Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
Antônio de
Alcântara MachadO
Antônio de
Alcântara MachadO
Antônio de
Alcântara MachadO
Brás, Bexiga e Barra Funda
7
Antônio de Alcântara Machado
8
Brás, Bexiga e Barra Funda
9
Antônio de Alcântara Machado
11
Antônio de Alcântara Machado
3. O AUTOR
Alcântara Machado
Antônio Castilho de Alcântara Machado D’Oliveira nasceu em São Paulo,
em 25 de maio de 1901, numa família ilustre, cujas origens remontavam à época
das capitanias hereditárias. Formou-se em Direito na Faculdade de Direito de
São Paulo em 1923. Aos 19 anos, estreou como crítico literário e passou, a partir
de então, a militar na imprensa, no Jornal do Comércio, como redator-chefe.
Em 1925, Alcântara Machado viajou para a Europa: Lisboa, Paris, Londres,
Itália e Espanha, de onde enviou crônicas de viagem e reportagens que mais
tarde comporiam seu livro de estreia Pathé Baby (Pathé Baby era o nome de uma
máquina de filmar), publicado em 1926 e prefaciado por Oswald de Andrade.
Além de colaborador de diversos jornais, comandou a revista Terra roxa
e outras terras, em 1926; a Revista de Antropofagia, em 1928; e a Revista Nova, em
1931, todas ligadas ao Modernismo. Em 1927, publicou seu mais importante
e conhecido trabalho, Brás, Bexiga e Barra Funda, e, em 1928, Laranja da China
foi editado.
A partir de 1961, Brás, Bexiga e Barra Funda foi editado juntamente com
Laranja da China, com o título de Novelas paulistanas.
12
Brás, Bexiga e Barra Funda
13
Antônio de Alcântara Machado
4. A OBRA
14
Brás, Bexiga e Barra Funda
Brás, Bexiga e Barra Funda – notícias de São Paulo contém onze contos (que tam-
bém podem ser crônicas) narrados em terceira pessoa por um narrador onisciente
que capta apenas a superfície do mundo das personagens que focaliza, procurando
deixar um registro desse mundo e das suas impressões como observador.
Com o intuito de registrar o modo de vida do imigrante italiano e o con-
texto urbano em que ele vive, o narrador procura reproduzir diretamente a fala
das personagens (discurso direto), apresentando suas falas em italiano puro
(“_ Evviva il campeonissimo!”) e as fusões do italiano com o português, o cha-
mado português macarrônico.
Integrado às propostas modernistas, Alcântara Machado emprega uma
série de recursos oriundos da linguagem jornalística na composição de seus
contos, como o uso de tipos em caixa-alta para destacar o aumento do som da
voz: “Solt´o rojão! Rebent´a bomba! Pum! Corinthians!”.
Outro recurso modernista é o uso de parênteses para indicar a interpola-
ção de um grito distante num determinado contexto (“Spegni la luce! Súbito!
Mi vuole próprio rovinare questa principessa!).
Quanto ao espaço das narrativas, embora sejam citados pontos conside-
rados “nobres” da cidade de São Paulo, as narrativas se passam nos bairros que
dão título à obra.
O tempo das narrativas é cronológico e normalmente breve. Mesmo em
contos como “Nacionalidade”, que aborda o abrasileiramento de Tranquillo
Zampinnetti desde a infância até o bacharelado do seu filho mais novo, a indi-
cação da passagem do tempo é sugerida por espaço em branco entre as partes
da narrativa (recurso, aliás, empregado em vários contos), o que revela o esforço
do narrador em ser o mais objetivo possível.
O autor tem uma nítida preocupação em caracterizar a época, o que pode
ser evidenciado nos vários registros que faz das marcas de produtos, como
goiabada Pesqueira, refrigerante Si-Si, cigarros Bentevi, jornal Fanfulla e Gazeta,
veículos Ford, Buick, Lancia, entre outros.
