Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
77 - 94, 2010
RESUMO:
O artigo discute a formação dos conceitos de natureza, espaço e morfologia na obra de Alexander von
Humboldt e seus impactos na formação da geografia física moderna. Influenciado pelas reflexões de
Kant na Crítica do juízo, pelos trabalhos de Goethe e de Schelling, Humboldt desenvolverá uma nova
interpretação e representação para a natureza na superfície da Terra, em que o conceito de espacialidade
será fundamental para a explicação dos fenômenos da natureza. A geografia física moderna estrutura-
se com base em um complexo cruzamento de influências, tanto estéticas quanto instrumentais
desenvolvidas por Humboldt, no qual o princípio da conexão será importante para a invenção artística
e científica do conceito de paisagem geográfica.
PALAVRAS-CHAVE:
Humboldt; filosofia kantiana; Goethe; morfologia; geografia física.
ABSTRACT:
This article discusses the genesis of modern physical geography since the formation of the concepts of
nature, space and morphology in the writings of Alexander von Humboldt. Influenced by the reflections
of Kant in the ”Critique of Judgment”, the writings of Goethe and Schelling, Humboldt has developed a
new interpretation and representation of nature in the earth’s surface that turned the concept of space
out to be crucial to the explanation of the phenomena of nature. A complex starting point of influences
as such aesthetics or self developed instrumentals has structured modern Physical Geography through
a principle of connection between artistic and scientific invention in the geographic concept of landscape.
KEYWORDS:
Humboldt; kantian philosophy; Goethe, morphology, physical geography.
Introdução
O objetivo deste artigo é discutir os b aconia no com o da e st ét i ca k anti ana
conceitos de natureza, espaço e morfologia em desenvolvida por Goethe, cujo produto é uma
Alexander von Humboldt (1764-1859) e sua nova representação da natureza e da superfície
influência na constituição da geografia física da terra. O julgamento estético deixa de ser
moderna. A premissa é a de que a geografia física metafórico, passa a ser uma linguagem artística,
é o p roduto d a s re fl ex õe s d e Humb ol dt , cuja representação imediata pode ser observada
provocadas pela necessidade de uma nova na cartografia, nos perfis biogeográficos e
explicação metafísica sobre a superfície da Terra. p ri ncip al m ente na p intura d e p ai sa ge m
(MENDOZA, 2006).
Segundo Barbara Maria Stafford (1984),
o período de Alexander von Humboldt pode ser Motivado pelo princípio da experiência
designado como sendo o da reunião do empirismo estética de Schiller (BEISER, 2005), Humboldt
* Pesquisador CNPq. IG-Unicamp - Departamento de Geografia, Programa de Pós-Graduação em Geografia. E-mail: vitte@uol.com.br.
** Mestre e doutorando em Geografia, IG-Unicamp - Bolsista Fapesp. E-mail: silveira_r@yahoo.com.br.
78 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 27, 2010 VITTE,A.C.; SILVEIRA, R.W.D.
acredita que a pintura de paisagem é uma para todas as ciências da natureza, a legitimação
linguagem que também permite a pesquisa filosófica que define o que lhes cabe e que permite
científica e ao mesmo tempo a educação do ser o reagrupar do empírico mediante princípios
humano. A natureza-paisagem é o todo, que regulares universais, lei causais elementares.
mediado pela estética, compreendida como uma Com a Crítica da razão pura (KANT, 1999) Kant
totalidade viva e organizada, formada a partir das impõe uma mudança geral à maneira de filosofar,
conexões, permite a constituição do todo, onde a mas também um campo de sustentação para a
observação e a contemplação teórica convertem ciência da natureza numa base newtoniana,
o espetáculo estético em conhecimento científico. articulada e levada a cabo com os Primeiros
Segundo Ricotta (2003) esse princípio permitirá princípios metafísicos da ciência da natureza
a Humboldt desenvolver a noção de espacialidade, (KANT, 1990). Estabelece-se, nesse momento,
considerada como uma das maiores invenções da uma ruptura entre sujeito e objeto pertinente ao
modernidade. i nt er esse d a razão na for mula çã o de um
conhecimento com validade objetiva para toda a
Para Bowen (1981) essa transformação na experiência possível e que, desse modo, acaba
interpretação da natureza proporcionada por p or sub scre ve r a nat ur eza na esfe ra d o
H um bold t foi p ossí ve l ap e na s de vi do à s condicionado, deixando à razão a possibilidade
transformações na concepção de empirismo que de agir livremente, ou seja, de exercer-se em
j á ha vi a sid o re a li za da s p or Kant e p el a seu i nt er e sse incondi ci onad o sob t od a
Naturphilosophie, particularmente pela concepção representação do objeto externo. Espaço e
metodológica de Goethe sobre o olhar e a tempo, como intuição pura, fundamentam a
observação e pelas concepções da filosofia-da- necessidade de considerar toda a experiência no
natureza desenvolvidas por Schelling. limite dos fenômenos, além de reconhecê-los,
A ciência humboldtiana é o cruzamento enfim, como único domínio válido para um
d e grande s tra nsform açõe s f il osóf icas, conhecimento com validade científica. Isso é
epistemológicas e empíricas provocadas pela importante em Humboldt na medida em que
ciência newtoniana, pelas transformações de também faz parte deste propósito comum das
substância e causalidade que foram desenvolvidas ciências da natureza o esforço humboldtiano de
p or Kant na C r ít ica do j uízo em 1 79 1 e valorização da experiência no trato científico, bem
aprofundadas por Goethe com base em suas com o o re conhe ci me nt o da s t écni ca s e
leituras de Spinoza. m et od ol og i as e xp er im e nt ai s que e le l ig a
apropriadamente num processo indutivo.
