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organizadoras

Erotildes Maria leal


ruth Escudero

Problemas globais,
enfrentamentos locais e
a universidade pública
O Centro Regional de Referência em
Álcool e Outras Drogas da UFRJ Macaé
e outros projetos extensionistas
organizadoras

Erotildes Maria leal


ruth Escudero

Problemas globais,
enfrentamentos locais e
a universidade pública
O Centro Regional de Referência
em Álcool e Outras Drogas da UFRJ Macaé
e outros projetos extensionistas

2017
Copyright© 2017
Todos os direitos reservados.

Coordenação editorial
Erotides Maria Leal

Projeto gráfico, diagramação e capa


Rodrigo Cabido

Revisão gramatical e ortográfica


Vanice Araújo

Produção e impressão
Rona Editora

Ficha Catalográfica

Leal, Erotides Maria, org.

L435p Problemas globais, enfrentamentos locais e a universidade pública. O Centro


Regional de Referência em Álcool e Outras Drogas da UFRJ Macaé e outros proje-
tos extensionistas / organizado por Erotides Maria Leal e Ruth Escudero. – Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro – Campus Macaé. Macaé, RJ: 2017
380 p.

ISBN: 978-85-62805-69-1

1.Saúde pública. 2.Álcool-prevenção. 3.Drogas-prevenção. 4.Formação em


saúde. 5. Sistema Único de Saúde-Brasil. 6. Sistema Único de Assistência So-
cial-Brasil. I. Escudero, Ruth. II.Título.

CDU 614(81)
Sumário

Apresentação
Erotildes Maria Leal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Capítulo 1:
Papel da universidade no desenvolvimento regional,
com ênfase no papel da Universidade Federal do
Rio de Janeiro no desenvolvimento de Macaé (RJ) e região
Francisco Esteves. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Seção I – Drogas como desafio das políticas públicas:


problemas globais, enfrentamentos locais

Capítulo 2:
Os desafios para a formação dos profissionais e a construção
de redes intersetoriais na temática AD: o projeto Redes/Secretaria
Nacional de Políticas sobre Drogas – SENAD, em Macaé (RJ)
Tânia Maris Grigolo, Alex Xavier. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

Capítulo 3:
O desafio da atenção integral em álcool e outras drogas –
a experiência do CRR Macaé em 13 municípios das regiões
da baixada litorânea e norte do estado do Rio de Janeiro
Júnia Prosdocimi. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

Capítulo 4:
Consumos “problemáticos” e situações de “vulnerabilidade”:
drogas e cultura para o contexto do cuidado em saúde
Marcos Veríssimo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

Capítulo 5:
Teatro do Oprimido: um meio para a compreensão e
ressignificação dos processos relacionados ao uso de
drogas e suas possibilidades interventivas
Monique Rodrigues. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
Capítulo 6:
Métodos e abordagens do uso problemático de drogas:
alcances e limites para a clínica no território
Ruth Escudero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173

Capítulo 7:
Drogas nas escolas... O que fazer?
Gilberta Acselrad. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193

Seção II – Experiências Apresentadas

Capítulo 8:
“Se essa rua fosse minha...”
A experiência do Consultório na Rua de Macaé (RJ)
Naly Almeida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219

Capítulo 9:
Percursos Reformativos – Relato de uma experiência
Vinte e sete anos de trabalho pela construção do cuidado
em saúde mental no contexto do SUS
Décio de Castro Alves e Breno Castro Alves. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241

Capítulo 10:
O Programa de Braços Abertos no município de São Paulo
Myres Maria Cavalcanti,
Teresa Cristina Endo, Mirmila Musse. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269

Capítulo 11:
Impasses na prática da atenção integral aos
usuários de drogas: um estudo de caso
Cristiane Mazza. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281
Seção III – Projetos extensionistas: outros relatos e desafios

Capítulo 12:
O lugar do discente na extensão acadêmica: espaço de formação
e autonomia. O CRR – UFRJ Macaé – relato de experiência.
Maria Clarissa Santos da Silva, Sávio de Araújo Gomes. . . . . . . . . . . . . 295

Capítulo 13:
CRR-UFF: a experiência da formação para o cuidado de
usuários de álcool e outras drogas
Lorenna Figueiredo Souza, Ândrea Cardoso de Souza,
Elisângela Onofre de Souza, Ana Lúcia Abrahão,
Francisco Leonel Fernandes, Maria Alice Bastos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305

Capítulo 14:
PET Saúde Mental/crack, álcool e outras drogas – Experiência
de adoecimento de pessoas em uso problemático de álcool e
outras drogas que não deram continuidade ao tratamento no
CAPS ad – Porto/Macaé (RJ)
Erotildes Maria Leal, Ana Lúcia Togeiro, Cynthia Aquino,
Fillipe Teixeira Tinoco Rodrigues, Gabriel Moreira Crelier,
Queline Simões Evangelista, Talitha Demenjour. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325

Capítulo 15:
Espaço para a extensão universitária no campo socioambiental:
um estudo de caso sobre as audiências públicas do Terminal
Portuário de Macaé
Rodrigo Lemes Martins,
Gustavo Arantes Camargo, Giuliana Franco Leal. . . . . . . . . . . . . . . . . . 355

Lista de Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 375

Abreviaturas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 381
Apresentação

Esta coletânea apresenta questões que atravessaram o trabalho desen-


volvido pelo Centro Regional de Referência para formação de profissionais que
atuam com usuários de álcool e outras drogas no SUS e SUAS* – CRR – UFRJ
Macaé, projeto realizado através da parceria da UFRJ e Secretaria Nacional de
Políticas sobre Drogas - SENAD/Ministério da Justiça. A desafiante temática
das drogas como questão de saúde pública, estruturante para a construção
das atividades do CRR – UFRJ Macaé, foi o eixo organizador do livro. Dois
outros temas tratados aqui foram centrais para o desenvolvimento da ativida-
de do CRR: o papel da universidade e dos projetos extensionistas.

Formar profissionais capazes de abordar a temática das drogas como


questão da saúde pública, em toda a sua complexidade, a partir da universi-
dade, mas com o olhar voltado para os territórios vivos e reais onde o fenô-
meno se apresenta com a força do seu colorido local, exigiu reflexão sobre o
papel da própria universidade e sobre a função dos projetos extensionistas.

No âmbito da vida universitária, a esses projetos cabe prioritaria-


mente estimular a universidade a se abrir para os saberes e práticas, sempre
em luta, que constituem a nossa sociedade. Dois artigos refletem mais pro-
fundamente sobre essas questões e oferecem assim um enquadre para todos
os demais. São eles o artigo que abre e aquele que encerra esta coletânea. O
primeiro, intitulado “Papel da universidade no desenvolvimento regional, com
ênfase no papel da Universidade Federal do Rio de Janeiro no desenvolvimento
de Macaé (RJ) e região”, discute o papel da universidade pública na região em
que se situa o CRR – UFRJ Macaé. O último artigo da coletânea, que relata um
projeto extensionista maduro, desenvolvido também na área socioambiental
e realizado no mesmo cenário e pela mesma universidade que o primeiro, nos
brinda com reflexões sobre a função da extensão universitária. Seu título é
“Espaço para a extensão universitária no campo socioambiental: um estudo de
caso sobre as audiências públicas do Terminal Portuário de Macaé” .

Três seções estruturam a coletânea. A seção I – Drogas como desafio


das políticas públicas: problemas globais, enfrentamentos locais; a seção II –
Experiências apresentadas; e a terceira e última seção – Projetos extensionis-
tas: outros relatos e desafios. Antes da primeira seção, todavia, oferecemos ao

*SUS: Sistema Único de Saúde. SUAS: Sistema Único de Assistência Social


10

leitor o capítulo que inaugura a coletânea, de autoria do professor titular


da UFRJ Francisco Esteves, referido acima: “Papel da universidade no de-
senvolvimento regional, com ênfase no papel da Universidade Federal do Rio
de Janeiro no desenvolvimento de Macaé (RJ) e região”. Nele o autor retoma
a história da universidade em nosso país para, a partir dela, refletir sobre o
compromisso atual das universidades, em especial da UFRJ, com a interio-
rização, as demandas regionais e a aplicabilidade social do conhecimento
produzido. A afirmação de que cabe à universidade do século XXI promo-
ver o intercâmbio entre saberes formais, universitários, e saberes e práticas
sociais informais, originariamente leigos, é um dos argumentos desenvolvi-
dos pelo autor com maior incidência sobre o debate da droga como questão
de saúde pública, eixo central dos Centros Regionais de Referência sobre
drogas.

A seção I – Drogas como desafio das políticas públicas: problemas


globais, enfrentamentos locais – composta de 6 capítulos, tem os cenários e
enfrentamentos locais como o mote para a reflexão sobre o tema das drogas
como questão da saúde pública, direta ou indiretamente. Os artigos que o
fazem diretamente partem da realidade dos municípios que compõem a
área de abrangência do CRR – UFRJ Macaé e desenvolvem reflexões a par-
tir desses contextos. Os que o fazem indiretamente apresentam, de algum
modo, metodologias que colaboram para que problemas globais sejam des-
critos de forma situada e corporificada, e que as descrições generalizantes e
abstratas dos problemas sejam superadas, pois pouco ajudam no enfrenta-
mento dos desafios de cada realidade particular.

O artigo “Os desafios para a formação dos profissionais e a cons-


trução de redes intersetoriais na temática AD: o Projeto Redes/SENAD em
Macaé RJ”, de autoria de Tânia Grigolo e Alex Xavier, interlocutora e arti-
culador local do referido projeto para o município de Macaé, apresenta o
Projeto Redes/SENAD, que tem o objetivo de fomentar a construção de re-
des intersetoriais de cuidado para pessoas em uso problemático de álcool e
outras drogas, e discute os desafios para a formação dos profissionais nesse
processo, no contexto particular de Macaé.

A partir de relato do desenvolvimento do projeto no município,


em andamento desde 2014, apresentam análise que sugere que o processo
de construção de redes deve ser em si mesmo formativo, tanto para os ato-
res individuais envolvidos quanto para os atores coletivos e institucionais,
pois um outro modo de descrever e enfrentar o problema é proposto. Esse
modo requer que a construção de uma rede de cuidado envolva e articu-
11

le diferentes setores da sociedade, e não apenas a saúde, ou a segurança;


estimule a proatividade parceira e compartilhada dos diversos atores envol-
vidos; considere e negocie os vários pontos de vista e forças em jogo; e dê
centralidade para a singularidade dos contextos locais e especialmente para
a singularidade e participação daqueles a quem o cuidado e a atenção se
dirigem. Esses aspectos, afirmam, são condição para a indução de relações
de compartilhamento e responsabilização em rede, e de respeito aos direitos
humanos e à singularidade dos sujeitos.

O terceiro capítulo “O desafio da atenção integral em álcool e ou-


tras drogas – a experiência do CRR Macaé em 13 municípios das regiões da
baixada litorânea e norte do estado do Rio de Janeiro”, escrito por Júnia Pros-
docimi, tutora do CRR – UFRJ Macaé, descreve as redes de saúde mental
existentes nos municípios da área de abrangência do CRR Macaé e como
se deram as pactuações regionais para estruturação dos serviços de atendi-
mento em álcool e outras drogas. Nesse artigo, a autora descreve também as
principais barreiras e desafios para a construção de uma política pública de
saúde eficaz no acolhimento, atendimento e acompanhamento da clientela
usuária de álcool e outras drogas nesses municípios. A sistematização das
informações que compõem esse artigo foram, ao mesmo tempo, condição e
fruto da implantação do CRR-UFRJ Macaé.

Como o território de abrangência do Centro Regional era vasto


e diverso – 13 municípios com características socioeconômicas, demográ-
ficas, culturais e geográficas diferentes –, foi necessário buscar conhecer
as particularidades dos cenários de origem dos participantes para que os
cursos oferecidos fossem culturalmente sensíveis às suas realidades locais.
Essas informações precisaram ser produzidas e organizadas. Para garantir
isso, o CRR-UFRJ Macaé adotou uma metodologia de trabalho que teve na
figura do tutor um dos seus pilares. A cada curso, dependendo dos muni-
cípios participantes, os profissionais inscritos eram agrupados e referidos a
um tutor. Havia quatro tutores. Coube ao tutor a tarefa de, a partir de exer-
cícios regulares presenciais e a distância, induzir e estimular que o debate
sobre os conteúdos teóricos apresentados em aulas e seminários fossem
debatidos à luz das realidades locais – do município/das redes/do serviço/
dos percursos das pessoas que necessitam de cuidado – entre os profissio-
nais participantes. Monitores (alunos de graduação dos cursos de medi-
cina, enfermagem, nutrição da UFRJ-Macaé e psicologia da UFF de Rio
das Ostras), em geral três por cada tutor, auxiliaram na aproximação entre
12

conteúdos teóricos e realidades práticas e na produção e organização das


informações sobre os cenários locais através da busca formal a documentos,
teses, artigos ou ainda através do registro das narrativas produzidas pelos
próprios participantes, informantes privilegiados de seus cenários locais,
nos debates travados em sala ou nos exercícios escritos.

“Consumos ‘problemáticos’ e situações de ‘vulnerabilidade’: drogas e


cultura para o contexto do cuidado em saúde”, o quarto capítulo da coletâ-
nea, é de autoria do antropólogo Marcos Veríssimo, professor convidado de
todos os cursos oferecidos pelo CRR- UFRJ Macaé. Embora não dialogue
diretamente com a realidade local, o autor apresenta aqui a etnografia, um
dos eixos do projeto metodológico do CRR-UFRJ Macaé. Ele a introduz e
discute o seu uso a partir de relatos de estudos que desenvolveu em diferen-
tes contextos locais de uso de crack. Essa metodologia garantiu ao autor o
conhecimento das diferentes marcas dos cenários estudados, dos diferentes
jogos de relação e da natureza dos conflitos presentes em cada contexto,
aspectos que poderiam facilmente passar despercebidos a um observador
pouco atento.

Considerando o alcance da etnografia, o autor propõe que os profis-


sionais envolvidos no cuidado no campo AD (campo de álcool e outras dro-
gas) a utilizem como uma ferramenta de aproximação desses espaços, já que
o seu uso permite ampliar tanto o conhecimento sobre tais cenários quanto
sobre quem nele vive ou frequenta. Sua proposta não consiste, como deixa
claro, em travestir o profissional do campo do cuidado de etnógrafo, mas em
franquear acesso a mais um saber capaz de auxiliá-lo na construção de um
cuidado sensível à experiência dessas pessoas que constituíram modos de vi-
ver e mundos, em certo sentido, distantes e diferentes dos nossos. Isso seria
condição para o desenho de um cuidado dialógico e compartilhado.

O capítulo que vem a seguir, o quinto, “Teatro do Oprimido: um meio


para a compreensão e ressignificação dos processos relacionados ao uso de
drogas e suas possibilidades interventivas”, como o anterior, traz reflexão so-
bre uma referência igualmente fundamental para o projeto pedagógico do
CRR-UFRJ Macaé: o Teatro do Oprimido. Os cursos oferecidos contaram
com oficinas pautadas na metodologia do Teatro do Oprimido, ministradas
por especialistas em Teatro do Oprimido do Centro do Teatro do Oprimido
do Rio de Janeiro. O Teatro do Oprimido (TO) é um método  teatral  que
reúne exercícios, jogos e técnicas teatrais, e um potente recurso para o tra-
13

balho com os saberes não racionais que determinam nossos modos de agir
e intervir socialmente, criado pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal. A sua
premissa é que todos somos teatro, embora nem todos façamos teatro. Ser
teatro, dirá, é ser humano, e ser humano é carregar em si o ator, o espec-
tador e o diretor das ações que praticamos na vida. Diferente do ator pro-
fissional, na vida cotidiana não costumamos ter consciência disso. A partir
de seu método, os saberes experienciais e não refletidos, que dirigem nos-
sas ações sem que nos demos conta disso, seriam explicitados e refletidos.
Com isso, cada um teria a chance de se apropriar dos papéis em que atua,
conscientizando-se da sua autonomia, tanto diante dos personagens que
representa quanto dos fatos cotidianos envolvidos na sua produção, mo-
dificando-os, se for o caso. Boal nos ajudaria, com o seu método, a acessar
os saberes não racionais que nos movem no dia a dia. Favoreceria assim
a ampliação da liberdade e da nossa capacidade de agir, e não de sermos
agidos pela realidade.

Monique Rodrigues, uma das especialistas que participaram da in-


clusão dessa atividade no cronograma dos cursos do CRR-UFRJ Macaé e
da condução das oficinas, assina o relato sobre o uso desse recurso nos cur-
sos realizados, seu alcance e limites. Quando a coordenação do CRR-UFRJ
Macaé decidiu pelo seu uso, o fez com o propósito de ter à mão, de modo
regular, sistemático e prioritário, uma ferramenta que facilitasse o acesso ao
conhecimento sensível e experiencial.

A dimensão racional costuma ser eixo prioritário da quase totali-


dade dos processos educacionais. A dimensão sensível do conhecimento é
pouco trabalhada ou valorizada, embora estudos indiquem que a mudan-
ça de atitudes – algo difícil de se produzir – seja ainda menos provável se
o processo de ensino não incluir a experiência corporificada e situada do
aluno e se restringir aos aspectos cognitivos, trabalhados exclusivamente
a partir da discussão1 de conceitos, representações e ideias sobre os temas
que se quer rever. No campo AD, a força do estigma se faz presente na so-
ciedade, entre os próprios usuários (autoestigma) e entre os profissionais de
área. Crenças naturalizadas e profundamente arraigadas em nossa cultura

1
KERKA, Sandra. Somatic/Embodied Learning and Adult Education. In: The Education Re-
sources Information Center, 2002;
14

sustentam o desrespeito aos diretos humanos e à singularidade das pessoas


com problemas relacionados ao uso problemático de álcool e outras drogas.
Transformar esse cenário e criar um modo de cuidar pautado em outros va-
lores exige que o processo de ensino-aprendizagem seja holístico, considere
a interação de aspectos intelectuais, simbólicos e afetivos.

Mudanças exclusivas no nível cognitivo não possibilitam aos alunos


atuar ativamente na transformação da realidade social, pois isso exigiria que
transformassem também a si próprios, é isso que mostram estudos atuais2.
Ou seja, a transformação social do cuidado no campo AD requer que o
processo educativo favoreça também a transformação individual. Como as
duas transformações não ocorrem separadamente, o uso de recursos que
ativem a transformação individual do aluno e que o auxiliem a assumir o
seu protagonismo nas mudanças sociais torna-se relevante se a pretensão é
construir uma outra realidade de cuidado.

O sexto capítulo – “Métodos e Abordagens do uso problemático


de drogas: alcances e limites para a clínica no território” – é de autoria de
Ruth Escudero, coordenadora acadêmica do CRR-UFRJ Macaé. Nele a au-
tora historiciza a construção do cuidado comunitário ao usuário grave de
álcool e outras drogas no Brasil e discute a Intervenção Breve a partir de
uma preocupação central: os riscos da utilização das estratégias de cuidado
como mera técnica. A fenomenologia é a referência teórica que lhe permite
sugerir que as abordagens de cuidado em saúde podem se tornar instru-
mentos de coerção, e não de cuidado, se utilizadas sem que os contextos e
sujeitos envolvidos sejam considerados. A experiência daqueles que fazem
uso problemático de álcool e outras drogas deve ser o eixo da relação de aju-
da e cuidado. Isso é condição primordial para que as abordagens sejam cul-
turalmente sensíveis e favoreçam a construção de novos modos de manejo e
lida com as substâncias e com os seus efeitos favoráveis e/ou desfavoráveis,
em parceria com os usuários.

2
BARLAS, Carole. Learning-within-Relationship as Context and Process in Adult Education.
In 42nd Annual Adult Education Research Conference Proceedings, East Lansing, Michigan,
June 1-3, 2001, edited by R. O. Smith et al. East Lansing: Michigan State University, 2001.
Disponível em <http://www.edst.educ.ubc.ca/aerc/2001/2001barlas.htm>. Acesso em 02 de
novembro de 2007.
15

No último capítulo dessa seção – “Drogas na escola... O que fazer”


–, a prevenção foi o tema principal. Gilberta Acselrad propõe que a ideia
de prevenção centrada no impedimento/proibição de quaisquer experiên-
cias com as drogas seja substituída por uma noção de prevenção centrada
na educação sobre drogas. Os argumentos que sustentam tal proposta de
mudança de paradigma se desenvolvem a partir de seis ricos fragmentos de
casos/situações reais, acompanhados pela autora no período de 2004 a 2014
no contexto escolar. Os casos relatados revelam que a carência de discussão
sobre o uso de drogas impede que esse fenômeno seja considerado como
um fenômeno social e que se conviva com as drogas de modo responsável.
Tomá-lo assim seria consequência de uma educação para autonomia e, ao
mesmo tempo, condição para que os controles coletivos da produção, co-
mércio e uso das drogas se fizessem articulados à luta pelos direitos e com
potência para romper o círculo perverso da violência envolvida no consu-
mo das drogas.

Na Seção II – Experiências Apresentadas, estão descritas experiên-


cias relatadas nos cursos oferecidos pelo CRR-UFRJ Macaé. A apresentação
de experiências foi um recurso importante para a formação de profissio-
nais no campo AD. Exemplos e modelos são ferramentas relevantes para
o aprendizado. Espera-se não que sejam “copiadas” ou tomadas como ins-
piração, mas que, justamente pela sua força de exemplo e referência, sir-
vam para interrogar e jogar luz sobre a realidade vivida pelos alunos, au-
xiliando-os a pensar os impasses e desafios experimentados no seu cenário
cotidiano para a construção do cuidado. Essas experiências, de realidades
locais próximas ou nem tanto, foram contadas no capítulo oitavo ao décimo
primeiro.

“Se essa rua fosse minha...” relata a experiência do Consultório na


Rua de Macaé (RJ). Naly Almeida, psiquiatra da cidade de Macaé com vasta
experiência nas questões da saúde mental na atenção primária, a partir do
relato da experiência do Consultório na Rua de Macaé, discute os desafios
do trabalho na rua, a complexidade do cuidado oferecido e a criação de
projetos terapêuticos singulares nesse contexto.

O capítulo seguinte, o nono, Percursos Reformativos – Relato de uma


experiência. Vinte e sete anos de trabalho pela construção do cuidado em saú-
de mental no contexto do SUS, é um registro do longo trabalho de Décio
Castro Alves, psicólogo, no campo da atenção psicossocial e em particular
16

no campo AD. Nesse artigo, tem-se o relato dos desafios enfrentados por
ele, ora como psicólogo de serviços substitutivos, ora como supervisor clí-
nico-institucional e também como gestor dos municípios de Santo André e
São Bernardo. O que se vê emergir nessa narrativa, inicialmente produzida
sob forma de entrevista por seu filho Breno, jornalista que assina junto o
artigo, é não só o processo de construção da rede de atenção psicossocial ,
mas o processo de construção do próprio campo AD em municípios que se
tornaram referência para todo o Brasil.

Para garantir que experiências dessa riqueza fossem compartilhadas


de forma viva com trabalhadores que participaram dos cursos de capacita-
ção oferecidos, o CRR-UFRJ Macaé se valeu de conferências por Skype com
convidados especiais. O uso desse recurso garantiu a superação da barreira
geográfica que, em países de dimensões continentais como o Brasil, é uma
limitação real para o compartilhamento de experiências. Décio foi um des-
ses convidados a quem o Skype nos garantiu acesso. Os dois capítulos que se
seguem foram parte do conjunto de relatos de experiências originalmente
produzidos por Skype.

“O Programa de Braços Abertos no município de São Paulo”, títu-


lo do artigo assinado por Myres Maria Cavalcanti, Teresa Cristina Endo
e Mirmila Musse, que à época estavam ligadas ao programa, apresenta o
relato dos dois primeiros anos desse importante projeto experimental, rea-
lizado pela prefeitura de São Paulo. O desafio central dessa experiência foi a
construção de um cuidado pautado em medidas não coercitivas e não cer-
ceadoras de liberdade para população em situação de rua. Fundamentado
na política de Redução de Danos, a sua riqueza é inquestionável, pois se dis-
pôs a enfrentar, como bem indicam as autoras, as mais variadas barreiras,
entre elas a desconfiança dessas pessoas, que são vítimas permanentes de
discriminação e exclusão, as forças governamentais, que temiam perder o
controle da situação, e a opinião pública, influenciada pela mídia, que des-
creve os usuários em situação de rua como seres desumanizados, perigosos,
degradados pela “epidemia” do crack, justificando assim, nas entrelinhas,
que sejam mantidos à margem da sociedade.

O último capítulo dessa seção de relatos de experiência – Impasses na


prática da Atenção Integral aos usuários de drogas: um estudo de caso –, é de
autoria da psicóloga Cristiane Mazza Marques. Por escrito, nesse décimo
primeiro artigo, a autora apresenta a discussão que estabeleceu com profis-
17

sionais do CRR-UFRJ Macaé por Skype. A partir de um estudo de caso, os


impasses presentes na construção do cuidado integral no campo AD foram
refletidos e sistematizados, nos oferecendo um caminho para abordá-los.

O caso apresentado é de uma criança de 4 anos que vivia em situa-


ção de rua com a mãe e que, como muitas outras crianças na mesma condi-
ção, fazia uso de inalantes, em especial thinner. Cristiane sugere que se tome
como premissa, para abordar qualquer situação que envolva o consumo pro-
blemático de substâncias, que o fenômeno particular que se quer manejar – o
caso real e particular – possui marcas peculiares que demandam reconheci-
mento. Ela sublinha as diferenças existentes no uso de drogas entre crianças,
adolescentes e adultos; entre neuróticos e psicóticos; nas formas de uso (uso
recreativo, abuso e dependência); entre os contextos culturais, os territórios
nos quais os usuários estão inseridos. Tais diferenças, dirá, requerem iden-
tificação se o propósito é a construção de um plano de cuidados sensível ao
sujeito e ao contexto. Os outros pontos que considera igualmente relevantes
para o desenho do cuidado integral são a construção do diálogo entre os di-
versos setores envolvidos e a preservação de sua articulação durante todo o
acompanhamento do caso, sem o que se torna muito difícil garantir de forma
permanente a integralidade da atenção.

A terceira e última seção – Projetos extensionistas: outros relatos


e desafios – é composta de quatro artigos. Desde a Constituição de 1988,
a extensão é um dos alicerces do tripé – ensino, pesquisa e extensão – que
caracteriza a universidade brasileira. Considerando a definição de extensão
universitária – “processo educativo, cultural e científico que articula o Ensino
e a Pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre
Universidade e Sociedade”3 – todos os quatro artigos que compõem essa
parte da coletânea explicitam, a partir da discussão de projetos extensionis-
tas específicos, algum aspecto da extensão universitária.

“O lugar do discente na extensão acadêmica: espaço de formação


e autonomia. O CRR-UFRJ Macaé – relato de experiência” é o decimo se-
gundo capítulo e foi escrito por Maria Clarissa Santos da Silva e Sávio de
Araújo Gomes, ambos estagiários bolsistas do CRR-UFRJ Macaé e, à épo-

3
BRASIL, 2000/01. Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras
e SESu / MEC, (2000/2001). Plano Nacional de Extensão Universitária. p. 5
18

ca, graduandos dos cursos de medicina e psicologia, respectivamente. O


CRR-UFRJ Macaé, durante todo o seu funcionamento, contou com quatro
estagiários bolsistas das graduações de medicina, enfermagem e psicolo-
gia. O trabalho que desenvolveram, eixo importante do projeto pedagógico
do CRR-UFRJ Macaé, foi dar suporte presencial e virtual aos profissionais
participantes, através de diferentes tarefas. Essas tarefas incluíram desde o
suporte operacional à realização presencial dos cursos até o suporte aca-
dêmico às atividades virtuais e presenciais propostas. Para desenvolverem
bem as tarefas acadêmicas, os monitores, apoiados por professores tutores,
leram e discutiram as temáticas e exercícios apresentados.

A decisão de tomar o trabalho dos monitores como central foi pau-


tada no reconhecimento de que a temática AD não tem lugar sistemático e
regular nos currículos dos cursos de graduação em saúde. Fazer dali um lugar
de formação também para os monitores foi um modo de, em alguma medida,
minimizar os efeitos disso. Estudos mostram que há insuficiência de conheci-
mentos e habilidades referidas pelos graduandos de saúde para atuar junto ao
indivíduo e família com história de abuso de álcool e outras drogas.

Então, enquanto a inserção sistemática do tema nos currículos, algo


pelo qual é preciso continuar a lutar, não se efetiva, a opção, apesar de limita-
da, é garantir espaços alternativos de aprendizagem. Nesse artigo, os autores
relatam a experiência de participação no CRR-UFRJ Macaé e descrevem seus
efeitos sobre a sua formação e os desafios e ganhos percebidos no processo.
Fazem isso a partir de narrativas produzidas em entrevistas individuais com
os monitores.

No décimo terceiro capítulo – CRR-UFF: a experiência da formação


para o cuidado de usuários de álcool e outras drogas –, a equipe do CRR- UFF
descreve como enfrentou o desafio de capacitar de forma continuada ato-
res governamentais e não governamentais envolvidos nas ações voltadas à
prevenção do uso, ao tratamento e à reinserção social de usuários de crack
e outras drogas. Uma questão em especial foi fio condutor do relato e do tra-
balho desenvolvido: o interesse em manter comprometidos os elementos en-
sino, gestão, atenção e controle social, que segundo Ceccim e Feuerwerker4,

4
CECCIM, R. B.; FEUERWERKER, L. C. M. O quadrilátero da formação para a área da saúde:
ensino, gestão, atenção e controle social. Physis, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, jan./jun.
2004.
19

autores que os orientam, deveriam compor o quadrilátero da formação, no


contexto do campo AD; um campo que historicamente não reconhece os seus
determinantes sociais, é marcado por ações de cuidado que desrespeitam os
direitos humanos e a singularidades dos sujeitos e promove intervenções que
frequentemente têm como efeito a exclusão social. Esses foram os obstáculos
que essa equipe planejou vencer com as ações de educação permanente de-
senvolvidas e é esse processo de construção que compartilham aqui.

O décimo quarto capítulo – PET Saúde Mental/crack, álcool e outras


drogas – Experiência de adoecimento de pessoas em uso problemático de ál-
cool e outras drogas que não deram continuidade ao tratamento no CAPS
ad – Porto/Macaé RJ - apresenta os resultados do estudo desenvolvido por
este PET, sob minha coordenação. O Programa de Educação pelo Trabalho
para a Saúde – PET-Saúde –, ação intersetorial que tem como pressuposto a
educação pelo trabalho, constitui uma das estratégias do Programa Nacio-
nal de Reorientação da Formação Profissional em Saúde, o PRÓ-SAÚDE.
O fio condutor do PET é a ativação da integração ensino-serviço-comu-
nidade e o fortalecimento de campos ou temáticas articuladas ao Sistema
Único de Saúde (nesse caso a saúde mental/campo AD foi o eixo). O Pro-
grama disponibiliza bolsas para tutores, preceptores (profissionais dos ser-
viços) e estudantes de graduação da área da saúde.

Durante os anos de 2010 a 2015, o PET e o CRR foram as duas prin-


cipais ações que compuseram o Centro regional de formação permanen-
te em saúde mental e atenção integral em álcool e outras drogas professor
João Ferreira da Silva Filho, da UFRJ Macaé. Essa instância, organizada a
partir do desafio de construir iniciativas que favorecessem a integração
da universidade-cidade no campo da SM (saúde mental) e AD, na cida-
de de Macaé, produziu ainda outros estudos sobre a realidade do cuidado
em AD. Um estudo sobre a associação entre sofrimento psíquico e abu-
so de drogas em pessoas em centros de tratamento em Macaé, publicado5

5
LEAL, Erotildes Maria; DELGADO, P. G. G. ou GODINHO DELGADO, P. G.; Strike, C.;
Brands, B.; Kenthi, A. Estudo de Comorbidade: sofrimento psíquico e abuso de drogas em
pessoas em centros de tratamento em Macaé, Brasil. Texto & Contexto Enfermagem (UFSC.
Impresso), v. 21, p. 96-104, 2012.
Merchán-Hamann, Edgar; LEAL, Erotildes Maria; Basso Musso, Liliana; García Estrada,
Miriam; Reid, Patrice; Kulakova, Olga Vladimirovna; Vásquez Espinoza, Eddy; Willis, Opal
Jones; Prieto López, Ricardo; Domenech, Diana. Comorbilidad entre abuso/dependencia de
drogas y el distrés psicológico en siete países de Latinoamérica y uno del Caribe. Texto & Con-
texto Enfermagem (UFSC. Impresso), v. 21, p. 87-95, 2012.
20

em 2012, outro sobre o perfil dos usuários de crack na cidade de Macaé,


apresentado em Congressos e agora publica-se aqui este estudo sobre o
fenômeno de abandono de tratamento no CAPS AD Porto – Macaé. Nes-
se capítulo, dois foram os objetivos: apresentar os resultados deste estu-
do sobre o fenômeno de abandono do tratamento, tão comum aos servi-
ços da área AD, a partir da perspectiva de quem faz o uso problemático
das substâncias e apresentar também a experiência de parte da equipe6
do PET na iniciação à pesquisa nesse campo.

Alunos de graduação de medicina (4), enfermagem (1) e trabalha-


dor de saúde (1) da rede AD, que constituíram parte do conjunto de quinze
alunos que participaram do PET, relatam aqui como experimentaram o
contato com o tema investigado e suas experiências durante o processo
da pesquisa. Suas narrativas, construídas coletivamente, aparecem ao lon-
go do relato da própria pesquisa. Comentam como viveram cada etapa da
investigação e também o impacto dos resultados em sua formação. Esse
estudo revelou que a experiência de quem tem problema com uso proble-
mático de álcool e drogas e que buscou o CAPS e não permaneceu precisa
mesmo ser mais conhecida. Os valores, saberes e sentidos que a constituem
parecem defini-la como um problema moral, e não como um problema do
campo da saúde, como poderia se supor. A atenção ao vivido se mostra,
desse modo, necessária para a construção de um cuidado que seja cultural-
mente sensível e que dialogue com a experiência do paciente.

O último capítulo – Espaço para a extensão universitária no campo


socioambiental: um estudo de caso sobre as audiências públicas do Terminal
Portuário de Macaé –, de autoria dos professores Rodrigo Lemes Martins,
Gustavo Arantes Camargo e Giuliana Franco Leal, assim como o primeiro
capítulo, que inaugura esta coletânea, não trata do campo AD. Ele é publi-
cado aqui porque discute o papel da universidade e a função da extensão
universitária a partir da atuação de pesquisadores do Núcleo de Pesquisa e
Desenvolvimento Sócio-Ambiental de Macaé (NUPEM), da UFRJ, em Au-
diências Públicas. As audiências são instrumentos de participação popular
em que a população é convidada a debater sobre a formulação de uma polí-

6
Este estudo, desenvolvido nos anos de 2012 e 2013, foi realizado por uma equipe constituída
por 15 alunos das graduações de medicina, enfermagem, psicologia, um preceptor psicólogo,
um assistente social e uma professora médica.
21

tica pública, a elaboração de um projeto de lei ou a construção de empreen-


dimentos que podem gerar impactos para a cidade, para a vida das pessoas
e para o meio ambiente. Sendo assim, são espaços onde está previsto que
posições diferentes, determinadas pelos diferentes interesses que compõem
a sociedade, se apresentem. Os autores mostram, a partir da reflexão sobre
a participação dos pesquisadores nas Audiências Públicas do Terminal Por-
tuário de Macaé, o papel que é dado ao saber científico nesses contextos.
Explicitam que em espaços onde há luta de interesses conflitantes o conhe-
cimento científico costuma ser requerido e comparecer como saber neutro,
meramente técnico, sobre o qual não se aplicam critérios relativos à justiça,
mas sim referentes à eficácia. A partir da experiência vivida nesse projeto
extensionista, os autores discutem as saídas para tal desafio. Esse exercício
parece ser útil para todos os que trabalham em campos onde a produção de
consenso, como o campo AD, é um desafio.

Fecha-se assim a apresentação desta coletânea, espelho do próprio


CRR-UFRJ Macaé e, indiretamente, também do Centro regional de forma-
ção permanente em saúde mental e atenção integral em álcool e outras drogas
professor João Ferreira da Silva Filho, instância que abrigou as iniciativas
extensionistas que coordenei no campo da SM e AD, no Campus UFRJ
Macaé. Muitos, de várias maneiras, foram fundamentais não só para que a
experiência do CRR -UFRJ Macaé se tornasse possível, como para que o seu
relato, sob forma de livro, ganhasse vida. Os professores Francisco Esteves e
Rodrigo Leme, do NUPEM, partícipes dessa publicação, nos acolheram no
NUPEM, tornando viáveis as atividades práticas. O Professor Pedro Gabriel
G. Delgado, da Faculdade de Medicina e Instituto de Psiquiatria da UFRJ,
parceiro de todo o tempo, foi fundamental para a idealização das atividades
do CRR e desse livro. Os méritos do projeto não seriam alcançados sem
sua valiosa colaboração. Os técnicos dos Polos Ajuda e do NUPEM, locais
em que as atividades do Centro João Ferreira se realizaram, também foram
indispensáveis. Cito o senhor Paulo Roberto Pereira dos Santos, mas mui-
tos outros sustentaram cotidianamente esse projeto. Da secretaria de saúde
do município de Macaé, Ruth Escudero foi pessoa chave, braço esquerdo e
direito, com quem compartilhei cada vitória e cada desafio. Para encerrar,
os meus sinceros agradecimentos aos professores permanentes, colabora-
dores, convidados, tutores, monitores e todos os alunos que apostaram nas
atividades desenvolvidas.

Erotildes Maria Leal (dezembro, 2016)


CAPÍTULO 1

Papel da Universidade no Desenvolvimento Regional, com


Ênfase do Papel da Universidade Federal do Rio de Janeiro
no Desenvolvimento de Macaé (RJ) e Região

Francisco de Assis Esteves7

1. Considerações Históricas sobre a Criação das Universidades Brasileiras

No ano de 998 surgia na cidade do Cairo (Egito) a primeira uni-


versidade, no conceito do que consideramos universidade nos dias atuais, e
no ano de 1088 na cidade de Bolonha (Itália) era criada a primeira universi-
dade do mundo ocidental. Já no Brasil, a primeira universidade, atual Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro, foi criada somente no ano de 1920, na
cidade do Rio Janeiro. Os motivos para a não criação de instituições de pro-
dução e transmissão do saber na principal colônia portuguesa eram muitos.
Contudo, o desinteresse da Corte Portuguesa pelo não desenvolvimento de
núcleos sociais mais aculturados pode ser uma das principais explicações.

Mesmo contrariando os interesses da Corte Portuguesa, acontece-


ram, durante o período colonial, algumas tentativas para criar universida-

7
Diretor Geral do Núcleo em Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental de Macaé (NU-
PEM/UFRJ)
24

des no Brasil. A primeira tentativa foi feita já no ano de 1583, por Marçal
Beliarte, religioso de grande cultura geral e Padre Provincial do Brasil de
1588 a 1599, sucedendo José de Anchieta, que exercera o cargo entre 1577
e 1587. Esse religioso português propôs ao Rei Felipe I criar uma escola
superior na colônia, mas este negou o seu pedido com o seguinte argumen-
to: “É um absurdo criar uma escola superior no meio do mato”. A segunda
tentativa de criar uma universidade no Brasil foi feita, no ano de 1789, pelos
inconfidentes. Caso a proposta tivesse logrado sucesso, a primeira univer-
sidade brasileira teria sido criada em São João del Rei, que seria, segundo
os planos dos inconfidentes, a nova capital do Brasil. A chegada da Corte
Portuguesa ao Brasil, no ano de 1808, não foi motivo suficiente para se criar
a primeira universidade brasileira, mas no máximo duas faculdades, que vi-
riam atender diretamente aos interesses dos membros da Corte Portuguesa.
Para tanto, foi investido cerca de 800 contos de réis para criar a Faculdade
de Medicina da Bahia e a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (Wan-
derley, 2003).

Deve ser acentuado que, mesmo não tendo sido criada nenhuma
universidade, nesse período já havia no Brasil centros de pesquisas razoa-
velmente estruturados, como o Jardim Botânico e o Museu Nacional (Sca-
rano, 2014).

Quando se compara o modelo de colonização português com


aquele praticado pelos espanhóis em suas colônias, no que diz respeito a
criação de estruturas de ensino superior, observa-se grande diferenciação.
Por exemplo, enquanto somente no ano de 1920 era criada a primeira uni-
versidade do Brasil – a Universidade do Rio de Janeiro (chamada Univer-
sidade do Brasil em 1937 e Universidade Federal do Rio de Janeiro a partir
de 1965), nas colônias espanholas já tinham sido criadas 20 universidades,
sendo que a primeira a ser criada, no ano de 1538, foi a Universidade de São
Domingos, na República Dominicana. Maior diferença pode ser constatada
quando a comparação é feita com o modelo de colonização britânico. Nesse
mesmo período nos Estados Unidos, já tinham sido criadas 78 universida-
des, sendo que a primeira a ser criada foi a universidade de Harvard, no ano
de 1636 (Rossato, 2005).

Como ocorreu com a fundação das primeiras vilas no Brasil, as


primeiras faculdades e a primeira universidade também foram criadas no
litoral. Como exemplos podem ser citados a Real Academia de Artilharia,
Fortificação e Desenho, criada em 1792 (atualmente Escola Politécnica da
25

UFRJ); a Escola de Anatomia, Medicina e Cirurgia, criada por em 1808


por João VI (Atualmente Faculdade de Medicina da UFRJ); Faculdade de
Direito de Olinda, criada no ano de 1827 (Atualmente Faculdade de Direito
da UFPE); a Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro no ano de 1881
(atualmente Escola de Direito da UFRJ).

Até meados do século XX, as poucas universidades brasileiras ti-


nham como principal missão a formação de profissionais para atender à
demanda de uma sociedade cuja economia estava baseada, principalmente,
em serviços e agricultura. Dessa maneira, pode-se considerar que nesse pe-
ríodo o papel das universidades no desenvolvimento regional, no contexto
do como é entendido na atualidade, foi reduzido. Contudo, as universida-
des, já naquela época, eram muito importantes na formação da elite inte-
lectual do Brasil.

2. Alguns Exemplos Bem-Sucedidos de Desenvolvimento Regionais


Promovidos por Universidades Brasileiras

As universidades que realizaram e ainda mais contribuíram e con-


tribuem para desenvolvimento das regiões nas quais se encontram foram
aquelas de cuja criação participaram pensadores, sonhadores ou visioná-
rios, que viam na produção do saber o meio mais eficaz para o desenvolvi-
mento regional e humano. Um bom exemplo foi o empresário, empreende-
dor e sonhador paulista Luiz de Queiroz. Luiz de Queiroz era um grande
empresário do ramo têxtil da região de Piracicaba que sonhava em criar
uma escola agrícola, tendo como modelo aquelas mais modernas da época,
que funcionavam na Europa, especialmente na França e na Inglaterra.

Após viagens à França, Inglaterra e Estados Unidos, onde conhe-


ceu várias escolas agrícolas, retornou ao Brasil e fez a doação, no ano de
1892, de uma de suas propriedades, a Fazenda São João da Montanha, para
a instalação da Escola Agrícola Prática de Piracicaba. Essa escola já nasceu,
no ano de 1900, com a missão de oferecer ensino de qualidade em sua área
de atuação, mas para a época era muito inovadora, visto que abraçava a
missão de realizar pesquisas agrícolas com o objetivo de fornecer subsídios
técnicos aos agricultores da região.
26

No ano de 1925, a Escola Agrícola Prática de Piracicaba é elevada


a categoria de universidade, ligada à Secretaria de Agricultura do Estado de
São Paulo. Suas atividades de pesquisa e ensino, comprometidas com a qua-
lidade acadêmica e com o compromisso de desenvolvimento regional, fize-
ram com que, no ano de 1934, fosse incorporada pela Universidade de São
Paulo. Com a sua incorporação à Universidade de São Paulo, seu nome foi
alterado para Escola de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ). A constante
busca da Escola de Agricultura Luiz de Queiroz pela excelência acadêmica,
compromissada com o desenvolvimento regional, fez com que essa insti-
tuição promovesse consideráveis avanços em procedimentos tecnológicos
e agrícolas, com enorme repercussão no desenvolvimento da cidade de Pi-
racicaba, da região e do Brasil. Foi dos laboratórios dessa instituição e de
seus campos e fazendas experimentais que surgiram programas de pesquisa
pioneiros em biotecnologia, como biocombustíveis, controle biológico de
pragas, novas variedades de frutas e legumes, entre outros. Muitos desses
programas são hoje responsáveis pela geração de milhares de empregos e
também por um porcentual considerável do Produto Interno Bruto atual
do Brasil.

Além de sua forte atuação na geração de conhecimentos científi-


cos, com grande repercussão social, a Escola de Agricultura Luiz de Quei-
roz criou as condições necessárias para a instalação de outras universidades
no município de Piracicaba. Entre essas, as várias faculdades e centros de
pesquisa da Universidade de São Paulo, possibilitando, assim, transformar
o município de Piracicaba e região em um polo de expressiva importância
nacional e internacional, em ciência e tecnologia, com grande influência
sobre o desenvolvimento humano da instituição.

Outro excelente exemplo de desenvolvimento regional alavancado


por universidades teve seu ponto de partida no ano de 1948. Nesse ano,
o governo do Estado de São Paulo publicou um decreto no qual autoriza
a criação de quatro “estabelecimentos de ensino superior” no interior do
estado. Segundo esse decreto do governo estadual, os estabelecimentos de
ensino superior estariam ligados à Universidade de São Paulo e seriam: Es-
cola de Engenharia, em São Carlos, Faculdade de Farmácia e Odontologia,
em Bauru e Taubaté, Faculdade de Medicina, em Ribeirão Preto, Faculdade
de Direito, em Campinas, e Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em
Limeira.
27

Dos estabelecimentos propostos no decreto de 1948, o primeiro a


se tornar realidade foi a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, criada
em 1951 com a participação efetiva de dois grandes cientistas, empreende-
dores e pensadores brasileiros: Zeferino Vaz (seu primeiro diretor) e Mau-
ricio Roca e Silva, um dos maiores expoentes da farmacologia brasileira.
Nos laboratórios, ainda muito simples, da Faculdade de Medicina de Ri-
beirão Preto foram criados fármacos de grande importância para a saúde
humana. Entre eles pode ser citada a bradicinina, usada amplamente em
medicamentos para controle da hipertensão. Esse fármaco, criado a partir
do veneno de jararaca, lançou a jovem ciência brasileira da década de 1950
no cenário científico internacional, principalmente por ter possibilitado
melhorar a expectativa e a qualidade de vida de hipertensos.

A partir dos laboratórios da Faculdade de Medicina de Ribeirão


Preto foram formados vários importantes cientistas, que tiveram papel cen-
tral para o desenvolvimento das ciências da saúde no Brasil. Além disso, a
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto se consolidou como um centro
de pesquisa e formação de recursos humanos na área médica de reconheci-
mento internacional. Hoje pode ser afirmado que a interiorização da Uni-
versidade de São Paulo na cidade de Ribeirão Preto foi um dos principais
fatores para intenso desenvolvimento econômico e humano, não só dessa
cidade, mas de toda a região.

Em seguida, foi criada a Escola de Engenharia de São Carlos, no


ano de 1953, e quase uma década depois foi criada a Faculdade de Farmá-
cia e Odontologia de Bauru. Essas três instituições de ensino têm como
características em comum o fato de seus fundadores assumirem a pesquisa
como a coluna vertebral de sua estrutura acadêmica. Além disso, tiveram
a preocupação de estabelecer projetos de pesquisa fortemente vinculados
com a realidade da regional.

Como consequência do modelo de criação de centros universitá-


rios, tendo como base a pesquisa e o forte compromisso com as demandas
regionais, as cidades de Ribeirão Preto, São Carlos e Bauru são, na atualida-
de, renomados polos de produção de ciência e tecnologia do Brasil, possi-
bilitando a geração de um complexo de empreendimentos empresariais que
atuam fortemente ligados a esses centros de pesquisas. Em resumo, pode-
se afirmar hoje que essas universidades foram os agentes nucleadores do
desenvolvimento de uma das regiões mais prósperas do país, constatado
através do elevado valor de seu Produto Interno Bruto (PIB).
28

A Universidade Estadual de Campinas é outro excelente exemplo


de como a criação de universidades focadas em pesquisa com alta apli-
cabilidade social pode contribuir para o desenvolvimento regional. Para
a criação dessa universidade, a participação de um brasileiro, sonhador e
empreendedor foi estratégica para a construção de seus sólidos alicerces
acadêmicos. Esses alicerces acadêmicos, fortemente focados na pesquisa,
foram de grande importância para que a Universidade Estadual de Cam-
pinas pudesse alcançar o papel de destaque no cenário científico brasileiro
e internacional. Esse brasileiro foi o professor Zeferino Vaz, que colocou a
experiência acumulada na fundação da Universidade de São Paulo, Cam-
pus de Ribeirão Preto, à disposição da criação de uma nova universidade, a
Universidade Estadual de Campinas.

O professor Zeferino Vaz foi designado, no ano de 1965, presi-


dente da “Comissão Organizadora da Unicamp” e foi reitor dessa univer-
sidade de 1966 a 1978. Mesmo antes de assumir a presidência da “Comis-
são Organizadora da Unicamp”, concebeu, com seus parceiros de sonhos,
um novo modelo de universidade para a época, calcada na pesquisa com
o compromisso social. Esse modelo foi fortemente facilitado, já que para a
criação da Universidade Estadual de Campinas, não ocorreu a aglutinação
de faculdades, como é muito comum no Brasil. A Universidade Estadual de
Campinas, foi criada a partir da ideia de fortalecer a relação universidade,
sociedade e empresa (Buarque, 1994).

Outro aspecto que foi fortemente atentado por Zeferino Vaz foi
a formação do corpo docente da Universidade Estadual de Campinas, que
teve como premissa a excelência na qualificação dos docentes a serem con-
tratados. Assim sendo, já em 1966, ano do início de suas atividades, contava
com mais de 200 professores estrangeiros, das diferentes áreas do conhe-
cimento, e cerca de 180 vindos das melhores universidades brasileiras, a
maioria com o título de doutor, fato ainda raro naquela época. Isso pode ser
comprovado na análise de uma entrevista concedida por Zeferino Vaz, no
ano de 1958, quando ele foi perguntado sobre os recursos necessários para
construir uma grande universidade que pudesse contribuir para o desen-
volvimento de uma região. Ele apontou que seriam necessários seis elemen-
tos básicos: 1- bons mestres, 2- bons mestres, 3- bons mestres, 4- biblioteca,
5- equipamentos e 6- edifícios. Para Zeferino Vaz, sem bons mestres não
era possível construir universidades com pesquisa qualificada. E, assim, a
universidade não poderia cumprir seu papel social.
29

Atualmente a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),


através de seus três campi – Campinas, Piracicaba e Limeira –, é responsável
por mais de 15% da produção científica do país e por porcentual represen-
tativo do número de patentes geradas nas universidades brasileiras. Além
disso, os sólidos alicerces acadêmicos lançados por Zeferino Vaz, que têm
na prática da realização de pesquisas dotadas de alta aplicabilidade social
sua principal característica, tornaram a Universidade Estadual de Campi-
nas um foco de propagação de conhecimentos e ações que possibilitaram
enorme desenvolvimento das cidades nas quais os seus campi se encontram.

Ainda no Estado de São Paulo, dois outros exemplos ainda mere-


cem destaque: A Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP) e a Universidade Federal de São Carlos. A Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” foi criada em 1976 como resultado da
incorporação de institutos isolados de ensino superior localizados em vá-
rias cidades do interior do Estado de São Paulo. Atualmente a Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” está presente em 24 cidades,
com vários centros de ensino e pesquisa voltados às questões regionais. Na
maioria desses centros é possível constatar o importante papel no desen-
volvimento da regional na qual eles se encontram. Um dos exemplos mais
consistentes são os campi UNESP de Botucatu e Jaboticabal, que dispõem
de centros de ecologia e de piscicultura mais conceituados do Brasil e de
grande respeitabilidade internacional.

A Universidade Federal de São Carlos, fundada em 1968, é outro


exemplo bem-sucedido de universidade que tem sido capaz de contribuir
consideravelmente para o desenvolvimento regional. Seus centros, desde
a sua criação, têm na pesquisa o principal instrumento para a formação
de recursos humanos qualificados e para o desenvolvimento regional. Nes-
se contexto, a Universidade Federal de São Carlos foi uma das primeiras
universidades brasileiras a criar, no ano de 1984, um Parque de Alta Tec-
nologia, voltado para difundir os conhecimentos gerados em seus laborató-
rios para o desenvolvimento tecnológico da região. Dessa iniciativa saíram
vários produtos pioneiros no país, como os primeiros leitores a laser, que
foram utilizados inicialmente nos supermercados da cidade de São Carlos
e depois por todo o Brasil.

Um dado que sustenta a afirmativa de que a interiorização das uni-


versidades no Estado de São Paulo foi fundamental para o seu desenvolvi-
30

mento científico e tecnológico pode ser extraído de uma matéria publicada


em um jornal de grande circulação, O Globo, de 20 de março de 2010, que
evidencia que o interior do Estado de São Paulo é responsável por mais da
metade (53%) dos doutores do Estado (Figura 1).

Figura 1 - Figura elaborada a partir de matéria publicada pelo jornal O Globo do dia 20 de
março de 2010. Essa figura evidencia a importância das universidades sediadas no interior
do Estado de São Paulo na formação de doutores (53%). Essa elevada produção de recursos
humanos qualificados tem consequência direta sobre o desenvolvimento científico, cultural,
tecnológico e econômico das regiões nas quais as universidades estão sediadas.

No Estado de Minas Gerais também podem ser encontrados bons


exemplos de desenvolvimento regional patrocinados por universidades.
Entre alguns dos exemplos, que podem ser citados, destacam-se aqueles
promovidos pela Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal de
Lavras e Universidade Federal de Alfenas.

No Estado do Paraná podem ser encontrados bons exemplos de


desenvolvimento regional induzido por universidades. Hoje o Paraná tem
31

quase uma dezena de importantes universidades públicas espalhadas por


várias regiões do Estado, as quais têm tido papel de destaque como fomen-
tadoras do desenvolvimento regional. Podem ser citadas as Universidades
de Maringá, Londrina, Cascavel, Campo Mourão, entre outras.

Na Região Norte do país, um dos melhores exemplos de participa-


ção de universidade no desenvolvimento regional é a Universidade Federal
do Pará, que criou em menos de 10 anos Campi universitários nas cidades
de Abaetetuba, Altamira, Bragança, Castanhal, Cametá, Marabá, Marajó,
Oriximiná e Santarém. Como resultado da firme política de implantação
de campi universitários, a Universidade Federal do Pará se tornou uma das
maiores do Brasil em termos de número de alunos. Não menos importante
é o fato de que a Universidade Federal do Pará é na atualidade uma das
principais âncoras para o desenvolvimento do Estado do Pará.

Um dado relevante é o fato de que através da Universidade Federal


do Pará a oferta de mão de obra especializada para a cadeia produtiva do
setor mineral, a mais importante fonte de renda daquele Estado e um dos
principais componentes do PIB brasileiro, já é quase totalmente suprida pe-
los seus campi avançados. Como exemplos podem ser citados:

§ Campus de Oriximiná, voltado quase exclusivamente para o


segmento da indústria do alumínio, cujas maiores reservas
de bauxita (matéria-prima para o alumínio) estão localizadas
nos municípios de Oriximiná (localidade Porto Trombetas) e
de Jurity, e

§ Campus de Marabá, que centrou suas áreas de pesquisa e en-


sino para os diferentes segmentos da cadeia produtiva do mi-
nério de ferro, cuja maior mina do planeta está em Carajás, a
cerca 132 km do campus.

Outro bom exemplo patrocinado pela Universidade Federal do


Pará foi a criação de seu campus universitário na cidade de Santarém. Esse
campus, que nasceu buscando como vocação a pesquisa numa região estra-
tégica da Bacia Amazônia, se transformou no ano de 2009 na Universidade
32

Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Com um projeto pedagógico muito


inovador, que tem na interdisciplinaridade o foco central, essa universidade
tem papel central no desenvolvimento de uma das regiões mais importan-
tes do Brasil e do planeta Terra, no que diz respeito à sua biodiversidade e
à riqueza em recursos hídricos. O papel da UFOPA no desenvolvimento
regional é de elevada relevância, pois mesmo com a importância ambiental
do oeste do Pará para o Brasil, a região sofre uma grande ameaça em conse-
quência do avanço do agronegócio focado no cultivo da soja. As pesquisas
em andamento, sob a responsabilidade de vários grupos muito qualifica-
dos de pesquisadores, apontam para o cumprimento, em um futuro muito
próximo, da missão dessa universidade, participando de maneira eficaz no
desenvolvimento da região oeste do Pará.

Todos os exemplos de desenvolvimento regional patrocinados por


universidades têm em comum o fato de as universidades promotoras desse
desenvolvimento terem na pesquisa um de seus eixos principais de atuação.
O resultado dos esforços dessas universidades em desenvolver projetos de
pesquisa focados na excelência e no desenvolvimento regional se reflete tam-
bém na oferta de cursos de graduação e de pós-graduação de alta qualidade.
Esses cursos são responsáveis pela formação de um celeiro de profissionais
de alta relevância, que constituem a matéria-prima para a construção do de-
senvolvimento científico, tecnológico, cultural e artístico não só da região na
qual se encontram, mas desse desenvolvimento terem do Brasil.

3. Papel da Universidade Federal do Rio de Janeiro no Desenvolvimento


de Macaé e Região

3.1 Origem e os Caminhos Percorridos pela Universidade Fede-


ral do Rio de Janeiro no Município de Macaé

A Universidade Federal do Rio de Janeiro, a mais antiga e uma


das maiores universidades do Brasil, fazia parte, até o ano de 1994, de um
pequeno grupo de universidades públicas brasileiras que não dispunha de
nenhuma Unidade Acadêmica fora da cidade na qual está localizada a sua
sede principal. Todas as unidades acadêmicas e administrativas da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro estavam localizadas no município do Rio
de Janeiro. Grande parte de suas lideranças acadêmicas e administrativas
assumiam como fato estabelecido que a Universidade Federal do Rio de
33

Janeiro “não tinha vocação para a interiorização”. Algumas lideranças che-


gavam a afirmar que a “interiorização era uma tarefa afeita a pequenas uni-
versidades voltadas ao ensino e uma universidade focada à pesquisa, como
é caso da Universidade Federal do Rio de Janeiro, deveria concentrar seus
esforços apenas na capital”.

O início de desmonte do cenário de forte resistência à interioriza-


ção de alguns setores da Universidade Federal do Rio de Janeiro começou
em maio de 1994, quando um pequeno grupo de cientistas do Instituto de
Biologia criou o Núcleo de Pesquisas Ecológicas de Macaé. Esse núcleo sur-
giu a partir do sonho de se criar no município de Macaé uma estrutura mí-
nima para acomodar os pesquisadores, que já há alguns, anos acampavam
às margens das lagoas desses municípios para realizar suas pesquisas. Além
disso, a construção de uma pequena estrutura física já seria suficiente para
a realização de outro sonho: possibilitar a disseminação, à população do
município, dos conhecimentos adquiridos através das pesquisas nos ecos-
sistemas locais.

A Economia do Petróleo, por sua força econômica e característi-


cas de exploração dos recursos petróleo e gás é capaz de gerar impactos de
grande magnitude aos ecossistemas e à sociedade. Ciente dessa realidade,
os cientistas do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro procuram, no ano de 1993, as autoridades municipais para viabilizar
a criação das estruturas mínimas para dar continuidade, com mais frequên-
cia e abrangência, as pesquisas nas lagoas e nas restingas do município de
Macaé.

Dos contatos com a prefeitura de Macaé surgiu a possibilidade de


ser colocado à disposição dos cientistas um depósito de ração bovina que
ficava ao lado de um curral de bois, estruturas essas que faziam parte do
Centro de Exposições Agropecuárias de Macaé, localizado no bairro São
José do Barreto. Assinado, no ano de 1993, o primeiro convênio entre a
prefeitura de Macaé e a Universidade Federal do Rio de Janeiro pelo então
prefeito Carlos Emir e o reitor Nelson Maculan Filho foi iniciada a via-crú-
sis para buscar recursos para reformar o galpão de ração e transformá-lo no
que viria ser chamado de Núcleo de Pesquisas Ecológicas de Macaé.

Os primeiros recursos alocados para a reforma do galpão de ração


tiveram sua origem no Projeto Ecolagoas (Ecologia das Lagoas do Norte
Fluminense, patrocinado pela Petrobras). Esses parcos recursos possibilita-
34

ram apenas contratação de um pedreiro, que, com a ajuda de um pesquisa-


dor e quatro estagiários, iniciou a reforma do galpão, que acontecia apenas
nos fins de semana. Ao término da reforma, o antigo galpão foi transfor-
mado em um pequeno e “simpático” prédio, que veio a ser sede de centro
de pesquisa. Esse prédio era constituído de um pequeno laboratório, uma
pequena sala de aula, uma pequena cozinha e quatro pequenos dormitórios
(3x2 metros). A denominação Núcleo de Pesquisas Ecológicas de Macaé
(NUPEM/UFRJ) se deve ao fato de que, na época, a atuação dos pesquisa-
dores era concentrada apenas nas pesquisas sobre lagoas costeiras.

Já nos primeiros meses de existência ficou clara que a missão do


Núcleo de Pesquisas Ecológicas de Macaé não deveria ficar restrita apenas
à realização de pesquisas de qualidade, muitas das quais pioneiras no Bra-
sil é à sua publicação em periódicos nacionais e internacionais especializa-
dos, mas os resultados obtidos nas pesquisas deveriam ser compartilhados
diretamente com a sociedade local. Essa estratégia mostrou ser de grande
eficácia e os alunos e professores do ensino fundamental e médio passaram
a ser o principal foco das atividades de extensão do Núcleo de Pesquisas
Ecológicas de Macaé.

As atividades desenvolvidas com os docentes e alunos da rede


pública de Macaé possibilitaram que em pouco tempo o Núcleo de Pes-
quisas Ecológicas de Macaé assumisse considerável respeitabilidade junto
à população de Macaé e região. A estratégia adotada de realizar pesquisas
e a imediata divulgação dos resultados à sociedade possibilitou aglutinar
vários parceiros, como a Prefeitura de Macaé, a Petrobras, ONGs, igrejas e
em especial as escolas do município. A crescente melhoria das condições de
trabalho atraiu vários pesquisadores de diferentes áreas do saber do Cam-
pus Fundão da Universidade Federal do Rio Janeiro e da Universidade de
Brasília, que passaram a desenvolver pesquisas nos diferentes ecossistemas
do município de Macaé.

Com o considerável crescimento do número de pesquisadores, do


aumento do número e da diversidade de projetos de pesquisa e a grande
respeitabilidade junto à comunidade acadêmica nacional e internacional
(convênios com a Suécia, Estados Unidos, Espanha e Alemanha) e à comu-
nidade da região, tornou-se inevitável que o Núcleo de Pesquisas Ecológicas
de Macaé passasse a fazer parte da estrutura acadêmica e administrativa
da Universidade Federal do Rio de Janeiro como uma de suas Unidades
35

Acadêmicas. Essa tarefa, que aparentemente seria simples, enfrentou um


grande número de obstáculos institucionais. Os maiores obstáculos eram
colocados por aqueles que viam na institucionalização do Núcleo de Pes-
quisas Ecológicas de Macaé a oficialização, pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, de um eventual processo de interiorização.

Com muita paciência, persuasão e persistência, todos os obstá-


culos foram sendo vencidos. E, no dia 9 de março de 2006, o Conselho
Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro aprovou a insti-
tucionalização do Núcleo de Pesquisas Ecológicas de Macaé como uma de
suas Unidades Acadêmicas. O instrumento estatutário mais adequado para
a institucionalização do Núcleo de Pesquisas Ecológicas de Macaé foi tor-
ná-lo um Órgão Suplementar do Centro de Ciências da Saúde, segundo o
Estatuto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Seção III, Artigo 36).

Nessa nova fase, era crescente a percepção de que a nova Unida-


de Acadêmica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, começou numa
pequena barraca de acampamento, não deveria limitar seu escopo científi-
co apenas em Ecologia, mas deveria incorporar outros importantes com-
ponentes, como o social e o econômico, à sua proposta de atuação. Esse
procedimento era uma necessidade natural, diante da grande capacidade
da sociedade contemporânea em promover alterações rápidas e de enorme
complexidade na natureza, as quais interferem diretamente na economia,
saúde e qualidade de vida do homem no século XXI. Diante dessa realida-
de, foi necessário e oportuno alterar o nome Núcleo de Pesquisas Ecológicas
de Macaé para Núcleo em Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental de
Macaé, preservando, no entanto, a já bem conhecida sigla (NUPEM/UFRJ).

Desde a sua criação, o NUPEM/UFRJ buscou estabelecer parcerias


com a população e com as autoridades do município de Macaé. Essas par-
cerias possibilitaram consideráveis avanços na estrutura física do NUPEM/
UFRJ, por meio, por exemplo, da cessão de um terreno onde está localizada
a sua nova sede.

As novas e amplas instalações do NUPEM/UFRJ possibilitaram


ampliar ainda mais suas atividades de extensão, entre elas cursos e ativi-
dades de educação ambiental para professores e alunos do ensino funda-
mental e básico, assim como projetos, programas e atividades que visam
subsidiar políticas públicas.
36

As novas instalações possibilitaram, no ano de 2006, a realização


de outro sonho: a criação do primeiro curso de graduação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro fora da capital: o Curso de Licenciatura em Ciên-
cias Biológicas. Para a criação de um curso de graduação em Macaé, foram
enfrentadas enormes resistências, principalmente nos Órgãos Colegiados.
E, mais uma vez, foi necessário estabelecer parcerias com aqueles que acre-
ditavam que a Universidade Federal do Rio de Janeiro é capaz de promover
a interiorização com qualidade acadêmica, que é uma das principais carac-
terísticas dessa instituição.

Depois de vencida grande parte das principais resistências, os Ór-


gãos Colegiados autorizaram apenas a criação de uma nova turma do curso
de Licenciatura em Ciências Biológicas, porém subordinada ao Instituto
de Biologia. Com essa nova turma de Licenciatura em Ciências Biológicas,
inicia-se o processo de interiorização do ensino pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro de maneira pioneira em Macaé.

Com a criação do primeiro curso de graduação fora da cidade do


Rio de Janeiro, foi possível a contratação dos oito primeiros docentes para
atuar no NUPEM/UFRJ. Esses oito docentes, pioneiros, foram os principais
responsáveis pela implantação do processo de interiorização da Universida-
de Federal do Rio de Janeiro em Macaé.

A cerimônia de inauguração da nova sede do NUPEM/UFRJ, no


dia 10 de março de 2006 é considerada um marco na história da interio-
rização da Universidade Federal do Rio de Janeiro em Macaé. Essa ceri-
mônia, além de muito concorrida e marcada pela emoção, decorrente dos
discursos de alunos, professores e representantes da comunidade de Macaé,
tornou explícito, para o grande número de pessoas presentes à solenidade,
que estava em curso um modelo de parceria, raro na Universidade Federal
do Rio de Janeiro: uma parceria eficaz entre a academia e a comunidade
de Macaé e região. Essa cerimônia representou uma fonte de inspiração e
estímulo para os diretores do Instituto de Química da Faculdade de Far-
mácia, Instituto de Nutrição, Escola de Enfermagem, Faculdade de Medici-
na e Faculdade de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
que passaram a examinar, de maneira objetiva, a possibilidade de seguir
o exemplo do Instituto de Biologia e criar em Macaé cursos de graduação
supervisionados por aquelas unidades acadêmicas.
37

3.2 Interdisciplinaridade: Caminho Percorrido pela Universi-


dade Federal do Rio de Janeiro para Promover o Desenvolvi-
mento de Macaé e Região

O município de Macaé está localizado em uma região caracteriza-


da por uma economia fortemente dependente do único recurso natural não
renovável, o petróleo. A chamada Economia do Petróleo impôs e continua
impondo à sociedade macaense profundas e rápidas transformações econô-
micas, sociais e ambientais.

Diante da realidade ímpar que a sociedade norte-fluminense atra-


vessa desde o final da década de 1970, quando da instalação da Economia do
Petróleo, tornou-se claro que a criação de um centro de pesquisa, capaz de
produzir os conhecimentos para subsidiar o seu desenvolvimento em bases
sustentáveis, deveria abandonar o modelo tradicional de gerar conhecimen-
tos, a partir de estruturas disciplinares, como os departamentos universitá-
rios, para construir um modelo diferenciado, baseado na abordagem inter-
disciplinar. Assim sendo, já na sua fase inicial, o NUPEM/UFRJ, constitui
seu corpo de cientistas sem as barreiras disciplinares, corporativistas e muito
menos aquelas impostas pelos departamentais, que dificultam ou mesmo im-
pedem a integração de saberes, de cientistas, corpo técnico e de alunos.

Para o exercício da abordagem interdisciplinar, o NUPEM/UFRJ


conta hoje com uma equipe de cerca de cinquenta docentes das mais dife-
rentes áreas do saber, como botânicos, pedagogos, zoólogos, bioquímicos,
biotecnólogos, filósofos, ecólogos, sociólogos, antropólogos, cientistas da
área da saúde, entre outros. Com uma equipe de cientistas com essas ca-
racterísticas, torna-se possível construir projetos e programas de pesquisa
integrados, com enorme capacidade de gerar informações de relevância,
que podem abranger temas que vão desde as moléculas de origem natural
e antrópicas presentes no ambiente, passando por pesquisas sobre os or-
ganismos e ecossistemas aquáticos (lagoas costeiras, manguezais, regiões
costeiras do mar) e terrestres (Restinga, Mata Atlântica, entre outros), até as
pesquisas relacionadas à sociedade humana.

Em outras palavras, pode-se afirmar que o modelo construído no


NUPEM/UFRJ possibilita integrar diferentes olhares sobre o mesmo objeto
de estudo. Esse procedimento propicia, além de economias de recursos ma-
teriais e humanos, grande avanços científicos e sociais (Figura 2).
38

Deve ser destacado que a várias áreas do saber convivendo em


torno de propostas acadêmicas comuns, como ocorre em grupos de pes-
quisas integrados através da interdisciplinaridade, gera maior diversidade
de abordagens e de experimentações metodológicas, que podem convergir,
gerando resultados mais abrangentes e precisos. Além disso, é mais valioso
o exercício da ciência em um ambiente onde predomina a diversidade, visto
que esse procedimento leva invariavelmente a maior estabilidade e a maior
resiliência dos sistemas interdisciplinares de pesquisa.

O modelo integrado e articulado de atuação praticado no NUPEM/


UFRJ exige de seus participantes mudanças, muitas vezes profundas, de suas
maneiras de praticar ciência. Essas mudanças são necessárias pelo fato de que
a maioria de seus membros foi formada em laboratórios, núcleos, institutos e
em centros de pesquisa de atuação fortemente disciplinar e isolados do ponto
de vista acadêmico, e não raramente também isolados fisicamente.

A desconstrução do modelo, concebido a partir da edificação de


muros acadêmicos invisíveis, mas de grande poder de exclusão, impostos
pelo modelo disciplinar e geralmente fortalecido pelo corporativismo, foi
acontecendo no NUPEM/UFRJ de maneira gradual. Com o passar do tem-
po, surgiram as evidências das vantagens do atuar interdisciplinarmente. E
a integração dos saberes entre cientistas, alunos e técnicos administrativos
passou a ser uma realidade.
39

Química Zoologia

Educação Botânica

Microbiologia NUPEM história

UFRJ

Filosofia
Pedagogia

Ecologia Sociologia

Figura 2 - o modelo no qual as atividades acadêmicas ocorrem de maneira integrada, sem as


barreiras impostas pelos departamentos universitários, que dificultam ou mesmo impedem a
integração dos saberes, já é uma realidade no cotidiano dos pesquisadores, alunos e técnicos
administrativos do NUPEM/UFrJ e é fundamental para a promoção de grandes avanços cien-
tíficos e sociais.

o modelo de pesquisa realizado de maneira integrada, sem as barreiras que


dificultam ou impedem a integração dos saberes, tem sido a condição sine
qua non para que o NUPEM/UFrJ seja uma Unidade acadêmica com al-
gumas características muito peculiares, sendo o local:

§ da dúvida e onde os conhecimentos já estabelecidos são ques-


tionados;
40

§ da busca pela concepção e realização de sonhos;

§ do desapego pelo conhecimento presente e pela busca cons-


tante pela renovação e pela busca de horizontes que apontem
para o futuro;

§ da busca pela excelência na pesquisa, no ensino e na extensão;

§ do estímulo irrestrito à paixão pelo exercício da ciência e

§ da consciência do papel social da ciência.

Essas características tornam o NUPEM/UFRJ um espaço muito


propício à formação de lideranças científicas com muita propriedade de
lançar olhares sobre questões locais e regionais, assim como sobre questões
globais.

O sucesso alcançado pelo NUPEM/UFRJ pode ser atribuído a três


fatores principais: à elevada qualificação de seus docentes, à realização de
suas atividades, de seus projetos de pesquisas, atividades de ensino e de
extensão no contexto da abordagem interdisciplinar e ao fato de que todas
as suas ações estão fortemente vinculadas às demandas do município de
Macaé e região. Essas características, que estão presentes no dia a dia des-
sa instituição, fizeram com que o NUPEM/UFRJ se tornasse um modelo
contemporâneo, não só para a Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas
para várias universidades brasileiras que buscam a excelência acadêmica
com o compromisso de promover o desenvolvimento regional.

3.3 Através do NUPEM/UFRJ, a Universidade Federal do Rio de


Janeiro Inicia Sua Participação no Desenvolvimento Científico,
Social e Ambiental de Macaé e Região

A - Contribuição na Formação da Consciência Socioambiental da População

A Universidade Federal do Rio de Janeiro contribui para o desen-


volvimento socioambiental do município de Macaé desde a criação de sua
primeira Unidade Acadêmica sediada no município, o NUPEM/UFRJ. Essa
contribuição ocorre principalmente por meio da divulgação dos resultados
41

obtidos em suas pesquisas, não só para o público especializado, mas através


de periódicos nacionais e internacionais, especialmente para a população
local e da região.

Para a divulgação dos resultados das pesquisas para a população


local e da região, parte-se do princípio de que as informações publicadas
nesses periódicos especializados dificilmente chegam àqueles que tomam
as decisões na esfera municipal e na esfera federal, e muito menos às salas
de aulas dos municípios da região. Assim sendo, é urgente e necessário que
os resultados das pesquisas gerados pela academia cheguem, o mais rápi-
do possível, ao público leigo. Essa condição é o início para que a pesquisa
venha a se constituir na matéria-prima para a construção de políticas pú-
blicas sólidas, capazes de promover o desenvolvimento regional em bases
sustentáveis.

Cientes dessa realidade, os pesquisadores do NUPEM/UFRJ es-


tabeleceram como procedimento rotineiro estender os resultados de suas
pesquisas à sociedade por meio de três atividades principais: cursos de
Formação Continuada para professores do ensino fundamental e médio,
atividades de educação ambiental e de divulgação científica para alunos dos
ensinos fundamental e médio e publicações na área de ciências biológicas e
socioambientais voltadas para o público não especializado.

§ Curso de Formação Continuada para Professores do Ensino


Fundamental e Médio

O primeiro curso de Formação Continuada para professores do


ensino fundamental e médio foi oferecido no ano de 1997. Em média, são
oferecidos dois cursos por ano. Nesses cursos, já participaram professores
do ensino fundamental e médio de 15 municípios das regiões dos Lagos,
Noroeste e Norte-Fluminense. No total, já participaram 1.892 professores.
Esses cursos de Educação Continuada são de grande importância, não so-
mente como forma de atualização, mas também como possibilidade de for-
mação de muitos dos docentes participantes. Deve ser destacado que nas
regiões dos Lagos, Noroeste e Norte-Fluminense ainda é frequente a ocor-
rência de docentes que atuam no ensino médio sem, no entanto, ter curso
superior. Essa realidade torna esses cursos muito mais necessários para a
formação do corpo docente dessas regiões.
42

Um aspecto relevante a ser destacado é o fato de que nos cursos de


Formação Continuada é dada especial atenção a temas de interesse da re-
gião. Nesse sentido, os cursos abordam temas de interesse locais e regionais,
objetivando estimular os professores cursistas a substituir os exemplos que
são apresentados nos livros, textos geralmente de regiões distantes, por ou-
tros locais e regionais. Esse modelo de curso tem sido de grande relevância,
principalmente como elemento formador da consciência socioambiental
dos professores do ensino fundamental e médio.

A consciência socioambiental é formada a partir do fato de que, ao


conhecer os ecossistemas – Restinga Mata Atlântica, manguezais, regiões
marinhas costeiras, entre outros, sua biodiversidade e suas características
ecológicas –, os docentes passam a valorizá-los. E, uma vez valorizados, a
consciência para a preservação passa a ser uma decorrência natural. Uma
vez alcançado esse objetivo, como numa reação em cadeia, os professores
conscientizam seus alunos sobre a necessidade da preservação do ambiente
(alguns professores chegam a lecionar para mais de duas centenas de alu-
nos por semestre) e os alunos conscientizam sua família. Por meio desse
procedimento, o conhecimento científico alcança rapidamente a população,
possibilitando enormes avanços com reflexos diretos sobre a qualidade de
vida da população.

§ Atividades de Educação Socioambiental e de Divulgação


Científica para Aluno do Ensino Fundamental e Médio

As atividades de educação socioambiental e de divulgação científi-


ca para alunos do ensino fundamental e médio são atividades regulares que
se inserem em diferentes projetos, programas e disciplinas de extensão que
são desenvolvidas no NUPEM/UFRJ. As atividades de educação socioam-
biental são desenvolvidas desde 1992 e compreendem, entre outras, aulas
sobre os ecossistemas do município de Macaé, que são ministradas nos pró-
prios ecossistemas. Essas atividades têm se mostrado de grande relevância
para divulgar a rica biodiversidade da região, assim como para evidenciar
os diferentes impactos antrópicos a que ela está submetida.

Além de divulgarem os ecossistemas e a rica biodiversidade da


região, essas atividades focam as questões socioambientais, visto que a efe-
meridade e instabilidade da Economia do Petróleo e a importância da pre-
43

servação ambiental, como forma de manutenção da qualidade de vida na


região, são conteúdos que devem estar presentes na consciência de todos os
habitantes do município de Macaé e região.

As atividades de divulgação científica são desenvolvidas em um


espaço para exposições denominado “Espaço Ciência NUPEM”. Esse espa-
ço detém uma excelente coleção de animais e plantas, devidamente prepa-
rados, representantes dos ecossistemas da região. Essas atividades são ge-
ralmente conduzidas por alunos do curso de Ciências Biológicas, que, sob
orientação de docentes, recebem anualmente várias centenas de alunos do
ensino fundamental e médio. O “Espaço Ciência NUPEM” representa uma
das únicas possibilidades na região norte-fluminense para a divulgação
científica, especialmente de sua rica biodiversidade de plantas e animais.

§ Publicações e Divulgações Voltadas para o Público Não Espe-


cializado

Publicações na área de ciências biológicas e socioambientais vol-


tadas para o público não especializado por meio dos “Cadernos do NU-
PEM” constituem um elemento de grande importância para a divulgação
das pesquisas realizadas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em
Macaé. O “Cadernos do NUPEM” é um seriado, publicado pelos menos
uma vez ao ano, que divulga resultados de pesquisa, muitas vezes pioneiras,
com linguagem não técnica, contudo precisa, para atender ao público não
especializado e alunos do ensino médio. Com tiragem em grande número,
possibilita ampla divulgação nas escolas de Macaé e região.

Outra importante possibilidade de divulgação para o público não


especializado são as “Fichas dos Seres”, que são coletâneas de fichas direcio-
nadas à divulgação das características biológicas e ecológicas dos principais
organismos dos diferentes ecossistemas de Macaé. Essas “Fichas dos Seres”
divulgam informações pioneiras sobre hábitos alimentares, aspectos de re-
produção, dinâmica populacional e aspectos sobre manejo e preservação da
espécie que é focada em cada edição. As “Fichas dos Seres” são amplamente
utilizadas em sala de aula de escolas da região e também em escolas de vá-
rios estados brasileiros.
44

Figura 3 - Publicações voltadas para o público não especializado, Cadernos do NUPEM, Fi-
chas dos Seres e Publicações Temáticas são os meios mais eficazes para fazer com que o co-
nhecimento gerado nos laboratórios e campos experimentais do NUPEM/UFRJ cheguem até
as salas de aulas e contribuam para a formação da consciência socioambiental da população
de Macaé e região.

Outra fonte de divulgação dos resultados das pesquisas muito uti-


lizada pelos pesquisadores do NUPEM/UFRJ é a mídia escrita e de rádio
do município de Macaé. Esses meios de comunicação têm enorme poten-
cial de formar opinião da população e oferecem, com muita frequência,
excelentes oportunidades aos cientistas de divulgar resultados de pesquisas,
muitas ainda em andamento. A experiência mostra que esses veículos de
comunicação são os meios mais rápidos através dos quais o conhecimento
científico pode alcançar a população e, dessa maneira, proporcionar avan-
ços consideráveis na construção de uma sociedade mais consciente de seus
problemas e dos meios para atingir sua atenuação (Figura 4).
45

Figura 4 - Resultados publicados em periódicos especializados sobre a qualidade da água e


da lama do Estuário do Rio Macaé são disseminados junto à população de pescadores através
da imprensa local. O jornal local é o principal veículo de informação para este segmento da
população e um eficiente caminho que o conhecimento científico pode percorrer até alcançar
a comunidade pesqueira.

B - Contribuição para a Conservação dos Ecossistemas de Macaé

O município de Macaé é o epicentro da chamada Economia do


Petróleo, que tem revelado grande capacidade de produzir impactos econô-
micos, mas, principalmente, sociais e ambientais.

A capacidade da Economia do Petróleo de produzir impactos so-


ciais e ambientais é extraordinária. Após quarenta anos de sua existência na
região norte-fluminense, pode-se afirmar que não há nenhum espaço do
território macaense que ainda não tenha sofrido alguma forma de impacto
ambiental decorrente dessa economia. Até em uma rápida caminhada pelo
município, percebe-se claramente que o seu desenvolvimento não ocorre de
maneira sustentável. O desenvolvimento não sustentável de Macaé pode ser
facilmente observado através:
46

§ da poluição atmosférica, especialmente nas regiões de maior


tráfego de veículos;

§ do excesso de veículos, especialmente de transporte de equi-


pamento de grande porte para atender à cadeia produtiva do
petróleo, o que gera engarrafamentos semelhantes àqueles vi-
venciados nas grandes cidades;

§ do processo acelerado de ocupação de áreas de preservação


permanente para construção de residências e de prédios in-
dustriais;

§ da formação de núcleos residenciais com grandes diferenças


econômicas e sociais, gerando, com frequência, insegurança
pública;

§ da poluição por resíduos industriais e por efluentes domésti-


cos de, praticamente, todos os recursos hídricos do município
e região;

§ dos aterros das áreas alagáveis, sistemas de grande importân-


cia para a manutenção do equilíbrio hídrico do município;

§ da remoção das poucas florestas que ainda restam nas partes


altas do município, onde se localizam as nascentes que abas-
tecem o Rio Macaé, a principal fonte de água para a região; e

§ da destruição de habitat de espécies endêmicas, raras, migra-


tórias e em extinção.

Diante do quadro de desenvolvimento não sustentável em que Ma-


caé e região se encontram, um centro de pesquisas deve colocar como mis-
são principal a realização de pesquisas de qualidade e a formação de pro-
fissionais qualificados e contextualizados com essa realidade. Assim sendo,
do período de 1994 a 1998, os pesquisadores da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, por meio do NUPEM/UFRJ, empenharam-se na construção
do projeto para a criação de uma Unidade de Conservação, com o objetivo
de proteger o que ainda restava no Brasil, de restingas preservadas, que era
47

o trecho de restinga localizado entre os munícipios de Macaé e Quissamã


(RJ). Esse trecho de restinga é constituído de um mosaico de ecossistemas
costeiros ainda em condições de preservação semelhantes àqueles que os
portugueses encontraram quando chegaram ao Brasil no século XVI. Ape-
sar de sua relevância ecológica, econômica e social, esse trecho de restinga
se encontrava fortemente ameaçado. Entre as ameaças mais preocupantes
está a ocupação desse trecho de restinga por brasileiros sem qualificação
profissional adequada à Economia do Petróleo, vindos de várias regiões do
país em busca de emprego. Esses brasileiros, além de não encontrarem pos-
tos de trabalho devido à falta de programas governamentais de moradia,
ocupavam, e ainda ocupam, áreas de preservação permanentes como essa.

Durante os anos de 1996 a 1998, foram muitas e intensas as discus-


sões com os segmentos da sociedade contrários à transformação do trecho de
restinga entre os municípios de Macaé e Quissamã em uma Unidade de Con-
servação. As discussões foram lideradas pelos pesquisadores da Universidade
Federal do Rio de Janeiro do Campus Fundão e do NUPEM/UFRJ e somente
cessaram no dia 29 de abril de 1998, quando o Presidente da República do
Brasil assinou o decreto que tornava o trecho de restinga entre os municípios
de Macaé e Quissamã em um parque nacional que recebeu a denominação de
Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba. Esse parque nacional é o único
do Brasil que preserva restingas brasileiras (Esteves, 2011).

O Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba tem a área total de


14.922 hectares, abrangendo os municípios de Macaé (1% da área), Cara-
pebus (34%) e Quissamã (65%). O porcentual da área dos municípios ocu-
pada pelo Parque é: Macaé 0,2%, Carapebus 22,2% e Quissamã 12,5% e
seu perímetro tem 123.586 km. Embora o Parque Nacional da Restinga de
Jurubatiba ocupe apenas 1% da área do município de Macaé, é esse muni-
cípio que provê a quase totalidade das ameaças a que está submetido, como
queimadas e invasões.

Ao longo do processo de mobilização da sociedade para a criação


do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba, ficou evidenciado que os
cursos de Capacitação e as atividades de educação ambiental e de divul-
gação científicas oferecidos pelo NUPEM/UFRJ foram de grande impor-
tância. Por meio dessas atividades, foi possível divulgar a biodiversidade,
48

assim como sua importância para a sociedade. Dessa maneira, tornou-se


mais fácil mobilizar praticamente todas as escolas, alunos e professores em
torno da ideia de criação do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba.

A criação do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba possi-


bilitou a preservação de um conjunto de ecossistemas, entre os quais 18
lagoas costeiras, brejos, restingas, matas que abrigam muitas espécies, que
somente ocorrem nesses ambientes, assim como um patrimônio genético
com enorme potencial de geração de produtos de importância para o ho-
mem. Além disso, foi possível preservar espécies já praticamente extintas
do território brasileiro, como duas formas de borboletas (Parides ascanius
e Mimoides lysithous harrisianus), uma espécie de sapo (Rhinella pygmaea),
o lagarto-da-cauda-verde (Cnemidophorus littoralis), a lagartixa-da-areia
(Liolaemus lutzae) e o sabiá-da-praia (Mimus gilvus antelius), ave que pelo
belo som que emite já se encontrava, praticamente, extinta em outras re-
giões do Brasil. Atualmente, essa ave pode ser encontrada em populações
sustentáveis, graças à transformação de seu habitat, a restinga, em Parque
Nacional. Contudo, uma das finalidades mais imediatas é a possibilidade de
uso dessa Unidade de Conservação para turismo sustentável, com enorme
potencial de geração de emprego e renda para a população da região.

No momento, os cientistas da Universidade Federal do Rio de Ja-


neiro, através do NUPEM/UFRJ, estão envolvidos com propostas de cria-
ção de outras Unidades de Conservação em áreas de proteção dos recursos
hídricos do município. Depois de avaliadas, será sugerida às autoridades
competentes a transformação em Unidades de Conservação:

§ Bacia da Lagoa de Imboassica;

§ Maciços de Serra da Cruz e Crubixais; e

§ Topos de morros em Bicuda Grande e Pico do Frade (assim


como áreas verdes que possam funcionar como corredores
ecológicos entre essas duas áreas).

As ações que visam ao emprego dos conhecimentos científicos


produzidos em seus laboratórios e salas de aulas na proteção dos recursos
naturais representam uma das principais contribuições que a Universida-
de Federal do Rio de Janeiro pode prestar ao desenvolvimento de Macaé e
região.
49

C - Criação da Escola Municipal Pescadores: uma Contribuição para o Cres-


cimento Sustentável de Macaé e Região

Desde longo tempo, a exploração dos recursos pesqueiros dos rios,


lagoas costeiras e principalmente do mar se constitui uma das principais
fontes de geração de emprego, renda e divisas na região norte-fluminense.
Dados do governo municipal de Macaé indicam que somente nesse municí-
pio a atividade pesqueira emprega direta e indiretamente mais de cinco mil
pessoas. Contudo, com o crescimento das atividades ligadas a exploração
do petróleo, essa atividade vem progressivamente perdendo espaço e im-
portância, sendo observada uma a enorme degradação do valor e significa-
do social e econômico do ofício.

Nos aspectos em que se manteve, a pesca ou é uma atividade eco-


logicamente predatória que caminha para a exaustão dos recursos ou é pra-
ticada de forma insegura, desigual e desumana para os poucos pescadores
tradicionais, que teimam em seguir na sua atividade, a mesma de seus pais
(Bozelli, 2002).

Segundo o professor Reinaldo Luiz Bozelli (comunicação pessoal),


a atividade de pesca, que compreende a extração racional dos recursos na-
turais renováveis (peixes e crustáceos), assim como a pesca esportiva e o
turismo ecológico, deve ser encarada como uma alternativa perfeitamente
possível para a região norte-fluminense nos dias atuais e para os dias que
sucederão o período de decadência da Economia do Petróleo ou do período
pós-petróleo. Contudo, isso só acontecerá à medida que as ações forem fei-
tas no sentido da capacitação, organização e articulação comercial da classe
dos pescadores.

