Sei sulla pagina 1di 7
RESENHA MEMORIA OU MEMORIAS? Lucette Valensi, FABLES DE LA MEMOIRE. LA GLORIEUSE BATAILLE DES TROIS ROIS. Paris, Seuil, 1992 D. Sebastido Esperai! Cai no areal e na hora adversa Que Deus concede aos seus Para o intervalo em que esteja a alma imersa Em sonhos que so Deus, Que importa o areal e a morte ¢ a desventura Se com Deus me guardei? £0 que eu me sonhei que eterno dura E Esse que regressare. Fernando Pessoa - Mensagem 0 dia 4 de agosto de 1578, perto de 11 horas da manha, dois exércitos defrontaram-se, para uma tinica batalha, que durou cerca de quatro horas, ao lado do rio Wad al-Makazin, no Marrocos. Conhecida no ocidente como a batalha de Alcdcer Quibir (ou al-Kassar el-Kebir), nela pereceram trés reis: D. Sebastido, de Portugal, Abd al-Malik, seu adver- sirio e soberano do Marrocos, e o principe Muhammad al-Mutawakil, sobrinho de al-Malik e aliado de D. Sebastiao. Num trabalho cuidadoso € bem documentado, Lucette Valensi vai reconstituir as diferentes sagas a que a batalha deu origem, pois além do fato bruto da luta e de seu resultado, todos os relatos variam. As datas, o nome do local, a designa- Psicologia USP. S. Paulo, 4(1/2), p. 329 - 335, 1993 329 ‘Sylvia Leser de Mello go do ano - 0 tempo simbélico, portanto, - que é o calendario ocidental, © ano judaico ou 0 ano mugulmano, tudo € diverso nas narrativas das testemunhas ou nas histérias elaboradas a partir dessas narrativas. Mesmo a meméria imediata nao é imparcial. Os relatos mais préxi- mos ao acontecimento tendem a explicar ou justificar o resultado da batalha segundo as preferéncias, politicas e pessoais, do narrador. Ou, como afirma a autora, “um texto histérico contém sempre elementos potenciais do legendario.” (p. 44) Pertencendo ao fecundo grupo de historiadores franceses mas preo- cupada com problemas que se aproximam da psicologia social, como a chamada meméria coletiva, Lucette Valensi vem se dedicando & histéria do Isla. E & nesta historia que ela encontra a matéria de que se vai apropriar para discorrer sobre as relagGes entre ocidente e oriente. O livro se abre com a questo fundamental do restabelecimento dos fatos histéricos em face da falsificago e da manipulagao da meméria, por vezes deliberada, para reconstruir acontecimentos histéricos, favorecen- do grupos politicos no poder ou ideologias dominantes, no esforgo que & parte da elaborago da chamada “ consciéncia histérica” . Esta, tio perfei- tamente integrada 4 nossa identidade nacional, s6 merece questionamento quando a propria sociedade se transforma, carreando consigo novas visdes do passado, restabelecendo a importancia de outros atores ¢ de outros segmentos sociais. A hipétese, que da ordem a farta documentagio apresentada, € que as operagGes que esttio na base da construgio da meméria individual so, em principio, as mesmas que regem a construgao da meméria coletiva, ¢ que estas operagdes podem constituir-se em objeto histérico: “Sabe-se que quando se trata de psicologia individual o par meméria/esquecimento no esgota as operagdes que se fazem sobre a experiéncia vivida, e que a produgiio de lembrangas nio € 0 tinico processo ativo que entra em jogo. Siléncio, censura, obliteragdo, recalque, amnésia, denegagaio e mentira também so parte da formagdo da meméria” (p. 16). Este jogo complexo que & 0 processo de transformagao das lembrangas, Lucette Valensi vai encontrar em Freud, utilizando-o para desenrolar 0 novelo da construgio das memérias coletivas. 