Sei sulla pagina 1di 20

CRAINQUEBILLE

CADA SENTENÇA proferida pelo juiz, em nome do povo soberano, contém em si toda a
majestade da justiça. Do quanto é angustiada a lei, soube-o Jerônimo Crainquebille, quitandeiro
ambulante, ao aparecer perante a polícia correcional, acusado de ultraje a um agente de força
pública.

Tendo tomado assento, na sala magnífica e escura, no banco dos acusados, viu ele os juízes, os
escrivães, os advogados de beca, o oficial de justiça, e, por trás de uma grade, as cabeças
descobertas dos espectadores silenciosos. Viu-se a si mesmo sentado em lugar elevado, como se
do fato de comparecer diante dos magistrados recebesse o próprio acusado uma honra funesta.

Ao fundo da sala, entre dois assessores, o presidente Bourriche, tendo no peito a condecoração
de oficial da Academia. Um busto da república e um Cristo crucificado, dominavam o pretório,
de modo que, sobre a cabeça de Crainquebille estavam suspensas todas as leis divinas e humanas.
À vista disso, tomou-se ele de justo terror. Carecendo de espírito filosófico, não indagou de si
mesmo o que queriam dizer esse busto e esse crucifixo, nem procurou saber se Jesus e a
República, ali, no Palácio da Justiça, se harmonizavam bem um com o outro. Era, todavia,
matéria para refletir, porquanto, bem feitas as contas, a doutrina pontifícia e o direito canônico
são, em muitos pontos, contrários à Constituição da República e ao Código Civil. Não consta que
as Decretais hajam sido abolidas. Como outrora, ensina a Igreja de Cristo que somente são
legítimos os poderes aos quais ela deu a investidura. Ora, a República Francesa continua a afirmar
que independe do poder papal. Com alguma razão, poderia, pois, ter dito Crainquebille:

- Senhores juízes, não tendo sido ungido o presidente Loubet, esse Cristo suspenso sobre as
vossas cabeças recusa-vos o caráter de órgão dos Concílios e dos Papas. Ou ele está aqui para vos
recordar os direitos da Igreja, os quais infirmam os vossos, ou sua presença não tem nenhuma
significação racional.

Ao que o presidente Bourriche teria talvez replicado:

- Acusado Crainquebille, os reis da França nunca se entenderam bem com o Papa.


Guilherme de Nogaret foi excomungado, e não se demitiu de seus cargos por tão pouco. O
Cristo, que aqui vês, não é o Cristo de Gregório VII e Benedito VIII. É, se quiseres, o Cristo do
Evangelho, que não sabia uma palavra de direito canônico nem ouviu nunca falar das sagradas
Decretais.

A isso seria lícito replicasse Crainquebille:

- O Cristo do Evangelho é um anarquista. Demais, sofreu uma condenação que, desde há mil
e novecentos anos, todos os povos Cristãos consideram como um grave erro judiciário. Eu vos
desafio, senhor presidente, a que me condeneis, em seu nome, sequer a quarenta e oito horas de
prisão.

Mas Crainquebille não se entregava a nenhuma consideração histórica, política ou social.


Continuava assombrado. O aparato que o cercava sugeria-lhe uma elevada ideia da justiça.
Penetrado de respeito, tolhido de pavor,estava pronto a louvar-se nas pessoas dos seus juízes
quanto à própria culpabilidade. Em sua consciência, ele não se julgava culpado; sentiu, porém, a
fragilidade da consciência de um quitandeiro ante os símbolos da lei e os ministro da vindita
social. Seu próprio advogado já o havia quase persuadido de que não era de todo inocente.

O sumário, simples e rápido, fizera ressaltar as culpas que pesavam sobre ele.

II

Jerônimo Crainquebille, quitandeiro ambulante, ia pela cidade impelindo a sua carrocinha, a


gritar de quando em quando: Olha a couve, nabos, cenouras! Se levava também alhos-porros,
apregoava: Olha os molinhos d’espargos! Porque o alho-porro é o espargo do pobre. Ora, aos 20
de outubro, à hora do meio-dia, como ele descesse a rua Montmartre, a senhora Bayard, mulher
do sapateiro, saindo da loja, aproximou-se da carrocinha de verduras. E tomando
desdenhosamente um molho de alhos bravos:

- Má cara tem eles, os teus alhos-porros! A quanto o molho?

- Quinze soldos, patroa. Não há melhores.

- Quinze soldos, por isto?

E, com um gesto de nojo, atirou o molho de alhos dentro da carrocinha.

Foi quando interveio o guarda 64, e disse a Crainquebille:

- Vamos! Andar! Andar!

Havia cinquenta anos que Crainquebille andava desde manhã até a noite. A ordem pareceu-lhe
legítima e consoante a natureza das coisas. Disposto, logo, a obedecer, apressou a freguesa a que
tomasse de uma vez o que desejava.
- Preciso escolher primeiro o que me convém, - replicou àsperamente a mulherzinha.

Pôs-se de novo a apalpar todos os molhos e, escolhendo afinal o que lhe pareceu mais bonito, pô-
lo de encontro ao seio como as santas, nos retábulos das igrejas, apertam aos peitos a palma
triunfal.

- Não dou mais de quatorze soldos. E já é muito! E ainda preciso ir buscá-los na loja, pois
não os tenho comigo.

E, abraçada aos alhos-bravos, entrou na sapataria, onde uma freguesa com uma criança ao
colo a precedera.

Nesse momento, disse o 64 pela segunda vez:

- Vamos! Andar, andar!

- Estou à espera do meu dinheiro, - explicou Crainquebille.

- Eu não lhe estou dizendo que espero pelo seu dinheiro. Digo-lhe que se ponha a andar, -
replicou com firmeza o agente.

Entrementes, na loja, experimentava a mulherzinha uns sapatinhos azuis num menino de


dezoito meses, cuja mãe estava com pressa. E sobre o balcão repousavam as cabeças verdes dos
alhos-porros.