A Escola Municipal de Pescadores foi concebida como instrumen-


to de busca por uma nova forma de educar para este novo milênio, levando
para a sala de aula o mundo como ele realmente é: complexo, competitivo,
tecnológico e absolutamente interdependente nas mais diferentes facetas.
O mundo está mudando de forma acelerada e o ensino tem que se adequar
a essas mudanças. A escola não é uma ilha, mas se insere em um contexto,
social, econômico, ambiental, entre outros, com seus conflitos, incertezas
e alegrias. Assim sendo, a Escola de Municipal de Pescadores se esmeraria
pela criação de espaços para que os alunos debatam e discutam os fatos que
lhes façam sentido (Bozelli, 2002).
50

As atividades da Escola Municipal de Pescadores eram desenvol-


vidas em tempo integral, com atividades pela manhã e à tarde. O turno
da manhã era dedicado às disciplinas curriculares que, contudo, deverão
estar organizadas para abordar seus conteúdos na perspectiva específica da
preparação para a realidade da pesca profissional. No turno da tarde, em
três dias por semana, as aulas se voltavam completamente para atividades
de cunho prático, almejando o aprendizado pela experiência sensorial, pela
excursão orientada e a busca do saber fazer. Nesse momento, o foco se vol-
tava pelo estímulo ao aprimoramento das habilidades e do aprender fazen-
do. A questão mais relevante é que a escola trabalhasse preferencialmen-
te através da abordagem de projetos. Vislumbrou-se, assim, uma maneira
mais fácil de integrar conteúdos da manhã e da tarde, como também entre
as diferentes disciplinas (Bozelli, 2002).

A maioria das aulas do período da tarde era ministrada por alunos


de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janei-
ro, sendo coordenadas e orientadas por professores do quadro permanente
dessa universidade. Com esse modelo de ensino, era estabelecida, através
da Escola Municipal de Pescadores, uma excelente ligação entre o ensino
básico e médio e a academia. Dessa maneira, surgia para a Universidade
Federal do Rio de Janeiro uma excelente oportunidade para formação de
alunos, em um contexto qualificado tecnicamente e com conhecimento, in
loco, da realidade cotidiana de grande parte da população brasileira.

A Escola Municipal de Pescadores contava com a participação de


docentes e alunos, inicialmente apenas do NUPEM/UFRJ e posteriormen-
te com a participação de várias Unidades da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, com destaque para a Engenharia Naval e Oceânica, a Escola de
Educação Física, a Escola de Música e a Faculdade de Letras.

Para a instalação dessa escola, a Prefeitura Municipal de Macaé


alugou algumas salas e dependências da sede do Iate Clube de Macaé, lo-
calizado no Pontal da Barra, um espaço privilegiado, situado entre o Rio
Macaé e o mar – daí a escolha do local. Graças a essa iniciativa, foi possível
iniciar as atividades com duas turmas de 5ª série – aproximadamente 60
alunos.

Com apoio inicial das autoridades municipais da época, a Escola


Municipal de Pescadores passou por várias reformas, com a finalidade de
adequar seu espaço físico às suas demandas. Assim sendo, foram construí-
51

das instalações para oficinas e laboratórios, cozinha, refeitório, despensa,


almoxarifado e secretaria. A UFRJ alugou estruturas metálicas adaptadas
para alojamentos e vestiários para alunos e cedeu computadores para a cria-
ção de um Laboratório de Informática, além de financiar o material para as
atividades de construção naval.

A Escola Municipal de Pescadores iniciou suas atividades no ano


de 2003 e formou a primeira turma em 2006. O Projeto Escola Municipal
de Pescadores era provavelmente muito ousado para o mundo burocrático
e hermético da administração municipal da época. A cada alternância de
administração da Secretaria de Educação, era necessário longas e difíceis
reuniões da equipe da Universidade Federal Rio de Janeiro para convencer
as autoridades municipais da relevância do projeto e dos evidentes ganhos
para as gerações atuais e futuras de macaenses, especialmente do bairro da
Barra, onde se localizava a escola. Esse bairro era formado principalmente
por famílias de pescadores, muitos deles vivendo da cata de caranguejos
no manguezal, que hoje é degradado e ocupado por residências de famílias
pobres e ricas.

Os maiores obstáculos enfrentados para a manutenção da Esco-


la Municipal de Pescadores estavam na própria estrutura administrativa
municipal, que tinha enormes dificuldades para compreender a existên-
cia de uma escola diferenciada. Suas características distintas de ensino
exigia um número menor de alunos, quando comparado com aquele de
escolas comuns de ensino médio do município, fato difícil de ser aceito
pela administração municipal. Outros fatores que levaram à extinção des-
se projeto podem ser acrescentados: a ausência de docentes do quadro
municipal devidamente motivados com o projeto pedagógico da Escola
Municipal de Pescadores e com remuneração compatível para dedicação
adequada à proposta da Escola.

Assim, como tantos outros projetos virtuosos que são concebidos e


desenvolvidos no Brasil, que poderiam trazer enormes benefícios à socieda-
de, a Escola Municipal de Pescadores foi aos poucos tendo seus meios mais
básicos de manutenção eliminados. Em 2011, o projeto foi definitivamente
extinto, apesar de representar uma importante alternativa à Economia do
Petróleo, sabidamente uma economia finita e muito frágil.
52

Mesmo com a curta duração do projeto, muitos de seus ex-alunos


são hoje profissionais bem-sucedidos em ramos ligados à pesca ou segui-
ram seus estudos e são profissionais de nível superior. Esse é um pequeno
exemplo do universo de brasileiros que poderiam estar ainda sendo forma-
dos nos bancos da Escola Municipal de Pescadores.

D - Contribuição para Restauração e Gestão Racional da Lagoa a Imboassica

Apesar da grande importância ecológica, econômica e social, a


Lagoa de Imboassica vem sendo, desde a década de 1970, submetida a di-
ferentes impactos antrópicos, que fizeram com que esse importante ecos-
sistema perdesse seu valor de patrimônio ambiental. Entre esses impactos
destacam-se: aterro de 20% de seu espelho, que gerou um condomínio que
posteriormente foi transformado no bairro Mirante da Lagoa; lançamento
de esgoto in natura e aberturas artificiais da barra de areia que a separa do
mar e assoreamento de sua bacia.

Todas as formas de impactos antrópicos aos quais a Lagoa de Im-


boassica está submetida são decorrentes do uso não sustentável de sua bacia
hidrográfica. Os aterros e lançamento de esgotos in natura, considerados
fontes pontuais de degradação, promovem não somente a sua degradação
ecológica, mas sobretudo sua degradação sanitária.

Por outro lado, o processo acelerado de assoreamento que está em


curso é principalmente resultado do desmatamento e consequente expo-
sição e erosão dos solos e seu posterior transporte pelas águas das chuvas
para o interior da Lagoa de Imboassica. Em consequência do assoreamento
da Lagoa de Imboassica, ocorre o aumento da área ocupada por plantas
aquáticas, principalmente taboas (Typha domingensis). Esse processo leva
consequentemente à redução do espelho d’água. A continuidade desse pro-
cesso fará com que esse importante ecossistema aquático se transforme, em
cerca de 80 anos, em um brejo poluído (Esteves, 1998).

Outra fonte de degradação da Lagoa de Imboassica são as frequen-


tes aberturas artificiais da barra de areia, que acontecem para melhorar a qua-
lidade da água com a substituição da água poluída pela água do mar e para
controlar, durante o período de chuvas, as inundações das ruas e residências
que foram construídas na área de inundação da Lagoa de Imboassica.

Desde o ano de 1984, a Universidade Federal do Rio de Janeiro,


53

através do NUPEM/UFRJ, vem realizando pesquisas na Lagoa de Imboas-


sica. Em consequência da participação de seus pesquisadores em projetos
pioneiros envolvendo os mais diferentes pontos ecológicos desse ecossiste-
ma foi possível fazer, por diversas vezes, propostas contundentes ao poder
público municipal para a sua restauração e seu manejo, sem, no entanto,
ter alcançado o sucesso pretendido. Mais uma vez, pode-se afirmar que
para a manutenção dos serviços dos ecossistemas e consequentemente da
qualidade ambiental, é fundamental: disponibilidade de informações cien-
tíficas qualificadas sobre os ecossistemas; e vontade dos gestores ambien-
tais na esfera municipal e estadual e dos governantes, agentes legalmente
responsáveis pela a implantação das políticas públicas de preservação dos
ecossistemas.

No caso da Lagoa de Imboassica, pode-se afirmar que se trata de


um dos ecossistemas aquáticos mais conhecidos do ponto de vista cien-
tífico no Brasil. Sobre esse ecossistema, já foram publicados três livros e
algumas dezenas de artigos científicos em periódicos nacionais e inter-
nacionais e foram defendidas mais de duas dezenas de teses de mestrado
e doutorado. As informações científicas obtidas na Lagoa de Imboassica
geraram tecnologias e conhecimento que já foram aplicados na restaura-
ção de diversos ecossistemas em vários estados brasileiros. Assim sendo,
pode-se concluir que para a restauração desse importante ecossistema do
município de Macaé não há carência de informações científicas e, portan-
to, de subsídios técnicos.

E - Aplicação do Conhecimento Científico à Gestão de Ecossistemas: Ordena-


mento da Pesca Artesanal na Lagoa de Carapebus

A lagoa de Carapebus é a maior lagoa do Parque Nacional da


Restinga de Jurubatiba, com aproximadamente 6,5 km2 de área, 3,3 km de
comprimento e 0,4 km de largura máxima (Esteves, 2011). Ao criar essa
Unidade de Conservação, não foi possível colocar toda a área da lagoa de
Carapebus integralmente no seu interior. A parte mais importante do ponto
de vista de recursos pesqueiros, que corresponde à parte próxima ao mar,
cerca de 50% da área da lagoa, ficou dentro do Parque Nacional da Restinga
de Jurubatiba, portanto onde a pesca é proibida por lei. É nessa parte da
lagoa principalmente que a comunidade, formada por várias famílias de
pescadores artesanais, retiravam, há várias gerações, o seu sustento.
54

A área da lagoa próxima ao mar, onde a pesca é proibida, é o prin-


cipal habitat de importantes espécies de peixes para a pesca artesanal, como
tainhas e paratis (Mugil liza e Mugil curema), de corpo cilíndrico e que atin-
gem quase 50 cm de comprimento, e robalos. Na lagoa de Carapebus, a pes-
quisadora Ana Petry e sua equipe, que estudam esse ecossistema há vários
anos, já identificaram duas espécies diferentes de robalos (Centropomus un-
decimalis e Centropomus parallelus) que frequentemente, são encontradas
nadando juntas. Também é o habitat de outros peixes, como o carapicu
(Eucinostomus argenteus) e a carapeba (Diapterus rhombeus), peixes de mé-
dio porte (no máximo 30 cm) e corpo prateado, ambos da mesma família,
Gerreidae (Araujo et al. 2014). Além dessas espécies de peixes importantes
do ponto de vista econômico, existem várias outras não valorizadas econo-
micamente, como os barrigudinhos ou guarus (Poecilia vivipara), contudo
de importância estratégica para a alimentação das espécies nobres (Araujo
et al. 2014).

Como era esperado, à medida que a fiscalização passou atuar co-


meçaram a surgir os conflitos entre os gestores da Unidade de Conservação
e a comunidade de pescadores artesanais, que eram autuados e tinham seus
apetrechos de pesca e embarcações apreendidos quando pescavam na área
da lagoa Carapebus dentro do Parque Nacional da Restinga de Jurubati-
ba. Por iniciativa dos gestores do Parque Nacional e dos pesquisadores da
Universidade Federal do Rio de Janeiro que atuam no NUPEM/UFRJ, foi
implementado um conjunto de ações, em parceria com organizações não
governamentais e, em especial, com o Ministério Público Federal em Macaé
com o objetivo de ordenar a pesca na lagoa de Carapebus.

Ao término de várias etapas de negociações e do cadastramento


das famílias de pescadores, foi assinado, em julho de 2010, um Termo de
Ajuste de Conduta entre os pescadores cadastrados e o Ministério Público
Federal.

O Termo de Ajuste de Conduta assinado pelas partes ordenou a


pesca na lagoa de Carapebus fixando algumas regras para os pescadores
exercerem a atividade, como o horário de trabalho (das 9h às 17h) e os
pontos de partida dos barcos. Além disso, o Termo de Ajuste de Conduta
identificou os pescadores tradicionais pelo material de pesca, roupas e cor
dos barcos, nunca motorizados.
55

As pesquisas sobre o ambiente aquático envolvendo as variáveis


abióticas e bióticas da coluna de água e do sedimento e em especial as pes-
quisas sobre a diversidade de espécies de peixes, seus hábitos alimentares
e de reprodução e o ciclo de vida foram de fundamental importância para
subsidiar políticas públicas, que possam ser empregadas para subsidiar o
manejo sustentável, não só da lagoa Carapebus, mas de vários outros ecos-
sistemas aquáticos e terrestres de Macaé e região.

F - Aplicação de Conhecimentos Científicos para Subsidiar Planejamento de


Obras de Grande Potencial de Impactos Sociais e Ambientais

Quarenta anos de presença da Economia do Petróleo em Macaé


e região foram suficientes para demonstrar que se trata de uma economia
com enorme capacidade de gerar impactos sociais e ambientais. Esses im-
pactos são vivenciados no dia a dia da população que vive na região e com-
prometem consideravelmente a sua qualidade de vida. Outra característica
da Economia do Petróleo é a sua constante busca por expansão de suas
ações, que resultam, geralmente, em novos impactos sociais e ambientais. O
árduo aprendizado impôs à sociedade de Macaé e região um repensar sobre
os reais benefícios dessa economia.

No ano de 2014, surgiu mais uma proposta para construção de


outro grande empreendimento, cuja justificativa era atender à Economia
do Petróleo. Dessa vez, a proposta era a construção de um porto no Bairro
de São José do Barreto, no litoral de Macaé. Segundo seus proponentes, esse
empreendimento supriria a grande demanda de um porto no município,
visto que a capacidade do único porto existente, o Porto de Imbetiba, já
estaria esgotada. Além disso, os proponentes argumentavam que o novo
porto de Macaé geraria cerca de 7.400 empregos novos e o município rece-
beria um aporte de recursos estimado em 900 milhões de reais.

O poder público municipal cedeu uma área de 400 mil metros


quadrados, onde seriam implantadas as estruturas em terra que dariam su-
porte às atividades do novo porto.

Como é exigido por lei, foi realizado um Estudo de Impacto Am-


biental por uma empresa contratada pelo empreendedor, que através de um
extenso documento elaborado, principalmente a partir de consultas biblio-
gráficas, concluiu que a construção do porto não geraria impactos ambien-
tais relevantes e que os eventuais impactos sociais poderiam ser compensa-
56

dos por meio da construção de escolas e outras benfeitorias que a sociedade


atingida pela construção do porto indicasse como prioridade, ou seja, as
chamadas compensações ambientais.

A área onde seria construído o novo porto é uma das que a Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro, principalmente por meio dos pesquisado-
res que atuam no NUPEM/UFRJ, desenvolve há vários anos pesquisas com
ênfase em questões ambientais e sociais. Grande parte dos resultados dessas
pesquisas serviu de subsídio para a sociedade se apropriar de informações
científicas obtidas no local onde a obra seria instalada. De posse de emba-
samentos científicos sólidos, a sociedade se tornou mais consciente e segura
para participar das difíceis discussões com defensores do empreendimento
sobre os impactos ambientais e sociais.

Em várias oportunidades, os pesquisadores da Universidade Fe-


deral do Rio de Janeiro que atuam no NUPEM/UFRJ participaram dire-
tamente das discussões e tiveram a oportunidade de colocar, de maneira
contundente, com base em dados científicos obtidos, que o projeto de
construção do novo porto como estava sendo proposto traria consideráveis
impactos ambientais e sociais. Entre os principais impactos ambientais e
sociais os pesquisadores destacaram:

• alterações nos sistemas de erosão e de sedimentação da costa, com


enorme potencial de gerar impactos sobre as praias de Macaé e
sobre o delta do Rio Macaé e região;

• impactos sobre os ecossistemas do Parque Nacional da Restinga


de Jurubatiba. Devido à sua proximidade (menos de 3 km) do par-
que, o que afetaria a morfologia costeira e, consequentemente as
relações das lagoas do Parque com os ambientes de água salgada,
os pesquisadores apontaram que a construção do porto poderia
alterar os padrões de abertura da barra de areia que separam as la-
goas do mar, com sérias consequências sobre a flora e fauna desses
ecossistemas;

• fonte difusa de poluentes que, pelas características e tipo de mate-


rial movimentado, transformaria o futuro porto em uma fonte de
57

dispersão de compostos químicos, que poderiam entrar na cadeia


alimentar de vários organismos aquáticos, chegando até homem,
através do consumo de pescado contaminado;

• impactos sobre a cadeia produtiva do pescado e do turismo. Os


poluentes irradiados a partir do futuro porto poderiam, segundo
os pesquisadores, ter consequências sobre a qualidade e quantida-
de do pescado, e pela sua grande área de abrangência, poderiam
alcançar as praias do município de Búzios, cuja economia é basea-
da quase que exclusivamente no turismo;

• destruição de habitat de reprodução e criação de várias espécies de


valor econômico. No local escolhido para a construção do porto
ocorrem rochas submersas, local de grande produção pesqueira
na região. Nessas rochas, crescem grande variedade de algas, que
alcançam elevadas taxas de produção de biomassa, que por sua
vez constitui a base da cadeia alimentar de vários organismos, en-
tre eles várias espécies de peixes, como robalo, roncador, garou-
pa, tainha, pampo e arraias; moluscos, como polvo e mexilhões; e
crustáceos, como camarão, lagosta e siri.

• aumento considerável da população de uma região do município


de Macaé, caracterizada por uma maior pressão e diminuição da
eficiência de equipamentos sociais do governo, assim como o aces-
so a direitos fundamentais por forte deficiência de recursos bási-
cos de saneamento e de infraestrutura e

• pouca possibilidade de geração de empregos para os habitantes da


região, visto que a mão de obra necessária, além de demandar pe-
queno número, requer elevada qualificação profissional que ainda
não é disponível no município.

As informações dos cientistas foram apresentadas e debatidas nos


fóruns legais, como audiências públicas, na imprensa e junto a organizações
não governamentais e o resultado foi o desencadeamento de uma forte mo-
bilização social, que somente foi possível devido à atuação da universida-
de como fornecedora de subsídios técnicos para o debate junto aos órgãos
técnicos estaduais. Em consequência, vários itens de grande importância
58

como fonte de futuros impactos ambientais e sociais contidos no primeiro


documento foram alterados e incorporados ao documento “final”.

Os argumentos científicos apresentados e defendidos pelos re-


presentantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro alcançaram níveis
tão elevados de respeitabilidade na sociedade local e regional, assim como
junto aos técnicos do órgão de controle ambiental estadual e federal, que o
projeto de construção do porto foi submetido a mais uma profunda análise
por diferentes técnicos desses órgãos.

A necessidade de maior rigor na análise da proposta do novo por-


to de Macaé, por elevado número de especialistas dos órgãos de controle
ambiental, demandou um período de tempo maior que o previsto pelos
empreendedores. Durante o período de espera pela conclusão da análise
do processo, eclodiu uma crise, em escala mundial, na cadeia produtiva do
petróleo, o que torna inviável, pelo menos na atualidade, a construção deste
novo porto e outros projetos com potenciais impactos ambientais e sociais
para o município de Macaé.

G - Contribuição para a Governança dos Recursos Hídricos do Município de


Macaé

Desde 1984, os pesquisadores da Universidade Federal do Rio de


Janeiro, através do NUPEM/UFRJ, desenvolvem pesquisas nos diferentes
ecossistemas do município de Macaé e região, acumulando assim grande
número de relevantes informações científicas e considerável experiência
referente aos seus recursos hídricos. Considerando que a missão precípua
deste Núcleo é contribuir para o desenvolvimento social e ambientalmente
sustentável, foi elaborado um elenco de propostas para uma agenda de dis-
cussão, com vistas a subsidiar políticas públicas, com o objetivo de promo-
ver a governança dos recursos hídricos.

Através do documento, denominado “Carta das Águas de Macaé:


contribuição do NUPEM/UFRJ para a Governança dos Recursos Hídricos
do Município de Macaé”, que foi apresentado a representantes dos diferen-
tes segmentos da sociedade civil e do governo municipal, no dia 20 de mar-
ço de 2015, os pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro
que atuam no NUPEM/UFRJ apresentaram um consistente diagnóstico so-
bre a situação de fragilidade na qual se encontram os recursos hídricos do
município e colocaram suas preocupações e suas propostas para garantir o
59

equilíbrio hídrico no município de Macaé (disponível em www.macae.ufrj.


br/nupem).

Segundo o diagnóstico dos pesquisadores, após a instalação da


Economia do Petróleo a população de Macaé passou de cerca de 40.000 na
década de 1970 para, segundo o IBGE (2014), 230.000 habitantes. Acom-
panhando esse crescimento populacional, também cresceram, de maneira
exponencial, a demanda por água e a degradação ambiental. Esta atingiu
proporções tão elevadas que já compromete a qualidade ambiental, espe-
cialmente no que tange segurança hídrica.

Como o ponto para análise, o documento “Carta das Águas de


Macaé” (Esteves et al., 2015) considerou a Bacia Hidrográfica do Rio Ma-
caé, visto que a bacia hidrográfica tem assumido cada vez mais importância
como unidade de planejamento e de gerenciamento e integração social e
econômica e que o Rio Macaé é a principal fonte de água doce para a popu-
lação do município de Macaé e dos demais municípios por ele abastecidos,
o foco maior das demandas por políticas públicas de curto e longo prazo.

As intervenções humanas sobre os recursos hídricos de Macaé


se iniciaram ainda no período do Brasil Colônia, quando foi construído
o canal Campos-Macaé (1844-1861). A abertura desse canal causou a ex-
tinção, por drenagem, de mais de cem lagoas e extensas áreas úmidas, re-
gionalmente conhecidas como brejos. No século XX, foram incontáveis as
intervenções que resultaram em prejuízos diretos aos recursos hídricos do
município de Macaé. A mais conhecida foi à retilinização do baixo curso
do Rio Macaé, Rio São Pedro e demais no entorno, na década de 1960, con-
siderada um dos maiores impactos antrópicos que atingiram o Brasil nesse
período (Soffiati, 2000).

Com a instalação da Economia do Petróleo, no final da década


de 1970, o município de Macaé passou a ser submetido a toda a sorte
de modificações de degradação ambiental, com consequências negativas
sobre os seus recursos hídricos. Nesses últimos 45 anos, foram sistemati-
camente eliminadas do mapa do município várias lagoas, braços do Rio
Macaé e extensos trechos de áreas úmidas de importância estratégica para
armazenamento e, portanto, regulação hídrica no município e para a pre-
servação da biodiversidade. Além disso, nesse período ocorreu a degra-
dação ecológica e sanitária de praticamente todos os corpos d’água no
município em grande escala.
60

Entre as principais formas de impactos ambientais que ainda


comprometem a integridade hídrica do município de Macaé, a “Carta das
Águas de Macaé” (Esteves et al., 2015) destacou:

• retirada da vegetação das áreas de mananciais e assoreamento dos


corpos d’água;

• aterros, drenagem e a retilinização do Rio Macaé;

• crescimento das atividades socioeconômicas na Bacia Hidrográfi-


ca do Rio Macaé;

• lançamentos de esgoto in natura.

A “Carta das Águas de Macaé” (Esteves et al., 2015) também des-


tacou outros fatores que comprometem a segurança hídrica do município
de Macaé, entre eles as influências das mudanças climáticas e a governança
fragmentada.

A “Carta das Águas de Macaé” (Esteves et al., 2015) não só pon-


tuou os aspectos mais relevantes que comprometem a integridade hídrica
do município de Macaé, comprometendo, portanto, qualquer forma de de-
senvolvimento econômico e humano no município, como também indicou
um elenco de propostas para a promoção de uma governança sustentável
desse recurso natural estratégico para a sociedade.

As principais propostas apresentadas são:

1 - Programas de Reflorestamento, que é um investimento em curto prazo


com resultados de extrema relevância em médio e longo prazo.

Para alcançar o sucesso desejado nos programas de reflorestamen-


to da Bacia Hidrográfica do Rio Macaé e de outros corpos d’água do muni-
cípio, os cientistas propõem:
61

• criar programa de Adequação Ambiental Municipal, em associa-


ção com programas de pagamento por serviços ambientais (PSA)
e Adequação Ambiental de âmbito Nacional e Estadual, para faci-
litar o fluxo contínuo de recursos aos agricultores na implantação
e manutenção de práticas sustentáveis;

• criar programa de incentivo a agricultores e pequenos produtores


rurais que ainda possuem matas nativas e as conservam ou que
queiram recuperar áreas degradadas;

• criar Programas de incentivo à instalação de viveiros com mudas


nativas;

• promover a transição para sistemas de produção que visem à sus-


tentabilidade, reduzindo a criação extensiva de gado e, consequen-
temente, a degradação ambiental gerada pela pecuária; e

• apoiar e garantir a aprovação de leis que regulamentam práticas


tradicionais de manejo da vegetação de capoeira para recuperação
da fertilidade natural do solo (Lei do Pousio) junto à Câmara dos
Vereadores.

2 - Implantação de Políticas Públicas Consistentes e de Longa Duração para


a Gestão das Unidades de Conservação: Ação Estratégica para Preservar os
Recursos Hídricos.

3 - Promover a Gestão Participativa dos Recursos Hídricos através do forta-


lecimento de comunidades rurais e associações de pequenos trabalhadores e
produtores rurais de microbacias do município de Macaé, estimulando o en-
gajamento dessas associações como protagonistas na solução dos problemas.

4 - Institucionalização de Programas de Educação Ambiental Como Instru-


mento para Garantir a Segurança Hídrica do Município de Macaé.

5 - Criação de Estruturas Administrativas para Garantir a Implementação da


Política de Governança dos Recursos Hídricos sobre a Gestão de Projetos.

A “Carta das Águas de Macaé” (Esteves et al., 2015) é um impor-


tante instrumento apresentado pela Universidade Federal do Rio de Janei-
ro à sociedade macaense que fornece subsídios indispensáveis para que os
62

gestores municipais possam realizar a governança adequada dos recursos


hídricos do município de Macaé, evitando-se, dessa maneira, que seu de-
senvolvimento econômico e humano seja comprometido em decorrência
do uso não sustentável de seus recursos hídricos.

No documento “Carta das Águas de Macaé” (Esteves et al., 2015),


os pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro disponibili-
zam à sociedade macaense, em curto prazo, uma série de apoios, serviços
e produtos que podem contribuir muito para a governança desse recurso
estratégico para a sociedade.

A relevância da “Carta das Águas de Macaé” (Esteves et al., 2015)


para a sociedade pode ser avaliada pelos importantes desdobramentos que
já podem ser observados em alguns municípios da região. Algumas das
ações contidas no documento já estão sendo colocadas em prática, uma vez
que são resultado de uma longa experiência e discussão desenvolvida com
a sociedade macaense junto ao Conselho Municipal de Ambiente e Desen-
volvimento Sustentável e Secretaria de Ambiente. Como exemplos podem
ser citadas a criação da Agência Municipal de Águas e a institucionalização
de Programa de Educação Ambiental, com foco na conservação de recursos
hídricos do município de Macaé.

A universidade no século XXI não deve ser apenas colégios uni-


versitários que se limitam a transmitir conhecimentos já consolidados e
gerar mão de obra para os segmentos mais privilegiados da sociedade. Ela
deve ser protagonista de uma mudança de paradigma, promovendo o in-
tercâmbio entre os saberes, ditos formais, e o saber emanado da sociedade.
Os vários exemplos apresentados de contribuições do NUPEM/UFRJ ao
desenvolvimento de Macaé e região demonstram, de maneira clara, a sua
vocação de perseguir a missão de inserção na sociedade. Assim sendo, a
Universidade Federal do Rio de Janeiro, através do NUPEM/UFRJ, contri-
bui para a construção de um novo modelo de universidade pública, no qual
a instituição busca efetivamente colaborar, juntamente com a sociedade,
para a busca das soluções para os múltiplos e complexos desafios da socie-
dade brasileira neste século.

Deve ser ressaltado, no entanto, que a efetiva construção desse


novo modelo passa obrigatoriamente pela tomada de consciência de que
é urgente a universidade brasileira iniciar o processo de desconstrução dos
63

muros invisíveis, mas de muita eficácia, que apartam o saber por ela gerado
da sociedade.

4. Criação do Campus Universitário de Macaé: Universidade Federal


do Rio de Janeiro Amplia Sua Contribuição para o Desenvolvimento de
Macaé e Região

4.1 NUPEM/UFRJ: Célula Máter do Campus Universitário da


Universidade Federal do Rio de Janeiro em Macaé

O NUPEM/UFRJ iniciou, em 1994, a trajetória bem-sucedida da


Universidade Federal do Rio de Janeiro em Macaé. Ao longo da caminha-
da rumo à construção do campus universitário, os docentes pioneiros da
Universidade Federal do Rio de Janeiro em Macaé, através de projetos de
pesquisas contextualizados com as realidades e as demandas regionais e de
suas ações de ensino e de extensão, conquistaram a respeitabilidade junto
às comunidades acadêmica e local. Essa trajetória exitosa recebeu o reco-
nhecimento de todas as gestões que se sucederam na administração central
dessa universidade (Figura 5).

Segundo o ex-reitor professor Aloisio Teixeira: “a ponte construída


em Macaé, ligando o saber acadêmico ao saber local, é o exercício verda-
deiro da troca de experiências, que traz grandes benefícios para ambos. E
a nossa Universidade Federal do Rio de Janeiro não pode deixar de consi-
derar o excelente modelo vivido no NUPEM/UFRJ como uma real possi-
bilidade de ampliação para toda instituição”. Estas palavras proferidas pelo
reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor Aloisio Teixeira,
em seu discurso proferido por ocasião da inauguração da nova sede do NU-
PEM/UFRJ, no dia 10 de março de 2006, expressam de maneira muito clara
o sentimento positivo e de entusiasmo que tomava conta de grande parte
dos membros dos colegiados superiores e da administração central para ex-
pandir as atividades da Universidade Federal do Rio de Janeiro em Macaé,
através da criação de um centro ou um campus universitário.

Várias foram as ideias que geravam intensas discussões de como a


Universidade Federal do Rio de Janeiro deveria expandir suas atividades no
município de Macaé. Contudo, o único ponto de consonância existente entre
os diferentes atores que participavam das discussões era a adoção do modelo
64

comprovadamente exitoso praticado e aperfeiçoado, ao longo de vários anos,


pelo NUPEM/UFRJ.

Além de atuar como modelo acadêmico e administrativo, o NU-


PEM/UFRJ também teve papel de grande relevância para a alocação das
primeiras dezenas de vagas de docentes e técnicos administrativos e para
as conquistas dos primeiros espaços físicos do novo campus da Universida-
de Federal do Rio de Janeiro em Macaé. Pelo fato do NUPEM/UFRJ fazer
parte da estrutura do Centro de Ciências da Saúde, inclusive de seu Con-
selho, foi possível a sua direção participar de muitas reuniões e de várias
comissões de grande relevância para o futuro do Campus da Universidade
Federal do Rio de Janeiro em Macaé, especialmente nos seus primeiros anos
de vida. Por exemplo, nas reuniões da Comissão Temporária de Alocação
de Vagas (COTAV), nas quais era definido o número de vagas docentes, e
nas reuniões na Pró-Reitoria de Pessoal para requisitar vagas de técnicos
administrativos para o novo campus.

Nesse período, o Campus de Macaé era ainda totalmente desco-


nhecido dentro da estrutura administrativa da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Além disso, concorria nas mesmas condições, pelos mesmos re-
cursos, como vagas de docentes, com Unidades Acadêmicas já consolidadas
e de elevada produção científica e muitas vezes de posicionamento contrá-
rio à interiorização da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O NUPEM/UFRJ também esteve representando os interesses do


Campus de Macaé em vários momentos de grande relevância, como aque-
les nos quais o Campus de Macaé estava, informalmente, representado no
Conselho Universitário, através do diretor do NUPEM/UFRJ, que, por elei-
ção de seus pares, representava os professores titulares do Centro de Ciên-
cias da Saúde neste importante Conselho Superior da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Nesse período, o Conselho Universitário aprovou deman-
das vitais, que garantiram a implantação em caráter definitivo do Campus
de Macaé. Entre essas demandas estão a aprovação das chamadas Normas
Provisórias, que regem o Campus de Macaé, até os dias atuais, convênios
de relevância estratégica com a Prefeitura de Macaé, nos quais garantiram
a cessão de um prédio recém-construído, o chamado Polo Ajuda, e a cons-
trução de dois blocos de edifícios, localizados na cidade universitária, para
alocar os futuros cursos e atividades de pesquisa.
65

Outro aspecto de relevância considerável foi o acolhimento pro-


porcionado pelos docentes pioneiros do NUPEM/UFRJ aos docentes re-
cém-chegados ao Campus de Macaé, disponibilizando e compartilhando
espaços físicos e equipamentos para que pudessem iniciar suas atividades
de pesquisa no Campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro em
Macaé. Mais uma vez, a adoção da abordagem interdisciplinar foi muito
importante para promoção do acolhimento de novos docentes, visto que
o acolhimento não ocorria e ainda continua não ocorrendo, com base no
interesse por áreas do conhecimento, mas sim através do interesse de atuar
de maneira integrada e articulada em grandes temas de relevante interesse
científico e social.

Figura 5 - Principais fases da história da UFRJ em Macaé até criar o seu campus universitário.
Fase 1- Os poucos recursos disponíveis ajudaram a realizar as pesquisas pioneiras e a conceber
o maior patrimônio da pequena equipe de pesquisadores do Instituto de Biologia: sonhos.
Fase 2- Com a obtenção dos primeiros recursos, foi possível construir, no ano de 1994, a partir
da reforma de um galpão de ração, a primeira sede do NUPEM/UFRJ, onde foram realizadas,
além das atividades de pesquisas, as primeiras atividades de extensão da UFRJ em Macaé. Fase
3- As novas instalações, inauguradas no ano de 2006, abrigaram a primeira turma do curso
de Ciências Biológicas e assim a UFRJ inaugura, em Macaé, seu programa de interiorização
do ensino. Fase 4- O modelo exitoso, no qual ocorre à integração entre pesquisa, ensino e a
sociedade, que é praticado pelo NUPEM/UFRJ, inspirou e estimulou algumas Unidades Aca-
dêmicas a expandir suas ações em Macaé. E, para acolher essas novas atividades, foi iniciado o
processo de criação do campus universitário de Macaé, que ocorreu no ano de 2008.
66

4.2 Campus Universitário da Universidade Federal do Rio de


Janeiro em Macaé: uma Excelente Oportunidade para a Prática
do Tripé Indissociável Pesquisa-Ensino-Extensão

O exercício pleno da indissociabilidade entre pesquisa, ensino e


extensão será alcançado por meio de um novo modelo de universidade pú-
blica, o qual passa, obrigatoriamente, pela necessária e urgente integração e
articulação entre grupos de pesquisa e destes com os cursos de graduação e
de pós-graduação, objetivando a formulação e a implantação de projetos e
programas de relevância científica, mas fortemente conectados às deman-
das regionais. Sintetizando, pode-se afirmar que o desenvolvimento econô-
mico e humano, em bases sustentáveis, tem na presença de universidades
públicas, com novos modelos de interação entre comunidade científica e
comunidade local, um de seus pilares mais importantes.

Após longa caminhada, com muitas curvas e obstáculos, a pro-


posta de interiorização da Universidade Federal do Rio de Janeiro em Ma-
caé foi aprovada pelo Conselho Universitário no dia 27 de março de 2008.
Segundo o Artigo 63o do Estatuto da UFRJ: “Fica instituído o Campus de
Macaé, integrando as atividades da Universidade Federal do Rio de Janeiro
na Região dos Lagos e na Região Norte-Fluminense”. Ainda de acordo com
o Estatuto da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Campus de Macaé
compõe a sua Estrutura Média. A Estrutura Média é aquela na qual estão
os Centros Universitários da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Assim
sendo, o Campus de Macaé é, de acordo com o Estatuto, um Centro Univer-
sitário. Contudo, o o Artigo 17, Parágrafo 3° do mesmo estatuto menciona
que quando as coordenações acadêmicas e administrativas estão fora da
sede, estão em um campus.

Para aqueles que defendiam a expansão da Universidade Federal


do Rio de Janeiro em Macaé não faltavam argumentos favoráveis e muito
contundentes, como:

• A maciça concentração de centros de geração de saber e de for-


mação de recursos humanos qualificados na capital gera, inevi-
tavelmente, um desequilíbrio: capital rica e interior pobre em
instituições de desenvolvimento científico, tecnológico, cultural e
humano, uma verdadeira exclusão científica e tecnológica.
67

• Era chegado o momento da Universidade Federal do Rio de Janei-


ro assumir a missão de ampliar suas fronteiras para promover o
desenvolvimento de outras regiões do nosso Estado e deixar de ser
apenas uma universidade da cidade do Rio de Janeiro.

• O modelo de desenvolvimento, baseado na importação de conhe-


cimentos, torna muitas regiões do Estado, como a norte-flumi-
nense, vulneráveis e submetidas a um contínuo processo de de-
pendência do conhecimento científico gerado, especialmente na
capital.

A criação do campus universitário em Macaé se colocava como


uma oportunidade ímpar para a Universidade Federal do Rio de Janeiro:

• promover os avanços necessários por meio da implementação de


novos modelos científicos, pedagógicos e administrativos, capazes
de auxiliar na formulação de políticas e ações voltadas à promoção
do desenvolvimento humano, em uma das regiões mais carentes
de centros de pesquisa do Estado do Rio de Janeiro;

• praticar, na plenitude, o tripé indissociável, pesquisa-ensino-ex-


tensão;

• criar condições propícias para a vivência plena da vida universitá-


ria, que é a criação e a manutenção de um ambiente precipício a
experimentação de todos os saberes e

• colocar em prática um de seus objetivos mais importantes, en-


quanto universidade pública: compartilhar com a sociedade os
conhecimentos e os saberes, os maiores bens produzidos por uma
universidade.
68

4.3 Participação do Campus da Universidade Federal do Rio


de Janeiro no Desenvolvimento de Macaé e Região

Mesmo com poucos anos de existência como campus universitário


em Macaé, a Universidade Federal do Rio do Janeiro já promove importan-
tes contribuições para o desenvolvimento científico, tecnológico, cultural
e humano desse município. Essa constatação pode ser atribuída principal-
mente ao fato de que os profissionais contratados para atuar no Campus
da Universidade Federal do Rio do Janeiro em Macaé são, na sua maioria,
doutores com alto grau de qualificação acadêmica, que já participam de
projetos de pesquisas de grande relevância científica e fortemente compro-
metidos com os interesses da sociedade local e regional.

A participação da Universidade Federal do Rio do Janeiro no de-


senvolvimento de Macaé e região se torna ainda mais relevante quando se
considera que as áreas acadêmicas que estão sendo criadas são de grande
importância científica e também de grande importância social. Entre elas
se destacam as áreas das ciências da saúde, ciências biológicas, ciências am-
bientais, ciências da nutrição, ciências farmacêuticas, ciências químicas e as
ciências humanas.

Merece destaque o fato de que, até o momento, já foram avaliados


por comissões designadas pelo Ministério da Educação os cursos de gra-
duação em Ciências Biológicas, Farmácia, Enfermagem, Nutrição e Medi-
cina. Todos esses cursos receberam avaliação “Nível Bom” ou “Excelente”.
Assim sendo, fica demonstrado que, apesar do enfrentamento de dificul-
dades, professores alunos e técnicos administrativos tiveram e ainda têm
que enfrentar na construção de um campus universitário, é possível fazer a
interiorização dessa universidade com qualidade acadêmica. Essa elevada
qualificação acadêmica no ensino de graduação é de absoluta importância
para assegurar, através da formação de mão de obra qualificada, a partici-
pação da Universidade Federal do Rio de Janeiro no desenvolvimento hu-
mano de Macaé e região. Os cursos de pós-graduação já criados e aqueles
em processo de criação apontam, com base nos princípios científicos de
suas propostas e na qualidade do corpo docente que os compõe, que em
breve alçarão o sucesso acadêmico desejado e prestarão grandes serviços à
sociedade brasileira.

Um importante fator para o desenvolvimento de Macaé e região


é a contribuição que os profissionais egressos do Campus da Universida-
69

de Federal do Rio do Janeiro em Macaé já estão prestando em diferentes


setores da sociedade local e da região. Vários biólogos, farmacêuticos, nu-
tricionistas e enfermeiros formados pela Universidade Federal do Rio do
Janeiro em Macaé já atuam exercendo importantes cargos em secretarias
municipais em vários municípios da região ou cargos de direção de escolas
públicas de primeiro e de segundo graus e os egressos da área da saúde já
atuam em vários órgãos municipais relacionados à gestão da saúde pública.

A experiência já acumulada em outros campi universitários nos


quais a pesquisa foi, desde a implantação, o eixo central para o seu desen-
volvimento, como é o caso do Campus da Universidade Federal do Rio do
Janeiro em Macaé, torna possível prever um futuro muito promissor, no
qual a Universidade Federal do Rio do Janeiro atuará como um dos princi-
pais polos geradores de conhecimentos, que viabilizarão o estabelecimento
de um modelo de desenvolvimento, com mais equidade econômica e social
e especialmente com mais equilíbrio ambiental, condições indispensáveis
para a qualidade de vida em Macaé e região.

À medida que o município de Macaé e região produz mais de 80%


do petróleo e quase a metade do gás consumido no país, é estratégico con-
siderar essa região como um grande laboratório natural para o exercício
da indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão. Numa região com
essas características, as universidades públicas passam a ter papel central
no estabelecimento de ações que garantam o uso racional de seus recursos
naturais como instrumento indispensável para assegurar desenvolvimento
econômico, com qualidade de vida na região, especialmente no período pós
-Economia do Petróleo.

5. Estruturas Acadêmicas e Administrativas Obsoletas Dificultam Maior


Participação das Universidades no Desenvolvimento Regional

5.1 Busca por Novos Modelos de Estruturas Acadêmicas e Ad-


ministrativas: Desafio da Universidade no Século XXI

A estrutura acadêmica e administrativa da maioria das universi-


dades brasileiras é incompatível com a velocidade com a qual os conheci-
mentos têm sido produzidos e muito menos com as rápidas transforma-
ções experimentadas pela sociedade brasileira na atualidade. Assim sendo,
70

a estrutura acadêmica e administrativa das universidades brasileiras não


oferece as condições necessárias para atender à produção do saber e à for-
mação de profissionais detentores dos instrumentos necessários para atuar
no universo profissional da atualidade.

Nesse início de século XXI, a sociedade brasileira impõe à univer-


sidade um repensar de suas estruturas acadêmicas, pedagógicas e adminis-
trativas para torná-la contemporânea e assim atender com mais eficácia às
suas demandas, ou seja, a sociedade clama pela interferência nos alicerces
da imobilidade institucional que tomou conta de nossas universidades nas
últimas décadas (Bevilacqua, no prelo).

Na maioria das universidades brasileiras, principalmente em uni-


versidades públicas, são notórias as dificuldades em estabelecer novos mo-
delos para suas estruturas acadêmico-pedagógicas e também para as suas
estruturas administrativas. Essas dificuldades esbarram em vários pilares,
que foram fortemente estabelecidos ao longo das últimas cinco décadas.
Um dos pilares principais é resultante da construção do saber, rigidamente
calcado no princípio da fragmentação, expresso na prática pela abordagem
disciplinar. O princípio da produção do saber disciplinar encontrou na es-
trutura departamental um habitat muito adequado para a consolidação e
reprodução da fragmentação do saber.

Deve ser destacado que por várias décadas a estrutura departa-


mental atendeu em grande parte às demandas da sociedade. No entanto,
na atualidade essa mesma estrutura constitui um dos principais entraves
ao desenvolvimento do saber no contexto de abordagens integradoras, es-
pecialmente num país com enormes diferenças regionais e desafios,sociais,
econômicos e ambientais, que demandam urgentemente projetos e ações
integradas.

Segundo o professor Luiz Bevillacqua, o cenário acadêmico atual


aponta para o retorno das universidades brasileiras para uma direção mais
próxima de suas origens, quando tratava de temas promotores da integração
dos saberes e dos cientistas, como aqueles temas pesquisados pelas Facul-
dades de Filosofia, Ciências e Letras, nas Escolas Politécnicas, entre outras.
Assim, é evidente a necessidade da universidade caminhar rumo a um novo
pensar, visando à geração de conhecimentos compatíveis com as deman-
das da sociedade do século XXI. Para tanto, faz-se necessário tomar como
ponto de partida os antigos alicerces da ciência, contudo não deixando de
71

incorporar novos saberes. Certamente a integração dos saberes, através da


interdisciplinaridade, é o caminho mais seguro a ser perseguido. Johann
Goethe, o grande filósofo, escritor (autor de Fausto) e cientista alemão, já
chamava a atenção, no ano de 1829, para o fato de que a ciência torna-se
verdadeira quando considera o todo, e não somente as partes.

O modelo atual de produção do saber e de formação de recursos


humanos através da abordagem disciplinar já se encontra de tal maneira in-
corporado ao pensar e às ações da comunidade acadêmica contemporânea
que se faz necessário o emprego de grande soma de esforços institucionais e
pessoais para que alguma mudança, mesmo que pequena, desse modelo de
praticar ciência e formar recursos humanos possa ocorrer (Bevilacqua, no
prelo). Pode ser assumido como regra que a magnitude e a velocidade com
a qual essas mudanças podem ocorrer são inversamente proporcionais ao
tamanho e a idade das instituições universitárias. Assim sendo, em univer-
sidades mais antigas e com grande contingente de pessoal, essas mudanças
ocorrem com muito maior lentidão do que naquelas instituições de menor
idade e porte.

Entre alguns ingredientes indispensáveis para empreender as alte-


rações no modelo atual acadêmico-pedagógico e administrativo da maioria
das universidades brasileiras podem ser destacados:

§ coragem para mudar;

§ desejo de pensar e agir de maneira integrada;

§ ousadia;

§ reflexão;

§ capacidade de enxergar a universidade no futuro;

§ consciência de que o modelo atual acadêmico-administrati-


vo da universidade, que tem no departamento universitário
como unidade básica, está esgotado e

§ muita humildade para aceitar que, pelas características da


sociedade contemporânea, qualquer modelo a ser proposto
necessitará de atualizações e revisões constantes.
72

5.2 Pesquisas de Grandes Temas: Possibilidade de Novo Mode-


lo de Estrutura Acadêmica e Administrativa e de Promoção do
Desenvolvimento Regional

Grandes Temas são propostas de temas de pesquisa e de ações aca-


dêmicas de grande relevância científica e repercussão social. Os Grandes
Temas podem resultar da aglutinação de conhecimentos de diferentes áreas
do saber, os quais convergem e integram abordagens, métodos e recursos
para alcançar resultados que possam contribuir para enfrentar os desafios
antigos, assim como também os novos e complexos desafios, característicos
de um período do desenvolvimento humano de rápidas e profundas trans-
formações.

A interdisciplinaridade é uma das principais características dos


Grandes Temas. Assim sendo, é inerente a essa proposta a aglutinação e a
integração de pesquisadores com diferentes formações que possam intera-
gir em torno de um tema de grande relevância para a sociedade. Na prática,
a integração de pesquisadores em Grandes Temas reflete o desejo de mui-
tos docentes em superar a especialização e adquirir competência em outras
áreas, muitas vezes distintas da área original (Bevillacqua). Nesse processo,
ocorre naturalmente o aprendizado recíproco, que tem como consequência
o surgimento de novos resultados indispensáveis à solução de problemas
de grande complexidade, relevância científica, além da grande importância
social (Bevilacqua, no prelo).

A integração de pesquisadores, técnicos administrativos e alunos


através dos Grandes Temas é uma excelente possibilidade de substituição
da estrutura tradicional e senescente de institutos e departamento univer-
sitários, criada no início da década 1970. O princípio básico da estrutura
departamental ainda é a reunião de pesquisadores, técnicos administrativos
e alunos através de disciplinas afins, que caracterizam uma determinada
área do saber.

Além de compreender propostas de pesquisa de grande interesse


científico e social, os Grandes Temas devem também ser propostas capazes
de romper as fronteiras do conhecimento tradicional, que o modelo disci-
plinar, típico da estrutura departamental, dificulta ou mesmo.

A criação dos Grandes Temas que aglutinarão docentes, alunos e


técnicos administrativos deve estar embasada em alguns princípios, como:
73

• propostas inovadoras que abram perspectivas para novos saberes


científicos e que contribuam para colocar, pela excelência acadê-
mica, as instituições que os abrigam à frente no cenário científico
nacional e internacional.

• propostas interdisciplinares que possam integrar docentes, técnicos


administrativos e discentes e que sejam capazes de responder às de-
mandas mais urgentes para o desenvolvimento econômico, social e
humano da região na qual a estrutura universitária se localiza.

• as propostas de criação de Grandes Temas não devem ser con-


fundidas com a criação de cursos de graduação e de pós-gradua-
ção. Elas devem envolver temas aglutinadores que apontam para
a construção da sociedade do futuro. Portanto, os Grandes Temas
a serem concebidos devem estar além das fronteiras da ciência
praticada na atualidade, condição indispensável para fomentar a
criação de novos paradigmas científicos.

Nesse contexto, alguns Grandes Temas podem ser exemplificados:

• Atenção à Saúde. Esse Grande Tema poderá aglutinar pesquisa-


dores de várias áreas do conhecimento, como nutrição, farmácia,
medicina, bioquímica, enfermagem, entre outras;

• Fármacos e Biomoléculas. Possibilitará a integração de químicos,


farmacêuticos, físicos, biólogos, entre outros;

• Distúrbios Alimentares e Metabólicos. Possibilitará a integrar co-


nhecimentos da medicina, nutrição, bioquímica, biologia celular,
entre outras;

• Ambiente e Desenvolvimento Socioambiental. Integração de co-


nhecimentos da ecologia, biologia, ciências humanas, geociências,
entre outras;

• Estrutura da Matéria e Energia. Integrando conhecimentos de físi-


cos, químicos, engenheiros, sociólogos, matemáticos, estatísticos,
entre outros; e
74

• processos de Aprendizado e Cognição. Integrando expertise de


educadores neurocientistas, biólogos, fisiólogos, médicos, peda-
gogos, entre outros.

Nessa proposta, a interdisciplinaridade pode ser entendida como


a convergência de duas ou mais áreas do conhecimento, não pertencentes à
mesma classe, que possam contribuir para o avanço das fronteiras da ciên-
cia e da tecnologia. Em outras palavras, a interdisciplinaridade possibilita
alcançar avanços na produção do saber que não seriam possíveis a partir da
abordagem científica de uma única área do conhecimento.

A criação de Grandes Temas representa uma chance ímpar para


docentes e técnicos administrativos superarem a especialização e adquiri-
rem competência em uma ou mais áreas do conhecimento, distintas das
suas áreas originais de formação. É uma excelente chance para físicos, bió-
logos, químicos, farmacêuticos, enfermeiros, nutricionistas, engenheiros,
pedagogos, educadores, médicos, matemáticos, filósofos, antropólogos, fo-
noaudiólogos, entre outros, romperem com as suas barreiras disciplinares
para promover uma educação recíproca, visando adquirir competência na
solução de problemas mais complexos, que são maioria dos casos aqueles
que geram as soluções demandadas pela sociedade contemporânea.

É importante destacar que a incorporação da abordagem e, espe-


cialmente da prática interdisciplinar, pode não ocorrer de imediato, neces-
sitará de certo tempo para alcançar sua plena aceitação e a se tornar rotina
entre os componentes dos Grandes Temas. Não devemos desconsiderar que
os docentes e técnicos administrativos, na sua grande maioria, tiveram sua
formação em ambiente embasado na prática quase secular da disciplinari-
dade (Bevillacqua, no prelo). Assim sendo, todo o seu pensar e a sua con-
duta acadêmica é calcada numa disciplina, desse modo numa abordagem
fragmentada, inerente às disciplinas. Não raramente o pensar acadêmico e
a conduta de alguns docentes são calcadas apenas no domínio de um mé-
todo, que por vezes torna-se tão poderoso que passa a ser confundido com
uma ciência.

Para o professor Luiz Bevilacqua, a dificuldade de implantar novos


modelos acadêmico-pedagógicos e administrativos nas universidades bra-
sileiras é evidente por vários motivos, inclusive porque, mesmo começando
75

uma universidade nova, os docentes, mesmo os jovens, vêm de uma matriz


tradicional, disciplinar e fragmentada e ficam tão impregnados pela forma-
ção acadêmica que receberam e vivenciaram que reagem a princípio a qual-
quer nova iniciativa de mudança, mesmo diante de um mundo acadêmico
em forte e rápido processo de transformação.

5.3 Programas Interdisciplinares: a Sede dos Grandes Temas

A eliminação da estrutura departamental não suprime as várias


atividades e demandas administrativas que são inerentes à vida universitá-
ria e que estão abrigadas a essas estruturas. Sem a gestão adequada de mui-
tas das atividades administrativas, não é possível o fornecimento do apoio
logístico necessário à realização das atividades e pesquisa, ensino e exten-
são, objetivo central da universidade brasileira. No modelo de aglutinação
de docentes e técnicos administrativos em Grandes Temas, Programas In-
terdisciplinares podem ser considerados como o espaço muito apropriado
para a gestão administrativa desses profissionais.

Programas Interdisciplinares podem sediar Grandes Temas e por


consequência eles também serão o habitat das atividades de pesquisa, en-
sino e de extensão. Além disso, o espaço das instalações universitárias, nas
quais os seus docentes e técnicos administrativos terão as suas territorie-
dades. Em outras palavras, serão nos Programas Interdisciplinares que os
docentes e técnicos administrativos estarão durante grande parte de suas
cargas horárias de trabalho na universidade, portanto o local mais adequa-
do para a gestão administrativa dos componentes dos Grandes Temas.

Para a melhor articulação e integração dos membros dos Grandes


Temas, seria mais adequado que estivessem localizados no mesmo espaço
físico. Contudo, na maioria dos casos, as estruturas universitárias não dis-
põem de áreas físicas suficientes, fato que leva os componentes dos Progra-
mas Interdisciplinares, inicialmente, a se localizarem em diferentes estrutu-
ras físicas. Essa dificuldade pode, em curto prazo, ser superada através de
rede telefônica e internet adequada.

Entende-se que os docentes de uma estrutura universitária pode-


rão participar de um ou mais Grande Tema, contudo é importante que sua
vida administrativa e o seu comprometimento com outros Grandes Temas
76

esteja devidamente regulamentada no Programa Interdisciplinar de Refe-


rência, que é aquele no qual o docente tem sua maior carga horária, assim
como em outras esferas administrativas da unidade universitária.

Deve ser destacado que os compromissos dos docentes com suas


cargas horárias em sala de aula são independentes dos seus compromissos
com as atividades nos Grandes Temas. Assim sendo, o docente que atua em
um ou mais Grande Tema, poderá ministrar disciplinas e cursos de gradua-
ção ou de pós-graduação em qualquer curso desses níveis de sua universi-
dade, independentemente de qual área do saber.

Um dos principais motivos pelos quais uma instituição milenar


como a universidade ainda tem papel vital na sociedade do século XXI é
o fato de que essa instituição está em constante processo de renovação, o
que possibilita que a instituição universidade prossiga sua missão de gerar
conhecimentos e profissionais para atender às demandas da sociedade em
todos os tempos.

A universidade deve estar se atualizando aos desafios do presente


e estar fortemente comprometida com a construção dos saberes do futuro.
Com essas características, a universidade se torna uma instituição singular
e detentora de enorme poder. Poder este que foi e é admirado e respeitado
por reis, ditadores, líderes democráticos e qualquer outra forma de poder.
Qualquer que seja a forma de governo, a universidade é considerada um
dos principais patrimônios de uma nação.

A sociedade do século XXI está imersa em uma grande revolução,


capitaneada por várias tecnologias, especialmente a tecnologia da infor-
mação. Essa revolução tem promovido mudanças em todos os setores da
sociedade, em todo o mundo. Um dos setores que mais sofrem as altera-
ções impostas pelas tecnologias da informação é a universidade, que está
submetida a rápidas e profundas mudanças na arte de ensinar, de manter
relações interpessoais, de se comunicar e, em especial, na maneira de pen-
sar e executar a pesquisa.

Portanto, é chegado o momento de buscar meios que tornem a


universidade mais contemporânea e com mais compromisso social. Nesse
contexto, é muito plausível a proposta de integrar cientistas, corpo técnico,
discentes e demais colaboradores por meio de Grandes Temas com possibi-
lidades de promover avanços científicos e sociais consideráveis.
77

A experiência acumulada ao longo de mais de duas décadas de


existência do NUPEM/UFRJ evidencia que os avanços e conquistas, tan-
to na realização de pesquisas inovadoras como na construção de parcerias
com a sociedade, podem ser atribuídos ao fato dessa unidade acadêmica ser
a sede de um Grande Tema: “Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental”
e exercitar seus princípios de integração na sua plenitude. Esses resultados
exitosos podem ser o ponto de partida para a experimentação se limitar
a proposta de organização acadêmica e administrativa das universidades
brasileiras. Por meio de experimentos dessa natureza, a universidade pode
se tornar contemporânea e comprometida com a sua missão precípua, que
é o de servir à sociedade.

Agradecimentos

Agradeço aos colegas Rodrigo Lemes Martins, Fabio Rubio Scarano e Ro-
drigo Nunes Fonseca e ao meu orientador, Roberto Nascimento de Farias,
pelas valiosas críticas e sugestões ao manuscrito, e aos colegas do NUPEM/
UFRJ que ajudam no cotidiano a manter viva a chama da interdisciplinari-
dade e da qualidade de trabalho dessa instituição.

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78

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WANDERLEY, L. E. W. O que é universidade. Tatuapé, SP: Brasiliense,


2005. (Coleção Primeiros Passos, 91).
CAPÍTULO 2

Os desafios para a formação dos profissionais


e a construção de redes intersetoriais na temática AD:
o Projeto Redes/SENAD

Tania Maris Grigolo8


Alex Xavier9

RESUMO

Este artigo objetiva refletir sobre os desafios para a formação dos


profissionais no processo de construção de redes intersetoriais, em especial
na temática do uso problemático de álcool e outras drogas. Para isso, apre-
sentaremos a experiência do “Projeto Redes/SENAD”, que visa à constru-
ção e articulação de Redes Intersetoriais em torno do cuidado em álcool e
outras drogas.

O “Redes” tem como objetivo potencializar a organização e a arti-


culação entre os pontos de atenção das redes de saúde, de seguridade social,
de educação, de cultura, de renda e de trabalho, ampliando o acesso das

8
Psicóloga. Doutora em Psicologia Clínica e Cultura. Interlocutora do Projeto Redes/SENAD.
Professora do Curso de Psicologia (CESUSC) e do Mestrado em Saúde Mental e Atenção Psi-
cossocial (UFSC). Consultora em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. E-mail: taniamgri-
golo@gmail.com
9
Fisioterapeuta. Mestre em Saúde Coletiva. Articulador Local do Projeto Redes/SENAD.
E-mail: xavier_fisio@yahoo.com.br
80

pessoas que fazem uso problemático de drogas aos seus direitos e à inclusão
social. Trata-se de uma estratégia de apoio “in loco” para municípios que
integram o programa “Crack, é possível vencer”, tendo em perspectiva a su-
peração das lacunas existentes entre os diversos setores e políticas públicas,
entre as especificidades das ações de cada um e a necessidade de diminuir
a fragmentação das redes, considerando a singularidade dos sujeitos e dos
contextos locais.

Esse projeto está sendo executado em Macaé (RJ) desde agosto de


2014. Parte da existência de diversos pontos de atenção, em diversos seto-
res, como saúde, assistência social, justiça, educação, com potencial para a
construção e articulação de redes intersetoriais.

Analisaremos a realidade do município da perspectiva da promo-


ção de articulações em direção ao cuidado, direitos e proteção social, bem
como o processo de construção de redes como um processo formativo que
qualifica os atores envolvidos a partir do diálogo, dos encontros de diferen-
tes profissionais, em diferentes lugares de cuidado, em variados setores das
políticas públicas.

O caminho percorrido, até o momento, no município demonstra


a necessidade de mediação para a promoção de entrelaçamento dos pro-
fissionais, dos setores e das políticas, de discussão e construção de práticas
integradas de atenção, que sejam coletivas e fundamentadas por diretrizes e
conceitos em comum, no sentido de induzir relações de compartilhamento
e responsabilização em rede, capazes de respeitar os direitos humanos e a
singularidade dos sujeitos.

Palavras-chave: Redes Intersetoriais, Álcool e outras Drogas, Formação de


Profissionais.

1. Introdução

Em 25 anos de Sistema Único de Saúde, é possível identificarmos


que muitos avanços ocorreram, em diferentes dimensões, desde a amplia-
ção do próprio conceito saúde-doença, que fundamenta as práticas dos pro-
fissionais, que ora se vê reduzido à ausência de doença, ora transforma-se
em uma visão ampliada e integrada, que considera um conjunto de fatores
sociais, políticos, econômicos e subjetivos.
81

A experiência humana com as drogas implica uma multiplicida-


de de relações, fatores, contextos, variáveis e precisa ser considerada como
parte da vivência de cada sujeito, no contexto de sua vida e da cultura.

As políticas públicas sobre o álcool e outras drogas no Brasil ca-


minham, cada vez mais, em direção à necessidade de construir outro olhar
para o sujeito que faz uso de substâncias psicoativas, que seja ao mesmo
tempo menos preconceituoso e marginalizador, mas também propositivo
e não negligente com essa população, que tem ficado ausente de muitas
políticas sociais.

O processo de construção de políticas públicas tem avançado no


país nas últimas décadas, em especial nas políticas sociais e psicossociais
esse processo tem promovido mudanças substanciais no modelo de atenção
em saúde mental e aos problemas do campo álcool e outras drogas (AD).

As diretrizes da Política Nacional sobre Drogas (BRASIL, 2005) vi-


sam afastar-se da postura antidrogas ou de guerra às drogas, que dominou
o cenário brasileiro e mundial nas últimas décadas e consequentemente o
cuidado como vigilância, controle e perseguição dos usuários para assumir
que os problemas que envolvem as drogas são complexos e exigem outros
olhares, atitudes e certamente outra formação dos profissionais que traba-
lham nesse campo. Essa mudança de olhar e de modelo de referência exige
outra postura dos profissionais desse campo, de aceitação incondicional e
acolhedora, compreendendo que as pessoas que fazem uso de substâncias
psicoativas não se resumem àquela droga ou ao uso que fazem dela, toda-
via são constituídas por histórias diversas, situações e vivências nas quais o
álcool e as demais drogas entram como um aspecto no contexto maior de
vida e de subjetivação no mundo.

O desafio colocado neste momento está não apenas em seguir na


expansão de serviços e pontos de atenção às pessoas que necessitem de cui-
dados nesse campo, mas na qualificação das ações de cuidado nos territó-
rios e na integração das políticas setoriais. A perspectiva de construção de
sujeitos considera que para atender a pessoa, de maneira integral, no que
diz respeito a sua relação com as drogas, é preciso considerar as redes por
onde trilha esse sujeito e as ofertas de cuidado.

Nesse contexto, o conceito de Redes passou a ter destaque, nos


últimos anos, como organizador do cuidado no SUS, e, ao mesmo tempo,
82

que necessita ser fundamentado e colocado em prática como uma imagem


-objetivo a ser alcançada.

Para Castells (2000), as redes são novas formas de organização so-


cial, do Estado ou da sociedade, intensivas em tecnologia de informação e
baseadas na cooperação entre unidades dotadas de autonomia. Diferentes
conceitos coincidem em elementos comuns das redes:

} relações relativamente estáveis,

} autonomia,

} inexistência de hierarquia,

} compartilhamento de objetivos comuns,

} cooperação,

} confiança,

} inter-dependência e

} intercâmbio constante e duradouro de recursos.

Para Mendes (2010), as Redes de Atenção são um complexo ar-


ranjo de serviços e ações interdisciplinares e intersetoriais que dão suporte
contínuo e integral ao indivíduo e que possibilita a ele estar no mundo com
o menor risco possível. Nesse sentido, a noção de Redes não trata de uma
estrutura estática, cristalizada e já estabelecida, mas formulada e implemen-
tada de maneira dinâmica, o que nos faz compreender a importância dos
atores que constituem tais estruturas, que são essenciais e necessitam de
espaços de formação permanentes, também dinâmicos, que favoreçam a
reflexão sobre o fazer cotidiano profissional.

Em dezembro de 2010 o Ministério da Saúde publicou a Portaria


n° 4.279 (Brasil, 2010), que estabelece as diretrizes para a organização da
Rede de Atenção à Saúde. Posteriormente, em dezembro de 2011 (Brasil,
2011), o mesmo órgão publicou a Portaria n° 3.088, que institui a Rede de
Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental
e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas,
83

no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A Rede AD visa possibilitar


uma prática colaborativa, participativa, formativa e compartilhada entre os
diversos profissionais, pontos de atenção, setores e políticas, no cuidado às
pessoas em sofrimento psíquico e por uso problemático de álcool e outras
drogas.

Os fundamentos do conceito de Redes (Casttels, 2000) têm íntima


relação com os percursos do campo da saúde mental, já traçados no âmbito
da Reforma Psiquiátrica brasileira, pois, se o modelo manicomial centrali-
zou e homogeneizou as ações de tratamento e logrou abandonar e cronificar
seus pacientes, na atenção psicossocial o sujeito é que ganha centralidade
no cuidado, evidenciando a necessidade de estabelecer outros recursos, em
todas as redes, que ampliem o acesso, a escuta, considerando outros itinerá-
rios e diferentes percursos de vida, redes flexíveis, que possam acompanhar
os sujeitos em suas trajetórias e necessidades.

A construção de Redes é um processo em desenvolvimento que


exige aproximação e construção de projetos e ações entre os diversos seto-
res das políticas públicas e com a comunidade. Para efetivar esse processo, é
preciso o compartilhamento de pressupostos em comum, de diversos olha-
res sobre as demandas, as necessidades e as realidades, que são multideter-
minadas, com vistas ao aumento da proteção social, da garantia de direitos
fundamentais, da atenção integral, da resolutividade e da qualificação das
ações de cuidado.

Costa et al. (2013) consideram que a questão do uso das drogas é


multidimensional e não pode ser enfrentada por um setor isolado. Para es-
ses autores, as “articulações intersetoriais e a atuação multiprofissional são
imprescindíveis para incidir sobre os determinantes sociais do processo de
uso de álcool e outras drogas e promover saúde” (Costa et al, 2013, p. 329).

Para Peres (2014), as ações intersetoriais possuem, entre seus ob-


jetivos, a reinserção social, a melhoria da qualidade de vida dos usuários, a
ampliação do acesso, a resolutividade e o compartilhamento de responsabi-
lidades, evidenciando que qualquer experiência inovadora e criativa precisa
considerar a intersetorialidade e a interdisciplinaridade.

O exercício de singularização do cuidado e a articulação e organi-


zação de Redes integradas se dá por meio da produção de encontros, de re-
lações, de diálogo com as exigências, as necessidades e os afetos e conflitos
84

que emergem desses processos. O esforço, no campo AD, nos parece ainda
maior para superar as formas de pensar e de agir cristalizados na cultura e
na formação das pessoas em geral e dos profissionais em especial, incorpo-
rados dos modelos hegemônicos de tratamento, que dificultam as possibili-
dades de exercício de cidadania e cuidado integrado à saúde, à proteção so-
cial, à educação, à cultura e desconsideram os sujeitos e suas singularidades.

Além disso, a construção e articulação de Redes intersetoriais de-


safia a formação dos profissionais, suscitando outro olhar sobre os modos
de sofrer, habitar, produzir saúde/doença dos usuários no território. Nessa
esteira, o Projeto Redes/SENAD tem como referência estratégias presentes
nas experiências nacionais e internacionais em atenção à saúde mental e
álcool e outras drogas e os avanços jurídico-políticos do campo AD, das
últimas décadas.

Esse processo de construção tem possibilitado algumas experi-


mentações, como o próprio Projeto Redes, que aposta em práticas inovado-
ras, em contextos locais para produzir integração entre os atores que atuam
no cuidado, proteção e prevenção em relação à temática AD.

O “Redes” pretende pôr em debate a articulação e integração, nos


territórios, dos profissionais que operam os serviços, muitos deles novos
e ousados, como os consultórios de/na rua, as unidades de acolhimento,
as moradias compartilhadas. A possibilidade de produzir integração, por
essa proposta, que inclui um articulador, mediador, parte de estratégias de
pactuação local, que fomentam o encontro, o diálogo, a cooperação e a cor-
responsabilização na direção de construir laços entre os setores, de garantir
a expansão do acesso ao acolhimento, cuidado e direitos.

Portanto, o Projeto Redes assume, como estratégia metodológica,


uma metodologia ativa, que problematiza as situações enfrentadas nos ter-
ritórios para o desenvolvimento de aprendizagem significativa e mudanças
na realidade local. De forma prática, oferece ao município um articulador
de rede, que colocará em contato, fomentará o diálogo, partilhará deman-
das e mediará conflitos, para a construção do diálogo e de ações em comum
entre os setores, os pontos de atenção e as políticas.

O objetivo é ampliar o acesso, o cuidado, a inclusão social e a cons-


trução de projetos de vida e cidadania com os usuários e famílias que ne-
cessitam de atenção por uso problemático de álcool e outras drogas. A qua-
85

lificação dos serviços e a formação permanente dos profissionais voltada às


situações que envolvam usos prejudiciais de drogas e ao apoio integral aos
usuários e suas famílias é fundamental nesse contexto.

Alguns pressupostos adotados seguem os referenciais da atenção


psicossocial, das políticas públicas e dos direitos humanos, tais como: a)
a atenção ao usuário/família deve ser voltada ao oferecimento de oportu-
nidades de reflexão sobre o próprio consumo, em vez de isolamento, b)
favorecer e ampliar o acesso aos equipamentos disponibilizados nas redes
de saúde, assistência social, educação, trabalho e cultura, c) a integralidade
deve ser sempre buscada de forma permanente, evitando a fragmentação
na compreensão da problemática envolvida e na atenção ofertada, d) o re-
conhecimento dos usuários como sujeitos de direitos e deveres, e) o aco-
lhimento e a responsabilidade compartilhada nos serviços de atenção, f) a
garantia de mecanismos de promoção e defesa dos direitos humanos nos
serviços, g) a singularidade dos problemas relacionados às crianças e aos
adolescentes, h) a organização das políticas para favorecer a articulação das
ações de cuidado.

Além desses pressupostos, há de se destacar o reconhecimento


dos territórios onde as pessoas convivem, circulam, se movimentam, tra-
balham, estudam, se divertem, se expõem a riscos e também constroem
laços de proteção. Para além de mapear e conhecer os territórios, voltar o
trabalho das Redes para o território significa poder intervir, de forma mais
sensível e qualificada, sobre as inúmeras situações de risco e vulnerabilida-
de social, bem como identificar as potencialidades, a solidariedade social,
os serviços, as redes de apoio, as associações existentes, os valores predomi-
nantes e os potenciais recursos.

Uma estratégia de intervenção, nessa direção, considera que outras


variáveis, como a família, a moradia, as relações sociais, a renda, as relações
afetivas, entre outras, na direção do que colocam Saraceno, Asioli e Tognoni
(1994), são variáveis fundamentais para a construção de um cuidado que
faça sentido na vida dos sujeitos e para a construção de políticas articuladas.

Os recursos dizem respeito à condição afetiva, cognitiva e relacio-


nal dos sujeitos envolvidos no cuidado e são proporcionais a seu território
existencial, a sua relação com os serviços e redes intersetoriais. Esses recur-
sos muitas vezes são deixados de lado na clínica tradicional, que destaca
86

apenas o diagnóstico, como norteador da intervenção terapêutica, e não as


capacidades e singularidades dos sujeitos e das redes de proteção.

O Projeto Redes se oferece como um dispositivo para promover o


acesso aos recursos do território, dos serviços, dos sujeitos, visando cons-
truir redes efetivas, operando transformações, ou possíveis transgressões
do instituído, para fomentar mudanças e entrelaçamentos.

O Projeto Redes em Macaé (RJ) tem experimentado essa inser-


ção no território, através do mapeamento das políticas no âmbito AD, do
conhecimento sobre o funcionamento dos pontos de atenção, das redes de
saúde, de assistência social, de segurança pública, em especial, mas também
da rede de educação, das ações comunitárias existentes e dos projetos co-
munitários. A presença de alguém no território, ao mesmo tempo familiar e
estranho, interno e externo, com um “outro olhar” que distancia e reconhe-
ce, faz o trabalho do articulador ter o potencial de um dispositivo que opera
para a construção de redes intersetoriais que entrem em contato e possam
refletir sobre suas ações, possibilitando o cuidado compartilhado.

Aqui a proposta de constituição de redes que opera na lógica de


transformação do instituído traz a necessidade de também construir no ter-
ritório uma lógica de formação que opere a partir dos próprios elementos
presentes “in loco”. É uma aposta que a formação, para além da instrução
formal, se dá no exercício cotidiano do trabalho. Trata-se de uma concep-
ção de formação que compreende o entre, como espaço privilegiado de
operação, logo é necessário levantar, encarar, debater, e acima de tudo assu-
mir as diferenças para superar o afastamento das lógicas formais, do saber e
do fazer, do pensar e trabalhar para promover a atenção/cuidado integrados
e contínuos (Correia, 1996).

Esse entendimento da formação como processo concreto e vivido


no cotidiano do trabalho nos aproxima dos conceitos da Educação Perma-
nente em Saúde, em que a centralidade está na “sua porosidade à realidade
mutável e mutante das ações e dos serviços de saúde; é sua ligação política
com a formação de perfis profissionais e de serviços” (Ceccim, 2005, p. 162).

Todavia, consideramos a intencionalidade do Projeto Redes na


construção/sustentação de redes intersetoriais, apontando para a necessidade
de compartilhamento das concepções sobre a formação e a educação per-
manente entre os setores que constituem o sistema de políticas sobre drogas.
87

2. Objetivos

Este artigo tem como objetivo apresentar as características e ana-


lisar o “Projeto Redes/SENAD” como um dispositivo para a articulação in-
tersetorial e para a formação e qualificação das redes de cuidado em AD.

3. Percurso Metodológico

Em 7 de dezembro de 2011, foi lançado em Brasília o programa


“Crack, é possível vencer”. O programa, que, desde então, se configura
como parte da política sobre drogas no país, reconhece a complexidade do
tema em questão e o desafio que seria sua implantação. Assim, destacou,
entre outras, a necessidade de propor ações intersetoriais com foco na saú-
de, segurança, assistência social, educação e direitos humanos, devendo es-
sas ações se materializarem através de articulação interfederativa, incluídas
as três esferas de governo.

No Rio de Janeiro, o governador do Estado, juntamente com pre-


feitos de 13 municípios (Belford Roxo, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, São
Gonçalo, Itaboraí, Magé, Petrópolis, Macaé, Campos dos Goytacazes, Volta
Redonda, São João de Meriti, Niterói e Rio de Janeiro) assinaram, em 24 de
maio de 2013, o compromisso junto ao governo federal de implementar, em
suas respectivas áreas de abrangência, o Programa “Crack, é possível vencer”.
No país, 118 municípios aderiram ao programa, distribuídos por 27 estados,
mais o Distrito Federal. O público prioritário foram os municípios com po-
pulação acima de 200 mil habitantes, e o estado do Rio de Janeiro foi o 2° no
ranking com maior número de municípios em adesão, atrás apenas do estado
de São Paulo. A adesão ao Programa traz ao município a responsabilidade
de implementar a política sobre drogas de maneira intersetorial, atualmente
dividida em três eixos – prevenção, assistência e autoridade.

O município de Macaé, localizado na região norte do estado, re-


gistrou no Censo de 2010 uma população de 206.728 pessoas, e tem sua
economia pautada na indústria do petróleo e gás (IBGE, 2015; Prefeitura
Municipal de Macaé, 2015).

O organograma da Prefeitura Municipal de Macaé conta com


uma Coordenadoria Extraordinária de Políticas sobre Drogas (CEPOD),
órgão com status de secretaria ligado diretamente ao gabinete do prefei-
88

to, cuja função é executar a política municipal sobre drogas. A partir da


adesão ao “Plano Crack”, ficou a cargo dessa coordenadoria a articulação
para a execução do plano no município, caracterizando-a como ponto focal
no Sistema Informatizado de Monitoramento da Presidência da República
(SIMPR). Conforme exigência para adesão, foi criada a Comissão Gestora
do Plano, através do Decreto n° 37/2013, cabendo também à CEPOD sua
coordenação.

Dada a adesão ao programa “Crack, é possível vencer”, em maio


de 2013, e a uma análise compartilhada com os Ministérios da Saúde, da
Assistência Social e da Justiça, foi oferecido ao município a possibilidade
de participar do “Projeto Redes”, iniciando um processo compartilhado de
construção, adesão e efetivação do Projeto no município.

O Projeto Redes/SENAD selecionou, junto com o município, isto


é, CEPOD e setores das políticas de saúde, assistência social, educação, se-
gurança que fazem parte do Comitê Gestor do Programa, no município, um
articulador local, que passou a operar “in loco” o trabalho de articulação
das redes setoriais. A função desse articulador local é, através de sua presen-
ça no território, aproximar os atores estratégicos da implementação da polí-
tica pública de álcool e outras drogas, assim como promover e/ou sustentar
ambientes propícios para discussão permanente da política das situações
concretas dos serviços e de casos. Assim, o articulador tem a responsabi-
lidade de refletir em conjunto com os atores locais, proporcionando-lhes
um espaço para o olhar ampliado e crítico da realidade, contribuindo para
identificação do que precisa ser aprofundado e modificado para a articula-
ção intersetorial.

Cumprida a primeira parte de seleção conjunta (atores municipais


e SENAD) do articulador, iniciou-se, em agosto de 2014, a atuação do ar-
ticulador no território. A princípio, ele foi apresentado ao Comitê Gestor
durante reunião ordinária, ocasião em que ficou pactuado que ele conhece-
ria os serviços e paralelamente iniciaria o trabalho de mapeamento, como
primeira atividade, junto às redes de atenção em relação às drogas.

4. Resultados e Discussão

Atualmente é muito comum ouvir, no serviço público, a necessida-


89

de de agir de maneira intersetorial. Todavia, a intersetorialidade, na prática,


ainda é algo pouco experimentada. O Projeto Redes, nesse sentido, identifi-
ca que algumas ações realizadas no município de Macaé deram visibilidade
e fortalecem essa prática. A formação dos profissionais em serviço e o pro-
cesso de construção de redes intersetoriais, na temática AD, se dão conjun-
tamente, essa é nossa aposta. É verdade que alguns setores, em especial a
saúde, já há algum tempo, discute e realiza ações de educação permanente
nessa lógica e exercita a necessidade de uma construção mais democrática
de trabalho coletivo e construção das redes de atenção. Vamos apresentar
algumas das atividades realizadas, no âmbito do Projeto Redes/SENAD, e a
avaliação do processo construído até o momento, já que esse projeto ainda
está em curso e a cada momento acrescentam-se novos desafios.

4.1 Mapeamento das redes: conhecendo os recursos e serviços


no território

Em relação à rede de serviços relacionada diretamente ao eixo cui-


dado na temática AD, pactuada no “Plano Crack”, Macaé apresenta na Rede
de Atenção Psicossocial: 1 equipe de Consultório na Rua, 1 CAPS AD II,
1 CAPS II pactuado para transformar-se na modalidade III, 1 CAPSi, 1
Núcleo de Saúde Mental (ambulatório), 1 PAM (Aeroporto) com 10 leitos
para saúde mental. No âmbito da rede de proteção social: 1 equipe de Ser-
viço de Abordagem Social na Rua, 1 Centro Pop, 1 Centro de Referência
Especializado da Assistência Social, a Pousada da Cidadania e 2 Centros de
Referência de Assistência Social.

Quanto ao eixo prevenção, Macaé apresenta a seguinte estrutura:

O Centro Regional de Referência, ligado à Universidade Federal


do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ), cuja função é oferecer formação per-
manente aos profissionais e à sociedade civil com atuação na temática AD.
Entre 2013 e 2014, o CRR ofereceu 4 cursos: Intervenção Breve e Aconse-
lhamento Motivacional em Crack e outras Drogas – para agentes comunitá-
rios de saúde, redutores de danos e agentes sociais profissionais que atuam
nos Consultórios de Rua –, Gerenciamento de Casos e Reinserção Social
de Usuários de Crack e outras Drogas – para Profissionais das Redes SUS
e SUAS –, Atenção Integral aos Usuários de Crack e outras Drogas – para
profissionais atuantes nos hospitais gerais –, e Curso de Aperfeiçoamento
90

em Crack e outras Drogas – para médicos atuantes no Programa de Saúde


da Família e no Núcleo de Assistência à Saúde da Família. Cada curso ofe-
receu 60 vagas e todos tinha carga horária de 60 horas.

Existem ainda projetos de formação realizados diretamente pela


CEPOD ou articulado por ela. Sob sua responsabilidade de execução direta,
o Programa Escola Viva, voltado aos profissionais de educação da rede de
educação municipal, aos alunos e aos pais. As ações desse programa acon-
tecem na própria unidade escolar através de oficinas. As formações com os
professores, em quatro encontros de uma hora cada, funcionam na lógica
da educação permanente. A outra formação oferecida é intitulada Álcool,
tabaco e outras drogas na perspectiva de redução de danos no ambiente
escolar em interface com a rede, executado através da CEPOD dentro da
programação de educação continuada oferecida pela Secretaria Municipal
de Educação (SEMED) aos seus profissionais. A CEPOD articula ainda com
o Centro de Educação Tecnológica e Profissional (CETEP) e a Escola de
Redutores de Danos/Secretaria Municipal de Saúde de Macaé (SEMUSA)
e outros atores para a execução da formação de redutores de danos. O pla-
nejamento e a execução do Congresso Municipal sobre drogas é outra ação
que é realizada por essa Coordenadoria.

O município constantemente conta com a participação de seus


profissionais em cursos de formação/capacitação, na modalidade de ensino
a distância (EAD), oferecidos pela SENAD, em parceria com várias institui-
ções de ensino do país ou ainda cursos oferecidos por outras instituições na
modalidade EAD. A exemplo, pode ser citado o curso SUPERA (Sistema
para detecção do uso abusivo e dependência de substâncias psicoativas: en-
caminhamento, intervenção breve, reinserção social e acompanhamento),
Curso de prevenção do uso de drogas para educadores de escolas públicas,
Curso para operadores do direito: integração de competências no desem-
penho da atividade judiciária com usuários e dependentes de drogas, todos
esses promovidos pela SENAD.

A formação voltada para a Atenção Integral à saúde de pessoas em


situação de rua é ofertada em parceria entre o Ministério da Saúde e a Fiocruz
e o Curso de Álcool e outras drogas, da coerção à coesão, ofertado em parce-
ria entre o Ministério da Saúde e a Universidade Federal de Santa Catarina.

Em relação ao eixo autoridade, Macaé recebeu através de sua Se-


cretaria Municipal de Ordem Pública (SEMOP) 1 base móvel e respectivo
curso de formação para seus guardas municipais.
91

O mapeamento da rede de serviços do município, seja no eixo cui-


dado, prevenção ou autoridade, para o “Projeto Redes” aponta de modo
geral que o município apresenta estruturas físicas com potência para fun-
cionamento da rede temática AD.

Especificamente em relação ao setor saúde, é preciso implementar


os equipamentos estratégicos, previstos para a política sobre drogas, tais
como: o CAPS AD 24h, a Unidade de Acolhimento Adulto e Infantil, e a re-
gulamentação dos leitos específicos no Hospital Geral. Em nossa análise, no
que diz respeito à construção de redes na temática AD, três são os grandes
desafios que estão sendo enfrentados pelo município.

O primeiro é relativo à construção física e funcionamento efetivo


dos equipamentos da rede de saúde, que são fundamentais para a rede te-
mática AD, e sem dúvida a inexistência deles traz ao município prejuízos
significativos para execução dos serviços pelos profissionais, e, na realidade,
têm levado o município a sérios enfrentamentos com o poder judiciário.

O segundo desafio localiza-se no campo organizacional do fluxo


das redes, que passa pela construção de espaços de encontros que possibili-
tem que os profissionais dos equipamentos existentes estabeleçam contatos
efetivos e possam compreender as situações, os contextos e as singulari-
dades dos casos atendidos e planejar projetos terapêuticos integrados, de
forma intersetorial, sendo (co)responsáveis e capazes de garantir a conti-
nuidade do cuidado nas redes. A Rede Rua (que será abordada adiante), por
exemplo, é um espaço que aponta nessa direção.

O terceiro desafio para a Rede AD está nas atuais condições de


trabalho e o desconforto colocado com a sobrecarga de atividades e res-
ponsabilidades que os profissionais vivenciam em seu cotidiano. Isso é mais
visível na rede de saúde, por exemplo, mas atinge todos os trabalhadores no
campo das políticas públicas.

4.2 Coordenadoria Extraordinária de Políticas sobre Drogas

A Coordenadoria Extraordinária de Políticas sobre Drogas foi


criada na estrutura organizacional do município de Macaé através de Lei
Complementar n° 164/2010. Essa organização municipal evidencia que, em
92

certa medida, antes mesmo da adesão do “Plano Crack”, em 2013, o mu-


nicípio iniciava a compreensão da necessidade de construir um ambiente
propício à articulação das políticas sobre drogas. Com a adesão do “Plano
Crack” e início do “Projeto Redes”, tal configuração estrutural apresenta-se
como uma importante estratégia de gestão.

A existência de órgãos com esse perfil nos municípios pode possi-


bilitar uma ampliação da compreensão sobre esse campo e da necessidade
de se formular de fato um sistema municipal de políticas sobre drogas que
seja intersetorial, favorecendo e potencializando a construção de redes ar-
ticuladas.

Todavia, para o alcance desse objetivo, é necessário que essa coor-


denadoria, por exemplo, tenha clareza de seu papel estratégico na gestão
das políticas sobre drogas e, principalmente, no que diz respeito a criação
e/ou sustentação de espaços intersetoriais, participativos, que produzam a
(co)gestão e a (co)responsabilização dos setores nas ações de prevenção,
cuidado e direitos.

Analisamos que a instituição de um lugar específico, no executi-


vo municipal, para sustentação de políticas estratégicas, tal qual a política
sobre drogas, permite uma atuação mais efetiva na direção da interseto-
rialidade. Entendemos que, fora de uma área técnica-assistencial específi-
ca, a capacidade de promover a articulação e considerar a necessidade de
construção compartilhada das responsabilidades, nesse campo, se amplia e
pode responder, com maior complexidade, às demandas dos sujeitos e das
políticas setoriais. No percurso de atuação da Coordenadoria de Políticas
sobre Drogas (CEPOD) de Macaé e durante o acompanhamento do Projeto
Redes, percebe-se a construção desse caminho, que tem passado de uma
atuação direta para uma função mediadora e articuladora, afastando-se das
ações fins ou da execução de ações, fortalecendo a interlocução e a função
de apoio às ações e políticas no campo AD.

4.3 “Rede Rua”: um espaço de construção de rede intersetorial

A Rede Rua é um espaço de debate e construção interdisciplinar


onde os atores de diversas secretarias e/ou órgãos afins tratam de situações
que acontecem nas ruas da cidade. Esse espaço foi construído pelos pró-
93

prios profissionais/técnicos diante da necessidade de realizar ações interse-


toriais para tratar de questões que setorialmente não eram possíveis. Logo,
não foi algo criado a partir do Projeto Redes, já existia e tem sido destacado
e fortalecido por esse Projeto como um espaço estratégico e potente para
a formação e atuação dos profissionais que compõem a rede de serviços
públicos do município e para a resolução e enfrentamento de problemas e
casos complexos que afetam todos os setores.

O grupo do “Rede Rua” reúne-se ordinariamente uma vez por mês


e sua composição conta de maneira permanente com as áreas técnicas do
desenvolvimento social, saúde e ordem pública, e, conforme a necessidade,
são convidadas áreas técnicas de outros setores, que participam de forma
pontual ou por um tempo determinado.

Apontamos que a “Rede Rua” se estabeleceu também como um


potente espaço de educação permanente e constitui um instrumento im-
portante no sentido de produção de cuidado integral e contínuo com res-
ponsabilidades compartilhadas e menos fragmentadas. Esse espaço, em vá-
rias medidas, tem possibilitado reflexão e diálogo a respeito das práticas e
concepções vigentes entre os setores, trata-se de um momento para que as
equipes possam discutir e dividir também os desconfortos e impasses dos
próprios serviços.

4.4 Revisão de instrumentos legais

Uma importante reflexão trazida pelo Projeto Redes no muni-


cípio foi a revisão dos instrumentos legais que fundamentam o percurso
cotidiano construído pelo município no que diz respeito a política públi-
ca municipal sobre drogas. A criação de um modelo legal robusto pode se
configurar estratégico na manutenção de uma política de Estado, pautado
em princípios como: intersetorialidade, participação social e criação de vín-
culo. Assim, está em processo formulação o Sistema Municipal de Políticas
sobre Drogas, e a revisão dos decretos que criam a Comissão Gestora do
programa “Crack, é possível vencer” e o Conselho Municipal de Políticas
sobre Drogas.
94

4.5 Projeto de Inserção Social

Trata-se de um projeto cujo objetivo é desenvolver iniciativas in-


tersetoriais que garantam o exercício de direitos de cidadania, aumento da
contratualidade e autonomia, apoio à construção de projetos de vida das
pessoas em situação de vulnerabilidade social, que fazem uso problemático
de drogas, por meio de ações de promoção de moradia, trabalho e forma-
ção/qualificação profissional e de projetos articulados de esporte/cultura e
lazer. Esse projeto é uma oferta da SENAD, através de modalidade convê-
nio, aos municípios que fazem parte do “Projeto Redes”, e traz para o muni-
cípio a possibilidade de implementar de forma intersetorial um projeto vol-
tado à promoção da cidadania e do cuidado das pessoas em situação de rua.

