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argumentativa hoppeana
Hans-Hermann Hoppe se propõe a demonstrar a validade da lei de propriedade
privada, isto é, da ética libertária, em seus livros “Uma Teoria do Socialismo e do
Capitalismo”, “Economics and Ethics of Private Property”, além de em seus artigos e
palestras. Segundo seu argumento, o reconhecimento mútuo da autopropriedade (o
direito de controle exclusivo sobre o próprio corpo) é uma condição praxeológica
necessária para a possibilidade da realização da atividade argumentativa. Dessa forma,
qualquer tentativa de argumentar em favor de qualquer tipo de agressão implicaria numa
contradição performativa (na contradição performativa, o conteúdo da asserção
afirmada contradiz alguma condição pressuposta para que essa asserção pudesse ser
afirmada), uma vez que a condição para se estar argumentando em favor da violação do
direito de propriedade é o próprio reconhecimento desse direito como válido. Seguem
abaixo alguns trechos do Hoppe sobre sua ideia.
Portanto, pode-se afirmar que toda vez que uma pessoa alega que
alguma afirmação pode ser justificada ela considera, pelo menos
implicitamente, a norma seguinte para ser justificada: “Ninguém tem o
direito de agredir o corpo de outra pessoa sem permissão e dessa
forma delimitar ou restringir o controle de outrem sobre o seu
próprio corpo”. Esta regra está contida no conceito de justificação
enquanto justificação argumentativa. Justificar significa justificar sem ter
que depender de coerção. [5]
No entanto, até agora só podemos concluir exatamente o que foi dito e nada mais:
que o reconhecimento de uma tal norma é condição necessária para a atividade
argumentativa. Disso não se segue, porém, que tal norma é, de fato, válida. Quero dizer,
verificar que é praxeologicamente necessário pressupor uma determinada norma como
válida (isto é, como correta, verdadeira, legítima, deontologicamente justa) para realizar
a ação argumentativa não é suficiente nem necessário para concluir que tal norma é, de
fato, válida.
Tenho total ciência de que não se pode argumentar contra a validade da norma
sem entrar numa contradição performativa, porém, tal contradição demonstra apenas
uma incompatibilidade entre o que está sendo proposto e uma preferência subjetiva,
contingente, do sujeito argumentador. Nada disso tem a ver com o valor verdade do que
está sendo proposto, o que demonstrarei na formalização abaixo. Em suma, caso a ação
do indivíduo requira que ele aceite X como válido e, na ação, ele escolha julgar X como
inválido, então houve uma contradição – não como as contradições da lógica formal, na
qual duas afirmações autoexcludentes são afirmadas válidas ou inválidas
simultaneamente, violando o princípio de não contradição (⊢¬(p∧¬p)), mas sim uma
contradição performativa, prática, em que o conteúdo da ação é conflitante com uma
preferência que o indivíduo precisou fazer para agir de tal forma.
Nas contradições da lógica proposicional, o resultado é sempre falso, o que é
facilmente verificável numa tabela verdade, por mais que não seja necessário, uma vez
que proposições contraditórias são falsas por definição. Tem-se duas proposições,
ambas as quais não podem ser verdadeiras simultaneamente, nem falsas ao mesmo
tempo. Se uma delas é verdadeira, a outra precisa, necessariamente, ser falsa, pois, do
contrário, todo o alicerce da lógica formal estaria destruído. Isso é o mesmo que dizer
que há uma relação de disjunção exclusiva entre elas, pois ou uma é verdadeira, ou a
outra é verdadeira (se uma é verdadeira, a outra é “excluída” de poder conter este valor
verdade, por isso disjunção “exclusiva”). Kant fala sobre a existência de juízos
disjuntivos, na Analítica Transcendental, em seu livro Crítica da Razão Pura. Segundo
ele, o juízo disjuntivo encerra uma relação de duas ou mais proposições, porquanto a
esfera de uma exclui a da outra, isto é, se se exclui conhecimento de uma, então
necessariamente se adiciona à outra, e se se adiciona conhecimento a uma, então se
exclui da outra. Há, pois, num juízo disjuntivo, certa comunidade de conhecimentos, que
consiste em se excluírem reciprocamente, constituindo no todo o conteúdo de um só
conhecimento dado.[7]
Se há uma disjunção exclusiva (operador XOR, para quem está familiarizado com
programação) entre ambas as proposições, então é necessário que uma seja verdadeira
enquanto a outra seja falsa. Não há como ambas serem verdadeiras nem ambas serem
falsas, pois o valor-verdade de ambas deve ser diferente, dada a própria natureza do
operador lógico. É a violação disto o que caracteriza uma contradição. Dessa forma,
caso tal contradição fosse logicamente válida, chegaríamos à conclusão de que ou eu
reconheço a norma de autopropriedade como válida, ou é permitido agredir.
