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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE GEOGRAFIA, HISTÓRIA E


DOCUMENTAÇÃO
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

O NASCIMENTO DA BIOPOLÍTICA NA
PROVÍNCIA DE MATO GROSSO (1719-
1840)

CRISTIANO ANTONIO DOS REIS

Cuiabá-MT
2018
CRISTIANO ANTONIO DOS REIS

O NASCIMENTO DA BIOPOLÍTICA NA
PROVÍNCIA DE MATO GROSSO (1719-
1840)

Tese apresentada à Banca Examinadora do


Programa de Pós-Graduação em História,
do Instituto de Geografia, História e
Documentação-IGHD da Universidade
Federal de Mato Grosso, como requisito
parcial à obtenção de título de Doutor em
História.

Orientador: Prof.Dr. Renilson Rosa Ribeiro

Cuiabá/MT -2018
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

R375n Reis, Cristiano Antonio dos.


O NASCIMENTO DA BIOPOLÍTICA NA PROVÍNCIA DE MATO GROSSO
(1719-1840) / Cristiano Antonio dos Reis. -- 2018
349 f. : il. color. ; 30 cm.

Orientador: Prof. Dr.Renilson Rosa Ribeiro.


Tese (doutorado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Ciências
Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em História, Cuiabá, 2018.
Inclui bibliografia.

1. Soberania. 2. Biopolítica. 3. População. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.


Reis, Cristiano Antonio dos. O Nascimento da Biopolítica na Província de Mato
Grosso (1719-1840). 2018. 349p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação
em História, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2018.

RESUMO
A presente tese defende a ideia do nascimento da biopolitica na província de Mato
Grosso, respaldado conceitualmente pelas pesquisas do filósofo Michel Foucault.
Nesse sentido buscou-se demarcar historicamente a passagem, de uma forma de
exercício de poder pautado na soberania assentado entre premissas de bom governo
e de razão de Estado, para uma forma de exercício de poder assentado em bases do
pensamento liberal. Tal enfoque buscou compreender como a problemática da
população se tornou presente nos discursos dos capitães-generais/presidentes da
província de Mato Grosso na gestão da liberdade, que ironicamente, produzia uma
série de dispositivos de controle da população.

Palavras-chave: Soberania, Biopolítica, População.

ABSTRACT

This thesis defends the idea of the birth of biopolitics in the province of Mato
Grosso, conceptually supported by the researches of the philosopher Michel
Foucault. In this sense, we sought to demarcate historically the passage from a form
of exercise of power based on sovereignty based between premises of good
government and reason of state for a form of exercise of power based on liberal
thinking. his approach sought to understand how the problem of population became
present in the speeches of the presidents of Mato Grosso province in the
management of freedom, which ironically produced a series of population control
devices.
Keywords: Sovereignty, Biopolitics, Population.
AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer primeiramente a DEUS e à minha companheira


Rosimeire da Costa, às minhas filhas, Sofia Heloisa da Costa e Yasmim Gabriele
da Costa, por acompanhar pacientemente o desenvolvimento da minha pesquisa e
me apoiar nas etapas mais difíceis da pesquisa, demonstradas por intensas provas
de afeto e carinho.
Agradeço à Secretaria de Estado de Educação, Esporte e Lazer
(SEDUC-MT), pelo período de afastamento concedido na realização desse trabalho.
Agradecer ao professor doutor Oswaldo Machado, com quem iniciei
essa empreitada e desfrutei de sua generosidade intelectual e de sua solicitude em
acompanhar os percalços iniciais dessa pesquisa.
Expresso também uma gratidão incomensurável ao professor Doutor
Renilson Rosa Ribeiro, pela coragem em aceitar o desafio no prosseguimente do
trabalho de orientação da presente pesquisa e que, com suas valiosas sugestões,
muito contribuíram na feitura desse trabalho.
Gostaria de externar também a minha gratidão às professoras Doutoras
Ludmila de Lima Brandão e Ana Maria Marques, pela leitura paciente e minuciosa
das primeiras versões desse trabalho, que trouxeram novas possibilidades de
abordagem.
Agradecimento à banca examinadora, composta pelas professoras
Doutoras Ludmila de Lima Brandão, Ana Maria Marques, Leny Caselli Anzai e
pelo professor Doutor Fábio Leonardo Castelo Branco Brito, pelas valiosas
sugestões apresentadas e discutidas na presente pesquisa.
Agradeço também aos meus professores do Programa de Pós-
Graduação em História/PPGHIS-UFMT, com quem tive a satisfação de aprender
muito no decorrer dos meus estudos, entre eles: Fernando Tadeu de Miranda
Borges, Marcelo Fronza, Anderson Roberti dos Reis, Thaís Leão Vieira, Jaqueline
Aparecida M. Zarbato e Vitale Joanoni Neto.
Agradeço a todos/todas colegas da Escola Estadual Dr. Estevão Alves
Corrêa, por me apoiarem nessa jornada difícil da pesquisa.
Aos meus colegas da pós-graduação, que enfrentaram comigo todos os
percalços da operação historiográfica e com quem aprendi muito: Emerson de
Arruda, Leonam Lauro Nunes da Silva, Silbene Correa Perassolo da Silva, Débora
Cristina dos Santos Ferreira, Laís Dias Souza da Costa, Mauro Henrique Miranda
de Alcântara, Wilian Júnior Bonete, Carolina Akie Ochiai Seixas Lima, Renata
Costa e Nailza da Costa Barbosa Gomes.
Por fim, gostaria de externar meus agradecimentos a todos os
funcionários do Arquivo Público de Mato Grosso e do Núcleo de Documentação e
Informação Histórica Regional - UFMT pela acolhida, cordialidade e prontidão às
minhas demandas da pesquisa.
EPÍGRAFE

Há agora toda uma população que desestabiliza, mexe, busca além dos
vocabulários e das estruturas habituais. É uma... não ouso dizer revolução
cultural, mas por certo uma mobilização cultural.
Michel Foucault (2016)
Lista de Mapas

MAPA 1: Mato Grosso entre os anos de 1772 e 1789................................... 217


MAPA 2: Mapa do Brasil de 1817................................................................. 218
MAPA 3: Mapa do Brasil de 1940.................................................................. 219
MAPA 4: Mapa do Brasil de 1980.................................................................. 220
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
CAPÍTULO 1: DISPOSITIVOS DE SOBERANIA EM 35
CUIABÁ E MATO GROSSO (SÉCULO XVIII)
1.1- Coleta/Despesa 37
1.2- Anterioridade fundadora 49
1.3- Relação diferenciadora não isotópica 60
1.4-Fazer morrer e deixar viver 74
CAPÍTULO 2: ZONA CINZENTA: RAZÃO DE ESTADO E 93
GOVERNO EM PORTUGAL DA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XVIII
2.1- O Limiar de uma Governamentalidade em Portugal na 102
Segunda Metade do Século XVII
2.2- Estado de Polícia e Razão De Estado: entre o sismo 116
natural e a cisma política
2.3- Razão de Estado e governamentalidade na Capitania 139
De Mato Grosso
CAPÍTULO 3: GOVERNAMENTALIDADE LIBERAL: 158
CONDIÇÕES DE NASCIMENTO DA BIOPOLÍTICA NA
PROVÍNCIA DE MATO GROSSO (1808-1840)
3.1- Aurora de uma governamentalidade Liberal em 165
Portugal e no Brasil
3.2- Nascimento da biopolítica na província de Mato 179
Grosso
3.3- Governar a vida de uma população: a importância da 185
estatística
CAPÍTULO 4: CONSTRUIR A ORDEM E GOVERNAR A 214
POPULAÇÃO: INSTRUÇÃO, CRIMINALIDADE E SAÚDE
PÚBLICA
4.1- Preâmbulos da Rusga: de zelosos da independência a 224
facinorosos de 1834
4.1.1- Guerra de raças e biopolítica 235
4.2- Instrução pública: moralizar as condutas da população 248
mato-grossense
4.2.1- A catequese dos índios: entre civilização e 265
barbárie
4.3- Criminalidade: vigiar e punir 279
4.4- Saúde pública: higiene e assistencialismo 295
CONSIDERAÇÕES FINAIS 318
FONTES 327
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 336
INTRODUÇÃO

No prefácio do seu livro A Escrita da História, Certeau, ao partir da


observação do quadro de Jan Van der Atraet, já nos anunciava o encontro
problemático do europeu com os nativos americanos. Cena inaugural do discurso
colonizador sobre a América e da colonialidade, que portando as armas europeias
do sentido (escrita, escritura, navios etc.) irá construir o campo de expansão do
domínio europeu. Tal encontro é descrito da seguinte maneira por Certeau:

[...] Américo Vespúcio, o Descobridor, vem do mar. De pé,


vestido, encouraçado, cruzado, trazendo as armas europeias do
sentido e tendo por detrás dele os navios que trarão para o
Ocidente os tesouros de um paraíso. Diante dele a América
Índia [grifos do autor], mulher estendida, nua, presença não
nomeada da diferença, corpo que desperta num espaço de
vegetações e animais exóticos. Cena inaugural. Após um
momento de espanto neste limiar marcado por uma colunata de
árvores, o conquistador irá escrever o corpo do outro e nele traçar
a sua própria história. Fará dele o corpo historiado- o brasão- de
seus trabalhos e de seus fantasmas. Isto será a América Latina
[grifos do autor].1

Essa cena inaugural nos apresenta o que será a relação entre um corpo
do outro em um corpo historiado, ou seja, um corpo que, mesmo carregado dos
signos próprios, como é o caso da América Índia, será circunscrito à escrita do
estrangeiro, do forasteiro2 que traz as “armas europeias de sentido” para interpretar
o que encontra, é uma escrita conquistadora e:

1
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 9.
2
A escrita da história nesse sentido é uma escrita do estrangeiro, que vê os acontecimentos e os
analisa de fora, buscando manter um olhar distanciado dos eventos. Aqui, talvez seja pertinente
lembrar que os historiadores da Grécia clássica eram pessoas que viviam fora de sua pólis de origem,
voluntariamente ou por terem sido exilados: Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Ctésias, Teopompo,
Filisto, Timeu, Políbio, Dioniso de Halicarnasso, Posidônio. Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion.
Panorama da historiografia Ocidental (até aproximadamente 1930). In: Um historiador fala de
teoria e metodologia: ensaios. Bauru: EdUSC, 2005, p. 121.

10
[...] Utilizará o Novo Mundo como uma página em branco
(selvagem) para nela escrever o querer ocidental. Transforma o
espaço do outro num campo de expansão para um sistema de
produção. A partir de um corte entre um sujeito e um objeto de
operação, entre um querer escrever e um corpo escrito (ou a
escrever) fabrica a história ocidental. A escrita da história é o
estudo da escrita como prática histórica.3

O que temos assim, é a relação da escrita com o corpo do outro como


objeto e um querer ocidental de escrever por um sujeito europeu. Desse encontro
constrói-se um corpo escrito a partir de uma operação, de um procedimento e de
um sistema de signos próprios, onde a escrita da história ainda estaria relacionada
ao uso moderno da escrita, uma escrita conquistadora. Assim Certeau prossegue:

[...] Se, há quatro séculos, todo empreendimento científico tem


como característica a produção de artefatos linguísticos
autônomos (línguas e discursos próprios) e sua capacidade de
transformar as coisas e os corpos do quais se distinguiram (uma
reforma ou revolução do mundo envolvente segundo a lei do
texto), a escrita da história remete a uma história moderna da
escrita [...]4

Os desdobramentos desse tipo de reflexão, trazidos por Michel de


Certeau, nos lança a indagar sobre a historicidade da própria escrita da história e
questionar o conteúdo ocidentalizado, europeu, masculino e que vem impregnado
nas narrativas históricas, conferindo a posição de sujeito do discurso para alguns,
no caso os europeus, e a condição de objeto, no caso da América Índia.
Esse mesmo funcionamento do discurso que opera o corte entre um
sujeito produtor de saber e um objeto alvo de intervenção desse mesmo saber, e, no
caso específico de nossa tese, temos de um lado um discurso que apresenta como
autorizado a falar das populações, e as populações propriamente sendo incorporadas
enquanto objeto.
O presente trabalho parte de uma questão complexa que envolve
práticas políticas e condutas do corpo: “[...] a emergência da problemática da

3
CERTEAU, Michel de. Op. cit. p. 9-10.
4
Ibid., p. 10.

11
população” nos discursos e nas práticas governamentais exercidas na
capitania/província de Mato Grosso.
Com isso, talvez não esteja dizendo nada de novo, uma vez que a
temática da população é um objeto de estudo de certo modo até bem trabalhado pela
historiografia, buscando-se elementos de composição étnica e racial de uma
determinada sociedade, região e até mesmo da nação.5
Tais estudos privilegiam um enfoque que os próprios estudiosos
denominam de demografia histórica6 (certamente influenciados por Pierre Chaunu)
e nessa perspectiva a centralidade das questões assumem uma dimensão
quantitativa expressa em quadros e gráficos indicativos dos percentuais com
predominância de um grupo étnico em determinado espaço: quantidade de escravos,
indígenas, portugueses etc., bem como o resultado desses encontros dos diversos
corpos exemplificados na figura do caboclo ou mestiço, do mulato, do cafuzo,
dentre outros.
A população nesse sentido é pensada em termos de composição étnico-
racial de uma sociedade descrevendo o seu perfil: se existiu muita miscigenação, se
ocorreu muitos extermínios de grupos locais, se foram efetivados muitos
relacionamentos ilícitos, enfim, constituem um “corpus coletivo” dos habitantes de
uma determinada área.
Certamente, tais tipos de análises redundaram em interessantes
trabalhos, mas creio, que essas pesquisas, ao darem uma centralidade ao aspecto
“quantitativo”, “étnico e racial” (que, aliás, é de suma importância para
compreender o processo de subjetivação de nossa nacionalidade), não pensaram,
digamos, no aspecto “substantivo e adjetivo” da temática da população.
Com isso, quero dizer duas coisas: a primeira, o aspecto substantivo,
está relacionado com o problema mesmo do conceito de população, o que ele traz
em si mesmo, que tipos de problemas vão ser colocados em relação à prática
governamental, em que momento o sujeito coletivo população ganhou consistência

5
Cf. SILVA, Jovam Vilela. Mistura de cores: Política de povoamento e população na Capitania de
Mato Grosso (século XVIII). Cuiabá: EdUFMT, 1995; SOUSA, Fernando Alberto Pereira de. A
população portuguesa nos inícios do século XIX. Tese (Doutorado em História Moderna e
Contemporânea) – Universidade do Porto, Porto, 1979.
6
Cf. MARCÍLIO, Maria Luiza. A Cidade de São Paulo: povoamento e população (1750-1850). São
Paulo: Pioneira, 1974.

12
e força para ser dito, do “aspecto adjetivo” o conceito de população vai adquirir
certas qualidades, certas formas de ser e de se apresentar em face do Estado (creio
que relação Estado ou Coroa/Súditos/Vassalos não estejam na mesma forma de
enunciação de Estado/população).
É nesse sentido que a problemática da população se insere no nosso
trabalho, como uma biopolítica, ou seja, busco defender a tese do nascimento de
uma forma política que se inscreve na problemática da população, levando em conta
precisamente aqueles dois aspectos de que falava a pouco: “substantivo” e
“qualitativo”.
Tal perspectiva nos coloca diante da tensão que se estabelece entre
governantes e governados, o que visceralmente atrita formas diversas de exercício
de poder, entre uma premissa de regime de soberania para outra premissa de regime
biopolítico, ambas timbradas por formas de violência e de controle próprios em
relação aos corpos.
Parafraseando Plutarco, ao analisar essas tensões (governantes e
governados), o que ele vê é a confluência de “vidas paralelas”7 unidas pela dor,
pelo sofrimento, pela precariedade da sua condição material de existência, mas
também marcadas pelos jogos de omissões e proteção, pelas formas de resistência
e fuga diante de toda uma maquinaria de exercício do poder, seja pautada na
soberania ou na biopolítica, que tentavam controlá-los a sua maneira. Nesse sentido,
a historiadora Arlette Farge apresenta um posicionamento interessante a esse
respeito:

Se considerarmos certas formas de sofrimento e seus modos de


expressão como acontecimentos históricos, podemos refletir
sobre sua consequência: uma epidemia, por exemplo, pode tanto
acarretar arranjos de ordem social e política quanto deflagrar

7
Referência de Foucault ao Plutarco. Na segunda metade do século XIX, no momento de
consolidação do IHGB, o historiador João Manuel Pereira da Silva lançou uma série de livros que
aludem à proposta de Plutarco, intitulados O Plutarco brasileiro, e em seguida, retomando essa
dimensão de maneira mais aprofundada, publica Os varões ilustres do Brazil durante os tempos
coloniais, ou seja, materializa uma narrativa que concedia fama e glória aos personagens masculinos.
Invertendo essa proposta e influenciado por Michel Foucault, me aproprio do termo, para dar conta
não somente da coexistência de figuras famosas, mas sim da coexistência também de vidas
cotidianas que se chocaram contra uma estratégia de poder. Cf. ENDERS, Armelle. O Plutarco
Brasileiro: A Produção dos Vultos Nacionais no Segundo Reinado. In: Revista Estudos Históricos.
Rio de Janeiro, n. 25, 2000; FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Ditos e Escritos,
vol. IV: Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

13
movimentos religiosos de grande amplitude. A dor política-
desprezo pelo rei, indignação diante da injustiça, revolta diante
das recusas de sacramentos- tem suas palavras e formas de exibir
que conduzem a novos acontecimentos. Os sistemas punitivos do
Antigo Regime que infligem suplícios são um meio de governar;
um dia, no entanto, esse sofrimento exibido provocará a dor
naquele a olha. [...] Pode-se também trabalhar, sobre essa
discreta, e muitas vezes muda, dor das migrações, dos êxodos,
dos deslocamentos de pessoas procurando trabalho em todas as
regiões, longe de toda a sua vida tradicional, e compreender que
através desse sofrimento se tecem novos comportamentos e
outras relações de força8.

Essa dimensão da dor e do sofrimento da existência humana, em certos


momentos se apresentou ao longo da presente pesquisa, num processo coloniza(dor)
dos portugueses em relação a si mesmos, na confrontação com os nativos, ao
sentimento de insegurança face às fronteiras e aos nomadismos que teimavam em
não se conter em se fixar e em se sedentarizar, colocando desafios aos primeiros
governantes que se estabeleceram em Cuiabá e Mato Grosso durante o século
XVIII.
Diante disso, há que se ressaltar também os níveis de dor e de
sofrimento que suportaram os nativos e aqueles que se aventuram às atividades da
mineração ou atividades correlatas, num território de fronteira onde a carestia de
produtos de subsitência constiruíam um problema corrente naquele momento.
Nessa travessia de um modo de atuação governamental para outro, o
que se assiste é a emergência de novos sujeitos, novos objetos, novas estratégias de
sujeição e, por vezes, formas singulares de existência e de solidariedade.
A problemática da população sob o viés analítico da biopolítica se
assenta na formação dessas novas formas de sujeição, que, embora convivendo com
muitas formas tradicionais de pensamento, vai se interpondo à problemática da
segurança em detrimento da problemática da defesa, sobre a qual todo dispositivo
de soberania se pautava.
Nascimento de uma biopolítica, nesse sentido, coloca em
funcionamento uma forma de gestão política que investe prioritariamente na
positividade da vida enquanto elemento constitutivo da força do Estado, colocando

8
FARGE, Arlette. Lugares para a história. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte:
Autêntica, 2015, p. 20.

14
a problemática política da vida inserida num jogo de cálculo preciso e que leva em
conta as noções de risco e perigo.
A população não é enunciada da mesma maneira num regime de
soberania e em um regime biopolítico. Diante disso, a nossa perspectiva
historiográfica é de questionar as condições que tornaram possível uma forma de
exercício de poder pautada na grade conceitual de um coletivo singular, que é
justamente a população, com temáticas recorrentes sobre o investimento político no
governo dos vivos.
Logo, temos diante de nós duas questões fundamentais: em que
momento a temática da vida de uma população foi posta enquanto problema das
práticas políticas dos governantes de Mato Grosso? Em que consiste a
Governamentalidade9 na qual o alvo é a população?
Trata-se de uma analítica do poder pensada a partir de uma
arquegenealogia influenciada pelo pensamento de Michel Foucault, o qual pensa a
história em sua descontinuidade, em sua ruptura e dispersão, o que leva a perceber
os deslocamentos, as adesões e imobilidades também em relação à emergência de
determinados saberes que, por sua vez, instituem novas subjetividades.
O que se vislumbra, nesse sentido é uma nova concepção de história
política e uma história do corpo. A corporeidade do exercício de poder tem uma
historicidade matizada por discursos, práticas, usos correntes de determinadas
premissas que fundamentam códigos morais e éticos que normatizam o viver em
sociedade e criam formas diferentes de “enunciados”. Nesse sentido, seguimos a
concepção enunciadora elaborada por Foucault, para ele:

O enunciado não é uma unidade do mesmo gênero da frase,


proposição ou ato de linguagem; não se apoia nos mesmos
critérios; mas não é tampouco uma unidade como um objeto
material poderia ser, tendo seus limites e sua independência. Em
seu modo de ser singular (nem inteiramente linguístico, nem
exclusivamente matéria), ele é indispensável para que se possa
dizer se há ou não frase, proposição, ato de linguagem; e para que
se possa dizer se a frase está correta (ou aceitável, ou
interpretável), se a proposição é legítima e bem constituída, se o

9
Sobre esse conceito cf. FOUCAULT, Michel. Aula de 1º de fevereiro de 1978. In: Segurança,
território, população: cursos do Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão.
São Paulo: Martins Fontes, 2008.

15
ato está de acordo com os requisitos e se foi inteiramente
realizado. Não é preciso procurar no enunciado uma unidade
longa ou breve, forte ou debilmente estruturada, mas tomada
como as outras em um nexo lógico, gramatica ou locutório. Mais
que um elemento entre outros, trata-se, antes, de uma função que
se exerce verticalmente, em relação às diversas unidades, e que
permite dizer, a propósito de uma série de signos, se elas estão aí
presentes ou não. O enunciado não é, pois, uma estrutura (isto é,
um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando
assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma
função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e
a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela
intuição, se eles fazem sentido ou não, segundo que regra se
sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato
se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não
há razão para espanto por não ter podido encontrar para o
enunciado critérios estruturais de unidade; é que ele não é em si
mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio
de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que
apareçam, com conteúdo concretos, no tempo e no espaço10.

O enunciado, na perspectiva foucaultiana, portanto, é uma função de


existência que está relacionado aos signos que produzem condições de visibilidade
e dizibilidade ás experiências humanas, constituindo uma formação discursiva que,
nessa perspectiva, é vista como:

[...] um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre


determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada
época e para uma determinada área social, econômica, geográfica
ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa11.

As implicações historiográficas dessa forma de conceber o enunciado


enquanto função enunciativa circunscrita a regras de existência e coexistência com
outros enunciados, mas que também estabelece a positividade de um discurso, nos
lança questionar a familiaridade com que as palavras e as coisas chegam até nós:

Ao aprendermos a discernir que, outrora, ciências foram


constituídas, experiências foram objeto de reflexão e
racionalidades formaram-se em função de um ‘a priori histórico’
diferente do nosso; ao constatarmos que ‘ a ordem a partir da qual
pensamos tem um modo diferente da ordem dos clássicos’, nós
mesmo somos modificados por essa descoberta. A relação com

10
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 97-98.
11
Ibid., p. 133.

16
outrem, alterada pela percepção desse desnivelamento cultural,
transforma nossa relação conosco mesmos. O chão de nossas
seguranças movimenta-se á medida que se desvela o fato de
deixar de ser possível pensar um pensamento de outrora12.

A afirmação do historiador Michel de Certeau sobre Foucault nos ajuda


a visualizar em seu projeto arqueológico a dimensão das experiências humanas e
como elas foram postas como objetos de reflexão, constituindo outras
configurações culturais que possibilitam a emergência de novos saberes e novos
domínios de objetos.
O desafio dessa pesquisa, portanto, pauta-se num estudo que assinala
uma nova perspectiva sobre a temática da população, articulando a rede de saberes,
poderes e de constituição de enunciados que dêm conta dessa problemática. Assim,
longe de acreditar que a problemática da população seja uma preocupação
longínqua no discurso e no exercício de poder dos governantes de Mato Grosso,
pensamos que ela tem nascimento mais recente nas práticas de nossos governantes.
O que torna mais complexo em nosso trabalho é demarcar
historicamente o nascimento dessa problemática da biopolítica que circunscreve um
jogo de enunciados que dão visibilidade às questões de saúde, educação e
segurança, tendo nitidamente como alvo a população, sua regulação suas condições
de vitalidade, ou seja, um exercício de poder que colocará o papel do Estado no
desenvolvimento das condições de vida de uma entidade coletiva do povo.
Tal análise busca pensar transversalmente o campo das práticas
políticas e de sua inscrição no corpo social, o que leva a cruzar domínios temporais
longos (do século XVIII ao XIX – respectivamente, colônia / império) para mostrar
as condições que permitiram o nascimento de um exercício biopolítico do corpo.
A Arqueologia do Saber proposta por Foucault nos ajuda analisar essas
camadas sedimentares de discurso (entre o início do século XVIII e o início do XIX)
que tornaram esse triedro de temas: saúde, educação e segurança numa prática
política, cujo alvo é a população possível, sobrepondo-a, sem, contudo, excluí-la
completamente de uma forma de exercício de poder que chamarei de Soberania,
também inspirada em Foucault.

12
CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: Entre a ciência e a ficção. Tradução de Guilherme
João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 140.

17
Qual a pertinência desse conceito numa perspectiva historiográfica? Em
que sentido pode trazer novas questões e novos temas relacionados à história? Em
que medida a análise dessa problemática nos ajuda a compreender os fenômenos
atuais? Enfim, por que trabalhar com Foucault sobre os períodos colonial e império?
A importância de um filósofo como Foucault para pensar questões
atinentes à historiografia se deve ao fato de que, ao lançar a sua visão ao passado,
ele busca compreender o que se passa precisamente em nosso tempo presente, ou
seja, em que medida a incursão nas experiências do passado nos ajuda a pensar a
atualidade.
Contemporaneamente, a problemática da população evidencia como
historicamente essa população foi posta enquanto objeto de discurso político, moral
e até científico na gestão de suas vidas, existências, de suas condutas, mas a própria
população não fala, não movimenta as categorias discursivas, conferindo a estas um
lugar de objeto que legitima formas de sujeições e violências de todas ordem.
Creio que outra contribuição desse filósofo se encontra no seu enfoque
quanto às lutas históricas, evidenciando as insurreições dos saberes sujeitados, o
que confere protagonismo a cada um dos grupos silenciados pelo discurso
legitimador e fundante do saber ocidental.
A lógica organizacional da presente tese, no tocante ao nascimento da
biopolítica na província de Mato Grosso, estabelece uma discussão documental
atinente aos séculos XVIII e XIX, buscando apresentar a visibilidade da população
nos discursos políticos.
Cada capítulo é pontuado por recortes temporais, com a finalidade de
demarcar explicitamente os deslocamentos, as descontinuidades e rupturas, bem
como o jogo de retomadas, de incorporações insuspeitas, de continuidades
aparentes, que aos poucos vão construindo o solo epistêmico do nascimento da
biopolitica, cujo objeto central é a população e suas condutas.
Com isso, gostaria de insistir que há poucos trabalhos historiográficos
que assumiram pensar a problemática da população e da soberania numa

18
perspectiva histórica, onde se apresentam as condições de positividade da
biopolítica.13
Certamente, trata-se de uma discussão bem receptiva, bem
documentada pela crítica enquanto conceitos filosóficos e políticos, mas não
conferindo a historicidade de sua instalação ou de seu nascimento em determinada
sociedade.
O desafio desse trabalho reside no fato de que há poucas referências
que tenham feito essa incursão do ponto de vista da historiografia, o que nos leva a
entrar num campo ainda incerto e indefinido pelos historiadores (para os demais
pesquisadores das ciências humanas e sociais esse tipo de diálogo é mais recorrente,
como na filosofia, sociologia, antropologia etc.).
Explorar essa desconcertante lacuna talvez seja um dos grandes
desafios da tese, pois, ao lançar a problemática da população como objeto de ação
política e que cria mecanismos de gestão e controle da vida, nos faz entrar num
caminho de experimentação conceitual que, necessariamente, precisa ser
readequado epistemologicamente, uma vez que o local de fala de Foucault não
centrava na problemática da história colonial de nosso país.
Nesse sentido, o funcionamento desse dispositivo de soberania numa
perspectiva foucaultiana traz algumas dimensões importantes para pensar o
processo de colonização, suas violências e estratégias de domínios na gestão das
sociedades coloniais.
O dispositivo de soberania que em todo o século XVIII vai permear as
práticas governamentais de Portugal em relação Brasil, pode sofrer um
deslocamento sutil entre “bom governo” [pautado em virtudes até religiosas],
presente com muita visibilidade até o reinado de D. João V, para a incorporação das
premissas da Razão de Estado [pautadas em regras práticas para manter e conservar
o Estado] presentes com muita força no governo ministerial do Marquês de Pombal,
reinado de D. José I.

13
Assunto pouco discutido na historiografia brasileira, no cenário intelectual brasileiro o tema é
frequentemente visitado por filósofos a título de exemplo, cf. DANNER, Fernando. Biopolítica e
Liberalismo: A crítica da racionalidade política em Michel Foucault. Tese (Doutorado em Filosofia)
- Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.

19
Entre Bom Governo e Razão de Estado se constituiu o dispositivo de
soberania, que, em outras palavras, colocou em funcionamento tanto o ideal de
manter e conservar o Estado, mas também o soberano enquanto agente que
ministrava a justiça, configurando uma sociedade de direitos.
Percebe-se, assim, a proposta de descontinuidade, de deslocamento e
ruptura que lentamente se assiste no setecentos em Portugal [como atesta a
historiografia luso-brasileira], assim como a descontinuidade, de um dispositivo de
soberania para um dispositivo biopolítico.
O primeiro capítulo busca exatamente demarcar um paradigma político
circunscrito ao que denominei, de “dispositivo de soberania”. Esse dispositivo, ao
meu ver, permeará todo o século XVIII na relação entre Portugal e Brasil,
demarcando uma rede de relações simbólicas pautadas em pares de compromissos
recíprocos: “coleta/despesa, anterioridade fundadora de um direito, relações
diferenciadoras não isotópicas e direito de produzir a morte”14.
Com relação ao conjunto dos elementos, faz funcionar um exercício de
poder pautado em direitos, Foucault qualificará como “indivíduos de direitos”. O
que leva em conta a pensar no jogo de representações e desdobramentos do poder
régio em várias instâncias da gestão administrativa, multiplicando-se as soberanias
e levando à construção de tensão e confronto entre essas diferentes partes e o rei, o
qual atuava com sua presença física e simbólica enquanto figura arbitral que
aplicava o direito. Nesse sentido, o Código Penal era rigoroso e comportava práticas
que envolviam suplícios e penas de morte, uma vez que, pelo Código Filipino, a
“punição dos maus é a conservação dos bons”15.
Semelhante dispositivo que atuava como forma de manter, de conservar
e defender um direito conquistado ou adquirido, uma forma de exercício de poder
em que a defesa e conservação de tais direitos oferecia visibilidade à problemática

14
FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 53-54.
15 ALMEIDA, Cândido Mendes de. Codigo Philippino, ou, Ordenações e leis do Reino de Portugal:
recopiladas por mandado d'El-Rey D. Philippe I. Livro I. Rio de Janeiro: Typ. do Instituto
Philomathico, 1870, p. LXXVI. (edição fac símile)

20
da justiça no seu aspecto geral, que iam desde os privilégios e mercês concedidas
pelo rei aos seus súditos/vassalos até a defesa do território.
Diante dessa situação, a premissa de defesa foi muito marcante, uma
vez que os litígios que se formavam ou poderiam se formar colocavam em tensão a
figura do rei e seu papel na manutenção de um equilíbrio que garantisse paz e
concórdia, arbitrando qualquer contenda que pudesse existir em seu reino. Esses
elementos que constituem o dispositivo de soberania se fundamentaram
principalmente a partir das pesquisas realizadas por Michel Foucault, o qual
pontuou os aspectos de exercício do poder soberano, dentre eles o curso ministrado
entre 1973 e 1974, O poder psiquiátrico mencionado anteriormente, Vigiar e Punir
e História da Sexualidade 1, publicados em 197616.
Giorgio Agamben17 lembrava que Foucault começou a utilizar o termo
dispositivo a partir da segunda metade da década de 1970, quando o filósofo se
dedicava à problemática da governamentalidade, da biopolítica, do biopoder, ou
seja, a expressão ganhou visibilidade no pensamento do filósofo no curso Em
Defesa da Sociedade (1975-1976)18, ao abordar os dispositivos de dominação, no
livro A História da Sexualidade v. 1: A vontade de saber (de 1976), quando falava
de dispositivo da sexualidade19, no curso Segurança, Território, População (1977-
1978) quando discorreu sobre os dispositivos de segurança20, e no curso

16
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento das prisões. Tradução de Raquel Ramalhete.
Petrópolis: Vozes, 1987, p.09-57; FOUCAULT, Michel. A História da sexualidade, vol. 1: a
vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon de
Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 125-149. Em relação ao seu projeto de uma história da
sexualidade, vale ressaltar que Foucault elaborou inicialmente um projeto da história da sexualidade
em seis volumes e que abandonará. Em vida o filósofo publicou os volumes 2 e 3 da história da
sexualidade sobre os usos do prazer e os cuidados de si onde a ideia de dispositivo foi abandonada
e Foucault adotou um outro vocabulário conceitual como por exemplo, o de estética da existência.
Para a presente pesquisa, a ideia de dispositivo é fundamental, pois articula a produção de
subjetividades históricas imanentes à produção de regimes discursivos distintos e na História da
sexualidade, vol. 1: a vontade de saber, o filósofo apresenta uma maior explicitação desse conceito.
17
AGAMBÉN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O amigo & O que é um dispositivo? Trad.
Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2014. (Grandes Temas)
18
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
19
Ibid, p.73.
20
FOUCAULT, Michel.: Segurança, território, população. Tradução de Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 8.

21
Nascimento da Biopolítica (1978-1979) ao tratar dos dispositivos de
governamentalidade21.
Tais usos em momentos distintos dos finais da década de 1970, nos
lança a seguinte questão: qual é a transversal que atravessa essa ideia de dispositivo
largamente utilizado a partir daquele momento?
Tal situação se apresenta como condição de um pensamento estratégico
atento às disposições dos enunciados que constituem problemas para uma
determinada sociedade e das relações de poder imanentes a tais saberes. Ao nosso
ver, a ideia de dispositivo remete a uma infinidade de disposições de elementos
discursivos e não discursivos, os quais criam as condições de enunciação. Nesse
sentido, o que Foucault entendia por dispositivo pautava-se em três postulados:

[...] O que se quer descobrir sob esse nome é, primeiramente, um


conjunto decididamente heterogêneo, que comporta discursos,
instituições, arranjos arquitetônicos, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas, em resumo: do
dito, tanto quanto do não dito, eis os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses
elementos.
Em segundo lugar, o que eu gostaria de descobrir no dispositivo
é exatamente a natureza do laço que pode existir entre esses
elementos heterogêneos. Assim tal discurso pode aparecer como
programa de uma instituição, ora pelo contrário como um
elemento que permite justificar e mascarar uma prática, que
permanece, ela, muda, ou funcionar como uma interpretação
secundária desta prática, dar-lhe acesso a um novo plano de
racionalidade. Em suma, entre esses elementos, discursivos ou
não, há como um jogo, mudanças de posição, modificações de
posições, que podem eles também, serem muito diferentes.
Em terceiro lugar, por dispositivo entendo uma espécie-digamos-
de formação, que, em um dado momento histórico, teve por
função maior responder a uma urgência. O dispositivo tem, pois,
uma função estratégica dominante. Isso pôde ser, por exemplo, a
reabsorção de uma massa de população flutuante que numa
sociedade de economia do tipo essencialmente mercantilista
achava incômoda: houve aí um imperativo estratégico,
funcionando como matriz de um dispositivo, que se tornou pouco

21
FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 95.

22
a pouco o dispositivo de controle-sujeição da loucura, da doença
mental, da neurose22.

Assim, a ideia de dispositivo nos remete à importância, portanto, de um


conjunto heterogêneo de elementos que se relacionam de diversas maneiras, numa
posição estratégica de responder a uma urgência colocada por determinada
sociedade, pois, como diria Jean Jacques Courtine:

[...] É, pois, sobre a existência e análise de dispositivos que


deságua esta interrogação sobre os usos do discurso junto a
Foucault: sobre a análise de redes de elementos heterogêneos,
apoiados sobre determinados saberes e produzindo outros,
exercendo a ‘função estratégica’ de um poder, tais como os
dispositivos de controle e de sujeição da loucura, ou ainda os
‘biopoderes’ que constituem as tecnologias da população23.

A ideia de dispositivo, neste sentido, apresenta a historicidade da


emergência dos poderes que constituem o nascimento das tecnologias das
regulações das populações, assinalando algumas novidades na gestão da conduta
das pessoas entre os séculos XVIII e início do XIX.
Demarcar as condições do nascimento da biopolítica em Mato Grosso
implica, no caso de nossa pesquisa, contrapor as materialidades discursivas que
recobrem o pensamento político dos séculos XVIII (quando essa porção territorial
começa a figurar no discurso colonizador) e XIX (quando se estabelece a
emancipação política em relação ao domínio português com a fundação do Império
brasileiro) descrevendo o nível de inteligibilidade histórica recoberto a cada
período.
Diante disso, busca-se apresentar as rupturas e permanências, desvios e
retomadas que constituem, enfim, formas distintas de controle e sujeição, de
domínios diferentes de objetos e de sujeitos, criando condições de apresentar a

22
FOUCAULT, Michel. O jogo de Michel Foucault. In: Ditos & Escritos, vol. IX: Genealogia da
Ética, Subjetividade e Sexualidade. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2014, p. 45.
23
COURTINE, Jean-Jacques. Decifrar o corpo. Trad. Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2013, p.
28-29.

23
diferença onde havia repetição e situando a passagem da problemática do
povoamento para a problemática da população24.
O conceito de dispositivo é estratégico por lidar com as diferentes
disposições dos discursos que dão visibilidade, ao mesmo tempo, a uma
inteligibilidade de exercício de poder, pensado enquanto soberania, bem como o
seu gradativo desvanecimento na constituição de um outro exercício de poder, o
que indica o nascimento de uma forma de poder cravado em rituais de soberania,
convivendo com os germes das formas de poder biopolítico.
Ainda sobre o primeiro capítulo, nos deteremos na documentação
referente ao período colonial, tentando evidenciar como os dispositivos de
soberania apresentam tonalidades do saber régio em ministrar a justiça, do corpo
do rei que se dissemina no corpo social e de defesa do território, criando como
primeira necessidade política o povoamento e posse das áreas de limites mal
definidos e a criação da capitania de Mato Grosso consonante a esse projeto.
A criação da capitania de Mato Grosso materializava, entre outras
coisas, a necessidade de governar os grupos nômades que passaram a constituir o
maior número de habitantes da localidade, lembrando que a atividade mineradora
promovia constante deslocamento de pessoas em conformidade com as notícias que
chegavam sobre a descoberta de novos veios auríferos, deslocando, com isso, todo
um grupo de mineiros, comerciantes e aventureiros em busca dessas riquezas, e a
essas mobilizações somava-se o nomadismo indígena e sua fluidez no
deslocamento pelas matas e pelos rios.
Todo esse dispositivo de soberania incorporava também uma série de
medidas econômicas que nomeadamente conhecemos como Mercantilismo, o qual
visava, principalmente, a acumulação de metais preciosos (a centralidade da

24
Sobre esse processo de transição da colônia para a formação do Império brasileiro, entre finais
do século XVIII e início do XIX, apresentando ao mesmo tempo, o paradoxo que assinalava a lenta
penetração das ideias liberais (que entre outras coisas colocava o problema de limitação interna ao
poder monárquico) com a implantação de uma monarquia, cujo monarca regia seu poderio sobre um
imenso império de grandes dimensões territoriais e onde a autonomia concedida às províncias
atendia as pressões de uma elite brasileira conservadora e que assentou as instituições propostas pela
Ilustração europeia, de acordo com os interesses pessoais. Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. A
utopia do poderoso Império: Portugal e Brasil: bastidores da política (1798-1822). Rio de Janeiro:
Sette Letras. 1994.

24
vigilância aos contrabandos de ouro e diamantes) por meio de medidas
protecionistas, pela concessão de monopólios régios etc.
No segundo capítulo, analisando uma documentação referente a fins do
século XVIII, trabalharei com a ideia de limiar, ou seja, a assinalação de um lento
deslocamento das premissas de “bom governo” para a constituição de uma
governamentalidade circunscrita à Razão de Estado.
Diante disso emergem novos saberes, exemplificados na elaboração de
mapas e de instruções régias aos capitães-generais, os quais começam a enunciar
novos pontos de atuação política em relação ao governo dos homens em suas
relações com as coisas e com a constituição de um Estado de polícia, após o
terremoto de Lisboa, mesmo presa pelas reflexões de Razão de Estado e Governo.
A ideia de limiar também é estratégica, uma vez que, ao demarcamos
os dispositivos de soberania presentes durante o século XVIII, agora tratava-se de
apresentar alguns elementos novos na articulação do exercício de poder,
principalmente entre as reformas ditas pombalinas e marianas.
Ainda em relação ao segundo capítulo, procuro mostrar que toda a
segunda metade do século XVIII se inscreveu numa atmosfera intelectual de zona
cinzenta e de contornos mal definidos, pois, ao mesmo tempo em que se projetava
uma racionalização do Estado e de toda a polêmica que ela suscitava entre Pombal
contra os jesuítas e a nobreza, era mais por conta das premissas de Razão de Estado
do que por princípios iluministas propriamente ditos.
Nesse regime de discursividade, a pauta política era criar formas de
fortalecimento do Estado, do poder régio, de expansão e conservação de suas
possessões territoriais por meio de técnicas de certa maneira arbitrárias, que
previam, inclusive, o golpe.25
Nesse mesmo momento, procuro situar as dimensões desse tipo de
reflexão e de exercício político nos governantes da capitania de Mato Grosso, tendo
por base as instruções régias e as instruções que cada governante deixava para o seu
sucessor, além de explorar um conjunto de mapas descritivos das condições de seus
habitantes e da capacidade de defesa.

25
SENELLART, Michel. As Artes de Governar: do regimen medieval ao conceito de governo.
Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006.

25
Tais fontes documentais caracterizavam-se por oferecer diretrizes a
serem seguidas, mas que permitiram, sempre que necessário, uma reformulação
diante das situações contingentes não previstas. Dessa maneira, o capitão-general
individualmente deveria tomar conhecimento de cada elemento da capitania e
estabelecer um plano de ação política diante da situação que apresentada, sem,
contudo, se desviar da proposta de fortalecimento e respectivamente a sua defesa.
A confecção de mapas descritivos cada vez mais elaborados, na
segunda metade do século XVIII, vão dar mostras do controle da capitania por meio
do saber geral sobre os seus habitantes, das receitas e despesas, dos armamentos
etc., ainda presa uma lógica de conservação.
As cartas geográficas vão ganhando cada vez mais importância na
organização das primeiras estatísticas levantadas no território mato-grossense, o
que confere centralidade política à problemática da população, tema a ser explorado
com mais detalhe no capítulo seguinte.
No terceiro capítulo trato das condições de nascimento da biopolítica
na província de Mato Grosso, ou seja, o um conjunto de enunciados, práticas
discursivas e não discursivas que criaram o campo de “visibilidade e dizibilidade”26
quanto à problemática da população e sua regulação. Trata-se de apresentar a
emergência de premissas que vão articular a temática da gestão governamental com
as condições de vitalidade de uma população, junção, portanto, do homem-espécie
com o homem político:

[...] essa tecnologia de poder, essa biopolítica, vai implantar


mecanismos que tem certo número de funções muito diferentes
das funções que eram as dos mecanismos disciplinares. Nos
mecanismos implantados pela biopolítica, vai se tratar sobretudo,
é claro, de previsões, de estimativas estatísticas, de medições
globais; vai se tratar, igualmente, não de modificar tal fenômeno
em especial, não tanto tal indivíduo, na medida em que é
indivíduo, mas, essencialmente, de intervir no nível daquilo que
são as determinações desses fenômenos gerais, desses
fenômenos no que eles têm de global. Vai ser preciso modificar,
baixar a morbidade; vai ser preciso encompridar a vida; vai ser
preciso estimular a natalidade. E trata-se sobretudo de
estabelecer mecanismos reguladores que, nessa população global
com seu campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter

26
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Cláudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense,
2005.

26
uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar
compensações; em suma de instalar mecanismos de previdência
em tomo desse aleatório que é inerente a uma população de seres
vivos, de otimizar, se vocês preferirem, um estado de vida:
mecanismos, como vocês vêem, como os mecanismos
disciplinares, destinados em suma a maximizar forças e a extraí-
las, mas que passam por caminhos inteiramente diferentes. Pois
aí não se trata, diferentemente das disciplinas, de um treinamento
individual realizado por um trabalho no próprio corpo. Não se
trata absolutamente de ficar ligado a um corpo individual, como
faz a disciplina. Não se trata, por conseguinte, em absoluto, de
considerar o indivíduo no nível do detalhe, mas, pelo contrário,
mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se
obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade; em
resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do
homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas
uma regulamentação27.

Diante do que foi dito, o presente capítulo, buscará demarcar


inicialmente as diferentes nuances do conceito de biopolítica no pensamento de
Michel Foucault e delimitar a transversalidade desse conceito de modo mais
abrangente e operacionalizando-o enquanto parâmetro de inteligibilidade
historiográfica referente à problemática da população e de sua regulação.
Assim, demarcaremos a historicidade da “biopolítica das populações”
em consonância com as transformações políticas, culturais e econômicas que
culminaram na emancipação política do Brasil e que criaram as primeiras
convulsões internas as quais se opuseram ao poder monárquico português, já em
princípios do século XIX.
Nesse cenário de desestabilização política, marcado por guerras civis,
tanto no Brasil como em Portugal assiste-se gradativamente à penetração das ideias
marcadas pela doutrina liberal/utilitarista, que começavam a trazer para o campo
das discussões políticas e intelectuais a problemática liberal de governo, expressa
pelo projeto de uma monarquia constitucional, ao lado da delimitação e separação
dos poderes, embora conferindo maior centralidade ao executivo.
Pensando com Foucault, articularemos essa dimensão do liberalismo
como prática de governo e enquanto saber específico que emerge e enuncia, como
pretendemos apresentar, o nascimento de um regime biopolítico em Mato Grosso,

27
FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976. In: Em defesa da sociedade. Tradução de
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 293-294.

27
que, entre outras coisas, materializava o desgaste das premissas de bom governo e
de Razão de Estado, pois com as premissas liberais se apresentariam como
limitação de poder do Estado:

1. Aceitação do princípio de que deve haver em algum lugar uma


limitação do governo que não seja simplesmente um direito
externo.
2.O liberalismo também é uma prática: em que encontrar
exatamente o princípio de limitação do governo e como calcu1ar
os efeitos dessa limitação?
3. O liberalismo e, num sentido mais estrito, a solução que
consiste em limitar ao máximo as formas e domínios de ação do
governo.
4. Enfim, o liberalismo é a organização dos métodos de transação
próprios para definir a 1imitação das práticas de governo28.

O liberalismo colocava em tensão as práticas governamentais em


confrontação com antigas premissas da Razão de Estado, uma vez que,
diferentemente desta, buscavam-se as premissas de sua autolimitação, sob a
suspeita de que na “soberania se governa demais”, deixando-se agir em
conformidade com as leis naturais, lema do “laissez faire, laissez aller, laissez
passer”, a partir da qual o pensamento liberal se transvestia de racionalidade, ou
seja,

[...] O que deveria, portanto, ser estudado agora é a maneira como


os problemas específicos da vida e da população foram colocados
no interior de uma tecnologia de governo que, sem nunca ter sido
liberal, não cessou de estar obcecada, desde o final do século
XVIII, pela questão do liberalismo29.

A questão levantada pelo liberalismo no tocante à gestão dessa


liberdade em consonância com a emergência do sujeito de interesses, em
contraposição com o sujeito de direito expresso na soberania, produziu formas de
assujeitamentos da população, ao introduzir uma prática governamental que
incitava formalmente as liberdades, mas assumia para si o controle da mesma de
cima para baixo.

28
FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 28.
29
FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 96.

28
Trata-se, nesse sentido do limiar de uma Governamentalidade liberal
como premissa fundamental da biopolítica, cujo alvo é a população, dando
visibilidade a uma forma de exercício de poder que aos poucos assume para si o
papel de controlar a conduta das pessoas e intervir na sua regulação. Diante desse
papel, começava a circular, já nas primeiras décadas do século XIX, a preocupação
em desenvolver uma ciência estatística que atendesse inicialmente ao projeto de
conhecer o próprio país, pois, com o processo de independência, “[...] não havia uma
unidade brasileira; a tradição colonial portuguesa não constituíra um território brasileiro
centralizado. Grandes regiões relacionavam-se diretamente com Lisboa”30.
Diante disso, apresentarei os mecanismos de controle para gerir a vida
de uma população em sua minúcia, atestada pela preocupação com a estatística de
Mato Grosso, levada a cabo por D’Allincourt e sua comissão, descrevendo, por
meio desse trabalho, a província como um todo: seu território e habitantes com seus
gestos, atitudes e comportamentos em relação às condutas.
O saber estatístico esboçado por D’Allincourt criou as bases
fundamentais que permitirão que a problemática da regulação da população ganhe
consistência ainda no período regencial, em meio às guerras civis que fermentavam
pelo país.
A importância do saber estatístico atravessou todo o período regencial,
que, mesmo diante de vários percalços que apontavam para a realização desses
trabalhos estatísticos e das deficiências de seus dados apresentados, ainda assim ele
era tido pelos presidentes de província enquanto ferramenta indispensável na
condução dos negócios públicos e na intervenção sobre a conduta da população, por
isso era uma temática recorrente nos relatórios apresentados por pelos
administradores provinciais.
Por fim, no quarto e último capítulo busco pensar, a partir dessa
biopolítica das populações, a problemática do “medo do Estado” em face a essa
população que se pretendia regular, e do “medo dessa mesma população” em face
das diretrizes governamentais traçadas pelos presidentes de província. Diante dessa
tensão entre governantes e governados se insinua o triedro: instrução, segurança e

30
SENRA, Nelson de Castro. Uma breve História das estatísticas brasileiras (1822-2002). Rio de
Janeiro: IBGE, Centro de Documentação e Disseminação de Informações, 2009.

29
saúde enquanto estratégia da biopolítica, condição que certamente colocava tensões
e receios aos administradores privinciais e aos seus habitantes, tornada ainda mais
latente com o evento que se convencionou a chamar, pela historiografia mato-
grossense, de “Rusga”, e que, ao nosso ver, assume nessa historiografia uma
“tonalidade branda” de desavença política, em contraposição aos movimentos
regenciais que ocorreram basicamente no mesmo período (Cabanagem, Sabinada,
Balaiada, Farroupilha, Revolta dos Malês31), não levando em consideração o clima
de apreensão e preocupação expresso nos discursos dos presidentes de província,
os quais apresentavam em seus relatórios adjetivações muito fortes em relação a
esse evento, como “sediosos, facinorosos, anarquistas” etc.
Além disso, trata-se de dar visibilidade aos modos de vida assumidos
pelos habitantes da província de Mato Grosso que, em muitas ocasiões, teimavam
em não se adequar às premissas governamentais estabelecidas pelos presidentes de
província, situação que materializava, talvez, certa desconfiança nas ações
administrativas destes em relação às suas vidas, mesmo diante da criação do novo
código Penal do Império, de 1831, que se apresentava como moderno e buscava até
certo ponto suprimir algumas formas de castigo previstas pelas Ordenações
Filipinas.
Se por um lado o novo código penal do império representava em certo
sentido uma novidade em relação às punições contra os ilegalismos32, comportava
outras formas de sujeição, que a população não tardaria a perceber.
“Vidas paralelas” que criavam, na imanência de suas vidas e na
contingência de seus sofrimentos, estratégias de produção do medo enquanto
“efeito de poder”33, cujos desdobramentos se fizeram sentir no acontecimento de
maio de 1834 (Rusga).
Enfim, conclui-se o capítulo discutindo a relação entre guerra civil e a
tensão que ela produziu na população, enquanto elemento catalisador de medo e

31
Cf. BASILE, Marcelo. O laboratório da Nação: a era regencial (1830-1841). In: O Brasil Imperial
vol. II (1831-1889). Keila Grinberg; Ricardo Salles (Org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009.
32
Cf. MACHADO FILHO, Oswaldo. Ilegalismos e jogos de poder: um crime célebre em Cuiabá
(1872) suas verdades jurídicas e outras histórias policiais. Cuiabá: EdUFMT, 2006.
33
MACHADO FILHO, Oswaldo. Rusga: o medo como efeito de poder. In: Rusga: uma rebelião no
sertão: Mato Grosso no Período Regencial (1831-1840). Ernesto Cerveira de Sena; Maria Adenir
Peraro (Org.). Cuiabá: EdUFMT, 2014.

30
coragem, pois é no confronto das vidas que o risco de morte se assenta, quando a
soberania do rei em produzir paulatinamente a morte passa a ser assumida por
outros personagens.
Dito isso, trata-se de situar os primeiros contatos portugueses no
território de Cuiabá e Mato Grosso e suas formas de atuação governamental nessas
áreas, ocasião em que tem início um projeto de sedentarização e um processo
coloniza(dor) [as dores que impunham aos povos nativos e as dores e os sofrimentos
que estes passavam na tentativa de domínio), de que por muitas vezes foram alvo
de restrições e acomodamentos com as condições locais e com as premissas de
soberania e bom governo.
No decorrer do século XIX, assiste-se lentamente à penetração das
premissas liberais de governo e a constituição do gabarito de inteligibilidade da
biopolítica na gestão da população tomada enquanto sujeito coletivo e objeto de
investimento governamental, criando-se as condições de vitalidade do Estado
(período conturbado entre as várias guerras civis: Balaida / Sabinada / Farroupilha
/ Cabanagem / Guerra dos Malês / Rusga), o que criava um clima de instabilidade
política com insatisfações populares que vão ser estancadas somente com o golpe
da maioridade, em 1840.
Novos problemas emergiram em relação aos governados, em relação à
punição de contracondutas/ilegalismos (sedições por exemplo), aos investimentos
no corpo produtivo, às atenuações das penas (paradoxo do convívio do sistema
escravista de produção) embasados nas premissas do pensamento liberal.34
Transvestidas de um discurso liberal e civilizatório, as primeiras
experiências governamentais desenvolvidas na capitania de Mato Grosso vão
assumir o discurso que arroga gerir a liberdade para melhor interferir nos corpos da
população, em suas vidas e condutas.
No projeto de afirmação da identidade nacional e do crescente
investimento na construção de cidadania é patente que alguns grupos, algumas

34
Sobre a paradoxal e desconcertante fundamentação epistêmica e prática de violências físicas e
simbólicas com conotações raciais cometidas por representantes do liberalismo anglo-americano, ou
seja, entre duas nações consideradas os maiores representantes do liberalismo. Cf. LOSURDO,
Domenico. Contra-história do Liberalismo. Tradução de Giovanni Semeraro. Aparecida-SP: Ideias
e Letras, 2006.

31
pessoas, algumas categoriais sociais sejam deliberadamente esquecidas de tais
ações políticas.
Trata-se uma experiência temporal que denota uma mutação epistêmica
sob o governo de dois impérios: o primeiro, o Reino de Portugal em relação à sua
colônia e, o segundo, a formação do Estado Nação brasileiro e os problemas
específicos que essa realidade comportava, entre eles aqueles suscitados pelas
guerras civis que se assistiram entre o reinado de D. Pedro I e D. Pedro II.
Diante disso, tornou-se essencial situar a instabilidade política do
Império no primeiro reinado e nas regências, e como Mato Grosso se posicionou
em relação a esse clima de “convulsões políticas” que poderiam colocar em xeque
a recém-emancipada nação brasileira.
Assumindo a proposta foucaultiana de uma história das
problematizações, buscamos pensar a problemática da população tendo por base a
seguinte premissa: a partir de que momento a população aparece como problema
central para os governantes mato-grossenses? Nesse sentido, busca-se, a partir de
um procedimento arquegenealógico35, datar o momento em que a população se
constitui enquanto problema político em relação às formas de governar ao que
comumente chamamos de estado de Mato Grosso, e que exercícios de poder são
imanentes desse processo.
Nas considerações finais traço o panorama geral da pesquisa e, na
medida do possível, trago alguns ecos sobre as formas de dominação biopolítica
atuais, onde as reformas trabalhistas, da previdência e os golpes que convivem no
cenário de segredo de Estado, que se escancara cotidianamente com delações. Tal
premissa se sustenta no efeito de superfície que a Arqueologia do Saber nos lança
a fazer o diagnóstico da atualidade em relação àquilo que nos constituiu
historicamente para aquilo que estamos deixando de ser, suscitando uma reflexão e
ação a partir de nós mesmos.
A documentação pesquisada em relação ao período colonial se
fundamentou principalmente em cartas, ofícios, regulamentos, instruções régias,
as Odernações Filipinas, os Anais do Senado de Cuiabá e de Vila Bela, bem como
os mapas criados nesse período, enquanto que o corpo documental consultado em

35
Cf. FOUCAULT, Michel. Op. cit.

32
relação à formação do Estado Nacional brasileiro foi constituído principalmente da
Constituição do Império de 1824, de leis e decretos imperiais e provinciais,
discursos e relatórios dos presidentes de província etc., com objetivo de perceber
a emergência da problemática da população em Mato Grosso.
Diante disso, o filósofo Michel Foucalt representou para mim uma
possiblidade teórica, medológica e política interessante para a análise da
problemática da população, visto assinalar uma escolha pessoal de pesquisa
construída afetivamente no interior da minha formação acadêmica.
Comecei a estudar o filósofo Michel Foucault na graduação de história,
na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), ainda no primeiro
semestre, sob a regência do Prof. Ms. Odemar Leotti36. Lembro-me do poderoso
afeto que as suas aulas me deixavam, pois pela primeira vez vi uma concepção de
história que pensava sob o prisma da descontinuidade, da ruptura e da dispersão,
mas o que mais chamou a atenção nesse período foi o conceito de desconstrução.
Atinava-se para a preocupação historiográfica de que os
acontecimentos são construções históricas, datadas, circunstanciadas motivadas por
diferentes jogos de interesses e de poder, que aos poucos foi me seduzindo, pois
oferecia novas possibilidades de ver o mundo e de pensar as relações entre as
pessoas.
A minha leitura de Foucault no decorrer da minha formação iria se
aprofundar com as aulas ministradas pelo Prof. Ms. Clementino Nogueira de Sousa,
também meu professor na UNEMAT, cuja elegância, solicitude e paciência nos
contemplou com seu conhecimento sobre o filósofo, seus conceitos e nos incentivou
a pensar com o ele, o que resultou na minha monografia de graduação, intitulada
“Corpos decadentes: o nascimento do asilo Lar Santa Rita de Cássia em São José
dos Quatro Marcos-MT (1984-1999)”, apresentada em 2005 e sob a orientação do
professor Adson de Arruda.
O filósofo Michel Foucault também foi o meu principal referencial na
dissertação de mestrado, em Estudos de Cultura Contemporânea sobre o escritor

36
Hoje, o professor Odemar Leotti é doutor e professor da Universidade Federal de Mato Grosso
(Campus de Rondonópolis).

33
italiano Primo Levi37 e suas experiências no campo de concentração de Auschwitz,
em relação à problemática ao exercício do biopoder que produz uma vida nua e a
escrita enquanto forma de resistência, de luta e cuidado de si diante um mundo que
constantemente atualiza dispositivos fascistas.
A problemática da população surgiu no ano de 2014, no contexto do
processo de reeleição da presidenta Dilma Rousseff, e acompanhou todos os
percalços, as tramas e intrigas políticas que levaram ao seu impeachment.
Semelhante situação colocava em cena a força, pujança e atualidade dos “Golpes
de Estado”, em pleno século XXI, com a ativação de um dispositivo de controle
histórico, cujo nascimento data da formação das grandes monarquias
administrativas do século XVII e de um regime “biopolítico” de regulação das
populações.
Diante desse cenário, ao meu ver, trata-se do pensador mais importante
para se pensar a história, primeiro, por pensa-la em sua descontinuidade, e, segundo,
por ajudar a pensar as diferentes relações de poder e formas de controle históricos
e, por fim, por movimentar categorias de pensamento histórico que nos ajudam
refletir sobre a nossa atualidade: no caso específico, a problemática da população
nas formas sutis de controle atuais, bem como a disseminação de um contradiscurso
do poder, quando a própria população estabelece suas próprias demandas e pautas
políticas.
A densidade histórica da problemática da população é assumida como
objeto e sujeito de ação governamental, num período histórico que data da
passagem da condição de colônia, de fronteira mineira da capitania de Mato Grosso,
para a formação de uma unidade territorial organizada em províncias, a partir do
processo de independência do Brasil.

37
Dissertação intitulada: “Primo Levi: por uma vida não fascista” sob a orientação valiosa da
professora Dra. Ludmila de Lima Brandão. Cf. REIS, Cristiano Antonio dos Reis. Primo Levi: por
uma vida não fascista. Dissertação (Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea) –
Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2010.

34
CAPÍTULO 1

DISPOSITIVOS DE SOBERANIA EM CUIABÁ E


MATO GROSSO (SÉCULO XVIII)

Meu projeto de discurso é um projeto de presbita. Gostaria de fazer aparecer o que está próximo
demais de nosso olhar para que possamos ver o que está aí bem perto de nós, mas que nosso olhar
atravessa para ver outra coisa.
Michel Foucault (O belo perigo, 2016)

A partir das reflexões do filósofo Michel Foucault, apresentarei a


pesquisa em torno das práticas governamentais desenvolvidas por Portugal em
relação ao que se tornou seus domínios, tomando como referência as atividades
exercidas na colônia brasileira, em especial na capitania de Mato Grosso.
No que diz respeito à historiografia colonial mato-grossense, existem
algumas discussões sobre o processo político-administrativo do território colonial
no século XVIII, especialmente relativas à produção aurífera, bem como a defesa
das áreas já conquistadas e de limites duvidosos, o que leva a pensa-las sob um
prisma reflexivo geopolítico de fronteira, de ocupação e posse.
Nesse sentido, a recorrência de metáforas que denotam defesa
territorial, como, por exemplo, a ideia de Antemural da Colônia38, Guardiões da
Fronteira39, além da apresentação estratégica das fortificações construídas no
período, nos apresentam um cenário em que o exercício de poder da monarquia
portuguesa e de seus agentes se configura enquamto dispositivo de Soberania.

38
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A Conquista da terra no universo da pobreza: a formação da
fronteira Oeste do Brasil. São Paulo; Brasília: Hucitec; INI, 1987.
39
MEIRELES, Denise Maldi. Guardiães da fronteira: Rio Guaporé, século XVIII. Petrópolis:
Vozes,1989.

35
Tal dispositivo, ainda seguindo as pistas de Michel Foucault,
apresentava quatro características principais: a relação coleta/despesa,
anterioridade fundadora de um direito, relação diferenciadora não isotópica40,
fazer morrer e deixar viver41.
Trata-se de demarcar conceitualmente o campo de inteligibilidade
histórica, a que, numa ressonância do pensamento foucaultiano, chamo de
dispositivo de soberania e que imbrica dois elementos fundamentais para a
organização da monarquia portuguesa e o controle da conduta das pessoas que
fazem parte dessa sociedade, ou seja, busca-se pensar inicialmente nas relações
estabelecidas a partir de um Código Civil, que criara condições de funcionamento
dos rituais de exercício de poder régio e dos privilégios da corte (nobres e clero)
administrar mercês, honrarias, fiscos e almas, o que condiz com os quatro primeiros
livros das Ordenações Filipinas, mas há um segundo elemento, que são as relações
estabelecidas a partir do Código Penal, nesse caso, o Livro V das Ordenações
Filipinas, em que o poder régio “como fonte de justiça” é sempre afrontado quando
alguém infringe seus códigos.42
Dessa maneira, nas reflexões a seguir trago algumas considerações
conceituais sobre o “dispositivo de soberania” enquanto um operador de
inteligibilidade histórica sobre as práticas governamentais exercidas em Cuiabá e
Mato Grosso no século XVIII, e os campos de domínio que elas recobriam, a que

40
Cf. FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
41
FOUCAULT, Michel. A História da sexualidade, vol. 1: a vontade de saber. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1988, p. 125-149.
42
Havia nesses códigos filipinos uma série de relações que afirmavam uma forma de governo
circunscrita à relação do soberano com seus súditos e sua corte, cada qual com seus direitos e
compromissos. Nesse sentido, as Ordenações Filipinas traziam as ressonâncias de uma prática
escriturária, que, entre os séculos XVI e XVII, já demarcava os signos de distanciamento entre uma
nobreza e os demais súditos, exemplo desse tipo de distanciamento é assinalado pelo historiador
Fernando Bouza, no livro Corre Manuscrito, onde desenvolve uma reflexão sobre as práticas de
escritas desenvolvidas pelos cortesãos entre os séculos XVI e XVII, como uma espécie de
necessidade de se afirmarem com um grupo singular no universo cultural dos letrados, na criação de
um ethos aristocrático e impedindo que outras pessoas comuns tivessem acesso a esse tipo de cultura.
Tratava-se de afirmação de um código nobiliárquico e de corte expressas em escritos como cartas,
avisos, testamentos etc. em relação a outras formas de escrita, que tecnicamente estavam disponíveis
a um grupo maior. Cf. BOUZA, Fernando. Corre Manuscrito: Una historia cultural del siglo del
Oro. Madrid: Marcial Pons, 2006.

36
urgências respondiam, as preocupações elas apontavam e quais personagens
estavam envolvidos nessas relações de soberania.

1.1- Coleta/Despesa

O primeiro aspecto do exercício da soberania é que ele se dá numa


relação assimétrica de coleta e despesa, ou seja, um conjunto de aparelhos de
captura que incorpora para si o que é produzido pela comunidade. Em contrapartida
o rei, que se apresenta como grande foco da despesa:

Parece-me que é uma relação de poder que vincula o soberano e


súdito segundo um par de relações assimétricas: de um lado, a
coleta, do outro a despesa. Na relação de soberania, o soberano
recolhe produtos, colheitas, objetos fabricados, armas, força de
trabalho, coragem; também recolhe tempo, serviços, e vai, não
devolver o que recolheu, porque não tem de devolver, mas, numa
operação de retorno simétrico, vai haver a despesa do soberano,
que pode assumir seja a forma da dádiva, que pode ser efetuada
durante cerimônias rituais- dádivas de eventos alegres, dádivas
por ocasião de um nascimento-, seja a de um serviço, mas de tipo
diferente do que recolheu, como, por exemplo, o serviço de
proteção ou o serviço religioso, que é levado a cabo pela Igreja;
pode ser também a despesa feita quando, para os festejos, para a
organização de uma guerra, o senhor faz os que rodeiam
trabalhar, mediante retribuições. Vocês têm aí, portanto, esse
sistema coleta-despesa que me parece caracterizar o poder de tipo
soberano. Claro, a coleta sempre prevalece, e muito, sobre a
despesa, e a dissimetria é tão grande que vemos delinear, por trás
dessa relação de soberania e desse par dissimétrico coleta-
despesa, a depredação, os saques, a guerra43.

Certamente, a relação coleta/despesa colocada em prática pelo soberano


português em relação à colônia, ajuda entender as contendas que envolveram os
contrabandos de todas as espécies, em especial, o dos diamantes, monopólio real, e
dos gêneros alimentícios, em relação aos vizinhos hispânicos e entre os colonos e
as autoridades régias. Nesse cenário, a historiadora Nauk Maria de Jesus relata o
caso do proprietário Bartolomeu Paes de Abreu que, almejando o monopólio no

43
FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 53.

37
fornecimento de gado para Cuiabá, em troca da abertura de caminhos que ligasse a
região sul com as vilas de Cuiabá:

[...] Bartolomeu Paes de Abreu, proprietário de terras em Curitiba


e na região do Rio Grande, se habilitou, em 1722, para fazer o
dito caminho. Em troca dessa empreitada, ele desejava o
monopólio do fornecimento de gado para a região por nove anos,
sem pagar os direitos de passagem nos rios para a entrada do
animal. Como Rodrigo César não estava na capital São Paulo
nesse momento, o senado da câmara o autorizou a iniciar o
serviço. No entanto, posteriormente, Rodrigo César publicou um
bando para que as pessoas interessadas na abertura do dito
caminho se habilitassem para tal. Bartolomeu se habilitou e deu
garantias de que terminaria o serviço. Entretanto, ele não foi
escolhido pelo governador, que o considerou com pouco
conhecimento do sertão. Mesmo não tendo aberto o caminho para
o Cuiabá, meses depois foi nomeado contratador dos dízimos das
minas cuiabanas e também arrematador da passagem do Rio
Grande, dando continuidade aos negócios de gado na região44.

Diante do aparato do fisco em relação ao ouro minerado na região,


recaía sobre os colonos tributos variados, como os dízimos reais, e da “igreja, o
quinto, a finta, a talha”, dentre outros que constrangiam a existência desses colonos
à sujeição das autoridades régias. Em contrapartida, o soberano concedia privilégios
a algumas figuras proeminentes, sob a forma de mercês e até mesmo isenção de
alguns tributos, em decorrência da necessidade de povoamento do território mato-
grossense:

[...] A exclusividade de conferição de títulos e mercês atribuía ao


monarca o monopólio de graduar e qualificar por seu próprio
arbítrio, intervindo nos conflitos, manipulando o antagonismo e
a competitividade entre os súditos [...]
Lisboa, Évora e Porto, por sua fidelidade e ações a serviço do rei,
receberam liberdades, honras e privilégios, posteriormente
solicitados pelas câmaras ultramarinas [...]45

Tal característica coloca uma questão fundamental que atravessou,


digamos, a política do Antigo Regime português até, pelo menos, o final século
XVIII, que é justamente a “problemática da balança e da justa medida”, assentada

44
JESUS, Nauk Maria de. O governo local na fronteira oeste: a rivalidade entre Cuiabá e Vila Bela
no século XVIII. Dourados: EdUFGD, 2011, p. 111.
45
Ibid., p. 149.

38
na relação social pautada em valores nobiliárquicos, no que diz respeito ao aspecto
político do rei e sua corte, e no aspecto econômico através do funcionamento da
política mercantilista.
O domínio da prática política do mercantilismo lida com a problemática
das riquezas, o que, certamente, é diferente da reflexão que se tornará latente sobre
a produção pelo desenvolvimento da economia política e da arte liberal de governo.
A esse respeito, Foucault, em As Palavras e as Coisas, afirma que:

Entre todas as coisas que existem no mundo, quais são aquelas


que o mercantilismo poderá chamar de ‘riquezas’? Todas as que,
além de representáveis, são também objetos de desejo. Quer dizer
ainda, aquelas que são marcadas pela “necessidade, ou pela
utilidade, ou pelo prazer, ou pela raridade”. Ora, pode-se dizer
que os metais que servem para fabricar peças de moeda (não se
trata aqui da moeda de cobre que serve apenas para troco em
certas regiões, mas das que são utilizadas no comércio exterior)
fazem parte das riquezas? Muito pouca é a utilidade do ouro e da
prata — “quando muito poderiam ser utilizados nos serviços da
casa”; e, por raros que sejam, sua abundância excede ainda o que
é requerido para essas utilizações. Se são procurados, se os
homens acham que lhes fazem falta, se escavam minas e
guerreiam pela sua posse, é porque a fabricação das moedas de
ouro e prata lhes deram uma utilidade e uma raridade que, por si
mesmos, esses metais não detêm. “A moeda não empresta seu
valor da matéria de que é composta, mas sim da forma, que é a
imagem ou a marca do príncipe” É por ser moeda que o ouro é
precioso. Não o inverso. Desde logo, a relação tão estreitamente
fixada no século XVI é invertida: a moeda (e mesmo o metal de
que é feita) recebe seu valor de sua pura função de signo46.

Isso suscita no mercantilismo uma política protecionista, pautada na


acumulação de metais preciosos e estímulo à exportação, mas tabém de retração em
relação às importações, uma vez que, na reflexão do pensamento mercantilista o
amoedamento se torna signo de riqueza, o que significa que a sua retenção no plano
internacional das cortes europeias que, até o século XVIII, representava a força de
uma nação. Assim:

As riquezas se desenvolvem como objetos das necessidades e dos


desejos; dividem-se e substituem umas às outras pelo jogo das
espécies monetizadas que as significam; e as relações recíprocas

46
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, p. 239-240.

39
entre a moeda e a riqueza se estabelecem sob a forma da
circulação e das trocas47.

Nesse princípio mercantilista, portanto, a representação do ouro e da


prata como metais preciosos e símbolos de riqueza advinha precisamente dessa
capacidade ou potencialidade, por ser signo de circulação e troca comercial.
Como o mercantilismo é também uma prática política, ele se
materializou nas ações do soberano, metaforicamente, pelo controle do corpo social
do Estado, o qual objetivava gerir fluxo das circulações e trocas engendradas no
interior de seu organismo:

Agora que moeda e riqueza são tomadas ambas no interior do


espaço das trocas e da circulação, o mercantilismo pode ajustar
sua análise conforme o modelo recentemente fornecido por
Harvey. Segundo Hobbes, o circuito venoso da moeda é o dos
impostos e das taxas que subtraem das mercadorias
transportadas, compradas ou vendidas, uma certa massa
metálica; esta é conduzida até o coração do Homem- Leviatã —
isto é, até os cofres do Estado. É lá que o metal recebe o
“princípio vital”: o Estado, com efeito, pode fundi-lo ou tornar a
pô-lo em circulação. Em todo o caso, somente sua autoridade lhe
dará curso; e, redistribuído aos particulares (sob forma de
pensões, de emolumentos ou de retribuição por provisões
compradas pelo Estado), estimulará, no segundo circuito, agora
arterial, as trocas, as fabricações e as culturas48.

Assim, o mercantilismo colocou a autoridade do Estado de gerir as


coletas e despesas por meio do estabelecimento de uma “balança”, a qual servia
para medir as relações internas do reino na administração de justiça, como também
na organização das relações diplomáticas e de conservação dos domínios.
Detendo ainda um pouco mais na premissa de coleta/despesa, é digno
de nota que, quando se descobriram as minas de Cuiabá, o governo português
aplicou tais mecanismos na coleta e despesa sobre o ouro minerado na região,
inclusive a chegada dos bandeirantes ao território cuiabano se dava poucos anos

47
Ibid.
48
Ibid., p. 246.

40
depois de ocorrer o levante de Vila Rica, em 1720, cuja liderança do movimento foi
atribuída a Felipe dos Santos49.
Tal situação pode ser exemplificada por uma certidão elaborada pelo
Fr. João de Assumpção Prior, superior da Companhia de Nossa Senhora de Monte
Carmo, e demais conventuais da cidade de São Paulo sobre as ações de Rodrigo
Cézar de Menezes:

Fazemos saber a quantos a nossa certidão virem em forma e


verdade que o Exmo. Senhor Rodrigo Cezar Menezes servindo
de Governado e Capitão-General desta Capitania, em todo o
tempo que esteve no governo dela sempre a conservou em paz e
sossego, dando sempre com a [...] as partes, prontíssimo em
deferir aos requerimentos que propúnhamos sempre com zelo do
bem comum, cuidando muito nas conveniências para a fazenda
real, assim em descobrimento das Minas Cuyabá, Pernapanema,
Goyas, q. para todas convença a sua boa disposição como
também fazendo rematar os contratos dos dízimos com
acréscimos, adquirindo com boa afabilidade e tratamento pessoas
para o efeito delas e outros empregos, animando e facilitando aos
interessados para a mais conveniência da Real Fazenda, nos
contratos, dízimos e quintos de ouro. [grifos nossos] E
outrossim certifica me que sendo mandado por S. Mag.de q. D.s
g.d o passar as minas do Cuyabâ o fez prontamente, não temendo
os perigos da jornada, sendo a demais risco que há, assim
animais, e gentios bárbaros de diversas nações, fomes, pestes,
experimentando todos estes inconvenientes só a fim de servir S.
Mag.de q. D.s. g.de no que lhe ordena, e porque todo o referido
passa na verdade assim o juramos aos Santos Evangelhos, e
passamos esta carta que vai por nós feita, e assinada, e selada
com o selo de nosso Convento desta Cidade de S. Paulo aos dez
dias do mês de Novembro do ano de nascimento de Nosso Senhor
Jesus Cristo de 172850.

49
Revolta ocorrida no ano de 1720, momento em que a atividade aurífera da região das Minas Gerais
alcançava o seu apogeu. Essa situação impôs aos colonos mecanismos fiscais cada vez mais
sofisticados para captar o ouro minerado. Dentre tais medidas estava a criação das Casas de Fundição
nas quais todo o ouro produzido era transformado em barra e retirado o quinto, além disso proibiu a
circulação do ouro em pó, o que gerou o descontentamento dos colonos que lutavam contra o fim
das casas de fundição, a redução de vários impostos e tributos, bem como, fim dos monopólios do
fumo, sal, aguardente e gado. Os ecos desse movimento provavelmente influenciaram a
Inconfidência Mineira de 1772. Cf. Discurso Histórico e Político Sobre A Sublevação Que Nas
Minas Houve No Ano De 1720. (Estudo Crítico Estabelecimento do Texto e Notas Laura De Mello
e Souza). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994.
50
MF.02, Doc. 28, AHU. 4a fila-12o doc. In: Coletânea de Documentos Raros do Período Colonial
(1727-1746), vol. V. Eliane Maria Oliveira Morgado... [et.al.] (Org.). Cuiabá: Entrelinhas;
EdUFMT, 2007, p. 97. (Série transcrição: legislação e notoriado)

41
Ou seja, essa relação dissimétrica que punha de um lado a coleta e de
outro a despesa, criava uma tensão entre o monarca e seus súditos, pois, se de um
lado a coleta prevalecia sobre a despesa, o rei, enquanto soberano, tinha que deter
muita sabedoria para ministrar simetricamente e sob a forma de direito o que cabia
a cada um de seus súditos. Assim sendo,

A teoria do poder real e seu exercício supõe sua articulação com


um saber, com a sabedoria. Assim o poder e a sabedoria se unem
no exercício real da justiça: ‘conhecida a coisa está que o
principal bem que se requer para ministrar a justiça assim é
sabedoria, que o escrito é, que por ela reinam os reis e são
poderosos. Dessa forma, o poder emana no ato de reinar do saber
ou da sabedoria51.

Nessa porção territorial onde Portugal queria manter o seu domínio, a


coleta coadunava-se com a despesa, principalmente para incentivar o povoamento
de uma região considerada como um grande sertão deserto, na perspectiva do
colonizador português. Diante disso, uma das despesas assumidas pela Coroa
portuguesa para incentivar o povoamento dessa área territorial era a concessão de
mercês e privilégios52. Assim, segundo Vilela Silva, desenvolveu-se com os
sertanistas uma política cordial de concessão de privilégios e mercês, como o
próprio Rodrigo Cezar sugeriu ao rei, ao assumir o cargo de Capitão-General da
capitania de São Paulo, em 1721:

[...] já para ali (Cuiabá) haviam partido mais de dous mil


paulistas. No caso de se realizarem novos descobrimentos
tornava-se indispensável que o Trono distribuísse mercês,

51
MOTTA, Manoel Barros da. Crítica da razão punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 20.
52A historiadora Fernanda Olival lembra que a liberalidade era um gesto de dar que, na cultura
política do Antigo Regime, era uma virtude própria dos reis, quer em Portugal, quer no resto da
Europa Ocidental, enfim, será essa liberalidade relacionada a uma virtude dadivosa dos reis que aos
poucos foi subsituida pelas premissas do liberalismo político no século XIX. Cf. OLIVAL,
Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-
1789). Lisboa: Estar, 2001; HESPANHA, Antonio Manuel. A constituição do Império português:
revisão de alguns enviesamentos correntes. In: O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouveia
(Orgs.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

42
sobretudo hábitos de Cristo a gente tão vaidosa como os paulistas
que só se lembrava de honras, desprezando conveniências53.

Em 1740, o capitão-general que o sucedeu, Antonio Caldeira Pimentel,


em carta à Corte, salientava a necessidade de serem criadas condições para fixar as
pessoas em suas vilas, pois os deslocamentos eram constantes, seguidos do
burburinho das notícias de descobertas auríferas. Assim no “[...] distrito de Cuiabá,
o arranchamento da Forquillha, criado em 1718, mudara-se rapidamente para a
região do córrego prainha, em 1720, nas lavras de Sutil”54. Assim sendo, o mesmo
Caldeira Pimentel alertava para a necessidade de serem criadas outras atividades
econômicas, a fim de fixar a gente nômade:

[...] e será maior aumento o contrato dos dízimos porque o


concurso dos comerciantes fará aumentar as lavouras, além do
que de certo que estas campanhas são dilatadas e em todas elas
há ouro, cavarão porque se não [...]aplicar alguns moradores a
tratar da lavoura, outros a comerciar e outros a minerar conforme
a inclinação e especialidade de cada um55.

Porém, com o intuito de estabelecer um povoamento e de ser


implementado um processo de sedentarização dos colonos em torno das áreas
auríferas que se situavam em posição de limite com os domínios hispânicos, a
criação da capitania de Mato Grosso necessitava de alguns incentivos, pois:

A maior parte das pessoas, não tem estabelecimento sólido; quase


todos aqueles homens de negócios, que os interesses do comércio
atraem a esta Capital, são uma espécie de viajantes, que raras
vezes se fixam em seu domicilio, e que de ordinário, não aspiram
outra cousa mais, do que a recompensa de algum zuaro
momentâneo para transportarem fora daqui os seus cabedais. ‘Os
mineiros dispersos em arraiais volantes, mudam facilmente de
domicilio, apenas se lhes diminuem os interesses; ou alguma
falsa esperança os lisonjeia com novas prosperidades’56.

53
DOCUMENTOS INTERESSANTES PARA A HISTÓRIA E COSTUMES DE SÃO PAULO.
Archivo do Estado de São Paulo. Publicação Official, 1885, vol. XII, p. 41.
54
SILVA, Jovam Vilela. Mistura de cores (Política de povoamento e população na Capitania de
Mato Grosso – Século XVIII). Cuiabá: EdUFMT, 1995, p. 41.
55
MF-34 doc.276. Correspondência de Antonio da Silva Caldeira Pimentel à Corte/ 1740.
AHU/NDIHR/UFMT. Cuiabá-MT.
56
MF-216 doc.2483. Relatório de Luiz Pinto de Souza Coutinho a Martinho de Melo e Castro. Maio
de 1770. AHU/NDIHR/UFMT. Cuiabá-MT.

43
Dentre tais incentivos da Coroa portuguesa, Vilela Silva lembrava que
as ordens régias estabeleciam a isenção “[...] de pagamento de ‘fintas, talhas, e
qualquer tributo ainda o das entradas, e isto por tempo de dês anos’, a partir do
princípio da fundação da dita vila para o povoamento da Vila e de seu distrito”57.
Nesse sentido, já em 1769, quando Mato Grosso já se constituía em
capitania independente de São Paulo, Luís Pinto de Sousa Coutinho solicitava ao
rei, em tom de súplica, a prorrogação da mercê de isenção da meia capitação por
mais dez anos, como consignado na correspondência:

[...] pois não é para crer; nem para imaginar que um Monarca tão
justificado, e tão magnânimo, com plena advertência houvesse
de revogar subitamente, sem causa, uma mercê feita em
remuneração de serviços; maiormente sendo esta revogação em
detrimento desta fronteira58.

Tal situação chamou a atenção do soberano português, D. José I, para o


fato da necessidade de continuidade dos privilégios e mercês que foram concedidos
para o processo de povoamento da capitania de Mato Grosso, apresentando
qualidades desse soberano enquanto “monarca tão justificado e magnânimo”. Antes
dele, vale lembrar que, no reinado de D. João V, Rodrigo Cezar de Menezes já
chamava a atenção para não descuidar dos paulistas, ainda meio ressentidos com o
final da Guerra dos Emboabas:

[...] encontra os paulistas muito agitados com o ânimo ‘bastante


empedernido’, concorrendo o seu avesso gênio para lhe fazer
endurecer. Proclamavam ainda que sentiam as feridas frescas
recebidas nas Minas Gerais. A descoberta dos jazigos auríferos
d’ali fora sua e entretanto, eram exatamente os que sem honras
nem riquezas tinham ficado! Não consentiriam que o seu novo
achado passasse a quem os quisesse dele espoliar, se os
‘apertassem’ dariam obediência a quem os atendesse’,
insinuação claríssima pois se sabia que o Cuiabá se achava a
pouca distância dos castelhanos59.

57
SILVA, Jovam Vilela. Op. cit. p. 51.
58
MF-191-doc. 2194. Carta do Presidente e Oficiais da Câmara de Villa Bela ao Rei. Assina
Manoel Cardoso da Cunha. AHU/NDIHR/UFMT. Cuiabá-MT.
59
DOCUMENTOS INTERESSANTES PARA A HISTÓRIA E COSTUMES DE SÃO PAULO.
Archivo do Estado de São Paulo. Publicação Official, 1885, vol. XII, p.50.

44
Tal situação demonstrava a necessidade de a Coroa portuguesa
conceder privilégios aos paulistas na ocupação das áreas onde se acharam novas
jazidas de ouro, e não consentir com o ocultamento oficial de sua descoberta. Dessa
maneira, para o paradigma político do período, cobrava-se do rei a administração
da justiça, à mercê de possíveis ressentimentos, e, por meio de sua intervenção
garantir a paz e a concórdia já expressas pelas Ordenações Filipinas, sobretudo
diante da problemática do povoamento, defesa e conservação do território.
É preciso esclarecer que a extensão do império português, construída
historicamente por meio das Grandes Navegações desde, pelo menos, o século XIV,
durante o comércio com as Índias e pelas rotas inventadas que contornavam o
continente africano, estabeleceu um domínio territorial grandioso e que envolvia
em suas teias povos de línguas e culturas diversificadas, o que certamente criava
constantes ameaças às suas possessões. Assim, a “[...] expansão portuguesa se deu
pela espada e pela cruz”, como bem mostrou o historiador João Marinho dos Santos:

O império português suportado pela espada, procurava ser de


forte matriz religiosa (no caso cristã, com a dimensão
civilizacional inerente a esta imagem de marca) e a sua
debilidade militar (sobretudo em termos de recursos humanos)
tendia a ser compensada pela ideologia cruzadística e
miraculista, a que não eram alheios, antes pelo contrário, para
além dos valores da honra e da glória (celeste), os do proveito e
da fama. Sob esta perspectiva, em particular da afirmação do
mercantilismo e do humanismo, é óbvio que a modernidade
[grifos do autor] da Expansão Portuguesa completará a sua forte
tradicionalidade [grifos do autor], ou seja, a sua inspiração nos
modelos do Império Romano do Ocidente e do Império Romano
do Oriente60.

Assim, temos por exemplo, a preocupação das virtudes do soberano,


para governar, expressa nas Ordenações Filipinas, já no Livro I, quando estabelecia
a importância da compilação dos códigos:

Considerando nós quão necessária é em todo o tempo a justiça,


assim na paz como na guerra, para boa governança e conservação

60
SANTOS, João Marinho dos. A expansão pela espada e pela cruz. In: A descoberta do homem e
do mundo. Adauto Novaes (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.161.

45
da Republica e do Estado Real, a qual aos Reis convém como
virtude principal, e sobre todas as outras mais excelente, e em à
qual, como em verdadeiro espelho, se devem elas sempre rever e
esmerar; porque assim como a Justiça consiste em igualdade, e
com justa balança dar o seu a cada um, assim o bom Rei deve ser
sempre um e igual a todos em retribuir e a premiar cada um
segundo seus merecimentos61.

As virtudes, nesse caso, se pautariam inicialmente em administrar a


justiça como fundamento da boa governança, ou seja, condição de um bom governo
e, por fim, garantir a paz e a conservação da República e do Estado Real. Sendo o
soberano fonte de justiça, logo, deveria ser o primeiro modelo de virtude, ainda
mais diante de uma colônia que se apresentava como um verdadeiro “teatro dos
vícios”, como apresentou o pesquisador Emanuel Araújo, e aonde se proliferavam
exemplos de “[...] promiscuidade, sujeira, indolência, de relações sexuais
envolvendo sacerdotes e militares, roubos e golpes etc”62.
Essa dimensão da justiça nos remete à organização de uma sociedade
pautada na constituição de “sujeitos de direitos”63, no interior da qual a função do
rei se circunscrevia a administrar a justiça, dando a cada um o que lhe seria por
direito:

E assim como a Justiça é virtude, não para si, mas para outrem,
por aproveitar somente aqueles á que se faz, dando-se lhes o seu,
e fazendo-os bem Viver, aos bons como prêmios, e aos maus com
temor das penas, d'onde resulta paz e sossego na República
(porque o castigo dos maus é conservação dos bons ); assim deve
fazer o bom Rei, pois por Deus foi dado principalmente, não para
si nem para seu particular proveito, mas para bem governar seus
Povos e aproveitar a seus súditos como a próprios filhos; e como
quer que a Republica consista e se sustente em duas cousas;
principalmente nas armas e nas Leis, e uma haja mister á outra;
porque assim como as Leis com a força das armas se mantêm,
assim a arte militar com a ajuda das Leis é segura64.

61
(ORDENAÇÕES FILIPINAS, LIVRO I: P. LXXVIII). Lei de 5 de junho de 1595. Manda fazer huma
nova compilação das ordenações d'El-Rey D. Manoel, o da Legislação posterior.
62
Cf. ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: Transgressão e transigência na sociedade urbana
colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
63
Essa premissa é importante, pois apresenta a dimensão da soberania naquilo que Foucault chamava
de relações diferenciadoras não isotópicas, a serem desenvolvidas com mais acuidade a seguir.
64
ORDENAÇÕES FILIPINAS, LIVRO I: Op. cit., p. LXXVIII.

46
A relação coleta/despesa, nesse sentido, configura-se como uma das
práticas dos regimes de soberania, onde cada um recebia o que, por merecimento,
lhe era devido. O que nos chama a atenção é a centralidade dada ao exercício de
punir, visto que, por semelhante lógica, o castigo dos maus era a conservação dos
bons.
Note-se que, no citado preâmbulo das Ordenações Filipinas, a virtude
do rei se assentava justamente na sua qualidade de ministrar a justiça, a fim de que
o sistema de coleta e despesa funcionasse articulando as múltiplas soberanias, seja
em território luso, seja em seus domínios de além-mar.
Outra dimensão importante nos fragmentos trazidos do Livro I das
Ordenações Filipinas foi a ideia de bom governo, a metáfora dos espelhos, a relação
das armas e das leis enquanto condição para um exercício de soberania que
garantisse a conservação, seja da República enquanto comunidade, seja do Estado
Real.
O que se vislumbra nesse discurso é que no momento em que as
ordenações começaram a ser recopiladas, a ideia de governo ainda não estava
relacionada a uma técnica de exercício político pautada em meios imanentes ao
fortalecimento do Estado. O efeito dissuasivo das Ordenações implicava em um
ideal de conservação e manutenção do funcionamento da soberania, primeiramente
por um aspecto desse dispositivo específico, justamente a coleta e a despesa.
Eis que, no ano de 1732, o então Conde de Sarzedas, assim como o fez
Rodrigo Cezar de Menezes anteriormente, solicitou ao rei de Portugal, D. João V
que, no uso de suas funções de administrar a justiça concedesse a restituição de um
pagamento efetuado sem dever:

[...] Depois de haver conta a V. Mag.e de ter tomado posse deste


Governo, e de tudo q. se me ofereceu pôr na real presença de V.
Mag.e sobre os particulares [...] repartição e do ouro q. delas se
remetiam; chegarão os condutores do quintos da Comarca de
Parnagoa, expedidos pelos oficiais a quem está encarregada a sua
cobrança, com quarenta e seis marcos, seis onças65 e duas

65
Onça era uma unidade de medida utilizada entre os séculos XVIII e XIX pelos portugueses, e que
equivalia a 28,800g. Em sua História Econômica do Brasil o historiador Roberto Simonsen
apresentou um quadro geral sobre as unidades de medidas e moedas utilizadas pelos portugueses.
Cf. SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil 1500-1820. Brasília: Senado Federal,
2005. (col. Edições do Senado Federal v. 34).

47
outavas, q. junto ao rendimento das minas importa tudo doze
arrobas, cinco marcos, duas onças e seis outavas e meia, e não
seria esta remessa inferior a do ano passado, se não fizesse a
restituição de [...] arrobas, cinquenta e um m.cos, cinco onças, seis
outavas, e sessenta e nove grãos, q. se entregarão aos q. vierão o
ano de mil setecentos e vinte e outo das Minas do Cuyabá e o
haviam pago sem o dever, ao q. atendeu a real piedade de V.
Mag.e mandando lhes restituir. Deus guarde a real pessoa de V.
Mag.e.
São Paulo, 4 de setembro de 1732
O Conde de Sarzedas66.

A questão, aqui, não era se o rei devolveu ou não a quantia que foi paga
a mais, mas sim a prerrogativa da cobrança indevida, creditada à esfera de justiça.
A cobrança indevida, nesse caso, figuraria um ato que descredenciaria a figura do
rei enquanto árbitro de justa medida. Diante disso, uma passagem dos Anais do
Senado de Cuiabá é esclarecedora a esse respeito, ao se tratar de Pascoal Moreira
Cabral:

Até este tempo não houve mais justiça nestas minas que o
guarda-mor Paschoal Moreira Cabral, que as administrou na
forma do assinado que lhe fizeram e já fica copiado. Repartia as
lavras, acomodava as contendas que por elas havia, fazia pagar
dívidas, julgava as contendas e demandas que se moviam, tudo
verbalmente, sem que houvesse forma alguma de processo, com
tanta prudência, acordo e agrado das partes, que todas lhe
ficavam obrigados, tanto os vencedores como os vencidos. Era
paulista dos bons, homem chão, sem letras, pouco polido, de
agudo entendimento, sem maldade, sincero, caritativo por
extremo, servia e remediava a todos com o que tinha e no que
podia, esperto na milícia dos sertões e no exercício de minerar
pelo ter já exercitado nas Minas Gerais, valoroso e constante no
trabalho; faleceu nesta vila e jaz sepultado na igreja matriz dela
e deixou um filho do mesmo nome, que depois da morte do pai
veio a estas minas e voltou para povoado67.