Nesse meio século que ele vivera a impelir pelas ruas o seu carrinho, aprendera
Crainquebille a obedecer aos representantes da autoridade. Mas, desta vez, encontrava-se em
situação especial, isto é, entre um dever e um direito. Como, porém, carecia de espírito jurídico,
não compreendeu que o gozo de um direito individual não o eximia do cumprimento de um
dever social. Considerando precípuo o seu direito de receber os quatorze soldos, que lhe eram
devidos, deu pouca importância ao dever que lhe impunham de impelir a carrocinha e ir mais
adiante, sempre mais para diante. Permaneceu, pois, onde estava.

Pela terceira vez, o agente 64, tranquilo e sem cólera, ordenou-lhe que caminhasse. Ao
contrário do brigadeiro Montaciel, que costuma ameaça continuamente sem jamais castigar, o
agente 64 é sóbrio em advertir e pródigo em autuar. Está no seu feitio. Se bem que um tanto
sonso, é excelente funcionário e leal soldado: coragem de leão e meiguice de criança. Só conhece
as ordens que lhe são transmitidas.

- Não ouviu o que lhe disse? Não lhe ordenei que caminhasse?

Para continuar onde estava tinha Crainquebille, a seus olhos, uma razão assaz poderosa, que
lhe pareceu suficiente. E ele expôs simplesmente e sem artifícios:
- E esta! Pois já não lhe disse que estou à espera do meu dinheiro? O agente 64 contentou-se
em responder:

- Quer que eu lhe sapeque uma multa? Quer? Se quer, é só dizer. Ao ouvir essas palavras,
deu Crainquebille lentamente de ombros, e, encarando dolorosamente no 64, ergueu em seguida
o olhar para o céu. E esse olhar dizia assim:

“Ó Deus do céu! Serei então um contemptor das leis? Rir-me-ei por acaso dos decretos e
regulamentos que regem o meu estado ambulatório? Às cinco da manhã, já estava no Mercado.
Desde as sete horas que queimo as mãos nestes varais, a gritar: Olha a couve, nabos e cenouras!
Tenho sessenta anos feitos. Estou cansado. E tu ainda me perguntas se arvoro o pendão negro da
rebeldia! Tu escarneces de mim, e esse teu escárnio é sobremodo cruel!”

Ou porque lhe houvesse escapado a expressão desse olhar; ou porque não viesse nele uma
escusa à desobediência, o agente perguntou em voz rude e breve, se Crainquebille o havia
compreendido.

Ora, justamente nesse conflito, era extremo o acúmulo de veículos na rua Montemartre.
Fiacres, carroças, tílburis, ônibus, caminhões, premidos uns contra os outros, pareciam
indissoluvelmente ligados, engrenados. E sobreessa fremente imobilidade erguiam-se gritos e
blasfêmias. Os cocheiros de fiacre trocavam de longe, e lentamente, com os caixeiros de açougue,
injúrias heroicas, e os condutores de ônibus, considerando Crainquebille a causa do atravanco,
chamavam-lhe vagabundo.

Entretanto, no passeio, estacionavam curiosos, que acompanhavam atentos a altercação. E o


64, vendo-se observado por toda aquela gente, já não pensou senão em dar mostra de sua
autoridade.

- Está bem, - disse ele.

E sacou do bolso um imundo calepino e um cotozinho de lápis.

Crainquebille acompanhava o próprio pensamento, obedecendo a uma força interior. Aliás,


já agora, era-lhe impossível avançar ou recuar: uma das rodas da sua carrocinha se perdera
desgraçadamente na roda de uma carroça de leite.

E o mísero, arrancado os cabelos por debaixo do barrete, exclamava:

- Mas já não lhe disse que estou à espera do meu dinheiro! Raios me partam! Vida apertada!
Macacos me mordam!
Com estas frases, que aliás exprimiam menos revolta que desespero, deu-se por insultado o
agente 64. E como, para ele, todo insulto revestia necessariamente a forma tradicional, regular,
consagrada, ritual e, por assim dizer, litúrgica de “Mort aux vaches!”, foi sob essa forma que ele
recolheu e concretizou nos ouvidos as palavras do delinquente.

- Ah! Você disse “Mort aux vaches!” Pois está preso! Acompanhe-me.

Crainquebille, no auge do estupor e da aflição, fitava os seus grandes olhos, queimados do


sol no agente 64, e com a voz estragunlada, que lhe saía, a um tempo, de cima da cabeça e
debaixo dos calcanhares, exclamava, de braços cruzados sobre a blusa azul:

- Eu disse: “Mort aux vaches!”? Eu?... Oh!

A prisão foi acolhida com gargalhadas pelos garotos e empregados do comércio. Satisfaziam
o gosto que tem todas as multidões humanas pelos espetáculos ignóbeis e violentos. Mas, abrindo
passagem através do círculo de populares, um velho aspecto melancólico, vestido de preto, e de
cartola, aproximou-se do agente e disse-lhe com brandura, mas firme e em voz baixa:

- O senhor está enganado. Este homem não o insultou.

- Meta-se com a sua vida! – replicou o 64, sem proferir ameaças, pois falava a um cidadão
bem trajado.

Mas, como o velho insistisse, muito calmo e tenaz, intimou-o o agente a que se explicasse
com o comissário.

Entretanto, exclamava Crainquebille:

- Então eu eu disse “Mort aux vaches!” Hein! Oh!

Pronunciava, admirado, estas palavras, quando a senhora Bayard, mulher do sapateiro,


aproximou-se dele, trazendo na mãos os quatorze soldos. Mas já o 64 agarrava-o pela gola, e a
senhora Baynard, tendo lá de si consigo que nada se deve a quem é conduzido preso ao
Comissariado, pôs os quatorze soldos no bolso do avental.

Vendo, de súbito, sua carrocinha sequestrada, perdida a liberdade, um abismo a seus pés e
extinto o sol, murmurou Crainquebille:

- Não faltava mais nada!