A geografia moderna, particularmente a
geografia física, nasce a partir das reflexões da Doutra feita, a natureza, problematizada
época de Humboldt, principalmente nas obras Os a pa rtir do parti cular, do orga nismo como
quadros da natureza (HUMBOLDT, 1952) e imagem-esquema de uma causalidade que não
Kosmos (HUMBOLDT, 1874), em que as noções p od e ma is se r estr i ng ir a o d om ínio d o
de natureza e morfologia foram fundamentais mecanicismo, representa a abertura para uma
para a constituição de uma nova interpretação out ra si st em at ici da de q ue, e quip a ra nd o a
da natureza e de sua espacialidade na superfície finalidade na natureza com a finalidade na
da Terra. p roduçã o do home m como l i vr e ag ente ,
reconhece, numa perspectiva técnica, uma
teleologia do mundo natural. Todavia, com a
Crítica da faculdade de julgar (KANT, 1995), Kant
A construção dos conceitos de espaço,
elabora uma nova forma de estabelecimento dos
natureza e morfologia em Alexander von
juízos que, se abrindo para além do caráter
Humboldt.
determinante da razão, se apresentam em uma
A filosofia Crítica de Kant oferece, num p er sp ect iva re fl e xi va . Funda me nt a l, e ssa
primeiro aspecto, as bases de desenvolvimento perspectiva reflexiva, estabelecida no valor
Considerações sobre os conceitos de natureza, espaço e morfologia
em Alexander von Humboldt e a gênese da geografia física moderna, pp. 77 - 94 79
universal dado ao juízo de gosto estético na traba lha o conteúdo d a análise; enfim , os
contemplação do belo, se estende para a natureza conce it os que nos pr opomos a i nv esti ga r
e encontra nesta uma teleologia independente da reagrupam um vasto terreno filosófico-científico-
razão e , por tant o, que ex ige um pr incí pio artístico que vão de Kant ao movimento primeiro
regulador independente. Nisso funda-se uma romântico. O primeiro passo na conclusão desse
teleologia que não é mais dependente da analogia trabalho é, portanto, a exposição do arranjo
com a produção técnica, haja vista a possibilidade sistemático da ciência humboldtiana à luz dos
de se enxergar uma finalidade na natureza que conceitos de espaço, natureza e morfologia. E de
produz não por determinação do geral pelo que maneira estes conceitos permitem um
particular, mas que, pelo papel da estética e da reagrupar metodológico no projeto de ciência
forma, apresenta uma natureza segundo uma humboldtiano.
fi nal ida de-sem- fim (K AN T, 19 95) . Log o, a
O conceito de espaço é um dos pontos
finalidade não está associada com qualquer
centrais na compreensão sistemática de Humboldt
produção intencional na perspectiva racional; o
e, com ele, da Gênese da Geografia Moderna.
e le me nt o t écni co, a quel e de um a ge nt e
determinando de cima para baixo a finalidade é O empírico deve ser o universo de toda a
abandonado na visão de uma natureza com ciê ncia d a nat ur eza, esse é um p re ce it o
finalidade independente. A sistematicidade que fundamentado por Kant e incorporado por
advém da Crítica do Juízo (KANT, 1995) resulta Humboldt, assim como por todas as ciências dessa
na consideração de um princípio independente ordem. Fundamental, essa adoção indispensável
no telos natural, levando Kant a pensar uma se liga a uma concepção de espaço na filosofia
reaproximação com as ideias de Leibniz e, desse de Kant, a que define o campo objetivo como
m od o, a possib il i da de d e r euni r os ca sos aquele compreendido dentro da possibilidade
particulares com uma finalidade do mundo intuitiva a priori do sujeito. Em termos simples, é
natural. Isso é recuperado por Humboldt sob uma o espaço absoluto, anterior e condição do campo
nova roupagem romântica. dos fenômenos. Não podemos, contudo, dizer que
este seja o fundamento de um espaço geográfico
O romantismo representa na formação em Humboldt, exceto quando consideramos a sua
dos conceitos de espaço, natureza e morfologia adoção como categoria, ou seja, quando o espaço,
o caminho pelo qual Humboldt pensará uma tomado como absoluto, perpassa a experiência
ciência que tem em seus princípios, e mesmo no p ossí ve l na comp re ensã o cat eg or ia l da s
seu método, um caminho diverso do empreendido distribuições, variações e apresentações do
pelo racionalismo na ciência da natureza. Os universo empírico, enfim, quando serve de
conceitos de que se valerá, em igual medida, categoria analítica para o estudo do empírico.
remetem ao itinerário científico-filosófico: Kant- Nesse sentido estrito, o espaço é absoluto, como
Goethe-Schelling. O romantismo permite a não poderia deixar de ser quando tomado como
Humboldt o desafio de percorrer o Cosmos, de categoria de análise. Entretanto, a construção de
definir em seus trabalhos o liame entre orgânico uma espacialidade em Humboldt se atrela às
e inorgânico que advém de Schelling; permite a t ra nsform a ções q ue el e incor pora na
busca do protótipo e do protofenômeno na apresentação de sua ciência.
finitude, na comparação exaustiva que exige o
método goetheano; torna possível a junção dos H um bold t i ncor pora um a v isão d e
opostos pelo fio condutor de uma idealidade da nat ur eza g oe the- sche l li ng ui ana e , ne ssa
natureza na valorização da vida, da força vital no incorporação, remete-se a uma noção de espaço
G ênio R ód i o; o Rom a nt ismo t orna ai nd a relativo próxima à construída por Leibniz. O
necessário nos remetermos à arte, à busca do conceito leibniziano de mônada é incorporado na
equilíbrio dinâmico entre os opostos na junção construção do método morfológico de Goethe e
do que é em Schelling a intuição intelectual e que, assim como Leibniz, pensará a realidade a
estética, refletida na forma com que Humboldt partir de uma ligação entre a expansão e a
80 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 27, 2010 VITTE,A.C.; SILVEIRA, R.W.D.
