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VOZES LIBERTADAS: CONTRADISCURSOS À IDEOLOGIA DOMINANTE

SOBRE IDENTIDADE NEGRA BRASILEIRA NOS DISCURSOS DO RAP


“MANDUME”

Carolina Dias dos Santos1

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar e descrever, nos discursos do rap “Mandume”, os
mecanismos relacionados com as condições de produção, formação ideológica e formação
discursiva, que são usados na construção de sentidos em torno da identidade negra. Para tanto,
tomou-se como base a Análise do Discurso de linha francesa, ancorada em Michel Pêcheux.
Para analisar os sentidos atribuídos ao negro nos discursos do objeto da pesquisa, definiu-se
quem fala e para quem; o objeto do discurso; as forças em confronto no marco das relações
étnico-raciais no Brasil; e a noção de pré-construído. Commented [MdLR1]: No resumo, vc precisa
apresentar a metodologia e resultado da análise (de
forma breve)
PALAVRAS-CHAVE: discurso, rap, formação discursiva, formação ideológica, identidade
negra.

INTRODUÇÃO

“Você está entrando no mundo da informação,


autoconhecimento, denúncia e diversão.
Este é o raio X do Brasil, seja bem-vindo.”
Racionais MC’s

“Licença pra chegar”, é dessa forma que alguns rappers iniciam uma apresentação, e
se é para falar sobre esse movimento não há outro início possível senão esse. O interesse em
explorar os discursos do rap sobre o social surgiu ao notar neles a maneira como certos sujeitos
qualificavam os valores, a desigualdade, os preconceitos que regem o convívio social ou que
os alimentam. Em busca de compreender os porquês de certos discursos, silêncios,
comportamentos, práticas e valores propagados o rap desemboca num discurso de protesto
frente ao que é hegemônico. Isso despertou a curiosidade de compreender como a relação rap-
sociedade elucida os posicionamentos ideológicos referentes à identidade negra por meio do
discurso.
Devido ao descobrimento da América, ocorrido nos anos finais do século XV, criou-se
a necessidade de mão-de-obra barata para exploração, valorização e manutenção das novas
terras. A África, com seu desenvolvimento tecnológico precário – inclusive àquele referente a
guerra, pareceu ser um repositório humano adequado para tal fim (Munanga, 1988). Iniciou-

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens (PPGEL) da Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (UTFPR), na área de concentração de Linguagem e Tecnologia.
se, dessa forma, o tráfico de escravos que trouxe os primeiros negros ao Brasil na primeira
metade do século XVI. Nesse cenário, foram definidas as posições que brancos e negros
ocupariam na formação social brasileira: senhores e subjugados. Essas posições, geraram
sentidos desfavoráveis sobre a raça negra que são reproduzidos amplamente ainda hoje. Como
consequência, os negros enfrentam, ainda, dificuldades de inserção social e de reconhecimento
histórico e cultural.
Ao tomar consciência da situação de subordinação estabelecida a partir de traços
étnicos-raciais, identitários e culturais, a população negra gerou manifestações expressivas que
garantiram alguns direitos constitucionais e que buscam, ainda, a garantia de participação
política e social e a valorização de sentidos afirmativos sobre a negritude. Os protestos
alcançam várias esferas na contemporaneidade, como a dos movimentos sociais, a acadêmica
e a cultural. No âmbito cultural, evidencia-se o objeto dessa pesquisa, o rap, e mais
especificamente a música “Mandume”2 como forma de expressão artística que dá voz às
minorias, que podem protagonizar discursos de denúncia ao racismo, resgatar sua memória
cultural e histórica, mostrar resistência e representar a identidade negra por meio de
significações positivas.
Alicerçado nessa realidade, esta pesquisa tem como objetivo primordial analisar os
discursos presentes na letra de “Mandume”, sua abordagem interseccional3, os mecanismos
usados na construção de sentidos, que se relacionam com as teorias de condição de produção,
formação ideológica e formação discursiva. Como base teórica, toma-se a Análise do Discurso
de linha francesa, ancorada em Michel Pêcheux, que coloca importância acerca dessas noções.
Para a análise define-se quem fala, para quem fala; o objeto do discurso, as forças de confronto
nas relações étnicos-raciais e a noção dos discursos pré-construídos, que significam universais
sobre os valores ideológicos atribuídos a identidade negra. Mobilizam-se também conceitos de
outras áreas do conhecimento, que não a Linguística.
A fim de contemplar todos os elementos citados, este artigo inicia abordando as
questões referentes à Análise do Discurso de pensamento pecheutiano. Em seguida, se
estabelece uma relação entre o rap nacional e a identidade negra. Contempla-se, depois,
historicamente, as forças de conflito nas relações étnico-raciais brasileiras. Finalmente, serão

2
Mandume é uma figura de resistência negra que dá título a letra escrita pelos rappers Emicida, Drik Barbosa,
Amiri, Rico Dalasam, Muzzike, Raphão Alaafin e a contribuição da escritora Mel Duarte.
3
A abordagem interseccional busca contemplar minorias sociopolíticas marcadas por diferentes recortes de
opressão, exclusão e exploração, como os de gênero, raça, classe, sexualidade, religião, dentre outros.
analisados e descritos os mecanismos usados na construção de sentidos em torno da identidade
negra nos discursos presentes no objeto selecionado para esse estudo.
Padre Antônio Vieira (1648) disse em certa carta ao Marquês de Nisa “sem negros não
há Pernambuco”, se não fosse por essa necessidade histórica não haveria a necessidade desta
pesquisa e, consequentemente, deste artigo. Mas, a história não podendo ser mudada, resta
compartilhar um trecho da escritora e ativista Alice Walker “Eu acho que Deus deve ficar fora
de si se você passa pela cor púrpura num campo qualquer e nem repara”. Commented [MdLR2]: Estre fragmento é interessante,
mas vc deve primar pela objetividade do foco
estabelecido, quando propõe um artigo acadêmico.
Recomendo retirar.
SOU PORTA-VOZ DE QUEM NUNCA FOI OUVIDO4: CAMINHOS
PARA A COMPREENSÃO DOS MECANISMOS DE PRODUÇÃO DO
DISCURSO DE RESISTÊNCIA E DO DISCURSO-CONTRA

“Won't you help to sing


These songs of freedom?”

Bob Marley

A linguística, a partir do momento em que se constituiu como ciência autônoma, passou


a estudar internamente a linguagem. Chamamos de linguística estrutural, o estudo dos
elementos linguísticos internos de uma língua, desconsiderando as relações homem-sociedade.
Esses estudos impactaram de forma positiva o avanço no âmbito dos estudos linguísticos,
porém não foram suficientes para explicar a complexidade existente para além das estruturas
linguísticas. Os estudiosos da área, propuseram-se a fazer uma reflexão sobre a linguagem que
levasse em conta seu caráter social, ideológico e discursivo.
Nesse contexto, a obra e o pensamento de Michel Pêcheux são significativos para os
estudos da linguagem, uma vez que marcaram, na década de 1960, o surgimento de uma nova
linha de pesquisa: a Análise do Discurso (doravante AD). A novidade trazida por essa área foi
a relação entre o linguístico com o que lhe é exterior e, mais solidamente, com o que lhe é
histórico. Na concepção do teórico os mecanismos que operam no discurso não se limitam ao
que é exclusivamente linguístico, tudo que é dito tem relação com o que já foi dito
anteriormente e relação com o contexto social em que o sujeito enunciador está inserido. Essa
teoria, abriu caminhos para a análise das engrenagens envolvidas nos processos discursivos
que circundam os plurais episódios da vida humana.

4
Excerto da faixa “Triunfo” do álbum “Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe”
(2009) de Emicida.
Em primeira instância é necessário elucidar a distinção entre o sistema virtual da língua
e a sua realização concreta. Segundo Fiorin (2007), o sistema abstrato da língua é formado por
uma rede de relações que se estabelece entre um conjunto de elementos linguísticos, esse
sistema é uma estrutura em que é possível selecionar e combinar os elementos entre si. Essa
combinação se realiza concretamente nos atos de fala. A diferença entre fala e discurso é que
na primeira se configura como a exteriorização psicofísico-fisiológica do discurso, esse, por
sua vez, compreende as combinações de elementos linguísticos usados pelos falantes com a
finalidade de exprimir seus pensamentos, de modo a evidenciar ideias sobre o mundo exterior
ou ideias de seu mundo interior. É no nível do discurso, onde as coerções sociais determinam
a linguagem, que esse trabalho se ancora.
No Brasil, as relações entre branco e negros constituem relações de força em que o
primeiro grupo se posicionou historicamente como dominante, colocando o segundo grupo na
condição de dominado. Nessa conjuntura, os sentidos construídos em torno de ser negro, que
circulam de maneira vasta e constante, são pautados por elementos ideológicos negativos.
Esses sentidos são construídos por duas vias, a primeira é o olhar do branco, que teve sua
construção simbólica por meio do papel do colonizador, e cuja a identidade foi fortalecida com
o enfraquecimento da identidade daqueles que diferem da sua posição, índios e negros, por
exemplo. A segunda via de significação, onde os sentidos circulam com menor força, é
constituída pelo olhar do negro que desde o princípio sofreu desvalorização de seus traços
identitários. Para a presente pesquisa, buscou-se compreender os sentidos atribuídos à
identidade negra a partir dos discursos de representantes dessa comunidade. O rap tendo forte
identificação com o grupo étnico-racial negro e sendo um espaço discursivo, apresentou-se
como campo produtivo para esta análise. Encontrou-se na letra “Mandume”, de forma
generosa, discursos que cumprem com os requisitos pré-estabelecidos.
Para a análise dos mecanismos usados para construir esses sentidos é necessário
pontuar algumas das noções básicas da AD propostas por Pêcheux: as condições de produção,
a formação ideológica e a formação discursiva. Por meio delas, pode-se examinar quais são os
elementos que transpassam a produção de sentidos nos discursos selecionados e que concebem
a significação do que foi e do que é ser negro na sociedade brasileira.
Pêcheux (1993), ao formular a sua teoria do discurso, determinou quais seriam os
componentes básicos essenciais das condições de produção: aquilo sobre o que o discurso fala
e o lugar de onde se fala. Os lugares no discurso, nomeados como A e B, não retratam espaços
físicos, mas lugares na estrutura social, definidos pelo contexto, referente ao aspecto
socioeconômico no qual o sujeito está inserido e pela posição relativa à postura ideológica
deste ante as diferentes formações ideológicas em uma sociedade. Essas representações são
imaginárias e dizem respeito à imagem que os protagonistas do discurso fazem de si mesmos
e de seus respectivos lugares. Dessa forma, um protagonista do discurso pode ter várias
posições que são ativadas em função do processo discursivo em que ele pensa estar se
colocando.
Para entender quais sentidos permeiam a identidade negra no discurso presente na
canção “Mandume” é necessário analisar qual é o lugar social que esses rappers ocupam, que
está relacionado tanto aos aspectos socioeconômicos quanto às suas posições ideológicas
perante às questões étnico-raciais. A partir desses dois lugares, será possível verificar como
eles se veem e como se representam no discurso e, também, como enxergam o outro a qual o
discurso é direcionado.
Pêcheux resume as formações imaginárias e suas implicações para o discurso da
seguinte forma: a imagem do lugar de A para o sujeito colocado em A pressupõe a questão,
“quem sou eu para lhe falar assim?”; a imagem do lugar de B, para o sujeito colocado em A,
implica “quem é ele para que eu lhe fale assim?”; a imagem do lugar de B para o sujeito
colocado em B traz a questão, “quem sou eu para que ele me fale assim?”; e, por fim, a imagem
do lugar de A para o sujeito colocado em B sugere “quem é ele para que me fale assim?” (1993,
p. 83-84). As formações imaginárias permitem identificar no discurso a imagem, do negro, do
pobre, do rico, etc., pois elas projetam as relações existentes entre as situações e as posições
ocupadas pelos protagonistas em uma dada formação social.
Os sentidos construídos em “Mandume” são o resultado do entrecruzamento entre as
situações e as posições dos sujeitos; e a materialização das ideias que definam o que é ser negro.
Para além da explicação de quem é o sujeito do discurso, de que lugar ele fala e para quem,
faz-se necessário definir o objeto do discurso que, no presente caso, são os mecanismos de
funcionamento das relações étnico-raciais no Brasil. Porém, a compreensão dos sentidos
atribuídos à identidade negra só será viável quando analisados no contexto sócio histórico que
foram construídos e no contexto sócio histórico que circulam.
Na visão pecheutiana, um discurso sempre é atravessado por discursos pré-existentes,
que são frutos de condições de produção diferentes que envolvem posições distintas na
formação social. No discurso selecionado para análise a construção dos sentidos da identidade
negra pelos rappers são transpassados por outros discursos que derivam de condições de
produção distintas. Se o sujeito for negro seu discurso produzirá um sentido, se o sujeito for
negro e idoso o sentido discursivo será outro, se o sujeito for negro, periférico e do gênero
feminino a ativação dos sentidos será diferente. Portanto, para esse estudo tornou-se
significativo analisar os sentidos de produção do discurso juntamente aos contextos históricos,
sociais e identitários que definiram e definem a representação negra no Brasil.
Outro mecanismo da produção de sentidos da identidade negra são os lugares que os
sujeitos atribuem para si e para os outros, isso resultará na antecipação da imagem do
interlocutor. Para Pêcheux (1993, p. 85), “a antecipação de B por A depende da ‘distância’ que
A supõe entre A e B”. Seguindo esse pensamento, os rappers que serão analisados produziram
relações de sentido para a negritude considerando a distância existente entre eles e os que não
fazem parte dessa comunidade.
As condições de produção não apresentam elementos em uma relação horizontal, pelo
contrário, um elemento prevalece sobre o outro em uma relação de dominância. No caso da
análise apresentada aqui, o elemento dominante das condições de produção é aquele que os
rappers negros fazem do lugar de onde falam: o da luta contra o racismo, valorização dos traços
simbólicos e físicos característicos do negro, defesa pelos direitos humanos e sociais desse
grupo. O elemento que sofre dominância, nesse caso, é o lugar do outro – o responsável pelas
limitações da inserção social plena do negro no Brasil.
Um aspecto fundamental da teoria do discurso pecheutiana é compreender como são
formadas as ideologias que interferem no discurso do sujeito. No seu texto, de 1975, em
parceria com Fuchs “A propósito da Análise Automática do Discurso: atualização e
perspectivas” é possível perceber a contribuição das teorias de Althusser sobre os aparelhos
ideológicos do estado, que o próprio autor define como realidades que se apresentam ao
observador imediato sob a forma de instituições especializadas (ALTHUSSER, 1974). Essa
teoria foi essencial para a definição de Pêcheux e Fuchs das formações ideológicas.
Uma formação ideológica deve ser entendida como um conjunto de representações e
ideias que revelam a compreensão de mundo que determinada classe social tem. As ideias não
se formam fora do quadro da linguagem verbal ou não-verbal, a visão de mundo não existe
desvinculada da linguagem. Dessa forma, cada formação ideológica corresponde a uma
formação discursiva, que pode ser interpretada como o conjunto de temas e de figuras que
materializa dada concepção de mundo. As formações discursivas são ensinadas aos membros
de uma sociedade ao longo do processo de aprendizagem linguística, após assimilada é daí que
o homem constrói seus discursos. O discurso, de fato, não é o lugar de criação e sim de
reprodução. Uma formação ideológica impõe o que pensar, uma formação discursiva determina
o que dizer (FIORIN, 2007). Para Pêcheux (1993), a formação discursiva é aquilo que em uma
formação ideológica, a partir de uma específica conjuntura social, determina o que deve e não
deve ser dito.
A relação entre as formações ideológicas e as formações discursivas que se expressa
por meios de elementos ideológicos constituiu nos estudos da AD pecheutiana o chamado
“esquecimento nº 1”, que está associado à prática subjetiva da linguagem, que está ligada ao
processo de produção de sentido pelo sujeito do discurso, para quem a chamada matriz do
sentido está formada por uma família de sequências parafrásticas. O sujeito enunciador do
discurso tem a ilusão de que é a origem de toda a manifestação discursiva e de que os sentidos
produzidos são originários em si, mas não percebe que sua posição ideológica é constituída
pelas formações discursivas que advém de formações ideológicas (PÊCHEUX; FUCHS, 1993).
Sobrevém daqui que não é possível considerar o que é dito pelos sujeitos discursivos de
“Mandume” como isolado do que os leva a se constituírem como sujeitos. Os sentidos devem
ser entendidos como resultado da correlação entre o que é dito, do ponto de vista linguístico, e
o contexto histórico-social em que se diz. Sabendo disso, entende-se que é possível mudar o
sentido dos discursos dependendo da posição do sujeito que enuncia. Uma mesma frase pode
ter sentidos distintos dependendo da formação discursiva em que ela é produzida. É importante
salientar que em uma sociedade haverá tantas formações discursivas quantas forem as
formações ideológicas.
Outro fator responsável pela mudança de sentidos está nas relações de força em uma
formação social. A palavra rap, por exemplo, terá sentidos atribuídos a ela dependendo da
formação discursiva utilizada. Para as pessoas que integram ou apreciam o hip hop, ela
significará a música que representa o movimento, forma de manifesto político, objeto artístico,
enquanto para aqueles que compactuam com o preconceito em relação ao gênero musical ela
carregará sentidos socialmente estigmatizados como música que faz apologia a drogas e
violência, música de quem não sabe falar, música de marginal. Esses sentidos espelham as
formações ideológicas, que se materializam pelas formações discursivas e que coexistem e
disputam lugar na sociedade, baseadas nas relações de força que permeiam a luta de classes.
Deve-se lembrar que assim como a ideologia dominante é a da classe dominante, o
discurso dominante também será o dela. Assim, haverá um discurso que terá maior força e
espaço de circulação em detrimento a outros discursos, aquele que predominar vai influenciar
a maneira como os sujeitos dominados por essa ideologia se colocam. O sentido produzido na
formação ideológica dominante vai atravessar também os discursos produzidos na formação
ideológica de resistência. A relação entre formação ideológica dominante e dominada não é de
exterioridade, pois a formação ideológica dominante não só vai permear o discurso da formação
dominada, mas também a sua própria organização (GREGOLIN, 2006). Os discursos
analisados nesse artigo foram produzidos por rappers negros vítimas do racismo dominante,
fato que automaticamente os coloca em uma posição social inferior indiferente das suas
condições econômicas, sendo assim eles serão considerados como discursos de resistência que
lutam contra a ideologia racista instaurada na sociedade brasileira.
De acordo com Pêcheux e Fuchs (1993), há necessidade de se olhar para o não-dito
também. Ao enunciar um discurso, o sujeito carrega uma relação do que foi dito e do que não
foi dito, elucidando assim tudo que seria possível dizer e tudo que se opõe ao que foi dito. Esse
processo de ocultamento parcial, define o chamado “esquecimento nº 2”, que se realiza nos
processos de enunciação e constitui o mecanismo por meio do qual o sujeito “escolhe”
enunciados ou sequências por cima de outros que poderiam reformulá-lo na formação
discursiva em que o discurso é produzido (PÊCHEUX, 1997). Significa que para entender os
sentidos construídos sobre a identidade negra nos discursos escolhidos é necessário levar em
consideração, o que está sendo dito de fato e o que seria possível ser dito.
O esquecimento nº 1 é inconsciente, pois o sujeito pressupõe que a origem dos sentidos
está nele próprio. Em contrapartida, o esquecimento nº 2 é consciente, uma vez que o sujeito
pode ativá-lo para fazer correções ou reformulações do seu discurso. Os esquecimentos, ainda
que diferentes, estabelecem entre si uma relação de dominância mútua. Há de um lado o não-
dito que é um processo anterior ao dito, de outro lado há o conjunto parafrástico de discursos
pré-existentes que são acionados na enunciação. Para Pêcheux (1997), essa dinâmica é
controlada pelo efeito de assujeitamento, que pode ser definido como a falta de liberdade do
sujeito, e estaria intrinsicamente ligado a construção dos sentidos. Esse paradoxo cria o
chamado efeito de pré-construído, uma modalidade discursiva contraditória na qual o indivíduo
é interpelado em sujeito, sendo que ele sempre já é sujeito.
O pré-construído contempla duas referências mútuas: o que pode ser entendido por
qualquer pessoa em uma situação específica e os universais – conjunto de coisas que todos
sabem. Para Pêcheux (1997), o pré-construído é a sustentação do discurso, um elemento do
interdiscurso5, que determina o sujeito e dissimula o seu assujeitamento, como se tudo que ele
dissesse fosse livre e não pré-condicionado. Os elementos do interdiscurso servem de base
também para a identificação do sujeito com a formação discursiva em que se constitui como
tal.
A relação entre o pré-construído e a articulação no interdiscurso influencia a maneira
como o sujeito discursivo expressa o desdobramento entre sujeito da enunciação e sujeito