A referência à distribuição de justiça a Pascoal Moreira Cabral, como


expressa no fragmento dos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, denota um
conjunto de qualidades pessoais atribuídas a uma pessoa virtuosa, como:

66
MF. 20, Doc.875, AHU. 2ª fila-9º doc. In: Coletânea de Documentos Raros do Período Colonial
(1727-1746), vol. I. Eliane Maria Oliveira Morgado... [et.al.] (Org.). Cuiabá: Entrelinhas; EdUFMT,
2007, p. 97. (Série transcrição: correspondência)
67
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Transcrição e organização
Yumiko Takamoto Suzuki. Cuiabá: Entrelinhas; Arquivo Público de Mato Grosso, 2007, p. 50.

48
“sinceridade, caridade, prestativo, conciliador, prudente, bondoso etc.,” as quais
faziam com que qualquer contenda fosse resolvida positivamente entre as partes
conflitivas.
Enfim, esse aspecto da coleta/despesa produziu ressonâncias ao
estabelecer uma espécie de balança de virtudes, as quais qualificariam o que seria
um bom governo, muito provavelmente pelo debate travado entre os jesuítas desde
o século XVII em reação à Reforma Protestante e à nascente Razão de Estado, mas
também quanto à influência que esse grupo exercia sobre a corte portuguesa até o
final do século XVIII, mesmo que o limiar de ruptura tenha se iniciado com as
reformas pombalinas, cujos impactos serão discutidos no próximo capítulo.

1.2 - Anterioridade fundadora

O segundo aspecto inerente à relação de soberania assinalada por


Foucault é que ela pressupõe o princípio de uma “anterioridade fundadora”,
marcada por cerimônias de atualização que fundam um direito:

A relação de soberania sempre traz, creio, a marca de uma


anterioridade fundadora. Para que haja relação de soberania, é
preciso que haja outra coisa, como um direito divino ou como
uma conquista, uma vitória, um ato de submissão, um juramento
de fidelidade, um ato firmado entre o soberano que concede
privilégios, uma ajuda, uma proteção, etc., e alguém que, em
compensação, se empenha; ou tem de haver algo como um
nascimento, direitos de sangue68.

A premissa da “anterioridade fundadora” como um dos elementos que


implicam numa relação de soberania, traça o fundamento de um exercício de poder
sobre um território, cuja justificação se pauta no direito, ou na conquista, garantindo
também uma rede de privilégios e honrarias pautados em linhagens e em valores
tradicionais que asseguram status social a determinadas famílias (as que constituem
as cortes), tendo por base o nascimento e o pertencimento delas à nobiliarquia, ou
seja, “[...] desenvolvem, no âmbito de determinada tradição, uma sensibilidade

68
FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 53.

49
extraordinariamente refinada para as posturas, a fala e o comportamento que
convém ou não a um indivíduo segundo sua posição e seu valor na sociedade”69.
Essa sensibilidade ou sentimento de ascendência sobre outros grupos
sociais foi produzido por meio de um conjunto de códigos simbólicos que
fundamentaram privilégios sociais, políticos e econômicos marcados “por um ato
ou gesto fundador inquestionável” que naturaliza como verdade absoluta um
direito.
Na colônia, por exemplo, esse processo constituiu gradativamente “uma
nobreza da terra”. À guisa de exemplo, o historiador João Fragoso, ao trabalhar com
a constituição de uma elite senhorial no Rio de Janeiro, entre os séculos XVI e
XVII, apontava três características dessa nobreza:

Seriam descendentes de conquistadores ou dos primeiros


povoadores, de um grupo de pessoas (ou de uma ‘raça’) que, à
custa de suas fazendas, guerrearam e submeteram terras e outros
povos (gentio da terra e os inimigos europeus);
Uma vez feito isto, desde aquela época exerceram os postos de
mando na República, ou melhor, na câmara e na administração
real;
A conquista e o mando lhes davam um sentimento de
superioridade sobre os demais mortais/ moradores da colônia.
Este fato era referendado pelas mercês dadas por Sua Majestade,
pelos casamentos com pessoas do mesmo status e,
principalmente, pelo contínuo reconhecimento dado pelos
coloniais70.

Em relação à constituição da “nobreza da terra”, temos referência dela


nos Anais de Vila Bela e nos de Cuiabá, os quais atestam precisamente a
constituição de um grupo descendente dos primeiros conquistadores ou povoadores
e que posteriormente assumiu postos de mando por serviços prestados à Coroa,
perpetuados pelas relações matrimoniais entre as famílias constitutivas de

69
ELIAS, Nobert. A sociedade de corte: Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia
de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 77. Essa dimensão
da anterioridade fundadora em relação aos privilégios de sangue e de nome pode ser visualizada,
por exemplo, no livro O nome e o Sangue, escrito por Evaldo Cabral de Melo. Cf. MELO, Evaldo
Cabral de. O nome e o Sangue: uma parábola da genealógica do Pernambuco colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
70
FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite
senhorial (séculos XVI e XVII). In: O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI-XVIII). João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Silva
Gouvêa (Org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 52.

50
semelhante nobreza. Os Anais de Vila Bela nos trazem o seguinte exemplo de
formação dessa nobreza:

[...] Em três de fevereiro de 1760, mandou lançar o Ilustríssimo


e Excelentíssimo Senhor General um bando, em que fazia
manifesto aos moradores dela uma carta de 26 de agosto de 1758,
assinada pela Rainha, nossa senhora, em que ao dito governador
o poder premiar os beneméritos com a nobreza, condizentes aos
serviços que fizeram nesta Capitania. Ainda, fazer-lhe mercê de
hábitos das ordens, militares com a tença necessárias para usarem
dos seus privilégios, passando-lhes despacho das ditas mercês
para serem remetidas à Secretaria dos nossos Reinos, a fim de se
lhes conferirem, por sua Majestade, as ditas mercês que pelo
governador houvessem sido feitas71.

Outro exemplo importante, nesse caso, tratou do cerimonial solene,


organizado no ano de 1769, para a recepção do governador e capitão-general Luiz
Pinto de Souza Coutinho, marcado por festas, cavalhadas, comédias, ópera e
folguedo:

[...] Veio a esta Villa aonde chegou em 20 de Julho do mesmo


anno, e foi recebido com a maior ostentação, que pode ser;
formarão as Ordenanças na sua entrada, deram-se-lhe as
descargas do estillo, e recolheu-se a residencia, que se lhe havia
preparado, e logo nessa noite, como nas duas sucessivas
illuminou-se toda a Vila. No domingo que se seguiu, que se
contava 23 do mês foi conduzido a Igreja Matriz debaixo de Palio
carregado por seis Republicanos, e acompanhado pela Camara
com toda a mais Nobreza, e Povo; onde se cantou Missa Solene
com sermão em Presença do Santíssimo Sacramento exposto
tudo em ação de graças pela vida, saúde, e felicidade do dito
General.
Não parou aqui o extremo dos Povos porque não satisfeito
somente com a festa da Igreja, passarão a fazer lhe outros muitos
festejos como forão três tardes de cavalhadas em que correrão as
Pessoas da primeira Nobreza da terra. [Grifos Meus], cinco
comédias, e duas óperas, que tudo se reprezentou em tablado
público na rua, além de outras danças, e folguedos, que levarão
muitos dias manifestando assim o regozijo com que sabem
receber aquellas Pessoas, que nestes remotos lugares reprezentão
a da Magestade72 [...]

71
AMADO, Janaína; ANZAI, Leny Caselli (Orgs.). Anais de Vila Bela – 1734-1789. Cuiabá: Carlini
&Caniato; EdUFMT, 2006, p. 80.
72
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Op. cit., p. 95.

51
Reforçando essa ideia de “nobreza da terra”, a organização do governo
local nas minas de Cuiabá e de Mato Grosso, mas também a de outros espaços
auríferos descobertos posteriormente constituiu-se enquanto direito fundador
sustentado pelos serviços prestados à Coroa portuguesa, como expressou uma carta
de Rodrigo Cézar de Menezes:

Esta Capitania está brotando em haveres descoberta à custa da


fazenda, sangue e vidas dos paulistas, testem a esta verdade o
muito ouro que tem vindo do Cuiabá, e a feliz notícia dos
Goyazes [sic], de que se há de seguir grande utilidade a real
fazenda para a qual eu também concorri com tudo quanto me foi
possível posto que ao braço destes homens se deve estes e outros
haveres como a experiência tem mostrado, ainda que os mal
intencionados o não acreditam, porém nunca estes tirarão a glória
que tem adquirido, como eu, e os meus antecessores
testemunharam73.

Lembrando que as minas de Cuiabá naquele momento ainda estavam


sob a jurisdição da capitania de São Paulo, logo, havia uma proveniência de
exercício de poder que se estabelecia na nova região mineradora, sob a égide das
ações de conquista promovidas pelos bandeirantes, seja incorporando territórios
e/ou dominando os povos indígenas. Nesse sentido, a historiadora Nauk Maria de
Jesus ressalta que a:

[...] Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá teve sua origem a
partir da descoberta do ouro nas lavras do Coxipó-Mirim, em
1719, tendo à frente de tal investida paulistas e reinóis. Várias
medidas foram adotadas pela Coroa para garantir a permanência
e evitar o descontentamento desses homens no local, como, por
exemplo, a elevação do arraial do Senhor Bom Jesus do Cuiabá
à condição de vila, no ano de 1727. Esta passaria a contar com
sua câmara municipal, criada em dezembro de 1726, e os
poderosos locais teriam um espaço institucional para representar
os seus interesses. A vila, na primeira metade dos setecentos,
pertencia à jurisdição da capitania de São Paulo74.

73
MF.12, Doc. 732, AHU. 3ª fila- 3º doc. - anexo 5. In: Coletânea de Documentos Raros do Período
Colonial (1727-1746), vol. I. Eliane Maria Oliveira Morgado... [et.al.] (Org.). Cuiabá: Entrelinhas;
EdUFMT, 2007, p. 52. (Série transcrição: correspondência)
74
JESUS, Nauk Maria de. Op. Cit., p. 17.

52
Essa gênese embasada na filiação dos bandeirantes paulistas, se
produziu no emaranhado discursivo onde os nós dessa teia se encontravam, dando
visibilidade a uma ideia de glória, honra e domínio dos paulistas que, a custa de
suas ações, “[...] contribuíram para o aumento da fazenda real, onde foram
destacadas as conquistas no interior do território e a descoberta de ouro”75.
Tal filiação aos paulistas é perceptível, por exemplo, na crônica
Relação das Povoações de Cuiabá e Mato Grosso dos seus princípios até o
presentes tempos, escritos por José Barbosa de Sá, a qual iniciou com a
identificação dos bandeirantes paulistas, seguida das ações de catequização trazidas
por Anchieta em São Paulo e a expansão das conquistas territoriais pelas
navegações dos rios. Assim Barbosa de Sá inicia sua crônica:

[...] Entre as mais colônias do Brasílico Estado ou América


Portuguesa merece primazias a celebre cidade de São Paulo,
famosa planta do venerável padre José de Anchieta, da
companhia de Jesus, Missionário do Brasil natural das Canárias,
no território chamado de seus naturais de Piratininga regado com
as águas do rio Tietê e Tamandoatiba aonde a fé plantou o
primeiro padrão e arvorou seus estandartes fazendo celeiro da
divina palavra para a estender nas dilatadas sementeiras deste
Largo hemisfério cultivando os agrestes Silvados do paganismo
em frutíferos vergéis da Igreja Santa76.

Temos duas formas de expansão portuguesa em relação ao interior da


colônia e seus domínios: uma com base na “catequização” dos indígenas e a outra
pela sua “preação”. Logo de início, Barbosa de Sá apresenta a primazia do domínio
paulista e de seu poder de incorporação das novas áreas ao domínio da Coroa
Portuguesa.
O gesto fundador da narrativa desenrola numa inteligibilidade que tem
por mote a guerra, no caso, a guerra dos nativos em reação à ação dos bandeirantes.
Tal dimensão coloca o discurso histórico em sintonia com o funcionamento de uma
relação belicosa de poder no estabelecimento das povoações e das tensões com os
indígenas:

75
Ibid., p. 152.
76
SÁ, Joseph Barbosa de. Relaçaó das povoaçoens do Cuyabá e Mato Grosso de seos princípios
thé os presentes tempos. Cuiabá: EdUFMT, 1975, p. 9.

53
[...] Subindo o rio Pardo tomando a barra do Anhandohy e
Anhangohy que são dois rios nascidos de uma madre, navegando
estes acima até as vertentes que caem para o Paraguai que formão
o rio Matetéu e outros; acharão seis povoações de gente
castelhana brancos índios e mestiços com Igrejas Casas de talha
oficinas criações de bois cavalos e carneiros a quem os nossos
famosos capitães como fieis portugueses fizeram guerra por
repetidas vezes até que pondo em fuga os brancos recolherão
muitos índios destruirão e queimarão as feitorias vendo
pertencerem àqueles lugares ao domínio de Portugal, aonde se
acha por memoria algum gado vacum, chamados hoje as
vacarias, o que causou tanto espanto e temor as povoações da
província do Paraguai que ali mais não tornarão e ao não ser isso
seriam hoje do domínio da Espanha todos os nossos lugares até
São Paulo Minas Gerais Goiás e Cuiabá77.

O relato de Barbosa de Sá, ao apresentar a relação conflituosa e tensa


com os indígenas e também com os colonos espanhóis, criou um campo de
inteligibilidade que fundará um direito e justificará a ação dos paulistas em relação
às regiões mineradoras de Cuiabá e de Mato Grosso no século XVIII. Assim,

Ali se foram arranchando, fazendo casas e lavouras pelas


margens do mesmo rio Coxipó e Cuiabá acima, extinta uma
aldeia que se achava no lugar que é hoje o Porto do Borralho.
Passados alguns dias chegou ao arraial a bandeira dos Antunes,
que eram os três irmãos de que já falamos, chamados Gabriel
Antunes, Antonio Antunes Maciel e Filipe Antunes Maciel, e
com a notícia do invento do ouro uniram-se aos descobridores, e
fazendo suas consultas assentaram que fosse logo Gabriel
Antunes para S. Paulo dar notícia e levar as amostras dos
descobertos e trazer os ordens necessárias para o bem comum e
serviço de S. Majestade, que com efeito seguiu logo viagem, e
juntos os que ficaram mandaram escrever um aranzel para seu
regimen78.

A preocupação em fundar um direito sobre tais áreas mineradoras


levaram os bandeirantes paulistas a “escrever um aranzel para seu regimen”, ou
seja, começava-se a esboçar uma documentação que organizaria o governo da área,
sendo assim escrita a Ata de fundação de Cuiabá, embora subordinada
administrativamente à capitania de São Paulo. A esse respeito, João Antonio Neto
lembra que:

77
SÁ, Joseph Barbosa de. Op. cit., p. 10.
78
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Op. cit., p. 47.

54
[...] Aranzel, em que qualquer dicionário, é discurso prolixo e
enfadonho; lengalenga [Aurélio], significação que vinha do
século dezesseis, quando a palavra chegou ao português,
proveniente do árabe, através do espanhol.
Mas, ao tempo da penetração a Mato Grosso, o vocábulo também
designava antiga tarifa alfandegária, e ainda FORMULARIO,
REGULAMENTO ou REGIMENTO. Nesta última acepção é
que o cronista Barbosa de Sá usou o termo que é também
conhecido como ATA de fundação de Cuiabá79.

A chegada dos portugueses e bandeirantes paulistas na porção mais


oeste dos domínios lusos, fez com que a produção de registros assegurasse a posse
e o domínio da coroa portuguesa sobre as áreas recém-descobertas, seja produzindo
“um arquivo” que consagrava triplamente direitos, pois, para além da validação do
domínio sobre o território descoberto enquanto pertencente aos domínios de
Portugal, também contestava a posse dele por seu rival hispânico, além de negar o
direito de sua primitiva posse pelos povos nativos:

Aos oito dias do mês de Abril de mil setecentos e dezenove anos,


neste arraial do Cuyabá fez junta o capitão-mór Paschoal Moreira
Cabral com os seus companheiros e lhes requereu a eles este
termo de certidão para notícia do descobrimento novo que
achamos no ribeirão do Coxipó, invocação de Nossa Senhora da
Penha de França, depois que foi o nosso enviado, o capitão
Antonio Antunes, com as amostras que levou do ouro ao senhor
General com a petição do dito capitão-mór, fez a primeira entrada
onde assistiu um dia e achou pinta de um vintém, de dois e de
quatro vinténs e meia pataca, e a mesma pinta fez na segunda
entrada, em que assistiu sete dias, e todos os seus companheiros,
as suas custas, com grandes perdas e riscos, em serviço de Sua
Real Majestade, e como de feito tem perdido oito homens
brancos, fora negros, e para que a todo o tempo vá isto a notícia
de Sua Real Majestade e seus governos para não perderem seus
direitos [grifos nossos] e por assim ser verdade nos assignamos
neste termo, o qual eu passei bem e fielmente a fé do meu oficio
como escrivão deste arraial. – Paschoal Moreira Cabral – Simão
Rodrigues Moreira – Manoel dos Santos Coimbra – Manoel
Garcia Velho – Balthazar Ribeiro Navarro – Manoel Pedroso
Louzano – João de Anhaia de Lemos – Francisco de Siqueira –
Ascenso Fernandes – Diogo Domingues – Manoel Ferreira –
Antonio Ribeiro – Alberto Velho Moreira – João Moreira –
Manoel Ferreira de Mendonça – Antonio Garcia Velho – Pedro

79
ANTONIO NETO, João. História do Poder Judiciário de Mato Grosso. Cuiabá: s/ed. 1985, p.
82.

55
de Góes – José Fernandes – Antonio Moreira – Ignacio Pedroso
– Manoel Rodrigues Moreira – José da Silva Paes80.

Dessa maneira, o que estava em jogo era a produção material de


“marca” de um registro, de um ato fundador de direito, capaz de estabelecer os
parâmetros de um exercício de poder circunscrito ao seu lugar institucional de
produção, operando um corte entre o que deveria ser lembrado e o que deveria ser
omitido, pois não se pode olvidar que não há arquivo “[...] sem um lugar de
consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade. Não há
arquivo sem exterior81”, colocando em funcionamento toda uma organização
escriturária exercida pelos escrivães e outros funcionários públicos da colônia, que
estabeleciam as diretrizes a serem seguidas:

No mesmo dia, mês e ano atrás nomeados elegeu o povo em voz


alta o capitão-mor Paschoal Moreira Cabral por seu guarda-mor
regente até a ordem do senhor General para poder guardar todos
os ribeiros de ouro, socavar, examinar, fazer composições com
os mineiros e botar bandeiras, tanto aurinas [sic] como aos
inimigos bárbaros,[grifos nossos] e visto elegerem ao dito lhe
acatarão o respeito que poderá tirar autos contra aqueles que
forem régulos, como é amotinador e a-leis, que expulsará, e
perderá todos os seus direitos e mandará pagar dívidas, e que
nenhum se recolherá até que venha o nosso enviado, o capitão
Antonio Antunes, o que todos levamos a bem hoje, 8 de Abril de
1719 anos, e eu Manoel dos Santos Coimbra, escrivão do arraial,
que o escrevi. – Paschoal Moreira Cabral82.

Tais relatos deixam vislumbrar a dinâmica das relações de soberania


exercida na área recém-ocupada pela ação dos bandeirantes paulistas, por meio do
domínio em face aos nativos que ocuparam originalmente a área e os espaço onde
encontrariam ouro, o que reforçou e consignou a premissa de uma “anterioridade
fundadora”, lembrando que tal Ata de fundação está presente na referida obra de

80
ATA de Fundação de Cuiabá. In: Annaes do Sennado da Camara do Cuyabá: 1719-1830. Op.
cit. p. 42.
81
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Cláudia de Moraes
Rego. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2011, p. 22. Nesse mesmo sentido, à luz do historiador
Michel de Certeau, os lugares de poder ao mesmo tempo que autorizam um lugar de fala, promovem
também a sua interdição. Cf. CERTEAU, Michel. A Operação historiográfica. In: A Escrita da
História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
82
Ibid.

56
Joseph de Sá e nos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá (ambos elaborados a
partir do final do século XVIII).
Em relação a esse ponto, é digno de nota a análise de Carlos Alberto
Rosa, na introdução aos Anais do Senado de Cuiabá, salientando que é a partir de
1786 que a Câmara passou a produzir esse documento, seguindo o modelo dos
Anais de Vila Bela. Tal situação leva a pensar que a confecção dos anais em relação
aos anos anteriores teve por base registros anteriores, assim sendo, Carlos Alberto
Rosa lembra que eles foram estabelecidos em dois momentos distintos:

1- A narrativa dos Anais do Cuiabá é, até 1765, feita com, pelo


menos, quatro camadas: José Barbosa de Sá, Pedro Taques de
Almeida Paes Leme, Joaquim da Costa Siqueira e Diogo de
Toledo Lara Ordonhes.
2- [..] A partir de 1766, até 1786, Siqueira foi narrador exclusivo.
Depois, nos anos subsequentes, vieram outros segundos
vereadores83.

Nessa medida, os registros dos cronistas do século XVIII sobre Cuiabá


e Mato Grosso criaram uma inteligibilidade fundadora, dando primazia às ações
dos paulistas e de justificação de possíveis privilégios na administração das áreas
cujos limites se constituiriam em uma problemática constante daquele período.
Vale lembrar que tais relatos, sejam de Barbosa de Sá, a Ata de
fundação atribuída a Pascoal Moreira Cabral, e algumas correspondências de
Rodrigo Cezar de Menezes, apresentados no decorrer desse capítulo “foram
produzidos por paulistas”, para descrever as ações de seu próprio grupo. Assim, não
é à toa que eles são apresentados de maneira “elogiosa” nesses relatos. Mesmo
assim, situa-se, ao nosso ver, no campo de fundamentação de uma anterioridade
fundadora na defesa e conservação da posse, seja no caso específico o aspecto da
luta contra o “gentio”, ou com relação aos espanhóis.
Outra dimensão dessa premissa da anterioridade fundadora é
justamente a ideia de um direito assentado numa Soberania Superior, uma
soberania divina em que o monarca deveria apegar-se enquanto modelo de sua ação
governamental, visto que demarcada pela tradição. A esse respeito, Sérgio Adorno
comenta que:

83
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Op. cit., p. 30.

57
No século XVIII o poder soberano revestiu-se de legalidade; o
rei exerce o poder por direito, inicialmente direito divino, em
seguida por direito consuetudinário. Foi esse modelo que povoou
o imaginário da filosofia política moderna, em torno de nomes
como Bodin, Maquiavel, Hobbes e Locke, contribuindo para
disseminar a identidade entre lei e poder, entre direito e justiça,
entre soberania e juridicidade84.

Diante desse jogo relacional entre o rei e seus súditos, assentado na


legitimidade do exercício de poder régio que, por sua vez, era pautado num direito
que lhe antecedia, seja o direito consuetudinário, seja a premissa do direito divino85,
se materializaram no fato de que os discursos proferidos pelo rei, em cartas,
instruções, portarias e até mesmo no Código Filipino, aparecem como forma
reatualizada de um direito de domínio:

Com a União Ibérica, elaborou-se um novo código: as


Ordenações Filipinas, que, orientando a prática penal no Brasil
desde os começos do século XVII até a Regência, normatizam a
ação penal durante todo o período do Brasil colônia. E vão além
da Independência. Depois da Restauração, em 29 de janeiro de
1643, com a ascensão da casa de Bragança, o Código Filipino
será revalidado. É em um prólogo e em uma lei da confirmação
que se afirma sua validade, quando declara soberana pela graça
de Deus. A enumeração da geografia do Império afirma que D.
João é ‘rei de Portugal e dos Algarves, d’aquém e d’além-mar em
África, senhor da Guiné e da Conquista, navegação e comercio
da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia e Brasil86.

Semelhante fórmula será retomada pelo soberano D. Filipe I, no período


da União Ibérica (1580-1640) e repetida por outros governantes, por exemplo, D.
João V, que era o rei português quando da atividade de captura de nativos pelos
bandeirantes paulistas, movimentação que redundou na descoberta das minas de

84
ADORNO, Sérgio. Direito, violência e controle social. In: O legado de Foucault. L. Scavone; M.
C. Alvarez; R. Miskolci (Org.). São Paulo: Ed. UNESP, 2006. p. 209.
85
Nesse sentido, é pertinente a análise de Jean-Jacques Chevallier sobre pensadores como:
Maquiavel, Bodin, Hobbes como teóricos que estabeleceram tais premissas de soberania. Cf.
CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Tradução de
Lydia Cristina. Rio de Janeiro: Agir, 1999.
86
MOTTA, Manoel Barros da. Crítica da razão punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 22.

58
ouro de Cuiabá e em seguida as de Mato Grosso. Vejamos outro exemplo, agora,
de ordem régia:

[...] Dom João por graça de Deus Rey de Portugal e dos Algarves
daquém e dalém mar em África Senhor da Guiné etc. Faço saber
aos oficiais da Câmara da Villa Real do Bom Jesus do Cuyabâ
que se viu a conta que me destes em carta de dez de Abril do ano
passado sobre as ‘mortes e insultos’ que nos fazia o gentio
Payaguá e guerra que muitos moradores intentarão fazer-lhe para
o que novamente se ficarão aprestando a sua custa dando-lhes
[...] para melhor segurança as duas pesas de artilharia que se
acham nessas minas pertencentes a minha fazenda e o mais
necessário de pólvora e balas canoa para transporte e mais
petrechos87.

Assim, cada discurso que materializava as decisões do rei sobre


determinado assunto, tenham sido ordens ou instruções, remonta todo o esquema
anterior que fundamentava um domínio e oferecia visibilidade a um exercício de
poder pautado num direito pautado na tradição das conquistas portuguesas no
aquém e além-mar. Além disso, tal característica do poder régio evocava a
fundamentação de uma entidade revestida de soberania celestial, divina, como base
fundadora da sua soberania terrestre.
O exercício de poder régio, nesse jogo de representações
fundamentadas em princícipios de anterioridade, que remonta a tradição ou os
costumes, tornava-se presente em qualquer oportunidade de evento festivo ou
cerimonial, como atesta a pesquisa do historiador Gilian Evaristo França Silva
sobre as Festas e celebrações em Vila Bela da Santíssima Trindade no século XVIII:

[...] Na festa, o sagrado e o profano caminhavam juntos, "como


se dentro de cada festa religiosa existisse uma profana e vice-
versa". Repleta de rituais que não se encerravam nos atos, no
próprio ritual, mas do que eles sinalizavam, ou seja, a festa
tornava-se espaço de manifestação pública para diversos setores
sociais. Nesse sentido, ela organizava espaços de sociabilidades
dos grupos em questão, a exemplo da chegada da imagem do
Senhor Bom Jesus do Cuiabá, em 1729, quando ocorreram
muitos festejos organizados pelos moradores da Vila Real. A
imagem foi trazida em procissão do Porto Geral, e em seguida
levada à igreja matriz, onde ficou alojada em um altar. Houve

87
MF.08, Doc.105, AHU. In: Coletânea de Documentos Raros do Período Colonial (1727-1746),
vol. I. Eliane Maria Oliveira Morgado...[et.al.] (Org.). Cuiabá: Entrelinhas; EdUFMT, 2007, p.97.
(Série transcrição: correspondência)

59
missa cantada e sermão pregado pelo padre José Angola,
religioso franciscano. As manifestações profanas foram
compostas por representações de duas comédias, banquetes e
fogos de artifício, que duraram quatro dias, por conta das
“pessoas principais” da vila88.

Nesse sentido, as condições epistêmicas de governo em Portugal do


século XVIII estabeleceram um campo discursivo no qual os enunciados se
revestem da importância dessa anterioridade fundadora, pautada num sistema de
crenças, valores e saberes manifestos, também, em cerimônias festivas em
territórios além-mar. Assim,

[...] As festas e celebrações exibem, em nosso estudo, sua função


política e cultural, enquanto legitimadoras, tanto do poder régio
como do local, possibilitando a melhor administração e
atendimento dos interesses da metrópole, bem como a afirmação
dos poderes locais e a inserção de valores necessários à
ordenação e domínio sobre a sociedade mineira e fronteiriça da
Capitania de Mato Grosso89 [...]

Sintomas desse ambiente cultural, político e social materializava-se nos


discursos que estabeleciam pactos e compromissos recíprocos que fundamentaram
exercícios de poder baseados nessa anterioridade fundadora (de Deus, em relação
ao rei, do rei, em relação aos súditos etc.), e o papel das festas e celebrações
enquanto palco propício ao brilho do exercício dessa soberania, possibilitando plena
visibilidade a esse mesmo poder.

1.3- Relação diferenciadora não isotópica

Foucault assinala ainda uma terceira característica do exercício de


soberania no curso O Poder Psiquiátrico, ao evidenciar que as relações de soberania
não são isotópicas, ou seja, elas se estabelecem numa constante rede de
diferenciações, sem, contudo, se pautar em uma rede de hierarquia e de medida
comum entre os agentes desse exercício de poder:

88
SILVA, Gilian Evaristo França. Festas e celebrações em Vila Bela da Santíssima Trindade no
século XVIII. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá,
2008, p. 68.
89
Ibid., p.30.

60
Em outras palavras, as relações de soberania são perpétuas
relações de diferenciação, mas não são relações de classificação;
elas não constituem um quadro hierárquico unitário com
elementos subordinados, elementos superordenados. O fato de
serem não -isotópicos quer dizer, em primeiro lugar, que não têm
medida comum, são heterogêneas umas em relação às outras.
Vocês têm, por exemplo, a relação de soberania que encontramos
entre o servo e o senhor; vocês têm outra relação de soberania,
que é absolutamente insuperponível àquela e que é a relação entre
detentor do feudo e suserano; vocês têm a relação de soberania
exercida pelo padre em relação ao leigo. Todas essas relações não
podem ser integradas no interior de um sistema verdadeiramente
único. Além disso- é também o que marca a não-isotopia da
relação de soberania-, os elementos que ela implica, que ela põe
em jogo, não são equivalentes: uma relação de soberania pode
perfeitamente dizer respeito á relação entre um soberano pode
perfeitamente dizer respeito à relação entre um soberano ou um
suserano- não faço diferença em uma análise tão esquemática
como esta- e uma família, uma coletividade, os habitantes de uma
paróquia, de uma região; mas a soberania pode ter por objeto
uma terra, uma estrada, um instrumento de produção (um moinho
por exemplo), os usuários- as pessoas que passam por um
pedágio, uma estrada, caem sob a relação de soberania90.

O que Foucault chama de “relação diferenciadora não isotópica”


representa, em outras palavras, uma organização corporativa da sociedade. Nesse
sentido, os elementos e os objetos sobre as quais incidem essa dimensão da
soberania são heterodoxos e múltiplos, o que implica em constante tensão entre os
agentes envolvidos. Temos uma série de desdobramentos de instâncias de soberania
que “[...] se entrecruzam, se entrelaçam umas nas outras de uma maneira tal que
não dá para estabelecer entre elas um sistema em que a hierarquias seja exaustiva e
planejada”91.
Corolário dessa premissa é que também se multiplicaram os litígios, os
conflitos, os saques, as depredações e a guerra, produzindo a necessidade de um
ponto único no qual convergisse a arbitragem da justiça, e esse espaço era
exatamente ocupado pelo rei, ponto de inflexão das múltiplas soberanias.
Nesse sentido, qualquer pessoa poderia cair numa relação de soberania,
já que ela se manifestava através de posicionamentos não isotópicos de exercício,

90
FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 54-55.
91
Ibid.

61
isso quer dizer, por exemplo, que um capitão-general, como Rodrigo Cezar de
Menezes, quando da descoberta aurífera nas proximidades do rio Coxipó, ao
controlar as entradas e saídas das pessoas, cobrando-lhes passaporte, fazia
exatamente funcionar o regime de soberania:

Por me constar que das Minas Gerais vem algumas, pessoas para
esta cidade com sentido de se passarem as Minas do Cuiabá,
deixando aquelas dívidas, e trazendo negros alheios..., ordeno
aos Capitães Mores...ponham todo o cuidado em não deixar
passar pessoa alguma, sem que apresente passaporte de quem
Governar as Minas Gerais92.

Logo, existia uma soberania do capitão-general, uma soberania sobre


os capitães-mores e, por fim, uma soberania dos capitães-mores sobre os demais
migrantes que por ventura viessem à procura das minas auríferas de Cuiabá,
deixando seus locais de origem e ali ingressando com seus escravos roubados.
Estão consignados também, nos Anais de Cuiabá, alguns exemplos
dessa “relação diferenciadora não isotópica”, quando se foram organizados
paulatinamente grupos sociais distintos nas referidas minas, sob um sedimento
documental já apresentado anteriormente sob o formato de “aranzel”, fonte
fundadora que externou as primeiras diretrizes para a ocupação e exploração das
jazidas auríferas:

Com esta carta chegaram os dois providos na administração da


justiça, João Antunes Maciel e Fernando Dias Falcão, a saber,
aquele para regente e este para superintendente das terras
minerais, como as patentes o diziam; entraram a exercer os seus
cargos com zelo e cuidado, o regente João Antunes a conhecer
dos negócios, principiaram os processos, correram as demandas
e execuções, com que satisfizeram os homens suas paixões,
tantos tempos faltos deste recurso. Fez-se logo uma cadeia de
parede de pau a pique, coberta de palha na esquina que fronteia
hoje com a de Francisco Pereira dos Guimarães e com as casas
de Lourenço da Silva Tavares. Viram logo muitos pretos e bens
arrematados em praças e outros mais feitos das novas justiças.
No mesmo ano chegou por vigário curado e da vara o Reverendo
Padre Manoel Teixeira Rabello, provido pelo cabido do Rio de
Janeiro, a sede vacante por morte do Exmo. Bispo D. Francisco

92
DOCUMENTOS INTERESSANTES PARA A HISTÓRIA E COSTUMES DE SÃO PAULO.
Archivo do Estado de São Paulo. Publicação Official, 1885, vol. XIII, p. 44.

62
de S. Jeronimo; tomou posse da igreja e entrou a exercer o seu
pastoral oficio93.

Sendo assim, cabia a cada membro da sociedade colonial das minas de


Cuiabá, ao exercer em seu ofício uma parcela de soberania, seja na administração
da justiça local, no controle das finanças e tributos, nas paixões dos homens ou na
pastoral das almas, cabendo ressaltar não haver interposição de um exercício de
soberania sobre outro, visto que uma norma não equivalia isonomicamente para
todos.
Nesse aspecto da soberania postulava-se uma ideia de governo em que
se reinavam as cortes, reinavam os vassalos, reinavam os súditos, mas não se
governava uma população, ou seja, a ideia de população não remete
necessariamente a um mero investimento político atento às condições de sua
vitalidade, mas sim sua importância estratégica de povoamento e defesa.
A população aparecia como um investimento político de defesa e
conservação de áreas territoriais em litígio ou negociação pelos tratados de limites
e das quais o primeiro capitão-general de Mato Grosso, Antonio Rolim de Moura,
era conhecedor das tratativas. Diante disso, faz todo o sentido, o problema da
população aparecer nas Instruções Régias, mas engolida pela problemática geral do
povoamento:

[...] Por se ter entendido que Mato Grosso é a chave e o


propugnáculo do sertão do Brasil pela parte do Peru, e quanto é
importante por esta causa que naquele distrito se faça população
numerosa, e haja forças bastantes a conservar os confinantes em
respeito, ordenei se fundasse naquela paragem uma vila, e
concedi diversos privilégios e isenções para convidar a gente que
ali quisesse ir estabelecer-se; e que para decência do Governo e
pronta execução das ordens se levantasse uma Companhia de
Dragões e, ultimamente, determinei se erigisse Juiz de Fora no
mesmo distrito. Encomendo-vos, que depois que a ela chegardes,
considereis e me façais presente quais outras providências serão
próprias para o fim proposto de aumentar e fortalecer a povoação
daquele território94.

93
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Op. cit., p. 44.
94
INSTRUÇÃO DA RAINHA D. MARIANA DE ÁUSTRIA PARA D. ANTÔNIO ROLIM DE
MOURA. LISBOA, 19 DE JANEIRO DE 1749. In: INSTRUÇÕES AOS CAPITÃES-GENERAIS.
Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (publicações avulsas) n. 27, Cuiabá: IHGMT, 2001,
p. 12.

63
Tratava-se de uma preocupação inicial de povoar para constituir uma
população numerosa, tendo como fins a defesa e a conservação do território, e para
isso o alvo das ações governamentais era dirigida aos seus reais vassalos, os quais
haviam desempenhado seus ofícios em Portugal ou nas colônias, exercendo, nessa
medida, parcela de soberania:

Supostos estes fundamentos da justiça da minha coroa, deveis


não só defender as terras que os meus vassalos tiverem
descoberto e ocupado e impedir que os espanhóis se não
adiantem para a nossa parte; mas, promover os descobrimentos e
apossar-vos do que puderdes e não estiver já ocupado pelos
espanhóis; evitando, porém, quanto for possível, não só toda a
violência, mas ainda a ocasião de dissabores, pelo que toca às
novas ocupações95.

Veja que a instrução régia exemplifica exatamente a relação de


soberania não isotópica, uma vez que põe em prática os compromissos do capitão-
general em relação, não aos vassalos, mas à rainha e ao rei. Os demais vassalos da
capitania de Mato Grosso só foram implicados por meio desse entrelaçamento de
soberanias, que o próprio Rolim de Moura exerceria entre as autoridades locais, a
fim de que os ditames do poder régio fossem atendidos e repassados para os
próximos capitães-generais.
Tais ditames constituíram, assim, a preocupação de ocupar novas áreas
que, por ventura, não houvessem sido ocupadas pelos espanhóis, e não somente
manter os espaços já ocupados, daí a preocupação com o povoamento da capitania
de Mato Grosso e com toda a rede de compromissos que a Coroa se prestava a esse
respeito, concedendo isenções e privilégios, situação que todos os futuros
governantes deveriam estar atentos, conforme as instruções deixadas por Rolim de
Moura a João Pedro da Câmara:

[...] Todos na América se reputam por fidalgos, e assim se pagam


muitos de serem tratados com atenção e agasalho, e pela
continuação do tempo produz isto maior efeito para o
envelhecimento das terras do que se pensa; mas, pela importância

95
INSTRUÇÃO DA RAINHA D. MARIANA DE ÁUSTRIA PARA D. ANTÔNIO ROLIM DE
MOURA. Op. cit., p. 18.

64
desta Vila, não só se devem tratar todos os seus moradores e do
distrito de Mato Grosso, com bom modo, mas devem patrocinar-
se com tal benignidade e favor, em tudo que não ofender a justiça,
que claramente se manifeste a diferença que deles se faz aos mais
súditos da Capitania, afim de que isso convide aos homens a
virem buscar essas terras e os faça tolerar com mais sofrimento o
muito que nelas se padece96.

Ou seja, a referida instrução, apresentada por Rolim de Moura ao seu


sucessor, chamava sua atenção para agir com sabedoria em lidar com as posições
que cada elemento da sociedade do período se arrogava possuir, já que muitos deles
se “reputam por fidalgos”, os quais, ao nosso ver, faziam parte daquela “dimensão
diferenciadora não isotópica” da soberania, ou seja, para que estes fossem
respeitados em seus direitos e em suas influências, adquiridos no processo de
ocupação dessas áreas, podendo ser também criadas condições de atração de novos
contingentes para a região.
Nessa configuração de soberania, a nossa perspectiva difere97 da visão
contida na obra Poder Metropolitano em Cuiabá, de autoria do historiador Otávio
Canavarros, pois para ele tratava-se de conceber um poder cabalmente localizado
na estrutura institucional da Coroa portuguesa na busca da interiorização dos seus
órgãos burocráticos:

Desse modo, é ao poder político que Portugal exerceu sobre a sua


colônia na primeira metade do Século XVIII que estaremos nos
referindo.
Nessa categoria inclui-se o poder metropolitano [grifos do
autor], ou seja, o conjunto de instituições político-
administrativas criadas em Cuiabá no processo colonizador,
desde a eleição da Guarda-moria em 1719, cujas competências
do titular eram muito bem definidas pelo ‘regimento dos
superintendentes’ de 1702. Esse poder abrange tanto os poderes
locais (Juízo Ordinário, Juízo de Órfãos, Câmara de Vereadores,
Almotaçaria, Ordenanças, etc.), como poderes periféricos da

96
INSTRUÇÃO DO CONDE DE AZAMBUJA PARA D. JOÃO PEDRO DA CÂMARA. PARÁ,
8 DE JANEIRO DE 1749. In: INSTRUÇÕES AOS CAPITÃES-GENERAIS. Instituto Histórico e
Geográfico de Mato Grosso (publicações avulsas) n. 27, Cuiabá: IHGMT, 2001, p. 22.
97
Interessante trabalho em que descreve a força da burocracia lusa, que, mesmo diante de uma série
de empecilhos, conseguiu se interiorizar. Trabalho fundamental para compreender as ações
geopolíticas da Coroa Portuguesa em Cuiabá no período colonial. Nesse sentido, certamente, todo
aparato estatal e institucional garantia exercícios de poder; a nossa divergência, se pauta na
consideração de que houve formas de apropriações e desvios provocados por outros agentes
históricos, que, não necessariamente, estava ligado ao poder metropolitano. Cf. CANAVARROS,
Otávio. O poder metropolitano em Cuiabá (1727-1752). Cuiabá: EdUFMT, 2004.

65
Coroa (Corregedoria, Ouvidoria, Provedoria, Governadoria,
etc.), formando um conjunto único, organicamente identificável
nas Ordenações do Reino como jurisdições dependentes de
nomeações ou confirmações reais, diretas ou delegadas98.

Tal posição leva a pensar a constituição de um Poder Metropolitano em


Cuiabá, defendido pelo citado historiador, ao mostrar que esse conjunto de
instituições, de registros, de cargos e funções dependia da confirmação real, direta
ou delegada. Nesse sentido, a tese defendida por Canavarros é a de que a estrutura
política da Coroa Portuguesa se interiorizou e exerceu o seu domínio a partir de
uma centralização do poder régio, e prossegue:

O certo é que Portugal conseguiu colonizar a sua imensa América


Portuguesa, dotá-la de instituições estáveis e, para os objetivos
propostos, nos quais se embutia o sentido da colonização de que
fala Caio Prado Júnior [...]. Daí as providências de elevar o
arraial de Cuiabá à condição de Vila, dotando-as de instituições
necessárias ao funcionamento e à obediência ao Estado
Português, bem como a estabilidade do povoamento99.

Assim, a forma como Canavarros concebe o poder se fundamenta, de


um lado, na premissa do monopólio da força (ressonância do pensamento de Max
Weber) e, de outro, na premissa de um “sentido da colonização”, trazido pelas
reflexões de Caio Prado Júnior100 e aprofundadas por Fernando A. Novais101.
Diante desse viés explicativo, trata-se de mostrar uma estrutura
institucional criada pela Coroa Portuguesa que pressupõe uma forma de poder
centralizada na figura do rei de Portugal e que irá fomentar a ideia de um sentido
da colonização voltado extremamente para a criação de um estágio de capitalização
portuguesa, por meio da produção colonial, cuja maior parte da riqueza era remetida
para Portugal.
Assim, percebemos na tese de Canavarros que a centralidade da análise
se pauta em pensar o poder a partir do formalismo jurídico das instituições fortes e
estáveis, mesmo na porção mais interiorana da colônia na América, e que tal

98
Ibid., p. 15.
99
Ibid., p. 106.
100
Cf. PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2006.
101
NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São
Paulo: Hucitec, 1995.

66
institucionalização da estrutura política da metrópole em Cuiabá está relacionada
com a estabilidade do povoamento e manutenção da área conquistada. Com esse
último ponto estamos de acordo, mas, ao nosso ver, não é somente isso, pois há que
se considerar a dimensão prática do exercício do poder que escapa a tais
estruturações.
Podemos considerar que o exercício da soberania implicava, do ponto
de vista de uma “relação diferenciadora não isotópica”, à disseminação de uma
multiplicação de soberanias ainda mais atrelada à busca de um processo de
sedentarização de grupos nômades, fossem eles nativos, ou de aventureiros, os
quais que se estabeleceram em Cuiabá e Mato Grosso por conta das notícias da
descoberta aurífera.
Ilegalismos, como concubinato, contrabando, práticas de feitiçaria,
negligência com as desobrigas por parte dos senhores, incitava o Estado e a Igreja
a atuar no processo de sedentarização dessas existências fugazes, numa tentativa de
frear a mobilidade desses grupos e lhes prender à terra. Nesse cenário, Nauk Maria
de Jesus afirma que:

[...] A defesa contra a invasão de estrangeiros e o aumento da


Fazenda Real eram sinônimos de fidelidade e requisitos
importantes para a obtenção deles. As zonas mineiras tinham a
finalidade de combater outras categorias de inimigos da Coroa:
contrabandistas, colonos, rebeldes e quilombolas [...]Já nas áreas
de fronteira e de mineração, como a capitania de Mato Grosso,
as suas autoridades acreditavam que, por possuir em seu território
essas duas importantes particularidades, cumpriam os requisitos
para receberem os tais privilégios, pois combatiam índios,
contrabandistas de ouro, quilombolas e protegiam as terras de
possíveis invasões espanholas102.

Os grupos nômades certamente constituíam um grande obstáculo para


a constituição de uma área fronteiriça e guarnecida defensivamente contra os rivais
hispânicos. Nesse sentido, talvez fossem toleradas certas formas de ilegalismos que,
mesmo sendo de conhecimento público, eram amplamente praticadas. Uma delas
foi o concubinato, onde “[...] os amancebamentos ou uniões consensuais foram uma
constante durante todo o século XVIII em Mato Grosso. Praticamente não se

102
JESUS, Nauk Maria de. Op. cit., p. 152.

67
casava”103, situação que, diante da tensão da necessidade de fixação populacional
no território, é bem provável que esse tipo de ilegalismo, mesmo tido como
“escandaloso” e de “conhecimento público”, era amplamente praticado e, de certo
modo, aceito, não sendo exclusividade das classes mais pobres enquanto meio tático
de sobrevivência.
Diante dessas existências fluídas, móveis e instáveis na colônia, um
controle jurídico foi ali instalado com o fim de frear essas pulsões e punir os
possíveis desvios, analisadas principalmente no plano jurídico por parte dos
Tribunais Inquisitoriais que, desde o século XVII, lidavam com situações
paradoxais de experiências humanas apresentadas por esse tipo de discurso moral,
enquanto “escandalosas e nefandas”, e os jogos de verdade que incentivavam
qualquer indivíduo a depor.
Nesse cenário de constituição do universo colonial, talvez as relações
sexuais tenham sido o campo da existência humana onde a tensão entre condutas e
jogos de verdade acerca do corpo e do desejo tenham se manifestado com maior
contundência, situando cumplicidades inauditas, além de invejas e ciúmes
intempestivos.
Dentre essas experiências consideradas vergonhosas “para pessoas de
bem”, podemos situar, a título de exemplo, a questão da sodomia feminina, que já
era prevista no Código Filipino e trabalhada de maneira magistral pelo historiador
Ronaldo Vainfas, no artigo Homoerotismo feminino e o Santo Ofício, publicado na
coletânea História das Mulheres no Brasil, organizada por Mary del Priori.104
Como criar uma punição cabível a tais práticas consideradas “nefandas
e horrendas” às mulheres? Que critérios seriam utilizados para provar uma sodomia
perfeita, já que ela se consumava com o derramamento de sêmen no vaso traseiro?
Enfim, as relações homoeróticas femininas passavam a ser objeto de um discurso
misógino do inquisidor do Santo Ofício, o qual inquiria sobre as experiências
sexuais femininas a partir dos desejos masculinos, ou seja,

103
SILVA, Jovam Vilela. Op. cit., p. 171.
104 104
Cf. VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo Ofício. In: História das mulheres
no Brasil. Mary del Priore (Org.). São Paulo: Contexto, 2004.

68
[...] Não conseguiam pensar no assunto senão a partir da cópula
heterossexual e do ‘modelo ejaculatório’.
Não é de estranhar, portanto, que a maioria dos inquisidores que
discutiram o assunto em Évora fosse da opinião de que somente
se uma mulher introduzisse o ‘sêmen’ no ‘vaso posterior’ de
outra é que ficaria plenamente configurado o ato de sodomia
entre fêmeas. Os pressupostos deste juízo assentavam, em
primeiro lugar, na firme convicção de que a vagina era imprópria
para a efetuação do ‘dito crime’, que para ser perfeito
pressupunha a penetração anal; em segundo lugar, davam
margem à especulação a respeito da eventual incapacidade do
instrumento utilizado - se esse fosse o caso - para “comunicar
semen agentis no vasopreposteruní'. Em outras palavras, a
maioria dos inquisidores insistia na idéia do coito anal como o
autêntico ato sodomítico, mas conjecturavam ainda o uso de
instrumentos caracterizando uma ocorrência perfeita do ‘pecado
nefando’. Nisso seguiam a tradição escolástica, que penalizava
as mulheres pelo uso de instrumentos de ‘vidro, madeira, couro
ou qualquer outra matéria” na execução de semelhantes cópulas
umas com as outra105.

Entre a possibilidade de sodomia perfeita, mediante argumentos que


sustentassem a sua consumação por meio de instrumentos acessórios de madeira,
de vidro ou de couro, ou de sua a impossibilidade, devido à argumentação
falocêntrica do ato, situava a posição Dom Veríssimo de Lencastro, futuro
inquisidor geral, para quem todas as relações homoeróticas femininas seriam
nefandas.
O subsequente abandono dessa questão nos tribunais em relação ao
corpo feminino não se deu, certamente, por benevolência dos inquisidores e sim
pelo desconhecimento e,

Antes, porém, que o Conselho Geral da Inquisição reconhecesse


a incompetência do Santo Ofício para julgar mulheres sodomitas,
algumas caíram nas malhas do Tribunal, e justamente no Brasil.
Durante a Primeira Visitação do Santo Ofício ao nordeste, entre
1591 e 1595, vinte e nove mulheres foram arroladas pelo
visitador Heitor Furtado de Mendonça como praticantes do
‘pecado nefando’, sete das quais responderam a processo. Não
apareceu nenhum caso espetacular de travestismo [grifos do
autor], como o da alemã Catharina Linck, nenhum caso de
paixão conventual, como o da abadessa de Pescia, mas, em
contrapartida, temos 29 mulheres citadas, diversos enredos e uma
série documental106.

105
Ibid., p. 122.
106
Ibid., p.125

69
Nesse sentido, Vainfas apresenta experiências de carícias, afetos e atos
sexuais, a despeito de todo um código moral vigente de uma valoração do feminino,
em torno da virgindade e, da masculinidade, em torno da virilidade. Em relação às
relações femininas, a ação inquisidora de Heitor Furtado de Mendonça iria mostrar:

Várias mulheres, já casadas ou viúvas no tempo da Visitação,


confessaram namoros e toques com amigas de infância. Foi o
caso de Madalena Pimentel, mulher de 46 anos, viúva de
fazendeiro, que admitiu ter vivido, quando moça, ‘amizade tola
e de pouco saber com outras moças de sua mesma idade’,
incluindo ‘contatos carnais’. Foi o caso de Guiomar Pisçara,
mulher de 38 anos, esposa de lavrador que, quando tinha cerca
de 13 anos, deleitava-se com Méscia, ‘negra ladina da Guiné’,
escrava doméstica da família107.

No caso do concubinato, por exemplo, Maria Amélia Assis Alves


Crivelente apresenta casos, como o de “Vicente de tal, que era casado em São Paulo
quando foi acusado de concubinato com a bastarda Thereza Rodrigues, solteira,
cuja mãe era cúmplice dos dois”, ou, ainda, o caso da negra forra Bárbara, que era
casada com um índio por nome de batismo de Luiz, e que mantinha relação de
concubinato com um negro forro de nome Joaquim Garcia. Esses dois exemplos,
de certa maneira, indicavam que esse tipo de relação apresentava muitas
variáveis108.
O formalismo jurídico das instituições certamente produziam relações
de poder, mas o poder propriamente dito, enquanto soberania, não se encontrava lá
estagnado, parado, na sua inércia, apto a entrar em movimento a qualquer momento,
e sim enquanto operadores materiais de dominação, o que explica o fato de as
pessoas simples sentirem uma parcela de poder quando testemunhavam condutas
ilícitas que atingiam pessoas da alta cúpula da sociedade colonial. É certo que isso
representava, também, um jogo de ciúme, inveja, injúria política e infâmia:

[...] As denúncias desvendam ressentimentos disfarçados de zelo


pela moral e os bons costumes da sociedade; ódios e inimizades

107
Ibid., p.126.
108
CRIVELENTE, Maria Amélia Assis Alves. Uma devassa nas Minas: imigração e moralidade na
fronteira mais remota da colônia: Mato Grosso 1785. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2006, p. 60-61.

70
públicas; exploração do trabalho escravo nos domingos e dias
santos; prostituição consentida pela família, revelando talvez
uma necessidade de sobrevivência ou mesmo uma escolha;
incestos e abusos de poder, resistências pelos senhores de
engenho ao pagamento das desobrigas relativas aos sacramentos
dos escravos e, a mais corriqueira em toda a documentação, como
não poderia deixar de ser, o concubinato em seus mais diversos
aspectos109.

O que indica um poder exercido por um grupo subalterno, ao denunciar


senhores que não pagavam desobrigas, que mantinham relações de concubinato110
com mulatas e escravas, de famílias que ofereciam suas filhas trocando relações
sexuais por objetos materiais. Todos eles produziam julgamento que, avalizado pelo
bispo responsável pelas visitas, garantia aos delatores um empoderamento sobre a
existência de outras pessoas, mesmo as mais abastadas111.
Esse tipo de exercício de poder manifestado cotidianamente por pessoas
comuns em relação aos vizinhos, parentes ou conhecidos, ressoava nas lettres de
cachet, utilizadas na sociedade francesa do século XVIII e que forneciam condições
de punições, sem, contudo, passar por um processo judiciário. Tratava-se, na
prática, de uma multiplicação de soberanias, prerrogativa régia concedida a
qualquer súdito sobre a existência de outras pessoas:

[...] Em pleno coração do século XVIII, uma forma arbitrária da


autoridade real vai se constituir em uma bênção para famílias
que, às voltas com a libertinagem desonrosa de um de seus
membros, deseja evitar qualquer ação da justiça ordinária
considerada infamante. O pedido de prisão através da lettre de
cachet torna-se o meio de conciliar a reparação da honra com a
privacidade da família112.

109
CRIVELENTE, Maria Amélia Assis Alves. Op. cit., p. 77-78.
110
Cf. GOLDSCHMIDT, Eliana Maria Rea. Convivendo com o pecado na sociedade colonial
paulista (1719-1822). São Paulo: Annablume, 1998.
111
Situação semelhante sobre as lettres de cachet estudadas por Foucault e Arlete Farge, em que
bastava apenas uma carta de um familiar, conhecido, ou vizinho sobre um possível incômodo
causado por determinadas pessoas, para que estas fossem recolhidas na Bastilha, ou seja, poderes
anônimos que independiam da vontade régia. Infelizmente, não temos em mãos a tradução da obra
de Foucault e Arlete Farge em português. Cf. FARGE, Arlette; FOUCAULT, Michel, Le désordre
des familles. Lettres de cachet des Archives de la Bastille. Paris: Gallimard, 1982.
112
FARGE, Arlette. Famílias, honra e sigilo. In: História da Vida Privada 3: da Renascença às
Luzes. Roger Chartier (Org.). Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
p. 574.

71
O que nos chama a atenção nas lettres de cachet é que elas inicialmente
exemplificavam um exercício de poder régio que se desdobrou na instância familiar
diante de algum ato considerado desonroso e vergonhoso, praticado por algum de
seus membros, redundando, muitas vezes, na possibilidade de prisão mantida em
sigilo, uma vez que se preservava o nome da família, no entanto, semelhante prática
foi se transformando em:

[...] uma prática constante, cotidiana, cuja aplicação ultrapassa de


longe os assuntos da família; cada vez mais numerosas são suas
vítimas, do ladrão ao padre, do libertino à prostituta. E já não se
sabe muito bem o que compete à justiça ordinária: ao folhear os
registros de prisões feitos pelos inspetores de polícia, percebe-se
que muitas delas — um número extraordinário — foram
realizadas por ordem e sem julgamento. Ao mesmo tempo, é
impossível saber por que tal delinquente se encontra nas malhas
desta rede real e não naquelas da justiça clássica.
A lettre de cachet é atingida por uma saraivada de protestos:
representa o poder real no que tem de odioso e insuportável113.

Associado ao poder régio, a lettre de cachet passou por transformações


que se desdobravam em várias condutas que, ultrapassando o campo familiar,
progressivamente atentava para um exercício de um poder cada vez mais
disseminado por pessoas ordinárias, mesmo pertencentes às camadas menos
abastadas, a exemplo dos informantes que prestavam queixas sobre as condutas
irregulares descritas em uma devassa nas minas, como bem apontou Crivelente.
Nesse sentido, reconhecemos o poder régio enquanto exercício de poder
pautado em um saber que era enunciado nas Ordenações Filipinas pelo
pronunciamento de um monarca, buscando, a partir disso, “paz e concórdia”, mas
havia um jogo de compromissos recíprocos que criavam diferentes instâncias de
soberania.
Tal consideração nos leva a discordar da posição de Canavarros que, ao
pensar a interiorização do poder metropolitano por meio da montagem do aparelho
administrativo, enxergou somente o poder institucionalizado por tais aparelhos
administrativos, o que o levou-o a desconsiderar outros operadores materiais de
dominação e de resistência.

113
Ibid., p. 558.

72
Na nossa visão, o poder não pode ser visto exclusivamente como algo
institucionalizado, mas como exercício, enquanto forma imanente à produção de
relações de força e de interesses, a qual era exercida pelo soberano quando chamado
a exercê-lo, uma vez que as cartas a ele remetidas exigiam um posicionamento,
pois, nesse regime de soberania e diante de relações heterotópicas, em algum
momento alguém deveria arbitrar os litígios.
Dessa maneira, ao nosso ver, uma decisão sobre a administração
colonial não era exclusivamente dada a priori por uma estrutura administrativa
encabeçada pelo rei, uma vez que as estruturas administrativas, nas suas relações
contingentes de exercícios de poder, configuravam diversos posicionamentos em
relação às formas de administrar a colônia:

[...] nas vilas da capitania de Mato Grosso, comerciantes,


mineradores, oficiais mecânicos, proprietários de engenhos e
lavras compunham a gente da governança. Apesar de não serem
provenientes de famílias nobres, esses indivíduos conseguiram
ascender social e economicamente, tornando-se gradativamente
os principais da terra. No arraial e depois Vila Real do Cuiabá,
os poderosos locais foram chamados pelas autoridades régias e
pelos cronistas José Barbosa de Sá e Joaquim da Costa Siqueira,
de moradores ou de principais moradores, principais homens,
pessoas principais ou principais da terra [...]114

Nesse mesmo sentido, nos parece pertinente o posicionamento de João


Fragoso, ao atentar para as interações entre os diferentes agentes históricos que
constituíram uma “nobreza da terra”, cujas posições nem sempre estavam em
consonância com o aparato institucional da Coroa Portuguesa:

[...] nas diferentes interações dos agentes da América lusa e


característico da hierarquia social costumeira desta foi a nobreza
principal da terra. Isto é, potentados locais integrantes ou não da
fidalguia de nascimento com domínio sobre o mando local,
especialmente as câmaras municipais [...] tais famílias
contribuíram para a implantação da administração camarária, das
irmandades e da administração periférica da coroa (provedoria
da fazenda régia, ouvidoria, juízo de órfão, etc.). Por estes
serviços, sempre á custa de suas fazendas e famílias, a monarquia
concedeu-lhes mercês, principalmente em terras e patentes de

114
JESUS, Nauk Maria de. Op. cit., p. 43.

73
mando nas ordenanças. Repare-se que estes serviços consistiram
na preservação da defesa e mando (governança) da república
[grifos do autor], leia-se, dos municípios e demais comunidades
sob a tutela da monarquia115.

Assim, o poder metropolitano configura apenas uma das dimensões


formais de exercício do poder na colônia, inserido entre outras interações e relações
de domínio e de mando por famílias, ou seja, composto também “de outros
operadores materiais de dominação” (como diria Foucault), os quais se
constituíram, na expressão de Fragoso, enquanto uma “elite da terra”, a qual
contribuíu para o estabelecimento “das câmaras municipais, das irmandades e da
administração periférica da coroa (provedoria da fazenda régia, ouvidoria, juízo dos
órfãos etc.)116”, sendo estes últimos, na ótica de Canavarros, os únicos detentores
do poder, por representar os órgãos institucionalizados do poder metropolitano.
Enfim, por meio de uma “relação diferenciadora isotópica” era
colocada exatamente a tensão entre os diferentes lugares de soberania, que se
manifestavam, inclusive, fora ou contra as estruturas jurídicas dadas de antemão a
administrar as gentes no interior de Cuiabá e de Mato Grosso.

1.4- Fazer morrer e deixar viver

Em suma, Foucault estabelece como características do exercício de


poder da soberania um conjunto de relações baseadas nas premissas de coleta e
despesa, de anterioridade fundadora e assentada em relações não isotópicas,
estabelecidas no curso O Poder Psiquiátrico. Creio que falta ainda uma premissa
fundamental do poder soberano, que Foucault só irá desenvolver em seu curso
posterior, intitulado Em Defesa da Sociedade (1975-1976), quando traz em suas
reflexões as premissas do poder soberano de fazer morrer e deixar viver, também
apresentadas no volume 1º da História da Sexualidade: a vontade de saber (1976),
podendo ser exemplificada pelos rituais de punição baseados em castigos físicos
em torno do suplício, trabalhados pelo filósofo anteriormente em Vigiar e Punir
(1975).

115
FRAGOSO, João. Op. cit., p. 128-129.
116
Ibid

74
Assim, o dispositivo de soberania pensado na presente pesquisa articula
uma materialidade documental que expressa a relação de exercício do poder
soberano pautado em: “coleta/ despesa, anterioridade fundadora, relação
diferenciadora não isotópica” e, por fim, a constituição de um exercício de “poder
que se assenta na premissa de fazer morrer e deixar viver”117.
O exercício dessa modalidade de poder régio opera um corte expresso
na decisão definidora da morte e da vida de seus súditos. O poder de morte,
prerrogativa do rei, estava atrelado a um jogo de representações que associava a
figura do rei à do pai e, por consequência, à do “Pai Maior, DEUS”.
Tais representações condiziam também com as balizas teóricas das
Ordenações Filipinas, em que a “punição dos maus é a conservação dos bons”,
atrelada à manutenção da justa balança e da justa medida. A punição exemplar era
a forma mais gloriosa de exercício do poder real, era o momento em que ele aparecia
pleno em seu brilho e esplendor, decidindo pela execução ou pela clemência.
Mesmo em pleno início do povoamento das áreas conhecidas hoje por
Mato Grosso, havia uma preocupação em castigar severamente as pessoas pelos
seus delitos e, em 1731, o ouvidor de Cuiabá, José de Burgos Vila Lobos, enviou
uma carta ao até então rei de Portugal, D. João V, sobre os crimes e desacatos
impetrados por presos fugitivos, pedindo que fosse constituída uma Junta, composta
pela Câmara, o guarda-mor, o regente e ele, os quais teriam alçada para punir
crimes, inclusive até os de pena de morte:

Ao respeito do Conselho ultramarino de 16 de março de 1731,


foi V. Majestade Servido mandar, para a criação desse lugar
visão do regimento dado aos ouvidores da vila de São Paulo
exércitos que guardem o regimento do outros do Rio de Janeiro
por resolução de V. Mag.de de 20 de julho de 1723, em consulta
do conselho ultramarino de 18 de junho do mesmo ano, porque
abusivas de São Paulo e juiz de fora de Santos defendessem os
crimes em Junta até penas de morte nas pessoas , q. no Rio de
Janeiro que se defenda em Junta, pela distância do Gov. da Bahia,
e frequência dos delitos em pessoas plebeias dos quais se
comporta essas minas do Cuiabá118.

117
Cf. FOUCAULT, Michel. A História da sexualidade, vol. 1: a vontade de saber. Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1988.
118
CTA-AHU- MATO-GROSSO-DOC. 36, CX. 01; CT-AHU-ACL-CU-010- DOC. 45, CX. 01.

75
Há nessa prática como que uma visão da potência de causar a morte,
ocasião em que o soberano era consultado, inclusive para conceder a prerrogativa
de morte ou vida, a qual poderia ser executada por uma Junta contra aos prisioneiros
fugitivos que atentavam contra os plebeus da vila de Cuiabá.
Tais enunciados se fundamentam no pressuposto de que a problemática
da população não era central, pois a prerrogativa de “fazer morrer e deixar viver”
foi posta por uma prática política, pelo menos ao que tudo indica, fundamentada na
ideia de que governar era administrar a justiça, distribuir o que cabia a cada um por
merecimento, na relação do monarca com seus súditos. Nesse sentido, como temos
visto até agora, os princípios de exercício de soberania implicavam uma relação
belicosa e conservadora: conservar o status conquistado por mercês ou graças
reais119, ou ainda conservar o território que nunca deixava de ser ameaçado, tanto
internamente, pelos ataques indígenas, como pelas tensões desenvolvidas com os
espanhóis.
Agora, nos deteremos com mais acuidade nessa premissa última do
exercício do poder soberano, que foi cunhada pelo filósofo Michel Foucault e
referenciada anteriormente, que é justamente a ideia de fazer “morrer e deixar
viver”, ou seja, um investimento no poder de causar a morte.
Curiosamente, essa prerrogativa do rei, na atribuição do seu poderio e
de sua presença, era uma das questões fundamentais, pois assinalava, como
apresentaremos a seguir, uma ação direta da vontade do rei em sancionar as formas
de punição enquanto mecanismo de ministrar a justiça, lembrando que, já o Livro I
das Ordenações determinava que a “punição dos maus é a conservação dos bons”.
Nesse sentido, as ações do rei em relação aos seus súditos e vassalos
lhe atribuia a possibilidade máxima de decidir sobre a morte ou vida das pessoas
que formavam a sua corte. Talvez seja este o princípio maior da presença do
exercício régio de poder, uma vez que ela perpassou todo o século XVIII e conferiu
ao soberano essa decisão aterradora sobre a existência das pessoas, pois:

119
Tais características baseadas nesses privilégios começam a perder força sob a ação do ministro
português Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal.

76
[...] todo crime na panóplia punitiva do Antigo Regime atingia a
pessoa do rei, que era fons justiae [grifos do autor]. Todos
continham, em si, um elemento de lesa-majestade. Dessa
maneira, na sua fórmula própria, esse crime era o alfa e o ômega
do sistema penal, que submetia à ‘morte natural cruelmente’ os
que atentavam diretamente contra o soberano. Havia, ainda,
outras modalidades de morte, como a ‘morte natural’, a ‘morte
natural para sempre’ e ‘a morte pelo fogo’.
[...] a morte natural implicava, em geral, o uso do veneno, de
instrumentos de ferro ou mesmo o fogo. A morte natural para
sempre, a que se aditava na forca, era executada em forca fora da
cidade, ficando o cadáver do condenado exposto até o dia dos
mortos, em novembro, quando era sepultado. A morte natural
cruelmente submetia o réu do crime de lesa-majestade ao
suplício: com uso de tenazes120.

Como exemplo disso, o Livro V das Ordenações Filipinas, ao tratar dos


crimes atentados contra seu senhor ou pai, praticados por um escravo ou pelo
próprio filho, estabelecia que, sendo:

[...] o escravo, ora seja cristão ora não seja, que matar seu senhor
ou filho de seu senhor, seja atenazado e lhe sejam decepadas as
mãos, e morra morte natural na forca para sempre; e se ferir seu
senhor sem matar, morra morte natural. E se arrancar alguma
arma contra seu senhor, posto que o não fira, seja açoitado
publicamente com baraço e pregão pela vila, e seja-lhe decepada
uma mão.
1. E o filho ou filha que ferir seu pai ou mãe com intenção de os
matar, posto que não morram das tais feridas, morra morte
natural121.

Esse exemplo pode ser situado entre uma das quatro táticas punitivas
descritas por Foucault no curso A Sociedade Punitiva (1972-1973), que é
exatamente a tática de marcar, no corpo do sentenciado, a natureza de seu crime,
ou seja:

Fazer uma cicatriz, deixar um sinal no corpo, em suma, impor a


esse corpo uma diminuição virtual ou visível, ou então, caso o
corpo real do indivíduo não seja atingido, infligir uma mácula

120
MOTTA, Manoel Barros da. Crítica da razão punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 28.
121
ORDENAÇÕES FILIPINAS. LIVRO V. Silvia H. Lara (Org.). São Paulo: Companhia das Letras,
1999, p. 158.

77
simbólica a seu nome, humilhar o seu personagem, reduzir seu
status122.

Tais enunciados materializam a constituição de um campo epistêmico


no qual a autoridade se investia do exercício transcendental de poder, pautado num
jogo de representações que fazia funcionar a sociedade do Antigo Regime, em
escalonamento de um poder que vinha de Deus para o rei, e deste para os vassalos
e súditos. Nesse caso, a figura do pai e do senhor representaria o lugar ocupado pelo
rei, assim, atentar contra o pai, a mãe ou seu senhor significava, entre outras coisas,
atentar contra o governo da casa que servira de paradigma político para o governo
dos súditos e, por fim, atentar contra a anterioridade fundadora do exercício do
poder régio.
Nessa lógica de exercício de poder, a figura do rei, como fonte de
justiça, se revestia na produção de mecanismos de punição que investiam no
sofrimento, na dor e na “ostentação do suplício”, como diria Foucault em Vigiar e
Punir. Mas, estamos tratando dos procedimentos que caracterizariam a técnica do
suplício? Que efeitos produziriam no corpo do condenado? E como se articulavam
tais efeitos com a sociedade da qual ela fazia parte? Diante de tais questões, eis que
Foucault apresenta a seguinte explicação:

[...] é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual


organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do
poder que pune: não é absolutamente a exasperação de uma
justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o controle.
Nos ‘excessos’ dos suplícios, se investe toda a economia do
poder123.

E não é difícil encontrarmos tais técnicas de operacionalizar a punição


e de ministrar a justiça nas Ordenações Filipinas. Se ficarmos com o exemplo

122
O filósofo reconhece quatro táticas punitivas: a primeira, excluir (predominante na Grécia
Arcaica e Clássica), a segunda, organizar um ressarcimento ou impor uma compensação
(predominante no direito medieval), a terceira tática, marcar (predominante desde o fim da Idade
Média até o século XVIII) e a quarta tática, encarcerar (predominante na virada do século XVIII
para o XIX). No caso específico das Ordenações Filipinas, creio que a característica predominante
seja a marcação, o que não quer dizer que as outras não existissem. Cf. FOUCAULT, Michel. A
sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). Tradução de Ivone C. Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 8.
123
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento das prisões. Tradução de Raquel Ramalhete.
Petrópolis: Vozes, 1987, p. 32.

78
apresentado acima, bastaria a tentativa, por parte dos filhos, de ferir seus pais com
o intuito de assassiná-los, prescrendo-se a morte natural enquanto forma de punição,
no entanto, a mesma mão que punia era a mão que oferecia clemência:

A mesma mão que ameaçava com castigos impiedosos,


prodigalizava, chegado o momento, as medidas de graça. Por esta
dialética do terror e da clemência, o rei constituía -se, ao mesmo
tempo, em senhor da Justiça e mediador da Graça. Se investia no
temor, não investia menos no amor. Tal como Deus, ele
desdobrava -se na figura do Pai justiceiro e do Filho doce e
amável124.

A figura do soberano se situava entre a poder de decidir sobre a morte


de qualquer um de seus súditos, bem como concede-lhe a salvação, desdobramento
da representação divina que ele encarmava, figurando repertórios de castigos
exemplares ou de perdões, porém, de uma forma ou de outra, o poder soberano
apresentava-se em pleno brilho e esplendor ao decidir sobre a existência das
pessoas125.
No dia 18 de agosto de 1615, por exemplo, eis que Francisco da Silva
foi degolado, enquanto punição por matar sua mulher, D. Brites, filha do licenciado
Miguel Nuno126, como Antônio Joaquim Moreira apresenta na sua compilação de
sentenças127.

124
BRAGA, Paulo Drumond. Criminalidade feminina e perdão régio em Portugal na época moderna.
In: As mulheres perante os tribunais do Antigo Regime na Península Ibérica. Isabel M. R. Mendes
Drumond Braga; Margarita Torremocha Hernández (Coord.). Coimbra: Imprensa da Universidade
de Coimbra, p. 117.
125
Situação que está em consonância em grande medida pelas premissas intelectuais de Thomas
Hobbes e Jacques Bossuet sobre a fundamentação do poder régio. Cf. HOBBES, Thomas. Leviatã.
Tradução de João Paulo Monteiro, Maria Beatriz Nizza da Silva e Cláudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2003; CHEVALLIER, JEAN-JACQUES. As grandes obras políticas de Maquiavel
a nossos dias. Tradução de Lydia Cristina. Rio de Janeiro: Agir, 1999.
126
SENTENÇA DE18 DE AGOSTO DE 1615. Fl.55. In: MOREIRA, Antonio Joaquim. Op. cit., fl.
55 Coleção de Sentenças que julgarão os réos dos crimes mais graves e atrozes, cometidos em
Portugal e em seus domínios: Portugal, 1863. Disponível em: http://purl.pt/15141/4/cod-851/cod-
851_item4/cod-851_PDF/cod-851_PDF_24-C-R0150/cod-851_0000_capa-capa_t24-C-
R0150.pdf. Acessado em 29/1/2016.
127
Coleção constituída, sobretudo, por sentenças e documentos jurídico-administrativos compilados
por António Joaquim Moreira relativos aos mais diferentes crimes ocorridos entre 1320 e 1864.
Contém além das sentenças, pastorais, relatos de crimes e de punições, bulas, correspondência,
editais, representações, proclamações, listas, notícias de jornais, processos judiciais, autos, relações,
relatórios, petições, alguns textos satíricos de carácter político, e diversa legislação, sobretudo do
período das invasões francesas. Os crimes são variados, conspirações contra o rei, motins e revoltas,
roubo, calúnia, assassínio, sodomia, bigamia, emissão de moeda falsa, perjúrio, sacrilégio, heresia,
contrabando, evasão fiscal etc. Os documentos encontram-se ordenados cronologicamente em nove

79
Em 28 de fevereiro de 1621, temos a sentença de morte por
enforcamento de Luiz Alvares Castelo, por declarar bancarrota de forma
fraudulenta128, ou seja, na tentativa de enganar os seus credores.
A historiadora Maria Antónia Lopes nos traz, ainda no século XVII129,
a condenação de uma mulher de nome Joana Baptista na Ribeira, no ano 1694, a
qual matara seu marido, recebendo como castigo o enforcamento, tendo sua cabeça
cortada e exposta publicamente. A citada autora também lembra, por exemplo, do
caso de mulheres que escaparam da pena capital, ou porque fugiram ou por conta
de influências não explicitadas nos processos, conseguindo comutação de penas,
além, é claro, dos casos de imputabilidade penal, quando ficou comprovado que a
mulher em questão não se apresentava de posse das suas faculdades mentais.
Temos, por exemplo, o caso Cecília Rodrigues que matou o marido e,
condenada à morte, teve a comutação desta pena para o de degredo em Angola, no
ano de 1694, mesmo ano, portanto, em que Joana Batista havia sido condenada.
Em 1713, temos também o caso de Brita Gomes, que matou a filha e,
sendo condenada à morte, teve a pena suspensa, sob a alegação de loucura130,
mesmo caso de Maria Gonçalves que, em 1732, conseguiu o perdão régio após
matar a filha, embora não constasse menção de loucura.
A maior parte das mulheres condenadas era por conta do homicídio
perpetrado contra os maridos, escravas contra senhores, de mães contra os filhos, e,
no caso da sedição de 1757, em reação ao monopólio concedido pelo Marquês de
Pombal à Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, em 1756:

[...] A população humilde do Porto, nomeadamente taberneiros


de ambos os sexos, tanoeiros e pequenos armazenistas, agora
impedida de comercializar o vinho, sentiu -se prejudicada e a
rebelião rebentou em fevereiro e março de 1757, mais ou menos
manipulada por ingleses e outros burgueses portuenses que se

volumes, não sendo essa a sua organização original (cf. COD. 851, f. 1). O décimo volume é um
índice muito incompleto da coleção. Grande parte dos documentos são impressos.
Disponível:https://bdlb.bn.gov.br//acervo/handle/1234556789/7696. Acessado em 29/1/2016.
128
SENTENÇA DE 28 DE FEVEREIRO DE 1621. In: MOREIRA, Antonio Joaquim. Op. cit.
129
LOPES, Maria Antónia. Mulheres condenadas à morte em Portugal: de 1693 à abolição da pena
última. Op. cit.
130
Vale ressaltar que o século XVIII é o momento em que emerge o saber médico sobre a loucura.
Cf. FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Tradução de José Teiexeira
Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2005; MACHADO, Roberto et.al. Danação da norma: a
medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

80
viam afastados dos negócios dos vinhos. Foi de imediato
constituído um tribunal especial no Porto que atuou com uma
dureza invulgar39. Compareceram perante a Alçada do Porto 478
réus, sendo 424 homens e 54 mulheres. Por sentença proferida a
12 de outubro e executada a 14, foram condenados à morte 21
homens e cinco mulheres considerados criminosos “de Leza
Magestade de primeira cabeça131.

Essa maquinaria punitiva em funcionamento, a qual incluía a gradação


da pena no corpo do sentenciado, produzia uma forma de controle das
subjetividades, se revelando também numa atmosfera cultural em que a doutrina
religiosa, em especial a da Companhia de Jesus, teve um papel central na educação
da corte portuguesa e das colônias.
Dessa maneira, é bem provável que as cerimônias de julgamento, de
sentenciamento e de execução apresentassem um dispositivo de produção de dor e
de extração da verdade, por meio da confissão132, largamente utilizadas pelos
Tribunais do Santo Ofício da Inquisição.
Eis que, no ano de 1624, temos a sentença da Inquisição de Lisboa
contra o Doutor Antonio Homem da Fonseca, que no citado ano era Lente de Prima
de louvores e cônego magistral da fé da dita cidade, sendo queimado na Ribeira de
Lisboa:

Acordão os Inquisidores, Ordinário e Deputados da Santa


Inquisição que vistos estes autos, libelo e prova da Justiça,
contrariedade x autor, e defesa do Doutor Antonio Homem, meio
Cristão novo [...] réu prezo, q. presente está; porque se mostrou,
que sendo cristão batizado, obrigado a ter e crer tudo o que tem,
crê e ensina a Santa Madre Igreja de Roma- ele fez pelo contrário,
e depois do último perdão geral viveu apartado de nossa Santa Fé
Católica, e teve crença na Lei de Moisés, tendo-a acima por boa
e verdadeira, esperando salvar-se nela; e quando ouvia falar nos
christaos e cousas da Fé, ria e zombou, comunicando estas
cousas com palavras de sua nação, apartadas da Fé, com as quais
se declarou por judeu- pelas quais culpas sendo réu preso pelo
Santo Oficio133.

131
Ibid., p.138
132
Tais procedimentos, por exemplo, são perceptíveis no processo do padre Gabriel Malagrida e no
processo dos Távoras que serão analisados detidamente no capítulo 2.
133
SENTENÇA DE 05 DE MAIO DE 1624. In: MOREIRA, Antonio Joaquim. Op. cit., fl.55.

81
Curiosamente, as poucas menções que o Livro V das Ordenações
Filipinas fez em relação aos cristãos novos diziam respeito à obrigação destes
portarem sinais que os caracterizassem, no caso dos judeus, os quais deveriam usar
carapuça ou chapéu amarelo e, no caso de mouros, deviam-se usar “uma lua de pano
vermelho de quatro dedos, cozido no ombro direito, na capa e no pelote.”134
Semelhante situação preconizava enquanto punição a prisão e o pagamento de mil
réis, se fosse a primeira vez, de dois mil, no caso da segunda e na terceira o
confisco135.
A outra menção que o Livro V das Ordenações Filipinas faz menção,
no Título 111 “[...] sobre os cristãos novos e mouros e cristãos mouriscos que se
vão para a terra de mouros ou para as partes de África e dos que os levam”, e nesse
caso específico, estabelecia que se:

[...] a pessoa que for provado que os levou para a terra de mouros,
morra por isso de morte natural e perca toda sua fazenda.
E se provar que os queria levar para a terra dos mouros, perca sua
fazenda e seja degredado quatro anos na África. [...]
E os navios em que os levar se perderá isso mesmo, posto que
não seja seu.
E se os levar para qualquer outra parte, que não seja terra de
mouros, perderá o dito navio em que os levou ou queria levar,
posto que não seja seu, e toda a sua fazenda e será degredado
quatro anos na África136.

O caso de Antonio Homem da Fonseca, no início do século XVII, não


condizia com qualquer das situações previstas para os cristãos novos, frente ao fato
de andarem sem sinal, ou de tentativa de fuga para outros lugares distantes de
Portugal. Mas a punição de Antonio Homem obedeceu as regras do Tribunal
eclesiástico do Santo Ofício (Inquisição), com a incumbência de punir os hereges
ou apóstatas, pois, como previa o Código Filipino, “[...] porque a Igreja não tem
aqui que conhecer se erra na fé ou não137”, e como não havia outra causa pela qual
o mesmo Antonio Homem da Fonseca estava sendo acusado, que era o de sodomia,
previsto somente pelo Código Filipino:

134
ORDENAÇÕES FILIPINAS. LIVRO V. Silvia H. Lara (Org.). Op. cit. p. 300.
135
Ibid.
136
Ibid., p. 345.
137
Ibid., p. 57.

82
E outro sim se mostra, q. sendo o Réu Letrado, Sacerdote, e das
mais qualidades referidas, e como tal obrigado a viver limpa e
honestamente, sendo de sua vida e costume bom exemplo, ele o
fez pelo contrário, e de muito tempo a esta parte, esquecido de
sua obrigação, com muito atrevimento em grande dano e prejuízo
de sua alma, cometeu o horrendo e abominável pecado de
sodomia contra naturam, por respeito da qual a ira de Deus veio
sobre as cidades infames de Sodoma e Gomorra, exercitando-o e
consumando-o por muitas vezes com diversas pessoas de ( sexo
masculino)138.

Diante disso, Antonio Homem foi condenado por heresia, apostasia e


sodomia, lembrando que o dito réu era um homem das letras, que frequentava as
rodas cultas do país e, acima de tudo, era uma autoridade no ensino, sendo Lente
de Prima e tido por Doutor e sacerdote. Logo, era uma pessoa que conhecia
plenamente os dogmas religiosos e os valores tradicionais da sociedade portuguesa
do período. Dessa forma,

Declaram ao Réu Antonio Homem por convencido no crime de


heresia e apostasia139, e q. foi, e do presente é herege apostata de
nossa Santa Fé Católica, e por tal, herege apostata, dogmatista,
contumaz e negativo, o condenam, e que incorreu em sentença
de excomunhão maior, e em confiscação de todos os seus bens
aplicados a quem de direito pertencer, e nas mais penas contra os
semelhantes estabelecidas; e o excluem da jurisdição
eclesiástica, e mandão que seja deposto e degradado atualmente
de suas ordens, segundo a forma dos sagrados cânones e a relação
à justiça secular, a quem pedem com muita instancia e eficácia
[...] E manda que as casas em que se faziam as ditas solenidades
de jejuns e ajuntamentos, em detestação de tão gravo crime, se
derrubem, assolem e ponham por terra, semêem de sal, e nunca
mais se tornem a reedificar; e para constar, e ficar em memória
para sempre, se levante no Sitio delas um padrão alto com letreiro
que declare a causa pela qual se derrubarão e salgarão140.

138
SENTENÇA DE 05 DE MAIO DE 1624. In: MOREIRA, Antonio Joaquim. Op. cit., fl.90.
139
O Livro V das Ordenações Filipinas nos traz a informação de que os crimes de heresia e de
apostasia eram atos que cabiam aos tribunais eclesiásticos a organização do processo e do
julgamento. Em nota de rodapé, a edição organizada pela Companhia das Letras, do Livro V das
Ordenações, constava que os mencionados crimes de heresia e apostasia só deixariam de ser crimes
com a criação da Constituição do Império, e em 1830, com código criminal do Império punia quem
zombasse ou ofendesse de qualquer culto religioso. Cf. ORDENAÇÕES FILIPINAS. LIVRO V.
Silvia H. Lara (Org.). Op. cit., p. 55.
140
SENTENÇA DE 5 DE MAIO 1624. In: MOREIRA, Antonio Joaquim. Op. cit., fl.91.

83
Antonio Homem foi sentenciado a perder seus bens, as funções, sendo
condenado ao degredo e a queimar e salgar o local onde se realizavam as cerimônias
judaicas, e por fim:

A Inquisição de Coimbra o prendeu aos dezoito de dezembro de


1619, e a de Lisboa, para onde veio, o fez morrer de garrote, e
queimar, na Ribeira de Lisboa em cinco de maio de 1624. O seu
processo consta de mais de quatro resmas de papeis141.

O fato deste condenado ter sido morto a garrote e queimado, condiz


com a punição de apostasia e heresia prevista no Código Filipino, bem como o
confisco de seus bens, mas, curiosamente, não previu a queima de seus bens e
salgamento das suas propriedades. Os dois últimos aspectos da punição leva-nos a
crer que o tribunal eclesiástico tenha incluído punição por um crime que
deliberadamente não se tinham provas contumazes, a sodomia. Assim, no capítulo
13 do Livro V das Ordenações Filipinas sobre os que cometem o pecado da
sodomia e com alimárias, previa essa segunda parte da punição que lhe foi
ministrada:

[...] Toda pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de


sodomia por qualquer maneira cometer, seja queimado e feito por
fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver
memória, e todos os seus bens sejam confiscados para a Coroa
de nossos reinos, posto que tenha descendentes; pelo mesmo caso
seus filhos e netos ficarão inábeis e infames, assim como aqueles
que cometem crime de lesa-majestade142.

Como percebido, o caso de Antonio Homem foi conduzido pelo


Tribunal Eclesiástico da Inquisição em que, certamente, a Companhia de Jesus
ocupava um lugar privilegiado na instituição de normas morais de condutas a serem
seguidas, pois não se tratava somente de julgar o referido Antonio Homem pelo
crime de heresia e de apostasia, mas também de uso “indevido do corpo” que, em
outras palavras, “maculou a sua alma”, ao cometer a prática de sodomia.

141
Ibid.
142
Esse mesmo tratava também sobre o pecado de alimária, ou seja, relação sexual com animais,
tenham sido praticados por homem ou mulher, tendo os seus corpos queimados e feitos em pó. Cf.
ORDENAÇÕES FILIPINAS. LIVRO V. Silvia H. Lara (Org.). Op. cit., p. 91.

84
O que se percebe nesse caso foi um malabarismo jurídico que acoplou
duas punições previstas pelas Ordenações Filipinas, apesar da pronúncia da
sentença contra a prática de heresia e apostasia, imputando também uma punição
que envolvia a sodomia.
O caso de Antonio Homem, assim como os personagens de
Menocchio143 e Rivière144, foi mais um entre tantos outros, “criminoso da
palavra”145, demonstrando todo o seu conhecimento em condutas que contrariavam
as premissas eclesiásticas (seja de professar o judaísmo ou uso indevido de seu
corpo). A maneira zombeteira com a qual se dirigia às autoridades representou para
elas o sinal de nenhum arrependimento e, portanto, tratar-se de alguém indigno de
merecimento ou perdão.
O que diferentemente aconteceu num caso de sodomia praticado em
Mato Grosso, por volta do ano de 1736, apresentado pelo historiador Luiz Mott, em
que um frade “[...] da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, Frei Antonio de
Madureira, que, após dois anos missionando no Mato Grosso, ao retornar a Lisboa
apresentou-se perante o tribunal do Santo Ofício confessando suas incontinências
homoeróticas”146 e descrevendo estrategicamente a condição social de personagem
envolvido (obviamente, tentando desqualificar as testemunhas):

Digno de nota é a baixa extração social dos parceiros


homoeróticos do frade sodomita: dois pardos livres, ‘Gaspar,
cujo sobrenome não sabe, homem pardo forro, solteiro, filho não
sabe de quem, natural da vila de santos’ e Antônio Rego, ‘sem
ofício, solteiro, que então teria treze ou catorze anos de idade,
homem pardo filho ilegítimo de um fulano do Rego, homem
branco que foi mineiro e de uma preta chamada de Feliciana’.
Portanto, pardos livres presentes desde os primórdios da
sociedade mato grossense também um índio ainda pagão, ‘cujo
nome não sabe nem de onde é, só que é do gentio chamado
Paraty’. Além de demonstrar estar aberto às relações eróticas
inter-raciais, Frei Antônio de Madureira ao buscar intimidades

143
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.
144
FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: Um
caso de parricídio do século XIX apresentado por Michel Foucault. Tradução de Denize Lezan de
Almeida. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
145
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Mencchio e Riviére: criminosos da palavra, poetas
do silêncio. In: História: a arte de inventar o passado. Bauru: EdUSC, 2007.
146
MOTT, Luiz. A Inquisição nas minas do Cuiabá. Revista Ñanduty, Dourados/MS, vol. 2, n. 2,
jan./jun. 2014, p. 9.

85
com dois pardos e um índio pagão, jovens desclassificados,
estava praticamente imune a eventuais denúncias pois
dificilmente vozes tão distantes e subalternas chegariam ao
tribunal da santa inquisição. Entre os cúmplices do frade
sodomita, um único reinol: o lisboeta, Francisco Xavier, piloto
de canoas, também da raia miúda, ‘sem domicilio certo porque
anda sempre nas canoas’, certamente já vindo do reino com essa
mesma especialização náutica tão importante na nova colônia
onde a canoagem era vital meio de transporte e comunicação147.

A descrição dos detalhes do ato sexual também era importante e foi, de


certa maneira, bem pensado pelo referido frade na construção de sua defesa perante
o tribunal onde:

[...] todos os detalhes relativos à performance homoerótica do


mercedário lisboeta em sua confissão justificam-se pelo fato de
que, segundo os regimentos do Santo Ofício, diferentemente da
Espanha, estipulava-se com clareza que a Inquisição tinha alçada
apenas contra o pecado de sodomia perfeita, isto é, a penetração
com ejaculação dentro do vaso traseiro, ficando fora do seu
conhecimento os pecados de bestialismo (zoofilia) e molice,
incluindo-se neste termo todos os demais atos de sensualidade
homoerótica não dirigidos à cópula anal: masturbação individual
ou a dois, felação, anilíngua e mesmo o coito interrupto,
nomeado pelos escribas inquisitoriais de “connatus”. Assim
sendo, para condenar à pena da fogueira um sodomita, tinha-se
que comprovar inequivocamente a consumação quando menos
de dois atos de sodomia perfeita, seja como agente, seja como
paciente. Frei Antonio de Madureira acusou-se de ter praticado
atos homoeróticos com quatro parceiros, num total de seis
relações sexuais: cinco vezes não penetrou, ‘derramando
semente por fora do vaso’ – portanto sem chegar a cometer a
sodomia perfeita. Só uma vez o frade assumiu ter cometido a
sodomia perfeita com o adolescente pardo Antonio Rego,
‘deitando se de bruços, ele confitente [sic] com o seu membro
viril ereto o penetrou pelo seu vaso prepostero, derramando
semente dentro dele e consumando por este modo o nefando e
abominável pecado de sodomia contra naturam, sendo ele
confidente agente e o dito Antonio paciente’148.

O que demonstra que o referido frade conhecia plenamente os


regimentos do Santo Ofício, de modo angariar o perdão e arrependimento de um
ato considerado abominável entre as autoridades eclesiásticas, constituindo uma

147
Ibid. p. 11.
148
Ibid.

86
confissão de seis relações sexuais, mas que a sodomia perfeita só havia acontecido
uma vez, de modo que a Inquisição não pudesse lhe aplicar a penalidade máxima
para esse tipo de pecado, uma vez a exigência para a condenação requeria dois casos
deliberadamente comprovados.
Diante disso, diferentemente do que aconteceu com Antonio Homem
no século XVII, o frade acabou sendo perdoado, o que indica também que esse
malabarismo jurídico149 foi montado meticulosamente na descrição das
testemunhas e na sua preocupação em provar que a sodomia perfeita não fora
praticada com dupla reincidência.
Esse exemplo apresentado constitui-se de fato num modelo de justiça,
cujos elementos religiosos e laicos se misturaram. É certo que havia um código
eclesiástico, mas as execuções estavam a cargo do poder soberano. Além disso,
expostos a um código penal que tinha como uma das características impor a marca
corporal ou simbólica, e necessária se fazia a utilização de tática sutil para escapar
da punição.
Há um caso interessante a esse respeito, transcorrido no ano de 1784,
constante nos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá. Trata-se de uma tentativa de
assassinato do doutor Juiz de Fora Antonio Rodrigues Gayozo, quando do início
dos os trabalhos de conserto da capela-mor da Matriz de Santana do Sacramento,
ocasionado pelos estragos provocados pelas fortes chuvas que derrubaram boa parte
de sua estrutura, quando:

[...] chegando o dito Ministro a porta da casa, em que assistia,


que era a do Pároco que fica mística com um dos corredores da
igreja, e ao tempo que chamava por um seu escravo lhe
dispararão um tiro de arcabuz com balas, e perdigotos, que
miraculosamente o não acabou logo ali, e a sua felicidade, esteve
em o agressor, pelo que se alcança do estrago que fizeram os
pelouros na parede, e batente da porta em que então se achava o
dito Ministro disparar-lhe o tiro encostado, ou muito chegado a
parede da Igreja, ao correr do qual se achava a porta, e por isso
irem os pelouros ao solares; assim mesmo ficou muito bem
maltratado, por que entraram-lhe perdigotos, pela barriga, pelo
quadril, e pela mão esquerda, e suposto viveu, não deixou com
tudo se ficar puxando algum tanto, ou quanto da perna esquerda
por causa de uma bala, que lhe entrou nesse quadril150.