Ao comissário declarou o velho que, interrompido em seu caminho por um atravanco de


carruagens, fora testemunha de cena com o agente, e afirma que este, que não havia sido
insultado, se enganara redondamente prendendo Crainquebille. Declinou, em seguida, seu nome
e suas qualidades: Dr. David Matthieu, médico-chefe do hospital Ambrosio-Paré, oficial de legião
de Honra. Noutros tempos, tal testemunho teria suficientemente esclarecido o comissário. Mas,
agora, em França, os sábios são suspeitos.

Crainquebille, cuja prisão fora mantida, passou a noite no xadrez, sendo, pela manhã,
transportado no carro celular para a Detenção.

A prisão não lhe pareceu nem dolorosa nem humilhante. Afigurou-se-lhe necessária. O que
o impressionou à entrada, foi o asseio das paredes e dos ladrilhos.

- Como lugar limpo, é o que se pode dizer um lugar limpo – disse ele. Sim, senhor! Podia-se
até comer no chão.

Uma vez só, quis puxar para si o banco, mas verificou que este se achava soldado na parede.

- Que ideia extravagante! – exclamou, exprimindo em voz alta sua surpresa. – Eis aí uma coisa
que, decerto, eu nunca teria inventado.

Tendo-se assentado, começou a girar os polegares, continuando no mesmo estado de


espanto. Abatiam-no o silêncio e a solidão. Aborrecia-se, tomando-se de cuidados pela sua
carrocinha sequestrada, toda cheia ainda de couves, cenouras, erva-doce, aipo, taraxaco.

- Onde, diabo, terão enfurnado a minha carrocinha – Perguntava a si mesmo, aflito.

No terceiro dia recebeu a visita do advogado Lemerle, um dos mais jovens membros do foro
criminal de Paris, presidente de uma das secções da “Liga da Pátria Francesa”.

Tentou Crainquebille narrar-lhe o seu caso, o que lhe não era fácil, porquanto não tinha o
hábito de palavra. Todavia, se o tivessem ajudado, talvez houvesse conseguido dar conta do
recado. Mas, o advogado sacudia a cabeça como incrédulo a tudo o que o cliente lhe dizia e,
folheando uns papéis, murmurava:

- Hum, hum! Não vejo nada disso nos autos...

Em seguida, já um tanto fatigado, disse, cofiando o bigode loiro:

- Em seu próprio interesse, seria preferível confessar tudo. Quer-me parece que esse seu
sistema de negativas absolutas só lhe pode ser prejudicial.

Desde então, teria Crainquebille confessado tudo se soubesse o que confessar.

III
O presidente Bourriche consagrou seis longos minutos ao interrogatório de Crainquebille.Esse
interrogatório teria trazido mais luz ao processo se o acusado houvesse respondido às perguntas
que lhe eram feitas. Mas Crainquebille não estava habituado às discussões, e ali, naquele local e
em semelhante companhia, tapavam-lhe a boca o respeito e o terror. Assim, conservando-se
calado, respondia por ele o próprio presidente.

E as respostas eram tremendas.

- Enfim, - concluiu o presidente Bourriche – Confessa ter dito: “Mort aux vaches!”.

- Eu disse: “Mort aux vaches!” porque o senhor agente disse: “Mort aux vaches!” Então eu
disse: “Mort aux vaches!”.

Queria ele dizer que, admirado por ver que lhe faziam a mais imprevista das imputações,
repetira, assombrado, as estranhas palavras que, absolutamente, não pronunciara. Dissera: “Mort
aux vaches!” como se houvessem dito: “Eu!” Pois julga-me você capaz de pronunciar semelhante
insulto?

Assim, porém, não o compreendeu o presidente Bourriche.

- Diz então que foi o agente que primeiro pronunciou a frase: “Mort aux vaches!”?

Crainquebille renunciou a explicar-se. Parecia-lhe demasiado difícil.

- Não insiste. Faz muito bem – concluiu o presidente.

E ordenou que fossem pregoadas as testemunhas.

O agente 64, de nome Sebastião Matra, juro dizer a verdade, nada mais que a verdade. E, em
seguida, depôs nesses termos:

- Estando de serviço, no dia 20 de outubro, ao meio-dia, na rua Montmarte, vi um indivíduo


que me pareceu ser vendedor ambulante, o qual, indevidamente, havia parado sua carrocinha em
frente ao número 328, ocasionando assim a interrupção do tráfego. Intimei-o por três vezes que
se pusesse a andar, ordem a que ele recusou obedecer. E advertindo-o de que o autuaria, replicou
aos gritos: “Mort aux vaches!”, palavras que me pareceram injuriosas.

Este depoimento, firme e ponderado, foi ouvido com evidente benevolência pelo Tribunal.

Arrolada a defesa, como testemunhas, a senhora Bayard, mulher do sapateiro, e o Dr. David
Mathieu, médico-chefe do Hospital Ambrosio-Paré, oficial da legião de Honra. A senhora
Bayard nada vira nem ouvira. O Dr. Mathieu declarou que se achava entre a multidão reunida
em redor do agente, o qual ordenava ao quitandeiro se pusesse a andar. Seu depoimento deu
causa a um acidente.

- Fui testemunha da cena – disse o médico. – Notei que o agente se enganara: ele não havia
sido insultado. Aproximei-me e observei-lho. Manteve o agente a prisão, convidando-me a
acompanhá-lo ao Comissariado, o que fiz, reiterando perante o comissário a minha declaração.

- Pode-se sentar-se – disse o presidente – Porteiro, faça entrar novamente a testemunha


Matra.

- Matra, quando efetuou a prisão do acusado, não lhe observou o Dr. Mathieu que você se
havia enganado?

- Isto é, senhor presidente, ele me insultou.

- Disse: “Mort aux vaches!”

Houve entre os assistentes um rumor seguido de risadas.

- Pode retirar-se – deu-se pressa em dizer o presidente.

Em seguida fez advertir o auditório que, se se reproduzissem semelhantes manifestações


indecentes, mandaria evacuar a sala. Entretanto, o advogado da defesa agitava triunfalmente as
mangas da beca, e julgavam todos, nesse momento, seria absolvido Crainquebille.

