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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

Autor: Fernando Luis González Mitjáns

“Experiência Transcultural” e Identidade:


Estudo das transações culturais entre alunos africanos da UnB.

Brasília, 2008.
ii

Autor: Fernando Luis González Mitjáns

“Experiência Transcultural” e Identidade:


Estudo das transações culturais entre alunos africanos da UnB.

Monografia apresentada ao Departamento de


Sociologia da Universidade de Brasília como
parte dos requisitos para conclusão do curso de
Bacharelado em Ciências Sociais com
Habilitação em Sociologia.

Orientadora: Dra. Analia Laura Soria Batista.

Brasília, 2008.
iii

Autor: Fernando Luis González Mitjáns

“Experiência Transcultural” e Identidade:


Estudo das transações culturais entre alunos africanos da UnB.

Monografia apresentada ao Departamento de


Sociologia da Universidade de Brasília como
parte dos requisitos para conclusão do curso
de Bacharelado em Ciências Sociais com
Habilitação em Sociologia.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________

Doutora Analia Laura Soria Batista. (Orient.)


Departamento de Sociologia – UnB

____________________________________

Doutor Edson Silva de Farias


Departamento de Sociologia - UnB

Brasília, 2008.
iv

Ao Chikinho, pela saudade que deixou.


v

RESUMO

O presente trabalho visa compreender se e como são produzidos câmbios identitários


em estudantes africanos da Universidade de Brasília que vivenciam uma “experiência
transcultural”, este conceito compreendido como a forma que tomam, no âmbito
individual, subjetivo, os encontros, choques e negociações culturais. Mostrar que no
cenário multicultural e pós-moderno do Ocidente existem espaços e momentos em que
identidades coletivas tradicionais como a nacional e a cultural se tornam pontos de
referência extremamente importantes para os indivíduos, principalmente aqueles que
estão nas margens e fronteiras da globalização, foi igualmente importante para
empreender esta pesquisa. Foram utilizados, segundo um enfoque qualitativo, os
métodos da observação – junto à comunidade estudantil dos alunos africanos em geral,
e da entrevista – junto à estudantes de quatro países: Cabo Verde, Guiné-Bissau, São
Tomé e Príncipe e Nigéria, para produzir uma informação complexa e autêntica que nos
permitisse avaliar as motivações, perspectivas, reflexões e produções de sentido
subjetivo que os estudantes em questão produzem sobre o Brasil, sobre seus países
natais e sobre si mesmos em diferentes momentos de sua experiência no Brasil. Foi
possível identificar alguns aspectos centrais que, articulados, nos dão a base para
compreender as mudanças identitárias que os estudantes em questão sofrem e como
estas se dão. As perspectivas que estes estudantes produzem com relação à experiência
de cursar um curso de nível superior em outro país; o choque entre o imaginário e as
expectativas destes estudantes com relação ao Brasil e a realidade social e cultural do
Brasil e de Brasília; os crescimentos humano, pessoal e intelectual que se produzem
graças às necessidades e às faltas (pais, amigos, casa, etc) que estes estudantes sentem
no Brasil; e as dinâmicas de coesão e identificação que se produzem dentro dos
diferentes grupos de estudantes africanos são os pontos cardeais para explicar e mapear
as possibilidades de câmbios identitários nestes indivíduos. É possível concluir que, ao
vivenciar uma experiência transcultural, os estudantes podem sofrer uma multiplicidade
de câmbios identitários, possibilitados por adaptações culturais, mudanças sociais e
transformações pessoais. Constata-se também, no entanto, que a identidade é um
sistema complexo e inapreensível, onde muitas vezes são gerados sentidos subjetivos
antagônicos e processos identitários confusos e incongruentes. De maneira geral, os
câmbios identitários se concretizam graças à produção de novos sentidos subjetivos
sobre aquilo que se vive e se é. A identidade acompanha estas novas produções através
do surgimento de novas possibilidades e novas facetas para os novos contextos e
necessidades do indivíduo.
vi

