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Coomaraswamy
Walt Whitman
1
A historicidade da existência humana de mestres como
Orfeu, Hermes, Buda, Lao Tsé e Jesus Cristo pode ser posta em
dúvida, e a eles se pode atribuir a dignidade superior de uma
realidade mítica. Shankara, à semelhança de Plotino, Agostinho
e Eckhart, foi certamente um homem entre os homens, embora
seja relativamente pouco o que sabemos de sua vida. Brâmane
do sul da Índia, Shankara viveu na primeira metade do século IX
d.C. e fundou uma ordem monástica que existe até hoje. Aos
oito anos de idade tornou-se samnyasin, ou “homem
verdadeiramente pobre”, na qualidade de discípulo de um certo
Govinda e do próprio mestre deste, Gaudapada, autor de um
tratado sobre os Upanichades em que se expõe a doutrina
essencial da não-dualidade do Ser divino. Aos doze anos, viajou
para Varanasi e lá compôs seu famoso comentário sobre o
Brahma Sutra; os comentários sobre os Upanichades e o
Bhagavad Gita foram escritos depois. O grande sábio passou a
maior parte de sua vida vagando pela Índia, ensinando e
debatendo. As viagens e as disputas de argumentos sempre
foram instituições caracteristicamente indianas. Naquela época,
como hoje em dia, o sânscrito era a língua franca dos eruditos,
assim como o latim foi durante séculos a língua franca da
Europa ocidental; e o debate livre e público era hábito tão
reconhecido que quase todas as cortes tinham saguões
especialmente construídos para abrigar os mestres e
debatedores que viajavam pelo país.
A metafísica tradicional que se liga ao nome de Shankara é
chamada Vedanta, termo que ocorre nos Upanichades e significa
“fim do Veda”, tanto no sentido de “parte posterior” quanto de
“significado último”; ou Atmavidya, a doutrina do conhecimento
do verdadeiro “si mesmo” ou “essência espiritual”; ou ainda
*
Originalmente, uma palestra proferida para a seccional da Sociedade Phi Beta
Kappa no Radcliffe College; o texto em sua forma atual foi publicado em The
American Scholar, VIII (1939). Tradução para o português de Marcelo Brandão
Cipolla em 12/2008-01/2009.
Advaita, “Não-dualidade”, termo que, ao mesmo tempo em que
nega a dualidade, não faz afirmação alguma acerca da natureza
da unidade e não deve ser entendido como análogo aos
monismos ou panteísmos dos ocidentais. O que se ensina nessa
metafísica é uma gnose (jnana).
Shankara não foi de maneira alguma o fundador,
descobridor ou revelador de uma nova religião ou filosofia; sua
grande obra de expositor consistiu numa demonstração da
unidade e da coerência da doutrina védica e numa explicação de
suas aparentes contradições: Shankara correlacionou as
diferentes escolas da ortodoxia, de um lado, com os pontos de
vista nelas implícitos, de outro. Em particular, e exatamente
como fez o escolasticismo europeu, ele distinguiu entre duas
vias complementares que levam a Deus: a teologia afirmativa e
a teologia negativa. Na via da afirmação ou do conhecimento
relativo, certas qualidades superlativas são predicadas da
Identidade Suprema, ao passo que na via da negação todas as
qualidades são abstraídas. O famoso “não, não” (neti, neti) dos
Upanichades, que constitui a base do método de Shankara como
constituíra a do Buda, depende do reconhecimento da verdade –
expressa por Dante, entre muitos outros – de que existem
realidades que estão além do alcance do pensamento discursivo
e só podem ser compreendidas não afirmando-se certas coisas a
respeito delas, mas negando-se que elas sejam isto ou aquilo.
