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Resumo: Neste artigo, queremos refletir sobre a pedagogia da mística enquanto espi-
ritualidade cristã presente no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST.
Mística que também se faz nas práticas pedagógicas e educativas do MST por meio
de suas educações formal e não-formal com o intuito de fortalecer as lutas sociais
desencadeadas pelo coletivo do movimento em suas várias vertentes. Dessa forma,
a mística no e do MST se constitui um aphantésis (em grego: encontro) com o Deus
da Vida. Esse encontro insere os sujeitos históricos do movimento na vocação perma-
nente para “Ser Mais”, ser gente que quer brilhar e sonhar com uma nova sociedade.
Neste sentido, queremos provocar reações críticas para que se possa entender as
praticas do MST como um ato de misticidade que acontece no cotidiano de suas lutas
e resistências.
Palavras-chave: Mística. Pedagogia. Movimento social. MST.
∗
Texto apresentado na Conferência Internacional Educação, Globalização e Cidadania em João Pessoa – PB, na Universidade Federal da
Paraíba – UFPB, no período de 19 a 22 de fevereiro de 2008.
∗∗
Licenciado em Filosofia pela UCG. Graduado em Teologia pelo Instituto de Teologia Santa Úrsula. Mestre em Educação pela Unicamp. Dou-
torando em Educação pela UnB. Professor Assistente da Universidade Federal do Tocantins – UFT – Campus Universitário de Arraias – TO.
E-mail: claugnas@uft.edu.br
∗∗∗
Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Adjunta da Faculdade de Educação da UnB. E-mail: chalub@unb.br
do ser do Homem (alma e corpo, pensamento e uma profundidade pessoal, pelo reinocentrismo,
vontade, sexo e fantasia, palavra e ação, interio- por uma espiritualidade do essencial e universal
ridade e comunicação, contemplação e luta, gra- cristão, pela localização na realidade histórica dos
tuidade e compromisso), pois cada pessoa a vive pobres, pela crítica, pela práxis e pela integridade
de forma única; b) de forma encarnada na história, sem dicotomias e sem reducionismos (CASALDÁ-
hoje e aqui, na América Latina e nas comunidades, LIGA, 1998, p. 14).
com suas dores e alegrias. Viver as duas dimen-
Assim, podemos definir a Mística-Espirituali-
sões da mística-espiritualidade abre caminhos para
dade da Libertação como cristológica, situada his-
se viver concretamente o que Dom Pedro Casal-
toricamente no social e nas comunidades cristãs,
dáliga e José Maria Vígil chamam de Espirituali-
na cruz da profecia e do conflito, na gratuidade e
dade da Libertação (CASALDÁLIGA; VÍGIL, 1995;
na exigência do Evangelho, na contemplação li-
CASALDÁLIGA, 1998).
bertadora e no anúncio incondicional do Reino, e
A mística-espiritualidade não pode reprimir a na denúncia do anti-Reino. Mística-Espiritualidade
realização pessoal e o vôo do Espírito. Isso seria da Libertação que se enraíza nas culturas oprimi-
ir contra o Evangelho da Liberdade anunciado por das da história, herdeira do sangue de muitos e
Jesus. O perigo dos espiritualismos é cair numa muitas que tombaram doando a vida e o sangue
formação espiritual dispersiva, mutilada, dicotômi- do martírio, profeticamente alternativa ao sistema
ca, unilateral e mecanicista. A vida do ser humano de morte, na co-responsabilidade eclesial e, por
é importante nesse processo e ela pode ser en- fim, com profundo espírito ecumênico e macro-
tendida como problemática (mistério), como um ecumênico.
desafio (uma missão), como um espaço (graça). E
Esse é o sentido da mística-espiritualidade
assumir esse espaço requer atitudes, mediações,
para um determinado grupo social influenciado pela
com a finalidade de se atingir a opção fundamen-
Teologia da Libertação, que veremos adiante. O
tal na vida.
que nos interessa é que a mística, seja ela cristã ou
Mística-espiritualidade é vida. Vida não se não, é uma forma de adesão a um projeto de vida.