Tendo-se restabelecido a calma, ergue-se o advogado Lemerle, que começou seu discurso
pelo elogio dos agentes da Prefeitura de Polícia, “esses modestos servidores da sociedade, os
quais, por um salário irrisório, se esfalfam e afrontam incessantes perigos, praticando o heroísmo
quotidiano. São antigos soldados. “Soldados”, esta palavra diz tudo...”

E Lemerle passou, sem esforço, a considerações muito elevadas acerca das virtudes militares.
Era daqueles, disse, “que não permitem se toque no Exército, nesse Exército nacional, a que
tinha o orgulho de pertencer”

O presidente inclinou a cabeça.

Lemerle era, de fato, tenente de reserva. E era também candidato nacionalista da freguesia de
Vieilles-Haudriettes.

- Certo, não desconheço – prosseguiu ele – os serviços modestos mas preciosos que prestam
diariamente os guardas policiais à denodada população de Paris. Nem eu teria aceitado, senhores,
o apresentar-vos a defesa de Crainquebille se visse nele o insultador de um antigo soldado. É
acusado o meu constituinte de haver dito: “Mort aux vaches!” O sentido desta frase não oferece
dúvidas. Se folheardes o Dicionário da gíria, lá encontrareis: “Varchard”, preguiçoso, vadio; que
se deita preguiçosamente, como as vacas, em vez de trabalhar. – “Vache”, que se vende á polícia;
espião. “Mort aux vaches!” diz-se em certa roda. Mas toda a questão se resume
nisto: como o teria pronunciado Crainquebille? E te-lo-á mesmo pronunciado? Permitam-me,
senhores, que eu duvide. Eu não atribuo, entretanto, ao agente Matra nenhum mau pensamento.
Ele, porém, executa – como dissemos – uma penosa tarefa. Sente-se, às vezes, fatigado, exausto,
estafado. Nestas condições pode ter sido vítima de uma espécie de alucinação auditiva. E quando
ele nos vem dizer, senhores, que o Dr. David Mathieu, oficial da legião de Honra, médico-chefe
do Hospital Ambrosio-Paré, m príncipe da ciência e um perfeito cavalheiro, gritou “Mort aux
vaches!” somos, em verdade, levados a reconhecer que Matra é vítima da doença de obsessão e,
se o termo não é assaz forte, do delírio de perseguição.

“E então, ainda mesmo que Crainquebille houvesse gritado: “Mort aux vaches!”, restaria
saber se esta expressão tem, na boca do meu cliente, o caráter de um delito. Crainquebille, filho
natural de uma quitandeira, devassa e bêbada, nasceu alcoólico. Aqui o tendes embrutecido por
sessenta anos de miséria. Senhores, haveis de reconhecer que ele é irresponsável.”

Sentou-se Lemerle, e o presidente Bourriche leu, entrementes, a sentença que condenava


Jerônimo Crainquebille a quinze dias de prisão e cinquenta francos de multa. O Tribunal baseava
sua convicção no testemunho do agente Matra.

Conduzindo pelos sombrios e extensos corredores do Foro, experimentava Crainquebille


uma imensa necessidade de simpatia. Voltando-se para o soldado que o acompanhava, chamou-o
por três vezes:

- Seu guarda... seu guarda... Ah! Seu guarda!

E suspirou:

- Se há quinze dias podia alguém dizer-me que me aconteceria o que me está acontecendo!

E, a seguir, fez esta reflexão:

- Esses senhores falam muito depressa. Falam bem, mas muito depressa. A gente não se
pode explicar com eles... Não lhe parece, seu guarda, que eles falam muito depressa?

Mas o guarda caminhava sem responder nem voltar a cabeça.

- Por que não responde? – perguntou-lhe Crainquebille.

E como o guarda continuasse calado, acrescentou amargamente Crainquebille.


- Fala-se até mesmo aos cães. Por que não fala você comigo? Não abre nunca a boca. Tem
medo que feda?

IV

Após a leitura da sentença, quando já o escrivão passava a se ocupar de outro processo,


retiraram-se da audiência alguns curiosos e dois ou três advogados. Os que saíam não faziam
absolutamente reflexões sobre o caso Crainquebille, que pouco os havia interessado, e no qual já
não pensavam.

Somente João Lermite, gravador e água-forte, que viera casualmente ao Foro, meditava acerca
do que acabava de presenciar e ouvir.

Passando o braço pelas costas do causídico José Aubarrée, disse ele:

- “O que, sobre tudo, se deve louvar no presidente Bourriche é o ter sabido defender-se das
vãs curiosidade do espírito e preservar-se desse orgulho intelectual que tudo quer investigar.
Opondo um ao outro esses dois depoimentos contraditórios – o do agente Matra e o do Dr.
David Mathieu – ter-se-ia o juiz internado numa estrada, onde somente encontramos a dúvida e a
incerteza. O método que consiste em examinar os fatos consoantes as regras da crítica, é
inconciliável com a boa administração da justiça. Se o magistrado cometesse a imprudência de
seguir este método, seus arestos dependeriam de sua sagacidade pessoal, que às mais das vezes é
quase nenhuma, e da imperfeição humana, que é constante. Que autoridade então seria essa?
Não se pode negar que o método histórico é inteiramente impróprio a lhe ministrar as certezas
de que ele necessita. Basta recordar o caso de Walter Raleigh. Um dia que Walter Raleigh, preso
na torre de Londres, trabalhava, como de costume, na segunda parte da sua História do Mundo,
houve um conflito por debaixo de sua janela. Foi ver as pessoas que altercavam, e, ao retomar o
trabalho, supôs tê-las observado bem. Mas, no dia seguinte, tendo falado dessa contenda a um de
seus amigos, que a ela assistira, viu-se contraditado em todos os pontos por esse amigo. Refletindo
então na dificuldade de conhecer-se a verdade dos fatos distante, quando ele se havia enganado
sobre o que se passara debaixo de suas vistas, lançou ao fogo o manuscrito de sua história.