As personagens são retratadas em seu cotidiano, sem profundidade
psicológica. Suas imagens surgem, normalmente, em decorrência de fatos e dados
concretos, isto é, o autor não as descreve, deixa que os fatos falem por elas.
O livro principia por um prefácio que o autor chama de “Artigo de fundo”,
em que deixa claros sua formação e seu propósito jornalístico.
ARTIGO DE FUNDO
Assim como quem nasce homem de bem deve ter a fronte altiva, quem nasce jornal
deve ter artigo de fundo. A fachada explica o resto.
Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram
notícias. E este prefácio, portanto, também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.
AOL-11
15
Antônio de Alcântara Machado
Brás, Bexiga e Barra Funda, como membro da livre imprensa que é, ten-
ta fixar tão somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana
desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia.
Só. Não tem partido nem ideal. Não comenta. Não discute. Não aprofunda.
Principalmente não aprofunda. Em suas colunas não se encontra uma única linha
de doutrina. Tudo são fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de
rua. O aspecto étnico-social dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã o seu
historiador. E será então analisado e pesado num livro.
Brás, Bexiga e Barra Funda não é um livro.
Inscrevendo em sua coluna de honra os nomes de alguns ítalo-brasileiros ilustres,
este jornal rende uma homenagem à força e às virtudes da nova fornada mamaluca. São
nomes de literatos, jornalistas, cientistas, políticos, esportistas, artistas e industriais.
Todos eles figuram entre os que impulsionam e nobilitam neste momento a vida espiritual
e material de São Paulo.
Brás, Bexiga e Barra Funda não é uma sátira.
A Redação
GAETANINHO
– Xi, Gaetaninho, como é bom!
Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele
não viu o Ford.
O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.
– Eh! Gaetaninho! Vem prá dentro.
Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu
a mãe e viu o chinelo.
– Subito!
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno.
Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu
tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.
Êta salame de mestre!
Ali na Rua Oriente, a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro
só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de
Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.
O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como?
Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá*. Assim também não era vantagem.
AOL-11
*
Cemitério do Araçá.
17
Antônio de Alcântara Machado
– Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e
matou.
No bonde vinha o pai do Gaetaninho.
A gurizada assustada espalhou a notícia na noite.
– Sabe o Gaetaninho?
– Que é que tem?
– Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho
não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de
um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas,
mas não levava a palhetinha.
Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho
que feria a vista da gente era o Beppino.
Comentário
Gaetaninho é o típico menino de família pobre; joga futebol na rua, brinca
em ruas movimentadas e, por isso mesmo, a mãe o chama para dentro de casa,
ameaçando uma surra. Gaetaninho entra e consegue desviar-se, num jogo de
corpo, da chinelada da mãe.
O menino sonha em passear de automóvel, o que, nas famílias pobres só ocorria
por ocasião de casamento ou de enterro. Ele chega a sonhar com a morte de sua tia
Filomena , motivo que lhe proporcionaria o passeio. Relata o sonho à tia, que fica pos-
sessa, e desperta o palpite dos irmãos para o jogo do bicho. Eles jogam no elefante.
Brincando novamente na rua, Gaetaninho faz inveja a Beppino, porque
passearia de carro no dia seguinte, por ocasião do velório de um amigo de seu
pai. Distraidamente, vai apanhar uma bola e é atropelado e morto por um bonde.
No bonde, vinha o pai de Gaetaninho.
A notícia corre e o enterro é preparado. No dia seguinte, Gaetaninho faz
seu passeio, mas como defunto. Beppino é quem usufrui do passeio.
A morte de Gaetaninho é apresentada como um fato corriqueiro dos bairros
pobres. O narrador procura registrar o fato sem interferências emotivas. Aliás,
o que contribui para tornar a cena dramática é o fato de o pai do menino estar
no bonde. O narrador, entretanto, apenas registra o fato, sem apelar para os
dramas subjetivos. É a sequência dos fatos que imprime ao conto o seu ritmo; a
objetividade do relato causa certo impacto no leitor porque a justaposição dos
fatos (o atropelamento e a presença do pai ) fala por si, isto é, constrói um qua-
dro, melhor seria dizer um retrato, da situação. Ao observar este retrato, o leitor
sente o impacto da cena, captando as grandes tristezas e as alegrias miúdas do
AOL-11
Carmela
O cotidiano de uma operária é o tema deste conto.
