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LAÇOS ENTRE A HISTÓRIA E A TELA: A FORJADURA DA IDENTIDADE DO

“CABRA-MACHO” DO NORDESTE

VIVIAN GALDINO DE ANDRADE


Universidade Federal da Paraíba - UFPB

O cinema, objeto de nossa análise, é uma prática cultural e um documento de produção,


que constrói significados e propõe discursos imagéticos, articulando vários tempos e espaços. Ao
estabelecer identificações e maneiras de ser, ele direciona olhares e centraliza culturas,
instituindo lugares que condicionam os gêneros. Inscrito numa política de representação e
relações de poder, suas imagens em movimento dão vozes e silêncios, (re)inventando identidades.
Em sua direção mercadológica, o cinema pode ainda ser compreendido como um artefato
cultural que produz conhecimento, ensinando maneiras de ser, sentir e compreender o mundo em
que vivemos. Sob este aspecto tomaremos o filme “O Auto da Compadecida” como uma
pedagogia voltada a reforçar uma identidade masculinizada baseada no sertão, construindo
estereótipos do homem nordestino pautado na força, na virilidade e na astúcia, imagens
cristalizadas de um Nordeste da década de 30 do século passado. É na análise desses discursos
que o nordestino emerge como um conceito ligado a elementos fundantes da região, um “cabra-
macho” que será ironizado e (des)construído pela narrativa fílmica.

Os Estudos Culturais e as relações de gênero – um breve olhar teórico

Os Estudos Culturais, como referencial teórico, nos possibilita ver a cultura como a grande
mediadora dos processos de produção comunicativa e educativa, articulando discursos, saberes e
representações que envolvem certos artefatos, no nosso caso o filme. Entre análises pós-modernas
e pós-estruturalistas, os Estudos Culturais obliteram qualquer direção investigativa,
problematizando os binarismos e as epistemologias tradicionais, a partir de uma abordagem
analítica que compreende um amontoado de idéias, métodos e temáticas das inúmeras disciplinas,
constituindo um campo interdisciplinar. Sua questão central envolve as transformações em torno
da concepção de cultura, como um espaço contestado e permeado pelas lutas por significação.
Analisando o cinema sob esta ótica, passamos a enxergá-lo como um artefato cultural
permeado de interesses e direções mercadológicas, que acabam instituindo condutas e ensinando
maneiras de ser, sentir e ver o mundo em que vivemos. Dentro de um sutil jogo de significados e
endereçamentos, o cinema lida com a política de identidades, com a Pedagogia, com as culturas
que (des)legitimam práticas, com discursos e imagens que institui representações do ‘outro’,
traduzindo e reformulando memórias e alteridades. Neste contexto, percebemos o sujeito como
portador de múltiplas identidades, identidades estas que são cotidianamente (re)construídas
nas/pelas tramas de poder. Os corpos são, assim, fabricados por estes dispositivos que direcionam
maneiras de agir e se enquadrar na identidade desejada, tida como normal, heterossexual, de um
“macho”. Nestes termos, o corpo pertence a uma tal identidade que vem sendo ligada, no caso do
nordestino, ao sexo, como fator ainda determinante na diferenciação entre os gêneros. No
entanto, partindo das teorias pós-estruturalistas percebemos que os gêneros são construções
históricas e não biológicas, são culturalmente fabricados a partir do significado que damos ao
corpo, estes que são significados pela cultura, e continuamente por ela alterados.
Entendendo gênero como uma construção social, amplia-se o alcance de sua definição com a
pluralidade de significados que o próprio conceito abrange, reconhecendo as diversidades das
representações masculinas em diferentes momentos. No entanto, a linguagem fílmica através do
poder do entretenimento, fabrica com seus discursos um perfil de ser macho que condiciona a
masculinidade ao sexo, remodelando antigas representações dos sujeitos. Segundo Louro (1997,
p.63),
O processo de “fabricação” dos sujeitos é continuado e geralmente muito sutil,
quase imperceptível. Antes de tentar percebê-lo pela leitura das leis ou dos
decretos que instalam e regulam as instituições (...), nosso olhar deve se voltar
especialmente para as práticas cotidianas em que se envolvem todos os sujeitos.
São, pois, as práticas rotineiras e comuns, os gestos e as palavras banalizadas
que precisam se tornar alvos de atenção renovada, de questionamentos e, em
especial, de desconfianças. A tarefa mais urgente talvez seja exatamente essa,
desconfiar do que é tomado como “natural”.

