Sei sulla pagina 1di 10

As fronteiras da alteridade: “O outro – indígena”

como provocador do discurso em Colombo e Pero


Vaz de Caminha*
The borders of alterity: the indigenous alterity as a
challenger of speech in Columbus and Pero Vaz de
Caminha
Antônio H. Aguilera Urquiza**
Maria de Fátima Rocha Medina***
* O presente texto tem por base artigo publicado em ES-
PINA BARRIO, A. Cronistas de Iberoamérica, Salamanca:
Ed. USAL, 2001.
** Doutorado em Antropologia pela Universidade de
Salamanca / Espanha (2006). Professor da UFMS e na
pós-graduação em Antropologia da UFGD.
*** Doutorado em Filologia Hispânica pela Universidade de
León / Espanha (2004). Professora do Centro Universitário
Luterano de Palmas, TO, Brasil.

Resumo
A partir dos textos de dois cronistas do século XV e XVI, Pero Vaz de Caminha e Cristóvão Colombo, le-
vantamos elementos acerca das fronteiras epistemológicas da (re) elaboração do outro nestas narrativas,
inicialmente históricas, porém, certamente presentes no cotidiano social contemporâneo, marcado por
interações multiculturais. Tzvetan Todorov (1999) e M. Bakhtin (1999), teóricos da linguagem, E. Bueno
(1998) historiador e Carlos Skliar (2003), educador, são as bases teóricas principais deste ensaio que pre-
tende, através da literatura, repensar o papel central do “outro” nas relações e construções identitárias, em
contextos marcados por realidades de fronteiras, negociações culturais, hibridações e espaços contraditórios.
Palavras-chave
Relações identitárias. Alteridade. Fronteiras.

Abstract
This essay analysis texts of Pero Vaz de Caminha and Cristóvão Colombo, which were two chroniclers
from the fifteenth and sixteenth century. We raised elements about epistemological boundaries in (re)
signifying of the others, found in these narratives, that were initially historical, but are certainly current in
social nowadays, at the same time are being transformed by multicultural interactions. Tzvetan Todorov
(1999) and M. Bakhtin (1999), language theorists, E. Bueno (1998), historian, and Carlos Skliar (2003),
educator, are the theoretical bases of this essay. We purpose thinking from literature to rethink the “other”
in identity relations and constructions in contexts that are marked by borders, cultural negotiations, hy-
bridizations and contradictory spaces.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande-MS, n. 31, p. 75-83, jan./jun. 2011
Key-words
Identity relationships. Otherness. Borders.

Primeiras aproximações males, como o portador das falhas sociais.


Este tipo de pensamento supõe que a po-
A partir dos debates do IV Seminário breza é do pobre; a violência, do violento;
Internacional Fronteiras Étnico-Culturais, o problema de aprendizagem, do aluno;
Fronteiras da Exclusão (UCDB, 2010) e no a deficiência, do deficiente; e a exclusão,
contexto das pesquisas acerca das rela- do excluído”.
ções interétnicas, em particular da criança Esta radicalidade do encontro entre o
indígena nas aldeias Guarani e Kaiowá do “eu europeu” e o “outro – nativo”, com toda
sul do Estado de Mato Grosso do Sul, e o sua carga de preconceitos, materializa-se
processo de diálogo intercultural proposto no contato dos navegantes ibéricos com
para a educação indígena, entendida como os nativos americanos, no final do século
espaço de fronteira e trânsito (cf. TASSINARI, XV. No contexto do Renascimento, depois
2001), nos propusemos a elaboração deste de longo período de silencio, quando a
artigo, tendo como referência elementos da palavra, especialmente a palavra escrita,
literatura clássica: os cronistas da Penínsu- pertencia a poucos, os europeus rechaçam
la Ibérica do final do século XV. a obscuridade medieval e teocêntrica,
Voltamos ao contexto das grandes recuperando os clássicos e o espírito hu-
navegações (século XV), momento em que manista. Além disso, saem em busca de
ocorre o radical encontro entre o “eu” euro- novos horizontes, sobretudo de horizontes
peu e o “outro” nativo americano, crônicas geográficos.
repletas de elementos que podem nos Os séculos XV e XVI, especialmente,
ajudar a entender as relações de alterida- foram marcados por algumas novidades
de, o processo de constituição do “outro” importantes como a invenção da bússola,
e da própria identidade do “eu”. Vivemos, preciosa para as viagens marítimas, e pela
na atualidade, em um contexto, onde cada invenção da imprensa, que proporcionaria
dia torna-se mais difícil o diálogo do “eu” não só a divulgação de importantes obras
com o “outro”, o diferente. E, neste caso, não clássicas, mas também, o registro dos fatos
falamos apenas dos povos indígenas, mas, que estavam ocorrendo e aqueles que
com segmentos minoritários da sociedade estavam por vir.
nacional, os diferentes a partir do recorte Estando em uma privilegiada si-
étnico, cultural, de gênero, deficiência, entre tuação geográfica, a península Ibérica
outros. desempenhará um importante papel nesse
Como bem afirma, neste sentido, cenário e momento histórico, tirando de
Duschatzky e Skliar (2001, p. 125), “o outro tudo o máximo proveito. Na Península Ibé-
funciona como o depositário de todos os rica, mito e história se misturam de forma