330 Meméria ou Memérias? Como se deu o trabalho dessas operagdes sobre o evento da batalha? Para responder essa questdio a autora propde um trajeto de pesquisa que deve encontrar, nos documentos histéricos, solugdes para trés ordens de perguntas. Primeiramente trata-se de seguir a mesma hist6ria, interpretada de modo diverso por vencidos e vencedores, em diferentes momentos do tempo. Em segundo lugar trata-se de estudar a mnemotécnica, os meios de produgdo € de transmissdo da lembranga, ou seja, a mesma histéria contada sob formas diversas. E, por fim, “resta-nos procurar onde esto colocados os guardides da Jembranga, quem pronuncia as palavras de passe e para quais destinatarios. Questiio dificil, pois ficardio de fora aqueles que escutaram silenciosamente, aqueles que murmuraram as histérias ouvidas, os que leram as narrativas sem nos deixar seus comentarios. Mas essa questo nos incitard a prestar atengio Aquilo que Mikhail Bakhtine chama a ‘plurivocalidade” dos textos, & diversi dade das vozes individuais que neles ressoam” (p. 18). Inspirado nessa ordem de problemas, o trabalho da autora s6 nos pode impressionar pela farta documentagao de que se utiliza e pelo cuidadoso empenho em colocar, diante do leitor, todos os elementos que permitirdo reconstruir 0 som e a furia da batalha, que ¢ parte da nossa propria historia, da nossa origem lusitana e de leitores cativos de Camoes ede Vieira. Mas no apenas 0 momento do embate entre os dois exércitos. Tudo o que foi lembrado e fabricado, todos os contares ¢ cantares que ai tiveram sua origem , tudo & material de trabalho para a autora, Esse cuidado na reconstrugdo ¢ a abundancia de literatura tornam muito dificil dar conta , numa breve resenha, de todas as leituras que a autora nos propée. E com a liberdade de minha escolha pessoal, portanto, que vou acolher, na minha reconstrugo do livro, alguns momentos dentro de toda a histéria que ela vai desvendando, tanto a portuguesa e ibérica, como a histéria da Africa do Norte, da regido do Maghreb, das relagdes entre 0 sultdo turco € os poderosos locais. Histéria iskimica e histéria ocidental confrontam suas verdades, como se ocidente cristdo ¢ oriente mugulmano ‘nunca pudessem encontrar um valor comum. 331 ‘Sylvia Leser de Mello ‘Acompanhamos a tendenciosidade das diversas testemunhas mais proximas do acontecimento, inclusive dos participantes da batalha, que encarecem 0 heroismo ¢ a valentia dos vencidos ou dos vencedores, segundo a sua prdpria apreciago sobre o evento. Acompanhamos a introdugfo, através da circulagdo oral e escrita das noticias, das persona- gens em torno das quais os mitos vio ser criados: o rei portugués ¢ os reis marroquinos, e o principe al-Mutawakil, aliado para uns, traidor para outros. Em Portugal, o destino de D. Sebastido, desaparecido na batalha, é tratado como um mistério, suscitando a criagao do mito do Encoberto. A lenda de seu esperado retorno, para uma vit6ria final das forgas cristas, responde a dor da derrota e vai sendo construida através do tempo. A tragédia de Portugal & imensa. Perde seu rei, a maior parte de sua juventude € morta ou feita prisioneira, 0 exército & destruido e para finalizar 0 trono sem herdeiros passa 4 coroa da Espanha. Durante os séculos XVI ¢ XVII a literatura historiografica vai acentuar a versio mitica e mistica dos fatos, ¢ nela desfilam visdes e profecias sobre 0 destino de Portugal e de seu rei, Deus est do lado dos vencidos, nessa tiltima cruzada do ocidente cristo contra os mouros, e os relatos proféticos e misticos retomam 0 carter sagrado da luta pela fé verdadeira. As visGes so proféticas, precedem o acontecimento e o justificam. Desde Santa Teresa, na Espa- nha, até 0 padre José de Anchieta, no Brasil, as versdes religiosas da derrota vao ser recapituladas na historiografia portuguesa, oficial ou nfo. E as aparigdes sobrenaturais contém sempre uma promessa divina: os