Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
Brasília, 2008.
ii
Brasília, 2008.
iii
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
____________________________________
Brasília, 2008.
iv
RESUMO
ABSTRACT
The present work aim to comprehend if and how identity changes are produced on
African students of the University of Brasília who live a “transcultural experience”, this
concept comprehended as the configuration that takes, in the individual, subjective
ambit, the cultural encounters, shocks, and negotiations. To show that on multicultural
and post-modern sceneries of Occident still exists moments and social spaces where
traditional and collectives identities are extremely important reference points for
individuals, principally for those who stay at the boarders of globalization, was also
very important to undertake this investigation. Were used, according to a qualitative
approach, the methods of observation – along the african students community in
general, and interview – along students of four countries: Cape Verde, Guinea-Bissau,
Saint Tomé and Príncipe and Nigeria, in order to produce an authentic and complex
information that allowed us to evaluate the motivations, perspectives, thoughts and
subjective senses productions that the students in question produce about Brazil, about
their native countries and about their selves on different moments of their experience in
Brazil. It was possible to identify some central aspects witch, articulated, offer us basis
to comprehend the identity changes suffered by students at issue, as well as how this
changes happen. The perspectives produced by these students in relation to the
experience of following a course of studies in another country; the shock between the
expectations and the imaginary of Brazil that those students have, and the social and
cultural realities they found in Brazil and in Brasília; the human, personal and
intellectual progresses produced by the needs and lacks (parents, friends, home, etc)
these students face in Brazil; and the cohesion and identification dynamics produced
inside the different groups of african students are the cardinal points to explain and map
the possibilities of identity changes in these individuals. It was possible to conclude that
while living a transcultural experience the students may suffer a multiplicity of identity
changes, due to the cultural adaptations and the social and personal changes. Is also
evidenced, however, that identity is a complex system where many times antagonistic
subjective senses and confuse, incongruent identities processes are generated. In a
general way, the identity changes are possible due to the production of new subjective
senses about what the individual lives and about what the individual is. Identity
accompanies those productions by the creation of new possibilities and facets for the
new contexts and needs of the individual.
vii
SUMÁRIO
1 Introdução e Justificativa……………………………………………………........... 1
2.3.2 O “Multiculturalismo”.................................................................................... 21
3 Metodologia............................................................................................................... 43
3.2 Problema............................................................................................................... 45
3.3 Objetivos............................................................................................................... 46
3.5.1 Procedimentos................................................................................................. 54
3.5.2 A Observação.................................................................................................. 58
3.5.3 A Entrevista.................................................................................................... 65
viii
5 Conclusão................................................................................................................. 122
1. Introdução e Justificativa
A formação e consolidação das identidades, assim como o peso simbólico que estas
carregam e imprimem aos indivíduos, têm sido foco de ampla produção intelectual dentro das
Ciências Sociais desde as preocupações teóricas de alguns pensadores principais que
trouxeram por primeira vez as diversas facetas desta problemática à luz. Cientistas e teóricos
como Sigmund Freud, Norbert Elias, Erving Goffman, Michel Foucault e diversos outros
contribuíram de maneira relevante e conferiram importância de primeira ordem aos processos
pelos quais os indivíduos constroem suas identidades, bem como os processos pelos quais
estas identidades se modificam, ajustam e relacionam dentro da vida social. Mais
recentemente, com o advento, dentro das ciências humanas, dos paradigmas e teorias que se
focam na chamada “pós-modernidade, assim como através do surgimento do campo dos
“Estudos Culturais”, muito têm se produzido sobre a questão da identidade.
É assim que hoje encontramos uma vasta gama de trabalhos que tentam relacionar a
problemática identitária com os processos e relações dinâmicas do mundo pós-moderno, bem
como mostrar que novas identidades e processos identitários se configuram e sobressaem no
mundo contemporâneo. Entre os muitos autores que seguem esta linha argumentativa
podemos nos ater a teóricos do calibre de Zygmunt Bauman, Stuart Hall, Homi Bhabha,
Kevin Robins e muitos outros. Em seus principais trabalhos estes autores lidam com o
conceito de identidade ora segundo os processos de “descentramento” e “deslocamento” do
mundo moderno, mostrando como “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o
mundo social estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo
moderno, até aqui visto como um sujeito unificado.” (Hall, 2006) Ora segundo os fenômenos
culturais e simbólicos que se manifestam no caráter migratório e multicultural do mundo
contemporâneo, tentando mostrar que “o processo de hibridação cultural gera algo diferente,
algo novo e irreconhecível, uma nova área de negociação de sentido e representação”
(Bhabha, 1994)
De fato, como indicado pela citação acima, o tema da identidade não será o único a ser
abordado nesta pesquisa. Como o título indica, esta pesquisa tratará também da questão dos
encontros e choques culturais – tema tratado no meu trabalho sob a idéia e o conceito de
“transculturação”, fenômenos estes que no mundo atual estão intimamente relacionados com
as diversas questões identitárias. Historicamente, os encontros e choques culturais foram
decisivos para que a história humana se enveredasse pelo caminho do qual hoje somos fruto, e
2
hoje estes fenômenos apresentam grande importância num mundo onde as distâncias físicas e
simbólicas diminuem cada vez mais rápido e os encontros são cada vez mais inevitáveis.
Sabemos que historicamente, os encontros entre culturas e os resultados por estes
gerados foram de importância sem igual para o decorrer da história humana sobre nosso
planeta. Desde as primeiras migrações humanas e os primeiros encontros, até os êxodos e
diásporas modernos socialmente provocados, passando pelas grandes navegações e
descobrimentos, o colonialismo, o tráfico de negros africanos e o imperialismo; o choque e
mescla entre culturas têm propiciado combustível e matéria prima para o surgimento dos mais
variados contextos e processos sociais em todos os momentos da humanidade.
Hoje em dia, mais uma vez, o tema da “transculturação” vem recebendo muita
importância no mundo contemporâneo devido à relevância dos entrosamentos culturais -
comuns principalmente no mundo ocidental - que definem ao mesmo tempo que
problematizam um grande número de culturas, sociedades, regiões e identidades do mundo
atual. Intimamente ligada com a questão da identidade, a transculturação e sua base teórica
ganha força e voz nos discursos e nas idéias “pós-coloniais” e “multiculturais” que tentam
esclarecer, desmembrar, e relativizar a idéia de modernidade através do conhecimento, e da
valorização dos inúmeros povos, culturas e histórias que estão implicados nesta idéia. O
campo científico dos “Estudos Culturais” é o mais recente núcleo produtor de pensamento e
teorias sobre os embates culturais e o que estes processos acarretam para as identidades dos
indivíduos que neles se envolvem. Autores como Homi Bhabha e Stuart Hall têm contribuído
com novos conceitos e prismas teóricos, os quais serão debatidos ao longo deste trabalho.
Ao ter contato com todas estas idéias e discussões através das aulas e do
aprofundamento teórico que os cursos de Antropologia e Sociologia oferecem, tive a
oportunidade e a capacidade de melhor compreender e analisar os processos sociais que vejo
no meu cotidiano familiar e no meu dia-a-dia dentro da Universidade. Por ser fruto de um
típico processo transcultural - ter abruptamente abandonado meu país de origem e ter sido
obrigado a plantar raízes em outra realidade cultural; não simplesmente aprendi ou adquiri o
conhecimento sobre as temáticas nesta pesquisa trabalhadas; esse conhecimento já estava em
mim presente em forma de experiência e vivência, eu apenas o compreendi de uma maneira
diferente, mais analítica e racional. Da mesma maneira passei a compreender aquela parte do
meu círculo familiar e de amigos, assim como de meus vínculos mais pessoais que também
estão vivenciando estas experiências de transculturação e abalo identitário: meus pais e meus
amigos, amigas e namorada africanos, estudantes no Brasil. Não é de estranhar que tenha me
encantado e dedicado a esta temática que me ajuda de maneira tão profícua a entender os
3
processos pelos quais meus pais, amigos e companheira, e principalmente eu mesmo, sou o
que sou, penso o que penso e quero o que quero.
A importância desta pesquisa é justamente essa, a de entender como a experiência da
transculturação se conecta com a formação das identidades dentro de indivíduos confusos e
divididos entre mundos, línguas e culturas diferentes, indivíduos que tentam se ajustar da
melhor maneira possível à uma nova realidade cultural que os engloba, tendo sempre que
“negociar” e se posicionar entre os códigos culturais de seu país de origem e aqueles a que
está sendo exposto na nova realidade. Ao entender o que é um processo de “transculturação”,
assim como a maneira pela qual as identidades se formam e principalmente os processos que
no mundo contemporâneo – principalmente no Ocidente, do qual meu universo de pesquisa
faz parte – estão agindo de maneira decisiva sobre os indivíduos e suas identidades, seremos
capazes de trabalhar mais acuradamente com imigrantes de todo tipo, assim como estudantes
ou profissionais estrangeiros que por ventura cruzem seus destinos com o Brasil.
4
Como já foi dito anteriormente, a presente pesquisa visa basicamente inserir aquilo
que chamo de “experiência transcultural” nas discussões contemporâneas sobre identidade,
sua produção e modificação. Para tanto, neste espaço de análise teórica, pretendo me
aprofundar no estudo e na revisão da literatura produzida sobre os diferentes elementos
constituintes da pesquisa.
Começarei por analisar em termos gerais, e sob os prismas de alguns autores
destacados, o período contemporâneo ao qual muitos chamam “pós-modernidade”. As
abordagens de Bauman e Giddens serão preponderantes neste momento dada a pertinência e
abrangência dos seus estudos e conclusões, junto com o fato de defenderem posições
diferentes dentro da temática. Elucidar algumas das características fundamentais do
controvertido período “pós-moderno” nos facilitará a compreensão das variantes específicas
de compreender e conceituar a identidade que se apresentam na “pós-modernidade”.
Em seguida passarei à análise do campo teórico dos chamados “Estudos Culturais”.
Além de delinear as preocupações fundamentais deste recente campo de estudo, tratarei
também das principais concepções teóricas que alguns dos principais autores deste campo
utilizam para definir e tratar a identidade. Logo após apresentarei o conceito de
“transculturação” e os principais pontos em que este conceito pode contribuir com as
construções teóricas dos Estudos Culturais, assim como a minha idéia do que seja a
“experiência transcultural”.
num período chave para a compreensão daquilo que o mundo humano é hoje. Esta
compreensão do hoje, no entanto, torna-se difícil e ambígua, dado o advento de novos
fenômenos, ontologicamente autênticos e extremamente radicais na sua capacidade de
transformação. Fenômenos como o empoderamento da informação e do mercado em
detrimento do Estado-nação, assim como a globalização levam a discussões sobre se a
humanidade (na verdade uma pequena parte dela) já estaria presenciando uma nova ordem de
fenômenos, um novo paradigma do real, uma nova era.
Esta nova “situação” da realidade humana é, na verdade, um fato. Estudiosos de todos
os campos do conhecimento admitem e ressaltam as mudanças que pouco a pouco vão se
instaurando na sociedade. Na verdade qualquer pessoa com um mínimo de inserção na
realidade – inclusive aquela parcela da população que ainda não é protagonista neste processo
- é capaz de sentir propriamente as mudanças, seja através dos meios de difusão de
informação que relatam acontecimentos novos e “inovadores” todos os dias, seja através da
simples contemplação da mudança de caráter da realidade através do tempo.
Nas áreas do conhecimento social, principalmente na Sociologia, existe hoje um forte
debate sobre as mudanças a que está sujeito o mundo contemporâneo. Uma infinidade de
autores têm discutido sobre estes acontecimentos e diversos esquemas teóricos e conceituais
têm sido produzidos para explicar a nova realidade. Eis que surgem os famosos termos: “Pós-
modernidade”; “Sociedade de Risco”; “Sociedade de Consumo”; “Sociedade de Informação”;
“Sociedade pós-industrial” e “Modernidade Tardia” entre outros. Com o fim de ilustrar de
maneira geral alguns dos principais traços desta nova realidade humana, explorarei algumas
das concepções de dois autores que sobressaem ao tratar esta temática: Zygmunt Bauman e
Anthony Giddens. Escolho estes autores, não apenas pelas proposições que fazem e
conclusões a que chegam e pelo amplo reconhecimento que tem tido no âmbito intelectual da
questão da modernidade e suas conseqüências, mas também porque exprimem
posicionamentos diferentes dentro da questão, o que a ilustra de uma maneira mais complexa.
A diferença entre estes autores pode ser esquematizada com base em duas
considerações principais. Em primeiro lugar, enquanto Giddens pontualmente enfatiza que o
que presenciamos hoje em dia é uma etapa de revelação e “encontro” da modernidade, apenas
uma etapa onde saem à luz os processos e tendências mais radicais da própria modernidade,
período o qual este autor denomina de “Modernidade tardia”; Bauman oscila entre considerar
o período contemporâneo como uma etapa radical da modernidade ao igual que Giddens - a
famosa “Modernidade Líquida”, ou reconhecer que estamos vivendo já na era pós-moderna.
Em segundo lugar encontramos uma ligeira mudança de foco na análise teórica de ambos os
6
globalização e pelo mercado. A possibilidade de uma construção mais livre e menos fixa de
sua própria identidade é um exemplo de uma destas novas conquistas do indivíduo. Este não
precisa mais estar obrigatoriamente determinado pela natureza homogeneizante das
instituições e organizações sociais antes exclusivamente determinantes, e de fato deseja,
aceita e procura seguir as novas regras da vida social pós-moderna, como pode ser verificado
na seguinte passagem em Bauman:
“Para a grande maioria dos habitantes do líquido mundo moderno, atitudes como
cuidar da coesão, apegar-se às regras, agir de acordo com os precedentes e manter-se
fiel à lógica da continuidade, em vez de flutuar na onda das oportunidades mutáveis
e de curta duração, não constituem opções promissoras.” (Bauman, 2004).
Junto com este ganho em liberdade e mobilidade porém, surgem também uma série de
questões problemáticas que passam a fazer parte do cotidiano individual, questões estas
também produzidas através da nova dinâmica da modernidade líquida. Bauman, assim como
Giddens, ressalta o constante risco, medo e sensação de desamparo que tomam conta do
indivíduo, ao fazer este parte de um novo mundo completamente volátil e mutante onde as
velhas certezas não existem mais e as certezas que são com tanto trabalho construídas no dia a
dias se mostram essencialmente frágeis e ineficazes. A busca por segurança e proteção contra
as atribulações e oscilações da vida liquefata se transformam em um traço tão distintivo do
indivíduo quanto a sua liberdade dos grilhões da tradição. Não sem razão Bauman define
usualmente como “ambivalente” o período pós-moderno, o qual junto à cobiçada e bem vista
liberdade do indivíduo que transita em seu tempo-espaço, gera as tão discutidas “crise social”
e “crise de identidade”, como podemos observar na seguinte passagem do autor:
Esta chamada crise social, assim como a crise de identidade que passa a assolar os
indivíduos na modernidade líquida segundo Bauman, trazem conseqüências ainda mais graves
do que o simples desespero e angústia pessoal dos indivíduos. Nesta angústia e na
necessidade de pertencimento que esta gera estão os germes do nacionalismo fundamentalista,
fenômeno que preocupa e suscita debates entre diferentes atores sociais hoje em dia. A
passagem a seguir ilustra o surgimento das tendências nacionalistas como conseqüência da
perda de importância do Estado nas últimas décadas:
9
“O Estado não pode mais afirmar que tem poder suficiente para proteger o seu
território e os seus habitantes. Assim, a tarefa que foi abandonada e descartada pelo
Estado jaz sobre o solo, esperando que alguém a apanhe. O que se segue, ao
contrário da opinião generalizada é um renascimento, ou mesmo uma vingança
póstuma, do nacionalismo...” (Bauman, 2004).
(Giddens, 1990) Esta modernidade “tardia” ou “recente” como ele mesmo coloca, possui uma
série de características muito particulares que fogem à normalidade das características da
modernidade em si, mas que ainda não configuram um novo momento histórico, mas sim uma
radicalização do presente. Giddens, no entanto, admite que já é possível vislumbrar os
primeiros contornos daquilo que seria um período “pós-moderno”, este conjunto de idéias fica
bastante claro no seguinte fragmento do autor:
Dentre vários aspectos fundamentais que o autor desenvolve em seus trabalhos sobre a
modernidade, podemos destacar três pontos centrais característicos deste período: o Estado-
Nação, os meios modernos de mediação da experiência, e o incrível dinamismo e capacidade
de transformação que este período apresenta.
Giddens, assim como Bauman, coloca o Estado-Nação como um dos elementos
principais do período moderno. Segundo ele, os Estados nacionais modernos são entidades
sócio-políticas extremamente singulares e inovadoras com relação às entidades pré-modernas
em decorrência da sua unidade territorial característica, do eficiente controle que possuem dos
meios de coesão e do alto nível organizacional que apresentam no seu funcionamento.
(Giddens, 1991) Estas três características colocam o Estado-Nação como a entidade por
excelência da modernidade, a qual constitui base para a organização dos seres humanos nos
contextos social, cultural e geopolítico.
Com “meios modernos de mediação da experiência”, Giddens se refere aos meios de
comunicação que passaram a surgir e se desenvolver em patamares alucinantes no período
moderno. Desde os diários impressos, os primeiros livros, os primeiros sinais eletrônicos, até
os meios de comunicação de massa da modernidade recente como o radio, a televisão e a
internet, são todos mecanismos de separação de tempo-espaço, uma noção que adquire
fundamental importância no pensamento teórico de Giddens. Segundo ele, ao tornarem
possível a “mediação” da experiência e conectarem lugares e épocas distantes, os meios de
11
Tendo vislumbrado alguns dos traços gerais que caracterizam o período “pós-
moderno” ou, como defendido por Giddens, aquele período em que os efeitos e características
da modernidade se agudizam e intensificam; podemos agora centrarnos sobre a maneira como
a idéia de identidade é tratada nos estudos e trabalhos sobre este período. Dado que temos
trabalhado com as produções científicas de Bauman e Giddens, delinearemos como estes
autores tratam a questão da identidade explicitamente, e se não o fazem, como seus esquemas
teóricos permitem que a questão da identidade seja encarada.
Dado o notável viés dos estudos de Zygmunt Bauman no sentido de apontar sempre as
conseqüências, novas configurações, possibilidades e limitações que a lógica pós-moderna
acarreta para os indivíduos, encontramos em sua vasta obra posicionamentos claros a respeito
dos processos de construção, adoção e problematização da identidade por parte dos indivíduos
do mundo moderno. Para a discussão sobre a temática da Identidade em Bauman, no entanto,
é essencial, em primeiro lugar, conhecer um ponto específico ao qual este autor dá uma
grande importância em seus escritos: a derrocada do Estado-Nação moderno.
Segundo Bauman, é após a transformação do Estado Nação em uma referência de
menor grandeza para a vida individual e os processos sociais, que surge a tão badalada “crise
de identidade”. Tal crise consiste basicamente em um, ora vazio, ora redemoinho de
identidades e papéis sociais em que passam a se encontrar os indivíduos modernos em
decorrência do desaparecimento e/ou enfraquecimento das identidades e papéis tradicionais
que durante muito tempo delimitaram as possibilidades do indivíduo em relação à construção
da sua identidade. Com o desaparecimento – em muitos casos um enfraquecimento ou
desencantamento - da organização familiar tradicional, da articulação entre vida pessoal e
religião, da organização hierárquica e rígida da sociedade por classes, e principalmente do
Estado-Nação, houve condições para que os indivíduos se libertassem de um processo fixo e
14
rígido de identificação e para que surgissem inúmeras outras identidades e papéis sociais
menores que os indivíduos pudessem adotar. Observe-se a seguinte passagem do autor:
Para Bauman, sem dúvida, os pontos centrais nesta temática são a chamada “crise da
identidade”, e a constante procura por identidades novas e seguras que tomam conta do
processo cotidiano de identificação por parte do indivíduo. Na realidade da modernidade
líquida, Bauman enfatiza a centralidade da busca de identidades e papéis sociais que
ofereçam pertencimento e segurança ao indivíduo, mesmo que de maneira temporária para
que depois este possa exercer seu recém conquistado direito à liberdade. A identidade em
tempos radicalmente modernos, portanto, se configura em Bauman como um “processo”,
algo sempre em movimento e continuação que requer sempre a intencionalidade do
indivíduo. Podemos perceber estas teses fundamentais nas duas seguintes passagens:
“Sim, de fato, a „identidade‟ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não
descoberto; como alvo constante de um esforço, um „objetivo‟; como uma coisa que
ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar
por ela e protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja
vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da
identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta.” (Bauman,
2004).
Por outro lado, em Giddens, dada a natureza institucional de sua análise teórica, torna-
se muito mais difícil encontrar alusões diretas à temática da identidade da maneira como o faz
Bauman, por exemplo. No entanto, além de algumas considerações que o autor faz em relação
à natureza do “eu”, podemos também utilizar-nos de algumas de suas noções e idéias
principais para tratar a temática da identidade.
Talvez o modo mais proveitoso de abordarmos a temática da identidade dentro do
quadro teórico do autor Anthony Giddens em relação à modernidade, seja analisarmos melhor
e relacionarmos com o indivíduo as noções que este autor desenvolve em relação à confiança
e ao risco.
Giddens, ao discorrer sobre a confiança esboça um esquema teórico específico que
envolve, além do conceito de confiança, os conceitos de risco, segurança e perigo. Eu vejo nas
idéias que o autor desenvolve neste ponto, uma maneira de relacionar, dentro de sua teoria, as
estruturas institucionais à vida individual. Segundo Giddens, as idéias e sentimentos de
“segurança” e “perigo”, familiares às pessoas das sociedades pré-modernas, têm sido
gradativamente substituídas pelas concepções modernas de “confiança” e “risco”. Enquanto
que nas sociedades pré-modernas as cosmovisões e os modos de vida estavam muito mais
relacionados com certezas e referências fundamentadas na “fé” e na natureza, esferas que
perpassavam e superavam o plano individual - sendo portanto incontroláveis e imprevisíveis,
nas sociedades modernas, com o aumento vertiginoso da intervenção humana sobre a natureza
e com o empoderamento do discurso científico em detrimento do religioso, a vida passa a se
associar cotidianamente à própria ação do ser humano. As noções e sentimentos de
“confiança” e “risco” advêm do estabelecimento de cosmovisões cujo ator central é o próprio
homem.