ensina, mas se experimenta. Assumir o seguimento Por isso, em nossa concepção, a mística apresen-
significa viver uma mística-espiritualidade. Viver a ta-se na forma de ação pedagógica que ensina os
mística-espiritualidade do seguimento a uma cau- oprimidos a se organizarem na luta social.
sa significa, hoje, assumir as dores e angústias,
alegrias e festas do povo ao qual se pertence. Se
estivermos na América Latina, no Brasil, em Goi-
Mística enquanto práxis pedagógica: para
ás, numa comunidade eclesial específica, signifi-
além da escola
ca assumir o seguimento a Jesus nessa realidade
de vida. Ter-se-á, assim, a vivência concreta de
Mística é um sentimento que passeia delicado
uma mística-espiritualidade religiosa, cristã, latino- e lento por dentro de nosso coração. Como se
americana e libertadora. Mística-espiritualidade tivesse mãos, coloca o ânimo em cada pensa-
do “Povo Novo”, que, para o bispo profeta Pedro mento. Mexe no comportamento, no jeito de
Casaldáliga, possui as seguintes características: andar, falar e sorrir; é a força que nos faz sentir,
lucidez crítica, a contemplação na caminhada, a prazer e arrependimento. (...) Quem tem místi-
liberdade dos pobres, a solidariedade fraterna, a ca está sempre crescendo. A cada dia sente-se
cruz e a conflitividade, a insurreição evangélica renascendo nas coisas que vai realizando. Seja
ou a Revolução da Boa-Nova e, por fim, a teimo- na base ou no comando, a mesma energia se
sa esperança pascal. (CASALDÁLIGA, 1998, p. manifesta, como a alegria em uma festa, insti-
ga quem está participando. (...) Mas a mística
13-14).
não é só bondade, às vezes serve-se da an-
Tais características do Povo Novo apresen- siedade para angustiar o corpo inteiro. Como
tam-se às pessoas, hoje e aqui, na América Latina uma chama no candeeiro que bebe o líquido
mundializada para todos os povos da Terra. Elas que está dentro, provoca todos os talentos e
não sobrevivem sem o fortalecimento da Místi- esgota as capacidades. Desafia as habilidades
para enfrentar certos apuros, nos cobra para
ca-Espiritualidade da Libertação, interpelada por
cesso apenas quando basear-se no amor e na fé não existem sonhos e utopias. Há na verdade, de
nos homens e mulheres em processo e, também, maneira camuflada, a cultura do silêncio, ao se
na humildade. Essas atitudes farão surgir confian- fazer com que as pessoas, desde crianças, sejam
ça entre os sujeitos do diálogo. O diálogo torna-se proibidas de atuar em sua sociedade para real-
representação simbólica entre os sujeitos, daí sua mente transformá-la. Assim, a educação se torna
misticidade pedagógica. uma prática de dominação e não de liberdade. Por
isso, sem sonhos e utopias não há pedagogia da
No entanto, quando se conscientizam de sua
mística. O sonho e a utopia são os fundamentos
condição oprimida, os oprimidos muitas vezes sen-
da pedagogia da mística existente no MST.
tem medo da liberdade e não se acham capazes
de assumi-la. Travam uma luta para serem eles Analisando todo esse conteúdo contido nos
mesmos ou serem duplos, para expulsarem ou sonhos e nas utopias sempre bem-vindas da Pe-
não os opressores “dentro” de si. Outro problema dagogia do Oprimido de Paulo Freire, observamos
aparece quando os oprimidos se tornam “novo ho- que os educadores e educadoras devem ser agen-
mem” e passam a oprimir os outros. Nesse sentido, tes de transformação e não simplesmente agentes
os opressores se utilizam de vários artifícios para de mudança. Devem aguçar em nossos educan-
perpetuar sua dominação. Buscam, por exemplo, dos e educandas, e na sociedade como um todo,
conquistar os oprimidos por passar uma visão de o senso crítico e a importância de se unirem para
messianismo, dando-lhes pão e circo. Mas, essa dizerem as suas palavras.
generosidade é falsa, pois quando aparentam
(...) é preciso, pois, que o povo se organize...