mortos portugueses sto os martires do Senhor e estardio com ele em sua gidria, Até mesmo Antonio Conselheiro, no longinquo Canudos, vai encontrar na lenda inspiragdo para 0 seu povo: Em verdade, eu vos digo, enquanto as nagdes lutam com as nag0es, 0 Brasil com © Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prissia com a Prissia, D. Sebastiao ‘emergird das ondas do mar com todo o seu exército. Desde 0 comego do mundo ele sofre um encantamento com todo o seu exército e com ele retomaré a guerra E quando ele foi encantado, enfiou sua espada até & copa na pedra.e disse: “Adeus ‘mundo, tu talvez chegues a mil e pouco, mas nunca a dois mil.” 332 ‘Meméria ou Memérias? No dia em que ele saira com sua armada, ele passaré todos ao fio da espada, todos aqueles que tém um papel na Repiblica (p. 183). Assim, D. Sebastidio no apenas combaterd os infigis sarracenos, seno todos os anti-cristo, como os republicanos do Brasil. Mas, 6 maravilha, Deus esta, também, do lado dos vencedores que fazem a guerra santa contra os infigis. Os relatos drabes dao ao acontecido uma dimensio sobrenatural onde proliferam narrativas de fatos milagro- sos ocorridos durante a luta. O tom dessas narrativas é de exaltagdo dos vencedores, sobretudo de Moulay Ahmed, que assume as glérias da vitéria, assim como assume 0 trono com a morte de seu irmio Abd al-Malik. Os mesmos testemunhos execram o principe traidor al-Muta- wakil e 0 rei portugués, que nem mesmo é nomeado. E a construgio da lenda de Moulay Ahmed como o vencedor da grande batalha entre os crentes verdadeiros e os inficis. Parte da reconstrugdo da histéria é a dificuldade de Portugal elaborar 0 seu luto. O primeiro escrito em portugués sobre a batalha sé aparece em 1607, vinte ¢ nove anos depois do acontecimento, com o objetivo de responder aos testemunhos desfavordveis ao rei portugués. “Exata ou nfo, a relagdo de Mendonga ira servir de matriz aos textos ulteriores que se situam numa linha favoravel aos seus concidadaos. (...) Produzindo uma versio dos fatos acei- tavel pelos portugueses, esse livro devolvia a consciéncia deles a lembranga, recalcada, a realidade dolorosa; ele lhes fomnecia, talvez, um meio de acabar, também, o trabalho de luto que os absorvia ha trinta anos” (p. 35), Esse trabalho, como lembra a autora, tem as caracteristicas que Freud aponta para areconstrugdo das lembrangas individuais. Tentamos viver, agora, com maior ou menor sucesso, a elaboragio de luto que o periodo da ditadura militar nos impés, devolvendo a dignidade historica aqueles que lutaram por um Brasil melhor e mais justo. Mas a histéria nao se faz apenas com a meméria imediata. Como muito bem salienta a autora, a meméria dos feitos relativos aos grandes momentos da nacionalidade, ou aqueles momentos de maior risco mesma nacionalidade, deve ser periodicamente renovada, com monu- mentos, com festas civicas, com espetaculos piblicos. Assim como a vida 333 Sylvia Leser de Melto quotidiana continua, sem grandes alteragGes para a maior parte da popu- ago, assim a histéria continua a ser tecida, quer na derrota, quer no sucesso. E a conservagao ¢ modificagao da memoria que vai se inscreven- do em novos simbolos e adquirindo novas significagdes. E espantosa, por exemplo, a tentativa portuguesa de modificar o resultado histérico da batalha, mais de trezentos anos depois, enviando, em 1942, enquanto 0 norte da Africa ainda estava dominado pelas forgas do Eixo, um corpo de alunos oficiais da marinha portuguesa, sob 0 comando de um general, numa peregrinagem patriética, refazendo o caminho de D. Sebastido, e de seu exército. O périplo: partir de Lisboa, chegar a Tanger ¢ ai celebrar uma missa, como 0 rei havia feito, e