Giddens se remete aqui, mesmo que não da maneira mais direta possível, a um modo
específico de comportamento do indivíduo moderno hoje em dia, um modo de vida racional
fundamentado sobre a constante avaliação das opções para determinada ação, das
possibilidades de sucesso e fracasso, dos riscos envolvidos no próprio viver. Este novo
“viver” esboçado por Giddens, no entanto, não se constitui apenas pela natureza das ações
individuais, mas também pela possibilidade constante de riscos sobre os quais os indivíduos
16
isolados não têm controle algum, riscos como o de um desastre ecológico ou de uma guerra
nuclear. Sem dúvida este modo de vida influencia e caracteriza o modo de ser e a identidade
do indivíduo moderno de maneira mais geral, como podemos ver neste trecho:
Podemos concluir com base nas passagens e nos marcos teóricos defendidos por
Giddens, que, mesmo este autor não se dirigindo à temática da produção e problematização
das identidades na modernidade em si, suas teorias prevêem um modo específico de “ser” e
uma identidade específica para o indivíduo moderno. Estas posições de sujeito específicas,
determinadas pela confiança e pelo risco, assim como pelo caráter reflexivo da modernidade,
17
se caracterizariam pela inconsistência e pela mutabilidade, já que estariam sempre sendo re-
formuladas à luz da introdução dos novos conhecimentos no meio social.
interessante para pensar a temática dos choques culturais e das produções “transculturais”;
para finalmente fazer um compêndio sobre as principais maneiras como a identidade é
concebida e conceitualizada por Stuart Hall e Homi Bhabha entre outros.
Nos Estudos culturais, é amplamente difundida e aceita, mesmo que com algumas
ressalvas, a idéia de que existe uma “crise de identidade”. Ao igual que os teóricos da
Modernidade tardia, diversos autores dos Estudos culturais utilizam esta noção como ponto de
apoio e de partida para desenvolverem alguns de seus argumentos centrais. A linha
argumentativa inicial é bastante semelhante àquela que já tratamos, coloca-se que o sujeito
moderno este sendo “descentrado” e “deslocado” em função do desaparecimento das forças
coercitivas e referenciais tradicionais responsáveis pela centralidade, fixidez e solidez das
identidades, assim como pelo surgimento de inúmeras novas possibilidades de
posicionamento e identificação dos sujeitos, resultado da estrutura e da dinâmica da
globalização. Podemos perceber este posicionamento na seguinte passagem em Hall:
Encontra-se, porém, nos teóricos dos Estudos culturais que trabalham a questão, um
olhar diferente em relação à crise das identidades no mundo moderno. Aqui, a crise de
identidade é tratada não apenas no sentido do descentramento do sujeito e seu abandono “à
caça de identidades” globais, senão que a temática é tratada também em função do conflito
entre culturas, pontos de vista e identidades diferentes. Enquanto que para os teóricos da
modernidade a crise de identidade remete simplesmente à crise pela qual as identidades
tradicionais e os indivíduos modernos passam - em função do desaparecimento das primeiras
e a falta de amparo e segurança dos segundos; nos estudos culturais a questão é também
19
construída com base nos conflitos sociais e culturais, nos choques entre o moderno e o
tradicional, no surgimento dos nacionalismos e fundamentalismos, nas contradições entre as
populações nacionais e os enclaves étnicos de migrantes que graças à modernidade agora
fazem parte da sua paisagem cotidiana. A “Crise de identidade” nos estudos culturais é
constituída de todas estas problemáticas. Observemos o seguinte trecho dos escritos de
Kathryn Woodward:
Na obra de Stuart Hall vemos uma enorme preocupação com estas questões chaves da
modernidade recente. Este autor se utiliza da idéia de que existe uma crise de identidades
fruto da modernidade para se aprofundar sobre temas como o multiculturalismo, a oposição
entre os liberalismos e nacionalismos modernos e a migração. Antes de delimitar melhor
algumas destas idéias do autor, no entanto, cabe observar algumas de suas considerações com
respeito a um ponto característico da crise de identidade: a diminuição da relevância e do
poder dos Estados-Nações na modernidade recente e o decorrente enfraquecimento da
identidade nacional, ponto enfatizado por Hall.
Em seu livro “A Identidade Cultural na Pós-Modernidade”, Stuart Hall dedica um
espaço considerável à análise da identidade nacional. Segundo seus propósitos de analisar o
descentramento do sujeito e o enfraquecimento de suas identidades culturais, este autor
discute em profundidade os diferentes aspectos da identidade nacional, desde a construção do
imaginário nacionalista e patriótico através de discursos e mitos fundadores, até a dissolução
final destas conexões com um passado imaginário da nação e sua substituição por outras
formas de identificação “acima” e “abaixo” do nível do Estado-Nação.
Num primeiro momento, Hall nos mostra como a nação e sua estrutura política de
controle e regulação – o Estado – constrói através de uma série de práticas simbólicas e
sociais identidades muito fortes e coesas, capazes de dar segurança e “conteúdo” ao indivíduo,
seu lugar no mundo e seu papel na sociedade nacional e global. Estas identidades construídas
são prontamente adotadas e reverenciadas pelos sujeitos, que passam a integrar assim as
“fileiras” do Estado-Nação e reproduzirem os valores ideológicos e morais implícitos nos seus
discursos. Posteriormente, ao falarmos sobre as maneiras de conceber a identidade
20
“A maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por
um longo processo de conquista violenta – isto é, pela supressão forçadas da
diferença cultural. ... esses começos violentos que se colocam nas origens das nações
violentes têm, primeiro que ser „esquecidos‟, antes que se comece a forjar a lealdade
com uma identidade nacional mais unificada, mais homogênea.” (Hall, 1992.)
Hall observa que, ao estarem desestabilizando noções tradicionais sobre as quais eram
construídas as fortes identidades culturais – entre elas a identidade nacional; os processos
globais estão ajudando em parte a desconstruir e enfraquecer muitos destes mecanismos de
21
2.3.2. O “Multiculturalismo”
Para Stuart Hall, o multiculturalismo é um conjunto de ações e políticas que devem ser
tomadas e implementadas de maneira a promover e possibilitar, da melhor maneira possível,
formas pacíficas e produtivas de relacionar-se e coexistir dentro das sociedades multiculturais.
Amparadas e munidas sempre com o conhecimento da diversidade e da complexidade cultural
das sociedades que visa, o multiculturalismo é o processo de “administrar a diversidade”
naquelas sociedades – denominadas de multiculturais - que são constituídas por povos de
22
diferentes naturezas culturais e étnicas e que enfrentam dia a dia o desafio de mediar os
conflitos e choques culturais. (Hall, 2003.) Este é um árduo processo não apenas porque é
muito difícil ainda, em muitos casos, identificar e compreender dinâmicas de exclusão e
dominação a que minorias étnicas e culturais estão sujeitas - tanto nos países de ocidentais
quanto os não ocidentais; mas também porque há diversas forças que se opõem a esta nova
estratégia política com o objetivo de manterem seu status e suas aspirações dentro de um meio
social específico. Observe-se a seguinte passagem:
multicultural das realidades sociais pelo mesmo motivo. Tanto o colonialismo, quanto a
guerra fria – e sua característica divisão do mundo em duas ordens opostas aparentemente
homogêneas – acabavam por esconder, disfarçar e relegar a um segundo plano as diferenças
étnicas e culturais da população em prol dos ideais de unidade e homogeneidade que eram
enaltecidos nestes momentos históricos. Enquanto que no colonialismo eram colocadas sob o
mesmo “teto” nacional populações e etnias culturalmente diferentes e inclusive rivais, sendo
obrigadas a reproduzir o discurso homogeneizante da metrópole e a conviver com as
diferenças culturais dos colonos e dos “outros” que eram colonizados; no cenário da Guerra
Fria todas as diferenças culturais, sociais e políticas foram deixadas de lado – principalmente
no bloco soviético – na tentativa de construir um modelo político transcendental às
particularidades das regiões, nações, culturas e pessoas. Foi natural que junto com a derrocada
destes sistemas e configurações viessem a tona a grande gama de diferenças, choques e
conflitos que estavam adormecidos e subjugados por Estados controladores e seus ideais
maiores.
Por último, a globalização, que como enfatizado por Hall, não é algo novo, vêm
expondo o planeta a uma série de processos e dinâmicas que entre outros, tem por resultado a
aproximação entre as pessoas, entre os modos de vida e estilos culturais diferentes. Os estilos
e valores ocidentais são amplamente difundidos pelo mundo não Ocidental ao mesmo tempo
em que as tendências capitalistas de exploração do “folclórico” e “excêntrico”, assim como a
migração trazem cada vez mais os “outros” para o seio da sociedade Ocidental. (Hall, 2003.)
Observe-se a seguinte passagem do autor Kevin Robins, citado por Hall em “A Identidade
Cultural na Pós-Modernidade”:
E ainda:
“Assim como o período do imperialismo foi seguido pelo triunfo das revoluções
leninistas, poder-se-ia ver, após um período de globalização, regimes totalitários se
reformarem, ou se aliarem nos novos países industriais, o liberalismo econômico e o
nacionalismo cultural („nacional-liberalismo‟)”. (Touraine, 1997)
Como temos visto, no âmbito dos Estudos Culturais são discutidas e estruturadas
importantes questões do mundo atual, nas quais a identidade se faz presente como um dos
elementos fundamentais para ler as situações e configurações sociais e culturais e ajudar a
construir esquemas teóricos capazes de captar de maneira mais completa alguns aspectos
complexos da realidade contemporânea. Dentro destes esquemas teóricos discutidos e
construídos no cenário dos Estudos Culturais a identidade recebe fundamental importância,
sendo suas definições conceituais constantemente pensadas e reelaboradas à luz dos
fenômenos da realidade multicultural com que os autores se defrontam e sobre os quais
produzem – podemos dizer que a reflexividade do conhecimento de que Giddens fala é
visivelmente importante na constante re-formulação do conceito de identidade por parte de
intelectuais diaspóricos e híbridos. Tentarei delimitar agora algumas destas concepções
principais da Identidade, assim como alguns conceitos fundamentais que são utilizados para
trabalhá-la dentro dos Estudos Culturais
29
simplesmente pelo que são, mas também pelo que não são; é o que Woodward chama de
“marcação da diferença”. Segundo esta autora, a marcação da diferença e os sistemas
classificatórios da cultura são essenciais para compreender os fenômenos da identidade.
(Woodward, 1997) A autora se ampara em diversos antropólogos e sociólogos, como Lévi-
Strauss e Durkheim, para mostrar como a cultura estabelece fronteiras através da marcação da
diferença, como mecanismo para facilitar a inteligibilidade com a realidade e principalmente
como mecanismo de ordenação das relações sociais.
Estas considerações são bastante pertinentes no sentido de que nos dão uma visão
inicial da produção das identidades com base na cultura. Ao mesmo tempo, no momento em
que Woodward se refere à “marcação da diferença” como essencial para o estabelecimento
dos sistemas de representação gerados pela cultura, esta autora nos dá o primeiro elemento
para começar a definir uma das principais concepções da Identidade dentro dos Estudos
Culturais: a idéia do “jogo da diferença”.
sou japonês‟ e assim por diante, numa cadeia, neste caso, quase interminável.
Admitamos: ficaria muito complicado pronunciar todas essas frases negativas cada
vez que eu quisesse fazer uma declaração sobre minha identidade. A gramática nos
permite a simplificação de simplesmente dizer „sou brasileiro‟. Como ocorre em
outros casos, a gramática ajuda, mas também esconde.” (da Silva, 2000)
Esta lógica relacional e “corrediça” da Identidade, onde esta sempre será definida por
uma gama de fatores e configurações, é justamente o que Jacques Derrida tentou apreender ao
esboçar o conceito de “différance” na teoria lingüística. Como podemos compreender na
análise que Tomaz Tadeu da Silva realiza tanto da construção conceitual de Derrida, quanto
da apropriação do conceito por Hall; o conceito de différance “é caracterizado pelo
diferimento ou adiamento (da presença) e pela diferença (relativa a outros signos)”. (da Silva,
32
2000) No campo lingüístico isto quer dizer que por mais bem elaborado que determinado
signo lingüístico seja, por mais eficiente que este seja ao definir e descrever o objeto real a
que se refere e destina, nunca poderá imitá-lo ou representá-lo perfeitamente, já que é um
signo e está fadado à incompletude. Logo o significado e a “aparência”, a natureza do objeto
real sempre escapam, o signo poderá inclusive nos dar uma boa representação, mas algo
sempre ficará indefinido. Ao mesmo tempo o signo é construído com base não apenas no
objeto real que ele define e representa, mas também em função de uma série de outros objetos
que não são o objeto que define. (da Silva, 2000) “Différance” (em francês) é ao mesmo
tempo “diferir” e “deferir”, o signo lingüístico é caracterizado pela diferença entre o que ele
define e não define e pelo constante “deslizamento” do significado real, pelo “adiamento” da
presença do objeto real. Esta falta de certeza e apreensão total do real, segundo Derrida e da
Silva, determinam o caráter sempre instável e cambiante da linguagem e dos signos
lingüísticos. (da Silva, 2000) Constantemente novas palavras e expressões são criadas como
forma de melhor definir e representar a realidade, a qual por sua vez também é cambiante e
exige a constante reformulação e criação de símbolos que tentem da melhor maneira possível
captá-la e defini-la - vemos novamente aqui, toda a força da idéia de reflexividade de Giddens
aplicada ao campo lingüístico.
A idéia de “différance” foi prontamente adotada e “traduzida” para o campo dos
Estudos Culturais por Stuart Hall, quem, imbuído desta peça chave, é o principal autor por
trás da idéia teórica do “jogo da diferença”. Ao adotar a idéia de différance ao tratar das
identidades, penso que Hall procura ressaltar o caráter sempre “movediço” de determinada
identidade em função das experiências a que o indivíduo está sujeito no seu cotidiano,
experiências estas que são capazes de modificar seus sistemas de representação e sua
identidade rapidamente. No caso das identidades cultural e nacional, a experiência de ser
inserido em outra cultura e sofrer um processo de transculturação pode ser extremamente
determinante para o deslizamento da identidade do indivíduo à medida que este toma
consciência e se posiciona com relação ao “outro”, muitas vezes desconhecido ou mal
compreendido. Neste sentido comenta Hall utilizando-se de passagens de Ernesto Laclau:
„presença‟. „Sou um sujeito precisamente porque não posso ser uma consciência
absoluta, porque algo constitutivamente estranho me confronta‟. Cada identidade,
portanto, é radicalmente insuficiente em termos de seus „outros‟. „Isso significa que
o universal é parte da minha identidade tanto quanto sou perpassado por uma falta
constitutiva‟ (Laclau, 1996)” (Hall, 2003)
E afirma também:
“Acima de tudo, e de forma diretamente contrária àquela pela qual elas são
constantemente invocadas, as identidades são construídas por meio da diferença e
não fora dela. Isso implica o reconhecimento não menos perturbador de que é apenas
por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com
precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior
constitutivo, que o significado „positivo‟ de qualquer termo – e, assim, sua
„identidade‟ – pode ser construído” (Hall, 1996)
“As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições de sujeito que as
práticas discursivas constroem para nós. Elas são o resultado de uma bem sucedida
articulação ou „fixação‟ do sujeito ao fluxo do discurso” (Hall, 1996)
Ao mesmo tempo em que nos fornece as idéias de Stuart Hall com relação às
considerações que este autor faz sobre as relações de poder e a articulação do sujeito às
35
“Sob esse aspecto, a identidade cultural não é jamais uma essência fixa que se
mantenha imutável, fora da história e da cultura. Nem é dentro de nós, algum
espírito transcendental e universal no qual a história não faz marcas fundamentais.
Também não é „de uma vez para sempre‟. Não é uma origem fixa à qual possamos
fazer um retorno final e absoluto. E, é claro, não é um simples fantasma. Mas é
alguma coisa – não um mero artifício da imaginação. Tem suas histórias – e as
histórias, por sua vez, têm seus efeitos reais, materiais e simbólicos. O passado
continua a nos falar. Mas já não é como um simples passado factual que se dirige a
nós, pois nossa relação com ele, como a relação de uma criança com a mãe é sempre
já „depois da separação‟. É construído sempre por intermédio de memória, fantasia,
narrativa e mito. As identidades culturais são os pontos de identificação, os pontos
instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e da
história. Não uma essência, mas um posicionamento.” (Hall, 1994)
elementos que nos permitem situar e delimitar de melhor forma as identidades e os processos
pelos quais estas se constroem e modificam.
Na base da crítica de Bhabha está, como vimos, a noção de que os códigos culturais
são “incomensuráveis”. Esta noção teórica, que é o princípio para o surgimento do conceito
de “tradução” representa uma inteligente crítica e contribuição aos paradigmas teóricos do
contato cultural. Noções como a de “aculturação”, “transculturação” – a qual vou abordar no
presente trabalho, e “hibridização” como utilizada por alguns teóricos dos Estudos Culturais
contemporâneos, tendem a ver o contato cultural como um processo dialético onde a mistura
dos diferentes elementos culturais gera a produção de um novo código cultural que tem sua
origem nos dois precedentes, ao mesmo tempo em que os supera em abrangência e
perspectivas. Mais do que uma crítica desconstrutiva, Bhabha se esforça por mostrar que se
esta junção e o conseqüente aparecimento de um “terceiro espaço” acontecem, se deve não à
combinação dos conteúdos culturais – os quais são incomensuráveis, mas ao fato de que todas
as culturas, por mais variados que sejam seus conteúdos, são o mesmo processo de produção
de sentido e significado e ordenação do mundo social:
Vemos, portanto, que Bhabha não nega a produção de novos elementos culturais, ele
se esforça por desenvolver este ponto, o qual foi tratado de maneira muito simplista pelos
conceitos que tratam o choque cultural. Segundo Bhabha, a produção de um “terceiro espaço”
onde novas posições de sujeito são produzidas e novas identidades se manifestam não se dá
pela simples utilização mesclada de elementos culturais diferentes, mas por um processo onde
determinados conteúdos culturais são reconstruídos com base em outro código cultural, um
processo de “tradução”. Gera-se assim, portanto, um conteúdo cultural “traduzido” que é
adicionado e aumenta o espectro cultural do grupo que “traduz”, este é o momento da
“hibridação” de determinada cultura, comunidade ou indivíduo, o momento em que elementos
novos são introduzidos no código cultural daquele que “traduz”, porém não elementos soltos e
não identificados, mas elementos re-construídos segundo o próprio código. Por outro lado às
novas possibilidades culturais e posições de sujeito fruto desta hibridação é o que Bhabha
denomina de “terceiro espaço”. (Bhabha, 1994)
“Entendemos que el vocablo transculturación expresa mejor las diferentes fases del
proceso transitivo de una cultura a otra, porque éste no consiste solamente en
adquirir una distinta cultura, que es lo que en rigor indica la voz anglo-americana
aculturation, sino que el proceso implica también necesariamente la pérdida o
desarraigo de una cultura precedente, lo que pudiera decirse una parcial
desculturación, y, además, significa la consiguiente creación de nuevos fenómenos
culturales que pudieran denominarse de neoculturación. Al fin, como bien sostiene
la escuela de Malinowski, en todo abrazo de culturas sucede lo que en la cópula
genética de los individuos: la criatura siempre tiene algo de ambos progenitores,
pero también siempre es distinta de cada uno de los dos. En conjunto, el proceso es
una transculturación, y este vocablo comprende todas las fases de su parábola.”
(Ortiz, 1963)
deslocamento que eles demonstram sentir profundamente no Brasil. Tal sentimento, como
ressaltado por Ortiz, é um dos elementos chave que canalizam e possibilitam o processo de
transculturação e a negociação cultural que este processo supõe. Explorando as valorações e
reflexões dos alunos em relação com a própria saudade e o fato de estarem por um período
determinado de tempo afastados de sua cultura e sua família, temos elementos importantes
para analisar quais foram as principais mudanças que estes alunos tem sofrido no Brasil e
porque estas mudanças específicas têm acontecido. Por outro lado, no caso específico dos
alunos cabo-verdianos, foi regularmente mencionado nas entrevistas o processo de povoação
das ilhas de Cabo Verde, o qual parece ter sido muito similar ao processo que Ortiz descreve
na povoação da ilha de Cuba – uma povoação, por parte de populações culturalmente muito
distintas, de um território absolutamente vazio. Tal processo tem visivelmente um grande
peso no desenvolvimento do imaginário nacional de Cabo Verde e na identidade nacional de
sua população, outro elemento importante para analisar tanto as identidades dos alunos deste
país quanto às mudanças que estes vivenciam ao se estabeleceram no ambiente cultural
brasileiro.
Outros casos de transculturação, subentendidos no texto de Ortiz são aqueles onde
uma cultura é inserida e absorvida por outra mais poderosa. Em semelhante caso apenas este
pequeno grupo cultural é “desarraigado” da sua cultura e meio originais, porém o processo
dialético da transculturação se dá igualmente com a criação, a nível local, de elementos
culturais novos resultado da interação entre as duas culturas. O trabalho que pretendo
empreender parte deste ponto, faz-se necessário porém, fazer algumas ressalvas com relação
aos aportes e deficiências que o conceito de “transculturação” apresenta com relação à
discussão contemporânea desenvolvida dentro dos Estudos Culturais, e a maneira como
utilizarei, portanto, o conceito de transculturação.
Com relação aos conceitos utilizados dentro dos Estudos Culturais, vemos uma nítida
aproximação do conceito de “transculturação” com as idéias de “tradução” e “hibridismo”
como apresentadas por Bhabha. De fato, ambas as construções teóricas se referem ao processo
de contato cultural e aos mecanismos de produção cultural inerentes a este fenômeno. Como
já disse, no entanto, as construções teóricas de Bhabha apresentam um certo desenvolvimento
e um aprofundamento com relação às idéias mais simples de que “as culturas em contato
geram resultados sempre mais complexos do apenas a soma das partes em choque”. Podemos
dizer, com base na abrangência e na complexidade, que as construções teóricas de Bhabha são
mais desenvolvidas e completas do que as idéias de “aculturação” e “transculturação”. Devo
ressaltar que não se trata aqui, porém, da simples escolha de um conceito que deverá ser
41
utilizado como prisma e mecanismos de análise. Os paradigmas teóricos e seus conceitos são
extremamente complexos e por mais completos que sejam nunca abarcam totalmente a
realidade que pretendem, assim como nunca se substituem e se excluem totalmente. Neste
sentido, mesmo sendo extremamente interessante e bem construída a noção de “tradução” em
Bhabha, ela não se apropria do elemento do “desarraigo” tal qual o conceito de
“transculturação” em Ortiz, elemento este que considero bastante importante para a análise da
identidade dos alunos entrevistados. Isto não quer dizer que utilizarei apenas a
“transculturação” como prisma teórico deixando de lado outros pontos de vista, pelo
contrário, quer dizer que a articulação entre a realidade analisada e a teoria produzida é
complexa e problemática e será vista e tratada deste modo no presente trabalho. Os conceitos
de Bhabha, assim como as idéias de Hall serão amplamente utilizadas no trabalho, não
substituindo porém, a noção de “transculturação” devido àquelas características específicas
que este conceito possui que não são contempladas em outras construções.