As problematizações dos estudos de gênero têm sido necessárias para a superação de


preconceitos e estereótipos. A recorrência de imagens de um nordestino macho, com
características rudes e rígidas acaba por incidir num trabalho pedagógico que inscreve nos corpos
o gênero e a sexualidade “legítimos”. Essa influência cristã e sexista presente no filme, constroem
representações de gênero associadas aos espaços histórico e cultural, como um apelo a mitos
fundantes.
Não se espera encontrar no sertão um homem que fuja a tais normas, pois pelas imagens
recorrentes ele vem sendo reproduzido em sua materialidade, associado à figura do cangaço, do
coronel, do jagunço, do matador, figuras firmes e de masculinidades específicas. Albuquerque Jr.
(2003, p.206) cita E. Castro, que define o sertanejo como um “homem sóbrio, enxuto de carnes,
desconfiado e supersticioso, raras vezes agressivo (...) de face carrancuda, do sorriso esquivo, (..)
de todas as curvas ríspidas do seu corpo ágil, feito de aço flexível”. O nordestino, produzido pelas
linguagens fílmicas, é cristalizado em torno dessa configuração, como se fosse uma unidade entre
Nordeste e sertão. A identidade surge, neste âmbito, como efeito da repetição regular de imagens
e enunciados compostos de signos eleitos para representar a região.
Tendo em vista as narrativas literárias e visuais, o gênero e as sexualidades continuam sendo
alvos de vigilância e controle, se ampliando sobre eles formas de regulação que se multiplicam em
instâncias e instituições, chegando a assumir as telas do cinema. Para Ceballos (2000, p.4),

O nordestino, então, emerge historicamente como um conceito capaz de


enfrentar e lidar com novos modelos de masculinidade. Um conceito bastante
original, criador de um estereótipo exorbitantemente masculino, conhecido no
Brasil inteiro pela imagem do sertanejo ignorante, forte, bravo... um “cabra-
macho”. Desta forma, o habitante da região Nordeste ganhava uma identidade e
passava também a identificar-se com a própria região.

Apenas com a versatilidade metodológica dos Estudos Culturais, torna-se possível a análise
deste objeto, que institui modelos de masculinidade nordestina. Neste âmbito, a política de
identidades, discutida por esse campo de estudo, percebe as identidades como plurais,
fragmentadas, móveis e fluídas, nos permitindo compreender a identidade masculina representada
pelo filme “O Auto da Compadecida”, como uma produção imagético-discursiva, que se
movimenta dentro de um dinamismo cultural e regional.

2
O cinema, dentro de um circuito cultural, estabelece modos de endereçamento1 que modelam
e manipulam as identidades, alcançando o social, o político e a própria estética, o que não ocorre
numa relação passiva, como um mero absorver de maneiras e protótipos de ser e agir, mas que é
resultado de freqüentes relações de negociação.

Se você compreender qual é a relação entre o texto de um filme e a experiência


do espectador, por exemplo, você poderá ser capaz de mudar ou influenciar, até
mesmo controlar, a resposta do espectador, produzindo um filme de uma forma
particular. Ou você poderá ser capaz de ensinar os espectadores como resistir ou
subverter quem um filme pensa que eles são ou quem um filme quer que eles
sejam. (ELLSWORTH, 2001, p.12).

Os filmes produzem conhecimento, como também possuem um poder atrativo e estimulante


sobre os indivíduos. Eles fabricam um conhecimento sobre o antigo e o novo, conseguindo sempre
ser contemporâneo e atualizado, instrumento efetivo de entretenimento que joga com o fantasioso
e com o real numa mesma temporalidade, lidando com emoções, com afetividades, com corpos e
mentes. Uma indústria de histórias ficcionais2 em imagens reais, que lidam com gestos, falas,
olhares, viradas de rostos, luzes e ambientações, dando ênfase ao que querem que seja melhor
visto.
Identidades são posicionamentos, um freqüente processo de produção incompleta, que se
forma e se transforma no interior da representação. A identidade nordestina e masculina, assim, é
narrada pelo cinema como se estivesse assentada no comum, no uno, sem pluralidades. Com isso
surgiu o incômodo que despertou o nosso interesse não apenas para buscar o que nos altera, mas
sim o que nos forma, afirmando que existem pluralidades e maneiras de ser nordestino, vendo-o
como uma invenção3.
Ao desconstruir essa imagem institucionalizada como o ‘ser nordestino’, veremos o
desnaturalizar dos lugares dados a estes indivíduos, demonstrando que a própria idéia de
masculinidade é construída, e que os discursos acerca das falas e das imagens acontecem
permeados por um terreno contestado e intensificado por diligentes relações de negociação. As
representações dos nordestinos são masculinizadas por uma visão naturalista e machista, baseada
nos ícones da força e da resistência que interpelam os sertanejos, demonstrando alguns arranjos e
desdobramentos discursivos que geram sua representação icônica. Portanto, vale salientar que
“(...)...o cinema nos impõe modelos, nos ensina coisas, exerce uma pedagogia que atua na
produção de identidades sociais”. (FABRIS, 2002, p.122). Podemos problematizar esses lugares,
essas criações, no intuito de desconstruir as forçosas identidades que lhes aprisionam, percebendo
que o cinema não é vitrine, mas profunda invenção!