O estilo de Shankara não só é sutil como também é dotado
de grande originalidade e poder. Vou citar, de seu comentário
sobre o Bhagavad Gita, um trecho que tem ainda a vantagem de
nos pôr frente à frente, de uma vez por todas, com o problema
central do Vedanta – o de discriminar o que “eu mesmo” sou
realmente, e não apenas segundo meu modo de pensar. “Como
é possível”, pergunta-se ele, “que haja professores que, como os
homens comuns, digam ‘Eu sou fulano de tal’ e ‘Isto é meu’?
Ouve: é porque o suposto conhecimento deles consiste em
considerar o corpo como ‘eu’.” No Comentário sobre o Brahma
Sutra, ele enuncia em meras quatro palavras sânscritas aquela
que, do princípio ao fim, continua sendo na metafísica indiana a
doutrina perpétua segundo a qual o Espírito imanente dentro de
cada um é o único conhecedor, agente e transmigrador.
A literatura metafísica que está por trás das exposições de
Shankara consiste essencialmente nos quatro Vedas, juntamente
com os Brahmanas e seus Upanichades, todos considerados
revelados, eternos, datáveis (pelo menos em forma escrita) de
antes de 500 a.C., e mais o Bhagavad Gita e o Brahma Sutra
(datáveis de antes do começo da era cristã). Os Vedas são livros
litúrgicos; os Brahmanas expõem o ritual; e os Upanichades são
dedicados à doutrina de Brahma ou Theologia Mystica, que é um
dado tácito da liturgia e dos ritos. O Brahma Sutra é um
compêndio resumidíssimo da doutrina dos Upanichades, e o
Bhagavad Gita é uma exposição da mesma adaptada à
compreensão daqueles cuja atuação está mais ligada à vida
ativa que à vida contemplativa.
Por várias razões, que vou tentar explicar, será muito mais
difícil expor o Vedanta do que seria expor as teses pessoais de
um “pensador” moderno, ou mesmo de um pensador como
Platão ou Aristóteles. Nem a língua inglesa moderna nem os
modernos jargões da filosofia e da psicologia nos fornecem um
vocabulário adequado; do mesmo modo, a educação moderna
não nos proporciona a formação ideológica que seria essencial
para facilitar a comunicação. Terei de fazer uso de uma
linguagem puramente simbólica, abstrata e técnica, como se
estivesse falando dos ramos mais complexos da matemática;
vale lembrar que Emile Mâle compara o simbolismo cristão a um
“cálculo”. Há, porém, esta vantagem: o assunto a ser
comunicado e os símbolos a serem empregados não são
peculiarmente indianos, como tampouco são especificamente
gregos, islâmicos, egípcios ou cristãos.
Em geral, a metafísica faz uso de símbolos visuais (cruzes
e círculos, por exemplo) e, acima de tudo, do simbolismo da luz
e do sol – diante do qual, como diz Dante, “nenhum objeto
sensível no mundo inteiro é mais digno de ser tomado como tipo
de Deus”. Mas também terei de usar termos técnicos, como
essência e substância, potência e ato, espiração e despiração,
semelhança exemplar, eviternidade, forma e acidente.
Distinguir-se-á a metempsicose da transmigração e ambas da
“reencarnação”. Será necessário distinguir a alma do espírito.
Para saber se determinada palavra em sânscrito poderá em
alguma ocasião ser traduzida pela palavra “alma” (anima,
psyche), teremos de conhecer os múltiplos sentidos em que este
última palavra foi empregada na tradição européia; que espécie
de alma pode ser “salva”; que espécie de alma o Cristo nos
manda “odiar” para que possamos ser seus discípulos; a que
espécie de alma Eckhart se refere quando diz que a alma deve
“matar a si mesma”. Teremos de saber o que Fílon queria dizer
com a expressão “alma da alma”; e teremos de nos perguntar
em que medida os animais podem ser considerados “sem alma”,
não obstante a palavra “animal” significar literalmente “com
alma”. Teremos de distinguir a essência da existência. E, por
fim, é possível que eu tenha de lançar mão do termo composto
“agora-e-sempre” * para expressar o sentido pleno e original de
*
Neste passo, o autor cunha o neologismo nowever, traduzido por “agora-e-
sempre”. (N. do T.)
palavras ou expressões como “repentinamente”,
“imediatamente” e “agora mesmo”.