ABSTRACT

The present work aim to comprehend if and how identity changes are produced on
African students of the University of Brasília who live a “transcultural experience”, this
concept comprehended as the configuration that takes, in the individual, subjective
ambit, the cultural encounters, shocks, and negotiations. To show that on multicultural
and post-modern sceneries of Occident still exists moments and social spaces where
traditional and collectives identities are extremely important reference points for
individuals, principally for those who stay at the boarders of globalization, was also
very important to undertake this investigation. Were used, according to a qualitative
approach, the methods of observation – along the african students community in
general, and interview – along students of four countries: Cape Verde, Guinea-Bissau,
Saint Tomé and Príncipe and Nigeria, in order to produce an authentic and complex
information that allowed us to evaluate the motivations, perspectives, thoughts and
subjective senses productions that the students in question produce about Brazil, about
their native countries and about their selves on different moments of their experience in
Brazil. It was possible to identify some central aspects witch, articulated, offer us basis
to comprehend the identity changes suffered by students at issue, as well as how this
changes happen. The perspectives produced by these students in relation to the
experience of following a course of studies in another country; the shock between the
expectations and the imaginary of Brazil that those students have, and the social and
cultural realities they found in Brazil and in Brasília; the human, personal and
intellectual progresses produced by the needs and lacks (parents, friends, home, etc)
these students face in Brazil; and the cohesion and identification dynamics produced
inside the different groups of african students are the cardinal points to explain and map
the possibilities of identity changes in these individuals. It was possible to conclude that
while living a transcultural experience the students may suffer a multiplicity of identity
changes, due to the cultural adaptations and the social and personal changes. Is also
evidenced, however, that identity is a complex system where many times antagonistic
subjective senses and confuse, incongruent identities processes are generated. In a
general way, the identity changes are possible due to the production of new subjective
senses about what the individual lives and about what the individual is. Identity
accompanies those productions by the creation of new possibilities and facets for the
new contexts and needs of the individual.
vii

SUMÁRIO

1 Introdução e Justificativa……………………………………………………........... 1

2 Delineamento conceitual e teórico............................................................................. 4

2.1 Debate sobre a Pós-Modernidade........................................................................... 4

2.1.1 A “Modernidade líquida” de Bauman.............................................................. 6

2.1.2 A “Modernidade tardia” de Giddens................................................................ 9

2.2 A identidade em Bauman e Giddens..................................................................... 13

2.3 Debate sobre os Estudos Culturais........................................................................ 17

2.3.1 A “Crise de identidade”.................................................................................. 18

2.3.2 O “Multiculturalismo”.................................................................................... 21

2.4 Definições conceituais referentes à Identidade nos Estudos Culturais................. 28

2.4.1. A construção da Identidade através dos Sistemas de Representação............ 29

2.4.2. O “Jogo da Diferença” / O conceito de “différance”.................................... 30

2.4.3. “Tradução” e “Hibridismo”........................................................................... 36

2.5 A Transculturação e a “Experiência transcultural”.............................................. 38

3 Metodologia............................................................................................................... 43

3.1 O campo de pesquisa............................................................................................ 43

3.2 Problema............................................................................................................... 45

3.3 Objetivos............................................................................................................... 46

3.4 Caráter metodológico geral................................................................................... 47

3.5 Procedimentos e fundamentação metodológica dos instrumentos........................ 53

3.5.1 Procedimentos................................................................................................. 54

3.5.2 A Observação.................................................................................................. 58

3.5.3 A Entrevista.................................................................................................... 65
viii

4 Discussão dos resultados e construção da informação.......................................... 74

4.1 As perspectivas dos alunos migrantes.................................................................. 75

4.1.1. As “Perspectivas iniciais” nos alunos lusófonos........................................... 76

4.1.2. O caso dos alunos nigerianos......................................................................... 80

4.2 Brasil idealizado x realidade brasiliense............................................................... 84

4.2.1. O imaginário brasileiro nos países lusófonos................................................ 84

4.2.2. O Choque com a realidade brasiliense........................................................... 86

4.2.3. Choque e processos identitários: um momento de posicionamento.............. 93

4.3 A experiência pessoal do “estudar fora” e o crescimento do indivíduo............... 99

4.4 A importância do grupo nas dinâmicas identitárias............................................ 104

4.4.1 A relevância da existência do grupo para os processos identitários dos


indivíduos..................................................................................................................... 104

4.4.2. As dinâmicas de identificação na comunidade dos estudantes africanos.... 112

5 Conclusão................................................................................................................. 122

Referências Bibliográficas......................................................................................... 126