Que ‘Nordeste’ traz o cinema?

1
Os modos de endereçamentos são aqui entendidos não como um momento visual ou falado, mas sim como uma
estrutura que se desenvolve ao longo das relações espectador versus produção fílmica.
2
Tomamos como premissa que toda produção fílmica é ficcional, mesmo que esteja baseada em fatos de uma vida
real, mas que não deixam de ser mais um discurso que representa o vivido.
3
A compreensão do Nordeste e do nordestino como invenções são discutidas por Durval Muniz de Albuquerque
Júnior (2001).

3
O Nordeste é um fato da natureza. Não está dado desde sempre. Os recortes
geográficos, as regiões são pedaços de história, magma de enfrentamentos que
se cristalizaram, são ilusórios ancoradouros da lava da luta social que um dia
veio à tona e escorreu sobre este território. (ALBUQUERQUE, 2001, p.66)

Neste sentido, as representações de gênero são uma construção social que se reflete nos
discursos e práticas dos indivíduos masculinos e/ou femininos presentes em uma determinada
sociedade e região, sendo o filme uma dessas práticas discursivas em que a história das relações
de gênero se faz presente. Neste âmbito, procuramos compreender como os discursos fílmicos
construíram uma imagem do Nordeste recorrente da década de 20 do século passado, transmitindo
um modelo masculino a ser seguido pelos homens nordestinos, baseado no que consideram como
típico na região: a seca, a valentia, a astúcia. Tal estereótipo ganha representatividade nacional,
uma vez que a figura do nordestino tem sido sempre relacionada a uma masculinidade por
excelência. Agindo de forma normativa, tais imagens impuseram posturas e comportamentos,
regulando através da cultura um modelo masculino estereotipado no nordestino bravo, violento e
apegado às tradições do seu meio ruralizado. Proveniente dos mitos fundantes da região como o
cangaço, os retirantes e o coronelismo, tais discursos tomam idéias regionalistas para estabelecer
uma versão molde para a masculinidade do nordestino, baseado de forma essencialista e unitária
no sertanejo, elemento este importante na construção discursiva da região Nordeste.
Construído através do agenciamento de várias imagens, que perpassam as figuras do
‘brejeiro’, do ‘praieiro’ e do ‘sertanejo’, o nordestino ganha visibilidade. Tais eixos identitários
substanciam outros tipos sociológicos, também considerados típicos do Nordeste, como o
vaqueiro, o senhor de engenho/coronel, o caboclo, o matuto, o cangaceiro, o beato, protótipos de
‘ser nordestino’ que invadem a composição da região, sendo não só gramaticalmente enquadrados
como masculinos (o sexismo da linguagem), como essencialmente masculinos, pois o Nordeste é
um território onde até as mulheres são ‘macho sim senhor’. No entanto, é na figura do sertanejo
que centraremos nossa análise, tendo em vista que ele será tomado como o tipo regional mais
telúrico, ideal para representar o lado viril da nação. Ele seria, em sua macheza, o tipo de homem
ideal para suportar as fatalidades climáticas da região.

O sertanejo seria o cerne de nossa nacionalidade, pois, isolado no interior, seria


aquele elemento que não foi modificado pelas influências cosmopolitas, fora do
contato com a civilização do litoral, sem vias de comunicação, sem meios fáceis
de transporte, segregado na muralha das condições físicas mais hostis,
diferenciou-se em tipo étnico vigoroso. (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 209)

Albuquerque Jr. discute as inúmeras estratégias discursivas que inventaram a noção de