5
O interdiscurso funciona como articulação, relacionando e atravessando os elementos discursivos fornecidos
pelo pré-construído como matéria prima, a partir da qual o sujeito se constitui como falante, no contexto da
formação discursiva em que se dá o processo de assujeitamento (PÊCHEUX, 1997).
universal. Há duas formas possíveis para isso: a superposição dos dois sujeitos, fenômeno no
qual o sujeito da enunciação e o sujeito universal parecem o mesmo, ou seu afastamento,
fenômeno em que o sujeito da enunciação se afasta do sujeito universal mostrando
discordância. Para o autor (1997, p. 215), o afastamento entre sujeito da enunciação e sujeito
universal produz “as formas filosóficas e políticas do discurso-contra”. Definição importante
para a atual pesquisa, pois na sociedade brasileira em que se produzem os discursos analisados
o que é dado como universal é aquilo pautado pela formação ideológica racista e dominante. O
que os rappers colocam no discurso de “Mandume” sobre a identidade negra contesta essa
universalidade.
Considerando-se os traços que definem o pré-construído para Pêcheux, a análise
proposta neste trabalho deverá levar em conta aqueles elementos construídos com anterioridade
e exterioridade sobre a identidade negra, que são resgatados nos discursos dos rappers do ponto
de vista dos sujeitos.

O HIP HOP É A REVOLUÇÃO QUE BERRA6


“Cantar rap nunca foi pra homem fraco.”
Criolo

“Cura baixa escolaridade com auto de resistência”


Emicida

Os primeiros elementos do hip hop a chegarem ao Brasil, na década de 1980, foram o


breakdance e o grafite, que se transformaram em forma de expressão dos jovens, na sua maioria
negros, que moravam nas periferias de São Paulo e Rio de Janeiro. A proposta do pesquisador
Felix (2005) é que há uma aproximação no Brasil entre o hip hop e o movimento negro, desde
a Frente Negra Brasileira até organizações mais recentes, destacando que um dos vínculos mais
importantes historicamente para a ascensão exponencial do movimento foram os bailes black,
cujo objetivo era a promoção da cultura negra, a partir de sua música.
O berço do hip hop no Brasil é a cidade de São Paulo e, nela, a rua Vinte e Quatro de
Maio, em cujas galerias se concentravam os adeptos do movimento. Nesse contexto, alguns b-
boys7, que faziam “rachas” de dança, começaram a escrever letras de rap, fato que influenciou
o desenvolvimento do gênero, primeiro nos bailes black e depois nas ruas.

6 Excerto do single “Brasil de quem?” (2018) de MC Sid.


7
Breakers boys, da língua inglesa, dançarinos de breakdance.
A etimologia mais aceita da palavra rap advém da sigla rhythm and poetry8, associada
ao nascimento do gênero no Bronx, Nova York, no início dos anos 1970. Todavia, para alguns
teóricos o rap nasceu nas savanas africanas, nas narrativas dos griots9. Críticos e rappers
brasileiros sugerem que o estilo é uma variante do repente e da embolada nordestina. Há,
também, defensores que sugerem que a definição da sigla rap seja “Ritmo, Amor e Poesia”.
De acordo com Teperman (2015) “[...] essas são interpretações, e defender uma delas é uma
espécie de alinhamento ideológico, que terá impacto no modo como a música se situará no
mundo social”. Independente da posição que se escolha tomar, todas as definições atribuídas
ao estilo musical remetem a poesia, situando essa manifestação nas esferas da arte e do
discurso.
No começo, a maioria dos grupos não assumiu uma postura política crítica explícita,
uma vez que seguia o modelo do que era feito nos Estados Unidos, as letras tendiam a narrar o
cotidiano de forma lúdica. A divulgação e amadurecimento do rap e do hip hop brasileiros,
deu-se com a criação de Posses – coletivos que reuniam MCs, DJs, grafiteiros ou simplesmente
pessoas interessadas em rap e hip hop para ações como shows, festas, campanhas de
solidariedade, oficinas sobre os elementos do hip hop, discussões e debates (TEPERMAN,
2015, p. 32).
Uma vez que as opções estéticas estão invariavelmente atravessadas por componentes
ideológicos, a busca por uma identidade nacional no rap, em sua forma e conteúdo, procurou
adaptar-se à realidade cultural brasileira, incorporando à sua produção sons do samba, baião,
embolada, funk e outros gêneros musicais produzidos pelos grupos negros, seja na batida
(como base para os scratching ou nos samplers), seja nas letras com a presença de elementos
da cultura negra. Ao validar o conhecimento como um dos cinco elementos fundantes do hip
hop, transferiu-se para a música a função de instrumento de transformação, nesse sentido o rap
não é um gênero musical como outros, não podendo, por definição, ser compreendido só por
seus elementos internos. Como toda produção cultural, ele carrega ambiguidades e amplifica
vozes dissonantes, talvez a particularidade desse gênero seja reivindicar de modo explícito o
fato de que está no mundo e se coloca como porta-voz das questões referentes a ele, sobretudo

8
Da língua inglesa, significa ritmo e poesia.
9
Relativo a pessoa que pertence a uma casta profissional de depositários da tradição oral africana, exercendo
funções de poeta, cantor, contador de histórias e músico, a quem são frequentemente atribuídos poderes
sobrenaturais.
aquelas que denunciam as injustiças sociais. O rap extraí sua essência da gramática da vida
(CAMARGOS, 2015).
Fonseca (2011), divide o rap brasileiro em três etapas, significativas por sua relação
com a identidade negra como objeto do discurso do gênero. Na primeira fase, na década de
1980, houve uma forte autoafirmação da identidade negra e da produção cultural urbana ligada
à juventude de periferia. O rap dialogava com o funk, o soul e o samba-rock. Na segunda fase,
que começou em 1988, as relações étnico-raciais se tornam objeto do discurso a partir da
denúncia dos problemas sociais que afetavam os moradores das periferias, dentre os quais se
sobressaíam o racismo e a violência urbana. Por fim, na terceira etapa, que se iniciou no ano
2000 e se desenvolveu em Niterói, Rio de Janeiro, volta o diálogo do rap com outros ritmos de
origem negra, como o samba, o reggae e o funk carioca. Embora as três etapas estejam
cronologicamente marcadas na análise do autor, é necessário destacar que a segunda e a terceira
coexistem ainda hoje no rap brasileiro, no qual se percebe tanto uma forte crítica social nos
discursos quanto uma mistura com os ritmos brasileiros e estrangeiros que dialogam com a
tradição negra. O diálogo do rap com ritmos brasileiros da música popular demonstra a
adaptação do gênero tanto do ponto de vista temático quanto formal.
A partir dos anos 1990, a excelência da produção musical e poética do grupo Racionais
MC’s, aliada ao rigoroso discurso de classe e raça e à recusa renitente a deixar-se assimilar
pelos esquemas comerciais do mercado da música, configurou o forte paradigma político que
passou a nortear a produção, a recepção e a crítica do rap no Brasil.
Nos anos 2000, a democratização do acesso à internet banda larga e à tecnologia em
geral estimulou a produção e a circulação do rap, revelando a pluralidade do gênero, com vários
focos de produção espalhados pelo território nacional. A capacidade de mobilização do gênero
passou a interessar a grupos que, até então, haviam tido acesso reduzido a ele. Mais e mais
“minorias” além dos negros, como mulheres, indígenas e homossexuais vêm encontrando
espaço de expressão como rappers, inserindo novas reivindicações na pauta e propondo novas
elaborações estéticas.
Na atualidade, o rap se fortaleceu como gênero musical de mercado – o que levanta
problematizações da sua eficiência enquanto fenômeno de classe, contudo a ligação do rap
com a identidade negra continua estreita. Muitas das principais figuras são militantes ativos do
movimento negro brasileiro e colocam nos seus discursos públicos suas principais
reivindicações, como a reparação, a resistência, a representatividade dos negros na mídia e na
vida política do país e o fim da violência policial nas comunidades mais carentes, em que a Commented [MdLR3]: Esta seção está muito boa,
contudo ficou longa para um artigo, será necessário
presença negra é majoritária. reduzir;
FAVELA AINDA É SENZALA, JÃO10
“O rap fala sobre o que memo?
Cês tão temendo, coé menó, tamo só começando”

Miatã

O rap deveria ser pensado, antes de tudo, como um instrumento de intervenção na


realidade. Ele se configurou como uma estética do problema, em que se narram episódios de
violência, de consumo de drogas lícitas e ilícitas e da dinâmica do seu comércio, das péssimas
condições de vida nos bairros periféricos e pobres contrastados a realidade dos bairros
privilegiados, das condições de miséria e abandono do acesso aos serviços públicos e as
situações de marginalização. Dessa maneira, o rap pode ser entendido como canção da
reflexão, da luta e da tomada de consciência das minorias.
A periferia é extremamente importante para o rap nacional, nela se constitui o ponto de
partida para a produção do discurso presentes no rap e, também, se constitui como cenário
onde acontecem os fatos que serão representados através das letras. O rap, irá oferecer à
juventude excluída uma forma de expressão que, em primeira pessoa, contará como é a vida de
quem se encontra nas margens da sociedade, onde a violência, o desrespeito aos direitos dos
cidadãos, a opressão, o racismo e a falta de perspectivas presentes no cotidiano serão temas
preferenciais desse estilo musical. Aborda-se, também, temas como a exclusão que os
moradores da periferia sofrem e que condiciona o modo como encaram a vida e se relacionam
entre si e também com as pessoas externas a esse espaço (GUIMARÃES, 2007).
Os efeitos de sentidos negativos atribuídos à periferia são automaticamente transferidos
para os seus habitantes e suas características socioculturais. A exemplo disso, utilizaremos uma
polêmica ocorrida nesse ano envolvendo o grupo de rap Racionais MC’s. Antes de nos atermos
a esse fato, vale reforçar que esses rappers estabelecem forte relação com a periferia e apesar
da fama e dinheiro, é o lugar em que eles ainda estabelecem moradia. Para a pesquisadora Kehl
(ano, p. 97) ao descrever a periferia de forma positiva os Racionais MC’s puderam “simbolizar
a experiência de desamparo destes milhões de periféricos urbanos e forçar a barra para que a
cara dos jovens da periferia fosse definitivamente incluída no retrato do país”.
Em São Paulo, no mês de maio de 2018, teve visibilidade um acontecimento que causou
muita controvérsia envolvendo a Unicamp e um álbum do grupo de rap Racionais MC’s. A

Excerto da faixa “Boa Esperança” do álbum “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” (2015) de
10

Emicida.
universidade anunciou, em seu site e redes sociais, a escolha do disco “Sobrevivendo ao
Inferno” (1997) como leitura obrigatória para o vestibular de 2020. Fato que deu início a uma
grande discussão do público comum que se manifestou, majoritariamente, de forma negativa
por meio de comentários em meios de comunicação digital e redes sociais. Foram selecionados
alguns excertos de comentários para ilustrar a recepção e o posicionamento do público diante
da escolha da universidade “(...) destruição da cultura e dos valores éticos e morais da
sociedade, são justamente esses os objetivos dos que professam a ideologia marxista,
dominante no cenário acadêmico nacional.”, “Se tem o dedo da esquerda na destruição do
pensamento acadêmico brasileiro, afirmo que tem o corpo inteiro.”, “A Comvest parece estar
fazendo proselitismo. Mais uma vez.”11; “E agora a UNICAMP vai obrigar candidatos brancos
a engolirem esta afronta?”, “Meus filhos estudarão em faculdades particulares, não posso
deixar essa doutrinação destruir a capacidade cognitiva deles.”12; “APOLOGIA AO CRIME,
nada mais que isso.”, “MARGINAIS MC”, “Pregam ideias de esquerda. Comunistas
disfarçados.”, “(...) não falam um português correto.”, “Chega dessa história de ‘igualdade’ a
todo custo. Igualdade é levantar mais cedo...”, “Véi, mano, muié, normalmente não é coisa
boa...”13, “O que se esperar da UNICOTAS?”14.
O coordenador executivo da comissão organizadora do exame (Comvest), José Alves
de Freitas Neto, em entrevista para o site G1, defendeu

É a primeira vez que um disco entra na lista de obras literárias. Não devemos
estranhar, afinal, as letras trazem uma visão da periferia e conjunto de inferências que
faz parte da produção textual [...] nas escolas é bastante comum o trabalho com
músicas, assim como o reconhecimento de seu valor literário e de crítica da realidade
social. Na lista de obras, a Unicamp não cobra apenas os chamados 'clássicos
tradicionais'. O que ela pretende no vestibular é que os alunos tenham não só os
saberes de exatas, humanas e ciências da natureza, mas a literatura é um caminho para
ter leitura do mundo.