Utilizo-me, portanto, da complexidade do marco teórico utilizado e as diversas opções
que este prevê para formular a idéia de “experiência transcultural”. Uma formulação que tenta
extrapolar certos limites da teoria e prescinde de outros elementos teóricos que extrapolam a
realidade aqui estudada, na tentativa de enquadrar da melhor maneira possível o processo a
que os alunos estrangeiros estão sujeitos ao virem estudar no Brasil. Cabe analisar alguns
destes limites e elucidar em que consiste propriamente a “experiência transcultural”.
A teoria de Fernando Ortiz em torno do conceito de “transculturação” se fundamenta
fortemente sobre alguns pontos que não fazem parte da realidade dos indivíduos que
constituem meu universo de pesquisa. Ortiz, ao propor a idéia de transculturação supõe, para
que existam a “desculturación”, a “neoculturación”, assim como a formação de elementos
constitutivos de uma cultura híbrida totalmente nova, que duas culturas ou focos culturais
estejam não apenas em desarraigo, mas também em intenso contato por um longo período de
tempo. Os estudantes africanos que analisarei não possuem estas características. Embora em
situação de abandono momentâneo de sua cultura natal e imersão em um meio cultural
estranho, estes indivíduos não estão na penosa condição de desarraigo de suas terras, já que,
além de manter todo o tipo de contato e comunicação com suas famílias que os meios
contemporâneos permitem, sabem que cedo ou tarde voltarão para seus países de origem,
encontrando suas casas e famílias relativamente do mesmo jeito que as deixaram. Além disto,
a perspectiva que estes alunos possuem de tempo de permanência no Brasil não é muito
grande, variando de 4 a 10 anos no máximo na maioria das vezes, isto faz com que a estância
no Brasil não tenha o mesmo peso e caráter transformador que supunha Fernando Ortiz para
42
aqueles escravos africanos que tinham obrigatoriamente que se integrar à nova realidade sob
pena de não sobreviverem.
Um dos objetivos de caráter teórico deste trabalho investigativo porém, é o de mostrar
que o processo transcultural não se manifesta apenas no nível macro-social, sob
circunstancias rígidas e pré-definidas. À luz das contemporâneas discussões sobre identidade
e diferença, acredito que este processo começa a se manifestar justamente nos primeiros
momentos em que o indivíduo necessita posicionar-se dentro da nova cultura, necessita
urgentemente “traduzir” os elementos culturais que encontra no novo meio em prol de evitar
maiores dificuldades e obstáculos dentro deste. Portanto, mesmo que não vejamos de imediato
o aparecimento de “novos elementos culturais” ou uma terceira expressão cultural na
realidade que está sendo observada, sabemos que o processo de “tradução” dos códigos
culturais é constante e imediato ao contato com o “outro”. As estruturas simbólicas e
produtoras de sentido do indivíduo são obrigadas a se transformarem, integrarem e ajustarem
à nova realidade desde muito cedo na experiência do contato e englobamento cultural.
Neste momento inicial portanto, compreendo a “experiência transcultural” como a
forma que a imersão em uma nova realidade cultural toma no âmbito da subjetividade e dos
sistemas de representação do indivíduo; um processo que age prontamente sobre estes
sistemas, questionando e problematizando a identidade do indivíduo.
Proponho assim, a noção de “experiência transcultural” como idéia e instrumento que
permitiria analisar o processo de “identificação” dos indivíduos neste contexto específico de
mudança, desarraigo e tradução cultural que é o intercâmbio educacional. Esta experiência
singular tem o poder de gerar e iniciar mecanismos de adaptação, tradução e integração que
culminam com novos processos de identificação e a adoção, exclusão ou transformação de
variados elementos identitários tanto positivos quanto negativos. Gera-se, assim, uma re-
construção da identidade à luz da experiência constante da tradução cultural e da vivência
num meio cultural alheio, esta reconstrução modifica, de maneira corrediça, a identidade do
indivíduo e suas valorações sobre seu país e cultura de origem e aquele país e cultura que
agora o engloba.
43
3. Metodologia
erros generalizantes nos momentos de análise e produção intelectual sobre o grupo dos
estudantes africanos da Universidade de Brasília.
Os estudantes estrangeiros, como depois seria explorado e confirmado nas entrevistas,
tendem a se agrupar e se manterem sempre muito unidos, fazendo deste fato uma estratégia
para poderem facilitar suas próprias vidas na realidade cultural brasileira. À medida que eu fui
conhecendo e interagindo cada vez mais com os diferentes grupos de alunos estrangeiros fui
tendo acesso à esta dinâmica de união e aos locais onde esta se manifesta e perpetua com mais
força. Ao andar pelo campus da UnB é comum ver os estudantes estrangeiros nas atividades
corriqueiras da vida estudantil. Porém, é apenas em determinados lugares que podemos
observar e vivenciar esta lógica de irmandade, união e identidade que se manifesta dentro do
grupo dos estudantes estrangeiros e dentro dos seus grupos específicos. O acesso que tive às
atividades culturais, oficiais ou cotidianas, em locais como a CEU (Casa dos Estudantes), o
Restaurante Universitário, a Embaixada de Cabo Verde e a residência do embaixador de Cabo
Verde, e inclusive diversas “repúblicas” estudantis situadas nas quadras residenciais da Asa
Norte, foi extremamente enriquecedor no sentido de que me permitiu a observação dos
sujeitos estrangeiros não apenas como estudantes, mas como membros de um grupo. Um
grupo de imigrantes, de “diferentes”, de pessoas que compartilham culturas e identidades
diferentes àquelas do país que os abriga nesta etapa de estudos. É dentro das dinâmicas e
lógicas dos grupos que pude observar com mais clareza os conflitos, esforços e reflexões que
fazem parte da vida destes indivíduos no cotidiano brasileiro.
3.2 Problema
3.3 Objetivos
positivista. O autor crítica justamente estas prescrições e princípios gerais que estão por trás
das pesquisas qualitativas. A concepção da pesquisa como um procedimento rígido e
ordenado em diferentes etapas definidas aprioristicamente, a autonomia e importância
intrínseca dos instrumentos e os dados que estes produzem, a falta de iniciativa e
protagonismo que caracterizam o trabalho do pesquisador como sujeito e o caráter
coadjuvante da produção teórica são alguns pontos centrais amplamente discutidos e
criticados pelo autor. (González Rey, 2005) Do ponto de vista deste, tais características
positivistas da pesquisa devem ser superadas em prol de produzir informação científica sobre
a realidade da maneira mais realista possível, além de transformar a pesquisa científica em um
processo sempre em movimento capaz de transformar e melhorar constantemente os
paradigmas e modelos teóricos sobre o real. Observe-mos, a respeito das características
principais da Pesquisa Qualitativa proposta pelo autor, e conseqüentemente a respeito da série
de princípios a que esta se opõe, os seguintes trechos:
(...)
“A cientificidade de uma construção está definida por sua capacidade para inaugurar
zonas de sentido que crescem e se desenvolvem diante dos desafios do avanço do
modelo teórico em questão, em suas diferentes confrontações com o momento
empírico, no curso de uma linha de pesquisa. Tal conceito de cientificidade deve ser
separado, de uma vez por todas, da representação da pesquisa como conjunto de
momentos ordenados em uma relação seqüencial, invariável e rigidamente
estruturada.” (González Rey, 2005)
Para poder desenvolver estes princípios e perspectivas gerais e poder atingir os seus
objetivos, a Pesquisa Qualitativa se fundamenta sobre três princípios epistemológicos
fundamentais, os quais serão delineados brevemente dada a sua importância dentro do
presente trabalho. São eles: o caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, a
legitimação do singular como instância de produção de conhecimento científico e a
compreensão da pesquisa como um processo de comunicação.
Afirmar o caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, segundo o autor, “de
fato indica compreender o conhecimento como produção e não como apropriação linear de
uma realidade que se nos apresenta”. O autor, através desta idéia tenta chamar a atenção para
49
o modo como a realidade adquire significado dentro das pesquisas científicas. Segundo o
autor, o “dado empírico”, assim como a realidade e as relações sociais que o pesquisador
enxerga dentro desta são construções intelectuais produzidas pelo próprio pesquisador através
dos sistemas teóricos com os quais olha e interpreta o real. Observe-se a seguinte passagem:
“Portanto, o dado, mais que uma expressão de respeito à realidade tal qual ela
se apresenta, argumento que tem apoiado os autores positivistas a sustentarem a
legitimidade do caráter científico da pesquisa, representa a primeira grande
evidência de que qualquer aproximação em relação à realidade é, inevitavelmente,
uma expressão do conceito de realidade que precede e organiza tal aproximação.”
(González Rey, 2005)
O fato desta concepção sobre o caráter da realidade não ser levada em consideração ou
valorizada pelos segmentos dominantes dentro do campo científico gera, segundo o autor, um
modelo de produção científica pouco comprometido com os paradigmas teóricos a respeito do
problema e da realidade estudada, e muito em função da aplicação de uma seqüência de
instrumentos e estratégias de pesquisa muitas vezes definidos aprioristicamente. Um modelo
científico, portanto, onde a produção de conhecimento se dá pelo “culto aos dados” e aos
instrumentos de pesquisa, onde se dá ainda a desvalorização da iniciativa e da capacidade do
pesquisador e dos modelos teóricos que são utilizados e produzidos ao longo da pesquisa.
(González Rey, 2005)
Ao conceber o conhecimento produzido pelas atividades científicas como
“construtivo-interpretativo”, o autor dá o primeiro passo para formular um modelo de
produção científica que leve em conta tanto os aspectos complexos da realidade, quanto o
valor da produção de novos modelos teóricos sobre o real que por sua vez possibilitem novos
momentos de inteligibilidade com este. Ao levar em conta o caráter complexo da realidade
estudada, as pesquisas realizadas dentro das Ciências Sociais serão capazes de
compreenderem de maneira mais completa e “orgânica” os fenômenos estudados. Por outro
lado, ver a construção de novos modelos teóricos sobre o que se estuda como um dos
objetivos principais da produção científica significa transformar a ciência em um instrumento
sempre em mudança e desenvolvimento que acompanhe o caráter complexo da realidade
através da constante criação de novas “zonas de sentido”. A definição deste conceito é muito
importante no conjunto de idéias que González Rey propõe já que, segundo este autor, a
produção desta zonas seria uma dos principais objetivos da pesquisa científica. O autor
afirma:
50
termos de criatividade e produção intelectual por parte do sujeito que pesquisa. (González
Rey, 2005) Dentro dos parâmetros de uma pesquisa qualitativa embasada nos princípios
epistemológicos descritos pelo autor, a recuperação do pesquisador como sujeito ativo dentro
da pesquisa é essencial não apenas em função do desenvolvimento de um modelo teórico, mas
também para que a informação seja produzida da maneira mais consciente e coerente
possível.
O terceiro princípio epistemológico da pesquisa qualitativa diz respeito, justamente ao
“ato de compreender a pesquisa, nas ciências antropossociais, como um processo de
comunicação, um processo dialógico”. Este princípio se refere justamente à característica
central que vai guiar os diversos momentos em que o pesquisador se relacionará com a
realidade estudada. Segundo o autor, a pesquisa social, da maneira como esta é realizada
segundo estes princípios qualitativos, é dotada em seus diferentes momentos de um rico
sistema de comunicação entre o pesquisador e aquele ou aqueles que este pesquisa. É a
comunicação que permitirá ao pesquisador acessar, da maneira mais completa possível, os
fenômenos do real que se deseja compreender. O acesso se dá a partir da perspectiva
complexa e única dos sujeitos implicados na pesquisa. (González Rey, 2005)
Vemos, portanto, que os instrumentos mais adequados e proveitosos, implícitos neste
princípio epistemológico, são aqueles que valorizam a expressão do sujeito. De fato, na sua
obra “Pesquisa Qualitativa e Subjetividade: Os Processos de construção da informação” o
autor nos dá uma variedade de instrumentos bastante interessantes e promissores do ponto de
vista do princípio comunicativo da Epistemologia Qualitativa. Alguns deles são: a entrevista,
o completamento de frases, o questionário aberto, a redação, a apresentação de estímulos
diversos (fotos, desenho, filmes, etc) seguido de um diálogo analítico e reflexivo, etc. Todos
estes instrumentos, sempre atrelados ao esforço constante do pesquisador por gerar um
processo comunicativo não violento, têm em comum a valorização da expressão do sujeito
entrevistado. Seus motivos e valorações mais profundos, assim como seus sentidos subjetivos,
se expõem para o pesquisador neste processo comunicativo amplo e igualitário entre os dois
sujeitos. Neste sentido, observemos a seguinte passagem em González Rey:
A escolha dos instrumentos utilizados nesta pesquisa foi fortemente influenciada pela
idéia de colocar o sujeito estudado no centro da produção informacional. Tanto na observação
participante naturalista, quanto na entrevista, instrumentos que utilizei para produzir
informação junto ao grupo estudado, a expressão do sujeito foi sempre o momento central, o
momento de onde partem os diálogos, os questionamentos, a construção de hipóteses e
conclusões, etc. Tendo em vista que: “A comunicação será a via em que os participantes de
uma pesquisa se converterão em sujeitos, implicando-se no problema pesquisado a partir de
seus interesses, desejos e contradições.” (González Rey, 2005), sempre foi, neste trabalho,
valorizada e priorizada a expressão do sujeito segundo seus sentidos e reflexões em relação à
temática abordada.
3.5.1 Procedimentos
Uma vez tendo acesso aos locais, e portanto às atividades principais tanto do grupo
dos cabo-verdianos, quanto do grupo dos estudantes africanos em geral, foi fácil desenvolver
a atividade observadora. A maneira como utilizei a observação e suas fundamentações
metodológicas serão delineadas mais tarde. Em termos do procedimento da observação, esta
se deu de uma maneira bastante simples e natural, dada as possibilidades de inserção e
convivência. Em festas, atividades e encontros culturais, eventos esportivos, ou até no dia a
dia dos estudantes estrangeiros, eu me concentrava em observar os comportamentos, as
formas de expressão e relacionamento e o que estas significavam nos contextos em que se
configuravam. No caso de uma atividade específica em um local específico - uma festa na
embaixada por exemplo, eu tentava me manter em uma posição de não muito destaque, que
me permitisse observar, porém, as dinâmicas centrais e principais do local e da atividade.
Eventualmente participava de rodas de conversa ou conversava pessoalmente com alguém e
tentava absorver o máximo dos posicionamentos e reflexões que se manifestavam na
conversa. Nunca me referia às temáticas da identidade, da migração ou das diferentes culturas
(brasileira e africanas) que estavam em choque dentro do grupo e das pessoas, de uma
maneira direta, mas tentava avaliar as conseqüências de todos estes fenômenos nas pessoas
com quem interagia e como estes fenômenos determinavam as idéias e o discurso das diversas
pessoas, desde os embaixadores em suas falas oficiais, até os alunos em suas conversas
informais.
Um ponto importante a ser ressaltado no procedimento observacional, é o que diz
respeito à observação que pude desenvolver dentro das casas e ambientes caseiros dos alunos
estrangeiros. Compartilhar da dinâmica de uma casa específica foi algo extremamente valioso
pois pude observar diversas manifestações e fenômenos específicos. A lógica dentro de uma
casa, entre os membros de uma mesma casa, aqueles que convivem e interagem todo dia, é
fundamentalmente singular e rica. Os membros de uma mesma moradia, ou “república”
estudantil compartilham de uma relação mais próxima e de uma cumplicidade especial que
faz com que, nesse ambiente, se observem muitas brincadeiras, diálogos, problemas e
reflexões interessantes do ponto de vista da identidade e da transculturação. Neste sentido,
tive a oportunidade de visitar diversas casas, desde repúblicas de alunos na CEU e nas
quadras residenciais, até a residência de um embaixador. Nestas oportunidades geralmente me
mantinha como apenas um observador atento do diálogo e das conversas entre os membros da
casa. O fato de muitas vezes os membros dos locais se expressarem em outra língua
55
(principalmente o crioulo, o qual não é difícil de compreender pois se parece muito com o
português) as vezes dificultou a compreensão de algumas idéias, mas outras vezes aclarou e
definiu aspectos importantes do modo de pensar e sentir destas pessoas. A observação e a
absorção dos diálogos que se produzem nestes contextos foi muito produtiva, já que nestes
são constantemente problematizadas questões importantes, tais como as diferenças entre as
pessoas - devido à cultura diferente, e as dificuldades destes alunos estrangeiros em se
adaptarem a determinados padrões culturais brasileiros. A compreensão da dificuldade do
cotidiano do aluno estrangeiro é um fator primordial para o estudo das transformações em sua
identidade. Os diálogos e conversas informais desses núcleos que podem ser considerados
quase como familiares revelam muitos aspectos desta luta cotidiana dos alunos por se
“adaptarem” ou lidarem da melhor maneira possível com a realidade cultural brasileira.
momentos da minha observação tinha percebido que talvez seria um pessoa interessante para
entrevistar, dadas algumas características pessoais e alguns comportamentos que esta pessoa
manifestava dentro do grupo. Sendo assim, decidi que esta pessoa seria a primeira pessoa a
ser entrevistada oficialmente. A coerência entre a observação e as opiniões e sugestões dos
próprios sujeitos foram, portanto, o fator primordial que determinou quais pessoas de fato eu
entrevistaria.
Além de realizar as entrevistas que se evidenciavam através da coerência entre as
sugestões e minhas próprias observações, procurava interagir também com todas as pessoas
sugeridas. Assim, no caso desta primeira entrevista, procurei também as outras quatro pessoas
sugeridas nas entrevistas teste e mantive conversas informais com elas, apresentando minha
pesquisa e fazendo algumas indagações básicas sobre a temática trabalhada. Em função deste
primeiro contato eu poderia marcar de fato a entrevista com alguma pessoa que acreditasse ser
relevante, ou caso contrário pedir para que estas pessoas me indicassem três outras pessoas
que, na sua opinião, serviriam para minha investigação. Procedendo desta maneira, em pouco
tempo tinha uma ampla gama de possibilidades, possibilidades estas que iam aumentando e
diminuindo à medida que eu entrava em contato com mais e mais pessoas. Usando o critério
da coerência entre as sugestões e as características das pessoas que a observação me revelava,
assim como as conversas informais fui pouco a pouco definindo todos os dezoito sujeitos que
foram entrevistados.
Terminei por realizar, para o presente trabalho, dezoito entrevistas, sendo que
entrevistei oito alunos e dois ex-alunos cabo-verdianos, quatro alunos e um ex-aluno
guineenses, dois alunos nigerianos e um aluno são-tomense; sendo que dos dezoito
entrevistados, onze são homens e sete mulheres. Este grupo apresentou uma grande variedade
em outras diferentes características; entrevistei ex-alunos, alunos em processo de graduação e
alunos quase recém chegados; alunos que trabalham e se sustentam aqui no Brasil e alunos
que recebem dinheiro dos pais desde fora do país; alunos que constituíram família no Brasil e
não têm clareza de quando regressariam a seus países e alunos que desejam voltar assim que
terminarem o curso, etc.
Claro está que a inserção e a convivência com o grupo e com os sujeitos da pesquisa
foram fatores que possibilitaram os procedimentos metodológicos da observação e da
entrevista. No entanto, uma boa compreensão dos fundamentos destes instrumentos foi
essencial para a produção de um conhecimento coerente com a realidade estudada. De fato, a
observação e a entrevista foram utilizadas neste trabalho de modo cuidadoso, tendo sempre
58
3.5.2 A Observação
metodólogos destas novas vertentes, dada à capacidade atribuída à observação de ser mais
eficiente no estudo da produção simbólica dos indivíduos dentro das interações sociais e da
cultura, assim como a maneira em que esta produção simbólica influenciava a própria
subjetividade e identidade dos indivíduos.
A partir do estabelecimento da observação como uma metodologia e uma técnica
cientificamente eficaz, esta passou a ser definida e re-definida constantemente à luz das novas
demandas que as situações empíricas exigiam dos pesquisadores observadores. Assim, como
Haguette nos mostra brevemente, a observação passou gradativamente de uma concepção
mais instrumental e positivista, onde a realidade deveria ser observada de uma maneira
distante com base em prescrições extremamente rígidas, para um modelo mais flexível e
“interativo” onde o pesquisador é orientado a fazer parte do grupo e a tentar constantemente
“colocar-se no lugar do outro” como forma de compreender da melhor maneira possível os
mecanismos simbólicos de produção de sentido e de ação dos indivíduos estudados.
(Haguette, 1987) A observação é, assim, uma metodologia pouco estruturada (a menos
estruturada) que visa especialmente a compreensão dos fenômenos, interações e sujeitos
sociais através da inserção do pesquisador dentro dos seus sistemas sociais, culturais e
interacionais.
grupo dos alunos estrangeiros estudados. O contato natural com o grupo, a amizade com
vários de seus membros, e a participação em encontros, festas e outras manifestações culturais
foram momentos propícios e enriquecedores do ponto de vista da observação casual. De fato,
a temática e os problemas do presente trabalho foram em grande parte influenciados pelas
observações não sistemáticas nem estruturadas, mas apenas casuais, que eu tive a
oportunidade de realizar em uma variedade de eventos e situações. Fenômenos como a união
de certos grupos culturais em relação a seu país e sua cultura, a existência de uma
“concorrência cultural” entre dois ou mais grupos, o fechamento de algumas comunidades em
relação à cultura brasileira englobante e outros logo pulam aos olhos de quem, como eu,
convivia com os diferentes grupos de alunos estrangeiros da Universidade de Brasília.
A observação casual me permitiu não apenas a definição mais clara dos meus
problemas, objetivos e hipóteses, mas também foi um passo preliminar importante na
construção e utilização da principal técnica de pesquisa que utilizei: a entrevista. A
observação inicial ofereceu os recursos necessários para a construção mais objetiva possível
do roteiro de entrevistas, com questões direcionadas para pontos que se configuravam como
conflitivos e importantes através da observação. Todos os quatro momentos do roteiro de
entrevistas foram construídos tendo como base um conhecimento prévio que foi obtido
justamente através da observação casual dos momentos iniciais da pesquisa e inclusive desde
antes, tendo em vista toda a experiência acumulada que tive durante aproximadamente 3 anos
antes do começo deste trabalho.
Um segundo ponto a ser ressaltado sobre a metodologia da observação é o que diz
respeito ao cuidado que devemos ter ao utilizarmos este método para produzir informação.