Nordeste e de nordestino, apontando o contexto histórico onde se engendra inicialmente os
conceitos, movimentos e políticas culturais que produzem a noção de Nordeste. Porém, a nós
interessa enfatizar, diante de tais problematizações, onde e como surge esta idéia estereotipada de
‘nordeste’ e de ‘nordestino’, que vai ser resgatada e reproduzida pelo discurso fílmico. Para tanto,
faremos um breve contexto histórico que nos possibilitará entender como a figura do homem
nordestino transita por espaços considerados próprios para ‘machos’ e próprios para o homem
‘requintado/delicado’, tido como moderno.
As décadas de 20 e 30 são fundamentais para compreendermos como estavam sendo
estruturadas as condutas masculinas, pois é um período pelo qual o Brasil passava por processos
de modernização, estando a sociedade urbana em franca expansão. Seus sujeitos subjetivavam

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novas formas de sociabilidades que estavam causando uma verdadeira confusão na delimitação
das fronteiras entre os sexos. Eventos como a urbanização e a higienização passaram a ser vistos
como processos de ‘desvirilização’ da sociedade, desencadeando nas experiências
questionamentos, práticas cotidianas e relações sociais que punham em permanentes conflitos o
tradicional e o moderno, vindo a contribuir para uma suposta corrosão da ordem social
patriarcalista, uma quebra de costumes e valores nas relações de gênero. A mulher “moderna”,
nesse momento, parecia romper com aquela identidade social imposta e legitimada como mãe,
esposa e dona-de-casa, se “virilizando” ao assumir determinadas condutas postas como
masculinas, quando corta seus cabelos à lá garçon e usa a saia Chanel, passando a constituir as
relações de trabalho e a ocupar lugares anteriormente masculinos. Isso refletia uma necessidade de
se cosmopolitar com as tendências parisienses, uma vez que o Brasil ainda não possuía uma
identidade própria e concreta, mas estava influenciado pelas idéias da Revolução Francesa. Neste
bojo, em contrapartida, a sociedade masculina parecia se ‘efeminizar’, devido ao aburguesamento
das formas de vida e as mudanças de hábito, onde os homens passam a se preocupar mais com a
aparência e com a etiqueta.

O Nordeste precisava de um novo homem, capaz de resgatar esta virilidade, um


homem capaz de reagir à feminização que o mundo moderno, a cudade, a
industrialização, a República haviam trazido. (...) Por isso, o nordestino vai ser
construído como uma figura masculina, o nordestino vai ser definido como o
macho por excelência, com a capacidade de revirilizar uma região...
(ALBUQUERQUE JR., 2003, p.163)

Neste período se intensificará as discussões em torno do homem nordestino, da definição de


suas características, na tentativa de burlar essa feminilidade que ganhava a sua figura na
sociedade.
O nordestino é definido como um homem que se situa na contramão do mundo
moderno, que rejeita suas superficialidades, sua vida delicada, artificial,
histérica. Um homem de costumes conservadores, rústicos, ásperos, masculinos;
um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise; um ser viril, capaz
de retirar sua região da situação de passividade e subserviência em que se
encontrava. (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 162).

Na tentativa de resgatar essa ‘patriarcalidade’ arranhada surge o movimento regionalista e


tradicionalista, que objetivavam a integração das identidades em torno de um modelo regional.
Organizado por Gilberto Freyre, reunia esforços em torno de uma militância cultural e intelectual
para nomear e elaborar um tipo regional nordestino, fixando o perfil e dando-lhe uma
personalidade que o identificasse na nação. “O nordestino vai ser inventado, vai ser definido em
seus traços físicos e psicológicos(...) ...a figura do nordestino vai se afirmar definitivamente como
um tipo regional brasileiro” (ALBUQUERQUE JR., 2003, p.158).
O discurso fílmico se utiliza das concepções regionalistas para trazer a tona um Nordeste
uniforme e essencialista. Porém, baseado numa linguagem cômica, o filme ainda redesenha a
região como estigmatizada pelas condições climáticas e pelos usos e abusos das oligarquias da
época, demonstrando o coronelismo como o ditador da ordem social. A década de 20 ainda marca
a institucionalização dos termos Norte/Nordeste. A separação entre esses espaços se deu pela
preocupação do Norte, que para não ser reconhecido como um espaço que também sofria com a
seca, e se sentindo prejudicado pela migração de nordestinos para extração de borracha, não
queria ser identificado com os mesmos problemas climáticos que depreciavam a imagem do