“salvar” uma ou duas pessoas, estão na realidade
Preciso de vossa união para que possa lutar
explorando e desumanizando dezenas delas. “O contra os sabotadores, para que não fique
que eles querem é salvar a si mesmos. É salvar prisioneiro dos interesses dos especuladores
sua riqueza, seu poder, seu estilo de vida, com e dos gananciosos em prejuízo dos interesses
que esmagam os demais”, como afirmou Paulo do povo. (FREIRE, 1987, p. 148).
Freire (1987).
Os opressores invadem a cultura das pes- Pode-se fazer o mesmo no campo da educa-
soas e impõem a elas a sua visão de mundo para ção por meio da mística, que possui em si mesma,
manipulá-las e as impedirem de pensar. Quando como veremos adiante, uma ação pedagógica que
surgem os que não se sujeitam a tal opressão são reivindica direitos de cidadania popular não-bur-
chamados de “rebeldes”, “violentos”, essa massa guesa, reivindica o direito de sonhar e ter utopias.
de gente “cega”, “invejosa” e “selvagem”. Tudo isso Isso será muito oportuno, pois os opressores não
é veiculado por outros meios de dominação, que morreram e devem continuar sabendo que a socie-
são os meios de comunicação de massa. Assim, dade não pode se alienar a eles, que todos e todas
os que já se tornaram alienados passam a pensar estão conscientes das atitudes desumanizadoras a
como os opressores. Sabemos que: que se propõem para continuar conseguindo atingir
seus objetivos egoístas. Ainda será possível sonhar
Para as elites dominadoras, esta rebeldia, que e ter utopias em nossa sociedade atual? O MST
é ameaça a elas, tem o seu remédio em mais nos responde a partir da pedagogia da mística, que
dominação – na repressão feita em nome, in- fortalece os sujeitos em sua luta contra o dilúvio
clusive, da liberdade e nos estabelecimentos
neoliberal, a iluminação racionalista e as práticas
da ordem e da paz social. Paz social que, no
fundo, não é outra senão a paz privada dos fideístas de alienação religiosa.
dominadores... As massas populares não têm
que, autenticamente, “ad-mirar” o mundo, de-
nunciá-lo, questioná-lo, transformá-lo para a
As místicas no MST: Aphantésis com o Deus
sua humanização, mas adaptar-se à realidade
que serve ao dominador. (FREIRE, 1987, p.
da Vida
66; p. 123).
A necessidade de sonhar é intrínseca a cada
um de nós. E não é só isso: é também o desejo
Nessa visão distorcida da educação não
de nos suplantar, de nos superar. O humano é
existe saber, criatividade e nem transformação, um ser que não cabe em si mesmo. Daí que
a experiência mais profunda do ser humano é teológicas, quer sejam socialistas”, e quer sejam
aquela que o arranca de si mesmo em direção capitalistas. Daí o ser humano ser coletivo e indi-
a um outro – a experiência do amor. A isso a vidual, individual e coletivo.
tradição cristã chama “mística”. (FREI BETTO,
2001, p. 115-116). Por isso, Mounier (1976) é contrário a todas
as formas de niilismos e ceticismos que rondavam
Passamos agora a discutir sobre a místi- as mentes da primeira metade do século XX. É um
ca no MST enquanto ação que ensina e fortale- crítico feroz do capitalismo que impulsiona a cultura
ce os atores na luta de cada dia. As místicas do do individualismo, bem como do dogmatismo mar-
MST são um verdadeiro aphantésis com o Deus xista que percebe o Homem como ser coletivista.
da Vida, segundo os próprios militantes do movi- Tal crítica procede devido a seu pensamento filosó-
mento. Aphantésis em grego significa encontro, fico mais amplo em relação ao dualismo existente
estar junto, encontrar-se numa mesma comunhão. na história desde Platão até os existencialismos do
Daí a associação entre o encontro dos sem-terra, século XX, que vai ser combatido pela revolução
camponeses em luta, em marcha, em resistência personalista e comunitária e, para Gabriel Marcel,
constante numa verdadeira comunhão com aquele pela revolução da esperança num mundo desigual
que chamam carinhosamente de Deus da Vida e e inseguro para os pobres.