“Se os juízes tivessem os mesmos escrúpulos de sir Walter Releigh, lançariam ao fogo todos
os processos. Não lhes assiste, porém, esse direito. Seria , da parte deles, uma denegação da
justiça, um crime. Cumpre renunciar ao saber, mas não ao julgar. Os que desejam que as
sentenças dos tribunais sejam baseadas na pesquisa metódica dos fatos, são perigosos sofistas e
pérfidos inimigos da justiça civil e da justiça militar. O presidente Bourriche tem o espírito
demasiado jurídico para fazer depender suas sentenças da razão e da ciência, cujas conclusões
estão sujeitas a eternas controvérsias. Ele as fundamenta sobre dogmas, firmando-as na tradição,
de sorte que seus julgados igualam em autoridade os mandamentos da Igreja. Suas sentenças são
canônicas, quero dizer, ele as formula de acordo com alguns cânones sagrados. Veja, por
exemplo, que ele classifica os depoimentos, não consoante os caracteres incertos e ilusórios da
verossimilhança e da verdade humana, mas segundo os caracteres intrínsecos, permanente e
manifestos. Ele os pesa com o peso das armas. Há nada mais simples e mais sábio, a um tempo?
Tem por irrefutável o depoimento de um policial, abstraindo-se-lhe a humanidade, ideado
metafisicamente como um número de matrícula e segundo as categorias da polícia ideal. Não que
Matra (Sebastião), natural de Cinto-Monte (Córsega) lhe pareça incapaz de errar. Nunca lhe
passou pela ideia fosse Sebastião Matra dotado de grande espírito de observação, nem que
aplicasse ao exame dos fatos um método exato e rigoroso. A bem dizer, ele não considera
Sebastião Matra, mas o agente 64 – O homem é falível, diz ele. Pedro e Paulo, podem enganar-
se. Descartes e Gassendi, Leibnitz e Newton, Bichat e Claudio Bernard enganaram-se. Nós todos
nos enganamos, e a todo momento. São inúmeros os motivos que nos induzem ao erro. As
percepções dos sentidos e os juízos do espírito são fonte de ilusão e causa de incerteza. É preciso
não se fiar a gente no testemunho de um só homem. Sebastião Matra, de Cinto-Monte, é falível.
Mas o agente 64, abstraindo-se-lhe a humanidade, não se engana. É uma entidade, e uma
entidade nada tem em si do que pertence aos homens e os comove, os corrompe, os ilude. É
pura, inalterável, sem mescla. Por isso, não hesitou o Tribunal em repelir o testemunho do Dr.
David Mathieu, que é apenas um homem, para admitir o do agente 64, que é a ideia pura e um
como raio de Deus descido à barra do Tribunal.

“Procedendo desse modo, assegura-se a si mesmo o presidente Bourriche uma espécie


de infalibidade, e a única a que pode pretender um juiz. Quando o homem que depõe está
armado de um sabre, é ao sabe que se cumpre ouvir e não ao homem. O homem e desprezível, e
pode não ter razão. O sabre não o é, e tem sempre razão. O presidente Bourriche penetrou
profundamente no espírito das leis. A sociedade baseia-se na força, e a força deve ser respeitada
como o fundamento augusto das sociedades. A justiça é a administração da força. O presidente
Bourriche sabe que o agente 64 é uma parcela do Príncipe. O Príncipe reside em cada um dos
seus oficiais. Destruir a autoridade do agente 64, é enfraquecer o Estado. Comer uma das folhas
da alcachofra, é comer a alcachofra, diz Bossuet em sua linguagem sublime (POLÍTICA
EXTRAÍDA DA SAGRADA ESCRITURA, (PASSIM).

“Todas as espadas de um Estado estão voltadas no mesmo sentido. Opondo-as umas às


outras, subverte-se a república. Eis aí por que, de acordo com o testemunho do agente 64, foi o
acusado Crainqubille condenado muito justamente a quinze dias de prisão e cinquenta francos de
multa. Parece-me estar ouvindo o presidente Bourriche explicar ele mesmo as elevadas e belas
razões que lhe inspiraram a sentença. Como que o ouço dizer:
“ – Julguei este indivíduo em conformidade com o agente 64, porque o agente 64 é a
emanação da força pública. E para reconhecer a minha sabedoria basta imagineis que eu
procedesse de modo diverso: imediatamente haveis de notar que seria um absurdo. Porque, se eu
julgasse contra a força, as minhas sentenças não seriam executadas. Notai, senhores, que os juízes
só são obedecidos enquanto tem por si a força. Sem os guardas, o juiz não passaria de um pobre
sonhador. Eu me prejudicaria se não desse razão a um guarda. Demais, a isso se opõe o gênio das
leis. Desarmar os fortes e armar os fracos seria alterar a ordem social, que eu tenho por missão,
conservar. A justiça é a sanção das injustiças estabelecidas. Vimo-la jamais oposta aos
conquistadores, contrária aos usurpadores? Quando se ergue um poder ilegítimo basta que ela o
reconheça. Tudo consiste na forma, e entre o crime e a inocência existe apenas a espessura de
uma folha de papel selado. – A você, Crainquebille, compete ser o mais forte. Se, depois de ter
gritado: “Mort aux vaches!” você se tivesse feito aclamar imperador, ditador, presidente da
República, ou sequer conselheiro municipal, asseguro-lhe que eu o não teria condenado a quinze
dias de prisão e cinquenta francos de multa. Tê-lo-ia absolvido de toda e qualquer pena. Pode ter
certeza disto.

“Sem dúvida, assim teria falado o presidente Bourriche, porquanto ele é dono de espírito
jurídico e não ignora o que um magistrado deve à sociedade, cujos princípios defende com
ordem e regularidade. A justiça é social. Só os maus espíritos é que a desejam humana sensível.
Ela é administrada consoante regras fixas, e não de acordo com os arrepios da carne e os fulgores
da inteligência. Sobretudo, não lhe exijas que seja justa; não é mister que o seja, por isso mesmo
que é justiça. E dir-vos-ei até que a ideia de uma justiça justa só pode germinar na cabeça de um
anarquista. O presidente Magnaud profere, é verdade, sentenças imparciais. Mas cassam-lhas, o
que é justo.