contração. “ Tudo o que se gera procura o seu abandono da racionalidade, contudo, ela não
espaço e quer duração. É por isso que expulsa basta, necessita e pressupõe um conjunto de
qualquer outra coisa do lugar que ocupa e lhe fenômenos e dinâmicas que se ligam não a esta
encurta a duração.” (GOETHE, 2000 , p. 15). A ord enação coloca da , m as à f ont e única e
expansão, como admitira Leibniz pela apetição comunicável de toda a realidade, aquilo que
interna às mônadas, procura estender seu perpassa a intuição intelectual e a natureza
domínio, desta feita, avança, de acordo com seu (RICOTTA, 2003). Humboldt ratificará neste ponto
grau, para o domínio das outras mônadas. Cada os se nt id os de sua ci ênci a: nã o só um
mônada procura a máxima realização do que há e mp re endi m ento g ui a do a o conhe ci me nt o
nela em germe, procura o máximo de sua duração objetivo do mundo, mas um desafio na busca de
e extensão, desse modo é que podemos entender uma causa subjacente aos fenômenos; uma causa
a primeira parte da sentença de Goethe : “Tudo o que se apresentará na leitura artística e científica
que se gera procura o seu espaço e quer duração” da forma, por ser ela sintetizadora do jogo
(GOETHE, 2000, p. 15). Se for de um grau dinâmico de correspondência entre tudo o que
superior ascende sobre as demais expulsando- compõe a natureza e a parte que se configura. A
as dos seus lugares e encurtando-lhes a duração. espacialidade é, portanto, capaz de retratar o
Goethe retrata aqui a ideia leibniziana que desafio integrador de Humboldt; é por ela que
fundamenta a noção de espaço e tempo. Podemos podemos enxergar de maneira mais clara a
então conceber que se trata de uma perspectiva p er sp ecti va de uma supe ra çã o d a anál ise
dinâmica de ambos, que se associam na visão de fundamentada em categorias universais, ao
Goethe a partir de uma perspectiva ontológica. O mesmo tempo em que não se vê ignorada uma
valor dado à experiência na proposta goetheana generalidade abstraída de todo o particular.
deixa transparecer uma visão que aproxima as
O ut ro conce it o funda me nt al é o d e
mudanças ocorridas no campo dos fenômenos
natureza (SILVEIRA, 2007), em que as diferentes
com a formação do espaço e do tempo. Goethe
concepções que se estruturam sob este conceito
cla rament e se liga a os propósit os de uma
confl ue m pa ra um a noçã o g eral l ig ad a à
epistême moderna: anuncia em seu método a
Naturphilophie dos românticos. O primeiro
perspectiva de uma dinâmica que repousa na
caminho na construção desse conceito no sentido
própria essência do ser; busca em seu itinerário
final que assume na obra de Humboldt é dado
científico-filosófico-artístico uma fundamentação
pela colocação de uma teleologia da natureza em
ontológica. Essa busca, herdeira da Crítica da
Kant. Tratada em autonomia com relação aos
faculdade de julgar (KANT, 1995) em vista da
determinantes da razão, a natureza se apresenta
autonomia sistemática dada à natureza com
com um telos próprio, independente do que pode
r el ação à ra zã o, p er m it e, com o v im os na
ser colocado por qualquer imperativo do sujeito
consideração do espaço em Kant, um repensar
ou relacionado com uma produção técnica. Essa
capaz de associar as variações, os particulares,
noção basilar, incorporada pelo movimento
com a construção do espaço, indo além dos
romântico, assume formas mais claras na filosofia
ditames a priori de um transcendental no sujeito.
de Schelling e na construção de Goethe. A
Ent ende r o e sp aço hum bold ti ano é representação dessa concepção de natureza é o
compreender toda a conexão pretendida entre organismo, com suas partes interdependentes e
estes diferentes legados. O espaço em Humboldt ord enando p or um a fi na li d ad e comum o
não é nem uma plena abstração nem uma coisa- desenvolvimento geral que é, em última instância,
em-si empírica. Como termo médio entre estas dada por um desenvolvimento que pressupõe um
duas concepções, o espaço revelar-se-á à intuição campo causal não-linear, em que todo e partes
pela ligação existente entre tudo o que compõem dialogam a todo instante na construção das
o Cosmos. A mente responderá pela ordenação e formas. Essa visão reagrupa a concepção de um
regulamentação do que se apresenta de maneira protótipo goetheano, pelo qual um modelo
multiforme; não a, como podemos notar, um universal subjaz a apresentação variada e
Considerações sobre os conceitos de natureza, espaço e morfologia
em Alexander von Humboldt e a gênese da geografia física moderna, pp. 77 - 94 81
particular no reino das formas, com a visão de consideração de uma ligação entre sujeito e objeto
um protofenômeno, uma força pela qual se põe pelas vias da intuição, se distancia do caráter
em marcha o processo ininterrupto de uma determinante da razão e sua ordenação. Isso será
metamorfose da natureza, uma dinâmica que é fundamental na proposta de Goethe e na sua
colocada por esse princípio que é fim. análise da natureza, afinal, é a forma quem
representa objetivamente aquela dinâmica e
Em igual medida, a concepção de natureza
variação imposta pelos ideais de protofenômeno
incorporada por Humboldt considera um elemento
e protótipo. A forma é lugar de síntese, unificação
unificador que liga o desenvolvimento natural com
da dinâmica da natureza; em conjunto, é tratada
o do espírito, aquilo que aparece na filosofia da
morfologicamente, afinal, aqui se evoca a tarefa
natureza de Schelling como o ponto comum
de abarcar um jogo de relações pela captura
d este s dois domí ni os a p ar ente me nt e
intuitiva da imagem da forma, nesse caso, do
contrapostos. A idealidade da natureza permite
conjunto das formas. Importante, esta morfologia
conceber o homem como momento de síntese do
é t ratada por Humbol dt na obse rvação da
próprio desenvolvimento da natureza, ou seja, o
paisagem, na descrição dos Quadros naturais,
espírito, unificado pelo elemento ideal, aparece
que, no sentido último, são pinturas de um
como a tomada de consciência da natureza por
processo, de uma dinâmica que toma expressão
e la m esma . Essa vi sã o é f unda me nt al na
mais elevada nas condições originais de sua
construção humboldtiana de uma ciência que
manifestação, na fidedigna contemplação do
busca reunir um múltiplo legado e reconhecer nas
conjunto das formas. Fruto não só de uma relação
obras do homem um ponto fundamental no
m om entâ ne a , a morf ologi a com pr ee nd e o
esforço de compreensão da natureza. Igualmente
processo histórico de construção das formas,
relevante é a ligação que se estabelece entre
engloba as transformações num capturar intuitivo.