Os textos sagrados da Índia são conhecidos pela maioria
dos ocidentais somente através de traduções feitas por eruditos
conhecedores de lingüística, não de metafísica; e foram
comentados e explicados – ou, talvez melhor, sumariamente
descartados com a mera aparência de explicação – sobretudo
por estudiosos munidos de todos os preconceitos dos
naturalistas e antropólogos, estudiosos cuja capacidade
intelectual foi a tal ponto inibida por suas faculdades de
observação que já não conseguem distinguir entre realidade e
aparência, entre o Sol Superno da metafísica e o sol físico que
vêem com os olhos do corpo. Além destes, a literatura indiana
foi estudada e explicada por cristãos proselitistas cujo objetivo
principal era demonstrar a falsidade e o absurdo das doutrinas
envolvidas; ou, por fim, pelos teosofistas, que, com a melhor das
intenções e o pior dos resultados, deformaram as doutrinas ao
ponto da caricatura.
Para piorar, o homem culto de hoje em dia perdeu
completamente o contato com os modos de pensar e os
aspectos intelectuais da doutrina cristã que mais se aproximam
daqueles das tradições védicas. O conhecimento do Cristianismo
moderno de nada valerá, pois o sentimentalismo profundo de
nossos dias reduziu ao grau de mero moralismo aquilo que em
outras épocas foi uma doutrina intelectual – moralismo que mal
pode ser distinguido de um humanismo pragmático. Não se pode
afirmar que um europeu esteja preparado para o estudo do
Vedanta a menos que tenha lido e compreendido em alguma
medida as doutrinas de Platão, Fílon, Hermes, Plotino, dos
Evangelhos (especialmente o de João), de Dionísio e, por fim, de
Eckhart; este, com a possível exceção de Dante, pode ser
considerado, do ponto de vista indiano, como o maior de todos
os europeus * .
O Vedanta não é uma “filosofia” no sentido atual da
palavra; só poderá ser assim considerado caso o termo tome o
sentido que tem na expressão Philosophia Perennis, ou se
tivermos em mente a “filosofia” hermética ou aquela
“Sabedoria” por quem Boécio foi consolado. As filosofias
modernas são sistemas fechados que empregam os métodos da
dialética e partem do princípio de que os opostos são
mutuamente excludentes. Na filosofia moderna, as coisas são x
ou não-x; na filosofia eterna, isso depende do nosso ponto de
vista. A metafísica não é um sistema, mas uma doutrina
*
Atualmente, uma compreensão profunda das doutrinas de Guénon e Schuon pode
complementar o cabedal doutrinal aqui estabelecido pelo autor. (N. do T.)
coerente; não trata meramente das experiências condicionadas
e quantitativas, mas da possibilidade universal. Considera,
assim, possibilidades que não são possibilidades de
manifestação ou que não são possibilidades formais; ou, ainda,
postula conjuntos de possibilidades que podem se realizar num
determinado mundo. A realidade última da metafísica é a
Identidade Suprema, na qual se resolvem as oposições de todos
os contrários, até mesmo do ser e do não-ser; na metafísica, os
“mundos” e os “deuses” são níveis de referência e entidades
simbólicas que não são nem lugares nem indivíduos, mas
estados de ser que podem ser realizados dentro de você.
Os filósofos têm teorias pessoais acerca da natureza do
mundo; a filosofia enquanto disciplina acadêmica outra coisa
não é senão um estudo da história dessas opiniões e dos
vínculos históricos que elas guardam entre si. Encoraja-se o
filósofo recém-formado a desenvolver suas próprias opiniões, na
esperança de que elas representem um aperfeiçoamento em
relação às teorias anteriores. Não contemplamos, como a
Filosofia Perene, a possibilidade de conhecer a Verdade de uma
vez por todas; menos ainda colocamos diante de nós o objetivo
de ser essa Verdade.