149
Cf. VAINFAS, Ronaldo. Op. cit.
150
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Op. cit., p. 126.

87
Tal fato fez com que se instituísse devassa sobre o ocorrido para
identificar o agressor e lhe aplicar as penalidades previstas. Incialmente, incidiam-
se as suspeitas aos indígenas, numa clara alusão preconceituosa “[...] atribuindo-
lhes o maleficio, por serem desconfiados e vadios, e haverem sido algumas vezes
repreendidos pelo dito Ministro por ocasião do serviço”151 de conserto da referida
Igreja.
Finalizada a devassa, chegou-se ao mandante e ao mandatário do delito.
O mandante tratava-se de um tal Pedro Marques Henriques, natural do Reino de
Portugal e que vivia naquela vila de sua taberna, enquanto o mandatário era um
mameluco de nome Pedro Jozé dos Passos, natural de Araritaguaba, capitania de
São Paulo, cujo delito foi motivado porque:

[...] o dito Ministro mandara prender no segredo, e procedera a


perguntas, para averiguar, se era ou não compreendido na morte
de um escravo de Manoel Nunes Fernandes Borges, de quem era
este péssimo homem particular amigo, e se presumia haver dado
adjutório para a dita morte, que foi feita a violências de açoites,
isto mesmo disse ele depois que fugiu destas Minas, por escapula
que lhes deram os seus amigos, e o mais é, que o tiveram oculto
muitos meses em um dos consistórios da Igreja Matriz desta
Vila152.

Ou seja, mandante do crime já intuía a sua futura prisão por conta de ter
cometido excesso nos castigos físicos cometidos contra o escravo de um senhor de
quem ele era praticamente amigo, porém a rede de alianças fez com que conseguisse
escapar e chegar à atual vila e ali ficar oculto em meio aos membros da Igreja
Matriz.
O mameluco se encontrava preso no presídio de Coimbra a Nova,
acusado de ter sido o responsável pelo atentado ao referido ministro, e com ordens
precisas de enviar, ambos, à vila para serem julgados e executados. No translado
ele conseguiu ludibriar os guardas, que acabaram sendo punidos, enquanto o
mandante foi preso na cadeia de São Paulo. Peço licença para transcrever essa longa

151
Ibid.
152
Ibid.

88
passagem, em que o referido mameluco Pedro Jozé dos Passos conseguiu escapar
para os lados do Rio Grande do Sul:

Achava-se este péssimo mandatário, e vilíssimo executor ao


tempo da devassa no Presidio de Coimbra a nova, expediu logo
o Doutor Ouvidor Geral uma canoa ligeira com quatro Pedestres,
e ordens necessárias ao Comandante do dito Presidio para lhe
enviar o delinquente, assim o executou o Comandante, e o
entregou em ferros aos condutores, sobem eles contentes por
trazerem aquela preza tanto do empenho do dito Ministro, que
lhes prometeu avisares, se chegassem a esta Villa dentro em certo
tempo, que lhes limitou, e eles as queriam ganhar.
Chegarão a Povoação de Albuquerque, e como visse o Sargento
mor do Regimento auxiliar destas Minas, José Antonio Pinto de
Figueiredo, Comandante da dita Povoação ser aquela diligencia
de tanta importância, e persuadindo-se, que os quatro Pedestres
só por si não seriam capazes de dar conta do prezo, fez embarcar
com eles um soldado Dragão por nome Bento Rodrigues
Fontoura, a quem encarregou a condução, e entrega do dito
prezo. Este piedoso, ou não sei, se tolo Soldado, comiserando-se
das palavras do prezo, que lhe suplicava o alívio dos ferros, em
que vinha sem mais atender a gravidade da culpa daquele
péssimo réu, mandou lhe tirar, os grilhões, e assim o veio
conduzindo. Chegados que foram as Primeiras Povoações, ou
sítios dos moradores do Rio Cuiabá abaixo, devendo acautelar-
se aquele Soldado tornando a segurar com os ferros o
delinquente, pois já não estava nos termos do favor do sertão,
onde era mesmo impossível a fuga, por falta de todo o socorro
humano; não o fez antes lhe permitiu licença, para que fosse a
terra, como lhe suplicara a certa necessidade de unicamente com
uma sentinela, e tão somente com a corrente ao pescoço; o prezo,
que todo o seu cuidado era ver como havia fugir, naquele lugar,
em que achou toda a suficiência para o efeito, pôs em execução
o seu desígnio, deixando em seu lugar a corrente, e vendo a
sentinela, que ele não concluía, ao que fora, chamou por ele,
porém ninguém lhe respondeu, deu parte, sairão os mais a terra a
diligenciar o prezo, mas já o não acharão; prosseguirão a sua
baldada de rota e chegarão a esta Villa onde logo foi prezo o tal
Soldado, ficando o Doutor Ouvidor bastante mente desesperado,
e finalmente recolheu para a Capital em dez de outubro
conservando-se o Soldado na prisão, castigo que teve mais de
dois anos pela sua facilidade. O malévolo executor meteu-se
sozinho a todo o risco em uma canoinha, e se botou para os
Povoados, e dizem que se metera lá para as partes do Rio Grande
do Sul. O mandante achasse presentemente prezo na Cadeia da
cidade de São Paulo por precatório do Juízo da Ouvidoria desta
Comarca, de onde se espera, que pague com a vida o mal que
fez153.

153
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Op. cit., p. 127-128.

89
A citação expressa a habilidade do mameluco em ludibriar os soldados
que o acompanhavam, reputado por tolo ou piedoso, não levando em consideração
a esperteza do criminoso. Tudo ocorreu quando os soldados lhes ofereceram um
alívio, retirando os grilhões e, em seguida, devido à súplica deste para descer em
terra para fazer as suas necessidades (provavelmente a desculpa das necessidades
fisiológicas), fora acompanhado de apenas uma sentinela. Nessa oportunidade, o
mameluco deixou as correntes e fugiu. Percebendo que o dito mestiço demorava,
os soldados foram averiguar e se deram conta de que ele havia escapado, se
embrenhando pelos matos. O fato é que o tal soldado, por um “descuido” ou
subestimação do mestiço, fosse punido com mais de dois anos de cadeia, por
supostamente ter facilitado a sua fuga, além do desapontamento das autoridades
locais em não concretizar uma “vontade de vingança” do referido ministro. Já o
mandante não teve a mesma sorte.
Os casos até aqui apresentados creio que dão conta da premissa do
poder soberano de causar a morte, de produzir dor, de fornecer exemplos insidiosos
da força esmagadora da justiça, punindo os maus de maneira exemplar e premiando
os bons.
O Livro V das Ordenações Filipinas trata apenas do primeiro aspecto,
ou seja, dos castigos exemplares, dos suplícios e das torturas como forma de
extração da verdade, enfim, toda uma série de contracondutas passaram ser
penalizadas de acordo com uma “decisão soberana” que operava um corte entre
vida e morte.
Diante desse aparato em que se premissas religiosas e laicas criavam
um campo de penalidades caracterizadas principalmente pela função de imprimir
marcas, é bem visível:

[...] é fácil de ver como a morte é uma operação física


especificada, um trabalho com o corpo, uma maneira ritualizada
de inscrever marcas do poder no corpo do indivíduo, sua situação
de culpado, ou inscrever pelo menos no medo do expectador a
memória da culpa154.

154
FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 11.

90
É nesse sentido que as ordenações prescreveram, em muitos casos, uma
forma de punição e de estabelecimento de justiça que instituía a infâmia como um
processo indefinido e interminável de produção de culpa. E não é à toa que o Código
Filipino incorporasse premissas religiosas sobre a conduta das pessoas, como: “[...]
dos hereges e apóstatas, dos que arrenegam ou blasfemam de Deus ou dos Santos,
dos Feiticeiros, dos que benzem cães ou bichos sem autoridade del rei ou dos
prelados”155, convivendo com os crimes de lesa-majestade que recaíam na pena
capital de morte. Enfim, uma série de discursos que apelavam para a necessidade
de determinada conduta servir de modelo a ser seguido, expressando nas
contracondutas uma marca que deveria atingir o corpo do sentenciado e a memória
dos expectadores.
E eis que o século XVIII, que marcou o momento da ilustração, das
luzes, do conhecimento, da claridade, enfim, envolto em um conjunto de metáforas
que produziam enunciações e anunciações de uma nova perspectiva de mundo
pautada na racionalidade, tenha enquanto foco uma racionalidade de Estado, seja
no campo científico, fomentando e fermentando por toda a Europa o uso da
violência física e de seus rituais simbólicos, os quais continuaram a ser uma tônica
do poder soberano.
As reformas de Pombal, a partir da segunda metade do século XVIII,
começaram a instaurar um limiar de ruptura com a tradição, como veremos mais
detidamente no próximo capítulo: a expulsão dos jesuítas, a criação da escola de
comércio, o fim da distinção entre cristãos novos e cristãos velhos, a criação da
Academia de Ciências de Lisboa etc., mas tudo isso irá conviver com formas
tradicionais de se ministrar a justiça:

Um momento de grandes alterações vai ser o período de D. José


I, no qual mais rigoroso ainda vai se tornar o aparato punitivo
contra o crime de lesa-majestade. No seu reinado, a legislação
contra o crime de lesa-majestade, seja de primeira ou de segunda
cabeça, é ampliada, os bens dos réus passam a ser sempre
confiscados e revertidos à Coroa e os crimes não prescrevem
nunca, mesmo com a morte dos delinquentes (lei de 13 de agosto
de 1770), estabelecia que esses crimes eram tão horrorosos que

155
Cf. ORDENAÇÕES FILIPINAS. LIVRO V. Silvia H. Lara (Org.). Op. cit. Há também uma
análise minuciosa realizada por Barros da Mota em: MOTTA, Manoel Barros da. Crítica da razão
punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2011.

91
quem os cometessem deixava áridas e secas as suas linhas para
sucessão dos morgados. Outra, de 27 de maio de 1773,
estabelecia que as pessoas que cometem ficam inábeis e infames
com seus filhos e netos. E também os filhos e netos dos hereges
passam a ter a pena de infâmia, pela lei de 25 de maio de 1773.
Um alvará de 5 de maio de 1772 determinara, também, quais
eram os crimes atrocíssimos156.

Certamente, uma mutação importante estava acontecendo nas formas


de pensar a política nos primeiros anos de governo de D. Maria I, sucessora de D.
José I, mas, em todo caso, no próximo capítulo será analisado até que ponto tais
alterações nas formas de pensar as ações governamentais chegavam ao território
mato-grossense? Que formas de rupturas e continuidades poderiam existir? Enfim,
até o presente momento pensamos que, até pelo menos fins do século XVIII, os
dispositivos de soberania funcionaram (coleta/despesa; anterioridade fundadora;
relação diferenciadora não isotópica; e pôr fim a premissa de fazer viver e deixar
morrer), buscando responder estrategicamente a uma “urgência de povoamento e
defesa em prol da conservação do território”.

156
MOTTA, Manoel Barros da. Op. cit., p.27.

92
CAPÍTULO 2

ZONA CINZENTA:
RAZÃO DE ESTADO E GOVERNO EM PORTUGAL
NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII

A razão de Estado já reordena o país [...] Ela mobiliza os pregadores e os homens de


letras a serviço do poder; orienta a instrução do ‘público’como batalha pedagógica;
agrava os ‘delitos de opinião’.
Michel de Certeau (A escrita da história, 2002)

No presente capítulo buscaremos apresentar algumas condições da


mutação epistêmica nas práticas governamentais exercidas pelos portugueses em
relação aos seus domínios, vistas neaquele momento como produção de objetivação
e assujeitamento de ser colônia, por parte das práticas discursivas imperantes no
século XVIII.
Trata-se de seguir lentamente a erosão de uma forma de saber na qual
se fundamentava aquela relação de soberania descrita no capítulo primeiro da
presente pesquisa. Assim, busca-se, a partir da análise da documentação referente
à segunda metade do século XVIII, o limiar de ruptura sobre as ações
governamentais exercidas pelo soberano português, cujos desdobramentos
chegarão à capitania de Mato Grosso.
O que enseja, nesse sentido, é demarcar a assinalação de uma lenta
produção do campo de visibilidade do nascimento de uma biopolítica das
regulações das populações, sobreposta à soberania jurídico-territorial, condição que
fez emergir novos saberes enunciadores de novas práticas políticas, os quais
provocaram uma espécie de erosão no saber soberano, conduzindo a uma
articulação cada vez mais acurada pelas premissas científicas e intelectuais.

93
Pretendemos mostrar, assim, que esse limiar de que se está falando, se
insinua numa atmosfera mista, complexa e que anunciava o rompimento de uma
nova experiência de um tempo157 por vir: um tempo marcado gradativamente pela
secularização das ideias, pelo desenvolvimento técnico, pela ascensão social e
cultural de outros grupos, mas, igualmente marcado pela presença de um regime de
poder soberano, expresso anteriormente pela relação coleta/despesa, pela
anterioridade fundadora, fundamentado nas relações diferenciadoras não
isotópicas, pelo direito de fazer morrer e deixar viver.
Entre a passagem do século XVIII para o XIX, emergiram outras
formas de pensar o tempo histórico e a relação com seus fenômenos, assim, saía-se
de uma modelo de história edificante e exemplar (muito frequente no século XVIII)
para uma concepção de história lançada por Hegel, segundo a qual a história é
pensada numa perspectiva dialética em direção ao progresso158.
Tal como a aurora de nossas existências cotidianas, as práticas políticas
começavam a se insinuar em zonas de claridade e de sombreamento, constituindo
um dispositivo misto de exercício de poder: trata-se de uma genealogia da
governamentalidade.
Essa perspectiva genealógica possibilitava a questão dos começos
confusos, de suas proveniências aparentemente dispersas, uma vez que seus pontos
de apoio e dispersão se conectavam na formação de um regime político que estava
entrando em processo de erosão, para se assentar em outro solo epistêmico. Sobre
a genealogia, Foucault, remetendo ao filósofo Frederich Nietzsche, lembrava que:

[...] A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente


documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados,
riscados, várias vezes reescritos[...]
A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande
número de materiais acumulados, exige paciência. Ela deve
construir seus ‘monumentos ciclópicos’ não a golpes de ‘grandes
erros benfazejos’ mas de ‘pequenas verdades inaparentes
estabelecidas por um método severo’. Em suma, uma certa
obstinação na erudição. A genealogia não se opõe à história como

157
Sobre essa problemática da experiência de tempo na construção da identidade nacional brasileira.
Cf: ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: modernidade e historicização no Império
do Brasil (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008.
158
Cf. HARTMAN, Robert S. A Razão Histórica: Uma Introdução Geral à Filosofia da História
Hegel. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2001.

94
a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do
cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento
meta−histórico das significações ideais e das indefinidas
teleologias. Ela se opõe à pesquisa da ‘origem’ [...]159

Com isso, a ideia de zona cinzenta a ser desenvolvida no presente


capítulo está relacionada a um projeto genealógico que buscou delimitar a erosão
de uma forma de poder político que funcionava naquele dispositivo de soberania
apresentado no capítulo anterior, para a criação de um solo epistêmico propício ao
nascimento de uma biopolítica das populações.
No decorrer do século XVIII, pelo menos no que diz respeito ao
exercício do poder Soberano, encontramos, misturadas, três formas de ação prática
da Soberania: a primeira pautada naquilo que se convencionou chamar de bom
governo, circunscrita ainda nos valores e virtudes religiosas de justa medida, a
segunda forma de atuação instaurada naquilo que podemos considerar Razão de
Estado, manifesta principalmente no governo ministerial de Sebastião José de
Carvalho e Melo, cujos princípios de Governamentalidade se firmaram no fim de
seu governo.
Essas camadas sedimentares do discurso, longe de apagar as
experiências anteriores de exercício de poder, produziram deslocamentos, desvios,
com reforço em alguns pontos, mas também de omissões deliberadas em outros.
Entre premissas de justa balança, frente a uma sociedade pautada em
sujeitos de direito, começavam a sobrepor princípios de autoconservação do próprio
Estado, mesmo fazendo uso de expedientes de golpes e, por fim, um limiar de
governamentalização das coisas em sua minudência, principalmente no que dizia
respeito aos assuntos de polícia.
Em seguida, remeteremos aos desdobramentos dessas mutações em
relação à capitania de Mato Grosso, expressas nas instruções régias e nos mapas
produzidos no período, enquanto primeira manifestação dos censos, que, ao nosso
ver, estavam atrelados a uma lógica de defesa territorial.
Curiosamente, o próprio termo capitão-general para designar o
governante da capitania (duas patentes militares capitão e general) imprimiu o teor

159
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do Poder. Tradução
de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

95
de como deveria ser o governo nessas áreas de limites duvidosos e de constantes
contendas entre portugueses e espanhóis na consolidação de seus domínios.
Entre as reformas ditas pombalinas e as reformas marianas, Portugal
estava inserido em um ambiente cultural do século XVIII, em que o continente
europeu se via por:

[...] mais intensa transformação mental e social da época


moderna. Impregnados por um sentimento de inovação que se
projetava sobre todas as ordens de coisas estabelecidas, os
ideólogos e literatos setecentistas manifestaram ‘um humanismo
renovado’, no qual o espírito humano aparecia como principal e
quase único ator histórico160.

Essa intensa transformação mental experimentada no século XVIII por


países como Inglaterra, França e Prússia, por exemplo, os quais já davam mostras
de um poder político guiado mais pelos princípios da Razão do que por valores
religiosos, não foi acompanhada no mesmo ritmo por Portugal.
O ambiente cultural e político lusitano, durante quase todo o século
XVIII, será regido por princípios de Razão de Estado e Soberania, embora no
governo pombalino já apresentassem indícios de uma lenta mutação em curso em
relação à tradição religiosa e nobiliárquica, para um Estado cada vez mais laicizado.
Esse tipo de situação de certa maneira imprimia uma relativa
“resistência” do governo luso em incorporar as novas ideias, ao ponto de o pensador
português Antonio Sergio retomar o termo de “Reino Cadaveroso”, criado por
Ribeiro Sanches, por acreditar que Portugal ainda estava preso às “tradições do
pensamento medieval” em suas ações políticas e culturais.
O lamento desse português desdobrando com as posições ilustradas de
um Ribeiro Sanches, diagnosticava um perfil de mentalidade cultural portuguesa
ainda preso aos valores de Autoridade assentado na tradição, e não o espírito crítico
experimental:

[...] Depois dos dias do Quinhentismo, o que se chama de espírito


moderno nunca mais vigorou na nossa terra, - se bem que
brilhasse, por vezes, em alguns portugueses excepcionais, que se

160
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: Intelectuais e estadistas luso-brasileiros na
crise do Antigo Regime Português (1750-1822). São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2006, p. 29.

96
cultivaram no estrangeiro, que se não entenderam com os
patrícios, e que combateram sem resultado a mentalidade do seu
país. Para Ribeiro Sanches, no século XVIII, Portugal é o ‘Reino
Cadaveroso’; e um satírico inteligente chama-nos ‘o Reino da
Estupidez’. [...] Não nos iluda a existência de portugueses
excepcionais, que se educaram nos laboratórios e nas leituras dos
estrangeiros. Somos o ‘Reino Cadaveroso’; somos o ‘Reino da
Estupidez’161.

Reproduzia-se com isso o discurso estereotipado que os pensadores do


iluminismo lançavam contra a cultura que os antecedeu, chamando-a de “Idade das
Trevas”, em alusão ao período histórico marcado pela cultura escolástica e
aristotélica centrada no prestígio das Autoridades e da tradição.
Tal situação ajuda a compreender a pouca acolhida que Ribeiro Sanches
teve na cultura portuguesa da segunda metade do século XVIII, onde, uma obra,
como Tratado da Conservação da Saúde dos Povos, publicada em Paris no ano de
1756, que, ao mesmo tempo apontava para a necessidade de um investimento na
vida e na saúde dos povos, permanecia uma obra ainda bem desconhecida, mas que
já abordava questões que só seriam retomadas nas capitanias e nas províncias em
fins do século XVIII e primeira metade do século XIX:

[...] Se este Tratado não desempenhar o título, que lhe pus, pelo
menos espero que o intento de ser útil àqueles a quem estão
encarregados os Povos, desculpará a temeridade de escrevê-lo.
Nele pretendo mostrar a necessidade que tem cada Estado de leis,
e de regramentos para preservar-se de muitas doenças, e
conservar a Saúde dos súbditos; se estas faltarem toda a Ciência
da Medicina será de pouca utilidade: porque será impossível aos
Médicos, e aos Cirurgiões, ainda doutos, e experimentados, curar
uma Epidemia, ou outra qualquer doença, numa cidade, onde o
Ar for corrupto, e o seu terreno alagado. Nem a boa dieta, nem
os mais acertados conhecimentos nestas artes produzirão os
efeitos desejados; sem primeiro emendar-se a malignidade da
atmosfera, e impedir os seus estragos. Somente os Magistrados,
os Capitães Generais nos seus exércitos, e os Capitães de mar e
guerra, serão aqueles que pelo vigor das leis decretadas poderão
remediar em semelhantes ocorrências a destruição daqueles, que
estiverem a seu cargo162 [...]

161
SÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou o problema da cultura em Portugal. In: Obras
Completas Ensaios, tomo II. Livraria Sá da Costa Editora: Lisboa, 1972, p. 27-28.
162
SANCHES, Antonio Ribeiro. Tratado da Conservação da Saúde dos Povos. Universidade da
Beira Interior Covilhã: Portugal, 2003, p.02.

97
Com o objetivo de escrever um tratado para conservar a saúde e a vida
dos povos, tal obra foi direcionada àqueles que ocupavam cargos políticos e
posições de mando na sociedade portuguesa de meados do XVIII, “[...] obra útil e,
igualmente, necessária aos Magistrados, Capitães Generais, Capitães de Mar e
Guerra, Prelados, Abadessas, Médicos e Pais de Famílias”.163
Embora o Tratado da Conservação da Saúde dos Povos antecipasse
muitos aspectos da estratégia biopolítica no investimento político na vida e saúde
dos povos, parece que ela foi eclipsada pela tradição cultural portuguesa do período,
uma vez que,

[...] Apesar de apoiar a reforma universitária de 1772, Ribeiro


Sanches era cético quanto ao alcance das mudanças que ele
julgava difíceis de serem aceitas por uma população formada
pelos preconceitos inculcados, havia séculos, pelos ‘padres
católicos ignorantes, soberbos, presunçosos’. Em comparação
com a Europa civilizada, a cultura portuguesa lhe parecia, por
contraste, um ‘Reino Cadaveroso’164 [...]

De origem judaica, tal posicionamento expressava certamente o


preconceito que ainda existia em Portugal em relaçãos aos judeus, conservando um
ambiente cultural ainda preso a alguns elementos da tradição, mesmo com a
implantação das reformas pombalinas.
Nesse sentido, esse ensaio, que parafraseava Ribeiro Sanches, ao
mesmo tempo em que apontava por uma espécie de preconceito iluminista (ao
chamar a sociedade portuguesa de Reino Cadaveroso), por outro demonstrava
também a dificuldade de as premissas filosóficas do pensamento ilustrado chegar
ao mundo luso, o que se faria ressoar nas ações governamentais, que, atravessando
todo o século XVIII, ainda estariam presas às Razões de Estado, no que tocava ao
funcionamento dos dispositivos de Soberania.
É exatamente nesse ponto que gostaria de situar as práticas
governamentais exercidas na capitania de Mato Grosso: pois, se por um lado não se

163
Ibid.
164
EDLER, Flávio Coelho; FREITAS, Ricado Cabral de. O ‘imperscrutável vínculo’ corpo e alma
na medicina lusitana setecentista. In: Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 29, nº 50, p.435-452,
mai/ago 2013, p. 441.

98
abdicava do regime de soberania, por outro lado ocorriam alguns deslocamentos e
a incorporação de novos problemas assumidos pela prática governamental.
Esse tipo de situação indicava não a ruptura abrupta de uma forma de
governar para outra, mas sim uma lenta maturação de ideias e práticas responsáveis
pela sedimentação de solo embrionário para o nascimento de uma nova prática
política: uma governamentalização do Estado, materializada, nesse caso, com a
criação de mecanismos estatais cada vez mais eficazes de fortalecimento e
conservação do Estado.
O que já se antecipava, sob o reinado de D. José I, era o diagnóstico de
uma crise e a percepção de que o sistema de retribuição de “graças e mercês”, por
exemplo, e toda uma série de compromissos que o soberano assumia em relação à
sua corte, tornava o funcionamento dos dispositivos de soberania oneroso ao
Estado, conduzindo à problemática necessidade de se proceder a reformas.
Curiosamente, se analisadas as sutilezas desse termo conceitual das
reformas, o que se verifica é um limiar de transformação que buscava criar novos
instrumentos e meios dessa soberania funcionar na conservação e manutenção do
Estado, fazendo com que ocorresse o desbloqueio de duas barreiras importantes de
resistência em face ao programa de reformas que pretendia realizar o ministro
Sebastião José de Carvalho e Melo.
Como se deu esse desbloqueio? Que aparelhagem nova traziam as
práticas governamentais? Quais as suas ressonâncias e desdobramentos na capitania
de Mato Grosso? Com quais objetos se preocupavam? Que formas de
assujeitamentos produziam?
Diante de tais questões, como demonstraremos com mais acuidade no
presente capítulo, o referido desbloqueio das barreiras que dificultavam o plano das
reformas políticas se deu como a emergência de um “estado de polícia”, após o
terremoto de Lisboa: evento traumático para a sociedade portuguesa do período que
colocava insidiosamente o problema da reconstrução da cidade e do enfrentamento
das misérias materiais assistidas após o sismo.
A problemática das reformas políticas propostas por Pombal atingiu os
jesuítas no plano da instrução geral e na formação das condutas luso-brasileiras,

99
mas também e igualmente uma parcela significativa da nobreza, que viram seus
privilégios reduzidos.
Curiosamente, acenava-se para a possibilidade de um novo programa
educacional e científico com a reforma da Universidade de Coimbra (1772) e pela
criação da Academia de Ciências de Lisboa (1779-1808)165, como forma de
instrumentalizar homens capazes de gerir os negócios públicos, mas convivendo
com uma prática marcadamente mercantilista de economia.
O que se assiste é um limiar de governamentalização do Estado envolto
em uma zona cinzenta, na qual os enunciados sobre as ações governamentais ainda
estavam misturados, ou seja, tratava-se de um dispositivo misto que, ao mesmo
tempo, assinalava um processo importante na constituição de novos elementos na
prática de governar e na gestão do Estado, mas convivendo com premissas
conservadoras de governo.
Esse limiar é importante, pois, embora, não tire a primazia do regime
de soberania em detrimento do regime de biopolítica, já apontava para um
deslocamento importante, ao colocar a necessidade do Estado em gerir homens e
coisas em suas minúcias. Começava a se criar as condições para o aparecimento da
problemática da população, postulado com maior visibilidade com a lenta
penetração do pensamento liberal, no decorrer da primeira metade do século
XIX166.
Com as reformas pombalinas verificou-se a incorporação das reflexões
sobre Razão de Estado, cujo campo de debate já havia sido fortemente trabalhado
por teóricos do século XVII e início do XVIII, como: Clapmar, Nudé e Chemitiz,
os quais colocavam em cena questões de segredo, estratagema, golpe de Estado167,
que foram amplamente utilizadas pelo referido ministro de D. José I.

165
As memórias econômicas publicadas pela Academia de Ciências e que materializam o tom das
discussões intelectuais e científicas, situam-se entre os anos de 1779-1808, já sob o reinado de D.
Maria I, quando apontava a necessidade de se formar políticos, aptos a gerir, os negócios do Estado,
em sintonia com outras manifestações do pensamento econômico, pautados pela escola fisiocrática
e utilitarista em rompimento com as doutrinas mercantilistas adotadas pelo marquês de Pombal.
Sobre esse assunto cf.: SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Op. cit.
166
Cf. LYRA, Maria de Lourdes. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da
política (1798- 1822). Rio de Janeiro: Sette Letras. 1994.
167
Cf. SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006.

100
Nesse sentido, os termos de reformismo ilustrado168, aplicado ao
ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, chegou a ser contraditório diante das
premissas adotadas em seu governo, bem como a viradeira, no reinado de D. Maria
I, expressão adotada comumente pela historiografia portuguesa e brasileira.
Sobre essa configuração epistêmica de governo, no decorrer da segunda
metade do século XVIII se vê nascer as condições de uma analítica da finitude e de
uma experiência de tempo começando a se desprender da representação da
eternidade e da escatalogia, onde alguns paradigmas sofreram profundas alterações,
pois passou-se das condições de produção de riquezas, e não uma analítica das
riquezas, o aparecimento do homem-espécie no campo das problematizações das
ações governamentais como membro de um corpo coletivo constituído de uma
população, pois o campo do saber ocidental só se efetivou no decorrer do século
XIX, com a constituição das ciências humanas: filologia, economia política e
biologia169.
Sendo assim, a premissa de que sempre se governa demais, que o
governo se encontra sob a égide de um poder que comete excessos em seus
exercícios, de que o campo de ações do soberano deve ser limitado por leis naturais,
científicas, racionais, sintoma de um racionalismo político proposto pelo
liberalismo que só será possível quando o mesmo se assentasse sob a constituição
de um mundo português cada vez mais aburguesado, o que, de fato, em pleno século
XVIII, a burguesia ainda não se constituía na força política da sociedade
portuguesa, que continuava marcada pelos jogos de alianças estabelecidos pelo

168
Situação que nos lança ao cuidado de não adjetivar esse período, pois a complexidade de uma
tentativa de racionalização nem sempre estava circunscrita a toda uma vaga de secularização que
por ventura começava a ganhar vulto na Europa do século XVIII, mas convém lembrar que a
velocidade com que chegavam e sua recepção não era sentida e pensada da mesma maneira em todo
cenário europeu. Assim, os termos, Reformismo Ilustrado e Viradeira dão conta apenas de um dos
aspectos dos fenômenos relacionados à transição do governo de D. José I e D. Maria I, ou seja, o
campo de ações que levam a valorizar em demasia por um lado, a secularização das ideias e
enfraquecimento da nobreza e dos jesuítas, e, por outro lado, a retomada dessas posições num
ambiente mais intelectual e científico, mas que trouxe para si a aproximação das pessoas
consideradas inimigas de Pombal e que representavam os grupos de famílias tradicionais da corte
portuguesa. Cf. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Op. cit.
169
Campos do conhecimento que ainda não estavam postos nas memórias Econômicas da
Academias de Ciências de Lisboa, mesmo em fins do século XVIII. Sobre a constituição dessas
ciências no saber ocidental, ver: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia
das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Col.
Tópicos)

101
soberano em relação aos seus vassalos e súditos, mas não em relação à vida de uma
população.

2.1- O limiar de uma governamentalidade em Portugal na segunda metade do


século XVIII

Gostaria de atentar para a emergência de uma Governamentalidade em


Portugal, na segunda metade do século XVIII, embasada nas reformas promovidas
pelo primeiro ministro de D. José I, que trazia inonovadoras modalidades de
relações de poder no âmbito do governo português.
Os teores dessas reformas eram importantes, pois, irão colocar em
tensão grupos tradicionais da sociedade portuguesa que estavam assentados em
privilégios estabelecidos pelas relações de soberania (a Companhia de Jesus e a
nobreza, por exemplo), em detrimento de um grupo poderoso de comerciantes.
Nesse cenário, foi apresentada por vários historiadores a personalidade
paradoxal170 do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (o futuro conde de
Oieiras e Marquês de Pombal), ora representado por uma figura importante do
pensamento iluminista, como aquele que iniciou um projeto de laicização do
Estado, tendo sido responsável pela reforma da Universidade de Coimbra, mas
também naquele em que o poder régio se tornou mais forte e timbrado pelo
exercício de um poder capaz de se investir, com força insidiosa, sobre os seus
adversários políticos, enfim, uma personagem enigmática da historiografia
portuguesa, e por que não, brasileira?
Longe de apresentar um quadro imóvel do que foi Sebastião José de
Carvalho e Melo, trata-se de mapear algumas dimensões epistêmicas que
constituíram a personalidade ambígua desse ministro em relação às suas ações
políticas cujas ressonâncias ecoaram na forma de governo desenvolvido na
capitania de Mato Grosso.
Primeiro aspecto que gostaria de ressaltar é que a formação política do
futuro Marquês de Pombal foi marcada por viagens diplomáticas a diversos países,

170
Cf. MAXUEL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1996.

102
como Inglaterra, Áustria, e sempre retornando a Portugal. Certamente, em contato
com esses países é bem possível que tenha absorvido os príncípios da Razão de
Estado com diferentes pensadores.
Diante do exposto, a indagação que se coloca é: em que sentido as
premissas de Razão de Estado (discutidas desde o século XVII como reação ao
pensamento de Maquiavel algumas vezes, e outras nele se apoiando) entraram na
pauta epistêmica de organização do saber político de Portugal?
Gostaria de encetar a discussão sobre a razão de Estado e de governo,
para demonstrar, no campo da historicidade, a constituição de uma
“governamentalização do Estado português”, cujas ressonâncias atingirão os
territórios que ficaram conhecidos como os “seus domínios”.
Essa produção de Governamentalidade do Estado, na qual Foucault
traça a sua genealogia, se desenvolve a partir de uma problemática geral de governo,
na confluência de dois acontecimentos importantes no continente europeu desde o
século XVI:

De um lado, a instauração dos grandes estados territoriais,


administrativos, coloniais; de outro, e bem mais complexo, o
movimento da Reforma e depois da Contra-Reforma- ou seja, um
cruzamento que significou um movimento concomitante de
concentração estatal e de dispersão religiosa. Para Foucault,
portanto, é no cruzamento desses dois movimentos que nasce e
se desenvolve a problemática geral do governo em geral171.

Assim quando Foucault traz o texto de Guillaume de La Perriere,


intitulado O espelho político, que se tornou fundamental na sua discussão sobre o
nascimento da Governamentalidade, ele está situado num momento específico de
organização dos Estados Modernos, das revoltas de condutas (as experiências do
movimento protestante e a Contra-Reforma Católica) e do fortalecimento dos
domínios coloniais. Nesse sentido, é interessante o debate travado pela Companhia
de Jesus sobre o “bom governo, face à reforma protestante e à nascente Razão de
Estado”:

171
MACHADO FILHO, Oswaldo. Cartografia de vidas infames: nomadismo e biopolítica na
província de Mato Grosso. In: Política e identidades em região de fronteira (séculos XIX e XX).
Ernesto Cerveira de Sena; Cláudio Pereira Elmir; Oswaldo Machado Filho (Org.). Cuiabá:
EdUFMT, 2012, p. 48.

103
[...] Finalmente, os teóricos da Contra-Reforma se mostram
capazes de reagir à mais insidiosa e perigosa ameaça que[...]
haviam detectado nas obras de Maquiavel, especialmente na
sugestão de que, ao indagar se deve ou não agir com justiça, o
príncipe deve decidir pela linha de ação que pareça ter mais
probabilidade de ‘manter seu estado’. O equívoco que
fundamenta esse conselho ímpio, dizem mais uma vez aqueles
autores, é o mesmo erro básico dos luteranos. Como Possevino
afirma com arrogância em Um juízo sobre os escritos de Jean
Bodin, Philippe Momay e Nicolau Maquiavel, tanto quanto os
outros principais hereges da época, Maquiavel não percebe que
‘a mente dos sábios é imbuída de uma luz divina e natural
enviada por Deus’, a qual nos permite ver que temos o dever e a
capacidade ‘de estar certos de agir apenas com a mais elevada
probidade’. Ribadeneyra apresenta o mesmo argumento em seu
tratado antimaquiavélico A religião e as virtudes do príncipe
cristão: contra Maquiavel. Segundo ele, quando nos dizem ‘para
adotar como regra o que escrevem autores como Maquiavel’, o
que nos pedem é que ‘nos afastemos do caminho direto e reto que
a própria razão natural nos mostra, que Deus nos ensina, que o
abençoadíssimo filho [de Deus] nos revelou’). E Suárez reitera
essa ideia no capítulo especial que destina a Maquiavel no
Tratado das leis e de Deus legislador: Maquiavel esteve cego ante
o fato - crucial - de que ‘o direito civil somente pode ser
elaborado com material honesto’ e deve ser ‘limitado pelas
exigências da justiça’, jamais pelas meras pretensões da
conveniência política172.

Esse ambiente de tensão entre os teóricos da Contra-Reforma, em


reação ao movimento protestante, de um lado, e de outro dos teóricos da Razão de
Estado, ganhava ainda mais visibilidade em Portugal no embate entre o Marquês de
Pombal e os jesuítas, ou seja, o corte entre duas maneiras distintas de conceber a
problemática do governo.
Desenhava-se em toda a segunda metade do século XVIII um
confronto, tendo de um lado o ponto de partida assumido pelos jesuítas de ministrar
“corretamente a justiça, materializado pelas virtudes cristãs e pela sabedoria”
proveniente da luz divina que efetivamente produzia o gênio do soberano a um bom
governo, daí talvez a “importância dada a todos os conselheiros” quanto às
premissas maquiavelianas e as de outros teóricos da Razão de Estado de situar seu
ponto de decisão com a finalidade de “manutenção do Estado”, mesmo que por

172
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Tradução de Renato Janine
Ribeiro e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 447-448.

104
meios “ímpios”, como causa última do soberano. No intermeio desses embates, ao
nosso ver, irá se constituir um limiar de Governamentalidade em Portugal, cujas
ressonâncias atingirão suas colônias.
Retomando a obra O espelho político, de La Perriere, o que temos é
uma “forma de governo dos homens” que irá atribuir uma natureza diferente à
gestão política, o que não significava propriamente ministrar justiça. Tratava-se de
pensar uma forma de gestão das pessoas a partir de suas relações com as coisas, era
nisso que consistia essa arte de governar proposta por La Perriere e que, ao nosso
ver, ressoava em algumas dimensões da administração pombalina, mas que, em
outros aspectos dela se distanciava, como teremos a oportunidade de ver mais
adiante.
A tônica da política pombalina, nesse sentido, assumia a necessidade de
uma gestão que contemplasse “uma disposição dos homens com as coisas, à
maneira” como Foucault via a Governamentalidade de La Perriere, em sua obra O
espelho político, que, embora ainda circunscrita à tradição dos Espelhos dos
Príncipes173, trazia uma novidade em relação ao exercício de poder. Isso
significava, dentre outras coisas:

[...] Mostrar aquilo com que o governo se relaciona não é,


portanto, o território, mas uma espécie de complexo constituído
pelos homens e pelas coisas. Quer dizer também que essas coisas
de que o governo deve-se encarregar, diz La Perriere, são os
homens, mas em suas relações, em seus vínculos, em suas
imbricações com essas coisas que são as riquezas, os recursos, os
meios de subsistência, o território, é claro, em suas fronteiras,
com suas qualidades, seu clima, sua sequidão, sua fecundidade.
São os homens em suas relações com estas coisas que são os
costumes, os hábitos, as maneiras de fazer ou de pensar. E, enfim,
são os homens em suas relações com estas coisas que podem ser

173
Temos nesse sentido a publicação, em 1749, de Damiam Antonio de Lemos Faria e Castro, em 6
volumes a obra: Política, Moral, e Civil, Aula da Nobreza Lusitana e que tinha por finalidade a
direção dos príncipes e demais políticos, não é à toa que ela é dedicada ao príncipe D. José I. A
natureza das reflexões ainda está sob um conjunto de saberes ainda sob a perspectiva de uma
formalização de um bom governo, atinado em conhecimentos das virtudes e vícios que podem
comprometer as ações dos governantes, mas que, curiosamente, já atinavam para questões referentes
às causas em que os Estados se conservam, diminuem ou aumentam. Cf. CASTRO, Damiam
Antonio de Lemos Faria e. Política, Moral, e Civil, Aula da Nobreza Lusitana. Oficina de Francisco
Luiz Ameno. Impressor da Congregação Cameraria da Santa Igreja de Lisboa. Lisboa, 1749. (6
vol.).

105
os acidentes ou as calamidades como a fome, as epidemias, a
morte174.

Texto “precoce”175, na medida que sua publicação na segunda metade


do século XVI, assinalava “uma arte de governar” que atentava para as minúcias
das coisas a serem governadas e como os homens estabeleciam as relações entre si
a partir dessas coisas. Assim, o enfoque dado por Guillaume de La Perriere era para
as condições imanentes criadas no próprio exercício do governo.
Foucault lembra que as circunstâncias do nascimento de O Espelho
político situavam-se entre duas formas de recepção positivas da obra de Maquiavel
(O Príncipe), a primeira, ainda logo após a sua publicação no início do século XVI,
e, a segunda no alvorecer do XIX. Nesse intervalo de tempo surgiu uma literatura
anti-maquiávélica, no entanto, a interlocução sobre a problemática de governo se
colocava ainda a partir de Maquiavel.
Vale lembrar que esse momento assinalou um lento processo de
declínio da influência do poder pastoral enquanto “forma política da unidade e do
bom governo” diante dos movimentos de contracondutas176, dos quais a reforma
protestante será um exemplo. Os tratados que se seguirão, como os de Westfália177,
colocam a problemática do equilíbrio europeu e a necessidade de organizar as

174
FOUCAULT, Michel. Aula de 1º de fevereiro de 1978. In: Segurança, território, população.
Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, p. 128-129.
175
A precocidade acontecimental desse texto indica que algo de novo estava surgindo na gestão
governamental, mas que como premissa geral de governo ela vai, no mínimo, ser eclipsada por
outras formas de exercício de poder, o que Foucault chamou de bloqueio dessa arte de governar e
que em Portugal, na nossa ótica, ainda está atrelada a premissas gerais do mercantilismo e da Razão
de Estado. Seguindo as pistas de Foucault, acreditamos que esse desbloqueio se dará com a
positividade da problemática da população, em consonância com a penetração de enunciados
liberais/utilitaristas que anunciam um novo paradigma de sociedade civil tanto para Portugal como
para o Brasil. Os detalhes desse processo serão analisados com maior acuidade no capítulo 3 da
presente tese. Cf. FOUCAULT, Michel. Op. cit.
176
Cf. Sobre a noção de contraconduta cf. FOUCAULT, Michel. Aula de 1º de março de 1978. Op.
cit., p. 266.
177
Tratado que marcará o fim da Guerra dos 30 anos (1638-648) que foi um conflito ao mesmo
tempo motivado por questões religiosas (católicos/protestantes), mas também representou o conflito
entre as potências da época, motivadas por interesses dinásticos além de envolver as desavenças
políticas locais dos príncipes alemães em relação ao imperador do Sacro Império Romano
Germânico. Sobre esse assunto, cf. o interessante artigo: MOITA, Luís. Uma releitura crítica do
consenso em torno do ‘sistema vestefaliano’. JANUS.NET e-journal of International Relations.
Universidade Autónoma de Lisboa/Lisboa.vol. 3, n. 2, outono 2012. Consultado [online] em
1/3/2017, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol3_n2_art2

106
relações de força dos Estados Europeus, ensejando plenas condições para o
nascimento da Razão de Estado.
Esta se situa no momento preciso em que a problemática do equilíbrio
europeu era posta em causa diante da fragilização do poder pastoral, pautado na
unidade do Império (a época Império Romano Germânico do Ocidente)178 e da
centralidade em que os próprios Estados colocarão a si mesmos, tendo em vista a
necessidade de manter o equilíbrio, o que, de certa forma, estava em consonância
com a problemática da balança enquanto prerrogativa do “bom governo” em
ministrar justiça, mas que nessa situação representava um controle das forças num
momento de rivalidades dinásticas.
Nessa situação, à questão das rivalidades e da diplomacia emergiu um
campo de tensão política, no qual cada Estado europeu deveria, necessariamente,
conhecer as suas forças e utilizá-las de modo mais eficiente para sua manutenção.
Diante disso é que, ao nosso ver, seguiu paralelamente a dispersão de táticas para a
conservação e posse das áreas coloniais, entre Portugal e Espanha.
O Tratado de Madri e as ações diplomáticas de Alexandre de Gusmão
são consonantes nesse sentido, pois colocava em evidência a tensão entre lusos e
hispânicos na busca da manutenção do equilíbrio entre essas duas nações. Tal
intento redundou na abolição do Tratado de Tordesilhas e de outros pactos,
delimitando as fronteiras de acordo com marcos naturais conhecidos, tendo por base
a aplicação do princípio jurídico do uti possidetis, que garantia a posse a quem de
fato ocupasse os espaços.179
Temos, assim, o emaranhado de problemas levantados sobre o governo
em geral, com ênfase no modo como tais reflexões vão adquirindo conotações cada
vez mais prezas aos mecanismos estatais, configurando o momento da passagem de
um Estado de Justiça para um Estado Administrativo:

[...] A passagem do Estado Justiça para o Administrativo, teria


inaugurado a era dos governos, com o surgimento da teorização
sobre a denominada “razão do estado”, pela qual o Estado agiria
de acordo com uma racionalidade que lhe seria inerente e não

178
Cf. FOUCAULT, Michel. Aula de 22 de março de 1978. Op. cit., p. 407.
179
Cf. RIO-BRANCO, Miguel Paranhos de. Alexandre Gusmão e o Tratado de 1750. In: Alexandre
Gusmão e o Tratado de 1750/ A Tormentosa Nomeação do Jovem Rio Branco para o Itamaraty.
Brasília. FUNAG, 2010.

107
com fundamento em regras deduzidas da lei natural ou divina
(razão do direito)180.

Apoiando-se ou rechaçando Maquiavel, entre os séculos XVII e XVIII,


creio que se faz presente a discussão sobre a Razão de Estado (Giovane Botero,
Cheminitz, Nudé, Bacon, dentre outros)181 e a Arte de Governar (proposta por La
Perriere) em O espelho político. Tal campo de discussões começou a se
interpenetrar reciprocamente no cenário português a partir da segunda metade do
século XVIII:

[...] O imaginário corporativo da sociedade e da política


perdurou, em Portugal, até meados do século XVIII, decorrente
da predominância da segunda escolástica peninsular. Enquanto
no norte da Europa e na Itália, explica Charles Boxer, discutia-se
livremente assuntos como a “razão de estado” e as ideias de
Galileu, Bacon, Descartes, Newton, Hobbes, entre outros, os
“jesuítas de Portugal (assim como os da Espanha) recusaram-se
a difundi-las em suas aulas e proibiram expressamente a sua
discussão até 1746182.

Com isso, temos que as premissas de Razão de Estado vão sendo


incorporadas com relativa lentidão no mundo ibérico, em face à resistência dos
jesuítas em introduzi-las em seus reinos. No entanto, a partir do momento em que
esses grupos intelectuais vão perdendo seus campos de ação, a exemplo dos
inacianos, tais premissas vão adentrando ao espaço luso e de suas colônias,

180
ARAÚJO, Danielle Regina Wobeto de. A Governamentalidade do Império Oceânico português
no período colonial português. In: História do Direito. Orides Mezzaroba; Raymundo Juliano Rego
Feitosa; Vladmir Oliveira da Silveira (Org.). Curitiba: Editora Clássica, 2014, p. 26.
181 As reflexões de Giovane Botero, Nudé e Bacon situam a problemática da Razão de Estado como
elemento constitutivo do próprio Estado, ou seja, toda uma reflexão sobre como manter e conservar
o Estado. Nesse sentido, seguindo as pistas deixadas por Foucault, percebe-se que essa Razão de
Estado vai desenhando o rompimento com uma temporalidade teleológica de cunho religioso e
produzindo um discurso cada vez mais atado a uma concepção temporal presa aos objetivos mais
próximos, mais diretos da manutenção do Estado. Coadnua-se com esse pensamento um vocabulário
político que usa Golpes de Estado, de Segredos de Estado, intrigas, investimento na opinião popular
etc. e percebemos muitas dimensões dessas características no ministério pombalino na segunda
metade do século XVIII. Sobre Razão de Estado, ver: FOUCAULT, Michel. Segurança, Território,
População. Op. cit.; SENNERLAT, Michel. As Artes de Governar. Op. cit.; ROMANO, Roberto.
Razao de Estado e outros Estados da Razão. São Paulo: Perspectiva, 2014.
182
Ibid., p.32

108
constituindo uma nova Governamentalidade que começava a se desprender de suas
bases teológicas e das amarras do direito:

Com a razão de Estado, o governo dos homens não recorreu às


regras transcendentais para o seu código de conduta, como no
caso do poder pastoral, mas sim à imanência de sua prática. O
Estado passou a ter sua própria razão que não estava relacionada
com o sentimento nem com a religião e aumentar sua força: esse
deveria ser o objetivo do poder do soberano183.

Nesse sentido, buscaremos apresentar as condições do limiar da


governamentalização do Estado, quando tomada como princípio de inteligibilidade
do real, no sentido de que se tratava de estabelecer uma certa maneira de pensar o
que deveria ser, em sua natureza própria, em seus vínculos e relações, a constituição
do seu funcionamento a partir de uma aparelhagem própria.
Trata-se de pensar o movimento em que a pluralidade semântica e a
prática da ideia de governo vão aos poucos se tornando centrais para se pensar as
práticas governamentais incorporadas de certo número de elementos, certo número
de instituições já dadas, certo número de relações que passavam a ser da alçada do
Estado.
Diante disso, acreditamos que seja, necessário incialmente desvencilhar
a aproximação ligeira que fazemos entre governo e política, pois, ao que tudo
indica, ainda no século XVIII essas duas noções, em muitas de suas conotações no
cenário cultural de Portugal, não designavam nem os mesmos objetos e tampouco
os sujeitos.184
Vale lembrar que a concepção de governo nem sempre esteve atrelada
enquanto sinônimo de exercício de poder político ligado ao Estado. Ainda
circunscrita a uma tradição greco-romana, a ideia de governo, até o século XVIII
em Portugal, ainda era vista numa perspectiva plural em relação a vários domínios

183
ALCADIPANI, Rafael. Dinâmicas de poder nas organizações: A contribuição da
Governamentalidade. In: Revista Comportamento organizacional e gestão. Lisboa, vol. 14, n. 1,
2008, p. 101.
184
O historiador português Pedro Cardim exemplifica essa situação ao trabalhar com os conceitos
usados por Vieira, no século XVII: política e governo, trazendo as diferentes nuances desse conceito
na prática e atuação de Vieira junto ao Soberano. Cf. CARDIM, Pedro. Governo e política no
Portugal de seiscentos: o olhar do jesuíta António Vieira. In: Revista Penélope, (s/l) Lisboa, n. 28,
2003.

109
da existência humana. Basta lembrar que no dicionário organizado pelo padre
jesuíta Rafael Bluteau, no início do século XVIII, tal noção fazia remissão a uma
polissemia de significados, como:

GOVERNAR. Mandar com supremo poder, & autoridade.


Governar um Reino, um Império; governar um navio, como faz
o Piloto. [...]; Governar um navio estando em um esquife. [...];
governar um negócio. Ter a direção dele. [..]; governar a alguém
dar-lhe conselhos [...] governar-se. Regular-se. Reger-se.
Governar-se pelo exemplo de algum. ‘Digo, que tendes em casa
um exemplo, pelo qual vós podeis governar. ’[..]; Governar-se.
Acomodar-se. Conformar-se; governar-se conforme o tempo e a
ocasião; [..] governar-se, ser guiado. [...]; GOVERNO. A ação de
governar. Administratio, ou gubernatio, onis. [...]O governo de
uma cidade, de uma República. [...] Um governo, uma província,
que tem governador[...] Ter um governo, ter uma província, que
governar. [...] Governo da casa, ou governo doméstico [...]185

Note-se que essas conotações já estão presentes no início do século


XVIII e que apresentam a noção de governo associada à prática política no que diz
respeito a governar um Reino ou Império. Ressalta-se ainda que os referidos
dicionários apresentavam conotações que remontaram à problemática dos governos
de si e de direção de consciência, da ideia de comandar, de reger e cuidar, seja da
casa ou de um negócio, mas também à ideia de ter um território para governar, como
uma província ou cidade.
Retomando o referido dicionário Vocabulário Portuguez & Latino,
Aulico, Anatômico, Architectonico etc., Rafael Bluteau traz uma designação de
política enquanto ciência própria do príncipe no governo de um Estado:

Política: é palavra composta de polis, que em Grego vale o


mesmo que cidade, & Itiqui que responde ao que chamamos de
ética, ou Filosofia Moral, q’. se emprega na moderação das
paixões, & composição dos costumes. E assim na sua mais ampla
significação, Política, é a que as Cidades, Repúblicas, Reinos, &
Impérios dá os preceitos do bom governo [grifos meus], assim
para o bem dos que mandam, como dos que obedecem. Esta é
propriamente a ciência dos Príncipes que são os substitutos
de Deus no governo do mundo. O fim principal da boa

185
BLUTEAU, Rafael. Vocábulo Português Latino, Áulico, Anatômico, Bélico, Botânico etc. vol.
4. Dedicados a D. João V. Coimbra: Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1713, p. 103-
105.

110
política não é a prosperidade temporal dos Estados, mas a
glória de Deus, na administração da justiça, & observância
das Leis. [grifos meus], Política. A ciência de governar um
Estado, uma República186.

Como se pode constatar, o referido clérigo da Companhia de Jesus,


Rafael Bluteau, se refere à política ainda remontando a tradição grega da polis e da
ética, curiosamente referindo-se, de certa maneira, em governos de cidades,
repúblicas e reinos, mas subordinados à glória de Deus.
Vislumbrava-se, nesse sentido, uma prerrogativa de bom governo
pautada em “virtudes cristãs”, na boa administração e justiça. Note-se, que o
objetivo principal, não era a prosperidade temporal dos Estados, mas sim a glória
de Deus, haja vista que o príncipe nada mais era que um substituto de Deus no
governo do mundo, estampando uma espécie de representação da figura do rei
soberano em relação ao soberano celestial, no que diz respeito à fonte de justiça e
bondade. Diante disso, Bluteau reforça a sua ideia de política a partir de um soneto
castelhano que expressava:

[...] Cobrar,y adminiftrar con buena cuenta,


No dar aquien por fi no lo merece,
No quitar lo que al otro pertene,
No permitir q’ el prêmio pare en venta.

Pagar las deudas,q’ el deseuido augmenta,


I moderar el gasto, que empobrece,
Tener en el, que más justo parece,
Providencia prudente,y no avarienta.

Socorrer las fronteras sín tardança,


Mantener en su honor a la Milicia,
Fomentar del comercio la ordenança.

Formar Artes fabriles con perícia,


Alentar las virtudes, y labrança,
I Sobre tudo administrar justicia187.

Essa premissa de bom governo (pautadas na ideia de justiça) foi uma


das características marcantes no reinado de D. João V, orientada por seus

186
Idem. Vocábulo Português Latino, Áulico, Anatômico, Bélico, Botânico etc. vol.06. Dedicados a
D. João V. Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus: Coimbra, 1720, p. 576-577.
187
Ibid.

111
conselheiros que, obviamente, eram convocados para lhe prestar auxílio em
assuntos de política. Semelhantes referências encontramos também em Damian
Antonio de Lemos Faria L. Castro, na obra intitulada Política Moral e Civil: Aula
da Nobreza Lusitana, dedicada ao até então príncipe de Portugal D. José I, vejamos
algumas delas.
A tonalidade do escrito de Damian Antonio de Lemos Faria L. Castro
estava ainda muito ligada a uma escrita da história “edificante e exemplar”188,
buscando os fundamentos do governo político a ser exercido pelos príncipes, tanto
pela imitação dos exemplos daquilo que foi glorioso no passado, como pelas
infâmias que o príncipe deveria evitar:

Nessa obra vos ofereço a regra, a que haveis de ajustar os vossos


procedimentos. Bem sei, que não corresponde a minha oferta às
vossas qualidades: porém a sua matéria é esfera dilatada para
estenderem os voos as águias dos vossos entendimentos. As
doutrinas, que em todo o seu discurso pertencem aos Príncipes,
deveis proporcionar às vossas obrigações. A arte de dominar os
povos é faculdade, que envolve todas as ciências. A felicidade
dos governos consiste na boa política; e por isso devem os
príncipes sabe-la melhor, que os outros homens. Qualquer
homem governa em si o microcosmo, ou mundo pequeno: o
Príncipe dois mundos grandes. Para ter mão naquele basta um
gigante forçoso; para sustentar estes são necessários muitos
Athalantes [sic] valentes. O maior peso das obrigações requer
mais robustas as forças da sabedoria. Essa é a razão, porque dizia
Augusto, que o Rei sábio, ou não havia de nascer, ou nunca
houvera de morrer189.

Na verdade, a obra de Damian Castro se inseria numa longa tradição


dos manuais de “conselhos e condutas” dos príncipes, cujos parâmetros para se
governar eram exatamente expressos pela sabedoria e virtude, pois, “[...] o maior
ornamento de um reino não consiste só em ter muitos homens opulentos, mas

188
Os escritos de Damian Antonio de Lemos Faria L. Castro, nesse sentido, representaram uma
permanência de um modelo de narrativa histórica na qual a história seria mestra da vida, história
magistral vitae, uma tradição narrativa proposta pelos romanos e que permanecerá como gênero
literário por todo o século XVIII, antes de ser preterida por uma história dita científica (Geschite)
no século XIX, à maneira de Ranke, Hegel, Marx etc. Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de César Benjamin. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2006.
189
CASTRO, Damian Antonio de Lemos Faria L. Proêmio. In: Política Moral e Civil: Aula da
Nobreza Lusitana. Tomo I. Lisboa: Oficina de Francisco Luiz Ameno impressor da Congregação
Camerária da Santa Igreja de Lisboa, 1749, p. XII-XIII.

112
também muitos homens sábios”190 e, obviamente, o príncipe deveria ocupar esse
lugar central entre os sábios, ou seja, a ação do soberano deveria sempre estar em
consonância com a dos seus conselheiros ou ministros:

Entre as muitas misérias da vida humana e uma das maiores não


ver claramente os negócios próprios, como os alheios. Não
sabem o que se aconselham, os que dão conselhos a si mesmos.
Não pedir nos negócios dificultosos, é temerária soberba. O mais
sábio de todos os deuses era Júpiter, e para fulminar raios sobre
a terra, pedia os pareceres de doze conselheiros. Nos castigos
graves não há de dar a sentença o voto do príncipe, ouça o que
sentem os outros, pese-lhe as razões, e obre conforme os
pareceres dos mais prudentes. [...] Os ímpios Maquiavel, e Bodin
reputarão os conselheiros como embaraços do príncipe, e
totalmente inúteis ao seu governo. Mais autoridade tem o Espírito
Santo, que manda ao sábio ouça os prudentes, para ser mais
douto. Condenou o Senado Romano a Júlio Cesar, porque não
usava de seu parecer. A esfera do bom governo, move-se no eixo
da prudência, e conselho191.

Em torno da sabedoria necessária aos príncipes e de sua relação com os


conselheiros, o autor deixa, de forma explícita, uma crítica a Maquiavel e Bodin,
cujas reflexões começavam a se pautar nas premissas da Razão de Estado e sua
necessidade de expansão e de conservação, o que, necessariamente não
correspondiam todas virtudes defendidas pelo autor, das quais ele enumera as
seguintes:

As quatro virtudes, que chamamos cardinais, ou principais são o


precioso esmalte das Coroas, e necessárias a todos os homens
para obrar moralmente bem. A Prudência [grifos do autor]
ilumina o entendimento: a Justiça [grifos do autor] dirige a
vontade: a Fortaleza [grifos do autor] acende o temor: e a
Temperança [grifos do autor] modera os desejos. Na parte
sensitiva, tem o homem duas faculdades, e duas na racional, que
todas residem na alma. Irascível, e concupiscível são as
primeiras: Entendimento, e Vontades as segundas. A Fortaleza
[grifos meus] modera a Irascível, alargando-a, ou suprimindo -
a segundo a razão, pelo que pertence as coisas árduas. A
Temperança [grifos meus] refreia a Concupiscível sobre as
coisas deleitáveis, conforme os ditames do racional. A
Prudência [grifos meus] ilumina o entendimento no que

190
Ibid.
191
CASTRO, Damian Antonio de Lemos Faria L. Liv. III. Da Prudência. Cap. III. Op. cit. p. 124-
125.

113
respeita as coisas, que se hão de obrar, e dá medida as leis, e lei
às virtudes todas. A Justiça modera a vontade, inclinando-a às
coisas justas, que pertencem ao bem alheio192.

Curiosamente, semelhantes e visíveis diretrizes sobre as condutas do


monarca em relação ao seu reino, caracterizadas principalmente pela virtude e
sabedoria, qualidades necessárias a um príncipe para estabelecer a “boa política” de
que falava Lemos Faria, em 1749, começavam a sofrer uma erosão interna,
passando a ser sobrepostas por algumas premissas da Razão de Estado, já no reinado
de D. José I, a quem a obra Política Moral e Civil: Aula da Nobreza Lusitana era
dedicada.
Nesse sentido, já no dicionário Bluteau, acrescentado por Antonio
Moraes, era verificável um deslocamento sutil na concepção de governo e de
política transcorrido da passagem do reinado de D. João V para D. José I e que, de
certa maneira, ajuda na compreensão da polêmica travada entre o padre jesuíta
Gabriel Malagrida (afeito à concepção de política e governo expressa por Lemos
Faria) e o ministro Sebastião José de Carvalho e Mello.
No ano de 1798, o referido dicionário193 composto pelo padre Rafael
Bluteau foi reformado e acrescentado por Antonio de Moraes Silva no que concerne
à ideia de governo, ainda se mostrando bem próxima da edição do início do século
XVIII, percebendo-se uma novidade em relação ao ato de governar. Eis que, entre
as definições já dadas, surge a ideia de governar associada “[...] a sustentar-se,
manter-se, fazer as despesas necessárias à vida, e tratamento”194.
Embora se mostre remisso à premissa de um governo doméstico, traz à
tona a questão da manutenção da vida por meio de uma atividade que lhe
proporcionasse rendimento e salário que lhe garantisse a existência, o que, de certa

192
Ibid., p. 45-46.
193
O fato de o dicionário ter sido elaborado por um padre jesuíta e que teve sua formação intelectual
nos muros da Igreja, ajuda a entender a concepção de governo ligada a virtude, por esse grupo
eclesiástico, no entanto, quando o mesmo vai perdendo influência, essa significação perde o seu
lugar. Sobre a relação significante e significado como símbolos que explicam um determinado
acontecimento, cf. DARTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. Tradução
de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
194
BLUTEAU, Rafael; SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da Lingua Portugueza composto
pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado e accrescentado por Antonio de Moraes Silva. Tomo I (A
a K). Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, p. 664.

114
maneira, fazem ressoar alguns posicionamentos estabelecidos por Rousseau, em seu
Discurso sobre a Economia Política, quando afirma:

Não basta ter cidadãos e protegê-los, é necessário também cuidar


de sua subsistência. Atender as necessidades públicas é uma
decorrência evidente da vontade geral e o terceiro dever essencial
do governo. Como se pode perceber, esse dever não consiste em
abarrotar os celeiros dos particulares e dispensá-los do trabalho,
mas manter a abundância ao seu alcance, de forma que, para
atingi-la o trabalho seja necessário e nunca inútil. Isso estende-
se também a todas as operações que a operação da manutenção
do fisco comporta e encargos da administração pública. Assim,
depois de ter falado de economia [grifos do autor] geral, em
relação ao governo das pessoas, é necessário considerá-la, em
relação à administração dos bens195.

Note-se em Rousseau que a preocupação com a subsistência e a


problemática do trabalho na produção de riqueza já se fazem presentes, no entanto,
relacionada ao governo político dos homens e à administração dos seus bens, algo
bem próximo daquela premissa de La Perriere do governo dos “homens em sua
relação com as coisas”, o que indica que novas acepções de governo estavam
penetrando no vocábulo e na prática política presentes no dicionário Bluteau,
acrescentado por Moraes Silva, datado do final do século XVIII.
No que diz respeito à noção de política, a definição trazida por Bluteau
e Moraes Silva se apresenta de maneira bem mais lacônica, expressando a Política
enquanto “a arte de governar os Estados”: “§ O governo v. g. por má política. §
Policia”196, ou seja, omitia-se a designação de política segundo a qual o soberano
era visto como representante de Deus no mundo, sinalizando a sobreposição da
premissa de “bom governo” para uma Razão de Estado.
É digno de nota também que nessa conotação de política aparece o
termo “polícia” que, nessas ações governamentais da segunda metade do século
XVIII, apresentava uma positividade em relação à problemática do espaço urbano,
como teremos oportunidade de analisar a seguir.

195
ROSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre Economia Política. Tradução de Maria Constança
Peres Pissarra. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 35-36 (Vozes de Bolso).
196
BLUTEAU, Rafael; SILVA, Antonio de Moraes. Op. cit., p. 664.

115
2.2- Estado de polícia e razão de Estado: entre o sismo natural e a cisma
política

Gostaria de apresentar agora o cenário em que a problemática do estado


de polícia e razão de Estado ganhou força em Portugal no transcorrer da segunda
metade do século XVIII. Nesse intento, busco situar o campo de ação política cada
vez mais visível do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, em contraposição
aos setores tradicionais da sociedade portuguesa, entre eles os jesuítas e alguns
membros da nobreza, exemplificados nos processos que foram movidos contra o
padre jesuíta Gabriel Malagrida e o dos Távoras.
Em consonância do que foi exposto anteriormente, demarcaremos a
aurora de uma governamentalização do Estado português entre a segunda metade
do século XVIII, ou seja, um período que compreende os reinados de D. José I e
seu ministro Sebastião José de Carvalho e Melo e o de D. Maria I (sua filha),
situando-se entre duas reformas políticas em Portugal. Nesse sentido, uma
contribuição relevante nesta pesquisa se fundamenta nas considerações de Antonio
Manuel Hespanha e José Manuel Subtil, no artigo intitulado Corporativismo e
Estado de polícia como modelos das sociedades euro-americanas197, o qual nos
ajuda a compreender os embates políticos e culturais travados naquela época.
Os mencionados historiadores chamam a atenção para o fato de que se
trata mais que um jogo, uma sobreposição de reformas, sustentando precisamente
o estabelecimento de uma mudança profunda no exercício político:

[...] Essa transformação profunda, ocorrida em meados do século


XVIII, não resultou de uma acumulação de reformas. Foi uma
mudança repentina que absorveu todas essas teorias inovadoras
de governo, administração, ligada ao ambiente criado pelas
condições sociais, econômicas e políticas do terremoto de 1755
que obrigaria ao uso de técnicas, métodos e conhecimentos que
não tinham correlação com os conteúdos das práticas
administrativas tradicionais198.

197
HESPANHA, António Manuel; SUBTIL, José Manuel. Corporativismo e Estado de polícia como
modelos das sociedades euro-americanas do Antigo Regime. In: O Brasil Colonial (1443-1580),
vol. 1. João Fragoso; Maria de Fátima Gôuveia (Org.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
198
Ibid., p. 148.

116
Essa governamentalização do Estado português, segundo os
mencionados historiadores, revelam, entre outras coisas, o surgimento de um estado
de polícia, que se constituiu após o terremoto de Lisboa, no ano de 1755,
acontecimento199 que abalou as diretrizes tradicionais do poder político e lançou
aos governantes uma nova maneira de gerir a relação entre súditos e soberano, o
qual terá diante de si novas urgências.
A necessidade da reconstrução de Lisboa após o terremoto lançou novas
problemáticas de gestão governamental diante de uma cidade em ruínas, destroçada
e cheia de escombros. Semelhante evento, certamente deixou graves sofrimentos
materiais e psíquicos, marcados por ações de banditismo diante da miséria que se
via após o terremoto. Em Nova, e fiel relação do terremoto que experimentou
Lisboa, e todo Portugal no 1º de novembro de 1755 com algumas observações
curiosas, e a explicação das suas causas, de autoria de Miguel Tibério Pedegache
e publicada em 1756, oferece um pouco da dimensão do efeito destrutivo daquele
sinistro e o sofrimento impingido aos portugueses, em particular, aos lisboetas:

O primeiro de novembro, dia consagrado a festividade de todos


os santos, pelas nove horas e quarenta minutos da manhã, estando
o Barômetro em 27 pulgadas, 7 linhas e o termômetro de Mons.
de Reaummur em 34 graus acima do gelo, sereno o tempo, e puro
o atmosphero [sic], tremeu a terra com três impulsos. O primeiro,
ainda que precedido de um rugido medonho, foi tão pequeno, que
a poucas pessoas atemorizou, e durou mais de um minuto. Mas
depois de um intervalo de 30 a 40 segundos, o abalo foi tão
violento, que as casas principiaram a se arruinarem. Escureceu-
se o dia pela densidade da poeira, e pouco mais de dois minutos
durou a cerração, e o tremor. Descansou a terra menos de um
minuto, para de novo confundir tudo. As casas, que tinham
resistido, cairão com um ruído espantoso: encobriu-se o Sol, e a
terra trêmula, e vacilante ameaçava tornar de novo ao antigo
caos. Os gemidos dos agonizantes, os alaridos dos que
imploravam misericórdia divina, os tremores contínuos da terra,
a escuridão do dia aumentava o horror, o medo, e atribulação.
Enfim, depois de 2 até 3 minutos de sofrimento serenou a
tormenta.

199
Aqui, o conceito de acontecimento é pensado sob a égide de Michel Foucault e assinala um limiar
de descontinuidade, de ruptura e de positividade atravessado por produções discursivas e não
discursivas, capazes de estabelecer novos dispositivos de poder em Portugal e nas colônias. Sobre
uma análise dessa perspectiva de acontecimento em Michel Foucault, ver: DOSSE, François.
Renascimento do Acontecimento: um desafio para o historiador - entre Esfinge e Fênix. Tradução
de Constancia Morel. São Paulo: EdUNESP, 2013.

117
Mas que tristes objetos se oferecerão aos olhos! Mulheres quase
nuas, crianças ensanguentadas, velhos cobertos de poeira
correndo de uma para outra parte, corpos desfigurados pela morte
espalhados em todas as ruas; Religiosos com cruzes e Imagens
devotas nas mãos excitando o povo atemorizado às lágrimas de
uma sincera penitência, Templos derribados, Palácios
arruinados, e número de infelizes sepultado nas ruínas sem
esperança de socorro200.

Ainda segundo Pedegache, a descrição do terremoto e o clima de tensão


e medo por ele gerado, ainda era agravado pelos constantes saques e roubos que se
seguiram à catástrofe:

Quem poderia crer, que nessa desolação, nesse destroço houvesse


ainda homens tão perversos, que desprezassem as chamas, e a
morte, buscando na ruína pública uma fortuna criminosa? Os
ladrões se assenhorearão da Cidade Deserta, forçaram as portas,
e saquearam as casas. A esperança da impunidade eterna animava
cada vez mais ao crime a quem desprezava a ira do Céu, e o braço
da justiça da Terra201.

Essa onda de banditismo não acometia somente em casas abandonadas,


as quais se poderia saquear, mas também a pessoas vulneráveis, por conta do
desastre. Uma ideia disso nos é apresentada pelos estudos arqueológicos de M.
Telles Antunes e João Luís Cardoso que, ao analisar os corpos referentes ao período
do terremoto, apontam que:

Lesões não remodeladas, sem sobrevivência, às vezes repetidas,


evidenciam agressões com instrumentos cortantes-contundentes.
Algumas, mesmo se não causassem a morte faziam sentido para
intimidar vítimas, para mais mulheres, a que seguidamente era
dado fim.
Espetacular lesão por impacte de bala na testa indica agressão
com arma de fogo. Trabalho eficaz, compatível com um
profissional da violência. Tudo joga certo com anarquia e saque,
fuga de população e atuação de toda a casta de bandidos.
Carvalho e Mello conseguiu estabilizar a situação. Forças

200
PEDEGACHE, Miguel Tibério. Nova, e fiel relaçaõ do terremoto que experimentou Lisboa, e
todo Portugal no 1º de Novembro de 1755 com algumas observaçoens curiosas, e a explicaçaõ das
suas causas. Lisboa: na Officina de Manoel Soares, 1756, p. 3-4. Disponível em:
http://purl.pt/21921/4/422376_PDF/422376_PDF_24-C-R0150/422376_0000_rosto-24_t24-C-
R0150.pdf. Acessado em 10/8/2017
201
PEDEGACHE, Miguel Tibério. Op. cit., p. 5-6.

118
armadas asseguraram a neutralização de tais elementos. Muitos
foram presos, submetidos a juízo e executados na forca202.

A reconstrução incitava a necessidade de se impor uma ordem


“disciplinar e medidas de polícia” na reconstrução de Lisboa, lembrando que no
período o termo polícia apresentava uma positividade relacionada à produção de
uma forma de governo e administração interna da República, principalmente no que
respeita às comodidades, podendo designar limpeza, asseio, fartura de víveres, e
vestiária; mas também incluía a segurança dos Cidadãos no estabelecimento de um
tratamento decente, cultural, de adorno e urbanidade no falar, nas boas maneiras
etc.203.
Uma dimensão dessas “medidas de polícia” pode ser visualizada no
seguinte índice das providências tomadas pelo governo e apresentadas por Amador
Patrício de Lisboa nas Memórias das Principais Providências, Que se Derão [sic]
no Terremoto:

Providência I: Evitar o receio da peste, que ameaçava a corrupção


dos cadáveres, sendo inumeráveis, e não havendo vivos para os
sepultarem pela precipitada, e geral deserção dos moradores de
Lisboa;
Providência II: Evitar a fome, que necessariamente se havia de
seguir, não só pelo motivo de não haver quem conduzissem
víveres; mas porque muitos armazéns deles haviam sepultado as
ruínas, e abrasado o incêndio;
Providência III: Curar os feridos, e doentes, que estavam
desamparados nas ruas em perigo certo de morrerem;
Providência IV: Reconduzirem-se os moradores de Lisboa, que
haviam desertado, para se restabelecer a povoação, sem a qual
nada se podia fazer;
Providência V: Evitar os roubos, e castigar os ladrões, que
haviam metido a saco a Cidade, despojando as casas, e os
Templos;
Providência VI: Evitar que pelo mar se desse saída aos roubos, e
para esse efeito rondar o Rio;
Providência VII: Remediar a necessidade, em que estava o Reino
do Algarve, a Vila de Setúbal, e os portos da América, e Índia;
Providência VIII: Mandar vir algumas tropas do Reino para
servirem ao grande trabalho da Cidade, e seu sossego;

202
ANTUNES, M. Telles; CARDOSO, João Luís. Testemunhos do terremoto de 1755: novos
elementos obtidos em escavações na Academia das Ciências de Lisboa (notícia preliminar). Olisipo.
Lisboa, Vol. 2, nº 22/23, p. 79, jan./dez. 2005.
203
Sobre essas conotações do termo polícia em Portugal do início do século XVIII, cf.: BLUTEAU,
Rafael. Op. cit., p. 573.

119
Providência IX: Darem-se comodidades precisas para
alojamento interino do povo;
Providência X: Restabelecer o exercício dos Ofícios Divinos nas
poucas Igrejas, que se haviam salvado, ou em decentes
acomodações interinas;
Providência XI: Recolher as religiosas, que vagavam dispersas,
e dar-lhes a possível clausura;
Providência XII: Socorrer a diversas necessidades, em que estava
o povo, as quais por várias, e avulsas, se reduzem a uma classe
separada;
Providência XIII: Atos de Religião em S. Majestade para aplacar
a ira Divina, e agradecer ao Senhor tantos benefícios;
Providência XIV: Dão-se os meios mais conducentes para a
reedificação da Cidade204.

Entre as quatorze providências tomadas encontramos “medidas de


polícia” que envolviam precisamente a preocupação em gerir os espaços urbanos e
reconstruí-lo após o desastre e, de fato, na “gestão dessas coisas” o governo
acabava por atingir concomitantemente a gestão das pessoas, que envolvia aspectos
como: evitar a peste, a fome, a carestia de alimentos, os saques, as depredações, a
vadiagem, controlar a entrada e saída das pessoas, socorrer os doentes, criar as
condições de restabelecer os cultos religiosos, enfim, gerir coisas e homens.
Foucault, na aula proferida aos 29 de março de 1978, junto ao curso
Segurança Território População205, traz uma discussão muito relevante sobre a
concepção de polícia na passagem do século XVII e XVIII e que, de certa maneira,
expressava um pouco a dimensão daquelas medidas tomadas após a catástrofe de
1755. Nesse sentido, o filósofo aponta cinco objetos dos quais essa polícia deveria
se ocupar: o primeiro dizia respeito à preocupação com a quantidade de pessoas,
como princípio da força estatal, ou seja, “[...] deve haver entre o número de homens
e a extensão do território, as riquezas, para que a força do Estado possa crescer o
mais possível e da maneira mais segura”. Esse objetivo coadunava-se com a IV
providência tomada na recondução das pessoas que fugiram, fazendo-as retornar
para efetivação do repovoamento da cidade, sem a quê nada mais se poderia fazer;

204
LISBOA, Amador Patrício de. Memórias das Principais Providências, Que se Derão no
Terremoto que padeceo a Corte de Lisboa no anno de 1755, ordenadas, e oferecidas a’ Magestade
Fidelissima de El’Rey D. José I. 1758. Disponível em: http://purl.pt/6695/6/hg-8302-a_PDF/hg-
8302-a_PDF_24-C-R0150/hg-8302-a_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf. Acessado em: 3/8/2017.
205
Cf. FOUCAULT, Michel. Aula de 29 de março de 1978. In: Segurança, território, população.
Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

120
o segundo problema a ser levado pela polícia foi relativo à vida, ou seja, às
condições que garantissem àquela população sua subsistência (roupa, comida,
abrigo etc.). A providência II procurou evitar a fome, a III curar os feridos e
desamparados na rua, a VII remediar as necessidades do Reino de Algarves e
Setúbal e os portos da Índia e América, a IX oferecer alojamento ao povo, e a XII
socorrer as diversas necessidades do povo, o que se prestou a ilustrar o segundo
objetivo da polícia. Já o terceiro objeto tratou da questão da saúde enquanto
condição necessária para que as pessoas exercessem alguma atividade útil ao Estado
(nesse propósito, é exemplo desse objetivo as providências I - evitar a peste e II -
curar os feridos e doentes). A IV preocupação da polícia tratou efetivamente do
trabalho, evitando a ociosidade (nesse caso as providências V- evitar os roubos e
castigar os ladrões, VIII - mandar vir tropas do Reino para auxiliar na reconstrução
da cidade e na manutenção da paz e sossego, materializam esse quarto objetivo) e,
por fim, a V preocupação dizia respeito à circulação de mercadorias, ou seja, das
condições materiais que o Estado deveria se ocupar para garantir tal circulação, daí
se depreende a preocupação com as estradas, com a navegabilidade dos rios e mares
etc. (as providências VI que versam sobre as rondas sobre os rios e mares para evitar
a saída de produtos roubados, uma vez que a quantidade de víveres estava
comprometida não somente por conta de não haver gente para produzi-la, como
também pelo fato de que grande quantidade de armazéns e outras propriedades
foram destruídas pelo terremoto.
Essas medidas de polícia ainda contavam com a necessidade de
restabelecer os cultos religiosos nas acomodações que resistiram ao terremoto,
recolhendo as religiosas que, por conta do acontecimento, estivessem sem moradia.
Tratava-se de agir em duas frentes: uma na reconstrução material da cidade e a outra
no conforto espiritual de tanta gente que sofreu em seus corpos a força destrutiva
do terremoto, ou seja, a situação colocava em cena duas forças em visibilidade: a
ação governamental do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, de um lado, e
ação espiritual pelo padre Gabriel Malagrida, duas maneiras de conduzir o povo
com suas misérias no palco de uma Lisboa destruída.
Essas dimensões de polícia, com semelhantes conotações estavam, em
de certa medida, em consonância com algumas premissas enunciadas anteriormente

121
por Gillaume de La Perriere, quando colocava a questão de se governar as relações
dos homens com as coisas, inserindo também as premissas da Razão de Estado
nessa concepção de polícia, uma vez que todos os objetos de que se ocupava a
polícia naquele momento visavam o fortalecimento e a manutenção do Estado.
A essa ideia de polícia associada a prática governamental de Portugal,
nessa segunda metade do século XVIII, apontou também para a necessidade da
utilização de mecanismos mais eficazes de gestão dos homens na sua relação com
as coisas, o que significava a introdução, na pauta política do soberano português,
de um padrão de racionalidade que buscasse o fortalecimento e prosperidade desse
Estado:

[...] Essa governamentalização do aparelho administrativo


tradicional foi completada com a exautoração das suas
competências, quando muitas das funções foram transferidas
para novos organismos, criados e dependentes do governo dos
secretários de Estado. Os exemplos mais emblemáticos são o
Erário Régio (22 de dezembro de 1761) e a Intendência Geral da
Política (25 de junho de 1760)206.

No que diz respeito ao Erário Régio, tais mudanças implicavam, dentre


outras coisas, no processo de centralização das ações da Tesouraria da Fazenda
Real, com a instauração de uma forma de contabilidade que entrava em choque com
as premissas tradicionais da justiça e da graça207, a qual acarretou vários
constrangimentos aos setores tradicionais da sociedade portuguesa, que ia desde:

[...] a licitude de tributos e de operações de crédito até dispersão


do controle orçamental e contabilístico, exigindo uma série de
requisitos, de técnicas e de recursos que não estava ao dispor
desses setores tradicionais como o rigor sobre a informação das
receitas e despesas, a eficácia nas arrecadações dos impostos e o
planejamento orçamental208.

206
HESPANHA, António Manuel; SUBTIL, José Manuel. Op. cit., p. 151.
207
Em referência aos sistemas de mercês, graças e outras retribuições régias concedidas segundo os
compromissos estabelecidos com o soberano e seus súditos. Tal sistema começou a enfraquecer,
contribuído pela necessidade de estancar a sangria de recursos que eram concedidos sob o título de
graças e mercês, tendo em vista a necessidade de reconstruir Lisboa.
208
Ibid.

122
Além disso, no tocante à Intendência Geral de Política de 1761,
conforme Hespanha e Subtil, o seu campo de ação incorporava as práticas dos
“corregedores, provedores e juízes de fora, bem como repercutia no Senado da
Câmara de Lisboa e no Desembargo do Paço em assuntos de polícia”209, o que
remetia àquelas providências tomadas após o terremoto, por exemplo.
Com isso, começavam a ser traçadas as reformas ditas pombalinas, um
limiar de “Governamentalidade do Estado” português, tendo por base a substituição
de um governo ministerial imperante no reinado de D. João V (ainda muito próximo
dos modelos do bom governo de fortes ressonâncias religiosas)210, para um governo
estruturado em secretarias (emergências de novas responsabilidades de cada
secretaria), ocasião em que se observa a passagem de:

[...] um governo de ‘inclusão política’ que se prolongou e


manteve os efeitos sociais negativos das compensações e dos
equilíbrios entre os privilégios e a suas limitações. Já os vários
governos josefinos/pombalinos assentaram na ‘exclusão política’
[grifos do autor] para discriminar, para garantir outro tipo de
agregação que impedisse a resistência às reformas e garantisse a
consolidação das mesmas. Ao posso que muitas dessas reformas
apontavam para uma clara atenuação dos poderes tradicionais
sob a égide de um governo de Estado211.

Em relação a esse limiar de governamentalização, creio que é pertinente


situar as desavenças de Sebastião José de Carvalho e Melo com o padre jesuíta
Gabriel Malagrida, assim como o caso da tentativa de assassinato do rei D. José I,
que culminou no processo dos Távoras, ambos inseridos no momento em que
Lisboa tentava se reerguer após o terremoto, marcadamente tidos como ícones de
oposição às ações políticas preconizadas pelo futuro Marquês de Pombal.
Tal situação criava uma atmosfera na qual os membros da nobreza e da
Companhia de Jesus, que constituíam as forças tradicionais da sociedade
portuguesa, passassem a ceder espaço para outros grupos, criando condições para
as reformas políticas desejadas por Carvalho e Melo.

209
Ibid.
210
A esse respeito, é bom lembrar as premissas do bom governo defendidas por Damian Antonio de
Lemos Faria L. Castro. Cf. CASTRO, Damian Antonio de Lemos Faria L. Política moral e civil:
Aula da Nobreza Lusitana. Op. cit.
211
Ibid.

123
O caso do jesuíta Gabriel Malagrida é emblemático, pois este desfrutava
de grande prestígio no reinado de D. João V, reconhecido por suas atividades
relacionadas ao catecismo, conversão e ensino no Maranhão e no Pará, e de sua
fama como “taumaturgo”, não se podendo esperar o fim que teve: foi “estrangulado
e queimado em 21 de setembro de 1761”.212
A questão do cisma entre o Pombal e Malagrida situava-se na passagem
de um poder pautado na virtude do soberano e materializado em ações tidas como
de “bom governo”, nas quais certamente o gênero literário dos “espelhos dos
príncipes”213 constituía exemplo, para a organização de um poder de Estado mais
laicizado, ou seja, de uma Razão de Estado.
A catástrofe provocada pelo terremoto colocou em questão duas
explicações para o fenômeno: a primeira, proposta pelo padre Gabriel Malagrida,
de que se tratava de um fenômeno “sobrenatural” e indicativo de um castigo divino,
e, a segunda, proposta por Pombal, que contratou cientistas para espalhar panfletos
sobre as causas naturais dos abalos sísmicos.

[...] O terremoto que devastou Lisboa no dia 1 de novembro de


1755 veio a tornar-se um dos marcos importantes de afirmação
do ministério pombalino em virtude de sua política enérgica de
restauração da capital portuguesa. O sismo não deixou de ser
aproveitado como um sugestivo pretexto para os pregadores
jesuítas (e outros formadores de opinião pública) criticarem os
caminhos políticos que vinham sendo trilhados pela corte nos
últimos 5 anos. Ao lado das versões oficiais das causas do
terremoto (que o governo se preocupou de divulgar), as quais
perfilavam uma explicação mais de acordo com o racionalismo
iluminista que entendia o sismo como fenômeno natural que
ocorria periodicamente, atenuando a explicação providencialista
do fenômeno, circulavam também muitas interpretações
religiosas e moralistas que descortinavam causas de índole
sobrenatural por vezes apocalípticas e de prospectivação
milenararista214.

212
Cf. MURY, Paulo. História de Gabriel Malagrida. Prefáciado por: Camilo Castelo Branco.
Lisboa: Mattos Moreira & Cia, 1875.
213
Sobre os gêneros literários dos Espelhos dos Príncipes cf. SENERLATT, Michel. As artes de
governar: do regime medieval ao conceito de governo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo:
Editora. 34, 2006.
214
Cf. FRANCO, José Eduardo. O Terremoto Pombalino e a Campanha de Desjesuitização de
Portugal. Revista Lusitania Sacra (Revista do Centro de Estudos de História Religiosa/Universidade
Católica Portuguesa): Catolicismo e Sociedade na época Moderna: O terremoto de 1755. Lisboa, 2ª
série, tomo XVIII, FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), 2006, p. 147-218.

124
A tônica dessa polêmica já demonstrava divergência da política
pombalina em relação ao padre Gabriel Malagrida, que atuou como missionário no
Brasil e que chegou a ter desavenças com o irmão do ministro, Francisco Xavier
Furtado, que era o então, capitão-general da capitania do Grão-Pará e Maranhão.
Veja o teor acusatório da carta remetida por Xavier Furtado ao seu irmão Carvalho
e Melo:

ILMº e Exmº Sr. meu irmão do meu coração: Ainda que dei a V.
Exª uma conta geral e larga do que me pareceu que era a ruína
deste Estado, quero agora em menos palavras contrair o discurso
e referir alguns casos em comprovação daquele papel.
Já V. Exª está informado do grande poder dos Regulares neste
Estado, que o tal poder o tem arruinado, que os religiosos não
imaginam senão o como o hão de acabar de precipitar, que não
fazem caso de Rei, Tribunal, Governador ou casta alguma de
Governo, ou Justiça, que se consideram soberanos e
independentes, e que tudo isto é certo, constante, notório e
evidente a todos os que vivem destas partes215.

O conteúdo dessa contenda estava circunscrito ao monopólio


comercial216 concedido à Companhia de Comércio do Grã-Pará e Maranhão e que
afetavam comerciantes e principalmente os jesuítas, os quais também estabeleciam
atividades comerciais na região, especialmente ligadas às missões jesuítas de
povoados portugueses bem interiorizados, sendo eles acusados de adquirir muitos
poderes na região, comprometendo a circulação comercial e as atividades agrícolas:

Ultimamente, mano, é necessário assentar em dois princípios


certos, claros e evidentes. O primeiro, que este Estado se fundou,
floresceu e nele se estabeleceram infinitos engenhos e
plantações, enquanto as Religiões não tiveram este alto e
absoluto poder. Segundo: que depois que o tiveram tudo se
arruinou, confundiu e finalmente se reduziu a nada, porque se
recolheu nas comunidades todo o comércio que deveria girar na
Praça, e com que deveram enriquecer-se aqueles homens, que
nele traficam com tanto lucro do público e da Fazenda Real.
Nestes termos já V.Exª compreende que, não havendo comércio,
não havendo plantações, também não pode haver subsistência ou

215
Cf. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina: Tomo I.
Correspondência do governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759). Brasília: Senado Federal, 2005, p. 203.
216
Característica marcadamente mercantilista. Cf. HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J. História
do pensamento econômico. Tradução de Jaime Larry Benchimol. Petrópolis: Vozes, 2005.

125
adiantamento em corporação alguma, e por essa razão só as
comunidades neste Estado florescem, e se adiantam, quando tudo
mais se acabou e extinguiu de todo217.

O que estava em jogo era a produção de uma fissura entre poder


“pastoral das almas”, aos cuidados dos jesuítas, mas que também se estendia às
atividades econômicas e aos negócios de Estado, que cabiam ao rei e aos seus
ministros. Diante dessa tensão houve uma representação movida pelos jesuítas
contra a criação da referida companhia de comércio, junto à Mesa do Bem Comum
(órgão destinado a organizar as atividades econômicas do Reino), mas tal ação não
surtiu o efeito esperado, tendo sido tomada enquanto afronta:

[...] O texto da representação da Mesa do Bem Comum tinha sido


redigido pelo jesuíta Bento da Fonseca. Procurador das Missões
do Maranhão. O empenhamento dos membros da Companhia de
Jesus em hipotecar a fundação da nova empresa monopolista
régia, quer no plano da formação de uma opinião pública
desfavorável através do púlpito, quer no plano político
diplomático, deu pretexto ao governo pombalino no sentido de
tomar medidas drásticas para reprimir estes focos de
descontentamento. Estes desacordos e protestos eram avaliados
na linha da filosofia política do despotismo iluminado, como um
atrevimento intolerável contra a autoridade sagrada do Estado e
contra a sua política econômica considerada crucial para a
afirmação do comercio nacional frente à concorrência
estrangeira, nomeadamente britânica218.

Ao dissabor dessas desavenças, de fato, o terremoto de Lisboa criou um


ambiente ainda mais instável entre os jesuítas e Sebastião José de Carvalho e Melo,
estabelecendo entre eles um jogo discursivo permeado por acusações recíprocas.
Basta lembrar que Gabriel Malagrida sustentava que a gravidade do evento sísmico
era o resultado da “ira divina”, sugerindo um desvio ou abandono das premissas
religiosas na condução da política, insinuação direta à organização do Reino
português sob a égide de Sebastião José de Carvalho e Melo, como podemos
constatar no seguinte opúsculo de sua autoria, do qual consideramos importantes as
seguintes passagens:

217
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Op. cit., p. 206.
218
Cf. FRANCO, José Eduardo. Op. cit., p. 149-150.

126
Sabe, pois, oh Lisboa, que os únicos destruidores de tantas casas
e palácios, os assoladores de tantos templos e conventos,
homicidas de tantos seus habitadores, os incêndios devoradores
de tantos tesouros, os que a trazem ainda tão inquieta, e fora de
sua natural firmeza, não são os cometas, não são estrelas, não são
os vapores ou exalações, não são fenômenos, não são
contingencias ou causas naturais; mas são unicamente os nossos
intoleráveis pecados.[...] Nem digam os que politicamente
afirmam, que procedem de causas naturais, que este orador
sagrado abrasado no zelo do amor divino faz só uma invectiva
contra o pecado, como origem de todas as calamidades que
padecem os homens, e que se não deve comprovar com esses
espíritos ardentes , que só pretendem aterrar os mesmos homens,
e aumentar a sua aflição com ameaços da ira divina
desembainhada; porque é certo, se me não fosse censurado dizer
o que sinto desses políticos, chamar-lhes ateus; porque esta
verdade conheceram ainda os mesmos gentios219.

Vale lembrar que, diante desse jogo, os jesuítas, representavam um


prestígio cultural, intelectual e espiritual na mentalidade portuguesa da época, pois,
de certa maneira, o ensino, as produções acadêmicas e o catecismo produziam um
extenso campo de ação dos inacianos na conduta das pessoas220. No entanto, para
pensar as causas do terremoto e aplacar o medo dos habitantes portugueses, havia
outra explicação para o sinistro, assentada no fato de ser um fato contingencial,
natural, relacionado aos cometas estrelas e vapores (explicação esta a que
Malagrida se contrapunha), sendo esta última, por exemplo, a posição defendida
por Miguel Tibério Pedegache, em Nova, e fiel relação do terremoto que
experimentou Lisboa, e todo Portugal no 1º de Novembro de 1755 com algumas
observações curiosas, e a explicação das suas causas:

Observei que os tremores, que ainda frequentemente sentimos,


são precedidos umas vezes de um ruído subterrâneo, e que outras
vezes há desses ecos. [...] Observei também que quase sempre
treme a terra no crepúsculo da manhã, e que todas as vezes que
há rabanadas de vento é quase certo achar por um tremor [...]

