótipo para consciência politizada em lutas feministas,
antirracistas, gays e lésbicas. (Ibidem, p. 91)

Também no que tange o melodrama é importante reiterar sua particular relação com o corpo,
para Ben Singer: “Crucial para um grande número de melodramas populares era o sensacionalismo,
definido como uma ênfase na ação, violência, emoções, visões incríveis, e espetáculos de perigo
físico.” (SINGER, 2001: 48)
Retornando ao caráter excessivo do melodrama podemos trazer uma outra categoria que
é importante para a análise que é a do “cinema de atrações”, termo cunhado pelo pesquisador
Tom Gunning, que seria “(...) uma concepção que vê o cinema menos como uma forma de contar
histórias do que como uma forma de apresentar uma série de vistas para um público, fascinante
por causa de seu poder ilusório e exotismo” (GUNNING, 2006: 64). Nesse sentido então, parece
possível se trabalhar com a noção de audiovisual de atrações, trazendo o conceito para os objetos
em questão.
Para além do audiovisual como atração é preciso refletir sobre o excesso como retórica em
vídeo, calcado nos códigos do melodrama já apontados anteriormente: “O elemento essencial,
talvez mais frequentemente associado com melodrama é uma certa qualidade de ‘extenuação’
ou ‘exagero’ resumida pelo termo excesso.” (SINGER, 2001: 38-39). Retomando Peter Brooks,
quando este analisa a retórica do melodrama no teatro, pode-se trazer alguns apontamentos acerca
do excesso como retórica, para o autor:

Retórica melodramática, como nossos exemplos acumulados


suficientemente sugerem, tende na direção do inflado e sentencioso.
Suas figuras típicas são a hipérbole, antítese, e oximoro: estas figuras,
precisamente, que evidenciam a recusa de nuance e a insistência de se
lidar em conceitos puros e integrais. (BROOKS, 1995, p. 40)

Destaca-se então o aspecto monolítico da retórica do excesso, nos termos do autor. A dimensão
da obviedade está latente no discurso em questão, trazendo à tona a necessidade de restauração
de certezas. Brooks apresenta então sua hipótese com relação à retórica do melodrama, aqui
historicamente situada no período pós-revolucionário na França, como uma estratégia discursiva
que vence as repressões.
Nós podemos agora avançar a hipótese que a retórica melodramática, e todo o empreendimento
expressivo do gênero, representa uma vitória sobre a repressão. Nós podemos conceber essa
repressão como simultaneamente social, psicológica, histórica, e convencional: o que não poderia
ser dito em um estágio mais inicial, nem ainda em um estado mais “nobre”, nem dentro dos
códigos da sociedade. (Ibidem)
Nos casos em questão veremos, mais a frente, como se reconfigura esse aspecto de forma
diversa na leitura dos audiovisuais analisados.
Os discursos presentes nos vídeos a serem analisados têm, em grande medida, uma verve
odiosa ou violenta. A internet parece, por vezes, que é o terreno fértil para a gestação e reprodução
de discursos de ódio, no entanto, para a pesquisadora Raquel Recuero, as “(...) mídias sociais
tem, em muitos aspectos, dado “superpoderes” para a violência simbólica. As mídias sociais
proveram um espaço chave para a reprodução de toda a sorte de discurso, inclusive aqueles
violentos” (RECUERO, 2015: 3). Logo, segundo a autora, podemos pensar no ódio como mais
uma dimensão discursiva amplificada, mas que chama a atenção pelo excesso. Carlos Alberto
Carvalho aponta para um norte similar, mas otimista quanto às características da internet e dos
sites de redes sociais.

A internet, como terra de ninguém, pode ser, contraditoriamente, um


promissor lócus para o exercício da pluralidade, da democracia, da
diversidade e do convívio na aceitação e pleno reconhecimento das
diferenças, mas também o oposto, terreno onde vicejam o ódio, o
preconceito, o desrespeito às leis e aos direitos humanos elementares.
Construir coletivamente a primeira via é um desafio que se impõe.
(CARVALHO, 2016, p. 11)

Para Hannah Arendt a banalidade do Mal consiste no fato deste não ser radical, nem possuir
“dimensão demoníaca”, ele desafia o pensamento e a profundidade. (ARENDT, 2014). A reflexão
da autora parece chegar a uma importante realização. Por mais que pareça totalizante e radical,
o mal enquanto discurso e prática política, pode se imbricar por entre as frestas da sociedade
tornando-se então, banal, e aí que reside sua ameaça.

As reflexões em torno do mal, do discurso de ódio e do excesso são fundamentais para pensar
os audiovisuais produzidos para a internet e sua organização discursiva, tanto em termos de
conteúdo quanto de forma. A seguir será feito um pequeno parênteses para pensar como as formas
de mobilização política se adaptam no contexto das redes sociais na internet.

Estratégias de mobilização online

O trabalho de Papacharissi (2008) sobre a esfera pública no contexto da internet e das redes
sociais estabelece um diálogo com a noção habermasiana do conceito e com o pensamento de
Arendt (1981) sobre a questão massiva. A autora sustenta que os espaços online não são imunes
à comercialização,

No entanto eles se tornam adeptos em promover híbridos de


interações públicas comerciais que atendam a demandas de audiência
e são simultaneamente mais viáveis dentro de um mercado capitalista
(PAPACHARISSI, 2008, p. 22)

Assim, a tensão entre público e privado é aparente. Nesse sentido, Arendt apontou uma
reflexão ligada à dificuldade da sociedade de massas de se sustentar.

O que torna tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de


pessoas que ela abrange, ou pelo menos não é este o fator fundamental:
antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las
juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las (ARENDT, 1981,
p. 62)

Com a qual Papacharissi dialoga ao dizer que:

É precisamente este “meio”, que, enquanto indivíduos agem civicamente


a partir do locus da esfera privada, é preenchido pela mídia online
digital. Diferente da mídia digital offline, tecnologias online possuem
arquitetura “reflexiva”, responsiva às necessidades de múltiplas esferas
públicas, que estariam isoladas não fosse pelas capacidades conectivas
da mídia online. (PAPACHARISSI, 2008, p. 25)

A capacidade conectiva da mídia online então é uma característica fundamental no que tange
o pensamento da atuação dos indivíduos politicamente, não sendo possível pensar em uma esfera
pública unificada, algo que mesmo o conceito habermasiano já não dá conta. A dimensão de
massa é comunicativa, no entanto, é central para pensar o agir político nesse contexto.
A pesquisa de Christensen (2011) é importante ao chamar atenção para o chamado “slacktivism”
ou “ativismo de sofá”, que segundo o autor denota uma ação política que demanda o menor
esforço, frequentemente realizada pela internet, mas pode também tomar outras expressões:
“(...) como usar mensagens políticas em várias formas no próprio corpo ou veículo, grupos do
Facebook, ou tomar parte em boicotes de curto-prazo como Dia de Comprar Nada ou Hora do
Planeta.” (CHRISTENSEN, 2011, p. 3). Esta forma de participação política encontra críticas que
sustentam que:

(...) o ativismo online é tipicamente nada mais que slacktivism, isto é,


atividades que podem fazer o indivíduo ativo se sentir bem, mas têm
pouco impacto em decisões políticas e pode até distrair os cidadãos de
outras, mais efetivas, formas de engajamento. (idem, p. 6)

Assim, construindo uma forma de engajamento que é também, e por vezes principalmente, uma
estratégia de distinção, algo que agrega valor a um determinado indivíduo, através da divulgação
de certas ações políticas no espaço online. Ainda que certa “comodificação” do ativismo seja
latente no contexto das redes sociais, Christensen entende que ao contrário do que se defende em
certas críticas ao “ativismo de sofá”,

(...) pesquisas mais recentes sugerem uma positiva – embora fraca –


ligação entre ativismo online e engajamento em participação política
offline. Isso sugere que estar envolvido em atividades políticas sem
esforço não substitui formas tradicionais de participação, se muito, elas
reforçam engajamento offline. (Ibidem)

Aldé (2011), ao analisar diferentes perfis de internautas, vai comungar dessa opinião,
apontando que há uma definição diferente de ação política para o espaço online.

A experiência online, com suas práticas de interatividade e


compartilhamento, audiência pessoal e seletiva, propõe uma mudança
na abrangência de escopo da política, que pode estar presente em
esferas mais microscópicas e cotidianas, próximas do indivíduo. Assim,
reencaminhar um e-mail, pertencer a um grupo público ou clicar em
apoio a uma petição, por exemplo, representam para várias pessoas
tipos de atividade política. (ALDÉ, 2011, p. 386)

As redes sociais na internet não são o espaço exclusivo para a ocorrência do “ativismo de
sofá” (CHRISTENSEN, 2011), embora sejam um local privilegiado para este tipo de atividade
com o menor esforço, dado que o espaço online traz a facilidade de ter as ações políticas “na
ponta dos dedos”.
Em vista das particularidades do agir político relatado pelos autores aqui citados, é importante
pensar o lugar dos grupos organizados e figuras de autoridade – de relevância pelo menos no
contexto histórico analisado – como aqueles cujos vídeos foram analisados anteriormente.
Nos exemplos colocados para análise é clara a primazia do excesso e da atração como
elementos não só de mobilização sensorial dos corpos na tela, e da câmera como sua extensão, mas
também pretendida no corpo do espectador. A mimese política proposta por Gaines (1999) parece
o objetivo não dito, mas mostrado nos audiovisuais – seja com manifestações corpóreas positivas
de mobilização política, como no exemplo de Hasselman, ou negativas, de um corpo acuado,
como no exemplo de Revoltados Online. Há uma intenção de suscitar uma resposta corpórea em
quem assiste, criar um pathos do fato que mobiliza os afetos e a ação política do internauta, um
“ativismo de sofá” que faça circular aquele vídeo em sua rede, mas também um sentimento difuso
de indignação que tenha a capacidade de produzir uma ação fora do espaço online, que, aliado
aos discursos noticiosos de grande parte da mídia tradicional tem a possibilidade de engendrar
determinadas mobilizações.
O papel do audiovisual neste processo então parece importante, na medida em que não
só se aproveita das materialidades e tecnologias que estão postas nos sites de redes sociais, mas
também de um conjunto de características, talvez inconscientemente mobilizadas, próprias do
melodrama e de uma retórica do excesso, que ativa os afetos corpóreos na chave do “ativismo de
sofá”. A seguir pretende-se construir uma breve análise de alguns exemplos a partir da construção
teórica detalhada até aqui.

Análise fílmica: Revoltados Online e Joice Hasselman

Serão analisados 2 vídeos postados pela página e movimento Revoltados ONLINE no


Facebook, e 2 vídeos postados pela jornalista Joice Hasselman em seu canal do Youtube. O
primeiro vídeo de Hasselman trata-se de um pequeno blog (vídeo blog) que noticia a chegada de
uma carreata a Brasília para protestar contra o governo de Dilma Rousseff, intitulado.
Concentração pelo #ForaDilma! – Joice Hasselmann – #Forapt (Joice Hasselman, 2015). No
audiovisual em questão a jornalista filma a si mesma com a câmera na mão um pouco mais alta que
o rosto, em leve plongée e fala sobre a chegada de alguns grupos sociais motorizados a Brasília
para uma “grande manifestação” nas palavras da mesma. A câmera virada para si mesmo denota
a clara necessidade não de apenas documentar o mundo, mas sim a própria presença neste mundo
das imagens. Erly Vieira Jr. faz uma reflexão sobre o que seria a “câmera-corpo” em determinado
cinema contemporâneo sensorial, em que a objetiva estaria “(...) em estado de “semiembriaguez”,
a apreender sensorialmente a intensidade da experiência que captura, possibilitando uma mediação
pulsante junto ao espectador contemporâneo.” (VIEIRA JR., 2014: 1223), assumindo então um
lugar corpóreo, cabe então a essa câmera “(...) escoar por entre o transbordamento de afetos entre
todos esses corpos filmados e o próprio corpo do espectador (...)” (Ibidem). Para esta reflexão,
no entanto, acreditamos que a câmera olho da tradição soviética de Dziga Vertov dá lugar, neste
caso, a outra espécie de “câmera corpo”, o dispositivo como extensão do próprio corpo de quem
filma, mas não como um corpo em si mesma. Ainda que não seja inédita a manipulação da câmera
de filmagem para ressaltar o corpo de quem opera, seja na ficção ou no documentário, aqui
acredito que possa se perceber certa transformação nesse expediente fílmico, principalmente com
relação ao celular e sua câmera frontal. Assim, valorizando a imagem de si mesmo, ressaltando
não só os movimentos corpóreos na operação da câmera, mas também sua imagem.

A câmera então se afeta junto com a afetação corpórea, é como se o aparato se tornasse a
mímese política que se pretende no espectador. As imagens tremidas, o ruído de vento, de buzinas
e do ambiente são valorizados como índices do mundo real para a construção de um espaço
fílmico onde a presença de uma massa raivosa é característica privilegiada, o vídeo torna-se
atração pois apesar de definir uma clara narrativa verbal é acima de tudo um “pathos do fato”
(GAINES, 1999), ou seja, uma mostração de algum acontecimento que engendra uma causa clara
e um perigo presente, para a cinegrafista neste caso a causa é a derrubada do governo que traz um
perigo constante a sociedade brasileira. Aqui é possível retomar a reflexão do Brooks acerca da
retórica do excesso, quando este identifica nela uma reação à repressão.

Ainda em registro similar a este podemos trazer o exemplo do vídeo postado pela página
Revoltados ONLINE com o título Bando de safados! São machos quando estão em bando (Marcello
Reis, 2015) que mostra o dirigente do movimento, Marcello Reis, em meio a um grande número
de filiados do Partido dos Trabalhadores em um lobby de um hotel onde acontecia o congresso
do partido. A presença do que se propõe ser pensado como a “câmera corpo” é mais intensa aqui,
no entanto o objeto principal do olhar da objetiva é o mundo ao redor do cinegrafista, tal qual
em Vertov. A câmera então se afeta na medida em que o corpo que a opera é afetado, sendo esse
processo o cerne do vídeo em si, que traz poucas palavras do personagem dirigente do movimento
para a câmera, acontecendo apenas no início do vídeo de forma breve. O caráter atracional deste
vídeo é muito claro, uma vista sensacional de uma multidão tornada turba, imagens tremidas
são pressuposto estético de um vídeo que parece conter algum grau de manipulação consciente
da situação, senão do próprio dispositivo, trazendo inclusive o aspecto próprio do melodrama
do personagem que enfrente um grande perigo físico. A sensação é praticamente o propósito
exclusivo do vídeo, que tem na “câmera corpo” a articulação da mímese política pretendida no
espectador, que associado ao excesso presente nas imagens, nos gritos ao fim de “solta ele”, nas
imagens quase abstratas que são produzidas a partir do balanço violento da câmera e sons que são
manipulados pelo próprio corpo, na medida em que este cobre e descobre o microfone do celular
que é usado para a filmagem, causando uma verdadeira sensação de aprisionamento, de ataque
selvagem.

Nesses exemplos, é importante também notar o caráter melodramático não só no excesso


enquanto chave discursiva e retórica, mas também na definição de certo “bem” contra um suposto
“mal” que assola os personagens, com a obviedade e repetição tão próprias do melodrama e
no engajamento corpóreo não só com os corpos presentes nas imagens, mas com os corpos do
“mundo real”. A questão da técnica como condicionante é fundamental também, na medida em
que é necessário perceber que o celular com câmera condiciona este tipo de audiovisual, mas não
determina o caráter do conteúdo ou mesmo o processo político que é alvo de sustentação a partir
desses vídeos.

Conclusão

Neste artigo pretendeu-se analisar a forma como os audiovisuais produzidos para a internet
e nos sites de redes sociais trazem consigo um caráter atracional e códigos melodramáticos na
construção de sua forma e de sua retórica. A mimese política parece ser o objetivo desses vídeos
que carregam um forte elemento de afeto corpóreo, usando a categoria proposta aqui de “câmera
corpo” como reprodução desta afetação para engendrar um engajamento do espectador que
funciona na chave do “ativismo de sofá”, trazendo diferentes formas de ação política nos sites de
redes sociais.

Mobilizando poucos recursos da gramática audiovisual em sua forma os vídeos causam


respostas corpóreas e engajam militância, mesmo que dê ocasião, para suas pautas e causas. A
atração e o afeto provocam talvez engajamentos menos racionais e mais do “coração”, como
aponta Jane Gaines. É importante, portanto, compreender esses audiovisuais e o que os faz
dialogar com setores da sociedade para melhor compreender a eficácia de determinados discursos
no processo político como um todo.

Todos os exemplos citados são intocados em termos de pós-produção da imagem, de


montagem, plano sequência é regra para ambos e não há inserção de ruídos ou trilha sonora em
nenhum exemplo. É como se fosse o audiovisual de “cara limpa”, sem uma articulação clara de
sua gramática para produzir algum efeito determinado. Essa dimensão dos vídeos traz um caráter
importante que é aquele de um realismo mais real que a própria realidade, sem intervenções,
contribuindo para a noção dos vídeos como testemunhos dos personagens.

Estes vídeos não constituem um amplo corpus de dados, e este artigo não pretende dar conta
da totalidade da paisagem audiovisual em torno do assunto do impeachment da presidenta Dilma
Rousseff. A tentativa é de pinçar alguns exemplos dentre uma pesquisa exploratória mais ampla de
um panorama audiovisual presente na internet, propondo a hipótese de que esta estirpe de vídeos
analisada neste artigo, ainda em caráter inicial, dirige uma tendência relevante para o audiovisual
político na internet. Pretendeu-se então investigar um certo tipo de caráter atracional e alguma
medida de aparecimento de códigos melodramáticos em um certo tipo de vídeo realizado por
movimentos e figuras mais identificados com pautas conservadoras para o país.
Referências bibliográficas

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política online” In: Contemporânea: comunicação e cultura - vol.09 – n.03 – setembro-dezembro,
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ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-universitária, 1981.
BROOKS, P. The melodramatic imagination Balzac, Henry James, melodrama and the
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e disseminação da intolerância”. In. Revista da Associação Nacional dos Programas de
PósGraduação em Comunicação | E-compós, Brasília, v.19, n.2, maio/ago. 2016
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participation by other means?” In: First Monday, Volume 16, Number 2 - 7 February 2011.
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Documentary Attractions. In. New Literary History, Vol. 33, No. 4, Everyday Life (Autumn,
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In. STRAUVEN, W. (Org.). Cinema of attractions reloaded. Amsterdam: Amsterdam University
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LEVY, Pierre. Cibercultura. Editora 34, 1999.
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RECUERO, Raquel. “Social Media and Symbolic Violence” In Social Media + Society,
AbrilJunho 2015, p. 1-3.
SINGER, Ben. Melodrama and modernity: early sensational cinema and its contexts. New
York: Columbia University Press, 2001
VIEIRA JR, Erly. “Por uma exploração sensorial e afetiva do real: esboços sobre a dimensão
háptica do cinema contemporâneo”. Revista FAMECOS, 2014, 21.3: 1219-1240.

Referências audiovisuais
Concentração pelo #ForaDilma – Joice Hasselman - #Forapt. Joice Hasselman, 2015.
<Disponível em: https://www.facebook.com/joicehasselmann/videos/977256662346523/>
Acesso em 25/06/2017.
Bando de safados ! Só são machos quando estão em bando. Marcello Reis, 2015.
<Disponível em: https://youtu.be/-TkrmbUp8us> Acesso em 25/06/2017.

Adil Giovanni Lepri - É graduado em cinema e audiovisual pela Universida-


de Federal Fluminense (UFF) e mestre em comunicação na mesma. Atualmente é
doutorando no Programa de Pós Graduação em Cinema e Audiovisual da UFF, onde
estuda um assunto que vem bem a calhar, a saber, Compartilhamento do excesso:
melodrama e discurso político nos audiovisuais produzidos para a internet
15. A história da experimentação no cinema brasileiro: mitos de origem, mo-
mentos obscuros, desafio crítico

Rubens Machado Jr. 

I. Clássico, anticlássico e quase clássico 97

“Na universalidade tão admirada das obras


clássicas está se perpetuando, como norma
e configuração, a universalidade funesta dos
mitos, o caráter inelutável do sortilégio.”

T. W. Adorno, 1969. 98

“A memória seria uma deselegância no meu


sistema. Nada do que ocorre a cada instante
me vem apresentá-la, e no entanto, ela está
lá.”

Paul Valéry, 1899. 99

Num país jovial e meio barroco como o nosso, a simples menção do termo clássico vive nos

97
Com leve modificação esta parte I foi publicada no folder “Clássico, Anticlássico e Quase Clássico: aspira-
ções, invenções e tradições do cinema brasileiro” in: Uma História do Cinema na Cinemateca Brasileira, Módulo
27. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 26 de abril a 14 de junho de 2011.
98
Adorno, Theodor W. Teoria estetica. [1969] (tr. Enrico De Angelis) Turim: Einaudi (Piccola Biblioteca), 1977,
p. 274 (tradução nossa).
99
“La mémoire serait une inélégance dans mon système. Rien dans ce qui est à chaque instant ne la présente,
et cependant, elle est.” Valéry, Paul. Cahiers. Paris: Gallimard (Pléiade), 1973, I, p. 1211 (tradução nossa).
dando cócegas. E, por vezes, alguma flagrante pretensão de exagero o acompanha. No entanto,
acaba nos atraindo a necessária positividade que ele nos promete. Iremos precisar dessa positivi-
dade para ordenar, fazer progredir, e afinal apreciar a nossa (nem sempre) precária realidade. Não
nos esqueceremos de procurar o que na bandeira nacional se propõe (e continuaria faltando), ou
seja: — Como chegar à Ordem e ao Progresso? Que significado podem ter? Mais ainda: — Como
usufruir, o que fazer do que já conquistamos?
O cinema brasileiro não escapa dessa realidade maior e dependerá também dos olhares con-
temporâneos que pretendem sempre reordená-lo na história. A sorte dos filmes nacionais conside-
rados clássicos vive assediada por essa “providencial” instabilidade. Sintoma disso é a impressão
de que este ou aquele clássico mais tradicional o seria de fato mais por convenção do que por
convicção.
Além de favorecer enrijecimentos, engessar, o consenso pode oprimir o que se tem ou se
intui como diferente. Quando tudo se pode dizer democraticamente e interessa ampliar a com-
preensão do que se discute, sobretudo em quadro contemporâneo, entretanto herdeiro neoliberal
de tradições autoritárias, há ocasiões em que a censura ocorre de fato por intermédio do “consen-
so” 100. Alguém lembrará da boutade abrupta de Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”.
Vamos combinar que estamos de acordo se o unânime em questão apoiar-se apenas no chamado
senso comum. Este último deve ser atacado continuamente pelo exame atencioso dos processos
de legitimação e dos critérios críticos exercitados; o que não é fácil. A nenhum filme brasileiro
falta o vestígio da afirmação, na medida em que qualquer um deles, já por sua simples existência,
sobrepuja o isolamento e a miséria do status quo mais encontradiço. E se há realização classicis-
ta em terreno meio arcaico, é certo que pesou o gesto ancestral de Afirmação sobre a Natureza,
que a atração circense tão bem materializava, muito antes do cinema. As ideias vão mudando
e os modos de pesquisar, muitos momentos relegados ou ignorados vão aflorar. Muito se pode
interrogar hoje em dia das velhas obras cinematográficas em virtude de novas concepções de
mundo deflagradas. Os verdadeiros clássicos vão resistindo ao tempo, e mesmo se renovando,
arriscando ampliar o seu espectro de sentidos. A especulação de cada novo momento é necessária
para testar os critérios assentados e tradicionais. As exigências práticas do presente repõem com
novos moldes uma educação dos sentidos refeita, que nos faz ver com novos olhos, provocando
uma percepção diferente.
Por um lado já se tornaram senso comum, mesmo para quem não gosta de enxergar o filme
brasileiro pelo ângulo do autor, nomes como Nelson, Glauber, Joaquim Pedro, Leon, Cacá, Car-
lão, Anselmo, Lulu… Ou sobrenomes como Medina, Mauro, Peixoto, Cavalcanti, Manga, Khou-
ri, Person, Candeias, Saraceni, Sganzerla, Bressane, Babenco, Mojica… De outro lado há os
filmes. Fora de sua singular análise crítica resta, e floresce, a mitologia do cinema; assim como na
historiografia dos grandes criadores acabaria imperando o relato martirológico. Do modo como
100 Cf.: Garcés, Marina. “El consenso es la censura”, Ciudad Princesa. Barcelona: Galaxia Gutemberg, 2018, pp.

31-35.
se dá o consenso nestes casos de pura ressonância da indústria cultural, convém destacar o fato de
que para além do chamado cinema clássico e de todo o classicismo aparentado à história da arte,
tudo pode virar “clássico”. Onde a indústria não consegue erigir seus modelos de comercializa-
ção mediante a interação sistemática do consumo, como falar de cinema clássico, senão como
mimese estilística trazida dos maiores centros fabricadores? Entre o conceito mais exigente e a
vulgarização indiscriminada ou prepotente surge a crítica tentando mediar o assunto.
Claro que este não é um problema exclusivo do Brasil, ou da periferia. Mas a diferença existe
— e persiste na história, tem estado aí para fazer contraponto, negar, glosar ou contrastar com as
mais fortes potências emissoras. Em toda parte o clássico tem convivido com o pseudoclássico, o
quase clássico e o anticlássico. Como já disse Giulio Carlo Argan, tentando dar conta da eclosão
maneirista na história da arte, o termo anticlássico, naquilo que parece designar, paradoxalmen-
te, torna mais claro num átimo aquilo que sugere configurar, e mais denso de conteúdos que o
seu contrário 101. Glauber Rocha teria intuído o problema não só ao escrever a Estética da Fome
como ao chamar a cultura estadunidense de “neoclássica”; isto, claro, sem falar da sua reiterada
simpatia pelo barroco.
Cada diferente prática do cinema, se bem desenvolvida, vai sugerir a sua própria configu-
ração clássica. Porém, falar em clássicos de cada gênero cinematográfico de narrativa só é uma
coisa cristalina e claramente autorizada quando a indústria os institui. E o caráter intermitente ou
precário da indústria do cinema no Brasil arremessou a possibilidade de qualquer tipo de clássico
para epicentros distintos dos cânones de gênero convencionais do cinema. Nestes termos, a atual
vaga tecnológica de amadorismo fértil e promissor não é exatamente uma novidade desde que se
começou a filmar por aqui. Estudiosos do país, como Paulo Prado ou Mário Pedrosa, voltaram a
apontar uma renitente inclinação romântica que nos custa muito endireitar. Seguindo o vaticínio
de Paul Valéry, de que toda a obra romântica já é clássica apenas mediante o seu êxito 102, resta-
-nos compreender o que de melhor aqui se construiu. Sucessos de crítica ou de público, êxitos
frustrados por desvendar, êxitos do futuro, ainda incompreendidos?
Decidimos sobre a grandeza de um filme pelo modo dele se ajeitar em nossa memória. Sua
sobrevida fílmica em nós depende dessa memorabilidade específica, sobretudo de sua inquietude
e capacidade de convívio perante a nossa experiência de vida enquanto algo que se insinua, que
indaga, nos promete sentidos e se arraiga como se persistisse interrogando algo do maior interes-
se. A reflexão acerca dos filmes, a sua promessa de nuançar, tarefa da crítica imanente, vive nos
propondo as balizas que nos faltam para pensar o cinema. Consubstanciadas pela análise crítica,
tais balizas servem de parâmetro mais seguro, nos elaboram noções e nos oferecem conceitos
a lançar mão, para recuperar na observação de outros filmes sucessivamente, constituindo esta
seara chamada cinema. Aí crescerão também outras produções audiovisuais assemelhadas, pa-
101
Argan, Giulio Carlo. Classico Anticlassico: Il Rinascimento da Brunelleschi a Bruegel. Milão: Feltrinelli, 1984, pp.
VIII-IX (tradução nossa).
102
Citado por Adorno, para quem “tal conceito de classicidade está tensionado ao máximo; é o único digno da
crítica”, op. cit., p. 273 (tradução nossa).
recendo filme, para compararmos, buscarmos suas diferenças, o seu singular. A experimentação
crítica destas diferenças, logo saberemos, vem das próprias obras singulares, que seriam por seu
turno, e na sua origem, também elas experimentais. Ou não.


II. Passos e descompassos à margem 103

II.1. Humores

“Há essa luz também, luz que nos cega


com dois sóis que nos deixam sob as pálpebras
a sensação de estarmos enxergando;
e somos cegos da cegueira funda
que se esqueceu da noite de onde vimos
e que não vê a noite pra onde vamos.”

Jorge de Lima, 1952. 104

Ouvi de Rogério Sganzerla certa vez que: “O cinema brasileiro é o máximo, porque é o
impossível.” Lembrado como última vaga inventiva na história do cinema brasileiro, o chamado
cinema marginal tem a sua especificidade cinematográfica bastante complexa e merecedora de
estudos. Continua, no entanto, atraente o seu paralelo mais geral com outras manifestações, como
o significado que teve para a música popular brasileira o despontar do movimento tropicalista e o
experimentalismo que o sucedeu, lá pela mesma ocasião histórica. De modo análogo ao Tropica-
lismo, considera-se que depois daquela onda, apenas individualmente um ou outro nome se des-
tacaria talvez com radicalidade comparável; sempre porém pressupondo-se os passos ali dados.
Uma questão anterior, no entanto, se impõe, dificultando a observação desse paralelo: por que
Cinema Marginal, se o Cinema Novo antes dele (e também durante), sobretudo Glauber Rocha,
é posto como paradigma igualmente cotejável para com o Tropicalismo? Figuras decisivas como
Caetano Veloso e Zé Celso Martinez Corrêa têm lembrado de Terra em Transe (1967) como o
momento em que se tornou possível o descortinar das novas perspectivas. A cada nova década,
103
Esta parte II foi publicada pela 1ª vez no catálogo Cinema Marginal e suas fronteiras: Filmes produzidos nas déca-
das de 60 e 70. (orgs. E. Puppo & V. Haddad) São Paulo: CCBB, 2001, pp. 16-19; em versão retocada, Alceu:
Revista de Comunicação, Cultura e Política, v.8 nº15: Raízes e veredas do cinema brasileiro (orgs. Miguel Pereira
& Gian Luigi de Rosa) Rio: PUC - Dep. de Comunicação Social, 2007, pp. 164-172. “Tempi e controtempi
al margine”, Alle Radici del Cinema Brasiliano. Salerno: I.S.L.A., Oèdipus (Cine Latino 5, dir. Marco Cipolloni,
cura di Gian Luigi De Rosa), 2003, pp. 161-168.
104
Lima, Jorge de. “Subsolo e supersolo”, Canto II, XIV, Invenção de Orfeu. [1952] São Paulo: Círculo do livro,
1980, p. 112.
por outro lado, dois marginais-expoentes como Rogério Sganzerla e Júlio Bressane andaram re-
velando cada vez maior estranhamento com a designação Marginal, e claros indícios de simpatia
pelo Cinema Novo, ao qual se viam ligados quando começaram.
Isto não quer dizer entretanto que alguém queira se esquecer do que entre marginais e cine-
manovistas houve de ruptura e de oposição, implícita ou declarada. O lado explícito tem docu-
mentos memoráveis, como a entrevista de Sganzerla e Helena Ignez n’O Pasquim. O implícito
segue interessando enormemente à crítica pela sua riqueza, densidade e controvérsia. Entre as
inúmeras oposições, tomo como exemplo uma das que considero mais significativas: o interesse
dos marginais pelo humor e a consequente revalorização da Chanchada, que vinha em desgraça
desde os primeiros acordes cinemanovistas. É preciso recompor os passos deste desprestígio in-
telectual da Chanchada, enrijecido nos anos 1960, para se poder ter uma ideia daquilo que então
veio se desrecalcar. Isso tem a ver com a noção de que a paródia dos chanchadeiros se submetia,
prendendo-se ao modelo importado de cultura e de cinema, sendo uma macaqueação dos gringos
como alçada menor e tacanha da condição brasileira; mais: ela seria um capítulo da subserviência
espiritual colonizada.
A inversão de perspectivas parece ter-se operado na virada entre as décadas de 60 e 70, como
se fosse mais por influências indiretas do Tropicalismo do que por uma reavaliação de cineastas,
críticos ou estudiosos — que viria em seguida, em textos de Jean-Claude Bernardet e de João
Luís Vieira, entre outros, a discutir os aspectos especificamente críticos da paródia chanchades-
ca. O que não foi observado é o quanto o ponto de inflexão mais contundente deveria recuar ao
impacto causado em 1968 pelo primeiro longa-metragem de Sganzerla, O Bandido da Luz Ver-
melha. Se a Chanchada construiu sua veia cômica em vivo diálogo com o samba, a marchinha
carnavalesca, o teatro popular dos esquetes nas casas noturnas, a jovem indústria fonográfica, o
rádio e seus shows de auditório, otimizando a velha “intermidialidade” da indústria cultural nas-
cente na capital federal, o Cinema Marginal inventava como um de seus traços distintivos 105 um
novo otimizar deste diálogo — agora ampliado pela vivência dos media em tempos de moderni-
zação conservadora, a onda cultural pós-Golpe de 64, o vigente Febeapá (Festival de Besteira que
Assola o País) 106. O choque do novo, seu espalhafato, é aí convincente, creio, na medida em que
ele reconfigura a vida empírica do país num fato inédito, um não-empírico estético do empírico
vivido 107, que chega como forma inusitada e provocativa, cuja virulência está na fusão moderna
de elementos da Chanchada à perspectiva crítica perante o Brasil aberta pelo Cinema Novo. Tal-

105
Machado Jr., Rubens. “Observação sobre O Anjo Nasceu”, Cine-Olho n°5/6, São Paulo: Kairós, 1979, pp.
52-53.
106
Ponte Preta, Stanislaw. FEBEAPÁ - 1, Primeiro Festival de Besteira que Assola o País. [1966] (il. Jaguar) 7ª ed.
Rio: Sabiá, 1968, 168 p. il.
107
“A arte fantástica, seja aquela romântica sejam os traços que dela se descobrem no maneirismo e no bar-
roco, representam um não-ente como ente. As invenções são modificações disso que empiricamente existe.
O efeito é a apresentação de um não-empírico como se fosse empírico. A origem empírica facilita o efeito.”
Adorno, T. W. “Storia filosofica del nuovo”, op. cit., pp. 33-34 (tradução nossa). Bürger, Peter. “A obra de arte
de vanguarda”, Teoria da vanguarda. [1974] (tr. José Pedro Antunes) São Paulo: Ubu, 2017, pp. 135-145.
vez seja possível afirmar categoricamente que foi a partir das sessões do Bandido que nunca mais
se registraram descasos ou reprimendas intelectuais à Chanchada. E isto nos indica o alcance de
certos filmes como texto crítico e historiográfico efetivo, já que percebido por todos, ainda que
não aflorado nos termos da racionalidade do debate público em curso: Eis um caso claro a se es-
tudar de re-escritura da história do cinema pelo impacto próprio de determinados filmes.
Complica o quadro se recordarmos que Glauber houvera já, antes disso, no Terra em Transe,
introduzido com muita felicidade num pequeno papel de senador parnasiano o comediante Mo-
desto de Souza, figura indissociável da Chanchada, responsável pelo efeito sarcástico e a formi-
dável catarse de certas boas cenas do filme. Deste pequeno senador, pioneiro desbravador no até
então sisudo e compenetrado Cinema Novo, até à homenagem que selará a sua reconciliação com
a Chanchada, Quando o Carnaval chegar (1972), de Cacá Diegues, gradativas aproximações fo-
ram-se verificando, contado o passo seguro do Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade.
Isto porém não altera a percepção de maior simpatia dos marginais pela Chanchada, bem como a
sua iniciativa mais incisiva de resgate. É como se o Ciclo Marginal tomasse o gesto chanchadesco
mais pelo cerne; por assim dizer, pelo seu princípio ativo e não por suas decantações conven-
cionadas de patrimônio afetivo. Um encontro sintético de potencialização da Chanchada entre
ambas trajetórias, marginal-cinemanovista, se manifestará na virulência crítica e performance
carnavalesca da A$suntina das Amérikas (1976) e Videotrip (1984), de Luiz Rosemberg Filho.

II.2. Espontaneidades

“Mas
é limpinha”

F. Alvim, 2000.  108

“Oswald de Andrade — Pode-se atribuir ao capi-


tal estrangeiro essa face perigosa do imperialismo,
digna de um prognóstico de um professor ou espe-
cialista?
Caio Prado Júnior — Acho que assim retornamos
aos problemas decorrentes da adjetivação excessi-
va e das caracterizações morais. Nas observações
feitas por V. Exa. observei pelo menos quatro adje-
tivos.
108
Alvim, Francisco. “Mas”, Elefante. São Paulo: Companhia das letras, 2000, p. 93.
O. A. — É a impressão que me causou a sua confe-
rência.
C. P. J. — Obrigado. Mas, vamos ao que foi per-
guntado. Aliás, não sei bem em que consistem as
suas perguntas. Afirmei que o capital estrangeiro é
prejudicial ao Brasil. Devemos aceitá-lo — já que
não temos outro recurso —, mas temos que contro-
lá-lo, por meio da legislação, impedindo que ele en-
tre aqui para fazer o que os seus possuidores bem
desejarem. Agora eu vou perguntar: o meu amigo
Oswald de Andrade é contra ou a favor do capital
estrangeiro. A única questão que existe é essa?
O. A. — Penso que, dialeticamente, deve-se ser, ao
mesmo tempo, contra e a favor.
C. P. J. — Trata-se de uma dialética muito engraça-
da.
O. A. — Todas as dialéticas são engraçadas.”

Debate na conferência de Caio Prado Júnior,


“Capitais estrangeiros”, 1949. 109

Com Glauber ou sem Glauber, o importante é que o Ciclo Marginal a seu modo redime a
Chanchada, integrando, desfigurando e recriando o humor que nela tinha livre circulação, mas
repropondo-o em chave mais corrosiva, numa simbiose moderna. O cinema marginal amplia a
modernização que o Cinema Novo tinha colocado em marcha, já com décadas de atraso em face
das outras artes. Mário de Andrade, que costumava ver filmes nacionais, embora com dificulda-
des de fazer-se acompanhar dos colegas modernistas, escreveu já em 1922 algo de muito signifi-
cativo na revista Klaxon 110, sobre Do Rio a São Paulo para casar de José Medina. Reconhecendo
méritos naquela comédia paulista hoje desaparecida, ele reprovava o trajar esportivo com que
o pretendente de origem popular se apresentava à família da noiva. “De quando em quando um
gesto penosamente ridículo… Num filme o que se pede é vida.” O modernista observava a propó-
sito, que “acender fósforos no sapato não é brasileiro” (...) “é preciso compreender os norte-ame-
ricanos e não macaqueá-los”. Podemos lembrar que na mesma época, na França, foi pela crítica
considerada importante no filme de Jean Renoir, Nana (1926), a “pesquisa do gesto francês”,
109
“Debate: Caio Prado Júnior x Oswald de Andrade” [na conferência de 17/3/1949, de Caio sobre “Capitais
estrangeiros”], praga: revista de estudos marxistas, nº1 set. dez. 1996, São Paulo: Boitempo, pp. 93-94.
110
Andrade, Mário de. “Do Rio a São Paulo para casar”, Klaxon: Mensário de arte moderna n° 2, São Paulo,
15/6/1922, p. 16.
contra a maré alta da infiltração ianque (na verdade quase um tsunami). Vivida por Catherine
Hessling, companheira do cineasta e ex-modelo no atelier de seu pai, a sua Nana meio chapli-
nesca — mesclando Mary Pickford e Theda Bara —, encena a ambição de ascender ao mundo
do teatro aristocrático-burguês, malgrado a efusividade brejeira de pequena atriz circense. André
Bazin está convicto de um Renoir nem tão realista, ou mesmo vanguardista, quando nos anos
1920 o cineasta principia mais como um bom diretor de atores, do que da mise en scène de fato,
fazendo-se um pintor de corpos moventes mais para impressionista que expressionista, estudan-
do as gestualidades a partir dos quadros de seu pai, recentemente morto 111. Com a expansão das
redes exibidoras no entre-guerras e a crescente hegemonia do cinema estadunidense, a difusão de
gestos e posturas ultrapassa em muito o âmbito dos artistas de cinema, alcançando largas plateias,
populações inteiras, e, mesmo por seu intermédio, em contágios da vida cotidiana.
Está desde cedo posto o processo de transposição e importação de formas cinematográficas,
de que faz parte de modo mais evidente a gestualidade. Evidente? Num país como o Brasil, em
que desde o início o cinema era realizado em boa parte por imigrantes, inclusive algumas vezes
recém-chegados, este problema é ainda maior. Imagine-se então o que seria o ciclo nacionalista
dos anos 1910, realizado predominantemente por estrangeiros, em que os temas eram retirados
diretamente das páginas da História do Brasil e da ficção clássica no gênero, como a de José de
Alencar! Podemos ter boa ideia vendo O Caçador de Diamantes (1933), de Vittorio Capelaro,
imigrante italiano dos anos 1910 e cineasta representativo daquela produção inteiramente desapa-
recida. O filme, único remanescente de sua trajetória, apesar do temporão de década e meia, ainda
nos permite ver problemas como os bandeirantes tirados da obra homônima de Olavo Bilac agin-
do como fidalgos em filme europeu do gênero capa e espada. Num outro extremo, se tomarmos
um dos filmes brasileiros mais professamente regionalistas, João da Mata (1923) do dramaturgo
campineiro Amilar Alves, embora nos intertítulos as falas caipiras tenham sido trabalhadas com
pesquisa e rigor filológico, e algum cuidado observa-se também na escolha dos cenários e paisa-
gens, temos a movimentação e os gestos dos atores restritos ao perfeitamente convencional dos
clichês em voga no filme de ação mundial ou ianque. Da mimética dos rostos ao jeito de brigar,
dissipavam-se com eficácia todas as cores locais de ambientação e figurino, bem como aquelas
provindas da cartela, pelo “universal” dos movimentos corporais, sua veemência visual. A inob-
servância dos gestos compõe dessa arte um padrão de forte importação de formas cinematográ-
ficas entre nós, fazendo-se como característica central do nosso cinema mudo um certo conven-
cionalismo cosmopolita dos gestos. Resta saber até que ponto o gesto importado (assim como o
brasileiro das distintas origens e camadas locais da sociedade) não tinha também se disseminado
nas ruas, passando, insipiente, a dado de realidade.
Em todo caso, o descompasso entre gestos artificiais e os espontâneos constitui o material res-

111
Ver: Bazin, André. “Les films muets” [1958], Jean Renoir. Paris: Gérad Lebovici, 1989, pp. 17-22. Sesonske,
Alexander. Jean Renoir: The French Films, 1924-1939. Cambridge: Harvard University Press, 1980, pp. 19-37.
Bertin, Célia. “Se faire un prénom”, Jean Renoir, cinéaste. Paris: Gallimard, 1994, pp. 12-33.
ponsável por um mal-estar que, resistente na plateia, tornou-se típico do cinema brasileiro muito
cedo. A dureza do gesto composto causa espécie desde os primeiros decênios do filme brasileiro.
A questão complementar seria saber se também no teatro, no circo ou mesmo na “vida real” as
coisas se passam tão diferentemente. Ora, o que me parece uma qualidade maior da Chanchada
seria exatamente a capacidade da sua fórmula paródica de abrigar semelhante contradição nacio-
nal. O que antes, no período mudo brasileiro, já se notabilizava como desajuste enervante, vira
na Chanchada a matéria-prima. No que concerne a este embate entre forma cinematográfica e a
realidade da experiência vivida, a percepção deste descompasso como parte da realidade social
vai tornar-se consciente e dar um primeiro salto qualitativo importante somente então, a partir dos
anos 1930, com a comédia e o amadurecimento da paródia chanchadesca, e bem sobre aquilo que
seria o mais gritante, e expressivo, do gesto controverso — a gag. Para que se aquilate o teor da
inventividade chanchadesca faltam investigações que pensem o fenômeno paródico em simultâ-
neo na música popular, literatura, circo, teatro etc. Ao acolher o descompasso entre o gesto arti-
ficial e o corrente, o afetado e o simplório, o importado e o local, o pretensioso e o desarmado, a
Chanchada configura no plano da invenção de formas cinematográficas um primeiro e elementar
gênero de entranhada gestação brasileira.
A prova deste entranhamento pode ser buscada na sua permanência em produtos industriais
que até hoje se inclinam para o cômico no cinema (a Pornochanchada dos anos 1970, por exem-
plo) e na televisão (novelas, séries, programas humorísticos ou de auditório). A ressurreição per-
manente do personagem televisivo de Jorge Loredo, o Zé Bonitinho, desde sua estreia em 1960, e
como a principal atração de inúmeros programas, dá a medida do vigor deste descompasso chan-
chadiano. Está lá o sempiterno galã norte-americano revestindo com a sua postura sinatresca a
maldisfarçada e coerentíssima índole subterrânea do macho sul-americano defasado, presunçoso
e anti-atlético. Caricatura genial do processo que tentamos descrever, Zé Bonitinho não por acaso
figura em 02 ou 03 filmes do Ciclo Marginal, a começar do personagem-título de Sem essa Aranha
(1970) de Sganzerla. Esse Aranha apresenta-se como “o último capitalista brasileiro”, que estaria
exilado no Paraguai, embora o filme seja visivelmente rodado no Rio e ambientado na favela. Em
dado momento ele, pensativo, deduz sobre os brasileiros, absortamente pasmado: “Acho que o
Diabo foi com a nossa cara.” Noutro momento, exausto e cambaleante como se chegasse de uma
maratona inglória, exclama em tom de denúncia: “Tudo está torto neste país!, a começar pelo
rancho do nosso presidente!”
Óbvio que esta importação é também intranacional. Como toda caricatura, o gesto controverso
da Chanchada concentra e precipita amplos processos vivenciados em costumes sociais que
podem exprimir-se, na verdade, em uma gama muito variada, sutil e nuançada de gestos. No
horizonte, não temos só que lidar com a dimensão cômica dos gestos, mas a dramática bem como
todas aquelas relativas às infinitas direções estéticas possíveis. Além de sua codificação contínua,
ajustando e consolidando sentidos, o seu interesse maior está na margem imprecisa do processo,
na ambiguidade contida no fluir de cada movimento do corpo. Não só, é claro, pelo que fazem
mãos ou pernas, mas as expressões emanadas do rosto e de todo tipo de postura corporal, indo
da posição de sentido do soldado à mais complicada coreografia artística. E é preciso também
levar em conta que a linguagem do cinema vincula-se à gestualidade não apenas pelos corpos
enquadrados, mas também pelos corpos sugeridos nas falas, aqueles evocados pela trilha sonora
e musical, aqueles pressupostos pelo tipo de posição e movimento da câmera, de decupagem,
ritmo da montagem etc. Toda a problemática dos hábitos e dos costumes sociais se exprime nos
gestos assim plasmados, e o gosto pela sua fatura controversa pode revelar tradições culturais de
grande persistência. No plano estético há muitas direções a indagar, e estilos a caracterizar, e para
não falarmos da dimensão contemporânea nomeadamente Gestual presente nas artes plásticas,
vamos dar um exemplo provocativo na frase do filósofo catalão Eugenio d’Ors: “Sempre que en-
contramos reunidas num só gesto várias intenções contraditórias, o resultado estilístico pertence
à categoria do Barroco.” 112 No plano ético a implicação é grande, pois intrínseca. “O gesto abre
a esfera do éthos como a esfera mais própria do homem”, diria o filósofo italiano Giorgio Agam-
ben 113. A raiz éthos, tanto no sentido de caráter como no de modo de vida habitual, nos propõe
uma vocação ethográfica do cinema, o qual exprime melhor que quaisquer outros meios a varie-
dade de modos de ser para o julgamento ético. Entretanto, como reza o refrão popular, o Brasil
não conhece o Brasil: investigações cuidadosas como a do antropólogo Luís da Câmara Cascudo,
História dos nossos gestos (1976) 114, continuam até hoje ignoradas; sobretudo pela análise fílmi-
ca, a crítica, o ensaísmo ou as pesquisas acadêmicas em cinema e audiovisual.

II.3. Engajamentos

“Não é que negava quem fossem os superiores,


pois com suficiente clareza indicava a quem se tra-
tava de enaltecer e a quem se tratava de humilhar,
mas quando agora nos púnhamos a rememorar a
pedra talhada, os traços de rosto dos deuses eram
rígidos e frios, sua aparência resultava irreal em
sua grandeza e inacessibilidade, enquanto que os
derrotados, em que pesem todas suas deformações,
conservavam sua aparência humana e estavam
marcados pelo temor e pelo sofrimento.”

112
Ors, Eugenio d’. “Derrota e triunfo da mulher” [1920], O Barroco. (tr. Luís Alves da Costa) Lisboa: Vega,
s.d., p. 25.
113
Agamben, Giorgio. “Notes sur le geste”, Trafic n°1, Paris, POL, 1991, p. 35 (tradução nossa).
114
Cascudo, Luís da Câmara. História dos nossos gestos. São Paulo: Melhoramentos, 1976.
Peter Weiss, 1975. 115

Já se observou que o brasileiro seria um povo jovial. Para uns isto soa de modo a proporcio-
nar entusiasmo, para outros, apreensão. Sem demérito de projetos civilizados, o entusiasmo mais
ilustrado não terá dificuldades de buscar em nossa memória já na Carta de Caminha, na primeira
missa ou no imaginário dos primeiros contatos a recepção calorosa dos indígenas aos europeus,
brincando de imitar seus gestos solenes de conquistadores, e outras espécies de arremedo prime-
vo. A apreensão entretanto parece ter sempre a última palavra, devido sem dúvida à contínua ins-
tabilidade verificada em nossos processos políticos e institucionais. Por essas e por outras é que
se poderia explicar a seriedade do intento cinematográfico da “pesquisa do homem brasileiro”,
pela época dos grandes estúdios dos anos 50. Os filmes produzidos por Alberto Cavalcanti, Cai-
çara (1950) de Adolfo Celi, Terra é sempre terra (1951) de Tom Payne, e outros títulos da Vera

Cruz caracterizam um retrocesso paradoxal no caminho que apontávamos. Importam-se técnicas


do film d’art, ou o que seria um “cinema de qualidade” europeu, que estava para ser (ou já sendo)
fustigado pelos críticos do pós-guerra, cinema aparatoso e pesadão contra o qual começariam a se
erigir as novas estéticas realistas. Técnicos, fotógrafos, diretores, são chamados da Europa à gui-
sa de seriedade industrial e artística. O paradoxo era a busca do autêntico, configurando um caso
complicado de kunstwollen (vontade artística) aprisionada pelo academicismo importado. É claro
que tem algo aí que diz respeito a uma animosidade cultural bem viva entre paulistas e cariocas,
explicando em parte algum preconceito para com as produções e o savoir faire desenvolvidos
no Rio. Reimportamos em São Paulo, só que agora direta e abruptamente, a forma, a técnica, o
olhar, o artesão. Na luta travada entre forma cinematográfica e “realidade brasileira” se reconsti-
tuiu então, com artifício requintado, uma regressão imperdoável que nem Mazzaropi pôde salvar.
Se no 1° passo que descrevemos, com a comicidade da paródia a chanchada passa do maca-
quear ingênuo ao macaquear irônico, e, para andarmos rápido, com o 2° passo — na verdade um
passo em falso, ou uma torcida de pé —, tivemos uma busca exageradamente séria, acadêmica,
e não mais uma busca do descompasso, mas sim do compasso brasileiro, da coisa autêntica, para
a recuperação de um passo em falso seria preciso uma pisada mais firme, que é o que acaba se
dando na virada entre os anos 1950-60. Este novo 2° passo, ou já o 3° passo, como queiram, abre
caminho para o moderno cinema no Brasil, na verdade o inaugura, e se deve em boa parte a um
vetor realista que se dissemina entre as estéticas radicais do cinema mundial do período e, em
particular, pelo modo como ele foi-se realizando entre nós. Há todavia um interstício prolongado
(e duradouro...) entre a instalação dos estúdios e o Cinema Novo, no qual vai amadurecendo, em
que pesem os entraves acadêmicos, a tal pesquisa do homem brasileiro, com cineastas do vigor
de um Lima Barreto ou Anselmo Duarte.
115
Weiss, Peter. La Estética de la Resistencia. [1975] (trad. José Luis Sagüés) 2ª ed., Hondarribia (Espanha): Argi-
taletxe HIRU, 1998, p. 69 (tradução nossa).
Os primeiros filmes de Roberto Santos e de Nelson Pereira dos Santos devem ser cita-
dos como os resultantes iniciais mais empenhados nas novas inclinações realistas. Do pioneiro
Aruanda (1960) de Linduarte Noronha, aos documentários dos anos 60-70, período típico da
câmera na mão e uma ideia na cabeça, encontramos filmes engajados na abordagem das condi-
ções de vida do povo e muito penetrantes em seu universo, os quais virão traçando um arco de
experiências que reverberam com o alvorecer cinemanovista uma série de apropriações, ante-
cipações ou similitudes para com o Neorrealismo, o Cinema Verdade e a Nouvelle Vague. Tem
sido insuficientemente reconhecida pela crítica uma forte vertente realista dos primeiros tempos
do Cinema Novo: Ruy Guerra, Saraceni, Joaquim Pedro, Leon, Jabor são autores que têm filmes
mais ou menos exemplares do ponto de vista estilístico da inclinação realista nessa época. Talvez
aí, neste campo de provas, alguma espécie de pedagogia realista (?) — “redenção da realida-
de física” (Siegfried Kracauer) funcionando? — tivesse trazido consequências para a dialética
Mundo Filmado versus Forma Cinematográfica. Parece-me sedutora a hipótese de que foi este
multifacetado surto realista que forneceu material e fertilizou com as suas descobertas o terreno
em que amadureceu esteticamente o cinema brasileiro das décadas de 1960 e 70. Algo de análo-
go aos erros e acertos do cadinho de experiências que foi o Neorrealismo italiano preparando as
subsequentes sumidades artísticas na obra de Antonioni, Fellini, Visconti, Pasolini etc. No Brasil
o uso da câmera na mão desde os primeiros ventos do Cinema Verdade até as singulares elabo-
rações de Glauber, Sganzerla e Bressane sofreram uma evolução como forma cinematográfica
que se rebate forçosamente no âmbito da desenvoltura gestual da visada móvel, que neste ínterim
muito progrediu, por seu turno, em atinada “coreografia”, excedendo o que pelos novos cinemas
internacionais seria mera premonição.
O engajamento cinemanovista, embora opondo-se à visão “industrial” vigente, reteve algo
de sua seriedade? Seriedade que já nos seus próprios criticados guiava a busca de um compasso
próprio da cultura e do homem brasileiro: buscas que implicavam ambas alternativas em recusas,
por conseguinte, da Chanchada? Alberto Cavalcanti e Lima Barreto teriam tido nesta hipótese
metas comparáveis às do Cinema Novo?, e o que os afastava seriam sobretudo métodos e forma-
ção geracional (mentalidades, ideologias)? Creio que não, trata-se de seriedade muito diferente,
e a própria noção de engajamento as distancia. A forma cinemanovista, mais sensível à realidade,
com ela dialogante, pesquisava o seu estilo consubstanciado num compasso dialético que visava
a apreensão dos descompassos mais complexos e contraditórios da sociedade.
As formas alegóricas 116 elaboradas nesta trajetória não deixam de ser em boa parte, super-
lativamente, versões históricas compassadas de descompassos sociais de seu tempo: históricas
e historicizantes. Tentar ver o Brasil de esguelha, com olhos brasileiros, o local pelos vieses
locais, em consonância ainda que tardia com a revolução modernista nacional e internacional,
era antes de tudo baixar a bola ao nível do terreno, isto é, partir da cultura tecnológica pobre e
116 Devemos a Ismail Xavier o mais substancial desta reflexão, em Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema
Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.
atrasada, lidar com os meios técnicos mais acessíveis. Alicerçar poéticas no imediatamente exis-
tente, fazer render esteticamente rica a precariedade de recursos, em sua própria suficiência.
Opondo-se a Hollywood, a Estética da Fome (1965) criou um paradigma até hoje vivo, mesmo
quando ignorada, em diferentes situações mundiais; ainda que as oposições e polarizações sem-
pre estivessem distribuídas pelo mundo, em disseminação atualmente ainda maior — entretanto
paradigma persistente enquanto houver violência no processo colonizador imperialista. O atraso
em combinação sub-reptícia, inadvertida, com o moderno, tal como veio posto na equação bárba-
ra da “revolução” conservadora de 1964, vai através deste cinema incorporar a própria barbárie
existente, na sua expressão problematizada socialmente em arte política, num renovável cinema
novo permanente desde aquele decênio. Estética faminta reverberando sentidos em barbárie-
forma radicalizante, dado que historicamente concreta: barbárie convertida em tendencial pensa-
mento estético emancipatório.
Do Cinema Novo para o Marginal pode ter sumido toda seriedade, mas não o engajamento,
ao contrário do que se alardeia. Ele pode sim ter mudado no sentido político, ético ou compor-
tamental, mas no sentido estético e sobretudo no poético ele se mantém de algum modo ainda
mais resistente. O Ciclo Marginal na verdade não abre mão das possibilidades poéticas contidas
na Estética da Fome, divergindo naquele momento do final dos anos 1960 dos rumos cinemano-
vistas que passam a procurar os padrões mais convencionais do grande público — Embrafilme,
“Mercado é Cultura” etc. Mais do que não abrir mão, os marginais de certo modo radicalizam a
proposta do manifesto glauberiano de 1965. A postura anárquica e comportamental efetivamente
os ajuda a levar às últimas consequências certos desígnios contidos na Estética da Fome relati-
vos à pesquisa de linguagem e à modernização no sentido ainda de 1922, fazendo-se incorporar
à estética dos filmes a tal da “contribuição milionária de todos os erros” da qual nos advertira
Oswald de Andrade. O improviso e a precariedade, a simples “câmera na mão”, como condição
necessária para a perspectiva de indagação livre e aberta sobre a condição brasileira, mantida
assim “uma ideia na cabeça”, parecem ser as divisas resistentes dos marginais. Quando depois
olhamos ao redor e vemos o dito cinema da retomada ficando para trás no Brasil, tão dispendio-
so, pseudo-convencional, acadêmico, pesadão 117, mesmo já em plenos anos 1990 do sucesso do
cinema iraniano, dos independentes americanos, do filme de periferia francês, do Dogma 95, nos
perguntamos se o problema político-econômico, persistente, não é também um problema de me-
mória. A sintomática frase “No Brasil a realidade ultrapassa a ficção” tornou-se um lugar comum
que ouvimos de quando em quando sem que, do meu conhecimento, jamais alguém mencione
a autoria. Mais importante que isso, interessaria aqui saber em que ocasiões específicas ela tem
sido mais lembrada, pois o nosso cinema parece estar implicado.

117 Ver a respeito o nosso artigo: Machado Jr., Rubens; Moreira, Roberto, “Chegando junto”, Sinopse
n° 2 ano I, São Paulo: Cinusp, outubro 1999, pp. 2-5.
III. História experimental do experimental 118

“Os arrojos sauvages precisam de crítica


tanto quanto a crítica de arrojos sauvages.”

Gustavo Dahl, 1963. 119

“O dominado só reage quando duvida,


a dúvida é a fonte da consciência. (...)
O único eterno subversivo do mundo é o artista. (...)
A revolução é permanente e deve duvidar sempre,
superando os estágios que os reacionários
determinam como ideais.”

Glauber Rocha, 1965. 120

Pensado com largueza, o cinema experimental no Brasil pode ser muita coisa. Para além do
que já se exprimiu em debate e ensaísmo, persistem repertórios intocados pela análise mais detida
e interpretativa, mesmo que cultuados num obscuro canto do panteão cinéfilo, na penumbra de
efeitos mais ofuscantes dos holofotes. Por uma exigência de método deveríamos de fato contem-
plar, ainda, repertórios menos conhecidos e frequentados, filmografias pouco lembradas, carentes
de discussão, outras de mapeamento apenas começado ou prospecção recente. Isto é, filmes sem
crítica. Há neste rol fitas ignoradas mas também outras até consideradas “cult”, todas com poucas
linhas reflexivas, rara análise crítica. Há mesmo segmentos inteiros pouco vistos, ou por levantar,
como o experimentalismo superoitista, certos núcleos mais amadores, o vídeo militante etc. Até
no caso dos cineastas que mais provocaram estudos, e que mais enriqueceram o nosso debate his-
tórico, sobrevive parcela grande de obras impressionantes pouco analisadas e debatidas, mesmo
quando muito citadas.
A história do cinema de vanguarda faz sempre parte da história do experimental embora
nem todos os experimentais pertençam ao campo das vanguardas. Uma das qualidades diferen-
ciadoras, como conceitos cotejáveis, do experimental quanto à vanguarda é a abrangência maior
do experimental, não só ao supor livre diálogo com cada vanguarda, inclusive para delas recusar
118
Uma versão reduzida das partes III a VI foi publicada como “História experimental do experimental —
Apontamentos para uma história das estéticas radicais no Brasil: o cinema experimental em suas origens”
in: Hallak d’Angelo, Fernanda; Hallak d’Angelo, Raquel. (orgs.) CineOP - 13ª Mostra de Cinema de Ouro Preto:
preservação, história, educação. (catálogo) Belo Horizonte: Universo Produção; MinC, 2018, pp. 24-31.
119
Dahl, Gustavo. “Carta a Glauber Rocha (Paris, 10/X/63)” in: Rocha, Glauber. Cartas ao mundo. (org. Ivana
Bentes) São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 218.
120
Rocha, Glauber. “Alphaville” [1965], O Século do Cinema. Rio: Alhambra, 1985, p. 231.
aspectos ou características, como também ao criar estéticas de suma importância que ainda não
se deram muito bem conta disso, seu caso claro nas obras mais intuitivas, concebidas sem as pre-
determinações de um projeto manifestado, tão frequentes na história da arte, e por vezes de modo
quase naïf. E neste caso desafiam também a crítica, e mais ainda quando, para além da própria
criação singular, evitam ou se recusam a manifestar conjuntamente balizas projetuais, proces-
suais e conceituais. Embora com antecedentes mundo afora a considerar, os primeiros trabalhos
que começam a pensar historicamente o experimental pertencem, em geral, ao pós-guerra, ante-
cipados na Europa pelas reflexões de Brecht sobre teatro e literatura, a partir de Zola. 121 Ora, ao
contrário da história geral do cinema, o experimental não conta via de regra com uma recepção
crítica comparável, em padrões, regularidade, quantidade: há aqui e ali artigos de elogio, sauda-
ção, alguns ensaios e estudos isolados num amplo painel fragmentário, de falhas predominantes,
enormes vazios a ocupar. Os casos de exceção se esboçam quando se propõem termos, deno-
minações — como certas vanguardas quando antecipam “chaves” provocando (ou resolvendo,
apaziguando e reduzindo) inquietações críticas do espectador —, ou aqueles em torno dos quais
já se deu um debate específico gerando noções, nomenclaturas, conceitos.
Ao contrário das vanguardas, que podem (por que não?) ser vistos num mesmo rol, os ex-
perimentais em geral não manifestam sistemas projetuais em simultâneo, ou proposituras de
intencionalidade, eles precisam muito mais do trabalho a posteriori dos críticos. Diremos que o
experimental é o cinema que mais desafia a História da Crítica, corresponderia à sua face ocul-
ta: aquele que parece intuir as suas dificuldades e máculas — pontos cegos nos quais possa ser
surpreendida no contrapé uma crítica instituída, com seus critérios, preceitos, preocupações e
campanhas, a constituir, de par com o distinto público um quadro histórico determinado de ex-
pectativas e percepções. Desse modo a história do experimental pode ser discutida como uma
espécie de outro lado, o lado reverso da história da crítica: postas em paralelo, ambas as histórias
devem por vocação se desafiar reciprocamente, se questionar e se compreender de modo mais
rico. Ir além disso integrando dialeticamente os filmes como possível parte da própria história da
crítica. Explica-se assim até a inclinação antiacadêmica dos experimentais, sua teimosa aversão à
nomenclatura através das décadas, que inclui mesmo a de experimental, impostando uma atávica
inversão daquilo tudo que se aloja na expectativa imperante de crítica e público — e cuja obe-
diência, do ponto de vista poético (na etimologia do modo de criar), se contemplaria também na
teoria da arte pela categoria do academismo.
A recusa política sistemática dos modelos estéticos e convenções, a busca de rupturas em
forma e conteúdo, se dá de maneira mais livre no cinema de artista, independente, amador, ou-
tsider, e nas suas modalidades mais interessadas, fadadas ou condenadas ao criar do cinema de

121 Kracauer, Siegfried. “Experimental Film”, Theory of film. Londres: Oxford University Press, 1960. Weiss, Peter. Cinéma
d’avant-garde. [1952-1955] Paris : L’Arche, 1989. Rocha, Plínio Süssekind. “Le Documentaire Expérimental et le Film d’Avant-
garde”, L’Âge du Cinéma, n° 6, Paris, 1952. Brecht, Bertolt. “O Teatro Experimental” [1939-1959], Teatro Dialético. (sel. intr. Luiz
Carlos Maciel) Rio: Civilização Brasileira, 1967. Zola, Émile. Le Roman expérimental. [1880] (pr. Aimé Guedj) Paris: Garnier-
-Flammarion, 1971.
garagem, não-alinhado, marginal, inocente, rebelde, visionário, naïf, subterrâneo, anticapitalista,
primitivo, diferente, cafajeste, negativo, revolucionário, maldito — que, como vemos, na cultura
cinematográfica se traduz em Nominalismo, em suma um glossário básico e histórico do expe-
rimental. Sejam elas autodenominações ou designações à revelia, se constituirão nas variedades
empíricas do experimentalismo. E trarão cada uma delas um contexto próprio de existência no
qual se traduzem. Sua História demanda empenho de fôlego num país como o nosso, marcada
pela tradição cordial do favor e do favorecimento (que afeta também à crítica), e que congregou
poucos movimentos ou manifestações coletivas de repercussão — Cinema Novo, Marginal —, e
tão repleto de casos ilhados — de Mário Peixoto a Carlos Adriano.
Para o crítico, a matéria singular com que trabalha demandaria do seu tratamento uma equi-
valente e justa singularidade, ou capacidade de singularização. Tomar o objeto em sua própria
medida: sem forçar o ajuste violento de categorias e interpretações pré-fabricadas, permitir-se ex-
perienciar a singularidade possível do filme a solicitar aproximações ou métodos que se revelem
concomitantemente singulares. A obra de um lado, tanto quanto o espectador que critica, fazem
parte do objeto 122 analisado, mas o núcleo decisivo não está em nenhum dos dois polos, de fato
reside na relação que se estabeleceu entre ambos. As análises singularizantes de obra são, além de
determinantes, insubstituíveis na história da arte, bem como nesta do cinema experimental. Elas
possibilitam, como se sabe, uma verdadeira releitura de seus momentos a partir do presente, se for
realizada partindo de uma experiência do analista integralmente empenhada em viver os sentidos
que se exprimem e os conteúdos mobilizados pela estruturação formal historicamente percebida.
Assim é que se produzem os devidos conceitos, tanto os novos quanto os reapropriados, espe-
cificados desde a sua migração. O crítico procura o singular da obra a partir de sua experiência
de fruição. Nessa perspectiva de análise, que pode ser chamada de crítica imanente, os conceitos
emergem solicitados por esta experiência, e se produzem na reverberação proporcionada pela
obra numa reflexão empenhada na busca de seus sentidos, ao contrário da prática mais corrente
da crítica superficial, viciada na prepotência aplicacionista de categorias prêt à porter — não por
acaso de grife, conceitos de “boa procedência”, com alto valor de troca no meio acadêmico ou no
meio implicado, a par de um inopinado valor de uso, e pouco verificável posto que serão sucedi-
dos em poucos anos por outra vaga conceitual “inovadora”; prática análoga aliás às empreitadas
especulativas típicas do financeirismo e do empreendedor neoliberal.
O trabalho do historiador pressupõe a atividade dos críticos e analistas em debate, sobretudo
quando face à singularidade artística radical dos seus objetos. A utopia das análises realizadas
em coletivo se dissipa tristemente junto com o declínio do cineclubismo radical depois dos anos
1970, quando completavam quatro ou cinco décadas fecundas na formação de críticos e cineastas
122 Sobre a complexidade do objeto (estético e cinematográfico) na abordagem crítica, ver: Adorno,
Theodor W. Teoria estética. [1969] (tr. Artur Morão) 2ª ed. rev., Lisboa: Ed. 70, 2008. “O ensaio como forma”
[1958], Notas de literatura I, (tr. Jorge de Almeida) São Paulo: Duas Cidades; Ed.34, 2003. Aumont, Jacques.
À quoi pensent les films. Paris : Séguier, 1996. “Meu caríssimo objeto: reflexões sobre uma pedagogia das
imagens em movimento” [1993] (tr. Luciana Artacho Penna), Imagens n°5, Campinas: Ed. Unicamp, 1995.
encharcados da experiência presencial manifestada num espaço público hoje minguante. Ra-
refeito desde então, o hábito dos debates em público ou em cineclube sempre ajudou a formar
sucessivas gerações de críticos e cineastas, sobretudo depois do período entre guerras. Processos
análogos podem ser descritos em simultâneo na Itália ou pela Europa, o Novo Mundo e muitos
países mundo afora, incluindo-se o Brasil. Podemos mencionar na França o paradigma do Peuple
et Culture, anos 1930, movimento a partir do qual amadurece a geração de André Bazin e Chris
Marker. Ali se configurou talvez um quadro bem diverso do atual, em que nas nossas experiências
individuais e coletivas de se assistir a um filme tornou-se rara a discussão, a aberta interlocução
penetrada de alteridade, de pontos de vista distintos, e isso até mesmo no espaço universitário.
Também nos cineclubes ou nos debates especialmente programados reduziu-se o interesse pela
análise crítica e o debate com o público, tal como ainda hoje, Século XXI, poucos decanos ainda
conseguem fazer, como na Cinémathèque française, um Jean Douchet; ou no Brasil um Jean-
-Claude Bernardet — que tem declarado em entrevistas ter realizado entre os anos 50 e 60 uma
formação basicamente no Cineclube Dom Vital, em São Paulo, na prática sua “faculdade”; e
manifesta crescente estranheza pelo estilo atual da fala acadêmica.
Nestas tradições do cineclubismo humanista, radicalmente democrático, não se trata apenas
de “ensinar” a ver um filme mas sobretudo de se saber informar, provocar e coordenar uma aná-
lise fílmica coletiva, composta problematicamente de suas vozes discrepantes no público, alteri-
dade presencial. 123 Com o duplo escopo de se compor um quadro contraditório, irresolvido e ina-
cabado de interpretações possíveis, e de escuta dialética da pulsação de sentidos da fita por quem
(e a quem) afinal o filme se destina: o público, seu derradeiro autor. E, nesta experiência, sairmos
todos da sessão atravessados por essa alteridade revelada, essa análise incompleta, precária, em
aberto, experiência cheia de interrogações e incertezas, mais problemática do que teriam sonhado
os realizadores. Aprendem todos: espectadores, organizadores, debatedores, cineclubistas, even-
tuais futuros críticos e cineastas. Hoje o Cineclube vai aos poucos se convertendo, depois dos
anos 1970, em circuito alternativo de mera difusão e culto, ou consumo; chega a nome da sessão
de sexta à noite na Rede SBT, programação de TV a mais standard possível.
Uma história bem contada do cineclubismo nos faz falta, pois ela parece oferecer alguns
parâmetros declinantes e transmudados do que acontece na relação do cinema (e audiovisual)
com os seus espectadores. Falta-nos com isto algo do aspecto central do cinema como meio espe-
cífico, o seu centro de gravidade, que seria a sua relação com o espaço público, noutras palavras,
com o público e a crítica — seus virtuais e concretos espectadores. E o cinema experimental ou
de vanguarda é, em especial, sensível e depende completamente da vitalidade da esfera pública
para se instaurar, para continuar experimentando, testando e provocando no interior da sua dinâ-
mica pública. Na atividade crítica em geral a sensibilidade na percepção do Outro, com o declínio
123 No Brasil houve momentos de inflexão histórica registrados por exemplo nas páginas da revista Cine-Olho: “Chapa
Deflagração: Carta Programa” (redação coletiva), e “Consciência cineclubista”, Cine-Olho n° 3, Rio: Cineclube do CAC, Centro de
Artes Cinematográficas, PUC-RJ, 1977. “Cine-Olho 4 - Editorial”, Cultural do DCE-USP: Caderno de textos, São Paulo, 1978. “Cine-
ma e Metrópole”, PÓS – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP nº 17, São Paulo, 2005.
do espaço público e sua experiência dinamizadora, se viu substituída ultimamente por um outro
espaço: em lugar de cidadãos somos todos sob o neoliberalismo consumidores, e/ou empreen-
dedores; em paralelo, os engajados foram não só saindo de cena mas também cedendo lugar aos
“lobistas de si próprios” 124.
Com o primado exclusivo do binômio produção & circulação parece que não temos mais
agora tempo para considerar a construção de análises críticas, de argumentações; aliás: — Com
quem estamos falando mesmo? “Não temos mais tempo hoje em dia para a crítica” é o que se
ouve de idealizadores e defensores dos editais de apoio à produção cinematográfica, mesmo ao
priorizar sua amplitude e a abrangência, necessária, a setores carentes da população, justificando
assim a ausência de quaisquer previsões de foros de debate sobre as obras produzidas, enquanto
só se preveem circuitos ou redes de difusão. E os cineclubes propriamente ditos, ou o improviso
de “cine-debates”, se encontram sem condições ou vocação para tanto, bem como a crítica ins-
tituída, voltada para o mercado, ou algum dos raríssimos festivais que incluam efetivo debate
crítico em suas programações. Na internet a falta de uma instância mais concreta de decisão,
com tempo e disposição de entendimento e livre organização coletiva a respeito do que publicar,
qualquer desabafo ou ataque de nervos sem qualquer argumentação podem ser tomados por “crí-
tica”. Assim é mais fácil: Se não temos que dar satisfações a ninguém para “rodar a baiana”, por
um lado atingimos um progresso ao praticar uma real liberdade de expressão e de construção de
discurso, antes negociada por exemplo com chefes ou colegas nas redações de jornal; por outro
lado perdem-se as balizas e horizontes de diálogo, argumentação com quem pensa diferente,
coordenadas históricas próprias de um espaço público democrático. A velha noção de linha edito-
rial ou de público-alvo, embora sejam instrumentos de controle, e via de regra violentos, tinham
a vantagem de exigir do discurso crítico estratégias de forma escrita e de argumentação, tanto
com seu leitor quanto com seu editor. Lidar com quem pensa diferente era exercício intrínseco à
formulação do discurso desde a origem, esses Outros (ainda que só imaginados) penetrados em
nossa fala são algo que se dissipa na nova lógica das bolhas e seus algoritmos, segmentando os
estilos de pensar e de estar no mundo em alteridades isoladas entre si, e preocupantemente onis-
cientes, sectarizadas, incapazes de dialogar.
Estaríamos de fato prestes a aniquilar a figura do Outro no imaginário e mesmo nas próprias
intuições com que a crítica trabalha. E os processos de interlocução e diálogo sofrem com isto
mutação nessa conformidade: facilitam-se tiroteios verbais de torcida organizada invadindo o
campo de jogo do debate inteligente, na ausência da força que antes o espaço público conseguia
catalisar de modo mais democrático. Desafios ao método se alastram em diversas direções da
atuação crítica: Sua renúncia ou ineficácia na descrição das experiências concretas, subjetivadas,
do filme. Sua insólita e difícil procura de argumentação crítica, sem espírito democrático, hipó-
teses ou objetivos definidos, exigências ou agenciamentos efetivamente comparativos. Sua busca
124 Roberto Schwarz, “Nunca fomos tão engajados” [1994], Seqüências brasileiras: ensaios. São Paulo:
Companhia das letras, 1999.
de insondáveis lugares de fala em tempos de press release, e de assombrosa escuta da auto-inter-
pretação dos realizadores como irresistível canto da sereia para o crítico atual.
Em especial depois da arte conceitual, mas já originando-se nas vanguardas clássicas, o dis-
curso do artista ganha peso de convívio indissociável com a obra, a ela ofuscando ou propondo
diálogo, integrando-se de modos diversos; o que não abolirá a experiência do crítico face ao que
se apresenta na situação, incluindo-se não só os filmes de artista mas até mesmo o cinema de
grande público. Tem sua importância ouvir o autor, seja ele o diretor, roteirista, algum ator-autor,
conjunto coletivo de realizadores ou participantes, mas sem erigi-los como a autoridade oniscien-
te a que se vêm alçados em “debates com o público” ou matérias jornalísticas, eclipsando a figura
do crítico que, de mãos atadas, até de bom grado tem se rendido ao ritual. Ora, dentre todos os
possíveis espectadores dum filme, o seu diretor é quem estaria na pior situação para julga-lo. 125
Ao contrário do público ou do crítico, para o diretor acumulam-se à experiência de cada momen-
to da fita outras experiências sobrepostas e marcantes de projeções anteriores, ainda na mesa de
montagem e edição, escolhas feitas e decisões tomadas, diretrizes, intenções perseguidas e prefi-
gurações imaginadas desde o processo de criação das cenas, das primeiras concepções anotadas
até à roteirização. O fruir presente viria assombrado inextricavelmente pelo conceber pretérito.
Com isto a análise tem rareado em favor de um conluio dócil e afetivo para com o universo tra-
zido pelo artista, viés crescente desde o consumismo pós-moderno próprio da “modernização”
neoliberal, lado a lado com a fremitosa etiquetagem conceitual, chancelada pela academia, cura-
dores e programadores de plantão. Desse modo conceitos advindos de uma experiência estética
direta face à obra são raros, em seu lugar predomina incerta promessa de consumo lúdico e/ou
pseudo conceitualizante.
Enquanto isso, na realidade que nos governa, vemos o reconhecimento e mesmo a consa-
gração de dinâmicas experimentais na pragmática sistêmica do capitalismo, com a especulação
financeira, sua expansão neoliberal contemporânea, interessada no advento da crise e desmanche
de sua promessa democratizante 126. Isso coloca uma questão para o cinema experimental em sua
dimensão crítica, sua vocação negadora do status quo opressor e das ideologias vigentes. Se na
vanguarda dos processos de reprodução do capital todos se veem compelidos à “experimenta-
ção” disseminada junto às leis de mercado (que, malgrado seja tradicional processo intrínseco
ao modo de produção capitalista, agora se exprime em prática cada vez mais legitimada e acin-
tosamente preconizada), ao cinema experimental não restará apenas se confundir com a lógica
do sistema, sua reles mimese? Condenado à caricatura do bom empreendedor da hora, o cineasta
experimental não deveria seguir clamando por uma radicalização artística libertária, isto é, avessa

125 Devo esta ideia a Ismail Xavier.


126 Dardot, Pierre; Laval, Christian. “Gouverner par la crise”, Ce cauchemar qui n’en finit pas: Comment le
néolibéralisme défait la démocratie. Paris: La Découverte, 2016, pp. 25, 29-30. “Agora a experimentação se trans-
formou em sistema e a crise se tornou a principal alavanca do fortalecimento das políticas neoliberais. Do
neoliberalismo, se pode assim dizer, para parafrasear Churchill, que todos os obstáculos lhe propõem oportunidades”,
pp. 32-33 (tradução nossa).
ao movimento avassalador da sociedade, seu pragmatismo mais espoliador? Essa dificuldade re-
cente só vem colocar em cheque, ainda mais, o criador experimental, além da já complexa tarefa
do historiador do experimental, impelindo-os para um confinamento exíguo de engajamentos
apaixonados ou ultracríticos.
Tarefa ingrata: Falar de filme indescritível, que ninguém viu, explicar sua singularidade! Des-
de sempre, de toda maneira, tem sido um trabalho mais lento, necessariamente, e coletivo, não só
entre contemporâneos, sincrônico, como sobretudo diacrônico, desdobrando-se como pesquisa
por sucessivas gerações históricas. Processo aliás só retardado pelo bombardeio sem trégua
das contínuas ondas conceituais de erudição fetichizante, ou dos comentários interpretativos de
retradicionalização frívola 127, promovidos pelo batalhão acadêmico. O contemporâneo se perde
quando apenas conectado, imerso no atual: só poderá perceber-se, conceber-se, compreender-se
enquanto tal, quando em diálogo com o não contemporâneo 128, quando em face das tradições, e
mediante elas. A noção de crítica imanente seria em todo caso um dos recursos indispensáveis ao
estudo analítico do cinema e da arte como seu instrumento capital, mas é preciso compreendê-lo
em seu próprio operar, desafiado e afiado pela experiência estética concreta e singular. O assim
chamado corpo a corpo com a obra tem sido evitado, protelado ou tergiversado pelo pretenso
ensaísmo crítico, mesmo quando percebido como necessário. A crítica enquanto lidar dialético é
difícil e arriscada, implica experiência imersa e distanciada, exigindo tanto subjetividade quanto
objetividade, como nos pareceu resumir esta explicação da escritora belga Suzanne Lilar, em
1967:

“Quem diz crítica subentende separação — que se nos lembramos da palavra, ser-
viu de chave. Crítica, do grego krino, o exemplo clássico sendo: separar o joio do
trigo. Mas nada se tria sem se referir a nós mesmos, nossos valores, nossos gostos.
A crítica, assim, como ponto de partida, tomada de posição, se aparenta ao amor.” 129

Quero crer que a contracultura ativou em seu apogeu prévio à década de 1980 um legado
particularmente complexo, que pode convergir em processo histórico de sobrevida polêmica com
engajamentos diversos. Opera um desfavor duplo e contraditório à dimensão estética alienada das
obras, ao aguçar a sua percepção crítica, e ao permitir aflorar uma sensibilidade mais livre à sua
plena experiência. Como teria dito o poeta Torquato Neto, em 1971: — “Se o espectador é um

127 Simon, Iumna. “Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século”, Novos Estudos CEBRAP nº55, 1999. “Conde-
nados à tradição – o que fizeram com a poesia brasileira”, Piauí nº61, 2011.
128 Benjamin, Walter. “Sobre o conceito de história” in: Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. (tr. Wanda Nogueira
Caldeira Brant, Jeanne-Marie Gagnebin & Marcos Lutz Müller). São Paulo: Boitempo, 2005. Agamben, Giorgio. “O que é o con-
temporâneo?”, O que é o contemporâneo?, e outros ensaios. (tr. Vinícius Nicastro Honesko) Chapecó, SC: Argos, 2009.
129 « Qui dit critique entend séparation — qu’on se souvienne du mot, il a servi de clef. Critique, du grec krino, l’exemple classique
étant: séparer le bon grain de l’ivraie. Mais on ne trie point sans se référer à soi-même, à ses valeurs, à ses goûts. Ainsi la critique
s’apparente-t-elle à l’amour qui est un parti pris. » Lilar, Suzanne. À propos de Sartre et de l’amour. [1967] Paris: Gallimard
(idées), 1984, p. 15 (tradução nossa).
voyeur, o crítico é um tarado completo. E quem vê, já viu, critica.” 130
A antevisão mais complexa do dilema me pareceu dialeticamente compreendida num esforço
crítico derradeiro de Theodor Adorno, em 1969:

“Uma tal dinâmica imanente é por assim dizer um elemento de ordem superior do
que são as obras de arte. Se a experiência estética se assemelha a alguma coisa é,
então, à experiência sexual e, na verdade, à sua culminação. O modo como nesta a
imagem amada se modifica, como a petrificação se une com o que há de mais vivo
é, por assim dizer, o arquétipo encarnado da experiência estética. Mas as obras ima-
nentemente dinâmicas não são apenas as obras individuais; também a sua relação
recíproca é imanente.” 131

IV. Mito e empenho

“Mas mesmo aquilo que a gente não se lem-


bra
de ter visto um dia, talvez se possa ver depois
por algum viés da lembrança.
Talvez dar órbita de hoje aos olhos daquele
dia.
(...) pelo rabo de olho da lembrança.”

Chico Buarque, 1991. 132

A despeito de carecermos da crítica imanente ou da análise materialista que, desde os tem-


pos de Diderot  133, constituiu o discurso ensaístico sobre arte, lidamos no país com o paradoxo
alvissareiro da contribuição milionária de toda a boa abordagem nefelibata, metafísica, ideológi-
ca, mitopoética, conceitualista etc. Sem tais substratos sofreríamos ainda mais. Diferente do que

130 Torquato Neto. “as travessuras de superoito” [geleia geral, Última Hora, Rio, 29/8/1971], Torquatália, v. 2, (org. Paulo
Roberto Pires) Rio: Rocco, 2004, p. 208.
131 Adorno, Theodor W. Teoria estética. [1969] (tr. Artur Morão) 2ª ed., Lisboa: Ed. 70, 2008, p. 267.
132
Hollanda, Chico Buarque de. Estorvo. São Paulo: Companhia das letras, 1991, p. 77.
133 Lefèbvre, Henri. Diderot ou les Affirmations fondamentales du matérialisme. [1949] Paris: L’Arche, 1983. Ver os trabalhos de
Jean-Louis Leutrat: Diderot. Paris: Ed. Universitaires, 1967. “Uma relação de diversos andares: Cinema & História” (tr. Rubens
Machado Jr.), Imagens n°5, Campinas: Ed. Unicamp, 1995. E (com Suzanne Liandrat-Guigues) Penser le cinéma. Paris: Klincksieck,
2001.
intuímos hoje como cinéfilos, a história do cinema brasileiro andou por muito tempo trabalhando
com rarefeita experiência direta dos filmes — isso em contrapartida à acessibilidade via redes,
carece hoje de maior contato físico, corporal, com o espaço público e a alteridade no debate, mais
comum antes. A perda de cópias, sobretudo das primeiras décadas, seu acesso controverso até
hoje, contatos de oitiva impregnam a reflexão estética em nosso cinema de uma dimensão mítica
a um só tempo rica e nociva. Do primeiro cinema ao Limite (1931) de Mário Peixoto, dos velhos
ciclos regionais do período mudo ao superoitismo dos anos 1970 134, mitos de origem ao longo da
história do experimental brasileiro impõem a revisão do cinema silencioso, assim como daquele
que mais tarde instaria os parâmetros locais de “moderno” e “vanguarda”.
Paralela à inclinação da Nouvelle Vague por Jean Renoir como patrono, a escolha de Humber-
to Mauro por Glauber Rocha e boa parte dos cinemanovistas, em detrimento de Mário Peixoto,
sofrerá inversão no discurso de, entre outros, Júlio Bressane. Este último, em sua crônica-mani-
festo “O Experimental no Cinema Nacional” (1996), irá mesmo além, em seu itinerário de regres-
so às origens, embrenhando-se com o major Tomás Reis na descoberta, pelas lentes sertanistas,
de um frescor sorridente do gentio no fundo da mata. Acompanhando

“a expedição de Rondon ao Alto Xingu em 1923 (...) este operador cuidadoso fil-
mou a Visão do Paraíso. São imagens do Brasil mítico, filmado com lente plana,
enquadramento organizado, closes únicos de índios e gente brasileira. Composições
que combinam rigor e improviso, em planos de criaturas, selva e forças da natureza
(...) Uma luz apreendida com grande domínio técnico e originalidade, sendo que o
negativo foi revelado nas águas da própria selva. Imagens que deixarão sua marca
duradoura em nossa cinematografia.” 135

Para Bressane, o “major Reis e Abraão Jacó formam um eixo de onde sai e por onde passa
tudo que presta no nosso cinema.” O mascate sírio Abraão, nos anos 30

“filmou o sertão, a caatinga, Lampião e seu grupo. São imagens perturbadoras. Com
uma luz solarizada, estourada, sem rígido controle, irregular, com uma câmera de
corda na mão, brutalista, criou uma poderosa imagem-dejeto, bárbara, paradigmáti-
ca em nosso cinema e em nossa cultura. Uma Imagem-Canudos... Deus e o Diabo na

134 Ver meus trabalhos a respeito: “Mário Peixoto” in: Miranda, L. F.; Ramos, F. P. Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo:
SENAC, 2000. Marginália 70: o experimentalismo no Super-8 brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2001. “Passos e descompassos à mar-
gem”, Alceu v.8 nº15, Rio: PUC, 2007. “A experimentação cinematográfica superoitista no Brasil” in: Amorim, L.; Falcone, F. T.
Cinema e memória. João Pessoa: Ed. UFPB, 2013. “Das vagas de experimentação desde o Tropicalismo: Cinema e Crítica” in: Ikeda,
M.; Lima, D. Cinema de garagem 2014. Rio: Wset Multimídia, 2014. “Cidade & Cinema, duas histórias a contrapelo nos anos 1970”
in: Machado, C. E. J.; Machado Jr., R.; Vedda, M. Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas. São Paulo: Edunesp, 2015.
“Agripina é Roma-Manhattan, um belo quase-filme de HO”, Ars v.15 nº30, São Paulo, PPGAV/ECA-USP, 2017. E (com Mari-
na da Costa Campos) “Protagonismos experimentais femininos no surto superoitista dos anos 1970” in: Holanda, K.; Tedesco, M.
C. Feminino e Plural. São Paulo: Papirus, 2017.
135
Bressane, Júlio. Alguns. Rio: Imago, 1996, p. 36.
Terra do Sol foi extraído destas cenas (...) Alude a estas imagens.” 136

Bressane recua ainda mais, às primeiras imagens colhidas em terras brasileiras, ainda do
oceano, antes mesmo de pisá-las. Conta-nos que, tendo adquirido a câmera de filmar na França
dois anos após sua invenção pelos irmãos Lumière, os

“irmãos Segreto filmaram em 1898, do convés do paquette que os trazia da Europa,


a entrada da Bahia da Guanabara com seus fortes portugueses e megalitos lendários.
Este material foi destruído. Mas podemos conjecturar que estas imagens com a câ-
mera em movimento (travelling) e oscilando, movimento natural do barco, foram
um total experimento cinematográfico. O experimental está, entre outros indicado-
res, pelo inusitado do lugar onde se encontrava a câmera, pelo movimento e pela
oscilação (pelo balanço, e isto era bossa nova), que certamente alterava a apreensão
da luz e da paisagem. (...) O registro habitual da tomada de câmera era fixo e sobre
tripé, para a necessária imobilidade da câmera na fixação e captação da luz. Não se
faziam os registros de tomadas com a câmera em movimento e muito menos osci-
lando… Os irmãos Lumière quando espalharam pelo mundo seus cinegrafistas pela
primeira vez viram tomadas feitas com a câmera em movimento. Eram os registros
dos seus operadores, que de Veneza e da China enviaram imagens filmadas de dentro
de gôndolas ou balsas. Nascia o travelling. Figura de sintaxe cinematográfica que se
tornaria a mais clássica do cinema moderno.” 137

Com efeito, podem reverberar nessas palavras a lembrança de travellings bastante posterio-
res, exuberantes em suas distintas desenvolturas, por filmes como Os Cafajestes (1962), de Ruy
Guerra, Esse mundo é meu (1963), de Sérgio Ricardo, O Desafio (1965), de Paulo Cezar Sarrace-
ni, Terra em transe (1967), de Glauber, Os Deuses e os Mortos (1970), de Ruy, Sem essa Aranha
(1970), de Sganzerla, Cuidado Madame (1970), de Bressane —, assim como viria repercutindo o
principal lema da radicalidade moderna em nosso cinema, “Uma ideia na cabeça e uma câmera
na mão”. Se há um antes e um depois, alguma linha divisória clara separando como que dois he-
misférios artísticos ao longo de um século cinematográfico nacional, deve passar por perto deste
momento decisivo, esses oito anos entre Os Cafajestes e Cuidado Madame.
Em sua crônica, porém, Bressane dirige o olhar ao que antecede o seu próprio tempo; embora
nele se engaje:

“Notamos aí nesse episódio dos irmãos Segreto (nascimento do cinema entre nós)
que no cinema nacional no seu nascedouro, na sua primeira configuração, no esboço
136
Ibidem, pp. 38-39.
137
Ibidem, pp. 35-36.
de seu signo, existe já o elemento experimental. Este fio fino transpassará todo o
cinema brasileiro daí em diante e para sempre.” 138

A rica espiral imaginária da cogitação — que planos teriam sido estes, augurantes e inau-
gurantes daquilo que o nosso cinema viria a procurar? —, se nos leva ao enlevo das ondas, ao
sentimento flutuante da chegada ao país, sua descoberta, confluindo com o moderno cancioneiro
nacional, logrará mesmo a agenciar de uma nova metafísica o conhecido simbolismo oceânico
do sertão-mar cinemanovista, para além do sempre postulado e reposto Descobrimento do país.
Aproxima a ideia do inventar em cinema do inventar em geral no país; talvez do próprio país o
inventar-se. Fala de gente e lugares específicos solicitando a criação de miradas específicas, mo-
dos correlatos da visão poética. Talvez o localismo, de que se falou já tão depreciativamente. O
experimentalismo que preside a interação entre forma e realidade filmada, deixando a segunda
moldar a expressividade sintática da primeira (que a devolve surpreendente), estaria na base das
noções de moderno, exorbitando o pressuposto realista de Bazin e Kracauer para uma poética
latente ao longo da história experimental brasileira.

V. Limite

“Solução do ‘eu sofro’, por tudo e com tudo,


inquietação perene da alma presa que não se identifica,
que agoniza, que quer sempre!
Solução do imenso ‘inútil de cada um’!
Continuava a acompanhar, com dupla agudeza,
o espetáculo interno das sensações, e não o sentia.
Analisava-o com a segurança de um vidro interposto.”

Mário Peixoto, 1933. 139

A impressão que partilhamos é a de que Limite faria jus às mais elaboradas categorias con-
ceituais em disponibilidade na literatura especializada, ou mesmo exigiria o esboço de algumas
novas. Um maior revelar ou desvelar crítico do seu “realismo poético” e do seu “ritmo” estariam
a requerer tentativas ainda mais sedimentadas na análise empenhada em campo estético diversi-
ficado, talvez com aportes e articulações comparativas que a sua extrema singularidade no con-
texto específico de realização possa ter inibido. Um desafio que aí se encerra seria o de lidar com
138
Ibidem, p. 36.
139
Peixoto, Mário. O inútil de cada um. [1933] 2ª ed., Rio: Sette Letras, 1996, p. 21.
o transcendente que ali se impõe, se cristaliza, se coagula, e nos põe à deriva da própria obra ao
analisá-la — sem que consigamos discutir a produção desta deriva pela fita, pela experiência que
dela temos. Como dar conta de sua análise crítica sem tocar em sua beleza?, sem se perguntar
sobre o seu disperso sublime, efeitos de grande alcance, inopinados?, falar dos sentimentos esté-
ticos que produz?, de sua expressão pela felicidade das formas a eles correspondentes, tão encan-
tadoras quanto a força irradiante da sua precária unidade?, buscar de sua atmosfera o singular?
É filme de “cadência lenta, triste e fúnebre, às vezes majestosa” (Saulo Pereira de Mello), que
se vê ordenado com “coração de chumbo”, em tom de “fatalidade”. Um caminho promissor e no
caso ainda pouco trilhado seria a frequentação do universo literário de Mário Peixoto. Por exem-
plo, parece-nos um terreno fértil a filiação modernista do seu livro de poesia Mundéu, publicado
em 1931, mesmo ano de Limite. Mário de Andrade escrevia sobre o livro que “se tem a impressão
do jato violento, golfadas irreprimíveis. São poemas que nascem feitos, explosões duma unidade
às vezes excelente, em que o movimento plástico das noções e das imagens é incomparável den-
tro da nossa poesia contemporânea” 140. O poeta paulista parece estar falando também do Peixoto
cineasta, que desconhecia, ainda quando postula que sua poética se desenvolve em torno de um
jogo entre “terra e mistério”. #Deixa-nos alguma sugestão de que ingressamos num momento
transitório do modernismo, entre sua primeira onda e a segunda, atraída para o regional. Ainda
acerca do outro Mário, Peixoto teria, muito jovem, dado passos convergentes a cogitarmos, como
quando revela desejos de conhecer o país nos seus lugares recônditos em certo entrelaçamento de
um conhecer-se a si próprio. No seu romance O inútil de cada um, publicado em 1933 e forne-
cendo certas plataformas para investigar a coetânea obra cinematográfica, o personagem biogra-
ficamente mais aproximável do seu autor vislumbrava planos de viagens-descoberta a remotos
lugares do país 141.
Considere-se no entanto que para a avaliação de Limite a comunicabilidade entre meios de
expressão diferentes talvez se ofusque diante do impacto plástico e rítmico tão especificamente
fílmico que sofremos. Sua espantosa sintaxe formal, lânguida e esparramada, prefigurando mag-
nificamente uma “tropical melancolia” tão buscada mais tarde, talvez não encontre paralelos
no país senão na fluidez lamentosa e interminável da música de um Villa-Lobos, cujo infinito
Choro N°11, com mais de uma hora de execução, é ainda contemporâneo do filme. “Obra única”
da filmografia, como se diz, não só de Peixoto, mas do país e do mundo, este verdadeiro “corpo
estranho” no cinema brasileiro da época, pareceria com efeito manter maior parentesco, ou mais
seguro, com o cinema europeu de vanguarda. Pode-se aproximá-lo das experiências francesas
dos anos 1920 com o ritmo e encenação (L’Herbier, Dulac, Epstein, Gance, Chomette, Deluc,
Cavalcanti); talvez da contemplação da Natureza em Flaherty; da cadência amorosamente lenta
de Dovjenko. Mas algo nos diz que estes parentescos são tão longínquos quanto o modo alla

140
Peixoto, Mário. Mundéu. (poemas) Rio: Typographia São Benedicto (ed. particular), 1931; 2a ed., Rio, Sette
Letras, 1996, p. 10.
141
Peixoto, Mário. O inútil de cada um, p. 27 et passim.
Antonioni com que se exprime a paralisia dos personagens através da captação que a câmera faz
do espaço.
Mário teria viajado pouco à Europa antes de realizar o filme. Estudou no Rio, onde foram
seus colegas Octávio de Faria, Plínio Süssekind Rocha e Cláudio Melo, os dois últimos fun-
dadores em 1928 do Chaplin Club, cineclube que editou a revista O Fã, e realizou discussões
estéticas sobre cinema pioneiras no país. Sem ter participado do grupo, mantendo porém nesta
época maior contato com Octávio de Faria, não se sabe ao certo quais das discussões em curso
Mário teria acompanhado, neste período em que se dá muito provavelmente a sua sedução pelo
cinema. O maior estudioso do cineasta e exegeta erudito de Limite, Saulo Pereira de Mello 142,
crê ser possível que as discussões teóricas do clube chegassem até Peixoto, completando o que
estava aprendendo praticamente, acompanhando as filmagens de Humberto Mauro no Rio, filmes
como Barro Humano (1929) e Lábios sem Beijos (1930). Os debates que podemos ler na revista em
torno de Murnau e seu Aurora (1927), sobre a especificidade do cinema, as noções de ritmo, de
continuidade e de movimento da câmera nos parecem bastante relacionáveis a Limite.
No quadro que Bressane compõe do cinema nacional Limite ocupa lugar central, na medida
em que funda “uma nova mentalidade”. Argumenta que “já é, entre nós, arte alusiva, paródica ou
de consciência do passado do cinema. Já é cinema do cinema, ou seja, implica a criação e recria-
ção da imagem no filme cinematográfico.” 143 Admirável aqui tal argumento, mais conhecido em
geral na compreensão da Nouvelle Vague, primeira geração que se forma já num cultivo mais sis-
tematizado da história do cinema. sugiro para não perder de vista o sujeito “tal argumento” Não
deixa porém de nos falar de um traço próprio desse filme. E faz igualmente sentido ter então nos
observado mais do seu vínculo com a vanguarda francesa, quando para outros possam ampliar-se
as referências, e ao próprio Peixoto não escapasse Eisenstein, cujas palavras imitou num falso
artigo que fez publicar elogiando seu único filme.
Em tudo o que Bressane encontra nesse elogio a Limite, é notável, poderíamos ir desdobrando
uma poética de seus próprios filmes; mas indicará em particular aspectos que ajudam a isolar e
segregar nessa fita uma unidade própria. “Limite radicaliza esta formulação de Gance: cinema é
a música da luz.” Abstrairá que esse filme “é um fotograma transparente, branco, onde a sombra
é que organiza a imagem. A sombra é portanto a música.” Parece-nos que a afirmação possui
força interpretativa maior se a tomamos num sentido amplo e alusivo também à temporalidade
construída no filme, por assim dizer um tempo demarcado por sombras. Esse tempo construído
por demarcação de sombras traz ao filme uma historicidade expressivamente sombria, obscure-
cida. Com efeito, a situação de que parte a narrativa, a pasmaceira extenuada dos três náufragos
perdidos numa canoa ao largo, ao abandono da bonança, vai se alternar entre essa estagnação e
142
Limite. Rio: Rocco, 1996. Pode-se ler com interesse estudos como: Teixeira, Francisco Elinaldo. “Rebrilho
do tempo intangível”, O terceiro olho. São Paulo: Perspectiva, 2003. Roizman, Geraldo Blay. Mário Peixoto, um
olhar fenomenológico. Mestrado IA-UNESP, 2003. Yamaji, Joel. Estudo sobre Limite de Mário Peixoto. Mestrado
ECA-USP, 2007.
143
Bressane, J. op. cit., pp. 36-38.
uma outra, pretérita, de momentos malparados de suas próprias vidas. Cada um parece recordar
desde aquele confinamento a céu aberto, descaminhos vividos, momentos prenhes da possível má
sorte que os lançou no imponderável. Embora certa indeterminação entre os tempos das sequên-
cias apenas sugiram o pertencimento ao passado, e algum disperso vínculo com a sorte presente,
esses tempos se opõem como espaços de tormentos ante a calmaria a que se relegaram. Há um
espaço de conflitos pretéritos se delineando face a um outro onde a sorte os lançou, passado de
crises e traumas que esvanecem no espaço presente, condenado ao nada, à pasmaceira dispersa
como horizonte de danação.
Aquela evasão em bonança termina pela borrasca. Ao discrepar elas se engendram, desde que
o filme se inicia. Algo disto se prenunciaria nos belos e impressionantes closes dos navegantes,
planos fixos que se desenrolam detidos próximo dos cabelos desgrenhados em ondas revoltas,
discrepantes na tranquilidade do fundo que lhes emoldura naquela difusa placidez da superfície
marítima, ela também ondulante, apenas noutro diapasão. Sutis discrepâncias abstraem e nos de-
volvem a atenção ao passado de procelas revertido de estagnações vividas e vívidas, interligadas
todas de uma coesão acabada e lacerante. Se em certos momentos o olhar se livra em volteios e
piruetas — no quase desértico vilarejo a água da bica verterá como dadivosa (travellings avant),
aqueles sôfregos passos dados em vão percurso (câmera persecutória), a contemplação abismada
do alto de rochas costeiras se inebriará na voragem da rara amplidão (rola ribanceira abaixo) —
são exceções na atmosfera geral de inação, reafirmando o mesmo princípio cosmológico dilace-
rante e delimitador de Limite.
Desde o começo um mesmíssimo tom perpassa o filme duma calmaria funesta, emoldurando
a tudo; imerge-se inteiro no agourento clima de bonança-e-borrasca, pressagiadas ambas desde
o começo até ao arremate da fita, já de início pelos galhos ressequidos, o negro esvoaçar dos
urubus, ou no escorrido do letreiro “Limite” em lúgubre fleuma, transpiração expressionista da
grafia art déco. Tristes bananeiras abandonadas ao convívio de árvores destocadas, terrenos semi-
-desbastados em poda incompleta, avistados de cancelas e caminhos trilhados por vidas passan-
tes, elas também ceifadas no perder-se das distâncias que não se cumprem e não podem mais se
cumprir. Se tudo vai convergindo e se condensa numa atmosfera singular, as ambiências se unem
nessa liga precária demais, precariedade esta que determina o próprio tom autônomo que preva-
lece em cada parte do filme quando esta tende a se autocentrar. Como se as cenas nos indagassem
um desolado “ir para onde?”
As histórias contadas se emparelham com o presente agônico, como naqueles dois pauzinhos
nas mãos distraídas do exausto náufrago, que se alternam sempre paralelos, em moto perpétuo.
Nesta reflexão sobre o malparado — a sina imaginária da criatura cuja sorte se decidiu alhures —,
subjaz um espaço remoto de intemperanças pretéritas que se contempla do presente evasivo, sem
ação. Há como que uma trégua de conflitos, estes apenas rabiscados de quando em quando na
lembrança dos personagens. Embora na origem da situação, o conflito nesta cena brasileira que
a poesia do cinema nos põe, queda sempre em enfrentamentos perdidos no passado, ele aqui se
dissipa e esvanece como combate contemporaneamente remoto — é causa originária, perdida no
acontecimento presente e como se, inarticulada, sucumbisse no espaço do atual.
Convertido em poesia fílmica, o peso de um espaço pretérito, de conflitos mal resolvidos
em obscura filigrana, vivência patética desde a bonança do espaço presente, onde todos conflitos
determinantes de então não mais se apresentam, mas fazem suspirar uma sina irreversível, espa-
ço de danação, algo disso se repetiria remotamente contudo num itinerário duradouro de filmes
que parecem aproximar-se de alguma essência problemática do país, sua letargia. Além de tudo,
o que ocorre no quadro histórico deste momento, com a Revolução de 1930, parece responder a
essa inação duradoura, que culturalmente prometia desdobramentos na linguagem emancipatória
do moderno percuciente desde a Semana de 1922, ou desde um alvorecer ruidoso do século (e da
década de) 20. Oswald de Andrade sentenciaria anos após que: “Se 1922 anunciava uma sintaxe
para a liberdade criadora de nossa gente, pode-se dizer que só 1930 e a revolução outubrista deci-
diram do aproveitamento e destino do modernismo.” 144 Depois de “uma série de aspirações, ino-
vações, pressentimentos gerados no decênio de 1920, que tinha sido uma sementeira de grandes
mudanças” 145, e em paralelo à crise de 1929, a promessa de garantias de que se revestia a Revo-
lução de 30, a alicerçar alentos dum novo porvir republicano, agora contra um atraso persistente
no país, porventura a favor de direito trabalhista, reprimindo tradição oligárquica, é bem verdade
que tudo por intermédio de adventos inesperados e controversos golpismos antidemocráticos.
Antonio Candido nos lembra que:

“De maneira geral a repercussão do movimento revolucionário de 1930 na cultura


foi positiva. Comparada com a de antes, a situação nova representou grande pro-
gresso, embora tenha sido pouco, em face do que se esperaria de uma verdadeira
revolução. (...) Uma das consequências foi o conceito de intelectual e artista como
opositor, ou seja, que o seu lugar é no lado oposto da ordem estabelecida”. 146

Talvez cinematograficamente esse negro espectro lívido de Limite nos trouxesse desse qua-
dro histórico o seu reverso, verdadeira negação daqueles progressos anunciados, sua margem de
expectativas deixadas ao esquecimento, a ressaca da pujança positivista irrealizada em diferentes
tempos e situações. Parece inverter o sopro de mobilidade que faz devanearmos com silvos de
locomotiva, essa letargia tenaz de Mangaratiba, gemido agônico em contraponto extremo à vita-
lidade entranhada que poderia ecoar do Trenzinho Caipira (1930) de Villa-Lobos.
As esplêndidas paragens funestas às que nos conduz Limite, imagem negativa de seu tempo,
144
Andrade, Oswald de. “O divisor das águas modernistas” [1937], Estética e política. (org. M. E. Boaventura) 2ª
ed., São Paulo: Globo, 2011, p. 80.
145
Candido, Antonio. “A Revolução de 1930 e a cultura” [1980], A educação pela noite. São Paulo: Ática, 1987, p.
182.
146
Cf.: Candido, A., ibidem, pp. 194-195.
podem nos surpreender enquanto inusitada falácia, peremptória e plúmbea, daquilo que haviam
sido os “fermentos renovadores” brandidos nos anos 1920  147. Elas, no entanto, são construção
vigorosamente delicada e moderna. Nelas não se impuseram o desfazer carretéis, o continuar da
costura. Nem precisaríamos recordar as rodas de locomotiva em angular plongée de justíssimo
enquadre como se girassem paradas, a exemplo das polias da máquina de costura. Abstraídas
(quem viajou, entre que lugares?), as rodas não levam a lugar nenhum, pulsam no meio do filme
reverberantes, embutidas como ideação paradoxal, panaceia entretanto para um mundo estag-
nado, inarticulado. Estão ali autônomas em plano único, anguladas em tangência no retangular
do quadro que, isolado sem qualquer circunstância montada de nenhuma outra parte do trem, de
trilhos ou estações de embarque, adeuses ou vagões. Tais rodas são a destacada promessa de um
deslocamento que seria antítese de tudo o que ocorre filme afora: rodas que giram por si, arti-
culadas em si, subtraídas do real mundo articulado, força de pura ideia, fantasia quimérica, um
emblema antitético daquele mundo em que se incrustaram. Mesmo em sua reaparição mais perto
do final tormentoso, plano variante com algum chão passando veloz, persiste como num eco dis-
tante algo deste emblema falaz. Por isso a justeza do enquadramento autossuficiente, encaixado
em motilidade ensimesmada, a sete chaves ilhado na fita como dinâmica inacessível ao mundo
caducado em imaginário de abandono e ausências, paralisia e premonições.
A arte da câmera de Edgar Brasil compõe transfigurações expectantes do que se arruinou na
vitalidade do mundo. Intui presságios, acenos metonímicos, ordena resquícios de uma raciona-
lidade cuja dinâmica sufocada se estrangulou anonimamente: é dinamização que se enquadrou,
entravou, desvirtuou, limitou e delimitou em todo seu deslocamento possível. Vislumbra-se algo
como a inércia do atraso paradoxalmente progredindo. Sintaxes do limite entregues à metafísi-
ca do isolamento no mundo, circulação desarticulada, sentimento de morte, expiração. Noutro
enquadre justo, também câmera mergulhada, outra plongée, mesmo num espaço mais livre, um
peixe fora d’água tenta em vão o pouco que lhe resta pelas guelras aspirar. Seu olho vidrado ain-
da enxerga decerto; pasmado, inútil. A suficiência do tempo disposto nesse plano nos controla a
exasperação com alguma justeza que pulsa subjacente nas demais imagens. Noutra mais aberta, e
tão travada quanto de saídas possíveis, outra justeza atroz: uma das mulheres, ao voltar da feira,
rumava desacorçoada por vielas, com longes de desalento emperrando as juntas, empaca petrifi-
cada na entrada da casa, entravada pela agourenta figura enrijecida do companheiro inconsciente.
De costas para nós, frente para ela estarrecida, sentado na escada, ele dorme dobrado sobre si,
braço preso ao corrimão como um espantalho soturno fazendo-se de cancela. Pareceria lhe atra-
vancar não apenas os degraus de acesso ao lar, ou seu percurso vacilante, mas sua vida inteira, sua
alma, num arremate sem eira nem beira daquele inteiro vilarejo ermo e despovoado.
Na memória que temos do filme a transcendência deste mesmo olhar feminino para com
dado limite — o limite como determinada e certa perda do ir-e-vir —, corresponde a tantos outros
momentos, dispersos, que o seu efeito se espargiu pelo todo, em “cadência lenta, triste e fúnebre,
147
Candido, A., ibidem, p. 185.
às vezes majestosa”. Tomando-se por enredada, presa, essa visada buscou entretanto fluir, esca-
par, às vezes esforçou-se oscilante por cambalear até o alto da orla, mas rola então abaixo com
vertigem demasiada, face à amplidão do mar. Há nesta mortificada sensação de voragem, mesmo
como resquício, um agarrar-se à vida, ainda que sentindo a impossibilidade de viver. Seria aquilo
que agoniza, e que, misterioso, quer sempre. Se a plongée que encerra toda a parte inicial do filme
naquele plano fixo e vazio, a borda do barco seria o único limite pairando sólido, estático face
à superfície extensa dessa indolente ondulação oceânica, o seu imponderável mistério insinua o
permanecer da morte, numa sombra que pulsa vagarosa como amplidão sintética e opaca da escu-
ridão profunda. É o que mais tarde devidamente nos exprime o seu contre-plongée, sem dúvida o
fotograma mais difundido do filme, no qual aquela mesma mulher olha para baixo daquela beira
de barca com gravidade alarmada, logo depois do ambíguo mergulho suicida do homem, sem
mais aflorar à superfície. De sua fronte lívida e descabelada se recortando como num sol contra
o céu ofuscante, olhos aterrados adivinham enxergar na escura profundidade marítima o que se
irradiaria dum mesmo espectro negro que a ela subjaz. A força desse belo cenho fitando petrifica-
do em contra-mergulho culmina incontornável, catártica e paradigmática como uma polaridade
invertida, ao catalisar e nuclear no meio da fita a sua mortiça beleza que lateja, num oculto centro
de gravidade.
Como na dramaticidade onírica, os espaços da vivência se transmudam em equívocos,
condensações da inquietação subjetiva. Enraizados no brejo, os tabuais vigorosos que vemos
obstruem não só toda a corrida exasperada do rapaz com o coração na boca — eles impedem,
coercivos, um livre deslocar-se pelo filme — contra o vento do destino. Impedem, tal como as
portas, cancelas, os inumeráveis cercadinhos de todo tipo, proliferantes em Limite, o simples ir-e-
-vir livre e coroado de êxito num decantado “mundo aberto sem porteira”. Em oposição à infinita
abertura do presente oceânico, toda a memória dos personagens, seu passado de trânsitos pelo
mundo, carente de recessos prazerosos, na justa forma avessa de qualquer saudade, desdobra-se
em quadros travados e com movimento dramaticamente estrito, constrito de espaços superen-
quadrados e reenquadrados de trauma e impasse, a exigir aspirações desesperadas de qualquer
evasão, extravio, liberdade. Lida na manchete do jornal, a fuga da prisão que repercute na de-
riva dos personagens, tem seu arremedo provado na fuga destrambelhada do detento Carlitos,
assistida em sala de cinema. Esse mundo delimitado, cercado, truncado e paralisante, que causa
vertigens quando ameaça expandir-se, estaria naquele mesmo momento, e talvez desde o velho
influxo expressionista, escorrendo numa contramão histórica. Configura bastante bem o contrário
do espaço moderno doravante imaginado pelas artes locais em seu olhar difuso  148, almejando
larguezas, visão que se espalha, desinteressada por sombras, perdendo-se nas distâncias da paisa-
gem, colorações — luzes margeando euforias pela virtualidade do ir-e-vir, prenhe de conquistas
148 Apoiando-se principalmente na análise das paisagens de Guignard, Rodrigo Naves pensa matrizes da
pintura brasileira avizinhadas de um certo primitivismo enquanto radicalidade moderna da experiência esté-
tica que se desenvolveria, presa às condições materiais locais. “O olhar difuso — Notas sobre a visualidade
brasileira”, Gávea n°3, Rio: PUC RJ, junho 1986.
e promessas, proporcionadas pelo país que se descobria em seus regimes de visibilidade próprios.
O que se afigura em passos pretéritos na história pessoal dos personagens, enquanto nível
de transcendência do passado, criaturas enquadradas desde o nível presente de marasmo agônico
que lhes emoldura e compreende, nestes dois níveis que se explicam tênues e incertos na sua se-
paração obscura: — aí é que se desenvolve o teor de tristeza da montagem de Peixoto. Se aquela
amplidão difusa do presente só tem o seulimite certo nas bordas da canoa, no reminiscente pas-
sado dos náufragos esse mesmo limite será inelutável paralisia de açodamento sutil, atividade
constritora. Como se sob um céu ímpio flutuássemos sobre profundezas de contornos por divisar,
indistinguíveis, entre placidez pasmada e alarmantes contra-mergulhos. Como se navegássemos
sobre um pretérito vívido mas insondável. Toda diferença formal de seus estatutos de espaço-
-tempo, de sua mise en scène construída, irá configurar, no entanto, uma só cosmologia poética.
Já chegando aos meados do decênio de 1950, num dos primeiros textos críticos publicados sobre
Limite, Peter Weiss sintetiza em análise lapidar que o filme nos propõe “variações sobre o motivo
dos ‘limites’ tratado sob uma forma complexa, contrapontística.” 149 No âmbito dos verdadeiros
conteúdos que entretanto se exprimem historicamente naquelas formas contrapontistas, vislum-
bramos problemas de conformação local, generalizada em fortes tradições do país, e a busca
abrupta de diálogo entre impasses do presente e a memória individual das mais pertinentes expe-
riências concretizadas — se perguntariam nossos miseráveis personagens, como quiçá toda uma
população: — que passado poderá nos salvar no apuro presente?
O modo particular deste agenciamento de dos pretéritos sentimentos dos três náufragos,
entrelaçado à sombria historicidade individual numa atmosfera singular de pasmaceira extenua-
da, pode possuir insuspeitas inervações num público eivado de história congênere de marasmos.
Vincula-se ainda tal atmosfera a um sentimento de perplexidade maior, dela diferindo contudo,
energicamente, a pasmaceira dispersa pelo mundo; e também pelo bom tanto como pelo mau
filme brasileiro. Isto seria explicação razoável para o encanto com que recorria à palavra Paulo
Emílio Sales Gomes, analisando filmes em seus cursos de história do cinema brasileiro. Sempre
com reserva de humor, pronunciava o termo pasmaceira ameaçando arregalar os olhos, à beira de
possível gargalhada, que também não eram raras aliás. Naturalmente se tratavam de pasmaceiras
muito distintas conforme o filme tratado. Mas podemos suspeitar em todo caso de uma mesma
ligação remota e sorrateira de sensações cênicas em perplexidade densa, um espesso agora que
se demora inarticulado ao correlativo passado. A experiência histórica pessoal inarticulável ao
devido passado sugere pouco futuro; o que teimaria em resistente contraste com as gentis cores
sempiternas do país do futuro.
O presente radiante que se ofusca, regido pelas sombras esquecidas da tradição desatinada,
do passado que hesita e demora por se articular atinando seus sentidos num desígnio virtuoso
qualquer: eis a profusão derramada, obscura e singular que nos ilumina em Limite. Talvez Glau-
149
Weiss, Peter. « Peixoto : Limite », Cinéma d’avant-garde. [1952-1955] Paris : L’Arche, 1989, p. 83 (tradução
nossa).
ber tenha alguma razão em sua cega premonição contra o filme. É também um experimento dado
a pesadelo burguês. Mas que não traga qualquer alcance crítico ou nenhum horizonte social?
Ele gostou do filme e o redimiu ao vê-lo, quinze anos depois de detratá-lo como mito lapidável
em 1963  150. Assim como amou Villa-Lobos, reconheceu esta aguda invenção estética de peso
universal e local. No sonhar aflitivo, para além da ironia de nos colocarmos solidários para com
quem sucumbia diante das leis imperantes dos homens e do mundo, no pesadelo não se pode mais
apossar-se de um mundo que acabou de se apossar de nós.
O passado que se recalca nestas caducadas colorações do presente, já lívidas nos idos de
1931, vai distintamente se revelar na persistência vizinha de uma identidade “desmemoriada” que
vaga historicamente, encontrando poesia vicejante em vários persistentes momentos do cinema
brasileiro. A começar dos mais recentes, podemos lembrar a filigrana resistente do passado oli-
gárquico em O som ao redor (2012), bem como o residual desarranjo matrimonial em off como
remoto leitmotiv de Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009) — memórias que se escon-
dem à flor da pele custando demais a aflorar, siderando e cristalizando o mundo presente. A quase
inconsciente usurpação da terra, ou a desterritorialização pelo passado sem lei, tempos pretéritos
que se recalcaram e/ou se disseminaram inelutáveis, presentes com prolífica disparidade nos
filmes Candinho de Candeias (1976) e Abílio Pereira de Almeida (1954); ou Vidas secas (1963),
Deus e o diabo na terra do sol (1964), O bandido da luz vermelha (1968), Macunaíma (1969). Ou o
trauma da utopia político-amorosa golpeada e prorrogada indefinidamente em O Desafio (1965)
e Terra em transe (1967). Neste último, recompondo em oscilação pendular a reação ao mundo
letárgico da tradição colonizada junto ao mundo da ação política e poética, Glauber mimetiza
cinematograficamente o conhecido motivo sartreano, “Não importa o que fizeram de nós e sim o
que fazemos disso”.

VI. Extravios como parte do percurso

“A catedral de São Paulo


Por Deus! que nunca se acaba
— Como minha alma.
É uma catedral horrível
Feita de pedras bonitas
— Como minha alma.
A catedral de São Paulo
150
Rocha, Glauber. “Limite”, Folha de S. Paulo, 3/6/1978. “O Mito ‘Limite’”, Revisão crítica do cinema brasileiro.
[1963] 2ª ed., São Paulo: Cosac & Naify, 2003, pp. 56-67.
Nasceu de uma necessidade
— Como minha alma.”