Dezoito horas e meia. Nem mais um minuto porque a madama respeita as horas
de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca vem ao seu lado.
A Rua Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de automóveis gritadores.
As casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO PAULO-PARIS, PARIS ELEGAN-
TE) despejam nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris
como gangorras.
– Espia se ele está na esquina.
– Não está.
– Então está na Praça da República. Aqui tem muita gente mesmo.
– Que fiteiro!
O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos
de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo maduro para os lábios dos amadores.
– Ai que rico corpinho!
– Não se enxerga, seu cafajeste? Português sem educação!
Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a boca reluzente de carmim
primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas
de metal branco na ponta das orelhas descobertas.
Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira.
– Olha o automóvel do outro dia.
– O caixa-d’óculos?
– Com uma bruta luva vermelha.
O caixa-d’óculos para o Buick de propósito na esquina da praça.
– Pode passar.
– Muito obrigada.
Passa na pontinha dos pés. Cabeça baixa. Toda nervosa.
– Não vira para trás, Bianca. Escandalosa!
Diante de Álvares de Azevedo (ou Fagundes Varela) o Ângelo Cuoco de sapatos
vermelhos de ponta afilada, meias brancas, gravatinha deste tamanhinho, chapéu à Ro-
dolfo Valentino, paletó de um botão só, espera há muito com os olhos escangalhados de
inspecionar a Rua Barão de Itapetininga.
– O Ângelo!
– Dê o fora.
Bianca retarda o passo.
Carmela continua no mesmo. Como se não houvesse nada. E o Ângelo junta-se a
ela. Também como se não houvesse nada. Só que sorri.
20
Brás, Bexiga e Barra Funda
– Já acabou o romance?
– A madama não deixa a gente ler na oficina.
– É? Sei. Amanhã tem baile na Sociedade.
– Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Não segura no braço!
– Enjoada!
Na Rua do Arouche o Buick de novo. Passa. Repassa. Torna a passar.
– Quem é aquele cara?
– Como é que eu hei de saber?
– Você dá confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa! Não olha pra ele que eu
armo já uma encrenca!
Bianca rói as unhas. Vinte metros atrás. Os freios do Buick guincham nas rodas e
os pneumáticos deslizam rente à calçada. E estacam.
– Boa tarde, belezinha...
– Quem? Eu?
– Por que não? Você mesma...
Bianca rói as unhas com apetite.
– Diga uma cousa. Onde mora a sua companheira?
– Ao lado de minha casa.
– Onde é sua casa?
– Não é de sua conta.
O caixa-d’óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um traquejado.
– Responda direitinho. Não faça assim. Diga onde mora.
– Na Rua Lopes de Oliveira. Numa vila. Vila Margarida nº 4. Carmela mora com
a família dela no 5.
– Ah! Chama-se Carmela... Lindo nome. Você é capaz de lhe dar um recado?
Bianca rói as unhas.
– Diga a ela que eu a espero amanhã de noite, às oito horas, na rua... na.... atrás da
Igreja de Santa Cecília. Mas que ela vá sozinha, hein? Sem você. O barbeirinho também
pode ficar em casa.
– Barbeirinho nada! Entregador da Casa Clark!
– É a mesma cousa. Não se esqueça do recado. Amanhã, às oito horas, atrás da igreja.
– Vá saindo que pode vir gente conhecida.
Também o grilo já havia apitado.
– Ele falou com você. Pensa que eu não vi?
O Ângelo também viu. Ficou danado.