A “filosofia” metafísica é chamada “perene” em virtude de
sua eternidade, universalidade e imutabilidade; é ela a
“Sabedoria incriada, igual agora a como sempre foi e sempre
será”, de que falava Agostinho; é a religião que, como diz o
mesmo autor, só passou a ser chamada “Cristianismo” depois da
vinda de Cristo. O que foi revelado no princípio contém
implicitamente toda a verdade; e enquanto a tradição é
transmitida sem desvios – enquanto, em outras palavras, a
cadeia de mestres e discípulos permanece ininterrupta – não são
possíveis nem a incoerência nem o erro. Por outro lado, a
compreensão da doutrina deve ser perpetuamente renovada;
não é uma questão de palavras. O fato de a doutrina ser a-
histórica não exclui de modo algum a possibilidade, ou mesmo a
necessidade, de uma perpétua explicitação de suas fórmulas,
uma adaptação dos ritos originalmente praticados e uma nova
aplicação de seus princípios às artes e às ciências. Quanto mais
a humanidade se afasta de sua primitiva auto-suficiência, maior
a necessidade de tal aplicação. É possível traçar uma história
dessas explicitações e adaptações. Assim é que se estabelece
uma distinção entre o que foi “ouvido” no princípio e o que
depois foi “lembrado” * .
*
O autor faz aqui uma referência indireta aos dois graus de principialidade da
tradição hindu e de toda tradição revelada: a shruti, “audição”, que compreende a
revelação original, e a smrti, “lembrança”, que compreende todos os
desenvolvimentos e adaptações a que a revelação original deu causa no decorrer
Um desvio ou heresia só pode acontecer quando o
ensinamento original foi mal compreendido ou pervertido de
algum modo ou sob algum aspecto. Dizer “eu sou panteísta”, por
exemplo, equivale simplesmente a confessar que “não entendo
nada de metafísica”, do mesmo modo que dizer “dois e dois são
cinco” equivale a confessar que “não entendo nada de
matemática”. Dentro da tradição em si não pode haver
quaisquer teorias ou dogmas contraditórios ou mutuamente
excludentes. Os chamados “seis sistemas da filosofia indiana”,
por exemplo (e, nessa expressão, só se justificam as palavras
“seis” e “indiana”) * , não são teorias mutuamente contraditórias
e exclusivas. Esses assim-chamados “sistemas” não são nem
mais nem menos ortodoxos que a matemática, a química e a
botânica, as quais, embora sejam disciplinas separadas e mais
ou menos científicas, não deixam de ser ramos de uma única
“ciência”. A Índia, com efeito, faz uso do termo “ramos” para
denotar aquelas que, na opinião pouco abalizada do indologista,
são “seitas” ou “facções”. É precisamente por não existirem
“seitas” no seio da ortodoxia bramânica que a intolerância, no
sentido europeu, é um fenômeno praticamente desconhecido na
história da Índia – e é pelo mesmo motivo que para mim é tão
fácil pensar nos termos da filosofia hermética quanto nos do
Vedanta. É preciso que haja “ramos” porque todo conhecimento
só pode se operar segundo a modalidade do conhecedor; por
mais que estejamos convictos de que todas as vias conduzem ao
único Sol, é igualmente evidente que cada homem deve escolher
aquela via que parte do ponto em que ele mesmo se encontra no
princípio da jornada. Pelas mesmas razões, o Hinduísmo nunca
foi uma fé missionária. É verdade, talvez, que a tradição
metafísica foi preservada de modo mais pleno e mais perfeito
em solo indiano que na Europa. Mas isso só significa que o
cristão pode aprender com o Vedanta a compreender melhor a
sua própria “via”.