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Nordeste. Associados a isto, estavam as estratégias das forças oligárquicas nordestinas, que
buscavam atrair a atenção do Estado Nacional ao criar a correspondência de significados, ‘seca/
Nordeste’- ‘Nordeste/ seca’, angariando fundos das obras assistencialistas e políticas de defesa da
região contra os movimentos messiânicos e cangaceiros.
É nesse jogo de discursos que o nordestino termina por se perceber como tal: ele é
nordestino porque não é sulista, logo ele é atrasado, pré-capitalista, folclórico, e acima de tudo
inferior ao restante do país. O retorno da figura do sertanejo, no filme, não deixa de ser
referenciada a este contexto, ao resgate de uma imagem voltada à origem da região, de um espaço
que ‘parou’ no tempo, mas que subsiste pela força que representa o ‘cabra-macho’ do sertão. O
Nordeste é um espaço de saudade, reproduzido e cristalizado pelos discursos fílmicos de maneira
cômica, folclórica e inferior, demonstrando a construção de uma forma de pensamento interessado
em dá significados e subjetivar produções. Esse breve contexto nos estimulou a investigar a
política das identidades, e ver como a masculinidade nordestina é produzida e instituída no Auto,
negligenciando aos homens nordestinos outras formas de viver o gênero e sua sexualidade.

A invenção do “cabra-macho” do Nordeste n’O Auto da Compadecida

O Auto da Compadecida foi inicialmente produzido como uma minissérie de quatro


capítulos, exibida na Rede Globo de Televisão em janeiro de 1998. Filmado próximo a Cabaceiras
(Cariri paraibano) é baseado numa peça teatral, produzida em 1955 por Ariano Suassuna4, e em
três folhetos de cordel: O enterro do cachorro, O cavalo que defecava dinheiro e O castigo da
soberba. Devido ao grande sucesso obtido, o diretor Guel Arraes5 e a Globo Filmes resolveram
adaptá-lo para o cinema.
Ao relatar a história de dois sabidos, “João Grilo” (Matheus Nastchergaele) e “Chicó”
(Selton Mello), que vivem dando golpes para sobreviver no sertão nordestino, a narrativa fílmica
modela territórios e corpos, apresentando personagens caricaturados, maltrapilhos, com dentes
mal-tratados, que burlam astutamente as normas para viver. A cidade de Taperoá, enquanto um
cenário, também sofre alterações para se adequar ao que é ‘típico’ do sertão, apresentando ruas
não calçadas, paisagens secas, casas simples que foram configuradas apenas para as filmagens do
filme, sendo retratada como uma cidade provinciana do cariri nordestino. O filme inicia relatando
a paixão de Cristo, demonstrando que o sofrimento é uma condição que marca o pobre. Como diz
a Compadecida, “A esperteza é a coragem do pobre” (O Auto da Compadecida, 2000).
O filme é perpassado por relações de gênero e sexualidade, que fixam a identidade
masculina do nordestino em algumas categorias, transitando em mais de um personagem. Entre
elas, nomeamos a do (1) ‘sertanejo viril’, (2) a do ‘bravo-manso’, (3) a do ‘homem traído’, (4) a
do ‘cabra-macho’ e (5) a do ‘astuto’. Construções de gênero, elaboradas pelo filme de forma

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Ariano Vilar Suassuna é professor, pesquisador de folclore, dramaturgo e romancista, além de membro da
Academia Brasileira de Letras. Ele nasceu em João Pessoa em 1927, residindo atualmente em Recife. Acredita ser
um defensor da cultura popular, que segundo ele, estaria sendo absorvida pela cultura norte-americana .
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Guel Arraes é diretor, roteirista e produtor. Filho de um ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes. É natural de
Recife e na época da ditadura militar foi exilado com sua família para Argélia. Trabalha na rede Globo desde 1981,
sendo responsável por alguns episódios televisivos, como: Lisbela e o Prisioneiro, Caramuru: a invenção do Brasil,
Armação Ilimitada, TV Pirata, Sexo Frágil, Retrato Falado, Fantástico entre outros. Ambos, programas e filmes,
apresentam caráter cômico sendo este um traço característico das produções do diretor.