Apesar do álbum ter sido selecionado por uma comissão de professores, a presença do
rap em uma universidade pública – que teoricamente deveria atender as classes populares – foi
lida como uma ameaça, uma vez que seus protagonistas não apenas são moradores, mas
representantes da periferia. A repercussão e inconformismo que envolveram a escolha de obras
literárias sugerem que o que estava em julgamento era a imagem, relacionada a marginalidade

11
Disponível em https://comentarios1.folha.uol.com.br/comentarios/6077743?skin=folhaonline.
12
Disponível em https://educacao.uol.com.br/noticias/agencia-estado/2018/05/23/unicamp-coloca-album-dos-
racionais-na-lista-de-obras-obrigatorias.htm.
13 Disponível em https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/unicamp-2020-album-dos-racionais-mcs-

aproxima-estudante-de-leitura-do-mundo-diz-coordenador-da-comvest.ghtml.
14
Disponível em https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,unicamp-coloca-album-dos-racionais-na-lista-
de-obras-obrigatorias,70002321441.
e ausência de educação formal, que a formação ideológica dominante constrói das pessoas de
periferia, em sua maioria negras. Críticas como as elaboradas pelo público e as respostas dadas
pelo coordenador da Unicemp são sinais da luta que é travada no campo da produção simbólica
entre os setores dominantes e os populares. A luta se evidencia, sobretudo, quando há a
oportunidade de as classes dominadas ocuparem novos espaços, que lhes trarão além de
recursos que poderão proporcionar a continuidade de suas práticas, a melhoria nas condições
de produção cultural e a participação na divisão de riquezas da sociedade. Commented [MdLR4]: Carol, o exemplo é
muitointeressante, mas também está muito longo.
Outras questões que fazem parte do cotidiano da periferia incluem o tráfico e consumo Recomendo suprimir ou reduzir.

de drogas, a criminalidade e as relações étnico-raciais a violência em todos os seus sentidos


(física, simbólica, carcerária, doméstica, policial, etc.), essas questões são representadas nas
letras de rap.
Segundo Babi (2017, pg. 50) “uma das faces da violência mais presentes no discurso
do rap brasileiro é a exercida pela Polícia Militar contra jovens, especialmente os negros”. O
discurso de combate às drogas tem servido, por muitas vezes, para justificar o assassinato de
jovens negros e manter o pré-construído de que negro morador de periferia é perigoso e
envolvido com o crime. É possível validar esses sentidos atribuídos ao negro, por meio de outro
incidente ocorrido no dia 13 de junho desse ano em que o ator negro Leno Sacramento foi
baleado pela Polícia Civil da Bahia sob a justificativa de acharem que ele era um bandido. Leno
levou um tiro na perna e teve que gritar que não era bandido, ao perceberem o desastre que
cometeram os próprios policiais deram socorro ao ator. Dois dias depois, o ator utilizou as
redes sociais para o seguinte desabafo

Meus, meus!… Leno Sacramento presente, vivo… Eu já estou bem fisicamente, mas
não psicologicamente, agradeço pela força, carinho, energia, enfim… Peço desculpas
hoje por estar muito emocionado e não falar tudo que preciso falar… Mas não se
preocupem, não me calarei, não nos calaremos, ah!, a bala não foi de raspão e quando
eles pediram para parar, paramos.

Leno é membro do Bando de Teatro Olodum, um dos grupos teatrais mais importantes
do Brasil e que revelou nomes como Lázaro Ramos, além de ter inspirado a série e filme “Ó
Paí Ó”, nome de uma das peças de sucesso da companhia teatral baiana. O Bando de Teatro
Olodum publicou uma nota de repúdio à ação da Polícia Civil na Bahia contra seu ator, na qual
disse

Quantos jovens negros são vitimados diariamente desta mesma forma? Precisamos
falar sobre isso. E a responsabilidade é de todos os órgãos que trabalham com
Segurança Pública […]. Isso não pode ficar impune, e a responsabilidade é de todos. Commented [MdLR5]: Retirar esse exemplo.
De acordo com o Mapa da Violência 2017 (FLACSO Brasil, 2017) de cada 100 pessoas
que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras, ou seja, a chance de um negro sofrer um
assassinato é 23,5% maiores que de alguém outras raças. Cerqueira e Coelho (2017) mostraram
que, do ponto de vista de quem sofre a violência letal, a cidade do Rio de Janeiro é partida não
apenas na dimensão econômica entre pobres e ricos, ou na dimensão geográfica, mas também
pela cor da pele. A conclusão dessa pesquisa foi que os dados mais recentes da violência
apontam para

(...) um quadro que não é novidade, mas que merece ser enfatizado: apesar do avanço
em indicadores socioeconômicos e da melhoria das condições de vida da população
entre 2005 e 2015, continuamos uma nação extremamente desigual, que não consegue
garantir a vida para parcelas significativas da população, em especial à população
negra (FLACSO Brasil, 2017, p. 33, grifo meu).

Esses números têm relação direta com a ideologia dominante racista no Brasil, que
ainda faz circular sentidos da identidade negra ligados à criminalidade. A música “Capítulo 4
Versículo 3” dos Racionais MC’s, que faz parte do álbum polêmico escolhido pela Unicamp,
já denunciava em 1997 dados não tão diferentes que os da atualidade

60 % dos jovens de periferia


sem antecedentes criminais
já sofreram violência policial
a cada 4 pessoas mortas pela polícia,
3 são negras
nas universidades brasileiras
apenas 2% dos alunos são negros
a cada 4 horas, um jovem negro
morre violentamente em São Paulo
aqui quem fala é primo preto
mais um sobrevivente

Outro objeto do discurso do rap brasileiro é o tráfico e o consumo de drogas que são
comuns nas periferias e altamente criticados pelos integrantes de grupos sociais não-
periféricos. Muito se fala em meritocracia15, porém em um país onde as políticas públicas não
funcionam de forma efetiva, onde a educação é precária, onde a desigualdade social é gritante,
onde as palavras fome e miséria fazem sentido para muitas pessoas; resta aos cidadãos
periféricos trabalharem para o tráfico. Segundo o antropólogo Luke Dowdney (2003),
pesquisador do comércio de drogas no Rio de Janeiro, o tráfico dá aos jovens de periferia o que
a sociedade está negando a eles. O estudioso, ainda, afirma que o tráfico de drogas é apenas

15
Processo de alavancamento profissional e social consequente dos esforços e dedicações individuais de cada
pessoa, independente de sua classe social ou raça.
um dos sintomas de um problema muito maior: a exclusão social. Esses dados apontam que
MV Bill foi assertivo em seu verso “Sem educação não tem meritocracia16”.
O tráfico de drogas só existe uma vez que existe demanda de mercado. Relaciona-se
muito o papel de “usuário” aos moradores de periferia, porém os rappers atuais têm contestado
esse papel, dividindo a responsabilidade do consumo de ilícitos com os integrantes das classes
mais favorecidas da sociedade. Essa redistribuição do papel do usuário pode ser percebida em
trechos das letras de “Duas de cinco” e “Cóccix-ência” do rapper Criolo:

Falar pra um favelado


Que a vida não é dura
E achar que teu 12 de condomínio
Não carrega a mesma culpa
É salto alto, MD
Absolut, suco de fruta
Mas nem todo mundo é feliz
........................................................

O que não é seriado da Fox


É playboy se acabando no óxi Commented [MdLR6]: Retirar o exemplo. Muito longo.

A questão identidade negra é objeto do discurso frequente no rap. Um fato que contribui
para a alta produção de letras sobre o grupo negro é que a maioria dos rappers pertencem a
esse grupo. Em uma sociedade racista, falar do lugar de quem é negro (ou ocupar esse lugar de
fala) faz com que os discursos contidos nas letras de rap abordem temas como discriminação
racial. Por outro lado, é comum encontrar valorização da identidade negra nesses discursos,
“eu tenho orgulho da minha cor/do meu cabelo, do meu nariz/ sou assim, sou feliz” é assim
que o rapper Criolo valoriza os traços fenótipos dessa comunidade.
O discurso do rap brasileiro aborda, também, a temática do mito da democracia racial
(tema aprofundado na seção “Finge que segregação é ficção tipo fringe”) e os seus
desfavoráveis resultados para a população negra, uma vez que esse tipo de discurso camufla o
racismo no Brasil. A democracia racial é definida como “um sistema racial desprovido de
qualquer barreira legal ou institucional para a igualdade racial, e, em certa medida, um sistema
racial desprovido de qualquer manifestação de preconceito ou discriminação” (DOMINGUES,
2005, p. 116). Essa suposta democracia racial é contestada no rap brasileiro, que traz à tona os
conflitos históricos entre negros e brancos sob a ideologia racista dominante. No trecho da
música “Sub-raça” do grupo Câmbio Negro é possível perceber a denúncia ao racismo, como
também a valorização da identidade negra, citada a pouco:

16
Trecho do single “Trap de favela” (2018).
Agora irmãos vou falar a verdade
A crueldade que fazem com a gente
Só por nossa cor ser diferente
Somos constantemente assediados pelo racismo cruel
Bem pior que fel é o amargo de engolir um sapo
Só por ser preto isso é fato
O valor da própria cor
Não se aprende em faculdades ou colégios
E ser negro nunca foi um defeito
Será sempre um privilégio

As ações afirmativas17 trabalham em três frentes: com o objetivo de reverter a


representação negativa dos negros; para promover igualdade de oportunidades; e para combater
o preconceito e o racismo. (MINISTÉRIO DOS DIREITO HUMANOS, 2018) e são objetos
repetidos no discurso do rap. Os discursos da meritocracia e da democracia racial, produzidos
na formação ideológica dominante, perdem força a partir delas.

FINGE QUE SEGREGAÇÃO É FICÇÃO TIPO FRINGE18


A carne mais barata do mercado é a carne negra
Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
Que vai de graça pro subemprego.
Elza Soares

Libertares-te é uma coisa, reivindicar a posse desse ser


livre é outra.

Toni Morrison

No período Brasil Colônia, os escravos trabalharam em condições sub-humanas nos


engenhos, nas minas, nos campos de algodão, na agricultura, de forma geral. As mulheres
trabalharam nas plantações e nas casas dos senhores, onde realizavam trabalhos domésticos
como cozinheiras, faxineiras, mucamas ou amas de leite. Também foram transformadas em
objetos sexuais pelos senhores de engenho, engravidando em muitos casos e trazendo ao
mundo filhos mestiços e escravos (FERREIRA, 2002).
Em um país desconhecido e sob tratamento inimistoso, os escravos contavam com
poucas opções para fugir dos maus tratos. Alguns se suicidavam e outros fugiam das senzalas
para o mato, criando sociedades de ajuda mútua que seriam conhecidas como quilombos. O
mais importante dos quilombos foi o de Palmares, dada sua extensão e o tempo que resistiu aos

17
Ações afirmativas são políticas públicas feitas pelo governo ou pela iniciativa privada com o objetivo de corrigir
desigualdades raciais presentes na sociedade, acumuladas ao longo de anos.
18
Excerto da faixa “8” do álbum “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” (2015) de Emicida .
ataques dos brancos. Sua luta e resistência ocorreu entre os anos de 1630 e 1695, quando por
fim foi destruído. Ainda que eliminado, Palmares virou inspiração para os escravos, que
continuaram fugindo para o mato e formando quilombos até a abolição da escravatura.

•Tratado assinado entre Portugal e Inglaterra, restringia a zona de comércio de escravo apenas aos
1810 territórios sob o domínio da Coroa.

•Novo acordo é assinado permitindo que os ingleses abordassem em alto mar navios suspeitos de
1817 tráfico de escravos.

•É assinado acordo que considera o tráfico como pirataria. O Brasil se compromete a erradicar a
1826 prática no prazo de três anos.

•O Brasil proíbe oficialmente, em 7 de novembro, o tráfico de africanos e declara livres os indivíduos


1831 desembarcados no país a partir daquele momento, porém, a lei não se cumpre.

•A Inglaterra promulga uma lei que a autoriza a prender em alto mar qualquer navio suspeito de
1845 tráfico.

•O governo brasileiro cede às pressões inglesas e começa a atacar de fato o tráfico negreiro.
1850
•É implantada a Lei do Ventre Livre, que libertava os filhos de escravos e exigia que os senhores os
1871 sustentassem até os oito anos de idade, podendo usar seus serviços da forma mais conveniente.

•Surgem sociedades abolicionistas como a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, a Associação


1883 Central Emancipacionista e a Confederação Abolicionista.

•Decreto da Lei dos Sexagenários, que libertava todos os escravos a partir dos 60 anos de idade.
1885

•Assinatura da Lei Áurea, que põe fim à escravidão no Brasil.