1

1. Introdução e Justificativa

A formação e consolidação das identidades, assim como o peso simbólico que estas
carregam e imprimem aos indivíduos, têm sido foco de ampla produção intelectual dentro das
Ciências Sociais desde as preocupações teóricas de alguns pensadores principais que
trouxeram por primeira vez as diversas facetas desta problemática à luz. Cientistas e teóricos
como Sigmund Freud, Norbert Elias, Erving Goffman, Michel Foucault e diversos outros
contribuíram de maneira relevante e conferiram importância de primeira ordem aos processos
pelos quais os indivíduos constroem suas identidades, bem como os processos pelos quais
estas identidades se modificam, ajustam e relacionam dentro da vida social. Mais
recentemente, com o advento, dentro das ciências humanas, dos paradigmas e teorias que se
focam na chamada “pós-modernidade, assim como através do surgimento do campo dos
“Estudos Culturais”, muito têm se produzido sobre a questão da identidade.
É assim que hoje encontramos uma vasta gama de trabalhos que tentam relacionar a
problemática identitária com os processos e relações dinâmicas do mundo pós-moderno, bem
como mostrar que novas identidades e processos identitários se configuram e sobressaem no
mundo contemporâneo. Entre os muitos autores que seguem esta linha argumentativa
podemos nos ater a teóricos do calibre de Zygmunt Bauman, Stuart Hall, Homi Bhabha,
Kevin Robins e muitos outros. Em seus principais trabalhos estes autores lidam com o
conceito de identidade ora segundo os processos de “descentramento” e “deslocamento” do
mundo moderno, mostrando como “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o
mundo social estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo
moderno, até aqui visto como um sujeito unificado.” (Hall, 2006) Ora segundo os fenômenos
culturais e simbólicos que se manifestam no caráter migratório e multicultural do mundo
contemporâneo, tentando mostrar que “o processo de hibridação cultural gera algo diferente,
algo novo e irreconhecível, uma nova área de negociação de sentido e representação”
(Bhabha, 1994)
De fato, como indicado pela citação acima, o tema da identidade não será o único a ser
abordado nesta pesquisa. Como o título indica, esta pesquisa tratará também da questão dos
encontros e choques culturais – tema tratado no meu trabalho sob a idéia e o conceito de
“transculturação”, fenômenos estes que no mundo atual estão intimamente relacionados com
as diversas questões identitárias. Historicamente, os encontros e choques culturais foram
decisivos para que a história humana se enveredasse pelo caminho do qual hoje somos fruto, e
2

hoje estes fenômenos apresentam grande importância num mundo onde as distâncias físicas e
simbólicas diminuem cada vez mais rápido e os encontros são cada vez mais inevitáveis.
Sabemos que historicamente, os encontros entre culturas e os resultados por estes
gerados foram de importância sem igual para o decorrer da história humana sobre nosso
planeta. Desde as primeiras migrações humanas e os primeiros encontros, até os êxodos e
diásporas modernos socialmente provocados, passando pelas grandes navegações e
descobrimentos, o colonialismo, o tráfico de negros africanos e o imperialismo; o choque e
mescla entre culturas têm propiciado combustível e matéria prima para o surgimento dos mais
variados contextos e processos sociais em todos os momentos da humanidade.
Hoje em dia, mais uma vez, o tema da “transculturação” vem recebendo muita
importância no mundo contemporâneo devido à relevância dos entrosamentos culturais -
comuns principalmente no mundo ocidental - que definem ao mesmo tempo que
problematizam um grande número de culturas, sociedades, regiões e identidades do mundo
atual. Intimamente ligada com a questão da identidade, a transculturação e sua base teórica
ganha força e voz nos discursos e nas idéias “pós-coloniais” e “multiculturais” que tentam
esclarecer, desmembrar, e relativizar a idéia de modernidade através do conhecimento, e da
valorização dos inúmeros povos, culturas e histórias que estão implicados nesta idéia. O
campo científico dos “Estudos Culturais” é o mais recente núcleo produtor de pensamento e
teorias sobre os embates culturais e o que estes processos acarretam para as identidades dos
indivíduos que neles se envolvem. Autores como Homi Bhabha e Stuart Hall têm contribuído
com novos conceitos e prismas teóricos, os quais serão debatidos ao longo deste trabalho.
Ao ter contato com todas estas idéias e discussões através das aulas e do
aprofundamento teórico que os cursos de Antropologia e Sociologia oferecem, tive a
oportunidade e a capacidade de melhor compreender e analisar os processos sociais que vejo
no meu cotidiano familiar e no meu dia-a-dia dentro da Universidade. Por ser fruto de um
típico processo transcultural - ter abruptamente abandonado meu país de origem e ter sido
obrigado a plantar raízes em outra realidade cultural; não simplesmente aprendi ou adquiri o
conhecimento sobre as temáticas nesta pesquisa trabalhadas; esse conhecimento já estava em
mim presente em forma de experiência e vivência, eu apenas o compreendi de uma maneira
diferente, mais analítica e racional. Da mesma maneira passei a compreender aquela parte do
meu círculo familiar e de amigos, assim como de meus vínculos mais pessoais que também
estão vivenciando estas experiências de transculturação e abalo identitário: meus pais e meus
amigos, amigas e namorada africanos, estudantes no Brasil. Não é de estranhar que tenha me
encantado e dedicado a esta temática que me ajuda de maneira tão profícua a entender os
3