– Que me importa? O caixa-d’óculos disse que espera você amanhã de noite, às
AOL-11
ComentÁrio
O conto principia com um retrato em branco e preto da cidade de São Paulo às
seis e meia da tarde, num bairro operário, no início do século XX, no momento em
que os operários estão deixando a fábrica. O narrador faz questão de mencionar o
nome das ruas e das lojas da época, usando como pretexto o momento em que duas
costureiras deixam a fábrica. Carmela, em companhia de sua amiga Bianca, arruma-
se para encontrar o namorado Ângelo Cuoco, entregador da Casa Clark.
Como era de costume, os homens assediavam as moças que saíam da fá-
brica. Um sujeito num automóvel Buick tenta conquistar Carmela. Quando ela
se encontra com o namorado, este arma uma cena de ciúme.
Bianca, que havia deixado a amiga a sós com o namorado e seguia pela
calçada logo atrás deles, conversa com o motorista do Buick, que deseja marcar
um encontro com Carmela. Bianca acaba por lhe fornecer o nome e o endereço
AOL-11
Ao saber do encontro que Bianca havia marcado, Carmela diz à amiga que
não irá comparecer. À noite, no seu quarto, lê um folhetim que alimenta suas
fantasias românticas. Fantasias, aliás, que são interrompidas por um grito do
pai, que lhe ordena em italiano que apague a luz.
No dia seguinte, vai ao encontro do motorista do Buick, mas leva sua
amiga junto.
No domingo seguinte, dispensa a companhia de Bianca e vai sozinha para
o encontro. As duas, entretanto, saem juntas de casa para que os pais de Carmela
não desconfiem de nada.
Sozinha, Bianca relata o episódio a uma outra amiga, explicando que o
Ângelo “é pra casar”.
O objetivo do conto é registrar aspectos da paisagem urbana dos bairros
italianos de São Paulo. Cerca de dez nomes de lojas e ruas são mencionados no
conto, o que permite ao leitor uma visualização do cenário por onde Carmela
passeia. O deslocamento da personagem pelo cenário conduz o leitor a um passeio
pelas ruas da antiga cidade de São Paulo. O narrador preocupa-se em registrar
os elementos que compõem a paisagem, mas preocupa-se também em registrar,
ainda que superficialmente, as aspirações e os preconceitos das personagens. A
linguagem direta das personagens, ora em português ora em italiano, confere ao
conto certa ironia, porque sugere o caráter temperamental que seria típico dos
imigrantes italianos, segundo o narrador.
Tiro de Guerra nº 35
O terceiro conto aborda a vida e o patriotismo ingênuo de Aristodemo
Guggiani, que no “grupo escolar da Barra Funda aprendeu em três anos a roubar
com perfeição no jogo e nas bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete) e ficou
sabendo na ponta da língua que o Brasil foi descoberto sem querer e é o país
maior, mais belo e mais rico do mundo”. Após o grupo, Aristodemo trabalhou
na oficina do cunhado, namorou Josefina e apanhou do seu primo, ajudou a
empastelar O fanfulla, um jornal que falou mal do Brasil, e pensou em ser artista
de circo. Aos vinte anos, brigou com o cunhado, empregou-se como cobrador de
bonde da companhia Gabrielle d´Annunzio e arrumou uma admiradora.
Subitamente, desapareceu das vistas da admiradora. A revista A cigarra,
na seção “Colaboração das leitoras”, comenta seu desaparecimento. Aristodemo
havia se tornado soldado do Tiro de Guerra nº 35.
Aristodemo, influenciado pelo sargento cearense Aristóteles Camarão
de Medeiros, torna-se ainda mais nacionalista, obtendo o cargo de ajudante de
ordens e ficando encarregado de providenciar a letra do hino nacional para o
ensaio da companhia.
Na noite seguinte, o ensaio é interrompido por Aristodemo, que dá um tabe-
fe num alemãozinho, porque estava escrachando com a letra do hino nacional.