Mário de Andrade, s. d. 151

Antes de Limite, a história do cinema experimental e de vanguarda no país precisa recuar


a determinadas considerações. Por exemplo, em São Paulo, a sinfonia da metrópole (1929), os
cavadores paulistanos Adalberto Kemeny e Rodolpho Rex Lustig, migrantes húngaros, propõem
um desvio brasileiro da “fórmula” vanguardista alemã de Walther Ruttmann — em Berlim, sinfo-
nia de uma cidade (1927), aqui exibido em 1928 —, dela se apropriando sem qualquer repercussão

da ruptura, desespero ou libertação lá presentes. Embora nas contemporâneas “sinfonias do entre


guerras” mais conhecidas, como Somente as horas (1926) de Alberto Cavalcanti, O homem da
câmera (1929) de Dziga Vertov ou A propósito de Nice (1931) de Jean Vigo, estivessem presentes

certo espírito de contradição, ironia, engajamento às forças sociais progressistas ou excluídas, o


filme de Ruttmann, vanguardista como os demais, possui também uma disposição problematiza-
dora da complexidade experiencial da cidade grande 152. Muito ao contrário de qualquer vertigem
criadora inaudita, patenteia-se aqui em São Paulo o “desplante” de encontrarmos um discurso
publicista conservador (ainda que nos moldes republicanos da época), entusiasmo edificante,
ideológico, coeso ao estilo institucional da cavação. Rebuscado na fotografia, a fita oscila em
derivações artesãs de um gosto art nouveau persistente desde o florescer da capital do café, de
permeio com um olhar acadêmico classicizante, então algo premonitório da espacialidade do art
déco, que caracterizaria a paisagem paulistana a partir da década de 1930. Ao mimetizar o art-
-nouveau “retilíneo” mais específico da tradição paulista — desde seu início com a Vila Pentea-
do 153 (1901) até sua duradoura popularização na movelaria do Liceu de Artes e Ofícios —, antes
ordenador e geometrizante que organicista e “desvairado”, como se lobrigasse um desígnio art
déco ainda não presente na fisionomia da metrópole nos anos 1920, mas construída no filme com
capricho, e espacialidades truncadas por alguma composição rigorosa ou truculenta. Não deixa
de ser um modo de ver-se o filme alinhado ao gosto da elite cafeicultora pré-industrial desde o
151
Poema publicado em Lira paulistana, 1946, edição póstuma. “A catedral de São Paulo”, Obras completas de
Mario de Andrade, v. II-A: Poesias Completas. 5ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Martins, 1980, p. 292.
Refere-se à Catedral da Sé, construída inicialmente em 1589, terminada em 1616, na Praça da Sé, algumas
vezes reconstruída, sua versão barroca foi concluída em 1764, demolida em 1911. Projetada em 1912 pelo
arquiteto alemão Maximilian Emil Hehl, a atual enorme igreja em estilo eclético, ora chamado neogótico, ora
neobarroco, com vários elementos de estilo distinto, começa a ser construída em 1913, inaugurada somente
em 1954, com as torres ainda inacabadas; no projeto original completo, só foi concluída em 2002.
152
Cf. meu artigo “Cinema alemão e sinfonias urbanas do entreguerras” in: Almeida, J.; Bader, W. Pensamento
Alemão no Século XX, v. III: Grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
153 Conhecido monumento arquitetural paulistano, o palacete da Vila Penteado, na rua Maranhão, 88,
em Higienópolis, assim chamada a maior mansão art nouveau do país, abrigou a Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo entre 1949 e 1968, e sedia hoje o seu curso de Pós Graduação.
Motta, Flávio. “São Paulo e o art nouveau”, Habitat nº10, São Paulo, 1953.
alvorecer do século, tradição porém voltada ao futuro, espécie de vontade artística precoce, kuns-
twollen industrial um tanto avant la lettre. 154
A vocação de clareza que prevalece mesmo diante da remontagem de material aproveitado
da prática anterior dos cineastas, seus documentais de cavação ao longo daquele decênio, vem no
filme ordenar a cidade desconjuntada, escolhendo visadas planiformes, enquadres frontais sime-
trizantes, perpendiculares à edificação, eliminando assim irregularidades visuais ou discrepâncias
de ocupação urbana encontradiças em proliferação, que o amadorismo de pintores e fotógrafos
de então registraram com impiedosa espontaneidade. Tal equilíbrio ordenador do espaço confere
ao filme de Kemeny & Lustig um classicismo particular em que o falseio construtivo obedece a
uma vontade verdadeira, e meta desejável num projeto hegemônico do capitalismo paulista. A
forma cinematográfica retoma forças locais e cosmopolitas do imemorial classicismo, que serviu
também para se pensar o cinema vocacionalmente clássico, grande ocupante do circuito mundial
que se formava. Assim como André Bazin descreveu a profundidade de campo e a linguagem do
quadro centrífugo nas tomadas realistas da câmera, reativando nas artes do espaço a História das
formas tal como, por exemplo, Heinrich Wölfflin o fizera nos Conceitos fundamentais da histó-
ria da arte comparando o Barroco ao Clássico, David Bordwell não deixou de se aproximar de
semelhantes conceituações por seu turno para caracterizar o cinema clássico hollywoodiano. 155 O
trabalho cinematograficamente formativista — ou aqui teríamos algum conceito de realista cabí-
vel? — dessa visualidade paulistana de lastro parnasiano, otimização pré-moderna do moderno,
possui méritos, porquê não dizê-lo?, de criação artística, ainda que artesanal na sua acintosa opo-
sição ao experimentalismo em que de fato se inspira e decalca, configurando na sua fatura formal
inopinada uma obra prima no gênero cinematográfico mais praticado no país, o documental de
cavação. Deslumbrou dessarte ao “príncipe dos poetas” Guilherme de Almeida, o escritor moder-
nista mais popular da cidade, então cronista de cinema n’O Estado de S. Paulo, e devidamente
vacinado contra o cinema brasileiro em geral. 156
É importante lembrar a correlativa distância nessa época entre a gente de cinema e a do mundo
da literatura e das artes quanto ao ideário, mentalidade, origem social e de classe. Com os nossos
cineastas, atores ou cinegrafistas de migração estrangeira mais ou menos recente, sobretudo em
São Paulo, verifica-se uma relação um tanto lateral para com os modernistas de 1922, mesmo os
de maior penetração popular como Menotti Del Picchia ou Guilherme de Almeida. Entre os da 7ª
Arte, temos a proximidade com o mundo do migrante atraído pela cidade do trabalho, que então
154 Argan, Giulio Carlo. Storia dell’arte come storia della città. Roma: Riuniti, 1984. Damisch, Hubert. “Le
texte mis à nu” in: Riegl, Aloïs. Questions de style. Paris: Hazan, 1992. Riegl, A. Grammatica storica delle arti figura-
tive. [1899] Bolonha: Cappelli, 1983. Wölfflin, Heinrich. Prolégomènes à une psychologie de l’architecture. [1886] (tr.
intr. Bruno Queysanne) Paris: Carré, 1996.
155
Bordwell, D.; Staiger, J.; Thompson, K. “Space in the Classical Film”, The Classical Hollywood Cinema. Londres: Routledge and Keg-
an Paul, 1985. Bazin, André. Qu’est-ce que le cinéma? 4 v. Paris : Éditions du Cerf, 1958-1962. Wölfflin, Heinrich. El arte clásico. [1899]
Madri: Alianza, 1982. Conceitos fundamentais da história da arte. [1914] São Paulo: Martins Fontes, 1984. É notável a proximidade as
descrições da arte barroca deste livro de Wölfflin com aquelas feitas décadas depois do espaço cinematográfico realista por Bazin,
que poderia conhece-lo no ambiente francês via André Malraux.
156
Machado Jr., R. São Paulo em movimento: a representação cinematográfica da metrópole nos anos 20. Mestrado, São Paulo: ECA-USP, 1989.
se delineava com a implantação da indústria paulista, suas entidades operárias e cultura predo-
minantemente europeia. E, entre os das artes e literatura locais, a relação maior com a educação
formal, as tradições culturais e a elite paulista. Ainda assim, um mesmo éthos hegemônico de
queda pela ordenação formal, descrita, por exemplo, na proliferação retilínea-geometrizante do
art nouveau paulista, se manifesta em cada uma das esferas, embora de modos diferentes nessa
urbe cosmopolita “voltada para o futuro”. Há quem neste trajeto de impulsos ordenadores pense
em movimentos construtivos como o Concretismo. Daí o esforço original da Sinfonia paulistana
de recobrir amplamente tais desígnios na construção de sua cidade ordenada para o trabalho,
em seu caprichoso “parnasianismo” visual (como popularização eclética ou proto-neoclássica)
improvisado a partir de uma experimentação local de anos que pode ser chamada de academismo
classicizante. Até um moderno entre os de maior radicalidade vanguardista, como Oswald de
Andrade, intuía a relevância de polemizar em torno destas vocações:

“Uma confusão que prejudica imenso a orientação dos bem-intencionados é essa


que geralmente se faz entre classicismo e academismo. (...) É preciso, porém, que se
concorde numa coisa: clássico é o que atinge a perfeição de um momento humano e
o universaliza (Fídias, o Dante, Nicolas Poussin, Machado de Assis). Academismo,
não. É cópia, imitação, é falta de personalidade e de força própria. (...) É, pois, o aca-
demismo, a imitação servil, a cópia sem coragem, sem talento que forma os nossos
destinos, faz as nossas reputações, cria as nossas glórias de praça pública. (...) Que-
remos mal ao academismo porque ele é o sufocador de todas as aspirações joviais
e de todas as iniciativas possantes. Para vencê-lo destruímos. Daí o nosso galhardo
salto de sarcasmo, de violência e de força.” 157

Se há um gênero cinematográfico consolidado no país, nesses três decênios inaugurais, é o


do “natural”, o registro documental por vezes sistematizado em cinejornal. Difícil negar a este
filme em sua modalidade o posto de obra máxima 158 do cinema silencioso brasileiro. Escrevendo
a respeito dos documentais do nosso período mudo, Paulo Emílio observou uma alternância bá-
sica entre seus dois inarredáveis motivos centrais, que chamou de “Berço Esplêndido” e “Ritual
do Poder” 159. De um lado, as mais recônditas e decantadas belezas naturais do país, em paisagem
exuberante, de outro, inaugurações de obra e solenidades oficiais focalizando em geral ação dos
mandatários de proa. Quando há, o estilo dos naturais não é nada realista, persegue a impostação
mais protocolar possível nos rituais cívicos, e nos confins míticos do torrão parece remontar ao
paisagismo romântico da pintura brasileira, busca um ideal de natureza intocada, mata virgem.

157 Andrade, Oswald de. “O futurismo tem tendências clássicas” [1922], op. cit., pp. 32-34.

158
Schapiro, Meyer. “Style”, Æsthetics Today, Nova York: Meridian, 1961. Clark, Kenneth. What is a Masterpiece? Londres: Thames
and Hudson, 1979.
159
Gomes, Paulo Emilio Sales. “A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898-1930)” [1974] in: Calil,
C. A.; Machado, M. T. Um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense, 1986.
Na bifurcação curiosa desta fórmula, convenhamos, nada pode nos parecer mais antitético: —
dois brasis tão distantes quanto imiscíveis, sem qualquer entrelaçamento projetável em fita. De-
corre dessa tradição um pouco da absurdidade de filmes bem posteriores, como Terra em Transe
(1967), de Glauber Rocha, ou Terceiro Milênio (1981), de Jorge Bodanzky, em que excelsos
mandantes políticos tradicionais como Porfírio Diaz (Paulo Autran) ou Evandro Carreira (ele
mesmo) se articulam com exuberância cênica à Natureza 160. Em todo caso a operação ideológica
que encontramos na sinfonia paulista passa pela súbita reordenação, em retórica “subida”, destas
duas chaves numa só. Ou seja, o produto da empreitada pública dos governantes surgiria, final-
mente, enquanto paisagem de encher os olhos, com remates de profusão entusiástica exuberante.
Em lugar de Berço Esplêndido se desenharia essa Canaã ultra-urbana, tal como imaginada por
retóricas locais do Poder. A mudança de chave teria mesmo um impacto estético do novo e, por
seu turno, o efeito de um acontecimento inédito, em consonância à novidade da fisionomia cos-
mopolita que se descortinava. Aqui, a incapacidade criativa de copiar capricha; a ponto de nos
sugerir algo como a sumidade da cavação. Ou, noutro compasso, a vanguarda do atraso.
Essa inequívoca ponta de lança do cinema documental brasileiro não logrou contudo colher
os louros da glória, e por razões várias. Não se sabe de muitas exibições dessa sinfonia fora da
cidade. E estava ademais na contramão das contemporâneas reviravoltas políticas contra São
Paulo que se sucediam no país a partir da crise de 1929: as revoluções de 1930 e 1932, o Estado
Novo. Nessa contracorrente, se visionário de fato foi como antevisão cinematográfica de uma
cidade que mal existia ainda, e então contemporâneo de um anseio verdadeiro  161, subjacente
aos efeitos ideológicos de cidadania brasileira e/ou paulistana que trazia, o “natural” paulista
soçobrou num desinteresse e esquecimento duradouros. Paulista demais, mesmo em que se pese
a sua aspiração pátria de ordem e progresso, tal como desenhada ao longo de sua métrica espa-
ço-temporal, e culminada no arremate final de aliterações formais num enquadre centralizado de
círculos e losangos, chave de ouro parnasiana reverberando o desenho final — único plano co-
lorido do filme — do pendão pátrio que se desprega auriverde. Dentre os movimentos literários
transcorridos entre os séculos XIX e XX, o parnasianismo segundo Antonio Candido teria sido o
que mais fundas raízes deita em solo paulistano, persistindo até os anos 1960 em manifestações
residuais. Sua transposição em espacialidade cinematográfica explica um formativismo ordena-
do caprichosamente na tradição paulistana desde o cinema silencioso — seu momento maior na
sinfonia de Kemeny & Lustig — até ao cinema dos estúdios no segundo pós-guerra 162. Ou até ao
160
O primeiro foi realizado no Rio e no Maranhão, o segundo no Amazonas. Tais personagens circundados pela natureza trazem
motivo especial para se pensar um diálogo com os filmes de Werner Herzog rodados na Amazônia, Aguirre, a Cólera dos Deu-
ses (Aguirre, der Zorn Gottes, 1972) e Fitzcarraldo (1982). V. meus trabalhos: “Antidote à l’exotisme : Troisieme Millenaire”, Infos
Brésil n° 80, Paris, avril 1993. Estudo sobre a organização do espaço em Terra em Transe. Doutorado, São Paulo, ECA-USP, 1997.
161
Theodor W. Adorno propõe que as ideologias possuem algo de verdadeiro e que deveríamos procura-lo na aspiração que se
esconde em sua base de apoio. Ver: “ Crítica cultural e sociedade” [1949] (tr. Augustin Wernet, Jorge de Almeida), Indústria cultural
e sociedade. 3ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp. 75-102.
162
Candido, Antonio. “A literatura na evolução de uma comunidade” [1965], Literatura e sociedade. 6ª ed., São
Paulo: Nacional, 1980, pp. 139-167. Para a apropriação cinematográfica paulistana do parnasianismo vejam-
-se meus trabalhos: São Paulo em movimento (op. cit.). “São Paulo e o seu cinema: para uma história das manifes-
parnasianismo contemporâneo, como vem nos sugerir Jean-Claude Bernardet ao pensar o cine-
ma brasileiro da Retomada 163. Antecipa também uma cidade ordenada para o trabalho — que
seria o sentido que melhor se exprime no filme, entre os esboços de unidade formal que nele se
desenham — , forjando a legenda consolidada nas décadas seguintes, ainda que o caráter ordeiro
possa ser questionado como formativismo ideológico. O Estado Novo, de par com os nazi-fascis-
mos e stalinismos mundo afora emergentes, não viriam galvanizar de alguma forma a vontade de
ordem que já se engendrava ou percebia antes? 164
Para nos aproximarmos da historicidade das formas cinematográficas — tarefa interdiscipli-
nar e coletiva por excelência — uma história da experimentação nos filmes brasileiros continua
cada vez mais solicitando análises fílmicas em perspectiva de crítica imanente, e tanto mais quan-
to se percebe ao longo das décadas a frequência persistente de inversões sistemáticas de conteúdo
se engajarem nas formas no novo. Para dar um só exemplo recente, Ozualdo Candeias e o Cinema
(2013) de Eugenio Puppo, ao usar técnicas de apropriação do filme de arquivo para tratar do teor
de invenção do cineasta marginal paulista, acaba por reduzi-lo praticamente ao cavador sistêmi-
co mais convencional; num ponto que só Primo Carbonari comportaria. Tema aliás, que Puppo,
noutro filme, trabalhou bem melhor; mas era obra sobre o próprio Carbonari. O paradigma do
cineasta cavador mais longevo e extremado na aglutinação de todos os atributos mais caracterís-
ticos e malditos do métier, concentrados numa só figura, proporciona um contraponto para o lado
caprichoso de Kemeny & Lustig. Enquanto os magiares conseguiram sintetizar, alambicar, filtrar
o que de mais artificioso legaram três decênios de cavação, o ítalo-brasileiro, de 1929 a 1990
deu sobrevida dilatada ao que de pior se perpetrou na azáfama do ramo. Conferiu-lhe mesmo um
estilo de rouca grandiloquência, do qual nos anos 2000 só temos tido alguma pálida lembrança
na propaganda eleitoral da TV. Foi na condição de um dos piores cavadores brasileiros, curiosa-
mente exitoso na sobrevivência de muitas décadas no mercado, que ganha notoriedade suficiente
para merecer a conhecida convocação do provocador Sganzerla no final dos anos 1960 quando
dizia que o nosso melhor cinema precisava revisitar as tomadas deste primevo incontornável de
nossa tradição subdesenvolvida.
Tudo o que faz a nossa sinfonia paulistana figurar como um primeiro passo em falso, ou
escorregão feio na história do cinema experimental, não nos impede de tê-la como exemplo ne-
cessário de experimentação cinematográfica relativamente exitosa no campo histórico do cinema
documental brasileiro, que se desdobrará noutros exemplos memoráveis de estética não-realista,
ou formativista ao longo do século. Basta lembrar de documentários ímpares e díspares como
Ilha das flores (1989), de Jorge Furtado, Di-Glauber (1977) ou Maranhão 66, de Glauber Rocha,
tações cinematográficas paulistanas (1899-1954)” in: Porta, Paula. (org.) História da Cidade de São Paulo, v. 2.
São Paulo: Paz e Terra, 2004, pp. 456-505.
163
Bernardet, Jean-Claude. “Os argentinos dão um banho nos brasileiros”, Cinema, São Paulo, nº34, 2003, p.
37.
164
Este é o esforço impulsor do ensaio empreendido por Siegfried Kracauer na análise formal e histórica dos filmes, encontrando,
entre outras características, personagens formando um verdadeiro cortejo de tiranos, em De Caligari a Hitler: uma história psicológica
do cinema alemão. [1947] (tr. Tereza Ottoni) Rio: Jorge Zahar, 1988, 407 p. il.
e Aruanda (1959), de Linduarte Noronha.
Outro caso nessa vertente formativista seriam os documentários de Benedito Junqueira
Duarte da São Paulo cosmopolita dos anos 1930 aos 50, que para além das soluções acadêmicas
e dos efeitos mais frequentados, pratica um outro olhar interpretativo da cidade que, embora
com distância de uma década ou mais, se pode contrapor ao filme de Kemeny & Lustig pela sua
postura mais moderna, procurando descobrir os novos ângulos inspirados pelos espaços urbanos
que registra. Alguns destes registros realizados para a Prefeitura de São Paulo foram integrados
em filmes curtos e outros simplesmente mantidos em rolos separados com temática própria, mu-
dando seus títulos nos diferentes acervos e projeções desde então. Sobre alterações a posteriori
lembramos que todos os mais conhecidos filmes de Rogério Sganzerla foram por ele próprio re-
montados ao longo de sua vida, e com diferenças notáveis entre as várias versões, a meu ver com
mais pioras que melhoras. Os estudiosos e a crítica, que se saiba, nunca mencionaram o proble-
ma. O superoitismo e outras práticas amadorísticas do cinema são pródigas destas vicissitudes.
O público é, em última instância, o verdadeiro autor de um filme, ao lado de seus paladinos sem
mandato, os críticos, cronistas e quem mais queira registrar em palavras o que se possa processar
da sessão experimentada. Muitas dessas palavras se registraram com uma lembrança muito dis-
tanciada desta experiência, convertendo-se por vezes em debate e fortuna crítica, mesmo quando
a sua memória mais forte venha já de testemunhos outros, sem falar de muitos deles na prática
referências jamais vistas, propriamente. Em sua primeira sessão, em maio de 1931, Limite foi
projetado ainda incompleto, demorando algum tempo para as projeções tidas como versão defi-
nitiva, seguidas de tantas outras, desde os anos 1940-50 até hoje, definitivamente desfalcadas.165
Do conhecido “Mito Limite”, de Glauber Rocha, reduzido quase a falácia em sua Revisão crítica
do cinema brasileiro, aos diversos mitos de origem situados ao longo da história do cinema ex-
perimental brasileiro, se impõe vigorosa reconsideração dos nossos filmes da primeira metade do
Século XX, bem como daqueles que entre os anos 1950 e 1970 constituíram os parâmetros locais
de vanguarda e modernidade.

VII. Princípios glauberianos 166

“Romantismo.
Reação parnasiana.
Revolução Modernista.
165
Ver meu texto “Os filmes de B. J. Duarte” in: Porta, P. (org.) Op. cit., pp. 456-505. Sobre as várias versões de Limite, quase todas
incompletas, ver: Teixeira, F. E. “Vênus de Milo não-reconciliada”, op. cit., pp. 25-37.
166
Uma versão reduzida das partes VII a X foi publicada como “O Pátio e o cinema experimental no Brasil”, in: Castelo Branco,
Edwar. História, Cinema e outras imagens juvenis. Teresina: EDUFPI, 2009, pp. 11-24.
Neo-romantismo.
Reação Concretista.
Revolução do Cinema Novo.”

Glauber Rocha, 1980. 167

Há mais de meio século Glauber Rocha concluía, aos vinte anos de idade, em Salvador, O
Pátio (1959), o seu primeiro trabalho cinematográfico. É um filme estranho. E parece construído
para ser estranhado. Traz aquele claro desígnio da obra disposta de modo a ferir sensibilidades,
no espírito que permitiu às vanguardas artísticas abrigar de bom grado a palavra de ordem “épater
la bourgeoisie”.
Cheia de arestas, a sua fluência é controversa. Seu tempo se espalha de maneira pouco linear,
sofrendo sobressaltos de continuidade provocados pela incidência irregular de uma trilha musical
autodenominada nos créditos iniciais como “montagem sonora em música concreta”. A articula-
ção agressiva do som agrava uma sequência de imagens também pouco clara como encadeamen-
to de ação. O pátio do título bem poderia ser este tablado de xadrez que aparece desde o começo,
antes vazio, depois ocupado pelo casal, que ali chegaria de mãos dadas, depois de alguns planos
já tê-los antecipado ali. Este chegar dos já chegados, desdramatizado como sequenciamento de
ações, possui, entretanto, algumas coordenadas mínimas de desenvolvimento, até o momento
final em que o casal se retira subindo a escadaria ao fundo.
Dar conta do pouco que é narrado como ação dramática convencional requer uma descrição
do que acontece em seu lugar, ou do que não acontece, do que tem lugar como acontecimento.
O pátio é uma plataforma cercada de Natureza. Da vegetação próxima que a cerca, ao ho-
rizonte marítimo que se abre, pródigo, vemos às vezes a transição de baías e, mais para o fim,
pouca aglomeração urbana, prédios, chaminés, fábricas ao longe. Circundado dessa predominante
paisagem natural, o tabuleiro ocupa posto privilegiado de mirante, sem que se interessem os seus
ocupantes pela contemplação que ele nos proporciona.
Nada na verdade parece interessá-los muito. Seus olhares não se concentram muito em nada,
parecem extenuados com processo anterior, condições que os transcendem. Olhares que se des-
focam, se largam como para se avistar interiormente. Apenas no final, ameaçando romper com a
pasmaceira a que seus corpos se entregam, ele, reunindo algum alento, cambaleia numa direção
dada, o que chama a atenção dela, que parece querer segui-lo. Segue-se, porém, um plano próxi-
mo da folhagem de um antúrio sendo atingida pelo jato inequívoco do mijo masculino. Tal cho-
que prosaico vem interromper algo do que se criava numa condensação estagnada de atmosferas
acumuladas em tédio, tormento e abandono, de dois corpos largados e a si mesmos entregues,
esvair de acúmulos que prepara o desfecho final em que ela o segue na direção do fundo do pátio,
167
Rocha, Glauber. “Pape Lygya 80” [1980], Revolução do Cinema Novo. Rio: Alhambra, Embrafilme, 1981, p. 463.
onde aparece uma escadaria. Descalços, sobem a escada abandonando no local os calçados que
aparecem num plano final, contraplano da vista do horizonte.
Se há ação neste desfecho, no correr do filme é mais incerta qualquer ocorrência. Seus corpos
prostrados ora se procuram dificultosamente, arrastando-se pela esplanada, ora ensimesmam-se
em expressão de desconsolo, às vezes tédio ou numa espécie de entrega erótica do corpo ao re-
pouso ensolarado. Por vezes, como na música, incide algo doloroso, tormentoso, nascendo do
desconsolo de suas expressões de corpo e de face. A montagem intercede num dado momento
com galhos ressequidos de árvores circunstantes contra o céu, contrapostos ao esgar masculino
crescentemente perturbado, dirigido aos céus. Noutros momentos, a harmonia da composição
entre geometria (ladrilhos ora em branco, ora em preto) e corpos (braços, face…) evolui para
composições tensionando retas e curvas, arquitetura, construção, versus corpos, organicidade.
Neste conflito, enlevo obstruído pela circunstância, arranjos ora prazerosos, ora enervantes, de
um conluio vicioso homem-natureza, a poesia reside na quase estática coreografia a dois de um
absoluto ensimesmar-se da relação com o mundo nos limites da relação amorosa?
Em resumo, o casal entrega-se à modorra da esplanada, como a um tempo livre entediante,
em metafísica da estagnação viciosa, na qual o cenário natural se proporciona ao construído,
como num berço esplêndido do Nada.
Como no tédio burguês, o nada é construído, é o espaço construído do tabuleiro alegorizando
uma cultura dominante (do cenário, da paisagem) e sem saída (exceto a volta ascendente à Natu-
reza, já que a escada do fim leva à selva escura, vegetação fechada), sem alterações advindas da
sociedade ou do espaço público.
Esplanada é aqui alegoria de terreno construído para o domínio da natureza e da vida social.
O mesmo tabuleiro quadriculado ressurge em Terra em Transe como espaço palaciano do colapso
populista, é o Palácio do Governo de Alecrim, cenário brechtiano da renúncia e da campanha
de Vieira, estancieiro posto em liderança. Espaço palaciano contraditório pois logradouro a céu
aberto, como falsa praça Esplanada, termo empregado na mesma época em Brasília por Lucio
Costa e Oscar Niemayer, foi o mesmo nome que José de Alencar, no romance O Guarani 168, usa
para os românticos encontros de Ceci e Peri. Cenário romântico inspirado na plataforma-mirante
não das sedes de fazenda coloniais, como essa fantástica paliçada anti-índios do romance (proli-
ferada em décors atenuados cenograficamente na ópera de Carlos Gomes), mas nas fortificações
portuguesas do litoral: posto de comando, vigília e praça, única praça possível no mundo-colônia,
mesmo em cerco hostil praça protegida pela elevação murada.
O Pátio prefigura, antes de existir o Cinema Novo, uma vanguarda que ainda podia ser
chamada de “experimental” (ver letreiros iniciais do filme) — termo eclipsado nos anos 60, total-
mente esquecido pelo novo sentido social da vanguarda cinematográfica brasileira. Experimental
associa-se, no ideário glauberiano, ao formalismo inovador conformista, sem horizonte social,
168
Alencar, José de. “I – Cenário”, O Guarani: Romance Brasileiro [1857] 13ª ed., São Paulo: Melhoramentos,
1965, p. 12 e seguintes.
sem sentido revolucionário. O cineasta esquecerá por um tempo O Pátio, ao mesmo tempo em
que enquadraria nesta condenação Limite, de Mário Peixoto. Só em seus anos finais de vida Glau-
ber faria uma revisão deste juízo condenatório do “experimental”, abrangendo Limite, (O Pátio,
de tabela) e, sem dúvida o Cinema Marginal, ou “Udigrudi”, como mera invencionice conserva-
dora e colonizada.
Pouco se estudou, infelizmente, na trilha desta guinada ideológica, o construtivismo 169 como
faceta relevante da poética de Glauber. Sua desconfiança na virada da década de 1950-1960 para
com o concretismo — “coisa de menino rico”, perguntava-se numa carta — marcaria aquele
distanciar-se do experimentalismo supostamente não-engajado. Sartreano convicto, isto não será
aceitável. Afastamento contemporâneo daquele do movimento Neoconcretista, importante sobre-
tudo no campo das artes visuais e inspirado em Merleau-Ponty, Glauber retornaria a esta vertente
não tão evidentemente “engajada” com Câncer (1968), é sintomático, ao lado de Hélio Oiticica.
Entretanto não é possível reduzir O Pátio àquilo que Glauber condenava, para fora das mu-
radas cinemanovistas. Há ali o mal-estar sartreano com o ostracismo do amor relegado à cultura
de uma construção burguesa da condição colonizada, em moderna torre de marfim. O tenso vá-
cuo de O Pátio pode ser visto como um estridente Entre quatro paredes 170 sem paredes, apenas
contraído em paralisia coreográfica a um par amoroso encruando-se sob céu aberto. Descalço e
descamisado, o amor do casal fenece em seu berço esplêndido, porque ao tabuleiro ele desceu,
como a um inferno. Inferno do isolamento, na Esplanada da Fortaleza Colonial.

VIII. Experimental e/ou de vanguarda 171

“SER e NÃO SER.


Da maior e melhor teatralidade.
169
Monzani, Josette (Alves de Souza Wagner). “O construtivismo de Glauber”, Folha de S. Paulo, 2/3/1986,
Folhetim, pp. 8-10. Risério, Antonio. Avant-Garde na Bahia, Instituto Lina Bo Bardi e P. M. Bardi, 1995. E os
trabalhos de Maria do Socorro Silva Carvalho: Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia dos
anos JK (1956-1961). Salvador: EDUFBA (Coleção nordestina, 7), 1999. A nova onda baiana: cinema na Bahia
(1958-1962). Salvador: EDUFBA, 2003.
170
Sartre, Jean-Paul. Huis clos. [1944] Paris : Gallimard, 1947. A tradução de Guilherme de Almeida é de 1949.
Na peça, que teve desde 1950 inúmeras montagens no Brasil, baianas inclusive, um triângulo amoroso se
inferniza; dela é muito lembrada a frase pronunciada próxima ao desfecho (pelo personagem masculino,
Garcin, um jornalista brasileiro, na montagem de Luiz Sérgio Person nos anos 70 era Luís Linhares): — “O
inferno... são os outros.”
171
Este texto da parte VIII, exceto os novos desenvolvimentos em torno do Pátio, teve acréscimos em relação
à sua primeira publicação, em 2005, como “O cinema experimental no Brasil e o surto superoitista dos anos
70” in: Axt, G.; Schüler, F. (orgs.) 4Xs Brasil: itinerários da cultura brasileira. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2005,
pp. 217-231. Uma variação menor dele saiu no mesmo ano em francês : « La faim et la forme : Expériences
esthétiques contre réalité sociale ? », Cahiers du cinéma nº605. A parte IX, superoitista, com poucas diferen-
ças, serviu de introdução a Marginália 70, op. cit. E a parte X, integrou originalmente o catálogo Golpe de 64:
amarga memória (org. Reinaldo Cardenuto Filho), São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2004.
Dos eternos enquanto perdurem.
Mas continuar sendo e permanecendo
ex-PERI-mental no corpo a corpo
dos paradoxos. Conflitos em transe.
(...) Lutas cotidianas além das
Redes Sociais e Enredos Palacianos.”

Jomard Muniz de Britto, 2014. 172

Há uma boa unanimidade no Brasil de que o seu maior inventor de formas cinematográficas
tenha sido Glauber Rocha. Se o seu primeiro filme, O Pátio, iniciado em 1957 e concluído em
1959, anunciava já em suas primeiras cartelas “um filme experimental”, notamos que tal desig-
nação desaparece por completo ao longo de seus passos seguintes e, de resto, pouco prestígio
terá no léxico do Cinema Novo — ainda que noutros campos como o das artes plásticas o termo
seguisse reverberando novas acepções. Basta mencionar as reflexões de críticos e artistas como
Mário Pedrosa ou Hélio Oiticica. No cinema o termo surge com alguma força somente nos anos
70  173, com a repercussão gradativa do Cinema Marginal e dos festivais de Super-8, em que os
filmes de artista não eram raros.
Recapitulamos que nos mesmos créditos iniciais d’O Pátio vinha também uma cartela estam-
pando “montagem sonora em música concreta”. Naquele momento o Concretismo, assim como
as criações neoconstrutivas que então surgiam, marcava as vanguardas literárias e artísticas do
país. Isto inclui o jovem Glauber cujos artigos e correspondência da época 174 são instrutivos para
se perceber a revolução cinemanovista, a partir da qual irá distanciar-se tanto de seu primeiro
filme quanto da arte concreta, objeto de comentários cada vez mais irônicos, “coisa de menino
rico”. — Pode-se dizer que o grande abismo social que divide a sociedade brasileira traz as suas
consequências e marcas no plano da radicalização estética.
Poderíamos preferir ver nesta fortaleza doméstica no primeiro filme do cineasta baiano uma
reflexão estética sobre o matrimônio. Seriam perto de 1957-1959 as datas coincidentes de sua
172
Britto, Jomard Muniz de. “SER e NÃO SER”, Atentados Poéticos (publicação mensal por emails:
ATENTADOS1, <atentadospoeticos@yahoo.com.br>, 23/05/2014), Recife, maio 2014.
173
Pedrosa, Mário. “Arte Experimental e Museus” [1960], Política das Artes: Textos Escolhidos I. (org. Otília
Arantes) São Paulo: Edusp, 1995. Oiticica, Hélio. “Experimentar o Experimental” [1972] in: Arte em Revista,
ano 3, n°5. São Paulo: CEAC; Kairós, 1981. Buongermino Netto, Raphael. (org.) Linguagens experimentais em
São Paulo 1976. São Paulo: SMC, Idart (Departamento de Informação e Documentação Artísticas, Centro de
Pesquisa em Arte Brasileira), 1980. Bittencourt, Francisco. “Dez anos de experimentação” [1980] in: Levy,
Carlos Roberto Maciel (et al.) (orgs.) Revista Crítica de Arte nº4: Antologia da Crítica de Arte no Brasil. Rio:
Associação Brasileira de Críticos de Arte, 1981.
174
Brasil, José Umbelino. As críticas do jovem Glauber: Bahia 1956/1963. Tese, POSCOM-UFBA, Salvador, 2007,
202 f. Rebechi Jr., Arlindo. Glauber Rocha, ensaísta do Brasil. Tese em Literatura Brasileira, FFLCH-USP, São
Paulo, 2011, 2 v., 578 f. Rocha, Glauber. Cartas ao mundo. (org. Ivana Bentes) São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1997.
realização mas também da duração do casamento do diretor com a sua atriz; os primeiros, aliás,
tanto de Glauber quanto de Helena Ignez. Seria desse modo possível antever algo incomum nos
horizontes artísticos de então, trazer à discussão um claro e manifesto diálogo biográfico do filme
com a experiência vivida. Soaria como antecipação na linha arte-vida que, embora em constante
latência ao longo da obra glauberiana, alguma ancoragem na sua concreta experiência para além
do usual folclore mundano, aqui se revelaria especulação estética bastante avant la lettre. Até
independente dessa ressonância biográfica, obviamente redutora à primeira vista, ou mesmo en-
quanto interpretação crítica, lidando no contexto de então com a reflexividade estética em causa,
poderão na mise en scène de seus corpos e no trabalho expressivo dos atores se verem marcados
por concepções existencialistas, atravessados por noções de arte engajada. No âmbito poético da
pura representação ficcional, a questão do convívio amoroso ou sua realização no matrimônio
implicam, como vimos, sentimentos de vínculo compromissado bastante atentos a significados
espessos que vão da experiência da náusea à da liberdade.
Controversos trânsitos entre as esferas estética e ética se exercitam e se pressupõem existen-
cialmente, de Kierkegaard a Sartre. Vale dizer, desde o nascimento do existencialismo em meados
do século XIX até à sua mais influente manifestação contemporânea, versão engajada, em forte
diálogo com o marxismo no pós segunda guerra mundial, e nesse final dos anos 1950. Para o filó-
sofo dinamarquês, na Estética do matrimônio (1843), a vinculação do amor à vida social (e vida
religiosa, se relevante para os amorosos) é pensada como parte indissociável na realização plena
da experiência amorosa, solicitando a necessidade das ritualizações devidas a cada esfera, ética
e estética. Argumenta que se isolado da vida e das instituições sociais o amor acaba não se reali-
zando enquanto tal. Em resposta dialética às noções advindas de sua obra precedente, o Diário de
um sedutor, isto pode ser, por determinada oposição, compreendido como uma reflexão estética
correlata à ética burguesa, ao criticar a tradição aristocrática subjacente como enraizamento da
noção castrense de conquista, triunfo militar, próxima da figura do donjuanismo 175.
Já o compromisso amoroso no existencialismo engajado, mesmo quando sem clara associa-
ção a concepções marxistas, busca se desembaralhar daquela determinação de opostos dialéticos,
desconfia criticamente das compreensões tradicionais do amor como valoração fundamental, po-
sitiva, idealizada. Tenta superar a crítica estética de traços aristocráticos ou burgueses pela apro-
ximação da ideia de vida social compromissada à luta libertária e emancipatória  176. Mas neste
175
Veja-se, a respeito, a dialética entre os textos de Søren Kierkegaard, especialmente “Le journal du séduc-
teur” e “La légimité esthétique du mariage”, Ou bien... Ou bien... [1843] (tr. M. H. Guignot, F. & O. Prior) Pa-
ris: Gallimard, 1943. Adorno, Theodor W. Kierkegaard: Construção do estético. [1933] (tr. Álvaro Valls) São Paulo:
Ed. Unesp, 2010.
176
Sobre a questão do engajamento sartreano ver: Sartre, Jean-Paul. “Apresentação de ‘Les Temps Modernes’”
[1944] (tr. Oto Araújo Vale), praga nº8, ago. 1999, pp. 117-129. Que é a literatura? [1948] (tr. Carlos Felipe
Moisés; pr. Arlette Elkaïm-Sartre) Petrópolis: Vozes, 2015. Furacão sôbre Cuba. (apêndices de Rubem Braga
e Fernando Sabino) 3ª ed., Rio: Editôra do Autor, 1960. Sartre no Brasil: A Conferência de Araraquara; Filosofia
Marxista e Ideologia Existencialista. [1960] (tr. Luiz Roberto Salinas Fortes) Rio: Paz e Terra; São Paulo: Unesp,
1986. Para o debate da noção de engajamento em Sartre e Brecht: Adorno, T. W. “Engagement” [1962],
Notas de literatura. (tr. Celeste Aída Galeão) Rio: Tempo brasileiro, 1973, pp. 51-71.
caminho talvez muitas vezes se misturasse ou se refundisse algo daquela polaridade kierkegaar-
diana do amor que ora propõe a vivência radical do momento, por mais intempestiva ou extem-
porânea que pareça, ora só consegue percebê-lo no seu desenvolvimento durante o tempo vivido.
Em Terra em transe (1967) Glauber concentrará sua ambiguidade em torno de duas vocações fun-
damentais de Paulo Martins (Jardel Filho), a poesia e a política: o triunfo da Beleza e da Justiça,
que repercute em protagonismos de Sílvia (Danuza Leão) e Sara (Glauce Rocha).
Sartre tentava em 1960 aproximar Kierkegaard e Marx, estes contemporâneos antípodas
havia um século. Antípodas sob vários aspectos, a começar pelo estudo dos engendramentos de
formação da consciência — no primeiro pela ponderável imanência da vida interior se bem ob-
servada, no segundo pela determinação exterior que transcende a interioridade, posta por relações
materiais de sobrevivência estabelecidas com o mundo. É contemporânea d’O Pátio a gestação
sartreana da Crítica da razão dialética, livro de 1960, cujo prefácio “Questão de método”, pu-
blicado também separadamente, tornou-se um best-seller internacional de esquerda ao longo
daquela década de 60; 177 muito embora o entrelaçar de leituras daqueles dois filósofos coetâneos
se observe na história do chamado marxismo ocidental desde o começo do século XX. A absurdi-
dade do amor em Sartre parece recompor e não obstante afastar-se da dialética kierkegaardiana,
enfrentando de outro modo e a um só tempo aquele velho problema da liberdade no jogo ambíguo
entre a sedução (como romântico momento irrepetível, racionalizado pelo avesso) e a apropria-
ção (como experiência de plenitude construída na duração temporal). Sartre na ficção, ensaio,
dramaturgia 178, e mesmo biograficamente, tratou o amor de modo complexo e interrogativo. Pre-
so a desígnios do passado, aspirações de futuro, o convívio amoroso é experienciado como um
problema em aberto, em nada isento à realidade circunstante.
Tudo n’O Pátio afinal gira em torno de um vazio. Como num olho de furacão, há um rela-
cional vazio que parece se agenciar de tudo à sua volta. De fora para ali chegados, os amorosos
acabam para fora voltando. Ensimesmando-se no privado, ao espaço público se reconduziriam,
dele se envolvendo como por ausência, falta de sua remota dinâmica. Em sua estética do estático,
em nada O Pátio recorda a soltura inquieta da câmera glauberiana já a partir de certos planos dos
seus primeiros filmes, o Deus e o diabo na terra do sol (1964), ou mesmo de Barravento (1962).
Embora já esteja ali inteiro na primeira fita muito do seu olhar atacado, ferido pelo que filma,

177
Sartre, Jean-Paul. Critique de la Raison Dialectique, tome I. Paris : Gallimard, 1960. “Questão de Método” [1960]
(1966, tr. Bento Prado Júnior) in: Os Pensadores XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. 115-197.
178
Para dar ideia do impacto de Sartre na época, cito a escritora feminista belga Suzanne Lilar, sua contem-
porânea: “Jamais, talvez, houve um filósofo com tanto peso sobre o seu tempo quanto Sartre. Chega a
modificar a linguagem do homem das ruas (para não falar no jargão existencialista de que se faz uso até
nos meios mais opostos ao sartrismo). Jamais um pensamento chegou a ferver, cegar, paralisar tanto como
esse que não ganha sentido senão quando se proclama em sua clarividência e jovialidade. Depois de Sartre,
certas questões resultam como que estremecidas por um impedimento. Não é raro ouvirmos afirmarem que
depois de O Ser e o Nada, uma defesa do amor não é mais sequer concebível. Sartre teria esvaziado a ques-
tão. Ora, se há algo de verdadeiro nessa objeção é que desde Sartre não é mais possível defender o amor de
maneira simplista: um total recolocar da questão é indispensável.” Lilar, Suzanne. À propos de Sartre et de
l’amour. [1967] Paris: Gallimard (idées), 1984, p. 85 (tradução nossa).
tomado pelo espaço, afetado pelos corpos, todos confundidos em sua inédita separação. Mas sob
esse aspecto de um olhar estático, O Pátio se relaciona muito ao olhar dinâmico do Um dia na
rampa (1955-1960), de Luiz Paulino dos Santos, e podemos dizer que, em toda a sua enorme dife-

rença tratam no fundo de um mesmo problema. Não apenas por seus diretores-estreantes terem se
invertido simultaneamente nas funções de produtor e de autor, um no curta do outro. Para além de
um mesmo e recíproco modo de produção, companheirismo, em suas criações parecem partilhar
um mesmo universo, como em duas faces de uma mesma moeda. Recordemos, é o mesmo par,
Paulino-Glauber, que criará Barravento. Neste sentido podemos considerar O Pátio (com Um dia
na rampa) uma película chave, muito singular, entre a vanguarda clássica e a moderna, ou con-

temporânea. Ademais de outras películas de Glauber, podemos enxergar um diálogo com várias
obras — anteriores (por exemplo Limite), e posteriores do cinema brasileiro; talvez a produção
cinemanovista toda, sobretudo pós-64, com O desafio.
Películas gêmeas, inadvertidamente uma pressupõe a outra. Gêmeas do mesmo esforço
coletivo, mesmo lugar e nova geração da metrópole, Um dia na rampa é uma pequena simbio-
se neorrealista surpreendente, enquanto filme-sinfonia ultra-local, que experimenta a incessante
ritmação da montagem no Centro de Salvador, na concorrida rampa do Mercado Modelo. Nada
se paralisa nesta jornada de movimento na rampa, onde atracam os barcos trazendo seu peixe e
mercadorias para vender na feira tradicional do lugar. Descem da cidade alta compradores aqui-
nhoados e todo tipo de gente se encontra neste movimento em que o povo, sempre em gestua-
lidade documental, executa coreografia incansável, com o protagonismo central do trabalhador.
Pulsam gestos em profusão diversa e coordenada com movimento de barcos, reflexos n’água de
suas velas e mastros, risos e conversa, separar peixes, o voltar do troco, todo um universo visível
da faina urbana em um dia de atividade no seu vórtice epicentral de encontros.
Misturam-se ao labor também descanso, gole de pinga, passeio e até namoro. Há entre ações
passageiras, perto do fim, o encontro de um casal negro no movimento contínuo do atracadouro,
ele conduzindo em delicadeza a moça familiarizada entre tábuas para o interior da embarcação.
Como nessa ágil película os cortes da montagem nunca tardam, vemos logo suceder ao plano
anterior uma quilha de barco beijando o pneu acolchoado no mourão do píer, numa espécie de
brinde alusivo e pan-simpático, como noutros efeitos da prosódica montagem. A felicidade cele-
brativa dessa faina feirante nada parece dever à cena popular constante na gravura local, música,
fotografia e literatura — Jorge Amado, Pierre Verger, Dorival Caymmi, Carybé. Assim como
no trabalho destes artistas e nos filmes de Alexandre Robatto ou do insipiente cinema baiano de
então, vibra o interesse artístico pelo que circula nos rituais da vida cotidiana mais popular, este-
tizações como que amorosas da vida pública em que podem aflorar utopias sociais democráticas.
Não se distanciavam tanto os lugares em que Paulino e Glauber filmavam; meia hora a pé,
beirando pela face sul da cidade a orla da região central. Sob um mesmo horizonte soteropolitano
da Baía de Todos os Santos a vibrátil oscilação marítima do Um dia na rampa (voltado ao norte)
viria contraposta ao olhar estático em terra firme d’O Pátio (voltado ao sul). Como em oposi-
ção de contra-planos, pontos de vista em diálogo, visadas dialéticas entre a dinâmica pública da
pulsação popular e o poder ultrajovem de pulso retesado. Um filme voltado ao rebuliço terreno
das trocas cotidianas, outro voltado à incomensurabilidade oceânica de todas-e-nenhuma rota.
A sobrevivência comunitária desejável na metrópole, contra o desejo metropolitano privado de
qualquer comunidade, ambos em problemática reciprocidade. Na contracorrente da vanguarda
desenvolvimentista, dois pontos de fuga complementares, em pontos de vista quase indivisíveis:
a transbordante vibração do encontro popular na cidade baixa, e a vácua vigília imutável do im-
pávido posto de mando na cidade alta — crença e descrença como mazelas atávicas, sintomas de
uma cultura cindida.
Contrasta em última instância n’O Pátio a presença daquela infinitude do mar com a finitude
xadrez da esplanada. Que significados poderá ter esta prostração toda, languidez triste — bem
nessa plataforma de horizontes privilegiados? Uma cadeira de ferro, sol, bananeiras, lajeado,
oceano — o casal tem ao longo da película as suas cabeças contracenando sobretudo com esta
linha do horizonte, primordial separação de campos entre céu e inferno, pura atmosfera e contin-
gências do estar no mundo, limitações entre mente e corpo. A atração das metrópoles se dá ne-
cessariamente direcionada além-mar. E se realiza por rotas marítimas. Mesmo as elites viajavam
por mar desde a colônia até meados do século XX, fosse Lisboa, Londres, Nova York ou Rio de
Janeiro. O posto de vigília dos fortes no controle da entrada dos portos, baías ou foz de rios é
também posto de mando, de controle e exercício do poder: a náusea dos jovens amorosos na es-
planada se explicaria também pelo posto de mando a recusar? Resquício de léguas e sesmarias, de
proto-esplanada a solar insólito?, adeuses às armas, prosternação abdicante, renúncias maiores?,
gente bronzeada querendo ver o seu valor?
Saltando dali noutro tempo-espaço e contexto histórico, se absurdamente avançamos mais
vinte anos, a poucos quilômetros dali, do outro lado da cidade na aldeia de Arembepe, em laguna
de águas cristalinas e quase amnióticas, face ao oceano, coqueiros, Céu sobre água (1978) de José
Agrippino de Paula e Maria Esther Stockler, Super-8 de grandiosa estesia hippie, radicalizaria os
polos presentes n’O Pátio, sem tabuleiro algum e tombando completamente em favor da plena
imersão no regaço da Natureza reinante. É outro tipo de recusa, numa situação de contracultura
desenvolvida em duas décadas neste lapso de tempo histórico por novas gerações insubmissas ao
legado cultural e político do arco desenvolvimentista, e culminada pelos eventos de rebeldia em
1968.
Pensar o país em suas contradições sociais engendrando formas cinematográficas é a pro-
posta fundamental do Cinema Novo. Este engajamento é mantido mesmo com toda a crítica,
oposição, repentismo e estridência dispersa das vagas seguintes, como o Cinema Marginal e o
experimentalismo independente que vigora no Super-8, o filme de artista e o cinema militante
que se desdobra desde os tempos da ditadura. A cada uma destas vagas mais se faz necessária
a afirmação poética sempre lembrada de Maiakóvski — “Não há arte revolucionária sem forma
revolucionária.” Se a invenção formal é uma marca de nascença do Cinema Novo, que explicaria
a sua oposição ao CPC (Centro Popular de Cultura) no início dos 60, estes dois movimentos, po-
rém, nunca abrirão mão, ambos, de “falar ao povo”. Com o recrudescimento em 1968 da ditadura
instalada em 1964, os primeiros adotariam com a Embrafilme a bandeira “Mercado é Cultura”, e
os segundos realizariam finalmente uma parte substancial da sua proposta nacional popular nas
telenovelas da Rede Globo.
Não é inútil relembrar ainda uma vez que Glauber dedica em 1963 um capítulo de seu livro
Revisão crítica do cinema brasileiro ao filme de Peixoto, “O Mito Limite” 179. Mesmo confessan-
do não ter visto Limite, Glauber vem detoná-lo como uma vivência interior “formalizada, social-
mente mentirosa”, que só se valorizaria pelo idealismo da arte pela arte. Temos aqui a impressão
de que algo semelhante poderia ser dito também do seu Pátio, que por sinal será esquecido no
livro e mesmo ao longo de sua larga produção textual, incluindo depoimentos. Tal denegação
glauberiana se explica fundamentalmente pela sua busca de um sentido vanguardístico para o
cinema, demarcado por um horizonte social e político – a Revolução do Cinema Novo, título do
seu principal livro.
Formalismo de fundo conservador, politicamente suspeito, imitação colonizada do primeiro
mundo: todo filme experimental até os anos 1970 faria imaginar algum tácito veredicto cine-
manovista, injusto ou não. O desajuste ocasionado pelo empréstimo ou importação de modelos
estéticos é no país processo corrente e mesmo abusivo, além de provinciano; mas é também
expressivo, até vibrante, quando feito com distanciamento mimético ou liberdade de criação 180.
No quadro ideológico posto pelo advento do Cinema Novo, o transplante de modelos estilísticos,
mesmo quando feito com ironia, é facilmente estigmatizado como pobreza espiritual ou imitação
colonizada do primeiro mundo; em geral com razão, diga-se. A dicção dos filmes, a sua forma,
sem subserviências, deveria desse modo ser criada mediante a realidade tematizada, por ela afe-
tada e engendrada, mesmo que para em contrapartida recusa-la ou ignora-la, falando porém sua
mesma língua.
O entusiasmo pelo espaço físico e realidade local estão sem dúvida presentes em boa parte
das mais radicais invenções audiovisuais brasileiras, mas serão também responsáveis por um alto
índice de espírito de contradição encontrado nos filmes. O manifesto decisivo de Glauber, “Esté-
tica da Fome” (1965) solicita algo fundamental mas até então pouco praticado, a sintonia entre as
poéticas cinematográficas e as condições locais mais concretas — o que inclui a precariedade das
culturas técnicas. E a preocupação de Glauber com Limite procede, pois é provável que tenhamos
ali de certo modo uma matriz fundadora desta interação exigida entre forma cinematográfica e
179
Rocha, G. Op. cit., pp. 56-67.
180
Machado Jr., Rubens. “Passos e descompassos à margem” in: Cinema Marginal e suas fronteiras: Filmes produ-
zidos nas décadas de 60 e 70, orgs. E. Puppo & V. Haddad, São Paulo: CCBB, 2001, pp. 16-19. Versão amplia-
da em: Alceu: Revista de Comunicação, Cultura e Política, v.8 nº15: Raízes e veredas do cinema brasileiro, orgs.
Miguel Pereira & Gian Luigi de Rosa. Rio: PUC, 2007, pp. 164-172.
realidade local. Em 1973, Glauber escreve a “Estética do Sonho”, na qual ele amplia e repensa
o manifesto de 1965. Isto mais adiante lhe permitirá, por justa causa, reivindicar-se o fundador
do Cinema Marginal (ou “udigrudi”, como ele pejorativamente o condenava antes) com Câncer
(1968), e reabilitar Limite como genial, vendo-o restaurado em 1978. Temos infelizmente pouca
análise de inclinação mais crítica sobre esta fita. Estudos formidáveis e refinados acabam au-
mentando o interesse pelo filme, mas repousam sobre a erudição de comentários que, embora
pertinentes o mais das vezes, parecem sobrevoar o filme; ou senão tenta-se buscar a sua dimensão
poética, naquele sentido etimológico que contempla o como se constrói das obras, e não a sua
singular produção de sentido. Este é aliás um problema central da historiografia do cinema expe-
rimental, e não só no Brasil: — há carência de análise, ensaio crítico ou debate de alcance maior,
e uma excessiva legitimação das intenções ou dos projetos dos cineastas.
Não obstante isso pareça estar mudando ultimamente, o experimentalismo radical não con-
ta com muitos nomes no quadro contemporâneo. Ressalvada a aparição auspiciosa de Carlos
Adriano nos anos 90, não raro precisamos, mesmo iniciado o novo século, voltar aos ainda ativos
que surgiram nos anos 60 ou 70, como Júlio Bressane ou Arthur Omar. A descoberta recente de
uma grande produção quase “clandestina” dos anos 1970 em Super-8 obriga-nos a reconsiderar
completamente este lugar-comum de que o cinema experimental brasileiro não existe para além
de meia dúzia de nomes hipotéticos salpicados ao longo do século. Há uma história a ser escrita.
Sua concentração na década de 70 e início dos 80 coincide com os estertores do regime militar,
desde os seus momentos mais tenebrosos. Tanto a tensão da pesquisa estética feita em espaços
forçosamente reclusos quanto um corpo a corpo irônico com o espaço público juntaram poetas,
artistas plásticos e uma nova geração de cineastas radicais 181. Seus filmes não podem ser confun-
didos com o Cinema Marginal nem com o Cinema Novo, mesmo quando neles se inspiram: são
uma terceira vaga, marcada pela busca da diferença. Ainda que pós-utópicos, os superoitistas tra-
zem uma clara aspiração politizante, e são em seus extremos de virulência a máxima repercussão
colhida pela Estética da Fome.

IX. Poetas, artistas, anarco-superoitistas 182

“decresça e
apareça”

181
Machado Jr., Rubens. Marginália 70: o experimentalismo no Super-8 brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2001, 48
p. il.
182 Esta parte IX foi publicada originalmente no catálogo Marginália 70, op. cit.
Cacaso, 1975. 183

“A cada passo, a ironia que vai da par-


te ao todo, do fragmento à unidade,
dos homens ao homem lança pergun-
tas. Perguntando, duvida; duvidando,
busca uma resposta que está dada por
uma ironia cíclica, interminável por-
que constantemente renovadora.”

Jomard Muniz de Britto, 1964. 184

O que haveria de extraordinário ou polêmico em afirmar que os filmes experimentais bra-


sileiros em sua metade ou dois terços teriam sido realizados em Super-8? Poucos teriam meios
para discordar ou concordar, começando pela elasticidade do conceito de cinema experimental
internacionalmente, maior ainda no caso brasileiro. Uma das tradições que se renovam até hoje
num tênue porém resistente circuito americano e europeu de museus ou salas especializadas tem
sido a convergência que em certos momentos transforma em quase sinônimas as designações de
“filme de artista” e “filme experimental”. Aqui, ao contrário, raras foram as ocasiões em que isso
se deu, embora a produção de artistas plásticos muito tenha se aproximado da pesquisa dos nos-
sos cineastas experimentais e vice-versa. Outro motivo que impossibilita a discussão do quadro
experimental no país é a sua grande produção em bitolas menores (também o 8 mm regular, bem
como os primeiros formatos do vídeo), cuja “irreprodutibilidade técnica” tornou a memória de
suas poucas, fugidias e auráticas primeiras sessões constituído não raro o único acesso às obras.
Isto equivale a dizer que os filmes não têm sido mais vistos ou revistos por qualquer público, e
nem mesmo por pesquisadores, desde os anos 70, época de sua maior produção e difusão.
A multiplicidade e diversidade de proposições estéticas é uma das marcas distintivas da
produção audiovisual na década de 70, imposição, em parte, da segmentação fragmentária das
experiências forçada pelo regime político autoritário. Ao lado da vigorosa expansão da TV e do
relativo sucesso da Embrafilme, houve uma proliferação de experimentalismos jamais vista, o
mais das vezes segmentados e localizados, implicando microesferas comunitárias como no caso
de festivais intermitentes, mostras artísticas e de uma miríade de pequenos eventos. Procurando

183 Cacaso (Antônio Carlos de Brito), “Orgulho”, Beijo na boca [1975], Lero-lero. Rio: 7 Letras; São Pau-
lo: Cosac & Naify, 2002, p. 131.
184 Britto, Jomard Muniz de. Contradições do homem brasileiro. Rio: Tempo brasileiro, 1964, p. 18.
os traços comuns mais interessantes destes acontecimentos, encontraremos sem dúvida no Su-
per-8 um material dos mais representativos. Não há entretanto nenhum estudo ou levantamento
panorâmico sobre a produção nacional superoitista, exceto meia dúzia de livros ou teses sobre
surtos regionais, em geral de pouca ambição crítica e deixando totalmente de lado os centros
maiores como São Paulo e Rio. Mesmo sobre os filmes de maior repercussão produzidos nesta
bitola, pouquíssimas e breves linhas de caráter crítico foram escritas até hoje.
Na prospecção que fizemos a partir de 2000, de que um primeiro resultado foi a mostra Mar-
ginália 70 185, nos dirigimos ao Super-8 experimental (categoria menos numerosa nos festivais,
como a de animação, diante das prolíficas documentário e ficção) tentando abranger as suas di-
versas acepções. Na escolha para a mostra, entretanto, adotamos critérios mais exigentes dentro
de cada acepção encontrada, visando por um lado manter um quadro minimamente significativo
da pluralidade das propostas existentes, e por outro provocar uma compreensão maior de algumas
vertentes que nos pareceram mais ricas e atraentes. Neste sentido privilegiamos numericamente
os pautados de modo mais radical na pesquisa não só da linguagem como do processo específico
de realização nesta bitola — desde a concepção à exibição —, sintonizando as tradições artísticas
de maior peso às novas posturas estéticas, comportamentais e políticas então em curso. O partido
adotado foi de compor um amplo espectro de tendências, ainda que o nosso recorte obrigasse a
deixar fora alguns aspectos relevantes do experimentalismo mais ligados às convenções da fic-
ção, documentário e animação. Mesmo porque o anticonvencionalismo radical está na base de
qualquer noção mais rigorosa de cinema experimental, tentando explorar as potencialidades do
cinema não utilizadas nas práticas sociais correntes.
Trata-se de um resgate que nos dará a ver um corpus formidável e em grande medida iné-

185
Veio a público em 2001 o levantamento que fiz da produção experimental realizada em Super-8, com o
apoio logístico do Itaú Cultural, que remasterizou cerca de 180 títulos, praticamente inacessíveis desde os
anos 70. Consegui ver então mais de 450 filmes, dos 681 levantados, envolvendo-se 237 realizadores (um
terço destes sendo artistas plásticos) de 21 cidades (Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Campi-
nas, Santos, Rio, Goiânia, Belo Horizonte, Governador Valadares, Vitória, Salvador, Aracaju, Maceió, Recife,
Caruaru, João Pessoa, Teresina, Fortaleza, São Luís e Manaus). Entre 2001 e 2003, uma seleção itinerante da
mostra feita em São Paulo, Marginália 70: o experimentalismo no Super-8 brasileiro, percorreu dezenas de cidades
no país e no exterior (na França, À vos marges, années 70, em 2003). A versão paulistana totalizava 125
filmes e as itinerantes variavam entre 42 e 24 filmes. Dentre as dezenas de realizadores resgatados — foram
78 na mostragem maior — figuram Jomard Muniz de Britto, Edgard Navarro, Ivan Cardoso, José Agrippino
de Paula, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Antonio Dias, Torquato Neto, Sérgio Péo, Jorge Mourão, Rui Vezzaro,
Mário Cravo Neto, Raymond Chauvin, Geneton Moraes Neto, Paulo Bruscky, Jairo Ferreira, Abrão Berman,
Carlos Porto, Leonardo Crescenti, Gabriel Borba, Marcello Nitsche, Claudio Tozzi, Nelson Leirner, Regina
Vater, Anna Maria Maiolino, Henrique Faulhaber, Giorgio Croce, Ragnar Lagerblad, Fernando Bélens, Pola
Ribeiro, José Araripe Jr., Virgílio de Carvalho Neto, Marcos Sergipe, Paulo Barata, Robinson Roberto, José
Umberto Dias, Kátia Mesel, Donato Ferrari, Marcos Bertoni, Isay Weinfeld, Marcio Kogan, Iole de Freitas,
Ismênia Coaracy, Vivian Ostrovsky, Fernando Severo, Peter Lorenzo, Paulo Rocha, Hassis, Júlio Plaza, Luiz
Alphonsus, Artur Barrio, Carlos Vergara, Carlos Zilio, Maria do Carmo Secco, Daniel Santiago, Ypiranga
Filho, Amin Stepple, Ana Nossa, Berenice Toledo, Bernardo Caro, Marcos Craveiro, Getulio Gaudielei
Grigoletto, Henrique de Oliveira Jr., José Albino Gonçalves, Bertrand Lira, Torquato Joel, Chico Liberato,
Firmino Holanda, Flávio de Souza, Flávio Motta, Luciano Figueiredo, Óscar Ramos, Luiz Otávio Pimentel,
Sérgio Giraud.
dito do universo audiovisual brasileiro. É bem verdade que este aspecto de terra incognita já
tem-lhe dado por vezes uma aura de coisa fabulosa (tanto quanto insondável) que poderá agora
ser devidamente analisada, desvendada, desmitificada. Além da proximidade verificável entre o
experimentalismo de cineastas e de artistas plásticos, um outro paralelo de grande pertinência
contemplaria a jovem produção poética dos anos 70 e a chamada literatura de mimeógrafo. Por
exemplo, o mesmo traço localista revela-se explosiva numa verve telúrica irônica e estranha, pois
menos romântica que realista, ou concreta (ou neoconcreta…); a mesma inflamação do aqui-a-
gora levada às raias da consciência física dos corpos, do mundo e também do meio específico de
expressão, em auto-reflexividades várias. Foi pensando nisto que buscamos nesta mostra o maior
diálogo possível entre as três partes — poetas, artistas plásticos e a provocativa inquietude dos
jovens cineastas. Esta tripla confluência talvez nos ajude a explicar tanto cineasta em flor equi-
parando as falas dos seus filmes à melhor poesia marginal; artista a decupar e ritmar as suas fitas
melhor que muito cineasta de carreira; ou poeta convertido a bom praticante da plástica cinema-
tográfica.
Na programação das sessões, em lugar de segregações temáticas ou estilísticas, tentamos
manter um espírito híbrido fiel à convivência daquela diversidade de posturas que foi emblemá-
tica dos maiores festivais do período, caso da Jornada de Salvador ou do Grife em São Paulo.
Espaços de respiração democrática, manifestações diversificadas, contestação política, esculacho
mais ou menos cifrado do status quo vigente. A graça e a jovialidade das expressões mais espon-
tâneas temperavam com o seu frescor a sisudez e conservadorismo artístico persistentes — e,
diga-se, mesmo dentro dos festivais. Em pleno regime autoritário, o isolamento exacerbado das
gestações criativas na verdade prepara o confronto súbito de mentalidades.
Um olhar mais atento perceberá, entretanto, para além do impacto comportamental, uma
riqueza de proposições estéticas que nos permitiria cogitar de atitudes e conceitos perfeitamente
aplicáveis neste conjunto de filmes e oriundos de diferentes esferas. Sem pensar em termos muito
particulares, não faltaria ocasião para num exame detido falarmos de filme estrutural, abstra-
to, independente, radical, marginal, de invenção, de intervenção, diferente, não-alinhado, nega-
cionista, anti-cinema, de found-footage, onírico, conceitual, minimalista, materialista, prop-art,
construtivo, pop, noturno, odara, puro, absoluto, livre, beat, visionário, odara, underground, pa-
ramétrico, concreto, neoconcreto e assim por diante. Se podemos apostar na pertinência destes
termos genéricos na futura análise dos filmes escolhidos, mais interessante seria tentar haurir nos
próprios filmes conceitos mais singulares. A riqueza das proposições anunciadas pelos realiza-
dores eles mesmos já escancaravam várias pistas possíveis: — cinema rudimentar, o cineviver, o
quase-cinema, o vivencial, o primitivista, a antropofagia erótica, o terrir, cinema ovo, cafajeste,
a vanguarda acadêmica, o megalomaníaco neocinemanovíssimo, o cinema de salão, o anarco-su-
peroitismo...
Apesar da vocação tropicalista e pós-tropicalista de citar, dialogar ou incorporar o discurso
dos diversos meios de comunicação, uma característica entranhada na produção Super-8 em ge-
ral e que a distingue da realizada em outras bitolas (até mesmo do chamado Cinema Marginal),
é a sua oposição clara a tudo aquilo que tenha a ver com a TV, sua antípoda máxima no período.
Outro superoitismo curioso foi o de interação com a precariedade do veículo, aderindo estudio-
samente aos seus grãos, sua textura, às “aberrações” de sua facilidade de manuseio, mobilidade e
exposição automática, a desritualização contingente mas também voluntária de todo o processo
de produção. Nisto houve sem dúvida contribuição dos artistas plásticos, que aliás participavam
com alguma frequência dos festivais. Já a ligação imediatista ao cotidiano é irmã gêmea do
que também fizeram os jovens poetas do mimeógrafo. Esta consciência do meio de expressão,
compreendida em sua precariedade, configura num certo sentido a mais funda repercussão em
nosso universo audiovisual da Estética da Fome, que foi escrita por Glauber Rocha anos antes,
em 1965, tornando-a talvez mais profética do que ele próprio gostaria. O recrudescimento das
malhas do poder forçaram o que já havia de significante e mesmo de fálico na legenda “uma ideia
na cabeça e uma câmara na mão”. A transformação sofrida no tema do fálico mostra-se, em seu
sentido psicanalítico de ordem e de presença do pai, figurada numa realidade física ambiguamen-
te evasiva ou senão coalhada de símbolos e monumentalizações irônicas. Por suas características
intrínsecas como meio e inserção social, o experimentalismo superoitista implicou nas condições
brasileiras dos anos 70 uma forte experiência de negação. Negação dimensionada esteticamen-
te em diversas direções, compreendida a cívica, da declaração contra um status quo cultural e
político, mas e também aquela comportamental, estigmatizada como desbunde, cheia porém de
diferentes matizes contraculturais.

X. Pólis e política 186

“se lhes derem Kennedy ou Kruschev ou De Gaulle


não acreditem nesta única realidade
neste implacável colar de conchas de ar

se lhe derem os códigos os gestos as modas


não acreditem nesta enlatada realidade
nesta implacável aranha de invisíveis fios

se lhe derem a esperança o progresso a palavra


não acreditem na imposta realidade
186 Esta parte X foi publicada originalmente no catálogo Golpe de 64, op. cit. Algumas passagens incorpo-
na implacável engrenagem das hélices de vácuo

aprendam a olhar atrás do espelho


onde a história jamais penetra
a profunda história do não registrado
aprendam a procurar debaixo da pedra
a história do sangue evaporado
a história do anônimo desastre
aprendam a perguntar
por quem construir a cidade
por quem cunhou o dinheiro
por quem mastigou a pólvora do canhão
para que as sílabas das leis fossem cuspidas
sobre as cabeças desses condenados ao silêncio”

Afonso Henriques Neto, 1976. 187

“Estamos aqui reunidos para tentar.”

Edgard Navarro, 1977. 188

Politicamente suspeito, o cinema experimental ou de vanguarda no Brasil, como vimos,


nas poucas manifestações que provocou para além do Cinema Novo e Marginal, entre aproxi-
madamente 1960 e 1974, tendeu a ser pensado historicamente neste diapasão de formalismo de
fundo conservador. Com o advento do Cinema Novo, convém notar que é um tanto paradoxal que
isto de certo modo continuasse acontecendo, embora com uma nova visão do problema, ao des-
tacar-se de uma ortodoxia da época. Desde então, conforme apontamos, persiste um desinteresse
sobre o teor político do chamado cinema experimental, que alcança mesmo os dias de hoje. A
produção dos anos 1970 em Super-8 obriga-nos a reconsiderar completamente este lugar-comum.
A especificidade política das realizações em Super-8 fundamenta-se nas suas condi-
ções técnicas de realização e, claro, no desenvolvimento correspondente das suas proposições
ram contribuições do sáite e catálogo do evento Marginália 70, op. cit., com a participação de uma plêiade de
jovens pesquisadores, tal Cláudia Mesquita, Fábio Diaz Camarneiro, Júlio Pessoa Nogueira, Leandro Saraiva,
Newton Cannito e Tiago Mesquita.
187 Henriques Neto, Afonso. “Dos olhos do não” in: Hollanda, Heloísa Buarque de. (org.) 26 poetas hoje. Rio: La-
bor, 1976, p. 90.
188 - Fala em off de Edgard Navarro na
abertura de seu filme O Rei do Cagaço (Salvador, 1977, Super-8).
estéticas gestadas na atmosfera cultural e contracultural da época, implicando suas característi-
cas de espetacular ampliação unidimensional do consumismo e crescente resistência política e
comportamental. A produção experimental ou militante desvia o seu uso da destinação merca-
dológica, de oferecer com um pouco mais de custo uma alternativa à máquina fotográfica ao pai
de família para registrar viagens e aniversários e ao jovem de classe média brincar de cineasta.
Precursor do vídeo e das atuais câmeras digitais chegando até aos celulares, o Super-8 se difunde
pelos anos 70 como técnica acessível, num salto significativo em relação à utilização similar que
se verificava desde os anos 1920 com as pequeninas Pathé Baby, passando depois pelas bastante
portáteis câmeras 16 mm de corda, até chegarmos às “Regular-8”, que ainda usavam nos anos
60 a tecnologia 16 mm, sem as facilidades do automatismo introduzidas com as Super-8. Antes
destas últimas exigia-se do cineasta amador uma mínima cultura técnica para a manipulação,
por exemplo, dos ajustes de foco (facilitada nas “revolucionárias” Super-8 pela visão direta do
foco no visor reflex, tornado padrão), da medição de luz para a exposição (pela adoção da nova
fotometria automática), do acionamento frequente do motor mecânico por cordas (pelo motor
elétrico alimentado por pilhas), da escolha de objetivas (incorporação regular da zoom). E outras
facilidades como o característico formato ergonômico da pistola, ou a solução inovadora dos
cartuchos que aposentaram os rolinhos, exigentes de cuidados de encaixe nas roldanas internas,
em resguardo absoluto das luzes do céu aberto, que podiam sempre fazer do simples carregar da
câmera a precoce “queimada de filme”.
Naturalmente esta maleabilidade eletrodoméstica do Super-8, embora capacitasse de
imediato uma legião de incautos, leigos ou curiosos dotados de um mínimo de intuição para a
filmagem, não iria reverter-se necessariamente em melhoria do resultado técnico. Antes pelo con-
trário. É certo que com os novos recursos se eliminavam barbeiragens mais graves, de visibilida-
de elementar, mas de certo modo multiplicavam-se os pequenos titubeios de fatura próprios da
captação inadvertida, como tremidos, desfoques momentâneos e todo tipo de ingenuidade com-
positiva nos modos de enquadrar a imagem. Este rebaixamento do padrão técnico se dá mesmo
no melhor caso de habilidade ou cultura técnica do usuário, já que as características físicas da pe-
lícula e do equipamento eram sensivelmente inferiores se comparados aos formatos e tecnologias
profissionais. Por exemplo, não só eventuais riscos ou sujeiras existentes na emulsão da película,
assim como a sua própria granulação, apareceriam amplificados na tela acabando por marcar pre-
sença, proporcionando uma textura final que sugere com certa veemência ao espectador, a cada
instante, tratar-se aquilo de um filme projetado. O uso consciente e mesmo o uso expressivo desta
miríade de “defeitos técnicos” típicos do Super-8 torna-se depressa muito rico no plano estético,
graças à sua incorporação à linguagem dos filmes, sobretudo por parte de artistas plásticos que,
na primeira metade dos anos 70 adotam o meio, chegando mesmo a inscrever os seus filmes, em
geral, objetos estranhíssimos, nos festivais que foram se proliferando ao longo da década.
De par com a facilitação técnica e sua apropriação estética mais aguda, o que distingue a
atividade superoitista é o caráter marginal de significativa parcela da produção, já no âmbito de
sua concepção e feitura, bem como no de sua difusão e recepção. Poucas ditaduras chegaram ao
ponto de fazer um controle mais severo, como na Espanha, desde o processo de revelação. No
Brasil, durante os anos mais duros da repressão política e depois, no período de abertura, contá-
vamos com a férrea modernização conservadora que se instalava, galvanizando a cultura, o que
garantia ao precário amadorismo do Super-8 um contraponto dissonante e irônico, de que, aliás,
muito realizador se valeu com inteligência. Como para a “imprensa nanica”, os poetas de mimeó-
grafo, os grupos teatrais mambembes, tratava-se de subverter as relações de produção da cultura.
Como disse o poeta e cineasta Sérgio Péo, “transformar o objeto de consumo em instrumento
de produção”, “usar esse instrumento produzido e distribuído visando o consumo doméstico das
classes médias para criar um movimento”. Clamava de sua coluna-tribuna Geleia Geral o poeta
tropicalista Torquato Neto nos tempos duros de 1971: “pegue uma câmera e saia por aí, como é
preciso agora (...) documente tudo o que pintar, guarde. Mostre. Isso é possível”. O Super-8 seria
enfim para quem quisesse, como se falava, o melhor modo de cair na real  189. A marginalidade
estendia-se à exibição, buscando além da vitrine formidável dos festivais de Super-8, casas de
amigo, espaços de exibição alternativos ou provisórios, articulados, às vezes, aos movimentos
sociais e cineclubes.
A década de 70 iniciou-se sob o peso da repressão em seu período mais extremado.
Com a violência do AI-5, desde o final de 1968 agrava-se a censura e a repressão, uma parte
importante da produção artística, passando ao largo da integração no mercado florescente e da
negociação de subsídios estatais à “cultura nacional”, fazia sua apropriação da herança imediata,
a tropicalista sobretudo, em formas de linguagem e de produção que improvisavam caminhos, e
definiam suas primeiras manifestações de resistência muito paulatinamente até meados do decê-
nio. Na segunda metade da década, com a abertura e a proliferação dos festivais, nota-se o cres-
cimento de uma franca politização dos realizadores, sensíveis às mudanças no âmbito do circuito
possível e já existente, ainda que bem precário. Mas o Super-8 está desde o início nesta seara
próxima à da poesia de mimeógrafo e ao happening, como manifestações artísticas que, em seu
modo mesmo de constituição, traziam elementos que dificultavam sua absorção mercadológica
ou burocrático-autoritária, driblando a indústria cultural, a Censura e o regime repressor. Daí a

189 Péo, Sérgio. “O superoito como um instrumento de linguagem”, Revista de Cultura Vozes ano 72
vol. LXXII n°6, agosto 1978, pp. 31-34. Muito lido no início dos 70 em suas crônicas na imprensa cario-
ca, Torquato Neto torna-se num curto tempo de atuação marginal o prosélito maior do superoitismo no
país. Pouco antes do seu suicídio em 1972 realiza, em sua Teresina natal, O Terror da Vermelha (1972), e
atua em outros Super-8 cariocas incluindo o papel título de Nosferato no Brasil (1971), de Ivan Cardoso.
Caçoa do cinemão brasileiro do início da década em alto astral, incluindo inventivamente o Cinema Novo,
ao qual chega a chamar de Zdanovo, evocando o secretário da cultura de Stálin. Veja-se como descreve uma
sessão de filmes do jovem Ivan, o mais celebrado superoitista carioca, em: Torquatália, v.2. (org. Paulo Rober-
to Pires) Rio: Rocco, 2004, pp. 318-320. Ver ainda a fita de Eduardo Ades & Marcus Fernando, Torquato
Neto, todas as horas do fim (2018), que monta sua música às imagens de época além de toda a sua filmo-
grafia, e faz jus à estética torquatiana deslocando magnificamente som e imagem ao recriar o popismo irônico
dos materiais.
sua diferenciação aguda para com a pornochanchada ou o filme de perfil cultural, assim como as
produções da Embrafilme. Isso não impede, entretanto, que mesmo no Super-8 houvesse quem,
sob o manto do “cinema é cinema, não importa a bitola”, sonhasse com a profissionalização. Não
faltou quem tentasse implementar salas comerciais, exibição televisiva, grandes festivais na trilha
kitsch do fausto hollywoodiano, como foi o caso do Grife em São Paulo, que organizava cursos
eficazes e o mais estável e longevo dos festivais de Super-8. O apagamento das especificidades
ligadas à bitola, que por vezes traduzia-se no entendimento dos superoitistas como simples as-
pirantes a cineasta profissional, era uma forma de apagar também a dimensão política, tornada
ponto cego, denegado. Na visão de seus opositores, como disse o realizador João Lanari sobre o
Grife, almejar “proporções industriais”, “vincular o Super-8 a esse jogo, é participar de maneira
total de uma ideologia reacionária” 190.
À subversão das relações de produção e circulação, correspondia uma subversão de
linguagem, expressa na diversidade das experiências superoitistas. Nos anos 70 já não havia, para
além da oposição à ditadura, mais ou menos surda, um eixo unificador muito análogo à “cultura
popular” dos anos 60. Uma distinção eloquente se daria entre “documentaristas” e “anarco-supe-
roitistas”. E o experimentalismo com certeza não seria exclusivo do “gênero” Experimental que
se encontrava como classificação nos festivais, lado a lado com Ficção, Documentário e Anima-
ção. Experimental pode ser uma categoria mas nunca um gênero. Tais classificações costumavam
ser feitas pelos organizadores de eventos, não raro optando pelo “gênero” Experimental sempre
que tinham maiores dúvidas diante dos filmes recebidos; como na última resposta das questões
de múltipla escolha no vestibular: “nenhuma das alternativas anteriores”. Ora, todo filme expe-
rimental é um filme substancialmente diferente e, por algum motivo, ou sob algum aspecto, um
não-filme: busca fazer pensar no que de fato você estaria vendo. Tinha sua razão portanto o prag-
matismo classificatório dos organizadores dos festivais: qualquer dúvida, “n. a. a.”, nenhuma das
alternativas anteriores! Entre os documentaristas porém, dominava uma postura comparável aos
“folcloristas do 16 mm” que, num prolongamento das questões pré-tropicalistas, estavam inte-
ressados em temas da cultura popular, o crítico de cinema e superoitista pernambucano Fernando
Spencer sendo dentre eles o maior exemplo. Já na virada para os anos 80, uma variante desta
tendência surgiu em João Pessoa (até hoje em funcionamento no Nudoc, da UFPB) a partir de
um ateliê de cinema verdade ministrado pelo próprio Jean Rouch. Diferentes e em oposição aos
documentaristas, estavam os autodenominados “anarco-superoitistas” (expressão do recifense
Amin Stepple) que consideravam que seu ato político intervinha com a busca libertária por novas
formas de linguagem.
Dedicada ao experimentalismo mais radical e a esses anarquistas cinematográficos orga-
nizei junto ao Itaú Cultural em 2001 a mostra Marginália 70, que resgatou do esquecimento
grande parte do experimentalismo superoitista. Baseia-se sobretudo num grande levantamento
190 João Lanari Bo, texto no folder da Mostra de Super-8, do Cineclube do CAC, Centro de Artes Cine-
matográficas, PUC-RJ, 1976.
que empreendi realizando a minha pesquisa sobre a história do cinema experimental no país.
Constantes na diversidade encontrada, emergem muitos traços que mostram clara marca política
dessa experimentação de linguagem. Isto não quer dizer que não tenham se proliferado nesta
bitola filmes despolitizados ou que, sem grande invenção formal, sejam politizados, engajados
e mesmo de cortante intervenção propagandística. De modo análogo se encontra em Super-8
muito filme de animação, documentário ou ficção perfeitamente convencional, e até bem con-
servador. Até mesmo entre os filmes catalogados e premiados nos festivais dentro da categoria
Experimental encontramos filmes cuja importância maior está na comunicação com o público,
impacto da mensagem, transgressão no plano dos conteúdos — e não da sua diferenciação ou
experimentação formal. Poderíamos lembrar aqui a contundência de trabalhos de uma porção de
superoitistas, alguns deles bastante laureados, outros muito disseminados em circuitos alternati-
vos ou de oposição. Para citar poucos realizadores, destacamos Celso Marconi em Recife, Pedro
Aarão de Siqueira em Caruaru, Claudinê Perina em Campinas. E, segundo depoimentos, também
teríamos João Guilherme Barone Reis e Silva, em Porto Alegre — lugar que veria nos anos 80
a proliferação de um surto de ficção moderna rodada em Super-8. Também neste decênio de 80,
Clovis Molinari Jr. pesquisou no Rio de Janeiro arquivos de filmes Super-8 em grande parte re-
gistrando manifestações políticas daquela década. Já na capital paulista a ocorrência deste enga-
jamento “não-formalista” é das maiores, talvez mais complexa e heterogênea, mas podemos falar
assim mesmo de alguns filmes de Jorge Caron, Flávio Del Carlo, Otoniel Santos Pereira, Moysés
Baumstein ou Francisco Conte.
Um princípio bastante recorrente na produção mais radical é a glosa ou o ataque aos monu-
mentos culturais dispostos no espaço público da cidade. Sempre que se comentam as históricas
Jornadas de Salvador, maior evento do cinema independente no país nos anos 70, reunindo de-
mocraticamente os diversos suportes, Pola Ribeiro gosta de lembrar a fórmula que o seu grupo
de superoitistas considerava lapidar: “Os filmes em 35 mm dedicam-se a construir monumentos;
os 16 mm lhes propõem questionamentos; e os Super-8 vêm para jogar merda nos monumentos”.
De fato, há algo desta espécie de pulsão antimonumental, num sentido mais abstrato e simboli-
camente abrangente, como traço distintivo e singular do experimentalismo superoitista em sua
interação com o espaço da vida cotidiana em geral e em particular com o espaço público. Falo
de monumento aqui, consabido está, como documento de civilização mas também de barbárie,
no sentido pensado por Walter Benjamin  191. Performances desmistificadoras ou iconoclastas se
contracenam com estátuas e prédios importantes, instituídos ou não como patrimônio histórico:
ícones de uma ordem pública são abordados ou fustigados pelo que de impositivo e inaceitável,
sob o regime militar, consolidavam agora, mesmo que à revelia do que já exprimiram antes. Para
usar exemplos cariocas, no Explendor do Martírio (1974) de Sérgio Peo um ator agride uma es-
tátua e é, de fato, preso em cena; nos filmes de Maria do Carmo Secco, Memória (1975), Projeto
/Processo /Progresso (1976), Zoológico, Jardim (1976) vemos ostensiva inquietude ou hostili-
191 Benjamin, Walter. “Sobre o conceito de história” in: Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio, op. cit.
dade dirigidas à situação pública de convívio e sua deterioração, buscando a memória afetiva e
física da cidade; já Relax Místico (1977) de Giorgio Croce e Ragnar Lagerblad propõe o eclipse
que quaisquer monumentalidades diante do descalabro da cena pública captada nas ruas, num
irônico relaxamento iogue, em prática pop/zen de contemporização distanciada.
A desmonumentalização estava ligada a outra tendência bastante evidente em sua carga con-
testatória aos padrões da arte estabelecida: a performance, ou o registro pela câmera de um ato
performático rompendo com o comportamento “respeitável” sugerido pela cultura cívica oficial.
A performance estava seguidamente ligada à contestação da ordem imposta ao espaço público,
como na “observação-ação” proposta por Péo, que quer “usar o espaço físico da rua reavaliando
seu funcionamento e introduzindo novas atitudes”. O Super-8 aproximava-se, nesses momentos,
do happening teatral, da pichação e da momentaneidade da poesia marginal, que se propunham
transitórias, imediatas, mais ativas que representativas. Coerente com essa espécie de ação fíl-
mica direta, a política do corpo e da sexualidade adquiria centralidade nos filmes Super-8. “Era
uma coisa bem política, erótica e política”, segundo o filósofo e poeta Jomard Muniz de Britto,
um dos protagonistas do tropicalismo no nordeste. Bissexualidade, travestis e desconstruções da
imagem burguesa da mulher, frequentavam a bitola Super-8. Muitos dos filmes têm algo de festa
dionisíaca, versão cinematográfica do desbunde. Com a forte presença da contracultura nos anos
70, o diálogo do corpo que grita por libertação parece clamar pela natureza, à qual o corpo deseja
retornar. A fruição da relação imediata corpo-espaço, sob o signo da natureza, como no curitibano
Vitrines (1978) de Rui Vezzaro ou no soteropolitano Pó e Mandalas (1977) de Paulo Barata, é
outra das formas de contestação da ordem, ora se aproximando da “curtição” primitivista hippie,
ora impostando um olhar que desdenha ou estranha o advento sisudo da urbe.
Logo no começo da década, a presença do pop, do conceitual e do minimalismo nas artes
plásticas nacionais, e correntes herdeiras imediatas da sólida tradição concretista e neoconcre-
tista, mesclam-se aos últimos gritos do Cinema Novo e Marginal antes da integração no projeto
embrafílmico do “Mercado é Cultura”. Hélio Oiticica, Antonio Dias, Lygia Pape, Nelson Leirner,
Marcello Nitszche e tantos outros artistas trouxeram contribuições notáveis (desde então bas-
tante esquecidas), construindo obras explosivamente concisas e definitivas. Noutra modulação
desta estética do grito, existem ainda os filmes que, numa certa continuação do cinema marginal,
exploravam a exasperação como forma de “expiar” a repressão, como vemos em certos filmes
de Jorge Mourão. Mas de modo geral, a experimentação superoitista inscreve-se no momento
pós-tropicalista, onde a dimensão política da arte fragmentou-se em experimentos quase sempre
aliados a uma espontaneidade radical e ligados a uma visceralidade existencial que buscava criar
momentos de ruptura com a pesada ordem política e de mercado do “milagre” conduzido pela
ditadura militar. A consolidação da TV e do cinemão teriam raros contrapontos no universo au-
diovisual, já que as recentes vibrações tropicalistas endossavam — mesmo com sua larga irrisão
— um convívio amistoso e fértil com a indústria cultural. E o Cinema Marginal não foge a esta
regra, de maneira geral. No pouco que a tematizou, apenas o Super-8 opõe-se diametralmente a
tudo que tivesse relação ou se referisse ao universo da TV. Pelo trabalho diferente de sua própria
linguagem e temática, desde o início dos anos 70, o experimentalismo superoitista foi no audio-
visual brasileiro o polo mais vivo de negação ao que se fazia na TV, a sua contraposição visceral.

XI. Para uma análise de Agripina é Roma-Manhattan, quase-filme de Oiticica 192

“A alma que não tem


objetivo estabelecido se perde, pois,
como se diz, estar em toda parte
é não estar em lugar nenhum.”

Montaigne, 1592. 193

Não faz maior sentido entregar-se a discussões sobre ser ou não ser inacabada a realização de
Hélio Oiticica rodada na Wall Street de 1972, levando-se em conta o filme que temos visto desde
1992 em quase todas as retrospectivas do artista mundo afora, como uma criação experimental
concebida a partir da prática superoitista brasileira daquele início dos anos 70. Consideramos
nesta análise a relação do artista com determinada matriz de experiência, contemplando um diá-
logo profícuo do filme não só com o cinema anterior de seu país, também sua cultura, política,
arte e literatura, reativadas desde o Século XIX.
Nosso horizonte aqui é o de favorecer trabalhos futuros, na direção sobretudo de análises
comparativas internacionais e brasileiras circunstanciando a importância desta experiência de
um realizador em exílio artístico — não apenas nos EUA ou em Nova Iorque mas em Manhattan
— num quadro mais geral das manifestações artísticas e audiovisuais, assim como na história do
cinema. Muitos realizadores neste primeiro momento do surto superoitista no Brasil da pior fase
ditatorial praticavam bastante conscientemente a exibição em espaço privado, casa de amigos,
ateliês, galerias ou salas de projeção fora da programação institucional, de trechos de filme em
rolinhos alternados, ao acaso de um ritual espontâneo do encontro, da conversa: espaços cotidia-
192
O texto da parte XI é versão expandida e modificada de três anteriores: “Agrippina é Roma-Manha-
ttan, um quase-filme de Oiticica” in: Oiticica: a pureza é um mito. (org. Cauê Alves) Itaú Cultural, São Paulo,
abril 2010. “The Resonant Time of Hélio Oiticica Quasi-Film” in: Lerner, Jesse; Piazza, Luciano. (orgs.)
Ism, Ism, Ism / Ismo, Ismo, Ismo: Experimental Cinema in Latin America. Oakland: University of California Press,
2017. “Agripina é Roma-Manhattan, um belo quase-filme de HO”, Ars vol. 15 nº30, São Paulo, PPGAV &
CAP/ECA-USP, 2017. Sua elaboração teve o apoio do Projeto coordenado pelo Los Angeles Filmforum
- Getty Foundation, “Experimental Media in Latin America”, PST: LA/LA, Pacific Standard Time: Latin
America in Los Angeles (2014-2017).
193 - Montaigne, Michel de. “Sobre a ociosi-
dade”, Os ensaios, 1, VIII. [1580-1592] (tr. Rosa Freire d’Aguiar) São Paulo: Companhia das letras (Penguin Clássicos), 2010, p. 49.
nos de resistência ao status quo na medida do possível, ocupando as beiradas de um espaço qua-
se-público. Alguns montaram e remontaram suas filmagens em versões diversas, usando às vezes
rolos maiores que os 3 ou 4 minutos do rolinho, a trilha sonora quase sempre improvisada no am-
biente. Um filme da esfera de convívio de Hélio Oiticica, como o Nosferato no Brasil (1971), de
Ivan Cardoso, foi projetado em versões diversas quanto à sua duração e “trilha sonora”. A ideia
de filme acabado neste gênero específico de prática amadora, decerto variando muito caso a caso,
nos obriga a observar parâmetros técnicos, estéticos ou culturais implicados e propositalmente
diferentes.
Em perspectiva de crítica imanente, ou seja, de tomar a obra em sua própria medida, a aná-
lise da fita procuraria sua singularidade artística proporcionada pela experiência estética que dela
podemos ter. O desafio do analista diante de filmes muito singulares é a dificuldade de praticar
o ensaio, tentativas de aproximação também elas devidamente singulares. É diferente da análi-
se fílmica em geral, quando os padrões de gênero cinematográfico, estilo, modo de produção e
circulação, se condizem e permitem o êxito de métodos de procedimento analítico semelhantes.
Filmes radicalmente diferentes, experimentais, de vanguarda ou “de artista” supõem igualmente
uma análise comparativa diferente. Não tem sentido análise comparada sem prévia ou simultânea
análise fílmica das obras singulares, compreendidas em sua singularidade. A comparação aliás é
instrumento poderoso na busca da singularidade de experiências.
Acredito que a análise fílmica tem perdido terreno cada vez mais nas últimas décadas. E
não só porque teria se desviado da sua perspectiva mais crítica, se perdido de seu horizonte mais
questionador, interrogando as diferentes obras audiovisuais — mas ainda porque simplesmente
começa a desaparecer. Ou ser substituída por outra coisa que parece mas não é bem o que já se
chamou de análise. Análises viraram ora abruptas “interpretações”, ora “comentários” salpicados
de pseudo-erudição, ora “análises” formais de estarrecedora aridez espiritual.
O motivo central dessa transformação me parece social, é histórico e merece estudo. Talvez
acusando certa fadiga de pensar a sério o filme pelo viés mais exigente, talvez o artístico mes-
mo, desde a vaga industrialista dos anos 1980-1990, que poderia ser chamada de pós-moderna
ou neoliberal, a resistente fórmula do cinema como simbiose Arte & Indústria não parece mais
nos afetar como dantes. O fato intrigante é que a crítica de arte, bem como a de cinema, não
conseguiu analisar obras com a mesma desenvoltura no Brasil desde a ditadura. Cotejamentos
internacionais sugerem situações bastante comparáveis: da busca de sentido chegamos ao refina-
mento do consumo, do julgamento circunstanciado fomos ao jogo apreciador, do nuançamento
especulativo viemos à categorização apaziguadora, da interrogação substantiva nos demos à afir-
mação convencionada, da subversão nos ativemos à subvenção, do engajamento necessariamente
coletivo nos empenhamos a lobistas de si próprio 194.

194
Rainer Rochlitz tenta refletir sobre este período de transformação histórica da crítica em Subversion et sub-
vention: Art contemporain et argumentation esthétique. Paris : Gallimard, 1994. É instrutivo lermos em contraponto
Roberto Schwarz, “Nunca fomos tão engajados” [1994], op. cit.
Comparando-se, hoje em geral no crítico de plantão, e no esforço ensaístico do pesquisador,
mais encontramos à guisa de análise poucas linhas de grande platitude e pouca ação crítica, mais
comentários, e não raro apoiados na palavra dos realizadores. O crescimento dos estudos univer-
sitários desde então carece de maior agudeza crítica ao tomar objetos que fogem do instrumental
teórico de sua especialidade, seja cinema ou arte; o que explicaria a parca fortuna crítica que
encontramos de filmes de artista, ou de filmes experimentais. Recorre-se a alguma teoria social
ou filosofia, preferindo-se brandir conceitos prêt-à-porter, com valor de troca no meio acadêmico
— em vez de analisar o que a obra ela mesma nos proporcionaria de experiência singular, e nos
exige como esforço interpretativo, construção conceitual a ela subordinada. Admira-nos ver hoje
em dia o quanto nos textos universitários brilham muito mais que as obras os conceitos; os quais
deveriam aliás supostamente elucidá-las, iluminá-las.
Sabemos que épocas de crise como a nossa requerem uma aflitiva busca de novos conceitos
perante os fatos inexplicados pelas armações conceituais caducadas. Entretanto, inextricável ao
analista que é insensível à intensidade singular da obra, por intermédio do positivismo da sua
nova escritura fetichista e seus conceitos de grife, as obras verdadeiras permanecem interro-
gando, como que arremedando e zombando remotamente a desfaçatez do brilho pedante destas
“aproximações críticas”. A experiência fruidora singular, como noção central do debate estético,
talvez viva um eclipse progressivo na escrita “ensaística” contemporânea. Lidamos hoje arro-
gantemente com os filmes analisados, impondo-lhes a luz de conceitos genéricos que ofuscam
sua força singular. Se são de fato bons filmes teriam no fundo continuado, como continuam,
insubmissos à presepada rotuladora dos acadêmicos: as boas obras persistirão nos desafiando
e aos nossos conceitos, dado que são vocacionalmente realizadas para surpreendê-los em sua
pretensão, a menos que sejam obras de simples ilustração do já conceituado, assim tendendo ao
academicismo artístico.
Há uma história a ser escrita sobre a adesão dos artistas brasileiros ao uso do cinema, com
câmeras leves e acessíveis, muito ao modo “amadorístico”, produções concentradas bem no pe-
ríodo que corresponde ao agravamento da ditadura militar depois do AI-5, em 1968. A tensão
da pesquisa estética desse experimentalismo se dá clara e forçosamente em espaço por vezes
evasivo, outras vezes recluso, e, por fim, numa prática de corpo a corpo com o espaço público,
algo enviesada, irônica, características que parecem encontrar-se em filmes e vídeos de diferentes
poetas, artistas plásticos e uma geração nova de cineastas radicais.
Além da proximidade verificável entre a experimentação de cineastas e de artistas plásticos,
um paralelo pertinente contemplaria ainda o cotejo deste cinema com a jovem produção poética
dos anos 1970, uma mesma atração pelo aqui-e-agora vividos na circulação cotidiana, numa di-
versificada inclinação localista que se revela ora cifrada e sutil, ora explosiva. Tanto romântica
como realista, se recuamos mais (coisa rara na pesquisa crítica), seu discurso fílmico-poético
pode nos fazer pensar no romantismo de um remoto passado literário do país, com mais de um
século; e no realismo, implicar certas tradições regionalistas radicalizadas pelo nosso maior ar-
rojo moderno na música, mesmo no cinema. Ou, como já foi dito, na recente tradição poética e
visual concreta, neoconcreta, pop, tropicalista, contracultural… Poderiam (ou não) fazer em sua
marginalidade setentista a contrapartida mais ou menos consciente àqueles deslocamentos hege-
mônicos da modernização conservadora, expressa agora a cores, em cada domicílio, na telinha
da TV. Esta provocante confluência tripla de poetas, artistas e a inquietude jovial empunhando
câmeras reverbera e precipita um novo olhar, em comparável inchaço do presente, levando à
raia da consciência física de corpos, espaço e também do meio próprio de expressão, inflamando
auto-reflexividades.
As novas gerações de cineastas, sob a égide mais ou menos reconhecida do manifesto de
Glauber Rocha, “Estética da Fome” (1965), ou da palavra de ordem dos inícios do Cinema Novo,
“Uma ideia na cabeça e uma câmara na mão”, se derivariam na década de 1970 em seus primeiros
Super-8 ou 16mm para padrões estéticos diferentes, incluindo alguma voluntária informalidade.
Enquanto já os artistas em seus filmes frequentemente surpreendiam parecendo “profissionais”,
seja pela consciência do domínio cênico das imagens, os enquadres da câmara, uso da decupa-
gem — porque não dizer, com inesperada facilidade frequentavam os efeitos de mise en scène ou
da forma fílmica. É o caso de quase todos os artistas ou poetas, Marcello Nitsche, Lygia Pape,
Torquato Neto, Anna Maria Maiolino, Nelson Leirner, Ismênia Coaracy, Jomard Muniz de Britto,
Analívia Cordeiro. É verdade que de fato os artistas se dividiam claramente nesta direção quando
queriam; e, quando não, mimetizavam não o bom cinema, mas ao contrário, uma informalidade
bastante amadora: basta lembrar dos filmes de Artur Barrio. É claro que se mimetizavam proce-
dimentos do mais espontâneo amadorismo convencional mas com um controle formal dele; por
exemplo nota-se a conjugação dessa trivialidade amadorística com uma sensibilidade do timing
cênico nada banal, ou melhor, de uma banalidade um tanto especial. Veja-se o Super-8 Ritual
(1971), ou o Abertura I (1972) de Artur Barrio, câmara de Renô, que parece compor os movi-
mentos espontâneos com grande exatidão ao filmar. Em gestos alegres vem o próprio Barrio,
uma coca-cola litro na mão é aberta e servida como champanhe, em perfeita ambiguidade entre a
comemoração frugalmente solene e o tom de uma aberta caçoada bêbada — o líquido ferruginoso
aspergido pelo gramado abaixo inocula alvuras de um monte de faixas de papel higiênico joga-
das há pouco como serpentinas (metáfora da película se expondo à luz fervilhante do evento?).
Conviva da efeméride, nosso olhar é convidado a brindar como se ali estivesse: obra de gestos
fortuitos porém precisamente construídos.
A primeira vez que vi Agrippina é Roma-Manhattan (1972), de Hélio Oiticica (1937-1980),
não sabia o que estava vendo. Entrei ao acaso numa sessão e ele já estava passando, eram curtas
do Cinema Marginal brasileiro numa mostra no Jeu de Paume, Paris, em 1992. Só soube que
filme era depois, revendo a sessão com o programa em mãos. Isso tinha me deixado uns dias
curioso com aquela lembrança, tanto por ignorar seu nome, ou do realizador, mas sobretudo pela
evolução daquelas figuras meio fantasiadas pelas ruas de Nova York, indo de postura tão rígida e
estacada quanto os prédios ao redor, até à mais livre e solta, que a inquietude da câmera dispersou
pelo ar. Não sabia tampouco que estava diante da maior mostra jamais realizada sobre o Cinema
Marginal, do qual eu já era fã e bom conhecedor desde os anos 70, quando editava a revista Ci-
ne-Olho. Pude ver naquele panorama de fitas raras, mesmo para um ex-cineclubista “especializa-
do” como eu, vários filmes brasileiros inacessíveis, ou ignorados, para sucessivas gerações, em
consequência tanto do período repressivo, ditatorial (1964-1985), quanto do surto mercadológico
próprio dos anos 1980; e claro, além da proverbial relação dificultosa do país com a memória.
Mas fiquei algum tempo me perguntando o que seria aquilo que vi, aguardando os impressos
semanais do programa de filmes no quadro daquela que foi a primeira retrospectiva de um artista
brasileiro no exterior, Hélio Oiticica 195, sem suspeitar que fosse justamente o único filme dele,
do qual se tinha incerta notícia. Foi talvez a primeira projeção pública daquele ignoradíssimo
Super-8 feito em Nova York havia vinte anos. Graças, segundo Bressane, ao boicote internacio-
nal sistemático do Cinema Novo ao Marginal, liderado pelo “tenebroso xerife” Glauber Rocha,
a grande maioria das fitas dessa mostra parisiense igualmente nunca fora vista fora do país; boa
parte delas nem mesmo lá. A verdade é que, temerosos de confiar cópias únicas ao precário cir-
cuito alternativo nacional, vários realizadores vieram a abrir exceção para o endereço da Place
de la Concorde.
Uma vez que muitos brasileiros passaram pelos EUA nos anos 1970, o que eu buscava
rememorando aquele filme não-identificado era, talvez como tentaria algum perito, intuir meios
para identificar o estilo daquela ignota mise en scène, tão tensionada assim entre espontaneidade
e rigor compositivo. Mas para quem conhece os filmes do Ciclo Marginal, por exemplo Rogério
Sganzerla, Neville d’Almeida, Luiz Rosemberg Filho, essa obra, mesmo inesperada, não deixa
muita dúvida sobre seu parentesco no plano do estilo ou atmosfera. A câmera é talvez um pouco
discrepante da soltura desenvolta dessa tradição, discrepa apenas naquilo que sugerirá estrutura-
ções maiores ou mais sistemáticas do olhar. Neste sentido particular de sistema, talvez só possa
ser aproximada de certos momentos do experimentalismo superoitista — Lygia Pape, Marcello
Nitsche, Mario Cravo Neto, Ruy Vezzaro, Paulo Bruscky — ou então antes, de Glauber Rocha e
do Júlio Bressane de O anjo nasceu (1969), Cuidado Madame (1970) ou O Rei do Baralho (1973).
O que quero dizer aqui é que tive a impressão, com o olhar treinado de cinéfilo ou pretenso
crítico, de que aquilo poderia ser perfeitamente um curta do Neville, como do Bressane; ou algum
inopinado superoitista metido a besta. Tratava-se de um jeito de filmar conhecido, mise en scène
manjada, embora de um especial frescor, e estruturação bem curiosa, talvez aí a sua mais desafia-

195
Além dos Parangolés, Metaesquemas, Ninhos e Cosmococas, instalações de slides do Quase-Cinema,
programou-se uma imensa mostra de Cinema Marginal, organizada pelos cineastas Neville d’Almeida e Júlio
Bressane, sob o comando da curadora Catherine David, sem no entanto integrar seu catálogo: Hélio Oiticica.
Paris: Galerie Nationale du Jeu de Paume, 1992. A pedido de dois de seus poucos frequentadores, Denis
Chevalier e Jean-Marc Manach, organizei um dossiê sobre a mostra: “Brésil: Les ombres oubliées d’un ciné-
ma inassouvi”, L’Armateur n°3, Paris, sep.-oct. 1992.
dora singularidade. Com notável força mínima de evidência, seu minimalismo muito particular,
aquela espacialidade unitária de Agripina é Roma-Manhattan nos vai configurar em três partes dis-
tintas, e cada uma com sua própria coordenada de tempo, um tríptico da onipresente protagonista.
Em apenas dezesseis minutos silenciosos desenvolve variantes derivadas do “Inferno de Wall
Street”, poema escrito cem anos antes por Sousândrade (1832-1902), poeta maranhense do qual
Oiticica retira o motivo, inscrito num de seus versos, “Agrippina é Roma-Manhattan”. Inferno de
Wall Street é passagem famosa do poema romântico (tido ainda como pré-simbolista e proto-mo-
dernista) em que o Guesa Errante, ou Sem Lar, figura lendária dos índios colombianos “muíscas”
(dos quais origina-se também da lenda de Eldorado), menino raptado e destinado à peregrinação
e ao sacrifício em tributo a Bochica, o deus do sol, faz “um périplo transcontinental”, como um
Candide selvagem do Século XIX 196. Work in progress de Sousândrade, O Guesa foi escrito entre
1868 e 1902, tendo o poeta ele próprio peregrinado pelo seu país e o mundo, e vivido em Nova
York durante a década de 70, como aliás Oiticica, passado um século. Não há na fita propriamen-
te um enredo em cada um dos três blocos de ação, mas o pouco que acontece seria da ordem de
uma imagem movente em tableaux dotados de uma só ação em cada parte, e uma possível ação
proposta para o conjunto do tríptico, esta sim, ainda mais enigmática que cada uma das três. Oiti-
cica recusava o rótulo de artista plástico, e podemos verificar o que se mobiliza de um conjunto
aberto de diferentes artes em cada obra. Tentaremos mostrar o quanto a parte do cinema participa
vivamente de Agripina, para além da mudez das diferentes críticas (arte, cinema, literatura etc.),
já que até hoje nenhuma chegou a ingressar no terreno da análise fílmica, permanecendo só no
comentário simpático e/ou metafísico, sob a alegação pouco sustentável de que se trataria de uma
obra inconclusa — ao lado, diga-se, de um conjunto maior de obras inconclusas analisadas. Sua
presença incontornável em inúmeras mostras do artista nas últimas décadas — projeção contínua
em loopings, mais parecendo takes reunidos ao acaso — indica que a fita vem silenciosamente
aludindo a alguma gestação ignorada de sua estada nova-iorquina.
Figura unificadora destes míticos centros imperiais, a Agrippina histórica, mãe de Nero,
tiranizadora de tiranos, femme fatale em mais de um sentido, no 1º movimento desse tríptico
circula como alma penada por uma Roma transfigurada na paisagem neoclássica de Wall Street,
como em visitação metafísica à Bolsa de Valores. No 2º movimento, Agrippina saltaria dos tem-
pos romanos para os daquela Manhattan contemporânea. Se na 1ª parte sua figura solene e algo
funesta, em face daqueles paredões abissais, se deixava conduzir por um tipo latino de discreto
garbo (mero chofer, ou seria Sousândrade mesmo, em cicerone; talvez seu personagem, o Gue-
sa?), na 2ª parte ela circulará desnorteada. Vestida como a baliza que, em festejos públicos, guia o
desfile pelas ruas à frente da banda, aqui ao contrário, num desalento nada acrobático, extravia-se
num mesmo ponto, vagueando pelo cruzamento — dir-se-ia que perdeu de vista os seguidores.
196
-Ver: Sousândrade, Joaquim de.
“Canto Décimo (1873-188...)”, O Guesa. (pref. Augusto de Campos) São Paulo: Annablume (Sêlo Demônio Negro), 2009, pp.
202-288. “The Wall Street Inferno (from O Guesa Errante)” (trad. Robert E. Brown) in: Poems for the millenium — The University of
California Book of Romantic & Postromantic Poetry, vol. 3. Berkeley: University of California Press, 2009, pp. 655-663.
Perdida, como se esperasse acasos nesse zanzar, um ir e vir horizontal na calçada, pareceria mes-
mo fazer o trottoir na esquina da metrópole: seu corpo deixa o espectro tirânico original para se
deixar tiranizar pela interação de uma lógica, por assim dizer, desenhada na circulação urbana ali
designada.
Da anterior eminência tirânica à banalidade do trottoir, se translada a blonde de Roma a Ma-
nhattan. Estamos ainda, em todo caso, no Império. No império americano sempre, se tomamos
a encenação hierática do começo como momento igualmente pop, num sentido ampliado para
a indústria hollywoodiana, a blonde star de cinema, “Vênus vulgar”, a mulher reificada como
figura máxima dos mass media, o fator de sedução de que fala Haroldo de Campos, então amigo
e interlocutor de HO, ao versificar Marilyn Monroe no seu work in progress, já editado em parte
nos anos 60, Galáxias. O poeta concretista tomava a figura de Marilyn, igualmente de grande
presença no romance PanAmérica (1967) de José Agrippino de Paula, relato pop lembrado como
precursor do Tropicalismo. Neste romance plástico de Agrippino — ressonância inevitável com
o argumento de HO — um narrador vive os EUA de Hollywood como se numa superação onírica
do fetiche que acomete a população global; sintomático, em obra coetânea e constelada não só a
este trabalho de Haroldo como, também naquele mesmo ano, ao lançamento de Terra em Transe,
de Glauber Rocha, para não falarmos ainda, por outro viés, d’A sociedade do espetáculo, de Guy
Debord — obras de 1967 com as quais configuraria fortes relações de contraste substancial.
Marilyn mesmo possui aparições notáveis nas calçadas de Manhattan para além das saias
alçadas no vento soprado pelo respiradouro do metrô. Já em Páginas da vida (O. Henry’s Full
House, 1952) ela faz uma ponta brilhante como uma prostituta na esquina, recatadamente esfu-
ziante ao acolher, como se a um grande conhecido, a abordagem pretensiosa dum vagabundo
(Charles Laughton), sob o olhar do guarda em patrulha. A figura metropolitana mítica e mundana
na tradição dramática ocidental de personagens-prostituta exprime o caráter daquela vida subju-
gando-se à função de troca mercadológica em metáfora crítica da vida moderna. Vinte anos antes
(não seria vinte anos depois?) dessa Vênus Vulgar feita por Cristiny Nazareth, que encontramos
na Wall Street de 1972, esta foi precedida por dois ou três anos pelas de Helena Ignez, que criou
figuras bastante aproximáveis em filmes de Rogério Sganzerla, Mulher de Todos (1969), e so-
bretudo Copacabana mon amour (1970). Nesse último, a blonde-ícone do moderno cinema de
vanguarda brasileiro faz uma profissional do trottoir em esquinas de Copacabana. O ideal
feminino nestas vênus de celulóide, entre o sublime e o vulgar, o mito e o real, o empostado e o
espontâneo, o ideal e o sensual, o transcendido e o mundano, de algum modo se faz presente nesta
Agripina-Cristiny de Oiticica. Sua matriz mais próxima vem das “ivamps” de Ivan Cardoso, que
desde Nosferato no Brasil (1971) encarnavam essa dualidade de garotas da turminha do convívio
carioca e pin-ups auráticas da ribalta 197, que Hélio Oiticica relê por sua óptica de arte-vida.
Essa blonde Agripina-Cristiny do nosso filme-tríptico, na 3ª parte se eclipsará. Mesmo assim
197
Cf.: Machado Jr., Rubens; Campos,
Marina da Costa. “Protagonismos experimentais femininos no surto superoitista dos anos 1970” in: Holanda, Karla; Tedesco,
Marina. (orgs.) Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017.
talvez ainda nos guie, magnetize nosso olhar. É como se estivéssemos diante de um seu possível
vislumbre seu, sem que a vislumbrássemos no entanto? Sua tirania não mais precisaria corpori-
ficar-se, cedendo lugar a um jogo de dados, porventura metafórico do circunstante espírito espe-
culativo da Stock Exchange, atividade local, a potência financeira transfigurada em seu caráter
essencial, nova síntese corporificada da tiranizadora de tiranos? Para tanto, a paisagem vertical de
Wall Street é trabalhada num entrecruzar totêmico que afirma uma nova ordem cosmológica par-
ticular. As circunvoluções da câmera não deixam de se articular com a verticalidade monumental
dos prédios — o Flatiron Building raramente se afigurou tão fálico. Os dados são jogados a céu
aberto, sobre chapas de aço de algum canteiro de obras (subterrâneo quiçá, e como tal apenas
alusão no mais típico pleinairisme urbanoide superoitista) — no qual os jogadores não parecem
exatamente trabalhadores. Com o aspecto de migrantes latinos, como boa parte da mão de obra
nova-iorquina, mais parecem artistas que operários.
Modulam-se diferentemente o tom, o compasso e a temporalidade das três cenas. O timing
da primeira cena parece apresentar-nos os personagens tanto quanto a arquitetura de Manhattan.
Erguem-se de dentro de um automóvel, o condutor abre a porta, peremptório. Acompanhará Agri-
pina, que pouco antes alinhava-se aos arranha-céus, percorridos de modo comparável aos corpos
em movimentos panorâmicos verticais da câmera, enquadres fechados erigindo uma distinção
algo totêmica das figuras. Esse enxergar por verticais de corpo e edifícios vai estabelecendo uma
matriz de visibilidade importante ao longo do 1º Bloco, não indiferente para a apreciação dos
Blocos seguintes. Uma primeira consequência desse olhar seria certa distinção mais isolada dos
personagens, que resistiria também nos restantes Blocos. Há nesta sugestiva matriz um compo-
nente conjecturável, hipotético de Nova York. Os primeiros movimentos do filme alternam-se em
verticais entre Agripina e arranha-céus, começando pela igreja que fecha em arremate a perspec-
tiva da rua da parede, Wall Street, pela torre neogótica da Trinity Church, Catedral da Trindade,
das igrejas mais antigas e ricas dos EUA, ponto culminante de Manhattan até meados do Século
XIX, aqui massa fuliginosa integrada à refulgente massa de concreto nova-iorquina. Esta sim-
biose de torres modernas com a celeste vocação ascensional da torre gótica, o histórico arquétipo
da arquitetura de elevação vertical, resquício aqui pontuado na paisagem quase como ruína ao
pé dos arranha-céus, sementes caducas de um porvir herético, topos que se dissemina em ima-
ginário mais amplo de Nova York, perpassando o cinema. Este topos metagótico de Manhattan
retomou-se nas caricatas igrejinhas escuras e acanhadas junto aos calcanhares dos sobrepujantes
skyscrapers cenográficos, paisagem art déco do Metropolis (1926), de Fritz Lang, que concebera
sua ficção após visita à cidade.
Nos caminhos verticais do olhar pedestre, Hélio desenha o skyline abissal da metrópole,
cujas ruas demarcam-se desde o alto por vertiginosas nesgas de céu, rasgadas em agudos triângu-
los invertidos, imprimindo recortes de ofuscante grafismo, fazendo pender pontiagudas ao chão
como estalagmites diáfanas, largos relâmpagos paralisados. Irmanada ao abismo luminoso surge
não mais seu inverso escuro, o contratipo da torre neogótica, mas Agripina ereta, quase estática,
percorrida pela câmera como um recorte de forma humana que responde aos recortes e contra-
-recortes do monumental que espera integrar — a Wall Street que percorrerá entre abismada e
impávida, hierática. Compenetrada de alguma transcendência move-se, como entidade solene e
majestática, conduzindo-se por escadarias. A força gráfica da cenografia, calcada nas fachadas
neoclássicas — em lugar de palácios e panteões romanos, edificações bancárias assemelhadas
— é construída pela câmera que percorre conjunções de arquitraves e capitéis, severas vibrações
no paralelismo horizontal de degraus, conjugados às ranhuras verticais no fuste das colunas. Tais
enquadres conduzem nosso olhar pela força tectônica das estruturas, afirmativas duma ordem
ancestral reativada. Não há como não lembrar alguma sugestão remota de figurino hollywoodia-
no, populares filmes históricos italianos, chanchada carioca ou desfile carnavalesco. Rediviva,
um século depois, Agripina é Roma-Manhattan. E algo mais: como corpos sem vida, ela e seu
condutor figuram algo que aquele Espaço Público dominado por atividade financeira parece se-
cretamente almejar como se tais corpos fossem mesmo as almas inusitadas porém legítimas deste
mundo pétreo. O cavalheiro latino que a acompanha nada tem dos Césares que ela encantou
avassaladoramente. Nem de Nero, tirano-mor incendiário de Roma, que, além de filho, foi seu
projeto “demoníaco” de poder — e finalmente assassino matricida, criatura superando o criador,
sua Optima mater: “a melhor mãe”, como ele a chamava. Nem súdito nem senhor, esse acompa-
nhante de Agripina timbra aqui mais como um cândido inca, ou atual imigração contingente ao
Gigante do Norte, conveniente e discretíssimo migrante, novos guesas errantes restituídos desde
o poema visionário.
As figuras aqui delineadas por Hélio, no que toca ao aspecto arte-vida, central em seu percur-
so, a imersão no ambiente norte-americano, seus projetos recentes, o lugar do cinema entre eles,
fazem-nos repensar a inscrição deste filme num arco pouco linear, que Celso Favaretto expôs em
cada fase desde o concretismo, o caminho que leva o artista da bidimensionalidade ao salto no
espaço  198. Rodrigo Naves observa entretanto naquela espacialização crescente tendência pro-
gressiva à “intimidade do mundo ou do corpo” em “dinâmica formal introvertida”, interiorização
problemática dum “sensorialismo radical”, quando seus contemporâneos voltavam-se ao embate,
estranhamento com o espaço público 199; essa paradoxal “supressão de toda alteridade” referia-se,
claro, ao HO pré-NY. O crítico sugere-nos ainda compreender sua progressão arte-vida enquanto
resposta histórica, mais de viés político que estético 200.
No quadro de figuras do filme, seus atores-personagem implicam repercussão simbólica:
Cristiny Nazareth 201 (Agripina) era uma das “ivamps” dos Super-8 de Ivan Cardoso, a série Quo-
198 A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo:
Edusp, 1992.
199 A forma difícil. São Paulo: Ática, 1996,
pp. 243-246.
200 O vento e o moinho. São Paulo:
Companhia das letras, 2007, p. 208.
201 Produzirá e dirigirá nos EUA o filme
tidianas Kodak (Rio, 1970-1975), a primeira presa de Nosferato no Brasil (1971), e logo primeira
vampira, vítima-vitimadora em ritmo de “terrir”, ironia de Ivan reativando a Chanchada carioca
em tempo de trevas; o paraibano Antonio Dias (o jogador de óculos), artista de projeção compará-
vel à de Hélio, pioneiro do pop no Brasil e autor da série em Super-8 The Illustration of Art – I-X
(1970-1980); e Mario Montez (o outro jogador), nome artístico do porto-riquenho Rene Rivera,
criatura do underground local, mítico travestimento performático da homônima atriz dominicana
atuante em Hollywood, alcunhada “O Ciclone Caribenho” e “A Rainha do Technicolor” 202.
Sganzerla e Bressane, lembramos, assim como Neville, Miguel Rio Branco e Jorge Mourão,
rodaram também alguns títulos em NY nessa época  203; quando a barra pesou, não foi só para a
esquerda radical, uma diáspora de artistas aconteceu. Além do cenário nova-iorquino de Agripina
algo da sua mise en scène, da fisionomia e gestualidade presentes naquelas figuras que vemos,
não destoa desse continuum formidável de situações que esses poucos realizadores brasileiros
legaram ao contemporâneo imaginário nacional. São ademais figuras de um espectro latino car-
regado, a começar dos traços nordestinos, tanto do Cavalheiro que no início acompanha Agripina
(David Starfish seria mesmo o seu nome?), como no fim o Antonio Dias. A presença latina se
potencializa com Mario Montez perfazendo um leque de alteridades nova-iorquinas. Também
opera uma simbiose da participação masculina-feminina da personagem título, espécie de síntese
escancarada desabrochando atributos complementares dessas diversas aparições latinas. A este
lado moreno se junta a sobranceira loura de Cristiny. Aliás, o que fazem mesmo esses tipos tão
marcados neste cenário nova-iorquino? Para cada bloco de ação mudam não apenas os persona-
gens presentes mas o estatuto da ação e os parâmetros da mise en scène. Estamos sempre em Ma-
nhattan, a céu aberto, as ruas de Wall Street. A dupla latina Dias & Montez, o Artista e a Travesti,
personagens do último bloco, não aparecem antes. O mesmo acontece com o Cavalheiro latino
do primeiro bloco, que não ressurge. Cristiny, ao contrário, domina o primeiro e o segundo bloco,
ausentando-se do último, deixando-o aos artistas latinos. São todos tipos curiosos, dominam a
cena sem manifestar qualquer curiosidade com o entorno, com o qual não interagem, imbuídos
de sua mínima atividade, parecem nada buscar do convívio dos poucos circunstantes ou de seus
eventuais afazeres. A exceção fica por conta da postura de Agripina no segundo bloco, solitária
e altiva, perambula por uma larga esquina sugerindo alguma disponibilidade, num ir e vir
ligeiramente sôfrego ao vento.
Tendo estudado cinema a sério na estada nova-iorquina, por esta mesma época Hélio andou