A aposta desse projeto encontra-se no campo dos direitos huma-


nos, portanto sua abordagem está pautada na construção de uma política
pública cujo o cuidado integral e contínuo seja visto como investimento na
promoção de vida das pessoas. Entendemos que a garantia dos direitos bá-
sicos perpassam, conforme artigo 1° da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, pela ideia de todas as pessoas nascem livres e iguais em dignida-
de e direitos, e a garantia desses direitos só é possível se garantida através
de (co)responsabilização e intersetorialidade. Nesse sentido, é de se esperar
ainda que a implementação do projeto de inserção social acorra com baixís-
sima ou nenhuma condicionalidade, ou seja, o que qualifica o indivíduo a
participar é sua condição humana e a vulnerabilidade relacionada ao uso ou
abuso de álcool e outras drogas, em especial para populações em situação
de rua.

Inicialmente a CEPOD se reuniu com a SEMDS, Secretaria Mu-


nicipal de Trabalho e Renda (SEMTR), CETEP, Secretaria Municipal de
Habitação, Coordenadoria Extraordinária de Igualdade Racial (CEPIR) e
articulador local do “Projeto Redes” para discutir o interesse desses órgãos
em construir um projeto interdisciplinar para trabalhar com pessoas em
situação de rua no município. Foi analisada a estrutura que o município já
possuía na área e quais características das pessoas em situação de rua no
âmbito local. A partir disso, iniciamos a construção da proposta do proje-
to, considerando a inclusão de outros atores importantes em cada fase de
implementação.

O desenho do projeto foi direcionado com vistas a fortalecer três


95

ações já realizadas pelo município. A primeira trata da vinculação das pes-


soas, público-alvo do projeto, com os serviços já ofertados pela prefeitu-
ra. É de conhecimento das equipes do Centro Pop, Pousada da Cidadania,
Unidades Básicas de Saúde, Estratégia de Saúde da Família, Serviços de
emergência, Guarda municipal, Equipe de abordagem social na rua, e Con-
sultório de/na rua de que uma parcela das pessoas em situação de rua por
questões diversas não se vinculam aos serviços mais tradicionais do cuida-
do, sejam esses personificados pela SEMDS, SEMUSA ou qualquer outro
setor. Assim, investir na potencialização de estratégias de atuação da Equipe
de abordagem social na rua pode beneficiar a criação de novos vínculos ou
gradativamente qualificar os vínculos já existentes, até que gradativamente
a maior parte desses indivíduos em vulnerabilidade possam engajar-se e
obter um suporte mais robusto das políticas públicas que contribuam para
sua qualidade de vida, seja esse relacionado, por exemplo, a condições de
saúde e/ou moradia.

A segunda ação de que trata o projeto é a oferta de moradia às pes-


soas em situação de rua. Para tanto, o projeto apoiará a Pousada da Cida-
dania em sua manutenção e qualificação. A terceira ação se refere à neces-
sidade de ofertar formação/qualificação profissional aos próprios usuários,
considerando seus desejos, suas singularidades e necessidades de inserção
comunitária através do trabalho. Para o alcance dessa formação específica,
vimos construindo junto ao Centro de Educação Tecnológica e Profissional
do município propostas de formação pautadas em metodologia ativas de
aprendizagem, considerando o pagamento de bolsas como forma de inser-
ção na formação profissional diretamente aos usuários.

Para implementação do Projeto de Inserção Social em Macaé,


identificamos como principais desafios:

a) Apostar na capacidade que os coletivos possuem de superar as


dificuldades e/ou entraves burocráticos para implementação de
ações públicas que correspondam a necessidades específicas, tais
como aquelas apresentadas pela população em situação de rua,
pois quando se trabalha com os princípios dos direitos humanos e
constituição de sujeitos, que são protagonistas, temos que nos de-
safiar a desenhar, em conjunto, propostas criativas. A inexistência
de experiências anteriores, no que se quer fazer, e o engessamen-
to da máquina burocrática não devem ser argumentos definitivos
para desacreditarmos da construção de novos caminhos.
96

b) A superação do temor da atuação interdisciplinar. Se historica-


mente a gestão pública está fundamentada na responsabilização
de setores específicos e a cobrança da operacionalização das ações,
de forma isolada, é tradicional, e respeita a lógica departamental
ou de “caixinhas”, também é verdade que será necessário darmos
mais visibilidade às ações intersetoriais para que novas formas de
acompanhamento, avaliação e controle social se deem nessa nova
forma de operar.

Repensar o que tem sido ou não ofertado e como tem se dado as


propostas de formação/qualificação para populações em situação de vulne-
rabilidade é um desafio colocado para esse projeto e para seu sucesso. Talvez
parte dessas pessoas não seja e nem queira ser “absorvida” pelo “mercado
ou emprego formal”. Nesse caso, precisaremos saber o que esses sujeitos de-
mandam e necessitam para construir, com eles, as propostas de formação e
inserção. Isso só será possível se considerarmos que as pessoas escolhem e
dão sentido à sua vida nas suas relações sociais e afetivas e, dessa forma, se
relacionam também com o trabalho, de diversas perspectivas.

5. Considerações Finais

Apresentamos neste artigo algumas reflexões sobre as caracterís-


ticas e a forma de atuar do Projeto Redes/SENAD, como dispositivo de ar-
ticulação de redes intersetoriais, no contexto do cuidado em AD e como
esse processo pode indicar elementos que contribuam para a formação e
qualificação dos profissionais das redes envolvidas.

Destacamos que o Projeto Redes, como um dispositivo de articu-


lação intersetorial, põe-se na posição de assumir os riscos de promover o
encontro entre diferentes setores e atores, de sustentar o diálogo nos ter-
ritórios e redes locais, de tensionar permanentemente os fundamentos, as
diretrizes e a ética que norteiam as ações e o cuidado dos usuários com uso
problemático de drogas, para além das drogas.

É também objetivo a construção de um cuidado compartilhado


que apoie a construção e a reconstrução de projetos de vida a partir de
sentidos que emerjam das relações, nas experiências e vivência dos sujeitos/
usuários e no trabalho coletivo dos profissionais. Entendemos que o proces-
97

so de construção de redes é movimento, sempre aberto, inacabado, como é


o lançar-se no mundo, na vida, de cada sujeito, usuário ou profissional, de
forma singular.

Convém ressaltar que o dispositivo de articulação de redes inter-


setoriais tem se revelado potente para a promoção do diálogo entre setores
e trabalhadores, para a criação de encontros e para a afinação das ações nas
redes, como em uma grande orquestra, em que é preciso escutar o outro e
harmonizar cada instrumento. O Projeto Redes visa ampliar a inclusão dos
usuários AD nas políticas públicas, assegurando e facilitando seu acesso às
redes e buscando a articulação e qualificação dos pontos de atenção, pac-
tuando formas de acolhimento e de cuidado.

São as necessidades dos sujeitos com problemas relacionados às


drogas que devem indicar aos serviços a adequação de suas ofertas. Assim,
esse processo tem colocado em análise as redes, podendo perceber o quanto
elas são permeáveis à voz dos usuários, sem fórmulas ou receitas prontas,
em cada contexto, mas buscando construir alianças e diretrizes em comum.

O destaque está na construção de pactos e alianças entre as re-


des sobre a compreensão da produção de vida de cada sujeito/usuário. O
projeto Redes, como um dispositivo, deve ser capaz de produzir articula-
ções interprofissionais e intersetoriais necessárias para a constituição das
redes, de saúde, de proteção social, de direitos, de segurança e de outros
equipamentos da comunidade, amplificando a comunicação entre sujeitos
e pontos de atenção.

Os diversos movimentos, impasses e ações, bem como novos pro-


jetos, que tem surgido no processo de ação do “Redes”, têm demonstrado
ser essa uma estratégia mobilizadora e com alto potencial articulador, en-
volvendo desde a gestão local até os trabalhadores. O desafio de incluir os
usuários como os sujeitos desse cuidado nesses diálogos, encontros e pro-
cessos de construção segue sendo um objetivo a ser alcançado.

Refletir como o processo de construção das redes de proteção e


cuidado e a intersetorialidade podem ser estratégias de formação perma-
nentes dos profissionais e como esse processo pode promover a participa-
ção dos usuários nessa construção é, sem dúvida, um salto qualitativo a dar
neste momento da construção das políticas públicas no campo AD.
98

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do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de
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Capítulo 3

O desafio da atenção integral em álcool e outras drogas –


a experiência do CRR Macaé10
em 13 municípios das regiões da Baixada Litorânea
e Norte do estado do Rio de Janeiro.
Junia Prosdocimi11

A fim de contribuir com a discussão sobre o desafio da atenção


integral em álcool e outras drogas, neste capítulo pretendemos descrever
as redes de saúde mental existentes nos municípios que formam a região
de atuação do CRR Macaé, e também como se dão as pactuações regionais
para estruturação dos serviços de atendimento. Buscaremos ainda apontar
as principais barreiras e desafios na construção de uma política pública de
saúde eficaz no acolhimento, atendimento e acompanhamento da clientela
usuária de álcool e outras drogas na região.

O CRR Macaé atuou em 13 municípios de duas regiões do estado


do Rio de Janeiro: Região da Baixada Litorânea e Região Norte. Na primei-
ra, abrangeu a totalidade de seus municípios (Araruama, Armação dos Bú-
zios, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Casimiro de Abreu, Iguaba Grande, Rio

Centro Regional de Formação Permanente Prof. João Ferreira da Silva Filho


10

Tutora do CRR – UFJR Macaé


11
102

das ostras, São Pedro da aldeia e Saquarema). Na segunda, apenas quatro


deles (campos dos goytacazes, carapebus, Macaé e Quissamã). o muni-
cípio de conceição de Macabu, pertencente à região Norte-Fluminense,
integrou a área de abrangência do crr Macaé. Entretanto, por não ter en-
viado trabalhadores a nenhum dos cursos oferecidos, não foi considerado
neste artigo.

Figura i – área de abrangência crr Macaé

a região do crr Macaé abrangia um total populacional de


1.441.009 habitantes, sendo 715.500 referentes à região da Baixada litorâ-
nea e 725.509 referentes aos 4 municípios da região Norte do Estado.
103

Em 2011, a partir da Portaria Ministerial n° 3.088, foi instituída a


Rede de Atenção Psicossocial-RAPS no âmbito do SUS para pessoas com
sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de
crack, álcool e outras drogas. No que diz respeito à Atenção Psicossocial Es-
pecializada, a RAPS conta com os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS.
Esses serviços são categorizados por porte e clientela e recebem a denomi-
nação de CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS AD, CAPS AD III e CAPSi.
De acordo com a Portaria 336/02, a implantação dos CAPS deve seguir o
seguinte critério:

CAPS I – Municípios ou regiões com população acima de 20.000 habitantes.

CAPS II – Municípios ou regiões com população acima de 70.000 habitantes.

CAPS III – Municípios ou regiões com população acima de 200.000 habitantes.

CAPS AD – Municípios ou regiões com população acima de 70.000 habitantes.

CAPS AD III – Municípios ou regiões com população entre 200.000 e


300.000 habitantes.

CAPS i – Municípios ou regiões com população acima de 150.000 habitantes.

v Municípios com população inferior a 20.000 habitantes podem oferecer


o cuidado em álcool e outras drogas nos ambulatórios em parceria com
a Estratégia de Saúde da Família ou ainda pactuar serviços na forma de
consórcio intermunicipal.

A região do CRR Macaé conta com 13 municípios de portes distin-


tos, o menor deles, Carapebus, com 14.713 habitantes, e o maior, Campos
dos Goytacazes, com 480.648 habitantes, e a taxa de cobertura de serviços
tipo CAPS pode ser considerada baixa se comparada a outras regiões do
estado. (Gráfico I)
104

gráfico i – taxa de cobertura caPS por região – Estado do rJ

Fonte: Ministério da Saúde

Na região da Baixada litorânea, de acordo com o porte dos muni-


cípios que a compõem, a rede de serviços de atenção Psicossocial Especia-
lizada atual é considerada menor que o necessário para o atendimento. te-
mos 2 municípios de pequeno porte que não contam com o serviço caPS,
1 município que poderia implantar caPS iii, além, transformar seu caPS
aD em caPS aD iii e 4 municípios que, de acordo com seu porte popula-
cional, já poderiam ter implantado caPS aD.
105

Serviços CAPS Possibilidade


Município População*
existentes de ampliação
Araruama 120.948 1 CAPS II 1 CAPS AD
Armação dos Búzios 30.439 1 CAPS I -
Arraial do Cabo 28.866 - 1 CAPS I
Transformar o CAPS AD
1 CAPS II em CAPS AD III
Cabo Frio 204.486
1 CAPS AD 1 CAPS i
1 CAPS III
Casimiro de Abreu 39.414 - 1 CAPS I
Iguaba Grande 25.354 1 CAPS I -
Rio das Ostras 127.171 1 CAPS II 1 CAPS AD
Transformar o CAPS
São Pedro da Aldeia 95.318 1 CAPS I I em CAPS II
1 CAPS AD
Saquarema 80.915 1 CAPS I 1 CAPS AD

*Fonte: IBGE Censo Populacional 2010-Estimativa Populacional 2014

A Região Norte como um todo apresenta um cenário parecido, com


taxa de cobertura CAPS um pouco melhor que a Região da Baixada Litorâ-
nea. Nesse artigo, entretanto, como são estudados apenas 4 dos 8 municípios
que compõem a região, observamos que, em termos quantitativos, esses mu-
nicípios apresentam uma oferta de serviços bastante próxima do que seria
preconizado pelo Ministério da Saúde para um bom atendimento na área.

Serviços CAPS Possibilidade


Município População*
existentes de ampliação
1 CAPS AD
1 CAPS II Transformar o CAPS
Campos 480.648
1 CAPS III AD em CAPS AD III
1 CAPSi
Carapebus 14.713 - -
1 CAPS AD
Transformar o CAPS
Macaé 229.624 1 CAPS II
AD em CAPS AD III
1 CAPSi
Quissamã 22.261 1 CAPS I -

*Fonte: IBGE Censo Populacional 2010-Estimativa Populacional 2014


106

Quando pensamos no oferecimento do cuidado integral a pessoas


que apresentam problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas,
e levando-se em conta a complexidade que tais casos apresentam, faz-se
necessário mapear não apenas os serviços especializados, mas também os
serviços que fazem parte do contexto de vida de cada um desses cidadãos
e de seus familiares. No que diz respeito aos serviços de saúde, torna-se
imprescindível então apresentar os dados relativos aos serviços de Atenção
Básica de cada município, ou seja, a rede de unidades de saúde localizadas
nos bairros, que têm por premissa básica cadastrar, conhecer e atender as
famílias residentes naquele território. Estruturadas a partir de equipes de
saúde da família (SF), se apresentam como Porta de Entrada preferencial
para os serviços de saúde dos níveis secundários e terciários do município.
As unidades de SF são o eixo estruturante de uma linha de cuidado integral
que deve acompanhar inclusive casos de problemas decorrentes do uso de
crack, álcool e outras drogas.

Cobertura Atenção Básica


120%
100%
80%
60%
40%
20% Cobertura Atenção Básica
0%
Ar de ma

C rio

im ra os
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Sa
o
dr
ra

Pe
m

o
C
Ar

Fonte: Ministério da Saúde

Olhando por esse prisma, podemos perceber, de acordo com os


dados, que os municípios de pequeno porte estudados são também os que
apresentam melhor rede de Atenção Básica, e teriam, portanto, maior pro-
babilidade de oferecer melhores cuidados. Os municípios de grande e mé-
dio porte, como Campos, Rio das Ostras e Araruama, apresentam, por sua
vez, baixa cobertura de Atenção Básica, nos levando a perceber importante
fragilidade na possibilidade do oferecimento de cuidados integrais.
107

Um recurso importante que está disponível desde o ano de 2008


para atuar junto às equipes de Saúde da Família é o Núcleo de Apoio à Saú-
de da Família – NASF. O NASF é composto de uma equipe multiprofissio-
nal que atua de forma integrada às equipes de SF promovendo discussões
de casos clínicos, além de atendimentos compartilhados, tanto nas Uni-
dades de Saúde quanto em Visitas Domiciliares, permitindo a construção
conjunta de Projetos Terapêuticos Singulares e ampliando e qualificando as
intervenções na Atenção Básica.

Ainda ligado à Atenção Básica, temos a possibilidade da implanta-


ção de equipes de Consultório na Rua – equipes de CR. Tais equipes atuam
in loco, ou seja, na rua, de forma itinerante e compartilhada, junto a outros
serviços como os CAPS, a equipes de SF, os Hospitais Gerais ou outros
serviços que se façam necessários ao cuidado. As equipes de CR, segundo
o Artigo 2º da Portaria 122/12, são “equipes multiprofissionais e lidam com
os diferentes problemas e necessidades de saúde da população em situação
de rua”, incluindo-se a busca ativa e o cuidado aos usuários de álcool, crack
e outras drogas na rua.

Na região do CRR Macaé, temos alguns municípios que entram no


critério populacional para implantação de equipes de CR, porém apenas
o município de Macaé o fez até o momento. O município de Campos dos
Goytacazes está em fase de implantação e os municípios de Cabo Frio e Rio
das Ostras pactuaram a implantação do serviço, mas ainda não iniciaram
o processo.

A RAPS conta também com um componente de atenção residen-


cial de caráter transitório, do qual fazem parte as Unidades de Acolhimento
adulto (UA) e infanto-juvenil (UAi), e os Serviços de Atenção em Regime
Residencial, as Residências Terapêuticas. De acordo com dados fornecidos
pela Gerência de Saúde Mental da SES/RJ, o município de Campos dos
Goytacazes implantou uma UAi, e os municípios da Baixada Litorânea pro-
puseram pactuações para serviços consorciados em microrregiões. Com
respeito às Residências Terapêuticas, alguns municípios as implantaram,
principalmente após o início do processo de fechamento do Hospital Colô-
nia de Rio Bonito, porém estas recebem apenas pacientes egressos de longas
internações em instituições psiquiátricas.

Por fim, ainda estão previstos na RAPS os serviços de atenção de


urgência e emergência, compostos das UPAs, SAMU 192, Salas de Estabili-
108

zação e Pronto-Socorros Municipais, e nos Hospitais Gerais o serviço Hos-


pitalar de Referência para Atenção às pessoas com sofrimento ou transtor-
no mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras
drogas – SRH. Na Região da Baixada Litorânea, a maior parte dos municí-
pios realiza o cuidado emergencial em sua Porta de Entrada, seja ela a UPA
ou o Pronto-Socorro Municipal, mas apenas o município de Armação dos
Búzios tem cadastrado junto ao Ministério da Saúde 2 leitos específicos em
SRH. Na Região Norte, a situação é semelhante, tendo somente o município
de Quissamã cadastrado leitos em Hospital Geral.

Mecanismos de pactuação e colaboração intermunicipal do SUS na região

Até agora, mostramos o desenho das redes de saúde mental de


duas regiões do estado do Rio de Janeiro. Vale explicar aqui o porquê das
divisões regionais e também como se dão os estudos e pactuações que pos-
sibilitam a abertura de novos serviços de saúde em cada município.

O processo de regionalização como uma estratégia de descentrali-


zação é contemplado já na Constituição de 1988 e reforçado na Lei Orgâni-
ca da Saúde (8089/90), e desde então diversas Normas Operacionais do SUS
trataram desse tema. Tal estratégia visa fortalecer e consolidar as gestões
municipais, promovendo assim a melhor organização dos serviços de saúde
no território, na tentativa de garantir maior equidade no acesso aos serviços
e assim melhor atendimento à população. Porém, para que possa garantir
ao cidadão o acesso a todos os serviços de saúde necessários, o conceito de
territorialidade não pode ser restrito à abrangência municipal, ele precisa
considerar as peculiaridades de toda uma região e suas áreas de fronteira.
Então, para a efetivação do processo de descentralização, a regionalização é
utilizada como indutora da organização de redes articuladas e resolutivas,
propondo o planejamento integrado das ações de saúde em todos os níveis.
Assim, uma Região de Saúde é conceituada como “espaço geográfico contí-
nuo constituído por agrupamentos de municípios limítrofes, delimitado a par-
tir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação
e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar
a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde”.
Atualização do PDR 2012-2013 - SES/RJ

No estado do Rio de Janeiro, no ano de 2001, foi elaborado o pri-


meiro Plano Diretor de Regionalização – PDR, instrumento de organização
109

e planejamento das ações e serviços de saúde integrados, trazendo o dese-


nho das 9 Regiões de Saúde que ainda hoje se mantêm: Baía da Ilha Grande,
Baixada Litorânea, Centro-Sul, Médio Paraíba, Metropolitana I, Metropoli-
tana II, Noroeste, Norte e Serrana.

Regiões de Saúde Municípios Localização da Sede CIR


3 municípios Angra dos Reis
Prédio do SAMU
Baía da Ilha Grande Angra dos Reis, Mangaratiba, Av. Almirante Brasil, 2º andar
Paraty Balneário – RJ
CEP 23906-030
9 municípios
Araruama, Armação dos
Búzios, Arraial do Cabo, Cabo
São Pedro da Aldeia
Baixada Litorânea Frio, Casimiro de Abreu,
Av. São Pedro, 300 – Centro
Iguaba Grande, Rio das Ostras,
CEP 28940-000
São Pedro da Aldeia, Saqua-
rema
11 municípios
Areal, Comendador Levy
Gasparian, Três Rios
Engenheiro Paulo de Frontin, Rua Gavínio Vianna, 44
Centro-Sul
Mendes, Centro
Miguel Pereira, Paracambi, CEP 25805-070
Paraíba do Sul, Paty do Alferes,
Sapucaia, Três Rios,Vassouras
12 municípios
Barra do Piraí, Barra Mansa,
Itatiaia, Volta Redonda
Médio-Paraíba Pinheiral, Piraí, Porto Real, Rua Pedro Maria Neto, 93, sala
Quatis, Resende, Rio Claro, 201, Aterrado, RJ
Rio das Flores, CEP 27215-590
Valença, Volta Redonda
12 municípios
Belford Roxo, Duque de
Nova Iguaçu
Caxias, Itaguaí, Japeri, Magé,
Rua Dom Valmor, 234
Metro I Mesquita, Nilópolis, Nova
5º andar
Iguaçu, Queimados, Rio de
Centro
Janeiro, São João de Meriti,
Seropédica
110

7 municípios Niterói
Itaboraí, Maricá, Niterói, Rio Rua Athaíde Parreiras, s/nº
Metro II Bonito, São Gonçalo, Silva Bairro de Fátima – RJ
Jardim, Tanguá CEP 24070-090
14 municípios
Aperibé, Bom Jesus de
Itabapoana,
Itaperuna
Cambuci, Cardoso Moreira,
Rua Coronel Romualdo
Noroeste Italva, Itaocara, Itaperuna,
Monteiro de Barros, 11
Laje do Muriaé, Miracema,
Altos – CEP 28300-000
Natividade, Porciúncula, Santo
Antônio de Pádua, São José de
Ubá, Varre-Sai
8 municípios
Campos dos Goytacazes, Campos dos Goytacazes
Carapebus, Rua Edmundo Chagas,
Norte Conceição de Macabu, Macaé, nº 116
Quissamã, São Fidélis, São Centro, RJ
Francisco de Itabapoana, São CEP 28010-410
João da Barra
16 municípios
Bom Jardim, Cachoeiras de
Macacu,
Cantagalo, Carmo, Cordeiro,
Nova Friburgo
Duas Barras, Guapimirim,
Av. Euterpe Friburguense,
Serrana Macuco, Nova Friburgo, Petró-
nº 93 – Centro
polis, Santa Maria Madalena,
CEP 28605-130
São José do Vale do Rio Preto,
São Sebastião do Alto,
Sumidouro, Teresópolis, Traja-
no de Moraes
TOTAL: 9 Regiões 92 municípios 9 sedes CIR

Fonte: Secretaria Estadual de Saúde – SES/RJ


111

No ano de 2007, a Secretaria Estadual de Saúde implementou o


Programa Saúde na Área, proporcionando sua aproximação com as secre-
tarias municipais de saúde, e firmou o Pacto pela Saúde (2006), assumindo
o compromisso de apoiar e coordenar o processo de regionalização, sempre
levando em conta seus pressupostos:

Ø territorialização;

Ø flexibilidade;

Ø cooperação;

Ø cogestão;

Ø financiamento solidário;

Ø solidariedade;

Ø participação e controle social.

Sendo assim, as Regiões de Saúde seguem as seguintes orientações:

1. Os municípios são responsáveis pela Atenção Básica e Ações Bá-


sicas de Vigilância em Saúde (não havendo suficiência, inserir no
Plano Diretor de Investimentos – PDI).

2. As Regiões de Saúde devem ter suficiência em Atenção Básica e


Média Complexidade (não havendo, prever no PDI), além de al-
gumas ações de Alta Complexidade (segundo critério de acessibi-
lidade e possibilidade de oferta).

Num processo de construção coletiva para a definição dos melhores


meios de seguir operacionalizando o processo de regionalização, em 2009, no
Seminário de acolhida aos novos secretários de saúde foram definidas Ofici-
nas Regionais para aprofundar o diagnóstico da situação da saúde avaliar os
desenhos regionais, fortalecer o planejamento e instituir Colegiados de Ges-
tão Regional, proposta de criação de espaços vivos de cogestão. Todo esse
processo se deu em parceria com o Conselho dos Secretários Municipais de
Saúde – COSEMS/RJ e Conselho Estadual de Saúde – CES/RJ.
112

Ainda no ano de 2009, a Deliberação CIB n° 648 instituiu um Co-


legiado de Gestão Regional – CGR em cada Região de Saúde, como instân-
cia regional de governo que, por Decreto Presidencial n° 7.508, em junho de
2011, passou à denominação de Comissão Intergestores Regional – CIR.

Se pensarmos em todo o processo de regionalização que temos


descrito até aqui, as CIRs podem ser consideradas hoje o “ponto de amarra-
ção” entre municípios de uma mesma Região de Saúde que precisam, jun-
tas, discutir, planejar, otimizar recursos e implementar ações de saúde. Isso
porque cada Região de Saúde conta com municípios de diferentes portes
populacionais e diferente capacidade operacional, mas com semelhanças
no que diz respeito à identidade social e cultural, além de intenso fluxo
intermunicipal para atividades econômicas.

A CIR é um órgão colegiado, não paritário, composto da totalida-


de dos Secretários de Saúde dos municípios que integram a região, 1 Secre-
tário Executivo e 1 representante de Nível Central da Secretaria de Estado
de Saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ), indicado pelo Secretário de Estado da
Saúde. Por não ser paritário, todas as suas deliberações são encaminhadas
para as respectivas áreas técnicas da SES/RJ e, se aprovadas, seguem para
deliberação da Comissão Intergestores Bipartite – CIB, colegiado paritário
de instância máxima estadual.

Para seu funcionamento, a CIR conta com a seguinte organização:

Ø Plenária – Formada pelos Secretários de Saúde da Região e pelo


representante de Nível Central da SES/RJ, instância máxima de
deliberação.

Ø Câmara Técnica – Formada por técnicos indicados por cada Se-


cretaria Municipal de Saúde, tem como atribuição analisar pro-
postas e dar subsídios técnicos ao gestor municipal para a discus-
são na Plenária.

Ø Grupos de Trabalho – Formados por representantes municipais,


podem ser permanentes ou transitórios e visam desenvolver es-
tudos, planos e projetos para embasar as discussões na Câmara
Técnica e Plenária.
113

Ø Secretaria Executiva – Conduz as reuniões da Câmara Técnica e


da Plenária na falta do representante SES/RJ.

No que diz respeito à área de atenção à população usuária de ál-


cool e outras drogas, é dentro do espaço da CIR que funciona o Grupo de
Trabalho de Saúde Mental, substituído em 2015 pelo Grupo Condutor da
RAPS. Esse grupo, composto de Coordenadores Municipais de Saúde Men-
tal e pela Assessoria Técnica da Gerência de Saúde Mental da SES/RJ, tem
como atribuição a elaboração e o acompanhamento de um Plano de Ação
para a efetivação da RAPS, trazendo um estudo das redes municipais com
identificação de necessidades, definição de prioridades e estabelecimento
de ações, sejam estas municipais ou regionais.

Desafios na política de álcool e outras drogas – da gestão ao cuidado

Vimos até aqui descrevendo a rede de cuidados em saúde atual-


mente oferecida nos municípios que fazem parte da área de abrangência do
CRR Macaé e também a estrutura organizacional do estado, regiões e mu-
nicípios, que viabiliza a organização de serviços, a identificação das prio-
ridades e o estabelecimento de diretrizes para o investimento em saúde de
forma a garantir o acesso da população e a diminuição das iniquidades.

Apesar de as portarias que regulamentam serviços de saúde men-


tal datarem do início no ano de 2002, nos colegiados de gestão o processo
de inclusão da política de álcool e outras drogas é algo relativamente novo,
assim como é novo também o próprio colegiado, que como já foi descrito
teve sua criação no ano de 2009.

Atualmente, grande parte dos gestores aponta a falta de preparo e


capacitação de equipes da Atenção Básica e também das redes de Urgência e
Emergência no manejo com usuários de drogas, particularmente as ilícitas.
Além disso, aponta também para a estrutura física pouco adequada para o
recebimento de tais pacientes em suas unidades gerais. E, mesmo nos mu-
nicípios onde existem leitos específicos cadastrados – SRH, a queixa persis-
te, com o questionamento acerca de ser o hospital geral o melhor lugar para
esse atendimento.
114

Nesse cenário, os estudos e as discussões realizadas a partir dos


GTs de Saúde Mental e, mais tarde, do Grupo Condutor da RAPS trazem a
possibilidade de esclarecimento junto aos gestores não apenas das necessi-
dades municipais ou regionais de ampliação da rede de atenção psicossocial,
mas do entendimento de que este campo traz consigo um alto coeficiente de
morbidade ligado a aspectos clínicos e sociais, comorbidades associadas ao
uso problemático, principalmente de álcool e tabaco, e que geram imenso
custo, social e econômico, e que nem sempre são considerados.

Diante da proposta de gerar atenção integral a usuários de álcool e


outras drogas, como já vimos anteriormente, o Ministério da Saúde estru-
turou, através de diversas portarias, a possibilidade de implantação de toda
uma rede de serviços, que conta com recursos em todas as esferas do cui-
dado. Na Atenção Básica, o investimento em qualificação se deu através do
Projeto Caminhos do Cuidado12, projeto integrado ao programa “Crack, é
possível vencer”, que entre os anos de 2013 e 2015 capacitou 292.196 Agen-
tes Comunitários de Saúde e Técnicos e Auxiliares de Enfermagem do país,
sendo desses 16.292 no estado do Rio de Janeiro.

Contamos, ainda, na Atenção Básica, com o NASF e as equipes de


Consultório na Rua, que trabalham de forma integrada às equipes de saúde
nos territórios. Na atenção especializada, os CAPS AD e ambulatórios am-
pliados de saúde mental, além das Unidades de Acolhimento. E, nos servi-
ços de atenção de urgência e emergência, os leitos do Serviço Hospitalar de
Referência. Por que então encontramos tamanha dificuldade em estruturar
uma rede de cuidados municipal e prestar assistência a esses usuários?

Em seu artigo intitulado “Reflexões sobre Políticas de Drogas no


Brasil”, Tarcísio Matos de Andrade (2011) nos aponta a importância da ela-
boração de uma política de Estado integradora nessa área como a realizada
pelo governo federal, porém ele lembra que os planos para enfrentamen-
to do problema (Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack – PEAD e
o Plano “Crack, é possível vencer”) foram instituídos em um momento de
“pânico social relacionado ao uso de crack” e também de grande fragilidade
nas ações territoriais e comunitárias com esse grupo. Frente a esse contexto,

12
www.caminhosdocuidado.org
115

a tarefa torna-se dupla, pois, além das dificuldades naturais encontradas na


estruturação de toda uma rede de serviços, ou seja, análises técnicas, nego-
ciação com os gestores, pactuação de trabalho intersetorial, recursos huma-
nos insuficientes, entre outras, tem-se que lidar também com o alarmismo,
muitas vezes estimulado pela mídia, que acaba por apoiar ações que têm
como foco soluções rápidas e menos eficazes a médio e longo prazo, como
as internações involuntárias em massa.

Importante salientar aqui a limitação oriunda da própria política


de álcool e outras drogas – política AD. Por ser prioritária e necessariamen-
te intersetorial, a política AD precisa ser, sempre, fruto de permanente nego-
ciação entre os diversos atores que a compõem – saúde, assistência social, es-
porte, cultura, lazer, habitação, justiça e tantos quanto se fizerem necessários.
Porém percebemos que, no cenário atual, a política estabelecida na maior
parte dos municípios aponta para uma direção que reflete a pressão social
por soluções imediatas, soluções estas que cientificamente não apresentam
evidências de resolutividade. Um bom exemplo é a tentativa de incorpora-
ção das Comunidades Terapêuticas à rede pública de cuidados na modali-
dade de internação através da terceirização do atendimento, estabelecendo
a possibilidade do repasse de verba pública a tais entidades. Encontramos aí
diversos problemas, entre eles: a) o fato das Comunidades Terapêuticas se-
rem, em sua maioria, de cunho religioso, contrariando a laicidade do estado,
que deve oferecer serviços ao cidadão independentemente de seu credo, não
podendo como política pública associar tratamento e religião; b) serem ins-
tituições fechadas e de caráter asilar, o que contraria a direção dada para o
cuidado das pessoas com problemas decorrentes de álcool e outras drogas
nas últimas Conferências Nacionais de Saúde; c) não estarem sob supervisão
permanente das equipes municipais de saúde mental e não trabalharem na
mesma lógica de cuidado direcionada pelo Ministério da Saúde, a lógica da
Redução de Danos. Ou seja, o estado passa a financiar instituições privadas,
de lógica oposta ao estabelecido nacionalmente para o cuidado na área, e sem
fiscalizá-las, tudo isso em detrimento da montagem de uma rede pública de
atendimento que conta com equipamentos em todos os níveis de cuidado,
do atendimento emergencial (SRH) ao ambulatorial (CAPS AD), contando
ainda com unidades para o afastamento temporário do território em caso de
risco social ou necessidade do usuário (Unidades de Acolhimento adulto e
infanto-juvenil), além do acompanhamento longitudinal que conta com as
equipes da Estratégia de Saúde da Família.
116

Por parte dos municípios é importante dizer que a estruturação


da Atenção Básica, tendo como eixo principal a Estratégia de Saúde da Fa-
mília – equipes de SF, ainda encontra muitas dificuldades, que vão desde a
composição das equipes com o aumento necessário da cobertura territorial,
questões essas ligadas aos processos de gestão, à inclusão das ações de aco-
lhimento e cuidado a usuários de álcool e outras drogas no cotidiano dos
serviços. Os profissionais de saúde da equipes de SF, de maneira geral, re-
latam o medo da abordagem aos usuários, principalmente pela sua ligação
com o tráfico e a violência urbana, e também acabam por reproduzir falas
do senso comum, de caráter moralizante e que de maneira geral acabam por
afastar pessoas que procuram o serviço em busca de ajuda.

Percebemos ainda que grande parcela dos profissionais de saúde


se diz despreparada para tais atendimentos, também pelo preconceito com
relação a seus usuários, ditos “marginais”, e ainda pela necessidade de certa
inversão na lógica do tratamento, se levada em conta a direção dada pelo
Ministério da Saúde quando aponta para a estratégia da Redução de Danos
como a principal nessas abordagens. Escutar histórias de vida, considerar
as possibilidades trazidas pelo próprio usuário e trabalhar de forma inter-
setorial integrada tornam-se tarefas difíceis para as equipes. Além disso,
faz-se necessário considerar também os frágeis vínculos de trabalho e a bai-
xa remuneração, que têm como consequência direta a grande rotatividade
dos profissionais, fator que interfere diretamente na rotina das unidades de
saúde e no vínculo estabelecido pelos usuários.

No tocante à intersetorialidade, principalmente com o campo da


Assistência Social, atualmente encontramos uma importante dicotomia,
tanto na assistência propriamente dita quanto na direção dada pelo Go-
verno do Estado do Rio de Janeiro às políticas públicas para esse segmento.
Por um lado, encontramos de forma muito clara os pressupostos do SUS
e também do SUAS acerca da direção de cuidado intersetorial, prezando
por serviços territoriais, abertos e acolhedores. Por outro lado, o forte apelo
às soluções que contam com o afastamento, muitas vezes involuntário, do
usuário de seu território, e o encaminhamento para instituições com cará-
ter asilar, medidas que causam alívio a famílias desgastadas da convivência
diária com problemas para os quais não encontram parceria em muitos dos
serviços públicos de atendimento.

No estado do Rio de Janeiro, a parceria entre a Saúde Mental e a


Assistência Social teve breve momento de integração, em 2007, com uma
117

proposta de adequação das Clínicas Populares para usuários de álcool e


outras drogas, mantidas pela Secretaria de Estado de Assistência Social e
Direitos Humanos – SEASDH, aos preceitos da Reforma Psiquiátrica e tam-
bém do próprio SUS, com supervisão dessas mesmas clínicas por equipes
municipais de atenção psicossocial. Assim surgiram os CARE AD, Centros
de Acolhimento Regionalizados para Álcool e outras Drogas, rede suple-
mentar de atendimento, que deveria primar pelo cuidado regionalizado,
tendo a internação como último recurso, como preconizado pelo Ministé-
rio da Saúde e pela Lei 10.216, e sempre trabalhando em parceria com a rede
CAPS dos municípios. Porém, os CARE AD tiveram sua gestão transferida
para a nova SEPREDEQ, Secretaria de Prevenção a Dependência Quími-
ca, e assim distanciaram-se da proposta inicial e também dos importantes
pressupostos anteriormente citados.

Sendo assim, em Nota Técnica datada de 26 de maio de 2014, “A


Gerência de Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro indica que os CAPS
deverão utilizar os demais recursos existentes na Rede de Atenção Psicosso-
cial do território, ou seja, o CAPSad, os leitos de atenção integral em Hos-
pital Geral, a UA e UAI e os dispositivos da atenção básica, uma vez que
não referenda mais os CARE AD como dispositivos de cuidado para essa
clientela.”

Este “rompimento” traz importantes repercussões para os muni-


cípios, tanto no campo da gestão quanto no da assistência propriamente
dita. Se antes a parceria saúde-assistência social já enfrentava dificuldades
para sustentar uma nova forma de cuidado, pela necessidade da criação de
vínculo com profissionais e com o território e também por ter que, de certa
forma, enfrentar e desconstruir o imaginário social no que diz respeito à
impossibilidade do sujeito usuário de álcool ou drogas fazer escolhas para
sua vida, a inclusão de uma nova Secretaria (SEPREDEQ), responsável por
gerir de forma isolada um equipamento de internação, trouxe maior difi-
culdade no atendimento aos pacientes, que encontram direções diferentes,
muitas vezes opostas, para suas dificuldades.

A partir desse cenário, um novo desafio se coloca para os muni-


cípios, pois as “clínicas” que num momento anterior eram parceiras dos
Programas de Saúde Mental para momentos de “suspensão no território”
e trabalhavam na mesma direção clínica passam a atender, uma demanda
social incessante, que busca o afastamento do usuário de seu território, sem
no entanto se preocupar, ou melhor, se ocupar e se pré-ocupar, em pensar
118

também sua vida fora dali, no território em que habita, local para onde vol-
tará. Na região de abrangência do CRR Macaé, essa situação se deu com o
CARE situado no município de Casimiro de Abreu, quando os municípios
do entorno, principalmente da região da Baixada Litorânea, deixaram de
obter parceria nos casos mais graves e, apesar de não serem mais referen-
dados pela Gerência de Saúde Mental da SES, tais dispositivos, nos casos
em que o cuidado não consegue ser oferecido no município de maneira
ambulatorial, acabam por indicar tais instituições.

Entretanto, talvez um dos maiores problemas criados com esse ce-


nário, principalmente quando pensamos no usuário menor de 18 anos, seja
o aumento da judicialização do atendimento. Se não há direção de cuidado
pactuada entre os diversos setores que acolhem, acompanham e tratam das
pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas, mui-
tas vezes a questão acaba por ser levada ao Judiciário, que, se entende que
pela falta de acordo ou direção de trabalho a pessoa atendida encontra-se
em risco, qualquer que seja ele, opta invariavelmente pela internação in-
voluntária, mesmo que esta em muitos casos seja ineficaz ou tecnicamente
não indicada. E podemos pensar também que, mais do que o fato de ter ou
não ter local para internação ou suspensão no território, nos casos do uso
intenso e problemático de álcool e outras drogas faz-se urgente e necessário
que mais uma vez reafirmemos a pactuação intersetorial como principal
estratégia, em qualquer que seja o dispositivo de cuidado.

CONCLUSÃO

Refletir sobre o uso problemático de álcool e outras drogas, im-


plicações, abordagens e tratamento, sensibilizar gestores e capacitar profis-
sionais das redes SUS e SUAS de duas regiões do estado do Rio de Janeiro
para o enfrentamento desse problema enquanto questão de saúde pública é
a missão a que se propôs o CRR Macaé.

Estando a par das dificuldades e entraves já descritos para efetiva-


ção de uma rede integral de cuidados, a implantação do CRR Macaé contou
com algumas estratégias, na tentativa de melhor articular sua proposta de
formação e qualificação das redes de cuidado intersetorial. Em primeiro lu-
119

gar, foram convidados para integrar o quadro do CRR Macaé na montagem


dos cursos oferecidos profissionais de saúde que trabalham na região, na
construção das redes de saúde locais, e isso possibilitou um oferecimento de
cursos embasados nas maiores dificuldades da região, além de maior arti-
culação tanto com os gestores como com os trabalhadores. Em segundo lu-
gar, a apresentação dos cursos à Comissão Integestores Regional - CIR, teve
inicialmente o intuito de que a essa comissão pudesse também ser discutida
regionalmente e, caso necessário, adaptada às necessidades locais apresen-
tadas. O terceiro momento foi de apresentação diretamente aos gestores e/
ou coordenadores locais, na tentativa de sensibilização das redes de saúde/
assistência para a capacitação, uma vez que o profissional estaria em horário
de trabalho participando dos cursos oferecidos. Durante o trabalho de ca-
pacitação, os mesmos profissionais que trabalharam em todo o processo de
implantação do CRR Macaé foram também tutores das turmas, o que nos
coloca em consonância com outra diretriz do SUS, a “linha de cuidado”, na
qual a formulação de uma proposta de assistência, aqui de trabalho, precisa
acompanhar sua execução, dialogar a todo tempo, em toda a sua complexi-
dade e com todos os atores envolvidos.

Como tem sido mostrado ao longo deste artigo, o caminho para


a implantação de uma rede de atenção integral em álcool e outras drogas
existe, é coisa palpável, apesar de árduo, como todo trabalho em saúde pú-
blica, pela complexidade de ações e atores envolvidos. Mas não apenas por
isso o caminho a percorrer é duro. Apesar de o uso problemático de ál-
cool e outras drogas ser questão de saúde pública, e disso quase ninguém
discordar, a Senad – Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas não é
um órgão ligado ao Ministério da Saúde, mas sim ao Ministério da Justiça,
assim como o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas – CONAD e a
gestão do Fundo Nacional Antidrogas – FUNAD. Temos aqui a primeira e
importante dicotomia, que como pudemos ver produz efeitos importantes
na construção das redes locais de assistência à população.

Como já foi dito aqui, o Ministério da Saúde estruturou como pos-


sibilidade de implantação para os municípios toda uma rede de serviços,
que conta com recursos financeiros em todas as esferas do cuidado. Além
disso, realizou Conferências Nacionais de Saúde e Saúde Mental Interse-
torial, em que a estruturação da Política Nacional de Àlcool e outras Dro-
gas foi discutida junto a gestores, profissionais de saúde de todas as áreas e
120

usuários. Porém, apesar de todo esse avanço por parte da saúde, permanece
como atribuição da Senad “articular e coordenar as atividades de prevenção
do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes
de drogas”13. E assim a dicotomia vai se apresentando nas três esferas de go-
verno, trazendo grande dificuldade na articulação intersetorial necessária
para a atenção integral ao usuário.

A Política Nacional de álcool e outras Drogas, assim como seu


campo assistencial, precisa estar em permanente diálogo e negociação, mas
não apenas com os profissionais das áreas da saúde e assistência. Os proble-
mas decorrentes do uso são problemas de saúde, mas da saúde de pessoas,
que também apresentam questões sociais das mais diversas ordens e que
também fazem uso de substâncias ilícitas, sendo, de acordo com a lei, con-
sideradas criminosos no momento em que portam tais substâncias, mesmo
que para consumo próprio. E, apesar do evidente avanço das discussões
sobre a descriminalização do uso de drogas em todo o mundo, a política
pública brasileira ainda reflete uma forma extremamente moralizante de
conceber o problema do uso de drogas, tratando seu usuário como margi-
nal, criminoso. E isso se estende, em proporções menores, até o usuário de
álcool, que, embora utilize substância lícita, é socialmente marginalizado
porque é considerado moralmente “fraco” e “sem força de vontade” para
superar o seu problema. Historicamente esses indivíduos estiveram fora das
ações de saúde, apesar de constarem do rol de preocupações da sociedade
em geral. O esforço desse diálogo deve colaborar para o enfrentamento da
questão, trazendo à tona a complexidade de aspectos em jogo para a estru-
turação do cuidado dessa parcela da população.

Referências Bibliográficas:

ANDRADE, Tarcísio Matos de. Reflexões sobre políticas de drogas no Bra-


sil. Ciência e Saúde Coletiva [online]. 2011, vol.16, n.12, pp.4665-4674.

www.justica.gov.br
13
121

Brasil. Crack, é possível vencer: enfrentar o crack; compromisso de


todos. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Brasília; 2013. http://
www.brasil.gov.br/crackepossivelvencer/prevencao/campanha. Acesso em
15.04.2013

Brasil. Álcool e redução de danos: uma abordagem inovadora para


países em transição. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.
Departamento de Ações Programáticas Estratégicas Brasília; 2004.

BRASIL. A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a


Usuários de Álcool e outras Drogas. Ministério da Saúde, Brasilia; DF,
2003.

BRASIL. Política Nacional de Assistência Social – PNAS 2004. Norma


OperacionalBásica NOB/SUAS. Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome. Brasília, DF, 2005.

Comissão Global de Políticas sobre Drogas. Sob controle: caminhos para


políticas de drogas que funcionam. 2004. Disponível em: . Acesso em: 05
jan. 2015.

SECRETARIA ESTADUAL DE SAÚDE. Atualização do Plano Diretor de


Regionalização. RJ, 2013.

SECRETARIA ESTADUAL DE SAÚDE. Gerencia de Saúde Mental. Nota


técnica sobre os encaminhamentos para os centros de acolhimento re-
gionalizados para álcool e outras drogas - Care AD. 2014
CAPÍTULO 4

Consumos “problemáticos” e situações de


“vulnerabilidade”: drogas e cultura para o contexto
do cuidado em saúde14.
Marcos Veríssimo15

“Não existe uma coisa no mundo que ofenda mais a


saúde das pessoas como a guerra. Então, você planta
uma guerra (às drogas) pra muitas das vezes defen-
der a sociedade do consumo de uma substância que
nunca matou ninguém.”

“Se você legaliza a cocaína e diz que a cocaína tem


que chegar de uma forma, isso não significa que

14
Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada na forma de paper no 38° Encontro
Anual da ANPOCS, no GT “Múltiplos discursos e práticas sobre drogas: medicina, direito
e consumidores sob a perspectiva das Ciências Sociais”, coordenado por Beatriz Labate e
Frederico Policarpo.
15
Doutor em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista do Programa
Nacional de Pós-Doutorado da CAPES. Pesquisador associado ao Instituto de Estudos Com-
parados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC).
124

você está proibindo o crack, você está regulamen-


tando a cocaína. Como se faz com o álcool. Acaba o
proibicionismo. Agora, acabar com o proibicionis-
mo não significa que as drogas vão poder chegar no
mercado de qualquer jeito.”

(Delegado Orlando Zaccone, em entrevista à Revis-


ta sem Semente)

1. Considerações Iniciais

No dia de seu aniversário, Bob combinou comemorá-lo com sua


namorada e um grupo de amigos na praça de alimentação de um shopping
na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Local relativamente próximo de
onde ele e aquele grupo de amigos moram. A confraternização teve início
por volta das cinco e meia da tarde, com as pessoas chegando aos poucos.
Consumiram várias pizzas, petiscos, cerveja e energéticos. Segundo Bob me
relatou semanas depois, a festa estava muito animada. Quando já se passa-
va das dez horas da noite, e os funcionários das lanchonetes do shopping
começavam os preparativos de fechamento das lojas, alguns no grupo em
torno do aniversariante viam aquilo como a senha para irem para suas ca-
sas. Não era o caso de Patrick, um dos amigos de Bob.

Enquanto a maioria, já sentindo os efeitos depressores da cons-


ciência que se seguem ao período de maior excitação decorrente do consu-
mo de álcool e, por conta disso, pensando em uma boa noite de descanso,
Patrick tinha outros planos, que compartilhou com Bob. Sua ideia era “dei-
xar as meninas em casa” e partirem para outro bairro da zona oeste carioca,
onde a venda de cerveja não cessa às onze horas da noite e onde outros
psicoativos, além do álcool, têm presença marcante. Bob aprovou a ideia
e tentaram discretamente incorporar outros amigos a esse “fim de noite”
sem que sua namorada percebesse. Todavia, nenhum dos outros amigos se
animou em aderir à proposta. Partiram então os dois.

Como se tratava de um dia de semana normal, não foi difícil para


Bob deixar a namorada em casa e partir com Patrick para, supostamente
descansarem, visando no dia seguinte comparecer dispostos aos respectivos
compromissos profissionais. Os dois são jovens, com cerca de 27 anos de
idade e, naquela atmosfera de comemoração, certamente não pensavam em
125

descansar. Patrick falava com entusiasmo do lugar para onde iam, onde a
diversão era barata e mercados de droga ilícita eram facilmente acessíveis.

E, segundo Bob, Patrick dizia: “Agora, meu irmão, com qualquer


dois reais no bolso, eu não volto mais pra casa sem comer ninguém!”, re-
ferindo-se a práticas de prostituição que aconteciam naquele local en-
volvendo sobretudo mulheres e garotas consumidoras de crack. “Dois
reais?!”, pensou Bob, naquele momento imaginando que seu amigo estava
deliberadamente exagerando, falando mais em sentido figurado do que
literal. Mas não estava.

Quando chegaram a um bar no local, pediram uma cerveja e co-


meçaram a observar ao redor, onde a circulação de pessoas era intensa.
Ainda que nem sempre de maneira explícita, muitos que por ali circulavam
(mais do que permaneciam) estavam consumindo um rol variado de drogas
tidas como ilícitas (maconha, cocaína, crack), além das lícitas (cerveja, ca-
chaça, cigarros). Os “cracudos” – como são denominados no Rio de Janeiro
os que se tornam como que típicos consumidores de crack – concentravam-
se em um lugar um pouco mais afastado do bar. Havia, mais ou menos nas
proximidades, “bocas de fumo” (ou seja, pontos de venda de drogas ilícitas)
em lugares mais protegidos de olhares intrusos e das investidas das forças
policiais. Algumas pessoas faziam ali o papel de “avião”, indo (em troca de
dinheiro ou parte da droga) comprá-la com os chamados “traficantes”, para
depois entregá-la aos chamados “usuários”, que, por sua vez, não saiam da
relativa segurança do bar.

Mas Bob e Patrick não estavam ali particularmente à procura de


drogas ilícitas. Primeiro, começaram consumindo apenas cerveja. Even-
tualmente, também fumaram maconha. Mas o que os levara ali era outro
mercado: o do sexo barato com as “cracudas” que se dispunham a ofertá-lo.
Foi assim que se aproximaram de uma mulher, outra cliente do bar, e que
Bob qualificou como “gatíssima”. Começaram a compartilhar uma cerveja.
Ela tinha cerca de 20 anos e, a certa altura da conversa, lhes disse que era
consumidora de cocaína, estava ali em busca de “pó”, gastara o que tinha
de dinheiro nisso, e deu a entender que poderia fazer sexo com os dois por
vinte reais. Afirmou ainda que não consumia crack. Patrick estava com seu
carro e o combinado era que o acordo, caso se fechasse, se consumaria no
interior do veículo.
126

Mas foi o próprio Patrick que sugeriu que esperassem mais um


pouco e em seguida propôs que se aproximassem mais do lugar onde os
“cracudos” costumam se reunir e consumir mais abertamente a droga. E as-
sim Bob acompanhou seu amigo até lá. Chegando, encontraram outra mu-
lher, que Bob teve a impressão de que Patrick já conhecia. Uma das pessoas
que costumava consumir crack por ali e que aparentemente encontrava-se
naquele momento de sua vida vivendo nas ruas. Essa mulher e isso Bob
logo percebeu, estaria disposta a fazer sexo no carro com os dois por dois
reais de cada um (a quantia referida pelo amigo e que ele havia pensado ser
exagero). A impressão de Bob sobre a “garota” foi que, apesar de “novinha”
(menos de 20 anos), a vida nas ruas e a sujeira urbana a qual estava exposta
lhe impunham traços marcantes, que obscureciam quaisquer traços de be-
leza que ela de fato, apesar destes “maus tratos”, aparentava ter. “Mal-trata-
da” foi o termo que Bob usou para defini-la.

Dirigiram-se os três para o carro de Patrick. Para Bob, tudo aquilo


fazia parte de uma aventura “sinistra” na madrugada do Rio de Janeiro ou
a parte mais inusitada dos festejos do seu aniversário. Mas, quando o ato ia
ser consumado, Bob recuou do acordo. Segundo me disse, quando a “garo-
ta” tirou a roupa, o cheiro que exalou de sua genitália foi algo que se confi-
gurou insuportável e isso o desencorajou na hora. Pareceu-lhe insustentável
continuar aquele plano. Patrick, ao contrário, parecia não se importar. Ele
então saiu do carro e deixou os dois a sós e voltou para o bar, encontrando
novamente a mulher que achara “gatíssima”. Mais tarde, pelo preço de vinte
reais, faria sexo com ela no carro de Patrick.

2. Por um estudo das associações envolvendo o consumo de crack e do


álcool.

As correlações entre o consumo de determinadas “drogas” (com


destaque para aquelas postas na ilicitude) e o envolvimento de seus con-
sumidores em diferentes práticas definidas como violentas, seja pratican-
do-a ou sofrendo-a, vêm sendo ultimamente objeto (principal ou não) de
análises em diferentes campos de estudo no Brasil contemporâneo (Des-
landes, 2003; Misse, 2010; Rui, 2013). Como estes estudos demonstram, as
interpretações dessas correlações, que de fato existem, não podem ser me-
canizadas ou voltadas para o esforço de confirmação da “verdade”, tão ao
127

gosto do senso comum, segundo a qual o consumo de drogas, por si, leva
à “violência” e a situações em que esses consumidores encontram-se física,
psíquica ou moralmente vulneráveis.

Além disso, o que podemos definir como “violência”? E, uma vez


definido o termo, qual seria a natureza das suas relações com algumas mo-
dalidades de uso de drogas lícitas ou ilícitas? O álcool, droga legalizada no
Brasil sob diferentes formas e estilos, além de presente em ritos religiosos
como a missa católica e cultos afro-brasileiros, é também a droga que mais
acarreta demanda de cuidado nas redes SUS16 e SUAS17, se configurando
como um dos desafios cotidianos de seus trabalhadores. Afirmo isso com
base não só na prevalência dos problemas de álcool e drogas, mas também
no relato dos alunos do Curso Intervenção Breve e Aconselhamento Moti-
vacional em Crack e outras Drogas para Agentes Comunitários de Saúde e
Redutores de Danos, Agentes Sociais profissionais que atuam nos Consul-
tórios de Rua. Esse curso foi desenvolvido pelo CRR UFRJ Macaé, e eu fui
responsável pela discussão “Drogas & Cultura”.

Por outro lado, desde o ano de 2009, mantenho interlocução com


um grupo de consumidores de crack na cidade de São Gonçalo (RJ), ex-
periência a partir da qual tenho buscado contribuir para o conhecimento
antropológico sobre os usos do crack no Rio de Janeiro (Veríssimo, 2010;
2011; 2013). Inicio neste momento, num esforço de aprofundamento, uma
etnografia, ainda muito incipiente, em cenários de uso dessa natureza, vi-
sando trabalhos posteriores. Neste capítulo, tomo como ponto de partida a
narrativa que produzi a partir do relato de um amigo, consumidor de álcool
e não consumidor de crack, sobre a noite de seu aniversário, que disse que
aquela “história” era importante para o meu (segundo suas próprias pala-
vras) “estudo sobre o crack”. Penso que ele tinha razão.

Assim, uma narrativa feita com base na apreensão pessoal de al-


guém sobre um “fim de noite” no “submundo” de seu bairro pode inspirar
uma discussão sobre a natureza do nexo entre práticas violentas produtoras
de vulnerabilidades e determinadas situações decorrentes da administração

SUS – Sistema Único de Saúde


16

SUAS – Sistema Único de Assistência Social


17
128

e do mercado de substâncias tidas como “drogas”. Nexos que devem ser


em alguma medida compreendidos por todo profissional atuante no tra-
balho de cuidar de consumidores de drogas mais ou menos vulneráveis em
termos de saúde e de exposição a situações violentas. Pretendo, portanto,
construir uma contribuição antropológica para os profissionais da saúde,
tentando sempre a desnaturalização do olhar sobre o uso de drogas e sobre
os usuários e pensando a relevância do método etnográfico para que se al-
cance tal fim. 

Duas associações comumente presentes no caso do consumo de


crack estão muito visíveis na narrativa feita com base na fala de Bob: de
um lado, a associação entre o consumo de crack e a vida nas ruas; de ou-
tro, a associação entre o crack e práticas mais ou menos qualificadas como
prostituição. Como e em que medida as associações do consumo do crack
com a vida nas ruas e/ou práticas enquadráveis como prostituição podem
ou não levar seus consumidores a se depararem com situações e práticas
concretas que podem vir a violar seus corpos, suas mentes ou o lugar para
si que construíram na sociedade? O que os profissionais encarregados de
reduzir os danos inerentes a esses estilos de vida podem fazer para tornar
sua ação mais efetiva?

Como não poderia deixar de ser, este trabalho se nutre também


de recentes contribuições acadêmicas em torno da problemática dos con-
sumos e mercados de crack em diferentes lugares do Brasil. Por exemplo,
em “Crack: contextos, padrões e propósitos de uso” (MacRae; Tavares; Nuñes,
2013), coletânea recentemente publicada contendo interessantes trabalhos
de viés qualitativo, os organizadores procuram fazer uma análise da atuação
de instituições estatais da área de saúde e da segurança nesse quadro.

As políticas públicas dirigidas aos usuários de crack


têm se apresentado como pouco eficazes. Uma si-
tuação que já começava a se apresentar há mais de
quinze anos, só tem piorado e hoje se torna obje-
to de grandes campanhas midiáticas que ajudam a
criar um clima de pânico entre os cidadãos. Medidas
repressivas, levadas a cabo em regiões de concen-
tração da população usuária, acabam tendo como
único resultado palpável a sua dispersão por outras
129

áreas da cidade. Os serviços de saúde que deveriam


atendê-los sofrem das mesmas carências daqueles
destinados à população em geral, com o agravante
da população ser alvo de uma antipatia generali-
zada. (...) Assim os projetos de atendimento a ela
têm forte componente repressivo e são confundidos
com propostas de “higienização” da sociedade. Isso
fica explícito em ocasiões quando o poder público
promove operações para remover usuários das “cra-
colândias” de cidades como São Paulo, contando
basicamente com uma força policial, sem nenhum
respaldo clínico. Constatada a falta de lugares ade-
quados para onde levar esses indivíduos, não resta
alternativas a devolvê-los às ruas. (MacRae; Tavares;
Nuñes, 2013, p.18-19)

Na cidade do Rio de Janeiro, a ocupação mais ou menos estável


de espaços públicos por consumidores de crack, preferencialmente junto
às linhas férreas ou à beira das rodovias, dá ensejo e visibilidade a situações
de vulnerabilidade associada ao estilo de vida relacionada a esse consumo.
Em janeiro de 2013, durante uma operação da Secretaria Municipal de As-
sistência Social, com apoio da Polícia Militar e da Guarda Municipal, um
acontecimento brutal propiciou essa visibilidade. A operação era para “aco-
lhimento” de consumidores de crack em um desses pontos de consumo nas
imediações da Favela Nova Holanda e junto à pista da Avenida Brasil, uma
das principais vias de acesso à cidade do Rio de Janeiro, muito movimenta-
da e com alto índice de acidentes. Um consumidor de 10 anos, que há oito
dias não voltava para sua casa, foi atropelado e morto por um caminhão
enquanto fugia para não ser apanhado e “acolhido” (preso) pelos agentes. O
motorista do caminhão se evadiu do local sem prestar socorro. Eram cerca
de quatro horas da manhã18.

18
Notícias veiculadas na imprensa, à época, sobre o caso: http://oglobo.globo.com/rio/sepul-
tado-corpo-de-menino-atropelado-durante-acao-contra-crack-na-avenida-brasil-7247080;
http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/01/crianca-de-10-anos-que-morreu-atropelada-
na-avenida-brasil-no-rio-e
130

Situações como essa, que ficou alguns dias reverberando nos meios
de comunicação, parecem se configurar enquanto exemplo inequívoco das
relações que podem existir entre o consumo de crack e situações de violên-
cia (no caso, com os consumidores figurando como vítimas). Outras situa-
ções, também exploradas no universo noticioso carioca e fluminense, são
aquelas em que os “cracudos” aparecem roubando joias, carteiras, bolsas,
celulares e outros pertences de pedestres mais ou menos distraídos pelas
ruas da cidade. Em tais casos, esses consumidores figuram não mais como
vítimas, mas como vetores da violência.

Portanto, o “cracudo”, esse antimodelo radical de formas conside-


radas bem-sucedidas de desempenho social (Veríssimo, 2010), encontra-se
também duplamente inscrito nas representações e narrativas sobre a cha-
mada “violência urbana”: como vítima e como vetor. Isso posto, cabe reto-
marmos uma questão que já foi brevemente aludida aqui, que é o problema
da imprecisão da noção de “violência”. Em “Violência, drogas e sociedade”, o
sociólogo Michel Misse chama atenção ao fato de que o termo “tem um sig-
nificado muito geral e muito aberto a diferentes apropriações” (Misse, 2010,
p. 17). E o mesmo, lembra Misse, se passa como termo “droga”.

Alem disso, a enunciação do termo “violência” pode fazer parte de


uma estratégia política da denúncia de um problema social a ser resolvido
(ou, em alguns casos, extirpado). Os mercados e consumos de crack no Rio
de Janeiro e no Brasil se configuram, nos discursos oficiais dos governos
municipais, estaduais e federal, justamente como um “mal” a ser “enfrenta-
do”, “combatido”.

Nós já vimos aqui que “violência” é uma palavra


polissêmica e que é geralmente utilizada num con-
texto acusatorial. Quer dizer, eu não uso “violência”
apenas para descrever uma ação, mas para acusar e
demandar uma contraviolência. (Misse, 2010, p. 22)

E para que possamos no presente trabalho, como ensina Remi Le-


noir em “Objeto Sociológico e Problema Social”, construir um olhar analíti-
co e qualificado a partir de inquietações que têm origem no terreno minado
dos “problemas sociais” (Lenoir, 1998), se faz necessária uma definição um
131

pouco mais precisa do que aqui devemos entender como violência. No con-
texto dos usos e mercados de crack aqui delimitados, consiste a violência
em todas as práticas e seus efeitos, que contribuam decisivamente para vio-
lar a integridade física, moral, ou psíquica dos sujeitos envolvidos nestes
usos e mercados. Isso inclui tanto a violência que venham porventura pra-
ticar, como também aquela que, não raro, costumam sofrer.

Desde as primeiras conversas com consumidores em São Gonçalo


(em 2009) que fui informado do seguinte: policiais militares, naquela ci-
dade, costumam ser mais duros com consumidores de crack do que com
aqueles flagrado com outras drogas, a exemplo da maconha e da cocaína.
Segundo interpretam, isso se dá porque os policiais entendem que o crack
levava mais lucro aos grupos criminosos que detém o mercado das drogas
no Rio de Janeiro. Lucro este que seria empregado na compra de armas e
munições a serem usadas contra eles, policiais.

Meus interlocutores tinham ouvido esta interpretação diretamente


da boca de policiais numa ocasião, enquanto tentavam aplacar sua sanha
justiceira. Isso acaba sendo coerente com representações sociais amplamen-
te difundidas no contexto carioca, segundo a qual a “culpa da violência” é do
“usuário de drogas”, pois, se não houvesse “quem comprasse”, não haveria o
“tráfico”, o crime e a violência. Desse modo, o “cracudo”, com seu “vício”, es-
taria alimentando a violência que ele próprio sofre de maneira mais radical,
por aparentemente dispor de pouquíssimos recursos de retaliação contra
esse estado de coisas (menos recursos – e esse é o ponto – do que consumi-
dores de maconha ou de cocaína, por exemplo).

Evidentemente que esse raciocínio sobre a “culpa” do consumidor


de drogas ilícitas ignora completamente o postulado durkeimiano, lembra-
do por Misse (2010, p.20), segundo o qual o crime não está no compor-
tamento, mas na definição do comportamento como criminoso. Ou seja,
existe a conduta (que antecede sua proibição) e existe o esforço no sentido
de coibi-la (uma forma de administração do necessário descompasso en-
tre leis e condutas). No caso das drogas postas na ilicitude, existe também,
complexificando ainda mais o quadro, um lucrativo (embora arriscado)
mercado. Havendo sempre quem queira se dispor a correr os riscos dessa
atividade mercantil específica, focando nos lucros que ela propicia, have-
rá por outro lado a resposta do Estado, propositor da lei, através daquele
seu “braço armado”, que é a polícia. Em algum momento da conformação
132

desse quadro, os mercadores dissidentes da lei também se armam. No Rio


de Janeiro, devido a isso, a violência acaba se configurando também como
uma linguagem na interação entre policiais, mercadores e consumidores de
drogas postas na ilicitude.

(...) O tráfico, crime hediondo entre nós brasileiros,


é pleno de positividades como arma na guerra pelas
sujeições de “desviantes” e “ameaçadores da ordem”.
A proibição, estatuto mundial no tratamento do
tema das drogas psicoativas, é um fracasso vitorio-
so: na impossibilidade de chegar ao fim, a guerra às
drogas se renova constantemente. Psicoativos novos
e antigos continuam sendo produzidos, comercia-
lizados e usados, dando provas da mobilidade dos
grupos dedicados ao tráfico que escapam ou se rea-
dequam às sempre reeditadas práticas repressivas.
A pergunta sobre por que manter uma guerra per-
dida pode ser respondida, ainda que parcialmente,
ao repararmos nessa potente tática de controle so-
cial e perseguição seletiva que é a guerra às drogas.
(Rodrigues, 2008, p. 102)

Sendo assim, o chamado “proibicionismo” (que toma a forma de


uma “guerra” mundial às drogas proscritas em acordos diplomáticos inter-
nacionais) pode ser usado localmente para a repressão a grupos tidos como
“malditos” de acordo com uma determinada ordem e representações esta-
belecidas. Isso, a despeito de suas motivações manifestas. Por isso é que os
chamados “antiproibicionistas” (ou seja, os ativistas por novas legislações
a respeito do controle do consumo de substâncias psicoativas), a exemplo
do delegado da Polícia Civil fluminense Orlando Zaccone19, advogam pela
substituição do modelo repressivo pelo modelo regulatório no que tange
a esse tema. Segundo esse ponto de vista, a chamada “guerra às drogas”

19
Membro da seccional brasileira da LEAP (Law Enforcement Against Prohibition), ONG
internacional de ativismo antiproibicionista composta de “homens da lei”, ou seja, pessoas
que trabalham ou trabalharam em forças policiais ou judiciárias.
133

é, mais do que tudo, uma guerra às populações pobres e marginalizadas.


Em trechos de sua entrevista na Revista sem Semente – colocados como
epígrafe do presente trabalho – Zaccone chama atenção para a contradição
flagrante em se declarar uma “guerra” para supostamente se salvar vidas e
a saúde das pessoas.

No caso do crack, essa contradição se configura com bastante cla-


reza, uma vez que esse é, por sua emergência histórica, um produto da proi-
bição (melhor dizendo, da não regulação) do uso da cocaína. O crack pode
ser definido como uma atualização no processo internacional de adultera-
ção da cocaína iniciado mais ou menos por volta da virada entre as décadas
de 1970 e 1980. Com isso, o consumo dessa droga, até então restrito à esfera
de consumidores com alto poder aquisitivo, uma vez que era cara, passa a
ganhar muitos adeptos entre pessoas com o poder aquisitivo menor. Isso
devido ao barateamento do preço que acompanha a adulteração do produto
(Somoza, 1990). No Brasil e no mundo.

(...) Mas a verdadeira convulsão no mercado da dro-


ga em Nova Iorque verificou-se com a introdução
do crack, mais potente e de efeito mais rápido do
que a cocaína, da qual é uma variante concentrada e
cristalizada e que é fumado em vez de ser cheirado.
Muitos passadores da droga costumam adulterar o
crack adicionando anfetaminas. Os preços são bas-
tante variáveis. Enquanto alguns o vendem a preços
mais baixos. (Somoza, 1990, p. 67)

Quando o consumo de crack se tornou socialmente mais visível


nas ruas do Rio de Janeiro (e isso se deu em meados da primeira déca-
da do século XXI), um dos efeitos verificados disso foi que as vendas de
cola de sapateiro – produto muito associado à busca de estados alterados
de consciência por pessoas que vivem nas ruas – caiu muito (Veríssimo,
2013). Penso que é produtivo entendermos a emergência local do consumo
de crack, no Rio de Janeiro e seu entorno, nos termos dessa lógica eco-
nômica internacional da adulteração/popularização da cocaína. Enquan-
to consumidores diferenciados continuam tendo acesso a uma cocaína de
qualidade superior à oferecida nas “bocas de fumo”, o crack é a droga usada
134

por “consumidores falhos” (Bauman, 1998) que vivem pela cidade com o
dinheiro que conseguem através da caridade, de atividades informais alta-
mente precarizadas, ou furtando pedestres mais ou menos incautos. Mas
o crack também é utilizado por pessoas com perfis socioeconômicos mais
favoráveis. Associado ao consumo de cachaças de qualidade duvidosa e a
uma alimentação mais ou menos restrita, seu consumo pode se configurar
extremamente danoso para a saúde do consumidor.

E nessa economia, a composição do produto crack no Rio de Janei-


ro é, no mínimo, mais variada do que no exemplo nova-iorquino aludido
pelo antropólogo e jornalista Alfredo Somoza, conforme transcrição acima.
Refugos e coliformes fecais (humanos e animais) já foram encontrados em
amostras de crack apreendidas no Rio de Janeiro. Meus interlocutores na
cidade de São Gonçalo acusaram a presença de óleo diesel no crack que
estavam fumando, e viam isso, dentro de sua lógica, como uma coisa boa,
um crack melhor do que o comum, ou uma mistura menos pior (Veríssimo,
2011).

Por tudo isso, uma das relações que com maior clareza se estabele-
cem, por conta das economias do crack no Rio de Janeiro, entre mercados/
usos de crack e práticas/representações da violência, repousa no campo da
saúde pública. Inexoravelmente espúrio e potencialmente danoso à saúde
de seus consumidores, o crack, por seu uso, pode vir realmente a violar a
integridade física e psíquica dos usuários. Notemos, como uma evidência
nessa direção, que, no relato de Bob, a garota “cracuda” lhe parece, apesar de
“bonita”, muito “mal-tratada”.

Mas a violação do sujeito consumidor pelo produto que ele pró-


prio consome não é a única que se dá no caso do crack. Fisicamente, psi-
quicamente e moralmente, violações tão ou mais marcantes têm origem a
partir do momento em que se configuram associações entre esse consumo,
aparentemente em si já danoso, e práticas, estilos de vida, representações. O
“cracudo” no Rio de Janeiro, quando vive nas ruas ou pratica atos rotulados
como prostituição, tem ainda mais reduzidos seus recursos de retaliação
contra violações e violências. Além disso, o valor do uso de seu corpo para
fins sexuais é extremamente vilipendiado, podendo chegar, como vimos
com o exemplo da aventura de Bob e Patrick, a míseros dois reais.

Vem de longa data, na cidade do Rio de Janeiro, a identificação e


135

repressão dos problemas policiais encarnados nas “populações de rua” e na


“prostituição”, vistas como máculas a serem extirpadas na busca de cons-
trução do modelo desejado de espaço público (Bretas, 1997). No caso das
pessoas que consomem crack, vivem nas ruas e eventualmente se prosti-
tuem para consumir mais crack, o que temos é a confluência de três rótulos
violentamente marcantes: o “de cracudo”, o “de morador de rua”, e o “da
prostituição”. Um sujeito triplamente vilipendiado pelo peso de representa-
ções sociais fortemente arraigadas e, por isso, concretamente vulnerável à
(ao mesmo tempo que virtualmente um vetor da) violência.

Por isso, no caso das relações entre os mercados e consumos de


crack no Rio de Janeiro e as representações e práticas violentas, gostaria
de chamar atenção para a dinâmica das associações que vão se fazendo e
aprofundando à medida que a adesão de uma pessoa ao consumo de crack
se torna mais visceral. Certamente fumar crack é uma coisa que pode ser
eventual, como o é para muita gente (Veríssimo, 2010) e outra coisa bem
diferente é “morar” por semanas ou meses nas ruas e em lugares tidos como
“cracolândias”, empenhado mais que tudo em conseguir recursos para con-
tinuar a consumir crack. Fazer sexo em troca de dinheiro ou da droga, es-
tando ou não em “situação de rua”, é outra associação que potencializa a
exposição desse consumidor a situações em que se fazem presentes diversos
tipos de violência.

Ainda com base na narrativa em torno da aventura de Bob, pode-


mos notar que essa estratégia de praticar atos tidos como prostituição não é
exclusiva de consumidores de crack. A “gatíssima” do bar negociou com os
rapazes para obter cocaína. Mas o contraste entre esta e a outra, que ficou
com Patrick no carro após Bob sair por não suportar seus odores putrefatos,
ajuda no estudo das dinâmicas presentes nessas associações. Em uma mes-
ma noite e no mesmo lugar, o sexo vendido para obtenção de crack foi dez
por cento (R$ 2,00) do preço do sexo vendido para comprar cocaína (R$
20,00). E, mesmo com seu baixíssimo preço, o sexo com a “cracuda” pareceu
a Bob algo insuportável, demasiadamente vil. A Bob, mas não a Patrick, que
preferiu a oferta que valia dois reais em detrimento da que fixou o preço em
vinte reais.

Por outro lado, a economia de Patrick está longe de ser puramen-


te numérica ou monetária. Como Bob observou, seu amigo já conhecia a
garota e certamente já havia estado com ela em seu carro. Não seria de se
136

estranhar, portanto, que houvesse também uma economia do afeto nessa


relação. As etnografias dos contextos locais de uso de crack (muitas vezes
precipitadamente denominados como “cracolândias”) permitem (não só
ao antropólogo) compreender a natureza dos conflitos que ali acontecem.
Compreensão que certamente será útil para quem realiza o cuidado junto a
pessoas que circulam por tais lugares. Não que o profissional de saúde tenha
que se travestir de etnógrafo, mas o uso de um caderno de campo por quem
efetivamente atua em campo pode ser um recurso interessante.

A antropóloga Taniele Rui, por exemplo, fazendo uma etnografia


de mais de dois anos junto a “redutores de danos” que iam a campo vacinar
e cuidar de consumidores de crack na “periferia” da cidade de Campinas
(SP), faz interessantes interpretações sobre as gestões do uso do crack. Re-
ferindo-se a um interlocutor, consumidor de crack, que chama em seu tra-
balho de Roger, a autora afirma o seguinte:

Sua trajetória, brevemente descrita, permite mos-


trar como o consumo continuado de crack em cená-
rios de comércio de drogas implica um aprendiza-
do sobre as interações locais, bem como um modo
correto de proceder com aqueles que por ali passam,
com os traficantes de drogas, com os moradores dos
bairros, além de indicar uma corporalidade especí-
fica. (Rui, 2013, p. 45)

Nas correlações concretas e virtuais que se fazem, é como se o con-


sumidor de crack estivesse para o consumidor de cocaína assim como o
crack está para a cocaína, em sua condição de produto espúrio e adultera-
do. Consumir aberta e rotineiramente o crack implica necessariamente em
assumir um rótulo altamente estigmatizador. Fazer isso em associação com
moradores de rua e posteriormente vir a se tornar mais um deles é algo que
aumenta o estigma e o expõe a situações em que sua busca por mais crack
o colocará diante de cenários em que praticará ou sofrerá a violência. Ne-
gociar e fazer sexo por dinheiro ou crack como recurso para não parar de
consumir é outro “passo” que o vilipendia ainda mais. E, se fizer isso “mo-
rando” nas ruas, obviamente que seu “sexo” se tornará muito mais barato.
137

Que fronteiras há entre um “passo” e outro dessa carreira? Que


barreiras físicas, psíquicas e morais os sujeitos podem construir quando
querem continuar a consumir crack sem ter sua imagem vilipendiada no
meio social por onde circulam? Como aderir ou resistir ao peso das associa-
ções do consumo de crack com a indigência urbana e a prostituição? Como
ajudar as pessoas que enfrentam dificuldades dessa natureza na construção
de tais resistências, quando for o caso? Não tenho ainda respostas para essas
perguntas, mas penso que talvez as tenha, certamente acrescidas de outras
tantas perguntas, à medida que meu empreendimento etnográfico, ainda
incipiente nesse campo, for se aprofundando. Para o momento, gostaria de
pontuar que é a busca de um maior entendimento das dinâmicas presen-
tes nessas associações que desperta minhas inquietações antropológicas no
campo da temática do crack.

A experiência clínica mostra indivíduos que fazem


os mais diversos usos de psicoativos. No entanto,
vale destacar aqueles que se apresentam na posi-
ção de toxicômanos, para compreender o efeito da
profecia que se cumpre e de devastação produzidos
pelas diabolizações construídas no âmbito do so-
cial. Portanto, cabe trabalhar o tema, introduzindo
a particularidade desses indivíduos na sua relação
com as drogas e suas representações sociais. (Gon-
çalves, 2013, p. 75)

Ou seja, importa antes de tudo saber o que esses “indivíduos” pen-


sam que fazem, à medida que aprofundam sua relação com os mercados
e consumos de crack (eventualmente associados ao consumo de cachaça),
diante de rotulações e associações que fatalmente se apresentam. Aderindo?
Resistindo? Diabolizando-se? Desumanizando-se? Com base em minha in-
terlocução contínua com um consumidor de longa data que optou por con-
tinuar a consumir crack, mas também por resistir a rotulações e associações
que venham violar sua imagem pública, e considerando também exemplos
análogos retiradas de outras etnografias a que tive acesso, proponho que
passemos, na seção seguinte, nosso foco para algumas ações de resistência.
Todo o esforço executado pelo consumidor nesse sentido é também uma
138

busca de empoderamento, de fortalecimento da imagem pública de si, visan-


do retaliar possíveis violências que o ameacem. Por essa razão, chamo a isso
de esforço de desassociação, e tentarei pensar suas consequências a seguir.

3. Consumo e Esforço de Desassociação.

Jerry é o pseudônimo que usei em trabalhos anteriores para iden-


tificar uma pessoa que usa crack cotidianamente há cerca de oito anos e
que muito generosamente aceitou dedicar parte do seu tempo em uma in-
terlocução comigo sobre seus consumos e estilo de vida. Consome crack
todos os dias, trabalha como pedreiro de segunda a sexta e aos sábados e
domingos vende objetos usados em duas feiras livres (bicicletas, ferramen-
tas, micro-ondas, e até mesmo filmes na forma de fitas de vídeo VHS). Não
consome crack na rua, mas em um barraco que possui, em um bairro cha-
mado Manoel da Ilhota, próximo do antigo Lixão de São Gonçalo. O lugar
tem um chuveiro e um vaso sanitário. Jerry, mais do que qualquer um que
eu tenha conhecido no universo dos consumidores de crack, empreende,
muito conscientemente e de maneira bem-sucedida, um considerável esfor-
ço de desassociação.

Desassociação a tudo que estigmatiza e vulnerabiliza os consu-


midores de crack. Faz isso através de seus discursos, suas práticas e suas
expressões corporais. Seu estado físico (que eu vejo variar bastante) tam-
bém se configura como expressão. Na primeira vez que encontrei Jerry con-
sumindo crack juntamente com seu amigo Tom (Veríssimo, 2011), ambos
comunicaram que sua relação com a droga não era boa naquele momento.
“Praga” e “epidemia” foram termos que usaram para definir a droga cujo
consumo ansiosamente aderiam. Poucos meses depois, encontrei casual-
mente com a dupla, na rua, e eles afirmaram que estavam tentando, sem su-
cesso, parar de consumir crack. Pude notar claramente que estavam muito
mais emagrecidos do que da outra vez.

Em seguida, após ter ficado muito doente devido a padrões mui-


to altos de consumo de crack e cachaça, Tom se afastou de Jerry, reatou o
casamento com sua ex-mulher e passou a lutar para viver em abstinência.
Raramente o vi depois disso. Com Jerry, a interlocução continuou em vá-
rias ocasiões em que o visitei no “cafofo”, que é como ele chama o barraco
que construiu próximo ao Lixão e que, como eu já disse, utiliza para, entre
139

outras coisas, fumar crack longe das ruas. Quase sempre após fazer uso da
droga nesse lugar, Jerry defeca e toma banho no “cafofo” antes de ir para
casa. Voltou a ganhar peso e tônus muscular após aquela vez que o vi na
rua com Tom, e atribuiu isso a suas estratégias de redução de danos e ao
aprendizado do controle da compulsão.

Uma das estratégias de redução dos danos do consumo do crack


utilizadas por Jerry é colocar a camisa, como filtro, entre a boca e o ca-
chimbo, evitando com isso aspirar diretamente algumas impurezas que fa-
talmente existem no crack (Veríssimo, 2010). Não utiliza latinhas ou copos
plásticos improvisados para consumir a droga, como fazem muitos con-
sumidores. Constrói, com muita engenhosidade, seus próprios cachimbos,
utilizando canos e junções de PVC, complementados com papel alumínio.
Outra forma de reduzir os danos do consumo do crack é intercalar o seu
consumo com o consumo de maconha, droga que ele sempre tem à mão,
seja para confeccionar baseados puros de canábis ou para consumi-la na
forma de desirée (que naquele contexto nomeia o cigarro composto de crack
e maconha).

Outro amigo de Jerry que também conheci e com o qual tive a


oportunidade de conversar no barraco é o Papa-Léguas. Este já havia pas-
sado semanas em uma chamada “cracolândia” na cidade de São Gonçalo.
Quando fomos apresentados, Jerry (com seus 45, mais que o dobro da idade
do amigo) assumia uma posição de orientação quase paternal em relação a
ele, levando-o para trabalhar na obra (sendo por isso seu “patrão”). Asso-
ciavam-se, assim, tanto para trabalhar como para fazer uso de crack. E por
isso estavam sempre juntos, sendo que Jerry fazia o papel de controlado e
controlador das atividades, enquanto Papa-Léguas era tido como o mais
inconsequente e compulsivo. Posteriormente ele também se afastou do “ca-
fofo”, e quando perguntei por ele, Jerry respondeu: “Rapaz... o magrinho
tava perdendo a noção, fumando demais... eu acho que ele voltou pra casa da
mãe dele lá em Itaboraí” (cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro).

Jerry se vangloria de ser “cabeça feita” e de conseguir um espantoso


domínio de suas emoções em situações-limite. Ele me conta que certa vez,
“uns quinze anos atrás”, quando estava consumindo muita cocaína (droga
que ele não mais consome atualmente na forma de pó), depois de passar
a madrugada inteira cheirando em um bar localizado numa favela na ci-
dade do Rio de Janeiro, voltou para casa com um saco de pó na mão (caso
140

encontrasse a polícia, o dispensaria discretamente). E foi justamente o que


aconteceu na saída da favela. Policiais o viram e o chamaram, mas ele deci-
diu não jogar fora a cocaína. Atitude que tinha tudo para dar errado, mas
não deu. Jerry se orgulha de, mesmo “trincado de pó”, ter conversado olho
no olho com os policiais e ter sido revistado sem que os policiais achassem
a droga em sua mão.

Lembro-me ainda de pelo menos mais uma pessoa que, assim


como Tom e Papa-Léguas, vi algumas vezes consumindo crack com Jerry
naquele mesmo lugar, e que posteriormente se afastou. Enquanto isso, Jerry
parece resistir a todos e aos maiores estigmas. Tem casa própria, “duas espo-
sas” em bairros diferentes da cidade e usa esse argumento para dizer que o
fato de consumir crack não o torna um miserável ou coitadinho (Veríssimo,
2010). Continua a fazer uso da droga e aprendeu estratégias para se desas-
sociar dos signos que tornam os consumidores de crack mais vulneráveis a
situações de violência, como a indigência e a prostituição.

Constata-se que nem todo experimentador de


crack leva seu uso adiante ou, ainda, leva-o a ponto
de cumprir sua profecia de morte ou criminalida-
de. Essa variação é o que valida o lugar do indiví-
duo, com sua singularidade diante de um objeto. O
modo de relação com o psicoativo não ocorre em
função do crack, mas sim do indivíduo que o con-
some. Trata-se da maneira como cada indivíduo se
apropria do objeto eleito, com suas satisfações, sen-
tidos e representações, inseridos no entorno dele.
(Gonçalves, 2013, p. 80)

Empreender ou não esforços de desassociação (como faz Jerry) ou


ao menos ter a consciência de sua importância é um fator decisivo nessa
construção, sempre singular, de sujeitos que aderem ao uso cotidiano de
crack. Desassociar-se de rótulos como de mendigo(a) ou prostituto(a) faz
parte de estratégias conscientes de segurança pessoal e redução de danos.
141

Assim é no caso de Jerry, em São Gonçalo (RJ), como também em outros


contextos.

A antropóloga Luana Malheiro, em seus trabalhos, tem feito des-


crições do consumo de crack no centro histórico da cidade de Salvador,
capital do estado da Bahia. Em seu relato da “intensa violência física e sim-
bólica vivida pelos consumidores de crack” (Malheiro, 2013, p. 224), ela iden-
tifica dinâmicas corporais relacionadas a isso que chamo aqui de esforços de
desasociação.

Por fim, compreendo as estratégias apreendidas


para a adoção de práticas seguras do uso de crack,
como técnicas corporais, em um sistema que nos
leva a compreender o corpo enquanto um corpo
socializado, campo de experiências compartilha-
das, resultado de uma história coletiva e individual,
que se inscreve nas posturas, nos movimentos, nos
gostos e nos sentidos, marcando distinções inscritas
nos rituais sociais de consumo de uma substância
psicoativa. (Malheiro, 2013, p. 232)

Entre as estratégias que alguns de seus interlocutores lançam mão


para conseguir dinheiro visando adquirir a droga, a autora aponta as prin-
cipais: “guardar carros”, “catar material reciclado no lixo”, “pedir dinheiro
aos transeuntes ou turistas” (atividades ligadas aos chamados “moradores
de rua”) e “prostituir-se”. Quando descreve o circuito em que sua etnografia
se desenrola, podemos ver que os usos e mercados envolvendo o crack se
dão justamente em territórios tradicionalmente conhecidos pela presença
de tais atividades.

Nos casarões antigos, destruídos pelo tempo, nas


ruas sem pavimentação, na Rua 28 de Setembro,
na movimentada Rua do Gravatá e na famosa Pra-
ça da Sé encontra-se uma população de prostitu-
tas, recicladores, vendedores de objetos roubados,
transeuntes e moradores de rua. Nesses espaços do
142

Centro Histórico de Salvador, Patrimônio da Hu-


manidade e território-alvo de inúmeras políticas
territoriais, ocorrem atividades de comércio, distri-
buição e uso de crack. (Malheiro, 2013, p. 249 – 250)

Em tais territórios, as autoridades policiais interferem de modo


geralmente truculento na dinâmica local. Como manter um uso continua-
do de crack sem ser potencialmente uma vítima dessa truculência ou encar-
nar um “problema policial” em si? Fazendo uso do esforço de desassociação.
A autora trabalha com as categorizações nativas que designam três níveis
diferentes de adesão ao consumo de crack, com seus diferentes regimes da-
quilo que chamo de esforço de desassociação. Seriam estes, a saber, o “saci-
zeiro”, o “usuário” e o “patrão”.

No tipo rotulado como “sacizeiro”, esse esforço aparenta estar au-


sente, uma vez que assim é denominado o consumidor que se deixa ver
consumindo crack pelas ruas do Centro Histórico da Cidade sem conseguir
ser minimamente discreto. Quase sempre se trata de um adepto iniciante,
que ainda não teve tempo de aprender a domesticar o “pânico” (categoria
nativa) que não raro acompanha o uso dessa substância, sobretudo em lu-
gares desprotegidos como as ruas.

Aqueles reconhecidos naquele meio como “usuários” têm, geral-


mente, mais tempo de uso e um maior investimento em estratégias para
diminuir a sensação de insegurança e se afastar dos “sacizeiros” – ou, para
usar o termo aqui tomado como categoria analítica, um maior investimen-
to em esforços de desassociação. O trabalho de Malheiro parte justamente
de seu aprofundamento na interlocução com consumidores que investem
esforços para serem reconhecidos como “usuários”, em uma clara oposição
aos “sacizeiros”. Geralmente fazem uso da droga em casarões abandonados,
e exercem ainda um rigoroso controle de quem entra e de quem sai desses
lugares de uso compartilhado.

Diferentemente dos sacizeiros, os usuários são indivíduos com


mais tempo de uso de crack e um saber acumulado a partir do seu hori-
zonte de experiências com a substância. O termo “usuário” foi apropriado,
enquanto categoria nativa, pelos sujeitos do meu campo após o contato que
esses indivíduos tiveram com programas de redução de danos e serviços de
tratamento, em que são chamados desse modo.
143

(...) Para evitar que o consumo da substância in-


terfira nas suas atividades de trabalho, desenvolve
um tempo e lugar reservado para o consumo. Difi-
cilmente observa-se um usuário nas ruas do Pelou-
rinho, fazendo uso de crack de maneira indiscreta,
pois este costuma selecionar o espaço físico, de
modo a restringir a inserção de pessoas estranhas
em sua rede social. (Malheiro, 2013, p. 269 – 270)

Já aqueles identificados como “patrões”, em oposição aos “sacizei-


ros” e “usuários” – que têm sua relação com o crack pautada pelo seu consu-
mo (em um caso, indiscreto; no outro, discreto e cheio de controles) –, são
antes de tudo os que têm “sua atividade centrada na venda da substância”,
sendo responsáveis pela “regulação do comércio na zona estudada” (Malhei-
ro, 2013, p. 271). Por definição, um “patrão” não pode ser alguém que faz
uso compulsivo da droga, uma vez que isso certamente inviabilizaria o seu
negócio. No caso de se tratar de alguém que consome crack (fazendo um
“uso ocasional”, segundo a autora), há de necessariamente envidar os maio-
res esforços de desassociação.