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exótica, que funcionam como uma espécie de educação dos sentimentos e das condutas para os
espectadores que consomem a película fílmica.
As noções de um ‘sertanejo viril’ permeiam a representação do macho, daquele que não
nega fogo, se relacionando com mais de uma mulher. Nesta categoria de análise enquadramos
Chicó, que enquanto namora Rosinha se relaciona com a mulher do padeiro. As estratégias usadas
por ele para tais conquistas partem de histórias imaginárias que aparecem como recortes no filme,
traços da imagem de uma região extremamente mítica. Chicó tenta chamar atenção a seu
inexplicável heroísmo (“Não sei, só sei que foi assim”), onde se relaciona com animais épicos
existentes apenas em sua imaginação. Ao falar de seus contos, narra a história de uma mulher que
‘pariu’ um cavalo na Serra do Araribe no Ceará, sendo justificado por João Grilo: “Isso é coisa de
seca. O cabra vir com essa fome, não dá pra ter menino e haja cavalo no mundo” (O Auto da
Compadecida, 2000). Tal fato traduz um traço do autor, que ao idealizar um Nordeste
medievalizado, lida com animais mitológicos, demonstrando a possibilidade de homens que se
transmutam metaforicamente em bichos e vice-versa. Essas relações podem ser vistas no filme
pela elaboração do testamento da cachorra e de seu enterro.
Retratando o gosto feminino por homens machos e valentes, o filme impõe essas condições
como necessárias para um envolvimento mais aprofundado e um possível casamento. Dora
(Denise Fraga), representada como uma mulher adúltera e ‘fogosa’ diz: “Eu adoro um homem
brabo. (...) Fala que quem manda aqui é você, fala” (O Auto da Compadecida, 2000). Ela mantém
relações com Chicó e com Vicentão concomitantemente. Esta poligamia é tratada de forma crítica
no filme, identificando Dora como a adúltera que trai o marido mas que não consegue viver sem
ele, assumindo uma espécie de autonomia limitada. Nestas relações com a mulher do padeiro,
Chicó tenta se enquadrar no molde de virilidade do macho nordestino, perceptível em diversas
cenas, entre elas a da morte da cachorra. Com a saída do marido, Dora o convida para o quarto, e
ele temendo o padeiro retruca. Mas ao ser indagado se estava com medo, responde: “Medo? Eu?
Agarro ele pelos chifres, rodo e sacudo pra cima” (O Auto da Compadecida, 2000).
Rosinha (Virgínia Cavendish), filha do coronel Antônio Moraes (Paulo Goulart), é uma
personagem que não consta na obra original, mas foi buscada no teatro medieval, com o
cancioneiro Calderón de La Barca, reforçando a imagem de um conto de fadas que representa um
nordeste pitoresco. Sua candura e castidade levam Chicó a ser um homem fiel, comprometendo-se
a não mais se envolver com outras mulheres. “Eu prometo nunca mais me deitar com mulher
nenhuma nessa vida, tirando Rosinha” (O Auto da Compadecida, 2000). Transitando pela figura
do covarde, demonstrado de várias formas na trama, é salvo mas muitas vezes também
complicado pelas astúcias de João Grilo, como no episódio da ‘tira de couro’, referente ao
pagamento da dívida ao major Antônio Moraes.
Tal como Chicó, Vicentão (Bruno Garcia) também é retratado como um macho viril, que se
utiliza de sua peixeira para prevalecer. Nas falas: “Hoje eu tô com a gota, hoje eu tô com a
moléstia. Por que não abriu a porta logo, quando eu lhe mandei, em?” e “Eu hoje amanheci
azeitado, sabe. Eu até jurei que a primeira pessoa que eu vice eu enfiava a faca no apendicite” (O
Auto da Compadecida, 2000). Vincentão ainda transita pela categoria ‘bravo-manso’, quando se
acovarda diante do padeiro, marido traído, e do revolver do cabo Setenta, demonstrando a
representação de uma masculinidade que desconstrói os padrões do sertanejo macho e bravo por
excelência.
Eurico é o famoso ‘homem traído’, figura tão caricaturada na região, e por isso mesmo
reproduzida pelo filme. Posto como ‘o último que sabe’ é um tipo de macho que tenta domar sua
mulher, mas que acaba sendo domesticado por ela, demonstrando que nas relações de gênero a
mulher também exerce poder. Na tentativa de se afirmar como o centro do casal, o padeiro