1888

O negro brasileiro deixou de ser escravo e passou a ser um sujeito livre. Essa condição
poderia sugerir que a situação do negro mudaria radicalmente e que ele começaria a ter os
mesmos direitos que os outros cidadãos livres do Brasil. Segundo Moura (1988), um aspecto
fundamental que impediu a mobilidade social dos negros após a escravidão foi a aceitação das
doutrinas do racismo científico europeu pelos intelectuais brasileiros e por grande parte da elite
branca. Essas doutrinas, que afirmavam a inferioridade do negro de um ponto de vista
supostamente científico, propunham eliminá-lo da sociedade brasileira por meio da mistura
com a raça branca que, sendo considerada superior, absorveria a raça negra até apagá-la,
transformando o Brasil em um país de brancos.
Resultante da aceitação dessas doutrinas, estimula-se a entrada de brancos europeus,
portugueses, espanhóis, italianos, dentre outros, no país. Uma vez que circulava a crença que
o negro só trabalhava se fosse forçado, pois ele seria naturalmente preguiçoso; a mão-de-obra
do trabalhador branco era mais eficiente, pois vinha de uma sociedade culturalmente superior
à africana. Adveio da imigração europeia, outro problema para a inserção do negro livre na
sociedade: a ideologia de branqueamento o colocava nas margens do mercado de trabalho, pois
a preferência para a contratação de trabalhadores era favorável aos imigrantes europeus brancos
(MOURA, 1988).
Moura (1988, p. 72) explica a situação trabalhista do negro nessa conjuntura, “tudo
aquilo que representava trabalho qualificado, intelectual, ‘nobre’, era exercido pela minoria
branca, ao passo que todo subtrabalho, o trabalho não qualificado, braçal, ‘sujo’ e mal
remunerado era praticado pelos escravos, inicialmente, e pelos negros livres após a Abolição”.
Esses lugares naturalizados socialmente se estenderam até o início do século XX em que uma
nova ideologia surgiu no Brasil: a da democracia racial.
A publicação de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, em 1930, popularizou a
ideia de democracia racial. No livro, o autor negava a possibilidade de a população brasileira
conseguir embranquecer, uma vez que as características biológicas das raças que coexistiam
no país continuariam a manter a sociedade miscigenada. Na definição de Domingues (2005, p.
116), a democracia racial seria “um sistema racial desprovido de qualquer barreira legal ou
institucional para a igualdade racial, e, em certa medida, um sistema racial desprovido de
qualquer manifestação de preconceito ou discriminação”. Enquanto nos Estados Unidos se
disseminava o modelo segregacionista, no Brasil a tese de Freyre acabou sendo assumida como
parte do discurso oficial e disseminada como a imagem da sociedade brasileira perante o
mundo. Visto de forma desatenta, o Brasil parecia um lugar onde as relações entre negros e
brancos eram harmoniosas e onde haveria oportunidade para todos. O fato é que a democracia
racial não era democrática, as posições de negros e brancos continuavam as mesmas, a mudança
operou apenas em um sentido: os mecanismos que sustentavam o preconceito racial ficaram
escondidos atrás desse discurso.
Seguindo a lógica da democracia racial, a população negra havia reduzido a zero as
causas que restringiam seu acesso aos recursos na sociedade, já que o preconceito e a
discriminação haviam sido resolvidos. A responsabilidade de não conseguir se inserir com
sucesso na sociedade foi atribuída, a partir de então, ao sujeito negro. Considerava-se que a
preguiça, a ignorância, a estupidez e a incapacidade impediam os negros de aproveitarem as
oportunidades que a sociedade brasileira oferecia (ANDREWS, 1998). Para Domingues
(2005), a aceitação do conceito de democracia racial era proveitosa para a elite brasileira por
três motivos fundamentais: neutralizava qualquer possibilidade de luta ou vingança dos ex-
escravos contra os ex-senhores; tirava do governo a responsabilidade de criar políticas
compensatórias para beneficiar ex-escravos e seus descendentes; e, por fim, tirava dos ex-
senhores qualquer responsabilidade sobre seus antigos escravos.
Neste contexto, a situação do negro livre, como resultado da instauração da democracia
racial como ideologia da classe dominante, pouco melhorou com respeito ao período da
escravidão: mudaram as formas de discriminação e exclusão, mas não as suas causas nem os
seus efeitos. O maior ganho do sujeito negro após a abolição foi a liberdade. Então em 1931,
nasce um meio importante de luta da população negra: a Frente Negra Brasileira. Segundo
Coelho Júnior (2011), ela tinha um caráter claramente político e seu objetivo era mobilizar “os
homens de cor” a ocuparem postos de destaque na sociedade brasileira. A Frente Negra
divulgava suas ideias no jornal “A voz da raça” e investiu em saúde, cursos de alfabetização e
ferramentas legais para o desenvolvimento e a defesa da população negra. Dentre suas
principais conquistas, pode-se citar o acesso dos negros à Guarda Civil e a criação, em 1936,
do Congresso da Mocidade dos Homens de Cor, que significou a sua instauração como partido
político. A Frente Negra Brasileira foi extinta pela ditadura de Getúlio Vargas, em 1937, mas
deixou plantado boas sementes.
A desconstrução da democracia racial começou a acontecer na década de 1950, quando
a UNESCO formou equipes de pesquisa como parte de um projeto internacional que pretendia
combater o racismo no mundo. Essas pesquisas mostraram altos graus de desigualdade entre
as populações branca, mestiça e negra no país. Contudo, a ideologia da democracia racial só
foi entendida publicamente como falácia, a partir da pesquisa desenvolvida por Florestan
Fernandes, que tinha participado das pesquisas organizadas pela UNESCO, e por outros
sociólogos de São Paulo. Eles se propuseram a analisar as mudanças produzidas na sociedade
no período que seguiu a abolição da escravatura. Os resultados obtidos revelaram as profundas
diferenças que existiam entre negros e brancos no Brasil no que se refere a acesso a recursos
sociais, como a educação e a saúde, e a recursos materiais, como resultado da exclusão que os
negros sofriam no mercado de trabalho. Os estudos mostraram, também, que o racismo no país
operava de forma diferente que nos Estados Unidos: aqui ele era velado. (SANTOS, 2009).
Nas décadas de 1970 e 1980, as pesquisas desenvolvidas fundamentalmente por Carlos
Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, mostraram que as diferenças sociais não tinham
desaparecido e sim se acentuado. Por meio de censos, as pesquisas demonstraram que os afro-
brasileiros continuavam à margem do progresso capitalista. Ainda comprovaram que aqueles
negros ou mestiços que tiveram acesso à educação, qualificando-se como competentes para
inserção no mercado de trabalho, eram rejeitados quando concorriam com sujeitos brancos na
mesma área. O acesso à educação parece um problema menor comparado ao grande problema
que se estende até os dias de hoje: a ideologia racista considera os negros como inferiores. A
inferiorização não se prende apenas a educação e ao trabalho, ela se expressa em diversos
contextos da vida social. Os sentidos negativos relacionados à identidade negra, funcionam
como universais na sociedade brasileira e têm sido usados, no marco da formação ideológica
dominante, como justificativa para todas as desigualdades sociais vivenciadas pelos negros.
Nesse cenário, alguns negros validam os sentidos em torno da identidade negra que a
ideologia dominante faz circular, com o intuito de serem inseridos na sociedade. Parte da
população negra assume a ideologia de branqueamento como positiva, negando assim a sua
origem, a sua história e a sua identidade. Para Moura (1988, p.64), “eles desejam compensar-
se da discriminação social e racial de que são vítimas no processo de interação com as camadas
‘brancas’ dominantes”.
Os negros que não aderiram a ideologia do branqueamento, aderiram ao Movimento
Unificado Negro (MNU), fundado em 1978, teve como principal função a contribuição para a
discussão da questão racial não apenas do ponto de vista da cultura, mas também da perspectiva
sociopolítica, levando em conta a opressão e a exploração da classe trabalhadora pelo
capitalismo brasileiro. Esse fato o transformou no maior movimento negro antirracista depois
da abolição. O MNU combateu o racismo no âmbito jurídico, conseguindo a penalização do
racismo como crime sujeito a cárcere; político, sendo responsável pela instauração do dia 20
de novembro como “Dia da consciência negra”; e econômico, dando especial atenção à questão
do emprego e da igualdade salarial. Paralelamente, a partir dos anos 1990 o número de negros
universitários dedicados a ensino e pesquisa aumentou, produzindo importantes trabalhos e
reflexões sobre a realidade racial brasileira. Também aumentou o número de negros no
parlamento, fato que contribuiu para fortalecer a luta antirracista no âmbito político (COELHO
JÚNIOR, 2011).
Em 1995, no contexto da “Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela
Cidadania e a Vida”, o movimento negro entregou ao governo um programa que continha
várias propostas de medidas contra o racismo e a discriminação, incorporando a defesa de ações
afirmativas em prol da população negra às estratégias de luta do movimento. No final dos anos
1990, algumas ações afirmativas foram implementadas pelos movimentos sociais em parceria
com empresas privadas na área da educação. Elas consistiam em aulas de complementação,
voltadas para atividades preparatórias para o vestibular e para o período em que o estudante
permanecesse na faculdade, tentando compensar assim a diferença educacional do aluno negro
em relação a seus colegas e concorrentes brancos; financiamento de custos, por meio de bolsas
de estudo, moradia e alimentação; mudança no sistema de ingresso às universidades pelo
sistema de cotas e taxas proporcionais. Com as ações afirmativas, a população negra diz que é
dever do Estado apagar a diferença histórica existente no país, que a situa em posição de
desvantagem com respeito à branca, por terem pontos de partida historicamente diferentes
(MOEHLECKE, 2002). Essas ações contribuíram, especialmente com os sistemas de cotas
para negros em diversas instituições, para tentar equilibrar a situação social do negro com a do
branco e em 2001, o sistema de cotas foi aprovado pelo Poder Público.
Ainda que as ações afirmativas tenham obtido resultados positivos, concorda-se com o
ponto de vista de Munanga (2004, p. 53), que elas “não resolvem o problema do negro. Para
isso precisamos formular políticas específicas contra as desigualdades”. Essa seria a resposta
para a meritocracia, que coloca a responsabilidade de ascensão social nas mãos dos cidadãos.
Para finalizar a explanação sobre a história do negro no Brasil, destaca-se um sujeito
que sofre dupla discriminação: a mulher negra. Unindo o fato do gênero e da raça, a forma
como as mulheres negras conseguiram se inserir na sociedade no período pós-abolição foi
diferente da forma como os homens negros assumiram sua condição de sujeitos livres. Se no
período da escravidão o papel fundamental da mulher negra esteve ligado aos afazeres
domésticos e à questão sexual, depois de sua libertação, uma das primeiras soluções para ela
se inserir no mercado de trabalho foi justamente a realização de atividades domésticas.
Dessa forma, manteve-se um dos papéis que a etapa da escravidão tinha atribuído para
a mulher negra: o da organização e cuidado da casa da família. Historicamente as mulheres
foram ligadas às habilidades para o trabalho doméstico, porém, percebe-se que, embora
mulheres brancas e negras fossem oprimidas pelo machismo, existia outra opressão que
diferenciava e estabelecia hierarquias no papel de cada uma dentro do lar: o racismo. Para a
mulher negra o trabalho pesado, para a mulher branca o gerenciamento da casa e atribuição de
trabalho para os empregados. De certa forma, essa situação permanece até hoje. Segundo
Santos (2009, p. 77), “há poucas mulheres negras trabalhando como executivas, médicas,
enfermeiras, juízas, dentre outras profissões de destaque; o que se verifica ainda é a grande
maioria realizando trabalhos domésticos e recebendo baixos salários.”
A sensualização da imagem, foi outra herança que a escravidão deixou para a mulher
negra. No período da escravatura, a mulher negra foi transformada em objeto sexual, fato que
incidiu na construção de mitos em que ela passou a ser representada como insaciável, sensual
e dona de uma sexualidade diferente da atribuída à mulher branca.
Ainda como consequência da dupla opressão sofrida pela mulher, segundo Santos
(2009), ela se encontra no mais baixo patamar da pirâmide social. E no que diz respeito à
escolaridade, uma pesquisa do IBGE divulgada em março desse ano, revelou que apenas 10%
das mulheres negras concluem o ensino superior, devido ao fato de terem jornada de trabalho
maior que a dos homens – três horas a mais em média, incluindo os afazeres domésticos e
educação dos filhos – e o outro fator é o está relacionado a raça.
Todavia, a mulher negra também tem desenvolvido a sua própria estratégia de luta pelos
seus direitos, já que as políticas das ações afirmativas têm caráter genérico não contemplando
a discriminação de gênero que ela sofre. Desde os anos 1980, o feminismo negro tem crescido
cada vez mais no país, produzindo discursos em que os sentidos atribuídos para a identidade
negra se entrecruzam com a condição de mulher. Essa vertente do feminismo ocupa hoje um
lugar importante nas periferias, em que as mulheres negras têm alto índice de presença, e tem
se transformado em objeto do discurso das mulheres no rap.
No Brasil, a imagem que se constrói do negro na formação ideológica dominante se
relaciona com a criminalidade, o processo de escravidão, a inferiorização das manifestações
culturais, assim como com a hipersexualização do corpo negro feminino. A história das
relações étnico-raciais nacionais mostra forças em conflito, em que os valores dominantes
impostos e representados majoritariamente pela população branca se misturam com os valores
desvalorizados e dominados ligados à população negra e mestiça. Nesse contexto de
desigualdades e opressões percebem-se, por parte da população negra, duas formas de lidar
com o racismo: de um lado atitudes que demonstram a assimilação dos valores dominantes e,
de outro, mecanismos de resistência que tentam validar a identidade negra. São essas formas
de luta contra o preconceito, travadas pela população negra, que são importantes para o
desenvolvimento desta pesquisa, pois o rap constitui uma delas.

EU VISTO PRETO POR DENTRO E POR FORA19


“Quando se pega o mic
Tem que ter algo a dizer
O lugar de quem não pensa assim
É no karaokê”

Emicida

“Mandume”, objeto de análise dessa pesquisa, é a décima segunda faixa do álbum


“Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa”, disco do rapper Emicida, lançado em
2015. Para a construção dos versos de “Mandume”, Emicida convocou os rappers Drik
Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike e Raphão Alaafin para ajuda-lo a explorar a identidade
negra de vários aspectos. Todos os rappers mencionados são formadores de opinião, pois são

19
Excerto da faixa “Negro Drama” do álbum “Nada como um dia após o outro” (2002) de Racionais MC’s.
tomados como modelo pelos seguidores do gênero, e engajados na luta pelas desigualdades
sofridas pela comunidade negra. Esses rappers falam do lugar de quem é vítima de racismo.
Esses fatores são fundamentais para analisar e descrever os mecanismos envolvidos na
produção de sentidos para a identidade negra, pois caracterizam, em alguma medida, elementos
das condições de produção dos discursos.
Para analisar a maneira como esses sentidos se constroem no discurso dos rappers,
serão levados em conta os elementos que, de acordo com Pêcheux (1993), intervêm nas
condições de produção de um discurso: o lugar de onde os sujeitos falam, para quem e qual é
seu objeto. Examina-se também a forma como discursos anteriores, derivados de outras
condições de produção, atravessam o que é dito.
O discurso no rap selecionado se constrói a partir da contestação dos sentidos que a
formação ideológica racista faz circular sobre a identidade negra e que funcionam como pré-
construídos no Brasil. É um discurso de resposta a algo que está posto na sociedade e que faz
com que a condição dos negros seja diferente da dos sujeitos socialmente lidos como brancos.
Nessa réplica dos rappers, é possível identificar sentidos próprios para a identidade negra, que
constituem o objetivo central do presente trabalho.
Partindo da ideia pecheutiana (PÊCHEUX, 1997) de que não existe dominação sem
resistência, o discurso do rap será considerado como uma forma de resistência à dominação
exercida pela sociedade racista. Levando-se isso em conta, a análise será pautada nas respostas
que os rappers dão nos seus discursos para aqueles pré-construídos que circulam na sociedade
sobre o negro. Entende-se que os universais sobre a identidade negra foram construídos no
Brasil, em torno da história, da cultura, do comportamento e da inserção social desse grupo
étnico-racial negro. Soma-se, ainda, a manutenção da tese da democracia racial que contribui
para preservar uma estrutura social em que o preconceito contra negros é dominante.
A construção narrativa de “Mandume” em torno da identidade negra como resistência
não é retratada sob uma ótica de homogeneidade, mas perpassa recortes de gênero, classe,
sexualidade e religiosidade, construindo uma abordagem interseccional da violência de
representação. Ao considerar que os recortes de opressão e desigualdade se combinam, se
sobrepõem, complexificando as relações sociais, essa abordagem permite explorar as
especificidades geradas por essas sobreposições e, assim, melhor investigar a experiência social
desses sujeitos. Considerando esses recortes temáticos, optou-se por analisar as estrofes dos
rappers separadamente. A análise da relação desses discursos para formar um discurso maior
será analisada na parte final desse artigo. A letra na integra se encontra nos anexos (ANEXO
A) dessa pesquisa.
Importante, também, observar que o rap sendo baseado nas experiências dos rappers,
torna o sujeito e o sujeito discursivo praticamente indissociáveis, por tal motivo usam-se os
termos rapper, sujeito, sujeito discursivo, MC e o próprio nome do artista como formas
sinônimas.

Você é preta, é pobre, é feia. Você é mulher.20

Se na pirâmide social, a mulher negra ocupa a última posição, em “Mandume” ela é a


primeira a se expressar. O discurso de Drik Barbosa mobiliza sentidos atribuídos à identidade
da mulher negra, esses sentidos são acionados posicionamento feminista. A objetificação dos Commented [MdLR7]: Isso ficou estranho.

corpos femininos negros e o descaso diante desses mesmos corpos quando são vítimas de
violência, são outras críticas levantadas pela rapper.
No primeiro verso, é trazida a imagem de Tempestade, personagem de histórias em
quadrinhos do universo Marvel. Ela é uma das integrantes do X-Men, um grupo de heróis
mutantes que lutam pela paz e igualdade de direitos entre mutantes e humanos. A personagem
é uma heroína negra que descende de uma longa linhagem de sacerdotisas africanas, ela é capaz
de controlar o clima e a atmosfera e é considerada um dos mutantes mais poderosos do planeta.
É possível estabelecer uma relação da sua figura com a figura da orixá Iansã, que na mitologia
iorubá é a senhora dos ventos e das tempestades. Ao enunciar (“Sou Tempestade, mas entrei
na mente tipo Jean Grey”), o protagonista do discurso não apenas se define como uma mulher
forte, mas também como negra, acionando sentidos de orgulho e valorização do grupo étnico-
racial negro. Ao estabelecer relação com Jean Grey, personagem branca, também da saga X-
Men, cujo poderes são a telepatia e a telecinesia, expõe um discurso de resistência contra o
universal herdado do período pós-abolicionista de que “o negro é inferior”; uma vez que ela
afirma ser negra, mas que pode desenvolver habilidades atribuídas ao branco. Outro sentido,
mais explícito, é suscitado por meio de uma das posições ocupadas pelo sujeito do discurso na
sociedade: o de rapper, invadir a mente das pessoas e passar sua mensagem.
Os versos sequenciais trazem o elemento mais importante das condições de produção
desse discurso, a identidade da mulher negra na sociedade brasileira. Partindo da recusa de
como o sujeito feminino negro tem sido representado, a rapper traz para seu discurso o
confronto entre a formação ideológica dominante e a formação ideológica de resistência, que
atravessa o universo das relações étnico-raciais vigentes, como se pode ver no fragmento
abaixo:

20
Excerto do livro “A cor púrpura” de Alice Walker, pg. 32.
Xinguei, quem diz que mina não pode ser sensei?
Ginguei, sim sei, desde a Santa Cruz, playboys
Deixei em choque, tipo Racionais, "Hey Boy!"
Tanta ofensa, luta intensa nega a minha presença
Chega! Sou voz das nega que integra resistência
Truta rima a conduta, surta, escuta, vai vendo
Tempo das mulher fruta, eu vim menina veneno
Sistema é faia, gasta, arrasta Cláudia que não Raia
Basta de Globeleza, firmeza? Mó faia!
Rima pesada basta, eu falo memo, igual Tim Maia
Devasta esses otário, tipo calendário Maia
Feminismo das preta bate forte, mó treta
Tanto que hoje cês vão sair com medo de bu----
Drik Barbosa, não se esqueça
Se os outros é de tirar o chapéu, nóiz é de arrancar cabeça