76 Antônio H. A. URQUIZA; Maria de F. R. MEDINA. As fronteiras da alteridade: “O outro – indígena” ...


quase indissolúvel: a ancestral tradição foram: Colombo e Pero Vaz de Caminha,
céltico-druídica, o paganismo germânico, o um como comandante de uma frota e
misticismo islâmico, as lendas da cavalaria outro como escrivão.
de Carlos Magno, as antigas profecias bí- Cristóvão Colombo, navegante ge-
blicas, as fábulas milenárias, os templários novês (ou nascido em Savona em 1451
e suas buscas pelo Santo Graal, o espírito - Valladolid, 1506), entrou para o serviço
das Cruzadas, etc. De acordo com Eduardo da rainha de Castilha em 1492 e obteve
Bueno (1998), todos estes ingredientes dela três caravelas, saindo de Palos em 3
se misturam para fundir a nacionalida- de agosto de 1492 e chegando finalmente
de e identidade ibérica, modelando seu no dia 12 de outubro daquele mesmo
projeto de conquistar o mundo através ano ao continente americano. Regressou
da navegação pelos mares. Inicialmente a Espanha em 1493; impenderia outras
com o propósito comercial de chegar até quanto viagens, voltando definitivamente
as Índias por via marítima e depois, com em 1504, depois de explorar quase toda a
o ‘descobrimento’ de novas terras, o man- América Central.
dado primordial de levar a fé cristã aos Pero Vaz de Caminha, por sua parte,
“povos primitivos”. Assim que, durante pelo nasceu na cidade do Porto, por volta de
menos cem anos, a política portuguesa, 1450 e se tornou conhecido em seu país
inicialmente, e depois a espanhola durante pela carta que escreveu ao rei Dom Manoel
um tempo mais prolongado, serão a ponta I de Portugal, relatando o descobrimento
de lança de toda a expansão europeia. do Brasil em 1500. Morreu em seguida, na
mortandade que sofreram os portugueses
Objetivos comuns no porto de Calicute na Índia, em dezem-
bro de 1500. De estilo elegante e refinado,
Quase todos os cronistas deste perío- demonstra ser um homem muito culto e
do inicial (séculos XV e XVI) compartilham de educação humanística, relatando com
os objetivos comuns de transmitir ao centro erudição os nove dias de sua permanência
(reinos europeus) as impressões do “outro” na expedição no Brasil.
(do desconhecido), percebidas na “periferia” Mais que uma reflexão histórica, a
do mundo que começa a ser conhecida opção deste trabalho, como explicitado
nestes tempos; outro objetivo explícito, anteriormente, é a tentativa de uma leitura
na prática, é a missão de “transmitir à a partir do ponto de vista da antropologia
periferia o modelo de vida” da civilização e da linguística. Por isso uma das chaves
cristã, branca e machista da Europa Oci- teóricas é Bakhtin (1999) quando fala
dental. Dentre os muitos cronistas que, sobre o signo e seu potencial ideológico,
neste período, navegavam pelos mares, e propõe uma concepção de ser humano,
destacamos dois que aqui nos interessam, fundamentada nas relações sociais e
principalmente pelos primeiros registros simbólicas; a chave oferecida por Todorov
escritos que fizeram sobre as terras onde (1999) em seu texto sobre A conquista da