Porém, se isso fosse verdade, então seguiria, logicamente, que se eu não reconhecer a
norma de autopropriedade como válida (¬r), então é permitido agredir (s). Já ouvi alguns
libertários dizerem que isto está correto (que não há obrigação em seguir a ética a não
ser que se demonstre preferência em segui-la [o que seria um imperativo hipotético], e
que isso seria amparado com o fato de que não seria possível argumentar que tal
agressão é válida, ou que uma punição não seria justificável [vide princípio de
estoppel]). Porém, como o Hoppe não admite isso, não assumirei isso como fazendo
parte de sua teoria. Quero apenas que repare que o que está em jogo são as
proposições “eu reconheço a norma de autopropriedade como válida” e “é
permitido agredir“, de maneira que a única que tem relação com a validade da norma é
a segunda, uma vez que a primeira diz respeito a um estado de reconhecimento subjetivo
do indivíduo. É o valor verdade da segunda proposição que nos dirá se a norma de
propriedade é válida ou não. Se a segunda proposição for verdadeira, então a norma de
propriedade é inválida, pois é permitido infringi-la (o que não deve acontecer em uma
ética deontológica). Já a primeira proposição, ela só nos pode oferecer informações
acerca do que o indivíduo reconhece como verdadeiro, o que é algo contingente, pois
ele poderia simplesmente não reconhecer a norma como válida, como quando o faz
numa agressão.
Exemplo 1: Suponha que um ladrão X roube um carro e ande com ele pela
cidade. O ladrão deseja ir para outra cidade, cujo acesso só pode ser feito por uma
ponte. Esta ponte, porém, está interditada pela polícia, que realiza uma blitz em busca de
um outro ladrão, Y, que também roubou um carro. Ambos os ladrões não se conhecem
e não têm nenhuma relação entre si. O ladrão X, então, arrisca passar pela ponte
com blitz. O policial o vê passar, pede para ele diminuir a velocidade, parar e mostrar a
carteira de habilitação. O ladrão X, então, mostra seus documentos, e o policial o libera
para passar na ponte. Dessa forma, o ladrão X atingiu seu objetivo de chegar à outra
cidade.
Perceba que neste exemplo, o policial precisou reconhecer que o ladrão X tinha o
direito de usar aquele carro para que ele pudesse atravessar a ponte. Caso o policial não
reconhecesse que o ladrão tinha o direito de usar o carro, então ele seria detido, e sua
finalidade não seria atingida. Em outras palavras, o reconhecimento, por parte do
policial, do direito que X tem de dirigir o carro é condição necessária para que a ação de
X atingisse o fim. Entretanto, o ladrão X não tinha esse direito, uma vez que o carro é
roubado. Dessa forma, tem-se uma situação em que o reconhecimento de um direito é
necessário para que uma ação se dê, o que não tem nada a ver com a validade do direito
em si, uma vez que o policial reconheceu um direito que não existe, que não é válido.
Exemplo 2: Suponha que existem dois indivíduos com um certo nível de surdez, e
ambos roubam aparelhos auditivos, sem o quais eles não conseguem ouvir. Eles
começam, então, a argumentar entre si. Devido aos reconhecimentos implícitos no a
priori da argumentação, o direito de controle exclusivo sobre seus próprios corpos, bem
como os meios usados para a argumentação, é pressuposto na atividade argumentativa.
Ambos reconhecem mutuamente que têm o direito de usar aquele aparelho, o que é
condição necessária para que aquela argumentação ocorra. (Sim, eu sei que é possível
argumentar usando outros meios, mas a finalidade dos indivíduos em questão é
argumentar falando).
Eu poderia alongar o exemplo e dizer que ambos são cegos e não podem se
comunicar por tato, mas isso ficaria tosco demais, mais do que já está. Entretanto,
nenhum dos dois tem o direito de controlar aquele recurso. Neste caso, ainda que o
reconhecimento do direito de uso de tais recursos seja necessário para que a atividade
argumentativa se dê nessa instância, não se pode concluir nada disso sobre a natureza de
tal direito (não dá para saber se o direito é válido ou não apenas pelo fato de ele precisar
ser reconhecido).
Referências:
[1] Trecho original: “I demonstrate that only the libertarian private property ethic can be
justified argumentatively, because it is the praxeological presupposition of argumentation
as such; and that any deviating, nonlibertarian ethical proposal can be shown to be in
violation of this demonstrated preference. Such a proposal can be made, of course, but
its propositional content would contradict the ethic for which one demonstrated a
preference by virtue of one’s own act of proposition-making, i.e., by the act of engaging
in argumentation as such.”, Hoppe, Hans-Hermann, “Economics and Ethics of Private
Property“, (Ludwig von Mises Institute, Alabama, 2006), pg. 341
[2] Trecho original: “It is this recognition of each other’s mutually exclusive control over
one’s own body which explains the distinctive character of propositional exchanges that,
while one may disagree about what has been said, it is still possible to agree at least on
the fact that there is disagreement.“, Ibid, pg. 342
[3] Trecho original: “The structure of the argument is this: (a) justification is propositional
justification—a priori true is-statement; (b) argumentation presupposes property in one’s
body and the homesteading principle—a priori true is-statement; and (c) then, no
deviation from this ethic can be argumentatively justified—a priori true is-statement.”,
Ibid, pg. 345
[4] Hoppe, Hans-Hermann, “Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo“, (Instituto
Ludwig von Mises Brasil, São Paulo, 2013), 2ª edição, pg. 128
[5] Ibid, pg. 129
[6] Ibid, pg. 131
[7] Kant, Immanuel, “Crítica da Razão Pura”, (Fundação Calouste Gulbenkian, 2001),
5ª edição, pg. 132