A partir da dupla discriminação sofrida pela mulher negra, criou-se na corrente do


feminismo uma vertente que luta pelos direitos específicos dessas mulheres: o feminismo
negro. Em todos os versos da estrofe serão acionados discursos presentes na formação
discursiva dominante, perante esses pré-construídos a rapper escolhe a postura de afastamento
do sujeito universal. Ao enunciar (“Xinguei, quem diz que mina não pode ser sensei?”) dois
sentidos podem ser extraídos com base na corrente feminista, o primeiro é a oposição a um
universal que prega que “menina não pode xingar” e o segundo é uma crítica a desigualdade
de gênero. Para explicitar essa diferença, o sujeito discursivo fez a escolha da palavra de origem
japonesa sensei que pode significar tanto mestre de karatê quanto indivíduo que se destaca em
sua área profissional, indiferente da definição que escolhamos, o sentido final será o mesmo:
explicitação da desvantagem da mulher nas funções sociais comparada ao homem. Essa
pergunta, pode ser entendida, por outro viés, como afronta, uma vez que a expressão “Quem
disse que não pode?” é utilizada como resposta de contraposição e significa “sim, eu posso”,
criando dessa forma um discurso de resistência àqueles presentes nas formações discursivas e
ideológicas dominantes.
Reforçando a ideia do símbolo feminista “We can do it!”21, o sujeito enunciador por
meio dos versos (“Ginguei, sim sei, desde a Santa Cruz, playboys/ Deixei em choque, tipo
Racionais, ‘Hey Boy!’”) mostrará seu relato pessoal de empoderamento. Retoma-se aqui a ideia
de Pêcheux (1993) de que não é possível considerar o que é dito pelo sujeito discursivo como

21
“Nós podemos fazer isto!”, legenda do cartaz criado por J. Howard Miller, em 1943, que ilustra uma mulher
com a manga arregaçada, braço dobrado ao alto, punho cerrado e determinação no olhar. Apesar de ter sido criado
para incentivar o trabalho das mulheres norte-americanas em fábricas no período da Segunda Guerra Mundial,
nos anos 80 foi reutilizado para a divulgação do movimento feminista.
isolado do que o leva a se constituir como sujeito. Desse modo, Drik Barbosa faz referência ao
início de sua carreira no rap, onde ela participava da Batalha de MC’s do Metrô Santa Cruz,
vale ressaltar que as batalhas de MC’s são majoritariamente dominadas por representantes do
sexo masculino; por conta da qualidade das suas rimas, a cantora passou a ser convidada por
rappers de renome a fazer participações em seus discos, a partir daí ela passou a ser
reconhecida pelo público e atualmente é considerada, pela crítica especializada, como a rapper
mais representativa de sua geração. Segundo ela, esse acontecimento teria causado espanto aos
“playboys”, que nesse contexto pode significa representantes de classes socioeconômicas
favorecidas, assim como a repercussão causada pela música “Hey Boy” dos Racionais MC’s.
A expressão “Hey Boy” desempenha a função de chamada de atenção para o que a enunciadora
está dizendo, nesse contexto, voltada especificamente ao público masculino.
O feminismo negro é exposto na maioria dos versos (“Tanta ofensa, luta intensa nega a
minha presença/ Chega! Sou voz das nega que integra resistência”), em que é possível observar
o elemento dominante da condição de produção desse discurso: a luta contra o racismo e a
desigualdade de gênero. De forma explícita, o sujeito discursivo denuncia o racismo “tanta
ofensa” e aponta para o universal que prega a inferioridade negra “nega minha presença”,
formulando em sequência um discurso-contra no qual se coloca não apenas na posição de
mulher negra, como também, na posição de representante do movimento feminista negro. Ao
dizer “Sou voz das nega que integra resistência”, o sujeito discursivo mostra que compreende
a posição que ocupa na sociedade, uma vez que artistas têm maior visibilidade, e assume a
responsabilidade de ser porta-voz daquelas cujas vozes não são ouvidas.
Percebe-se nos versos (“Feminismo das preta bate forte, mó treta/ Tanto que hoje cês
vão sair com medo de bu----/ Drik Barbosa, não se esqueça”) tanto uma crítica ao machismo
quanto uma provocação àqueles que não respeitarem as mulheres negras. A rapper afirma que
o feminismo negro é um movimento expressivo, alertando que aqueles que quiserem combate-
lo irão arranjar “mó treta”22 e sairão derrotados, o que irá fazer com que temam provocar as
feministas novamente.
Para analisar o enunciado “Drik Barbosa, não se esqueça”, recorre-se ao processo de
“esquecimento nº 1” de Pêcheux para compreender os mecanismos que fizeram o sujeito
discursivo ter escolhido enunciar “não se esqueça” ao invés de “lembre-se” ou “Drik Barbosa”
e não “não esqueça meu nome”, por exemplo. Essa escolha não é arbitrária, o sujeito decide
entre sequências parafrásticas. Podemos formular alguns sentidos que justificam a escolha do

22
Junção da forma reduzida do adjetivo “maior” com a gíria treta que significa grande confusão.
uso de “Drik Barbosa”, o primeiro é que o nome marca a identidade do sujeito, ao negar-lhe o
nome, ignoram-se os traços específicos que o constituem único, nega-se sua individualidade,
pode-se observar como os códigos de identificação tatuados nos judeus em Auschwitz os
desumanizaram; sendo assim utilizar o nome significa, no contexto situado, “eu existo, eu sou
mulher, eu sou negra, etc.”.
Outro sentido é que o sujeito discursivo queira marcar sua posição no meio do rap onde
há baixa representatividade feminina, fazendo-se lembrada por seu nome. Ainda é possível
inferir que se o sentido expresso em “não se esqueça” derivar do enunciado “não se esqueça
com quem está falando”, expressão que funciona como um pedido por respeito, “Drik Barbosa”
funcionaria como uma resposta que obrigaria o interlocutor a convocar sentidos sobre “quem
ela é”, resultando assim em um enunciado cujo sentido final pode ser entendido como “sou
pessoa tal, constituída dessa forma e por isso exijo respeito”. No enunciado (“Truta rima a
conduta, surta, escuta, vai vendo”) o sentido é um recado para que os homens melhorem sua
conduta em relação às mulheres e que é inútil tentar manter uma postura machista.
O corpo negro feminino, historicamente, tem sido sexualizado pela formação
ideológica dominante, em que se produzem dizeres que implicam na objetificação da mulher
negra. O protagonista do discurso, como negra vítima do racismo e dos preconceitos de gênero,
toma esses dizeres como ponto de partida para a construção de sentidos positivos para a
identidade negra. O sentido do corpo como objeto sexual é negado (“tempo das mulher fruta,
eu vim menina veneno”), ao colocar-se como não pertencente do primeiro grupo, mulheres que
ficaram famosas por meio da exibição de atributos físicos, imediatamente insere-se no outro
grupo. “Menina veneno” é o nome de uma música muito famosa no cenário brasileiro, e foi
aqui empregado no sentido de que o sujeito do discurso obterá fama por meio de suas rimas no
rap, ou seja, por seus atributos intelectuais. Veneno é um adjetivo que quando relacionado a
palavra significa discurso afrontoso. Esse contradiscurso se apresenta também no verso (“Basta
de Globeleza, firmeza? Mó faia!), a Globeleza é uma personagem, representada por uma
mulher negra seminua no período de Carnaval, a escolha do imperativo “basta” propõe um
rompimento com o sentido atribuído ao corpo das mulheres negras desde o período
escravocrata, logo em seguida é suscitado um pedido de concordância “firmeza?” e por fim, há
um posicionamento de discordância e denúncia (“Mó faia23”!).
A fim de exemplificar os problemas que resultam da objetificação do corpo feminino
negro, é retomado no enunciado o caso de Cláudia Silva, mulher negra que foi baleada pela

23
Muita desordem.
Polícia Militar do Rio de Janeiro, em 2014, durante uma operação contra o tráfico de drogas.
Ao perceberem o erro, os policiais a colocaram no porta-malas da viatura e seguiram em
direção ao hospital mais próximo, porém, durante o trajeto o porta-malas abriu, Cláudia ficou
pendurada por um pedaço de tecido de sua roupa e foi arrastada por aproximadamente 350
metros, chegando ao hospital sem vida e com o corpo dilacerado.
Nesse verso (“Sistema é faia, gasta, arrasta Cláudia que não Raia”) há duas denúncias,
uma direcionada ao racismo que faz referência a atriz Cláudia Raia, branca e de classe
socioeconômica favorecida, dizendo que o mesmo não aconteceria com ela; a outra crítica é
voltada à Polícia Brasileira, como um sistema desordeiro, que gasta verbas públicas e é falho.
Nos versos (“Rima pesada basta, eu falo memo, igual Tim Maia/ Devasta esses otário, tipo
calendário Maia”, o sujeito discursivo afirma que pelo rap é possível fazer essa denúncia e que
ele não vai se calar, assim como o cantor negro Tim Maia, conhecido por fazer constantes
reclamações em seus shows e aparições públicas. Essa denúncia atingiria os policiais de forma
destruidora, ao utilizar “otário” fica evidente o valor negativo atribuído a polícia.
Uma das condições de produção de sentidos é os lugares que os atores sociais ocupam
no jogo discursivo, pode-se analisar o enunciado (“Se os outros é de tirar o chapéu”) que é a
partir de “os outros” que se definem as posições. O sujeito discursivo ocupa o lugar de quem
luta pelos direitos das representantes femininas negras, assim, os outros ocupam a posição
daqueles que contribuem para a perpetuação do racismo e das desigualdades de gênero. E se
há quem “tire o chapéu24”, para as injustiças cometidas contra as mulheres negras, há aqueles
que se contrapõem de forma combativa, representados pelo enunciado (“Nóiz é de arrancar
cabeça”). O sujeito ao mudar seu discurso da primeira pessoa do singular para a primeira pessoa
do plural, coloca-se em posição de pertencimento e identificação com o grupo negro, acionando
o sentido de força ao dizer que não se encontra sozinho nessa luta. “Arrancar a cabeça”, remete
a figura de Zumbi dos Palmares, símbolo negro de resistência à escravidão, que foi decapitado
e teve sua cabeça exposta em praça pública. Em contextos de guerra, o sentido de decapitação
é a propagação da mensagem de um grupo. Do ponto de vista simbólico “arrancar a cabeça”
significa retirar a memória, extinguir totalmente o indivíduo. É com a mensagem de ameaça
de extermínio às formações ideológicas hegemônicas que reforçam o racismo e a misoginia
contra as mulheres negras, que Drik Barbosa fecha seu discurso por meio de “versos
violentamente pacíficos”25.

24
"Tirar o chapéu" é uma expressão popular da língua portuguesa e significa "fato extraordinário", que merece
homenagem, coisa digna de admiração.
25
Excerto da faixa “Capítulo 4 Versículo 3” do álbum “Sobrevivendo no inferno” (1997) de racionais MC’s.
Levo o conto africano na mochila26

O processo de escravização da população negra no Brasil esteve marcado pela proibição


de expressarem suas culturas e pela omissão da sua história. Esses sentidos serão mobilizados
nos versos do rapper Amiri
Mas, mano, sem identidade somos objeto da história
Que endeusa "herói" e forja, esconde os retos na história
Apropriação há eras, desses tá repleto na história
Mas nem por isso que eu defeco na escória

e relembram que a história oficial foi escrita pautada pela ideologia dominante e não contempla
as contribuições do negro para a formação das nações, como faz com as do grupo social branco.
No processo de conhecimento da própria história, o sujeito denuncia o sistema como
criminoso em sua omissão (“esconde os retos na história”). A exemplo disso, evocamos a figura
de Zumbi dos Palmares que mobiliza dois pontos de vista sobre o mesmo objeto que dependem
da formação ideológica em que os discursos são produzidos. Na formação de resistência
atribuem-se para Zumbi sentidos positivos, como a ressurreição. Na formação dominante
racista lhe conferem sentidos negativos. As duas visões têm a ver com as forças que permeiam
o confronto entre essas formações ideológicas.
A manipulação realizada na história se deu por meio das formações discursivas que
atribuem sempre sentido positivo aos brancos, configurando-os como heróis, exploradores,
governantes, entre outros, reforçando assim a ideologia do embranquecimento. Nota-se o uso
de aspas na palavra herói, que atribui o sentido de ironia. O sujeito discursivo, conclui que
embora seu grupo étnico-racial tenha sido desvalorizado historicamente, ele não deseja o mal
para as pessoas pertencentes ao grupo de oposição. A nominação a esse grupo foi dada pelo
uso do substantivo “escória” que em contexto social carrega o significado de grupos ou
camadas sociais desvalorizadas. Se o discurso dominante atribui esse lugar aos negros, aqui o
protagonista do discurso reverte a situação, atribuindo aos brancos essa posição, justificando
que a apropriação acontece há eras e por isso é legítimo o sentido que ele está atribuindo aos
“outros” em outro contexto histórico-social.
Em decorrência desses fatores, para grande parte da população brasileira, a história do
grupo étnico-racial negro começa e se limita à escravidão. Essa concepção funciona como um
universal e contribui para manter uma imagem negativa do negro.

Pensa que eu num vi?

26
Excerto da faixa “Outras palavras” do álbum “Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida, Até Que Eu
Cheguei Longe” (2009) de Emicida.
Eu senti a herança de Sundi
Ata, não morro incomum e
Pra variar, herdeiro de Zumbi
Segura o boom, fi
é um e dois e três e quatro, não importa,
já que querem eu cego
"Eu tô pra ver um daqui sucumbir! " (não!)

O sujeito traz ao seu discurso as imagens de Zumbi e de Sundiata Keita, fundador do


império do Mali, que reforçam o orgulho de ser negro. Assim, como com Mandume, o nome
de Sundiata foi dividido em Sudi e Ata. O sujeito afirma que mesmo não tendo vivenciado a
época, sabe como o negro foi anulado na história e que esse saber advém da herança cultural
africana, representada por meio do povo Sundi. Através dos dizeres (“Ata, não morro incomum
e/ Pra variar, herdeiro de Zumbi/ Segura o boom, fi/ é um e dois e três e quatro, não importa”)
o sujeito denuncia o alto índice de violência exercida contra o grupo social negro, onde os
assassinatos são comuns principalmente por meio de armas de fogo, sentido representado pelo
uso da onomatopeia boom. O “Ata” carrega o sentido de registro, o protagonista registrou nos
versos desse rap que na realidade atual do negro no Brasil estar vivo é incomum. O sujeito
expressa que mesmo que o sistema político queira esconder os problemas relacionados ao
negro, eles não se renderão, para construir esse sentido o sujeito discursivo optou por
parafrasear um verso da música ‘Tô pra ver” do rapper Criolo.
Sintetizam-se nesses versos as ideias que dão significado ao título da música
“Mandume”
Pela honra vinha Man
Dume: Tira a mão da minha mãe!
Farejam medo? Vão ter que ter mais faro
Esse é o valor dos reais, "caros"

O sujeito faz referência a Mandume Ya Ndemufayo, último rei dos Cuanhamas,


conhecido por sua oposição aos portugueses em uma resistência tenaz, que o levou a optar se
suicidar ao se render. O nome do rei aparece dividido em duas palavras Man e Dume; man vem
da língua inglesa e significa homem, o sentido aqui é que Mandume era um homem como
qualquer outro, no entanto, não teve medo de lutar pelo direito dos seus e que é necessário
honrar esse legado. Dume foi um bispo de Praga, considerado o maior responsável pela
conversão dos suevos ao catolicismo. Foi responsável por banir da língua portuguesa os nomes
dos dias da semana que faziam referência a deuses a deuses pagãos. Em (“Dume: tira a mão da
minha mãe!) entende-se que o sujeito utiliza a palavra mãe para se referir ao continente africano
que é chamado de Mama África. Assim, o sujeito mostra resistência ao assumir a posição de
quem não vai deixar que os traços culturais herdados da África morram dentro da sociedade
brasileira.
Cães são capazes de farejar medo nas pessoas por meio do suor, emprega-se esse
mesmo sentido no enunciado (“Farejam medo? Vão ter que ter mais faro/ Esse é o valor dos
reais, "caros”). Ressalta-se que é através do medo que muitas atitudes racistas são reforçadas e
continuadas. Portanto, não ter medo ou não o demonstrar é a melhor forma de resistência. Aos
negros “reais”, aqueles que estimam sua identidade, a representam e por ela lutam, é atribuído
o valor de valiosos. O uso do adjetivo “caro” junto ao uso das aspas, enfatiza o tom sarcástico
que é produzido pelo fato de os escravos no Brasil terem custado muito dinheiro.
A autoafirmação da negritude é uma resposta aos pré-construídos que funcionam na
sociedade brasileira e contribuem para atribuir sentidos negativos para o ser negro. Nessa
autoafirmação o sujeito mobiliza, além da figura do líder espiritual africano Alimamo, outros
elementos da cultura africana: Nkosi Sikelel'27 e banzo (Ao chamado do alimamo: Nkosi
Sikelel', mano!/Só sente quem teve banzo”), o primeiro faz referência ao hino nacional da
África do Sul, o segundo faz referência à palavra usada por escravos para representar o
sentimento de melancolia em relação à terra natal e a aversão à privação da liberdade praticada
contra a população negra no Brasil na época da diáspora africana. Ainda no sentido de
autoafirmação, utiliza-se o adjetivo “claro” em dois sentidos (“[Entendeu?] Eu não consigo ser
mais claro!”), representando tanto explicação feita com clareza, quanto o fato de o sujeito não
conseguir ser menos negro. Há um sentido de autoafirmação, também, no uso do substantivo
“mano”, gíria usada comumente na periferia. O sujeito traze à tona nos seus discursos as
contribuições para a valorização da identidade negra, ao mesmo tempo em que valoriza as
tradições ligadas à africanidade.
O sujeito deste discurso traz à tona um dos pré-construídos em torno do segmento social
negro, que circulam como universais na sociedade brasileira (“Olha pra onde os do gueto vão/
Pela dedução de quem quer redução”). Ele coloca o negro em pé de igualdade com a
criminalidade, como antecipação do pré-construído de acordo com o qual negro é considerado
delinquente. Faz-se uma crítica a redução da maioridade penal, possuinte de um caráter
profundamente racial e social, pois afeta diretamente e principalmente, a população negra
moradora das periferias.