Assim como todas as metodologias e técnicas, a observação tem uma série de problemas aos
quais o pesquisador que a utiliza deve estar atento sob pena de produzir conclusões e
informações enviesadas e não necessariamente verdadeiras. É justamente pela observação ser
a menos estruturada das metodologias científicas que o pesquisador deve elevar ao máximo
seu nível de reflexividade crítica e atenção ao que está sendo observado e ao que está
pensando e concluindo em relação ao que está sendo observado. Estas preocupações são
direcionadas, principalmente, para controlar dois aspectos da observação que podem
comprometer a informação produzida: o “efeito do observador” e o “viés do observador”.
Por “efeito do observador” ou reatividade das pessoas observadas devemos entender
as reações não naturais que as pessoas possam vir a ter como conseqüência da percepção de
que alguém os esteja observando, filmando, retratando, etc. O efeito do observador acaba por
gerar fenômenos, depoimentos, ações e relações não naturais que podem comprometer o
63
“O fato de que alguém perceba que está sendo observado por outra pessoa ou por
instrumentos (câmara ou gravadores, por exemplo) afeta a maneira como
habitualmente se comporta em determinada situação. Ocorre, assim, o chamado
efeito do observador (ou reatividade). Esse efeito traduz-se por um
comprometimento na validade dos dados. É necessário, portanto, tomar cautelas
quando se pretende usar uma metodologia observacional em pesquisa, existindo,
para essa finalidade, meios que possibilitam minimizar os efeitos da reatividade.”
(Vianna, 2003)
Os principais meios que possibilitam este controle sobre os efeitos da reatividade são:
além de ocultar da melhor maneira possível quaisquer instrumentos que delatem a observação
científica, a destreza e a capacidade do observador para se camuflar e passar da melhor forma
possível despercebido dentro do grupo observado, a fim de que os membros do grupo sempre
ajam como se este não estivesse presente. Pelas razões já expostas acima, posso afirmar que
as observações por mim realizadas durante a etapa de coleta de dados – tanto a observação
casual quanto a participante – não foram comprometidas pela reatividade dos observados, já
que a maioria destes em nenhum momento chegou a tomar consciência do meu papel
científico dentro do grupo (apenas os que foram entrevistados posteriormente o foram).
O principal problema que a observação como metodologia e técnica enfrenta, no
entanto, é o do “viés do observador”. Assim como em outras metodologias e técnicas de
pesquisa, o observador dever ser extremamente cuidadoso e manter uma crítica constante ao
próprio trabalho que desenvolve, a fim de eliminar as influências que este possa exercer sobre
o processo de pesquisa. Observe-se:
3.5.3 A Entrevista
Tendo a técnica observacional como base, foi utilizada junto a esta a técnica da
entrevista. Sua escolha esteve relacionada à necessidade de compreender e avaliar as
apreciações e configurações subjetivas que os sujeitos da pesquisa detêm com relação à
temática. A entrevista é uma técnica que permite – mesmo que com diversas ressalvas – trazer
à tona e tornar explícitas as opiniões, crenças e sentimentos dos indivíduos entrevistados em
relação a determinado assunto, aspecto primordial para compreendermos melhor os processos
pelos quais a identidade dos indivíduos estudados se modifica de acordo com sua inserção em
um ambiente cultural estranho.
Ao contrário do que acontece com a técnica observacional, a entrevista possui uma
definição simples e clara que é adotada pela maioria dos autores que estudam o tema. A
entrevista pode ser definida como “um processo de interação social, no qual o entrevistador
tem por objetivo a obtenção de informações por parte do entrevistado”. (Haguette, 1987;
Colognese e Melo, 1996) No entanto, mesmo com a simplicidade da definição, a entrevista
também é objeto de diversas discussões e disputas científicas, dada a grande variedade de
possibilidades que esta técnica permite e as vantagens e riscos de cada uma delas.
Como coloca Flick, a entrevista como instrumento qualitativo de pesquisa passou a
ganhar terreno e importância, e contracenar com a observação – em determinado momento
tida como a única técnica qualitativa de fato – no momento em que se percebeu que as
informações poderiam ser obtidas de maneira mais clara e segura através de um entrevista
aberta do que através de questionários ou entrevistas fechadas, como ele coloca no seguinte
trecho:
Após vermos as características gerais da entrevista da maneira como ela foi utilizada
na presente pesquisa, podemos analisar algumas das principais problemáticas e vieses a que
esta técnica está sujeita. Poderemos também discorrer sobre as características específicas da
utilização da técnica da entrevista no presente trabalho e como foram trabalhadas as
dificuldades inerentes a esta técnica.
A meu ver, e de acordo com os autores e obras pesquisadas e estudadas, existem duas
problemáticas centrais em torno do processo de entrevista, os quais oferecem perigos a serem
identificados e evitados ou reduzidos por parte do pesquisador durante o processo de
realização da entrevista. O primeiro ponto se refere aos incômodos que o entrevistado possa
vir a sofrer em decorrência da não adaptação à experiência da entrevista, considerando-a
68
como uma experiência “estranha”. Por outro lado, o segundo ponto diz respeito aos vieses que
podem se manifestar na entrevista, oriundos da assimetria e da diferença em diversos aspectos
entre o entrevistador e o entrevistado.
Em primeiro lugar está a preocupação sobre como o entrevistado encara a experiência
de uma entrevista formal. De fato, diversos autores ressaltam como a entrevista como
experiência pessoal pode influenciar o estado emotivo do entrevistado e influenciar, portanto,
seu depoimento. (Colognese e Melo, 1996; Haguette, 1997) Fatores como o local de
realização da entrevista, a gravação da mesma, a presença de outras pessoas além do
entrevistador, a temática e outros são geralmente causa de preocupações e desconforto por
parte de muitos sujeitos, o que pode influenciar a relação de entrevista. No presente trabalho,
foram tomadas medidas como: a realização da entrevista em locais de confiança do
entrevistado, se possível em locais onde este se sentisse a vontade (em casa, na biblioteca, no
restaurante universitário, etc); a presença exclusiva do entrevistador e do entrevistado e a
garantia sincera e absoluta de que a gravação e a informação produzidas na entrevista seriam
tratadas com extremo cuidado e confidencialidade, sendo utilizadas apenas pelo entrevistador.
Mesmo que em muitos casos estas medidas tenham resultado em efeitos positivos visíveis,
talvez o que mais tenha influenciado na tranqüilidade dos entrevistados tenha sido o
estabelecimento de uma relação e uma comunicação “não-violenta”, nos moldes do que
propõe Pierre Bourdieu em seu artigo “Compreender”, parte da obra organizada por ele: “A
Miséria do Mundo” (2003). Esta estratégia relacional será tratada a seguir, na questão do
principal viés que aflige aqueles que são entrevistados.
O principal ponto a destacar quando se discute sobre a técnica da entrevista, é o da
validade das respostas dos sujeitos entrevistados com relação à temática analisada. Este é um
primeiro grande ponto que diferencia a entrevista – e especialmente a entrevista semi-
estruturada – de outros métodos qualitativos como, por exemplo, a observação. Enquanto na
observação estamos de fato observando o sujeito, como este age e vive naturalmente, sem
termos de nos preocupar com a influência que o sujeito possa vir a sofrer devido à presença
do pesquisador – pelo menos na observação naturalista e secreta; na entrevista devemos sim
nos preocupar com o fato de estarmos, como pesquisadores, influenciando o conteúdo do
depoimento do entrevistado.
Diversos autores têm tratado esta problemática central da entrevista, seja como crítica
à técnica, seja tentando sugerir e aprimorar métodos e estratégias que permitam diminuir a
influência do pesquisador e da relação de entrevista sobre os sujeitos e conseqüentemente os
resultados. Invariavelmente, o ponto de partida dos debates encontrados nos escritos sobre a
69
entrevista começam com a constatação de que é necessário compreender que nunca obteremos
dados e informações cem por cento objetivas ao utilizarmos técnica alguma, e especialmente
uma técnica que depende consideravelmente das motivações subjetivas tanto do entrevistado
quanto do entrevistador. Observe-se, por exemplo, a seguinte passagem dos autores
Colognese e Melo citando o metodólogo Hartwig Berger:
Vejamos também o que afirma Bourdieu sobre o reconhecimento e o esforço com que
as ciências sociais devem se comprometer a fim de realizar análises realistas e conscientes:
Aceitando que a entrevista como relação social não pode deixar de influenciar de
inúmeras maneiras tanto o pesquisador como aquele que é entrevistado (Bourdieu, 2003),
coloca-se a questão de como esta influência é exercida e de que maneira o depoimento do
sujeito entrevistado pode ser abalado e transformado a ponto de perder sua validade científica.
Diversos autores enfocam o ponto da “assimetria” entre entrevistador e entrevistado
como o fator primordial de desestabilidade para o entrevistado e seu depoimento. Esta
assimetria consiste basicamente nas diversas diferenças existentes entre os indivíduos que
interagem através da entrevista. Diferenças culturais, de classe social, de status, de capacidade
lingüística e expressiva entre outras, podem representar uma ameaça e um fator desmotivador
– no momento da entrevista – tanto para entrevistadores quanto para entrevistados, sendo
mais comum este segundo caso. O entrevistado, ao sentir-se “inferior” em algum sentido,
pode reagir de uma maneira defensiva e até combativa, atuando inconscientemente sobre
aquilo que se lhe está sendo perguntado e, sobretudo, sobre aquilo que responde. O
depoimento pode, assim, ao sofrer tal viés por parte do entrevistado, ser imparcial, impreciso
70
intelectual e humana do pesquisador. Segundo este autor, a relação de entrevista, para que seja
o mais bem sucedida possível, deve contar com a entrega do pesquisador ao projeto de
compreender amplamente o sujeito entrevistado desde dentro, ao mesmo tempo em que o
analisamos o mais objetivamente desde fora. É um “duplo esforço” que requer do pesquisador
o talento intelectual e a capacidade humana de se centrar e “vivenciar” o mais veridicamente
possível o complicado contexto sócio-histórico daquele que analisa, ao mesmo tempo em que
articula o depoimento deste com teorias e hipóteses que lhe permitem fazer conclusões
imparciais sobre a temática em questão. É justamente esta relação autêntica e compreensiva
que se estabelece no momento em que o pesquisador submerge no mundo do indivíduo
entrevistado, que eliminaria ou atenuaria razoavelmente a distância que se estabelece assim
que o entrevistador e o entrevistado se identificam como pessoas de diferentes classes sociais,
culturas, crenças, capacidades lingüísticas e intelectuais, etc. Vejamos dois importantes
trechos onde Bourdieu explica de maneira exemplar este complicado papel do pesquisador
que trabalha com entrevistas:
(...)
“Procurou-se então instaurar uma relação de escuta ativa e metódica, tão afastada da
pura não-intervenção da entrevista não dirigida, quanto do dirigismo do
questionário. Postura de aparência contraditória que não é fácil de se colocar em
prática. Efetivamente, ela associa a disponibilidade total em relação à pessoa
interrogada, a submissão à singularidade da sua história particular, que pode
conduzir, por uma espécie de mimetismo mais ou menos controlado, a adotar sua
linguagem e a entrar em seus pontos de vista, em seus sentimentos, em seus
pensamentos, com a construção metódica, forte, do conhecimento das condições
objetivas, comuns a toda uma categoria.” (Bourdieu, 2003)
Devo dizer que, dada a natureza específica da minha relação com o grupo
entrevistado, este trabalho foi facilitado em grande medida. De fato, torna-se muito mais
simples se doar e se entregar, nos moldes do que propõe Bourdieu, a uma entrevista quando a
pessoa entrevistada compartilha com o entrevistador alguns aspectos sociais e inclusive
afetivos. Mesmo tendo escolhido as pessoas a serem entrevistadas segundo o método da “bola
de neve”, muitas das pessoas que entrevistei me conheciam, senão pessoalmente, pelo menos
de nome ou vista. Em todo caso a maioria sabia que eu era: em primeiro lugar uma pessoa
72
muito próxima àquele abrangente grupo dos “estudantes estrangeiros”, em segundo lugar o
namorado de uma pessoa deste mesmo grupo, e finalmente um estudante não brasileiro.
Sendo assim, logo se estabelecia na maioria das entrevistas uma identificação e uma ligeira
aproximação afetiva com relação à temática trabalhada no interrogatório. Este fenômeno
garantia em grande escala que os sujeitos se sentissem extremamente à vontade para se
expressarem sobre a temática abordada nas entrevistas junto a mim em vez de para mim.
Possibilitando aquele “clima” comunicativo propício e positivo que González Rey vê como
requisito fundamental para uma real obtenção de informações com valor científico. O autor
assinala esta perspectiva comunicativa no seguinte trecho:
fenômeno que comprova a centralidade que eles próprios como sujeitos estavam
desempenhando na sua própria expressão. Houve diversos momentos – notavelmente
importantes - de descobrimento e reflexões profundas por parte dos entrevistados, assim como
existiu em muitos outros aquela “sócio-análise a dois” à qual Bourdieu se refere em sua obra:
um momento de descoberta e reflexão também para o entrevistador, onde os argumentos e
idéias trocados na relação de pesquisa parecem tomar um único rumo e se transformam num
único discurso construído por pontos de vista diferentes porém semelhantes sobre o tema em
questão. (Bourdieu, 2003) Acredito que nas entrevistas realizadas neste trabalho a assimetria
dentro da interação da entrevista pôde ser controlada e minimizada, se é que em alguma
entrevista esta assimetria se mostrou realmente fonte de desconforto para alguma das partes.
74
A análise e compreensão tanto das inúmeras situações observadas no dia a dia dos
estudantes estrangeiros, como das entrevistas realizadas junto aos sujeitos participantes deste
trabalho, promoveram um rico e abrangente leque de informação relativo à vida destes
estudantes, à sua experiência pessoal de viajarem, viverem e estudarem em um país
estrangeiro, bem como às variadas mudanças e transformações a que suas identidades estão
sujeitas. Dada a extensão e a abrangência das dinâmicas conversacionais entre o pesquisador e
os sujeitos da pesquisa, foram levantados inúmeros dados, aspectos, relatos e pontos de vista
diferentes sobre os fenômenos em pauta – tais como as influências que os fizeram vir estudar
no Brasil, mudanças vivenciadas por estes estudantes em suas identidades, os aspectos
conflitivos entre as realidades culturais, etc. Nesta seção final, no entanto, o principal objetivo
não é listar ou esgotar todo tipo de manifestação que foi registrada junto aos estudantes, mas
sim mapear, compreender e analisar fenômenos e aspectos primordiais que, em conjunto, nos
possibilitem construir conclusões e formulações minimamente satisfatórias com relação aos
objetivos e indagações que têm norteado o trabalho desde o começo.
Tendo em conta o objetivo geral deste trabalho, o qual é compreender como a
identidade dos sujeitos se comporta e se modifica quando estes vivenciam o que chamei de
“experiência transcultural”, é possível, dentre a gama informacional produzida nas entrevistas,
distinguir e propor alguns núcleos temáticos como principais e decisivos para as
transformações identitárias dos alunos estrangeiros. Estes núcleos temáticos se revelam
fundamentais não por “aparecerem” nas entrevistas como dados concretos, senão por serem
pilares principais de todo um sistema existencial e comportamental dos grupos ou
comunidades de estudantes estrangeiros, bem como dos próprios indivíduos. Estes pilares
aparecem muitas vezes de maneira objetiva na fala e nas reflexões dos alunos entrevistados,
muitas outras vezes, porém, estas perspectivas não aparecem claramente, senão que
demonstram sua importância de uma maneira indireta, as vezes sem consciência plena dos
sujeitos. Neste sentido, muitas vezes é necessário empreender uma busca e uma série de
reflexões sobre os sentidos ocultos e camuflados que os sujeitos entrevistados atribuem às
suas vivências e conclusões. Outro ponto importante a ser destacado é que estes núcleos são
pontos centrais da complexa teia informacional produzida através das entrevistas. São pontos
cardinais que tocam e determinam praticamente todos os fenômenos, reflexões e situações que
75
fazem parte da vida cotidiana dos alunos estrangeiros em Brasília. Através deles poderemos
tocar, mesmo que brevemente, muitos outros pontos secundários que embora isolados não
cobrem muito valor, em conjunto são a “experiência transcultural” em si. Pretendo,
finalmente, a partir da apresentação destes núcleos temáticos principais e seus
desdobramentos, procurar formular reflexões e construções capazes não apenas de atingir o
problema e os objetivos deste trabalho, mas capazes também de dialogar com as idéias,
conceitos e paradigmas do marco teórico apresentado previamente.
serem discutidas neste momento são as que dizem respeito à estância, à formação intelectual,
social e profissional do jovem estudante e às possibilidades futuras e posteriores da
experiência que o estudante migrante está empreendendo. Deve-se ressaltar, porém, que há
uma diferenciação entre as “perspectivas iniciais” dos alunos recém-chegados e as “novas
perspectivas” daqueles alunos que já estão há algum tempo no Brasil e já estão gerando novas
metas e horizontes.
É notório que ao serem indagados sobre o país em que gostariam de nascer caso
tivessem uma segunda chance e pudessem escolher, a grande maioria dos entrevistados citou
seu próprio país e sua própria cidade e em seguida listou uma série de qualidades e vantagens
para explicar o porquê da escolha. Em todas estas explicações ficam evidentes os fortes laços
emotivos e históricos que prendem o sujeito ao seu país, sua cidade, seu círculo de amigos e
família. Esta evidente ligação sentimental com o país natal gera uma perspectiva inicial da
experiência de estudar no Brasil caracterizada pela finitude. Mesmo isto não tendo aparecido
de maneira explícita em nenhuma entrevista, o convívio com os estudantes africanos
lusófonos logo revela que um dos temas de conversa preferidos e um dos objetivos centrais,
pelo menos dos alunos que estão há pouco tempo no Brasil, é a volta para o país natal. Seja
em conversas informais, em atividades curriculares, e principalmente em manifestações
culturais, a idéia-sentimento do “desarraigo” da qual fala Fernando Ortiz ao se referir ao
processo transcultural cubano, está constantemente presente entre estes alunos. Em pouco
tempo de convivência com os alunos africanos lusófonos eu já sentia que o anseio por
terminarem o curso e voltarem para seu país natal é um dos elementos que motivam e movem
grande parte destes alunos no seu cotidiano acadêmico dentro da realidade brasileira. Dentre
as perspectivas iniciais ainda, posso afirmar baseado na observação do grupo, que os
estudante que chegam ao Brasil almejam terem uma boa formação acadêmica que os
condicione e lhes possibilite poder voltar a seu país natal com boas possibilidades de emprego
e ocupação na área de estudos.
Podemos dizer, portanto, que as perspectivas iniciais dos estudantes lusófonos ainda
estão muito atreladas e dominadas pela sua conexão sentimental com os países natais, com
suas culturas e com o conjunto de relações pessoais que deixaram para trás. A configuração
destas perspectivas iniciais pode gerar – num primeiro momento - um fenômeno interessante
que é a criação de certa dificuldade ou falta de vontade de interagir mais profundamente com
77
a realidade cultural brasileira e criar, junto a esta, laços mais profundos. Isto se dá por meio de
outro fenômeno, o da absorção do sujeito recém-chegado por parte daquela pequena
comunidade cultual constituída de alunos, corpo diplomático e simpatizantes do seu país natal
em Brasília. Esta ação do grupo e o embate entre os interesses deste e os interesses
individuais é outro dos núcleos temáticos fundamentais e será explorado mais à frente.
Mais uma vez, mesmo que este sentimento inicial não seja explicitamente mencionado
nas entrevistas, é fácil de identificá-lo, principalmente ao observar-se a constituição dos
grupos de estudante estrangeiros tanto no campus, quanto em outros espaços da cidade. É
comum, no campus da UnB, observarmos os estudantes africanos (principalmente os
lusófonos) andando em grupos – quando não grandes, pequenos. Tanto no Restaurante
Universitário, quanto na Biblioteca, no Centro Olímpico e outras dependências da
universidade, bem como nas quadras residenciais, supermercados e quadras poliesportivas da
Asa Norte é mais comum vermos estudantes africanos andando e compartilhando no mínimo
em duplas do que sozinhos. Este fato também pode ser analisado tomando como base o
número de estudantes africanos (lusófonos) que moram sozinhos. Particularmente, durante
todo o processo de convivência, observação e entrevista que levei a cabo junto a estes grupos
de estudantes, conheci apenas duas pessoas que morassem sozinhas. A grande maioria destes
estudantes moram em grupos e repúblicas com colegas quase sempre das mesmas
nacionalidades e inclusive das mesmas cidades, como será abordado posteriormente. O fato é
que esta união e este convívio refletem a criação, em determinado grau, de núcleos coesos e
estáveis que giram em torno da própria cultura nacional e que diminuem em algum grau as
necessidades e as disposições destes estudantes com relação ao contato e à interação com a
cultura brasileira.
É interessante analisar como este fenômeno, que como coloco, pode ser facilmente
observado e é muitas vezes sentido e comentado pela população brasileira, a qual por vezes se
manifesta no sentido de apontar os alunos africanos como anti-sociais que ficam apenas
convivendo com seus próprios grupos, nas suas próprias festas e lugares, não foi explicitado e
admitido em nenhuma entrevista. Muitos dos estudantes entrevistados, mesmo sabendo e
tendo consciência de já terem passado por essa fase inicial, não a comentam abertamente e
preferem se focar num segundo momento de maturidade e perspectivas mais “integrativas”.
Na entrevista de C.V., 32 anos, cabo-verdiano, graduado em Ciência Política, porém, estas
características do grupo aparecem sob o tom denunciativo do entrevistado, ao ser indagado
sobre se em Cabo Verde ele teve a oportunidade de conversar com ex-estudantes que lhe
passaram informações proveitosas sobre o Brasil:
78
“Não, eu não tive essa oportunidade, até porque, e eu digo para você, com muita
tranqüilidade e certeza que noventa por cento, para não dizer cem, dos estudantes
que chegam aqui voltam e não sabem o que que o Brasil é. Porque olha aqui, vamos
olhar os estudantes, estou falando dos estudantes que estudam aqui em Brasília que
eu conheço. Pergunta quantos estudantes foi pra uma festa em Samambaia, visitou
um amigo em Recanto das Emas, visitou um amigo em Taguatinga, Ceilândia,
pergunta. Porque os estudantes que chegam aqui em Brasília eles conhecem o
território da Universidade, território da Asa Norte. Eles não transitam de certa
forma, pelos outros espaços sociais que tem outra camada da população. Porque
você tem vários Brasis dentro do Brasil, eles conhecem um Brasil, eles não
conhecem os outros Brasis. Eles transitam muito pouco, os cabo-verdianos se
reúnem muito entre si e não se locomovem por outros espaços. Um cabo-verdiano
não sabe como é o cotidiano de uma família que ganha um salário mínimo no Brasil,
você consegue imaginar isso? Eles não conhecem essa realidade”.