Uma das interlocutoras de Luana Malheiro, que aparece com o


nome de Mariene, foi morar nas ruas aos 17 anos, após sofrer um assédio
sexual do padrasto (a mãe já havia morrido). Naquele momento, começou
a se prostituir e a usar drogas, entre as quais o crack. Posteriormente, con-
seguiu moradia no bordel onde passou a trabalhar. Certa vez, após passar
dois dias nas ruas consumindo crack, resolveu “fazer a pista”, ou seja, um
“programa”, na rua, longe da segurança do bordel. Apanhou e foi humilha-
da, supostamente por ser uma “sacizeira”. A partir desse episódio, Mariene
teria passado a construir uma relação menos destrutiva de sua saúde com o
consumo de crack, exatamente como Jerry fez a partir de um determinado
momento, após ver o amigo Tom sucumbir à compulsão.

Temos então um exemplo dos efeitos de violência que se poten-


cializam a partir de associações presentes no imaginário sobre os estilos de
vida ligados ao consumo de crack. Quantos agressores de prostitutas con-
sumidoras de crack que encontram na rua cometem suas atrocidades na
certeza da impunidade? Ao chegar nesse ponto crítico e humilhante de sua
trajetória de vida, Mariene resolve então empreender esforços de desassocia-
144

ção ao estilo de vida “sacizeira”, passando a consumir o produto dentro de


padrões de uso e sociabilidade de “usuários”. Outra medida que tomou para
regular melhor o uso do crack foi a adesão ao consumo de maconha.

Com os exemplos de Jerry (São Gonçalo) e Mariene (Salvador),


podemos pensar tanto as associações próprias dos estilos de vida relacio-
nados aos mercados e consumos de crack e seus efeitos de violência, como
também esse esforço de sujeitos que (muitas vezes dramaticamente) to-
maram consciência desses efeitos e a eles oferecem resistência. O cuidado
profissional executado por profissionais de saúde e assistência social ne-
cessariamente passa por esse entendimento, visando auxiliar sujeitos cujo
consumo de determinadas drogas configura problemático.

4. Considerações Finais

Por tudo isso, penso ser produtivo focar nossa atenção nos esforços
de desassociação que consumidores de crack empreendem para continuar
utilizando a droga para fins recreativos sem sofrer os complexos dissabores
que esses consumos implicam, muito em função da associação da imagem
de seus consumidores com o que se convencionou chamar “a escória da
sociedade”. Quanto mais se adensar o conhecimento etnográfico sobre dife-
rentes contextos e cenários de uso dessa droga “maldita”, melhor. Não afir-
mo que haverá menos preconceito em relação a tais práticas, mas talvez um
preconceito mais fundamentado. Muitas vezes, o próprio etnógrafo, como
também o policial e o redutor de danos, adentra esse espaço de lutas e cons-
trução do conhecimento, que são os distintos contextos de usos e mercados
do crack, com a cabeça impregnada de ideias preconcebidas.

(...) Quando fiz o meu projeto de pesquisa, estava


interessada em descrever o grotesco, pois era assim
que o meu olhar distanciado via os “craqueiros” do
Pelourinho. Sobre o espanto que me acompanhou
em campo, nenhuma referência bibliográfica me
prevenia. Ao invés de pessoas perigosas e devasta-
das pelo uso intensivo de crack, deparei-me com
pessoas que riam do modo como eu falava das mi-
nhas primeiras visões sobre consumo de crack. A
145

minha ignorância era motivo de chacota entre eles,


que muito pacientemente me mostravam a comple-
xidade do mundo em que viviam e a força neces-
sária para lidar com as severas adversidades da sua
vida cotidiana. (Malheiro, 2013, p. 226)

Assim, a etnógrafa de cujo trabalho em muito o presente texto se


nutriu reflete sobre o processo vivo de aprendizado com o campo (e no
campo) que sofreu, para construir o conhecimento qualificado sobre o
consumo de crack que logrou realizar. E uma de suas primeiras lições do
campo (como podemos depreender a partir do texto transcrito acima), e
posteriormente transformada na perspectiva mestra de sua interpretação,
foi o reconhecimento da capacidade que seus “usuários” apresentam de re-
lativamente não se poluírem (ou de se poluírem menos) com o “grotesco”
que é participar desses mercados. Dito de outra maneira, o reconhecimento
dos esforços de desassociação na conduta dos consumidores de crack.

Enquanto o chamado “poder público” opta por “enfrentar”, no nível


do discurso, o crack, enfrentamentos efetivos e escancaradamente assimé-
tricos entre forças de controle social e consumidores de crack nas ruas da
cidade continuam reproduzindo seus efeitos de violência. O objetivo deste
capítulo que aqui se encerra foi subsidiar os gestores das políticas públicas à
medida que queiram realmente, antes de qualquer coisa, trocar o enfrenta-
mento e a guerra pelo conhecimento e o cuidado.

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CAPÍTULO 5

Teatro do Oprimido: um meio para a compreensão


e ressignificação dos processos relacionados ao uso
de drogas e suas possibilidades interventivas
Monique Rodrigues20

Em uma ensolarada tarde de junho, inicia-se mais uma oficina no


Campus de Macaé da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nas turmas,
profissionais de saúde de diversas áreas – psicólogos, assistentes sociais,
enfermeiros e agentes de saúde – participam da oficina de três horas de
duração nas quais, depois de uma preparação proporcionada pelos jogos e
exercícios do arsenal do Teatro do Oprimido, tem-se como meta criar cena
que represente histórias em que tiveram o desejo de realizar um melhor
atendimento em sua área de atuação, mas não conseguiram alcançar esse
objetivo. Por quê? O que fazer frente a essa realidade? São perguntas às
quais não nos limitamos a responder apenas com palavras. Deixamos que
a arte, o pensamento sensível, revele aspectos que a palavra não poderia

20
Curinga do Centro de Teatro do Oprimido e Mestre em Sociologia e Direito pela Universi-
dade Federal Fluminense/UFF.
148

fazer sozinha. Proporcionar reflexão e conhecimento a partir da articulação


do pensamento sensível e simbólico. Assim foram as oficinas de Teatro do
Oprimido realizadas nos cursos oferecidos pelo Centro Regional de Forma-
ção Permanente em Saúde Mental, Álcool e outras drogas.

Nos primeiros jogos, a resistência inicial ia se transformando na


descoberta de se fazer teatro. Não foi fácil, e não foram todos os que con-
sideraram a oficina um momento de apropriação e descoberta de novas
possibilidades de expressão e conhecimento. Sabemos o quanto em uma
sociedade que valoriza e reforça a racionalidade uma proposta que demons-
tre outro viés de conhecimento, esquecido e trancafiado nos primórdios
de nossa prática de primeira infância gera certo estranhamento. O nosso
método leva em consideração que

(...) o Pensamento Sensível não é língua: é lingua-


gem. Com ela, o sujeito expressa ideias e revela
sentimentos, para si e para outros, decide ações e
age sem usar palavras nem gestos simbólicos, ape-
nas sinaléticos (onde significantes e significados são
inseparáveis). Existem, portanto, duas formas de
pensar: Pensamento Simbólico (noético, língua) e
Pensamento Sensível (estético, linguagem). (Boal,
2009, p. 40)

O Teatro do Oprimido, método teatral criado por Augusto Boal,


se baseia no fato de que todos nós somos artistas. Temos essa capacidade
inerente de ser atores, mesmo quando não temos total consciência disso. O
que o Teatro do Oprimido busca, em última instância, é devolver os meios
de produção artística para que cada um possa expressar a sua forma de estar
no mundo, a sua arte. Busca-se transpor a mecanização física e intelectual a
que estamos condicionados quando não utilizamos todas as nossas capaci-
dades de pensar e manifestar nossas ideias e opiniões.

O Teatro do Oprimido é teatro na acepção mais ar-


caica da palavra: todos os seres humanos são atores,
porque agem, e espectadores, porque observam.
Somos todos espec-atores. (...) A linguagem teatral
é linguagem humana por excelência, e a mais essen-
149

cial. Sobre o palco, atores fazem exatamente aquilo


que fazemos na vida cotidiana, a toda hora, em todo
lugar. (...) A única diferença entre nós e eles consiste
em que os atores são conscientes de estar usando
essa linguagem, tornando-se com isso mais aptos a
utilizá-la. Os não atores, ao contrário, ignoram estar
fazendo teatro, falando teatro, isto é, usando a lin-
guagem teatral (Boal, 2007, ix).

No nosso método, temos como base filosófica a Estética do Opri-


mido, que possui por premissa o fato de todo ser humano, diferentemente de
outros animais, ter dois tipos de pensamento: o pensamento sensível e o pen-
samento simbólico. O primeiro é precursor das formas de conhecer o mundo,
inerente ao ser humano, estando com ele desde o momento de seu nasci-
mento. Diz respeito ao pensamento que independe das formas simbólicas de
expressão, como a palavra. Está ligado às percepções artísticas, conectadas à
imagem e ao som. Parte-se da perspectiva de que a atividade estética é essên-
cia humana. Desse tipo de pensamento que surge posteriormente à palavra,
forma de expressão simbólica. Esses dois tipos de pensamentos são funda-
mentais para que o indivíduo possa exercer sua plena capacidade cognitiva.

(...) temos que repudiar a ideia de que só com pa-


lavras se pensa, pois que pensamos também com
sons e imagens, ainda que de forma subliminal, in-
consciente, profunda! Temos que repudiar a ideia
de que existe uma só estética, soberana, à qual es-
tamos submetidos – tal atitude seria nossa rendição
ao Pensamento Único, à ditadura da palavra – que,
como sabemos, é ambígua. O pensamento sensível,
que produz arte e cultura, é essencial para a liberta-
ção dos oprimidos, amplia e aprofunda sua capaci-
dade de conhecer (Boal, 2009, p. 17).

Todo sujeito pensa utilizando-se dessas duas formas de expressão


e produção de conhecimento. Contudo, o que se percebe é que, confor-
me o ser humano vai se desenvolvendo e se apropriando da palavra, vai
150

se analfabetizando esteticamente. Sendo “uma das atrofias mais graves que


sofrem os homens numa sociedade de especialistas é precisamente a atrofia
estética” (Boal, 1980, p. 30). Nesse sentido, o sujeito deixa de ser produtor
para se tornar consumidor de arte. Com o pensamento sensível esmaecido,
os indivíduos tornam-se suscetíveis à invasão dos cérebros, forma de opres-
são na qual ideologias são introjetadas nas mentes individuais através de
mecanismos estéticos.

O analfabetismo estético, que assola até alfabetiza-


dos em leitura e escritura, é perigoso instrumento
de dominação que permite aos opressores a subli-
minal Invasão dos Cérebros! As ideias dominantes
de uma sociedade são as ideias das classes domi-
nantes, certo, mas, por onde penetram essas ideias?
Pelos soberanos canais estéticos da Palavra, da Ima-
gem e do Som, latifúndios dos opressores! (Boal,
2009, p. 15)

Parte-se da perspectiva de que o fazer artístico estimula e expande,


construindo novas formas de conhecimento nos quais o pensamento sen-
sível e o simbólico se entrelaçam, possibilitando a formação de novas me-
táforas que venham a construir uma melhor compreensão do mundo. Co-
nhecimento expandido em todas as suas esferas. “Faz parte de nossa estética
criar condições para que os oprimidos possam desenvolver sua capacidade
de simbolizar, fazer parábolas e alegorias que lhes permitam ver, a distância,
a realidade que devem modificar” (Boal, 2009, p. 122).

Todo ser humano é produtor de arte, contudo, em uma sociedade


que busca legitimar as ideias da classe dominante, os sujeitos são levados
a consumir arte e não a produzi-la. O método, então, propõe em sua prá-
tica transformar o sujeito passivo em ativo e transformador, promovendo
a transposição do muro entre palco e plateia. Não ampliar a expansão de
produtos artísticos, e sim de produtores de arte. Assim, os profissionais o
fizeram. Em cada jogo aplicado, não só o corpo foi acordando, mostran-
do-se novas possibilidades de sentir o que apenas se tocava, escutar o que
apenas se ouvia, estimular os vários sentidos para depois se ver melhor o
que apenas olhamos. Os jogos no Teatro do Oprimido têm essa função de
151

desmecanizar os participantes de uma forma não só física, mas também


intelectualmente. A partir de cada jogo aplicado, busca-se acordar o corpo
adormecido pela repetição de movimentos cotidianos, potencializando a
descoberta de novas possibilidades de movimento, percepções corporais e
sonoras para depois estimular os sentidos de uma forma geral.

Na batalha do corpo contra o mundo, os sentidos


sofrem, e começamos a sentir muito pouco daqui-
lo que tocamos, a escutar muito pouco daquilo que
ouvimos, a ver muito pouco daquilo que olhamos.
Escutamos, sentimos e vemos segundo nossa espe-
cialidade. Os corpos se adaptam ao trabalho que
devem realizar. Essa adaptação, por sua vez, leva à
atrofia e à hipertrofia. Para que o corpo seja capaz
de emitir e receber todas as mensagens possíveis, é
preciso que seja re-harmonizado. Nesse sentido foi
que escolhi exercícios e jogos focados na des-espe-
cialização. (Boal, 2007, p. 89)

Revelando-se as múltiplas possibilidades de expressão, busca-se


através desses meios estéticos uma melhor percepção e reflexão sobre a rea-
lidade que nos cerca. Nesse processo, estereótipos foram se revelando, e
puderam ser discutidos a partir do que a arte, o corpo com suas imagens
e sons nos revelava. E esses estereótipos apareceram frequentemente e em
grande parte do trabalho neste projeto. No jogo Caminhadas21, solicitamos
que os participantes caminhassem a partir das profissões que íamos indi-
cando. No jogo, revelaram-se aspectos do cotidiano do trabalho: ao indi-
carmos as profissões psicóloga, assistente social, enfermeira, um andar mais
rápido vinha à tona, atarefado, atormentado pela quantidade de trabalho
em um curto espaço de tempo. Para os agentes de saúde, um andar que
revelava uma busca incessante pelo contato com o outro. Já para os mé-

21
Todos os passos do jogo estão descritos em BOAL, Augusto. Jogos para atores e não ato-
res. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 102.
152

dicos, um semblante mais calmo e tranquilo. Um ar que carregava, em


certos aspectos, arrogância. Uma segurança e tranquilidade que talvez
não condissesse com a grande fila de pacientes a espera de atendimento.
Indagamos a todo instante se isso era parte da realidade ou do imaginário
que temos de cada profissão. De fato, parece que a estrutura institucional
e suas relações de poder também eram evidenciadas a partir do andar
atribuído a cada profissão.

E as ideias generalizadas de comportamentos e condutas continua-


vam sendo reveladas com relação aos usuários de drogas. O que chamamos
de drogas inclui uma infinidade de psicotrópicos, cada um com sua especi-
ficidade. Quando pedíamos aos participantes que mostrassem a caminhada
de um usuário de crack, de maneira geral o ritmo era intenso e acelerado, ou
acuado num canto, utilizando a droga intensamente, sem ter consciência de
si. A falta de consciência de si também era evidente nas representações de
usuário de álcool. Era como se todos estivessem extremamente alcoolizados
o tempo inteiro. Já no usuário de maconha, ritmo e corpos se modificavam,
ficavam lentos, todos como se estivessem sendo levados ao som de um irre-
sistível reggae. As manifestações desses estereótipos pelos exercícios foram
fundamentais para a nossa discussão posterior. Os jogos foram utilizados
nesse sentido: justamente para que essas preconcepções se revelassem, a fim
de que pudéssemos questionar o que se coloca como um dado.

Estamos trabalhando com pessoas que estão circunscritas nesta


sociedade, na qual a demonização das drogas e reforço de estereótipos são
cada vez mais estimulados e ressaltados. A forma como concebemos o uso
de drogas e a nossa prática com relação ao usuário está diretamente ligada
ao contexto social do qual somos oriundos. Não esperávamos que a reação
fosse diferenciada. Quando indagamos ao grupo o porquê dessas diferen-
ciações, muitos revelavam que sabiam que na realidade a imagem não é as-
sim tão taxativa, mas, quando é para representar cada personagem, parte-se
para a representação a partir das generalizações consolidadas. Interessante
pensar como esses estereótipos são intensamente reforçados, de inúmeras
formas, e como é difícil transpor essas descrições. Para que isso seja pos-
sível, é fundamental a relativização e reflexão do que está o tempo inteiro
sendo colocado com uma verdade absoluta.

Tratando-se do universo das drogas e todos os mecanismos sociais


revelados e conduzidos por ela, é fundamental um maior aprofundamento
e entendimento do que está nas entrelinhas desse processo. Entendo que a
questão que abarca a concepção das drogas, desde seu uso até os mecanis-
153

mos de venda e circulação, envolve aspectos que devem ser entendidos mais
amplamente. O que entendemos pela problemática do uso de entorpecentes
é a consequência, não a causa, de um fenômeno, e envolve diversas questões
que necessitam de maior reflexão e reformulação de conceitos usualmente
relacionados a ela. A forma como lidamos com psicotrópicos não é a mes-
ma que podem ser observadas em outras culturas e momentos históricos,
estando essa relação diretamente ligada ao universo simbólico do qual o
indivíduo faz parte. Segundo a antropóloga Regina Medeiros (2014),

O consumo das substâncias psicoativas é conhecido


em todas as sociedades e culturas, diferindo apenas
na maneira como são manipuladas, usadas, produ-
zidas e tratadas (Escohotado, 1998). No mundo oci-
dental, a partir da metade do século XIX, é notável
a intensificação dos usos de drogas, a variedade das
substâncias, as diferentes formas de utilização e a
diversidade dos grupos e classes sociais usuárias.
Com efeito, o assunto passa a ser de interesse gene-
ralizado, e é considerado um problema social que
deve merecer atenção particular no âmbito penal,
médico e sociocultural. Um problema social é uma
construção que implica a visão de mundo e de valo-
res sociais e, portanto, deve ser analisado com base
nas representações sociais e no contexto histórico-
cultural (Lenoir, 1998 apud Medeiros, 2014, p. 106).

Por isso, torna-se fundamental esse processo de relativização, com


a ressignificação dos conceitos amplamente apreendidos. Compartilho
da compreensão de que em nossa estrutura a demonização, criminaliza-
ção e chamada “guerra às drogas” trazem consigo diversos mecanismos de
controle que merecem um maior destaque na reflexão. Carl Hart (2014), a
partir de um relato envolvendo sua própria experiência como um menino
negro e pobre da periferia de Miami, vai mostrar como as concepções mais
usuais com relação às drogas, seja no senso comum, seja no mundo acadê-
mico, trazem aspectos refutáveis. Ele evidencia que a forma como lidamos
com o uso de entorpecentes faz parte de uma ideologia voltada para punir
uma determinada camada da população. Segundo sua análise, a droga não
154

pode ser tratada enquanto causa, ela é a consequência de um complexo de


processos que nas camadas mais pobres da sociedade está muito ligada ao
processo de exclusão e marginalização. Para ele, a ideia errônea que se tem
sobre as drogas “levou a uma situação na qual prevalece o objetivo absurdo
de eliminar o uso de drogas ilegais a qualquer custo, independente do preço
que isso representa para os grupos marginalizados” (Hart, 2014, p. 10).

Outro aspecto tratado no trabalho em questão diz respeito à ideia


deturpada que se tem em relação aos usuários. A concepção de vício e do
usuário constante de drogas como um ser inconsciente e incontrolável é,
em certo sentido, questionável. Carl Hart (2014) evidencia isso a partir de
um experimento no qual oferecia a possibilidade de o usuário receber a
droga ou uma nota de cinco dólares. O juízo de que o usuário iria sempre
optar pela droga não foi o que ocorreu na prática. Muitos foram os que op-
taram pelo dinheiro. Segundo ele, os resultados das pesquisas desmentiam
os estereótipos que usualmente colocamos nos usuários, principalmente
tratando-se da cocaína e do crack, objeto do estudo em questão.

Nenhum deles rastejava pelo chão, raspando par-


tículas brancas para tentar cheirá-las. Ninguém
falava descontroladamente nem se mostrava muito
agitado. Nenhum deles tampouco implorava por
mais, – e absolutamente nenhum dos usuários de
cocaína que estudei tornou-se alguma vez violento.
Os resultados eram semelhantes para os usuários de
metanfetamina. Eles desmentiam os estereótipos. A
equipe da ala onde os participantes do meu estudo
sobre drogas viveram por várias semanas nem se-
quer conseguia distingui-los de outras pessoas que
lá se encontravam para estudos de condições muito
menos estigmatizadas, como doenças cardíacas e
diabetes. (Hart, 2014, p. 13)

O fato, para Carl Hart (2014), das pessoas usarem drogas regular-
mente não significa que sejam dependentes ou que venham a ter problemas
em sua vida. Para que isso seja considerado enquanto uma dependência,
ou um “vício” (palavra com cunho bastante estigmatizante ainda muito fre-
155

quente no senso comum), o uso de drogas deve interferir também na sua


vida, nos cuidados e ações cotidianas. A partir de seu estudo e tendo como
base outras evidências colocadas em pauta quando analisada a sociedade
americana, ele evidencia que essa não é a regra entre os usuários.

(...) mais de 75% dos usuários de drogas – façam


eles uso de álcool, remédios ou drogas ilegais – não
enfrentam esse problema. Na verdade, as pesquisas
demonstram reiteradamente que essas questões
afetam apenas entre 10% e 25% daqueles que expe-
rimentam até drogas mais estigmatizadas, como a
heroína e crack. (Hart, 2014, p. 23).

Se os dados revelam o oposto do que usualmente é colocado no de-


bate com relação às drogas, por que essa relação de reforço às políticas anti-
drogas é tão disseminada? Ele coloca que um de seus objetivos no estudo é

examinar de modo crítico a visão que temos das


drogas e de seus usuários; o papel que a política ra-
cial tem desempenhado nessa percepção; e de que
maneira isso levou a táticas de combate às drogas
que se revelaram particularmente contraproducen-
tes nas comunidades pobres (Hart, 2014, p. 23).

Diversos autores vão analisar essa relação entre as guerras cons-


truídas como elemento de combate perpétuo a determinados aspectos, no
intuito de atingir diretamente determinado segmento social. Sigo na com-
preensão de que hoje vivemos no regime de biopoder, no qual a vida, em
todos os seus aspectos, é capturada pelos mecanismos de dominação. A
biopolítica, nos termos utilizados por Foucault (1988; 2010) e revisados
pela análise de Michael Hardt e Antônio Negri (2012), lança luz ao enten-
dimento da nova configuração atual nos quais os aspectos socioeconômi-
cos não contemplam a complexidade determinada pelas novas formas de
sociabilidade. Essas questões precisam ser compreendidas levando-se em
156

consideração múltiplos feixes. Por isso, essa análise considera que a especia-
lização das formas de controle culminou na sua atuação tendo como foco a
biopolítica, sendo a vida o foco das relações de poder e dominação.

As instituições disciplinares (Foucault, 2009) de outrora esten-


dem-se agora a todo o campo social, capturando a vida como um todo.
Nessa nova perspectiva com o caráter biopolítico do poder, produz-se de
forma exemplar uma conjugação das técnicas de individualização e os pro-
cedimentos de totalização. Esse processo histórico modifica o percurso so-
cial, levando a gênese de novas formas de gerir a vida. Atrelado a isso, há
o desenvolvimento do poder imperial, com seu estado de guerra perpétua
(Hardt; Negri, 2005 e 2012). Parte da perspectiva de que o estado de guerra
transforma as relações sociais, sendo um dos elementos-chave da atuação
política, tornando-se elemento fundador de todas as relações de poder e
técnicas de dominação. Nesse novo modelo, a guerra não pode se findar,
tendo o exercício da força que se estabelece de forma contínua, sendo o uso
da força policial uma de suas principais frentes. Nas palavras dos autores:

Uma guerra para criar ou manter a ordem social


não pode ter fim. Envolverá necessariamente o con-
tínuo e ininterrupto exercício do poder e da violên-
cia. Em outras palavras, não é possível vencer uma
guerra dessas, ou, por outra, ela precisa ser vencida
diariamente. Assim é que se tornou praticamente
impossível distinguir a guerra da atividade policial
(Hardt; Negri, 2005, p. 35-36).

A guerra e a função policial se tornaram o fundamento e modo


de atuação do Império. Os autores não só elencam as formas de atuação do
modelo imperial como também suas vias de legitimação. Sua legitimação
está, nessa perspectiva, diretamente ligada à eficácia da utilização de sua
força, eficácia concedida precisamente por sua atuação, tendo como base o
biopoder. A intervenção imperial acontece em diversos campos, sejam eles
econômicos, monetários, jurídicos, militar e moral.
157

Essa espécie de intervenção contínua, portanto, ao


mesmo tempo moral e militar, é realmente a forma
lógica do exercício da força, que deriva de um para-
digma de legitimação baseado num Estado de ex-
ceção permanente e de ação policial (Hardt; Negri,
2012, p. 55-57)

A guerra se transformou em um elemento crucial num regime de


biopoder, abarcando todos os aspectos da vida social. Os elementos ine-
rentes da guerra, com a criação de um inimigo que deve ser combatido,
deslocam todas as atenções da população para a busca de um bem comum,
ameaçado pela presença do elemento que deve ser eliminado a todo cus-
to. As guerras passam a ser travadas não só entre países ou grupos, mas
também contra aspectos metafóricos ou morais. É assim que segundo os
autores aparecem a partir da década de 60 as guerras contra a pobreza, pos-
teriormente contra as drogas, até abarcar mais atualmente a guerra contra
o terrorismo. Uma das consequências é que a guerra passa a perder seus
limites de tempo e espaço, podendo-se estender por qualquer direção e es-
paço. O inimigo precisa o tempo inteiro ser exposto e sua presença mostra
a necessidade de segurança, sendo um importante aspecto de legitimação
da violência imperial.

Qualquer poder militar e/ou policial será revestido


de legitimidade somente à medida que se mostrar
eficaz na correção de desordens globais – não ne-
cessariamente reestabelecer a paz, mas manter a or-
dem (Hardt; Negri, 2005, p. 55).

Essa expansão do poder imperial traz para dentro de sua lógica a


formação do estado de exceção e a perspectiva da guerra como em nenhum
outro momento histórico. Combate-se a esses elementos com a política da
guerra, ao passo que para que, de fato houvesse uma ingerência propositiva
e efetiva, deveria se levar em consideração o entendimento dos fatores que
ocasionam essas manifestações. A intervenção, nesse sentido, é mais um
sintoma dos mecanismos de controle concebidos na esfera do biopoder.
158

Os objetos abstratos de guerra – drogas, terro-


rismo e assim por diante – tampouco podem
ser realmente considerados inimigos. Seriam
mais apropriadamente entendidos como sin-
tomas de uma realidade desordenada que
representa uma ameaça à segurança e ao fun-
cionamento da disciplina e do controle. Exis-
te algo de monstruoso nesse inimigo abstrato
configurado numa espécie de aura. (Hardt;
Negri, 2005, p. 56).

Essa guerra, a meu ver, é levada as últimas consequências no Brasil,


onde as questões que envolvem o processo relacionado às drogas são tratadas
como caso de polícia, no qual a repressão tem em sua grande maioria um foco
certeiro: as camadas mais pobres da população. Assim como revela Carl Hart
(2013), a política racial e social tem um endereçamento específico.

Na verdade, boa parte do que não tem dado certo


na maneira como lidamos com a questão das drogas
tem a ver com o mau entendimento de causas e efei-
tos, responsabilizando-se as drogas pelos efeitos das
políticas relativas às drogas, da pobreza, do racismo
institucionalizado e de muitos fatores não tão ób-
vios. Uma das lições mais fundamentais da ciência
é que uma correlação ou vínculo entre fatores não
significa necessariamente que um dos fatores é cau-
sa do outro. (Hart, 2013, p. 26).

Essa situação no Brasil merece ser analisada levando-se em consi-


deração seus aspectos de grande disparidade econômica, cultural e social.
Jessé de Souza (2011) traz importantes contribuições nesse sentido. O au-
tor vai evidenciar que o entendimento da pobreza na sociedade brasileira é
circunscrito por um processo de naturalização que proporcionou a legiti-
mação das intensas disparidades sociais. Para ele, esse processo é fruto de
uma visão economicista que visa reduzir a desigualdade social à falta de
159

recursos econômicos. Ele busca desenvolver uma visão alternativa que pos-
sa dar conta da complexidade desses processos geradores da intensificação
da exclusão social. Para ele, os aspectos culturais, sociais e familiares nesse
contexto são fundamentais.

Essa herança da classe média, imaterial por excelên-


cia, é completamente invisível para a visão economi-
cista dominante do mundo. (...) É esse esquecimen-
to do social – ou seja, do processo de socialização
familiar – que permite dizer que o que mais importa
é o “mérito” individual. Como todas as precondi-
ções sociais, emocionais, morais e econômicas que
permitem criar o indivíduo produtivo e competiti-
vo em todas as esferas da vida simplesmente não são
percebidas, o “fracasso” dos indivíduos das classes
não privilegiadas pode ser percebido como “culpa”
individual. (Souza, 2011, p. 20)

Nesse contexto, no qual a percepção das desigualdades sociais pas-


sa por uma visão de ineficiência de gestão de recursos e instituições, nasce e
se consolida cada vez mais uma camada marginalizada e desprovida desses
amplos recursos, mas entendidos usualmente como pessoas com as mes-
mas chances e capacidades de um sujeito de classe média e alta, numa situa-
ção de degradação que se pensa como facilmente reversível. Jessé de Souza
(2011) enfatizará que a falta de entendimento desse complexo de processos
de exclusão não gerará uma real compreensão das causas geradoras dessas
desigualdades e sua possível superação.

O processo de modernização brasileiro constitui


não apenas as novas classes sociais modernas que
se apropriam diferencialmente dos capitais cultu-
ral e econômico. Ele constitui também uma classe
inteira de indivíduos, não só sem capital cultural e
econômico em qualquer medida significativa, mas
desprovida, esse é o aspecto fundamental, das pre-
condições sociais, morais e culturais que permitem
essa apropriação. (Souza, 2011, p. 21)
160

O entendimento desses processos sociais torna-se fator fundamen-


tal principalmente quando relacionado ao uso de drogas e à apropriação
que determinadas políticas fazem desse uso no Brasil. Parte-se do princí-
pio que esse processo gera uma intensificação da exclusão e estigmatização
social. O real entendimento das drogas e seu uso passam pela tentativa de
compreensão dessa complexidade e dos mecanismos de dominação presen-
tes, que fazem com que se relacione o uso de drogas e seu combate a de-
terminado segmento da população, já estigmatizada e excluída por outros
processos.

Em meio a toda essa problemática, encontram-se os profissionais


de saúde. Vários fatores ficaram latentes a partir do trabalho com o Teatro
do Oprimido junto aos profissionais dos cursos ofertados pelo CRR Macaé.
O primeiro diz respeito a menção à precariedade do serviço. Uma reali-
dade se direcionarmos a análise ao sistema de saúde. A falta de condições
dignas de trabalho e sucateamento e carência de estrutura é uma realidade
que perpassa diversos serviços públicos, incluindo os serviços de saúde do
país. Contudo, vale lembrar que a reformulação de políticas voltadas aos
portadores de sofrimento psíquico é considerada um avanço frente a outros
contextos.

Atualmente o Brasil está à frente de muitos países e torna-se uma


referência na consolidação da reforma psiquiátrica. A partir da década de
80, com a formação de amplos movimentos que atuaram pela reforma psi-
quiátrica no país, tendo como marco a II Conferência do Movimento de
Trabalhadores da Saúde Mental, realizada em Bauru, se concretiza o Mo-
vimento de Luta Antimanicomial, que tinha como importante estandarte
a defesa de uma sociedade sem manicômios. Esse movimento culminou
e teve em 2001 um amplo espectro de atuação com a promulgação da Lei
Paulo Delgado (Brasil, 2001), que impulsionou a reforma psiquiátrica do
país oferecendo “(...) pela primeira vez um instrumento legal de defesa dos
direitos civis dos pacientes” (Bezerra, 1992, p. 36).

Com a Reforma Psiquiátrica, houve a reformulação de políticas


públicas que visavam à ressocialização do portador de sofrimento psíquico
de forma a incluí-lo socialmente, botando em cheque toda a segregação
secular por qual passou esse segmento social, buscando com isso estimular
a aceitação das diferenças, promovendo o diálogo com os mais variados
setores da sociedade. Contudo, vale reforçar que importantes iniciativas
aconteceram antes do período em questão, se tornando um marco na busca
de novas possibilidades mais humanizadas de atendimento ao portador de
sofrimento psíquico.
161

Tendo seu início na década de 50, o famoso Museu do Inconsciente,


desenvolvido pela psiquiatra Nise da Silveira no Hospital Psiquiátrico do En-
genho de Dentro, pode ser considerado um caso emblemático nesse sentido.

Com a consolidação da reforma, as atividades artísticas se multi-


plicaram na área da saúde mental, no qual o atendimento possui um amplo
espectro, substituindo a visão hospitalocêntrica por uma que leve em consi-
deração os diversos conhecimentos em questão, tendo como característica
o atendimento interdisciplinar. Contudo, para uma real consolidação da
reforma, tornam-se necessárias uma reestruturação do sistema de saúde e a
utilização de diversas metodologias que possam dar conta desses aspectos
interdisciplinares propostos por ela e da real inclusão social aos atendidos
pelo serviço.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira tem gerado in-


tensos debates sobre o modelo de atenção a saúde
mental do país. Nos últimos anos, num contexto
de avanços políticos e assistenciais, os desafios se
ampliaram e se tornaram ainda mais complexos. As
práticas de atenção psicossocial na comunidade es-
tão no centro das preocupações, assim como a am-
pliação do cuidado para grupos específicos – como
crianças, adolescentes e usuários com problemas re-
lacionados ao uso de álcool e outras drogas –, os de-
terminantes sociais da saúde e as novas exigências
políticas e éticas para um novo modelo de cuidado.
(Delgado, 2011, s/ p.)

Nesse sentido, diversas atividades artísticas são desenvolvidas bus-


cando a inserção de novas metodologias interdisciplinares, sendo uma de-
las o Teatro do Oprimido impulsionado pelo projeto Teatro do Oprimido
na Saúde Mental. O Teatro do Oprimido, passa a ser utilizado por técnicos,
usuários e familiares que, favorecendo-se das potencialidades oriundas dos
meios estéticos, passam a revelar, discutir e buscar formas de transformar
seus problemas e questões. Conjugado aos conceitos da Reforma Psiquiá-
trica, o projeto Teatro do Oprimido na Saúde Mental vem desde 2004 se
tornando um meio para a discussão e busca de alternativas para o reforço
162

da cidadania nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outros espaços


que sejam um contraponto aos arcaicos manicômios nos estados onde atua.
A metodologia do Teatro do Oprimido foi amplamente utilizada como
ferramenta lúdica na busca da transformação da realidade do portador de
sofrimento psíquico. Augusto Boal impulsionou uma pesquisa buscando
entender como a metodologia podia auxiliar o usuário a compreender sua
realidade, apresentando a partir de pinturas, esculturas, poesias e peças tea-
trais seus delírios estéticos e suas opressões concretas. Com o objetivo de
situar o Teatro do Oprimido como o mais um suporte metodológico a ser
utilizado nos CAPS, o projeto baseia-se na investigação da possibilidade de
aproximação do delírio patológico às formas delirantes da arte.

Se o enfermo conseguir criar como artista, trans-


formando seu delírio em produto visível, audível e
palpável – pintura, dança, escultura, música, poesia,
cinema ou cena teatral –, poderá ver-se a si mesmo,
pois que se verá refletido em sua arte. Sujeito da sua
criação, recriando-se a si mesmo ao criar a sua obra
(Boal, 2009, p. 229).

A utilização do Teatro do Oprimido a partir da experiência de vida


dos usuários de saúde mental tinha por objetivo vir a ser uma alternativa
lúdica, dinâmica e eficaz para o estabelecimento de um ambiente propício
para a discussão de temas como a integração do usuário na comunidade,
na família, no mercado de trabalho, a sexualidade, entre outros, os quais
dificilmente são verbalizados, mas podem ser reveladas através da arte. O
Teatro do Oprimido pretendia, então, estimular a busca de alternativas para
a resolução de problemas concretos, incentivando a construção coletiva de
alternativas diversas, democráticas e criativas, as quais serviriam de base
para as propostas encaminhadas pelos funcionários dos CAPS e unidades
de saúde, pelos usuários e por seus familiares onde estimulariam, por meio
da metodologia, ações sociais concretas com vistas à transformação dessa
realidade. Para isso, primeiramente se formariam profissionais da rede de
saúde mental em multiplicadores da metodologia e estes passariam a de-
senvolver oficinas de Teatro do Oprimido nas unidades em que trabalham.
No projeto, foram capacitados mais de 300 profissionais em cerca de 100
unidades de saúde, nas quais mais de 30 grupos foram formados.
163

Nesse processo, muitos profissionais também se utilizavam do


Teatro do Oprimido para discutir seus problemas enquanto profissionais,
evidenciando as dificuldades enfrentadas frente a essa realidade. Esse proje-
to trouxe a evidência do processo que perpassa a consolidação da reforma,
seus avanços e retrocessos. Os desafios enfrentados dia a dia pelos profis-
sionais de saúde foram abordados a partir do Teatro do Oprimido. Tea-
tralizando os problemas, ensaiou-se possibilidades de ação e diálogo que
poderia se ter na vida real.

Uma das riquezas desse projeto está no envolvimen-


to dos profissionais e no intercâmbio de conheci-
mentos sensíveis e simbólicos: de um lado, o Teatro
do Oprimido, com seus princípios metodológicos,
e do outro as especificidades temáticas relaciona-
das aos saberes ligados à saúde mental. Dialogan-
do, aprendemos e ensinamos mutuamente e, assim,
nos fortalecemos. Um grupo de profissionais de um
CAPS-AD teatraliza a situação de um usuário de
maconha fumando na unidade. Quais alternativas?
Como falar? Como agir? Muitas cenas como esta fo-
ram teatralizadas e debatidas em diversas unidades
(Britto, 2011, s/ p.).

Esse processo de utilização do Teatro do Oprimido enquanto um


meio de identificação e problematização de uma opressão e busca de alter-
nativas para superá-las foi fundamental nessa inserção da metodologia no
campo da saúde mental. Através dos meios estéticos, podemos em certa
medida promover um maior discernimento da totalidade dos processos re-
lativos às práticas profissionais e à investigação de novas formas de atuação.
No Teatro do Oprimido partimos sempre para a formação da ascese, pro-
cesso no qual a partir de um problema individual buscamos identificar e
reconhecer a estrutura social que gera a injustiça e o problema em questão.
A reforma e a busca de maneiras inovadoras de intervenção e tratamento
são desafios em construção, em pauta nesses novos processos em que se tem
a possibilidade de formação de novas formas de atuação e reformulação de
antigas concepções consolidadas. As oficinas que realizamos nessa capaci-
164

tação em Macaé também deixaram latente esse desafio consolidado de se


buscar novas práticas interventivas e as armadilhas presentes que podem
levar à mecanização e reprodução de estruturas relacionais semelhantes às
manicomiais, que são também calcadas em preconceitos que estigmatizam,
segregam e vulnerabilizam os usuários nos CAPS e nos demais serviços da
saúde e da assistência social que acolhem essa clientela.

No jogo Máquina Rítmica22, pedimos aos participantes que pro-


duzissem sons e imagens que formassem uma peça ritmada integrando to-
das as peças ao funcionamento de uma máquina. Solicitamos a formação
de duas máquinas: uma relacionada à estrutura manicomial, que defini-
mos como a estrutura que segrega e estigmatiza, e outra direcionada ao
funcionamento dos CAPS. Na primeira máquina, peças engrenadas e bem
definidas. Na segunda, uma surpresa: muitas peças soltas, dispersas, sem
a engrenagem consolidada da primeira. Entretanto, grande parte de suas
peças em muitos aspectos remetiam aos sons e movimentos realizados na
máquina do manicômio de outrora. O que chamou atenção, contudo, foi
perceber que as peças, antes fixas e engrenadas do manicômio, agora esta-
vam soltas, sem a engrenagem de outrora. Isso me remeteu ao início de um
processo em construção. Quando indagamos aos participantes a formação
das máquinas, eles identificaram essa necessidade de reconstrução constan-
te e como essa transformação está acontecendo. Encontra-se em processo.

Achei bastante interessante essa constatação, que revela a neces-


sidade de constante ressignificação de antigos preceitos. Talvez aí esteja a
necessidade de um trabalho como o nosso, do Teatro do Oprimido, que
busca a possibilidade de uma ressignificação não apenas da dimensão cog-
nitiva, mas também do sensível, e do trabalho de tantos profissionais que
formulam e realizam esses cursos de capacitação, como esse de que partici-
pamos. Esse fato também esteve presente nas oficinas do projeto e sempre
gerava comentários dos profissionais que participaram do processo. Nas
palavras de Rosemeire de Almeida, profissional da Rede de Saúde Mental
de Guarulhos e coordenadora da oficina de Teatro do Oprimido no CAPS
II – projeto Tear:

22
Todos os passos do jogo estão descritos em BOAL, Augusto. Jogos para atores e não ato-
res. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 102.
165

Para enfrentar o desafio da Reforma Psiquiátrica,


para além da implantação de novos serviços, há
que se romper com a lógica dos manicômios, inter-
nalizada em cada um de nós; há que se criar novas
formas de cuidado para que não trabalhemos em
instituições totais reprodutoras dos conceitos e nor-
mas há tanto estabelecidas. (...) Com todas as letras,
sons e imagens, pude dialogar com os participan-
tes atendidos pelo serviço sobre a possibilidade de
intervenção na nossa própria vida. Vivi e atuei na
minha realidade, podendo levar para a mesa de dis-
cussão as relações de poder estabelecidas em nosso
espaço de trabalho, os desafios do processo de im-
plantação da reforma psiquiátrica e a necessidade
de ousadia na busca de novas formas de cuidar. (Al-
meida, 2011, s/ p.)

Toda essa experiência acumulada na inserção do Teatro do Opri-


mido na Saúde Mental foi fundamental para a realização dessas oficinas
em Macaé e a construção de uma possibilidade, mesmo que comprometida
pelo pouco espaço de tempo, de consolidar uma reflexão e propagar uma
semente que pudesse gerar e proporcionar uma posterior discussão e ressig-
nificação desses conceitos consolidados, carregados de preconcepções que
impedem uma efetiva intervenção com relação ao usuário de drogas. Nos
jogos e peças que construímos, buscamos a potencialização desse distancia-
mento, dessa nova percepção de si e do outro, visto que parece necessário
essa reformulação para que o profissional possa exercitar essa desconstru-
ção que permita a condução de um outro olhar com relação ao usuário de
drogas e a sua própria intervenção enquanto profissional. O nosso método
busca, a partir dos meios estéticos, a formação desse distanciamento para
que o sujeito possa se ver em ação, refletir sobre essa prática e buscar novas
formas de atuação quando essas se fazem necessárias.

O teatro nasce quando o ser humano descobre


que pode observar-se a si mesmo: ver-se em ação.
Descobre que pode ver-se no ato de ver – ver-se
em situação. Ao ver-se, percebe o que é, descobre
166

o que não é, e imagina o que pode vir a ser. Per-


cebe onde está, descobre onde não está e imagina
onde pode ir. Cria-se uma tríade: EU observador,
EU em situação, e o Não EU, isto é, o OUTRO. (...)
O autoconhecimento assim adquirido permite-lhe
ser sujeito (aquele que observa) de um outro sujeito
(aquele que age); permite-lhe imaginar variantes ao
seu agir, estudar alternativas. (Boal, 1992, p. 27).

Nesse processo, outro aspecto também me pareceu evidente. A


ideia, concebida e operada, do profissional enquanto um ser que vai salvar o
usuário. Era muito presente a angústia com relação ao uso da droga. Perce-
bia, não de forma generalizada, mas de certo modo bastante evidente, essa
ideia do profissional enquanto alguém que vai atuar ante o usuário, promo-
vendo sua salvação. E o salvamento, em muitos casos, passava pelo fim do
uso da droga. Eram muitas as ideias generalizadas com relação às drogas,
a busca pela sua superação, que passava pela não utilização desses entor-
pecentes. Também havia muitas ideias com relação à dependência (muitas
vezes descrita como vício), que em muitos casos estabeleciam uma relação
com as políticas antidrogas. Carl Hart (2014), em uma entrevista reforça a
necessidade de se repensar esses valores. Quando se trata de dependência,
ele observa que

(...) as pessoas se tornam dependentes por muitas


razões. Algumas possuem outras doenças psiquiá-
tricas que contribuem para sua dependência às dro-
gas. Outras tornam-se dependentes porque essa é a
melhor opção disponível a elas; outras porque têm
capacidades limitadas para assumir responsabili-
dades. As pessoas se tornam dependentes por um
leque muito diverso de razões. Se nós estivéssemos
de fato preocupados com a dependência a drogas,
nós estaríamos tentando entender precisamente
por que as pessoas se tornam dependentes. Mas não
é nisso que estamos interessados. Nesta sociedade
nós nos interessamos em maldizer as drogas. Dessa
forma, não temos de lidar com os problemas sociais
167

mais complexos que transformam as pessoas em


dependentes químicos (Hart, 2014, s/p.).

De modo geral, a forma como a droga era retratada remetia a um


intenso sofrimento. Recordo-me que perguntamos uma vez: “mas será que
as drogas só trazem o sofrimento? Não traz certa alegria o seu uso?” Um
dos participantes nos respondeu: “É que na nossa profissão só vemos o so-
frimento. O paciente quando chega até nós, em muitos casos, já é tarde
demais. E muitos profissionais e as políticas de saúde ainda esperam de nós
a resolução desses problemas, mas não podemos dar conta de tanta dificul-
dade.” De fato. Pensei eu naquele instante. A forma como a responsabilida-
de é tomada e vivida por aqueles profissionais não pode de fato auxiliar na
resolução ou num melhor entendimento dessa questão. Mas também me
parece relevante pensar: será que a droga para o usuário é sempre relaciona-
do à criação e perpetuação de um problema? Será que nossa compreensão
com relação ao uso e à dependência de drogas não leva a essas concepções
que em muitos casos não condizem com a realidade em questão? Carl Hart
(2014), na mesma entrevista traz uma nova concepção de dependência e
relativização que diz respeito ao próprio uso da droga.

Para mim, para julgar se alguém é ou não depen-


dente é saber se essa pessoa tem problemas em suas
funções psicossociais. Ela vai ao trabalho? Ela lida
com suas responsabilidades? Ou deixa de lado suas
atividades? E quando pensamos em drogas como o
álcool, as pessoas podem beber todos os dias e ainda
assim lidar com todas as suas responsabilidades. O
mesmo se dá com usuários de crack. O mesmo se dá
com usuários de cocaína. O mesmo com maconha.
Pense da seguinte forma: os três últimos presidentes
recentes usaram drogas ilícitas, e todos eles cumpri-
ram com suas responsabilidades. Eles alcançaram
os níveis mais altos de poder. E teríamos orgulho
deles se fossem nossos filhos, apesar do fato de te-
rem usado drogas ilegais (Hart, 2014, s/p.).
168

Como pôde ser observado a partir da oficina do Teatro do Opri-


mido e também a partir de estudos da relação entre drogas e sociedade,
as questões relacionadas ao uso de drogas trazem inúmeras construções
sociais amplamente ligadas a mecanismos de controle e ideias deturpadas
com relação ao usuário e à concepção de vício. Em meio a esse processo,
encontram-se os profissionais de saúde, para os quais é dada a possibilidade
de ressignificar pensamentos e construir novas formas de atuação. Vale nes-
te caso representar através do teatro o que está sendo dito, colocado como
uma dificuldade para o atendimento em questão. Assim o fizemos.

(...) O Teatro do Oprimido não é o teatro para o


oprimido: é o teatro dele mesmo. Não é o teatro no
qual o artista interpreta o papel de alguém que ele
não é: é o teatro no qual cada um, sendo o que é
representa seu próprio papel (isto é, organiza e reor-
ganiza sua vida, analisa suas próprias ações) e tenta
descobrir formas de liberação. Como se cada parti-
cipante se estranhasse a si mesmo, fosse ao mesmo
tempo o analista e o objeto analisado (Boal, 1980,
p. 25).

No processo, utilizamos do Teatro-Fórum para que os profissionais


encenassem uma situação na qual tivessem identificado alguma dificuldade
de realizar um bom atendimento ao usuário. No Teatro-Fórum, buscamos
a encenação de um problema do qual não sabemos ao certo como resolver
e juntos buscamos a construção da peça para um melhor entendimento da
questão e a busca com a plateia de alternativas possíveis para a superação
da situação retratada.

O Teatro-Fórum não é o teatro propaganda, não é


o velho teatro didático; ao contrário, é pedagógico,
no sentido de que todos aprendemos juntos, atores
e plateia. A peça – ou modelo – deve apresentar um
erro, uma falha, para que os espect-atores possam
ser estimulados a encontrar soluções e a inventar
169

novos modos de confrontar a opressão. Nós propo-


mos boas questões, mas cabe à plateia fornecer boas
respostas (Boal, 2007, p. 29).

Foi muito interessante conduzir o processo de construção da cena


junto aos profissionais e ver na prática teatral como eles agiam frente ao
desafio do atendimento. De fato, todas as cenas apresentavam situações
desafiantes. Gostaria de relatar uma em especial. A situação representada
demonstrava as dificuldades de um agente de saúde em fazer com que a
usuária fosse à unidade de atenção primária receber atendimento. Era uma
pergunta importante para aqueles profissionais que relatavam muitas his-
tórias em que não sabiam de fato que caminho tomar frente à determinada
realidade, considerada por todos como bastante difícil e de constante acon-
tecimento. O processo, contudo, revelou a necessidade do estabelecimento
de um real diálogo entre o profissional e a paciente.

O que ocorria de fato eram dois monólogos. A situação parecia


o que usualmente consideramos como degradante. Uma casa pobre, de-
pauperada, com móveis e demais objetos desorganizados. A personagem
representada era usuária de álcool. A encenação mostrava que no momento
da visita ela tinha batido com a cabeça, ocasionando um corte que neces-
sitava de pontos. O profissional representado reforçava a todo instante a
necessidade de ela ir à unidade de saúde resolver a questão e tratar de sua
dependência. Ela se negava a ir e dizia o tempo todo que a erva que tinha
em casa era suficiente para tratar o problema. Tinha toda uma alternativa
de cuidado para o problema que sofria e não sentia de fato nenhuma ne-
cessidade da unidade de saúde. Vivia num ambiente que considerava bom
e suficiente para atender às necessidades de sua vida. Uma visão bem dife-
rente do profissional, que a todo instante revelava a necessidade de socorrer
a pessoa em atendimento.

Foi muito revelador o diálogo promovido pela teatralização. Nele,


se manifestava toda a formação desse estereótipo e a ideia de que a unidade
de saúde era a única solução para o caso. Evidente que o diálogo não se esta-
beleceu e a usuária logo criou todo um artifício para que o profissional fosse
embora rapidamente. Realizamos o Fórum, momento em que abrimos para
que o público trouxesse alternativas ao problema em questão. O caso retra-
tado nos remete a um conflito não antagônico, no qual pretendemos pro-
mover uma conciliação e a abertura de um possível diálogo entre as partes
170

envolvidas. Não se trata de um caso antagônico entre oprimido e opressor


no qual o opressor, com sua postura antiética e utilizando-se do poder que
tem, impede que o desejo do oprimido se realize.

No Fórum em questão, buscamos as possibilidades existentes de


diálogo e quais as falhas existentes na conduta que fazem com que o diálogo
não aconteça. Nesse caso, era perceptível que a falta de escuta e entendi-
mento das razões da usuária e a relativização de suas condições de vida e de
uso da droga estavam sendo colocadas em pauta. Diversos fóruns aconte-
ceram e muitos não obtiveram êxito, justamente por reforçar a estratégia da
insistência. Até que tivemos a última intervenção. Nesta, o agente de saúde
concordou com o uso da erva. Pediu até para ver a erva a qual a usuária
tanto se referia. Disse que ela poderia usá-la e até levá-la à unidade de saúde
para que fosse utilizada lá. Após a abertura promovida pela aceitação da
erva, ele informou que, além da erva, ela poderia ir à unidade de saúde e
que lá teria com certeza outro medicamento que só favoreceria o que a erva
já estaria fazendo em seu corpo. Nesse momento, o diálogo foi estabelecido
de forma mais horizontalizada. Não era apenas um profissional revelando
saberes importantes a uma paciente, mas alguém que também estava dis-
posto a escutar o que aquela paciente tinha a dizer. O objetivo foi alcança-
do. A usuária aceitou ir à unidade de saúde, desde que pudesse também
levar a sua erva medicinal. Foi muito interessante perceber a reação dos
profissionais. Lembro-me de alguns comentários que revelavam essa real
necessidade de estabelecimento de diálogo, que é parte da primeira ins-
tância do exercício da escuta. O objetivo do nosso método – promover um
maior entendimento do problema enfrentado e a investigação de buscas de
alternativas para superá-lo – foi estabelecido.

Essas experiências reforçam a necessidade de formulação de novos


caminhos para que o universo das drogas seja mais bem compreendido e
debatido em nossa sociedade. Para isso, é fundamental a relativização de
seu uso e a busca de um real diálogo entre profissional e usuário. A utiliza-
ção de métodos e conhecimentos interdisciplinares contribui para o apro-
fundamento dessas questões. Parece-me que o Teatro do Oprimido teve um
papel relevante nesse sentido. Parto da perspectiva de que o método, ao
buscar a produção de conhecimento utilizando-se das múltiplas maneiras
de pensar, construir saberes e aprendizados, traz elementos interessantes
para se pensar a formação de subjetividades e as possibilidades oriundas
dessa relação. Como utilizamos os meios estéticos, trabalhamos com a mul-
171

tiplicidade do conhecimento, da palavra, conhecimento simbólico, ao som


e imagens, conhecimento sensível. Através desses meios, aspectos são reve-
lados de forma mais latente. As imagens revelavam no corpo o imaginário
social, o que socialmente é pensado sobre cada grupo de usuários e pro-
fissionais em questão. Os sons pronunciados também seguiam no mesmo
caminho, abrindo espaço para revelar através da tonalidade da voz e do
som escolhido o que se pensa sensivelmente do tema retratado. Todo esse
processo gerou uma discussão posterior, que pôde, ao ser verbalizado na
palavra, manifestar opiniões e pensamentos. Creio que esse processo só foi
possível a partir da utilização dos meios estéticos, abrindo-se novas possi-
bilidades de entendimento do eu, do outro e do contexto que circunscreve
essas relações.

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SOUZA, J. A ralé brasileira. Quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora


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CAPÍTULO 6

Métodos e Abordagens do uso problemático de drogas:


alcances e limites para a clínica no território
Ruth Escudero23

A abstinência não pode ser, então, o único objeti-


vo a ser alcançado. Aliás, quando se trata de cuidar
de vidas humanas, temos de necessariamente lidar
com singularidades, com as diferentes possibilida-
des e escolhas que são feitas. As práticas de saúde,
em qualquer nível de ocorrência, devem levar em
conta essa diversidade. Devem acolher, sem julga-
mento, o que em cada situação, com cada usuário,
é possível, o que é necessário, o que está sendo de-
mandado, o que pode ser ofertado, o que deve ser
feito, sempre estimulando a sua participação e o seu
engajamento (Brasil, 2004, p. 10).

23
Mestre em Psicologia pela UFF, Especialista em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psico-
logia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro – IFEN. Atua como Psicóloga Clínica na
perspectiva fenomenológico-existencial. Coordenadora acadêmica do CRR UFRJ Macaé.
174

1. Reflexões iniciais

A forma como o consumo de drogas vem se estabelecendo nos


últimos tempos tem despertado a atenção de vários setores da nossa so-
ciedade. Muito tem se debatido sobre esse assunto, envolvendo meios va-
riados, como os acadêmicos, os religiosos, a mídia de uma forma geral, as
áreas de saúde e de justiça, entre outros. Políticas de prevenção, orientação
e tratamento têm sido estabelecidas. Diversos são os investimentos em pes-
quisas e projetos de capacitação com vistas a alcançar melhores resultados
nas abordagens aos usuários de drogas.

O uso de drogas, aliás, não é um assunto novo. Ao contrário, pode-


se afirmar que essa é uma prática milenar. Há pesquisas arqueológicas que
concluíram que determinadas pinturas deixadas pelos homens da Idade da
Pedra teriam sido criadas sob efeito de transes xamanísticos que, provavel-
mente, incluíam o consumo de plantas psicoativas. Nos tempos bíblicos, o
vinho estava presente e ainda hoje a bebida alcoólica é parte integrante de
cerimônias religiosas, como a católica, a judaica e o candomblé. Já o ópio
era considerado como símbolo mitológico dos antigos gregos e era revesti-
do de um significado divino: seus efeitos eram vistos como uma dádiva dos
deuses destinada a acalmar os enfermos ou aqueles que de algum mal pa-
deciam. Esse uso se contextualizava junto à magia e à religião, buscando-se
a cura de doenças, o afastamento de maus espíritos, a obtenção de sucesso
nas caçadas e nas conquistas, bem como a diminuição da fome e o rigor do
clima de determinadas regiões.

Essa antiga relação da humanidade com o uso de drogas por muito


tempo foi considerada em diversas sociedades como aceitável. Entretanto,
no decorrer dos tempos, a partir de interferências de campos diversos, esse
uso vem ganhando novos contornos, novos modos de compreensão. Ao
ser dominado pelo saber médico e pela justiça, o uso de drogas alcançou
status de “grave problema social”, “epidemia”, “questão de segurança mun-
dial”. Concomitante a isso, surge a noção de dependência como “a perda
de controle no consumo da substância”, capaz de causar variados tipos de
prejuízos, criando um terreno propício ao surgimento de tratamentos com
vistas a deter/controlar esse “problema”.

No Brasil, é a partir do século XX que se iniciaram as interven-


ções governamentais no campo das drogas. Ainda assim, originalmente
175

voltadas para atender a demandas da área jurídica. E isso porque, diante


do crescimento interno do tráfico de drogas, principalmente a partir do
final dos anos 80 e início dos anos 90, bem como pela emergência, em ce-
nário mundial da política de “Guerra às Drogas”, o governo brasileiro se
viu impelido a criar todo um aparato oficial a fim de controlar o uso e o
comércio de drogas (Machado; Miranda, 2007). Dessa forma, as regula-
mentações instituídas favoreceram a criminalização dos usuários de drogas
ilícitas, os quais, para a justiça, deveriam ser excluídos do convívio social,
banidos para prisões, hospitais psiquiátricos e, posteriormente, centros de
internações, muitos deles filantrópicos, ligados a instituições religiosas. A
história das abordagens e tratamentos oferecidos aos usuários de drogas no
Brasil é recente e converge em diversos aspectos com a própria história dos
tratamentos psiquiátricos destinados aos chamados “loucos”.

2. Aproximações entre as diretrizes da Reforma Psiquiátrica e o surgi-


mento da Redução de Danos como prática de cuidado e alternativa no
campo AD

A reforma psiquiátrica no Brasil, em curso a partir de meados da


década de 70, acabou por alterar radicalmente a atenção psiquiátrica no país,
passando do modo de cuidado em saúde mental predominantemente asilar
para o modo psicossocial. A rede básica de saúde passou a ser o meio primor-
dial para atendimento, ampliando o contexto em que ocorre o cuidado.

A assistência em saúde mental propõe a atenção


descentralizada, interdisciplinar e intersetorial,
bem como vincula o conceito de saúde mental aos
conceitos de cidadania e produção de vida, gerando
transformações nas concepções e práticas de saúde
mental, na organização dos serviços, na formação e
na capacitação dos profissionais da área (Pitiá; Fu-
regato, 2009, p. 68).

Tendo como perspectiva muito mais do que humanizar ou melho-


rar os serviços de saúde mental existentes, esse movimento buscou resgatar
176

a cidadania dos pacientes, rompendo com a lógica da tutela e da exclusão


predominante até então no atendimento a essa clientela. A luta que se esta-
beleceu voltou-se contra as concepções de saber dominantes e as práticas
daí decorrentes. O chamado Movimento da Luta Antimanicomial pretendia
romper não apenas com o modelo hospitalocêntrico de tratamento, mas
principalmente desconstruir, tanto no cotidiano das instituições como na
própria sociedade, o modo hegemônico de olhar a loucura e tratar o louco.

A desistitucionalização destes pacientes, como parte importante da


reforma psiquiátrica, sustentada na necessidade de ampliação das possibili-
dades de serviços a serem oferecidos, estabeleceu-se como um contraponto à
internação como único modo de tratar, favorecendo assim o surgimento de
novos dispositivos, novas estruturas de cuidado a serem implementados na
comunidade. A partir desse novo paradigma, qual seja, o modo psicossocial
de atendimento em saúde mental, a reabilitação psicossocial passou a consti-
tuir-se como uma importante estratégia, não mais com vistas a “consertar” ou
“curar”, mas principalmente por mostrar-se como uma alternativa para que
esse usuário possa sustentar sua diferença e recuperar sua autonomia.

A reforma psiquiátrica, regulamentada em 2001 através da Lei


10.216, encontra-se apoiada nas diretrizes básicas que constituem o SUS: a
universalidade do acesso e direito à assistência aos usuários de serviços de
saúde mental de forma integral; a descentralização do modelo de atendimen-
to, através da estruturação de serviços mais próximos do convívio social de
seus usuários, além da criação de redes assistenciais que ajustem as suas ações
às necessidades da população (Ministério da Saúde, 2004b).

Se a partir da década de 70 iniciaram-se avanços no campo da psi-


quiatria brasileira, com o reconhecimento dos direitos humanos aos usuários
da saúde mental e a mudança de paradigma no modo como esses usuários vi-
nham sendo tratados, é nessa mesma década que, de acordo com Machado e
Miranda (2007), aqui no Brasil, a legislação pertinente a área das drogas passa
a sofrer influência também da medicina. Fornecedora de subsídios “técnico-
científicos” que legitimavam as práticas de controle sobre o uso e sobre os
usuários de drogas, a psiquiatria passou a identificá-los como doentes; “por-
tadores” de uma nova doença, a dependência química. É nessa combinação
entre as práticas médicas (de saúde) e as práticas juristas que podemos loca-
lizar a produção histórica de concepções estigmatizantes acerca do usuário
de drogas, onde “(...) o usuário de drogas ora se vê perante o poder da crimi-
177

nologia, ora diante do poder da psiquiatria: ora encarcerado na prisão, ora


internado no hospício” (Passos; Souza, 2011, p. 157).

Nessa produção de um olhar preconceituoso acerca dos usuários


de drogas, podemos incluir também a interferência da moral religiosa, que
se coloca como elemento de intervenção para regulação dos prazeres car-
nais, entre os quais as sensações provocadas pelo uso das drogas. O homem,
através dos valores cristãos, deve superar os desejos carnais, abstendo-se
de tudo o que o vincule à carne. O prazer, referenciado a essa moral, está
associado ao mal. Assim também as drogas acabam por assumir esse lugar
do mal, do perigo, da tentação. E aqueles que a esses prazeres se entregam
passam a ser vistos como fracos de caráter, doentes do controle de si mes-
mos, perigosos para a sociedade.

Em consonância com Passos e Souza (2007), podemos dizer que é


na articulação entre a moral religiosa, a psiquiatria e a justiça que a políti-
ca antidrogas, legitimada pela Lei 6.368 de 1976, estabeleceu aproximações
com o modelo da abstinência como viés principal para tratamento de usuá-
rios, preconizando a suspensão absoluta de todo e qualquer uso de drogas
como a única forma de cuidado possível a ser oferecido. O próprio Ministé-
rio da Saúde, em documento publicado em 200324, avalia que durante déca-
das a ausência de propostas concretas de políticas de saúde voltadas a esse
campo favoreceu o estabelecimento de diversas abordagens “alternativas”
no campo da saúde, através de “tratamentos” cujo principal objetivo a ser
alcançado era a abstinência.

Ainda nos dias atuais, tanto entre muitos profissionais de saúde


quanto no imaginário popular, é comum a crença de que todo uso de drogas
é problemático e que a única alternativa frente a isso é a abstinência. Não
se quer aqui banalizar os possíveis prejuízos que o uso possa acarretar, nem
desqualificar a abstinência como uma possibilidade diante de dificuldades
que alguém enfrente nesse campo. O que se quer é ressaltar que existem
muitos tipos de uso, uso este que sempre esteve presente na história da hu-
manidade, e que a abstinência não pode ser encarada como a única forma
de cuidado frente ao uso de drogas.

A política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras


24

Drogas.
178

É somente a partir de 2003, com a publicação da Política de Aten-


ção Integral a Usuários em Álcool e outras Drogas que o Ministério da Saú-
de assume o uso abusivo de álcool e Outras drogas como um problema
de saúde pública e estabelece, em âmbito nacional, uma política apoiada
em uma concepção antiproibicionista a partir da adoção da abordagem da
Redução de Danos.

Estratégias de Redução de Danos surgiram no Brasil a partir de


1989, com a epidemia de HIV/AIDS e a necessidade de ações de enfren-
tamento ao contágio de usuários de drogas injetáveis por meio de seringas
infectadas. Porém, se nos seus primórdios a Redução de Danos no Brasil
restringia-se a uma proposta de prevenção quanto à disseminação da AIDS,
focando-se principalmente nos Programas de Trocas de Seringas, ao longo
dos anos, tornou-se uma estratégia de cuidado alternativa a lógica exclu-
dente e restritiva da abstinência.

Por meio dessa, o usuário de drogas pôde romper com o lugar de


“doente”, que como tal deveria ser “curado”, abrindo-se então perspectivas
variadas no cuidado a serem construídas através do respeito às singularida-
des e possibilidades de cada indivíduo.

(...) a RD é um método construído pelos próprios


usuários de drogas e que restitui, na contempora-
neidade, um cuidado de si subversivo às regras de
conduta coercitiva. Os usuários de drogas são cor-
responsáveis pela produção de saúde à medida que
tomam para si a tarefa de cuidado. Reduzir danos
é, portanto, ampliar as ofertas de cuidado dentro
de um cenário democrático e participativo (Passos;
Souza, 2011, p. 161).

Do mesmo modo que nas diretrizes da Reforma Psiquiátrica, a


perspectiva que se abre com a Redução de Danos é a da criação de novas
possibilidades de convivência, resgatando o direito à liberdade e conside-
rando os usuários em sua íntegra. Há uma enorme contribuição para o seu
processo de inclusão, uma vez que as estratégias pautadas exclusivamente
na abstinência mostraram-se pouco efetivas no curso da história. Segundo
179

dados informados pelo Ministério da Saúde25, apenas 20% dos usuários que
procuram tratamento conseguem se manter abstinentes por um certo pe-
ríodo de tempo, lançando-se uma importante pergunta: o que fazer com a
clientela que não quer, não pode ou não consegue aderir à abstinência? A
lógica da Redução de Danos se mostra como uma possibilidade de acom-
panhamento para essa clientela, até então relegada à própria sorte, uma vez
que cria a possibilidade de o profissional de saúde construir junto com o
usuário o que ele pode fazer para melhorar sua vida, sem assumir a postura
de determinar o que é melhor, de forma antecipada.

Ao comprometer-se com a formulação e execução de diretrizes


específicas para a área de álcool e drogas, o Ministério da Saúde instituiu
os serviços de atenção psicossocial para pacientes com transtornos decor-
rentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas, os CAPSad, que devem
atuar como dispositivos de assistência ao cuidado de forma flexível e abran-
gente dentro da perspectiva estratégica da redução de danos. Também esta-
beleceu a necessidade de fortalecimento de uma rede assistencial ampliada,
formada pelos dispositivos especializados, os CAPSad, e não especializados,
como as Unidade Básicas de Saúde, Programas de Atenção Básica em Saúde,
entre outros. Assim sendo, desenvolveu-se o apontamento de que a atenção
a usuários de drogas deve ter lugar em ambiente comunitário, inserida na
cultura local e articulada às demais redes de suporte social, organizando no
próprio território as ações que possam contemplar as diversas necessidades
dessa clientela, priorizando sempre a sua reabilitação e reinserção social em
total consonância com os princípios da reforma psiquiátrica.

Trata-se de um marco teórico-político que rompe


com abordagens reducionistas e considera a presen-
ça das drogas nas sociedades contemporâneas como
um fenômeno complexo, com implicações sociais,
psicológicas, econômicas e políticas; e que, portan-
to, não pode ser objeto apenas das intervenções psi-
quiátricas e jurídicas como ocorreu historicamente
no Brasil (...) (Machado, Miranda, 2007, p. 818).

25
Fonte: Guia de Saúde Mental: atendimento e intervenção com usuários de álcool e outras
drogas, cartilha que compõe o material didático do curso Caminhos do Cuidado, voltado
para profissionais atuantes da Atenção Básica. Ministério da Saúde, 2013.
180

A partir dessa breve contextualização, faz-se necessário pensar


sobre os alcances, bem como os limites apresentados em uma nova abor-
dagem de cuidado a usuários de drogas que vem sendo utilizada pelos ser-
viços de saúde, em especial na Atenção Básica, a saber, a Intervenção Breve.

3. Intervenção Breve: uma abordagem possível para a clínica no território

De acordo com as indicações presentes em manuais de orientação


e capacitação para profissionais da Atenção Básica26, uma possível aborda-
gem a ser construída com usuários de drogas é o que se chama de Inter-
venção Breve (IB). A IB é uma estratégia de intervenção estruturada, focal,
objetiva, que possui como importante objetivo ajudar no desenvolvimento
de autonomia das pessoas, atribuindo-lhes a capacidade de assumir a ini-
ciativa e a responsabilidade por suas escolhas. Coerente com a perspectiva
da Redução de Danos, a Intervenção Breve favorece a redução dos possíveis
riscos provenientes de padrões prejudiciais de uso de drogas, uma vez que
busca identificar a presença de um problema, motivar o indivíduo para as
mudanças que se mostrem necessárias e construir em conjunto estratégias
para que essas mudanças possam acontecer.

De forma geral, podemos dizer que a IB apresenta enfoque educa-


tivo e motivacional com vistas a incentivar mudanças nos padrões de uso
de drogas. Sua utilização, portanto, pode se dar tanto para prevenir ou re-
duzir o consumo de álcool e/ou outras drogas, bem como os problemas
associados, como também orientar, de maneira objetiva, sobre os efeitos
e consequências relacionados ao consumo abusivo. Essa técnica pode ser
aplicada por profissionais com diferentes tipos de formação, como médicos,
psicólogos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, nutricionistas, assisten-
tes sociais, agentes comunitários e outros profissionais de saúde.

26
1. Intervenção breve para casos de uso de risco de substâncias psicoativas: módulo 4/ coor-
denação do módulo Denise De Micheli, Maria Lúcia Oliveira de Souza Formigoni. – 3. ed.
– Braília: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2009. Manual integrante do material
didático do SUPERA – Sistema de Detecção do Uso abusivo e dependência de substâncias
Psicoativas. 2. Intervenções Breves: para uso de risco e nocivo de álcool – manual para uso
em atenção primária/ Thomas F. Babor, John C. Higgns-Biddle; tradução Clarissa Mendonça
Corradi. – Ribeirão Preto: PAI-PAD, 2003.
181

Assim sendo, esse tipo de abordagem tem se mostrado de grande


relevância para a prática clínica desenvolvida pelos profissionais da Atenção
Básica, uma vez que tanto as equipes das Unidades Básicas de Saúde (UBS)
quanto da Estratégia de Saúde na Família (ESF) ocupam os vários espaços
extrainstitucionais, encontrando-se assim em uma posição estratégica para a
detecção precoce em relação ao uso abusivo ou prejudicial de drogas. Além
disso, o uso da IB favorece de forma simples, no cotidiano das atividades já
desenvolvidas por essas equipes, não só a identificação de possíveis problemas
quanto ao uso, mas também contribui para uma melhor abordagem junto a
esses usuários. Uma vez que os profissionais já estão inseridos no contexto
de vida desses usuários, possuem capacidade de escuta e buscam promover a
construção de soluções para o seu sofrimento, é fundamental instrumenta-
lizá-los, pois muitos profissionais de saúde se sentem despreparados ou até
mesmo temerosos em abordar esse tipo de assunto.

Resumidamente, as etapas a serem desenvolvidas em atendimen-


tos que utilizem a IB serão a identificação ou avaliação dos problemas ou
dos riscos e posteriormente o oferecimento de aconselhamento, orientação
e em alguns casos de acompanhamento das metas assumidas pelo paciente.

Dessa forma, o primeiro passo do processo é a triagem inicial. O


profissional de saúde pode nesse momento se valer de instrumentos valida-
dos para o Brasil, tais como o AUDIT e o ASSIST, para a população adulta,
ou outros específicos para adolescentes. Não se quer com a utilização desses
instrumentos estabelecer nenhum tipo de diagnóstico que determinará di-
reções previamente estipuladas para os usuários; ao contrário, esses testes
devem ser utilizados como ferramentas de aproximação que favoreçam ao
estabelecimento do vínculo e do diálogo necessários para a construção das
condutas terapêuticas adequadas a cada situação que se apresente.

O AUDIT (Alcohol Use Disorders Identification Test) é um teste


para identificação de Problemas Relacionados ao Uso de Álcool que possui
como características: avaliar os diversos níveis de uso de álcool, desde o
não uso até provável dependência; avaliar o uso de álcool nos últimos 12
meses; pode ser utilizado por toda equipe de saúde e em vários serviços;
pode ser utilizado tanto na forma de entrevista ou ser autoaplicado; possui
tempo de aplicação curto: de 2 a 4 minutos; suas questões correspondem
aos principais critérios diagnósticos do CID-10. De acordo com as repostas
dadas, pontuações específicas são atribuídas e somadas, obtendo-se assim
182

uma classificação rápida em quatro níveis (zonas) e padrão de uso de álcool


do usuário.

O ASSIST (Alcohol, Smoking and Substance Involvement Scree-


ning Test) foi desenvolvido para triagem do uso de substâncias psicoativas e
possui as mesmas características do AUDIT. Avalia não só o uso de álcool,
mas também o de outras drogas. Fornece informações sobre: uso de subs-
tâncias na vida e nos últimos três meses; problemas relacionados ao uso de
substâncias; risco atual ou futuros problemas decorrentes do uso; indícios
de dependência; uso de drogas injetáveis.

Esse teste é composto de oito questões e cada questão apresenta


respostas estruturadas e um valor numérico correspondente. Ao final da
entrevista, de acordo com as respostas dadas, os valores são somados para
obter escores referentes tanto ao Envolvimento com Substâncias Específi-
cas, quanto ao Envolvimento Total com Substâncias. O escore referente ao
Envolvimento com Substâncias Específicas é bastante útil no contato inicial
de triagem clínica, pois fornece uma medida do uso e dos problemas que
ocorreram, nos últimos três meses, para cada substância investigada e indi-
ca o risco de futuros problemas relacionados ao uso de drogas.27

A partir desse primeiro momento, de avaliação do consumo de


drogas, na qual instrumentos como os anteriormente citados podem ser
utilizados como facilitadores para introdução ao tema, tem-se o retorno ou
“feedback” sobre o padrão de uso averiguado. Essa devolutiva (feedback)
é um dos seis princípios da Intervenção Breve e o modo como acontece é
fundamental para a continuidade do processo. Na verdade, a postura assu-
mida pelo profissional durante o aconselhamento será sempre crucial para
o estabelecimento de um bom vínculo com o paciente. O que se sugere é
que o profissional seja o mais empático possível, evitando confrontos ou
julgamentos e disponibilizando-se a ouvi-lo. Demonstrar que entende seus

27
Para um conhecimento mais detalhado dos testes citados, consultar: 1. AUDIT: teste para
identificação de problemas relacionados ao uso de álcool – roteiro para uso em atenção primá-
ria/ Thomas F. Babor, John C. Higgns-Biddle, John B. Saunders, Maristela G. Monteiro; tradu-
ção Clarissa Mendonça Corradi. – Ribeirão Preto: PAI-PAD, 2003.2. Detecção do uso abusivo
e diagnóstico da dependência de substâncias psicoativas: módulo 3 coordenação do módulo
Telmo Mota Ronzani – 3. ed. – Brasília: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2009.
183

problemas, incluindo aí as dificuldades em mudar ou até mesmo a falta de


vontade de mudar, também favorece o estabelecimento de diálogo, uma vez
que o paciente não se sente rotulado ou pressionado.

Portanto, ao informar o paciente sobre os resultados obtidos nos tes-


tes, de acordo com a abertura ou postura de receptividade que ele apresente,
o profissional poderá convidá-lo a receber orientações ou a aprofundar um
pouco mais o assunto. Dessa forma, entram em jogo os outros princípios que
compõem a IB, a saber: a) Responsabilidade (Responsibility), referente a auto-
nomia do paciente frente aos seus comportamentos. A função do profissional
de saúde é informá-lo e ajudá-lo, nunca determinar ou coagir o paciente. Isso
permite que ele tenha o controle pessoal em relação ao seu comportamento
e suas consequências, podendo ser um elemento motivador para a mudança
de comportamento, uma vez que consiga perceber a mudança como uma es-
colha, uma opção, e não uma imposição; b) Aconselhamento (Advice) que se
refere às orientações e informações que o profissional de modo claro, objeti-
vo, fornecerá ao paciente com vistas a favorecer a autopercepção do risco pes-
soal, além de motivos para que ele considere a necessidade/possibilidade de
mudança; c) Menu (Menu of options), em que se busca identificar e construir
junto com o paciente algumas possíveis alternativas de ação ou opções frente
às metas que ele estabeleceu e às dificuldades que surjam, reforçando sempre
a motivação para que alcance as mudanças que avaliou serem necessárias; d)
Empatia (Empathy), que é a postura indicada para o profissional de saúde
frente a seu paciente, demonstrando sensibilidade e sendo sempre receptivo
às questões abordadas pelo paciente; e e) Autoeficácia (Self-efficacy), em que-
se busca favorecer o aumento da confiança dos pacientes em suas habilidades
e capacidade de mudar.

Ao se pensar nas estratégias pautadas exclusivamente na abstinên-


cia como forma única de atendimento a ser oferecido a usuários de drogas,
bem como nos seus dispositivos de tratamento, as clínicas de internação,
que durante décadas no Brasil tiveram primazia no cuidado a essa clientela,
apresentam grandes avanços com a adoção da perspectiva da Redução de
Danos e o uso de abordagens como a IB para atuação junto a usuários. Seu
uso pode favorecer a produção de vínculo, uma vez que respeita a auto-
nomia e singularidade de cada usuário através da construção em conjun-
to de metas e mudanças que sejam possíveis e desejadas por ele, evitando
imposições, determinações prévias ou mesmo julgamentos a priori do que
deve ser feito e como deve ser feito. As relações sociais e afetivas podem ser
184

mantidas, à medida que se acredita ser possível melhorar a vida e a saú-


de daquele paciente sem a necessidade de retirá-lo de seu território. Há
uma preocupação maior quanto à postura dos profissionais diante dessa
clientela, havendo maior assunção de responsabilidade pelos resultados e
buscando-se superar a concepção de que tudo depende apenas da vontade
e do querer do usuário.

Ainda assim, se faz necessário ponderar sobre os limites e riscos


que essas abordagens possuem, pois dependendo do como sejam construí-
das junto à sua clientela, em vez de serem produtoras de abertura, de li-
berdade e de outras possibilidades de existência, podem ser tão restritivas
quanto as estratégias anteriores.

4. Os perigos da técnica em uma relação de ajuda

A fim de pensar sobre alguns possíveis perigos presentes na utili-


zação de estratégias como a IB e muitas outras abordagens desenvolvidas
no âmbito da psicologia e aplicadas no cuidado a usuários de drogas, vamos
recorrer a algumas reflexões desenvolvidas por Heidegger (1889/1976), fi-
lósofo alemão que buscou fazer uma investigação acerca do sentido do ser
e acabou fazendo uma profunda reflexão ontológica acerca da existência,
através do desenvolvimento da sua analítica do Dasein.

Em Ser e Tempo (1998), Heidegger desenvolveu um modo de


pensar diferente do estabelecido pela ciência moderna, no qual pretendia
buscar o fenômeno a partir de como ele próprio se apresenta, estabelecen-
do assim o método que chamou de fenomenologia-hermenêutica. Dessa
forma, lançou as bases para posteriormente tematizar as pretensões de do-
mínio, controle, previsibilidade e superação, tão peculiares à ciência mo-
derna. Seus questionamentos acerca desse tema encontram-se presentes em
diversos seminários e palestras que proferiu para alunos e profissionais da
psiquiatria em encontros organizados por Medard Boss, médico que se de-
dicava ao estudo do seu pensamento. Esse material encontra-se reunido em
uma obra chamada Seminários de Zollikon (2001). Também em Ensaios e
Conferências (2001), é possível encontrar textos que abordem essa temática,
como em “A Questão da Técnica”.

No seminário de 8 de julho de 1965, Heidegger (2001) apresenta


185

para alunos e profissionais de psiquiatria e psicoterapia algumas das regras


que Descartes estabeleceu no seu Discurso do Método e que são hegemôni-
cas na constituição da ciência moderna. Uma delas seria a necessidade de se
dispor da natureza como uma espécie de fundo de reserva, cabendo à ciên-
cia estabelecer um avanço tecnológico que tornasse viável o controle dos
processos naturais a fim de alcançar o seu domínio absoluto. A pretensão
de Descartes é desenvolver, através da ciência, uma relação de dominação
tamanha dos homens com a natureza que os tornaria mestres e donos dela.

Nesse modo de relação, os indivíduos acabam por perder o valor


em si mesmos e seu desvelamento passa a se dar somente a partir dos seus
potenciais de utilidade e exploração, tornando-se imperativo o desenvolvi-
mento e o avanço ilimitados de técnicas que auxiliarão tal intento.

Com a busca pelo domínio da natureza através da ciência, o méto-


do científico passou a ter um papel de extrema relevância. Se, para os gre-
gos, método significava “o caminho que leva a algo”, agora ele se torna uma
espécie de instrumento no qual se busca enquadrar, de forma antecipada,
aquilo a que se pretende compreender no âmbito dos objetos calculáveis e
previsíveis.

Concomitante ao grande destaque que o método alcança dentro


da ciência moderna, a técnica também adquire fundamental importância
no contexto histórico atual. Heidegger se questiona acerca do sentido usual
que se costuma dar a esse termo, em que a técnica é vista como teoria apli-
cada, meio para se alcançar um fim e busca tematizar a essência da técni-
ca tal como aparece na atualidade.“A técnica não é, portanto, um simples
meio. A técnica é uma forma de desencobrimento. Levando isso em conta,
abre-se diante de nós todo um outro âmbito para a essência da técnica”
(Heidegger, 2001, p.17).

Esse modo técnico de desvelamento dos entes alcançou tamanha


abrangência que Heidegger vai apontar para a dificuldade que se estabele-
ceu na atualidade de se desenvolver uma compreensão dos fenômenos sem
ser através de representações, de conceitos operativos, de objetivações. Essa
dificuldade leva a uma perda do fenômeno em sua simplicidade, naquilo
em que ele próprio se revela, em sua manifestação, uma vez que o método
científico moderno traz em suas origens uma forma de pensar que prima
pela produção de representações conceituais de seus objetos.
186

Apesar de criticar as bases sob as quais o método científico é de-


senvolvido, bem como o modo de pensar a ele associado, Heidegger não as-
sume uma posição de rejeição à ciência ou ao rigor pretendido pela pesqui-
sa científica. O que ele acredita que deve ser questionado é a pretensão que
a ciência possui em tornar-se absoluta, capaz de superar todos os limites e
obstáculos, sua busca por um controle de toda a natureza e principalmente
seu estabelecimento como parâmetro de todas as verdades.

Com o estabelecimento do método científico como o meio predo-


minante de acesso ao conhecimento, método este que passou a ser concebido
como um instrumento no qual se ambiciona enquadrar, de forma antecipada,
tudo aquilo a que se quer compreender ao âmbito dos objetos calculáveis e
previsíveis, a psicologia, em sua pretensão de ser reconhecida enquanto ciên-
cia, acabou por adotar uma visão naturalista do homem. E isso em função da
sua intenção de aplicar a ele os mesmos axiomas válidos para os fenômenos
da natureza, sobre os quais se desenvolveu a crença de controle, dominação e
exploração. A partir desse modo de relação, o ente que a psicologia pretende
compreender perde o valor em si mesmo, sua verdade não reside mais na-
quilo que ele próprio manifesta e seu desvelamento passa a se dar sempre em
função das teorias que a ele se almeja aplicar.

Se por um lado, tanto a psicologia quanto a psiquiatria, e outras


disciplinas afins têm alcançado, cada vez mais, o desenvolvimento tecno-
lógico tão almejado, que lhes permite intervir, manipular e muitas vezes
“reajustar” aqueles que em algum momento não mais conseguem corres-
ponder a esse horizonte histórico atual de forma “satisfatória”, por outro
lado há a perda daquilo que parece ser mais essencial na compreensão dos
fenômenos humanos – a dimensão da própria existência –, uma vez que es-
sas disciplinas, na maior parte das vezes, tomam aquele a quem pretendem
estudar como algo pronto, um ser simplesmente dado.

Mantendo a referência nas análises existenciais de Heidegger, faz-


se necessário pensar nas implicações do uso da técnica moderna nas rela-
ções clínicas, que pretendem ser relações de ajuda. O que vemos em geral
são relações que se caracterizam na maior parte das vezes pela ocupação do
outro como um ser simplesmente dado, semelhante a um instrumento no
qual as técnicas devem ser simplesmente aplicadas. Esse modo de relação é
o que Heidegger denomina de “preocupação substitutiva”, uma vez que há
uma substituição do outro nas suas ocupações, de forma prévia, sempre lhe
187

dizendo o que fazer e qual a melhor maneira (a mais “normal”). A adoção


desse tipo de preocupação é muito comum entre os profissionais da saúde
que pretendem, por meio de aconselhamentos, conscientização e orienta-
ções, abarcar o homem no seu existir.

Não é raro que os profissionais acreditem que, ao fornecer infor-


mações para o paciente sobre o os riscos do uso de drogas, ou lhe oferecer
manuais para sua educação, ou ainda aplicar técnicas como a Intervenção
Breve e tantas outras, será possível que o usuário volte a ter “controle” so-
bre sua vida, podendo então vivê-la “normalmente”, ou seja, produzindo,
consumindo, enfim, fazendo o que todo mundo faz. Isso reflete de forma
bastante explícita o modo técnico de compreensão peculiar à ciência mo-
derna. Heidegger adverte que “nessa preocupação, o outro pode tornar-se
dependente e dominado mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça
encoberto para o dominado” (Heidegger, 1998, v I, p. 174).

Esse modo de compreensão do homem, presente nas abordagens


tradicionais ditas científicas, vem reduzindo-o apenas aos aspectos que a
técnica desvela. Não se quer afirmar que tais aspectos sejam equivocados,
mas é preciso refletir que muitos outros podem estar presentes. É esse o
sentido de ampliação das possibilidades e respeito às singularidades que
o paradigma da Redução de Danos vem buscando reestabelecer frente aos
possíveis modos de cuidado no campo do álcool e das outras drogas.

Não se pretende que haja um banimento da técnica ou desse modo


técnico de desvelamento dos entes, mas apenas que se possa ter com eles
uma relação de maior liberdade. À medida que se tornam único parâmetro
de verdade, única fonte de compreensão, é ai que o perigo reside, pois o que
há de mais essencial ao homem, sua condição de poder-ser, acaba restrita
exclusivamente ao modo de ser técnico. “As regras da RD, mesmo a absti-
nência (enquanto possibilidade) são imanentes à própria experiênca e não
se exercem de forma coercitiva enquanto regras transcendentais”(Passos;
Souza, 2011, p.161).

5. Considerações finais

A política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuá-


rios de Álcool e Outras Drogas é um grande avanço em sua potencialidade
188

de produzir novas perspectivas de vida para os usuários de drogas, visto que


assumiu o enfrentamento dos diferentes problemas relacionados ao consu-
mo de drogas, sem estar centrada no controle e na repressão. Suas diretrizes
estão em consonância com os princípios do SUS, da Reforma Psiquiátrica
e da Redução de Danos. Reconheceu o uso abusivo de drogas como um
problema de saúde pública, buscando romper com um processo histórico
em que a origem das práticas assistenciais nessa área não obedeceu à lógica
da saúde pública. Estabeleceu uma rede ampliada de cuidado integral aos
usuários, através da instituição dos CAPSad, além de outros dispositivos
não especializados, como as Unidade Básicas de Saúde, Estratégia de Saúde
da Família, focando na atenção a usuários de drogas em ambiente comu-
nitário, através da articulação com as demais redes de suporte social e da
organização, no próprio território, das ações que possam contemplar as di-
versas necessidades dessa clientela.

Houve, sem dúvida, a ampliação das modalidades de tratamento


com a adoção da Redução de Danos como estratégia, uma vez que a atual
política reforça que as práticas de saúde, em qualquer nível de ocorrência,
devem sempre considerar as diversas possibilidades e escolhas inerentes à
vida. O uso de novas abordagens como a IB para atuação junto a usuários
de drogas tornou-se possível graças ao rompimento com o paradigma da
abstinência como alternativa única de cuidado. Seu uso vem favorecendo a
produção de vínculo, uma vez que respeita a autonomia e singularidade de
cada usuário através da construção de um projeto terapêutico possível. Há
também uma mudança na postura dos profissionais diante dessa clientela,
uma vez que devem ter respeito frente às escolhas e possibilidades de vida
dos usuários, evitando julgamentos.

Porém, como dito anteriormente, é necessário sempre atentar para


o modo como as práticas de cuidado estejam sendo construídas, a fim de
que não se percam em seu potencial de produção de abertura, de liberdade
e de outras possibilidades de existência.