“O verdadeiro juiz pesa os depoimentos com o peso das armas. Acabamos de comprová-lo
no processo Crainquebille, como em outras causas mais célebres.”

Assim falou João Lermite, atravessando de uma à outra extremidade a sala dos Passos
Perdidos.

Mestre José Aubarrée, que bem conhecia o Palácio da Justiça, replicou-lhe, coçando a ponta
do nariz:

- Quer que lhe diga a minha opinião? Eu não creio que o presidente Bourriche se haja
guindado a tão elevada metafísica. Em meu sentir, admitindo o depoimento do agente 64, como
expressão da verdade, fez ele simplesmente o que sempre se vira praticar. É na imitação que urge
procurar a razão da maior parte das ações humanas. Procedendo de acordo com os costumes,
passaremos sempre por pessoas de bem. Chamamos pessoas de bem àquelas que procedem
como os outros.

Reconduzido à prisão, sentou-se Crainquebille, tomado de pasmo e admiração, no tamborete


soldado à parede. Nem ele mesmo sabia que os juízes se haviam enganado. O Tribunal, sob a
majestade das formas, ocultava-lhe suas fraquezas íntimas. Ele não podia acreditar que tivesse
razão contra os magistrados, cujas razões não havia compreendido; era-lhe impossível conceber
claudicasse alguma coisa em tão bela cerimônia. Porque, não indo nem à missa nem ao Eliseu,
nunca em dias de sua vira coisa mais bela que um julgamento na polícia correcional. Bem sabia
ele que não havia gritado: “Mort aux vaches!” Mas ver-se condenado a quinze dias de prisão por
ter soltado esse grito, era pra ele um augusto mistério, um desses artigos de fé, que os crentes
aceitam sem os compreender, uma revelação obscura, radiante, adorável, terrível.

Via-se transportado a um mundo sobrenatural. O seu julgamento era o seu apocalipse.

Se não tinha uma Idea clara do delito, não tinha tampouco uma ideia nítida da pena. Sua
condenação, parecera-lhe uma coisa solene, ritual, superior, uma coisa deslumbrante, que não se
compreende, não se discute, e da qual não nos podemos louvar nem queixar. Se nesse instante
ele visse o presidente Bourriche, de auréola na fronte e com asas, descer do teto entreaberto, não
se teria surpreendido com a nova manifestação da glória judiciária. Diria apenas: Eis aí o meu
caso que continua!”

No dia seguinte veio visitá-lo o advogado:

- Então, meu amigo, como vai? Podia ser pior, hein? Coragem! Duas semanas passam
depressa. Não temos muito de que nos queixar.

Decerto! A falar verdade, esses senhores foram muito delicados. Muito polidos. Não houve
nenhum palavrão. Mal acredito. E o guarda havia posto luvas brancas. O senhor reparou?

- Bem pensado, você fez bem em confessar.

- É possível.

- Tenho uma boa notícia a lhe dar, Crainquebille. Uma pessoa caridosa, que eu fiz se
interessasse por você, deu-me cinquenta francos para você, para a multa que foi condenado.

- E quando me dará o senhor os cinquenta francos?


- Não se incomode. Eu os entregarei ao escrivão.

- Está bem. Fico muito agradecido a essa pessoa. – E, pensativo, murmurou:

- Não é comum o que se está passando comigo.

- Não, Crainquebille, não exagere. O seu caso não é único. Longe disso!

- E o senhor pode-me dizer onde terão enfurnado a minha carrocinha?

VI

Saído da prisão, ia Crainquebille puxando sua carriola pela rua Montmartre, a gritar: “Ola a
couve, nabos, cenouras!” Não o envaidecia nem envergonhava a sua aventura, da qual não
conservava molesta recordação. Ficara-lhe apenas no espírito uma como confusa lembrança de
teatro, de viagem, e de sonho. Sentia-se, sobretudo, satisfeito de patinhar na lama, pelo
calçamento da cidade, e ver por sobre a cabeça o céu todo água, e sujo como o rio, o bom céu da
sua cidade. Detinha-se em todas as esquinas, para “matar o bicho”; em seguida, livre e alegre,
cuspia nas mãos, a lubrificar as palmas calosas, e, empunhando os varais, puxava pela carrocinha,
enquanto diante dele os pardais, como ele madrugadores e pobres, “cavavam” a vida nas pedras
das calçadas, erguendo o voo aos bandos, ao ouvirem o pregão familiar: “Olha a couve, nabos,
cenouras!”

Uma velha criada, que se aproximava, dizia-lhe, apalpando os aipos:

- Que foi que lhe aconteceu, tio Crainquebille? Há bem três semanas que não ponho a
vista em cima de você! Esteve doente? Está um pouco pálido.

- Eu lhe conto, senhora Mailloche. Estive a gastar minhas rendas.

Nada mudara em sua vida, a não ser que agora frequente mais amiúde a taverna, e isso
porque lhe parece que todos os dias são de festa, e ele travou conhecimento com pessoas
caridosas. Regressa um tanto alegre à sua trapeira, onde, estendido na sua enxerga, se cobre com
os sacos que lhe emprestou o negociante de castanhas, da esquina, os quais lhe servem de
cobertor. “A prisão, pensa, “não se pode dizer que seja ruim. Tem-se ali tudo. Todavia, sempre é
melhor a gente estar em casa”.

Mas foi de pouca duração o seu contentamento. Logo percebeu que as antigas freguesas
lhe torciam a cara.
- Lindos aipos, senhora Cointreau!

- Não preciso de nada.

- Como não precisa de nada? A senhora, decerto, não vive de ar.

E a senhora Cointreau, sem lhe dar resposta, tornava a entrar com arrogância na grande
padaria de que era patroa.

As lojistas e as porteiras, outrora tão assíduas ao redor da carrocinha verdejante e florida,


voltavam-lhe agora as costas. Chegando em frente à sapateira do “Anjo da Guarda”, ponto onde
haviam começado suas aventuras judiciárias, chamou Crainquebille:

- Senhora Bayard! Senhora Bayard! A senhora ficou a dever-me quinze soldos da vez
passada.