Mãe da Vida. Com isso, podemos perceber que o Esse pensamento do existencialismo cristão
próprio sujeito coletivo realiza uma dialogia entre foi fundamental para a realização das transforma-
o imanente e o transcendente, entre o sagrado e ções na Igreja Católica no século XX, que passa
o profano, entre Deus e o povo. a assumir com mais fidelidade a gênese das pri-
Nesse sentido, o MST rompe com duas tradi- meiras comunidades cristãs. Com isso, tivemos o
ções que realizam um dualismo entre as categorias chamado aggiornamento eclesial, que possibili-
acima citadas. Na própria tradição cristã agostinia- tou a abertura da Igreja ao mundo por meio da re-
na, na reforma protestante e no calvinismo temos o alização do Concílio Ecumênico Vaticano II e das
dualismo entre mundo imanente e mundo transcen- Conferências Episcopais Latino-Americanas, que
dente. Para as referidas tradições, o estado ima- fundamentaram o surgimento de um movimento
nente do corpo, da carne, das mazelas humanas interno denominado Teologia da Libertação. Seus
jamais poderá se associar ao estado transcendente maiores expoentes são os teólogos Leonardo Boff,
de Deus, do divino, do santo. Daí nosso interes- no Brasil, e Gustavo Gutiérrez, no Peru.
se em desvendar como o MST consegue reunir Em 1979, a Conferência Episcopal Latino-
aquilo que, historicamente, se encontra separado Americana de Puebla já mencionava o rosto dos
pela tradição histórica da religião cristã que se faz excluídos da sociedade da América Latina e que
presente no imaginário social brasileiro. foram reafirmados pelo Documento de Santo Do-
Essa associação pode ser explicada pela mingo (SD, 178), em 1992. Os rostos dos excluídos
influência que o MST teve por parte da Teologia foram assim denominados por serem
da Libertação impulsionada na América Latina (...) rostos desfigurados pela fome; rostos de-
nos anos 70 do século XX, que tem suas raízes siludidos por promessas políticas não cum-
no chamado existencialismo cristão europeu, com pridas; rostos humilhados de quem têm sua
filósofos como Emmanuel Mounier (1967; 1976) e cultura desprezada; rostos aterrorizados pela
Gabriel Marcel (1966). Mounier é o filósofo da Pes- violência diária e indiscriminada; rostos angus-
soa Humana. Sua obra mais conhecida é o Perso- tiados dos menores abandonados; rostos das
nalismo. Ao contrário do senso comum atribuído à mulheres desrespeitadas e humilhadas; rostos
categoria personalismo, Mounier a entende como cansados dos migrantes sem acolhida digna;
rostos dos idosos que não têm o mínimo para
valorização da pessoa humana em todos os senti-
viver dignamente. E a lista poderia ser maior,
dos. Ele (1976, p. 15) afirma categoricamente que
de tanto que sofre nosso povo.
“a pessoa é antes de mais nada o não, a recusa
de aderir, a possibilidade de se opor, de duvidar,
O rosto imanente e bondoso de Deus está,
de resistir à vertigem mental e correlativamente a
certamente, no rosto humano dos pobres e opri-
todas as formas de afirmação coletiva quer sejam
midos por um sistema feroz alicerçado na lógica
do capital. Daí a questão fundamental para com- sazonal. Todo este bloco social e histórico dos
preendermos a Teologia da Libertação, que, em oprimidos constitui o pobre como fenômeno
nossa concepção, se faz presente na Mística Li- social. (BOFF, 2001, p. 15).
bertadora do MST. Como ser gente, pessoa huma-
na, num mundo de miseráveis? É nesse cenário Trata-se de uma posição próxima da con-
que o MST recebe a influência da Teologia da Li- cepção dada por Claus Offe (1984), ao criticar as
bertação, como o próprio dirigente do movimento, estruturas do capitalismo. Segundo Offe, a indus-
Gilmar Mauro, destaca por meio das palavras da trialização capitalista realizou processos de de-
socióloga Maria da Glória Gohn: sorganização e de mobilização da força do traba-
lho (trabalhadores) utilizando-se de determinados
Sabemos que o movimento surgiu da articula- mecanismos que produziram o efeito comum de
ção de idéias da esquerda marxista com pres- destruição “das condições de utilização da força
supostos cristãos da Teologia da Libertação.