orgânico e inorgânico a partir ainda desse
O s domí ni os m orf ol óg icos do r el ev o, d a
elemento unificador da natureza. Como força Vital
vegetação, expõem para Humboldt o processo de
em Humboldt, posteriormente modificada em um
construção bem como a dinâmica que subjaz a
processo de desmistificação e incorporação
nat ur eza e m se u pr oce sso de form ação-
ontológica, este elemento unificador é a chave
transformação contínua.
para compreender a relação entre as associações
do relevo e do clima com a formação vegetal e Indissociável desta concepção é a noção
sua distribuição nas diferentes regiões do planeta. de arte, afinal, é ela que permite a representação
Estruturante, essa concepção de natureza é o do que não se pode exprimir, do que se apresenta
ponto nodal de tudo o que pretende Humboldt meramente como intuição intelectual. Aqui, a
ordenar em nome de uma lei geral ou de uma intuição estética cumpre seu papel na medida em
conexão dos elementos do Cosmos. que pode tornar objetiva a dinâmica da natureza
na forma, pela figura do gênio, sem se limitar à
O conceito de morfologia, por sua vez,
simples ordenação analítica da razão. Pintar o
conflui o processo dinâmico da natureza na
conjunto das formas em máxima conformidade
conce pção d a f or ma . É a f or ma q ue ser á
com a realidade é parte desse método morfológico
r esponsáv el por re ve la r à i nt ui çã o a
que se estrutura em Goethe e que é habilmente
correspondência no instante entre todo e partes
a pr op ri ad o p or H um b ol dt , af i na l, e st a
e, desse modo, colocar-se como eleme nto
representação reflete o que de outra forma não
indispensável no valor dado à arte. Assim como
se pode traduzir, aquilo para o que nossos
os outros conceitos, esta valorização da forma
dispositivos formais se constrangem e se limitam.
p ar te d e Ka nt , sendo i ncorp orad a pe los
românticos e por Humboldt na construção de uma Podemos agora, diante das concepções de
valorização estética e no reconhecimento do papel espaço, natureza e morfologia, entender que no
da intuição. A forma representa a unificação da projeto de ciência de humboldtiana, a experiência,
dinâmica no instante e, desse modo, com a é tudo quanto nos cabe como domínio de análise,
82 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 27, 2010 VITTE,A.C.; SILVEIRA, R.W.D.
é nela e por ela, enfim, que devemos nos esforçar considerar o que está fora sem remeter-se a si
em percorrer os detalhes, em nos dispormos mesmo, ao que pulsa internamente no ser.
satisfatoriamente a um número considerável de
Este ser é a medida de um saber que não
particulares, ou seja, de condições específicas,
pode ser exprimido, não pode ser comunicado
que são representadas pelos estudos regionais.
pela voz da ciência, de suas máximas, de suas
O desafio enciclopédico encontra sua leis e ordenações regulares; não há um plano de
legitimidade nesse valor dado ao empírico. A causas e efeitos, tudo é plena relação; não se
experiência é o campo válido na estrutura das pode medir o que de si está fora e o que de fora
ciências, afinal, é ela, que nos permite operar nos está no ser. Essa sensibilidade não é comunicável,
limites da razão. não é exprimível pela voz da razão, mas é, como
ela, medida da realidade, existe como parte de
Não obstante se trate do empírico, há
nós, do que nos toma. Conhecer é mais do que
de se reco nh ecer uma li ga çã o en tr e os
fenômenos, seja ela uma condição a priori, ordenar, é também considerar essa imponderação
como no caso de Kant, ou uma condição do inarticulável. A tarefa, difícil de antemão, a de
próprio processo de formação-transformação explicar o mundo, a natureza, ganha nova
da natureza, como em Goethe e Schelling.Logo, dimensão, já não é explicar o mundo, é explicar
devemos buscar as leis e os princípios causais, a si no processo de construção do mundo; é
que, para Humboldt, é uma tarefa indissociável explicar a natureza no seu diálogo formador com
das ciências da natureza. o humano. Como aponta Ricotta (2003), os limites
na comp re ensão d o mund o são a s ba se s
M as há ne sse mom ento um pa sso necessárias para o cenário da imaginação, aquilo
importante na incorporação das metodologias: a que torna humana a interpretação da natureza.
concepção de homem. Humboldt concebe o
homem como médio entre razão e sensibilidade, Sem pudor, o que não se pode exprimir
assim como aponta Schiller, e, desse modo, pode encontra expressão, canaliza seus sentidos em
articular coerentemente dois domínios que se articulação com os recursos possíveis de uma
apresentam antagônicos: o da racionalidade e o razão valiosa. Fala a sensibilidade em diálogo
da sensibilidade. Esse é um passo estruturante, aberto com a razão na execução do elemento
é a possibilidade aberta de uma confluência estético, na construção objetiva da obra de arte.
inovadora, o olhar do gênio que antevê muito mais A ligação que une o objeto a seu observador pode
do que um agrupamento aleatório destes campos enfim aquietar-se, pode encontrar alento e
contrapostos. Com sua concepção de homem, representação na arte genial. Na arte, a natureza
Humboldt dá um passo adiante na construção de e o hum ano j á nã o est ão d esar t icul ad os,
sua ciê nci a: i ncor pora se m cul pa t od o o constituem um único, uma unidade que tanto
ferramental técnico-metodológico das ciências incita a razão como a sensibilidade; não há mais
racionalistas em plena ascensão, haja vista a a d if iculd ad e de se p ensar d oi s d om ínios
consideração de que o domínio da razão deve ser antagônicos, a síntese está realizada, cumprida
t am bé m consi de ra do na e di f icação d o no seu grau mais elevado. Como em um par
conhecimento; doutra feita, abre os olhos para o dia lético, nat ureza e home m se associ am,
que está além desta racionalidade posta, afinal, cumprem o que lhes incita o próprio da existência,
pela medida da sensibilidade, deve tocar o homem esse fim que é o princípio de ordenação: a força
a impressão no contato com a natureza, o sentir vital, o ideal que perpassa tanto o inconsciente
que não procura ordenação ou encadeamento como a consciência. Para além de uma realização
lógico, mas que simplesmente se impregna na humana, esse representar do mundo é a própria
existência de quem se propõe o contato. Existir é atividade desse elemento unificador; ou seja, é a
a m ed id a d essa se nsib il i da de ; ex i st ir e m f or ça i mp ost a ao m undo; é a nat ur eza
comunhão com as coisas, em ligação com elas; manifestando-se pela sua mais alta voz: a
sentir antes de pensar; conceber que não se pode humana.