A Visit to Eros Volusia (1980) sobre a célebre dançarina moderna e coreógrafa carioca, presença morena que brilha em pontas
nos filmes tardios de Rogério Sganzerla, retiradas dos originais filmados por Orson Welles no Brasil.
202 Mario atuou em várias peças, perfor-
mances e filmes do underground nova-iorquino realizados desde os anos 1960 por Andy Warhol e Jack Smith. Maria estrelou fitas
como Venus de la Selva (1941), La Salvaje Blanca (1943), La Reina Cobra (1944), La Reina del Nilo (1945), Atlântida,
O Continente Perdido (1949), La Donna del Corsario (1951), City of Violence (1951).
203 Ver: Duarte, Theo Costa. “Lágrima-
-Pantera, a míssil: cinema Subterrânia”, Ars v.15 nº30, São Paulo, PPGAV/ECA-USP, 2017, pp. 181-205. Jaremtchuk, Dária Gorete.
« Horizon de l’exode : l’insertion d’artiste brésilien à New York », Brésil(s). Sciences humaines et sociales, nº5 – Le coup d’État militaire
50 ans après. Paris, mai 2014, pp. 33-53.
dizendo que as virtudes da montagem não lhe interessavam. Diremos no entanto que o seu tríp-
tico articula-se por montagem. Não tanto entre planos mas entre blocos. Há vínculo entre os três
blocos de ação, se os rememoramos em seus elementos de unidade própria, delineando diálogo
fundamental das sínteses formais de cada um: o sentido resultante do tríptico muito se conjuga-
ria de suas similitudes e diferenças. O modo pelo qual se evitam cortes e decupagem em favor
do plano longo, composto, articulado a movimentos de câmera, indicam afinidade não só com o
superoitismo experimental, mas o bazinismo extremado da produtora Belair de Bressane, Sgan-
zerla e Helena Ignez, o experimental e o moderno dos Marginais, como também há proximidades
com boa parte dos cinemanovistas. Em filmes de Bressane como O anjo nasceu (1969) e O Rei
do Baralho (1973) se desenvolve uma sintaxe que foi pensada numa primeira recepção como

montagem não entre planos mas entre sequências (ou plano-sequências), como se elas fossem
concebidas para se associar enquanto cartas de um jogo de baralho, em liberdade paratática, um
pouco no sentido proposto por Theodor Adorno 204.
O Cinema Novo, epicentro estético no quadro da cinematografia brasileira, traz com desígnio
vanguardista a radicalidade do modernismo que havia transformado a literatura, música e artes
plásticas desde 1922. O teatro e a arquitetura modernizam-se duas ou três décadas depois, jun-
tando-se em seguida a canção popular, com a bossa nova, só depois o cinema, no início dos anos
1960. Por dois decênios pelo menos, fortes reverberações até hoje, a invenção de formas cine-
matográficas no país liga-se ou confronta-se com este movimento, que teve na Estética da Fome
seu manifesto principal. Três ou quatro fases marcaram seu desenvolvimento estético, sua relação
com a sociedade: o Golpe de 64, seu recrudescimento repressivo no final de 1968, e a lenta aber-
tura política a partir de meados dos anos 1970. O pós-68 dos cinemanovistas cinde-se, tenta com-
binar duas tendências principais com a proposta Mercado é Cultura, justificando o apoio à estatal
Embrafilme, e Estética do Sonho (1971), em que Glauber atualiza e tenta contemplar sobrevidas
daquele radicalismo dentro das adversidades repressivas, exílio e limites da via estatal, dialogan-
do com o tropicalismo (Buñuel no México inicia para Glauber o cinema tropicalista), surrealismo
(pensemos também no manifesto Breton-Trotski), contracultura e estéticas tardo-sessentistas. O
pós-68 cinemanovista fermenta ainda outra dissidência crítica, experimental e vanguardista, cha-
mada depois Cinema Marginal, confundido às vezes com o movimento tropicalista, seu estrondo
artístico, musical e teatral em eclosão simultânea. O superoitismo experimental começa em 1970
com boa participação de artistas plásticos, chegando com vitalidade aos inícios da década seguin-
te, em multiplicidade estética dialogante com tradições diversas, entretanto mais aproximável ao
cinema marginal e às estéticas da fome e do sonho.
O singular em Agripina se constrói pelo timing entre corpos e espaço. No contraste entre a
matriz vertical dominante nos movimentos da câmera no 1º Bloco, e a horizontal do 2º Bloco,
levando-nos de personagem hierático a mundano, do mítico ao ocasional, de espírito pétreo a
204 Cf.: Adorno, T. W. “Parataxis – a
lírica tardia de Hölderlin”, Notas de literatura. Rio: Tempo Brasileiro, 1973. pp. 73-122. Machado Jr., R. “Observação sobre O anjo
nasceu”, Cine-Olho n°5/6, São Paulo, 1979, pp. 52-53. Mesquita, Fernando. “A solidão lunar”, ibidem, pp. 62-74.
presença carnal, da transcendência ao acaso, de Roma a Manhattan. Nesse diferir, a ressonância
do termo “bloco” com seu sentido próprio dos desfiles de Carnaval não parece aqui destoar, se
pensamos na liberdade ou na autonomia de funcionamento dos grupos de foliões entre si. Cada
Bloco de Agripina não configuraria exatamente uma síntese, embora algo de sintético traga, seria
mais uma qualidade do esquema. Mais que isso, um esquema problemático, espécie de metaes-
quema que se reinventa distante do concretismo originário. Essa quase forma, em paradoxal
coagulação de forma acabada, metaesquema invertido, pós-neoconcreto, ao figurar as coisas do
mundo, observáveis e constituídas no real, trabalha com Blocos articulantes gerando outra uni-
dade, apresentando relações dialéticas e processos de outro equilíbrio. O tríptico reconfigura seus
elementos levando-os “até ao seu oposto e induz o retorno à sua configuração inicial, estabele-
cendo um ciclo sem fim” 205.
No caráter desse metaesquema construído em tableaux moventes se revelam apenas alusões
a algo, não seu convencional desenvolver-se narrativo; um arremedo determinado da cena, não
sua trama desenvolvida: só interessará certo conjugar-se de um momento da ação, seu aceno de
primeiro esboço, enredo que se telegrafa por pinceladas iniciais. É algo que já se patenteava,
embora distintamente, nas Quotidianas Kodak de Ivan Cardoso, aliás uma constante rastreável
em todo o superoitismo, porventura uma de suas características mais amadurecidas e diáfanas —
a arte do arremedo como alusão. Sua origem remonta à notória inclinação no cinema nacional
ciente de seus limites, o carioca em particular, a tendência ao pragmatismo e à irrisão, de que a
Chanchada é desde os anos 30 a principal inventora, como vimos; pelo menos até sua reinterpre-
tação pel’O bandido da luz vermelha (1968). Nessa tradição falar em arremedo supõe incorporar
à elaboração artística mesmo o sentido mais pejorativo, seja nos necessários filmecos de que
falam Glauber e Sganzerla, feios e pobres mas ricos esteticamente; seja pelo protominimalismo
modernista do telegráfico e do telefonema de Oswald de Andrade; seja no viés identitário da pre-
guiça explorado sobretudo na literatura, em Macunaíma, na figura do caipira que lhe antecede e
sobrevive. O arremedo esquemático de Hélio mobilizaria com rigor construtivo um inventário de
formas dispersas em larga gestação histórica na cultura brasileira.
Modelos antigos imbricam-se na cidade moderna, a pólis grega e a civitas romana: conceito
dinâmico de cidade, a Roma mobilis expandiu-se almejando concórdia estratégica entre diferen-
tes, que se pactuam na cidade por um futuro, sem as matrizes étnicas da primeira, que faz pactuar
pelo passado helênico 206. Esta NY de HO, como moderna pólis romana, se baliza pela escritura
de uma câmera. Assim como os desígnios expressos nos corpos, digamos que as solicitações
gestálticas presentes no espaço urbano implicam coordenadas gestuais do nosso olhar, incor-
poradas no movimento da câmera, dotando o filme de coreografia própria. Principiamos pela
loquacidade visual das varreduras totêmicas, a verticalidade do olhar solicitada no 1º Bloco, em
205 Conduru, Roberto. “Metaesquema,
metaforma, metaobra”, 17° Encontro Nacional da ANPAP, 2008, Florianópolis, p. 687.
206 Ver: Cacciari, Massimo. A cidade.
[2004] Amadora: Gustavo Gili, 2010, pp. 9-23.
Roma — onde originalmente verticalidades serviam para se horizontalizarem espirais narrativas,
Coluna de Trajano. Impõe-se depois, no 2º Bloco, o deslocamento horizontal do passeio público,
liberdade do ir-e-vir em mesmo nível, fundante da metrópole moderna, vertida aqui numa amarra
quimérica de Manhattan. O acúmulo dos dois sistemas de registro até aqui dominantes extrapola-
-se, diversifica-se reativamente no 3º Bloco, numa arrematada simbiose. A verticalidade sucedida
pela horizontalidade do olhar acumulou-se em filigrana num quase sinal-da-cruz, já configurado
em meio ao 2º Bloco, quando alternam-se por instantes a dominante horizontal por novas verti-
cais que religam-nos espacialmente à Manhattan específica. Forma mais sintética que as contra-
postas antes, a novidade do 3º Bloco é um curvar-se combinado às matrizes anteriores propondo
circulações da câmera em ciclos que descrevem o jogar de dados na chapa de aço enferrujada. De
Roma a Manhattan sobrepunha-se em cruz um olhar esquematizado em prumos-planuras, aqui
finalmente articulado a redondas circunvoluções. A mesma cruz que, com o cristianismo, engoliu
aquela Roma, forjou a aliança que trouxe urbi et orbi por dois mil anos a sua civitas — a Roma
mobilis consagrando a união da Igreja com o Império, ou se quisermos, o “Império do mais além”
com o “Império do mais aqui”, da Urbe com o Orbe 207. Introduzida na abertura pela Trinity Chur-
ch a nova Agripina estadunidense, baliza dela própria, suplantou a romana balizada na inicial
verticalidade pós-gótica, depois alegoria da baliza líder-guia solitária da orquestração coletiva.
Sobreposta por um ir-e-vir moderno, agora esta Wall Street romanhattaniana dos primeiros dois
tableaux moventes se entrecruzariam com o terceiro, mas em ciclo infernal.
Em semelhante Roma ianque, como tirânica entidade antiga-contemporânea, essa Ultra-A-
grippina não se apresentará na cena final. Não é necessário que se apresente, foi suplantada em
suas atribuições. Aliás, apresentava-se já desterrada desde o 1º Bloco, espectro-do-além, ainda
que viçosa assombração cinematográfica, figuração transcendental, antes símbolo que alegoria;
ou no 2º, quando cai na vida e, libertando-se, submerge na circulação de quem se joga na me-
trópole, paradoxo do deslocar-se fazendo ponto, enjaulada na dissipação das ruas, antes alegoria
que símbolo — seu devir Agripina já tem algo de caduco a partir das aparições iniciais 208. Mas
persiste essa quintessência do imperialismo a que alude, e da colonização como seu jogo. Mesmo
no desterro, parece em busca do seu lugar. Persistirá ademais, no discurso autointerpretativo de
Hélio, povoando seus textos e entrevistas de atenção relativa ao local-universal, no seu modo de
tratar, sempre com alguma “ambivalência crítica” 209, o que o debate em curso, não só no Brasil,
vinha contemplando na atualização da conjuntura geopolítica e da oposição Periferia-Centro 210,
imperialismo e condição colonizada. Aqui se faz por braços de nova população de trabalhadores
207 “Roma es la ciudad donde Dios ha desposado la Iglesia con el Imperio, o si se quiere, el ‘Imperio del
más allá’ con el ‘Imperio del más acá’, la Urbe con el Orbe.” Ors, Eugenio d’. Mis ciudades. Madri: Libertarias,
1990, p. 130.
208 Desafio solicitado pela obra: futuros esforços aproximarem dela formulações de Walter Benjamin,
como a imagem dialética, a mônada e a alegoria, esta última em especial seguindo trilha aberta por Ismail
Xavier: Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
209 Oiticica, Hélio. “Brasil diarréia” [1973], Encontros. Rio: Azougue, 2009, pp.116-117.
210 Wallerstein, Immanuel. O Capitalismo histórico. [1983] São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 27.
ou artistas latinos de NY o jogo de dados como ritual imperioso — tirania transfigurada?
A caligrafia de Hélio descrevendo com a câmera-gesto a verticalidade do olhar articulada ao
circular envolvente das ruas poderia lembrar o percurso do enxergar forasteiro, de quem chega
à cidade grande e dá com a altura dos arranha-céus em meio às atrações rasteiras dos transeun-
tes. A sensibilidade pedestre do provinciano estatelado com essa imponência das alturas — que
parecem incólumes ao torvelinho da circulação terrena — está no clichê de incontáveis contre-
-plongées de arranha-céus. O caso popular de um caipira chegando a São Paulo, no contraplano
de Mazzaropi em close no Candinho (1953): o movimento de seus olhos girando em ansiedade
exorbitante face ao ruidoso tráfego e a altura que avulta naqueles prédios do Centro, como o do
emblemático Banespa (flagrante emulação do Empire State Building). No 3º Bloco de Agripina,
derivando dos blocos anteriores a construção do olhar pelo ângulo-movimento da câmera se es-
quematizará num timing diferente. Em ciclo contínuo, gestos circulares do nosso olhar indo de
um a outro jogador, o reiterado giro trocando de corpos reproduz-se indefinidamente, como se
especulasse no jogo do capital financeiro ali sediado. As reiteradas horizontais do 2º Bloco, nesse
3º resolvem-se no curso linear em círculo da câmera, multiplicado, descrevendo o gesto de lançar
dados; ele pareceria voltar por vezes em sentido inverso, proliferando, fazendo que lembremos
um entrelaçado de círculos perfazendo oitos deitados, sinal de infinito 211.
Articular tais círculos aos edifícios percorridos em sua alta extensão vertical traduz no filme
determinado localismo de Manhattan, “vanguarda da reprodução territorial”  212. Basta acompa-
nhar a história, tanto antes como depois do atentado às Torres Gêmeas  213. Traduzida artistica-
mente em livros como Bartleby, o escriturário: uma história de Wall Street (1853), de Herman
Melville, uma cultura urbana da edificação que o mundo financeiro produziu, se já está anunciada
em meados do século XIX, o arranha-céu propriamente dito só nascerá em Manhattan por etapas,
entre 1900-1910, corrida para o alto de que um primeiro arquétipo seria o Flatiron 214, desde então
emblemático de NY, no estilo Beaux-Arts, tardio neoclassicismo eclético refundindo influências
gregas e romanas com ideias renascentistas; contemporâneo do Theatro Municipal do Rio. No
seu conhecido estudo de Nova York, Rem Koolhaas nos explica que otimizando o custo do ter-
reno numa área da cidade, para além do controle do arquiteto, “o arranha-céu é o instrumento de
uma nova forma de urbanismo incognoscível. Apesar de sua solidez física, ele é o grande deses-

211 Nos créditos das Quotidianas Kodak, de Ivan Cardoso, um símbolo do oito deitado vem como “lo-
gomarca” especialmente criada por Óscar Ramos, acumulando referência ao infinito e à liberdade do supe-
roitismo.
212 Koolhaas, Rem. Nova York delirante. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p.115.
213 As “Torres Gêmeas constituem uma metáfora perfeita. Elas apontavam para aspirações ilimitadas;
anunciavam grandes feitos tecnológicos; eram um luzeiro para o mundo.” Wallerstein, Immanuel. “Os
Estados Unidos e o mundo: as Torres Gêmeas como metáfora”, Estudos Avançados vol.16 n°46, São Paulo,
IEA-USP, 2002, p.23.
214 “Em 1902, o edifício Flatiron é um modelo” do processo urbano em curso, por “sete anos ‘o
edifício mais famoso do mundo’, ele é o primeiro ícone” nesse ramo do “imóvel utópico”, em que a arte
de construir é esta elevação brutal rumo ao céu “de qualquer terreno que o incorporador consiga reunir”.
Koolhaas, op.cit., p.112.
tabilizador metropolitano: promete uma instabilidade programática perpétua”. 215
Com a multiplicação de círculos entrelaçados nesse 3º Bloco, ligados continuamente ao mo-
vimento vertical que busca a massa fálica dos arranha-céus, produz-se embaixo a acumulação dos
trajetos em roda descrevendo os jogadores. Como esquema dessa caligrafia memorável do olhar
desenhar-se-á cabalmente a completa genitália masculina em riste. Outros registros rodados por
Hélio na época, recentemente exibidos, confirmam seu interesse pela figura do Flatiron. A pes-
quisa da silhueta por vários pontos-de-vista permite diferenciar o apuro desse ângulo escolhido
em Agripina, seu escorço delineando melhor a figura da ereção peniana sugere-nos determinada
latência simbólica freudiana do fálico enquanto signo, e reforça o que o circuito do olhar fílmico
induzia em sua escritura. Se há rigor compositivo nesta construção fálica filigranada, tratamos
de um retour-à-l’ordre que pode ser criticado ou glosado como um desenlace despirocado sob a
égide da piroca. O fálico como lei, princípio ordenador que integra e comanda um universo dado,
propõe uma cosmologia singular deste jogo a céu aberto, cosmos ungido de enigmática signifi-
cação política.
Mas o que, afinal, restaria de Agrippina ao cabo do filme? O que significaria aqui, e como
dialogaria com a personagem original? Que questões podem ser postas e que formulação reque-
rem? Se esse esquema final se aparenta ao que se insinuava nos anteriores do tríptico, é como se
víssemos por olhos agrippinianos a ação de seus sucessores? Sua presença tirânica viu-se incor-
porada na nova situação? Que tirania é essa que se deixa tiranizar, depois se deixa substituir? Es-
pécie de esquema decorrente dos dois Blocos anteriores, configurados como tese e antítese desta
conseguida síntese? Ou sua ausência final livra-nos por completo da forma tirânica, como se nos
libertasse de um jugo histórico por intermédio de um novo jogo especulativo? A irrupção do mo-
vimento circular como invenção diante de uma tradição de verticais–horizontais não contraria o
que nesta vinha se estabelecendo? Conjugar à imponência da reta círculos derivantes sugere-nos,
como nas metáforas reprodutoras (da vida, do capital, do poder), uma reescrita da ordem tirânica
em termos novos, de superação, emancipatórios — ou simplesmente completam a compreensão
de um único processo integrado, inescapável? A ruptura substancial entre os Blocos de Roma e
Manhattan contempla a Agripina que depois se transfigura numa segunda ruptura neste 3º Bloco,
negação da negação; superação da superação? Se no 1º Bloco Agripina é Roma e no 2º Manhattan,
no 3º é ela mesma, uma Roma-Manhattan como pulverização, sublimação da tirania imperialista?
Que significação propor ao jogar dados, gesto arremate-arremedo: quê auguraria este Alea jacta
est? 216 Inscrito no “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, da escrita poética de Mallarmé,
215 “A partir das demandas supostamente insaciáveis dos ‘negócios’ e do fato de que Manhattan é uma
ilha (...) com rios de ambos os lados proibindo uma expansão lateral”, é como se a cidade não tivesse esco-
lha a não ser esse erigir-se inarredável rumo ao alto: “apenas o arranha-céu oferece aos negócios os amplos
espaços de um faroeste criado pelo homem, uma fronteira no céu.” Koolhaas, op.cit., pp.109-111.
216 “Alea jacta est: O dado foi lançado; a sorte está lançada, Júlio César (Caius Julius Caesar), 100-44 A.C. Quando César,
em 10/1/49 A.C., cruzou com seu exército o rio Rubicão, perto de Ravena (norte da Itália), teria proferido as palavras gregas
“anerriphtho kybos”. Essa era, como narram seus biógrafos, uma frase comum para os adeptos dos jogos de azar. A referência
escrita mais antiga é encontrada num fragmento da comédia do poeta Menandro (c. 341-291 A.C.). Ao contrário da tradução do
latim “Alea jacta est”, o original grego não exprime nenhuma decisão, mas antes a disposição para uma façanha. Por isso se en-
a ambiguidade atroz do jogo de dados em Wall Street, entre o fazer artístico e o fazer financeiro
pode contar com alguma significação política? Diante disso o que fazer? O que mesmo é, neste
quadro, o próprio fazer? E que sorte poderá ter a arte dos latino-americanos 217 nesse logradouro
de men at work, chapa de aço na rua em obras, inesperado Magic Square? Praça pública pós-
-provincial ou metropolitana, pedestal de bolsas de valores cativos ou futuros alicerces escrotais
virtualizando libertações, criações novas? Até que ponto poderíamos ignorar as determinações
projetuais “heliocêntricas”, auto-interpretações de Hélio, que ao não ter exibido a obra em vida
reforçaria a assertiva de obra inacabada?
Tal como vem sendo exibido o filme sugere sentidos históricos exigentes, dialoga com a vida
e a obra do artista; carrega reverberações que não podem calar diante da experiência que temos da
obra, e da liberdade necessária da crítica imanente. Agripina é insinuante em múltiplas direções.
Tal imersão no universo estadunidense corresponde a um recalque histórico ao qual cinema, arte,
cultura brasileira intensificavam atenções naqueles anos de crispação conjuntural. Seria preciso
aproximar desta linha de tensão o paulista José Agrippino de Paula, que no romance PanAméri-
ca (1967, capa de Antonio Dias) trazia, em curiosa narrativa pop, uma viagem pelo imaginário
mundano da indústria cultural estadunidense, como num desrecalque “onírico” da subjetividade
encantada por Hollywood; incorpore-se aqui a ambivalência sessentista da capitulação ao can-
to-da-sereia imperialista, no livro subvertida em revelação estética. Seu romance anterior, Lugar
público (1965), era sintomático da atração pelo mergulho nas neuroses da vida urbana que se mo-
dernizava ruidosamente no país. Recalcava-se de fato nas criações artísticas libertárias, justo pela
modernização conservadora que trazia, uma nova cidade consumista, sobretudo depois do Golpe
de 64, já atravessada pelos media, tráfego, poluição. O Cinema Novo resistiu em penetrar neste
universo, assim como a nossa melhor música resistiu ao pop e ao rock. Caso contrário não expli-
camos a explosão musical do Tropicalismo, bem como a urbe convulsa do Cinema Marginal, ou
a irônica filigrana do espaço público no experimentalismo superoitista — dissonantes todos com
a ordem posta, dando voz a certa vivência descalibrada do Progresso 218.
Em seu experimento cosmopolita, em suas e ancoragens latino-americanas ou brasileiras,
Agripina traz algo de comparável a Glauber em seu terceiro-mundismo, seu filmar no desterro —
contra às vezes a expressão latina mais correta: “Alea jacta esto” (O dado deve ser lançado). Desde que nenhum general romano
poderia trazer um exército em solo italiano, o fato de César cruzar o Rubicão foi visto como um ataque e desencadeou uma guer-
ra civil, que César, no entanto, decidiu, um ano depois, com uma vitória sobre o seu rival Pompeu (106-48 A.C.).” Pöppelmann,
Christa. Dicionário de máximas e expressões em latim. [2008] tr. Ciro Mioranza, São Paulo: Escala, 2010, p. 12.
217 Posteriormente Hélio disse que a arte latino-americana poderia ser identificada em duas partes: “(a)
a arte colonizada (na qual eu incluo a assim chamada arte primitiva e o pseudo-expressionismo), uma dilui-
ção total de modelos europeus, com uma implicação indígena, como a do artista regional; (b) a tentativa de
estabelecer um tipo de experimentação que se relaciona com as tendências da arquitetura e arte experimental
de vanguarda, com perspectivas progressivas: ela coloca problemas e é mais ambiciosa (penso em algumas
experiências da arte mexicana, argentina e brasileira).” Oiticica, Hélio. “Entrevista para Journal” [1979], En-
contros. Rio: Azougue, 2009, p. 222.
218 Ver meus textos: “Das vagas de experimentação desde o Tropicalismo: Cinema e Crítica” in: Ikeda,
M.; Lima, D. (orgs.) Cinema de garagem 2014. Rio: Wset, 2014, pp. 79-93. “As representações urbanas: Eclip-
ses e desrecalques do Brasil urbano em filmes dos anos 1960” in: Gabrielan, C.; Hallak, F.; Hallak, R. (orgs.)
CineOP - 8ª Mostra de Cinema de Ouro Preto: cinema patrimônio. Belo Horizonte: Universo, 2013, pp. 46-49.
Der leone have sept cabeças (1970), realizado no Congo, e Claro! (1974), em Roma. Este último,
tratando a cidade em que se expatriava, especula num filme de anotações, como em diário do
exílio, sobre o cenário contemporâneo do antigo Centro do Império, perscrutando em sua ruína
histórica alguma luz emancipatória para o enfrentamento dos reveses políticos e tarefas do degre-
do. Seu filme mais próximo do manifesto que escrevera em 1971, Estética do Sonho, Claro! co-
necta o período glauberiano do “Cinema Tricontinental” aos seus filmes posteriores. Uma sessão
única com o filme de Hélio nos atiçaria o sentimento dessa força comum de criações que parecem
lidar em seu tempo, e de angulações periféricas, com semelhante gravitação em torno dos polos
de progresso, uma recalcada e (re)motivada atração da metrópole. O contraponto paradigmático
dessas manifestações na história do cinema teria que recuar meio século, de encontro a Somente
as horas (Rien que les heures, 1926), em que o brasileiro Alberto Cavalcanti em Paris, reverte

em vivência difícil a decantada aura da Cidade Luz, desmitificada junto à visão simultânea dos
excluídos, os párias da pulsação metropolitana. Nessa obra seminal do cinema de vanguarda, ex-
prime-se “instintivamente”, segundo Cavalcanti, a percepção decepcionada de um olhar migrante
porventura inflacionado pela promessa cosmopolita.
Tal simultaneísmo contraditório de Cavalcanti soará antípoda ao cosmopolitismo quimérico
praticado no seu país em contemporâneas chef d’oeuvres locais, como São Paulo, a sinfonia da
metrópole (1929), de Adalberto Kemeny e Rodolfo Rex Lustig 219, calcada na Berlim de Walther

Ruttmann; ou Fragmentos da vida (1929), em que José Medina adapta conto da Manhattan de
O. Henry. Em estilos consolidados, lapidados na prática local, os parâmetros nova-iorquinos ou
berlinenses do entreguerras são adotados sem reconhecimento algum do viés ilusório desse gesto,
mas com entusiasmo característico do humor eufórico. E o fervor desta idealidade metropolitana
engendra uma cidade que mal repara em seus aspectos mais específicos, sem o tempo de destilar
qualquer vivência de espaços mal inaugurados: urbe ideológica — revelando porém aspiração
verdadeira. Metrópole essa que atraía desde os confins da Amazônia um Macunaíma, o herói sem
nenhum caráter (1928), da literatura modernista de Mário de Andrade; ou o caipira representado
por Mazzaropi em Candinho, adaptado do Cândido de Voltaire por Abílio Pereira de Almeida.
A peregrinação desses anti-heróis brasileiros ganha um desenvolvimento multifacetado no cine-
ma, chegando à apoteótica romaria desmilinguida de Orgia, ou o homem que deu cria (1970), de
João Silvério Trevisan, e às raias do sublime nos filmes virulentos de Ozualdo Candeias como
A Opção, ou as rosas da estrada (1981), ZéZero (1974) e O Candinho (1976) — esse último ho-
menageando Mazzaropi em glosa corroída. Todos esses personagens sugados pela gravitação da
metrópole, seu mito e economia, no caso São Paulo, mesmo quando nela chegam, de fato, não
chegam. O que dela esperam esvanece. É bem verdade que não os inspirou a nenhum deles a
mesma formação douta do antigo errante de Voltaire, ou de Sousândrade.

219 Ver “Cinema alemão e sinfonias urbanas do entreguerras” in: Almeida, Jorge de; Bader, Wolfgang.
(orgs.) Pensamento Alemão no Século XX, vol. III: Grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. São Paulo:
Cosac Naify; Goethe Institut, 2013.
A aventura fracassada de uma Hollywood brasileira, que trouxe Cavalcanti ao Brasil como
produtor na Vera Cruz, veio gerar duas obras suas prospectivas de um folclore urbano paulistano,
Simão, o caolho (1952) e Mulher de verdade (1954), elogiadas por Sganzerla. Gerou também O
canto do mar (1953), que têm, por sua vez, fonte de inspiração na mesma história sua, de atração

pela metrópole que sofre a mais distante província, para além do horizonte do mar, no En Rade
(1927), que filmou na França logo após Somente as horas. Semelhante argumento sobre o mal-es-
tar da vida periférica faminta de oportunidades, pode conectar estas películas à estreia de Glau-
ber, O Pátio (1959), seu casal de namorados prostrado em náusea diante do oceano. Desterrados
no meio do nada, numa bonança do fim do mundo, como em Limite (1931), de Mario Peixoto,
se cotejam a outros tipos de párias, os desterrados orbitários da metrópole, seja no abandono da
distância insondável, ou morando em sua periferia, mesmo em seu próprio centro. Juntamente ao
discurso ideológico da Metrópole teremos sua ausência, sua negação, ou mesmo seu lado obscu-
ro, as refutações diversas daquela sua mensagem de civilidade.
Entre as diversas promessas de sentido sugeridas por uma coesão possível das várias linhas
de força que vejo atravessarem a fita, amarrando-lhe determinada unidade, está algum cintilar
reminiscente das lufadas de vento nos cabelos e saia de Agripina. Não a romana, rediviva das ca-
tacumbas abissais entre skyscrapers descomunais, claro: A Agripina contemporânea, aquela em
busca dum séquito de que se desprendeu, porventura desgarrou-se por avançar demais, e do qual
parece esperar algum sinal, balizada em sua esquina ao pé do Flatiron, colossal Ferro-de-Passar.
É a Agripina-Baliza, que se disponibiliza enquanto tal, oferecida como baliza avulsa aos quiçá
remanescentes, aos ausentados circunstantes. Talvez por figurar ao centro do tríptico dum lugar
que por sua vez se recolhe neste atributo excelso de epicentro galvanizador do globo terrestre.
Esta Agripina-Baliza difere nos atributos da morta-viva romana que a precede; bem como daque-
les atributos dxs sucessorxs, ensimesmadxs jogadorxs dobradxs à lúdica repetição, entregues à
sua lógica interna e alheixs às circunstâncias do espaço público ele mesmo convertido às balizas
simbólicas do capital na figura impávida e antipática do arranha-céu. O olhar da câmera instaura
e constitui balizas para a nossa visão, nossa percepção daquela ordenação cosmológica singular.
Estas balizas se constituem da interação dos corpos àquele espaço-dado. Os corpos em sua pulsa-
ção vital integram a mesma lógica oferecida pelo espaço-dado, sendo por ele como que açodados,
mais do que possam regê-lo ou comandá-lo, como certas sugestões originais. Pau mandado de
uma ordem que a ultrapassa (ou a produz), Agripina reina sobre reis, governa governantes, tira-
niza tiranos. O capital financeiro desde 2008, e ao contrário da crise de 1929, transformou a crise
do capital em sistema de poder 220
Dos primeiros flertes longínquos da remota metrópole até a ressaca convulsa da violenta
imersão em sua dura realidade, um cataclismo urbano vai anunciar-se cada vez mais áspero a
220 Dardot, Pierre; Laval, Christian. Ce cauchemar qui n’en finit pas: Comment le néolibéralisme défait la démocra-
tie. Paris: La Découverte, 2016, pp. 25, 29-30. “Agora a experimentação se transformou em sistema e a crise
se tornou a principal alavanca do fortalecimento das políticas neoliberais. Do neoliberalismo, se pode assim
dizer, para parafrasear Churchill, que todos os obstáculos lhe propõem oportunidades”, pp. 32-33.
partir da década de 60. Eclodirá com os marginais. Ao longo da década seguinte vai exprimir-se
nos lugares públicos determinada cifra histórica da opressão — tal como se distingue na produ-
ção independente ou no experimentalismo superoitista. Neste, desde o momento da captação das
imagens registram-se parâmetros sensíveis de motivação no acionamento da câmera e compor-
tamento de quem filma. Pode ser acompanhada ao longo da década sua evolução circunstancia-
da pelo que seria mais empiricamente filmável nestas condições, sobretudo na apropriação dos
espaços abertos, a descoberta de seu teor cotidiano-existencial, público, político. Recorrente na
produção mais radical, uma expressividade se constrói em glosa, ironia ou ataque simbólico aos
monumentos culturais dispostos no espaço urbano. Verificam-se em provocações diversamente,
da celebração crítica ao pesadelo poético, da execração distanciada à esculhambação ditirâmbi-
ca, em filminhos Super-8 como: Superfícies Habitáveis — Memorial 2 (São Paulo, 1974), Flávio
Motta & Marcello Nitsche; Esplendor do Martírio (Rio, 1974), Sérgio Péo; Relax Místico (Rio,
1977), Giorgio Croce & Ragnar Lagerblad; O Palhaço Degolado (Recife, 1977), e Inventário de
um feudalismo cultural (Recife, 1978), Jomard Muniz de Britto; Vitrines (Curitiba, 1978), Rui

Vezzaro; Exposed (Salvador, 1978), Edgard Navarro; Gato / Capoeira (Salvador, 1979), Mário
Cravo Neto; Fabulário Tropical (Recife, 1979), e A esperança é um animal nômade (Paris, 1980-
1981), Geneton Moraes Neto; Amsterdã Erótica (Amsterdã, 1982), Paulo Bruscky 221.
A cidade que cintila nestes filmes risonhamente difíceis negaria algo de um espaço-tempo
existente, lugares de pseudo-cidadania, urbanidade administrada pela ditadura e meios de comu-
nicação. Ampla gama de experimentos começa a pipocar ironicamente na forma controversa de
agit-props obscuros. Agripina é Roma-Manhattan os antecipa, resume e ultrapassa. Fala provoca-
tivamente de um Novo Centro do Império com recursos mínimos, pertinência visionária máxima,
mobilizando passado, prefigurando futuro — reescreve a seu modo a Estética da Fome, como
se por intermédio da Estética do Sonho. De diferentes gerações de reflexão periférica sobre o
centro, seus personagens circunstanciados insinuam-se por tradições que atravessam o esforço
“coletivo”, tenaz engajamento de Hélio na ideia sartreana que ele contemplava reiteradamente
a seu modo e carregava para um mundo em latente irrupção. Sua obra parece elevar-se contudo
para além do universo que a formou.

221 Ver a propósito meus trabalhos: Marginália 70, op. cit. “O Pátio e o cinema experimental no Brasil: apontamentos para
uma história”, op. cit. “A experimentação cinematográfica superoitista no Brasil”, op. cit.
Rubens Machado Jr. - Professor titular em análise e crítica audiovisual, no
CTR/ECA-USP, departamento de cinema, rádio e televisão da Escola de Comuni-
cações e Artes da Universidade de São Paulo, onde leciona desde 1999. Possui gra-
duação em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP (1982), ensinou estética, história
da arte e da arquitetura na FAU-FEBASP, nos anos 1980. Mestrado (1989) e dou-
torado (1997) em artes-cinema pela ECA-USP. Foi pesquisador do Idart - Divisão
de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo (1982-1992) e do Centro de Estudos da
Metrópole, CEM-CEBRAP (2002-2005). Estágio em doutorado nos anos 1990, no
Dercav-Paris 3; pós-doutor no IA-Unicamp (1998-1999). Além de cineclubista, edi-
tou e colaborou em revistas como Cine-Olho (RJ-SP, 1975-1980), L’Armateur (Paris,
1992-1993), Infos Brésil (Paris, 1992-2007), Praga (SP, 1997-2000), Sinopse (SP,
1999-2006), Significação (SP, 2006-2007), Rebeca (2012-2015). Conselheiro elei-
to em diversas gestões da SOCINE, participa desde 1997 de seus encontros anuais,
onde cria o seminário “Cinema como arte, e vice-versa”. Desde 2011 lidera grupo de
pesquisa CNPq, “História da experimentação no cinema e na crítica”. Curador dos
projetos “Marginália 70: o experimentalismo no Super-8 brasileiro”, Itaú Cultural
(2001-2003), e “Experimental Media in Latin America”, Los Angeles Filmforum/
Getty Foundation (2014-2018). Vice-presidente do Conselho de Orientação Artística
(2009-2011) e membro do Conselho gestor (2012-2013) do MIS-SP.
16. Tempo suspenso: a repressão sob o olhar superoitista brasileiro e mexicano

Marina da Costa Campos

No Brasil, o ano de 1968 é um registro simbólico das consequências e das reações em vários
âmbitos, dentre eles: a instauração do Ato Institucional nº5, o AI-5; a consolidação do movimento
tropicalista, e o lançamento de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1968). Transformações culturais,
políticas e sociais também ocorriam no México no mesmo período. Desde 1964, o país era
governado por Gustavo Díaz Ordaz, candidato mais conservador dentro Partido Revolucionário
Institucional, PRI222. Seu governo foi marcado por políticas desenvolvimentistas e por diversas
contestações por parte de grupos sindicais, sociedade civil e do movimento estudantil, com
grandes confrontos com os policiais. A mais trágica dessas repressões ocorreu na Cidade do
México, em 2 de outubro de 1968, quando mais de 300 pessoas foram mortas e milhares feridas.
De acordo com Carl J. Mora, este é um ano chave da história moderna do México, pois nele
eclodiram tensões econômicas, políticas e sociais advindas dos anos 1930 com o processo de
modernização do país. Tais tensões também atingiram o campo cinematográfico. O autor recorre
ao diagnóstico do crítico de cinema mexicano Jorge Ayala Blanco:

O massacre de Tlatelolco deu maior senso de urgência para os cineastas que


se posicionavam contra a ordem estabelecida e, de acordo com Ayala Blanco,
um forte cinema independente “surgiu nos calcanhares da politização de um
certo núcleo de classe média como consequência do movimento estudantil
de 1968”. (MORA, 1982:112)223

O movimento superoitista surge em meio a este contexto de transformações sociais e


políticas e da formação de um cinema independente. Segundo Álvaro Mantecón, em seu livro
El cine super 8 en México 1970-1989 (2012), a difusão deste formato na sociedade mexicana
foi rápida, em sua maior parte entre jovens de origem urbana, apresentando traços semelhantes
em sua forma e conteúdo e constituindo uma rede de sociabilidade, a partir da circulação dessas
produções por meio de cineclubes e festivais de cinema super8 (MANTECÓN, 2012: 18-21).

222 O Partido Revolucionário Institucional é uma instituição social-democrata que surgiu em 1929,
primeiramente com o nome Partido Nacional Revolucionário. Esteve no poder durante 71 anos, até
perder as eleições no ano 2000.
223 Tradução nossa: “The events of Tlatelolco gave a greater urgency to the antiestablishment
cineasts and, according to Ayala Blanco, a stronger independent cinema “arose on the heels of the
politization of certain middle-class nuclei as a consequence of the student movement of 1968”.
Destes traços comuns de produção, Álvaro Mantecón ressalta como características o uso
da ironia como um dos recursos para assinalar as contradições e excessos retóricos do regime
de governo; crítica à cultura hegemônica (cinema estrangeiro e da televisão) e à contracultura;
e a preocupação de se fazer um cinema distinto do cinema industrial – capaz de expressar as
preocupações pessoais de um autor. No entanto, também reforça que “seria um erro tentar encontrar
nele [produções em super8] um corpus coerente e sistemático de ideias, mas sim um conjunto
de atitudes e formas de expressão elaboradas às margens da cultura dominante” (MANTECÓN,
2012: 23). Dentre essas produções, pode-se destacar La libertad es um hombre chiquito..., de
Rafael Montero (1973), Avándaro, de Alfredo Gurrola (1971), Ah verda? E Patria libre (1973),
ambos de Sérgio Garcia, entre outros.

Assim como no México, a chegada do super8 no Brasil também foi marcada pela rápida
difusão, principalmente entre aspirantes às cineastas, artistas, músicos e poetas, configurando-se
numa constelação de produções heterogêneas, em grande parte assumindo um caráter experimental,
mas com um perfil comum de oposição a qualquer referência à televisão. De acordo com Rubens
Machado, perpassava um forte senso de negação:

Por suas características intrínsecas como meio e inserção social, o


experimentalismo superoitista implicou nas condições brasileiras dos anos 70
uma forte experiência de negação. Negação dimensionada esteticamente em
diversas direções, desde a cívica, de declaração contra um status quo cultural
e político, até aquela comportamental, estigmatizada como desbunde, porém
cheia de diferentes matizes contraculturais. (MACHADO, 2001: 9).

A formação deste pensamento de negação provinha, também, do espaço de circulação


desses filmes: festivais, galerias e cineclubes. Neles era possível ter acesso às produções, além da
oportunidade de um compartilhamento de ideias, conformando-se assim em espaços formativos
de uma sensibilidade crítica cinematográfica. Tais obras superoitistas trouxeram diversos temas
pungentes, tais como a sexualidade, a contracultura, a crítica ao governo ditatorial, a critica ao
imperialismo norte-americano, às instituições e à sociedade de costumes. Curtas como Mamãe,
fiz um super8 nas calças (Carlos Zilio, 1974); Ora bombas ou a pequena história do pau Brasil
(Fernando Bélens, 1981); Funeral para uma década de brancas nuvens (Geneton Moraes, 1978),
o Esplendor do martírio (Sérgio Péo, 1974) entre várias outras constituem um grupo de filmes
que tocaram, ora com ironia, ora com sutileza tais questões em meio a grande censura e tortura.

A partir desta experiência de negação comportamental, cultural e política e da presença de


um circuito alternativo como espaço de projeção e formação é possível estabelecer aproximações
entre o movimento e os filmes de super8 do Brasil e México, a partir da compreensão das leituras
que a produção de cada país faz das questões vigentes de seu momento – no caso aqui a repressão,
a contracultura, a sociedade, as artes e o cinema. Para investigar tais leituras, optou-se aqui pela
análise de dois filmes: Funeral para uma década de brancas nuvens (Geneton Moraes Neto,
1979) e Mi casa de altos techos (David Celestinos, 1970).

Funeral para...: o riso como resistência.

“Este filme é desaconselhável para maiores de 20 anos”. Com este alerta, Funeral para
uma década de brancas nuvens (1979), de Geneton Moraes Neto224, faz sua primeira saudação
ao público ao qual não se dirige. Ao longo do filme, a narração ocupa um espaço por muitos anos
silenciado. Lançado sob o contexto da abertura, lenta, gradual e segura do regime militar, mesmo
momento também captado por Exposed, o curta-metragem faz das palavras seu instrumento
maior de uma resposta-ataque aprisionada por anos. Palavras que acenam, mas que também
revisam a experiência de uma década em destroços. Ou do nada. A voz over é interpretada por
outro superoitista conterrâneo a Geneton, o pernambucano Jomard Muniz de Britto, e com sua
impostação como quem apresenta um espetáculo, nos convida para a contemplação de um funeral.
Será o enterro da década de 1970 e junto dela seus inesquecíveis personagens: os imperadores da
desesperança, as patrulhas de gás lacrimogênio, os senhores tristes do poder, os velhos irmãos de
cabelos cortados, os batalhões de choque e o Tio Sam.
Recorrendo ao deboche, Funeral... Encarna o cogito criado por Oswald de Andrade:
“esculhambo, logo existo” – expressão ressaltada por José Celso Martinez como “utopia de um
país futuro, negação do país presente” (CORRÊA, 2017: 92). Neste sentido, o filme coloca a
saudação como recurso irônico para criticar o tempo presente e “tranquilizar” os homens e suas
instituições quanto a um levante de oposição. Este recurso irônico da provocação e a negação
constante insere o filme (assim como os outros analisados nesta tese) dentro da perspectiva
radical e experimental do superoito de sua época, descrito por Rubens Machado como forte
experiência de negação (MACHADO, 2001: 9).
No caso da obra de Geneton, o alvo da negação não é apenas as figuras autoritárias, mas
toda uma década representada por brancas nuvens. Deste modo ele coloca a década de 1970
como inflexão, estruturando o filme como uma reflexão sobre o vazio artístico, político e social
deste tempo e também sobre o legado das movimentações e irrupções da década de 1960. E
este não é o único filme do cineasta sobre tal temática. Em 1981 produziu o curta, também em
super-8, intitulado A esperança é um animal nômade. Filmado em Paris, o filme traz semelhanças
com Funeral em sua estética e estrutura: associações e dissociações entre imagem e áudio, mas
224 Geneton Moraes Neto nasceu em Recife no ano de 1956 e conciliou a carreira de jornalista com a de
cineasta. Faleceu no ano de 2016.
com uma forte preponderância da narração. Trata-se de uma abordagem irônica e melancólica
sobre maio de 1968, percorrendo monumentos parisienses e retomando a memória da luta dos
estudantes franceses e também dos jovens brasileiros. Em um dos momentos, a narração entoa
“nós já choramos muito, por todos que perderam a batalha. Desde os hippies aos visigodos” e
afirma “só o futuro é revolucionário”. O som de Se essa rua fosse minha tocada em um fagote
reforça o aspecto nostálgico que permeia toda a obra.
Os outros curtas em super-8 de Geneton mantêm esse fio comum de uma dialética entre
melancolia e o sarcasmo, embora tratem de outros assuntos. Navegar em terra firme (1980) brinca
com os símbolos do capitalismo e desenvolvimentismo: a coca-cola, o fusca da Volkswagen (ou
Volksvagina, Volksviagem) e as propagandas de televisão que persuadem para a compra, ao
som de uma trilha variada e bem tropicalista de Gal Costa e Caetano Veloso. O final, como uma
referência a Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964) traz um homem com uma
rústica capa vermelha, bradando aos quatro ventos palavras de esperança e segue em direção ao
mar, para o seu suicídio. Já Fabulário Tropical (1979) trata de um percurso pelas ruas de Recife,
retomando traços da história brasileira de barbárie, questionando os monumentos e os pontos
turísticos da cidade. A narração, como sempre, é taxativa: “O Brasil é um país que sabe rir de
si próprio”. E, em A flor do lácio é vadia (1978), a crítica ao colonialismo no processo cultural
brasileiro é o que move o curta, ancorado nas imagens de ruínas e na dança sobre esses resquícios
como forma de resistência. Mais uma vez a narração dá o tom da questão: “O Brasil é um país
que sente saudades do futuro”
Entre ruínas, cemitérios e símbolos do capital estrangeiro, elemento constante na filmografia
de Geneton, tem o ato de rir de si próprio como movimento inserido nesse pessimismo. Logo
após abrir o filme com as recomendações de exibição, uma tela branca com a imagem fixa de
um homem segurando uma bandeira se mostra ao público. Como uma sombra a figura é preta,
assim como a flâmula. É um sinal que indica a década de 1970 e nada. Também é escura a
tomada captada à noite de uma cidade, onde só é possível ver pequenos pontos de luz. Sob
a canção de Oração ao tempo, de Caetano Veloso, a narração over anuncia o funeral de uma
década do silêncio. Temos um corte sonoro com a marcha Pomp and circumstance march nº1, de
Edward Elgar, que transforma a expectativa de tranquilidade construída pela canção de Veloso
para a expectativa de uma recepção pomposa de convidados. É neste momento que o narrador
saúda as figuras do regime militar. À medida que os nomeia, em seus distintos e irreverentes
nomes, podemos observar rapidamente a figura de um homem sentado. Como se um vigilante
averiguasse a presença de seu prisioneiro, a luz se apaga e acende lentamente.
Novamente uma quebra sonora traz a música Toque de rancho de Luiz Gonzaga e um novo
contraponto é feito. Enquanto a imagem nos mostra o jovem amarrado e sentado de costas para
uma parede branca, a música conta a história de um homem que deseja entrar para o exército.
O jovem, de cabeça baixa, e a música fazem uma referência irônica à tortura, multiplicada pelo
uso do backprojection, que divide a tela ao meio repetindo a mesma cena. Ainda nessa mesma
temática da tortura e das prisões, exploram-se diversas imagens deste jovem e de uma garota,
diante uma parede branca, tomados de frente e de perfil, como se estivessem sendo fichados em
uma delegacia. A narração reforça a ideia com frases como: “Chamem as trombetas da ordem!
Vocês conseguiram, por enquanto”, “Boa noite, mestres da moral e cívica. Boa noite, loucos
carcereiros sem rostos!” e “Durmam sem medo de nossas garras”. Os jovens “enquadrados” olham
em direção à câmera e seus olhares não são de submissão, mas sim de afronta, de desobediência.
Esta referência à prisão pode se dar tanto aos jovens militantes ligados ao movimento estudantil
e aos partidos como também aos hippies, que também sofreram com a repressão às práticas
contraculturais (COELHO, 2005: 42).
A próxima cena também destaca essa subversão ao trazer um cenário fora da cela e a mes-
ma postura de confrontação: o jovem, encostado em uma parede branca, olhando para a câmera,
sob a trilha Eu sou terrível, de Roberto Carlos – cantor cujas músicas são recorrentes em muitas
obras superoitistas brasileiras. Símbolo de uma juventude tida como “alienada”, o uso específico
do trecho que diz “eu sou terrível, e é bom parar, de desse jeito, me provocar, você não sabe, de
onde eu venho, o que eu sou, e o que tenho, eu sou terrível...”, só colabora com o deboche para
com os militares e demais figuras de poder, no sentido de que atiça o tom desafiador recorrendo
a uma música que expressava uma rebeldia juvenil sem maiores pretensões – só que aqui a pre-
tensão maior é avacalhar.
Neste momento alternam-se as imagens do garoto com a de fotografias históricas de
confronto entre jovens e a polícia: a detenção de manifestantes e policiais se protegendo de
ataques. Desta maneira, com a imagem da garota se deitando próximo à câmera, o narrador
anuncia que esta é uma década sem bandeiras, num gesto que coloca em questão toda a trajetória
dos movimentos de contestação dos anos 60: não restou nada deste legado? Ao mesmo tempo
em que deseja a paz celestial às figuras de poder e afirma a distância dos anos 60 e a falha de
seus profetas, a imagem da jovem sorrindo para a câmera não deixa de selar a dúvida sobre estas
mesmas bandeiras da década anterior e o adormecimento da juventude brasileira.
Um ponto interessante deste momento e repetido várias vezes ao longo do filme é o close
nos olhos que miram a câmera. A voz, que é ao mesmo tempo pessimista e irônica ao afirmar
que um lado da batalha está vencido, que a rebeldia fracassou, entra em choque com o caráter
provocativo desses olhares para a câmera. A garota sorri ou não se mostra abatida, o garoto
tampouco. É como se por mais que o que caracterizasse os anos 1970 fossem as ruínas (cotejando
com os outros filmes de Geneton), ainda resta o riso, o deboche, logo uma resistência. A trilha
sonora deste momento também corrobora para esta dialética. A canção Chororô225, de Gilberto
Gil, faz uma brincadeira entre o choro de dor e o choro sem sentido e desta maneira encaixa-se
no filme também como uma provocação a essa mágoa abordada.
Temos, então, imagens símbolos dos anos 1960: o assassinato de John Kennedy, Che
225 Canção pertencente ao disco Gilberto Gil: ao vivo, de 1978.
Guevara, o sucesso dos Beatles, John Lennon, o líder do Partido Comunista Vietnamita Ho Chi
Minh, Jimmy Hendrix, Roberto Carlos, Grace Slick (vocalista do grupo de rock psicodélico
Jefferson Airplane) Joan Baez, Glauber Rocha entre outros. Também traz fotografias que são
referências históricas daquele momento como as manifestações estudantis de maio de 68, a ida
do homem à Lua, o presidente Ronald Reagan, o livro Quarup, de Antônio Callado226. Foram
reduzidos a retratos de parede dos anos 1970 e com eles 1970 sonhos foram mortos: “vocês
venceram, desta vez”. Nesta parte fica demarcada a nostalgia de uma época cujos ideais não
perseveraram – a repressão foi maior. No entanto esta opressão vencer desta vez, se sugere uma
possibilidade de retorno dos vencidos.
O jovem das cenas anteriores agora aparece pichando um muro branco os seguintes
dizeres: “a saudade é uma jaula”. De certa maneira esta cena pode nos remeter a outro filme
superoitista, intitulado Pixando (1980), de Pola Ribeiro e Ana Nossa Bahia. Este curta baiano
faz um elogio ao gesto “pichador”, através da montagem de vários planos de muros e paredes
pichadas sob uma trilha sonora caótica de diversas vozes. Tais inscrições, de temáticas variadas,
também comportam pichações contra o regime militar e sobre a liberação sexual – como, por
exemplo, o caso de uma parede azulejada com imagens de anjos e a inserção dos desenhos de
órgãos sexuais masculinos nestas figuras angelicais, numa ação “profana” de sexualização desses
símbolos. Tanto em Pixando como em Funeral..., o ato de inscrever nos muros atua também como
uma forma de transgressão, uma forma de lembrar ou chamar a atenção dos transeuntes para a
existência de temas ou assuntos diversos esquecidos pela população. No caso de Funeral..., esta
lembrança ou este recado é um alerta para o presente e futuro: não ficar preso às rememorações
ou idealizações do passado. Novamente a narração atesta a necessidade de olhar para frente: “e
nossas mãos, vazias de bandeiras, vão reconstruir novas miragens. A esperança é o único dever”.
Enquanto closes de partes desta pichação nos são apresentados, a tomada de uma mão
que entrega um pedaço de pano a outra mão também integra esse jogo entre as imagens e a
narração. Repetidamente essa passagem do pano é explorada e pode ser entendida como uma
passagem de bandeira de uma geração para outra, uma transmissão de responsabilidade. Desta
maneira o narrador começa a despedida das figuras de poder: O “boa noite” para os imperadores
da desesperança, para as patrulhas de gás lacrimogênio, para o velho Marx e para o profeta das
oliveiras.
Neste momento temos o plano-sequência da garota caminhando descalça por uma estrada
de terra. A câmera se posiciona fixa em um ponto atrás da jovem e registra seu distanciamento,
seu caminhar determinado para frente. Enquanto isso, o narrador afirma inúmeras vezes: “eu vos
anuncio que nós não estamos plenamente mortos”.
A imagem da estrada propicia a referência de muitos filmes produzidos nos anos 60 e 70,
entre os do Cinema Novo, Cinema de Invenção e até superoitistas: o final de Terra em Transe
226 A inserção deste livro no filme remete a sua inserção em um movimento artístico de engajamento de parte dos intelectuais
para a construção de um país novo. De acordo com Celso Favaretto, dirigia-se a um público intelectualizado de classe média e com o
imperativo de falar sobre o Brasil. (FAVARETTO, 2007: 28-29)
(1967) de Glauber Rocha, após o delírio de Paulo Martins ao receber os tiros e o travelling
de ré que acompanha o caminhar da personagem Sara; o caminhar de Antônio das Mortes na
contramão de uma rodovia em O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), também
de Glauber; o longo plano sequência final de O anjo nasceu (1969), de Júlio Bressane, no qual
o carro dirigido pelos bandidos interpretados por Milton Gonçalves e Hugo Carvana corre
na estrada até desaparecer de vista; e a corrida de uma mulher, pelo acostamento, em direção
à câmera, durante quatro minutos do filme em super-8 Como nossos pais? (1974), de Celso
Marconi. Momentos recorrentes que trazem a teleologia ou antiteleologia do progresso. Em
Funeral..., este caminho para o progresso também é questionado, com uma singularidade de que
no meio desta caminhada, a garota para no meio do caminho e um fade out escurece a tela. Seria
este um momento de paralisia de qualquer tipo de ação?
O curta de Geneton finaliza com um close em um homem que faz a evocação de quatro
mandamentos, que na verdade são trechos de poemas diversos de Lawrence Ferlinghetti, poeta
da geração beat:

Artigo primeiro: quando era maio no mundo, oh meu dileto aprendiz. Teu
sonhador vagabundo incendiava Paris.
Artigo segundo: sou largo, longo e profundo. Oh, meus irmãos juvenis. E
meu coração moribundo foi réu de todo juiz.
Artigo terceiro: atravessei a tormenta e grito: “Terra à vista!”. Sou tua tropa
de choque, és meu melhor sandinista. Meu ódio te alimenta, me armo com
meu badoque, e miro os anos oitenta.
Artigo quarto: é impossível evitar o futuro!

Usando de novo a ferramenta da repetição, o homem brada diversas vezes a frase final “é
impossível evitar o futuro”. Futuro, palavra em constante referência em Funeral..., é colocada
como último recurso, bandeira de salvação. O curta, portanto, tem como tema não só as ilusões e
desilusões dos anos 1960 e a paralisia dos anos 1970. É antes de tudo um filme sobre a experiência
do tempo histórico.

Mi casa de altos techos: dilemas do engajamento

David Celestinos foi estudante da Academia de San Carlos nos anos 1960 e também estudou
no Centro Universitário de Estudios Cinematográficos, da Universidade Nacional Autônoma do
México, entre os anos de 1969-1971. Esta inserção no Centro Universitário propiciou o contato
com outros estudantes de cinema da época, como Sérgio Garcia e Alfredo Gurrola, formando uma
rede de cineastas curiosos e instigados pelas possibilidades de criação que o super-8 oferecia. A
primeira incursão de Celestinos nesta bitola foi com o filme Mi casa de altos techos (1970) que
participou do Primer Concurso Nacional de Cine Independiente en 8mm, organizado pelo Centro
de Arte de las Musas, na Cidade do México no ano de 1970.
Depois desta película, David realizou outros trabalhos: Domingo siete, produção de 1971
em co-direção com Alfredo Gurrola e Sérgio Garcia; Las hermanas e Tovar, ambas de 1971; e
Absténganse curiosos, de 1974. A exceção de Domingo siete, curta-metragem que aborda o dia
de domingo na capital mexicana, a filmografia deste cineasta tem como preocupações comuns a
discussão sobre os rumos das artes e questão da liberdade sexual. Las Hermanas trata da história
de duas jovens mulheres que retomarão seus traumas infantis para explorar suas sexualidades
e Absténganse curiosos traz a história de um garoto que busca vencer seus medos e bloqueios
sexuais indo a um encontro de uma mulher publicado em anúncio de jornal.
Tovar já caminha pelo sentido das artes plásticas, ao documentar através de uma linguagem
experimental a vida do artista Raúl Tovar, pintor pop e colega de Celestinos. Por meio de um
happening, coloca jovens com o corpo pintado de preto e boca vermelha interagindo com frases
icônicas da contracultura e do contexto juvenil da época. Mi casa de altos techos segue esta
temática das artes, mas com uma proposta distinta de pensar o impacto do ano de 1968 na arte
e o que se reverberou disso. A história concentra-se em dois estudantes da Academia de San
Carlos, entidade muito combativa nos anos 1960 e principalmente em suas manifestações sobre
o massacre de Tlatelolco, e que apresentam suas preocupações com os dilemas do pós-68, o
próprio entendimento sobre arte e os caminhos deste campo. Enquanto um volta-se para questões
existenciais e foge para a natureza, o outro percorre as ruas e espaços de pobreza indagando
sobre uma consciência social da arte.
Assim como em Funeral para uma década de brancas nuvens, o narrador neste filme
mexicano exerce uma função especial de trazer as reflexões e questionamentos sobre o papel
social da arte. Apesar de a narrativa contar com dois personagens, a voz não é identificada com
nenhum deles, constituindo um fluxo de pensamento dos dois jovens ao mesmo tempo. Um veste-
se de maneira mais formal e apresenta traços indígenas. O outro tem um perfil hippie, de cabelos
longos e barba grande. Os dois se encontram na porta da Academia e adentram o espaço. Neste
local, se sentem abrigados, se sentem seguros e livres. A câmera percorre todo o ambiente, nos
apresentando as telas, cavaletes, instrumentos de escultura, as abóbodas do teto e até os espaços
sem luz. No momento de encontro, no espaço exterior ouve-se a canção Hey Jude, dos Beatles,
mas a partir do instante em que os estudantes se encontram no interior da escola, a canção é
substituída pela Ave Maria de Bach, executada enquanto a ação se passa dentro da instituição.
No momento em que os dois personagens ocupam o mesmo espaço, o prédio da academia,
um detalhe é destacado pela câmera. Em um plano em que eles mexem com instrumentos do
ateliê, uma forca feita de corda aparece em segundo plano. Depois ela torna-se primeiro plano
enquanto o jovem cabeludo brinca de colocar uma espécie de um cilindro cortado no pescoço do
amigo. À medida que os personagens caminham, a câmera se detém na corda e percorre toda a
sua extensão para o alto até deparar-se com o desenho de uma caveira.
O conflito do curta inicia-se com a saída dos jovens para a rua. O primeiro, de cabelo curto,
caminha pelas ruas da cidade, pela praça do Zócalo, anda por várias direções, sob a trilha de Get
back, dos Beatles. Depois passa a correr em uma estrada até chegar a uma região mais pobre,
cercada por lixo e descaso. Neste ponto temos a tomada de uma criança filmada à contraluz
tentando unir as duas pontas de uma corda, sob a seguinte narração:

Tenho que atar e desatar. Tenho que atar meu presente com meu futuro. Minha
determinação com o desejo. A força de minha vontade com a esperança.
Desatar o que unido estava esquecido. Perdido. Impedindo a minha tranquila
visão do horizonte. Meu rastro infantil. O voo dos pássaros. O cheiro das
flores.

Até aqui ainda não fica muito claro o que está em questão. Há uma angústia do personagem
em relação à situação que o rodeia: a desigualdade social e o como ele enquanto artista se relaciona
com isso. A contraposição com as preocupações de seu amigo é que dá forma ao que o filme traz
como indagação.
O outro jovem está na academia e suas aflições estão além dos problemas sociais. As
questões existenciais e a repressão política fazem mais a sua cabeça e fazem parte de seu projeto
artístico. Sob a trilha de Réquiem, de Mozart, a câmera percorre o ateliê e apresenta um espaço
escuro, com cadeiras desarranjadas, pinturas abstratas nas paredes e uma imagem de Che Guevara.
Um close e podemos identificar as frases “se busca” e “2 de octubre” – referência ao massacre
estudantil.
A angústia da tomada de atitude e de que caminho tomar também assola o jovem de barba.
A narração traz as suas dúvidas: “O desejo ou a esperança. Minha angústia. A pena ou o protesto.
O mundo que me rodeia e me esmaga. Minha legítima aspiração truncada pelo ferro. Não sei,
não sei. Sei?” Mas ao contrário do amigo, sua opção não é o caminhar pela cidade ou o correr
para longe. Deita-se sob uma marquise embaixo do sol, se enrola entre lençóis a meditar – numa
espécie de happening, se deleita em uma festa com outras pessoas de sua idade e foge, com uma
mulher para o meio da natureza – onde se sente livre para exercer a paz e o amor.
Aqui temos o conflito sobre as formas de reação aos acontecimentos de 1968 anos depois.
É a experiência do trauma e a reflexão de sua herança. Temos aqui o dilema entre a arte militante e
arte contracultural. Ambas se sentem em dúvida sobre os seus potenciais de realização. A balança
não pesa para nenhum lado. Isso se dá tanto pela narração – que continua a não assumir uma
identidade, como da música utilizada para a conclusão do percurso reflexivo de cada personagem:
a canção Remember love, de Yoko Ono, que traz o amor como instrumento para conhecer, para
cantar, para viver.
Ao final, a corda atada pela criança se solta, seguida da imagem da parede com a pichação
“destruição”. Ambas as cenas ocorrem ao som de Give Peace a chance, de John Lennon. A voz
over agora não fala de dúvidas, mas convoca à luta. O jovem de cabelo curto aparece dentro da
escola atrás de uma falsa janela amarela balançando um pano branco com as mãos. A câmera
foca um texto escrito em uma placa com os seguintes dizeres: “uma sociedade onde existem
explorados e exploradores, assassinos do povo, a luta pela nossa liberdade é a tarefa fundamental
até a vitória”. Enquanto isso, o narrador traz palavras de esperança:

Venceremos. Vencerei. Venceremos. Vencerei. Venceremos quem nos proibiu


os caminhos. Quem colocou o preço no bem-estar do homem, o encarceram,
o humilham e ao amor mais puro o corrompem. Agora caminharemos
juntos. Um ao lado do outro, solidários. Estreitaremos as mãos para sempre.
Derrotaremos o canalha que cega as fontes, mutila o jovem caule e envenena
o ar. O sangue derramado cem vezes frutifica na voz. Na imagem do sorriso,
nas ondas sonoras. Subiremos a costa onde canta a vida. Onde o campo
reverdece e as pombas liberadas levantam voo.

O filme tem seu final com o encontro dos dois jovens na porta da Academia de San Carlos e
caminham para o interior da escola, retomando o começo do filme. Como num ciclo, as questões
que afligem ambos os personagens são irresolúveis, estarão sempre presentes, em um movimento
contínuo no qual a arte sempre se debaterá. Portanto, Mi casa de altos techos traz uma questão
pungente não só no México como no Brasil também que é esta dicotomia entre a arte militante
e uma arte mais “descompromissada” com as questões sociais – e nem por isso mais alienada.
Álvaro Mantecón vai mais profundo e levanta como nervura o debate sobre as formas que a
contracultura deveria assumir. Desta maneira destaca duas tendências: a defendida por Carlos
Monsiváis e a encabeçada por La onda, José Agustín, Parménides García Saldanha, Gustavo
Sáinz entre outros nomes.
Para Monsiváis, a contracultura deveria examinar os pressupostos da moral sexual vigente
e do sexismo dominante, localizar e compartilhar os efeitos e alcances da inserção imperialista,
internacionalizar as conquistas da cultura nacional e democratizar a sua atividade crítica
(MANTECÓN, in DEBROISE, 2007: 58). O autor defendia uma contracultura própria sem
assumir as formas norte-americanas nem inglesas. Já Agustín delimitava que a contracultura
conformada pela Onda caracterizava-se em manifestações culturais de numerosos jovens
mexicanos que haviam incorporado o pensamento hippie por meio da experiência do movimento
estudantil. Tratava-se de um movimento que agregava distintas classes e com diferentes células
dentro de uma mesma tendência (AGUSTIN, 2012: 83). Este filme, portanto, traz a tensão entre
esses dois tipos de pensamento para refletir os caminhos a serem tomados pós massacre e pós era
de rebeliões.

Sobre potências e impotências

Mi casa de altos techos e Funeral para uma década de brancas nuvens são filmes distintos.
Pela chave da angústia e da dúvida, o super-8 mexicano discute o pós-68 e os caminhos da arte
questionando se existe uma melhor via de ação: política ou cultural. Já o curta brasileiro por
meio da ironia e do deboche interroga o legado de 68 e as ações políticas manifestadas pelos
estudantes e por ícones da cultura pop. Esta reverberação dos anos 60 nos anos 1970, o pós-
golpe, pós-massacre, pós-maio de 1968 é o elemento em comum que une as duas produções. A
reflexão sobre o tempo presente e a ação no futuro permite as aproximações entre os dois filmes
aqui escolhidos.
O primeiro elemento que ambos se aportam é a narração. Ela está em comunhão com
as imagens, mas exerce esta função de despertar os incômodos da década 1970, levanta as
contradições entre o que sobra dos anos 1960 e o que se encaixa realmente com as demandas
de seu tempo. Trazem os dilemas da ação militante e da ação contracultural. Logo nos propõe
pensar a própria presença do super-8 dentro deste embate. Outro ponto comum dos dois curtas
é o contraponto entre a música popular e a música estrangeira, ou entre o erudito e o popular.
Neste jogo com as canções, os dois filmes produzem sentidos que trabalham com a apropriação
e crítica do produto estrangeiro e do produto nacional (ou a falta dele). O terceiro ponto é a
recorrência ao símbolo da bandeira ou do pano. Ambas as produções trazem a simbologia da
bandeira em seus distintos sentidos: rendição, passar a responsabilidade para outra geração, de
união entre bandeiras. Nenhum dos filmes defende uma postura ou uma forma de ação, mas uma
atitude coletiva de engajamento para o futuro.
Por fim, último elemento comum é justamente qual a noção de futuro presente nas duas
obras. Ele assume uma identidade de um dever e de um devir obrigatório. É o que pode ajudar a
transformar o trauma do passado em lembrança do que não pode ser repetido. Mesmo transmitindo
superficialmente em alguns momentos a ideia de impotência para a mudança, Didi-Huberman
nos lembra o que esta impotência apontada pode revelar:

Quando um povo protagoniza um levante (ou mesmo para que esse povo
se subleve), ele deve sempre partir de uma situação total de impotência.
O levante seria, então, o gesto pelo qual os sujeitos desprovidos de poder
manifestam – fazem surgir ou ressurgir – em si mesmos algo como uma
potência fundamental (DIDI-HUBERMAN, 2017: 311).

Esta possibilidade de potência pode ser uma chave de análise desses dois curtas que não
tentam apaziguar ou solucionar as questões que movem o momento – no caso a repressão, a
sexualidade, a contracultura. Aqui, consciente ou inconscientemente as obras transmitem angústias
e contradições que transformam o tempo em um espaço suspenso, cujo passado reverbera no
presente (o presente guarda uma potência mobilizadora) ao mesmo tempo em que o futuro é
colocado única possibilidade.
Referências bibliográficas

AGUSTÍN, José. La contracultura en México. Cidade do México: Debolsillo, 2012.


CORREA, José Celso M. O rei da vela: manifesto do Oficina. In: ANDRADE, Oswald. O rei da
vela. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

COELHO, Cláudio Novaes P. A contracultura: o outro lado da modernização autoritária. In:


RIBEIRO, Antônio et.al. Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2005.

DIDI-HUBERMAN, Georges (org). Levantes. São Paulo: Edições Sesc, 2017.

FAVARETTO, Celso. Tropicalismo: alegoria, alegria. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.

GONZÁLEZ, Rita; LERNER, Jesse (org). Cine Mexperimental: 60 años de medios de vanguardia
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MACHADO JR, Rubens. Marginália 70. O experimentalismo no Super8 brasileiro. Poetas,


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MANTECÓN, Álvaro. El cine súper 8 em México 1970-1989. México: Filmoteca UNAM, 2012.
_____________________. “Contracultura e ideología en los inicios del cine mexicano en super8”.
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MORA, Carl. J. Mexican cinema: reflections of a society 1896-1988). Rev.ed. Berkeley: University
of California, 1989.

]
Marina da Costa Campos - Doutoranda pelo programa de pós-graduação em
meios e processos audiovisuais pela ECA/USP. É mestre em imagem e som pela
UFSCar e formada em comunicação social - jornalismo pela UFG. Integra o Con-
selho Editorial da Imagofagia - Revista de la Asociación Argentina de Estudios de
Cine y Audiovisual; e também integra o Conselho Editorial da Revista Movimento,
periódico organizado pelos discentes da pós-graduação da ECA/USP. Sua pesquisa é
voltada para as aproximações entre o cinema super8 experimental brasileiro e mexi-
cano da década de 1970. Também atua na produção de mostras audiovisuais, dentre
elas: Histórias extraordinárias: cinema argentino contemporâneo (Caixa Cultural Rio
de Janeiro, 2016). Integrante do Grupo de Estudos de Cinema da América Latina e
Vanguardas Artísticas (GECILAVA), e do Grupo História e Crítica do Cinema Expe-
rimental, sob orientação do Profº.Drº Rubens Machado Jr.
17. Biopoder e cinema: a pobreza como potência

Vladimir Lacerda Santafé

Em nosso artigo, pretendemos analisar a potência dos pobres, conceito político cunhado
por Antonio Negri e Michel Hardt a partir das imagens de Glauber Rocha e Pier Paolo Pasolini,
entre outros intercessores literários. Primeiramente, percorreremos essas imagens e a emanação
do conceito negri-hardtiano delimitando a formação da subjetividade na modernidade dentro dos
dispositivos de poder mapeados por Gilles Deleuze e Félix Guattari em “O Anti-Édipo”, em seguida,
estabeleceremos vínculos, heterogêneos, entre a multidão e a pobreza, sempre com as imagens dos
cineastas supracitados como forma de ampliar e reatualizar os conceitos e o material imagético
que os alimenta, “tal como acordes que preenchem uma sinfonia inacabada”. Entendemos que a
pobreza enquanto potência, isto é, uma força latente ou intensiva que agrega e compõe as imagens
dos cineastas e artistas que analisaremos, ocorre em processo de forclusion, conceito freudiano
atualizado por Lacan227, que indica o mecanismo que encontra-se na origem da psicose e consiste
na rejeição de um significante fundamental no universo simbólico do sujeito, por exemplo, o falo
ou o pai. Ou seja, o sujeito o rejeita, segundo Freud, mas sua força se exprime justamente nesta
rejeição. Isso constitui, ainda, um elemento do ideológico no maquinário do inconsciente ou na
fabricação do sujeito? Baudry deve ser relançado nas “cismas da pós-modernidade”? Ou trata-se
de um dispositivo de poder aquém da ideologia? Um dispositivo transcendental... Entre o virtual
e o atual, o movimento dá-se e se efetua, se por ideologia entendermos a virtualidade de ideias que
se realizam no espaço e no tempo, então somos parte de sua composição, mas ao adentrarmos na
“caverna do desconhecido” – nitimur in vetitum228 - as ideias se misturam aos simulacros que as
deformam e sua natureza torna-se impura. A partir deste ponto, o que somos ou o que é já não nos
interessa. Mas sim a presença unívoca e múltipla dos seres que nos habitam.

Com a pobreza se dá o mesmo, pois ainda quando ela é rejeitada, seu poder simbólico está
presente na cena ou nas ideias e afetos que atravessam a imagem. Mais ainda, pretendemos, no
artigo, ultrapassar a forclusion em direção a um conceito que enxerga na psicose uma potência,
na verdade, a única forma psíquica que pode expressar a verdadeira potência da arte e da vida
e a ultrapassagem da estrutura que a psicanálise fundamenta enquanto “edifício mental” do
sujeito: o Corpo sem Órgãos. Para nós, a pobreza é o CsO da imagem dos autores que alimenta
a nossa imaginação e os nossos interesses, ou seriam os nossos desejos? Além disso, como nos
227 Lacan utiliza o termo forclusion para traduzir a palavra utilizada por Freud, Verwerfung.
228 “E nos lançamos no sentido do proibido”, Ovídio.
lembra Deleuze e Guattari, o inconsciente é uma usina, uma fábrica que envolve produções
e antiproduções, sabotagens e controles, e não um teatro representativo. A psicanálise não
compreendeu a esquizofrenia, tal como o cinema ainda não compreende a fome.

A pobreza, isto é, a carne da multidão que produz a sociedade contemporânea, alicerçada


no regime de produção capitalista em sua roupagem imaterial ou cognitiva, é o CsO da imagem
que resiste, e no discurso indireto livre, onde o autor se exprime pelos seus personagens a partir
de relações díspares, ela emerge como uma máquina de guerra contra o Estado, pois sua forma é
precária e flexível, intensiva e criadora, como as “hordas nômades” que derrubaram os maiores
impérios da civilização humana, dentre persas e romanos, ou a nova composição social do trabalho
no capitalismo contemporâneo. Mas essa imagem também é pulsional, pois ela mobiliza as forças
do inconsciente, e sua potência pode ser considerada, sob certo ponto de vista, morfogenética
ou emergente das novas forças do capital e seu regime tecnológico corresponde – o digital e a
tecnologia informacional. Pois atualmente, “parece não ser possível ‘fazer falar’ a fábrica, fruir a
sua língua, assinalar nela uma margem de liberdade, revivê-la. E é esse o verdadeiro problema”
(PASOLINI, 1980, 80). É um delírio que expressa e organiza nossa maneira de ver o mundo
e de sermos vistos, ou seja, uma fábrica de sujeitos ou a produção biopolítica dos indivíduos
(dividuais) que compõem a multidão de vozes que traçam os contornos da nova terra.

“Todo delírio tem um conteúdo histórico-mundial, político, racial; arrasta


e mistura raças, culturas, continentes, reinos: o que se pergunta é se tão
longa deriva seria tão somente um derivado de Édipo. A ordem familiar se
arrebenta, as famílias são recusadas, o filho, o pai, a mãe, a irmã (...) Será
que os nomes da história são derivados do nome do pai, e que as raças, as
culturas, os continentes são substitutos do papai-mamãe, dependências da
genealogia edipiana? Será que a história tem o pai morto como significante?”.
(DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo, pgs. 123-124).

Édipo Rei: entre o forcluído e o desterritorializante.

A psicanálise elegeu o triângulo familiar papai-mamãe-Eu como a base da psique humana,


mesmo reconhecendo a existência de relações exoedipianas no psicótico e paraedipianas em
outros povos não-europeus. A normatividade do sujeito caminha com a resolução do complexo,
e Freud anteviu a psicose como parte de uma constelação que extrapola a relação pai-mãe,
incluindo ao menos três gerações diferentes, é a constelação dos avós. Finalmente, a distinção
entre o imaginário e o simbólico estabelece uma estrutura, uma disposição de lugares e funções,
independente da variação cultural que constitui o sujeito, é o Édipo de estrutura (3+1), que
ultrapassa a triangulação familiar, mas opera todas as triangulações possíveis ao distribuir o lugar
do desejo, do seu objeto e da lei. É o Édipo estrutural, para além da formação normativa inicial
pensada por Freud, que colmata a impossibilidade de conjuração ou inexistência da constelação
familiar edipiana entre os povos não-europeus e no psicótico. A forclusion, por exemplo, amplia a
influência do pai (lei) como constituinte da formação psicótica, quando este rejeita um significante
primordial na estruturação da castração e se desvia da norma, condição de possibilidade para
a normalidade “neurótica”, pois de acordo com o conceito lacaniano, independente da relação
familiar estabelecida, seja com a avó, a bisavó ou mesmo algum ancestral longínquo, a dinâmica
estrutural alicerçada no deslocamento funcional que a rejeição produz (3+1), asseguraria a
triangulação pai-mãe-Eu na psique do indivíduo, de maneira que o forcluído reapareceria no real
na forma alucinatória ou como imagem sonho, segundo Glauber.

O que o Édipo esmaga e recalca, segundo Deleuze e Guattari, seja em sua forma estrutural
ou freudiana, são as máquinas desejantes que não se deixam capturar pela constelação familiar
edipiana. Pois o inconsciente, segundo os autores, não é um teatro trágico da representação, mas
uma usina, uma fábrica irrepresentável. Édipo não passa de uma tragédia europeia encenada em
três atos229. Como disse Jung a Freud, “se eu vir nos olhos de um africano ou de um asiático a
fagulha de Édipo, então estamos de acordo”. Não que a estrutura edipiana não seja uma figura
invariante, a formação psíquica não varia de acordo com a sociedade em que insere, como
pensava Malinowski, mas o inconsciente também não figura ou imagina, ele não é simbólico ou
arquetípico, mas maquínico, sua produção envolve agenciamentos sociais, políticos, históricos,
monstros e delírios imperiais, o inconsciente é o Real em si mesmo, e Édipo é apenas uma
“estrutura”. As estruturas não determinam em última instância o que somos ou deixamos de ser
(forclusion), pois o mundo da experiência as corrói como a água a pedra, a ferrugem a ponte. Não
se pode dizer das estruturas que elas não existem, mas também não se pode dizer da realidade
que ela é estrutural. O conceito leibnizeano de mônada é exemplar neste sentido: antes de sermos
estruturados, somos um micromundo que se desdobra num macromundo, e o resultado deste
dobra em constante e imprevisível movimento, “lançados de volta ao mar”230, é o que nos forma.
As estruturas não suportam a variação das marés e a força das correntes marítimas, tal como a
revolução, menos racional do que mágica, um imprevisto das forças populares contra a razão
dominadora.

Entre a máquina social e a máquina desejante há uma relação de recalcamento, onde a social
reprime a desejante. É assim com o desejo, que redobra sua força da repressão, mas não falta, ao
contrário, excede e produz – uma mais-valia do desejo. O inconsciente é o domínio das sínteses
livres, das conexões sem fim, disjunções sem exclusão, conjunções sem especificidades, dos

229 Referência à fase oral, anal e genital na configuração psíquica do indivíduo.


230 Frase de Leibniz, antes de escrever o Tratado de Monadologia: “Eu sentia que estava num porto seguro,
mas fui lançado de volta ao mar”.
objetos parciais e dos fluxos. Nele só há sínteses: síntese conectiva (de produção), disjuntiva (de
registro) e conjuntiva (de consumo). Com o Édipo soberano, tudo se perde, a produção desejante
é esmagada pela triangulação que determina o lugar e as funções do sujeito em torno da lei e do
objeto do desejo. A asserção do pai torna possível a cultura – o simbólico –, castrando o desejo
pela natureza (mãe), assim nos tornamos humanos.

Édipo é o veneno transcendente na psicanálise, a virada idealista, o lugar de onde a


máquina desejante transmuta-se em fantasma originário, outra brecha para papai-mamãe, o
agente de antiprodução do desejo. Tal como o capital em sua relação com o trabalho produtivo.
Há expropriação e disciplinarização, mobilização das forças em termos de utilidade e obediência,
mas o desejo (revolução ou sabotagem) sempre escapa. Em suma, Édipo é a normatividade
europeia ocidental na psique humana, pois sem a ascensão e extensão do regime disciplinar e das
relações de produção capitalistas, a estrutura edipiana jamais se tornaria global. Édipo é filho do
imperialismo europeu, nós somos filhos do hibridismo neocolonial, hoje imperial, pré-edipiano,
somos édipos famintos, a fome é nossa nervura, a violência a nossa “janela para o mundo”, mas
também um catalisador de desejos. “Assim, somente uma cultura de fome, minando suas próprias
estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é
a violência” (ROCHA, 2004, 66). Sempre houve um Édipo oculto sobre as relações filiativas
ancestrais, coagido ou conjurado pelos devires animais inumanos, mas mesmo nos regimes
despóticos onde o Estado (Urstaat) se fazia presente, o incesto se dava entre imperadores e
imperatrizes, no seio da aristocracia, e nunca como um dispositivo psíquico estruturante, um liame
entre a natureza e a cultura. Na cidade grega, por exemplo, onde se deu a tragédia de Édipo, não
há como pensar a formação da psique humana sem passar pelo nomos231 da polis, pelo diagrama
de poder da cidade que ultrapassava as relações familiares. Édipo desconhece as potências da
terra, mas não o inconsciente, pelo contrário, ele é uma de suas emanações. “A terra é um grande
ser sensível, um planeta saturado de humanidade de um extremo ao outro, um planeta vivo que
se expressa de maneira balbuciante e gaguejante...” (MILLER, 1983, 94). O campo social em
suas muitas variações – culturas, povos, raças, continentes, reinos – é uma ponta dos movimentos
infinitos da terra. Reduzir o inconsciente e a história ao romance familiar é destituir do homem
a sua cumplicidade com os “regozijos do mundo”. Não somos e somos, nos diz Heráclito, mas
com a terra somos muitos! Um logos que se alimenta da guerra como princípio último da criação
– e completa – “Se não sabe escutar, não sabe falar” (HERÁCLITO, 1996, 177). Mas o que não
escutamos? O que Freud não escutou? As pulsões da terra – as máquinas desejantes.

“O professor Challenger, aquele que fez a Terra berrar como uma máquina
dolorífera, nas condições descritas por Conan Doyle, depois de misturar
vários manuais de geologia e biologia, segundo seu humor simiesco, fez
231 A democracia, na Grécia antiga, é o governo dos nomos, das “tribos” que constituem a cidade.
conferência. Explicou que a Terra – a Desterritorializada, a Glaciária,
a Molécula gigante – era um corpo sem órgãos. Esse corpo sem órgãos
era atravessado por matérias instáveis não-formadas, fluxos em todos os
sentidos, intensidades livres ou singularidades nômades, partículas loucas
ou transitórias”. (DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs – Vol.
1, pg. 53).

Multidão e pobreza: uma questão de carne.

“Do outro lado do Monte Santo existe uma terra onde tudo é verde... Quem é pobre vai ficar
rico do lado de Deus e quem é rico vai ficar pobre nas ‘profundas’ do inferno!” (Deus e o Diabo
na Terra do Sol, Glauber Rocha, 1964). O filme treme, emerge da miséria e da seca, da exploração
dos coronéis do nordeste brasileiro, é a estória de Manoel Vaqueiro (Geraldo Del Rey) e Rosa
(Yoná Magalhães) nas pelejas do sertão, na lutar por conservar-se e aumentar sua potência de
agir, seja no encontro com Sebastião, “homem santo” que reivindica a terra verde “onde homem
não pode ser escravo do homem” ou com Corisco, uma máquina de guerra contra a “república
que engorda matando pobre de fome” (Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha, 1964). O
misticismo é a arma do povo contra a razão do Estado, por isso os personagens vivem em transe:
– Rosa: “Você se lembra de mim? – Manoel: Não me lembro de mais nada, nem da noite nem do
dia...”. É Corisco: “... São Jorge me emprestou a lança dele pra matar o gigante da maldade...” –
Manoel: “Se vier a guerra luto contra mil soldados... O destino é maior do que a morte” e Antônio
(Maurício do Valle): “Um dia vai ter uma guerra maior nesse sertão, uma guerra grande sem a
cegueira de Deus e do Diabo... E pra que essa guerra comece logo, eu que já matei Sebastião, vou
matar Corisco”. Devir famélico contra a fome. O guerreiro é aquele que vive no meio, entre o lobo
e o cão, um anômalo que trai o pacto e rompe o liame. Corisco encarna o berro daqueles que não
podem falar, é a força incomensurável da revolta, nele não há espaço para conciliações, o que ele
não entende, mata e tortura, a guerra aflora em sua pele. Antônio é o mercenário que se corrói por
dentro, mas sabe que é preciso precipitar as forças do caos, por um lado, negocia com os padres
e os coronéis, do outro, desterritorializa os poderes que animam a miséria no sertão. Manoel é o
pobre e suas linhas de fuga, mata e ora, sente remorso, vibra com a terra verde, mas não sabe como
alcançá-la, se é preciso matar inocentes, chora e se desespera. Rosa é a lucidez da angústia, tem os
olhos mirados no vazio da existência, só consegue enxergar o sertão e a impossibilidade de viver
numa terra árida dominada pelo latifúndio, mas quando Sebastião a marca com o sangue de uma
criança, ela acorda e o mata. Rosa age “sob premissas objetivas” e só se liberta da causalidade
aparente entre os entes quando deseja o homem que respira a guerra como sinal dos tempos e se
entrega a ele ao som intempestivo das “Bachianas”232. No duelo final, entre Corisco e Antônio,
o primeiro, em transe evoca a mítica cristã que povoa a cultura nordestina, desdobrando-a: “Eu
José, com a espada de Abraão serei coberto, eu José, com o leite da Virgem Maria serei borrifado,
Eu José, com o sangue de Cristo serei batizado... Onde não me possam ver nem ferir nem matar,
nem o sangue do meu corpo tirar”. O cenário é desolador, os personagens caminham pelo deserto,
sem rumo ou direção, sujos e sem orientação, o sol escaldante fere a imagem, o violão solitário
de Sérgio Ricardo inicia um leve repente, as batidas mantêm um intervalo mais longo entre si,
suavizando a passagem entre os acordes, mas a música é dura: “Jurado em dez igrejas, sem
santo padroeiro, Antônio das Mortes, matador de cangaceiro, matador, matador, matador de
cangaceiro...” (Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha, 1964). É a gagueira da terra que
geme: “Procurou pelo sertão, todo mês de fevereiro, o dragão da maldade contra o santo guerreiro,
procura Antônio das Mortes, procura Antônio das Mortes...”. De repente uma troca de tiros e
Antônio se desvia das balas de Corisco, o violão enlouquece, Manoel e Rosa não sabem o que
fazer e se agacham nas poucas moitas que o deserto oferece, Dada é ferida: “Se entrega Corisco,
eu não me entrego não, eu não sou passarinho pra viver lá na prisão, só me entrego na morte de
parabelo na mão!”. Antônio: “Se entrega Corisco!”. – Corisco: “Ah, ah, ah...”. Ele salta e rodopia
como um animal, imita um carcará, a ave guerreira do sertão, Corisco de braços abertos encara
o inimigo de frente e berra: “Mais forte são os poderes do povo!”. Dada solta um grito inumano
e estende os braços para um último toque no corpo ainda vivo do amado. Fim. Não, Manoel e
Rosa correm desesperados pelo solo infértil, mas não alcançam a terra verde, é a câmera que
encontra o mar. O filme de Glauber choca pela beleza e pela crueldade das imagens. Mas não é
só isso. A sua narrativa também se faz presente pela precariedade da forma, pelo faux raccord e
o discurso indireto livre dos personagens e do próprio sertão233. Ela é alquebrada, tensa, violenta,
exprime as relações de força pela poesia e pelo mergulho seco na miséria: os rostos da pobreza,
as cantigas e ladainhas, o caminhar trôpego das procissões, um neorrealismo em transe! Glauber,
como vidente, enxerga o despertar de uma nova sociedade, onde o capital já não condensa a força
do operário nas amarras da fábrica ou da escola234, moldando-os segundo normas que visavam
232 O intenso beijo de Rosa em Corisco, onde a câmera de Dib Luft gira até entontecer o espec-
tador e captar o fulcro da imagem. Câmera-olho do discurso indireto livre, a câmera que sente, como
escreveu Pasolini. As Bachianas, música de Villa Lobos.
233 O faux raccord é uma técnica ou recurso narrativo utilizado pelo cinema novo e pela nouvelle
vague, principalmente nos filmes de Godard e Glauber, mas também nos filmes de Sganzerla, que
funda com Ozualdo Candeias o cinema marginal. A técnica consiste na descontinuidade entre um
plano e outro, produzindo um efeito de “erro”, atestando a autonomia entre as partes de um filme: a
câmera, a narrativa e os personagens, a diegese e o extracampo. Ele contribui com o discurso indireto
livre, na medida em que estimula essa heterogeneidade entre as partes, livrando-as do fio narrativo,
ao possibilitar um cinema de poesia e não de prosa, segundo Pasolini.
234 O aparelho ideológico do Estado por excelência, segundo Althusser: “Afirmamos que o apa-
relho ideológico de Estado que assumiu a posição dominante nas formações capitalistas maduras,
após uma violenta luta de classe política e ideológica contra o antigo aparelho ideológico do Estado
dominante, é o aparelho ideológico escolar”, pg. 71.
extrair o máximo de produtividade no menor espaço de tempo, extraindo sua mais-valia do tenso
equilíbrio entre o salário dos trabalhadores e o lucro dos patrões, com a garantia de um exército
reserva de mão de obra que permitia ao capitalista, ao mesmo tempo, manter sua lucratividade e o
reinvestimento no maquinário produtivo a partir da circulação e do consumo de mercadorias que
não podiam ultrapassar a linha entre a superprodução e a escassez de produtos. Não, a sociedade
atual inclui tudo o que é vivo na produção – biopoder –, inclusive aqueles que estão apartados
do processo produtivo, é um capitalismo de superprodução que mercantiliza todas as dimensões
e possibilidades do humano e da natureza, onde “a reprodução da força de trabalho se dá, no
essencial, fora da empresa” (ALTHUSSER, 1985, 56), e os pobres emergem como a nova face da
libertação e da reinvenção produtiva do capital. “Vivemos em transe, em busca do mar”.

No capitalismo fordista ou industrial, as lutas convergiam contra o regime disciplinar e sua


ordem discursiva, seus dispositivos e modos de visibilidade. Maio de 68 foi um dos momentos
de irrupção dessa ordem, o acontecimento que provocou o corte nos discursos e a destruição
(simbólica e real) da maquinaria do poder, como também da criação e incorporação de novas
formas de luta e modos de vida. O movimento negro, feminista, hippie, homossexual, os anormais
emergem contra a ordem normativa – uma monstruosidade da carne! E ainda que as mulheres, os
negros ou os indígenas sejam maioria numa sociedade, eles fazem da política um devir minoritário
– são minorias – pois se opõe ao modelo dominante de subjetivação (homem branco, falante
de uma língua europeia, heterossexual, morador de uma metrópole...); o Homem ocidental está
sempre presente na linha (como negação ou afirmação do sujeito) e a cultura, a economia ou a
política no mundo atual, como produção de sentido235, tem nele o seu fim. “As raízes índias e
negras do povo latino-americano (e não a classe média branca, pastiche do colonizador europeu)
devem ser compreendidas como a única força desenvolvida deste continente” (ROCHA, 2004,
51) e sua mística é também sua libertação. Essas minorias se organizam de forma rizomática e
imanente, através de uma política menor, uma “língua estrangeira”, e recusam a hierarquia e a
verticalidade dos partidos e sindicatos tradicionais; são máquinas de guerra nômades contra o
aparato estatal, operando por desterritorializações e fluxos no campo social. “A recusa da disciplina
e a experimentação de novas formas produtivas como a contracultura acentuou o valor social da
cooperação e da comunicação” (NEGRI E HARDT, 2006, 95), transformando o capitalismo e
seu sistema de dominação.

Por um lado, o capital engloba toda a vida em seu processo de produção e reprodução
social, gerindo o corpo e a “alma” do indivíduo enquanto espécie, em sua dimensão biológica
e cultural, onde um tipo de poder pastoral organiza o que pode ou não sobreviver, o que é

235 O que nos remete à nossa discussão anterior que tratava do conjunto de significantes domi-
nantes que constantemente são rebatidos na figura do pai (lei) como fim último da organização e pro-
dução de sentido na modernidade edipiana.
ou não criminalizável, maximizando suas forças ao limite da utilidade e da gestão eficiente
das multiplicidades controladas (biopoder); do outro, o poder da multidão enquanto potência
reorganiza a produção através de conexões díspares e singulares, “manejando o tempo e
construindo novas temporalidades” (NEGRI E HARDT, 2006, 495), retomando a expansão
do capital, da possibilidade de sua superação e da própria vida ao infinito das relações sociais,
instaurando mundos possíveis onde antes só havia o “deserto” (biopolítica). A multidão não é o
povo, ela é aquilo que foge ao soberano, “os cidadãos, quando se rebelam contra o Estado, são
a multidão contra o povo”236, logo, sua performance política está além dos aparelhos de captura
que nos vinculam ao corpo da soberania com suas duas cabeças: o rei déspota dos liames e o
sacerdote-jurista dos contratos, no capitalismo atual, enquanto tendência, o liame é efetivado na
espetacularização das imagens divulgadas pela publicidade, pelo cinema, pelas redes televisivas
– religados e transformados pelo digital e a internet -, e o contrato é estabelecido pela democracia
representativa e sua subordinação ao mercado financeiro e o tripé neoliberal que o sustenta
como um axioma no corpus economicus da terra (superávit primário, metas de inflação e câmbio
flutuante).

A multidão é uma força centrífuga que se dissemina para além dos centros de poder,
esvaziando-os de sentido e potência, mas o Estado se apropria e captura essas forças, reelaborando-
se a partir da exploração econômica e da dominação política que exerce sobre elas, já o povo,
como disse Glauber, “é o mito da burguesia, (pois) a razão do povo se converte na razão da
burguesia sobre o povo” (ROCHA, 2004, 250), e só uma ruptura com o “racionalismo colonizador”
(ROCHA, 2004, 250) é capaz de assegurar uma real autonomia das forças que compõem o povo
para além da soberania (multitudo). O Estado é o vazio que colmata e vampiriza para conservar-
se – é o fim da história, o sujo segredinho dos confessionários, a morte da terra. “O inimigo
contemporâneo é como o exército do faraó: persegue os fugitivos, massacra suas retaguardas, mas
nunca consegue ultrapassá-los ou confrontá-los” (VIRNO, 2008, 143), só precisamos demarcar o
lugar e a posição do êxodo, pois a estética já possuímos na pele, ela é o sonho que não se explica:

“Há que tocar, pela comunhão, o ponto vital da pobreza que é seu misticismo.
Este misticismo é a única linguagem que transcende ao esquema racional de
opressão. (...) O irracionalismo liberador é a mais forte arma do revolucionário.
(...) E a revolução é a anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais
irracional de todos os fenômenos que é a pobreza” (ROCHA, 2004: pg. 66).

A multidão organiza-se através do que Negri e Hardt chamam de “poder da carne”, um


conjunto intensivo de ações e virtualidades que unificam as diferentes partes do corpo social e
político de forma autônoma e produtiva, um corpo sem órgãos que recusa a unidade orgânica da
236 Citação de Hobbes.
soberania. O Estado caracteriza-se globalmente como um sistema de apartheid, cujas linhas se
desenham acima e abaixo das fronteiras nacionais, um regime de inclusão hierárquica, onde os
pobres espalhados pelo mundo, explorados econômica e politicamente pelo capital global, ocupam
as metrópoles “brancas” do capitalismo desenvolvido, incitando o pânico racial (com a figura do
árabe ou do africano como o terrorista em potencial) e a defesa da nação e do povo identitário
(étnica e culturalmente) como fundamentos da nação (o “último refúgio dos canalhas”237): “É esta
talvez a forma mais primária do biopoder: se, como se costumava dizer, quantidade é poder, a
reprodução de todas as populações deve ser controlada” (NEGRI E HARDT, 2006, 217).

O conceito de classe, para os filósofos, assim como para Marx quando pensou o
proletariado238, não se refere apenas a um segmento social incluído e necessário à reprodução
das condições de produção, a classe tem um caráter tanto econômico quanto político, portanto,
na sociedade atual, biopolítico, e, além disso, também expressa as capacidades criativas dos
explorados pelo sistema global do capital. É neste sentido que Negri e Hardt incluem os pobres
como centrais na concepção de classe enquanto multidão – uma multiplicidade que atua em
comum. “A fome latina não é apenas um sistema alarmante, mas o nervo de nossa sociedade. (...)
nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é
compreendida” (ROCHA, 2004, 65). A carne da multidão é informe, ela é puro potencial, e assim
como a classe marxiana, ela não se baseia unicamente em dados empíricos, mas principalmente
em dados potenciais, não se pode dizer exatamente “o que é a multidão”, mas persegue-se o
que pode “vir a ser a multidão”; ela é uma partilha de singularidades em comum, e a sua carne
são as condições de possibilidade de sua própria formação. A produção comum sempre envolve
um excedente que não pode ser expropriado pelo capital ou capturado pelo corpo político da
soberania global, mas quando o é, gera um antagonismo que se transforma em revolta,
isto é, o antagonismo está ligado à riqueza, ao que excede. “As revoltas mobilizam o comum sob
dois aspectos, aumentando a intensidade de cada luta e estendendo-se a outras lutas” (NEGRI
E HARDT, 2006, 276). O pobre, a grande massa de trabalhadores e precariados239 incluídos
nos circuitos da produção capitalista, dos zapatistas aos negros dos guetos estadunidenses, dos
favelados aos imigrantes africanos nas periferias d´Europa, produzem esta riqueza potencial
(em revolta) e, por conseguinte, excede os dispositivos de controle do poder, econômica e
politicamente240; em última análise, todos nós participamos da produção social, deixamos de ser
237 Citação de Samuel Johnson.
238 Aquele que só detém sua prole e vende o seu trabalho (alienado pelas leis do mercado e pela
exploração do capital) para o capitalista que detém os meios de produção e os aparelhos estatais re-
pressivos e ideológicos, mas também o sujeito histórico capaz de ultrapassar o sistema capitalista por
meios revolucionários.
239 Termo usado por Negri e Hardt para contrapor e/ou redefinir o conceito de proletariado de Karl
Marx em função da reestruturação das relações da produção capitalista e do novo sujeito histórico que
emerge com ela: a multidão de trabalhadores precarizados, o precariado.
240 A produção dos pobres pode ser vista não só na medicina tradicional dos indígenas ou nos
estilos de vida e nas músicas feitas nas periferias brasileiras, norte-americanas ou francesas, mas
proletários, já não há fábricas suficientes para todos: “não somos indianos, somos os pobres, não
somos africanos, somos os pobres!”241. O capitalismo global só existe em função da gestão da
miséria e da delimitação de hierarquias globais na distribuição dos recursos. Enquanto classe, ou
como “aquele que é desnudo pelo capital, só possuindo em suas mãos o desejo de existir e criar”,
o pobre encarna as condições ontológicas da resistência e da vida produtiva – a carne da multidão.

“A pobreza é a carga autodestrutiva máxima de cada homem e repercute


psiquicamente de tal forma que este pobre se converte num animal de duas
cabeças: uma é fatalista e submissão à razão que o explora como escravo.
A outra, na medida em que o pobre não pode explicar o absurdo de sua
própria pobreza, é naturalmente mística. (...) A razão dominadora classifica
o misticismo de irracionalista e o reprime à bala” (ROCHA, G. Revolução
do Cinema Novo, pg. 66).

também em comunidades como a zapatista que, ao defender um modo de vida autônomo e anticapi-
talista, também se insere na produção mundial mobilizando afetos e paixões ao redor do mundo. Ou
seja, o conceito de produção aqui desenvolvido está dentro e fora da produção para o mercado e da
reprodução social no capitalismo global. O modo de vida zapatista podendo ser ou não expropriado
pelas empresas, isso não nos interessa, o que interessa é que ele já está disseminado pelo mundo,
nos movimentos sociais ou como forma de expressão individual, excedendo em muito as fronteiras de
Chiapas.
241 Lema de protestos na África do Sul.
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Vladimir Lacerda Santafé - Doutor em comunicação e cultura pela UFRJ


(2019), possui mestrado em comunicação e cultura pela UFRJ (2011), graduação,
bacharel e licenciatura em filosofia pela UERJ (2006) e graduação em cinema pela
UNESA (2001). Tem experiência na docência de filosofia e teoria da comunicação, na
educação básica e universitária, atuando principalmente nos seguintes temas: ética e
política, filosofia da educação, estética e teoria da imagem; como também na produção,
roteiro e direção de vídeos, de ficção e documentários, assim como na confecção de
poemas e outros escritos. É autor de: Da biopolítica dos movimentos sociais à batalha
nas redes: vozes autônomas (Rizoma, 2014) e Poesia Ágora (Multifoco, 2014) e
co-autor de Amanhã vai ser Maior: O levante da multidão no ano que não terminou
(Annablume, 2014) e Linguagem, Comunicação e Cultura (RG Editora, 2013)
18. Adélia Sampaio: Trajetória e obra de uma pioneira

Giovanna Picanço Consentini

Adélia Ferreira Sampaio nasceu em 20 de dezembro de 1944 em Belo Horizonte, Mina


Geral. Considerada a primeira diretora negra a realizar um filme de longa-metragem no Brasil
(CAVALCANTE, 2017; OLIVEIRA, 2016; SOUZA, 2013), Adélia é também uma das poucas que
realizaram longas-metragens até os anos 1980, antes da chamada retomada do cinema brasileiro,
um período, a partir dos anos 1990, de bastante crescimento do número de mulheres cineastas.

Ao longo de sua trajetória, a cineasta coleciona histórias de obstáculos e superações. Filha


de empregada doméstica e pai desconhecido, com seis anos de idade partiu para o Rio de Janeiro
com sua mãe e a irmã Eliana. No entanto, a mudança de cidade logo se tornou um problema para
a família, principalmente para Adélia. Em entrevista ao portal O Globo, em dezembro de 2017,
ela contou que assim que chegou a cidade, ela e a irmã foram matriculadas num colégio interno
pela patroa de sua mãe. Sem conseguir se acostumar ao lugar, Adélia foi então mandada para um
asilo na cidade de Santa Luzia, em Minas Gerais. Assim, ficou separada de sua família por sete
anos. Segundo ela, por vontade da patroa e sem o consentimento de sua mãe, que além de tudo
contraiu dívidas com a empregadora (RISTOW, 2017).

De volta à capital fluminense, foi em uma sessão de Ivan, o terrível (Ivan Groznyy, Serguei
Eisenstein, 1944), que viu seu interesse pelo cinema despertar pela primeira vez. Em entrevista
concedida para minha pesquisa de mestrado, em novembro de 2017, ela recordou daquele
momento:

Voltando do asilo, já com 13 anos, entrava num cinema, o “Metrô Passeio”,


pela primeira vez com minha irmã Eliana, para assistir um filme russo: Ivan,
o terrível. Ao terminar o filme eu, em total estado de graça, disse a Eliana:
“é o que eu quero fazer na minha vida”. Ela sorriu e disse: “[isso] não é para
nosso bico!”. (SAMPAIO, 2017)

A despeito do conselho da irmã, a paixão só aumentou e, aos poucos, moldou o sonho de


Adélia. Eliana Cobbett teve um papel significativo na relação de Adélia com o cinema ao longo
de sua carreira. A irmã começou no cinema em cargos administrativos e depois se consolidou
como diretora de produção e, principalmente, como diretora executiva. A trajetória de Eliana tem
início na Tabajara Filmes, onde conheceu o cineasta William Cobbett242, com quem, anos mais
tarde, se casou. Eliana foi gerente dessa produtora e distribuidora, que funcionou de 1955 a 1964
e tinha seu marido como sócio. A empresa era uma das responsáveis pela vinda de produções
do leste europeu para o Brasil, o que, juntamente com as inclinações políticas de seus donos,
resultou em perseguições a partir de 1964, com a instauração do regime militar. Dentre as poucas
referências sobre a distribuidora, presente nas pesquisas que cercam a cinematografia nacional,
encontramos na dissertação de mestrado de Reinaldo Carneduto mais informações. Segundo ele,
a Tabajara Filmes:

surgiu com a finalidade de distribuir filmes, principalmente de esquerda, no


circuito comercial e alternativo de exibição. A empresa, responsável pela
distribuição de O encouraçado Potenkin (Serguei Eisenstein, 1925) no
Brasil, em 1963, foi co-produtora de Ganga Zumba (1963) e Canalha em
crise (1963), primeiros longas-metragens de Cacá Diegues e Miguel Borges,
e chegou a ser invadida por militares, nos primeiros anos do Regime Militar,
em consequência de suas atividades políticas. (CARNEDUTO, 2008, p.87)

Depois que a Tabajara Filmes foi fechada, Eliana passou a gerenciar a distribuidora Difilm.
Criada em 1965, por um grupo de onze cineastas243, muitos deles ligados ao Cinema Novo, a
Difilm - Distribuidora de Filmes Ltda., tinha como principal função fazer circular a produção de
cinema nacional. Em 1968, Adélia Sampaio também ingressou na distribuidora como telefonista,
a convite da irmã. Nesse período, a Difilm investia seus lucros em novas produções, e conseguiu
montar uma rede nacional de distribuição, com cópias de 16mm que podiam fazer os filmes
circular em cineclubes e universidades (FIGUEIRÔA, 2004, p. 29). A própria Adélia participou
dessa movimentação, à medida que foi assumindo mais funções dentro da distribuidora. Na
entrevista à Filme Cultura de 1988, Adélia revelou como esse aprendizado acontecia na prática.
Ela conta que costumava ficar na empresa até depois de seu expediente como telefonista para
acompanhar o trabalho com as cópias dos filmes (FILME CULTURA, 1988: 93). Para Sampaio,
o emprego na Difim foi uma porta de entrada para sua carreira como cineasta. Muitos trabalhos,

242 Natural de Ipanguaçu, no Rio Grande do Norte, William Cobbett foi diretor, roteirista e produtor.
Trabalhou em filmes como A Vida de Jesus Cristo (José Regattieri, 1971), Uma Tarde, Outra Tarde
(William Cobbett, 1976) e Jesuíno Brilhante – O Cangaceiro (1972) (FILMOGRAFIA BRASILEIRA).
243 As fontes divergem sobre o quadro societário da Difilm. Segundo Zuleika Bueno (2000, p. 61), a empresa era
composta por: Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Glauber
Rocha, Leon Hirszman, Luís Carlos Barreto, Roberto Farias, Rivanides Faria, Roberto Santos e Rex Endsleigh. Enquanto
Luciano Fernandes (2008, p. 239) inclui entre os onze Marcos Faria, Walter Lima Júnior e Zelito Viana e exclui Nelson
Pereira dos Santos, Roberto Santos, e Rex Endsleigh.
depois que ela deixou a distribuidora, vieram a partir de convites de pessoas que conhecera na
Difilm. Em seu depoimento sobre essa ocasião, Adélia recorda:

Trabalhei na Difilm como telefonista, depois como programadora das


películas 16mm para cineclubes, que na época eram muitos. Primeira
chance quem me deu foi Marcos Farias, [que] me entregou a produção do
longa A Cartomante com Italla Nandi, Maurício do Valle, Ivan Cândido.
Trabalhamos todos em regime de cooperativa. [O filme tinha] a direção de
Marcos Faria, roteiro de Miguel Borges, direção de fotografia de Jéferson
Silva. Depois participei de vários longas como continuísta, claquete e até
maquiadora. Foram experiências que guardo na memória. Tracei uma meta
para chegar ao meu objetivo. Tudo sempre com a cumplicidade de minha
irmã. Ela criticava, mas não se furtava em ajudar. Fizemos, durante algum
tempo, uma dobradinha onde ela fazia a produção executiva e eu, direção de
produção ou set. Foram muitos trabalhos (SAMPAIO, 2017).

Essa experiência foi, para Adélia, uma das principais fontes de aprendizado, segundo
explica:

Fui ser telefonista da Difilm porque eu, um dia, queria dirigir um filme. Fui
para a Difilm porque achei que ali eu poderia estar próxima de alguma coisa
que eu queria muito, na medida em que tinha absoluta certeza de que jamais
eu iria conseguir ingressar numa faculdade, por uma questão econômica.
Depois, porque eu teria que fazer o segundo grau para fazer um vestibular
e jamais teria condições de bancar uma faculdade. Então achei que ali eu
poderia, pelo menos, descobrir, pegar e sentir o que era uma película. (FILME
CULTURA, 1988: 92)

O trecho acima evidencia a consciência de Adélia sobre os desafios impostos para


fazer cinema, acentuados por sua origem pobre, entendendo que as oportunidades não se dão
de forma igualitária, ainda mais em seu caso: mulher, negra e pobre. Além dos obstáculos
comuns e do esforço triplo (raça, gênero, classe) vivido por Adélia para alcançar espaço no
meio cinematográfico, o período em que tanto ela quanto Eliana se encontravam na Difilm foi
conturbado na conjuntura nacional. O país situava-se em uma ditadura militar desde 1964, com
forte repressão aos movimentos sociais, práticas de torturas, censura a jornalistas e aos meios de
comunicação, entre outras suspensões de direitos, em uma situação agravada a partir de 13 de
dezembro de 1968, pelo Ato Institucional n. 5, AI-5. As consequências do regime atingiam a vida
profissional e também pessoal de Adélia Sampaio. Os acontecimentos pioraram em 1969, como
relembra: “já com dois filhos, o pai dos meninos vai preso e torturado. [...] Ficou preso por um
ano e meio no CENIMAR. Eu me dividia entre filhos, Difilm e presídios” (SAMPAIO, 2017).

Naquele momento, Sampaio chegou a ser considerada um risco para a Difilm e, segundo
ela, foi Luiz Carlos Barreto quem lhe ajudou a permanecer no emprego (SAMPAIO, 2007). Pedro
Porfírio Sampaio, marido de Adélia, na época, era jornalista do Correio da Manhã e militante de
esquerda quando foi preso em 1969. Ele foi acusado de integrar o Movimento Revolucionário
8 de outubro (MR-8)244 e levado ao Presídio da Ilha Grande. Conhecido como “ilha das flores”,
o lugar era palco de torturas e maus tratos e abrigava muitos presos políticos do Rio de Janeiro
(SÜSSEKIND, 2014). Pedro foi inocentado e solto dois anos depois, em 1971, e, desde então,
passou a denunciar os casos de tortura e outros horrores vividos por ele e muitos presos políticos
durante o regime militar. Nos anos em que ele esteve preso, Adélia frequentara o presídio, cujo
acesso era realizado somente através de barcas. De acordo com Elisabeth Süssekind:

A experiência dos visitantes de presos à penitenciária de Ilha Grande era


iniciada por uma viagem. As famílias deviam estar às 5h30 na Rodoviária
Novo Rio, na cidade do Rio de Janeiro e chegavam as 7h30 em Mangaratiba,
a 180 km de distância. De lá, tomavam uma barca que seguia por mar alto
e que aportava no cais da Vila do Abraão em aproximadamente duas horas.
A barca tornou-se famosa, tinha o nome de Tenente Loretti, e havia sido
construída em 1911 e desde 1937 prestava serviços aos estabelecimentos e
aos visitantes da Ilha Grande (2014: 242).

Aquele momento, no entanto, não foi a primeira vez em que Adélia sofrera na mão dos
militares. Grávida de sete meses, em 1964, apanhou de um policial no centro do Rio de Janeiro,
o que provocou a morte prematura de seu primeiro filho, ainda na barriga. “Para mim foi terrível,
tivemos que fazer uma certidão de nascimento e a seguir a de óbito. Foi brabo. Éramos muito
jovens” (SAMPAIO, 2017).

244 Foi um dos principais grupos de luta armada durante o período militar no Brasil. Formado por ex-membros do
Partido Comunista Brasileiro (PCB) e por estudantes universitários, o MR-8 ficou conhecido por empreender expropriações
em bancos e o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick.
2.2. As primeiras produções

Os anos na Difilm ajudaram Adélia Sampaio a estabelecer laços que, mais tarde,
seriam fundamentais para o seguimento de projetos pessoais. Em 1972, quando ela deixa a
distribuidora, avança na carreira, trabalhando inicialmente em várias frentes, como assistente de
produção, continuísta e maquiadora. O aprendizado sobre produção e direção também viera da
experiência  adquirida  junto a Eliana e William Cobbet, que sempre envolviam Adélia nos seus
projetos. A partir de então, a produção começou a ser o forte de sua carreira. Logo em seguida à
fundação de sua própria produtora, a A. F. Produções Artísticas, já assinaria a produção executiva
de O segredo da rosa (1974), primeiro longa dirigido pela atriz Vanja Orico e tendo a A. F.
Produções Artísticas como uma das companhias produtoras. Depois da empreitada com Vanja
Orico, Adélia trabalhou na direção de produção dos seguintes filmes: A cartomante (Marcos
Farias, 1974), O monstro de Santa Teresa (William Cobbett, 1975), O seminarista (Geraldo
Santos Pereira, 1976), O Coronel e o Lobisomen (Alcino Diniz, 1978) e O Grande Palhaço
(William Cobbett, 1980).

Paralelamente ao cinema, investiu também na produção de teatro. Entre esses trabalhos estão
algumas peças escritas pelo já ex-marido Pedro Porfírio, que seguiu a carreira de dramaturgo ao
sair da prisão. Como teatrólogo, Porfírio escreveu oito peças, dentre elas, o sucesso de bilheteria
O bom burguês (1977), obra que passou a constar nas listas de textos censurados pela ditadura
(REIMÃO, 2014).

No final dos anos 1970, A.F. Produções Artísticas assina a produção de dois trabalhos,
ainda pouco estudados na cinematografia nacional, são eles: Ele, ela, quem? (1977), último filme
dirigido por Luiz (Lulu) de Barros, e Parceiros da aventura (1979), primeiro longa-metragem do
fotógrafo José Medeiros. Ambos os filmes conseguiram diferentes tipos de financiamentos para
realização junto à Embrafilme. Quanto ao teor destes encontros, Adélia relata:

Eu aprendi muito [sobre]  a coisa do ângulo com o José Medeiros, que é


muito amigo meu. Em todo momento que a gente estava junto - fizemos
alguns filmes onde ele era diretor de fotografia -, nas folgas, o nosso papo era
em função de uma aula teórica e, ao mesmo tempo, prática. Como posicionar
a câmera, de que maneira explorar o ângulo para avaliar a estrutura do ator. E
paralelamente a isso, lendo muitos livros sobre cinema. [...] Eu aprendi muito
também com o Lulu de Barros, pois o último filme dele fui eu que respondi
pelo financiamento junto à Embrafilme, e o Lulu é um cara que nunca fez
copião na vida dele. Ele montava no negativo. Ter podido acompanhar o
Lulu durante dois meses dentro de uma sala hermeticamente  fechada,
cortando negativo, sem ouvir o som, deu para descobrir uma outra magia,
uma segurança (FILME CULTURA, 1988: 90).

2.3. Os primeiros filmes

Depois desses trabalhos, Adélia Sampaio começou a dirigir seus primeiros filmes, curtas-
metragens, no final da década de 1970. Infelizmente são raras e insuficientes as informações
encontradas sobre essas obras245. Segundo a própria cineasta, as cópias de seus curtas foram
depositadas na Cinemateca do MAM (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) e sumiram.
Indagada sobre o posicionamento da instituição quanto ao material perdido, ela explica: “nunca
me deram nenhuma explicação. Houve uma época em que uns meninos de cinema propuseram
fazer uma varredura no MAM, mas o Sr. Hernani246 não autorizou.” (SAMPAIO, 2017)

O primeiro desses curtas, a ficção Denúncia Vazia (1980), é baseada em uma notícia de
jornal. Um casal de velhinhos aposentados recebe uma ordem de despejo (denúncia vazia) e,
sem condições de pagar o aluguel, resolve se suicidar deixando um bilhete para as autoridades.
O filme foi protagonizado por Rodolfo Arena e Catalina Bonaki247, atores do cinema e do teatro.
Em entrevista, ela falou sobre a experiência que teve com os primeiros curtas:

Meus curtas, quase todos, foram produzidos com pontas de película que

245 As informações técnicas referentes aos filmes foram obtidas na base de dados Filmografia
Brasileira, da Cinemateca Brasileira e na concatenação de relatos da diretora. 
246 Hernani Heffner é conservador, professor e curador audiovisual. Coordena o setor de preserva-
ção da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro desde 1996 (BLANK, 2016, p. 334).
247 A grafia do sobrenome da atriz difere em algumas publicações. Na ficha técnica de Denúncia
vazia aparece como Bonack (FILMOGRAFIA BRASILEIRA).
sobravam. Como era amiga dos assistentes de fotografia, eles sempre
guardavam para mim. Envolvia num plástico, enrolava jornal, punha na
geladeira até ter o número de pontas suficiente para rodar. Foram curtas
rodados em 1 por 1, não teria como ser de outra forma. Em Denúncia vazia
chamei Paulão, eterno assistente de câmera de Zé Medeiros, para estrear
comigo. Ou seja, dois negros no comando, tudo com a bênção e proteção
de Zé Medeiros. Li a notícia dos velhinhos que se suicidaram por não ter
como alugar outro apartamento, escrevi uma breve sinopse e fui atrás do
ator premiado Rodolfo Arena para convidá-lo pro filme, com promessa de
pagar no mês seguinte. Ele topou. O doido é que ele não quis receber o cachê
e disse “não esqueça menina, que eu fui o primeiro”. Arena era uma das
pessoas mais generosas. O orçamento minha irmã que fez. O equipamento
de câmera e luz, Roberto Machado nos emprestou e não cobrou. A equipe: os
meus amigos que faziam em torno de mim um ajuntamento. Cinema é a arte
do coletivo. Tive o apoio total de Mario Falaschi248, que conseguiu que Luiz
Severiano Ribeiro lançasse o [primeiro] curta que ficou em cartaz pelo Brasil
afora. Os outros foram de ponta [de película] e com rendimentos do Denúncia
Vazia. Vivi um bom tempo com grana da lei do curta249. (SAMPAIO, 2017).

A estratégia deu bons resultados. No dia 26 de outubro de 1979, seu primeiro curta-
metragem, Denúncia Vazia, fazia parte da programação de dez cinemas no Rio de Janeiro, sendo
eles: Leblon-1, Tijuca, Copacabana, Capri, Palácio-2, Leblon-2, Rian, São Luiz, Tijuca-Palace e
Santa Alice (JORNAL DO BRASIL, 1979: 8).

O segundo curta-metragem, a ficção de oito minutos chamada Adulto não brinca (1980),
aborda a violência e o universo infantil da Baixada Fluminense, como consta em breve sinopse:
“A tradição da malhação do Judas num subúrbio. O boneco é colocado na rua como um cadáver
e um bando de crianças se vê às voltas com as consequências dessa inovação”. O elenco do curta
contava com o filho da própria cineasta, Vladimir Sampaio (FILMOGRAFIA BRASILEIRA).

O terceiro trabalho, Agora um Deus Dança em Mim (1981), protagonizado pela sobrinha,
Tatiana Cobbett, é um documentário de sete minutos sobre as dificuldades enfrentadas por jovens
bailarinos no Brasil, como falta de perspectivas e espaços para se exibirem. Sampaio mais uma

248 Mario Falaschi foi um distribuidor ítalo-brasileiro, dono da Unida Filmes, uma das primeiras distribuidoras de filmes
brasileiros do circuito independente (MELO, 2008, p. 381).
249 Criada em 1975, a Lei do Curta-metragem,  base da “Lei do Curta” (base no artigo 13 da Lei Federal 6.281 de 9
de dezembro de 1975), determinava a obrigatoriedade de inclusão de curtas-metragens nacionais na programação das
salas de cinema brasileiras antes das sessões de filmes estrangeiros.
vez usa de sua rede de contatos para distribuir o trabalho. “Com ajuda de meu amigo Mario
Falaschi, o curta estreou com o filme ET e, claro, deu dinheiro” (SAMPAIO, 2007). Já Na poeira
das ruas (1982), seu quarto curta, se trata de um documentário de seis minutos sobre a realidade
das pessoas que moram nas ruas. Segundo a ficha técnica, o filme estabelece um “contraponto
entre o Rio de Janeiro e a cidade maravilhosa” (FILMOGRAFIA BRASILEIRA).

Em entrevista às cineastas Juliana Gonçalves e Renata Martins, concedida em 2016, Sampaio


admite que seus três primeiros curtas foram rodados com a mesma equipe, tendo muitos de seus
amigos próximos envolvidos nos projetos (GONÇALVES; MARTINS, 2016). Tal prática era
bastante comum nas produções cinematográficas brasileiras, onde os profissionais costumavam
participar da produção dos filmes dos colegas. Adélia criou laços de amizades com pessoas que
tinham bastante atuação no cinema nacional e teceu sua rede profissional: “consegui, como
diretora de produção, manter uma relação muito próxima com todos os diretores de longas com
os quais eu trabalhei, e aprendi muito com eles.” (FILME CULTURA, 1988: 90). É importante
ressaltar que essa rede profissional criada por Adélia pode ser estabelecida, primeiramente,
através das relações familiares (a irmã e o cunhado, como já foi mostrado acima), que tiveram
papel importante ao longo de sua carreira e a ajudaram a expandir suas conexões com outros
profissionais. O caminho, desde os primeiros trabalhos “em família”, levou Adélia Sampaio a ser
responsável pela produção, roteiro e/ou direção de mais de 70 filmes, segundo Ferreira e Souza
(2017: 176).