Mas a senhora Bayard que se achava sentada ao balcão, nem se dignou a voltar a cabeça.

Toda a rua Montmartre sabia que o tio Crainquebille acabava de sair da prisão e, por
isso, a rua Montmartre já o não conhecia. O rumor de sua condenação chegara até o arrebalde e
à esquina tumultuosa da rua Richer. Aí, por volta do meio diaa, viu ele dona Laura, sua boa e fiel
cliente, a qual, inclinada sobre o carrinho do pequeno Martinho, apalpava um grande pé de
couve. Os cabelos brilhavam-lhe ao sol como bastos fios de oiro longamente retorcidos. E o
pequeno Martinho, um joão-ninguém, um borra-botas, jurava-lhes com a mão sobre o peito, que
não havia verduras melhores que as dele. Ao dar com esse espetáculo, dilacerou-se o coração de
Crainquebille, o qual, levando a carrocinha de encontro à do pequeno Martinho, disse a dona
Laura em voz queixosa e entrecortada:

- Não lhe ficam bem essas infidelidades.

Dona Laura, como ela mesmo o reconhecia, não era nenhuma duquesa. Não fora na alta
roda que ela adquirira a ideia do que seria o carro dos presos e a Detenção. Mas pode-se ser
honesto em todas as classes, não é verdade? Tem cada qual seu amor-próprio, e ninguém gosta
de ter negócios com um indivíduo que sai da prisão. Por isso, respondeu a Crainquebille,
simulando náuseas. Sentindo a afronta, gritou-lhe o velho quitandeiro ambulante:

- Vaca!

Dona Laura deixou cair o pé de couve e exclamou:

- Saia daqui, seu condenado! Acaba de sair do xadrez, e vem insultar a gente!
Crainquebille, se estivesse no ânimo sereno, nunca jamais censuraria a dona Laura sua
condição. Ele bem sabia que na vida não se faz o que se quer, nem se escolhe a profissão, e que
em toda parte há gente de bem. Tinha por hábito ignorar prudentemente o que faziam em casa as
suas freguesas, e não desprezava ninguém. Entretanto, nesse dia, chamou por três vezes a dona
Laura, vaca, bruaca e galinha.

Formou-se logo um círculo de curiosos à roda de Crainquebille e dona Laura, os quais


trocaram ainda várias injúrias tão solenes quanto às primeiras, e teriam desafiado todo o rol dos
epítetos se a presença de um polícia, que acorrera, não os tivesse, com seu silêncio e imobilidade
tornado logo mudos e imóveis como ele.

Separaram-se. Mas essa cena acabou de perder Crainquebille no conceito do arrebalde


Montmartre e da rua Richer.

VII

Ia o pobre velho murmurando com seus botões:

- Sim, é uma galinha. Nem pode haver outra que seja mais galinha.

Mas, no íntimo, não era por isso que ele a injuriava. Sim, Crainquebille não a desprezava
por ela ser o que era. Estimava-a até por isso, sabendo-a econômica e cuidadosa. Outrora,
gostavam de conversar os dois: a ambos alimentavam o mesmo projeto de cultivar um jardinzinho
e criar frangos. Era uma boa freguesa. Mas, ao vê-la comprar couves ao pequeno Martinho – um
borra-botas, um João-ninguém – sentira Crainquebille uma pancada no estômago; e ao vê-la então
fazer-lhe esgares de desprezo, subira-lhe a mostarda ao nariz. Ah! Isso não!

Então, por que o haviam posto à sombra durante quinze dias, se já ele não servia sequer
para vender alhos-bravos? Seria justo? Seria direito fazer morrer de fome um pobre homem só
porque ele se vira em desacordo com um polícia? Se já não podia vender os seus legumes, só lhe
restava arrebentar como um cão.

Como o vinho mal fabricado, Crainquebille ia-se tornando azedo. Depois de ter o
bate-boca com dona Laura, tinha-os agora com toda gente. Por dá cá aquela palha punhas os
podres das freguesas na rua, e isso sem meias palavras. Sim, senhor! Sem meias palavra. Se se
demoravam a apalpar-lhe, mais que o necessário, os legumes, ele as tratava claramente por
regateiras, unhas de fome. Igualmente no botequim, descompunha os camaradas. O vendedor
de castanhas, seu amigo, que já o não reconhecia, declarava que esse maldito Crainquebille era
um verdadeiro porco-espinho. Sim, era inegável: ele ia se tornando inconveniente, intratável,
desbocado, insolente. É que, parecendo-lhe imperfeita a sociedade, era-lhe mais difícil que a um
professor da escola das ciências morais e políticas o exprimir as próprias ideias acerca dos vícios
do sistema e das reformas necessárias, e por isso os seus pensamentos não se desenrolavam em
seu cérebro com ordem e medida.

Tornava-o injusto a desgraça. Desforrava-se com os que não lhe queriam mal, e, por
vezes, com os mais francos que ele. De uma feita, deu um tabefe no Afonso, o filho do dono do
botequim, só porque o rapaz lhe perguntara se era bom o xadrez. Esbofeteou-o, dizendo-lhe:

- Patife! Teu pai é que devia estar na cadeia, em vez de enriquecer a nos vender veneno.

Ato e palavras que lhe não faziam honra; por quanto – como justamente lho admoestou
o vendedor de castanhas – não se devia bater numa criança, nem lhe reprochar o pai, que não
fora por ela escolhido.

Deu de beber. Quanto menos dinheiro ganhava, tanto mais aguardente bebia. Sóbrio e
econômico, outrora, ele mesmo se admirava agora da mudança:

- Eu nunca fui beberrão. Até parece que a gente vai perdendo o juízo à proporção que
envelhece.

Às vezes, julgava severamente o seu mau comportamento e a sua indolência:

- Meu velho Crainquebille, já não prestas senão para levar o copo à boca.

Outras vezes, iludia-se a si mesmo, buscando persuadir-se que bebia por necessidade.