Série-Estudos... Campo Grande-MS, n. 31, p. 75-83, jan./jun. 2011. 77


América e a questão do outro, ou seja, o vontade mais que minha ignorância”. Na
“outro” como o que provoca a produção de introdução, define o objetivo de seu relato,
cultura de Geertz, o qual a concebe como que se limitará à chegada à nova terra:
uma “teia de aranha que é construída ou “Sobre a navegação e as singraduras não
tecida pelas pessoas, ao mesmo tempo em lhe direi nada a Sua Alteza, uma vez que
que sofrem suas consequêcias” (GEERTZ, para seu conhecimento começo agora”.
1990, p. 04). Fala também de sua intenção de escriba,
onde insinua a estrutura do texto, como
A produção textual de Pero Vaz de relato e como conjunto de impressões.
Caminha Os dois planos são do ver (os fatos) e do
parecer (as impressões sobre os fatos).
Com relação aos procedimentos de No primeiro caso, os movimentos
produção textual, Caminha apresenta pos- dos marinheiros, as ordens de comando,
turas distintas quando ele produz os textos os intentos de comunicação com os indí-
e se faz narrador. Neste caso, poderíamos genas, são afirmativos da perspectiva do
tomar a condição do narrador em duas ver, em que os relatos são afirmativos e
visões consideradas como do ver e do minuciosamente descritivos. No segundo
parecer. A primeira, relacionada com o re- caso, as descrições parecem ser de um
lato, parte das vivências, e a segunda, que estrangeiro extasiado com uma nova rea-
insinua a ideologia do branco europeu, se lidade em relação a seus costumes. Essas
fundamenta nas impressões da vivência. impressões insinuam o imaginário do pro-
No inicio de sua carta, Caminha, dutor do texto. Em uma parte, por exemplo,
sabendo-se um narrador dentre muitos Caminha escreve que os indígenas “são
outros do grupo, sabe também que uma muito polidos e muito limpos, pelo qual me
mesma realidade pode ser vista e interpre- parecem mais reluzentes que os pássaros
tada sob diferentes ópticas: ou os animais […] o qual faz supor que
A pesar de que o comandante em não têm nem casa nem cobertura onde
chefe de vossa frota assim como os resguardar-se”. Quando Caminha fala de
demais capitães escrevem a Sua Alte- suas impressões, o faz na primeira pessoa
za para anunciar-lhe o descobrimento do singular, porém, quando relata fatos
desta nova terra que, por Vos, nesta vividos conjuntamente, o faz no plural: “De
travessia, acabamos de descobrir, não fato, até agora não vimos nenhuma casa
deixarei de minha parte de dar-lhe nem nada que se pareça com uma”.
conta dele o melhor que possa (Carta Segundo o relato de Pero Vaz de
de Pero Vaz de Caminha, p. 2).
Caminha, a comunicação entre portugue-
A postura de autor expressada anun- ses e indígenas se dá por gestos e atitudes
cia as possibilidades do narrador e seu de- e não por palavras, como também está
sejo enquanto ao relato: “Que Vossa Alteza, descrito nos comentários de Cristóvão Co-
no entanto, estime considerar minha boa lombo. É concretizada de acordo com as