2.4. O sonho de amor maldito

Com a bagagem adquirida de quase duas décadas de trabalho no cinema, juntamente


com a da produção dos curtas-metragens, Adélia partiu para a realização do seu primeiro longa-
metragem. À Filme Cultura de 1988 ela contou como a ideia do filme surgiu:

O projeto nasceu a partir de recortes de jornais que o José Louzeiro tinha,


porque é uma história verídica. A gente reuniu os atores, sem nenhuma
perspectiva de dinheiro objetiva para dirigir o trabalho, e o roteiro fluiu
através de várias reuniões que fizemos na casa do Louzeiro. Foram notícias
de jornais, baseadas num papo, e para espanto da gente deu manchete uma
vez na Última Hora, a coisa tomou um cunho de sensacionalismo. (FILME
CULTURA, 1988: 89)
Assim como seu primeiro curta-metragem, Denúncia Vazia, Amor maldito nasceu baseado
em uma situação real, que ocorreu no bairro de Jacarepaguá. O julgamento, que aconteceu em 27
e 28 de junho de 1980, foi noticiado por jornais de grande circulação no Rio de Janeiro. O jornal
O Fluminense, inclusive estampou na capa de sua edição do dia 27 uma foto da ré no tribunal com
a manchete, “Júri do amor maldito”, em destaque. A linguagem sensacionalista das reportagens
inspirou o roteirista José Louzeiro, que já havia escrito e adaptado Lúcio Flávio, o passageiro da
agonia (1978), Pixote: a lei do mais fraco (1978), ambos sucessos dirigidos por Hector Babenco.
Escritor e roteirista, o maranhense José Louzeiro iniciou sua carreira no jornalismo, onde atuou
por cerca de vinte anos. Foi nesse período que conheceu Adélia Sampaio, no jornal Correio da
Manhã, onde Louzeiro e o ex-marido de Adélia trabalhavam. E a bagagem de todos os anos
na imprensa carioca apareceu na escrita de Louzeiro, que se especializou no estilo literário do
romance-reportagem. Daí a afinidade pelo tema abordado em Amor maldito. Para a elaboração
final do roteiro, José Louzeiro contou com ajuda de toda a equipe. À reportagem, veiculada meses
antes da estreia do longa, em 27 de fevereiro de 1983, no jornal O Fluminense, Adélia contou um
pouco como foi aquele processo:

O desenvolvimento do meu argumento no roteiro definitivo levou cerca de


um ano e foi feito de uma maneira inédita a nível de Brasil: atores e técnicos
participaram, juntamente com a diretora e o roteirista, na elaboração do
roteiro. Isso foi importante na medida em que cada ator deu sua própria visão
do seu personagem, o que os faz se entregar aos papéis com uma vontade
fora do comum. (ALVES, 1983)

Assim que o roteiro de Amor maldito ficou pronto, em 1982, Adélia partiu para produzir o
filme. No entanto, o projeto quase não saiu do papel. O principal motivo, a falta de recursos, foi
agravado pela não aprovação de financiamento pela Embrafilme, o que levou a equipe a procurar
outros meios para produzi-lo. Segundo Adélia:

A Embrafilme foi categórica em me dizer que esta temática era absurda,


por isso não me daria financiamento. O filme foi rodado em sistema de
cooperativa, todos receberam apenas uma ajuda de custo e atores como
Emiliano Queiroz, Nildo Parente e Neusa Amaral abriram mão do pró-labore,
ou seja, compraram a minha briga (no meu caminho de cinema fiz grandes
amigos e aliados). Tivemos uma ajuda financeira de uma engenheira de
Furnas, Edy Santos250, que apostou no projeto. (GONÇALVES, MARTINS,
250 A grafia do nome e sobrenome da produtora varia em diversas publicações. Na ficha técnica de
Amor maldito, consta “Edy Lima” entre os produtores associados (FILMOGRAFIA BRASILEIRA). Nos
2016).

Parte do financiamento para a realização do filme foi concedido por essa engenheira, que
conheceu Adélia quando esta dirigiu um espetáculo teatral com os funcionários de sua empresa.
Entre as dificuldades e a colaboração de amigos e parceiros, a diretora adotou um modelo de
produção e o filme foi realizado em um sistema cooperativa. Nas palavras de Adélia, o sistema
significava que “todos teriam um percentual e receberiam algum em espécie” (SAMPAIO, 2017).

O esquema já havia sido praticado por Sampaio e por outros produtores brasileiros, tanto
no cinema quanto no teatro e continua viabilizando produções até hoje. Na reportagem d’O
Fluminense, podemos entender um pouco mais desse processo nas palavras da cineasta:

Nós levamos um ano tentando levantar o dinheiro necessário para a realização


do filme. Conseguimos 40% do total com uma engenheira elétrica, Edir
(sic) Gonçalves Lima da Silva, que não tinha nenhuma ligação anterior com
cinema. Os outros 60% foram conseguidos com os técnicos e com os atores.
Esse sistema cooperativista é o único caminho, a meu ver, para conseguir
fazer um bom trabalho se você for estreante ou não estiver a fim de entrar
num esquemão (ALVES, 1983).

Para evitar depender do “esquemão”, Adélia explica como compôs o financiamento do


filme: “O José Medeiros botou algum dinheiro, o João Elias entrou com o laboratório, e a gente
foi fazendo composições, naturalmente uma colcha de retalhos, e consegui fazer o filme na época
por 30 mil cruzeiros” (FILME CULTURA, 1988, p. 92). A iniciativa de Sampaio virou notícia
no jornal Tribuna da imprensa, no dia 6 de maio de 1983: “neste filme, pela primeira vez no
cinema nacional, desde os produtores à camareira, receberão além do cachê, previsto na tabela
do sindicato, um percentual sobre os direitos de exibição, outra tacada desta vanguardista que é
Adélia Sampaio” (ASSIS ,1983).

créditos iniciais do filme, o nome que aparece é “Hedy Lima”.


2.5. Condições de produção

O esquema de produção adotado por Sampaio refletia os percalços da indústria


cinematográfica nacional, principalmente em relação aos cineastas iniciantes. Naquela época, a
Empresa Brasileira de Filmes S/A (Embrafilme), órgão estatal que distribuía e produzia filmes
brasileiros, desempenhava um papel significativo na conquista de mercado para os filmes
nacionais. Criada em 1969 pelos militares, a Embrafilme era uma empresa de economia mista,
com 70% de capital da União, que tinha como objetivos principais a promoção e distribuição de
filmes no exterior. A partir de 1970 foram concedidos os primeiros financiamentos, com o foco
inicial em empresas e produtores. E, ao longo dessa década, o órgão encampou de modo direto
as principais lutas do cinema brasileiro, como o aumento da reserva de mercado para filmes
nacionais, exibição obrigatória de curtas nacionais antes dos longas estrangeiros e o recolhimento
compulsório da renda dos filmes estrangeiros (AMANCIO, 2007). Foi na gestão de Roberto Farias,
entre 1974 e 1978, que vieram os financiamentos para diretores estreantes. Os critérios para a
seleção das obras financiadas tinham por base, além do roteiro, o currículo dos proponentes. Para
a Embrafilme, diretores estreantes eram aqueles que comprovassem uma das várias atividades
profissionais a seguir: Roteirista e ou/ argumentista, Diretor de fotografia, cenógrafo, assistente
de direção, diretor de produção, montador, ator, diretor de curta-metragem, portador de título de
curso superior de cinema (AMANCIO, 1989, s.p.).

Além de possuir os critérios adequados ao edital, Adélia Sampaio já havia construído uma
longa carreira no cinema. Sua produtora, a A. F. Produções Artísticas, já havia sido contemplada
em dois editais para coprodução junto à Embrafilme, com os longas-metragens Parceiros de
aventura (José Medeiros, 1979) e Ele, ela, quem? (Luiz de Barros, 1977). No parecer de aprovação
do longa Ele, ela, quem?, podemos verificar uma preocupação da Embrafilme quanto ao conteúdo
das obras financiadas pelo órgão, principalmente quanto ao teor erótico. Como consta abaixo:

Bom argumento e, apesar da aparência, não se pode considerar a sinopse


como pornográfica. Pelo currículo de Luiz de Barros percebe-se que ele
sempre procurou fazer filmes de interesse do momento. E o assunto desta
sinopse é real e de fato uma coisa nova. (AMANCIO, 1989)

O “assunto real” indicado no parecer é o hermafroditismo e, para usar um termo de hoje, a


transgeneridade. O filme conta a história de Elvira, filha de um engenheiro viúvo que, por trabalhar
na Transamazônica, deixa a menina morando num internato só para moças no Rio de Janeiro.
Lá, Elvira acaba se interessando por uma das moças, sendo que ambas se sentem culpadas pelos
seus desejos. Mais tarde, em uma visita médica descobre-se que Elvira é hermafrodita e decide
assumir o gênero masculino, a partir de então.

Quando Ele, ela, quem? Foi rodado, em 1977, o discurso oficial do regime militar
valorizava a família, a ideia de que a modernidade viria através da educação moral e cívica, e do
trabalho árduo. De alguma forma, a ditadura pressionava as produções para que fugissem desses
valores, seja na censura direta, seja num comportamento de autocensura praticado por muitos
cineastas. Por isso, os avaliadores da Embrafilme estavam acostumados a associar obras sobre
relacionamentos lésbicos diretamente ao erotismo. No entanto, na filmografia brasileira, nem
sempre essa associação direta ao abjeto esteve implícita. Na dissertação À procura das origens
de um cinema queer brasileiro, Mateus Nagime (2016) encontra em Poeira de estrelas (Moacyr
Fenelon, 1948) uma das primeiras tensões românticas entre duas personagens mulheres em nossa
cinematografia. O filme conta a história da amizade de uma dupla de cantoras que se separa
quando uma abandona o teatro para se casar com um homem. Para Nagime, o longa retrata a
sexualidade e fluidez de gênero de forma mais “direta”, vista a partir de uma perspectiva queer.
Em sua dissertação, Nagime explica essa leitura sobre Poeira das estrelas:

O queer, é importante lembrar, não necessariamente denota uma relação


sexual, e pode mesmo deixar essa questão em aberto. O queer diz respeito
a personagens cujos desejos sexuais e românticos não obedecem a normas
pré-estabelecidas ou são mesmo desconhecidos por elas próprias. Podemos
observar claramente isto em Poeira de estrelas, seja supondo uma relação
consumada ou platônica, seja por parte das duas ou apenas por Sônia.
(NAGIME, 2016: 93)

A leitura do queer que Nagine faz de Poeira... mostra um eficaz exemplo (ainda que
um dos poucos) de uma produção cinematográfica que expõe sexualidades não dominantes de
maneira não condenatória. Esse tipo de abordagem volta a aparecer mais tarde, a partir da década
de 1970, quando a temática gay ganha espaço no cinema, o número de filmes que abordam a
homossexualidade aumenta. São 60 títulos catalogados na década de 1970 contra 12 da década
anterior, segundo a pesquisa de Antônio Moreno. O pesquisador credita esse crescimento ao
aparecimento dos movimentos de liberação sexual, além de um certo fortalecimento da indústria
nacional promovido pela Embrafilme (MORENO, 1995). Na mesma década, aparecem também
os filmes da chamada Boca do Lixo, em que muitos deles abordavam o homossexualismo.

Situada no centro de São Paulo, a Boca do Lixo se destacou a partir do final dos anos 1960
com um esquema de produção de baixo orçamento, que iria estabelecer um contraponto ao modelo
de financiamento estatal da Embrafilme. O sucesso de seus filmes estava relacionado, também,
ao seu apelo sexual. Na época, uma confluência de fatores econômicos e culturais proporcionou
ao cinema brasileiro uma grande produção de filmes eróticos, homogeneizados sob o rótulo de
pornochanchadas, no qual alguns títulos provenientes da Boca foram classificados. O termo,
resultado das junções das palavras “pornô” com “chanchada”, foi cunhado para ser pejorativo
pelos críticos que viam os filmes como apelativos, grosseiros e vulgares. Alessandra Soares
Brandão e Ramayana Lira de Souza entendem que as pornochanchadas e os filmes eróticos mais
“sérios” foram uma resposta às transformações sociais que ocorreram na sociedade brasileira,
que passava por uma verdadeira revolução sexual (2017: 36).

Na visão de Jean-Claude Bernardet, mesmo que os filmes lidassem com assuntos como
liberação feminina e a liberdade sexual, eles o faziam de maneira conservadora. Para o crítico,
as pornochanchadas funcionavam como extensão da repressão sexual: “a alusão ao proibido
sexual não tem nenhum efeito realmente libertador, já que ele se dá num quadro de valores que
alimentam a restrição (a família, o machismo, etc.)” (BERNARDET, 2009: 207). De todo modo,
filmes classificados como pornochanchadas tinham grande público e se mantiveram até a década
de 1980, com um êxito que, junto com as leis de obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais,
movimentava a indústria cinematográfica brasileira.

Além do sucesso, a complexidade das pornochanchadas se apresentava na composição


de elementos ideologicamente ambíguos. Por um lado, eram vistos como filmes despolitizados,
amigos do regime e por outro, contra a moral por falarem de traição, revolução sexual e conterem
nudez. Nuno Cesar Abreu acrescenta que os críticos consideravam esse apanhado de filmes como
“fruto de um momento de forte repressão do poder à produção cultural”, “feito para um povo sem
contato com a realidade do país” (1996:76 apud CAVALCANTE, 2017: 152).

É nesse cenário que Amor maldito chegou ao cinema no dia 13 de agosto de 1984, com 8
sessões diárias na sala Olido 1, localizada no centro de São Paulo. Sobre a estreia comercial do
filme, Adélia contou para Gonçalves e Martins:

Terminamos o filme e na hora da exibição nenhum dono de cinema queria o


filme. Até que o dono do Cine Paulista me propõe transvestir a divulgação da
porta como se fosse um filme pornô. Pensei, discuti com a galera e topamos.
Deu certo (GONÇALVES, MARTINS, 2016).
Alguns dias depois o crítico Leon Cakoff lamentou o que ele chama de “onda pornográfica”
logo nas primeiras linhas de sua resenha sobre Amor maldito:

Um filme de estreia bem intencionado em meio a um mercado conturbado


e desmantelado pela onda pornográfica - onda que nos chega atrasada como
todas as outras - dá bem a ideia de fim de era. Não há espaço para boas
intenções. O produto intermediário entre a obra-prima e a concessão aos
apelos de erotismo também fica sem público, pois este deve estar bestificado
após tantos anos de censura e sente-se enganado diante de um filme que
não dá vazão à sua fantasia e perversões. Ao contrário, Amor maldito, da
estreante Adélia Sampaio, busca explicação para tanta bestialidade que
enreda a patética mitologia do sexo descartável, de consumo. E, de quebra,
oferece uma pequena antologia de sexo com sentimentos de culpa. (FOLHA
DE S.PAULO, 1984)

Alcilene Cavalcante relembra em como o momento vivido no cinema nacional influenciou


a adoção de tal subterfúgio: “essa estratégia de distribuição do filme apoiou-se no fato de a
pornochanchada ter atravessado os anos 1970 de maneira exitosa, alcançando o público popular,
sendo ainda um gênero muito frequentado nos anos 1980” (CAVALCANTE, 2016: 144).

Mesmo com a promoção no cartaz, o longa permaneceu em cartaz em São Paulo por apenas
duas semanas antes de seguir para Brasília, onde circulou por mais três semanas, segundo Sampaio
(FILME CULTURA, 1988: 92). No circuito carioca, a distribuição foi mais difícil que nos dois
primeiros, segundo admitiu Sampaio: “viemos para o Rio para tentar lançar e não conseguimos
espaço” (FILME CULTURA, 1988: 92). O que explica a quase inexistente menção ao filme na
programação dos cinemas comerciais locais.

Apesar de tantas dificuldades, o sonho de infância de Adélia fora alcançado: Amor maldito
conseguiu ser finalizado, lançado e distribuído. É importante lembrar que o filme foi financiado
de forma diferenciada dos esquemas de produção comuns àquela época, via editais da Embrafilme
ou, como na Boca do Lixo, se realizando num esquema de cooperativa. Assim, o filme pagou suas
dívidas e, como combinado, todos receberam sua parte, segundo Sampaio (2017). Além disso,
foi o único filme brasileiro naquele ano convidado para o San Francisco International Lesbian
and Gay Film Festival, nos Estados Unidos. Foi exibido lá no dia 22 de junho de 1984, um pouco
antes da estreia em circuito comercial brasileiro. Adélia relembra:
Fomos convidados para exibi-lo também no festival de cinema Gay de São
Francisco, mas, para o filme sair, tínhamos que conseguir uma passagem,
pela Embrafilme. Foi punk. Entreguei toda a papelada e, para minha surpresa,
mandaram o filme Asa Branca, que não abordava sequer a temática. Mais
uma vez, entendi que ser pobre e preta no cinema dá nisso.  (E ONLINE,
2016)

O caso descrito acima é mais um dos obstáculos enfrentados pela cineasta, que nunca
deixou de apontar as dificuldades para fazer cinema no país, mas também criou oportunidades
para trabalhar seus filmes, mesmo em uma área que, durante muito tempo, foi dominada por
homens brancos de classe média e alta. Sem espaço, reconhecimento ou dinheiro, a situação de
Adélia somaria ainda a questão racial, que desde aquela época fazia parte de seu discurso político.
Alcilene Cavalcante encontrou em uma entrevista, na ocasião de lançamento de Amor maldito,
um relato que destaca a experiência de Sampaio: “No meu caso - constata sem rancor - tudo se
agrava, pois não tenho respaldo especial, nem ascendência que me recomende. E ainda por cima,
sou criola” (CAVALCANTE, 2017: 70).

A postura da cineasta quanto a tais questões não mudou com o passar dos anos. Em 2016,
quando perguntada sobre os preconceitos sofridos no ambiente profissional, ela afirmou: “cinema
é, sem dúvida, uma arte elitista, aí chega uma preta, filha de empregada doméstica e diz que vai
chegar à direção, claro que foi difícil!” (GONÇALVES, MARTINS, 2016). A trajetória de Adélia
segue o mesmo caminho de dificuldades de outras personagens pobres e negras brasileiras. E isso
se estende também a exclusão dos cargos de comando do audiovisual. Suas palavras resumem
isso bem:

Toquei minha vida acreditando que seria capaz de realizar filmes e jamais,
em tempo algum, desejei ser vanguarda. A síntese era simples – uma jovem
pobre negra com sonhos de se debruçar em uma janela cinematográfica e,
através dela, falar do que via, pensava e acreditava. (FILME CULTURA,
2018: 22)

Sua carreira no cinema tinha que driblar os limites das barreiras de classe social, racismo
e machismo, que continuam a marginalizar histórias de mulheres negras ainda hoje. Tão
sintomático, que o segundo longa-metragem brasileiro com direção solo de mulher negra a ser
lançado comercialmente no país demorou 34 anos para sair. Coube a diretora Camila de Moraes
com o documentário O caso do homem errado (2018) quebrar essa lacuna histórica (PINTO,
2018).

Novamente vale destacar, além do pioneirismo, o protagonismo de Adélia Sampaio no


controle quase total sobre a sua obra. Ainda na década de 1980, dirigiu o documentário, Fugindo
do passado251 (1987), e em 2004, co-dirigiu o longa o filme AI-5 – O Dia que não existiu, com
Paulo Markum, ambos tendo como tema a ditadura militar brasileira. Além disso, em 1991 fez o
curta documentário Scliar: A Persistência da Paisagem e na mesma época em que trabalhou com
teatro, onde permanece por oito anos como assistente de direção de Miguel Falabella (SAMPAIO,
2017). Mesmo que as dificuldades fossem maiores para uma mulher, negra e pobre fazer cinema,
Adélia Sampaio concebeu, produziu e dirigiu seus filmes, ocupando um importante episódio da
história do cinema brasileiro que por muito tempo permanecera apagado.

251 Na Filmografia Brasileira, Um drink para tetéia e História banal constam como títulos alternati-
vos
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Giovanna Picanço Consentini - Jornalista, pesquisadora de cinema e mestre
na área de imagem e som pela Universidade Federal de São Carlos, com a tese
Intersecções entre gênero e gêneros cinematográficos em Amor Maldito (1984), de
Adélia Sampaio.
Parte 3

Documentário, Política e História


19. El cine documental y los movimientos sociales en México

Aleksandra Jablonska Zaborowska

Introducción

En México, el cine documental cobró mucha importancia a medida que, por una parte, los
conflictos sociales fueron escalando a partir de la implementación de las políticas neoliberales,
y por la otra parte, los sectores sociales que se declararon en resistencia frente a dichas políticas
y emprendieron diversas actividades de protesta, fueron excluidos de los medios de comunica-
ción hegemónicos, así como de otros canales de diálogo político significativo. Armand Mattelart
acuñó el concepto de “excomunicación” para referirse a esta situación (MATELLART citado por
RYAN, H. E. ,2016)252. Las excomunicaciones en América Latina, como apunta Ryan, H. E., han
resultado de diversos factores relacionados que incluyen la pobreza, las inequidades persistentes,
la marginalización de grupos políticos, sociales y étnicos particulares, como legado tanto del co-
lonialismo como del autoritarismo, así como de una violenta supresión de la disidencia.
Otro factor que explica la explosión de las producciones documentales es el cambio tecno-
lógico que abarató enormemente los costos de la producción y el creciente compromiso de perso-
nas provenientes inicialmente de las clases medias urbanas con las luchas de los grupos sociales
silenciados e invisibilizados por los medios.
Ahora bien, el cine, y sobre todo el documental, suele conceptualizarse fundamentalmente como
un medio de difusión de contenidos. Dentro de esta categoría se distingue el cine de denuncia
y el cine militante, que tuvieron en América Latina claros objetivos políticos durante la década
de los 60 y 70, particularmente. Dicho cine, ampliamente estudiado, se diferencia claramente de
las maneras y formas de hacerlo en la década de los 90. En efecto, el documental de los últimos
30 años ya no es “el cine de compromiso”, ya no se concibe a sí mismo como un instrumento
de agitación cultural ni de militancia política Es más bien clasificado, por varios autores, como
perteneciente al arte popular.
El problema de esta denominación reside en la conjunción de los dos términos. Por un lado
“arte” y por el otro “lo popular”. Se trata de términos imprecisos, que en los años recientes han
sido reformulados por varios teóricos.
Ticio Escobar, después de cuestionar el concepto hegemónico del arte253, lo define como
“el conjunto de las expresiones a través de las cuales sectores subalternos movilizan el sentido
252 El libro, tal como pude comprarlo como e-book, no tiene páginas marcadas.
253 El que está en los museos y galerías, el que no tiene otro objetivo que el de ser contemplado.
social”, al tiempo que permiten intensificar la comprensión de sí mismos y de la realidad y actuar
como una posibilidad política de réplica” (ESCOBAR, T. citado en GARCÍA, S. y P. BELÉN,
2016: 10). Así, arte popular, concepto esquivo y ambiguo, abarca un amplio espacio social, en
que caben lo mismo grafiti y pinturas murales, que performance y el cine. Hay que subrayar su
carácter cambiante, dinámico, en ocasiones efímero y también su capacidad de configurar identi-
dades cambiantes y dinámicas. (BELÉN, 2016: 17)
Paola Belén define lo popular como la apropiación y elaboración particular, por parte de la
subalternidad, de la cultura de una sociedad determinada. Por consiguiente, no es algo que pueda
concebirse en forma esencialista sino relacional, por su confrontación con el sector hegemóni-
co a partir de apropiaciones y negociaciones. Por otra parte, no se trata un universo simbólico
homogéneo sino de un conjunto de fragmentos construidos a partir de concepciones del mundo
vinculadas a las distintas esferas de vida de sus autores.
De este modo, argumenta Belén, refiriéndose a las teorizaciones de Ticio Escobar, el arte
popular “se constituye frente a lo dominante como algo diferente, alternativo, opuesto o subordi-
nado” (BELÉN, 2016: 21) Pero, al mismo tiempo, “integra un proyecto de construcción histórica,
elabora simbólicamente las situaciones de las que parte, intensifica la percepción y comprensión
de lo real y actúa como un factor de autoafirmación subjetiva y una posibilidad política de ré-
plica”. En definitiva, el arte popular es “el conjunto de formas sensibles comprometidas con las
verdades del sector popular que las produce” (Ibidem).
Ahora bien, el cine que da cuenta de los movimientos sociales en México no necesaria-
mente es “popular” en su estructura y formas de financiación. Lo es, en tanto se presenta como
alternativo al cine hegemónico, plantea problemas desde la visión de la subalternidad, etc. Este es
el caso de la película Istmeño, viento de rebeldía de Aléssi Dell’Umbria y de Dios nunca muere
de Roberto Olivares.

El movimiento de las comunidades del Istmo de Tehuantepec en contra de las empresas eó-
licas en el documental Istmeño, vientos de rebeldía.

En el contexto del creciente interés por el conflicto, Aléssi Del´Umbria, filmó Istmeño,
viento de rebeldía, documental que se estrenó en 2014. En enero de 2015 lo proyectó en el Con-
greso Nacional Indígena.
¿Cómo trata el conflicto en el Istmo de Tehuantepec la película? Tras una breve intro-
ducción en que vemos a hombres y mujeres dialogando con algún tipo de autoridad, dos hom-
bres con expresión mustia, que se muestran molestos por la presencia de la cámara, y una rápida
respuesta que informa a los hombres de que por encima de su autoridad está la de la Asamblea
Popular, que ya autorizó la filmación. Luego aparece el título del filme y la dedicatoria: “en me-
moria de Héctor Regalado Jiménez, pescador de Juchitan asesinado el 21 de julio de 2013 por los
pistoleros de la empresa eólica Unión Fenosa”.
Una de las características del lenguaje audiovisual es precisamente ésta: puede introducir-
nos en el tema, en el punto de vista con el que se va a tratarlo, muy rápidamente, con un lenguaje
que no sólo puede sino debe ser lo más conciso posible. Así que ya tenemos los elementos funda-
mentales para saber de qué va a tratar el filme: el conflicto entre la población de la región, que se
autogobierna mediante sus propias instituciones, entre las cuales la asamblea, cuenta con mayor
legitimidad y autoridad, y los representantes de algún nivel del gobierno, que preferirían quedar
“en lo oscurito” porque, en realidad, representan los intereses de las empresas trasnacionales.
Estas empresas enfrentan a la población local no sólo con contratos amañados, sino a través de la
violencia extrema, el asesinato de los activistas.
A partir de este momento los espectadores iremos conociendo las causas del conflicto en la
voz de los habitantes de la región. No habrá entrevistas a los otros actores: ni a las empresas, ni a
los concesionarios, ni a los gobiernos municipal, estatal o federal. A diferencia de los textos es-
critos que buscan, por lo general, presentar una visión “balanceada” del problema (CRUZ, 2011;
GONZÁLEZ- ÁVILA, 2006), el filme toma claramente el partido por los afectados.
La película trabaja cuidadosamente con las imágenes. No sólo miramos a las personas en
su contexto. Miramos también la belleza de este entorno: los bosques, las praderas, las playas, las
lagunas con su vida natural, pájaros de diferentes especies, gatos que esperan los desechos que
van a dejar en la orilla los pescadores.
El leitmotive visual del filme son los aerogeneradores. Aparecen filmados directamente en
tomas que permiten apreciar su cantidad, su densidad, su enorme altura y fuerza. Pero también
aparecen como fondo de casi todo: están atrás de los pueblos, atrás de las personas que marchan,
como monstruos amenazantes que irrumpen en el paisaje, que lo transforman y anulan.

La película trabaja principalmente con los sonidos naturales: el viento, los pájaros y otros
animales, las olas del mar, y con las voces humanas. No hay música extradiegética. Escuchamos
sólo lo que tocan las bandas y los conjuntos musicales y también la música que proviene de algún
aparato reproductor, como la canción emblemática de Víctor Jara.
Los habitantes de la región cuentan los orígenes del proyecto eólico, tal como ellos lo han vivido.
Explican las razones de su inconformidad. Llama la atención una de ellas, que es muy importan-
te: la preservación de su cultura, de sus costumbres, de su identidad:
Nuestra población tenía ciertas particularidades, de comportamiento social, había más cohe-
sión en el núcleo familiar, más cohesión en la cuestión comunitaria. Pero desde que estos
megaproyectos empezaron, comenzó a desbaratarse esta armonía. Ya hay pleitos entre los
mismos hermanos, entre compadres, amigos. Hay divisiones muy marcadas en muchas fa-
milias, que llegan a los tribunales. Como los requisitos que teníamos, principalmente en las
escuelas, en las calles, en los lugares públicos. O íbamos a limpiar el río, y... todo eso se
perdió. Nuestras asambleas eran muy concurridas, ahí se determinaban las acciones para el
ejido, pero ahora ya ni a la asamblea va nuestra gente, ya se perdió está cultura. Actualmente
todo es pagado.
Otro hombre quiere plantar los árboles típicos del lugar (juanacaztle) alrededor del pueblo,
para delimitar lo propio, para marcar su propia identidad, para excluir a lo otro: “Queremos
mandar este mensaje, que estamos de un lado los que queremos la vida, y del otro los que están
destruyendo la tierra”.
Para los Ikoots254 el mar es sagrado. Hay espacios específicos, simbólicos, donde se le depo-
sitan las ofrendas y se hacen los rezos para que llueva, porque la mezcla del agua salada y agua
dulce, aumenta la producción de los peces y mariscos. Es un ritual ancestral y la población teme
que la presencia de los aerogeneradores vaya a perjudicarlo.
Otro motivo de la inconformidad es el despojo de las tierras comunales y ejidales, mediante
supuestos contratos. Uno de los entrevistados explica:
La ilegalidad del proceso radica en que desde 1978 prácticamente en Juchitán los bienes
comunales quedaron acéfalos, es decir, el que era el Comisariado de Bienes Comunales , la
instancia político administrativa que regula las relaciones de tenencia en las tierras comuna-
les para el caso de Juchitán y sus anexos agrarios, el asesor de este Comisariado es desapa-
recido por el ejército, en un contexto de un grave conflicto también por tierras, en este pro-
ceso de privatización en el que se confrontaban comuneros y pequeños propietarios. Esos
pequeños propietarios eran los más grandes latifundistas de Juchitán. Ellos se quedaron con
la mayor parte de los terrenos de riego. En este contexto, también a principio de los 70s,
surge el movimiento de la Coalición Obrero Campesina y Estudiantil del Istmo, la COCEI.
Ahora ha teñido descomposición y se ha convertido en un nido de corruptos.

Otro problema es la contaminación o destrucción de sus fuentes del trabajo. En la región hay
un bosque de palmares comunitario. Cualquiera podía ir a cortar ahí las palmas, que después de
un cierto proceso se mandaban a otras regiones. Ahora quieren privatizarlo, y como los comune-
254 Nombre de una de las etnias que habita en la región. La otra son los Zapotecos.
ros se han opuesto a ello, alguien quemó una gran extensión del bosque.

La contaminación del mar por los aceites que desechan los autogeneradores y el ruido que
producen, matan y ahuyentan los peces y mariscos. Para los pueblos de la zona, no es sólo un
producto para la venta, sino también para la alimentación propia, como lo atestiguan las imágenes
de mujeres preparando el pescado para después consumirlo con toda la familia.

Como lo muestra el filme, los inconformes recurren a un amplio repertorio de las acciones255.
En primer lugar, la celebración de las asambleas populares. Son el órgano de máxima autoridad
en las comunidades. Ahí se toman las decisiones y se acuerda no permitir la instalación de más
generadores. En la película se muestran varias reuniones, una de ellas es Asamblea Comunitaria
de Colonia Álvaro Obregón. Puesto que el pueblo ha sido agredido por la empresa Mareña Reno-
vable y no reciben apoyo de la policía municipal, formaron una policía comunitaria.
En segundo lugar, realizan las peregrinaciones a las capillas dedicadas a las actividades del
lugar. Observamos una de ellas, en que la gente que porta cruces verdes adornadas con flores se
dirige a la Capilla de Santa Cruz, consagrada a los pescadores. Ya en el lugar, se encienden las
velas, se reza, se canta y en la noche hay una celebración con los fuegos artificiales.

En tercer lugar, los comuneros toman las carreteras y construyen barricadas, en las que a
veces hay enfrentamientos. En una de las secuencias vemos por un lado a los policías formados
con escudos, por el otro lado, a la gente, tanto hombres como mujeres armados con palos, piedras
y resorteras.

Son muy importantes las actividades informativas: los murales en que se representa gráfi-
camente la inconformidad de los pueblos con la presencia de las empresas eólicas y información
verbal con el uso de los altavoces o a través de la radio comunitaria, por medio de la cual se trans-
mite el siguiente mensaje:

Hay ya aproximadamente 698 aerogeneradores, se habla de que lo que quieren instalar en


el Istmo de Tehuantepec es 5 mil aerogeneradores. Más bien da la impresión de que los po-
líticos están actuando como empleados de las empresas trasnacionales. Da la impresión que
los diputados, los presidentes municipales, por el lenguaje que utilizan, están pagados por
las ET.

Además de lo anterior, se emprenden acciones estrictamente legales. La gente conoce las


leyes y sabe que puede apelar a ellas. En una de las secuencias, un activista responde de este
255 Esta categoría analítica proviene de diversas teorías de los movimientos sociales, tal como ello ha
sido expuesto, entre otros, por Tamayo, S. (2016)
modo a los representantes del gobierno:
En términos de ley, porque a ustedes les gusta mucho referirse al marco constitucional. Si
ustedes como autoridad, representante popular, han tirado a la basura la voluntad del pueblo,
el pueblo tiene derecho inalienable e imprescriptible. ¿Qué quiere decir esto? En cualquier
momento el pueblo puede cambiarlos, revocarlos y poner otra autoridad. Eso está consagra-
do en el 39 constitucional. Queremos que ustedes sepan nuestra demanda, nuestro objeti-
vo. Demanda única: no queremos en nuestras tierras, en nuestras lagunas, ninguna de las
empresas extranjeras, generadoras de energía limpia entre paréntesis. Queremos el respeto
irrestricto a nuestra autonomía, a nuestra autodeterminación.

Las diversas actividades, permiten construir la unidad de los pueblos en resistencia contra
las empresas. Aunque algunas personas cuentan sobre los conflictos interétnicos y hasta intrafa-
miliares, también hay una secuencia en que se aprecia el avance en la construcción de una estra-
tegia común. Uno de los hombres explica:
los señores del gobierno pensaban que solo iban a platicar con los de Álvaro Obregón, pero
se llevaron una sorpresa cuando vieron a los compañeros de San Dionisio del Mar, de Gua-
muchil, de Santa Rosa, de Zapata y por supuesto los compañeros de la defensa de la tierra,
los compañeros de Radio Totopo , que todos intervinieron y fijaron la postura en relación
a los proyectos eólicos . Se les dio de plazo 4 días para que retiren su maquinaria, y hasta
ahora no lo han hecho.

El discurso fílmico

Ahora bien, ¿qué tipo de discurso construye el filme? Ya hemos dicho que la película re-
coge solamente el punto de vista de los afectados, por lo que difiere de los discursos presentes en
los diversos medios: radio, televisión y prensa. Es ahí donde se considera que la energía eólica
es “limpia” y, en este sentido es “objetivamente” mejor a la que se basa en los hidrocarburos. Por
eso, aunque se refieran al conflicto entre el gobierno, las empresas y los habitantes de la región,
la atribuyen principalmente a un reparto desigual de los beneficios, en detrimento de los intereses
de la población local. En consecuencia, sugieren, en el mejor de los casos, corregir esta situación
buscando retribuir a las comunidades que rentan sus tierras de manera más justa.
El discurso que despliega el filme es diferente porque recoge no sólo las opiniones, sino los
sentimientos y las emociones de las comunidades afectadas. De este modo nos cuenta la historia
de personas que piensan en forma diferente. Para la mayoría de ellos el dinero que se les ofrece
no es lo más importante: “Ya basta con la prueba de que van a echar a perder el mar, van a conta-
minar las cosas, por eso nosotros no queremos dinero. Ellos dicen que nosotros estamos peleando
por dinero pero no es así. Nos acorralan para que nos tengan como borreguitos, a su manera”,
explica una de las mujeres. Otros cuentan cómo se realiza el tequio256 en sus comunidades y su
importancia para la cohesión del pueblo. Varios de los entrevistados defienden la idea de la pose-
sión de tierras comunales o ejidales. Se oponen a su privatización.
Lo más importante es entonces su estrecha relación con la naturaleza. Diversas personas
explican ante la cámara cómo hay que tratar las lagunas, los peces, los camarones, qué se necesita
para tener buenas cosechas, para que el ganado esté bien. La naturaleza es sagrada. Se le dan las
ofrendas, se les hacen los rezos. Esta relación forma la parte más importante de su identidad.
Permitir la instalación de los parques eólicos es destruir la naturaleza y también al pueblo
que convive con ella. Es destruir sus costumbres, sus formas de producir, sus maneras de alimen-
tarse.
Sólo algunos miembros de estos pueblos hablan en español. Muchos se expresan en las
lenguas locales, que en ocasiones se traducen mediante los subtítulos (al parecer en el caso del
zapoteco) y en otras no (al parecer en el caso de lengua Ikoot).
Frente a la agresión, los habitantes de la región expresan tres argumentos fundamentales:
1. el que fueron engañados por las empresas y por los distintos niveles del gobierno, 2. El que
van a resistir a partir de su derecho a la autodeterminación y el conocimiento tanto de las leyes
internacionales como nacionales, 3. El que van a luchar hasta las últimas consecuencias en contra
de la intromisión de las empresas y del gobierno.
Predomina la idea del engaño, en que participaron el gobierno estatal y federal, las empre-
sas, los “coyotes” reclutados en el propio pueblo, la COCEI y hasta las instituciones educativas
como el Tecnológico. Un hombre desarrolla un discurso complejo en que se entretejen las formas
en que fueron engañados y por qué creen que las empresas van a destruir su vida.
En 2004 llegaron los españoles buscando coyotes de la misma población para convencer a
los dueños de terrenos para alquilarlo por 100 pesos por hectárea anual para poder construir
sus ventiladores. La gente, en un principio muy ilusionada por tanto dinero, porque de casa
en casa hablaron de que si se construye un su terreno, le iban a dar anualmente 12 mil pesos.
Si se iban a construir los ventiladores en su camino le iban a dar 7, 800 pesos por hectárea.
Y árbol que tiren, iban a depositar 80 pesos por árbol. Iban a pagarle metro por metro el ter-
reno que iban a utilizar. Pero no le dieron contrato, fue puro compromiso hablado. Y cuando
por fin se les escapó uno de los contratos que tengo en mi poder el día de hoy, vi que las 16
cláusulas del contrato, todo era a favor de la empresa. Entonces a entregárselo a la empresa,
pierden el giro que tienen como agropecuario a industrial. Pasarían a régimen de impuesto,
cosa que no hacían. No hubo información de nada de parte de la empresa. Si ellos conta-
minan nuestras lagunas, también nos van a dejar sin alimento. Un alimento limpio, sano.

256 El tequio es trabajo no remunerado que se realiza en beneficio de la comunidad.


Es más limpio nuestro alimento que la energía limpia que ellos quieren sacar de ahí, para
contaminar el agua. No nos beneficia a los pescadores, sino a las autoridades. Por eso el
conflicto. Si perjudican la pesca, ya no va a haber jóvenes acá. No emigraremos a Estados
Unidos todos, los que podamos trabajar todavía.

En segundo lugar, los colonos hablan de la resistencia. Es un discurso construido mediante


las palabras, las imágenes (marchas, toma de carreteras, asambleas permanentes, mantas, mu-
rales) y la música.

Pero también está presente el discurso sobre una nueva colonización. Es lo que plantean los mu-
rales (“La Nueva Conquista”, “No al despojo de nuestro territorio en el Istmo de Tehuantepec,
Oax”. Abajo del letrero están pintadas las tres calaveras, al lado un conquistador, quien, en vez
del sable trae un aerogenerador), las mantas (“Concesión igual colonización”) y el discurso ha-
blado.

La rebelión y la represión de la Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca y sus implica-


ciones en la vida de las familias en Dios nunca muere

La represión al pueblo de Oaxaca que se levantó contra el repudiado gobernador Ulises


Ruíz fue brutal. El gobernador terminó su mandato tranquilamente y se restauró un orden aún
más autoritario al que existía antes del conflicto. De ahí que a los organismos de los derechos hu-
manos les preocupara restaurar la verdad sobre las víctimas civiles y exigir que se haga justicia.
Para ello se creó La Comisión de Verdad de Oaxaca, que se comprometió a presentar un informe
de su indagatoria a los 10 años de los acontecimientos sangrientos del 14 de junio de 2006. De
ahí fue surgiendo la idea de filmar un documental que acompañara dicho informe. Los autores del
filme estuvieron muy involucrados en los acontecimientos. Por un lado, Diego Osorno, periodis-
ta, presente en el conflicto y, por el otro lado, Roberto Olivares, cineasta, integrante del colectivo
Ojo de Agua Comunicación que durante la rebelión popular adoptó el nombre de Mal de Ojo Tv
y filmó los acontecimientos que tuvieron lugar en ese tiempo.
Titularon el filme Dios nunca muere, tal como se llama el himno del estado, cuya música
acompaña con frecuencia las imágenes y da cuenta de su apropiación por parte del movimiento
Como en el caso de la película anteriormente analizada, el documental, que dura una hora
y 20 minutos, hizo una selección de temas a ser tratados. Se concentra en la represión por parte
del Estado del movimiento popular y para ello escoge a cuatro personajes para que narren lo que
pasó con sus familias en 2006 y las consecuencias que ha tenido ello en sus vidas, pasados los 9
años de aquellos hechos. Trabaja con una edición que vincula constantemente el pasado con el
presente, usando para ello diversos materiales de archivo: videos grabados por Mal de Ojo Tv,
por los periodistas y particulares, así como con las fotos. Desde un principio se instaura un punto
de vista y se somete todo el material visual, auditivo (música, voces y silencios) y escrito a dicha
perspectiva: la exigencia de la justicia y la reparación de los daños a los afectados.
Los antecedentes del conflicto apenas se enuncian mediante los subtítulos a pocos minutos
de iniciado el filme: “La chispa que encendió la insurrección del 2006 en Oaxaca fue un ataque
realizado el 14 de junio al plantón de los maestros. Organizaciones y ciudadanos de a pie se su-
maron a las protestas masivas llegando a desarticular durante un momento a los tres poderes de
gobierno.”
Tras una breve secuencia de una marcha masiva, aparece otra explicación: “Como respuesta a
la revuelta, el Estado mexicano reprimió de manera desmedida a los opositores. Ejecuciones
extrajudiciales, desapariciones, actos de tortura, desplazamientos y otros delitos que constituyen
violaciones graves a los derechos humanos.”
Casi inmediatamente después se anuncia que en el filme compartirán sus historias Florida,
Juliana, Emeterio y Ramiro y que se trata de “cuatro de cientos de víctimas del conflicto del 2006
que siguen buscando la justicia”.

La película inicia en la casa de Florida, la maestra de inglés de una secundaria que está de-
sayunando con sus dos hijas. En una de las paredes cuelga un retrato familiar, Florida y su mari-
do, las dos hijas y un hijo. Inmediatamente después aborda un taxi. Con las imágenes de ella, en
primer plano, se sincroniza un audio, que nos permite comprender la situación:

Nuestro objetivo era manifestarnos contra el mal gobierno. Desde antes hubo injusticias, por
eso inició el movimiento de 2006. Durante el proceso hubo violación a los derechos huma-
nos, hubo asesinatos, represión, detenciones, torturas. Durante nuestras detenciones fuimos
sometidos a todo tipo de torturas psicológicas y físicas y después sigue la impunidad. Todo
esto nos obliga a participar en este momento histórico. Invitamos a toda la sociedad, sobre
todo las víctimas directas, a todos los que participaron en este movimiento de 2006 para que
acudan a partir de las 7 de la mañana al teatro Macedonia Alcalá donde se llevará a cabo la
sesión pública de la Comisión de la Verdad.

En la entrada al Teatro Macedonia Alcalá hay un grupo de personas. El padre Solalinde257


abre la sesión de la Comisión de la Verdad. El teatro está lleno. La cámara se detiene en la figura
de la periodista Carmen Aristegui258 quien, muy seria, toma las notas. Declara Florida sobre el
257 Sacerdote católico que se destacó por la defensa de los derechos humanos, sobre todo de los mi-
grantes que atraviesan el territorio mexicano con la esperanza de llegar a Estados Unidos.
258 Una de las más importantes y valientes periodistas de investigación en México. Ha recibido varios
asesinato de su esposo, José Colmenares, durante una marcha masiva. Pero fue él quien preci-
samente recibió el balazo. La familia sabe quién fue el autor intelectual del crimen, pero a los 9
años no ha sido enjuiciado. Y remata:

Ellos siguen disfrutando del erario público y tendrán sus puestos en los años que siguen.
Cuando hablamos de la reparación de daños integral, todos piensan en forma monetaria,
no es eso, es lo jurídico, es lo psicológico. Yo me pregunto quién nos va a reparar nuestros
corazones, quién va a reparar los corazones de nuestros hijos, de las madres, quien nos va
a quitar los golpes. Justicia, solo eso pedimos, no pedimos otra cosa. Yo sé que no pueden
reparar todo el daño que nos han hecho, todas esas secuelas que hemos sufrido.

Las imágenes del entierro y de las represiones policiacas se alternan con hermosos paisajes.
Vemos cómo avanza una puesta del sol, que se oculta tras las montañas. En el primer plano el
viento mece unas plantas color lila.

El segundo protagonista del filme, Emeterio Marino Cruz es presentado a través de su rela-
ción con el mar. Las olas están chocando con la playa. En ellas se refleja la sombra de un hombre.
En un momento más podemos ver sus pies y su bastón, que las olas apenas están rozando.

Mientras vemos el primer plano de perfil, su voz en off explica cómo se llama, de dónde
es, a que se dedicaba (“yo era muy deportista. Yo jugaba básquet, nadaba, corría”). Agrega que
participó en la lucha magisterial y que a consecuencia de la agresión de los policías tuvo un trau-
matismo cráneo- encefálico.

Del mar y la playa, la cámara nos traslada a una vivienda muy humilde, con paredes cons-
truidas con cajas de cartón. Una señora está bordando mientras escuchamos su voz en off: “Yo me
llamo Juliana López Cruz, soy de San Nicolas...tengo 7 hijos. Yo me vine a vivir acá a San Anto-
nino y ya tiene mucho tiempo cuando conocí a mi esposo… Casi no me gusta hablar mucho”. En
efecto, no será ella quien cuente su historia, sino sus amigas y vecinas.

Finalmente, en un paisaje urbano muy diferente, el de una ciudad del estado de Oregón, se
nos presenta a Ramiro, un biólogo de Tlacolula, Oaxaca, que tuvo que salir de México después
de haber sido detenido en forma arbitraria, torturado y liberado sin ninguna garantía judicial.

En el mismo orden en que fueron presentados, se irá mostrando la vida cotidiana de cada
uno de ellos. Florida sigue trabajando como maestra, visita con frecuencia el panteón con sus
hijos para adornar la tumba de su esposo, toda la familia mira fotos y videos del pasado cuando
premios internacionales.
Juan estaba con ellos. La alegría y las risas que acompañan la observación de los momentos del
pasado, cesa cuando en el video aparece Juan. La familia permanece en silencio, sus rostros re-
flejan la tristeza y una especie de desconcierto.
Emeterio se somete a los tratamientos médicos que requiere su condición, sale al mar en
la lancha, participa en las manifestaciones. Juliana borda, vende la comida en un mercado y re-
cuerda a su esposo, cuya foto ampliada está dentro de un marco vistoso. Él era Arcadio Santiago
Hernández, un hombre conocido y respetado, quien había organizado la policía comunitaria.
Fue acribillado durante uno de los rondines sin que él portara armas. Ramiro hace varios viajes
al bosque, sale para observar el comportamiento de las aves, que en meses de invierno migran
justamente a Oaxaca, juega con sus hijos, hace la vida familiar y es sometido a tratamientos psi-
cológicos.

La película finaliza con el comunicado de prensa de la Comisión de la Verdad, que de nuevo


lee el padre Solalinde:

Consignación de la ejecución extrajudicial de Arcadio Fernández Santiago, septiembre 8


de 2015. Los hechos consignados ocurrieron el 2 de octubre de 2006 en el parque conocido
como la Rotonda de las Azucenas. Mientras la policía Comunitaria realizaba rondines de vi-
gilancia sin armas de fuego, fueron atacados por personas a quienes se logró identificar como
policías municipales que actuaron por órdenes de su autoridad superior . Los acompañantes
de las victimas señalan e identifican plenamente a los indiciados de quienes reservamos la
identidad para no entorpecer la acción de la justicia, actuaron en coautoría y consumaron la
ejecución extrajudicial en pleno ejercicio de sus funciones como autoridades municipales
de San Antonino Castillo Velasco. Este hecho se considera como ejecución extrajudicial por
la participación de agentes de Estado. Además de calificarse como un delito constituye una
violación grave a los derechos humanos. La causa de la muerte del Sr Arcadio Hernández ....

Mientras su voz es silenciada, volvemos al paisaje de la puesta del sol entre las montañas.
Han pasado algunas horas, semanas, meses o años: el sol está más abajo, las montañas se ven más
negras.

La vida sigue. Vemos una nueva marcha en que se exige la libertad de los presos políticos.
En ella participa Emeterio quien explica: “yo nací en la política y viví en la política desde niño,
porque yo era de la sierra. Luchando por la defensa de pueblos indios, por sus costumbres, por
su dignidad. Aunque estoy enfermo yo sigo luchando en contra del sistema capitalista, que está
hundiendo al país en la pobreza”.
La conclusión la redactan los autores del filme que cierra con un letrero:

La Comisión de la Verdad de Oaxaca solo pudo impulsar la consignación de siete funcio-


narios públicos involucrados en la ejecución extrajudicial de Arcadio Hernández Santiago.
El 29 de febrero de 2016 concluyó sus labores entregando al gobierno un informe de más
de mil páginas en el que se detallan patrones, mecanismos, modos, operativos y nombres de
ellos actores involucrados en diversos crímenes. Ninguna autoridad ha asumido el compro-
miso de otorgar la justicia pendiente; por el contrario, persiste el intento de borrar la memo-
ria de lo sucedido en 2006.

El discurso de la película

El discurso del filme está centrado en una serie de elementos clave. En primer lugar, mues-
tra lo masivo de la protesta. Constantemente se insertan videos y fotos de marchas y concentra-
ciones que llenan el centro de la ciudad y la nutrida participación tanto de los hombres como de
las mujeres de todas las edades, vestidos con trajes típicos o de manera ordinaria. Las imágenes
dan la impresión de la unidad de los pueblos de Oaxaca, de lo compartido de sus reclamos.

El segundo elemento son los motivos de la protesta, aunque éstos sólo se anuncian: el
conflicto magisterial, la corrupción gubernamental, la represión, las desapariciones, las torturas,
las humillaciones, la llegada de las empresas mineras. Algunas de ellas se expresan verbalmente,
otras se aprecian en las pancartas que llevan los inconformes, otras aparecen en las fotos de gente
sometida, humillada, con huellas de tortura.

El filme muestra también las diversas formas de lucha, entre las cuales se destacan las mar-
chas, los mítines, las barricadas, la toma de las carreteras, la quema de los vehículos y la toma
del palacio municipal para sustituir un gobierno priista por otro popular. Es de suponer que los
autores del filme disponían justamente de este tipo de material.

El tema fundamental es la represión. Hay múltiples fotos y videos muy impresionantes y


también narraciones que dan cuenta de lo desproporcionado y selectivo de las acciones violen-
tas perpetradas por la policía federal y municipal. Aparece con mucha fuerza la búsqueda de los
desaparecidos, algunos localizados después en las diversas cárceles u hospitales, otros muertos,
otros de los nunca se supo más.

Otro de los temas es, sin duda, la búsqueda de la justicia, puesto que las víctimas no quie-
ren aceptar la indemnización monetaria sino la consignación de los responsables. Y, desde luego,
el tema de los cambios en la vida de las víctimas. Emeterio, inválido, ya no puede trabajar ni de-
dicarse a los deportes favoritos. Juliana tiene que hacerse cargo de 7 hijos, algunos de los cuales
empiezan a trabajar a una edad temprana. Ramiro, condenado a exilio reflexiona sobre lo difícil
que es no poder volver al lugar del origen y la dificultad para educar a sus hijos de acuerdo con
los valores comunitarios y de acuerdo con su cultura de origen, mientras viven en una sociedad
individualista a la que los niños van adaptándose, incluido el uso cotidiano del inglés.

En México, no hay apoyo a las víctimas, como lo subraya Florida. Las amigas de Juliana
opinan que ella quedó muy traumada después del asesinato de su esposo, pero no pudo recibir
ningún tratamiento por “la falta de recursos”. Emeterio recibe un tratamiento médico básico que
no le devuelve la vida: “cuando yo trabajé en Pochutla, yo iba a traer pescado a Puerto Ángel
diario. Los domingos pescaba bastante. Traía ostión, huevos de tortuga. Pero me quitaron la vida”
dice con dolor dibujado en el rostro.

Su esposa cuenta de cómo lo cuidaban en el hospital y del miedo que sentían. Llegó la gen-
te del gobierno y de la procuraduría para ofrecerles dinero, pero no lo aceptaron: “400 mil pesos
que me iban a dar. Yo le dije que no. Yo lo que quiero es justicia, dinero no. Y que salga sano,
caminando, como cuando lo agarraron, porque él estaba bien.”

Sólo Ramiro y su familia reciben un amplio apoyo psicológico y legal en los Estados Uni-
dos. Una mujer explica en buen español:

Entonces cuando nosotros acogimos a Ramiro y ofrecemos servicios de salud mental a su


familia, yo le digo a Ramiro: usted califica para asilo político porque lo que ha sucedido
tiene un nombre y ese nombre es tortura y las personas que han sufrido estas experiencias
pueden solicitar refugio en un país de acogida. En este momento era el estado de Oregon y
lo remitimos al abogado Chris Anderson.

El abogado habla en español con dificultad y un fuerte acento:

Para mí el caso de Ramiro fue bastante impactante porque las cosas que sufrió fueron fuer-
tes. Lo que me impactó era enterarme más de la situación política de Oaxaca y como el go-
bierno de allá era tan corrupto, y como el gobierno manejaba estructuras legales para come-
ter persecución. Por ejemplo, a Ramiro le pusieron cargos de portar armas reservadas para el
militar, pero un pretexto. No tenían bases legal, las evidencias maniobradas, toda una farsa.

¿Cómo definir esta película, hecha de fragmentos (fotos de archivo, videos, narraciones
incompletas, huecos en la historia), que se tensa en torno a las ideas del orden (de la narrativa) y el
caos (de la sociedad retratada)? Hay en ella algo del cine de denuncia. Pero hay también un claro
afán de rescatar lo individual, lo concreto, lo preciso. No obstante, atrás de las historias de cuatro
individuos tenemos la imagen de una sociedad que después de una larga lucha, fue doblegada, por
fuerzas muy superiores, inalcanzables. Los intentos de dialogar con los policías, de darle flores,
de explicar que los objetivos del pueblo son los mismos que de los que los reprimen, fracasan.
Los policías reciben ordenes que deben acatar. Un gobernador corrupto, represor, incapaz de
representar a su pueblo, sale victorioso.
Conclusiones

En los dos casos analizados, los cineastas establecieron vínculos de solidaridad y simpatía
con los movimientos sociales. A cambio recibieron su confianza. De ahí que el resultado sea la
versión de los excluidos, de los más afectados, sobre los conflictos con las empresas privadas y
con los distintos niveles de gobierno. En ningún caso se habló con los líderes. Tal vez por eso no
aparezcan en los filmes las mesas de negociación “de alto nivel”. También por eso las películas
dividan el periodo de la protesta y de confrontación en las diversas etapas, propias de los movi-
mientos sociales.

¿Cuáles serían sus principales aportaciones? Desde luego la difusión de las versiones de
los participantes directos, que no fueron exhibidas en los medios de comunicación masiva. Las
películas, al no hablar de “tendencias generales” sino de sujetos concretos y las situaciones vividas
intensifican nuestra percepción y comprensión de los acontecimientos. Enriquecen el discurso
político con elementos emotivos, sentimientos y estados de ánimo de los participantes. Generan
una “perspectiva de observación”, vale decir una construcción significativa de lo real desde el
punto de vista de los movimientos populares. Como explica Estrada, su marco de interpretación
no sólo abarca las dimensiones cognitivas (la explicación de las causas de las distintas acciones
del movimiento), sino también las ético-políticas en torno a eventos y actores. (ESTRADA, 2016:
318).

Pero también contribuyen poderosamente a la autoafirmación de los pueblos en lucha, no


sólo los que aparecen en la pantalla, sino otros, que libran sus propias batallas. Al ver como los
otros confrontaron las situaciones similares, pueden reafirmar su decisión de permanecer en el
movimiento, no sólo por defender su propia cultura y dignidad, sino también por comprender que
sus problemas son más comunes de los que se podría pensar desde su propia tierra. Eso le da una
mayor legitimidad a la lucha, al desnudar el comportamiento de las empresas, el gobierno y sus
agentes.

De hecho, éste es uno de los propósitos de los cineastas. Mostar sus filmes en lugares que
confrontan problemas similares: la expropiación de tierras y recursos de las poblaciones origina-
rias por parte de empresas privadas, que llegan con todo el apoyo del gobierno federal, estatal y
municipal. En lugar de defender a su propia población, la reprimen.

Sin duda, las películas contribuyen a construir la memoria de las luchas populares. Son
medios de concientización, propaganda, de protesta, denuncia y crítica. Pertenecen al campo del
arte político que desafía el orden social de dominación. Afirmamos que son arte porque emplean
formas creativas, que permiten el surgimiento de símbolos no perceptibles a quien no participa
directamente en la lucha o quien la observa desde cerca.

Es un cine que vuelve al realismo, a la preocupación por la condición humana. No del


cualquier ser humano sino de un subalterno que vive en un mundo gobernado por las fuerzas que
escapan a su alcance, incluso a su comprensión.

No es un arte subversivo en un sentido que le dábamos antes: no subvierte la estructura


narrativa clásica del cine259, tampoco el lenguaje fílmico, ni la estética, como lo hicieran los cines
de las vanguardias. Sin embargo, es un cine político en un sentido distinto, a medida que res-
ponde a las presiones políticas, a la ausencia de la democracia, de la justicia, del respeto por los
derechos humanos. Como plantea Vogler (2016): “de cualquier manera en cada caso el artista va
más allá de lo que quisiera su “sistema” particular. Y este “ir más allá” es la característica defini-
toria de todo arte subversivo”.

259 La estructura narrativa clásica es la que divide el relato en tres partes: inicio, desarrollo y fin.
Referências bibliográficas

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sentación de lo indecible en el arte popular latinoamericano, Belén. Unidades Académicas:
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google.com.mx/books?hl=es&lr=&id=XaSuDQAAQBAJ&oi=fnd&pg=PA1963&d-
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ne2lE#v=onepage&q=Holly%20Political%20Street%20Art&f=false
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vimientos Sociales, UAM, Colofón., 2016.
VOGLER, Amos. El cine como arte subversivo, CDMX, Secretaría de Cultura, Ambulante, 2016.

Aleksandra Jablonska Zaborowska - Mexicana por naturalización, es doctora


en historia del Arte. Trabaja en la Universidad Pedagógica Nacional y en el Posgrado
de Estudios Latinoamericanos y el de la Historia del Arte, ambos de la Universidad
Nacional Autónoma en México donde da seminarios de análisis del cine y dirige las
tesis de posgrado.
20. Saberes y quehaceres: documental interactivo

Ana Teresa Arciniegas

1. Introducción

El uso de las tecnologías de la información y la comunicación TIC en la difusión digital


y documentación del patrimonio cultural, sigue siendo una cuestión pendiente en Colombia. De
ahí que resulte necesario el desarrollo de estrategias audiovisuales que visibilicen los oficios
tradicionales del oriente colombiano, como parte de la divulgación del patrimonio cultural
inmaterial.
Las tecnologías de la información permiten mostrar los relatos en distintas unidades
formales y de sentido, grabar la historia, aislar los elementos espaciales, convirtiendo el espacio y
el tiempo en medios de desplazamiento, otorgando al espectador la posibilidad de acción y toma
de decisiones, potenciando su creatividad, invitando a que el espectador participe activamente. Se
contempló para el diseño de este hipermedia educativo el uso de animaciones en dos dimensiones,
documentales expositivos sobre cada uno de los oficios tradicionales, imágenes fotográficas en
360º, digitalización de archivo, hipervínculos a reseñas históricas, time-lapse, entre otros recursos
del arte digital.
Los hipermedia audiovisuales se caracterizan por no tener un camino establecido por el
autor, y dejan al espectador la capacidad de elegir entre varias rutas posibles, en ocasiones no hay
un comienzo establecido y casi nunca se tiene un final. Los audiovisuales hipertextuales requieren
de un lector activo, los roles de emisor y receptor pueden ser intercambiables, los contenidos
pueden ser abiertos y dependientes de las elecciones del usuario. En síntesis, en el esquema
narrativo hipertextual nociones como centro,  margen y secuencialidad  son sustituidas por la
conceptos como multilinealidad, nodos, nexos y redes, que se asemejan a las figuras rizomáticas
planteadas por Deleuze & Guattari (1985).
En el proyecto de investigación se realizó el inventario de los saberes y quehaceres
patrimoniales culturales existentes en 2 municipios de Santander: Curití y Villanueva, ubicados en
la zona del Cañón del Chicamocha, al oriente de Colombia. La investigación dio como resultado
el diseño y desarrollo de un hipermedia audiovisual que muestra el oficio tradicional de la talla
en piedra y el oficio artesanal del fique.
La vigencia de estos oficios a en la región evidencian la continuidad de los haceres y
saberes ancestrales que dan identidad regional a las comunidades. La permanencia de estos
oficios promueve una relación entre el pasado y el presente, lo que demuestra que el Patrimonio
inmaterial de una comunidad es parte decisiva en el desarrollo de la comunidad.

2. Objetivo

Realizar el inventario de los oficios, saberes y quehaceres patrimoniales culturales existentes


en dos municipios de la región de Santander, dando como resultado el diseño y desarrollo de una
propuesta práctica, un hipermedia educativo que promueve la difusión digital de dos tradiciones
artesanales: la talla en piedra y la confección de artesanías en fique. El dispositivo audiovisual
intenta difundir digitalmente el patrimonio cultural colombiano, empleando recursos del arte
digital en su elaboración como narración no lineal, el uso de geo-localización, banco multimedia
de imágenes e hipervínculos, imágenes 360º, infografías, entre otros.

3. Metodología

La metodología empleada en el proyecto es cualitativa y se divide en dos fases. Se


emplearon los métodos de investigación cualitativa, marco  teórico y muestreo, primero de
manera inductiva y luego deductiva. Apelando a la recopilación de información, paralelo a una
vigilancia epistemológica constante. El proyecto se abordó de manera secuencial en cada uno de
los municipios, desde una perspectiva cuantitativa,
3.1 Primera etapa: ceñidos siempre a los estudios, la reglamentación y las políticas
culturales de la UNESCO y del Ministerio de Cultura de la República de Colombia para el
análisis y la protección del patrimonio cultural material e inmaterial, se elaboró una base de datos,
identificación, inventario, evaluación, y registro en cada uno de los oficios tradicionales. Para
cada uno de los saberes ancestrales se realizó una revisión de fuentes y estado del arte, se validó
el inventario patrimonial y cultural existente, se realizó un trabajo de campo documentación y
evaluación.
3.2. Segunda etapa: diseño y realización del hipermedia educativo, para la comunicación
y divulgación de resultados obtenidos en la investigación. Esta etapa se subdivide en tres sub-
etapas propias del quehacer audiovisual: pre-producción (escritura del guion hipermedia y
técnico, plan de producción y de grabación); producción (rodaje en cada uno de los municipios;
y post–producción (edición no lineal de video, programación, diseño gráfico, colorización y
sonorización. Luego se alojó el hipermedia en el servidor de la Web). Finalmente, en una última
etapa se establecieron las conclusiones de la investigación
Durante las dos etapas se tuvieron en cuenta la integración y participación de las comunidades
en la identificación del patrimonio local, así como la protección y conservación del patrimonio
natural de la zona.

4. Descripción

Las narraciones audiovisuales están cambiando, el uso de internet, el empleo de nuevas


tecnologías y la oferta de productos audiovisuales en múltiples dispositivos han modificado la
forma de realizar y exhibir los audiovisuales. Como señala Scolari (2013) las nuevas formas de
comunicación digital han hecho que las narraciones audiovisuales evolucionen hasta relatos de
base intertextual, red de textos, videos, audios, etc. En consecuencia, en los proyectos transmedia
el guion será algunas veces rizomático y los contenidos tendrán esa dirección perpendicular que
permitirá que los usuarios puedan moverse entre un video, una pista de audio, una infografía,
un hipervínculo, una galería fotográfica, una animación, y otras posibilidades. El guion en
estos proyectos será una escaleta no lineal que abarca los conceptos principales a abordar en el
documental interactivo que se resume en una especie de cartografía creativa.
El término Narraciones Transmedia fue acuñado por Henry Jenkins, profesor del MIT,
en el 2003, en la revista Review del Massachusetts Institute of Technology MIT, el transmedia,
en su expresión más básica, significa historias a través de medios. Al respecto Carlos Scolari
(2013), específicamente sobre el documental transmedia, argumenta que va más allá y lleva
sus contenidos a otros medios y plataformas, buscando siempre la complicidad. El documental
transmedia necesariamente distribuye su contenido en diferentes plataformas digitales.
La plataforma utilizada para exhibir los proyectos transmedia es Internet. Los audiovisuales
alojados en la Web son de consulta permanente y están a disposición del usuario sin restricción
de tiempo. Internet proporciona a los documentalistas herramientas propicias para la creación de
proyectos que emplean narrativas no lineales.
Una de las consecuencias del cambio en el audiovisual contemporáneo es el rol que adquiere
el espectador, quien pasa de tener un rol pasivo a uno activo. El espectador ahora se vuelve más un
usuario del que se requiere una participación constante en las propuestas narrativas. Asimismo, el
rol del realizador se modifica Giannetti (2002) plantea que la conectividad, la hipertextualidad y
la interactividad son modos que están vinculados a la autoría descentralizada y a la participación
colectiva.
En consecuencia, los proyectos transmedia se convierten en una herramienta eficaz en
los procesos educativos, porque además de ser una experiencia lúdica y entretenida, tiene una
intención marcadamente pedagógica y es ante todo una experiencia didáctica. Este tipo de
formatos tienen la posibilidad de ser más llamativos para las audiencias jóvenes, debido a que
las nuevas generaciones precisan interactuar de manera constante con contenidos, pues una única
pantalla, les puede resultar en ocasiones aburrido.
Por otro lado, la producción en Colombia de audiovisuales transmedia, desde el año 2012,
ha sido creciente y hay un incipiente pero prolífico desarrollo tanto en las iniciativas de producción,
como de exhibición y de formación en el área. La mayoría de las obras no lineales tiene una
característica común y es la intención por preservar la memoria y salvaguardar el patrimonio del
país, son pocos los audiovisuales transmedia que han abordado temas patrimoniales. La mayoría
de los esfuerzos se concentran en el documental de denuncia y son de modalidad expositiva.
En este marco, surge el proyecto “Difusión digital de las manifestaciones asociadas a
los saberes y quehaceres culturales en Santander. Hipermedia educativo para la apropiación
de los oficios tradicionales en la región”, como una posibilidad a través del uso de las TIC
para la promoción, protección y divulgación de los oficios tradicionales patrimoniales, dirigida
fundamentalmente a nueva audiencias.
La utilización de las tecnologías de la información y la comunicación (TIC) han establecido
una forma diferente de configurar los espacios del conocimiento, transformando las prácticas de
la pedagogía, permitiendo así conexiones transversales con el saber. El flujo de información,
la incesante transformación de las tecnologías de la comunicación y el acceso irrestricto al
conocimiento se han convertido en una constante en los nuevos medios de comunicación. A las
implicaciones culturales de las nuevas tecnologías de la información y la comunicación en la
sociedad se les ha denominado con el término cibercultura Lévy (2007) y los estudios de esa nueva
relación que se establece con el saber, se han configurado desde diversas corrientes que van desde
la cultura visual, las implementaciones tecnológicas, hasta los métodos de aprendizaje en estas
nuevas plataformas. La iniciativa de relacionar las TIC con la difusión del patrimonio cultural
responde a la necesidad de contar con medios de comunicación y divulgación que promuevan la
conservación y la puesta en valor del patrimonio cultural.
La relación entre lo patrimonial y lo tecnológico será esa conjunción de la naturaleza y de la
cultura, de lo salvaje y del artificio. La posible definición que ha propuesto Michel Maffesoli
(2012) de la posmodernidad como una sinergia de lo arcaico y del desarrollo tecnológico, será
al unir lo arcaico con la tecnología que el imaginario se renueva con la sensibilidad que todos
compartimos. Es ahí también, donde entrará la memoria colectiva, una memoria patrimonial,
donde se condensan, como por sedimentaciones, todas las expresiones micro o macroscópicas
que se inscriben en una comunidad particular. El dispositivo propuesto de un hipermedia
audiovisual plantea una dicotomía entre el progreso y la memoria, una unión entre lo arcaico
con lo tecnológico, sin llegar a afirmar que la herencia cultural de una sociedad tenga que ser
arcaica; al contrario no hay nada más actual y más vivo en toda comunidad que la afirmación y
la identidad con su herencia y su pasado. El acto de la destrucción es contrario al video, porque
las imágenes son inmortales, lo serial, lo fotográfico, la mortalidad en la imagen, habla de la
eternidad, de la perdurabilidad, el dispositivo audiovisual posibilita esa eternidad, esa memoria.
En este sentido, cobra aún más vigencia e importancia la utilización de los medios tecnológicos
en la preservación del Patrimonio Cultural.
Otro de los grandes retos los trabajos elaborados entorno a la digitalización patrimonial
es el de llegar a nuevos públicos, en ese sentido el uso de herramientas web 2.0, de recursos en
línea y de los canales de comunicación como las redes sociales posibilitan el contacto directo
de personas que habitualmente están en contacto permanente con las TIC y con un sector de la
población relativamente joven que es el que está en mayor contacto con ellas y en menor contacto
con los temas relacionados al patrimonio. Supliendo así en parte la necesidad de llegar a las
nuevas generaciones, para que conozcan y otorguen valor a lo heredado. En ese sentido el lenguaje
empleado tanto por el multimedia, el hipermedia y en nuestro caso particular el documental
interactivo les es cercano y les resulta familiar. Los recursos digitales se convierten en un banco
de herramientas en línea para que los usuarios las utilicen a su conveniencia, los dispositivos
hipermediales juegan así el rol de mediador entre las personas y los contenidos patrimoniales.

5. Resultados

5.1 Material audiovisual de consulta permanente, de libre acceso para la comunidad


académica que promueve la salvaguarda y puesta en valor del patrimonio inmaterial. Material
de consulta que permita formular nuevas investigaciones. http://museo.unab.edu.co/app/saberes/

5.2 Ampliación de la distribución del hipermedia o transmedia, ampliando el número de


beneficiarios directos e indirectos que puedan acceder a él. Distribución en las alcaldías, casas
de cultura, museos, bibliotecas, universidades, colegios y en entes que estén relacionados con
actividades culturales.

5.3 Apertura de portal web educativo de consulta de acceso libre en internet del hipermedia
educativo sobre los oficios tradicionales de Santander.

5.4 Consolidación de los productos hipermedia educativos como unidades de aprendizaje


digitales que promuevan el patrimonio cultural.

5.5 Los conceptos que se plantean desde el arte digital como transdisciplinariedad,
simulación, interacción, multiplicidad, hipertextualidad, virtualidad, entre otros, amplían la
forma de entender la percepción digital. A su vez el logro de la simulación y la interacción del
arte digital está en la experimentación que posibilita el acercamiento lúdico al conocimiento.
5.6 En Colombia los proyectos audiovisuales desde hace un tiempo han iniciado una nueva
migración narrativa, empleando otras ventanas de exhibición y distribución, estas propuestas
están dirigidas a nuevos públicos y audiencias, ávidos de relatos, de participación e interacción.

6. Conclusiones

La difusión digital del patrimonio regional contribuye a promover el desarrollo social,


turístico y ambiental de la zona de estudio. La difusión digital del patrimonio cultural es una
forma de protegerlo, salvaguardarlo y preservarlo. A su vez, la difusión mediante las tecnologías
de la información y la comunicación, debe permitir el acceso virtual del patrimonio a diferentes
niveles: acceso a los profesionales interesados, a los especialistas, a los investigadores y al público
en general, promoviendo así una intención pedagógica en los productos audiovisuales.
Los saberes locales que hacen parte del patrimonio inmaterial lo constituyen una serie
de conocimientos y técnicas tradicionales relacionadas con el hábitat, esas tradiciones están
asociadas a la fabricación de objetos artesanales, son técnicas ancestrales, que continúan vigentes
y que actualmente tiene una alta demanda, son generadoras de empleo y dinamizadores de la
economía local.
Ante las posibilidades que ofrecen el lenguaje de los nuevos medios de comunicación
e información, la educación y la difusión digital del patrimonio a través del audiovisual sigue
siendo una cuestión pendiente. Los audiovisuales realizados con fines educativos por su impacto
y amplia divulgación se convierten en herramientas de transmisión viable, pertinente y de alguna
manera necesaria, frente al consumo global de productos visuales y frente a la necesidad de
conocer y proteger el patrimonio cultural.
Asimismo, los medios de comunicación permiten promover las tradiciones culturales
posibilitando que las comunidades puedan reconocer y valorar sus manifestaciones culturales
inmateriales. En este sentido, son las comunidades quienes lo resignifican, lo heredan y le otorgan
valor.
Es justamente desde la universidad donde se hace posible crear los grupos interdisciplinarios
que desarrollen ideas y prototipos para llenar el vacío que hay en difusión digital del patrimonio
cultural y propiciar el puente entre el ámbito del patrimonio con la sociedad.
Referências bibliográficas

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Siglo XXI Editores, 2012

SCOLARI, C. Narrativas Transmedia. Barcelona: DEUSTO, 2013.

Ana Teresa Arciniegas – Mestre pela Escola Superior de Cinema e Audiovisuais


da Catalunha (estudou “documentário e sociedade”), doutora pela Universidade Poli-
técnica de Valência (“arte, produção e investigação”), ambas na Espanha, Arciniegas
é atualmente professora da Universidade Autônoma de Bucarasmanga, na Colômbia,
onde também desenvolve a carreira de documentarista e pesquisadora.
21. Coreografías de la protesta y figuraciones del conflicto social
en el documental boliviano de la década del ochenta:
de Las banderas del amanecer (Grupo Ukamau, 1983) a
La marcha por la vida (Alfredo Ovando y Roberto Alem, 1986)

María Aimaretti

Levantar la cabeza

En el marco de una investigación mayor y en curso, este trabajo tiene por objetivo aproxi-
marse a las formas de representación que en el documental boliviano de la década del ochenta
adquirieron la protesta y el conflicto social en tanto que cajas de resonancia de complejos proce-
sos socio-políticos que se vivieron desde el desmoronamiento de la dictadura de Hugo Bánzer en
1978 y el inicio de la transición democrática, hasta 1989.
En medio de un adverso contexto caracterizado por la inestabilidad política, el desorden
institucional, la violencia y la pauperización de la vida cotidiana de grandes sectores de la pobla-
ción —factores que transformaron profundamente la fisonomía social del país–, la producción
fílmica boliviana —ya de por sí exigua–, se resintió, contándose apenas nueve largometrajes en
toda la década.260 Sin embargo, paralelamente, se produjo un singular fenómeno de recambio
generacional y tecnológico: un grupo diverso de jóvenes se comprometió con la producción de
imágenes en movimiento utilizando como soporte el video, horizontalizando y molecularizando
la producción y la difusión, y procurando aportar a la reorganización del sector, conviviendo
con prácticas tradicionales y realizadores de vasta trayectoria como Jorge Sanjinés y Antonio
Eguino. Abordamos el campo audiovisual de la post-dictadura boliviana utilizando la imagen de
“escena”, con la que aludimos al proceso dinámico y conflictivo de configuración, desarrollo y
dispersión de esa serie de experiencias en video que llevaron adelante jóvenes paceñxs —entre
quienes se encuentran Alfredo Ovando y Liliana De la Quintana (Nicobis) de cuya obra habla-
remos aquí. Jóvenes que convergieron en lo que se denominó el Movimiento de Nuevo Cine y
Video Boliviano (MNCVB).261
260 El celibato (José y Hugo Cuellar, 1981), El lago sagrado (Hugo Boero Rojo, 1981), Mi socio
(Paolo Agazzi, 1982), Las banderas del amanecer (Grupo Ukamau, 1984); Amargo mar (Antonio Egui-
no, 1984); Los hermanos Cartagena (Paolo Agazzi, 1985), Tinku, el encuentro (Juan Miranda, 1985),
La nación clandestina (Grupo Ukamau, 1989), Los igualitarios (Juan Miranda, 1989). El lago… y Las
banderas… son documentales, mas sólo el segundo abreva en la problemática socio-política.
261 Desarrollamos in extenso este tema en el capítulo “Volver a los ochenta: prácticas, experiencias y agrupamientos
en la ‘escena’ audiovisual paceña (Bolivia 1978-1989)”, presente en el libro coordinado por Mariano Véliz y Natalia Taccetta
Estudiar el período es enfrentarse, simultáneamente, a la escasez y la abundancia. En esos
años la escasez fue el signo dominante de la vida social material, la cual se precarizó y vulneró
en sus derechos más básicos, lo que volvió aún más difícil de lo que ya era cualquier empresa
de producción cultural y artística. Escasa también es la producción historiográfica, puesto que
ha sido un momento poco atendido y problematizado; y escasos son los materiales audiovisuales
conservados. Pero la década del ochenta también porta el signo de la abundancia: abundancia de
experiencias vividas, de relatos y memorias, y sobretodo de entusiasmo por la creación de imáge-
nes que sean testimonio revelador de un tiempo cargado de esperanza y búsquedas.
En esta oportunidad proponemos detenernos en el análisis comparado de un corpus au-
diovisual mixto cuya preocupación central fue dar cuenta del conflicto social y la experiencia
de lucha de los sectores populares. Las banderas del amanecer (Grupo Ukamau, 1983), Lucho:
vives en el pueblo (Nicobis, 1983), Movilización, pan y libertad (Nicobis, 1983), Café con pan
(Nicobis, 1986) y La marcha por la vida (Alfredo Ovando y Roberto Alem, 1986) configuran
relatos de memoria para un presente de disrupción y dislocación social y son la forma —justa–
que encuentran sus realizadores para intervenir política y culturalmente en el proceso histórico
en curso.

De la efervescencia a la relocalización

La caída de la dictadura de Bánzer en 1978 no se tradujo en la más o menos mediata re-


constitución democrática: aunque fervorosamente defendido por la mayoría de la población, el
proceso transicional duró cuatro largos y dolorosos años, por haber sido interrumpido por las
fuerzas militares. En noviembre de 1979 Alberto Natusch Busch provocó un golpe de Estado que
duró quince días, seguido éste por un débil gobierno interino encabezado por Lidia Gueiler. La
economía continuó su proceso de crisis, pero la transición volvió a interrumpirse el 17 de julio
de 1980 cuando el Gral. Luis García Meza dio un nuevo golpe de Estado, que se prolongó hasta
agosto de 1981 en medio de la corrupción, el crecimiento del negocio de la cocaína y el contra-
bando. Luego de temporales presidencias militares recién en septiembre de 1982, tras una huelga
general, el proceso dictatorial colapsó definitivamente y el líder de la UDP (Unión Democrática
Popular) Hernán Siles Zuazo asumió como mandatario. Este complejísimo período de encruci-
jadas sociales y políticas fue capturado por Jorge Sanjinés y Beatriz Palacios en su único docu-
mental Las banderas del amanecer. Este largometraje en 35 mm. con el cual el Grupo Ukamau
retorna a Bolivia tras largos años de exilio, constituye nuestro punto de partida para observar las
coreografías de la protesta y las figuraciones del conflicto social.
Siles Zuazo gobernó entre 1982 y 1985 como referente principal de un frente progresista

Cine y transición democrática en América Latina, Buenos Aires: Editorial Prometeo. En prensa.
de izquierda que muy pronto se dividió.262 Durante su mandato la inflación y el desempleo crecie-
ron considerablemente provocando el caos económico y la respuesta social a través de la eclosión
de reclamos y huelgas —con fuertes presiones de la COB (Central Obrera Boliviana). En este
contexto de crisis global se fue creando un clima de demanda por orden y cierta estigmatización
de la izquierda a la que se observó con descrédito, y Siles se vio obligado a llamar a elecciones
anticipadas (Mesa, 1998).263 En resonancia con este segundo momento del período, aparecen los
primeros trabajos de la joven productora Nicobis, formada en 1981 por Alfredo Ovando y Li-
liana De La Quintana, entre los que sobresalen Lucho: vives en el pueblo y el documental para
televisión Movilización, pan y libertad, videos que, acompañando el devenir de transformaciones
histórico-políticas, problematizaron el pasado reciente —la dictadura– y el presente de crisis.264
Los comicios de 1985 dieron la victoria —estrecha– a Bánzer frente a Paz Estenssoro, pero
éste último fue elegido por el Congreso como nuevo presidente. Con él se puso en marcha un plan
neoliberal que incluyó la reducción del aparato público y el fin de la economía estatizada, rom-
piendo con el modelo creado en 1952 —cuyo centro era el Estado–, y debilitando severamente
la potencia sindical (Romero Ballivián, 1995: 11, 35). La oposición vio resentidos sus canales y
mecanismos de acción, pues el oficialismo y su entonces aliado ADN (Acción Democrática Na-
cionalista) cuyo líder era Bánzer, controlaban el parlamento, con lo que el presidente tuvo amplia
capacidad de maniobra para instalar las reformas económicas.
El decreto supremo 21060 cristalizó el plan político-económico e ideológico de Paz: bajo
la justificación del pragmatismo que exigía la crisis, su aplicación implicó el privilegio de un
mercado abierto, despidos masivos y la desarticulación y decrecimiento del proletariado minero
y obrero. Al calor de este proceso en el que los sectores populares vieron con estupefacción ace-
leradas y radicales transformaciones en su sistema de vida, se producen Café con pan (Nicobis,
1986) y La marcha por la vida (Alfredo Ovando y Roberto Alem, 1986).
Teniendo en consideración las continuidades y diferencias entre estos momentos dentro
de un mismo ciclo histórico, así como también entre los trabajos audiovisuales mencionados;
cabe destacar que la historia reciente y el presente fueron núcleos temáticos preferidos. Sabiendo
que las imágenes revelan y portan su época, la “cifran” a través de una red de sentidos, es que
queremos situar la mirada en esta recurrencia y advertir cómo se procesó, simbólicamente, una
época alterada por la violencia represiva, pero también por la desposesión económica y el ham-
bre. Imágenes-memoria, entonces, conjugadas en un tiempo presente donde la recuperación de la
262 La UDP asoció al MNRI (Movimiento Nacionalista Revolucionario de Izquierda), el MIR (Movi-
miento de la Izquierda Revolucionario) y el PCB (Partido Comunista Boliviano), entre otros.
263 “Así maduró en la sociedad un sentimiento de disconformidad hacia el poder débil, se identificó
a la izquierda con el desorden y se rechazó las frecuentes huelgas que erosionaron las simpatías que
despertaba la COB en diferentes estratos sociales” (Romero Ballivián, 1995: 24).
264 Simultáneamente, en 1984 comienza a organizarse el MNCV, del que Nicobis —entre otros
grupos e individualidades– formará parte. Una plataforma de reunión, discusión y trabajo audiovisual
colaborativo, integrada sobre todo por jóvenes que se habían conocido en 1979 en el Taller de Cine de
la Universidad Mayor de San Andrés (La Paz), y habían seguido vinculados por afinidades generacio-
nales y posicionamientos progresistas.
democracia se tradujo no sólo como lucha por la libertad, sino también como lucha por el derecho
a una Vida digna para todxs.

Especie y aspecto

La idea de que un gesto podría ser una frase, esta mirada, un largo discurso, es algo to-
talmente insoportable: eso significaría que la imagen, las imágenes, los transeúntes, esta calle,
este sollozo, este juez distraído, esta casucha destartalada, esta chica asustada, constituyen la
materia de otra historia diferente de la Historia, un contraanálisis de la sociedad. Marc Ferro,
1978: 246.

Resultado de prácticas sociales y significantes, insertos en un proceso más amplio de rei-


vindicación y reinvención de la vida democrática, los discursos visuales que analizaremos son
eco y representación de asuntos públicos y se producen y circulan en los territorios de la cultura
—figuraciones/complejos simbólicos que abren los conflictos de lo real (Richard, 1998; Amado,
2009)– y lo político —lógica antagónica por la definición de lo social. Así lo testimonian las (co-
nocidas) entrevistas y textos críticos de Jorge Sanjinés (1980), pero también los (menos frecuen-
tados) pronunciamientos de lxs jóvenes videastas. Véase por ejemplo el que figura en el Boletín
del Nuevo Cine y Video Boliviano al que Nicobis adhiriera como parte del Movimiento, donde
se postula un horizonte creativo compartido:

Producir materiales audiovisuales comprometidos con el proceso histórico presente,


proceso en el cual los realizadores sean partícipes (…) enfrentar y combatir las mani-
festaciones de la cultura hegemónica transnacional a través de una producción crítica
y permanente (…) que el trabajador de la imagen se convierta en creador y portavoz
del proceso colectivo de búsqueda de la identidad cultural, mediante el conocimiento
crítico del medio socio-cultural en que vive (MNCVB, 1986: 3).

Así, en fricción con un contexto hostil y coercitivo, y luego decididamente desfavorable y


confuso, para lxs jóvenes de los ochenta el video significó la oportunidad de dar cobertura a sus
inquietudes expresivas y preocupaciones sociales utilizando el medio como un instrumento de
integración con los sectores populares (De la Quintana y Romero, 1988).
Como veremos, a través de sus documentales, jóvenes y expertos realizadores parecen pre-
guntarse: ¿qué rostros hoy interpelan al poder?, ¿qué cuerpos se manifiestan y con qué cualidad
sensible lo hacen?, ¿qué coreografías de lo colectivo persisten y cómo se modulan, interrumpen
o modifican a través del tiempo?
Inspirados en los planteos de Gonzalo Aguilar (2015, 2015b) proponemos utilizar tres
figuras para recorrer y constelar el corpus documental: rostro, como catalizador de afectación,
rostrificación del conflicto en la imagen, cifra personal de acceso a la memoria y la historia; cuer-
po, en tanto que resto y residuo de la violencia y la desposesión; y coreografía, como dinámica
colectiva de los muchos cuerpos ordenados bajo ciertas direcciones/impulsos que organizan des-
plazamientos. 265
Aguilar ha señalado que en la filmografía latinoamericana militante, los cuerpos “perdían”
el rostro:

(…) que se disolvía en las multitudes y en el espacio de la calle. No, entonces, el acer-
camiento y la individuación, sino una operación sobre lo colectivo, sobre esos grupos
que esperaban el significante “pueblo” otorgado tanto por el discurso fílmico como por
la acción política. Por eso el lugar por excelencia era la calle. Allí la cámara archivaba
los cuerpos en trance, atravesados por un grito o un caminar que nunca era individual.
Los gestos no se concentraban en un solo rostro o en un solo cuerpo, sino que se des-
plazaban de un cuerpo a otro, como una corriente eléctrica conducida por los cables no
visibles de la revolución, el pueblo y la liberación, y con movimientos coreográficos
muy precisos, logrados en el encuentro de las prácticas políticas con las cinematográfi-
cas (Aguilar, 2015: 143-144).

Mas, en los materiales que abordaremos se advierte no la disociación sino la concomitan-


cia de rostro-cuerpo-coreografía en una simultaneidad tensa: sea apelando al registro directo, el
testimonio o incluso la recreación ficcional, la tríada da forma y figura a la protesta y el conflicto
social protagonizados por los sectores populares bolivianos quienes encarnan acción política y
sufrimiento, lo particular y lo colectivo. Justamente, se produce la convergencia de dignidad/
integridad humana y herida en singularidades re-unidas a una serie más amplia: una comunidad
de rostros situada histórica y políticamente. Retomando a Georges Didi-Huberman, podemos
observar que el corpus trabaja:

(…) la especie con el aspecto, es decir, la repetición de los rasgos genéricos con la
singularidad de los rasgos diferenciales, todo ello en el contexto preciso de un espacio
político dado (…) Entre la especie y el rostro se declina (…) lo que podríamos llamar
265 Justamente, en relación a los desplazamientos colectivos y su simbología, y teniendo en cuenta la recurrencia de
la marcha en el corpus audiovisual, recuperemos la mirada de Silvia Rivera Cusicanqui, quien advierte: “Foucault decía
que el primer gesto de resistencia es levantar la cabeza (…) Hay también las acciones colectivas centradas en el cuerpo:
la caminata como práctica política, los recursos y puestas en escena de las movilizaciones, que hacen uso de la música,
la teatralidad, los mensajes kinestésicos (…) La caminata es una estrategia de larga data en los Andes, desde el viaje que
hizo el cacique Tomás Katari a pie (…), o los cortes de ruta coloniales en el altiplano durante la rebelión de Tupaq Katari.
Estos fenómenos históricos no siempre son reconocidos como parte del presente, son una memoria inconsciente que se
reedita en los bloqueos de caminos de 1979, 2000, 2003, en el “cerco a La Paz” reiterado en muchos momentos críticos de
la historia reciente. Hay en ellos una especie de memoria del cuerpo, el indio que llevamos adentro se levanta, nos baila,
nos impele a caminar, a asediar” (2015: 312).
singular plural del aspecto humano en el espacio histórico donde este se despliega
siempre de manera diferente (…) un espacio preciso –un espacio que impone sus reglas
de opresión o, al contrario, sus potencialidades de desenclaustramiento- donde el aspec-
to se reúne con la especie y el cuerpo carnal con el cuerpo social (2014: 80).

Ante una esfera publica obturada o escamoteada, los audiovisuales retrataron coreografías
colectivas de disputa y ocupación del espacio, y expresiones de impugnación ética a un orden
social que arrebataba o socavaba la dignidad. Mas en el mismo movimiento de registro, también
construyeron visualmente al pueblo boliviano en sus formas de vulnerabilidad y precariedad: una
presencia pública expuesta a su disolución o violentamiento; una presencia social en situación de
riesgo. Y sin dejar de enlazar la especie con el aspecto, pusieron ante los ojos la revuelta como
emoción colectiva y encarnación performática de una convicción de injusticia:

¿Quién se subleva en una revuelta? ¿Qué provoca que la gente se rebele? Se habla de
un «estallido» de frustración o de rabia y, sin embargo, estos momentos tan viscerales
suponen el reconocimiento de que un grupo de personas ha llegado al límite. Los seres
humanos se rebelan cuando están indignados o cuando no pueden soportar más opre-
sión, cuando, en definitiva, se ha traspasado un límite y se les ha negado durante dema-
siado tiempo algo indispensable para vivir con dignidad o libertad (…) Las revueltas
siempre llegan tarde, incluso cuando intentan establecer un nuevo estado de cosas (…)
En esa acción social, ningún individuo actúa solo, pero tampoco surge un sujeto colec-
tivo que niegue toda diferencia individual. Una revuelta no brota de mi indignación o
de la tuya. Los que se sublevan lo hacen juntos, reconociendo que padecen como nadie
debería hacerlo (Butler, 2016: 21).

¿Qué del rastro social, hay en los rostros que aparecen en los videos?, ¿qué estados de ánimo
se convocan? ¿Con qué intensidad emerge en ellos el conflicto?, ¿qué atmósferas, tonalidades,
afectaciones lo configuran? ¿Qué forma adquiere la dolorosa paradoja por la cual los cuerpos
despojados del trabajo, vueltos forzosamente improductivos, se vuelven —por medio de las
imágenes– en cuerpos productivos para la reflexión, la memoria y el disenso?

Ponerse de pie… con otrxs

El largometraje documental Las banderas del amanecer, fue estrenado en el Festival Inter-
nacional del Nuevo Cine Latinoamericano de La Habana en 1983, y luego en Bolivia en marzo
de 1984.266 A través de materiales de archivo (fotos, diarios y programas radiales), entrevistas,
266 Hemos trabajado individualmente esta cinta en otro lugar (Aimaretti, 2017). Aquí apuntamos
testimonios y registros directos, el film fue el primero en reponer de forma panorámica el pasado
reciente de las dictaduras de Bánzer, Natusch Busch y García Meza, así como el convulso pre-
sente transicional, recuperando incluso propaganda oficial a la que releyó en clave contra-infor-
mativa yuxtaponiéndole otros documentos que refutaran los datos o la perspectiva hegemónica.
Varias son las dicotomías que configuran el antagonismo social: imperialismo yanki vs.
trabajadores bolivianos (unidad obrera-minera-campesina), fascismo vs. democracia; hambre vs.
Justicia. El pueblo boliviano no sólo lucha contra el imperialismo y la dictadura, sino, y muy
especialmente desde diciembre de 1979, contra medidas económicas de precarización de la vida
material. Los rostros y las voces —sobre todo femeninas–, expresan de forma enardecida el dolor
y la furia en fracciones semejantes; mientras sobre los cuerpos gravitan el horror de la violencia
represiva, la desaparición y la violencia económica.267
El film da cuenta cómo en mayo de 1982, reclamando la vigencia de las organizaciones e
impugnando los despidos, se organizó una huelga de hambre que Sanjinés y Palacios cubrieron
desde adentro del recinto que nucleaba a lxs manifestantes. El montaje articula el registro in situ
de la llegada de nuevos huelguistas recibidos en calurosa bienvenida e imágenes de los sectores
populares empobrecidos —bajo la figura de féretros infantiles– en clave de denuncia: esos cuer-
pos que, castigados por el sistema, deciden extremar su situación de precariedad, encuentran allí
un gesto político de resistencia y contestación.
Asimismo, la película insiste en mostrar marchas urbanas y rurales donde concurrían mul-
titud de cuerpos y rostros en desobediencia, sea al status quo dictatorial o a los gobiernos de tran-
sición. Estas verdaderas coreografías sonoras —al verse acompasadas por cánticos y consignas–,
tienen dos variantes que merecen destacarse. Por una parte, el registro directo de los cortes de
ruta y bloqueos, tanto en su armado físico como en los modos en que se resiste cualquier intento-
na de ruptura: aquí la coreografía de los muchos cuerpos opera abroquelándose, interrumpiendo
y deteniendo el paso del Otro (blanco). La contundencia verbal de lxs manifestantes se une a la
contundencia visual de sus miradas —sus rostros– que literalmente hacen retroceder —y con-
vencen– al interlocutor. Por otra parte, cobra especial significación la jornada de duelo por Luis
Espinal, quien fuera secuestrado, torturado y asesinado, como parte de un plan sistemático de
exterminio —llamado “Plan de los cuchillos largos”– ideado por García Meza y su ministro del
interior Luis Arce Gomez para provocar el miedo y el desorden generalizado y justificar la inter-
vención de las FF.AA. Aquí se despliega “otra forma” de coreografía popular: ordenadamente, un
cuerpo colectivo inconmensurable marcha afligido acompañando el féretro del jesuita, sin misa,
sin gestos eclesiásticos, ni protocolo. Allí se anudan el dolor por su martirio y la indignación fren-
te a la impunidad de sus asesinos; la herida por su desaparición y la cólera frente a la injusticia
algunas ideas pendientes.
267 Así, en medio de una asamblea campesina una mujer advierte sobre la presidenta interina Lidia
Gueiler: “Aunque es mujer, ha dictado medidas económicas del FMI (…) Dice que hay democracia,
pero vemos que esta democracia es solo para los ricos y los empresarios (…) Por eso no podemos
permanecer callados”.
—“¡Asesinos al paredón!” se oye gritar. Sobre el cuerpo de Lucho Espinal —como se lo conocía
coloquialmente– gravita una memoria-testimonio de lucha por la Vida: una que va de la huelga de
hambre que tumbó a Bánzer en 1978 de la cual el jesuita formó parte, al cortejo impugnador de la
represión más multitudinario que se viera en La Paz; del cuerpo hambreado, al cuerpo insepulto
en un basural donde fue hallado; de las imágenes de la autopsia divulgadas por la prensa gráfica,
al duelo colectivo.
En el final del relato, la banda imagen expone una interminable caravana de hombres, mu-
jeres y niños en marcha y subiendo una colina: el tamaño del plano (general), la angulación (en
picado) y la profundidad de campo permiten advertir el dinamismo coreográfico de esos muchos
que, estrechamente unidos, se abren paso entre calles y caminos de polvo —un cautivante río hu-
mano. Simultáneamente, sirviéndose del énfasis que da la música extradiegética, la clausura épi-
ca (y optimista) del film consagra la victoria a la potencia oposicional de los sectores populares
con un cartel que, sobreimpreso, asegura convencido: “No tiene fin un pueblo que está de pie”.
Formados en el Taller de Cine de la Universidad Mayor de San Andrés en 1979, continua-
dores de la línea del documental de denuncia que cultivara en la TV boliviana Luis Espinal, los
jóvenes esposos, Alfredo Ovando y Liliana De La Quintana —Nicobis–, mantuvieron a lo largo
de la década del ochenta cuatro líneas de trabajo: el documental social y político; el etnográfico;
el feminista y la exploración del universo infantil. 268 Perteneciente al primer grupo, Lucho: vives
en el pueblo, obtuvo el premio al mejor cortometraje en el Festival Cóndor de Plata en su edición
de 1983, escapando luego de todo control por parte de sus realizadores al ser ampliamente rea-
propiado y divulgado.
No obstante, cabe recordar un episodio de censura que tuvo lugar a causa de la difusión
televisiva del video en agosto de 1987 —a cuatro años de su estreno. Por haberlo transmitido en
Canal 7 —Empresa Nacional de Televisión Boliviana, canal estatal, único de alcance nacional–,
Elsa Antequera, directora de programación, fue despedida, mientras Guillermo Aguirre, funcio-
nario del canal, fue suspendido algunos días sin goce de haberes.269 Según el memorandum de
despido, la justificación estaba en que el documental contenía “calificativos groseros” contra
quien en ese momento era el presidente —Paz Estenssoro– y porque mellaba “importantes cor-
rientes políticas del país” —en alusión al MNR. A eso hay que añadir una tercera justificación
que, obviamente, no figuraba en el documento: la denuncia a la dictadura fascista de Bánzer,
quien en esos años era jefe de ADN, segunda mayoría en el Congreso Nacional y principal aliado
del MNR:

¿”Mellar” a importantes corrientes políticas del país será recordar como lo hace el
documental que “Bolivia soportó siete años de dictadura fascista a partir de agosto
268 “Como documentalistas somos los seguidores de la línea de Espinal en la temática social y
política”, señaló Ovando en entrevista personal.
269 El video se pasó dentro del programa “El documental en Bolivia”, que se emitía de lunes a vier-
nes a las 22 hs. desde julio de 1987.
de 1971. Los sindicatos y las organizaciones laborales fueron sometidos a un receso
obligatorio. La disolución de los partidos políticos… los campesinos fueron masacrados
en Tolata, no existió libertad de prensa… superan los 19.0000 bolivianos que fueron
desterrados por no aceptar la implantación de la dictadura”? ¿Ser “grosero” con S.E. el
señor Presidente de la República será recordar que éste a la cabeza del MNR “se prestó
a servir de soporte político a la dictadura”? (…) ¿Por qué resulta grosero constatar que
existen hombres que no cambian su línea de acuerdo a la época o a sus intereses? (S/D
Editorial CIMCA, 1987: 1).

Aunque Antequera fue reincorporada a fuerza de las protestas del sector audiovisual, y se
reinicio el ciclo, hubo mayor control sobre la programación: así como años antes, en ese mismo
canal, bajo la dictadura banzerista, se había censurado a Espinal y sus programas de denuncia so-
cial; ahora, en democracia, se hacía lo propio a propósito de un documental que volvía accesible
al gran público de todo el país la memoria del pasado reciente.
Lucho vives en el pueblo es un video de 35 minutos que versa no sólo sobre la vida, voca-
ción y la militancia por los DD.HH. de Luis Espinal, sino que opera como reivindicación por el
esclarecimiento de su asesinato y como memoria de las prácticas de intervención política de los
sectores populares y lxs trabajadores. Es, pues, simultáneamente el homenaje a un hombre —ex-
poniendo en su cuerpo vulnerado los efectos del orden represivo–; y la ponderación del coraje del
cuerpo social en su denuncia temprana y valiente sobre la impunidad política. La investigación a
cargo de Mirtha de Huici, y el guión de Liliana De la Quintana, se apoyan en textos que casi in-
mediatamente después del asesinato reivindicaron la figura del religioso: Lucho Espinal: el grito
de un pueblo (1981), que de forma clandestina publicaron sin nombres de colaboradores ni fechas
editoriales la Asamblea Permanente por los Derechos Humanos de Bolivia y Alfonso Gumucio
Dagron;270 y El cine boliviano según Luis Espinal (1982) de Carlos Mesa.
El relato alterna materiales documentales —fotografías, recortes de periódicos, afiches,
fotogramas de películas y archivos–, testimonios, entrevistas, poemas y textos del sacerdote, y la
ficcionalización del momento de su secuestro y muerte. Dos son las voces over que llevan ade-
lante la enunciación: una expositiva, explicativa y omnisciente, que concentra la autoridad epis-
témica y ofrece un sentido global a la diversidad de materiales dispuestos en el montaje; y otra
poético-expresiva, que vuelve audible la palabra del propio Espinal al reponer fragmentos de sus
poemas, oraciones religiosas, textos sobre cine y editoriales radiales y periodísticos. Ambas fun-
cionan en consonancia: mientras la primera argumenta sobre cierto hecho o pasaje de la vida del
religioso, la segunda ofrece una tonalidad subjetiva y emotiva. Su alternancia y correspondencia
—en tanto que principio narrativo del documental– podría vincularse, justamente, con el perfil
humano de su protagonista quien, como señala un testigo, no separaba lo sagrado de lo profano,
270 Datos y publicación facilitados en conversación personal con la autora (2015) por Alfonso Gu-
mucio Dagrón.
lo teológico de lo sociológico, el compromiso devocional del compromiso con el pueblo.
El título es una declaración de principios y la interpelación vocativa al “espíritu” de Es-
pinal: una aseveración de continuidad vital entre un cuerpo individual y un cuerpo social. Ese
pueblo que, como decía la inscripción final de Las banderas… no tiene fin si está de pie, es en
el seno del cual vive —aún– el protagonista. El título es también una cita al propio jesuita quien
tras la huelga de hambre reflexionó sobre su participación en un escrito en el que dice: “Morir
por un pueblo puede dar más carta de ciudadanía que nacer en él (…)” (Espinal en Medina, 1991:
10-11).
El punto de arranque del relato es la recreación ficcionalizada de las horas previas a su
secuestro a través de dos testimonios de vecinos que se escuchan en over. Así, el motivo de un
cuerpo bajo control y vigilancia, la inminencia de su captura y tortura, es central desde el comien-
zo del documental: y esto es así porque, justamente, se busca comprender cómo y por qué ese
cuerpo termina en el martirio. Lejos de la construcción visual de un cuerpo-victima (inocente) o
su sobre-exposición como cadáver, aquí se insiste en la conciencia y responsabilidad política con
que Espinal asumió su trayectoria vital comprometido, más aún, consustanciado con coreografías
colectivas.
Para dar cuenta de ese itinerario se traza una memoria cronológica advirtiendo sus múl-
tiples perfiles/aristas por mediación de fotografías —donde resalta la figura del protagonista– y
voces-rostros que, aunque distintos, configuran un coro armónico: en las palabras de Xavier
Albó, Carlos Mesa y Domitila Chungara, re-aparece Espinal hijo, sacerdote, comunicador, ciné-
filo, crítico, periodista y militante.271 Construido mediante el paralelismo entre el tema/problema
que refiere el/la testigo y la resonancia en los versos, esas voces-rostros mantienen un “diálogo”
confirmatorio con la voz poética de Espinal. Idéntico procedimiento sucede con buena parte de
la banda imagen, la cual, a partir de los registros directos del presente suburbano de la ciudad,
procura reponer aquello que viera, inspirara e indignara al sacerdote, y que expresara en sus tex-
tos y hermosos tallados artesanales —a los que la cámara dedica atención.272 De esta forma, se
denuncia además la pervivencia de estructuras de explotación y empobrecimiento que afectan, en
especial, a niñas y niños, ayer y hoy. Justamente, uno de los momentos más sensibles del video
es aquel en el que, mientras la voz over enuncia un poema sobre la impotencia y el dolor por los
que cada día mueren, la banda imagen muestra un ritual funerario y entierro infantil.273
271 Resulta interesante cómo el testimonio de la huelga de hambre que refiere Domitila tiene
apoyatura visual en fotogramas de la película que protagonizara en 1971 El coraje del pueblo (Grupo
Ukamau) a manera de documentos/archivos, y por qué no pensarlo, como homenaje intertextual al
Grupo Ukamau.
272 Los tallados los realizaba con desechos de lata y madera que encontraba cerca del barrio en
el que vivía, haciendo del desperdicio, belleza. Sin duda, en su iconografía de cuerpos humanos frag-
mentados, dolientes, pero aún rabiosos y llenos de esperanza, anida otra forma de pronunciamiento
ante la Vida y ante la muerte.
273 El ataúd infantil remite también a la obra del Grupo Ukamau y Jorge Sanjinés quien en prácti-
camente todas sus películas hace aparecer este motivo como signo del siempre interrumpido futuro
de los sectores populares bolivianos. Cabe destacar que en varios momentos del documental, sea
Para representar el pasado reciente dictatorial, cual ojo escrutador, la banda imagen explo-
ra detenidamente material de prensa mediante zooms-in, zooms-out, reencuadres y desplazamien-
tos internos. Por ejemplo, cuando da cuenta del golpe de Estado perpetrado por Bánzer utiliza la
fotografía que reúne en un mismo balcón y gesto regocijado, al militar, a Víctor Paz Estensoro
(referente del MNR) y a Mario Gutiérrez (referente del partido conservador Falange Socialista
Boliviana), en lo que es una crítica directa a los dos primeros, ayer cómplices del terrorismo, hoy
(en su presente de estreno) aliados en el Parlamento para desestabilizar a Siles y acceder —nue-
vamente– al poder.274 La identificación y acusación a ciertos rostros se reitera en la secuencia de
impugnación a la impunidad de los asesinos de Espinal: aquí no hay fotografías, sino archivos vi-
suales televisivos que el relato dispone para señalar e incriminar tanto a los artífices de la muerte
del sacerdote, como a sus cómplices políticos.
Para dar cuenta de la vulneración del cuerpo del jesuita, el documental opta por la recrea-
ción de una escena de tortura a través de sombras y perfiles en negro, mientras la banda sonora se
distorsiona notablemente. Un rítmico montaje de imágenes de tanques, enfrentamientos calleje-
ros, ambulancias, caídos, los rostros fragmentados de Arce Gomez (ministro del interior durante
la dictadura de García Meza) y Garcia Meza, armas, una esvástica, etc., condensa la memoria
de y la denuncia al terrorismo de Estado. Mientras tanto, se oyen tambores, sirenas, bombas y
finalmente una ráfaga de disparos que remite a la balacera que remató al sacerdote —su cadáver
presentó 17 impactos.275 Y aquí, en este momento dramático, doloroso, el documental produce
una interesante torsión: Espinal se multiplica en muchos cuerpos y voces, se (con)funde con ellos
y en ellos.
El relato privilegia entonces lo colectivo e incorpora los registros del multitudinario corte-
jo fúnebre —semejantes a los de Las banderas…–: una abigarrada coreografía de cuerpos ocupa
el espacio público, se traslada de forma compacta, casi apiñada al cementerio, deposita el fére-
tro en un nicho, lo llena de flores y no sólo llora sino que corea ocupando la banda sonora con
sus consignas: “¡Lucho has muerto, aún quedamos muchos!”, ¡”Que mueran los paramilitares!,
“¡Arce y el CIE, son los asesinos!” (el CIE era el Centro de Inteligencia del Ejército donde era

para aludir al orden represivo como al orden económico empobrecedor —homologados–, se apelará
a panorámicas de cementerios populares.
274 Para señalar la participación de otras estructuras de poder como la Iglesia, el documental apela
a dibujos satíricos que están en plena sintonía con pancartas y carteles difamatorios presentes en las
movilizaciones populares, en los que por ejemplo, se homologa a los represores con animales. Des-
taquemos también que en la secuencia que describe el banzerato se explora material de archivo en
el que se ven coreografías del terror: fotografías que cristalizan momentos de detenciones masivas, y
desplazamientos de hombres con los brazos en alto.
275 Más de diez años después, el grupo boliviano Teatro de los Andes, estrenó la obra “Las abarcas del tiempo”
(1995), donde re-aparece la figura de Espinal como modelo de coherencia ética y compromiso con la memoria. En la
escena que lo tiene por protagonista, el cuerpo del personaje da a ver los efectos de la violencia retroactivamente: Espinal
va interrumpiendo espasmódicamente el discurso verbal, estremeciéndose en forma diferida por los golpes que lo llevaron
a la muerte. Pero además de sus bolsillos el personaje va sacando proyectiles que deposita en distintos lugares del
espacio escénico, hasta que en cierto momento caen en cantidad de su saco y provocan un estrepitoso sonido que refiere
a la balacera que recibiera y que contrasta con la suavidad poética de su monólogo. Para un análisis completo de la obra
ver Aimaretti (2015).
jefe Arce Gómez). 276
Este duelo, entonces, se transforma en denuncia y efervescencia colectiva, tal como se
muestra en la conmemoración del día del trabajador, donde la imagen y el nombre de Luis Espi-
nal reverberan por doquier: son un cuerpo y un rostro potentes, ejemplos de coherencia, que me-
recen ser reconocidos y re-cordados —hechos presentes en el presente. Más aún, ese rostro que
hemos visto pausadamente en fotografías familiares, de amigos, de prensa y trabajo, se vuelve
el rostro emblemático, público, de la lucha por la libertad y los DD.HH.: una (otra) bandera de
reivindicación enarbolada en nuevas coreografías, un agente de movilización social. De ahí que,
en el final del video, el montaje superponga el cántico popular “A continuar, a proseguir, la lucha
de Luis Espinal”, con la voz poética del sacerdote que dice: “Aceptamos con ilusión la lucha y la
muerte, porque Tú nuestro Amor, no mueres”.
En función de esclarecer y concientizar sobre una situación compleja sin dejar de conmo-
ver; en algunos tramos del video la eficacia narrativa se ve resentida por el énfasis declamatorio
de la voz over poética o la redundancia de las escenas de ficcionalización. No obstante, el docu-
mental tiene el mérito de articular alrededor de un cuerpo, un coro de rostros que singularizan una
protesta colectiva, también retratada en sus coreografías de resistencia.
Por su parte, Movilización, pan y libertad es un documental televisivo de 21 minutos que se
realizó con el apoyo de la COB, Costrateb Sindicato en TV, la Federación Sindical de Trabajado-
res Mineros de Bolivia y Canal 13 (universitario de la La Paz), y pertenece, también, a la primera
línea de trabajo de Nicobis. El título emana de la “voz” de los trabajadores inscrita en forma de
reclamo en una pancarta a la que la cámara dedica varios segundos hacia el final del video: “PAN-
-LIBERTAD SÍ /HAMBRE- GENOCIDIO NO”. El audiovisual comparte las dicotomías más
arriba mencionadas a propósito de Las banderas… las cuales dan forma al conflicto social, pero a
diferencia de aquel trabajo, al centrarse únicamente en el registro directo de dos concentraciones
—una, en una suerte de teatro al aire libre, y la otra en la emblemática Plaza San Francisco–, la
pregnancia visual de las dirigencias sindicales y su vínculo con las bases es más relevante.
“(…) es ya libre, ya libre este suelo/ ya cesó su servil condición/ (…)/ De la patria el alto
nombre/ en glorioso esplendor conservemos/ y en sus aras de nuevo juremos/ ¡Morir antes que
esclavos vivir!”. Con estos versos del Himno Nacional comienza el video: quien de pie y fervo-
rosamente lo entona, es una multitud de trabajadores, mineros y campesinos, hombres y mujeres
reunidos en gigantesca asamblea. La cámara —ubicada en el escenario– les capta en una larga
panorámica que permite advertir su imponente dimensión, puesto que además se encuentran ubi-
cados en una especie de tribuna, dando la impresión de ser un verdadero tejido humano —tupi-
do, abigarrado, diría René Zavaleta Mercado– que reclama por su soberanía y libertad. Más que
la fantasía republicana, la apelación al himno que ese entretejido de cuerpos realiza, sirve para