Há que se ter sempre cuidado com a criação de técnicas e estraté-


gias que visem à objetivação do homem, tornando-o passível de análises e
manipulações a fim de “tratá-lo”.

Partindo de uma visão naturalista do homem, tais abordagens aca-


bam por desenvolver uma relação de controle, dominação e previsão do
189

homem, em que ele perde o valor em si mesmo, sua verdade não reside mais
naquilo que ele próprio manifesta e seu desvelamento passa a se dar sempre
em função das teorias que a ele se almeja aplicar.

É preciso perceber as consequências que esse modo de relação


pode acarretar. Provavelmente a mais perigosa delas é a perda da com-
preensão do homem a partir de si, tomando-o por um ser simplesmente
dado e deixando assim escapar, aquilo que é mais essencial na compreensão
dos fenômenos humanos – a dimensão da própria existência.

A clínica, ao se decidir sobre quais modos de ser são possíveis,


através da convenção e limitação do que é “normal”, reduz o homem apenas
aos aspectos que o pensamento calculante desvela, uma vez que tais aspec-
tos passam a ser os parâmetros da normalidade. Dessa forma, se mostra
excludente de todo movimento de criatividade e inovação. E excludente de
todos aqueles que não se submetem ou não se ajustam a esses padrões.

O que se espera de uma relação de ajuda a partir do novo paradig-


ma da RD é que o usuário possa construir uma relação de maior liberdade
frente aos sentidos que parecem já estar previamente determinados em sua
existência; que possa refletir sobre eles e colocá-los em cheque. Essa re-
flexão, no entanto, só é possível através do pensamento que medita, pois
ele permite a permanência junto às coisas e a sua compreensão a partir de
si mesmas, sem que necessariamente já estejam, de antemão, enquadradas
num referencial técnico-calculante.

Dessa forma, ao profissional de saúde que pretende ajudar, é im-


portante que assuma o modo de relação que Heidegger chama de “ante-
posição libertadora”, na qual não há uma substituição do outro, tal como
se fosse uma “coisa” da qual se deve ocupar; há sim, um antepor-se, que
busca devolvê-lo à sua condição de existente, em que se permite que haja
o desvelamento de novas possibilidades para sua existência, liberando “o
outro em sua liberdade para si mesmo” (Heidegger, 1998, v I, p. 169). Nesse
modo de relação, o usuário não é mais definido a priori pelo seu uso de
drogas ou quaisquer outras categorizações com as quais se costuma “diag-
nosticar”. Da mesma forma, não se deve objetivar a sua simples adaptação/
adequação à sociedade, visto que a concepção do singular, das suas possi-
bilidades existenciais devem ser tomadas como princípios dessa relação de
ajuda, libertando o homem para o devir e favorecendo a criação de novas
possibilidades frente ao seu uso de droga e à sua vida.
190

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CAPÍTULO 7

Drogas nas escolas... O que fazer?


Gilberta Acselrad28

Nas escolas públicas e particulares do Rio de Janeiro, problemas


relacionados com drogas são comuns. Os professores experimentam for-
mas de convivência, nem sempre registradas ou difundidas devidamente.
Na maior parte do tempo, tentam agir com bom senso, seguem princípios
pedagógicos adquiridos através de sua prática, em outros momentos se
beneficiam do apoio de especialistas na área. Muitas vezes, absolutamente
sozinhos, como pequenos quixotes, se desdobram na busca de soluções,
tentam superar os problemas criados pela política de guerra às drogas, ob-
tendo pequenas, mas significativas vitórias. Neste artigo pretendo resgatar
algumas dessas experiências e discutir as possibilidades de uma educação
sobre drogas, em vez da tradicional prevenção que tem como objetivo impe-
dir de forma radical quaisquer experiências. Os casos aqui relatados foram
recolhidos por meio de depoimentos dos próprios professores e/ou acom-

28
Mestra em Educação, IESAE/FGV, Coordenadora de Cursos de Extensão “Políticas Públi-
cas sobre Drogas e alternativas democráticas”/UERJ.
194

panhados e orientados por mim, quando trabalhava numa instituição pú-


blica especializada na área, atendendo à demanda das próprias escolas, no
período entre 2004 e 2014. Serão apresentados e discutidos numa segunda
parte do artigo.

Caso 1 – Como interpretar a curiosidade sobre drogas?

Bruno estudava numa escola pública, na zona norte do Rio de Ja-


neiro. Com 16 anos ainda estava no primeiro grau. Os professores andavam
preocupados porque ele insistia em falar com seus colegas sobre experiên-
cias e problemas que teve com as drogas. Bruno tinha planos para o futu-
ro, “no próximo ano, vou para Brasília morar com um tio, devo trabalhar
com ele durante o dia e vou estudar à noite”. A insistência do aluno em
falar sobre assunto tão difícil de abordar fez com que um professor buscasse
orientação junto a um profissional de um departamento da universidade,
com atuação e pesquisa na área específica. Após uma primeira entrevista e
algumas conversas com a diretora da escola, decidiu-se pela realização de
alguns encontros com os alunos e com os professores, em separado. Assim
seria possível levantar as dúvidas dos estudantes e ajudar os professores que
queriam corresponder a essa demanda com competência.

Na primeira reunião programada com os professores de diferentes


disciplinas, cada um falou de suas dificuldades em lidar com o tema, por
desconhecimento teórico e consequente insegurança em tocar no assunto
“durante nossa formação, nunca se discutiu isso”. Alguns relataram casos
de dependência de drogas na família, na vizinhança, ficaram traumatiza-
dos, não queriam mais falar sobre o assunto. Não sabiam reconhecer as
substâncias psicoativas de uso proibido, sua aparência, cor e odor, queriam
poder reconhecer cada uma delas. Queriam informações sobre sua ação
no sistema nervoso central, quais eram as mais usadas, se após o primeiro
uso se passava logo à dependência. Acreditavam que algumas drogas são
mais fortes que outras e achavam que o melhor caminho seria evitar todas.
Perguntaram como poderiam reconhecer alguém que faz uso, saber quais
são as características do “usuário” – introvertido, agressivo, magro, olhos
vermelhos? Como o professor deveria agir, de maneira geral e com o aluno
Bruno? “Ele fala tanto nisso, vai que os meninos resolvem usar”. Tinham
medo que os pais reclamassem de os professores aceitarem essa discussão
195

e, principalmente, diziam “se alguém insiste em falar no assunto, é porque


faz uso, ou não”?

A dificuldade em lidar com as drogas é constante. Desde que al-


gumas foram tornadas ilícitas, criou-se um tabu. Difícil falar sobre o que
é proibido. Droga não é um tema que faça parte da formação profissional.
Embora a legislação vigente na época, Lei 6368/1976, previsse, durante os
cursos de formação dos professores ensinamentos não eram dados. Nem
mesmo os profissionais de saúde sabem muito bem o que fazer e é muito
comum nem constar da avaliação médica alguma pergunta sobre os hábitos
de beber, fumar, que dirá se o sujeito faz uso de drogas proibidas por lei.
Daí que a maioria dos professores acaba optando por “fingir que não vê”,
se omite, mesmo sabendo que o problema continua. Medo e insegurança
diante do “não dito”. Sugerimos abrir a discussão de forma ampla, entre eles
e com os alunos, ter um tempo e espaço para permanentemente acolher as
dúvidas de todos. Os pais seriam avisados para não se surpreenderem com
as perguntas que chegassem até eles.

Esclarecemos os professores de que as drogas têm efeitos diferen-


tes: aceleram, deprimem ou perturbam o funcionamento do sistema nervo-
so central. Quanto à sua aparência, na ocasião, um policial autorizado por
uma delegacia próxima trouxe, numa caixa com tampo de vidro, algumas
amostras das diferentes drogas ilícitas. A caixa foi aberta para que vissem
e sentissem o odor. Em relação à diferença entre a primeira experiência de
uso e a dependência, esclarecemos que essa passagem não é automática, não
pode ser generalizada, cada um reage de uma forma. A dependência resulta
do encontro de um sujeito com um produto, num determinado momento e
meio sociocultural (Olievenstein, 1984). Assim, muitos experimentam, mas
nem todos se tornarão dependentes, não existindo um destino único dian-
te das drogas. É preciso não confundir aluno sonhador, introvertido, com
usuário de drogas. O “decálogo” difundido na época e que listava supostas
características do usuário jovem – olhos vermelhos, calado, poucos amigos,
sempre trancado no quarto, de pouca conversa com os pais e professores –
permitindo sua identificação de nada ajudava: afinal, olhos vermelhos pode
ser sinal de conjuntivite, e as outras características apontadas são muito
comuns durante a adolescência.

Explicamos que, não só eles, mas a maioria das pessoas tem difi-
culdades em discutir o tema das drogas, ainda mais falar sobre as que foram
196

tornadas ilícitas. Falar sobre o que é proibido e ainda mais cercado por mi-
tos, mistérios, contradições, violência não é fácil. No entanto, essa discussão
é necessária, urgente, porque qualquer uso implica em riscos que são reais.
Os professores ficaram surpresos ao saber que, no Brasil, experimenta-se
muito, ainda que os índices de dependência sejam baixos. Ficaram também
surpresos ao saber que, de acordo com estudos epidemiológicos brasileiros,
as bebidas alcoólicas e o tabaco têm índices de uso e dependência maiores
do que os verificados em relação ao uso e dependência da maconha e da
cocaína. Pensavam ser o contrário, que as drogas de uso ilícito seriam mais
usadas no Brasil, tendo em vista o alarde da mídia.

Satisfazer a curiosidade, abrir o debate sem rodeios foi o nosso


propósito no intuito de uma construção coletiva de conhecimento, no qual
o professor pudesse aprender junto com os alunos, compartilhando dúvidas
sem, por isso, perder sua autoridade. Colocamos em discussão o papel da
pedagogia, o que viria a ser a função do professor junto a seus alunos even-
tualmente envolvidos com drogas? Afastá-los da escola via transferência,
expulsão? Ou entender que, mesmo quando se trata de drogas proibidas
por lei, mesmo quando essa discussão e experiência acontecem dentro da
escola, o professor pode tentar encaminhar, resolver o problema de acordo
com seus princípios pedagógicos? Tentando encontrar respostas para essas
perguntas, os encontros com os professores foram acontecendo com certa
regularidade durante uns três meses.

As conversas com os alunos aconteceram sempre em salas de aula


repletas. Da janela víamos alunos pendurados nos galhos da árvore ao lado,
para poder, mesmo do lado de fora, participar, numa sala em que não cabia
mais gente. Todo mundo queria falar ao mesmo tempo. “Desde quando
se usa drogas?”, “Sempre foi assim como hoje?”, “Por que as pessoas usam
drogas se dá problema?”, “O uso de drogas sempre foi um problema, ou
não?”, “Os jovens consomem tanto quando os adultos, ou mais?”, “Cerveja
também é droga?”, “Religião ajuda a se livrar das drogas?”, “Se tem caso de
alcoolismo na família, passa de pai para filho?”. Explicamos que a história
do consumo de drogas se confunde com a história da humanidade, que não
há registro de nenhum momento da história sem uso delas e que a humani-
dade sempre procurou, procura e continuará a procurar nas drogas o prazer
e o conforto para suas angústias, uma forma de se superar, uma expansão
de sua consciência. Explicamos que é específico de quem tem consciência,
querer experimentar com a consciência (Savater, 2000). Mas enquanto no
197

passado o uso acontecia de forma protegida por controles coletivos social-


mente construídos – os filhos vendo os pais usarem, entendendo que essa
experiência era própria dos adultos, observando os costumes de uso, os cui-
dados que precisavam ser tomados no sentido de limitar as consequências
problemáticas –, hoje, no contexto da sociedade de consumo, a droga se
tornou uma mercadoria como outra qualquer e, nesse cenário, vale mais
quem mais consome e sem muito critério.

Hoje, a produção e o comércio proibidos de certas drogas tornou


seu uso ainda mais desprotegido, mais cercado de riscos e de violência. Cer-
veja, tabaco e medicamentos para emagrecer, para fortalecer os músculos,
para dormir também são drogas, ainda que a tendência seja considerar como
drogas apenas aquelas que são proibidas. Tentamos pensar com eles o quanto
o uso de drogas não é algo tão inusitado quanto parece: muitos bebês tomam
gotinhas à base de codeína para acalmar as cólicas, grande parte dos jovens
experimenta bebidas e tabaco, alguns já usaram remédios estimulantes e tam-
bém algumas drogas proibidas, e os adultos e as pessoas idosas, em algum
momento, também usam ou já usaram. Ou seja, todos nós, em algum mo-
mento de nossas vidas, fizemos ou ainda fazemos uso de alguma substância
psicoativa, pelo prazer que elas proporcionam, para acalmar dor e sofrimen-
to, para enfrentar a vida com mais disposição. Mas falar no assunto é suspeito,
o jovem experimenta escondido, as famílias fingem não ver, escondem e têm
vergonha quando o parente se torna dependente.

Também os jovens acreditavam que a droga em si era responsável


pela dependência, quem usou uma vez fica dependente obrigatoriamente.
Foi necessário explicar também a eles que a dependência resulta do encon-
tro de um sujeito com um produto em um momento e num meio socio-
cultural. A droga não é um vírus que ataca um sujeito, a dependência não
pode ser confundida com uma doença infectocontagiosa, não existe vacina
para evitar o uso, mas é a consciência dos limites que pode nos proteger. A
herança genética é discutível, o que acontece é que se as condições de vida e
dificuldades permanecem as mesmas, a possibilidade da dependência pode
se repetir nas famílias.

Num desses encontros, a orientadora pedagógica da escola estava


presente no fundo da sala e perguntou: “por que só agora, na presença de
um especialista convidado, vocês fazem essas perguntas? Por que não me
procuraram para conversar?” A resposta dos jovens veio de imediato: “a
senhora dá uma passadinha nas salas, no primeiro dia de aula, se apresenta
e fica o resto do ano dentro da sua sala, fechada, afastada da gente, quem vai
198

ter coragem de bater na porta?”. Disseram também que seus problemas rela-
cionados com sexo, drogas, conflitos em casa eram discutidos com a biblio-
tecária da escola: “não temos medo de falar com ela, ela nos compreende”.
Sempre presente nas reuniões, Bruno explicou que insistia em falar sobre
drogas com os colegas porque

passei pela experiência, fiquei curioso, comecei com


bebidas alcoólicas e depois passei pela maconha e
cocaína, em muitos momentos foi bom demais, não
vou dizer o contrário, mas em outros, perdi o contro-
le de mim mesmo, fiquei mal, tive medo. Perdi um
ano na escola, meus pais ficaram aflitos, daí voltei
a me concentrar nos estudos, ainda uso de vez em
quando, mas me cuido e acho importante falar sobre
isso com vocês, afinal droga não é brincadeira.

O debate sobre drogas foi instaurado e aceito na escola, não foi


mais esquecido, tornou-se um compromisso assumido por todos. Entretan-
to, o que fazer com Bruno? Alguns professores ainda hesitavam: “não seria
melhor transferi-lo logo para outra escola?”. Uma parte concordava com
essa ideia: “assim resolvemos de uma vez por todas o problema”. Mas, nas
reuniões seguintes, os professores se dividiram, uns achando que não, afinal
“o menino não é um problema, já explicou suas razões para falar tanto sobre
isso, ele mesmo anunciara que deixaria a escola no ano seguinte, se mudaria
pra Brasília, custava esperar um pouco? Não seria prejudicial ele ir embora
com a sensação de ter sido excluído, quando de fato ele é quem provocara
o debate, nos ajudando inclusive a iniciar toda uma discussão mais do que
necessária?”. Como as dúvidas persistiam, a diretora propôs uma votação:
quem achava que Bruno deveria continuar na escola? Quem achava que ele
deveria ser transferido? Votação feita, quase todos os votos foram favoráveis
à permanência de Bruno na escola até o fim do ano, deixando que sua saída
fosse uma decisão dele, natural, “ele diz que vai estudar num curso noturno,
então vai encontrar e estudar com pessoas de sua idade, com o mesmo nível
de preocupação que ele tem, sem dúvida vai se integrar”. Entretanto, houve
um voto contra a permanência de Bruno, um voto a favor de sua transferên-
cia. A diretora propôs-se a receber em particular, na sua sala, quem votara
199

contra, para que explicasse suas razões, afinal mesmo esse único voto contra
deveria ser considerado, para que a permanência de Bruno transcorresse
em paz. Um professor se apresentou e explicou o que considerava suas ra-
zões: “desde o início dessa história, me sinto mal, não posso conviver mais
com o Bruno, não suporto quando ele fala sobre sensações boas que teve
com as drogas, afinal por que precisava delas? O que lhe faltava? Já tem
tudo, juventude, saúde, não é cego desde nascença como eu sou, por que
ainda quer mais da vida? Considero uma afronta a permanência dele na
escola. Ou ele é transferido ou peço eu a minha transferência!”. Diante desse
argumento, a diretora acatou o pedido e providenciou a transferência do
professor para uma unidade de sua escolha.

Quanto a Bruno, permaneceu na escola até o fim do ano, quando


então se mudou para Brasília. Saiu da escola sem se sentir excluído, pelo
contrário, seguiu sua vida com mais segurança depois de ter visto e sentido
suas preocupações acolhidas. Na escola – professores, funcionários e alunos
– ficaram mais integrados.

Caso 2 – O que fazer no caso de venda de drogas dentro da escola?

A diretora de uma escola pública na zona sul do Rio de Janeiro foi


alertada por alguns funcionários sobre a circulação de maconha e cocaína
no recreio, nos corredores. Claramente alguns jovens tinham sido vistos
vendendo drogas no interior da escola. Alunos ou gente de fora, essa situa-
ção não podia continuar.

Preocupada com a situação, sem ajuda de nenhum especialista,


sozinha, a Diretora tomou a decisão de ir pessoalmente à reunião da asso-
ciação de moradores da favela/comunidade onde morava a maioria de seus
alunos, comunidade pequena e sem notícia de grandes conflitos violentos
relacionados com drogas, ainda que com presença do comércio ilícito. Co-
nhecia alguns moradores – pais e mães dos estudantes –, não foi difícil che-
gar até lá no dia da reunião em que ela encontrou alguns pais, moradores
na região, que ficaram surpresos com a sua presença. Num determinado
momento, pediu para ser ouvida: era diretora eleita pela maioria dos profes-
sores e funcionários, muito querida pelos alunos, mas estava enfrentando
um problema na escola e queria encontrar uma solução, por isso viera con-
versar com eles. Não podia aceitar o comércio de drogas dentro da escola. A
200

cantina da escola não vendia bebidas alcoólicas. Remédios para as crianças


só entravam com prescrição do médico e durante o prazo por ele estabele-
cido, depois eram descartados. Não podia tolerar a circulação e comércio
de drogas, de uso legal ou não, no espaço escolar. Sua intenção era proteger
os alunos e o espaço coletivo escolar. Dispunha-se a encontrar uma alter-
nativa pedagógica. Entendia a escola como um espaço de transmissão de
conhecimento, construção da sociabilidade, de experiências coletivas, de
preparação dos jovens para a vida adulta. Esse era o seu compromisso e
o compromisso dos demais professores com seus alunos. Era preciso en-
contrar um caminho que respeitasse os direitos de todos. Por princípio, se
recusava a tomar medidas drásticas, não se dispunha, de forma alguma, a
chamar a polícia para dentro da escola para vigiar os alunos. Queria en-
contrar, com o apoio de seus professores, funcionários e os pais e mães dos
alunos, alternativas no sentido de que esse comércio fosse interrompido de
imediato. Com esse propósito, viera à reunião.

Era preciso considerar, além disso, o que definia a legislação bra-


sileira sobre drogas. A Lei 6.368/1976, vigente na época, previa a responsa-
bilidade penal e administrativa do diretor e professores que acobertassem
situações relacionadas a drogas ilícitas dentro da escola29, ou seja, a própria
diretora poderia ser punida, afastada. A diretora sentia-se protegida na sua
função pedagógica, sentia-se livre para ajudar os alunos a buscar soluções
que protegessem o grupo. Quando ela acabou de falar, algumas pessoas
presentes, que não se identificaram, disseram: “a professora falou certo e
não quer nos prejudicar, só quer fazer o trabalho dela, que é o de ajudar e
proteger nossos filhos. A escola não serve mesmo para esse fim, ela explicou
bem, e o assunto está resolvido, essa venda dentro da escola acaba aqui”.

Não houve mais, a partir daquele dia, droga circulando na escola.


O espaço escolar era um campo para estudar e exercitar direitos de cada
um, respeitados os direitos de todos. A iniciativa corajosa da diretora teve
sucesso. Não acabaram os problemas relacionados com drogas, houve casos
de alunos envolvidos, alguns sumiam por uns tempos, mas voltavam a estu-
dar, outros abandonaram o estudo por outras razões, mas, sem dúvida, uma
experiência de convivência solidária aconteceu ali.

29
A Lei 11.343/2006 prevê como crime e determina penas para quem tem autoridade sobre
uma instituição e consente com o comércio ilícito de drogas em suas dependências.
201

Caso 3 – Um grito e uma ameaça durante o recreio: o que fazer?

No pátio de uma escola pública localizada dentro de uma grande


comunidade/favela do Rio de Janeiro, a diretora e alguns professores obser-
vavam os alunos, que conversavam e brincavam durante o recreio. A esco-
la, situada entre duas áreas ocupadas por grupos rivais que comercializam
drogas proibidas, volta e meia ficava em meio a conflitos extremamente
violentos. Seus muros tinham pichações de diferentes comandos, marcas
de balas nas paredes, resultado do tiroteio “entre os traficantes e a polícia”,
confrontos que se sucediam e que não raras vezes obrigaram a escola a in-
terromper suas atividades. Houve caso da escola ter sido fechada por um ou
outro grupo rival. A porta da escola não era mais a mesma do passado, era
agora um portão de ferro, fechado com chave, com uma pequena abertura
que mal dava para ver o rosto de quem chegava. Medida de proteção, me-
dida de contenção. De alguma forma, a diretora admitia: “vivemos em uma
situação de guerra, não formalmente declarada, não dá para negar isso”.
Nesse dia, de repente, ela viu uma arma que apareceu na pequena abertura
do portão e ouviu uma voz que lhe dava uma ordem, um grito:

– “ Vem cá, dá a chave do teu carro, tô com gente ferida, anda


rápido!”

Mensagem telegráfica, dada com violência, não permitiu hesita-


ção. A diretora não sabia o que fazer, temia pelos seus alunos, pelos outros
professores. De qual facção seria esse homem que lhe dava a ordem? Seja de
qual lado for, se ela ajudasse esse homem, amanhã ela e sua escola estariam
ameaçadas por terem cedido à ordem de um lado, desse lado que dava a
ordem naquele momento? Obviamente ela estaria tomando partido desse
lado, mas o que diria o outro lado. Não tinha alternativa. Precisava respon-
der ao apelo, afinal havia alguém ali ferido e que precisava de socorro, um
ser humano como ela, como seus professores e alunos. A diretora tinha
um carro, precisava pegar as chaves que estavam na sua sala, mas não teria
tempo. Olhou em volta e viu outro professor no pátio, ele tinha nas mãos
um chaveiro, as chaves do carro dele, talvez. No limite, a diretora podia
não se expor pessoalmente, manter seu carro a salvo, repassar a ordem que
recebeu para o outro professor, mas se sentia mal com a ideia de repassar o
problema adiante. Casualmente percebeu que tinha algum dinheiro no bol-
so da calça e arriscou: “Tome esse dinheiro, dá pra pagar o táxi e você tira
seu amigo daqui!” O homem aceitou e se afastou. Tudo se passou rápido,
202

apenas ela escutou a ordem e viu a cena, e esperava, assim, ter protegido a
escola. Exerceu sua função com dignidade, não transferiu a ameaça sofri-
da para o outro professor, os alunos continuavam brincando sem nada ter
percebido.Toda essa reflexão foi elaborada a posteriori, é claro, afinal a ação
não durou mais que alguns segundos. A diretora acreditou ter agido bem,
ajudou no socorro a uma pessoa ferida e em perigo e protegeu seus alunos
e sua escola de outros perigos.

Caso 4 – O que uma lâmpada quebrada tem a ver drogas?

Numa escola pública de segundo grau, turno da noite, localizada


num subúrbio carioca, uma professora não conseguia dar aula porque todas
as noites, quando chegava para trabalhar, a lâmpada da sala estava quebra-
da. Seus alunos tinham entre 15 e 17 anos. A escola já trocara a lâmpada
várias vezes, mas a situação se repetia. Na tentativa de resolver o problema,
a professora propôs à turma que os próprios alunos colaborassem, afinal
uma lâmpada é barato, tinha uma “venda” na esquina, comprava-se uma
lâmpada nova e tudo se ajeitava, quem sabe, já que todos se responsabiliza-
riam pela compra.

Entretanto, na noite seguinte, de novo a lâmpada estava quebrada.


Corria à boca pequena que era alguém da turma que fazia isso, mas não se
sabia quem. Ninguém viu se alguém entrara na sala antes da turma. Quem
seria o autor da façanha? A professora optou por outra estratégia e propôs
conversar com cada aluno, em particular, assim abrindo espaço e garantin-
do o sigilo para que o autor se identificasse. Professora e aluno conversariam
e, juntos, resolveriam o que estava prejudicando a todos. Todos aceitaram
a proposta. Na sala, a sós com a professora, a maioria disse simplesmente:
“não sei quem quebrou a lâmpada”, “não posso dizer quem foi”. Mas um
dos alunos, Pedro, afirmou taxativamente: “Foi o Antônio”. Marcelo, outro
aluno, disse à professora “todo mundo comenta que foi o Fred, mas eu não
tenho certeza porque não vi na hora que aconteceu”.

A professora achou que sua proposta não dera um bom resultado,


esperava que o autor se apresentasse, mas isso não aconteceu, pelo contrá-
rio, o que aconteceu foi um delatando o outro. Sem saber mais o que fazer,
resolveu conversar com seus colegas sobre o ocorrido, na sala dos professo-
res, sem saber como encaminhar o caso com base nas denúncias de Pedro e
Marcelo. Mas as paredes têm ouvidos e, como se isso não bastasse, correram
203

boatos entre os próprios alunos sobre quem acusara quem. Nem deu tempo
de chamar Antônio e Fred para confirmar se a acusação estava certa. Entrou
em cena uma terceira pessoa: Ricardo, que, de fato, vinha quebrando as
lâmpadas e, com medo de que chegassem até ele, decidiu resolver o proble-
ma: na saída da escola, espancou os dois delatores – Pedro e Marcelo.

Em meio ao conflito, a escola resolveu chamar os pais de Ricardo,


Pedro e Marcelo para uma conversa e, como sempre acontece, vieram as
mães dos três alunos. Quando se encontraram a diretora, a professora da
turma, as mães dos meninos e os três garotos, os ânimos se exaltaram e,
em meio à exposição do conflito violento, a mãe de Ricardo gritou com a
diretora e a professora: “sei muito bem que meu filho andou aprontando,
mas vou logo avisando que não aceito nenhuma punição para ele, o pai dele
é o chefe do tráfico e, se esculacharem meu filho, vocês vão se arrepender!”

Impasse criado. Sentimento de fragilidade pedagógica total diante


da delação que não pôde ser premiada, posto que evidencia a total falência
institucional. A lei que tornou algumas drogas proibidas teve como subpro-
duto perverso o comércio ilícito, criou um poder paralelo. Tal qual aconte-
ceu nos EUA, quando as bebidas alcoólicas tiveram sua produção, comércio
e uso proibidos, no nosso país os “donos do tráfico” de drogas, exercem seu
poder de forma violenta. Se todas as drogas tivessem legalizados e regu-
lamentados produção, comércio e uso, não haveria espaço para violência.
Senão, vejamos, se o pai de Ricardo fosse o dono do botequim ao lado da
escola onde cachaça e cerveja são vendidos à vontade, que poder teria ele
para ameaçar os professores? Provavelmente nenhum, a reação da mãe de
Ricardo seria diferente. A diretora e a professora encerraram a reunião, to-
dos se retiraram. Ricardo não foi punido. Nenhuma lâmpada mais apareceu
quebrada na sala de aula, mas as professoras tiveram consciência de que
isso não significava nada, fora mero acaso. Um sentimento de abandono e
impotência foi o que restou.

Caso 5 – Redação com “tema livre”: como as drogas entram nessa his-
tória?

O diretor de uma escola particular de primeiro e segundo graus


do Rio de Janeiro, classe A, foi surpreendido por um grupo de alunos que
entraram na sua sala querendo entrevistá-lo e, já com a filmadora em ação,
diziam que a entrevista e a filmagem fariam parte do material necessário
204

que pesquisavam para fazer uma redação que a professora de português


pedira que os alunos fizessem sobre um “tema livre”. E qual era o tema de
escolha? Drogas. O grupo dizia que resolvera levantar dados para que a re-
dação ficasse bem real. Já haviam entrevistado e filmado amigos da mesma
idade que usavam drogas, haviam registrado depoimentos de amigos de
suas famílias e vizinhos dos condomínios onde moravam também usuários
e, até mesmo, um fornecedor de drogas num dos condomínios. “Só falta
entrevistar o senhor, diretor, para completar nossa pesquisa, está tudo aqui
neste filme” e mostraram a filmadora. O diretor entrou em pânico, tirou a
filmadora da mão dos meninos, retirou o filme, guardou-o em sua gaveta
(para mais tarde destruí-lo), disse a eles que estavam proibidos de seguir
com essa ideia e, irritado, determinou, “arrumem outro tema”.

Mas essa história teve um segundo capítulo: preocupado com a


questão, o diretor contatou profissionais que trabalhavam numa institui-
ção pública de pesquisa e tratamento relacionado às drogas e pediu que
apresentassem por escrito um projeto de prevenção a ser desenvolvido na
escola. Nessa primeira entrevista, discutiram o interesse em formar grupos
de reflexão sobre o tema com os professores, pais e alunos, em separado,
durante um semestre, para levantar dúvidas, aprofundar questões no in-
tuito de definir algumas normas que seriam escritas, aprovadas e seguidas
por todos num código coletivo de conduta. A direção achou a proposta boa
e pediu que os profissionais a apresentassem por escrito. Acordo firmado,
o projeto foi apresentado. Passados dois meses, os profissionais, sem ne-
nhum retorno, resolveram retomar contato com o diretor, que informou:
“vamos pensar ainda um tempo, talvez seja melhor não esmiuçar muito
essa questão de drogas, pode dar mais problema, os pais podem imaginar
coisas. Com esse projeto funcionando na escola podem pensar que temos
gente aqui dentro que faz uso. Se duvidar, podem não querer mais renovar
a matrícula do filho no próximo ano, melhor aguardar um tempo”. Ao mes-
mo tempo, soubemos que naquela semana o diretor chamou a professora
de português e disse a ela que, a partir daquele dia, ficava proibido o “tema
livre” para redações, “tente dar temas específicos”. A questão não seria dis-
cutida mais nem com os professores, nem com os pais, muito menos com
os alunos. O medo parece que venceu a pedagogia.
205

Caso 6 – Debate sobre drogas, até onde vai o interesse dos alunos?

Uma escola particular da zona sul do Rio de Janeiro, primeiro e


segundo graus, classe A, realiza todos os anos um fórum de discussão sobre
temas de interesse dos alunos. Marca-se uma data, os alunos definem os
temas que querem discutir. Drogas, sexualidade, escolha da profissão são
alguns temas escolhidos. A escola se encarrega de chamar profissionais que
atuam na área. Na semana do fórum, no dia marcado, me apresentei para a
discussão sobre drogas e fui recebida com muita amabilidade por um pro-
fessor que me conduziu à sala onde a turma já me esperava. A sala estava
lotada e o clima era de muita animação.

As escolas, de maneira geral, nesses debates, não deixam o especia-


lista convidado a sós com os alunos. Portanto, dois professores permanece-
ram na sala, provavelmente com interesse no tema, sobre o qual teriam de
dar continuidade à discussão, depois do fórum, quando outras perguntas
poderiam ser feitas a eles próprios e com a responsabilidade de prestar con-
tas aos pais, afinal são responsáveis pelas crianças. Essa presença, por um
lado necessária, ao mesmo tempo poderia limitar um pouco a expressão da
garotada. Mas a curiosidade parecia ser tamanha que os meninos e meninas
nem notavam a presença dos professores e falavam todos ao mesmo tempo.

Na tentativa de criar uma alternativa às tradicionais palestras, su-


geri que escrevessem, em pequenos pedaços de papel, as perguntas que lhe
viessem à cabeça naquele momento. Como se já esperassem justamente por
essa oportunidade de colocar suas questões e opiniões, a turma escreveu
rapidamente.

Muitas perguntas tinham a ver com o produto em si, na maior


parte do tempo sobre as substâncias psicoativas ilícitas e sua ação no siste-
ma nervoso central – “Quais são os componentes do LSD?”, “Como é feita
a maconha?”, “Qual é a droga mais pura ou refinada que você conhece?”,
“Qual é a droga mais pesada, a pior que existe?”, “Quais são os efeitos de
uma droga?”, “Quais são os efeitos do crack?”, “O que faz mais mal: chei-
rar cola de sapateiro ou crack?”, “Quais são os efeitos psicológicos e físicos
gerados por uma droga, a mais forte, a mais fraca?”, “Qual é a droga mais
viciante que existe?”, “Maconha vicia menos que o cigarro?”, Apenas duas
perguntas sobre drogas de uso legal foram colocadas: “Quais são os efeitos
da metadona?”, (medicamento indicado no tratamento da dependência da
206

heroína), “Quais são os efeitos dos esteroides?” (remédios usados para ficar
mais forte).

Alguns tinham dúvidas sobre uso e dependência quando pergun-


tavam: “É verdade que nem todas as drogas viciam?”, “Se você prova uma
vez, consegue parar?”.

Percebiam que droga não era experiência exclusiva dos jovens,


mas também podiam interessar aos adultos: “Desde quando se usa drogas e
por quê?” e queriam conhecer a minha experiência: “Você já experimentou
alguma droga, alguma droga ilícita? Você mesma fazia a sua própria ou
comprava?”, “Chegou a conhecer alguém realmente dependente?”, “Sabia
que já usei crack? Você já usou?”, “Sua família sabia? Aprovava? Conhece
alguém que já usou?”, “Você conhece aquela música fuma, fuma, fuma folha
de bananeira, fuma na boa, só de brincadeira? Se você conhece, o que acha
dessa música? Folha de bananeira é uma droga mesmo? Ou estão falando,
indiretamente, sobre a maconha?”.

A política de drogas no Brasil e nos outros países parecia interessá-


los e demonstravam estar atualizados: “Se a droga não é legalizada, então por
que as pessoas vendem e compram?”, “Se alguém estiver cheirando no Brasil,
for perseguido e cruzar a fronteira com o Uruguai, o que acontecerá?”, “Você
acha que deviam legalizar a maconha?”, “Você concorda com a legalização
dos canabinoides para uso medicinal?”, Querem também saber detalhes do
comércio de drogas: “Qual o preço de cada droga? Dê exemplos”.

As perguntas sobre o produto em si – sua forma e seus efeitos – e


basicamente sobre os de uso proibido por lei vem sempre em primeiro lu-
gar nesses encontros. Querem saber sobre a aparência que têm as drogas,
como agem no sistema nervoso central, desvendar o que parece um misté-
rio. Porque as pessoas parecem se transformar, se tornam outras, ficam agi-
tadas, perturbadas ou mais lentas. A grande preocupação com a substância
psicoativa se explica pelo peso determinante que ela tem nos programas
de prevenção. Prevenir significa evitar que alguma coisa aconteça e esses
programas se preocupam em evitar o contato com as substâncias psicoati-
vas, principalmente com aquelas que foram tornadas ilícitas. Fala-se pouco,
se desconhece a importância do uso e dependência do álcool e tabaco no
Brasil, produtos que, de maneira geral, nem são considerados drogas. Daí
se dizer que o grande vilão da história é a droga, e a droga proibida, aquela
207

que teria o poder de provocar a dependência. Esses programas conside-


ram que o sujeito não terá forças para reagir ao produto, que, ainda mais, é
criminalizado. Esclarecemos que são três os aspectos que, juntos, criam as
condições para a dependência de drogas – o produto psicoativo, a persona-
lidade do sujeito e o momento e o meio sociocultural em que vive o sujeito,
o que é diferente do que dizem os programas de prevenção, que têm como
objetivo um mundo sem drogas, que de fato nunca existiu na história da
humanidade.

Para chegar a esse mundo idealizado nem mesmo a primeira ex-


periência pode acontecer, são programas de tolerância zero. Contradito-
riamente, admitem a Redução de Danos, que é uma proposta que parte
de outro princípio: muitas pessoas não conseguem, não querem ou não
podem parar de usar drogas lícitas ou ilícitas, mas nem por isso devem
ser abandonadas à sua própria sorte. Pelo contrário, devem ser contatadas,
acompanhadas e ajudadas no sentido da busca de um equilíbrio, algumas
talvez se tornando abstinentes, outras mantendo um consumo moderado e
controlado.

“Desde quando se usa e por quê ?”. A essa pergunta inicial respon-
demos que não há registro de nenhum momento da história da humanida-
de sem que haja igualmente algum relato de consumo de drogas. É preciso
lembrar que é especifico de quem tem consciência querer experimentar
com a consciência (Savater, 2000). Quem não gostaria de expandir a cons-
ciência para outros espaços, tempos? Os alunos parecem gostar da ideia,
mas os professores, presentes na sala, estranharam.

Quem frequenta escola com qualidade de ensino, quem convive


em casa com uma família que também estudou e ainda aprimora seus co-
nhecimentos, quem mantém olhos e ouvidos abertos ao que se pensa e dis-
cute no mundo tem mais chances de querer ir além do senso comum, con-
segue ser mais crítico, atualizado, acompanhando discussões inovadoras,
como atesta a pergunta sobre a autorização legal do uso de canabinoides.

Chama a atenção a comparação sugerida entre a nossa política e a


de países vizinhos, caso de alguém cruzando a fronteira entre o Brasil, que
criminaliza algumas drogas, no caso a maconha, e o Uruguai, que descrimi-
nalizou sua produção, comércio e uso, sugerindo esse país como um espaço
de maior liberdade. A preocupação com a possibilidade e o interesse na
legalização da maconha ou de outras drogas que foram tornadas ilícitas são
constantes nas escolas, com alunos sempre buscando a adesão dos adultos,
quando perguntam claramente “e você, é a favor?”.
208

Mas o tempo desses debates costuma sempre ser muito curto dian-
te de tanta curiosidade. É hora das despedidas e saio da sala acompanhada
por alguns alunos que ainda querem conversar mais e mais e me seguem
até a porta da escola. O professor, tão receptivo e amável no início, agora
está sério, agradece e parece reticente diante do meu comentário: “Quanto
interesse seus alunos parecem ter sobre drogas!”. A própria escola aceitou e
promoveu o debate, mas o professor me surpreende quando responde seca-
mente: “Esse não é um assunto para eles”.

A escuta e acompanhamento dos casos, descritos acima, nos leva a


pensar o quanto faz falta uma educação sobre drogas. Educação que se opo-
nha à prevenção que tem como objetivo evitar que a própria experiência
aconteça, contrariando a noção de uso como parte da experiência humana.
O conceito de educação para a autonomia, em oposição, pretende instau-
rar uma polêmica incessante contra as evidências da prevenção, entendida,
aqui, como uma ilusão perigosa (Castoriadis, 1989).

O que se percebe nos casos aqui relatados e acompanhados é a ca-


rência de discussão sobre drogas durante a formação profissional dos edu-
cadores, fato que eles próprios reconhecem. Como se isso não bastasse, sua
atuação tem, tal como no poema de Drummond de Andrade, uma pedra
no meio do caminho: o proibicionismo e, como subproduto, a violência que
atravessa as relações de quem ousa produzir, comercializar ou usar. Savater
(2000) descreve muito bem o cenário atual:

a droga é um invento maléfico promovido por uma


máfia internacional de sem-vergonhas para embol-
sar imensos lucros, escravizar a juventude e cor-
romper a saúde física e moral da humanidade; ante
tal ameaça, só cabe uma enérgica política repressiva
em todos os níveis, desde o mais simples traficante
até as plantações de coca na selva boliviana; quan-
do a polícia tiver metido na prisão o último grande
narcotraficante, o Homem se verá livre da ameaça
da Droga (Savater, 2000).

No sentido da superação da política proibicionista que promove


situações de discriminação e violência, o projeto de educação para a auto-
209

nomia, segundo Castoriadis (1989), permite acreditar que cada um de nós


seja capaz de se governar e ser governado, seja capaz de questionar o des-
controle apregoado como real, superando preconceitos. Mas quais seriam
os passos dessa educação para a autonomia?

Antes de mais nada, recupera a memória de outros usos no pas-


sado não tão distante e que possibilitaram a experiência das drogas como
fonte de prazer, reduzidos os riscos que são reais, mas não são inexoráveis,
desde que estejamos amparados por controles sociais, construídos coleti-
vamente. O passado é cheio de exemplos: o consumo do vinho na Anti-
guidade Romana acontecia entre adultos. Homens e mulheres bebiam em
espaços diferentes, depois das refeições, como forma de tornar as relações
mais agradáveis. Esse uso, entretanto, era proibido para as crianças, que,
entretanto, tinham direito a algumas gotinhas de ópio para que dormissem
melhor (Villard, 1988).

Séculos mais tarde, na Europa, beber vinho foi aconselhado na


prevenção da tuberculose e verificou-se que, de fato, nas regiões onde o
consumo do vinho era maior, a incidência da doença diminuía (Nourrisson,
1988). A folha de coca, tanto no passado quanto no presente, é mascada pe-
los povos andinos, tradicionalmente, sendo parte da economia camponesa,
considerada um “lubrificante” das relações sociais, planta sagrada presente
nas atividades religiosas, com propriedades medicinais, acompanhante pri-
vilegiada nas situações individuais e coletivas de busca de soluções exis-
tenciais (cosmovisão) (Instituto Indigenista Interamericano, 1989). O uso
de pílulas de cocaína, nos EUA no século XIX, assegurava curar a dor de
dentes até mesmo das crianças (Revue L´Histoire Presse, 2002). No início
do século passado, havia mesmo a prescrição de heroína, indicada nos ca-
sos de problemas respiratórios de adultos e crianças, conforme registro no
Dicionário Vidal e Georges de especialidades farmacêuticas, na França, em
sua primeira edição em 1914 (Dugarin; Nominé, 1988). A maconha além
de dar prazer, também teve e tem função terapêutica reconhecida (Hen-
man; Pessoa Jr., 1986).

Nas escolas, a lembrança de antigas histórias infantis pode ajudar a


pensar outras motivações do uso de drogas. Afinal, nelas as poções mágicas
são recorrentes (Aratangy, 1991) e têm como intuito conviver e se sentir
mais forte diante dos problemas da vida, crescer com confiança, adquirir
sabedoria. Mas se na infância as poções mágicas/drogas são elementos po-
210

sitivos, dão força e coragem para enfrentar desafios, a história muda quan-
do nos tornamos adultos porque algumas poções foram tornadas proibidas.
Recuperar a memória sobre esses usos e costumes fortalece a autonomia,
no sentido de melhor conhecer o mundo e tentar reconstruí-lo, de forma
generosa e solidária.

A educação para a autonomia discute conceitos. Drogas dão pra-


zer e, eventualmente, produzem danos. Uso e dependência são situações
diferentes. Na determinação da dependência, interfere a substância de esco-
lha, a história de vida de cada um e o meio e momento sociocultural em que
se vive, o que significa dizer que, diante da droga, não há um destino igual a
todos. O uso “indevido” não é restrito ao uso das drogas hoje tornadas ilíci-
tas, sendo mais adequado falar de usos problemáticos, aqueles que alteram
a relação com o mundo, com a família, a escola, o trabalho. Quem experi-
menta uma droga nem sempre fará uma escalada de consumo de outras.

A educação para a autonomia também discute programas. A edu-


cação para a saúde aplicada às drogas, modelo de abordagem compreensiva
de origem europeia, se contrapôs à política repressiva de origem norte-a-
mericana. Teve sua eficácia restrita na realidade brasileira, marcada pela
desigualdade social e econômica, ausentes no nosso país as conquistas al-
cançadas no estado de bem-estar social conquistado por aqueles países.

Programa de prevenção muitas vezes levam policiais às escolas


brasileiras com o discurso proibicionista de abstinência – “drogas, nem
morto”, “diga não às drogas”. Programas perigosos do ponto de vista pe-
dagógico – sem dúvida é melhor estar vivo, poder refletir e saber agir de
forma protetora de si. Ao mesmo tempo, essas intervenções preventivas
apresentam policiais como se fossem educadores, só difundem o medo e
confundem. Dessa forma, desqualificam o educador que, de fato, tem a res-
ponsabilidade de conduzir os jovens para a vida adulta.

Afirmativo da educação para a autonomia, o programa de Redu-


ção de Danos/RD é uma prática de recuperação e integração dos que usam
drogas, porque entende que existem sujeitos que não conseguem, não que-
rem, não podem parar de usar drogas e precisam ser ajudados quando en-
frentam dificuldades. Esse programa também ampara as famílias, mas no
contexto proibicionista dominante sempre corre o risco de ficar limitado.
A prática da política antidrogas minimiza, destece no dia a dia as ações de
211

Redução de Danos, por exemplo: quando de fato reprime a população em


situação de rua que usa crack – ou não, afinal muitos outros grupos sociais
marginalizados têm sido “recolhidos” compulsoriamente.

A prática pedagógica da autonomia discute a legislação proi-


bicionista. Difícil travar essa discussão, à medida em que a população se
acostuma a “sofrer” a lei, mas não tem nem conhecimento nem o hábito
de discuti-la. O jargão jurídico afasta quem não o domina, mas é preciso
aprender a ler e entender a lei e, dessa forma, ser capaz de se defender, ser
capaz de imaginar que uma legislação pode ter como finalidade o bem co-
mum, a convivência harmoniosa. Esse aprendizado é fundamental para que
se possa entender por que a antiga Lei 6.368/76 sobre drogas, que vigorou
até 2006, previa penalidades para professores e a perda de subvenções do
Estado nas escolas onde o flagrante e uso não fossem denunciados às au-
toridades, assim como responsabilizava o cidadão comum pela prevenção
e combate ao tráfico ilícito de drogas. Ora, a discussão e entendimento da-
quela legislação permite associar essas determinações legais aos princípios e
normas da Lei de Segurança Nacional, característicos do estado de exceção
que vigorava na época e que assim transformava todos em auxiliares da
repressão ou passíveis de serem reprimidos, punidos.

Difícil entender que, hoje, a aparente descriminalização do uso,


na lei atual 11.343/2006, na prática não beneficia todos igualmente, sendo
mais um privilégio de quem já os tem, num cenário em que uso e comércio
ilícito são facilmente considerados como uma mesma situação.

O projeto de educação para a autonomia recorre às estatísticas


sobre usos e costumes relacionados às drogas, esclarecendo o cenário na-
cional real de uso e dependência. Estudos epidemiológicos realizados pelo
CEBRID (2010) nas escolas e nos domicílios traçam a realidade brasileira de
uso de drogas. Saber que o percentual de consumo das bebidas alcoólicas,
tabaco e substâncias permitidas por lei, é mais alto que o de uso de drogas
ilícitas ajuda a definir prioridades. O Brasil é um país onde se experimenta
muito – ter consumido alguma droga pelo menos uma vez nos últimos seis
meses –, mas o uso frequente é significativamente menos importante - ter
consumido alguma droga mais de 20 vezes no ultimo mês.

Outros estudos recentes (Antunes, 2013) mapeiam e analisam as


pequenas cenas abertas de uso, pouco visíveis, móveis e dinâmicas, levan-
do-se em conta a diversidade regional e social brasileira. São estudos que
entrevistam as famílias, amigos, conhecidos que interagem com essa po-
212

pulação que se quer definir o perfil – jovens do sexo masculino, com baixa
escolaridade, excluídos do mercado formal de trabalho, envolvidos no tra-
balho sexual, vivendo nas ruas, em situação de grande instabilidade, com
precário atendimento de saúde. Percebe-se que, muito mais do que tratar
o uso compulsivo, trata-se de evitar a miséria que favorece o uso do crack
“para ter mais energia para enfrentar um cotidiano adverso”, na busca de
políticas sociais amplas comprometidas com os direitos humanos.

A educação para a autonomia valoriza o pensar. A sociedade ca-


pitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem
possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo, mas, de fato, nós
não percebemos o quanto as nossas escolhas são limitadas e condicionadas
(Safatle, 2011). Daí a importância de nos livrarmos dos bloqueios e limites
impostos ao pensar e agir, de forma autônoma, reaprendendo o mundo.
Diante de tantos danos e enganos criados pelo proibicionismo, teremos que
nos livrar do entorpecimento atual que domina nossa razão, teremos que
aprender a aprender, aprender a descobrir e inventar, repensando formas
de conviver com as drogas, num processo dialógico entre educador e edu-
cando.

A educação para a autonomia redefine o lugar do educador, que,


consciente de seu papel como objeto-suporte na passagem para a vida adul-
ta, poderá ter uma atuação significativa. Colocando os limites necessários
entre a ação intuitiva e a ação que resulta da reflexão, o educador supera a
função tradicional de vigiar e punir. Dessa forma, assume um lugar privile-
giado, junto aos adolescentes e suas famílias, na tentativa de resolução dos
problemas relacionados ao uso de droga, sinal e sintoma de um mal-estar
no mundo (Amaral Dias, 1979).

Redefine, também, o lugar do educando. O risco do uso de dro-


gas aumenta na proporção direta da prática da educação bancária de acu-
mulação de informações sem reflexão, o educador se limitando a ensinar
ao aluno apenas a escutar e repetir (Freire, 1996). Dessa forma, não há pro-
dução de conhecimento, mas sim reprodução do que está dado, o sujeito
não é chamado a conhecer, apenas memoriza mecanicamente, recebe de
outro algo pronto. De forma vertical e antidialógica, a concepção bancária
de ensino age no sentido da passividade. Informa de forma reducionista
que a droga faz mal, que as drogas tornadas ilícitas fazem mais mal e são
as mais consumidas. Dissemina a ideia falsa de que toda experiência leva à
dependência, que os danos decorrentes do uso de drogas são inexoráveis e
generalizáveis.
213

Nas feiras de ciência nas escolas, como resultado da educação ban-


cária, os jovens reproduzem as informações divulgadas restritas à ação das
drogas no sistema nervoso central e à legislação que condena. Fica, assim,
descartada toda capacidade crítica quando os jovens precisam de fato conhe-
cer seus limites psíquicos, físicos, sociais, precisam aprender a ter cuidado
com substâncias psicoativas. A educação para a autonomia aplicada às drogas
restaura a possibilidade de pensar e construir uma fala original.

Para contornar os eventuais danos decorrentes da relação com as


drogas, é preciso aprender a lidar com nossos desejos, construir a capaci-
dade de deliberação lúcida, construir uma subjetividade que seja capaz de
deliberação e de vontade. A construção de autonomia se opõe à pretensão
de erradicar do espírito e da alma qualquer traço de pensar e querer próprios.
Uma sociedade autônoma não somente sabe explicitamente que criou suas
leis, mas se institui de modo a liberar seu imaginário e ser capaz de alterar
suas instituições mediante sua própria atividade coletiva, reflexiva e delibe-
rativa (Castoriadis, 1989).

Mas por que é tão difícil formular um discurso alternativo ao proi-


bicionismo? A construção dos discursos que envolvem o poder, tais como
o discurso sobre a política, a sexualidade e as drogas, não acontece sem
constrangimentos (Foucault, 1971). Elaborar uma fala própria gera angús-
tia, dúvidas naturais e os professores preferem incorporar o discurso da
prevenção centrada nas drogas ilícitas. Mas o preço a pagar será o de jamais
terem uma fala própria, por isso a constante insegurança mesmo quando
conseguem uma formação sobre drogas extracurricular. Droga é palavra
proibida – nem todos têm o direito de falar sobre elas. Esse direito será
exclusivo e privilegiado do especialista autorizado e nos marcos da política
antidrogas, em espaços autorizados. O mais será apologia às drogas, discur-
so ideológico.

Um segundo procedimento que prejudica a formação de uma fala


autônoma sobre drogas é a oposição suposta entre a razão e o discurso do
usuário. A experiência de uso é criminalizada, negada a sua possibilidade
ainda que de forma controlada; ao mesmo tempo, lhe são atribuídos es-
tranhos poderes. O discurso da experiência é excluído, embora a história
da humanidade confirme sua materialidade. A experiência de uso ilícito é
identificada à dependência, e a dependência só é investida de poder quando
controlada pela escuta do especialista. A internação compulsória de usuá-
214

rios de crack que vivem nas ruas de nossas cidades, decidida pela política
proibicionista, não seria uma tentativa de aprisionar seus discursos, de re-
duzir um sofrimento que vai além da droga em si, calando situações de
miséria?

A dificuldade em construir um discurso próprio sobre as drogas


esbarra no que é aceito como “verdade”. Se nos colocamos no interior do
discurso repressivo que impõe a abstinência como norma, essa partilha não
parece arbitrária ou violenta – afinal, a pretensão de um mundo “sem dro-
gas” é apresentada de forma natural... Mas, se queremos saber sobre a histó-
ria do consumo de drogas ao longo de tantos séculos, percebemos sistemas
de exclusão, modificáveis e institucionalmente constrangedores. O discurso
da abstinência continua sendo valorizado, distribuído e atribuído pelas ins-
tituições como “o verdadeiro”, em que pesem os inúmeros estudos que têm
confirmado ontem e hoje a evidência de usos controlados. A ação das dro-
gas no sistema nervoso central se impõe como determinante em qualquer
uso, assim transformado em dependência “química”, independente da per-
sonalidade dos sujeitos e de seu meio sociocultural. As experiências antigas
e recentes de uso sem danos ficam obscurecidas.

Pareceres dados por profissionais de saúde nos processos de ava-


liação dos adolescentes pobres em conflito com a lei evidenciam a opção
pelo discurso institucional e reproduzem preconceitos (Malaguti Batista,
1988) e a dificuldade de construção de um discurso próprio. O olhar alta-
neiro do adolescente pobre, preso em decorrência do uso de drogas é visto
de forma negativa pelo profissional que o avalia. Exige-se dele olhos baixos,
submissos. Seus desejos de consumo – comprar uma casa para a família
no futuro – são considerados incompatíveis com sua situação econômica,
a modéstia sendo exigência necessária à sua condição de pobreza. Por ou-
tro lado, de um adolescente de classe média ou alta espera-se justamente o
olhar direto, firme, que demonstra segurança. A circulação do jovem pobre
longe do seu domicílio é vista com desconfiança, mas no caso de jovem bem
nascido esse movimento é positivo, “agrega cultura”.

A proposta de educação para autonomia aplicada às drogas é uma


pedagogia dialógica, provocante, desafiadora. Fazendo a crítica do real,
buscando identidade com a prática, num estudo rigoroso, comprometido
com a transformação da realidade, buscando uma sistematização coletiva
promove a crítica aos mitos e a meias verdades. No processo discursivo
dialógico resgata-se o saber coletivo (Pey, 1988).
215

Na perspectiva dialógica, educadores e jovens são agentes de


transformação, vão além da competência técnica e assumem o compro-
misso político com a democracia, com a expansão da liberdade do sujeito,
criando alternativas às campanhas moralistas, reducionistas, que caracteri-
zam o proibicionismo. As ações educativas precisam de um discurso amplo
que dê conta dos problemas do nosso tempo: a distribuição dos poderes,
das riquezas, do saber; a violência, o desemprego, a fome, a falta de solida-
riedade, “desigualdades que fazem com que alguns se sintam bem porque
pertencem a um grupo social, e outros se sintam mal porque são excluídos”
(Lazarus, 1995).

A educação para a autonomia propõe conviver com as drogas de


forma consciente. Afinal,

nossa cultura, como todas as outras, conhece, uti-


liza e procura drogas. É a educação, a inquietude e
o projeto vital de cada indivíduo que pode decidir
qual droga usar e como fazê-lo. O papel do Esta-
do não pode ser mais que informar da forma mais
completa e razoável possível sobre cada um dos
produtos, controlar sua elaboração e sua qualidade
e ajudar os que desejam ou se virem prejudicados
por esta liberdade social (Savater, 2000).

Assim, a normalização com controles coletivos da produção, co-


mércio e uso de drogas, associada à luta afirmativa de direitos sem discri-
minação, permitirá o aumento da demanda por orientação e ajuda, sendo
capaz de reduzir danos e rompendo o círculo perverso da violência.

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CAPÍTULO 8

“Se essa rua fosse minha...”


A experiência do Consultório na Rua de Macaé (RJ)

Naly Soares de Almeida30

“A verdadeira viagem do descobrimento não consis-


te em buscar novas paisagens senão em mirar com
novos olhos.”

Marcel Proust

Nada poderia ser tão novo na vida de um profissional do que tra-


balhar na rua. Ainda mais para um profissional de saúde.

Esse profissional, antes de mais nada, tem que ser curioso, querer
saber o que não sabe, ser um pesquisador, caminhar e voltar, olhar e ver,
rever. Todo profissional de saúde não deveria ser assim? Em qualquer dis-
positivo?

30
Psiquiatra, coordenadora do Consultório na Rua da cidade de Macaé (RJ).
220

A pesquisa nacional sobre a População em Situação de Rua (Brasil,


2008) realizada em 23 capitais e 48 municípios com pessoas com mais de 18
anos, apontou que há 31.922 pessoas vivendo em situação de rua, morando
em calçadas, praças, parques, viadutos, becos, barcos, túneis, imóveis aban-
donados, lixões, ou pernoitando em instituições.

Os motivos alegados são muitos, mas vão se delineando em três


linhas: alcoolismo/drogas (35,5%), desemprego (29,8%) e desavenças fa-
miliares (29,1%). Eles são predominantemente do sexo masculino. 17,1%
não sabem escrever e apenas 8,3% sabem assinar o nome. Dessa forma, fica
claro que esses usuários são aqueles que não têm muita oportunidade de se
incluir na atual sociedade, na qual o sistema competitivo e desleal impera,
constituindo o modelo excludente, hegemônico e preconceituoso.

O trabalho na rua em Macaé (RJ) vem acontecendo desde 2010, e,


diante de muitas dificuldades, foi sendo construído com uma equipe soli-
dária que aos poucos foi crescendo e sendo conhecida e reconhecida pelos
gestores municipais, dispositivos de saúde e dispositivos intersetoriais.

Iniciou-se em 2010, através da inscrição em um edital do Minis-


tério da Saúde (MS), sendo Macaé um dos municípios escolhidos. Era um
dispositivo da saúde mental denominado “Consultório de Rua”. Porém, aos
poucos, percebeu-se que se tratava de uma demanda mais ampla e que a
saúde mental não dava conta de toda a complexidade da rua e seus usuá-
rios. Com a Portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2011, o MS passa a deno-
miná-lo de Consultório na Rua e este passa a ser um dispositivo da Atenção
Básica com financiamento do SUS.

Na nossa experiência, fomos reconhecendo e observando os indi-


víduos que viviam na rua ou permaneciam na rua e analisando mais deta-
lhadamente os diversos motivos desse “morar na rua”. Na maioria das vezes,
essas pessoas tinham mais de um motivo: desagregação familiar, abandono,
transtorno mental, uso de drogas (consequência ou causa?), história de vio-
lência nos territórios, prostituição, exclusão social, consequências do nar-
cotráfico (homicídios, jurados de morte) e histórias mal contadas.

Aliás, sempre histórias mal contadas, que não querem ser ditas
nem lembradas. Com o tempo e aos poucos, elas, as histórias, vão apare-
cendo, e os profissionais do Consultório na Rua (CnaR) vão montando o
quebra-cabeça, com outras narrativas, novas narrativas que o vínculo vai
possibilitando.
221

O vínculo entre o indivíduo que está na rua e o profissional de


saúde, o vínculo entre o coletivo da rua e outros dispositivos intersetoriais
é que vai propiciando a montagem das narrativas e as possibilidades de ser
construída uma história nova, uma rede viva que faça sentido para o indiví-
duo, num processo de inclusão.

A rua, os trabalhadores de rua e as pessoas em situação de rua con-


vivem o dia a dia, enfrentando os conflitos, as tristezas, as mortes, as exclu-
sões, as doenças, as drogas, mas também as alegrias, os momentos únicos,
os encontros, os momentos em que todos aprendem.

Essa é uma importante dobra em que devemos parar para refletir.


Nada sabemos das drogas ou sabemos muito pouco. Talvez saibamos os
aspectos científicos do álcool, maconha, tinner, crack, cocaína, Diazepam...
mas muito temos que aprender com o sentir que vem das redes vivas, que
vem das ruas.

Nós, os profissionais que somos da linha AD (álcool e outras dro-


gas), temos muito que aprender com quem usa e abusa.

“quem usa álcool não gosta de ser mandado”

“sou prostituta e meu marido me traz todo dia


pro trabalho”

“o cachimbo bom para usar crack é esse feito


de cadeira de praia ou de material de eletrô-
nica”

“a pedra do crack melhor? É essa mais branca”

“será que vocês poderiam ir embora e voltar


amanhã? Porque eles estão fumando o crack
todo lá dentro e eu vou perder”.

“abandonei meus filhos porque não queria que


eles tivessem a vida que tenho. A vida inteira...
desde pequena, ajudei meu pai a traficar; eu ia
pegar a lata de maconha pro meu pai embaixo
da árvore.”
222

O trabalhador de rua tem que ser aberto a ver, rever, transver o


outro mundo. Tem que saber respeitar as diferenças e as diversidades, sa-
ber que o ser humano é aquilo que ele viveu e vive, aquilo que ele vê e tem
gravado no seu corpo, aquilo que ele aprende e não pode ser comparado a
outro e nem julgado.

Aceitar e não julgar não é uma atitude permissiva, é um processo


de educação permanente que se movimenta, uma atitude educativa para os
profissionais de saúde e para as pessoas em situação de rua, é uma troca de
saberes. Assim, ao recuperar a cidadania, o usuário vai reaprendendo a vi-
ver em sociedade, com a presença da lei, e junto vem um pacote de direitos
e deveres, no qual o indivíduo vai tendo seus direitos, tais como a saúde,
com atendimento na rua, com medicação, com curtas internações e matri-
ciamento (Chiaverini, 2011) nos dispositivos necessários.

A Ética do Cuidado é um tema que não podemos esquecer, prin-


cipalmente na área de Direitos Humanos e da compaixão, afinal eles têm
sempre ou quase sempre seus direitos violados.

Para entendermos melhor esse cuidado que o Consultório na Rua


realiza, vamos pensar e sempre continuar a repensar as lógicas desse cuidado
na rua, como num caminho, em que o aprender leva ao repensar, ao refletir.

1. As lógicas do cuidado

Existem no mínimo cinco lógicas para instrumentalização do


cuidado, da atuação com “pessoas em situação de rua”, que vivem em um
território cartográfico que é muito mais abrangente do que um território
geográfico ou uma área adstrita.

O indivíduo vive a vida nas ruas, a rede viva. Esse indivíduo pode
ser qualquer um que tenha uma íntima relação com as ruas: aquele que
vive na rua há mais de 10 anos, o que vive há 1-2 anos, aquele que acabou
de chegar, o que já usa drogas há muito tempo e aquele que está começan-
do a usar. Aquele que trabalha na rua informalmente. Tem também aquele
que tem casa, mas vive também na rua. Essa é uma característica típica do
alcoolismo. Por isso, é tão importante o diagnóstico desse território carto-
gráfico que muda e se reconstrói de acordo com a vida.
223

Dessa forma, as pessoas em situação de rua nunca podem ser ta-


chadas de uma coisa porque eles são muitas coisas, elas vivem muitas coi-
sas e por isso o cuidado dirigido a elas deve ser complexo, atravessado por
várias lógicas.

Para didaticamente falarmos dessas lógicas do cuidado, vamos de-


talhá-las, sabendo que elas se cruzam o tempo todo num movimento de
transversalidade. Essas lógicas seriam:

I. Atenção Básica
II. Saúde Mental
III. Redução de Danos
IV. Direitos Humanos e Ética
V. Preconceito

As 3 primeiras lógicas desse cuidado foram citadas no Curso EAD/


FIOCRUZ de “Atenção Integral à Saúde de Pessoas em Situação de Rua com
ênfase nas equipes de Consultórios na Rua” (Lopes, 2014), no qual fui tuto-
ra junto aos municípios de Macaé, Resende, Duque de Caxias e Nova Igua-
çu e muito aprendi.

As 2 últimas lógicas – Direitos Humanos/Ética e Preconceito – eu


acrescentei por valorizar muito esse tema. Após ter ido trabalhar nas co-
munidades, há anos atrás, fui percebendo a importância de se aprofundar
nessas complexas questões, que são pouco valorizadas na sua diversidade e
vão sendo colocadas num mesmo pequeno pacote. Elas devem ter um lugar
especial no dia a dia do trabalhador de rua, para não minimizarmos seus
aspectos.

Assim, fui ficando intensamente afetada com o trabalho nas ruas,


meu despertar acontecia ao me deparar com a diversidade, com o inusitado,
com o sofrimento. Fui vivenciando minhas dificuldades, me deparando com
meus preconceitos, conhecendo outras escolhas, outras formas de viver.

“mas eu gosto de dormir aqui, não quero ir para


casa...”
224

Como um ser humano pode falar isso? No início, eu não entendia, mas
aos poucos fui me deparando com essa realidade possível.

Caso Lu

Usuária com 62 anos, mulher, vive nas ruas, alcoólatra, com trans-
torno bipolar (THB), tem família no município, mas não consegue morar
junto, briga, fica agressiva. Na rua, bebe até cair, é violentada pelos “colegas”
homens, às vezes troca (?) sexo por quentinha, sofre outras violências, fica
caída no chão. O Consultório na Rua já a levou ao Pronto Socorro Mu-
nicipal várias vezes. Ela frequenta o Centro de Atenção Psicossocial para
Usuários de Álcool e Outras Drogas – CAPS AD, mas de forma irregular.

Seu “homem” preferido foi assassinado em janeiro de 2015. Já quis


ir para uma comunidade terapêutica, foi através do CAPS AD, porém não
ficou nem 3 dias. Não gosta do abrigo, diz que eles querem mandar nela. Ela
tem o benefício e gasta o dinheiro de qualquer maneira, nunca sobrando
para pagar o aluguel de um espaço.

O CnaR tem um bom vínculo com ela, um afeto enorme, e não


desiste de cuidar dela: “Sabemos que ela tem uma história muito triste, de
violência do ex-marido, de abortos provocados por pressão e violência do
parceiro. Ela parece não ligar para a vida. Não conseguimos tratá-la do THB
devido à necessidade de tomar medicação diariamente.”

Ela se trata e se destrata com o álcool!

O olhar da atenção básica nos mostra a necessidade dos cuidados


básicos dessa idosa em um território cartográfico que inclui uma praça com
seus amigos e amantes, a Estratégia de Saúde da Família – ESF do território,
locais de moradia que podem ser 2 a 3 bairros vizinhos, CAPS AD, Pronto
Socorro Municipal (PSM), amigos outros, parentes da Serra...

O principal instrumento da atenção básica é a longitudinalidade


da assistência em saúde, o que inclui um forte vínculo com o usuário. Isso
acontece na unidade de saúde da família – SF e no CnaR, principalmente.

A unidade de SF deveria ser nossa grande parceira, mas ainda tem


dificuldade de visualizar a rua como um local de moradia. Sendo assim,
realizamos matriciamento com eles. Também o Progama de Saúde Mental
225

fez um bom vínculo com CnaR e tem sido nosso parceiro no caso de D. Lu
e outros.

Mas o território de moradia de D. Lu é a praça, os bairros vizinhos.


As ações de saúde de D. Lu devem acontecer principalmente nesse terri-
tório. Ela escolheu esse lugar para viver. Além disso, ela deve ser assistida
em todas as ações que uma idosa dessa idade necessita, principalmente nas
ações de atenção básica.

Os usuários que estão em situação de rua têm muita resistência no


tratamento de saúde como um todo, não veem motivo para ficar tomando
remédio todo dia, até porque eles não guardam a medicação e são rouba-
dos. Fazemos, quando necessário, medicação intramuscular: anticoncep-
cional, antibiótico, vitamina B12.

Para a realização de exames ou consulta ao especialista, usamos a


ferramenta do matriciamento, resultando na consulta conjunta.

O olhar da lógica da Saúde Mental, na maioria das vezes, se faz


necessário, visto que grande parte dos usuários apresenta um transtorno
psiquiátrico e, na maioria das vezes, acabam se “tratando” com a droga (ál-
cool, maconha, cocaína e outras). No caso de D. Lu, ela usa o álcool como
substância para minimizar a dor e o sofrimento.

Quase sempre eles são resistentes ao tratamento medicamentoso,


por não se acharem com doença psíquica e pelos mesmos motivos anterior-
mente citados. Quando eles aceitam, nós da saúde mental, em parceria com
a Atenção Básica (unidades de SF), fazemos medicação de depósito uma
vez por mês.

A lógica da Redução de Danos (RD) aparece de forma transversal


em todo o atendimento e ações do CnaR. A RD é uma lógica muito im-
portante, mas necessita que os profissionais se dispam de suas certezas e
possam entrar no mundo diverso do seu, abrir um buraco e olhar. Dessa
forma, podem propor ou criar junto algo que minimize os danos: uso da ca-
misinha, uso de um cachimbo para fumar o crack, beber água, ser vacinado,
fazer exames... tudo tem que fazer sentido para eles. Para que isso aconteça,
temos que ter o vínculo, temos que aceitar o mundo deles e suas escolhas.

Assim, no dia a dia, nos deparamos com a desesperança, a não


cidadania, a falta de direitos (inclusive humanos) na vida dessas pessoas, a
226

falta de cuidados, de documentos, de tudo. Raramente passam fome, dife-


rente da miséria de quem tem casa e endereço; esses sim passam fome.

As pessoas em situação de rua vivem a violência no dia a dia, seja


ela física, moral, estigmatizante, social, sexual. São queimados, roubados,
sentem frio e sabe lá mais o quê.

“quem usa crack se sente bicho. Bicho toma banho?


Bicho não faz sexo em qualquer lugar? Não são os
outros que acham que somos bichos, nós é que nos
sentimos como os animais.”

Essa fala aconteceu em um encontro que tive com um rapaz que já


foi, segundo ele, usuário de crack. Nunca tinha me visto, o encontrei che-
gando numa cena, com um baseado na mão. Falou de tudo tranquilamente.
Ele veio, me disse isso ... nunca mais o vi, sumiu na poeira...

Esse encontro me afetou de tal forma que venho tentando enten-


der esse depoimento. Lembro-me de que ele pediu para dar um depoimento
e falou isso.

Fiquei com esse encontro na cabeça, totalmente afetada. Deparei-


me com uma leitura sobre o pensamento de Thomas Hobbes (1588-1679),
um filósofo político que pontua uma linha de pensamento que me leva a
entender o que esse rapaz falou sobre sentir-se bicho:

“O estado da natureza” é um estado iminente, onde o corpo se co-


loca como papel principal, sendo urgente a saída de tal estado de calami-
dade que pode abater-se sobre os homens (Nodari, 2014). E o único modo
de escapar de tal estado de natureza é estabelecer a ordem e garantir um
estado de convivência social, onde todos buscam seguir, obedecer e pre-
servar as leis estabelecidas, garantindo, dessa forma, a paz. “Tarefa essa que
exige exatamente que o ser humano saia do estado da natureza e entre no
estado civil, fazendo da sociedade e do estado o terreno e o horizonte da sua
realização humana” (Nodari, 2014). O estado da natureza seria a não lei, as
paixões e a realização dos desejos de forma instintiva.
227

A população de rua quando está muito degradada, usando drogas


principalmente o crack, está no estado da natureza, vivendo como animais,
vivendo com a insegurança, sem leis que os organizem, sem cidadania, sem
proteção civil.

Em Macaé, existe uma praça central onde a guarda, a lei, só se faz


presente no lado da praça onde a população de rua não está. No local onde
essa população de rua fica na praça, a guarda municipal e a lei não vão. Por
que será que ocorre esse fenômeno?

O não julgamento, a redução de danos, o vínculo não poderia re-


fazer um caminho para a organização dos direitos e do retorno da lei a esses
ambientes? Nós do Consultório na Rua entramos nesse mundo e olhamos
esse estado da natureza sem lei, sem proteção civil, sem nada.

A busca pelo entendimento, na afetação que o trabalho nas ruas


nos traz no cotidiano do trabalho, me faz repensar a questão do não julga-
mento, dos direitos humanos, do cuidado, da ética, do que é certo e do que
é errado, dos preconceitos.

Tenho vivido muito esse processo de encontros de educação perma-


nente em saúde (EPS), nesse movimento de aprendizagem com o outro, na
troca de saberes, na troca de afecções, no conto e na narrativa de cada um.

Por isso, são tão importantes estas lógicas que vão norteando nos-
sas ações: a redução de danos, os direitos humanos/ética e o preconceito.

Ao julgar, não fico ali para escutar o que eles têm a me dizer, me en-
sinando sobre aquilo que não sei sobre eles. Perco o encontro e seu potencial.

2. Ferramentas

Essas ferramentas são utilizadas no processo de trabalho e são


muito importantes na micropolítica do cotidiano com o ato de cuidar. Es-
sas ferramentas não são importantes só para a população de rua, mas tem
algumas peculiaridades.
228

I. Matriciamento

O estar junto com outro profissional atendendo, trocando saberes,


junto ao usuário, amplia a capacidade de entendimento. Na população em
situação de rua, o matriciamento se faz necessário também por uma ques-
tão do ato de ir até os dispositivos de saúde, de construir essa possibilidade,
de ser aceito e não discriminado nos serviços de saúde, além de eles apren-
derem a se cuidar.

II. Projeto Terapêutico Singular (PTS) com participação dos diversos


atores

O PTS é muito valorizado na área de saúde mental e atenção bá-


sica. Ele deve ser construído com todos os atores envolvidos, inclusive o
usuário. O mundo das ruas é diverso do que nós, profissionais de saúde,
conhecemos. Dessa forma, devemos aprender com os usuários sobre esse
mundo e consequentemente o PTS deve ser realizado com esse novo saber e
dentro da lógica da redução de danos (veja, em Anexo 1, exemplo de PTS).

III. Intersetorialidade/Reunião de rede

Encontro com os profissionais de outros dispositivos que podem


ser da saúde ou não. Isso faz com que a visão e atuação no cuidado com o
usuário se potencialize. Junto à população em situação de rua, a amplia-
ção para o encontro, para a construção do PTS, para o desenho das ações
de cuidado são tão fundamentais que se torna impossível atuar sem essas
parcerias.

Dessa forma, o processo de trabalho inclui as ações intersetoriais.

IV. Reunião de equipe e supervisão de equipe

O processo de trabalho vai sendo construído por meio dos en-


contros, por meio das relações, por meio das afecções, dos compromissos,
por meio da potência real de uma equipe. Dessa forma, a equipe precisa
de encontros frequentes em que no coletivo possam produzir: os PTS, as
estratégias de ações, o cuidado ao cuidador, as pactuações e compromissos.
229

A supervisão ou intervisão, quando possível, se faz muito impor-


tante para um outro olhar, para desarmar o olhar, para cuidar, estar junto,
para ver, rever e transver.

V. Visitas às cenas regularmente

As cenas são os locais que a população de rua vive. Na cena, eles se


encontram, dormem, fazem as refeições, usam drogas, moram. Esses locais
são mudados frequentemente. A população de rua têm algo de nômade.

Às vezes, um morador de rua frequenta duas ou mais cenas em um


dia. São as histórias e suas redes, por vezes viva, mas por vezes já mortas.

A frequência da abordagem a essas cenas é importante para que o


vínculo seja construído e se possa conhecer a história da cena.

Caso Jéssica e Fabiano

Ela com uns 26 anos, ele com uns 35 anos, nenhum dos dois mo-
rava em Macaé. Ela deixou uma filha para trás e veio ser prostituta, ele veio
meio fugido. Após conhecê-lo, ela largou a profissão de prostituta e passou
a viver com ele na rua. Um casal que se une na dor, na proteção, que vive
uma relação possessiva e violenta. Um dia, eles estão vivendo um grande
amor e no outro ela quebra o braço dele ou agride qualquer parte de seu
corpo. Os dois têm família e não querem voltar a viver com elas porque não
são aceitos na sua escolha de vida em que a droga, hoje, é usada de forma
abusiva. Ela usa crack; ele cocaína e o álcool, sempre presente.

Ao longo do tempo, a equipe vai visitando a cena onde esse casal


“sobre vive”: várias doenças orgânicas já foram tratadas, ela faz contracep-
ção injetável, eles têm lesões de violências sofridas devido a brigas entre o
casal ou outros e apresentam transtornos psiquiátricos. Nas tentativas de
contato com as famílias, a dela quer vê-la, mas ela ainda não; a dele já ten-
tou levá-lo, mas não deu certo. O vínculo é bom, mas nada os faz caminhar
para a saúde, eles só pioram. A cena também piora com o aparecimento de
pessoas ligadas ao tráfico.

Muitos segredos, muitas descobertas, muitos afetos e muita frus-


230

tração. A cena também muda. A cena também tem que ser cuidada, preci-
sando ser olhada por outros setores, governamentais ou não.

A população de rua não precisa de proteção? Com o aparecimento


de outro tipo de morador de rua, o casal muda seu lugar de dormir, e com
eles vão os amigos mais íntimos.

VI. Educação Permanente

Esse processo de aprendizagem deve ocorrer desde a educação


tradicional e acadêmica, incentivando a formação junto a universidades ou
outras entidades formadoras, até a “educação permanente em movimento”,
que acontece no dia a dia do trabalhador através do reconhecimento do
saber do outro, individualmente ou no coletivo. Dessa forma, o trabalhador
deve ser incentivado a fazer reuniões, rodas de conversa, redes de petições
e compromisso, estudo de fluxo, etc.

VII. Inclusão/Exclusão Social

Inclusão e exclusão são os opostos que estão no cotidiano da po-


pulação em situação de rua e dos profissionais que cuidam deles. E esse
tema se mistura com o da cidadania, dos direitos, do estigma.

“A abordagem da exclusão social nos tempos recentes tem sido


feita, também, na ótica da cidadania, e não apenas na perspectiva da eco-
nomia, esta significando o reconhecimento de que o indivíduo é um seme-
lhante e, portanto, alguém revestido de direitos e, sobretudo, do direito de
ampliar seus direitos”(Bursztyn, 2003).

A inclusão social da população de rua se faz de uma forma lenta


e dentro de uma exclusão parcial, porque dificilmente eles conseguem se
colocar dentro de trabalhos formais, ter direitos reconhecidos.

O processo de inclusão deve estar dentro da elaboração do PTS do


indivíduo que está em situação de rua. Esse indivíduo vai aos poucos cons-
truindo com a equipe e com sua rede viva uma possibilidade de se cuidar
e sair das ruas.
231

O caso do Banana que virou João

Usuário de 43 anos, ex-morador de um município vizinho, per-


deu emprego após sua famosa patroa morrer. Era jardineiro. Ele sempre foi
encantador e vivia na praça em Macaé com seu carrinho de supermercado,
onde guardava suas coisas. Contava sua história como o Banana, quando
era feliz, e depois contava sua decadência. Bebia para suportar as noites,
para se incluir, para se aquecer e, quem sabe, para morrer. Isso quase acon-
teceu algumas vezes, mas o acaso (se é que existe) fazia ele esbarrar com
os profissionais do CnaR e, depois, do Centro de Referência Especializado
para Pessoas em Situação de Rua - Centro POP. O vínculo era sempre mui-
to forte com os profissionais. Entre “perdas e danos”, ele cada vez entrava
menos no buraco e cada vez se estruturava mais. Começou a trabalhar de
forma informal e hoje está bem perto de ir morar com os irmãos. O vínculo
afetivo foi lhe ensinando a se cuidar, a se valorizar e a se incluir, construindo
uma rede cada vez mais viva. Não gosta de ser chamado de Banana, agora é
um novo homem, que se chama João.

A prática e a teoria vão se revezando na vida intelectual dos pro-


fissionais. Uma precisa da outra quando se criam novos dispositivos para
atender e cuidar de uma demanda até então esquecida.

Esse assunto não se esgota. Muito pelo contrário, ele borbulha.

Quando vejo alunos de medicina sair junto aos profissionais de


saúde que atuam no Consultório na Rua, brota uma esperança. É uma se-
mente que pacientemente cai numa boa terra.

“se essa rua, se essa rua fosse minha

Eu mandava , eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas , com pedrinhas de brilhante

Para o meu, para o meu amor passar”


232

Referências Bibliográficas

BRASIL. Ministério da Saúde. Manual sobre o cuidado à saúde junto a po-


pulação em situação de rua. Secretaria de Atenção Básica. Departamento
de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.

BURSZTYN, M. (org.) No meio da Rua – Nômades, Excluídos e Virado-


res. Rio de Janeiro: Garamond, 2003

CHIAVERINI, D. H. (org.) Guia Prático de Matriciamento em Saúde


Mental. Brasília, DF: Ministério da Saúde. Centro de Estudo e Pesquisa em
Saúde Coletiva, 2011.

KABAT-ZINN, J. Llamando a tu propia Puerta – 108 Enseñanzas sobre


La atencion plena. Barcelona: Editorial Kairós, 2008.

LOPES, L. E. (org.) Caderno de Atividades – Tutor. Curso Atenção Inte-


gral à Saúde de Pessoas em Situação de Rua com Ênfase nas Equipes de
Consultório na Rua. Rio de Janeiro: EAD/ENSP/Fiocruz, 2014.

NODARI, P. C. Ética, Direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rosseau


e Kant. São Paulo: Paulus, 2014.
233

ANEXO 1

Projeto Terapêutico Singular (PTS)

1. Identificação:

Nome: Isa Q. A.

Data de nascimento: 16/10/2013 Idade: 1 ano e 5meses

Sexo: feminino

Filiação: Lúcia G. Q. e Josué A.

Cor: negra

Endereço: Rua M, nº 5 – Rio Novo Horizonte

2. Dados familiares:

A família se constitui atualmente de:

• pai, 55 anos, negro, sem informação de escolaridade, portador de


certidão de nascimento e carteira de trabalho e previdência social
- CTPS. Exerce atividade laborativa de guarda de carros na Praça
Veríssimo de Melo, atividade que gera renda insuficiente para as
despesas da família, já que o município faz uso de cobrança oficial
de vagas de estacionamento;

• mãe, 30 anos, parda, analfabeta, portadora de certidão de nasci-


mento, do lar.

• Irmã Maria, 8 anos, estuda numa escola do bairro onde mora.


Sem informação sobre documentação.

Residem próximo ao núcleo familiar o avô materno (proprietá-


rio do terreno onde vivem) e o tio, que apresenta uso constante de drogas.
A família identifica alguns vizinhos como familiares, se referindo a alguns
234

como “se fosse minha mãe”. A irmã de 8 anos é acolhida por uma vizinha,
que ajuda nos cuidados diários de higiene, se responsabilizando pelo horá-
rio escolar (esteve sob cuidados integrais dessa pessoa no período em que a
mãe passava o dia na praça junto ao pai).

2.1 Dinâmica familiar:

Isa é a caçula de uma prole de 5 filhos. Não há relato por parte da


mãe sobre três desses filhos (onde moram, com quem e em que condições).
Essas informações foram passadas por terceiros, que relataram união ante-
rior da mãe, cujo companheiro, apesar do uso de drogas, oferecia condição
de vida melhor à mãe e aos filhos oriundos dessa relação. Não foi falado
sobre a paternidade da filha de 8 anos, presume-se que seja o atual compa-
nheiro.

Não se sabe se o pai tem outros filhos e onde estão. Sabemos de


uniões anteriores pela presença de ex-companheiras do pai na praça onde
este fica.

Por ocasião do nascimento de Isa, outro homem requereu a pater-


nidade da menina, porém, logo saiu de cena, sem maiores conflitos.

O avô não permite a permanência do pai no cômodo e/ou terreno


onde a mãe e Isa residem, devido às brigas constantes com agressões físicas
e situações de violência entre os companheiros.

2.2 Documentação:

A certidão de nascimento de Isa foi possível graças à intervenção


do Conselho Tutelar. Cabe ressaltar que a equipe de Consultório na Rua
tentou intermediar esse registro, porém os pais não possuem RG (registro
geral ou carteira de identidade) – documento obrigatório para registro ci-
vil. Foram agendadas inúmeras vezes a ida ao órgão responsável (Detran).
No entanto, o casal sempre estava ou impossibilitado de ir (“não podemos
sair daqui”/alcoolizados) ou ausente do território. Vale ressaltar que a mãe
nunca fez documento de identidade nem possui nenhum outro documento
além da certidão de nascimento.
235

2.3 Questão socioeconômica:

A família apresenta extrema vulnerabilidade social pela renda in-


suficiente obtida pelo trabalho informal do pai. A mãe traz poucas con-
dições de exercer qualquer atividade laborativa que pudesse acrescentar
recursos financeiros à família. Esse fato se traduz tanto nas condições ina-
dequadas de moradia quanto na oferta nutricional e alimentar insuficiente.
Dessa forma, observa-se que a família é elegível ao requerimento de inclu-
são em programa de transferência de renda (Bolsa Família) e benefício de
prestação continuada – BPC.

3. Dados residenciais e situação de habitabilidade:

Mãe e filhas residem num cômodo pequeno com banheiro, cedi-


do pelo avô materno, construído num terreno onde são criados diversos
animais (patos, cachorros, cabritos) em condições rudimentares, gerando
situação insalubre e inadequada à família.

É dotado de luz elétrica, porém a água fica armazenada num “la-


tão” para consumo. Tem piso de terra batida, coberto com um tapete. Apre-
sentam poucos móveis e as refeições são feitas em fogão a lenha numa área
externa. Não aparenta ser dotado de infraestrutura básica, como coleta de
lixo, e não há calçamento. O avô reside no terreno ao lado.

Como foi descrito anteriormente, o pai não pode mais permanecer


nesse imóvel, fato que faz com que a mãe fique na casa de vizinhos.

3.1 Dados do bairro:

O local onde residem constitui-se como “prolongamento” de um


bairro periférico do município. Aparentemente, foi ocupado de forma ir-
regular através de invasões. Utiliza a rede de serviços do bairro original,
sendo atendido por unidade de Estratégia de Saúde da Família (ESF) e pelo
Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) situado num bairro
contíguo.

A população residente também conta com escola municipal, linha


de ônibus regular e comércio variado.
236

Conta também com a oferta de serviços de algumas organizações


não governamentais – ONGS e muitas igrejas. Apresenta questão de tráfico
de drogas intenso com vários episódios de conflitos violentos. Devido a isso,
recentemente foi implantada uma Unidade de Polícia Pacificadora – UPP.

Está em construção (com recursos do PAC) uma praça que prevê,


em seu projeto, locais e equipamentos para lazer e prática de esportes.

4. Queixa atual – situação de saúde apresentada:

Desnutrição, atraso importante no desenvolvimento neuropsico-


motor, baixo peso. A avaliação fonoaudiológica aponta para dificuldade de
deglutição com possíveis sequelas.

Através de atendimento médico pela equipe de Consultório na


Rua, foi ofertado e orientado o manejo de medicação, sem a confirmação
de uso correto.

Faz uso constante de álcool de forma indireta, através da amamentação.

4.1 Antecedentes pessoais de saúde

Sífilis congênita, atraso no desenvolvimento psicomotor, desnutrição.

O calendário de vacinas foi atualizado pela equipe, visto que a fa-


mília apresenta dificuldade em manter o esquema vacinal.

4.2 Antecedentes familiares de saúde

Pai apresenta quadro de tuberculose com abandonos de tratamen-


to sucessivos e recidivas. É usuário de álcool, desnutrido, pulmão atrofiado
pela doença e sífilis. Não responde às orientações para retorno ao tratamen-
to e demais orientações de saúde.

Mãe teve sífilis na gravidez de Isa, sem investigação atual; desnu-


trida, usuária de álcool, maconha, crack. Apresenta atraso no ciclo mens-
trual. É bastante apática e tem dificuldade em entender orientações sobre
237

alimentação da filha. Também apresenta dificuldade em deixar de amamen-


tar a menina.

Irmã aparenta quadro de desnutrição (embora em menor grau de-


vido aos cuidados da vizinha) e pediculose. A equipe do CRAS relata que a
menina sofre bullying na escola pois, costuma tomar banho no rio perto de
sua casa. Não se tem notícia sobre desenvolvimento do processo de apren-
dizagem.

5. De quais maneiras o caso chega à equipe?

A equipe acompanha os pais de forma regular nos atendimentos


no território onde eles permaneciam. Ao se perceber possibilidade de gravi-
dez da mãe, a equipe tenta iniciar cuidados pré-natal, porém não foi possí-
vel pelo tempo gestacional. A partir do nascimento e do retorno da mãe ao
território, a equipe passa a acompanhar a criança também.

6. Diagnóstico situacional da vida na rua:

Isa passava o dia com os pais na praça. A equipe desconfiava que


nem sempre a mãe retornava à casa para dormir. Essa situação se estende
até julho-agosto/2014 (quando há a ida para o imóvel citado), apesar das
orientações da equipe.

Com a observação do estado clínico da menina, a equipe inicia um


processo de sensibilização dessa mãe para acompanhamento sistemático e
constante, como estratégia para garantir o cuidado, sempre articulando a
rede de cuidados: Follow-Up, Centro de Referência de Assistência Social
(CRAS), Abordagem Social (Secretaria Municipal de Desenvolvimento So-
cial), unidade de Saúde da Família (SF), Coordenadoria da Área Técnica de
Alimentação e Nutrição (CATAN), Conselho Tutelar e Ministério Público.

Dessa forma, a equipe se responsabiliza por matriciar a Isa e sua


mãe para as consultas, exames e avaliações profissionais necessários ao
diagnóstico (marcações, logística para comparecimento e alimentação da
mãe e de Isa) e encaminhamento para tratamento junto à equipe de segui-
mento (Follow-Up).
238

A equipe do CnaR busca, também, o contato estreito com a equipe


do CRAS no processo de solicitação de Bolsa Família e de inclusão da mãe
nas atividades oferecidas.

PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR

A. Diagnóstico clínico:

Desnutrição, baixo peso, atraso no desenvolvimento neuropsico-


motor e hipótese diagnóstica de Síndrome Alcoólica Fetal (SAF). A criança
apresenta risco real de morte pelo estado clínico. Apresenta alto nível de
vulnerabilidade social, pois a família não apresenta renda que possibilite a
sua manutenção.

B. Definição de metas:

Propostas de curto prazo devido à gravidade apresentada:

• Acompanhamento através da rede de cuidados (rede intersetorial):


Follow-Up com acompanhamento da pediatra, fonoaudióloga e fi-
sioterapeuta, equipe de Consultório na Rua, Centros de Referência
da Assistência Social - CRAS, Abordagem Social e Centro Pop,
ESF, Coordenadoria da Área Técnica de Alimentação e Nutrição –
CATAN, Centro de Referência Especializada de Assistência Social
(CREAS), Conselho Tutelar e Ministério Público.

• Contato com família que oferece suporte à irmã para ver a possi-
bilidade de estender rede de cuidados significativos no território
onde residem.

• Oferecer cuidados clínicos aos pais e irmã mais próxima como


forma de melhorar estado de saúde extensivo à família.

• Retornar ao processo de documentação dos pais e de solicitação


do Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC).
239

Proposta de médio prazo:

• Possibilidade de acolhimento no abrigo – Centro Municipal de


Apoio à Infância e Adolescência (CEMAIA), se não houver im-
plicação por parte da família no cuidado à criança, objetivando
aplicar o que preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA). Essa proposta deve ser discutida e construída junto com a
rede de serviços intersetoriais.

• Propor o abrigamento de mãe e filhas.

C. Divisão de Responsabilidades:

• Consultório na Rua: acompanhamento sistemático para cuidados


com a rede; matriciamento da rede de serviços; continuar a ofere-
cer cuidados ao pai no que diz respeito ao tratamento para tuber-
culose; incluir demais membros na proposta de atenção à saúde
(mãe e irmã); fazer visitas à cena e domiciliares regulares (incluin-
do a rede).

• CATAN: apoio e orientação nutricional e alimentar; fornecimento


de suplemento alimentar e leite em pó.

• Equipe do Follow-Up (fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupa-


cional, pediatria, e serviço social).

• Atendimento à mãe no que se refere à sua saúde física e mental.


Sensibilizá-la a ir ao Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Ou-
tras Drogas (CAPS AD).

• Unidade de Saúde da Família (SF): acompanhamento clínico e va-


cinação da Isa e sua família.

• Centro de Referência da Assistência Social (CRAS): inscrição no


programa Bolsa Família; inserção nas atividades oferecidas;

• Centro de Referência Especializada da Assistência Social (CREAS):


para atenção em caso de violação de direitos.

• Abordagem Social: acompanhamento do pai que continua exer-


cendo atividade informal na praça.
240

• Conselho Tutelar: acompanhamento do caso e encaminhamento


para o abrigamento quando e se necessário.

• Ministério Público: para suporte no abrigamento e garantia de di-


reitos conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA).

D. Reavaliação:

Pela gravidade apresentada, as avaliações deverão ser semanais,


objetivando suporte efetivo à situação constatada. Essas avaliações deverão
acontecer sempre com todos os envolvidos na proposta de cuidado e aten-
ção, incluindo também na pauta das instâncias de discussão já instituídas,
como reunião da Rede Rua e de Projetos Terapêuticos.
CAPÍTULO 9

Percursos Reformativos – Relato de uma experiência.

Vinte e sete anos de trabalho pela construção do cuidado


em saúde mental no contexto do SUS.
Décio de Castro Alves31

Breno Castro Alves32

1. Introdução

Foi com grata surpresa e motivação renovada que recebi o convite


para organizar neste texto alguns relatos de casos que tive oportunidade
de apresentar aos trabalhadores das redes públicas de saúde e assistência
de Macaé e região. Os encontros virtuais foram organizados pela Profª Drª
Erotildes Leal, Coordenadora do Centro de Referência Regional da UFRJ/
Macaé em 2014, por ocasião das formações em rede previstas no contexto
do Plano “Crack, é Possível Vencer”, da Secretaria Nacional de Políticas so-
bre Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça.

Analisando e relembrando, com a ajuda e parceria do Breno Alves,


os muitos casos e relatos de experiências no âmbito da reforma psiquiátrica
brasileira, que vivenciei ao longo dos últimos 27 anos, nos municípios de

31
Psicólogo, trabalhou nas cidades de Santos, São Bernardo do Campo e Santo André. Foi
gestor na área de Saúde Mental e participou da implantação da rede de atenção psicossocial
de álcool e outras drogas nessas e noutras cidades do Brasil.
32
Jornalista e escritor. Foi responsável pela escritura desse relato. Filho de Décio de Castro Alves.
242

Santos, Santo André e São Bernardo do Campo, seja na função de psicólo-


go, gestor, supervisor clínico-institucional, professor de especialização ou
simplesmente enquanto usuário/cidadão, concluímos que esse percurso de
vida profissional em si era o fio condutor que procurávamos.

Servindo então de base para a organização deste texto, esta tra-


jetória inicia-se em Santos, nos idos de 1988, coincidentemente com a in-
tervenção pública municipal na Casa de Saúde Anchieta. Logo depois, fui
trabalhar no Núcleo de Atenção Psicossocial – NAPS I de Santos, o primei-
ro dispositivo integral (24 horas), de base comunitária, para assistência a
pessoas com transtornos mentais graves do Brasil. Essa experiência como
psicólogo foi fundamental para a transformação dos meus objetivos de tra-
balho, que, até então, estavam circunscritos às atividades tradicionais de um
psicólogo em ambulatório de saúde mental pública, que já exercia desde
1986 no município de Guarujá.

A conclusão até aqui é a convicção de que podemos construir uma


sociedade na qual pessoas muito diferentes não sejam discriminadas por
essa diferença. E um dos extremos dessa diferença fica muito aparente no
louco, que muitas vezes é confinado a uma não vida para gerar uma sensa-
ção ilusória de segurança para a sociedade.

Os hospícios são lugares atemporais. As pessoas que constituíram


essa condição de morador do hospital psiquiátrico estão alienadas de sua
própria vida e de suas possibilidades de desenvolvimento. Não têm chance
de construir sonhos ou buscar utopias. A coisificação do sujeito dentro do
hospital definitivamente não contribui para a evolução desse cuidado. Daí o
termo instituição total, associado a hospícios, prisões, conventos e algumas
escolas. Os internados estão lá porque representam risco para a sociedade
ou porque simplesmente não sabemos o que fazer com eles e a instituição é
chamada a dar conta disso.

E então o desafio fica claro: como construir dispositivos que, espa-


lhados pelo território municipal, consigam ofertar à população a chamada
atenção integral de base comunitária em saúde mental. Isso é a RAPS, Rede
de Atenção Psicossocial, hoje regulamentada por portarias do Ministério
da Saúde a partir da Lei Federal 10.216, de abril/2001. Em Santo André, a
Rede de Atenção Psicossocial foi regulamentada por lei municipal um ano
antes, em 2000.
243

A atenção integral de base comunitária é uma resposta técnica e


política ao modelo tradicional desse campo, o hospitalocêntrico, que é o
modelo da psiquiatria tradicional e pressupõe que o cuidado deve ser fei-
to no hospital psiquiátrico. Do ponto de vista gerencial, é preciso superar
essa centralidade cara, restrita em sua capacidade de recuperação, que viola
direitos humanos e serve de depósito para pessoas, inclusive submetendo
seus usuários a práticas de tortura, confinamento, abandono e privação de
liberdade.

2. Arqueologia em Santos

O foco deste texto é o desenvolvimento da rede em Santo André


entre os anos 1990 e 2000, experimento que é um dos instituintes da RAPS
nacional. Ele serviu de base para construir o desenho que o governo federal
veio sistematizar e propor para o país. Também é verdade que a experiência
se baseou no modelo de Santos. De certa forma, é possível entender que a
reforma no litoral de São Paulo subiu a serra para fincar raízes em Santo
André e se espalhar pelos municípios do ABC paulista, como São Bernardo,
Mauá, Ribeirão Pires, Diadema, São Caetano, Rio Grande da Serra. Hoje,
todos eles possuem Centros de Atenção Psicossocial – CAPS.

Começamos, então, pela arqueologia desse processo. Santos foi a


primeira cidade do Brasil que assumiu fechar hospital psiquiátrico e cons-
truir uma rede de serviços de base comunitária. Isso começa lá atrás, ainda
nos anos 70. Havia uma cela no palácio da polícia da cidade que era exclusi-
va para botar louco. Chamava chiqueirinho. Por volta de 78, um movimen-
to com a participação da vereadora Telma de Souza levou ao fechamento
dessa cela, já demonstrando sua predisposição a humanizar o tratamento de
distúrbios mentais. Uma década depois, Telma se tornou prefeita da cidade
e junto com ela veio Davi Capistrano da Costa Filho, médico sanitarista, seu
secretário de Saúde, e, posteriormente, seu sucessor na prefeitura.

A utopia por ali era baseada na experiência da Psiquiatria Demo-


crática Italiana, que, em Trieste, no início dos anos 70, fechou o manicômio
e implantou uma rede de serviços 24 horas espalhados no território. Isso
aconteceu em Santos entre 1989 a 1996, proposto por companheiros como
Roberto Tykanori, Antonio Lancetti, Domingos Stamato, William Valen-
tin, Fernanda Nicácio, etc., via Secretaria Municipal de Saúde. Esse grupo
244

propôs a intervenção na Casa de Saúde Anchieta, um marco fundamental


na luta nacional. A intervenção ocorreu porque meses antes ocorreram oito
mortes na Casa de Saúde Anchieta, um hospital psiquiátrico particular que
vendia serviços para o Estado. Os motivos foram maus tratos e abandono,
tudo isso chegou à prefeitura num relatório do governo estadual. Em res-
posta a essa situação limite, nos primeiros meses da nova gestão a prefeita
decretou intervenção pública no hospital. Isso desencadeou uma revolução
na atenção às pessoas com problemas de saúde mental, desaguando na rede
24 horas.

A proposta que se implantou partiu da construção de um projeto


para fechar o hospital. Os pacientes foram organizados nas alas não em fun-
ção do diagnóstico, como era feito, mas sim de acordo com seu território,
seu local de moradia. O hospital tinha cinco enfermarias e cada uma delas
passou a corresponder a uma região da cidade. Uma equipe interdisciplinar
foi fixada para cada grupo – psicólogos, terapeuta ocupacional, enfermei-
ro, assistente social, psiquiatra e também profissionais de arte, oficineiro,
educação física, pedagogo. O trabalho começou lá dentro, para constituir
o vínculo desses cidadãos com a equipe ainda no hospital. Depois, cada
equipe seguiu junto com os pacientes conforme fomos abrindo os NAPS
pelo município.

Paralelamente, a prefeitura começou a montar a rede dos NAPS.


Criou o NAPS I, 24 horas, no andar de cima de um centro de saúde do Estado
e para lá transferiu a equipe e os pacientes de uma das enfermarias do An-
chieta, correspondente à Zona Noroeste, nosso território de abrangência. A
rede seguiu crescendo até que o último equipamento, o NAPS V, foi entregue
em 92, concluindo a implantação da primeira RAPS nacional. Então, o An-
chieta, foi progressivamente descontinuado, mas seu prédio acabou destina-
do a outros usos. Durante esse período, recebeu várias demandas de cuidado
de grupos e populações em situações vulneráveis, como meninos de rua, que
eram um grande problema naquele momento em Santos.

O NAPS I fica até hoje na Zona Noroeste, uma das regiões mais
pobres da cidade. Ele recebeu o maior número de pacientes do Anchieta,
que habitavam aquele território, demonstrando a força da relação entre in-
ternação e pobreza, apontando como o hospital servia para fazer controle
social das populações mais vulneráveis. Era um lugar de desterro, de trans-
formar as pessoas em coisas que mensalmente produziam dinheiro para o
dono do hospital, com aura de filantropia.
245

O prédio do Anchieta abrigou o primeiro Núcleo de Atenção à


Toxicomania, o NAT, no final da gestão Capistrano, o Secretário de Saúde
da gestão Telma, que depois foi prefeito de Santos entre 1993 e 1996. O
NAT consistiu na primeira experiência de oferta de cuidados nos moldes da
reabilitação psicossocial voltados para os grupos em vulnerabilidade pelo
abuso do consumo de drogas, experiência que dá origem aos CAPS AD.
Também implantou o Centro de Valorização da Criança, o CVC, seguindo
o mesmo desenho de reabilitação e modelo interdisciplinar, mas focado nas
questões da criança e do adolescente, principalmente aprendizagem, cog-
nição e distúrbios de comportamento. Implantamos também o Núcleo de
Geração de Trabalho e Renda e fomentamos a criação da cooperativa “Para
todos”.

Outra iniciativa criada lá que merece destaque foi a Associação


Franco Rotelli, ONG (organização não governamental) fundada e organi-
zada por usuários, trabalhadores e familiares da rede. Seu objetivo: garantir
e lutar pelos direitos das pessoas portadoras de sofrimento mental. Consti-
tui-se como ferramenta de expressão desses grupos que não tinham voz. A
meu ver, isso representa a coroação desse processo todo. A lógica da rede
pressupõe a reversão do modelo. Quem efetivamente inclui não é o poder
público, mas a sociedade civil. Entendo que associações civis são as princi-
pais ferramentas para efetivar a reinclusão. Não se trata só de tirar louco do
hospício e de montar casa, mas também de buscar uma mudança cultural
na sociedade, aqui fora, e isso é completamente de longo prazo, difuso. O
cuidado que a gente sempre teve foi de negociar com a comunidade quando
íamos implantar algum serviço nos territórios, e isso ajuda muito.

Por exemplo, a casa para o CAPS tem que ser grande, casas gran-
des são mansões, então casa de gente rica, muitas vezes, decadente. Em al-
guns territórios brasileiros, houve reação da população, que não queria tra-
zer loucos para perto de casa. As associações têm a capacidade de se fundir
no tecido social e por isso são um instrumento de transformação que está
nas nossas mãos. A essência da reforma é quando usuários e familiares bri-
gam pelo direito de os usuários estarem no território, com moradia decente,
possibilidade de trabalho. É a própria sociedade se articulando.

Nessa época, eu era um psicólogo recém-formado, morava em San-


tos e trabalhava no Guarujá, município vizinho, ainda numa lógica ambula-
torial. Tinha meu horário fechado, meus pacientes marcados, não precisava
246

pensar em território, prevenção. Até que um dia o Domingos Stamato, que


foi meu professor e querido amigo, chega com um convite: “Então, você
não quer trabalhar no NAPS I?”. Respondi que sim, claro: era muito mais
perto da minha casa. Ainda não sabia o que era, eu comecei como técnico e
descobri que havia um mundo de práticas e vivências completamente novas
na minha experiência como trabalhador da psicologia. A princípio, minha
motivação foi completamente pessoal, mas rapidamente me senti vinculado
à proposta. Fui inoculado, quase como se a militância se apresentasse como
infestação, uma febre, um tipo de adicção que toma conta do seu corpo e só
ameniza quando se está junto dos seus. A consequência foi o envolvimento
com uma construção que, se desse certo, na utopia, a gente imaginava quase
numa fantasia, num desejo muito distante, isso poderia ser replicado para
o Brasil. No âmbito da intervenção, era fantasioso pensar que o país estaria
assim como hoje. A voz comum era pela manutenção do status quo. Para a
imprensa local, um bando de loucos.

Por isso, a experiência foi tão preciosa. Eu vivi o NAPS I, um cal-


deirão que trocou o pneu com o carro andando. Ele simboliza o primeiro
“dá pra fazer”, a concretização da utopia. Foi efetivamente o primeiro dis-
positivo público que demonstrou que dá para fazer. E, dentro disso, seu
grande valor foi ser uma imensa comunidade, envolvendo todos na vontade
de fazer para dar certo, pelo compromisso coletivo. Tinha que dar certo, e a
gente sabia que era para dar, muito melhor do que manter os caras presos.

E aí, as histórias. Dá para construir uma enciclopédia. As pessoas


passaram a contar o que viveram dentro dos hospitais, pela primeira vez
quem havia morado em hospitais tinha espaço e incentivo para compar-
tilhar a sua voz. Do ponto de vista profissional, tudo que sei hoje comecei
aprendendo lá. Essa experiência marcou profundamente minha vida, me
vejo até hoje reproduzindo e buscando diretrizes e ideais que foram postos
na minha história pessoal naquele momento. Quanto mais eu me afastava
da clínica, mais me sentia relevante como psicólogo. E ali tive minha pri-
meira experiência em gestão, que chegou por um caminho que simboliza
tudo isso. A coordenadora do NAPS onde eu estava – Fernanda Nicácio –
estava saindo de licença-maternidade. Fizemos uma eleição entre todos os
trabalhadores e eu saí escolhido. O formato aberto e democrático, bancado
pela gestão, foi sensacional. Representava a construção da responsabiliza-
ção coletiva da equipe com a gestão do seu território. Uma aposta veemente
na capacidade organizacional dos trabalhadores. Isso foi bancado e a casa
não caiu naqueles nove meses.
247

O que me parece que ficou na marca de Santos é que a ideia de


construir a utopia funciona como argamassa cidadã, mesmo com muita re-
sistência ao redor. A possibilidade de construir uma nova sociedade produ-
ziu diversos movimentos sociais em torno da intervenção e da construção
da rede. Romanticamente tínhamos a impressão de que estávamos cons-
truindo a utopia. Esse ambiente de trabalho e cooperação é muito eficaz e
é um fenômeno relativamente previsível em administrações públicas que
abrem espaço para o desenvolvimento de processos amplos de inclusão so-
cial e sustentabilidade, como a reforma psiquiátrica.

3. Santo André em formação

Também tem um capítulo dessa arqueologia em Santo André, na


gestão municipal de 89 a 92, que foi a primeira gestão do prefeito Celso
Daniel. Ali o município assume a responsabilidade de implantar e construir
as bases do Sistema Único de Saúde – SUS. O momento político era o da
redemocratização, da construção de um novo Brasil, saindo dos porões da
Ditadura para construir o novo. A Constituição foi um grande disparador
desse movimento que significou implantar a saúde como direito universal
e um dever do Estado.

Para organizar esse texto, contamos também com os relatos de


profissionais que viveram a gestão pública da saúde no ABC, particular-
mente em Santo André. Participaram dessa dinâmica Maria Regina Tonin,
Graziella Barreiros, Drauzio Viegas Jr., Iana Profeta Ribeiro, Beatriz Bar-
reiros e Maria Dirce Cordeiro. Suas opiniões estão incorporadas no texto
daqui para frente. A mistura das vozes é proposital.

Como disseram, não interessa mais onde a gente entrou no bar-


co. É uma coisa tão forte que mistura. Já me perguntaram se eu estava na
intervenção (do Anchieta) e às vezes eu penso que eu estava sim, às vezes
eu até respondo como se estivesse. É como se as histórias se confundissem,
mesmo que a minha tenha começado mais tarde. E são apenas os coletivos
que proporcionam isso, é muito dialético. Em Santo André, a rede RAPS
como está hoje surge nesses espaços coletivos, com quem já estava antes,
quem chegou depois, tudo misturado.

Dados a multiplicidade de experiências desse grupo e o caráter


eminentemente coletivo do trabalho realizado, me parece que o caminho a
248

seguir nesse texto é a fusão dos relatos. Portanto, ainda que o fio condutor
deste seja o trabalho e a trajetória do Décio, leve em consideração que deste
parágrafo em diante a narrativa estará confundida com relatos de experiên-
cias compartilhadas pelo grupo mencionado, que efetivamente viveu junto
o processo.

Em Santo André, a gente tem uma coisa muito forte de participação


popular e acolhimento, é o A do grande ABC. Em 1988, teve uma sobra de
caixa e a secretaria de Saúde do Estado resolveu gastar dinheiro na região,
contratou muita gente, uma leva em que veio psicólogos, terapeutas ocupa-
cionais, um começo dessa tentativa de mudar o modelo, a propor a reforma.

Já havia o Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM)


no final dos anos 1970, portanto antes do Movimento Nacional da Luta An-
timanicomial (MNLA). Ali começa uma efervescência, de olho no que San-
tos está fazendo e muito próximo também da experiência de São Paulo du-
rante o governo Erundina. Santo André ficou no meio do caminho e bebeu
dos dois modelos. A primeira gestão Celso Daniel começa em 1989. Cria-
mos dois ambulatórios que foram um grande ganho, passou-se a atender
as pessoas com problemas de saúde mental moderados, leves, e uma parte
dos graves saindo do hospital nesse sistema ambulatorial. Foi um avanço,
mas eles não eram suficientes e também não lidavam com a crise, a única
resposta nesse momento ainda era o hospício. Nesse contexto, um grupo
amadurece e passa a reivindicar que a cidade também seja protagonista da
reforma psiquiátrica. Havia um fogo ali, um caminho, que se desorganizou
quando a prefeitura trocou de mãos em 1993. Ficamos em brasa durante
toda uma gestão, até que em 1997 o Celso Daniel reassume e o município
volta a pensar em implantar o SUS e fazer a reforma.

E aí quando vemos que Santos vai mudar de gestão, em 1996, a


gente percebe que, opa, que bom, esse povo vai subir a serra.

Entre 1993 e 1997, passamos por um período muito difícil. Quan-


do voltamos para gestão, não tinha mais nada. Veja isso, eu coordenava
uma unidade de saúde, mas quando mudou a gestão eles tiraram um vaso
sanitário do hospital, botaram uma madeira em cima e em cima disso mi-
nha carteira. Meu papel, o dia inteiro, era pegar uma canetinha e marcar a
cor das carteirinhas para dividir os pacientes para cada clínica.
249

As pessoas estavam todas represadas. Em 1997, com o retorno do


projeto, todo mundo queria participar de tudo.

Pré-eleição, todo mundo vai para dentro do partido fazer a sua


carta. A lógica na nossa cabeça, muito viva ainda, era o sistema de saúde di-
vidido entre os níveis primário, secundário e terciário. O primário é a porta
de entrada da rede, a atenção básica. Secundários são serviços de especiali-
dades e terciário é a internação hospitalar. Mas aí entramos na saúde mental
em 1997, começa-se a discutir CAPS e deu um nó: por que, que lugar é
esse, que é tudo ao mesmo tempo? Onde vai ser o ambulatório? Não, não
tem ambulatório. Como assim, não tem? Embolaram as formas de pensar.
Era confuso, porque ainda pensávamos no serviço, e não no caminhar da
pessoa. Até ali a pessoa era quadrada, ia para o serviço quadrado; a redon-
da, para o redondo. Mas de repente as pessoas eram plásticas e os serviços
precisaram ser sensíveis a essa plasticidade.

Quem subiu a serra de primeira não foi a Mental, mas o pessoal


que veio fazer a gestão do Departamento de Especialidades, a Lídia Tobias,
a Maria do Socorro Soares e a Isamara. Elas chegaram e sentiram o clima da
Mental, que estava se batendo. A coordenação da SM foi exercida pela Elia-
ne Guerra, nesse primeiro momento. O povo do Departamento de Espe-
cialidades percebeu que aquela situação não daria certo, que precisávamos
pensar além. O fogo estava em brasa, represado. O povo de Santos veio para
a gestão das Especialidades e eles começaram a assoprar a brasa. Acabaram
sugerindo o nome do Décio para coordenar o NAPS II (que era o Hospi-
tal–Dia, da Praça Chile), aceitamos e ficamos esperando ele, que não vinha,
ficamos esperando Godot muito tempo. E, na véspera de chegar, o cara caiu
não sei onde, quebrou as costas, passamos mais um tempão esperando.

No dia em que ele chegou, deu de cara com Zé Estevan, e ele é um


doido mais que doido, olhou para o Décio e falou: “Chegou Jesus! Estáva-
mos esperando você”. Os dispositivos que os NAPS de Santos construíram
vieram junto. A porta se abriu, começou a ter “maluco” dentro do serviço. A
gente começou a fazer alimentação dentro da casa, começamos a sustentar
a crise ali mesmo. Logo ele chega, convida todos para uma reunião para
começar a discutir a história de uma rede. Foi um contraponto forte com o
que acontecia.

Nesse momento, subiram a serra Décio, Suzana, Iana, Fernanda,


250

que encontraram uma rede ávida. As reuniões eram fervura, tinha 30 pes-
soas numa sala pequena, nem cabia todo mundo. O NAPS II foi o umbigo
da história, foi lá que nasceu tudo, foi lá que nasceu toda esta rede. Tinha
uma coisa, na minha opinião o pessoal subiu a serra para dizer: “as dificul-
dades sempre vão estar aí, serviço público é difícil mesmo, mas dá pra fazer.
Se joga. Se vira”.

4. Reforma no alto da serra

O primeiro passo é instituir um conjunto de serviços espalhados


pelo território municipal, uma rede efetiva de base comunitária que tra-
balha em uma lógica territorial com níveis diversos de efetividade e que
prescinda do manicômio. Esses níveis diversos significam não concentrar
tudo em um único equipamento, que é o hospital, que deveria dar conta da
crise, do atendimento posterior à crise, da atenção às famílias e do acompa-
nhamento no território.

Os hospitais não fazem porque se centram apenas na primeira ta-


refa: tirar as pessoas da crise. Historicamente, um hospício não contribui
para diminuir os casos de transtornos em seu território. Não havia disposi-
tivos para lidar com essas questões no mundo real, na comunidade, fora das
paredes da instituição. Ter serviços para atender com intensidades variadas
é uma forma de dar maleabilidade e plasticidade ao cuidado. Quantos ca-
sos, por exemplo, foram interpretados como problemas psiquiátricos e as
pessoas depositadas no hospital? Por exemplo, epilepsia, neuroses graves
como a síndrome de pânico, transtornos de humor, depressões e outros.

A reforma é a opção pela complexidade. É compreender e aceitar a


profunda singularidade do indivíduo, buscando oferecer alternativas próxi-
mas ao seu dia a dia. Isso quer dizer ter uma porta que atenda as pessoas o
mais próximo possível da casa dela e que dê conta de lidar desde a crise até
o acompanhamento das pessoas em sua comunidade. Hoje, isso se traduz
em dispositivos como os CAPS III para álcool e drogas, para transtornos e
para jovens, com funcionamento 24 horas, com camas de atenção integral,
suportes de moradia, como residências terapêuticas, todas trabalhando em
rede dentro de uma lógica territorial que propõe a esses dispositivos a res-
ponsabilidade com a atenção integral.
251

Quando Celso Daniel assume sua segunda gestão, em 1997, o mu-


nicípio já tinha dois ambulatórios de saúde mental, aqueles montados lá na
primeira gestão. Tinha um hospital-dia que atendia cerca de 30 pacientes gra-
ves, que necessitam de atendimento intensivo e contínuo. E, claro, o hospício
funcionando, o Borda do Campo. O fato era que os loucos, quando ficavam
loucos, iam para lá. O hospital-dia, de excelência, atendia 30 pessoas. Sua
lógica é tirar a pessoa da crise. Mas ele é pensado para território pequeno,
tem baixa capacidade de resposta. Vinte pessoas para atender trinta? Não dá.
Mas justiça seja feita, eles são um modelo muito melhor que o anterior. Mas
centrado na crise. Fica aberto durante o dia, atende pessoas graves em crise e
precisa de uma retaguarda noturna, ou no hospital ou na família.

A primeira transformação que a gente executou foi no Ambula-


tório de Saúde Mental II. Das cerca de 900 pessoas em tratamento ali, 400
eram graves, pacientes que, quando em crise, ainda eram levados para o
Borda do Campo. Esses pacientes nós direcionamos para o antigo hospital-
dia, que foi remodelado e nesse momento virou NAPS II. É a casa da Praça
Chile. Então imagina que um serviço que tinha vinte funcionários e trinta
pacientes passou a ter vinte e oito funcionários e quatrocentos e trinta pa-
cientes. Isso foi um conflito. Os trabalhadores não acreditavam que pudesse
dar certo. E em 1997 a gestão convidou o Décio para assumir a Casa da
Praça Chile, antigo hospital-dia, com a missão de transformar em NAPS.

O prédio é muito interessante. Era um antigo pronto-socorro, tem


uma área verde no entorno que é legal. O ambiente já era muito propício
para se pensar num cuidado envolvendo a comunidade. A maneira como
o bairro é constituído, casas de operários, de cara ficou claro que seria in-
teressante investir ali como uma região modelo na cidade, no sentido de
ter as casas espalhadas pelo território. Hoje, as residências terapêuticas e os
núcleos de geração de renda da região são acessíveis a pé a partir da Praça
Chile.

Já tínhamos ali a equipe do hospital-dia e recebemos os trabalha-


dores do ambulatório, ambos lidando com situações novas. Por exemplo,
como manter a porta aberta. No hospital-dia as pessoas só saíam quando
tinham alta, quando mudavam de cidade ou quando morriam. No ambu-
latório, as pessoas só passam. E agora o conceito era todo outro, manter a
porta aberta. E para fazer isso você precisa pegar as pessoas que estão ali e
colocá-las na porta. E isso é muito difícil, imagina você pegar um técnico
252

que passou num concurso dez anos antes, que atende oito pessoas por dia,
aí você chega para ele e diz: “espera aí, amigo, primeira coisa, vamos tirar
essa agenda, segunda coisa, vamos tirar a mesa, a cadeira, terceira coisa,
essa sala aqui não é mais sua também, a sala é de todos. Quarta coisa, ah é,
agora você vai precisar trabalhar também na porta”. É um baque.

Também é verdade que a gente deslocou os trabalhadores dos


ambulatórios para o NAPS. Tentamos fazer a solução negociando com os
trabalhadores. E não funcionou. A posição deles foi “que ótimo que vocês
estão fazendo isso, mas não se deve desmanchar os ambulatórios. Precisa
montar equipes novas”. Só que não havia recurso, então foi uma tensão.
Mas precisava ser feito e o secretário bancou. E depois de implantado foi
bem recebido.

O NAPS II passou a funcionar de porta aberta, sem a necessida-


de de agendamento para atenção. Nessa passagem de Ambulatório II para
NAPS II, a grande transformação foi nos processos de trabalho, deixar de
entender o ambulatório como um prédio executado por uma equipe que
tem um trabalho repetitivo e serial em sua especialidade. Sair disso para
uma lógica de equipe interdisciplinar, responsabilizada por um território e
que, portanto, tem que ordenar a demanda de cuidado desse território. Esse
deslocamento está na essência da reforma psiquiátrica e do SUS.

Então o NAPS passou efetivamente a ser o lugar da crise. O grande


ganho da Praça Chile foi ter sido o primeiro serviço a mostrar que poderia
ser ali o lugar da crise, e não o hospício. E essa crise, que é por definição
uma quebra, quanto mais ela puder ser acompanhada pelos laços que fazem
sentido para a pessoa, melhor. A internação tem que ser o último instru-
mento possível, se tiver que ser feita, que seja perto da sua casa, num lugar
onde sua família possa visitá-lo sem barreiras ou horários fixos.

Tratar o rompimento mental com outros referenciais começava a


dar resultado. Nosso substrato deixa de ser a técnica, o doutor especialista,
para focar no vínculo interdisciplinar. É poder olhar no olho, saber que sou
eu que atendi você, sou eu que vou atendê-lo no futuro e eu vou ajudá-lo e
também vou ter a sinceridade de falar: “olha, cara, isso eu não consigo fazer,
mas vamos juntos, estou aqui, vamos encontrar um caminho”.

O que aconteceu ali foi bonito, porque virou um processo comu-


nitário. Teve situações em que a auxiliar de enfermagem topou virar a noite
253

no NAPS, que ainda não era 24 horas, acompanhando um paciente espe-


cífico em crise. Uma diretora da Secretaria de Saúde passava pela Praça
Chile aos finais de semana e percebeu que os usuários do serviço estavam
ali, na praça, na frente do prédio, momento em que ela concluiu que eles
e elas queriam que os serviços funcionassem ininterruptamente, inclusive
nos fins de semana.

A grande questão é fazer os serviços serem genuinamente dos


usuários. Isso tem muita resistência dos trabalhadores, se você for pensar
na micropolítica da coisa é compreensível. É claro que eles não são inimigos
do processo, mas é fato que causaram e causam muita dificuldade. Questões
como o papel de cada profissional dentro do serviço passaram a ser um
problema. No CAPS, tem que fazer porta, acompanhamento terapêutico,
tem que pensar em participar dos espaços coletivos, espaços de convivên-
cia, reuniões diárias de equipe, discussões de caso de maneira contínua,
passagens de plantão, enfim, atividades que não eram do dia a dia dos diver-
sos profissionais – psicólogo, médico, terapeuta ocupacional, enfermeiro,
assistente social -, que agora precisam dialogar com pedagogos, cuidadores,
oficineiros, acompanhantes terapêuticos, outros saberes agregados que am-
pliam o cuidado para fora da esfera da saúde, de encontro à esfera da vida.

Isso para dizer só do apego do profissional à sua rotina, outro


enorme desafio é a equipe entender profundamente o papel da participação
político-cidadã dos usuários para ter maturidade de propor e garantir espa-
ços de participação efetiva, não apenas protocolar e burocrática.

O CAPS, se estiver trabalhando direitinho, cria uma área de prote-


ção na comunidade para as pessoas que porventura são acometidas de crise
psiquiátrica. Tem que ficar claro para elas e para a cidade toda que nessa
casa, naquele prédio, ficam as pessoas que cuidam do sofrimento mental,
que ali você, o seu primo ou aquela vizinha que precisa de ajuda não serão
brutalizados ou mandados para o hospício. Construir esse valor no imagi-
nário é uma questão cultural que leva tempo e demanda compreensão de
longo prazo. Resiliência, capacidade de levar porrada e não perder o rumo.
Em Santos, o medo era “vão soltar os loucos, a cidade vai ficar em risco”,
chegou a ser uma questão midiática, houve uma gritaria nesse sentido, por-
que não havia a concepção de que se podia fazer de outra forma. Mas a
reforma vem provando que dá para fazer. E isso transforma.
254

Retomando à formação de Santo André, dos 900 pacientes do Am-


bulatório II, 400 foram para a Praça Chile e os outros 500 pacientes mo-
derados ou leves foram para o Centro de Especialidades II. E lá, vida que
segue, a mesma lógica ambulatorial ainda em vigor, considerando que são
casos que não demandam atenção integral. Então dividimos os pacientes do
ambulatório II em dois grupos, 400 para o Praça Chile e esses 500 citados
anteriormente. A equipe, porém, foi dividida em três.

O terceiro grupo dos profissionais ficou na mesma casa e ali rece-


bia usuário de outros equipamentos para desenvolver atividades visando à
geração de trabalho e renda para esses usuários. Nasceu o Núcleo de Proje-
tos Especiais, o NUPE. Talvez a melhor metáfora desse momento, porque,
sem ter nenhum investimento, começou propondo projeto de reciclagem.
Tornou-se uma estação de coleta no bairro, fazendo parte de um programa
da Secretaria do Meio Ambiente. Essa unidade de saúde mental passa tam-
bém a funcionar como um posto de reciclagem e os usuários constituem
um grupo para gerar renda com a atividade. Eles vão bater de porta em
porta, falar do programa e solicitar que as pessoas separem material. Passou
anos fazendo esse trabalho até que, quando conseguimos uma grana com
o fim do contrato federal com o Borda do Campo, construímos uma mar-
cenaria e uma horta comunitária, tudo no prédio onde era o Ambulatório
II. Alguns anos depois, conseguimos uma grande área da prefeitura e os
usuários passaram a plantar, numa escala maior, hortaliças e verduras que
eram vendidas às comunidades do entorno.

O NUPE é um dispositivo da reforma que inova ao trazer para o


campo do cuidado o conceito do trabalho como organizador da autonomia
das pessoas. Mais do que pensar como terapia, que vem do modelo hospi-
talar, ele é uma ferramenta de construção de autonomia e entra como to-
dos os outros direitos básicos do ser humano, necessários para o indivíduo.
Então, em vez de apenas focar na doença e tentar fazer remissão dos seus
sintomas, a proposta traz toda uma noção de cuidado, que vai além de fazer
o cara deixar de apresentar sintomas, e passa a fazer o acompanhamento
das populações ao longo da vida, no seu território de existência.

Todos esses serviços ficam na chamada região II, o distrito de


Utinga. É interessante que o povo de Utinga, quando vai para o centro da
cidade, fala “eu vou para Santo André”. Porque eles eram mesmo tratados
como os caras do outro lado do rio. Utinga era periferia operária. A popu-
255

lação sempre recebeu bem os serviços. O equipamento, prédio, que mais se


adequava às necessidades de socialização que o CAPS propõe, era o hospi-
tal-dia da Praça Chile. Um bairro bastante residencial, disposição de casas
com boa estrutura, bom para se pensar em como ocupar o território com
serviços da RAPS. Pensa que o sujeito passou vinte, trinta anos num hospí-
cio, é uma conquista recuperar a capacidade de circular pelo território. Por
isso, é importante o bairro acolhedor.

5. Santo André da Borda do Campo

Uma etapa fundamental dessa história é o fechamento da Clínica


de Repouso Borda do Campo, último hospício em atividade no município
e a consequente implantação do primeiro 24 horas, que é de 1999/2000, o
NAPS I.

Em 1998, o município assume a gestão plena da saúde, reorgani-


za seu Conselho Municipal e assume o compromisso de se responsabilizar
integralmente pela saúde do município, dentro do desenho do SUS. E aí
herda do governo federal todos os seus contratos, inclusive o contrato com
o Borda do Campo. Isso foi no começo de 1999. Por volta de junho, julho,
o Homero Nepomuceno, que era o secretário de saúde, manda um comuni-
cado para o dono do hospital propondo uma conversa, pede uma reunião
para dali a quinze dias. Não era uma auditoria, não era uma inspeção, deu
tempo de sobra. Mas o fato é que nessa visita o secretário fala para o dono
do hospital que a proposta do município era fazer os serviços 24 horas e por
isso ia reduzir o repasse para o Borda do Campo em 20%, desativando os
leitos correspondentes.

O contrato era do governo federal, não só para Santo André, ele


também atendia outros municípios da região. A resposta do proprietário
foi: “olha, isso não dá mais o lucro que dava. Se você reduzir o repasse, eu
vou fechar em 90 dias”. E aí o Homero, o grande responsável por bancar
todo esse movimento e por dar as bases do projeto de Santo André, diz:
“mas aí a decisão é sua, não estou propondo fechar, mas sim reduzir 20% do
seu repasse”. O proprietário foi irredutível e fechou em 90 dias. Foi o tempo
que nós tivemos para conseguir transformar o Ambulatório I em NAPS
I, o primeiro 24 horas de Santo André, inaugurado poucos dias antes do
fechamento do hospital.
256

A alternativa foi alugar uma casa que comportasse a enfermaria. A


intenção é que a Praça Chile fosse o primeiro 24 horas da cidade, mas ainda
precisaria ser reformada. Também decidimos investir na região 1, porque
era uma forma de ampliar a rede. Nesse momento, tínhamos dois serviços:
o CAPS 12 horas na Praça Chile, região 2, e o 24 horas no centro, região 1.
Além disso, com o fechamento do Borda, tivemos que criar também a pri-
meira residência terapêutica. Havia oito homens morando lá. E tínhamos
três meses para arranjar casa para eles. Três meses para a gestão pública é
nada. Então tivemos que nos virar, mantivemos a casa do Ambulatório I,
usamos móveis inclusive do Borda do Campo. O hospital fechou, o dono
nos ofereceu móveis.

Tinha morador que não via a rua há mais de vinte anos, que não
sabia em que cidade estava. Quando a perua com eles parou na porta do
NAPS, que era uma rua com bastante movimento no centrão de Santo An-
dré, um dos moradores sai e deita no meio da rua, parando o trânsito. É
levado para dentro, passou por um primeiro atendimento e depois foi para
a residência. Quando chegou, ele estranhou de novo. Seu Firmino começou
a ficar nervoso, agitado. Alguém já fala em aplicar um sossega-leão, aquela
herança toda, e não sei o quê. Nisso eu chego do mercado com uma caixa de
leite longa vida no ombro para a casa. Ele me viu e perguntou “Que isso?”.
Eu disse “Leite”. Ele, “De vaca?”. Eu, “É, ué, de vaca”. “É pra beber?”. Eu disse
“É, comprei para vocês”. Ele pegou uma caixa, abriu com o dente e começou
a virar, foi bebendo e acalmando, acalmando. Depois eu fui descobrir que
ele nasceu na roça, cresceu em Minas, era um matuto que se perdeu na ci-
dade, que cresceu tomando leite e chegou a um hospício que não dava leite
de vaca, só de soja. E ele ali, mamando.

6. Histórias e sujeitos

O Seu Betarelli, João Antonio Betarelli, a gente deve muito a ele.


Ele insistia muito, era um sindicalista, sempre apontava, porque não temos
uma associação, precisamos ter. Eu o conheci em 1992 e ele já era velhinho,
passou mais vinte anos e continuou insistindo.

O filho dele era um caso muito grave, muito fechado, taciturno.


Mas um era grudado no outro. O velho falava “Eu vou lutar a vida inteira
porque eu sei que são vocês que vão cuidar do meu filho”. Olha isso, que
257

forte: “Eu sei que são vocês que vão cuidar do meu filho”, ele acreditava na
reforma mais do que nós. Até que ele morreu e um dos familiares levou o
filho dele para uma casa de repouso. Tudo isso aconteceu num interstício de
gestão, estávamos fora da Saúde Mental e de Santo André. Quando a gente
voltou, há dois anos, ele estava internado em clínica e a gente falou: “não,
era uma questão de honra”. Criamos uma residência e ele foi para lá. Fala-
mos: “não, depois de tudo que esse homem fez, não podemos deixar o filho
dele lá”. Ele insistia, era uma figura, parecia o Mazzaropi, com a calça bem
em em cima, o jeito dele andar... Ia em tudo, estava sempre com a gente, nos
puxando, incentivando. Quando vimos o filho dele na clínica, não teve jeito,
tiramos ele de lá.

Eu lembro de uma cena, de um usuário que só ficava bem debaixo


da mesa da administração. Eu chegando à saúde mental, e disse: “oi querido”,
mas morrendo de medo, sem entender. O NAPS era só de dia, ele não queria
ir de jeito nenhum para a emergência. Começamos a conversar com os fun-
cionários e encontramos um jeito de ele ficar ali. Daí já começamos a pensar
em ficar 24 horas. E ficamos. Foi sendo feito. E fomos ficando abusados.

Eu cheguei na época de ver o CAPS I virar. E é muito importante.


Porque uma coisa é a teoria. Estudar modelos, ler. E tem muito marketing.
Santos fazia muito marketing. Mas daí chega à prática. E estamos lá eu e o
Dráuzio indo retirar os moradores do Borda, naquela perua cheia de ho-
mem. A gente abre aquela porta e o Firmino se joga no asfalto, eu pergunto:
“E agora, que eu faço?”.

A Ivone, da cozinha, eu com os pacientes, e ela entrava com as con-


versas dela. Trabalhadores que não tinham essa formação psi, essa forma-
ção mais técnica, eles também contribuem muito. Eu estou me lembrando
da questão do homem que ficava embaixo da mesa. Quando ele chegou ao
NAPS pela primeira vez, ele tinha crostas na pele. A médica que o atendeu
disse: “eu não vou atender mais se não tomar banho”. A gente não conse-
guiu fazer ele tomar banho, até que a Vanderli Rosa Carvalho, uma auxiliar
de enfermagem, quis ir ver a casa dele. E estava muito suja, era uma casa
grande, muito mal cuidada. E ali ele disse para ela que a mãe tinha morrido
embaixo do chuveiro, nos seus braços. Daí começamos a discutir o que era
o banho para ele e quanto a gente deveria cuidar também da casa, da rela-
ção dele com a morte da mãe, o que era sintoma e o que era causa. Então
entendemos a transformação de participar do dia a dia, não era mais só a
258

teoria, mas entender como usar as teorias para mudar na prática a vida das
pessoas, isso foi um grande salto.

Tinha um garoto bem jovem, muito grave, que ficava rodando em


volta do NAPS. Os técnicos fizeram de tudo, viraram do avesso, mas ele
não entrava. Onde o menino estava, levávamos oficina, e ele nada. Até que
um dia, entramos na cozinha e lá estava a Dona Ivone, a cozinheira, e es-
tava com ele conversando: “Ué, oi, tudo bem, dona Ivone”. Ela respondeu:
“Tudo, ele gosta de Danone. Faz assim, ó, fala para ele que tem iogurte na
geladeira que ele entra e aí dá para conversar”.

Sabe por que ela foi transferida para lá, né? Ela trabalhava no Ban-
gu, um pronto-socorro, e não varria nada, ficava só conversando com o
povo. Deu muito certo na Mental.

Uma coisa que a gente fazia muito era traduzir. Juntava todo mun-
do e começavam as conversa. Aí algum técnico fala que “fulano está num
processo transferencial”, mas isso é o quê, coisa de banco? Mãe esquizofre-
nizante, é o mundo de Bob? Começamos então pela linguagem, sustentar
que as pessoas começassem a entender.

Vou contar uma história. Um dos temas de uma assembleia foi


uma briga que aconteceu após um jogo de futebol. E na assembleia surgiu
a decisão de suspender os dois brigões por uma semana. E o coletivo falou
“vocês brigaram não porque estavam em crise, mas porque um é corintia-
no e o outro palmeirense. Então estão suspensos, uma semana sem vir ao
CAPS”. Daí na mesma assembleia teve o caso de um paciente que bateu no
médico e, na discussão com todos eles, ficou claro que ele estava em crise.
Eu ali com medo de que fossem suspender de novo, mas não, ao contrário,
o coletivo falou: “não, esse tem que vir mais vezes para cá”. Foi linda essa
apropriação do serviço de como lidar com pacientes agressivos, não foi só
dos técnicos e da gestão, mas também, muito, dos usuários.

Quero falar um pouco de momentos em que os usuários realmen-


te foram protagonistas, nos quais exerceram poder de gestão e tocaram o
caminhar dos serviços. Teve um psiquiatra que nos procurou, estava preci-
sando muito trabalhar, ele era o cara responsável pelo eletrochoque no Bor-
do do Campo. Assim que ele entrou, a Célia, que estava na porta paradinha,
apontou para ele e falou: “Olha o cara do choque no Borda”. Veio falar com
a gente e perguntamos, ele disse que sim, que era o plantonista da manhã e
259

que era ele que ministrava. Dissemos então: “Olha, só tem um jeito de você
entrar: passar pela assembleia”. E ele topou. Foi lá e falou, assumiu e disse
que sabia que a coisa mudou, que estava precisando trabalhar e que gostaria
de estar ali. E o povo falou: “Tudo bem, você fica”.

Esse tipo de coisa é precioso e precisa ser garantido, os técnicos e


os gestores precisam entender profundamente que é papel deles abrir espa-
ço para as expressões políticas e para a participação de usuários e familiares
na gestão. Teve um momento em que o CAPS II ia ficar dois dias parado
para fazer uma reunião interna de reorganização. Negociamos o fechamen-
to com os usuários. Conversamos com eles, que aceitaram. No primeiro
dia, nada, tudo bem. No segundo, eles começaram a chegar, foram vindo.
Até que chegaram tantos que alguém se incomodou e foi falar com eles. Um
respondeu: “Não, vocês fiquem à vontade, nós estamos aqui, vocês façam aí
a reunião de vocês e nós continuamos por aqui”.

O papel político da mediação é fazer entender que não estamos


propondo o caminho mais fácil, mas o melhor disponível. Essa história fez
com que a gente entendesse que a reforma não era um projeto da saúde,
mas da sociedade. E isso muda a gente, muda os usuários. Isso permite a
escuta, muda a relação entre todos.

Lembro quando a gente falou para os internados no Borda que iam


sair do manicômio, que eram pessoas livres. Compramos roupas para todos
e a calça do seu Abel ficou muito apertada. Vi aquilo e falei para ele que
deveria trocar. Véspera de Natal, 24 de dezembro, peru no forno, ele voltou
para cima, trocou a calça, colocou a roupa velha, voltou, sentou à mesa e
disse: “eu quero minha marmita e meu remédio”.

Aí, zum, caiu a ficha.

“Se eu não posso escolher minha calça, eu quero marmita e re-


médio”. Eu entendi aquilo, me tocou profundamente, me desculpei e disse
que a calça estava ótima, se ele quisesse usar. Ele subiu e voltou com a calça
pequena, apertadinha. Tem uma foto dele ao lado da árvore, fazendo sinal
de vitória. Eu queria salvar a calça e prender o Abel, olha a burrice.
260

7. Associação de gente

Em 2001, começa a terceira gestão Celso Daniel. Até 2000, a rede


tinha o CAPS II e o NUPE na região II, o NAPS I, a Residência Terapêutica
no Centro e o CAPS DQ (dependência química), que depois transforma-
mos em NAPS AD (álcool e drogas). Vale a pena falar dessa experiência
porque foi uma conquista ele virar 24 horas. Usuários e familiares compare-
ceram às reuniões de orçamento participativo, criaram um slogan, que era:
“porque problema com drogas não acontece em horário comercial”, para
justificar o CAPS DQ virar um NAPS AD. Fizeram lobby e conseguiram.
Boa parte do segredo está em adaptar o que se precisa às condições que
se tem. Se for esperar condições ideais, não faremos nunca. A chave está
em aproveitar os recursos existentes, que quase sempre estão disponíveis e
subestimados no contexto.

O processo de implantação é truncado. Hoje nós conseguimos ne-


gociar recursos para fazer cinco prédios próprios, por exemplo. Mas isso é
um percurso que vem de 18 anos, pelo menos. A mensagem para a implan-
tação da rede é: não esmoreça porque não tem o recurso ideal. Tem a ver
com “sevirologia” mesmo, a arte de se virar.

Em 2002, começa um movimento para fechar a Clínica de Repouso


de Ribeirão Pires, um hospital feminino que tinha 16 moradoras de Santo
André, o que nos passava a responsabilidade de montar mais duas residências
terapêuticas. Nesse momento, o novo secretário de Saúde, René Michel Min-
drisz, propõe qualificar a Associação José Martins para que assuma a gestão
dessas novas residências. E foi muito legal essa história. Mais um pulo do
gato. Conseguimos ter uma associação de usuários e familiares fazendo co-
gestão dos serviços, o que nos possibilitou contratar esses e outros usuários e
familiares para trabalhar na rede. Percebemos que boa parte dessas pessoas
possuía perfil de cuidador nato, adequado para o cotidiano de viver no ter-
ritório e de acompanhar os usuários. A associação chegou a ter 50% de seu
quadro profissional formado por usuários contratados na rede.

Isso nos deu capacidade de expansão para além do esperado. Com


o tempo, passou a fazer a gestão das oficinas de trabalho, renda e também o
Programa de Redução de Danos (PRD), voltado a populações vulneráveis
às DSTs. Montamos uma equipe de rua que passou a acessar profissionais
do sexo, transgêneros e outros grupos de diversas orientações e disposições.
261

Chegamos a acompanhar de maneira regular, na rua, 2.200 pessoas. Con-


tratamos profissionais do sexo, pessoas com mais de 30 anos de experiência
para falar com colegas da área. Assim se consegue um acesso maior por
ter identidade, por ser do ramo. Uma das moças abriu para nós mais de 40
casas na cidade onde havia circuitos de sexo. Foi o que nos proporcionou
conhecer as bombadeiras, no geral profissionais de saúde desempregadas
que aplicam silicone industrial, principalmente em travestis e transgêneros.
É uma prática ilícita e de alto risco, mas a verdade é que, mesmo proibida,
continua acontecendo. A redução de danos não vem para julgar, mas sim
para levar cuidados de saúde. Foi isso que nos possibilitou treiná-las para,
por exemplo, fazer uso de insumos descartáveis, reduzir as possibilidades
de danos. Também contratamos, por exemplo, frequentadores de casas no-
turnas, saunas, usuários de drogas – e sem condicionar ao fim do consumo,
apenas garantindo que não faça uso ou esteja sob efeito enquanto trabalha.

Mas isso não se faz por concurso público. Existem mais exemplos
práticos de onde a máquina pública emperra. Quer ver uma coisa? Como
justificar que eu, órgão de saúde, comprei cigarro para um paciente de re-
sidência? Como eu pago a pizza à noite que os moradores vão comer? O
Tribunal de Contas vai dizer que é prevaricação. Moradores de hospital
psiquiátrico perdem muito de identidade, não tem armário, não tem rou-
pa. Poucos hábitos de fora se mantêm, e fumar é um deles. Numa situação
dessas, deixar de oferecer cigarros a esse cidadão é uma privação violenta. O
poder público adquirir isso é complicado, mas a sociedade civil não.

Nos últimos anos, a José Martins foi coordenada pela Maria Dirce
Cordeiro, figura que merece contar a história da associação em primeira
pessoa. É o relato dela que virá a seguir, nos oito próximos parágrafos que
compõem a última parte desta seção. “Eu era gerente de banco, tive minha
primeira crise em 88, um total de cinco internações em hospital psiquiátri-
co, ficava três meses, quatro, depois saía e voltava. E até então ficava nessa
coisa, aquele bando de médico que não falava nada, não tinha consciência
do que estava acontecendo. Dai entrei no ambulatório e já tinha esse grupo
aqui, que me enxergava não só como uma cabeça doida, mas como uma
pessoa que tinha passado, presente e futuro. Já estavam acolhendo e eu, que
fiquei doida, mas não fiquei burra, não parei de participar. Comecei a parti-
cipar do Conselho de Saúde, comecei a entender que dava, até que a Eliane
Guerra me convidou para participar da Associação e eu fui, na primeira
eleição que teve, no ano seguinte, eu já fui eleita presidente.
262

O Bosque era o espaço atrás do Ambulatório I, aqui no centro, a


gente ganhou a possibilidade de usar aquele espaço. Ali fizemos uma bi-
blioteca, um galpão para lidar com a reciclagem, uma sala de alfabetização
para adultos da Mental e da comunidade também. Foi muito legal essa épo-
ca. Começamos a investir em reciclagem, conseguimos caçambas enormes
para separar os materiais. Todos nós íamos bater de porta em porta, fize-
mos uma filipetinha para distribuir, e as pessoas entenderam, tinha fila para
deixar os recicláveis no Bosque. Dali começamos a tirar dinheiro para os
usuários, imagina isso, pela primeira vez. Eu dei entrevista para a Globo,
meu Deus do céu, nem respirava, dois minutinhos ali ao vivo mostrando
nosso trabalho. Estávamos muito envolvidos nessa época.

Uma vez fomos em cinco lá do Bosque para uma reunião de orça-


mento participativo do Meio Ambiente, apresentamos o projeto e conven-
cemos todo mundo, fomos escolhidos em primeiro lugar e nos destinaram
R$ 120.000,00 para reciclagem, direto para o Fundo Municipal de Saúde. O
Bosque encerra em 1999, eu precisava trabalhar, precisava ganhar dinheiro,
e as pessoas que estavam lá também queriam outras coisas, não estava mais
rolando a reciclagem. Então entendemos que a associação continua, livre,
mas o trabalho do Bosque foi descontinuado. Em 2001, a gente começou a
conversar sobre a Organização Social, ficamos um ano construindo, ten-
tando achar um caminho administrativo. Ninguém sabia exatamente ainda
como funcionava a OS, era novo. Em 2002, fechamos a parceria com a Saú-
de Mental para fazer duas residências terapêuticas, uma masculina e uma
feminina.

O estatuto da José Martins tinha sido feito para defesa de direitos


dos usuários. Quando entra a ideia de OS, tem que mudar para outra coisa,
de execução de projeto. Mas não queríamos mudar, era muito interessante.
Então criamos a segunda, a De Volta para Casa, mantida pela José Martins.
Dois braços administrativos do mesmo projeto.

A diferença é que nós estamos muito presentes. Estamos dentro da


casa junto com a coordenação, participamos das assembleias, estamos sem-
pre próximos e os usuários também estão na associação, tem gente que tem
como projeto terapêutico trabalhar conosco, fazer funções administrativas.
Eles vêm conversar, é diferente de falar com um psicólogo no CAPS, é de
igual para igual, é a Dirce, que também é usuária, é fulano, que é familiar,
eles entendem.
263

A prefeitura e a fundação, quando vão comprar alguma coisa, eles


fazem três orçamentos e compram um jogo de quarto por dez mil reais,
enquanto a gente faz uma casa por dez mil reais. Dá para negociar, dá para
conseguir desconto.

A coisa mais bonita desse trabalho é o olhar com conteúdo dife-


rente. Um olhar que não tem crítica, vai vendo a pessoa e buscando o que
tem de bom, o que dá para construir com o usuário, com a família. E o tra-
balho. Para mim, foi 50% da minha cura, ou mais. Você ter o dinheiro para
ir aos lugares, pagar suas contas, você constrói seu respeito. Quando você
recupera seu trabalho, volta à vida, as pessoas começam a olhá-lo diferente.
Eu vejo isso nos usuários que não tinham nada e aí conseguem ganhar um
pouquinho por mês. Imagina o que é buscar o filho no abrigo e trazer para
casa, porque agora você tem a capacidade de pagar o aluguel. E é a associa-
ção ali que dá retaguarda para fazer essas coisas. Se ele recair, não vai ser
mandado embora, porque não somos uma empresa capitalista. O grande
ganho é essas pessoas poderem ter emprego, que jamais poderiam ter no
mundo capitalista.

Sobre as dificuldades, a principal e recorrente é o contato com o


poder público. Para fazer a parceria, você precisa ter uma prefeitura que
acredite no seu trabalho. Construir com os parceiros já é difícil, imagina
com quem não é parceiro. Tem que ter vínculo com a Secretaria de Saúde,
porque é muito sério. A associação precisa de profissionais trabalhando, a
diretoria precisa ser dedicada e ter tempo disponível para realizar esse cui-
dado, ou o trabalho vai se perder. Em 2009, a prefeitura mudou e nós fomos
mandados embora. Chega um momento em que não há mais diálogo, e o
trabalho acaba virando sucata.

Seria necessário criar uma lei ou algum dispositivo para que as


prefeituras dessem continuidade aos bons trabalhos dentro da gestão, que
não se pudesse derrubar por capricho ou desavença política entre os dife-
rentes governantes. Precisamos criar uma retaguarda maior, institucional.
Pensando nisso, precisamos encontrar ou construir alguma brecha, algum
dispositivo, para não desmanchar serviços que estão funcionando bem. Ga-
rantir que tenha assembleia nos CAPS, grupos de família, tudo que aponta a
reforma psiquiátrica. Mas isso é no Brasil inteiro, quando se muda a gestão
muitas vezes se coloca a rede para baixo do tapete e se volta ao modelo de
enriquecer dono de comunidade terapêutica.
264

O trabalho de Santo André prosseguiu e foi sendo aperfeiçoado,


implantamos mais quatro Residências Terapêuticas. O processo foi muito
rico na produção de protagonismo tanto com usuários como com trabalha-
dores e gestores. O programa de Saúde Mental projetou a cidade nacional-
mente, que se tornou referência no Brasil.

8. São Bernardo se reinventa

Em 2009, muda a gestão em Santo André e o trabalho é desarticu-


lado. Eu, Décio, fui convidado, junto com outros colegas, a compor a equipe
de Saúde Mental em São Bernardo do Campo.

Nesses quatro anos em que participei da gestão na cidade, foram


criados 3 CAPS III e 2 CAPS II para transtornos, 2 CAPS AD III, 1 CAPS
ADI III, 5 Residências Terapêuticas, 1 Núcleo de Trabalho e Arte (Nutrar-
te), 1 Consultório na Rua e 2 Unidades de Acolhimento Transitório -UATs,
uma para adulto e uma para infância, que em Santo André e em São Bernar-
do se chamam Repúblicas Terapêuticas. A atenção básica foi reorganizada e
recebeu a demanda do Ambulatório de Saúde Mental.

Nunca participei de uma gestão como essa, foi uma revolução


mesmo, tenho muito orgulho de ter trabalhado em São Bernardo. Nós her-
damos uma rede bem pequena, tinha um Ambulatório de Saúde Mental
central que atendia mais de 20 mil pessoas e um menor para infância, dois
CAPS AD criados por Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), e, por-
tanto, respondiam ao Ministério Público e não à reforma. Finalmente, algo
como 200 internações por mês no Lacan, último hospital psiquiátrico com
leitos públicos no ABC. E ali o grande desafio era trabalhar para fechar es-
ses leitos públicos. E para isso precisávamos criar uma rede que suportasse
as crises, abrindo mão da retaguarda do hospital.

Mudar o paradigma do cuidado é um desafio de longo prazo, feito


de pequenos enfrentamentos cotidianos, em que efetivamente se dá a re-
forma nas relações entre as pessoas nos serviços. A sociedade que estamos
propondo se traduz na maneira como se constroem as relações de cuidado
entre trabalhadores e usuários da saúde. Temos que ter clareza de que esse
é um processo multipedagógico e que depende de uma mudança de olhar
para o fenômeno. Isso é difícil e a longo prazo, é mais uma questão de mu-
dança cultural do que de orçamento.
265

Também é verdade que a vontade política somada ao orçamen-


to disponível fazem cenários como esse de São Bernardo, mais intenso e
concentrado, com resultados extraordinários. A história do CAPS AD In-
fantil, das Repúblicas Terapêuticas, tomou uma forma interessante e nova
ali. Mas mesmo em outros contextos, que são maioria, muitas vezes mesmo
em administrações contrárias à reforma ainda é possível trabalhar a trans-
formação do olhar, da prescrição de remédios para a contratualidade entre
humanos. Isso vai das microrrelações, com o português da padaria que dá
café para aquele doido da rua, para a família que não sabe como lidar com
o filho doente.

Quando começamos em São Bernardo, tinha muita coisa centrali-


zada no ambulatório, que era um caos. Um número absurdo de pessoas pro-
curando atendimento para troca de receita psiquiátrica, muita dificuldade
para agendar essas consultas. São Bernardo tem pouco mais de 900 mil ha-
bitantes. Para conseguir inserir essa população nas unidades da atenção bá-
sica, foi proposto dividir os psiquiatras e os psicólogos do ambulatório por
regiões com maior demanda de usuários e, assim, criar equipes regionais
dentro da lógica do matriciamento, prevista na RAPS. Quando propusemos
isso, quase todos os psiquiatras se demitiram, não querendo abrir mão do
modelo de consultas e horários marcados. Mas o serviço público não pode
estar subordinado à hierarquização por conhecimento, a base do SUS é o
cuidado interdisciplinar, tendo na equipe multiprofissional o seu grande
executor. Isso quer dizer que não é tarefa de uma categoria específica, a me-
dicina, ser a principal ou única oferta de cuidado nos serviços. No fundo, é
entender que os CAPS fazem atendimento primário, secundário e terciário.
Refizemos a equipe com essa nova orientação e reorganizamos os serviços
no processo de desmonte do ambulatório, iniciando assim o matriciamento
dos serviços.

Parece-me que implantamos em São Bernardo um programa com


os mesmos fundamentos do de Santo André, acrescido da questão das dro-
gas, pauta que foi ganhando foco dentro da Saúde, principalmente ao lon-
go da última década. Constituímos uma rede voltada para a integração do
jovem com sua família e com a comunidade, para que os serviços sejam
um espaço não só de acolhimento, mas também de construção de projetos
de vida. As Repúblicas têm essa proposta e isso é uma contribuição de São
Bernardo para o país. A rede continuou sendo desenvolvida e culminou
com o fechamento total dos leitos públicos do Lacan em 2014, que deixou
de receber pacientes do SUS.
266

Mas a Mental foi apenas uma de uma série de propostas de reorga-


nização da saúde como um todo. Terminamos a gestão com uma resposta
do poder público muito mais eficiente e alinhada com as necessidades da
população.

9. Santo André novamente

Com o retorno do projeto de gestão democrática e popular para


Santo André, em 2013 o grupo retorna com a missão de recolocar a cida-
de no lugar de que nunca deveria ter saído, considerando que nos quatro
anos anteriores não houve investimento na rede, ao contrário, realizou-se
seu sucateamento. Os serviços foram mantidos na forma, mas o conteúdo
se tornou mais ambulatorial. A atenção foi reduzida, as residências foram
negligenciadas.

Na prática, inauguramos finalmente o NAPS da região III e tam-


bém duas unidades de acolhimento. Além disso, transformamos o PRD em
consultório na rua. Abrimos uma quinta residência terapêutica para mora-
dores com um grau maior de autonomia, o que se tornou uma experiência
muito interessante de gestão. Também transformamos a questão das drogas
em prioridade da gestão, implantamos o Comitê Gestor Municipal do Plano
Crack e atualmente o Executivo está refazendo a lei que criou o Conselho
Municipal de Políticas para Álcool e Outras Drogas (COMAD), adequando
aos termos do município. Mas o contexto desses anos tem sido de recessão
econômica, comprometendo a possibilidade de investimento da gestão.

Também estamos implantando a constituição da Rede Viva, que


é um grupo de trabalho reunindo representantes de serviços da saúde, as-
sistência e segurança pública com a tarefa de operar de maneira comparti-
lhada a gestão de casos graves que envolvem vulnerabilidade ao abuso do
consumo de drogas. É uma experiência nova, que está sendo criada agora e
faz parte deste novo momento na gestão.

Com tantas idas e vindas, altos e baixo, momentos de maior inves-


timento e euforia, assim como muitos momentos de angústia e impotência,
o viver a construção dessas redes, mais do que ser fascinante, é um desafio
de vida. Obriga você a estar continuamente revendo certezas em nome do
desafio de tentar fazer diferente. Eu me lembro muito de um caso de Santos,
267

de um menino chamado Humberto, que quando chegou para a gente tinha


17 anos de idade e oito anos de internação em hospital. Eu, ainda psicólogo,
fazendo o 1º atendimento, recebendo Humberto e sua mãe, com um pedido
do psiquiatra para que eu agenciasse a transferência dele para o IPQ/Hospi-
tal das Clínicas, em São Paulo.

Sem questionar, liguei para o Tykanori, que na época era coorde-


nador de Saúde Mental. Ele me fez uma única pergunta: “Vocês tentaram
alguma coisa? Qualquer coisa. Mas vocês tentaram alguma coisa?”. Eu disse
não. Ele rrespondeu: “Então tenta. Se não der, me liga que a gente vê o que
faz”. E esse menino, gravíssimo, ele não falava, bastante agressivo, conde-
nado a viver a vida toda em hospital. A gente botou ele dentro do NAPS e,
oito meses depois, mudamos para uma casa maior para que o Humberto
pudesse morar com a gente e ter um quarto perto da família dele. Tudo isso
porque, na hora certa, o Tyka falou: “tenta alguma coisa”.

Assim que a gente saiu, a gestão que entrou internou o menino


em Itapira. O recado disso é bem claro, é preciso entender que não pode-
mos jogar a toalha nunca, com todas as dificuldades, todas as adversida-
des, porque nosso objetivo maior é a vida da pessoa, tentar fazer com que
as existências sejam mais toleráveis. Contribuir para que o mundo e nossa
sociedade sejam mais humanos. A Saúde Mental tem uma particularidade
muito interessante: ainda é possível disputar e realizar sua utopia dentro
do Estado, mais do que em muitas outras áreas. Não podemos abrir mão
da responsabilidade de fazê-lo. Independente de quem estiver à frente da
gestão, dá para fazer.
CAPÍTULO 10

O Programa De Braços Abertos


no município de São Paulo
Myres Maria Cavalcanti33

Teresa Cristina Endo34

Mirmila Musse35

“O Ministério da Saúde assume de modo integral e


articulado o desafio de prevenir, tratar, reabilitar os
usuários de álcool e outras drogas como um proble-
ma de saúde pública.” (Brasil, 2003, pág. 9)

1. Introdução

Pelo Sistema Único de Saúde (Lei n° 8080, de 1990), as ações e


serviços oferecidos à comunidade devem atingir a melhoria de qualidade

Coordenadora da Área Técnica de Saúde mental, Álcool e outras Drogas, da Secretaria


33

Municipal de Saúde de São Paulo.


Assessora Técnica da Área Técnica de Saúde mental, Álcool e outras Drogas, da Secretaria
34

Municipal de Saúde de São Paulo.


Assessora Técnica da Área Técnica de Saúde mental, Álcool e outras Drogas, da Secretaria
35

Municipal de Saúde de São Paulo.


270

de vida, a garantia do acesso a todos, a Assistência equitativa, integral e uma


Rede de cuidados (regionalizada, hierarquizada e integrada).

A Lei n° 10.216, de 6 de abril de 2001, conhecida como a lei da


Reforma Psiquiátrica no Brasil, ratifica diretrizes do SUS para o uso abusivo
e dependência de substâncias psicoativas e preconiza a criação de uma rede
de assistência disponível na comunidade, superando o modelo de interna-
ção psiquiátrica, visando à reabilitação e reinserção social.

A Portaria GM nº 336, de 19 de fevereiro de 2002, define as nor-


mas e diretrizes para a organização de serviços assistenciais CAPS adulto,
álcool e drogas e infantil. Os CAPS, como serviços de comprovada resolu-
bilidade, que focalizam o indivíduo em sua singularidade, cuja ênfase é na
reabilitação e reinserção social, é fundamentado na estratégia de redução de
danos sociais e à saúde.

A Redução de Danos como abordagem clínico-política, e não ape-


nas como mudança comportamental, atua no território na procura ativa
e sistemática das necessidades a serem atendidas. Na construção de redes
de suporte social (familiares, ONGs, órgãos governamentais), no resgate e
fortalecimento dos vínculos, cria acessos variados, acolhe, encaminha, cria
alternativas de enfrentamento, visando à maior autonomia dos usuários e
familiares.

A participação da opinião pública é fundamental na construção


da Política de Atenção à Dependência de substâncias psicoativas, e deve ser
orientada para os efeitos prejudiciais da discriminação e o rechaço social.
O mote seria desconstruir o senso comum: “Todo usuário de droga é um
doente e requer internação, prisão ou absolvição”.

Promover a saúde integral desses indivíduos requer uma visão


ampliada da problemática, que envolve lidar com os temas transversais
presentes no cotidiano das práticas assistenciais: o estigma, a exclusão, o
preconceito, a discriminação e a desabilitação social. Além disso, o uso de
substâncias psicoativas, principalmente o álcool – grave problema de saúde
pública –, está relacionado aos agravos de saúde, como acidentes de trân-
sito, agressões, depressões clínicas, distúrbios de conduta, comportamento
de risco sexual, gravidez na adolescência, HIV. Em destaque para a noção
de que o uso precoce de álcool coincide com início de vida sexual no Brasil.
271

A Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, institui a Rede de


Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e
com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no
âmbito do Sistema Único de Saúde.

A Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006, institui o Sistema Na-


cional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para
prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e depen-
dentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não auto-
rizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.

O Decreto Federal nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009, institui a


Política Nacional para a População em Situação de Rua e Comitê Interseto-
rial de Acompanhamento e Monitoramento.

O Plano de Enfrentamento ao Crack: “CRACK, É POSSÍVEL


VENCER”, de 7 de dezembro de 2011, é um programa coordenado pelo
Ministério da Justiça, que desenvolve, em parceria com outros ministérios,
uma ação integrada que envolve três frentes de atuação: prevenção, cuidado
e autoridade. Dentro desses três aspectos, o programa integra vários grupos
sociais, trabalhando, simultaneamente, na prevenção, no combate, na rea-
bilitação e na reintegração social.

No município de São Paulo, para a implantação desse plano, desta-


camos os seguintes objetivos:

• implantar ações intersetoriais e integradas nas áreas de


assistência social, direitos humanos, saúde e trabalho;

• construir a rede de serviços para atendimento aos usuá-


rios; sob a ótica da REDUÇÃO DE DANOS, pela oferta
de moradia e emprego;

• disponibilizar serviços de Atenção Integral à Saúde;

• fortalecer a rede social, visando à inserção dessa popula-


ção nas políticas públicas;

• estimular a participação e o apoio da sociedade;


272

2. O Programa De Braços Abertos

No início de 2013, foi criado o Grupo Executivo Municipal (GEM)


com representantes de várias secretarias municipais (Saúde, Assistência
Social, Direitos Humanos, Trabalho, Esporte, Segurança Públicas, entre
outras), setores da comunidade e especialistas convidados, com o objetivo
principal de construir uma Política Municipal Intersecretarial sobre crack,
álcool e outras drogas, tendo como diretriz a Política Federal Crack, é Pos-
sível Vencer.

A primeira ação desse Grupo Executivo Municipal foi realizada


na região da Luz, da cidade de São Paulo, denominada popularmente como
“cracolândia”. Assim como a Pesquisa Nacional sobre o uso de Crack no
Brasil (Bastos; Bertoni, 2014), a população em situação de rua que perma-
necia naquela região demandava inicialmente necessidades básicas de so-
brevivência, como moradia, alimentação e trabalho.

Dessa forma, em junho de 2013 foi criado o espaço denominado


Espaço de Braços Abertos, estrategicamente localizado onde aquela popula-
ção se concentrava. O equipamento tinha como objetivo o acolhimento e
a escuta qualificada, articulando a rede de cuidados do poder público, de
forma insersecretarial e multiprofissional, respondendo às necessidades da
população.

Em janeiro de 2014, uma nova intervenção aconteceu no local,


com o início oficial do Programa De Braços Abertos, pactuando com as
pessoas o desmonte de aproximadamente 100 barracas construídas como
moradia em via pública. Depois do cadastramento e de um intenso diálogo
entre os ocupantes e os agentes das Secretarias de Saúde e da Assistência e
Desenvolvimento Social, os barracos foram desmontados com a participa-
ção e consentimento dos ocupantes. A via pública foi liberada com inclusão
dos próprios usuários.

O Programa se caracterizou desde seu início com a construção e


pactuação do Poder público com os próprios usuários. Todas as ações fo-
ram construídas em conjunto, com o intuito de garantir a articulação das
demandas do público-alvo com as ações propostas pelas diversas Secreta-
rias Municipais, inicialmente com o diagnóstico e necessidade do território,
depois a escolha do nome do programa em assembleia, a oferta de serviços
necessários e qualquer ação que se fizesse necessária. Nessas pactuações,
além dos técnicos, participavam os secretários de cada pasta e por vezes o
próprio prefeito estava presente.
273

Além desse princípio, a construção do Programa tinha ainda ou-


tras diretrizes. Pelo princípio da equidade (SUS) que preconiza:

• reduzir as desigualdades;

• priorizar população em situação de extrema vulnerabili-


dade social e de saúde;

• discriminação positiva para os que mais necessitam de


cuidados integrais.

O Programa pautou-se em dirimir os danos causados pela exclu-


são social em que essa população se encontrava, historicamente, à margem
do Sistema de Direitos (saúde, moradia, assistência social, educação, segu-
rança, trabalho e outros).

Os eixos norteadores do Programa podem ser descritos em:

• política de Redução de Danos;

• implantação de uma Política “Housing in first”;

• acolhimento de Baixa exigência;

• disponibilização de Pacote de Direitos.

3. Política de Redução de Danos

Como conceito de Redução de Danos temos que: “... é uma política


de saúde que se propõe a reduzir os prejuízos de natureza biológica, social
e econômica do uso de drogas, pautada no respeito ao indivíduo e no seu
direito de consumir drogas” (Andrade et al, 2001 apud Pollo-Araujo; Mo-
reira, 2008, p. 11).

Nesse modelo de atenção, o foco não é a droga nem a dependência,


mas o indivíduo em suas necessidades, vontades e habilidades específicas,
ou seja, o objetivo é formular um projeto terapêutico singular, que possa
incluir uma variedade de ações, como a inserção em atividades de cultura,
lazer, esporte, diversão, e não apenas em providências de tratamento ou
assistências.
274

Em seu conceito mais amplo, e de acordo com o Me-


dical Subject Headings (MeSH) da United State Na-
tional Library of Medicine, “Harm Reduction” (ter-
mo introduzido no MeSH em 2003) ou “Redução
do Dano” é: “A aplicação de métodos projetados para
reduzirem o risco do dano associado a certos com-
portamentos, sem diminuição na frequência daqueles
comportamentos”. [...]

A RD aceita que “bem ou mal, as drogas lícitas e ilíci-


tas fazem parte deste mundo e escolhe trabalhar para
minimizar seus efeitos danosos ao invés de simples-
mente ignorá-los ou condená-los” (Harm Reduction
Coalition, 2002-2003). Aqui, o critério de sucesso
de uma intervenção não segue a lei do “tudo ou
nada”. São aceitos objetivos parciais. As alternativas
não são impostas de “cima para baixo”, por leis ou
decretos, mas são desenvolvidas com participação
ativa da população beneficiária da intervenção (Pol-
lo-Araujo; Moreira, 2008, p. 11).

A esse respeito, Silveira (2012) destaca as ações mais eficazes para


a população em extrema vulnerabilidade social, que não adere aos modelos
tradicionais de intervenção, que focalizam a abstinência como meta:

Em regra, os melhores resultados, em relação à de-


pendência química, giram em torno de 35% a 40%,
contra os 2% da internação compulsória. Os que
sobram, de 60% a 65%, no entanto, não podem ser
apenas considerados um fracasso e pronto. O que
nós aprendemos nos últimos anos é que mesmo as
pessoas que não conseguem ficar em abstinência
podem se beneficiar de política de redução de danos.
Esse usuário pode não ficar completamente absti-
nente, não vai parar, mas vai se drogar com uma fre-
quência menor, em circunstâncias de menos risco.
Do ponto de vista da saúde pública, é um avanço se
esse usuário for mantido em condições de estudar,
trabalhar, levar uma vida normal (Silveira, 2012).
275

Para atingir esse fim, as ações não podem se pautar somente no


modelo ambulatorial, em que os indivíduos obedecem a um protocolo de
atendimento com horas marcadas para consultas, exames e grupos. Os
CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), como ordenadores da Rede de
Atenção Psicossocial, devem articular os vários setores da comunidade e ir
ao encontro ao usuário, onde ele estiver: na rua, abrigo, casas de acolhida,
ocupações. O município desenvolveu o trabalho de CAPS na Rua, em que
os profissionais de saúde abordam os usuários e buscam atender às suas
necessidades de saúde integral. Nessa linha de cuidado, não visam apenas à
sensibilização para o tratamento específico da dependência de substâncias
psicoativas.

O Consultório na Rua também integra essas ações em que equipes


de saúde são responsáveis por um determinado território e visam dirimir
os danos causados pela situação de extrema vulnerabilidade. Os gerentes de
caso integram essa Rede de Atenção ao dependente, acompanhando diaria-
mente determinados usuários com o intuito de conhecer suas demandas
específicas e elaborar, em conjunto com os CAPS, consultório na Rua, UBS,
e outros atores do território, o Projeto Terapêutico Singular.

4. Housing in first

O Programa denominado Housing in first consiste na oferta de


moradia para pessoas que se encontram em situação de rua há muito tem-
po e são usuários crônicos de álcool e outras drogas. A experiência de im-
plantação em vários países mostrou que, nos locais em que eram oferecidas
moradias aos usuários, sem exigência de abstinência, houve significativa di-
minuição do consumo do álcool e outras drogas. Além disso, foi identifica-
da a diminuição da violência, a intercorrência de chamada de ambulâncias
e a desordem urbana (Milby et al, 2005; Tsemberis; Gulcur; Nakae, 2004).

O Programa De Braços Abertos inspirou-se nesse modelo de ofer-


ta de moradia aos usuários da região central da cidade, o que possibilitou
uma experiência de pertencimento no território. Nesse mesmo local, em
que, historicamente, viviam a exclusão e o rechaço social, puderam ser vis-
tos de outro modo aos olhos da população local: limpos, descansados e ten-
do um lugar privado para se recolher.
276

5. Acolhimento de baixa exigência

A estratégia fundamental é o acolhimento de baixa exigência para


a inserção no Programa, ou seja, não há obrigatoriedade do indivíduo estar
em tratamento de saúde ou saúde mental. As necessidades e demandas ad-
vêm do sujeito de direitos, e o trabalho articulado entre os diversos setores e
secretarias é atender e garantir essa posição cidadã.

Ou seja, a atuação ocorre:

• onde o indivíduo se encontra (em situação de rua, em sua


casa, centro de acolhida...);

• no momento em que se encontra em relação ao uso abu-


sivo ou dependência de drogas (não querendo parar ou
reduzir o consumo);

• a partir da demanda do sujeito (foco nas necessidades ou


vontades advindas do indivíduo, por ex: desejo de tratar
os dentes).

6. Pacote de direitos

Todos os estudos feitos com população de rua


mostram que, na realidade, o que leva essas
pessoas ao crack é a exclusão social, a falta de
acesso à educação, saúde e moradia, ou seja,
a privação da própria cidadania e identidade.
Isto, sim, é um fator de risco para a droga. A
droga vem porque tem um prato cheio para
florescer. A droga é consequência, não é causa
disso. (Silveira, 2012)

A oferta de um pacote de direitos visa dirimir a miserabilidade, vis-


ta como um fator de risco para o agravamento do uso de drogas. E não são
raros os casos em que o uso de substâncias psicoativas serve como um su-
porte psíquico para sobreviver à degradação em que se encontra o corpo, a
deterioração da imagem social, do conceito de si e da própria estima.
277

A oferta de um pacote de direitos inclui:

• moradia;

• alimentação;

• trabalho;

• renda.

A possibilidade de melhorar as condições de higiene, alimentação


e moradia marcou um novo imaginário social sobre essa população à mar-
gem do Sistema de Direitos. Além disso, os usuários começaram a exercer
atividade remunerada, o que movimentou o comércio local. Assim passa-
ram da imagem fortemente marcada pela mídia de “vagabundos, degenera-
dos e criminosos” para cidadãos trabalhadores/consumidores. O resgate da
autonomia e o foco na cidadania são o mote desse Programa, que preten-
de fundamentalmente reduzir a associação imediata entre periculosidade
e ameaça à sociedade vinculada a essas pessoas, que na realidade tiveram
seus direitos civis interrompidos e a dignidade cessada.

7. Considerações finais:

O Programa De Braços Abertos tem sido alvo de interesse acadê-


mico, social, jornalístico, governamental, tanto no território nacional como
em outros países, considerado como inovador nas práticas assistenciais de
políticas públicas, inspirador de várias ações interdisciplinares e interseto-
riais. Caberia, portanto, nos indagar sobre os motivos da repercussão desse
Programa para a sociedade no momento atual.

Poderíamos considerar que, historicamente, os programas de


atenção aos dependentes de substâncias psicoativas têm se pautado, com
mais frequência, em medidas coercitivas e cerceadoras de liberdade, repe-
tindo padrões muito conhecidos de lidar com o “outro perigoso”, que amea-
ça a ordem social. As práticas assistenciais da saúde mais comuns, aliadas
ao poder do Estado, remontam ao tempo do confinamento de doentes e
miseráveis de outras épocas: leprosos, pestilentos, tuberculosos, doentes
mentais, portadores de deficiências físicas ou morais (prostitutas, ladrões,
mendigos, desordeiros, etc.) em hospitais especializados, presídios e conde-
nados a permanecer por tempo indeterminado.
278

Na vigência de algo novo, que rompa com a tradição das práti-


cas desgastadas, desumanas e reducionistas, o Programa De Braços Abertos,
pautado na Política de Redução de Danos, propõe um olhar mais digno ao
humano que sofre.

Além disso, o Programa revela ousadia e enfrentamento às bar-


reiras de toda ordem: forças governamentais que temem perder o controle
da situação, a opinião pública influenciada pela construção midiática: da
imagem degradada e perigosa do usuário de drogas, da epidemia do crack e
a nomeação das cracolândias. Tudo isso revela uma forte pressão contrária
aos que lutam contra a discriminação e exclusão social que marcam os in-
divíduos que estão à margem da sociedade.

E, para concluir, seguem os resultados do Programa, após um ano


de implantação, como indicativos de que essas ações devem prosperar:

• o respeito à imagem do usuário de drogas;

• redução do padrão de uso das substâncias psicoativas e


na transmissão de doenças;

• adesão dos usuários ao acompanhamento das equipes de


Consultório na Rua;

• gestão compartilhada da clínica (CAPS, SMADS, UBS);

• resgate da promoção em saúde, ampliação das práticas


de redução de danos;

• redução nas taxas de crimes violentos no território;

• educação permanente para as equipes envolvidas no


Programa;

• capacitação das instituições policiais, visando à qualida-


de no atendimento dos usuários de drogas e ao respeito
de seus direitos em caso de detenção;

• inserção da POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA nas


instâncias de construção de políticas públicas.

Em suma, a linha de cuidados em saúde integral se define como:


279

“Adesão dos usuários ao Programa De Braços Abertos na perspectiva da Re-


dução de Danos sem excluí-los do território em que habitam e sem prejuízo
do seu direito de ir e vir”.

Referências Bibliográficas

BASTOS, F. I.; BERTONI, N. Pesquisa Nacional sobre o uso de crack:


quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas
capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Editora ICIT/FIOCRUZ, 2014. Dis-
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so em: 18 ago. 2015.

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Coordenação Nacio-


nal de DST/Aids. A Política do Ministério da Saúde para atenção inte-
gral a usuários de álcool e outras drogas / Ministério da Saúde, Secretaria
Executiva, Coordenação Nacional de DST e Aids. – Brasília: Ministério da
Saúde, 2003.

MILBY, J. B. et al. To House or Not to House: The effects of Providing Hou-


sing to Homless substance Abusers in Treatment. American Journal of Pu-
blic Health, v. 95, n. 7, p. 1259-1265, jul. 2005. Disponível em: <http://ajph.
aphapublications.org/doi/abs/10.2105/AJPH.2004.039743?url_ver=Z39.
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med&>. Acesso em: 18 ago. 2015.

POLLO-ARAÚJO, M. A.; MOREIRA, F. G. Aspectos Históricos da Redução


de Danos. In NIEL, M.; SILVEIRA, D. X. (ORGS.). Drogas e Redução de
Danos: uma cartilha para profissionais de saúde. São Paulo: Programa de
Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD). Universidade Federal
de São Paulo (UNIFESP). Ministério da Saúde, 2008, p. 11-19. Disponível
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SILVEIRA, D. X. da. Crack é usado por miseráveis porque é barato. En-


trevista. [17 de janeiro, 2012]. Porto Alegre: Carta Maior. Entrevista con-
cedida a Maria Inês Nassif. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.
br/?/Editoria/Politica/Crack-e-usado-por-miseraveis-porque-e-barato%-
280

0D%0A/4/18370>. Acesso em: 18 ago. 2015

TSEMBERIS, S.; GULCUR, L.; NAKAE, M. Housing First, Consumer


Choice, and Harm Reduction for Homless Individuals With a Dual Diag-
nosis. American Journal of Public Health, v. 94, n. 4, p. 651-656, abr. 2004.
Disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1448313/
pdf/0940651.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2015
CAPÍTULO 11

Impasses na prática da Atenção Integral aos usuários


de drogas: um estudo de caso
Cristiane Mazza Marques36

1. Introdução

Ao longo de 11 anos de trabalho numa instituição especializada


em usuários de drogas atendendo crianças, adolescentes e adultos, percebi
que uma das maiores dificuldades que enfrentamos é transmitir a comple-
xidade dessa clínica na relação com a rede intra e intersetorial. Essa com-
plexidade exige reconhecer que há diferenças no uso de drogas entre crian-
ças, adolescentes e adultos; entre neuróticos e psicóticos; nas formas de uso
(uso recreativo, abuso e dependência); em relação ao contexto cultural e
ao território nos quais os usuários estão inseridos. A grande tendência de
muitos parceiros é colocar a droga como centro do problema, como um
mal a ser extirpado a qualquer preço, desconsiderando a particularidade
de cada caso.

36
Supervisora clínico-institucional de CAPS AD, com experiência na área de atenção psicos-
social ao uso prejudicial de álcool e outras drogas.
282

Além da transmissão dessas diferenças, considero que um segundo


ponto de dificuldade é conseguir fazer com que o diálogo entre os diversos
setores envolvidos possa se manter articulado durante todo o acompanha-
mento do caso, construindo de forma permanente a integralidade da atenção.

Essa dificuldade se dá por diversas razões. Em primeiro lugar, de-


vido à escassez de recursos humanos dos serviços (equipes reduzidas com
número insuficiente de profissionais), sobrecarregando os profissionais que
lidam com casos complexos e que necessitam fazer articulações intra e in-
tersetoriais, o que demanda tempo para que isso se realize de forma perma-
nente e eficaz. Em segundo, pela precariedade de recursos materiais, como
carro ou passagem para transportar os profissionais para realizar articula-
ções pelo território ou para transportar os pacientes para outras institui-
ções, garantindo o cuidado. Em terceiro, devido à diferença de concepções
a respeito das vicissitudes do sofrimento humano, muitas vezes impedindo
que os profissionais se escutem e se respeitem em suas diferenças. E, final-
mente, devido à dificuldade de cada profissional, cada instituição, funcio-
nar de forma verdadeiramente integrada. É interessante perceber que por
mais que tenhamos clareza do princípio da integralidade do Sistema Único
de Saúde – SUS, fazer isso operar em nós, no cotidiano, não é simples. Sem
percebermos, facilmente nos isolamos e agimos de forma fragmentada. É
comum ouvir dos profissionais do Centro de Atenção Psicossocial – CAPS,
por exemplo, que a necessidade de articulação com os parceiros do territó-
rio é como se fosse mais um trabalho, e não uma condição e parte integran-
te do nosso trabalho.

É sobre esse último ponto que vou me deter. Assim, o objetivo des-
te artigo é discutir os impasses da operacionalização da integralidade e da
articulação de rede no cuidado aos usuários de drogas. Pretende-se apontar
algumas dificuldades que emergiram no acompanhamento do caso de uma
criança de 4 anos de idade, no qual colaboraram o CAPS ad Raul Seixas, um
abrigo e o Ministério Público. Isso inclui o reconhecimento dos momentos
em que esses setores se articularam e desarticularam ao longo do processo.
283

2. O caso Bruna

Bruna tinha 4 anos quando chegou ao CAPS (no ano de 2008) e foi
por mim acompanhada durante um ano. Ela morava na rua com Ana, sua
mãe (que na época tinha 20 anos), desde que nasceu. As duas eram constan-
temente abrigadas, mas não ficavam por muito tempo nos abrigos por causa
dos desentendimentos entre Ana e as meninas abrigadas.