78 Antônio H. A. URQUIZA; Maria de F. R. MEDINA. As fronteiras da alteridade: “O outro – indígena” ...


conveniências dos brancos, entre os quais em uma relação horizontal na qual todas
Caminha se inclui: elas têm igual valor.
Um deles viu as contas brancas de Todorov (1999), dialogando com
um rosário, pediu por gestos que lhe Bakhtin, afirma que a semiótica não pode
déssemos, se divertiu muitíssimo, o ser pensada fora da relação horizontal
colocou no pescoço e logo o tirou com o “outro”; ou seja, a linguagem só
e o enrolou no braço: e assinalava existe porque existe um eu que se põe
a terra e logo as pérolas e o colar em relação com um tu pelo qual se sente
do comandante, como que dizendo provocado. Ao mesmo tempo, entretanto,
que os trocava por ouro. Isto nós que é um “tu” que provoca, também em um
compreendemos perfeitamente já
“eu” que se sente provocado pelo “outro”.
que era nosso desejo. Porém, se nos
dissesse que ele teria gostado de
Nesse clima de consentimento, resultado
levar o rosário e também o colar, te- de tensões e provocações dialógicas e
ríamos feito como se não tivéssemos dialéticas de indivíduos socialmente orga-
entendido, já que não pensávamos nizados onde surgem os signos.
em presentear (Carta de Pero Vaz de No entanto, a atenção dos cronistas
Caminha, p. 4). se baseará unicamente em si mesmos
(locutores) através da escritura de textos
A conquista ideológica pela palavra que expressavam exatamente seu ponto
de vista ou, todavia, o ponto de vista dos
Olhando a “conquista” com os olhos interlocutores distantes: os reis e demais
de Bakhtin, poderíamos dizer que o discur- europeus interessados nas noticias da
so dos cronistas se impôs a partir das leitu- América somente como fonte de riquezas.
ras que eles faziam sobre as “novas terras” “Dizia aos homens que o acompanhavam
inclusive antes de viajar: praticamente já que, para fazer para os Reis uma relação
sabiam o que iam escrever aos reis, seus de tudo quanto viam, mil línguas não bas-
destinatários privilegiados, porque eram taram para expressá-lo nem sua opinião
os patrocinadores das viagens. Estando escrevê-lo”. Em uma relação vertical, muitas
diante de outros povos, com discursos di- vozes foram silenciadas em detrimento do
ferentes, em nenhum momento tentaram privilegio de uma, já que os colonizadores
estabelecer interações verbais ou qualquer se sentiam superiores aos povos encon-
outro tipo de compreensão do “outro”, não- trados. Gestos, atitudes, símbolos, objetos,
europeu, como possível interlocutor. e tantos outros signos ideológicos para
Segundo Bakhtin (1999), o discurso aquelas comunidades americanas.
individual se constrói a partir do discurso Muitos deles ou quase a maior parte
do “outro”, entre pessoas que sejam simul- dos que andavam ali traziam aqueles
taneamente locutoras e interlocutoras, em bicos de osso nos beiços. E alguns,
um tempo e espaço concretos, proporcio- que andavam sem eles tinham os
nando combinação de gêneros e vozes, beiços furados e nos buracos uns

Série-Estudos... Campo Grande-MS, n. 31, p. 75-83, jan./jun. 2011. 79


espelhos de pau, que pareciam espe- O discurso do “outro”
lhos de borracha (Carta de Pero Vaz
de Caminhada, p. 4). Quando Todorov (1999) questiona
as atitudes de Cristóvão Colombo (por
Nesse contexto, Cristóvão Colombo
suposto que também serve para Pero
faz a mesma coisa: “Todos pareciam-se
Vaz de Caminha, ainda que não seja
com aqueles de que já falei, mesma con-
mencionado), sua voz está de alguma
dição, também nus, e da mesma estatura”
maneira entrelaçada com a de Bakhtin.
(17.10.1492, apud TODOROV, 1999, p. 58).
Colombo foi um homem que construiu
Entre a diversidade de signos me-
suas relações sociais em uma formação
diadores da interação humana, Bakhtin
religiosa medieval que era, todavia, muito
(1999, p. 73) elege a palavra como a mais
forte. No entanto, já despontavam questões
importante:
renascentistas com todas suas consequên-
Este aspecto semiótico e esse papel cias, como, por exemplo, a potencialidade
contínuo da comunicação social humana como fruto de sua racionalidade.
como fator condicionante não apa-
Isto significa que os signos semióticos
recem em nenhum lugar de ma-
neira mais clara e completa que na
e ideológicos entre os conquistadores
linguagem. A palavra é absorvida (Colombo e Caminha) e os nativos eram
por sua função de signo. A palavra distintos e, por conseguinte, carregados
não comporta nada que não esteja de diferentes valores. “Todo signo resulta
unida a essa função, nada que não de um consentimento entre indivíduos
haja sido gerado por ela. A palavra socialmente organizados no transcorrer
é o modo mais puro e sensível de de um processo de interação” (TODOROV,
relação social. 1999, p. 45). Ademais, as consciências
De acordo com Geertz (1990) na vi- individuais eram portadoras de discursos
são cotidiana os fatos se interpretam como e valores totalmente diferentes entre si.
se fossem tecendo fios de culturas, conse- Isto justifica, por exemplo, o assombro de
quências do choque entre estes mundos Colombo e Caminha diante dos nativos
distintos. Ainda mais nesse contato com que trocavam seus objetos, inclusive ouro,
o “outro”, trouxeram como consequência por coisas sem nenhum valor (inclusive
suas impressões que chegaram até os por copos de vidros quebrados). “Tudo o
dias de hoje pela palavra escrita, ainda que possuem, dão em troca de qualquer
que de maneira unidirecional, já que não coisa que lhes ofereça, e aceitam em troca,
houve interação com o discurso alheio. Os assim mesmo, pedaços de vasos e copos
textos dos cronistas estão assinalados pelo de vidro quebrados” (Carta de Santangel,
silencio das vozes nativas, como se estes 1493 apud TODOROV, 1999, p. 45).
povos não falassem também, como se não Colombo e Caminha se “esquecem”
tivessem um código lingüístico. de que os nativos estão situados em um
espaço diferente da Europa com toda sua