de trabalho”, o que atingiu de cheio determinados
Segundo Gilmar Mauro, um dos principais di-
rigentes a nível nacional do MST, o movimen- indivíduos na sociedade. Esses indivíduos atingi-
to teria trazido três “coisas boas” da Igreja. A dos não conseguem mais, por meio da força do
primeira: trabalhar com a simbologia, a mística trabalho, as suas condições materiais de subsis-
de trazer o futuro para o presente. A segunda: tência. Trata-se de um velho problema já apontado
o vínculo com as bases, o povo propriamente no século XIX por Marx e Engels, sobre a questão
dito. E a terceira: o espírito missionário. “Nós da oferta e da procura.
nos vemos como sacerdotes que estão cum-
prindo uma missão política”. (GOHN, 2000, p. A oferta para que haja mais força de traba-
116). lho é bem inferior à procura dos indivíduos que se
encontram à margem. Diante desse argumento,
A mística no MST possui exatamente essa Offe faz a distinção entre proletarização passiva
dimensão de fortalecer seus atores na caminhada e proletarização ativa. A proletarização passiva
de luta social. Mas a questão é muito mais profun- se evidencia a partir dessa destruição das formas
da. Por isso, na fala de Gilmar Mauro o que nos de trabalho e de subsistência e faz parte do pro-
interessa é a primeira “coisa boa” da Igreja: exa- cesso de industrialização. Trata-se de uma forma
tamente a simbologia da mística libertadora. Para de “desapropriação”, pois é negada a determi-
compreendermos a pedagogia da mística existente nados indivíduos a utilização da força de trabalho
no MST na atual fase, precisamos recorrer a alguns para sua subsistência. Contudo, há uma transito-
conceitos próprios da Teologia da Libertação. riedade permanente entre aqueles que se encon-
tram na condição de proletarização passiva para a
A mística é antes de tudo iracúndia, indig- proletarização ativa, já que constantemente estão
nação com a realidade desumana promovida pela oferecendo sua força de trabalho no mercado.
lógica do capital. Portanto, a mística torna-se um
gesto de protesto ao estabelecido, à ordem ali- Nesse sentido, a Teologia da Libertação
cerçada na economia, na globalização, no indivi- pode ser apresentada como uma ação que liberta
dualismo, na competição, na minimização do ser na ação, por isso é contrária a toda forma de as-
humano e em sua coisificação e também, mesmo sistencialismo e de reformismos. Além disso, um
que não pareça, no racionalismo burguês. segundo passo da Teologia da Libertação é a não
separação dualista entre fé e razão, pois se as se-
A teologia da libertação utiliza a categoria pararmos, a sociedade, ou os grupos sociais, ou o
pobre. Mas quem são os pobres para os teólogos próprio indivíduo tendem a cair no fideísmo ou no
da libertação? O teólogo Clodovis Boff nos res- racionalismo. Por isso, a reflexão da fé acontece
ponde: por meio da prática libertadora.
(...) são os operários explorados dentro do sis- Toda a mística realizada pelo MST é uma es-
tema capitalista; são os subempregados, os pécie de clamor dos pobres. Clamor não no sentido
marginalizados do sistema produtivo – exér- de mendicância ou aderência ao sistema, mas de
cito de reserva sempre à mão para substituir
oposição ao estabelecido, ao pronto. É o manifesto
os empregados – são os peões e posseiros do
campo, bóias-frias, como mão de mão-de-obra onde os sujeitos históricos são os pobres. Clamor
significa compreender que existem necessidades completo da tradição marxista ortodoxa e do ca-
vitais não satisfeitas aos seres humanos. O que pitalismo. Na verdade, assim como a Teologia da
importa é a aprendizagem da escuta do clamor Libertação, o MST utiliza o marxismo como media-
dos pobres. Segundo Assmann (1990: p. 13), “a ção sociológica para compreender a sociedade e
estrutura da escuta da fé (e também das opções o próprio homem, mas sem dogmatizá-la.