processos pelos quais meus pais, amigos e companheira, e principalmente eu mesmo, sou o
que sou, penso o que penso e quero o que quero.
A importância desta pesquisa é justamente essa, a de entender como a experiência da
transculturação se conecta com a formação das identidades dentro de indivíduos confusos e
divididos entre mundos, línguas e culturas diferentes, indivíduos que tentam se ajustar da
melhor maneira possível à uma nova realidade cultural que os engloba, tendo sempre que
“negociar” e se posicionar entre os códigos culturais de seu país de origem e aqueles a que
está sendo exposto na nova realidade. Ao entender o que é um processo de “transculturação”,
assim como a maneira pela qual as identidades se formam e principalmente os processos que
no mundo contemporâneo – principalmente no Ocidente, do qual meu universo de pesquisa
faz parte – estão agindo de maneira decisiva sobre os indivíduos e suas identidades, seremos
capazes de trabalhar mais acuradamente com imigrantes de todo tipo, assim como estudantes
ou profissionais estrangeiros que por ventura cruzem seus destinos com o Brasil.
4

2. Delineamento conceitual e teórico

Como já foi dito anteriormente, a presente pesquisa visa basicamente inserir aquilo
que chamo de “experiência transcultural” nas discussões contemporâneas sobre identidade,
sua produção e modificação. Para tanto, neste espaço de análise teórica, pretendo me
aprofundar no estudo e na revisão da literatura produzida sobre os diferentes elementos
constituintes da pesquisa.
Começarei por analisar em termos gerais, e sob os prismas de alguns autores
destacados, o período contemporâneo ao qual muitos chamam “pós-modernidade”. As
abordagens de Bauman e Giddens serão preponderantes neste momento dada a pertinência e
abrangência dos seus estudos e conclusões, junto com o fato de defenderem posições
diferentes dentro da temática. Elucidar algumas das características fundamentais do
controvertido período “pós-moderno” nos facilitará a compreensão das variantes específicas
de compreender e conceituar a identidade que se apresentam na “pós-modernidade”.
Em seguida passarei à análise do campo teórico dos chamados “Estudos Culturais”.
Além de delinear as preocupações fundamentais deste recente campo de estudo, tratarei
também das principais concepções teóricas que alguns dos principais autores deste campo
utilizam para definir e tratar a identidade. Logo após apresentarei o conceito de
“transculturação” e os principais pontos em que este conceito pode contribuir com as
construções teóricas dos Estudos Culturais, assim como a minha idéia do que seja a
“experiência transcultural”.

2.1. Debate sobre a “Pós-modernidade”

A importância da modernidade para a humanidade é praticamente incomensurável. Se


é certo que todas os períodos e fases históricas da civilização humana são amplamente
importantes e determinantes para o conteúdo cultural que hoje encontramos ao redor do
globo, devemos também atinar para o impacto sem precedentes que a era moderna
proporcionou à vida do ser humano na terra. Esta era em si foi palco e ao mesmo tempo fruto
das mais importantes mudanças nos sistemas sociais e culturais do homem. O advento da
racionalidade científica, da sociedade burocrática, da indústria, da divisão do trabalho, do
mercantilismo e do capitalismo são alguns dos fenômenos que transformam a modernidade
5