27
A tradução seria “Deus Abençoe a África”. É uma canção híbrida, combinando com versos do hino nacional
do governo do apartheid, “Die Stem van Suid-Afrika.
A pergunta retórica (“Respeito, não vão ter por mim?”) cuja entonação corresponde
àquelas que são feitas quando se quer, em situações informais, ameaçar o indivíduo para que
ele realize o que está sendo solicitado. Neste caso (“Protagonista, ele é preto, sim”), o sujeito
se refere à falta de representatividade do seu grupo na televisão e cinema. O sujeito reafirma
seu orgulho de ser negro a partir do sintagma “preto, sim”.
O sujeito se posiciona como morador da periferia (“Pelo gueto vim, mostrar o que
difere”) de onde produz seu discurso. O enunciado (“Não é a genital ou o ‘macaco!’ que fere”)
contribui para situar historicamente o racismo que afeta a vida da população negra no Brasil.
Discute-se o racismo implícito e explícito, o primeiro aponta o modo como o homem negro é,
por muitas vezes, estereotipado no imaginário popular como possuinte de um pênis com o
tamanho acima da média. O explícito aponta para o termo racista “macaco”, a desumanização
da vítima é um aspecto que ajuda a manter a formação discursiva racista. Correntemente,
acontecem no Brasil casos em que as pessoas da raça negra são chamadas de macaco, em março
desse ano, Davi Zambelli publicou em suas redes sociais o caso de preconceito sofrido em uma
loja de uma rede de fast-food cuja nota fiscal ao invés de identificar seu nome, identificou-o
como “macaco”. Em julho desse ano, também por meio de redes sociais, o escritor carioca
Raiam dos Santos postou um vídeo em que um homem imitava um macaco. Dois dias depois
desse incidente, o jogador da seleção brasileira Fernandinho, responsável pelo gol contra no
jogo Brasil e Bélgica, recebeu muitos comentários racistas em suas redes sociais, dentre eles
“macaco” foi utilizado com frequência.
O enunciado (“É igual me jogar aos lobos/ Eu saio de lá vendendo colar de dente e
casaco de pele”) constitui uma estratégia do sujeito que permite identificar, no discurso,
sentidos de não redenção. Ele se coloca como modelo de sobrevivência a ser seguido na luta
contra o racismo. O sujeito tenta incentiva seu interlocutor a manter a formação ideológica de
resistência, de onde ele fala, e valoriza os elementos da cultura africana colar de dente e casaco
de pele.

Nem mais, nem menos, nem meia liberdade 28

O solo de Rico Dalasam atua na temática da sexualidade, representação e inclusão da


população negra LGBTQ, além da violência, genocídio e desvalorização das vidas negras elas. Commented [MdLR8]: É isso mesmo? Nã entendi.

Nos versos de abertura, o sujeito traz à tona críticas as diferenças entre o humor nos memes

Excerto da faixa “Hoje cedo” do álbum “O Glorioso Retorno De Quem Nunca Esteve Aqui” (2013) de
28

Emicida.
que debocham da branquitude e da negritude, e a violência contra os negros. O primeiro verso
(“Meme de negro é: me inspira a querer ter um rifle”) se configura como forma de resistência
e atua apenas no campo discursivo, não representando risco de violência física. O próximo
verso se constitui como legitimação discursiva da desumanização e violência praticadas contra
a população negra e que por muitas vezes tornam-se piada (“Meme de branco é: não trarão de
volta Yan, Gamba e Ringue”). Rico Dalasam29, que é o sujeito e o sujeito discursivo, explica
que Yan, Gamba e Ringue eram seus amigos negros que foram assassinados quando jovens.
Dessa forma é criticada a dissimetria entre as formas de humor.
A fim de especulação sobre a questão levantada sobre o humor nos memes, foram
realizadas duas rápidas pesquisas em um buscador da internet, uma com o termo “meme de
negro” e a outra com “meme de branco”, os resultados, mostrados abaixo, validam o argumento
do protagonista do discurso.

(Imagem 1 – Meme de Negro)

(Imagem 2 – Meme de branco) Commented [MdLR9]: Muita informação. Pode retirar.

O sujeito forma um discurso de resistência contra o discursivo dominante nos versos


(“Arranca meu dente no alicate/ Mas não vou ser mascote de quem azeda marmita”). Arrancar
o dente era um castigo destinado a escravos que roubavam cana-de-açúcar. Mascote animal de
estimação. Azedar a marmita é aborrecer encher o saco.
O sujeito faz alusão ao período escravagista brasileiro em que chicotes eram usados
como castigo para os negros (“Sou fogo no seu chicote”), esses castigos violentos reafirmavam
o poder dos senhores brancos. Ele exige reparação para seu grupo de pertencimento, onde há

29
Resposta dada pelo rapper a um fã, por meio da rede social Twitter, sobre o significado do verso.
um alto índice de morte por assassinato (“Enquanto a pessoa for morte pra manter a ideia
viva”), pauta importante no discurso dos ativistas brasileiros, como resposta às desigualdades
que têm marcado as relações étnico-raciais entre brancos e negros.
Rico Dalasam, antes da fama enfrentava três facetas da marginalização: negro, pobre e
homossexual, a partir da sua história de vida e superação, transfere para o seu sujeito discursivo
(“Domado eu não vivo”) confere um sentido de resistência e contestação ao que está posto nas
formações ideológicas de racismo, desigualdade social e homofobia. O enunciado (“Não quero
seu crivo”) carrega dois sentidos nesse discurso, o primeiro advindo da expressão passar pelo
crivo que significa não precisar de aprovação e o segundo se relaciona com o próximo verso
(“Ver minha mãe jogar rosas”) advindo da expressão ser crivado por balas que completa o
sentido de morte com sintagma jogar rosas. Em ambos sentidos, o pronome seu denomina
aqueles que corroboram com as formações ideológicas e discursivas em relação aos grupos
marginalizados. O sujeito se coloca na posição de combatente às opressões sofridas por esses
grupos, comparando-se a um cravo, (“Sou cravo, vivido entre espinhos treinados/ Com as
pragas da horta”) flor cuja característica é repelir com o seu perfume grande parte dos insetos
que são considerados invasores. Mostra-se resistente entre espinhos e rosas que podem ser
entendidos como as formas de preconceito e opressão.
No verso “Pior que eu já morri tantas antes de você”, o sujeito usa o mesmo sentido
utilizado pelo autor João Cabral de Melo Neto em “Morte e vida Severina”, título que traz uma
oposição intencional ao tratar a história de um indivíduo que sai da “morte”, na miséria, para
conseguir “vida” em um lugar mais próspero. As mortes referem-se as dificuldades passadas
por conta das questões raciais, sociais e de orientação sexual.
O sujeito termina seus versos por meio de um discurso de resistência (“Me encher de
bala não marca, nossa alma sorri/ Briga é resistir nesse campo de fardas”), fazendo menção
novamente ao chicote que marcava o corpo dos escravos, porém as balas não deixam marcas,
elas matam. Todavia, “o negro só é livre quando morre”30, há alívio de uma vida, que assim
como o chicote, deixou marcas. Afirmando que o difícil é resistir em meio a tantas forças de
confronto, representadas como fardas, nas formações ideológicas dominantes que versam
sobre as minorias já referidas.
Na transição para o próximo o próximo discurso ouve-se ao fundo o enunciado (Cêloko
Cachoeira!) que faz referência ao bordão do DJ Perera Funk. O funk é relacionado a identidade

30
Citação do livro “O diário de Bitita” de Carolina Maria de Jesus, p. 54.
cultural negra e seus beats são incorporados nas músicas do rapper Rico Dalasam, o que cria
mais uma forma de valorização as formas de expressão da cultura negra.

Esses boy conhece Marx, nóis conhece a fome31

O solo performado por Muzzike aborda a opressão cultural e econômica contra as


pessoas da periferia e a continuidade da herança da escravocrata na desigualdade social, na
diferença de oportunidades e na dificuldade de mobilidade social.
Eixos fundamentais para a construção de uma imagem para reverter os sentidos
negativos que circulam em torno do negro são cultura e história, e serão retomados nos versos
de abertura de Muzzike. Primeiro, levantam-se elementos de religiões de matriz africana para
fazer uma crítica (“Banha meu símbolo, gora meu manto que eu vou subir como rei”),
entendendo símbolo segundo o catolicismo se refere a códigos de fé aceitos na hora do batismo,
o sentido no enunciado é o do sincretismo religioso criado pelos escravos africanos que
invocavam os seus deuses sob a forma dos santos católicos, uma vez que banhar se relaciona
com batismo, prática católica com sentido de conversão. Gora meu manto está relacionado a
amaldiçoar as religiões de origem africana, uma vez que se usam mantos em ritos do
Candomblé, por exemplo. O substantivo rei faz referência ao Orixá Xangó. O sentido levantado
aqui é que mesmo tentando apagar a religião ela tem seu lugar.
No verso seguinte (“Cês vive da minha cicatriz, eu tô pra ver sangrar o que eu sangrei”),
faz-se uma crítica ao processo da construção da sociedade brasileira feita a base de trabalho
escravo. No verso (“Com a mente a milhão, livre como Kunta Kinte, eu vou ser o que eu
quiser”) se faz uma referência a literatura, Kunta Kinte é o protagonista do livro “A saga da
família americana” de Alex Haley, a narrativa conta que Kunta foi capturado e escravizado,
porém não obedecia as ordens e relembrava sempre da sua liberdade, por conta disso foi
castigado e teve até o pé cortado, porém não mudou de comportamento. Com isso, ele reafirma
sua posição contrária àqueles sentidos que relacionam que atribuem pontos negativos aos
elementos culturais em relação ao negro.
O sujeito traz a questão da meritocracia (“Tá pra nascer playboy pra entender o que foi
ter as corrente no pé”) como resposta às desigualdades que têm marcado as relações étnico-

Excerto da faixa “Levanta e anda” do álbum “O Glorioso Retorno De Quem Nunca Esteve Aqui” (2013) de
31

Emicida.
raciais entre brancos e negros. como resposta às desigualdades que têm marcado as relações
étnico-raciais entre brancos e negros.
Nessas linhas (“Falsos quanto Kleber Aran, os vazio abraça/ La Revolução Tucana, hip-
hop reaça”) o sujeito discursivo ironiza os rappers com posicionamento de direita, comparando
essa “revolução política” com o médium Kleber Aran, charlatão que pratica medicina de forma
irregular se proclamando “Dr. Fritz”. Ou seja, não há interesse nenhum com questões sociais,
direitos trabalhistas e com o cidadão pobre, aspectos que fazem parte do movimento hip-hop e
do rap.
Os versos seguintes (“Doce na boca, lança perfume na mão, manda o mundo se foder/
São os nóia da Faria Lima, jão, é a Cracolândia Blasé”) completam a ideia anterior, há uma
crítica aos artistas de rap nacional que tem como temática drogas e a completa indiferença com
a sociedade. Essa ideia se conecta com o estereótipo que reforça o universal de negro e pobre
é drogado. No entanto, as classes sociais favorecidas também consomem drogas, mais caras,
porém igualmente nocivas.
No dizer (“Jesus de polo listrada, no corre, corte degradê”) o desenho estético de Jesus
o insere em uma identificação cultural com os guetos: ele está “no corre”; e a inserção de
elementos como o estilo da camisa e o corte de cabelo que ele usa, transmite a ideia de que
Jesus é um homem comum, ou de que “pessoas comuns” também têm uma grande história,
assim como a de Jesus.
O sujeito faz uma referência a música “Negro Drama” dos Racioais MC’s (“Descola o
poster do 2pac, que cês nunca vão ser/ Original favela, Golden Era, rua no mic”), no verso
original32, mostra-se a ironia dos brancos quererem ser negros, já nesse enunciado afirma que
não adianta querer ser ou imitar os negros e a cultura hip-hop para ser, só quem pertence ao
contexto que realmente cativa os ouvintes e faz música para o movimento. Reforça-se a ideia
citando a Golden Era uma das épocas mais marcantes do hip hop internacional, marcada por
letras conscientes e ascensão de nomes como 2Pac e The Notorious B.I.G.
No verso (“Hoje os boy paga de 'drão, ontem nóis tomava seus Nike”) agrega-se sentido
de que o rap, por muito tempo, foi marginalizado, porém, atualmente, o cenário mudou. O estilo
conquistou espaço maior no território nacional, atingindo camadas mais altas da sociedade,
Emicida e Criolo são artistas que contribuíram para que esse espaço fosse conquistado. Em

32
“ Inacreditável, mas seu filho me imita/ No meio de vocês ele é o mais esperto/ Ginga e fala gíria. Gíria não,
dialeto/ Esse não é mais seu … Subiu/ Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu/ Nós é isso, é aquilo. O quê? Cê
não dizia?/ Seu filho quer ser preto, Há! Que ironia/ Cola o pôster do 2Pac aí, que tal? Que cê diz?”
consequência disso, o rap atraiu novos fãs que fantasiam serem rappers usando o mesmo estilo
de roupas e acessórios.
Usando uma metáfora (“Os vira lata de vila, e os pitbull de portão”) pitbull de portão
pode ser associado a linha anterior “La Revolução Tucana, hip-hop reaça”, pois é um termo
usado pra definir os famosos protestantes de cadeira, ativistas de redes sociais que só criticam
sem fundamento, referência ou embasamento algum. Atrás de um firewall, de um monitor
qualquer um bate no peito e se diz homem de aço. Diferentemente dos vira-latas que
acompanham as situações de injustiça social e se posicionam contra elas de forma ativa.
O sujeito se posiciona como oriundo de uma classe social desfavorecida (“Muzzike,
filho de faxineira, eu passo o rodo nesses cuzão”). A expressão popular “passar o rodo”, dentre
seus significados, traz o sentido de eliminar alguém. O retomar de suas origens legitima sua
posição como rapper “real”, diferente daqueles covardes que não representam os ideais do hip
hop.
Faz-se uma alusão a ao ícone revolucionário do afrobeat, o nigeriano Fela Kuti (“Ando
com a morte no bolso, espinhos no meu coração”). O músico mudou um dos seus sobrenomes,
Ransome, por se tratar de um nome de escravo, para Anikulapo, que sigifica “aquele que
carrega a morte no bolso” e, a partir desse momento, ele seria o senhor do seu próprio destino,
apenas ele decidiria quando seria o seu fim. Levanta-se o sentido que feridas dos negros, em
sua luta diária, nem sempre estão visíveis, apesar de ainda estarem presentes no bolso, que pode
ser interpretado como o prejuízo financeiro devido a desvantagem histórica, e também, ao
grande número de pessoas negras assassinadas, fato que traria prejuízo aos corações. E, ainda,
apesar de todos os fatores eu não contribuem com a ascensão e sobrevivência do negro na
sociedade, o sujeito é que irá decidir o seu destino.
A chegada de negros e brancos ao continente americano esteve marcada pela diferença
dos lugares que ocuparam nesse processo. Como parte do segmento dominado, os negros
enfrentaram dificuldades para se inserirem na formação social brasileira, que contribuiu para o
seu enquadramento na marginalidade. Como parte do confronto entre a formação ideológica
dominante e a de resistência, esse sentido negativo, que funciona como pré-construídos de
negro como marginal, são contestados por militantes da luta antirracista. Eles reivindicam o
direito do negro de ocupar cargos de representatividade política e social, ao mesmo tempo em
que atribuem sentidos positivos para o comportamento social desse segmento. Nesse contexto
o verso (“As hiena tão rindo de quê, se o rei da savana é o leão?”) contesta as posições
atribuídas aos negros e mesmo que eles desvalorizem esse grupo, eles ainda alcançaram altas
posições sociais, por serem ferozes e não desistirem da luta contra as desigualdades. As hienas
são animais conhecidos por sua famosa risada que se assemelha a uma risada debochada, mas,
segundo cientistas, os sons emitidos estão relacionados a frustração. Essa espécie vive nas
savanas de África, onde os leões estão no topo da cadeia alimentar.