24
Brás, Bexiga e Barra Funda
Amor e sangue
“Não adiantava nada que o céu estivesse azul porque a alma de Nicolino
estava negra”. Um amigo lhe diz, no caminho, que a Grazia havia passado por
ele sem ser vista. Nicolino a xinga “– Des-gra-ça-da!”
Na barbearia Ao Barbeiro Submarino, Nicolino ouve o comentário de um
freguês sobre um crime passional noticiado no Estado: o criminoso seria solto
porque havia alegado “privações de sentidos”. Nicolino fingia que não estava
ouvindo os comentários sobre o crime.
Nicolino tenta falar com Grazia, na saída da fábrica, mas ela se recusa e
o manda procurar a “fedida da Rua Cruz Branca”. Enraivecido, ele “apertou o
fura-bolos entre os dentes”.
No outro dia, na saída da fábrica, sendo rejeitado por Grazia, ele a
derruba com uma punhalada. Preso, alega que matou porque estava louco,
privado dos sentidos. Sua desculpa ganha fama e vira letra de música.
A sociedade
“– Filha minha não casa com filho de carcamano!
A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi
brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e
entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as
unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.” Adriano Melli,
filho de carcamano, está interessado em Teresa Rita e por isso passa e repassa
com seu automóvel Lancia na frente da casa da namorada.
Na vesperal do Clube Paulistano, Teresa Rita e Adriano Melli dançam e
conversam. A mãe de Teresa reitera ao marido que não quer saber de casamento
de sua filha com filho de carcamano.
O pai de Adriano, o carcamano Cav. Uff. Salvatore Melli (Cavaglieri Ufficiali,
literalmente Cavalheiro Oficial, um título vendido pela coroa italiana, contrastan-
do com o título de Conselheiro, dado pelo Império), em visita ao pai de Teresa
Rita propõe-lhe sociedade. O Conselheiro José Bonifácio entraria com terrenos
ociosos e gerenciaria o negócio, enquanto ele entraria com o capital “io tenho o
capital. O capital sono io”.
Mediante tal proposta, a mulher libera o Conselheiro para que aceite a
AOL-11
sociedade.
25
Antônio de Alcântara Machado
LiseTta
Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo,
felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.
Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.
Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na boca. Pôs, mas
não chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam abso-
lutamente nada. No colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso
importante e feliz.
– Olha o ursinho que lindo, mamãe!
– Stai zitta!
A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o urso.
Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a esquerda, depois
para a direita, olhou para cima, depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra.
Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda
a importância.
Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam, se cruzam, batem umas
nas outras.
– As patas também mexem, mamã. Olha lá!
– Stai ferma! [Fica quieta!]
Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcançá-lo.
A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou
contra o peito o bichinho que custara cinquenta mil-réis na Casa São Nicolau.
– Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa?
– Ah!
– Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças são muito
levadas. Scusi [Desculpe-me]. Desculpe.
A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha, sorriu para
o bicho, fez uma carícia na cabeça dele, abriu a bolsa e olhou o espelho.
Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido da filha:
– In casa me lo pagherai! [Em casa, tu me pagarás]
E pespegou por conta um beliscão no bracinho magro. Um beliscão daqueles.
Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou. Soluçou. Chorou.
Soluçou. Falando sempre.
– Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu
que...ro o... o... o... Hã! Hã!
26
Brás, Bexiga e Barra Funda
Comentário
Mais um conto com sabor de crônica, um típico episódio das famílias
italianas do começo do século: a menina Lisetta, acompanhada da mãe, vê no
bonde em que está uma menina rica brincando com um ursinho. A menina rica a
AOL-11
27
Antônio de Alcântara Machado
29
Antônio de Alcântara Machado
30
Brás, Bexiga e Barra Funda
Comentário
Miquelina e Iolanda assistem à partida de futebol no Parque Antártica.
Miquelina torce para o Palestra, em que joga seu atual namorado, o Rocco. O
namorado anterior, Biagio, joga no Corinthians. Como Biagio é frequentador da
Sociedade Beneficente e Recreativa do Bexiga, ela trocou de time e deixou de
frequentar a Sociedade.