Considerações sobre os conceitos de natureza, espaço e morfologia
em Alexander von Humboldt e a gênese da geografia física moderna, pp. 77 - 94 83
De modo geral a Geografia pode ser Não podemos deixar esta pergunta sem
concebida como a ciência que estuda o espaço, r espost a se pr et ende m os a na li sar a obra
não um espaço puro e simples, mas este que se humboldtiana e reconhecer nela um caráter
constrói com base na articulação dos elementos geográfico, afinal, como frisamos, precisamos
naturais e humanos. O espaço geográfico é aqui esclarecer o que é para nós Geografia. No limite
a medida de uma relação, seja entre os elementos que compete a uma exposição como essa, nos
da natureza, seja entre esta natureza e a valemos do que foi aqui apresentado, ou seja,
sociedade. Nesse momento, nenhuma grande colocamos como uma possível resposta a este
dificuldade parece evocada, afinal, é quase ponto embaraço filosófico para a Geografia, a resposta
comum que aquilo que acaba de ser exprimido dada outrora pelo movimento romântico a esta
compreende a ciência geográfica e a define até d ua li da de e ntr e na ture za e espí ri to.
com alguma clareza. Mas a tranquilidade é Filosoficamente falando, a tarefa do romantismo
aparente, para além dela se apresentam, com advém da dualidade colocada pelo projeto Crítico
esta descrição clara, uma série de problemas. O kantiana, aquele da separação entre sujeito e
primeiro deles é de definição, afinal, se a objeto e a concepção de homem e natureza. Esse
Geografia é essa produção e representação do problema, enfrentado anteriormente pelo próprio
espaço a partir das conexões dos elementos da Kant, e levado a cabo pelos românticos, é fonte
natureza e destes com a sociedade, se faz mister de inúmeras reflexões que podem dar nova carga
definir o que é então essa natureza e o que é, conceitual a esta tarefa difícil de compreensão
por fim, essa sociedade. Aqui as coisas se tornam da Geografia. É evidente que esta filosofia não
mais difíceis, afinal, intentar uma resposta para nos cabe na justa medida, pelo fato claro e
estes conceitos não é tarefa fácil, ainda que seja e vi de nt e d e que sã o out ra s as cond içõe s
possível; todavia, esclarecemos que confluir as intelectuais e materiais depois de mais de um
premissas metodológicas destas duas definições
século de produção do conhecimento. Assim,
é certamente um trabalho filosófico árduo. Ora,
entendemos que a aproximação disposta entre
foi justamente este um dos problemas que
homem e natureza na Naturphilosophie é matéria
procuramos destacar na construção da Geografia
de interesse para a Geografia, sem esquecer,
e na sua divisão histórica entre uma Geografia
contudo, a parcialidade que lhe cabe em um novo
Humana e outra Física. O valor dado a um dos
contexto.
elementos, na verdade, a definição que engloba
o outro termo no seu domínio, é a dificuldade da A Geografia nos parece, desse modo, o
dualidade geográfica no que se refere ao seu campo de aproximação destes dois domínios, o
caráter físico e humano. Quer dizer simplesmente do humano e o da natureza e, por esse caminho,
que ao se estabelecer uma base filosófica comum, concebemos que a filosofia da natureza dos
tarefa indispensável ao desenvolvimento coerente românticos oferece um aporte significativo no
d as p rop osta s me t od ol óg i ca s, i ncorr eu-se desafio de se ligar em um processo histórico e
historicamente no erro de ou valorizar em demasia unificador tanto as transformações da natureza
a natureza, aparecendo o elemento humano como como a ligação destas com o desenvolvimento
uma variável a ser incorporada numa análise d a at iv id a de d o hom em , aq ui conceb id o
sistemática, ou no equívoco de dar ênfase à socialmente, ou seja, assumindo uma roupagem
socie da de e suas f or ma s d e or ga ni za çã o histórica e específica, segundo o lugar e as
produtivas, considerando a natureza como um condições em que se apresenta.
elemento incorporado na lógica geral de uma
orde nação econômica e seus rebatime ntos Mas há, ainda dentro do universo de
culturais e políticos. Essa dualidade é a medida definição da Geografia, um segundo problema, o
do problema filosófico de agrupar de forma do objeto e sua ligação com os objetivos.
plenamente satisfatória a natureza e a sociedade Colocamos inicialmente que a Geografia se ocupa
sem violar premissas filosóficas ou articular uma do espaço, um espaço geográfico, e, como tal,
série de correntes contrapostas e divergentes. não resta aqui nenhum desafio maior. Contudo,
Considerações sobre os conceitos de natureza, espaço e morfologia
em Alexander von Humboldt e a gênese da geografia física moderna, pp. 77 - 94 85
aqui se coloca uma dificuldade, qual seja, a da nos cabe, não pôde encontrar uma resposta
perspectiva a ser tomada no trato desse objeto. satisfatória à aproximação entre objetividade e
No p rimeiro capítulo apontam os para este subjetividade, restando esta uma dificuldade a
problema, colocamos a dificuldade assumida ser melhor conduzida, para além do caráter
historicamente de se pensar o espaço não só determinante de um ou outro elemento tomada
objetivamente, mas no seu rebatimento subjetivo. em sua primazia ou admitido constitutivamente,
A Geografia não pretende somente analisar as q ue r, d ize r, d e ma nei ra d og m át ica. N a
relações da natureza e destas com a sociedade Naturphilosophie, que poderia ainda oferecer um
no plano de disposição empírica, objetiva, ela novo horizonte de análise, se apre senta o
pretende, igualmente, identificar o que dessa problema inverso, a primazia de uma idealidade
disposição objetiva rebate na construção cultural que dificulta, definitivamente, uma adoção
e social, enfim, na perspectiva subjetiva. Isso é irrestrita, se mostrando evidente uma necessária
um desafio filosófico, mas para o qual a Geografia reformulação estrutural das premissas que só a
apresentou uma resposta em certa medida filosofia pode dar. Enfim, é um problema de
satisfatória, com a incorporação dos princípios e g ra nd es p rop or ções p ara o q ua l nos
fundamentos de um materialismo dialético; no a pr esenta m os, como os out ros, se m um a
qual se pode compreender tanto a dimensão resposta acabada, sobretudo no que se refere à
objetiva como a dimensão subjetiva em um aplicação no universo de análise geográfica.