num período chave para a compreensão daquilo que o mundo humano é hoje. Esta
compreensão do hoje, no entanto, torna-se difícil e ambígua, dado o advento de novos
fenômenos, ontologicamente autênticos e extremamente radicais na sua capacidade de
transformação. Fenômenos como o empoderamento da informação e do mercado em
detrimento do Estado-nação, assim como a globalização levam a discussões sobre se a
humanidade (na verdade uma pequena parte dela) já estaria presenciando uma nova ordem de
fenômenos, um novo paradigma do real, uma nova era.
Esta nova “situação” da realidade humana é, na verdade, um fato. Estudiosos de todos
os campos do conhecimento admitem e ressaltam as mudanças que pouco a pouco vão se
instaurando na sociedade. Na verdade qualquer pessoa com um mínimo de inserção na
realidade – inclusive aquela parcela da população que ainda não é protagonista neste processo
- é capaz de sentir propriamente as mudanças, seja através dos meios de difusão de
informação que relatam acontecimentos novos e “inovadores” todos os dias, seja através da
simples contemplação da mudança de caráter da realidade através do tempo.
Nas áreas do conhecimento social, principalmente na Sociologia, existe hoje um forte
debate sobre as mudanças a que está sujeito o mundo contemporâneo. Uma infinidade de
autores têm discutido sobre estes acontecimentos e diversos esquemas teóricos e conceituais
têm sido produzidos para explicar a nova realidade. Eis que surgem os famosos termos: “Pós-
modernidade”; “Sociedade de Risco”; “Sociedade de Consumo”; “Sociedade de Informação”;
“Sociedade pós-industrial” e “Modernidade Tardia” entre outros. Com o fim de ilustrar de
maneira geral alguns dos principais traços desta nova realidade humana, explorarei algumas
das concepções de dois autores que sobressaem ao tratar esta temática: Zygmunt Bauman e
Anthony Giddens. Escolho estes autores, não apenas pelas proposições que fazem e
conclusões a que chegam e pelo amplo reconhecimento que tem tido no âmbito intelectual da
questão da modernidade e suas conseqüências, mas também porque exprimem
posicionamentos diferentes dentro da questão, o que a ilustra de uma maneira mais complexa.
A diferença entre estes autores pode ser esquematizada com base em duas
considerações principais. Em primeiro lugar, enquanto Giddens pontualmente enfatiza que o
que presenciamos hoje em dia é uma etapa de revelação e “encontro” da modernidade, apenas
uma etapa onde saem à luz os processos e tendências mais radicais da própria modernidade,
período o qual este autor denomina de “Modernidade tardia”; Bauman oscila entre considerar
o período contemporâneo como uma etapa radical da modernidade ao igual que Giddens - a
famosa “Modernidade Líquida”, ou reconhecer que estamos vivendo já na era pós-moderna.
Em segundo lugar encontramos uma ligeira mudança de foco na análise teórica de ambos os
6

autores. Enquanto Giddens se dirige com mais interesse à configuração institucional da


modernidade tardia, assim como à mudança vivenciada pela estrutura e pelas instituições
sociais na agudização dos fenômenos modernos; Bauman se preocupa mais em mapear as
novas condições de vida, os novos sentidos e as novas pré-disposições sociais e culturais que
atingem o indivíduo, pressionando-o na direção de novos padrões de comportamento.

2.1.1. A “Modernidade líquida” de Bauman

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman têm se destacado amplamente ao tratar o tema


da Modernidade e principalmente o período “Pós-Moderno”, também chamado pelo autor de
“modernidade líquida”. Este autor tem escrito diversos livros onde trata diferentes temáticas,
porém todas sob o prisma de análise e a contextualização teórica dos elementos da pós-
modernidade. Suas teses centrais a respeito da lógica pós-moderna são atualmente referência
para uma grande gama de autores que bebem de suas considerações para produzirem seus
próprios trabalhos.
Como foi elucidado acima, as obras de Bauman geralmente apresentam uma forte
ênfase nos processos que dizem respeito ao indivíduo e suas relações. Dentro de um esquema
teórico mais geral e abrangente que não deixa de analisar estruturas e instituições sociais,
Bauman foca principalmente âmbitos do indivíduo como o amor, a amizade, a agrupação em
comunidades, a construção da identidade, a transformação da intimidade, etc. Com base nisto,
acredito que o núcleo fundamental do pensamento de Bauman pode ser distinguido por meio
de dois pontos centrais: o desaparecimento das forças coercitivas tradicionais na sociedade
pós-moderna em primeiro lugar, e a paradoxal procura dos indivíduos por liberdade e
segurança no novo contexto que surge, em segundo.
Para Bauman, a dissolução das ordens sociais tradicionais acarreta um vazio
normativo que favorece amplamente o surgimento de novas formas de organização e
comportamento na sociedade pós-moderna. (Bauman, 2004) Nas suas próprias palavras,
grande parte das relações e formas de organização e comportamento social se “liquefazem” a
partir do momento em que velhas ordens e certezas do mundo moderno vão perdendo suas
principais características distintivas e sua força coercitiva dentro da sociedade. Na sua visão,
instituições sociais tradicionais e determinantes para a organização social moderna, tais como
a família, a igreja e a estratificação social perdem gradativa e aceleradamente sua força
coercitiva entre as fileiras de cidadãos e passam a permitir o estabelecimento da nova lógica
7

pós-moderna, centrada nas dinâmicas do mercado internacional e a iniciativa privada, na