219
Opúsculo escrito por Gabriel Malagrida e apresentado na íntegra por Camila Castelo Branco na
obra História de Gabriel Malagrida, escrita pelo padre jesuíta Paulo Mury. Cf. MURY, Paulo. Op.
cit., p. IX-XI.
220
Esta concepção coadunava com a ideia de uma Natureza perfeita, criada pelos desígnios divinos
para satisfazer as necessidades humanas no trabalho, na vestimenta, na alimentação etc. A natureza
criada por Deus mantinha-se em perfeito equilíbrio. Sobre a mudança dos comportamentos humanos
em face ao mundo natural, cf. THOMAS, Keith. O Homem e o mundo natural: mudanças de atitudes
em relação as plantas e aos animais (1500-1800). Tradução de João Roberto Martins Filho. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988.

127
Algumas pessoas se admiram que o tremor do dia de Todos os
Santos se tenha feito sentir no mesmo dia, em Portugal, em
Holanda, em Espanha, na África, e na América Meridional. A
lição da Teoria da Terra, obra admirável, e que imortaliza
Monsier Buffon, me ensinou a conhecer a causa desse
fenômeno221.

Dessa constatação inicial, gostaria de salientar que o fato de o terremoto


ter sido diagnosticado a partir de dados vivíveis da natureza, colocou em evidência
um campo de empiricidades na explicação do fenômeno. Além disso, ao argumentar
que os efeitos do evento se fizeram sentir em outros países, como Holanda,
Espanha, África e América Meridional, a tese do castigo era, no mínimo,
questionável. Assim, o referido Pedegache prosseguiu a sua explicação:

É certo que todas as matérias inflamáveis, e capazes de explosão


produzem como a pólvora pela inflamação uma grande
quantidade de ar: que esse ar produzido pelo fogo se acha no
estado de uma grandíssima rarefação; e pelo estado de
compressão em que se acha nas entranhas da terra, deve imprimir
efeitos violentíssimo.
Se em uma profundidade considerável, como a de dois mil
palmos por exemplo, se acharem matérias sulfúreas, e nitrosas, e
que pela fermentação produzida pela filtração das águas, ou por
algumas outras causas venham a se inflamarem, essa matérias,
não só se achando dispostas regularmente por camadas
horizontais, como se sempre acham as matérias antigas, que
foram formadas pelas fezes das águas, acham-se nas fendas, e
aberturas perpendiculares, nas cavernas juntas ao pé dessas
fendas, e em outras partes, onde as águas podem penetrar. Essas
matérias inflamando-se hão de produzir uma grande quantidade
de ar, do qual o elastério compresso em um pequeno espaço,
como de uma caverna, não só há de abalar o terreno superior, mas
há de buscar saída por onde possa escapar, e por se em
liberdade222.

Curiosamente, a explicação oferecida por Pedegache constituía ao


mesmo tempo explicação para a erupção dos vulcões, mas também para as causas
do terremoto, formulação anterior à das placas tectónicas. No entanto, a explosão
causadora de ambas era explicada pelo processo de acúmulo constante de
substâncias inflamáveis que encontraram condições de explosão e estavam presas

221
PEDEGACHE, Miguel Tibério. Op. cit., p. 7.
222
Ibid., p. 7-8.

128
a um espaço reduzido, o que levou a causar os tremores, no caso dos terremotos, ou
procurar fendas por onde pudessem escapar, no caso dos vulcões.
É claro que essas duas explicações para o fenômeno situavam-se num
campo discursivo de poder sobre a opinião pública, tendo, de um lado, a acusação
de ateísmo por parte daqueles que defendiam o evento sísmico enquanto algo
sobrenatural, chocando com a explicação veiculada pela campanha antijesuítica,
marcada por jogo de propaganda política iniciado em 1756, o qual tinha por base o
levantamento de supostas provas coligidas num conjunto de documentos intitulado
Terribilidades, no qual foram elencado o conjunto de abusos, desrespeitos e
sedições ocorridos no norte do território brasileiro, além de outras possíveis
atrocidades cometidas pelos jesuítas.
Em 1757 veio a lume uma nova compilação de documentos
denominada Relação Abreviada223, na qual projetava-se a imagem dos jesuítas
enquanto personagens alheias às leis do Estado, visto que considerados espoliadores
dos colonos brancos, ardilosos e sediosos, que chegaram ao ponto de adequar as
leis da Igreja em benefício próprio. Enfim, essas investidas, construíram uma
imagem negativa da Companhia de Jesus, criando um campo propício para
fundamentar a expulsão dos inacianos a mando do governo português, mesmo com
frente à condenação papal. Não é o nosso intuito aprofundar nos processos que
culminaram na expulsão dos jesuítas (inclusive os processos eclesiásticos224),
cabendo apenas assinalar que a campanha de Carvalho e Melo, nesse sentido,
funcionou muito bem225.
Em 5 de março de 1761, o rei D. José I publicou um alvará em que
acusava os jesuítas de traidores, rebeldes, adversários e agressores da ordem vigente
emanada do rei, redundando na expulsão definitiva dos membros da Companhia de

223
Para mais detalhes em relação à campanha de desmoralização da Companhia de Jesus e os
processos que se seguiram cf. FRANCO, José Eduardo.Op. cit.
224
Um exemplo da manifestação papal contra os jesuítas foi expressa em um documento escrito pelo
papa Clemente XIV, intitulado Breve do Santíssimo Padre Clemente XIV pela qual a Sociedade
Companhia de Jesus se extingue, e suprime em odo orbe, publicado pela régia oficina tipográfica de
Lisboa, no ano de 1773. In: MOREIRA, Antonio Joaquim. Op. cit., p.241.
225
Ao analisar o exemplo de Luís XIV, monarca francês do século XVII, o historiador Peter Burke
apresentou exemplo das estratégias utilizadas para garantir uma certa persuasão e convencimento
em relação aos seus súditos e, que, no entanto, não atribuía a uma ideia de propaganda política, que
só seria criada em finais do século XVIII. Cf. BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da
imagem pública de Luís XIV. Trad. Maria Luisa X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

129
Jesus do Reino português e de seus domínios. Nesse documento também foi
estabelecido o confisco dos seus bens, os ditos bens temporais, como: móveis que
não estavam diretamente ligados ao culto, mercadorias de comércio, terras, casas,
renda em dinheiro que não foram gravadas como destinadas a capelas e obras pias,
dentre outras226.
A execução de Malagrida, em 21 de setembro de 1761, foi descrita em
tom apologético e heroicizante, por Paulo Mury227, mas semelhante episódio, para
a presente tese é interessante enquanto exemplo da técnica do exercício de “poder
de fazer morrer”, baseado no cerimonial do suplício, ou seja, produzindo uma
espécie de espetáculo a ser vislumbrado por uma grande quantidade de expetadores.
Paulo Mury descreveu uma infinidade de dores no corpo do
sentenciado, que envolvia a organização minuciosa da cerimônia de execução, a
qual passava pela realização de procissão, o que manifestava a solenidade do
evento, a construção de palanques ao redor da praça do Rocio, onde o povo e a
nobreza pudessem assistir. Além disso, esperarou-se o entardecer, para que o
sentenciado desfilasse pelas ruas para ser ultrajado. O supliciado vestia uma espécie
de mitra de papelão desenhada com demônios, sendo ao final exposto a insultos de
toda espécie, até sua morte a garrote e fogueira, cujas cinzas foram logo atiradas ao
mar, para que os súditos não a recolhessem. Todo esse espetáculo foi presidido pelo
ministro e à frente dele se posicionavam o monarca e a corte228.

226
Lei de 5 de março de 1761, reafirmando o decreto régio de setembro de 1759, em que o rei D.
José I ordenava a expulsão dos religiosos da Companhia de Jesus que estivessem em seus domínios
continentais e ultramarinos. Já, mesmo antes de 1761, por exemplo, temos a provisão de D. José I,
de 10 de abril de 1760, dirigido ao capitão-general João Pereira Caldas da capitania do Piauí,
comunicando a expulsão dos jesuítas e a entrega deles ao capitão-general do Maranhão e o confisco
de seus respectivos bens. Cf. Provisão. AHU-Piauí, CX. 06, DOC. 03; cf. MOREIRA, Antonio
Joaquim. Op. cit., p.224.
227
Logicamente, essa situação expressa o lugar social de onde fala Paulo Mury, pois, sendo ele
também um padre jesuíta, a obra fornece uma memória edificante de Malagrida, apresentando uma
imagem diferente de sua trajetória, uma vez que uma das penas conferidas ao referido padre era a
infâmia. Sobre a relação do lugar social com a produção historiográfica, ver: CERTEAU, Michel
de. A operação historiográfica. In: A escrita da História. Tradução de Maria de. Lourdes Menezes.
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2002.
228
Esse trabalho, intitulado História de Gabriel Malagrida, de Paulo Mury, é declaradamente
partidário do jesuíta e manifesta exatamente o objetivo de vingar o clérigo e mostrar como ele foi
alvo de injustiça, perpetrada por Sebastião José de Carvalho e Melo. Para nós, é interessante as
informações que descreve o exercício do suplício, num momento em que se buscava racionalizar as
ações do Estado pautadas pelo iluminismo, o que, a nosso ver, representa a conservação de um
paradigma político que não coadunava completamente com um liberalismo na arte de governar.
Sobre detalhes da vida de Gabriel Malagrida, cf. MURY, Paulo. História de Gabriel Malagrida.
Prefaciado por: Camilo Castelo Branco. Lisboa: Mattos Moreira, 1875.

130
A condenação do padre Gabriel Malagrida, um dos principais críticos
de Sebastião José de Carvalho e Melo em Portugal, e que anteriormente havia
manifestado desavença a Francisco Xavier de Mendonça Furtado229, foi acolhida
em oficio datado de 28 de junho de 1762, pelo até então capitão-general da capitania
de Grão-Pará e Maranhão, Manuel Bernardo de Melo e Castro, cujas cópias da
sentença deveriam ser entregues às ordens religiosas da colônia, servindo de
exemplo contra outras “possíveis sedições”.
O teor da carta apresentava a notícia do recebimento da sentença contra
Malagrida e toda a Companhia de Jesus. No documento, Malagrida foi acusado de
hipócrita, membro de congregação corrupta que, diante da sentença da qual ele tinha
cópias o mundo dito cristão, ficou conhecedor:

[...] dos absurdos, erros e impiedades com que as doutrinas


daqueles homens não só chegaram a capacitar pessoas simples,
mas a si mesmos como virtuosos, as ações mais torpes,
escandalosas e ímpias que praticavam em ofensa aos Dogmas da
Fé, do Respeito dos Reis, e dos amos do próximo230.

Em 6 de julho de 1762, o bispo do Rio de Janeiro, D. Frei Antônio do


Desterro, enviou ofício de igual teor recebido pelo capitão-general do Grão-Pará e
Maranhão, referido anteriormente, em que expressava ser justa a sentença proferida
contra o padre Malagrida231.
Nesse mesmo contexto da sentença e execução do padre Malagrida
transcorreu também o famoso processo dos Távoras em relação a um possível
atentado contra o rei D. José I, organizado supostamente por Dom Francisco de
Távora e seus dois filhos, José Maria e Luís Bernardo. Nele, constava também o
envolvimento de José de Mascarenhas, o Duque de Aveiro, um dos seus criados e
um irmão dele, e a Marquesa de Távora, D. Leonor, que foi decapitada. A tais
episódios somou-se a instauração de um ambiente propício, ao menos, de se impor
contra os opositores do Marquês de Pombal.

229
Vale ressaltar que nesse momento Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão de Pombal, era
Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, e fez questão que a notícia fosse veiculada na colônia,
como manifestação de justiça.
230
Cf. OFICIO C.T.AHU-ACL-CU-013, Caixa 52, Doc. 4.786.
231
Cf. OFICIO. AHU-Rio de Janeiro, Cx. 71, Doc. 15.

131
O aspecto cerimonioso da execução e da espetacularização da punição
apresenta as mesmas tonalidades referidas anteriormente, no caso de Malagrida. Em
relação a este último evento, o pesquisador Manoel Barros da Mota nos oferece a
seguinte explicação:

[...] Submetido ao suplício, o duque de Aveiro deveria ser


‘rompido, quebrando-se-lhe as oito canas das pernas e dos
braços’. A exposição na roda e o suplício são apresentados como
espetáculo que dá satisfação aos expectadores, que participam do
prazer, do gozo da vingança do soberano, que se estende por
meio da execução para o futuro, até o gozo dos próximos
vassalos232.

O regicídio no código penal da monarquia portuguesa ainda estava


preso ao Código Filipino233, notadamente, ao seu Livro V, que estabelecia para tal
crime a pena de morte natural e o confisco de bens, passando pelos procedimentos
que expunha o condenado à infâmia e ao enclausuramento da memória. Ainda em
relação ao suplício submetido ao D. José Mascarenhas:

[...] vai ser queimado vivo junto com o cadafalso em que foi
executado, pois tudo foi reduzido a cinzas e pó e jogado ao mar,
em um processo de apagamento da memória que pretende
destruir os mínimos traços que falam ou escrevem sobre o
sujeito, além de destruir o seu corpo físico e tudo que o investe
do ponto de vista simbólico, imaginário e real [...]. Por outro
lado, a ação do soberano, da justiça, todos os documentos que o
acompanham, paradoxalmente, vão afirmar e conservar a
memória cujo sentido o futuro vai poder ler de outras formas234.

Os dois processos, o do padre Gabriel Malagrida e o dos Távoras, de


certa maneira, anteciparam o ambiente no qual o futuro Marquês de Pombal se
posicionaria para que as reformas propostas fossem acolhidas com o máximo de
aceitação possível, numa produção de consenso pelas negociações ou até mesmo
pela força de quem decide sobre a vida e a morte de possíveis adversários políticos.

232
Cf. MOTA, Manoel Barros da. Crítica da razão punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 39.
233
Cf. ORDENAÇÕES FILIPINAS: LIVRO V. Silvia H. Lara (Org.). São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
234
MOTA, Manoel Barros da. Op. cit., p. 39.

132
De maneira paradoxal, o regicídio, em seu cerimonial punitivo, situava-
se entre a memória e o esquecimento. Operava um trabalho de memória ao imputar
um cerimonial exemplar do poder do soberano, execução pública com ostentação
dos suplícios, onde os muitos expectadores guardariam na memória o horror ou
fascínio por esse tipo de execução, tudo isso diante da tentativa de apagar e reduzir,
a pó, a lembrança dos sentenciados.
Possivelmente, antes de relegar os sentenciados de crime de lesa
majestade ao esquecimento, a punição trabalhava numa perpétua memorização, por
meio do ritual público, mas com desdobramento da infâmia que deveria atingir até
mesmo os descendentes.
A panóplia punitiva que previa a pena de morte, bem como a ostentação
dos suplícios, embora utilizadas para punições de casos excepcionais quando se
atentava contra a vida do soberano, da pátria e até mesmo de condutas consideradas
mortalmente pecaminosas pela Inquisição. O fato é que essa prerrogativa de punir
alguém à pena de morte Portugal se manteve no corpo jurídico português até 1852,
para crimes de natureza, e, até o ano de 1867, para crimes civis:

[...] Como desde 1834 não era aplicada aos crimes políticos e
desde 1846 aos de natureza civil na metrópole, estas leis
vanguardistas não suscitaram polémica, pois correspondiam à
prática penal portuguesa que a abolira de facto.[... ]
Se procurarmos a última mulher executada em Portugal e no seu
império por sentença judicial, será necessário remontar a 1772.
Muito mais tarde, em 1811 e no contexto de guerra, uma outra
mulher foi condenada à morte. Fugiu e, estabelecida a paz, veio
a ser absolvida235.

Tais prerrogativas insistentes de causar a morte ou, ao contrário,


conceder perdão, até pelo menos metade do século XIX, no campo prático, essa
dimensão no governo do ministro Pombal ainda era exercida com todo brilho e
esplendor, principalmente como foi apresentado até aqui, com ilustração do
exemplo das execuções sobre os Távoras, do padre Gabriel Malagrida e contra os
envolvidos na sedição do Porto, em 1757, constituindo, nessa medida, a dimensão
de sua política que, de fato, não representava os ideais de um liberalismo político.

235
LOPES, Maria Antónia. Op. cit., p. 122.

133
Diante dessa questão cogita-se, tendo por base a própria historiografia portuguesa,
que tenha sido realizado um “tribunal de exceção”, no qual a pena de morte já estava
dada de antemão, tanto no processo do padre Malagrida quanto no dos Távoras.
Creio que agora possamos enfocar as reformas que advieram a esses
dois processos que, ao nosso ver, desferiram um golpe profundo em dois grupos
poderosos da sociedade portuguesa do período: a Companhia de Jesus, pilar
educacional, religioso e até certo ponto científico236, e a nobreza, que se assentava
em seus privilégios e posições.
O vácuo deixado pela Companhia de Jesus no âmbito da produção
intelectual e científica será ocupado pela reforma da Universidade de Coimbra, a
partir de 1772, adicionada à dinamização das atividades econômicas com a
consolidação das Companhias de Comércio, na indistinção dos cristãos novos237 e
cristãos velhos, que, entre outras coisas, eram hábeis comerciantes, numa
consolidação/reestruturação política emoldurada e sintonizada com uma Razão de
Estado.
O termo Razão de Estado serve para designar uma problemática na qual
a própria prática a ser desenvolvida pelo soberano deveria estar articulada às
condições de manutenção da força do Estado. Obviamente, a questão já tinha sido
de certa maneira posta por Maquiavel em relação ao príncipe que governava o seu
território e era ameaçado por forças externas e internas (os países rivais que desejam
o seu trono, e os habitantes de seu reino que querem destroná-lo). Já na consolidação
de uma Razão de Estado, o que se via era uma preocupação com a gestão das forças
do Estado e do território, apenas uma das dimensões do mesmo Estado.
Quando Portugal se encontrava fragilizado por conta do terremoto de
Lisboa e das mazelas sociais e econômicas advindas desse evento, o que se
priorizava era a necessidade de fortalecimento do Estado e, para tal, fazia se
necessário uma reestruturação política que atingisse setores tradicionais da

236
Havia entre os jesuítas, matemáticos, astrônomos e mestres de língua. O padre jesuíta Rafael
Bluteau pode ser um exemplo de erudição intelectual e científica do século XVIII e o seu dicionário
de vocábulo português cobre boa parte da semântica científica da época.
237
Eram os judeus convertidos ao cristianismo, que durante vários séculos recaíram sanções contra
eles, além de uma certa discriminação em relação a esse grupo. Havia nas ordenações Filipinas
condições e marcas simbólicas que demarcavam a distância entre eles e os cristãos considerados
normais.

134
sociedade portuguesa e que, obviamente, poderia impor resistência às reformas
desejadas pelo Secretário de Estado Sebastião José de Carvalho e Melo. Nesse
sentido, a teoria do cameralismo se coadunava com a ideia de polícia referida
anteriormente, onde:

[...] tanto o cameralismo como a ciência de polícia enunciavam


também uma nova doutrina do oficialato régio e a função dos
ofícios para o ‘bom governo e a economia’, funcionários
‘meritórios’, tecnicamente competentes para lidarem com os
modernos instrumentos de gestão (meritocracia), qualidades que
nem o ensino tradicional do direito oferecia nem estavam
compreendidas na deontologia tradicional do ofício (centrada na
nobreza, na honestidade ou ‘limpeza de mãos’, na bondade, na
lealdade ao serviço do rei)238.

O cameralismo e a questão de polícia ganharam força após o terremoto


de Lisboa, produzindo a partir de então uma formação discursiva que enunciava
outras formas de relações políticas sintonizadas com uma gestão moderna de Estado
que, no entanto, convivia com formas de punição extremamente severas, prescritas
pelas Ordenações Filipinas e que foram utilizadas com o máximo rigor contra
adversários políticos. O processo dos Távoras, por exemplo, daria uma justificativa
para se mudar quase todos os ministros:

[...] Após o atentado, o Conselho da Fazenda e Estado da Rainha


foi reforçado com ministros afetos às reformas pombalinas. O
único tradicionalista que se manteve no cargo foi Manuel Gomes
de Carvalho, secretário da rainha e chanceler da Casa, mas quem
assumiu a presidência do Conselho (1760) foi Paulo de Carvalho
e Mendonça, irmão do marquês de Pombal. Contudo, em 1766,
o lugar de chanceler e secretário será ocupado por Simão da
Fonseca Sequeira para, no ano seguinte, passar para Pedro
Gonçalves Cordeiro Pereira, dois indefectíveis desembargadores
pombalinos. Um pouco mais tarde (Decreto de 18 de janeiro de
1770) é o próprio conde de Oieiras a ser nomeado pela rainha
Mariana Vitória inspetor geral das suas rendas para que o Erário
Régio se encarregasse das arrecadações das mesmas, controlasse
as despesas e satisfizesse os pedidos dos encargos da casa239.

238
HESPANHA, António Manuel; SUBTIL, José Manuel. Op. cit., p. 147-148.
239
Ibid., p. 157.

135
Tal situação apontava para a necessidade da gestão dos gastos públicos,
tornando mais visível a onda de endividamento que afetava o país desde o
terremoto. Instaurava-se, assim, a constituição de uma intervenção estatal nas
atividades econômicas orquestradas pelo ministro Sebastião José de Carvalho e
Melo, em perfeita sintonia e consonância com os dispositivos de intervenção do
Erário Régio:

[...] Em primeiro lugar, multiplicando as nomeações de juízes


administradores para as casas com o objetivo de impor menos
gastos, controlar as execuções das dívidas, atribuir ‘mesadas’ aos
titulares e assegurar reservas para a reparação dos prédios e
pagamentos aos funcionários e criados da casa [...]A parir de
1750, a Coroa vai usar o arbítrio na atribuição de algumas mercês
(em particular das comendas) que tinham, desde a Restauração,
estado concentrado nas principais casas. Mais de metade, 242,
ficariam vagas. Para concretizar essa estratégia, Pombal usou de
expedientes burocráticos para atrasar o processo de renovação
dos títulos e exigiu novas condições para os encartes240.

De fato, a administração pombalina, sob o reinado de D. José I,


estabeleceu um princípio de governamentalização de Estado cujas ressonâncias não
vão parar de vibrar nas ações políticas da rainha D. Maria I, embora ela tentasse
atrair novamente para seu lado os nobres que se opuseram ao Marquês, além dos
jesuítas. Constava-se que a rainha nunca havia digerido bem o processo judiciário
estabelecido contra Malagrida e contra os Távoras. Com a morte de D. José I, em
1777:

Fundava, também, o aceno final do Marquês de Pombal ao


exercício da vida pública, a qual era entregue o decreto de
demissão a 4 de março do mesmo ano. Acusado pelas
arbitrariedades e supostas fraudes de seu governo, o ministro
josefino afirmaria, ainda uma última vez, a autoridade absoluta
do soberano, alegando jamais ter agido sem permissão do rei e
rogando à rainha que lhe permitisse passar seus últimos dias na
sua quinta de Pombal, onde veio a falecer cinco anos depois241.

O reino português via-se diante de uma bruma sombreada em que as


coisas se misturavam, mas, por certo, despontava uma onda modernizadora na

240
Ibid., p. 156.
241
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Op. cit., p.102.

136
gestão dos negócios do Estado a partir de Sebastião José de Carvalho e Melo. No
entanto, esse momento convivia com formas tradicionais de pensamento político e
econômico, centradas na perpetuação da força do Estado, e com um sistema de
justiça que ainda preconizava mais o direito de causar a morte do que investir na
vida, situação que explica a relativa lentidão da política portuguesa em assumir
premissas liberais, expressão que se torna usual na história portuguesa só
tardiamente242.
Na administração de D. José I e de Maria I assistiu-se em Portugal a
movimentos de organização da produção econômica, social e cultural que, talvez,
possam ser exemplificados tanto pela reforma da Universidade de Coimbra, na
ruptura com os jesuítas que dominavam o cenário cultural e intelectual na formação
das condutas das pessoas, bem como a criação da Academia de Ciências de Lisboa,
que, por um lado, buscava romper com a supremacia de Coimbra, tornando-se
símbolo na esfera da produção cultural e intelectual do governo pombalino. A
referida Academia, na época de D. Maria I, demonstrava uma preocupação com a
formação política dos governantes portugueses na gestão dos negócios do Estado,
mesmo que envoltos em certos “reacionarismos”:

[...] Já no início de seu governo, fora autorizado a revalidar os


velhos Estatutos da Universidade em todos os pontos em que os
novos não ordenassem contrariamente e a impor severa
vigilância aos estudantes cristãos, medida que se estendia
também aos lentes de todas as Faculdades. Nesse contexto,
determinou-se ainda a adoção de um novo método de avaliação
dos estudantes, que devesse atentar não apenas para seus méritos
científicos, mas que tomasse por base fundamental os seus
costumes religiosos.
Tratavam-se, assim, de medidas que procuravam interferir na
natureza das variáveis que, a partir das novas necessidades do
Estado absolutista, deveriam integrar o perfil moral e intelectual
dos homens destinados a compor os quadros da burocracia
estatal, agora simultaneamente contemplada pela presença da
nobreza reabilitada. [...]243

242
Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Liberal – Liberalismo, Ler História, 55, 2008, posto online no
dia 16/10/2016, consultado no dia 25/4/2017. URL: http://lerhistoria.revues.org/2242; DOI:
10.4000/lerhistoria.2242
243
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Op. cit., p. 104-105.

137
O que se observa nesse sentido é que, durante a segunda metade do
século XVIII, a gestão do Estado encontrava materialidade na criação de diversas
secretarias, na reforma do ensino, na instauração de medidas de polícia, de fomento
das atividades comerciais (embora circunscritas a prática do mercantilismo), no
nascimento da Academia de Ciências de Lisboa, passando a ser alvo de
investimento político central no fortalecimento do Estado.
Tratava-se de uma atmosfera política que, ao nosso ver, mesmo
embebida na atmosfera cultural do iluminismo que caracterizou o cenário
intelectual europeu, as reformas pombalinas e os primeiros anos do governo de D.
Maria I, na prática política, ficaram marcados predominantemente pelas reflexões
tecidas sobre a Razão de Estado, que desde o século XVII e nascido no seio da
Igreja irá se desprender dela e criar inovadoras condições de sua
governamentalização. É nesse cenário que se vê:

Durante os primeiros anos do marianismo, a Intendência Geral


da Polícia foi dirigida por um reformista determinado, Diogo
Inácio de Pina Manique (1780), que concretizou uma série de
medidas no campo da segurança, da saúde pública, do fomento
agrícola, da prevenção criminal, do ensino e da cultura. Seria
criada uma das instituições mais concertadas com o espírito das
Luzes, a Real Academia de Ciências e Lisboa (1779); que,
decorridos dez anos, iniciava a publicação das suas Memorias
com muita doutrina sobre a economia e, obviamente críticas à
propriedade vinculada. O desenvolvimento das artes, das
ciências e o culto da Razão estão na origem da criação de outras
instituições de apoio e reforço às mudanças iluminadas [grifos do
autor], como a Academia do Nu, a Aula Pública de Debuxo e
Desenho, a Aula Régia de Desenho, a Real Biblioteca Pública, o
Museu de História Natural e a Real Casa Pia244.

Assim, o livro O espelho político, de Guillaume de La Perriere,


analisado por Foucault, faz todo sentido, pois ele assinala a emergência do governo
do Estado e constitui em si a tradição de uma literatura antimaquiavel da Razão de
Estado, demonstrando que, após o terremoto, de 1755, coadunava-se um projeto
geral de “governar as coisas em sua minúcia”, procedimento necessário na
reconstrução da cidade destruída, bem como para o fortalecimento do Estado, pois

244
HESPANHA, Antonio M.; SUBTIL, José M. Op. cit., p. 127-153.

138
o sistema de concessão de mercês e outros privilégios concedidos à nobreza e ao
clero já dava mostras de enfraquecimento.
Tal situação ajuda a entender porque, em Portugal, o desprendimento
de um campo de enunciados em torno do poder soberano e a constituição de um
liberalismo político em seu território se deu de forma mais lenta, cujo nascimento
terá que esperar o século XIX para instaurar um novo campo discursivo,
circunscrito às novas práticas na gestão do Estado e de sua população.

2.3-Razão de Estado e governamentalidade na capitania de Mato Grosso

No decorrer da segunda metade do século XVIII, com a criação da


capitania de Mato Grosso, em 1748, algumas premissas nortearan o governo dos
capitães-generais, materializadas em diversos discursos, instruções, ofícios, cartas
etc. sobre como deveria proceder o governo nessa área administrativa criada pela
Coroa Portuguesa.
Tomemos como referência dessas premissas as referidas instruções,
publicadas pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IGHMT), as
quais abarcam desde a primeira instrução oferecida pela rainha D. Mariana de
Áustria, esposa do rei D. João V, para o primeiro capitão-general de Mato Grosso,
D. Antônio Rolim de Moura, aos 19 de janeiro de 1749, até Instruções a Luís de
Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, que exercerá o seu governo até 1789. Entre
tais recomendações oficiais, essa coletânea do IHGMT é pontuada com ofícios e
outras instruções para os demais funcionários régios.
Em torno de tais regulações e normatizações podemos adentrar em
algumas temáticas recorrentes em seus discursos, situando a problemática do
governo desses capitães-generais. Quais eram as suas competências? O que eles
tinham como tarefa primordial no exercício de sua atividade? Como lidar com as
pessoas? Com o território? Como atender as diretrizes estabelecidas nessas
instruções?
Diante dessas questões preliminares, gostaria de apresentar alguns
elementos discursivos que assinalaram enquanto ressonância das reformas

139
pombalinas e marianas em Portugal que, como apresentado anteriormente, estavam
circunscritas a uma Razão que criava um limiar de governamentalização do Estado.
Nesse sentido, creio ser possível falar de um processo de
governamentalização da colônia, ou seja, a constituição de um campo de saber
expresso pelas instruções245, que têm como alvo regular a relação dos “habitantes
com as coisas, fomentar o povoamento e a defesa do território”, as quais
detalharemos a seguir.
Vamos analisar pontuando alguns temas recorrentes já na primeira
instrução oferecida pela rainha D. Mariana de Áustria, para o primeiro capitão-
general da recém-criada capitania de Mato Grosso, D. Antônio Rolim de Moura,
datada de 19 de janeiro de 1749.
A rainha expõe ter sido relevante a criação da capitania devido à
necessidade de defesa e administração de uma área territorial muito extensa, o que
tornava muito difícil sua proteção e socorro diante de um virtual ataque do rival
hispânico. Vale lembrar que naquele momento estavam em negociação os tratados
de limites246, estimuladores da criação de mecanismos de defesa territorial, bem
como das condições de sua possível expansão.
Temos, assim, um documento cujas instruções são pontuadas em trinta
e dois parágrafos que materializavam a preocupação com a defesa territorial. Dessa
maneira, o discurso foi perpassado pela preocupação da necessidade de vigilância
das fronteiras, do incentivo ao povoamento da área, o que deveria ser conseguido
por meio da concessão de mercês e outros benefícios, criação de gado e cavalos
para abastecer as tropas, ereção de residência para atender aos governadores,
atenção aos nativos bravios e sua incorporação à população, através de
aldeamentos. Para essa última questão, foram convocados Missionários da
Companhia de Jesus para lhes ministrar os devidos sacramentos e fazê-los conhecer
e respeitar a legislação em vigor, mas também punir exemplarmente os infratores
que desrespeitassem o monopólio régio da extração de diamante, dentre outros
procedimentos.

245
Sobre a administração no Brasil colonial, cf. SOUZA, Laura de Melo e. O sol e a sombra: política
e administração na América portuguesa no século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
246
O Tratado de Madri foi assinado em 1750.

140
Dos temas arrolados no discurso inaugural, o mais relevante diz repeito
à preocupação com a soberania sobre um território posto sob a ameaça do rival
hispânico, daí a necessidade de sua povoação, para o que seria necessário atrair
habitantes, garantindo a defesa dos já estabelecidos nessa área, população que seria
engrossada pela incorporação dos nativos, mansos ou bravios, os quais se
colocariam em baluarte na guarda de um possível ataque hispânico
Tratava-se, entre outras coisas, de garantir a ocupação dessa área,
criando nela condições de efetiva ocupação. Curiosamente, os dois pontos iniciais
dessa instrução criam a base geral sobre a qual se bifurcariam as demais temáticas:

§ 1º Suposto, entre os distritos de que se compõe aquela


Capitania-Geral, seja o de Cuiabá o que presentemente se ache
mais povoado, contudo, atendendo a que no Mato Grosso se
requer a maior vigilância por causa da vizinhança que tem, houve
por bem determinar que a cabeça do Governo se pusesse no
mesmo distrito de Mato Grosso; no qual fareis a vossa mais
costumada residência. Mas será conveniente que também
algumas vezes vades ao Cuiabá, e a outras minas do mesmo
governo, quando o pedir o bem de meu serviço e a utilidade dos
moradores.
§ 2º Por se ter entendido que Mato Grosso é a chave e o
propugnáculo do sertão do Brasil pela parte do Peru, e quanto é
importante por esta causa que naquele distrito se faça população
numerosa, e haja forças bastantes a conservar os confinantes em
respeito, ordenei se fundasse naquela paragem uma vila, e
concedi diversos privilégios e isenções para convidar a gente que
ali quisesse ir estabelecer-se; e que para decência do Governo e
pronta execução das ordens se levantasse uma Companhia de
Dragões e, ultimamente, determinei se erigisse Juiz de Fora no
mesmo distrito. Encomendo-vos, que depois que a ela chegardes,
considereis e me façais presente quais outras providências serão
próprias para o fim proposto de aumentar e fortalecer a
povoação [grifos meus] daquele território247.

Vale lembrar que as instruções passadas a D. Antônio Rolim de Moura


perpassavam por toda a problemática da discussão que envolvia o tratado de limite
de 1750 [o Tratado de Madri] e que continuarão sendo molduras de inteligibilidade

247
INSTRUÇÃO DA RAINHA D. MARIANA DE ÁUSTRIA PARA D. ANTÔNIO ROLIM DE
MOURA. LISBOA, 19 DE JANEIRO DE 1749. IN: INSTRUÇÕES AOS CAPITÃES-GENERAIS.
Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (Publicações Avulsas), n. 27, Cuiabá: IHGMT,
2001, p.11-12.

141
da premissa das ações governamentais desses capitães-generais até fins do século
XVIII, com as negociações do Tratado de Santo Ildefonso, assinado em 1777.

[...] Motivadas pelas “indefinições”, entre 1762 e 1777 foram


travadas diversas disputas em batalhas na Colônia do
Sacramento, Rio Grande, Santa Catarina e Mato Grosso. Até que,
em 1777, as bases geográficas e os fundamentos jurídicos por que
Alexandre de Gusmão tanto lutara em 1750 acabaram
prevalecendo e aqueles princípios anulados em El Pardo
ressurgiram no Tratado de Santo Ildefonso – que manteve a linha
fronteiriça do Tratado de Madri e garantiu a Portugal a posse da
área da ilha de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul e à Espanha
a Colônia de Sacramento e dos Sete Povos das Missões. Com
esses tratados, o Brasil tomou uma configuração bem próxima da
atual248.

Esse aspecto leva a crer que a problemática da soberania sobre o


território do extremo oeste colonial ainda se fizeram presentes nas ações
governamentais de outros capitães-generais. Assim, entre as instruções deixadas
por Rolim de Moura ao seu sucessor, João Pedro da Câmara, tal preocupação com
a defesa em relação aos castelhanos se materializava quando, já no primeiro
parágrafo, dava o tom de suas premissas:

Ilmo. E Exmo. Sr. Pelas cartas inclusas do Sr. Conde de Oieiras,


verá V. Excia. Que S. Maj. É servido ordenar-me participe a V.
Excia. o pouco que a experiência me tem dado a conhecer a
respeito do estabelecimento desta Capitania. Ela é, por território,
das mais extensas; mas por gente, muito diminuta. Sem embargo
do que, S. Maj. A fez Capitania separada, com Governador e
Capitão-General; guarnição de Dragões, e Ministros, no que
depende muito mais do que ela rende, o que dá a conhecer a sua
grande importância no conceito do mesmo Senhor249.

A tônica desse discurso se aproximava muito do que foi recebido da


rainha, mas o que chama a atenção é que D. Rolim de Moura discorreu não somente

248
CANOVA, Loiva. Antônio Rolim de Moura e as representações da paisagem no interior da
colônia portuguesa na América (1751-1764) Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2011, p. 51.
249
INSTRUÇÃO DO CONDE DE AZAMBUJA PARA JOÃO PEDRO DA CÂMARA EM 08 DE
JANEIRO DE 1765. INSTRUÇÃO DA RAINHA D. MARIANA DE ÁUSTRIA PARA D.
ANTÔNIO ROLIM DE MOURA. LISBOA, 19 DE JANEIRO DE 1749. In: INSTRUÇÕES AOS
CAPITÃES-GENERAIS. Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (publicações avulsas), n.
27, Cuiabá: IHGMT, 2001, p. 21.

142
das instruções recebidas, mas também das experiências adquiridas durante o seu
governo, sobrelevando a importância que o soberano atribuia às áreas, uma vez que
dispendia nela o que ela não rendia.
Insere-se nesse quadro colonial a problemática do povoamento, ou seja,
foi em torno dessa questão e da defesa do território que o elemento populacional
começou a adentrar no discurso político desses capitães-generais, visando a efetiva
ocupação, consolidação e expansão dos domínios lusitanos.
Ao nosso ver, esse campo de visibilidade da população em relação à
capitania de Mato Grosso era visto, no discurso dos primeiros governadores,
enquanto condição indispensável para a posse das áreas conquistadas, mas também
as que seriam objeto de expansão, o que incluía o domínio e o controle dos colonos
e também das nações indígenas, através da estratégia dos aldeamentos, o que
certamente derivou em muitos enfrentamentos, pois:

[...] para a maioria dos índios pouco importavam as fronteiras


políticas, interessava a eles seus territórios tradicionais, e esse
fato influía na política ibérica relacionada aos grupos indígenas.
Caso não houvesse tratamento adequado, muitos grupos
empreendiam fugas250.

O que se estabeleceu ultrapassou o mero aumento da população,


extrapolando para a questão da guarnição das áreas fronteiriças, para o que foram
utilizadas as artimanhas europeias de dominação, por meio de um saber que, antes,
desconsiderava o potencial dos colonos e também das nações nativas locais.
Nesse sentido, a concessão de sesmarias251 e de isenções fiscais em
relação ao povoamento condizia com um projeto português colonizador, o qual
visava manter e conservar um território que, a priori, já estava ocupado pelos
colonos e indígenas, tentando integrar nesse caso os indígenas que não oferecessem
resistência, como pode ser presenciado no relato de 1759, onde:

250
BLAU, Alessandra Resende Dias. Roubo de índios, fugas e ataques: o cenário da fronteira oeste.
In: Histórias coloniais em áreas de fronteiras: Índios, jesuítas e colonos. Leny Caselli Anzai; Maria
Cristina Bohn Martins (Org.). São Leopoldo; Cuiabá: Oikos/Unisinos; EdUFMT, 2008, p. 60.
251
Cf. SILVA, Vanda. A concessão de sesmaria na Capitania de Mato Grosso. Fronteiras: Revista
de História. Dourados, vol. 17, n. 29, 2015, p. 11-33.

143
[...] entregou à sua Excelência um diário de toda a jornada, com
uma miúda averiguação, não só das nações, ou resto de nações
que já davam obediência aos sertanistas da parte oriental do
Guaporé, como uma lista de todos os rios que desta Vila até Santa
Rosa se metem no mesmo rio, tanto de uma como de outra banda,
pelas missões castelhanas, suas situações, qualidades, números
de gente, forma de seu governo, e ultimamente muitas notícias
pertencentes ao Reino do Peru e terras confinantes com esta
Província252.

O texto apresenta alguns aspectos importantes e que vão ser retomados


em outros momentos pelos capitães-generais de Mato Grosso, sendo o primeiro
ponto importante as “nações indígenas que prestaram obediência aos sertanistas”
(obviamente, trata-se das nações que esses sertanistas conseguiram subjugar), e o
segundo ponto relevante trata da formação de um conhecimento de todos os rios da
região e, por fim, o conhecimento sobre as qualidades, números e forma de governo
estabelecido pelos vizinhos do Peru, ou seja, não se tratava de um conhecimento de
suas próprias forças, mas também a dos possíveis adversários.
Nesse sentido, emerge uma governamentalização da capitania de Mato
Grosso com a finalidade de garantir a posse, defender a fronteira, atrair contingente
populacional e incorporar os indígenas que aceitassem os ditames impostos pelos
capitães-generais, constituindo um arquivo de instruções, de mapas, de discursos
sobre os aspectos que enunciavam as condições de força da capitania, os meios de
sua conservação e possível expansão.
Temos com isso, em fins do século XVIII, a elaboração de mapas e
plantas cada vez mais elaborados sobre as condições de força da capitania, de sua
capacidade de defesa e de sustentação pelas atividades desenvolvidas, seja por meio
das atividades agrícolas, pecuárias ou minerais, seja pelo comércio com a capitania
do Grão-Pará.
Os mapas e as instruções régias vão, paulatinamente, enunciando outras
temáticas, como o número de fogos, de habitantes, dos casados, daqueles batizados,
enfim, armazenando na capitania um conjunto de informações elaboradas pelos

252
AMADO, Janaína; ANZAI, Leni Caselli. Anais de Vila Bela (1743-1789). Cuiabá: EdUFMT;
Carlini & Caniato, 2006, p. 73.

144
próprios capitães-generais, as quais começaram a ganhar mais visibilidade no
governo de Luís Pinto de Sousa Coutinho253.
Tais dados, como os mencionados acima, constituíram um corpo de
saberes de domínio quase exclusivo das autoridades eclesiásticas que controlavam
os registros de nascimentos, batizados, casamentos e óbitos que começam a
engrossar o registro laico do Estado.
Luís Pinto de Sousa Coutinho, capitão-general de Mato Grosso entre os
anos de 1769 a 1772, sucessor de João Pedro da Câmara (1765-1769), parece
constituir um limiar de novidades em relação aos seus predecessores, no que tange
às práticas governamentais.
Começava-se a apresentar uma preocupação com a relação aos “homens
com as coisas”, elemento novo que recorrente nas práticas políticas luso-brasileiras,
no sentido de que as ressonâncias daquilo que era pensado para a organização
administrativa de Portugal se constituisse em ações práticas no território mato-
grossense. Diante disso, já nos mapas e das instruções elaborados por Luís Pinto de
Sousa Coutinho, a relação entre o governo dos homens em sua relação com as coisas
já estava sendo posta.
Tomemos as instruções que ele elaborou para o sucessor, Luís de
Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, sobre as ações a serem desenvolvidas na
capitania de Mato Grosso. Primeiramente, chama a atenção que, embora o discurso
faça referência às “ordens diretas” passadas pela “Secretaria de Estado dos
Domínios Ultramarinos”, estabelecia-se um espaço aberto de governo
materializado pelas experiências. Assim, o referido governador deixou suas
instruções:

Ilustríssimo e o Excelentíssimo Senhor. Pelo § 7º da Carta da


Secretaria de Estado dos Domínios Ultramarinos, com data de 7
de outubro de 1771, que entrego a Vossa Excelência com esta,
me ordena a sua Majestade haja de instruí-lo em tudo o que for
concernente ao governo desta Capitania, comunicando a Vossa

253
Curiosamente, o governo desse capitão-general de Mato Grosso se dá num momento em que
havia pouco tempo transcorrido do processo contra o padre jesuíta Gabriel Malagrida e o processo
dos Távoras. Certamente, dois grupos fortes, que representavam uma ameaça à consolidação das
reformas que o ministro Sebastião José de Carvalho e Melo deseja impor ao reino, principalmente,
após a catástrofe do terremoto de Lisboa, em 1755.

145
Excelência todas as notícias que tiver adquirido, e o juízo que
sobre elas houver formado.
Em cumprimento pois das supremas ordens de Sua Majestade me
atreverei a expor a Vossa Excelência com a maior sinceridade
que devo, tudo quanto julgar mais favorável a boa administração
desde governo, mas mais próprias aos verdadeiros interesses do
real serviço, e à felicidade dos povos que Sua Majestade se
dignou de confiar ao seu encargo.
As luzes e talentos de que Vossa Excelência se exorna, servirão,
sem dúvida, a ratificar as minhas ideias; e a ministrar-lhes aquele
grau de utilidade e grandeza que não podem alcançar esfera; ao
mesmo tempo que as virtudes de um coração patriótico devem
propiciar a esta Capitania um governo prospero e de mais
confiança de Sua Majestade na pessoa de Vossa Excelência254.

Dessa maneira, por mais que tais regulações tenham sido


explicitamente emanadas de um órgão administrativo da Coroa Portuguesa, o que
chama a atenção é o fato de que esse discurso tenha feito referência explícita a uma
governamentalidade aberta, uma vez que as instruções representam a
materialização de algumas diretrizes, mas que era preciso também estar atento às
transformações das relações dos homens com as coisas, pois, “[...] a adversidade
dos tempos e as diferentes relações das coisas costumam alterar a ordem dos
sucessos”255.
Luís Pinto de Sousa Coutinho chamava a atenção do seu sucessor sobre
as diretrizes que foram deixadas anteriormente por Antônio Rolim de Moura, que,
a cabo de sua experiência, ele não pode deixar de prescindir delas, enfatizando
também a necessidade de serem criadas outras estratégias de ação governamental.
Observe o que ele diz a esse respeito:

[...]A referida instrução que Vossa Excelência achará entre os


papéis desta secretaria, com data de 8 de janeiro de 1765,
havendo sido aprovada pela corte, tem passado por ordem a este
governo e se deve a Vossa Excelência conformar inteiramente
com ela. O conhecimento local do país, o natural discernimento
do nosso Conde, e a importância dos negócios de que trata, a
fazem sumamente recomendável, e quase inútil tudo quanto
posso acrescentar nessa matéria256.

254
INSTRUÇÃO DE DOM LUÍS PINTO DE SOUSA PARA LUÍS DE ALBUQUERQUE DE
MELO PEREIRA E CÁCERES. In: INSTRUÇÕES AOS CAPITÃES-GENERAIS. Instituto
Histórico e Geográfico de Mato Grosso (Publicações Avulsas), n. 27, Cuiabá: IHGMT, 2001, p.30.
255
INSTRUÇÃO DE DOM LUÍS PINTO DE SOUSA PARA LUÍS DE ALBUQUERQUE DE
MELO PEREIRA E CÁCERES. Op. cit., p. 31.
256
Ibid., p. 32.

146
Essa reflexão expressava duas coisas em relação ao governo: a primeira
é o fato de que, no exercício de governar a capitania de Mato Grosso, não se podia
esquecer das orientações diretas passadas via Secretaria de Estado dos Domínios
Ultramarinos, organismo que materializou as estratégias portuguesas em relação à
conservação e defesa dos limites coloniais conquistados. Por outro lado, e o mais
importante ao nosso ver, é que a experiência produzida pela governança da dita
capitania vai produzir saberes e conhecimentos sobre as característica do seu
território e a importância dos negócios, por isso as instruções do Conde Azambuja
foram sumamente recomendáveis em alguns pontos, mas que em outros foram
seguidas de recuo ou distanciamento, quando se confrontava com algum assunto
polêmico ou dúbio, ou ainda atentava contra direitos das gentes.
Assim, diante do que preconizavam os parágrafos 13 a 17 sobre o
controle da navegação dos rios, principalmente por se situarem em áreas
fronteiriças com os domínios dos castelhanos, o princípio exposto por Antonio
Rolim de Moura era o de que se impedisse neles a navegação dos castelhanos, uma
vez que tal situação comprometia a defesa, posse e comunicação das áreas
portuguesas. Nessa matéria, D. Rolim de Moura recomendava que o melhor seria
se colocar enquanto réu do que autor. Isso porque “[...] os castelhanos, já hoje não
navegam, nem têm necessidade de navegar o rio Guaporé, senão desde a barra do
Baures até a do Guaporé”257.
Sobre esse ponto em específico, Luís Pinto de Sousa Coutinho o
considerou de natureza dubitativa, ou seja, as sugestões de Rolim de Moura eram,
na sua perspectiva, no mínimo questionáveis. Talvez pelo fato de que a tônica das
discussões dos tratados de limite, a exemplo do Tratado de Madri, já induzia uma
estratégia de ocupação, o que, pela política diplomática, se estabeleceu pela
premissa jurídica do uti possidetis, garantindo a posse para quem estivesse
ocupando a área.
Em segundo lugar, vale lembrar que, no parágrafo 20 da instrução de
Rolim de Moura sobre a fuga de escravos para as regiões vizinhas, o mesmo

257
INSTRUÇÃO DO CONDE DE AZAMBUJA JOÃO PEDRO DA CÂMARA EM 08 DE
JANEIRO DE 1765. Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (Publicações Avulsas), n. 27,
Cuiabá: IHGMT, 2001, p. 24.

147
orientava seu sucessor imediato, João Pedro da Câmara, a queimar algumas aldeias,
de modo que essa ação fosse vista e percebida enquanto ordens dos soldados, e não
ação emanada diretamente do governador.258 Esse jogo político da insinuação, à
maneira de Maquiavel, vai ser rejeitada por Luís Pinto de Sousa Coutinho, por
considerá-la inútil e por atentar contra o direito natural das gentes259.
Havia nas instruções de Luís Pinto de Sousa Coutinho também
considerações sobre os apontamentos de Rolim de Moura acerca da relevância que
tinha para Portugal do Posto da Conceição, cuja denominação no ano de seu
governo era Forte Coimbra; sobre a dificuldade de seu governo em seguir a
determinação de transpor as cachoeiras que circundavam as capitanias de Mato
Grosso e do Pará, uma vez que o conhecimento delas daria condições facilitadoras
da comunicação. Tal situação acarretaria a necessidade da criação de muitos canais,
com o remanejamento de parte do leito em várias direções, empreendimento
dificultado, ainda segundo o mencionado capitão-general, pelo fato de ser realizado
em sertão pouco povoado e inculto. Nessa peça documental podem ser observadas
considerações sobre a importância da observação dos costumes e dos hábitos das
tropas em relação ao território mato-grossense, incitando atenção ao cumprimento
dos regulamentos, sem, no entanto, criar constrangimento aos costumes correntes.
Ainda sobre a instrução de Luís Pinto, no que diz respeito à
administração da justiça e dos castigos, ele se projetou a imagem de que teria sido
“menos severo” que seu antecessor, mesmo na admissão de homens “de boa
posição, que têm mistura de índios e brancos”, e aboliu o serviço dos chamados
aventureiros, pessoas que recebiam mais do que os pedestres e que,
contraditoriamente, realizavam as mesmas funções260.
Tais experiências trazidas por Rolim de Moura e materializadas em suas
instruções foram postas em reflexão por Luís Pinto de Sousa Coutinho que, no
exercício de sua ação governamental da capitania de Mato Grosso, operou algumas
adesões e distanciamento das premissas originárias. Nesse campo discursivo
circunscrito aos diferentes capitães-generais da capitania foram geradas inúmeras

258
Ibid., p. 26.
259
Cf. INSTRUÇÃO DE DOM LUÍS DE SOUSA COUTINHO PARA LUÍS DE ALBUQUERQUE
DE MELO PEREIRA E CÁCERES. Op. cit., p. 32.
260
Ibid.

148
séries de registros sobre o território e, de posse deles, os diferentes governantes irão
imprimir a singularidade do seu governo. Dessa forma,

Nos mesmos ofícios lançados no Livro III de Registro da


Secretaria de Estado, achará Vossa Excelência tratadas as
diferentes matérias que julguei mais interessantes, e que me não
é possível extrair agora, limitando-me a recomendar a vossa
Excelência a leitura do que me remeteu à mesma Secretaria de
Estado, com data de 30 de maio de 1771, o qual compreende por
uma ordem sistemática o atual Estado de Negócios desta
Capitania, reduzidas as generalidades das classes seguintes:
01º Da situação geográfica da Capitania em si;
02º Da situação relativa;
03ºDo estado de povoação;
04º Da agricultura e produção do terreno;
05º Das minas;
06ºDo comércio e novos estabelecimentos;
07º Da administração da Fazenda;
08º Da polícia e administração da justiça;
09º Do estado eclesiástico;
10º Do estado das tropas e milícias261.

Esses elementos remetidos pela Secretaria de Estado, em 1771, já no


final do governo de Luís Pinto, indicavam para uma problemática relativa à prática
governamental que deveria se situar num campo e domínio de saberes voltados para
a intervenção e gestão dos homens e das coisas.
Esse limiar de positividade aos poucos foi se constituindo em uma
maneira de governar a capitania, prezada por sua capacidade de produzir as
condições de sua manutenção e expansão. Creio que é nesse sentido que a exigência
da elaboração de mapas descritivos ganhou relevância, mapas que inicialmente
demarcavam itinerários de viagem262, descreviam a força militar e as
potencialidades naturais da capitania263.

261
Ibid.
262
A esse respeito, por exemplo, temos a notícia de que, no ano de 1754, Antônio Rolim de Moura
enviou um ofício ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Diogo Mendonça Corte Real, em
que apresentava o mapa, descrevendo em relato, o caminho que ia desde Santos até Cuiabá, além de
descrever a região do Pantanal. Cf. C.T.AHU-ACL-CU-010, CAIXA 07, DOC. 439.
263
No governo do capitão-general João Pedro da Câmara começou a elaboração de mapas que
buscavam descrever as condições das forças militares da capitania e, por conseguinte a sua
capacidade de se defender. Nesse caso, é pertinente pontuar que as apresentações detalhadas dos
mapas produzidos nesse governo buscaram apresentar o número de militares dispostos na capitania:
entre engenheiros, companhia de dragões, soldados aventureiros, companhia dos pedestres,
companhia das ordenanças dos brancos, companhia das ordenanças dos pardos, companhia das
ordenanças dos pretos e escravos com armas. Além desses oficiais, apresentavam o número de

149
A confecção dos citados mapas, durante os governos de Rolim de
Moura e João Pedro da Câmara, são quase que exclusivamente voltada a demarcar
estrategicamente itinerários e a apresentar um quadro geral do poderio militar capaz
de garantir a defesa do território mato-grossense. Daí a necessidade de saber
quantos soldados, tenentes, sargentos, cirurgiões e engenheiros a capitania possuía,
enfim, uma disposição de militares de diferentes patentes constituindo uma linha de
defesa nas fortificações fronteiriças, em consonância com a quantidade de
armamentos e munições.
No governo de Luís Pinto de Sousa Coutinho os mapas referentes ao
poderio militar ainda terão importância, como se notará, por exemplo, no mapa,
enviado no dia 19 de junho de 1769 para o secretário de estado da Marinha e
Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, no qual está descrito o estado
geral das tropas da capitania264, voltando a fazer referência explícita ao poderio
militar somente em julho de 1772 (no final de seu governo), quando enviou um
mapa descrevendo as peças de artilharia, os armamentos, munições e outros
apetrechos do Forte de Bragança.265
No entanto, os mapas da gestão desse capitão-general começaram a
descrever também outras coisas, com a incorporação de elementos constitutivos da
riqueza da capitania, ou melhor, dos rendimentos e despesas, ou seja, colocando em
circulação o que a capitania produzia e o que ela consomia para se conservar. Além
disso, os mapas lançaram um foco para quantidade de habitantes, chamando a

soldados, cabos, senhores, sargentos, furriéis, cirurgião, alferes, tenente, capelão e sargentos-mores.
Contemplavam esses mesmos mapas a quantidade de apetrechos de armas, munições e mantimentos
e, já no fim de seu governo, começaram a ser confeccionados mapas estampando a quantidade de
ouro produzido no período. No ano de 1765, temos, por exemplo, a Carta do governador e capitão-
general da capitania de Mato Grosso, João Pedro da Câmara Coutinho, ao rei D. José I, informando
sobre o envio de relações e mapas sobre o estado e forças da capitania. In: AHU-ACL-CU- 010,
CAIXA 12, DOC. 737. No mesmo ano, outra carta, agora dirigida ao secretário de estado da marinha
e ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, informando sobre o envio de relações e mapas
descritivos do estado e forças da capitania. In: AHU-ACL-CU-010, CAIXA 12, DOC. 739. No ano
de 1766 existe nova referência sobre a gente de guerra nesses mapas. In: AHU-ACL-CU-010,
CAIXA. 13, DOC. 783; e, por fim, já no ano de 1767, se tem a elaboração do primeiro mapa que
faz referência à capitação de ouro minerado em Goiás e Cuiabá. Cf. AHU-ACL-CU-010, CAIXA
13, DOC. 810.
264
Cf. AHU-ACL-CU-010, CAIXA 14, DOC. 854.
265
Cf. AHU- ACL- CU- 010, CAIXA 16, DOC. 983.

150
atenção para o aumento das povoações que, aliás, ele considerava o “objeto mais
essencial de uma boa administração266”.
No ano de 1770267 ele enviou ao secretário de estado da Marinha e
Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, o primeiro mapa sobre a receita
e despesa da capitania, desde sua fundação até o ano de 1762 e, posteriormente, no
ano de 1772, outro, descrevendo a receita e despesa referente aos anos de 1762 a
1772268, o que vale dizer que Luís Pinto teve que fazer o balanço das receitas e
despesas de seus antecessores, aliás, segundo ele, era para seu antecessor, João
Pedro da Câmara, efetuar esse balancete, no governo anterior:

[...] Foi sua Majestade servido por aviso dessa Secretaria,


expedido com data de 2 de maio de 1767, ordenar meu antecessor
João Pedro da Câmara, houvesse de remeter todas as contas
relativas as dívidas atrasadas desta Capitania; qualificadas com
os respectivos documentos e q’ deviam legitimá-los. Para haver
de pôr em prática as Reais ordens do mesmo Sno q’ não tinham
sido executado até ao tempo do meu governo; me foi preciso
valer-me do arbítrio de Bilhetes circulantes, q’ houverem de
servir de conhecimento às pessoas de quem se fariam recolher os
documentos originais carregando-se em um livro de receitas, e
despesa auxiliar, q’ mandei estabelecer nesta Provedoria, afim de
se regular com a devida ordem, a sua administração: sem cuja
providência, seria impossível persuadir as partes interessadas a
sua entrega; e em seguir se uma completa aquisição de todos os
sobreditos documentos[...] Daqui em diante se irão expedindo
com a devida regularidade, os mapas anuais de toda a receita, e
despesa; e não preparei desvelo algum, para se reduzir à mas
exata ordem, uma das matérias mais principais, entre todas, as q’
dependem da minha inspeção269.

Nos mapas de 1770 e de 1772 ficou consignado o que capitania gerou


de riqueza em relação à produção aurífera, aos ofícios, às atividades comerciais, o
quanto arrecadou dos direitos de entrada, dízimos etc. Dentre as despesas constava
também o gasto com as folhas eclesiástica, civil, militar, com os mantimentos,
fazenda seca para fardamentos, constando também a relação dos gastos com
hospital e botica, expedições militares extraordinárias, aquisição de cavalos para

266
Cf. INSTRUÇÃO DE DOM LUÍS DE SOUSA COUTINHO PARA LUÍS DE ALBUQUERQUE
DE MELO PEREIRA E CÁCERES. Op. cit., p.35.
267
AHU-ACL-CU-010, CAIXA 15, DOC. 894.
268
AHU-ACL-CU-010, CAIXA 16, DOC. 1005.
269
AHU-ACL-CU-010, CAIXA 15, DOC. 894, folha 2-3.

151
transporte e soldados, jornais para a realização de obras em Cuiabá e Mato Grosso,
os donativos das duas vilas para reedificação de Lisboa e outras despesas miúdas.
O que nos interessa em relação a tais mapas de receita e despesa,
elaborados sob o governo de Luís Pinto de Sousa Coutinho, é que eles apontaram
para a necessidade de se organizar as finanças da capitania270, produzindo um saber
que atravessou o governo de seus dois antecessores (Antonio Rolim de Moura e
João Pedro da Câmara) no que dizia respeito ao que de fato a capitania gerou de
rendimentos e o que ela consumiu de despesa durante o período governamental
antecedente e o seu, explícito em um suplemento que antecedeu a apresentação do
mapa de 1770, demonstrativo dos critérios utilizados em tais cálculos. Dessa
maneira:

[...] Mapa Geral da Receita e Despesa da Capitania de Mato


Grosso, desde o 1º de Janeiro de 1762, até o último de dezembro
de 1769: com o paralelo entre uma e outra partida, e o excesso
que resulta de ambas as operações: como também a análise do
que provem de ambos os termos, para a Redução de um ano
Comum: ao qual se unem várias observações necessárias, para a
inteligência do mesmo Mapa; um cálculo de receita, e despesa
comparativa aos anos do Governo do Conde de Azambuja; e
empenho que deixou a Capitania separadamente; como também
o que pertence do mesmo modo, aos quatro anos do Governo de
João Pedro da Câmara; e a de 1769, relativo ao governo de Luís
Pinto de Sousa: e ultimamente, um orçamento por aproximação,
da quantia fixa que se precisa anualmente em tempo de Paz, para
a manutenção ordinária da mesma Capitania, segundo atual
Sistema de sua administração271.

Tal conhecimento era uma forma de garantir o exercício do poder


administrativo, pois criava condições de se observar a potencialidade produtiva do
território e intervir de maneira mais conveniente para atingir semelhante fim.
Certamente, não se abandonou a preocupação com a defesa militar do território,
mas trouxe à tona também a necessidade de gestão dos homens e das coisas.

270
Essa preocupação estampa também as dimensões da política pombalina em vigiar e controlar as
receitas e despesas do reino, o que explica o fato de instaurar uma espécie de disciplina financeira
que vai começar minando alguns privilégios da nobreza. Cf. HESPANHA, António Manuel;
SUBTIL, José Manuel. Op. cit.
271
SUPLEMENTO AO MAPA GERAL DE RECEITA E DESPESA DE 1770. In: AHU-ACL-CU-
010, CAIXA 15, DOC. 894, fl. 4.

152
Diante dessa necessidade de gerir semelhante relação, emergiu no
discurso de Luís Pinto a necessidade de se elaborar também mapas sobre os espaços
e os habitantes da capitania de Mato Grosso, como atesta o elaborado em 1771:
“Mapa Geral do Estado da Povoação dos Distritos de Vila Bela, e Cuiabá na
Capitania de Mato Grosso no fim de 1768 com cálculo das [pessoas] que se
batizarão, e [se] casarão no triênio sucessivo; dividido pela classe dos sexos e pela
ordem física das estações”272.
Esse mapa, como o próprio título sugere, buscou apresentar o estado da
povoação em Vila Bela e Cuiabá, entendendo por estado a quantidade de pessoas
distribuídas por sexo e ao longo das estações do ano: inverno (janeiro, fevereiro,
março), primavera (abril, março e junho), estio (julho, agosto e setembro), outono
(outubro, novembro e dezembro). A peça documental estampa também o número
de fogos (casas), por exemplo, de 436 para Vila Bela e de 628 para Cuiabá,
arrolando também o número de batizados, óbitos e casamentos, de modo a ser
perceptível a movimentação de pessoas que chegavam e saíam da capitania, das que
ali estabeleciam residência, das que seguiam os ditames do catolicismo pelo
batismo, oferecendo um quadro geral do perfil das pessoas a cada estação do ano,
enfim, trazendo à tona saberes amiudadas e necessárias informações para o
gerenciamento das condutas em áreas mineradoras, onde a presença de aventureiros
era constante e o nomadismo existencial corrente, tanto da parte dos garimpeiros
como pela presença dos nativos que habitavam a região oestina.
O fato é que, a partir do governo de Luís Pinto de Sousa, os mapas,
versaram sobre as fortificações militares, sobre a produção aurífera, sobre a receita
e a despesa, ou relativos aos habitantes, tornando-se cada vez mais completos nos
governos seguintes, de Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres e de João
de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, produzindo melhores condições de
Governamentalidade na capitania que, embora imbuída das preocupações de
conservação e defesa territorial, sempre recorrente em todo o século XVIII,
acresceu-se também uma preocupação governamental direcionada para as
condições necessárias à manutenção da capitania, mesmo em períodos de paz.

272
AHU-ACL-CU-010, CAIXA 16, DOC. 971.

153
Ao retomar as instruções que Luís Pinto de Sousa Coutinho ao seu
sucessor, ficou clara a necessidade de aumento das povoações, o que mantinha
estreita interface com a produção de rendimentos e despesa, o que, de certa forma,
movimentava as atividades mercantis. Dessa maneira ele pontuou alguns elementos
essenciais nessa questão específica:

[...] 1º Dar a maior liberdade possível ao comercio;


2º Fomentar constantemente a agricultura;
3º Animar os descobrimentos das minas;
4º Promover os casamentos e atrair para este distrito novas
famílias273.

Nesse sentido, tornava-se necessário povoar, suprir os vazios


demográficos que, certamente, facilitariam a ação defensiva da fronteira e
protegendo-a contra a tentativa dos vizinhos de se apoderarem das áreas de
conquista lusa. O que estava implícito era que um grande número de pessoas
ocupando a região garantiria maior força de sustentação da capitania, o que justifica
a descrição sobre as condições que possibilitariam um cálculo das forças dessa
capitania, seja na defesa ou em seu sustento.
Em 1773, por exemplo, o secretário Martinho de Melo e Castro, em
carta a Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, se predispunha a dispor de
outros documentos (outras cartas emitidas antes do exercício de seu governo),
capazes de instruir suas atividades na colônia, dentre eles o conteúdo dos mapas,
descritivos de como, no governo de Luís Pinto de Sousa Coutinho, se encontravam
as forças militares274, a quantidade de receita e despesa275, sobre o estado da

273
INSTRUÇÃO DE DOM LUÍS DE SOUSA COUTINHO PARA LUÍS DE ALBUQUERQUE
DE MELO PEREIRA E CÁCERES. Op. cit., p. 36.
274
Cf. AHU-ACL-CU-010, Cx. 17, Doc. 1.039, por exemplo, os mapas de Luís de Albuquerque de
Melo Pereira e Cáceres (1772-1789) referentes ao ano de 1773 sobre todas as forças militares da
Capitania; AHU-ACL-CU-010, Cx. 18, Doc. 1111, em 1775, novamente, mapas sobre as forças
militares; AHU-ACL-CU-010, Cx. 18, Doc. 1114, inventário mais moderno sobre as munições de
guerra em outro mapa de 1775. Esses mapas demonstram a importância que ainda terão os limites e
fronteiras e a necessidade do conhecimento de suas forças para defendê-los.
275
Cf. AHU-ACL-CU-010, Cx. 16, Doc. 1.009, por exemplo, os mapas de Luís de Albuquerque de
Melo Pereira e Cáceres (1772-1789) referentes ao ano de 1773 em relação à extração aurífera do
ano de 1772, pela Intendência de Mato Grosso; AHU-ACL-CU-010, Cx. 17, Doc. 1.043 no mesmo
ano de 1773, também um mapa detalhado de receita e despesa; AHU-ACL-CU-010, Cx. 18, Doc.
1.122, já em 1775, novamente outro mapa sobre a receita e a despesa e seguirá até 1776 (AHU-
ACL-CU-010, Cx. 18, Doc. 1.127) e nos anos seguintes.

154
povoação276 etc. No parágrafo 12 da carta de Melo e Castro, referida anteriormente,
indicava ao capitão-general que, de posse desses documentos:

[...] achará V.Sa. todas as providências que podem mais


eficazmente contribuir para o aumento da população, por
consequência da defesa da Capitania de Mato Grosso; e por elas
conhecerá a importância deste grande objeto, a qual deve V.Sa.
aplicar todo o seu cuidado, remetendo a esta Secretaria de Estado,
anualmente, uma relação do número de habitantes da dita
Capitania divididas em classes, e separando os sexos, por onde
se mostre: o número de famílias, ou dos fogos; o dos meninos
desde de a idade de um ano até sete, e o das meninas da mesma
idade; o número dos rapazes, desde a idade de oito anos até a de
quinze; o das raparigas, desde a idade de oito anos até a de
quatorze; o número de homens desde a idade de dezesseis anos
até a idade de cinquenta; e o das mulheres, desde a idade de
quinze até a idade de quarenta; o número, enfim, desde a idade
de cinquenta para cima, e o das mulheres desde a idade de
quarenta para cima.
Na mesma relação virão igualmente numerados os nascimentos,
as mortes, e os casamentos de cada ano, tudo, a fim de que se
possa aqui formar uma ideia justa dos habitantes dessa Capitania,
e do aumento ou decadência da sua população277.

Vale lembrar, que tais mapas contendo essas características já tinham


sido elaborados no governo de Luís Pinto de Sousa Coutinho, mas, naquele
momento o novo capitão-general deveria reelabora-los de maneira mais detalhada
e anualmente. Isso é deixado bem claro para que não acontecesse o ocorrido no
governo de João Pedro da Câmara, quando tais levantamentos já eram posto
enquanto necessidade, e acabaram produzidos só durante o governo posterior.
O que temos nesses mapas é que a população não se apresentava em
sua positividade enquanto campo já constituído para uma possível intervenção, mas

276
Sobre essa questão, talvez seja o tema em que se mais elaboraram mapas. No governo de Luís de
Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres e de João de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres eles
são bem mais recorrentes. Curiosamente, nesses mapas o conceito de população não é muito
frequente, isso desde o mapa de 1773, que versa sobre o estado civil da povoação do Forte de
Bragança, (AHU-ACL-CU-010, Cx. 16, Doc. 1015); no mesmo apresenta um mapa mais geral sobre
o estado atual da povoação da Capitania, como consta no documento do AHU-ACL-CU-010, Cx.
17, Doc. 1.046, e segue nos anos seguintes até o final do governo de Luís de Albuquerque de Melo
Pereira. Em relação aos mapas produzidos, o conceito de população aparece em um deles, relativo
ao ano de 1795, durante o governo de João de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, conforme o
documento do AHU-ACL-CU-010, CX. 31, DOC. 1.712.
277
CARTA-INSTRUÇÃO DE MARTINHO DE MELLO E CASTRO PARA LUIZ DE
ALBUQUERQUE DE MELO PEREIRA E CÁCERES EM 13 DE AGOSTO DE 1771. Op. cit., p.
82-83.

155
sim um dos elementos a serem constituídos ao longo do processo de povoamento e
ocupação dos espaços considerados vazios:

O que na verdade importou nesses levantamentos populacionais


e demográficos da Capitania de Mato Grosso no século XVIII foi
verificar que a população assentada obedeceu a um projeto
político institucional populacional. Projeto que ao estabelecer as
bases políticas populacionais, tendo o nativo como um dos
suportes demográficos, conseguiu garantir, pela posse, o direito
de assegurar que os chamados ‘vazios demográficos’ não
ficassem perdidos para outras nações278.

A tese defendida pelo historiador Jovam Vilela Silva está em sintonia,


ao demonstrar que o que ele denominou de “mistura de cores”, nada mais era que o
resultado de uma política portuguesa de incorporação dos nativos no corpo total dos
habitantes, considerados enquanto vassalos da Coroa portuguesa nesse processo de
povoamento e ocupação das áreas coloniais do extremo oeste:

[...] Os índios silvestres devem ser persuadidos para se aldearem


[...] e faça ao conhecimento de todos os índios silvestres que
voluntariamente vierem Aldearse serão livres nas suas pessoas,
bem e Comércio e serão protegidos por Sua Magestade, sem
ficarem sujeitos senão as mesmas leis, a que o São os outros
vassalos brancos279.

A preocupação demográfica com o povoamento, a ocupação, e a


incorporação de elementos nativos, referenciada por Jovam Vilela Silva, apontou
um esforço da Coroa portuguesa em manter efetivamente povoadas as áreas
fronteiriças em lítígio.
A ideia de mistura de cores, apresentada pelo citado autor, coadunava-
se com uma espécie de homogeinização identitária da população nativa,
considerada, a partir desse desiderato, como vassalos reais, haja vista a busca de
conforma-los às mesmas leis dos aplicadas aos demais colonos.
Tal situação configurava também enquanto estratégia de
homogeinização política, uma vez que faria os nativos abrir mão dos seus próprios

278
Cf. SILVA, Jovam Vilela. Op. cit. p. 318.
279
MF-274, doc. 1.165. Luiz de Albuquerque comunica ao Secretário de Estado, Martinho de Melo
e Castro a chegada, ao registro do Jauru, de famílias de índios desertados das Missões de Chiquitos.
AHU/NDIHR/UFMT. Cuiabá, MT.

156
instrumentos de organização social, política e econômica em prol do modelo de
organização europeu, o que significava ao mesmo tempo uma busca pela fissura no
interior da própria identidade nativa.
A centralidade das ações políticas na colônia até então se pautou na
problemática do povoamento, defesa e conservação das áreas fronteiriças e em
litígio, e não num investimento na população em si, uma vez que se tratava de
constituí-la do ponto de vista quantitativo (mesmo incorporando os nativos como
vassalos reais) na conservação e proteção do território.
Em outras palavras, o conjunto dos homens que habitam uma
determinada área não era suficiente para a constituição de uma população, mas sim
do povoamento, mesmo que insípido.280, mas não uma população da qual se deveria
investir em saúde pública, na instrução, segurança etc., como condições de
efetivação de uma riqueza das nações resultante do trabalho.
Será necessária uma análise mais aprofundada sobre o nascimento do
paradigma liberal na prática política portuguesa em consonância com as condições
de vida da população e a emergência de um dispositivo biopolítico de regulação da
mesma. Esse intento será a proposta do próximo capítulo.

280
No dicionário de Rafael Bluteau, do século XVIII, não há referência ao termo população, e no de
Bluteau e Morais, do final do XVIII, há uma menção à noção de populoso, enquanto adjetivo que
significava uma grande quantidade de povo, bem povoado, o que indica que esse conceito, embora
apareça em alguns discursos esparsos, não era de uso corrente e não designava um objeto preciso da
política de governança.

157
CAPÍTULO 3

GOVERNAMENTALIDADE LIBERAL:
CONDIÇÕES DE NASCIMENTO DA BIOPOLÍTICA
DA PROVÍNCIA DE MATO GROSSO (1808-1840)

As noções estatísticas, como sabeis, muito concorrem para orientar a administração,


porque analisando mais ou menos os estados de civilização e os diferentes elementos da
riqueza e poder público, fazem conhecer e avaliar os recursos existentes.
José Antonio Pimenta Bueno (discurso recitado em 1o de março de 1837)

Nos dois capítulos anteriores centramos a pesquisa em dois aspectos


marcantes no pensamento político do século XVIII em Portugal e cujas
ressonâncias podem ser percebidas em algumas estratégias políticas em Cuiabá e
Mato Grosso nesse mesmo período. Enquanto o primeiro apresentava um plano
mais geral, aquilo que concebemos como “dispositivo de soberania”, no segundo
apresentamos uma análise sobre as noções de governo e de Razão de Estado no
interior desse mesmo dispositivo de soberania.
A ideia era de mostrar que semelhante dispositivo de soberania
compunha-se de elementos heterogêneos que permitiam que estratégias práticas de
governo fossem acomodadas a um conjunto de ações em que a figura do soberano
tinha uma presença bastante marcante, no sentido de que, ao mesmo tempo em que
se reconhecia a multiplicidade de “soberanias” estabelecidas numa relação
diferenciadora não isotópica, haveria, inevitavelmente, uma sociedade marcada por
constantes litígios e que necessariamente haveria de ser arbitrada por um
personagem como o principal suserano, capaz de falar de justiça do alto de sua
majestade e de sua Coroa, daí esse dispositivo comportar as premissas de “bom
governo”, mesmo ainda quando semelhante paradigma passou a ser confrontado
com as ideias atinentes à Razão de Estado.

158
Com isso, demarcamos o limiar de uma “governamentalidade do
Estado” que começava a postular o deslocamento daquilo das premissas do “bom
governo”, que em Portugal podia ser materializado pelo jogo de relações que se
estabeleciam entre o soberano e seus conselheiros, para um governo marcado pelas
ações administrativas cada vez mais burocratizadas e pela criação de várias
secretarias de Estado.
Esse tipo de processo foi timbrado por acontecimentos importantes em
Portugal, como o terremoto de Lisboa e as questões de polícia, as quais seguiram
no processo da reconstrução, acrescido dos embates que se sucederam entre o
ministro Sebastião José de Carvalho e Melo com os jesuítas e alguns membros da
nobreza, exemplificados na presente pesquisa nos processos de Gabriel Malagrida
e dos Tavóras.
Diante desse ambiente de tensões sociais e políticas é que as reflexões
e ações governamentais foram postas enquanto estratégia de “fortalecimento e
expansão do Estado, por meio de uma gestão dos homens com as coisas”, tanto
materializadas nas práticas governamentais desenvolvidas em Portugal como nas
ações desenvolvidas na capitania de Mato Grosso, marcadas pela preocupação cada
mais latente de povoamento, defesa, controle de receita e despesa, conhecimento da
potência virtual das forças do Estado, expressa nos mapas referentes ao número dos
contingentes populacionais, militares e de armamentos. Nesse sentido, desenhou-
se o limiar de “Governamentalidade” na gestão dos negócios públicos, onde as
preocupações com defesa das fronteiras e conservação do território eram
primordiais, porém não exclusivas:

[...] A gestão da repartição do Mato Grosso por parte da Coroa


portuguesa, marcada pela ótica da geografia política, desdobrou-
se na concessão de incentivos fiscais e de privilégios legais
beneficiadores daquela repartição, marcantes nos vinte primeiros
anos da implantação da capitania.
Simultaneamente, a repartição foi incorporada pela estratégia
pombalina à configuração tática de articulação dos dois Estados
da América portuguesa, visando atingir pelo noroeste extremo o
Grão-Peru, com práticas solapadoras de contrabando oficial
secreto. Esses foram fatores de peso na criação e implantação em

159
1755/1756, da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e da
capitania de São José do Rio Negro (atual Amazonas)281.

Outra percepção da Coroa portuguesa foi expressa quanto à necessidade


de se fazer reformas administrativas e de controlar de gastos (certamente, a
catástrofe do terremoto de Lisboa colocava em evidência), especialmente de
expedientes que minavam gradativamente os privilégios concedidos até então,
bastante comuns entre os membros da nobreza e da Companhia de Jesus.
Tais reflexões sobre o fortalecimento e expansão do Estado também
foram recorrentes nas instruções régias, ainda mais quando se tratava de manter o
domínio das áreas ocupadas pelos portugueses, garantindo-lhes sua possível defesa,
instância que foi ganhando cada vez mais força a partir do Tratado de Madri:

[...] Após a assinatura do Tratado de Madri, uma das funções das


autoridades régias designadas pela Coroa para a capitania de
Mato Grosso foi prover a região de forças militares capazes de
assegurar a defesa político- territorial. Uma das primeiras
medidas tomada pelo primeiro governador e capitão-general, D.
Antonio Rolim de Moura foi procurar alistar em Ordenanças
todos os moradores, além de mantê-los preparados para
atividades de combate e o desenvolvimento de funções que
exigiam capacidade física e ao enfrentamento de desafios como
dar combate a ameríndios “selvagens”, espanhóis, patrulhamento
dos rios e caminhos terrestres, prisão de escravos, enfim,
atividades que faziam parte de uma pesada rotina militar282.

Para isso, necessário se fez a adoção de estratégia garantidora da


sedentarização dos colonos e nativos, por meio da criação de órgãos burocráticos,
igrejas, capelas, com o intuito de fixar os colonos, antes bastante oscilantes em sua
sedentarização, mas também dos grupos nômades indígenas, levando-os à fixação
na terra.
Diante dessa situação, materializava-se, entre outras coisas, a
preocupação com a “defesa e conservação” do território e, nesse caso, notabilizou-

281
FERNANDES, Suelme Evangelista. O Forte do Príncipe da Beira e a fronteira noroeste da
América Portuguesa (1776-1796). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Mato Grosso, Cuiabá, 2003, p. 44.
282
CHAVES, OTÁVIO RIBEIRO. Política de povoamento e a constituição da fronteira oeste do
Império Português: a Capitania de Mato Grosso na segunda metade do século XVIII. Tese
(Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008, p. 20.

160
se a quantidade de mapas descrevendo a força militar, tanto de Cuiabá e Mato
Grosso, a receita e despesa, a quantidade de alimentos, fogos, pessoas casadas,
batizadas, enfim, documentos representativos da estratégia de fixação e
povoamento dessa área, com o fim último de conservar, manter e, se possível,
ampliar os domínios lusitanos no extremo oeste colonial283.
Entre a premissa de “bom governo e de Razão de Estado”, o dispositivo
de soberania foi recorrente durante todo o século XVIII, ora comportando a
incorporação de novos elementos heterogêneos em relação à arte de governar, ora
mantendo antigas premissas e convicções.
Nessa medida, ao mesmo tempo em que se colocava a problemática da
gestão das coisas em sua relação com as pessoas articuladas a um estado de polícia,
as reformas propostas por Pombal conviviam com uma política conservadora, na
qual as práticas econômicas eram determinadas por premissas mercantilistas, onde
monopólio constituía uma das principais estratégias, e a permanência de um Código
Criminal ainda muito rígido, com penas físicas e corporais.
Nem mesmo o governo estabelecido sob o reinado de D. Maria284,
apesar da tentativa de rompimento com o modelo adotado por Pombal e de conceder
anistia aos adversários políticos dele, foi capaz de diminuir a centralidade ocupada
pelo poder régio na Monarquia portuguesa, embora já apresentasse sinais de crise:

[...] O início do seu governo foi marcado pela ‘Viradeira’, ou


seja, a demissão do marquês de Pombal, responsável por um
importante conjunto de reformas na sociedade portuguesa, a que
se seguiram vária medidas de alcance pouco significativo, como
a libertação da maior parte dos presos políticos e a reabilitação
da memória de alguns elementos da nobreza sob a acusação de
terem conspirado contra a vida de D. José [...] Para além disso,
continuou a perseguir-se toda e qualquer manifestação contrária

283
Cf. CAMILO, Janaína. Homens e pedras no desenho das fronteiras: a construção da fortaleza de
São José de Macapá (1764/1782). Brasília: Senado Federal, 2009.
284
É digno de nota que, na historiografia portuguesa, o governo de D. Maria é conhecido como
viradeira, pois, nesse modelo de interpretação, acreditava-se que ela havia virado do avesso a
política proposta por Pombal, salientando que a mesma havia concedido o perdão aos jesuítas e aos
nobres que haviam fugido de Portugal etc. durante o governo pombalino, o que expressava uma
retomada de posições e valores tradicionais da corte portuguesa, no entanto, há de se lembrar que
ela manteve muitos aspectos da política pombalina em funcionamento durante sua gestão.

161
ao Absolutismo, processo que celebrizou o intendente-geral da
polícia, Diogo Inácio de Pina Manique285.

Tais elementos constituiriam os pontos de tensão na organização da


política nas primeiras décadas do século XIX, quando do processo de emancipação
do território brasileiro, com a lenta penetração das ideias liberais no pensamento
luso-brasileiro, onde:

[...] as novas ideias constituíram paradigmas, tanto à concepção


de um poderoso império [grifos do autor], o qual uniria o velho
e o Novo Mundo português em torno de um monarca absoluto,
quanto às reações conspiratórias contra esse modelo de sociedade
que se pretendia construir286.

Nesse ambiente de tensões políticas, no qual as ideias iluministas


conviviam com as premissas de Razão de Estado, na transição do século XVIII para
o XIX, levantamos as seguintes questões: em que condições históricas foi possível
o nascimento de uma biopolítica? Quais problemas evocavam? Que formas de
assujeitamentos produziam?
O propósito desse capítulo é responder a tais questões, partindo da
hipótese de que a emergência biopolítica estava em consonância com o nascimento
de uma Governamentalidade liberal enquanto prática de governo, onde “[...] a
liberdade, e não a justiça, nem a grandeza, o critério mais alto para o julgamento de
constituições de corpos políticos”287.
Isso requer uma incursão primeira sobre a definição mais acurada do
conceito de biopolítica, já que no pensamento foucaultiano ele já comportava
algumas variações288, e, em seguida, analisar as implicações que o liberalismo

285
BRAGA, Paulo Drumond. Preces Públicas no Reino pela Saúde de D. Maria I (1792). Revista da
Faculdade de Letras História. Porto, II Série, vol. 11, 1994, p. 216. Disponível em:
http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id04id18id2103&sum=sim
286
LYRA, Maria de Lourdes Viana. Op. cit. p. 19-20.
287
ARENDT, Hannah. Da revolução. Tradução de Fernando Dídimo Vieira. Brasília; São Paulo:
EdUNB; Ática, 1988, p. 23.
288
O termo biopolítica, curiosamente, foi cunhado aqui no Brasil, quando Foucault ministrou uma
conferência no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
em outubro de 1974, no Rio de Janeiro. Percebe-se aqui, que a questão de Foucault era a emergência
de uma forma de intervenção e de controle do corpo, constituindo uma realidade biopolítica, tendo
por base a medicina enquanto uma das estratégias dessa problemática do corpo, visto como uma
realidade material, biológica, somática, a qual o capitalismo vai apreender como objeto a partir do
nascimento da medicina social. Na presente pesquisa, o termo se refere a um dispositivo de governo
em que se investe no poder de gerir a vida da população e de regulá-la da maneira mais conveniente

162
colocou em relação às práticas governamentais nesse processo de constituição de
uma biopolítica.
O que está em jogo nessa analítica é a demarção das condições de
nascimento de “dispositivos biopolíticos”, cujo alvo é a população, em dissonância
com aquilo que chamei de “dispositivo de soberania”, partindo do pressuposto de
que o mesmo busca estabelecer o controle e a sujeição da população no interior do
discurso dos governantes.
Diante dessa situação, nos é pertinente evidenciar todas as ressonâncias
possíveis das Revoluções Liberais do final do século XVIII, notadamente a da
Revolução Americana, de 1776 e a Francesa, de 1789, tanto no campo do
conhecimento científico e político quanto no econômico e social, uma vez que esse
processo de gestão das liberdades foi responsável por assegurar o funcionamento
do racismo, da escravidão e das desigualdades de gênero pautadas num corpo de
saber anunciador das condições de regulação das populações num padrão ideal
majoritário, em contraposição a um povo menor, lembrando nesse caso, por
Deleuze:

[...] As minorias e as maiorias não se distinguem pelo


número. Uma minoria pode ser mais numerosa que uma
maioria. O que define a maioria é um modelo ao qual é
preciso estar conforme: por exemplo, o europeu médio
adulto macho habitante das cidades. [...] Ao passo que uma
minoria não tem modelo, é um devir, um processo289.

Uma minoria, constituída de uma população escrava, indígena,


feminina, que numericamente era superior ao dos homens, brancos e aos habitantes
das cidades, mas que, do ponto de vista epistêmico, mantinha discursos que
validavam todos os domínios da existência.
Em face dessa lenta penetração do liberalismo na formação da
identidade nacional brasileira, entre o primeiro reinado e as regências, vem à tona

aos ditames do Estado, coadunando a proposta com a penetração das premissas liberais no território
brasileiro na primeira metadade do século XIX. Cf. FOUCAULT, Michel. O nascimento da
Medicina Social. In: Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal,
1979; FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
289
DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pàl Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 214.

163
uma prática política e um saber que, ao se apresentar como liberal, vai construir um
ideal de cidadania excludente de mulheres, negros e índios, vedando a sua
participação direta na política e no exercício de seus direitos.
Assim, constituia-se uma sociedade de direitos, mas eles não eram para
todos, e os grupos minoritários (que numericamente constituía a maioria da
população) formavam uma subpopulação, nesse tipo de enunciado, uma produção
histórica de:

[...] inferiorização dos conhecimentos produzidos por homens e


mulheres de todo o planeta (incluindo as mulheres ocidentais)
tem dotado os homens ocidentais do privilégio epistêmico de
definir o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para
os demais. Essa legitimidade e esse monopólio do conhecimento
dos homens ocidentais tem gerado estruturas e instituições que
produzem o racismo/sexismo epistêmico, desqualificando outros
conhecimentos e outras vozes críticas frente aos projetos
imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema-mundo290.

A constituição de um regime biopolítico na regulação da população


materializou-se na fundamentação prática da liberdade de uns em detrimento de
outros, na produção de uma ideia de cidadania masculina, branca e integrada por
habitante das cidades, enquanto ideal a ser seguido na construção do Império e das
províncias, colocando numa escala hierárquica inferior os indígenas, as mulheres e
os escravos, marcando um processo de colonização do corpo feminino, dos
indígenas e dos africanos que, num regime biopolítico, se transvestirá de
liberalismo e ilustração.
O que temos, portanto, em relação ao conceito de biopolítica é um
exercício de poder que tem como alvo a população, cujo principal problema é a
gestão de suas liberdades e cujos efeitos produzidos atinjam uma maximização das
forças.
O desdobramento da biopolítica, quando circunscrita a um país recém-
emancipado, a uma província de grandes dimensões territoriais e de um passado

290
GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas:
racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Soc.
estado. Brasília, v. 31, n. 1, jan./abr. 2016, p. 25. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00025.pdf

164
colonial recente, se assenta sob as condições de um pensamento majoritário na
organização de Estado-Nação.
Os debates acerca do parlamentarismo, dos direitos do cidadão, das
liberdades formalmente concedidas pela Constituição e da construção de uma
identidade nacional, levava às omissões deliberadas de cidadania aos negros,
mulheres e escravos, nesse mesmo processo de gestão dessas liberdades.
Esse tipo de situação, curiosamente, conduziria ao funcionamento de
uma biopolítica embasada em um racismo de Estado, uma vez que a liberdade de
uns conviveria com a escravidão de outros, que a vida de uns conviveria com o
extermínio de outros, que saúde, instrução e direito à participação política de alguns
conviveria com as doenças, ignorâncias e exclusão das ações políticas de outros e
outras.
Esperamos com isso, poder anunciar a população no interior da
emergência de um dispositivo biopolítico caracterizado pela emergência de objeto
e sujeito de intervenção governamental, tendo como preocupação cuidar e controlar
as atividades de seus corpos, por meio da saúde, da instrução e da segurança
públicas, tendo por solo enunciativo “fazer viver e deixar morrer”.
Entre “fazer viver e deixar morrer” situam-se os primeiros debates
parlamentares em torno da ideia de cidadania brasileira, de identidade nacional, das
primeiras discussões sobre a importância das estatísticas na gestão das populações,
suas condutas, hábitos e costumes, e de como melhor intervir no melhoramento das
mesmas, seguindo, deliberadamente, um ideal de civilização e de ilustração.

3.1- Aurora de uma governamentalidade liberal em Portugal e no Brasil

O conceito de biopolítica materializa um exercício de poder político no


qual o alvo era precisamente a população. Nesse sentido, procuraremos traçar
alguns vestígios dessa problemática a partir, inicialmente, da penetração dos
princípios liberais na cultura portuguesa e brasileira e, a seguir, descrever os
fenômenos que esse tipo de pensamento fez emergir.
Tal iniciativa se apoia, como esboçamos anteriormente e seguindo as
intuições filosóficas de Michel Foucault, na relação da biopolítica a partir dos

165
problemas suscitados pelo liberalismo em relação à confrontação com as premissas
da “Razão de Estado”, sob a suspeita de que se governava demais.
Diante disso, seguiremos algumas pistas trazidas pelo historiador
português Nuno Gonçalo Monteiro, que, apoiado em fontes documentais, discute
as transformações do vocábulo “liberal e liberalismo”, mas também assinalar em
que momento essas acepções adquiriram uma conotação política.
Nuno Gonçalo Monteiro primeiramente evoca que os vocábulos liberal
e liberalismo no ambiente cultural português apresentou várias nuances e
significados ao longo dos séculos XVIII e XIX, deslocando-se de um termo
adjetivo, referente às qualidades de algumas pessoas, até ganhar à sua conotação
política e econômica que conhecemos hoje.
Diante dessas diversas significações aferidas ao termo liberal, o referido
historiador demostra incialmente que ela significava uma virtude nobiliárquica
ligada à característica próxima da generosidade e desprendimento:

[...] uma virtude própria dos Príncipes e dos nobres. Por isso no
primeiro dicionário de língua portuguesa, Bluteau acrescenta aos
significados da palavra Liberal. Nobre. Que mostra ser pessoa de
qualidade. Próprio de príncipe (1716). A expressão estava ainda,
de acordo com o mesmo dicionário, associada às Artes liberais,
as únicas que eram compatíveis com a nobreza, e que se definiam
por oposição aos Ofícios mecânicos. Estes, por seu turno, eram
os que dependiam mais do corpo do que do espírito. As artes
liberais eram solidárias da noção ampla e difusa de nobreza que
prevalecia em Portugal291.

Tal situação faz com que a função enunciativa da palavra ou do conceito


de liberal esteja ainda presa a uma disposição cultural, na qual as premissas de bom
governo, pautadas nas virtudes e no bojo de uma sociedade regida por códigos de
conduta pautados em etiquetas292, como forma de distinção social, no caso
específico, além de apontar para uma virtude da nobreza, assinalava também a

291
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Liberal - Liberalismo, Ler História, 55, 2008, posto online no dia
16/10/2016, consultado no dia 26/9/2017. URL: http://lerhistoria.revues.org/2242; DOI:
10.4000/lerhistoria.2242
292
RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no Antigo Regime: do sangue à doce vida. São Paulo:
Brasiliense, 1993.