80 Antônio H. A. URQUIZA; Maria de F. R. MEDINA. As fronteiras da alteridade: “O outro – indígena” ...


história, e que os objetos possuem valor da natureza, rechaçando aquilo que o “ou-
de acordo com o significado produzido tro – indígena” tinha para dizer. Colombo
em determinado contexto, a partir de afirma que
relações sociais especificas. Às vezes, um [...] aqui, os peixes são diferentes
objeto não passa de sua forma natural, no dos nossos, que é uma maravilha.
entanto, em outros casos o mesmo pode Há alguns que são, como os galos,
adquirir forma ideológica. Por exemplo, o enfeitados das mais lindas cores do
ouro, para o contexto europeu, era semióti- mundo: azuis, amarelos, vermelhos
camente ideológico porque se transforma e todas as cores. (apud TODOROV,
em instrumento de poder e riqueza. Na 1999, p. 28).
busca deste metal, os viajantes enfren- Segundo a carta de Santangel (apud
taram os perigos do mar desconhecido, TODOROV, 1999, p. 32), Colombo nomeia
deixando famílias e outros bens. Ao tudo o que vê a partir de seu contexto,
contrário, para os nativos da América, o como se nada tivesse nome antes. Na
ouro era mais um de seus adornos, que Bíblia, nomear é dar existência a algo.
traziam no corpo e certamente poderiam Assim que, ao sentir-se provocado, trata de
ser trocado por uma pena colorida. Co- pôr nomes de sua língua, de sua cultura,
lombo e Caminha foram incapazes de tentando fazer nascer o que ali já existia há
perceber o Outro em toda a sua diferença. muito tempo: os conquistadores ignoraram
Skliar (2003) nos lembra da colonialidade os nomes já existentes e nomearam tudo
presente em toda cultura. novamente, para possuir aquilo que já
E o é, em termos de uma imposição pertencia a outros.
aos outros de uma espécie de lei do A língua sempre acompanha o im-
mesmo: a mesmidade, que persegue pério; os espanhóis temiam que, per-
por onde quer que seja a alteridade, dendo sua supremacia em uma, pu-
como se fosse sua sombra; uma som- dessem perder também no outro. Não
bra da própria língua, uma sombra estaria aí a insegurança de Colombo?
lingüística (SKLIAR, 2003, p. 104). Seria possível que o silêncio de todos
Com relação à concepção dinâ- os pontos geográficos da América,
mica da linguagem, nada tem o discurso cheios de milhares e milhões de vozes
acabado, pois todos estão em processo de tão variados povos, incomodou a
Colombo? Para Bakhtin, a palavra é o
dinâmico de intercâmbio e de constru-
fenômeno ideológico por excelência.
ção permanente. O discurso alheio deve
Ao impor sua palavra, sua linguagem
encontrar espaço naquele do autor para com toda a carga ideológica, Colombo
fortalecê-lo, ou mudá-lo se assim for neces- não leva em conta o processo criador
sário. Conforme os textos, tanto Cristóvão e construtor pelo qual passaram as
Colombo como Pero Vaz de Caminha terras e os povos americanos. Impon-
preferiram a descrição de objetos e coisas do sua palavra, Colombo desencadeia