276 En esa coreografía del dolor, la cámara distingue, casi como un inconsciente visual o antici-
pación trágica, al líder socialista Marcelo Quiroga Santa Cruz, cuyo cuerpo permanece desaparecido
desde el golpe de García Meza en julio de 1980.
reactivar, reavivar el sueño revolucionario —la utopía– de la independencia. La fuerza y el con-
vencimiento de las voces son conmovedores, y al bis del estribillo le siguen encendidas consignas
que se reiterarán a lo largo del video: “¡Viva la dignidad del pueblo boliviano! ¡Abajo el hambre!
¡Abajo la miseria! ¡Viva la libertad!”, y vítores a la COB y a la Federación Minera, organización
a la que el documental prestará especial atención con zooms-in mostrando en primer plano a los
trabajadores con sus característicos guardatojos. Si la idea de “pueblo” reaparece una y otra vez
en cánticos, carteles e intervenciones individuales —“Si este no es el pueblo, el pueblo dónde
está”, se oye desde las columnas que avanzan por las calles paceñas–, se insistirá igualmente en
que el reclamo que encabeza un sector, la vanguardia minera —por salario, congelación de pre-
cios, abastecimiento y libertad–, es representativo y extensivo a todos los bolivianos.
Puesto que en este video se privilegia la puesta en visión de la magnitud y fuerza expresiva
de la concentración popular, la coreografía colectiva tiene menos preponderancia que en el resto
del corpus, y se halla acotada en función de mostrar el desplazamiento de los muchos hacia dos
recintos de reunión. Un río de manifestantes inundan el espacio urbano gritando sus consignas a
voz en cuello y con brazos en alto: un pueblo enardecido, bullicioso, que denuncia las continui-
dades entre los regímenes dictatoriales y democráticos —”¡Mueran Bánzer, Paz y Siles! ¡Muera
la burguesía putrefacta!, ¡Rueda Peña al paredón!”, ¡(…) carajo, el pueblo está emputado!”.277 La
cámara pasa —sin transiciones– de angulaciones en contrapicado, a planos medios a la altura de
los ojos entremezclándose con los manifestantes. En plaza San Francisco hay carteles, banderas,
pasacalles y hasta una wiphala a las que la cámara dedica zooms-in y luego reubica en planos
de conjunto mediante zooms-out. Ciertamente parece abstraída y fascinada no sólo por la ener-
gía que emana de esos muchos cuerpos en movimiento, sino, más aún, de esos muchos cuerpos
re-unidos, concentrados no para duelar —como en Lucho…– o para bloquear —como en Las
Banderas…–, sino para asamblearse masivamente, aparecer en la esfera pública e “intercambiar”
con sus representantes a quienes en dichos actos, ciertamente, se ratifica en su liderazgo y se
transfiere poder. De ahí que los planos generales sean recurrentes, construyendo una dinámica de
plano-contraplano entre oradores y el pueblo congregado.278
En esa basculación líder-multitud, los rostros —capturados en detenidos primeros planos–
se reservan, en el primer evento, a dos oradores de base —un hombre y una mujer de las minas–
que hablan desde el escenario; y luego —de forma excepcional en todo el corpus– a figuras del
comité ejecutivo nacional de la COB, que departen en conferencia de prensa y más tarde en un
balcón durante la segunda concentración. ¿Quién es el antagonista del sujeto colectivo y de sus
“rostros” (representantes)? En su intervención mas enfática la voz over advierte: “El gobierno
277 Mario Rueda Peña fue Ministro de Informaciones durante el gobierno de Siles Zuazo, y tuvo relaciones tensas
con la COB. En la primera concentración, un orador lo califica de mentiroso. Más adelante, en la segunda concentración,
un dirigente campesino, desde el balcón, desmentirá categóricamente que su sindicato, la Central Única de Trabajadores
Campesinos de Bolivia (CSTUCB), haya mantenido un arreglo salarial con el gobierno “fasistoide”, en alusión —probable-
mente– a los dichos que Rueda Peña habría divulgado, y que la COB calificó de “habladurías por detrás”.
278 Al respecto podríamos establecer una referencia intertextual con Revolución (1963), primer
cortometraje independiente del Grupo Ukamau.
se niega a conversar con los trabajadores, porque teme la verdad. Teme ver rostros de trabaja-
dores en los que se ve el reflejo del hambre y la desesperación a los que sumió el gobierno de la
UDP”.279 En efecto, el adversario que aparece en absolutamente todos los discursos es el gobier-
no, más aún, el presidente, a quien se caracteriza como “insensible”. Pero es necesario advertir
que el flanco de ataque sobre el que arremeten los primeros oradores y luego las dirigencias no es
exactamente el mismo y remite, como es obvio, a su posición de enunciación.
Desde su experiencia vital y enfatizando que ha viajado a La Paz no por paseo sino debido
a la lucha, la mujer interroga: “(…) desde estos micrófonos yo le pregunto al Dr. Hernán Siles, a
sus ministros, y sobre todo a los parlamentarios: ¿con qué conciencia ellos meten en su bolsillo
tanto dinero, cuando el minero no tiene? (…)”.280 Portando sus ropas de trabajo, el minero rati-
fica enérgico —aunque con la voz desgastada: “Estamos hoy para decirle: ¡BASTA! Así como
lo hemos hecho con los gobiernos militares (…) ¡El pueblo somos nosotros!”. Al enfocarlo la
cámara ha pasado, sin cortes, desde un plano medio lateral, hacia un contrapicado frontal que
recorta el busto parlante “sobre” una bandera tricolor que se encuentra colgada a sus espaldas, en
una formidable composición espontánea que enfatiza el carácter nacional y popular de ese sujeto,
metonimia del cuerpo colectivo 281 Estos dos rostros soportan voces potentes y firmes que, sin
diluir su singularidad y anclados en la experiencia de carestía que comparten con sus pares-inter-
locutores, se refieren a asuntos públicos en la órbita de la justicia social; y se distinguen, tanto de
los rostros-voces reposados que hacen memoria del pasado en Lucho…., como de los dolientes
por la masacre y la violencia vividas en primera persona, vistos en Las banderas….
Mas hay que señalar que, seguramente debido a que es la misma Federación la que produce
el documental, los otros rostros que se privilegian pertenecen a la dirigencia mostrando, a su vez,
dos tonalidades discursivas divergentes, estratégicamente utilizadas según el objetivo político y
el oyente al cual se dirijan: pausada para la prensa, vehemente para la masa. Allí está, en plena
conferencia de prensa, sentado y hablando sosegadamente junto al histórico Juan Lechín, uno de
los representantes del comité ejecutivo para comunicar la huelga general indefinida y sus objeti-
vos, llamando a todas las fuerzas políticas y los partidos a evitar el retorno fascista; el mismo que
luego sentenciará lapidariamente desde un balcón: “Hemos criado cuervos para que nos saquen
los ojos”, en alusión al gobierno udepista.282
Para el registro de la segunda concentración la cámara comparte el sitio físico de alocución
de los referentes sindicales —un balcón. Aquí el carácter de las intervenciones es de llana con-
frontación y arenga. Se caracteriza al gobierno de fascistoide e intérprete de la “Nueva Rosca”
279 El subrayado es nuestro.
280 Luego continúa: “También quiero aclarar que las mujeres no estamos presentes con fines
políticos. La política de la mujer es la comida, en la mina, para darle fuerza al minero que entra a los
socavones a horadar la tierra para sacar y amasar las divisas que otros despilfarran”.
281 Nótese que el escenario de la primera concentración a la que aludimos se halla coronado por un pasacalle sin
texto, sólo con el dibujo de distintos mineros y el campamento, sobre el que la cámara hace un zoom-in. También hay es-
tandartes de federaciones sindicales y la bandera tricolor.
282 En su intervención frente a la prensa, llama la atención la convocatoria no solo a la solidaridad, apoyo y moviliza-
ción de todas las fuerzas políticas democráticas sino también a los soldados y oficiales militares patriotas.
y el imperialismo, denunciando el vuelco negativo y defraudadorio desde un gobierno popular,
democrático y revolucionario al que se votó y en el que se creyó; a un gobierno reaccionario;
así como también se enfatiza la independencia de la COB respecto de cualquier partido.283 Pero
lo que es más significativo en los discursos es la aserción exaltada de la debilidad del gobierno:
“Rechazamos las campañas de amedrentamiento y de terror implementadas por el actual gobier-
no de la UDP que lo único que hacen, compañeros, es tenderle el camino amplio a la derecha.
Porque en el momento en el que este gobierno se caiga no será porque los trabajadores lo hemos
pedido, será porque este gobierno es incapaz de mantenerse en el poder”.284 Tras varios planos
que insisten en el volumen cuantitativo de manifestantes, un violentísimo zoom-out desde un
núcleo hacia el conjunto, y el rápido movimiento de cámara en dirección al palco —casi como si
el camarógrafo hubiera sido tomado por sorpresa por el fervor del orador–, vemos a un dirigente
enardecido que grita en lo que es casi la clausura del video: “Si este gobierno no es capaz de re-
solver estos problemas de supervivencia: ¿qué debe hacer?”. El contraplano muestra a la multitud
que responde unánime: “¡Que se vaya!”.
Semejante a la placa de clausura narrativa de Las banderas…, la voz over final asevera
sólida y convencida: “La movilización no se detendrá, porque el pueblo está reclamando por sus
derechos, a decir su verdad y a alimentarse para producir. La clase trabajadora se enfrentará con
aquellos que quieren destruirla con las balas o con el hambre”.
Café con pan, también pertenece a la primera línea temática de Nicobis, y surgió hacia me-
diados de 1985 a partir de la necesidad del matrimonio de emprender un trabajo que se centrara
en la crisis, pero recogiendo la palabra de los protagonistas. A fines de ese año pudieron asistir
al VII Festival de Cine Latinoamericano de La Habana lo que redundó, por un lado en conocer
de primera mano inspiradoras producciones del continente de alta calidad visual y aguda mira-
da política; y por otro anoticiarse del concurso lanzado por el Instituto de Radio y TV de Cuba
en torno al problema de la deuda externa en América Latina. En marzo de 1986 comenzaron a
hacer reportajes: “Y sucedió un hecho especial: ya que los encuestados aceptaban responder, rá-
pidamente se reunía un grupo y se discutía la problemática mencionada y la posible causa de la
misma. Unos, informados sobre la Deuda Externa, ampliaban sus conocimientos, mientras que
otros desconocían el problema (…)” (De la Quintana, 1987: 37). Con el video listo, Nicobis se
presentó al certámen y recibió en 1986 el primer premio en el Concurso Internacional sobre la
deuda externa (categoría programa de TV) y fue mención especial en el VIII Festival Internacio-
nal del Nuevo Cine Latinoamericano (categoría video-reportaje).
Café con pan es un documental de denuncia de 22 minutos que retrata el empobrecimiento
de la vida cotidiana y las estrategias de los sectores populares por subsistir con dignidad y so-
lidaridad. De hecho el título emana de uno de los propios entrevistados: “Café con pan…es lo
283 “Bajo ningún punto de vista vamos a admitir que tras nuestra movilización, algunos partidos
con máscara de izquierdistas, los partidos de la derecha, la reacción o el propio fascismo pretendan
aprovecharse”, dice un orador.
284 El subrayado es nuestro.
único que podemos comer”. A través de testimonios y breves encuestas en el espacio público y en
ferias, y sin apelar a la voz over, el video muestra también el desgaste de la articulación sindical:
una “masacre blanca”, como advierte un minero. Aquí las coreografías de lo colectivo son mucho
menos masivas que en Las banderas…, Lucho…o Movilización, pan…: justamente, asistimos a
los primeros signos del deterioro de la vanguardia por excelencia del frente obrero boliviano y la
atomización de los sectores populares golpeados por la crisis.
El documental abre mostrando una pequeña caravana de niños y mujeres quienes reclaman
a coro, en el campamento minero Matilde, no grandes consignas reivindicatorias por el socialis-
mo, la democracia, la libertad o la Justicia, sino por su subsistencia: “¿Qué queremos? ¡Abaste-
cimiento!. ¿Qué queremos? ¡Pan! ¿Qué queremos? ¡Salarios justos!”. Detenida esta acotada co-
reografía, y habiendo mostrado el interior de la pulpería absolutamente vacío, la cámara se posa
en los rostros y las voces que denuncian dramáticamente cómo la política económica va enfer-
mando y haciendo morir a niños y adultos. Tal como vimos en Las banderas… la preponderancia
audiovisual de las mujeres y su potencia expresiva resultan conmovedoras precisamente porque
aunque dan cuenta de la precarización de sus vidas, lo hacen con lucidez y rabia, oponiéndose y
no sólo resistiendo un sistema de explotación y desigualdad.
El relato pasa luego a una voz singular masculina unida ésta a un rostro tomado en prime-
rísimo primer plano, que luego se abre mediante un zoom out a su contexto de trabajo: mientras
en off se explican las formas de economía popular (trueque, intercambio), la banda imagen ilustra
(y ratifica) con imágenes de registro directo, insistiendo en la idea de una sobre-existencia de los
cuerpos. Asociado a esto, el montaje expone tres tácticas de conservación de la vida, y las acom-
paña por testimonios: la primera es la migración del campamento, caótica, dolorosa y desespera-
da; la segunda, el remate en ferias callejeras de las pocas pertenencias que se tienen —zapatos,
un colchón, un mueble, un televisor–; la tercera, la venta ambulante, esto es, el cambio hacia la
economía informal. Nótese que todas son “soluciones” individuales, que subrayan el estado de
desprotección de los sectores populares: al despojo de las fuentes de trabajo, se le suma el des-
prendimiento que los propios sujetos realizan sobre su escaso patrimonio y la separación progre-
siva del entramado de solidaridad y cuidado mutuo tejido en las minas. La estrategia narrativa en
este caso es, nuevamente, ilustrar con registros de observación directa la experiencia que rostros
desesperados y entristecidos narran a los documentalistas, rodeados no de una multitud abigarra-
da y organizada, sino de grupos pequeños o medianos aleatoriamente congregados.
A fin de mostrar los cuerpos-en-trabajo la cámara se interna en el socavón, mientras otro
testigo ofrece una lúcida interpretación respecto de la situación socio-política: la precarización
laboral y vital en los campamentos, es una maniobra desde el poder para que los obreros se des-
moralicen, atomicen y el movimiento minero quede desarticulado. Pero el hambre y la indefen-
sión afectan a todos los sectores populares y trabajadores a lo largo y ancho del país. Por eso el
relato completa el razonamiento incluyendo la experiencia campesina —“La clase campesina
trabaja a pérdida”, dice una mujer–, y el estado de la educación boliviana a la que cada vez menos
niños tienen acceso —“Los maestros tienen sueldos de hambre”. Con trabajos pésimamente re-
munerados, deplorables condiciones laborales, mal alimentados, enfermos y con una instrucción
precaria, el paisaje social resulta desolador.285
Una secuencia resulta especialmente sensible al respecto. En la parroquia San Calixto fun-
ciona un comedor popular que por escaso dinero ofrece el almuerzo a cientos de desocupados,
trabajadores informales y obreros: la cámara se encarga de mostrar que en su enorme mayoría,
son hombres quienes asisten. En un plano secuencia de casi un minuto de duración y con cámara
en mano, se recorre desde el comienzo hasta el final, la larga fila de más de una cuadra de exten-
sión: algunos varones se cubren el rostro, otros permanecen absortos o mirando hacia el suelo.
Éstos no son los cuerpos en espera tensa del bloqueo o los cuerpos re-unidos y concentrados de
Movilización…, ni tampoco son éstas las ollas de la batalla popular que veíamos en Las bande-
ras…. Son cuerpos detenidos, decaídos, aquietados, en sordina; cuerpos suspendidos, retirados
del tiempo del trabajo y separados del macro-cuerpo productivo, ahora coincidentes por otra co-
reografía de lo colectivo que es la de la espera doblegada, apaciguada por el hambre.
En esos cuerpos en caída/excluídos del sistema y en esos rostros huidizos por la vergüenza,
se exponen el socavamiento de un atributo fundamental, la dignidad, 286 y la crisis de un imagi-
nario de masculinidad. Si la vulnerabilidad de estos cuerpos trastoca aquella “invulnerabilidad
imaginada”, propia de la narrativa dominante desde 1952 al caracterizar al proletariado varonil;
eso deja traslucir, como revés de trama, la potencia de lo femenino. Justamente, es una mujer la
que denuncia con perspicacia: “¿Qué deuda estamos pagando? Esta deuda externa va a tener que
ser cancelada con la miseria del pueblo boliviano, con la ignorancia de los niños de Bolivia que
no pueden entrar en las escuelas (…) con el desempleo de cientos de trabajadores y el programa
de relocalización”.
Café con pan devela entonces que la estrategia de desconfiguración del cuerpo colectivo,
de sus coreografías del trabajo y de organización sindical, está en relación directa con la eje-
cución compulsiva —y en curso alarmante– de un plan político-económico: de ahí que se señalen
los signos incipientes de disgregación de aquella masa que vimos en Las banderas… y Moviliza-
ción…, y que reclamaba justicia en Lucho…. Funciona como un grito desesperado de denuncia
por los cuerpos precarizados, y en el paneo de rostros diversos expresa un contexto de fuerte
atomizacion social y de demandas.
Sin embargo, cabe destacar que en el final del video se muestra una forma de resistencia e
insistencia por parte de los sectores populares: un grupo de trabajadores se movilizan en camio-
nes a la ciudad para ejercer presión, adelantando una táctica que veremos consumarse —aunque
285 Una entrevistada incluso llega a homologar el estado de deterioro social actual, con el momen-
to previo a la revolución de 1952.
286 Ha sido especialmente inspirador para pensar esta y otras secuencias relativas a los cuerpos
en caída del sistema, la entrevista a León Rozitchner (2001). Agradezco el conocimiento de la misma
a la Dra. Marcela Visconti.
de forma trunca– en La marcha por la vida. En el marco de los preparativos de ese viaje, Ovando
y De la Quintana grabaron en una asamblea los últimos testimonios oídos en off, que enuncian
expectantes: “Los mineros ya estamos calientes, con los nervios alterados (…) Hemos tenido di-
rigentes en etapa de democracia que han florecido bastante, pero en etapa de crisis los dirigentes
y los partidos políticos se han perdido. Nosotros más bien llamamos a la reflexión a esos partidos
políticos y a los dirigentes de la Federación de la Central Obrera (…) que muevan el hilo para
que nos atienda el gobierno de una vez”; “Por más que nos retiremos de la minería (…) la pelea,
la resistencia va a ser igual en cualquier lugar del país”; “(…) Pero va a haber un punto en que va
a reventar compañero…”.
La marcha por la vida fue co-dirigida entre Alfredo Ovando y Roberto Alem, quien era re-
ferente del Centro Walparrimachi y realizó una importante labor como videasta en Cochabamba.
Ambos coincidieron en la idea de producir un material sobre la movilización minera, y compar-
tiendo las jornadas de trabajo decidieron aunar esfuerzos y hacer una única película. Al igual que
Café con pan, también se presentó en el VIII Festival de Cine de la Habana.
En sus 24 minutos de duración muestra la resistencia de las organizaciones mineras frente
al cierre de las empresas estatales y el plan neoliberal. De cara al saqueamiento de las plantas
(maquinarias, insumos) y el empobrecimiento de sus trabajadores, el documental repone una co-
reografía de cuerpos en dos movimientos: uno de avance y antagonismo, y otro de retroceso —en
teoría– táctico. De forma cronológica, marcando fecha, hora y kilómetro recorrido, el primero
da cuenta del itinerario que miles de mineros realizaron desde sus bases hacia La Paz: la cámara
recorre la intimidad de la caravana, observa con delicadeza esos cuerpos mientras comen, conver-
san, descansan o son aliviados para reanudar la lucha-en-marcha. El segundo movimiento —de
retroceso–, describe, no sin amargura o escepticismo, el repliegue de la vanguardia obrera tras el
cerco militar.287
El video dialoga estrechamente con Movilización, pan… y Café con pan:288 justamente,
frente a una realidad empobrecida, la respuesta es salir a la ruta y marchar “como un solo hom-
bre” —tal la fórmula habitualmente utilizada para expresar unidad– rumbo a La Paz para inter-
pelar al Estado, concientes de que el gobierno de turno —“moviadenista”, en alusión a la alianza
política entre el MNR y la ADN– viene saboteando la productividad y la eficacia de las empresas
nacionales, instando tanto al retiro voluntario como compulsivo de los mineros.
El tratamiento del conflicto se realiza por medio de registros directos y testimonios alusi-
vos, a los que se suma un recurso visual no utilizado anteriormente: planos fijos que, a la manera
de postales-memoria del presente, figuran el dramático estado de paralización de la empresa, el
287 Ovando relató, en entrevista personal, que por esos años hubo otra marcha importante de mineros que culminó
en La Paz, mas precisamente en el edificio de la Universidad Mayor de San Andrés en cuya terraza se “crucificaron” varios
trabajadores, en señal de protesta y reclamo desesperado, momentos que él mismo registró aunque sin terminar ninguna
película. En ese contexto realizó un ejercicio de comunicación y difusión muy singular: filmaba lo sucedido en La Paz y lue-
go lo difundía en las minas; allí recogía testimonios de los familiares de los mineros que habían visto los registros y volvía
a La Paz para mostrar a los mineros que se habían crucificado cómo sus comunidades y familias habían vivido, a través
del audiovisual, aquella experiencia. Un valioso fenómeno comunicativo y proceso socio-audiovisual.
288 De hecho, el último es del mismo año de realización.
saqueo de los recursos y el desguace de la COMIBOL (Corporación Minera de Bolivia) vuelta
puro deshecho, fracaso de la modernidad industrial de la Revolución de 1952 y elocuente signo
de un fin de ciclo histórico. En efecto, estas vistas muestran los espacios físicos caídos en desu-
so, oxidados, que expulsan cuerpos que, a su vez, caerán del sistema —como los de Café…. No
obstante, en la última postal se advierte una línea de riel que semeja, precisamente, la ruta, el
camino, estableciendo una analogía visual entre la vía del trabajo derruida, y la vía del reclamo
para reactivarla.289
El “diario” de la marcha comienza el 21 de agosto a las 12:30 hs: mientras la banda imagen
muestra los muchos cuerpos subidos a camiones con los brazos en alto, la banda sonora se satura
de cánticos, consignas, bocinazos, sirenas de ambulancia.290 Se percibe un estado de alerta y lu-
cha activa, un volumen de cuerpos y sonidos entusiastas, efervescentes que, conforme transcurra
la cinta, irá creciendo. Apenas cuatro horas después, en la localidad de Vinto, se produce el pri-
mer cruce con las fuerzas militares quienes impiden el paso de los manifestantes con un vallado,
aunque luego les dejan pasar. La banda sonora empalma la sirena de la ambulancia que encabeza
la fila de vehículos, con una guitarra cuyos acordes celebran una primera victoria y dan ánimo
a los manifestantes en uno de los pocos momentos donde los rostros sonríen a cámara mientras
entonan una canción popular que reza “Hemos venido de lejos, a exigir nuestros derechos (…)
Aquí todos nos quedamos, desparramando la brasa (…)”.
En efecto, la multitud en marcha se expande y extiende, al sumarse nuevos micros, camio-
nes y hasta un tren cargado de mineros, confluyendo todos en Oruro. Vemos cuerpos vibrantes,
valientes, festivos y estrechamente identificados: el documental expone, por última vez, la fuerza
expresiva y épica de estos cuerpos del trabajo unidos en coreografías de organización y protesta.
Entre vítores a la clase obrera, un orador lanza la convocatoria que da título al film: “Tenemos que
llegar hasta La Paz compañeros. No importa si es caminando, en una gran marcha que simbolice
nuestra lucha. Una marcha… una marcha compañeros, por la vida de los mineros”.291 Mientras
tanto la banda imagen presenta, con idéntico procedimiento con el que se dio cuenta del vacia-
miento de la empresa estatal pero en sentido opuesto, contrapuntístico, diferentes representacio-
nes murales del mundo del trabajo: cuerpos mineros plenos, sólidos, de gran volumen y rasgos
facetados, que traducen fuerza, vitalidad, crispación y estallido.
El relato muestra la coreografía del caminar minero utilizando panorámicas y planos gene-
rales desde altura para percibir la magnitud de la columna; planos laterales con una angulación

289 Casi en el final de esa primera secuencia se destacan tres expresiones rabiosas enunciadas por mujeres: “(…) de
una vez que nos metan bala y que no nos maten de hambre”; “Vamos a salir con esas cacerolas vacías a hacer una ma-
nifestación a la ciudad de La Paz”; “Morir antes de pie que morir de hambre”. Llama la atención la apelación a este tipo de
fórmulas dramáticas y dicotómicas, que de alguna manera remiten al periodo ideológico anterior marcado por el horizonte
revolucionario. Ese tono beligerante está sintetizado también en un cartel que asegura “Vencer o morir”, o en las consignas
“Muera la ley tributaria”, “Muera la deuda externa”, “Con armas o sin armas el pueblo al poder”.
290 La marcha plantea cuatro objetivos: evitar el cierre de las minas, demandar un aumento salarial que cubra la ca-
nasta familiar; exigir la derogación de la ley tributaria ligada al no pago de la deuda externa, y la “expulsión de mercenarios
yankis”.
291 El subrayado es nuestro.
media, para aproximarse “como uno más” a los manifestantes; y oblicuos en contrapicado en
procura de enaltecer, exaltar la protesta y privilegiar el detalle en los pies de los mineros y sus
compañeras. Una de las primeras imágenes, por ejemplo, hace coincidir el borde del encuadre
con el ancho de la ruta, en angulación contrapicada, para advertir —en el marco de un vasto y
hermoso paisaje andino– el andar de la multitud que avanza hacia el espectador probando su po-
tencia, su fuerza como colectivo. A veces, en medio de la columna sobresale la bandera tricolor,
evidenciando que efectivamente lo que está en juego es el patrimonio, la base material del país y
la soberanía nacional, mientras se oye: “¡Muera el FMI!, ¡Muera el gobierno hambreador y entre-
guista!, ¡Abajo el cierre de las minas!, ¡Mueran los gringos invasores!”.292
Tras dos días de caminata, la marcha llega a Lahuachaca, localidad que les recibe cálida-
mente en una suerte de corredor de cuerpos que aplauden y vitorean. En banda imagen se enca-
balgan una serie de planos que, casi a ras del suelo, detallan el aspecto de los pies desnudos de
los caminantes —metonimia de sus cuerpos–: pies que se exponen reposando, siendo curados o
masajeados; pies vulnerados en su dignidad que sin embargo, insisten… juntos. En efecto, los
cuerpos manifestantes exudan el cansancio del trabajo, el hambre, la fatiga por la marcha pero
también el dolor por la indiferencia, tal como señala una voz off femenina que, inferimos, es de
Domitila Chugara: “La marcha mira, es bastante sacrificada, es bastante triste y lamentablemente
el gobierno nos hace doler el corazón. ¿Cómo es posible que a los obreros les han de quitar sus
fuentes de trabajo? Este gobierno está vendido completamente al FMI y por lo tanto le interesa
muy poco”. Pero a pesar de todo, la coreografía de los muchos cuerpos que delata el relato de
Ovando y Alem —cuerpos puestos al límite de su fuerza como forma de lucha–, por su misma
contundencia y credibilidad, arrastra y aglutina a otros que se van adhiriendo, plegando a la mar-
cha, la cual engrosa su caudal humano.
El cenit del video se da en Calamarca, el 28 de agosto, en lo que es el km. 173 del itinera-
rio: el presidente democrático Víctor Paz Estenssoro ha declarado el estado de sitio y ha dispues-
to que las FF.AA. tiendan un cerco de bloqueo a los manifestantes. El sonido rítmico de las botas
—en esa otra forma de marcha, ésta violenta, de tropa– es el motivo sonoro de la inminencia de
la fuerza represiva. Helicópteros y aviones amenazantes se suman a un paisaje irritado, enrare-
cido, que ha puesto dos grupalidades antagónicas frente a frente. El relato muestra los cuerpos
intercambiables de los efectivos armados, cuerpos sin rostro, homogeneizados y disciplinados,
subsumidos —en tanto que grupo– en la autoridad de lo Mismo, lo Uno, o su rostro de tropa, en
palabras de Didi-Huberman (2014: 62).
Al interior de las organizaciones se plantean entonces dos tácticas. Oídas en off, la primera
es la que enuncian las dirigencias para no derramar sangre, e implica negociar el repliegue a las
bases en orden; la segunda, planteada por una mujer sostiene: “Si retornamos ¿a qué pues vamos
292 Como sostuviera León Rozitchner (2001): “La concepción de Nación en tanto que territorio
material que pertenece a la colectividad de los hombres que habitan el país (…) es la concepción de
soberanía. La soberanía son los cuerpos que reivindican la materialidad sobre la cual se apoya la
vida”. El subrayado es nuestro.
a volver? Si allá en las minas ya no tenemos nada. Ya no podemos aguantar más esta hambre, esta
miseria. Hemos avanzado hasta aquí con tanto sacrificio que no podemos volver. Necesitamos
llegar hasta La Paz y hacer valer nuestros derechos. ¡Queremos que nos dejen pasar! ¡Queremos
el diálogo con el gobierno! PORQUE VOLVER ES PERDERLO TODO”. La primera posición
será la que prevalezca y lo entrevisto por la mujer, se cumplirá proféticamente.
Alfredo Ovando, uno de los directores recordó: “Hay momentos muy intensos (…) ese re-
troceso, ese retorno cantado, buscándole una arista optimista a algo que era el desparramarse total
del movimiento minero (…) ha sido como la última imagen de ese magnífico movimiento minero
(…)”.293 El documentalista pone en relación ese supuesto optimismo expresado en los cantos y en
uno de los testimonios finales, con el presente de la Bolivia post 2005: “‘Nos vamos a ir por toda
Bolivia y vamos a sembrar el ser revolucionario en todas partes’ [decía un minero]… y en cier-
ta forma ha pasado, muchos mineros se han ido a la zona cocalera y han estado sembrando una
nueva ideología, una nueva forma de ver el mundo”.294 El 30 de agosto, a casi 10 días de haber
comenzado la manifestación en Huanuni, los mineros se suben al ferrocarril y a los camiones
para retornar a sus bases. Saludan a cámara, se dan ánimo, hacen sonar sus bocinas, permanecen
convencidos, cantan incluso: “Lucharemos (…) con coraje y con tesón (…) Esta marcha por la
vida, es la fuerza del valor (…) El minero boliviano, que muy pronto volverá, ¡volverá!”.295

Memorias sensibles de los levantamientos

En estas páginas hemos propuesto una reflexión respecto del diálogo entre imágenes e his-
toria a propósito de algunas producciones documentales de la escena audiovisual de los ochenta
donde se observa la recurrencia temática del conflicto social y la figuración de distintos modos
de aparición política de los sectores populares. Procurando estar atentos a las significaciones que
portan las imágenes en su apariencia y en su latencia, sea que fueran involuntaria o deliberada-
mente configuradas, nos preguntamos: ¿qué formas de lo visible adquirió la crisis, la rabia, el
duelo, las resistencias y las re-existencias?, ¿de qué modos el documental boliviano fue testigo y
partícipe del conflicto, los levantamientos y las revueltas sociales de la década del ochenta?, ¿qué
gestos de insurrección fue capaz de capturar?
Frente a un paisaje histórico turbulento, un tiempo de precipitados cambios en las con-
diciones y formas de producción del trabajo y la Vida cotidiana, lxs realizadores del corpus
293 El subrayado es nuestro.
294 Las palabras textuales del minero son: “Tal vez con sus fuerzas [en relación al gobierno] podrá
echar a miles de trabajadores de las minas, pero al hacerlo estará echando semillas de revoluciona-
rios en este país, quienes germinarán también a muchos revolucionarios para liberar definitivamente
a Bolivia.
295 Sobre el retorno a las minas sin masacre, dice Rosario León: “(…) este regreso simbolizó mucho más que una
derrota: simbolizó el fin de su dimensión “mártir” (…) dejaban una categoría social para recuperar la vida (…) Con esta ac-
titud las acciones colectivas a continuación no tienen la magnitud de todas las anteriores (…) Se trata, de hoy en adelante,
de reivindicaciones basadas en la necesidad de ser, de defender lo posible, lo realizable, lo cotidiano” (1990: 157).
seleccionado quisieron intervenir en su presente ofreciendo imágenes y voces que fueran cajas
de resonancia de una sincronía estallada. Adoptando un punto de vista solidario con los trabaja-
dores —sin por ello arrogarse la autoridad de “hablar en su nombre”–, mientras cartografiaban
coreografías de lo colectivo, se abismaron en rostros singulares y se detuvieron en cuerpos que,
aún dolientes, hambreados e incluso muertos, luchaban. Se hicieron eco de un orden social en
disputa y dramática reconfiguración: saturaron de conflicto las imágenes y las volvieron sitio
polifónico de tensiones, anudamientos y resonancias de sentidos, prácticas, sensibilidades y me-
morias respecto de la cultura material de la época. De hecho, creemos que hay allí un proceso de
contigüidad, continuidad y recursividad por el cual el des-borde social invade las imágenes que, a
su vez, se des-bordan hacia el universo que les da fundamento y las circunda —o acecha–: crisis
de la presencia social, presencia visual de la crisis (Grüner, 2017).
No obstante, si sólo en el documental de Sanjinés y Palacios la utopía revolucionaria está
presente de un modo claro y es enfática la confianza que se deposita en su construcción a media-
no plazo; en el resto del corpus, un orden social justo, digno, solidario y basado en la Verdad se
encuentra progresivamente desplazado: es un horizonte de esperanza al que se tiende en medio
de un presente de angustia y desconcierto. De hecho, los títulos de las películas son elocuentes al
respecto: de las banderas, al reclamo por el pan; de un nuevo amanecer a una marcha que defienda
la Vida; es decir de la metáfora o la alegoría, a la denuncia literal y conectada con la inmediatez
del contexto.
Trenzando memorias trágicas del horror, la desaparición y la masacre; y crónicas enarde-
cidas del colapso y la persistencia obcecada de la Vida, los audiovisuales produjeron presencias
que nosotros exploramos bajo las figuras de rostro, cuerpo y coreografía. Rostros que, singulares
en su aspecto, permanecían unidos a su especie. Rostros atronadores, dramáticamente interpela-
dores en su materialidad visual-táctil y sobre todo sonora: rostros que soportaban la voz, voces
que eran sostén material de las palabras y la imaginación. Cuerpos re-puestos en su dignidad y
potencia al espacio de lo visible: cuerpos que, desobedeciendo el dualismo que disocia mente-
-afecto, razón-bios, encarnaron prácticas políticas, enervaron convicciones. Cuerpos —también–
cuya precariedad y docilidad podía volverlos inertes, deshabitados o en pleno derrumbamiento.
Rostros y cuerpos, no de “líderes-guías” iluminados o heroicos sino, de “anónimos” trabajadores,
mujeres populares y desocupados que formaban un vasto y heterogéneo cuerpo colectivo de per-
tenencia y reconocimiento. De la unión de esos muchxs, emergieron coreografías desbordantes y
coreografías contenidas, retenidas: en las primeras horizontalidad, determinación, direccionali-
dad consensuada; en las segundas apenas una línea de puntos, individualidades retraídas, suspen-
sión del movimiento, inercia. 296
En suma: entre la celebración por la conquista democrática y el desencanto, los documen-
tales ofrecieron imágenes de la efervescencia y la perplejidad, imágenes de un proceso de cre-
296 Resulta notable la ausencia de representación de los sectores medios y altos bolivianos —siquiera como opo-
nentes–: en los documentales no hay sitio para esos cuerpos y esas voces, así como tampoco para mostrar, de forma
comparada, la fase opulenta de la desigualdad social.
ciente descomposición social y devastación del patrimonio nacional —más aún, de un proceso
de pauperización de los cuerpos que sostenían el patrimonio. En ese momento de caída de los
cuerpos del mundo del trabajo y de reorganización del espacio social, lo que parece configurarse
a través de las imágenes, es una suerte de archivo sensible de la vida política y la memoria social
de una época: un archivo del/sobre el daño y la resistencia, el despojo y la protesta.
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Entrevista a Alfredo Ovando y Liliana de la Quintana: 6 de julio de 2015


Entrevista a Raquel Romero: 10 de julio de 2015.
Entrevista a Alfredo Ovando: 14 de julio 2015.

Maria Gabriela Aimaretti - Doctora en historia y teoría de las artes por la


Universidad de Buenos Aires (2015). Licenciada y profesora en artes combinadas,
diploma de honor 2009. Fue becaria doctoral del CONICET entre 2010 y 2014 y
becaria postdoctoral entre 2015 y 2017. Actualmente es investigadora asistente por
el mismo organismo. Adscripta a la cátedra de Historia del Cine Latinoamericano y
Argentino (2010-2012). Se desempeña como docente concursada en dicha materia
desde 2013 a la actualidad. Docente invitada en seminarios de maestría en la Facul-
tad de Filosofía y Letras. Integrante del grupo de investigación CiyNE (2007-2014),
e investigadora invitada en UNTREF (2011-2014). Miembro desde 2010 a 2016 del
comité editorial de la Revista Cine Documental. Actualmente participa del grupo de
estudios “Arte, cultura y política en la Argentina reciente” coordinado por Ana Lon-
goni y Cora Gamarnik en el Instituto Gino Germani. Es miembro de la Asociación
Argentina de Estudios sobre Cine y Audiovisual y de la Red de Investigadores sobre
Cine Latinoamericano. Ganadora del primer premio en el concurso de ensayos sobre
cine argentino “Domingo Di Núbila” (2016) auspiciado por el INCAA y AsAECA.
Es investigadora en los institutos Gino Germani y Artes del Espectáculo, ambos de
la UBA. Sus áreas de reflexión son, por un lado, las relaciones entre arte y política
en América Latina, a propósito de las representaciones de la violencia, la historia y
la memoria -con un extenso trabajo de investigación sobre cine, teatro y video boli-
viano-; y por otro, las vinculaciones entre cultura popular y cultura masiva en el cine
argentino, atendiendo especialmente a las figuraciones de lo femenino.
22. Villas y cantegriles, la representación de los otros y una mirada sobre el cine social

Mariana Amieva

En este trabajo quiero hablar de una situación particular que se generó en el marco de la
tercera edición del Festival Internacional de Cine documental y experimental del Sodre en el año
1958.  En esta edición nos encontramos con un festival plenamente consolidado en el que se pre-
sentaron 222 películas pertenecientes 39 delegaciones. Este evento que fue muy recordado por la
visita de John Grierson y por el I congreso latinoamericanos de cineastas independientes también
tuvo otras particularidades que lo vuelvan interesante para entender las características del cine
documental de la época y sus vínculos con los cambios que se producen en la década del 60. Me
voy a referir a dos producciones que participaron del festival y que están muy relacionadas entre
sí.  La primera es la muestra de fotodocumentales que llevó Fernando Birri a Montevideo, pro-
ducción de los alumnos del Instituto de Cinematografía de la Universidad Nacional del Litoral,
de la que luego va a derivar en el filme Tire die que se presentó en el mismo festival en 1960. Esta
muestra de fotosdocumentales consistía en varios conjuntos de fotografías acompañadas con tex-
tos que muchas veces se presentaban en primera persona, surgidos de una “encuesta” realizadas
por los alumnos de la carrera.  La exposición estaba dividida en diversos temas y el conjunto de
fotografías sobre los habitantes de una “villa miseria” y los niños que pedían dinero en el tren fue
el que género más interés.
La otra producción es la película Cantegriles dirigida por Alberto Miller. Esta película que
registra los rancheríos de Aparicio Saravia en las afueras de Montevideo tuvo mucha repercusión
en el momento y recibió el premio de la Universidad de la República en el concurso de Cine
Nacional de ese año (ese fue el premio más importante a los filmes nacionales), y fue reseñada
con buenas críticas en forma unánime. La obra de Miller dura poco más de 6 minutos y muestra
en blanco y negro un registro de la vida cotidiana de los habitantes del cantegril acompañado de
una música compuesta por Enrique Almada que intenta no subrayar el sentido dramático de las
imágenes.
Estas dos producciones son significativas porque generan vínculos reconocidos y se toma
como antecedentes del cine de intervención política en los 60, por la mayor parte de los textos
académicos que tocan el tema y por los propios realizadores vinculados a ese cine (ver por ejem-
plo la participación de Mario Handler en la realización de la película, para eso ver el trabajo de
Lacruz).
Tanto Birri como Miller, qué son contemporáneos, (Birri nace en 1925 y Miller en 1927)
mantuvieron carreras que si bien son muy dispares los ubicaron al margen de cualquier cine ins-
titucional.  
Está concordancia de temas en el año 58 nos obliga a pensar en el contexto en el que se
producen estas obras.  Otro de los puntos compartidos va a ser la relación que establecen con el
ámbito universitario.  Cantegriles recibe el premio de la Universidad, y la obra de Birri surge
del ámbito universitario y va a ser la misma Udelar el lugar que acoge su muestra en Montevi-
deo. Este hecho nos comienza a llamar la atención sobre las relaciones que se establecen con
los espacios extras cinematográficos. Si bien la actividad se realiza en el marco del Festival del
Sodre, la exposición de Birri se exhibe en el Hall de la facultad de arquitectura de la Udelar. Esta
muestra no tuvo mucha cobertura en la prensa local y solamente el crítico Homero Alsina Theve-
net le dedica un espacio considerable en el diario El País. Este respaldo fue considerado suficiente
para ser recogido por la prensa en Argentina que se hace eco de esas palabras. El diario La Nación
cita textualmente fragmentos de la reseña de Alsina y el diario La Prensa comenta que la muestra
género un importante interés. En los meses siguientes al festival los fotodocumentales también se
expusieron en el Cine Club del Uruguay como una práctica corriente de los cineclubes uruguayos
que solían difundir una selección de lo más significativo que ocurría en el festival.  Sin embargo,
lo que muestran esas fuentes contemporáneas, es que el interés que suscitaron los fotodocumen-
tales se concentraron en esos espacios extras cinematográficos a los que aludía. La nota de Alsina
nos adelanta una posible visita de Grierson, que luego el propio Birri confirmará. Pero las pala-
bras que sí quedaron documentadas son las del decano de Arquitectura, dando por sentado que
ese trabajo iba a generar interés en los estudiantes de su carrera a los cuales los problemas de las
barriadas precarias de los suburbios no les es ajena. A partir del cambio en el plan de estudios a
mediados de la década, los “aspectos sociales en la concepción actual de la arquitectura” estaban
presentes en la currícula que contaba con un seminario de investigación en el área de sociología
dedicado a estudiar el problema de las clases sociales y la vivienda.
En el primer número de la revista de la facultad de arquitectura encontramos gran cantidad de
artículos dedicados a esta temática dando cuenta del urgente interés que estos temas provocaban
en el ámbito universitario.  1958 resulta un año muy significativo para el Uruguay, año de crisis
y de cambios políticos qué dejan atrás por completo la ilusión de la suiza de América.  Desde
mediados de la década la crisis del modelo económico impactó fuertemente en los sectores popu-
lares provocando la exclusión de una importante parte de la población.
No es casual que ese mismo año se presentarán en el concurso de cine nacional organizado
por el SODRE en relación con el Festival, dos películas que registraban rancheríos empobrecidos
en los márgenes urbanos.
Una de esas películas es Primera Misión a Polanco dirigida por Barindelli y Giordano.  Está
recibe una valoración muy negativa de parte de los jurados y de la crítica.  Si bien se rescata
la importancia de un tema doloroso,  se reconoce que no cuenta con los elementos formales
necesarios para reconocerla dentro de los márgenes del cine.
Esos elementos se relacionan con las limitaciones qué plantea el propio Alsina con relación
a la muestra de Birri.  Hay una preocupación manifiesta por encontrar una narrativa cinemato-
gráfica que evite caer en una exposición literal.  Algunos de estos planteos reaparecen en los
comentarios de la película Tire Die cuando se presentó en 1960, a la que acusaban de desprolija
y poco estructurada.
Es interesante prestar atención a las palabras con las que se pondera a la película Cantegriles
para entender cuáles son los elementos que se valoran desde el campo del cine. Tanto en las críti-
cas como las notas del jurado aparecen las palabras objetividad, rigor, vigor o concisión.  Dentro
de estas características el reconocimiento de la objetividad es el elemento que destaca y con esto
el hecho de que la película funcione como un fiel documento de la realidad.

Frente a este reconocimiento unánime con el que fue recibida la película en 1958, llaman la
atención los comentarios que realiza el propio realizador muchos años después en una entrevista
que le realizaron desde la cinemateca uruguaya en 1991. Miller dice que recibió muchos cues-
tionamientos por esta película.  Comenta que le cuestionan la falta de posicionamiento político y
la ausencia de denuncias explícitas a los responsables de los hechos que registra. Considero que
esta preocupación de Miller da cuenta de un planteo extemporáneo y que de haber sucedido debió
pertenecer a voces que se encuentran afiliadas al cine de intervención política.

Creo que es necesario evitar la correlación entre estos temas ligados a las preocupaciones
sociales, que aparecen de forma recurrente en el cine documental que circula por estos espacios
en la década de 1950 con los tópicos recurrentes en el nuevo cine latinoamericano. En relación
con esto creo que es necesario problematizar en parte las referencias admitidas y los antecedentes
reconocidos de este cine en momentos posteriores.  Son dos los referentes más citados en los que
se inscribe este cine:  Grierson y Zabattini y el neorrealismo de forma general.  Alsina también
ubica el antecedente de Paul Strand elemento interesante que emparenta estas producciones con
cierto aire de sinfonías urbanas y evoca pertinentes ecos297.

Más allá de estas influencias asumidas de forma explícita por Fernando Birri es necesario
prestar atención a los reparos que plantea Paulo Antonio Paranagua cuando analiza la influencia
neorrealista en el cine latinoamericano. Mariano Mestman también recalca esta naturaleza híbri-
da de este cine latinoamericano en estos períodos de transición, que mantiene características tan
diversas como las del propio cine italiano del período.  Volviendo al festival del Sodre y tratando
de prestar atención a los filmes más destacados en estos eventos encuentro más interesante los
cruces permanentes que se establecen entre estos dos objetos a los que me estoy refiriendo y otras
producciones que también se hacen cargo de la representación de diversos tópicos que aluden a
problemáticas sociales complejas.  Dialogan con está representaciones de rancheríos y sus habi-
tantes vulnerables, películas sobre Harlem, sobre el Brasil oprimido, sobre poblaciones indígenas
a punto de desaparecer, sobre el trabajo de diversos sectores populares, como por ejemplo los
pescadores que filma Vitorio de Setta
297 (fotos pelis)
La prédica neorrealista que tal vez resalte con más notoriedad es el imperativo moral con
que se legitiman estos trabajos. Pero esta ética de la forma no tiene sentidos unívocos. Es curio-
sa la referencia explícita de Manuel Martínez carril a Tierra sin pan de Buñuel cuando habla de
Cantegriles.  Encuentro particularmente pertinente la apelación a Buñuel en esta obra, pero con-
tinuando con los itinerarios particulares que presenta el neorrelismo en estos ámbitos, creo que
Cantegriles más que remitirme a Las Hurdes me recuerda a Los olvidados. En esta necesidad de
anclar referencias más que encontrar una línea qué engarce elementos de forma lineal, me parece
más interesante plantear una relación compleja con el cine etnográfico que tuvo una particular
importancia durante el período y cuyas características desafían algunos sentidos comunes, tales
como los que plantea Javier Campo en su trabajo.

Creo que es necesario tomar con mucho cuidado los esquemas teórico-metodológicos con los
que solemos abordar el cine documental cuidándonos especialmente del uso de las modalidades
qué desarrolló Bill Nichols a partir de criterios evolutivos.  Cómo plantea Campo, este cine etno-
gráfico resulta muy difícil de encuadrar y se ve como extraño para un espectador contemporáneo.
El mandato de la representación expresiva de la realidad, toma caminos particulares en América
Latina en una primera mirada donde destacan las formas híbridas.  Alberto Miller se cuida espe-
cialmente de ser confundido con un sociólogo y en su mirada retrospectiva desde 1991 resalta
que su tarea no es opinar sobre un tema sino solamente registrar con su cámara, sin embargo,
tanto su prédica como su práctica se terminan asemejando al trabajo del etnógrafo y encontra-
mos un papel que es similar al del observador participante.  Es probable que esta sea una de las
principales diferencias entre la obra de Miller y de Birri.  En esta mirada de observador que se
reconoce como objetivo en su intento de registrar la realidad sin intervenir sobre ella. Miller mira
a su objeto desde afuera sin disimular la distancia que establece. Este hecho no lo afilia directa-
mente al cine observacional y la situación nos recuerda las particularidades del cine documental
del período que está muy lejos de encuadrarse dentro de las características del cine expositivo.

Junto a la referencia explícita de Alsina a la obra de Strand, los ecos más próximos que en-
cuentro en estas obras son las sinfonías urbanas, o también una variedad de obras del cine danés
o el sueco que causaron un fuerte impacto el público uruguayo.  Miller estuvo formado en el
ambiente cineclubista y no tuvo oportunidad de viajar a las capitales europeas, así como Fernan-
do Birri pudo acercarse a esas fuentes neorealistas de forma más directa.  Es probable que las
películas que circularon por esos espacios cinéfilos hayan sido mucho menos canónicas de lo que
podemos imaginar.

Es cierto que hay una clara delimitación técnica a la hora de darle voz de forma literal a los
actores sociales que protagonizan estas obras.  No sólo el sonido directo todavía era un recurso
de difícil acceso para estos realizadores, sino que la propia incorporación de la banda de sonido
estaba restringida en la obra de Miller a una banda de sonido magnética.  En las pocas referencias
de Miller que nos quedan en estos momentos no deja planteado como un problema la dificultad
de registrar sonido directo. A Miller claramente le interesa más la imagen que la voz, pero esto
no ocurre con otras producciones contemporáneas en las cuales se plantea de forma manifiesta el
problema de cómo incorporar esas voces ausentes.  Cuando Birri realiza Tire die acude al recurso
de doblar las voces que se habían registrado por escrito durante la encuesta.  Este uso particular
del doblaje se encuentra por ejemplo en Vuelve Sebastiana de Jorge Ruiz. Aquí encontramos
distintas alternativas en los usos de los medios de producción en los que se manifiestan elemen-
tos mucho más significativos qué las afinidades por el uso de diferentes tecnología, en las cuales
encuentro que ninguna de las opciones elegidas tiene sentidos neutros.

El problema de la distancia con la que es mirado ese actor social vulnerable es uno de los
puntos qué diferencia la obra de Birri y de Miller.  Esto se hace notorio con la anécdota que cuen-
ta este último a raíz de la exhibición de su película ante los pobladores del rancherío.  Miller co-
menta que no hizo caso a las voces que le aconsejaban no exhibir la película en el cantegril.  Esta
exhibición terminó de forma conflictiva haciendo explícito el hecho de que se encontraban frente
a una obra que les era ajena. A los pocos minutos de comenzada la película los pobladores comen-
zaron a hacer manifiesto su desagrado por las formas grotescas con las que se veían representa-
dos. Encuentro que está mirada particular está presente al final de la película que comienza en ese
tono discreto tratando de equiparar ese otro mundo medio marginal a las actividades domésticas
y productivas de los sectores que si están incluidos.

Esa tensión vuelve explícito el lugar en el cual la película se posiciona.  Esta mirada clara-
mente se ve desde afuera y esta circunstancia es la principal diferencia con el cine político que ir-
rumpe años más tarde.  El cuestionamiento más fuerte que puede realizarse desde esa otra vereda
del cine es justamente la dificultad que reconoce para ponerse en el lugar del otro, asumiendo esa
voz y hablando en su nombre y no tanto la ausencia de una denuncia social explícita que por otro
lado deja entrever.  El propio nombre de cantegril como denominación de los rancheríos suburba-
nos fue considerado por los propios habitantes como un mote que fue impuesto desde afuera tal
como plantea Bolaño a partir de entrevistas a antiguos pobladores.  Estos cantegriles mantienen
cierto dejo despectivo que su propia denominación le atribuye.

Es interesante encontrar cómo en estas dos producciones simultáneas qué quieren hacer vi-
sibles dentro del espacio público un problema social que cobra carácter de urgente se habla cine
con características y usos muy diferentes.
Mariana Amieva - Profesora en historia, Universidad Nacional de la Plata, Ar-
gentina. Directora, revista 33 cines, Uruguay. Ex responsable de la gestión cultural,
Fundación por la Paz Graciela Figueroa. Ex diseño y desarrollo, taller virtual sobre
audiovisual para niños CreaFan, Ceibal y Dirección del Cine y Audiovisual Nacional
(ICAU). Exintegrante, equipo técnico profesional, área de Investigación y Enseñan-
za, Comisión Provincial por la Memoria, Buenos Aires, Argentina.Investigadora ac-
tiva, nivel iniciación, área Humanidades, Sistema Nacional de Investigadores (SNI).
23. MI HERMANO FIDEL: A emoção como estratégia no documentário político

Marcelo Prioste

Uma romântica canção pop executada por um arranjo de cordas embala fotos em lenta fusão
de um sujeito com barba espessa que sorri timidamente, fumando charuto e trajando uniforme
verde-oliva. Ele havia acabado de auxiliar na recuperação da visão de um idoso que vivia numa
pequena casinha branca em um lugarejo afastado, próximo ao mar. O velho então agradece ao
grande benfeitor local, que ele não havia reconhecido em virtude de seus problemas de visão.
Suas mãos tremem ao identificá-lo. Emoção? Por fim, ele o saúda: “E que tenha muita felicidade
e muita prosperidade e muita vida… que dure ao menos trezentos anos”.

Esta não é a descrição de mais um capítulo dos melodramas que abastecem os televisores
latino-americanos desde os anos 1950. Mas os instantes finais de Mi Hermano Fidel (Santiago
Álvarez, 1977), cuja sinopse oficial no material de divulgação298 do ICAIC diz tratar-se de uma
produção sobre o testemunho de Salustiano Leyva (1885-1981), senhor de 92 anos que teria
sido a última pessoa viva a ter tido contato com os revolucionários que iniciaram as lutas pela
independência cubana, dentre eles Jose Martí e Máximo Gómez. O “entrevistador” do idoso teria
sido o próprio comandante Fidel Castro.

Segundo um breve artigo de Maio de 1977, assinado por Hector Hernandez Pardo no jornal
oficial cubano, o Granma, a ideia para o filme surgiu a partir de uma situação espontânea, pois
Fidel visitaria a Playita para uma entrevista que iria compor outro filme, sobre o XX aniversário
do desembarque dos revolucionários, em 1957. Porém, o líder cubano não queria ir embora
“sin antes saludar a Salustiano Leyva”, e assim a equipe, coordenada por Santiago Álvarez, não
perdeu a oportunidade para registrar aquele encontro (ARAY, 1983: 213). Cerca de cinco anos
depois, em uma entrevista sobre a repercussão do filme, Santiago reitera esta espontaneidade das
circunstâncias, mas com outra versão, dizendo ter sido ele quem convenceu Fidel a ir conhecer
a testemunha do desembarque. Inclusive Santiago relembrava-se do diálogo que teve com Fidel
naquele momento,

S.A.: Você sabe que bem perto também vive o filho da senhora que se
encontrou com Martí e Gómez, há uns poucos metros daqui?
FIDEL: Sim, você me disse que ele tinha sete anos, então.
298 Encarte que compõe a ANTOLOGIA DE SANTIAGO ÁLVAREZ, CORTOMETRAJES CLÁSICOS
DE TEMAS URGENTES DE SU ÉPOCA, vol. 1. Dvd, Havana: Icaic, 2009.
S.A.: Agora tem noventa e tantos anos. Está velhinho. Chama-se Salustiano.
Seria bom ver se…
FIDEL: Com grande prazer, quando passarmos por lá podemos cumprimentá-
lo.299 (ARAY, 1983: 318, tradução do autor).

Independente da vontade ter partido de Santiago ou do próprio Fidel, a iniciativa de conhecer


o ancião de forma tão espontânea, deixa de comportar esse aspecto na produção do filme.
Principalmente pelo desfecho, com a vinda de uma oftalmologista a partir de uma ordenação
direta do Comandante, especialmente incumbida de atender Salustiano, quase cego.

O documentário foi rodado nos arredores da Playita, um trecho rochoso da praia de Cajobabo,
atual província de Guantánamo, antiga Oriente. Foi ali que, em Abril de 1895, desembarcou
o grupo revolucionário composto por José Martí, Máximo Gómez, Francisco Borrero, Angel
Guerra, Cesar Salas e Marcos del Rosario, que deu início à luta efetiva pela independência do
País, denominada pelo próprio Martí como “La guerra necessária”. Isto é revelado pelo filme na
forma de texto, logo nas primeiras cenas, com um zoom out que descortina uma pequena praia
abraçada por um rochedo. A câmera vai se movendo por ela suavemente, instalando uma sensação
de nostalgia para que a localização indicada na forma de texto sobreponha-se à paisagem,

…DOS HORAS DESPUÉS


DE DESEMBARCAR POR PLAYITAS
PROVÍNCIA DE QUANTÁNAMO,
EL 11 DE ABRIL DE 1895
JOSÉ MARTÍ Y MÁXIMO GÓMEZ
ENCONTRARON LA PRIMERA FAMILIA CUBANA:
… LOS LEYVA… (Mi Hermano Fidel, 1977).

A câmera então navega por um barco a remo, como uma espécie de reconstituição da chegada
de Martí à Playita, regada por um tema instrumental. É a balada Theme from Mahogany (Do
You Know Where You’re Going To)300, interpretada pela cantora Diana Ross, enquanto, ainda
299 S.A.: ¿Usted sabe que aquí cerca también está el hijo de la señora con que se encontraron
Martí y Gómez, a unos cuantos metros de aquí?
FIDEL: Sí, me contaste que tenía siete años entonces.
S.A.: Tiene noventa y tantos años. Está viejito. Salustiano se llama. Sería bueno ver si…
FIDEL: Con muchísimo gusto cuando pasemos por allí podemos saludarlo (Mi Hermano Fidel, 1977).
300 A canção Theme from Mahogany (Do You Know Where You’re Going To) foi tema principal do
filme norteamericano Mahogany, dirigido por Berry Gordy e estrelado pela cantora Diana Ross, em 1975.
Produção cinematográfica da Motown, o filme conta a história de uma jovem negra que sai de Chicago
para alcançar o sucesso como designer de moda em Roma. A música tema tornou-se mais conhecida
do que o filme, sendo indicada ao Oscar e ficado em primeiro lugar na parada de sucessos Billboard em
1976. Fonte: http://www.imdb.com.
sob a forma textual, apresenta-se aquele que seria o personagem principal que teria conhecido
Jose Martí: “SALUSTIANO, QUE ENTÃO TINHA 11 AÑOS, CONHECEU NESSA NOITE
MARTÍ E GÓMEZ…!”.

Jose Martí (1853-1895), que passou a maior parte de sua vida no exílio, após ser preso
aos 16 anos e depois ser deportado para Espanha, formou-se em direito, filosofia e letras pela
Universidade de Zaragoza e depois viveu na França, Inglaterra, México, Venezuela e Guatemala.
Estabelecendo-se em Nova Iorque, exerceu diversas funções como jornalista e escritor, atuando
como correspondente de jornais e até na função de cônsul de alguns países da América do Sul,
como Argentina, Uruguai e Paraguai. Sua deportação em 1871 pode ser considerada como
marco inicial no processo que culminaria com a independência oficial de Cuba. Como escritor,
tradutor e professor, Martí cooperou com vários grupos insurgentes, promoveu conferências
e atuou intensamente pela causa da independência durante o exílio. Em 1892 funda o Partido
Revolucionário Cubano (PRC), que no seu estatuto defendia explicitamente a independência
do País e também da ilha próxima, Porto Rico. O PRC lançava como base de ação a luta pela
instalação de um regime democrático, de base nacionalista, rechaçando o modelo de dominação
colonial por toda a região.

Para pôr em marcha a grande empreitada revolucionária, Martí convidou o experiente general
dominicano Máximo Gómez (1836-1905), que já estava envolvido com a causa da independência,
além do cubano Antonio Maceo Grajales (1845-1896), também um veterano engajado na mesma
luta que, por ter se destacado como líder militar negro em um país tão marcado pela escravidão,
mais tarde seria reconhecido pela alcunha de El Titán de Bronce.

Com, pelo menos, três anos de planejamento e levantamento de fundos, a insurreição foi
colocada em marcha mesmo com o revés ocorrido em 10 de Janeiro de 1895, dia em que três
embarcações carregadas de armamentos foram confiscadas pela Marinha dos Estados Unidos
(MÁO JÚNIOR, 2007). Um episódio que prejudicaria o movimento não apenas pelo impacto no
seu material bélico, mas também pela perda do fator surpresa, indispensável a este tipo de ação.

Assim, em 24 de Março de 1895, o movimento encabeçado por Jose Martí, pelo general Máximo
Gómez e por Antonio Maceo teve início, com uma série de levantes locais, principalmente nas
províncias de Oriente e Matanzas, reconhecidas como fortes redutos de resistência à dominação
espanhola. Logo depois o general Maceo desembarcaria com seus homens na região de Baracoa,
ao norte da província Oriente (atual Guantánamo), enquanto em 11 de Abril, Gómez, Martí e
outros quatro revolucionários desembarcariam mais ao Sul. Em uma das muitas cartas escritas
ao seu amigo, o advogado e político mexicano Manuel Antonio Mercado y de la Paz, Martí
mencionou os percalços dessa chegada, particularmente difícil em função de sua saúde frágil e
da pouquíssima experiência militar:

Cheguei, com o general Máximo Gómez e mais quatro, em um barco no qual


levei o remo de proa, sob o temporal, a uma pedreira desconhecida de nossas
praias; carreguei, quatorze dias a pé, por entre espinhos e alturas, minha
mochila e meu fuzil301 (MARTÍ, online).

Mesmo sem contar com o apoio dos latifundiários da região, por onde passavam iam
arregimentando muitos camponeses e fazendo recuar as forças espanholas. Todavia, numa dessas
investidas, próximo à localidade de Boca de Dos Ríos, em dia 19 de maio, ou seja, pouco mais
de um mês após ter desembarcado na pedregosa Playita e contrariando determinações do General
Gómez, Martí incorpora-se à vanguarda das tropas e acaba mortalmente ferido, aleijando, assim,
os combatentes pela independência de sua principal liderança política.

No dia anterior Martí havia escrito sua última carta, também destinada a Manuel Mercado,
que ficaria famosa pela frase: “Viví en el monstruo, y le conozco las entrañas”, que pode ser lida
como síntese de suas motivações políticas pautadas por indícios de um interesse dos EUA em
promover a anexação de Cuba, apoiada por alguns setores da oligarquia cubana. Uma suspeita
que, de certa maneira, se confirmaria mais tarde pela adoção da Emenda Platt302 em 1901. Nesta
mesma carta figura, conjuntamente ao prenúncio de um iminente poder geopolítico dos EUA na
região em substituição ao modelo colonial europeu, também aquilo típico naqueles que ficam
reconhecidos como mártires, a preconização de seu desfecho pessoal:

[…] já estou todos os dias em perigo de dar minha vida por meu país e por
meu dever – uma vez que assim entendo e tenho ânimo para realizá-lo – de
impedir a tempo, com a independência de Cuba, que os Estados Unidos se
alastrem pelas Antilhas e caiam, com essa força a mais, sobre nossas terras
de América303 (MARTÍ, online, tradução do autor).

Se, por um lado, sua morte precoce privou a sociedade cubana de ser conduzida por

301 “Llegué, con el General Máximo Gómez y cuatro más, en un bote, en que llevé el remo de
proa bajo el temporal, a una pedrera desconocida de nuestras playas; cargué, catorce días, a pie por espi-
nas y alturas, mi morral y mi rifle”.
302 A Emenda Platt (1901-1934) foi um dispositivo legal incorporado à Constituição cubana após o
fim do conflito com a Espanha que autorizava os Estados Unidos a intervir militar, política ou economica-
mente, caso julgasse necessário, submetendo o país aos moldes de um protetorado (STATEN, 2003).
303 […] ya estoy todos los días en peligro de dar mi vida por mi país, y por mi deber-puesto que lo
entiendo y tengo ánimos con que realizarlo-de impedir a tiempo con la independencia de Cuba que se extien-
dan por las Antillas los Estados Unidos y caigan, con esa fuerza más, sobre nuestras tierras de América.
um dirigente político que, presume-se, colocaria em prática os princípios de um projeto de
modernidade que refutava a mimetização dos modelos europeus de sociedade, por outra, seu fim
trágico foi condição essencial na cristalização de seu pensamento, na forma de uma idealização
que resvala a utopia, no sentido de algo planificado, mas não confrontado com as demandas da
realidade. Muitas vezes desenvolvido por meio de textos que cotejam o ensaístico, o pensamento
Martiniano abriu brechas para diferentes leituras, sendo disputado pelas mais diversas correntes
ideológicas, até mesmo por algumas de posições antagônicas à total independência da ilha.

Mesmo que a Revolução de 1959 apresente-se como legítima herdeira das proposições
do intelectual revolucionário, a sua dissidência, principalmente a que ainda opera fora do País,
particularmente em Miami, também não deixa de se vincular ao ideário de Martí, essencialmente
pelos seus pressupostos republicanos de liberdade, igualdade, educação e cultura, dentro de uma
perspectiva nacionalista independente. Não é à toa que, em 1995, pelo menos 11 grupos anticastristas
sediados na Flórida faziam alguma menção ao nome do mártir na sua denominação (MORAIS,
2011: 171). Isto sem contar as emissoras de rádio clandestinas. Dentre as regulamentadas, há a
rádio e TV Martí, financiada pela Broadcasting Board of Governors (BBG), agência do governo
dos EUA, que desde 1983 com o rádio, e desde 1990 com a TV, transmite continuamente uma
programação de oposição ferrenha ao governo cubano.

Desta maneira, a Playita de Cajobabo tornaria-se o palco em que se almejaria entrecruzar
a biografia do revolucionário de 1895 com a do líder da revolução de 1959. Dois anos antes,
Santiago Álvarez já havia tratado desde tema, quando dirigiu El Primer Delegado (1975), um
curta-metragem que também trazia o testemunho de um senhor que, quando menino, havia
conhecido Jose Martí. Porém, trata-se de um filme mais interessado em justificar a relevância do
Partido como agente determinante na preservação de uma frente nacional anti-imperialista. Para
dar conta deste intento, El Primer Delegado fez um arranjo narrativo que, como uma máquina
do tempo, ligaria o então PC dos anos 1970 ao Partido Revolucionário Cubano (PRC) do final
do século XIX, sendo capaz de “ressuscitar” seu fundador apenas para “preencher uma ficha de
filiação” ao Partido Comunista Cubano, cujo assento para o I Congresso, que ocorreria naquele
ano, aparece identificado no filme.

Quanto a Fidel Castro, seu empenho nesta direção vem desde pelo menos 1953, quando, o
então jovem bacharel em direito, escreve A História me absolverá, texto em sua defesa, elaborado
durante a prisão pela tentativa de invasão do Quartel Moncada, em 26 de Julho. Acentuadamente
influenciado pelas posições do autor do ensaio Nuestra América, chega a acioná-lo como
argumentação de defesa, declarando-o simbolicamente como o mentor intelectual daquela
operação malograda:
Impediram, da mesma forma que chegassem às minhas mãos os livros
de Martí. Parece que a censura da prisão os considerou demasiado
subversivos. Ou será porque considerei Martí o autor intelectual do 26
de Julho? Fui impedido, além disso, de trazer a este julgamento obras
de consulta sobre qualquer matéria. Não importa! Trago no coração os
ensinamentos do Mestre e no pensamento as nobres ideias de todos os
homens que defenderam a liberdade dos povos (CASTRO RUZ, 2011:
17).

Estilisticamente, Mi Hermano Fidel vem carregado de um apelo emotivo, seja pela trama, em
que um idoso cego dialoga com Fidel sem saber tratar-se do “comandante”, seja pela montagem
dos planos finais, quando uma fusão de closes em slow motion do “hermano” vão sendo embaladas
pela parte instrumental da canção romântica norte-americana mencionada. Esse período, os anos
1970, foi também aquele reconhecido por muitos autores por um empobrecimento na linguagem
documentária de Santiago Álvarez, quando “[…] a montagem dramática de suas primeiras obras
foi suplantada por longas tomadas e gravações com som sincrônico; muitos de seus filmes se
tornaram intermináveis e tendenciosos, sobretudo os longas, estáticos e tediosos resumos dos
discursos de Castro” (MRAZ, 2009: 449). Uma época marcada pela dependência econômica
do bloco socialista e a consequente acentuação do isolamento político internacional da Ilha.
Assim, Mi Hermando Fidel é interpretado na outra extremidade de um arco narrativo no qual
se desenvolveu a figura do herói cubano, iniciada com a instauração do governo revolucionário
na década de 1960, mas agora como emergente de uma tentativa de reafirmação nacional em um
quadro de profundo esgarçamento daquele ambicioso projeto político.

Sobre este cenário dos anos 1970, o realizador Julio García Espinosa (1926-2016) aponta
uma mudança dentro do ICAIC na compreensão do que seria um filme político, uma vez que, na
opinião do diretor cubano, o público já tinha sua consciência política desenvolvida após os dez
anos da Revolução e o momento histórico passaria a ser outro, sendo assim,

O cinema cubano, pensamos, está entrando em uma nova fase de sua


evolução. Não é fácil. Praticamente é uma terra sem precedentes. Já não será
suficiente a denúncia (nem tampouco é o plano estritamente político), ou
que o militante se emocione ao ver suas ideias representadas “belamente”304
(GARCÍA ESPINOSA et al, 1975: 119, tradução nossa).

304 El cine cubano pensamos, está entrando en esta nueva fase de su evolución. No es fácil.
Prácticamente es un terreno inédito. Ya no será suficiente la denuncia (como tampoco lo es el plano
estrictamente político) o que el militante se emocione al ver sus ideas representadas “bellamente”.
Esta “nova fase”, em que se evitaria uma linguagem que “emocionasse” a militância,
ficou marcada nas produções dirigidas por Santiago Álvarez por um modo mais convencional
de explorar as possibilidades narrativas do documentário. É a fase lembrada pelos registros das
viagens de Fidel Castro ao redor do mundo. Suas visitas à África, aos países do bloco socialista, ao
Vietnã e a URSS sendo documentadas por filmes como: Y el cielo fue tomado por asalto (1973),
Los cuatro puentes (1974), El octubre de todos (1977), Y la noche se hizo arcoiris (1978) e El
sol no se puede tapar con un dedo (1976). Além das produções que abordavam os processos de
independência no continente africano, como Maputo Meridiano Novo (1976) sobre Moçambique,
e Luanda ya no es de San Pablo (1976) sobre Angola.

Nesta fase, o que prevalecia no cinema de Álvarez eram especulações sobre a realidade por
meio de uma retórica mais previsível. Os inimigos já estavam devidamente identificados pelas
produções de outrora, as mazelas do terceiro mundo, as imposições do neocolonialismo e as ações
imperialistas pela América Latina já haviam sido distintamente mapeadas. O vigor da incitação
declarada pela Mensagem à Tricontinental de Che Guevara ou pela Primeira Conferência da
OLAS, a Organización latinoamericana de Solidaridad em 1967, já haviam sido explorados pelo
cinema do cineasta cubano. Já se sabia quem era o vilão e o mocinho antes do filme começar. A
necessidade constante em demarcar um território, política e historicamente, o levaram a um certo
esquematismo que esvaziou seu lado mais audaz, flexionando sua ênfase retórica na direção das
falas de Fidel Castro. Fato inclusive reconhecido posteriormente em publicações editadas pelo
próprio ICAIC305. Uma reorientação que já começa a ocorrer em 1969, quando Santiago aponta
os discursos do líder da Revolução como paradigma para suas criações:

São meus melhores exemplos do que é um bom roteiro. Fidel se expressa como
se utilizasse sequências cinematográficas, estrutura imagens retrospectivas e
perspectivas, faz uma montagem didática, dinâmica, moderna e comunicativa
de uma só vez (ÁLVAREZ, 1970: 39).

305 No capítulo “Los ‘grises’ años 70 y las trampas del realismo” do livro Los Cien Caminos del
Cine Cubano, editado pelo ICAIC em 2010, os autores Marta Díaz e Joel del Río reconhecem a trans-
formação no cinema de Álvarez na década de 1970: “El documentalismo de Santiago Álvarez transita
desde la propaganda revolucionaria y antiimperialista, asentada en recursos del cine experimental
(Dziga Vertov, Joris Ivens, la vanguardia soviética) hacia el culto hagiográfico a la figura del líder rebel-
de, amplios reportajes sobre discursos de Fidel, acerca de la lucha antiimperialista en naciones tercer-
mundistas, o sobre visitas del máximo líder cubano a diversos países. Documentales mayormente de
entrevistas con sonido directo e insertos de archivo, cada vez menos arriesgados en términos fonales
y de diseño visual bien conservador fueron: ¿Cómo, por qué y para qué se asesina un general?
(1971); De América soy hijo y a ella me debo (1972); Y el cielo fue tomado por asalto (1973); El tigre
saltó y mató, pero morirá... morirá (1973); El primer delegado (1975); El octubre de todos (1977); Mi
hermano Fidel (1977)” (DÍAZ; RÍO, 2010: 43).
Estamos então diante de uma construção fílmica que se vai apegando cada vez mais ao
raciocínio desenvolvido pelo líder da Revolução. Santiago torna-se amplificador não mais dos
ideais revolucionários, mas do pensamento de Fidel Castro sobre onde estavam e como se chegar
até estes ideais. Desta maneira, Mi Hermano Fidel carrega, desde o título, uma ênfase na figura de
Castro, e não no idoso Salustiano e seu testemunho, como consta na sinopse de divulgação. Por
meio de enquadramentos subjetivos, Álvarez faz o público olhar pelos olhos de Salustiano para
contemplar a figura de Fidel, e também o utiliza para estabelecer a conexão esperada, um vínculo
com o “apóstolo da independência” quando, ao final do curta-metragem se ouve Fidel perguntar:
“Por que é que o senhor diz que é irmão de Fidel?”. E ele então Salustiano responde: “Porque eu
sou irmão do General Marti e Fidel é irmão do General Martí também”… “Porque fez às vezes
de Marti: socialista, comunista, e eu morro por Fidel”. Após o exame oftálmico o idoso ajusta as
novas lentes e entra a imagem de Fidel ainda com foco oscilante, enfatizando tratar-se do olhar
de Leyva “ganhando a visão”. “Mas, o senhor não o conhece?”, pergunta Fidel, colocando-se
em terceira pessoa e assim, mesmo como um chiste, assumindo-se no papel de um personagem,
como se nota no diálogo abaixo:

_Eu o vi uma vez


_Onde o viu?
_Lá embaixo, na praia.
_E ele é parecido com quem?
_Eu não me recordo bem com que ele se parece.
_Sabe que me confundem muitíssimo com ele.
_Bom, é parecido.
_Certo é parecido, é pela barba.

_Vou lhe propor uma coisa, olhe,
_Que o levem pra lá ou que lhe tragam um oftalmologista para cá para que
lhe façam óculos para que reconheça os amigos, percebe?
_Então somos hermanos e o senhor não me conhece.
_ O senhor é Fidel? (Mi Hermano Fidel, 1977).

Dessa forma, um culto à imagem se impõe ao espectador distraído pelo olhar do idoso. Os
planos subjetivos são como uma sala de espelhos que convergem na direção de uma só imagem,
como um subtexto para o público: vocês é que estão cegos, precisam de óculos, olhem quem
está diante de vocês, o legítimo herdeiro de Jose Martí! E, se não fosse pelo título que entrega
seus reais propósitos, Mi Hermando Fidel seria, para a audiência, uma espécie de filme “cavalo
de troia”, ou seja, no seu bojo, a figura em questão passa a ser a de Fidel, e não mais a do cego
Salustiano e seu testemunho. Em suma, Santiago Álvarez faz o público olhar pelos olhos de
Salustiano para contemplar a figura de Fidel.

O roteiro de Rebeca Chávez e Santiago Álvarez e, fundamentalmente, a montagem de Mirian


Talavera, criaram o reencontro posterior entre o idoso que agora enxerga Fidel. Um reencontro
que ocorreu apenas dentro do filme, feito por meio da edição, com cortes e som extra-diegético.
Quando Salustiano recebe seus óculos Fidel não estava mais presente, a oftalmologista só viria
dias depois. Nesta sequência, percebe-se que não seria possível que, imediatamente, a equipe
oftálmica estivesse a postos e, mais ainda, que o líder cubano a esperasse. O tempo foi suprimido
pela montagem em favor de uma eficácia retórica. Também a voz de Leyva que deseja a ele “ao
menos trezentos anos” não pertence à diegese da cena, foi inserida para a constituição de sentido.
A montagem organizou o reencontro que, por sua vez, acomoda-se na cabeça do espectador como
um ardil cinemático que enlaça entrevistado, entrevistador e público.

Em Março de 1978, durante um debate na Filmoteca Nacional de Espanha – hoje Filmoteca


de Cataluña, na cidade de Barcelona, Álvarez foi indagado sobre a presença de um “culto à
personalidade” e um excessivo triunfalismo em suas obras. Sem relutar, mas também se
emaranhando por certas contradições, o documentarista assume que, sem dúvida: “Sim. Eu rendo
culto a personalidade, não nego. Ao render culto a uma gente como Simon Bolívar, Sucre, San
Martin, Lenin, Fidel. Existe algo de errado nisso? O ruim é adorar pessoas que não o merecem”
(ÁLVAREZ apud ARAY: 269).

Logo, fazer uso do documentarismo estatal para fortalecer a figura de Fidel seria uma
resposta natural aos desgastes de um governo revolucionário que enfrentava os mais diversos
entraves infraestruturais: derrotas no campo econômico que inauguravam a década com os
efeitos do bloqueio internacional que afetavam a consolidação de uma política industrial, além
de outras experiências malsucedidas, que acentuariam a dependência econômica dos países do
bloco socialista, principalmente da URSS. Uma conjuntura piorada pelo isolamento político
crescente, seja pela perda do apoio de parte da intelectualidade na Europa após a anuência de
Fidel à invasão da Tchecoslováquia em 1968 pelos países integrantes do Pacto de Varsóvia, seja
devido às manifestações vindas do espaço midiático conquistado pelos dissidentes exilados,
como o escritor Guillermo Cabrera Infante, Carlos Franqui e o cineasta Néstor Almendros, dentre
tantos outros, além da escassa interlocução dentro da própria América Latina, envolta pela onda
ditatorial militar que grassava pela região.
Na economia, a década de 1970 começa com o estigma causado pelo fracasso ao não
se alcançar a safra recorde de 10 milhões de toneladas de açúcar, uma derrota que, além de
comprometer severamente a produtividade daquele ano, devido aos deslocamentos de mão de
obra e a incorporação de outros campos de cultivo e pasto para a produção da cana-de-açúcar,
também afetou o ímpeto revolucionário, por ter mobilizado todo país em torno de uma iniciativa
malograda. Um noticiero exibido nos cinemas cubanos à época, intitulado “Diez Millones”,
demonstra bem o alcance simbólico deste insucesso econômico. Começando com imagens de
uma tempestade e Fidel Castro chegando a um estúdio de TV vestindo uma capa de chuva, o
cinejornal documenta a participação do comandante em um programa de TV voltado a explicar
didaticamente quais seriam os problemas que as chuvas estavam causando, e como eles poderiam
prejudicar o alcance daquela safra histórica. Chegando a dizer que “[…] seria uma vergonha
incrível se nós ficarmos abaixo dos dez millhões” e, ao final, empunhando a batuta utilizada na
explanação, Fidel, como um maestro que conduz uma orquestra com um mapa de Cuba ao fundo,
termina com a frase: “año de los diez millones, ni una libra menos”.

No âmbito da política, a segunda metade da década foi de uma maior centralização de


poder, com a promulgação da nova Carta constitucional em 1976. Dentre outras deliberações
que ajustavam o País aos fundamentos que garantissem sua inserção na “comunidade socialista
internacional”, conforme consta no 11º artigo (AYERBE, 2004: 76), a nova Constituição colocou
o Partido Comunista no centro do poder executivo como “vanguarda organizada marxista-
leninista da classe operária”, agindo como “força dirigente da sociedade e do Estado”, para a
“construção do socialismo e o avanço em direção da sociedade comunista”, de acordo com o
artigo 5º. Portanto, isso fazia com que o Secretário-Geral do Partido, o Comandante em Chefe,
oficialmente assumisse a cadeira da Presidência.

Naquele mesmo evento em Barcelona no ano de 1978, Santiago também foi questionado se
filmes como Mi Hermano Fidel poderiam ser considerados atos verdadeiramente revolucionários.
Ele então responde à provocação de maneira evasiva com outra questão, dizendo que, no caso
específico de Fidel, por ser alguém que fez tanto por Cuba, pela América Latina e pelo mundo,
não há nada de mais em admirá-lo: “Admirar alguém é algo ruim?”. Este é um argumento que
tanto pode se enquadrar numa esquiva retórica, como pode ser indício de algo que mereça maior
consideração. Uma vez que um cinema estatal produzido no interior de uma sociedade civil,
cujas linhas demarcatórias com o Estado estão muito borradas, em que o Estado é a sociedade e a
sociedade é o Estado, fazem com que um produto cultural estatal seja considerado um produto da
própria sociedade. Um filme feito nestas condições, na ótica de Santiago, se bastaria a si próprio,
para legitimar-se como manifestação popular, dado que seria fruto de uma relação orgânica que
foi naturalizada no interior do processo político. E ele chega a afirmar que este enlace teria o
efeito de um “antítodo” à idolatria, dessa maneira:

[…] não há culto à personalidade em Cuba, os dirigentes não são endeusados,


como se passou em outros países, somente o que existe é uma correta direção
entre o partido comunista, o governo e as pessoas306 (ÁLVAREZ apud ARAY,
1983: 272, tradução nossa).

Contudo, esta justificativa, amparada na premissa de uma harmonia social, não pareceu ter
sido muito convincente naquela ocasião, pois logo em seguida Santiago foi novamente provocado
pela seguinte colocação: “Há uma frase que eu não sei se entendi corretamente: Fidel é o povo
cubano e o povo cubano é Fidel. Não te parece um pouco místico? Como marxista, como pode
ser?”(ALVAREZ apud ARAY, 1983: 272, tradução nossa).
Como resposta a esta questão, no intuito de proteger-se dos dilemas da política, o documentarista,
que, literalmente, trabalhou sob ataque aéreo como correspondente de guerra no sudeste asiático,
retorna à segurança de sua trincheira de realizador cinematográfico. Diz que todas estas discussões
em torno do “culto à personalidade” pertencem ao mundo da política e não ao do cinema: “Será
que é porque eu não sou um marxista? Por que não falamos de cinema, linguagem cinematográfica
e, em seguida, em paralelo, ao mesmo tempo, falamos sobre essas coisas?”307(ALVAREZ apud
ARAY, 1983: 273, tradução nossa).

Continuando a entrevista, insiste-se junto ao diretor se não seria mais revolucionário


transformar em cinema as realizações do povo cubano e não apenas os feitos e as falas de Fidel,
de maneira que o valor esteja na admiração por todos os outros cubanos e não apenas de uma
só pessoa. E então Santiago responde que, “De fato, Fidel representa todos os cubanos. Quando
estamos fazendo um filme sobre Fidel, estamos a fazer um filme sobre Cuba”308 (ÁLVAREZ apud
ARAY, 1983: 269, tradução nossa).

A arguição que condena o cinema de culto promovido por Santiago vai assediando-o até provocar
uma das declarações mais francas, porém menos ideológicas de toda a entrevista. Livrando-se do
empenho por uma reflexão mais apurada, mas carregada de um humor que, segundo aqueles que
o conheceram na intimidade309 era uma constante no seu cotidiano, Santiago diz: “É que eu amo
306 “[…]no existe culto a la personalidad en Cuba, que no están endiosados los dirigentes, como
ha pasado en otros países, sino que existe una correcta dirección en el partido comunista, en el gobierno
y el pueblo”.
307 “Será porque no soy marxista ¿Por qué no hablamos de cine, de lenguaje de cine y después,
paralelamente, simultáneamente, hablamos de estas cosas?”.
308 “Efectivamente, Fidel representa a todos los cubanos. Cuando estamos haciendo la película
sobre Fidel, estamos haciendo una película sobre Cuba”.
309 Em Abril de 2011, participando do II Panorama Latino-americano de cinema: filmes cuba-
tanto a Fidel. Uma vez disse a Fidel, isto é uma piada, que se ele fosse mulher, eu o namoraria
310
”(ÁLVAREZ apud ARAY, 1983: 269, tradução nossa).

Mas logo em seguida muda de tom, ao justificar suas escolhas com um dos elementos mais
recorrentes em sua obra, a emoção. Relata então um quadro de extrema comoção, quando, na
Plaza de la Revolución em Havana, milhares de pessoas choravam seus mortos em um ato de
repúdio ao atentado que derrubou o avião da Companhia Cubana de Aviación, vitimando 72
pessoas311, inclusive sua então mulher, Magaly Grave del Peralta. E diz que, naquele momento,
as palavras de Fidel serviram como consolo e aprofundaram sua admiração.

Portanto, Mi Hermano Fidel atende a duas facetas em relação à personagem Fidel Castro. De um
lado, cria uma conformação fílmica de louvor em torno da figura do dirigente e, por outro lado,
mais pragmático, promove um alinhamento com o legado histórico de Jose Martí, cuja reputação
ultrapassa as fronteiras cubanas e se estende até hoje como referencial no que diz respeito aos
movimentos de independência e às relações internacionais pós-coloniais na América Latina.

A intenção de revigorar a conexão entre lideranças, no caso a de 1959 com a de 1895,


ficou explícita quando Álvarez leva Fidel até o lugar onde Martí desembarcou e o faz ser
contemplado pelos mesmos olhos que haviam visto no passado o fomentador intelectual da luta
pela independência. Só que Fidel vai além de Martí. Dentro da perspectiva de um benfeitor, o líder
cubano não vai apenas conversar, mas também auxiliar a família de Salustiano Leyva. Algo que
escapou a Martí pelas circunstâncias à época. Pois no seu diário não constam comentários sobre
a família que vivia então em Cayobabo. Martí relata apenas a difícil chegada, sem mencionar
qualquer um dos habitantes locais.

Enfim, no curso de seus poucos mais de 16 minutos, podemos examinar Mi Hermano Fidel
pela metáfora do manuseio de uma lente zoom por um cinegrafista, aproximando-se até focalizar
seu objeto/imagem, este herói em transformação. Inicialmente, a distância o desfoca e evoca
momentos do passado, em que o filme refaz para o espectador a chegada de Martí até a praia.

Em seguida o “foco” concentra-se na conversa com a testemunha ocular do episódio. Uma


nos, promovido pelo depto. de Cinema da FAAP, Sérgio Muniz, documentarista e produtor brasileiro,
contou diversas passagens sobre esta verve humorística do diretor cubano que não se apresentava como
cineasta, mas como um mero “peliculero”.
310 “Es que yo amo mucho a Fidel. Una vez le dije a Fidel, esto es una anécdota, que si él hubie-
ra do mujer, me hubiera enamorado”.
311 Em 8 de Outubro de 1976, a aeronave DC-8 da Companhia Cubana de Aviación vindo de
Guiana para Havana com escala em Trinidad e Tobago, Barbados e Jamaica, explodiu em pleno vôo, ma-
tando 72 pessoas entre passageiros e tripulantes. Os responsáveis foram os venezuelanos Hérnan R.
Lozano e Freddy Lugo, que atuavam a mando de uma organização anticastrista de Miami e foram conde-
nados a 20 de prisão cada (MORAIS, 2011: 121-123).
operação que também cumpre a função de aproximar-se do mito, colocando-o como entrevistador
e assim oferecendo uma pequena fresta de sua intimidade. Os feitos heroicos foram deixados de
lado, a representação de uma coletividade, também. O que restou foi o indivíduo Fidel e o apego
em construir seu carisma na tela. O diálogo com o idoso funcionou para ele como uma “janela de
humanização”, auxiliado pela filmagem aos moldes do cinema direto, com a incerteza no instante
da tomada somada à sua atuação improvisada de um visitante curioso, permitindo que pequenos
lampejos de subjetividade transpassassem por sua imagem pública e o enquadramento fechar-se
ainda mais, resume-se agora à imagem icônica de um retrato, a face do herói guerrilheiro que,
isolado, contempla uma indefinida paisagem marinha ao som de violas e violinos.
Referências bibliográficas

ÁLVAREZ, Santiago. “Santiago ÁLVAREZ habla de su cine”. In: Hablemos de cine, n. 54. Hacia
um tercer cine, cine cubano. Lima, 1970.
ARAY, Edmundo. Santiago Alvarez: cronista del tercer mundo. Caracas: Cinemateca Nacional,
1983.
CASTRO RUZ, Fidel. A História me absolverá. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
DÍAZ, Marta; RÍO, Joel del. Los Cien Caminos del Cine Cubano. Havana: Ediciones ICAIC,
2010.
GARCÍA ESPINOSA, Julio; ÁLVAREZ, Santiago; GUEVARA, Alfredo; ALEA, Tomás
Gutiérrez; SOLÁS, Humberto. Cine y Revolución en Cuba. Barcelona: Fontamara, 1975.
MÁO JÚNIOR, José Rodrigues. A revolução cubana e a questão nacional (1868-1963). São
Paulo: Núcleo de Estudos d’O Capital, 2007.
MARTÍ, Jose. Carta a Manuel Mercado. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/.
Acessado em: 19/04/2018.
MORAIS, Fernando. Os últimos soldados da Guerra Fria. São Paulo: Cia das letras, 2011.

STATEN, Clifford L. The History of Cuba. Westport: Greenwood Press, 2003.

Doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP, Mestre em Design, Especialista (lato
sensu) em Multimídia pela Universidade Anhembi Morumbi e Graduado em Comunicação Social
(rádio e tv) pela Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP. Professor universitário desde
1996, atualmente leciona na PUC-SP (Multimeios, Jornalismo, Diálogos entre Filosofia, Cinema
e Humanidades e Estéticas das Mídias). No doutorado desenvolveu pesquisa sobre as formas
narrativas do cinema documentário latino-americano com enfoque na produção do cineasta
cubano Santiago Álvarez Román (1919-1998).

Marcelo Prioste - Doutor em meios e processos audiovisuais pela ECA/USP,


mestre em design, especialista (lato sensu) em multimídia pela Universidade Anhembi
Morumbi e graduado em comunicação social (rádio e tv) pela Fundação Armando
Álvares Penteado - FAAP. Designer desde 1995 e professor universitário desde
1996. Atualmente leciona na PUC-SP nos cursos multimeios, jornalismo, design
e estéticas das mídias. Membro da SOCINE - Sociedade Brasileira de Estudos de
Cinema e Audiovisual, da ASAECA - Asociación Argentina de Estudios sobre Cine y
Audiovisual e um dos criadores da publicação dos pós-graduandos da ECA, a Revista
Movimento (www.revistamovimento.net). Atualmente é um dos coordenadores do
Seminário Temático da SOCINE, Audiovisual e América Latina: Estudos estético-
historiográficos comparados.
24. UMA ANÁLISE DE NO PAIZ DAS AMAZONAS:
PASSADO E FUTURO VISLUMBRADOS EM FILME

Sávio Luís Stoco

Ricardo Agum

Apresentarei uma análise fílmica acerca do documentário No Paiz das Amazonas, de


1922. Busquei compreendê-lo estética e historicamente, no seu contexto social e artístico de
origem. Produzido pelo português Silvino Santos, radicado em Manaus, este cinegrafista teve
seus filmes financiados pela elite governamental e econômica do Amazonas – sobretudo a firma
J. G. Araújo312. Dessa maneira, compreendo a pertinência de um aprofundamento metodológico
em Cinema e História considerando o contexto para melhor entendimento da narrativa.
Foi possível reconhecer a importância do cotejo com aspectos da economia e história desse
estado, assim como da empresa que em parte o financiou313, o produziu e o distribuiu. Também
se mostrou significativo observar a maneira como o filme toma como modelo a tradição visual
(sobretudo a fotográfica) e discursiva desenvolvida pela elite intelectual e governamental para
elaborar uma representação cinematográfica sobre o Amazonas num período que a economia da
exploração da borracha já se encontrava em declínio.
Começamos mencionando que No paiz das Amazonas sugere vagamente uma narrativa
baseada em uma viagem fluvial pelos principais rios do estado do Amazonas (rio Madeira,
Amazonas e Branco). Deve-se observar que na versão restaurada em 1986314, na qual se baseou
a revisão fílmica contida no DVD lançado em 2014, no qual nos baseamos, não há um mapa
explicativo, que oriente o espectador em relação aos caminhos que estão sendo percorridos.
Assim, a identificação das ‘calhas’ corresponde a um esforço de intelecção que não se encontrava

312 Até 1925 o nome da firma era J. G. Araújo. A partir de 1925 muda para J. G. Araújo & Cia. Ltda.
Cf. MELLO, 2010, p. 34
313 Além da empresa amazonense J. G. Araújo que financiou, produziu e lançou o filme sob sua
chancela, é necessário considerar também que No paiz das Amazonas teve como financiador o go-
verno brasileiro. Isso porque o filme recebeu recursos para sua produção da Exposição Internacional
do Centenário da Independência. O filme estava em fase de produção quando o recurso veio. Cf.
MORETTIN, 2011.
314 Restauro efetivado a partir da parceria firmada entre a Cinemateca Brasileira, Cinemateca
do MAM e Cinemateca Portuguesa. Colaboraram para esse trabalho tanto o diretor da Cinemateca
do MAM Cosme Alves Netto como a professora aposentada da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM) Selda Vale da Costa. Cf. STOCO, Sávio. No paiz das Amazonas (Silvino Santos, 1922, Brasil).
Percurso de um marco do filme natural brasileiro até o mercado doméstico (2017).
visualmente disponível para o público brasileiro de 1922. Parêntesis à parte, continuemos com
nosso mapeamento do filme.
Visualiza-se pelo roteiro de viagem deste filme uma cruz imaginária que parte de Manaus,
desce o rio Madeira, retorna para a capital, segue rumo a leste pelo Médio Amazonas, alude aos
índios peruanos (oeste) aonde se chega pelo rio Solimões, e finaliza adentrando a região que de-
monstrava para a época ser a esperança de exploração econômica: o vale do Rio Branco, ao norte
do estado amazonense (atual território de Roraima).
Em comparação com o roteiro do longa-metragem anterior de Silvino, Amazonas, maior
rio do mundo (c.1918-1920), que percorreu de leste a oeste o rio Amazonas, percebemos que o
percurso cinematográfico foi redimensionado. De uma maior amplitude regional englobando dois
estados brasileiros, Pará e Amazonas e também o Peru no primeiro, para o segundo, filme abor-
dando somente o Amazonas. A partir desse redesenho, foram explorados mais aprofundadamente
os assuntos localizados no território amazonense.
Do ponto de vista da viagem realizada, percebe-se uma hierarquia conferida às regiões do
Amazonas, dado que começamos com a região de exploração econômica mais antiga do ponto
de vista histórico (vale do Rio Madeira), finalizando com aquela que era a promessa (vale do Rio
Branco).
No paiz das Amazonas inicia propriamente com uma exaltação ao estado que será mostrado
aos espectadores. O texto de abertura, de autoria de Agesilau de Araújo315– filho de J. G. Araújo
e segundo principal acionista da firma de seu pai –, é bastante elucidativo neste sentido:

Tradicional desde as audazes cavaleiras, que emprestaram seu nome ao titulo


deste filme, o Amazonas, em toda a sua enorme extensão territorial muitas
vezes superior a de tantos outros países, quase um continente, afigura-se-nos
como que um gigante adormecido e embalado em seu sôno pelo ritmo rui-
doso de seus rios sem conta, depositários de fartíssima variedade de peixes.
Acalentado pelo gorgeio harmonioso e incessante dos pássaros mais encan-
tadores, habitantes irriquiétos de suas matas sombrias; acariciado por suave
brisa, respiração inebriante de suas florestas opulentas, preciosos tesouros da
natureza.
E essas suas sérras, arcas dos mais valiosos e resplandecentes minerais, ai se
erguem do sólo, como guardas-avançadas E parecem enfeitar-se magestósas,
de luxuriante vegetação para saúdar num anseio pressuroso, aqueles braços e
capitais que amanhã hão-de desvendar-lhes os mistérios de sua incalculável

315 Agesilau Joaquim Gonçalves de Araújo (1893-1976) estudou no Colégio Campolide, em Lis-
boa, e no Institut Heller (Rochard, Suíça) em 1914. Foi diretor da Associação Comercial do Amazonas
em 1925; cônsul da Bélgica e presidente do Consórcio dos Extratores de Essências Vegetais, em
1943 (HILTON, 1948).
riqueza316.

Em sua literatice particular, utilizando-se de termos poéticos e figuras de linguagem (“Aca-


lentado pelo gorgeio harmonioso”), o texto busca a beleza dos dizeres, capricha na retórica,
diferindo do caráter do restante das cartelas de textos que se seguirão. No geral, bem mais infor-
mativas e menos dados aos arroubos mencionados. O primeiro plano é de um amanhecer, com
as primeiras luzes do dia refletidas no espelho d’água. É uma vista ampla, limpa de quaisquer
outros elementos a distrair seu foco do efeito da emissão de luz e reflexo. Ela serve de fundo para
a exibição do título do filme.
O texto deixa entendido que esse “paiz das Amazonas” trata-se exatamente do estado do
Amazonas e não da região amazônica inteira, apesar de no período colonial toda esta extensão
ser conhecida por este termo317. Como o livro Le pays des Amazones: L´Eldorado, les terres a
caoutchouc (1885) do jornalista e propagandista Frederico José de Santa-Anna Nery, o filme No
paiz das Amazonas também assim delimita seu território particular e toma a liberdade de assim
denominar o Amazonas318.
Neste filme, elementos que aludem a uma tradição visual ou discursiva podem ser considera-
dos em vários momentos. Não espanta o fato de ter sido o filme que tenha entrado para o discurso
oficial do Estado com mais força. Como nenhum outro dos títulos remanescentes deste cineasta,
é possível um estudo apontar tantas referências da tradição visual e discursiva.
Mas, voltemos ao texto de abertura de No paiz das Amazonas. Apesar de seu tom e discurso
um tanto empolado, como dizíamos, ele sintetiza elementos que serão tratados ao longo da nar-
rativa. Antecipa a “enorme extensão territorial” (“quase um continente”), que será percorrida e
enfatizada pelas sugestões de viagem; “os rios sem conta, depositários de fartíssima variedade de
peixes”; os “pássaros mais encantadores”; as “matas sombrias”; as “florestas opulentas”.
E também deixa entrevermos o ponto de vista que irá operar no filme quando nos diz que essa
natureza, na qual ainda inclui serras que são “arcas dos mais valiosos e resplandecentes minerais”
irão saudar “aqueles braços e capitais que amanhã hão-de desvendar-lhes os mistérios de sua in-
calculável riqueza”319. Assim, também indica o ponto de vista da empresa produtora J. G. Araújo
ao apostar, como Santa-Anna Nery, suas fichas na ideia da importância da “emigração fecunda”
e no capital que os industriais e negociantes estrangeiros poderiam investir.
316 Em todas as citações, optei por manter a escrita, de acordo com os documentos consultador.
317 Na Enciclopedia italiana e dizionario della conversazione: opera originale (vol I), de 1838, há um verbete suma-
riando a questão deste nome: “Amazônia ou País das Amazonas é o nome que os geógrafos antigos deram a um grande
distrito situado na América do Sul, porque o primeiro viajante que chegou naquela região achou ter encontrado as Amazo-
nas. A geografia moderna tem retificado o erro, e o pais das Amazonas não existe mais sob esta denominação, exceto em
alguns mapas antigos se chama uma parte do Brasil e do Peru com este nome”. Tradução nossa para o texto: “Amazzonia
o Paese dele amazzoni è il nome che gli antichi geografi diedero ad um gran distretto sutuatto dell’interno dell’America
meridionale, perché i primi viaggiotori che giunsero in quella contrada pretesero de avervi trovato um popolo do Amazzoni.
La geografia moderna há rettificato l’errore, ed il paese dele Amazzoni non existe piú sotto questa denominazione se non
in alcune carte antiche che simil nome danno ad uma parte del Brasile e del Perù”. (p.924).
318 Sobre Santa-Anna Nery, cf. CARNEIRO (2013).
319 Grifo meu.
Não seria à toa que na primeira sequência, enfocando Manaus, tenhamos no panorama da
orla da cidade justamente centralizado o prédio fabril mais notável (Figura 1): a Cervejaria Ama-
zonense com sua proeminente altura de oito andares, com sua grande chaminé e caldeiras em
funcionamento.
O objetivo parece não ser nomear e tematizar esta fábrica propriamente, mas apresentá-la
como integrando a vista idealizada desta capital – já que os intertítulos de fato não a denominam
textualmente, como farão com alguns outros prédios, embarcações, propriedades, organizações
e comerciantes. No repertório iconográfico desta empresa, percebemos uma semelhança de re-
presentação do prédio, sempre a enquadra-lo do mesmo ângulo e lado a partir da vista da orla da
cidade, assim também como no filme (Figuras 1-3).
Figuras 1-3. Na primeira imagem, vemos um frame do início da primeira sequência de No paiz
das Amazonas, de Silvino Santos com a Cervejaria Amazonense ao fundo. Na segunda imagem,
uma aquarela publicitária do artista francês Marcel Lebrun (1867-1920) que serviu de molde
para produção de litogravura. E por último, uma peça publicitária da mesma empresa – identi-
ficada na premiação na Exposição do Centenário de 1922.
Da Cervejaria Miranda Correa e sua chaminé somos conduzidos pelo filme ao porto flutuante
com seus trapiches e repletos de grandes embarcações internacionais – porque um menor é des-
tinado a atender aos vapores nacionais e regionais, dizem os intertítulos sem oferecer um plano
sequer sobre as embarcações nacionais. São eles também que nos informam que as águas do rio
Negro sobem e descem ao longo do ano, águas que são contidas pela grande muralha exibida, e
que o cais é flutuante (roadway, de engenharia e administração inglesa) para dar conta das varia-
ções. Este rio é tão profundo que, mesmo na vazante, qualquer transatlântico tem acesso, como
somos informados. E vemos o paquete inglês Hildebrand partindo, presença ilustre que denota a
inserção econômica internacional do Amazonas.
Um sentido de viagem preside a narrativa de No paiz das Amazonas, de seu início ao fim,
se atentarmos para os saltos de cada uma das nove grandes sequências para a sua seguinte. Isso
ocorre se observarmos a corografia deste território, ou seja, onde se localizam os seringais, vilas,
cidades, lagos, rios percorridos e mencionados. E, também, se não deixarmos escapar algumas
furtivas imagens de meios de transporte presentes320, ora exibidas visualmente, ora textualmente.
Mas se nos detivermos no interior destas mesmas sequências, observaremos quase nunca
uma ação de viagem, ou de deslocamento em si, e sim um aprofundamento verticalizado em
questões que exploram os temas anunciados pelas cartelas de abertura das sequências (Manaus
- As Pescas – A Borracha - O Fumo – A Castanha – O Guaraná - A Balata - Baixo Rio Branco
- Alto Rio Branco). Como sabemos, esse detalhamento decorre da finalidade para a qual o docu-
mentário foi realizado: sua exibição na Exposição Internacional do Centenário da Independência.
Como seções de uma exposição o filme mostra episódios de trabalho relacionados aos principais
produtos extraídos da natureza amazônica, incluindo e destacando processamentos.
Volta e meia, raras e rápidas passagens promovem alguma descrição do ambiente ou de
costumes populares dos habitantes da região, tais como hábitos alimentares como veremos na
sequência As pescas, adiante comentaremos.
A única sequência que não trabalha esta dimensão do trabalho é justamente a inicial, quando
somos convidados a visitar a capital amazonense. Esta sequência é dedicada a exibir os nem tão
novos logradouros e prédios públicos de Manaus (quase todos inaugurados há cerca de duas ou
uma década).
Assim, temos a sensação de um passeio turístico321 a começar pelo trajeto: desembarque
no principal porto68, única forma de chegar a Manaus naquele momento, e deslocamento pelas
principais edificações do centro da cidade. A sensação é a de folhear um álbum de fotografias69.
O Álbum do Amazonas 1901-1902322, já comentado, é certamente uma das fontes de inspiração,
com os principais monumentos e prédios de estilos variados. E lembramos que entre suas ativida-
des, Silvino Santos trabalhou como fotógrafo, produzindo sob encomenda um álbum fotográfico

320 Minhas considerações se aproximam das feitas por Eduardo Morettin (2011).
321 A atividade turística inicia no século XIX com aumento dos meios de transporte e de comunica-
ção de massa, mas ainda atingindo um público restrito. Cf. AQUINO (2016).
322 Trata-se do álbum fotográfico mais emblemático, editado pelo proeminente fotógrafo português
estabelecido em Belém Felipe Augusto Fidanza (1847-1903). Cogita-se a autoria de algumas imagens
ao alemão George Huebner (1863-1935) que prestou serviços à casa Fidanza neste período. Outros
álbuns significativos são álbum o The city of Manaos and the country of rubber trees (1893) encomen-
dado pelo Amazonas para a ocasião da Exposição Universal de 1893 (Feira Mundial de Chicago),
de autoria desconhecida; e o álbum O Estado do Amazonas (1899), do italiano Arturo Luciani (1861-
1936).
para a Peruvian Amazonian Company323.
No paiz das Amazonas se preocupa apenas com o que há de mais “notável” e “civilizado”
nesta capital, reconhecida por romancistas e historiadores como a “cidade edificada pela borra-
cha”324, ou “última fronteira”325 da civilização, rio Amazonas adentro.
O traço mais marcante do filme é de fato uma estruturação destacando produtos extraídos da
natureza regional, no geral destinados à exportação internacional. Esta ideia fica patente quando
observamos os títulos das nove sequências, devidamente apresentadas em cartelas destacadas ao
longo do filme: Manaus – As Pescas – A Borracha – O Fumo – A Castanha – O Guaraná – A
Balata – Baixo Rio Branco – Alto Rio Branco. Diga-se de passagem, esses produtos nomeados
pelos títulos das sequências são os mais reconhecidos e sedimentados nos relatos de viagens
desde o século XIX.
Ao iniciar, o filme evoca em texto os mitos amazônicos mais emblemáticos – as Amazonas
e o Eldorado –, mas a citação quase não passará de um protocolo que se seguiu, um chamariz,
já que não ganharão desenvolvimento nenhum deles ao longo do filme. Uma visão notadamente
mais objetiva voltada à abordagem da economia da região será, sim, o assunto. Dessa forma, a
sequência inicial descreverá a infraestrutura urbana da capital amazonense. Vemos focalizados
os bens edificados da cidade (prédios públicos, avenidas, monumentos e pontes). Muitas vistas
coincidentes com as fotografias oficiais que circulavam amplamente estampadas em álbuns
fotográficos governamentais, livros, capas de jornais e cartões-postais fotográficos, produzidos
desde o final do século XIX e início do XX.
Certamente por conta do comissionamento conferido por esta antiga empresa sediada em
Manaus podemos afirmar que em No paiz das Amazonas, temos mais do que nos outros filmes
analisados de Silvino Santos um vínculo visual direto com a tradição iconográfica (sobretudo
fotográfica) gerada pela elite comercial e governamental no período de ápice econômico. Na
elaboração de mensagens visuais afinadas com os desejos e necessidades da elite amazonense, a
fotografia antecedeu o cinema. Desta forma, este repertório confere ao filme toda uma cartilha de

323 Recentemente publicado em fac-símile integralmente Album de Fotografias: Viaje de la Comi-


sión Consular al Rio Putumayo y Afluentes. Coordenadores Alberto Chirif, Manuel Cornejo Chapanu y
Juan de la Serna Torroba. 2013.
324 Segundo Barbara Weinstein (1993, p.220), a ideia de Manaus como uma cidade edificada pela
borracha não se confunde com Belém, mesmo que esta também muito tenha se beneficiado da ex-
ploração da borracha. Isso porque a capital paraense já se encontrava bem edificada anteriormente,
e estabelecida como capital da Província do Grão-Pará no período colonial. Neste sentido, Ana Maria
Daou (2000) também explica: “A continuidade histórica entre a povoação de Fortaleza de São José
do Rio Negro, fundada no século XVII, e a capital da província do Amazonas não é imediata, caso se
busque na povoação o caráter urbano, a permanência dos prédios ou dos sinais das instituições do
Império português e, depois, do Império brasileiro. Nesse aspecto, a diferença entre Belém e Manaus
é acentuada. Não é inusitado o fato de que, mais do que Belém, Manaus seja considerada a “capital”
da borracha, pois foi na ocasião do boom deste produto que a cidade ganhou visibilidade, projetan-
do-se internacionalmente como uma cidade moderna, dotada de sofisticados meios de transporte e
comunicação” (DAOU, 2000, p.33)
325 Ver Hemming (2009).
temas e maneiras de representar, como veremos. O que nas mãos de um cineasta como Silvino
Santos é tomado como um referencial que será desenvolvido, e não como uma limitação.
Apesar de não iniciar por um produto em si, o filme apresenta a cidade onde os produtos
apresentados em seguida serão encaminhados e onde, em alguns casos, onde serão processados
para depois serem embarcados, destinados ao comércio exterior. A par disso, o moderno porto
flutuante, sua engenharia e suas tecnologias de transporte de mercadorias serão bem figurados.
No restante do filme, outras localidades não são descritas e exaltadas como Manaus. Pontos
de produção localizados ao longo dos rios Madeira, Amazonas e Baixo Rio Branco, quando
muito serão apenas mencionados nos intertítulos, como locais em que se encontram os produtos
focalizados. Esses produtos naturais, sim, irão merecer uma aguda atenção fílmica, sendo exibidos
em seu ambiente natural, no processo de retirada das matas/rios, no processamento artesanal e
transporte para Manaus.
Após a primeira sequência dedicada a Manaus, sua infraestrutura e embelezamentos, con-
sideramos que inicia uma segunda grande parte de No paiz das Amazonas na qual serão percor-
reremos o rio Madeira (direção sul, com relação à capital), a região do Médio Amazonas (oeste)
e o Baixo Rio Branco (norte).
Trata-se da maior parte do filme, englobando as sequências denominadas As Pescas, A
Borracha, O Fumo, A Castanha, O Guaraná e A Balata. Ela se articula com a primeira parte já
que Manaus é o epicentro dessa produção; em quase todas estas sequências se menciona que os
produtos seguem para a capital para de lá finalizarem seu processamento e/ou de lá serem expor-
tados. E como vimos se trata de uma área de longo e rico histórico de exploração comercial, pelo
menos desde a criação da província do Amazonas, em meados do século XIX.
Uma mudança nesta dinâmica acontecerá somente ao final quando se abordará a região do
Alto Rio Branco. É o momento em que o filme reserva para a apresentação da atividade pecuária
e também para aludir, por intertítulos, à potencialidade de exploração mineral (metais e pedras
preciosas) vislumbrada para aquela região.
Nesse momento, as amplas vistas deste espaço geográfico, formado pelo lavrado (ou savana),
serão exibidas. Evidencia-se com a inclusão dessa paisagem especificamente um contraponto
com os espaços até então vistos no filme, formados, sobretudo por matas e vistas fluviais. Por
não ser uma atividade tão tradicionalmente associada à região amazônica – de certo por abastecer
somente o mercado interno da capital e não se prestar à exportação – podemos conjeturar que a
pecuária326 não tenha sido nomeada em intertítulo como a borracha, o fumo, as pescas, a castanha
326 Nária Farage e Paulo Santili explicam o lento processo de implantação e sedimentação
da pecuária na região, que atendeu ao mercado interno, não se tornando assim uma indústria
reconhecidamente relacionada àquela região, fora de seus círculos sociais, como os outros produtos
apresentados em No paiz das Amazonas: “Da experiência colonial, restara na região uma forma inci-
piente de exploração econômica, representada pela pecuária. A implementação da pecuária, em fins
do século XVII, foi uma iniciativa oficial, visando integrar a região do Rio Branco ao mercado interno
colonial e assim torna-la um polo de atração e fixação de colonos”. Na década de 1880 proprietários
particulares tomaram conta daquele território, contabilizando 80 propriedades nas mãos de 32 pro-
e o guaraná.
Desta maneira, o discurso cinematográfico que observamos se distancia das primeiras repre-
sentações, que valorizavam os produtos amazônicos como descobertas ou revelação ao mundo
científico de espécies animais, vegetais, de técnicas nativas, pelos escritores/cientistas viajantes
geralmente estrangeiros, em tom de conquista colonial.
Agora, no filme, percebemos esses produtos extraídos da natureza, esmiuçados em sua com-
posição, modo de preparo e destinação para que se reforce didaticamente o seu valor comercial
já consolidado. O tom seria mais de popularização do que de descoberta. Não se projeta para o
futuro sua utilização; se mostra seu aceite corrente no mercado, seja internacional, regional ou
nacional327.
De certa maneira, o objetivo que reconhecemos é o da popularização de um conteúdo já
exaustivamente trabalhado no campo das representações, mas talvez não considerado populari-
zado o suficiente pela sociedade da época328. Sabemos o quanto a divulgação pelo cinema certa-
mente contribuía para que a popularização atingisse outro nível.
Mas a região do Rio Branco foi desde os primeiros intertítulos do filme explicitamente
exaltada como esperança de salvação da economia, em declínio desde meados da década de
1910. Visão positiva que pode estar associada ao fato de que é na década de 1920 que a firma J.
G. Araújo consegue do governo do Amazonas os títulos definitivos de terras ocupadas no vale
do Rio Branco por antigos fazendeiros e que durante as duas primeiras décadas do século XX
haviam sido sistematicamente compradas dos pecuaristas endividados (FARAGE, SANTILLI,
1992, p. 274).
Comentaremos agora as duas últimas sequências e talvez uma das principais razões de ser,
tal qual entendemos, da empreitada cinematográfica da firma J. G. Araújo: dar visibilidade à
região do Rio Branco, “aquela Canaã”329 e onde se encontravam as “arcas dos mais valiosos e
prietários. E nas duas primeiras décadas do XX a firma J. G. Araújo e Cia. comprou a maior parte das
propriedades dos proprietários endividados (FARAGE, SANTILLI, 1992:272-274).
327 Como exemplos, na sequência A Castanha, os intertítulos observam: “Em Manaós, a castanha
uma vez vendida, é baldeada para as alvarengas do comprador (...) Os embarques para os centros
consumidores mais importantes, America do Norte e Inglaterra, carregam grandes vapores”. Na se-
quência As Pescas, “Semelhante ao bacalhau, o pirarucu é um bom alimento, muito procurado pela
população de toda a Planicie Amazônica. No estado do Amazonas ainda existe em abundante quanti-
dade”.
328 A este respeito Santa-Anna Nery (1979) se pronuncia em 1885: “Apesar das sociedades de
Geografia que se multiplicam; apesar de numerosos relatórios de viajantes que exploram o mundo;
apesar de todos os progressos realizados por uma certa literatura, muito instrutiva, aliás, que se pro-
põe vulgarizar, por todos os meios, as maravilhas e as curiosidades sem número contidas em nosso
globo; apesar de coleções etnológicas propagadas por toda parte graças aos processos fotográficos;
apesar das frequentes exposições onde figuram exemplos variados e pitorescos das principais raças
de homens, falta ainda muito para que se chegue, na Europa, a um conhecimento verdadeiro e a no-
ções precisas no que toca os diferentes povos que vivem nas quatro partes do mundo”. (NERY, 1978,
p.109).
329 O termo se encontra na última frase dos intertítulos de No rastro do Eldorado, de Silvino san-
tos, cujo texto é creditado a Álvaro Maia, filme também distribuído pela J. G. Araújo e Cia. Ltda. (MAIA,
1925).
resplandecentes minerais” com “sua incalculável riqueza”330. Trata-se de uma longa sequência de
aproximadamente 21 minutos de duração.
Segundo relatos de época331, também eram as cachoeiras num certo ponto do rio Branco os
maiores entraves ao estreitamento comercial entre esta região ao norte do Amazonas e a capital
Manaus. Dentre outras na proximidade, o principal obstáculo era a cachoeira de Caracaraí, em
um ponto entre Boa Vista e a desembocadura no rio Negro, principalmente durante a vazante do
rio, que durava cerca de metade do ano. Os carregamentos deveriam, na região, recorrer a um
caminho por terra.
A importância econômica desta região residia na sua pecuária, que abastecia Manaus. Desta
forma, entende-se o porquê da sequência Baixo Rio Branco iniciar-se com o relato destes obs-
táculos naturais: “Novamente a caminho rumo aos grandes campos (...), deparamos com as ca-
choeiras do Rio Branco, que estão acima de Caracaraí.”. Seguido por: “A corredeira dos Germa-
nos é das mais arriscada. As canôas são puxadas à sirga, por fora do canal”, “Célebre cachoeira
do Bem-Querer, com três saltos, passagem perigosíssima” e “Lancha transpondo as cachoeiras,
na enchente”. Os planos aproximam-se do que veremos depois em No rastro do Eldorado, nas
tentativas de transposição dos obstáculos do rio Uraricuera, com içamentos de embarcações por
numeroso grupo de índios contratados pela expedição Rice, registrada pelo filme.
Em No paiz, após os obstáculos fluviais, chegamos aos “grandes campos”: “Lá em baixo, na-
quela vastíssima planície, estão situadas as fazendas do Rio Branco que comportam um rebanho
de aproximadamente 200 mil cabeças de gado vacum, 15 mil de cavalar, e 4 mil de ovino. Nélas
vamos assistir a todo o manejo do gado”.
A grande panorâmica é utilizada para ilustrar a presença das fazendas que comportam a
expressiva pecuária. O filme, apesar de se referir à promessa dos minerais, aborda tão somente
a criação de bois e cavalos. A notícia dos minerais fica como um dado a ser confirmado para o
futuro daquela região, “mistério” que ainda havia de ser desvendado.
Sem pretender esgotar as possibilidades de análise do filme nessa apresentação, concluímos
compreendendo que temos um filme que lança uma sofisticada compreensão histórica sobre a
Amazônia ocidental brasileira, e ao final argumentar junto a seu público sobre o potencial do
futuro almejado e promissor. Um conteúdo forjado sob o ponto de vista da elite econômica,
programando-se, talvez, para a extensa circulação em ocasiões oficiais que o filme perfez durante
décadas.

330 Termos localizados no texto de abertura de No paiz das Amazonas.


331 PEREIRA (1917)
Referências bibliográficas

AQUINO, Lívia. Picture Ahead: a Kodak e a construção do turista-fotógrafo. 1. ed. São


Paulo: Edição do Autor, 2016.
CARNEIRO, João Paulo Jeannine Andrade. O último propagandista do Império: o
‘barão’ de Santa-Anna Nery (1848- 1901) e a divulgação do Brasil na Europa. Tese
(Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
DAOU, Ana Maria. A belle époque amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
FARAGE, Nádia & SANTILLI, Paulo. “Estado de Sítio: territorialidade e identidade
no vale do Rio Branco”. In: CUNHA, Manuela Carneiro (org.). História dos Índios no
Brasil. São Paulo: Fapesp, Companhia das letras e Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
MAIA, Álvaro. Transcrição de intertítulos do filme No rastro do Eldorado [Prod.: J. G.
Araújo e Cia. Dir.: Silvino Santos, 1925, Brasil]. Rio de Janeiro. Acervo digitalizado
Projeto Alex Viany.
MORETTIN, Eduardo. “Tradição e modernidade nos documentários de Silvino Santos”.
In: PAIVA; SCHVARZMAN. (org.). Viagem ao cinema silencioso do Brasil. RJ: Beco do
Azougue, 2011.
NERY, Frederico José de Santa-Anna. O país das Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: EDUSP, 1979.
STOCO, Sávio. “No paiz das Amazonas (Silvino Santos, 1922, Brasil). Percurso de um
marco do filme natural brasileiro até o mercado doméstico”. Vivomatografias, v. 3, p.
161-184, 2017.

Sávio Luís Stoco - Doutor em meios e processos audiovisuais pela Escola


de Comunicações e Artes-USP, linha história, teoria e crítica. Mestre em artes visuais
pelo Instituto de Artes-Unicamp (2014). Especialista em artes visuais: Cultura e
Criação (Senac). Cursou a especialização produção, direção e criação em cinema
(Uninorte). Licenciado em artes visuais. Graduado em comunicação social pela
UFAM (2008). Integrante do grupo História e Audiovisual (ECA-USP) e do Núcleo
de Antropologia Visual (Ufam); em 2009 integrou curadoria da Mostra Amazônica
do Filme Etnográfico. Prêmio Funarte de Arte Contemporânea 2011, expondo
individualmente na galeria Funarte BH, Espaço Cultural Banco da Amazônia (PA)
e Galeria da Ufam. Em 2010 ganhou a Bolsa Funarte Reflexão Crítica em Mídias
Digitais com o ensaio Híbridos - A Imagem Digital nas Artes Amazonenses. Foi
contemplado com a Bolsa Biblioteca Nacional/Funarte Circulação Literária com
o projeto de arte-educação Crítica do Audiovisual: Leituras Regionais (Manaus,
Teresina, Brasília, Cuiabá e João Pessoa). Premiado no Programa Rede Nacional
Funarte de Artes Visuais, coordenou os Seminários 3x3: fotografia contemporânea
amazônica (Manaus, Boa Vista e Belém), cujo projeto resultou em livro coletânea com
artistas e pesquisadores. Conquistou o 12° Prêmio Marc Ferrez Funarte de Fotografia.
Promoveu o projeto de arte-educação Caravana Crítica do Cinema Amazônico (todas
capitais do Norte) pelo programa Amazônia Cultural (MINC). Coordenou revisão do
filme No País das Amazonas, de Silvino Santos para DVD (Cinemateca Brasileira/
Concultura-Manaus). Desde 2008 integra do Coletivo Difusão (Manaus), grupo
de artes integradas e mídias de Manaus com o qual desenvolveu grande parte de
sua produção videográfica, focada na pesquisa da imagem de arquivo e artes em
Manaus; ganhou dois prêmios no Amazonas Film Festival. Participou como artista
selecionado do 31° Arte Pará (curadoria Paulo Herkenhoff e Armando Queiroz).
Membro da SOCINE - Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual e
da Associação Nacional de História (ANPUH).
Ricardo Agum - Possui doutorado em ciência política pela Universidade Federal
Fluminense (2013); mestrado em antropologia pela Universidade Federal Fluminense
(2005) e graduação (Bacharel e Licenciatura) em ciências sociais pela Universidade
Federal Fluminense (2002/2003). Atualmente, é pesquisador visitante do Instituto
Leônidas e Maria Deane - FIOCRUZ AMAZÔNIA da Fundação Oswaldo Cruz.
Professor colaborador do mestrado em ciência política da Universidade Federal do
Piauí. Tem experiência na área de Ciência Política e Antropologia, com ênfase em
políticas públicas, atuando principalmente nos seguintes temas: Políticas públicas,
Amazônia, malária e antropologia visual.
25. Convívios Familiares Inscritos em Ambiente Domésticos do Cinema Argen-
tino Pós-Ditadura – Aristarain, Martel e Trapero

Aline Vaz

Introdução

A respeito do chamado Nuevo Cine Argentino (NCA) encontramos algumas aproximações


e alguns conflitos consonantes a denominação do cinema produzido a partir da década de 90 na
Argentina. Para Jens Andermann (2015) os realizadores desse NCA são tidos como cronistas
neorrealistas, que abordam no cinema as dimensões sociais e geográficas surgidas nas fendas
neoliberais durante a década de 1990, período que segundo Andrea Molfetta (2012: 179) é do-
minado por um clima de “apatia, depressão e decadência, do pessoal ao nacional, em suma, falta
de esperança”. Já César Maranghello (2005) descreve o Nuevo Cine Argentino considerando as
produções realizadas nos anos 60, aproximando da produção de fim de século a designação El
Último Nuevo Cine Argentino.
Nós, iremos considerar o filme Histórias Breves (1995), como precursor do chamado Nue-
vo Cine Argentino, que se constitui de uma coletânea de curtas-metragens dos diretores Adrián
Caetano, Andrés Tambornino, Bruno Stagnaro, Daniel Burman, Jorge Gaggero, Lucrecia Martel,
Pablo Ramos, Paula Hernández, Sandra Gugliotta, Tristán Gicovate, e Ulises Rosell, na época
formandos da FUC - Fundación Universidad del Cine. Para Javier Porta Fouz (2009), o filme
emerge de um sentimento de urgência na renovação do cinema argentino, recebido como o co-
meço de algo novo, que deixava de lado uma “estética maximalista” – do excesso, da multipli-
cidade de recursos – que até então via-se na tela do cinema nacional. O autor justifica a abertura
do Nuevo Cine Argentino, a partir deste filme, considerando que a obra representou a primeira
leva de estudantes de cinema – já que a geração anterior de cineastas era formada em cineclubes
– percebendo-se já uma alteração em relação aos realizadores das obras pertencentes ao NCA.
Outra característica que possibilitou o destaque referente a coletânea de curtas-metragens, foi a
sua origem proveniente de um concurso realizado pelo INCAA - Instituto Nacional de Cine y
Artes Audiovisuales, além de sua filmagem em 35mm.
Histórias Breves é um representante do que viria a ser conhecido como Nuevo Cine Argen-
tino, porém, alguns cineastas já antecipavam o que seria considerado o novo movimento – eles
vinham trabalhando contra a tendência do excesso, da falta de controle sobre os próprios mate-
riais e generalizações sobre a situação do país e o ser argentino. Ou seja, haviam cineastas que
valorizavam a redução dos elementos e a dominação dos recursos utilizados, convencidos de
que precisavam encontrar a própria voz no cinema nacional – a exemplo podemos citar Rapado
(1992), de Martin Rejtman, além da prolífica obra de Raúl Perrone, com pequenas histórias de
contensão estilística.
Considerando uma certa tendência da inscrição dos ambientes domésticos no NCA, buscando
identificar a recorrência das representações dos espaços internos, como marca autoral de cineas-
tas, representativos para a produção cinematográfica argentina, durante a década de 90 e início
do século XXI, trazemos para o presente estudo os seguintes realizadores: Adolfo Aristarain que,
segundo Andermann (2015, p. 35), realiza películas formalmente complexas, na contramão do
cinema argentino – cinema este que desde a metade dos anos 80, vinha respondendo aos padrões
de exibição e consumo cinematográficos, como forma de manter um modelo prévio de produções
medianas; Lucrecia Martel, realizadora do curta-metragem Rey Muerto, filme integrante da obra
Histórias Breves (1995); e Pablo Trapero, citado pelo autor (2015, p. 116) como um dos jovens
cineastas argentinos mais prolíficos que reformulou as tradições do gênero de modo a apreender
o presente social da nação.
Desse modo, o levantamento fílmico instigará a descrição da obra dos cineastas seleciona-
dos, Aristarain, Martel e Trapero, buscando definir certas características que pressupomos existir
em comum nas filmografias. Para o devido estudo iremos realizar um recorte, identificando a
recorrência ou não de uma unidade temática e espacial, delimitando o que compreendemos por
convívio familiar em ambientes domésticos, em longas-metragens de ficção de produção argenti-
na, excluindo do presente levantamento os filmes de curtas-metragens, filmes de documentários
e filmes de produções internacionais. Desse modo, analisaremos a recorrência de convívios fa-
miliares – que poderão ser identificados como voluntários, impostos ou abortados – esses conví-
vios poderão ser transitórios e inferir experiências inerentes a Argentina pós-ditadura, inferências
que serão apresentadas em estudos posteriores a este levantamento que, incialmente, tem como
objetivo selecionar e analisar brevemente as filmografias de Aristarain, Martel e Trapero como
potências narrativas de convívios familiares.

O cinema como abrigo familiar

Pensando que “é a partir de relações familiares, formais ou informais, que o indivíduo surge
e se coloca no mundo” (FISCHER, 2006: 13), observa-se que o carácter familiar332 do habitar,
enquanto compreensão e apropriação do espaço (HEIDEGGER, 1979), pode ser considerado
como uma concepção e uma expressão social, compreendendo que “entre todos os grupos huma-
nos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura” (LACAN, 1985: 13),
332 A ideia do familiar é pensada como manifestações provenientes da instituição que, na concep-
numa difusão hereditária psicológica e social. Portanto, este colocar-se no mundo parte de uma
instituição, que é a família, estabelecendo um convívio que não se sustenta apenas pelo carácter
biológico, mas atrela-se a uma convivência social, que é estabelecida por regras e hierarquias
– logo, saber conviver em família é jogar com as regras da vida em sociedade que, por vezes,
podem estimular a repressão e a submissão – ou seja:

A noção de família, por um lado, parece estar necessária e estreitamente as-


sociada a sentidos que não só contemplam, mas que priorizam e privilegiam
uma orientação – repressiva e classificatória – de submissão, de modelagem
e de contenção de elementos, quer se traduzam eles por pessoas, coisas ou
o que for. Esses sentidos decorrem, como vimos, da própria etimologia do
termo, que remete a escravos, servos, bens e propriedades. As pessoas e as
coisas, nesse contexto, encontram-se justapostas, atadas na mesma clausura,
como se tudo ali se organizasse, em princípio, sob a lógica paradoxal de uma
certa “dinâmica paralisadora” que operasse mais ou menos assim: submissão
a parâmetros especificamente estabelecidos, modelagem para o aperfeiçoa-
mento de tal sujeição e contenção em posições e lugares determinados – para
que seja garantida a preservação e a continuidade desse processo de domina-
ção (FISCHER, 2006: 22).