contínuo processo de construção e reconstrução,
um duplo influenciar que fundamenta uma análise
com domínios científicos válidos. Contudo, resta O papel de Humboldt na gênese da
problemática esta proposta, na medida em que ciência geográfica
se coloca, no plano filosófico, uma dificuldade que
viola o princípio elementar dessa dupla influência, Podemos identificar uma linha direta que
o da liberdade. Essa liberdade é suprimida do par liga Humboldt à Geografia, notadamente uma
dialético no momento em que se evoca um caráter Geografia Física na qual se dispõem uma série de
constitutivo para a materialidade e coloca-se a observações e conexões na composição de
sua primazia, contra a qual nenhuma arquitetada Quadros linguísticos da paisagem e da região.
relação aberta entre homem e natureza pode Claval (2000), inclusive, aponta Humboldt como
nega r a estrutura ção ca usal que aponta o um dos fundadores deste ramo regional da ciência
vindouro como causado pelo precedente. Essa geográfica. Assim, cada parte da Terra representa
medida de uma temporalidade fluindo em meio a um conjunto complexo de fatores que podem ser
essa dinâmica de uma materialidade constitutiva associados e reduzidos mediante leis ou princípios
encerra as cadeias da liberdade, aprisiona o gerais. Os casos particulares caracterizam as
homem, a sociedade, aos ditames primeiros de regiões; cada uma delas é disposta por diferentes
uma m at ér ia que é or ig e m de t od a a características, segundo o clima, o tipo de relevo,
transformação. Moreira (2006) aponta outros a vegetação e, nesse rumo, cada uma destas
caminhos também para o saber geográfico nessa partes é correlata à totalidade, uma compreensão
t enta ti va d e a pr ox im ar subj et iv id ad e e orgânica de um planeta cujas teceduras traduzem
objetividade na consideração do objeto da uma ligação irrestrita.
Geografia, como o caso da fenomenologia, por
Além das vantagens especiais que lhes são
exemplo. De modo geral, Moreira aponta para
próprias, cada zona tem também o seu caráter
esse caminho, a busca dentro da Geografia de
determinado. Deixando certa liberdade ao
um saber integrador, que busca unidade, uma
de se nvolvi me nto a nóm al o d as pa rte s, o
visão “holística”, como ele mesmo define.
organismo, em virtude de um poder primordial,
Sem pretender uma resposta definitiva submete todos os seres animados e todas as
p ara esse p rocesso, nossa conce pção d e plantas a tipos definidos que se reproduzem
Geografia, segundo o limite de interpretação que eternamente (HUMBOLDT, 1952, p. 283).
86 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 27, 2010 VITTE,A.C.; SILVEIRA, R.W.D.
e fidedigna das formas em conjunto (morfologia como condição ambiente. Esse ideal regulador,
e paisagem) como a tarefa de trazer o elemento esse infinito em comunicação com o finito, tomado
humano no processo de produção da natureza. na visão da forma é incorporado por Humboldt;
Recolhida sob a forma artística, a imagem é o nesse caso, trabalhando com maior detalhamento
avanço da imaginação para onde os domínios as condições de variação climática e de relevo
formais da razão não podem se estender, é a com o form a d e de fi nir o p re d om ínio d e
cobertura geral de uma realidade que não pode determinados grupos de plantas, bem como o
dissociar-se desse jogo aberto entre a natureza m ai or ou me nor de senvolv im ento e m
e o espírito que com ela se relaciona. determinadas condições. Estes estudos são o
passo necessário para se pensar a distribuição
Q ua nt o aos p er fi s topog rá fi cos, os da vegetação tomada em conjunto, não isolada
mesmos têm um duplo mote: tanto demonstrar simplesmente na planta, é, enfim, uma etapa que
o interesse objetivo de uma ciência aplicada à antecede, no maior detalhamento, o processo que
análise empírica, voltada a compreensão dos culmina no que seria uma análise geral das
elementos que compõem a paisagem, como o de vegetações predominantes, sem, contudo, se
revelar os processos de contínua transformação desvincular do caráter central do método, que
e construção-reconstrução pelas formas. As pressupõe, em última instância, o papel da
sob re posi çõe s re ve la m uma hist ór ia , um a intuição. Segundo Humboldt (1874): “(...) a
natureza que muda de feição, ainda que essa cri ação ve ge ta l a ti ng e a i ma gi na ção p el a
dinâmica passe desapercebida àquele que não amplitude de suas formas sempre presentes em
pode conceber a atividade que a todo momento cuja massa se revela a antigüidade ligada, por
revoluciona a esfera do inorgânico. Há aqui a visão um privilégio especial, com a expressão de uma
de uma forma como produto e como produtora. força sem cessar renovada.” (HUMBOLDT, 1874,
A tarefa de dissecar mediante uma representação p. 331-332- tradução nossa) Nesses diferentes
gráfica demonstra analiticamente o quanto desta níveis e suas relações é que Humboldt pode
forma se revolucionou no seu processo histórico; estabelecer o que deve ser agrupado e o que deve
por outro lado, a tarefa de tomar a estrutura em ser divergido na distribuição da vegetação ou no
conjunto permite considerar a forma na sua estabelecimento das suas disposições regulares.
