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RESUMO:
Este artigo procura refletir sobre a relação entre letramento e variação lingüística numa pesquisa etnográfica
analisada conforme os pressupostos teóricos das duas perspectivas. Os resultados indicaram que as variações
encontradas não interferiram na compreensão dos fatos cronologicamente informados, mas contribuíram para
uma melhor apreensão sobre a (re)construção de identidades.
ABSTRACT:
This article aims to reflect on the relation between literacy and linguistic variation in an ethnographical
research analyzed according to the theoretical presuppositions of the two perspectives. The results indicated that
the found variations didn’t intervene with the understanding of chronologically informed facts, but they
contributed for one better apprehension about the (re)construction of identities.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo discutir a construção de letramento e verificar a sua
relação com a variação lingüística. Para discorrermos sobre os eventos de letramento,
buscamos analisar o processo de construção identitária a partir dos depoimentos de D. Delícia,
uma senhora de 102 anos.
Sabemos que a construção de sentidos nos textos orais está, de certa forma, interligada a
mudanças que a língua possui com o passar dos anos. Por este motivo, optamos por analisar
até que ponto a variação lingüística, seja de ordem fonética, semântica ou lexical, pode
interferir na compreensão desses textos.
Conscientes desta interferência, apropriamo-nos da metodologia da pesquisa
sociolingüística de Tarallo (1986), respaldada em Labov (1984), que nos sugere a utilização
de entrevistas semi-direcionadas, guiadas por temas de uso corrente quais sejam: infância,
casamento e filhos, medos, histórias populares, habilidades, entre outras. Assim, foi possível
discorrer mais habilmente sobre a construção de identidades do povo da cidade de Custódia,
no interior sertanejo de Pernambuco e de seus arredores e conhecer um pouco da variação
lingüística existente na fala espontânea dos seus moradores.
1
Mestre em Lingüística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Professor de Língua Portuguesa e
Inglesa e Literatura no Centro de Ensino Superior de Arcoverde, em Pernambuco
conseqüências da ausência da escrita individualmente, mas sempre remetendo ao social mais
amplo.
Britto (2003, p. 51) argumenta que a opção por dar à palavra inglesa litteracy a tradução
de letramento se dá pelos sentidos adquiridos durantes as novas compreensões do alfabetismo
no período contemporâneo. Além de Britto (2003), Kato (1986, p. 11) trata do letramento,
apregoando que a fala é a fala pré-letramento; já a escrita é aquela que anseia representar a
fala da forma mais natural possível. Enquanto a escrita se torna quase autônoma da fala,
através de convenções rígidas, a fala resulta do letramento. Já Soares (2004, p. 18) o conceitua
como o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, ou seja, o estado ou
condição que um grupo social ou um indivíduo adquire como conseqüência de ter-se
apropriado da escrita.
No caso da variação, ao percebermos a sua existência, implica dizer que precisamos
reconhecer que a língua não é apenas um tipo de objeto abstrato de estudo. Assim, a variação
é uma propriedade inerente a qualquer língua e pode ser observada contemporaneamente,
manifestando-se como variedade dialetal ou sociolingüística, e também historicamente, com a
mudança lingüística. Os dois tipos de variação encontram-se profundamente imbricados,
sendo as variantes dialetais um caminho ao passado da língua ou uma manifestação de novas
transformações.
Labov, Weinreich & Herzog (2006) rompem com as fronteiras entre sincronia e
diacronia, ao identificarem a mudança como a face sincrônica da variação, de modo que as
evidências dessa variação sincrônica passam a contribuir favoravelmente para a compreensão
de mudanças ocorridas no passado. Por isso, considerando que mudanças se originam e
também são refletidas em variações, estudos de variação podem projetar tendências de
mudança. Porém, nenhuma distinção clara é feita entre variação e mudança. Muitos as
consideram com significado semelhante, visto que é a Teoria da Variação que explica o
processo da mudança lingüística em função de restrições lingüísticas ou extralingüísticas, que
atuam de maneira probabilística na variação da língua. Desta forma, na visão de Labov
(1994), é possível observar os ambientes favoráveis a uma variante ou outra, ou quais
contextos lingüísticos ou sociais são mais relevantes no fenômeno observado.
O conhecimento consciente de uma língua implica, portanto, reconhecer as variantes
normativas (de prestígio) e não-normativas (estigmatizadas), mudando ao longo do tempo o
modo como os falantes compreendem os mesmos fatos lingüísticos. O prestígio é associado à
língua usada por um grupo social da posição mais alta, e apenas membros de uma
determinada comunidade de fala o reconhecerão coletivamente como uma variedade
particular – o dialeto padrão – como sendo mais ‘correto’ que outros, enquanto o estigma é
reciprocamente associado a formas não-padrão, ou seja, não aceitas na sociedade. (COATES,
1998).