166
distância entre ofícios mecânicos e artes liberais, conferindo aos nobres apenas o
segundo.
Temos no universo setecentista português a curiosa ligação do termo
liberal associado ao grupo social constituído pela nobreza e, mesmo com as
reformas pombalinas responsáveis pela Reforma da Universidade de Coimbra e a
criação da Academia Real das Ciências, em 1782, já no governo de D. Maria I,
ainda não permitia a profusão de novos significados293.
O fato é que, até o final do século XVIII, a conotação de liberal ainda
mantinha suas antigas significações, situação que começa a mudar com as invasões
napoleônicas, as quais, curiosamente, colocara Portugal diante de duas matrizes do
pensamento liberal polarizados pela Inglaterra e França e que certamente permitiu
a introdução dos posicionamentos políticos lusos em torno desses dois eixos:

[...] Desde pelo menos Methuen (1703) e a Guerra da Sucessão


de Espanha que o alinhamento com a Inglaterra era uma
dimensão quase invariável da política externa portuguesa. No
entanto, sem que verdadeiramente esse dado de base tivesse sido
posto em questão, a posição que a França adquiriu em Espanha
junto de Carlos IV e de Godoy obrigou a monarquia a todo o tipo
de cedências e concessões. No interior da restrita elite política,
surgiu aquilo que se chamou um partido francês e um partido
inglês, personificados respectivamente em António de Araújo de
Azevedo e em D. Rodrigo de Sousa Coutinho, sem que esse
alinhamento externo, de resto com muitos antecedentes,
correspondesse verdadeiramente a um alinhamento ideológico. A
contestação política à monarquia foi, em todo o caso, quase
irrelevante e os conflitos ideológicos entre ilustrados e
conservadores, que parecem ter tido um papel relevante no caso
espanhol, adquiriram em Portugal uma expressão quase
irrelevante294.

Diante disso, aos poucos vai se delineando um alinhamento político


português que aos poucos deslocou ou se acomodou às circunstâncias,
estabelecendo uma rede de alianças ora do lado da Inglaterra ora do lado da França,
polarizadas em nomes, como de D. Rodrigo de Sousa Coutinho295, partidário da
Inglaterra, e António de Araújo de Azevedo, partidário da França.

293
Cf. SILVA, Ana Rosa Cloclet. Op. cit.
294
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Op. cit.
295
O tom dessa simpatia apontava para um projeto político afeito à reorganização das práticas
governamentais que buscavam controlar as tensões, entre a corte portuguesa transferida para o Brasil

167
Esse tipo de tensão, curiosamente, colocava em visibilidade duas
tradições do liberalismo: uma de caráter utilitarista/pragmático, ligado à escola
inglesa, e a outra de caráter revolucinário/imperial, via escola francesa. Os dois
casos estavam circunscritos aos valores burgueses:

[...] Compreende-se, por isso, que com a eclosão da Revolução


francesa e a ulterior sucessão dos acontecimentos em França as
autoridades portuguesas tivessem sido levadas a tomar medidas
no sentido de isolar o nosso país da propaganda revolucionária
(tal como sucedia em Espanha) e de espiar o comércio de livros
proibidos, coadjuvando a Inquisição. Isto, ao mesmo tempo que
proíbem as modas de figurino revolucionário e vigiam a
actividade de diplomatas, viajantes e residentes franceses que
mostravam simpatizar com as instituições democráticas de
França296.

Começaram a penetrar no cenário português as premissas liberais.


Exemplo disso foi a fuga da família real para o Brasil, em 1808, e a influência que
exerceu a corte de Cádiz na Espanha, no cenário político português. Assim, no
primeiro caso podemos exemplificar essa penetração do liberalismo com teor
britânico, quando da chegada da corte portuguesa:

[...] fora acompanhada de um acontecimento marcante: a abertura


dos portos dos Brasil às nações aliadas, ou seja, à Inglaterra.
Assim se punha fim ao exclusivo comercial da metrópole e seus
negociantes sobre o mercado brasileiro297.

Tal situação estava também em consonância com a emergência de uma


penetração de princípios da economia política, enquanto forma de saber que
ocupava um espaço de debate e discussões cada vez mais intensas no cenário
europeu, certamente influenciando grupos de intelectuais e políticos na virada do
século XVIII para o século XIX:

e as elites locais, onde a manutenção do princípio de uma monarquia sob o comando de D. João (até
então príncipe regente desde 1792) seria de fundamental importância para uma posterior restauração.
Cf. LYRA, Maria de Lourdes. Op. cit.
296
MOREIRA, José Manuel. Pensamento liberal em Portugal. Cultura Revista de História e Teoria
das Ideias. Lisboa, vol. 25, 2008, p. 177-179, 2008.
297
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Op. cit.

168
[...] a economia política começou a ser difundida no Brasil
colonial por alguns letrados que haviam entrado em contato com
essa ciência na Europa. Sendo assim, esses homens trouxeram
para cá o entusiasmo que grande parte da intelectualidade
europeia manifestava pela possibilidade de promver o
enriquecimento nacional por meio da aplicação dos principios do
conhecimento econômico298.

Esse tom smithiano apresentava os primeiros focos do liberalismo no


Brasil e em Portugal. No entanto, gradativamente outros políticos e intectuais
começaram a disseminar algumas premissas liberais a partir da força da imprensa
de imigração. Assim,

[...] No percurso da palavra [liberalismo] que se persegue, o ciclo


subsequente foi decididamente marcado pelo impacto, diferido
no tempo, mas nem por isso menos decisivo, da Cortes de Cadiz,
e pela penetração da imprensa portuguesa da emigração em Paris
e, sobretudo, em Londres. Trata-se, a vários títulos, de uma
fenómeno radicalmente novo. Já antes se destacou que a atrofia
da imprensa foi uma das marcas mais destacadas da monarquia
portuguesa na segunda metade de setecentos e uma das que mais
limitou a constituição de uma espaço público em moldes
comparáveis aos de outras paragens. Mas nas condições da
guerra aos franceses, sobretudo em 1809 e 1810, a par de uma
profusão de folhetos de teor conservador, surgiu, num contexto
no qual os poderes escassamente controlavam o que se editava, a
primeira imprensa política liberal em Portugal. Nesse curto ciclo
participaram diversas destacadas figuras do jornalismo luso-
brasileiro. Uma delas, José Liberato Freire de Carvalho,
sintetizou com clareza o que então se passou: Enquanto durou a
guerra com a França e os nossos governantes precisavam de
nosso energia e entusiasmo para que ela se concluísse a bem
deles299.

Com a gradativa importância assumida pela imprensa no cenário


político, as ideias liberais começaram a se infiltrar no mundo luso-brasileiro e o
liberalismo de cunho economicista e de influência britânica foi aos poucos
assumindo também uma dimensão política, graças à incorporação dessas premissas
vindas da corte de Cadiz:

298
ROCHA, Antonio Penalves. A difusão da Economia Política no Brasil entre os fins dos séculos
XVIII e XIX. Revista de Economia Política. São Paulo, v. 13, no 4, p. 47, outubro/dezembro, 1993.
299
Ibid.

169
[...] É nos prolegomenos da primeira experiência liberal
portuguesa, em 1820, que a palavra liberal virá a conhecer a sua
primeira notória difusão com forte cunho político, directamente
influenciada pela experiência espanhola. Quando se discute a
convocação de Cortes, tem lugar um confronto entre o partido
militar, que incluía oficias de variada tonalidade políticas, e os
civis, bacharéis e desembargadores, que repartiam a chefia do
movimento vintista. No pronunciamento da Martinhada que teve
lugar a 11 de Novembro de 1820 o partido militar reivindicava
que se proclamasse a Constituição espanhola de Cádiz de 1812
com as modificações convenientes mas nunca menos liberais300.

Diante dessas infiltrações das ideias liberais, o que se percebe é a


gradativa confrontação delas contra as premissas da razão de Estado que
sustentavam os dispositivos de soberania até então, cotejando a intervenção do
Estado nas atividades comerciais por meio do mercantilismo, o qual assegurava o
funcionamento de mecanismos de equilíbrio mercantil através de tarifas
alfandegárias protecionistas, do monopólio régio de algumas atividades (o
monopólio da extração dos diamantes por exemplo em relação ao Brasil), e da
concessão de monópolio à companhias de Comércio (a companhia de Comércio do
Grão Pará e Maranhão e Companhia de Vinho do Alto Douro, por exemplo).
O liberalismo vai permitir a criação dos princípios de limitação internos
das práticas governamentais em torno de sua problemática, a exemplo da
incorporação lenta da necessidade da “gestão da liberdade”. Veja, por exemplo, o
Alvará de 1º de abril de 1808, em que o príncipe regente D. João VI definia como
meios de garantir a riqueza nacional o “livre estabelecimento” de fábricas e
manufaturas no Estado do Brasil:

[...] Eu O Principe Regente faço saber aos que o presente Alvará


virem: que desejando promover e adiantar a riqueza nacional, e
sendo um dos manancíaes della as manufacturas e a industria que
multiplicam e melhoram e dão mais valor aos generos e
productos da agricultura e das artes e augmentam a população
dando que fazer a muitos braços e fornecendo meios de
subsistencia a muitos dos meus vassallos, que por falta delles se
entregariam aos vicios da ociosidade: e convindo remover todos
os obstaculos que podem inutilisar e frustrar tão vantajosos
proveitos: sou servido abolir e revogar toda e qualquer
prohibicão que haja a este respeito no Estado do Brazil e nos
meus Domínios Ultramarinos e ordenar que daqui em diante seja

300
Ibid.

170
licito a qualquer dos meus vassallos, qualquer que seja o Paiz em
que habitem, estabelecer todo o genero de manufacturas, sem
exceptuar alguma, fazendo os seus trabalhos em pequeno, ou em
grande, como entenderem que mais lhes convem; para o que hei
por bem derogar o Alvará de 5de Janeiro de 1785 e quaesquer
Leis ou Ordens que o contrario decidam, como se dellas fizesse
expressa e individual menção, sem embargo da Lei em
contrario301.

No plano geral de seus domínios, o mesmo príncipe instaurou as


condições que permitaram o livre estabelecimento das fábricas e manufaturas no
território brasileiro, gestão que permitiu a plena iniciativa aos indivíduos de
desenvolver tais atividades, fomentando com isso a valoração das demais iniciativas
humanas, como a agricultura e as artes.
Diante dessa situação, é perceptível a problemática do trabalho se
alojando enquanto condição da riqueza das nações e, consequentemente, envolta
numa preocupação com o combate a condutas e modos de vida associados ao vício,
à ociosidade e à preguiça.
Tal situação mostra, de certa maneira, como o monarca D. João VI
estava atento às tranformações da cultura política europeia e tentava criar
mecanismos de incorporação de premissas liberais em consonância com o poder
monárquico, das quais não abriria mão. Essa característica já era defendida por
Hipólito José da Costa302 à frente do periódico Correio Braziliense, editado entre
1808 e 1822:

[...] revela-se um órgão de difusão de uma ideologia – o


liberalismo – tributária do iluminismo setecentista, corporizada
no modelo parlamentar assente na separação e equilíbrio dos
poderes e fundada no consentimento dos governados. Tal
ideologia de emancipação fundamenta e vindica os interesses
imediatos de um grupo social, a burguesia comercial, que o
redactor classifica como "a classe de cidadãos mais úteis ao
governo e mais interessantes ao Estado do Brasil nas
circunstâncias actuais303.

301
ALVARÁ DE 1º DE ABRIL DE 1808. In: Colleção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1891, p. 10.
302
Sobre a relação de Hipólito José da Costa e o pensamento liberal, cf. HIPÓLITO JOSÉ DA
COSTA; Sérgio Goes de Paula (Org.). São Paulo: Editora 34, 2001 (Formadores do Brasil).
303
FERREIRA, João Pedro Rosa. O pensamento político de Hipólito da Costa. Cultura Revista de
História e Teoria das Ideias. Lisboa, vol. 22, p. 319-338, 2006. (Ideias Políticas).

171
Enfim, os princípios liberais vão ganhando cada vez mais consistência
nas discussões, nos discursos e debates parlamentares portugueses e brasileiros no
interior do processo que culminou com a emancipação política do Brasil e a
problemática da restauração da monarquia portuguesa. Nesse sentido, Castelo
Branco, no que diz respeito à experiência liberal portuguesa, é categórico ao
associar liberalismo ao movimento vintista:

[...] o primeiro nome português do liberalismo foi o vintismo. No


horizonte político nacional este momento foi simultaneamente
um ponto de chegada e um ponto de partida. Afirmamos que o
vintismo foi um ponto de chegada, porque representou de facto o
momento de Ruptura com o Antigo Regime, mas também foi um
ponto de partida ao por em prática em Portugal, uma experiência
política já em vigor noutros países e ainda porque permitiu a
inauguração do debate público (sobretudo na imprensa) e político
(este fundamentalmente nas discussões travadas na Assembleia
Constituinte de 1821-1822 e na Assembleia Legislativa entre
1823-1824) entre as várias tendências que a partir de 1820 se
começam a delinear no horizonte político do país304.

Tratava-se da afirmação de uma governamentalidade liberal, no sentido


de que a instância governamental se imbuia da problemática da gestão da liberdade,
o que implicava, necessariamente, na organização de um corpo de leis materializado
por uma Constituição, votada e aprovada pelos representantes da população
(Câmara dos Deputados e pelo Senado).
Na configuração do Império brasileiro a partir de 1824, em sintonia com
a formação do Estado Nação brasileiros, tais dimensões do liberalismo começaram
a evocar a divisão dos poderes e dos direitos dos cidadãos, expressos pela
Constituição, a qual respaldaria os limites do poder régio, bem como o campo de
ações práticas do corpo político em relação aos cidadãos. Assim, na Constituição
outorgada por D. Pedro I, em 1824, no Título 3, Dos Poderes e Representação
Nacional, estabelecia que:

304
CASTELO BRANCO, João Maria Soares de. Vintismo e Radicalismo Liberal. Revista de
História das Ideias. Coimbra, v. 3, p. 177-216, 1981. Disponível em:
https://www.uc.pt/fluc/ihti/rhi/vol3/pdfs/05_ivargues.pdf

172
Art. 9-A Divisão, e harmonia dos Poderes Políticos é o principio
conseryador dos Direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de
fazer efectivas as garantias, que a Constituição offerece.
Art. 10-Os Poderes Politicos reconhecidos pela Constituição do
Imperio do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder
Moderador, o Poder Executivo, e· o Poder Judicial.
Art.11- Os Representantes da Nação Brazileira são o Imperador,
e a Assembléa Geral. Art.12- Todos estes Poderes nó Imperio do
Brazil são delegações da Nação305.

Paradoxalmente, uma constituição imposta, dava o tom de como seria


implantado o liberalismo no país, uma vez que, no processo de gestão das
liberdades, a figura do monarca ainda permaneceria central, apesar de toda
autonomia conferida à Assembléia Geral sob as ações da Camâra dos Deputados e
do Senado, manteve o poder Moderador, também sob domínio do poder executivo,
o que, em última instância, jogava o poder decisório de algum assunto mais
polêmico apenas nas mãos do imperador. A prerrogativa do poder Moderador
coadunava-se com a vertente do liberalismo proposta por Benjamin Constant:

[...] A ideia de um Poder Moderador se encontra delineada de sua


forma definitiva na obra de Benjamin Constant Princípios
Políticos, publicada em 1814. A grande preocupação de Constant
era com a estabilidade do poder. Liberal, desejoso de saudar as
grandes conquistas da Revolução de 1789, excluindo
cuidadosamente a herança do Terror, Constant afirmava que
apenas a aceitação de limitação da soberania popular poderia
impedir o desrespeito aos direitos fundamentais. O Poder
Moderador teria aí o papel fundamental de impedir que os outros
três poderes, entrando em choque, levassem uns aos outros de
vencida, assegurando a estabilidade do Estado liberal e os
direitos civis e políticos dos cidadãos. Ao contrário de
Montesquieu, cuja tese de divisão de poderes foi adotada por
todos os países que se pretenderam liberais, essa novidade de
Constant não foi formalmente adotada por nenhuma das grandes
potências ntão dominavam o cenário político ocidental. Com
efeito, seria no Brasil e em Portugal, por iniciativa praticamente
pessoal de Dom Pedro I, que a criação de Constant tomaria
formalmente vida306.

305
CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL. In: Colleção das Leis do Império do
Brazil de 1824. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886, p. 8-9.
306
LYNCH, Christian Edward Cyril. O Poder Moderador na Constituição de 1824 e no anteprojeto
Borges de Medeiros de 1933. Revista de Informação Legislativa. Brasília, 47, n. 188, p. 93-94,
out./dez. 2010.

173
Curiosamente gerou uma série de reflexões que se estabeleceram com
a incorporação dos princípios do liberalismo britânicos, desde 1808, sobre as
liberdades de livre comércio, das iniciativas de incentivo às indústrias e
manufaturas, atravessado principalmente por princípios de economia política, que,
com o estabelecimento do Império brasileiro, começam a assumir também
caracteristicas liberais da tradição francesa e de forte conotação republicana,
embora tais experiências tenham sido sufocadas, como foi o caso da Confederação
do Equador, sob a liderança de Frei Caneca:

[...] É dificil ao Brasil passar da monarquia revolucionária, com


um chefe que goza dos direitos hereditários de seu pai, ao
republicanismo-dificuldades que não tiveram as colônias
espanholas-o velho Bruto foi feliz contra Tarquínio, porque os
feixes da monarquia passaram às mãos de uma aristocracia já
constituída. Haja vista as insurreições de Pernambuco e Bahia,
que trabalharam em areia movediça307.

Essa tensão provocada pela infiltração de alguns elementos do


pensamento liberal de tradição francesa e a sua possível associação com o
republicanismo, fez com que alguns políticos e intelectuais, como José da Silva
Lisboa, considerado por muitos uma figura central do liberalismo, assumisse
posicionamentos cada vez mais reacionários:

Na medida em que o liberalismo virtualmente se confunde com


o republicanismo, enrigecem-se as posições dos partidários da
monarquia constitucional, tendo presente o que então se entendia
como o fracasso da Revolução Francesa, que acabara
desembocando na restauração monárquica, com Napoleão I. Essa
radicalização, que acabaria levando alguns liberais ao mais
extremado reacionarismo, pode ser ilustrada pela trajetória
descrita por José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu
(1756/1835)308.

As problemáticas suscitadas pela temática do liberalismo em relação ao


estabelecimento de uma monarquia parlamentar no Brasil, após a separação de
Portugal em 1822, e as guerras civis que eclodiram em diferentes pontos do país no

307
ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. Op. cit., p. 252.
308
PAIM, Antônio. A querela do estatismo. Brasília: Senado Federal, 1998, p. 64. (Biblioteca básica
brasileira).

174
período regencial, tornarão ainda mais latentes as tensões entre o que se
convencionou chamar de partido liberal e partido conservador:

A oposição fracionou-se em dois grupos: os exaltados (radicais,


federalistas extremados, promotores da Revolução Farroupilha e
de outros levantes provinciais) e caramurus (restauradores, que
sonhavam com a volta de Pedro I). Com o falecimento do antigo
monarca, em 1834, desaparece a razão de ser do Partido
Caramuru. Nesse mesmo ano é votado o Ato Adicional e os
exaltados, em parte vitoriosos, voltam-se para o processo
eleitoral. Com a eleição de Feijó constitui-se o Partido
Progressista que daria origem, posteriormente, ao Partido
Liberal309.

As posições partidárias entre liberais e conservadores, embora com


diferentes nuances, acentuava ainda mais um clima de tensão entre os grupos locais
que vão constituir as forças políticas do país logo após a abdicação de D. Pedro I, e
que, dentre outras coisas, anunciava a problemática de aversão aos “portugueses
adotivos” e aos “brasileiros nativos”, ambos integrados pela Constituição de 1824
enquanto cidadãos brasileiros:

[...] Art. 6. São Cidadãos Brazileiros:


I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou
libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não
resida por serviço de sua Nação.
II. Os filhos de pai Brazileiro, e os illegitimos de mãe Brazileira,
nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio
no Imperio.
III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro
em serviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer
domicilio no Brazil.
IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo
já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a
Independencia nas Províncias, onde habitavam, aderiram á esta
expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residência.
V. Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja a sua
Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter
Carta de naturalisação310.

309
PAIM, Antonio. História do Liberalismo Brasileiro. Brasília: Senado Federal, 1998, p. 58.
(Biblioteca básica brasileira).
310
CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL. Op. cit., p. 8.

175
Temos, assim, na presente Constituição uma garantia para que pessoas
de outros países, inclusive portugueses, fossem incorporados ao corpo social da
nascente sociedade brasileira. A configuração desse nicho social misto, como
apresentaremos com mais detalhes no capítulo 4, será utilizado como justificativa
ideológica para que alguns integrantes das elites se sentissem preteridos aos cargos
públicos mais avançados, se insurgindo, e para um grupo menos abastados da
população, desejoso de ver melhorada suas condições de vida, como será o caso da
Rusga cuiabana.
Na organização da liberdade e da gestão dos cidadãos, a referida
constituição de 1824 definia a entidade nacional, as províncias, suas formas de
governo, sua dinastia, a religião oficial (a Católica Apostólica Romana, aceitando
a prática de outras religiões apenas no culto doméstico), desde que fossem cristãs,
uma vez que o trabalho de catequese dos indígenas ou de destruição dos quilombos
representaria, no campo prática política, exatamente o contrário. Diante desse fato,
tal constituição estabelecia que:

[...] Art.1- O IMPERIO do Brazil é a associação Política de todos


os Cidadãos Brazileiros. Elles formam uma Nação livre, e
independente, que não admitte com qualquer outra laço algum do
união, ou federação, que se opponha á sua Independencia.
Art. 2- O seu territorio é dividido em Províncias na fórma em que
actualmente se acha, as quaes poderão ser subdivididas, como
pedir o bem do Estado.
Art. 3- O seu Governo é Monarchico Hereditario, Constitucional,
e Representativo.
Art. 4. A Dynastia Imperante é a do Senhor Dom Pedro I actual
Imperador, e Defensor Perpetuo do Brazil.
Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser
a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão
permittidas com seu culto domestico, ou particular em casas para
isso destinadas, sem fórma alguma exterior de Templo311.

Nessa medida, a gestão da liberdade das provínciais quanto à liberdade


de culto religioso, da liberdade constitucional e representativa, em suma, constituiu
princípio de limitação interna ao poder político, cuja preocupação vai ser a de
“governar uma população”, conhecer seus hábitos, costumes e estabelecer a melhor
maneira de intervir na conduta das pessoas.

311
Ibid., p. 7.

176
Esse princípio de liberdade, que paradoxalmente convivia com a
escravidão, com a exclusão das mulheres na participação política, da tentativa de
disciplinar a conduta dos indígenas por meio da catequese, consignava a gestão de
liberdade para apenas alguns, em detrimento de outros.
Entre a afirmação do liberalismo e a escravidão, por exemplo,
Domenico Losurdo traz alguns casos interessantes em que o pensamento anglo-
americano parece não sentir qualquer contradição ou constrangimento em
estabelecer premissas de gestão de liberdade e escravidão:

[...] Observe-se, agora, um contemporâneo de Locke. Andrew


Fletcher é um ‘campeão da liberdade’ e, ao mesmo tempo, um
‘campeão da escravidão’. No plano político ele declara ser ‘um
republicano por princípio’; e no plano cultural é ‘um profeta
escocês do iluminismo’; ele também foge para a Holanda na onda
da conspiração antijacobina e antiabsolutista, exatamente como
Locke, com a qual mantém correspondência epistolar. A fama de
Fletcher atravessa o Atlântico: Jefferson o define um ‘patriota’,
a qual cabe o mérito de ter expressado os próprios ‘princípios
políticos’ dos ‘períodos mais puros da Constituição Britânica’,
os que depois se enraizaram e prosperaram na América livre312.

Esse tom, como aponta o referido pensador Domenico Losurdo em


relação ao pensamento anglo-americano, atingia, no caso do referiro Fletcher e do
pensador Burgh, a justificada utilidade da escravidão em relação às classes mais
pobres da população, e não diretamente aos negros, como uma espécie de punição
útil aos “vagabundos, mendigos, à plebe ociosa e incorrigível da metrópole”.313
A tônica desse tipo de discurso liberal em relação aos grupos menos
abastados da população estava envolto, de um lado, no combate às condutas
consideradas inaceitáveis pelo modelo de sociedade que estava emergindo, onde a
valoração do trabalho se tornava indispensável, e, de outro, validada a escravidão
enquanto forma de punição aceitável.
Domenico Losurdo oferece outro registro importante sobre o
liberalismo e a escravidão racial propriamente dita, quando os embates que
conduziram o processo de independência norte-americana em relação à Inglaterra

312
LOSURDO, Domenico. Contra-história do Liberalismo. Tradução de Giovanni Semeraro.
Aparecida-SP: Ideias e Letras, 2006, p. 17.
313
Ibid.

177
se imbricaram de tal forma que acabaram por conduzir ao extermínio de nações
nativas inteiras, é claro, dos escravos africanos, assim:

[...] por muito tempo, tanto a sorte dos negros quanto a dos índios
não haviam sequer arranhado a autoconsciência orgulhosa dos
ingleses nas duas margens do Atlântico de serem o povo eleito
da liberdade. Em ambos os casos, evocava-se Locke para o
qual,... os nativos do Novo Mundo estão muito perto ‘das bestas
selvagens’. Mas, ao emergir o conflito entre as colônias e pátria-
mãe, a troca de acusações estende-se também ao problema com
os peles vermelhas. A Inglaterra-proclama Paine em 1776-é ‘a
potência bárbara e infernal que atiçou os negros e os índios a nos
destruir’, ou seja, ‘a cortar a cabeça dos homens livres da
América’. Analogamente, a Declaração de Independência de
George III não só de ter ‘fomentado dentro dos nossos territórios
a revolta’ dos escravos negros, mas também de ter ‘procurado
atiçar os habitantes das nossas fronteiras, os cruéis e selvagens
índios, cuja maneira de guerrear é, como se sabe, um massacre
indiscriminado, sem distinção de idade, de sexo ou de condição’.
Em 1812, em ocasião de uma nova guerra entre os dois lados do
Atlântico, Madison condena a Inglaterra pelo fato de atingir com
sua frota indiscriminadamente a população civil sem poupar
mulheres e crianças, portanto, com uma conduta semelhante à
dos ‘selvagens’ peles-vermelhas. De cúmplices dos bárbaros os
ingleses se tornam eles mesmos bárbaros314.

O que parece funcionar nos dois lados do Atlântico era um discurso


que se apresentava enquanto legitimador da liberdade, mas que utilizava
estrategicamente discursos de demonizavam os nativos e os negros, aferindo um ao
outro o fato de estabelecer alianças com essas raças, onde:

[...] a raciologia mais sustentada, brutal e desumana não emergiu


da teoria antropológica especulativa, mas sim em meio à prática
de terror racial como uma forma de administração política nos
impérios coloniais da Europa. O poder imperial assegurou que o
teatro da história não fosse mais confinado à zona temperada315.

A questão racial e da escravidão, na lógica discursiva do século XIX,


era compativel com um discurso que arrogava defender a liberdade316. Nessa

314
Ibid., p. 29.
315
GILROY, Paul. Op. cit., p. 385.
316
Embora nos soe estranha a ideia de liberdade e de escravidão circunscritas na mesma lógica
discursiva, naquele momento era coerente e coadunava com uma retomada de um valor presente na
sociedade grega e romana, na qual, tal como afirmava Polibios, a liberdade era uma condição

178
proposta, a Constituição elaborada em 1824, diante da necessidade de gerir a
população enquanto importante base na construção da identidade nacional, vis
como necessário se fazer a gestão da população, projetando modelo de civilização
e de condutas que serão assumidas pelos presidentes de província, principalmente
com o Ato Adicional de 1834, que dava maior autonomia às províncias317.
Por ele, abolia-se o Conselho Geral e criavam-se as Assembleias
Legislativas provinciais, ampliando seu domínio legislativo, visto que dispunham
sobre vários assuntos referentes à divisão civil, judiciária e eclesiástica da
província; à instrução pública; à desapropriação por utilidade municipal ou
provincial; à criação de cargos públicos, bem como os respectivos ordenados,
suspensão, demissão e contratação de magistrados, obras públicas; prisões;
estatística; catequese dos índios; colonização; casas de socorros públicos,
conventos e quaisquer associações políticas ou religiosas318.
Todos esses temas recorrentes serão apresentados pelos primeiros
trabalhos estatísticos realizados na província de Mato Grosso e retomados pelos
relatórios de seus presidentes que, além disso, dispunham sobre os impostos,
receitas e despesas provincial, o que atentava por organização na gestão política de
suas populações: seus hábitos, condutas e modos de vida diante de um projeto de
civilização que se buscava construir.

3.2- Nascimento da biopolítica na província de Mato Grosso

Dedicaremos agora à análise no nascimento da biopolítica na província


de Mato Grosso tendo por base a realizção dos primeiros levantamentos estatísticos
do Império, necessários para configurar as dimensões postas pelo pensamento

excepcional para pessoas excepcionais e, de fato, nem os escravos nem as mulheres eram tidos como
excepcionais no modelo de sociedade do século XIX. Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval
Muniz de.. História e Liberdade. In: Karla Íngrid Pinheiro de Oliveira e Ítalo Cristiano Silva e Souza.
(Org.). Olhares de Clio: cenários, sujeitos e experiências históricas. Teresina: EdUFPI, 2013, p. 19-
34.
317
Sobre a importância assumida pelas províncias no primeiro reinado e nas regências, cf. COSTA,
Wilma Peres; OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (Org.). De um império a outro: a formação do
Brasil, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Hucitec, 2007.
318
Cf. LEI N. 16 DE 12 DE AGOSTO DE 1834. Faz algumas alterações e adições à Constituição
Política do Imperio, nos termos da Lei de 12 de outubro de 1832. In: Coleção de Leis do Império
1834 (parte I). Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1866.

179
liberal na construção do Estado-Nação e da monarquia constitucional, da gestão das
liberdades.
Tal preocupação já se manifestara de forma visível quando, por
exemplo, exigia-se a confecção de mapas estatísticos da população do Império, pela
Decisão de n. 258, de 11 de dezembro de 1824:

[...] Sendo indispensavel, para o acerto das operações do


Governo, e deliberações do Corpo Legislativo, que brevemente
se ha de installar nesta Capital, o perfeito conhecimento dn
Estatistica do Brazil: Ha por bem S. M. o Imperador, que o
Presidente da Província de ... remeta, pela Secretaria de Estado
dos Negócios do Imperio, mappas exactos da população da
Província, especificando-se nelles com precisão os domiciliarios
brancos e de cor, e quaes sejam destes os ingenuos, libertos ou
cativos: E assim o Manda, pela mesma Secretaria de Estado,
participar ao sobredito Presidente para sua execução [...]319

Paralelamente à problemática da população como alvo de objetivação e


sujeição das práticas políticas, e considerando a necessidade fundamental do
império, a elaboração de mapas estatísticos cada vez mais precisos se tonou
relevante, pois, em outras palavras, forneciam uma visão geral do perfil dessa
população, a qual garantiria as operações mais “acertadas do governo e do
legislativo.”
A partir dessa problemática da população, emergente no mesmo cenário
em que se assistiu ao ingresso das premissas liberais de governo no cenário luso e
brasileiro, nas primeiras décadas do século XIX, buscaremos a seguir demarcar sua
constituição em relação ao investimento político da vida e da necessidade de
intervenção em certos hábitos e condutas.
Tomando como referência a província de Mato Grosso, apresentaremos
as condições em que, mesmo numa província tida como afastada dos centros
decisórios de poder, demarcou um campo de positividade do nascimento da
biopolítica da população no cenário mato-grossense.
Tal situação expressou-se no bojo do processo de emancipação política
do Brasil, com a adoção de um regime monárquico, hereditário, constitucional e

319
DECISÃO N. 258. IMPÉRIO. Em 11 de Dezembro de 1824. Exige mappas estatísticos da
população do Império. In: Collecção das decisões do governo do Imperio do Brazil de 1824. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1886, p. 180.

180
representativo, o que abria um espaço de liberdade, embora limitada, visto que
recaía em benefício apenas de alguns segmentos da população brasileira, os quais
tinham direito de participar das eleições na escolha de seus representantes e também
autonomia que as províncias, como unidades administrativas, iriam assumir.
Em relação ao processo eleitoral, cabe lembrar algumas de suas
características que beneficiavam os cidadãos: para estar apto a votar, o eleitor
deveria pertencer ao sexo masculino e ter a idade mínima de 25 anos, exceto no
caso de homens casados, clérigos, militares e bacharéis formados, que não
poderiam votar nas Assembleias paroquiais de onde seriam escolhidos os cidadãos
ativos responsáveis para escolher em outro processo eleitoral os deputados,
senadores e dos membros dos Conselhos Gerais das Província. Assim, nos artigos
90 e 91 da Constituição de 1824 ficou estabelecido:

[...] Art. 90-As nomeações dos Deputados, e Senadores para a


Assembleia Geral, e dos Membros dos Conselhos Gerais das
Províncias, serão feitas por eleições indiretas, elegendo a massa
dos Cidadãos ativos em Assembleias Paroquiais os eleitores de
Província, e estes os representantes da Nação e Província.
Art. 91. Têm voto nestas Eleições primarias:
I- Os Cidadãos Brasileiros, que estão no gozo de seus direitos
políticos.
II- Os Estrangeiros naturalizados320.

Além desses primeiros requisitos, só estaria apto a votar aqueles


homens que possuíssem comprovadamente uma renda mínima anual oriunda de
empregos, comércio, indústria ou de propriedade de terras, o que representava a
exclusão deliberada da maioria da população.
A utilização do voto censitário reproduzia um modelo patriarcal de
sociedade, em que à grande maioria da população estava vedado participar do
processo eleitoral (escravos, libertos, filhos em companhia dos pais, pessoas que
estivessem respondendo a processos criminais ou devassa e, principalmente, as
mulheres, não facultando nenhuma possibilidade de elas participarem do processo
eleitoral, mesmo as de classes mais abastadas). Nesse sentido, o voto no Brasil do

320
CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL DE 1824. Op. cit., p. 19.

181
início do Império constituia um instrumento de ação política exclusivo das elites
brancas e masculinas.
Além disso, o processo eleitoral se mostrava muito limitado do ponto
de vista prático, pois excluía a maior parcela da população brasileira. Nessas
primeiras leis do Império criava-se um espaço de ação governamental em que
certamente conferia mais autonomia às províncias, cada qual desenvolvendo suas
gestões administrativas de acordo com os interesses e particularidades específicos
de cada região:

[...] Art. 71- A Constituição reconhece, e garante o direito de


intervir todo o Cidadão nos negocias da sua Província, e que são
imediatamente relativos a seus interesses peculiares.
Art. 72- Este direito será exercitado pelas câmaras dos distritos,
e pelos Conselhos, que com o título de - Conselho Geral da
Província- se devam estabelecer em cada Província, aonde não
estiver colocada a Capital do Império.
Art. 73- Cada um dos Conselhos Gerais constará de vinte e um
Membros nas Províncias mais populosas, como sejam Pará,
Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, S. Paulo, e
Rio Grande do Sul e nas outras de treze Membros. [...]
Art. 76. A sua reunião se fará na Capital da Província; e na
primeira Sessão preparatória nomearão Presidente, Vice-
Presidente, Secretário e Suplente; que servirão por todo o tempo
da Sessão: examinarão, e verificarão a legitimidade da eleição
dos seus Membros321.

Os Conselhos de Província, no interior do plano prático do governo,


tinham liberdade administrativa, uma espécie de premissa laissez faire, no sentido
de que estava a cargo desse organismo provincial deixar fazer as intervenções
reguladoras mais atinentes aos seus interesses, suficientes o bastante para proteger
os direitos de propriedade:

Art. 80- O presidente da província assistirá à instalação do


Conselho Geral, que se fará no primeiro dia de dezembro, e terá
assento igual ao do presidente do Conselho e à sua direita; e aí
dirigirá o presidente da província sua fala ao Conselho;
instruindo-o do estado dos negócios públicos e das providências
que a mesma Província mais precisa para seu melhoramento.
Art. 81- Estes conselhos terão por principal objeto propor,
discutir e deliberar sobre os negócios mais interessantes das suas

321
Ibid., p. 16-17.

182
províncias; formando projetos peculiares e acomodados às suas
localidades e urgências.
Art. 82- Os negócios que começarem nas câmaras serão
remetidos oficialmente ao secretário do Conselho, onde serão
discutidos a portas abertas, bem como os que tiverem origem nos
mesmos conselhos. As suas resoluções serão tomadas à
pluralidade absoluta de votos dos membros presentes322.

Temos, assim, materializado pela Constituição de 1824 os primeiros


focos de uma problemática sombreada pelas premissas do liberalismo, assumindo
para si não conceder liberdades formais a todos, mas regulá-las, garantindo um
espaço de circulação, de intervenção na gestão dos negócios públicos como maneira
de assegurar o seu melhoramento.
Nesse sentido, concedeu a cada província a possibilidade de criar as
condições mais adequadas para garantir a prosperidade e felicidade de sua
população cidadã, mesmo incluindo o sofrimento impingido a outros grupos,
principalmente quando movidos por ideais de ilustração e civilização.
Dessa maneira, tratava-se de, dentre outras coisas, demarcar o regime
discursivo em que o elemento populacional entrava no registro político, embora
apresentando alguma semelhança com os mapas desenvolvidos na colônia durante
a segunda metade do século XVIII, os quais continham informações sobre fogos,
número de força policial, balanços de receita e despesa etc.. Já no Império, esse tipo
de instrumento demonstrativo foi inicialmente elaborado por D’Allincourt, o qual
procurou traçar o potencial de riqueza da província, sua organização administrativa,
suas engrenagens de funcionamento, bem como os hábitos e condutas da população.
Enfim, daí vieram à lume toda uma série de questões que apontavam
para aquela exigência com relação à confecção de mapas estatísticos cada vez mais
precisos, uma vez que os mesmos estampavam um saber geral sobre o perfil de cada
população das províncias e, por fim, o perfil da população do Império.
A estatística, nesse sentido, constituiu uma necessidade digna de nota
para os primeiros presidentes da província de Mato Grosso, uma vez que
representava um instrumento muito importante para as atividades de governo, pois,
oferecia a possibilidade de intervenção mais minuciosa e precisa sobre a população.

322
Ibid., p. 17-18.

183
O desenvolvimento da estatística, às duras penas, entrou na pauta
política da província e, diante de todas as dificuldades e resistências para sua
realização, ela não foi abandonada, fazendo-se presente, no caso de Mato Grosso,
em quase todos os relatórios dos seus governantes.
Com tais estatísticas, buscava-se um conhecimento geral sobre todas as
atividades da província, seu potencial humano, econômico, cultura, religioso etc.,
procurando intervir em questões atinentes à liberdade de gestão concedida às
províncias, suas particularidades e riquezas.
Diante dessa situação, as questões que se lançavam a esses presidentes
de província eram: quais as características da província que eu governo? Quais
pessoas que a compõe? Quais hábitos e costumes? Quais formas de fazê-la
prosperar? Com que tipo de população estou lidando?
Logo, a urgência e a necessidade da estatística constituiu uma das
ferramentas mais importantes para estabelecer o governo das populações e sua
posterior regulação, em outras palavras, significou a entrada de um mecanismo de
saber e poder a serviço do Estado, com o objetivo de intervir na conduta das
populações em suas condições positivas de seres viventes que produziam,
trabalhavam e se comunicavam e que, portanto, se definiam por interesses
específicos norteadores de suas existências.
Trata-se, precisamente, da assinalação de uma biopolítica das
populações que estava nascendo, criando formas de sujeição e objetivação e que se
fizeram constantes nos relatórios, discursos, pareceres etc. dos presidentes de
províncias e seus respectivos conselhos.
Nossa atenção agora se voltará para o “nascimento dessa biopolítica”
em Mato Grosso, atentando para a especificidade que a problemática que a sua
população apresentava: Quais eram as suas preocupações? Quais eram os perigos a
que a província estava exposta? Quais eram as estratégias criadas para a sua
regulação? E que jogos de interesses mobilizavam?
Certamente, essas questões norteadoras não se esgotam em si mesmas,
se desdobrando sobre todo um investimento político de intervenção, no sentido de
regular a população e trazer à tona as questões de saúde, de polícia e da instrução,
enquanto condições de funcionalidade vital da população, dispositivos estes, que

184
constituíram, ao nosso ver, estratégias fundamentais para o funcionamento dessa
biopolítica.
Primeiramente, partiremos de uma fonte documental que é
paradigmática nesse sentido, pois materializa a forma mais cabal de uma estatística
sobre o território de Mato Grosso, sua gente e seu potencial de riqueza. Trata-se dos
Trabalhos e Indagações que fazem o objeto da Estatística da Província de Mato
Grosso, feitos no ano de 1826 para o ano de 1827323, de D’Allincourt.
Em seguida, abordaremos a problemática da população nos relatórios,
pareceres e discursos dos presidentes provinciais sobre os negócios relativos à sua
unidade administrativa, enfocando o triedro estratégico: saúde, polícia e instrução
pública, em consonância com aquilo que Foucault chamou de “dispositivos de
segurança”, os quais atuavam diante das noções “de risco e periculosidade”, que
abordaremos com mais acuidade no próximo capítulo.
Assim, buscaremos demarcar nas materialidades das práticas
discursivas o limiar de uma biopolítica da população, e apresentar experiências de
vida postas lado a lado no momento em que se procurava instaurar uma nova
racionalidade na gestão da província e do país, o que exigia estatísticas cada vez
mais precisas.

3.3- Governar a vida de uma população: a importância da estatística

Como foi dito anteriormente, aos 11 de dezembro de 1824 o governo


do império, pela Decisão n. 258 “[...] exige mapas estatísticos da população do
Império324”, como ferramenta indispensável tanto para os presidentes de província
como para o imperador na gestão dos negócios públicos. Tal documento deveria ser
remetido por meio da Secretaria de Estado dos Negócios do Império e nela deveria
constar o número de residentes brancos e negros, ingênuos, libertos ou cativos.
Havia, certamente, uma preocupação de se estabelecer censos que
expressassem um perfil geral de cada província e com isso produzir conhecimento

323
Cf. D’ALLINCOURT, Luiz. Trabalhos e Indagações que fazem o objeto da Estatística da
Província de Mato Grosso, feitos no ano de 1826 para o ano de 1827. In: Percorrendo Manuscritos:
entre Langsdorff e D’Allincourt. Maria de Fátima Costa (Org.). Cuiabá. EdUFMT, 1993.
324
DECISÃO N. 258. - Império. Op. cit.

185
e saber mais abrangerntes, para que medidas governamentais fossem tomadas de
maneira acertada. Esse tipo de preocupação com a estatística, já era, de certa
maneira, uma preocupação dos teóricos da razão de Estado, que pensavam em termo
de manutenção e expansão das forças estatais:

A expressão estatística vem do alemão statistik e foi fixada pelo


professor Gottfried Achenwall (1719-72), na cidade de
Göttingen, em 1749. Era, a essa época, considerada como a
ciência do Estado ou como a ciência que se referia ao Estado. [...]
Inventariando os recursos e as forças de um Estado, até então,
oferecia-se em documentos como espelho do príncipe, tomando-
se o príncipe como a própria encarnação do Estado325.

Nesse sentido, podemos inferir que os “[...] mapas de povoamento, de


armamentos, da quantidade de militares, de receitas e despesas, de casados e
solteiros, batizados e pagãos etc,”, produzidos na segunda metade do século XVIII
em relação à capitania de Mato Grosso, geraram um saber sobre o território e seus
habitantes, mas essa forma de conhecimento atinava para uma preocupação desses
governantes quanto à problemática da defesa territorial, especialmente a ameaçada
dos rivais hispânicos, e internamente pelos ataques dos nativos e fugas dos escravos.
O exemplo mais cabal em relação à capitania de Mato Grosso, talvez
sejam as instruções deixadas pelo capitão-general Luis Pinto de Souza Coutinho,
nas quais já havia alertado para a importância capital dos censos na confeccção cada
vez mais detalhada dos mapas de povoamento de Cuiabá e Mato Grosso:

[...] como tudo quanto pertencem a aritmética política [grifos


meus] dos povos é de sua natureza tão variável que carece de
cálculos e combinações sucessivos, para se poder fixar as noções
convenientes, parece me que não deve Vossa Excelência omitir
as diligências necessárias para admitir anualmente um estado
verdadeiro da povoação, do seu governo, e de todos os objetos
relativos à sua economia política. Sendo este o único termômetro
que pode indicar a Vossa Excelência as suas variações e
subministrar-lhe aquela certeza de indução a que podem aspirar
novos conhecimentos. [...]326

325
SENRA, Nelson de Castro. Informação estatística: política, regulação, coordenação. Disponível
em: http://www.tce.sc.gov.br/files/file/biblioteca/informacao_estatistica.pdf. Acessado em
2/10/2017.
326
INSTRUÇÃO DE DOM LUÍS PINTO DE SOUSA PARA LUÍS DE ALBUQUERQUE DE MELO
PEREIRA E CÁCERES. In: Instruções aos Capitães-Generais. Instituto Histórico e Geográfico de
Mato Grosso (Publicações Avulsas), n. 27, Cuiabá: IHGMT, 2001, p. 35.

186
Em Notas sobre Aritmética Política ou estatística, José Bonifácio
chamou também a atenção para a importância dessa aritmética política para o
necessário exercício político, uma vez que, numa perspectiva bem próxima de Luís
Pinto de Sousa Coutinho, defendia que:

[...] A utilidade da arimetica Politica, de que o homem de Estado


se pode servir, é a de não marchar ao acaso, e evitar os cachopos,
em que morrão os outros: não fará ligas com príncipes fracos, ou
inúteis; nem pazes danosas; nem guerras ruinosas: com o cálculo
politico em qualquer projecto pode antecedentemente pezar o
grão de felicidade e bom êxito, e descontar os inconvenientes, e
casos fortuitos [...]327

Começava a se esboçar uma preocupação em domar os acontecimentos


fortuitos e o acaso, no entanto, Bonifácio apontava uma pequena ruptura em relação
a Sousa Coutinho, anunciando a população enquanto problemática central dessa
aritmimética política ou estatística, seguida das temáticas dos subsídios, operações
financeiras e, por fim, a preocupação com o exército e a marinha:

[...] Sobre a população é preciso descubrir: 1º a extensão das


provincias, 2º o número de Cidades, vilas, aldeias, lugares, 3º sua
grandeza pelo número dos fogos, 4º o número de homens de
ambos os sexos (sic) que nascem em cada povoação, 5º os que
aí morrem, 6º o gênero emfermidades, 7º o numero de filhos
naturais, para regular o número das rodas de enjeitados, 8º o
número dos meninos recém nascidos de pais indigentes, para
regular a quantidade de cazas de orfãos, 9º o número de enfermos
pobres, estropeados, e velhos de cada provincia, pai a fundar
hospitaes etc., 10º seo estado pela sua extensão, fertilidade, e
recursos de sustentar maior número de vassalos.
Sobre os subsidias é preciso investigar: 1º as necessidades do
Estado, e o seu valor numerário: 2º se se deve reduzir adio todas
as conbribuições; ou receber pe em gêneros naturais do país, 3º
em quantas e quais classes se devem repartir os contribuintes; e
qual aja de ser a sua proporção: 4º que gênero de contribuição é
menos oneroso a cada uma das classses dos cidadãos, 5º qual é a
melhor forma de administração das finanças, 6º a quanto pode
chegar os gastos com da administração geral; e particular das
Finanças, 7º se é útil ter (domaines) muitos ou poucos, 8º quais
são as despezas necessásrias, ou úteis, ou de mero luxo, ou

327
ANDRADE E SILVA, José. Notas sobre Aritmética Política ou estatística. Revista Brasileira de
Estatística, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 25, jan./mar. 1946, p. 120.

187
supérfluas, que pode ou deve fazer o Estado, 9º o que enfim a
repartição mais util, que se deva fazer nas rendas públicas.
Sobre as operações de Finanças é preciso examinar pelo cáIculo:
1º quais são, ou poderão ser os produtos da agricultura e
economia rural, 2º minas e pedreiras, 3º matos e casas, 4º da
indústria, 5º das fábricas e manufacturas, 6º do comércio exterior
e interior, 7º das colônias dos índios, 8º da navegação e seus
ramos, 9º que vantagem se pode tirar do estabelecimento dos
fundos públicas, 10º bancos, 11º rendas viageiras, 12º tontinas,
13º loteirias, 14º quais é a quantidade de metais preciozos
espalhados no Estado, 15º de que valor deve ser a moeda, 16º que
ganho, ou perda faz o Estado no câmhio com as outras nações no
seu vario curso, 17º em quanto se podem avaliar as riquezas
nacionais, 18º enfim se a balança do comércio é vantajosa ou não
ao país e de quanto é. Sobre o Exército e Marinha o cálculo deve
ser: 1º quantos soldados de um milhão deve entreter o Estado
para não oprimir os povos com impostos, 2º sem tirar ao
Comercio, e agricultura e a industria muita gente, 3º sem
danificar as manufaturas incomodando os cidadãos com o quartel
dos soldados, 4º quantos marinheiros pode alistar o estado sem
prejudicar a navegação mercante e a pesca, 5º quais devem ser os
fundos ou espécies de contribuição convem assinar apaga [sic]
do exercito e marinha, 6º quais são as províncias, que ganhão ou
perdem por causa das tropas de guarnição, 7º o emporte de
almazens [sic], e quantidade de víveres de diverso gênero, 8º
conforme o cálculo, que a Aritmética política faz das forças, e
situação das outras potências, cujo resultado pode servir de base
as resoluções para a guerra, etc do soberano [...]328

O que José Bonifácio apresentou de forma abrangente nessa aritmética


política foi o limiar de uma racionalidade do Estado baseada em cálculos que
puzeram em evidência os interesses do Estado, em consonância com a temática da
população. Interesses que materializavam uma preocupação de se estabelecer um
investimento político em informações detalhadas que permitissem a gestão dessa
população numa margem de segurança, num “limite aceitável” das infelicidades
humanas.
Saber sobre o número de províncias, vilas, cidades, quantidade de
nascimentos e óbitos, de órfãos, enfermos, fundos e subsídios, formas de impostos,
mas também quais atividades econômicas seriam mais interessantes para cada
província, ao lado das atividades militares do exército e marinha etc.,
materializando a preocupação governamental que buscava organizar o caos da
existência humana, conferindo um grau de “previsibilidade e de previdência”.

328
Ibid., p. 119-120.

188
Trata-se de um cálculo complexo e que, seguindo ainda as reflexões estabelecidas
por José Bonifácio, tomavam por parâmetros os seguintes objetos:

[...] para a população servem: 1º as listas dos mortos e nascidos


em todo o Paiz, tiradas dos registros das paroquiaias, postas por
ordem das províncias, termos ou bispados. Pode-se ajuntar a lista
dos casamentos nas 3 classes de homens: os censos, bem que
expostos à mil erros, servem também de verificar as capitações e
impostos pessoais; os dros das minas; as taxas sobre os trigos,
milhos, farinhas: etc; porque a quantidade consumada (sic) em
todo o país determina também o número de cidadãos: estes
registros exatos servem muito para o cálculo da população: o
Estado deve regular sobre a despesa necessária as contribuições;
e então formar o melhor plano, de as impor, porque tudo se inclue
em saber quanto por 100 se deve tirar das rendas de cada um: é
então preciso atender a fertilidade do chão: ao número dos ricos,
que compensão os pobres: isto se entende dos impostos
ordinários e não dos extraordinários, em que o Rei deve pro
recorrer às Loterias, Rendas viageiras, Tontinas; a criação de
novos fundos públicas; depois, os emprestimos, etc. Para os
produtos da terra e indústria do comercio e navegação o cálculo
investiga o grão de fertilidade, e a multiplicação dos grãos, os
registros d'Alfandega, o curso do câmbio, e o exame da balança
do comércio. Sobre o exercito é preciso ver se é mais util ter
tropas nacionais; como a Inglaterra, Suécia, Portugal; ou 2º ou
fazer recrutas nos países estrangeiros, como a Prússia,
Dinamarca; 3º se há facilidade de ter corpos inteiros de tropas
estrangeiras, como França; 4º se não pode regular as coisas de
modo que em tempo de paz os soldados que trabalhão, possão
continuá-los, e não servir nos semestres senão um mês de
exercício, como na Prussia329.

Em contraposição aos mapas populacionais do século XVIII, cuja


preocupação era conhecer as forças estatais e estabelecer um nível de defesa
territorial onde o elemento populacional fosse assumido pelo aspecto quantitativo,
no Império, os mapas estatísticos eram utilizados enquanto estratégia na ocupação
de uma área de fronteira, enquanto a reflexão de José Bonifácio trouxe uma
centralidade da problema da população levando em consideração uma espécie de
critério qualitativo. Com isso, passou a existir uma preocupação com o número de
habitantes, de nascimentos, mortes, casamentos e também com o estabelecimento
de uma espécie de regulação sobre os impostos e fundos públicos que, obviamente,
produziriam uma renda estável que assegurasse a manutenção das forças militares

329
Ibid., p. 120.

189
e as “[...] instituições de sequestro: hospitais, asilos e orfanato, as prisões e as
escolas”330.
Tais enunciados apresentam uma certa positividade da população e
lançam as premissas de uma forma de exercício político pautado na ideia de
“intervir na regulação”. Não foi à toa que o próprio Bonifácio utilizasse o verbo
regular em vários momentos de sua reflexão, ou melhor, a regulação já significava
em si uma ideia de intervenção menor no corpo dos fenômenos vitais e que
obedeciam uma certa regularidade, mesmo no que dizia respeito aos
acontecimentos considerados improváveis.
Embora o documento em que José Bonifácio desenvolve suas reflexões
sobre a aritmética política ou estatística não esteja datada e tampouco registrado o
local, conforme Senra, é bem provável que elas tenham sido escritas antes de 1819,
quando ainda estava no continente europeu331. No entanto, já apresentava, no plano
epistêmico, algumas premissas importantes que servirão de gabarito de
inteligibilidade para uma biopolítica da população.
Em todo caso, a preocupação com a elaboração de uma estatística
enquanto instrumento de governo antecedeu a Decisão n. 258, a qual exigia mapas
estatísticos da população, no entanto, a condição de país independente colocava em
evidência, como prisma reflexivo, a necessidade de conhecê-lo para melhor
governá-lo:

Fazia-se necessário, nesses primeiros momentos de vida


autônoma do país, dar início ao processo de conhecimento dessa
imensa ‘terra incógnita’, marcada pelas enormes distâncias
geográficas, pela dissociação das províncias, pelos
regionalismos, pela falta de meios de comunicação e transportes,
além das enormes distâncias sociais que separavam a reduzida
boa gente [grifos do autor] (os letrados) da massa inculta,
composta de escravos, negros e mulatos livres ou alforriados,
descendentes de escravos e brancos miseráveis. Era, portanto,
necessário contabilizar pessoas e riquezas, esquadrinhar todos os
pormenores do território, para que através das informações

330
Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento das prisões. Tradução de Raquel
Ramalhete. Petrópolis/RJ: Vozes, 1987; DOURADO, Nileide Souza. Práticas Educativas Culturais
e Escolarização na Capitania de Mato Grosso (1748-1822). Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2014.
331
Cf. SENRA, N. História das Estatísticas Brasileiras: vol. 1 - Estatísticas desejadas (1822-1889).
Rio de Janeiro: IBGE. 2006.

190
coletadas se pudesse fazer do Reino do Brasil [grifos do autor]
uma nação moderna, inserida no rol das nações civilizadas332.

Imbuído dessa necessidade de conhecer o país e criar condições para


melhor geri-lo, o intelectual e político luso-brasileiro Martim Francisco Ribeiro de
Andrada, irmão de José Bonifácio, em Memória Sobre a Estatística ou Análise dos
Verdadeiros Princípios Desta Ciência e Sua Aplicação à Riqueza, Artes e Poder
do Brasil, criou um inventário geral do país:

No esforço de inventariar o país, Martim Francisco estabeleceu


que o quadro estatístico fosse dividido em oito partes: extensão e
divisões do território; população e suas diferentes relações com
as outras partes da estatística e da economia política; produções
dos terrenos das minas e pescas e avaliação das riquezas que
produzem; indústria, sua importância, suas espécies, seus
produtos e os salários que paga; comércio, seus meios, sua
extensão e divisão e suas relações com as outras fontes de
riqueza; navegação mercante, seu estado, seu sistema e seus
resultados na balança das forças nacionais; rendas do Estado,
suas fontes, produto de cada uma, despesas da percepção,
despesas do mesmo estado, e uma exposição do sistema geral
seguido na administração das nossas finanças; forças de terra e
de mar, ou quadro dos diferentes corpos que as compõem, com a
declaração circunstanciada de tudo o que lhes pertence. As oito
divisões constituiriam a base das tabelas elaboradas pelo autor333.

Essa peça documental indica certa afinidade com a reflexão que seu
irmão havia desenvolvido sobre a Aritmética Política ou Estatística (retoma-se a
problemática da população, das riquezas, das forças militares etc.), no entanto, as
subdivisões que Martim Francisco estabeleceu em sua dissertação aponta um
melhor esquadrinhamento tanto do campo epistêmico quanto da ação política.
No texto de Martim Francisco há uma preocupação teórica em definir
o nascimento da estatística e atribuir claramente as guerras movidas pela inveja e
ambição humanas, como princípio desse nascimento. Nesse sentido:

332
VARELA, Alex Gonçalves. Um manuscrito inédito do naturalista e político Martim Francisco
Ribeiro de Andrada. História, Ciências, Saúde. Manginhos-RJ, vol. 14, n. 3, jul./set. 2007, p. 975.
333
ANDRADA, Martim Francisco Ribeiro de. Memória Sobre a Estatística ou Análise dos
Verdadeiros Princípios Desta Ciência e Sua Aplicação à Riqueza, Artes e Poder do Brasil.
Transcrição Alex Gonçalves Varela. Op. cit., p. 973-977.

191
[...] A guerra desde sua origem, teatro horrível de mil paixões
brutais, de calamidades, misérias, combates e de morte, deve-se
em grande parte a este espírito de ambição, primeiro móvel de
todas as determinações no berço das sociedades políticas e da
mesma sorte que os princípios, pois fica o espírito do governo,
que sucederão aos hábitos guerreiros incompatíveis com o
progresso da civilização, devem-se ao estabelecimento da
igualdade de poder entre muitos Estados, que a força e ordem das
coisas produziram. É nesses tempos de tranquilidade e sossego,
que o Chefe do poder público começa a calcular os recursos, as
forças e o poder do Estado pela extensão do seu Território, sua
população e sua riqueza. Não de outra arte nasceu a Estatística334.

Como se pode perceber na ótica de Martim Francisco, a estatística se


fundamenta enquanto necessidade de cálculo levado a cabo pelos governantes para
melhor conhecer os recursos, a extensão do território, sua população e riqueza, mas
capaz de criar condições de controle das “paixões humanas”, consideradas motor
dos conflitos entre as pessoas. Nesse aspecto, ele também se aproxima muito do
que já havia enunciado José Bonifácio, mas demarca as diferenças entre estatística,
economia e aritmética política (para José Bonifácio esses termos eram sinônimos),
chamando a atenção para suas especificidades:

[...] A Economia Política tendo, segundo Garnier, por objeto a


considerar as leis de transição das sociedades e indagar os meios
que as podem tornar felizes e poderosas, é, sem dúvida, uma
ciência motivada por escudar-se na experiência e conhecimento
de fatos. [...]
A economia concede, engendra e põe em execução aquelas
verdades, ou princípios administrativos que o raciocínio munido
da comparação dos fatos, reconheceu por incontestavelmente
úteis. [...]
A estatística encarrega-se de preparar os elementos que devem
encaminhar o espírito; recolhe e aproveita separadamente os
conhecimentos destes fatos, e com eles forma um agregado e
resultados fundados em análise tão rigorosa, que produzirão uma
convicção única, que se pode e deve desejar em matérias
administrativas. [...]
A Estatística difere igualmente da Aritmética Política, por
quanto, a segunda, longe de proceder em suas operações por meio
da análise e obter seus resultados pela enumeração dos objetos,
como acontece à primeira, substitui, pelo contrário, o cálculo a
estes meios, e de um dado mais ou menos provável e certo tira
consequências que estabelece e dá por fatos. A Estatística pode
também compreender, e de ordinário encerra a descrição de um

334
Ibid., p. 978.

192
território, e nem por isso se confunde com a geografia, assim
como se serve de fatos médicos e civis, sem que por isso com ela
se confundam a Medicina e o conhecimento do governo civil335.

A estatística figura, nesse sentido, um conhecimento próprio aos


governantes para tomada, de maneira mais conveniente, das decisões em relação ao
exercício político, ou seja, a estatística era concebida como a ciência que colocava
a política, economia, a aritmética política, a geografia, a história etc. em
funcionamento, uma espécie de espinha dorsal por onde as práticas governamentais
deveriam se orientar.
Todo esse elemento reflexivo sobre a importância da estatística
continuará sendo a tônica do Império nas primeiras décadas do século XIX. Na
primeira sessão da primeira legislatura, em 9 de maio de 1826, assim como nas
discussões que se seguiram sobre a criação de uma Comissão de Estatística, o
discurso do senador Marquez da Palma foi elucidativo a esse respeito:

[...] Sr. Presidente, a comissão de estatística é de muita


importância, e deve ser separada, porque tem muito a fazer, e
precise que se aplique toda atenção a este objeto. É um dos
maiores trabalhos que temos a fazer, e talvez o mais importante;
porque sem termos a estatística, como conheceremos o Brasil?
Esta comissão deve ser só336.

Expressava-se uma preocupação de conhecer esse novo país e


consolidar a sua independência, prestando-se a estatística enquanto ferramenta das
mais indispensáveis diante dessa urgente necessidade, o que justificava, nas
palavras de Marquez da Palma, a criação de uma Comissão de Estatística
independente, diante do debate que cogitava sua instituição vinculada a outras
comissões, no entanto, o debate gerou oposição, como ficou demonstrado na fala
do Visconde de Barbacena:

[...] Eu entendo que as comissões hão de ter dois objetos; fazer


projectos de lei, ou dar o seu voto sobre projetos, que lhes forem
apresentados.

335
Ibid., p. 980-981.
336
SESSÃO DE 9 DE MAIO DE 1826. In: Annaes do Senado do Império do Brazil: primeira sessão
da primeira legislatura. Tomo I. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1827, p. 45.

193
Neste caso as comissões não têm tanto a fazer, como se pretende
inculcar; e não vejo incompatibilidade alguma ele se
encarregarem os negócios da estatística a outra comissão.
Se a comissão de estatística fosse encarregada da direção dos
trabalhos, de certo teria muito que fazer.
Eu estou persuadido que qualquer comissão é só para fazer
planos, e dar a sua opinião. Neste caso julgo compatível unir-se
uma com outra, e muito mais sendo o número dos membros dos
senadores tão pequeno. Longe de apoiar a separação, eu sustento
que permaneçam unidas337.

Por fim, após as deliberações sobre a importância da estatística e da


dificuldade de ser implantada uma única comissão para esse fim, acabou-se por
criar a comissão de estatística unida à de colonização estrangeira, catequese e dos
índios, atraindo, inclusive, a adesão do próprio Visconde de Barbacena, que
anteriormente havia se posicionado pela compatibilidade das comissões, desde que
seus objetos apresentassem relativa familiaridade, o que levou-o a recusar
inicialmente a junção da comissão de estatística com a dos negócios da fazenda:

[...] Eu me opus a que se criasse uma comissão particular só de


estatística, em razão do pequeno número de senadores; porque
este objeto me parecia capaz de ser tratado na comissão de
finanças.
Mas desde que há dois adicionamentos tão importantes como é a
colonização estrangeira e a catequese dos índios, subscrevo
inteiramente que haja uma comissão separada com os três
objetos, adotando o princípio, que anunciou um dos oradores, que
não fosse por ora grande o número de membros das comissões,
mas que depois se fossem aumentando à proporção que
chegassem mais senadores.
Quando me opus que se reunissem as duas comissões, da fazenda
e da estatística, é porque qualquer delas absorveria tanto tempo e
daria tanto trabalho, que não era possível que se ocupassem com
outro objeto; porém a colonização estrangeira e a catequese dos
índios, que depois se uniram, tem muito mais parentesco com a
comissão de estatística, do que tinha a de fazenda: portanto,
conformo-me com isto; e o que desejo é que não pareça
incoerente, em ter negado a união de duas no primeiro caso, e ter
admitido agora a união de mais uma no segundo caso338.

Os trabalhos de estatísticas apresentados pelo citado senador, ficariam


a cargo de uma comissão que, além de cuidar dos assuntos inerentes à estatística

337
Ibid.
338
Ibid., p. 46.

194
propriamente dita, lidaria também com a questão indígena e colonização
estrangeira, o que, de certa maneira, apontava para uma preocupação na produção
de riquezas da nação, em consonância com a problemática do trabalho.
É nesse cenário que Luiz D’ Allincourt principiou seus trabalhos
estatísticos sobre a província de Mato Grosso, resultando no manuscrito intitulado
Trabalhos e Indagações que fazem o objeto da Estatística da Província de Mato
Grosso, feitos no ano de 1826 para o ano de 1827, cuja transcrição é de autoria da
historiadora Maria de Fátima Costa e sobre a qual apoiaremos nossa análise.
Antes de atentarmos para o manuscrito propriamente dito, é digno de
nota lembrar que, como apresentado anteriormente, em face às discussões que se
seguiram à criação da Comissão de Estatística, Colonização e Catequese, as
primeiras décadas do século XIX foram caracterizadas pela necessidade de se
conhecer o país em todas as suas dimensões: territoriais, econômicas,
populacionais, culturais etc.
Nesse sentido, as expedições científicas339 também se prestaram a esse
propósito pois, “[...] enquanto construía paisagens, as expedições científicas
contribuíram para a formação do Estado-nação e do imaginário brasileiro, no século
XIX, delimitando-o, permitindo a construção do Império”340.
A construção e afirmação do Império perpassavam pela necessidade de
um conhecimento geral que servisse de base para a intervenção e regulação das
atividades políticas, mas também à gestão da população enquanto elemento vital na
produção de riqueza.
Os trabalhos de D’Allincourt, ao desenvolverem as indagações
estatísticas, produziram um conhecimento amplo, numa visão panorâmica da
província de Mato Grosso, enfocando aspectos sobre sua extensão territorial, seu

339
Nesse mesmo período destaca-se a expedição Langsdorff, entre os anos de 1824 e 1829, comissão
que contava com uma infinidade de cientistas da Academia de São Petersburgo, como: Maximiliano
de Wied Neuwied Eschwege, Sellow e Freyreiss, Martius, Pohl, Natterer, Mikan e Schott. Na
organização de suas indagações e trabalhos de estatísticas sobre a província de Mato Grosso é bem
provável que D’Allincourt tenha entrado em contato com as ideias trazidas por esses pesquisadores.
A esse respeito, cf. COSTA, Maria de Fátima; DIENER, Pablo. Bastidores da expedição Langsdorff.
Cuiabá: Entrelinhas, 2014; SILVA, D. G. B.; KOMISSAROV, B. N. et al. (Eds.). Os Diários de
Langsdorff. Translation Márcia Lyra Nascimento Egg and others. Campinas: Associação
Internacional de Estudos Langsdorff; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1997, vol. 1. Available from
SciELO Books <http://books.scielo.org>.
340
COSTA, Maria de Fátima. Entre Langsdorff e D’Allincourt. Op. cit., p. 22.

195
clima e estações, insalubridade, aspectos geográficos de fauna e flora, criação de
animais domésticos, atividades de caça e pesca, atividades mineradoras etc.
Tratava-se de arrolar as potencialidades da província em tudo que dizia
respeito às condições de sua riqueza, envolvendo questões como: qual era a
extensão desse território? Ainda nesse caso, qual a importância de se conhecer a
qualidade do solo e os aspectos topográficos do terreno, do seu clima e estações
etc.? Qual era a sua gente? Como ela explorava as potencialidades do território?
Quais problemas exigiam maior atenção e, portanto, mereciam intervenção?
Em relação à extensão do território, D’Allincourt demarcou a posição
geográfica da província de Mato Grosso, sua superfície e limite com demais
províncias e países, o que certamente ofereceu informações sobre possíveis relações
do comércio interno e externo, além, é claro, de demonstrar a gestão geral de todos
os aspectos que compunham a referida província. Vejamos a descrição feita por D’
Allincourt:

[...] A província de Mato Grosso está situada no centro da


América meridional com mui pouca diferença; é a mais ocidental
do Império do Brasil e abrange um terreno vasto, entre os
paralelos de 7º 36’ e 22º; e os meridianos de 312º 12’ e 327º 42’
os quais tocam os seus pontos mais salientes ao N., S., E. e O.
Distante o primeiro do segundo 288 léguas geográficas e o
terceiro do quarto 310. O 1º meridiano é o da Ilha do Ferro. [...]
A superfície desta província contém 432.000.000.000 de braças
quadradas ou 48.000 léguas quadradas.
Confina pelo setentrião com as províncias do Rio Negro e Grão
Pará; pelo S. com parte da província de São Paulo e com a
República do Paraguai. Ao oriente estende-se a província de
Goiás de que é separado pelo rio Araguaia, e ao ocidente confina
com os governos de Moxos e Chiquitos, servindo de raia em
grande parte os rios Madeira, Mamoré, Guaporé e Paraguai341.

Além disso, levando em consideração a grandiosidade da extensão


geográfica de Mato Grosso para melhor gerir as suas atividades, o estudioso
subdividiu-o em cinco grandes distritos: Cuiabá, Serra da Chapada, Diamantino,
Fronteira do Paraguai [possivelmente a cidade de Cáceres] e Distrito de Mato
Grosso, descrevendo as suas fronteiras e potencial econômico, em consonância com
o tipo de terrenos comuns a cada um deles. Dessa maneira, no:

341
D’ALLINCOURT, Luiz. Op. cit., p. 53-54.

196
[...] Distrito de Cuiabá [...] o terreno é pouco próprio para
plantações fora das margens dos rios e de alguns pequenos
bosques; nos meses de agosto e setembro chegam a ficar as
pastagens, em quase todo ele como crestadas, a maior parte dos
ribeirões caudalosos no tempo das águas secam assim como
pantanais e algumas lagoas; todavia pode se aproveitar
modificando a sua [sic] idas por meio de estreitos regos,
extraindo a água de poucos com noras ou outras máquinas
próprias para este fim as quais são inteiramente desconhecidas
nesta província. Não se encontra terra humos a não ser em mata
espessa, que são raras nesse distrito342.

Ou seja, o discurso de D’Allincourt se apresentava enquanto verdade


absoluta ao descrever as condições dos terrenos de Mato Grosso, expressando de
forma naturalizada uma espécie de vocação econômica a ser desenvolvida em cada
ponto da província, seguindo as características da natureza do seu terreno, fauna,
flora, regimes pluviométricos etc.
Dessa maneira, em relação a Cuiabá, o potencial a ser explorado com
mais intensidade não era a atividade agrícola, justificada nesse tipo de discurso pela
pobreza do solo, sujeito a períodos de estiagem, entre agosto e setembro, o que
comprometia o uso de seus rios e pastagens. Diante de tais deficiências que recaíam
em prejuízo ao desenvolvimento das atividades agropastoris, tratava-se de explorar
as atividades mineralógicas, que ofereciam a possibilidade de extração aurífera e
diamantífera343.
Situação diferente se apresentava no distrito da Serra da Chapada, onde
a presença da terra húmus era mais frequente, sendo o clima mais ameno, se
comparado aos demais distritos da província, o que tornava a prática agrícola mais
estável e bem-sucedida. Em relação ao terreno e solo desse distrito, pode-se
observar que o mesmo se apresentava:

[...] alto ficando sobranceiro ao lado do distrito de Cuiabá 280 e


mais braças em geral, descendo-se para este por ladeiras assaz
íngremes, no cimo vai alargando consideravelmente e apresenta

342
Ibid., p. 61.
343
Cf. As atividades mineradoras em Cuiabá e Vila Bela de Santíssima Trindade foram temáticas
recorrentes trabalhadas pelos historiadores do período colonial mato-grossense sobre as suas
produções, os tributos e contrabandos. Uma síntese desse debate, bem como as principais referências
sobre o assunto, encontramos em: DICIONÁRIO DE HISTÓRIA DE MATO GROSSO: PERÍODO
COLONIAl. Nauk Maria de Jesus (Org.). Cuiabá: Carlini & Caniato, 2011.

197
planícies consideráveis, vales, charnecas, é cortado por alguns
rios, e por muitas paragens cobertas de espesso arvoredo, que o
tornam geralmente úmido apresentando a terra húmus com
frequência, exceto em alguns pontos no sertão para o lado do
Araguaia344.

Já em Diamantino, a potencialidade econômica do solo apontava para


as práticas pecuária e agrícola, uma vez ali viscejavam pastagens e, assim como no
distrito da Serra da Chapada, a terra húmus era abundante. Pode-se verificar que
ali:

[...] O terreno é geralmente montanhoso com profundos vales


cobertos de matarias, cortado por diversos rios e ribeirões que
nele tem origem formando chapadas de grandezas diversas, entre
as serranias, muitas das quais são próprias para plantações e
pastagens. Este terreno em geral é úmido, e compacto, e só nas
matarias mostra a terra humos, que será de grossura média 2 a 3
braças e assenta sobre argila e areia345.

A presença das terras húmus e de pastagem também se apresentavam


abundantes no distrito da Fronteira do Paraguai, mesmo sendo ele constituído de
área de planície constantemente alagada no período das águas, o que não
impossibilitava o desenvolvimento da atividade agrícola e pecuária. Este distrito:

[...] apresenta planícies dilatadíssimas, grande parte das quais são


inundadas pelas águas dos rios Paraguai, Taquari, Mondego e
pelas chuvas que formam multiplicadas lagoas; é o terreno
geralmente úmido, e além das inundações do Paraguai, excelente
para a cultura e pastagens principalmente para o lado de Miranda;
é baixo na maior parte e alto somente para o lado de Camapuã
onde se eleva então extraordinariamente, sendo a continuação do
terreno do distrito de Chapada; a terra humos se acha com
frequência346.

E, por fim, o distrito de Mato Grosso, para o qual D’Allincourt chamava


a atenção para o seu potencial minerador de ouro e diamante, ou seja, a mesma
vocação apresentada por Cuiabá. As características desse terreno era:

344
Ibid., p. 61-62.
345
Ibid., p. 62.
346
Ibid.

198
[...] variada de colinas, de serras sem alturas que atrai a vista por
muito tempo, de planícies mais ou menos extensas, bosques,
charnecas, segundo a boa ou má qualidade do terreno, e regado
por grande número de rios tributários dos dois maiores da
América Meridional. Os maiores montes estão na parte
setentrional e são ramos da Serra dos Parecis, encontra-se neste
distrito ouro, diamantes, cristais, minerais de ferro, tabatinga e
pedra calcárea, a terra humos é pouco abundante, não obstante o
que o terreno produz bem o milho, mandioca com outras raízes
comestíveis, arroz, legumes, tabaco, algodão, cana de açúcar,
café quanto baste para o consumo da população enviando ainda
para Cuiabá alguma porção desse último gênero347.

O conhecimento da qualidade do solo e do aspecto topográfico do


terreno produziu uma forma de “veridicção”, ou seja, eram as próprias condições
naturais do solo e do terreno que produziriam a verdade econômica do potencial da
província, nesse caso, o tipo de solo e o grau de fertilidade apresentados. Assim,
por exemplo, Cuiabá e Mato Grosso mantinham, nesses trabalhos estatísticos, uma
espécie de vocação para a atividade mineira e mineralógica, enquanto os demais
distritos tinham vocação agrícola e pecuária.
A importância do clima e das estações a de Mato Grosso estavam
sintonizadas com o interesse de gerir as riquezas potenciais do território, a serem
exploradas pelo trabalho humano, cabendo a cada distrito nelas investir. No entanto,
a questão do clima e das estações apontavam também para a problemática da
insalubridade e da criação de condições morbígeras prejudiciais à população.
Nesse caso, apoiado nos argumentos fornecidos pelo cirurgião-mor
Antônio Luís Patrício da Silva Manso348, a justificativa da insalubridade dependia
da posição geográfica, da configuração física e do estado de cultura e de porte,
sugerindo esse conhecimento algumas intervenções. Vejamos a seguir os
argumentos apontados por Antônio Luís Patrício da Silva Manso, em cada um
desses pontos mencionados:

347
Ibid.
348
Como veremos no capítulo 4, Antônio Luís Patrício da Silva Manso vai ser um dos pivôs da
Rusga, sendo este o idealizador da criação da Sociedade dos Zelosos da Independência,
responsabilizada pelo planejamento das sedições de 30 de maio de 1834. Cf. AGUIAR, Patrícia
Figueiredo. Uma sedição no sertão: o 30 de maio de 1834 em Cuiabá e suas ressonâncias.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2012.

199
[...] É constantemente observado que debaixo da zona tórrida,
sendo o clima já inimigo da saúde dos que não são indígenas
(pois que ardendo por todo ano precipita o processo vital por um
calor exímio, atenua o organismo, dispõe para as moléstias
asténicas; e sobretudo as que atacam os órgãos da digestão), nem
ao menos se pode o homem livrar das consequências do refresco,
porquanto, posto que seja a terra calidíssima, costumando nesta
zona serem as noites alguma coisa frescas, o organismo é afetado
em razão direta do quanto a sensibilidade da pele foi exaltada
pelo calor diurno. Estas observações são em toda a extensão
aplicáveis ao distrito de Mato Grosso, e contorno do Diamantino,
onde são as noites frescas e as moléstias endêmicas só cedem aos
remédios aplicados às que têm sua causa no sistema dermóide e
órgãos da digestão349.

A fala do cirurgião-mor constituiu na veiculação do primeiro problema


trazido pelo aspecto geográfico condizente com a localização de cada distrito e de
seu clima, uma vez que os habitantes sofriam os seus efeitos, com exceção dos
povos indígenas, acostumados com o ambiente, tórrido durante o dia e fresco à
noite. Tal condição climática era comum no distrito de Mato Grosso (Guaporé),
mas também nos contornos de Diamantino. Essa especificidade climática acometia
a população, que adoecia devido aos males acarretados aos órgãos digestivos e na
pele.
A questão da insalubridade foi ainda apontada por Antônio Luís
Patrício da Silva Manso através da formação de emanações de fluídos pútridos, por
conta de águas estagnadas, principalmente nas regiões de Mato Grosso (Guaporé)
e Diamantino, onde as condições do terreno levavam à formação de grandes
planícies alagadas onde se ajuntavam restos orgânicos de animais e plantas,
comprometendo a qualidade do ar e transformando essas áreas pantanosas num
ambiente pestífero, portanto, propagadores de incontáveis doenças:

A região que debaixo da zona tórrida (palavras de Hartemann)


tendo uma situação profunda, se emprega de eflúvios paludosos,
oferecer um clima pestífero. Certamente não é outra a condição
de Mato Grosso e Diamantino, situadas aquele sítio paludoso
entre serras, e está igualmente debaixo de montanhas que
parecem restos de uma inundação às margens do rio Paraguai,
cujo leito, desde onde se precipita da serra, não tendo mais de
quatro braças de largura sobre um fundo de três pés, é um leito
de mais de trezentas braças e assim os que nele confluem, onde

349
Ibid., p. 57.

200
principalmente que pouco mais de mil pés terá sobre o nível do
mar, imensa superfície alagada, a podridão dos vegetais
espoliando a atmosfera do oxigênio, a impregna de gás
carbônico, hidrogênio, e hidrogênio carbonizado: o ar já
desproporcionado por esta, causa sobre enorme massa de águas
estagnadas, aumenta sua insalubridade sobrecarregando-a da
podridão que deve resultar de tantos vermes, insetos, peixes,
anfíbios e seus excrementos e larvas, profundamente espalhadas
por um terreno incomensurável; ao que pode ainda ajuntar o
vapor aquoso, por si só capaz de produzir incalculáveis
enfermidades350.

Essa preocupação com a qualidade do ar denota semelhança com a


problemática dos miasmas, presentes desde o século XVIII, onde a qualidade do ar
poderia ser comprometida por restos orgânicos em decomposição. Nesse sentido, o
belíssimo trabalho do historiador Alain Corbin, Saberes e odores, nos dá uma ideia
da força dessa problemática, onde o ar:

[...] ninguém duvida de que tenha em suspensão as substâncias


que se destacam dos corpos. A atmosfera-cisterna carrega-se com
es emanações telúricas, com as transpirações animais e vegetais.
O ar de um lugar é um caldo pavoroso no qual se misturam as
fumaças, os enxofres, os vapores aquosos, voláteis, oleosos e
salinos que exalam da terra, e, se for o caso, as matérias
fulminantes que ela vomita, a morrinha que sai dos pantanais, os
insetos minúsculos e seus ovos, animálculos espermáticos, e,
muito pior ainda, os miasmas contagiosos que se elevam dos
corpos em decomposição351.

No discurso do cirurgião-mor Silva Manso, trazido por D’Allincourt


para subsidiar a preocupação com a insalubridade, percebe-se a centralidade que os
gases contaminavam até o processo de respiração das plantas, aferindo a capacidade
de estas consumirem oxigênio, em substituição ao hidrogênio e o azótico:

As plantas como se sabe, na sombra bem como durante a noite,


consomem o oxigênio, substituindo-lhe gás hidrogênio e azótico.
Nas lavras do Diamantino tem mui considerável influência mais
esta causa. Ora concorrendo as referidas causas que destituindo
o ar, daqueles dotes, que o constituem pasto da vida, o
sobrecarregam de qualidades que sufocam o processo vital, e
promovem a dissolução do organismo, comove ao filantropo,
mas não admira ao sábio, que sejam ali endêmicas (ainda mais

350
Ibid.
351
CORBIN, Alain. Saberes e Odores: olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX.
Tradução de Lígia Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 21.

201
nos lugares incultos, como mesmo observei além da relação dos
que têm sofrido, e visto sofrer), as febres intermitentes
pertinazes, malignas, coliquativas, artrites, obstruções, cacheiras,
etc352.

Diante de tal situação, em que as trocas gasosas das plantas substituíam


os dois gases, “hidrogênio e o azótico”, pelo oxigênio, fazia com que se pensasse
que em locais onde houvesse grande quantidade de plantas, melhor seria a qualidade
do ar, e, caso contrário, as pessoas seriam acometidas por doenças endêmicas, como
as febres, artrites, cacheiras, obstruções, entre outras, situação que acometia
também as condições insalubres das lavras. Nesse mesmo sentido, o historiador
Alain Corbin lembrava que:

[...] o pastor Priestley mede a degradação do ar comum utilizado


pela respiração e a produção do ar flogístico (azoto) e do ar fixado
(gás ácido de carbono) às custas do ar vital, desflogístico (oxigênio).
Aquele é doravante reconhecido como o ar respirável por excelência.
[...] Priestley esboça também a teoria das combinações gasosas do
reino vegetal, mas deixa para Ingenhausz o mérito de descrever
com exatidão a fotossíntese. A descoberta do poder oxigenante
das plantas sob o efeito da luz engendra, nestes dois
pesquisadores, a visão otimista de uma regulagem providencial
que fizesse a correção do ar, viciado pelos animais, através dos
vegetais353.

Em face desse tipo de relação da respiração das plantas com a qualidade


do ar, Corbin demonstra como o pensamento científico de fins do século XVIII
(principalmente o saber químico) se lançou ao desafio de apresentar toda uma
problemática da vida referente à respiração, onde “[...] as definições de são e de
malsão, bem como a organização das normas do salubre e do insalubre, esboçam-se
em função do pensamento aerista”354.
O discurso do mencionado cirurgião-mor trouxe também uma
referência sobre a importância das trocas de carga elétrica dos organismos vivos,
que, ao que tudo indica, apresentavam essa mesma filiação científica que conferia
centralidade à problemática do ar e dos miasmas, uma vez que nesse sistema de
pensamento médico ao qual Manso parece estar alinhado, o processo da respiração

352
MANSO, Antonio Luís Patrício da Silva. Op. cit., p. 57-58.
353
CORBIN, Alain. Op. cit., p. 24-25.
354
Referente à qualidade do ar, cf. Ibid., p. 22.

202
do oxigênio era também um processo elétrico e que influia diretamente no
organismo vivo de cada pessoa. Assim:

[...] Além das supraditas, potências morbíficas observadas e as


que incumbe ainda observar, pela presença delas, aparece em
razão inversa, outra, que ainda não tem sido suficientemente
tratada e cujos efeitos são tão violentos que nem tempo dão a
pensar sobre os fenômenos que aparecem. Tal é a eletricidade,
que sendo negativa como é este caso, não subministra à vida
suficiente pasto, com que lhe restitua o princípio positivo, mas
rouba-lhe aquele mesmo que o organismo tira da força do
processo vital. Por aqui se explica a razão porque durante a
tempestade aparece a respiração mais difícil, ansiedade, lassidão,
debilidade e outros fenômenos do que se segue, que o organismo
humano exposto por mais tempo, à eletricidade negativa muito
se incomoda e cai nas moléstias de debilidades do processo vital
com a subtração do princípio positivo.
Prescindindo da indagação da razão por que o fluido elétrico obra
sobre o organismo e da coincidência do processo elétrico da
respiração com a oxidação nos pulmões e a evolução da
eletricidade de que concluem os escrutinadores da Natureza o
quanto a eletricidade influi na economia, cumpre-me observar
aqui em último lugar que a natureza parece certamente ter
procurado prever o conflito elétrico entre a cútis e a atmosfera
porquanto cobriu a cútis da epiderme, sem dúvida, com um
imperfeito condutor de eletricidade; se a epiderme não poderá
mais impedir o conflito elétrico entre estes e aquela; daqui
procedem más disposições e afecções na cútis que faz que a
epiderme não goze retamente de suas atribuições e, por
consequência, que não defenda suficientemente seu organismo
contra o acesso da eletricidade externa. Da irregularidade, pois,
do comércio elétrico entre a cútis e a atmosfera, estou persuadido,
derivam sua origem muitas moléstias sobretudo cutâneas,
catarrais e a maior parte das febres355.

Dessa troca de carga elétrica, por exemplo, tais eventos de tempestade


ocasionavam moléstias, como “ansiedade, lassidão, debilidade, fraqueza”, uma vez
que ocorria a subtração do princípio positivo desse processo vital, base
interpretativa um tanto preconceituosa quando for analisada a problemática da
conduta dos trabalhadores em relação ao pecado capital da preguiça. Desse
comércio da eletricidade e sua relação com a pele, quando esta se encontrava em
situação doentia, era responsável pelo desencadeamento de doenças relacionadas à
epiderme, além das catarrais e febres.

355
Ibid., p. 58.

203
Diante dessas condições de insalubridade, atreladas à qualidade do ar e
às condições que a comprometiam (como a problemática da formação de áreas
pantanosas, das trocas elétricas com o corpo no processo de respiração, da
importância das trocas gasosas dos vegetais), o cirurgião-mor Antônio Luís Patrício
da Silva Manso emitiu parecer de médico e propôs os seguintes meios de prevenção:

[...] Primeiro – aterrar a cidade de Mato Grosso quanto baste para


o rio Guaporé não sair do seu álveo: cultivar as matas (do
Diamantino principalmente), esta cultura, que restituindo o
oxigênio e equilibrando a eletricidade tornaria o ar menos
pestífero, deve dar resultados mais sólidos e constantes que a
mineração: em tempos devido grandes explosões artificiais de
substâncias combustíveis que penetram a camada de gases
mefíticos e revoguem a eletricidade: fogueiras que consumam o
vapor aquoso e algumas substâncias heterogêneas, neutralizem
outras e reequilibrem os princípios vivificantes do ar. Estas
ideias, com outras que melhores observações podem indicar, são
relativas aos pontos geográficos, configuração física e variação
da atmosfera.
Segundo- quanto, porém aos indivíduos, seria a desejar que os
princípios profiláticos fossem tanto em ação que uma pragmática
regulasse a hora do passeio e do banho e sobretudo os alimentos
com que os senhores devem assistir a seus escravos; além disto a
introdução do uso do café entre os trabalhadores, não sair jamais
em jejum, usar de bebidas espirituosas, ter sempre o estômago
confortado, e evitar com ainda maior cuidado todo gênero de
deboches356.

A ideia de prevenção proposta por Manso se pautou numa forma de


conhecimento que ele, como médico, era competente, visto ter indicado alguns
elementos levando em consideração aqueles que causam a insalubridade em
determinadas áreas da província de Mato Grosso. Nesse sentido, ocorreu um
investimento no “processo vital”, nas condições de vitalidade da província,
assegurando sua regulação. Como apontou a historiadora Maria de Fátima Costa,
D’Allincourt não estava completamente de acordo com tais medidas de prevenção
da insalubridade (aterrar as áreas pantanosas, cultivar as matas357, medidas

356
Ibid, p. 59.
357
Em nota, Maria de Fátima Costa lembra que D’Allincourt, no seu texto Resultado Trabalhos e
Indagações que fazem o objeto da Estatística da Província de Mato Grosso, feitos no Ano de 1828,
diferentemente do que se apresentava no manuscrito Trabalhos e Indagações que fazem o objeto da
Estatística da Província de Mato Grosso [que servia-se de base para esse último], ele se posicionava
contra a proposta do cirurgião-mor Manso, defendendo a criação de canais de escoamento para o

204
profiláticas de passeio, banho, nutrição e consumo de bebidas etc.), o que já dava
indícios de investimento político sobre uma problemática geral da vida.
As constatações de insalubridade das áreas pantanosas de Mato Grosso
já haviam sido descritas pelo capitão-general Antônio Rolim de Moura, no período
em que governava a capitania, pois as mudanças bruscas de temperatura produziam
friagens que chegavam a matar principalmente os escravos, devido ao fato de
possuíram poucas vestimentas358, causando as mesmas moléstias apontadas
posteriormente pelo cirurgião-mor Manso, como “sezões e perniciosos catarros,
disenterias, ectericias, hidropesias e obstruções359”.
Note-se que naquele momento a questão de reconhecimento da
insalubridade não implicava, necessariamente, por parte de Rolim de Moura, criar
mecanismos que alterassem as condições do meio e que permitissem otimizar as
condições de sua vitalidade. Simplesmente, deixa-se morrer, uma vez não ter
havido interferência nas causas de morbidade que vizassem prolongar a vida.
Essa problemática da vida surge em diferentes momentos nos
Trabalhos e Indagações que fazem o objeto da Estatística da Província de Mato
Grosso, feitos no Ano de 1826 para 1827 de D’Allincourt, quando descrevia
minuciosamente a vitalidade primeira da província: seu território, seus rios, sua
fauna e flora e, na medida do possível, trazendo reflexões sobre o potencial
econômico desses elementos e apresentando, por exemplo, a capacidade da
agricultura e pecuária de determinados distritos, como apontado anteriormente,
além de aventar para a importância dos rios nas atividades comerciais e na pesca, a
relevância das plantas nativas e seu uso medicinal útil a uma infinidade de
moléstias, da caça para exploração do couro e da carne, dentre outros aspectos.
Esquadrinhava-se uma centralidade da estatística nas reflexões sobre as
condições de vitalidade da província de Mato Grosso e, curiosamente, as reflexões
de D’Allincourt deixaram de apresentar os censos populacionais, descrevendo
somente as classes e o estado civil de seus habitantes, taxa de nascimento ou óbito,
possivelmente por se tratar de um manuscrito incompleto. Sobre as características

distrito de Diamantino e a queima das matas virgens de Mato Grosso. Cf. COSTA, Maria de Fátima.
Op. cit., p. 100.
358
Sobre esse aspecto da constatação de insalubridade na capitania de Mato Grosso, ver: SILVA,
Jovam Vilela. Op.cit., p. 258-259.
359
Ibid., p. 93.

205
desse documento, a historiadora Maria de Fátima Costa, responsável pela
transcrição, aponta que:

[...] 1- o manuscrito Trabalhos e Indagações[...] [grifos da


autora] era um texto realmente incompleto, pois lhe faltava a 2ª
Seção, encontrada na publicação dos Annaes da Biblioteca
Nacional com o título de Estatística Política e Civil.
2 - a autoria do texto não era de Langsdorf, como se afirmava e
sim de Luiz D’Allincourt que com sua Comissão Estatística
efetivou intensa pesquisa na província de Mato Grosso, reunindo
rico acervo para compor o seu Mapa estatístico [...]360

Tal situação se comprova na medida em que encontramos o exemplar


completo na Biblioteca Nacional, demonstrativo de que o manuscrito transcrito por
Maria de Fátima Costa se trata da primeira parte do trabalho realizado por
D’Allincourt no ano de 1828, que apresentou como Resultado dos Trabalhos e
Indagações Estatísticas da Província de Mato Grosso dividido em duas seções: a
primeira intitulada Estatística Geográfica e Natural, e a segunda Estatística
Política e Civil.
Creio que agora é chegado o momento de analisar a segunda parte desse
trabalho estatístico, tendo em vista que a primeira apresentou o conhecimento do
clima, relevo, hidrografia, fauna e flora etc. da província, demonstrando o seu
potencial de riqueza.
A seção Estatística Política e Civil foi dividida em 17 capítulos e suas
temáticas subjacentes apresentam uma visão panorâmica das diferentes formas de
governos (governo eclesiástico, civil e militar), das diversificadas atividades
desenvolvidas na província (artes liberais, cultura, construção naval, manufaturas,
comércio, pescarias etc.), dados populacionais, formas de renda pública, força
militar etc.
Trata-se de um saber que produziu uma espécie de gabarito de
inteligibilidade que expressava exatamente um saber que remetia à geração da vida
da população: o que fazem e como fazem, princípio, que buscou intervir nos modos
de vida dessa população e corrigir os seus possíveis desvios, o qual será discutido
no capítulo seguinte.