chegar a Alcdcer Quibir em 4 de agosto. Ali, desfiles e discursos com a pretensto de recompor a hist6ria, dar-Ihe um resultado diverso. “Parada brilhante, nos dois sentidos do termo: no sentido préprio, um desfile militar; no sentido figurado, uma nova artimanha para disfargar a derrota de Alcdcer Quibir. Dos descend- entes dos vencedores ela fez figurantes desarmados; e dos vencidos, combatentes de novo exaltados” (p. 139). No Marrocos, o afi de reconstruir a histéria no é menos notavel. Mitologias nacionais se desenvolvem tendo a dinastia de al-Mansur como um principio quase mitico. A sua extingio e a elevago de novos podero- ss, novas mudangas na histéria se fazem necessdrias: a batalha é um marco nacional e os atuais detentores do poder sao alegoricamente res- ponsaveis por aquela vitéria: “ Assim, para gravar a batalha dos Trés Reis na meméria dos marroquinos, contam-se histérias, orais ou escritas. Para torné-las memordveis, selecionam-se episédios marcantes, que se repe- tem a vontade. (...) cada uma das narrativas acaba por se individualizar como uma hist6ria inteira, uma bela fabula, com seu momento de suspen- se e seu brilhante resultado, Nas obras ilustradas, algumas vezes na imprensa, nos manuais escolares, esses epis6dios s4o, agora, traduzidos em imagens e vinhetas que representam a grandeza de uma alma ¢ a coragem de uns e a teimosia estipida e a desonra de outros.” (p. 258) Em ambos os lados, ¢ por meios semelhantes, a batalha acaba por habitar a meméria coletiva. Derrota e luto para uns, ufanismo e exaltagio para outros, os povos recolhem e engrandecem esses momentos da nacio- 334 ‘Meméria ou Memérias? nalidade do modo como as miltiplas tonalidades das memérias os vaio recriando. E so esses os tons que ressoam na meméria coletiva, até que mais um paciente trabalho de recriagdo dé origem a versdes novas, com novos mitos e novos herdis. Resta ainda dar conta das miiltiplas vozes com que pode contar a meméria para ser evocada, e uma das mais impressioantes, neste livro, & aquela que Lucette Valensi vai denominar a meméria auditiva, a meméria sonora da batalha. Citando o grande escritor portugués Oliveira Martins, escreve a autora: “Voltemos agora ao texto de Oliveira Martins. Descre- vendo os preparativos de guerra do lado portugués, ele termina essa seq{iéneia com esta frase, da qual sublinha as iiltimas palavras: “Apos a derrota encontrou-se nos despojos (do campo) dez mil guitarras.” Uma pequena frase colocada num fim de pardgrafo, a énfase colocada sobre as trés Ultimas palavras. Nao se poderia expressar mais ferozmente o despre- paro do exército portugues e as ilusdes cultivadas pelos combatentes. 35sa frase incisiva conta assim, também, em poucas palavras uma fabula Ela faz ver milhares de soldados embarcando com seus instrumentos de musica; ela faz escutar seus cantos no caminho que os conduzia a batalha; ela nos obriga a ouvir o siléncio depois da derrota, quando as guitarras jazem ao lado dos corpos dos combatentes.” (p. 220) O livro de Lucette Valensi é um livro poderoso porque coloca em movimento, também dentro de nés, a idéia dos riscos contidos nos recontares da histéria e temor de verificar quantas de nossas aspiragSes € daqueles sonhos que nos movem no serio, apenas, meros fantasmas que poderdo ser modificados como matéria plastica da hist6ria. E certo que somos, a0 mesmo tempo, os leitores e os escritores da nossa historia ¢, eventualmente, isso poderd nos servir de consolo. Ou podemos, ainda, para nossa maior tranquilidade, indagar, como André Breton, se a memé- ria ndo é somente um produto da nossa imaginaco, Sylvia Leser de Mello Instituto de Psicologia - USP 335

Potrebbero piacerti anche