Uma variedade lingüística não-padrão pode funcionar como
indicador de classe, marcador ou como estereótipo. Segundo Labov
(1972), um indicador de classe é um traço que possui uma distribuição
regular no grupo social (étnico ou gerativo) que o apresenta. Isso implica
um uso basicamente uniforme em todos os contextos, mas que permite a
distinção entre grupos de falantes distintos. Já um marcador possui um
traço cuja presença motivada estilisticamente varia de grupo social para
grupo social. Os traços estereotípicos se referem mais facilmente aos
falantes cuja variedade lingüística ainda não é bem promovida. Tais traços
são repetidamente estigmatizados e, deste modo, costumam ser tratados
depreciativa ou ironicamente.
Dentre as variedades lingüísticas existentes, a língua padrão é quase sempre a
variedade escolhida para a escrita. Tal escolha, entretanto, não se baseia em critérios de
correção lingüística, mesmo porque tais critérios cientificamente não existem, mas sim por ser
a língua padrão a utilizada pelo grupo social dominante. Dessa forma, o prestígio que o grupo
social detém acaba sendo atribuído à sua linguagem, que passa a ser associada à escrita e a ser
considerada a norma padrão, por ser ensinada na escola, como conceitua Possenti (1997). Para
ele, o objetivo da escola é ensinar o dialeto padrão e destaca que qualquer outra hipótese é um
equívoco político e pedagógico. Da mesma forma, a estigmatização da linguagem popular
como “incorreta” é conseqüência do status inferior que os seus falantes ocupam na sociedade,
ou seja, a valoração lingüística está baseada numa valoração social (GNERRE, 1987).
Diante dessa concepção, a depreciação na fala ocasiona, muitas vezes, a produção de
formas ultracorretas, quando os falantes das variedades estigmatizadas não possuem
interlocutor pertencente à mesma variedade lingüística ou em momentos de comunicação não-
espontânea. Os estereótipos, por sua vez, acarretam ordinariamente uma mudança lingüística,
em que uma forma de prestígio da variedade lingüística prototípica é adotada.
Com base nos parâmetros teóricos acerca do letramento, podemos apresentar algumas
lembranças encontradas no depoimento de D. Delícia, conforme citado abaixo:
Minha vida era só pra trabalhar. Morava no mato. Eu morava num povoado
chamado Samambaia, distante daqui a 9 léguas. Criava muito gado, muita criação.
Levantava de madrugada, tirava o leite, fazia queijo, dava de mamar a cabrito, aí
quando terminava – vamos cuidar em almoço pra trabalhador... Fui criada assim
desse jeito, no mato.
Neste trecho, a depoente apresenta o nome da comunidade onde nasceu, como também
as origens e o fato de ser nativa e nunca ter saído de lá. Percebemos que ela dá pistas em sua
fala sobre o estilo de vida existente na maioria das famílias do início do século XX em
Pernambuco e o rigor dos pais para com seus filhos.
Os saberes construídos por D. Delícia e sua família, como suas atividades e atitudes
começam ser registrados e ganham uma forma de texto que começam a ser analisados a partir
de um olhar científico. Todo esse saber se constitui a partir de eventos de letramento. A
referida comunidade começa a contar a sua história. E a escrita é o meio utilizado para os
registros dos eventos de letramento que são sempre rememorados por D. Delícia e por sua
família (filha, neta e bisnetos) que também participam da pesquisa.
Segundo Bosi (1994, p. 39), as lembranças que são apresentadas durante a fala
compreendem um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento, pois fica sempre
algo que é contado nas conversas informais. Além disso, as mais ricas recordações afloram
freqüentemente depois da entrevista. Foi isso que obtivemos na entrevista com D. Delícia e
seus familiares. Até porque durante a velhice deveríamos estar ainda engajados em causas que
nos transcendem, que não envelhecem, e que dão significados a nossos gestos cotidianos.
Talvez seja esse o remédio contra os danos do tempo, reforça Bosi (op cit).
As narrações de D. Delícia nos dão a entender que ela vive tudo novamente, salvos
alguns flashes de esquecimento e dificuldades de audição, que a impediram de relatar o que
lhe vinha à cabeça.
Os relatos expostos neste trabalho refletem o passado e o papel da linguagem na
constituição da memória e da identidade dos sujeitos dos arredores de Custódia, cidade
pernambucana há cerca de 340 km da capital. D. Delícia e seus familiares, muitas vezes
intérpretes de algo não compreendido ou não ouvido, através da linguagem, auxiliam na
compreensão do processo de construção de letramento da referida comunidade.
Vale ressaltar que a memória se identifica com as pessoas, uma vez que a história e a
cultura do povo e as idéias que o cercam vão passando de geração a geração e só restam
residir na mente dos próprios sujeitos, construtores de sua história.
Sobre a escola, D. Delícia também relata outros eventos de letramento. O exemplo a
seguir mostra as dificuldades dela e de seus irmãos irem estudar por causa do ciúme de seu
pai.