Série-Estudos... Campo Grande-MS, n. 31, p. 75-83, jan./jun. 2011. 81


simultaneamente um processo de timos não só porque nos alimentamos, e
dominação de tudo o que a palavra sim porque estamos imersos em mundos
(semioticamente ideológicas) repre- de sentido, nadamos em piscinas de sig-
senta. (TODOROV, 1999, p. 269). nificações.
Certamente por isto, o Almirante e o Na situação dos cronistas, especial-
escrivão olham aos nativos, também, como mente Cristóvão Colombo e Pero Vaz de
“meras peças” descritivas, incluindo a todos, Caminha é impossível que eles escreves-
mesmo sendo de várias nações, lhes impu- sem sem deixar refletir no texto seu entorno
seram um único nome – índios – o qual foi cultural e ideológico, assim como seria ain-
transposto erroneamente de outro contexto. da mais difícil que eles escrevessem sem
Alem disso, tratam aos nativos como ma- a provocação causada pelas impressões
cho/fêmea: “Quando nossas caravelas tive- das pessoas do “novo mundo” e seus cos-
ram que partir para a Espanha, reunimos tumes culturais. Usualmente os cronistas
em nosso acampamento mil e seiscentas o fazem, em forma de comparação, seja,
pessoas, machos e fêmeas desses índios, o “outro” a partir de nós mesmos. Porém,
dos quais embarcamos em nossas carave- trata-se de una via de mão dupla, porque
las” (MICHELE DE CUENO apud TODOROV, a diferença do “outro”, às vezes com um
1999, p. 56) e, ainda mais, como objetos ou silencioso grito questiona nossos costumes
animais: “Enviei alguns homens a uma casa ocidentais e “civilizados”. Ao mesmo tempo,
na margem oeste do rio. Eles me trouxeram vale a pena lembrar que existimos a partir
sete cabeças de mulheres, jovens e adultas, deste mesmo “outro”. Duschatzky e Skliar
e três crianças” (Idem, p. 57). (2001, p. 124) afirmam que a mesmidade
necessita do outro:
Considerações finais Necessitamos do outro, mesmo que
assumindo certo risco, pois de outra
Nossas realidades são fundamental- forma não teríamos como justificar
mente construções discursivas em busca o que somos, nossas leis, as institui-
daquilo que dá sentido diversificado à ções, as regras, a ética, a moral e a
existência. Pensar e trabalhar “interfaces” e estética de nossos discursos e nossas
interpretações possíveis dos diversificados práticas. Necessitamos do outro para,
mundos de sentido que os humanos têm em síntese, poder nomear a barbárie,
criado em sua larga trajetória de contatos a heresia, a mendicidade etc. e para
e relações interétnicas, foi nosso objetivo. não sermos, nós mesmos, bárbaros,
hereges e mendigos.
Nenhuma teoria do sujeito, individual ou
coletivo, tem sentido, se não opera basi- Assim também ontem, como hoje,
camente com os campos do signo e do partimos de nosso próprio ponto de vista
sentido mesmo. As palavras nos seduzem para nos constituir em nossos discursos,
justamente porque nós humanos somos em nossa existência, sempre procurando
seres simbolizados e simbolizadores. Exis- depositar no diferente aquilo que tememos

82 Antônio H. A. URQUIZA; Maria de F. R. MEDINA. As fronteiras da alteridade: “O outro – indígena” ...


estar em nós mesmos. No discurso coloni- diferente é, no máximo, alguém a quem
zador de Caminha e Colombo, como nos se deve “tolerar”, enquanto buscamos
discursos colonizadores da atualidade, o transformar o “outro” em “nós”.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999.


BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. (Col. Terra Brasilis,
v. 1).
CHANDEIGNE, Michael. Lisboa extramuros 1414-1580. Madrid: Alaliza Editorial, 1990.
DUSCHATZKY, Silvia; SKLIAR, Carlos. O nome dos outros. Narrando a alteridade na cultura e
na educação. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Habitantes de Babel: políticas e poéticas da
diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da anunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São
Paulo: Ática, 1999.
GEERTZ, Clifford. Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
PABLOS, Juan de. Para un estudio de las aportaciones de Mijail Bajtín a la teoría sociocultural.
Una aproximación educativa. Revista de Educación, 320, p. 223-53, 1999.
SIMOES, H. Campos. Carta de Pêro Vaz de Caminha a El-Rei don Manuel sobre o achamento
do Brasil. Revista FESPI (edição especial), 1996.
SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de
Janeiro: DP&A, 2003.
TASSINARI, A. M. I. Escola indígena: novos horizontes teóricos, novas fronteiras da educação.
In: LOPES da SILVA, A.; FERREIRA, M. K. L. (Orgs.). Antropologia, história e educação: a questão
indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
WERTSCH, James V. Vocês de la mente. Um enfoque sociocultural para el estúdio de la acción
mediana. Madrid: Visor Distribuciones, 1993.

Recebido em maio de 2011.


Aprovado para publicação em junho de 2011.

Série-Estudos... Campo Grande-MS, n. 31, p. 75-83, jan./jun. 2011. 83

Potrebbero piacerti anche