políticas) e a organização da esperança, pessoal
A mística no MST acontece para fortalecer as
e coletiva, embasam-se, mais que tudo, em for-
pessoas na caminhada, para fazer todos se sen-
mas testemunhais de comunicação”. A mística no
tirem bem na participação. A marcha é uma mís-
MST é uma forma testemunhal de comunicação,
tica do MST. É uma simbologia que caracteriza o
de dialogia.
povo em movimento. Só participa da marcha quem
A pedagogia da mística no MST é um espaço está bem consigo mesmo, com o outro (a comuni-
de aprendizagem da escuta ao clamor que brota dade dos marcheiros) e com Deus, que caminha
do silêncio de muitos, excluídos de ser gente, de junto com o povo sofrido. A fase do acampamento
serem pessoas humanas dentro desse sistema demonstra também um período de mística liber-
voraz baseado nas relações de produção capita- tadora. Para o sem-terra do MST é um momento
listas. Para o MST, existe uma realidade clamoro- de sacrifício, de renúncia, mas de caminhada em
sa, realidade de seres negados em sua existência, busca da Páscoa (outra simbologia cristã). Da cruz
que são os pobres, aqueles que escondem atrás à Páscoa. Para se alcançar a Páscoa precisa-se
do clamor desejado um profundo silêncio, sufoca- carregar a cruz, mas a cruz já é Páscoa. Ambas
do e destruído. Pobres são os que des-vivem sua estão intrinsecamente ligadas. Cruz na Páscoa,
existência, como nos deixa perceber o educador Páscoa na Cruz.
Hugo Assmann (1990, p. 15) em seu questiona-
Nesse sentido, discordamos de Fernandes
mento: “(...) o clamor dos pobres não reclama de
(1999), que vê na mística uma espécie de “alimen-
nós uma abertura muito mais radical à transcen-
to ideológico”. Não se pode reduzir a mística a um
dência no interior da história, capaz de deixar-se
fator ideológico do movimento. Ela é, antes de tudo,
desafiar pela alteridade do pobre mergulhado em
alimento da unidade, da esperança, da solidarieda-
seu silêncio?”
de, da compaixão com os outros sem-terra, sem-
O tema clamor dos pobres está intrinseca- casas, sem-empregos, sem humanidade.
mente ligado a outros, como bem atesta Hugo As-
A mística só tem sentido se faz parte da tua
smann: “(...) opção pelos pobres, os pobres como
vida. Não podemos ter momentos exclusivos
“lugar teológico”, o potencial evangelizador dos para ela, como os Congressos ou Encontros
pobres, a experiência de Deus na e desde a fé dos Nacionais ou Estaduais. Temos de praticá-la
pobres, o Deus dos pobres, a Igreja dos pobres, e em todos os eventos que aglutinem pesso-
outros temas afins...” (ASSMANN, 1990, p. 32). E as, já que é uma forma de manifestação co-
para nossa concepção, o clamor dos pobres está li- letiva de um sentimento. Queremos que esse
gado à pedagogia da mística. Jung Mo Sung (1989) sentimento aflore em direção a um ideal, que
diz que se trata de uma luta constante contra a ido- não seja apenas uma obrigação. Ninguém se
latria do capital e a morte dos pobres. Para isso, emociona porque recebe ordem para se emo-
torna-se necessário estabelecer outro paradigma, cionar; se emociona porque foi motivado em
função de alguma coisa. Também não é uma
que apresente a vida aos pobres a partir da fé num
distração metafísica ou idealista, em que todos
Deus que se torna parceiro da causa libertadora. iremos juntos para o paraíso. (STÉDILE, 1999,
É o aphantésis entre o sagrado que se faz profano p. 130-131).
e o profano que se sacraliza.