O filósofo procura provar suas teses. Para o metafísico,
basta demonstrar que uma doutrina supostamente falsa envolve
uma contradição entre os primeiros princípios. O filósofo que
defende a tese da imortalidade da alma, por exemplo, procura
descobrir provas da sobrevivência da personalidade; para o
metafísico, basta lembrar que “o fim deve ser igual ao princípio”
– donde se conclui que uma alma, que por pressuposto foi criada
no tempo, não pode senão acabar também no tempo. Não há
“prova da sobrevivência da personalidade” que possa convencer
o metafísico, do mesmo modo que não há prova capaz de
II
*
São Dionísio, o Areopagita, autor cristão de tratados metafísicos em que se
expõem os fundamentos da teologia apofática ou negativa. Um de seus livros é
chamado Teologia Mística. (N. do T.)
O Vedanta pressupõe uma onisciência independente de
qualquer fonte de conhecimento exterior a si mesma e uma
bem-aventurança independente de qualquer fonte exterior de
prazer. Dizendo “Tu és Isto” (Tat tvam asi), o Vedanta afirma
que o homem leva em si, e é em si mesmo, “aquela única coisa
que, quando é conhecida, todas as coisas são conhecidas”,
aquela “por amor da qual todas as coisas são queridas”. Afirma
que o homem não tem consciência desse tesouro oculto dentro
de si porque herdou uma ignorância inerente à própria natureza
do veículo psicofísico com o qual erroneamente se identifica. O
objetivo de todo ensinamento é dissipar essa ignorância;
penetradas as trevas, nada resta senão a Gnose da Luz. A
técnica de educação, portanto, é sempre iconoclasta,
destruidora das formas; não se trata de uma transmissão de
informação, mas da educação de um conhecimento latente.
A “grande fórmula” dos Upanichades é “Tu és Isto”. Neste
passo, “Isto” é evidentemente o Átman ou Espírito, o Espírito
Santo, pneuma em grego, ruh em árabe, ruah em hebraico,
Amon em egípcio, ch’i em chinês; Átman é a essência espiritual,
indivisível quer na transcendência, quer na imanência; e sejam
quantas forem as direções em que ele se estenda ou das quais
se retire, permanece imóvel tanto no sentido intransitivo quanto
no transitivo. Presta-se a todas as modalidades do ser, mas
nunca se torna isto ou aquilo. Tu és Isto: aquele fora do qual
tudo é aflição. “Isto”, em outras palavras, é Brahman, ou Deus
no sentido geral de Logos ou Ser, considerado como princípio
universal de todo o Ser – expansivo, manifestante e produtivo,
fonte e origem de todas as coisas, todas as quais estão “nele”
como o finito no infinito, embora não sejam “parte” dele, uma
vez que o infinito não tem partes.
A partir de agora, usarei principalmente a palavra Átman.
Embora esse Átman, que sopra e ilumina, seja primariamente
“Espírito”, pois é esse divino Eros a essência que dá vida a todas
as coisas e constitui assim seu verdadeiro ser, a palavra Átman
também é usada reflexivamente com o sentido de “si” ou “si
mesmo” – quer “eu mesmo” em qualquer sentido possível dessa
noção, mesmo que grosseiro, quer numa referência à pessoa ou
ao si mesmo espiritual (o único sujeito cognoscente, essência de
todas as coisas, que deve ser distinguido do “eu” afetado e
contingente composto do corpo e de tudo aquilo que chamamos
“alma” quando falamos de “psicologia”). Estão assim envolvidos
dois “si mesmos” muito diferentes; e, assim, os tradutores têm
por costume traduzir Átman por “si mesmo”, escrito com inicial
maiúscula ou minúscula segundo o contexto * . São Bernardo, por
*
Outras traduções falam de “eu” e “Eu”, ou ainda “eu empírico” e “Eu Superior”.