Além das perspectivas iniciais fortemente atreladas à terra natal e direcionadas a uma
formação rápida e sem estabelecimento de laços emotivos ou identitários com a realidade
brasileira, há perspectivas iniciais mais voltadas para a valorização da integração e da troca
cultural. Diversos entrevistados defenderam, durante a realização da entrevista, a posição de
que no começo suas perspectivas eram ao mesmo tempo de integração com a realidade
cultural e o meio social brasileiro, e de afirmação e conservação das suas identidades culturais
e nacionais. Dentro deste grupo, no entanto, há entrevistas que chamam bastante a nossa
atenção para um aspecto interessante: o da “cultura da migração”. Mesmo que existam muitos
alunos que em um primeiro momento pensem apenas em voltar para casa, há outro tipo de
aluno que não pretende voltar imediatamente e está muito mais aberto e predisposto – pelo
menos num primeiro momento – ao contato com experiências, pessoas e culturas novas. Estes
estudantes encaram a fase de estudos no Brasil como uma oportunidade de conhecer e
adquirir uma nova cultura, uma nova língua, uma nova maneira de pensar e ver o mundo.
Deve-se ressaltar que tanto Guiné-Bissau, como Cabo Verde e São Tomé e Príncipe,
cujos alunos entrevistei neste trabalho (além de Nigéria), são países onde a migração tem um
papel preponderante na vida da maioria das famílias. É muito comum encontrar imigrantes
destes três países em Portugal e outros países da Europa, assim como nos Estados Unidos. Da
mesma maneira, estes países mandam muitos dos seus estudantes de nível superior para
estudarem fora, em países como Portugal, Brasil e Cuba. É de se supor que a migração nestes
países seja vista de uma maneira natural e inevitável. A separação, mesmo que temporária
entre pais e filhos, irmãos e irmãs já é um elemento cultural nestas regiões. Quase todos os
sujeitos oriundos destes países que participaram deste trabalho, não apenas não vivem em sua
terra, mas possuem algum parente em algum outro lugar do mundo, assim acontece também
com outras inúmeras pessoas destes grupos com as quais tenho conversado. Nesse sentido é
interessante analisar como pessoas onde esta marca cultural da migração se manifesta mais
79
fortemente devido às suas histórias de vida e familiares, geram perspectivas diferentes com
relação è experiência de estudar no Brasil e disposições diferentes com relação aos embates
culturais. Este é o caso, por exemplo, de duas alunas cabo-verdianas: M.B, 23 anos, estudante
de Relações Internacionais e P.V, 24 anos, graduada em Ciências Sociais. Estas duas
estudantes têm tido um contato muito próximo com o fenômeno da migração, e não é
coincidência que elas tenham sido das pouquíssimas pessoas que não optaram pelo seu país
natal caso tivessem a oportunidade de nascer de novo (apenas três pessoas entre as dezoito
optaram por nascer em outros países).
Na entrevista de M.B, por exemplo, percebe-se claramente a importância que os
eventos migratórios têm tido na sua vida. Tendo ido embora de Cabo Verde desde criança,
esteve um período de tempo em Portugal e depois passou boa parte da infância e adolescência
na França, onde teve um forte contato com a faceta multicultural do mundo ocidental
moderno. Após voltar a Cabo Verde com 16 anos, passou lá algum tempo antes de optar por
sair para cursar um curso superior. Filha de diplomata, veio estudar no Brasil devido à grande
paixão do pai com relação ao país no qual ele estudou quando jovem. Todas estas
experiências migratórias atuaram na individualidade de J.B proporcionando outro tipo de
configuração identitária. Uma vez no Brasil, como ela mesma afirma na entrevista, ela não se
afirmou tanto como cabo-verdiana ou africana simplesmente por estas identidades não
estarem tão bem definidas e consolidadas na sua representação pessoal. Ao contrário,
procurou sempre aprofundar o contato e o conhecimento da realidade cultural e social
brasileira, visando sempre os possíveis ganhos pessoais que ela poderia obter. Observe-se a
seguinte passagem da conversa com M.B, no momento em que pergunto a ela se quando ela
chegou ao Brasil ela pensava mais em se integrar à cultura brasileira ou interagir mais com o
grupo dos cabo-verdianos:
“Eu pensava em me pregar à cultura brasileira, porque assim, eu não tinha muita
afirmação como cabo-verdiana, como eu te falei, eu não cresci em Cabo Verde e não
tinha muita afirmação como cabo-verdiana. Acho que eu vim me afirmar como
cabo-verdiana depois que eu cheguei aqui, que eu conheci muita coisa. Mas é o que
eu te falei, eu tinha muito contato com o Brasil, meu pai é um brasileiro de coração,
como ele fala né. Tanto é que eu fiz de tudo... Em qualquer lugar que você vai na
verdade, você tem que... Eu gosto de tentar me adaptar, eu sou totalmente contra de
imigrante que tem quarenta anos num país, como tem muitos cabo-verdianos por
exemplo na Europa, mundo afora, nos Estados Unidos, que não sabem falar a língua,
não sabem nada da cultura entendeu. Renegam mesmo, você tem a impressão que é
o teu país lá reproduzido no outro país entendeu. Eu nunca fui assim, eu gosto de
aprender línguas novas, sotaques novos, culturas novas. Sou muito observadora das
pessoas, gosto muito das pessoas, gosto de ver..., então é massa isso.”
De fato, a conversa com M.B revela outros aspectos que a diferenciam notavelmente
das tendências gerais encontradas nas entrevistas. Estes aspectos diferenciais estão
80
intimamente conectados com esta predisposição e esta abertura com que M.B encara a
experiência de vir estudar no Brasil e interagir com a cultura brasileira. O melhor exemplo
que pode ser dado é em relação à valoração que M.B faz da realidade social brasiliense.
Enquanto a maioria dos entrevistados sempre faz uma valoração negativa da realidade
brasiliense – as pessoas, as relações sociais, a frieza da cidade, etc, é muito interessante que
M.B faz uma avaliação extremamente positiva e rica, como pode ser observado na seguinte
passagem:
“Brasília não tem nada a ver com o Brasil, Brasília é um mundo a parte e tem tudo a
ver comigo. Brasília não a cidade que eu estou falando, o núcleo a UnB, eu gosto
muito da UnB. (...) É aquela coisa, eu encontrei em Brasília uma mistura de tribos
assim... Sentando aqui nesses baquinhos, pessoas que aparecem aqui, galera que já
se formou, que está se formando, cabeção mesmo... Pessoas que você vê na rua e
fala 'não acredito que esse bicho seja assim'... (...) Então eu gosto de Brasília porque
é aquela coisa de pessoas mais..., uma coisa mais assim, tranqüila... Muito legal
Brasília mesmo nesse aspecto. As pessoas que eu encontrei aqui, conheci muito de
música, antes de Brasília não tinha contato nenhum com música. E agora é o lance
de conhecer mesmo, instrumentos, galera que tem aquela vibe musical, vibe de
natureza, vibe hippie assim, eu conheci tudo aqui em Brasília e não conheci isso
nem em São Paulo nem no Rio...”
Nota-se nessa passagem o apreço e o agradecimento que M.B tem para com Brasília e
as oportunidades que esta lhe propiciou no sentido de cultivar novas relações sociais e
vivenciar novas experiências. Percebe-se também como M.B se manifesta sempre de uma
forma aberta à exploração e à integração com novos elementos sociais e culturais do meio
brasileiro. Sem dúvida alguma, a perspectiva integrativa que M.B possuía ao vir estudar no
Brasil, perspectiva esta determinada pelo peso da experiência migratória em sua história de
vida, determina a forma como ela se comporta frente à realidade brasileira, uma forma mais
aberta e propensa à aquisição de novos elementos culturais, ao convívio e ao aprendizado com
os brasileiros, ao crescimento pessoal através do constante acréscimo de novos modos de
pensar e sentir a realidade. No contexto multicultural do Ocidente, M.B é uma estudante
migrante em constante transformação e hibridação, tentando, nos moldes do que falam os
teóricos da pós-modernidade, sempre dar acabamento e forma final à sua identidade, a qual
está em constante mutação.
interessante idéia de como as perspectivas que os alunos carregam consigo ao virem ao Brasil
pode influenciar nos posteriores câmbios e transformações identitárias.
A maioria dos alunos nigerianos que estudam na Universidade de Brasília não
participa do mesmo programa de cooperação educacional que os alunos que vêm de países
lusófonos. Ao invés de vir estudarem pelo convênio conhecido como PEC-G (Programa
Estudante-Convênio de Graduação), os alunos nigerianos que estudam na UnB geralmente são
filhos de membros do extenso corpo diplomático nigeriano em Brasília. Isto quer dizer que os
alunos nigerianos não necessariamente vêm para o Brasil para estudar especificamente, senão
que muitas vezes vêm junto com os pais em missão diplomática, sabendo que terão que
adaptar-se às condições do novo país, estudar, trabalhar e viver normalmente até o momento
em que possam voltar, seja com a família ou seja individualmente.
Esta conjuntura é muito diferente daquela que enfrentam a maioria dos alunos
lusófonos, os quais, como visto, vêm ao Brasil com uma perspectiva de estudar quatro ou
cinco anos para depois poderem voltar ao país de origem. Para os alunos nigerianos, em
decorrência da perspectiva de estadia indeterminada no Brasil, bem como pela grande
diferença cultural entre estes dois países e pela diferença de idioma, surge a necessidade de
entrar em um contato profundo e consciente com as realidades social e cultural do Brasil. O
fato destes alunos precisarem aprender a língua portuguesa rapidamente e precisarem se
familiarizar com os costumes e as dinâmicas típicas do Brasil em prol de facilitarem sua vida
neste novo país, os leva a quererem e procurarem manter relações profundas e produtivas
tanto com os elementos da cultura brasileira como a língua, a história e os costumes, quanto
com as pessoas. Dadas estas perspectivas que os estudantes nigerianos desenvolvem devido à
sua condição no Brasil, é comum encontrarmos que estes estudantes possuam mais facilidade
e vontade quando se trata de interagir e relacionar-se com a realidade brasileira.
Deve-se ressaltar que, na Nigéria, existe uma idéia do que seja o Brasil bastante
parecida àquela que existe nos países lusófonos. Neste país também passam novelas
brasileiras e as tradições culturais do carnaval e do futebol são muito conhecidas. Há, porém,
alguns elementos específicos a este respeito que divergem com relação aos países lusófonos e
que podem ter alguma influência importante sobre imaginário que se possui, na Nigéria, sobre
o Brasil. O primeiro destes elementos é a inexistência de um canal fixo de cooperação
educacional entre o Brasil e a Nigéria. Se por um lado vemos que a histórica cooperação
educacional entre o Brasil e os países lusófonos – principalmente Cabo Verde, Guiné-Bissau e
São Tomé e Príncipe – gera não apenas uma grande aproximação cultural entre os países, mas
a possibilidade de um imaginário mais rico e mais fidedigno do Brasil nestes países, por outro
82
lado a inexistência de um intercâmbio histórico desta magnitude na Nigéria faz com que o
imaginário brasileiro neste país se resuma apenas ao que se vê nas novelas, ao carnaval e ao
futebol. Se, como verificado nas entrevistas, nos países lusófonos o imaginário que se tem do
Brasil já é dominado por aspectos fantasiosos e irreais, mesmo que nestes países as muitas
pessoas que estudaram e residiram no Brasil podem desmistificar estas visões e mostrar outros
lados do Brasil para os futuros estudantes migrantes, podemos imaginar que na Nigéria este
imaginário transmitido pelas novelas e pelas poucas coisas conhecidas do Brasil se torne a
única referência para os estudantes que venham estudar no Brasil.
Um segundo elemento que podemos encontrar na realidade social e cultural nigeriana
e que, afortunadamente, vai de encontro ao primeiro elemento citado acima, é o que diz
respeito ao bairro intitulado “Brazilian Quarter”, o qual se situa na cidade de Lagos, a mais
populosa da Nigéria. Este bairro teve sua origem nas inúmeras famílias de “retornados”,
famílias de ex-escravos que, uma vez libertos no Brasil, decidiram voltar para os países e
regiões de onde foram retirados seus pais e avôs, durante o período escravocrata. A cidade de
Lagos, por seu amplo desenvolvimento e extensão, assim como por sua característica costeira,
era um dos locais preferidos pelas famílias de “retornados” para desembarcarem no continente
africano. Uma vez lá, muitas destas famílias estabelecia residência e acabava ficando para
sempre. Mesmo que entre o contingente de ex-escravos retornados houvessem famílias
oriundas dos Estados Unidos, do caribe, especialmente Cuba, e de diversos países da América
do Sul, eram majoritárias as famílias “brasileiras”. Foi-se criando e estabelecendo, assim, o
bairro conhecido como “Brazilian Quarter”, onde muitas famílias de retornados não apenas se
estabeleciam para começar vida nova em território africano, mas também mantinham vivas –
sempre sob o peso constante e transformador da hibridação cultural – muitas tradições
culturais brasileiras, as quais até hoje fazem parte do cotidiano da comunidade que reside no
“Brazilian Quarter”. É de se esperar que, dentro desta comunidade muito específica, na cidade
de Lagos, haja uma visão diferente do que seja o Brasil. De fato, estudando um pouco sobre a
cultura e o cotidiano das famílias descendentes de brasileiros que residem neste bairro, vemos
uma forte ligação cultural e afetiva com o Brasil. Com certeza o imaginário e as perspectivas
de um jovem nigeriano que pertencesse ou tivesse familiaridade com esta comunidade do
“Brazilian Quarter”, que estivesse vindo estudar no Brasil seriam muito diferentes das de
outro jovem nigeriano. Infelizmente este não foi o caso e não há nenhum estudante nigeriano
oriundo deste segmento social e cultural estudando na UnB. Os dois estudantes nigerianos
entrevistados tinham uma idéia bem simples do que fosse o Brasil, no entanto, como foi
83
“Nossa, é o pais das maravilhas. O Brasil? Pra gente lá? Nossa...É tudo, é o melhor
lugar do mundo para se viver, acredito. Talvez ficando atrás dos Estados Unidos.
Mas o Brasil é aquela coisa, porque lá a gente assiste muita novela brasileira, então
o que que acontece, o que passa nas novelas brasileiras é a parte mais linda do
Brasil, as praias, Copacabana, Rio de Janeiro sabe. Você idealiza um lugar lindo,
maravilhoso, verde, cheio de praia, cheio de gente bonita. Eu só vi gente bonita na
novela, não tem ninguém feio. Só vi gente bonita sabe, fazendo muitas coisas. As
roupas brasileiras, os biquínis, os sapatos, tudo, tudo do Brasil, era tudo
maravilhoso.”
Por outro lado, o aluno C.V. comenta outros aspectos deste imaginário brasileiro
compartilhado pelos países africanos lusófonos:
Este imaginário do Brasil que é compartilhado tanto por alunos guineenses, cabo-
verdianos quanto são-tomenses, se constrói e se impõe na realidade e na subjetividade social
destes países principalmente através do meio televisivo. Como foi referido por V.M., a novela
é o principal modo de criação deste imaginário paradisíaco de beleza infinita. O Brasil, não
apenas nestes países, mas ao redor do mundo, é conhecido pela qualidade das suas novelas.
Estas são traduzidas e exportadas para um grande conjunto de países principalmente na
América Latina e na África. O ponto central levantado por diversos alunos estrangeiros, é que
as novelas raramente mostram os piores lados da realidade brasileira, limitando-se a exibirem
os “cartões postais” mundialmente conhecidos: a praia, o carnaval, a beleza das mulheres, etc.
Isto acaba por gerar visões utópicas capazes de ludibriar os menos perspicazes, que chegam
ao Brasil esperando encontrar praias extensas e perfeitas em todas as cidades, carnavais de
vários meses de duração e mulheres belíssimas servindo água de coco em ambos os cenários.
No entanto, as novelas brasileiras não são o único programa televisivo que contribui
para formar uma imagem irreal do Brasil. Se por um lado, as novelas apresentam o Brasil
como um paraíso da beleza e do prazer, os programas sensacionalistas de notícias urbanas
contribuem para pintar o Brasil como um país caótico e desregrado, extremamente violento e
perigoso. Segundo: M.D, 28 anos, cabo-verdiano, graduado em Ciência Política:
“Lá existem duas imagens do Brasil. Quando eu era criança, o Brasil para mim era o
que passava nas novelas. Eram todas as pessoas felizes, era riqueza. E as novelas
simplesmente não mostravam a pobreza do povo brasileiro, não mostravam o
sacrifício do povo brasileiro. Então a gente pensava que tudo era bom, era mulher
86
bonita entendeu, carnaval e futebol, era isso. E mais tarde, em 96 mais ou menos,
quando a Rede Record começou a transmitir para Cabo Verde começamos a ver
muita violência também. Mas não é só isso, no Brasil há violência sim, como há em
outros países, mas não é só violência. Então em Cabo Verde hoje a imagem é essa. É
de violência por causa da 'Cidade Alerta' da Rede Record e das mulheres bonitas por
causa das novelas da Rede Globo.”
O choque entre os imaginários que se têm do Brasil nos países africanos e a realidade
que os alunos que vêm estudar no Brasil – especificamente no DF – encontram é um dos
pontos principais da discussão a respeito da experiência transcultural. Nas entrevistas
aparecem inúmeros argumentos e perspectivas que mostram como encontrar coisas tão
diferentes e inesperadas na realidade brasileira muda completamente a visão que os estudantes
tinham do Brasil, suas perspectivas com relação à sua estadia no país e elementos da sua
própria identidade nacional e cultural. Claro que os alunos estrangeiros também encontram
muitos pontos positivos no Brasil, características que eles não pensavam encontrar aqui e que
também lhes transformam as perspectivas e projeções em outro sentido. No entanto, é notável,
no discurso dos alunos, o peso e a dimensão que alguns aspectos considerados negativos da
realidade brasileira tomam nas configurações de sentido destes indivíduos com relação ao
Brasil, determinando o surgimento de novas posturas, reflexões e necessidades políticas,
sociais e identitárias.
87
Estes são alguns trechos das entrevistas de W.O. e de M.G., aluno guineense de 28
anos graduado em administração de empresas. Em ambos os trechos pode-se ter uma noção
de como o estudante estrangeiro que estuda no Brasil enxerga a realidade brasiliense,
principalmente seu aspecto social. Muitos dos alunos entrevistados manifestaram seu
desagrado e sua decepção ao constatarem as particularidades sociais de Brasília. Devemos
observar que ao falar de Brasília estes estudantes estão se referindo ao Plano Piloto, já que a
maioria deles não costume transitar por outros espaços da realidade social brasiliense, como
foi explicitado num trecho da entrevista de C.V.
88
“Eu nunca cheguei a pensar que existia assim, discriminação e preconceito aqui no
Brasil. Eu pensei que por ser um país de maioria negra, que isso seria difícil. Como
no meu país, a maioria das pessoas são negras, então não existe esse negócio de
preconceito. Então eu achei que aqui no Brasil não teria preconceito...”
Por outro lado, M.F., 24 anos, guineense, estudante de Sociologia, faz uma reflexão
interessante que nos mostra como alguns estudantes tendem a se posicionar ao vivenciar os
pontos negativos aqui apontados:
“Eu sinto isso (necessidade de se afirmar como africano e guineense) até para
mostrar que eu sinto orgulho se ser africano, por mais que ele seja um continente
que passou por diversas coisas... Você vê, você andando e alguém pergunta „você é
africano?‟, tipo „você já matou algum animal?‟, você já fez não sei o que. Tipo, eu
sinto orgulho de dizer isso, é por isso que eu afirmo isso em qualquer lugar. Eu sou
africano. Para mostrar que o africano ele não só mata animais, ele pode conviver
com muitas pessoas (risos). Pode conviver com as pessoas que não matam animais.
O estereótipo do africano é caça, sei lá, guerra, então eu sinto orgulho de afirmar
isso para as pessoas que não perceberam o que que é ser africano começarem a
entender que o africano é africano. Ele tem sua identidade como africano, pode ser
guineense, cabo-verdiano, mas acima de tudo ele é africano.”
Este trecho da conversa com M.F. pode servir de exemplo de uma das maneiras como
a identidade cultural e nacional se fortalece em decorrência do choque cultural e da diferença
cultural. No caso de M.F., ele se posiciona ainda de um modo pacífico e racional como pode
ser visto no trecho. Eu tive a oportunidade, contudo, de observar e apreciar nas entrevistas
outros indivíduos que se expressam de maneira mais emotiva, chegando a demonstrar um
pouco de rancor, desdém e desprezo pela sociedade brasiliense. O fato é que muitos alunos
africanos se desapontam com estes aspectos da realidade social e cultural brasiliense. O
91
choque determina novos momentos de definição e de ponderação enquanto ao que eles são, o
que sentem e o que desejam para si e seus países, bem como a respeito do próprio Brasil. É
comum a identidade nacional e cultural sair reforçada desta experiência de choque, com os
alunos estrangeiros ostentando o seu patriotismo, seu nacionalismo e sua responsabilidade
para com o Brasil mais do que antes. Este é um claro exemplo de como, dentro dos cenários
multicultural e pós-moderno, a identidade pode passar por processos de fortalecimento e
sedimentação, uma hipótese pouco abordada e desenvolvida pelos autores que tratam da dita
pós-modernidade.
mudanças dentro da sociedade brasileira. Os alunos que estudam Economia, por outro lado,
ressaltam o desenvolvimento das instâncias profissionais e do comércio nas realidades
brasileira e brasiliense mais especificamente. Fica claro, através das entrevistas, e também ao
observarmos algumas dinâmicas conversacionais dentro dos grupos de alunos estrangeiros,
que muitas destas surpresas positivas, destes aspectos que a realidade brasileira oferece e que
os alunos assimilam como exemplos a serem apreendidos e desenvolvidos, adquirem tamanha
relevância não por serem algo fora do comum – tanto que na sociedade brasileira estes
mesmos elementos muitas vezes são vistos com outros olhos – mas por serem elementos
ainda não desenvolvidos nos países de origem destes estudantes. Em várias das conversas
mantidas com os estudantes estrangeiros é possível perceber o impacto de alguns destes
elementos na forma como os indivíduos concebem seu próprio país:
Este trecho da conversa com o estudante guineense V.E., 28 anos, que cursa
Administração de empresas revela como um elemento por ele encontrado aqui no Brasil se
transforma em referência e em modelo para a análise do próprio país. Neste caso, V.E. faz
uma importante reflexão sobre o sistema político guineense a partir do conhecimento que
adquire sobre o sistema político brasileiro a partir da sua experiência como estudante
migrante. No caso da cabo-verdiana V.L., 32 anos, doutoranda em Sociologia, o elemento
brasileiro que ganha destaque e serve como exemplo é o nível de engajamento e mobilização
social que ela encontra na sociedade brasileira:
“Uma coisa que me impressionou muito e me chamou muito a atenção, que eu falei:
„eu gostaria muito que meu país fosse assim‟, foi perceber que aqui de certa forma
existe uma cultura mais ativa, de cidadania. Porque? Porque como eu acho que a
gente tem uma cultura de maior passividade lá em Cabo Verde, me impressionou
aqui no Brasil… Quer dizer, a coisa mais simples sabe, você vai no mercado e se
você for lá troca, pode ligar e reclamar e tal. Em Cabo Verde a gente não tem isso
muito. (…) Eu nunca gostei daquela coisa do meu pais da gente ser muito passivo,
de aceitar as coisas, muito comodistas né. Mas isso eu acho que tem a ver com nossa
história, nós tivemos uma colonização de muita repressão, depois a gente teve um
93
regime de partido único que pôde ter tido lá um lado que certamente não foi tão
opressivo mas certamente é de partido único. E quando eu chego no Brasil eu chego
em 94, o Brasil já tinha feito abertura política, tem uma história. Eu fui vendo, fui
lendo, vi que era uma sociedade civil ativa. Então uma coisa que me impressionou
muito foi exatamente ver isso, essa sociedade civil ativa, eu falei: „Gente eu quero
isso na minha terra‟.”
objetivas dos indivíduos. Existem, porém, diversos aspectos que vão transformando e
hibridizando o sujeito sem que este sequer se dê conta. Estes aspectos estão fortemente
relacionados com o caráter pessoal e íntimo da experiência de estudar em outro país e serão
analisados mais tarde.