O meu pai era um pouco ciumento. Depois que a gente crescemos, ele não deixava
a gente sair pra canto nenhum. Pra estudar a gente saía fugida. Aí então nós fomos
crescendo... eu fui estudando... Naquele tempo não existia professora estaduá, nem
municipá, nem nada... O pessoal era particular, os pai era quem pagava. Então aí,
botaram eu pra ensinar, eu ensinava particular. Era o meu trabalho.
Aí depois arranjaram uma fazenda com u’as moças que - num sabe – num
conheciam o afabeto – arranjaram uma fazenda pra eu ir ensinar, mas deixa que eu
só passei dois meses. Nesse tempo tinha o cangaceiro Jararaca, que nós num falemo
nele (...) Aí fiz lista pra lá e a professora que ensinou melhor foi eu.
Na fala acima, D. Delícia faz o apagamento da líquida lateral /l/ na palavra alfabeto,
fenômeno raro de ocorrência nesse contexto conforme pesquisa de Sá (2007). Para ele, em
sílabas pretônicas, a consoante /l/ após a vogal central /a/ tem uma tendência maior à
fricativação, como a própria entrevistada cita em:
Em sua resposta, verificamos a flutuação sintática da frase “eles num me leva”, quando
o verbo levar deveria ser pluralizado.
Verificamos também uma variação no plano semântico, com algumas expressões
arcaizadas como fazer lista, no sentido de seguir, trepudado no sentido de agitado.
Diante do exposto, delimitando a situação da língua portuguesa, podemos perceber
que há bem pouco tempo essa fala estigmatizada começou a se transformar, visto que, com a
abolição da escravatura, a influência da fala crioula afastou-se, alterando, assim, o
multilingüismo. Os genuínos povos rurais começaram também a ser afastados, interferindo
cada vez menos nos costumes e na organização das comunidades, cuja população
desenvolveu-se a partir de novos elementos. Os meios de comunicação começaram a surgir
por toda parte e o comércio se intensificou. A educação escolar, bastante restrita, passou a ser
mais procurada, o que demandaria a alteração do dialeto estereotipado junto à sociedade.
Diante do afastamento do homem do campo, o país passou por um processo de
urbanização, que coincidiu com o ciclo do ouro, em cuja época projetou-se a literatura
brasileira, com os poetas árcades, e sofreu o impacto de fuga de D. João VI ao bloqueio
napoleônico que o levou ao Rio de Janeiro, assim como mais de 15 mil novos moradores,
entre fidalgos, funcionários públicos, militares, eclesiásticos e seus empregados, que tinham
hábitos e valores culturais de uma capital européia. Por causa desse contato, formas mais
conservadoras da língua falada passaram a existir apenas em pequenos centros urbanos, como
podemos constatar nos dias atuais, principalmente na fala dos remanescentes mais velhos,
certamente sob influência da antiga instrução que tinham. Neutralizou-se grande parte da
influência afro-lingüística por conta do contato cada vez mais escasso com os brancos, que
repercute velozmente na mudança de hábitos.
Neste artigo que intencionamos inserir a variação lingüística nas práticas sociais
oriundas no processo de letramento, entendemos que ao adotar a ótica ideológica do
letramento, nas práticas de leitura e de escrita, podemos assumir uma outra dimensão social,
pois esses eventos identificados na vida da comunidade podem contribuir para a construção de
um cidadão consciente, capaz de (des) construir discursos de dominação, como o racismo, por
exemplo, o preconceito com o homem e mulher, jovem, criança e idoso da zona rural e outros
estereótipos. Isso foi exemplificado na pesquisa realizada com D. Delícia, ao mostrar, dentre
outras coisas, as dificuldades de sua infância, inclusive em relação à escola, por conta do rigor
familiar, típico da época.
No âmbito da variação, constatamos que as flutuações existentes na fala, sejam de
ordem fonética, sintática ou semântica, não interferiram na assimilação dos temas
apresentados à depoente conforme os modelos conversacionais labovianos. Conhecer bem o
objeto de estudo sociolingüístico (a língua falada), tentar descrever rigorosamente suas
propriedades, investigando os condicionamentos e as pressões sociais envolvidos e discutindo
as possíveis relações com a apropriação da escrita para daí oferecer contribuições válidas, não
vai ‘ mudar a realidade’, como já sabemos, mas pode ser uma forma honesta, embora não
muito fácil nem tampouco imediata, de contribuir para que ela seja melhor, pois “tais teorias
crescem vagarosamente: emergem da sujeira e das ruínas do cotidiano, nunca totalmente
livres de erros de mensuração e outras irregularidades comuns, tomam forma, crescem fortes e
confiáveis na medida em que mantêm relação com o cotidiano e enquanto são cultivadas por
aqueles que o compreendem. Sua beleza repousa, não em sua simplicidade ou em sua
simetria, mas na forte relação com a realidade” (LABOV, 1983).
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