Segundo João Pedro Stédile (1999), a mís- Para o MST não existe contradição entre
tica serve ao movimento que se organiza na luta religiosidade e pensamento ideológico marxista.
social para compor a unidade de seus militantes. É possível ir à missa e ser revolucionário. Segun-
Ele deixa claro que nem a esquerda nem a direita do Stédile (1999: p. 131), “não existe contradição
possuem essa dimensão da mística, o que deter- nenhuma nisso. Ao contrário: a nossa base usa a
mina nossa tese de que o MST se distingue por fé religiosa que tem para alimentar a sua luta, que
é uma luta de esquerda, que é uma luta contra o Este é o nosso país, esta é a nossa bandeira
Estado e contra o capital”. Mas se a mística é uma / é por amor a esta Pátria Brasil que a gente
forma simbólica de sentir-se bem na luta, quais segue em fileira... Queremos que abrace esta
são os símbolos que se caracterizam enquanto terra por ela quem sente paixão, quem põe
com carinho a semente pra alimentar a Nação.
mística para o MST? O próprio João Pedro Stédi-
A ordem é ninguém passar fome, progresso é
le nos responde: o povo feliz. A Reforma agrária é volta do agri-
cultor à raiz... (Zé Pinto, cantor popular do
A bandeira, o hino, as palavras de ordem, as MST).
ferramentas de trabalho, os frutos do trabalho
no campo etc. Eles aparecem, também, de
muitas formas: no uso do boné, nas faixas, nas
músicas etc. As músicas são um símbolo muito Considerações Finais
importante. O próprio Jornal Sem Terra para o
MST, já é mais do que um meio de comuni- Como dizia o poeta Gonzaguinha, a mística
cação. É um símbolo. O militante se identifica, é isto:
tem afinidade, gosta dele. (STÉDILE, 1999, p.
132). quando a atitude de viver é uma extensão do coração,
é muito mais que um prazer, é toda carga de emoção,
que era um encontro com o sonho, que só pintava no
Na mística do MST, o símbolo materializa horizonte,
o ideal de luta promovida pelo movimento. Numa e de repente diz presente, sorri e beija a fronte,
discussão interessante acerca das pedagogias do e abraça e arrebata a gente,
movimento, Gentili e McCowan (2003) reafirmam (...) Não há palavra que explique,
a capacidade que o MST tem de criar novas pe- Ah! Eu me ofereço esse momento,
que não tem paga e nem tem preço,
dagogias. Pena que dentre elas, os autores aci-
essa magia eu já conheço...
ma não apresentaram a pedagogia da mística. é bom dizer: viver valeu! Amar valeu!
No nosso entendimento, todas as pedagogias do
movimento - pedagogia da luta social, pedagogia Para finalizar esta reflexão afirmamos que a
da organização coletiva, pedagogia da terra, pe- mística no MST e todas suas ações pedagógicas
dagogia do trabalho e da produção, pedagogia que tornam os sem-terra sujeitos coletivos podem
da cultura, pedagogia da escolha, pedagogia da ser análogas ao que afirmavam Marx e Engels em
história e pedagogia da alternância - apresentam 1848, a saber:
em seu interior a pedagogia da mística. Gentili e Um fantasma ronda a Europa – o fantasma do
McCowan (2003, p. 127) destacam a existência da comunismo. Para persegui-lo se unem numa
pedagogia da cultura e dentro dela a pedagogia do santa aliança todas as potências da velha Eu-
gesto, a pedagogia do símbolo e a pedagogia do ropa: o papa e o czar, Guizot e Metternich, os
exemplo. Concordamos, mas queremos ampliar radicais da França e os policiais da Alemanha.
essa concepção; e afirmamos que, nas experiên- (MARX e ENGELS, 2001, p. 49).