360
COSTA, Maria de Fátima. Op. cit., p. 30.

206
Nesse sentido, a estatística, enquanto ciência de Estado produziu um
saber que instrumentaliza um exercício de poder sobre os corpos da população de
Mato de Grosso, o que pode ser notado, inclusive, quando D’Allincourt se refere
aos três governos: eclesiástico, civil e militar, ou seja, três modalidades de
autoridade que visavam controlar as condutas do corpo:

[...] A jurisdição eclesiástica é atualmente conferida a um prelado


residente na cidade do Cuiabá, que também é pároco da freguesia
do Sr. Bom Jesus. Há dois Provizores e Vigários Gerais, um
residente em Cuiabá e outro na cidade de Mato Grosso.
O governo civil é conferido a um presidente, e seu Conselho, na
forma da Carta de Lei de 20 de outubro de 1823. O presidente
residente na cidade do Cuiabá, onde se reúne o Conselho. O
poder judicial é conferido ao Ouvidor, Juiz de Fora, e ordinário,
já mencionados, que o exercem na forma das Leis Gerais do
Império. No departamento de Mato Grosso, e fronteira do
Paraguai, há um comandante político que responde ao presidente;
aquele reside na cidade, e este tem o seu Quartel perto da
Misericórdia.
O governo militar está a cargo de um governador d’Armas, cujas
atribuições estão marcadas na Carta de Lei de 20 de Outubro de
1823; sem que, sobre esse objeto haja coisa alguma de particular
para esta Província. No departamento de Mato Grosso existe um
Comandante Militar, residente na cidade, ao qual respondem os
Comandantes Secundários, e aquele ao Governador d’Armas na
pessoa deste acha-se reunido o Comando político: e na fronteira
do Paraguai acontece o mesmo. O Distrito de Vila Maria tem
igualmente um Comandante militar, residente na Jacobina; no
Diamantino há outro, que tem o seu quartel na vila; todos
responsável ao Governador d’Armas361.

Os governos eclesiástico, civil e militar residiam em Cuiabá, Mato


Grosso, Diamantino, Vila Maria que, certamente em conjunto, colocavam em
prática formas de conduta sobre os corpos da população em meio à urgência de se
criar condições de intervenção na regulação de suas atividades.
Era necessário conhecer a população que habitava os cantos mais
remotos de Mato Grosso. O que e como faziam? Daí, por exemplo, o detalhamento

361
D’ALLINCOURT, Luiz. Resultado dos Trabalhos e Indagações Estatísticas da Província de Mato
Grosso feitos no ano de 1828. In: Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. VIII (1880-
1881). Rio de Janeiro. Tipografia Nacional, 1881, p. 49-50. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/anais/anais.htm. Acessado em 6/10/2017.

207
dado por D’Allincourt às atividades desenvolvidas na província: atividades
comerciais, culturais e políticas.
Em relação ao comércio, por exemplo, o autor chamou a atenção para
os valores monetários dos produtos que entravam na província e dos valores dos
exportados, criando uma tabela estimativa das rendas provinciais advindas das
atividades comerciais, esmiuçada por cada elemento presente nas relações
comerciais, como: qualidade dos meios de escoamentos dos produtos, a inexistência
de feiras e mercados, a padronização dos pesos e medidas (que, apesar da sua
tentativa, sofria variações regionais), a inexistência de bancos, casas de seguro e de
comércio. O conjunto deles gerou saberes que serviriam de base segura para uma
intervenção eficiente na realidade provincial.
No aspecto cultural, D’Alincourt ressaltou a pintura, música e dança
geradas na província, dando a perceber a precariedade em que se encontravam. Em
relação à pintura, por exemplo, ele cita apenas o trabalho do artista plástico José da
Silva (este foi professor de Gramática Latina e abandonou a atividade por ser pouco
lucrativa), cujo talento se materializou num retrato, a óleo, de D. João VI, além das
pinturas de aves e de outros animais, assim como de plantas. As danças só se
fizeram presentes após 1826, com a chegada de um indivíduo que ofereceu algumas
noções delas. Das atividades artísticas, somente a música era praticada por um
número suficiente de pessoas, tanto em Mato Grosso como em Cuiabá, mesmo
frente à carência de conhecedores da arte e também de instrumentos:

[...] Esta arte é cultivada por um número suficiente de indivíduos,


tanto no Cuiabá como no Mato Grosso, e em ambas essas cidades
mostra se os gênios dos Mancebos bem dispostos para levar-se a
perfeição; todavia, faltam os meios, isto é boas peças de música
que fizesse desenvolver o gosto moderno, bons instrumentos, e
união entre os músicos, pois que no Cuiabá acham-se divididos
em turmas, seguindo cada uma o seu mestre, do resulta satisfazer-
se somente com medíocres peças, por falta de quem toque os
necessários instrumentos em cada turma, segundo a distribuição
dos músicos; se houvesse, pois, união e o Governo estimulasse
os ânimos, de certo que esta arte seria bem desempenhada362.

362
Ibid., p. 65.

208
Tal descrição das artes liberais apresentadas, como pintura, música e
dança, foram descritos por D’Allincourt enquanto elementos de bom gosto
civilizado e, nesse sentido, foram silenciadas as tradições musicais originárias,
porém presentes no cenário regional, a exemplo das danças de influência indígena
e africana, ou seja, já se apontava para uma intervenção no campo dos hábitos
culturais por um modelo de arte.
No aspecto político, propriamente dito, além da organização dos
governos em civil, militar e eclesiástico, o trabalho estatístico de D’Allincourt e sua
comissão arrolou e descreveu os estabelecimentos públicos (órgãos
administrativos, hospitais, escolas, quartéis etc.), mas também as rendas públicas,
divididas em rendas do Estado, do município e eclesiásticas, igualmente apontando
para as instituições que começavam a criar suas condições de exercício de poder
sobre a população.
O que se delineia na estatística em questão é uma problemática que
pensava o funcionamento da província como um todo, onde o elemento população
ganhou centralidade, uma vez que seus hábitos e condutas passaram a ser vigiados
e medidos através das intervenções aplicadas segundo as situações apresentadas.
Esse trabalho estatístico produziu uma classificação geral da população
em termo de classe (homens/mulheres), condição (cativos/livres), idade, estado
civil (casados/viúvos/solteiros); por profissão e também por condição de
nascimento, óbito, além dos expostos, casamento, residência em fogos e casas.
As informações estampadas nos primeiros mapas de povoamento do
século XVIII e também nos registros paroquiais foram incorporadas ao saber
estatal, que tomou a estatística enquanto instrumento de governança no interior do
processo de intervenção política sobre a população e sua regulação.
Esse tipo de saber possibilitou e facilitou o exercício do poder, pois, o
ponto de atuação deles teve como centralidade precisamente os modos de vida da
população: o que faziam? Se trabalhavam ou se eram ociosos? Se casados ou
solteiros? Se se constituíam enquanto trabalhadores livres ou cativos? Se havia
muitas crianças enjeitadas? Enfim, tratava-se, de modo geral, de um poder que
atravessava a vida dessa população. Em 1834, o presidente da província de Mato

209
Grosso, Antônio Pedro de Alencastro, assim apresentou situação em que se
encontrava a estatística:

[...] Para a formação da Estatística da Província, que pouco se


tem tratado, e nem isso era possível sem meios apropriados,
tenho de apresentar vos os dados a respeito, que se me passaram
na pasta logo que entrei na posse da administração: eles contem
os fogos de cada Distrito, e sua população, dividida em classes,
estados, condições, e cores; e também compreendem os
nascimentos, óbitos, casamentos, Igrejas, Capelas, Irmandades, e
Confrarias e outras observações relativas á agricultura, comércio,
gêneros etc363.

A importância do saber estatístico enquanto ferramenta indispensável


ao desenvolvimento do governo e suas gentes, em que pesem suas dificuldades e
lacunas, revelou-se imprescindível para um bom governo e, por isso, nunca foi
abandonada do debate político imperial e regencial, exigindo aperfeiçoamento e
melhoria. Essa preocupação foi visível também no governo de Antonio Pimenta
Bueno, o futuro, Marquês de São Vicente:

[...] As noções estatísticas, como sabeis, muito concorrem para


orientar a administração, porque analisando mais ou menos o
estado da civilização, e os diferentes elementos de riqueza e
poder público, fazem conhecer e avaliar os recursos existentes, e
ocasionam muitos outros conhecimentos úteis.
Dever é sem dúvida do Governo coligir todos os materiais
possíveis, mas como ela destine se a servir também aos vossos
trabalhos, como a mor parte de suas noções devam ser renovadas
em períodos maiores ou menores, e encerrar mais ou menos fatos
e circunstâncias sociais, como julgar útil, tornar-se
necessariamente dependente de uma Lei, que fixe suas
condições: e autorize-se a despesa que naturalmente terá lugar
por motivo de gratificações, e outros semelhantes.
Se por natureza a estatística deve encerrar somente noções de
onde derivem-se conhecimentos úteis; o estado de civilização da
Província, e a falta de hábito, que as Autoridades locais, tem de
semelhantes trabalhos, deve por ora estreitar ainda mais o seu
circuito, para que haja mais brevidade, e maior facilidade,
podendo ir posteriormente ganhando mais terreno364.

363
ALENCASTRO, Antonio Pedro. Discurso recitado pelo exm. presidente da provincia de Matto-
Grosso, Antonio Pedro d'Alencastro, na abertura da primeira sessão ordinaria da Assembléa
Legislativa Provincial, em o dia 3 de julho de 1835. Cuiabá: Typ. Provincial, 1845, p. 9.
364
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso recitado pelo exm. presidente da provincia de Matto-
Grosso, José Antonio Pimenta Boeno, na abertura da terceira sessão ordinaria da Assembléa
Legislativa Provincial, em o dia 1.o de março de 1837. Cuiabá: Typ. Provincial, 1845, p. 26-27.

210
Pimenta Bueno, além de reconhecer a importância da estatística, ainda
propôs medidas legislativas para aperfeiçoa-la, visando a obtenção de
conhecimento mais qualificado para a intervenção dos negócios públicos, visto
oferecer uma visão global das reais condições da província. Esse posicionamento,
também legitimava um padrão de civilização que se pretendia disseminar em Mato
Grosso, o qual se confrontava, muitas vezes, com outros hábitos e modos de vida
de sua população.
Na ata que o Presidente da Província de Mato Grosso Estevão Ribeiro
de Resende fez na abertura da segunda seção ordinária da segunda legislatura da
Assembleia Provincial, no dia 2 de março de 1839, ocorreu um aprofundamento do
debate suscitado por Pimenta Bueno, quando Rezende sugeria melhorar a coleta
dos dados estatísticos, bem como a ampliação de seus objetivos:

[...] Ninguém há que contestar a necessidade e utilidade de uma


Estatística. É só por meio dela, que se pode ajuizar-se não exata
ao menos aproximadamente da população, indústria, civilização,
riquezas, e de todos os mais elementos sobre que devem assentar
os cálculos financeiros, e as medidas administrativas tanto do
Governo Geral como do Provincial. Força é porém confessar que
neste ramo da pública Administração tudo ainda está por fazer.
A Lei Provincial no4 de 22 de Dezembro de 1836 providenciou é
verdade sobre a Estatística incumbindo aos Delegados do
Governo cada um em seu respectivo Distrito, porém só isto não
é bastante365.

O referido presidente chamava a atenção para a Lei no 4, de 22 de


dezembro de 1836, criada no governo anterior de Pimenta Bueno, alertando, porém,
que tal medida legistativa não fora suficiente para melhorar as condições nas quais
se produziam os dados estatísticos.
Em tom de queixa, o presidente Ribeiro de Rezende deixou consignado
seu posicionamento sobre as estatísticas e a metodologia de como deveriam ser
produzidas. Diante da grande quantidade de objetos oferecidos pelo conhecimento
estatístico, ele propunha uma certa padronização, o que lhe permitiria acompanhar

365
RESENDE, Estevão Ribeiro de. Acta com que o Presidente da Província de Mato Grosso fez a
abertura da Segunda Seção Ordinária da Segunda Legislatura da Assembleia Provincial no dia 2
de março de 1839. (Documento Manuscrito, p. 37).

211
os diferentes graus de evolução ou involução de determinados fenômenos
populacionais:

[...] escala de objetos que se oferecem para uma Estatística, torna-


se absolutamente necessário uma Lei que designe com clareza
aquelas que nesta devem ser incluídas. Acontece ainda que como
uma grande parte de suas noções deixam de ser retocadas de
tempos em tempos a fim de que a Estatística vá sempre
acompanhando a mortalidade por exemplo, ou o
desenvolvimento da população, ou o progresso da indústria que
essa Lei alargando ou estreitando o círculo dos objetos
estatísticos, conforme a vossa sabedoria julgar conveniente, fixe
ao mesmo tempo as épocas precisas para avaliar-se a diferença
que ocorre, e mesmo conhecer-se as necessidades, e o estado da
Província, e deixe os Regulamentos do Governo as regras da
execução.
Assim é que uma Estatística anual, e outra decenal podem
ministrar vos em seus respectivos períodos todas aquelas uteis
noções que auxiliam o Legislador para exprimir na Lei uma
necessidade pública, e para acomodar sua disposição as
circunstâncias peculiares do País e dos Povos, que a tem de
receber [...] Do Mapa que vos ofereço em número vereis o
número de nascimentos, casamentos, e objetos, que ocorriam o
ano próximo passado nas Paróquias nele mencionadas366.

Por fim, no ano de 1840, Estevão Ribeiro ainda se debruçava nessa


problemática, reiterando, novamente, a sua importância e convocando a
participação de outros membros da sociedade provincial de Mato Grosso na
organização de uma estatística mais elaborada, com objetos melhor definidos, com
uma temporalidade fixada etc.:

[...] A reconhecida necessidade de uma Estatística Provincial, e


as dificuldades com que o Governo continua a lutar para
organizá-la obrigam-me a solicitar ainda a vossa coadjuvação
para a confecção de uma obra de tanta importância sobre as bases
que vos foram indicadas no passado Relatório.
Em resultado das reiteradas ordens expedidas, acompanhadas
dos competentes modelos aos Vigários, Juízes de Direito
interinos, e Juízes de Paz, exigindo os mapas, que deviam
remeter, os primeiros de todos os casamentos, óbitos, e batizados,
que tiveram lugar em suas Freguesias, os segundos de todos os
crimes cometidos em cada Termo, e os últimos da população de
seus respectivos Distritos, a fim de que, sendo uniformes os
mapas, pudessem ser organizados os mapas gerais, obtidos com
custo o mapa e notícias criminais de que já tratei anteriormente,

366
Ibid., p. 37-39.

212
e aqui vos apresento o de casamentos, óbitos, e batismos que
tiveram lugar, durante o ano civil de 1839, na maior parte das
Freguesias da Província.
Dá ele em resumo o seguinte: 1:049 nascidos sendo 175
escravos: falecidos 435 sendo 103 escravos; e 286 casamentos
sendo 30 de escravos, como melhor vereis do mapas junto sob N.
a cuja exatidão me inclino.
Quanto ao mapa estatístico da população da Província, que
também tenho a honra de apresentar-vos sob N. observareis que
o considero imperfeitíssimo porque apresenta na sua totalidade
população menor do que a que infalivelmente deve haver.
Foi ele organizado sobre dados recolhidos pela Secretaria da
Presidência por intermédio dos Juízes de Paz, e atribuo suas
imperfeições não tanto a imperícia dessas Autoridades para
trabalhos deste gênero, como aos prejuízos dos povos, que olham
no ato de um arrolamento, uma diligência para a imposição de
tributos, ou para recrutamento, e por isso cada Chefe de família,
especialmente fora das povoações, trata de ocultar ou diminuir o
número dela o mais que pode, e assim nenhum ou imperfeito é o
número de tantas diligências.
Pretendo agora exigir dos Vigários, e coletores o número de
almas de suas Paróquias, e fogos das Coletorias, a ver se posso
por este meio conhecer melhor da população da Província, e
uniformar os trabalhos estatísticos nesta parte, a fim de vos serem
apresentados ulteriormente367.

A estatística, na província de Mato Grosso, mesmos com os percalços,


dificuldades e reconhecida deficiência, no entanto, materializou-se enquanto
ferramenta importante na gestão e regulação da população, incorporando temas
atinentes a quase todas as fases da vida: nascimento, maturidade e morte. Além de
fornecer dados capazes de servir de instrumentos de controle do seu
comportamento, aptidões, virtudes ou vícios, elemento facilitador na identificação
e localização das atividades laborais, atuando também no combate à ociosidade.
No próximo capítulo, acompanhando essa problemática do governo da
vida de uma população, emergido da lenta penetração do liberalismo no território
luso brasileiro e da estatística enquanto instrumental facilitador de saber e poder,
serão analisadas três estratégias de controle biopolítico na capitania de Mato
Grosso: a instrução pública, a segurança e a saúde.

367
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso que recitou o exm. snr. doutor Estevão Ribeiro de
Rezende, presidente desta provincia, na occasião da abertura da Assembléa Legislativa Provincial
no dia 1.o de março do corrente anno. Cuyabá: Typ. Provincial, 1840, p. 17-18.

213
CAPÍTULO 4

CONSTRUIR A ORDEM E GOVERNAR A


POPULAÇÃO: INSTRUÇÃO, CRIMINALIDADE E
SAÚDE PÚBLICA

Definir uma população representa um acto de força: impõe-se a um conjunto de


indivíduos uma categoria que irá, a partir de então, cataloga-los e, eventualmente,
constranger a sua ação.
Hervé Le Bras (A invenção das populações, 2000)

Assiste-se, no decorrer das primeiras décadas do século XIX, à lenta


penetração das ideias liberais no cenário político luso-brasileiro, as quais
culminaram, por um lado, no processo de independência do Brasil, em 1882, e da
restauração da monarquia portuguesa após a queda de Napoleão Bonaparte e a
derrota do seu projeto imperial.
Vimos também que, nos primeiros anos do século XIX, a pauta política
na organização do Império brasileiro foi marcada pelo constitucionalismo
monárquico, garantindo a constituição de um Império cujos poderes executivo e
moderador ficavam a cargo do imperador D. Pedro I, ao mesmo tempo em que
conferia parcela de autonomia às províncias na gestão dos seus negócios públicos.
Diante dessa questão, que país agora temos em mãos para governar?
Uma das necessidades urgentes era criar um corpo de saberes que oferecessem uma
visão geral sobre o povo, a cultura, o potencial econômico dos recursos naturais,
minerais etc.

214
Nesse sentido surgiram os primeiros debates parlamentares, ainda sob
os auspícios da organização do Império, quanto à necessidade do conhecimento
estatístico que, ao nosso ver, apresentou-se enquanto ciência de Estado, fornecendo
subsídios de vitalidade ao Estado Nacional que estava se formando.
Naquele preciso momento, as ações e os trabalhos estatísticos
realizados por D’Allincourt368 materializavam a preocupação de se conhecer o que
era essa entidade provincial de Mato Grosso e como governar a partir delas,
intervindo com ações tidas como necessárias para potencializar o uso das riquezas
naturais e minerais que se apresentavam com grande generosidade no território.
Diante dessa problemática do liberalismo369 e da formação de um saber
estatístico370, foi adicionada a problemática da população da província de Mato
Grosso, ou seja, delineavam-se as condições para que os presidentes da província
atuassem na regulação de sua vida, hábitos e costumes.
A seguir, a apresentaremos quatro mapas que apresentam o território
mato-grossense entre o final do século XVIII e os fins do XIX. Tais mapas
apresentaram, em primeiro lugar, a grandiosidade territorial de Mato Grosso e que
os capitães-generais do século XVIII e ínicio do XIX deveriam garantir a sua
defesa, conservação e posse, por meio de uma política de povoamento. Em segundo
lugar, praticamente mantendo as mesmas dimensões territoriais, os presidentes da

368
A historiadora Maria de Fátima Costa chama atenção para o fato de que no mesmo período foram
realizadas pelo menos mais dois trabalhos estatísticos no país, os quais obedeciam aos mesmos
critérios de organização das temáticas aventadas, uma desenvolvida na capitania do Espírito Santo
e outra na capitania de São Paulo. Cf. COSTA, Maria de Fátima. Entre Langsdorf e D’Allincourt.
In: Percorrendo Manuscritos: Entre Langsdorf e D’Allincourt. Maria de Fátima Costa (Org.).
Cuiabá: Editora Universitária, 1993.
369
A questão não é determinar em que sentido os intelectuais luso-brasileiros eram ou não liberais,
mas sim, assumir naquilo que eles mesmos expressaram em suas posições políticas, marcadas pelo
debate no campo intelectual do liberalismo. De que maneira o liberalismo tocava esses intelectuais,
que ora assumiam abertamente as essas premissas e ora criavam seus antídotos, para desviar das
premissas do pensamento liberal.
370
Os trabalhos de D’Allincourt certamente representaram, na esfera nacional, um paradigma a ser
copiado. Esse mesmo autor ficará responsável pela Comissão de Estatística até a sua morte, cuja
sede era o Espírito Santo. A problemática da estatística, ao nosso ver, nunca será abandonada, visto
ter várias ressurgências, não deixando de ser posta enquanto uma necessidade do Estado. A questão
por nós trabalhada é a de que, com Allincourt ela se tornou uma prerrogativa do Estado que, aos
poucos, irá sistematizando formas de conhecimento já encontradas nos mapas do século XVIII e nos
registros eclesiásticos. O projeto estatístico de Allincourt incorre nessa forma de estatística, em que
as experiências tidas pelos mapas e registros eclesiásticos foram assumidos também como uma
função do Estado, relacionados a uma outra forma de intervenção: da ideia de conservação e defesa
do Estado/conduta da alma para a ideia de vitalidade e funcionamento do Estado/conduta do corpo
de uma população.

215
província assumirão o papel de governar semelhante território tendo por base
conhecimento rigoroso e minucioso de seus recursos minerais, energéticos e de
solo, bem como as características da população que nele habitava, para o que o
trabalho estatístico realizado por D’Allincourt cumprisse esse papel.
O território mato-grossense, no período estudado e sobre o qual
D’Allincourt realizou seus trabalhos estatísticos, era uma imensa porção territorial
que abrangia os atuais de Mato Grosso, Rondônia (desmembrado de Mato Grosso
e Amazonas, formando o território federal do Guaporé, ainda sob o governo de
Getúlio Vargas no ano de 1943, e que depois alterou seu o nome para Rondônia,
sob o governo de Juscelino Kubitschek, em 1956) e Mato Grosso do Sul,
desmembrado em 1977371. Os mapas a seguir dão uma dimensão dos
desmembramentos pelos quais passou Mato Grosso:

371
Sobre o desmembramento de Rondônia do território mato-grossense, cf. ANDRADE, Manuel
Correia de. Geografia: ciência da sociedade. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2008; FREITAS,
Teixeira de. A redivisão política do Brasil. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, ano III,
nº. 3, 1941, p. 558-588; GUIMARÃES, Fábio de Macedo Soares. Divisão regional do Brasil. Revista
Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, 1944, ano III, no 2, p. 319-345. Sobre a divisão de Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul, confira, principalmente: SILVA, Jovam Vilela. A divisão do Estado
de Mato Grosso: uma visão histórica (1892-1977). Cuiabá: EdUFMT, 1996; WEINGARTNER, A.
A. S. Movimento divisionista em Mato Grosso do Sul (1889- 1930). Porto Alegre: Edições Est, 1995;
BITTAR, M. Geopolítica e separatismo na elevação de Campo Grande a capital. Campo Grande:
Ed. UFMS, 1999; AMEDI, Nathália da Costa. A invenção da capital eterna: Discursos sensíveis
sobre a modernização de Cuiabá no período pós-divisão do Estado de Mato Grosso (1977-1985).
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2014.

216
Mapa1: Mato Grosso entre os anos de 1772 a 1789

Fonte: Manuscrito, Londres National Archives372

372
Esse belíssimo mapa foi problematizado de maneira ímpar pela pesquisadora Renata Araújo, em
artigo intitulado Os Mapas do Mato Grosso: o Território como Projeto, e me aproprio dele para
apresentar a configuração do território mato-grossense em fins do século XVIII. Cf. ARAÚJO,
Renata. Os Mapas do Mato Grosso: o Território como Projeto. Terra Brasilis (Nova Série) Revista
da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica. Disponível em:
http://terrabrasilis.revues.org/1230 ; DOI : 10.4000/terrabrasilis.1230

217
Mapa 2: Mapa do Brasil em 1817

Fonte: http://multirio.rio.rj.gov.br/images/mapa-brasil-1817-t.jpg

218
Mapa3: Mapa do Brasil de 1940

Fonte: https://7a12.ibge.gov.br/home-7a12?catid=0&id=79

219
Mapa 04: Mapa do Brasil 1980

Fonte: https://7a12.ibge.gov.br/home-7a12?catid=0&id=79.

Agora, no presente capítulo, busca-se pensar como o campo


problemático das ações dos presidentes de província se voltaram para a população.
Como eles viam o contingente populacional que deveriam governar? Quais
urgências eram precisas resolver? Que formas de saber eram convocadas para a
gestão? Enfim, toda uma problemática na qual a tensão se voltava para a relação
das condutas dos corpos e dos negócios públicos que buscavam organizar.
Conduzir a população mato-grossense em face ao acontecimento
ocorrido em maio de 1834, convencionalmente denominado de “Rusga” pela
historiografia local, tencionava ainda mais as preocupações em relação a esse corpo

220
coletivo disperso em vários pontos da província, colocando em evidência a
problemática de uma guerra civil, justamente no momento em que se procurava
construir a “unidade nacional”.
O episódio da “Rusga” foi usado pelos governantes provinciais como
uma forma de “potencializar” um medo na população, expressando em seus
relatórios, discursos e nos posicionamentos públicos uma “carga afetiva” negativa
aos participantes do movimento, como havia feito o presidente de província
Antonio Pedro de Alencastro, em 1835, no discurso pronunciado à Assembleia
Legislativa:

[...] He me forçoso agora traser vos [sic] a lembrança [apesar de


me ser sobre modo doloroso] que, depois de 30 de maio, de que
fostes testemunha ocular, os cabeças de horrorosos crimes
tentarão pela segunda vez levar avante seos nefandos designios,
tramando de mão oculta acabar com o nosso ‘Systema actual de
Governo Monarchico Constitucional’; mas à ponto de por em
pratica estas damnadas intenções, eis que se descobre a perfídia,
são estigmatisados, surpreendidos e presos pelos cautos e
pacificos Cidadãos, que indignados instão e reclamão seu
destino para fora da Provincia, e sem dúvida, que a um tal clamor
e resolução, não cabia outra cousa ao Governo, que por pouco
que afroxasse as redeas á aqueles facciosos, a tranquilidade, a
justiça, e a sinceridade tudo num momento desaparecia da
Capital. [...]373

As ressonâncias desse evento colocavam ainda mais tensão nas relações


estabelecidas entre uma população tida como “distante, dispersa, inculta, passional”
e as práticas políticas a serem desenvolvidas na província, de forma de tonar sua
potencial riqueza mineral, da fauna e flora etc., presentes no território de Mato
Grosso, em fonte de sustentação.
Com isso, a problemática do trabalho começou a ganhar força também
a partir da visibilidade dessa população, ou seja, o elemento populacional passou a
ser pensado qualitativamente em suas condições de vida, seus hábitos e condutas,
os quais precisavam ser regulados por meio da gestão dos negócios públicos.
Tal situação era perceptível por meio de medidas legislativas, lançadas
com o propósito de regulamentar e regular essa população, com isso, buscava-se

373
ALENCASTRO, Antonio Pedro. Discurso de 3 de julho de 1835 na Abertura da Primeira Sessão
Ordinária da Assembleia Legislativa Provincial. Cuiabá: Typografia Provincial, 1845, p. 3.

221
torná-la sadia, obediente e pacífica em prol de uma sociedade que começava a se
organizar em termos valorativos, a partir da ideia de trabalho.
Temos com isso o sintoma de uma penetração, na nascente nação
brasileira, dos princípios de economia política associados ao governo das
populações e às premissas do pensamento liberal que chegavam nas províncias e
incitavam uma problemática sobre a “gestão da liberdade e do poder representativo
delas”.
Todos esses elementos remetiam a um investimento na gestão da vida
das pessoas, de suas condutas, aptidões e moralidade, o que certamente faziam atuar
um funcionamento de saber que sancionava uma espécie de média de zona de
segurança, de nível de sofrimento permitido e até mesmo tolerado em relação à
população e de onde não se deveria ultrapassar para que, supostamente, os negócios
do Estado pudessem fluir.
Diante disso, percebemos que os presidentes da província de Mato
Grosso atuarão insidiosamente nessa população, criando condições de controle e
regulação, conclamando em seus discursos e em suas ações administrativas e
posicionamentos, os elementos indispensáveis para a potencialização dos negócios
públicos e, para isso lançou mão de três estratégias fundamentais: a problemática
da instrução, da criminalidade e da saúde.
No presente capítulo buscaremos analisar detidamente cada uma dessas
estratégias, num momento em que havia preocupação em se constituir uma
“identidade nacional” e afirmar o Império, que passava por instabilidades políticas
e sociais que culminaram com a abdicação de D. Pedro I e no estabelecimento dos
governos regenciais.
Vale ressaltar que, no processo de construção de nacionalidade e de
afirmação do Estado/Nação brasileiro, foi também extremamente importante a
criação do IHGB (Instituto Histórico Geográfico Brasileiro), em 1838 que:

[...] fundado por um grupo de intelectuais e políticos, às 11 horas


da manhã do dia 21 de outubro de 1838, na capital imperial, sob
o patrocínio da Indústria Nacional (SAIN), o IHGB, conhecido
como casa da memória nacional, tinha a missão de coligir,

222
publicar ou archivar os documentos necessários para a escrita da
história do Brasil-nação374 [...]

Nesse interím da virada do século XVIII para o XIX, lentamente vai


sendo produzido um arquivo de imagens e de saberes que aos poucos produzirá
uma identidade nacional, ao lado do saber estatístico, das viagens científicas e
filosóficas e da criação do IHGB em preciso momento centrado na preocupação
com o governo da população, sua cultura, seus hábitos e costumes, direitos e
deveres enquanto cidadãos e membros pertencentes a um povo.
O processo de ordenamento do Império, nessa medida, passava pela
construção de uma identidade nacional, do conhecimento das potencialidades
físicas e naturais de clima, relevo, solo de um país que emergia, mas, também de
seu povo e sua aptidão ao mundo do trabalho que começava a figurar enquanto
fundamento da riqueza do Estado/Nação brasileiro.
O princípio de ordenamento da população e sua regulação perpassava
pela gestão da liberdade dos cidadãos brasileiros, o que significava, dentre outras
coisas, a contenção de certas liberdades que ameaçavam a unidade nacional de um
país recém-independente, como, por exemplo, as Instituições Filantrópicas que
assumiam deliberadamente posições políticas, em muitos casos nativistas, tendo
como exemplar a sedição de 30 de maio de 1834, conhecida como Rusga.
Dessa maneira, enfocaremos primeiramente a análise essa sedição,
assinalando as implicações que tal acontecimento teve em relação à problemática
da população e da gestão governamental, colocando lado a lado a tensão existente
entre governantes e governados, ou seja, no surgimento de dupla fobia: a “fobia do
Estado” em relação à população e, em contraponto, uma fobia da população “em
relação ao Estado”.
Tratava-se também de pensar em que sentido a “Rusga” serviu de
inteligibilidade da biopolítica? Quais os seus efeitos na problemática da população?
Que fenômenos ganharam visibilidade com a sedição de 30 de maio de 1834?

374
RIBEIRO, Renilson Rosa. O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro: Francisco Adolfo
de Varnhagen, o Insituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Construção da ideia de Brasil-
Colônia no Brasil-Império (1838-1860). Cuiabá/MT: Enrelinhas, 2015, p. 37.

223
Com isso, buscaremos assinalar a emergência de uma problemática
importante na gestão da província de Mato Grosso, que foi a visibilidade dos efeitos
traumáticos da Rusga e da emergência da noção de “inimigo interno” que esse
acontecimento imprimiu na população e nos governantes.
Diante disso, a centralidade, dada a busca da paz e da tranquilidade, se
encontrava em sintonia com a preocupação com o medo produzido e incitado pelo
movimento de 30 de maio de 1834, e acreditamos que é partir da matriz do “medo”
que os governantes criaram meios de previsibilidade para combatê-lo, para geri-lo,
para regular o elemento populacional que, em alguns momentos da sedição, deu
mostras de força incontrolável.
Enfim, a partir de tais constatações que foi sendo construída uma
estatização da vida dessa população e que perpassava, ao nosso ver, por três
estratégias políticas do seu corpo: instrução, criminalidade e saúde, materializadas
nas ações dos presidentes de província em parceria com outros agentes (inspetores
de polícia, de saúde, de instrução etc., convocados em auxílio).
Tratava-se de uma tentativa de ordenamento minucioso da sociedade
mato-grossense após os enfrentamentos, as lutas e os ressentimentos advindos do
movimento de 30 de maio de 1834, o qual gradativamente criou um campo de ação
e de intervenção política que respondia aos anseios de se constituir uma sociedade
ordeira, pacífica e trabalhadora, diante de um cenário de perdas de vidas e de capital
econômico, quando os traumas provocados pela sedição de 1834 se farão ressoar
por vários anos.

4.1- Preâmbulos da Rusga: de zelosos da independência a facinorosos de 1834

Nos anos que se seguiram à independência do Brasil, em 1822, uma das


questões fundamentais para esse novo país era, de fato, construir uma proposta de
identidade nacional, centrada em valores e costumes que, de uma forma ou de outra,
costuraria a ideia de uma nacionalidade ainda frágil e cambiante naquele momento.
Assim, como lembra Sena:

[...] os senhores que praticavam, pensavam e discursavam para a


vida pública, nos sertões do Império, deveriam ser integrados e

224
participantes do sistema monárquico e do jovem país que se
construía. Notável, nesse sentido, foi a promoção da política de
centralização promovida pela Corte, que não deixava de visar os
políticos provinciais375.

Diante de um país independente e de grandes dimensões territoriais,


tratava-se ao mesmo tempo de adequar a construção de um corpo político centrado
na ideia de Império com relativa autonomia das províncias, num esforço visível de
se conciliar premissas liberais de governo com o regime monárquico e escravocrata.
Semelhante situação foi aos poucos polarizando e particularizando
posições políticas em torno de dois grupos: de um lado, os conservadores (também
chamados caramurus) e, de outro, os liberais (divididos em exaltados e moderados),
consoante suas formas de condução dos negócios públicos:

Nas décadas de 1820 e 1830, muitos acontecimentos se


destacaram mudando os rumos da política brasileira. Com a
morte de D. João VI a Independência do Brasil, o curto governo
de D. Pedro I, de 1822 a 1831, as revoltas pipocando no país,
novas propostas de grupos políticos se formaram. Em Mato
Grosso não podia ser diferente. Os dois partidos políticos,
(Caramuru e Liberal, este dividido em duas facções: Moderados
e Exaltados), logo após a independência, iniciaram as
articulações para o domínio do poder. Para concretizar seus
projetos políticos, articulando planos de ação armada, esses
grupos se organizaram através de associações376.

Com a abdicação de D. Pedro, em 1831, e tendo por base as relações de


forças, a ala dos políticos ligada ao “projeto liberal” permitiu a ampliação de sua
representatividade das províncias, viabilizando novas possibilidades de
protagonismo político, no qual:

[...] A fundação da monarquia constitucional acelerava


transformações nas estruturas políticas (primado da lei, cisão
entre público e privado, divisão de poderes, cidadania civil e
política e formação de um sistema representativo), assim como
abria novas possibilidades de organização de interesses e
aspirações presentes na sociedade (liberdade de imprensa e de

375
SENA, Ernesto Cerveira de. Entre Anarquizadores e Pessoas de Costume: a dinâmica política
nas fronteiras do Império (1834-1870). Cuiabá: Carlini & Caniato; EdUFMT, 2009, p. 16-17.
376
MARTINS, Dulcineia Silva. No silêncio dos arquivos: relatos de viajantes que percorreram Mato
Grosso (1808-1864). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Mato Grosso.
Cuiabá, 2014, p. 48.

225
formas associativas, além do predomínio de poderes eletivos - as
Cortes e, nas províncias, as juntas provisórias)377.

Diante de tal situação começaram a se articular as “associações


filantrópicas” em diferentes pontos do país com vieses políticos, a título de
exemplo, podemos citar a “Sociedade Defensora da Liberdade e da Independência
Nacional”, criada na vila de Mangaratiba, com propósito de declaradamente manter
e assegurar a independência nacional e o regime constitucionalista de governo:

[...] Ela tem por fim manter a Constituição do Império, a forma


do Governo estabelecido, e a gloriosa Revolução do dia sete
Abril: 1° sustentando por tordos os meios legais a Liberdade, e
Independência Nacional; auxiliando a ação das Autoridades
Públicas, todas as vezes que necessário for, a bem da manutenção
da ordem e da tranquilidade do Município: 2° despertando a ação
dessas mesmas Autoridades por meio de Representações,
Petições, ou Avisos quando elas se mostrem frouxas, ou
desleixadas: 3° participando ao Governo o desleixo, frouxidão,
ou conivência da parte das mesmas Autoridades, a fim de serem
chamadas à Responsabilidade: 4° vigiá-lo sobre a exata
observância, e execuções das leis: 5° opondo uma barreira forte
aos pérfidos desígnios, e trama dos Restauradores, pelos meios
que estiverem ao seu alcance: e outrossim procurará promover a
instrução pública378.

Com esse mesmo propósito temos, também a título de exemplo, o jornal


O Valenciano, Jornal da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência
Nacional da Villa de Valencia, no Rio de Janeiro, que, nos primeiros anos de 1830,
se colocou enquanto protetor da liberdade conquistada, defendendo o seguinte
posicionamento:

[...] Sustentar a liberdade e Independência Nacional por todos os


meios legais é sem dúvida o mais sagrado dever, não só de cada
um dos membros da Grande Associação Brasileira, mas até de
todos aqueles, a quem faltando este requisito, tem, contudo,
vivido fortunosos [sic] á sombra de frondosas árvores, da

377
LIMA, André Nicácio. Rusga: participação política, debate público e mobilizações armadas na
periferia do Império (Província de Mato Grosso, 1821-1834). Tese (Doutorado em História Social)
– Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016, p. 23.
378
ESTATUTOS DA SOCIEDADE DEFENSORA DA LIBERDADE E INDEPENDÊNCIA
NACIONAL, NA VILA DE MANGARATIBA. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de SEIGNOT-
PLANCHER, 1834, p.03-04. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242458.
Acessado em 02/11/2017

226
existência das quais é que nasce a hospitaleira urbanidade, com
que são tratados os estrangeiros, que em sentimentos se
identificam com os bons brasileiros [...] Um povo livre e
Independente, depois de ter curado de possuir esses bens, deve
também curar de tudo, quanto possa fazê-lo prosperar e ganhar
vulto entre as Nações379.

Como se pode perceber no jornal o Valenciano, embora se fizesse


presente a preocupação de assegurar a “independência” conquistada pelo Brasil em
relação a Portugal, percebe-se haver a “aceitação de povos estrangeiros” na
formação da identidade brasileira, o que já evidenciava um liberalismo de tendência
“moderada”, bem diferente da manifesta pela Sociedade dos Zelosos da
Independência, criada em Cuiabá, como teremos a oportunidade de ver mais
adiante.
Tais ressonâncias políticas se farão sentir em Mato Grosso no mesmo
período em que as “polarizações” no campo de forças políticas foram demarcadas
por essas “associações” que, ora sob viés liberal, ora sob o viés conservador,
demarcavam seus posicionamentos táticos na disputa pelos cargos e pelas funções
políticas no território mato-grossense, como já ocorria em outros pontos do país no
mesmo momento.
Nesse cenário, no entanto, as polarizações foram incorporando outras
que, nas alianças motivadas por melhorias na condição existência, viram no
engajamento ao movimento a possibilidade de melhoria de suas condições de vida,
o que certamente imprimiu-lhe outra dimensão.
Lado a lado nas tensões políticas entre os grupos tidos como os mais
proeminentes da sociedade, as insurreições emergiram enquanto forma de se
“levantar, sobrepor, e se rebelar” contra a ordem estabelecida, que, nesse caso,
expressava os privilégios de elites diferentes que se mostravam omissas em relação
ao sofrimento e à miséria das camadas populares, o que, de fato, ajudou a tornar

379
O VALENCIANO. JORNAL DA SOCIEDADE DEFENSORA DA LIBERDADE E
INDEPENDÊNCIA NACIONAL DA VILLA DE VALENCIA NO 1. Rio de Janeiro: Typografphia
Nacional, 1832. Disponível em: http://bndigital.bn.br/acervo-digital/valenciano/702358. Acessado
em 2/11/2017.

227
compreensível a dúbia atitude380 de Poupino Caldas em relação ao movimento da
Rusga.
Diante desse clima de ebulição política, a província de Mato Grosso foi
marcada pelo movimento regencial conhecido como a “Rusga”, provocado
principalmente pelos embates entre os dois grupos políticos distintos que se
formaram naquele momento: de um lado, os liberais, representados pela Sociedade
dos Zelosos da Independência e, do outro lado estavam os conservadores,
representados pela Sociedade Filantrópica:

A insurreição nativista também conhecida por – Rusga e –


Rebelião Cuiabana, resultou de um antagonismo entre dois pólos
políticos representados por duas sociedades: A Sociedade dos
Zelosos da Independência e a Sociedade Filantrópica. A
Sociedade dos Zelosos da Independência tinha por objetivo
principal resguardar a separação de Portugal e afastar o fantasma
da restauração. Combatia os antigos políticos de Cuiabá e
preconizava a retirada de portugueses da Província na primeira
metade da década de 30 do século XIX. Essa posição política
aliada ao descontentamento popular, agravada pela carestia,
acabou desembocando na violência da noite de 30 de maio, nas
quais dezenas de portugueses e alguns brasileiros foram mortos.
Já a Sociedade Filantrópica, composta pelos tradicionais
detentores do poder, os conservadores, congregava tanto os
nascidos em Portugal, quanto os nascidos no Brasil, também
chamados de caramurus, compunham a elite que detinha o poder
na Província no momento do 30 de maio e pretendia continuar no
poder da Província mato-grossense, que naquele momento tinha
Antônio Corrêa da Costa como presidente381.

A Sociedade dos Zelosos da Independência, idealizada por Patrício da


Silva Manso, apresentava uma dimensão política mais radical do liberalismo e que,
ao contrário do que pregava a “Sociedade Defensora da Liberdade e Independência
Nacional da Villa de Valencia”, em seu jornal o Valenciano, não se admitia a
proeminência de estrangeiros no território brasileiro que naquele momento

380
Atitude que está presente no fato de ele ter sido um dos principais mentores do movimento e
protagonista na montagem do processo de julgamento dos envolvidos na “Rusga”. Cf. SIQUEIRA,
Elizabeth Madureira. A Rusga em Mato Grosso: edição crítica de documentos históricos vol. 1.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 1992.
381
AGUIAR, Patrícia Figueiredo. A sociedade dos Zelosos da Independência na província de Mato
Grosso e a ocorrência da Rusga. In: Revista Sapiência: Sociedade, Saberes e Práticas Educacionais
– UEG/Campus Iporá. Goiânia, v. 5, n. 2, p. 232-256, Ago./Dez., 2016, p. 233

228
ocupavam as atividades mais rentáveis da província. Em seu estatuto, a Sociedade
dos Zelosos da Independência já deixava claro esse posicionamento:

[...] Artigo 1º: O fim dessa Sociedade é procurar ligar pelos mais
estreitos laços os verdadeiros brasileiros, habitantes da Província
de Mato Grosso, por meio da Instrução dos seus deveres, e de
mútua coadjuvação para assegurar a independência do Brasil, e
fazer resistência legal à tirania onde quer que ela achar.
Artigo 2º: O número de sócios será determinado: e são 1º aqueles
com que se instalam; e segundo todos os que, propostos por
qualquer membro foram aprovados em escrutínio por maioria
absoluta. O título será uma lacônica participação, assinada pelo
presidente da sessão e Secretário: e a efetividade entrará do dia
da Sessão em que se receber a participação de que aceita. [...]382

Embora também com os mesmos propósitos da Sociedade Defensora


da Liberdade e da Independência Nacional da vila de Mangaratiba, apresentada
anteriormente, a Sociedade dos Zelosos, criada em Cuiabá sob a idealização de
Patrício da Silva Manso, era mais restritiva, impondo uma quantidade limite de
membros, enquanto que a sociedade criada em Mangaratiba abria espaço também
à participação “feminina e não impunha limite de membros”383.
As formas de atuação política entre as duas agremiações, a de
Mangaratiba e a de Cuiabá, também apresentaram outros posicionamentos distintos,
assim, enquanto a primeira procurava agir através de cobranças por meio de
“petições e de representações”, informando ao governo central sobre a sua
“frouxidão ou conivência”, o que certamente transpareceria na possibilidade de
diálogo maior, a segunda, representada pelos Zelosos de Cuiabá, de maneira
lacônica deixava transparecer na proposta de “fazer resistência legal à tirania onde
quer que ela esteja”, a centralidade de suas ações, não no diálogo, mas a
possibilidade de confronto físico.

382
ESTATUTO DA SOCIEDADE DOS ZELOSOS DA INDEPENDÊNCIA DE MATO GROSSO.
In. A Rusga em Mato Grosso: edição crítica de documentos históricos vol. 2. Dissertação (Mestrado
em História). Universidade de São Paulo. São Paulo, 1992, p. 339.
383
A esse respeito o estatuto da Sociedade Defensoria da Liberdade e da Independência aceitava
como membro todos que se engajassem com a causa, contribuísse com a ‘quota, ter bons costumes
e meios de subsistência’, incluía nesse propósito, a admissão de senhoras. Cf. ESTATUTOS DA
SOCIEDADE DEFENSORA DA LIBERDADE E INDEPENDÊNCIA NACIONAL, NA VILA DE
MANGARATIBA. Op. cit., p. 9.

229
A sedição de 30 de maio de 1834 dava visibilidade a um campo de
demarcação de forças e de usos estratégicos, num confronto característico de uma
“guerra civil”, de um conflito político interno que envolveu também as camadas
menos abastadas da sociedade cuiabana.
Curiosamente, o termo “rusga” era de uso corrente para explicar os
vários “conflitos civis” que explodiam em diversos pontos do país naquele mesmo
período, onde se constava o clima de instabilidade política manifestado no início
das regências. Nesse sentido, o historiador André Nicácio Lima lembrava que:

Presente no discurso coevo, a palavra ‘rusga’ ainda não era


dicionarizada em 1834, mas já era frequente no debate político
da província desde o contexto da Abdicação de d. Pedro I, em 7
de abril 1831, e continuou sendo bastante evocada após o Trinta
de Maio, inclusive para aludir a suspeitas de que se tramava uma
‘nova rusga’. [...]. O ápice dessas discussões ocorreu
imediatamente após o Sete de Abril, quando periódicos
moderados descreviam mobilizações em todo o país, que tinham
as motivações e composições sociais as mais diversas, como
expressões de um mesmo fenômeno. As ‘rusgas’, espalhadas
pelo país como num contágio, seriam expressão de uma
‘horrorosa ilegalidade epidêmica’ a ser contida. No contexto do
Trinta de Maio, ‘rusga’ era uma denominação genérica, que
vinha sendo construída no debate público, referindo-se a
mobilizações com características muito diversas entre si. Nessas
‘rusgas’, que se espalharam como num ‘contágio’, relações
específicas foram estabelecidas, em cada caso, entre a
legitimação do direito à resistência, a politização de identidades
e o combate a formas diversas de opressão384.

A “Rusga” não era vista, portanto, como uma particularidade cuiabana,


e talvez seja essa a dimensão que os escritos dos membros do IHGMT tentam
recuperar ao se referir a ela. De termo de uso genérico, eis que, em fins do século
XIX e início do século XX, Cândido Figueiredo apresentou de uma forma já
dicionarizada a ideia de rusga. Dessa maneira o referido autor trouxe em sua obra,
Novo Dicionário da Língua Portuguesa de 1913385, a seguinte definição da
expressão:

384
LIMA, André Nicácio. Op. cit., p. 15-16.
385
É digno de nota já se tratar da segunda edição de sua obra e que provavelmente a compilação
atualizada dos termos portugueses tenha se iniciado em fins do século XIX.

230
[...] rusga f. Barulho, desordem. Pop. Diligência policial, para
prender malfeitores ou contraventores de certos regulamentos ou
leis. Ant. Correria de funcionários, destinada a prender
indivíduos para soldado. * Prov. trasm. Tocata; pândega.
rusgar v. i. Neol. Lisboa. Fazer rusgas (a polícia). Cf. jornal Luta,
de 1-II-912386.

Curiosamente, tais designações fazem eco ao que transcorreu na


sedição de maio de 1834, uma vez que essas “rusgas”, como bem apresentou
Nicácio, tratavam-se exatamente de “acontecimentos minúsculos” que começavam
a “perturbar a ordem, a tranquilidade e a calmaria”, e introduzia o “barulho, a
bagunça e a baderna”, incitando cada vez mais intervenção policial.
O referido dicionário ainda relacionava rusga a “tocata e pândega”,
guardando uma estranha analogia com as festas populares, o que certamente
produziria um efeito mais “ameno” na narrativa do evento, dando-lhe tom menos
sanguinolento à luta, no entanto, o que se verificou no período foi exatamente o
contrário:

[...] Nenhum momento da história do Brasil concentrou tanta


violência num tempo tão curto e em extensões de terra tão largas
quanto essa fase da monarquia. Violência social e política.
Grupos étnicos variados, ligados pela comunidade da língua e da
religião, marcados pelas condições de regiões diversas, tendo
pelas riquezas da terra um grande entusiasmo, demonstrando
aversão ao português, mas desprezando uns aos outros387.

Isso torna a “rusga” um movimento complexo e paradoxal, na medida


em que demonstrava essa fluidez dos jogos de interesses postos em
confronto(ação), pois apresentava uma face de luta entre dois elementos da
sociedade cuiabana (não somente cuiabana, pois o movimento repercutiu em outras
localidades da província), polarizada pelos nativos e adotivos no mesmo momento
em que se buscava construir uma identidade nacional que, aos poucos, contou com

386
FIGUEIREDO, Cândido. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: dicionario-
aberto.net/estaticos/legal.html. Acessado em 9.11.2017. A versão transcrita desse dicionário foi
realizada por voluntários no Distributed Proofreaders e contou com a supervisão da Rita Farinha.
O exemplar desse trabalho está igualmente no Domínio Público. Este documento pode ser
livremente descarregado e utilizado, a partir do sítio do Projecto Gutenberg. Cf. também:
http://www.gutenberg.org/ebooks/31552
387
MOREL, Marco. O período das Regências (1830-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.
65.

231
apoio popular. Nesse sentido, o posicionamento do historiador Valmir Batista
Corrêa é muito interessante ao salientar que:

[...] apesar de ser indefinido o universo ideológico [grifos do


autor] dos líderes da Rebelião Cuiabana, estes souberam
canalizar as insatisfações e frustrações dos militares inferiores
[grifos do autor] da população urbana pobre e de vagabundos
[grifos do autor], visando a derrubada do grupo dominante e a
tomada do poder [grifos do autor]. Entretanto, se por um lado
foi importante o apoio popular aos rebeldes de 1834, por outro, o
populacho tornou-se um perigoso entrave ao próprio movimento,
à medida que promoveu saques, roubos, assassinatos e outras
manifestações de violência388.

Certamente, essa dimensão da participação popular ou dos grupos


subalternos na irrupção da luta constituiu um dado importante, uma vez que apontou
a oportunidade desses grupos imporem, pela deflagração do movimento, a melhoria
de suas condições de vida.
Entre os embates políticos dos Zelosos da Independência e os grupos
conservadores que exerciam o poder político na província mato-grossense, estava a
população, com sua diversidade de gentes, como “vagabundos, militares
subalternos e pessoas mais pobres do meio urbano”, no entanto, a hipótese
levantada por Corrêa, tira um pouco do protagonismo dessas classes, ao conferir
centralidade das ações aos membros da elite.
Penso que o fato de a população se constituir em problema para o
movimento está relacionado à necessidade de que ela assumiu para si o “móvel
dessa luta”, inserindo o problema “das precárias condições de vida” no período e
que iriam aflorar com a abdicação de D. Pedro I:

Entre 7 e 8 de dezembro de 1831, soldados e oficiais inferiores


insubordinados (além de alguns paisanos) tomaram o quartel e a
casa de pólvora de Cuiabá, redigiram uma representação e se
apresentaram armados diante do governo provincial para exigir a
demissão de todos os funcionários civis e militares nascidos em
Portugal. Afamado como incitador de bernardas [grifos do

388
CORRÊA, Valmir Batista. Rebeldia em Cuiabá em 1834: a violência como matriz para a
compreensão da história regional. In: Rusga: uma rebelião no sertão: Mato Grosso no Período
Regencial (1831-1840). Ernesto Cerveira de Sena e Maria Adenir Peraro (Org.). Cuiabá: EdUFMT,
2014, p. 128.

232
autor] contra os brasileiros adotivos [grifos do autor] durante o
Primeiro Reinado, João Poupino Caldas foi aclamado pelos
rebeldes para substituir seu aliado adotivo [grifos do autor]
Jerônimo Joaquim Nunes. Sem que tenha tomado uma postura
pública de liderança, ele foi acusado na imprensa de ter sido a
mão oculta [grifos do autor] por trás do movimento. Porém, a
análise conjunta do debate público e da documentação sobre a
repressão dos rebeldes demonstrou que, mesmo que Poupino
Caldas tenha muito provavelmente exercido influência sobre a
mobilização, ela foi protagonizada por homens que já vinham de
uma longa experiência de reivindicação armada para a
deposição de comandantes [grifos nossos]. Uma trajetória
autônoma com relação à disputa política institucional e que todas
as facções políticas da província procuraram combater389.

Desse modo, a reflexão do historiador André de Nicácio Lima nos ajuda


a pensar que o apoio popular por ocasião da eclosão da “rusga” era visto como
manobra de massa por parte da elite pensante do movimento (proposição
apresentada pelo historiador Valmir Batista Corrêa), silenciando o protagonismos
de luta dessa camada subalterna, manifesto em outras ocasiões em Cuiabá, onde os
movimentos de 7 e 8 de dezembro de 1831 constituíram um exemplo cabal desse
protagonismo. Assim mesmo, que a:

[...] experiência de mobilizações armadas organizadas por


setores populares pode ter sido capturada para uma revolta de
grupos dominantes390, mas antes que isso ocorresse, sua trajetória
foi efetivamente autônoma. A chave para a compreensão da
Rusga talvez esteja precisamente nas articulações entre a política
dos grupos dominantes e a política dos grupos subalternos e,
quanto a isso, é possível que a onda de contestação que se seguiu

389
LIMA, André Nicácio. Op. cit., p. 445.
390
Nesse ponto preciso discordo do autor, pois acredito que não se trata de uma captura das
mobilizações populares, mas, entre outras coisas, de reciprocidades, de pontos de apoio em comum
que se levantaram contra uma ‘ordem vigente, contra uma forma dada como certa de fazer política’
no período. Assim, existiram relações de poder que não se materializavam exclusivamente pelos
interesses políticos e partidários, mas porque também colocavam em cena a centralidade dessas
vidas, que paralelamente tinham também seus objetivos de luta. Creio que havia nesse sentido
articulações entre as elites políticas e a camada mais popular. Essa ideia de captura das forças
populares por uma outra elite, da qual a Sociedade dos Zelosos era exemplo, dilui a reciprocidade
das relações de poder e debilita a compreensão do movimento quando esta parece fugir do controle.
Sobre a ideia de ilegalismos tolerados pela elite e depois incompatível com esta, ver Cf.
FOUCAULT, Michel. Aula de 21 de fevereiro de 1973. In: A Sociedade Punitiva: curso no Collège
de France (1972-1973). Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 129-
142.

233
a abdicação de D.Pedro I tenha sido um momento fundamental
aproximação391.

Três anos antes da deflagração da sedição de 1834, esses “atos de


insubordinação, de tomada do quartel e da casa de pólvora”, perpetrados por
soldados e oficiais inferiores, constituía experiência recente na memória dos
membros da Sociedade dos Zelosos e, de certa maneira, era de conhecimento geral
dos envolvidos na “Rusga”, inclusive na memória de um dos supostos mentores do
movimento, João Poupino Caldas.
Diante dos jogos de interesse político no que diz respeito às condições
de vida precária dessa população, abria-se a possibilidade de alianças recíprocas
diante de adversários comuns (que não se circunscrevia apenas ao elemento
português, ou adotivo), mas também àqueles que, de uma forma direta, controlavam
os “negócios rentáveis” da província, em contraposição ao “sofrimento dos seus
habitantes”. Em relação a esse ponto, Ernesto Cerveira de Sena, argumenta que:

[...] O alvo não era exatamente os portugueses. Ora, desde os


tempos coloniais as mesmas pessoas, de Mato Grosso, que
ocupavam os principais cargos políticos, e eram elas as que
tinham as melhores oportunidades de comércio além de serem as
detentoras de grande parcela das terras valorizadas. O ódio aos
portugueses, então, recaía também nos brasileiros que
compunham a elite cuiabana. Poupino, desde 1831, quando
assumiu o comando das armas por clamor dos soldados, começou
a se posicionar francamente contra a elite da qual, antes, fizera
parte [...] e assim, procurava ser o líder dos que hostilizavam o
governo provincial392.

O inegável é que o discurso de antilusitano tenha sido utilizado


estrategicamente em diferentes movimentos espalhados no país, como uma espécie
de “bode expiatório” em meio a um contexto onde se começava a construir uma
identidade nacional e, portanto, alguns grupos viam nessas movimentações a
possibilidade de ascensão social, política e econômica de um “Brasil para
brasileiros”. Nesse sentido,

391
LIMA, André Nicácio de. Experiências políticas, ação coletiva e violência: algumas hipóteses
sobre a Rusga. In: Rusga: uma rebelião no sertão: Mato Grosso no Período Regencial (1831-1840).
Ernesto Cerveira de Sena e Maria Adenir Peraro (Org.). Cuiabá: EdUFMT, 2014, p. 183.
392
SENA, Ernesto Cerveira de. Op. cit. p. 38.

234
[...] o elemento português aparecia muitas vezes como
catalisador dessa anarquia. Os gritos de mata marinheiro
[grifos do autor] e morra português [grifos do autor] enchiam
as ruas, precedendo reinvindicações de nacionalização de
comércio a retalho. Acontecia assim no Recife, onde tal situação
parece ter chegado ao auge em meados do século e animava os
praieiros; acontecia assim na Corte, onde o ódio ao comerciante
português era somado ao ódio pelos elementos lusitanos que,
acreditava-se, dominavam o Paço; não alcançava maior
expressão em São Paulo, talvez porque ali o comércio varejista
já se encontrasse em larga medida em mão de elementos
nacionais393.

Em outros termos, “a questão do elemento luso” em tensão com um país


que se projetava, ou almejava se projetar enquanto uma nação controlada por um
povo independente, servia em muitas províncias como princípio dos
posicionamentos políticos no período:

[...] para uns, na necessidade de subjugar o elemento português


residia a questão fundamental do Estado que se pretendia
construir com plena soberania; para outros, esta era uma questão
secundária, subordinada a questão da restauração e expansão dos
monopólios que fundavam a classe senhorial394.

As ressonâncias do elemento lusitano foram assumidas pela


historiografia mato-grossense como matriz de inteligibilidade do movimento que
ficou conhecido como “Rusga” e, curiosamente, dava visibilidade àquilo que o
filósofo Michel Foucault, em seu curso Em defesa da Sociedade, chamou de “guerra
de raças”, uma vez que se tratava de colocar lado a lado o elemento português diante
um povo brasileiro que buscava se consolidar.

4.1.1- Guerra de raças e biopolítica

Gostaria de atentar agora para algumas dimensões e versões sobre o


evento de 30 de maio de 1834 e mostrar que os autores envolvidos na produção de

393
MATTOS, Ilmar Rohloff. Tempo Saquarema. São Paulo; Brasília: Hucitec; INL, 1987, p. 75-76.
394
Ibid., p. 76.

235
tais narrativas certamente não estavam imbuídos de imparcialidade e neutralidade
no momento em que se posicionaram sobre o assunto.
As repercussões nas narrativas a posteriore ao evento levaram à
construção de interpretações que se circunscreveram desde a construção de uma
imagem “violenta”, “sanguinária” e de certo teor “xenofóbico”, como característica
marcante dos cuiabanos (versão interpretativa presentes em nomes como Augusto
Leverger, Joaquim Ferreira Moutinho e Visconde de Taunay). Por outro lado, em
reação a esse tipo de interpretação, um outro modelo de inteligibilidade histórica
construiu uma imagem “pacífica e hospitaleira” do homem cuiabano e que, de certa
forma, o episódio da Rusga se deu de fora para dentro, ou seja, o motor do conflito
eram as indisposições entre “adotivos e nativos”, desencadeadas em outras partes
do país e que penetraram na província de Mato Grosso e ali fizeram eco.
Nesse segundo viés interpretativo da Rusga se encontram alguns
representantes do Instituto Histórico de Mato Grosso, como Philogonio Corrêa,
Virgílio Corrêa Filho, Firmo Rodrigues, Franklin Cassiano e José de Mesquita.
As narrativas, como as elaboradas por Leverger, Joaquim Ferreira
Moutinho e Taunay, por exemplo, se sustentaram nas adjetivações que todo
processo crime impunha aos revoltosos: “sanguinários, facinorosos, traidores da
nação”, de modo a construir uma imagem negativa do povo cuiabano, como
“desordeiro” e, claro, fundamentada na superioridade do povo português residente
no país (adotivos), com quem eles talvez tivessem que aprender, o que
expressamente exemplifica o lugar social da fala desses dois personagens enquanto
lusitanos e descendentes de brasileiros que desempenhavam funções no Brasil.
Augusto Leverger, por exemplo, na obra Apontamentos cronológicos
sobre a província de Mato Grosso, narra a maneira violenta como se materializou
o conflito entre nativos e adotivos, onde:

[...] na noite de 30 para 31 de maio um grupo de facinorosos, a


que se ajuntou a plebe iludida em parte, e em parte movida pelos
mais ignóbeis sentimentos, apodera-se do quartel e manda tocar
a rebate, fazendo sair escoltas que mataram seis adotivos e um
brasileiro e saquearam as casas de comércio pertencentes a
adotivos [...]
O Conselho do Governo, convocado extraordinariamente, anuiu
as exigências dos insurgentes e deliberou que todos os brasileiros

236
nascidos em Portugal menores de 60 anos fossem mandados sair
da província, devendo por se em caminho dentro de 24 horas.
Os amotinados cometeram atrocidades inauditas – cortaram as
orelhas e partes pudendas das vítimas, queimaram cadáveres,
violaram esposas e outros atos de selvageria.
Aquela deliberação do Conselho e as ordens que se expediram
em cumprimento dela deram lugar à caça que se fez dos adotivos,
que se mataram onde eram encontrados. A pretexto de que
pretendiam resistir, expediram escoltas para persegui-los e
ameaçaram-se os brasileiros natos que deram couto.
Foram mortas 33 pessoas, sendo 3 brasileiros e 30 adotivos395.

Leverger prossegue nos desdobramentos desse evento, porém, para


nossa análise, o importante é que a narrativa tecida pelo futuro Barão de Melgaço,
trouxe em si o embate que se travou entre adotivos e nativos, apresentando o cenário
de violência que se seguiu, caracterizado pelos “saques, estupros, assassinatos,
mutilações corporais que iam de orelhas até as partes genitais”396, enfim, um
repertório variado de produção de dor. Os relatos de Leverger, no entanto, sugere
também que alguns nativos açoitaram e deram guarida a alguns portugueses, sendo
eles também alvo de pressão e repressão.
Leverger retomou o “arquivo” de imagens pejorativas construídas sobre
o movimento, presentes nos processos que foram instaurados e dos discursos
oficiais dos presidentes de província, atribuindo aos rebeldes a alcunha de
“facinorosos”, o que, em certa medida, produzia uma “negatividade do
movimento”, sendo o engajamento das camadas mais populares justiçado por terem
sido seus componentes “iludidos e enganados”, ou porque nutriam sentimentos
“ignóbeis”.
Joaquim Ferreira Moutinho, em sua obra Notícia sobre a Província de
Mato Groso seguida d'um roteiro da viagem da sua capital a São Paulo, publicada
no ano de 1869, não analisou detalhadamente do evento, até mesmo porque, como
o próprio autor justificou, não tentaria a descrevê-lo, pois, apesar “[...] de sermos

395
LEVERGER, Augusto. Apontamentos cronológicos sobre a província de Mato Grosso. Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, vol. 205, out./dez.1949, p. 350.
396
Se por um lado a mutilação das orelhas era uma forma de indicar a condição racial de adotivo,
uma vez que essa parte do corpo denunciaria, pela cor da pele, a sua origem. A mutilação do pênis,
por outro lado, atentava contra a virilidade masculina dos adotivos tratava-se de produzir um
rebaixamento do homem, de sua masculinidade e força. O falo representa força, ação, violência. Daí
todas as analogias em relação ao pênis e armas de ataque, como: pau, espada, cacete etc. Sobre a
produção de masculinidade e o falo, Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino:
uma invenção do falo. Maceió: Catavento, 2003.

237
portuguez [sic], queimamos muitos documentos que dizião [sic] respeito aos
negócios de 1834”397.
A queima de documentos referentes ao episódio certamente estaria
relacionada a alguma imagem que os portugueses não queriam que viesse a público,
ou provocando deliberadamente o apagamento da memória legada pelos
estrangeiros, especialmente lusitanos, sobre a Rusga. Em todo caso, esse tipo de
possibilidade não foi aventada por Moutinho ao não dar ênfase descritiva ao
acontecimento, o que certamente não o impossibilitou de se posicionar sobre o
assunto:

Em tempos já remotos Mato Grosso foi o teatro de factos o mais


revoltante que se pode imaginar. A carnificina de 1834 é o ponto
negro no Céu d’aquele torrão, e o pesadelo ainda de muitos
indivíduos, de cujas memória o espaço de sete lustros não tem
podido afugentar as imagens de suas vítimas. [...]
Quais fantasmas ameaçadores, elas fazem sem sono suas noites
de febre, como são sempre as dos criminosos que sentem a cada
momento, despertados ou dormindo, pesar-lhes sobre o peito a
mão de ferro do remorso! [...]
A página em que se escrever a história d'esse extermínio de
portugueses será uma nódoa de sangue nos anais da província, e
jamais o tempo poderá apaga-la. [...]
Felizmente tivemos ocasião muitas vezes em Cuiabá de
reconhecer o horror votado pelos modernos filhos do país a esses
factos de que se não lembram sem vexame398.

Ao mesmo tempo em que Moutinho não desejou descrever e analisar o


movimento, nem por isso omitiu de externar seu julgamento moral em relação aos
cuiabanos, a quem responsabilizou pelo “extermínio dos portugueses”, inferindo o
conflito enquanto vexame a ser assumido pela própria memória cuiabana. O fato é
de que nesse posicionamento de poucas páginas dedicadas ao assunto da sedição de
1834, Moutinho impingiu uma “vitimização dos portugueses” em relação às
hostilidades dos cuiabanos.
Tal situação que transparece numa anedota que o próprio Moutinho
contou e afiançou como verdadeira, a fim de justificar também um suposto castigo

397
MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícia sobre a Província de Mato Groso seguida d'um roteiro
da viagem da sua capital a São Paulo. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869, p. 11.
398
Ibid., p. 10.

238
divino sobre um desses cuiabanos envolvidos na “Rusga”. Tal episódio é narrado
da seguinte maneira:

[...] Conseguindo um dos heróis da carnificina de 34 roubar a um


português um caixote cheio de barras de ouro e prata - não tendo
confiança em si, levou o seu tesouro á casa de um compadre,
(capitão e homem de bem e nome), pedindo-lhe que o guardasse,
sem contudo dizer-lhe qual era o seu conteúdo e a sua origem.
O compadre-malicioso - desconfiou da natureza do depósito, e
por isso entregou-lhe uma chave, dizendo: compadre, vá você
mesmo ao armazém, e guarde lá o seu caixote.
O pobre louco lá se foi, e escolhendo um lugar debaixo de
algumas madeiras velhas, depôs ali a sua fortuna, e foi
novamente entregar a chave ao compadre.
Este não querendo tocá-la, mandou que a fechasse em uma
gaveta.
Passados meses, quando já a tempestade havia sucedido a
bonança, voltou o nosso homem a procurar o seu guardado. [...]
Correr ao lugar puxar o caixão, examiná-lo, experimentar lhe o
peso, foi tudo obra de um segundo para o futuro capitalista.
E prestes, ei-lo que ergue aos ombros a pesada fortuna e segue
para casa. Chegando, arranca o tampo ao caixote, louco de prazer
e ambição.
Mas, ó decepção as barras de ouro e prata tinham-se mudado em
vergas de estanho e de aço!
O ricaço falido corre em delírio à casa do compadre, e entre
lágrimas e soluços, narra -lhe a estranha história.
-Pois, meu compadre, foi um roubo que você guardou em minha
Casa?! Ora aí está patente o castigo de Deus... Bem dizia eu que
o ouro roubado não aproveitaria aos ladrões... E benzendo-se três
vezes com ar aparvalhado, continuou:
-Esse ouro, compadre, Deus o levou para a sepultura do dono, ou
á sua família em Portugal...399

Moutinho encerrou o relato sobre aquilo que ele denominou de


revolução de 1834, passando a discorrer sobre outros aspectos da sociedade e da
cultura cuiabana. Creio que nessa anedota ele recupera e afiançara a ideia de
vitimização dos portugueses.
Taunay, em seu livro A cidade de Mato Grosso, também dedicou
algumas páginas à “Rusga” e sua narrativa se assenta nos mesmos moldes de
adjetivações negativas ao movimento, classificando-o como “sanguinário”, e
afiançava como verdade a seguinte versão:

399
Ibid., p. 11.

239
[...] Desde os primeiros tempos da Independência, os
portugueses, bastante numerosos em Mato Grosso e sobretudo
concentrados na cidade de Cuiabá, se haviam tornado alvo de
inveja e malquerença, já pela indisputável preponderância
comercial, já por vexatória influência política, confirmada e
ampliada pela Constituição de 25 de março de 1824, que lhes
dera a feição de brasileiros adoptivos com todas as regalias de
cidadãos natos.
A prosperidade de alguns dentre eles, como o tenente coronel
José Joaquim Ramos, José Teixeira de Carvalho, Francisco
Manoel Vieira, Bernardino José Vieira, José Coelho Lopes,
Manoel José Moreira, José Teixeira de Carvalho, major Joaquim
Duarte Ribeiro e outros particularmente excitava a cobiça e o
rancor de não poucos filhos do país também negociantes, sendo
o sentimento de odiosidade aumentado pela imprudência [...] dos
adoptivos, habituado ao mando dos tempos coloniais, duro e
áspero, sobretudo nas capitanias mais distantes.
Desse fermento já houvera manifestações bem claras naquele ano
de 1824, acentuando-se mais a 7 de dezembro de 1831400.

Embora Taunay se esforçasse para compreender as causas do


movimento, diferentemente de Leverger e Moutinho, ele apresentou as condições
históricas dessa animosidade entre “adotivos e nativos”, que vinham sendo
“fermentadas” desde o período colonial, perpassando pela abdicação de D. Pedro I
em 1831, mas, ainda assim o movimento foi visto como um processo vitimização
dos portugueses, marcado por rancores, ressentimentos e desforras históricas.
Enfim, em tais narrativas formuladas no século XIX, trazidas por
Leverger, Moutinho e Taunay, o elemento da “guerra de raças”, está presente. Com
isso, gostaria de dizer que se trata de uma memória que se produziu em face à
inteligibilidade da luta entre duas “raças”, “a dos portugueses e a dos brasileiros”,
onde foram materializados desejos omissos de “vingança, de ressentimento, de
desforra”, que, em determinado momento, vieram à tona.
Curiosamente, a identidade brasileira401, ainda em gestação, estava
sendo confrontada com o elemento racial luso, uma guerra de raças que
materializava o momento auge da “desforras e revanches” históricas, manifestas em

400
TAUNAY, Visconde de. A Cidade de Mato Grosso. Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert,
1891, p. 103.
401
Sobre a construção imagética de Taunay sobre Mato Grosso em consonância com a formação da
identidade nacional brasileira, ver: CASTRILLON-MENDES, Olga Maria. Taunay Viajante:
construção imagética de Mato Grosso. Cuiabá: EdUFMT, 2013.

240
uma narrativa que conferiu uma proeminência lusa vitimizadora dos portugueses
em face às violências perpetradas pelos cuiabanos.
Esse tipo de discurso inferia à Rusga uma natureza “vil, mesquinha,
ignóbil e baixa” aos cuiabanos e aos seus seguidores em relação aos estrangeiros,
tensão entre civilização e barbárie que, curiosamente, não foi pensada em termos
de uma “guerra civil”, aspecto esse negligenciado também em outras produções
historiográficas (inclusive as produções mais atuais).
Essa inteligibilidade da “guerra civil”, a nosso ver omissa, tanto na
versão elaborada pelos intérpretes da segunda metade do século XIX, como pelos
que descreveram o movimento primeira metade do século XX, demonstrando que
o confronto da “Rusga” não foi visto e tampouco pensado enquanto uma “guerra
interna”, uma “guerra fratricida”, preferindo, de um lado, enfatizar a importância
do elemento “estrangeiro” na cultura brasileira e na crueldade dos cuiabanos, e, de
outro lado, serviu para enfatizar o protagonismo cuiabano em face ao “peso da
estrutura colonial” nos postos de mandonismo local, os quais os rebeldes buscavam
assumir.
A “sedição, a anarquia, a rebeldia”, enfim, foram elementos constantes
nos discursos oficiais sobre o evento e que criaram condição propícia para que uma
visão aterradora do movimento fosse construída no imaginário de pessoas do porte
de um Leverger, Moutinho e Taunay, no século XIX, visão que construiu uma
imagem pejorativa do povo cuiabano ligada ao sentimento de aversão ao estrangeiro
como uma de suas características intrínsecas e natural caracterizando-os enquanto
“povo dado à violência”.
Curiosamente, os primeiros posicionamentos em forma de narrativa e
de pesquisa histórica foram escritos por pessoas cujas ligações familiares
descendiam de estrangeiros (Moutinho, proveniente de família portuguesa e
Leverger e Taunay descendiam de franceses), o que ajuda a entender a centralidade
conferida ao processo de violência cometida contra os “adotivos” em face à
“selvageria cuiabana”.
Por outro lado, nas primeiras décadas do século XX, firmando uma
narrativa a partir do lugar social dos mato-grossenses, verificou-se a produção de
uma historiografia a cargo do IHGMT, construtora de uma outra versão sobre o

241
evento de 1834, atrelada à imagem “pacífica e acolhedora do povo cuiabano”, a
qual frisava que o episódio da “Rusga” foi, sem dúvida, um sintoma do que estava
ocorrendo em todo o país naquele momento. Nesse sentido, no texto A significação
da Rusga, Philogonio Corrêa conferiu positividade aos cuiabanos ao salientar que:

[...] a esta memória cumpre provar que o movimento nativista


avultado principalmente logo depois da abdicação do primeiro
imperador do Brasil, não foi um fenômeno isolado na história
mato grossense, mas manifestou-se com mais ou menos
intensidade, com mais ou menos excesso, em todas as províncias
do Brasil.
Ele nem mesmo pode ser considerado um fenômeno só brasileiro
porque se tem manifestado em todas as pátrias novas que, ao se
separarem de suas antigas metrópoles, voltam-se contra elas com
profundos ódios, filhos de velhos ressentimentos, para mais tarde
se harmonizarem na amizade leal e sadia de filhos da mesma
raça.
O que foram os rancores, com seus excessos dos Estados Unidos,
e de todas as demais colônias americanas, contra as suas
respectivas pátrias mães e qual é a cordialidade que atualmente
reina entre elas?
O que tem sido a luta do Transvaal, da Irlanda ou da Índia contra
o domínio inglês? [...]402

Nesse argumento, Philogonio Corrêa atribui a problemática geral em


torno da “Rusga” à natureza “violenta e desordeira” dos cuiabanos (expressa pelos
seus intérpretes do século XIX referidos anteriormente), em que os excessos e as
violências, de certa maneira, teriam constituído a tônica de todas as nações que
historicamente reagiram à dominação colonial, como, por exemplo, os Estados
Unidos, Transvaal403, Irlanda e Índia.
Quando Philogonio Corrêa recuperou a dimensão do “ódio, dos
ressentimentos e rancores” que, certamente, foram as matrizes de todos os conflitos
entre colônias e metrópoles, o que ele certamente queria demonstrar é que, após os
efeitos sanguinários das “lutas e das guerras”, retomava-se a “cumplicidade, a
amizade e a cordialidade” entre os grupos envolvidos nesses embates.

402
CORRÊA, Philogonio. A significação da Rusga. Revista do Instituto Histórico Geográfico de
Mato Grosso. Cuiabá, t. XXXI/XXXII), 1934, p. 6.
403
Região da África do Sul anexada ao domínio britânico desde 1902. Cf. AJAYI, J.F. História
geral da África, VI: África do século XIX à década de 1880. Editado originalmente por J. F. Ade
Ajayi. Brasília: UNESCO, 2010.

242
Essa dimensão de uma narrativa de “conciliação” certamente era uma
tônica de quase todos os membros do Instituto Histórico e Geográfico404 no período
e,

[...] isso leva a supor o desejo de que a publicação da revista sob


outro viés, começasse a solidificar o caráter pacífico dos mato-
grossenses. Que a tranquilidade e a calmaria [grifos do autor]
é que proporcionavam o tom cotidiano daqueles que habitavam
a capital da província de Mato Grosso. [...]
Os autores citados, membros do IHGMT, sugerem ter buscado
reforçar uma ideia de uma população cuiabana e mato-grossense
hospitaleira e gentil e sem arestas com estranhos [grifos do
autor]405.

Produção importante, na medida em que se buscava desconstruir um


estereótipo do povo cuiabano criado pelos intérpretes do século XIX, no entanto,
acabou por criar um outro, o estereótipo cuiabano ou mato-grossense associado a
uma imagem “pacífica, hospitaleira e cordial”, o que certamente, amenizava os
efeitos das violências perpetradas pelo evento da “Rusga”, como algo esporádico,
temporário e circunstancial, silenciando, por outro lado, as “minúsculas violências
cotidianas” que atingiam a sociedade mato-grossense, numa perspectiva sincrônica
e diacrônica do tempo.
Essas interpretações, embora assumindo diferentes abordagens sobre o
evento de 30 de maio de 1834, colocaram em funcionamento a inteligibilidade de
uma “luta de raças” e, paradoxalmente, omitindo a dimensão de “guerra civil”, uma
vez que a própria Constituição de 1824 considerava os “adotivos” como brasileiros,
merecendo, portanto, gozar dos mesmos direitos dos “nativos”.

404
Em relação aos propósitos de nossa pesquisa, não vamos adentrar em todas as produções
referentes à temática da “Rusga” e produzidas no IHGMT, pois, ao nosso ver, esse tipo de
abordagem historiográfica exigiria uma discussão aprofundada com outros intérpretes do Brasil na
primeira metade do século XX ( Gilberto Freyre, Paulo Prado e Sérgio Buarque de Holanda), cujas
narrativas materializavram a necessidade de se compreender a nossa identidade nacional, os entraves
que nos impediam de chegar à constituição de uma nação desenvolvida, nos moldes da nação norte-
americana etc, Cf. RAGO, Margareth. Sexualidade e Identidade na historiografia brasileira. Revista
Resgate. Campinas, v. 6, n. 1, p. 59-74, 1997.
405
PERARO, Maria Adenir; BORGES, Fernando Tadeu Miranda. Revisitando o Centenário da
Rusga na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT) de 1934. In: Rusga:
uma rebelião no sertão: Mato Grosso no Período Regencial (1831-1840). Ernesto Cerveira de Sena
e Maria Adenir Peraro (Org.). Cuiabá: EdUFMT, 2014, p. 50.

243
Curiosamente, essa perspectiva de pensar a “Rusga” como uma guerra
civil não alcançou a mesma visibilidade nessas narrativas que se construíram sobre
o evento, porém, ela, de certa maneira, já estava presente em alguns documentos do
período, como o descrito por Joaquim José de Almeida, ex-comandante das armas
da província de Mato Grosso, em julho de 1834:

[...] Mato-grossenses, quando deixamos o Cuiabá eu me


encaminhava ao recinto de vossa cidade, vinha animado da mais
lisonjeira esperança de poder anunciar-vos a doce paz, de que
gozavam as belas províncias deste vasto império, e congratular-
me convosco pela fruição do maior dos bens sociais a
tranquilidade pública. Nenhuma nuvem aterradora enlutava
então os horizontes políticos da terra da Santa Cruz. Mas eis
que o gênio do mal surgindo dos tenebrosos antros [...] e
escoltado de seus infames satélites, veio no silêncio da noite
inundar de sangue a aquela infeliz cidade: é em nome da
Liberdade, e da Pátria, que o asilo do Cidadão foi violado, o
Esposo arrancado do braço da querida esposa, e dos caros
penhores do seu amor para ser barbaramente assassinado.
Algumas vítimas subtraídas do ferro fraticida vieram dar me
esta infeliz nova. [grifos nossos]. No excesso da minha justa
dor, eu não exitei um só momento em vir unir me a vós, vossas
virtudes patrióticas me eram conhecidas, em vós eu esperava
achar os vingadores da lei pisada aos pés de infames canibais.
Não me enganei, antes vós ultrapassásseis muito a raia das
minhas grandes esperanças. Cidadãos perseguidos pelos mais
cruentos vândalos, acharam nos nossos braços um asilo
carinhoso, na vossa cidade o Templo da Paz, e da nossa refletida
filantropia aqueles socorros, que o desgraçado tem direito de
esperar de corações bem formados. Somando patriotas,
Autoridades respeitáveis pelo seu zelo, e patriotismo,
Magistrados da vossa escolha, e dignos dela, unindo o seu vosso
unânime consenso e aprovação operaram tão gloriosos feitos,
dignos de certo das Bênçãos da Pátria Agradecida406.

Nota-se que o discurso proferido pelo ex-comandante das armas e


dirigido aos habitantes da cidade de Mato Grosso, em julho de 1834, buscou
anunciar a “paz e tranquilidade” que supostamente reinava em outras províncias do
império, no entanto, o que encontrou foi uma “guerra fratricida”, marcada por atos
de “selvageria e barbárie”.
A descrição seguinte em relação aos envolvidos no movimento
assumiu, nesse discurso, um teor “agressivo, violento, infame”, por quebrar o

406
SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. Op. cit. p. 363-363.

244
cotidiano “tranquilo e pacífico” experimentado até então pela província de Mato
Grosso. Nessa perspectiva, o pacto teria sido rompido e exigia-se uma reparação,
ou, em outras palavras, vingança, o que certamente em termos legislativos não
condizia com o novo código penal do Império de 1830.
Curiosamente, a exigência por “vingança” e não por “justiça” nos
chamou a atenção, pois, diante da violação da lei, o que deveria ser exigido seria o
julgamento e punição aos culpados que violaram a lei e quebraram o pacto social
previsto pelo referido código penal. No caso de sedições e insurreições, o referido
código previa respectivamente:

SEDIÇÃO:
Art. 111. Julgar-se-ha commettido este crime, ajuntando-se mais
de vinte pessoas, armadas todas, ou parte dellas, para o fim de
obstar á posse do empregado publico, nomeado
competentemente, e munido de titulo legitimo; ou para o privar
do exercicio do seu emprego; ou para obstar á execução, e
cumprimento de qualquer acto, ou ordem legal de legitima
autoridade.
Penas - Aos cabeças - de prisão com trabalho por tres a doze
annos.
Art. 112. Não se julgará sedição o ajuntamento do povo
desarmado, em ordem, para o fim de representar as injustiças, e
vexações, e o máo procedimento dos empregados publicos.
INSURREIÇÃO
Art. 113. Julgar-se-ha commettido este crime, retinindo-se vinte
ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força.
Penas - Aos cabeças - de morte no gráo maximo; de galés
perpetuas no médio; e por quinze annos no minimo; - aos mais -
açoutes.
Art. 114. Se os cabeças da insurreição forem pessoas livres,
incorrerão nas mesmas penas impostas, no artigo antecedente,
aos cabeças, quando são escravos.
Art. 115. Ajudar, excitar, ou aconselhar escravos á insurgir-se,
fornecendo-lhes armas, munições, ou outros meios para o mesmo
fim.
Penas - de prisão com trabalho por vinte annos no gráo maximo;
por doze no médio; e por oito no mínimo407.

407
LEI DE 16 DE DEZEMBRO DE 1830 que determinava o código criminal do Império do Brasil.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acessado em
06/02/2018. A “Rusga” curiosamente guarda uma estranha proximidade entre sedição e insurreição,
pela natureza do movimento e de seus participantes. Cf. SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. Op. cit.

245
Ainda sobre o discurso de Joaquim José de Almeida, percebe-se uma
omissão deliberada no sentido de que, ao ocupar um cargo militar, certamente não
ignorava os movimentos que estavam acontecendo em vários pontos do país e que,
para um oficial como ele, não poderiam passar desapercebidos, pois a exigência de
passaportes nas regiões conflituosas dava prova desse conhecimento.
Na perspectiva defendida na presente tese sobre a emergência de um
dispositivo biopolítico, busca-se dar visibilidade a esse elemento da “guerra civil”,
pois mobilizou diferentes operadores materiais de dominação e enfrentamento.
Com isso, a reciprocidade dos diferentes agentes históricos, com suas “vidas postas
em risco” diante da exposição aos embates que se travariam, das mortes que
certamente ocorreriam e das punições que poderiam advir dessas “insurreições ou
sedições”, enfim, surgia a figura do “inimigo interno da população, ou do inimigo
interno do Estado”.
Não se trata de negar as tensões entre “adotivos e nativos”, tampouco
omitir a violência e a participação popular, ou mesmo conferir demasiada
centralidade, ou centralidade às elites. Trata-se de pensar exatamente esse jogo
discursivo em que era evidente a problemática do “inimigo interno” que,
mobilizado por diferentes discursos, conferia um ao outro, reciprocamente, o lugar
de inimigo interno da nação, no caso específico da sociedade cuiabana e mato-
grossense de modo geral.
Diante dessa problemática do inimigo interno, a dimensão de “guerra
civil” começava efetivamente gerar uma tensão entre a população, a qual passou a
ser vista como perigosa, e o Estado interpretado, por muitos, como uma instância
digna de desconfiança.
Vê-se com isso o surgimento do uso estratégico do medo na gestão das
condutas da população mato-grossense, incitado pelo fantasma do evento, o que,
até certo ponto, justifica a construção de um campo de ação política que tentasse
apagar da memória o elemento de desarmonia e desconfiança da população em
relação ao Estado.
Diante dessa situação, o movimento de maio de 1834 ativou uma
preocupação com a “periculosidade” da população em face ao ideal de unidade

246
nacional, primado pela harmonia, tranquilidade e sossego público, e, diante disso,
projetasse mecanismos de contenção e regulação dessa força pulsante da população.
O processo de construção da ordem, em meio às “guerras civis” que
“pipocavam” em diferentes pontos do país, a ideia de “inimigo interno” ou “de
inimigo social” começava a ganhar corpo no seio da população, sendo necessário
se defender contra isso. “Assim, a defesa da sociedade está ligada, pelo fato de ser
pensada, no fim do século XIX, como uma guerra interna contra os perigos que
nascem do próprio corpo social”408.
O movimento da Rusga é significativo no sentido de que os elementos
de uma guerra pensada como continuação da política são bem visíveis, onde o
enunciado de inimigo interno, polarizado entre “nativos e adotivos”, foi deslocado
para pensar os cidadãos, os habitantes com suas condutas e seus modos de vida,
fazendo-se necessário introduzir, agora, uma organização administrativa e política
de construção da ordem, incorporando nessa política os elementos táticos e
estratégicos da guerra:

[...] E, neste momento, inverteríamos a proposição de Clausewitz


e diríamos que a política é a guerra continuada por outros meios.
O que significaria três coisas. Primeiro isto: que as relações de
poder, tais como funcionam numa sociedade como a nossa, tem
essencialmente como ponto de ancoragem uma certa relação de
força estabelecida em dado momento, historicamente precisável,
na guerra e pela guerra. E, se é verdade que o poder político para
a guerra, faz reinar ou tenta fazer reinar uma paz na sociedade
civil, não é de modo algum para suspender os efeitos da guerra
ou para neutralizar o desequilíbrio que se manifestou na batalha
final da guerra. O poder político, nessa hipótese, teria como
função reinserir perpetuamente essa relação de força mediante
uma espécie de guerra silenciosa e de reinseri-la nas instituições,
nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos de
uns e de outros. Seria, pois, o primeiro sentido a dar a esta
inversão do aforismo de Clausewitz: a política ‘é a guerra
continuada por outros meios,' isto é, a política e a sansão é a
recondução do desequilíbrio das forças manifestado na guerra. E
a inversão dessa proposição significaria outra coisa também, a
saber: no interior dessa ‘paz civil’, as lutas políticas, os
enfrentamentos a propósito do poder, com o poder, pelo poder,
as modificações das relações de força - acentuações de um lado,
reviravoltas, etc. -, tudo isso, num sistema político, deveria ser
interpretado apenas como as continuações da guerra. E seria para

408
SENERLAT, Michel. Op. cit., p. 514.

247
declarar como episódios, fragmentações, deslocamentos da
própria guerra. Sempre se escreveria a história dessa mesma
guerra, mesmo quando se escrevesse a história da paz e de suas
instituições409.

O elemento estratégico da guerra passou a se situar, no seio da


sociedade civil, na direção construtiva de projetos de pacificação e de edificação de
uma sociedade que se queria ordeira e pacífica, para que os negócios da província
pudessem fluir com mais naturalidade.
A atenção dos políticos de Mato Grosso passou, então, a se voltar para
a população, com seus hábitos, costumes e modos de vida materializados pelo
discurso sobre a instrução pública, a criminalidade e a saúde, ou seja, seria
necessário instaurar formas de regulação e regulamentação dessas existências em
prol do trabalho.

4.2- Instrução pública: moralizar as condutas da população mato-grossense

Visto enquanto laboratório da Nação, pelo historiador Marcelo Basile,


o período das regências foi de fato, ao nosso ver, também um lugar de experimento
biopolítico, materializado em experiências que começavam a ganhar corpo na
gestão da população, na tentativa de ordenamento do país e dos negócios públicos.
Uma vez transcorrida a “sedição” ou “insurreição” de 30 de maio de
1834, as ações dos políticos mato-grossenses se voltaram para a produção da paz,
da harmonia e da ordem, e para isso conclamavam em discursos posicionamentos
estratégicos que apontavam para a necessidade de controlar e gerir a conduta de sua
população.
Gostaria de enfocar primeiramente o discurso estratégico da instrução
pública como uma das prerrogativas do Estado no processo de regulação e
regulamentação da população por meio de medidas legislativas e executivas do
governo provincial, bem como os enfrentamentos que tais medidas governamentais
provocavam.

409
FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 22-23.

248
No discurso do presidente de província Antonio Pedro de Alencastro,
pronunciado no dia 3 de julho de 1835, já se colocava na agenda política por assim
dizer, a problemática da instrução pública, ao expressar abertamente a importância
dela na formação de “bons cidadãos”, em contraposição ao “estado calamitoso” em
que se encontrava:

[...] ninguém duvida que o Estado de nada necessita mais que de


bons cidadãos; e por que não é a natureza quem os faz, mas sim
a boa educação; e por mais engenho, que tenha uma pessoa, não
pode sem aplicação ser excelente em cousa alguma: confesso,
Srs., que o quanto me é sensível a lenta instrução primária, pelo
que tenho podido alcançar na generalidade das escolas
estabelecidas, que não apresentam todo o aproveitamento. Estou
certo que não dimana em tudo esta falta dos Professores, e muito
especialmente dos pais por não obrigarem aos filhos a frequência
das aulas; e os mestres pelo os não aplicar, como devem aos
estudos410.

O discurso chamou a atenção para alguns pontos importantes: primeiro,


a necessidade de “bons cidadãos” para o Estado; segundo, “bons cidadãos” não se
constituía numa qualidade inata das pessoas, mas sim deveria ser produzida tendo
por base uma boa educação; terceiro, por mais que alguém fosse habilidoso em
alguma atividade, sem instrução não se tornaria excelente em coisa alguma.
Por outro lado, essa positividade da instrução pública nos negócios da
província enfrentava problemas que ofereciam grandes barreiras a serem
transpostas por tais presidentes, como: falta de professores, poucos professores
capacitados e alunos que “deveriam estar estudando”, mas que, por negligência dos
pais, acabavam não frequentando as aulas.
Esse tipo de situação expressava o cenário caótico do ensino primário,
recaindo a culpabilização nas famílias e nos mestres. Diante desse cenário, o
referido presidente de província incitava a intervenção de outros agentes no ensino
público:

Talvez, Srs., que a criação de um Inspetor das aulas para este


intuito corresponde ao fim das nossas esperanças, pois não é

410
ALENCASTRO, Antonio Pedro de. Discurso recitado pelo exm. presidente da provincia de
Matto-Grosso, Antonio Pedro d'Alencastro, na abertura da primeira sessão ordinaria da Assembléa
Legislativa Provincial, em o dia 3 de julho de 1835. Cuiabá: Typ. Provincial, 1845, p. 4.

249
possível que o Presidente da Província possa presidir a exames,
fiscalizar escolas, descer a outras minuciosidades.
É certo que, quanto a fiscalização, as Câmaras Municipais
tomarão parte nela; mas a respeito tais corporações não têm sido
exatas411.