Atabaques vão soar como tambores de guerra33

No que se refere à questão cultural há, como acontece com a história, um processo de
inferiorização. Religiões de matrizes africanas, fundamentalmente, são socialmente tidas como
inferiores, em alguns casos ganham sentido demonização. Essas concepções funcionam como
universais e contribuem para manter uma imagem negativa da identidade negra.
O rapper Raphão Alaafin trata em seus versos a questão da intolerância religiosa contra
as crenças de raiz africana e a partir de sua formação discursiva de resistência as valoriza em
seu discurso. Nos versos iniciais (“Canta pra saldar, negô, seu rei chegou / Sim, Alaafin, vim
de Oyó, Xangô”) traz saudação aos orixás Xangô, deus da justiça, e Alaafin de Oyo, que dentro
da cultura afro-brasileira é uma espécie de Xangô. Retoma-se as tradições orais religiosas
africanas (“Daqui de Mali pra Cuando, De Iorubá ao Bantu! / Não temos papa, nem na língua
ou em escrita sagrada”) que, em tese, não possuem registro escrito. A tradição era transmitida
oralmente e, em muitos lugares, isso ainda persiste. A expressão não temos papa faz referência
tanto ao significado de dizer as coisas sem restrições quanta a figura católica do Papa. Mostra-
se aqui um contradiscurso a religião de origens europeias e com o maior número de adeptos no
Brasil. Ao se dizer algo, o que se silencia também agrega sentido, nesse caso, o silêncio
expressa valorização a religiosidade africana.
Dentro do universo da cultura africana, o poder do “homem-branco” é nulo. Com passar
do tempo, o hip hop virou a representação da cultura africana que foi atacada na época da
escravidão, mas que mesmo assim não morreu. Como podemos ver no fato do candomblé ainda
ser uma prática comum aqui no Brasil e, também, na Capoeira, por exemplo. Independente
disso, o rap ainda sobrevive é a frente da tropa diante desse movimento, atualmente. Discurso
de resistência materializado nos versos abaixo

Não, não na minha gestão, chapa


Abaixa sua lança-faca, espingarda faiada
Meia volta na Barja, Europa se prostra
Sem ideia torta no rap, eu vou na frente da tropa

33
Excerto da faixa “Triunfo” do álbum “Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei
Longe” (2009) de Emicida.
Quando se tem o poder da fala e do discurso, se tem base para ir contra as armas
históricas que foram apontadas para a África (lança-faca e espingarda eram armas típicas da
época). Contudo, agora que o microfone está na mão do sujeito, a gestão dele, ele irá combater
o sofrimento e imposição cultural através de sua rima, mostrando e fortalecendo o orgulho pela
cultura negra, já que o rap em se é uma representação da cultura negra. O sujeito, ainda, se
coloca como opositor ao universal que prega o branco como o colonizador, ele intimida as
barcas a retornarem de onde vieram.
Apesar de o discurso ter como objeto principal um elemento da cultura negra, a religião,
também há referências que entram no campo da história e se entrelaçam com o componente
afro-religioso, como no fragmento abaixo, refrão da música:

Sem eucaristia no meu cântico


Me vêem na Bahia em pé, dão ré no Atlântico
Tentar nos derrubar é secular
Hoje chegam pelas avenidas, mas já vieram pelo mar

O sujeito retoma o significado da palavra grega eucaristia fora do seu uso litúrgico, “dar
graças”, entendendo-se que no seu rap não há agradecimentos aos povos dominadores.
Reaviva-se o sentido de não aceitação da colonização e dos seus efeitos de domínio que
perpetuam até hoje. O sujeito compara a chegada da polícia nos camburões pelas avenidas nos
dias atuais com a chegada dos Europeus pelo mar em seus barcos no passado.
O sujeito relaciona elementos pertencentes ao universo afro-religioso (Oya, advindo da
Epahey Oyá é a saudação à orixá Iansã, que tem poder de controle sobre as águas e ventos),
rap nacional (um bom lugar é o nome de uma música do rapper Sabotage, conhecido também
como Maestro do Canão, título conquistado devido ao seu amor pela favela do Canão 34
representada na grande maioria das suas músicas) com aspectos históricos (Omongwa é a
cidade em que Mandume foi morto). E dessa forma, traz aos versos (“ Oya, todos temos a
bússola de um bom lugar/ Uns apontam pra Lisboa, eu busco Omongwa”) o sentido de pedido
que todos sabemos o lugar que amamos e de que embora Lisboa seja considerada uma boa
cidade para a maioria das pessoas, esse não seria um lugar interessante para os que conhecem
a sua história de exploração. Assim, sugere seguir o destino que aponta para Omongwa, lugar
de luta pelos direitos da comunidade negra. Com isso, ele reafirma sua posição contrária
àqueles à escravidão e reforça elementos de orgulho da identidade negra.

34
Localizada na zona sul de São Paulo, no bairro Brooklin.
Do seu lugar de formador de opinião, o sujeito tenta convencer o seu interlocutor, com
o uso do imperativo siga (“Se a mente daqui pra frente é inimiga/ O coração diz que não está
errado, então siga!”) que entre a batalha entre razão e sentimento, deve-se seguir os
sentimentos, que aqui estão relacionados aos aspectos históricos culturais africanos.

Os esquecido lembra de mim porque eu lembro dos esquecido35

Emicida, tematiza a valorização da produção cultural e musical negra como forma de


ascensão e inclusão, associada à conquista de visibilidade midiática, poder econômico, recursos
para empoderamento financeiro coletivo, afroempreendedorismo e espaço para formas
positivas de representação das identidades negras.
O sujeito, por meio de um jogo com as palavras loop e Lupicínio, mobiliza a figura do
sambista negro Lupicínio Rodrigues (“Dores em Loop-cínio”), cujas músicas expressam muito
sentimento, principalmente a melancolia por um amor perdido, em uma de suas canções ele
cunhou a expressão dor de cotovelo. A palavra loop, na música é um sample que é repetido,
significa nesse contexto os preconceitos ininterruptos sofridos pelos negros. E, por meio da
junção das palavras cultes, palavra da língua inglesa que significa cultos, e genocídio, o sujeito
(“os cultes-cínios, quê?”) traz uma crítica a intolerância religiosa, que na sociedade brasileira
é direcionada às religiões de matrizes africanas. Mostra a indignação com a pergunta quê?.
Evoca-se ao discurso a imagem do cantor Wilson Simonal, um dos poucos negros no
cenário musical dos anos 60 e 70, foi acusado de ser um colaborador dos órgãos de repressão,
o que nunca foi provado. Mesmo assim, o cantor foi rejeitado pelo cenário musical e pela mídia.
Shows e contratos foram cancelados, artistas se recusaram a trabalhar ao lado dele e as músicas
não tocavam mais no rádio. Esse desprezo, Simonal amargou até o fim da vida. Ao enunciar
(“Ao ver o Simonal que cês não vai foder”) o sujeito mostra que conhece a história bem o
bastante para não permitir que ela se repita com ele. No verso (Grande tipo Ron Mueck, morô
muleque? Zé do Caroço”) há um discurso que enquanto a sociedade racista diz que ser negro é
ser inferior, o sujeito do discurso reafirma a grandeza da identidade negra por meio dos
trabalhos do artista plástico e escultor australiano Ron Mueck, conhecido por suas gigantes
esculturas hiper-realistas. A figura de Zé do Caroço, ex-policial que fez um serviço de
autofalante, assistência social e militância em prol da favela do Morro do Pau da Bandeira,

35
Excerto da faixa “Triunfo” do álbum “Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei
Longe” (2009) de Emicida.
agrega ao discurso a grandeza das atitudes de Zé na luta pela igualdade de direitos. Zé do
Caroço, conseguiu ainda em vida, ver sua luta eternizados no samba de Leci Brandrão que leva
seu nome.
O sujeito traz para o discurso o confronto entre forças que correspondem a posições de
classes em conflito. Com o enunciado (“Quer photoshop melhor que dinheiro no bolso?”), o
sujeito, como antecipação do pré-construído “que mais direitos os negros querem”, sugere a
igualdade social como uma política de reparação e ao fazer alusão ao editor de imagens
Photoshop diz que essa seria a melhor maneira de “limpar a imagem” da escravidão e suas
consequências para a comunidade negra.
Atualmente o rap atingiu outros estratos sociais que não os periféricos, com isso, sua
aumentou a vendagem muito (“Vendo os rap vender igual Coca, fato, não, não/ Melhor, entre
nóis não tem cabeça de rato”), assim como o refrigerante Coca-Cola. Porém, de forma irônica,
ele garante que o produto que ele vende, no caso o rap, tem qualidade; a expressão cabeça de
rato ajuda a reforçar o faz duas referências: uma ao caso de um rato morto encontrado dentro
do refrigerante e a outra que os rappers são conscientes, ambas ajudam a reforçar a ideia de
qualidade no discurso do rap. Os versos (“É Brasil, exterior, capital interior/ Vai ver nóis
gargalhando com o peito cheio de rancor”) trazem a mensagem que mesmos que os rappers
negros adquiram grande fama e pareçam felizes, eles carregam dentro de si cicatrizes, marcadas
historicamente pela desvalorização da identidade cultural negra.
O rapper volta as suas origens, nas batalhas de MC’s, quando ele era conhecido pelos
freestyles36 “violentos” e alto número de vitórias, daí surgiu o nome artístico Emicida (junção
das palavras MC e homicida). Ele fala que não imaginava, naquela época, que um dia ele seria
famoso (“Como prever que freestyles, vários necessários/ Vão me dar a coleção de Miley
Cyrus”) e viraria popular entre as mulheres, inclusive as brancas. Traz a figura da cantora Miley
Cyrus, como exemplo estético de mulheres que ele teria a chance de se relacionar.
No enunciado (“Marley, Cairo, Harlem, Pairo, firmeza”), o sujeito do discurso faz
referência ao cantor Bob Marley (grande representante da cultura rastafári, símbolo de
inspiração), Cairo (maior cidade africana), Harlem (bairro nova-iorquino de grande valor para
cultura afro-americana), que produz sentidos de orgulho e autoafirmação.
O sujeito contesta os pré-construídos de que o negro é inferior, atribuindo para a sua
imagem e, consequentemente, para toda comunidade negra, sentidos positivos que têm a ver

36
Freestyle rap (literalmente rap livre) é um subgênero da música rap e freestyle. Se caracteriza principalmente
por letras improvisadas do rapper, expressando o que sente sobre determinado assunto, mas mantendo um flow
(do inglês, fluir, no rap significa a fluência entre as rimas e o beats) certo.
com vitória, (“Tipo Mario, entrei pelo cano mas levei as princesa”), superação de dificuldades
e com a saída do lugar que lhe é socialmente atribuído, no marco da formação ideológica
dominante. O Mario a quem o sujeito se refere é o personagem da franquia e série de jogos
eletrônicos da Nintendo, a missão dele é a de resgatar a Princesa Peach, do vilão Bowser e
impedir seus diversos planos de destruir e dominar o reino. O sintagma “as princesa” reforça,
por outro lado, a ideia anterior de sucesso entre as mulheres.
O rapper Emicida ao longo de sua carreira tem sido criticado por fazer referências sobre
a vida na periferia, porém não fazer mais parte dela. No mundo do rap é comum os artistas
com opiniões divergentes se expressarem por meio de diss37. Esses versos (“Várias diss, não
sou santo, imã de inveja é banto”) é uma resposta à diss “A rua é quem? 2” feita pelo rapper
Nocivo Shomon, que contém uma crítica a participação do Emicida no programa TV Xuxa,
2012, chamando-o de “vendido”. O discurso de resposta soa irônico (“Fui na Xuxa pra ver o
que fazer se alguém menor te escreve tanto”), ao expressar que foi a um programa infantil para
aprender o que fazer se alguém menor - neste caso com sentido de menos importante - te
escreve tanto, no caso aqui as disses. Nota-se, ainda, que para se referir a essas muitas disses,
o sujeito usa a expressão banto que representa um conjunto de línguas da África que são
similares, cerca de 400 grupos étnicos. A Xuxa saberia já que muitas crianças, ou seja muitos
menores, escrevem tantas cartas e mensagens para ela.
O sujeito faz um contradiscurso em resposta ao de formação ideológica de que ele não
é um rapper representante da periferia (“Tô pelo adianto e as favela entendeu”), ele se
posiciona como alguém que superou a pobreza e que, agora em um lugar de maior visibilidade,
luta pela ascensão social do negro. Esse é o propósito dele e ele cita que várias pessoas das
comunidades periféricas já entenderam isso. O sujeito volta a reforçar suas origens humildes
no verso (“Considere, se a miséria é foda, chapa, imagina eu”) que trabalha primeiro com o
sentido de ele entender muito bem o que é miséria, e um segundo sentido é de eu que se o seu
crítico acha que a miséria é algo violenta e desumana, ele é pior do que a miséria. No discurso
do rap trabalha-se muito com a ideia de rimas como armas, daí vem a ideia dos “versos
violentamente pacíficos”, as batalhas de MC’s – que inclusive, um dos recuros para vencê-las
é amedrontar o adversário.
O sujeito se refere à falta de representatividade do seu grupo no cinema (“Scorsese,
minha tese não teme, não deve, tão breve”), evoca a figura do cineasta Martin Scorsese como

37
Diss, também conhecida nos Estados Unidos como diss track (literalmente traduzida por canção de insatisfação)
é uma canção criada com o único propósito de atacar verbalmente e insultar uma pessoa ou um grupo de cantores.
Seu uso é frequente no hip hop.
um dos exemplos da problemática: apesar de ser amplamente considerado e reconhecido como
um dos maiores diretores de todos os tempos, nenhum de seus filmes fora protagonizado por
uma pessoa negra até o momento. O negro quando faz parte de produções cinematográficas
ocupa papeis subalternos, ou seja, os papeis sociais atribuídos a esse grupo se refletem nas
telas: empregadas, criminosos, pessoas que fazem vodu, pessoas com baixa escolaridade, etc.
Um exemplo positivo de representatividade negra no cinema, foi no caso do filme “Pantera
Negra” em que o elenco é predominantemente negro, inclusive os protagonistas.
Continua a crítica a falta de representatividade (“Vitória do gueto, luz pra quem
serve?”) que nem as histórias de sucesso de pessoas oriundas da periferia tem destaque no
cinema. Nos versos (“Na trama conhece os louro da fama”) o sujeito aplica, a expressão “louros
da fama” (que significa desfrutar das coisas boas que a fama proporciona) de outra forma, tendo
a palavra “louro” da expressão referente às pessoas loiras, reforçando sua mensagem central.
Concluindo essa linha de raciocínio (“Ok, agora olha os preto, chama!”) o sujeito por meio da
palavra ok se refere a saber que as coisas são assim, e faz uma sugestão seria possível, de agora
para frente, igualdade de espaço nos meios culturais e midiáticos.
O refrão foi escrito por todos os rappers e trata da desvalorização histórica, social e
cultural do da identidade negra e o descaso da sociedade e das políticas de reparação. Durante
a colonização da terra brasileira, os portugueses escravizaram não só índios que já moravam
aqui como também sequestraram 4 milhões de africanos para “desfrutar” com a mesma
serventia. Atualmente, a classe pobre do Brasil é composta majoritariamente por negros e
pardos (que somam 51% da população do país), isso se dá principalmente ao fato de serem
descendentes de pessoas que foram escravizadas por 350 anos e nunca inclusas na sociedade,
sempre a margem. A crítica da estrofe é a “compensação” nunca feita por parte dos brancos,
que ainda são os poderosos, quando quem está na miséria não recebe nada. Negros e moradores
de favelas são massacrados há anos da forma mais covarde e cruel possível. No entanto, quando
eles decidem revidar essa violência ou então apenas falar sobre racismo, o que se ouve é que
estão ‘sendo vitimistas’, ‘não tem necessidade de falar sobre isso’, ‘a escravidão já
acabou’, ‘cotas é racismo’, entre outros absurdos. Seguem abaixo os versos que constituem o
refrão:

Eles querem que alguém


Que vem de onde nóiz vem
Seja mais humilde, baixe a cabeça
Nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda
Eu quero é que eles se -----!
Eles querem que alguém
Que vem de onde nóiz vem
Seja mais humilde, baixe a cabeça
Nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda
Eu quero é que eles se -----!