Durante o intervalo do primeiro tempo, Miquelina pede ao seu irmão para
procurar pelo Rocco no vestiário e recomendar que ele quebre o Biagio.
No segundo tempo, faltando oito minutos para terminar o jogo, Rocco
segue as recomendações e faz pênalti em Biagio, que converte o lance em gol e
desempata para o Corinthians.
A torcida corinthiana comemora a vitória. Na volta para casa, no bonde
lotado, Miquelina escuta ofensas dirigidas ao Rocco.
À noite, Miquelina pede a Iolanda que ela e o irmão a levem à sociedade,
onde pretende ver Biagio.
O conto registra como era uma partida de futebol e como se comportava
a torcida; o que acontecia após o jogo; os casos de amor entre jogadores e tor-
cedoras; a rivalidade entre as duas torcidas. Alcântara Machado fixa no conto
alguns aspectos da sociedade paulistana nos bairros italianos durante e após
uma partida de futebol.
O monstro de rodas
O Nino apareceu na porta. Teve um arrepio. Levantou a gola do paletó.
– Ei, Pepino! Escuta só o frio!
Na sala discutiam agora a hora do enterro. A Aída achava que de tarde ficava melhor.
Era mais bonito. Com o filho dormindo no colo Dona Mariângela achava também. A fumaça
do cachimbo do marido ia dançar bem em cima do caixão.
– Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora
Dona Nunzia descabelada enfiava o lenço na boca.
– Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora.
Sentada no chão a mulata oferecia o copo de água de flor de laranja.
– Leva ela pra dentro!
– Não! Eu não quero! Eu... não... quero!...
Mas o marido e o irmão a arrancaram da cadeira e ela foi gritando para o quarto.
Enxugaram-se lágrimas de dó.
– Coitada da Dona Nunzia!
A negra de sandália sem meia principiou a segunda volta do terço.
– Ave Maria, cheia de graça, o Senhor...
Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepípedos da Rua Sousa Lima. Passavam
cestas para a feira do Largo do Arouche. Garoava na madrugada roxa.
– ... da nossa morte. Amém. Padre Nosso que estais no Céu...
O soldado espiou da porta. Seu Chiarini começou a roncar muito forte. Um bocejo.
Dois bocejos. Três. Quatro.
– ... de todo o mal. Amém.
A Aída levantou-se e foi espantar as moscas do rosto do anjinho.
Cinco. Seis.
O violão e a flauta recolhendo de farra emudeceram respeitosamente na calçada.
Na sala de jantar Pepino bebia cerveja em companhia do Américo Zam-
poni (Salão Palestra Itália – Engraxa-se na perfeição a 200 réis) e o Tibúrcio
(– O Tibúrcio... – O mulato? – Quem mais há de ser?).
34
Brás, Bexiga e Barra Funda
ComentÁrio
O espaço em branco é empregado para demarcar o tempo e os ambientes da
casa. No primeiro parágrafo, na sala da casa, ante o desespero de Dona Nunzia,
AOL-11
DE
NATALE PIENOTTO
O CONTRÁRIO
36
Brás, Bexiga e Barra Funda
Nacionalidade
O barbeiro Tranquilo Zampinetti da Rua do Gasômetro não perde seu amor
pela Itália. Vibra a cada notícia que lê nos jornais sobre as vitórias da Itália na
guerra e surra os dois filhos que não querem falar italiano.
AOL-11
37
Antônio de Alcântara Machado
Comentário
De cidadão italiano convicto, a ponto de surrar os filhos que não queriam
falar italiano, Tranquilo vai pouco a pouco se abrasileirando. O “abrasileiramento”
do italiano é apresentado de forma cômica, porque vêm a ser as práticas deso-
nestas que lhe conferem dinheiro e, por conseguinte, a nacionalidade brasileira.