A equipe de abordagem de rua encontrou Bruna no momento em


que ela fazia uso de thinner com outras crianças maiores. Segundo relato
das crianças que estavam com ela, Ana teria o hábito de dar pano molhado
de thinner para a filha cheirar. Nessa ocasião, a mãe não estava presente,
pois encontrava-se adormecida pelo uso de drogas e, por isso, não percebeu
o afastamento da filha.

Bruna foi abrigada em fevereiro de 2008. No abrigo, Bruna disse


para a equipe que morava com a mãe na rua e que sentia saudade dela. Pe-
diu para não brigarem com sua mãe. Nesse mesmo atendimento, a criança
fez um sinal indicando que fazia uso de thinner e disse: “Minha mãe me dá
thinner”.

Foi a partir desse atendimento que surgiu a demanda do abrigo


por atendimento no CAPS-ad Raul Seixas. O comportamento da criança,
somado ao odor de acetona que ela exalava, fazia com que os profissionais
do abrigo acreditassem que Bruna estava com síndrome de abstinência do
thinner.

Recebemos Bruna no CAPS-ad pela primeira vez em abril de 2008.


Ao recebermos o pedido de avaliação do abrigo, por contato telefônico, fi-
camos impactados. Muitas questões surgiram: O que esperar de um caso
com esse? Como estaria o estado físico e mental dessa criança? Uma série
de fantasias nos assombrava.

Refeitos do susto, certificamo-nos se a criança havia passado por


um pediatra. A equipe confirmou que sim e que o profissional prescreveu
alimentação adequada e uma vitamina. Depois de um tempo, o resultado
do exame de sangue constatou cetose devido à má alimentação. Esse diag-
nóstico justificava o cheiro que Bruna exalava e que a equipe do abrigo pen-
sava que era do thinner.

Durante o período de atendimento que realizei à Bruna, ela não


284

falava nem fazia gestos sobre seu uso de thinner e não apresentava nenhum
sintoma físico de abstinência. O que aparecia era uma relação transferencial
que permitia que ela brincasse de me maquiar enquanto conversava e per-
guntava coisas fundamentais como:

_ “Por que o juiz me botou no abrigo?”.

_ “Quem é o juiz?”.

_ “Quem é meu pai?”

_ “Você tem namorado?”

_ “Onde está minha mãe?”

_ “Eu ainda tenho mãe?”

Percebi a importância do endereçamento dessas perguntas. Bruna


precisava de alguém que pudesse ajudá-la a se situar no mundo, colocar em
palavras as experiências disruptivas que vivenciava na presença e na ausên-
cia da mãe. Certa vez, Bruna começou a brincar comigo pedindo repetidas
vezes para eu sair e entrar da sala de atendimento. Ora ela sorria, ao me ver
voltar, ora ela se escondia para eu encontrá-la. Depois ela alternava a brin-
cadeira e era ela quem saía da sala.

Sua mãe foi convocada pelo abrigo para comparecer ao CAPS-ad


na mesma semana em que Bruna foi avaliada nesse serviço. Com o abriga-
mento de Bruna, Ana preferiu morar com uma tia a ser abrigada. A orien-
tação do abrigo era que Ana precisava sair da rua para poder visitar a filha.

Embora Ana pudesse visitar a filha no abrigo, a equipe do CAPS


optou por ser mais um lugar onde seria possível o encontro entre mãe e
filha, considerando o vínculo afetivo entre elas. A ideia era trabalhar uma
possibilidade de demanda de tratamento da mãe e ao mesmo tempo acom-
panhar a criança naquele momento de sua vida.

No primeiro contato da equipe do CAPS-ad com a mãe e a filha,


percebemos o carinho que uma tinha pela outra. Ouvimos Ana dizendo:
285

“Vai lavar a mão para comer o biscoito”. Depois a menina inventou uma
história para a mãe e esta exclamou: “Papai do céu não gosta de mentira e
nem eu!”. Ana mostrava-se sempre atenta ao que a filha dizia, além de serem
muito carinhosas uma com a outra.

Num primeiro momento, nosso trabalho com o abrigo consistiu


em fazê-los perceber que o comportamento que Bruna vinha apresentando,
gesticulando o uso de thinner, tinha muito mais a ver com a relação entre
Bruna e sua mãe do que entre Bruna e a droga. A hipótese do abrigo era que
seu comportamento de cheirar “paninhos” fazia menção ao uso do thinner
e seria expressão da falta da droga. Por esse motivo, alguns técnicos preo-
cupavam-se em esconder panos, desodorantes e perfumes com o intuito de
afastar de sua lembrança o uso do thinner. No entanto, o que foi possível
perceber nos atendimentos é que seu comportamento expressava a falta de
sua mãe, e não a falta da droga.

Nos atendimentos com Ana, ela falava muito de sua vida na infân-
cia, nas experiências vividas na rua. Para ela, a rua era um lugar muito mais
seguro do que a própria casa, já que desde pequena, por ser órfã de pai e
mãe, foi criada por uma tia paterna que a obrigava a ir às ruas prostituir-se
e trazer dinheiro para casa. Ela jamais manifestou desejo de abandonar a
filha. Tinha dificuldade de perceber que corria risco de perder definitiva-
mente a guarda de Bruna, já que não via muito problema em usar droga e
morar na rua.

No início, Ana demorou um tempo para falar nos atendimentos.


Ficava desconfiada, achando que queríamos julgá-la. Quando percebeu
nossa intenção de ouvi-la, ela passou a trazer suas dificuldades em se ade-
quar às propostas para recuperar a filha, que consistia em sair da rua e parar
de usar drogas, segundo a exigência do Ministério Público.

Lembro que foi muito difícil manejar essa situação, já que o abrigo
e o Ministério Público funcionavam em uma lógica muito diferente da do
CAPS. Para eles, se Ana não se mantivesse em tratamento, abstinente e não
aceitasse sair da rua, perderia o direito de recuperar a guarda da filha. Para
o CAPS, reconhecíamos que Ana não conseguia fazer muito diferente do
que sempre fez. Pensávamos que era preciso proteger a criança da negligên-
cia da mãe, mas para isso não era preciso destituí-la do lugar de mãe.

Após dois meses de acompanhamento desse caso, recebemos um


286

ofício do Ministério Público comunicando a proibição da visita da mãe à fi-


lha. Nessa ocasião, Ana estava frequentando assiduamente o CAPS e visitan-
do a filha no abrigo. Diante dessa situação, resolvemos escrever um relatório,
em parceria com o abrigo, dirigido ao Ministério Público, pedindo a revoga-
ção da proibição. Em outubro de 2008, é revogada a proibição da visita.

Nesse mesmo mês, Ana saiu da casa de sua tia e voltou para as
ruas, abandonando o tratamento no CAPS. Nos atendimentos, ela já vinha
anunciando a dificuldade de morar na casa da tia, já que os primos a trata-
vam mal e a tia tinha dificuldade de aceitar os seus hábitos. Ana queria sair
sozinha, queria namorar, ir para baile, mas a tia não deixava.

Um tio que morava no mesmo terreno tentava entrar no quarto


à noite para abusar sexualmente dela. Ana vinha anunciando que mesmo
querendo muito estar com a filha não ia mais conseguir morar com es-
ses familiares, e também não aceitava abrigo. Diante disso, dissemos a ela
que, independentemente de onde ela estivesse, poderia continuar vindo ao
CAPS. Mas isso não ocorreu, ela voltou para as ruas e não retornou para o
tratamento.

Mesmo com a ausência da mãe, Bruna continuou o tratamento


no CAPS, até dezembro de 2008. Em abril de 2009, após seis meses sem
dar notícias, Ana compareceu ao abrigo relatando estar vivendo com o seu
companheiro nas ruas debaixo de um viaduto e que voltou a fazer uso de
drogas. Disse ainda suspeitar estar grávida. Por estar drogada, não foi auto-
rizada a visitar a filha.

Nessa época, o abrigo estava tendo dificuldades de levar Bruna ao


CAPS por falta de transporte. Há dois meses, ela faltava aos atendimentos.
No mesmo período em que Bruna não pôde frequentar o CAPS, o abrigo
enviou ao Ministério Público um relatório, sem a nossa participação, que
dizia o seguinte:

“Tentamos alguns encaminhamentos para a genito-


ra, no entanto refletimos e esclarecemos a esta que
sobre estas circunstâncias não há qualquer possibi-
lidade de trabalho com ela com perspectivas de uma
reintegração familiar futura, tendo em vista todo o
investimento já realizado junto à mesma, a qual op-
287

tou por abandonar o tratamento, deixando de visi-


tar a filha durante este período e ainda voltando a
fazer uso de substâncias entorpecentes. Em face do
exposto e visando a proteção integral da criança, su-
gerimos a este prezado órgão a colocação desta em
família substituta de forma a assegurar-lhe o direito
a convivência familiar e comunitária previstas no
ECA.” (Relatório Técnico do Abrigo).

Com esse relatório, o abrigo encaminhou o pedido de colocação


de Bruna no programa de família substituta. Em dois meses, a criança já
estava inserida nesse programa. Questionei esse encaminhamento, pois en-
tendi que era uma decisão precipitada, já que sua mãe tinha reaparecido. O
abrigo justificou que a criança estava há quase um ano abrigada e que há
seis meses a sua mãe não estava se mantendo presente, portanto não havia
outra saída.

Mesmo com a tentativa do CAPS de tentar aguardar mais um


tempo para decidir sobre o destino dessa criança, o abrigo considerava um
ótimo desfecho para o caso que o casal que a acolheu em família substituta
pudesse adotá-la.

O CAPS não foi comunicado da audiência que decidiu pela adoção


da criança e que foi apoiada pelo abrigo. Ficamos muito surpresos com esse
encaminhamento e desconhecíamos que a própria família substituta po-
deria adotar a criança que acolheu pelo programa. Em dezembro de 2009,
Bruna foi adotada.

Meses depois, Ana procurou ajuda num outro CAPS ad, grávida do seu
segundo filho.

3. Integralidade e Rede no cuidado aos usuários de drogas

Para introduzirmos nossa discussão, é importante fazer algumas


considerações sobre o CAPS ad Raul Seixas, instituição em que trabalho
desde a sua inauguração, em agosto de 2004. O CAPS ad Raul Seixas foi o
primeiro CAPS especializado no município do Rio de Janeiro, voltado para
288

o atendimento diário de crianças, adolescentes e adultos que fazem uso pre-


judicial de drogas e que se encontram em vulnerabilidade psicossocial.

O mandato desse serviço integrado ao SUS é o de promover o aco-


lhimento, tratamento (não intensivo, semi-intensivo e intensivo) e a rein-
serção social dos usuários que apresentam graves transtornos decorrentes
do uso de drogas através de diversas ações intra e intersetoriais.

O CAPS ad trabalha na lógica da Redução de Danos, diretriz pre-


conizada pelo Ministério da Saúde que consiste em um conjunto de ações
voltadas para a redução dos danos causados pelo uso prejudicial de drogas,
sem colocar a abstinência como a meta central. A abordagem da redução
de danos:

“reconhece cada usuário em suas singularidades,


traça com ele estratégias que estão voltadas não
para a abstinência como objetivo a ser alcançado,
mas para a defesa de sua vida. Vemos aqui que a
redução de danos se oferece como um método
(no sentido de método, caminho) e, portanto, não
excludente de outros. Mas, vemos também, que o
método está vinculado à direção do tratamento e,
aqui, tratar significa aumentar o grau de liberdade,
de corresponsabilidade daquele que está se tratan-
do. Implica, por outro lado, no estabelecimento de
vínculo com os profissionais, que também passam a
ser corresponsáveis pelos caminhos a serem cons-
truídos pela vida daquele usuário, pelas muitas vi-
das que a ele se ligam e pelas que nele se expressam”
(Brasil, 2003).

Conforme mencionei no início deste artigo, a complexidade dessa


clínica exige reconhecer uma série de particularidades, entre elas que há
diferenças no uso de drogas feito por crianças, adolescentes e adultos. Nesse
sentido, as ações de redução de danos, articuladas em rede intra e interseto-
rial, precisam incluir essas diferenças, singularizando o cuidado na atenção
dedicada aos usuários.
289

Voltando para o caso, podemos perceber que o uso de drogas fei-


to por Bruna e sua mãe tinham funções distintas e por isso demandavam
respostas distintas. No caso da criança, por exemplo, reduzir os danos rela-
cionados do uso do thinner envolvia tirá-la das ruas, protegendo-a em um
abrigo, incluindo-a na escola, cuidando da sua saúde (por se tratar de uma
criança em processo de crescimento), oferecendo o trabalho de escuta no
CAPS, atendendo a mãe e articulando as parcerias com os outros setores.
Não havia no caso de Bruna uma relação de dependência com as drogas
e, portanto tirá-la da situação de vulnerabilidade social foi suficiente para
o uso de thinner ser interrompido. Além disso, foram agenciados outros
cuidados importantes para a sua saúde física e mental, proteção e educação.

No caso de Ana, evidentemente também era fundamental a articu-


lação de várias ações em rede envolvendo diversos setores, mas sua relação
com a droga já estava muito mais cristalizada, ela já tinha um histórico de
dez anos de uso compulsivo de múltiplas drogas. Além de ter passado por
vários abrigamentos. Por se tratar de uma adulta, não podia ser abrigada
contra sua vontade. O tratamento intensivo, diário, no CAPS, era mais ade-
quado como estratégia de redução de danos.

O CAPS ad, por se dedicar ao atendimento de pessoas de várias


faixas etárias, além de psicóticos usuários de drogas, pôde perceber no de-
correr de sua experiência que “o transtorno relacionado ao uso de álcool e
outras drogas afeta as pessoas de diferentes formas, por diferentes motivos
e em diferentes contextos, uma abordagem efetiva deve levar em considera-
ção essa heterogeneidade.” (Marques, 2009, p. 98). Para levarmos em conta
essa heterogeneidade, não podemos colocar a droga como centro do pro-
blema, mas sim a pessoa que procura ajuda. Como diz Domingos Sávio em
seu texto Integralidade nas Políticas de Saúde Mental: “A negação do papel
do isolamento, aliada à compreensão de que o que deve ser cuidado é o in-
divíduo e seus problemas, e não somente o seu diagnóstico, determina um
olhar integral da situação” (Sávio, 2006, p. 170).

Esse autor enfatiza nesse texto que a intersetorialidade e a diversi-


ficação são componentes indissociáveis na integralidade: “Se nos propuser-
mos a lidar com problemas complexos, há que se diversificar ofertas e ma-
neira integrada e buscar em outros setores aquilo que a saúde não oferece,
pois nem sempre lhe é inerente (Sávio, 2006, p. 171)”.
290

Ele aponta duas dificuldades para se acolher alguém de forma in-


tegral: “além da forte influência do modelo tradicional de cuidado, a grande
dificuldade dos profissionais para renunciarem a “um” papel específico –
afinal são especialistas, e compartilhar saberes é exercício contínuo e muito
difícil.” Com relação a esse “papel específico”, foi possível demonstrar na
apresentação do caso que a demanda do abrigo ao CAPS foi uma demanda
de tratamento especializado tanto para a criança quanto para a sua mãe.

É possível observar no relato do caso que todos os setores envol-


vidos no cuidado de Bruna e Ana precisaram em algum momento recorrer
a outras instituições para conduzir as situações que se apresentavam. Mas
será que podemos dizer que houve um acompanhamento desse caso de for-
ma integral?

Diferentes instituições foram acionadas para condução do cuida-


do: abrigo, Programa de Saúde da Família, conselho tutelar, Ministério Pú-
blico e CAPS ad. Mesmo assim, suas ações foram fragmentadas em vários
momentos. Essas instituições estavam isoladas, cada uma “fazendo sua par-
te”. Cecílio critica essa forma de entender a integralidade:

“Poder-se-ia argumentar que é exigir demais que os


serviços superespecializados se dediquem a fazer
uma escuta mais cuidadosa, bastando a eles cum-
prir sua parte de oferecer o atendimento especiali-
zado necessário naquele momento. A integralidade,
por essa visão, seria conseguida por uma boa arti-
culação entre os serviços, cada um cumprindo sua
parte (CECÍLIO, 2006, p. 119)”.

As diferenças de mandatos de todos os setores envolvidos são evi-


dentes: O Conselho Tutelar, o Ministério Público e o abrigo conduziram
o caso tomando a droga como centro do problema. Dessa forma, a única
possibilidade de Ana recuperar a guarda da filha era se ela se mantivesse
fora das ruas e abstinente das drogas.

Diferentemente, o CAPS ad, por trabalhar na lógica da redução de


danos, sustentava a posição de que o projeto terapêutico para a mãe preci-
291

sava incluir sua história de vida, marcada por negligência familiar, abuso
sexual, prostituição e drogadição. Ana, por sua vivência, sentia-se mais se-
gura morando na rua do que morando com seus familiares. A droga para
ela era fonte de alívio do sofrimento e do abandono em que vivia. Entendía-
mos que não seria possível num curto período de tempo ela fazer alguma
demanda de tratamento por não reconhecer as consequências de seus atos.
Mesmo com toda a vulnerabilidade social em que se encontravam, mãe e
filha nunca se separaram. Ana jamais quis deixar de ser mãe, apesar de vá-
rias vezes não conseguir dar conta dos cuidados de que Bruna necessitava.

O grande desafio nesses casos tão complexos é conseguir articular


ações integradas, tomar decisões coletivas, manter um contato e um diá-
logo permanente, entre setores que, diante dos casos compartilhados, têm
saberes e objetivos tão diferentes. Ao mesmo tempo, sabemos que conduzir
esses casos de forma isolada é impossível. Como nos diz Cecílio: “A inter-
venção do especialista não pode alcançar sua eficácia plena se não tiver uma
boa noção do modo de andar a vida do paciente, inclusive seu vínculo com
outra equipe profissional, seu grau de autonomia e a interpretação que faz
de sua doença” (2006, p. 119).

Considero que o Conselho Tutelar, Ministério Público e abrigo fi-


caram muito preocupados em desinstitucionalizar Bruna, tirando-a com
rapidez do abrigo por considerarem que o melhor para ela era ter um lar
com representantes de pai e mãe, enfim, uma família “estruturada”. Talvez
isso tenha influenciado na condução do abrigo em pedir ao Ministério Pú-
blico pela colocação da criança em família substituta, sem se comunicar
com o CAPS. Se o abrigo entendia nossa participação no caso como os “es-
pecialistas em drogas”, à medida que a mãe já não aparecia mais e a criança
estava bem, já sabiam que ela não corria o risco de uma síndrome de abs-
tinência, a missão do CAPS, na visão dos técnicos do abrigo, já tinha sido
cumprida.

Com relação às dificuldades de articulação do CAPS com os ou-


tros setores, posso levantar algumas questões que surgiram com a retomada
desse caso. No período em que o CAPS estava frequentemente em contato
com os técnicos do abrigo, quando estes levavam a criança para o tratamen-
to, mesmo com todas as diferenças de concepções sobre os problemas em
questão, era sempre possível o diálogo e consequentemente pactuações para
o direcionamento das ações. Foi um caso que mobilizou muito essas duas
292

instituições por estarem diretamente em contato com o drama da criança


e de sua mãe. Existia um vínculo potente entre essas instituições em que
os técnicos de ambas se encontravam e discutiam o caso semanalmente.
Mas então o que aconteceu para o CAPS não se mobilizar em contatar o
abrigo para a manutenção desse vínculo no período em que a criança fi-
cou afastada por dois meses por falta de transporte? Por que o CAPS ficou
numa posição passiva de aguardar o contato do abrigo, até que o problema
do transporte fosse resolvido? Refletindo sobre essas perguntas, concluí-
mos que o CAPS nesse período não se deu conta de que estava tomando
esse vínculo como já dado, garantido. Ao passo que o que possibilitava a
parceria entre essas instituições, mesmo com todas as diferenças de enten-
dimento sobre qual caminho seguir, era justamente o encontro presencial
entre esses atores, “olho no olho”, mantendo um diálogo permanente que
permitia a circulação dos saberes e o pacto nas decisões.

Mario Rovere (1999) enfatiza a importância dos vínculos pessoais


para a construção do trabalho em rede:

“A partir desta perspectiva, dizemos que, para nós, as


redes são redes de pessoas, que conectam ou vincu-
lam pessoas, ainda que esta pessoa seja o diretor da
instituição e se relacione com seu cargo, mas não se
conectam cargos entre si, não se conectam institui-
ções entre si e não se conectam computadores entre
si, se conectam pessoas. É por isso que se diz que a
rede é a linguagem dos vínculos é essencialmente um
conceito de vincular” (Rovere, 1999, p. 21).

Quando o CAPS e o abrigo se afastaram do contato pessoal, pre-


sencial, o vínculo se fragmentou e consequentemente as decisões também
se tornaram fragmentadas. O caso passou a ser conduzido apenas pelo abri-
go e pelo Ministério Público, desarticulados do CAPS ad, o que culminou
na adoção da criança. A nosso ver, essa decisão foi precipitada, pois preci-
sávamos de mais tempo para que Ana se vinculasse ao CAPS sem se sentir
pressionada pela exigência de interromper o uso de drogas.
293

4. Considerações Finais

A retomada desse caso nos possibilitou colocar em análise os im-


passes relacionados à construção de ações de cuidado entre os múltiplos
setores da rede, de forma integral. O papel do CAPS como gerenciador do
cuidado é fundamental para estreitar o diálogo entre os diferentes atores
que possuem concepções e mandatos distintos.

Concluímos que devemos construir estratégias permanentes que


possibilitem vínculos presenciais, discussões coletivas com todos os setores
envolvidos, entendendo que o trabalho em rede nunca está dado, garantido,
e que só é possível se esta for movimentada por encontros entre os sujeitos
representantes dos serviços. Não podemos partir do pressuposto de que a
rede funciona sem a articulação de todos os seus membros.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Ministério da Saúde, Secretaria Executiva, Coordenação Nacional


de DST e Aids A política do Ministério da Saúde para a atenção inte-
gral a usuários de álcool e outras drogas. Ministério da Saúde, Secretaria
Executiva, Coordenação Nacional de DST e Aids. – Brasília: Ministério da
Saúde, 2003. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
pns_alcool_drogas.pdf>. Acesso em: 19 ago 2015.

MARQUES, C. M., NICACIO, E. M. e PESSOA, J. C. O envolvimento de


adolescentes com o tráfico de drogas: reflexões a partir da experiência do
caps ad Raul Seixas. In: LANNES, F. (Org.). Redes de Valorização Da Vida.
Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, 2009, p. 97-110.

ROVERE, M. Redes ensalud – um nuevo paradigma para elabordaje de


lasorganizaciones y la comunidade. (reimpresión) Rosario: Ed. Secretaría
de Salud Pública/AMR, Instituto Lazarte, 1999

SÁVIO, D. Integralidade nas políticas de saúde mental. In: PINHEIRO, R.;


MATTOS, R. A. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à
saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, CEPESC, ABRASCO, 2006, p. 171-180.
CAPÍTULO 12

O lugar do discente na extensão acadêmica:


espaço de formação e autonomia
O CRR – UFJR Macaé – relato de experiência.
Maria Clarissa Santos da Silva37

Sávio de Araújo Gomes38

1. O início

O anúncio: projeto de extensão “Centro Regional de Referência


para Formação Permanente Prof. João Ferreira da Silva Filho – UFRJ Ma-
caé (CRR)”. A proposta: “Formação para Profissionais no Campo de Aten-
ção Psicossocial em Álcool e Outras Drogas”. Candidatos variados: alunos
de Medicina, Enfermagem e Psicologia, vindos da UFRJ Macaé, UFRJ Rio
de Janeiro e UFF Rio das Ostras. Variadas aproximações com o tema: um
membro da família que faz uso abusivo de álcool, curiosidade sobre a for-
ma de atuação da saúde na área das drogas, contato anterior com trabalhos
sociais junto a pessoas em situação de rua que utilizam substâncias psicoati-
vas. Conectando todas elas, estava o desejo de conhecer um campo que, em
nenhuma das graduações, é explicitamente discutido em sala de aula. Dese-
jada também era a vivência acadêmica que se somaria a nossos currículos,

Graduanda em Medicina, UFRJ


37

Graduando em Psicologia, UFF


38
296

assim como a oportunidade de trabalhar mais de perto com os professores


participantes. Desejo ainda de receber o auxílio financeiro que durante o
momento da graduação se mostra de grande importância.

Durante os cursos, nossa principal função seria dar suporte pre-


sencial e virtual aos profissionais participantes. Deveríamos nos organizar,
agendar dias e horários para realizar o acompanhamento e fazer o mesmo
com os professores-tutores que nos dariam apoio nessa tarefa. Além dessas,
outras tantas atividades foram desenvolvidas, tratava-se de uma nova dinâ-
mica para praticamente todos os então monitores.

Os cursos estavam chegando ao fim e nos foi proposto participar


da VI Jornada de Pesquisa e Extensão da UFRJ, Campus Macaé39, em outu-
bro de 2014, onde, através de um pôster, poderíamos apresentar algum dos
aspectos de nossa experiência. Muitas possibilidades foram consideradas,
até que uma se mostrou particularmente interessante para nós. A proposta
era descrever e qualificar as atividades dos monitores, realizando assim um
tipo de avaliação dos cursos e de nós mesmos. Buscaríamos, ainda, identifi-
car quais foram as mudanças no modo de compreender o cuidado em saúde
no campo do álcool e outras drogas, investigando, ainda, de que forma essas
mudanças se deram. Podemos dizer que esse último ponto foi fundamental
na construção dos demais. Do decorrer ao fim dos cursos, a forma como
nos colocávamos frente às questões suscitadas já não era mais a mesma.
Víamos claramente que nossa percepção e forma de agir havia mudado,
mas nenhum dos monitores (incluindo nós) sabia muito bem como, tam-
pouco por meio de quais condições. Esse foi o ponto de partida, o desejo
de investigar que caminhos nos levaram a novos olhares. E isso não seria
possível se um detalhe tivesse nos escapado. Nos discursos dos monitores,
ficava claro que os desdobramentos da vivência no projeto eram mais do
que desconhecidos, mas seu desenrolar, não. Essa dificuldade poderia ser
considerada, sob um olhar pouco atento, como falta de habilidade ou mes-
mo desinteresse, mas outra questão nos ocorreu. E se essa “dificuldade” de
expressar o processo vivido não fosse uma inabilidade, mas sim o reflexo
de um discurso que está em construção e, portanto, ainda não se apresenta

39
Os monitores se dividiram em dois grupos, produzindo dois pôsteres: “A utilização do Teatro
do Oprimido na capacitação de profissionais da rede AD de 13 municípios da região” e “Relato
de experiência da atuação de discentes nas atividades de monitoria do Centro de Referência
em álcool, crack e outras drogas da UFRJ Macaé”.
297

inteiramente formulado? E se essa construção indicasse um esforço refle-


xivo inerente à passagem por um novo campo de aprendizado? Em que
medida o contexto oferecido pelo CRR foi responsável por esse cenário? Te-
ria a própria configuração da extensão acadêmica influenciado? Tais eram
nossos questionamentos iniciais que, em resumo, partiam da percepção de
que um discurso pouco desenvolvido poderia indicar não uma falha, mas
o reflexo da organização de conhecimentos adquiridos a partir de um novo
processo de aprendizagem no qual estivemos imersos, eliciados, talvez, pe-
las características do contexto proporcionado pelo CRR enquanto extensão.
Para tanto, decidimos que o melhor formato de explicitar o contato vivo e
direto com esse processo seria um relato de experiência. A entrevista foi
escolhida como ferramenta metodológica de investigação, pois permitiria
que os monitores expusessem o impacto dessa vivência40.

Esse relato de experiência começou no formato de pôster, alon-


gou-se através de apresentações em eventos acadêmicos, até chegar neste
capítulo. Podemos dizer que essa passagem progressiva, de formatos mais
simples e condensados até este texto, permitiu que o trabalho pudesse ter
tempo e estrutura para se desenvolver. Muitas foram as informações e con-
clusões que pudemos verificar a partir das entrevistas e de nossa análise
constante sobre elas, a cada nova revisão algo diferente se mostrava. Nós,
como monitores e autores, tínhamos ainda dupla implicação, o que só in-
tensificava nossa participação e escrita. Trata-se, então, não apenas de um
relato – no fim das contas, foi além disso, afinal de início já possuíamos
questionamentos para essa investigação –, mas da possibilidade de produzir
um contato mais próximo e intenso com a experiência.

2. Sentindo as atividades

De forma geral, a proposta dos cursos era oferecer aulas presen-


ciais, a partir das quais estabeleciam-se debates e exercícios referentes a
cada um dos encontros, devendo estes serem enviados virtualmente ao mo-

40
Foram realizadas entrevistas de roteiro semiestruturado, com duração aproximada de cin-
quenta minutos, contendo vinte e três perguntas. Todas as entrevistas foram feitas por meio
de webconferência, individualmente, com quatro monitores, por dois entrevistadores (autores
deste texto). Foram realizados pré-testes com intuito de aprimorar a formulação das perguntas
e o desempenho dos entrevistadores.
298

nitor ou monitores designados a dar suporte ao grupo (constituído segundo


cidade e região de atuação) do qual o profissional fazia parte. Cabia ao(s)
monitore(s), junto com seu professor-tutor, discutir, sugerir melhorias e
avaliar todo o conjunto de tarefas enviado.

Ao recordar sobre as atividades realizadas, rapidamente algumas


ganhavam destaque e eram descritas sem qualquer hesitação. Sem dúvida,
elas eram importantes, mas apenas esses apontamentos bastariam? Apesar
da aparente obviedade, apostamos que, ao pensar o já conhecido, outras
questões poderiam emergir. Sendo assim, foi proposto que as atividades
fossem descritas, curso por curso, mesmo que isso consistisse em repeti-las
várias vezes. O que parecia uma simples identificação revelou que essas ati-
vidades possuíam uma série de características até então não explicitadas.

O que pudemos observar em primeiro lugar foi uma progressão


entre as atividades nos diferentes cursos. Desde o início, o apoio estrutural
às aulas era completamente feito pela equipe: preparação de salas, proje-
tores, sistema de som, recepção, inscrição dos profissionais, entre outros.
Além disso, a organização do apoio virtual demandou a criação de um
e-mail de contato, horários definidos para conversar com os professores-tu-
tores e a estipulação de critérios de avaliação. Percebemos que, nesse come-
ço, a metodologia de trabalho ainda começava a se formar, o que exigia de
todos um posicionamento mais intenso. A partir dos outros cursos, todas
essas tarefas aos poucos se transformaram em procedimentos estabelecidos
que ocorriam sem maiores tensões.

Atividades que, ao menos de início, não eram concebidas como


incumbência do monitor, ou, se eram, ganhavam pouco destaque, foram
citadas entre aquelas que fizeram parte de suas principais atribuições. Tal
foi a segunda característica encontrada: uma compreensão mais abrangente
por parte do monitor sobre sua atuação. Os registros e acompanhamento
das aulas, por exemplo, foram destacados como atividades que, apesar de
seu caráter corriqueiro, serviram para aprimorar a monitoria. Da mesma
forma, a presença e mesmo a participação nas oficinas do Teatro do Opri-
mido oferecidas durante os cursos foi citada como uma oportunidade de se
aproximar mais dos profissionais.

Certamente o âmbito mais desafiador dessa experiência foi o fato


de graduandos auxiliarem profissionais. Mesmo que essa tarefa fosse de
299

suporte, ainda era preciso haver uma preparação direcionada. A leitura


dos mesmos textos indicados nas aulas, bem como outros complementa-
res, seguidos de um fichamento e discussão em equipe, foram atividades
fundamentais, não à toa indicadas como as mais importantes, para a boa
execução da monitoria.

3. Mudança da percepção e percepção da mudança

Colocar em questão a descrição das atividades fez emergir outras


dimensões ainda não vislumbradas sobre a atuação dos monitores. Partin-
do então do mesmo movimento, o objetivo agora era verificar o que se mo-
dificou na forma de cada um entender e abordar o tema-alvo dos cursos,
bem como melhor organizar e delimitar quais os conhecimentos adquiri-
dos durante esse tempo. Vale ressaltar que nenhum dos monitores teve em
sala de aula um contato sistematizado com o tema do cuidado em saúde
no campo do álcool e outras drogas, o que se mostrou interessante, uma
vez que deixaria ainda mais nítido as diferenças do entendimento sobre a
questão antes e depois da passagem pelo CRR.

De maneira geral, o uso da droga, mesmo recreativo, era sempre


visto como algo necessariamente problemático e intensamente danoso, o
usuário era visto como uma pessoa fragilizada e passiva em relação à droga,
sendo ela mesma inteiramente responsabilizada pelos problemas decorren-
tes do uso. Déficit cognitivo, violência, despersonificação e fragilização de
vínculos foram descritos como alguns deles. A abstinência, o combate às
drogas (visando à sua extinção) e a recuperação de relações sociais eram
considerados formas de lidar com esses problemas. Em relação ao cuidado
em saúde, um monitor citou que considerava a internação e administração
de medicamentos como únicas formas de tratamento, enquanto os demais
relataram nunca ter pensado sobre o tema até então. Após a participação
no CRR, o uso de drogas passou a ser visto como uma questão muito mais
complexa e desmistificada, na qual o usuário, apesar de muitas vezes fragi-
lizado e propenso a adquirir certas comorbidades relacionadas, possui pa-
pel ativo no processo em que vive e que, por isso, deve ter sua experiência
valorizada no processo terapêutico. Déficit cognitivo, problemas orgânicos,
marginalização, violência e consequências da ilegalidade do consumo fo-
ram descritos como problemas atualmente percebidos pelos monitores. O
fortalecimento de vínculos afetivos, e a utilização da rede de saúde, através
300

de atendimento integral e multiprofissional, juntamente com o acolhimen-


to eficiente nessa rede, passaram a ser considerados como as formas mais
adequadas de lidar com essa questão. Sob o ponto de vista do cuidado em
saúde, além das estratégias citadas, foram enfatizados o resgate da autoes-
tima e a construção do projeto terapêutico segundo a demanda do usuário.

Essa mudança não se deu desarticulada com o meio pelo qual se


propagou. Ficou evidente para os monitores, a partir dos relatos dos profis-
sionais e da troca de vivências nos cursos, que o estabelecimento e o com-
partilhamento de conhecimento sobre esse campo, principalmente por se
inserir em um sistema de saúde que preza pelo funcionamento em rede, só
poderia se dar coletivamente. Encontrar saídas possíveis para os problemas
enfrentados no campo da saúde passa pelo estabelecimento de serviços que
se articulem com as particularidades de cada localidade, e, para tanto, não
há outro caminho que não a construção coletiva de conhecimento.

A leitura crítica dos textos e exercícios recebidos foi constatada


como uma habilidade desenvolvida durante a monitoria, aprimorá-las foi
essencial para dar conta das demandas propostas. O próprio estabelecimen-
to de procedimentos de trabalho também foi decisivo e, juntamente com
todas as mudanças apresentadas, abriu caminho, segundo os monitores,
para a renovação do olhar sobre a questão do álcool e outras drogas, do
entendimento sobre as pessoas que fazem uso problemático de drogas41 e
da atuação junto a essas pessoas. Influenciou também na ressignificação,
ainda que pontual, da representação dos próprios cursos de graduação e
suas práticas.

Todos esses desdobramentos foram apontados como relevantes


para formação acadêmica e profissional. Ficou claro, assim, que o proje-
to foi educador em todos os sentidos, incluindo os próprios monitores na
formação oferecida, mesmo que essa formação só tenha sido melhor com-
preendida posteriormente.

41
A substituição do termo “drogado” ou “usuário de drogas” (enquanto designação taxativa)
por “pessoa que faz uso problemático de droga(s)”, ao menos enquanto sentido, demonstra que
a concepção sobre o uso de drogas foi reformulada, deixando de lado a visão estigmatizada por
outra onde são comportados diferentes níveis de envolvimento com a substância de escolha. A
adoção de novos conceitos e expressões na linguagem é um importante indicador do quanto
essa mudança se enraizou na prática dos monitores.
301

O projeto foi muito interessante para ajudar a es-


clarecer algumas dúvidas que eu particularmente
tinha com relação ao usuário, alguns preconceitos
que a gente sempre tem. Ajudou também a perceber
que profissionalmente você não faz nada sozinho,
você precisa de outros profissionais da área para
atender os diversos tipos de pacientes, principal-
mente os que têm um contexto mais complexo,
como é o caso dos usuários de drogas, que necessi-
tam desse acompanhamento multiprofissional. E foi
interessante também porque eu não vou fazer mais
o que era talvez esperado de mim como médica, que
é abordar um usuário de drogas falando para ele en-
trar em tratamento e largar daquilo, sem perceber
que aquele paciente que tá ali na minha frente tem
outras questões que não se relacionam com o uso
de drogas e que talvez por meio dessas outras ques-
tões eu consiga abordar e minimizar esse uso, fazer
uma adaptação, uma redução de danos, de forma
que aquilo, para o futuro dele, vai ser bom, o que
às vezes pode levar ao abandono do vício ou não,
caso não abandone, ele vai aprender a administrar a
vida dele sendo usuário da substância que consome
(monitora e aluna do curso de Medicina).

4. A extensão como espaço diferenciado

Os desdobramentos das atividades – seja como mudança de con-


cepções, entendimento sobre a construção de conhecimento no campo da
saúde, desenvolvimento de habilidades ou estabelecimento de procedimen-
tos de trabalho – demonstraram, através da fala dos próprios monitores, a
relevância da participação no projeto. Ora, se as atividades realizadas foram
delimitadas e os desdobramentos destas identificados para que não nos li-
mitemos a uma avaliação de resultados, devemos por fim abordar a questão
disparadora dessa investigação: nossa suposição de que a ausência de um
discurso estruturado sobre a experiência seria consequência não de uma
falha ou inabilidade, mas sim o reflexo da passagem por um contexto de
aprendizado específico, e talvez diferenciado, proporcionado pelo CRR.
302

Durante as entrevistas, essa questão foi abordada em sua última


parte, o que permitiu que os monitores pudessem realizar um apanhado de
tudo que haviam relatado até então. Talvez por isso, houve um acordo geral
quanto à indicação do lugar de responsabilidade central atribuído ao mo-
nitor como fator fundamental na constituição do caráter singular dessa ex-
periência. Entre professores-tutores, profissionais participantes dos cursos
e estrutura do projeto estavam os monitores, em uma posição estratégica de
tensão e ligação entre todas as partes. Havia ainda o contato com a realidade
da atuação profissional, vivida através dos relatos dos profissionais durante
as aulas e também da necessidade de lidar com os aspectos pragmáticos de
articular uma diversidade de individualidades dentro de uma proposta de
construção de um conhecimento comum. Mas no que tudo isso implica? A
grande questão aqui é que o papel de responsabilidade ocupado pelo mo-
nitor, juntamente com o contato direto com os profissionais, exigiu, através
de um contexto eminentemente prático, o desenvolvimento de estratégias e
recursos próprios de maneira autônoma.

Não queremos dizer que a preparação para essa atuação (leitura


de bibliografia sobre os temas abordados, reuniões de equipe, etc.) não teve
importância, mas sim que foi a própria prática a condutora principal dos
posicionamentos adotados. Acreditamos na importância disso, pois, no
meio acadêmico, ainda são muito poucas as oportunidades em que os es-
tudantes participam ativamente da estruturação de sua formação e de suas
ferramentas de trabalho. Além disso, há ainda uma forte separação entre
teoria e prática, o que resulta na apreensão de técnicas que não se articulam
adequadamente com a prática real de cada profissão. “Agir pensando e pen-
sar agindo”, esse era o processo demandado pelas atividades de monitoria.

Eu acho que o diferencial do CRR e da extensão


seja a possibilidade de você poder exercitar o que
você aprende in loco. Você aprende aqui e exerci-
ta aqui mesmo. E de propiciar uma prática – não
sei seu diria semiprofissional – que é importante na
nossa formação, porque ela afina os instrumentos
que você vai construindo (aluno de Enfermagem e
monitor do CRR).
303

Dessa forma, em um momento em que tanto se debate os cami-


nhos da universidade e da formação, a extensão acadêmica – através de sua
estrutura que visa se encontrar com a sociedade mais diretamente e de seu
caráter ainda pouco dominado pela rigidez das metodologias acadêmicas
– aparece como uma alternativa possível para a construção de processos pe-
dagógicos mais fluidos e que demandem a construção ativa de referenciais
pautados no fazer, o que sem dúvida fomenta a adesão e a implicação dos
discentes no desenvolvimento de seu percurso profissional.

5. Conclusão

Passar qualquer experiência pode modificar nosso ponto de vista e


forma de agir. No entanto, a constatação das mudanças provenientes dessa
passagem não é limitada à sua apreensão primeira ou generalizada. Pensar
no que passou despercebido, olhar novamente para situações que pareciam
esgotadas, enfim, ao considerar o vivido uma dimensão aberta e que é re-
criada a partir de nosso olhar sobre ele, somos capazes de moldá-lo e recriá
-lo. Esse é um aspecto importante do qual só nos demos conta no fim de
todo o processo, afinal foi só aí que pudemos ver o quanto a percepção dos
entrevistados, e também a nossa, havia se modificado. Entendemos que isso
ocorreu não por um desvelar do que estava encoberto ou pela acumulação
de informações, mas pela própria formulação do discurso sobre a experiên-
cia, que nos deu a chance de abordá-la de uma maneira mais atenta. Tudo
que vimos aqui não se mostrou após uma simples observação, foi fruto de
uma insistência no encontro com o que desejávamos conhecer melhor.

Mas por que se preocupar em estabelecer um discurso sobre o que,


como vimos, já estava presente na atuação dos monitores? Não é exatamen-
te esse o cenário almejado por um processo de aprendizagem bem-sucedi-
do? De fato, mas precisamos observar um ponto específico. É certo que in-
dividualmente todo o conhecimento apreendido durante a monitoria tinha
sido muito bem desenvolvido e assimilado, o problema é que essa expertise
estava ainda relegada a um plano pessoal, o que afeta um aspecto crucial em
toda a ideia de formação em saúde e na universidade: o compartilhamento
de conhecimento. Ora, se ao menos no CRR o aprendizado se deu de forma
singular, pode ser que em outros projetos e programas de extensão, inde-
pendente de sua área, tenham se desenrolado outros tantos processos de
304

aprendizagem, que comportem outras características. Partilhar essas expe-


riências permite que iniciativas que lidem com situações semelhantes pos-
sam encontrar outros referenciais que lhes sirvam de suporte. Especialmen-
te no campo da formação em saúde, esse cenário se mostra fundamental.

Sendo assim, a construção e o compartilhamento de relatos ou in-


vestigações como essa por parte dos envolvidos são de grande importância,
pois, além de servirem como autoavaliação para as ações em si, permitem
o estabelecimento de redes locais e regionais de referência na formação em
saúde ou de outras áreas. Nesse sentido, devemos pensar também na orga-
nização da universidade, visando fortalecer e incentivar as ações extensio-
nistas como espaços de formação valorosos.
CAPÍTULO 13

CRR-UFF: a experiência da formação para o cuidado


de usuários de álcool e outras drogas
Lorenna Figueiredo Souza42

Ândrea Cardoso de Souza43

Elisângela Onofre de Souza44

Ana Lúcia Abrahão45

Francisco Leonel Fernandes46

Maria Alice Bastos47

42
Psicóloga; Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ; Psicóloga da Secretaria
Estadual de Saúde do Rio de Janeiro. Integrante da equipe de coordenação do CRR-UFF. En-
dereço eletrônico: lorennasouza@hotmail.com
43
Enfermeira; doutora em Saúde Pública pela ENSP/FIOCRUZ; professora adjunta da Escola
de Enfermagem Aurora de Afonso Costa da Universidade Federal Fluminense. Integrante da
equipe de coordenação do CRR-UFF. Endereço eletrônico: andriacz@ig.com.br
44
Psicóloga; especialista em Rede de CAPS Álcool e outras Drogas. Integrante da equipe de
coordenação do CRR-UFF. Endereço eletrônico: elisonofre@gmail.com
45
Enfermeira; doutora em Saúde Coletiva pela UNICAMP; professora titular da Escola de En-
fermagem Aurora de Afonso Costa da Universidade Federal Fluminense. Integrante da equipe
de coordenação do CRR-UFF. Endereço eletrônico: abrahaoana@gmail.com
46
Psicólogo; doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; pro-
fessor associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Inte-
grante da equipe de professores do CRR - UFF. Endereço eletrônico: francisco.lf@mac.com
47
Assistente Social; mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janei-
ro. Articuladora intersetorial do CAPS AD alameda da Fundação Municipal de Saúde de Niterói.
Integrante da equipe de professores do CRR - UFF. Endereço eletrônico: malicebs81@gmail.com
306

1. Para introduzir o CRR-UFF: o passo a passo de uma experiência de


formação

O deslocamento do eixo das ações em saúde – da doença para a


promoção da saúde – trouxe consigo a exigência de uma série de trans-
formações que envolvem todos os níveis da organização institucional da
saúde, que vão desde a construção de novos equipamentos, a necessidade
de novos modelos de gestão, até uma outra configuração quanto aos modos
de agenciar as ações no campo social, implicando um chamado ético que
concerne a todos no que tange às responsabilidades relativas à efetividade
dos cuidados: a valorização do sujeito implicando em novos modos de par-
ticipação dos agentes e dos usuários concernidos nos cuidados. Falamos
em ética porque, por concernir a todos, de maneira mais clara fica posta
a necessidade de se trabalhar essa relação entre as ações do Estado e suas
repercussões no plano cultural no qual são reordenadas as responsabilida-
des. Razão pela qual se tornou urgente a formulação e a adoção de modos e
processos de trabalho que possam ter uma incidência no plano da cultura,
implicando e responsabilizando cada um no processo mesmo de constru-
ção das ações de saúde, suas instituições e as práticas que as implementam.

Essa novidade trouxe novos desafios para as diversas formações


profissionais. Se no paradigma ordinário espera-se a doença para intervir,
organizando-se a partir desse fluxo focado na doença, todo o conjunto ins-
titucional de intervenção pautado em um saber que privilegia os aspectos
técnicos e científicos, com o deslocamento da doença para a saúde, a exi-
gência se torna maior. Isso porque se continua a valorizar esses aspectos
técnico-científicos, mas não apenas eles. Para além deles, observa-se a ne-
cessidade não só de conferir-lhes o justo e devido lugar numa conjuntura
mais ampla, como promover a participação e a responsabilidade de todos
quanto a sustentar em práticas concretas a saúde como um valor civilizató-
rio – é o que o assumimos como o chamado ético do deslocamento do eixo
das ações em saúde da doença para a promoção da saúde.

Nesse novo contexto, a formação profissional em saúde torna-se


uma questão “dramática”, pois, mais do que ensinar um savoir-faire técnico
a seus agentes, ela torna-se um processo de construção de um lugar social a
partir do qual pode se disseminar esse chamado à cultura quanto à promo-
ção da saúde enquanto valor, assinalando-se desse modo a incidência ética,
para além da técnica, que cabe ao profissional de saúde promover. Como
fazer face a esse novo desafio, sem dúvida alguma, exorbitante?
307

Chamamos a atenção de que isso já estava implicado pelo SUS des-


de sua formulação. Tome-se em consideração seus conceitos, por exemplo,
o conceito de integralidade das ações de saúde coloca na ordem do dia essa
exigência ética não como o cultivo de um valor ideal abstrato, mas como
um princípio prático a orientar as ações, traçando-lhes coordenadas deter-
minadas. Entre elas, que os profissionais de saúde estejam envolvidos com
o contexto histórico-social dos usuários e que possam atuar como transfor-
madores do processo de atenção psicossocial que os envolve tanto quanto
o usuário, no curso das ações de saúde – outra maneira de dizer que esse
profissional deve estar apto a problematizar que suas intervenções se dão
também no plano da cultura, das múltiplas relações sociais que a contor-
nam, para além do que é prescrito por sua capacitação técnica e funcional.

Já em 1998, Merhy (1998) apontava para essa necessidade de cons-


truir uma nova maneira de produzir saúde tomando em consideração os
laços sociais. Considerando a realidade institucional na qual se inscrevem
as ações de saúde, sua ampla rede de serviços públicos, ele estimulou um
conjunto de reflexões teóricas sobre como realizar a mudança de um mode-
lo de atenção corporativo para um modelo centrado no usuário. Ele desen-
volveu o conceito de “tecnologia leve” para abordar esses outros níveis de
incidência das ações na saúde que tocam o plano cultural e seu ethos (daí a
questão ética), que faz relação com as diversas formas e emprego do saber
no processo de trabalho em saúde e suas relações de poder intrínsecas (a
micropolítica): as operações que dizem respeito ao que concerne aos víncu-
los entre profissionais e usuários.

Essas reflexões não podem deixar de estar presentes quando se


convoca a saúde a tratar de uma problemática eminentemente cultural
como um problema de saúde, como é o caso do uso de drogas em nossa
sociedade. Os riscos graves da mistificação, que uma posição não adverti-
da dos agentes da saúde pode acarretar no contexto de uma problemática
que, nada mais nada menos, é sintomática do ordenamento social de nossa
sociedade, de sua composição de classes e das relações de poder que as ar-
ticula nos planos da política, da cultura e da economia.

Não é que os usuários de drogas não devam ser tratados pela saú-
de, mas uma coisa é acolhê-los em suas dificuldades em torno da vida e da
morte, outra é sancionar como categoria patológica um hábito cultural que
é determinado e é resposta à composição dos jogos de força que ordenam o
308

campo social. Quanto às drogas, se até hoje vivemos no marco do equívoco


que é tratar uma questão sociocultural e política como problema de polícia,
através das políticas proibicionistas, não deixaria de ser um equívoco ainda
maior e mais grave tratar essa mesma questão como problema médico.

Eis então delineado o contorno problemático do modo como enca-


ramos o desafio de inscrever o CRR-UFF enquanto prática de ensino e for-
madora de profissionais que atuam nos mais diversos níveis institucionais
que lidam com a questão das drogas. Como comprometer o que Ceccim e
Feuerwerker (2004) designaram como quadrilátero da formação – ensino,
gestão, atenção e controle social – nesse campo tão problemático e seduzido
a fornecer álibis que obscurecem nossas questões sociais, com uma atitude
ética no cuidado que efetivamente introduza possibilidades reais de trans-
formação nas relações sociais que a produzem e, nessa medida, seja, de fato,
produtora de saúde?

2. O arco institucional e a construção das parcerias: o lugar social do CRR

Os Centros Regionais de Referência para Formação de Profissio-


nais em Crack, Álcool e outras Drogas (CRR) são concretizações de uma
política pública que se implanta desde o nível federal: o Plano Integrado de
Enfrentamento ao Crack e outras Drogas de 2010. Sua ambição é ampla,
basta ver a tarefa a que se incumbe e o espectro institucional que anuncia:
capacitar, de forma continuada, os atores governamentais e não governa-
mentais envolvidos nas ações voltadas à prevenção do uso, ao tratamento e
à reinserção social de usuários de crack e outras drogas e ao enfrentamento
do tráfico de drogas ilícitas. Não é pouca coisa.

No caminho da ponta, na assistência, o CRR em Niterói foi uma


iniciativa que emanou da UFF, envolvendo seus professores e profissionais
da rede de saúde mental de Niterói. Não é demais sublinhar o fato do CRR,
enquanto concepção, emergir de uma avaliação tecida no interior de um
trabalho já em curso na rede de saúde mental de Niterói, do qual quadros
da universidade dele participavam. Em especial, a avaliação possível de se
fazer a partir do trabalho, de que os pontos cruciais para uma abordagem
mais correta da problemática das drogas eram aqueles que podiam ser ca-
racterizados como exigindo uma abordagem intersetorial. Com efeito, iso-
lar o usuário em procedimentos protocolares quando a experiência a mais
309

ordinária mostra claramente o espectro multifatorial de sua inserção nos


territórios, só fez agravar o problema, contribuindo sobremaneira com os
processos de estigmatização e segregação social que estão na raiz da produ-
ção mesma das drogas como uma questão sociocultural. Tais procedimen-
tos, sabe-se hoje em dia, representam a cota da contribuição das institui-
ções, muitas delas públicas, para o agravamento do problema.

Então, como inverter esse vetor e estabelecer um marco institu-


cional que, de fato, possa aportar um encaminhamento mais correto e fa-
vorável às pessoas concernidas pela problemática das drogas? A essa altura,
já se sabia que não bastavam iniciativas que anunciavam bons propósitos.
É fácil prometer, inclusive destinar verbas para ações cuja efetividade são
mais do que duvidosas, bastando ver os resultados alcançados para muitas
delas. O trabalho intersetorial, sobretudo as dificuldades duríssimas que ele
permitiu entrever, nos adiantou um diagnóstico preciso: a necessidade de
uma formação para os quadros que lidam com a problemática e, mais do
que isso, cenários nos quais os diversos enquadramentos fechados em si
mesmos, girando em torno de seus protocolos sem efetividade, pudessem
romper seus respectivos isolamentos e inaugurassem uma modalidade de
trabalho em “interlocução”, isto é, cenários nos quais os profissionais pu-
dessem “conversar” uns com os outros em todos os níveis de uma maneira
tal que, a conversa pudesse ter a potência de fazer avançar o processo so-
cial. Vale dizer, a compenetração de que o pivô da mudança para uma ação
mais efetiva e correta não estava tanto na relação entre os profissionais, suas
instituições e os usuários, mas na relação dos profissionais e suas institui-
ções entre si. Quer dizer, se os profissionais não retificam seus respectivos
entendimentos da questão, se as instituições que dele tratam, não importa
o âmbito da intervenção, não interagem e não constituem um campo de
implicações mútuas e de corresponsabilidades, nada de muito importante
vai acontecer para encaminhar problema tão grave pela extensão das vidas
que nele se perdem.

A perspectiva proposta por Merhy (2010) em que, a partir da for-


mação, se propõe um modelo assistencial em que as tecnologias leves co-
mandam as outras tecnologias presentes no sistema de saúde nos pareceu
bastante oportuna para traçar as coordenadas básicas do CRR-UFF, sobre-
tudo por colocar no centro da discussão sobre cuidado o tema do vínculo.
Aspecto crucial a se levar em conta quando o que está em pauta é o “enfren-
tamento” ao uso de drogas.
310

Nesse contexto, a presença da universidade é e foi estratégica. Em


particular a UFF e seus cursos voltados para a saúde, os quais desenvolvem
há muitos anos parcerias diversas com a rede de saúde de Niterói. Especi-
ficamente a rede de tratamento dedicada aos usuários de álcool e outras
drogas e a rede de saúde mental de Niterói contam com muitos professores
atuantes nos serviços, agenciando modalidades diversas e de vários níveis
(graduação, residência, especializações, mestrados e doutorado) de ensino
em serviço e realizando nela suas pesquisas. Esses professores estão bem
familiarizados com as realidades dos serviços, com as flutuações impostas
pelo jogo político real e com os avanços e recuos do processo social.

Além disso, o lugar estratégico da universidade no sentido de


agregar em um mesmo marco institucional a miríade de formações e pes-
quisas que podem e devem instruir as ações na saúde. Em suma, a partir
da universidade, na UFF, foi possível conceber um cenário no qual o co-
nhecimento produzido no próprio cotidiano dos serviços tinha um valor
e uma dignidade importantes e deveriam, por isso mesmo, ser levados em
conta na construção dos processos de trabalho. Vale dizer, a universida-
de se propondo mais como parceira e agenciadora de uma interlocução de
um saber em construção pelo conjunto dos atores concernidos nas práticas,
acionando o momento teórico de uma práxis, do que sendo uma instituição
hierarquicamente superior propondo seus modelos de “excelência” a serem
seguidos a partir de seu poder de legitimação do que é ou não é científico.

Nesse sentido, o CRR-UFF se alinhou com Merhy (2010), quando


este diz que as redes de serviços são fontes inesgotáveis de produção siste-
mática de novos conhecimentos e práticas – e a universidade como cenário
em que essa produção pode alçar um estatuto científico próprio enquanto
pesquisa qualitativa com a potência de excitar o debate e o processo social
em curso nas práticas dos serviços, e o que é decisivo, colaborando para
que estes rompam o isolamento em que uma prática cega, não afetada pela
crítica, corre o risco de encarcerá-los, condenando-os a uma dinâmica ins-
titucional iatrogênica.

Destarte, se o exposto acima soa bem e já se aplica em alguns


campos da saúde, temos de ressaltar aqui a novidade de tudo isso no que
concerne ao campo das drogas. É verdadeiramente impressionante o tabu
que até hoje cerca as possibilidades de estudar e intervir nesse campo de
uma maneira aberta – o que só agrava o problema. A atitude mais favorável
de um enquadramento correto já é há muito conhecida, mas sua aplicação
prática é recentíssima. Por exemplo, Andrade (2011) indica que a atenção
311

clínica ao uso de drogas na esfera pública no Brasil, até o início dos anos 90
do século passado, estava a cargo de seis Centros de Referência Nacional.
Segundo Machado e Miranda (2007), desses centros de referência, quatro
foram criados em universidades públicas e somente dois no âmbito do se-
tor público estadual de saúde48. Tais centros surgiram a partir do início da
década de 1980, foram reconhecidos em 1988 pelo Conselho Federal de
Entorpecentes (Confen) como centros de referência.

O documento de 1988, denominado “Política Nacional na Ques-


tão das Drogas”, propôs, como uma de suas linhas de ação, o favorecimen-
to da criação e da consolidação de centros de referência em prevenção e
tratamento ao uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas. Esses seriam locais
especializados para tratamento, para formação de pessoal qualificado para
o atendimento aos usuários e para a realização de pesquisas.

Segundo os autores,

Esses centros contribuíram para a produção técni-


co-científica relacionada ao tema e inauguraram no
país a possibilidade de realização de práticas não
moralistas nem repressivas. Muitos atores e práticas
de atenção que influenciaram a política de saúde
para usuários de álcool e outras drogas tiveram suas
origens nesses centros. (Machado; Miranda, 2007,
p. 808)

Apesar da inegável importância desses centros como indutores de


uma nova lógica de tratamento para usuários de álcool e outras drogas,

48
Os seis centros de referência são: Programa de Orientação e Atendimento a Dependen-
tes (Proad), do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp); o Centro de Orientação sobre Drogas e Atendimento a To-
xicômanos (Cordato), da Universidade de Brasília (UnB); o Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj); o
Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad), da Universidade Federal da Bahia
(UFBA); o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), do Depar-
tamento de Psicobiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp); o Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), em Minas Gerais, e o Centro Eulâmpio
Cordeiro de Recuperação Humana (CECRH), em Pernambuco.
312

suas compleições institucionais, o fato de serem “centros”, e em um só lu-


gar a assistência, formação e pesquisa, favoreceu a ideia arraigada no senso
comum de o tratamento de usuários de drogas ter que ser feito em serviços
especializados.

É evidente nosso descompasso fundamental na abordagem do


problema, sobretudo quando se considera o espectro de instituições que
lidam com ele. De um lado, o fato do uso de drogas ser tão disseminado
socialmente que, do ponto de vista prático, já não existe, no seio da popula-
ção, nenhuma compenetração moral com o poder de inibir a disseminação
do consumo de drogas e sua comercialização. E, de outro lado, o fato de
que o conjunto das instituições, o entendimento do Estado e seus apare-
lhos tomam o consumo de drogas e o demarcam como questão específica,
tratáveis com protocolos igualmente específicos, isolados das conjunturas
socioculturais nas quais se observa seu uso.

É uma situação de “esquizofrenia” social, do lado da sociedade, as


drogas estão afeitas às questões dos adolescentes, do lazer dos trabalhado-
res, das alternativas ao subemprego lumpemproletariado, etc., do lado do
Estado, aos “bandidos” as prisões, aos “viciados” os tratamentos médicos,
aos menores e moradores de rua a assistência social. Afora essa grave mio-
pia institucional, há ainda a considerar que todos esses campos, a educação,
a saúde, a polícia, o sistema prisional, os abrigos da assistência social e suas
modalidades de tratamento, tudo isso funciona de um modo estanque, sem
se coordenarem uns aos outros. É aberrante que o caráter iatrogênico dessa
composição institucional se sustente ainda em nossos dias, ainda mais con-
siderando o agravamento do problema especialmente no seio das comuni-
dades mais pobres.

Como dissemos, embora o exposto acima já seja do conhecimento


daqueles que militam no campo há algum tempo, não é verdade que essa
lucidez tenha, até hoje, obtido uma inflexão institucional importante, isto é,
na extensão que o encaminhamento do problema exige; as iniciativas estão
sempre aquém e terminam por produzir o efeito inverso do que afirmam
em suas pretensões programáticas. As propostas concretas são muito recen-
tes e ainda muito desarticuladas e de continuidade institucional difícil. Po-
rém, isso é alvissareiro, elas começam, tímidas, a aparecer. Os CRRs são um
exemplo disso. Eles foram propostos pela Secretaria Nacional de Políticas
sobre Drogas – SENAD em 2010, são centros de referência para a formação,
sendo a assistência destinada aos diferentes serviços da rede de atenção.
313

Diferenciação importante que amplia a base institucional das ações para


o SUS. Ela foi possível pelo fato de a política do Ministério da Saúde ter
preconizado desde 2003 a atenção integral aos usuários de álcool e outras
drogas e ter demarcado suas principais linhas de trabalho: a criação de uma
rede de atenção integral do SUS (ações de prevenção, promoção e proteção
à saúde); a construção de malhas assistenciais formadas por dispositivos
especializados (os Centros de Atenção Psicossocial álcool/drogas – CAPS
AD) e não especializados (unidades básicas, estratégia saúde da família e
hospitais gerais); e o estabelecimento de ações intersetoriais.

Assim, isso que apontamos como um fato novo – ter os serviços


junto à universidade como protagonistas na produção de conhecimento – só
foi possível nesse contexto em que o cuidado aos usuários de crack, álcool e
outras drogas passou a se fazer em diferentes pontos de atenção, conforme as
indicações mais recentes da política do Ministério da Saúde. O que aludimos
anteriormente passou a ser assumido como um desafio prático: a multifato-
rialidade envolvida no problema do uso/abuso de crack, álcool e outras dro-
gas, apontando para sua complexidade, buscando ultrapassar as abordagens
reducionistas ainda arraigadas nos contextos institucionais que abordam o
problema. Ainda é árduo fazer com que essas novas práticas em saúde com
essa população possam, de fato, levar em conta essa complexidade.

É nesse ponto justamente que reside a potência estratégica da


universidade na constituição do CRR-UFF. A universidade bem pôde ope-
rar como cenário no interior do qual uma discursividade mais favorável
a uma abordagem correta do problema pôde emergir implicando a parti-
cipação dos principais atores que agenciam os cuidados nas instituições.
Ela pôde contribuir na construção e na avaliação de novas práticas, mesmo
experimentações, no debate com outros campos de conhecimento e prá-
ticas envolvidos com a questão. Pelo fato, como dissemos anteriormente,
de a Universidade Federal Fluminense, através de convênio firmado com
a Fundação Municipal de Saúde de Niterói, participar ativamente na im-
plementação da rede territorial de saúde mental e compatibilizar o ensino
em serviço e suas pesquisas com os propósitos de fortalecer a rede fez com
que ela estivesse em posição de se configurar como polo do qual uma certa
intervenção na cultura pode se iniciar chamando os profissionais que traba-
lham nas instituições para frequentar os cursos promovidos pelo CRR-UFF.
Desse modo, ele provocou e veio a se constituir, através dessa proposta de
ensino e capacitação, como um cenário em que as instituições que tratam
do problema, pela participação de seus quadros nos cursos, encontraram
314

a oportunidade de uma interlocução mais abrangente entre si e com outras


instituições. Assim o CRR-UFF se constituiu como uma intervenção que se
construiu de baixo para cima, a partir da palavra dos quadros que operam na
ponta, do que eles têm a dizer de suas práticas, jogando com a mediação con-
ceitual e científica que ela, universidade, enquanto lugar da pesquisa, pôde
proporcionar.

Entenda-se tal intervenção não no sentido de promover simples-


mente uma militância “progressista”. Não foi o caso de simplesmente pro-
mover a adesão das pessoas a enunciados politicamente corretos e bem in-
tencionados. Isso seria inútil, sabíamos disso. Partiu-se do reconhecimento
de que é tempo de admitir tratar a questão das drogas de um campo con-
flagrado, um campo tenso, que envolve posições díspares e contraditórias.
O valor estratégico que o CRR-UFF pôde acionar numa tal conjuntura foi
o de realmente promover cenários de discussão, circunstâncias nas quais os
práticos pudessem, de fato, examinar e sofrer os efeitos de retificação quan-
to ao modo como entendem as práticas que agenciam. Foi desse modo que
o CRR-UFF entendeu sua contribuição para a qualificação de profissionais
para desenvolver uma atenção integral aos usuários dos serviços de crack,
álcool e outras drogas.

3. A formação no CRR-UFF

É importante advertir que o exposto acima foi emergindo pouco a


pouco no processo de instalação do CRR-UFF. Uma vez ele instituído, sua
equipe de coordenação começou a se debruçar sobre a questão da forma-
ção de profissionais para a atenção integral de usuários de crack, álcool e
outras drogas. Vale destacar alguns pontos bem concretos que ela teve de
enfrentar e reconfigurar. No primeiro edital da SENAD, os CRR tinham que
se comprometer com a realização de quatro cursos: Gerenciamento de Ca-
sos e Reinserção Social de Usuários de Crack, Álcool e outras Drogas para
Profissionais das Redes SUS e SUAS; Atualização em Crack, Álcool e outras
Drogas para Médicos da Atenção Básica e Profissionais NASF; Atualiza-
ção em Atenção Integral aos Usuários Crack, Álcool e outras Drogas para
Profissionais atuantes nos Hospitais Gerais; Atualização sobre Intervenção
Breve e Aconselhamento Motivacional em Crack, Álcool e outras Drogas
para Agentes Comunitários de Saúde, Redutores de Danos, Agentes Sociais
315

e Profissionais que atuam nos Consultórios de Rua. Todos esses cursos vi-
nham com conteúdo bastante estruturados, nos moldes da hierarquização
universitária em torno de como agenciar o saber.

Deu-se a esse respeito nossa primeira decisão quanto a organizar o


CRR-UFF como cenário de interlocução. Sabíamos que nossos alunos eram
práticos em atuação nas instituições e que nossos professores também o
eram. Ou seja, a potência do que tínhamos a fazer não estava em apostar
no que os que sabem mais tinham a ensinar aos que sabem menos, mas em
colocar em discussão o saber que esses práticos já possuíam quanto ao pro-
blema. Como esses práticos deveriam ter um entendimento determinado
pelo modo de operar de suas instituições, cientes que estávamos da lógica
protocolar que em geral as comanda, condenando-as a um funcionamento
isolado, “especializado”, vislumbramos um tema que poderia favorecer uma
abertura propiciadora para discutir esse entendimento: o estigma associado
ao uso de drogas na sociedade brasileira.

Colocávamos assim uma estratégia de “tecnologia leve” (Merhy,


1998, 2010) para abordar o tema no lugar da disposição hierarquizada
voltada para capacitar as especialidades praticadas nas universidades. Ele-
gemos como analisador um tema, o estigma, com a capacidade de trazer
consigo, em um processo de discussão, as evidências em torno da deter-
minação multifatorial da questão das drogas e a necessidade que esse tipo
de determinação lança para as instituições no sentido de poder abordá-los
de maneira interessante: em vez de uma instituição ficar encaminhando os
usuários para as outras, se desresponsabilizando no ato do encaminhamen-
to, discutiríamos uma relação em que estas assumem a necessidade de tra-
balhar em parceria num regime de corresponsabilidades, transformando o
ato de encaminhamento em participação, e não em omissão, como em geral
acontece.

Correlativamente a eleição desse tema, o estigma, e também como


efeito dessa decisão, emergiu a moldura metodológica em torno da qual
deveríamos fazer os cursos do CRR-UFF gravitarem: as coordenadas em
torno da Redução de Danos como estratégia princeps para se abordar o
problema das drogas proposta pelo Ministério da Saúde. É evidente que os
processos de estigmatização social são homólogos aos processos diagnósti-
cos em curso nas abordagens “especializadas” dos tratamentos aos usuários.
Identificar um usuário é, de certo modo, estigmatizá-lo como “viciado” e
316

doente. É mais do que óbvio o papel ideológico da medicina no sentido de


fundar uma especialidade na estigmatização daqueles cujo comportamen-
to é efeito de dinâmicas psicossociais e socioculturais muito abrangentes.
Há certa cumplicidade entre uma concepção “técnico-científica” médica
do uso de drogas e o direito positivo de nossas tradições jurídicas: de um
lado, os “viciados-doentes”, e de outro, os “bandidos-traficantes”, para uns,
tratamento; para outros, cadeia – embora se saiba que, no fundo e sob justi-
ficativas diferentes nesse modo de considerar as coisas, tratamento e cadeia
sejam a mesma coisa. É bastante surpreendente que até nossos dias seja esse
entendimento absolutamente falso que reja toda a dinâmica institucional
dos aparelhos de Estado que tratam do problema. A gravidade social, que é
um conjunto enorme de equipamentos e recursos, se pauta em um entendi-
mento falso e mistificador da questão das drogas.

Daí então a Redução de Danos. Um encaminhamento clinicamente


realista, já que parte do reconhecimento óbvio de que as pessoas, sob os mais
variados pretextos, fazem uso de drogas. E um modo de acolhimento orienta-
do pela tolerância, condição sine qua non para buscar encaminhar estratégias
ativas, visando a que o usuário se responsabilize por seu uso e possa aceitar,
em algum nível, tratar-se. Ora, a Redução de Danos interroga as estratégias e
as visadas “especializadas”, ela joga com um entendimento multifatorial e exi-
ge em suas abordagens que seu foco esteja na produção de vínculos diversos
e intersetoriais. Além disso, ela é uma maneira bastante eficaz de levar as pes-
soas comuns a refletir sobre uso de drogas dentro de uma moldura realista,
isto é, que não se suporta na estigmatização, pois o encara da perspectiva de
implicar o sujeito como responsável pelo uso que faz.

Para implementar essa dinâmica de ensino comprometida com


constituir-se como cenário de interlocução, o CRR-UFF elegeu a figura de
um professor-base, pessoas dotadas da virtualidade de poder estar em po-
sição de provocar e disparar tal processo de discussão. Ao professor-base
foi designado um número maior de horas-aulas nos cursos. Procurou-se
garantir sua presença no início, meio e encerramento dos cursos. A fun-
ção do professor-base seria levantar e identificar questões específicas dos
“alunos-práticos” relativas ao problema do uso de álcool e outras drogas,
podendo retomá-las, desdobrá-las ao longo do curso. Seu objetivo foi, por-
tanto, provocar e acompanhar o “aluno-prático” nessa travessia que, inter-
rogando os processos de estigmatização, pudessem favorecer uma constru-
ção do problema afeita à Atenção Psicossocial, ao realismo da Redução de
317

Danos e aos Direitos Humanos, numa visada de construção da cidadania


como participação. Outro procedimento adotado foi a presença de uma das
coordenadoras do CRR-UFF em todas as aulas, visando tentar garantir a
continuidade entre os encontros com professores diferentes, apontando os
entrecruzamentos entre as aulas e a direção de trabalho.

4. CRR: formação diferenciada que dialoga com profissionais dos serviços.

Pelo o que já expusemos, evidencia-se nossa direção de trabalho


comprometida com colocar como foco dos cursos do CRR-UFF os deter-
minantes mais abrangentes de natureza socioculturais que constituem a
questão das drogas. Como inflectir esse entendimento multifatorial numa
iniciativa interna à universidade? É claro, o CRR-UFF se apoiou numa di-
nâmica de formação interdisciplinar e numa metodologia inspirada em es-
tratégias participantes e em serviço.

A formação interdisciplinar convida à interlocução como estraté-


gia que relativiza as certezas impostas pelos enquadramentos especializados
em disciplinas e em execução de protocolos fechados – sair da “rotiniza-
ção”, decidir numa lógica dialógica, implicando o outro e o conflito. Uma
perspectiva na qual o saber não já está constituído e na mão de uns poucos
mestres e especialistas. Ele é produção desse conjunto de pessoas num pro-
cesso de interlocução, incorporando as experiências de cada um, aberto às
devidas retificações em função da enormidade de fatores, muitos dos quais
singulares, que concorrem para a determinação das questões relativas ao
uso de drogas.

5. Recolhendo efeitos

Considerando a avaliação um dispositivo importante para o moni-


toramento e reordenamento das ações e propostas do CRR-UFF, tomamos
os resultados advindos das avaliações como uma possibilidade de apren-
dizado de novos conhecimentos e práticas que possibilitam reinvenções,
novas pactuações e novas formas de exercitar a formação. Sendo assim, o
produto das avaliações é tomado como gerador de conhecimentos e práti-
cas (Silva; Brandão, 2003).
318

O CRR-UFF adotou duas modalidades de avaliação: a avaliação do


aluno e a avaliação do curso.

A avaliação do aluno visou observar a apropriação que o aluno


pôde fazer dos conteúdos e das discussões propostos pelo curso. Isso foi
feito através de avaliação escrita, com questões que procuraram promover
a articulação de situações práticas (casos clínicos publicados, notícias de
jornais e revistas, fragmentos de experiências trazidas pelos alunos) com
textos sugeridos pelos professores.

Apesar dos resultados evidenciarem o aprendizado dos alunos, na


avaliação que propomos que o aluno faça do curso, houve críticas e novas
propostas:

“A avaliação poderia ser mais livre (...) para falar o


que ouvimos nas aulas, e não com critério de uso
de muitos textos” (aluno do curso de gerenciamen-
to de casos).

As avaliações do curso, feitas pelos alunos, são excelente oportu-


nidade para a equipe do CRR recolher resultados e fazer as reorientações
necessárias. Observa-se, por exemplo, o interesse dos alunos em ampliar os
momentos/espaços de trocas entre eles.

“Acredito que a metodologia pode ser mais parti-


cipativa, que estimule a interação e a troca entre os
alunos” (aluno do curso de gerenciamento de casos).

“As discussões mais interessantes e com maior par-


ticipação dos alunos ocorreram mais nas últimas
aulas, para poder dar mais tempo ou espaço no
curso para as discussões de caso” (aluno do curso
gerenciamento de casos).

“(...) gostaria de ter mais um período para discussão


de casos clínicos. Percebo que nas apresentações foi
possível interagir com a turma e o corpo docente,
o que auxiliou os embaraços que foram surgindo
sobre atuações, linha de cuidado, discussões entre
serviços” (aluno do curso gerenciamento de casos).
319

As avaliações, entretanto, apresentam um retorno


satisfatório em relação ao atravessamento do es-
tigma de usuários de álcool e outras drogas, con-
siderado pela equipe um objetivo fundamental dos
cursos:

“Gostei muito do curso. Mudou muito a minha for-


ma de ver o usuário de drogas e como lidar com os
eles” (aluno do curso voltado para a atenção básica).

“A equipe do curso está de parabéns. Conseguiram


semear em cada um de nós o desejo de aprender
cada vez mais a lidar com o usuário de drogas e em
especial a trabalhar com o preconceito e frustrações
diante de algo tão grave!” (aluno do curso voltado
para a atenção básica).

“Muito importante a existência desse espaço de


aprendizado e debates sobre o trabalho, suas de-
mandas e principalmente as possibilidades de que-
bra de paradigmas com relação a todo esse universo
complexo e polêmico das drogas” (aluno do curso
voltado para a atenção básica).

6. Tornando-se um centro de referência

O ato de instituir-se com o título de “centro de referência” não ga-


rante que uma instituição funcione como tal. Constituir-se como centro
de referência é um efeito do tempo e do trabalho realizado em vista de, de
fato, termos tido algum êxito no sentido de produzir uma vinculação entre
os alunos-práticos e o discurso encaminhado pelo CRR-UFF, tal como aqui
o expusemos.

Em conformidade com Aulete (2007), uma das definições de cen-


tro: “lugar para o qual muitas pessoas convergem, para onde costumam
se dirigir e onde se dá grande parte de determinadas atividades, e que não
é necessariamente um centro geográfico”; e de referência, “o que se toma
como parâmetro por sua qualidade, eficiência, etc.”, consideramos que CR-
R-UFF está no processo de se colocar como tal, pelo discurso que encami-
nha com os valores anteriormente explicitados que, preconizam através de
320

seus cursos e seminário abertos ao público, para o qual chamamos pessoas


com expressiva atuação no campo de álcool e drogas. Tais seminários têm
contribuído para as discussões e ajudado a pensar a direção de trabalho do
CRR-UFF.

Para que não se institua somente como um “centro geográfico”,


conforme definição acima, o CRR-UFF tem investido na divulgação de in-
formações sobre álcool e drogas, através de página em rede social (Face-
book).

Além disso, no momento pretende expandir seu território, ofere-


cendo capacitações para outros municípios do estado do Rio de Janeiro,
além da região metropolitana II, que tem sido o foco de seus cursos até
agora.

Pretendemos ainda aprofundar o investimento no trabalho em


rede, conforme orientação da SENAD, que elenca entre os princípios fun-
damentais dos centros de referência:

- estabelecer parcerias com a gestão municipal e estadual para rea-


lizar diagnóstico das necessidades de formação em políticas sobre drogas
das redes locais;

- construir conjuntamente com trabalhadores e gestores os con-


teúdos e métodos de aprendizagem relacionados ao tema;

- contribuir para o fortalecimento de redes intersetoriais de base


territorial para prevenção, cuidado e inclusão social das pessoas que fazem
uso prejudicial de substâncias psicoativas;

- utilizar o método de formação como instrumento de integração


das diversas políticas/redes atuantes no mesmo território.

7. Considerações finais

As atividades do CRR-UFF têm se constituído em espaços de edu-


cação permanente à medida que favorecem possibilidades de reflexão para
que os profissionais e gestores possam repensar suas práticas, entender os
processos de trabalho no qual estão inseridos e rever condutas, de modo a
buscar novas estratégias de intervenção, superação de dificuldades concer-
321

nentes à atenção psicossocial aos usuários de drogas (Ciconet; Marques;


Lima, 2008).

Um direcionador do trabalho do CRR- UFF tem se constituído em


qualificar a formação profissional para as reais demandas e necessidades
dos usuários dos serviços. A formação proposta pelo CRR-UFF visa não
só possibilitar a ampliação do cuidado, como auxiliar os profissionais na
formulação de novos modos de cuidado e assim influenciar nas práticas e
na formulação de políticas de cuidado para atenção aos usuários de drogas
no espaço da micropolítica. A formação proposta pelo CRR-UFF é tomada
como um recurso para a gestão dos processos de atenção em saúde.

O CRR-UFF tem possibilitado à universidade se exercitar como


indutora de mudanças nos processos de formação, propiciando novos mo-
dos de aprender e de ensinar em saúde.

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CAPÍTULO 14

PET Saúde Mental/Crack, Álcool e Outras Drogas –


Experiência de adoecimento de pessoas em uso problemá-
tico de álcool e outras drogas que não deram continuidade
ao tratamento no CAPS AD – Porto/Macaé RJ
Erotildes Maria Leal49

Ana Lucia Basilio Ferreira Togeiro50

Cynthia Aquino51

Fillipe Teixeira Tinoco Rodrigues 52

Gabriel Moreira Crelier53

Queline Simões Evangelista54

Talitha Demenjour55

49
Professora adjunta da Faculdade de Medicina da UFRJ; Coordenadora do PET Saúde – PET
Saúde/Saúde Mental/Crack, Álcool e outras Drogas UFRJ – Macaé e do Centro Regional de Refe-
rência para formação de profissionais que atuam com usuários de álcool e outras drogas no SUS
e SUAS – CRR – UFRJ Macaé
50
Psicóloga do CAPS AD – Porto, Tutora do PET Saúde – PET Saúde/Saúde Mental/Crack,
Álcool e outras Drogas UFRJ – Macaé
51
Aluna bolsista do PET Saúde – PET Saúde/Saúde Mental/Crack, Álcool e outras Drogas UFRJ
– Macaé, medicina da UFRJ – Campus Macaé
52
Graduado em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – Campus Macaé. Res-
idente do Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro. Foi aluno bolsista do PET Saúde Mental/Crack, Álcool e Outras
Drogas, na UFRJ – Campus Macaé.
53
Aluno bolsista do PET Saúde – PET Saúde/Saúde Mental/Crack, Álcool e outras Drogas UFRJ
– Macaé; medicina da UFRJ – Campus Macaé
54
Aluna bolsista do PET Saúde – PET Saúde/Saúde Mental/Crack, Álcool e outras Drogas UFRJ
– Macaé; medicina da UFRJ – Campus Macaé
55
Aluna bolsista do PET Saúde – PET Saúde/Saúde Mental/Crack, Álcool e outras Drogas UFRJ
– Macaé; medicina da UFRJ – Campus Macaé
326

A não aceitação ou o abandono do cuidado em saúde é um co-


nhecido problema no campo da atenção a pessoas que fazem uso proble-
mático de álcool e outras drogas (AD). Vários fatores concorrem para isso,
entre eles o fato dos projetos terapêuticos ofertados considerarem pouco
ou nada a experiência vivida de quem faz uso problemático de álcool e ou-
tras drogas. Este artigo apresentará o estudo desenvolvido pelo PET SM
(programa de educação pelo trabalho56), que se dispôs a compreender esse
fenômeno no contexto de um Centro de Atenção Psicossocial para Álcool
e outras Drogas – CAPS AD, e relatará também a experiência de parte da
equipe57 do PET na iniciação à pesquisa nesse campo. Alunos dos cursos
de graduação de medicina (4), enfermagem (1) e trabalhador de saúde (1)
da rede AD, coautores desse relato de pesquisa, também descrevem aqui
como experimentaram o contato com o tema investigado e o processo da
pesquisa. Suas narrativas estão apresentadas em caixas destacadas do texto
e antecedidas de subtítulos para facilitar a identificação do narrador.

Introdução

No Brasil, desde o final da década de 1990, iniciativas governa-


mentais têm sido empreendidas com o propósito de implementar cuidado
em saúde para pessoas que fazem uso problemático de substâncias psicoati-
vas. A política brasileira para a atenção aos problemas de saúde decorrentes
do uso de álcool e outras drogas, iniciada em 2003, tem como um de seus
pilares a criação de uma rede de serviços extra-hospitalares e comunitá-
rios. Essa rede, articulada com as redes da educação e da assistência social,
tem nos CAPS AD o seu elemento articulador. Serviço de base territorial,
o CAPS AD destina-se ao atendimento de pessoas em situações graves e

56
O Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde – PET-Saúde – é uma ação interseto-
rial, que tem como pressuposto a educação pelo trabalho e é uma das estratégias do Programa
Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde, o PRÓ-SAÚDE. O fio condutor
do PET-Saúde é a integração ensino-serviço-comunidade. Direcionado para o fortalecimento
de campos ou temáticas articuladas ao Sistema Único de Saúde (nesse caso a saúde mental/
campo AD foi o eixo). O Programa disponibiliza bolsas para tutores, preceptores (profissionais
dos serviços) e estudantes de graduação da área da saúde.
57
Este estudo, desenvolvido nos anos de 2012 e 2013, foi realizado por uma equipe constituída
por 15 alunos das graduações de medicina, enfermagem, psicologia, um preceptor psicólogo,
um assistente social e uma professora médica.
327

complexas decorrentes do uso prejudicial de drogas ou dos danos a ele as-


sociados. Desde então, mais de uma centena de CAPS AD foi criada58.

O esforço para a implementação, ampliação e aperfeiçoamento da


rede de atenção a pessoas que fazem uso problemático de drogas no Brasil
ainda não foi suficiente para garantir boa cobertura assistencial59. Desafios
de toda ordem – políticos, sociais, clínicos, de capacitação de profissionais,
etc. – marcam o enfrentamento desse problema. Melhores resultados re-
querem também um conhecimento mais aprofundado das características
dessa população, que é diversa. Evidências sugerem que o problema de
acesso e equidade, comum a toda a assistência em saúde no Brasil, é ainda
mais grave para essas pessoas. À dificuldade de acessar os serviços públicos
de saúde, multideterminada, associa-se uma outra de igual relevância no
campo de álcool e outras drogas (AD): a dificuldade de permanecer vincu-
lado ao tratamento, problema observado também em países desenvolvidos.
Vários motivos concorrem para a produção dessas dificuldades, entre eles
incluem-se o medo de sofrerem alguma ação repressiva, a falta de familia-
ridade sobre como acessar os serviços de saúde e a estigmatização (Hudson
et al., 2010).

Visando contribuir para o aperfeiçoamento da política de assistên-


cia para pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas, para
o desenho de um cuidado usuário centrado e para a formação de profissio-
nais de saúde sensíveis à temática, este estudo se dispôs a compreender o fe-
nômeno da não “adesão” ao tratamento em serviços especializados de base
comunitária, tipo CAPS, a partir da experiência de adoecimento vivida por
aqueles que não aceitaram ou deixaram de seguir o acompanhamento ofe-
recido. Esse fenômeno foi investigado a partir do estudo de narrativas sobre
a experiência de adoecimento de pessoas que buscaram o CAPS AD Porto,
situado em Macaé, e não permaneceram em tratamento nesse serviço.

58
Dados oficiais – Saúde Mental em Dados 2014 – informam que existiam, nesta data, 378
CAPS AD, sendo 69 deles CAPS AD III.
59
O número de CAPS AD é de 309. O parâmetro de cobertura populacional é de 1 CAPS AD
por 150 mil habitantes. Considerando este único parâmetro, a cobertura ideal para o Brasil
seria de 1.351 CAPS AD. (Brasil, 2015)
328

Dificuldade de vinculação ao tratamento: um importante desafio


para a clínica da atenção psicossocial

Na literatura internacional de origem anglo-saxã (Cribb et. al.,


2005), a dificuldade de vinculação ao tratamento tem sido identificada por
três diferentes termos – compliance, concordance e adherence. A despeito
do seus diferentes sentidos, esses vocábulos frequentemente são traduzidos,
entre nós, de modo indiferenciado, como adesão. Compliance diz respeito,
principalmente, se recuperamos as nuances que o termo tem em inglês, ao
cumprimento de uma prescrição. Caberia ao médico ou à equipe de saúde
prescrever medicamentos ou orientações; ao paciente, segui-las. Cada vez
menos utilizado, esse termo tem sido abandonado porque entende-se que
a pessoa a quem se dirige a prescrição só é incluída passivamente. O termo
adherence, por sua vez, envolveria uma certa participação do usuário no
processo decisório. O seu uso alude ao direito de escolha da pessoa, a quem
caberia concordar, ou não, com o que lhe é prescrito, estando livre para
aderir ou não. Concordance, termo usado mais recentemente, extrapolaria o
sentido proposto pela noção de adherence. Ele implicaria que na tomada de
decisão deve-se considerar que estão em jogo os pontos de vista do prescri-
tor (seja médico, seja equipe) e do paciente, mas não apenas. A quem pres-
creve caberia tanto fornecer informações sobre a prescrição como apoiar o
paciente durante todo o processo decisório, negociando com ele a própria
prescrição, de modo que esta se torne o mais sensível possível à experiência
vivida pela pessoa. Isso tornaria a prescrição um ato compartilhado. A par-
ticipação da pessoa com seus conhecimentos, valores culturais e experiên-
cias não só é desejada como estimulada, tanto nas decisões a serem tomadas
quanto na escolha do tratamento a ser implementado. Dessa forma, visões
opostas entre médico/equipe e paciente deixam de ser necessariamente um
problema. Pontos de vista diferentes podem ser negociados e incorporados
(Rob Horne, 2006). Os três vocábulos utilizados na língua inglesa para defi-
nir o que entre nós traduzimos indiferentemente como adesão revelam, na
verdade, uma diferente compreensão sobre o papel dos atores envolvidos
no ato da prescrição de um medicamento, conduta ou tratamento (Leite e
Vasconcellos, 2003).

A adesão ao tratamento tem sido amplamente discutida a partir de


questões fundamentais, como conceitos, terminologia e fatores de interfe-
rência. Relacionada com outros comportamentos inerentes à saúde, envolve
fatores socioeconômicos, fatores relacionados ao tratamento, ao sistema e
329

equipe de saúde, ao paciente e à própria doença, sendo, segundo a OMS


(Sabaté, 2003), um fenômeno multidimensional determinado pela intera-
ção desses fatores (Gusmão e Décio, 2006).

A recente política de cuidado do SUS para usuários de crack, álcool


e outras drogas, que tem pouco mais de dez anos, enfrenta, entre vários
desafios, o complexo problema da não adesão ao tratamento. Nesse estudo,
buscamos conhecer aspectos culturais e experienciais, vividos pelos pacien-
tes que poderiam estar em jogo na produção desse fenômeno.

O contato com o tema investigado: a experiência dos pesquisado-


res alunos e trabalhadora do CAPS AD

Para iniciar esse trabalho, estratégias diversas de sensibilização para a


temática e para a iniciação científica foram realizadas: grupos de leitura de
artigos, conversa com usuários de serviços de saúde mental, contato prévio com
trabalhadores e serviços da rede e troca de experiência entre os participantes da
equipe de pesquisa, entre outras.

Para nós, alunos, nos aproximarmos do CAPS para juntos conhecermos


o serviço e os pacientes que o frequentavam se revelou algo imprescindível. Foi
fundamental para a compreensão da proposta do projeto conhecer a rede, o
cuidado ofertado e o ponto de vista que dirigia o trabalho dos profissionais. Na-
quela época, o que sabíamos sobre o uso problemático de álcool e outras drogas
era fruto exclusivo de nossas experiências de vida pessoal e social. Também ig-
norávamos a existência de serviços tipo CAPS e de uma rede de saúde mental. A
possibilidade de observarmos o funcionamento das atividades realizadas nessa
unidade, mesmo antes de termos contato com os entrevistados e com a discipli-
na de saúde mental, fez com que desenvolvêssemos um olhar mais sensível para
as questões de saúde mental e para a própria temática do uso problemático de
substâncias. Não era claro para nós que essa era uma questão de saúde pública
que se constituía em desafio para o campo do cuidado tanto para estudantes
quanto por profissionais de saúde. Nesse momento do início da pesquisa, todos
estávamos também no início de nossos cursos.