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constitui o segundo sexo, que se submete frequentemente aos ditos da mulher. Ele não deixa de
permear também a categoria de análise que denominamos de ‘bravo-manso’, demonstrando que
tais figurações de masculinidades podem estar diluídas numa mesma identidade. Quando sua
mulher se ‘engraça’ pelo cabo Setenta, ele se impõe como macho e diz: “Onde já se viu o cabra ter
que usar uniforme para provar que é macho” . Ainda na tentativa de impressionar sua mulher,
critica Chicó dizendo: “Também, cabra frouxo que você é, heim Chico? Por que não enfrentou o
homem, se fosse eu descangotava ele”. Mas, o padeiro é percebido pelos outros personagens como
‘frouxo’ e ‘corno’, o que fica perceptível nas falas: “Tem corno para o alfabeto todo, desde o
apressado que é antes mesmo de casar, até o zeloso que só gosta de ver a mulher bem vestida” e
“Eurico, engole cobra, cabra frouxo. Anda roubando muito a freguesia” (O Auto da Compadecida,
2000).
O Cabo Setenta (Aramis Trindade), representante da ordem na cidade, caminharia pela
representação do ‘bravo-manso’, quando se coloca pronto para enfrentar Vicentão: “Você tá
insinuando que a autoridade aqui presente tem medo de um valentão!” (O Auto da Compadecida,
2000). No entanto, ao longo do filme, mostra sinais de acovardamento diante de situações hostis,
se submetendo a uma ordem maior posta pelo major Antônio Moraes.
O espaço rural que domina o citadino constitui um traço característico das obras de
Suassuna, quando demonstra o centro da economia no sertão. Na fala do major vê-se a raiva em ir
a cidade: “Isso aqui tá pior que merda de gado, só venho por obrigação” (O Auto da
Compadecida, 2000). O major, ao idealizar o casamento de sua filha, deseja “só falta você
encontrar um homem doutor e valente pra você casar”. Ainda posto como símbolo da ordem,
institui sob o signo do medo o respeito diante das autoridades civis e religiosas. Visíveis na
seguinte fala: “Padre, veja bem com quem o senhor está falando. A igreja é coisa séria como
garantia da sociedade, mas tudo tem um limite” .Transitando pela categoria ‘cabra-macho’, o
coronel nem chega a ser atacado pelos cangaceiros que invadem a cidade no decorrer do filme,
traço este intencionalmente posto por Suassuna, que vê nas oligarquias, grupo político ligado a sua
história pessoal, uma classe inabalável.
Devido a essa sua postura política e conservadora, Suassuna procura resgatar a cultura
popular na tentativa de salvar um determinado padrão de sociabilidade, de relações sociais que
estavam desaparecendo na sociedade moderna e capitalista. Através de uma visão populista e
condescendente, característica das elites tradicionais, ele narra o ‘pobre’ como pessoas puras,
ingênuas, caricatas até, recolocando-as no lugar que ocupavam em um certo momento da história.
Para ele, o pobre vence pela esperteza, pela astúcia, daí os protagonistas João Grilo e Chicó,
lançarem mão de inúmeras estratégias para sobreviver, não contestando a ordem vigente, mas
procurando se ‘virar’ no interior dela. Em suas obras a sociedade nunca é abalada, mas reposta e
revalorizada através de artifícios, que do cômico ao mítico, reproduz as relações hierarquizadas da
sociedade patriarcal e coroneslítica.
Representado no filme como um personagem sabido e estrategista, líder intelectual da dupla,
João Grilo é narrado apenas pelas suas espertezas, não se vê nenhuma menção a sua sexualidade.
Ele exemplifica a categoria masculina que nomeamos de ‘astuto’. Ao contrário de Chicó, sua
virilidade não é vivida tão visivelmente no filme, mas é relevada pela resistência típica de alguns
sertanejos pobres que dão golpes para sobreviver. Se colocando como mediador entre Chicó e
seus romances, João Grilo tenta angariar privilégios e formas de ascender socialmente. Suas
espertezas são representadas como falsas soluções que dão movimento a narrativa, partindo do
aumento de salário na padaria, do enterro da cachorra, da morte do cangaceiro, do convencimento
em torno da sua salvação ao casamento de Chicó e Rosinha, possibilitando desfechos criativos e
convincentes.