função ativa de síntese no globo, ou seja, as Na conclusão do Livro IV, no segundo volume dos
feições se consagram na morfologia da paisagem Quadros da Natureza, Humboldt (1952) resume
como momento a cabado de unificaçã o dos apropriadamente estas considerações:
elementos pela captação intuitiva da cena. Isso
t am bé m é Ge ograf ia ; é à b ase de um Ao esboça r , nos qua dr os a nt e ri or es, a
conhecimento geomorfológico levado a cabo com fisionomia das plantas, propus-me, sobretudo,
o curso da Geografia na Alemanha. Não são três fins intimamente ligados: quis fazer
consi de ra dos os el em entos e st ri ta me nt e ressaltar a diferença absoluta das formas;
geológicos, nem somente a ação dos agentes do indicar a sua relação numérica, quer dizer o
clima, há uma ligação pressuposta na concepção lugar que ocupam, nesta ou naquela região,
morfológica do relevo em Humboldt; uma ligação na massa total das plantas fanerogâmicas; e,
entre orgânico e inorgânico. ultimamente, a sua distribuição geográfica,
segundo a latitude e o clima. Quando nos
Humboldt também se preocupou com uma desejamos elevar a concepções gerais acerca
distribuição da vegetação; uma disposição das das formas vivas, não se deve separar, julgo
p la nt as no g lobo e m funçã o ta mb ém d e eu, o estudo das relações numéricas e o da
regularidades e particularidades sempre em fisionomia. Também se não deve limitar o
conex ão. As pl anta s, com o v im os, sã o estudo da fisionomia das plantas aos contrastes
compreendidas naquele sentido goetheano, estão que os organismos apresentam, considerados
em contínua metamorfose e revelam na forma o isoladamente; há que procurar descobrir leis
que está contido em germe e o que se dispõe que determinam a fisionomia da natureza em
88 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 27, 2010 VITTE,A.C.; SILVEIRA, R.W.D.
limitador da Geografia em sua história. Essa la descripcion de los espacios celestes y de los
Geografia Física é, ainda segundo entendemos, cuerpos que llenan esos espacios (HUMBOLDT,
também Geografia, a despeito da análise de Capel 1874, p. 29).
(1982), que defende a ideia de que essa Geografia
C om pa ra nd o d if er ente s p ar te s e
está distante do que se construiu depois e do que
reconhecendo-lhes a unidade, valendo-se tanto
até então se havia construído; nessa visão, os
dos dispositivos da ciência em voga, como das
propósitos deste saber não seriam geográficos,
b ases d e uma f il osofi a da na ture za no
mas ligados estritamente a esta descrição física
romantismo, Humboldt cumpre uma análise
do mundo que, por simples herança de Saussure,
geográfica de síntese, ou holística como destaca
assume o nome de Geografia Física. Imprecisa,
Moreira (2006). A Geografia Física de Humboldt
essa análise mascara o fato de que a construção
é voltada para todas as contribuições científicas,
p ropost a é uma constr ução g e og rá fi ca ,
sejam quais forem às áreas que se delimitem no
independente do valor semântico dado ao termo
estudo de cada particular dado; sua ciência está
Geografia e mesmo à ligação desta com outra
p ara al ém da s fr ont ei ra s e se va le ,
fonte diversa daquela proposta até então pelos
paradoxalmente, dos frutos e contribuições dos
rumos da ciência.
diferentes ramos especializados do saber. A
Aqui ent ra a quel e seg und o pont o Geografia Física é, portanto, o ponto de encontro
importante, o de que as ciências não nascem de e entendimento das relações e conexões no nível
si mesmas, mas de esforços diversos, que se terrestre; a unificação científica dos domínios
agrupam sob nova feição e segundo leituras e orgânicos e inorgânicos; a junção da subjetividade
metodologias próprias. Embora isso pareça óbvio, com a objetividade na análise da natureza.
é importante destacar esse ponto, porque Capel Moreira (2006) citando Humboldt (MOREIRA,
(1982) o ignora quando afirma que “com sua física 2006, p. 23, apud TATHAM, 1959, p. 216) deixa
do globo Humboldt não estava fundamentando a claro o que é esta Geografia:
geografia moderna, senão esforçando-se em
Minha atenção estará sempre voltada para a
estabelecer uma ciência totalmente nova, que
observação da harmonia entre as forças da
pouco tinha a ver com a geografia da época.”
natureza, reparando a influência exercida pela
(CAPEL, 1982, p.16-17). Ora, ela não tinha nada
criação inanimada sobre o reino animal e
que ver com o que estava sendo construído até
vegetal. Deve ser lembrado, entretanto, que a
então sob o nome de Geografia justamente pelo
crosta inorgânica da terra contém dentro de si
fat o de que é uma nova form ulação, q ue,
os mesmos elementos que entram na estrutura
atendendo inclusive pelo nome de Geografia
dos órgãos animal e vegetal. Por conseguinte,
Física, representa um passo decisivo para a
a cosmografia física seria incompleta se
construção sistemática de um saber geográfico
omitisse considerações dessa importância, e
moderno. De todo modo, reforçamos o óbvio, as
das substâncias que entram nas combinações
ciências em sua gênese não surgem a partir de si
fluidas dos tecidos orgânicos, sob condições
me sma s, ma s d e uma sé rie de el em ent os
que, em virtude de ignorarmos a sua natureza
inte le ct ua is e m at er ia is. A re sp ei to d esta
real, designamos pelo termo vago de “forças
Geografia Física Humboldt nos fala:
vitais”, grupando-as dentro de vários sistemas,
No se trata en este ensayo de reducir el de acordo com analogias mais ou menos
conjunto de los fenómenos sensibles á un perfeitamente concebidas. A natural tendência
pequeño número de princípios abstractos, sin do espírito humano, involutariamente, nos
mas base que la razon pura. La física del mundo impele a seguir os fenômenos físicos da terra
que yo intento esponer, no tiene a pretension através de toda a velocidade de suas fases,
de elevarse á las peligrosas abstraciones de até atingirmos a fase final da solução morfológia
una cie ncia me ra me nt e ra ciona l de l a das formas vegetais, e os poderes conscientes
naturaleza; es una ‘geografia física’ reunida á do movimento do organismo dos animais.