Essas visitas nos mostraram, na prática, que o suporte social interfere no


tratamento das pessoas e podem ter efeitos sobre a continuidade do tratamento.
Conhecemos pacientes que tinham frequência limitada ao serviço porque a eles
faltava, por exemplo, dinheiro para a condução.
330

O estigma talvez tenha sido o principal obstáculo que nós alunos viven-
ciamos e que tivemos que enfrentar para realizar a pesquisa. As visitas iniciais
ao CAPS e os grupos de discussão de nossas experiências e da experiência das
pessoas que usam álcool e outras drogas, conhecida inicialmente através de lei-
turas sugeridas e posteriormente a partir das narrativas dos usuários, revela-
ram para nós as nossas próprias opiniões, estabelecidas previamente e ao longo
de nossas vidas, sobre o que é a “loucura” e tudo que socialmente definimos as-
sim, bem como as nossas ideias sobre como tratá-la. No início do projeto, eram
comuns os pensamentos e crenças de que as pessoas que faziam uso problemá-
tico de álcool e outras drogas eram, em sua maioria, agressivas, criminosas, e
que conseguiriam “largar” as drogas e “essa vida” se tivessem “força de vontade”,
além de outros preconceitos. Também percebemos que algumas dessas ideias – a
da “força de vontade”, por exemplo – eram compartilhadas por pacientes. Eles
estabeleciam ainda, entre si, uma hierarquia moral, a partir do tipo de substân-
cia que usavam. Os usuários de álcool se apresentavam como moralmente su-
periores aos usuários de substâncias ilícitas. Um dos pontos positivos do projeto
foi exatamente nos ajudar a reconhecer e superar o nosso estigma em relação a
esses pacientes e os preconceitos e crenças que compartilhávamos socialmente.

Eu, trabalhadora do CAPS AD, já tinha percebido, em minha prática


profissional, o fenômeno que o PET se propunha a estudar. Não passava desper-
cebido nem para mim nem para a equipe que o número de usuários que pro-
curavam o serviço era diferente daquele que efetivamente seguia em acompa-
nhamento. Todavia, não identificávamos claramente os determinantes disso. A
interlocução com a universidade e com os acadêmicos foi positiva e em alguma
medida qualificou essa e outras questões que tínhamos. A equipe do CAPS AD
é de servidores públicos concursados, mas não necessariamente de profissionais
dotados de prévia qualificação na área de saúde mental AD. A aproximação
com a pesquisa no campo AD ampliou o nosso conhecimento e prática.

Desde o começo, pelo simples fato de a pesquisa estar se realizando no


serviço, éramos convocados e convidados a rever aspectos relacionados ao nos-
so processo de trabalho. Ainda com o levantamento dos primeiros dados pelos
alunos – quem eram os pacientes que deixaram de frequentar o serviço no pe-
ríodo estudado e como identificá-los –, limitações que interessavam também à
clínica se desvelavam. Observamos, por exemplo, que havia falhas significativas
nos registros em prontuários. Falhas estas que dificultaram os pesquisadores a
identificar quem participaria do estudo. Isso nos deu a oportunidade de tentar
saná-las. Em cada etapa da pesquisa, foram se construindo, para nós trabalha-
dores, novos saberes sobre os nossos fazeres.
331

Naquele momento, eu que participava de um curso de especialização em


saúde mental, tomei como questão de minha monografia um recorte do tema
estudado pelo PET: o desafio de conhecer, a partir da experiência de adoecimen-
to, a dificuldade dos pacientes em uso prejudicial de álcool em dar continuidade
aos seus projetos terapêuticos – PTs. O estudo desse problema recortado da pes-
quisa maior teve como objetivo, além da realização de um trabalho de conclu-
são de curso, ampliar o conhecimento sobre essa questão, agora considerando a
particularidade da substância utilizada, e assim gerar condições para que alter-
nativas pudessem ser construídas para ajudar o serviço a superar o desafio da
não adesão ao tratamento, importante obstáculo para atenção a pessoas em uso
problemático de álcool e outras drogas.

Objetivos

O objetivo geral deste estudo foi compreender a experiência de adoecimen-


to de pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas
que não deram continuidade ao tratamento no CAPS AD Porto – Macaé.

Como objetivos específicos pretendeu-se:

1) conhecer o perfil das pessoas que deixaram o tratamento no CAPS AD


Porto – Macaé em relação a sexo, idade, escolaridade e de uso de drogas;

2) compreender a experiência de adoecimento dessa população, correlacio-


nando-as às drogas utilizadas;

3) compreender o impacto do uso problemático de álcool e drogas na vida


das pessoas a partir da experiência vivida por elas;

4) conhecer como se dá a busca por serviços e a resposta ao tratamento


pelas pessoas em uso problemático de álcool e outras drogas a partir de sua
própria perspectiva e experiência vivida.
332

O contato com o conceito-chave da investigação: a experiência


dos pesquisadores alunos

A categoria “Experiência de adoecimento” não foi de fácil apreensão


para nós alunos. O breve contato prévio que alguns tiveram em disciplinas
formais em que a Medicina Centrada na Pessoa foi tema, e as leituras e dis-
cussões no grupo de pesquisa antes do início das entrevistas, não nos livrou
dessa dificuldade. Não somos, nos cursos de saúde, treinados de modo siste-
mático para levar em conta a dimensão vivida do adoecimento. O projeto
de pesquisa colaborou para que alguns de nós se reconhecessem capazes de
manejar, na prática, essa dimensão do adoecimento, nos diferentes cenários
de aprendizagem pelos quais passamos.

Metodologia

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo qualitativo, informado pelo quadro de re-


ferencial teórico-metodológico da fenomenologia interpretativa ou herme-
nêutica (Husserl,1935; Schutz, 1945, 1979; Gadamer, 2005, 2006), no qual
se busca conhecer e compreender as narrativas sobre a experiência de adoe-
cimento daqueles que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas e que
não seguiram o acompanhamento no CAPS.

Desvendando o referencial teórico-metodológico: a experiência


dos pesquisadores alunos e trabalhadora do CAPS AD

A fenomenologia atravessou grande parte do tempo da pesquisa


como um “grande mistério” para quase todos nós estudantes. Teoria comple-
xa, demandou intensa discussão e várias explanações. Com o amadurecimen-
to do trabalho, compreendemos que a partir dela poderíamos compreender
melhor o paciente e descobrir aspectos impensados sobre o uso das substân-
cias. Embora até hoje seja difícil apresentá-la teoricamente, conseguimos uti-
lizá-la mais naturalmente.

O campo de pesquisa na área da saúde mental, historicamente do-


minado por pesquisas quantitativas, teve, a partir da Reforma Psiquiátrica,
um aumento das pesquisas qualitativas, o que permitiu que aspectos da expe-
riência de adoecimento passassem a ser estudados. A possibilidade de consi-
333

derar a significação e vivência relacionada a determinado fenômeno ampliou


o conhecimento da dimensão singular do adoecer e do modo como cada um
experimenta esses fenômenos.

Como trabalhadora de saúde, foi gratificante ver que aos estudos


quantitativos, majoritários no campo da pesquisa, pode-se, e deve-se, asso-
ciar estudos qualitativos que respondam a questões que não são respondidas
exclusivamente com números, e que são igualmente relevantes no rol de inda-
gações que os trabalhadores dos serviços de saúde têm. Para o profissional de
saúde, conhecer a vivência e o sentido do que identificamos como “problema
de saúde” amplia as nossas possibilidades de compreensão da singularidade
da experiência do adoecer, do modo como cada um a vivencia, e pode contri-
buir para um desenho da intervenção mais sensível à experiência do paciente,
à medida que aumenta a nossa capacidade empática.

Ferramenta metodológica

A principal ferramenta metodológica utilizada foi a McGill Illness


Narrative Interview – MINI, entrevista semiestruturada, qualitativa, ela-
borada por pesquisadores canadenses. Publicada originalmente em inglês
em 2006, essa versão foi posteriormente traduzida e validada por grupo de
pesquisadores brasileiros e recentemente publicada (Leal et al., 2015). Essa
entrevista possibilita a produção de narrativas sobre a experiência de adoe-
cimento ligada a qualquer problema, condição ou evento de saúde, incluin-
do sintomas, conjunto dos sintomas, síndromes, diagnósticos biomédicos
ou rótulos populares, e os sentidos associados a essas experiências.

Sequencialmente estruturada, com três seções principais e duas


suplementares, a entrevista McGill MINI têm o objetivo de produzir: 1.
narrativa inicial e temporal da experiência de adoecimento, organizada em
termos da sequência de eventos. 2. narrativa sobre outras experiências pré-
vias do entrevistado, de membros de sua família, de amigos, encontradas
na mídia, e outras representações populares que serviram de modelo para
a significação da experiência do adoecimento em questão. 3. narrativas sob
forma de modelos explicativos do sintoma ou da doença, incluindo rótulos,
atribuições causais, expectativas de tratamento, curso e resultado. 4. nar-
rativas de busca e procura de ajuda, relatos sobre caminhos para chegar ao
cuidado e relatos sobre a experiência de tratamento e adesão. 5. narrativas
do impacto da doença sobre a identidade, a autopercepção e as relações
com os outros.
334

A experiência dos pesquisadores alunos e trabalhadora do


CAPS AD com a Entrevista McGill de Narrativa de Adoecimento - MINI

A ferramenta MINI foi “aliada” e “apoio” fundamental nas entre-


vistas, pois muitos de nós alunos estavam, nessa pesquisa, realizando a sua
primeira entrevista individual e o primeiro contato com pessoa em uso pro-
blemático de substâncias, o que nos deixava apreensivos. A relevância dessa
ferramenta, entretanto, foi além. Mostrou-se recurso importante em nossa
formação. Algumas de suas perguntas passaram a integrar o roteiro de nossas
anamneses daí para a frente. Apesar de alguns de nós a achar repetitiva, seu
principal defeito, sob nosso ponto de vista, a sua grande vantagem foi favore-
cer que o entrevistado refletisse sobre o seu processo de adoecimento de forma
que não havia feito antes. Descobrimos que o modo de perguntar poderia
favorecer ou dificultar isso!

Foi interessante observar que cada pessoa denominava de maneira


diferente a sua relação com a droga, e que as circunstâncias em que foi intro-
duzida ou mantida estavam totalmente ligadas a particularidades do contex-
to de vida da pessoa.

Para compreender a estrutura do roteiro dessa entrevista, todos –


alunos e profissionais participantes do estudo – passamos por uma capacita-
ção sistemática com leitura de artigos e debates sobre seus alcances, limites e
usos. Também aplicamos a entrevista entre nós mesmos, a fim de experienciar
como é ser entrevistado e como é ser o entrevistador. Ao aplicarmos a MINI
em nós mesmos, foi possível perceber que a ferramenta se adequava a qual-
quer tipo de adoecimento, não somente os de saúde mental. Observamos que
a estruturação da entrevista favorecia que o entrevistado contasse a mesma
história sob diversos pontos de vista, o que fez com que aprendêssemos que há
modos diferentes de contar uma mesma história e que cada um deles tem uma
dimensão de verdade. Nós alunos, principalmente no início da nossa forma-
ção, temos muita preocupação em saber se o paciente fala a verdade ou não.
O contato com a ferramenta e as discussões que tivemos sobre as narrativas
nos ensinaram a relevar essa preocupação.

Seleção dos Sujeitos de Pesquisa

Foram selecionadas pessoas que deixaram o tratamento no CAPS


AD Porto – Macaé no período de outubro de 2010 a fevereiro de 2011. O
335

primeiro levantamento identificou 254 pessoas que, no período estudado,


tiveram um último registro em documentos do serviço. Desse total, ex-
cluiu-se aqueles que:

• retornaram ao tratamento até o momento da busca ativa (iniciada


em janeiro de 2012);

• eram familiares de pacientes assistidos pelo serviço;

• não tinham registro de endereço;

• residiam em outro município;

• faleceram;

• o último registro em documentos do serviço não correspondia à


última ida do paciente até lá, segundo informações da equipe.

• não tinham qualquer telefone para contato registrado em docu-


mentos do serviço.

Após esse primeiro procedimento, 92 pessoas foram selecionadas


para participar do processo de busca ativa.

Busca Ativa

A busca ativa foi feita por contato telefônico. Conseguiu-se con-


tato telefônico com 35 pessoas. Muitos números de telefones estavam de-
satualizados. A maioria era de telefones celulares, que tinham mudado de
donos ou simplesmente não existiam mais. Após essa primeira abordagem,
quinze pessoas se dispuseram a participar de entrevistas a serem agendadas.

A experiência dos pesquisadores alunos com a busca e contato


com os participantes do estudo

A seleção foi um processo bastante trabalhoso para nós alunos. O


sistema informatizado do CAPS não se encontrava atualizado. Foi necessário
336

recorrer à orientação do funcionário responsável pelo setor toda vez que pre-
cisamos acessar o sistema. Três diferentes listagens com nomes dos pacientes
foram emitidas. Longas horas foram dispensadas para a organização de uma
única lista de pacientes que se enquadravam no perfil da pesquisa.

O contato telefônico foi, para nós alunos, mais uma árdua tarefa.
Fazer com que os usuários entendessem o que era o estudo e o propósito da en-
trevista, a partir de uma conversa telefônica, foi bastante difícil. A mudança
de endereço e de telefone foi comum a muitos daqueles previamente selecio-
nados, dificultando sobremaneira encontrarmos os sujeitos da pesquisa. Con-
tatadas, as pessoas mostraram-se relutantes em nos encontrar pessoalmente.
Com alguns deles, foi preciso entrar em contato mais de uma vez para que en-
tendessem o que estava sendo proposto. Essas dificuldades ocorreram mesmo
com os cuidados tomados para que não se sentissem ameaçados ao contato
telefônico. Por algumas vezes, essa questão foi pauta das reuniões da pesquisa.
O fato de alguns morarem distante do CAPS – lugar que acabou definido para
a entrevista – e de estarem trabalhando, também dificultou o acesso.

O sistema de registro e atualização de dados do CAPS se mostrou in-


suficiente para algumas necessidades da pesquisa. Por exemplo, muitos dados
telefônicos e endereços já não eram mais os mesmos, o que atrasou bastante
essa parte do trabalho e restringiu muito o número de entrevistados na pes-
quisa. Contribuiu para isso a existência significativa, na cidade de Macaé, de
população flutuante, temporária.

Nessa época, também experimentamos de forma explícita o medo do


encontro com essas pessoas. Seriam “perigosos”, “bandidos”, ir até eles não nos
colocaria em situação de risco? A ideia inicial de oferecer a possibilidade de
entrevistá-los no serviço de saúde mais próximo de sua moradia ou, quando
não existissem, em locais da rede social (escolas ou associações de moradores,
por exemplo), também nos amedrontou. Alguns moravam em regiões vulne-
ráveis e isso nos fez sentir inseguros. Foram realizadas algumas oficinas com
profissionais que trabalhavam em territórios vulneráveis e sob o domínio do
tráfico de drogas, para que conhecêssemos melhor as estratégias que pudessem
garantir a segurança de quem trabalha nesses locais. Para agilizar as entre-
vistas e também porque os participantes sentiam-se mais confortáveis com a
realização das entrevistas no CAPS, os encontros acabaram acontecendo lá,
com algumas poucas exceções (por exemplo, paciente entrevistado em Rio das
Ostras pelo fato de ter se mudado para essa cidade depois de contatado).
337

Critérios de Inclusão e Exclusão

Os critérios de inclusão foram:

1) ter abandonado o acompanhamento no CAPS AD Porto – Macaé no


período de outubro de 2010 a fevereiro de 2011, em qualquer fase do
tratamento;

2) aceitar participar do estudo;

3) ter condições cognitivas de compreender e de aceitar voluntariamente


participar desse estudo.

Foram critérios de exclusão: não ter condições cognitivas de com-


preender o propósito da pesquisa e o roteiro de entrevista nem ser capaz de
decidir de modo autônomo sobre sua participação.

Coleta de Dados

Quinze pessoas entre as contatadas por telefone se dispuseram a


participar do estudo. Todavia, apenas treze foram efetivamente entrevista-
das (uma pessoa não compareceu e uma entrevista foi perdida). As entre-
vistas foram audiogravadas e transcritas. Os entrevistadores foram previa-
mente treinados para a realização das entrevistas.

A realização e transcrição das entrevistas - a experiência dos


pesquisadores alunos

As entrevistas, em sua maioria, não foram realizadas por nós, alu-


nos. Éramos observadores. A insegurança para realizá-las foi um elemento
importante para restringir uma participação mais ativa de nossa parte. Era
preciso observar a condução das entrevistas e aprender a fazê-la. Esse tempo
de aprendizagem, todavia, nos frustrou, embora o reconhecêssemos como ne-
cessário. A entrevista foi o momento mais esperado da pesquisa e mobilizou
nossos afetos e fantasias, já que era o contato real com os pacientes. Como
“consolo”, a possibilidade de aprender que uma entrevista não é uma ativida-
de natural, que depende exclusivamente da disponibilidade dos participantes.
A condução é importante. O relato depende do roteiro, mas também da qua-
lidade do encontro, da capacidade do entrevistador de se mostrar sensível ao
338

que o entrevistado lhe oferece. Principalmente numa entrevista semiestrutu-


rada em que o roteiro se apresenta permeável ao entrevistado. A produção de
uma boa narrativa era fruto da articulação desses elementos.

Após a realização das entrevistas, vieram as transcrições. Extrema-


mente cansativa, essa atividade também demandou muito tempo. Exigiu de
nós, alunos, aprender a administrar o tempo, para que conseguíssemos con-
ciliar o trabalho do PET com as outras atividades acadêmicas. Essa organi-
zação não foi banal para nós estudantes e afetou principalmente aqueles que
estavam nos primeiros períodos, ainda desacostumados ao ritmo da vida uni-
versitária. A inexperiência na condução de uma entrevista e na sua transcri-
ção foi dificuldade adicional à tarefa da transcrição, apesar das noções gerais
que nos foram apresentadas.

Análise de Dados

As narrativas produzidas com as entrevistas foram analisadas a


partir da grade de referência da fenomenologia hermenêutica. A Análise
Interpretativa Fenomenológica visa compreender, de modo interpretativo
e a partir da perspectiva de quem vive a experiência, os processos de cons-
trução de sentido, o universo de significações, as ações sociais e relações
interpessoais, situados em determinado contexto histórico-cultural e co-
munidade linguística, assim como o modo como os sujeitos compartilham
a própria experiência e os significados atribuídos a ela (Smith et al., 2009).
Foi realizada uma primeira leitura completa de todas as entrevistas para
obter o sentido do todo. Em seguida, buscou-se conhecer a experiência de
uso/dependência a partir da identificação de:

a) categorias utilizadas pelos participantes para descrever o proble-


ma estudado;

b) modos de narrar a experiência;

c) sentidos atribuídos à experiência do uso de substâncias e a inter-


rupção do tratamento no CAPS;

d) experiência de busca e procura de ajuda;

e) impacto da experiência sobre a identidade, autopercepção e rela-


ção com outros.
339

Por fim, através da integração de todos esses aspectos,


constituiu-se uma síntese e uma estrutura descritiva da experiên-
cia e dos sentidos atribuídos a ela.

A análise das narrativas e seus desafios - a experiência dos pes-


quisadores alunos e trabalhadora de CAPS AD

A análise das narrativas foi um momento muito importante para


nós, alunos. A fala dos pacientes ganhou outro valor. Fomos convidados a
ouvi-la sem submetê-la ao julgamento que habitualmente fazemos dos relatos
dos outros em nosso dia a dia, reproduzido em nossos contatos com os pacien-
tes. A entrevista não perguntava diretamente por que o participante deixara
o tratamento proposto, mas isso se explicitava à medida que eles narravam
como experienciaram o seu processo de adoecimento. A partir disso, revelava-
se o que os levou a não continuar.

O processo de identificação dos modos de narrar e dos aspectos


envolvidos na experiência de uso/dependência e tratamentos nos ajudou a
sistematizar o pensamento e compreender melhor os modelos explicativos e
os sentidos atribuídos pelos participantes. A análise, que nos parecia difícil
e complexa, nos permitiu ver que uma mesma pessoa pode experimentar e
narrar um determinado problema de saúde de modos diferentes.

A dificuldade de compreensão do referencial teórico parece ter se


somado a outras dificuldades que nós, alunos, enfrentamos na fase da análise.
Nesse momento, o estudo já havia consumido mais tempo do que o previsto e
alguns de nós já não podiam dedicar o mesmo tempo à pesquisa, o que sobre-
carregou outros.

Para mim, profissional de saúde, as etapas da coleta e análise dos


dados, embora trabalhosas, foram surpreendentemente reveladoras. Elemen-
tos que dificultaram o processo de permanência dos participantes estudados
ficaram evidentes. A partir disso, teve início uma reorientação no processo de
trabalho da equipe do CAPS ad, na recepção dos novos pacientes e acolhi-
mento diário. Todavia, não foi realizado estudo para avaliar o impacto de tais
mudanças sobre o desafio da continuidade ao tratamento.
340

Resultados

Pessoas que abandonaram o tratamento no período estudado – sexo, idade,


grau de escolaridade e substâncias consumidas

A tabela e os gráficos apresentados a seguir foram construídos a


partir do universo de pessoas consideradas elegíveis para o estudo. Foram
identificadas, inicialmente, através de registro de fichas, prontuário e fichas
de atendimento inicial/recepção60, 92 pessoas com perfil para participar,
considerando os critérios de inclusão acima.

Do conjunto dessas 92 pessoas identificadas a partir de dados de


prontuários e fichas, a maioria era de homens (80%), a faixa etária mais
comum era de adultos entre 20 e 50 anos (69%) e 80% tinham até o ensino
fundamental, conforme indicado em tabela a seguir.

TABELA 1. Distribuição dos pacientes que abandonaram tratamento no


CAPS AD Porto – Macaé (RJ) por sexo e faixa etária – período de outu-
bro de 2010 a fevereiro de 2011.

Frequência Frequência
Variável Categoria
absoluta relativa (%)
Masculino 75 81,5
Sexo
Feminino 17 18,5
Total   92 100,0
15-20 11  12,0 
21-30 20 21,7
31-40 23 25,0
Idade (anos)
41-50 21 22,8
51 ou mais 15 16,3
não informado 2 2,2
TOTAL   92 100,0
Fonte: Registros de prontuário e fichas de atendimento inicial.

60
Nas fichas de atendimento inicial, registrava-se a passagem da pessoa pelo serviço ainda antes
da abertura do prontuário. Frequentemente o paciente voltava várias vezes ao serviço antes que
fosse aberto prontuário. A abertura de prontuário ocorria, em geral, após a negociação com o
usuário de um projeto terapêutico singular, a ser cumprido com visitas regulares ao serviço.
341

A substância mais consumida por esse conjunto de pessoas, segun-


do dados levantados de prontuário e fichas, foi o álcool, seguido pela cocaína,
maconha e crack, conforme apresentado na figura a seguir. Esses achados
repetem os dados conhecidos da bibliografia nacional e internacional.

FIGURA 1 – Distribuição dos pacientes que abandonaram tratamento


no CAPS AD Porto – Macaé (RJ) pelo tipo de SPA consumida – período
de outubro de 2010 a fevereiro de 2011.

80
60
40
20
0
l

ha

ck

s
o

ra
n
co

ra

on

ut
oc
Ál

C
ac

O
C

Fonte: Registros de prontuário e fichas de atendimento inicial.

A maioria das pessoas que deixaram o tratamento consumia mais


de uma substância, sendo que o álcool era a mais consumida isoladamente,
conforme dados da figura a seguir.

FIGURA 2 – Distribuição dos pacientes que abandonaram tratamento no


CAPS AD Porto – Macaé (RJ) segundo o número de substâncias psicoati-
vas (SPA) consumidas – período de outubro de 2010 a fevereiro de 2011.

40
30
20
10
0
a

ro

ão

um
ua

ê
m

t
Tr

N
ua
U

h
D

en
Q

Fonte: Registros de prontuário e fichas de atendimento inicial.


342

As narrativas dos entrevistados

Como já relatado anteriormente, 92 pessoas foram identificadas com


perfil elegível para o estudo, mas o contato telefônico só foi possível com 35
delas. Destas, 15 se disponibilizaram a participar das entrevistas. Uma delas
não compareceu, a despeito das tentativas de reagendamento, e uma das
entrevistas realizadas foi perdida. Assim sendo, o resultado e análise das
narrativas apresentadas a seguir referem-se ao conjunto de 13 entrevistas,
realizadas com o roteiro MINI. Desse conjunto, 8 pessoas consideram que
o problema que os fez procurar o CAPS estava relacionado ao uso do álcool
(6 homens e 2 mulheres), sendo 6 usuários exclusivos de álcool e 2 usuá-
rios preferenciais de álcool que utilizavam também outras substâncias. Os
5 restantes (3 homens e 2 mulheres) referiram que chegaram ao CAPS por
problemas relacionados ao uso de cocaína e seus derivados, sendo 2 usuá-
rios de cocaína inalada exclusivamente, 2 usuários exclusivos de crack e 1
usuário de crack e cocaína inalada.

Como os entrevistados nomearam o problema que os fez buscar o


CAPS AD

As palavras utilizadas pelas pessoas que relacionaram o uso álcool


ao problema que os fez buscar o CAPS AD foram: “dependência”, “dependên-
cia química de álcool”, “problema com álcool”, “alcoolismo”, “excesso”, “vício”.

Aqueles que relacionaram o motivo de busca a outras substâncias


utilizaram: “dependência”, “vício”, “problema”, “maconha”, “cocaína”, “burri-
ce” e “falta de vergonha na cara”.

O modo de nomear o problema não é irrelevante. Revela, indi-


retamente, não apenas como o contexto mais próximo – família, trabalho,
rede de apoio – e o contexto remoto – comunidade, grupo socioeconômico
e cultura – descrevem, significam e percebem esse fenômeno, mas também
e especialmente como a pessoa o experimenta (Stewart, M. 2010). A forma
de nomear torna-se assim uma das portas para se aproximar da experiência
que alguém tem com algum problema de saúde, condição necessária para
se estabelecer com ela uma relação dialógica.

É a experiência que nos dá acesso aos sentimentos, ideias, expecta-


tivas e ao próprio funcionamento do sujeito relacionados a esse problema.
343

Nas narrativas estudadas, o uso de vocábulos com forte carga moral esteve
presente tanto entre os que relacionaram o uso de álcool ao problema que
os fez chegar ao CAPS quanto entre aqueles que referiram o uso de outras
substâncias como determinante. “Excesso”, “vício”, “burrice”, “falta de vergo-
nha”, foram as palavras com colorido moral que apareceram. As categorias
morais, entretanto, variaram entre os dois grupos e não foram exatamente
as mesmas. Embora a palavra “vício” tenha aparecido nos dois grupos, bur-
rice” e “falta de vergonha” categorias que desqualificam mais claramente o
usuário, surgiram apenas na narrativa dos que referiram o uso das substân-
cias ilícitas como o mote para busca do CAPS. “Dependência” foi a única
palavra do discurso técnico-científico presente nas narrativas dos entrevis-
tados. As pessoas que relacionaram os seus problemas ao uso de substâncias
ilícitas recorreram ao nome das próprias substâncias para descrever o seu
problema. Isso não aconteceu com aqueles que buscaram o CAPS por pro-
blemas relacionados ao uso de álcool. Estes descreveram o seu problema
como “problema com o álcool”, indicando que o problema residia na forma
como se relacionavam com a substâncias, enquanto que os que referiam os
seus problemas como relacionado ao uso de substancias ilícitas localizavam
na própria droga o problema.

Os modos de narrar a experiência de uso de álcool e outras substâncias

A experiência de uso de álcool e outras substâncias foi especial-


mente narrada de forma explicativa. É como se a explicação sobre o que
motiva o uso fosse a melhor forma de contar a própria experiência. Quando
narrada a partir da sequência de eventos que se associaram ou se associam
ao uso, a experiência de uso problemático se explicitou sem que as pessoas
tivessem qualquer dificuldade de diferenciá-la do simples uso (recreativo
ou social). A experiência de que o uso era problemático, tanto no caso do
álcool quanto das demais substâncias, se deu a partir de evento externo ou
da observação feita inicialmente por um outro, que não o próprio sujeito.
Era como se o insight fosse ativado pelo exterior:

“Não vem querer acompanhar a gente, de querer beber, por-


que você não aguenta...”

“Eu me dei conta de que eles iam me matar mesmo, porque já


era a quinta vez que eu tinha me envolvido com eles”.
344

Em relação à experiência dos usuários de álcool, a narrativa a par-


tir da sequência de eventos também evidenciou que a intensificação do uso
se deu quando experimentaram problemas de saúde e na família, e que o
início do uso se relacionava a ritos de passagem, em especial ao início da
vida adulta:

“Comecei a beber quando tava no quartel...”

As narrativas por sequência de eventos explicitaram que o uso de


drogas ilícitas teve início com eventos marcantes da vida, tais como inter-
rupção de gravidez ou nascimento de filho. O início do uso foi associado a
momentos da vida de experimentação da liberdade e de passagem para vida
adulta:

“Mas eu comecei a usar drogas quando tinha 17 anos. Eu,


agora, tô com 28, então já é um longo caminho. Agora é que
eu fui me dar conta... Que eu na verdade comecei a usar dro-
gas sem perceber, por amizade. Eu comecei a sair de casa, era
novo, fui criado em casa, mas aí justamente na época em que
eu comecei a sair de casa comecei a ter amigos.”

Quando a experiência foi narrada por protótipo, ou seja, a partir


de exemplos, a substância de escolha não atribuiu diferenças específicas às
narrativas. As narrativas por protótipo nos permitiram ver que a experiên-
cia alheia foi percebida como mais grave do que a sua própria, que o uso foi
aprendido no laço social e que os prejuízos nas relações afetivas e laborais
foram experimentados tanto pelo grupo de usuários que tinham o álcool
como a substância preferencial como pelos demais:

“Meu irmão e minha irmã. É, meu irmão... Todo mundo


bebe... eu não bebo todo dia.”

“Meu pai era cocaína e bebida. Passava a noite bebendo.”


345

As narrativas por causalidade, que requerem um grau de reflexão


maior do narrador, pois o relato da experiência se faz a partir de uma explica-
ção, retomaram aspectos que estiveram presentes nas narrativas por protóti-
po. Esses eventos, todavia, reapareceram justificando e explicando o uso.

No caso das pessoas que deram ao uso do álcool centralidade na


descrição do problema para o qual buscavam ajuda, a experiência foi ex-
plicada a partir do uso problemático de álcool pelos progenitores e fami-
liares. Esses aspectos, que eram contíguos ao início do uso nas narrativas
por sequência de eventos, apareceram, nas narrativas explicativas, como
causa do uso:

“Se a mãe e o pai bebem, a criança vai crescendo naquele


meio, vendo aquilo tudo e... chega um dia que começa,
né? Num tem jeito.”

As explicações dadas pelas pessoas que relacionavam os seus pro-


blemas ao uso das substâncias ilícitas também foram reedições de aspectos
apresentados nas narrativas por contiguidade. O reconhecimento de que o
início do uso se dera em momento da vida de experimentação da liberda-
de e de passagem para vida adulta ressurgiram como explicação. O desejo
de transgressão e expressão de força, por exemplo, foram retomados como
causa do uso:

“Tudo curtição. Você acha que sai se quiser. Você pode tá


achando, todo mundo fala isso, mas é. Você achar que nunca
vai se viciar naquilo. Você vai sair na hora que quiser. Você
que sabe de você. Na hora que quiser, você para. Você quer é só
aquele momento e acabou! Só que o momento da curtição, das
amizades, ali que gera dependência. Você passa a usar no dia
a dia. Em casa, no trabalho, onde estiver. Você não faz mais
nada sem aquilo. (...)”

“Às vezes, não é tristeza, não é desgosto, não é nada. É uma


curiosidade, a gente tem curiosidade ...(...) Às vezes, é só curio-
sidade que leva à dependência.”
346

Alguns desses usuários que atribuíram centralidade às substân-


cias ilícitas explicaram o uso como problema espiritual, ou ainda como um
processo gradativo que evolui em decorrência de uma doença ou vício.

Nos dois grupos – os que referiam o uso do álcool como central e


os que deram centralidade às substâncias ilícitas – apareceram as seguintes
explicações: meio para ser aceito em determinados grupos sociais, proble-
mas morais (usa porque é fraco, ou porque não tem “vergonha na cara”),
ou ainda estratégia de busca de alívio do sofrimento, “fuga da realidade” ou
mesmo um recurso para a “solução” de problemas insolúveis.

“Ausência de pai e mãe, acho que foi um fator que contribuiu.”

A experiência de busca de ajuda, de tratamento e de adesão.

A experiência de busca de ajuda, para os dois grupos, foi provo-


cada pela orientação e aconselhamento de terceiros, e não por iniciativa
pessoal. No caso daqueles que se identificaram como usuários de drogas
ilícitas, a busca por ajuda foi consequência também de experiência de inter-
nação em clínica para reabilitação ou envolvimento com o crime e ameaças
de morte.

As narrativas sobre tratamento dos dois grupos evidenciaram que


as oficinas terapêuticas oferecidas no CAPS não foram experimentadas
como recurso de tratamento para o problema para o qual buscavam ajuda.
Muita relevância foi atribuída à experiência de terem profissionais “apos-
tando” na sua capacidade de recuperação, com atos e palavras de incenti-
vo moral que estimulavam isso. A religião e a frequência a igrejas também
apareceram como recursos importantes de tratamento. A despeito disso,
os relatos deixaram ver que, como qualquer outro recurso, alcançados os
objetivos – abstinência ou mais raramente a redução significativa de uso –,
a igreja era dispensada sem maiores dificuldades. Por exemplo, a frequência
diária a um templo, comum a um determinado período, foi suspensa quan-
do a experiência de bem-estar e superação ocorreu.
347

A frequência, em algum momento, a grupos de ajuda mútua (AA)


e a internações em clínicas de reabilitação fez parte do relato de tratamen-
to das pessoas que se identificaram como usuários de álcool. Aqueles que
experimentaram os grupos de ajuda mútua, tipo AA, reconheceram o uso
problemático como doença. A experiência de tratamento experimentada
nos grupos de ajuda mútua, nas narrativas estudadas, não se diferenciou
da experiência vivida no CAPS. Apesar disso, dificuldades de coletivizar a
experiência de uso nos recursos grupais oferecidos no CAPS foi marcante
nos relatos. As pessoas que se reconheceram como usuários de álcool se
identificaram entre si, mas não se identificaram com aqueles que conside-
ravam usuários de drogas ilícitas. Os que se identificaram como usuários de
álcool se sentiram moralmente superiores aos demais, por isso comparti-
lhar o mesmo espaço de fala ampliou a experiência de desvalor que viviam
cotidianamente. O temor de serem confundidos com “aqueles que usam
aquelas coisas”, expressão utilizada com muxoxos e descaso, foi presente nas
narrativas. Isso contribuiu para a experiência negativa vivida nos grupos
dos CAPS, que não se organizavam a partir da substância de preferência.
As recaídas também não foram vividas como parte do processo. Medo de
que ela acontecesse e sentimento de desqualificação moral quando recaiam
foram relatados. Responsabilizar-se sozinho por sua recuperação apareceu
como alternativa idealizada e desejada que, se bem-sucedida, lhes atribuiria
um valor moral perdido.

“(...) eu podia procurar ajuda, procurar internação,


mas peraí... eu tinha que seguir meu caminho por
mim mesmo, pra não ficar assim sempre dependen-
do de um apoio nessa parte para outras pessoas,
outras entidades.”

Esse sentimento de que se recuperar sozinho lhes faria moral-


mente mais valorosos os deixava em conflito para aceitar o tratamento no
CAPS. A experiência de tratamento intensivo no CAPS AD foi vivida como
cansativa e associada frequentemente a uma experiência pedagógica, e não
de tratamento. O sentimento de que a abstinência era condição para enfren-
tar o problema referido ao uso de álcool foi justificativa para a não continui-
dade do tratamento no CAPS.
348

A dificuldade de coletivizar a experiência de uso em grupos no CAPS


foi compartilhada também pelos entrevistados que se identificaram como
usuários de substâncias ilícitas. A experiência em relação a essa dificuldade,
todavia, não foi semelhante àquela vivida pelas pessoas que se descreve-
ram como usuários de álcool. Para os primeiros, a inibição foi determina-
da pela dificuldade de contar sobre os atos ilícitos, comuns no contexto de
uso de substâncias ilícitas. Esse aspecto concorreu sobremaneira para que a
recepção em grupo, no CAPS, tivesse ampliado a experiência desse grupo
de pessoas de estar expostos a julgamento público, o que os deixava ainda
mais inibidos para relatar suas experiências. Isso não os impediu, todavia,
de experimentar como positiva a possibilidade de contar a sua experiência
para alguém, desde que não nessas circunstâncias. A abstinência, nessas
narrativas, apareceu como a única perspectiva de solução do problema que
os levava ao CAPS e as recaídas foram muito temidas. O fato de não toma-
rem o CAPS como espaço capaz de ajudá-los a manejar os problemas rela-
cionados ao uso problemático das sustâncias ilícitas relacionava-se também
a esses aspectos. Alguns interromperam o tratamento quando alcançaram
alguma experiência de “melhora”, através da redução ou da abstinência, mas
os que deixaram o CAPS por esse motivo não compartilharam isso com a
equipe. Simplesmente se afastaram.

As narrativas daqueles que se descreveram como usuários de subs-


tâncias ilícitas indicaram que a experiência de ter um problema relacionado
ao uso dessas substâncias foi parte do processo de tratamento; que lugares
calmos e tranquilos auxiliaram no processo de tratamento; e que o uso de
remédios, descrito como “troca de uma droga por outra”, foi experimentado
como algo positivo.

Narrativa de impactos sobre a identidade, a autopercepção e a relação com


os outros

A percepção do uso como problema de saúde não foi nem natural


nem imediato. Inicialmente o uso é experimentado como uma solução e alí-
vio de problemas, posteriormente como indicativo de fraqueza moral, e só
depois como uma questão de saúde. Torná-lo um problema de saúde, que
possa se beneficiar de tratamento, é parte do próprio processo de tratamen-
to e nem sempre ocorre. Quando a experiência de uso é vivida como preju-
349

dicial, é o seu cunho moral o que primeiro se apresenta. Os sentimentos de


fraqueza e desvalor são comuns tanto aos que se identificam como usuários
de álcool quanto àqueles que se descrevem como usuários de substâncias
ilícitas. Esses sentimentos estiveram na base da autoculpabilização pelo uso
prejudicial, dos danos causados às relações afetivas e familiares, do rompi-
mento dessas mesmas relações e da experiência de exclusão da sociedade
que essas pessoas experimentam por ocasião de seus usos problemáticos.

Análise

Aa narrativas dos usuários de álcool

A busca pelo tratamento se deu determinada pelas experiências


negativas – físicas ou sociais – da dependência do álcool. Só a partir dessas
experiências o uso foi, em si mesmo, tomado como questão ou problema
pelo usuário. A consequência disso foi a demora em buscar ajuda em servi-
ços de saúde.

Todos os entrevistados chegaram através de encaminhamentos de


terceiros: amigos, familiares, serviços de saúde e departamento de recursos
humanos de empresas. Esses encaminhamentos ocorreram, quase todos,
com exceção de um, sem esclarecimento sobre o porquê da indicação da
busca do cuidado e dos riscos do uso. As narrativas mostram que o uso
abusivo de álcool não foi vivido preferencialmente como problema de saú-
de, mas como problema moral. Quando experimentado como problema
de saúde, isso ocorreu pelas consequências do uso sobre o corpo e os seus
órgãos. O uso do álcool foi também referido como solução ou recurso uti-
lizado para aliviar sofrimento psíquico e mal-estar com problemas da vida.

Esses aspectos anteriormente referidos foram relevantes para difi-


cultar a “adesão” desses usuários ao tratamento no CAPS. Primeiro porque
não se sentiam propriamente doentes, depois porque não se consideravam
“iguais” aos outros que lá estavam também para se tratar, e por último por-
que esperavam da equipe ações que os fortalecesse e tratasse moralmente,
fazendo com que eles passassem a se sentir fortes e respeitáveis.

Concorreram ainda para a não continuidade do tratamento no CAPS AD:

1. interesse e busca por recursos e instituições de tratamento


religiosas, grupos de ajuda mútua e tratamentos médicos
centrados na abstinência e internação;
350

2. não identificação com as ações de cuidado oferecidas


(médicas, psicológicas, de informação, orientação,
suporte social);

3. associação da abstinência como única solução para o


problema;

4. sentimento de superioridade moral em relação aos


usuários de drogas ilícitas que frequentavam o serviço e
dificuldade de compartilhar espaços com esses usuários.

As narrativas dos usuários de drogas ilícitas

Os entrevistados que informaram ter buscado o CAPS por cau-


sa do uso de drogas ilícitas também não viveram esse problema como um
problema preferencialmente do campo da saúde. A busca de tratamento se
deu por encaminhamento de outros (pessoas, serviços de saúde ou outros
serviços, ou pelo envolvimento com a criminalidade e os riscos que isso en-
volve. O encaminhamento para o tratamento, assim como para os usuários
de álcool, se deu sem esclarecimento algum sobre o porquê da busca do cui-
dado e riscos do uso. Os fatores que contribuíram para a não permanência
no CAPS foram:

1. desconforto para expor seus problemas para


desconhecidos;

2. dificuldade do alcance da abstinência ou redução do uso;

3. avaliação do tratamento como incapaz de ajudá-los;

4. compreensão de que o uso prejudicial de drogas é um


problema moral, e que se desejassem mesmo largariam,
convive com a compreensão de que são “dependentes”.

Conclusões

As narrativas indicaram dois grandes grupos de fatores que con-


tribuem para a não continuidade do cuidado: a) fatores relacionados ao
sentido atribuído à experiência do uso do álcool e outras drogas; b) fatores
relacionados à experiência de tratamento no CAPS. O uso prejudicial do ál-
351

cool e de outras drogas foi vivenciado como um problema físico-moral, ou


seja, um problema que afeta não apenas a mais imediata corporeidade, mas
afeta especialmente a vida moral, seus sentimentos e sua autorepresentação,
isso é, o problema do uso do álcool e outras drogas foi experienciado como
fraqueza moral e não especialmente como problema de saúde. Essa expe-
riência de fraqueza moral, se apresenta ao usuário a partir do momento em
que ele é convidado, através de amigos, familiares e colegas de trabalho, e
mesmo colegas de uso, a considerar o seu próprio uso como um problema.
Até esse momento, o uso e a forma como utiliza podem ser sinais de força,
por revelarem a sua “resistência” aos efeitos que considera negativos e reve-
ladores de fraqueza.

A experiência de tratamento no CAPS esteve marcada pela in-


congruência entre a experiência do usuário de álcool e outras drogas e as
ações de cuidado oferecidas, aspecto determinante para o abandono do tra-
tamento. A forma de organização das práticas de cuidado, desde a recepção
do usuário até o desenho do projeto terapêutico e o seu desenvolvimento,
foi pouco sensível à experiência desses usuários. Os usuários reproduziram
entre si, no espaço de tratamento, a hierarquia experimentada no âmbi-
to social. Aqueles que tinham o álcool como sua substância preferencial,
mesmo que utilizassem esporadicamente substâncias ilícitas, se sentiam
moralmente superiores àqueles que, por conta do preferencial das substân-
cias ilícitas, estavam mais próximos, segundo eles próprios, do mundo da
criminalidade. Os usuários das substâncias ilícitas, por sua vez, não só iden-
tificam isso como se sentiam identificados e compartilhavam dessa desqua-
lificação a que eram submetidos socialmente. A experiência de estar fora
dos mundo social era para eles ainda maior e mais aguda.

Os resultados das análises de narrativas sobre a experiência de uso


prejudicial de álcool e de outras substâncias trouxeram reflexões que são
relevantes para o campo da saúde, tanto no âmbito da gestão como da clí-
nica dos serviços e das ações de cada profissional. Esse estudo atualizou a
importância do desafio da promoção do diálogo entre a compreensão da
equipe de saúde e a experiência do usuário, para que o enfrentamento do
fenômeno da não permanência, especialmente marcado na clínica de álcool
e outras drogas, mas comum a muitas outras áreas da saúde, possa ser en-
frentado de melhor forma.
352

Reflexões sobre a prática da pesquisa: narrativa da trabalha-


dora do CAPS AD

Foi interessante perceber que nós, profissionais de saúde, costuma-


mos encarar o uso abusivo como um problema de saúde, mas que o paciente o
encara de maneira diferente. Ao experimentá-lo especialmente como um pro-
blema de ordem moral, ele repete uma forma de compreender o problema que
é social e que nos passa quase despercebida, porque naturalizada. Isso, além
de depreciá-lo perante os outros, restringe o diálogo, pois, como é um pro-
blema de moral, nós profissionais de saúde teríamos pouco como ajudá-los.
Concluir isso foi muito importante, pois reconheço agora que a abordagem da
equipe não pode ter o seu eixo exclusivamente em compreensões/intervenções
físicas e psicológicas, em seu sentido estrito.

As ações de cuidados precisam estabelecer alguma negociação com


a experiência do paciente, com a compreensão moral que tem do problema
e com suas necessidades e expectativas. Por exemplo, precisa dialogar com a
experiência de que só a abstinência poderia ajudá-lo, embora saibamos que
no caso específico da dependência do álcool apenas 30% dessas pessoas con-
seguem efetivamente se manter abstêmios. O CAPS, serviço que representa
um grande avanço para a sociedade e para o SUS, em termos de cuidado
humanizado, ainda permanece engessado e pouco preparado para lidar com
as demandas complexas de cada indivíduo, principalmente se levarmos em
conta sua própria experiência de adoecimento.

Participar do processo de pesquisa revelou-se bastante gratificante.


O conhecimento adquirido sobre a experiência dos pacientes com seu adoe-
cimento se mostrou relevante tanto para a minha clínica pessoal quanto para
a organização do CAPS AD. A possibilidade de interlocução com os alunos e
com a universidade foi igualmente rica e fez da universidade um parceiro real
para o enfrentamento dos desafios da rede de saúde do município de Macaé,
no qual o CAPS AD atua.
353

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CAPÍTULO 15

Espaço para a extensão universitária no campo socioam-


biental: um estudo de caso sobre as audiências públicas do
Terminal Portuário de Macaé
Rodrigo Lemes Martins61

Gustavo Arantes Camargo62

Giuliana Franco Leal63

1. Introdução

Com a redemocratização do estado e a promulgação da Consti-


tuição Federal (CF), a partir de 1988 (Brasil, 1988), houve significativas
mudanças nos processos de regulação da vida nacional. Em termos filosófi-
cos, a nova constituinte propõe um empoderamento da sociedade civil por
meio da descentralização das políticas sociais pela via da descentralização
político-administrativa (Arretche, 1999). As mudanças propostas indica-

61
Doutorado em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Núcleo de Pes-
quisas em Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental de Macaé (NUPEM). Professor Adjun-
to da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.
62
Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2008). Nú-
cleo de Pesquisas em Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental de Macaé (NUPEM). Pro-
fessor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.
63
Doutorado em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (2008). Núcleo de Pes-
quisas em Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental de Macaé (NUPEM). Professora Ad-
junta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.
356

vam uma tendência à universalização, ao redistributivismo, à inovação na


estrutura administrativa e à responsabilização pública pela proteção social
(Teixeira, 2007). Observa-se nesse período a criação e difusão de Conselhos
nas diversas áreas das políticas públicas do país, amparados por ampla base
legal, assumindo diversos formatos e funções, sendo caracteristicamente
compostos de representantes do poder público e da sociedade civil (Gohn,
2001). Os Conselhos são espaços institucionais de diálogo entre o governo e
a sociedade civil, que visam aumentar a participação popular em definições
e avaliações de políticas públicas.

Entretanto, durante a década de 90, a aplicação da política neoli-


beral se traduziu em uma menor concentração administrativa e executiva
com uma maior centralização no campo político e normativo. Isso acabou
por desnaturar a função dos espaços de discussão dos conselhos, original-
mente criados para garantir a maior participação da sociedade civil nos
processos decisórios da política e em mecanismos de controle social. Dessa
forma, eles foram transformados em espaços de legitimação de decisões dos
governos e de exploração do voluntariado, seguindo a tendência de redução
do estado (Montaño, 2002; Teixeira, 2007). Para garantir o funcionamento
como espaço de legitimação de políticas de governo, a maioria dos conse-
lhos mantêm-se presididos por lideranças do executivo, o que os torna um
mecanismo institucional e, portanto, um local privilegiado para identificar
que tipo de ordem social e política é possível estabelecer, mantendo as rela-
ções de poder que sustentam a ordem econômica (Bronz, 2011).

Em muito dos casos, os Conselhos não têm garantido, por meio


da lei orgânica do município aprovada pelo legislativo, nenhum poder de
normatizar ou regular o uso dos espaços. Isso os transforma somente em
reuniões para colher subsídios para a instrução de procedimentos. Tal es-
trutura os diferencia das Audiências Públicas somente pelo fato destas úl-
timas não terem caráter deliberativo sobre algumas decisões pautadas pela
presidência do executivo.

Tanto os Conselhos como as Audiências Públicas são identificados


como espaços simbólicos, ou “campos de luta”, nos quais agentes diversos
disputam para que suas concepções se tornem ou se mantenham dominan-
tes. Tais concepções estão carregadas dos interesses peculiares a cada agente
(Bourdieu, 2012). Instrumentos de comunicação e de conhecimento – cha-
mados por Bourdieu (2012) de sistemas simbólicos – são fundamentais no
357

desenvolvimento das lutas que se dão nesses campos. Ou seja, em qualquer


espaço público em que interesses estejam em disputa está sendo exercida uma
luta simbólica entre agentes (pessoas e instituições), pertencentes a classes e
a frações de classes sociais, para impor definições de mundo, conforme seus
interesses. Essa luta pode se dar diretamente nos conflitos simbólicos da vida
cotidiana ou, “por procuração”, por meio da luta travada pelos especialistas da
produção simbólica (Bourdieu, 2012). Dessa forma, os sistemas simbólicos
contribuem para a construção da realidade, pelo estabelecimento de sentidos,
concepções de tempo e espaço, de causalidades, etc.

Na luta travada pelos especialistas, destaca-se a atuação dos pes-


quisadores, que podem estar a serviço dos interesses das classes dominan-
tes ou podem se opor a eles. É possível, inclusive, que haja pesquisadores
representando diferentes interesses dentro de uma mesma luta simbólica.
Nesse sentido, o conhecimento acadêmico, na maioria das vezes, atua como
referência das decisões, fornecendo os argumentos necessários à legitima-
ção das mudanças pretendidas por um determinado grupo hegemônico.
Porém, a universidade ou grupo de acadêmicos, com o argumento e credi-
bilidade da técnica, podem atuar incorporando novas dimensões e dados,
mantendo ou modificando a estrutura do discurso, conforme posições di-
versas (Bronz, 2011).

Independentemente da atuação política e dos usos dos conheci-


mentos gerados pela academia, esses espaços apresentam excelentes opor-
tunidades de interação entre professores da universidade com outros se-
tores da sociedade, promovendo discussões de cunho educativo, cultural,
científico e político, no mais perfeito conceito de extensão universitária
(Fórum de Pró-Reitores de Extensão, 2007). Ao atuar de forma sistemática,
coordenada e reflexiva, envolvendo alunos de graduação e alunos pesqui-
sadores de programas de pós-graduação, esses espaços se tornam mais do
que espaços para a extensão e ensino universitário, mas também fontes de
pesquisa social.

Com base no exposto, no presente capítulo, vamos fazer uma re-


flexão sobre a atuação da Universidade nesses espaços de participação so-
cial – as Audiências Públicas. Em específico, trataremos do tema por meio
da atuação de pesquisadores do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento
Sócio-Ambiental de Macaé (NUPEM), da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), nas Audiências Públicas de instalação de um Terminal Por-
358

tuário em Macaé, tomando por referencial teórico-conceitual a discussão


em torno da função da extensão acadêmica.

2. A experiência do Núcleo de Ecologia e Desenvolvimento Socioam-


biental

No início da década de 1980, pesquisadores do Laboratório de


Limnologia do Departamento de Ecologia, Instituto de Biologia, da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), começaram a se interessar pela
complexidade paisagística da região de Macaé, assim como pelo acelerado
processo de modificação e degradação dos ecossistemas costeiros, impetra-
da pelas indústrias relacionadas à exploração do petróleo (Loureiro et al.,
2014). Já era do conhecimento do grupo que os problemas socioambientais
na região transcendiam a escala disciplinar devido às suas complexidades,
tornando evidente a necessidade de abordagens multi ou interdisciplinares
que integrassem visões nas escalas de espaço físico, recursos naturais, ecos-
sistemas e demandas humanas sobre o patrimônio natural.

Em maio de 1994, foi criado o NUPEM-UFRJ, com uma infraes-


trutura mínima de um laboratório, salas de aula, alojamento e cozinha. Lá
eram realizados cursos de formação e capacitação de educadores e difuso-
res científicos locais. A inserção da sigla NUPEM junto à comunidade da
região passou a assumir maior relevância e popularidade através da atuação
social do NUPEM somada ao crescente conhecimento científico gerado
pelas pesquisas dos ambientes costeiros da região norte-fluminense. Esse
procedimento representa um diferencial na trajetória do NUPEM-UFRJ, à
medida que, além da divulgação em periódicos nacionais e internacionais,
livros e reuniões científicas, os resultados de suas pesquisas alcançam dire-
tamente a sociedade da região na qual os ecossistemas pesquisados estão
inseridos.

O NUPEM se posiciona como um projeto de desenvolvimento so-


cial local com o objetivo de criar, desenvolver, fortalecer e difundir as ativi-
dades de pesquisa, de extensão e de ensino, através de uma abordagem in-
tegrada e multidisciplinar nas áreas das Ciências Ecológicas e Ambientais,
com foco nos problemas regionais do município de Macaé e adjacências,
conforme regimento aprovado em março de 2006. Esse ideário é norteado
pela própria noção contemporânea do papel da universidade (Souza, 2009).
359

O NUPEM, como projeto, abriga professores em torno de um pro-


grama específico relacionado à temática ambiental. Estes, por seu turno,
são orientados a produzir projetos com abordagens multi e interdisciplinar
que o tema exige. Por fim, o NUPEM considera que, frente a um cenário de
mudança social, dado pela revolução dos meios de comunicação e o desen-
volvimento de cursos virtuais, difusores de conhecimento, a universidade
deve fugir do conhecimento enciclopédico e ter uma forte atuação local,
funcionando como um polo catalizador do desenvolvimento social e cultu-
ral, por meio da interação entre os programas de investigação científica e as
demandas da sociedade.

Com base nessa premissa, o NUPEM atua desde 2009 no Conse-


lho do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba (CONPARNA), desde
2010 no Conselho Municipal de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
(COMMADS) e desde 2012 no Comitê de Bacia do Rio Macaé e Ostras.

A atuação nos conselhos tem sido fundamental na formação para


o trabalho de extensão universitária. Esses ambientes têm se revelado como
excelentes espaços para a troca entre o saber acadêmico e o popular, para
o confronto teórico/prático com a realidade brasileira, substanciando a de-
mocratização do conhecimento científico e a institucionalização de meca-
nismos de participação da comunidade (Souza, 2009). A partir desse enten-
dimento, o NUPEM tem tratado essas ações como práticas extensionistas.

Como desdobramento da experiência de atuação nos conselhos,


em 2013 foi redigido um projeto, em atendimento ao edital PROEXT –
MEC, que propunha desenvolver ações sistemáticas em reuniões e plenárias
de associações de agricultores familiares e de agricultores de assentamentos
rurais da bacia do Rio Macaé. O projeto, intitulado Compartilhando Sabe-
res, tinha início pela execução de pesquisas junto aos viveiristas da região,
visando fornecer informações aos produtores rurais da bacia do Rio Macaé,
provocando um debate sobre a recuperação de áreas degradadas e fomen-
tando a apresentação de demandas e estratégias para solução dessas áreas.

A experiência nos conselhos também tem trazido oportunidades


diversas para a inclusão de alunos do Curso de Ciências Biológicas e do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e Conservação (PP-
G-CiAC) em atividades diversas dos municípios e de associações. Como
exemplo, o NUPEM foi convidado a organizar e coordenar a Conferência
Municipal de Ambiente de Carapebus, em 2012 e 2013, foi convidado a
360

orientar a comunidade do Bairro Barreto no processo de criação de uma


Unidade de Conservação na orla do bairro e, por fim, participou também
no provimento de dados biológicos para embasar a decisão da comunidade
quanto à instalação de um porto no bairro São José do Barreto. Essa atuação
tem contribuído decisivamente para ampliação do universo de referência
no qual o estudante se insere, permitindo o contato direto com a realida-
de das comunidades onde serão desenvolvidas tais ações, constituindo-se
aportes importantes à formação desse estudante (Castro, 2004).

3. Cenários em disputa: a contextualização do Terminal Portuário de


Macaé (Tepor) no espaço urbano de Macaé

O forte processo de industrialização no município de Macaé, ini-


ciado com a instalação da base de operações da Petrobras, foi determinante
para que houvesse grande mudança no ambiente social e político da região
norte-fluminense. A instalação da Petrobrás trouxe consigo uma série de
empresas prestadoras de serviços de apoio às atividades offshore das pla-
taformas de petróleo. Nova elite econômica, com forte peso nas situações
conflitivas, impunha visão a ser considerada legítima do mundo social, de-
vido ao capital simbólico e econômico que detém (usando os conceitos de
capital de Bourdieu, 2012).

A partir da perspectiva de uma sociedade puramente voltada para


o desenvolvimento da indústria do petróleo, essa nova elite impõe uma
identidade referida ao espaço físico e, com base nesse projeto, vislumbra um
futuro consubstanciado nos interesses próprios, referindo-se aos seus pró-
prios interesses como um interesse geral de desenvolvimento local (Lourei-
ro et al., 2014). Assim, com a chegada dessa indústria, toda a cidade passou
a sofrer as consequências dessa nova fase de crescimento econômico, trans-
formando de forma significativa as formas de produção e de riqueza local.

O êxodo rural e o dinamismo da atividade de exploração de petró-


leo promoveram um crescimento acelerado da malha urbana, com a pro-
liferação de submoradias (Loureiro et al., 2014). Também é evidente que a
vultosa riqueza gerada pela extração e produção de petróleo e gás natural
não se transformou em benefícios para toda a sociedade e, transitando em
pequenos trechos do território, já é possível verificar grandes contrastes
sociais com severos impactos ambientais (Loureiro et al., 2014). As con-
361

sequências de um crescimento sem planejamento, com desiguais oportu-


nidades, expõem claramente a desigualdade também de acesso a recursos
e serviços ambientais, estando, em geral, os mais pobres em áreas mais po-
luídas e visadas por empreendimentos de grande porte e grande impacto
socioambiental, caracterizando não apenas uma desigualdade social-eco-
nômica, mas também injustiça ambiental (Acselrad et al., 2009).

A proposta de desenvolvimento de território, consequente de uma


visão de sociedade centrada exclusivamente nos interesses da indústria do
petróleo para a região norte da cidade de Macaé (onde se situam os bairros
de São José do Barreto, Engenho da Praia e Lagomar), é a instalação de um
terminal portuário, o porto de Macaé, intitulado TEPOR. Esse seria em-
preendido por uma empresa privada, com recursos do Banco Nacional do
Desenvolvimento (BNDES), em um terreno do bairro São José do Barreto
doado pela Prefeitura Municipal de Macaé.

O próprio Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do Empreendi-


mento TEPOR (Capítulo VII – Prognóstico) (2013b) reconhece que o cres-
cimento demográfico da cidade de Macaé teve como consequência imedia-
ta a produção de uma grande desigualdade social, conforme os dois trechos
compilados abaixo:

“O município de Macaé transformou-se num polo da


indústria petrolífera e teve seu território ocupado por
prestadores de serviço e indústrias ligadas ao setor de
“gás e energia”, tendo como seu vetor de crescimento
a Petrobras. Essa transformação ocorreu sem plane-
jamento, gerando problemas de toda ordem, inclusi-
ve de moradia para atender a população atraída pela
perspectiva de emprego e melhor renda.

Como consequência imediata, temos a promoção


de um “caos” urbano, fruto de um planejamento de-
ficiente aliado à velocidade da transformação. Esse
“caos” se caracteriza pela ocupação desordenada do
território e pela crescente demanda dos serviços:
saúde, educação, moradia, transporte, etc., nem
sempre suprida de forma eficiente pelos entes go-
vernamentais (Masterplan Consultoria de Projetos
e Meio Ambiente, 2013b, p.15).”
362

“A área onde pretende-se instalar o Terminal Por-


tuário de Macaé está sofrendo forte pressão urbana
pelos vetores de crescimento, sendo hoje uma das
poucas áreas disponíveis, isso é, que ainda não foi
ocupada por residências, indústrias ou condomínios
(Masterplan Consultoria de Projetos e Meio Am-
biente, 2013b, p.3)”.

A região norte da cidade de Macaé, onde se pretende instalar o


TEPOR, restou subdesenvolvida em relação à região sul, onde se concen-
tram as moradias de mais alta renda e bairros com maior infraestrutura,
desde água encanada, iluminação pública e ruas asfaltadas, até praças e orla
urbanizada, assim como maior número de estabelecimentos comerciais. A
desigualdade econômica e social, consequência do modelo de desenvolvi-
mento socioeconômico, é latente em Macaé. Como afirma o próprio Anexo
1 do EIA/RIMA (2014a) do empreendimento:

“Entre os bairros de Macaé que mais cresceram está


Lagomar, que passou de 3.874 mil habitantes em
2000 para 20.804 mil habitantes em 2010, havendo
um aumento de 437%. Esse bairro destaca-se entre
as áreas que concentram a maior parte da popula-
ção de Macaé de baixo poder aquisitivo, que, por
não ser mão de obra qualificada, acaba ou desem-
pregada ou inserida precariamente no mercado de
trabalho local, em trabalhos informais ou de baixa
remuneração (Masterplan Consultoria de Projetos e
Meio Ambiente, 2014a, p. 93)”.

Ou seja, a escolha do local para a construção do porto se deve jus-


tamente aos maus indicadores socioeconômicos da região. Surpreendente-
mente, esse mesmo documento coloca a empresa como “vetor de melhoria
da qualidade ambiental local, através de seus projetos de manejo e monito-
ramento ambiental”, desconsiderando que os programas de monitoramento
visam o controle de passivos ambientais, já que o próprio EIA contabiliza 55
impactos, sendo 51 negativos (Masterplan Consultoria de Projetos e Meio
Ambiente, 2013a).
363

O trecho sobre a área a ser ocupada ainda cita que o TEPOR será
empreendido sobre uma das únicas áreas naturais não ocupadas do bair-
ro, área esta que está em estudo pela Câmara Técnica de Unidade de Con-
servação do COMMADS para a criação de uma unidade de conservação
(UC) Municipal, previamente tratada com Restinga do Barreto (Processos
PMM10840/2014 e PMM 33238/2013). A criação da UC da restinga do
Barreto cumpriria também um importante papel da prefeitura e da Secre-
taria de Ambiente, que é o de garantir a integração sustentável entre ativi-
dades de lazer, conservação e educação ambiental da comunidade do bairro
do Barreto e do Aeroporto, que é um percentual representativo do total de
moradores do município de Macaé.

Sobre a qualidade e conservação da área da restinga do Barreto, o


EIA apresenta uma série de dados que indicam que a vegetação de restinga
que será suprimida está em bom estado de conservação, porém o mesmo
texto apresenta trechos extremamente depreciativos sobre a área (Master-
plan Consultoria de Projetos e Meio Ambiente, 2013a), expondo um dos
principais parceiros do projeto, que é a prefeitura de Macaé, ao denunciar o
descaso com a proteção e conservação dessa área natural (Masterplan Con-
sultoria de Projetos e Meio Ambiente, 2013b). O mesmo descaso é perce-
bido com relação a questões sociais, em que o próprio empreendimento se
justifica com o seguinte trecho:

“Em síntese, no caso da não viabilização do em-


preendimento, tende a perdurar nos próximos anos a
continuidade da ocupação desordenada dos bairros
Lagomar, São José do Barreto e Parque Aeroporto,
que crescem sem um ordenamento público, carentes
de saneamento ambiental, de abastecimento público
de água e de infraestrutura urbana (Masterplan Con-
sultoria de Projetos e Meio Ambiente, 2014b, p. 3).”

Cabe concluir que ao relativizar dados coletados com métodos


cientificamente aceitos para construir uma narrativa que encaixa um em-
preendimento que pretende produzir “uma gama variada de impactos am-
bientais” (Masterplan Consultoria de Projetos e Meio Ambiente, 2013b),
por meio de uma retórica de desenvolvimento diante de um quadro de
364

abandono e injustiça ambiental desenhado, cria-se um quadro insustentá-


vel, evidenciado no próprio texto ao citar Sachs (2004):

“Infelizmente, o crescimento econômico promovido


pelas forças do mercado traz, mesmo quando bem-
sucedido em termos econômicos, resultados sociais
opostos aos almejados: as diferenças sociais aumen-
tam, a riqueza se concentra na mão de uma minoria,
ao mesmo tempo que uma parcela importante da po-
pulação é marginalizada (Sachs, 2004, p. 26).”

Isso demonstra a importância da atuação de pesquisadores capa-


zes de avaliar de forma técnica os dados apresentados e atuar como um
decodificador que reinterpreta os dados sob a ótica da inviabilidade do
empreendimento. Por fim, é importante pontuar que todas as discussões
apresentadas nesse tópico sobre o crescimento econômico e a instalação de
empreendimentos, usando a retórica do desenvolvimento, podem ser vistas
tanto pela ótica ambiental quanto social, isto é, socioambiental, demons-
trando o caráter multidisciplinar do tema.

4. A ação extensionista no caso do projeto de instalação do Porto

Chegamos então às audiências públicas para o licenciamento am-


biental do empreendimento TEPOR. Foram realizadas duas audiências
públicas, uma em janeiro de 2014 e a segunda em julho do mesmo ano.
A audiência pública é um instrumento de participação popular, garantido
pela Constituição Federal de 1988 e regulado por leis federais, constituições
estaduais e leis orgânicas municipais, que visa expor um tema e debater
com a população sobre a formulação de uma política pública, a elaboração
de um projeto de lei ou a realização de empreendimentos que podem gerar
impactos à cidade, à vida das pessoas e ao meio ambiente (Resolução nº
009/1987, do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, 1987).

A primeira audiência pública foi realizada em janeiro de 2014,


após uma rodada de reuniões informais realizadas pela empresa junto aos
365

bairros listados como áreas de influência direta do empreendimento. Es-


sas reuniões informais não são obrigatórias no processo de licenciamen-
to, porém são realizadas por cumprirem duas funções básicas: divulgar a
realização da audiência pública, que demanda uma participação popular,
e constituir uma rede de aliados estratégicos. Esses aliados estratégicos são
cooptados em diferentes escalas de governo, bem como com alguns grupos
locais, com grande capital político, por meio de repasse direto de verbas ou
por meio do financiamento de projetos de forma a garantir que esses grupos
não se mobilizem contra o empreendimento e sim atuem reciprocamente
na defesa do mesmo (Bronz, 2011).

Cientes das intenções dos empreendedores e do governo muni-


cipal, moradores do bairro São José do Barreto procuraram os professores
do NUPEM, uma vez que as perspectivas de implantação do empreendi-
mento contrariavam o movimento de implantação da Unidade de Conser-
vação da Restinga do Barreto. Os professores e estudantes da graduação e
da pós-graduação atuaram na formatação de documentos que pudessem
ser usados pela comunidade no debate sobre as alternativas à implanta-
ção do empreendimento. Ao todo, foram produzidos 26 documentos que
envolveram diretamente os pesquisadores do NUPEM. Os documentos
produzidos visavam esmiuçar os argumentos técnicos apresentados pelo
empreendedor em duas diferentes versões de EIA que foram apresentadas
nas duas audiências públicas, se concentrando principalmente no Diagnós-
tico Ambiental, Prognóstico e Programas Ambientais, além dos anexos que
incluíam estudos sobre Morfologia Costeira, Análise de Risco e Impactos
Sociais do empreendimento.

É importante atentar para o fato de que esse processo de discus-


são com a sociedade por meio de documentos técnicos em uma audiência
pública tem caráter distinto das possibilidades de produção e negociação
em um ambiente de conselho. Na audiência pública, os empreendedores
buscam invocar um argumento de autoridade ou rigor científico, colocando
o pesquisador contratado pelo empreendimento como idôneo.

Conforme Habermas (1982), o conhecimento científico pode estar


a serviço da legitimação tecnocrática de interesses dominantes. Toda ideo-
logia tem como função impedir a tematização dos fundamentos do poder.
Em particular, a ideologia tecnocrática impede a problematização do poder
existente, ao tratar problemas coletivos como questões técnicas, sobre as
366

quais não se aplicam critérios relativos à justiça, em sim referentes à eficá-


cia. A negação da relação íntima entre conhecimento e interesses dá mar-
gem a uma suposta neutralidade científica, que deixaria à margem qualquer
discussão política. Enfim, sob a ideologia tecnocrática, questões práticas
que afetam a sociedade são transformadas em problemas técnicos, a serem
resolvidos por experts. Ocorre, assim, despolitização das massas, como re-
quisito e consequência de uma forma de dominação legitimada pelo poder
de coação da racionalidade técnica.

No entanto, o conhecimento científico também pode ser usado em


espaços públicos (tais como as audiências públicas) na construção de rela-
ções mais democráticas. O próprio Habermas (1987) enxerga essa possibi-
lidade em situações de interação comunicativa ideal, as quais pressupõem
que todos os interessados podem participar do discurso e têm oportunida-
des idênticas de argumentar e chances simétricas de fazer e refutar afirma-
ções, interpretações e recomendações, estando livres de coação. Ainda que
tais condições possam parecer utópicas, percebe-se que existem situações
reais, concretas, que se aproximam mais ou menos dos requisitos ideais.
Situações em que os vários agentes envolvidos em uma interação num es-
paço público tenham acesso a informações de cunho científico, em uma
linguagem compreensível a todos, e em que tais informações possam ser
usadas em um debate abertamente político (à medida que se trata de re-
lações de poder em que interesses se confrontam), são situações concretas
que aproximam o conhecimento acadêmico de uma interação comunicati-
va radicalmente democrática.

Ao capacitar a população por meio de documentos ao debate téc-


nico, a assimetria de poder entre os diferentes agentes pode ser minimizada
e um ambiente de discussão e negociação passa a ser possível, fomentando
o ambiente da extensão (Loureiro, 2004).

Trata-se de extensão porque, por meio dessa ação, fora dos espaços
formais de atuação dos professores universitários, os moradores do bairro
São José do Barreto e outros moradores acabaram por incorporar valores,
conceitos, habilidades e atitudes que contribuíram para o entendimento da
realidade de vida e atuação lúcida e responsável dos atores sociais coletivos,
dentro de uma perspectiva crítica de educação ambiental (Loureiro, 2006).
Como exemplo, transcrevemos parte das falas de moradores, proferidas du-
rante primeira audiência pública, falas essas que foram registradas pelo INEA:
367

“uma professora universitária feita aí no data show


onde ela explicava o seguinte: a produção pesquei-
ra da pesca artesanal, que historicamente é Macaé,
pesca artesanal, vocês estão querendo transformar a
pesca artesanal em pesca industrial.

Na pesca artesanal toda a produção está na beirada,


quanto mais mar adentro você entra, menos peixe
você pega, só a pesca industrial, já que tudo produz.

Agora, digo a vocês, vocês não têm conhecimento


do impacto que isso causa. Em toda a região norte
ela não impacta a costa, só se tem os impactos na-
turais, mas quando a água tá ao sul, arrebenta aqui
a fronteira que vocês não sabem como conter isso.

E eu digo a vocês, consultem o Instituto de Ocea-


nografia de Lisboa, e consultem a prefeitura do Rio,
quando fez a obra e o calçamento de Copacabana.
- Sr. Sebastião, pescador e membro do Conselho
Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável de Macaé.” (Comissão Estadual de Con-
trole Ambiental, 2014a, p. 35).

“Meu nome é Nilce, tenho 13 anos, e eu tô fazendo


um curso de cinema ambiental pela UFRJ, e hoje
mesmo nós estávamos passando ali pra poder pes-
quisar sobre o bairro, fazer um levantamento, nós
vimos o golfinho toninha e boto-cinza, tem muito
por ali. Como que vocês falam... eu não tô na ig-
norância, só quero fazer uma pergunta pra esclare-
cer minha dúvida. Como que não foi visto durante
a pesquisa? É isso o que eu quero saber. Por que,
como que... Vocês vivem dizendo que nós não po-
demos invadir a natureza, não podemos ir na casa
dos animais, como vocês vão fazer isso agora? Se já
tem lá em Imbetiba ou que não dá pra fazer, por que
tem que ser justamente onde os animais estão? Eu
sei que todo lugar vai ter um animal, mas vai pre-
judicar esses animais lindos por causa de um porto,
que com certeza vai trazer popularidade pra cidade
de Macaé, mas vai trazer muito prejuízo pros ani-
368

mais. Como vocês fariam se entrasse alguém dentro


da casa de vocês e falasse assim: ‘Espera aí que o
dinheiro é mais importante’? E agora?” – Srta. Nilce,
moradora do bairro Lagomar (Comissão Estadual
de Controle Ambiental, 2014a, p. 26).

“Eu saio daqui insatisfeito porque eu vim... eu sou


morador da área, não sou técnico, não entendo da
área offshore, não entendo de porto, entendo apenas
que no Lagomar a minha água é da mesma cor que
a água da Lagoa da Coca-Cola, e da mesma cor da
água da Lagoa de Jurubatiba, num porto com poço
semiartesiano.

E eu não entendo o porto ter essa quantidade de


água potável antes de eu e todos os moradores lá
sermos abastecidos com essa água de qualidade,
certo? Eu fiz uma pergunta aqui e eu achei que o se-
cretário de Desenvolvimento, o secretário de Obras,
o prefeito, o secretariado, um vereador qualquer
que estivesse presente, ou que esteja presente, se
pronunciasse e viesse pra responder. Eu vim numa
audiência pública e não tive a minha resposta. Obri-
gado.” – Sr. Marcos, morador do bairro São José do
Barreto (Comissão Estadual de Controle Ambien-
tal, 2014a, p. 79).

“Boa noite a todos e a todas. Em primeiro lugar,


eu gostaria de solicitar ao presidente da mesa e ao
Henrique, que vai avaliar esse processo, que pres-
tem muito bem atenção a tudo o que foi colocado
aqui, que a gente não pode, né, deixar de conside-
rar todo esse conhecimento que foi despejado aqui
pelos professores, pelo professor Soffiati (professor
da UENF), pelo próprio Pessanha (chefe do Parque
Nacional da Restinga de Jurubatiba), em relação
ao Parque, pelo pessoal do NUPEM, que tem todo
esse conhecimento, pelos estudiosos de Macaé, pela
comunidade que veio aqui se manifestar, pelos pes-
cadores. Então que o INEA tenha esse bom senso
de acatar todas as informações que foram colocadas
aqui, e pensar muito bem nesse processo de licen-
369

ciamento.” – Sr. Paulo Sérgio, morador de Macaé e


funcionário da Prefeitura Municipal de Macaé (Co-
missão Estadual de Controle Ambiental, 2014a, p. 80).

O processo de avaliação do EIA/RIMA, assim como sua confron-


tação em uma audiência pública, também pode ser caracterizando como
um modelo de integração entre ensino/pesquisa/extensão, pela participa-
ção dos alunos. Ao envolver estudantes em um processo real no qual os
conhecimentos adquiridos na universidade são postos em prática, essa ati-
vidade se caracteriza por extensão, uma extensão possível apenas a partir
das pesquisas desenvolvidas in loco e da apresentação e desenvolvimento
dessas em sala de aula. Realiza-se, assim, uma educação para a extensão e
permite-se que os estudantes, assim como os professores, tenham uma nova
dimensão sobre a importância de suas pesquisas e também da importância
de inserir a universidade no debate social em que se situa.

O trabalho desenvolvido nas audiências públicas tem sido objeto


de discussões recorrentes sobre o papel da pesquisa como instrumento de
legitimação e sobre como o argumento técnico é usado em situações de
conflito ambiental, debatendo dimensões éticas e políticas e a relativização
do conhecimento empírico. Por meio de relatos e vídeos ministrados em
sala de aula, discute-se a questão do conflito ambiental como campo de
embate de diferentes concepções de desenvolvimento e distintos projetos de
cidade e sociedade, estando em jogo inúmeros interesses econômicos, so-
ciais e ambientais de diferentes ordens no processo de licenciamento. Essas
escolhas estão longe de serem neutras e sua explicitação trouxe a todos uma
dimensão política sobre o fazer ciência e sua inserção social.

Quanto ao empreendimento, as críticas realizadas na primeira


audiência pública tiveram o efeito de inibir o órgão licenciador a emitir
a licença a partir daquele EIA/RIMA. Um novo documento foi elabora-
do, agora mais bem trabalhado, porém ainda insuficiente, e nova audiên-
cia foi realizada. A segunda audiência pública demonstrou claramente o
potencial desse espaço democrático de contestação e conquistas (Loureiro,
2010). Esse poder foi demonstrado pela melhora no texto, com revisões de
abordagens assumidas pelo empreendedor na primeira audiência pública,
incluindo mudanças estruturais na planta do empreendimento.
370

Por seu turno, em virtude da mobilização em relação ao tema, a


segunda audiência foi marcada pela presença de claques organizadas, re-
crutadas por vereadores de Macaé. As claques impediram, em muitos ca-
sos, que as pessoas se manifestassem com liberdade. Os ânimos exaltados
já haviam se acirrado depois da primeira audiência pública, com ações e
falas que visavam desqualificar o trabalho do NUPEM, conforme pode ser
constatado por meio da ata da reunião ordinária do COMMADS realizada
no dia 2 de julho de 2014:

“O vereador e conselheiro (do COMMADS) Max-


well Vaz defendeu a importância da indústria do pe-
tróleo para a cidade, disse que a Petrobras apoiou a
instalação do NUPEM no município e que a empresa
sempre arca com suas responsabilidades. Discordou
sobre a intensidade apresentada dos impactos sobre
a fauna marinha, alegou que a pesca tem aumentado.
Explicou que a área em questão foi disponibilizada
através de cessão onerosa que prevê um posterior pa-
gamento dos empreendedores ao município. Ques-
tionou sobre a falta de envolvimento do NUPEM em
outras questões ambientalmente importantes para a
cidade, como o caso das erosões do Lagomar, e disse
que a CEDAE dará conta do abastecimento de água
para a população e para o porto. Houve intenso de-
bate entre os conselheiros, fora das ordens das falas
(COMMADS, 2014).

Porém, na segunda audiência pública, as atuações das torcidas, pró


e contra a criação do porto, criou um ambiente de desqualificação de dis-
cursos que desnaturou as falas técnicas e manifestações legítimas de dúvida
quanto ao empreendimento. É o que mostram os trechos transcritos a partir
das falas de moradores, proferidas durante a segunda audiência pública e
registradas pelo INEA:

“Atrás do NUPEM passa um canal de bosta, licença


da palavra e nunca ninguém fez estudo lá. O que
371

que o NUPEM faz além de... só Deus sabe o quê,


dentro dos matos, entendeu, e atrapalhar o desen-
volvimento. Só Deus sabe o que pode ficar olhando
cantando, conversando, entendeu? Olha só: assim
como era uma zona, desculpa, desculpa, me pedi-
ram, desculpa agora, entendeu? Tudo bem, então
eu acho o seguinte...” – Sr. Max Badwea, morador
do bairro Lagomar (Comissão Estadual de Controle
Ambiental, 2014b. p. 73).

Ao fim da segunda audiência pública, as posições dos pesquisado-


res e da população foram então organizadas em forma de texto e entregues
ao órgão ambiental responsável pela avaliação do empreendimento.

5. Conclusão

Ao olhar para a atuação dos pesquisadores, professores e alunos


do NUPEM, nas audiências públicas do TEPOR, percebe-se uma forma
prática peculiar de atividade extensionista: o direcionamento do conhe-
cimento produzido na universidade para a construção de um diálogo em
espaço público, em que os pesquisadores se colocam como agentes sociais
que participam ativamente de relações de luta simbólica pela definição da
sociedade que se deseja. Isso se torna possível a partir de uma tomada de
posição quanto à não neutralidade do conhecimento científico e sua impor-
tância política e cultural na construção do que se considera uma sociedade
mais justa.

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pdf>. Acesso em: 01 set. 2015.
375

Autores

Alex Xavier
Fisioterapeuta. Mestre em Saúde Coletiva. Articulador Local do Projeto Re-
des/Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – SENAD – Macaé (RJ).

Ana Lúcia Abrahão


Enfermeira; doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Cam-
pinas – UNICAMP; professora titular da Escola de Enfermagem Aurora de
Afonso Costa da Universidade Federal Fluminense; Integrante da equipe de
coordenação do Centro Regional de Referência sobre Drogas – CRR-UFF.

Ana Lucia Basilio Ferreira Togeiro


Psicóloga; Especialista em Saúde Mental – Clínica, Gestão e Pesquisa, Instituto
de Psiquiatria IPUB – Universidade Federal do Rio de Janeiro/Ministério da
Saúde; aluna do mestrado Profissional em Atenção Psicossocial do Instituto de
Psiquiatria – IPUB da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, coorde-
nadora do CAPS AD Porto, de Macaé.

Ândrea Cardoso de Souza


Enfermeira; doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública
– ENSP/Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ; professora adjunta da Escola
de Enfermagem Aurora de Afonso Costa, da Universidade Federal Fluminen-
se. Integrante da equipe de coordenação do Centro Regional de Referência
sobre Drogas – CRR-UFF.
376

Breno Castro Alves


Jornalista (Universidade de São Paulo – USP), escritor.

Cristiane Mazza Marques


Psicóloga. Especialista em Psicologia Clínica. Especialista em Álcool e outras
Drogas. Supervisora clínico-institucional do Centro de Atenção Psicossocial
em Álcool e outras Drogas – CAPS AD. Tem experiência na área de Atenção
psicossocial ao uso prejudicial de álcool e outras drogas.

Cynthia Aquino
Aluna de graduação em medicina do curso de Medicina da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro – Campus Macaé. Foi aluna bolsista do PET Saúde
Mental/ Crack, Álcool e Outras Drogas, na UFRJ - Campus Macaé.

Décio de Castro Alves


Psicólogo, Especialista em Gestão de Saúde. Implantou e implementou diver-
sos dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial – RAPS. Atuou como As-
sessor Técnico para o Conselho Municipal de Políticas Públicas para o abuso
do Álcool, Crack e outras Drogas; Formação, supervisão e acompanhamento
de equipes multidisciplinares no âmbito da Rede de Saúde, Assistência Social
e Segurança Urbana, e como Consultor do Ministério da Saúde para área de
Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. Atualmente é supervisor institucional
do Projeto Redes da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – Senad/
Ministério da Justiça – MJ.

Elisângela Onofre de Souza


Psicóloga; especialista em Rede de CAPS Álcool e outras Drogas. Integrante
da equipe de coordenação do Centro Regional de Referência sobre Drogas –
CRR-UFF

Erotildes Maria Leal


Psiquiatra; mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social, da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro; doutorado em Psiquiatria e Saúde
Mental pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
pós-doutorado “International Research Capacity – Building Program for Health
Related Professional to Study the Drug Phenomenon in Latin America” – Uni-
versidade de Toronto/CICAD; foi professora adjunta do curso de Medicina da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Campus Macaé; supervisora clínico-ins-
titucional do CAPS AD Porto de Macaé, Coordenadora do Centro Regional de
Referência sobre Drogas – CRR -UFRJ Macaé. Atualmente é professora adjunta
da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Fillipe Teixeira Tinoco Rodrigues
Graduado em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – Cam-
pus Macaé. Residente do Programa de Residência em Medicina de Família e
Comunidade da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Foi aluno bolsista do
PET Saúde Mental/Crack, Álcool e Outras Drogas, na UFRJ - Campus Macaé.

Francisco de Assis Esteves


Biólogo, doutorado em Max-Plack Institut für Limnologie – Universitat Kiel.
Diretor geral – Núcleo em Ecologia e Desenvolvimento Sócio-Ambiental de
Macaé – NUPEM/UFRJ, do qual foi fundador. Professor titular da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro.

Francisco Leonel Fernandes


Psicólogo; doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro; professor associado do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal Fluminense. Integrante da equipe de professores do Centro Regional
de Referência sobre Drogas – CRR – UFF.

Gabriel Moreira Crelier


Aluno de graduação em medicina do curso de Medicina da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro – Campus Macaé. Foi aluno bolsista do PET Saúde
Mental/Crack, Álcool e Outras Drogas, na UFRJ – Campus Macaé.

Gilberta Acselrad
Enfermeira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestra em
Educação, IESAE/FGV, coordenadora de cursos de extensão “Políticas Públi-
cas sobre Drogas e alternativas democráticas”/UERJ.

Giuliana Franco Leal


socióloga, mestre e doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de
Campinas – UNICAMP, com estágio de doutorado na École de Hautes Étu-
des en Sciences Sociales (França). Professora na Universidade Federal do Rio
de Janeiro – Campus Macaé.

Gustavo Arantes Carmargo


Economista, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro PUC-RJ, doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro PUC-R. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – Campus Macaé.
378

Junia Prosdocimi
Terapeuta ocupacional. Trabalhou em Centros de Atenção Psicossocial, foi
coordenadora municipal de Programas de Saúde Mental, e tutora do Centro
Regional de Referência sobre Drogas – CRR – UFRJ Macaé RJ

Lorenna Figueiredo Souza


Psicóloga; Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade Es-
tadual do Rio de Janeiro – UERJ; Psicóloga da Secretaria Estadual de Saúde do
Rio de Janeiro. Integrante da equipe de coordenação do Centro Regional de
Referência sobre Drogas – CRR-UFF.

Marcos Verissimo
Graduado em Ciências Sociais. Especialista em Políticas Públicas de Justiça
Criminal e Segurança Pública pela Universidade Federal Fluminense. Doutor
em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisador associa-
do ao Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de
Conflitos (INCT-InEAC).

Maria Alice Bastos


Assistente Social; Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Rio de Janeiro. Articuladora intersetorial do Centro de Atenção Psi-
cossocial – CAPS AD alameda da Fundação Municipal de Saúde de Niterói.
Integrante da equipe de professores do Centro Regional de Referência sobre
Drogas – CRR – UFF

Maria Clarissa Santos da Silva


Aluna de graduação da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ. Foi monitora do Centro Regional de Referência sobre
Drogas – CRR – UFRJ Macaé.

Mirmila Musse
Psicóloga, Mestre: Master de psychanalyse pela Université de Paris VIII. Foi
Assessora Técnica da Área Técnica de Saúde mental, Álcool e outras Drogas
da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.

Monique Rodrigues
Graduada em Ciências Sociais. Mestre em Sociologia e Direito pela Univer-
sidade Federal Fluminense/UFF. Curinga do Centro de Teatro do Oprimido.
379

Myres Maria Cavalcanti


Médica, Residência em Medicina Preventiva e Social, Especialista em Gestão
Pública. Foi coordenadora da Área Técnica de Saúde Mental, Álcool e outras
Drogas do Município de São Paulo e Coordenadora do Programa “Crack, é
Possível Vencer”, no Município de São Paulo, de 2013 até 2015.

Naly Soares de Almeida


Psiquiatra. Foi responsável pelo programa de saúde mental na Atenção básica
de Macaé (RJ), coordenou o consultório na Rua de Macaé (RJ). É gerente da
Atenção Básica em Macaé (RJ). Professora colaboradora de Cursos de Espe-
cialização em Saúde Mental (Fundação Oswaldo Cruz-Fiocruz e outros)

Queline Simões Evangelista


Graduada em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – Cam-
pus Macaé. Foi aluna bolsista do PET Saúde Mental/Crack, Álcool e Outras
Drogas, na UFRJ – Campus Macaé.

Rodrigo Lemes Martins


Biólogo, mestre em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia, doutor em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro – Campus Macaé.

Sávio de Araújo Gomes


Graduado em psicologia pela Universidade Federal Fluminense – Campus Rio
das Ostras. Aluno de mestrado em psicologia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Foi monitor do Centro Regional de Referência sobre Drogas – CRR
– UFRJ Macaé.

Ruth Escudero
Psicóloga, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense – UFF,
Especialista em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia Fenomenoló-
gico-Existencial do Rio de Janeiro – IFEN. Foi coordenadora acadêmica do
Centro Regional de Referência sobre Drogas – CRR UFRJ Macaé.

Talitha Demenjour
Graduada em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – Cam-
pus Macaé. Residente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde
da Família da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. Foi aluna bolsista do PET
Saúde Mental/ Crack, Álcool e Outras Drogas, na UFRJ – Campus Macaé.
380

Tania Maris Grigolo


Psicóloga. Doutora em Psicologia Clínica e Cultura. Interlocutora do Projeto
Redes/SENAD. Professora do Curso de Psicologia (CESUSC) e do Mestrado
em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (UFSC). Consultora em Saúde Men-
tal, Álcool e outras Drogas.

Teresa Cristina Endo


Psicóloga, Mestre em Psicologia (Psicologia Social – Pontifícia Universidade Ca-
tólica – PUC), Doutorado em Psicologia (psicologia clínica – PUC). Professora
do curso de graduação de Psicologia da PUC-SP. Foi assessora Técnica da Área
de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas da Secretaria Municipal de Saúde SP.
381

ABREVIATURAS

AD – Álcool e Drogas

AP – atenção primária

CAPS – Centro de Atenção Psicossocial

CAPS AD – Centro de atenção Psicossocial para pessoas em uso problemá-


tico de álcool e outras drogas

CAPS i – Centro de Atenção Psicossocial para crianças e adolescentes

CRR – Centro Regional de Referência para formação de profissionais que


atuam com usuários de álcool e outras drogas no SUS e SUAS 

CRR – UFRJ – MACAÉ – Centro Regional de Referência para formação de


profissionais que atuam com usuários de álcool e outras drogas no SUS e
SUAS – CRR – UFRJ Macaé

MS – Ministério da Saúde

NUPEM – Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento Sócio-Ambiental de Macaé

PET-SAÚDE – Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde

PRÓ-SAÚDE – Programa Nacional de Reorientação da Formação Profis-


sional em Saúde

SENAD – Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, do Ministério da


Justiça

SM – saúde mental

UFF – Universidade Federal Fluminense

UFRJ – Universidade Federal do Rio de janeiro


Este livro foi impresso sobre papel reciclato 75 g/m2, cartão supremo 250 g/m2
e composto na tipologia Minion Pro corpo 10/11 em fevereiro de 2017,
na cidade de Belo horizonte.
ISBN 978-85-62805-69-1

9 788562 805691

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