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O filme apresenta personagens que vivem em um exacerbado meio religioso, fortemente
criticado pelo autor, apresentando o bispo (Lima Duarte) e o padre João (Rogério Cardoso) como
os representantes do pensamento católico, que vivem em torno da simonia e da cobiça. Talvez esta
concepção cristã não permita ao autor demonstrar outros tipos de sexualidade, apresentando
apenas a heteronormatividade. Nas obras de Ariano, a instituição católica nunca é rompida, por
isso no desfecho os clérigos garantem lugar no purgatório (espaço existente apenas para a doutrina
católica). O Diabo (Luiz Melo) apresenta também uma configuração católica, se revestindo das
feições de Cristo (Maurício Gonçalves) para enganar João Grilo, mas acaba sendo envolvido pelas
astúcias do “sabido” e pela complacência da Compadecida (Fernanda Montenegro), sendo
relegado ao inferno. Em suas falas percebem-se as críticas a figura feminina, quando diz: “Lá vem
a compadecida, mulher em tudo se mete” ou “Não tem jeito para homem que mulher governa” (O
Auto da Compadecida, 2000), enfatizando o poder que a figura feminina exerce nas decisões
tomadas pelos homens, que na cena seria o próprio Jesus.
O personagem Severino de Aracajú (Marco Nanini), cangaceiro fiel a padre Cícero
representa mais um ícone do Nordeste. Um ‘cabra-macho’ matador, que trás no poder de sua
espingarda a arma para subverter a condição social em que vive. Associado a um grupo de
homens cangaceiros, ligados a terra, se põe a desbravar a região, conseguindo mexer com a ordem
vigente dos poderosos, postos pela narrativa. No assalto à igreja e à casa do padeiro demonstra
que, apesar dos assassinatos, tem um forte apego a moral católica, quando critica a poligamia de
Dora: “Vergonha é uma mulher casada na igreja se oferecer desse jeito. Sabe o que eu faço com as
que eu encontro com esse costume? (...) ferro na tábua do queijo” (O Auto da Compadecida,
2000). Sua rudeza caracteriza a identidade sertaneja, justificada pela morte dos pais ainda quando
criança, fator este que lhe garantirá antecipadamente a salvação.
Apesar da reprodução de um sertanejo bravo e viril, que deveria dominar as relações, quem
acaba conduzindo o desfecho final da história é uma mulher. A Compadecida, aqui, não só estaria
ligada a pessoa de Nossa Senhora, mas aos sentimentos que devem ser despertados após o filme,
como compaixão e perdão, o suportar das diferenças, uma vez que justifica as alegóricas astúcias
de João Grilo pela vida sofrida que ele teve. Através dessas estratégias de governo, funda-se uma
imagem de homem-macho e de Nordeste estereotipada, marcada e aprisionada num território
marginal que lhes foi atribuído, o do ‘outro’, o do ‘inferior’. Na defesa da salvação de João Grilo,
a Compadecida interpela a compaixão de Cristo, intercedendo por uma nova chance para o sabido.
As condições sociais e climáticas acabam, segundo este discurso, justificando as imagens e ações
que se desenvolvem na região:

João foi um pobre como nós, meu filho, e teve que suportar as maiores
dificuldades numa terra seca e pobre como a nossa. Pelejou pela vida desde
menino. Passou sem sentir pela infância, acostumou-se a pouco pão e muito
suor. Na seca comia macambira, bebia os frutos do xiquexique. Passava fome e
quando não podia mais rezava, e quando a reza não dava jeito ía se juntar a um
grupo de retirantes, que ia tentar sobreviver no litoral. Humilhado, derrotado,
cheio de saudade. E logo que tinha notícia da chuva pegava o caminho de volta,
animava-se de novo, como se a esperança fosse uma planta que crescesse com a
chuva. E quando revia sua terra, dava graças a Deus por ser um sertanejo pobre,
mas corajoso e cheio de fé. (O Auto da Compadecida, 2000).

O final da história se dá com a morte, o julgamento e a ressurreição de João Grilo. Mas as


representações construídas pelo filme ganham permanência nas sensibilidades do público,

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produzindo e legitimando a identidade do nordestino como um homem ‘machão’ e ‘ignorante’, ou
na contramão, ‘esperto’ e ‘covarde’, neles consistindo todas as falhas (ser pobre, feio, analfabeto,
rude), aspectos que emolduram modelos fixos e exóticos, justificados pelas condições materiais e
climáticas da região. De forma cristalizada, o filme legitima a imagem de um Nordeste voltado ao
seu passado, de homens resistentes, machos e violentos, que do cangaço aos temas do
coronelismo, da seca e da miséria, não transgridem, não mudam, não se modernizam.
O cinema é um artefato cultural, instrumento pedagogizante que educa o ser nordestino
através de seus discursos, atribuindo padrões sociais que modelam os sujeitos. Tais discursos são
práticas descontínuas que sempre reformulam e remodelam velhos estereótipos, reafirmando
preconceitos com pitadas do momento histórico a que se veiculam. Um modelo estereotipado
passa, neste contexto, a ser usado como símbolo de um todo, negando as diferenças e a
heterogeneidade existente no território. Como um espaço de muitas fronteiras culturais, o
Nordeste é naturalizado a partir das construções representativas do sertão, que envolve a
masculinidade como um elemento definidor e diferenciador dos papéis sociais e culturais que
existe na região, caracterizando um sertanejo ‘cabra-macho’ e viril, guardião dos valores sociais e
morais que devem permanecer na sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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