(N. do T.)
exemplo, traça a mesma distinção quando diferencia minha
propriedade (proprium) de meu verdadeiro ser (esse). Outra
formulação indiana distingue o “conhecedor do campo” – ou
seja, o Espírito como único sujeito cognoscente em todas as
coisas, o mesmo em todos – do “campo”, ou seja, o composto de
corpo e alma acima definido, englobando ainda as pastagens
dos sentidos e abarcando, portanto, todas as coisas que podem
ser consideradas objetivamente. Em si mesmo, o Átman ou
Brahman não pode ser assim considerado: “Como poderias
conhecer o conhecedor do conhecimento?” – ou, em outras
palavras, como a primeira causa de todas as coisas poderia ser
uma coisa entre outras?
O Átman não tem partes, mas é aparentemente dividido e
identificado como diverso pelas diferentes formas de seus
veículos, dos camundongos aos homens, do mesmo modo que o
espaço dentro de um vaso é aparentemente assinalado e
distinguível do espaço fora dele. Neste sentido se pode dizer que
“ele é um em si mesmo, mas é muitos em seus filhos”, e que
“participando-se, ele preenche estes mundos”. Isto, porém,
somente no mesmo sentido em que a luz preenche o espaço ao
mesmo tempo em que, em si mesma, não sofre nenhuma
descontinuidade; as distinções entre as coisas não dependem de
diferenças na luz, mas de diferenças no poder de reflexão das
próprias coisas. Quando o vaso se quebra, quando se desfaz o
recipiente que contém a vida, percebemos que o espaço interno
aparentemente delimitado na verdade não tinha limites, que a
“vida” tem um sentido que não se confunde com o do “viver”.
Dizer que o Átman é ao mesmo tempo participado e
imparticipável, “indiviso entre coisas divididas”, não limitado por
posições locais mas ao mesmo tempo atual em toda parte, é
outra maneira de afirmar uma doutrina com a qual estamos mais
familiarizados: a da Onipresença.
Ao mesmo tempo, cada uma dessas aparentes definições
do Espírito representa a atualização no tempo de uma de suas
possibilidades de manifestação formal, possibilidades essas que
são em número indefinido. A existência da “aparição” começa
com o nascimento, termina com a morte e não se repete jamais.
Tudo o que sobrevive de Shankara é um legado. Por isso,
embora possamos falar dele como se ainda fosse um poder vivo
sobre a terra, o homem em si é apenas uma memória. Por outro
lado, o Espírito gnóstico, o Conhecedor do campo, o Conhecedor
de todos os nascimentos, retém perpetuamente o conhecimento
imediato de cada uma de suas modalidades, um conhecimento
que não tem nem antes nem depois (em relação ao
aparecimento ou desaparecimento de Shankara no campo da
nossa experiência). Decorre daí que, no ponto onde
conhecimento e ser se identificam, onde natureza e essência são
uma única e mesma coisa, o ser de Shankara não tem princípio
nem jamais terá fim. Em outras palavras, há um sentido em que
podemos falar com propriedade não só do “Espírito” e da
“Pessoa”, mas do “meu espírito” e da “minha pessoa”, apesar
de o Espírito e a Pessoa serem uma substância perfeitamente
simples e incomposta. Voltarei daqui a pouco a falar do sentido
da “imortalidade”, mas por enquanto quero usar o que acabou
de ser dito para explicar o significado da distinção não-sectária
de pontos de vista. Enquanto o ocidental estudioso de “filosofia”
tem o Samkhya e o Vedanta na conta de dois “sistemas”
incompatíveis, uma vez que o primeiro trata da libertação de
uma pluralidade de Pessoas e o último, da liberdade perene de
uma Pessoa inconumerável, essa antinomia simplesmente não
existe para o hindu. Para explicar isso, podemos assinalar que,
nos textos cristãos “Vós sois todos um em Cristo Jesus” e “Quem
quer que esteja unido ao Senhor é um só espírito”, os plurais
“vós” e “quem quer que” representam o Samkhya, ao passo que
o singular “um” e “um só” representa o Vedanta.