Considerações sobre os conceitos de natureza, espaço e morfologia
em Alexander von Humboldt e a gênese da geografia física moderna, pp. 77 - 94 91
Assim, é por tais elos que a geografia dos seres que a interroga. Em poucas palavras, o curso
orgânicos – plantas e animais – se liga com os histórico do conhecimento geográfico, suas
esforços dos fenômenos inorgânicos de nosso dualidades e inconsistências são um contínuo
globo terrestre (MOREIRA, 2006,p. 23). relutar com essa origem abandonada, esse
esquecido desafio filosófico de síntese que ocupou
Quando se coloca no plano histórico uma
a G eograf ia em sua g ênese m od er na e m
divisão dessa ciência que nasce sintética, a
Humboldt.
tentativa é dar formas mais definidas e um recorte
mais apropriado e preciso para uma ciência que N a ap re se nt a çã o de ssa a ná li se j á
nasce como síntese de todas as contribuições das demonstramos indiretamente a reposta para um
ciências. A ruptura que se coloca também é fruto pergunta fundamental, bem seja: o Cosmos de
de uma leitura equivocada do projeto de ciência H um bold t, e nquanto um tod o, p od e se r
humboldtiano. Gomes (2000) coloca a dualidade considerado um trabalho geográfico? É evidente
da Geografia na sua gênese em Humboldt, mas que ele se vale de inúmeras ciências e aqui sem
não é dele que essa dualidade emerge, antes polêmicas, ele mesmo não reconhece como
disso, é da incompreensão do seu projeto de estritamente geográfica a sua proposta, contudo,
ciência que surge a dualidade no saber geográfico. a resposta dada ao que então concebemos como
Para Humboldt, assim como para Kant, não há Geografia nos autoriza a interpretar o projeto de
q ua lq ue r possi bi li da d e de se di ssoci ar os ciê ncia humb ol dt ia na como um t ra ba lho
elementos descritivos das conexões, das relações geográfico. Por compreendermos a Geografia
q ue são, e m úl ti ma i nst ânci a, el em entos como uma ciência que procura analisar a natureza
estruturantes da própria diferenciação. Na não em suas relações, bem como destas com o
observação desse princípio unificador elementar homem numa perspectiva abrangente de espaço,
e nt re t od o e p ar te s, e nt r e de scri çã o e temos que o Cosmos é Geografia. E mais, a sua
estabelecimento de leis, é que se encontram os construção oferece, pela medida de síntese, uma
caminhos de uma Geografia ideográfica e outra resposta científico-filosófica-artística para o
nomotética. Isso não está em Humboldt, nele tudo problema da dualidade entre Geografia Física e
é síntese, e descrever não pode nunca ser Geografia Humana, bem como alenta a dupla
dissociado das conexões, mesmo porque o relação necessária e aberta entre a subjetividade
método que intenta é comparativo, ou seja, vale- e a objetividade. Portanto, a despeito do nome
se dos particulares para encontrar a unidade e, que se atribua a esta ciência, ela é, por reduzir e
mais do que isso, pressupõe a abrangência do pensar em termos de relações espaciais o
seu método que o próprio ato de descrever é, conjunto dinâmico da realidade, sobretudo da
pela linguagem proso-poética como medium-de- natureza, em harmonia com as di mensões
reflexão, um salto para a compreensão geral, o sub je ti va s e obj et ivas, uma const ruçã o
reconhecimento de uma integração que não pode geográfica.
ser dada pelo esquartejamento analítico a partir
de uma linguagem estritame nte cientí fica. Essa lei tura e ncer ra a i dei a d e q ue
Separar descrição e leis é acabar com qualquer Humboldt é fundamental para a Geografia:
conti nuid a de d a ci ê ncia hum b ol dt ia na ; a) pela estruturação de uma ciência com
igualmente, cingir o humano e a natureza é objeto, método e metodologias que atuam em
caminhar para longe do que é Geografia em conformidade e segundo um objetivo específico,
Humboldt, afinal, como fizemos questão de ainda que, no caso de Humboldt, confluam para
salientar em diversas oportunidades, a natureza
uma síntese filosófica;
não pode, pelo papel que desempenha em seus
trabalhos e no movimento romântico, ser pensada b ) por mobi li za r na nossa hi st ór ia
em separado do homem, enfim, não pode haver científica esforços que produziram, mesmo que a
qualquer análise da natureza sem reconhecer e partir de interpretações equivocadas, construções
emprestar a ela o que de humano há no sujeito descritivas e busca por conexões causais, e
92 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 27, 2010 VITTE,A.C.; SILVEIRA, R.W.D.
Bibliografia
HUMBOLDT, Alexander von. Quadros da natureza. SHARPE, Lesley. The Cambridge Companion to
Rio de Janeiro-Porto: Editores W.W.Jackson INC, Goethe. Cambridge: Cambridge University Press,
1952. 2000.
KANT, Imannuel. Primeiros princípios metafísicos SCHIEREN, Jochen. Anschauende Urteilskraft.
da ciência da natureza. Lisboa: Edições 70, 1990. Methodische und philosophische Grundlangen von
Goethes naturwiessenschaftlichem Erkennen
______. Crítica da faculdade de julgar. RJ:
Dusseldorf. Bonn: Parerga, 1998.
Forense Universitária, 1995.
STAFFOR D, Bar ba ra M ar ia . Voy ag e in t o
______. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação
substance. Art, science, nature, ant the ilustrated
Gulbenkian, 1999.
travel account, 1760-1840. Cambridge: MIT
L IVIN GSTO NE, D av id . T he G eogr ap hi ca l Press, 1984.
Traditional. New York: Blackwell, 1992.
SILVEIRA, Roberison W. D. da. Influências da
MENDOZA, Josefina. Alejandro de Humboldt y la filosofia kantiana e do movimento romântico na
Geografía Del Paisaje. In: Holl, Frank (Ed.) Gênese da Geografia Moderna: a constituição dos
Alejandro de Humboldt: uma nueva visión del conceitos de espaço, natureza e morfologia em
mundo.Madrid: Museo Nacional de Ciencias Alexander von Humboldt. Campinas, 2008.
Naturales de Espanã-Embajada de Alemania. Dissertação (Mestrado em Geografia). Instituto
2006, p. 55-64. de geociências, Unicamp.
MOREIRA, Ruy. Para onde vai o pensamento VALADÃO, Claudia. Hackert e Geothe e a pintura
geográfico? São Paulo: Editora Contexto, 2006. de paisagens. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
RICOTTA, Lúcia. Natureza, ciência e arte em VITTE, Antonio Carlos. A terceira crítica kantiana
Alexander von Humboldt. Rio de Janeiro: Mauad, e sua influência no moderno conceito de geografia
2003. física. GEOUSP, São Paulo, 19, 2006, p. 33-52.