Temos aí a necessidade de outros pontos de apoio de exercício de poder


em relação à instrução pública. Com isso, todas as “minuciosidades” que essa
problemática exigia perpassaria pela criação de um Inspetor das Aulas, o que
redundaria numa maior intensificação do processo de fiscalização exercido pelas
Câmaras Municipais.
Nota-se, nesse sentido, a criação de mecanismos que buscavam garantir
uma regulação e regulamentação da instrução pública por meio de medidas que
previssem a participação de mais pessoas nesse processo instrucional, seja
aumentando o salário dos professores, para que mais pessoas se dedicassem ao
exercício da docência, ou através da apresentação das condições atuais dessa
instrução em toda a província, como podemos observar no referido discurso de
Antonio Pedro de Alencastro:

O aumento dos ordenados aos Professores atenta a localidade e o


número de seus alunos, seria um meio de estimular, e ensinar
eficazmente por ser o tênue ordenado de 150$rs. que percebem
na forma do art. 5º do Decreto de 14 de junho de 1830
insuficiente; por isso que tem apartado alguns da pretensão das
cadeiras vagas, e obrigado a outros já provisionados a impeirar
[sic] e obter as suas demissões. As relações que tenho a honra de
apresentar-vos em n.1 indicam as escolas de 1as letras tanto
públicas, como particulares existentes nessa Província: das
públicas as que estão em exercício, e as que existem vagas, só
duas de ensino mutuo: uma que se acha nesta Capital, e da qual
não sei por que fatalidade, não se tem tirado nenhumas
vantagens, está dirigida por um substituto sem prévio exame; e
outra na Cidade de Mato Grosso, vaga pela falta de mestre, e
continua a ser ali exercitada por um Professor de ensino
individual. Além destas aulas há nesta Cidade uma de ensino de
meninas, que se acha presentemente abandonada por falta de
Professora.
A relação n.2 contém as aulas de Gramatica Latina; e a de n.3 as
de Filosofia, Retórica, Francês e Geometria. Estas três últimas
cadeiras acham - se vagas e a concurso desde sua criação, e sobre
a necessidade de preceptores que as devem exercitar tenho
pedido providências ao Governo Supremo; todavia e da vossa

411
Ibid., p. 4.

250
solicitude, zelo, e patriotismo que se deve esperar o impulso desta
aquisição em proveito da mocidade Cuiabana412.

Ao apresentar as condições da instrução pública na província de Mato


Grosso, o citado governante traçou o aspecto geral do ensino e, a partir daí, a criação
dos meios de intervenção, visando sua melhoria, o que significava, dentre outros
mecanismos, atrair mais alunos para a escola e discipliná-los com a finalidade de
oferecer uma educação capaz de formar “bons cidadãos”.
Além disso, temos também uma dimensão, embora parcial, dos
modelos adotados ou pensados no exercício das atividades docentes, fazendo-se
menção às escolas de ensino mútuo413, ensino individual, escola de meninas que,
de modo ainda cambiante, tentava-se manter na província.
Nota se que a tônica da implantação das escolas de ensino mútuo, que
entrara na pauta política pela Lei de 15 de outubro de 1827, ainda sob o reinado de
D. Pedro I, foi retomada por Alencastro, ao constatar, com “certo pesar”, a
existência de apenas duas escolas baseadas nesse método e, ainda por cima, uma
delas dirigida por um indivíduo sem o prévio exame, ou seja, sem a qualificação
mínima exigida.
O método de ensino mútuo, proposto pelo quacker Joseph Lancaster e
trazido para a política pública do Império, foi retomada pelos presidentes de
província na materialização do combate à ociosidade, ou seja, uma implantação de
mecanismos que, de uma certa maneira, seriam capazes de inverter a conduta da
população, pois:

[...] o mecanismo complexo da escola mútua se construirá uma


engrenagem depois da outra: confiaram-se primeiro aos alunos
mais velhos tarefas de simples fiscalização, depois de controle do
trabalho, em seguida, de ensino; e então no fim das contas, todo
o tempo de todos os alunos estava ocupado seja ensinando seja
aprendendo. A escola torna-se um aparelho de aprender onde
cada aluno, cada nível e cada momento, se estão combinados
como deve ser, são permanentemente utilizados no processo
geral de ensino414.

412
Ibid., p. 4-5.
413
As escolas de ensino mútuo baseavam-se no método criado por Joseph Lancaster, na Inglaterra.
414
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento das prisões. Tradução de Raquel Ramalhete.
Petrópolis: Vozes, 1987, p. 139-140.

251
A importância desse método, como demonstrou a pesquisadora Maria
de Fátima Neves, adivinha de questões que incialmente ultrapassavam a
problemática pedagógica propriamente dita, pois era viável economicamente e
podia prontamente sanar o problema da falta de professores, confiando também o
processo de aprendizagem aos alunos mais adiantados:

A preferência para indicar e adotar o método provinha,


inicialmente, de fatores externos à esfera pedagógica. O primeiro
era o de ser vantajoso, do ponto de vista econômico, e o segundo
provinha da necessidade de resolver em definitivo a divulgação
da instrução e, fundamentalmente, de resolver o problema da
falta de professores415.

Assim, diante de uma província de grande dimensão territorial, mas


com poucos recursos financeiros, o projeto do método ensino mútuo oferecia a
possibilidade de Mato Grosso conseguir o gradual disciplinamento de seus
habitantes, de suas condutas e hábitos e que serão enunciados, como teremos a
oportunidade mostrar, por outros presidentes de província.
Voltando a Alencastro, seu relatório expressava também um “quadro”
geral de todos os estabelecimentos de ensino existentes na província, tanto os
públicos quanto os privados, quantas cadeiras vagas haviam, quantos alunos as
frequentavam e que aulas deveriam ser ministradas. Essa ideia permitia traçar um
plano de ação e de cobrança em relação ao Governo central, no intuito de sanar
alguns dos problemas enfrentados.
Buscando ancoragem no Decreto de 14 de junho de 1830, que aprovou
a criação de diferentes cadeiras de primeiras letras nas Províncias do Rio de Janeiro
e S. Paulo416, marcando o ordenado dos professores, dispondo o limite de seus

415
NEVES, Maria de Fátima. O método lancasteriano e o projeto de formação disciplinar do povo.
Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual Paulista. Assis, 2003, p. 44.
416
Note-se que o Decreto de 14 de junho de 1830, o qual versava sobre a instrução pública em São
Paulo e Rio de Janeiro, não dizia respeito a essa temática em relação a todas as províncias do
Império. Nesse sentido, é significativo que Antonio Pedro de Alencastro, chegado da província do
Rio de Janeiro para acompanhar o processo da Rusga, tenha se pautado nesse decreto para começar
a organizar o ensino na província. Cf. O DECRETO DE 14 DE JUNHO DE 1830 APROVAVA A
CRIAÇÃO DE DIFERENTES CADEIRAS DE PRIMEIRAS LETRAS NAS PROVÍNCIAS DO
RIO DE JANEIRO E S. PAULO E MARCAVA OS ORDENADOS DOS PROFESSORES
DISPONDO O LIMITE DE SEUS PROVIMENTOS. In: Colleção das Leis do Império do Brazil
de 1830. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1876, p. 2.

252
provimentos em 150.000 réis, bem como a exigência de pessoas habilitadas para
exercer a docência, e somente no caso de não haver é que se admitiriam aqueles
sem a devida formação, desde que dessem provas de idoneidade.
O discurso de Antônio José da Silva, pronunciado em 2 de março de
1836, até então vice-presidente da província, retomava as mesmas preocupações
aventadas por Alencastro sobre a importância da instrução pública e do pouco
desenvolvimento em que a mesma se encontrava no momento, mas ele é mais
incisivo em relação à problemática da ociosidade e da instrução enquanto
mecanismo de combatê-la:

A instrução pública tão necessária para a felicidade individual


dos cidadãos, e prosperidade geral da sociedade, não tem sido
aquele adiantamento que era de esperar; por quanto mestres
pouco hábeis tem sido encarregados de tal instrução, e não se
aplica suficientemente a convencer a mocidade de que a
verdadeira liberdade não é inimiga de toda a sujeição, de toda a
dependência, e que não pode existir aquela sem subordinação,
sem Respeito as Autoridades e sem obediência e submissão as
leis.
Convém pois apartar da mocidade a ociosidade, sempre
companheira do vicio que quebra todos os recursos da alma.
A Constituição não pode existir, como convém, sem lançar suas
raízes na alma de todos os cidadãos, e sem imprimir novos
sentimentos, novos costumes, e novos hábitos; e é da ação diária
e sempre crescente da instrução pública, que se pode alcançar tais
mudanças, por que ela os põem em todo o seu valor, tanto para
si, como para seus semelhantes: ensinar lhes a gozar plenamente
de seus direitos, a respeitar e cumprir facilmente todos os seus
deveres, e em uma palavra, a viver feliz.
Os estudos bem dirigidos, Senhores, secundão os professores das
ciências, das letras e das artes; animão os esforços, recompensam
os sucessos, engrandecem no espírito humano as faculdades de
sentir e de conhecer; suscitam por toda a parte o poder da
emulação, deste sentimento generoso, o mais puro princípio da
atividade humana.
Assim é que se pode multiplicar, e disseminar os recursos417.

Nesse discurso foi evidenciada, novamente, a preocupação da instrução


pública enquanto meio de garantir a felicidade e a prosperidade da província e, com
esse intuito, tratava-se de convencer a mocidade cuiabana e mato-grossense de que

417
SILVA, Antonio José da. Discurso recitado pelo exm. vice-presidente da provincia de Matto-
Grosso, Antonio José da Silva, na abertura da segunda sessão ordinaria da Assembléa Legislativa
Provincial, em o dia 2 de março de 1836. Cuiabá: Typ. Provincial, 1845, p. 3-4.

253
“nem toda forma de sujeição era inimiga da liberdade”. Diante dessa preocupação,
a Lei no 29, de 5 de setembro de 1835 atuou como uma estratégia importante, pois
agia diretamente na mocidade:

Artº. 1º. O Governo Provincial mandará immediatamente, depois


da publicação deste Decreto, alem do arrolamento geral
determinado na Lei de vinte e seis de Agosto deste anno, formar
outro de individuos somente de doze a desseseis annos que não
estejão ligados a empregos honestos, e por isso nas circunstancias
de serem applicados a officios Mecanicos.
Artº. 2º. Este arrolamento se fará sucessivamente em cada anno
e os assim alistados no Municipio da Capital, serão remettidos ao
Governo, e nos outros a primeira Auctoridade Policial.
Artº. 3º. Ao Governo no Municipio da Capital, e nas outras á
primeira Auctoridade Policial, compete a divisão proporcional
destes individuos pelos Mestres.
Artº. 4º. Os Discipulos ficão sujeitos aos Mestres, durante o
praso de cinco annos, tempo em que estes tem toda a jurisdição
sobre elles prestando- lhes todavia o sustento, e vestuario, e no
acto de vacancia de algum discipulo o Mestre poderá requisitar a
competente Authoridade outro para seu estado completo.
Artº. 5º. Haverão para este fim Livros de Matricula, que serão
ministrados pelas respectivas Camaras, para o com regime desta
classe por onde as mencionadas Authoridades, e a encarregada
pelo Governo, possão annualmente em Janeiro dar partes
circunstanciadas ao mesmo Governo da aplicação, e progresso de
cada hum418.

Com isso, tratava-se de inculcar valores morais que condenavam a


ociosidade, a preguiça, a indolência e todas as formas de vício que poderiam atingir
a mocidade. Coadunava-se, nesse sentido, com a necessidade de sujeição às leis, ao
aprendizado de novos hábitos e costumes capazes de garantir a ordem, a obediência
às leis e às autoridades.
Outro aspecto tocado por Antonio José da Silva foi a problemática do
trabalho e dos recursos provinciais, pois, como ele mesmo apontou, tratava-se do
mais puro princípio da ação humana capaz de multiplicar e disseminar os recursos,
perpassando pelo conhecimento e pelas artes, ou seja, necessário e urgente se fazia
a visão idealizada da educação proposta pelos enciclopedistas do século XVIII,
como princípio garantidor da felicidade.

418
LEI PROVINCIAL Nº 29, DE 5 DE SETEMBRO DE 1835, P. 1. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-29-1835.pdf. Acessado em 10/01/2018

254
No mesmo ano de 1836, Antonio Pimenta Bueno, ainda desdobrando o
discurso de Antonio José da Silva em relação à importância da instrução pública,
especialmente a educação moral e cívica da população mato-grossense, por meio
de um ato de força e de sujeição dizia que:

[...] uma grande parte dos habitantes da Província vestindo-se


apenas com tecidos do país, alimentando-se facilmente pela
muita facilidade do peixe, parece ter decididamente renunciado
aos prazeres do homem civilizado; até o sal é por eles muitas
vezes dispensado: não será prudente impor mais sobre esses
gêneros, atendendo se que convém antes mudar os costumes
dessa grande parte da população, e clamá-la a novos hábitos, e
necessidade da civilização, protetora da indústria, e da riqueza
social419.

Esse tipo de visão eurocêntrica desconsiderava os modos de vida e de


conduta até então adotados pela população mato-grossense e figurava nesses
relatórios e discursos apresentados pelos primeiros presidentes de província de
Mato Grosso enquanto obstáculo a ser ultrapassado por meio de uma imposição de
força capaz de constranger tal população a adotar novos hábitos e costumes,
principalmente em relação à sua camada mais pobre e aos indígenas, pela
catequese420:

O desenvolvimento da razão, e por conseguinte da moral,


Senhores, é quem estabelece a ordem que ocupamos entre os
seres animados; e quem tornando nos aptos para o gozo de
diversos bens, inclusive as formas sociais protetoras da
liberdade, pode garanti-las com firmeza e proveito. Refletindo-
se um pouco seriamente sobre as Instituições que nos regem,
sobre o grão de capacidade ou civilização, que elas demandam,
para que não retrogradem, nem definhem como plantas
perigrinas, e deixem de produzir fruto, ou produzam somente
insonso e peco421, é doloroso o sentimento que resulta de ver se
o geral da nossa população tão atrasado em inteligências

419
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso recitado pelo exm. presidente da provincia de Matto-
Grosso, Antonio Pimenta Boeno, na abertura da sessão extraordinária da Assembléa Legislativa
Provincial, no dia 30 de novembro de 1836. Cuiabá: Typ. Provincial, 1845, p. 15-16.
420
Vale ressaltar que a questão da catequese já era recorrente desde o período colonial, mas naquele
momento (1836) tal função já era vista enquanto atribuição de políticas de Estado e não mais uma
prerrogativa dada exclusivamente à Igreja. Nesse sentido, a Igreja, deixava de ser uma funcionária
da Coroa passando a atuar em parceria ao Estado Liberal no controle das condutas dos índigenas,
processo que representou uma perda de autonomia da autoridade religiosa em prol de um Estado
laico, iniciado com a expulsão dos jesuítas em 1759. Vide Capítulo 2 da presente tese.
421
Fruto peco é o que cai do pé antes de amadurecer, fica ruim para comer.

255
[grifos meus], e os princípios morais da liberdade por isso em
perigo, como por vezes já tem sido, de servir a interesses
privados criminosos contra a causa pública, contra as próprias
vítimas que os secundão. E não são somente nossas instituições
que reclamam o emprego de todos os recursos na organização e
aperfeiçoamento da instrução primária.
A voz de todos os melhoramentos materiais e morais é uníssona
em exigi-los.
O agricultor embora tenha na Província solo rico, clima fecundo,
não há de poder tirar dele todo o proveito, sem que se lhe feneçam
os meios de poder estudar o aperfeiçoamento de seus
instrumentos, preparar o terreno, melhorar a criação dos seus
animais; e isto que com ele acontece, verifica-se com todos os
demais, que exercem qualquer outro ramo de indústria, cujo
incremento tanto influi por seus resultados sobre a moral pública.
Sem a instrução primaria, que é a chave de comunicação do
mundo civilizado, dele retirados ignoram os homens os primeiros
princípios de suas profissões, e atados unicamente as noções, que
uma vez receberam, conservam-se estacionários, renunciando,
a maneira dos nosso Índios [grifos meus] toda a ideia de
melhoramentos, que lhes parecem sonhos422.

Vista pejorativamente por inculta e menos instruída e atrasada em


inteligência, o ideal de civilização passou a ser posto enquanto meta a ser alcançada
na província de Mato Grosso, e a instrução seria o meio mais eficaz de garantir a
plena realização de uma sociedade rica e próspera.
Esse tipo de visão demonstrou que a província estava, na ótica
governamental, ainda aquém dos ideiais do progresso que se queria alcançar, à guisa
dos paradigmas culturais europeus. Assim, por exemplo, segundo a historiadora
Lylia da Silva Guedes Galetti, era comum que os viajantes que ali chegavam
encontrassem um Mato Grosso preso ao estigma da barbárie e do isolamento, pois,
para eles:

[...] as condições de Mato Grosso, fossem vistas pelo ângulo das


riquezas inexploradas, pela quase inexistência de vias de
comunicação em seu território, ou pela lenta dinâmica das poucas
atividades produtivas, empurravam a imaginação dos viajantes
para muito longe, não apenas dos lugares, mas sobretudo, do
tempo em que viviam. Tempo de velocidade, tempo de grandes
contigentes populacionais concentrados na cidade, tempo de
progresso e civilização [grifos da autora]. Um tempo que lhes

422
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso recitado pelo exm. presidente da provincia de Matto-
Grosso, José Antonio Pimenta Boeno, na abertura da terceira sessão ordinaria da Assembléa
Legislativa Provincial, em o dia 1.o de março de 1837. Typ. Provincial de Cuiabá, 1845, p. 5-6.

256
parecia mais distante quanto mais perto estavam de Mato
Grosso423 [...]

A ótica dos viajantes trazida pela historiadora Galetti em relação ao


território mato-grossense reproduziu um estereótipo eurocêntrico, que será alvo de
investimento dos presidentes de província de Mato Grosso, materializado através
de medidas legislativas que tentaram explorar o potencial das suas riquezas
naturais, criando meios de comunicação, dinamizando as rendas provinciais,
intruindo a população e catequizando os indígenas etc.
Não é à toa que Pimenta Bueno lançou mão de metáforas botânicas em
relação à instrução primária, uma vez que se tratava de inculcar os valores da
civilização enquanto forma de prazer, de comodidade e de avanço capaz de produzir
frutos saborosos, desde que se dedicassem cuidadosamente ao cultivo das pessoas,
através de sua educação e instrução.
Tal situação, na verdade, retomou novamente uma metáfora iluminista
de cultura, que desdobrava a ideia de uma cultura aplicada às plantas e aos jardins,
para uma ideia de cultura dirigida às pessoas, onde a comparação da juventude a
um fruto, que sem os devidos cuidados acaba por cair do pé antes de amadurecer
e que portanto, fica ruim para o consumo, trata-se de uma referência direta à
qualidade dos cidadãos formados na província de Mato Grosso.
Diante desse estado de coisas, verificava-se quase a mesma situação
apontada no discurso de Alencastro em relação ao ensino primário, ou seja, um
cenário em que havia uma grande carência de professores qualificados, adicionado
à grande ausência de alunos e de cadeiras vagas:

[...] Existem criadas nesta Capital aulas de Geometria que deve


ser também d’Aritmética, Língua Francesa, Retórica, e Filosofia:
todas se acham vagas, a exceção da última, cujo Professor depois
de estar impedido por dilatado tempo, voltando a regência da
cadeira não tem obtido até o presente um só aluno.
Das quatro cadeiras de Gramática Latina que há na Província, só
se acham ocupadas a da Capital, e Vila de Poconé.
Seria para deplorar o estado de inanimação, que estes estudos
apresentam, se o estado da instrução primária não devesse
chamar ainda com mais direito todas as vistas e atenção.

423
GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Sertão, Fronteira, Brasil: imagens de Mato Grosso no mapa
da civilização. Cuiabá/MT: Entrelinhas; EdUFMT, 2012, p. 102.

257
Segundo a lei de 15 de outubro de 1827, e lei provincial n.9 de
12 de agosto de 1835 acham-se criadas 14 Cadeiras de Primeiras
Letras para o ensino de meninos, e 4 para o de meninas nos
Municípios e Paróquias, que demonstra a relação n.2 de todas as
18 Cadeiras apenas estão providas 6, não tendo quase todos esses
Professores a necessária aptidão!
A simples exposição de semelhante estado da instrução
elementar é bastante para contristar, e fazer sentir a necessidade
imperiosa de empregar todos os recursos capazes de dar ânimo,
e organização a base de toda a civilização424.

Em descontinuidade à educação ministrada pelos padres e missinários


que não recebiam proventos por conta de seus votos de obediência, e por encarar a
atividade de ensino enquanto missão, o discurso liberal de Pimenta Bueno apontava
para a problemática dos proventos pagos aos professores, tendo sido categórico em
notar que os oferecidos não eram atrativos para que pessoas qualificadas optassem
pela docência:

[...] como é possível que um homem de alguma inteligência e


moralidade sujeite-se ao penoso trabalho de reger uma Aula de
meninos pelo insignificante prêmio de 150$000 por ano, quantia
menor do que o vencimento de um soldado Municipal? Como
subsistir com essa quantia insuficiente, especialmente nesta
Província onde tudo é caro, para satisfazer as necessidades mais
urgentes; e quando o encargo não deixa tempo para curar de
outros meios de existência?425

Em face desse dilema, o referido dirigente da província sugeriu algumas


estratégias para se aumentar o ordenado dos professores, mesmo que em face da
extinção de outras cadeiras instaladas em outros pontos da província. Busca-se
pagar melhor um grupo, os docentes da capital, em detrimento de outros, além de
propor a redução das aulas. Em suas palavras:

É preferível, Senhores, extinguir as três Cadeiras de Gramática


Latina de fora da Capital, e na última necessidade diminuir o
número das Aulas de primeiras letras para oferecer ordenados,
que convidem pessoas capazes a aceitar as Cadeiras, que ficarem
existindo, do que ter muitas aulas na imaginação, e nem uma na
realidade426.

424
Ibid., p. 4-5.
425
Ibid., p. 6.
426
Ibid.

258
Esses problemas acabaram por criar uma espécie de ciclo vicioso que
era preciso resolver, uma vez que os salários baixos não estimulavam profissionais
a se dedicar à docência, e os que estavam na função não se sentiam ameaçados em
seus cargos, pois não havia concorrentes que pudessem assumir a atividade.
Visando diminuir esse estado de coisas e regulamentar a instrução
pública, ainda sob o governo de Pimenta Bueno, foi sancionado a Lei de 5 de maio
de 1837427, composta de 45 artigos os quais preconizavam criar mecanismos de
controle na implantação das escolas públicas, suas modalidades de ensino,
habilitações necessárias aos professores, suas suspensões, remoções e demissões,
mas também a regulamentação das inspeções sobre as escolas e exames dos alunos,
e, ao final, dispondo sobre as obrigações dos pais de família em relação à instrução
primária. Assim se apresentava a seguinte lei:

Carta de Lei pela qual Vossa Excellencia manda executar o


Decreto da Assembléa Legislativa Provincial, que houve por bem
Sanccionar, dividindo a Instrucção Primaria em dous gráos, e
prescrevendo o modo por que serão estabelecidas, e suprimidas
as Escolas Publicas, regulando os ordenados dos Professores, sua
habilitação, concurso, preferencia, provimento, suspensão,
remoção, e demissão, inspecção sobre as Escolas, e o mais que
acima se declara428.

Semelhante legislação materializava um discurso que incumbia uma


série de atributos e minúcias que deveriam atentar para o estabelecimento de ações
práticas capazes de tirar do estado de inércia em que se encontrava o ensino público,
nutrindo grande esperança nessa medida legislativa:

Com quanto tal seja por ora o estado da instrução elementar, é,


todavia, fora de dúvida, que a Lei Provincial n. 8 de 5 de maio de
1837 há de melhorá-la muito.
Sem que seja preparado o terreno não se colhe muitos frutos. É
de mister confessar que sobre demandarem os costumes públicos
alguma modificação para que as gerações que nascem procurem
a instrução, cumpre, que os nossos atuais Professores aprendam
para poder ensinar com proveito. Aquela Lei reconheceu as

427
Cf. LEI PROVINCIAL Nº 8, DE 5 DE MAIO DE 1837. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-8-1837.pdf. Acessado em 10/01/2018.
428
Ibid., p. 6.

259
diversas causas, que empecem os progressos do estudo primário,
e por consequência do desenvolvimento intelectual da mocidade:
a proporção que ela for tendo execução iremos obtendo
melhoramento429.

O discurso de Pimenta Bueno, nesse sentido, curiosamente convocava


a participação dos professores para melhor compreender e melhorar os fatores que
impediam o desenvolvimento da instrução, principalmente em relação ao número
de alunos que frequentava as aulas. Dessa maneira, lembrava ele que:

O Governo exigiu em agosto próximo passado de todos os


Professores Públicos informações mensais do estado de suas
Aulas, exposição dos obstáculos, que encontram no ensino,
razões que influirão acerca do número e frequência de seus
discípulos, e indicação das providências adequadas para removê-
los, e dar ânimo a instrução430.

E eis que, mesmo com tais intenções, no governo de Ribeiro de Rezende


pouca coisa havia mudado e o quadro geral das aulas e da vacância das cadeiras não
fora suprida a contento, continuando a mesma lamentação em relação a essa
problemática:

Eis em resumido, mais fiel quadro, o estado em que se acha a


Instrução pública da nossa Província, estado realmente bem
desagradável. Convence-nos ele de que não há melhor pedra de
toque para as instituições, do que a experiência.
A nossa Lei Provincial N.8 de 5 de Maio de 1837 precisa de mais
eficácia, na parte em que trata da obrigação dos Pais de famílias
acerca da instrução primária.
Não há ali, creio eu, quem desconheça o indiferentismo em que
a classe menos abastada olha em toda a parte para a instrução,
sua repugnância em dar seus filhos á Escola, e a reconhecida
incapacidade de muitos Professores, que mais agrava o primeiro
mal431.

429
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso recitado pelo exm. presidente da provincia de Matto-
Grosso, José Antonio Pimenta Boeno, na abertura da primeira sessão da segunda legislatura da
Assembléa Provincial, em o dia 1.o de março de 1838. Cuiabá: Typ. Provincial, 1845, p. 6.
430
Ibid. p. 5-6.
431
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Acta com que o Presidente da Província de Mato Grosso fez a
abertura da Segunda Seção Ordinária da Segunda Legislatura da Assembleia Provincial no dia 2
de março de 1839, p. 7-8. (manuscrito)

260
Novamente, a classe menos abastada foi vista com indiferença em
relação aos estudos e aos prazeres do homem civilizado. Diante disso, o que
propunha Ribeiro Rezende em relação à vida desse segmento interiorizado da
população era, na verdade, um maior rigor na aplicação daquela lei e que esta
também incidisse sobre os pais dos alunos de camadas mais pobres:

Artº. 32º. Os Paes de familia que possuirem meios são obrigados


a dar a seus filhos a instrucção primaria aos menos do primeiro
gráo nas Escolas Publicas, particulares, ou em suas proprias
casas: esta obrigação começa aos oito annos de idade dos
meninos e dura até os deseseis.
Artº. 33º. Os Paes, que infringerem o disposto no artigo
antecedente pagarão a custa dos bens de sua terça o imposto
annual de seis mil reis por cada um daquelles durante o tempo
que decorrer de oito a deseseis annos da idade dos mesmos.
Artº. 34º. Os respectivos Collectores intimarão aos Paes que
estiverem nas circunstancias do artigo 32º para que cumprão sua
obrigação; e caso findos os primeiros seis mezes estes não
observem o disposto nesta Lei começarão a cobrar delles o
sobredicto imposto annual até que mostrem que os seus filhos
estão aprendendo, ou que apresentem dispensa do Governo.
Artº. 35º. O Governo só dará simelhante dispensa, caso os Paes
mostrem falta de meios, ou outras rasões assaz attendiveis.
Artº. 36º. O producto desde imposto por Municipios será dividido
em premios pelos alumnos pobres das aulas publicas que
mostrarem maior aproveitamento, sem que possa ter outra
applicação.
Artº. 37º. Os Juizes de Paz são obrigados por si, e seus officiaes
de quarteirão a dar todos os esclarecimentos, que os Collectores
exigirem a respeito do que fica disposto neste título432.

Ou seja, a medida legislativa que buscava intervir diretamente no


funcionamento do ensino público, constituindo uma rede complexa de relações de
obrigações, fiscalizações, deveres e direitos, como fora anteriormente proclamada,
apresentava brechas.
Pela referida lei, o ensino era visto como um direito cabível a todas as
pessoas livres, o que excluía dessa possibilidade os escravos, enquanto que para os
indígenas ela preconizava a catequese. Em todo caso, a obrigação dos pais ou
tutores de manter os filhos na instrução primária, entre os 8 e 16 anos, foi cobrado
apenas daqueles que tivessem recursos financeiros, sendo que seu descumprimento

432
LEI PROVINCIAL Nº 8, DE 5 DE MAIO DE 1837. Op. cit., p. 5.

261
acarretaria em multas, mecanismo que isentava os pais de alunos pobres. Tal
situação criava um ciclo vicioso exposto no relatório do presidente de província
Ribeiro de Rezende, em 1º de março1840:

Aquela Lei compreendo, é verdade, ambos os obstáculos


decretando, para remover o primeiro contra os Pais negligentes,
o imposto anual de 6$000 reis, e para remover o segundo,
demissão.
Ela porém, enfraqueceu, em vez de fortalecer, aquele dever dos
Pais, e deu campo a abusos, que a experiência tem mostrado,
desde que dele isentou aqueles, que não possuírem meios, sem
declarar quem deveria conhecer previamente desta questão, e
sem precisar mesmo a genérica disposição do at. 32.
Necessária é pois, Snrs. Esta providência para tirar a desculpa da
ignorância, a vontade da interpretação, e o abuso da execução433.

A questão da instrução pública assumida enquanto papel do Estado já


havia sido expressa na Lei provincial de 5 de maio de 1837, atuando num campo
de conhecimento e de exercício de poder que vinha sendo debatido e apresentado
pelos relatórios dos presidentes de província, desde o governo de Antonio Pedro de
Alencastro.
Questões correntes, como a falta de alunos, de cadeiras vagas, de
professores habilitados, de pais negligentes, de alunos pobres, carência de prédios
adequados para se ministrar as aulas434 e os baixos proventos pagos aos professores,
foram um dos aspectos que mereceram a atenção dos presidentes da província de
Mato Grosso, ao externar possíveis soluções em seus relatórios e, na medida do
possível, buscar intervir, por meio de medidas legislativas, sanar algumas dessas
barreiras.
Em relação ao ordenado de 150$000 réis anuais, oferecidos aos
professores pelo Decreto imperial de 14 de junho de 1830, foi o mesmo considerado
insuficiente pela Lei provincial de 5 maio de 1837. Diante disso, esse provento foi
aumentado em duzentos mil réis, o mínimo para aqueles que se dedicassem à
regência do primeiro grau, e de trezentos mil reis o máximo, para os que

433
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso que recitou o exm. snr. doutor Estevão Ribeiro de
Rezende, presidente desta provincia, na occasião da abertura da Assembléa Legislativa Provincial
no dia 1.o de março do corrente anno. Cuyabá: Typ. Provincial, 1840, p. 8.
434
Cf. RESOLUÇÃO PROVINCIAL Nº 2, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1836. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/rsi-2-1836.pdf. Acessado em: 10/02/2018

262
ministrassem as aulas no segundo grau, os quais receberiam entre trezentos e
quinhentos mil réis, podendo haver complementação salarial através das
bonificações oferecidas pelo governo, tendo por base o número de alunos, ou
mesmo serem oferecidas espontaneamente pelos pais de alguns alunos que
quisessem gratificá-los. No entanto, seria cabível de punição aos professores se
constatada a concessão de privilégios ao ministrarem as aulas aos filhos de pais
mais abastados.
Pelo o que diz respeito aos alunos pobres, a Lei no12 de 6 de maio de
1839, estabeleceu que, para os alunos das camadas mais pobre da população, o
conteúdo escolar poderia ser reduzido. Assim, entre as despesas orçadas em relação
a instrução pública temos:

Com a Instrucção Publica..........................................10:700$000


A saber:
1º. Ordenados dos Professores das Aulas
maiores.........................................................................2:800$000
2º. Consignação p.ª as obras do Edificio, em q. estas se devem
reunir............................................................................2:000$000
3º. Ordenados aos Professores de 1as Letras..................4:800$000
4º. Gratificação aos Professores a q. o tiverem o nº de alunnos
indicado na Lei, papel e mais utensilios necessarios p.ª o ensino
dos q. forem pobres........................................................ 900$000
5º. Ajuda de custo para as despezas da vinda ao Professor da
Escolla Normal, que foi instruir-se ao Rio de
Janeiro............................................................................200$000
O Presidente da Provincia é, todavia auctorisado a fazer maior
despeza, q.do seja necessario para pôr em execução as Despezas
da Lei nº 8 de 5 de Maio de 1837, havendo recursos para isso435.

Todos esses mecanismos implementados pela província em relação à


instrução pública, certamente não poderiam prescindir de vigilância e punição.
Vigilância em relação ao número de escolas em funcionamento, quantos alunos as
frequentava, quantos desistiam, de que maneira os professores ministravam suas
aulas etc., intervindo, nessa medida, na conduta dos alunos, pais e professores.

435
LEI PROVINCIAL Nº 12, DE 6 DE MAIO DE 1839, QUE ORÇA RECEITA E DESPESA
PARA O ANO FINANCEIRO DE 1 DE JULHO DE 1839 A 30 DE JUNHO DE 1840, p. 2.
Disponível em: https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-12-1839.pdf

263
Ainda em relação à Lei no 8, de 1837, essa fiscalização caberia ao
Inspetor Especial, nomeado pelo Inspetor Geral dos Estudos Públicos da Capital e
Província, a quem competia:

§1º. Vesitar e nomear vesitadores parciaes das Escolas, os quaes


se regularão pelas Instrucções que delles receberem.
§2º. Suspender os Professores quando da demora da decisão do
Governo se possão seguir graves inconvenientes.
§3º. Nomear, e approvar intirinamente os substitutos do primeiro
e segundo gráo nos casos de falta, ou impedimento dos
Professores, dependendo de approvação do Governo para
cobrarem o ordenado, que será de metade do que tiver o
Proprietario, caso não haja entre elles convenção a esse respeito.
§4º. Fazer observar esta Lei, Regulamento, e Ordens do Governo,
esmerando-se em que seja a mocidade doutrinada nos mais juros
idéas religiosas, e moraes, e importancia da união e integridade
do Imperio.
§5º. Inspeccionar as Escolas particulares, e communicar ao
Inspector Geral dos Estudos e ao Governo o que for conveniente
a esse respeito436.

Além disso, era dever dos Inspetores Gerais e Especiais conduzir o


processo de aplicação de pelo menos um exame geral durante o ano, que, dentre
outras coisas, se predispunha ao subsídio para avaliar a situação do ensino público
e da qualidade das aulas ministradas. Nesse processo, poderia o mesmo ser
auxiliado pelos pais de família que quisessem acompanha-lo no referido exame.
Em relação às punições cabíveis em relação aos pais negligentes, como
dito anteriormente, cabia uma multa para os mais abastados, enquanto a punição
para os professores negligentes seria sua exoneração. As brechas que a própria lei
apresentava incitava ainda mais a necessidade de seu rigor e ampliação, na tentativa
de gerir as condutas de pais, alunos e professores.
Assiste-se, com a problemática da instrução pública, o funcionamento
de uma forma de exercício político em que o alvo central era a população, uma vez
que se tratava, por meio desse investimento político, de formar bons cidadãos, o
que, em outras palavras, significava produzir homens dóceis, obedientes aos bons
costumes e cumpridores das leis que, movidos por princípios morais se
predispuzessem a desempenhar com eficiência as atividades necessárias ao

436
LEI PROVINCIAL Nº 8, DE 5 DE MAIO DE 1837. Op. cit., p. 4.

264
desenvolvimento da província, ou começassem a sair da indolência e ociosidade
para se dedicar ao trabalho.
Note-se, portanto, que toda a problemática da instrução pública
dependia do investimento na moralidade do trabalho, moldando novos hábitos e
costumes a esse princípio, o que, certamente, incluía também a catequese dos
índios. A seguir, discutiremos mais detidamente a problemática da catequese
indígena em face à problemática do trabalho.

4.2.1- A catequese dos índios: entre civilização e barbárie

Gostaria agora de enfocar a problemática da catequização indígena


veiculada nos relatórios dos presidentes de província de Mato Grosso, buscando
traçar os mecanismos de disciplinamento de suas condutas, vidas e corpos em prol
de um ideal de civilização que se tentava inculcar na população mato-grossense por
meio da catequese.
A problemática em relação às formas de representação dos nativos data
do período colonial, marcada pelas visões míticas projetadas “do bom e do mau
selvagem", ora timbradas pela inocência, ora pela brutalidade e violência que
configuravam, no discurso colonizador, uma justificativa ideológica de intervenção
sobre suas existências:

Interessante notar que os povos indígenas em seu


desenvolvimento sócio/cultural reproduziram junto aos
portugueses as mesmas relações que detinham entre si. A
transformação dessa realidade se deu de forma amena ou brutal
dependendo da aceitação ou não do processo civilizacional
introduzido pelos brancos. Sabemos muito bem que muito
poucas foram as tribos que aceitaram a sujeição pura e simples.
Mas, também, que os portugueses necessitavam de aliados de
braços para a faina diária e não dispunham de um exército branco
que pudesse garantir a posse, assim as alianças com diversas
tribos, aproveitando-se as suas próprias dissensões internas, foi o
caminho natural que os portugueses encontraram para executar a
obra de colonização437.

437
SILVA, Jovam Vilela. Tom sobre tom: o ouro vermelho no contexto do povoamento brasileiro.
Povoamento, população (etnias) e demografia no período colonial brasileiro. Revista Coletâneas de
Nosso Tempo. Cuiabá, v. 1, n. 1, 1997, p. 49.

265
Agora, diante de uma realidade de país independente, a problemática
dos povos indígenas foi colocada sob o prisma da civilização e do pensamento
liberal, assumidos naquele momento pelos políticos do período regencial enquanto
mecanismo de “integração” das nações indígenas ao mundo do trabalho, incluindo
também as camadas menos abastadas da população, ensejando a configuração
enquanto premissa da riqueza das Nações.
Esse princípio de positividade do corpo indígena que se assumia nas
regências e que foi implantado pelos presidentes de província de Mato Grosso nas
décadas de 1830, se apresentou como tentativa de descontinuidade em relação à
visão “declaradamente de extermínio”, estabelecida em relação aos índios
Botocudos, proposta pela carta régia de 1808 em que:

Em primeiro lugar que logo desde o momento em que receberdes


esta minha Carta Regia, deveis considerar como principiada a
guerra contra estes bárbaros Índios: que deveis organizar em
corpos aqueles Milicianos de Curitiba e do resto da Capitania de
S. Paulo que voluntariamente quiserem armar-se contra eles, e
com a menor despesa possível da minha Real Fazenda, perseguir
os mesmos Índios infestadores do meu território; procedendo a
declarar que todo o Miliciano, ou qualquer morador que segurar
algum destes Índios, poderá considerá-los por quinze anos como
prisioneiros de guerra, destinando-os ao serviço que 'mais lhe
convier; tendo porem vós todo o cuidado em fazer declarar e
conhecer entre os mesmos Índios, que aqueles que se quiserem
aldear e viver debaixo do suave jugo das minhas Leis, cultivando
as terras que se lhe aproximarem, já não só não ficarão sujeitos a
serem feitos prisioneiros de guerra, mas serão até considerados
como cidadãos livres e vassalos especialmente protegidos por
mim, e por minhas Leis: e fazendo praticar isto mesmo
religiosamente com todos àqueles que vierem oferecer-se a
reconhecer a minha autoridade e se sujeitarem a viver em pacifica
sociedade debaixo das minhas Leis, protetoras de sua segurança
individual e de sua propriedade438.

Esse tipo de guerra em relação aos nativos, em princípios de 1831, e


sua consequente escravização por 15 anos, como prisioneiros de guerra, novamente
entrou nos debates parlamentares do Império, culminando na sua revogação. Nesse

438
D. JOÃO VI. CARTA RÉGIA - DE 5 DE NOVEMBRO DE 1808: SOBRE OS ÍNDIOS
BOTOCUDOS, CULTURA E POVOAÇÃO DOS CAMPOS GERAIS DE CURITIBA E
GUARAPUAVA. In: Coleção das Leis do Brasil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891,
p. 157-158.

266
sentido, discursava o presidente da província de Mato Grosso, Saturnino da Costa
Pereira:

[...] Ninguém nega quanto é horrorosa a conservação dos


indígenas no estado de escravidão; quanto ataca os princípios da
humanidade; a Carta Régia, que se trata de revogar; e quanto
importa cortar por uma vez os abusos, que da extensão que se
tem dado a esta mesma Carta Régia439.

Essa revogação, embora atacasse os pontos referentes à guerra contra


os índios e sua escravização no campo prático da implantação das ações provinciais
em relação às condutas das nações indígenas, o que se verificou foram exatamente
as mesmas dimensões da política implantada por D. João VI, uma vez que
assegurava uma “proteção pelas leis”, desde que os gentios reconhecessem a sua
Autoridade e se submetessem às suas ordens.
Temos, entre 1808 e 1831, uma dobra discursiva que, curiosamente, ao
mesmo tempo em que buscou uma “ruptura” com a política precedente, acabou
mantendo os mesmos princípios de atuação em relação aos indígenas, ou seja, sua
“incorporação e proteção”, desde que dessem mostras de sujeição, exclusão ou
extermínio, justificados pelas “rebeldias” em ações consideradas bárbaras.
Na província de Mato Grosso, as medidas legislativas em relação à
conduta dos indígenas, como apontado no relatório de Antonio Pedro de Alencastro,
eram para ser iniciadas em 1834, mas foram retardadas por conta do episódio da
“Rusga”:

No ano de 1834 se propôs este Governo a organizar uma


Diretoria para a Catequese dos indígenas, e foi interrompido o
seu projeto pela sedição de 30 de maio do dito ano; mas o seu
prosseguimento será fácil sendo animado pelos vossos cuidados,
e medidas legislativas440.

Em 1835, o mesmo governante provincial sancionou a Lei provincial


no 7, de 12 de agosto de 1835, que versava sobre o estabelecimento de uma Colônia
entre os Rios Sucuriu, Taquari e Pequiri, para habitação da horda de indígenas da

439
DISCURSO DO SR. SATURNINO NA SEÇÃO DE 13 DE MAIO DE 1830. Op. cit., p. 108.
440
Cf. ALENCASTRO, Antonio Pedro de. Discurso de 3 de julho de 1835. Op. cit., p. 5.

267
nação Caiapó, emigrada da província de Goiás para a de Mato Grosso, nas
imediações desses rios.
Por essa lei percebe-se que, ao mesmo tempo em que se buscava criar
condições de integrar as nações Caiapó que fugiram de Goiás, objetivava-se
também integrar uma estratégia de povoamento e colonização nas áreas fronteiriças,
por meio de estradas e rios.
Diante desse cenário, o trabalho indígena e das camadas marginalizadas
da população seria de fundamental importância no bojo do projeto, vislumbrando
com essa proposta o combate a um modo de vida caracterizado, pelos discursos
enquanto ocioso, errante e desregrado, por meio de mecanismos de disciplinamento
com base nas forças policiais convocadas em seu auxílio, bem como pela ação da
catequese. Assim, no:

Artº. 1º. Desde já se estabelecerá entre as nascentes dos Rios


Sucuriu, Taquari, e Piquira huma Colonia, q. deverá ser habitada
pela horda de Indios da Nação Caiapo, que proximamente
emigrou da Provincia de Goyaz para esta, e se acha nas
immediações do Piquira.
Artº. 2º. Está Colonia será collocada no lugar, que dentro dos
limites marcados no artigo antecedente, mais commodidades
offerecer aos novos Habitantes, e em contacto com a estrada, que
se está abrindo em direcção á S. Paulo, a fim de que os viajantes
e Colonos se prestem mutuos soccorros.
Artº. 3º. Designado o ponto, em que deve ser fundada a Colonia
será o terreno nivelado e dividido simetricamente de maneira, q.
os Edificios pela sua construcção e regularidade concorrão para
a elegancia e salubridade da Povoação.
Artº. 4º. O Destacamento Militar, ora existente nas margens do
Piquiri, será transferido para o lugar do estabelecimento, e nelle
empregado na manutenção da ordem e Policia local.
Artº. 5º. Logo que a estrada se torne transitavel, sera este
Destacamento augmentado de dous terços da sua força actual,
para fornecer outro subalterno, que será postado na margem do
Rio limitrofe das duas Provincias, por onde deva passar a
estrada441.

Além de oferecer habitação à “horda de índios”, tratava se de atrair


colonos para essa mesma região, materializado nesse discurso pela preocupação de

441
LEI PROVINCIAL Nº 7, DE 12 DE AGOSTO DE 1835, p. 1. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-7-1835.pdf. Acessado em 10/01/2018

268
construir edifícios obedecendo um padrão simétrico, regular e nivelado de terreno,
tornando o espaço um lugar salubre.
O discurso da salubridade foi utilizado tendo por base a problemática
europeia de civilização, a qual buscava disciplinar a população que passaria a ser
composta por indígenas e colonos que para lá fossem trabalhar na construção de
estradas, ou na navegação pelos rios, tanto um como outro, indispensáveis na
comunicação e abastecimento entre as províncias.
Certamente, tal medida legislativa não visava somente oferecer moradia
aos Caiapó, o que foi evidenciado nos artigos seguintes da referida lei, que oferecia
incentivo a todos aqueles que quisessem se estabelecer na região:

Artº. 10º. Ficão isentos de Disimos, e outros quaesquer Impostos


por vinte annos, não só os Colonos, como todos os outros
individuos, que se forem estabelecer desde as margens do Piquiri
até as do Paraná, na direcção da nova estrada.
Artº. 11º. Todos os Habitantes da Colonia serão sustentados no
primeiro anno á custa dos dinheiros publicos para isto destinados,
e fornecidos dos instrumentos agrarios, ferramentas, armas, e
mais utensisilios indispensaveis a taes estabelecimentos e da
mesma fórma lhes serão ministradas as primeiras Sementes442.

E quando os incentivos não fossem suficientes, poderiam mandar para


lá, como forma de punição, uma camada da população composta por indivíduos
perturbadores da ordem, em outros pontos da província como:

[...] §1º. Os Reos condennados a trabalhos publicos de seis mezes


a doze annos.
§2º. Os Vadios condennados por Lei Policiaes á Casa de
Correcção, emquanto senão effectua aquelle estabelecimento.
§3º. As meretrises escandalosas, que perturbão o sucego publico.
[...]

Percebe-se que a localidade certamente majoritária deveria ser povoada


por essa “horda” mista de indígenas e de contraventores da lei e da ordem pública,
e, por isso, talvez tenha advindo a grande preocupação com seu disciplinamento e
moralidade sobre suas condutas, buscando regula-las por meio da ação paroquial e
da ação policial, como que depreende dos artigos a seguir:

442
Ibid., p. 2.

269
Artº. 6º. A Administração finanças economia e policia da Colonia
será confiada a hum Director, que terá para o coadjuvar aquelles
Empregados subalternos, que o Governo Provincial julgar
indispensáveis.
Artº. 7º. O Governo nomeará o Director e mais Empregados
assignar-lhes-há ordenados, que serão submetidos a approvação
d’ Assembléa Legislativa Provincial, e dará as instruções
regulamentares para o regimento da Colonia.
Artº. 8º. A jurisdição Policial, conferida no Artigo sexto ao
Director, cessará logo que a Colonia e suas immediações
contiverem numero de fogos (não comprehendidos os dos
colonos indigenaes) para ter hum Juiz de Paz.
Artº. 9º. Fica desde já creada huma Parochia na referida Colonia,
e o Parocho para ella nomeado vencerá a Congrua de trezentos
mil reis, e terá huma Caza de rezidencia com seu quintal a custa
da Fazenda Publica Provincial que passara aos seus sucessores, e
ao primeiro se dará em propriedade e a sua escolha hum terreno
que todavia não excederá a de huma Sesmaria443.

A “instrução e a catequese”, partindo do ideal de civilização


eurocêntrica, se colocavam enquanto ações estratégicas de disciplinarização dos
corpos tidos, desde o período colonial, como indóceis, fluidos, nômades444 e
errantes, visto vaguearem por diferentes pontos da província, daí o objetivo de
regrar suas existências445. Eis que, no ano de 1837, Antonio Pimenta Bueno
apresentou um quadro geral dos indígenas:

[...] Muitas diferentes Nações de Indígenas vadiam os incultos e


extensíssimos sertões da Província, em grandes porções ainda
não trilhados por nossa parte: de algumas temos notícias, e de
outras que seguramente existem bem fundadas conjecturas:
entretanto 53 diversas Nações estão reconhecidas, e delas
somente 40 domesticadas: algumas outras apenas chegam a fala.
No número das domesticadas não incluo a soberba e intrépida
nação dos cavaleiros Aicurús sempre errante e empreendedora.

443
Ibid., p. 1-2.
444 O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro lembra que uma das principais características da
maioria dos Tupinambá, por exemplo, é a inconstância de sua alma, pois sua organização social
valorizava a afinidade relacional (da relação das pessoas com o mundo) e não uma identidade
substancial, que é examente o que os missionários da colônia vão tentar impor e depois o Estado
imperial, aos moldes de um homem disciplinado ao trabalho regrado. Cf. CASTRO, Eduardo
Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac
& Naify, 2002.
445
O mesmo presidente de Província Pimenta Bueno revogou a Lei nº 7, de 12 de agosto de 1835,
substituindo-a pela de no 4, de 19 de abril de 1837, onde a tônica do disciplinamento e moralidade
das condutas persistia. Cf. LEI PROVINCIAL Nº 4, DE 19 DE ABRIL DE 1838. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-4-1838.pdf. Acessado em 10/01/2018.

270
Temos tirado não pequena vantagem para o serviço e defesa do
Baixo Paraguai dos Guatós, Laianas, Terenas e Quiniquinaos, e
Guanás: a boa índole e serviços dos Apiacás, prometem nos
igualmente interesses na navegação do Juruena para o Pará:
assim como prometiam as tribos dos Jacarés e Caripunas na
povoação do Ribeirão, e navegação pelo Guaporé446.

A utilidade deles era assumida, no discurso, quando as nações se


apresentassem como domesticadas. Isso significava que haviam sido incorporados
à cultura tida como civilizacional, prestando algum serviço nas imediações dos rios
e das estradas, seja na manutenção da defesa fronteiriça com outras nações, ou ainda
no abastecimento interno da província.
Pimenta Bueno, embora não tivesse informações em relação às nações
Guarani e tampouco dos Caiapó estabelecidos na região do Pequiri, em seu relatório
de 1837, a tônica da problemática teve como centralidade a utilidade dos indígenas
na província de Mato Grosso:

Não tendo ainda informações sobre os Guaranis e sua residência


em Casalvasco, nem sobre a porção de Índios que começa a
formar o estabelecimento do Piquiry. Pontos importantes da
Província, e grande parte de seus rios acham-se ainda debaixo do
domínio destes primitivos ocupantes: algumas explorações por
isso têm sido retardadas, e outras incompletas. Desconhecemos
todo o terreno que medeia entre o rio S. Manoel denominado
também Tapajós, e seus numerosos confluentes: nossa divisa
toda com a Província do Pará a exceção de dois pontos é
inteiramente desconhecida na longa extensão de 320 léguas:
outro tanto sucede com os terrenos adjacentes ao rio das Mortes
e muitos dos seus confluentes, e com os que ficam paralelos a
margem esquerda do corpulento Tocantins, que dá navegação
franca até quase as suas primeiras origens, e sobre a qual a nova
estrada de terra talvez venha a influir.
A catequese de tais Nações ofereceria grandes vantagens sem
o temor dos perigos e estragos que eles ameaçam, novas
explorações, e viagens se abriam; novas minas seriam
descobertas, novos produtos, e novas saídas á eles; e os
próprios Indígenas, como outros já fizeram, conhecedores do
território, servir-nos-ia de guias. [grifos meus]
Certamente nem uma Província do Brasil, Senhores, tem mais
necessidade de um sistema criador a este respeito, do que a de
Mato Grosso, quer se olhe pelo lado de seus interesses especiais,
quer pela face pública, que apresenta, como limítrofe, que tanto
importa a Nação. Extrema que compreende 500 léguas de larga
fronteira aberta a dois Governos estranhos, com mais de 30

446
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso recitado em 1º de março de 1837. Op. cit., p. 18.

271
ótimos canais, que desaguam nos foços que formam as suas
primeiras linhas de defesa, quais são os importantes rios
Paraguai, Jaurú, Guaporé, Mamoré, e Madeira, e pelos quais,
assim como pode entrar-se pelo interior dos territórios daqueles
Governos, pode-se também avançar até o interior do Brasil por
muitos diferentes pontos, de nada precisa tanto como de uma
população que lhe ministre forças447.

O relatório do citado presidente apresentou, portanto, um campo de


positividade dos indígenas em relação às riquezas da província e que, para explorá-
las com êxito, nada mais apropriado do que fazer uso dos mesmos como guia e
como força auxiliar nas regiões fronteiriças, como Bolívia e Paraguai.
A catequese figuraria como estratégia fundamental para a “pacificação
e domesticação” dos nativos, freando suas “pulsões violentas” e potencializando as
ações de desbravamento dos sertões (um potencial de riquezas incalculável), além
de facilitar os trabalhos inerentes às atividades comerciais e de serviços vindos
pelas vias fluviais e de estradas.
Porém, esse mesmo relatório já indicava que Pimenta Bueno estava
insatisfeito com a Lei de 1835, a qual incumbia a gestão das condutas indígenas aos
Diretores nomeados, os quais não tinham conhecimento de causa para gerir a
multiplicidade das nações indígenas, dispendendo muitos recursos e com poucos
efeitos, em suas palavras:

[...] para a catequese e civilização dos Índios nada confio de


planos ou diretorias criadas somente no gabinete sem experiência
e conhecimento positivo dos costumes, índole, e natureza de cada
uma das tribos. Para domesticarmos as nações, que indiquei, foi
na necessária imensa despesa; e pelo que respeita ao Baixo
Paraguai, único ponto onde fomos mais felizes, o concurso de
ocorrências favoráveis; por quanto cercadas de nações inimigas,
e sujeitas aos Presídios e forças militares, que ali temos sempre
conservado, não lhes restava outro partido, se não o de aceitar
nossos repetidos presentes, que até hoje recebem448.

Isso demonstrava que o campo de prática para a sujeição dos corpos


indígenas e de sua domesticação teria sido mais exitoso nos lugares em que,
cercados por nações inimigas, pelos fortes e presídios conservados desde o período

447
Ibid., p. 18-19.
448
Ibid., p. 19.

272
colonial, fizeram com que os nativos ficassem de certa maneira coagidos a aceitar
os ditos “presentes” oferecidos. Em seguida, o referido governante concluía:

Como o sistema de conservar os Índios em aldeias não é


seguramente o melhor, antes repelido pela longa experiência, que
o Brasil tem tido, ou por que nunca prosperam, ou por que
chegam muitas vezes como ainda, há pouco, aconteceu na
Província de Goiás, a fugir todos, quando devera supor se, que o
decurso de muitos anos os tivesse civilizado.
Parece que todas as providências resumem-se na fortuna de achar
homens zelosos, que se apliquem com interesse decidido ao
trabalho de dar-lhes grão de civilização necessário para que eles
se desprendam da vida selvagem, cumprindo desde então separá-
los para que percam no todo os costumes bárbaros, que juntos
nunca deixam, e sobre tudo aproveitar os filhos, que com
facilidade recebem nossos hábitos.
A bondade do pessoal empregado na Catequese supre, e torna
ociosos os Regimentos, e estes de nada servem sem aquela449.

O que nos chama a atenção nesse tipo de discurso é que ele


materializava um ideal de civilização a ser imposto na província de Mato Grosso,
lembrando que, diante dessa questão indígena pela qual a catequese tinha uma
função primordial de diluir os hábitos considerados “selvagens”, “bárbaros” e
certamente “pagãos”, seria importante a incorporação de “homens com interesse”
em ministrar esse “grau de civilização”, e não centrar as atividades de aldeamento
somente nos regimentos.
Tais “presentes ou brindes” incorporados ao discurso constituía uma
estratégia explícita adotada desde o período colonial pelos agentes da metrópole
(tanto de pessoas que desenvolviam atividades comerciais, políticas até
missionários jesuítas), juntamente com a estratégia da “guerra justa” e, ao que tudo
indica, não fora abandonada no Império, mesmo em face do projeto civilizatório
que muitas vezes conviveu com formas bem orquestradas de extermínio.
Entre a submissão e a adesão dos indígenas em relação aos projetos do
governo, bem como a de sua resistência frente à não aceitação de sujeição a tais
projetos civilizatórios, da persistência em assegurar os seus próprios modos de vida
e dos embates físicos que isso provocava, a estratégia dos “brindes e presentes” e

449
Ibid., p. 19-20.

273
da “guerra justa” irão se perpetuar. Nesses termos expressava o presidente de
província Estevão Ribeiro de Rezende, em 1839:

[...] É bem pouco agradável o que tenho de expor a vossa


consideração saber este assunto. Os Índios Cabixis, e Parecis, que
infestam quase toda a margem Oriental do Rios Galera, um dos
confluentes do Guaporé pouco abaixo da Cidade de Mato Grosso,
continuam a hostilizar de maneira cruel tanto o Arraial de São
Vicente, como o de Pilar.
A tudo quanto estas duas bárbaras nações tem praticado ali,
matando, roubando, fazendo abandonar Estabelecimentos,
incendiando Engenhos desde o ano de 1819, acrescem novas
incursões, novas hostilidades e passam que o seu efeito é estragar
tudo, afugentar os Povos já tão desanimados, e acabam com
aquelas Povoações. Não tem sido por falta de providencias ao
alcance do Governo, e nem por que nos anos de 1836 e 1837,
quando eles acometiam a Fábrica de D. Antonia Tavares, e
obrigaram-na abandonar, não se expedissem enérgicas ordens a
respeito; tem sido sim por que todas elas se tem procrastinado, e
os Povos são sempre remissos na ausência do mal.
Se assim não acontecesse, e se as Índias fossem batidas e
acossadas como se ordenara, não se arrojaria a invadir de
próximo o Ouro fino, onde entraram cheias de coragem e mesmo
atrás da Capela do Arraial desumanamente atormentaram duas
pessoas ficando uma sem vida e outra prestes a perde-la. Os
Bororos indígenas do Cabaçal também continuam em suas
hostilidades; e os bem poucos meses ainda às puseram em prática
na Caiassara e são tanto mais danosas quanto é certo que
ocupando eles a melhor parte dos campos dessa Fazenda
Nacional, sobre o prejuízo que ocasionam por não darem lugar a
que se aproximem nas águas às belas pastagens, que encontra no
lugar, subiram as inundações, e para onde, haviam ser infestado,
se devia passar o gado e animais cavalares, fazem grande mal do
desproveito das minas de ouro, poaia, e outros produtos naturais
que é tão abundante.
Na carência de recursos pecuniários de que pudesse lançar mão
para mandar formar, e expedir uma Bandeira sobre estes
Selvagens logo que tive certeza daquelas hostilidades mandei
fortificar melhor a mencionada Fazenda, lembrei medidas de
cautela, e de seguranças que se deviam tomar e ordenei que antes
de qualquer expediente que alguma tenha de resolver, se tentasse
a eles aldearem-se movendo-os por meio de brindes450.

Num quadro geral, o discurso desse governante apresentava os


expedientes estratégicos em relação aos indígenas, que, como referimos

450
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Acta com que o Presidente da Província de Mato Grosso fez a
abertura da Segunda Seção Ordinária da Segunda Legislatura da Assembleia Provincial no dia 2
de março de 1839, p. 60-62. (Documento Manuscrito).

274
anteriormente, se tratava dos “brindes e da guerra justa”, o que expressou a
imposição de uma cultura tida como hegemônica sobre essas existências concebidas
enquanto menores.
Expressava-se nesse tipo de posicionamento uma parcialidade em
relação às tensões entre os indígenas e os povoados da província. Nesse caso,
percebe-se uma construção imagética em que as terras, as riquezas minerais, o solo
e suas potencialidades para a agricultura e pecuária foram pensados exclusivamente
do ponto de vista dos fazendeiros e sitiantes, e que as nações indígenas, como as
dos Cabixi, Pareci e Cabaçal, por exemplo, só atrapalhavam o seu desenvolvimento,
pois, no momento em que realizavam a “invasão”, sem, contudo levar em
consideração que tais áreas já eram habitadas pelos próprios indígenas.
No discurso de 1º de março 1840, Estevão Ribeiro de Rezende
descrevia os ataques indígenas em “correrias” realizadas pelos Coroado:

[...] Descontentes com a passagem desta última estrada por um


dos sítios em que tinham alojamento, parece que assentaram
tentar a desafronta pelas armas, ou ao menos alterar quanto
possível, no intuito de evitar a frequência de viandantes que ela
começa a ter, e de conseguir ainda o exclusivo de antigas
possessões.
Começando suas correrias em Setembro último, atacaram
imediatamente a Fazenda do Capitão Victoriano José de
Couto, junto a S. Lourenço, onde, além de tirarem a vida
barbaramente á duas pessoas, ficando uma terceira
traspassada a flechas e moribunda; matarão grande número
de gado, destruíram, ou roubaram plantações, chegando a
audácia ao ponto de se aproximarem impávidos á Casa de
vivenda, cercaram-na com grande alarido tentando ataca-la,
e por certo a teriam arrasado se não valessem as cautelas que
sentiram, e temeram. [grifos meus]
Passaram-se logo depois para a Estrada de Goyaz, onde afirma-
se que também fora assaltado por eles o ponto denominado –
Malas – sucumbindo aí aos golpes desses bárbaros 5 pessoas
miseráveis que se estavam estabelecendo, e por certo nenhuns
recursos teriam para se livrarem de tais hostilidades. Neste lugar,
depois de fazerem essas 5 vítimas, e de roubarem o que lhes
agradou, lançaram fogo ás casas de vivenda, e reduziram-nas a
cinzas.
Imediatamente que tive noticia destes fatos tratei de fazer
prontificar e expedir uma Bandeira sobre tais Índios, a fim de
bate-los ou ao menos afugenta-los daqueles sítios451.

451
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso de 1º de março de 1840. Op. cit., p. 15.

275
Tal situação atrelava a questão indígena à problemática do trabalho que
estava se formando no país e que certamente chegara à capitania de Mato Grosso,
caracterizada por ser uma área de fronteira e de sertão, uma grande porção territorial
habitada por índios e demograficamente pouco povoada por “brasileiros”, e que
fazia divisa com outros países, como Paraguai e Bolívia. Nesse cenário, a qualidade
dos indígenas era medida e avaliada de acordo com o grau de assujeitamentos à
cultura imposta, ou seja, aos “serviços prestados” à província, “premiando-os com
brindes”:

[...] também mandei brindar a um Índio Capitão da errante e


empreendedora Nação dos Aycurús, e a Sericonas, e Guanás, que
de mais se fazem merecedores pelos serviços, que continuam a
aprestar nos Fronteira do Baixo Paraguai.
Desta última há um grande número em Albuquerque, ali
trabalham tanto em roças, como no serviço das Canoas, e em
outras, são muito dóceis, mansos, e úteis, ao lugar, contudo
uma providência se faz necessária para a completa catequese,
e civilização desses Índios, e consiste em dar-lhes uma melhor
educação, fazer acabar com alguns costumes bárbaros, que
ainda conservam452[grifos meus].

Diante disso, mesmo com os “serviços prestados”, o segmento indígena


era de suma importância para a província mato-grossense, não se devendo descuidar
de suas condutas, de seus corpos e hábitos, o que deveria ser feito por meio de um
processo de disciplinamento e obediência ao trabalho regrado. Em relação a esse
ponto, Estevão Ribeiro de Rezende expressava que o aldeamento dos Caiapó
estabelecido a uma légua acima da barra do ribeirão Barreiro:

[...] compõem se de 150 Índios: são dotados de um caráter alegre,


pacífico, e até covarde: inimigo de um trabalho assíduo eles
fazem consentir os meios de subsistência na pesca, plantação
de mandioca, poucas outras raízes tuberosas, algumas cana,
e milho, que consomem no mesmo estado por ignorarem a
maneira do fabrico, e preparações de que usamos.
Pelas ultimas informações porém conto que já o Vigário da
Freguesia terá dado começo ao ensino religioso, e moral dos
Índios, e isso unido aos cuidados do Diretor conseguirá em
breve tempo sua Catequese e Civilização. [grifos meus].
Estes Índios aldeados naqueles sítios podem vir a ser de grande
utilidade a Província. Nota-se lhes opor da inércia, e indolência

452
Ibid., p. 64.

276
vocação para a agricultura, comem pães criar neles as nossas
necessidades, e hábitos, educa-los e bem depressa tornaram
amar ao trabalho assíduo, e as suas colheitas, e lavouras hão
de abastecer o lugar e auxiliar as viandantes. [grifos meus]
Além de muitas outras coisas pede com instância o Diretor do
Aldeamento instrumentos agrários para ser dividido pelos Índios,
a construção de um moinho e assistência de vestuário453.

Moralizar seus hábitos, introduzir neles as mesmas necessidades do


homem civilizado, educá-los para amar o trabalho assíduo e regrado por meio da
instrução imposta pelo vigário da freguesia, tornou-se uma importante meta.
Tudo isso estava articulado à questão do trabalho, que perpassava a
necessidade de guarnecer as fronteiras e de facilitar o escoamento da produção pelos
rios ou estradas (que serão construídas com o trabalho indígena). Na linha
argumentativa desse discurso tido como civilizatório, produzia-se a desqualificação
do modo de vida dos indígenas, apontando sua autossuficiência enquanto fraqueza
e seu conformismo em aceitar aquilo que a natureza lhe oferecia: caça, pesca,
cultivo de alimentos simples como raízes (mandioca por exemplo) e cana,
possivelmente qualificado de ociosidade e inoperância.
Além disso, era um discurso que falava em nome dos indígenas,
buscando intervir na sua vida e nos seus negócios, o que expressamente outorgava
aos governantes o direito à administração dos bens indígenas, como as terras e seu
produto:

[...] Não deixarei o assunto sem recomendar á vossa Sabedoria


uma medida Legislativa em si saudável, e protetora. É esta
relativa a administração dos bens dos Índios, que se mal foi
desempenhada no tempo dos antigos Ouvidores de Comarca,
hoje acha-se consideravelmente precisada. Pelo Decreto de 3
de junho de 1833 está presentemente a cargo dos Juízes de Órfãos
dos respectivos Municípios a parte administrativa pertencente á
antiga Conservatoria, e por que nada disse acerca da parte
contenciosa, nem podia instaurar jurisdição, que o Código do
Processo não reconhecera, antes [ilegível] ficou esta pertencendo
as Justiças do Foro Comum, perante as quais tem os Juízes de
Órfãos, como conservadores dos Índios, de fazer requerer o que
aprouver a bem dos mesmos nos termos da Lei454.

453
Ibid., p. 66-67.
454
Ibid., p. 68.

277
A gestão da vida indígena era atravessada por discursos e ações práticas
que retomavam antigas formas de dominação colonial, como os “brindes e as ações
das bandeiras”, mas, nos oitocentos a problemática do trabalho começava a ganhar
cada vez mais consistência nas atividades provinciais.
Nesse sentido, a instrução coadunava-se com a da catequese, uma vez
que a justificativa para a intervenção e regulação das populações da província era
formalizada por discursos que buscavam acompanhar os ideais da ilustração e do
utilitarismo das luzes, enfim, da civilização, embora algumas vezes tivessem que
recorrer à guerra. Sobre esse ponto, em seu discurso de 1840, Estevão Ribeiro de
Rezende expressava que:

Se por um lado, Snrs., a razão e a humanidade exigem que se


continuem a tentar a catequese e a civilização daquelas quatro
Nações, tão ferozes455, como numerosas, por meios brandos, por
outro é forçoso atender o clamor dos povos contra suas
hostilidades, garantir-lhes a segurança da vida, e dos bens, e
decidir-se esses Selvagens a preferir a paz á guerra.
Para qualquer destas medidas espero que continuareis a votar a
soma, que for possível, na certeza de que o Governo regulará
convenientemente a sua aplicação456.

Entre a barbárie e a civilização, a conduta dos indígenas era incorporada


pelo discurso dos presidentes de província enquanto estratégia biopolítica, na
medida em que se fazia viver os índios pacíficos, juntamente com os demais
segmentos ordeiros da população, mas que permitia fazer morrer os índios bravios,
caso se recusassem ao assujeitamento, ou seja, à incorporação de uma mentalidade
regrada e disciplinada para o trabalho.
O mesmo teor discursivo que dirigia a população menos abastada sobre
os seus costumes e hábitos era direcionado aos indígenas, uma vez que se tratava
de impor os “costumes, hábitos e os prazeres do homem civilizado”, viabilizados
pela instrução da mocidade da província de Mato Grosso e pela catequese aos
índios.

455
Estevão Ribeiro de Rezende se refere às quatro nações que ele teve que organizar bandeiras a fim
de conter os seus ataques, são elas: Cabixis, Parecis, Cabaçais e Coroados apresentados nos seus
relatórios de 1839 e 1840.
456
Ibid., p. 17.

278
Com isso esperavam também combater a ociosidade, a preguiça, a
indolência e a comodidade características da população mato-grossense mais pobre
e indígena, em prol de uma província que começava a se organizar em termos de
trabalho regrado e disciplinado.

4.3- Criminalidade: vigiar e punir

O discurso sobre a instrução, juntamente com o da catequese colocava


em visibilidade a preocupação dos presidentes da província de Mato Grosso, no
período regencial, em acompanhar os progressos das luzes e da ilustração enquanto
parâmetro organizacional da sociedade.
Nesse sentido, almejava-se uma sociedade ordeira, pacífica e
harmônica, que não barrasse os fluxos do trabalho que a província buscava realizar.
A instrução e a catequese garantiriam o ideal almejado, um corpo de bons cidadãos,
cada qual desempenhando uma atividade rentável e capaz de garantir a
“prosperidade da população e do Estado”.
No entanto, tanto na instrução como na catequese as ações políticas dos
presidentes de província se voltaram contra as existências que persistiam em não se
“adequar” aos ditames das leis provinciais, por exemplo, eram os pais que não
matriculavam seus filhos, eram sem qualificação os professores para instruir, eram
os índios que recusavam a catequese e os cultos católicos, tudo isso colocava em
evidência o problema da “ociosidade e da aversão ao trabalho”.
Esse tipo situação estampava uma outra dimensão da estratégia
biopolítica adotada por tais presidentes de província em relação à regulação da
população, que era justamente: como punir os ilegalismos? De que maneira atuar
nessas contracondutas? Como usar politicamente a vida desses “infelizes” que
ousaram a confrontar as diretrizes e as condutas estabelecidas como contrato social?
Tais questões nos lançam a uma análise mais acurada dos discursos dos
governantes da província expressos nas leis provinciais, nos relatórios, mapas e
falas dirigidos à Assembleia Legislativa etc., e perceber como afiguravam suas
propostas de justiça e de segurança de uma província ainda “traumatizada” pelos
eventos da “sedição” ou “insurreição”, como a de 30 de maio de 1834.

279
As ressonâncias que a “Rusga” provocou na organização política foram
marcantes e na contramão de uma política de apaziguamento introduzida já nos
primeiros relatórios dos presidentes de província ao falarem da paz, da segurança e
da tranquilidade de que gozava a província, o que contrastava com a imagem
negativa do evento.
Assim, por exemplo, vale lembrar que o presidente Antonio Pedro de
Alencastro, no mesmo discurso, de 3 de julho de 1835, impingiu termos pejorativos
ao movimento, taxando os seus partícipes de “facinorosos, anarquistas, inimigos da
nação”, enfim, anunciava:

[...] Posso todavia afiançar-vos, Srs., o que me é sumamente


lisonjeiro, que a Província hoje está em sossego, que ides encetar
vossos interessantes trabalhos no seio da paz, a qual nos promete
uma tranquilidade duradoura: o império das Leis acha-se em
pleno vigor: são as legítimas Autoridades respeitadas, e as ordens
exatamente cumpridas.
A Secretaria deste Governo, além de Secretário, constando de um
Oficial maior, um 2º Oficial, e um Porteiro, foi elevado o seu
pessoal ao número de quatro Oficiais efetivos marcado pelo
Conselho Presidial em virtude do Aviso da Repartição do
Império de 13 de setembro de 1831, e Lei de 24 de Outubro de
1832, art.65. Ao Oficial maior ficou competindo o ordenado
anual de 600$000 rs: ao 2º Oficial o de 400$000 rs: a cada um
dos dois 3os o de 300$000 rs., e ao Porteiro outro tanto. Não é
demasiado o número dos Empregados, nem os seus ordenados á
vista do laborioso expediente, que de tempos a esta parte tem
progredido, e do alto preço dos víveres457.

Estrategicamente apoiado nos desdobramentos de 30 de maio e no


processo que transcorreu ao julgamento dos envolvidos, o citado presidente de
província começou a fazer circular um discurso que colocava o referido
acontecimento como algo “esporádico e corriqueiro”, e onde, aliás, muitos
representantes do IHGMT irão se apoiar.
Para esse presidente, tratava-se, a partir de então, de organizar paz, de
garantir a ordem, de controlar a conduta das pessoas por meio da organização
gradativa da força policial e de medidas legislativas, para que os ímpetos agressivos
da “Rusga” fossem contidos.

457
ALENCASTRO, Antonio Pedro de. Discurso de 3 de julho de 1835. Op. cit., p. 3-4.

280
A organização da força policial no período imperial já havia se
manifestado pelo Edital de 3 de janeiro de 1825, da Intendência Geral da Polícia,
ainda sob a organização do primeiro reinado de D. Pedro I, buscando criar novas
regras para manter a segurança e o sossego público. Dizia o referido edital:

[...] Faço saber, que tendo exposto na Augusta Presença de Sua


Majestade o Imperador o muito que a tranquilidade pública tem
sido perturbada pelos multiplicados furtos, roubos, e até
assassínios, que proximamente se tem perpetrado, apesar das
providências ordinárias, com que as Leis deste Império os
procuram coibir e acautelar; e havendo - se Dignado o Mesmo
Augusto Senhor de Tomar em consideração esse importante
objeto, por interessar a segurança e o sossego público, que os
bons Cidadãos Brasileiros devem esperar à sombra das Leis, e
escudados pela vigilância das Autoridades: Houve por bem Sua
Majestade Imperial Mandar aumentar a força atual da Guarda da
Polícia, Concedendo-lhe por Decreto 11 do mês passado uma
gratificação diária em atenção ao maior trabalho, de que vai ser
encarregada458.

Composto por 11 artigos, o Edital conferia um campo de ação


disciplinar bem amplo da Guarda de Polícia que, no exercício de sua função,
poderia abordar qualquer pessoa para ser inquirida. Tal documento perpassava por
uma problemática que ia desde roubos e furtos até ações referentes a condutas
consideradas “desregradas”, provocadas pelos jogos e bebedeiras em tabernas e
bares. Assim, em seu artigo 7 rezava:

[...] Toda a pessoa, que depois do toque dos sinos for achada na
venda, taberna, botequim ou casa de jogo, pague da cadeia pela
primeira vez quatro mil e oitocentos réis; pela segunda o duplo,
e assim progressivamente sendo livre; se for escravo será
conduzido ao calabouço e castigado com açoites; e o dono ou
caixeiro da casa pague também da cadeia pela primeira vez nove
mil e seiscentos réis, pela segunda o duplo, e pela terceira o
triplo, e a licença cassada459.

Pelo artigo 3 do mesmo edital, os toques de sino determinavam a


permissão de se poder ficar na noite, que era “depois das dez horas da noite no

458
ARAGÃO, Francisco Alberto Teixeira de. Edital da Intendência Geral da Polícia, sobre novas
regras para manter a segurança e o sossego público. Disponível em:
http://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/40653
459
Ibid.

281
verão, e das nove no inverno, até a alvorada”, e permitia que essa força policial
“apalpasse” qualquer cidadão para descobrir o “uso de armas de defesa, ou
instrumentos para abrir portas e roubar casas”460.
Outro aspecto interessante dessa peça documental é o de que, diante de
toda a preocupação atestada contra as formas de criminalidade e de violência que
se assistia, produzia em seus procedimentos físicos uma “criminalização” a priori
dos negros e da população menos abastada, inferindo sobre eles um julgamento
moral de “suspeitos”, condição para as quais não havia muitas restrições, como se
pode observar nos artigos 4 e 6 do Edital:

Artigo 4: a qualquer hora, de dia ou de noite, poderão ser


apalpados os escravos, aos quais fica proibido com pena de
açoites não só qualquer uso de arma de defesa, como trazerem
também paus [...]
Artigo 6: Fica proibido depois do toque dos sinos estar parado,
sem motivo manifesto, as esquinas, praças e ruas públicas; dar
assobios, ou outro qualquer sinal: Esta proibição se estende aos
negros e homens de cor, ainda antes dessa hora, mas depois que
anoitecer461.

Esse edital de 1825 se revestiu de importância por abarcar temáticas


que serão incorporadas pelos presidentes da província de Mato Grosso no momento
em que se almejava constituir uma “sociedade ordeira”, onde a ressonâncias da
criminalização dos negros e dos pobres certamente serão tônicas.
Esse edital certamente produz mecanismos de controle da população
negra e pobre do Império, por meio do toque de recolhimento, dos seus sistemas de
castigo com açoites, em relação aos escravos, e de multas aos livres, no entanto,
não conseguiu conter todas as formas de resistência da população, expressas em
fugas, constituição de comunidades quilombolas e até mesmo de suicídio462.
No ano de 1835, quando a memória sobre a “Rusga” ainda era recente,
emergiu uma série de medidas legislativas que compunham o quadro de
ordenamento, disciplinamento e vigilância da conduta das populações,

460
Ibid.
461
Ibid.
462
Cf. RODRIGUES, Bruno Pinheiro. Paixão da Alma: O Suicídio De Cativos em Cuiabá (1854-
1888). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2010.

282
prescrevendo os meios de punir as “contracondutas”, uma vez que afirmavam as
suas existências contrapondo-se ao modelo estabelecido.
Nesse mesmo ano, temos, por exemplo, a Lei provincial nº 12, de 26 de
agosto de 1835, que estendia à província de Mato Grosso a mesma resolução criada
na província do Maranhão em relação à problemática da segurança, desde 1830.
Antonio Pedro de Alencastro, em anexo a essa lei provincial da capitania de Mato
Grosso, apresentou o teor da resolução maranhense, a qual estabelecia, dentre
outras coisas:

[...] Artº. 1º. Os Juizes de Paz desta Provincia, cuidarão, em


observancia do paragrafo quinto da Lei de quinze d’ Outubro de
mil oitocentos e vinte sete, em indagar, e fazer hum exacto
arrolamento de todas as pessoas, q. Existirem d’entro do districto
de sua jurisdicção, com especificação de sua naturalidades,
idades, occcupações; e de proceder contra aquelles, que forem
achados vadios, e sem meios decentes de subsistir, na
conformidade da Lei.
Artº. 2º. Os Officiaes dos Quarteirões, serão obrigados a darem
immediatamente parte aos Juizes de Paz, de todas as pessoas, que
de novo apparecerem nas seus districtos com a informação
necessaria de donde ellas vierão, e a que fim, e para onde se
dirigem, e em que genero de vida se empregão, para no caso de
que se conheça serem vadios ou malfeitores, se proceder contra
elles, na conformidade da Lei.
Artº. 3º. Os Juizes de Paz fiscalisarão a observancia do artigo
antecedente, e os Officiaes dos Quarteirões, que o transgredirem,
serão multados em seis mil reis para as despesas do Municipio, e
no dobro nos casos das reincidencias.
Artº. 4º. Os Juizes de Paz vigiarão sobre os proprietarios,
senhores de terras, e homens poderosos; proporcionando haver
delles huma circunstanciada relação de todos as pessoa livres,
que tiverem em suas companhias a titulo d’ aggregados, ou
qualquer outro especial; indagando em que elles se occupão, de
q. tirão sua subsistencia, o motivo por que os acolherão, e d’onde
serão; e por que as consentem em sua companhia, ou nas suas
terra; ficando responsaveis pela veracidade das declarações que
em virtude d’este artigo são obrigados a fazer, debaixo da pena
da q.tia de cem mil reis, no caso de falsidade, paga a metade para
as despesas do Municipio respectivo, outra a metade ao Official
de Quarteirão ou outra qualquer pessoa, que provar a falsidade
das declarações no todo, ou em parte.
Artº. 5º. Os Senhores, e Proprietarios de terras, que nellas
consentirem homens a titulo de aggregados, ou protegidos, ou
com qualquer outro especioso, sem que mostrem que elles se
empregão em occupação honesta, e tenhão genero de vida, ou
emprego decente, de que subsistão, ou q. acoitarem malfeitores,
incorrerão por cada individuo, que assim tiverem em sua

283
Companhia na multa de dusentos mil reis, applicadas ás Casas de
correcção, e mais obras do Municipio, além das mais penas, que
por direito lhe forem impostas.
Artº. 6º. Nas mesmas penas incorrerão os mencionados
Proprietarios, e serão julgado consentidores aquelles S.rs de
terras, que nellas conservarem os supraditos individuos, sessenta
dias depois da publicação d’esta por Editaes affixados na Cidade,
ou Villa, a cujo districto pertencerem463.

Nos seis artigos apresentados pela resolução do Maranhão, era


apresentada, para a província de Mato Grosso, uma proposta bem geral de como se
poderia reordenar a “paz e a harmonia” desejadas, para que os negócios do Estado
pudessem fluir.
A ação dos juízes de paz, na referida resolução, era muito importante,
uma vez que expressava uma forma de atuação prática na existência de toda a
população da província, expressando a “quantidade e qualidade” dos seus
habitantes.
Emergiam preocupações sobre a população materializadas em questões
como: quantas pessoas havia em cada distrito? Onde nasceram? Quais as suas
idades? Sexo? Quais as suas ocupações? Quais e quantos eram os “os vadios e
vagabundos”? Como agir sobre eles?
Tais questionamentos convocava também a participação ativa dos
oficiais de quarteirões, os quais ofereciam as informações necessárias em relação
as essas questões, indicando quem eram os “vadios, vagabundos, malfeitores” e
todos aqueles considerados propensos a cometer atos criminosos.
Importante, do ponto de vista legislativo, é que tal lei provincial de
Mato Grosso, baseada na resolução do Maranhão, incluía também uma fiscalização
sobre os grandes proprietários de terras que possuíssem “algum protegido”. Nesse
caso, estes deveriam atestar a probidade de todos os homens livres que viviam em
suas propriedades, esclarecendo as atividades desenvolvidas para garantir a sua
subsistência e dar provas de exercer função honesta.
Essa medida foi importante, uma vez que já sinalizava uma
preocupação com as formas de intimidação e de pressão dos grandes proprietários,

463
LEI PROVINCIAL Nº 12, DE 26 DE AGOSTO DE 1835, p. 2. Disponível em
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-16-1835.pdf. Acessado em 10/01/2018.

284
que, por meio das armas, resolviam contendas partidárias, políticas e outras formas
de inimizades, onde a “Rusga” seria o exemplo mais cabal desse tipo de prática.
Embora ainda persistissem e em muitos casos se fizessem vistas grossas
sobre os conflitos inerentes aos grandes proprietários rurais e comerciantes, em
relação à população menos abastada, o fato, é de que, na gestão da vida das pessoas,
o Estado, assumia para si a função de gerir a vida e atuar minuciosamente na
administração da justiça.
Isso não significou uma garantia de proteção efetiva das camadas mais
humildes da população, mas uma representação dessa garantia, o que materializava
a forma de a província de expandir ainda mais no exercício do poder do Estado
sobre a existência da população de modo geral.
A formação dessas forças policiais na província de Mato Grosso,
começava a dar mostras de um investimento incisivo na produção de mecanismos
que garantissem sua segurança, ou seja, um nível “ideal” de paz e de controle das
contravenções, dos ilegalismos etc. Dessa maneira,

[...] as Guardas Municipais Permanentes, sendo o seu estado


completo de 62 praças suficiente para o serviço ordinário desta
Cidade; e estando a Província em perfeita tranquilidade, não se
tem contudo podido dispensar por ora a conservação de um
pequeno destacamento de 40 praças cívicas para coadjuvar
aqueles Permanentes no extraordinário serviço de guardas o
grande número de facinorosos de 30 de Maio, que em razão dos
recursos as sentenças de seus crimes, para se preencherem todas
as formalidades da Lei tem sido forçoso demora-lo nas fracas
prisões da Capital.
Juguei também indispensável ter a disposição deste Governo sem
o menor dispêndio hum corpo de Cidadãos da melhor classe, e
incapazes de se mancharem com o vil e ignominioso nome de
sediosos para subministrarem a confiança e segurança aos
ânimos tímidos de novas e imaginárias tentativas anárquicas464.

Centrado na segurança, a constituição das forças policiais exercia uma


forma de vigilância e de punição na organização da sociedade civil mato-grossense,
assegurando um nível mínimo de seu ordenamento, para que as atividades rentáveis
pudessem fluir e gerar as receitas necessárias para o funcionamento do Estado.

464
ALENCASTRO, Antonio Pedro. Discurso de 3 de julho de 1835. Op. cit., p. 6.

285
Eis que ano seguinte, 1836, o vice-presidente da província Antonio José
da Silva, em discurso de 2 de março, já se mostrava queixoso e preocupado com a
problemática da segurança que, ao contrário do tom “pacífico e harmonioso”
apresentado pelo governo anterior, assim se pronunciou:

[...] A Administração da Justiça não é boa em geral.


Homens sem os necessários conhecimentos colocados á teste da
vida e fazenda dos nossos concidadãos hão de necessariamente
sentir incalculáveis males, e a experiência diariamente nos está
mostrando [...]
Frequentes assassínios e roubos tem havido em toda a Província,
bandos de vadios e ociosos pesam sobre nós, e d’aqui vem, que
os Fazendeiros, e Camponeses vivem terrorizados: a paz das
famílias honestas é perturbada com grave ofensa da moral
pública. Não pode haver ordem, segurança, nem direito sagrado
entre os homens, se a sorte de um Cidadão virtuoso, a que de um
perverso matador.
Homens pacíficos, e honrados pais de famílias tem
desgraçadamente perdido: o primeiro, o maior, e o mais
irreparável de todos os bens, no tempo em que o matador
conserva a vida, passeando impunemente, e meditando como há
de uma e muitas vezes saciar o seu ódio, e a sua vingança; e isto
provém da ignorância dos Juízes de Paz; uns por nimiamente
bons, e outros por maldade; e todos por não conhecerem quanto
respeito se deve consagrar a Lei, que entre Povos livres é uma
divindade, e a obediência um culto. Sem costumes não pode
haver liberdade465.

O discurso deste governante já apontava também uma dimensão


importante da justiça que se desejava para a província, em contraposição à justiça
que se via na prática, marcada pela parcialidade da maioria dos juízes de paz, que,
ora por “benevolência, ignorância das leis” ou ainda por medo, não aplicavam as
penalidades previstas para alguns criminosos. Diante dessa situação, ainda tinham
de lidar com as péssimas condições das cadeias, denunciadas um ano antes no
governo de Antonio Pedro de Alencastro:

[...] Além da ruína total, em que estão em todos os outros


Municípios do território da Província as Prisões; a Cadeia desta
Capital reclama a mais pronta providencia para ser restituída a
forma garantida pela Constituição; ela apresenta-se em um estado
o mais deplorável, sem segurança, sem cômodo para a separação

465
SILVA, Antonio José da. Discurso de 2 de março de 1836. Op. cit., p. 4-5.

286
dos criminosos, estreita, e por falta de suficiente ventilação, por
defeito de construção, perniciosa á saúde dos delinquentes466[...]

Tal descaso com as cadeias públicas foi temática recorrente nos


discursos dos presidentes de província que conclamavam cada vez mais uma
atenção minuciosa sobre esses estabelecimentos. Em seu discurso de 1º de março
de 1837, Antonio Pimenta Bueno percebia que pouca coisa havia mudado em
relação às casas prisionais:

[...] As Cadeias de Poconé e Mato Grosso são sofríveis: a Vila do


Diamantino e esta Capital não possuem boa nem má; ali aluga-
se para prisão pública uma casa, que não oferece, nem podia
oferecer segurança alguma; aqui recolhem se os criminosos nas
prisões militares.
A necessidade de prover sobre a matéria é decisiva: basta que a
Legislação repetidas vezes ministre ao criminoso de evitar a
punição e fraqueza na intensidade desta: é de necessidade não
consentir, que além disso o crime quando condenado deixe de
sofrer até essa pequena correção: a impunidade tem já causado
males incalculáveis.
Os mapas dos crimes cometidos e julgados que tenho recebido,
precisam de melhor organização, e explicações, para que deles se
derivem algumas noções úteis: terei em consideração este
trabalho, que não é para desprezar pelos dados, que ministra
desde que é filho de alguma exatidão: e em vossas futuras
reuniões ser vos há presente467.

O estabelecimento de lugares de enclausuramento mais limpos,


cômodos, com espaços divididos para as celas, com arejamento mais adequado, etc.
respondiam por uma necessidade cada vez mais insidiosa de disciplinamento e de
moralização, como investimento regulador da vida da população.
Atentava-se gradativamente para um investimento político dos corpos,
atravessados pela problemática da criminalidade e da punição cabíveis, perpassados
pela vigilância das condutas e da moralização da população, para que a mesma se
“corrigisse” e se prontificasse a desempenhar alguma função na província.
Em consonância com a busca pela melhoria das condições nas cadeias
provinciais, a criação de casas de correção também seria uma estratégia interessante

466
ALENCASTRO, Antonio Pedro. Discurso de 3 de julho de 1835. Op. cit. p. 8.
467
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso de 1º de março de 1837. Op. cit., p. 22-23.

287
para o projeto de ordenamento da sociedade que, pela Lei provincial no 2, de 8 de
agosto de 1835, determinava:

[...] Art. 1º. Fica desde ja creada nesta Provincia huma Casa de
Correcção.
Art. 2º. Ao Governo da Provincia compete designar o lugar, em
que tal caza se faz indispensavelmente necessaria, tendo em vista
o de maior população.
Art. 3º. Ao mesmo Governo compete marcar o local, em que ella
deve ser edificada, aproveitando para isso algum edificio, que
esteja desocupado, e que seja idoneo para este fim.
Art. 4º. Ficão revogadas todas as Disposições em contrario468.

As casas de correção, expressavam, antes de mais nada, uma


preocupação em torno dos mecanismos a serem ministrados às populações
desviantes dos códigos previstos em lei, reinserindo-as na sociedade mato-
grossense. Em consonância com tal proposta, em seu discurso de 30 de novembro
de 1836, o presidente de província Antonio Pimenta Bueno, assim se expressou:

[...] Quando tomei posse da Administração tinha deste Corpo


nesta Capital apenas trinta praças disponíveis, o que vereis do
mapa que vos ofereço: tenho conseguido não poucos recrutas:
mas posto na necessidade de reforçar o destacamento de Mato
Grosso, destacar outra porção de forças para a Vila do Alto
Paraguai Diamantino por causa das circunstâncias mais
atendíveis do Pará e vigilância sobre os rebeldes que tem
assolado aquela infeliz Província, alguns dos quais já tem sido
presos em nosso território; sou inibido de poder verificar a total
redução dessa despesa. Tais circunstâncias predominaram ainda
por algum tempo, de maneira que não se eleve ao estado de por
si só poder fazer o serviço da Capital, e destacamentos e
diligências que sobre ele pesão, seria pouco acertado levar a
efeito a extinção da Guarda Municipal Permanente, máxime
quando a Guarda Nacional ainda se não acha organizada, objeto
a que tenho prestado toda a consideração, e quando o espírito de
partidos ainda infelizmente não se acha de todo extinto, legado
enfadonho, que nos deixou o funesto dia 30 de Maio.
Não me é portanto concedida maior poupança neste ramo, sem
comprometimento da ordem pública, e talvez alguma
indiscrição469.

468
LEI PROVINCIAL Nº 2, DE 8 DE AGOSTO DE 1835. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-2-1835.pdf. Acessado em 10/01/2018.
469
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso de 30 de novembro de 1836. Op. cit., p. 5-6.

288
Entre a sedição de 30 de maio e as revoltas que ocorreram na província
do Pará, foi criado um clima propício de intervenção e investimento nas forças
policiais, uma vez que não se tratava de lidar somente com a problemática das
contravenções que atentavam contra a propriedade privada, mas englobava também
uma atenção para com os “crimes de natureza política”, no entanto, ao julgar
dissipado o legado da “Rusga” decretou-se a extinção da referida Guarda Municipal
Permanente, pela Resolução provincial nº 11, de 30 de dezembro de 1836:

[...] Artigo Unico. O Presidente da Provincia, se vir que sem


compromettimento da Segurança Publica pode ser dissolvida a
Guarda Municipal Permanente, fica authorisado a conceder ás
praças do Corpo de Ligeiros, escolhidas d´entre as mais
moralisadas, e que forem destinadas para o Serviço Policial da
Capital, gratificações pelo Cofre Provincial, uma vez porem que
o total por anno não exceda a quantia de trez contos de reis:
revogadas as disposições em contrario470.

Certamente, já se começava a notar minuciosamente que as demandas


da província estavam também relacionadas àquilo que as rendas provinciais
permitiam, o que fazia com que certas posições sofressem um recuo estratégico ou
uma readequação nos investimentos de atenção e de suas prioridades.
O investimento na segurança se configurava enquanto aparato policial
e de justiça, que buscava regular a população, em seus níveis de criminalidade,
ilegalismos e contravenções a um nível “permitido”, do qual não se poderia
ultrapassar, o que, certamente, também influenciaria na quantidade e qualidade das
prisões que a província apresentava o que, de fato, não suportaria arcar com todas
as formas de punições criminais que se praticavam.
O trabalho desses presidentes, portanto, era atuar na produção de um
percentual baixo de criminalidade, o que não significa que visassem a sua completa
extinção, uma vez que o “uso político da infelicidade da grande parcela da
população” dava maior sustentação às intervenções em sua posterior
regulamentação e regulação.

470
RESOLUÇÃO PROVINCIAL Nº 11, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1836. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/rsi-11-1836.pdf. Acessado em 10/02/2018.

289
A confecção de mapas criminais cada vez mais detalhados passou a ser
preocupação cada vez mais frequente nos discursos dos presidentes da província de
Mato Grosso. No de 1º de março de 1840, Estevão Ribeiro de Rezende, manifestava
o seguinte posicionamento:

[...] As imperfeições porém de alguns mapas remetidos, a


discordância de outros com as informações que exigi depois de
recebe-los, deram lugar á que se não pudesse organizar um
Quadro digno de vossa atenção, além do que vos tenho a honra
de apresentar sob N., que apenas compreende os crimes
cometidos nesta Capital e seu Termo o ano de 1834 até o fim de
1839.
Esse mesmo satisfizera mais se indicasse a idade, condição, sexo,
cor, naturalidade, profissão, estado, e mais importantes noções,
que derramam uma luz imensa na estatística criminal, porém vão
ser reiteradas as ordens expedidas, para que os relatórios dos
trabalhos do Jury, que d’ora em diante forem remetidos
contenham essa úteis declarações471.