Nota-se que no cinema argentino pós-memória ditatorial, a representação fílmica de conví-


vios familiares, em ambientes domésticos, inscritos como lugares de clausura, não se constitui
gratuito e nem carente de sentido, pois a família tem por característica processos de dominação,
que inserem sujeitos, como revela a autora, em uma “dinâmica paralisadora”, uma imobilidade
que podemos relacionar a uma realidade imposta a toda uma nação argentina, enquanto submis-
sas a um governo repressor333.
Estas convivências familiares compõem a apropriação do ambiente doméstico, a casa, em
um espaço paradoxal, de acolhimento (ancorado na visão de Gaston Bachelard, em A poética do
espaço) e de dominação (construído por imagens de caráter militar, nos termos de Michel Fou-
cault, nas obras Microfísica do poder e Vigiar e Punir):

É fato, a palavra casa, outro exemplo de termo que frequentemente surge


ção de Sigmund Freud (1997), é constituída pelo pai, a mãe e os filhos, membros ligados por paren-
tescos que habitam o mesmo lugar de convivência.
333 A população argentina sofreu seis golpes de estado: em 1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e 1970.
Os quatro primeiros estabeleceram ditaduras provisórias, enquanto os dois últimos impuseram dita-
duras de tipo permanente, segundo o modelo de estado burocrático-autoritário – direitos humanos
foram violados e muitos argentinos foram dados como desaparecidos (famílias sofreram fraturas e
violações).
no interior das definições de família, e cuja noção (assim como a de escravo
e de servo) já está embutida na etimologia do termo família, carrega fortes
conotações de abrigo e proteção. Casa é lar. Juridicamente, em princípio, a
intimidade doméstica é inviolável; doméstico vem do termo latino domus
(casa), que por sua vez está ligado a dominus, quer dizer senhor, chefe, so-
berano, proprietário: quem está no interior da casa, portanto, ou é senhor ou
está sob o domínio de um senhor (é, mais ou menos, algo assim como um de
seus pertences) – e não se invade impunemente um sítio que tem dono insti-
tuído (FISCHER, 2006: 23).

É notável que as relações familiares, agora especificando o ambiente de convívio, retoma


uma “vertente militarista, que para designar o que se entende por prisões, também é utilizada
a expressão casa de detenção ou casa de correção (...)” (FISCHER, 2006: 23). Considerando,
então, que o termo casa é paradoxal, apresentamos a seguinte classificação: áreas de convívios
voluntários, em geral, constituído no espaço, tradicionalmente, reconhecido como casa – lar –;
áreas de convívios impostos, por exemplo, as convivências em prisões – que podem ser físicas –,
nas casas de detenções, em que o sujeito é condenado legalmente a permanecer enclausurado – ou
afetivas – em que o sujeito é aprisionado por redes de parentescos em lares, reconhecidos como
convencionais; e de convívios abortados, em que o sujeito é retirado do espaço que considera o
seu lar, para criar novas redes de afetos e construir – ou não – uma nova casa, como no caso de
um exilado que precisa se refugiar em outro país.
Assim, iremos buscar localizar narrativas em que exista a predominância do que chama-
remos de convívios familiares desenvolvidos em espaços fílmicos, designados como ambientes
domésticos, dentro da filmografia dos três cineastas argentinos: Adolfo Aristarain, um veterano,
que atravessou os diversos e difíceis períodos políticos da Argentina, ultrapassando 4 décadas de
realização cinematográfica; Lucrecia Martel, uma cineasta formada pela FUC, integrante realiza-
dora do filme marco do NCA (Histórias Breves); e Pablo Trapero, também, formado pela FUC,
que em 2015 foi o primeiro diretor sul-americano a receber o Chevalier de l’ordre des Arts et des
Lettres334, atribuído pelo Ministério da Cultura da França, além de ser o fundador da produtora
Matanza Cine, junto da esposa e atriz Martina Gusman – produzindo a sua própria filmografia,
assim como de outros diretores argentinos e latino-americanos, como os filmes de Albertina Car-
ri, realizadora argentina que também apresenta convívios familiares, inscritos em ambientes do-
mésticos, por exemplo, em seus longas-metragens de ficção: La Rabia (2008) e Géminis (2005).

334 Condecoração concedida pelo Ministério da Cultura da França, visando recompensar as pessoas que se
distinguem pela sua criação no domínio artístico ou literário ou, ainda, pela sua contribuição ao desenvolvimento
das artes e das letras na França e no mundo.
Identificação de convívios familiares em filmografias do cinema argentino pós-ditadura

Adolfo Aristarain, Lucrecia Martel e Pablo Trapero são cineastas argentinos que participa-
ram de momentos importantes de transformações políticas e cinematográficas no país. Aristarain,
nasceu em 1943, na cidade de Buenos Aires, é conhecido como diretor, roteirista, produtor e ator.
Apesar do cineasta ser de uma geração anterior ao NCA considerado, aqui, na presente pesquisa,
sua obra pode ser observada como precursora – indo de encontro – ao que viria a ser produzido no
cinema autoral da Argentina neoliberal como inferência de opressão e submissão na instituição
familiar, assolada por crises e marcas de violências sociais. Para o presente estudo selecionamos
as obras de Aristarain que se justapõem ao período pós-ditadura na Argentina, a partir da década
de 90 – longas-metragens de ficção e de produção argentina – incluindo os seguintes filmes:
Un Lugar en el Mundo (1992) – a narrativa se inicia com o retorno migratório de Ernesto,
visitando potenciais lugares de memórias afetivas, lembrando do primeiro amor e da rotina em
família, sempre marcada pelas lutas da cooperativa organizada pelo seu pai – também professor
da pequena escola da cidade – e os conflitos diante da precariedade dos recursos de saúde que a
mãe, médica, enfrenta em seu ofício diariamente – peronistas, os pais fugiram dos militares para
viver em Madri e no regresso ao interior da Argentina os enfrentamentos ideológicos continuam.
La Ley de la Frontera (1995) – uma coprodução entre Argentina e Espanha, foi gravado no
Parque Nacional Peneda-Gerês, em Portugal; Ourense, Pontevedra e La Coruña, cidades da Espa-
nha – narrando a história do nascimento de dois meninos em ambos os lados da fronteira galego-
-português: João, prometido a vocação sacerdotal e Xan, destinado a trabalhar duro como o pai.
Vinte anos depois ambos decidem fugir de seus destinos e têm suas vidas cruzadas na fronteira.

Martín (Hache) (1997) – o filme inscreve para a tela a relação familiar de um filho sem lar,
que sem lugar na casa da mãe, migra para a Espanha com o pai, porém, na nova casa é apenas um
hóspede, cujo pai não é um bom anfitrião.
Lugares Comunes (2002) – baseado no romance El renacimiento, de Lorenzo F. Aristarain, o
filme narra a história do professor de Letras, Fernando Robles, que aposentado contra a vontade
(devido as alegações de crise nacional), na companhia da esposa, Liliana, enfrentam problemas
financeiros, visitam o filho que vive em Madri – lugar onde viveram durante o exílio do regime
militar – e no retorno à Buenos Aires precisam vender o apartamento no bairro de Palermo, para
que possam mudar-se para um sítio e iniciar a fabricação de perfumes.
Roma (2004) – Joaquín Goñez, é um escritor, que durante o processo criativo de seu livro
autobiográfico, realiza uma viagem por memórias afetivas, desde a sua infância e adolescência
em família aos primeiros anos da migração para a Espanha.
Na filmografia destacada de Adolfo Aristarain nota-se a recorrência de convívios familiares
em ambientes domésticos: organizamos o Gráfico 01 em que podemos visualizar que dos cinco
filmes, produzidos na década de 90 e anos 2000, quatro deles têm suas narrativas predominan-
tesmente determinadas por convívios familiares, desenvolvidos em espaços diegéticos, reconhe-
cidos como ambientes domésticos – a Tabela 01 permite que visualizemos, detalhadamente, a
predominância de temática e espacialidade fílmica na obra de Aristarain.

GRÁFICO 01

FILMOGRAFIA DE FICÇÃO - ADOLFO


ARISTARAIN
5

0
Longa-Metragem de
Ficção

Convívios Familiares Outros Convívios


Espaços Domésticos Outros Espaços

TABELA 01

FILMOGRAFIA CONVÍVIOS FAMI- ESPAÇOS DOMÉS-


ADOLFO ARIS- LIARES TICOS
TARAIN (Predomínio narrati- (Predomínio narrati-
vo) vo)
Un Lugar en el
Mundo (1992) Sim. Sim.

La Ley de la Fron-
tera (1995) Não. Não.

Martín (Hache)
(1997) Sim. Sim.

Lugares Comunes
(2002) Sim. Sim.

Roma (2004)
Sim. Sim.
Nota-se que a convivência familiar voluntária se encontra presente em Un Lugar en el Mun-
do (1992), Lugares Comunes (2002) e Roma (2004), sendo que estes convívios familiares são
também abortados, por meio da morte dos pais; e que a convivência imposta é compreendida em
Martín (Hache) (1997), narrativa que após o convívio abortado na casa da mãe, impõe ao filho
a convivência na casa do pai que, também, será interrompida – compreendendo, então, que estes
convívios podem ser transitórios: por exemplo, quando a morte aborta o convívio voluntário e
quando a convivência abortada acarreta no convívio imposto.
Lucrecia Martel, nascida em 1966, na província de Salta, na Argentina, é descrita por Marcos
Vieytes (2009) como a cineasta de sua geração (NCA) que mais conta com recursos técnicos e
dispõe deles para representar um marco social sem que resulte em gratuito e carente de sentido.
Sua produção de longas-metragens resulta nos seguintes filmes:
La Ciénaga (2001) – ocorre numa cidade conhecida pelas extensões de terra que se ala-
gam com as chuvas repentinas e fortes, formando pântanos, armadilhas mortais para os animais
da região. No povoado de Rey Muerto localiza-se o sítio La Mandrágora, onde são cultivados
pimentões vermelhos. Na casa dos patrões, lugar onde instaura-se uma família assolada pelo
forte calor, que sufoca a todos, em um ambiente cinzento que prenuncia temporais, o convívio é
caótico e os corpos inertes.

La Niña Santa (2004) – narra o cotidiano de uma família que mora em um hotel, que hospeda
um grupo de médicos para um evento da área – a jovem adolescente sofre abusos sexuais de um
dos profissionais da saúde, que é flertado pela mãe da garota.
La Mujer sin Cabeza (2008) – o filme desencadeia-se por meio de um acidente na estrada em
que a motorista atropela um corpo. Sem prestar socorro, a mulher, vive com uma incerteza: era
um humano ou um animal? O retorno para casa é marcado por um estado traumático, enquanto a
família segue a rotina.
Ao destacar a filmografia de Lucrecia Martel conclui-se que todos os longas-metragens têm a
predominância de convívios familiares em ambientes domésticos, fraturados por tragédias – que-
das, colisões e abusos. No Gráfico 02 podemos confirmar a recorrência temática e espacial nos
três filmes de longas-metragens da cineasta – estes resultados apreendidos a respeito da produção
de Martel, podem ser visualizados em detalhe na Tabela 02, revelando a incidência narrativa.

GRÁFICO 02
FILMOGRAFIA DE FICÇÃO - LUCRECIA MARTEL
4
3
2
1
0
Longa-Metragem de
Ficção

Convívios Familiares Outros Convívios Espaços Domésticos Outros Espaços

TABELA 02

FILMOGRAFIA CONVÍVIOS FAMI- ESPAÇOS DOMÉSTI-


LUCRECIA MARTEL LIARES COS
(Predomínio narrati- (Predomínio narrativo)
vo)
La Ciénaga (2001)
Sim. Sim.
La Niña Santa (2004)
Sim. Sim.
La Mujer Sin Cabeza
(2008) Sim. Sim.

Compreende-se que todos os filmes de longas-metragens de Martel têm suas histórias desen-
volvidas em áreas de convívios familiares voluntários: em La Ciénaga (2001) os laços familiares
constituem o convívio voluntário (que poderá ser considerado também como um convívio impos-
to, dada a imobilidade atrelada aos laços de parentescos); em La Mujer sin Cabeza (2008), após
um acidente de estrada, a mulher, abatida pelo trauma e a dúvida de uma morte, convive volun-
tariamente com a família, que automatizada pela ordem do cotidiano não percebe sua angústia;
e na película La Niña Santa (2004), a família faz do quarto de hotel um lar, em uma convivência
voluntária, num espaço de não-lugar335, que se ressignifica em morada.
Pablo Trapero nasceu em 1971, em San Justo na Argentina, iniciando sua carreira de cineasta
durante a década de 90, que para Sergio Wolf (2009) constitui-se por um cinema pensado como
um universo social, uma mostra extraída de uma classe e setor da sociedade, incluindo os longas-
-metragens:
335 Para Marc Augé (2007) os espaços de não-lugares são transitórios, onde o sujeito está de
passagem, como os hotéis e aeroportos.
Mundo Grua (1999) – o filme carrega elementos biográficos do ator, que interpreta o prota-
gonista Rulo, ex-baixista de uma banda famosa no passado, que busca reincorporar-se no mundo
do trabalho, enquanto expulsa o filho de casa e inicia um romance.
El Bonaerense (2002) – o filme narra a história de Zapa, um chaveiro que é preso após ar-
rombar um cofre a mando do patrão. O tio consegue que ele seja inserido na corporação policial,
um lado que pode ser tão corrupto quanto dos civis.
Familia Rodante (2004) – on the road em um Chevrolet Viking, que se inicia após a avó ser
convidada para ser madrinha de casamento da sobrinha; ela faz questão da companhia de toda a
família – o que irá desencadear conflitos durante a viagem.
Nacido y Criado (2006) – o filme inicia-se num cenário harmonioso de uma jovem família
de classe média, até que um acidente na estrada transforma a narrativa: Santiago, o marido e pai,
agora, sem a família, convive com o trauma, trabalhando em um pequeno aeroporto de uma ci-
dade isolada.
Leonera (2008) – o filme narra a história de Julia, que após a morte do companheiro é con-
denada à prisão; grávida, ela é direcionada a uma ala de celas especiais para mães, que podem
permanecer com seus filhos até que completem quatro anos de idade.
Carancho (2010) – o filme tem Ricardo Darín como um advogado, cuja licença foi cassada
e trabalha em uma seguradora decadente dando golpes em casos de acidentes de trânsito. O filme
foi considerado responsável pela discussão de mudanças na legislação de seguros para acidentes
automotivos no Congresso Argentino.
Elefante Blanco (2013) - na favela de Villa Virgen, periferia de Buenos Aires, os sacerdo-
tes Julián e Nicolás, na companhia da assistente social Luciana, trabalham entre a violência e a
miséria, ajudando os menos favorecidos, enquanto buscam recursos negados para a construção
de um hospital – um projeto original do ano de 1937, aprovado pelo Congresso Nacional, cuja
construção foi interrompida por duas vezes: a primeira durante o Governo Peron e a segunda vez
na Revolução de 1955.
El Clan (2015) – trata-se de uma história real dos anos 80: a família Puccio sequestra e
assassina vizinhos do aristocrático bairro de San Isidro, em Buenos Aires, dividindo o ambiente
doméstico de convívio familiar com os reféns.
Na filmografia de Pablo Trapero são predominante os convívios familiares, notando-se no
Gráfico 03 que dos oito longas-metragens, selecionados para o devido levantamento, cinco filmes
preponderam suas narrativas em torno de convivências familiares em ambientes domésticos, sen-
do que apenas três filmes representam com destaque as mazelas sociais em espaços públicos – o
que é evidenciado na visualização dos dados disponíveis na Tabela 03.
GRÁFICO 03

FILMOGRAFIA DE FICÇÃO - PABLO TRAPERO


6
5
4
3
2
1
0
Longa-Metragem de
Ficção

Convívios Familiares Outros Convívios


Espaços Domésticos Outros Espaços

TABELA 03

FILMOGRAFIA CONVÍVIOS FAMI- ESPAÇOS DOMÉS-


PABLO TRAPERO LIARES TICOS
(Predomínio narrati- (Predomínio narrati-
vo) vo)
Mundo Grua (1999)
Sim. Sim.
El Bonaerense (2002) Não.
(Mazelas Sociais) Não.
Familia Rodante (2004)
Sim. Sim.
Nacido y Criado (2006)
Sim. Sim.
Leonera (2008)
Sim. Sim.
Carancho (2010) Não.
(Mazelas Sociais) Não.
Elefante Blanco (2013)
Não. Não.
(Mazelas Sociais)
El Clan (2015)
Sim. Sim.
Compreende-se que os convívios familiares em ambientes domésticos, nos filmes de Pablo
Trapero, são abortados em Mundo Grua (1999), no convívio do pai com o filho, que muda-se
para a casa da avó e, posteriormente, na migração do protagonista em busca de um novo empre-
go. Em Nacido e Criado (2006), em que convívio familiar é abortado após um trágico acidente
de trânsito, em que o pai da família se exila em uma pequena cidade longe da realidade a qual
pertencia. No filme El Clan (2015), em que a convivência é abortada por um dos filhos que deixa
a casa, por não concordar com as regras de submissões impostas no ambiente doméstico – lugar
que, além de morada, é cárcere para abrigar os sequestrados pelo pai –; o resultado da convivên-
cia familiar em um espaço que é lar e cativeiro é a intervenção judiciária, que invade o ambiente
da intimidade, para encontrar o lugar do cativeiro, abortando a convivência doméstica da família
criminosa. O convívio imposto pela avó se dá no filme Familia Rodante (2004) – uma imposição
afetiva que se dá durante uma viagem – ressignificando um carro em uma casa provisória, que ao
impor intimidade, desenvolve conflitos. Em Leonera (2008) a imposição é realizada pelo sistema
de leis, constituídas socialmente, que uma vez descumpridas aborta convívios afetivos, impondo
a clausura nas chamadas prisões físicas – onde Julia precisa ressignificar o convívio penitenciá-
rio em sua nova casa, compartilhada com o filho, nascido em um lugar que se faz doméstico por
imposição.
Desse modo, compreende-se que há uma predominância de convívios familiares em es-
paços fílmicos domésticos, nas filmografias dos cineastas Adolfo Aristarain, Lucrecia Martel e
Pablo Trapero, realizadores que participam ativamente da produção pertencente ao fim e início
de século na Argentina pós-ditadura. Torna-se possível observar no Gráfico 04 que da seleção de
dezesseis filmes, que totalizam as filmografias selecionadas dos três cineastas em análise, doze
filmes (75%) predominam narrativas de convívios familiares em ambientes domésticos, sendo
que apenas quatro filmes (25%) tratam de outras temáticas em espaços externos ao da casa, po-
rém sem excluir esses ambientes.

GRÁFICO 04

FILMOGRAFIA - ARISTARAIN / MARTEL / TRAPERO


15

10

0
Longa-Metragem

Dramas Familiares Outras Temáticas Espaços Domésticos Outros Espaços


Considerações finais

Não aleatoriamente o cenário da casa se configura no cinema de uma Argentina pós-ditadura


que vivencia crises permeadas pelo neoliberalismo da década de 90 – trata-se de um sintoma da
sociedade que enfrentou seis golpes políticos, um país que teve sua democracia ferida, familia-
res, amigos e vizinhos desaparecidos, argentinos que convivem com uma memória pós-ditatorial,
cicatriz de uma crise e uma violência que marca o cotidiano e inscreve-se na arte. Nesse caso,
a busca por lugares de proteção acarreta num esvaziamento do espaço público. Privilegiado por
uma estética da segurança, que recolhe os moradores para espaços privados, o lugar da morada
em um primeiro momento promete proteger, para em seguida oprimir (FISCHER, 2006). Estas
características entre público e privado são resultados de políticas públicas em governos repres-
sivos.
Assim, a presente pesquisa teve como motivação o levantamento fílmico de cineastas selecio-
nados, Adolfo Aristarain, Lucrecia Martel e Pablo Trapero, possibilitando detectar os convívios
familiares como predominantes nas obras desses realizadores argentinos. Para que pudéssemos
considerar a recorrência da inscrição dos ambientes domésticos nas obras selecionadas, produzi-
das durante o período permeado pelo Nuevo Cine Argentino, tornou-se necessário contextualizar
o que compreendemos por convívios familiares e por ambientes domésticos, efetivando uma pro-
posta de classificação de áreas de convívios voluntários, impostos ou abortados, que podem ser
identificados como convívios transitórios. Estes resultados e classificações, ainda a grosso modo,
são pertinentes para que futuras pesquisas sejam desenvolvidas.
Referências bibliográficas

ANDERMANN, Jens. Nuevo cine argentino. Ciudad Autónoma de Bueno Aires: Paidós, 2015.
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo:
Papirus Editora, 2007.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
FISCHER, Sandra. Clausura e compartilhamento: a família no cinema de Carlos Saura e de
Pedro Almodóvar. São Paulo: Annablume, 2006.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
___________. Vigiar e punir. Pretrópolis: Vozes, 1998.
FOUZ, Javier Porta. “El minimalismo como camino del cine argentino nacido em los noventa”.
In: PENA, J. (Org.). Historias extraordinarias: nuevo cine argentino 1999-2008. Espanha: T&B
Editores, 2009, p. 33-45.
MARANGHELLO, César. Breve historia del cine argentino. Barcelona: Laertes, 2005.
MOLFETTA, Andrea. “Cinema argentino: a representação reativada (1990-2007)”. In: Batista,
M; Mascarello, F. (Org.). Cinema mundial contemporâneo. Campinas, SP: Papirus, 2012, p. 177-
1992.
Doutoranda e Mestre em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná. Pes-
quisadora no Grupo de Pesquisa Desdobramentos Simbólicos do Espaço Urbano nas Narrativas
Audiovisuais (GRUDES /PPGCom UTP).

Aline Vaz - Doutoranda e mestra pelo programa de pós-graduação em comu-


nicação e linguagens da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade
Tuiuti do Paraná (FCSA-UTP). Especialista em cinema. Graduada em Letras - Portu-
guês/Inglês. Membro do Grupo de Pesquisa Desdobramentos Simbólicos do Espaço
Urbano em Narrativas Audiovisuais (GRUDES / PPGCOM - UTP). As atuais pesqui-
sas tratam das potencialidades imagéticas que habitam as configurações de uma ar-
quitetura doméstica que privilegia controles e repressões, constituindo e preservando
uma memória pós-ditatorial no Novo Cinema Argentino. Bolsista PROSUP/CAPES.
26. Archivos y documentos del cine político de América Latina

Consideraciones sobre el devenir de las fuentes

Mariano Mestman

La historia social, cultural del cine recurre todo el tiempo a textos, documentos gráficos o
audiovisuales preservados en archivos públicos o privados, y a los que cada vez más accedemos
gracias a reediciones posteriores en libros, revistas, journals, dvds o el acceso on line. En el caso
del así llamado Nuevo Cine Latinoamericano de las décadas de 1960/1970 varias reediciones han
modificado las versiones originales de textos o films (seguramente también en otros casos, por
supuesto). De este modo muchas veces se dificulta la recuperación y el análisis de histórico de
imaginarios o fundamentalmente aspectos de las sensibilidades en juego en los debates históricos
del cine político.

En este artículo se analizan algunos casos de alteración de documentos originales tanto en


ediciones posteriores como en sus publicaciones en el mismo momento de su escritura. En la
presentación previa que tuvo lugar durante el 5to. Encuentro de Investigación sobre cine Chileno
y Latinoamericano, en abril de 2015, me referí a situaciones que involucran a figuras clave del
período como el brasileño Glauber Rocha, los argentinos Fernando Birri, Raymundo Gleyzer y
Fernando Solanas, los cubanos Santiago Alvarez y Alfredo Guevara, entre otros. Aquí se focaliza
sólo en dos de esos casos, que permiten problematizar, discutir varios aspectos del trabajo con
las fuentes, complejizar las posibles precauciones a asumir de un caso al otro, y sugerir hipótesis
o conjeturas respecto de las modificaciones de que se trata. En primer lugar, la publicación de
las palabras pronunciadas por el cineasta detenido-desaparecido Raymundo Gleyzer cuando la
presentación de su film Los traidores (1973) en la edición de la Muestra del Nuevo Cine de Pe-
saro (Italia) de ese mismo año, donde había aludido al uso del cine y video por parte del Ejército
Revolucionario del Pueblo en la Argentina. En segundo lugar, una polémica carta de 1971 del
cineasta brasileño Glauber Rocha dirigida al director del ICAIC cubano, Alfredo Guevara, pu-
blicada originalmente en la revista Cine Cubano. En ambos casos se trata de documentos signifi-
cativos ya sea porque son citados con frecuencia en la bibliografía reciente, por las posiciones o
tensiones que expresan, o por las posibles razones que explicarían su modificación posterior. De
ahí el interés por revisarlos.336
336 Ambos casos fueron mencionados en la entrevista realizada por Mónica Villarroel al autor en: MERIDIONAL. Revista Chilena
de Estudios Latinoamericanos, Número 5 (Chile: octubre 2015), 77-102. Aquí se retoman y amplían.
Por otra parte, la presentación original durante el V Encuentro incluyó también otras alteraciones (en general de breves oraciones o
fragmentos) en reediciones posteriores de otros textos originales o películas, que a veces remiten a cuestiones de vínculos personales, de
relaciones políticas, de formatos de circulación comercial en el caso de los films o a más de una de ellas. Se trata de los siguientes textos:
Caso 1. De la radicalización política a la transición democrática

Uno de los aspectos que singulariza la trayectoria de Raymundo Gleyzer tiene que ver con
el ímpetu militante que caracterizó su actividad cinematográfica en la Argentina y con sus inter-
venciones también en América Latina (en Brasil, Cuba y México, o sus proyectos para Chile y
Bolivia, entre otros). Entre los numerosos documentos y testimonios de amigos o conocidos que
refieren anécdotas al respecto, se encuentra el recuerdo de Mrinal Sen. Este destacado cineasta
político de la India, mencionó en sus escritos cómo lo sorprendió la acción de Gleyzer cuando lo
conoció en el Foro Internacional de Cine Joven del Festival de Berlín, en junio de 1973. Le llamó
la atención verlo repartir panfletos en el cine principal: “¿Cómo era eso, luego de recorrer todo
ese camino desde Argentina, se dedicaba a distribuir folletos sobre los problemas del movimiento
sindical en su país?”, se preguntaba Sen. Para luego afirmar: “Glazier (sic) confesó que el sin-
dicalismo era su mayor pasión, y no la realización cinematográfica. Más temprano o más tarde,
dijo, querría dedicar todo su tiempo al movimiento sindical. Yo lo entendí, lo admiré y pude ver
porqué había hecho un largometraje llamado Los traidores (...)”337.

Las referencias a Gleyzer y su obra insisten cada vez más en ese compromiso, lo cual no
va en desmedro, por supuesto, de la dimensión propiamente “cinematográfica” de su obra; pero
sí establece algún tipo de jerarquización de valores (si pudiese llamarse así) que seguramente
él mismo hubiera compartido. Aunque los testimonios posteriores muchas veces resultan fun-
damentales al respecto, sabemos que otras fuentes son imprescindibles para cotejar con más
precisión esa historia; como los documentos del mismo momento de los hechos donde Gleyzer
se expresa, sean cartas, reportajes en medios o foros donde expone sus posiciones. Por ejemplo,
sus palabras en la edición de 1973 del Festival de Pesaro, en Italia, donde concurrió para exhibir
Los traidores, y el director de la Muestra, Lino Micciché lo recordaría en el mismo sentido que
Mrinal Sen: “No había en él ningún narcisismo subjetivo, ningún culto de sí mismo como autor.
Era consciente de desarrollar un rol político y lo desarrollaba con gran dignidad (...) En Pesaro
participó en un debate sobre la Argentina, a propósito del film, no sobre el film”.338
1). “Cine y subdesarrollo”, escrito por Fernando Birri hacia 1966, modificado cuando su publicación en el libro Por un nuevo, nuevo cine
latinoamericano, 1956-1991 (Madrid, Cátedra-Filmoteca Española, 1996). 2) Las palabras de Santiago Alvarez durante la inauguración
de los debates del Festival de Cine Joven en la Cinemateca de Cuba, con motivo del XI Festival Mundial de la Juventud y los Estudiantes
(julio 1978), publicadas originalmente como parte del documento “El periodismo cinematográfico”, que suele fecharse en 1978 (Cine
Cubano, n.94, ps.59 y sgtes.), y las modificaciones que sufrió en sus críticas políticas cuando su reedición parcial en la misma revista
Cine Cubano años más tarde (número 140). 3). Películas del grupo argentino Cine Liberación filmadas entre 1968 y 1971: el caso de “La
hora de los hornos”, realizada en 1968 por Solanas y Getino, y modificada en el final de su primera parte cuando su estreno comercial
con el retorno del peronismo al gobierno en 1973; el caso de “El camino hacia la muerte del viejo Reales” (Gerardo Vallejo, 1968-1971) y
“Actualización política y doctrinaria para la toma del poder” (Cine Liberación, 1971) que circularon con modificaciones de diverso tipo
en versiones en videocassette durante la transición democrática a mediados de la década de 1980, y hasta inicios de la década de 1990.
d). También me referí a una situación en que me ví directamente involucrado, de traducción parcial al inglés de un documento del cine
político de los años 60s./70s. en la revista Third Text. Critical Perspectives on Contemporary Art & Culture n.108 (Londres: Routdledge,
2011), donde los editores, seguramente por equivocación, alteraron el orden de la traducción y algunas referencias claves, como la misma
autoría. En este último caso se trata de una situación parcialmente reparada.
337 Mrinal Sen. Views on Cinema (Calcutta: Ed. Ishan, 1977).
338 Y aclara que obviamente se habló del film, que presentado como colectivo y de autor anónimo, “tenía signos autorales,
Ahora bien, en los últimos años se han publicado muchos artículos sobre este cineasta y su
grupo Cine de la Base que recurren a diverso tipo de fuentes. Actualmente, Cynthia Sabat está
terminando un libro en base al principal archivo personal sobre Gleyzer que conserva Juana Sa-
pire en Nueva York -esposa del cineasta hasta dos o tres años antes de su desaparición y madre
de su hijo. Hace quince años se publicó el libro más completo de testimonios sobre la vida de
Raymundo Gleyzer, a cargo de Fernando M. Peña y Carlos Vallina339. Y hasta donde sabemos, la
publicación con mayor cantidad de documentos sobre su trayectoria sigue siendo el libro que en
un notable esfuerzo le dedicó en 1985 la Cinemateca Uruguaya (dirigida por Manuel Martínez
Carril). Se trata de un temprano y justo homenaje durante la transición democrática, para el cual
colaboraron varios de sus ex compañeros y amigos en Cine de la Base como Jorge Denti y Nerio
Barberis, quienes además escribieron el prólogo.

Entre los documentos que se reproducen en este libro, está la referida intervención de Gleyzer
en setiembre de 1973 en Pesaro340. La fuente original de donde proviene este documento no está
citada en el libro de la Cinemateca Uruguaya, porque se trabajó con una fotocopia que no tenía la
referencia de donde se publicó -como constaté hace poco en el archivo de la Cinemateca en Mon-
tevideo, por gentileza de Eduardo Correa. Con su ayuda pudimos dar con la revista original don-
de fueron publicadas esas palabras de Gleyzer. Se trata de una grabación recogida por el crítico
peruano Federico de Cárdenas en el mismo Festival, pero publicada (junto a otro testimonio del
cineasta) tres años más tarde, cuando su desaparición forzada, en 1a reconocida revista peruana
Hablemos de Cine (dirigida por Isaac León Frías: año XII, núm. 68, 1976).

Cuando este texto (la transcripción de sus palabras, editadas por de Cárednas en 1976) fue
reeditado diez años más tarde en el libro de Cinemateca Uruguaya (1985), se omitieron algunos
párrafos (unas treinta líneas de la edición original) que remiten al compromiso de Gleyzer con la
organización guerrillera argentina Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP), que tenía secues-
trados en los últimos días del gobierno militar del general Agustín Lanusse al contralmirante
Aleman y al comandante de Gendarmería Nassif. Lo que sigue subrayado es lo quitado en la
reedición en el libro de Cinemateca Uruguaya.
“… Todos los instrumentos son válidos, y este no es el único caso: está el video-tape, muy impor-
tante porque casi todas las casas tienen TV y se puede pasar así cine militante o tapes de medios
de organización de lucha muy concretos. Es mucho menos detectable una persona con un tape
que la que lleva un film o un proyector, incluso se puede borrar en un instante, si amenaza llegar
huellas de manos que no eran sólo ‘militantes’ y ‘políticas’ sino ‘artísticas’ y con un gran sentido del cine.” En: VVAA, Raymundo
Gleyzer. (Montevideo: Cinemateca Uruguaya, 1985), 46-47.
339 Fernando M. Peña y Carlos Vallina, El cine quema. Raymundo Gleyzer. (Buenos Aires: Ediciones De la
Flor, 2000).
340 Una edición muy recordada de la Muestra de Pesaro (porque llegaron las trágicas noticias del
golpe militar en Chile); y una intervención (la de Gleyzer) importante porque es uno de los pocos testimo-
nios en que se explaya sobre su idea de cómo sistematizar un circuito de exhibición paralela, clandestina
en barrios populares y sobre la organización interna de su grupo y el trabajo en una fotonovela en base al
guión de la película, como un modo de llegar a las bases obreras, entre otras cuestiones.
la policía.

Existe una organización militar en Argentina que utilizó el video tape en la cárcel del Pueblo:
es el ERP que, como todo el mundo sabe, tenía secuestrados al contralmirante Alemán (implicado
en los sucesos de Trelew y sus asesinatos) y al contralmirante Nassip de la gendarmería opresora
de Córdoba. Esto ocurría en los últimos días de la dictadura militar y era un medio de salvar la
vida a los camaradas mantenidos en prisión. Estos compañeros filmaron un tape con Alemán en
la cárcel del Pueblo y que fue enviado a los distintos canales de TV. En el tape se veía el juicio
político al que se sometió a este personaje y hasta hubo un canal –luego muy sancionado– que lo
dio a publicidad como un acontecimiento periodístico muy importante. El gobierno lo cerró por
una semana, pero –aprovechando el diletantismo de los periodistas– mucha gente vio el juicio.
Hasta hubo diarios que dijeron que estaba mal filmado, pero lo importante –obviamente– fue el
impacto político logrado. Y existen tapes con instrucciones sobre cómo fabricar una barricada,
una bomba Molotov, etc. Todo el mecanismo de la propaganda es muy importante, todo lo que
puede contribuir al desarrollo de la guerra popular en Argentina juega un rol que no podemos
descuidar.

Para terminar insisto en que debemos meternos en la cabeza que solos (…) somos incluso un
elemento fácilmente digerible por la burguesía”

“… Cuando sostenemos la posición de que el cine es un arma, muchos compañeros nos respon-
den que la cámara no es un fusil, que esto es una confusión, etc. Ahora bien, está claro para noso-
tros que el cine es un arma de contra-información, no un arma de tipo militar. Un instrumento de
información para la Base. Todos ustedes han visto los comunicados del ERP filmados. Su finali-
dad es difundir operaciones de tipo militar en la base, como en el Comunicado N.2, en el que los
mismos compañeros que asaltaron un banco explican cómo llevaron a cabo la operación. Este es
el valor otro del cine en este momento de la lucha (….)”

Lo subrayado, entonces, es la parte de las palabras de Gleyzer en Pesaro 1973 publicadas


por Hablemos de Cine (1976) pero omitidas en su reedición durante la transición democrática
(1985).341

Dos observaciones: Por un lado, no se trata de afirmar que los materiales del ERP a los que el
cineasta hace referencia (los videotapes, el Comunicado Cinematográfico número 2) hayan sido
realizados directamente por él. La ingeniosa idea de filmar los comunicados de las organizaciones
político-militares, que hasta allí circulaban sólo o fundamentalmente por escrito, seguramente le
341 La nota de Federico de Cárdenas también incluye un testimonio de Gleyzer previo, cuando la exhibición de su largo docu-
mental México, la revolución congelada (1970) en otro Festival Internacional. También en este caso hay una omisión en la reedición
(aquí subrayada): “(…) Estas que parecen ideas difusas, forman parte de problemas que nos tocan personalmente y que actualmente
discutimos y desarrollamos en nuestro grupo: cómo quebrar el individualismo, cómo militar en una organización política (aunque no
sea la organización perfecta: en Argentina no existe el partido de los trabajadores y carecemos del instrumento necesario para llegar a la
toma del poder) que en un futuro logre la construcción del Partido y la construcción del Ejército Revolucionario Popular necesario para
la toma del poder. Mientras tanto cada uno milita en la organización que cree más afín a sus ideas”.
corresponde. Y en general suele reconocerse su autoría (junto a otros) respecto de los Comunica-
dos Cinematográficos del ERP filmados (aunque hablar aquí de autoría no tiene mucho sentido
en tanto se trata de una apuesta anónima y orgánica). Aun así, es probable que no haya tenido la
misma participación en la dirección de ambos, dadas sus diferentes composiciones. Y, hasta don-
de sé, no tenemos referencia a su directa participación en el material con videotape. Pero hechas
estas salvedades, las palabras en Pesaro parecen evidenciar un vínculo más que estrecho con esa
experiencia. Y un interés al respecto.

Por otro lado, es probable que las alusiones al videotape hayan estado motivadas por el
ámbito en que tuvieron lugar. Como se sabe, se trata de una tecnología reciente en ese momen-
to con desarrollo entre los grupos del cine de intervención (educativo, social, cultural, político)
en Europa y Norteamérica, y de escaso alcance hasta allí en América Latina y otras partes del
denominado Tercer Mundo. Fundada en 1965 como un foro destacado de las nuevas tendencias
cinematográficas y su discusión crítica, la Muestra del Nuevo Cine de Pesaro se había convertido
desde 1968 en el principal encuentro internacional al que confluía el cine político latinoameri-
cano (y otros). En la edición de 1973 Raymundo Gleyzer exhibió Los traidores (refiriendo la
autoría al grupo Cine de la Base) y los Comunicados Cinematográficos del ERP (como de autor
anónimo), en el marco de una sección titulada Testimonios sobre la América Latina de los años
70s. Pero al mismo tiempo, esa edición del Festival incluyó un importante evento titulado “L´al-
tro video. Incontro sul videotape”, al cual la muestra dedicó uno de sus reconocidos cuadernos
informativos (el número 44) con reflexiones teóricas y experiencias prácticas en torno al nuevo
medio. Aunque las discusiones respecto del video tape en general –y en su uso social/político en
particular– venían desarrollándose en Europa desde algunos años antes342, el cuaderno informa-
tivo de Pesaro señalaba que el medio tenía su mayor desarrollo en Estados Unidos (Habría que
agregar la experiencia canadiense, por supuesto, que estuvo presente en Pesaro a través del grupo
Vidéographe de Montreal). En ese marco, aunque Gleyzer no participó de este encuentro sino de
la sección de cine político latinoamericano, no es extraño que el tema estuviese presente en sus
palabras. En cualquier caso, las referencias al video por parte del cineasta argentino, como se vio,
remiten sobre todo al uso instrumental del nuevo medio en el trabajo político en la línea del cine
militante que venía desarrollando, sea en el registro o en la difusión de materiales en situaciones
de clandestinidad.

Ahora bien, si actualmente nuestra principal fuente bibliográfica para acceder a las palabras
de Gleyzer en Pesaro sigue siendo el libro de Cinemateca Uruguaya (1985) porque reproduce el
artículo de Hablemos de Cine (1976) donde fueron recogidas, entonces durante mucho tiempo
nos viene faltando algo de esa historia, algo que Gleyzer priorizaba (su compromiso militante con
la política, ya no sólo con el cine), que en cambio sí repone la fuente “original”. Pero el problema
342 Por ejemplo, también en Italia, el Convenio que le dedicó la Mostra Internazionale del Cinema Libero di
Porretta Terme en su edición de 1969: “Nuovi mezzi di comunicazione: le cine-video cassette”.
es que no siempre se tiene acceso a esta última y muchas investigaciones recurren a reediciones
posteriores, como la de Cinemateca Uruguaya, que ya sea por tratarse de un libro dedicado al
cineasta desaparecido o por ser más reciente, resultan más accesibles.

La fotocopia de la nota de la revista Hablemos de Cine de donde se tomó las palabras de


Gleyzer para su reedición en este último libro343, tiene tachadas las partes que se quitaron (las
subrayadas más arriba). Podríamos preguntarnos por las razones que motivaron esta suerte de
“autocensura” (el término no es correcto, por supuesto, pero tal vez pertinente en la medida en
que la edición está a cargo de amigos o conocidos del cineasta que lo homenajean). Pienso que
habría que leer las modificaciones al texto en el marco de la recuperación de la figura de los “de-
saparecidos” (en definitiva se trata de un homenaje a Gleyzer) durante la transición democrática
de la década de 1980, de los modos en que fue denunciada la atrocidad de la desaparición, desde
que ocurrió en adelante. Me refiero a ese momento –que viene siendo muy revisitado en los úl-
timos años– donde la figura de la “víctima” ocupa un lugar destacado, asociada, por supuesto, a
la denuncia de violación de los derechos humanos que venía teniendo lugar desde la dictadura (o
antes). Allí, en la transición, las narrativas revolucionarias de los años sesentas cedían espacio a
narrativas humanitarias de denuncia de las atrocidades cometidas por las dictaduras (los secues-
tros, las torturas, los asesinatos, etc.). Y los aspectos más militantes (en especial los asociados
a acciones guerrilleras, armadas) quedaban desplazados en muchos relatos344. Una recuperación
distinta a la que ocurriría desde mediados de la década de 1990 (poco antes o poco después)
cuando la experiencia militante volvería a ocupar el centro de la escena (ahora con otras carac-
terísticas, por supuesto). De algún modo, en el contexto previo de la transición –donde al mismo
tiempo las cosas todavía no estaban tan claras, las tensiones perduraban y las amenazas también,
entre otros a miembros del grupo Cine de la Base, como Jorge Denti a propósito de su film “Mal-
vinas, historia de traiciones” (1984)–, el borramiento o siquiera el desplazamiento de los aspec-
tos guerrilleristas de la experiencia de Gleyzer resultaba acorde al momento histórico. Más que
juzgar la decisión de reeditar las palabras del cineasta desaparecido sin esas referencias –ya que
es un proceso con decenas de matices y excepciones, que implicaría una extensa discusión que
trascienden estas páginas–, se trata de llamar la atención en lo que refiere a nuestro trabajo histo-
riográfico, puesto que el cine de Gleyzer es indisociable de su apuesta política. Sin embargo, has-
343 Se conserva en el Archivo de Cinemateca Uruguaya en Montevideo, en un sobre junto a otros ma-
teriales utilizados para el libro.
344 Entre los trabajos que se han referido a este desplazamiento y lo han estudiado en diversas facetas, véase: Crenzel, Emilio. La
historia política del Nunca Más. La memoria de las desapariciones en la Argentina, (Buenos Aires: Siglo XXI, 2008); Markarian, Va-
nia. “De la lógica revolucionaria a las razones humanitarias: Los exiliados uruguayos y las redes transnacionales de derechos humanos”,
en Cuadernos del CLAEH, número 89 (Montevideo: 2004); Oberti, Alejandra y Pittaluga, Roberto. Memorias en montaje. Escrituras
de la militancia y pensamientos sobre la historia. (Santa Fe: María Muratore Ediciones, 2012). Javier Campo (2014) ha recuperado los
estudios sobre narrativas revolucionarias y humanitarias en este período para analizar el documental político argentino, en su reciente
Tesis Doctoral: “Batallas estéticas reales. Tendencias formales y temáticas en el cine documental político argentino (1968-1989)”. En
otro sitio me referí al lugar que ocupó el testimonio subalterno en el cine latinoamericano en torno a 1968, entre la dominancia de las
narrativas revolucionarias y la incipiente emergencia en algunos países, hacia mediados de la década de 1970 o antes, de aquellas vincu-
ladas a la denuncia de las violaciones de derechos humanos. En: Mestman, Mariano (2013), “Las masas en la era del testimonio. Notas
sobre el cine del 68 en América Latina”; en: Mestman, M. y Varela, M., Masas, pueblo y multitud en cine y televisión. (Buenos Aires:
Eudeba, 2013), 179-215.
ta donde sé, las palabras de Pesaro (uno de los testimonios donde Gleyzer más se explayó sobre
su obra y explicitó estas cuestiones) vienen siendo citadas mucho más de fuentes secundarias que
omiten esas referencias de radicalización que de su original transcripción en Hablemos de Cine.

Una vuelta de tuerca

Las palabras comentadas fueron expuestas por Gleyzer en Pesaro en el marco de una confe-
rencia de prensa, una charla o una mesa redonda donde también participaban otros realizadores.
Más arriba, justo antes de una de las tachaduras analizadas, se citó la siguiente frase: “… Cuan-
do sostenemos la posición de que el cine es un arma, muchos compañeros nos responden que la
cámara no es un fusil, que esto es una confusión, etc. Ahora bien, está claro para nosotros que el
cine es un arma de contra-información, no un arma de tipo militar. Un instrumento de informa-
ción para la Base”.

Esta frase está presente en ambas fuentes (la nota de Hablemos de Cine y el libro de Cine-
mateca Uruguaya) y atribuidas en ambos casos a Gleyzer (Recordemos que se trata de palabras
o frases expresadas oralmente y grabadas por periodistas o críticos, en este caso por el peruano
Federico de Cárdenas y luego transcriptas en la revista Hablemos de Cine). Sin embargo, hace
unos años encontré otra fuente en los archivos de la Cinemateca de Cuba-ICAIC que agrega más
confusión al asunto. Se trata de una transcripción mecanografiada de un supuesto “Encuentro de
cineastas latinoamericanos con (la revista) Ombre Rosse”, realizado en el marco del festival, don-
de figuran las palabras de Gleyzer, ahora junto a las de otros participantes345. En ese documento
mecanografiado, además de estar las alusiones al ERP, la frase recién citada sobre el cine como
“arma de contrainformación para la base” está atribuida no a Glezyer (como ocurría en las otras
dos fuentes comparadas), sino a Jorge Giannoni.346
345 La revista Ombre Rosse había tenido un protagonismo importante en el debate del cine político ita-
liano del 68, y su director, Goffredo Fofi había participado de las acaloradas discusiones en Pesaro 1968
(una edición que estuvo a punto de suspenderse, siguiendo el ejemplo de Cannes un mes antes, pero que
finalmente se realizó autoconvertida en Asamblea) y había redactado junto a otros los documentos en
torno al cine asociados a las protestas del Movimento Studantesco en esa coyuntura.
346 Otro cineasta político argentino quien en ese momento compartía con Jorge Denti (y otros) el
colectivo Cinema del Terzo Mondo en Roma. Este grupo había realizado dos películas producidas por a
Renzo Rossellini, un activo productor y promotor del cine del Tercer Mundo en esos años desde su pe-
queña productora San Diego Cinematográfica. Jorge Giannoni, aunque con menos obra que Gleyzer, tendría
un rol activo en los vínculos entre el cine político latinoamericano y el africano; al punto de protagonizar la
organización de sendos encuentros en Argel y Buenos Aires que entre diciembre de 1973 y mayo de 1974 darían
conformación al Comité de Cine del Tercer Mundo, del cual fue representante por América Latina. En setiembre
de 1973 se reencontraría con Gleyzer: viajarían juntos a la IV Conferencia de Países No Alineados realizada en
Argel y luego participarían de la edición de la muestra de Pesaro de ese año.
Si bien se trata de una diferencia “menor”, limitada a la autoría de esta frase, resulta relevante
a los efectos de la discusión sobre el uso de las fuentes. El problema es que tal vez ninguna de
las dos (ni la transcripción para Hablemos de Cine, publicada, ni aquella para Ombre Rosse, iné-
dita) podrían considerarse estrictamente fuentes originales. Porque si en la comparación anterior
quedaba claro que el libro de Cinemateca Uruguaya había reproducido con alteraciones la nota
previa de Hablemos de Cine, y constaban las tachaduras en la fotocopia utilizada; en este caso,
en cambio, se trata de dos “versiones” (desgrabaciones, transcripciones) de la misma exposición
oral de Gleyzer (y otros) en Pesaro.

Si tuviéramos las cintas grabadas, probablemente podríamos precisar a quien corresponde la


frase en cuestión. Pero contamos sólo con ambas desgrabaciones. La transcripción que encontré
en los archivos del ICAIC en La Habana es explícita al atribuir la frase a Giannoni (y también
es muy precisa en la descripción previa de la escena en que fue grabada, que hace las veces de
introducción). Sin embargo, nunca se publicó en Ombre Rosse, y tampoco la recordaban ni su
director, ni los participantes italianos con los que hablé en su momento. En cambio, ante mi con-
sulta reciente, Federico de Cárdenas tuvo la gentileza de volver sobre esa escena a pesar de los
años transcurridos y aseguró que fue muy cuidadoso en la transcripción y edición y que conocía
perfectamente la voz de Gleyzer. Al mismo tiempo, observó con razón que la frase es del todo
coherente con el conjunto del discurso que venía presentando este cineasta en esa instancia. El
argumento de Federico de Cárdenas parece convincente. Es decir, las dos desgrabaciones (la de
Ombre Rosse, encontrada en el archivo del ICAIC, que no sabemos quién la hizo; y la suya), son
muy semejantes ya que son la transcripción de una fuente oral original. Sin embargo, ¿cómo sal-
dar la diferencia de a quien cada una atribuye lo dicho?

Desde el punto de vista del acceso a las fuentes en nuestras investigaciones, este caso (me
refiero a la comparación primera entre la publicación en la revista peruana y su reproducción en
el libro uruguayo; lo señalado luego es más confuso y menos relevante en cuanto alteración),
refiere a la importancia del acceso a la publicación original de los documentos, la realizada en el
mismo momento en que fueron escritos o desgrabados (Por supuesto el acceso a las grabaciones
o manuscritos sería ideal, pero en general más difícil). Con ello podríamos, en principio, “con-
trolar” las fuentes más recientes, las reediciones. Sin embargo, el segundo caso que se analizará
a continuación permite mostrar que el asunto es más complejo de lo que parece; es decir, que no
se trata sólo de ir a las “primeras ediciones” en las que esos textos aparecieron o circularon en su
momento, sino también de estar siempre atentos respecto de todas las ediciones, las actuales y las
de aquellos años.
Caso 2. Viña del Mar, 1969: Glauber Rocha, Fernando Solanas y Alfredo Guevara

El segundo caso se refiere al enojo del brasileño Glauber Rocha respecto de afirmaciones
críticas del argentino Pino Solanas sobre el movimiento del Cinema Novo, realizadas durante el
Encuentro de Realizadores de Viña del Mar de 1969. Hay un par de cartas de 1969 y 1971, de
Rocha a Alfredo Guevara –entonces director del ICAIC–, que fueron publicadas en el libro Car-
tas ao Mundo, de 1997, una compilación de la correspondencia del cineasta brasileño a cargo de
Ivana Bentes347. Cinco años después de esa edición en portugués, Alfredo Guevara publicó una
selección de su correspondencia con Glauber, donde incluyó la segunda de estas cartas.348

Me interesa en particular esa extensa carta escrita por Glauber estando enfermo en Chile,
fechada en mayo de 1971, de la cual encontré tres versiones que, aunque en términos generales
dicen lo mismo, presentan algunas modificaciones significativas entre sí. Se trata de las versiones
correspondientes a cada uno de los dos libros mencionados –Cartas ao Mundo y la Correspon-
dencia Guevara-Rocha–, y la hasta donde sabemos primera publicación de la carta en el número
71/72 de la revista Cine Cubano –circa, fines de 1971/comienzos de 1972, páginas 1-11. Rocha
había pedido de modo explícito que esa carta se difundiera en Cine Cubano, ya que allí confron-
taba con los ataques contra el Cinema Novo provenientes de sectores de las izquierdas brasileñas
y latinoamericanas desde comienzos de la década de 1960. Entre esos ataques incluía la crítica
que, en su ausencia, Solanas le había hecho en Viña del Mar 1969.

El cineasta brasileño reivindicaba en esa carta a Alfredo Guevara el carácter político –de res-
puesta revolucionaria contra la dictadura de su país– de varios films del Cinema Novo aparecidos
en torno a 1964 y manifestaba su enojo por el cuestionamiento de Solanas en aquel festival. En
la versión de la carta publicada en Cartas ao Mundo, en 1997 (ps. 403-404) hay varias líneas (su-
brayadas a continuación) que en cambio no figuran en las dos ediciones cubanas de la misma carta:

“(...) Vi en varios lugares del mundo la conmoción de las plateas delante de Maioria absoluta349.
Y nosotros tuvimos la sabiduría de no hacer ningún manifiesto teórico, ninguna crítica moralista
a otros cines, ninguna ‘palabra de orden’ oportunista. Solamente presentamos ‘La estética de la
violencia’350. Años después, en Viña del Mar, (no recuerdo el año), fuimos sorprendidos por la
acusación de Solanas: para él, y para un grupo de cineastas revolucionarios urgidos, La hora de
los hornos era el verdadero cine revolucionario y nosotros, los brasileños, que luchábamos contra
una dictadura implacable, estábamos ‘comprometidos con el sistema’. La hora de los hornos, alar-
347 Glauber Rocha. Cartas ao mundo. (Sao Paulo: Compahia des Letras, 1997. Compilación a cargo de Ivana Bentes).
348 Alfredo Guevara. Un sueño compartido. Alfredo Guevara-Glauber Rocha. (Madrid: Iberautor y Festival
del Nuevo Cine Latinoamericano, 2002).
349 El film de León Hirzsman (1964).
350 Se refiere al manifiesto más conocido como “La estética del hambre”, producto de su intervención en el Columbianum de Gé-
nova, en 1965.
deando su novedad formal, incluía, irónicamente, un pedazo de Maioria absoluta, de Hirszman351.
Nosotros no lanzamos ningún manifiesto inventando el cine/verdad político, incluso – ni siquie-
ra– después del éxito mundial de Maioria absoluta o de Viramundo352. Nosotros, los cineastas del
‘cinema novo’, queríamos la unidad del cine latinoamericano. Luego del ‘cine del tercer mundo’,
inspirado en la Tricontinental del Che”.

Y unas líneas más abajo, insiste en su enojo, e incluye una comparación por lo menos singular:

“(...) Leí el discurso de Fidel en Gramma, donde se refiere al caso Padilla. Tiene razón. Los inte-
lectuales son producto de una concepción aristocrática-burguesa, heredada por el academicismo
cultural del Partido Comunista. Esta concepción genera privilegios, vedettes, concursos, premios,
festivales y mentiras traicioneras como la de Solanas contra el ‘cinema novo’ en el Festival de
Viña del Mar”.

Aunque inmediatamente el conflicto parece “compensarse” con una expresión que aparenta
no guardar rencor o por lo menos aceptar cierta reconciliación:

“Solanas más tarde me confesó en Roma que había sido víctima de una intriga hecha por fran-
ceses y brasileños. Creo en la honestidad de Solanas, me gusta La hora de los hornos, pero debo
aclarar que él, como un cineasta revolucionario, no tenía derecho a juzgar el ‘cinema novo’ basa-
do en informes de otros ‘brasileños’ o ‘franceses’. (...)”.

Ahora bien, los párrafos citados corresponden, como decíamos, a la versión de la carta publi-
cada en portugués en Cartas ao Mundo en 1997 –la traducción es mía. Y las oraciones subrayadas
son las que no están en las dos versiones cubanas en español (ni en la anterior de la revista Cine
Cubano de 1971 ni en la posterior de la Correspondencia Guevara-Rocha de 2002). En especial
resulta de interés su ausencia en la versión publicada previamente en la revista Cine Cubano, en el
mismo momento en que fue escrita. Es importante aclarar que no se trata de la única divergencia.
Hay otras, en otras zonas de la carta, en general menores, entre las ediciones en español respecto
de la brasileña, y algunas también entre ambas versiones en español353. Pero a los efectos de la
discusión sobre esa coyuntura de las relaciones del Nuevo Cine Latinoamericano, nos interesa la
divergencia que aquí presentamos, porque a diferencia del caso anterior referido a Gleyzer donde
se modifica una primera publicación de sus palabras en una reedición posterior, aquí es la primera
publicación de la carta (la de Cine Cubano) la que omite los duros términos con que Glauber se
refiere a Solanas, que en cambio sí aparecen en una versión editada posteriormente, aunque sos-
pechamos original (la de Cartas ao Mundo).

351 Se refiere a una de las llamadas “citas fílmicas” incluidas en el film argentino.
352 El film de Geraldo Sarno (1965).
353 En lo referido en particular a estos párrafos, por ejemplo, en la reedición en la Correspondencia Guevara-Rocha (2002) sí figu-
ra la mención al discurso de Fidel sobre el caso Padilla y la referencia al academicismo “cultural del Partido Comunista”, ausentes en la
versión de la revista Cine Cubano (1971).
Muchos elementos llevan a pensar que en la original traducción de la carta para Cine Cuba-
no fueron cortadas las frases más duras contra Solanas (subrayadas más arriba). Si bien en esa
edición están las referencias explícitas a las críticas contra el Cinema Novo en Viña del Mar
1969, resulta llamativa la ausencia completa del primer párrafo citado (“Años después, en Viña
del Mar..., fuimos sorprendidos por la acusación de Solanas...”), así como del nombre de Solanas
en el otro párrafo: “Esta concepción genera privilegios, vedettes ... y mentiras traicioneras como
la de Solanas contra el ‘cinema novo’...”354. Estas ausencias hacen que resulte incluso confusa la
edición de esta parte de la carta en la revista, dónde sólo aparece una breve mención al cineasta
argentino: “Solanas más tarde me confesó en Roma que había sido víctima de una intriga urdida
por franceses y brasileños”. Porque esta mención queda aislada, sin la referencia previa (a las
acusaciones y “mentiras”) y por ende no se comprende bien a qué refiere.

Las diferencias de Rocha respecto de Solanas y su cine pueden observarse en ese mismo mo-
mento histórico en otras fuentes: al pasar en cartas previas y posteriores, también publicadas en
Cartas ao Mundo355; y de modo un poco más argumentado en una famosa conferencia de Glau-
ber de ese mismo año en Nueva York, luego conocida como el Manifiesto “Estética del sueño”356.
Pero justamente por ello, la pregunta que surge casi de inmediato es por qué razón se cortó la
carta enviada a Alfredo Guevara357. Desde mi punto de vista, no se trata de que los dirigentes
cubanos adhiriesen más o menos a cada uno de estos dos referentes del llamado Nuevo Cine Lati-
noamericano358. Es probable, en cambio, que en su permanente búsqueda de la unidad del mismo,
354 En el párrafo reproducido en Cine Cubano dice: “Este concepto genera privilegios, vedettes, concursos, premios, festivales y
provocó intrigas contra el ´cinema novo´ en el Festival de Viña del Mar, 1969”.
355 Una de 1969 también a Alfredo Guevara y otra de 1971 a Cacá Diegues. En esta última, Glauber se refiere al pasar a la carta
que ese mismo año había enviado a Guevara desde Chile –la que venimos citando. Y en referencia a la reconocida película Macunaíma
afirma que “era un suceso en tierras de documentalismo educativo (o solanismo legal y argentino)” (Cartas ao Mundo, p. 414). En la
carta de 1969 a Guevara -escrita en Roma inmediatamente después del encuentro de Viña del Mar-, Glauber agradece la intervención
del dirigente cubano en el evento por haber defendido al “cine brasileño” -se entiende al Cinema Novo- frente a ataques que atribuye a
Solanas. Hasta donde sabemos esta carta -a diferencia de la más extensa de 1971 comentada- no fue publicada en su momento en Cine
Cubano u otro sitio. Pero sí fue recuperada en la Correspondencia Guevara-Rocha publicada en 2002 (p.97). En este caso, la mención a
Solanas es sólo al pasar, pero también muy dura. La diferencia entre ambas versiones de la carta es menor aunque también significativa.
La breve frase en la versión en portugués (Cartas ao Mundo, p. 353-354) dice: “creo que Solanas hace mucha demagogia y sufre de vede-
tismo crónico; mal del subdesarrollo (... acho que o Solanas faz muita demagogia e sofre de vedetismo crónico; mal do subdesarrollo)”.
La traducción para la edición en español incluye la crítica aunque matizada por un aparente error de traducción: “creo que Solanas hizo
mucha demagogia sobre el vedetismo crónico, mal del subdesarrollo”. (Correspondencia Guevara-Rocha, 2002, p. 97).
356 En ese documento, reivindicando el lugar privilegiado del arte y el artista en el proceso revolucionario, el valor de su no subor-
dinación y de la revolución en lo cultural, Rocha diferenciaba ahora su propia obra respecto de La hora de los hornos. Allí distinguía tres
tipos de arte revolucionario: el útil al activismo político; el lanzado para la apertura de nuevas discusiones; el rechazado por la izquierda
e instrumentalizado por la derecha. Si en el segundo caso se refería a algunos films del Cinema Novo brasileño, incluidos los suyos, en el
primero ejemplificaba con el film de Solanas y Getino, “un típico panfleto de informaciones, agitación y polémica, utilizado actualmente
en varias partes del mundo por activistas políticos”, afirmaba.
357 Como dijimos en relación con la carta de 1971, no se trata sólo del corte de las críticas más duras a Solanas, sino también de la
explícita mención de Glauber a la honestidad de Solanas y a que le gustaba La hora de los hornos -que en la versión brasileña aparece
inmediatamente después de la frase que en la traducción cubana queda suelta, sin conexión, sobre que Solanas le confesó en Roma que
había sido víctima de una maniobra.
358 Más allá de una mayor o menor afinidad con cada uno y con sus respectivas obras –que probablemente existió a favor de Glau-
ber–, en general mantuvieron colaboración con ambos –con variantes a lo largo del período–, al mismo tiempo que las consideraciones
sobre sus películas de esa coyuntura –en especial La hora de los hornos y Antonio das Mortes– incluyen adhesiones a algunos aspectos
pero también críticas y distanciamientos respecto de otros. De hecho, en la misma carta –recordemos que estaba dedicada fundamental-
mente a confrontar no con Solanas sino con sectores de la izquierda brasileña–, Rocha rechaza dura y explícitamente un artículo publi-
cado en un número anterior de Cine Cubano sobre su obra, firmado por Pietro Domenico, que –afirma– “nace de informaciones falsas
ofrecidas por la Cinemateca de Río de Janeiro y por la Escuela de Comunicación de Sao Paulo”.
la revista quisiese evitar la publicación de las frases más duras de la carta que hubieran explicita-
do una pelea, o por lo menos una tensión importante, entre dos promotores clave de ese cine en
el mundo359. Por supuesto en esos años las diferencias – de lenguaje, de políticas– entre ambos
directores se leen en otras fuentes, como las mencionadas. Pero ninguna de ellas da cuenta del én-
fasis en el enfrentamiento que se lee en las frases de esta carta de Glauber a Guevara. Al cortarlas
en la versión de Cine Cubano (1971) aquello que en la –aparentemente– “original” (aunque pu-
blicada posteriormente: la reproducida en el libro de Ivana Bentes en 1997) es abierto conflicto,
en esta versión de Cine Cubano aparece sólo como una mención al pasar. Además, como se dijo,
no se comprende bien ya que no puede vincularse de modo directo a los párrafos que no están. Es
decir, el contundente enojo, la polémica manifiesta (que sí se lee en otros párrafos no eliminados),
recubre un carácter más general o asociado a la izquierda brasileña, pero ya no al fundador del
grupo Cine Liberación argentino. Tampoco deberíamos descartar la posibilidad de que haya sido
el mismo Glauber –u otra persona con su autorización– quien modificara la primera versión de la
carta porque decidiese –sea por iniciativa propia o por sugerencia de otros– matizar las críticas.
Pero también en este caso se trataría de modificaciones que merecerían una lectura historiográfica
más detenida.360

El hecho de que la carta publicada en la misma coyuntura de la polémica fuese cortada por
una razón o por otra no resulta insignificante a la hora de interpretar esa historia. En otros luga-
res me referí a las tensiones y polémicas que atravesaron las apuestas de los cineastas políticos
latinoamericanos en los 60s./70s., sea en ese Festival de Viña del Mar de 1969 o luego en un
encuentro del cine político mundial realizado en Montreal en 1974, y donde se desató una en-
carnizada polémica entre el chileno Miguel Littín, el uruguayo Walter Achugar, los argentinos
Pino Solanas, Edgardo Pallero y Humberto Ríos, el cubano Julio García Espinosa y el director
del Festival de Pesaro, Lino Micciché (Mestman, 2001 y 2014, respectivamente). Esas y otras
situaciones dan cuenta de un panorama de posicionamientos más complejo de lo que en general
la bibliografía nos permite ver.

Este segundo caso sobre la carta de Rocha, como se dijo, viene a complicar la cuestión del
trabajo con las fuentes. Porque ya no se trata de modificaciones posteriores –por ejemplo, desde
los períodos de transición política en Sudamérica– que muchas veces matizan la radicalidad de
enfrentamientos de los años 60/70, como se vio en el primer caso. En este segundo caso se trata

359 En especial considerando que hubo otras polémicas fuertes entre chilenos, argentinos, cubanos en
Viña del Mar 1969, que en algún momento amenazaron con dividir a los presentes en sesiones paralelas.
360 Al respecto, es importante considerar que en la versión de Cine Cubano (1971) hay otras frases intercaladas, agregadas que no
están en la versión de Cartas ao Mundo (1997), como si hubiesen sido sumadas en una revisión contemporánea de la escritura. Es decir,
faltan las críticas más duras a Solanas -entre otras cosas- pero hay otros párrafos que en cambio no están en la que hasta ahora supone-
mos como carta “original” –aunque publicada posteriormente–, la versión de Cartas ao Mundo. Por ejemplo, las 9 notas al final del texto
publicado en la revista, que parecen aclaraciones del propio Glauber. O el final a modo de manifiesto: “Abajo la dictadura imperialista.
A la izquierda todo, a la derecha nada”. O la frase sobre el lenguaje del cine latinoamericano: “Debe ser épico, didáctico, materialista y
mágico”, que remite a otro manifiesto contemporáneo. Entre otras referencias presentes en la versión de Cine Cubano y ausentes en la de
Cartas ao Mundo.
de modificaciones en el mismo momento de escritura/difusión de la carta y que por ello mismo
nos obligan a indagar con mayor profundidad y avanzar en su interpretación de modo más refle-
xivo. Porque si bien la carta aparentemente original pero publicada completa en 2007 (cuando
Ivana Bentes dio a conocer esa correspondencia) no deja dudas sobre el sentimiento de Rocha
respecto de la intervención de Solanas en Viña del Mar 1969, el hecho que esas líneas no se hu-
biesen publicado en la edición de Cine Cubano de 1971 indica que no tuvieron publicidad, no
fueron parte de la escena pública y el debate del cine político latinoamericano en esa coyuntura.

Este tipo de escritura epistolar suele facilitar la emergencia de anécdotas, tensiones perso-
nales, nombres, sentimientos encontrados que son más difíciles de hallar en Manifiestos u otras
escrituras que al fijar posiciones públicas muchas veces alcanzan una formalización “más cer-
cana” a los discursos epocales. Por supuesto esta última distinción debería considerarse sólo de
modo tendencial; porque requiere de una comprobación empírica en cada caso, que asimismo
contemple las respectivas estrategias argumentativas361. En lo referido al período que nos ocupa,
muchas veces aquello que se dice en privado –en una carta, en conversaciones cotidianas– se
omite o se expresa de otro modo en público. Pero, al mismo tiempo, se trata de un momento en
que las intervenciones políticas, públicas de artistas e intelectuales –de vanguardias culturales,
en sentido amplio–, en su afán de articular arte/vida, cultura/política, también incluyen polémicas
con “nombre y apellido” o que dejan traslucir un proceso vívido. La cuestión sería cómo poder
recuperarlo en nuestro trabajo historiográfico con las fuentes.

361 De hecho, como se dijo, en este caso había una voluntad explícita de Glauber de hacer pública la carta; y
en este sentido puede considerarse como una intervención polémica, un documento más cerca de lo público que
de lo privado. Pero al mismo tiempo, insistamos, se omitieron algunas líneas más que relevantes en este sentido.
Referências bibliográficas

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VVAA. Raymundo Gleyzer. Montevideo: Cinemateca Uruguaya, Serie Cinelibros, 1985.

Publicado originalmente en: Mónica Villarroel (coord.), Memorias y representaciones en el cine


chileno y latinoamericano. Santiago de Chile, Ed.LOM-Cineteca Nacional, 2016; ps. 21-38.
Mariano Mestman - Es doctor por el Programa en historia del cine de la Facultad de
Filosofía y Letras, Universidad Autónoma de Madrid. Realizó investigaciones posdoctorales en
la Universitá degli Studi di Roma 3. Es investigador del IIGG y del CONICET, Profesor de semi-
narios de la Facultad de Ciencias Sociales (UBA). Dirige, codirige o participa como investigador
responsable en proyectos PIP, PICT y UBACyT. Sus estudios de historiografía cultural (artes
visuales y cinematografía) fueron publicados en revistas especializadas y libros colectivos del
país y el exterior.
Parte 4

Imagem e Conceitos, Arte e Cinema


27. Em busca do pai perdido

Annateresa Fabris

“A menina Matsu lhe dizia que o quimono da senhora Fuyu era tumular.
Devia ser pensado como santuário inteiro de uma pessoa querida. Era um
túmulo de vento, talvez perfeito. Ainda que se assemelhasse a brincar com
os pássaros, era sagrado para o imaterial da senhora Fuyu. O espírito, apa-
rentado e certamente em visita, ali soprava também.”
Walter Hugo Mãe, Homens imprudentemente poéticos

Em maio de 2013, jornais de Buenos Aires publicam um anúncio bastante singular em vir-
tude da disparidade entre texto e imagem. Os dizeres: “Procuram-se homens entre 68 e 72 anos e
de olhos claros, parecidos com o senhor da foto, para participar de um projeto fotográfico. Inte-
ressados comunicar-se com o número 15 36097839 ou apresentar-se na Praça Colombia (esquina
Suárez e Brandsen/Barracas) de segunda a sexta entre 11 e 14 horas” eram acompanhados do
retrato de uma pessoa, que aparentava ter uns quarenta anos. O significado do anúncio, que atrai
um bom número de interessados, deve ser buscado na relação de sua autora, Mariela Sancari, com
o suicídio do pai Moisés, ocorrido em 1990. Como a própria fotógrafa lembra:

A disciplina da tanatologia considera que não ver o corpo morto de nossos


seres queridos impede que aceitemos sua morte. Contemplar o corpo inerte
da pessoa falecida nos ajuda a superar uma das etapas mais complexas do
luto: a negação.
Minha irmã gêmea e eu não pudemos ver o corpo de nosso pai. Nunca soube
se [foi] por ter sido um suicídio ou por dogmas da religião judaica ou por
ambos.
Não tê-lo visto fez-nos duvidar de sua morte de muitas maneiras. A sensação
de que tudo foi um pesadelo e a fantasia que ambas temos de que vamos
encontrá-lo caminhando na rua ou sentado num café nos acompanhou todos
esses anos (SANCARI1, s.d.).

Não ter visto o corpo do pai morto dificultou, sem dúvida, o trabalho de luto da fotógrafa e
da irmã, se for lembrado que este se articula em três etapas: 1 – incorporação: o sujeito procura
colocar em seu corpo a figura que perdeu, para tentar transformar-se no morto; 2 – introjeção: o
sujeito tenta reter algo do objeto, marcando-se com pequenos traços e imagens que pertenceram
a ele. O objeto é retirado do mundo e colocado dentro de seu psiquismo; 3 – identificação: o su-
jeito fica com um traço simbólico do objeto no seu eu (um gesto, uma forma de olhar, de sentir,
de sorrir). Visto por esse prisma, o trabalho de luto se realiza no jogo de “querer ser o objeto para
ter algo dele, como uma marca simbólica”. É quando ocorre a identificação que o sujeito pode
desligar-se do objeto perdido. Isso faz do eu uma espécie de cemitério de “marcas das coisas que
perdemos”, de “resíduos simbólicos das perdas que nos marcaram ao longo da existência” (BIR-
MAN, 2009: 117-119).

No caso das irmãs Sancari não ocorreu o fenômeno que Sigmund Freud (2011: 49) denomi-
nou “prova da realidade”, isto é, a tomada de consciência de que “o objeto amado já não existe
mais”, sendo necessário retirar toda a libido de suas ligações com ele. Em algumas ocasiões
ocorre uma oposição muito intensa a esse processo, tendo como resultado “um afastamento da
realidade e uma adesão ao objeto por meio de uma psicose alucinatória do desejo”. Se bem que
não usando o jargão psicanalítico, a fotógrafa relata as etapas desse afastamento da realidade,
marcado pela negação do sentimento de esvaziamento do mundo inerente à morte. Indícios de
uma fuga do “sentimento de vazio” (PERES, 2011: 111) podem ser encontrados nas várias fan-
tasias criadas pelas gêmeas. O pai, que continuava vivo e sujeito ao processo de envelhecimento,
poderia ser visto de repente em algum lugar da cidade, poderia ter constituído uma nova família,
poderia ser um morador de rua... (SEYMOUR, 2015: s.p.).

Essas fantasias convocam, de imediato, três questões. Imaginar que o pai possa ter consti-
tuído outra família ou ser um morador de rua traz um elemento adicional ao processo de negação
da morte. Ao negar a morte do pai, as duas irmãs não realizam a etapa da idealização, própria do
trabalho de luto. Como assevera Freud (1982: 74), “o respeito pelos mortos, [...], parece ser para
nós um valor superior à verdade”; por isso, deixamos de lado toda atitude crítica em relação a eles
e perdoamos eventuais erros, já que “de mortuis nil nisi bene”362. Continuar a imaginar Moisés
vivo implica, por outro lado, considerar que ele realizou um deslocamento geográfico a partir de
1997, ano em que as gêmeas e a mãe se mudam para a Cidade do México.

A terceira questão diz respeito à ressurreição “imaginária” de Moisés por meio de fotogra-
fias de semelhantes. Tal atitude coloca-se na contramão da discussão a respeito da identidade
dos corpos dos que ressurgem. O fato de viver em dois países de forte tradição católica pode
ter confrontado Sancari, apesar de sua ascendência judaica, com a ideia do “corpo glorioso”, ou
seja, do corpo que, ao ressuscitar, regressa ao momento da perfeição, que coincide com a idade
de Cristo ao voltar do reino dos mortos e, logo, com a juventude (AGAMBEN, 2009: 130-132).
Ao buscar nos retratos de desconhecidos o “hipotético presente” de seu pai, Sancari tenta “alcan-
çar um futuro impossível, paliado ou metamorfoseado por um presente artificial, baseado numa
362 A locução latina usada por Freud, menos usual que “de mortuis nihil nisi bonum”, pode ser
traduzida por “dos mortos só se diz o bem”, significando que eles devem ser respeitados, já que não
podem se defender de eventuais críticas e ataques.
reconstrução imaginária e metonímica de uma irrealidade convocada como presunção figurada”.
O projeto íntimo, que norteia Moisés (Moisés, 2014), parte do pressuposto de que é possível “vi-
sualizar o que não se viu”, tendo como resultado imagens fictícias, transformadas num “espelho
imaginário”. Este espelho reproduz “uma imagem inexistente no presente”, cuja natureza não
deixa de ser surpreendente, pois, de acordo com Marta Piñol (2016: s.p.), é muito mais frequente
“revisitar uma infância idealizada do que vagar na recriação fictícia da velhice de um ausente”.

Para realizar o possível retrato de Moisés aos setenta anos, a fotógrafa, que conta com a
colaboração do companheiro, instala um ateliê na praça em que brincava quando criança. Como
mostra o pequeno vídeo Caçada (Hunt, 2013), a busca de modelos não se resume à entrevista dos
que estavam respondendo ao anúncio. A própria fotógrafa sai no encalço de idosos que poderiam
ter a mesma idade do pai e os registra com sua câmera. Nem sempre a relação com os candidatos
à modelo é fácil. Alguns não querem ser fotografados. Outros se mostram desconfiados. Outros
ainda não se interessam pelo projeto, mas se prestam ao jogo fotográfico em busca de uma catar-
se particular, que consiste na narração meticulosa da própria história de vida (RESUCHE, 2014:
s.p.). Durante o processo, Sancari redige um diário de bordo, no qual registra suas impressões
sobre os diferentes modelos. Horacio Lascano é apresentado como aquele que respondia mais
de perto ao tipo de modelo buscado, sendo, ademais, muito colaborativo. Por ser esquizofrênico,
Carlos Cassan não conseguia memorizar a fala escrita pela fotógrafa para constar do vídeo que
estava sendo feito em paralelo às sessões fotográficas, sendo liberado para dizer apenas o que
lembrava ou qualquer coisa. Com Ramón Carlos Marino, a relação é mais conturbada. No pri-
meiro encontro, ele estava muito sujo, o que levou a fotógrafa a não solicitar que vestisse o abrigo
do pai, usado nos retratos de outros modelos. Mesmo estando mais limpo no segundo encontro,
não pôde vestir o traje de Moisés por ser mais gordo que ele. O diário de bordo mostra também
os ensaios feitos com vários modelos para averiguar se deviam ser fotografados com o suéter do
pai ou com as próprias roupas.

Interessada em “buscar alguém na multidão” (RAPALLINI, 2015: s.p.), a fotógrafa recorre


a um processo tipológico. Colocados contra um fundo neutro, os modelos são fotografados qua-
se sempre em três posturas: de frente, de perfil e de costas. Nem todas as imagens tomadas são
aproveitadas na obra final, como mostram a representação de Cassan segurando uma vasilha com
ovos, a interação furtiva de Sancari com Lascano e o retrato frontal deste, que constavam do diá-
rio de bordo. Em algumas tomadas, os modelos são apresentados de maneira menos convencio-
nal. É o caso da imagem de Chulman segurando firmemente a pasta contra o peito. E, sobretudo,
da foto em que Daniel Saccomanno penteia carinhosamente os cabelos da fotógrafa363, denotando
a existência de um laço afetivo, embora momentâneo, entre os dois. É provável que Saccomanno
tenha sido o modelo com quem ela se relacionou de maneira mais profunda, pois não deixa de
363 Esta fotografia foi apresentada em São Paulo na mostra Confluências (Sesc Vila Mariana, 6 de
abril-9 de julho de 2017).
ser significativa sua presença no fundo de duas imagens que o apresentam olhando ensimesmado
para a câmera: de costas para ele e encarando o observador.

O resultado do projeto é apresentado, principalmente, sob a forma de dípticos e trípticos,


dando a ver a existência de um desígnio preciso. O retrato hipotético do pai, que deveria levar
Mariela a assumir a ideia de sua morte, reanimando o mundo vazio por meio de uma máscara
(BENJAMIN, 2011: 144), não poderia resolver-se numa única imagem. Atenta à concepção mo-
derna do díptico e do tríptico, que aponta para a proximidade de imagens que se complementam,
sugerindo tanto sequências quanto relações baseadas no significado, ela constrói ações temporais,
quase cinemáticas, em sua busca de diferentes possibilidades para a representação de momentos
do ser transitórios e fragmentários por sua própria natureza. O tríptico pode ser também constituí-
do por três fotografias do mesmo modelo, cuja apresentação não respeita a contiguidade espacial
de maneira rigorosa, gerando um intervalo perceptivo e psicológico. Nesse caso, o observador
defronta-se com um vazio espacial, repleto, no entanto, de uma forte carga introspectiva. Por
outro lado, o formato escolhido permite-lhe enfatizar o caráter retórico da pose e a encenação ine-
rente a um projeto enraizado numa narrativa fictícia, que problematiza a ideia da fotografia como
“prova” de uma existência. Esse aspecto, porém, entra em colapso quando a fotógrafa opta por
isolar uma imagem do contexto. Nesse caso, a fotografia perde seu significado mais complexo e
se converte no simples “registro” de uma ação, já que o partido visual adotado é o documental.

É significativo que a fotógrafa defina o projeto como “uma espécie de performance”, além
de afirmar que “o casting acabou sendo toda a série” (RAPALLINI, 2015: s.p.), pois isso permite
uma leitura mais complexa de seu significado. Nesse sentido, não parece ser abusivo analisá-lo
à luz de algumas considerações de Walter Benjamin sobre o drama trágico. Moisés partilha com
esse gênero teatral algumas características fundamentais. É a descrição de um luto, ou antes, “um
espetáculo pelo qual é possível dar satisfação ao luto” por meio de “uma certa ostentação”. Suas
imagens, do mesmo modo que os quadros teatrais, “são dispostas para serem vistas, e ordenadas
na sequência em que querem ser vistas”. Se o agasalho patchwork do pai falecido for considerado
um adereço teatral, será possível traçar outro paralelo entre a série fotográfica e o pensamento
de Benjamin. Este de fato, sublinha a presença determinante de um objeto – uma “coisa aparen-
temente morta” –, que “ganha poder sobre as vidas humanas”. Inserido ativamente no espaço
cênico, ele funciona como “a agulha de um sismógrafo que anuncia as vibrações passionais”
(BENJAMIN, 2011: 121, 136). Definido por Sancari “uma espécie de sapatinho de Cinderela”
(RAPALLINI, 2015: s.p.), o abrigo de Moisés vestido por alguns modelos estabelece um elo sim-
bólico e visual entre eles e o pai perdido, reavivando a ideia de uma busca incessante, na qual o
objeto adquire um papel evocador primordial.

O abrigo e alguns objetos do pai haviam estado no centro de uma série anterior, O cavalo
de duas cabeças (El caballo de dos cabezas, 2012), cujo ponto de partida havia sido igualmente
sua morte:

A ausência tornou-se presença entre nós, fortaleceu um vínculo entre minha


irmã e eu, dando lugar a um complexo universo de significados e papéis, de
lembranças e ideias confusas que acabaram por tecer um universo cifrado
entre a ficção e a realidade.
Esta série de fotografias é parte de um projeto sobre essa relação com minha
irmã. A viagem (tanto real quanto metafórica), a fuga, a roupa e os objetos de
família que trouxemos conosco aparecem, emolduram e vestem um mesmo
ser com dois olhares, que imaginam que se encontram com papai ao dobrar
a esquina (SANCARI2, s.d.).

Composta de duas partes, a série apresenta na primeira os objetos a que faz referência à
fotógrafa, entre os quais o isqueiro e a aliança do pai e um retrato das gêmeas pequenas com ele.
A segunda parte é concebida como uma performance, isto é, como uma encenação na qual se
materializa uma ideia. Espécie de esculturas vivas, as irmãs transformam o próprio corpo num
instrumento a serviço da evocação de Moisés, cuja perda as havia deixado “como suspensas no
tempo” (SANCARI2, s.d.). Em muitas imagens, o casaco de Moisés atua como elemento de res-
significação de um fantasma psicológico, possibilitando um processo de transferência e transfor-
mação, que põe em crise o trauma vivido pelas gêmeas. É significativo que o conjunto se encerre
com uma foto da “família reconstituída” (um homem de costas vestindo o casaco e abraçando as
garotas) e com a imagem de pêssegos maduros, símbolos da imortalidade e de um novo nasci-
mento (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991: 715).

A problemática da encenação caracteriza tanto O cavalo de duas cabeças quanto Moisés, que
podem ser analisados a partir do conceito de “isso foi representado” desenvolvido por François
Soulages. De acordo com o autor, o ato de fotografar implica a instituição de um teatro, dirigido
por uma pessoa que “dá ordens, ordena, introduz ordem naquela realidade que quer captar na fo-
tografia”. O modelo, por seu lado, ao assumir uma pose, participa de uma representação: oferece
à câmara “um personagem, isto é, uma aparência, um jogo e uma imagem que dá de si mesmo aos
outros e, talvez, a si mesmo”. Uma observação de Soulages é particularmente interessante, pois
ajuda a esclarecer a atitude de Sancari. A fotografia é feita por um ser humano, “trabalhado e do-
minado inconscientemente por modelos a serem reproduzidos ou evitados, por pulsões e desejos.
Todo fotógrafo, pois, queira ou não queira, é um diretor, o Deus de um instante. Toda fotografia
é teatralizante” (SOULAGES, 2005: 71, 73, 77, 82).

Moisés cabe perfeitamente nessa teoria fotográfica, se forem lembrados os termos usados por
Sancari para definir a série: performance e casting. Isso demonstra que ela confere a si mesma o
papel de diretora de uma encenação, para a qual sua atuação (performance) é tão determinante
quanto a dos modelos. “Deus de um instante”, a fotógrafa assume uma atitude ambivalente peran-
te o tempo. De um lado, o detém “para tornar o presente para sempre o passado” (SOULAGES,
2005: 209). De outro, acaba por instaurar nele a contradição, já que a realização da série leva-a,
finalmente, a encarar a morte do pai e a tornar real o que, até então, lhe parecera irreal. Nesse sen-
tido, Moisés torna explícita a relação entre imagem técnica e morte, postulada por Roland Bar-
thes. Não deixa de ser significativo que o trâmite dessa proximidade seja localizado pelo escritor
no teatro, pois este mantém uma relação originária com o culto dos mortos. Em várias sociedades,
cabia aos atores desempenhar o papel destes por meio de uma caracterização que os designava
“como um corpo ao mesmo tempo vivo e morto”. Por mais viva que seja a fotografia baseia-se
nessa mesma relação. Barthes concebe-a “como um teatro primitivo, como um Quadro Vivo, a
figura da face imóvel e pintada sob a qual vemos os mortos” (BARTHES, 2012: 36-37). O que
são os retratos de Moisés senão a figuração de rostos sob os quais se insinua a sombra da morte?

A encenação concebida por Sancari tem como princípio diretor a “ostentação repetível”.
Seu palco não é um lugar definido. É, ao contrário, um teatro ambulante, “um espaço interior do
sentimento”, no qual se desenrola uma cerimônia lutuosa (BENJAMIN, 2011: 122). Sem aspirar
a uma totalidade fechada, Moisés desdobra-se em diferentes formatos. Depois de um primeiro
momento de confusão e perplexidade provocado pela sensação de ter fracassado na busca do pai
por meio dos retratos dos substitutos, a fotógrafa percebe a riqueza do material coletado (SEY-
MOUR, 2015: s.p.; RESUCHE, 2014: s.p.), que organiza, a princípio, sob a forma de dípticos e
trípticos. A estes se seguem o livro Moisés (Moisés, 2015), que lhe granjeia uma grande notorie-
dade por sua concepção inusitada, e a instalação Moisés/Paisagem (Moisés/Landscape, 2016).

Constituído de dois cadernos intercalados de 32 páginas cada um, o livro tem como eixo os
temas da identidade e da memória e sua relação espacial e temporal. O cruzamento das páginas
a partir da esquerda e da direita gera trípticos – ora cheios, ora caracterizados pela alternância de
imagens e espaços em branco –, que remetem inequivocamente à ausência de Moisés e à possi-
bilidade de os retratos dos modelos evocarem sua presença. Sintomaticamente, o livro inicia-se
com o retrato do pai utilizado no anúncio. Este, porém, é apresentado de maneira fragmentária
e destituído dos olhos claros que, como notou oportunamente Marta Piñol (2016: s.p.), são o
único traço fisionômico partilhado por todos os modelos que participaram do projeto. Ao folhear
o livro, o observador não se depara com identidades definidas, mas, antes com uma identidade
híbrida, formada pelos diversos rostos dos idosos que se cruzam e se sobrepõem. Se é possível
reconhecer Lascano, Da Silva, Pedro Hahn, o “vagabundo”, Chulman, Saccomanno, Rodolfo e
Cassan, isso não significa que eles possam ser apreciados em sua singularidade, pois o procedi-
mento tipológico gera um único grande retrato de um Moisés possível.

Quase no final, surge uma apresentação singular, antecedida por um pedaço ampliado do
anúncio: fragmentos do rosto de um homem de cabelos grisalhos, aos quais se segue um tríptico
do mesmo modelo que dá a ver uma ação temporal. Vestindo uma camiseta branca, o homem
aparece de olhos fechados e boca aberta, sorvendo o ar ao redor e girando o pescoço para pôr a
nuca em evidência364. Olga Yatsevich (2015: s.p.) detecta nesse conjunto a solução da busca de
Sancari, já que ele introduz no livro “um senso de leveza e liberdade, de alívio e ponto final”. O
livro termina com as imagens multiplicadas do anúncio e, mais uma vez, com o título, eviden-
ciando uma ideia circular, baseada num processo descontínuo e fragmentário como a memória.
Essa sensação ganha reforço na possibilidade de reconstituir o percurso visual às avessas, tendo
como ponto final o título. O retrato fragmentado de Moisés e a multiplicação do anúncio em que
a imagem aparece integralmente constituem o cerne do livro, pois apontam para uma expectativa
e para a constatação de que a busca possibilitou articular uma narrativa alternativa que, afinal, lhe
permitiu assumir uma situação traumática.

O sucesso da publicação, que se esgotou em pouco tempo, leva a fotógrafa a propor “um
comentário sarcástico sobre o ‘esgotado’ e o fato de o livro não estar mais disponível”. Num ges-
to de “autopirataria”, elabora uma versão reprográfica do livro, que intitula Moisés is not dead
(2016). Se seu objetivo é insistir “na ideia (ou impossibilidade) de realizar uma fantasia por meio
da fotografia” (SANCARI3, s.d.), há outras questões que podem ser discutidas, tendo em vista a
escolha do novo suporte técnico. Com seu gesto de “autopirataria”, Sancari coloca em pauta a
problemática da reprodução como produção, passível de gerar novos modos de circulação de uma
obra de arte. Pondo em xeque o conceito de direito autoral e fazendo da autoria uma prática não
exclusiva, a fotógrafa, a partir da cópia em xerox, realiza um vídeo, no qual desvela o processo de
produção do livro (2017). Além de convidar o público a elaborar sua própria obra, Moisés is not
dead tem também implicações estéticas. A natureza mecânica do processo reprográfico desperso-
naliza, de certo modo, as imagens, que perdem as cores originais para converter-se num conjunto
predominantemente cinzento, gerando um fluxo visual mais compacto.

Sancari atualiza, assim, duas possibilidades vislumbradas por Marshall MacLuhan em re-
lação ao futuro do livro na sociedade tecnológica. Graças ao uso das “policópias”, a fotógrafa
propõe que cada observador se torne um editor, construindo o próprio álbum de retratos da ma-
neira mais livre possível. A realização de um vídeo divulgado na internet amplia sua operação no
tempo e no espaço, parecendo abolir a diferença entre o microscópico e o macroscópico (MA-
CLUHAN, 1976: 359-360), o subjetivo e o coletivo. Em novembro de 2014, ela havia feito um
vídeo em que mostrava a confecção do boneco de Moisés, mas este não tinha o mesmo objetivo
didático do dedicado a Moisés is not dead. O vídeo dava a ver os bastidores da elaboração da
obra: as decisões tomadas, as exclusões e os reposicionamentos das várias imagens. Em alguns
momentos, comparece uma imagem de O cavalo de duas cabeças – uma pilha de três banquetas
e uma mesinha na qual estavam dispostas uma cuia de chimarrão, uma xícara e duas fotografias
– descartada no produto final, pois quebraria o instigante jogo fisionômico que acabou sendo seu
traço distintivo. Outros elementos não utilizados no livro são um papel com motivos florais, que
364 O tríptico foi apresentado na já citada exposição Confluências.
deveria intercalar alguns retratos, e pequenos textos. O retrato xerográfico de Moisés, dobrado
em quatro partes, deveria ser usado, a princípio, de maneira integral.

A realização do livro acaba tendo repercussões nas modalidades de apresentação da série


fotográfica. Além de dípticos e trípticos, ela passa a contar também com frisos, nos quais as ima-
gens são visualizadas numa linha contínua. Nesta, fragmentos de rostos se insinuam ao lado ou
por trás de retratos integrais, produzindo frestas e um novo tipo de continuidade/descontinuidade,
que não deixa de evocar a ideia de presenças fantasmásticas, como demonstram obras apresen-
tadas em duas mostras coletivas realizadas em 2015 (Museu de Fotografia Busan, Coreia do Sul;
Centro de Artes Alcobendas, Espanha).

A discrição da apresentação fotográfica é contrastada pelo excesso e pelo acúmulo que estão
na base de Moisés/Paisagem. Concebida como um questionamento dos “limites da representa-
ção”, como uma ressignificação dos retratos “para criar uma paisagem poética” (SANCARI4,
s.d.), a instalação é estruturada a partir de cópias xerográficas, apresentadas de maneira inusita-
da e bastante fantasiosa. Apesar da disposição regular das imagens, o conjunto é percorrido por
uma tensão sutil entre geometria e informalidade e por um senso de crise da representação e de
suspensão temporal. Embora sempre iguais, os retratos não parecem fixos em virtude de sua dis-
posição no espaço, que remete a sensações de fragmentação e indeterminação. A multiplicação
infinita de imagens tem ligações com a afirmação de Sancari de que Moisés representa a busca de
alguém na multidão. A instalação pode ser analisada como um jogo contínuo entre uma “fusão
homogeneizadora” e uma “propensão à fuga para a heterogeneidade”, própria das relações entre
indivíduo e massa. A fisionomia que, ao mesmo tempo, se destaca em sua unicidade e se confun-
de com uma multidão de iguais, é passível de sugerir um antagonismo entre inclusão e exclusão
do heterogêneo, entre idêntico e não idêntico, entre massificação e individualização (SCHWARZ,
1986: 85-87). Afinal, Moisés Sancari parece estar em todo lugar. Embora único, diferente, ele é
igual aos tantos indivíduos semelhantes que puderam envelhecer e que exibem uma fisionomia
que ele poderia ter se estivesse vivo.

A reescritura incessante a que a fotógrafa sujeita as imagens da série pode ser colocada sob o
signo da alegoria enquanto arte combinatória, feita de “formas sempre novas e surpreendentes”.
A proximidade do conceito benjaminiano está presente em outros aspectos de Moisés, a começar
pela ideia de que a alegoria é um modo de configuração da “historicidade biográfica do indiví-
duo”, captado em sua transitoriedade, em sua qualidade de criatura temporal, cujo destino é “a
produção do cadáver” (BENJAMIN, 2011: 177, 191, 195, 235). Também de natureza alegórica
é o procedimento adotado por Sancari, a qual constrói a série como um acúmulo de fragmentos
que adquirem um novo sentido ao serem reunidos entre si. A junção dos vários retratos de idosos
numa série alusiva ao pai morto é fruto de uma arbitrariedade profundamente subjetiva. Tomados
individualmente, eles não passariam de retratos alicerçados nas convenções do gênero. Reunidos
em Moisés, eles adquirem o significado que a alegorista Mariela quis lhes atribuir (BENJAMIN,
2011: 196). O fato de se prestarem a várias possibilidades de combinação acresce seu sentido
alegórico. Eles não podem ser vistos como formas acabadas e fechadas, pois se inscrevem na
história e, logo, na transitoriedade e na impermanência.

As várias combinações propostas pela fotógrafa têm seu ponto de partida naqueles que
Craig Owens (1984: 203) define os dois impulsos fundamentais da alegoria: a certeza do distan-
ciamento do passado e o desejo de resgatá-lo para o presente. A alegoria é dotada da capacidade
de salvar do esquecimento o que ameaça desaparecer; funciona no intervalo entre um presente e
um passado que, sem sua reinterpretação, seriam excluídos da história. O significado de Moisés é
arbitrário e contingente porque não reside num espaço-tempo específico. Ele pode ser localizado
tanto nas manifestações particulares (fotografia, livro, instalação) quanto no conjunto, mas isso
não significa que ele seja um todo orgânico, já que sua natureza é essencialmente fragmentária.
E não poderia ser de outra forma, haja vista que a fotógrafa, no final do processo, concebe a série
como uma ficção, capaz de ajudar “a ‘mostrar’ o armazém interminável do inconsciente, permi-
tindo-nos representar nossos desejos e fantasias” (SANCARI1, s.d.).

Por meio de uma imagem mental, Sancari não só toma consciência da morte de Moisés,
como consegue vê-lo numa dimensão mais complexa: ele não era apenas seu pai, mas um ser hu-
mano, possivelmente afetado por uma doença mental, não percebida por ninguém (SEYMOUR,
2015: s.p.). A superação do luto por um processo metafórico, que Marta Piñol (2016: s.p.) define
metonímico em virtude do abrigo vestido por vários modelos, pode ser resumida num relato de
Adolfo Córdova (2014: s.p.):

No funeral de meu pai, Mariela disse-me que eu devia aproximar-me do


ataúde, ver seu corpo. Lembro que me olhava como se estivesse revelando
algo muito importante, que não podia nomear, não podia dizer, mas acossou
meu corpo com os olhos, sacudiu-me docemente com os olhos, pedia-me
com os olhos que confiasse nela, eu devia parar e vê-lo. Eu não queria. Não
pensava que fosse necessário. Queria lembrar meu pai vivo. Mariela insistiu.
Tomou-me pelo braço. Meu irmão aproximou-se. Os dois me levaram. Lá
estava ele. Sério. Bem morto. Morto pela primeira vez. Lembro-me de um
vidro entre seu rosto e o meu, mas me dizem que não havia nenhum vidro.
Ponho um vidro em minha lembrança.
Mariela fotografa-o.

Graças à realização de Moisés, Sancari pode assumir o luto, tomando consciência de ter
sofrido uma perda real, que instaurou um vazio em seu mundo afetivo, mas se mostra finalmente
capaz de superar o primeiro movimento de negação. O pai revive através de um processo criativo,
no qual o caráter documental da fotografia é colocado a serviço da fantasia e da reinterpretação
contínua que lhe permitem projetar uma imagem da terceira idade terna e, ao mesmo tempo, aten-
ta à decadência e à proximidade da morte. Outras considerações podem ser feitas a partir dessa
representação de uma velhice digna, longe dos modelos mistificadores propagados pela comuni-
cação de massa. Se for lembrado que a figura do velho simboliza o tempo que tudo destrói, a lei-
tura alegórica da série ganha uma nova dimensão, já que a alegoria no pensamento benjaminiano
não só significa a morte como se organiza através desta e de seu mecanismo de metamorfose do
vivo em morto (ROUANET, 1984: 38-39).

A conclusão do trabalho de luto pode ser também detectada na afirmação de Sancari de que
a realização dos retratos e os momentos de “entendimento silencioso” com alguns dos modelos a
ajudaram a encarar a possibilidade de ser mãe (SEYMOUR, 2015: s.p.). O desejo de maternidade
parece responder à assertiva de Freud (2011: 77-79) de que “a realidade traz à tona o seu veredic-
to de que o objeto não existe mais e o ego, por assim dizer, indagado se quer compartilhar esse
destino, deixa-se determinar pela soma de satisfações narcísicas dadas pelo fato de estar vivo, e
desfaz sua ligação com o objeto aniquilado”. Afirmar o desejo de ser mãe pode significar a con-
tinuidade não só biológica, mas também simbólica de Moisés. Pode remeter também à tomada
de consciência de que a morte não é necessariamente um fim, mas, antes de tudo, um processo
cíclico, em cujo cerne está engastada a possibilidade de um recomeço contínuo. É possivelmente
este o significado da cópia xerográfica do livro. Moisés is not dead porque seu legado pode pros-
seguir em outras vidas. Moisés is not dead porque faz parte das lembranças de Mariela depois da
despedida simbólica representada pelo projeto.
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Annateresa Fabris - Possui graduação em história (1969), mestrado e douto-


rado em artes (1977 e 1984), sempre pela Universidade de São Paulo (1984), onde
atualmente é professora titular da Escola de Comunicação e Artes, ECA.. Tem expe-
riência na área de artes, com ênfase em artes, teoria e história da arte contemporânea,
atuando principalmente nos seguintes temas: fotografia, surrealismo, pintura, Porti-
nari e modernidade.
28. PARA ALÉM DA SALA ESCURA: ENCONTROS ENTRE CINEMA E ESCOLA A
PARTIR DA CRIAÇÃO DE IMAGENS

Marina Mayumi Bartalini

Wenceslao Machado Oliveira Jr.



A escola, assim como o cinema, é um lugar profícuo de experimentação e criação, portanto,
é lá o lugar que escolhemos para a acolhida de nosso projeto experimental de invenção de filmes.
Uma vez que a escola tem nuances variadas de claridades, buscaremos inventar maneiras de
exibição que levem em conta as especificidades do lugar-escola e assim, talvez, fazer funcionar
um cinema para locais antes inimagináveis, uma vez que todos locais passam a ser passíveis de
receberem imagens projetadas.
Tradicionalmente a escola é o lugar da prevalência de narrativas únicas capturadas pelo
discurso de currículos pré-determinados pelo Estado por meio de livros didáticos, pelas regras já
pré-estabelecidas e feitas sem a participação de todas/os envolvidas/os na comunidade escolar.
Queremos então atuar desde dentro dela, com tudo o que ela já traz, agregando uma trajetória
mais, no caso, o cinema, com todo seu potencial de aglutinação de coletividades heterogêneas.
Se a escola é o lugar por excelência da linguagem escrita, a linguagem audiovisual ao ali adentrar
com uma proposta experimental, poética e inacabada, pode fazer variar as formas de expressão,
maneiras de sentir e dizer para além da palavra e dos discursos já capturados pela instituição
educativa.
Lidaremos com a obrigatoriedade de uma lei que decreta e define certos parâmetros para a entrada
do cinema na escola. A lei define o tempo mínimo de exibição para filmes na escola e também sua
nacionalidade: devem ser exibidos filmes nacionais.
A lei federal 13.006/14365, uma vez regulamentada, obrigará que todas as escolas brasileiras
de Educação Básica tenham minimamente duas horas de exibição de cinema nacional por mês
como componente complementar, integrado à proposta pedagógica da escola. Superficialmente, a
lei se apoia em um discurso que busca na escola uma maneira de difundir produções audiovisuais
nacionais, formando espectadores, para assim, fomentar a indústria cinematográfica do país.
Tomando como ponto de partida o debate já existente em grupos de pesquisa de todo o país que
se debruçam sobre as relações entre cinema e educação e que vêm investigando os possíveis
365 A Lei 13.006/14 foi sancionada em 26 de junho de 2014. Ver em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13006.htm
atravessamentos da lei 13.006/14366 no cotidiano escolar, é que a presente investigação se propõe
a entrar no combate por uma regulamentação que entenda o cinema para além de seu consumo
e contemplação. Aqui, buscamos resistir ao já instituído pela determinação de leis que ditam na
escola o que fazer com o cinema dentro dela.
Para tanto, a resistência se dá quando resolvemos entender a escola como o lugar da
produção de um cinema criado por quem ali habita, a partir da especificidade local, inventando
possibilidades de criação de novos mundos que poderão surgir nas imagens e sons que estamos
criando coletivamente por meio de formação de cinema para professoras/es e estudantes.
A aproximação da escola com o cinema e do cinema com a escola se dá no entendimento
de que ambas são arenas profícuas de experimentação capazes de criarem maneiras de habitar
e inventar mundos. As imagens e sons produzidos podem (ou não) fazer emergir novas formas
de cinema, assim como instaurar percepções da escola para além daquelas já instituídas por um
modelo estatal.
Uma pergunta frequente dos envolvidos nesse recente processo é questionar com que
recursos o cinema entrará na escola. A lei não prevê um investimento público para adequar
as escolas para que os filmes sejam exibidos em sala escura. Tampouco se fala em suprir as
necessidades técnicas como a aquisição de equipamentos de filmagem e projeção.
Sendo assim, o cinema que propomos é produzido com o que estiver disponível. A
perspectiva da falta é uma das portas de entrada do cinema na escola. A ausência de equipamentos
e espaço físico adequado para a exibição de filmes, é tomada não como obstáculo, mas como um
desafiante processo de inventividade. As câmeras que produzem esse cinema comprometido com
o lugar-escola, são acessíveis à uma grande parte da população: as câmeras dos celulares (de
qualquer tipo e tecnologia) podem ser manuseadas por qualquer uma/um que queria aventurar-se
na criação de novos filmes.
Em 2016, foi instituído no município de Campinas-SP, o “Programa Cinema & Educação
– A Experiência do Cinema na escola de Educação Básica Municipal”. O programa conta com a
colaboração do grupo de pesquisa ao qual a pesquisadora está vinculada, Laboratório de Estudos
Audiovisuais – OLHO da Faculdade de Educação da Unicamp, que se dedica, entre outras áreas
de interesse científico e artístico, ao estudo da relação entre imagem e escola. Em colaboração
direta com o Programa acima referido, parte das pesquisadoras e pesquisadores desse grupo, atua
na formação de professoras, professores e estudantes de escolas da rede pública de Campinas.
A formação de professores por meio de oficinas de cinema em escolas da cidade, é o lugar
onde se dão os encontros e onde se propõe uma ideia de cinema como prática artística e social
realizada por meio de experimentações com câmeras através de inúmeros dispositivos de criação.
Se pensarmos que a maioria das escolas da rede pública do país não conta com sala de
vídeo equipada e adequada aos moldes do cinema comercial, a lei traria um problema para a
escola que teria que construir uma sala com iluminação adequada para a exibição de filmes.
366 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13006.htm
Ao propormos a invenção de imagens para locais que não estão construídos para receberem
projeções de cinema – inverte-se o problema, criando assim uma questão para o cinema, o qual
não terá respostas simples, já que os ambientes escolares são atravessados por claridades naturais
que passam por suas grandes janelas, portas e portões e/ou pelo circuito de iluminação interna
que conecta todas as salas de aula mantendo todas acesas simultaneamente de dia e de noite.
A claridade bastante presente nos espaços escolares atua como o “problema” da presente
investigação. Um “problema” é aquilo que nos leva a pensar; nesse caso, pensar o cinema e seu
encontro com a escola; a escola e seu encontro com o cinema.
Através da observação atenciosa de aspectos locais, antes talvez despercebidos pelas/os
que estão imersos no cotidiano escolar, é que buscamos experimentar com as distintas claridades
descobertas que têm potência de fazer emergir trajetórias humanas e não-humanas presentes na
escola. Pensar o não humano na escola é uma maneira de colocar à vista aspectos que também
a constituem para além das relações entre as pessoas que ali habitam. A arquitetura escolar, as
paisagens, as árvores, os brinquedos, as janelas, cortinas, o chão de terra, o chão de concreto,
as grades também nos constituem, já que tudo está naquele lugar que está o tempo todo em
negociação, em movimento contínuo e inacabado.
O conceito de lugar que nos ajuda a pensar nas possibilidades diversas de encontros entre
distintas trajetórias está em sintonia com a perspectiva proposta pela geógrafa Doreen Massey
(2013). A escola enquanto lugar não é um ponto fixo no mapa e muito menos um refúgio, aparta-
do do mundo, onde se dão experimentos artísticos. A escola enquanto lugar aberto e inacabado,
está sempre por fazer-se, por associar trajetórias heterogêneas e constelar processos aqui e agora.
A possibilidade de fazer variar a imagem produzida em contexto escolar, tem sido experi-
mentada em paralelo com o entendimento da escola como um lugar atravessado por “pluralidades
de trajetórias, uma simultaneidade de estórias-até-agora” (MASSEY, 2013: 33) e onde acontecem
potencialmente encontros em diversos níveis, aspectos e tempos. A autora explica que “trajetó-
ria” e “estória” são termos temporais e dentro de sua proposta, utilizaremos seus conceitos para
dar conta de expressar uma heterogeneidade de vetores que afetam a escola quando lá estamos e
como estar ali também nos afeta e reverberam em nossas pesquisas.
Lidamos com a impossibilidade de fixar o lugar-escola em definições que gerem algum
tipo de representação acerca das mesmas. Diferentemente da maioria dos métodos científicos de
pesquisa que fixam o lugar onde se dão as questões a serem investigadas, para assim observa-lo
desde fora e dizer sobre ele, o que buscamos é perseguir algumas pistas, linhas que nos interes-
sam no encontro entre cinema e escola a partir de nossas práticas em oficinas engajadas na expe-
rimentação como maneira de não fechar-se em um processo que busque chegar a um resultado
final. Experimentar para nós, é sempre um verbo em uso no presente que acontece aqui e agora.

Aqui o que poderíamos chamar de representação não é mais um processo de


fixação, mas de um elemento em uma produção contínua, parte de toda ela,
e ela própria, constantemente, em devir. Esta é uma posição que rejeita uma
estrita separação entre mundo e texto e que compreende a atividade científi-
ca como sendo apenas isto – uma atividade, uma prática, um engajamento,
inserido no mundo do qual é uma parte. Não uma representação, mas expe-
rimentação. (MASSEY, 2013: 54)

A entrada das/os pesquisadoras/es na escola são apenas mais uma das trajetórias que atra-
vessam a escola, ao mesmo tempo em que as trajetórias escolares as/os atravessam e é aí que se
dá a investigação acerca e adentro daquele universo ao qual se habita. Escapamos de definir a es-
cola a partir de uma ideia de lugar fixo para pensarmos que tudo ali é movente e por isso mesmo,
tudo o que podemos falar sobre ela parte de impressões, sensações e ideias do que ali acontece
quando ali estamos num determinado período de tempo, já que a cada momento ela é outra e outra
e outra.
As trajetórias que ali se entrecruzam simultaneamente sempre a indicar um futuro aberto
não se dão pela via de planejamentos fechados e sistemáticos. Somente pode configurar-se como
uma constelação de trajetórias temporárias que duram enquanto determinado encontro faz sen-
tido. O encontro entre pessoas, câmeras e locais escolares, assim como as possíveis produções
audiovisuais que possam vir a surgir, permitem a abertura para conexões que acontecem “nesse
lugar inter-relacional, onde sempre há conexões ainda por fazer, justaposições a desabrochar em
interação [...], relações que podem ou não serem realizadas”(MASSEY, 2013: 32).
Nossa participação no encontro do cinema com a escola é processual e, portanto, visa ape-
nas promover aberturas para conexões que se dão (ou não) na escola enquanto lugar de negocia-
ção que conforma uma coleção de trajetórias que a configuram como lugar vivo, aberto, repleto
de diferenças e heterogeneidades.
Oliveira Jr. (2016) nos anima a pensar na potencialidade da criação artística de imagens que
trazem ao mundo sensações disparadas pelo cotidiano e experimentadas “naquele lugar e não em
outro” (OLIVEIRA JR., 2016: 73), intensificando assim nossa experiência com/nos lugares onde
nos propomos a experimentar com o cinema. Nesse sentido, Oliveira Jr. (2016) afirma que:

nesses encontros no espaço, o cinema vem inventando filmes que arrastam


para si as pessoas e paisagens encontradas, impondo a elas devires cine-
matográficos, devir-personagem, devir-cenário. Devires esses com potência,
mesmo que imperceptível, de provocar variações nas formações subjetivas e
paisagísticas que dali se desdobrarem (OLIVEIRA JR, 2016: 68)

Ao estabelecer um encontro entre duas multiplicidades, no caso, o cinema e o lugar-escola,


se aposta na instabilidade de concepções pré-concebidas de personagem, cenário, roteiro, entre
outras, já instituídas por um “cinema maior” e assim, é possível diluir a fixidez de categorias
cinematográficas convencionais. Entende-se aqui, que os referenciais já instituídos do cinema
tradicional podem ser negociados por aqueles que não fazem parte desse universo, e por isso
mesmo, têm mais potência para contagia-lo, propondo um cinema que provoque o real para além
das categorias de representação.
A possibilidade de invenção de outras visualidades que possam mostrar e inventar outras
vivências escolares possíveis, no sentido de criar mais versões para contar sobre ela como lugar
de relações e interações, dá-se por meio de uma maior e mais ampla aproximação com o campo
da Arte. Os encontros intermediados por um fazer que se baseia em experimentações artísticas
audiovisuais, buscam afrouxar as fronteiras do campo da educação e do cinema a fim de promover
diálogos e produções de sentidos inusitados ainda a aflorar como potência para a ampliação das
margens em que temos pensado o encontro entre cinema e escola.
O cotidiano escolar é entendido, portanto, como o momento presente evidenciado pelos
processos criativos imbricados no encontro entre pessoas e coisas de trajetórias distintas que vêm
à tona quando encaramos a escola como lugar de experimentação. “Aqui” é onde as narrativas
espaciais se encontram ou formam configurações, conjunturas de trajetórias que têm suas
próprias temporalidades. (...) O “aqui” é nada mais (e nada menos) do que o nosso encontro e o
que é feito dele”. (MASSEY, 2013: 201). Justamente por efetivar o encontro entre as imagens
sons considerando as afetações também do lugar onde se entra em contato com as produções,
corroborando com aquilo que Massey (2013) aponta em seu conceito de lugar: que as interações
(im)previstas entre as trajetórias heterogêneas que compõem um lugar promovem devires outros.
Aposta-se então, na arte como meio de conexão do que ainda não está relacionado nos
lugares onde atuamos que ao invés de serem localizações de coerência, tornam-se focos do
encontro e do não-encontro do previamente não-relacionado e assim essenciais para a geração do
novo (MASSEY, 2013: 111).
No alargamento dos sentidos de cinema e espectador, busca-se produzir juntamente às/
aos professoras/es, assim como com as/os estudantes das escolas, imagens e sons que sofram e
afetem o mundo para além dos “sujeitos” que participam dos processos de criações audiovisuais.
A afetação e os aprendizados dos “sujeitos” se dão aqui, através das forças que emergem das
imagens e sons capturados nas experimentações realizadas na escola. Forças essas advindas da
multiplicidade e negociação entre trajetórias copresentes no lugar-escola, sejam elas humanas ou
não humanas.

As claridades escolares como mobilizadoras da criação de imagens


O cinema entra na escola como mais uma trajetória dentre as múltiplas já existentes. Sem
perder de vista que talvez ele já esteja presente como possibilidade de, entre outras coisas,
funcionar como ferramenta pedagógica de auxílio às disciplinas escolares, queremos criar outras
aproximações que retirem a imagem da função totalizante de ilustrar e representar teorias e
informações, para explora-la também a partir de outras potencialidades, notadamente aquelas
que a arte tem explorado com maior constância.
As claridades são mote criativo que desafiam a escuridão proposta pela arquitetura da
sala de projeção tradicional dos cinemas totalmente adaptada para gerar um tipo específico de
recepção de filmes pelos consumidores/espectadores que compram ingressos para terem direito à
uma poltrona, sentarem-se e contemplarem seus filmes.
As produções cinematográficas de escala industrial, dedicadas ao consumo, criam filmes
que atuam sobre o espectador utilizando-se de alta tecnologia audiovisual de produção e pós-
produção, para os conduzirem a sentir emoções pré-estabelecidas. Se há alguma variação,
certamente são restritas e pobres em possibilidades de escape do já convencionado.
Menotti (2012) preocupa-se em problematizar o tradicional consumo do cinema quando
pasteurizado pela arquitetura das salas de exibição e nos atenta para estreita relação entre consumo
e a padronização das salas de exibição e sua influência dessa relação na produção de filmes.

O cinema enquanto tal não surge com a criação do filme, mas com o seu
consumo: a sua exploração comercial. É em torno da exibição pública pagante
que o meio floresce, produtores se separam de exibidores, uma indústria se
consolida, e autores se tornam livres para criar. (MENOTTI, 2012: 16)

Para o autor, o que acaba por reunir todas as técnicas de cinema num processo comum e
padronizado, seria uma forma de consumo apropriada para dar vazão à produção cinematográfica.
A separação de funções para a circulação de filmes que divide quem cria, quem produz, quem
distribui e quem os exibe deu-se a partir do momento em que instituiu-se um processo comum e
padronizado para a produção de filmes. Toda a cadeia de produção do cinema, está há mais de 100
anos, vinculada ao consumo de filmes e ao lucro das grandes produtoras de cinema.
A diluição do contato entre as pessoas para tornar a sala de cinema um lugar asséptico e
de isolamento total entre os corpos restringe toda a experiência cinematográfica ao contato direto
com a narrativa dos filmes que requerem silêncio da plateia para possibilitar a compreensão de
estórias lineares. que cada vez se tornava mais complexa. Segundo Michaud (2014), :

a sala, construída segundo um único ponto de vista convergente, é ocupada


por fileiras de assentos em patamares, nos quais os espectadores se mantêm
imóveis; por último, tal como uma encenação teatral, a sessão de cinema tem
começo e fim, e foi assim que, ao longo do século XX, o longa-metragem de
ficção, isto é, o cinema narrativo, permaneceu como a forma cinematográfica
dominante. (MICHAUD, 2014: 23)

Os locais de exibição ocupam um lugar central nessa escala de consumo, já que é o local
onde o espectador paga as entradas para ter acesso à sala escura e encontrar-se com os filmes,
“isso significa que a experiência do espectador acaba sempre enquadrada em uma dinâmica sócio-
cognitiva determinada comercialmente” (MENOTTI, 2012: 16).
A resistência à mudanças imposta por uma cadeia mercadológica de cinema hoje se
depara com a impossibilidade de controlar o compartilhamento pirata via internet. Se antes
o cinematógrafo tinha que ser transportado com dificuldade por seu peso e tamanho, hoje a
fisicalidade dos projetores e dos filmes são de outra ordem: os grandes e pesados projetores
das salas de cinema foram substituídos por projetores de teto; os pesados rolos de películas
inflamáveis, hoje são códigos binários de bytes que não tem peso. Podem ser carregados num
pendrive. Segundo Menotti (2012b) a transformação técnica dos aparatos cinematográficos e do
próprio filme digital, faz com que os meios de circulação de filmes se tornem autônomos e o que
define a espectação não é mais a sala de exibição escura e sim as condições do meio de circulação
dos filmes.
Miranda (2016) chama de cinema de bolso os filmes carregados em pendrive que podem
tanto funcionar em salas de cinema, de vídeo, em casa, na escola. Nessa perspectiva, em que a
circulação de filmes é facilitada pelas novas mídias assim como a gravação de vídeos por meio da
portabilidade de celulares que também cabem nos bolsos, é que apostamos num cinema menor,
que possa ser produzido e pós-produzido por aparelhos celulares que possuem aplicativos de
edição rápida. É pelos mesmos aparelhos que os filmes podem ser compartilhados e vistos por
um grande número de pessoas via internet.
Como se dá a fruição de filmes feitos nas escolas e projetados nela mesma? Que locais da
escola podem entrar em variação para que se possa explorar sua qualidade enquanto devir-tela de
cinema? O cinema aqui proposto busca inverter a lógica do cinema comercial. Os espectadores
podem ser ao mesmo tempo realizadores e exibidores de seus próprios filmes que são feitos no
âmbito de uma coletividade que não está vinculada à uma cadeia de consumo de cinema.
Migliorin (2015) nos conta sobre o momento em que o cinema sai do escuro para entrar na
escola arrastando para dentro dela maneiras de ver, fazer e conversar sobre as próprias produções
que ali surgem. Filmes estes que arrastam para dentro de si a realidade da escola e ao regurgita-la,
devolve novamente para ela outras imagens dela mesma que só passam a existir quando passam
pelas câmeras e são projetadas pelos que habitam aquele lugar. Para tanto, afirma: “o cinema
chega na escola, o que ele traz – com sua história, com os filmes, com o seu fazer – é antes um
modo de tornar o mundo pensável, que perturba o pensável do que não é cinema: nós mesmos, a
escola.” (MIGLIORIN, 2015:185)
A proposição de um outro cinema que desloque as funções específicas padronizadas
pela indústria cinematográfica toma os processos de criação, produção e exibição como partes
constituintes de um mesmo processo inventivo e experimental. Assim, há uma maior aproximação
dessas produções com o espectador, que entra em contato com cada parte do processo por meio do
contato direto com aquelas/es que as produziram. Esse contato se dá por meio de sua participação
em cineclubes criados dentro das próprias escolas e mantidos por uma comunidade de cinema.
O cinema, ao se adaptar às exigências físicas e técnicas da escola buscando práticas outras
de exibição, pode se desvincular das lógicas de consumo da grande indústria e portanto, “o
primeiro aporte igualitário que o cinema tem a nos dar está na forma como ele é essencialmente
um lugar habitável por um qualquer, tanto como espectador, como realizador.”(MIGLIORIN,
2015: 185)
Portanto, partimos do pressuposto de que não há um único local apropriado para a exibição
das produções, pois os locais entram em variação quando recebem filmes que necessariamente
se recombinam com a luminosidade ali presente. Assim, as produções de filmes criados a partir
da possibilidade de projeção em numa variedade de locais da escola, invertem a lógica apontada
por Menotti ao afirmar que na grande indústria cinematográfica, o filme nasce para a exibição em
sala escura.
A sala escura tem sido a agenciadora de um tipo de cinema (Menotti, 2012), o qual vem sendo
tensionado pela expansão do cinema pelas galerias de arte e museus, entre outros locais onde
o cinema tem aportado, ganhando ali outras nuances, outras potências, outras imagens e sons.
Gonçalves (2014) nos indica um breve panorama dessa aproximação entre o campo das artes
visuais e o cinema em que distintas linguagens artísticas se encontram para darem forma à
produções experimentais por meio de processos inventivos e experimentais:

Longe do domínio exclusivo deste ou daquele campo, portanto, desta ou


daquela linguagem, essas obras não cessam de produzir linhas de fuga, de
propor variações, fissuras, de pensar novos arranjos na paisagem (audiovisual
e teórica) contemporânea. É a partir desse lugar inquietante, de fato, que elas
criam um campo de experimentações difusas, uma região aberta de possíveis
que relança a hierarquia entre as artes, que embaralha suas lógicas e lugares,
reconfigurando os mais diversos aspectos da experiência (áudio)visual.
(GONÇALVES, 2014:10)

O encontro entre pessoas, câmera e lugar e as possíveis produções de imagens que possam
vir a surgir, permitem a abertura para novas conexões pautadas, reinvenção de imagens já exis-
tentes do cotidiano escolar que poderão entrar em variação a partir de proposições experimentais
que levem em conta o espaço físico escolar.
Sendo assim, uma das perguntas que nos orienta é “o que pode a escola e o cinema quando a
sala não é escura?” O desafio aqui proposto é gerar condições em que se possa criar e experimentar
a produção e exibição de imagens cinematográficas para serem exibidas para além da sala escura,
de modo a instaurar, talvez, condições mais ampliadas para o encontro entre cinema e escola ao
tencionar a necessidade de um ambiente escuro para que o cinema se realize como espectação.
Aqui, seguimos Migliorin (2015) que assim como nós, aposta na escola como o local onde o
cinema pode ser expandido e reinventar-se:

Quando o cinema sai da sala, do escuro, do ingresso pago, ele se multiplica em


formas e dispositivos que as artes visuais estão constantemente renovando:
múltiplas telas, projetores móveis, intervenções dos espectadores nas
imagens e nos sons, reorganizações do espaço e do tempo dos espectadores.
Na escola, temos mais um exemplo desse cinema expandido, mas, que se
expande naquilo que o cinema inventou de mais forte em sua história: formas
de ver e inventar o mundo. (MIGLIORIN, 2015:185)

O cinema, pensado aqui como via de passagem para multiplicidades de sensações que
possivelmente possam constituir filmes, pode adentrar à escola ampliando as potencialidades
de outros cinemas que poderiam nela aportar. Se como nos aponta Menotti, a sala de exibição
acaba por determinar a produção e formas de espectação dos filmes que engessam a experiência
cinematográfica, queremos “pensar os filmes para além do filme; uma sala de cinema para fora
de suas paredes” (MENOTTI, 2012: 70). A escola parece ser um interessante lugar para que o
cinema pule o muro da sala de exibição e adentre outros territórios que possam faze-lo mutante
e adaptável à múltiplos locais para além dos já convencionais dentro mesmo da própria escola.
Algumas escolas possuem a sala de vídeo, com projetor e cadeiras escolares voltadas para a tela
branca, reproduzindo assim, a lógica de exibição convencional.
Ainda que existam similaridades entre a arquitetura da escola e do cinema quanto à apa-
rente ideia de domesticação dos corpos explicitada pelos locais adequados para que os mesmos
se acomodem em cadeiras e mantenham-se parados e em silêncio, apostamos na possibilidade
de fazer funcionar um cinema na escola que faça os corpos, as imagens e os sons, escaparem da
caixa preta teatral do cinema, assim como da sala de aula, para “passearem” e misturarem-se à
arquitetura escolar que se coloca à disposição para receber possíveis projeções inusitadas.
Trata-se de pensar numa lógica inversa à hegemônica ideia de produção cinematográfica
atrelada ao consumo, em que foca-se na multiplicidade de fruições possíveis para os filmes cria-
dos coletivamente para locais que não necessariamente possuem isolamento acústico e de luzes
que possam influenciar a projeção dos filmes. Os filmes criados na escola terão que lidar com as
especificidades físicas da mesma e são os aspectos inerentes à tudo o que existe na escola, huma-
nos ou não humanos que influenciarão sua produção.