cias do MST, a pedagogia da mística se encontra
presente em todas as outras pedagogias constru- Poderíamos dizer hoje que um fantasma ron-
ídas por esse Movimento. da o Brasil – o fantasma do MST. Para persegui-lo
se unem numa santa aliança todas as potências
Dessa forma, acreditamos que os gestos, as
do velho coronelismo rural: os latifundiários, gran-
danças, as rezas, os clamores, as marchas, a ban-
des fazendeiros, empresários do agronegócio e
deira, o hino, as músicas e canções do movimento,
do hidronegócio, a UDR, a bancada ruralista no
os encantos e cantos, enfim, todos os símbolos do
Congresso Nacional e a Mídia defensora dos ide-
MST convergem para a construção de uma verda-
ais elitistas, representada pela revista Veja e pe-
deira ação pedagógica, que se estabelece numa
las Organizações Globo. Mas se esquecem de um
dimensão de afrontamento ao sistema capitalista
fator fundamental presente no MST e em todos os
e suas produções ideológicas. Daí acreditarmos
movimentos sociais do campo: Deus está com os
que a canção possui realmente a mística da liber-
Sem-Terra na luta e a luta se faz com os Sem-Terra.
tação:
É nesta esperança que o MST continua construin-
do caminhos de cidadanização popular contra a ci- CARVALHO, José Jorge de. Características do fenô-
dadanização burguesa, a partir de uma sociedade meno religioso na sociedade contemporânea. Bra-
baseada nos valores comunitários. sília: UnB, 1991. Coleção Cadernos de Antropologia,
n.114.
Sem dúvida, reconhecemos a existência do
CASALDÁLIGA, Pedro. Nossa espiritualidade. São
caráter educativo na pedagogia da mística viven-
Paulo: Paulus, 1998.
ciada pelo MST no Brasil e entendemos que ela
é um instrumento essencial na formação política CASALDÁLIGA, Pedro; VÍGIL, José Maria. Espiritua-
dos atores sociais que são seus próprios militan- lidade da libertação. Petrópolis: Vozes, 1995.
tes. A mística se apresenta enquanto celebração CELAM. Conclusões da Conferência de Santo Do-
que possui uma intencionalidade consciente, o que mingo. São Paulo: Paulinas, 1992.
permite um processo que mobiliza, educa e politiza CERIOLI, Paulo Ricardo; CALDART, Roseli. Como
os sujeitos em ação. Isso concretiza duas questões fazemos a escola de educação fundamental.. São
fundamentais ao movimento: a identidade coletivo- Paulo: MST, 1999. Caderno de Educação n. 9
cultural e a unidade na diversidade ideológica dos
DUTERVIL, Camila. Mística sem terra: o co-mover da
atores sociais. Por isso, Cerioli e Caldart (1999, formação em movimento. Monografia de Graduação
p. 23) não hesitaram em afirmar que a “a mística do Departamento de Antropologia da Universidade de
é a alma de um povo. A mística do MST é a alma Brasília, UnB, 2005.
do sujeito coletivo Sem Terra que se revela como
FREI BETTO. Cotidiano e mistério. São Paulo: Olho
uma paixão, que nos ajuda a ‘sacudir a poeira e
d’água, 2001.
dar a volta por cima’. (...) A mística é a alma da
identidade Sem Terra”. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1987.
Assim, não temos dúvida de que a mística é
GENTILI, Pablo; McCOWAN, Tristan. Reinventar a
celebrada para se buscar o vinho novo nos odres
escola pública: política educacional para um novo
velhos do sistema capitalista no qual estamos
Brasil. Petrópolis: Vozes, 2003.
emersos. Daí a profunda radicalidade pedagógica
da mística enquanto ação que protagoniza seus GOHN, Maria da Glória. Mídia, terceiro setor e MST:
atores sociais a anunciar um novo modo de vida, impactos sobre o futuro das cidades e do campo. Pe-
trópolis: Vozes, 2000.
ou seja, “(...) em vez de anunciar a desordem pro-
vocada pela exclusão como a ordem estabelecida, ______. Educação não-formal e cultura política. 2.
e educar para a domesticação, é possível subverter ed. São Paulo: Cortez, 2001.
a desordem e reinventar a ordem, a partir de va- JUNG MO SUNG. A idolatria do capital e a morte
lores verdadeira e radicalmente humanistas, que dos pobres. São Paulo: Edições Paulinas, 1989.
tenham a vida como um bem muito mais impor-
MARCEL, Gabriel. Revolução da esperança. São
tante do que qualquer propriedade”. (CERIOLI; Paulo: José Olympio, 1966.
CALDART, 1999, p. 7).
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