Nesse sentido, a validade de nossa simples consciência de
ser, desvinculada da noção de ser Fulano de Tal com tais e tais
características, é tida como um dado primário da realidade. Não
se deve confundir isto com o argumento “Cogito ergo sum”. O
fato de “eu” sentir ou “eu” pensar não é prova de que “eu” sou;
pois, acompanhando os vedantistas e budistas, podemos dizer
que o “eu” é apenas um conceito, que “os sentimentos se
sentem” e “os pensamentos se pensam” e que tudo isso faz
parte do “campo” que o espírito contempla, do mesmo modo
como poderíamos contemplar um retrato que é de certo modo
uma parte de nós, embora não sejamos parte dele de modo
nenhum. É assim que por fim se coloca a questão: “Quem és?”
“O que é aquele ‘si mesmo’ a que devemos recorrer?” Quando
falamos de um “conflito interno”, reconhecemos que o “si
mesmo” pode ter mais de um sentido: quando dizemos que “o
espírito está pronto, mas a carne é fraca”; ou quando, citando o
Bhagavad Gita, asseveramos que “o Espírito está em guerra com
tudo quanto não é o Espírito”.
Acaso sou “eu” o espírito ou a carne? (Temos de nos
lembrar sempre que, em metafísica, a “carne” inclui todas as
faculdades sensoriais e recognitivas da “alma”.) Se nos pedirem
que olhemos nosso reflexo num espelho, podemos talvez
concluir que lá vemos “nós mesmos”; se formos um pouco
menos ingênuos, consideraremos a imagem da psique refletida
no espelho da mente e entenderemos que é isso que “eu” sou;
ou, num caso ainda mais favorável, compreenderemos que não
somos nenhuma dessas coisas – que elas existem porque nós
somos, e não nós que só existimos na medida em que elas são.
O Vedanta afirma que “eu”, em minha essência, sou tão pouco
afetado por todas essas coisas quanto um dramaturgo é afetado
pela contemplação dos sofrimentos e alegrias daqueles que se
movimentam no palco – neste caso, no palco da “vida” (em
outras palavras, no “campo” ou no “pasto”, considerado como
algo distinto de seu aquilino sobrevidente, o Homem Universal).
Nesse sentido, todo o problema do fim último do homem, de sua
libertação, bem-aventurança ou deificação, se reduz a que ele
não encontre mais a “si mesmo” “neste homem”, mas sim no
Homem Universal, na forma humanitatis, que é independente de
todas as ordens de tempo e não tem princípio nem fim.
*
“O que é, pois, que o homem deve investigar nesta vida? Deve conhecer a si
mesmo.” (N. do T.)
**
“Se não sabes quem és, vai-te!” (Cântico dos Cânticos, I, 7). (N. do T.)
o conteúdo da eternidade não muda. Portanto, como diz o
Bhagavad Gita, “Nunca eu não existi, e nunca tu não exististe.”
A relação de identidade entre “Isto” e “tu” no logos “Tu és
Isto” é expressa no Vedanta por designações como “Raio do Sol”
(implicando filiação) ou pela fórmula bhedâbheda (cujo sentido
literal é “distinção sem diferença”). É expressa pelo símile dos
amantes, abraçados tão de perto que já não têm consciência de
“dentro ou fora”, e pela equação que fazem os vaishnavas * :
“Cada um é ambos.” Expressa-se também na concepção
platônica da unificação do homem interior e do homem exterior;
na doutrina cristã da participação no corpo místico de Cristo; na
frase “quem quer que esteja unido ao Senhor é um espírito”; e
na fórmula admirável de Eckhart, “fusão sem confusão”.
*
Aqueles para quem Vishnu representa a divindade suprema. (N. do T.)