Câmeras que registram/câmeras que criam

Na escola já existem diversas trajetórias de câmeras de vários tipos. Os celulares e câmeras


digitais estão bastante presentes nos contextos escolares. Imagens são registradas e comparti-
lhadas todo o tempo por meio das câmeras acopladas aos aparelhos telefônicos, assim como as
vozes gravadas inúmeras vezes ao dia em forma de mensagens enviadas por meio de aplicativos
de comunicação. O uso cotidiano do celular é bastante comum tanto por estudantes, como por
professoras e professores.
Ao propormos outros usos das câmeras na escola, para além dos convencionais, as des-
viamos de sua função de registro de eventos escolares e passamos a conhecer outras maneiras de
filmar para que assim se tornem ferramentas artísticas capazes de revelarem outras escolas que
poderão ser descobertas pelo olho da câmera que pelo seus enquadramentos, aproximação e dis-
tanciamentos com o zoom e seu poder de gravar para que possamos ver quantas vezes queiramos
as imagens que produzimos.
É pelo uso das mesmas câmeras que tiram selfies, que registram momentos para serem
compartilhados nas redes sociais que inserimos outras trajetórias para outros usos das câmeras
de celulares que podem configurar um novo cinema que ainda não sabemos bem qual é. Estamos
todas/os descobrindo juntas/os através de nossas próprias produções.

As imagens da arte não fornecem armas de combate. Contribuem para


desenhar configurações novas do visível, do dizível e do pensável e, por isso
mesmo, uma paisagem nova do possível. Mas o fazem na condição de não
antecipar seu sentido, seu efeito. (RANCIÉRE, 2012:100)

O encontro da câmera com o mundo por meio de propostas experimentais para a criação
de novas imagens e sons podem produzir estranhamentos, incômodos, surpresas e assim dar
passagem para que coisas dele mesmo possam vir a surgir. As escolas públicas da cidade de
Campinas, talvez possam ser lugares que extrapolem as visões pré-concebidas que temos acerca
dela e que vêm repentinamente à nossa cabeça quando pensamos nelas: seus muros altos,
alambrados, portões, concreto branco acinzentado das paredes, uniformes escolares...
Pode-se dizer que o que se “aprende” ou melhor, o que se “apreende” são coisas que já
estão no mundo e que são filmadas por meio de uma maneira de ver que não busca pontos de
chegada que visem produções anteriormente idealizadas por meio de roteiros escritos. Queremos
ver o novo que ainda não conhecemos e que talvez, o olho da câmera possa nos mostrar.

Quando o que se interpõe entre esse mundo e nós é uma câmera, o mundo,
habitualmente, nos surpreende. Produz-se um estranhamento, uma vivência
quase virginal do olhar. Até o velho mundo parece novo, bem mais novo.
Essa experiência nos traz um saber, mas não um saber a ser ensinado, e sim
a ser construído no gesto de enquadrar e registrar esse olhar. (FRESQUET,
2013: 103)

O pulsar do botão que passa a gravar luzes refletidas em coisas do mundo que sempre es-
tiveram lá mas que talvez, antes fossem invisíveis ao olhar mais habitual, leva-nos a conhecer/
reconhecer os locais cotidianos que nunca estão fixos, já que todo o tempo é atravessado por tra-
jetórias que ao se tornarem copresentes em determinado contexto, nos fazem entender que somos
apenas parte ou apenas uma das trajetórias que compõem os lugares onde atuamos.
O que nos é comum e faz com que nos conectemos enquanto uma comunidade de cinema
é o contato com as câmeras para filmar coisas que ainda não sabemos quais são e depois exibi-las
no cineclube em que há a partilha daquilo que se produziu coletivamente e onde podemos contar
sobre nossos processos e compartilhar olhares sobre nossos filmes.
As câmeras com as quais lidamos são aquelas que hoje são mais acessíveis: aquelas que estão
acopladas à aparelhos celulares utilizadas como meio de registro de tudo o que vemos, vivemos
e queremos compartilhar. Isso é um ponto que nos aproxima do cinema e ao mesmo tempo nos
distancia, já que o manejo com as mesmas é corriqueiro e o ato de filmar, é um ato banalizado e
automatizado.
O encontro da câmera com o mundo se dá pelo uso de dispositivos de criação que são
propostas experimentais de criação que podem produzir estranhamentos, incômodos, surpresas,
ambiguidades que além de fazerem emergir imagens e sons não roteirizáveis, dão passagem
para que coisas do mundo escolar possam vir a surgir. A utilização de dispositivos de criação
audiovisual é tanto mais eficiente quanto ela abre possibilidades de encontros entre corpos e
objetos, criando efeitos que não podem ser sequer imaginados antes do dispositivo entrar em
ação. (MIGLIORIN, 2005: s/página)
O dispositivo é uma crise, um procedimento, uma regra a seguir. Ao fixar uma linha dura
para um processo de criação abrem-se caminhos que podem fazer surgir inúmeras linhas flexíveis
e de fuga. O dispositivo seria então “a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido.
Ele pressupõe duas linhas complementares: uma de extremo controle, regras, limites, recortes: e
outra de absoluta abertura”. (MIGLIORIN, 2015:79).
O trabalho com os dispositivos367 na escola acaba por criar desvios na imagem e sons que
367 Esse trabalho já vem sendo desenvolvido pelo Projeto “Inventar com a diferença” desde 2014
e tem sido acrescido por outros projetos e experimentações realizadas pelo Brasil afora, como ocorre
podem vir a trazer maneiras de ver a escola e o cinema a partir de pontos de vistas inusitados,
já que esse processo inventivo permite que criemos deixando que nos atravessemos por aquilo
que nos cerca, ao mesmo tempo que nos impede de reproduzir clichês que nos dão o hábito da
televisão e do cinema comerciais. O dispositivo, nesse sentido, atua tanto como indicador de
alguns gestos a serem realizados – linhas duras – quanto promovem rupturas e desvios dos gestos
habituais de uso das câmeras justamente ao estabelecer regras fixas para a captura das imagens,
mas deixando todas as demais decisões para o filmador – linhas flexíveis ou de fuga.
O dispositivo, nesse sentido, atua tanto como indicador de alguns gestos a serem realizados
– linhas duras – ao mesmo tempo que promovem rupturas e desvios dos gestos habituais de uso
das câmeras, justamente ao estabelecer regras fixas para a captura das imagens, mas deixando
todas as demais decisões para o filmador – linhas flexíveis ou de fuga.
Justamente ao criar um jogo entre restrição e liberdade, o trabalho com os dispositivos na
escola acaba por criar desvios nas imagem e sons que deles emergem. Elas podem vir a trazer
maneiras de ver e ouvir a escola a partir de pontos de vistas inusitados, uma vez que este processo
inventivo insiste que criemos deixando-nos atravessar por aquilo que nos cerca, ao mesmo tempo
que nos impede de criar a partir somente dos clichês de criação de imagens e sons que nos dão o
hábito da televisão e do cinema comerciais.

O que pode a escola e o cinema quando a sala não é escura?

As oficinas de formação de cinema foram ministradas em duas escolas368 da rede municipal


de educação de Campinas - SP. Por meio da presença da pesquisadora em seu campo de
ação, foram cartografadas as produções audiovisuais geradas durante o encontro entre câmera,
arquitetura da escola, professoras, professores, direção, estudantes e claridades locais. Nossa
chegada promoveu encontros, negociações e outras possibilidades de cinema criadas a partir da
proposição de dispositivos de criação.
A oficina Para além da sala escura acontece desde agosto de 2017. As oficinas buscam
atentar para as claridades da escola que não só abrem brechas para que a observemos pelo viés da
arte (que nos faz ver o inusitado, o incomum) como também provocar uma fissura nas maneiras
convencionais de produzir/exibir filmes na escola.
As oficinas consistem em provocar cada participante a inventar imagens que são posterior-
mente exibidas em locais claros da escola por meio de projetores que ao circularem pelas áreas

nas variadas oficinas criadas e executados no âmbito do Programa “Cinema & Educação-A Experiên-
cia do Cinema na escola de Educação Básica Municipal”. Cezar Migliorin (2015) nos conta sobre as
experiências do Projeto já que é um de seus organizadores. Site do projeto: https://www.inventarco-
madiferenca.org/
368 Escola Municipal de Ensino Fundamental Sylvia Simões Magro e Centro de Educação Infantil
Agostinho Pattaro, ambas localizadas na cidade de Campinas - SP.
externas projetam vídeos produzidos nas oficinas. A projeções experimentais são como inter-
venções no espaço escolar que vão se transformando quando se hibridizam com as camadas de
imagens projetadas sobre as superfícies de locais físicos da escola.
Todos os locais podem (ou não) entrar em devir-tela. Busca-se assim, estabelecer novas
relações com o cinema a partir de processos inventivos construídos coletivamente e também ex-
plorar possíveis locais que possam instaurar novas práticas de exibição para as produções audio-
visuais que se criam durante as oficinas.
As escolas escolhidas como campo dessa pesquisa não contam com espaços adequados
para a projeção de filmes assim como são as salas de cinema convencionais: sala escura, cadeiras
confortáveis, isolamento acústico, tela grande de exibição e projetores de alta definição.
A necessidade de pensar o encontro entre cinema e escola em salas claras, traz uma
diferenciação com o cinema tradicional industrial de sala escura, e, ao mesmo tempo, cria um
contexto de experimentação que toma a escola em suas possibilidades e não como um lugar
onde algo falta. Na escola não há situação ideal para o cinema e é com isso que trabalhamos.
É dessa situação aparentemente inadequada que extraímos potência e de onde surgem novos
questionamentos que nos dão pistas para a criação de novos dispositivos de criação de imagens.
A ideia de assumir a escola como um local claro advém da proposta de pensar num cinema
possível na escola, e não somente uma escola possível para o cinema. Dessa forma, trazemos um
tensionamento para a implementação da lei 13.006/14, apontando para o fato de que também o
cinema deva se “adequar” à escola, desviando assim uma via de mão única, tentando, na medida
do possível, igualar forças e explorar potencialidades desse encontro.
O planejamento da oficina Para além da sala escura, foi organizado a partir da abordagem
com dispositivos de criação de imagens e sons que mobilizassem o pensamento em torno do
problema de pesquisa da presente tese. Todos os dispositivos foram desenvolvidos para estimularem
a criação para os locais claros da escola para que se pudesse realizar intervenções com projeções
em locais internos e externos para além da sala de projeção e configurar ambientes/instalações
com projeções com ênfase na ideia de videoinstalação.
O que pode a escola e o cinema quando a sala não é escura? é a pergunta que motiva
a oficina e as possíveis respostas vieram conforme íamos observando as nuances de claridade
e escuridão de locais da escola que são cotidianamente habitados pelas/os que ali trabalham/
estudam. A existência de claridade na maioria dos locais da escola desafia a exibição de produções
audiovisuais, pois, quando instituída dentro da lógica do cinema tradicional, depende do contraste
com a escuridão. O ato de criação de imagens cinematográficas a serem exibidas em locais para
além da sala escura instauraram condições ampliadas que tencionaram a necessidade de um
ambiente escuro para que o cinema se realizasse como espectação.
Todas as produções nacionais selecionadas para inspirarem e provocarem a criação de
novos filmes tinham como eixo comum a relação entre luzes e sombras em diversos aspectos
estéticos e técnicos da linguagem cinematográfica.
Os filmes além de serem produzidos a partir da observação das luzes e sombras presentes no
local onde se desejasse filmar, também tinham que ser produzidos com a intenção de posteriormente,
serem exibidos em locais da escola que são naturalmente claros, já que as escolas não contam com
sala de cinema totalmente escuras e é essa falta que nos motivou a experimentar com projeções
em diversas partes, internas e externas, para vermos que imagens poderiam ser recombinadas com
a superfície de determinados locais e formar outras mais a partir da sobreposição de camadas.
Essa maneira de pensar o cinema, propunha desvios na típica maneira de exibição de cinema que
conta com a permanência de um lugar fixo e escuro para exibição de filmes, no caso da escola, a
tela branca para projeções pendurada numa das paredes da sala de vídeo.
Os vídeos-provocação369 eram exibidos no início de cada encontro sem nenhuma informação
prévia, para que assim fossem contemplados em sua totalidade, sem interferência de discursos de
qualquer natureza acerca do que se via e se escutava. Cabia a cada integrante, após a exibição,
fazer (ou não) comentários sobre o que acabavam de ver. Muitas vezes esses atravessamentos
só se faziam presentes nas novas imagens produzidas por elas/es, dispensando a necessidade de
colocar em palavras o que foi visto e sentido pelo corpo como um todo.
A oficina teve uma preocupação central quanto ao uso criativo da claridade enquanto
desafio que se coloca quando não temos uma sala de exibição convencional, assumindo desde
o princípio que não ter uma sala de cinema não é uma falta real, já que teríamos que criar um
cinema nosso, para além do já existente e conhecido.
A seleção de vídeos (em sua maioria produzidos por artistas visuais) e filmes nacionais
se pautavam na adaptação ao problema proposto pelo dispositivo de criação que em sua maioria
tinha o claro objetivo de “forçar” as produções a funcionarem para serem exibidas em locais claros
da escola, embora alguns trechos de filmes fossem selecionados para apresentarem dispositivos
mais voltados à linguagem cinematográfica, e outros, aos elementos plásticos da imagens.
A exibição de vídeos e fragmentos de filmes facilita a diluição da narratividade linear dos
filmes em que as imagens e sons se apresentam em função de uma estória narrativa de começo,
meio e fim, como estamos habituados a ver nos filmes comerciais. Ao propormos a criação
audiovisual pautada em seus elementos mais formais e plásticos, surgiam outras visualidades
mais abertas quanto à possibilidade de interpretação. Ao escaparmos de ilustrar com imagens
e sons um determinado enredo, roteiro, texto ou ideia foi possível que nos ativéssemos mais
especificamente aos elementos técnicos e estéticos daquilo que filmamos e assim deixarmos para
as/os espectadoras/es as sensações, interpretações possíveis para nossas produções.
O trabalho com fragmentos de filmes nacionais é uma escolha pedagógica do programa.
A preocupação com o tempo de cada oficina é um fator importante nesta escolha por conta do

369 Refiro-me aos vídeos que vemos no início de cada oficina e que são os disparadores audiovi-
suais para as produções do dia. Optei por chamá-los assim para diferenciá-los dos vídeos que produ-
zidos pelas/os participantes.
curto tempo de duração de cada encontro (em torno de uma hora a duas horas). Trabalhar com
fragmentos também faz com que nos detenhamos com mais profundidade em determinados
planos em que podemos explorar seus detalhes técnicos e estéticos. Podemos observar com mais
atenção certos aspectos que podem passar despercebidos quando vemos um filme completo. No
caso das oficinas Para além da sala escura os fragmentos de filmes e vídeos foram escolhidos
principalmente desde o ponto de vista técnico da iluminação, já que em nossa oficina temos
duas preocupações bastante marcadas por etapas diferentes: 1ª) produzir um filme que possa
ser exibido em locais da escola para além da sala escura; 2ª) projetar as produções em locais da
escola para além da sala escura.
Os filmes exibidos durante a oficina foram mostrados em fragmentos de até três minutos.
Após a exibição, conversávamos abertamente acerca das sensações, incômodos e reflexões acerca
das imagens vistas. Havia sempre um momento em que tratávamos de “puxar” das imagens as
linhas fortes de interesse para nossa questão acerca dos locais escolares e suas distintas iluminações.
As linhas observadas mais atentamente buscavam a observação das nuances de cores, texturas e
formas que “extraídas” do lugar-escola, passavam a formar parte de novo conjunto imagens da/
na escola e para a escola quando as projeções se tornaram parte de videoinstalações envolvendo
imagens, sons, corpos e claridades locais.
As projeções dos vídeos em locais inusitados da escola às vezes originavam outros vídeos
mais, quando as projeções eram filmadas por professoras/es. Esses novos vídeos nos mostraram
uma infinita gama de possibilidades de projeção que fazia com a escola toda entrasse em devir-
tela para receber projeções que se recombinavam com os distintos níveis de iluminação de cada
local, já que o próprio projetor quando ligado, agregava luz ao ambiente, fazendo com que a
cada experimentação a escola se tornasse outra, e outra e outra, tanto pela diferenciação de sua
iluminação, quanto pelos novos desenhos formados pelos contornos das projeções que muitas
vezes tinha seu formato retangular transformado e tomavam a forma da superfície projetada
criando possibilidades de fazer a escola entrar em variação, produzindo novas percepções para
aquelas/es que ali habitam e novas configurações espaciais trazidas pelas intervenções com
videoinstalações.
Referências bibliográficas

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Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

Marina Mayumi Bartalini - Artista visual e professora de artes graduada em


licenciatura e bacharelado em educação artística. Mestre em educação pela Unicamp.
Doutoranda no programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da Unicamp.
Atuou como arte educadora no CEDAP: Centro de Educação e Assessoria Popular;
Progen: Projeto Gente Nova; Programa Mais Educação - Projeto Pintura na Fachada.
Foi professora do curso de audiovisuais na Escuela Libre de Constitución - Buenos
Aires, Argentina. Atua principalmente nas seguintes áreas de conhecimento e prática:
Educação Não formal, Educação Libertária, Intervenção Urbana, Arte-educação,
vídeo-arte.
Wenceslao Machado Oliveira Junior - Possui graduação em geografia e doutorado
em educação. Atualmente é professor no departamento de educação, conhecimento,
linguagem e arte e pesquisador do Laboratório de Estudos Audiovisuais OLHO,
ambos da Faculdade de Educação/Unicamp. Realizou o pós-doutorado As geografias
menores em obras em vídeo de três artistas contemporâneos, na Universidade do
Minho/Portugal. Coordenou a Rede Internacional Imagens, Geografias e Educação,
entre 2010 e 2015, da qual participa atualmente junto ao projeto As telas da escola:
cinema e professores de geografia. Desde 2016 participa do projeto: Dispositivos
de criação e a experiência do cinema na escola de educação básica do município
de Campinas e, em 2018, iniciou em duas escolas dessa rede de ensino o projeto:
Lugar-escola e cinema: afetos e metamorfoses mútuas - do espaço às filmagens, das
filmagens ao espaço.
29. Documentário; Videoarte – do Brasil para o mundo, do mundo para o Brasil

André Hallak

Introdução

As relações entre as artes vão se estreitando continuamente na contemporaneidade. “Na


verdade, torna-se cada vez mais difícil identificar um espaço exclusivo de atuação de uma obra,
a tal ponto os trabalhos hoje são atravessados por diferentes práticas artísticas”. Os limites vão
se tornando mais tênues e as interlocuções mais constantes. Muitas vezes não é possível, nem
pertinente, identificar a que campo da arte esta ou aquela manifestação pertence. Cabem aos
trabalhos analíticos refletir sobre influências e aberturas às quais a obra se propõe, não mais
enquadrar em tendências, estilos ou movimentos definidos.

A proposta deste trabalho é refletir acerca de uma interlocução em particular, entre o


documentário e as artes no Brasil, a partir da vídeo-arte.

Tanto a fotografia quanto o cinema demoraram para serem considerados como arte.
Inicialmente estes que hoje são chamados de artes mecânicas, eram consideradas apenas como
“técnicas de reprodução e difusão” (RANCIÈRE, 2005, p. 36). O cinema documentário adquiriu
nobreza artística ainda mais tardiamente. Nobreza esta “que lhe foi recusada em grande parte
de sua história – muitas vezes pelos próprios documentaristas, que queriam se afastar da ideia
do cinema como arte ou diversão” (LINS, 2005). Esta recusa o fez reservar, durante muito
tempo, uma posição distante do cinema considerado artístico. Indo na contramão desta tendência
histórica o documentário contemporâneo, “mais do que o cinema de ficção” (LINS, 2005),
incorpora e contamina diferentes estéticas, além de transitar com desenvoltura pelas diversas
artes. Documentaristas realizam obras que se utilizam da estética e dos suportes vindos das artes
e artistas se apropriam de dispositivos documentais na concepção de suas obras.

Os trabalhos contemporâneos que traçam olhares artísticos sobre a realidade transitam por
estes dois campos com liberdade. Buscam a verdade, a realidade, sem a pretensão de encontrá-la
ou de expressá-la, ou até mesmo de representá-la. Apropriam-se de imagens da realidade, não
para documentar, mas para sensibilizar. As imagens são contemplativas e convidam a um contato
sensível entre espectador e obra. Em muitos casos o autor se afasta deixando a obra se auto-
constituir diante dele e do espectador. Ele cria os dispositivos e se retira.

Para entender como este movimento conectou o documentário e a vídeo-arte no Brasil


faremos um breve histórico da relação entre documentário e artes, com ênfase em particular para
os movimentos do Cinema Verdade e Cinema Direto.

A tentativa de representação da realidade

Para alguns estudiosos, as raízes do documentário são anteriores à primeira projeção


pública de imagens em movimento, pelos irmãos Lumière, em 1895, considerada oficialmente
como o início do cinema. Erik Barnouw370 considera que seus pioneiros são aqueles que, a partir
de 1870, procuravam uma forma de documentar a realidade em movimento: um cavalo correndo
(Eadweard Muybridge) ou um pássaro voando (Étienne Jules Marey), Vênus passando pelo sol
(Pierre Jules César Jassen).
Dizer que o surgimento do documentário está, de certa forma, vinculado ao próprio
surgimento do cinema é inquestionável. Afinal as primeiras imagens em movimento, captadas por
uma câmera, pelos irmãos Lumiére, tratavam-se de registros documentais das atividades urbanas
da época. Elas retratavam cenas cotidianas, tais como: a chegada do trem na estação, a saída da
fábrica no final do expediente, folhas das árvores sendo movimentadas pelo vento. Os filmes
não poderiam ainda ser consideradas filmes-documentários, pois no momento em que foram
produzidas não existia uma problematização e legitimação do gênero enquanto tal. Contudo,
a importância deles para a história do documentário é inquestionável, já que se configuram
como o primeiro registro da realidade projetado em movimento. Vários exploradores, inspirados
pela busca dos irmãos Lumiére por retratar a época em que viviam, começaram a registrar suas
expedições a lugares desconhecidos. Estes filmes de viagem ainda não tinham uma linguagem
específica que os caracterizasse como documentário.
É a partir de Nanook of the North371 que o documentário começa a se consolidar enquanto
gênero cinematográfico. O gênero que se encontrava, até então, em estado embrionário veio
a se desenvolver até o formato alcançado por Robert Flaherty, no filme finalizado em 1922.
Sua concepção partiu da decisão de Flaherty de levar uma câmera para sua terceira expedição à
Baía de Hudson (Canadá), com a finalidade de registrar e ilustrar sua pesquisa sobre um grupo
de esquimós, os Itvimutis. A produção se distingue dos filmes de viagem por apresentar uma
sintaxe própria e uma linha narrativa, inexistentes nos primeiros filmes. O filme de Flaherty
370 Autor de Documentary: a History of the non-fiction film.
371 Filme realizado por Robert Flaherty em 1922.
marca a passagem de documento para documentário (NICHOLS, Bill. 2001) pela adição da
narrativa cinematográfica ao registro da realidade. Diferentemente dos registros de viagem até
então, Nanook contava a história de um esquimó, mostrava especificidades de seu cotidiano, sua
família, a pesca, através de cenas montadas de forma a criar um personagem e uma vida narrada
em torno dele.
Entretanto, foi com o escocês John Grierson, fundador da escola documentarista inglesa,
que o gênero começou a ser formalizado. No artigo First Principles of Documentary, publicado
em 1932, Grierson lançou o que seriam os primeiros princípios do documentário clássico. Ele
dizia que:

Princípios fundamentais.(1) Nós acreditamos que a capacidade do cinema


para movimentar-se, para observar e selecionar da própria vida, pode ser
explorada numa nova e vital forma de arte. Os filmes dos estúdios ignoram
amplamente essa possibilidade de abrir a tela para o mundo real. Eles
fotografam histórias encenadas sobre fundos artificiais. O documentário
fotografaria a cena viva e a história viva. (2) Nós acreditamos que o ator
original (ou nativo) e a cena original (ou nativa) são melhores guias para
uma interpretação do mundo moderno nas telas.[...] (3) Nós acreditamos,
portanto, que os materiais e histórias tomados da matéria bruta podem ser
melhores (mais reais no sentido filosófico) que o artigo encenado.[...] O
documentário pode alcançar uma intimidade com o conhecimento e efeito
impossíveis para as falsidades mecânicas do estúdio e a interpretação afetada
do ator metropolitano. (GRIERSON, 1932, in FOWLER, 2002, p. 40)372

Dziga Vertov, outro importante documentarista da época, acreditava no desenvolvimento


de uma “cine-escritura” dos fatos. De acordo com ele, a vida deveria ser captada de improviso e
o sentido do documentário construído por meio da montagem. O homem com a câmera, filme de
1929, ilustra o estilo de filmagem desenvolvido por Vertov, também conhecido como “cine-olho”.
Posteriormente, evoluções tecnológicas (como o desenvolvimento de equipamentos leves
de filmagem e o surgimento do som sincrônico no cinema) contribuíram para mudanças na
concepção do documentário. Assim, nas décadas de cinquenta e sessenta do século passado, a
busca do registro espontâneo do real foi a marca forte das produções do gênero. O documentário
clássico passou então a ser questionado por novos grupos de realizadores da França e dos EUA.

372 First Principles. (1) We believe that the cinema’s capacity for getting around, for observing and selecting from life itself, can
be exploited in a new and vital art form. The studio films largely ignore this possibility of opening up the screen on the real world. They
photograph acted stories against artificial backgrounds. Documentary would photograph the living scene and the living story. (2) We
believe that the original (or native) actor, and the original (or native) scene, are better guides to a screen interpretation of the modern
world. […] (3) We believe that the materials and the stories thus taken from the raw can be finer (more real in the philosophic sense)
than the acted article. […] Add to this that documentary can achieve an intimacy of knowledge and effect impossible to the shim-sham
mechanics of the studio, and the lily-fingered interpretations of the metropolitan actor. – tradução nossa
O resultado foi o surgimento de dois movimentos que ficaram conhecidos como cinema verdade,
encabeçado pelos franceses Jean Rouch e Edgar Morin, e cinema direto, cujos principais
representantes são os americanos Robert Drew e Richard Leacock.
Ao longo da história, várias foram as tentativas de enquadrar as obras documentais
em categorias específicas. Entretanto definir documentário nunca foi uma tarefa fácil devida,
sobretudo, à mobilidade e à versatilidade do gênero. Bill Nichols acredita que:

O documentário como prática conceitual não ocupa território fixo. Ele


mobiliza um inventário não finito de técnicas, remete a um número não
estabelecido de questões, e adota uma taxonomia de formas, estilos e modos
não completamente conhecidos. O termo documentário deve ser ele próprio
construído da maneira que o mundo que conhecemos e compartilhamos.
A prática do filme documentário é o lugar da contestação e da mudança.
(NICHOLS, 1991, p. 12)373

Os documentários acompanham intimamente as mudanças ocorridas na sociedade, não


apenas registrando-as, mas também participando e sendo influenciados por elas. Em decorrência
dessa proximidade com a “vida real” e das suas constantes transformações, a estrutura e o “modo de
pensar” do documentário também se alteram constantemente. Isto impossibilita uma classificação
objetiva, estável ou científica desse tipo de obra. No entanto as tentativas de definição, e de
oposição ao cinema de ficção levantaram questões relevantes para este e para outros estudos
sobre o gênero.
A primeira delas aconteceu em 1948, quando cineastas se reuniram no congresso da World
Union of Documentary para discutir sobre a nova forma de registro do real. O documentário foi
qualificado na época como um filme que trata dos fatos reais e visa a compreender os problemas
de ordem econômica, cultural, ou referentes às relações humanas. O conceito, que envolve a
vinculação a compromissos sociais e que atribui a ele um caráter didático e essencialmente
informativo, é uma ideia que persiste ainda hoje entre espectadores e produtores, apesar de ser
menos difundida do que no passado. Acreditava-se que existiam assuntos específicos para serem
tratados em documentários que, nesse momento, não tinham a função de proporcionar prazer
estético ao espectador, mas principalmente de informá-lo sobre questões contextuais e históricas
específicas. Além disso, o gênero deveria diferenciar-se da ficção, marcando claramente sua
oposição a ela.
Na tentativa de reconstruir o domínio do documentário – frequentemente questionado como
linguagem e como objeto estético, ao mesmo tempo em que sofria o abalo do seu domínio pela
373 “Documentary as a concept or practice occupies no fixed territory. It mobilizes no finite inventory of techniques, addresses no
set number of issues, and adopts no completely known taxonomy of forms, styles, or modes. The term documentary must itself be con-
structed in much the same manner as the world we know and share. Documentary film practice is the site of contestation and change.”
Tradução nossa.
recorrente afirmação de que “todo filme organiza-se como discurso” – Bill Nichols desenvolveu
uma teoria que distingue documentário e ficção. A distinção se dá segundo suas estratégias
diferenciadas de produção de sentido, sem recair nas distinções ingênuas do período anterior ao
estruturalismo e à semiologia. Nichols, ao contrário dos demais “defensores” do documentário,
não nega as suas propriedades narrativas e representativas, tampouco o seu caráter de discurso
e artifício. O autor afirma que, ainda que através dos mesmos processos narrativos, a ficção
oferece acesso a um “mundo fictício” e o documentário oferece acesso a representações do
“mundo histórico”, aquele no qual pessoas nascem e morrem. Defendendo fazer-se necessário
que sejam consideradas as diversas dificuldades intrínsecas a todo processo de generalização
sobre objetos estéticos, Nichols ainda afirma que o desenvolvimento das mesmas propriedades da
imagem tem funções e objetivos diferentes nos dois modelos. Na ficção, contribuem para conferir
verossimilhança à história narrada; no documentário, contribuem para conferir credibilidade e
poder de persuasão ao argumento (NICHOLS, 1991).
No entanto torna-se cada vez mais difícil separar o que é realidade e o que não é na própria
vida, quiçá no documentário. As pessoas, mesmo que inconscientemente, escolhem a maneira
com que vão expressar o que pretendem ser, que por sua vez, não pode ser totalmente separado
do que elas são (GOFFMAN, 1992). A memória, tanto coletiva quanto individual, mistura
acontecimentos vividos com impressões atribuídas. A linguagem, por sua vez, analisa e reconstrói
os “fatos” narrados.

No cinema, não sei como aconteceu... temos a impressão de saber o que


significam documentário e ficção; na verdade, creio que os dois momentos
são diferentes, e vejo um pouco em quê, mas a coisa não é tão simples:
em que momento o gesto de um operário é ficção, ou o gesto de uma mãe
com seu filho, ou de uma namorada com seu namorado, em que momento?
(GODARD, 1989, p. 116)

Esta inquietação do cineasta Jean-Luc Godard é respaldada pelo histórico de diferenciações


frustradas entre os dois gêneros, somado ao complicador das representações na própria vida. A
produção de um documentário envolve momentos distintos de construção de uma realidade. A
começar pela captação, na qual são escolhidos os ângulos e os recortes do que será gravado
pelo olho-câmera. Se existe um personagem, mais um complicador para esta construção, agora
somando à sua representação a relação com a câmera e com a equipe técnica.

A realidade existe independente de sua observação? O simples fato de


uma pessoa saber que está sendo observada em sua intimidade muda
substancialmente o seu comportamento. A equipe de filmagem de um
documentário perturba o ambiente social de tal maneira que o filme não
traduz o estado em que tal ambiente se encontrava, mas sim um estado já
perturbado pela equipe. (ACIOLI, 1997, p. 167)374

Na montagem o que foi captado é recombinado da maneira que mais convier para o filme,
criando uma narrativa outra, externa àquela do momento vivido e captado. Ainda há o roteiro,
seja ele feito antes ou depois da captação das imagens, que busca conduzir o filme na direção de
uma compreensão lógica própria de seu realizador.
Entretanto, o questionamento em relação à capacidade do filme documentário de representar
o real já é visível desde seus primórdios. Segundo Andréa França, desde o filme de Flaherty,
Nanook of the North e de O homem com a câmera de Diziga Vertov “que o pensamento e a
reflexão sobre o campo do documentário não pararam mais de se debater entre as noções de
verdade e mentira, autenticidade e ficção, realidade e mise-en-scène (cinema-olho, cinema do
vivido, cinema-verdade, cinema-direto, etc.)” (FRANÇA, 2006).

O cinema direto e o cinema verdade

O cinema direto e o cinema verdade, movimentos já mencionados anteriormente, surgem


justamente de um questionamento da forma como se organizava a grande maioria dos documentários
até então. Tidos como clássicos, estes últimos eram caracterizados pela investigação de uma
realidade objetiva, que se apresenta ao espectador por meio da narração em off, acompanhada de
imagens ilustrativas. Ou seja, a realidade é trazida em forma de um argumento objetivo que, por
sua vez, é explicitado pela narração e legitimado de forma indutiva pelas imagens. De um modo
geral apresentam uma grande coesão interna (ausência de brechas e quebras), característica que
os aproxima de uma tendência afirmativa à medida que os afasta da possibilidade de que seus
argumentos tornem-se temas de discussão. Geralmente evitam contradições, escondem o caráter
de discurso e empregam o modelo particular/geral – correspondente à exposição de depoimentos
e ações de personagens como dados puros e superficiais, que em seguida são generalizados e
adequados pelo locutor ao argumento do documentário.
A impressão de objetividade proposta e induzida pelos documentários clássicos é levada ao
extremo nos filmes pertencentes ao cinema direto – movimento que reuniu um grupo de jovens
realizadores e que se desenvolveu principalmente na década de 60 nos EUA e na Inglaterra.
Além de motivações discursivas e conceituais, o cinema direto possui motivações tecnológicas,
por se valer de recursos surgidos nessa época como: câmeras mais compactas e dinâmicas e,
principalmente, a possibilidade de captação de som direto.

374 ACIOLI, José de Lima. O princípio da incerteza e o realismo do documentário cinematográfico.


1997. p. 167.
Ao mesmo tempo em que corresponde à continuação da busca pelo real que fora iniciada
pelo documentário clássico, o cinema direto abandona a tendência a controlar as situações
filmadas, inerentes ao documentário clássico. Da-Rin descreve da seguinte maneira a estrutura
básica do cinema direto:

O cinema direto procurou comunicar um sentido de acesso imediato ao


mundo, situando o espectador na posição de observador ideal; defendeu
extremadamente a não intervenção; suprimiu o roteiro e minimizou a
direção; desenvolveu métodos de trabalho que transmitiam a impressão de
invisibilidade da equipe técnica; renunciou a qualquer forma de controle
sobre os eventos que se passavam diante da câmera; privilegiou o plano-
sequência sincrônico; adotou uma montagem que enfatizava a duração da
observação; evitou o comentário, a música em off, os letreiros, as encenações
e as entrevistas. (DA-RIN, 1995, p. 100)

A ênfase é a observação, “a vida observada pela câmera”. A montagem, que tende ao


tempo real, busca um objetivismo extremado e privilegia a autenticidade e a espontaneidade. Em
relação ao documentário clássico, o modo observacional de representação inaugura o discurso
direto, em detrimento de letreiros e offs. Em uma perspectiva teórica, o cinema direto afasta-se
da função estética do cinema, em direção à busca de uma sensação de presença física.
A transparência do documentário e a sua capacidade de apresentar o real sem nele intervir
foram novamente questionadas, mesmo sendo considerados todos os cuidados propostos pelo
cinema direto. A escolha entre o que mostrar ou não, a organização daquilo que é mostrado,
a duração dessa exibição e a ordenação dos planos entre si foram indicados como fortes e
inevitáveis indícios de subjetividade nas imagens. Nesse instante surge o cinema verdade –
também na década de 60 e principalmente na França – que abandona a busca pela captação de
uma realidade pré-existente e independente do encontro entre documentarista e personagem ao
assumir a subjetividade inerente a qualquer representação. O documentarista do cinema verdade,
relacionado ao modo interativo de representação, abandona a utopia de uma reprodução especular
do real e assume o seu papel mediador, em alguns casos, de provocador. Da-Rin diz do cinema
verdade:

[...] enfatizou a intervenção do cineasta, ao invés de procurar suprimi-la. A


interação entre a equipe e os atores sociais – pessoas convocadas a participar
do filme – assume o primeiro plano, na forma de interpelação, entrevista
ou depoimento. A montagem articula a continuidade espaço-temporal deste
encontro e a continuidade dos pontos de vista em jogo. A subjetividade do
cineasta e dos participantes da filmagem é plenamente assumida. (DA-RIN,
1995, p. 100 e 101)

O cinema verdade caracteriza-se principalmente pela intenção de trazer à tona o caráter de


artefato das obras documentais, evidenciando o processo de manipulação ocorrido ao longo do
desenvolvimento do documentário. As entrevistas e os depoimentos assumem lugar de destaque,
privilegiando a interação entre equipe e entrevistados. Os representantes do cinema verdade, entre
os quais os franceses Jean Rouch e Edgar Morin, eliminavam o fosso entre um lado da câmera
e outro – assim como existia no cinema direto – e propunham circulação e trocas experienciais
entre as duas partes.
Sendo assim, o cinema verdade mantém a verdade como objetivo, mas propõe outro modo
de acesso a ela: se no cinema direto a verdade preexiste e basta esperar que ela aconteça, o cinema
verdade busca a realidade emergente e eventual, que aparece no momento do encontro entre a
câmera e o entrevistado, através de uma série de estratégias e provocações. No cinema verdade,
assim como no cinema direto, o argumento emerge da situação captada.

Do Brasil para o mundo

Na década de 60 no Brasil, o documentário se utiliza das mudanças tecnológicas, privilegiando


a voz do “outro” como questão essencial para os cineastas (a entrevista é extremamente facilitada
com a possibilidade do som direto). Esses filmes eram realizados na sua maioria por diretores
ligados ao Cinema Novo, que se encontrava efervescente. No entanto, segundo Consuelo Lins e
Cláudia Mesquita, autoras de Filmar o real, os documentários brasileiros deste período seguiam
caminhos diferentes dos experimentados por outros movimentos.

Diferentemente de movimentos inovadores do documentário neste período – tais


como o Cinema Verdade francês e o cinema direto norte-americano, que aboliram a
narração over descarnada, onisciente e onipresente, em favor de um universo sonoro
rico e variado –, a forma documental brasileira se deixa contaminar por procedimentos
modernos de interação e de observação, mas não se transforma efetivamente. (LINS
e MESQUITA, 2008: 22)

A crescente utilização de entrevistas como meio de acesso à voz do “outro” não demonstrava
efetivamente um comprometimento com as questões colocadas ao documentário naquele período.
Os filmes nacionais continuavam se utilizando de concepções prontas. Os argumentos eram
elaborados muitas vezes antes mesmo da realização das entrevistas, que surgiam como elemento
retórico para a afirmação de uma posição já estabelecida.
É também neste período que, segundo Arlindo Machado, “muitos artistas tentaram romper
com os esquemas estéticos e mercadológicos da pintura de cavalete, buscando materiais mais
dinâmicos para dar forma às suas ideias plásticas” (MACHADO, 2003: 14). A convergência
entre um universo audiovisual com aparatos mais acessíveis – entretanto ainda preso a premissas
clássicas por seus realizadores – e uma comunidade de artistas sedentos por novos meios e
materiais para sua produção, culminou no surgimento efervescente de um documentário critico em
relação a sua própria linguagem. Essa critica se dava através do experimentalismo, que voltava os
olhares para o próprio gênero e sua capacidade de representar determinados problemas e questões
relacionadas à experiência popular.
Uma das aparições mais importantes para esse movimento contestador é Arthur Omar que,
em 1972, lança seu filme Congo, seguido do ensaio crítico O antidocumentário provisoriamente.
Omar critica as boas intenções dos documentaristas preocupados com as questões populares,
explicita a distância entre eles e as motivações sociais que expunham e explicita a falsidade de
toda representação imagética.

O filme antidocumentário teria muito mais uma função de examinar a impossibilidade


de se conhecer, do que tentar fornecer um conhecimento novo. Ele é um filme que
alude muito mais do que propõe. Não estou propondo uma nova visão da congada, o
Congo, objetivamente, não é o tema do filme, o tema é a tensão entre o conhecimento
erudito e uma prática popular que está colocada em outro nível de realidade e que em
última instância não se comunica.

Eu quero questionar a estrutura do documentário como sendo produtor da satisfação


do conhecimento, porque na verdade você só vai ter a sensação de conhecer,
quando aquele objeto estiver longe de ser apreendido. Eu não trato desse objeto.
Trato da maneira como esse objeto é tratado por um determinado discurso. Isso é o
antidocumentário – é quase um filme epistemológico.375

Poucos anos depois Glauber Rocha nos oferece Di/Galuber (1977). Um documentário
narrado na primeira pessoa, demonstrando a relação de afeto – mesmo à distância em muitos
momentos – entre o diretor e o objeto do filme, o pintor Di Cavalcanti que acabava de falecer.
Glauber interfere durante o enterro do pintor, filma o caixão e o corpo. Sua narração é frenética
e apaixonada. Incomoda, mostra a viúva e a amante. Produz uma das mais belas homenagens já
realizadas no cinema, paradoxalmente banida das telas nacionais pela família do pintor.

375 Entrevista de ARTHUR OMAR para GUIOMAR RAMOS sobre o anti-documentário em


Congo (1972) e O Anno de 1798 (1975) - outubro de 93.
<http://www.museuvirtual.com.br/targets/galleries/targets/mvab/targets/arthuromar/targets/entrevistas/languages/portuguese/html/
sobreoantidocumentario.html> Acessado em 14/09/2009.
Congo e Di/Glauber são filmes experimentais, reflexivos, ensaísticos; obras em que
a intervenção dos cineastas é central e explícita, realizadas a partir de um material
audiovisual heterogêneo, e nas quais o que importa não são as “coisas” propriamente,
mas a relação que se pode estabelecer entre elas. (LINS e MESQUITA, 2008: 24)

Arthur Omar apresenta outra obra essencial, O som ou o tratado de harmonia (1984). O
filme se apropria de uma linguagem radicalmente experimental, própria do vídeo daquele período.
Utilizando-se de ruídos, entrevistas e imagens provocativas, Omar busca uma relação atípica
com o espectador em torno da questão sonora. Ele interfere, dá argumentos, descontextualiza
imagens, insere intervenções sonoras durante as falas, aumenta o volume da música, abre uma
orelha humana para exibir como o documentário funciona.
A linguagem audiovisual está em voga. A partir de meados da década de 70 os primeiros
aparelhos de produção de vídeo, conhecidos como portapack chegam ao Brasil. O audiovisual
passa a ser experimentado não somente no cinema, mas também no vídeo. Os videoartistas
começam a se alastrar pelo Brasil. A busca por novos materiais encontra na linguagem eletrônica
um meio mais acessível e maleável que o anterior equivalente audiovisual, a película. Com um
ambiente altamente favorável, é nos anos 80 e 90 que os documentários se infiltram nas vídeo-
artes com mais força, ou que as vídeo-artes dilaceraram o documentário com maior intensidade.
A diversidade das produções revela a diversidade das linguagens.
Do outro lado da sua casa (1985), vídeo-documentário de Marcelo Machado, Paulo Morelli
e Renato Barbieri (diretores ligados ao grupo Olhar Eletrônico) é uma importante referência dentro
desse contexto. O vídeo busca o “outro” marginalizado, excluído, pertencente a outra classe,
como criticado por Omar em seus antidocumentários. No entanto os realizadores se apropriam
das convicções do cinema verdade de Jean Rouch e Edgar Morin, tornando mais complexa a
relação de distâncias entre documentaristas e objetos, e alavancando discussões pertinentes tanto
para o documentário e a vídeo-arte, quanto para as questões sociais que aborda.

Microfone explicito, Morelli, Barbieri e Machado vão para as ruas dispostos a dar
voz aos “personagens” encontrados [...], os documentaristas da Olhar Eletrônico
chegam a passar o microfone para Gilberto, um de seus personagens, num esforço
evidente de alçar seu “objeto” à condição de sujeito da experiência que o próprio
vídeo propõe. O procedimento, além de desvelar, reflexivamente, o set da entrevista,
complexifica, expressivamente a representação dos moradores de rua levada a cabo
pelo vídeo – confrontando com “iguais” diferentes, Gilberto veste outros papéis,
e todos saem ampliados dos encontros. Assumindo e amplificando certa tendência
minoritária no cinema documental brasileiro a partir dos anos 60, Do outro lado de
sua casa, ao incorporar a participação ativa de Gilberto, não supõe uma realidade
anterior e intocável, mas grava justamente a intervenção que o vídeo provoca e
propõe entre aqueles que retrata. (MESQUITA, 2003: 190)

A vídeo-arte abre caminho para a diversidade da produção. Ela é o espaço do hibridismo, das
infiltrações. A imagem eletrônica não é tão transparente quanto a cinematográfica ou fotográfica.
O real no vídeo é traduzido por linhas, ele é colocado na esfera do impulso, do manipulável
digitalmente. É o campo dos grafismos, das edições complexas, entrecortadas. Dos textos sobre
as imagens, dos textos sem as imagens. Das descontextualizações, reconstruções, ligações. A
imagem eletrônica “pressupõe uma arte da relação, do sentido e não simplesmente do olhar ou da
ilusão” (MACHADO, 2003: 29).
Com as novas ferramentas surgem experiências de extrema importância tanto para o
universo da arte, como para o do documentário. Um trabalho consensualmente considerado como
limítrofe é VT Preparado AC/JC (1986). Realizado por Walter Silveira e Pedro Vieira (da TVDO,
outro importante grupo da vídeo-arte brasileira) o vídeo é uma homenagem ao músico do silêncio
John Cage (JC) e do poeta das páginas em branco Augusto de Campos (AC). As imagens, na sua
maioria, não existem. Uma tela branca, com rápidos flashes de palavras, poucas, e de fragmentos
de imagens. Nestes fragmentos de imagens John Cage, que também aparece nos fragmentos
sonoros. Um registro criativo da presença do músico na Bienal de São Paulo naquele ano,
relacionando sua obra à de Augusto de Campos. Documentário? O vídeo da TVDO é motivado
por um acontecimento real, utiliza-se de imagens e sons captados do acontecimento, além de,
na sua forma, na sua linguagem, se relacionar intrinsecamente com objetos de sua pesquisa: os
trabalhos de John Cage e Augusto de Campos. Portanto para este texto a resposta é sim.
Nesse sentido, documentário também é Parabolic People (1991), de Sandra Kogut. Nova
York, Dacar, Tóquio, Moscou... Kogut implantou vídeo-cabines em diversas capitais do mundo
abrindo a possibilidade para que os transeuntes pudessem entrar e deixar sua mensagem, seja ela
qual e como for. Na edição essas imagens foram recortadas, recombinadas, fragmentadas, criando
relações inesperadas através da combinação de janelas e uso de grafismo. Como resultado uma
série de vídeos que criam conexões diversas em contextos múltiplos.
São muitos os vídeos tidos como “artes”, ou as vídeo-artes, que se tencionam com o
universo do documentário. Esta relação entre a produção artística e a documental, muitas vezes
ignorada pelos próprios documentaristas e teóricos, subsidiou e enriqueceu a história do cinema
e do vídeo, chegando a uma explosão de trabalhos híbridos no Brasil desde o boom da vídeo-arte.
Os exemplos dessa relação na videografia brasileira são inúmeros. Caco de Souza e Kiko
Goifman produziram Tereza (1992). Uma complexa imersão no universo carcerário, através de um
trabalho imagético revelador. Goifman produziu posteriormente 33 (2004), outro documentário
experimental que mostra a busca do próprio autor pela sua mãe biológica. Na mesma linha,
outro vídeo de Sandra Kogut, Um passaporte húngaro (2003). Nesse trabalho a diretora mostra,
com delicadeza, sua odisseia para conseguir um passaporte húngaro, já que tem parentesco com
aquele país.
Carlos Nader realizou diversos trabalhos documentais que tangem a vídeo-arte, e que
circulam nos ambientes das produções artísticas. Dentre eles O beijoqueiro (1992), Trovoada
(1995), O fim da viagem (1996), Carlos Nader (1997). As produções de Nader se caracterizam
por um olhar particular, aprofundado – o autor chegou a morar com alguns de seus personagens,
como em O beijoqueiro e O fim da viagem – resultando num trabalho experimental tanto na
abordagem como na edição de seus vídeos.
Outro realizador essencial para a investigação entre o documentário o as artes visuais é
Cao Guimarães. Acidente, concebido em parceria com Pablo Lobato, é um filme disparado por
um poema com o nome de 20 cidades mineiras, escolhidos aleatoriamente. O roteiro é o poema.
Os documentaristas deveriam, então, ir àquelas cidades e captar fragmentos cotidianos que, por
algum motivo, mantinham uma relação fluida com seus nomes. Outro trabalho de Guimarães,
Andarilho, marca fortemente a infiltração no campo das artes visuais de maneira que foi escolhido
para abrir a Bienal de São Paulo em 2008. Sobre Cao Guimarães, e em especial sobre esses dois
trabalhos Esther Hamburger escreveu:

O movimento em direção ao documentário vem em busca da elaboração artística


do acidente, do imprevisto, do inusitado, daquilo que escapa às regras dos gêneros
narrativos. Esse foco no inexplicável como elemento produtivo que tece a sociabilidade
cotidiana, esbarra nos grandes acidentes, matéria-prima por excelência do espetáculo
visual. Mas o movimento se dá justamente na direção de forjar abordagens que
fujam das fórmulas convencionais. Longe dos grandes eventos ou das personagens
célebres, interessa a digressão sobre detalhes em geral invisíveis ou enredados em
uma série de outros elementos. (HAMBURGUER, 2007: 114)

Não poderia deixar de citar Rua de Mão Dupla, vídeo-instalação documental (posteriormente
transformada em vídeo single-channel) que exibe duplas de pessoas em diferentes monitores.
Essas duplas trocaram de casa por 24h munidas com uma câmera. O material é editado de maneira
que vemos uma pessoa observando o “outro” filmando sua casa e, depois, comentando sobre suas
impressões.
Se já em Vertov ligações entre o documentário e as práticas modernistas se revelam, se no
cinema direto e no cinema verdade a estrutura clássica dos documentários é questionada e suas
perspectivas ampliadas, é no vídeo brasileiro que a tensão entre documentário e artes plásticas
chega ao seu ápice para este estudo, apresentando-se com toda sua complexidade e diversidade.
Esses trabalhos citados aqui fugazmente demonstram a riqueza e produtividade da efervescente
conexão entre as artes visuais e o documentário no contexto brasileiro.
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André Hallak - Doutorando na ECO-UFRJ. Mestrado em artes pela EBA –


UFMG. Sócio da produtora Trem Chic, onde coordena a área de cinema e televisão.
Recentemente dirigiu o documentário para televisão Travessia de Olhares, produziu o
documentário A Terceira Margem, lançado no DOK Leipzig (Alemanha) e vencedor
do prêmio da crítica no É Tudo Verdade 2017 e fotografou o documentário Improvi-
so Ambulante. Foi professor da graduação e pós na Escola Guignard – UEMG entre
2010 e 2015. É presidente da ONG Oficina de Imagens – Comunicação e Educação.
Recentemente ganhou o prêmio DocMontevideo dentro do CIneBH com o projeto
de documentário “Arquivo de Lava”. Em 2016 esteve presente no festival de San Se-
bastian (Espanha), Plataforma Lab (Porto Alegre), MicSul (Colômbia), Dok Leipzig
(Alemanha) e EAVE (São Paulo).
30. (TRANS)TORNAR (A)O TEMPO E (A)A IMAGEM

Danusa Depes Portas

Bahamas Hotel Club, 2018376

Vivemos em tempos de perguntas fortes e de respostas débeis. As perguntas fortes se dirigem


a nossas raízes, aos fundamentos que criam horizontes de possibilidades entre os quais é possível
eleger. Por isso, são perguntas que geram uma perplexidade especial. As respostas débeis são as
que não conseguem reduzir essa complexidade senão, ao contrário, podem aumenta-la. Nesse
ensaio, busco identificar algumas das vias para formular uma resposta forte a estas perguntas ou,
pelo menos, uma resposta consciente de sua debilidade.
A epígrafe visual que abre o trabalho, imagem de autoria desconhecida que circulou nas
redes sociais, em 07 de abril de 2018, por ocasião da prisão do ex-presidente do Brasil, Luiz
Inácio Lula da Silva, além de sintomática, explicita a operação conceitual evocada no enunciado
que intitula esse ensaio. Parece-me extremamente sugestiva a ideia de que estaríamos assistindo
a um deslocamento molar e quase tectônico (em que a relação com a visualidade e as imagens
não é fator menor) do próprio significado e do que chamamos conhecimento nas sociedades
contemporâneas, marcado intensa e precisamente pelo processo de globalização e o encontro
resultante de uma multiplicidade de formações culturais diferenciadas. A tomada de partido a
favor de que o desenvolvimento desse processo se decante de maneira mais democrática possível
– quer dizer, com o menor grau de hegemonia e dominação de uma formação em exclusão de
outra –, constitui a meu modo de ver o grande desafio não só para as práticas de representação
e produção de imagem e visibilidade, mas também para a própria produção teórico-crítica que a
confronta.
Um dos desafios pendentes para o campo dos Estudos Visuais que se encontram em
desenvolvimento na América Latina é a construção de um lugar de enunciação a partir do qual
situar histórica e geopoliticamente seus conhecimentos. Os processos de visualidade em nosso
subcontinente propõem singularidades históricas, culturais e epistêmicas que não foram abordadas
em toda sua (devida) complexidade; quando muito nas gramáticas transculturais da globalização
e nos discursos interculturalistas da pós-colonialidade (LEON, 2010). A colonialidade do ver
é constitutiva da Modernidade e, em consequência, opera como um modelo heterárquico de
376 Em cena, uma prostituta nua, as fotos de um juiz (Sérgio Moro) e de uma ministra do STF (Carmem Lúcia) pendurada na
fachada do Bahamas Hotel Club, prostíbulo de propriedade de Oscar Maroni, vestido de presidiário. Na plateia, uma massa de homens
comemoram a prisão de um ex-presidente.
dominação, determinante para todas as instâncias da vida contemporânea (BARRIEDOS, 2010).
Pergunto: Que consequências supõem que a visualidade na América Latina seja pensada, ensinada
e reproduzida sem uma leitura crítica (e decolonial) dos processos de racionalização dos sujeitos
e das subjetividades enquanto agentes políticos?
Parece estratégico, a partir dessa interrogante, problematizar e criar distinções na textura
do tempo. A natureza heterócrona das culturas do mundo, incluindo suas incoerências e
incomensurabilidades, somente pode ser articulada fazendo menção a algum denominador
comum. O sistema de tempo dominante é o instaurado durante o período colonial. E é preciso
notar que a espiral de sinônimos para referir-se ao momento atual – modernismo, pós-modernismo,
pós-colonialismo, a contemporaneidade e o contemporâneo – revela uma confusão que rodeia
a sua ideia do tempo. As consequências filosóficas e psicológicas da negação das narrativas
culturais herdadas dos séculos XIX e XX – baseadas em noções cronológicas e ao mesmo tempo
teleológicas do desenvolvimento histórico – são atualmente mais claras do que nunca. O tempo
persegue a produção cultural contemporânea de uma forma nova e inquietante. Seja na História
ou na Antropologia, na História da Arte ou nos Estudos Visuais, o trabalho de interpretação se
confronta com a necessidade de analisar o tempo de novo e reabilitar a pergunta sobre o tempo
que habitamos agora.
Os Estudos Visuais e a Crítica Cultural têm colocado na agenda a importância de considerar
as imagens no campo ampliado de produção, circulação, consumo, nas relações geopolíticas nas
quais a assimetria cultural em nível internacional é a norma. Para o estudo do visual, os rastros
e as marcas da existência do tempo estão nos artefatos. A muitos desses objetos – senão todos –
foram atribuídos durante muito tempo uma presença estética e ontológica que lhes impede de
acomodar-se firmemente dentro dos sistemas epistemológicos. Eles sugerem excessivamente algo
totalmente compreensível, algo que a linguagem não pode capturar. Mesmo que suas imagens
sirvam como registros da hora e lugar de sua criação, também apelam para os sentidos e possuem
uma força afetiva que lhes permite atrair atenção nas localizações temporais e culturais muito
distantes dos horizontes nos quais foram criadas. Com o argumento de que as imagens chamam a
atenção e requisitam uma intepretação, vários pensadores recentes têm desenvolvido o conceito de
anacronismo como forma de descrever o processo de mediação que é produzido entre os artefatos,
que solicitam uma resposta afetiva e, ao mesmo tempo, embalam o desejo do historiador ou o crítico
contemporâneo de gerar sentido: Georges Didi-Huberman, John Goodman, Hubert Damish, Mieke
Bal, Alexander Nagel, Christopher Wood, entre outros. A textura do passado será entretecida,
pois, considerando a recepção dos artefatos, sua fulguração, no presente. Que o tempo passado
se defina em termos de tempo presente é um lugar comum, no entanto é uma das mudanças de
significado quando levarmos em conta, o encontro anacrônico com outros horizontes históricos.
Além disso, seguindo a Walter Benjamin, podemos considerar que uma vez que a relação do
passado com o presente é puramente temporal, a do passado com a atualidade (Aktualität) é, ao
contrário, de caráter dialético: não é de natureza temporal, mas de natureza pictórica.
Um dos pontos centrais de tal visualidade crítica é o fato de que ao longo do século XX
surge uma arte na qual a questão da memória torna-se central, e isso justifica a arte hoje se
apresentar como um enorme arquivo do nosso presente. Uso a terminologia arquivo, concebida por
Michel Foucault, como sistema que governa a aparição de declarações, que estrutura expressões
particulares de um período específico. Portanto, se um arquivo estrutura os termos do dizível | do
visível também limita o que pode ou não ser dito|visto em determinada época e lugar. Com base
nessa inflexão, proponho um vistazo em uma série de obras do artista belga radicado no México,
Francis Alÿs, sob a inscrição Políticas del ensayo, entre elas: filme-ensaio Reel/Unreel (2011) e
um filme-ensaio homônimo Politics of Rehearsal (2005). Alÿs nos apresenta na forma de seus
artefatos culturais uma espécie de atlas portátil da memória latino-americana.

O historiador da arte Aby Warburg e seu notável Der Bilderatlas Mnemosyne (1924) nos
ensinou a ler a totalidade a partir do detalhe. A partir e não no: o detalhe que atrai a atenção do
leitor e o faz esquecer por um momento que a totalidade da obra vale por esta, não porque a
represente, mas porque instaura um novo ponto de vista para pensa-la. A perspectiva que lanço
sobre Políticas del ensayo, examina o dispositivo de Alÿs como um teatro de operações, a partir
do qual teço alguns comentários em dripping minimalista.

I. Tornar o tempo e a imagem.

Restituir, transformar o tempo e a imagem. Torna-se urgente (re)pensar o papel das imagens
em uma reformulação necessária de nossos ofícios. Minha pesquisa tem se dedicado a ensaiar
alguns caminhos heurísticos e metodológicos com o intuito de revelar como as imagens conhecem
e produzem pensamento. Subscrevo, como princípio, uma afirmação polêmica em Picture Theory
(1994), a de que a interação entre imagens e textos seria constitutiva da representação em si:
todos os meios são meios mistos e todas as representações são heterogêneas; não existem as
artes puramente visuais ou verbais, ainda que o impulso de purificar os meios seja um dos
gestos utópicos mais importantes do modernismo (MITCHELL). As diferenças entre imagem e
linguagem não são questões meramente formais: na prática estão relacionadas com coisas como
a diferença entre o eu (que fala) e o outro (que é visto); entre o dizer e o mostrar; entre as
palavras (escutadas, citadas, inscritas) e os objetos ou ações (vistos, figurados, descritos); entre
os canais sensoriais, as tradições de representação e os modos de experiência. Podemos adotar a
terminologia de Michel de Certeau (1986) e chamar a intensão de descrever estas experiências
de uma heterologia da representação377 acompanhando o deslocamento da imagem para o centro

377 Michel de Montaigne em Des Cannibales inventa o que Certeau chamou de heterologia, isto é, um discurso do outro que é ao
mesmo tempo discurso sobre o outro em que o outro fala.
dos debates sobre o papel da representação nas culturas contemporâneas.
Todavia, a início do século XX, em seu Bilderatlas Mnemosyne, Aby Warburg havia
concebido um modelo fantasmal para a história da arte que não era regida por ciclos de vida e
morte, grandeza e decadência, transmissões e influências, mas por Nachleben (sobrevivências):
reaparições de formas e motivos, latências, migrações e anacronismos que as constelações de
imagens do atlas revelam na montagem. A História da Arte nunca nasce – diz Warburg –, ela volta
a começar, a cada vez, no presente.
Também a arte e as ficções da América Latina iluminam formas variadas da sobrevivência
nas constelações do atlas portátil de Alÿs, a exemplo do motivo visual disparador do seu filme-
ensaio Reel| Unreel (2011). Aproximando-se por ignorada afinidade a celebre verso de Wally
Salmão que abre o seu poema Carta aberta a John Ashbery (1995): “A memória é uma ilha
de edição”. Restitui. Transforma. Desdobra. O sur-realismo, borrado estrategicamente nas
genealogias acadêmicas, mostra seus rastros ainda vivos na arte de hoje; textos e imagens de
tempos, espaços e tradições diversas dialogam arrazoada ou deliberadamente no horizonte
ampliado da errância; a história e as tragédias do passado se reescrevem com formas novas. São
apenas alguns exemplos das relações que o olhar abrasador do atlas torna visível nos intervalos.
“Os pensamentos atravessam as fronteiras”, escreveu Warburg, “livres de direitos alfandegários”.
A história da arte da América Latina poderia recompor-se por completo a partir do presente na
grande cena de encontros da arte do mundo, atendendo nas sobrevivências mais que os limites
convencionais das nações, os continentes, as tradições culturais e as especificidades disciplinares.
A arte latino-americana tem encontrado formas instáveis capazes de multiplicar as conexões
e a variedade das conexões, dispondo coleções de objets trouvés minimamente díspares, tramando
relações visíveis entre objetos de ordens e espécies inconciliáveis, ou criando arquivos digitais de
imagens apropriadas; ela tem concebido heterotopias materiais e virtuais que funcionam como
instâncias visíveis de convivência do diverso, teatros sintéticos das diferenças, práticas portáteis
que podem enraizar em qualquer parte. São modelos heurísticos que revelam de maneira urgente
a experiência dos condenados ao isolamento em esferas instransponíveis ou a uma conectividade
narcótica das redes da cultura da sucata.

II. Tornar ao tempo e à imagem.



Responder ao tempo e à imagem. Ao invés de definir as condições de possibilidade,
considero os termos de pensabilidade do ensaio. Em lugar de uma categoria ou gênero, gostaria
de conceber o ensaio antes como um modo, retórico ou poético, de (re)compor, de montar – de
responder ao tempo e à imagem. Tento sondar a que ponto o ensaio pode ser tomado como uma
linguagem da experiência, como uma linguagem que modula de um modo particular a relação entre
experiência e pensamento, entre experiência e subjetividade, e entre experiência e multiplicidade.
Parto da hipótese de que a obra de Francis Alÿs constitui uma operação-ensaio no pensamento,
na escrita e na vida. A questão seria o modo como ele opera sobre o ensaio, para fazê-lo habitável
e operativo. Alÿs propõe em uma imaginação teórica: pensar o presente do ponto de vista de sua
desrealização; pensar o sujeito, do ponto de vista de sua transformação; pensar a crítica como um
exercício de liberdade; transformar em problema a relação entre escrita|tura e pensamento.
O ensaio não está fora do tempo, mas no tempo e, além disso, em um tempo consciente de
sua fugacidade, de sua caducidade, de sua finitude, de sua contingência. Trata-se, portanto, de dar
forma a uma experiência do presente no ensaio. O que interessa ao ensaísta-historiador e a histó-
ria do presente: não a verdade de nosso passado, mas o passado de nossas verdades. Esta relação
constitui-se com o presente na arqueologia, na genealogia: a arqueologia de nosso conhecimento,
a genealogia de nossas práticas. Trata-se de deslocar o presente, desnaturalizar o presente, de
estranhar o presente, de converter o presente não em tema, mas em problema, para dar-nos conta
de quanto artificial, arbitrário e produzido é o que nos parece dado.
Pensar o sujeito, esta primeira pessoa do singular que pensa, escreve e vive do ponto de
vista de sua transformação. O ensaio aparece com o eu, com o sujeito (ego cogito) em sua preca-
riedade, em sua relatividade, em sua contingencia. Daí, seguindo a Adorno, poderíamos chamar
a coerção da identidade. Poderíamos dizer que o ensaio parte de um dos princípios fundamentais
do pensamento moderno: o sujeito como lugar e fundamento da verdade. O ensaio pertence,
sem dúvida, a esse sistema de pensamento que Foucault chama de pensamento antropológico. A
primeira não aparece necessariamente como tema, mas como um ponto de vista, um olhar, uma
posição discursiva, uma posição de pensante. Trata-se não de uma verdade subjetiva, mas a ver-
dade da subjetividade. Não de medir o que há, mas de medir-se com o que há, de experimentar
seus limites, de inventar seus meios. Portanto, o ensaísta não só põe em questão o que somos,
o que sabemos, o que pensamos, o que dizemos, o modo como olhamos, como sentimos, como
julgamos, mas, sobretudo, põe em jogo a si mesmo nesse questionamento. Portanto, o ensaio é
também olhar a existência do possível, ensaiar novas possibilidades de vida.
Pensar a crítica, o pensamento, como exercício de liberdade, como exercício mais afir-
mativo que negativo mais de exposição que de oposição. O ensaísta abre e ajusta uma distância.
A pergunta é se essa distância ainda pode ser chamada uma distância crítica ou uma distância
reflexiva. O ensaio nasceu da crítica. Se o ensaio é um gênero da crítica, logo será o gênero da
crise, da crise de uma (certa) forma de pensar, de falar, de viver. A experiência do presente faz
deste presente mesmo um momento crítico. É nessa mutação que o ensaísta deseja insertar-se.
O ensaio e a escritura de um tempo inseguro e problemático, de um tempo à deriva, como dizia
Montaigne. Portanto, o ensaio floresce no final do Renascimento, quando termina a grande cul-
tura medieval com base teológica; também na Ilustração, quando o espírito crítico da Ilustração
coincide com a crise das filosofias sistemáticas do século XVII; também no século XIX, ao final
das grandes construções do idealismo; e talvez agora, no presente, com a crise da Modernidade.
Desde sua origem, a forma ensaio mantém um traço de tentativa, de uma escritura exposta ao ris-
co. Não se trata, contudo, no ensaio, de cotejar a realidade com a ideia, mas cotejar a experiência
em relação com a verdade do poder e ao poder da verdade. Algo que, talvez, possamos chamar
de pensamento.
Converter em problema a relação entre escritura e pensamento. A escritura é um dos luga-
res do ensaio. Não há dúvida de que certos modos de produção artística também são atravessa-
dos pela operação ensaio. No ensaio moderno, precisamente por sua vontade de autoria, o estilo
expressa, ao mesmo tempo, a experiência de um sujeito e a construção de um mundo. O estilo é
o homem, ou o autor, ou o sujeito. O estilo é a marca de uma subjetividade na linguagem – e na
verdade. Mas na obra de Francis Alÿs se trata de outra coisa. E aí o dizível| visível aparece como
o lugar do pensamento e como o enigma de um fosso reflexivo que se abre.
Em Alÿs, ensaiar seria uma experiência simultânea de inscrição e pensamento, uma experiência
na qual se decidiria o que nos é dado dizer e o que nos e dado pensar, enquanto que, no presente, na
primeira pessoa. Assim que pensar de outra forma requer uma inscrição em outras formas, e nossa
vontade de outro pensamento é inseparável de nossa vontade de outra língua.
As obras de Alÿs são reconhecidas por utilizar métodos poéticos e alegóricos para abordar
diversas realidades políticas e sociais de diferentes cidades do mundo, e realizar o registro dessas
experiências em instalações, livros, ensaios-fílmicos etcetera, como a célebre ação Cuando la fe
mueve montañas, em que 500 voluntários deslocaram 1 cm de areia para modificar a posição de
uma duna nas imediações de Lima (Peru), nos tempos de Fujimori e do Sendero Luminoso. Diz
Alÿs: Sí, se puede hacer milagros! Me pregunto hasta qué punto la poesia tiene relevância frente
a estas tragédias humanas. Uma história mínima, simples, poética.

III. Transtornar o tempo e a imagem

Políticas del ensayo| Politics of Rehearsal é uma metáfora do encontro ambíguo da


América Latina com a Modernidade – incessantemente lasciva, e, no entanto, sempre dilatando
o momento em que isso vai se consumar. Marcado o limite inicial, gostaria de apontar duas
condições de possibilidade que fundamentam tal relação, que inquietam tempo e imagem,

A primeira condição de possibilidade refere-se à reformulação por parte da arte da função


da imagem e do imaginário, em consequência do desenvolvimento da sociedade de consumo e
da produção industrial de objetos. Na realidade o que muda é o estatuto dos signos, socialmente
falando; de modo que a sociedade industrial gera todo um novo código de signos que aludi
concretamente o consumo. A arte pop e mais exatamente Andy Warhol é quem pôde entender,
em seu momento histórico, o valor deste universo de signos com que o receptor se depara.
Isto é, signos que se produzem e se distribuem massivamente; e uma codificação simbólica
que ocorre graças à própria sociedade industrial. O sentido do signo muda porque o signo não
necessariamente se refere a uma realidade ou a uma verdade. Refere-se a uma circulação, a um
produto, a um desejo – mas não necessariamente a uma realidade. Isso seria como uma primeira
condição. O modo como circulam os signos faz com que evidentemente o sentido | o valor da arte
seja mais um fenômeno de comunicação ou de informação do que de experiência. Fato que seria
fundamental para entender como entra a filosofia e o pensamento analítico partícipe da própria
pesquisa artística.
Entretanto, nas práticas contemporâneas de arte, a apropriação do poético tem uma relação
estrita com certos tipos de ações, onde o que se libera é uma espécie de afeto, de emoção, que
é precismente no que ela consiste – seu valor está justo em liberar essa emoção. Quer dizer,
não é constituída para ser vista, nem para ser consumida, nem para ser exibida. Nesse sentido,
há uma poética em que a liberação de afeto funcionaria como uma espécie de micropolítica
de reconfiguração do espaço público.378 Práticas que se ajustam a essa relação entre poética e
política. Há poéticas (processos, ações e afetos) que o que fazem é interromper o espaço político
para reconfigurar (ao menos por um momento) uma situação vital. São momentos de produção de
um campo de intensidade.
A arte hoje não pode ser pensada fora do mundo da imagem. Fora dos meios massivos de
comunicação. Fora do mundo da circulação da informação. Penso que se não há como horizonte
esse uso ideológico que a indústria do entretenimento faz da imagem dificilmente pode-se
entender como funciona a produção de arte no momento contemporâneo. Portanto, a arte hoje
quer ser institucionalizada pelo processo de produção, distribuição e visibilidade. E é importante
frisar que na atualidade é o museu e não a fábrica que produz a força material. O problema então
não é se si teria ou não que negociar com esses espaços, mas como são operadas as negociações
nesses espaços. Como o teatro de operações de Alÿs, parece-me que a tarefa da arte, a partir
de um repertório cultural, é a de intervir no espaço público (real, imaginário, simbólico – para
usar a tríade lacaniana), buscando os interstícios, lugares de cruzamento, que amplificam nossa
experiência.
A segunda condição de possibilidade que gostaria de apontar é acerca de como uma
multiplicidade de confrontos e aberturas tanto de discursos como práticas artísticas e como práticas
políticas tem relação com a ampliação do lastro de perguntas sobre o poder. Simultaneamente, o
que tem ocorrido é precisamente que todos os territórios de distintos modelos de poder e a forma
em que os sujeitos são associados, entrelaçados em relações desiguais ou são instrumentalizados
para determinados fins – aquilo que Foucault denominou as tecnologias de poder. Tudo isso
tem constituído um campo em que, praticamente, de maneira sistemática, os artistas têm estado

378 Espaço Público não é só o espaço físico como a praça (a ágora). Mas também os meios de comunicação/internet (os inter-
câmbios virtuais à distância, mas que podem configurar redes em que se exerce o público).
manejando; ou seja, fazendo visíveis as formas em que opera a sedução da mercadoria, que é
o poder mais significativo que experimentamos. Quer dizer: (1) as formas em que o poder de
sedução do erotismo permeia a visibilidade das figuras sociais; (2) a mesma maneira em que a
sedução do aparato social opera e como este exerce um estabelecimento de hierarquias; (3) e o
problema da tecnologia geral de vigilância e controle de sujeitos.

Menciono então duas motivações que produziram um deslocamento da arte contemporânea


para estabelecer uma multiplicidade de precipitações para esse problema – onde a pergunta do
poder esta sendo constantemente atualizada. Por um lado, na discussão interna, que herdamos
do conceitualismo, sobre as condições de incisões culturais e de como opera a própria produção
artística como um mecanismo de poder(es) e saber(es). O trabalho então é uma força material
(momentos de sensações e momentos de memória), objetos catalizadores não de um pedaço de
matéria, mas de processo de participação – facilitam um processo de sinergia social. Também,
de uma maneira muito significativa, ao acompanhar a crítica dos poderes que a emergência de
determinados sujeitos tem significado – isto que abarca a emergência das identidades divergentes
(em termos de gênero e raça) –, como também o poder muito significativo no âmbito cultural da
estrutura de diferenciação geográfica e econômica (de centro e periferia).379

Há uma maneira em que se pode pensar a situação da arte como uma politização da arte
no sentido de prover enfoques determinados de crítica e desmantelamento, ou de entrelaçamento
e intervenção de uma multiplicidade de estruturas de poder. O decisivo, entretanto, é que todas
essas confrontações não assumem a exterioridade do poder senão que, tanto os sujeitos que
estão participando, como as próprias produções artísticas mesmas, estão dentro das tramas do
poder de alguma maneira, constituindo essa colonialidade do ver. Somente aí – por dentro do
dispositivo – parece possível disparar um questionamento. Em Politicas del ensayo, o que faz
Alÿs é renderizar a percepção da temporalidade, a partir da disjunção constitutiva da banda
sonora (gravada previamente com o depoimento do crítico mexicano Cualhtemoc Medina) e da
banda visual (criando uma cena onde diversas dimensões tempo|espaço operam dentro do quadro
a partir de motivos visuais). Uma das discussões que enfatiza Medina é a respeito desse caráter
ensaístico do dispositivo de Alÿs (una oscilazón permanente y eterno retrazo del fin), esse deter-
se na medialidade (o que Giorgio Agamben chama de meio sem fim), a fim de arguir sobre a
legibilidade, metodológica e crítica, sobre a memoria inquieta das imagens, sobre os disparates
da cultura visual e os desastres da história, inclusive hoje por remontar poética e politicamente.
379 O que Hal Foster denomina o giro etnográfico das artes contemporâneas. O que quer dizer
isso? Ao assumir que a posição ou o ponto de vista importa na produção de discurso, que o conheci-
mento está conjugado por interesses dos responsáveis por sua articulação, ele defende que a cultura
visual está arriscada a comprometer as concepções de história tradicional. Quer dizer, Foster opõem
assim a diacronia da sincronia, alegando que esta última ganha em detrimento da primeira. Assumir a
espacialidade da cultura, a multiplicidade de enfoques que a anima, parece algo incompatível com a
cronologia.
Referências bibliográficas

CERTEAU, Michel de. Heterologies: Discourse on the Other. Minneapolis: University Minnesota
Press, 1986.
FOSTER, Hal. O artista como etnógrafo. In: O retorno do real. São Paulo: Cosac & Naify, 2014. 
__________. “The Archive Without Museums”, in October 77, 1996.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
LA TRONKAL. Desenganche - visualidad y sonoridad outra. Quito: La Tronkal, 2010.

MITCHELL, W.J.T. Picture Theory. Essays on Verbal and Visual Representation. Chicago:
University Chicago Press, 1995.
SANTOS, Boaventura de Sousa: Descolonizar el saber, reinventar el poder. Montevideo:
Ediciones Trilce, 2010.

Danusa Depes Portas - Bacharel em língua e literatura brasileira (PUC-


RJ, 2002). Mestre em estudos de literatura (PUC-RJ, 2005). Doutora em literatura,
cultura e contemporaneidade (PUC-Rio, 2015). Desenvolveu os projetos: Imagem,
Representação e Identidade Cultural na Literatura e nas Artes Brasileiras (CNPq,
1998 - 2001), Imagens Contemporâneas (do Sublime), um estudo em torno da
experiência estética (FAPERJ MSC 10, 2003-2005), Imagens Mi(g)rantes (CNPq,
2010-2015). Integra o grupo de pesquisa (CNPq, 2003-atual) e A literatura brasileira
contemporânea e sua crítica ( 2015-atual). Diretora e roteirista na empresa Cena
Tropical Comunicações (1996 – 2000), Coordenadora do Núcleo de Cultura Visual
do Programa Solidariedade: Integração Juventude e Sociedade. Implementou uma
proposta pedagógica na área de cultura visual e inclusão social, atendendo alunos
de escolas públicas e jovens das comunidades próximas ao bairro de Laranjeiras,
na ONG Obra de Promoção de Jovens (Stichting Porticus, Amsterdam e Instituto
C&A de Desenvolvimento Social, 2005-2008) através de projetos com fotografia:
Educação do Olhar: Memória do Bairro (FotoRio, 2007), Cinema Retrato Mal-
falado (Festival do Rio, 2007), entre outros. Lecionou práticas de leitura e produção
textual na mesma instituição (2006-2007). Integrou o grupo de pesquisa Imagem/,
coordenado pelo professor Maurício Lissovsky(ECO/UFRJ).
31. IMAGENS RETOMADAS: A EXPERIMENTAÇÃO NO FILME NHANDE YWY

Ana Lúcia Ferraz

Em Nhande Ywy, a retomada entre os guarani nhandeva é apresentada não apenas como
um retorno às terras onde nasceram seus pais e foram enterrados seus avós, mas também como
um retorno às práticas associadas ao universo xamânico, às relações com a alimentação e com
os modos de transmitir conhecimento às novas gerações que estão relacionados ao território e
caracterizam o ser guarani. A aldeia Potrero Guassú (situada no município de Paranhos, MS,
fronteira com o Paraguai) se organiza a partir do contexto da retomada de terras ancestrais. A
retomada é também de outras práticas que foram abandonadas durante as décadas de 70 a 90,
quando foram removidos pelo Estado para as Reservas Indígenas da região.

A vida guarani na fronteira é experimentada como o tempo de espera pela homologação


da demarcação, o que ocasiona conflitos quando os fazendeiros pagam pistoleiros para atacarem
as aldeias. O território imaginado pelos guarani é mais amplo que o de uma aldeia, são percursos
de viagem entre aldeias, com lugares sagrados e águas poderosas, cascatas, rios, lagos, águas
que crescem e tomam a terra. Na concepção guarani, a agência dos outros seres que habitam a
terra deve ser observada, discutida, compreendida. Como Heléne Clastres (1978) nos apresenta,
os fenômenos naturais são manifestações dos ancestrais e guardam mensagens. No caso Mbya,
que ainda usam seus nomes tradicionais, os nomes dos homens são referências a tais ancestrais
e designam forças, poderes, que não distinguem agências humanas e não humanas. Os animais
eram antigos humanos que se negaram a deixar a terra e foram transformados por Nhanderu.

Um dos lugares sagrados guarani na fronteira era Itaipu, a pedra que soa. As cascatas eram
visitadas como lugar de força e havia inúmeras aldeias nas margens do Rio Paraná. O processo
de construção da hidrelétrica, que adotou o nome guarani, e o alagamento das margens do rio
gerou, no fim dos anos 80, mais um processo de desterritorialização de inúmeras parentelas que
migram imediatamente para as aldeias situadas nos estados do Paraná e Mato Grosso do Sul.
A reserva Porto Lindo, situada no município de Japorã/MS, é uma das que recebeu inúmeras
famílias oriundas desse deslocamento380, e que, em consequência dessa sobre-população, organiza
380 Segundo dados do Centro de Trabalho Indigenista. Arquivo Centro de Trabalho Indigenista/
Oeste do Paraná. Depoimentos dos índios Avá-Guarani coletados entre 2012 e 2013.
a retomada da terra Ywy Katu, nos anos 2000. As retomadas são a ação das parentelas Guarani
pela recuperação de seus territórios dada a história da apropriação da terra incentivada pelas
políticas desenvolvimentistas do Estado brasileiro.

Nessa região, ao longo dos anos 90, as terras foram retomadas. Paraguassu, Jaguapiré,
Piraquá, Sete Cerros, foram os casos que deram o exemplo a duas famílias que juntas retomam
os territórios da chamada aldeia Potrero Guassu. Em 1971, os moradores destas terras foram
levados à Reserva Indígena Pirajuí, criada nos anos 20 pelo SPI, retornando em 1998, ao chão
que conhecem, onde semearam há gerações e enterraram os seus avós.

Ouvimos do cacique Elpídio Pires a história da visão de uma cidade ancestral submersa.
Aqui, mito e história se complementam. Diversas histórias estão presentes nesse relato: a história
de invisibilização do território guarani, resultado dos projetos de hegemonia e controle das
fronteiras nacionais entre Brasil e Paraguai, que incluí o alagamento das margens do rio Paraná
– que marca a faixa de fronteira em todo o estado do Paraná, de Foz do Iguaçu, onde se construiu
entre o fim dos anos 70 e 1984 a Hidrelétrica de Itaipu – até o Mato Grosso do Sul, que passa a se
chamar assim no fim da guerra do Paraguai; e, a lógica do mito que relata a existência de lugares
onde vivem os ancestrais dos avá.

Frente à história de esbulho territorial, em que o encurtamento do território guarani é


exponencial, os Nhandeva buscam mensagens de seus ancestrais sobre como proceder, que fazer
frente à situação em que a vida do modo de ser guarani se faz complicada. Os fenômenos naturais
– o frio prolongado, a geada, um vento forte, os raios e os relâmpagos – são sinais dos ancestrais,
os que vieram primeiro. Compreender essa semiótica da agência de outras forças implica em
mergulhar na metafísica guarani: os que vieram antes e se retiraram desse mundo imperfeito
enviam suas mensagens nos sonhos e nos sinais que se fazem ler na natureza.

Uma cosmopolítica dos sonhos (Glowczewski, 2015) se arma a partir de visões que
organizam grupos de parentesco. Para o mburuvixá Elpídio Pires, interlocutor de minha pesquisa,
a imagem do avô morto, vista em sonho, enterrado no antigo território, é o motor que faz cantar
e dançar as palavras sábias dos antigos, nas ações pela recuperação das terras já demarcadas, mas
nunca homologadas pela presidência da república do Brasil. Ao falar do sonho (?) Elpído relata:

“Eu tenho sonhos, várias vezes. Esses dias, eu tive um sonho e esse
sonho pesou muito em mim. Eu não falei para a minha esposa, para
ninguém, o que eu sonhei. Esses dias eu estava sonhando com o meu
avô. O meu avô saía, estando lá (na terra onde ele nasceu). Eu sonhei,
então a imagem dele está comigo. Eu falei para a minha mãe: Eu vi hoje
o meu avô; só que ele estava vestido em mim”. (Cacique Elpídio Pires,
em Potrero Guassú, agosto de 2016. grifo meu).

Pensar a especificidade de uma noção de imagem que é visão onírica, que revela que “a
imagem dele está comigo”, compreender o que é “ele estava vestido em mim”, implica afirmar
que existe aqui uma concepção específica de imagem. Para os guarani, o sonho tem um lugar de
revelação de mensagens a serem interpretadas e postas em ação nas relações hodiernas. Aexa
ra’ú, hoje eu sonhei, dizem. A experiência onírica é fundamental na iniciação xamânica, é nos
sonhos que se aprendem os cantos. Mattos (2005) descreve a dimensão do orendu, saber escutar
nos sonhos, dimensão fundamental da aprendizagem; Refatti (2015), que estuda a aldeia Oco’y
localizada sobre as margens do Rio Paraná, em área alagada pela Usina de Itaipu, também o
sublinha. Há uma áudio-visualidade relacionada à revelação dos que vieram primeiro. Assim, a
linguagem do cinema e o universo do xamanismo compartilham a ideia de uma virtualidade da
imagem que afeta e produz.

Os guarani concebem o sonho como o realmente visto, os rezadores são os especialistas


em sonhar para ver, são os que sonham as evidencias necessárias para pautar o fazer. “Os sonhos
proféticos dos xamãs são cheios de evidências visuais” (Kracke, 2009:70). “Os cognatos do
termo ra’ú abrangem as noções de figura, por exemplo, em oga ra’úva (a figura de uma casa);
se alguém sonha com um peixe, pirá ra’úva. Ou, incluem também as ideias de alma, espírito, ou
força vital. O radical ra’úv indica também o fantasma ou espírito do morto”. Em guarani antigo,
a forma ra’ú (Kracke, 2009) envolve previsão, prognóstico.
O sonho verdadeiro (ou bom) produz a visão – quando o corpo voa, passeia. Para a alma
passear é necessário ter o corpo leve, acreditar. Os guaranis relacionam sonhos e narrativas míticas
ao narrarem o passeio visionário da alma. Nessa concepção, o sonho é real, portador de sinais que
são recomendações para a vida concreta, cotidiana, implica em agir ou não. Nimuendajú (1987)
observou entre os apapocuva guarani a importância dos sonhos e sua interferência na seleção do
lugar para viver. “O sonhado deve ser cantado até o amanhecer, o que atrai os Guarani para a
casa do sonhador, quem sonha sabe e pode muito mais do que aquele que não sonha, o sonho é
expressão de poder” (Nimuendajú, 1987).
Os sonhos não só são prognósticos de acontecimentos como possibilitam ou evitam
determinadas ações cotidianas. Todos sonham e de alguma forma todos tem um pouco de xamã
no sentido que Kracke (1990) dá ao termo. Para o autor: “qualquer um que sonhe, dizem, tem um
pouco de xamã: tem um pouco de pajé” (Kracke, 1990: 146, tradução nossa). Para ele, o sonho
é um meio importante não só para captar a realidade, mas, sobretudo, para atuar dentro dela
(Kracke, 1990).
A lógica do mito tira o passado do lugar da memória, sem deixar de operar no campo da
história. O tempo dos primeiros é simultâneo e atua sobre o presente, determinando inclusive o
campo das alianças. Mito e história aqui não mais se opõem. Como no xamanismo, as relações de
alteridade – não apenas como mundo do branco – são centrais e organizam a vida, são lugares de
perigo. A composição entre mito e história do contato revela como a cosmologia é aberta e campo
de operação de composições. Observo como os guaranis incorporam os dados históricos ao mito,
incorporando o outro em seu sistema de conhecimento. Além disso, pensar a diáspora Guarani
implica em associar o princípio cosmológico do caminhar (oguatá) ao processo histórico de
desterritorizalização organizado pelas entradas coloniais nas terras do Brasil Central em direção
ao Paraguai.
As relações do xamanismo com as tecnologias de produção de imagem já foram apontadas
e destacam o interesse pelas técnicas do branco (Ferreira, 2009), como experiência visionária
ou “pensando como as culturas acessam a dimensão virtual da realidade” (Santos, 2013:58).
No tempo do ritual, assumir a voz do outro: vocalizar o inimigo, o ancestral, incorporar suas
presenças. “O sonho não “serve à consciência numa relação de utilidade como se pode deduzir
(e como parece fazer Meliá). O sonho é o próprio caminho, a própria linha de fuga. Ele é o eixo
perceptivo para onde deve ser conduzida a consciência e não o inverso/contrário” (Mattos, 2005).
A partir dessa experiência de produção audiovisual, pensamos a imagem como campo das
relações de alteridade. As cosmologias ameríndias das terras baixas da América do Sul apontam
uma força incrível de resistência a séculos de expropriação. Elaborar as alianças potenciais é
forma de devir outro; nessa concepção, a aliança é o que define as condições intensivas do sistema.
Cabe entender quais são as imagens produtivas, realizadas em quais situações, a partir de quais
relações, entre que diferenças intensivas.

Dominar a tecnologia do outro

Nessa investigação, o processo cinematográfico encontra a especificidade de uma noção


de imagem potente, criadora e polissêmica, armada a partir do universo conceitual próprio aos
guarani. Primeiro, realizei oficinas de vídeo nas aldeias da região durante quatro anos, momento
em que pude observar a facilidade com que os jovens aprendem a manejar a câmera de vídeo e
o interesse que a nossa presença (e a dos equipamentos) gera nas aldeias. Diferentes gerações
se aproximavam atentas e disponíveis, os rezadores vinham para abrir e fechar os trabalhos
diariamente.

O jovem realizador Kiki Kaiowá, que acumula experiências como ator e realizador de
cinema, participante da Associação Cultural de Realizadores Indígenas (ASCURI), confronta os
saberes do branco e os dos guarani. Kiki Kaiowá, em Gradella (2015), diz, durante a realização
das oficinas ministradas na aldeia Pirajuí/MS, em 2014:

1. “Tinha uma Luz e uma Cruz”. [Sentado em um colchonete, estende os dois


braços para o alto]. Bem no começo – fala com aquele tom que remete a algo
distante –, o deus dos Juruá... – Faz um gesto em direção a Pedro. O deus
de vocês, pegou a luz. É por isso que vocês fizeram o computador, a câmera,
o trator, o cinema. O deus de vocês pegou a luz e assim que vocês fazem
essas coisas, sabem mais que a gente como fazer elas todas – aponta para o
notebook, ao lado do seu colchonete.
2. O nosso deus pegou a cruz ele segurou a cruz – gesto firme de cerrar o punho,
um dedo por vez, como pegando a cruz no alto. Isso, faz a gente saber das
rezas, saber muitas, saber dos cantos das rezas, das historias – gestos largos
enquanto fala, pontua com o dedo batendo no chão – as histórias.
3. A reza que o nosso deus ensinou era pra gente ir para a terra sem mal! Não
para ficar aqui, assim, mas o erro foi nosso, o erro foi nosso mesmo. Tinha
que rezar todo mundo junto, na mesma hora, para ir, mas não foi, não foi
todo mundo, quatro, de nós mesmos, não rezaram, saíram, viraram de costas,
assim foram fazer outra coisa. É nosso erro mesmo, por isso a gente não foi,
por isso a gente está aqui assim, por isso a gente reza ainda, a gente sabe
muito disso, e vocês de trator, avião, computador...” (Gradella, 2016).
4.

O mito da origem comum que produz um desequilíbrio inicial devido à desigual distribuição
das tecnologias está presente nessa fala de Kiki. Essa concepção do erro dos que não estão unidos
para irem juntos à terra sem mal, me parece ser a versão Kaiowá do mito, não a escutei nunca
entre os Mbya ou os Guarani Nhandeva da região. Mas importante para o nosso argumento é notar
como essa desigual distribuição das tecnologias é fundante das diferenças postas em relação nas
oficinas de vídeo. Trata-se, nesse espaço, de aprender o saber do outro, atividade próxima da do
xamã.

O saber do outro é também o de outras espécies, das ervas, e demais plantas que nos sabem
curar. O saber do xamã é o que domina este campo de conhecimentos. Constatei o fascínio pela
tecnologia que passa pelo desejo de incorporar o saber do karaí. O saber do branco deve ser
conhecido, aprendido, apropriado.

A antropologia produzida sobre a Melanésia fez a discussão sobre a apropriação de


linguagens e instituições do mundo do branco pelos nativos, na literatura sobre os chamados
cargo cults. No filme etnográfico Trobriand Criquet (Kildea, 1974), o cineasta australiano, Gary
Kildea, nos apresenta com riqueza de detalhes o caso da apropriação do criquet britânico sob a
cosmológica trobriandesa. Em A lei de Koriam e a morte que governa (Koriam’s law and the
dead who governs, Kildea, 2005), o autor nos mostra a apropriação do dinheiro e da burocracia no
culto dos ancestrais mortos e como se organiza, a partir dessas apropriações, toda uma estrutura
política territorial própria Kiwung.

Conheci o cacique Elpídio Pires na audiência da Comissão Nacional da Verdade em


Dourados, na UFGD e minha primeira impressão ao ouvi-lo foi marcada pela força de sua palavra.
A palavra guarani, nh˜e’é, é ela mesma a alma, que se manifesta ao falar. Seu Elpídio tem o dom
da palavra, diz. Há que se compreender essa afirmação no contexto do sistema cosmológico
guarani e das relações de apropriações várias de noções sobretudo do cristianismo disseminado
na região há séculos por meio das Igrejas de diferentes denominações. Ele se altera quando fala,
seus discursos são tão potentes que chamaram a minha atenção desde a primeira vez que o ouvi
falar entre muitos outros.

A segunda vez que nos encontramos foi na oficina de vídeo que realizamos na aldeia Pirajuí,
situada no município de Paranhos/MS, na fronteira paraguaia. O cacique Elpídio, vizinho e ex-
morador de Pirajuí, acompanha os primeiros dias do FIDA, fórum de inclusão digital realizado
pela ASCURI, associação de jovens indígenas produtores de vídeo, sobretudo Guaranis, Kaiowás
e Terena. Dirigido pelo cineasta boliviano Ivan Molina, o encontro reunia jovens de diferentes
aldeias da região do cone sul do Mato Grosso do Sul. Realizamos aí uma série de vídeos, fruto
do encontro entre pessoas de diferentes origens, falantes do guarani, em reflexão sobre suas
experiências comuns. Nessa ocasião, visito a casa de seu Elpídio, em Potrero Guassu, e gravamos
uma entrevista.

Anos depois, o Sr. Elpídio vem ao Rio de Janeiro, após sofrer um atentado em sua aldeia,
na retomada das terras chamadas Koenju (parte da área reconhecida pelo laudo do processo de
demarcação da aldeia Potrero Guassu). Em 2016, o encontrei de novo, no Laboratório do Filme
Etnográfico da UFF, quando organizamos o evento Ato-Palavra Guarani, ele nos diz:

5. Eu aprendo com vocês, tirando de vocês a experiência, assim foi a minha


educação, o que me passou meu pai. Como índio, eu sou selvagem, cada um
tem que pegar a sabedoria, a experiência, a sabedoria do branco. Eu tenho
que conquistar o branco para eu poder andar. Eu tenho que conquistar o
branco, eu tenho que conquistar a autoridade. (Seu Elpídio, no Laboratório
do Filme Etnográfico/UFF, 2015).

E, um ano depois, no momento das gravações de Nhande Ywy, em sua casa, ele retoma o
tema: “Meu pai me dizia: Tenho dois conhecimentos: o do Branco e o de, assim (gestualiza uma
forma redonda com as mãos), o de um analfabeto”. A definição pela falta (em alguém que não
sabe escrever) indica já a hierarquização produzida pelo processo em que o reconhecimento, pelo
mundo do branco, dos saberes guaranis não se dá. Indica a falta de categorias em seu repertório
de nossa língua para nomear os saberes de seus antepassados, arandu seria o termo em Guarani
(que ele não utiliza). Conhecer o saber do analfabeto é o que nos falta. A história do despojo
territorial já conhecemos.

A imagem não imita o mundo, ela cria a possibilidade de ver diferentemente.

A ação política guarani que conduz as retomadas passa por esses diálogos com os mortos,
os ancestrais, que são pensados como nhande jara, nossos donos, os criadores do planeta, os
que verdadeiramente detêm a força de fim de mundo, esta que a história colonial não cessa de
comprovar. O fim trágico, dos contos de fim de mundo que Nimuendaju relata, está presente
nas histórias que os guarani contam hoje. Sua potência trágica lhes dá repertorio cultural para
lidar com a situação de enclausuramento e conflito nas reservas ou de risco nas retomadas. Essa
cosmovisão trágica dá a força às narrativas de sua profunda relação constituinte com a terra.

O que se aprende gravando

Discuto aqui a experimentação realizada nos processos de filmagem e edição do filme


Nhande Ywy/Nosso Território, retomando as relações entre a concepção guarani de imagem e
o processo fílmico, interrogando as possibilidades do filme etnográfico no diálogo com outras
ontologias. Temas de etnologia indígena estão mesclados com os debates sobre reflexividade na
produção antropológica do conhecimento em um processo de pesquisa mediado pelo vídeo entre
os guarani da fronteira paraguaia.

No campo realizado durante o mês de agosto de 2016, a presença da câmera era discutida
e defendida pelo cacique Elpídio, que introduziu a minha presença na aldeia, apresentando-me
a todos os moradores, recomendando que aprendessem a manejar a câmera, que isso seria útil a
eles na luta pela terra e que dessem demonstrações da cultura – decidi incorporar essas sequencias
em que ele reflete sobre a importância da câmera e da imagem que pode circular para fora, falar
com o outro, na sequencia de abertura do filme. Os seus parentes de outras casas – tios, primos,
irmãos adultos, pais, sobrinhos – me olhavam descrentes.

No dia seguinte, aparece uma cobra verde saindo de dentro da árvore que faz sombra à casa
do cacique e de seus filhos homens. Mboy hovy, gritavam as crianças; seu Elpídio vem rápido,
a cobra passeia pela árvore e desaparece, sinal de poder. A cobra verde dizia algo. Depois, os
jovens chegavam de várias casas e observavam atentos a operação da câmera, idosos chegavam
para oferecer seus depoimentos, disparou-se a produção da chicha e as noites com seus cantos-
dança; os ancestrais haviam sinalizado que, na guerra, a kunhã karaí (a mulher branca) pode ser
uma aliada.

Numa noite de visualização de fotos e vídeos produzidos na oficina, realizada dois anos
antes na aldeia Pirajuí, reserva vizinha, depois de verem três dos filmes realizados por seus amigos
e conhecidos, os jovens de Potrero começam a tirar os chips de seus celulares para mostrar as
gravações que haviam feito no momento do atentado a bala sofrido por seu Elpídio, no ano anterior.
Os registros mostravam a retomada, momento em que avançavam sobre a área já reconhecida
pela Funai (e a presidência da república nunca demarcara), cuja ocupação ainda não se efetivara
porque o fazendeiro os ameaçava e ocupava a terra com homens armados. As imagens de celular,
captadas por um jovem de 13 anos, registram o tiroteio do ponto de vista dos meninos que estão
na retaguarda do conflito. A câmera totalmente incorporada se esconde atrás das árvores, rasteja
pelo capim, comenta o que passa no conflito armado. Essas imagens vibram diferentemente das
outras em que eu opero a câmera.

De fato, esse olhar é outro. As imagens guaranis contrastam com as minhas por um olho
mais incorporado, que ao arrastar-se ou esconder-se, escapa aos tiros que ferem o senhor Elpídio,
um ano e meio antes do momento em que o meu olhar assume a câmera. Esse fragmento de
imagem é feito por um pequeno soldado no front de batalha, que, na sequência anterior, narra a
“entrada” na terra, antecedida por quinze dias de reza. Para a retomada, os Guarani se preparam
com jeroky, os cantos-dança, mobilizando no encontro com o canto dos primeiros, a missão de
recuperar seu território ancestral.

O nhande reko (nosso modo de vida) se deu a ver, na produção da chicha, que deixaram
filmar e que fiz de forma didática. A orientação do cacique aos moradores da aldeia de performar
a cultura para a câmera produziu uma longa explicação sobre as interdições às mulheres e a ideia
de pureza feminina, necessária para que a chicha não estrague. Trata-se de uma bebida pura ou
sagrada, a bebida que conduz as festas ou danças.

Filmar entre os guarani me ensinou a ser conduzida, num processo de aprendizagem em


que um discurso coletivo vai se constituindo, ao longo dos dias, a partir da relação dos nhandeva
com esse olhar que veio de fora. O dar-se a ver produz novas reuniões e alianças, performances
coletivas, relações com os ancestrais, xamanismos; mostrar-se exige organizar o repertório
mobilizado na explicação cosmológica do conflito pela terra.

A montagem

Nhande Ywy abre com o cacique discutindo a presença da câmera na aldeia, argumentando
como e por que poderia interessar o vídeo. Optei por narrar a introdução da câmera que também
pauta o tema do filme: a luta guarani pela terra.

Meu intento de tematizar a imagem, resulta sempre numa relação com o tema da retomada.
A visão do sonho se relaciona à presença dos ancestrais no território (a ser) retomado. O invisível
é referido, a visão do sonho é contada pela longa história na roda de mate à noite. Da história
das retomadas na região à visão do avô morto “vestido” no cacique que narra o sonho, vamos da
história à vitalidade da cosmologia.

No roteiro de edição de Nhande ywy então aparecem duas narrativas articuladas: a da luta
pela terra e a das agências presentes no grande território guarani, de ambos os lados da fronteira.
Estas narrativas são indissociáveis, no sentido em que o território guarani é repleto de outras
presenças.

A longa sequencia da roda de terere em que o cacique Elpídio nos fala dos pohan – os
remédios do mato, articulando sua fitogeografia à experiência da colonização do branco e seus
tratores e hospitais –, termina por apresentar os nhande jara (nossos donos) e sua agência na
provisão do que é necessário à vida nhandeva (da nossa gente). A roda do mate/ka’a conduz
o formato da conversa. Orendu, a escuta, é um caminho de aprendizado, o respeito à palavra
guarani e ao seu ritmo tensiona com o trabalho de montagem.

A espera pela tradução fina do guarani para a língua portuguesa, feita por Alberto Alvarez,
que é outro interlocutor da pesquisa, gerou um primeiro corte longo de duas horas e vinte minutos,
ainda bastante linear. Nessa primeira forma, apresenta-se com rigor como a aldeia se produziu
para a câmera e como o diálogo foi evoluindo ao longo do tempo de gravação e como a produção
de performances foi conduzindo ao tema da luta por Nhande Ywy.

No segundo corte – que dura cerca de meia hora –, um trabalho de seleção e de articulação
temática, apresenta as concepções dos guarani, que são as flores dessa terra. Da agência dos
donos (nhande jara) à visão do ancestral no sonho (“ele estava vestido em mim”), que dita que a
luta é esta, a percepção da justeza das retomadas se constrói.

Em Nhande Ywy o trabalho de som ainda é muito inicial e vai no sentido de criar comentários
sonoros que indiquem a presença dessas forças, dessincronizando o som do mbaracá, com inserts
sobre algumas sequencias importantes da narrativa. Esta dessincronização é montada na sequencia
de entrar na terra (que está na abertura do filme) e na da preparação da chicha; estas são buscas
pelos espaços em que a cosmologia evidencia a metafísica em ação que queremos dar a ver.

A edição dos cantos-dança, momento de comunicação com as mensagens dos “primeiros”


– entoadas pelos nhanderus que cantam às noites – , respeita o ritmo dos cantos-dança dos jovens,
homens, mulheres e crianças que duram toda a noite, numa dimensão de comunicação com essa
esfera virtual do eterno que mobiliza a presença dos “primeiros”, aqui, nesse agora. Os conselhos
dos ancestrais são cantados, nos porahey nhandeva. Busquei apresentar a sensação de aquecimento
corporal que se experimenta com aceleração do pulso da música, nos planos cortados a seco.

As imagens de celular gravadas em combate um ano antes são montadas na sequência


do testemunho dos meninos que participaram do evento e o narram. Esse insert pretende ser
um ponto climático, sucedido pela fala da irmã do cacique sobre a ausência dos bichos ou do
direito ao alimento guarani nhandeva. A disputa pela beira rio em Potrero/Koenju indica o que
é essencial, uma aldeia guarani não se faz sem proximidade à água. Terra que se disputa com o
branco, que faz seus pastos, com poucas cabeças de gado. Os guaranis pescam nesses rios há
muito. Depois disso, o senhor Elpidio fecha o filme, apresentando a terra retomada e narrando os
seus combates, o que só lhes dá força.
Dos seguintes passos da pesquisa

Essa pesquisa continua para além desse primeiro filme Nhande Ywy/Nossa Terra; no
projeto, o segundo filme faz a viagem em que se pretende dar a ver o território (invisível porque
não delimitado), revelando as agências dos “primeiros” sobre o grande território Guarani. Nesse
projeto, a busca é que a ontologia nhandeva se apresente desde dentro.

Desde a região da tríplice fronteira, em Sete Quedas, moradas sagradas dos ancestrais com
caminhos secretos por baixo das quedas, até os refúgios, paradeiros pelas margens do Rio e a
referência ao transporte fluvial no momento do ciclo econômico do Mate, vários são os índices
da caminhada nhandeva por essas terras de fronteira. As águas mágicas no Paraguay, a Laguna
San Antonio, que foi aldeia, os restos das missões jesuítas, que duraram mais do lado paraguaio.
Essas pistas pautam o trabalho porvir no reconhecimento do território sagrado, com os guarani,
desde a Serra de Mbaracaju (Maracaju), no MS, a Salto del Guairá, do outro lado do Paraná, isto
é, da fronteira. Apresentar a cosmopolítica da imagem guarani passa por reconhecer as presenças
dos ancestrais (espíritos, mortos e animais) nessa terra do início do mundo que é o Paraguai
quando visto pelos olhos guarani.

O detalhamento do argumento deve incorporar um plano de produção a ser detalhado com


os nhandeva, na aldeia. A direção do trabalho se deixa conduzir, como na dança, pelo outro.
Referências bibliográficas

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Reunião Brasileira de Antropologia. ABA, 2016.

Filmografia discutida

FERRAZ, Ana Lúcia. Nhande Ywy/Nosso território. Niterói, LAB/UFF, 2018.

Ana Lúcia Ferraz - Antropóloga e realizadora de filmes etnográficos, vem de-


senvolvendo metodologias de diálogo etnográfico mediado pelo vídeo com grupos
guarani. Estudou também grupos urbanos, favela, trabalho e teatro. É professora do
mestrado em antropologia visual da FLACSO-Equador e coordenadora do Laborató-
rio do Filme Etnográfico da UFF.
32. Duas pedagogias ou o cinema como abertura para o outro

Samuel Leal

Introdução

É notável na produção audiovisual xavante certo regime imagético pedagógico, que reflete
em grande medida a organização social desse grupo indígena. Tal pedagogia das imagens decorre
de uma característica que define tanto o modo dos Xavante se relacionarem com o conhecimento
tradicional, como a maneira de atualizaram as relações sociais internas e de fazer política com o
não-indígena.
Refiro-me à grande importância dada aos elementos estéticos visuais e performáticos das
cerimônias rituais. O domínio desses detalhes, que determinam desde as formas dos ornamentos
até a sequência geral das cerimônias, é um pré-requisito, por exemplo, para a escolha do mestre
do ritual, cargo de grande importância política. A observação a tais sequências é também fun-
damental para a eficácia do ritual, que não atingirá seu objetivo caso não seja bem executado. A
própria noção de cultura xavante é definida em grande parte por esse conjunto de práticas mate-
riais e simbólicas.
Para o problema que nos interessa aqui, porém, o aspecto mais significativo dessa meticu-
losidade na organização dos elementos visuais e materiais dos ritos é seu impacto na forma de
fazer política para fora da comunidade. Desde que os Xavante passaram a dominar a produção
audiovisual, uma história que remonta ao envolvimento com o Vídeo nas Aldeias (para a qual não
há espaço aqui, mas amplamente conhecida), fazer filmes tornou-se uma das modalidades mais
importantes de política intercultural. Nesses filmes, os rituais são o tema por excelência. Esse
fato decorre do lugar central que a vida ritual possui na estrutura ritual xavante, por ser o lugar de
atualização das posições sociais.
Quando se trata de relação política por meio de imagens, os aspectos estéticos que carac-
terizam esses rituais ganham grande importância. E quando falamos de peças audiovisuais que
procurar afirmar a importância política da identidade xavante no contexto nacional, aquela meti-
culosidade mencionada anteriormente acaba conferindo esse regime pedagógico que atribuímos
a certas imagens nos filmes xavantes.
É a partir desse contexto, de grande controle do processo de transposição da cultura em
imagem, que falarei do filme Oi’ó : a luta dos meninos (Caimi Waiassé, 2009). Meu objetivo é
pensar como acontece o desdobramento de dois regimes pedagógicos distintos, ligados a diferen-
tes regimes da imagem.
Oi’ó é uma produção feita em parceria com a ONG Nossa Tribo, especializada em
produções culturais feitas em parceria com povos indígenas. As imagens foram gravadas na aldeia
Etenhiritipá, na T.I. Pimentel Barbosa, estado do MT, a cerca de 1200 km ao norte de Brasília. O
material bruto é um registro feito pela própria comunidade, sem a intenção inicial de produzir um
filme, mas criar um arquivo de imagens para preservação da memória do ritual. Posteriormente
surgiu a ideia de buscar a ajuda da ONG, parceira da comunidade de outros projetos, para montar
um filme. O objetivo era divulgar para fora da aldeia às tradições locais, mais especificamente o
ritual que dá nome ao filme. A montagem do filme foi viabilizada por meio de um edital da Secre-
taria Estadual de Cultura de São Paulo. O processo de edição foi feito na Universidade Metodista
de São Paulo, sob a direção de Caimi Waiassé e Jorge Protodi, outro morador de Etenhiritipá,
com o auxílio de técnicos da universidade.
Oi’ó é o nome de um ritual do qual participam os meninos pequenos, desde a primeira
infância até a pré-adolescência. A partir do momento em que podem ficar de pé e segurar um
objeto com firmeza, um menino já está habilitado a participar da cerimônia. Trata-se de uma luta
em que as crianças se enfrentam com um talo da raiz da planta que dá nome ao ritual.
O oi’ó se repete todos os anos, e marca toda a infância de um menino xavante. Ele é uma
forma de preparação para a entrada no ciclo ritual de iniciação à vida adulta. A cada repetição
um grupo de meninos participará pela última vez, o que implica a perda dos seus nomes, a saída
da casa da família e a ida para o hö, uma casa especial construída fora do semiarco que forma a
aldeia tradicional xavante, onde todos esses meninos viverão juntos pelos próximos cinco anos.
A explicação do lugar do oi’ó no funcionamento do sistema etário é uma das preocupa-
ções centrais do filme. Trata-se de uma característica da maneira xavante de se relacionar com o
não-indígena, que chamam de waradzú381. Toda produção cultural voltada para fora das aldeias é
feita nesse contexto. Por isso, o objetivo inicial desse, e outros filmes, é de apresentação de uma
autoimagem.
A leitura que proponho é ressaltar como o pacto inicial com o espectador, baseado em uma
pedagogia rígida das imagens, se transforma quando o filme atinge seu clímax. Ao trazer o es-
pectador para muito perto da ação ritual, o filme rompe com os limites dessa primeira pedagogia
e se abre para possibilidades expandidas de contato intercultural, o que entendo ser uma segundo
regime pedagógico no filme. Com isso, o espectador é pego de surpresa e passa por um processo
de desconstrução similar ao que acontece no ritual filmado. O que está em jogo aqui são as expec-
tativas do espectador quanto à alteridade que se apresenta. O encontro que ele espera não é o que
ele vive, e com isso o olhar se transforma com o filme, se abrindo para uma alteridade imprevista.

381 Waradzú é a palavra utilizada pelos Xavante para se referir ao não-indígena. Trata-se de um termo que marca
uma oposição precisa entre formas culturais distintas, ao mesmo tempo aproximando os Xavante dos demais povos indígenas
e dando conta das complexas formas culturais que constituem a sociedade que os circunda. Embora seja traduzida geralmente
por “homem branco”, preferimos utilizá-la no idioma original para manter essa complexidade na definição da alteridade que a
tradução simplifica excessivamente.
Segredo: primeira pedagogia

A escuridão é a primeira coisa que o filme mostra. Um barulho que não podemos identificar
de imediato acompanha o negro do quadro. Depois um foco de luz no centro do quadro permite
entrever o movimento de algo que não é possível identificar logo de cara, mas que parece ser a
origem do som que já era ouvido. O foco de luz oscila na escuridão e percebemos que se trata de
mãos que esfregam os cabelos de uma criança.
Há um segredo que é guardado na escuridão e que a câmera se esforça por revelar. Esse
segredo é revelado aos pedaços, aos poucos. Os planos seguintes aos poucos vão alargando esse
foco de luz que revela os corpos na escuridão, sempre aos pedaços; são mãos que preparam esses
corpos, pintam, amarram, esfregam, manipulam tintas, cordas e pincéis, desenham padrões na
pele e nos cabelos. Aos poucos percebemos também que estamos em um ambiente masculino.

Diálogos são ouvidos e permitem deduzir mais do contexto: homens mais velhos pare-
cem ensinar algo às crianças. “Onde você vai bater?”, pergunta um adulto. “Aqui, aqui mesmo.
Aqui embaixo”, responde o menino, apontando para a própria costela. Alguns planos adiante um
adulto comenta como a pintura do menino no quadro está assustadora. Logo depois, ele diz a um
segundo menino que o primeiro não o faça chorar. Esses diálogos desvelam uma nova camada do
segredo que o filme se propõe a revelar: essas crianças estão sendo preparadas para um conflito,
provavelmente físico, violento, que pode inclusive fazê-los chorar.
Finalmente surge o narrador: “Presta atenção. Essa raiz dói bastante. É uma tradição Xa-
vante muito antiga. Você vai sentir dor, mas não se concentre na dor”. A intenção da voz é menos
explicar que aumentar a expectativa, valorizar o mistério. Há um tom solene que compõe uma
performance de abertura com o título que surge logo a seguir. Mesmo com o nome do filme enun-
ciado, o espectador não sabe ainda onde está. A primeira sequência quer criar uma expectativa a
partir desses pequenos pedaços de informações, alimentando um certo medo: que dor é essa que
pode fazer os meninos chorarem? Porque é preciso resistir a ela? O que é essa raiz? Qual sua
relação com essa luta?
Os planos seguintes finalmente apresentam o tema do filme. A escuridão dá lugar à clarida-
de. O ambiente fechado se abre até o horizonte. As imagens introduzem o espaço em que vivem
as pessoas filmadas, as plantas, os animais, a serra. O narrador explica que se trata de um ritual
e qual o seu lugar no sistema etário xavante. A última imagem é de dois meninos em pé sobre
uma grande pedra enquanto o plano se abre para mostrar a amplitude do território. Com isso, a
montagem sintetiza o que foi mostrado até aqui e dá o tom do que deve ser a narrativa: mostrar a
relação das pessoas com o lugar e como isso implica uma forma específica de viver.
Toda essa sequência inicial desenha um movimento que estará presente no filme de forma
geral. Há um convite para a proximidade do olhar, que busca o tempo todo entender o que é esse
espaço, o qual é convidado a habitar. Há uma organização da montagem que joga com as noções
de segredo e intimidade de forma a fazer o espectador se permitir ser afetado pelas imagens.
Trata-se da enunciação do lugar de onde o filme quer falar e da forma como se quer estabelecer o
contato com o espectador.
Feito isso, a montagem se permite um certo afastamento, que ira funcionar como um dis-
positivo didático que desvelará pouco a pouco os segredos enunciados na abertura. Passa a pre-
dominar uma narrativa que se articula sobretudo nas entrevistas e na voz off do narrador. Tudo
acontece sob a luz do dia, sempre ao alcance do olhar. A operação agora é de sistematização e ex-
plicação. Há uma insistência recorrente por parte do narrador em enfatizar uma função do ritual
que o filme deseja deixar muito clara para o espectador: um dispositivo prescritivo dos modos de
ser e agir.
Trata-se de um discurso que se dirige, num primeiro momento, aos próprios meninos, e,
portanto, o estabelece uma conversa interna à comunidade. No entanto, o filme também se dirige
ao público de fora da aldeia, sejam outros indígenas, sejam os waradzú. Entre essas duas esferas
o filme faz um jogo duplo: ao enunciar o que se espera que um menino faça e seja no seu cami-
nho para a vida adulta, também se enuncia o que se espera que um Xavante seja de modo geral.
Isso coloca em operação a pedagogia de uma identidade desejada, que estabelece parâmetros de
pertencimento e visibilidade para a cultura Xavante no mundo contemporâneo.
Esse jogo entre esferas local e global é uma característica do processo de performatização
da identidade étnica que Manuela Carneiro da Cunha descreve como a criação de um espaço de
meta-narração da cultura em “cultura” (2009:362). Trata-se de uma camada reflexiva das identi-
dades onde acontecem as operações propriamente políticas na disputa pelos modos de visibilida-
de. A variação entre tais esferas no filme é sutil e se constrói, sobretudo, na tensão entre as ima-
gens e a voz do narrador: enquanto as primeiras ganham intensidade na medida em que se deixam
afetar pelo ritual, a segunda interrompe a todo momento essas pequenas irrupções de afetos, as
sistematizando em um fluxo informações coerentes. Aproximação e sistematização são os modos
de fazer variar essas esferas, falando respectivamente para dentro e para fora da comunidade.
Nesse sentido, aquela primeira pedagogia é o ponto de partida do filme para a criação desse
espaço meta-narrativo. Ela estabelece uma narrativa fílmica pensada como auto-etnografia, que
se aproxima formalmente das etnografias tradicionais, mas se pretende mais autêntica por falar de
dentro da comunidade. O dispositivo que se limita a transmitir informações mantém o espectador
em uma zona de conforto que permite um olhar passivo. É somente a partir do segundo terço que
o filme começa a introduzir algumas perturbações nesse pacto inicial.
Tal movimento começa com a imagem de um velho que esfrega uma infusão de ervas nos
corpos dos meninos, dizendo ser para fortalecer o vigor e a resistência. Uma entrevista com um
desses meninos oferece um contraponto à fala do velho, trazendo um detalhe que o adulto escon-
de: há formigas vivas misturadas às ervas. Por outro lado, a sequência imediatamente posterior
a essa entrevista mostra de novo o velho e os meninos em um enquadramento um pouco mais
aberto. A câmera busca uma composição que compreenda os dois corpos. Agora podemos ver
melhor o rosto do velho e com isso a relação entre os corpos em cena se complexifica. Por trás
do discurso duro, de um lado, e temeroso, do outro, há um afeto carinhoso na forma com que o
velho fala às crianças e nos sorrisos sutis que surgem nos rostos.
Esses detalhes carregam as imagens de uma certa intimidade, como se os segredos do
filme já tivessem sido suficientemente revelados. A montagem se aproxima do espectador, o faz
sentir um pouco em casa. Paradoxalmente, esse movimento de aproximação é também o início
da desestabilização daquele lugar passivo do olhar. O filme começa a funcionar em um operador
de sentido diferente: saímos do segredo para entrar no regime da proximidade. Tal passagem já
estava enunciada na introdução, mas é somente a partir das cenas das lutas que começa a deses-
tabilização do dispositivo pedagógico baseado na voz impessoal do narrador.

Proximidade: segunda pedagogia

Uma voz off surge sobre um horizonte recortado pelo sol nascente: “Na noite anterior,
nós dormimos cedo. De madrugada, nossos pais nos preparam para a luta, que acontece antes do
nascer do sol”. A claridade de toda a primeira parte do filme dá lugar à penumbra que antecede a
aurora. A sequência nos remete à abertura do filme’. A luz é um pouco mais intensa a cada plano,
que são sempre curtos e se sucedem rapidamente. Vemos a composição do espaço da luta, uma
roda formada pelos meninos, seus pais e tios. Subitamente o narrador enuncia: “A luta é muito
importante. A maneira como o menino luta mostra se ele será bom guerreiro e caçador. É lutando
que eles se fortalecem”. Então as lutas começam.