Isto faz bem de tempos a tempos. É preciso beber um trago para recuperar as forças
e refrescar. Tenho, em verdade, alguma coisa a me queimar as entranhas. E a bebida é ainda o
único refresco.

Não raro, acontecia-lhe perder o leilão matinal, vendo-se então obrigado a abastecer-
se de mercadorias que lhe eram vendidas a crédito. De uma feita, sentindo moles as pernas e sem
vontade para o trabalho, deixou a carrocinha no depósito e passou todo o santo dia à roda do
balcão de dona Rosa, a tripeira, e diante todas as tendinhas do mercado. A noite, sentado num
cesto, entrou a meditar. Recordou-se de suas forças primitivas e seus antigos trabalhos, suas
longas fadigas e seus lucros felizes, seus dias inúmeros, iguais e serenos; os passeios, à noite, pelo
pátio do Mercado, à espera do leilão; os legumes carregados às braçadas e disposto com arte no
carrinho; o café da tia Theodora engolido quentinho, de um trago, às pressas; as mãos aferradas
solidamente aos varais; o pregão, vigoroso como o canto do galo, ressoando no ar da manhã; a
caminhada pelas ruas populosas; toda a sua vida inocente e rude de cavalo humano, que, durante
meio século, levara, no seu balcão ambulante, aos citadinos consumidos de vigílias e cuidados, a
fresca messe das hortas e pomares. E, sacudindo a cabeça, suspirou:

- Não! Já não tenho a antiga coragem! Não posso mais. Tantas vezes vai o cântaro à
fonte até que se quebra. Demais, depois do meu caso com a justiça, o meu gênio mudou. Já não
sou o mesmo homem.

Enfim, sentia-se desmoralizado. Um homem nesse estado é um homem liquidado,


incapaz de tornar a erguer-se. Todos pisam em cima.

VIII

Chegou afinal a miséria, a negra miséria. O velho quitandeiro ambulante, que , de volta do
arrebalde de Montmartre, trazia outrora a bolsa abarrotada de peças de cinco francos, já não tinha
agora um pataco. Era inverno. Expulso do seu porão, dormia embaixo de carroças, numa
cocheira. Mas a chuva, tendo caído durante vinte e quatro dias, fez transbordar os bueiros e a
cocheira foi inundada.

Acordado em sua carrocinha, por cima das águas deletérias em companhia de aranhas,
ratos e gatos famélicos, Crainquebille meditava envolto pelas sombras. Não havendo ainda
comido nada nesse dia, e já não tendo para se cobrir os sacos do vendedor de castanhas,
recordava com saudades as duas semanas durante as quais o governo lhe havia dado o pão e as
cobertas. Invejou a sorte dos presos, que não curtiam nem fome nem frio. E então, veio-lhe uma
ideia.

- Mas se eu lhe conheço a tramoia, por que me não hei de servir dela?

Ergue-se, e ganhou a rua. Pouco passava das onze. O dia estava frio e escuro. Peneirava
uma molinha mais fria e mais penetrante que a chuva. Os raros transeuntes cosiam-se às paredes.

Crainquebille, depois de ladear a igreja de Santo Eustháchio, meteu-se pela rua


Montmartre, a essa hora deserta, em cuja calçada, nos fundos da igreja, sob um bico de gás, estava
postado um polícia. Ao redor da chama, via-se cair esfarinhada uma chuvinha vermelha. O
agente, que parecia transido de frio, recebia-a em cheio no capuz; mas, ou porque preferisse a luz
ao escuro, ou porque estivesse cansado de caminha, permanecia ali, sob o combustor, dele
fazendo talvez um companheiro, um amigo. Na noite solitária, aquela chama trêmula era para ele
a única companheira. Dir-se-ia não ser inteiramente humana aquela imobilidade; o reflexo das
botas, na calçada molhada, que parecia um lago, prolongava-o para baixo, emprestado-lhe, de
longe, o aspecto de um monstro anfíbio, com a metade do corpo fora da água. De mais perto,
encapuzado e armado, tinha um ar monacal e militar. Os grosseiros traços do rosto, aumentados
ainda pela sombra do capuz, eram tranquilos e tristes. O soldado tinha uns bigodes espessos,
curtos e grisalhos. Era um velho policial, homem dos seus quarenta anos.

Crainquebille, aproximando-se dele, devagarinho, disse-lhe com voz hesitante e fraca:

- “Mort aux vaches!”

E aguardou o efeito da fórmula consagrada. Ela, porém, não produziu efeito algum. O
soldado continuou imóvel, mudo, de braços cruzados por baixo do cabeção. Os olhos
arregalados, a reluzirem no escuro, fitavam-se em Crainquebille com tristeza, desconfiança e
desprezo.

Crainquebille, pasmado, ainda com uns restos de resolução, balbuciou:

- “Mort aux vaches!” Estou-lhe dizendo “Mort aux vaches!”, ouviu?

Seguiu-se longo silêncio, durante o qual a chuva continuou a cair, fina e doirada,
enquanto ao redor reinava a sombra glacial.

- Não diga mais isso... Sim, não é coisa que se diga... Continue seu caminho.

- Por que não me prende? – perguntou Crainquebille.

O soldado sacudiu a cabeça dentro do capuz úmido:

- Se fossemos prender todos os bêbados, que dizem o que não se deve dizer, não
faríamos outra coisa... E de que serviria isso?

Crainquebille, abismado por esse desdém magnânimo, permaneceu longo tempo


estúpido e mudo, com os pés na água da sarjeta. Antes de partir, tentou, porém, explicar-se:

- Não foi para o ofender que eu disse: “Mort aux vaches!” Não foi por isto nem por
aquilo. Foi cá uma ideia.

Com austera mansidão, replicou o soldado:

- Seja por uma ideia, seja lá por que for, não deve repeti-lo, porque, quando um
homem cumpre o seu dever e come o pão que o diabo amassou, não o devem insultar com
palavras idiotas... Torno a dizer-lhe, continuo o seu caminho.

E Crainquebille, de cabeça baixa, bamboleando os braços desapareceu na sombra,


fustigado pela chuva...

Potrebbero piacerti anche