A renúncia em voltar para a Itália pode ser constatada no fato de mandar erguer
uma capela para a família num cemitério paulista. Em outras palavras, Tranquillo
Zampinetti não retorna mais para a Itália nem morto.
5. Exercícios
1.
Texto 1
...) No fundo o imponente castelo. No primeiro plano
a íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a
ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Monta-
do no ginete o apaixonado caçula castelão inimigo de
capacete prateado com plumas brancas. E atravessada
no ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao
vento os cabelos cor de carambola.
Antônio de Alcântara Machado, “Carmela”
38
Brás, Bexiga e Barra Funda
Texto 2
(...) Íamos, se não me engano, pela rua das Mangueiras, quando voltando-nos, vimos
um carro elegante que levavam a trote largo dois fogosos cavalos. Uma encantadora
menina, sentada ao lado de uma senhora idosa, se recostava preguiçosamente sobre
o macio estofo e deixava pender pela cobertura derreada do carro a mão pequena que
brincava com um leque de penas escarlates.
José de Alencar, Lucíola
Nesses excertos, observa-se que a maioria dos substantivos são modificados por
adjetivos ou expressões equivalentes.
Comparando os dois textos:
a) aponte em cada um deles o efeito produzido por tal recurso linguístico;
b) justifique sua resposta.
2.
Alcântara Machado faz a seguinte apresentação para Brás, Bexiga e Barra Funda
em “Artigo de Fundo”:
Este livro não nasceu livro; nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram
notícias. E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.
Dessa apresentação, pode-se concluir que:
a) os jornais brasileiros da época eram determinantes absolutos das vanguardas
artísticas e a literatura sofreu essa determinação.
b) o livro referido transformou-se em jornal, ou melhor, houve uma transposição
dos fatos e das personagens do mundo real para o literário.
c) o livro em questão é jornalístico, porque está preocupado em dar opiniões
sobre notícias da comunidade.
d) a linguagem do livro de Alcântara Machado, ao aproximar-se jornalisticamente
do cotidiano, afasta-se dos meios literários modernistas de sua época.
e) o livro está impregnado de uma atmosfera de reportagem, o que o aproxima
do jornal por captar o fato, o instantâneo da vida cotidiana.
3.
O conto “Gaetaninho” começa com a fala “Xi, Gaetaninho, como é bom!” e termina
com a seguinte afirmação: “Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim
exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino”.
A fala inicial é de Beppino, mencionado também no último parágrafo.
a) A que ele se refere como sendo bom?
b) Ambos os trechos citados têm relação direta com o núcleo central da narrativa.
Que núcleo é esse?
c) Que relação há entre os nomes próprios e o título do livro?
4.
A obra Brás, Bexiga e Berra Funda, de Antônio de Alcântara Machado, foi escrita
em 1927. Dessa obra como um todo, é possível afirmar que:
a) configura a vida do imigrante italiano e do ítalo-brasileiro, em processo de
AOL-11
GABARITO
1. 2. E
a) Os adjetivos ou expressões equivalentes con- 3.
ferem às cenas um clima de beleza e luxo. No a) Beppino referia-se à sensação agradável de
texto 1, há ainda uma questão de paixão, de passear de carro, passeio que ele realizou
amor proibido. Em ambos os textos ocorre durante o enterro de sua tia Peronetta.
também a idealização da realidade. b) Trata-se do sonho de Gaetaninho de desfilar
b) O clima de sofisticação e beleza revela-se em ad- de carro.
jetivos como “imponente”, “fogoso”, “formosa”, c) Os nomes das personagens são de origem
“de capacete prateado”, “com plumas bran- italiana elas habitam os bairros (Brás, Bexiga
cas”, no primeiro texto; “elegante”, “fogosos”, e Barra Funda) que dão título ao livro.
“encantadora”, “de penas escarlates”, no segun- 4. A
do texto. A paixão, no primeiro texto, é indicada
5. C
pelos adjetivos “apaixonado” e “louca”.
40