Atentava-se, portanto, para a elaboração de mapas mais completos, que


apresentassem informações sobre a quantidade desses crimes, sua natureza, as
condições sociais de seus partícipes, oferecendo uma visão panorâmica do estado
geral da criminalidade perpetrada na província, possibilitando um campo de ação e
controle das contracondutas desviantes e, de certa maneira, coibir o “vício da
impunidade”:

[...] Do referido Quadro vereis que os crimes contra a pessoa e


contra a propriedade, reconhecidamente os mais violentos, e que
indicam maior atraso de civilização, montão, no tempo que
compreende a 145; a saber: 29 homicídios, 3 tentativas de
homicídio, 22 ferimentos graves e leves, 66 roubos com
homicídio, 3 roubos sem homicídio, 17 furtos, e 5 estelionatos, e
perfazem muito mais da metade da totalidade dos delitos
constantes do mesmo Quadro, que somam 145.
Atemoriza na verdade um semelhante Quadro, e muito,
considerando-se que neles só se contam os crimes perpetrados
nesta Cidade e seu Termo, e de que a Justiça tomou
conhecimento, mas dele mesmo se vê que o número dos mais
graves tem diminuído nos últimos tempos.
De 1834 a 1836 houveram 19 homicídios, 3 tentativas de
homicídio, 14 ferimentos graves e leves, 63 roubos com
homicídio, 1 roubo sem homicídio, 12 furtos, e 1 estelionato; e

471
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso de 1º de março de 1840. Op. cit., p. 12-13.

290
de 1837 a 1839 houveram apenas 10 homicídios, 8 ferimentos
graves e leves, 3 roubos com homicídio, 2 roubos sem homicídio,
5 furtos, e 3 estelionatos.
Por falta de uma Estatística exata dos habitantes desta Capital e
seu Termo; não se pode avaliar a proporção dos crimes cometidos
com a população; de qualquer forma, porém é doloroso observar-
se que durante aquele prazo quase todos os crimes se dirigiram
contra a vida e fazenda do Cidadão.
A falta ou ineficácia da proteção das Leis, a ineptidão ou
negligência dos Juízes de Paz, a incerteza da imposição das
penas, a maneira fraca porque se acha organizada a nossa Polícia
sem um centro de ação enérgico e forte, e finalmente a falta de
prisões seguras, são as causas principais da impunidade dos
delitos, da qual deve de força resultar o seu aumento472.

Como estratégia biopolítica, a constituição da força policial coadunou


com a problemática da população, de seus bens, propriedades e de suas vidas. O
conhecimento parcial do número de crimes praticados na província, devido à sua
alegada imprecisão e incompletude, oferecia, apesar disso, uma possibilidade de
agir no controle dos índices de criminalidade, para que as infrações perpetradas não
ficassem sem punição.
Esse tipo de intervenção certamente passava pelo controle das condutas
e impunha a necessidade da introdução de formas de disciplinamento cada vez mais
eficazes, para que o nível “tolerado” de criminalidade não fosse ultrapassado. Tal
medida, embora de aspecto disciplinar, estrategicamente buscava intervir na
produção de um efeito global na população, na busca da moralização dos seus
costumes e hábitos.
A centralidade do controle da conduta da população perpassava também
pela intolerância das autoridades provinciais em relação à formação das
comunidades quilombolas, uma vez que estas partilhavam de outros modos de
existência, de organização social e de produção econômica, rivalizando-se com os
poderes constituídos do Estado. Dessa maneira, por exemplo, os quilombos se
apresentavam enquanto alvo de intervenção policial, assim como qualquer outro
delito perpetrado pela sociedade civil. Nestes termos, Antonio Pimenta Bueno
assim se posicionou em discurso de 1º de março de 1838:

472
Ibid. p. 13.

291
[...] A criação de Guardas encarregados da Polícia das Vilas e
Freguesias, segurança das prisões, captura dos criminosos,
destruição de quilombos [grifos meus], prisão de escravos
fugidos, condução de ofícios das Autoridades, e mais misteres da
Polícia, seria de muita utilidade: opõem se as dificuldades que já
outrora ponderei, e que só pelo vosso ilustrado zelo poderão ser
vencidas473.

Diante das violências cotidianas pelas quais era submetida a população


escrava, e das formas de resistência criadas, a constituição dos quilombos ilustrou
um dos exemplos que mais ganhou visibilidade, pois constituía um microcosmo,
uma sociedade que apresentava uma dinâmica e funcionamento próprios e que
independiam da força do Estado.
Representada pela “contraconduta”, insubmissão e fuga, os quilombos
apresentavam uma comunidade composta de negros que, em muitos casos,
abrigavam a população menos abastada e indígenas, oferecendo outras formas de
gestão das existências desse grupo:

Os quilombos, por exemplo, que surgiram em Mato Grosso ao


longo do século XVIII, não diferentes de outras capitanias
mineradoras da América portuguesa, como Minas Gerais e
Goiás, foram espaços de convivência entre ameríndios e
africanos escravizados, construídos como forma de resistir à
escravização imposta pelo português colonizador474.

Apresentado enquanto perigo à sociedade mato-grossense, os


quilombos se constituíam como elemento a ser destruído, para o que foram
mobilizados esforços nesse sentido, como podemos observar no referido discurso
de 1º de março de 1840, pronunciado por Estevão Ribeiro de Rezende:

[...] Reconheci pois de urgente necessidade mandar bater e


destruir semelhante Quilombo475, e fi-lo, aproveitando para este
fim a força daquela Bandeira, de que anteriormente falei,
expedida sobre os Índios Coroados.
Fora estabelecido ele, como acima disse, junto a barra do piscoso
rio Piraputanga, onde haviam dezesseis boas Casas de morada,
todas feitas por escravos fugidos, bem construídas, com dois e

473
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso de 1º março de 1838. Op. cit., p. 26.
474
CHAVES, Otávio Ribeiro. Op. cit. p. 47.
475
Referência ao Quilombo na Barra do rio Piraputanga.

292
três lanços, sendo duas de alto sobrado, e todas colocadas de
modo tal que formavam entre si uma praça vazia.
Tinham grandes roças, porque o seu forte era a lavoura, e tão
provisionados os seus seleiros que não foi possível a Bandeira
dar consumo aos mantimentos que achara. A numerosa
escravatura que ali existia tentou resistir a Força, que se lhe
apresentou, por meio d’armas, porém logo cedeu, evadindo-se
alguns, e sendo presos muitos escravos, escravas, e crianças de
um e de outro sexo, entregues a seus donos.
Consta-me que outros Quilombos existem em diversos lugares
da Província, fazendo-se notável um que há nas proximidades de
Vila Maria. Convém faze-los bater e destruir. Estas reuniões de
escravos fugidos são más não só pelos prejuízos que ocasionam
a seus donos, mas também pelo perigo da segurança da vida e
fazenda dos povos, e finalmente pelo alento que dão a fuga de
outros escravos, a que oferecem guarida476.

Esse exemplo trazido pelo governante de Mato Grosso se, por um lado,
mostrava prosperidade, organização e sustentabilidade da comunidade quilombola
do rio Piraputanga, com construções de habitações bem feitas, roças que
asseguravam uma grande quantidade de mantimentos em seus seleiros, de outro
lado simbolizava a intolerância das autoridades governamentais em relação a essa
comunidade que, “aproveitando” das Bandeiras organizadas para conter os índios
Coroado, destruíram, saquearam e enviaram os escravos fugitivos para os “seus
senhores”.
O discurso dos governantes da província não avaliava a constituição
dessas comunidades enquanto elemento de sustentação da província, com suas
roças, mantimentos, habitações cuja prosperidade poderia dinamizar a economia,
mas eram vistas exclusivamente do ponto de vista dos senhores, para os quais a
fuga dos escravos, além de uma afronta à autoridade constituída, representava
“prejuízos materiais” aos mesmos, além de criar um clima de insegurança
provocado pela confrontação física ocasionadas na fuga.
O julgamento expresso nesse discurso materializava-se por um
investimento biopolítico na vida dos homens brancos, proprietários de terra e ricos,
sendo a destruição dos quilombos garantia do funcionamento de seu exercício de
poder, marcado pela violência física e simbólica, mesmo havendo restrições aos

476
REZENDE, Estevão Ribeiro. Discurso de 1º de março de 1840. Op. cit., p. 34.

293
castigos físicos, mas, do ponto de vista prático, eles eram praticados até quase ao
limite da morte.
Esse projeto de segurança construído na província de Mato Grosso
contou com a criação de um aparato policial e jurídico, que, embora se apresentasse
como deficitário, incrementou a problemática “de mais policiamento”, “de mais
punição”, ou melhor, garantindo com que as margens de criminalidade não ficassem
impunes.
O fato de nos discursos dos presidentes de província se constatar a
fragilidade dos mapas criminais elaborados, de atestar a parcialidade dos juízes de
paz, das péssimas condições das cadeias e dos poucos recursos públicos existentes,
ainda assim mobilizavam discursos e ações práticas na gestão dos “ilegalismos”,
“das contracondutas”, e das “contravenções” que ferissem os princípios da lei e da
normalidade.
Visualiza-se lentamente a organização de uma força policial para
garantir a ordem, introduzir a “paz” na sociedade civil na gestão dos conflitos
internos, uma paz que, de fato, não era efetiva, tratando-se da mera organização de
um nível “permitido e tolerado” de violência que, de um modo geral, apresentava
efeitos globais de pacificação.
Vimos também que semelhante investimento nas forças policiais
apresentava efeitos de poder que representavam uma função de vigilância e de
punição das condutas da população, necessárias para se conseguir um processo de
moralização de suas condutas no seio de uma sociedade pautada no trabalho.
Assistia-se, nesse caso, à transformação da ação da polícia adotada no
século XVIII, para a ação policial desenvolvida na província de Mato Grosso no
período regencial. Enquanto a primeira se articulava às premissas da razão de
Estado, lidava-se com a problemática do embelezamento das cidades, que envolvia,
dentre outras coisas, limpeza, higiene, polidez, cuidado para com as pessoas
desamparadas etc., como foi exemplificado com mais detalhe no capítulo 2 da
presente tese. No caso da segunda, o que se viu foi uma força policial que atuou
prioritariamente sobre a conduta das pessoas, sobre a sua moralidade e propensão
no cometimento de crimes etc.

294
Curiosamente, o campo prático das medidas de polícia adotadas no
século XVIII, que exemplificamos com o caso do terremoto de Lisboa de 1755,
foram incorporados no século XIX em Mato Grosso, pelos Códigos de Posturas477
que, a guisa de exemplo, apresentaram temas como: controle das vendas de gêneros,
concessões, medições e alinhamentos de ruas e terrenos, ornato e formosura das
ruas, obras Públicas, abastecimento de viveres e comodidades, sobre polícia etc.
Enfim, a estratégia biopolítica da segurança fazia funcionar os
princípios de propriedade privada, de cidadania, da vida enquanto principal bem de
um cidadão e, a partir dela, gerir as condutas dessa população, de moralizar seus
atos e impor um julgamento, que a priori, já produzia uma criminalização de
“negros, índios e pobres.”

4.4- Saúde pública: higiene e assistencialismo

Gostaria de dar atenção à estratégia biopolítica referente à saúde


pública, como campo de ação e gestão governamental cuja regulação e
regulamentação perpassava pela intervenção de projetos dos presidentes de
província e, anteriormente, também os da capitania de Mato Grosso, articulados
com a problemática da higiene e do assistencialismo.
Assim, a questão que se tem é a seguinte: como esses governantes
concebiam a saúde pública? Que agentes incorporavam nesse projeto ou nessa
proposta de saúde pública? Que formas de assujeitamentos criavam? Que tipo de
resistências enfrentavam?
Novamente, o que vamos ver nos discursos dos presidentes de província
é a “qualidade” do corpo dessa população expresso claramente em termos de saúde
e de salubridade, enquanto “meio” adequado para o fortalecimento e
desenvolvimento sadio desse corpo.
Os trabalhos estatísticos realizados entre 1827-1828 por D’Allincourt,
como apresentado no capítulo 3, já esmiuçava a problemática “[...] da importância

477
Cf. RESOLUÇÃO PROVINCIAL Nº 14, DE 2 DE MAIO DE 1837. Disponível em
www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/rsi-14-1837.pdf. Acessado em 10/01/2018.

295
da qualidade do ar, da periculosidade das regiões paludosas da província, das áreas
mais pantanosas etc.”478
A preocupação remetia ao corpo coletivo e à análise de seus efeitos
globais na gestão da população mato-grossense, por meio de relatórios, decretos de
lei e discursos dos governantes provinciais que perseguiam realizar condições de
vitalidade e de “assistência” ofertadas à população.
A relação entre a produção de um corpo sadio estava em sintonia com
as técnicas cada vez mais sutis de investimento político na “vida”, nas condições de
seu “prolongamento” ou de sua proteção, exemplificados na “preocupação latente”
com as condições dos “estabelecimentos pios” e com a problemática das doenças
endêmicas.
A temática da saúde não é nova na historiografia mato-grossense, visto
ter sido abordada de maneira magistral na tese de Leny Caselli Anzai que leva o
título de Doenças e práticas de cura na capitania de Mato Grosso: o olhar de
Alexandre Rodrigues Ferreira, sobre doenças endêmicas que atingiram os
moradores da Capitania de Mato Grosso, em fins do século XVIII479. Também de
importância capital sobre esse assunto temos as dissertações de mestrado da
historiadora Nauk Maria de Jesus, intitulada Saúde e Doença: Práticas de Cura no
Centro da América do Sul (1727-1808)480, e a dissertação de Marina Azém,
intitulada Viagem filosófica às doenças e curas em Mato Grosso no século XVIII:
os relatos do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira481.
A importância de tais resultados de pesquisa nos remete à preocupação
com as práticas de cura desenvolvidas no período colonial e imperial, em especial
entre fins do século XVIII e início do XIX, nos oferecendo uma dimensão das
principais enfermidades e as formas mais eficazes de combatê-las, materializadas

478
Cf. D’ALLINCOURT, Luiz. Resultado dos Trabalhos e Indagações Estatísticas da Província de
Mato Grosso feitos no ano de 1828. In: ANNAES da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol.
VIII (1880-1881). Rio de Janeiro. Tipografia Nacional, 1881.
479
ANZAI, Leny Caselli. Doenças e práticas de cura na Capitania de Mato Grosso: o olhar de
Alexandre Rodrigues Ferreira. Brasília. Tese (Doutorado em História) – Universidade de Brasília.
Brasília, 2004.
480
JESUS, Nauk Maria de. Saúde e Doença: Práticas de Cura no Centro da América do Sul (1727 –
1808). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2001.
481
AZÉM, Marina. Viagem filosófica às doenças e curas em Mato Grosso no século XVIII: os relatos
do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira. Dissertação (Mestrado em História) Universidade
Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2006.

296
não somente nos discursos, mas também por meio de ações práticas de diversos
agentes. Sobre esse ponto, Nauk Maria de Jesus salienta que:

[...] Com feiticeiros, curadores e benzedores, existiam médicos,


cirurgiões, boticários, barbeiros e enfermeiros. Muitos poderiam
nem ter frequentado aulas, serem examinados ou serem homens
com posses, mas exerciam uma prática pública e eram
reconhecidos oficialmente pelas autoridades, o que os
diferenciava dos demais482.

Nesse emaranhado de práticas de cura têm início algumas tensões entre


um “saber menor” amplamente tolerado, e um “saber majoritário”, dito oficial, e
que se esforçava por se estabelecer enquanto prioridade de alguns letrados formados
com essa incumbência.
Essa tensão, que ora aceitava a junção com o saber popular e ora
clamava por sua disjunção, já era apresentada pelo naturalista Alexandre Rodrigues
Ferreira (1756-1815) que, na chefia da expedição científica realizada nas capitanias
do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, entre os anos de 1783 e 1792,
produziu uma série de registros, dentre as quais o que leva o título de Enfermidades
endêmicas da capitania de Mato Grosso, no qual o cientista apresentou as
principais doenças e as formas usuais de enfrentá-las.
Na apresentação do referido documento, publicado pela editora
Fiocruz, em 2008, sob coordenação de Ângela Porto, Leny Caselli Anzai, incluía
nessa transcrição outras fontes do mesmo autor que, de uma maneira geral,
apresentava a sua visão de cientista em perfeita sintonia também com o saber local:

[...] desse modo, fazem parte desta transcrição comentada o


manuscrito que considero principal- Enfermidades endêmicas da
capitania de Mato Grosso- e os três fragmentos do mesmo tema,
também de autoria de Ferreira: Escorbuto ou mal de Luanda,
Causas das doenças dos índios e Farmacopéia brasiliense.
A soma destes escritos permite que nos aproximemos do modo
pelo qual Alexandre Rodrigues Ferreira interpretou as ideias de
autores contemporâneos sobre doenças, em um trabalho de
adaptação que exigiu dele um esforço de síntese entre sua
formação acadêmica- adquirida nos bancos da Universidade de
Coimbra-, o conhecimento médico- adquirido nos livros aos

482
JESUS, Nauk Maria de. Op. cit., p. 18.

297
quais teve acesso- e o conhecimento empírico- apreendido com
os grupos contatados durante suas viagens483.

A preocupação com as práticas de cura certamente constituiu uma


matriz muito importante trabalhada por essa historiografia, ao pensar a
problemática das doenças e da saúde caracterizada pelo estabelecimento de uma
“medicina reativa”, no sentido em que tratava de reagir conforme a irrupção das
doenças e moléstias. Nesse sentido, Alexandre Rodrigues Ferreira apresentou o
objetivo do seu livro:

[...] Depois de eu ter observado, pelo espaço de dous anos, quais


eram as enfermidades endêmicas [grifos do autor] da capitania
de Mato Grosso e de ter ao mesmo tempo reconhecido que a
maior parte delas se não remediava, como poderia ser, em se
vulgarizando os necessários conhecimentos médicos, para com
eles se suprir a falta [de livros e] de professores, assentei comigo
de vulgarizar os que possuía, ou sofrem próprios ou alheios, e,
concluído que fosse este opúsculo, franqueado aos que o
quisessem ler e tirar dele o proveito que se lhes pode seguir.
Empreendi pois a execução do plano e, depois de empregadas
nele as minhas horas de descanso, saiu ultimamente este pequeno
sinal do meu zelo e não do meu instituto. Entendo que a estes
habitantes nenhum outro presente posso eu fazer, que mais digno
seja de aceitação do que o de lhes dar a ler, de um modo que
entendam a todos, a arte de conhecer a si mesmos, quando
enfermos, e de se tratarem de suas enfermidades, segundo o que
tenho lido ou sabido por experiência própria484.

Expressava no opúsculo um saber geral sobre as moléstias que afligiam


os habitantes da capitania de Mato Grosso e de suas práticas de cura, onde temas
correntes, como o da qualidade da terra, da água, das temperaturas, das estações do
ano e, principalmente, da qualidade do ar, ganhavam uma visibilidade constante,
sendo retomados por Patrício da Silva Manso e D’Allincourt na realização dos
primeiros trabalhos estatísticos.

483
ANZAI, Leny Caselli. Leitura Paleográfica Comentada de Enfermidades endêmicas da capitania
de Mato Grosso: apresentação. In: Enfermidades endêmicas da capitania de Mato Grosso: a
memória de Alexandre Rodrigues Ferreira. Ângela Porto (Org.). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008, p.
21-22. (História e Saúde).
484
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Enfermidades endêmicas da capitania de Mato Grosso’. In:
Op. cit., p. 25-26.

298
Nesse opúsculo de Rodrigues Ferreira estava estampada uma
idealização do projeto iluminista, no sentido de que ele buscava com isso
instrumentalizar cada habitante no autoconhecimento dos males, seus sintomas e
causas, mas também as formas de tratá-los por meio de um conhecimento, ou
melhor, de um saber, que mesclava uma terapêutica europeia com outra americana,
dada a natureza de algumas afecções atingirem principalmente, segundo esse tipo
de discurso, os índios, negros e mulatos.
Pautado em estudos, o mencionado Alexandre Rodrigues Ferreira, já
em finais do século XVIII, apresentou alguns elementos para se pensar a “saúde
pública”, ao propor um conhecimento útil aos habitantes da capitania, como forma
de agir em caso de acometimento por alguma enfermidade. Dessa maneira:

[...] Contando apenas vinte e dois anos de idade, Alexandre


Rodrigues Ferreira, nascido na Cidade do Salvador (Bahia,
Brasil) em 27 de abril de 1756, ao terminar o curso de Filosofia
Natural na Universidade de Coimbra (Portugal), da qual recebeu
a láurea doutoral no comêço de 1779 (10 de janeiro), foi
indicado, mediante proposta do Prof. Domingos Vandelli, titular
de Ciências Naturais naquele estabelecimento de ensino superior,
seu mestre e padrinho universitário, atendendo a solicitação do
Governo Português, no reinado de Dona Maria I, foi indicado,
repito, para chefiar importante missão científica, que deveria
devassar os ínvios sertões da região amazônica, estudando não só
suas possibilidades econômicas no domínio dos três reinos da
natureza, como também o modo de vida e os costumes das
populações que a habitavam, sobretudo os aborígenes485 [...]

O trabalho de Rodrigues Ferreira, nesse sentido, remontava, de certa


maneira, a um compromisso científico a serviço da Coroa portuguesa, no reinado
de D. Maria I, o que apontava para um limiar de investimento político das riquezas
minerais e da população local, temas que vão ganhando cada vez mais corpo nos
discursos dos presidentes de província da primeira metade do século XIX.
Não nos deteremos nas práticas de cura propriamente ditas, uma vez
que acreditamos que os trabalhos referenciados abordaram de maneira magistral a

485
FALCÂO, Edgard de Cerqueira. Breve Notícia Sobre A ‘Viagem Filosófica’ de Alexandre
Rodrigues Ferreira (1783-1792). In: Revista de História. São Paulo, v. 40, n. 81 (1970), p.185.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/128948/125632.

299
problemática das práticas de cura e das doenças endêmicas na ótica do naturalista
Alexandre Rodrigues Ferreira.
Nos circunscrevemos, a seguir, ao uso estratégico da doença da
população a partir da problemática da saúde pública, significando que as discussões
de um Ribeiro Sanches, em seu Tratado sobre a Conservação dos Povos, enquanto
um intelectual luso, e de um Alexandre Rodrigues Ferreira, nas Enfermidades
endêmicas da capitania de Mato Grosso, vão adquirindo visibilidade cada vez
maior em face à problemática geral da saúde da população e dos recursos
legislativos de controle das moléstias que afligiam o corpo coletivo da população.
Diante disso, o que chamo de “saúde pública” é, precisamente, todo um
investimento político preciso na gestão da vida de uma população, criando
condições de segurança necessárias ao controle dos negócios da província e aos
jogos de interesses que respondiam à demanda de saúde.
Desde o século XVIII, quando se começava a organizar a então
capitania de Mato Grosso, os colonos, indígenas e escravos certamente foram
acometidos por diversas moléstias, expressas, por repetidas vezes, por conta das
inundações das regiões paludosas, como o pantanal, mas também pela qualidade do
ar fétido, propagador de doenças etc., ocasião em que se recorria a médicos e
curandeiros.
No entanto, o que se percebeu no período regencial de Mato Grosso foi
a constituição de uma problemática da saúde inerente à “prevenção”, o que exigiu
dos presidentes de província uma atuação precisa nos meios que causavam as
doenças, usando de medidas legislativas e ações práticas para atingir esse fim.
Claramente, a gestão dos corpos da população perpassava pelo uso
estratégico das “associações filantrópicas” e de “caridade486”, as quais, em
consonância com as intervenções dos presidentes de província, assumiam o

486
Vale ressaltar que, embora as instituições de caridade, que eram de cunho religioso, se
diferenciassem das filantrópicas, que eram civis, no caso da província de Mato Grosso, nos meados
do XIX, ambas foram investidas de regimes discursivos do Estado, mantendo suas especificidades
onde os orfanatos, que eram instituições de internação, convivessem com as rodas dos expostos,
prática de passagem que não criminalizava o abandono das crianças. Cf. MELO, Mariana Ferreira
de. Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro: assistencialismo, sociabilidade e poder. In: As
Misericórdias das duas margens do Atlântico: Portugal e Brasil (séculos XV e XX). Maria Marta
de Araújo (Org.). Cuiabá-MT: Carlini &Caniato, 2009.

300
investimento político quanto à vida da população. Nesse sentido, o presidente
Antonio Pedro de Alencastro, em discurso de 3 de julho de 1835, salientava que:

[...] Os Estabelecimentos de Caridade são os de S. João dos


Lázaros, e o Hospital de Nossa Senhora da Conceição da
Misericórdia desta Capital, e únicos que existem na
Província. [grifos meus]
Os fundos, que se dispõem a favor deles, são os juros de 5 por
cento do Capital de 61:856$020 reis tomados pela Fazenda
Pública por empréstimo do Legado deixado por Manoel
Fernandes Guimarães, cujo arbítrio foi aprovado pela Carta
Régia de 6 de Junho de 1814: além destes tem outros pequenos
reditos provenientes de prédios, serviços de escravos, e dívidas a
Administração, que consta de uma Mesa composta do Presidente
da Província em qualidade de Diretor geral: de um Inspetor: um
Tesoureiro, que serve de Procurador geral: um escrivão de
Receita e Despesa, que serve de Enfermeiro-mor: e de um
Advogado Fiscal: todos estes a exceção do Escrivão servem sem
estipêndio algum. Não tem estatutos, e só é governado até o
presente pela referida Mesa, e ordens do Governo, que a cada
passo sofrem alterações conforme as circunstâncias487.

Note-se que, para o amparo à população considerada desvalida,


miserável e pobre havia somente duas instituições, a de São João dos Lázaros e o
Hospital de Nossa Senhora da Conceição, este mantido pelos juros de 5%, pagos
pela província em decorrência do “empréstimo” tomado do legado de Manoel
Fernandes Guimarães. As memórias referentes ao ano de 1817, ainda no governo
de D. João VI e presentes nos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, é bastante
ilustrativo da forma como se deu esse processo:

[...] Como El Rey Nosso Senhor que Deos Guarde pela carta
Regia de 6 de Junho de 1814. Foi servido Approvar a
encorporação da Testamentaria de Manoel Fernandes
Guimaraens as Rendas Reaes desta Capitania e ao thrazer ao
nosso Illustrissimo Excellentissimo Governador Capitão-
General p.ª fazer a aplicar as penas q. p.r isso houvesse de pagar
a R.l Fazenda anualm.e p.ª os estabelecimentos pios apontados
p.lo m.mo Gen.al no Plano q.’ subio a Sua R.l Presença em
desempenho da vaidoza istituição daquele Testador: havia S.
Exc.ª começado com o socorro de algumas subscripcoens
voluntário, e esmolas q.’ pedio hum edificio, q.’ dominou R.l
caza pia de S. Lazaro = para nella se recolherem todos os
infermos do mal de S. Lazaro, q.’ vagão p.r esta V.ª e seu termo,

487
ALENCASTRO, Antonio Pedro. Discurso de 3 de julho de não 35. Op. cit., p. 5.

301
e p.r q.’ se tinha adiantado muito a construção deste edificio
conhecendo S. Ex.ª p.las contas q.’ pedio a Administração q.’
criou p.ª aquela R.l Caza assistencia de hum excesso, que alem
de segurar a subsistencia dos Lazaros ainda permitia q.’ se
estendia a aplicação approvada a outra obra Pia ainda mais
entereçante: e havendo ordemnado, q.’ os fundos daquela
administração fossem simultaneamente applicados p.ª
sustentação dos ditos Lazaros p.ª ultimar as obras da R.l caza Pia,
e p.ª as obras, q.’ hia principiar de hum hospital Geral com a
invocação de N.S da Conceição q.’ tinha ja marcado no Bairro
do Mundeo, em terras, q.’ se havia comprado a Victoriano de
Souza Neves: Foi no dia 3 de Fevereiro deste anno, q.’ com
grande acompanhamento S. Ex.ª lançou a primeira Pedra deste
Edificio, q.’ Deos permita se adiante, e prospere p.r bem da
humanidade com tanto fervor como principiou, e como se está
continuando, e graças sejão rendidas ao mesmo Deos p.r nos dar
hum Soberano tão Pio, tão caridozo tão am.te de Seus vaçallos
q.’ não perde ocazião de faser o bom que lhes dezeja, e q.’ p.r
isso m.mo anuiu promptam.e aos rogos do nosso encançavel
General, que tanto trabalha em beneficio dos seus subditos. Seja
a carid.de dos fieis e seguro fiador desta grande obra, e passa a
Administração de obras Pias, exercitar no Hospital Geral de N.S.
da Conceição, as meritorias açoens, q.’ exercitão as S.tas Cazas
da Mizericordia deste Reino488.

Temos, portanto, duas instituições, criadas ainda sob o reinado de D.


João VI, no período colonial, as quais gradativamente são assumidas pelos
presidentes da província de Mato Grosso como uma das estratégias fundamentais
na gestão da população tida como “desvalida”.
Semelhante situação levou os governantes provinciais a conclamar por
uma maior participação das autoridades políticas no fortalecimento e
funcionamento dessas duas instituições de caridade: a de S. João dos Lázaros e o
Hospital de Nossa Senhora da Conceição da Misericórdia. Imbuído dessa proposta,
o presidente Antonio Pedro de Alencastro, ressaltava que:

[...] É verdade que as suas rendas não tem sido desaproveitadas:


todavia uma nova reforma, ditada pela vossa sabedoria, levaria
estes dois Estabelecimentos ao grau da sua necessária perfeição;
e até porque nem sempre se encontram pessoas hábeis que por
filantropia se prestem para tais Empregos489.

488
ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ. Op. cit., p. 214-215.
489
ALENCASTRO, Antonio Pedro de. Discurso de 3 de julho de 1835. Op. cit., p. 5.

302
Observa-se gradativamente uma intervenção estatal nesses
estabelecimentos de caridade, expressos no presente discurso de Alencastro, como
a necessidade de reforma nas referidas instituições, para que estas funcionassem
plenamente e oferecessem condições de atender a população mais pobre. Além
disso,

[...] Outra providência, Snrs., deverá empenhar os vossos


constantes desvelos. Aos esforços de uma sociedade, que teve
sua existência e presentemente em abandono nesta Capital com
o título de Filantrópica conseguiu-se outrora uma roda de
Expostos no Edifício d’aquele Hospital de Misericórdia á
expensas do sócios consignados, onde já pela primeira vez
fizeram recolher, e se está criando um inocente: quisera por sob
vossos auspícios a seguridade de um tal asilo para os infelizes
que a fragilidade ou a miséria, e a indigência de seus progenitores
levam a abandona-los nas estradas, e portas dos particulares onde
muitas vezes terminam a aurora de sua existência, que poderia
tornar-se útil á Pátria490.

Tal providência, apresentada em “tom caritativo”, fez funcionar


estrategicamente um discurso político que falava em nome dessa instituição,
embora ela fosse administrada por seus associados, e cada vez mais entrava no
discurso político na gestão das condições de “miserabilidade” da população.
As rodas dos Expostos491, do Edifício do Hospital da Misericórdia,
recebia e acolhia, certamente como asilo, a toda uma população de enjeitados que,
devido às condições miseráveis de seus pais, pois antes eram abandonadas nas
estradas, nas casas de outras famílias e, por fim, acabavam por morrer sem terem
condições de “ser úteis a Pátria”, ou seja, sem contribuir em alguma atividade
rentável ao Estado.
A penetração política na gestão do sofrimento, das dores e das
condições de miserabilidade da população se pautava num controle que exigia cada
vez mais a participação dos governantes em suas intervenções, através de ações
práticas que pudessem atenuar o problema. Exemplo disso pode ser visualizado no

490
Ibid. p. 5-6.
491
Cf. VENÂNCIO, Renato. Entre dois impérios: a Santa Casa da Misericórdia e as ‘Rodas dos
Expostos’ no Brasil. In: Op. cit.

303
discurso de 1º de março de 1837, pronunciado por Antonio Pimenta Bueno, quando
chamava a atenção para:

[...] As febres que com a inundação do Guaporé flagelam


anualmente a cidade de Mato Grosso, desenvolveram-se este ano
com intensidade: sendo me doloroso ver sucumbir não pequeno
número de pessoas sem um só professor que lhes desse consolo
e tratamento.
Em toda a Província existe apenas o Cirurgião-mor do Corpo de
Ligeiros, que não podia abandonar o Hospital do mesmo, e o da
Santa Casa da Misericórdia: era, portanto, impossível faze-lo ir a
Mato Grosso.
Ao mesmo tempo que sem dúvida prestareis vossa atenção sobre
matéria, que tanto importa, eu passo a pedir ao Ministério da
Guerra, que mande 2 cirurgiões Ajudantes para o serviço do
Corpo de Ligeiros, e a obtê-los, estacionarei um em Mato Grosso,
cujo destacamento militar assaz precisa, e d’essa arte socorrerei
também a necessidades de seus habitantes.
Nenhuma só botica existe na Província de a excetuar-se a
pequena que possui o mesmo Cirurgião-mor; quando há falta
nela, não restam outros medicamentos, pois que poucas são as
drogas, que vendem se pelas lojas, não havendo quem saiba
prepara-las pela inteira falta de conhecimentos farmacêuticos.
Como aquele Professor é dotado de zelo, e compromete-se a
ensinar esta arte, pretendo aproveitar a proposição que ele fez de
receber para esse fim dois moços do Corpo de Ligeiros que
sabiam ler e escrever, e mostrem alguma aptidão, meio único de
preencher as vistas do Governo Imperial, que já tiveram em
consideração esta matéria492.

Desse discurso, gostaria de ressaltar alguns pontos importantes: o


primeiro é que ele apresentou um quadro corrente das afecções que acometiam a
população da cidade de Mato Grosso, propagado durante a estação das cheias (fato
atestado desde o período colonial e motivo de preocupação, visto que acometia os
seus habitantes); segundo, constatava-se a insuficiência de cirurgiões para atender
toda a demanda da província; faltando boticas, e também pessoas de comprovado
conhecimento farmacêutico e com capacidade de ministrar o tratamento.
Diante desse estado de coisas, o referido presidente, a fim de atenuar o
número de mortes causadas pelas febres, solicitou dois cirurgiões ajudantes para
auxiliar o Corpo de Ligeiros em seu destacamento militar, bem como ministrar os
devidos socorros aos seus habitantes.

492
BUENO, Antonio Pimenta. Discurso de 1º de março de 1837. Op. cit., p. 27-28.

304
Além disso, propôs que o único cirurgião-mor da província de Mato
Grosso ensinasse a dois moços do Corpo de Ligeiros, repassando-lhes o
“conhecimento farmacêutico” para, certamente, amenizar as condições precárias no
tratamento das afecções que se disseminavam em diferentes pontos.
Eis que, no ano seguinte, o presidente da província Antonio Pimenta
Bueno, em seu discurso de 1º de março de 1838, apresentou um quadro diferente
da cidade de Mato Grosso, onde:

[...] Os habitantes da bela e decadente Cidade de Mato Grosso,


outrora Capital da Província, felizmente deixaram de sofrer no
ano próximo passado as febres que ali costumam aparecer no
começo das águas, como ainda no antecedente acontecera; resta
que no fim delas, que se aproxima, escapem também a esse
flagelo, que por si só tem concorrido para despovoar aquela
Cidade493.

Embora constatando que os moradores dessa cidade já não haviam sido


acometidos pelas febres causadoras de inúmeras mortes em anos anteriores, no
entanto, traçou uma imagem decadente da referida cidade, que em seu auge fora à
então capital da capitania, mas que naquele momento já dava sinais de abandono,
atribuído à migração forçada de seus habitantes por conta das doenças que
acometiam a região.
Curiosamente, omitiu-se nesse caso o fato da perda da centralidade
política desfrutada pela cidade de Mato Grosso desde a segunda metade do século
XVIII, com a elevação de Cuiabá a sede do governo provincial, pela lei provincial
no 19, de 28 de agosto de 1835494, que, certamente, também influiria na migração
dos habitantes da primeira capital.
Retomando o discurso de Pimenta Bueno de 1838, assistiu-se também
a um processo de fiscalização das condições dos estabelecimentos Pios, ocasião em
que foram verificados seu funcionamento, o tratamento dispensado às pessoas e o
número dos atendidos:

493
Idem. Discurso de 1º de março de 1838, p. 27.
494
LEI PROVINCIAL Nº 19, DE 28 DE AGOSTO DE 1835. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-19-1835.pdf. Acessado em 10/01/2018.

305
[...] A Inspeção dos Estabelecimentos Pios desta Cidade,
continua a ser prestante. O Hospital de S. João dos Lázaros, o
Hospital da Misericórdia e dos Expostos, além dos reparos
obtidos, tem conseguido melhoramentos em seu Regimento
Administrativo: os enfermos e crianças são cuidadosamente
tratados.
A comissão de visita dos Estabelecimentos Pios, e a Câmara
Municipal acham-se contentes com o digno Inspetor de tais
Estabelecimentos, Joaquim Alves Ferreira, e não menos contente
o Governo, que louvando os gratuitos serviços por tão útil
Cidadão prestados a prol da humanidade, exerce ato de rigorosa
justiça495.

Sob o comando do inspetor das obras pias, Joaquim Alves Ferreira, foi
sendo construído um conjunto de dados que expressaram o número de pessoas
assistidas, curadas e mortas, oferecendo ao presidente de província uma visão geral
dos habitantes “sadios, válidos e fortes”, ou seja, aptos ao trabalho. Eis as condições
apresentadas em 8 de abril de 1838:

[...] O Hospital dos Ligeiros que se acha no mesmo Quartel tem


8 doentes, todos muito bem socorridos de todo necessario, em
tudo se devulgou limpeza, e por isso louvores se dão aos
empregados e muito particular ao Facultativo da Casa, o
Cirurgião-Mor Flaviano José Moreira.
O Hospital de N. S. da Conceição desta cidade, se a cidade fosse
hum anil, serviria aquelle edificio da preciosa pedra, mas não
como a cidade de Ormus imporio das grandesas do Oriente, mas
esta como imporio da caridade nella se achão 16 doentes, todos
muito bem socorridos do preciso tanto em alimentos como em
remedios e vestuarios. Os expostos são tres, duas mulheres e hum
homem, já deixarão suas ammas e achão-se iducando por ordem
do Inspector em casas particulares, com a assistencia precisa pela
mesma administração, estes mimosos filhos gremios da
posteridade desamparado por seus pais com vergonha da
natureza ja acharão dentro desta preciosa pedra a arvore da
caridade em cuja sombra saboreão gostosos os seus inocentes
cuidados já não veremos os seus cadaveres pelos bosques
dilacerados dos animais; e por isso louvores sejão dados ao seo
bem feitor, e a todos os que concorrerão para tão caritativo
beneficio.
O Hospital de S. João dos Lasaros desta cidade com pouca
diferença meio quarto de legoa, nelle existem 8 enfermos, 7
homens e 1 mulher todos muito bem socorridos tanto de vestuario
como de sustento e nada representarão nesta Comissão o edificio
acha-se restabelecido ou retificado de huma morte prematura de
que fora acometido na terça parte de seu corpo, ja o triste e

495
Ibid., p. 23.

306
funebre aspecto que outrora mostrava, se trocou em rizonho e
alegre face, por o seu orizonte parece qui anuncia a epoca da sua
criação, e por isso esta Commissão vem faser injuria a verdade
louva o assiduo trabalho do seo Inspector o quanto tem
promovido o bem destes Pios edifícios496.

A fiscalização497 exercia vigilância em três instituições que cuidavam


da população: O Hospital dos Ligeiros, Hospital de N. S. da Conceição, Hospital
de S. João dos Lázaros, avaliando o seu funcionamento, que ia desde as condições
básicas de subsistência, como: alimentos e medicamentos, até ao trabalho
desenvolvido por seus funcionários em relação aos cuidados ministrados aos
pacientes.
Curiosamente, eis que no dia 2 de março de 1839, na Ata com que o
Presidente da Província de Mato Grosso fez a abertura da Segunda Seção Ordinária
da Segunda Legislatura da Assembleia Provincial, Estevão Ribeiro de Rezende
chamava mais uma vez para essa problemática de Mato Grosso. Assim:

[...] Não tem chegado ao conhecimento do Governo por


informações Oficiais, ou ainda particulares que as febres
endêmicas de Mato Grosso nestas águas se tinham desenvolvido
com intensidade, porém é de crer que com a inundação do
Guaporé, tenham passado. Infelizmente continua aquela Cidade
privada de socorros higiênicos [grifos meus] de que tanto
necessita: não tem um Professor de Medicina, ou de Cirurgia,
e nem ao menos uma Botica498 [grifos meus].

Estevão Ribeiro de Rezende constatou os mesmos problemas apontados


por Pimenta Bueno em 1837, como a falta de professor de medicina, de cirurgião e
de botica, no entanto indicou a diminuição das febres relatadas por seu antecessor,
relacionada ao fato do ciclo das inundações terem passado, e não enquanto resultado
de medidas higiênicas adotadas e implantadas pelo governo.

496
RELATÓRIO DA COMISSÃO DE VISITA ÀS PRISÕES E ESTABELECIMENTOS PIOS,
NOMEADA PELA CAMARA MUNICIPAL DA CIDADE DE CUIABÁ, DATADO DE 8 DE
ABRIL DE 1838, ENCAMINHADO AO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA, DR. JOSÉ ANTONIO
PIMENTA BUENO, POR OFÍCIO DATADO DA SESSÃO DE 10 DE ABRIL DE 1838. COD.
DOC. 142. APMT.
497
Fiscalizava também as cadeias da província, onde foram constatadas as condições precárias em
que encontravam. Cf. Loc. cit.
498
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Op. cit., p. 55-56.

307
Ressaltava ainda a importância da referida cidade de Mato Grosso como
ponto militar, assim como sobre o relativo abandono em que se se encontrava.
Nesse sentido, reiterou, mais uma vez, a proposta de Pimenta Bueno, de solicitar,
ao Ministério da Guerra, dois cirurgiões ajudantes, além de propor outras medidas
higiênicas que prevenissem o mal provocado em decorrência das cheias. Nesses
termos, lembrava que:

[...] A Cidade de Mato Grosso é ainda hoje um ponto Militar de


importância: não é possível ao Governo deixar de conservar
estacionada ali a Guarnição, que a segurança, e a vigilância da
Fronteira exigem, e por isso passo a reiterar o pedido outrora feito
ao Ex.mo Ministro da Guerra de Dois Cirurgiões Ajudantes, um
das quais mandarei por ali, mas sem embargo desta providência
da vossa parte está o limitar o mal com o que estiverem ao vosso
alcance.
Como aquela bonita Cidade está situada em um lugar mui plano,
e certamente quase ao nível do rio Guaporé [ilegível] alagam-se
com as enchentes de maneira tal que ficam intransitáveis, e por
meses se conservam úmidas; e tendo sem dúvida que é esta uma
das causas daquele flagelo destruída tenho em meu conceito, que
calçando-se as ruas, e alinhando-se valas para esgoto das águas,
que em muitas partes se conservam estagnadas, e cobertas de
limo verde, muito ganharia a saúde pública. Esta Capital, e todas
os mais pontos da Província nenhuma epidemia tem sofrido, e
felizmente continuam os Povos a passar imunes do flagelo das
bexigas, que muito se tem desenvolvido em outras partes do
Império499.

Devido à regularidade com que o fenômeno da cheia atingia a cidade


de Mato Grosso, Estevão Ribeiro de Rezende, propõe, como meio de prevenir e
intervir na intensidade com que as doenças afligiam a população, medidas que
envolviam intervenção estatal no processo de higienização da cidade, como calçar
as ruas, alinhar valas para esgoto, impedindo a formação de águas estagnadas e
limosas, consideradas responsáveis pela criação das condições de um ambiente
pestífero.
Tais medidas de higienização já estavam sendo postas em práticas nos
códigos de posturas municipais e em algumas regulamentações legislativas em que
a problemática da saúde pública ganhava cada vez mais consistência.

499
Ibid., p. 56-57.

308
A título de exemplo, o Código de Posturas de Cuiabá, aprovado pela
Resolução provincial no 14, de 2 de maio de 1837, já dispunha algumas medidas de
higienização do espaço público, principalmente em seu Título 1, que versou sobre
Saúde Pública, explicitados em 6 artigos:

[...] Artº. 1º. Todo o Proprietario de Predio, que tiver poços, ou


tanques, os conservará limpos a fim de que as exhalações
pestiferas, que do contrario se levantão não damnem á Saude
publica. O Infractor será multado em dous mil reis ou dous dias
de prisão, e no dobro nas reincidencias.
Artº. 2º. Fica a cargo da Camara Municipal esgotar os pantanos
e estagnações de agoas contiguas á Cidade. O Fiscal cumprirá
este Artigo, e os das Povoações do Municipio são tambem a isso
obrigados relativamente.
Artº. 3º. Só nos Matadouros publicos, ou particulares na fórma
do § 9º do Artº. 66 da Lei do 1º de Outubro de 1828, será licito
matar, esquartejar as Reses, podendo ser vendidas depois aonde
convier. O Infractor será multado em dous mil reis, ou dous dias
de prisão, e no dobro nas reincidencias.
Artº. 4º. Hé prohibido § 1º. Matar peixes com veneno. § 2º.
Vender alimentos corrompidos. § 3º. Falcificar os generos,
misturando lhes outra substancia, que augmente o seu peso, ou
altere á qualidade. O Infractor será multado em oito mil reis, ou
oito dias de prisão, e no dobro nas reincidencias, alem das penas
da Lei.
Artº. 5º. Os Proprietarios, por cujos predios passarem canos, ou
receptaculos de immudices, os terão desintulhados, e com livre
correntesa d’agua até o lugar do despejo; a fim de não
contagiarem a Saude publica. O Infractor será multado em oito
mil reis, e no dobro nas reincidencias.
Artº. 6º. São prohibidas latrinas com despejos para ás Ruas e
lugares públicos. Os Proprietarios serão obrigados a tapal-as
dentro em dez dias depois do avisado pelo Fiscal, e não o
fazendo, serão multados em doze mil reis, ou doze dias de prisão,
e no dobro nas reincidencias, alem de serem tapadas á sua
custa500.

Como se pode perceber, houve um investimento político que atuou


estrategicamente no “meio”, no “habitat” da população, ou, em outras palavras, nas
condições naturais que interferiam na sua vida, colocando em funcionamento um
aparato de vigilância e de fiscalização de condutas coletivas ou de condutas
individuais que afetariam a população de modo geral.

500
RESOLUÇÃO PROVINCIAL Nº 14, DE 2 DE MAIO DE 1837, P. 1. Disponível em
www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/rsi-14-1837.pdf. Acessado em 10/01/2018.

309
Em todo caso, tratava-se de atuar sobre os meios propagadores das
doenças e manter um controle estável das moléstias que acometiam a população.
Tal situação impunha aos dirigentes a necessidade de vigiar as condições de cada
município no controle das pestes e epidemias. Diante disso, o presidente de
província Estevão Ribeiro de Rezende, em seu discurso de 1º de março de 1840,
lembrava:

[...] O terrível flagelo das bexigas, que tantos estragos tem feito
na população de outros pontos do Império, bastante nos ameaçou
o ano passado.
Chegou mesmo a aparecer no Termo do Alto Paraguai
Diamantino, mas felizmente não grassaram, o que é devido as
cautelosas medidas tomadas pelo respectivo Juiz de Direito
interino, e fortalecidas pelo Governo.
Se é para lamentar, Snrs., os prejuízos que ainda hoje dominam
esta Província contra a vacina, poderoso antídoto para as bexigas,
e que tantas vidas tem poupado, muito mais o é a indiferença com
que um objeto de tanta importância tem sido tratado da parte da
Autoridade Pública.
Não achando, para fazer distribuir pelas Câmaras Municipais
outro pus vacínico além de um recebido da Corte a nove anos, do
qual apenas uma lamina se julgou servível, e foi remetida pelo
Governo a Câmara do Diamantino, oficiei ao Governo Imperial
pedindo a remessa de algumas lâminas, que espero receber
brevemente, acompanhadas de instruções para a sua
inoculação501.

Sua posição evidenciava de que maneira se procedia ao


acompanhamento das enfermidades que acometiam alguns municípios da província
e quais medidas de prevenção garantiriam que o impacto destrutivo das doenças
fosse reduzido.
Além disso, já colocava no plano político a necessidade de as
autoridades públicas investirem na vacina contra as bexigas, incitando-se, nesse
sentido, uma ação preventiva contra essa doença, o que, efetivamente, asseguraria
a vida da população, o que certamente estava em consonância com medidas
impositivas e de instrução da população para aceitar a administração dessas
vacinas502.

501
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso de 1º de março de 1840. Op. cit., p. 11.
502
Curiosamente, a problemática da vacina se mostrou enquanto temática que persistirá até no
período republicano, uma vez que a população mais pobre era ainda marcada fortemente por um
modelo patriarcal de sociedade, onde os ‘pais de família’ não aceitavam a aplicação da vacina em

310
Embora as dificuldades apresentadas no estabelecimento desse nível de
segurança buscado em relação à saúde pública e das medidas de higienização
adotadas, criava-se um campo propício na administração da população,
disseminando a participação ativa de outros agentes, como fiscais, inspetores etc.,
ocasião em que o mesmo defendia que:

[...] Quer se encare, Snrs., a saúde pública pelo lado da


humanidade, quer pelo do interesse do país, ela não pode deixar
de estimular a sensibilidade dos amigos de seus semelhantes, e
da Pátria, e contando com a vossa filantropia e zelo pela
felicidade pública espero que dareis atenção ao que fica
expendido503.

Tal situação levava até mesmo à imposição de obrigações em relação


aos grandes proprietários de escravos, os quais passavam a responder pelas
condições de suas vidas.
A aprovação da Lei no 5, de 26 de abril de 1836, nesse sentido,
estabelecia aos proprietários a obrigação de prestar os necessários cuidados aos seus
escravos no que tocava à questão das doenças ou velhice, “para que não fiquem sob
o ônus da População das Cidades, Vilas ou Distritos”. Tais cuidados foram
definidos nos três artigos da mencionada Lei:

[...] Artº. 1º. Todo aquelle Senhor que desamparar algum seu
escravo, por molestias, ou por avançada idade, por lhe não poder
prestar mais serviços, será obrigado a curalos, e sustental-os para
não virem a ser pesados aos habitantes das Cidades,Villas, e
Destrictos.
Artº. 2º. No caso que o Hospital dos Lasaros, ou Casa da
Misericordia, queirão receber os ditos escravos, ficarão seus
Senhores obrigados a pagar duzentos reis diarios para sustento
dos mesmos, alem do vestuario, e remédios.
Artº. 3º. O escravo assim desamparado, será obrigado a
apresentarse ao Juiz de Paz respectivo, para faser executar o
disposto nos Artigos antecedentes504.

suas mulheres e filhas, justificada por se tratar de um atentado à ‘moralidade e ao pudor’. A revolta
da vacina, em 1904, foi um exemplo característico desse tipo de resistência. Cf. SEVCENKO,
Nicolau. A Revolta da vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Scipione, 2001.
503
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso de 1º de março de 1840. Op. cit., p. 12.
504
LEI PROVINCIAL Nº 5, DE 26 DE ABRIL DE 1836. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-5-1836.pdf. Acessado em 10/01/2018

311
Esse tipo de discurso não expressava, certamente, a benevolência dos
presidentes de província em relação à vida dos escravos, mas a preocupação de não
“onerar” ainda mais a camada composta de homens livres da população, tornando
suas condições de vida ainda mais difíceis.
O descontentamento que isso poderia gerar na “população livre” foi
pensada estrategicamente, uma vez que esse segmento poderia votar nas eleições
primárias e, portanto, tal restrição poderia gerar resistência em relação às práticas
emanadas do governo provincial.
Expressava-se com isso, ao nosso ver, a fundamentação discursiva “de
uma subpopulação”, cuja gestão e administração cabia aos senhores de escravos e
não propriamente ao Estado que, nesse caso, se apresentava enquanto regulador das
instâncias de miserabilidade geradas pela escravidão e também no interior da
população menos abastada.
Enquanto a precária condição do cativo seguia um princípio de
propriedade, cabia aos senhores arcar com custos dela. Por outro lado, a
miserabilidade da população menos abastada exigia uma intervenção do Estado,
uma vez que afetava o cidadão pobre, porém livre.
Projetava-se gradativamente um espaço dos vivos e o afastamento das
condições que causassem a morbidade. Diante disso, as práticas de sepultamento
também ganharam maior visibilidade nesse período. Assim, temos as primeiras leis
que buscaram criar um cemitério para abrigar os mortos:

[...] Artº. 1º. As Camaras Municipaes, nos seus respectivos


Municipio, fixarão o numero de Semiterios, que julgarem
precisos para sepultar-se os mortos tendo em vistas a população:
marcarão o terreno, e farão murar á custa das Rendas Municipaes.
Artº. 2º. Em cada hum Semiterio haverá hum telheiro, e hum
oratorio, e altar com seus paramentos, em estado de se poder
nelle celebrar, e fazer as emcomendações aos defuntos, quando
assim o queirão seus parentes e testamenteiros.
Artº. 3º. Cada Semiterio terá hum portão com chave, e hum
Coveiro encarregado desta chave e de dar sepultura aos
defunctos, que lhe forem apresentados com a competente guia do
Juiz de Paz recebendo mil e dusentos reis pela importancia da
sepultura.
Artº. 4º. O producto das sepulturas será todos os sabados recebido
do Coveiro pelo Fiscal da Camara Municipal, entregue ao
Thesoureiro e applicado para pagamento das despesas que a

312
Camara Municipal tiver feito como Semiterio, ferramentas, e
asseio do mesmo e sallario ao Coveiro.
Artº. 5º. Promptos que estejão os Semiterios fica prohibido a
sepultar-se dentro da Igreja, e adro, pessôa alguma sem exceção.
Artº. 6º. Os que infringirem esta Lei serão multados pelo Juiz de
Paz respectivo em trinta mil reis para as despesas do Semiterio:
na mesma pena incorrerão as Parochias, que consentir.
Artº. 7º. Hé permittido aos parentes, amigos, e testamenteiros do
morto, fazerem sepultura com a decencia, que quizerem, com
tanto que não occupem mais terreno que nove palmos de
comprido, e quatro de largo, pagando neste caso quarenta mil reis
para a Camara Municipal.
Artº. 8º. O Parocho hirá encommendar o seu parochiano, onde se
achar morto, que depois seguirá para o Semiterio, recebendo por
isso o benz que lhe competir pela Constituição do Bispado505.

O que chama a atenção é que, com a necessidade de cemitério para


abrigo dos mortos, teve início o estabelecimento da normatização das práticas de
sepultamento, no entanto, elas conferiam a cada município as despesas em relação
à quantidade e manutenção dessas obras, porém, e curiosamente, esse projeto foi
revogado pela Resolução nº 6, de 12 de abril de 1844, já no reinado de D. Pedro II,
quando a ala “conservadora” se ajeitava no poder após as regências.
Nesse sentido, a historiadora Maria Aparecida Borges Rocha, lembra
que somente a partir de 1850 a problemática foi retomada pela assembleia
legislativa, propondo um afastamento cada vez maior dos cemitérios no interior do
espaço das cidades onde:

[...] A lei provincial no 2, de 4 de janeiro de 1850, que autorizava


a Presidência da Província a fazer estabelecer nos subúrbios da
cidade um cemitério público, veio reforçar as anteriormente
citadas e despendeu verba para a construção dos cemitérios da
cidade, liberando-a de uma fonte de poluição, enquanto, por
outro, lado, salvava-se o cemitério da corrupção da cidade506.

Em relação às transformações sofridas nas práticas de sepultamento,


embora transcorressem de maneira lenta, podemos afirmar que foi ainda na primeira
metade do século XIX que ela ganhou as primeiras formulações no tocante à gestão

505
LEI PROVINCIAL Nº 21, 9 DE SETEMBRO DE 1835, p. 1. Disponível em:
https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/leis/lim-21-1835.pdf. Acessado em 10/01/2018.
506
ROCHA, Maria Aparecida Borges. Transformações nas práticas de enterramento: Cuiabá (1850-
1889). Cuiabá: Central de Texto, 2005, p. 34.

313
da vida e dos espaços dos mortos, o que já fora lembrado por Estevão Ribeiro de
Rezende, em 1840:

Indicar-vos-ei ainda uma das providências, que muito reclama


entre nós a higiene pública. Consiste ela em desterrar-se
convenientemente a prática de sepultar-se cadáveres dentro dos
Templos, prática nociva, e da qual tem a experiência mostrado
funestos resultados.
Para tal fim a vós cumpre decretar quantia para que as Câmaras
Municipais possam por meio de compra, ou por outro qualquer
tipo adquirir os terrenos precisos para a construção de Cemitério
fora das Povoações507.

Era a problemática da vida da população inserida na organização do


espaço dos mortos e gradativo afastamento do espaço urbano, assim, vai sendo
posta em pauta política a importância dos cemitérios nas regiões periféricas da
cidade.
No tocante aos estabelecimentos de caridade, continuava-se a
acompanhar as condições de atendimento às camadas menos abastadas da
população que, embora diante das dificuldades apresentadas em relação às
comodidades oferecidas pelos edifícios que abrigavam as duas instituições de
caridade, a de São João dos Lázaros e o Hospital da Nossa Senhora da Conceição
da Misericórdia, os cuidados da população desvalida estavam ainda garantidos:

[...] Os únicos Estabelecimentos de Caridade que a Província


possui, como já vos tem sido declarado nos precedentes
Relatórios, são os Hospitais de Nossa Senhora da Conceição da
Misericórdia, e de São João dos Lázaros, os quais zelosamente
administrados, continuam a oferecer asilo aos miseráveis que
recorrem ao seu amparo.
Presentemente contém os primeiros 20 doentes, e o segundo 13
infelizes atacados do terrível mal da morfeia, além dos 3 expostos
lançados na roda da Misericórdia, e aos quais continua a pensar,
e tratar convenientemente a Administração de obras Pias. Do
relatório apresentado pelo digno Inspetor destes
Estabelecimentos, que farei chegar ao vosso conhecimento,
vereis que tendo entrado para o Hospital da Misericórdia, de 1º
de Julho de 1838 até Janeiro do corrente ano 83 enfermos, saíram
destes sãos e salvos 51, falecendo apenas 11, inclusive 2 que
foram recebidos já moribundos.

507
REZENDE, Estevão Ribeiro de. Discurso de 1º de março de 1840. Op. cit., p. 11.

314
É pois diminuta a sua mortalidade, e o mesmo acontece no outro
Hospital de S. João dos Lázaros, o que atesta o bom tratamento
dos enfermos508.

Diante desse estado de coisas foi exigida uma ação mais efetiva do
Estado na manutenção das citadas instituições que, embora regidas por
regulamentos próprios formulados por seus associados, suas funções eram
exercidas gratuitamente, no entanto, tais instituições passavam por problemas
estruturais do espaço físico e conservação dos edifícios, exigindo reformas, mas
que naquele momento se encontravam paralisadas:

Consenti, Snrs., que vos lembre o andamento de que necessitam


as obras da Santa Casa, a tanto tempo paralisadas. Já tive ocasião
de apresentar-vos os seus rendimentos, e de observar que são eles
insuficientes ainda para fazer face as despesas ordinárias, pois
com a mesma falência de meios continua ela a lutar.
Visitei antes estes Estabelecimentos, percorri-os, e conheci que
as referidas obras são absolutamente necessárias.
Além de que delas depende o melhor agasalho das enfermarias
existentes, urge aumentar-se o número destas, para o que tem o
Edifício da Santa Casa todas as proporções a fim de poder
receber todos os doentes que se lhe apresentarem.
Agora mesmo que, como já fica dito, o número destes não excede
a 20, são 16 tratados no Hospital, e 4 em suas casas por falta de
cômodo no Edifício.
Diz aquele Inspetor que uma consignação de 1:200$000 anuais
continuada enquanto durassem as obras da Casa seria grande
benefício a humanidade aflita, e suficiente para a prosperidade
de um tão recomendável Estabelecimento509.

Constatava-se também que o “espírito caritativo”, tão comum em


outras épocas, nos oitocentos se apresentavam bem reduzido, o que tornava a
intervenção política nesse assunto objeto de grande consideração, por meio de
medidas legislativas. Nesses termos, Rezende, expressou o seguinte
posicionamento:

É este um dos objetos sobre que chamo vossa atenção


ponderando que se já em nossos dias não vê a beneficência e o
zelo religioso que faziam aparecer em outros tempos grandes e
frequentes doações para fundação, ou renda de Estabelecimentos

508
Ibid., p. 14.
509
Ibid., p.14.

315
de tanta importância a humanidade desvalida, cumpre suprir a
falta da maneira compatível, manter ao menos os que existem, e
o Governo o espera da vossa filantropia510.

Enfim, tal estratégia biopolítica da saúde pública apresentada pelos


presidentes de província em seus relatórios, discursos, leis provinciais etc.,
apontava para um jogo de enunciados no qual se falava em nome da população,
apresentando-se enquanto gestores de suas misérias, sofrimentos, de seus corpos e
de suas condutas, o que dimanava intervenções ou omissões.
Fazer viver e deixar morrer conviviam nas práticas em que, no caso da
saúde, o acompanhamento progressivo das doenças que acometiam determinadas
regiões, determinadas pessoas, determinados grupos enfim, conviviam com
omissões deliberadas.
Assim, enquanto constantemente se falava das doenças e mortes
provocadas na cidade de Mato Grosso, repetidas vezes lembradas pelos presidentes
de província, curiosamente, na cidade de Cuiabá não havia registro desses focos
epidêmicos, o que, certamente, reforçava a posição corrente dos cuiabanos que
viram a cidade ser elevada a sede oficial do governo de Mato Grosso, a partir de
1835.
Além disso, temos os registros de doentes, seu número e tratamento
confeccionados com base nos dados formulados pelos inspetores das obras pias, e
que apresentava, no caso de Cuiabá, a preocupação em “fazer viver”, bem visível
por meio de ações que buscavam oferecer cuidados à população desvalida da
província, certamente, as que para ali se dirigiam de outras regiões.
Curiosamente, na cidade de Mato Grosso a preocupação era produzir
um “nível estável de sofrimento tolerado”, ou seja, “deixava-se morrer”. Com isso,
quero dizer que, constatadas as condições de insalubridade e de propagação de
doenças, por conta da época das cheias, as medidas propostas para sanar tais
problemas foram procrastinadas em várias situações, daí a insistência dos
presidentes em reforçar determinados pontos, soluções paliativas que amenizassem
o estado crítico de mortalidade.

510
Ibid., 15.

316
A exemplo do que foi exposto, os presidentes Pimenta Bueno e Estevão
Ribeiro de Rezende apresentaram, o primeiro, a necessidade de um professor de
medicina na região, de dois cirurgiões auxiliares no destacamento militar e que
também ofereceriam ajuda aos habitantes e aumento das boticas, contudo, o
segundo propôs ações mais avançada de higienização, por meio da construção de
canais e redes de esgoto que impediriam a estagnação das águas e,
consequentemente, a proliferação de doenças.
Diante disso, afigurava-se, também nesse tipo de discurso a construção
de uma ideal de higiene, limpeza, ordenamento e asseio, como condição garantidora
de um espaço salubre e saudável e de uma gestão sutil da existência, expressos no
uso político do “sofrimento”, “das doenças”, “moléstias” e “condições de
miserabilidade” expressos em um discurso no qual o dirigente se arrogou a falar em
nome dessa população.

317
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente tese trata do Nascimento da Biopolítica na Província de


Mato Grosso (1719-1840), entendendo por “nascimento” as transformações
ocorridas nas configurações epistêmicas que permitiram que a centralidade da
problemática da população ganhasse novas dimensões no período regencial,
momento ímpar da política nacional, pois representava o lapso de tempo em que os
destinos do território nacional foram decididos por governos “brasileiros”.
Essa dimensão fez com que, após a abdicação de D. Pedro I, em 1831,
fervilhassem em vários pontos do país movimentos de cunho liberal, os quais, em
muitos casos, assumiam conotações xenofóbicas em relação aos portugueses, sendo
o evento da “Rusga”, na história mato-grossense, carregado de tais ressonâncias.
Defendi, nos quatro capítulos que compõem a tese, que essa formação,
germinação e gestação do que chamei de biopolítica, respaldado no filósofo Michel
Foucault, se deu de maneira gradativa, por incorporação de temas, de problemas e
objetos que, aos poucos, foram construindo um campo novo de ação e intervenção
política, que é justamente a penetração do Estado na gestão da vida da população.
Tratava-se, nesse sentido, de não colocar a ideia de população enquanto
um conceito universal das práticas políticas (as ideias de povo, cidadão, vassalo,
súditos etc.) não incorporava as mesmas ressonâncias com o enunciado da
população. No cenário europeu, o termo população ganhou visibilidade a partir de
1750, como bem demonstrou o pesquisador Hervé Le Bras:

[...] O termo ‘população’ torna-se de uso comum em França e em


Inglaterra, depois de 1750. Encontramo-lo em Quesnay em 1756
e em 1758, em Mirabeau em 1756, em Rousseau em 1762. Figura
no título de Moheau em 1778. Em Inglaterra ele é utilizado por
Richard Price em 1769, por Adam Smith em 1776, por Malthus
em 1798...e por David Hume em 1752511.

511
LE BRAS, Hervé. Povos e Populações. In: A invenção das Populações. Hervé Le Bras (Dir.).
Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 26.

318
No entanto, em que pese o movimento da ilustração e das pesquisas de
economia política no cenário europeu, o qual começava a conferir uma visibilidade
conceitual em relação à problemática da população, no cenário luso esse tipo de
premissa chegou mais tardiamente.
Diante disso, os dois primeiros capítulos da tese trataram da
apresentação daquilo que denominei de dispositivos de soberania e de seu
funcionamento na relação colonial entre a “metrópole” e a capitania de Mato
Grosso, caracterizado pela relação coleta/despesa; anterioridade fundadora da
relação diferenciadora não isotópica e do direito de ministrar a justiça em fazer
morrer e deixar viver.
Todo esse dispositivo de funcionamento produziu um exercício político
caracterizado pela capacidade de manter o território, de criar as condições de sua
defesa e, possivelmente, a “ampliação dos domínios”, conferindo nesse sentido uma
primazia da problemática do povoamento, que é anterior à da população no espaço
mato-grossense.
Apresentei também que o dispositivo de Soberania estava em sintonia
com as premissas da Razão de Estado, representados na figura do Marquês de
Pombal, o qual buscou romper com grupos tradicionais da sociedade portuguesa,
como os nobres e os jesuítas, condição para a implantação de suas propostas
administrativas, mas mantendo e reforçando a centralidade do poder régio na
condução dos negócios do Estado.
Os casos da condenação dos Távoras e do jesuíta Gabriel Malagrida,
por exemplo, deixaram o campo aberto para as reformas consideradas necessárias
para o fortalecimento da monarquia portuguesa, principalmente em face ao
terremoto de Lisboa, de 1755, introduzindo “medidas de polícia” que intervieram
na positividade do governo dos homens e das coisas.
Com isso, expressamos que essa governamentalização do Estado
português perpassava pela problemática da reconstrução da cidade de Lisboa e do
fortalecimento régio, exemplificados pelas criações de novas secretarias de
governo, bem como com a extinção de antigos privilégios concedidos à corte.
Embora oferecesse uma relativa ruptura com as “premissas de bom
governo”, dominantes na monarquia portuguesa até 1750 e pautadas em virtudes

319
cristãs, como “benevolência, caridade, clemência etc.”, as quais marcariam a
influência religiosa na organização governo dos homens. Essa Razão de Estado
ainda mantinha em funcionamento princípios de soberania que, aos poucos, irão
perdendo espaço paulatinamente, quando os princípios do pensamento liberal
penetraram no ambiente cultural luso.
Argumento que foi a partir do momento em que tais premissas liberais
infiltraram na sociedade luso-brasileira, é que se assistiu consistentemente à
emergência da centralidade da população enquanto alvo de investimento político
expresso na elaboração dos primeiros trabalhos estatísticos realizados no império,
fornecendo informações que foram retomadas por diversos presidentes da
província.
Tal processo se deu paulatinamente com as invasões napoleônicas no
território português, culminando com a vinda da família real e sua corte para o
Brasil. Foi a partir daquele momento que a relação Portugal/Brasil passou a ser
pensada em outros termos, conferindo uma maior autonomia quando a antiga
colônia brasileira foi elevada à categoria de Reino Unido, pelo Decreto de 16 de
dezembro de 1815, extinguindo sua antiga condição.
O liberalismo enquanto princípio de inteligibilidade da biopolítica, foi
o que busquei mostrar, uma vez que a partir de então se colocava a ação política
não somente em termos de “manutenção, conservação e defesa”, mas também em
termos de gestão das liberdades, vidas e condutas da população, sempre objetivando
inseri-la no mundo do trabalho.
Com isso, as primeiras medidas legislativas do Império garantiram
formalmente semelhantes liberdades a todos os “cidadãos brasileiros”, numa
monarquia parlamentar que se apresentava com “todos os poderes” em plena
autonomia: executivo, legislativo, judiciário e moderador, cabendo este último
exclusivamente ao imperador.
Além disso, o viés economicista do liberalismo, expresso pelas bases
conceituais de economia política, passava a substituir as premissas mercantilistas
que eram constantemente utilizadas na Razão de Estado, ou seja, abria-se a
possibilidade de liberdade de comércio em detrimento dos monopólios controlados
pelo Estado.

320
No entanto, há que se ressaltar o fato de as premissas liberais se
assentarem no corpo legislativo do Império e depois no corpo legislativo das
províncias, o que não significava conceder liberdade a todos, nem tampouco atender
unanimemente às demandas impostas pela população, mas sim investir na produção
de um nível “tolerado e aceito”, o qual não se deveria ultrapassar.
Esse liberalismo fazia funcionar plenamente o princípio biopolítico do
“fazer viver e deixar morrer” que, em outras palavras, significava caber ao plano
político os investimentos nas “instruções de uns conviviam com a ignorância de
outros”, que a “liberdade de uns convivia com a escravidão/ou aprisionamento de
outros”, que “saúde e a vida de uns conviviam com a doença e a morte de outros”.
A constituição da biopolítica na província de Mato Grosso apresentava
essas dimensões do liberalismo, expressas nos diferentes discursos, relatórios,
pareceres dos presidentes da província, os quais buscavam construir uma sociedade
“ordeira, harmônica, pacífica” e composta por cidadãos aptos ao trabalho, não
necessariamente os cidadãos aptos a votar.
A “utilidade e os inconvenientes” de certos grupos eram analisados de
acordo com a capacidade de se assujeitarem ou não a esses preceitos civilizacionais,
a exemplo do caso dos indígenas, bem característico desse exercício de poder que
se apresentava enquanto tutelar.
Dessa maneira, aos indígenas que aceitassem a catequese e realizassem
certos serviços na proteção das fronteiras, nas comunicações entre as províncias,
por meio dos rios e de estradas, seriam de certa “forma protegidos”, caso contrário,
seriam exterminados por ações repressivas.
Aos quilombos, nem era facultada a possibilidade de tutela, pois
representavam uma forma de insubmissão declarada em vários sentidos:
insubmissão à escravidão, às leis provinciais, ao modelo de sociedade e de
economia praticados, constituindo focos de resistência organizados e abrigo para
outros escravos e também para a camada menos abastada da população,
desconsiderados em suas reivindicações, e até mesmo indígenas.
Diante disso, os presidentes de província, por repetidas vezes, falavam
em nome da população, sobre sua felicidade e prosperidade, colocando na pauta

321
política três estratégias na gestão das populações: a instrução, a criminalidade e a
saúde pública.
Esse triedro biopolítico (instrução, criminalidade e saúde pública)
ganhou mais visibilidade após a “sedição ou insurreição” de 30 de maio de 1834 -
“Rusga” - e a partir de então construíam medidas legislativas transvestidas de
ilustração, de ciência e de civilização na gestão da vida dessa população, por meio
de leis que formalmente garantiriam sua proteção e sua sujeição.
Delineava-se uma norma civilizacional a ser imposta na província de
Mato Grosso, cujas temáticas e objetos já haviam sido anunciados pelos trabalhos
estatísticos de D’Allincourt, que produziu um “saber global” sobre a província de
Mato Grosso e seus habitantes, descrevendo as potencialidades naturais, minerais,
sua fauna e flora, sua gente e as possibilidades de uso econômico desses recursos.
A estatística e as confecções de mapas cada vez mais detalhados sobre
os fenômenos que afetavam visceralmente a população, como a instrução,
criminalidade e saúde, dos quais também se esperavam “efeitos globais de poder”,
nos quais o acompanhamento sistemático dessas temáticas pelos presidentes de
província não se pautavam numa solução efetiva para tais problemas, mas sim se
buscava criar uma margem de segurança para que os negócios do Estado pudessem
fluir.
Tratava-se de intervir no espaço adotando regulamentações que
prescreviam normas de higiene, asseio e limpeza do interior do espaço urbano, bem
como a construção ou reforma das cadeias, escolas, casas de correção, hospitais e
roda dos expostos, como alvos constantes de investimento discursivo.
Em que pese a dificuldade na concretização da maioria dessas obras, os
mandatários maiores da província não deixaram de apontar soluções paliativas
expostas aos seus pares nas sessões da Assembleia Legislativa, em todo caso, além
da intervenção no espaço público, de fato, buscava-se uma intervenção na conduta
da população, vista por esses presidentes como “um povo inculto, de costumes
bárbaros, acomodados com a abundância de peixe e de caça, conformados com o
uso de tecidos grosseiros e o mais problemático, um povo indolente”.
Clamava-se, por exemplo, pela necessidade de se “limpar” esses
costumes, de “impor” os prazeres do homem civilizado, e que “nem toda sujeição

322
era inimiga da liberdade”, materializando-se com isso um processo de moralização
das condutas da população, em combate à “ociosidade, indolência e aos péssimos
hábitos” que pesavam na existência de cada membro da população, sobrelevando
os benefícios e utilidade para o Estado.
Os indígenas insubmissos eram qualificados como “hordas de
selvagens”, “bárbaros” que “vadiavam” em vários pontos do território mato-
grossense, provocando a destruição de sítios, fazendas, armazéns e casas de família
e, mesmo aqueles considerados pacíficos eram acomodados, vivendo do cultivo das
poucas raízes que conheciam, da pesca e da caça, o que representava um modo de
vida incompatível com a moral do trabalho que se queria implantar na província.
A “Rusga” foi, nesse sentido, um catalisador dessa problemática da
ordem e da civilização, uma vez que diametralmente oposta ao modelo de
população que se queria construir: pacífica, submissa e harmônica, daí a
necessidade de se construir uma ordem após o “fatídico” 30 de maio de 1834.
A “Rusga” nos trouxe também para o plano discursivo dos presidentes
de província a ideia de inimigo interno que, na proposta de ordenamento e
disciplinamento e na produção da paz, produziam-se cotidianamente violências
“justificadas” contra os indígenas bravios e até mesmos nos quilombos, buscando
combater a ociosidade através da moralização da conduta “da mocidade” mato-
grossense, por meio da instrução ao homem livre e dos índios por meio da
catequese. Um aparato foi constituído para a vigilância de todo indivíduo que
pudesse comprometer a ordem e, obviamente, regras e normas para punir os
contraventores, além de intervir paulatinamente nas instituições de caridade na sua
ação prática de receber gratuitamente a camada mais pobre da população.
A espinha dorsal dos relatórios dos presidentes da província de Mato
Grosso estava em consonância com a participação de outros agentes do governo na
fiscalização e controle das condições de vida da população, como inspetores gerais
dos estudos, inspetores das obras pias, inspetores de polícia, diretor dos índios,
dentre outros agentes do poder.
Com isso, buscava se criar um parâmetro de segurança enquanto
elemento de estabilidade da Província, para que o conjunto de indivíduos
constituído em população estivesse protegido contra as ameaças que atentavam

323
contra a vida e a propriedade: os crimes e as condições que geraram a criminalidade,
as doenças, a riqueza e as condições que de sua acumulação, a ociosidade e as
condições geradoras dela e, por fim, atuando nas circulações dessas condições no
interior da população da província.
O nascimento da biopolítica tem sua condição de nascimento em Mato
Grosso a partir do momento em que começaram a penetrar, gradativamente, as
premissas “liberais de governo” e de “economia política”, as quais chamavam para
si a função de “gerir as liberdades”.
Vislumbrava-se com isso a produção histórica de um processo de
assujeitamento coletivo, expresso na ideia de população vista enquanto objeto e
sujeito de ação governamental, e para onde se emanavam medidas administrativas
de governo na gestão coletiva das existências.
O que expressava uma forma de exercício de poder político que se
arrogava ao direito de falar em nome dessa população, de lhes ministrar instrução,
segurança e saúde, mas que, de fato, consubstanciava a gestão das “dores,
sofrimentos, violências” que se cometiam à população e pela população,
estampados minuciosamente nos relatórios apresentados à Assembleia Legislativa.
O uso estratégico desse triedro biopolítico (instrução, segurança e
saúde) pelos presidentes de província manifestava um regime discursivo que se
apresentava como legítimo para impor as pautas políticas à população, mesmo
encontrando as dificuldades apresentadas pelos governantes, como, por exemplo,
dos pais que não matriculavam os filhos, dos professores sem competência para
ensinar, da mocidade ociosa, dos indígenas “inimigos do trabalho metódico e
disciplinado”, dos quilombos que produziam medo local e prejuízo aos sitiantes e
fazendeiros, das condições de insalubridade, dos poucos homens versados na arte
da ciência médica etc.
Enfim, um repertório de problemas, em meio a um emaranhado de
pautas políticas em nome da população, discursos que, repetidas vezes, criaram um
modelo de enunciação política da qual talvez precisamos ainda nos desvencilhar,
pois, atualmente esse triedro, composto por educação, segurança e saúde, é
retomado constantemente por nossos políticos em suas campanhas que, falando em
nome da população, não ouve a população e nem reconhece seus conhecimentos.

324
Com isso, a atualidade do conceito de biopolítica formulado por
Foucault, nos remete à capacidade de resistência dos governados, das ações
coletivas, da potência das multidões de se insurgir diante dos desmandos
governamentais, dos interesses partidários, dos escândalos políticos etc.
Estrategicamente nos lança o desafio de pensar e criar condições
práticas de insurgências por meio de pautas, problemas, questões colocadas pela
própria população e cobrar em que termos eles devem ser executados, pois, como
diria o próprio Foucault, “a infelicidade dos homens não deve jamais ser um resto
mudo da política. Ela funda um direito absoluto de levantar-se e dirigir-se àqueles
que detêm o poder”512.
Nesse sentido, a presente tese, sobre a o nascimento da biopolítica na
capitania e província de Mato Grosso e os discursos estratégicos da instrução, da
segurança e da saúde, temas mobilizados pelos presidentes de província, nos lança
o desafio de pensar a “voz” dessa população e de suas pautas no presente.
A constituição da biopolítica é também a história de uma prática política
que há ao mesmo tempo investia-se em “fazer viver” em determinadas
posicionamentos, mas também de “deixar-se morrer” por um silenciamento de
outros grupos e de outras regiões de Mato Grosso.
Obviamente, como portadores do ideal da “ilustração”, da
“civilização”, da “racionalidade de Estado”, assumiram o papel de conduzir essa
população à “felicidade, prosperidade e respectivamente à sua utilidade para o
Estado”, sem, contudo, articular as demandas dela, ou melhor, sem pensar nas
populações minoritárias, uma vez que os prejuízos decorrentes das “insubmissões
indígenas”, escravas e dos homens e mulheres pobres eram avaliadas a partir do
direito dos senhores “sitiantes, fazendeiros, comerciantes”, e não partir das
péssimas condições de existência desses grupos.
Espero com isso ter demonstrado a construção histórica da formação de
um sujeito coletivo e de um objeto de poder expressos na ideia de população, que
historicamente investia na vida, no direito, na proteção de uns em detrimento de
outros, o que talvez nos ajude a entender a situação caótica “da educação”, “da

512
FOUCAULT, Michel. Ditos & Escritos VI: Repensar a Política. Tradução de Ana Lúcia Paranhos
Pessoa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 370.

325
justiça” e da “saúde” onde, embora, assegurados pelas mesmas leis, a educação, a
justiça e a saúde não são para todos.

326
REFERÊNCIAS
FONTES
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327
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LEI PROVINCIAL Nº 19, DE 28 DE AGOSTO DE 1835. Disponível em:
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LEI PROVINCIAL Nº 29, DE 5 DE SETEMBRO DE 1835. Disponível em:


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AO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA, DR. JOSÉ ANTONIO PIMENTA BUENO,
POR OFÍCIO DATADO DA SESSÃO DE 10 DE ABRIL DE 1838. COD. DOC.
142. APMT.

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1.2-Fontes manuscritas

CARTA DO GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DA CAPITANIA DE


MATO GROSSO JOÃO PEDRO DA CÂMARA COUTINHO AO REI D. JOSÉ I
EM QUE INFORMA SOBRE O ENVIO DE RELAÇÕES E MAPAS SOBRE O
ESTADO E FORÇAS DA CAPITANIA. AHU-ACL-CU- 010, CAIXA 12, DOC.
737. Disponível em: http://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/339670.

CARTA DO [GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DA CAPITANIA DE


MATO GROSSO] JOÃO PEDRO DA CÂMARA COUTINHO AO
[SECRETÁRIO DE ESTADO DA MARINHA E ULTRAMAR] FRANCISCO
XAVIER DE MENDONÇA FURTADO EM QUE INFORMA SOBRE O ENVIO
DE RELAÇÕES E MAPAS SOBRE O ESTADO E FORÇAS DA CAPITANIA.
AHU-ACL-CU-010, CAIXA 12, DOC. 739. Disponível em:
http://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/339678.

CARTA DO OUVIDOR DA VILA DE CUIABÁ JOSÉ DE BURGOS VILA


LOBOS AO REI [D. JOÃO V] SOBRE OS CRIMES E DESACATOS
COMETIDOS POR PRESOS QUE FOGEM. PEDE QUE O OUVIDOR COM A
CÂMARA, O GUARDA-MOR E O REGENTE EM JUNTA TENHAM ALÇADA
PARA PUNIR OS CRIMES ATÉ PENA DE MORTE . CTA-AHU- MATO-
GROSSO-DOC. 36, CX. 01; CT-AHU-ACL-CU-010- DOC. 45, CX. 01.
Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/102652.

CARTA DO PRESIDENTE E OFICIAIS DA CÂMARA DE VILLA BELA AO


REI. Assina Manoel Cardoso da Cunha. MF-191-Doc. 2194.
AHU/NDIHR/UFMT. Cuiabá-MT.

CORRESPONDÊNCIA DE ANTONIO DA SILVA CALDEIRA PIMENTEL À


CORTE. 1740. MF-34 doc. 276. AHU/NDIHR/UFMT. Cuiabá, MT.

OFÍCIO DO BISPO DO RIO DE JANEIRO, [D. FREI ANTÔNIO DO


DESTERRO], AO [SECRETÁRIO DE ESTADO DA MARINHA E
ULTRAMAR], FRANCISCO XAVIER DE MENDONÇA FURTADO,
INFORMANDO QUE REPARTIU PELAS PESSOAS MAIS CAPACITADAS

332
DA CIDADE, A DOCUMENTAÇÃO REMETIDA POR LISBOA E
CONSIDERANDO JUSTA A SENTENÇA PROFERIDA CONTRA O PADRE
[GABRIEL DE MALAGRIDA]. AHU-RIO DE JANEIRO, CX. 71, DOC. 15.
Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/215476.

OFÍCIO DO [GOVERNADOR E CAPITÃO GENERAL DA CAPITANIA DE


MATO GROSSO] JOÃO PEDRO DA CÂMARA COUTINHO AO
[SECRETÁRIO DE ESTADO DA MARINHA E ULTRAMAR] FRANCISCO
XAVIER DE MENDONÇA FURTADO SOBRE AS MEDIDAS QUE TOMOU
PARA REPELIR OS CASTELHANOS E AS INFORMAÇÕES QUE OS ÍNDIOS
TÊM FORNECIDO. ANEXO: MAPA GERAL DA GENTE DE GUERRA. AHU-
ACL-CU-010, CAIXA. 13, DOC. 783. Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/103023.

OFICIO DO GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DO ESTADO DE


MARANHÃO E PARÁ MANUEL BERNADO DE MELO E CASTRO PARA O
SECRETÁRIO DE ESTADO DA MARINHA E ULTRAMAR FRANCISCO DE
MENDONÇA FURTADO SOBRE OS EXEMPLARES DA SENTENÇA
PROFERIDA PELA INQUISIÇÃO DE LISBOA CONTRA O PADRE GABRIEL
MALAGRIDA. AHU-ACL-CU-013, Cx. 52, D. 4786. Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/110161.

OFÍCIO DO [GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DA CAPITANIA DE


MATO GROSSO] ANTÔNIO ROLIM DE MOURA TAVARES AO
[SECRETÁRIO DE ESTADO DA MARINHA E ULTRAMAR] DIOGO DE
MENDONÇA CORTE REAL EM QUE REMETE O MAPA DO CAMINHO
DESDE SANTOS ATÉ O VILA DE CUIABÁ E NO QUAL DESCREVE A
REGIÃO DO PANTANAL. AHU-ACL-CU-010, CAIXA 07, DOC.439.
Disponível em: http://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/339294.

OFÍCIO DO [GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DA CAPITANIA DE


MATO GROSSO] LUIS PINTO DE SOUSA COUTINHO AO [SECRETÁRIO
DE ESTADO DA MARINHA E ULTRAMAR] FRANCISCO XAVIER DE
MENDONÇA FURTADO COM QUE ENVIA MAPAS QUE DESCREVEM O
ESTADO DAS TROPAS DA CAPITANIA. AHU-ACL-CU-010, CAIXA 14,
DOC. 854. Disponível em:
http://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/339851.

OFÍCIO DO [GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DA CAPITANIA DE


MATO GROSSO] LUIS PINTO DE SOUSA COUTINHO AO [SECRETÁRIO
DE ESTADO DA MARINHA E ULTRAMAR] FRANCISCO XAVIER DE
MENDONÇA FURTADO COM QUE INFORMA SOBRE A RECEITA E
DESPESA DESDE A FUNDAÇÃO DA CAPITANIA ATÉ AO ANO DE 1762.
ANEXO: SUPLEMENTO AO MAPA GERAL DA RECEITA E DESPESA.
AHU-ACL-CU-010, CAIXA 15, DOC. 894. Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/103146.

333
OFÍCIO DO [GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DA CAPITANIA DE
MATO GROSSO] LUIS DE ALBUQUERQUE DE MELO PEREIRA E
CÁCERES AO [SECRETÁRIO DE ESTADO DA MARINHA E ULTRAMAR]
MARTINHO DE MELO E CASTRO COM QUE ENVIA MAPA DE TODAS AS
FORÇAS MILITARES DA CAPITANIA. AHU-ACL-CU-010, Cx. 17, Doc. 1039.
Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/101088.

OFÍCIO DO [GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DA CAPITANIA DE


MATO GROSSO] LUIS DE ALBUQUERQUE DE MELO PEREIRA E
CÁCERES AO [SECRETÁRIO DE ESTADO DA MARINHA E ULTRAMAR]
MARTINHO DE MELO E CASTRO COM QUE ENVIA MAPA DE TODAS AS
FORÇAS MILITARES DA CAPITANIA. AHU-ACL-CU-010, Cx. 18, Doc. 1111,
em 1775. Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/101168.

OFÍCIO DO [GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DA CAPITANIA DE


MATO GROSSO] LUIS DE ALBUQUERQUE DE MELO PEREIRA E
CÁCERES AO [SECRETÁRIO DE ESTADO DA MARINHA E ULTRAMAR]
MARTINHO DE MELO E CASTRO COM QUE REMETE INVENTÁRIO MAIS
MODERNO DAS MUNIÇÕES DE GUERRA. AHU-ACL-CU-010, Cx. 18, Doc.
1114. Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/101171.

OFÍCIO DO [GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DA CAPITANIA DE


MATO GROSSO] LUÍS DE ALBUQUERQUE DE MELO PEREIRA E
CÁCERES [ AO SECRETÁRIO DE ESTADO DA MARINHA E
ULTRAMAR]MARTINHO DE MELO E CASTRO, COMO INSPECTOR
GERAL DO REAL ERÁRIO, O MAPA DA RECEITA E DESPESA ANUAL DA
CAPITANIA. AHU-ACL-CU-010, Cx. 17, Doc. 1043. Disponível em:
http://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/340698.

OFÍCIO DO PROVEDOR DA FAZENDA REAL DE MATO GROSSO, FILIPE


JOSÉ COELHO, AO [SECRETÁRIO DE ESTADO DA MARINHA E
ULTRAMAR] MARTÍNHO DE MELO E CASTRO] COM QUE ENVIA OS
MAPAS DA RECEITA E DESPESA DOS RENDIMENTOS REAIS DO ANO DE
1775. AHU-ACL-CU-010, Cx. 18, Doc. 1122. Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/101180.

OFÍCIO DO [GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DA CAPITANIA DE


MATO GROSSO] LUIS DE ALBUQUERQUE DE MELO PEREIRA E
CÁCERES AO [SECRETÁRIO DE ESTADO DOS NEGÓCIOS DO REINO]
MARQUÊS DE POMBAL [SEBASTIÃO JOSÉ DE CARVALHO E MELO]
COM QUE ENVIA MAPA DA RECEITA E DESPESA DA CAPITANIA, COM
AS RESPECTIVAS NOTAS, REFERENTE A 1775, E OBSERVA QUE NÃO
ESTÃO INCLUSOS OS GASTOS COM A NOVA FORTALEZA E COM O
NOVO ESTABELECIMENTO NO RIO PARAGUAI. AHU-ACL-CU-010, Cx.

334
18, Doc. 1127. Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/101185.

OFICIO DO [GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DA CAPITANIA DE


MATO GROSSO] LUIS DE ALBUQUERQUE DE MELO PEREIRA E
CÁCERES AO [SECRETÁRIO DE ESTADO DA MARINHA E ULTRAMAR]
MARTINHO DE MELO E CASTRO COM QUE ENVIA MAPA SOBRE O
ESTADO ATUAL DA POVOAÇÃO DA CAPITANIA. AHU-ACL-CU-010, CX.
17, DOC. 1046. Disponível em:
http://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/340731.

OFÍCIO DO [GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DE MATO GROSSO]


JOÃO DE ALBUQUERQUE DE MELO E CÁCERES E CASTRO COM QUE
REMETE O MAPA DA POPULAÇÃO DA CAPITANIA DO ANO DE 1794.
AHU-ACL-CU-010, Cx. 31, Doc. 1712. Disponível em:
http://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/340213.

OFÍCIO DO [GOVERNADOR E CAPITÃO-GENERAL DA CAPITANIA DE


MATO GROSSO] LUIS DE ALBUQUERQUE DE MELO PEREIRA E
CÁCERES AO [SECRETÁRIO DE ESTADO DA MARINHA E ULTRAMAR]
MARTINHO DE MELO E CASTRO EM QUE INFORMA QUE ALGUMAS
FAMÍLIAS DE ÍNDIOS DESERTARAM DAS MISSÕES CASTELHANAS DO
CORAÇÃO DE JESUS E SÃO JOÃO, DA PROVÍNCIA DE CHIQUITOS. AHU-
ACL-CU-010, CX 20, DOC 1218. Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/101286.

LUIZ DE ALBUQUERQUE COMUNICA AO SECRETÁRIO DE ESTADO,


MARTINHO DE MELO E CASTRO, A CHEGADA AO REGISTRO DO JAURU
DE FAMÍLIAS DE ÍNDIOS DESERTADOS DAS MISSÕES DE CHIQUITOS.
MF-274, doc. 1165. NDIHR/UFMT.

MAPA DO OURO QUE SE FUNDIU NA CASA DA FUNDIÇÃO DE VILA BOA


DE GOIÁS NO ANO DE 1766 E DE QUE SE NÃO TIROU QUINTO PARA A
FAZENDA REAL POR SER DE ESCOLVILHAS [SIC] E ENSAIOS E VINDO
DA VILA DE CUIABÁ ONDE EXISTE CAPITAÇÃO. AHU-ACL-CU-010,
CAIXA 13, DOC. 810. Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/103054.

MAPA DE ARTILHARIA COM TODOS OS SEUS PERTENCES QUE


EXISTEM NA CAPITANIA DE MATO GROSSO E MAPA DOS
ARMAMENTOS E MUNIÇÕES DO FORTE DE BRAGANÇA. AHU- ACL- CU-
010, CAIXA 16, DOC. 983. Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/103245.

MAPA GERAL DA RECEITA E DESPESA DA PROVEDORIA DE MATO


GROSSO DESDE 1762 ATÉ 1771. AHU-ACL-CU-010, CAIXA 16, DOC. 1005.
Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/101050.

335
MAPA GERAL DO ESTADO DA POVOAÇÃO DOS DISTRITOS DE VILA
BELA E CUIABÁ NO FIM DO ANO DE 1769 A 1771. AHU-ACL-CU-010,
CAIXA 16, DOC. 971. Disponível em:
http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/103232.

MAPA DE TODO OURO QUE SE EXPEDIU NA INTENDÊNCIA DE MATO


GROSSO NO ANO DE 1772. AHU-ACL-CU-010, Cx. 16, Doc. 1009. Disponível
em: http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/101055.

MAPA DO ESTADO CIVIL DA POVOAÇÃO DO DISTRITO DO FORTE DE


BRAGANÇA. AHU-ACL-CU-010, Cx. 16, Doc. 1015. Disponível em:
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JESUS, Nauk Maria de. Saúde e Doença: práticas de cura no centro da América do
Sul (1727-1808). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2001.

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