Por enquanto, analisaremos o complexo embate entre os aspectos positivos e os
aspectos negativos encontrados pelos estudantes estrangeiros ao chegarem no Brasil, bem
como as perspectivas produzidas pelos novos posicionamentos produzidos neste embate. É a
partir deste embate que vão sendo produzidos novos posicionamentos e mudanças nas
identidades dos indivíduos que vivem a experiência transcultural.
Num momento inicial podemos mapear dois tipos diferentes de comportamento que
resultam do choque com o Brasil. O primeiro mais voltado à integração e a produção de novas
perspectivas positivas com relação à sociedade brasileira. O segundo por outro lado, mais
voltado para a convivência com o pequeno grupo de alunos da comunidade nacional, para o
fechamento e a repulsa para com a cultura brasileira e com a criação de certas “necessidades”
e “vontades” com relação à própria cultura, ao próprio país e à própria identidade.
Se por um lado já vimos que diversos estudantes vêm para o Brasil com a idéia de se
integrarem e aproveitarem ao máximo o que a cultura brasileira tem para oferecer, por outro
se pode observar que muitas vezes esse processo se desencadeia já no Brasil, em decorrência
de algumas boas experiências, vivências ou aprendizagens em solo brasileiro. Tanto os alunos
que vêm com uma perspectiva de sentirem e adotarem a cultura brasileira, quanto aqueles que
vêm mais centrados em realizar seus estudos e voltarem para seus países de origem, são
capazes de se surpreender e se cativarem por coisas positivas que a realidade brasileira tem a
oferecer. Isto pode determinar, portanto, uma confirmação de determinadas perspectivas e
planos em alguns casos, e uma mudança de visão e de perspectivas em outros casos. Vejamos
a continuação da conversa com V.L.:
“Outra coisa que eu gostei no brasileiro, que tem muito a ver também com um pouco
do imaginário que a gente tem em Cabo Verde sobre o brasileiro que não é bem
assim, que a gente precisa também desmistificar e repensar os conceitos que às
vezes a gente cria quando você esta num lugar antes de vir morar nele. Em Cabo
Verde tem uma idéia para além dessa imagem que passa do Brasil na televisão, que
o brasileiro é um povo acomodado, preguiçoso e que é do “facilite”. Eu acho que
isso tem muito a ver com o que a mídia passa. E também sempre aquela idéia que
passa que o Brasil é o país da diversão, samba e futebol. Portanto, samba, mulher e
futebol, portanto é um país onde não se trabalha. Uma coisa que me impressionou
que eu achei maravilhoso, que eu falei: „Cabo Verde precisa aprender com a
experiência brasileira‟, eu achei o povo super criativo. Criativo num sentido assim,
eles driblam as dificuldades. Eu me impressionava ao ver o cara vendendo
churrasquinho na rua, a mulher fazendo bolsa de croché para vender, outra fazendo
brinco. Ou então ir passando e vendo as placas sabe?, „eletricista‟ embaixo de uma
95
árvore, „bombeiro‟. Eu falei: „gente, no meu país eu não vejo isso‟. Porque é como
se as pessoas lá tivessem medo de expor que passam dificuldades. Aqui eu não vi
isso. Eu acho que pode ter muita coisa errada, gente corrupta, mas eu acho que isso
em todo lugar tem, eu vi muita gente que batalha. Ai eu falei: „gente, eles têm uma
criatividade que a gente não têm‟. Sabe? A criatividade de criar, de tentar ultrapassar
a dificuldade. E detalhe, com uma coisa, com uma energia positiva, com a coisa do
„fé em Deus‟, da alegria, do jeitinho. E o cabo-verdiano já tem uma coisa da
negatividade, do mais ou menos: „ah tá mais ou menos, tudo tá ruim‟, do reclamar
sabe, ai eu falei: „gente, a gente precisava aprender um pouco mais com eles‟. Por
isso que eu tenho essa admiração sabe…”
Podemos observar neste trecho da conversa com a estudante V.L. que ela, a partir da
sua inserção na realidade brasileira, passou a derrubar e desmistificar certas ideias ao mesmo
tempo em que descobria e se admirava com outros elementos do povo brasileiro, até então
desconhecidos para ela. É interessante analisar certos aspectos da entrevista desta aluna, a
qual exemplifica o tipo de estudante que acaba gerando novas perspectivas com relação à
sociedade brasileira. A experiência de vir para o Brasil foi particularmente difícil para esta
aluna, já que ela chegou no Brasil sem conhecer absolutamente ninguém, seja brasileiro ou
cabo-verdiano. No entanto, sua história no Brasil acabou tomando um rumo que a colocou de
frente com muitos brasileiros e muitas situações pelas quais a maioria de estudantes cabo-
verdianos não passa ao chegar no Brasil. Esta experiência complicada que possuía todos os
elementos para fazer com que V.L. se voltasse rapidamente para seu grupo e sua comunidade,
na realidade fizeram com que ela visse novas facetas da realidade brasileira e gerasse novas
perspectivas e projetos. No caso desta estudante, encontrar esses aspectos positivos na
realidade brasileira possibilitou uma mudança e uma reavaliação das suas formas de
identificação. O trecho mostra algumas das reflexões críticas que V.L. passou a produzir
sobre seu próprio país e cultura. Ela não apenas abriu os olhos para estes aspectos da cultura
cabo-verdiana, como também passou não apenas a opor-se a eles, mas a incorporar a seu
modo de vida, seu modo de pensar, e à sua própria identidade novos elementos culturais que
ela encontrou na realidade brasileira.
Por outro lado, encontrar elementos tão negativos quanto o preconceito, a falta de
comunicação e solidariedade e principalmente a ignorância sobre a África, é uma situação
bastante forte para muitos dos estudantes africanos que vêm para o Brasil. Uma situação que,
como já foi dito, começa a gerar nos alunos estrangeiros que são mais atingidos por estas
situações, sentimentos muito fortes de repulsa à realidade brasileira, tanto às pessoas, quanto à
cultura. As entrevistas e a observação de espaços sociais onde coexistem os alunos africanos
com os brasileiros revelaram que objetivamente, os alunos estrangeiros prefiram e procurem
conviver apenas com seus conterrâneos ou estudantes de outras nacionalidades africanas. As
96
“No início eu não sabia mais ou menos como agir sabe, eu ficava meio: „o que é que
eu faço?‟ Mas o que eu fiz?, Comecei a observar as coisas acontecendo, a observar
como as pessoas agem. Em função disso eu comecei a tirar as minhas próprias
conclusões. Eu senti uma necessidade de resistir em termos de..., me afirmar,
muito...Como negra, como africana, como cabo-verdiana. Primeiro porque eu faço
um curso que é bastante elitizado. (…) Chegando no meu curso eu achei branco, só
branco, branco rico que mora no lago, branco que tem carro, que pode se deslocar,
fazer todas as coisas que bem entender... E eu? Quem era eu no meio dessas
pessoas? Eu era uma menina que veio de Cabo Verde, negra... Mas o que
acontece… Eu senti que as pessoas me aceitavam..., tudo bem que eu era negra e era
africana, tudo bem que eu era da Cabo Verde, mas me aceitavam porque eu tinha a
pele mais clara, eu sentia isso muito! Por exemplo, a O.P., que é de Trinidad e
Tobago e que era negra, negra mesmo, ela não fez tanta amizade como eu fiz, ela
não conseguiu fazer tantas amizades. As pessoas não tiveram aquela coisa de chegar
nela. Não teve tantas pessoas chegando nela como chegavam em mim. Em mim
chegavam pessoas fazendo mil perguntas, queriam saber como Cabo Verde era,
tudo. Eu sentia que as pessoas tinham uma facilidade maior de falar comigo pelo
fato de eu ser mais clarinha, eu era africana mas passava desapercebida, entre aspas.
Eu decidi que não ia ser assim as coisas, não necessariamente tinham que ser desse
jeito. Então eu senti a necessidade de me afirmar...Passei a me encontrar, passei a
conviver ,muito mais com os meus companheiros de Cabo Verde. Por isso que aqui
as pessoas ficavam: „Ah, mas vocês só vivem juntos‟. A gente só vive junto
justamente por isso. Você sente que você não é aceito, você sente que..., é muito
estranho aqui. E pra quem que a gente vai se voltar? É pros nossos iguais, é por isso
que a gente tem necessidade de ficar sempre junto, porque a gente se entende. E lá a
gente é mais forte, nesse grupo, a gente se sente parte, todo mundo igual, o jeito de
falar alto, o jeito de pentear, o jeito de fazer tudo é igual, entre aspas. Então eu sentia
essa necessidade muito grande de me afirmar junto à minha comunidade, junto às
minhas pessoas do meu país, e não só..., eu tento me dar bem com todos os africanos
que tem.”
Este trecho exemplifica alguns dos pontos levantados até agora. Em primeiro lugar
devemos notar como a estudante V.M. se chocou e decepcionou profundamente com um
aspecto da realidade brasileira. Se considerarmos a entrevista completa de V.M., poderemos
observar como ela possuía o imaginário idealizado do Brasil que as novelas costumam passar
97
em Cabo Verde, assim como sua grande ligação com o Carnaval da ilha de São Vicente – o
qual é profundamente influenciado pelo Carnaval brasileiro; poderíamos apreciar, também,
como ela nunca havia imaginado que num país tão miscigenado como o Brasil haveria tanto
preconceito e como aproveitou a experiência intelectual no Brasil para se familiarizar com a
questão da negritude e do combate à discriminação racial. Todos estes elementos se
apresentam e se unem num momento específico da experiência transcultural de V.M.
acabando por configurar uma série de sentidos subjetivos extremamente negativos com
relação à porção da sociedade elitizada de Brasília que ela conhece na Faculdade de Ciências
Sociais Aplicadas da UnB. Ela, acostumada à alegria do carnaval, desconhecendo o
preconceito e a discriminação pela cor da pele, com uma imagem quase idílica do Brasil e dos
brasileiros, acaba tendo que conviver com uma parcela da população brasiliense que é
praticamente o oposto do que ela esperava.
Como o depoimento de V.M. e outros alunos nos revelam, muitos destes choques
definem momentos de reflexão e reposicionamento com relação à própria identidade. No caso
desta estudante, fica claro como ela passa a se afirmar de maneira mais consciente e engajada
como negra, cabo-verdiana e africana. Suas identidades nacional e cultural são reforçadas pela
oposição àqueles elementos que ela encontrou na sociedade brasileira e aos quais se opõe.
Como colocam Hall e Derrida, dentro do jogo da “différance” que caracteriza os processos de
identificação, ser cabo-verdiana, para V.M., a partir do momento em que ela choca com
determinados elementos e os repudia voltando-se para seu grupo e sua identidade, não é mais
a mesma coisa que antes. Sua identidade como cabo-verdiana e africana se apóia agora sobre
novas oposições, sobre novos elementos que V.M. não é e não deseja ser. Neste sentido, à
medida que uma experiência transcultural fornece para determinado sujeito, experiências e
elementos novos e constantes, sua identidade vai sendo obrigada a se definir e complexificar a
cada momento, graças à nova gama de elementos que o indivíduo pode assimilar ou repudiar.
Dentro desta perspectiva, tanto ao absorver quanto ao evitar elementos culturais, as
identidades dos indivíduos migrantes devem estar em constante ação e reformulação.
envolvidos muitos fatores diferentes, desde a história do sujeito, até suas necessidades e
projetos futuros. Todos os alunos acabam, devido ao contato inevitável com a realidade
brasiliense, incorporando novos elementos, mesmo que em maior ou menor grau e com mais
ou menos durabilidade. Todos também conservam inúmeras coisas das suas culturas e
rejeitam elementos brasileiros. As possibilidades de reação dos alunos migrantes frente à
realidade brasileira são muitas e envolvem uma complexa série de fatores.
Foi possível, através dos trechos de entrevista analisados, compreender como o choque
entre as ideias pré-concebidas sobre o Brasil e a realidade que os alunos encontram ao chegar
aqui, pode determinar a produção de novos sentidos sobre a realidade brasileira por parte do
indivíduo, e sua mudança identitária seja através da aquisição, seja através da negação de
aspectos pontuais da realidade cultural e social brasileira. Este primeiro momento de choque
cultural e câmbios identitários já nos possibilita alcançar, pelo menos em parte, os objetivos
específicos propostos no começo do trabalho. Como pôde ser observado nas análises
desenvolvidas acima, não apenas as culturas dos estudantes africanos que vêm estudar no
Brasil são muito diferentes da brasileira, como o choque que estes estudantes sofrem ao
chegar e viver em Brasília é muito grande, determinando uma série de reações e mudanças
nas identidades dos indivíduos. O material coletado nas entrevistas, bem como a gama de
observações e conversas informais acumuladas, nos permitem observar também como uma
determinada identidade nacional ou cultural – como o são as de “guineense” e “africano”,
pode, dentro do contexto Ocidental pós-moderno, ser extremamente firme, fixa e relevante
para inúmeros sujeitos. Refiro-me aos indivíduos que, inseridos em uma experiência
transcultural se apegam às suas identidades coletivas como forma de se afirmarem e se
fortalecerem frente a uma realidade cultural que não os valoriza.
Certamente, a liquefação das identidades coletivas tradicionais de que fala Bauman
não necessariamente se concretiza em todo o mundo ocidental. Se por um lado uma parcela da
sociedade no Ocidente sofre com a “volatilização” das identidades e com a fragmentação e o
desaparecimento daquelas identidades que historicamente serviram como referência à vida em
sociedade, por outro lado existem outras parcelas da população do Ocidente cuja única saída
pode ser justamente a recuperação e o constante fortalecimento e afirmação destas
identidades: identidades nacionais, culturais, de gênero, familiares, etc. Se, de acordo com
Hall, aceitamos que estamos vivendo, nos dias contemporâneos num cenário multicultural
regidos pela globalização e pelas migrações de massa, então devemos supor que cada vez
mais os processos identitários relativos às experiências transculturais tenham mais relevância
99
e permeiem a vida de mais pessoas. Imigrantes de todo tipo cujo apego às suas identidades
nacionais e culturais é uma das suas principais estratégias para sobreviverem em ambientes
culturais diferentes e muitas vezes hostis.
Uma vez inserido na realidade cultural e social brasiliense, se deparando com uma
variedade de elementos que vão modificando suas ideias sobre o Brasil, bem como a sua
identidade, o estudante estrangeiro vivencia um importante processo de crescimento. Para
além dos aspectos sociais e culturais, devemos observar cuidadosamente a mudança pessoal e
o amadurecimento que se promovem no aluno estrangeiro em decorrência da singularidade da
experiência de vida que é sair do próprio país para estudar em outro país, onde tudo é
diferente. É este crescimento e este amadurecimento que pretendo tratar neste núcleo
temático, bem como a relação entre este fenômeno e a identidade do indivíduo.
A experiência de sair do próprio país para estudar em um país desconhecido, sem
conhecer absolutamente ninguém, sem a presença dos pais e dos amigos, é uma experiência
mais do que cultural. Esta experiência que os estudantes africanos enfrentam cotidianamente é
uma verdadeira experiência de vida, algo que carregarão consigo para sempre e que
influenciará suas histórias de vida de maneira impar. O estudante africano que vem estudar
em Brasília crescerá e se transformará não apenas em termos de acréscimo de elementos
culturais e novos posicionamentos identitários – que são os aspectos que este trabalho tenta
explorar ao máximo – mas crescerá também de diversas outras maneiras como pessoalmente,
humanamente e intelectualmente. Estas outras formas de desenvolvimento do estudante
migrante determinarão, e muito, as suas escolhas, projetos e perspectivas futuras com relação
a si próprio e seu país de origem, tendo uma relevância muito grande assim, nas possíveis
reavaliações e novos posicionamentos identitários que o alunos estrangeiro venha a
desenvolver. De fato, as mudanças na esfera cultural e na esfera pessoal vão se manifestando
conjuntamente, possibilitando uma acentuada transformação identitária nos indivíduos.
Inclusive nos indivíduos que, como vimos, tendem a desenvolver um apego às suas
identidades nacionais e a se fecharem em torno do grupo, limitando ao máximo a interação
com a realidade social e cultural brasileira, o crescimento pessoal proporcionado pela
experiência do “estudar fora” gera transformações identitárias que estarão sempre atreladas à
100
experiência vivida no Brasil. É possível, assim, que a cultura brasileira influencie, mesmo que
indiretamente, de uma maneira camuflada, alguns destes reposicionamentos identitários.
Um primeiro ponto muito comentado e enfatizado nas entrevistas é aquele que diz
respeito à falta que fazem os cuidados e as funções dos pais dos estudantes estrangeiros. Ao
começarem uma vida radicalmente nova em solo brasileiro, os estudantes africanos que vem
pelo PEC-G logo de cara sentem a dura realidade de não ter ninguém que se importa e que
cuide deles. A maioria destes estudantes estava acostumado aos cuidados dos pais e a ter sua
vida mais ou menos regulada e determinada pela vida dos pais. Esta lacuna, no entanto, abre
espaço para um forte desenvolvimento pessoal, um amadurecimento destes estudantes em
vários aspectos, principalmente os que dizem respeito aos cuidados pessoais e ao manejo do
dinheiro. Observemos neste sentido o seguinte trecho da conversa com C.L., 27 anos, cabo-
verdiana, estudante de administração:
“Todo mundo que está aqui, quando veio de Cabo Verde estava com os pais. A
responsabilidade era totalmente deles e você pensa que o mundo é bom assim. Mas a
partir do momento em que você chega aqui tem que se virar sozinho, pagar as suas
contas, resolver tudo sozinho, estudar, sem ajuda de ninguém, você começa a
colocar a cabeça no lugar e a pensar: „Eu tenho que ter responsabilidade, se eu não
sei eu tenho que aprender porque se eu fizer alguma coisa errada hoje vai me
prejudicar amanhã com certeza.‟ Tipo assim, quando você recebe seu dinheiro, você
recebe quatrocentos reais. Se eu acabar tudo hoje e amanhã, depois de amanhã não
vou ter ninguém que vai me dar uma mão. Enquanto que lá em Cabo Verde se você
tem 500 escudos e gastar tudo hoje, amanhã tem comida porque sua família esta ai,
pode falar que tem tudo. Mas aqui é diferente, você gasta tudo, hoje é dia 20, você
recebe dia 10, vai passar todo esse tempo sem nada porque gastou tudo e não tem
família, não tem ninguém pra me ajudar e não vou pedir para o meu colega porque
ele também tem suas contas, essas coisas… Ai tem que ter essa responsabilidade, e
se não tem tem que aprender a ter.”
“Aquilo de que eu dependia antes, tudo eu encontrava em casa, agora eu faço por
meio próprio, e isso é uma das características importantes que a experiência no
Brasil me mostrou. Agora tenho que sobreviver por mim mesmo. Tem para comer?
Tem para pagar a renda? Tem para fazer alguma coisa? Você que se vire! Você vai
ter que dar conta. Eu ganhei mais responsabilidade para ver as coisas, mais cautela,
mas atenção nas minhas coisas que eu vou fazer. Com o que?. Com saúde,
alimentação, a moradia… Como que eu vou me gestionar? Como que eu vou me
gerenciar? Com mais responsabilidade e com mais maturidade. Brasília ofereceu
isso para mim. Porque antes na Guiné era assim, estando doente eu fico deitado, só,
os meus pais vão cuidar de mim… Mas aqui eu vou me cuidar para não ficar doente,
e se eu ficar doente eu vou ter que correr para o hospital sozinho porque eu estou
sozinho, não tem ninguém para me apoiar.”
Em ambos os trechos percebemos como o fato de estar por conta própria no Brasil
gera a necessidade de amadurecimento e aumento de responsabilidade entre os indivíduos
101
estrangeiros. Estes passam a se preocupar com uma série de coisas e dominar uma série de
aspectos da “vida adulta” que antes desconheciam ou viam como elementos distantes e
alheios. Precisam aprender a gestionar seu dinheiro, cuidar da sua casa, pagar as contas,
participar da vida bancária, etc. A identidade dos estudantes estrangeiros vai mudando
vagarosamente a medida que estes vão descobrindo outros aspectos da vida e outras funções
que agora cabe a eles desenvolver. Os elementos “adultos” do cuidado, da precaução, do
planejamento e da responsabilidade passam a ocupar um lugar central na vida dos estudantes
e na forma como eles passam a se enxergar a si próprios.
Outra forma de crescimento pessoal, mais difícil de observar entre os estudantes
africanos, é o crescimento pessoal através do desenvolvimento de qualidades mais humanistas
como a solidariedade, a amizade, o altruísmo, etc. Embora os conflitos e oposições
identitárias que permeiam o cotidiano dos estudantes tendam a afastá-los desse tipo de
conquista humana, podemos encontrar diversos casos em que a necessidade acaba por
possibilitar o aparecimento de novos elementos no indivíduo, elementos estes que o fazem se
aproximar de pessoas e/ou grupos específicos. Observemos, por exemplo, a seguinte reflexão
da estudante cabo-verdiana V.M:
“Eu acho que hoje eu sou uma pessoa mais preocupada com outras pessoas, eu sou
uma pessoa que se preocupa muito, no sentido de companheirismo assim sabe.