(Nunca deu nada pra nóiz, caralho!)


(Nunca lembrou de nóiz, caralho!)
(Nunca deu nada pra nóiz, caralho!)
(Nunca lembrou de nóiz, caralho!)

Ao final da música, há um poema intitulado “Madume” escrito por Mel Duarte, que
serve como reforço às ideias centrais do discurso:

É mais do que fazer barulho e ver retomar o que nosso por direito
Por eles continuávamos mudos, quem dirá fazer história por livro feito
Entenda que descendemos de África e temos como legado ressaltar a diáspora de um povo oprimido
Queremos mais que reparação histórica, ver os nossos em evidência e isso não é um pedido
Chega de tanta didática, a vida é muito vasta pra gastar o nosso tempo ensinando o que já deviam ter apreendido
Porque mais do que um beat pesado é fazer ecoar na sua mente o legado de Mandume
E no que depender da minha geração, parça, não mais passarão impunes

CRIE SUA CONCLUSÃO, POIS SUA CERTEZA É QUESTIONÁVEL38 Commented [MdLR10]: Carol, vc não conseguiu
relacionar as ideias aqui com a AD francesa, não
acionou devidamente os conceitos explorados.
De tudo que é escrito amo somente aquilo que alguém escreve
com seu sangue. Escreve com sangue; e te darás conta de que
sangue é espírito. Não é coisa fácil compreender o sangue
alheio: odeio os ociosos que leem. Quem conhece o leitor não
faz nada pelo leitor. Um século de leitores, todavia – e até o
espírito cheirará mal. Que seja dada a todo mundo a
possibilidade de aprender a ler e será corrompido não somente
o escrever, mas também o pensar. O espírito que era Deus
transformou-se em homem e depois em plebe. Quem escreve
com sangue, e em forma de sentenças, este não quer ser lido,
mas aprendido na memória.

Friedrich Nietzsche

Com a análise dos mecanismos envolvidos na produção de sentidos em torno da


identidade negra nos discursos presentes no rap “Mandume” é possível afirmar, em primeiro
lugar, que esses discursos constituem uma resposta aos pré-construídos sedimentados na
sociedade pela formação ideológica dominante. Os sujeitos procuram, por meio de seus
discursos, desnaturalizar os sentidos que funcionam como universais na sociedade brasileira e
que contribuem para perpetuar o racismo, como forma de dominação do grupo social branco
sobre o negro, e dele advém a gama de dificuldades enfrentadas pelo negro. A partir dessa

38
Excerto do single “Quero ver calar o rap” (2014) do grupo Indigência rap.
desnaturalização, os sujeitos buscam sair dos lugares que a formação dominante atribui para
seu grupo de pertencimento e ocupar outros em que suas identidades, história e cultura sejam
positivamente representadas. A desnaturalização gerou, ainda, a produção de sentidos positivos
em torno da identidade negra, tomando como eixos o a história, a cultura e traços identitários
que ampliem a inserção social do grupo social negro.
Partindo da história e da cultura, produziram-se discursos em que os sentidos são
construídos tomando como ponto de partida a deturpação da história do negro e a inferiorização
da sua cultura. Nota-se o olhar do negro permeando essa história e modificando aqueles
aspectos que, na historiografia oficial do Brasil, contribuem para a perpetuação de uma imagem
negativa do grupo social negro. No campo da cultura há, de maneira geral, uma valorização de
artistas e manifestações ligadas ao universo afro-brasileiro. Os sentidos atribuídos para a
identidade negra nesses eixos têm a ver com poder, coragem, resistência, humanidade, orgulho
e religiosidade.
No que tange ao comportamento e à inserção social, há, no Brasil, uma negação dos
pré-construídos segundo os quais a imagem do negro é socialmente associada a criminalidade,
preguiça, marginalidade e escravidão. Nesse contexto, os sentidos conferidos para a identidade
negra guardam relação, fundamentalmente, com humanidade, liberdade, emancipação,
rebeldia, resistência, irmandade, superação e sobrevivência.
Observa-se, no processo de produção dos sentidos positivos para identidade negra, que
alguns objetos do discurso são privilegiados pelos sujeitos, provocando diferenças nas
maneiras como o racismo e seus efeitos são colocados no discurso. Essas diferenças são o
resultado, especialmente, de processos sócio-políticos que moldaram as formas como o racismo
se constituiu no Brasil, em que a permanência no imaginário coletivo da ideia de que a
miscigenação, constitutiva da nação, é sinônimo de cordialidade entre os grupo-étnico-raciais,
junto a pouca efetivação de políticas de reparação histórica, fazem com que direitos como o
acesso à saúde, à educação, ao saneamento básico e à moradia sejam indicadores, também, de
desigualdades no âmbito das relações étnico-raciais. Essas desigualdades se referem,
fundamentalmente, à inserção social do negro e ganham relevância na atual formação social
brasileira, em que se transformam em objetos de discursos como os analisados nesta pesquisa.
A situação da mulher negra, vítima de machismo e de racismo, constitui um objeto do
discurso abordado tanto no rap brasileiro.
Zumbi dos Palmares se torna uma referência importante no discurso dos rappers
brasileiros, dialogando com os discursos de enaltecimento à figura do herói produzidos no
movimento negro do país. Paralelamente, a realidade das periferias perpassa de maneira
significativa o discurso, pois as tensões envolvendo esse espaço repercutem mais na sociedade
brasileira.
Outras observações no processo de produção dos discursos do rap brasileiro, relevantes
nos mecanismos usados na atribuição de sentidos para a identidade negra, têm a ver com a
combinação de “pontos e vista” sobre o objeto do discurso, que pode representar posições
diferentes em função de quem fala. Houve casos em que os sujeitos incorporaram nos seus
discursos visões que se enquadram na formação ideológica dominante como exemplo do
confronto entre essa formação e a que eles representam. Nesses casos, eles marcaram, por meio
de vários mecanismos, a identificação com sua formação, considerada de resistência, ao mesmo
tempo em que se distanciaram da formação ideológica dominante. Não perceberam-se posições
divergentes sobre o mesmo objeto do discurso entre sujeitos na mesma formação ideológica e
discursiva. O posicionamento dos sujeitos na formação ideológica de resistência provocou que
palavras (como negro e preto), que circulam frequentemente na sociedade com sentidos
negativos, adquirissem contornos positivos, contribuindo para a pretendida saída dos sujeitos
daqueles lugares impostos pela formação ideológica dominante.
O fato de falarem de novos lugares evidenciou, no Brasil, que as relações étnico-raciais
se relacionam com o conflito de classes, em que os negros frequentemente se situam nas mais
baixas. Pode-se dizer, ainda em relação à posição dos sujeitos, que os discursos foram
transformados em plataformas de denúncia contra o racismo e em espaços de conscientização
do grupo de pertencimento dos sujeitos, para o qual, frequentemente, dirigiram seu discurso.
Esse fato contribuiu para destacar o discurso do rap como um veículo que dá voz aos oprimidos
e favorece o fortalecimento e a valorização das identidades que eles constroem. A partir dos
sentidos atribuídos para a negritude e dos mecanismos usados para tanto, pode se afirmar que,
no discurso de “Mandume”, a identidade negra se relaciona com a consciência de ser vítima de
dominação e de discriminação e também com a busca da identidade negra como resposta a
esses processos.
Para os rappers brasileiros, a identidade negra passa pela identificação das formas de
preconceito e de discriminação que os negros desses países enfrentam no seu dia a dia. Também
está associada à construção de sentidos positivos para a imagem do grupo social negro, como
da periferia, e ao reconhecimento e a exaltação das suas manifestações culturais.
No Brasil, “ser negro” se associa acima de tudo ao fato de ser vítima de violência
institucional; morador das favelas; com ter uma maior dificuldade para acessar à universidade
e para ter participação e representatividade na vida política e social. De maneira geral, este
trabalho permitiu ressaltar a permanência, como elemento da formação ideológica dominante,
de preconceitos étnico-raciais em torno do grupo social negro na atual sociedade brasileira. O
presente estudo possibilitou, também, dar visibilidade para os processos discursivos que se
configuram, junto a outras ações, como formas de resistência da população negra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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REFERÊNCIAS DE SITES

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brasileiro-negro-na-russia/
http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/brasil/2018/03/27/interna_brasil,746592/
jovem-denuncia-burger-king-apos-ser-nomeado-macaco-em-nota-fiscal.shtml
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/macaco-negro-lixo-fernandinho-da-
selecao-brasileira-e-xingado-por-racistas-nas-redes/
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/arrastada-por-carro-da-pm-do-rio-foi-
morta-por-tiro-diz-atestado.html
https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/06/ator-negro-leno-sacramento-tiro.html
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2003/030521_ttrafico.shtml.
ANEXO A – MANDUME

MANDUME
Emicida (Part.Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzik e Raphão Alaafin)

[Refrão: Emicida]
Eles querem que alguém
Que vem de onde nóis vem
Seja mais humilde, baixe a cabeça
Nunca revide, finge que esqueceu a coisa toda
Eu quero é que eles se... !
Eles querem que alguém
Que vem de onde nóis vem
Seja mais humilde, baixe a cabeça
Nunca revide, finge que esqueceu a coisa toda
Eu quero é que eles se... !

(Nunca deu nada pra nóis, caralho!)


(Nunca lembrou de nóis, caralho!)
(Nunca deu nada pra nóis, caralho!)
(Nunca lembrou de nóis, caralho!)

[Verso 1: Drik Barbosa]


Sou Tempestade, mas entrei na mente tipo Jean Grey
Xinguei, quem diz que mina não pode ser sensei?
Jinguei, sim sei, desde a Santa Cruz, playboys
Deixei em choque, tipo Racionais, "Hey Boy! "
Tanta ofensa, luta intensa nega a minha presença
Chega! Sou voz das nega que integra resistência
Truta rima a conduta, surta, escuta, vai vendo
Tempo das mulher fruta, eu vim menina veneno
Sistema é faia, gasta, arrasta Cláudia que não Raia
Basta de Globeleza, firmeza? Mó faia!
Rima pesada basta, eu falo memo, igual Tim Maia
Devasta esses otário, tipo calendário Maia
Feminismo das preta bate forte, mó treta
Tanto que hoje cês vão sair com medo de bu
Drik Barbosa, não se esqueça
Se os outros é de tirar o chapéu, nóiz é de arrancar cabeça

[Verso 2: Amiri]
Mas mano, sem identidade somos objeto da História
Que endeusa "herói" e forja, esconde os retos na História
Apropriação a eras, desses tá na repleto na História
Mas nem por isso que eu defeco na escória
Pensa que eu num vi?
Eu senti a herança de Sundi
Ata, não morro incomum e
Pra variar, herdeiro de Zumbi
Segura o boom, fi
é um e dois e três e quatro, não importa, já que querem eu cego eu "Tô pra ver um daqui
sucumbir! " (não!)
Pela honra vinha Man
Dume: Tira a mão da minha mãe!
Farejam medo? Vão ter que ter mais faro
Esse é o valor dos reais, "caros"
Ao chamado do alimamo: Nkosi Sikelel', mano!
Só sente quem teve banzo
(Entendeu?) Eu não consigo ser mais claro!
Olha pra onde os do gueto vão
Pela dedução de quem quer redução
Respeito, não vão ter por mim?
Protagonista, ele preto sim
Pelo gueto vim, mostrar o que difere
Não é a genital ou o "macaco! " que fere
É igual me jogar aos lobos
Eu saio de lá vendendo colar de dente e casaco de pele

[Verso 3: Rico Dalasam]


Meme de negro é: me inspira a querer ter um rifle
Meme de branco é: não trarão de volta yan, Gamba e Ringue

Arranca meu dente no alicate


Mas não vou ser mascote de quem azeda marmita
Sou fogo no seu chicote
Enquanto a pessoa for morte pra manter a ideia viva
Domado eu não vivo, não quero seu crivo
Ver minha mãe jogar rosas
Sou cravo, vivido entre espinhos treinados
Com as pragas da horta
Pior que eu já morri tantas antes de você
Me encher de bala não marca, nossa alma sorri
Briga é resistir nesse campo de fardas

(Cêloko Cachoeira!)

[Refrão: Emicida]
Eles querem que alguém
Que vem de onde nóis vem
Seja mais humilde, baixa a cabeça
Nunca revide, finge que esqueceu a coisa toda
Eu quero é que eles se... !
Eles querem que alguém
Que vem de onde nóis vem
Seja mais humilde, baixa a cabeça
Nunca revide, finge que esqueceu a coisa toda
Eu quero é que eles se... !

(Nunca deu nada pra nóis, caralho!)


(Nunca lembrou de nóis, caralho!)
(Nunca deu nada pra nóis, caralho!)
(Nunca lembrou de nóis, caralho!)

[Verso 4: Muzzike]
Banha meu símbolo, gora meu manto que eu vou subir como rei
Cês vive da minha cicatriz, eu tô pra ver sangrar o que eu sangrei
Com a mente a milhão, livre como Kunta Kinte, eu vou ser o que eu quiser
Tá pra nascer playboy pra entender o que foi ter as corrente no pé
Falsos quanto Kleber Aran, os vazio abraça
La Revolução Tucana, hip-hop reaça
Doce na boca, lança perfume na mão, manda o mundo se foder
São os nóia da Faria Lima, jão, é a Cracolândia Blasé
Jesus de polo listrada, no corre, corte degradê
Descola o poster do 2pac, que cês nunca vão ser
Original favela, Golden Era, rua no mic
Hoje os boy paga de 'drão, ontem nóis tomava seus Nike
Os vira lata de vila, e os pitbull de portão
Muzzike, filho de faxineira, eu passo o rodo nesses cuzão
Ando com a morte no bolso, espinhos no meu coração
As hiena tão rindo de quê, se o rei da savana é o leão?

[Verso 5: Raphão Alaafin]


Canta pra saldar, negô, seu rei chegou
Sim, Alaafin, vim de Oyó, Xangô
Daqui de Mali pra Cuando, De Iorubá ao Bantu!
Não temos papa, nem na língua ou em escrita sagrada
Não, não na minha gestão, chapa
Abaixa sua lança-faca, espingarda faiada
Meia volta na Barja, Europa se prostra
Sem ideia torta no rap, eu vou na frente da tropa
Sem eucaristia no meu cântico
Me vêem na Bahia em pé, dão ré no Atlântico
Tentar nos derrubar é secular
Hoje chegam pelas avenidas, mas já vieram pelo mar
Oya, todos temos a bússola de um bom lugar
Uns apontam pra Lisboa, eu busco Omonguá
Se a mente daqui pra frente é inimiga
O coração diz que não está errado, então siga!

[Verso 6: Emicida]
Dores em Loop-cínio, os cultes-cínios, quê?
Ao ver o Simonal que cês não vai foder
Grande tipo Ron Mueck, morô muleque? Zé do Caroço
Quer photoshop melhor que dinheiro no bolso?
Vendo os rap vender igual Coca, fato, não, não
Melhor, entre nóis não tem cabeça de rato
É Brasil, exterior, capital interior
Vai ver nóis gargalhando com o peito cheio de rancor
Como prever que freestyles, vários necessários
Vão me dar a coleção de Miley Cyrus
Misturei Marley, Cairo, Harley, Pairo, firmeza
Tipo Mario, entrei pelo cano mas levei as princesa
Várias diss, não sou santo, imã de inveja é banto
Fui na Xuxa pra ver o que fazer se alguém menor te escreve tanto
Tô pelo adianto e as favela entendeu
Considere, se a miséria é foda, chapa, imagina eu
Scorsese, minha tese não teme, não deve, tão breve
Vitória do gueto, luz pra quem serve?
Na trama conhece os louro da fama
Ok, agora olha os preto, chama!

[Refrão: Emicida]
Eles querem que alguém
Que vem de onde nóis vem
Seja mais humilde, baixa a cabeça
Nunca revide, finge que esqueceu a coisa toda
Eu quero é que eles se... !
Eles querem que alguém
Que vem de onde nóis vem
Seja mais humilde, baixa a cabeça
Nunca revide, finge que esqueceu a coisa toda
Eu quero é que eles se... !

(Nunca deu nada pra nóis, caralho!)


(Nunca lembrou de nóis, caralho!)
(Nunca deu nada pra nóis, caralho!)
(Nunca lembrou de nóis, caralho!)

Disponível em: https://www.vagalume.com.br/emicida/mandume-part-drik-barbosa-amiri-


rico-dalasam-muzzik-e-raphao-alaafin.html.

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