Esses planos funcionam como uma transição entre regimes de imagem. O primeiro impac-
to para o olhar é o retorno da escuridão, mas que dessa vez não quer esconder nada. Trata-se da
aurora que se anuncia, que quer revelar ao invés de ocultar. Outra mudança importante é o deslo-
camento da voz do narrador para os relatos em off em primeira pessoa. Esses dois modos de fala
oscilam, ora indicando uma experiência íntima e direta com o ritual filmado, ora recuperando o
tom esclarecedor do narrador da primeira parte. É como se houvesse dois narradores que dispu-
tassem a predominância: de um lado o realizador indígena que quer falar com o público waradzú,
este espectador que busca no filme a imagem de uma alteridade; por outro lado, o morador da
aldeia que de certa forma revive suas próprias lutas passadas enquanto mostra seus filhos e so-
brinhos se enfrentando. Este segundo narrador irá pouco a pouco ocupar o espaço do primeiro.
Enquanto isso, os planos se sucedem rapidamente como se tivessem pressa para chegar
ao momento máximo da cerimônia. O regime da proximidade no filme se articula, sobretudo,
em torno das cenas das lutas. Nesse primeiro momento, a câmera guarda alguma distância dos
lutadores enquanto as vozes off descrevem as experiências individuais: “as pancadas são bastante
doloridas”; “tem hora que a dor é insuportável”; “ficamos até sem fôlego”. Em seguida o narra-
dor vem generalizar o relato pessoal: “Os meninos aprendem a resistir à dor e a superar o medo.
Aprendem a respeitar os outros. Aprendem a seguir regras”.
Um segundo movimento de montagem aproxima ainda mais o espectador do ritual: são
mostrados os desafios entre os clãs, a definição das duplas que se enfrentam, as mães que riem e
fazem comentários, planos próximos dos rostos dos meninos e a câmera que pela primeira vez vai
ao centro do círculo. As vozes cedem lugar aos impactos dos golpes e aos gemidos dos meninos.
O espectador começa a ter real dimensão da dor conforme as lutas ganham intensidade. Uma vez
mais o narrador retorna para repor o tom didático, mas suas intervenções encontram cada vez
menos espaço: não há mais o que ser explicado, as regras estão claras, a experiência do olhar cada
vez mais é direcionada para os afetos mobilizados nas lutas.
“A dor que nós sentimos, só nossa mãe sente igual”. Essa frase é dita por um entrevistado,
cuja voz entra em off sobre um plano das mães que assistem interessadas a luta, logo após um pla-
no fechado sobre o rosto de um menino que chora dolorosamente. Trata-se de uma voz que rompe
radicalmente com o narrador. Ela fala desde uma dimensão íntima com o acontecimento, propõe
um contato menos mediado com a cultura que o filme quer apresentar. Poderíamos objetar que
há um conflito entre o apelo emocional da frase e a aparente tranquilidade das mães nas imagens.
Entendemos, no entanto, que essa frase funciona quase como uma armadilha para o espectador,
um dispositivo de identificação que surge no meio da desestabilização operada pela violência das
imagens. Trata-se de um falso porto seguro. Essa frase concretiza a mudança de regime de ima-
gens, o filme passa a operar definitivamente pela proximidade.
O combate seguinte é talvez o mais intenso enquanto experiência ritual. Embora não seja
a mais violenta nem a mais esperada, essa luta captura completamente os sentidos do espectador.
A montagem alterna planos do público e da luta. Fora do círculo, os rostos apreensivos das mães
fazem eco à imersão completa de um menino que reproduz os movimentos dos lutadores com
os ombros, enquanto assiste compenetrado, seus colegas. Os pais riem e incentivam seus filhos.
Os gritos ganham volume e duração, inundam as imagens, mobilizam o olhar que é levado pelos
planos curtos e cortes secos, sem tempo para se deter em nada.
Mais que observar os lutadores, a montagem propõe que o espectador seja atravessado in-
tensamente pelos afetos do ritual. Olhos e ouvidos são inundados de estímulos. As relações entre
pais e filhos, entre amigos que se enfrentam, entre famílias que se provocam, tudo isso sobrecar-
rega o espectador. Este não encontra mais tempo para processar as sensações e tem que sair da
sua passividade inicial.
O longo encadeamento das lutas e a repetição dos planos e dos gestos favorecem uma
disposição ambígua do espectador em relação ao filme. Num primeiro momento, o espectador
é convidado a se identificar com os meninos. Isso acontece a partir da aproximação das expe-
riências de cada um. O percurso de descoberta é comum às duas narrativas, fílmica e ritual, que
se sobrepõem. A eficácia do rito, baseada precisamente no aumento progressivo da tensão e da
expectativa que devem explodir na violência das lutas, é duplicada na montagem como condição
de eficácia da experiência do olhar.
O espectador experimenta a trajetória de medo e descoberta que vivem os meninos, e chega
no momento das lutas disposto a identificar-se com eles. No entanto, a violência das lutas inter-
rompe esse movimento. A aparente intimidade com a qual o espectador era convidado a compar-
tilha a narrativa com os meninos se torna inviável. O choque com as imagens faz o espectador se
retrair. Mesmo assim as lutas continuam e o olhar não tem outra escolha que não se adaptar a elas.
A escalada de violência atinge sua intensidade máxima na última luta. São dois dos me-
ninos mais velhos que se confrontam. Não há mais a inocência ou a hesitação dos pequenos. A
montagem faz o olhar circular ao redor do combate enquanto a câmera sempre guarda alguma
distância. Há alguma solenidade nesses planos que privilegiam os corpos inteiros no quadro,
como se o filme quisesse sintetizar nessa luta todas as que vieram antes. A fotografia valoriza a
luz avermelhada da aurora para criar um ambiente caloroso, o que resulta em uma imagem menos
crua e mais acolhedora.
Essa luz é um elemento importante que marca não só a fotografia, mas também a constru-
ção temporal no filme. Se compararmos com as primeiras lutas, é evidente o efeito que o sol nas-
cente tem de aumentar progressivamente a visibilidade dos corpos. Esse curto intervalo de tempo
em que a luz do sol é suave o suficiente para iluminar sem fazer sombra é o espaço temporal em
que o oi’ó efetivamente acontece. Trata-se de um momento de transição entre dia e noite, mas
que não é nenhum dos dois. Podemos dizer um espaço entre, que tem as propriedades de cada
período, mas que constitui uma temporalidade própria.
Trata-se de um momento liminar entre estados. A ideia de liminaridade é importante aqui,
pois ela atravessa tanto a experiência do espectador de cinema quanto do participante do ritual,
na medida em que define um estado marginal. Para o antropólogo Victor Turner, as performances
sociais, como são os ritos de passagem, tendem a ser sempre fenômenos liminares, marcados pela
suspensão das normas e, portanto, pela perda de uma condição anterior (1992:25). Um ritual de
passagem como o oi’ó realiza exatamente essa operação de desconstrução e reconstrução como
transformação de identidade social.
A escolha desse momento do dia para realizar o ritual está diretamente ligada à condição
para a qual esses meninos estão sendo encaminhados. A luta é um dispositivo que os afasta pouco
a pouco da infância ao mesmo tempo os prepara para o período em que vivem no hö. Trata-se de
uma fase de exceção, em que eles perdem as famílias, os nomes e o direito de circular pelo pátio
da aldeia. A escolha de um “momento liminar” do dia é uma forma de reforçar essa passagem. O
processo de transformação acontece entre a luz e a escuridão, o dia e a noite. Com isso, ele não
se filia a nenhuma dessas duas forças, mas se coloca entre elas. Com isso, a cerimônia encaminha
os meninos também para um lugar entre estados, um lugar instável, efêmero e perigoso como a
aurora.
Jean-Louis Comolli diz algo parecido sobre a experiência do espectador do cinema, o qual
deve passar por uma “perda iniciática” no olhar, o aceite de uma nova forma de ver, definido pelo
olho monocular da câmera e pela restrição do quadro, para que possa “melhor ver” (2008:140). A
adesão condicional à experiência cinematográfica tem, nesse ponto, ressonância com a natureza
liminar das performances rituais, no sentido em que ambas implicam tanto uma ação reflexiva
quanto a aceitação de condições específicas que garantem a eficácia das experiências.
Nesse sentido, a montagem se vale dessa afinidade entre os dispositivos para montar um
jogo de escalas entre vida social, rito e filme, de forma que o lugar do espectador no filme é
estabelecido e perturbado conforme essas camadas se aproximam ou se afastam. Enquanto es-
pectadores waradzú, somos colocados na posição de uma criança que é também introduzida ao
universo do ritual. Desde a sequência inicial, em que somos mantidos literalmente no escuro por
algum tempo, até as longas cenas das lutas, o filme desloca propositadamente o espectador para
o universo dos meninos, seja nos entregando aos poucos as informações sobre o ritual, seja nos
colocando no centro dos acontecimentos.
Tal operação é fundamental para a eficiência da segunda pedagogia no filme. Ela é parte
do jogo entre afastamento e atração, predominante nas sequências das lutas, que num primeiro
momento parece romper com o pacto sugerido inicialmente. Toda a descrição cuidadosa da or-
ganização etária, as responsabilidades de cada grupo, os cuidados com a iniciação dos jovens
nas tradições, não pareciam encaminhar para a violência que explode nas lutas. Se o espectador
esperava encontrar uma descrição sóbria de uma cultura que teria a intenção de sistematizar a si
mesma para sua fruição intelectual, tal expectativa não encontra mais apoio nenhum depois que
começam as lutas.
No entanto, o choque tem também sua função pedagógica. Entre os Xavante, a violência
experimentada neste e em outros rituais é condição para o aprendizado que eles carregam. Os
meninos precisam passar pela dor para adquirirem valores como coragem e disciplina. No filme,
as cenas de luta têm essa função. Se o espectador quer conhecer a cultura xavante, é preciso expe-
rimentar os afetos que o ritual propõe. Nesse sentido, o ritual filmado, e o filme, por consequên-
cia, funcionam como um dispositivo de relação intercultural. É por isso que os grandes planos da
última luta tentam recuperar o espectador que havia sido afastado.
Esses corpos infantis que se agridem passam por uma desconstrução orientada pelo ritual, um
progressivo endurecimento que os encaminham para a vida adulta. Ao acompanhá-los, o espec-
tador também experimenta uma desconstrução, que opera na sua concepção de uma alteridade
buscada no início do filme. A auto-etnografia feita pelo cineasta indígena, que se apresentaria
mais autêntica que aquela feita pelos antropólogos, acabou tomando um rumo inesperado. Ao
compartilhar com os espectadores mais que informações, o cineasta os faz experimentar a própria
experiência ritual. Sendo assim, a violência das imagens transforma a identificação inicial em
repulsa. Passado o choque, o espectador que buscava o contato com a alteridade vai poder final-
mente reencontrá-la. Mas para isso, o filme precisará pôr em movimento um terceiro dispositivo
para converter choque e repulsa em aceitação e compreensão da diferença cultural.
Comunidade: acolhimento e abertura

Se na primeira parte do filme permanecemos no âmbito das técnicas corporais a serem


desenvolvidas pelo indivíduo, no final a ênfase será mais na sua inserção no sistema etário. A
decisão de manter nas legendas os nomes de cada fase da vida no idioma xavante (watebrimi,
ai’repudu e wapté) é sintomática dessa intenção.
Essa mudança é acompanhada pela volta da voz organizadora do narrador. A impressão
para o espectador é que a primeira pedagogia do filme predomina mais uma vez. As imagens, po-
rém, não acompanham esse movimento do som. Essa terceira parte do filme herda a intensidade
das sequências das lutas, que, no entanto, se expressa sobretudo a partir do jogo formal entre luz
e sombra, como veremos adiante.
Mais uma vez voltamos aos planos interiores, em que corpos de crianças são pintados e
enfeitados pelos mais velhos. Desta vez já é dia, e a luz de fora ilumina a ação dentro da casa.
Ainda que os planos se pareçam com aqueles da sequência inicial, há uma diferença fundamental:
não há mais segredos. As imagens se servem da luminosidade para fazer ver o melhor possível
os corpos no interior das casas. O espaço interno agora se mostra aberto, acolhedor ao olhar, os
gestos são visíveis, os corpos inteiros, os detalhes claros.
A amplitude da imagem excede o próprio espaço da cena, estabelecendo uma relação fun-
damental com o fora da casa. Dois planos marcam essa abertura. O primeiro mostra desde fora
da casa um velho pintando as costas de um menino. Por estarem bem perto da porta, podem ser
vistos quase que completamente. Mesmo assim a câmera faz um movimento de zoom, fazendo o
olhar penetrar na casa. O segundo é um plano de dentro da casa, mostrando o pátio central da al-
deia emoldurado pelo contorno da porta. A montagem sugere que se trata de um plano subjetivo,
mostrando o que um menino olha lá fora.
Essa relação estabelecida pela montagem tem sua razão de ser no ritual. Toda essa sequên-
cia final acompanhará a saída dos meninos das casas dos pais e o processo de entrada no hö, a
casa dos solteiros onde viverão em grupo durante os próximos cinco anos. Trata-se de um proces-
so marcado por uma performance muito precisa em que a geração imediatamente mais velha, os
padrinhos da iniciação, buscam os meninos em suas casas, os levam para o centro da aldeia, onde
os colares de algodão que carregam no pescoço são retirados, e os mandam para o hö.
O gesto de retirada dos colares e a mudança do local de residência são o núcleo performáti-
co que define a passagem em questão, daí as escolhas da montagem. As imagens variam constan-
temente entre o interior das casas e o pátio das aldeias. Os corpos estão sempre em movimento e
a câmara acompanha as pessoas nos seus trajetos entre esses espaços. O momento da retirada do
colar é mostrado diversas vezes e tem sempre destaque. A importância desse gesto é enfatizada
pelo narrador: “No momento em que tiram os anéis de algodão, ninguém pode mais chamá-los
pelo nome”. Essa perda da identidade infantil é o objetivo do processo ritual narrado pelo filme.
O colar que recebem dos pais dentro da casa da família funciona como um suporte dessa identi-
dade deixada para trás. Ao sair pela porta de casa enquanto crianças pela última vez, os meninos
se expõem ao espaço aberto da aldeia, guiados pelos padrinhos.
A alternância constante entre interior e exterior cria uma nova dimensão da relação entre
luz e sombra no filme: o interior escuro da casa como o espaço seguro da infância, o exterior ilu-
minado do pátio como as transformações incertas da adolescência. A luz deixa de operar como
dispositivo de esclarecimento para funcionar como desestabilizador dos personagens. Se no iní-
cio da sequência a quantidade de luz permitia a câmera revelar o interior das casas, agora ela
atinge tal intensidade que impede que a câmera mostre muito mais que a entrada de cada casa.
Uma tensão na montagem começa a fica evidente: o filme oscila entre as duas pedagogias.
Se por um lado o narrador procura conduzir novamente o espectador em uma linha narrativa que
encadeia informações, por outro lado as imagens não cessam de produzir quebras e descontinui-
dades. Nesse jogo entre estabilidade e perturbação começa a se desenhar aquele terceiro disposi-
tivo que tentará recuperar o pacto com o espectador.
A construção do lugar dos padrinhos no ritual é central nessa operação, que ganha corpo a
partir do movimento dissonante entre imagem e som. Nessas sequências, a câmera que acompa-
nha os padrinhos se detém nas soleiras, os meninos surgem da escuridão do interior para serem
levados para fora. O pátio agora é o foco dos acontecimentos. É o lugar onde a despersonalização
dos meninos acontece. É a arena pública que retira esses indivíduos do âmbito familiar e privado
e os sujeita às regras coletivas da aldeia. Os corpos atingem nesse momento o grau máximo de
desamparo.
Por outro lado, a presença dos padrinhos reconstitui o fio condutor para esses corpos ex-
postos. São eles que operarão a desterritorialização definitiva da infância e ensinarão os segredos
da vida adulta. Quem traz essas informações são o narrador e algumas entrevistas. Isso chama
atenção para o funcionamento do som nessa parte final, que também opera sob um regime di-
ferente. No lugar dos sussurros ou da intensidade anteriores, a articulação clara e segura das
informações que querem ser entendidas. As vozes organizam os acontecimentos, os localizam
no sistema etário e no processo ritual (“os wapté vivem no hö por cinco anos”) e definem seus
objetivos e funções (“para aprender as tradições do povo Xavante”).
Imagem e som realizam, portanto, dois movimentos opostos. Por um lado, a explosão
crescente da luminosidade das imagens nos conduz do mistério ao ofuscamento, do segredo à de-
sorientação. A luz inunda o espaço do quadro à medida que personagens e espectadores têm seus
lugares progressivamente desestabilizados. Por outro lado, o som parte dos sussurros, explode
nos gritos e reencontra a sua boa medida no final. A voz do narrador procura reconstituir um novo
território a partir da linha de fuga que as sequências de luta instauraram.
Essa dissonância, que impede que o pacto inicial com o filme seja refeito, é resultado da
operação simultânea, nessa terceira parte, das duas pedagogias que constituem o filme. Isso pro-
duz um desconforto para o espectador que ainda se esforça para reencontrar um novo lugar na
experiência fílmica. Porém, o ritual, e por consequência o filme, realiza uma passagem, e por isso
é preciso reconduzir essas identidades desfeitas para um novo estado.
O lamento cantado que irrompe perto do final do filme opera precisamente nesse sentido.
Trata-se de um choro ritual de uma senhora pela perda dos seus netos. Ele começa logo depois de
uma entrevista, em um plano que se movimenta para fora de uma casa, acompanhando um padri-
nho e dois meninos. A montagem multiplica essa caminhada em muitas, que se repetem tanto na
sucessão quanto na composição dos planos. No centro do pátio os anéis são retirados uma última
vez.
Este choro surge aqui como uma voz que não tem o tom sóbrio da voz do narrador. É uma
voz feminina que se opõe ao universo masculino do filme, remete a uma série de binarismos
implícitos nas imagens e que marcam profundamente os Xavante: masculino/feminino, público/
privado, política/família, caça/coleta, pátio/casa. No entanto, essa voz não sustenta tais divisões.
Pelo contrário, na forma de um lamento ao mesmo tempo sincero e ritualizado, intenso e calcula-
do, esse choro embaralha o processo duplo de desconstrução e reconstrução em operação.
Ele inaugura uma paisagem sonora completamente estranha ao filme até aqui e causa um
estranhamento que até então só tinha sido produzido pelas imagens das lutas. Porém, diferente
daqueles gritos que apenas desconstroem, o choro abre espaço também para o acolhimento. Ao
mostrar o choro da mãe que perde os filhos, mais uma vez o filme descreve uma relação passível
de identificação para o espectador waradzú. Trata-se antes de um dispositivo didático para captu-
rar os afetos que uma generalização acerca dos sentimentos e relações nas diferentes culturas. Ao
quebrar o ritmo das informações que o narrador nos transmite sistematicamente, o choro estabe-
lece uma pausa onde os afetos podem se reorganizar, propõe um lugar seguro onde o espectador
em desamparo pode se apoiar para seguir adiante.
Toda a sequência do choro se desenrola no espaço exterior, no pátio da aldeia. Essa escolha
de montagem está diretamente relacionada com tal disposição ao acolhimento. O pátio é lugar
onde os meninos experimentam seu grau de exposição e desconstrução máximos. Mas é ali tam-
bém onde o espectador atinge seu momento de desamparo extremo. O pátio é o espaço em que
o ritual é apresentado, onde acontece a quebra do pacto com o filme por meio da violência das
lutas, onde o espectador é deslocado do seu lugar inicial, onde uma certa concepção da alteridade
é desfeita. É no pátio que o olhar passa por sua “retirada do colar”, e onde ele permanece à deriva.
O choro abre um espaço comum a ser habitado por esses corpos e olhares despidos. Pro-
move a superação do choque por meio do encontro entre o espectador transformado e a cultura
que acaba por se apresentar de uma forma imprevista. Com isso, passamos do jogo entre segredo
e proximidade para a comunidade entre filme e espectador, onde podem emergir aceitação e
compreensão. Finalmente, as duas pedagogias encontram uma síntese e percebemos que o filme
não apenas expõe os meninos ao olhar do espectador waradzú: ele estabelece um espaço em que
algo em comum pode ser experimentado.
Mas tal dimensão comunitária não dura até o final. Após promover esse encontro, o filme
recupera a empreitada inicial. A última imagem antes de uma rápida entrevista com a senhora que
chora é um plano geral da aldeia, com o hö ao fundo e vários meninos e padrinhos se dirigindo
a ele. Esse plano aponta para o processo de formação por que passarão os meninos. Ele também
introduz a sequência final, que se desenrola toda dentro do hö, onde os meninos recebem suas
primeiras lições. A partir daqui a necessidade de coerência com uma auto-imagem desejada pela
comunidade se impõe. O filme termina repondo a circularidade que caracteriza a estrutura social
xavante: “Novos meninos vão aprender as regras do oi’ó. E quando os velhos decidirem que é
tempo, a luta começa outra vez.” Na última frase, o narrador reforça sua autoridade prescritiva,
estabelecendo também a relação temporal entre a tradição ancestral e a identidade contemporâ-
nea: “Os pais orientam. Os meninos lutam. Essa é a antiga tradição.”
Assim como no ritual, o filme deve reencontrar uma ordem após a desconstrução. Para o
espectador, porém, o caminho de volta à normalidade não é tão certo. A segurança com que o
narrador fecha o filme não acolhe mais o espectador. O que resta são os afetos disparados pela
trajetória sugerida pelo filme. Ao propor uma experiência de contato intercultural, o filme prega
uma peça no espectador e depois o deixa à deriva. O resultado é que mais do que explicar, o filme
afeta, e com isso o contato intercultural se abre para além do próprio filme.
Referências bibliográficas

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2008.
CUNHA, Manuela Carneiro da. “’Cultura’ e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos
intelectuais”. In: Cultura com aspas, pp. 311-373. São Paulo: Cosac Naify, 2009
TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. New York: PAJ Publications,

Samuel Leal - doutorando em comunicação na UFF, tendo feito estágio-san-


duíche na Université de Montréal. Bacharel (Unicamp) e mestre (UFRJ) em antro-
pologia, trabalha com oficinas de produção audiovisual com comunidades xavantes
na T.I. Pimentel Barbosa - MT. Realizou com Leandro Parinai’a o curta-metragem
Ondas Curtas (2013), vencedor da X Mostra de Filme Etnográfico do Prêmio Pierre
Verger 1992.
33. POR UMA SUBJETIVAÇÃO DOS SONS DO MUNDO: ANÁLISES SOBRE A
ESTÉTICA SONORA DO NUEVO CINE ARGENTINO

Roberta Ambrozio de
Azeredo Coutinho

Introdução

O Nuevo cine Argentino (NCA), seguindo uma tendência da cena cinematográfica da


América Latina dos anos 90 e 2000, alcançou reconhecida projeção internacional ao propor um
cinema genuinamente Nacional, antagônico à cena precedente que seguia o modelo hegemônico
norte-americano pautado no sistema produtivo comercial, na aposta em enredos extraordinários,
e na narrativa clássica.
Opondo-se a esta perspectiva dominante, o tripé estrutural basilar proposto por este Nuevo
cine consiste em um fluxo de realização independente, na abordagem de temas sociais pontuados
dentro de histórias mínimas, particulares, e na predileção por uma narratividade de dimensão
cotidiana e de leitura opaca (VERARDI, 2010; AGUILAR, 2006). Neste sentido, tal confluência
produtiva, temática e narrativa que aproxima as obras do NCA encontra-se reificada nos estudos
que se debruçam sobre este movimento, por outro lado, as abordagens que propõem uma reflexão
acerca de uma convergência formal o permeando são raras. Este quadro pode ser explicado
pelo fato do referido ciclo ser composto por uma rica diversidade de diretores com demarcadas
propostas autorais.
Não obstante a esta proeminente heterogeneidade estética, ao analisarmos uma gama
de filmes da nueva onda é possível perceber certa aproximação de ordem estilística entre as
concepções sonoras destas películas, as quais apostam massivamente “(...) em um tratamento
sofisticado das distintas camadas de som, onde tudo o que se escuta faz parte deliberada da mise-
en-scène” (CAMPERO, 2009: 33). Nestas produções, em mais um movimento de transgressão
à linguagem fílmica hegemônica, a riqueza acústica que permeia o cotidiano dos personagens é
explorada enquanto potência narrativa e estética em detrimento do desempenho de uma função
convencional utilitária de reforço às aspirações miméticas da dimensão visual.
Diante do exposto, este estudo busca compreender de que maneira os efeitos sonoros,
enquanto componentes da trilha de áudio que representam esses sons do mundo, promovem
operações de sentido autônomas e determinantes nos filmes do NCA? E, seguindo esta perspectiva,
é possível apontar a existência de recorrências estilísticas sonoras que aproximariam essas obras
sob um ponto de vista estético? Com o objetivo de responder tais questões, propomos uma
investigação da estrutura narrativo-estilística de eventos sonoros mundanos representados em
filmes ícones do Nuevo cine.

O Nuevo Cine Argentino

Em um lapso de dez anos, 1966-1976, a Argentina sofreu dois golpes militares que in-
fluenciaram diretamente na eclosão de uma intensa crise mercadológica e criativa no setor ci-
nematográfico que perdurou até meados da década de 90, momento de surgimento do NCA. A
redemocratização definitiva do país a partir de 1983, sob o comando do presidente Raúl Afonsín
(1983-1989), demarca um breve período de prosperidade para o cinema Argentino proporcionado
tanto pelo fim da censura, e pelas revisões democráticas das legislações repressivas, quanto pela
volta de um investimento, ainda que módico, do setor público na produção nacional.
No entanto o caos econômico que assombrava o país, o qual se intensificou na virada da
década de 90 com o início do governo Neoliberal de Carlos Menem (1989-1999), estagnou nova-
mente o setor cinematográfico. “A crise que vinha experimentando a indústria cinematográfica
aprofundou-se ainda mais (...). Em 1991 o número de estreias locais se reduziu a dezesseis, en-
quanto que no ano seguinte foram lançadas dez películas argentinas (...)” (VERARDI, 2010: 66).
Durante este período inicial de redemocratização até 1995, ano que, como veremos mais
adiante no texto, se convencionou na teoria como sendo o marco inicial do Nuevo cine Argentino,
é apontada, de um modo geral, uma espécie de estagnação criativa no setor cinematográfico tendo
em vista a falta de experimentação narrativa e estilística que permeavam os filmes (CAMPERO,
2009). No caso do cinema comercial isto é mais facilmente previsto tendo em vista a sua propen-
são a reproduzir estruturas de linguagem de filmes lucrativos em termos de bilheteria.
Contudo, a outra vertente, a da produção independente e autoral, de onde se espera uma
maior inventividade, não trouxe contribuições significativas para o desenvolvimento de uma ci-
nematografia genuína, seguindo, primordialmente, certas convenções clássicas pautadas no ideal
da transparência diegética, como a primazia do roteiro e a construção de personagens estereo-
tipados que automaticamente cativam a empatia do espectador, e que por meio de seu discurso
roteirizado nos guiam pela história à maneira que o filme quer (CAMPERO, 2009).
Em meio a este contexto de crise tanto financeira, quanto criativa, no setor cinematográfi-
co Portenho, surge uma produção que se propõe a subverter cada vertente desta estrutura inerte.
Rapado (Rapado, Martín Rejtman, 1992) vai de encontro ao esquema estético-narrativo – temá-
tico do cinema feito desde a redemocratização, que tanto em sua vertente autoral-independente,
quanto na vertente comercial, parecia reproduzir o modelo hegemônico hollywoodiano.
O filme nos apresenta uma breve passagem na vida do adolescente Lucyo, que ao ter sua
moto roubada logo na primeira cena do filme, passa a caçar pelas ruas de Buenos Aires uma opor-
tunidade de furtar qualquer motocicleta alheia e assim não ficar no prejuízo. O personagem não
é delinquente, nem, do contrário, jovem promissor, mas sim um típico adolescente que vive um
momento ocioso e infrutífero, revezando suas atividades entre o vídeo game e alguns tragos de
cigarro, tomado por uma aparente apatia em relação ao futuro.
Neste ímpeto de renovação de uma tradição cinematográfica desgastada e inexpressiva a
obra pioneira do estreante diretor, traz uma inovadora perspectiva temática – narrativa. No fil-
me, os temas universais da narrativa clássica dão lugar a uma proposta de leitura da realidade
socioeconômica Nacional a partir da história “mínima” de Lucyo. Observa-se uma espécie de
individualização do “drama social” em detrimento de uma repetitiva representação estereotipada
do coletivo construída a partir de histórias repletas de grandes acontecimentos, como propunha o
cinema do período da redemocratização, mesmo quando abordava uma temática de ordem social,
o que, inclusive, não era muito comum.
A construção narrativa também não segue os moldes clássicos, propondo uma diegese do
agora que não tem, portanto, a obrigatoriedade de ter começo e fim determinados, além de não
se prender às amarras do tradicional esquema causa-efeito na articulação das ações. Dentro desta
perspectiva, o filme desloca o centro da narrativa do diálogo (o conteúdo proferido pelos perso-
nagens já não domina a decodificação da trama) em direção tanto à composição minimalista da
mise-en-scène, quanto ao despojamento da atuação, além de trazer personagens ordinários, nem
heróis, nem vilões, cuja subjetividade, construída mais pelo viés da opacidade do que da empatia,
é de difícil acesso.
No âmbito da produção-exibição, o filme também inovou, uma vez que foi realizado de
maneira independente, sem qualquer aporte público ou privado, contando apenas com o bolso
da equipe realizadora, além do financiamento estrangeiro do Festival de Rotterdam, e circulan-
do longe das salas comerciais em um circuito alternativo de festivais internacionais, cineclubes
e de alguns poucos Ciclos exibidores locais que abriam espaço para a produção independente
(VERARDI, 2010). É a partir desta proposta de reciclagem completa do cinema Nacional que o
filme em questão é convencionalmente considerado, nos âmbitos da crítica e da academia, como
o embrião do NCA.
No entanto, é com o filme Histórias Breves (Historias breves, 1995) que a ideia de um
novo ciclo contemporâneo do cinema Portenho ganha força. Ademais, o projeto também simbo-
liza o início de um período de prosperidade para o âmbito cinematográfico após três décadas de
forte recessão, tendo em vista que foi financiado pelo órgão público INCAA (Instituto Nacional
de Cine y Artes Audiovisuales), o qual teve a verba multiplicada com a promulgação da Ley del
cine de 1994, criada com o intuito específico de regulamentar e subsidiar a atividade cinemato-
gráfica Nacional, impondo normas que visavam coletar aportes para alavancar a produtividade do
setor (BARRENHA, 2011).
Foi neste cenário frutífero que oito jovens cineastas, ao vencerem um concurso de rotei-
ros produzido pelo INCAA, tiveram seus curtas-metragens realizados e compilados na já citada
coletânea Histórias Breves (Historias breves, 1995), a qual se destacou pela arrojada proposta
de inovação completa da atividade e linguagem cinematográfica. Tal ímpeto de transgressão ao
cinema que vinha sendo feito é acolhido com entusiasmo pela crítica especializada que passa a
movimentar e a difundir a ideia de o início de um novo ciclo contemporâneo no cinema Argentino
(CAMPERO, 2009).
Os curtas da citada coletânea embora fossem bastante heterogêneos em termos estilísticos,
pareciam compartilhar entre si aspectos temáticos e narrativos já presentes em Rapado (Rapado,
Martín Rejtman, 1992), como a predileção por assuntos sociais locais abordados a partir de en-
redos mínimos, narrativas abertas, personagens comuns e enfraquecimento do discurso enquanto
condutor narrativo em detrimento de um exercício estético mais acurado.
Tal lógica de operação da linguagem fílmica passou a ser observável em várias outras pro-
duções entre meados da década de 90 e início dos anos 2000, mais especificamente no fluxo de
produção independente, uma vez que os filmes produzidos e exibidos na esfera comercial, sobre-
tudo sob o financiamento dos grandes conglomerados da comunicação, permaneciam, majorita-
riamente, replicando as fórmulas narrativas e estilísticas de uma indústria hegemônica cujo prin-
cipal objetivo não era o desenvolvimento da linguagem fílmica, mas sim o retorno de bilheteria.
Nesse sentido, tal retomada criativa do cinema Argentino, foi bastante impulsionada pelo
fortalecimento dos canais de apoio a cena independente, a exemplo dos projetos encabeçados
pelo INCAA. No entanto, transformações no âmbito da exibição também foram determinantes
para que esses novos filmes, convencionalmente colocados à margem do circuito comercial, pu-
dessem ser assistidos pelo grande público. Dentro desta perspectiva, os festivais de cinema, na-
cionais e internacionais, foram de suma importância para que essas produções independentes, as
quais rejeitavam tanto convenções de linguagem do cinema hegemônico, quanto sua perspectiva
primordialmente mercadológica, conquistassem espaço e visibilidade.
Foi neste contexto de circulação que ganharam notoriedade dois filmes os quais são con-
siderados, por críticos e pesquisadores, como os responsáveis pela consolidação do NCA que já
vinha se formando desde Rapado e que já apresentou contornos mais firmes em Histórias Breves.

O Prêmio Especial do Jurado concedido à Pizza, birra, faso de Adrián Caeta-


no e Bruno Stagnaro no Festival internacional de Cinema de Mar del Plata de
1997, e os prêmios de melhor diretor e melhor ator conquistados por Mundo
Grúa, de Pablo Trapero, no Festival de Cinema Independente da cidade de
Buenos Aires, em 1999, somados ao interesse do público, contribuíram para
consolidar e promover o nuevo cine argentino. Desta maneira, e apesar do
panorama de exibição gerar alguns obstáculos para a circulação dos filmes
do novo cinema, este conseguiu se introduzir no campo cultural da argentina
dos anos 90 e lentamente foi se afirmando como um dos fenômenos mais
significativos da cena artística Nacional.
(VERARDI, 2010: p. 70-71).

Nesse sentido, as películas citadas por Verardi (2010) são emblemáticas para a consolida-
ção do NCA enquanto movimento reconhecido, tanto pela crítica quanto pelo público, uma vez
que reuniram as características básicas de produção, linguagem e conteúdo das produções alinha-
das com essa ideal de reestruturação e ressignificação da cinematografia Portenha , e as difunde
no contexto cinematográfico Nacional e Internacional ao vencerem categorias importantes em
Festivais de grande porte, e, a partir daí, alcançarem uma circulação expressiva, sobretudo, Mun-
do Grúa (Mundo Grua, Pablo Trapero, 1999) que atingiu uma média de 70 mil espectadores, um
número bastante significativo para uma produção independente.
Dessa maneira, o filme de Trapero levou ao conhecimento de muitos o tripé estrutural desta
Nueva onda do cinema Argentino: Foi realizado com um orçamento módico, só contanto com um
financiamento tímido do INCAA já na fase de finalização, aborda o tema do desemprego a partir
da geografia íntima do personagem Rulo, um Argentino de meia-idade comum que como tantos
outros como ele vive as mazelas sociais geradas pela crise de 90, e onde a narrativa solta segue o
fluxo do cotidiano banal do protagonista.
A premiação de uma obra ícone para o Nuevo Cine Argentino na primeira edição do Buenos
Aires Festival Internacional de Cine Independente – BAFICI, sinaliza a importância do evento
para a difusão e amadurecimento desta cinematografia. Ao longo da era 2000 o BAFICI exibiu,
a exemplo da mostra Lo nuevo de Lo nuevo da edição de 2001, centenas de filmes que traziam as
características narrativas e estéticas definidoras deste cinema contemporâneo Nacional, funcio-
nando como um compilador do movimento.

Dentro desta perspectiva, e, sobretudo, a partir do século XXI, para grande parte do âm-
bito da crítica, bem como para o da academia, o Nuevo cine Argentino trata-se de um movimen-
to consolidado, com notórias e inegáveis especificidades logísticas, narrativas e temáticas. Nas
esferas da realização e da exibição, aos já citados apoio governamental materializado por meio
do INCAA, e ao eficiente mecanismo de colaboração entre os realizadores, podemos somar à
coprodução com Fundações internacionais, ligadas aos principais festivais do mundo, como uma
importante base estrutural para o movimento.
No que diz respeito às recorrências narrativas e temáticas, problematizadas em momentos
distintos deste texto, complementamos nosso mapeamento a partir da perspectiva de Aguilar
(2006).
Finais abertos, ausência de ênfase, ausência de alegorias, personagens mais
ambíguos, aversão ao cinema de tese, trajetória algo errática da narração,
personagens zumbis imersos no que lhes passam, omissão de dados nacio-
nais contextuais, oposição à demanda identitária e à demanda política: todas
estas decisões que, em maior ou maior medida, se detectam nestes filmes,
fazem a opacidade das histórias, que em vez de nos entregar tudo digerido
abrem o jogo da interpretação (AGUILAR, 2006: 27 apud BARRENHA,
2011: 35).

Em relação ao estilo dos filmes do NCA, a identificação de um paradigma já é um exercí-


cio mais nebuloso e complexo tendo em vista as demarcadas propostas estilísticas singulares de
realizadores ícones deste movimento. Podemos citar alguns desses nomes que mesmo fazendo
parte desta onda coletiva, são também identificados e reconhecidos como diretores que operam
um cinema demarcadamente autoral, são eles: Pablo Trapero, Lucrecia Martel, Martin Rejtman,
Adrian Caetano, Lisandro Alonso e Albertina Carri.
Embora esta heterogeneidade estética que distingue as produções do NCA, tão notória
quanto à aproximação narrativo-temática problematizada nesta e em tantas outras pesquisas, seja
igualmente admitida por críticos e estudiosos, alguns pesquisadores, sobretudo, na última década,
vêm identificando traços estilísticos recorrentes nas produções do NCA, tais como um maior es-
forço na composição de uma mise-en-scène que contemple um realismo estético (BARRENHA,
2011), e a minuciosa construção sonora dos ambientes (AGUILAR, 2006; CAMPERO, 2009).
Para o presente trabalho, interessa especificamente este último ponto, tendo em vista que
nos propomos aqui a problematizar uma possível aproximação estilística entre os filmes do Nue-
vo Cine Argentino a partir da concepção das bandas sonoras. Dessa maneira, no próximo tópico
nos debruçaremos sobre certas estratégias de criação sônica que nos parecem recorrentes em
distintos títulos deste ciclo.

Convergências Sonoras no NCA

Quando observamos as trilhas de áudio dos filmes do NCA é possível perceber que grande
parte aposta na quebra da rígida hierarquia que a narrativa clássica estabeleceu entre os compo-
nentes sonoros na criação acústica dos filmes, onde os diálogos imperam, seguidos pela música e
em último lugar, geralmente fadados a uma função meramente figurativa, localizamos os efeitos
sonoros. No contexto do Nuevo Cine Argentino esta regra não só é desrespeitada, como é subver-
tida, de modo que os efeitos passam muitas vezes a assumir um papel primordial na produção de
sentido das sequências.
Dentro desta perspectiva, embora a maioria dos filmes traga uma quantidade significativa
de diálogos, é recorrente a quebra do Verbocentrismo (CHION, 2011) nestas produções, ou seja,
as palavras pronunciadas já não são o guia fundamental da narrativa como no cinema hegemôni-
co, inclusive muitas vezes as falas dos personagens se misturam com o som ambiente, perdendo
sua força discursiva em detrimento de uma exploração de ordem estética da voz.
Por outro lado, as músicas são pouco utilizadas e quando aparecem, geralmente são diegé-
ticas, se misturando à ruidagem espacial da sequência tal como acontece com as vozes, e anem-
páticas, quando são indiferentes a dramaticidade das ações (CHION, 2011), em detrimento de sua
clássica exploração extra-diegética e empática que opera as canções como catalisadores afetivos
do espectador, afinando assim nossas reações emocionais com as intenções dramáticas do filme.
Ademais, é comum a ausência completa de diálogos e músicas em cenas-chave do enre-
do, o que abre espaço para que os sons do mundo, captados no instante da cena ou recriados na
pós-produção pela equipe de efeitos sonoros, preencham perceptivelmente a composição acús-
tica das sequências, sem serem encobertos pelas vozes e canções, podendo, assim, assumir uma
função ativa na construção diegética. Este formato de concepção da banda de áudio amplia as
possibilidades fruitivas do espectador que na ausência do amparo intelectual do discurso, e sem
o direcionamento emotivo da música, é invadido por uma gama de sensações engendradas pelos
efeitos sonoros que o envolvem na diegese de uma maneira mais livre e intuitiva.
A mudança de perspectiva em relação ao papel dos componentes audíveis no âmbito do
nuevo cine é sintoma de um quadro mais amplo de renovação da linguagem fílmica adotada pelo
cinema anterior, a qual era filiada à corrente clássica da escola Norte-Americana. Guiados pelo
ideal da transparência e da verossimilhança na construção do mundo diegético, grande parte dos
filmes do período da redemocratização explorava o efeito sonoro como um elemento secundário,
fadado à missão de reforçar o caráter mimético da dimensão visual, limitando-se, portanto, a
compor a imagem. “(...) parecia haver certa condenação a um naturalismo que aprisionava os
recursos do som (...), impedindo-os de expandir o discurso a outros horizontes.” (BARRENHA,
2011: 38).
Dessa maneira, se na lógica da hegemônica narrativa clássica os eventos sonoros audíveis
seriam apenas aqueles narrativamente relevantes para o enredo, os quais, primordialmente, eram
representados de maneira mimética em relação a sua fonte visual, no contexto do NCA o que pre-
valece é um intenso detalhamento sônico, a partir do qual os sons do mundo são minuciosamente
articulados numa espécie de mise-en-scéne acústica, e onde é bastante comum a subversão do
estatuto da verossimilhança, já que muitas vezes as sonoridades são operadas com finalidades que
vão além do tradicional objetivo narrativo-estético de tornar as imagens mais críveis e vigorosas.
De acordo com este raciocínio, para Aguilar (2006) as obras do Nuevo Cine compartilham
uma concepção sonora particular onde as dimensões visuais e sonoras se complementam
expressivamente na construção fílmica. “(...) todos esses filmes trabalham o som como uma
matéria significante que tem uma relativa autonomia com respeito à imagem, o que a dota de
novas dimensões” (AGUILAR, 2006: 94). O que se busca neste formato de criação audiovisual
é a provocação interpretativa do espectador em detrimento do oferecimento de um conforto
perceptivo proporcionado por um conjunto som-imagem meramente figurativo, que permanece
refém de uma obviedade inexpressiva.
Tal maneira de se configurar o composto audiovisual, bastante recorrente nas produções do
NCA, se afina com a noção conceitual de hiper-realismo sonoro a qual problematiza as relações
de sentido entre os eventos acústicos e suas fontes emissoras imagéticas que se propõem em
ir além da dominante conexão meramente referencial entre sons e imagens no contexto da
linguagem cinematográfica. “O hiper-realismo está em andamento sempre que o som faz mais
do que simplesmente corresponder ao que se vê na tela, causando ao invés disso uma impressão
para o espectador de que há, como diz Capeller, uma ‘hiperamplificação perceptiva do objeto’”
(COSTA, 2010: 101).
No contexto de criação do desenho de som, os eventos sonoros hiper-realistas resultam
de um trabalho, sobretudo, de pós-produção, o qual opera a potencialização da definição de um
registro de áudio a partir da manipulação de suas propriedades (frequência e amplitude). Na
mesa de mixagem o efeito sonoro, seja aquele captado pelo som direto, coletado de bancos de
som ou criado em estúdios e softwares, pode ter a potência aumentada em relação aos outros
componentes audíveis presentes em uma cena, além de ser possível contrastar a amplitude das
pistas que o integram o que lhe confere um alto grau de resolução. Sua tonalidade também pode
ser alterada a partir da expansão de sua banda de frequências o que permite que várias nuances de
agudos e graves se façam presentes no instante da escuta.
Dentro desta perspectiva, potencializar a definição de um efeito sonoro significa amplificar
sua pureza e a sua exatidão na reprodução de detalhes a partir da manipulação criativa de sua
faixa de frequência e potência, o que faz com que o espectador tenha acesso a mais informações
sobre o evento acústico representado do que teria em uma situação de escuta natural. A alta-de-
finição sônica, portanto, é a base do formato de representação audiovisual hiper-realista que, se
apropriando do fidedigno, busca o transgredir ao transformá-lo em um conjunto som-imagem
“[...] mais fiel à realidade do que a própria realidade” (CAPELLER, 2008: 66).
É fato que o uso de efeitos hiper-realistas não é exclusivo do ciclo do Nuevo cine Ar-
gentino, sendo inclusive pensado originariamente na linguagem fílmica como uma tendência de
criação sonora massificada no cinema de gênero hollywoodiano (CAPPELER, 2008). No entan-
to, é possível apontarmos uma maneira peculiar de apropriação desta estratégia de criação sônica
nas produções do NCA que diverge da perspectiva norte-americana. Tal divergência é um reflexo
direto das também discrepantes proposições narrativo-estilísticas entre estes âmbitos.
Esta forma de representação do real é explorada, sobretudo, no gênero fantástico e nos
filmes de horror e ação norte-americanos – sendo bastante incomum em outras categorias como
o romance e o drama – enquanto dispositivo que visa servir a uma demanda “hiper-real” da ima-
gem a qual está inserida em um contexto diegético quase sempre fantasioso e\ou extraordinário.
Ou seja, aqui, a hiperamplificação perceptiva do conjunto audiovisual não corresponde a uma
ampliação das possibilidades interpretativas do filme, mas sim se dá pela chave da criação de um
ilusionismo exacerbado que corrobora o ponto de vista narrativo-estético espetacular da instância
fílmica.
Já no caso dos filmes do NCA a construção hiper-realista não é aplicada em sons “espeta-
culares”, até porque eles não fazem parte do contexto das narrativas cotidianas típicas do ciclo
Argentino, mas sim na representação da massa sonora circundante que compõe estes universos
diegéticos banais. Nesse sentido, o que se busca é a transgressão do rígido estatuto da verossimi-
lhança a partir do engendramento de significados múltiplos que vão além do sentido mimético
primário de uma composição audiovisual. Tal formato de representação hiper-realista parece bus-
car o engendramento de um choque perceptivo no espectador como uma forma de envolvê-lo na
diegese por meio de um engajamento afetivo e sensorial e não meramente racional.
Diante do exposto, no próximo tópico analisaremos cenas de alguns dos filmes pertencen-
tes ao movimento do Nuevo Cine Argentino nos quais é possível perceber a adoção de uma ou
mais estratégias de criação sonora mapeadas ao longo desta seção. Tal exercício analítico será
feito com base nos conceitos ora problematizados, pertencentes ao campo dos estudos do som.

Por uma subjetivação dos sons do mundo

A partir da problematização apresentada, pudemos refletir sobre como as produções do


Nuevo Cine Argentino, para além de uma já reconhecida confluência produtiva-temática-narrativa,
apostam na criação de trilhas que operam o som como um elemento tão determinante quanto a
imagem ou o texto na produção de sentido das películas. Ao retirarem os elementos sonoros de sua
função convencional determinada pela linguagem cinematográfica clássica, estes filmes parecem
apostar na exploração da potencialidade imersiva\expressiva e corpórea da matéria sonora.
Neste exercício de criação, as películas acabam recorrendo a certas estratégias de
composição acústica e de combinação audiovisual que culminam elementarmente em uma
exploração dos sons do mundo para além da simples referencialidade as suas fontes, tendo em
vista que essas sonoridades evocam sentidos acerca do universo diegético que estão além da do
que a imagem nos mostra. Para tornar a problemática ora desenvolvida mais clara, propomos
a análise da composição sonora de seis filmes de diretores emblemáticos do NCA citados em
momentos anteriores do texto.
Em Rapado (Rapado, Martín Rejtman,1992), produção que, como vimos no início do texto,
é considerada como o ponta pé inicial do NCA, o ruído característico do motor das motocicletas
é um elemento onipresente que a todo tempo nos conecta com o drama vivido pelo protagonista.
Sem sua moto inseparável, que foi roubada do adolescente na sequência inicial do filme, Lucyo
parece entregar-se ao ócio, perdendo o ímpeto de fazer qualquer outra coisa. A certa altura do
filme, na tentativa de abstrair o tédio, o personagem ao passar despretensiosamente em frente a
um salão de beleza resolve raspar o cabelo.
Em um close vemos as mãos do cabelereiro e o rosto desanimado de Lucyo. Nesta ação,
o ruído da máquina que é passada em sua cabeça é representado de maneira hiper-realista, uma
vez que o som é intensamente potente e grave, evocando a sonoridade de uma motocicleta. Tal
representação acústica nos remete ao desejo do adolescente de voltar a possuir tal veículo, além
de demarcar uma virada na narrativa: Logo depois de sair do salão, o personagem vê um indivíduo
furtando uma moto que está estacionada na rua e a partir daí resolver a fazer o mesmo para ter de
volta o que lhe foi tirado.
Na ficção Mundo Grúa (Mundo Grúa, Pablo Trapero, 1999), “Rulo”, o protagonista, é
um homem de meia-idade, pouco estudo, e com uma saúde debilitada, que tem dificuldades em
conseguir um trabalho. Quando consegue por meio de um amigo um serviço de operador de
“grúa”, grandes máquinas utilizadas na construção civil, o personagem tem dificuldades em se
adaptar e acaba sendo dispensado do emprego. Na cena em que descobre que tem outro operário
em seu lugar, Rulo, notoriamente descompassado pela notícia, decidi tomar satisfações com o
chefe.
Durante o seu trajeto do alto da construção até a sala da chefia, o personagem é rodeado pelos
sons maquinários onipresentes. Tais sonoridades são representadas com uma intensa acentuação
das tonalidades graves inerentes a ambiência acústica de uma obra. A força sinestésica das baixas
frequências desses eventos sonoros evoca no espectador as sensações de opressão e sufocamento
que parecem invadir o protagonista. Os ruídos hiper-realistas apontados estabelecem o clima da
cena ao nos remeterem à situação de superioridade das máquinas em relação à “Rulo”, que foi
demitido por se mostrar incapaz de operá-las. Assim, tais eventos sônicos remetem à inadequação
dele àquele ambiente opressor e desumanizado.
No longa Bolívia (Bolivia, Adrián Caetano, 2001), observamos um completo caos sonoro
onde tal desarmonia acústica pontua a dramaticidade da vida sofrida dos imigrantes ilegais. Freddy
é boliviano, recém-chegado em Buenos Aires, onde passa a ser empregado no bar de Henrique,
que também emprega a paraguaia Rosa. Os estrangeiros trabalham em um ritmo desumano, por
um salário miserável, enquanto são bombardeados por piadas xenofóbicas.
O filme se passa quase todo dentro do bar, locação principal, cuja mise-en-scène é permeada
por uma incessante profusão de sons, onde a partir de uma construção acústica minuciosa
ouvimos cada mínima sonoridade de maneira bastante nítida. Tais sons ruidosos, apesar de não
serem representados de maneira hiper-realista, são frenéticos e onipresentes, uma vez que são
produzidos pelo trabalho ininterrupto e estressante da dupla de imigrantes. As falas incessantes
que ecoam das conversas entre os clientes são em sua maioria ininteligíveis, de modo que se
transformam em um vozerio ruidoso que não se articula como discurso, mas sim como parte da
ambiência acústica, tal como o som ambiente.
Esta construção sonora caótica engendra um sentido de opressão, como se os personagens
fossem reféns daquela desgastante rotina auditiva. Ao entrarmos em contato com estes sons do
entorno, somos convidados a compartilhar da atmosfera de turbulência e inconstância que permeia
o cotidiano dos estrangeiros que vivem à margem. A morte de Freddy é a única cena silenciosa do
filme, o que potencializa a carga dramática da sequência que simboliza não apenas o fim de sua
vida, mas, sobretudo, o fim da sua luta pela sobrevivência.
Em La Libertad (La Libertad, Lisandro Alonso, 2001) “Misael” é um lenhador que passa
seus dias sozinho imerso na floresta, totalmente integrado com aquele ambiente, onde vive cada
pequena ação de sua rotina. No filme, o qual se encontra em uma posição híbrida entre ficção e
documentário, a narrativa se constrói a partir da observação do cotidiano do lenhador solitário,
e a quase ausência de diálogo e música confere destaque a presença dos efeitos sonoros, os
quais nesta película se propõem a representar a riqueza sonora que é possível ser captada em um
ambiente onde a acústica da natureza não disputa espaço com o caos sonoro urbano.
Nesse sentido, os sons produzidos pelo personagem, desde os mínimos (passos, respiração,
deglutição, etc.) até os mais impactantes, como os que soam do choque entre seu machado e os
troncos/galhos das árvores, se harmonizam com o sons onipresentes da floresta (sons de pássaro,
de cigarras, do vento, trovões, chuva). Este amálgama sônico intensamente minimalista parece
se propor a revelar uma relação orgânica onde homem e meio se influenciam mutuamente a
todo tempo. Misael muda a paisagem, ao mesmo tempo em que é modificado por ela, e essa
relação de troca é a todo tempo evocada no campo perceptivo do espectador a partir dos arranjos
acústicos operados pela sobreposição destas distintas camadas de efeitos sonoros, responsáveis
pela representação de cada detalhe acústico da ambiência diegética.
A Raiva (La rabia, Albertina Carri, 2008) nos apresenta a relação conturbada entre duas
famílias que vivem em uma região isolada nos Pampas Argentinos. Quando os patriarcas se
desentendem no início da trama, proíbem a aproximação entre seus solitários filhos, a menina
“Nati”, a qual sofre de uma estranha mudez (ela não fala, mas grita muito), e o sensível adolescente
“Ladeado” que vive em conflito com o pai. Mesmo diante da proibição, os jovens continuam
mantendo uma amizade às escondida e é num desses encontros secretos que o pai do garoto os
flagra e resolve castigá-lo com uma surra de sapato, cuja representação sonora domina a estrutura
narrativo-estética da ação.
A sequência é composta por uma minuciosa composição acústica do espaço, de modo que o
espectador tem acesso à escuta de sonoridades muito sutis, que na realidade tangível dificilmente
seriam ouvidas com tamanha nitidez, como as pisadas dos cachorros e das crianças na palha
quando ainda estão brincando de correr instantes antes do flagrante, e as quais não apenas figuram,
mas de fato compõem a mise-en-scène da ação. Outra construção que demonstra o aspecto
expressivo da representação dos sons do mundo nesta cena é a colocação de um efeito extra-
diegético intensamente grave junto ao som ambiente do vento que ao ir crescendo em potência e
diminuindo em frequência ao longo da cena, tornando-se ainda mais grave, vai imprimindo uma
forte atmosfera de tensão à ação, preparando sensorialmente o espectador para a chegada violenta
do pai de “Ladeado”.
Além disso, no momento da surra, o ruído das sapatadas é bastante destacado e seco, se
fazendo presente na nossa escuta, mesmo dividindo o espaço acústico com os gritos desesperados
do garoto. Aqui a voz já não é fala, mas sim é explorada enquanto mais uma camada do som
ambiente. Nesse sentido, a sonoridade incessante das pancadas em conjunto com os gritos,
sobretudo na segunda parte da sequência, evoca as sensações de violência e raiva que permeiam a
relação entre pai e filho, funcionando nesse sentido como um prenúncio para o desfecho violento
da trama. Ao ocultar essa parte da sequência visualmente – ouvimos, mas não vemos a surra – o
filme confere um papel mais autônomo ao som, cuja força sensorial e expressiva é intensificada
na ausência da imagem, e o qual se propõe, nesta sequência, a nos conectar com as subjetividades
codificadas na diegese mais pela chave da intuição do que da evidência.
O enredo de A Menina Santa (La niña Santa, Lucrecia Martel, 2004) gira em torno de um
platônico triângulo amoroso entre Dr. Jano, Helena e sua filha Amália. Logo no início do filme, o
médico, que está participando de uma conferência no hotel administrado por Helena e seu irmão,
molesta Amália ao encostar-se com malícia em seu corpo durante uma apresentação musical que
atrai uma pequena multidão para frente do hotel.
O ato de Jano desperta a libido da menina “santa”, que entende o ocorrido como um sinal
divino e passa a desejar e perseguir seu “algoz”. Esta reação é fruto do momento inquietante que a
adolescente vive, dividida entre o despertar da sexualidade e as aulas de catecismo. A partir deste
acontecimento pontual a trama se desenrola e passamos a acompanhar alguns dias atípicos na
vida dos três personagens. Uma cena chave para o desenvolvimento da narrativa é aquela onde o
médico, que até então só tinha visto sua “vítima” na rua, a flagra o observando na piscina do hotel
e fica notoriamente assustado. Nesta ação a adolescente, mesmo camuflada atrás de uma pilastra,
chama a atenção de Jano ao emitir uma sonoridade representada de maneira hiper-realista.

Podemos dizer que o gesto sonoro ordinário realizado por Amália – a batida reiterada de um
anel na pilastra de ferro – propõe o alcance de um hiper-realismo, porque o sentido emanado por
ele vai muito além do que a dimensão visual revela. Vemos a garota “escondida”, mas sabemos a
partir do som emitido que o que ela quer de fato é ser vista, e mais, é pela potência sensorial desse
som, enfatizada por sua alta-definição e por sua reiteração excessiva, que acessamos intuitivamente
o desejo pungente de Amália. Se até agora a menina apenas cercava o médico de longe, é a partir
deste momento, demarcado por essa sonoridade insistente, que ela passa a o perseguir.
Na realidade tangível dificilmente alguém que estivesse naquele cenário, como Jano,
ouviria com tamanha definição um som tão sutil, ainda mais por se tratar de uma área aberta
que recebe informações acústicas por todos os lados. Portanto é a ênfase no tom agudo do ruído
analisado que faz com que ele atinja de maneira bastante nítida a audição do médico. Ainda que
Jano não possa a ver nitidamente, Amália faz com que ele a escute, e, para além disso, faz com
que ele, e também nós espectadores, sintamos toda a sua intenção de se aproximar.

Considerações finais

Nas produções do NCA, os efeitos sonoros, tanto os emanados a partir interação dos perso-
nagens com o meio, quanto àqueles provenientes do entorno circundante, sobretudo, quando con-
cebidos de maneira hiper-realista, transcendem seu papel convencional de um reforço mimético a
dimensão imagética e passam a engendrar significações fundamentais acerca do universo ficcio-
nal que estão além de uma leitura tradicionalmente figurativa. Nesse sentido, estes componentes
da trilha de áudio não se limitam a uma representação meramente mimética dos sons do mundo,
assumindo funções narrativas e estéticas determinantes na construção diegética em detrimento de
um papel primordialmente utilitário-figurativo.
Assim, em grande parte das películas do NCA, os efeitos sonoros se destacam tanto en-
quanto elementos que constroem espaços e compõem acusticamente a mise-en-scène, como tam-
bém conferem dramaticidade às ações, ao proporem a revelação das subjetividades codificadas
na diegese, evocam sensações ao criarem atmosferas e climas nas sequências, além de pontuarem
momentos decisivos das tramas, oferecendo intuições narrativas e estéticas ao espectador. Dentro
desta perspectiva, a potência sonora que nos cerca, primordialmente desvalorizada na realidade
tangível enquanto elemento cultural e estético (SCHAFER, 2001; CHION, 2011), quando re-
presentada neste movimento, passa a interferir de forma determinante no processo fruitivo do
espectador, suscitando significações que permaneceriam ocultas em uma composição audiovisual
meramente redundante.

Ademais, a quebra ao padrão do Verbo-centrismo na criação dos diálogos, e um consequente uso


da voz enquanto evento acústico incorporado ao som ambiente e não enquanto discurso a au-
sência da fala-texto (CHION, 2001) em momentos determinantes da trama, como também o uso
módico de canções, além de serem opções de desenho acústico que conferem um espaço maior
e mais significativo para os efeitos sonoros na construção fílmica, contribuindo assim para um
rico detalhamento acústico, bem como para a criação de inovadoras composições hiper-realista,
também funcionam como recursos determinantes para a concepção estilística dos filmes. Ao nos
voltarmos para as sequências analisadas percebemos a recorrência dessas estratégias ora listadas,
tendo em vista que em nenhuma delas ouvimos canções ou palavras, mas sim um arranjo sônico
composto apenas pelos sons do mundo.
Diante do exposto, buscamos apontar neste artigo certas recorrências estilísticas sonoras
que permeiam o ciclo do Nuevo cine Argentino como uma forma de contribuir para a produção de
conhecimento acerca deste importante movimento do cinema contemporâneo. Assim, para além
da já reconhecida convergência produtiva-temática-narrativa, propomos aqui a problematização
acerca de uma convergência também de ordem estética permeando a concepção sonora das pro-
duções pertencentes a este ciclo cinematográfico. Tal argumentação também traz contribuições
aos Estudos do Som, uma vez que se propõe a refletir de maneira mais específica e aprofundada
sobre os efeitos sonoros, componentes do filme usualmente ignorados pelo âmbito teórico.
Referências bibliográficas

AGUILAR, G. Otros mundos: Un ensayo sobre el nuevo cine argentino. Buenos Aires: Santiago
Arcos, 2006.

BARRENHA, N. C. A experiência do cinema de Lucrecia Martel: Resíduos do tempo e sons


à beira da piscina. 2011. 224 f. Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Instituto de Artes da
Unicamp, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2011. Disponível em: <http://www.
bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000837604>. Acesso em: 25. Jan. 2017.

CAMPERO, A. Nuevo cine argentino. Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento,
2009.

CAPELLER, I. “Raios e trovões: hiper-realismo e sound design no cinema contemporâneo”. In:


Catálogo da mostra e curso O Som no Cinema. Rio de Janeiro: Tela Brasilis/Caixa Cultural, pp.
65-70, 2008.

CHION, M. A Audiovisão. Lisboa: Texto & Grafia, 2011.

COSTA, F M. “Pode o cinema contemporâneo representar o ambiente sonoro em que vivemos?”


Logos Comunicação e Audiovisual, v. 17, n. 1, 2010.

SCHAFER, R. M. A afinação do mundo. São Paulo: Unesp, 2001.

VERARDI, M. Nuevo cine argentino (1998-2008): formas de una época. 2010. Tese (Doutorado
em História y Teoría de las Artes) – Facultad de Filosofia y Letras, Universidad de Buenos Aires,
Buenos Aires, 2010.

Roberta Ambrozio de Azeredo Coutinho - Graduada em jornalismo (2006 –


2010) e especialista em estudos cinematográficos (2012 – 2014) pela Universidade
Católica de Pernambuco (Unicamp – PE). Mestre pelo programa de pós-graduação
em comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Participou de
oficinas e cursos técnicos de som cinematográfico, como de operação de Protools
(2015) e de Criação\edição\mixagem de Foleys (2016). Atualmente é doutoranda
(2017 – 2021) no mesmo programa onde concluiu o mestrado e desenvolve um estu-
do acerca do conceito de ruído em distintas áreas do conhecimento, como a acústica,
a comunicação e a antropologia, em diálogo com a conceituação deste elemento na
linguagem cinematográfica.
34. O SORRISO BARROCO: IRONIA E MELANCOLIA EM JÚLIO BRESSANE

Fabio Camarneiro

A cabeça pende apoiada sobre a mão fechada. O olhar é ao mesmo tempo penetrante, como
se concentrado em algo, e também um tanto perdido, destituído de um objetivo claro. A mão
descansa enquanto segura um compasso, talvez interrompida em meio a algum gesto. Próximo,
um livro fechado serve de apoio ao outro braço do anjo. Ao redor da figura sentada e pensativa, a
seus pés, instrumentos de marcenaria. Acima, uma ampulheta, uma balança, um sino e uma tabela
com quatro linhas e quatro colunas, preenchidas por números – um “quadrado mágico”, em que
o resultado da soma de qualquer linha ou coluna ou diagonal é sempre o mesmo.
Ao fundo, ao longe, algumas construções – uma pequena cidade? – e, ao horizonte, o sol
lança seus raios. No céu, uma criatura alada, um tanto etérea e com rosto canino, nos apresenta
o título da gravura, que surge em uma placa: “Melencolia I” – ou “Melancolia I” (1514) – obra
do alemão Albrecht Dürer.
Além de notar “a cabeça apoiada, a bolsa e as chaves, o punho cerrado, o rosto escuro”,
uma análise – retirada do livro Saturno y la melancolía – oferece uma interpretação possível
dessa imagem:

a gravura de Dürer é o resultado de uma síntese de certas imagens alegóricas


da melancolia e da arte, cujos conteúdos imaginários, bem como seus
significados expressivos, sem dúvida se modificaram. Daí a probabilidade
intrínseca de que os motivos característicos da gravura se expliquem ou
como símbolos de Saturno (ou a melancolia) ou como símbolos da geometria.
(KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL, 1991: 310)

Neste trecho, a gravura de Dürer é entendida como “síntese de imagens alegóricas”, a


gênese de um entendimento, na tradição ocidental, que estabelece intercâmbios entre o sentimento
melancólico e o (por vezes angustiado) pensamento especulativo ou abstrato. Walter Benjamin,
ao tratar do papel do tradutor, aproximou a perplexidade do leitor ao sentimento produzido
no observador de “Melancolia I”. A partir dessa ideia, Suzana Kampff-Lages coloca Dürer e
Benjamin lado a lado:

Como a gravura de Dürer, seu enigma liga-se a uma composição inédita de


imagens extraídas da tradição anterior (no caso de Benjamin, da tradição
filosófica e literária e, dentro dela, da teoria da tradução, anteriores a ele).
(KAMPFF-LAGES, 2007: 220)

Assim como na gravura de Dürer e na obra de Benjamin, o cinema de Júlio Bressane


opera com essa “composição inédita de imagens extraídas da tradição anterior”. Um cinema
erudito em que literatura, cinema, música e artes plásticas amiúde aparecem em citações diretas
ou alusões. Em várias dessas escolhas, notamos que essa tradição ligada à melancolia ganha
uma companheira: a ironia. Esse encontro (que revela um jeito bastante brasileiro de lidar com a
apropriação) aparece já no personagem Brás Cubas, do romance de Joaquim Maria Machado de
Assis (filmado por Bressane em 1985), que afirma ter escrito suas memórias póstumas com “a
pena da galhofa e a tinta da melancolia”. (ASSIS, 2014)
Ainda outra matriz para essas apropriações em chave irônica seria o samba, estilo musical
muito usado por Bressane em seus filmes e que dependeria, de acordo com o verso de Vinicius
de Moraes, de “um bocado de tristeza” para ser esteticamente bem-sucedido. A ironia do samba
possui longa tradição, e citaremos apenas o autor mais usado nos filmes de Bressane, Noel Rosa,
cuja obra é marcada por letras repletas de humor, inversões, situações inusitadas, trocadilhos etc.
Além dos exemplos acima, a melancolia está presente também em diferentes autores
que pensaram a identidade brasileira durante os anos 1920 e 1930. (SCLIAR, 2001) Assim,
em Retrato do Brasil, Paulo Prado coloca o sentimento (que o autor aproxima do spleen) na
conta dos descobridores portugueses: “Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe
essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram”. (PRADO, 2007) A
obra elenca ainda as razões históricas da tristeza brasileira, elencadas nos títulos de seus quatro
capítulos: “a luxúria”, “a cobiça”, “a melancolia” e “o romantismo”. Ao citar nosso “erotismo
exagerado”, Prado se lembra do adágio latino: Post coitum animal triste est (depois do coito, o
animal está triste). Esse julgamento excessivamente negativo da luxúria rendeu uma das primeiras
e mais notórias críticas ao livro, de autoria do poeta Oswald de Andrade, que acusou Prado de ter
desconsiderado as ideias psicanalíticas de inconsciente ou libido. Segundo o autor do “Manifesto
antropófago”, Retrato do Brasil seria “pré-freudiano”, e alinhar-se-ia a uma “moral dos conventos
inacianos”. (In: PRADO, 2007: 230)

Outros autores também lidaram a presença da melancolia como constituinte do brasileiro:


em Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre lança mão da ideia das “três raças tristes”: “O
português, já de si melancólico, deu no Brasil para sorumbático, tristonho; e do caboclo nem se
fala: calado, desconfiado, quase um doente em sua tristeza”. (apud SCLIAR, 2001) Já Vianna
Moog atribuiria essa tristeza ao “mazombismo, à consciência das raízes europeias e da dolorosa
separação destas”. (SCLIAR, 2001) Lembremos ainda de Tristes trópicos, de Claude Lévi-
Strauss, para afirmarmos que a ideia da melancolia faz parte de uma das matrizes de pensamento
da cultura e da identidade brasileiras. Uma ideia de Brasil marcada em maior ou menor grau
por uma negatividade, que tornaria impossível a realização de um projeto de país civilizado
(aos moldes europeus). A melancolia nasce de um impasse aparentemente insolúvel, muito bem
formulada em José Miguel Wisnik: “se o Brasil se moderniza, deixa de ser Brasil; se permanece
Brasil, não se moderniza”. (WISNIK, 2015: 65) Restaria assim uma certa inexplicável tristeza
– saudade de um tempo que nunca existiu – que podemos aproximar das ideias de Freud. O
fundador da psicanálise lembra que a melancolia é o luto patológico decorrente da perda de um
objeto que, em última análise, é o próprio eu. (FREUD, 2011) A partir dessa ideia, pensamos a
melancolia brasileira como, ao menos em parte, um desejo manifesto de ser um Outro.
Os cineastas brasileiros ligados ao Cinema Marginal, ao refletirem um momento histórico
e político de niilismo e desencantamento político (os anos imediatamente posteriores ao Ato
Institucional nº 5, o AI-5), exploraram a fundo a figura da negatividade. (RAMOS, 1986) Em,
por exemplo, Horror Palace Hotel (Jairo Ferreira, 1978), filmado durante o Festival de Cinema
de Brasília e com participações e depoimentos de vários cineastas, Rogério Sganzerla afirma
que “o cinema brasileiro está tão ruim que só pode melhorar”. A frase do cineasta de O bandido
da luz vermelha realiza uma série de inversões: quanto pior o cinema brasileiro, mais otimistas
deveríamos estar; uma curva descendente pode significar uma ascendente (e vice-versa). Essa
figura da inversão é também típica da carnavalização, segundo o estudo de Mikhail Bakhtin
sobre a obra de François Rabelais (BAKHTIN, 1987). Compartilhando de elementos dessa
tradição que lança mão da melancolia para entender o país, Bressane trabalha em vários de seus
filmes – especialmente a partir de Tabu (Júlio Bressane, 1982) – sobre esse delicado equilíbrio
entre a negatividade (a melancolia) e a ironia (a galhofa), como se um dependesse do outro.
Assim, o cineasta remonta a Machado de Assis mesmo quando não está diretamente utilizando
a literatura do autor como base para seus filmes. E lança mão também de outras influências,
como a antropofagia de Oswald de Andrade – que elaborou a forma do “poema-piada” – ou do
tropicalismo, que operou inusitados choques entre elementos díspares, como pode-se perceber
nos versos de Torquato Neto, mais conhecidos na voz de Gilberto Gil: “A alegria é a prova dos
nove/ E a tristeza teu Porto Seguro/ Minha terra, onde o Sol é mais limpo/ Em Mangueira, onde
o Samba é mais puro”: encontro de elementos distintos, bem ao gosto da Tropicália: de um lado,
Oswald (“A alegria é a prova dos nove”) e, do outro, Gonçalves Dias (“Minha terra, onde o Sol
é mais limpo”). Um encontro também de dois sentimentos aparentemente antagônicos, alegria
e tristeza, recuperados a partir de um jogo de citações (como também, cada qual a sua maneira,
fizeram Machado, Noel, Bressane).
Relembremos, de maneira bastante livre, algumas passagens do cinema de Bressane: o Rio
de Janeiro de ladeiras letárgicas que servem de cenário para as tiradas espirituosas de Oswald de
Andrade (Colé) em Tabu; o esqueleto na abertura de Brás Cubas (Júlio Bressane, 1985); o giro
do Padre Vieira em Sermões: a história de Antônio Vieira (Júlio Bressane, 1989); a solidão de um
Mário Reis nu, que a capella canta “Rasguei a minha fantasia” em O mandarim (Júlio Bressane,
1995). Em todos esses momentos, algo remete à melancolia (a lenta passagem de tempo; a falta
de sentido do movimento; os signos de morte) e, ao mesmo tempo, pelas citações que esses
momentos contêm – o Othon Bastos de Vieira ecoa o gesto de Corisco de Deus e o diabo na terra
do sol (Glauber Rocha, 1964) –, pelo inusitado das situações (o microfone que percorre-ausculta-
grava o cadáver), pela abordagem literal da letra da canção (o homem nu que canta ter “rasgado
sua fantasia”) – temos sempre, ao fundo, de maneira sutil, o eco de um riso, a presença da ironia.
Essa maneira de pensar a criação artística encontra, como vimos, ecos em Dürer e em
Benjamin. Mais uma vez Kampff-Lages, ao escrever sobre Benjamin e sua ideia de tradução e de
leitura, esclarece que:

A cada nova interpretação pressente-se um acréscimo e uma falta, uma


proximidade e uma distância entre o texto e seus leitores. Esse movimento
oscilante não só é correlato da alternância que se encontra no impulso
melancólico, mas constitui o modo especifico pelo qual a melancolia age na
leitura (KAMPFF-LAGES, 2007: 220)

Mas, além de Benjamin, também Bressane pode ser vislumbrado no trecho acima. Seja
no “movimento oscilante” entre o filme e a tradição, movimento similar ao das ondas do mar
(imagem muito recorrente em Bressane): movimento interminável, eterno retorno, dialética
sem síntese possível. Kampff-Lages identifica a melancolia como ferramenta para a leitura dos
fragmentos do passado. Não se trata apenas de uma tradução, mas de uma posição subjetiva frente
ao próprio repertório artístico, à própria constelação de referências que anima os autores aqui em
questão. Mas, no caso brasileiro, em um contexto específico e com essa “distância” podendo
também indicar uma dicotomia entre a matriz civilizada (de onde nos chega os “originais”) e suas
“cópias”, muitas vezes consideradas insuficientes ou mal ajambradas.

Ainda além, Benjamin identifica, em “Melancolia I”, o barroco:

Essa gravura antecipa sob vários aspectos o Barroco. Nela, o saber obtido
pela ruminação e a ciência obtida pela pesquisa se fundiram tão intimamente
como no homem do Barroco. A Renascença investiga o universo, e o Barroco,
as bibliotecas. Sua meditação tem o livro como correlato. (BENJAMIN,
1984: 164)

Levando em conta a passagem acima, se o barroco realmente investiga as bibliotecas,


o cinema de Bressane não se encontra muito distante dessa mesma ideia ao investigar acervos
fílmicos, literários, musicais ou pictóricos. Daí a impressão de historicidade que atravessa toda a
filmografia do realizador, com especial ênfase em seus filmes realizados desde meados da década
de 1970 e pelo menos até Cleópatra (Júlio Bressane, 2008). Com isso, não queremos dizer que
Bressane tenta dar conta de um momento histórico específico ou que seus filmes tentam recuperar
o passado da maneira mais convencional que o cinema se acostumou a fazer, o chamado “filme de
época”. Em Bressane, essa historicidade é algo mais profundo, como se cada palavra, cada gesto
e cada música, cada enquadramento e cada corte de cena fossem resultado de um acúmulo de
referências. Resta então, ao espectador, o exercício de desenrolar essa espécie de fio que nos leva
dos elementos da forma fílmica a uma espécie de história das formas. Cada imagem remetendo a
outra e a outra, criando assim uma espécie de vertigem cujo centro é a própria noção de História.
A frase de Benjamin sobre o barroco estabelece também um delicado encontro entre
pares opostos: de um lado, a ruminação (filosófica e abstrata) e, do outro, a pesquisa (científica e
empírica). O livro como ponto de equilíbrio possível entre esses dois polos. Em Bressane, esses
dois polos poderiam ser também traduzidos como erudição e experimentação, as duas bases de
seu cinema. O livro (o filme) é também aqui ponto de equilíbrio entre o erudito (a “ruminação”,
segundo Benjamin) e o sensual (o empirismo), como se pode tantas vezes comprovar em seu
Filme de amor (Júlio Bressane, 2003).
Aqui, coloca-se um problema: como se apropriar de materiais da tradição sem cair em
um saudosismo próximo da sensibilidade do romantismo? Pensando sobre isso, Olgária Matos
escreve sobre Walter Benjamin, afirmando que o autor:

está atento ao aspecto arcaico, “de ideologia reacionária” no culto ao passado.


Mas, ao contrário desse retorno petrificado, considera que existe o “êxtase
cultural” como forma legítima de conhecimento, um acesso à dinâmica
original das formações das culturas. (MATOS, 1989: 86)

Aos que ainda poderiam imaginá-los, Benjamin ou Bressane, como meros “cultores do
passado”, temos a resposta: na verdade, temos nesses autores um acesso à “dinâmica original
das formações das culturas”. Um gosto pelo passado que reconhece, ao mesmo tempo, a
impossibilidade de se recuperá-lo e essa espécie de abismo que separa o momento da leitura do
da escrita. Porém, ambos parecem também reconhecer que esse mesmo abismo seria condição
necessária para uma verdadeira aventura criadora.
Ainda aproximando criação e melancolia, Susan Sontag defende que as obras do pensador
alemão só podem ser entendidas “desde que se compreenda até que ponto se baseia na teoria da
melancolia”. (SONTAG, 1986: 86) E a psicanalista e ensaísta Maria Rita Kehl afirma que “o
conceito de fatalidade melancólica começa a ser pensado por Benjamin no início de sua produção
intelectual (...) e vai até seus últimos escritos”. (KEHL, 2015: 260) Assim, se pudéssemos esboçar
aqui uma certa genealogia, encontraríamos a ironia e a melancolia associadas à determinadas
práticas de leitura (e de releitura, e de tradução) de uma tradição cultural.
Kampff-Lages identifica em Benjamin elementos que podemos encontrar também no
cinema de Bressane: “um processo de violenta apropriação, que se constitui a partir de uma
releitura conscientemente seletiva do substrato literário passado e contemporâneo”. (KAMPFF-
LAGES, 2007: 90) Assim, as referências do cineasta, resultados de “violenta apropriação”, surgem
sempre de maneira crítica e associadas, como pudemos ver nos poucos exemplos acima, à ironia.
O encontro entre Saturno (a melancolia) e a geometria inaugura, na tradição pictórica
ligada ao tema, uma nova ideia: a melancolia como qualidade do espírito criativo. Portanto,
criação artística e melancolia caminhariam lado a lado.
O objeto colecionado readquire seu caráter de culto, de ritual. De onde a
noção benjaminiana de “iluminação profana”, onde o cotidiano e o mistério
conjugam seus poderes, fazendo corpo com o mundo das imagens (Bild).
(MATOS, 1989: 92)

Cotidiano e mistério conjugados. Como em Filme de amor, que encena – em um banheiro


– o nascimento de Vênus a partir do quadro de Sandro Botticelli. No mesmo filme, sem nenhuma
explicação prévia, as personagens femininas voam pelo quarto do edifício decadente do subúrbio
do Rio de Janeiro. Benjamin escreveu sobre o movimento surrealismo:

De nada nos serve a tentativa patética ou fanática de apontar no enigmático


o seu lado enigmático; só devassamos o mistério na medida em que o
encontramos no cotidiano, graças a uma ótica dialética que vê o cotidiano
como impenetrável e o impenetrável como cotidiano. (BENJAMIN, 1987:
33)

As vanguardas francesas em geral e o surrealismo em particular são importantes para


Bressane em distintos momentos de sua carreira. Seja em Amor louco (Júlio Bressane, 1971),
quando toma emprestado o título de um livro de André Breton e faz alusão à famosa sequência
do olho cortado em Um cão andaluz (Un Chien andalou, Luis Buñuel, 1928); seja em Cinema
inocente (Júlio Bressane, 1980), quando recupera o imaginário do cineasta francês Marcel
L’Herbier; seja em Filme de amor, quando cita as pinturas de Balthus ou recupera as primeiras
páginas de A história do olho, primeiro romance de Georges Bataille, em que a personagem
central senta em um pires cheio de leite. Se, como estratégia, tanto Benjamin quanto Bressane
apropriam-se de fragmentos da tradição, o cineasta carioca mistura a ironia brasileira com a
matriz experimental do cinema e da literatura francesas do entre-guerras. Um momento em que
Jacques Lacan via o surrealismo como algo que “encontra lugar numa série de emergências cujo
selo comum imprime em nossa época sua marca: a de uma revelação das relações do homem com
a ordem simbólica”. (LACAN, 2003, p. 166)
Segundo Kampff-Lages, existiria no autor alemão uma “aplicação radical do conceito
modernista de antropofagia como estratégia particular de leitura da tradição”:

Trata-se de um processo de violenta apropriação, que se constitui a partir


de uma releitura conscientemente seletiva do substrato literário passado e
contemporâneo. (LAGES, 2007: 90)

Assim, Benjamin seria talvez “o último dos pensadores modernos” a tomar a palavra em
sua acepção “pré-freudiana”, que articula “o melancólico à cultura e à criação artística”. (KEHL,
2015: 254) Concepção fundada nas interpretações da gravura de Dürer. Mas Freud passa a usar
esse significante “para inaugurar uma nova explicação psicanalítica para a chamada ‘psicose
maníaco-depressiva’ (Kraepelin)” (KEHL, 2015: 253) Logo, “a aura romântica, tanto reflexiva
quanto criativa, (mal) equilibrada na tensa fronteira entre o gênio e a loucura – a aura dos antigos
melancólicos – se perdeu”. (KEHL, 2015: 261)
Concordando com Susan Sontag, para quem as obras de Benjamin só podem ser entendidas
“desde que se compreenda até que ponto se baseia na teoria da melancolia” (SONTAG, 1986:
86), Maria Rita Kehl afirma que

o conceito de fatalidade melancólica começa a ser pensado por Benjamin no


início de sua produção intelectual, a propósito do teatro barroco; continua
nas considerações sobre os obstáculos à poesia lírica no século XIX e vai até
seus últimos escritos, em que se discute com os historicistas sobre o conceito
de história. (KEHL, 2015, p. 260)

Para a psicanalista, a melancolia é central em Benjamin por ser “tributária de uma


determinada maneira de se interpretar a história”. (KEHL, 2015: 260) Bressane compartilha essa
interpretação (barroca) da história. No horizonte do cineasta, há o contato entre uma liberdade
artística e uma liberalidade sexual que podemos encontrar tanto na literatura erótica francesa
quanto no maio de 1968. Uma utopia – “paraíso terrestre”, El Dorado. Nesse sentido, a cidade do
Rio de Janeiro surge como ruína, mas também como memória – de algo que jamais existiu.
A maneira de Bressane escapar a essas armadilhas da leitura (que poderiam consolidar uma
posição subalterna ou “subdesenvolvida”) é entender a tradição como ruína. Como se seus filmes
realizassem uma alternância que remete à história do Brasil e a sua identidade nacional, entre a
euforia da terra prometida e a constatação do fracasso iminente. Aprisionado a esse movimento
– que, repetimos, não tem síntese possível, ou seja, não nos leva a lugar nenhum – o realizador,
filme a filme, retorna sempre aos mesmos temas, às mesmas referências, mas sempre as recriando,
conectando-as com novos materiais e assim abrindo novas cadeias de significado. Para Bressane
(como antes para Machado), o mito romântico da “originalidade” torna-se inviável (e também,
de certa maneira, sem sentido). Ou, em tom de galhofa, podemos também lembrar das polêmicas
sobre a autoria de alguns sambas durante a década de 1920, que levaram o compositor Sinhô –
acusado de “ladrão” – a declarar que “samba é que nem passarinho, de quem pegar primeiro”.
(NETO, 2017) Esta mesma história é citada em O mandarim, com o cantor e compositor Gilberto
Gil interpretando o papel de Sinhô.
No trabalho de reapropriação de materiais distintos, tão ou mais importante que saber criar
é saber como tomar de empréstimo (como roubar) referências anteriores, deslocando-as de seus
contextos originais e tornando-as suas. A partir da ideia benjaminiana da “perda da aura”, Kampff-
Lages pensa a gravura de Dürer como um elogio à cópia. A autora escreve que “O trabalho do
gravador não gera apenas uma obra, única, original; oferece também a possibilidade de se ter, a
partir de uma matriz, inúmeros originais, ou inúmeras cópias.” (LAGES, 2007: 45)
Em Bressane, a melancolia está associada às ideais desde sempre perdidos, a ambições
nunca realizadas e que, mesmo assim, sobrevivem no mito. Para o realizador, o filme Limite
(Mário Peixoto, 1931) seria, assim, um vislumbre do que o cinema brasileiro poderia ter sido
(mas raramente foi) enquanto potência criativa e manancial de invenção. Em seu texto sobre o
filme de Peixoto, Bressane o coloca como fundador de uma tradição negativa, que jamais houve:

Sobre os resíduos em Bressane, escreve Ismail Xavier:

O seu cinema coleta resíduos e nos devolve escombros à atenção renovada;


mas a sua dialética do banal-insólito, tão responsável pelo mal-estar de quem
visita o seu imaginário, configura um mundo de danação em movimento
incessante. Há no seu trajeto uma inconclusão que interroga, desafia e nos
sonega os indícios de que seu termo final seja o Paraíso (no céu ou na terra).
(XAVIER, 1979, p. 62)

“Inconclusão” que também Rubens Machado Jr. identificou em Bressane desde, pelo menos,
o plano que encerra O anjo nasceu. (MACHADO JR., ) O imaginário do cineasta configuraria
esse “mundo de danação em movimento incessante”, que jamais se aproxima de um termo, num
movimento que acaba por retornar aos mesmos motivos estéticos, às mesmas “obsessões”: a
invenção cinematográfica (que aparece na relação com as vanguardas francesas e com Limite);
a experiência do corpo e do erotismo como possibilidade de síntese; a cidade do Rio de Janeiro
como memória de uma “terra prometida”; a ironia (herança de Machado de Assis e de Noel
Rosa), do samba...
A cidade – ao mesmo tempo “triste e alegre” – é o lugar onde sonha o cineasta. É a partir do
Rio de Janeiro que se elaboram suas relações com a história (com a ruína); a cidade como espaço
do encontro e do desejo sexual. A cidade como espaço privilegiado para o encontro, a descoberta.
Outro amante das ruas foi Walter Benjamin. Em suas memórias da infância passada em Berlim, o
filósofo escreve sobre o “despertar do sexo”, quando o então menino faltou a uma comemoração
religiosa e “perdeu-se” na rua:

a primeira grande sensação de desejo, em que se misturavam a violação do


dia santo e a obscenidade da rua, que me fez entrever, pela primeira vez, os
serviços que prestava aos instintos recém-despertados (BENJAMIN, 1987,
p. 89)

A rua presta serviços aos instintos recém-despertados. Fornece estímulos ao corpo e ao


olhar; cria um estado de atenção particular, muito associado à modernidade. É no ato de perder-
se – atividade do flanêur – que se operam encontros, aproximações inusitadas. Ou, às vezes, mal-
entendidos:

Os mal-entendidos modificavam o mundo para mim. De modo bom, porém.


Mostravam-me o caminho que conduzia a seu âmago. Qualquer pretexto
lhes convinha. (BENJAMIN, 1987, p. 98)

Os “duplos sentidos” em Bressane parecem operar como os “mal-entendidos” em Benjamin:


também eles modificariam o mundo (seus significados) ao deslocar significantes de suas cadeias
originais. Assim, recolocam em chave sempre nova (inventam) a relação com a realidade imediata
ou com um acervo de referências.
Benjamin entende a melancolia (e o barroco) como uma espécie de meditação sobre a
cultura. No Brasil, vários criadores acrescentariam a essa receita a ironia e o humor. Dos filho da
galhofa e da melancolia, temos – além de Machado de Assis – Noel Rosa, Oswald de Andrade,
os modernistas brasileiros dos anos 1920, e os cineastas surgidos em finais dos anos 1960 e
associados ao Cinema Marginal, especialmente Júlio Bressane e Rogério Sganzerla. Suas obras
tentam retrabalhar elementos da cultura brasileira (e europeia) a partir desse resgate operado pela
melancolia, mas sempre com humor e ironia. Assim, no caso do cinema de Bressane, teríamos o
aspecto barroco identificado por Benjamin. Barroco e galhofeiro.
Bressane parece pedir a seus espectadores um sorriso de cumplicidade, seja quando
compartilhamos de suas leituras e assim podemos melhor identificar os materiais originais de
suas citações e melhor perceber o complexo jogo estabelecido pelo cineasta. Seja para dividirmos
a experiência da vertigem (essa imagem tão barroca) que o cineasta cria a partir de uma erudição
que insiste em se manifestar nos aspectos sensíveis do corpo: na dança, no sexo etc. – como bem
diz a expressão no texto de Olgária Matos, o que experimentamos nesses casos são “êxtases
culturais”.
Ao analisar um conto do alemão E. T. A. Hoffman, Jean Starobinski concebe que a
melancolia, “efeito de uma separação sofrida pela alma”, pode ser “curada pela ironia, que
é distância e desarranjo ativamente instaurados pelo espírito, com o auxílio da imaginação.”
(STAROBINSKI, 2016: 301) Talvez o que Bressane realize não seja exatamente uma cura, mas
uma droga, um anestesiamento, um delírio. Ou, para citarmos o exemplar título de um livro
de José Miguel Wisnik sobre futebol, podemos pensar que, em Bressane, o binômio ironia-
melancolia operaria como um “veneno remédio”: o uso da galhofa serviria então para lidar com
nosso passado traumático (nossa identidade nacional que tão desesperadamente tenta associar-se
à alegria, mas que sempre, inelutavelmente, termina ligada à tristeza). Temos então o surgimento
de um “sorriso barroco” – ao mesmo tempo trágico e vertiginoso, erudito e irônico, triste e
sensível – que o cinema de Bressane lança à plateia, e que se configura como uma de suas marcas
mais distintivas.
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jun./jul. 1979.

Fábio Camarneiro – Professor do curso de cinema e audiovisual da Univer-


sidade Federal do Espírito Santo – UFES. Possui doutorado em meios e processos
audiovisuais e mestrado em comunicação impressa e audiovisual, ambos pela ECA/
USP. Foi assistente de direção e um dos idealizadores do documentário Assombração
urbana com Roberto Piva. Escreveu o roteiro de Curupira (melhor curta no Festi-
val do Rio, 2005). Foi um dos editores de texto do programa Lá e Cá (co-produção
TV Cultura e RTP – Rádio e Televisão Portuguesa). Tem textos publicados nos li-
vros Montagem e Interpretação – Coleção Cinema e Psicanálise, vol. 4 (organização:
Christian Ingo Lenz Dunker; Ana Lucilia Rodrigues) e Os filmes que sonhamos” (or-
ganização: Frederico Machado). Escreveu crítica de cinema nos jornais “A Gazeta”,
“Valor Econômico” e “Folha de S. Paulo” e no blog “retrovisor” [http://camarneiro.
blogspot.com.br/]. É redator da revista online “Cinética”.
35. O Cinema do Entrelugar

Angelita M. Bogado

Inicialmente propomos um retorno à crítica de Walter Benjamin sobre o fracasso da


experiência (Erfahrung, e o fim da arte de contar). A reflexão teórica foi evocada para impulsionar
a análise dos filmes e ajudar a construir o pensamento sobre o que vem a ser o cinema do entrelugar.
A teoria da narração de Benjamin, desde os escritos da década de 1930 (Experiência e
pobreza, em 1933, e o Narrador, em 1936) aponta para o declínio da experiência. Para estudiosos
e teóricos da narração como Márcio Seligmann-Silva (2005) e Jeanne Marie Gagnebin (2009,
2014), a transmissão das narrativas orais foram severamente comprometida diante do horror e do
genocídio praticados dentro dos muros de Auschwitz. Em uma sociedade do pós-primeira guerra,
os soldados voltavam emudecidos dos campos de batalha. A política do “desaparecimento da
história” adotada pelos nazistas foi uma estratégia “de querer tornar Auschwitz inimaginável”
(DIDI-HUBERMAN, 2012: 36). Confinamento, práticas de tortura, cadáveres em valas comuns,
corpos sem lápide, arquivos destruídos foram atos deliberados como forma de varrer os vestígios
da história. Imagens foram apagadas, palavras foram silenciadas.

Não há dúvida que os nazis acreditaram na possibilidade de tornar os judeus


invisíveis, de tornar invisível a sua própria destruição. Esforçaram-se tanto
nesse sentido que muitos, entre as suas vítimas, pensaram o mesmo, e muitos
ainda hoje assim o pensam. (DIDI-HÜBERMAN, 2012: 38).

A ditadura militar no Brasil, implantada nos anos de 1960, trouxe para a nossa história
uma destruição de experiência similar. São bastante semelhantes as políticas de apagamento
da história adotadas pelos nazistas e pelos regimes militares de toda a América Latina. No
entanto, as transformações no modo de narrar da tradição oral não se impuseram apenas aos que
sofreram o horror e a crueldade das políticas de genocídio. Quase um século depois, no mundo
contemporâneo – moderno, capitalista e conectado – continuamos inábeis em transformar nossas
vidas vividas em histórias para se contar e recontar.

Sabemos que para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo


algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade
é, para esse fim, perfeitamente suficiente” (AGAMBEN, 2012: 21)
Trânsito, edifícios, filas, velocidade da informação, como encontrar pessoas, depois de um
dia extenuante, com habilidade de comunicar experiências? Desaprendemos a ver e a escutar.
No cinema brasileiro foi Eduardo Coutinho, benjaminiano confesso382, que valorizou, através de
sua escuta atenta, a oralidade do homem comum e transformou as experiências individuais de
seus personagens em histórias partilháveis. Gagnebin ressalta que as reflexões de Benjamin não
apontam apenas o declínio das narrativas orais, para a pesquisadora o texto “O Narrador” traz
também “a ideia de uma outra narração, uma narração das ruínas da narrativa, uma transmissão
entre os cacos de uma tradição de migalhas” (2009: 53). A valorização do testemunho, essa
narração feita de “ruínas”, “cacos” e “migalhas” abalou a historiografia tradicional:

Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias,


a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como
parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõe a “Memória
oficial” [...] (POLLAK, 1989: 04)

A memória subterrânea, assinalada por Michael Pollak, pode ser constituída pela lembrança
dos excluídos nos filmes de Adirley Queirós, A cidade é uma só? (2012) Branco sai, preto fica
(2014).
Para o estudo do “cinema do entrelugar” visitamos também as ideias de Silviano Santiago sobre o
que é um “entre-lugar”. O pesquisador, na tentativa de pensar o intelectual brasileiro do século XX,
encontra nas ideias do tropicalismo e do modernismo inspiração para pensar um terceiro espaço
identitário, o “entre-lugar” como uma zona de convergência entre a cultura europeia e a nacional.
A potência do termo, enquanto um espaço de contato nos permite adotá-lo nos estudos de cinema
justamente pelo seu caráter agregador. O entrelugar promove o diálogo entre espaços dinâmicos e
em trânsito, promovendo um elo entre elementos polarizados como: presença e ausência, lembrar
e esquecer, ficção e documentário. Uma memória do entrelugar procura apresentar uma memória
vivida, experenciada e encenada na linguagem fílmica que possibilita certa perenidade àquilo que
é fugidio, uma escrita que abriga e liberta, ao mesmo tempo, a cena do esquecimento. Cria-se
assim, filmicamente, uma memória do entrelugar, um espaço intermediário que afirma a origem
rememorada da personagem ao mesmo tempo em que marca uma diferença em relação a esta
origem.

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “novo”, como


382 Ao ser questionado pelos membros do corpo editorial do periódico Sexta-feira sobre seus au-
tores de referência, Eduardo Coutinho respondeu “No caso de O fio da memória e em outras coisas
que eu fiz, tenho uma fascinação pelo Walter Benjamin e pela alegoria do anjo do Paul Klee sobre a
ruína.”(COUTINHO, E. OHATA, M., 2013, p.226)
ato insurgente, e não parte do continuum do passado e do presente. Gera
uma produção artística que não apenas retoma o passado – causa social ou
precedente estético –, mas o renova, refigurando-o como um “entre-lugar”
contingente, que, além de inovar, interrompe a atuação do presente e torna-
se parte da necessidade (e não da nostalgia) de viver. (BHABHA, 2007: 27)

A produção do documentário brasileiro contemporâneo, seja ressignificando ou perfor-
mando, negocia permanentemente passado e presente na construção “do novo”. O cinema do
entrelugar é um lugar de trânsito por excelência, no qual experiências vividas são atravessadas
pelo tempo da memória.
O documentário contemporâneo parece ser um (entre) lugar privilegiado, no qual os
tempos históricos e ficcionais se cruzam como forma não apenas de insurgir o novo, como prega
Homi Bhabha, mas, sobretudo, enquanto um espaço potente de abertura e pertencimento de uma
dimensão referencial. O vasto campo de conexões que o cinema do entrelugar promove possibilita
um resgate da experiência (Erfahrung).
Neste estudo, observamos um processo transformador das experiências. Os narradores partem
das memórias fixas, de experiências vividas e imutáveis no passado (Erlebnis), para, por meio da
forma de narrar do documentário – seja através da montagem, da ficcionalização de personagens,
ressignificando arquivos – tornarem-se experiências partilháveis (Erfahrung) “dentro de um fluxo
narrativo comum e vivo, já que a história continua, que está aberto a novas propostas e ao fazer
junto.” (GAGNEBIN, J.M., p.11, 1994)

Erfahrung é o conhecimento obtido através de uma experiência que se


acumula, prolonga-se e desdobra-se como uma viagem (Erfahrung provém do
verbo fahren – viajar), sendo importante seu caráter coletivo de transmissão,
inclusive preexistente ao indivíduo. (PORTUGAL, 2012, p.197)

A Erfahrung, entendida por Benjamin como uma experiência em fluxo com o passado,
amplia a dimensão espaço-temporal da narrativa, libertando a memória historiográfica de sua
rigidez cronológica e pretérita. No documentário contemporâneo, a memória solicita a invenção,
e assim seus narradores se relacionam com as fraturas promovidas pelo passado perdido.
Possibilitando o surgimento de novas imagens de um passado antes visto como imutável e até
mesmo esquecido.
Vidas vividas são remanejadas, contadas e recontadas, ou como prefere Ricoeur a
“configuração” das narrativas históricas que para ele são “operações narrativas elaboradas
no interior mesmo da linguagem” são “refiguradas”, ou seja, a experiência viva sofre uma
transformação “sob o efeito da narração”. (GAGNEBIN, 2009: 172-173). Em A cidade é uma só?,
observamos que a relação temporal de Dildu (personagem ficcional) parece ser uma “refiguração”
do tempo de Nancy (personagem histórica). Do entrecruzamento ficcional e histórico o leitor pode
construir uma nova apreensão da experiência humana. As ações de Dildu não se prendem, como
as de Nancy, a uma tradição histórica, ou seja, não se trata de uma experiência vivida que aponta
para uma imagem acabada e cristalizada do passado (Erlebnis). Sempre presenciamos Nancy
sentada – quadro exemplar da fixidez temporal da personagem. Já Dildu não procura reviver o
passado, ao contrário, tenta construir uma experiência em movência (Erfahrung), incorporando
a invenção. A mobilidade social e histórica da personagem é representada na mise en scène por
sua movência no quadro, o vemos andando com frequência através das cenas. Dildu não vive sob
os escombros da história e muito menos se esconde em um presente desconectado do vivido. Seu
discurso e suas ações agem sobre os tempos – passado e presente – relacionando os dois, criando
um entrelugar na temporalidade.
Cineastas, conscientes de que o fato ocorrido escapa à imagem presente, valorizam o
testemunho para produzir uma nova experiência do vivido no presente da imagem. A impotência
da imagem diante de um passado que não volta, se converte em força diante da possibilidade
de se reencenar os rastros da história. Adirley Queirós, nos filmes A cidade é uma só? (2012) e
Branco sai, preto fica (2014), criou espaços fílmicos de movência entre o vivido e o imaginado,
um exercício de deslocamento e multiplicação de si que mantém dinâmico o fluxo do passado. O
pesquisador André Brasil no artigo “A performance: entre o vivido e o imaginado” reflete sobre
como esses espaços se atravessam e se entrecruzam:

Notadamente, alguns filmes contemporâneos se criam, desde o início, em


mão dupla: de um lado ficcionalizam-se vidas mais ou menos ordinárias – em
uma narrativa de caráter imanente, que levemente se depreende do real sem
roteirizá-lo em um gesto demasiado. De outro lado, produz-se algo como uma
deriva da ficção, provocada pela deriva da vida de seus personagens. Assim,
nestas obras, a vida ordinária produz ficção – produz imagens – e, em via
inversa, se produz nas imagens, é produzida na e pela ficção. (BRASIL, 2014:
133)

A simultaneidade dos espaços entre vida vivida e vida imaginada, no cinema contemporâneo,
acontece tanto nos filmes indexados como ficção – Girimunho (Clarisse Campolina, Helvécio
Marins Jr, 2011), Ela volta na quinta (André Novais, 2014) – quanto nos filmes classificados
como documentário – A paixão de JL (Carlos Nader, 2014), Orestes (Rodrigo Siqueira, 2015).
São filmes que trazem personagens feitos dessa matéria híbrida, estão sempre em movimento,
atuando em um campo, mas sob o efeito estético de um outro campo. Os personagens, Sartana
e Marquim, de Branco sai, preto fica e a família de André Novais – pais, irmão, namorada – em
de Ela volta na quinta, estão sempre em um espaço de indeterminação entre o real (suas próprias
vidas) e a ficção (mundo roteirizado). A simultaneidade entre mundos (vivido e imaginado) é o
habitat da performance “a performance se encontra exatamente na passagem entre formas de vida
e as formas da imagem, entre o vivido e o imaginado (BRASIL, 2014: 134).

Cenas limiares

Ora, se as experiências não são transmitidas os processos históricos não se completam.


Quando o conhecimento não se acumula nossas experiências não envelhecem, e consequentemente,
acabam sendo apagadas ou esquecidas. Para que as histórias não sejam esfaceladas é preciso criar
formas de transpor as lacunas para viabilizar a transmissão das experiências.
O conceito de limiar (Schwelle) é descrito por Benjamin, em um fragmento de Passagens
(Das Passagen-Werk, Walter Benjamin, 2007), enquanto um espaço de transição, a proposição
fornece uma importante reflexão para percebermos como os cineastas operam, através da
linguagem, formas de saltar entre tempos e espaços, tidos a priori como fronteiriços, comunicando-
os. Benjamin enfatiza “O limiar (Schwelle) deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira
(Grenze)” (2007: 535). Limiar traz em si a ideia de fluxo, transição, movimento, o vocábulo em
alemão tem proximidade etimológica na palavra onda (Welle). Já o conceito de fronteira (Grenze),
segundo Gagnebin está ligado:

[...] a contextos jurídicos de delimitação territorial: entre a cidade e o campo,


entre várias propriedades fundiárias, ou ainda entre vários territórios nacionais
[...] e que não pode ser transposta impunemente. Sua transposição sem acordo
prévio ou sem controle regrado significa uma transgressão, interpretada no
mais das vezes como agressão potencial. (GAGNEBIN, 2014: 35)

A Cidade é uma só? pode ser visto como uma grande tensão entre limiares e fronteiras, entre
centro e periferia. O filme mostra como a história e as políticas públicas governamentais da época
excluíram as populações indesejadas da nova capital do país. No filme Branco sai, preto fica, o
tema da delimitação territorial é retomado, e Adirley eleva o tom propondo sarcasticamente um
futuro em que os moradores das cidades satélites precisarão ter passaportes para cruzar a fronteira
e entrar no Plano.
Para denunciar e tentar desconstruir a fronteira que promove a segregação de classes no
planalto central, Adirley desenha uma arquitetura fílmica feita no entrelugar. São planos limiares
que apontam para uma zona de contato, um lugar de passagem em que a periferia pode transbordar
para o centro. O som é um dos principais recursos utilizados pelo diretor para instaurar um espaço
de movência entre lugares. A banda sonora e a banda imagética muitas vezes estão em dissonância
no mesmo plano, o que acaba por acrescentar ao som um valor expressivo e comunicativo. A
voz do locutor de rádio, exaltando a beleza de Brasília, sincronizada com a imagem das ruas
sem pavimentação, das cidades satélites, ou uma música clássica para embalar as imagens de
uma cidade sem nenhuma infraestrutura operam um campo associativo, em que planos-limiares,
construídos de som e imagem, promovem, ao mesmo tempo, um espaço de contato e de denúncia
da separação.
Nos filmes de Adirley Queirós, a extensão dos limiares é valorizada, levando a um
esgarçamento do tempo. As pontes arquitetadas pelo cineasta na tentativa de restaurar alguma
ligação entre os moradores de Ceilândia e o território perdido, leva Dildu a vagar entre os espaços
fronteiriços. Atravessando descampados a pé, voltando para casa, depois do trabalho, de ônibus,
lavando os corredores da escola em que trabalha, imagens que simbolizam uma solidão, não
há interação nem visibilidade de Dildu nesses espaços. Sempre na tentativa de criar inúmeras
maneiras de atravessar o limiar, o personagem parece andar em círculos, sem, contudo, realmente
ultrapassar para o lado desejado.
Preso nos limiares que constrói, vagando, sem alcançar o destino desejado, invisível para a
cidade, Dildu deixa no ar, no final do filme, um sentimento de desesperança, anunciando, para em
algum momento na posteridade, um encontro sombrio entre Brasília e o seu entorno. Como não
consegue criar um limiar, de fato transponível, Queirós no seu filme, Branco sai, preto fica, assume
o território enquanto fronteira (Grenze) e amplia o domínio da metáfora do limiar enquanto uma
zona paralisante. Dois personagens, vítimas de uma ação policial racista e reacionária – um tem
um membro amputado e o outro fica preso em uma cadeira de rodas – reúnem um pequeno grupo
de pessoas para transgredir a fronteira, e assim acabar com o território opressor. Por fim, constrói-
se uma bomba sonora, feita de músicas populares – vista como lixo cultural pelos moradores
de Brasília – como forma de invadir e explodir o Plano piloto. A bomba metafórica de Queirós
acaba por inscrever a própria narrativa documental em uma zona limiar enquanto um lugar de
articulação entre o lembrar e o fabular.
As cenas de Dildu, em A cidade é uma só?, lavando os corredores de uma escola
apresentam-se como limiares fílmicos que podem ser lidas de forma alegórica. Nessa cena não
há diálogos. Fora de campo apenas um burburinho de vozes dos alunos. Interessante perceber
que o chão lavado, em absoluto silêncio por Dildu, é vermelho. Vermelho, tal qual as ruas de
terra de Ceilândia. Por mais que o chão do colégio possa ser lavado e limpo (diferentemente de
onde mora) ele sempre será vermelho (tal qual o chão de Ceilândia). O piso e sua matiz vermelha
apresentam-se como índice de unidade e cisão entre o centro e a periferia.
Em Branco sai, preto fica, Queirós idealizou a cenografia da locação – a casa com elevador
e escadas adaptadas para cadeirante, o equipamento e o material da rádio, o artefato da bomba
sonora – trata-se do “habitus” de Comolli, o espaço que atua no corpo enquanto um dispositivo
desencadeador de cenas e depoimentos. A história de Marquim da tropa (pessoa ordinária da
vida real), enquanto sobrevivente de uma ação racista da polícia no clube Quarentão, na cidade
de Ceilândia, em março de 1986 durante um baile de black music, que o deixou paraplégico,
confunde-se com a interpretação do radialista Marquim (personagem ficcional) que junto com
os amigos preparam uma bomba sonora como forma de se vingarem da violência das políticas
segregacionistas do Estado.
A manipulação do tempo, do silêncio e dos enquadramentos são responsáveis pela atmosfera
dos planos em Branco sai, preto fica. Os planos longos de Marquim saindo do carro, montando
sua cadeira de rodas, entrando no elevador da sua residência com os diálogos em suspenso – na
banda sonora ouve-se apenas o som ambiente das máquinas responsáveis por sua locomoção –
acentuam a dificuldade de mobilidade do personagem e a injusta mutilação sofrida pelo confronto
com os policiais no Quarentão.
Assim como em A Cidade é uma só?, a teatralidade em Branco sai, preto fica enlaça, em
um só tempo, vida vivida e imaginada. Ao empregar cenários, paisagens e a arquitetura da cidade
como forma de influenciar a performance dos personagens, Queirós cria inúmeras possibilidades
de linguagem e leitura para discutir as políticas públicas que afetam a vidas das populações
periféricas.

Espaços de ausência em Branco sai, preto fica

Como são construídas (e podem ser lidas) as experiências entre o vivido e o imaginado
sobre espaços ausentes? Como espaços de ausência na obra acabam por determinar o modo de
performar dos diretores e afetam o modo de percepção dos espectadores?
Além de observarmos a importância dos espaços ausentes na construção e na interpretação
da parte visível das obras, as inquietudes trazidas por Jacques Rancière, em “Athusser: a cena do
texto”, motivaram a reflexão desta análise. Neste artigo, o filósofo francês examina os escritos de
Louis Althusser, enquanto leitor de Karl Marx, e encontra em seus textos “um modo de leitura onde
a ausência se mostra a livro aberto na presença. ” (1995: 173). Podemos pensar sobre essa política
da ausência não somente no campo da cena escrita, como fez Rancière, mas também podemos
experimentá-la no campo da cena fílmica. Sobre esse espaço vazio, onde aparentemente o texto
se cala, Rancière nos diz, “Como obra a continuar, vejo principalmente uma ausência de obra a
interrogar, ou antes, uma relação tensa, violenta, entre obra e ausência de obra.” (1995: 171). É
visível que as performances fílmicas, construídas sobre espaços ausentes, buscam dispositivos
de apresentar gestos, em cena, que interroguem, tensionem e consequentemente possibilitem às
histórias um meio de sobreviver as obras.
Buscar na lacuna a presença que falta tem sido um expediente muito utilizado por cineastas
contemporâneos como forma de colocar em cena as histórias narradas. São performances sobre
ausências, que se efetuam a partir do que está fora da imagem ou de um resíduo de imagem.
A impossibilidade de acessar uma presença plena do visível em sua materialidade convida os
diretores a performarem. (Re) Organizando os arquivos e suas lacunas, os filmes encontram
modos de aparição para o que, até então, estava ausente ou invisível para a história. A obra de
Rancière, nos coloca novamente na esteira das ideias de Benjamin acerca do conceito de história
descrito em suas teses. Ao olharmos para a história sob o signo da ruína, do fragmento, do resíduo,
a relação entre ausência e presença se impõe pela complementariedade dos contrários.

[…] eis, a um só tempo, um fato de linguagem e um fato de fato. Ou, em


outros termos, para o perspectivismo, o mundo é, simultaneamente e
indissociavelmente, feito (artifício, ficção) e fato (real). Entre um e outro – a
ordem das aparências e a ordem das essências – está o corpo em performance.
[…]
No âmbito desta ontologia relacional, o critério valorativo de uma performance
não passa mais pela verdade – sua adequação ao mundo da referência ou
da sua “autenticidade” –, mas pela efetividade de sua operação, por sua
produtividade, por sua eficácia. Performar é menos encenar, fantasiar um
corpo ou mascarar um rosto, do que produzi-los, reinventá-los. (BRASIL,
2014: 138-139)

No cinema do entrelugar fotografias, cartas, relatos, lugares, canções tornam-se um clarão


para os escombros da história. O caráter relacional entre presença e ausência, imanente ao
fragmento histórico, cria um ambiente fecundo para a performance (entre o vivido e o imaginado).
É diante de espaços ausentes que o cinema do entrelugar tem a possibilidade, através de limiares
feitos entre a ficção e o fato, de transformar a invisibilidade e o silêncio dos arquivos em imagens
visíveis e audíveis.
Para falar de um cinema, no qual o corpo está em performance sobre espaços ausentes,
vamos recolher para análise algumas lacunas de obra de Adirley Queirós – Branco sai, preto fica.
Partiremos de uma particularidade da narrativa fílmica no modo de performar sobre as
ausências. A aparição das imagens, que constituem as personagens dessa narrativa, estão sob
um regime: uma situação de crise. No documentário Branco sai, preto fica, Queirós confronta
crimes praticados contra as populações periféricas que levaram as políticas segregacionistas entre
Brasília e o seu entorno. O baile de black music é um índice narrativo desta segregação. Fronteiras
vigiadas, toques de recolher e a construção de uma bomba narram à possibilidade de uma guerra
iminente.
Para pensar em como as imagens (e suas ausências) constituem-se nos cenários de crise,
vamos nos aproximar do pensamento da analista e filósofa da imagem Marie-José Mondzain. Em
seu livro Imagem, ícone, economia, a pesquisadora irá buscar nas fontes bizantinas, período do
conflito entre iconófilos e iconoclastas, as bases para refletir sobre o pensamento contemporâneo
da imagem.
Ao estudar esse período de guerra entre os que cultuavam e os queriam destruir as imagens
religiosas, Mondzain examinou a importância do conceito economia383 para se pensar a imagem
enquanto uma relação econômica de investimento e gasto. Economia, portanto, não se restringe a
bens materiais, mas também inclui os bens simbólicos. Além do uso rotineiro do termo economia
para designar a administração de bens e serviços, o termo foi empregado no período bizantino para
referir-se “ao princípio fundador e unificador da encarnação da imagem natural do Pai na pessoa
do filho” (MONDZAIN, 2013: 34). Portanto, na perspectiva teológica, economia é um conceito
que remete a Deus enquanto um grande organizador e articulador do mundo que ao dar visibilidade
(filho), aquele que era invisível e inteligível (Pai) transforma a ordem do mundo baseando-se em
uma economia relacional entre ausência e presença. Segundo Mondzain, a questão posta pela
igreja iconófila é […] “de que modo a imagem natural e invisível assumiu a carne, e de que modo
a carne de nossas imagens visíveis nos reconduz a essa imagem invisível? ” (MONDZAIN, 2013:
108). A doutrina da economia das imagens, baseada em um sistema relacional de visibilidades e
invisibilidades pode ser aplicada a qualquer imagem.

A economia é a dimensão real, histórica e a dimensão temporal do olhar. Ela


designa essa negociação ininterrupta dos olhares entre o que está presente
e o que está ausente. É dizer que só há vida dos signos numa relação com a
ausência e em uma separação da presença. (MONDZAIN, 2014: 4)

A performance sobre espaços ausentes constrói imagens em uma relação econômica, ou


seja, em uma negociação estética entre o ver e o não ver. Ao estudar essa política do gesto pautada
entre saberes e não saberes, Rancière destaca algumas linhas de Ler o capital de Althusser:

Na história da cultura humana, nossa época pode aparecer algum dia como
marcada pela prova mais dramática e mais laboriosa de todas, a descoberta
e a aprendizagem do sentido dos gestos mais “simples” da existência: ver,
escutar, falar, ler – esses gestos que põe os homens em relação com suas obras
e essas obras atravessadas na garganta que são suas “ausências de obras.”
(ALTHUSSER apud RANCIÈRE, 1995: 172)

383 A autora faz um estudo do conceito economia desde o campo semântico grego (Oikonomia)
passando por Platão e Aristóteles até a retomada do termo em contextos cristãos no período bizantino,
no século IX.
Ler para poder ver, escutar para poder falar, são os “gestos simples” dos quais Althusser nos
alertou para que os homens sejam atravessados por suas obras, para Rancière esses são gestos que
se desdobram em potência diante de obras que encarnam ausências. Nesse sistema relacional, o
cinema do entrelugar faz vir para frente o que estava latente nos fragmentos e lacunas da história.
As imagens aguardam o olhar espectatorial para se tornarem realmente audíveis e visíveis,
Mondzain irá chamar de “imagem” o modo de aparição frágil de uma aparência que se constitui a
olhares subjetivos, em uma subjetivação do olhar. A “imagem” é efetivamente, no meu léxico, o
que constitui o sujeito. “(MONDZAIN, 2014: 2-3). A “imagem” entre aspas é uma “imagem” por
vir, uma “imagem” a ser conceituada e não uma imagem objetificada; são imagens que permitem
ao espectador a identificação de si mesmo.
As lacunas de Adirley Queirós, em Branco sai, preto fica, atravessam o espectador de
várias formas, contudo, e nesse sentido, há uma cena exemplar no filme. Dimas Cravalanças
(Dilmar Durães), um homem vindo do futuro, do ano de 2073, tem como objetivo encontrar
provas de crimes praticados pelo estado contra as populações periféricas de Brasília. Sua
missão é encontrar Sartana, frequentador do Quarteirão nos anos 1970, que durante um baile
foi pisoteado por cavalos da polícia e teve sua perna esquerda amputada. Na busca por Sartana,
Cravalanças anda por espaços abandonados, construções em ruínas, casas empilhadas. O vemos
revirando os escombros do passado à procura de provas dos malfeitos do estado contra os negros
e marginalizados, quando então, em um galpão sombrio, cheio de ferros retorcidos, ele saca a sua
arma (invisível), fica à espreita e começa a atirar – o som dos disparos dá visibilidade a arma.
Também não vemos contra quem Cravalanças está atirando, até o momento em que ele se volta
para o público, olhando diretamente para a lente da câmera e crava sua lança no espectador. O
tiro certeiro corporifica o público: eu, você, cada um que foi atingido por esse tiro, entra para
a história. Nossa ausência torna-se visível. O espectador se vê corresponsável por um passado
desconectado do seu presente e futuro. Difícil não pensar na tese do “anjo da história”384 de
Benjamin. Cravalanças, assim como o anjo da história, lança um olhar trágico sobre a humanidade:

[...] O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o
passado, onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma
única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os
arremessa a seus pés. (BENJAMIN apud LÖWY, 2005: 87)

A performance de Cravalanças aponta para o nosso medo de olhar os escombros da história.


O Brasil fechou os olhos para a escravidão, para o extermínio das populações indígenas, para a
brutalidade da ditadura militar. São histórias apagadas por políticas de estado que perpetuam
384 Sobre “o anjo da história” confrontar a Tese IX de Walter Benjamin comentada por Michael
Löwy (2005: 87)
a institucionalização da violência. Quando o personagem de Adirley Queirós crava o olho no
espectador, a história do outro deixa de ser a do outro e passa a ser a história de todos nós.

Queirós explora a dimensão econômica da imagem – no sentido que Mondzain atribui


ao termo – através dos seus personagens mutilados. A imagem da perna amputada de Sartana e
a imagem da condição de cadeirante de Marquim negociam presente e passado, visibilidades e
invisibilidades da história. Seus corpos mutilados também fazem parte da performance relacional
entre ausência e presença. Sartana carrega consigo a história viva do que foi aquela noite na casa
de shows do Quarteirão, onde foi vítima da truculência policial.

O fim do Quarteirão foi meio que assim, o fim da fase da minha vida, o fim
de uma das minhas vidas, comecei uma outra vida ali, foi um outro choque,
sair do hospital foi um choque com a realidade, um choque com as ruas onde
a gente dançava, tudo em que eu passava, eu lembrava uma coisa [...] parece
que a cidade toda era parte da minha vida, parece que cortei aquilo ali tudo,
era uma parte que eu tava perdendo, não tinha mais o direito de tá ali naquela
esquina, eu cheguei em casa e não queria mais sair de casa. (Sartana, Branco
sai, preto fica)

Uma perna amputada, uma cidade amputada, uma história amputada. O corpo de Sartana
a partir da invisibilidade da parte que lhe foi arrancada cria imagens visíveis de uma história que
não deve ser apagada.

Os personagens Sartana e Marquim operam na construção das visibilidades históricas


de forma distinta. Sartana, em sua performance, desenha imagens da destruição de Brasília,
antecipando o futuro sombrio. Marquim atualiza as narrativas do passado por meio de sua rádio
amadora. Através de suas contações, embaladas por músicas do passado, revivemos as danças,
os passos, as paqueras, os amigos, os djs do Quarteirão, mas sobretudo, é através da narrativa
de Marquim, logo na abertura do filme, que a história da invasão policial no baile é narrada [...]
“puta para um lado, viado para outro! Bora! Tá surdo negão? Branco lá fora, preto aqui dentro.
Branco sai, preto fica! ” O território do passado é explorado por Marquim no plano do audível
(rádio) e Sartana profetiza o futuro no plano do visível, através dos seus desenhos.

Assim como Sartana, o corpo de Marquim também carrega a marca da ausência. A ausência
de mobilidade territorial e social está expressa na sua condição de cadeirante. Queirós explora,
através de planos longos e sem diálogos, a mobilidade comprometida de Marquim. Uma perna
imobilizada. Uma cidade imobilizada. Uma história imobilizada. A performance do corpo da
personagem não permite que a história se cale sobre as fronteiras erguidas entre o plano e as
populações periféricas. O não encontro entre Brasília e o seu entorno está manifesto em uma
relação de ausência e presença na imagem. Através de limiares fílmicos, o cinema do entrelugar,
em permanente negociação entre o que está ausente e presente da cena, abrem um clarão para
que histórias silenciadas ou apagadas possam escoar e, assim, restabelecer o fluxo das narrativas,
devolvendo aos sujeitos sentimentos de pertencimento e visibilidade histórica.
Referências bibliográficas.

BENJAMIN, Walter. A Obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Trad.: Francisco
Pinheiro Machado. Porto Alegre: Editora Zouk, 2012.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1994.
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Angelita M. Bogado - Graduada em comunicação social (1997) e em letras


português-alemão (2007), mestrado em estudos literários (2007), todos na Unesp,
doutora em comunicação e cultura contemporâneas (UFBA). Professora adjunta,
atual coordenadora do curso de cinema e audiovisual, da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB). Desde 2009 ministra as disciplinas de linguagem e
expressão cinematográfica I e II. Tem experiência na área de narrativas com ênfase
em análise fílmica. Atualmente, se dedica ao estudo do “entrelugar” no cinema brasi-
leiro contemporâneo, com a pesquisa intitulada Cinema do entrelugar: estética e ex-
periência?. Vinculada ao Grupo de Estudos em Experiência Estética: Comunicação
e Arte (GEEECA - CNPq). Coordena a Semana de Pesquisa e Extensão de Cinema
e Audiovisual (UFRB).

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