Tendo um amigo, um colega, brasileiro ou não, estrangeiro, cabo-verdiano,
africano…, no sentido de ajudar ele em qualquer coisa que puder, qualquer coisa
que der. Eu acho que esse sentimento de companheirismo, de ajuda, floresceu mais
no Brasil, floresceu mais depois que eu vim pra cá. Porque quando você chega aqui
você se sente fora do mundo, você se sente abandonado. Você sente que você não
tem os seus amigos que sempre te ajudaram, os teus pais que sempre te ajudaram.
Então o que que acontece, você tem que cultivar amizades para você poder continuar
sobrevivendo aqui. Ou seja, eu tentei ser companheira, assim como os meus amigos
de Cabo Verde sempre foram comigo durante todo o tempo que eu vivi lá,
companheiras, amigas, me ajudando sempre que eu pedia sabe, sempre que eu
precisava de um amigo eu sabia que eu tinha ele lá. Eu comecei a ser assim com as
novas amizades que eu comecei a fazer. E eu consegui fazer algumas amizades boas.
E sempre que eu pedia alguma coisa para um colega meu eles me ajudavam, e
sempre que eles me pediam também eu ajudava eles. Então esse espírito eu acabei
desenvolvendo ele mais. Talvez lá em Cabo Verde eu nem me preocupava, eu era
amiga, mas era uma coisa natural, que eu nem lembrava. Aqui eu percebi o valor de
uma boa amizade, percebi mesmo. Porque eu me senti sozinha num mundo
diferente…”
A reflexão da estudante nos mostra uma qualidade que ela desenvolveu fruto da
experiência de vir estudar no Brasil e da solidão e isolamento que esta experiência acarreta.
No entanto, a aluna em questão logrou driblar as dificuldades através do desenvolvimento de
uma qualidade de solidariedade e companheirismo. É importante percebermos que este tipo
de desenvolvimento pessoal passa a ser um novo elemento presente na identidade do
102
indivíduo, uma nova referência que dificilmente será abandonada mesmo depois do fim da
experiência de estudar no Brasil. Os alunos, na sua maioria, admitem ou prevêem que
diversos elementos culturais, como o sotaque próprio do português do Brasil, os hábitos
alimentares e algumas formas de comportamento, serão apenas passageiros, desaparecendo a
medida que o indivíduo se reinserir no contexto cultural e social do seu país natal. Contudo,
todos os estudantes entrevistados percebem que estas mudanças pessoais dificilmente
desaparecerão, pois não foram simples adaptações a um meio cultural, mas sim adaptações a
uma nova etapa da vida. Elementos tais como a responsabilidade, a autonomia e a maturidade
continuarão com estes estudantes para o resto da vida.
Outro tipo de desenvolvimento pessoal que, nas reflexões dos alunos estrangeiros,
ficará para toda a vida é o crescimento produzido pela formação intelectual e profissional
proporcionado pela Universidade de Brasília e seus diferentes elementos. Segundo os alunos
de determinadas áreas – é importante frisar que apenas alunos de determinados cursos de
humanas como economia e sociologia se manifestaram neste sentido – aprofundar-se
intelectualmente em áreas do conhecimento que permitam novas e mais abrangentes visões
sobre a realidade é um aspecto importantíssimo do crescimento pessoal por estes alunos
vivenciado durante sua experiência de estudar no Brasil. Observe-se, por exemplo, as
reflexões do estudante guineense M.F., quem cursa Sociologia na UnB, com relação às
mudanças que ele observa no seus modos de pensar e de se expressar:
“As minhas formas de pensar e de ver as coisas tem mudado muito, estão muito
diferentes. Com o tempo você percebe que mudou muita coisa em você. A primeira
coisa que mudou foi minha visão com relação ao mundo cara. Quando eu falo do
mundo eu falo das relações inter-pessoais, das relações humanas…, é uma coisa que
eu percebo que mudou muito em mim. Umas coisas que eu não entendia eu consigo
entender hoje. Consigo analisar e ver a origem…, e como deve ser tratado. É uma
coisa que é muito importante para mim. (…) Eu acho que quanto mais você pratica,
mais você ganha a habilidade da linguagem e tem mais visão de exemplos. Você
ganha mais habilidade tanto na fala, como na forma de pensar e expressar no seu
interior. Eu tenho uma maior facilidade de expor os argumentos, organizar o
discurso na cabeça…”
Vejamos ainda, como o estudante de Economia E.O., 21 anos, natural de Cabo Verde,
tem se desenvolvido e se beneficiado graças ao meio acadêmico e a opção profissional que
este oferece:
“Isso é uma das coisas que eu agradeço ter chegado aqui em Brasília, que é
justamente a questão do profissionalismo, que vem automaticamente associada à
sociabilidade. Então eu acredito que isso teve um grande impacto, e isso só
aumentou mesmo desde quando eu passei a participar da empresa júnior. Porque tem
a questão da disciplina. Tem que preencher os requisitos mínimos para ser um
103
empresário júnior. Justamente para não deixar a empresa na mão e contribuir para
que a imagem da própria empresa se valorize automaticamente e que o próprio PIB
da empresa possa aumentar. (…) As mudanças na minha forma de falar são
notáveis, principalmente pelo fato do meio acadêmico exigir isso do aluno,
principalmente do aluno estrangeiro, que acaba por pegar várias particularidades
lingüísticas. É também derivado das leituras, dos temas abordados no curso, nas
disciplinas. E também pela convivência com pessoas que já tiveram um tempo
significativo dentro do mundo acadêmico, o que acaba por culminar em mudanças
na nossa maneira de expressar.”
A experiência de vir estudar no Brasil, como pôde ser visto, é extremamente rica não
apenas pelo contato e pela diversidade cultural que o aluno estrangeiro aqui encontra. Esta
experiência é muito satisfatória também do ponto de vista do crescimento do indivíduo em
vários aspectos pessoais, crescimento este que determina uma mudança irreversível na
personalidade e na identidade do estudante migrante. Na maioria dos casos, os estudantes
africanos chegam ao Brasil com perspectivas e vivências muito diferentes da realidade que
encontrarão no Brasil. Tanto o forte choque com a realidade brasiliense, quanto as
possibilidades positivas que a experiência de estudar fora de casa oferece, agirão
incessantemente sobre a identidade do indivíduo, o qual irá embora do Brasil muito diferente
de quando chegou pela primeira vez. O indivíduo acoplará, ao longo desta grata experiência,
novos elementos à sua identidade, ao mesmo tempo em que outros elementos ficarão sem
sentido e serão esquecidos. Às atribulações culturais e sociais somam-se a descoberta de
novas responsabilidades e possibilidades e o crescimento pessoal, elementos capazes de
reformular a identidade de um indivíduo por si só.
De acordo com as entrevistas e as reflexões dos estudantes mais maduros, podemos
afirmar que os estudantes migrantes que vem ao Brasil cursar um curso superior tendem a
amadurecer e a crescer muito, tanto pessoal, quanto intelectualmente, no cenário brasileiro.
Neste sentido, a experiência de estudar no Brasil certamente sempre será lembrada e inclusive
recomendada para os mais jovens como positiva. Na subjetividade social de países tais como
Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, onde a migração é um forte elemento
104
cultural, a experiência de “estudar fora” pode se configurar quase como um rito de passagem,
como uma etapa fundamental para o desenvolvimento pessoal e intelectual dos jovens
daquelas sociedades.
empatia e uma perspectiva de integração para com a população brasileira, em grande parte
devido ao fato dela não ter sido acolhida pelo grupo de estudantes cabo-verdianos existentes
no Brasil. De fato, podemos perceber, nas reflexões de V.L., a associação entre a falta de
contato e de fechamento no grupo dos estudantes cabo-verdianos, com o desenvolvimento de
um modo mais “aberto” de ver e sentir a sociedade brasileira e sua cultura:
“Eu acho que aqui eu consolidei o que eu trouxe comigo. Eu acho que o que eu
trouxe, o que veio comigo tem a ver com o que me ensinaram na minha casa. E eu
acho que os meus valores aqui se tornaram mais forte porque eu caí num ambiente
que era propício àquilo, me favoreceu àquilo. Porque quando eu cheguei aqui eu não
morei em república, eu morei num pensionato de freiras, sabe assim? Que tinha um
rigor, tinha um horário para chegar e que todo mundo que estava lá supostamente
tinha uma coisa, uma tradição para a religião. Eu acho que eu consolidei o que eu
tinha, o que eu trouxe, mas eu acho que eu me tornei mais aberta. Sabe, eu acho que
você vem, é uma experiência diferente, você convive com uma cultura diferente,
com pessoas diferentes e eu acho que necessariamente você se torna mais aberto,
mais tolerante… Eu me tornei muito mais aberta e mais tolerante e as vezes eu até
olho e acho que me tornei mais sensível. Você se torna uma pessoa mais sensível
para um monte de coisa. E sobretudo eu me tornei uma pessoa muito crítica, porque
eu passei a estar numa sociedade que exala muito isso.”
Como podemos analisar no trecho, ao refletir sobre o ambiente que a acolheu aqui no
Brasil, a aluna V.L. demonstra sua satisfação por ter residido em um local “neutro”
caracterizado pela disciplina, o rigor e a tranqüilidade, e que lhe permitiu extrair e melhorar
muitas coisas nela mesma. Por outro lado, ao opor esta localidade que ela escolheu à
“república” – que neste caso pode ser considerada como o símbolo do grupo, a aluna deixa
transparecer entre as linhas que esta localidade talvez não tenha as mesmas condições
propícias que, no seu caso, lhe permitiram se desenvolver uma vez estabelecida no meio
brasileiro. Acredito que podemos inferir, segundo este trecho, que existe uma ligação entre o
estabelecimento ou não de relações com determinados grupos, e as possibilidades de
desenvolvimento do indivíduo dentro da nova realidade cultural na qual foi inserido. No caso
de V.L., por exemplo, ela expressa como se tornou uma pessoa muito mais aberta e
interessada na realidade brasiliense, a ponto mesmo de começar a assimilar, de forma
consciente, novos elementos culturais – como o pensamento crítico – que modificam as
formas como ela se identifica.
Mesmo havendo um grande número de casos, inclusive entre os alunos entrevistados,
de estudantes migrantes que não mantêm relações com os seus respectivos grupos nacionais
aqui em Brasília, prevalecem os casos em que o convívio e a participação nas atividades do
grupo são momentos comuns da vida dos estudantes estrangeiros. É importante, portanto, para
compreender alguns dos processos a que os estudantes estão sujeitos, entendermos o
funcionamento destes grupos de estudantes estrangeiros da Universidade de Brasília. Com
106
base tanto nas entrevistas realizadas junto aos estudantes, quanto às observações
desenvolvidas em espaços importantes onde se desenvolvem as atividades dos grupos,
vejamos algumas características principais destes grupos que se formam no meio intelectual
da UnB, e como estes desempenham um papel importante na vida do estudante estrangeiro no
Brasil.
Estes grupos que muitas vezes se tornam o principal “porto seguro” do estudante
africano durante sua experiência no Brasil, se estruturam fundamentalmente em torno à
identidade nacional, em torno ao país de origem. Assim, no ambiente acadêmico pode-se
observar nitidamente como os alunos africanos geralmente estão acompanhados de
conterrâneos. Tanto no horário de almoço, quanto no tempo livre, ou até mesmo dentro das
salas de aula, é comum vermos, por exemplo, os estudantes oriundos de Cabo Verde, andando
juntos, almoçando juntos, estudando juntos, chegando e indo embora do campus juntos, etc.
Claro que há momentos específicos em que aparece, entre os alunos africanos, outra forma de
organização grupal que se estrutura em torno à outro tipo de identidade. Dentro da sala de
aula, por exemplo, é comum que os estudantes africanos tendam a desenvolver amizade e
unir-se para assistir a aula, estudar, fazer trabalhos e etc. Em outras ocasiões e espaços sociais,
como comemorações que abranjam toda a cultura africana ou festas onde há uma grande
quantidade de brasileiros, podemos observar como a identidade como “africano” se sobressai
às diferenças regionais e acaba por criar uma categoria de união que fortalece o grupo naquele
momento específico. Estas dinâmicas de identificação e suas particularidades serão abordadas
mais a frente, por enquanto trataremos das comunidades estudantis dos diferentes países e
suas maneiras de agir sobre o indivíduo. As principais destas comunidades em Brasília,
conforme os próprios dados do PEC-G revelam, são a dos alunos cabo-verdianos, dos alunos
guineenses e dos alunos são-tomenses. Devo ressaltar que estas comunidades são as maiores
em termos de estudantes na UnB, em termos de membros em Brasília propriamente podemos
ainda citar a comunidade Nigeriana, Moçambicana e principalmente a comunidade Angolana.
No entanto, o que importa para análise que queremos desenvolver é o número de estudantes
da comunidade na UnB e o peso que logram estabelecer como grupo dentro dos espaços
sociais da Universidade. Neste sentido, analisaremos mais os grupos formados pelos
estudantes dos três países citados acima, especialmente a comunidade de alunos cabo-
verdianos, cuja observação foi muito importante para a realização deste trabalho.
Um primeiro aspecto que devemos considerar sobre as comunidades formadas pelos
alunos da Universidade de Brasília, é o forte grau de influência que estes grupos exercem
sobre os alunos, principalmente sobre os alunos que estão chegando em Brasília pela primeira
107
vez. Como explicitado em diversos momentos durante a realização das entrevistas, é notório
como os estudantes cabo-verdianos, guineenses e são-tomenses costumam se localizar em um
espaço limitado da área brasiliense. Como nos explicou o ex-estudante cabo-verdiano C.V., a
comunidade cabo-verdiana que reside em Brasília se limita a transitar e conhecer um pequeno
espaço da geografia brasiliense, justamente aquele espaço que está mais perto do campus da
Universidade. Segundo ainda as palavras de C.V., todo aluno cabo-verdiano que chega em
Brasília logo percebe e é percebido pela comunidade, que naturalmente passa a influenciar e
agir sobre este indivíduo no sentido de “cooptá-lo” e integrá-lo às dinâmicas e ao cotidiano do
grupo. Perceba-se que estas tendências do grupo de alunos cabo-verdianos é perfeitamente
normal e natural, não algo planejado e executado com algum propósito. No entanto, este
fenômeno não deixa de ter conseqüências negativas que podem determinar muito a forma de
interagir e o desenvolvimento dos estudantes cabo-verdianos em Brasília, como fica claro nas
reflexões de vários estudantes. No caso dos estudantes cabo-verdianos e são-tomenses,
portanto, este fenômeno grupal pode acarretar uma falta de interesse e um desconhecimento
da realidade brasiliense, pois os estudantes se limitam a transitar em poucas quadras da L2
norte e se limitam a interagir apenas entre eles, dada a proximidade das repúblicas dentro
desta região. Por outro lado, o caso dos estudantes guineenses apresenta um fechamento ainda
maior do grupo, já que os estudantes guineenses ocupam, quase todos, vagas no C.E.U – Casa
do Estudante Universitário, limitando-se ao campus da UnB como local de convivência e
interação com a realidade brasileira. Este fator de diferenciação entre a comunidade dos
alunos guineenses e as outras duas, o qual tem sua origem em fatores econômicos – os
estudantes guineenses ganham as vagas no CEU dado o menor poder aquisitivo que possuem,
servirá, posteriormente para fazer importantes reflexões sobre a união dos grupos de
estudantes. A respeito das características de cooptação e coesão destas comunidades de alunos
africanos da UnB, observemos o seguinte trecho do aluno C.V:
ele morava nas cidades satélites, onde ele pagava mais barato e sobrava mais
recursos pra fazer mais coisas. Então o cabo-verdiano ele não tem muita noção do
contexto onde ele está. Isto eu falo por muito da minha experiência, pelo que eu
observo. Ou seja, ele chegou, encontrou vivência aqui, então ele fica lá onde estão
os cabo-verdianos. Eu te digo com muita firmeza que, se um cabo-verdiano chegar
agora e encontrar todos os cabo-verdianos morando no Guará ou em Taguatinga, ele
vai ficar lá também porque…, a fruta cai debaixo da árvore”
Vemos no trecho como o grupo dos alunos cabo-verdianos tende a uma união acima
de tudo. Desde que um aluno vindo de Cabo Verde chega em Brasília, o grupo de estudantes
cabo-verdianos passa a ser talvez a principal referência do aluno no novo lugar. Esta coesão e
esta união podem ser algo inevitável dadas as condições em que estes alunos chegam em
Brasília: um total desconhecimento da cidade, com pouco dinheiro e necessitando encontrar
uma “república” de estudantes para morar, com alguma indicação para procurar algum
estudante já estabelecido na cidade, e com uma certa falta de maturidade e experiência para
saber o que significa conhecer e viver num país e numa cultura diferentes. No entanto, mesmo
que o fenômeno da inserção dentro do grupo seja natural e inevitável, este fato acarreta
conseqüências negativas que só serão percebidas pelos alunos muito depois, como é o próprio
caso do aluno C.V.. A rápida inserção nas dinâmicas e nos espaços do grupo de estudantes
residentes em Brasília, assim como o caráter fechado deste podem levar estes alunos a uma
acomodação e um desconhecimento profundo da sociedade brasiliense. Isto já ficou claro em
algumas passagens de C.V., observemos agora o que pensa o estudante cabo-verdiano M.D.,
ao ser perguntado sobre a relação entre o grupo dos cabo-verdianos e o meio brasileiro
quando ele chegou para estudar aqui em Brasília:
No trecho de M.D., quem como C.V. estabeleceu laços matrimoniais com uma mulher
brasileira, podemos observar como o fato de determinado indivíduo se manter completamente
fiel e comprometido com os interesses e tendências do grupo pode ser prejudicial para ele.
Nas reflexões de ambos os estudantes eu pude perceber como eles geram reflexões críticas a
respeito do próprio grupo dos estudantes cabo-verdianos não porque eles nunca fizeram parte
dele, tal como a doutoranda V.L., senão porque eles integraram este grupo e fizeram parte do
seu “quadro” durante muito tempo, tendo em determinado momento, no entanto, tomado
outros caminhos que os fizeram enxergar os malefícios de se manterem fechados na sua
comunidade e o “tempo perdido” com relação à interação e ao conhecimento da sociedade
brasileira.
A inserção nestes tipos de comunidades nacionais, no entanto, não apresenta apenas
aspectos negativos para os alunos que deles participam. Devemos ressaltar que muitos alunos
encontram no grupo fontes diversas para o desenvolvimento e o crescimento. Neste sentido, a
importância dos grupos vai para além de dar suporte e tranqüilidade aos estudantes recém-
chegados, ou fortalecer a identidade e a cultura de determinado país em solo brasileiro. Do
ponto de vista dos indivíduos, a experiência de encontrar e participar de um grupo de
conterrâneos fora de seu país, pode lhes trazer grandes benefícios sociais e culturais. Muitos
alunos guineenses manifestam, por exemplo, a importância de conviver com estudantes da
própria terra, mas que, no entanto, cursem outros cursos. Isto faz com que, nos debates e
discussões constantes dentro da comunidade, existam diferentes pontos de vista e diferentes
argumentos fundamentados por diferentes áreas do conhecimento. Estes debates costumam
ser, assim, bastante frutíferos para os membros do grupo dos alunos guineenses, que acabam
absorvendo um pouco de cada área do saber e desenvolvendo projetos e idéias mais completas
e complexas com relação ao seu país (na comunidade guineense se percebe um engajamento e
uma vontade política maiores que em outras comunidades, todos os guineenses entrevistados
manifestaram sua vontade de voltar e ajudar seu país em diferentes aspectos).
Outro ponto positivo que a existência do grupo e a participação no mesmo acarreta
para o fortalecimento da identidade nacional do indivíduo é o que diz respeito ao
conhecimento cultural e social do próprio país que se passar a ter uma vez que se convive
com outros conterrâneos de outras regiões e outras idades. Neste sentido observemos as
seguintes reflexões da aluna cabo-verdiana L.S.:
“Como aqui tem uma diversidade cultural muito grande, mesmo não aceitando, a
gente passa a ver o que acontece em Cabo Verde. Tem diversidade em cada ilha,
mas a gente tem aquela limitação, a gente acaba por conhecer mais a nossa e não
110
buscar conhecer sobre as outras. (…) Agora eu reparei, quando eu sai eu vi, quantas
coisas eu deixei de conhecer em Cabo Verde por causa da limitação da minha ilha.
Quando eu sai que deu pra perceber isso. Quando eu entrei em contato com os
outros meninos das outras ilhas eu falei: „Poxa, quantas coisas tinha dentro de Cabo
Verde e eu não conhecia‟. Então quando você acaba saindo e conhecendo outros
cabo-verdianos, que eles acabam te mostrando outras coisas típicas das ilhas e você
acaba conhecendo. Outro dia foi muito engraçado, eu fui almoçar na casa dos
meninos, a maioria é de Santo Antão e de São Vicente (L.S. é da ilha de Santiago),
aí eles estavam fazendo peixe cozido, peixe seco aliás. O peixe seco é um peixe que
eles trouxeram da nossa ilha, leva vários legumes, várias coisas. Tinha um legume
que eu nunca tinha visto na minha vida, e o pessoal: „poxa, você não teve infância, a
gente comia isso‟. É uma coisa da ilha deles, eu nunca tinha comido nada de fora da
milha ilha, então a gente não comia assim. Acabei aprendendo mais uma coisa. E lá
a gente ficou: „ah quando eu era criança eu comia isso‟, e eu: „ o que que é isso?‟
Sabe, são frutos típicos da ilha deles que eu não tinha noção que existisse. E eu
descobri isso justamente por sair fora, porque a gente tem esse contato quando a
gente sair fora.”
Neste trecho da conversa com L.S. a gente percebe um aspecto extremamente positivo
da convivência e da participação no grupo dos estudantes cabo-verdianos de Brasília. Ela nos
mostra como foi descobrindo coisas novas e desconhecidas para ela através do contato com
cabo-verdianos de outras ilhas (Cabo Verde é um arquipélago com 10 ilhas). Neste sentido o
ganho e os benefícios que a estudante L.S. obteve ao conviver com seu grupo foram além da
simples afirmação e união frente à realidade cultural diferente do Brasil, chegaram a
atingiram e modificar a própria identidade de L.S. como cabo-verdiana e como natural da ilha
de Santiago. Isto acontece em alto grau com a comunidade cabo-verdiana devido às
características geográficas deste país. É muito raro, entre a população de alunos cabo-
verdianos em Brasília, encontrar alguém que conheça um numero razoável das ilhas que
formam o país. Na maioria dos casos os estudantes costumam conhecer suas ilhas e a ilha
onde se encontra a capital (Santiago). A experiência de vir estudar no Brasil é extremamente
rica para esta população, já que a troca cultural entre indivíduos do próprio país é um
elemento extra vivenciado pelos estudantes. Este fenômeno também acontece com os
estudantes são-tomenses, os quais tem contato com pessoas oriundas da outra ilha (São Tomé
e Príncipe são duas ilhas que constituem um país), e entre os estudantes guineenses, onde é
comum o contato entre a população da capital e a população do interior e entre membros de
diferentes etnias.
Como podemos observar através dos trechos acima, a ação do grupo no indivíduo
determinará, em algum grau pelo menos, quais são as possibilidades futuras desse indivíduo
no que toca à interação com o meio brasileiro e à transformação da sua identidade. A falta de
contato com o grupo abre a possibilidade de um envolvimento e uma transformação grande da
própria identidade; por outro lado, a cooptação do indivíduo pelo grupo pode gerar um
fechamento e uma valorização, um reforço da própria identidade nacional e cultural. Neste
111
caso, diversos fatores vão desempenhando seus papéis ao mesmo tempo. A identidade
nacional do indivíduo se fortalece não apenas porque este se fecha ao contato com a
comunidade brasileira e convive apenas com “os seus”, mas também porque as dinâmicas e
modos de afirmação do grupo lhe cobram, ao mesmo tempo que lhe suscitam, um
posicionamento de afirmação e orgulho incondicional com relação à sua cultura e ao seu país.
Nas diversas observações que fiz em manifestações culturais e festas destas comunidades é
possível ver como os indivíduos acabam desempenhando o papel nacionalista que o grupo
lhes imprime. Pode ser que estes indivíduos sejam de fato extremamente nacionalistas e
orgulhosos, mas está claro que quando se encontram na condição de “membro do grupo”,
principalmente em alguma manifestação ou apresentação cultural, eles tem o dever de serem
extremamente nacionalistas e orgulhosos. Outro aspecto que favorece o fortalecimento da
identidade nacional é a produção de uma imagem mais completa e rica do que seja o próprio
país, produção esta que se dá graças à interação com membros do próprio grupo. Todo este
fortalecimento da identidade nacional e cultural é extremamente benéfico em uma série de
pontos, acontece, porém, que muitos indivíduos passam a viver exclusivamente inseridos
dentro deste grupo, o que os torna desinteressados e cegos com relação ao contato cultural e
às possíveis vantagens que possam tirar deste.
Em meio a todas estas possibilidades devemos lembrar que vivenciar uma experiência
transcultural é extremamente complexo e difícil. Particularmente, acredito que a experiência e
a maturidade possuem um papel fundamental dentro do processo transcultural, sendo
características que podem levar os indivíduos a repensarem e reavaliarem suas posições com
relação ao grupo, ao Brasil, às suas perspectivas iniciais, aos seus projetos iniciais, etc. Não é
a toa que diversos entrevistados puderam avaliar e refletir sobre as comunidades de estudantes
da UnB desde dois pontos de vista diferentes: desde dentro e desde fora. A trajetória do aluno
estrangeiro no Brasil é longa e conturbada, caracterizada pelo choque cultural, pela
transformação social e intelectual, pelo crescimento pessoal e outros fatores de peso. Nesse
sentido, parece-me natural que as primeiras respostas subjetivas tendam a ser a da afirmação
junto à comunidade, à do distanciamento com relação à cultura brasileira e ao brasileiro em si,
a de projetar a volta o quanto antes, etc. Contudo, à medida que o indivíduo vivência e se
alimenta cada vez mais da cultura brasileira e das outras culturas com as quais interage, vão se
gerando novas reflexões e pontos de vista, novos projetos e idéias que vão levando o
estudante estrangeiro por seu caminho próprio. Muitas vezes as necessidades de afirmação e
integração se misturam e confundem, bem como se há períodos em que o sentido da
experiência gira em torno da comunidade, certamente haverá outros em que novos sentidos
112
sobre a experiência transcultural serão gerados e o grupo possa vir a ser rechaçado por parte
do indivíduo.
“Eu em Cabo Verde não me afirmava como africana, ou então que eu tinha alguma
ascendência africana. Pra mim eu era mestiça e pronto. A realidade daqui foi o que
me chocou, porque aqui mesmo eu fui tratada como negra e africana. Ai eu comecei
a tentar buscar, procurar a minha identidade. Eu comecei a ver que realmente eu sou
africana, apesar de eu estar no oceano Atlântico, estar no meio do oceano
geograficamente, mas politicamente, economicamente, socialmente eu faço parte da
África. Mesmo que seja uma forma de distanciamento ou proximidade eu faço parte
da África, eu sou africana, porque a minha raiz está na África. Eu não tenho nada a
ver com a Europa, por mais que o cabo-verdiano queira se aproximar com a Europa
e tudo mais, a gente não tem nada da Europa.”
“Quando eu cheguei aqui eu passei a ter essa consciência que eu era africano.
Porque quando o povo fala: „tu é africano?‟ No começo eu dizia: „sim, mas eu sou
mais nigeriano que africano‟. A África é o continente gente. É como se eu chegasse
aqui e falasse: „cara, você não é sul-americano?‟ „Não!, sou brasileiro!‟ Exatamente
isso.”
não necessitam e não se afirmam como africanos, se identificam apenas com seu país e outras
identidades abaixo deste nível, tais como o pertencimento a diferentes etnias na Guine e na
Nigéria, ou o fato de nascer em determinada ilha em Cabo Verde. É uma vez aqui no Brasil,
onde a África, como os próprios estudantes colocam, é tratada com um grande país,
caracterizado pela barbárie, pela fauna e flora selvagens e pelas inúmeras tribos, que estes
estudantes passam a ter mais contato com esta forma de identificação. A generalização sobre a
África, assim como a visão simplista e pré-concebida sobre as culturas, tradições e
características naturais que lá se encontram, associadas ao desconhecimento quase absoluto
sobre os países especificamente, gera reações interessantes do ponto de vista identitário. A
reação natural a este fenômeno é a apropriação deste elemento identitário como forma de se
afirmar e “contra-atacar” o imaginário precário que se tem no Brasil sobre o continente
africano.
Tendo em vista esta problemática encontrada pelos estudantes africanos no Brasil e o
posicionamento que estes adotam no sentido de se afirmarem, é comum, nos ambientes em
que os grupos sociais brasileiros e africanos convivem, observarmos como as diferentes
comunidades de alunos africanos se juntam, se agregam e se afirmam como “africanos” e
como “negros” em uma produção identitária que claramente se opõe e nega a população
brasileira. É assim, por exemplo, nas diversas festas relacionadas com a África organizadas
tanto pela comunidade de alunos estrangeiros, quanto por brasileiros. Pude participar, ao
longo do período de convivência e observação com o grupo de alunos cabo-verdianos, de
inúmeras festas deste tipo, tais como as festas de independências dos variados países, as
“International Partys”, as festas promovidas pelo dia da consciência negra, etc. É notável,
nestes ambientes festivos, como os alunos africanos presentes coexistem, se juntam e se
relacionam como se fossem, de fato, uma grande comunidade homogênea. Por outro lado,
esta união acarreta a desunião com o grupo de brasileiros presentes – e um detalhe
interessante é que não importa se os brasileiros em questão sejam negros ou brancos, a
diferenciação com base na categoria “africano” é mais forte do que a união com base na
categoria “negro”. Pode-se observar, portanto, um grande grupo de estudantes africanos
participando da festa à sua maneira, separados ora simbolicamente apenas, ora simbólica e
espacialmente do grupo dos alunos brasileiros que também tendem a se fechar entre eles.
Apenas elementos isolados de cada grupo participam da festa transitando entre os grupos ou
no grupo oposto.
Esta identidade fundamentada no continente africano é o primeiro nível do “jogo” de
associações e conflitos que vão determinando as identidades dos alunos estrangeiros
115
Este depoimento nos trás uma visão, de um aluno oriundo de um país de fala inglesa,
do conflito existente entre algumas comunidades de estudantes africanos, principalmente
entre aquelas que falam português e as outras. De fato, dada a grande quantidade de
estudantes oriundos de São Tomé, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, é
natural que estes alunos tendam e se identificar mais entre eles e desenvolverem menos
relações e interações com os estudantes nigerianos, botsuanos, congoleses e outros, presentes
em menor número no cotidiano da UnB. Com certeza a barreira da língua é muito
determinante para o contato e a interação ente estas comunidades, já que, mesmo muitos
alunos lusófonos dominarem algo da língua inglesa, e muitos alunos anglófonos dominarem
algo da língua portuguesa, estes estudantes costumam estar com seus respectivos grupos nos
espaços da universidade, se comunicando entre eles através dos seus dialetos culturais não
oficiais (quase sempre preferidos às línguas oficiais em conversas informais) como o crioulo
116
“Quando você fala „África‟, quando você fala: „eu sou africano‟ as pessoas pensam
que a África é uma coisa só. Mas não, tem muitos países na Africa que são muito
diferentes uns dos outros. Mas o que que acontece, você não vê um grupo de
africanos juntos, todos juntos. Isso só acontece quando você tem uma festa, esta todo
mundo lá. Mas mesmo numa festa você tem grupinhos. Porque eu sou diferente de
uma guineense, uma guineense é diferente de uma angolana. Ou seja, uma coisa que
eu faço aqui, no meio das cabo-verdianas, por exemplo, uma coisa que eu faça
assim: „Ah!‟, grito de uma forma e faço uma coisa meio pateta, as meninas e Cabo
Verde vão rir, cair no chão, porque elas estão me entendendo. Se eu fizer a mesma
coisa na frente de uma angolana, ela vai achar que eu sou uma doida e vai virar as
costas e vai embora. Então, a gente se agrupa justamente por ter os mesmos valores,
por conhecer as mesmas coisas, entendeu? Porque a gente sabe que nos
comunicando uns com os outros a gente se entende.”
A passagem expõe como os grupos, por mais que possam parecer unidos e
homogêneos em diversas circunstâncias, possuem conflitos e diferenças entre si, diferenças
que determinam visões e estereótipos sobre os quais vão se edificar as distinções e as
exclusões típicas dos processos de identificação. A oposição enfatizada pela estudante cabo-
verdiana V.M. entre os estudantes de seu país e os estudantes angolanos apareceu diversas
vezes durante as entrevistas. No entanto, foi como observador que pude apreciar toda a
magnitude desta problemática entre estes dois grupos. Ao ouvir e ver muitos cabo-verdianos
falando sobre os angolanos, descrevendo o seu comportamento nas festas, comentando sobre
sua união como grupo e sobre seu modo de ser e caráter, é constante a sensação de “definição
pela exclusão” da qual falam Michael Ignatieff e Kathryn Woodward ao comentar a oposição
entre sérvios e croatas, ou Evans-Pritchard ao analisar a sociedade Nuer e seu eterno conflito
com a sociedade vizinha. A situação oposta se dá de maneira idêntica. Ao observar, nas
conversas com estudantes angolanos, o imaginário sobre como sejam os cabo-verdianos,
vemos que há uma certa visão estereotipada e generalista típica da exclusão e do apartamento
que um grupo cria em relação a outro.
117
específico do grupo de alunos cabo-verdianos, já que dentro desta comunidade há uma grande
heterogeneidade devido às características geográficas de Cabo Verde. Vejamos, portanto, um
trecho interessante sobre as dinâmicas de conflito dentro da comunidade cabo-verdiana,
extraído da conversa com a estudante V.M., nascida em São Vicente. Ao ser perguntado sobre
os elementos que fragmentam sua comunidade no Brasil, ela passa a se referir à oposição
histórica que existe entre duas das ilhas cabo-verdianas: Santiago, cuja capital é Praia, e São
Vicente. Vejamos:
“Já passando pra parte daquela coisa entre São Vicente e Praia, tem muito isso. Por
exemplo, uma moça que sai de São Vicente para ir passar férias na cidade da Praia,
as meninas da cidade da Praia só querem comer ela viva, porque rola um ciúme,
rola um divergência sabe. Porque também tem uma coisa que é assim, que os
meninos da cidade da Praia gostam das meninas de São Vicente, e as meninas de
São Vicente gostam é dos meninos da Praia sabe, então tem toda uma coisa por trás.
E tem também o fato do crioulo ser diferente, tem também isso sabe. O crioulo da
Praia é um crioulo bem diferente do crioulo de São Vicente. Tem muitas expressões
que os meninos da Praia usam que eu não consigo entender, eu falo: „ o que que é
isso?‟ E tem muita coisa também que a gente fala que eles não entendem, então há
essa fragmentação. Há essa separação entre as pessoas de São Vicente e as pessoas
de Santiago.”
Neste primeiro momento, o depoimento de V.M. nos mostra como funciona uma
oposição identitária muito conhecida e identificada por todos os cabo-verdianos: a oposição
entre a ilha de São Vicente e a ilha de Santiago. Dadas as suas características geográficas,
Cabo Verde possui, historicamente, uma série de oposições que acabam gerando pequenas
barreiras culturais e sociais dentro da própria sociedade cabo-verdiana, como fica muito bem
retratado nas entrevistas, onde este elemento apareceu fortemente. A oposição a que a
estudante V.M. se refere, entre estas duas ilhas, na realidade faz parte de um conflito maior,
historicamente estabelecido neste país: o conflito entre “Sampadjudus” e “Badios”. Este
conflito tem base não apenas na diferença de tonalidades da pele – a dos badios mais escura e
a dos sampadjudus mais clara – mas também na proximidade com o continente africano e em
supostos modos e características diferentes que cada grupo atribui ao outro. Devemos frisar
que não se trata, como no caso de Guiné-Bissau, de etnias diferentes, mas de uma
diferenciação social estabelecida conforme os critérios da cor da pele e da proximidade
geográfica com o continente africano – os badios são a população da ilha de Santiago, a mais
próxima do continente africano. Esta diferenciação, que como foi visto na passagem acima se
faz presente na vida social e na subjetividade do povo cabo-verdiano, acaba por se refletir no
grupo de estudantes cabo-verdianos em Brasília. Observemos a continuação da fala de V.M.:
“Se você for ver as repúblicas, é uma coisa que você percebe facilmente. Na
república lá da 314, lá só mora pessoal das ilhas do norte, ou seja, das ilhas de
Barlavento. É tudo pessoal dessa parte, só tem uma pessoa da ilha de Santiago, mas
119
ele se destaca porque ele é uma pessoa legal, uma pessoa de boa, relaxada, tranqüila.
E tem aquela outra parte, por exemplo na casa da 502, só mora pessoal de Praia, de
Santiago. Eu morava com outra menina de São Vicente…Por exemplo, quando essa
menina morou com o pessoal da Praia, de Santiago, deu problema, deu problema
(enfatizando). A menina de São Vicente com o pessoal de Santiago. Então, são
pessoas diferentes, são pessoas diferentes. (enfatizando) É muita coisa, é o modo de
ver as coisas, o modo de agir, o modo de falar, que acaba irritando aquela outra
pessoa que não está acostumada com isso. É tudo dentro de Cabo Verde, mas são
regiões diferentes.”
Neste trecho já observamos como as diferenciações entre as regiões e entre estes dois
grupos socialmente determinados que existem em Cabo Verde se reflete no cenário do grupo
de estudantes cabo-verdianos em Brasília. É comum o agrupamento dos estudantes por
regiões e inclusive por ilhas. Muitos dos conflitos têm sua origem nos supostos modos
diferentes das populações das diversas ilhas, principalmente entre a ilha de Santiago e as
outras. Quando não é assim, pelo menos é certo que a diferenciação e o estereótipo entram em
cena para explicar e muitas vezes agravar as situações de conflito. Quantas vezes pude
observar, dentro dos espaços privados dos alunos cabo-verdianos e também nas entrevistas
realizadas junto a cabo-verdianos, expressões como: “tinha que ser badio”, “os badios são
sujos”, “Praia é a cidade mais suja de Cabo Verde”, “esses sampadjudus são todos racistas”,
“os sampadjudus acham que são melhores que nós porque tem a pele mais clara, são todos
uns preconceituosos”. Pude observar também diversas piadas e ataques verbais diretos e
indiretos cujo cerne era o conflito entre sampadjudus e badios. É facilmente observável, tanto
nos ambientes domiciliares dos alunos cabo-verdianos, quanto nas entrevistas que realizei
junto a eles, como em muitos deles se desenvolvem um núcleo identitário relativo à sua
condição como badio ou sampadjudu. Enquanto os primeiros se orgulham da sua condição de
badios e da sua suposta ligação mais estreita com o continente e as raízes africanas, os
segundos se orgulham de nascerem e viverem em lugares mais calmos, limpos e bonitos do
que a capital.
diferentes momentos e espaços, e diferentes interesses por parte dos diferentes grupos
envolvidos, percebemos que os processos identitários dos indivíduos acompanham a tese de
Stuart Hall segundo a qual “as identidades são pontos de apego temporário às posições de
sujeito que as práticas discursivas constroem para nós”. De fato, vemos que conforme uma
série de fatores se articula, determinadas identidades se sobressaem a outras, sem, no entanto,
extinguir estas outras identidades completamente. Trata-se apenas de diferentes momentos e
situações em que diferentes identidades prevalecem com relação a outras. Assim, por
exemplo, em situações onde se faça presente um grupo grande de brasileiros, a identidade
africana tende a se fortalecer e a ocupar momentaneamente o espaço de outras identidades
culturais e nacionais. Por outro lado em festas e situações onde participam apenas os grupos
de estudantes africanos da UnB, tendem a sobressair e se impor as identidades nacionais de
cada grupo. Por outro lado, como vimos, dentro dos grupos tendem a haver discrepâncias
políticas, regionais e sociais que se manifestam e adquirem maior importância quando os
membros do grupo se encontram apenas entre eles.
Todas estas formas de identificação coexistem no indivíduo, são partes da sua
identidade de maneira geral. O funcionamento desta nos diferentes momentos e contextos
onde o indivíduo se encontra é extremamente complexo e imprevisível. Neste sentido, o
questionamento central, para a temática da identidade, que se pode fazer destas situações é o
seguinte: quando estas identidades deixam sua condição de “roupagem” e passam a marcar e a
modificar de maneira mais profunda e permanente o indivíduo? Acredito que a resposta possa
ser encontrada no próprio fenômeno dos níveis de identificação. Quando existe apenas uma
oposição binária ente dois grupos, sem mais nenhuma referência, como é o caso do exemplo
dos sérvios e dos croatas citado pelo escritor russo Michael Ignatieff, é praticamente
impossível, para os indivíduos que participam dessa oposição, adquirir coisas novas e mudar.
No entanto, no contexto das dinâmicas de identificação que observamos entre as comunidades
estrangeiras da UnB, os diferentes posicionamentos podem influenciar o indivíduo, já que este
estará em algum momento, do mesmo lado de pessoas e de identidades às quais em outros
momentos se opôs. Ao se afirmar como cabo-verdiano frente a um grupo de guineenses,
aquela menina de São Vicente e aquele pessoal de Praia vão estar do mesmo lado e poderão
aprender algo uns com os outros, no mínimo poderão se tolerar mais da próxima vez que se
oponham em algum conflito. O mesmo pode acontecer com os cabo-verdianos e os angolanos
quando estes se dêem conta, por algum motivo, que estão representando o mesmo continente
e os mesmos interesses africanos. Acredito que esta característica das dinâmicas de
identificação pode ir transformando o indivíduo pouco a pouco, senão em seus elementos
121
5. Conclusão
emotiva, não são passíveis, para esse indivíduo específico, de serem perdidas ou
transformadas.
alguma maneira o próprio povo. Este é um exemplo de como podem haver fortalecimentos de
identidades e sentimentos nacionais ao mesmo tempo em que inúmeros elementos da cultura
brasileira são adotados e admirados pelos indivíduos estrangeiros.
Outro aspecto extremamente determinante para os mecanismos de definição da
identidade dos indivíduos é o da existência de grupos coesos, fechados em torno das suas
identidades nacionais, que cooptam os alunos estrangeiros assim que eles chegam na
realidade brasiliense. Deste fenômeno decorre não apenas que o modus operandi dos grupos
sempre influenciarão os indivíduos para o fechamento em torno à própria identidade nacional
e cultural, dificultando a interação com o meio brasileiro, senão que deste fenômeno resultará
também a inserção dos indivíduos, mediante seu grupo específico, em dinâmicas de
identificação contextuais e corrediças que promoverão a existência de diferentes modos de
identificação prontos para serem usados e defendidos a partir dos diferentes contextos e
situações que o estudante vive. Estas dinâmicas de identificação, sempre deixarão, no entanto,
alguma marca, algum ganho e alguma modificação nas identidades dos indivíduos, que
passam a relativizar e revelar os conflitos identitários.
Por último, podemos concluir que à experiência transcultural e às modificações que
esta experiência promove na identidade do indivíduo, somam-se os ganhos e transformações
decorrentes do crescimento pessoal dos estudantes africanos. Este crescimento pessoal se dá
graças à experiência pessoal que o aluno vivência ao vir estudar no Brasil. A falta que os pais
e os amigos, assim como as certezas e garantias que possuíam antes, fazem quando estes
estudantes se vêm inseridos na realidade brasileira, acaba por gerar a maturidade destes
indivíduos. Junto com esta maturidade podem ser observados ganhos humanos e o
desenvolvimento intelectual propiciado pelo aprendizado na Universidade. Juntos, estes
elementos modificam de uma maneira enfatizadamente irreversível, as identidades dos
indivíduos. Ambas as experiências, a transcultural e a pessoal, promovem portanto, uma série
de câmbios importantes na identidade dos estudantes africanos que vêm ao Brasil estudar.
As identidades, portanto, vão se transformando e se redefinindo constantemente com
base em produções de sentido extremamente complexas e diversificadas, impossíveis de
serem generalizadas ou previstas, já que variam conforme os diferentes indivíduos, as
diferentes histórias de vida, as diferentes motivações individuais, etc. Mesmo que seja
impossível dominar o sistema complexo que é a identidade, assim como apontar com certeza
absoluta o que determina sua formação e suas mudanças, podemos, através do trabalho
realizado, perceber como uma situação de choque cultural é capaz de abalar e modificar este
sistema primordial do ser humano.
126
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. 110p.
FLICK, Uwe. Uma introdução à pesquisa qualitativa. 2.ed. Porto Alegre: Bookman,
2004. 312p.