globalização e na hegemonia dos processos informacionais.
Mesmo ressaltando o processo de desintegração destas instituições tradicionais e os
valores que estas difundiam na população, Bauman enfatiza veementemente a dissolução de
outro pilar da modernidade como fundamental para o surgimento da “modernidade líquida”,
este pilar é o Estado-Nação. É fácil de perceber na sua obra a importância que este autor dá a
este fenômeno em específico. A derrocada do Estado-Nação é ao mesmo tempo causa e
conseqüência do estabelecimento da ordem líquida pós-moderna. À medida que o mercado e a
globalização vão atingindo força e dimensões extraordinárias, o Estado vai se tornando
incapaz tanto de manter entre seus cidadãos o mesmo nível de obediência e coesão de que
antes gozava, quanto de propiciar a este mesmo cidadão uma série de seguranças e
oportunidades que se fazem necessárias nesta nova lógica e que, portanto, o indivíduo passará
a buscar em outras instâncias da vida social. A queda do valor preponderante do Estado
completa a configuração de uma realidade social nova, onde muitos dos processos antes
mediados por esta esfera são agora relegados a uma espécie de auto-regulação de acordo com
as lógicas do mercado e da globalização, configura-se a “modernidade líquida” de Bauman,
cujas principais características são elucidadas pelo autor na seguinte passagem:

“Estamos agora passando da fase “sólida” da modernidade para a fase “fluida”. E os


“fluidos” são assim chamados porque não conseguem manter a forma por muito
tempo e, a menos que sejam derramados num recipiente apertado, continuam
mudando de força sob a influência até mesmo das menores forças. Num ambiente
fluido, não há como saber se o que nos espera é uma enchente ou uma seca – é
melhor estar preparado para as duas possibilidades. Não se deve esperar que as
estruturas, quando (se) disponíveis, durem muito tempo. ... Autoridades hoje
respeitadas amanhã serão ridicularizadas, ignoradas ou desprezadas; celebridades
serão esquecidas, ídolos formadores de tendências só serão lembrados nos quizz
shows da TV; novidades consideradas preciosas serão atiradas nos depósitos de lixo;
causas eternas serão descartadas por outras com a mesma pretensão à eternidade;
poderes indestrutíveis se enfraquecerão e se dissiparão, importantes organizações
políticas e econômicas serão engolidas por outras ainda mais poderosas ou
simplesmente desaparecerão; capitais sólidos se transformarão no capital dos tolos;
carreiras vitalícias promissoras mostrarão ser becos sem saída. Tudo isso é como
habitar num universo desenhado por Escher, onde ninguém, em lugar algum, pode
apontar a diferença entre um caminho ascendente e um declive acentuado.”
(Bauman, 2004).

O Estado e as instituições tradicionais, fixas e monolíticas da modernidade vão


perdendo, portanto, sua importância entre os indivíduos e grupos sociais. Bauman coloca que
entre as mais notáveis e imediatas conseqüências deste processo está o aparecimento de novos
padrões de liberdade para os indivíduos. Estes adquirem maiores possibilidades de ação e
controle com relação à própria vida e destino, através de mecanismos criados pela
8

globalização e pelo mercado. A possibilidade de uma construção mais livre e menos fixa de
sua própria identidade é um exemplo de uma destas novas conquistas do indivíduo. Este não
precisa mais estar obrigatoriamente determinado pela natureza homogeneizante das
instituições e organizações sociais antes exclusivamente determinantes, e de fato deseja,
aceita e procura seguir as novas regras da vida social pós-moderna, como pode ser verificado
na seguinte passagem em Bauman:

“Para a grande maioria dos habitantes do líquido mundo moderno, atitudes como
cuidar da coesão, apegar-se às regras, agir de acordo com os precedentes e manter-se
fiel à lógica da continuidade, em vez de flutuar na onda das oportunidades mutáveis
e de curta duração, não constituem opções promissoras.” (Bauman, 2004).

Junto com este ganho em liberdade e mobilidade porém, surgem também uma série de
questões problemáticas que passam a fazer parte do cotidiano individual, questões estas
também produzidas através da nova dinâmica da modernidade líquida. Bauman, assim como
Giddens, ressalta o constante risco, medo e sensação de desamparo que tomam conta do
indivíduo, ao fazer este parte de um novo mundo completamente volátil e mutante onde as
velhas certezas não existem mais e as certezas que são com tanto trabalho construídas no dia a
dias se mostram essencialmente frágeis e ineficazes. A busca por segurança e proteção contra
as atribulações e oscilações da vida liquefata se transformam em um traço tão distintivo do
indivíduo quanto a sua liberdade dos grilhões da tradição. Não sem razão Bauman define
usualmente como “ambivalente” o período pós-moderno, o qual junto à cobiçada e bem vista
liberdade do indivíduo que transita em seu tempo-espaço, gera as tão discutidas “crise social”
e “crise de identidade”, como podemos observar na seguinte passagem do autor:

“A mudança e o impressionante colapso do Estado que fornecia a estrutura na qual o


relacionamento de vizinhança podia ser rotineiramente conduzido foram, sem
dúvida, uma experiência traumática, uma boa razão para temer pela segurança
individual. Entre as ruínas da estrutura fornecida pelo Estado as ervas daninhas
brotaram e cresceram descontroladamente. Seguiu-se uma genuína crise social
propriamente dita...” (Bauman, 2004).

Esta chamada crise social, assim como a crise de identidade que passa a assolar os
indivíduos na modernidade líquida segundo Bauman, trazem conseqüências ainda mais graves
do que o simples desespero e angústia pessoal dos indivíduos. Nesta angústia e na
necessidade de pertencimento que esta gera estão os germes do nacionalismo fundamentalista,
fenômeno que preocupa e suscita debates entre diferentes atores sociais hoje em dia. A
passagem a seguir ilustra o surgimento das tendências nacionalistas como conseqüência da
perda de importância do Estado nas últimas décadas:
9

“O Estado não pode mais afirmar que tem poder suficiente para proteger o seu
território e os seus habitantes. Assim, a tarefa que foi abandonada e descartada pelo
Estado jaz sobre o solo, esperando que alguém a apanhe. O que se segue, ao
contrário da opinião generalizada é um renascimento, ou mesmo uma vingança
póstuma, do nacionalismo...” (Bauman, 2004).

2.1.2. A “Modernidade Tardia” de Giddens

O sociólogo inglês Anthony Giddens também tem se dedicado quase que


exclusivamente nas últimas décadas à análise das condições sociais contemporâneas e à
construção de um quadro teórico explicativo capaz de elucidar ao máximo o processo ao qual
têm se chamado “Pós-Modernidade”.
Diferentemente de Bauman, Giddens se centra fundamentalmente, na sua análise, nos
processos institucionais do mundo moderno e sua etapa mais recente. Isto não quer dizer, no
entanto, que as transformações inerentemente individuais sejam abandonadas por este autor.
Mesmo que este autor não se empenhe em uma análise profunda e concludente dos processos
aos quais o indivíduo está sujeito em decorrência da agudização das conseqüências da
modernidade, muitas vezes em suas obras o autor introduz as possibilidades para que estes
estudos sejam realizados, ao conectar suas teses sobre as instituições e as dimensões macro-
sociais com os possíveis efeitos que as mudanças nestas instâncias acarretariam para os
indivíduos. De fato, Giddens demonstra clareza com relação aos mecanismos e configurações
dialéticas entre processos institucionais e individualidade dos sujeitos, ao afirmar que “A
modernidade deve ser entendida num plano institucional, porém, as mudanças provocadas
pelas instituições modernas se entrelaçam diretamente com a vida individual e, por tanto, com
o eu.” (Giddens, 1991)
Ao longo da sua produção sobre a modernidade, Giddens ressalta bastante a idéia da
singularidade e importância da era moderna para a história humana. Segundo ele, a
modernidade é uma época de mudanças sem precedentes onde se desenvolveram tendências e
fenômenos extremamente antagônicos aos dos períodos pré-modernos. É justamente pela
grande riqueza e complexidade do período moderno que Giddens adota e prega uma cautela
muito grande ao se posicionar em relação a um possível período pós-moderno. Segundo o
autor, a humanidade (uma pequena parte dela) ainda encontra-se, sem sombra de dúvidas, na
era moderna. Estamos, porém, vivenciando sua fase mais recente, seus aspectos e
características que estavam escondidas, apenas esperando um momento de amplo
distanciamento das ordens e características tradicionais pré-modernas para virem a tona.
10

(Giddens, 1990) Esta modernidade “tardia” ou “recente” como ele mesmo coloca, possui uma
série de características muito particulares que fogem à normalidade das características da
modernidade em si, mas que ainda não configuram um novo momento histórico, mas sim uma
radicalização do presente. Giddens, no entanto, admite que já é possível vislumbrar os
primeiros contornos daquilo que seria um período “pós-moderno”, este conjunto de idéias fica
bastante claro no seguinte fragmento do autor:

“A desorientação que se expressa na sensação de que não se pode obter


conhecimento sistemático sobre a organização social, devo argumentar, resulta, em
primeiro lugar, da sensação de que muitos de nós temos sido apanhados num
universo de eventos que não compreendemos plenamente, e que parecem em grande
parte estar fora de nosso controle. Para analisar como isto veio a ocorrer não basta
meramente inventar novos termos, como pós-modernidade e o resto. Ao invés disso,
temos que olhar novamente para a natureza da própria modernidade a qual, por
certas razões bem específicas, tem sido insuficientemente abrangida, até agora, pelas
ciências sociais. Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade,
estamos alcançando um período em que as conseqüências da modernidade estão se
tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes. Além da modernidade,
devo argumentar, podemos perceber os contornos de uma ordem nova e diferente,
que é „pós-moderna‟; mas isto é bem diferente do que é chamado por muito de „pós-
modernidade‟”. (Giddens 1990).

Dentre vários aspectos fundamentais que o autor desenvolve em seus trabalhos sobre a
modernidade, podemos destacar três pontos centrais característicos deste período: o Estado-
Nação, os meios modernos de mediação da experiência, e o incrível dinamismo e capacidade
de transformação que este período apresenta.
Giddens, assim como Bauman, coloca o Estado-Nação como um dos elementos
principais do período moderno. Segundo ele, os Estados nacionais modernos são entidades
sócio-políticas extremamente singulares e inovadoras com relação às entidades pré-modernas
em decorrência da sua unidade territorial característica, do eficiente controle que possuem dos
meios de coesão e do alto nível organizacional que apresentam no seu funcionamento.
(Giddens, 1991) Estas três características colocam o Estado-Nação como a entidade por
excelência da modernidade, a qual constitui base para a organização dos seres humanos nos
contextos social, cultural e geopolítico.
Com “meios modernos de mediação da experiência”, Giddens se refere aos meios de
comunicação que passaram a surgir e se desenvolver em patamares alucinantes no período
moderno. Desde os diários impressos, os primeiros livros, os primeiros sinais eletrônicos, até
os meios de comunicação de massa da modernidade recente como o radio, a televisão e a
internet, são todos mecanismos de separação de tempo-espaço, uma noção que adquire
fundamental importância no pensamento teórico de Giddens. Segundo ele, ao tornarem
possível a “mediação” da experiência e conectarem lugares e épocas distantes, os meios de
11

comunicação passam a possibilitar o crescimento da interação regional e global, uma das


principais características do que hoje conhecemos como “globalização”.
A terceira característica fundamental da modernidade para Giddens: seu “dinamismo”
é também, do ponto de vista da transição entre modernidade e modernidade tardia, a mais
importante. Por dinamismo, Giddens compreende o ritmo alucinado em matéria de inovação e
transformação da sociedade moderna. Como podemos vislumbrar em seu quadro teórico a
respeito da modernidade tardia, gradualmente as mudanças da modernidade se tornaram cada
vez mais radicais e inovadoras, cada vez mais indomáveis e paradigmáticas, de maneira que
começaram a configurar-se cenários nitidamente diferentes dos cenários modernos, surgiram
fenômenos como a globalização e a circulação estonteante e sem precedentes de informação,
além, é claro, do gradativo enfraquecimento do Estado-Nação. Pode-se dizer que o
dinamismo inerente da modernidade é a porta aberta por onde as características mais radicais
da mesma começam a surgir, porta esta que finalmente, dará passagem àqueles elementos
“pós-modernos” que Giddens já enxerga no horizonte. Vale a pena, sendo assim, analisar as
três características fundamentais do dinamismo da modernidade segundo Giddens, as quais já
estão também presentes em todos os fenômenos da modernidade recente. Estas são: a
separação tempo-espaço, o processo de desencaixe e seus mecanismos e a reflexividade da
modernidade. (Giddens, 1990, 1991)
Com a noção de separação tempo-espaço, Giddens tenta trazer para o centro da
discussão o aparecimento, na sociedade moderna, de noções abstratas de tempo e espaço, as
quais possibilitaram conceber o tempo e o espaço de maneira desarticulada. Segundo
Giddens, na modernidade é produzida uma noção “vazia” de tempo, decorrente dos métodos
de medição do mesmo que se popularizam em escala mundial. Assim, uma forma de datação
e medição universal se estabelece, a qual permite que um indivíduo seja capaz de saber que
horas são do outro lado do mundo e inclusive estar em contato direto com uma infinidade de
pessoas, transitando mercadorias e informação mediante estes mecanismos. O espaço também
é objetivado mediante a universalização de mapas e maneiras geográficas de olhar a realidade
espacial. Espaço e lugar não são mais sinônimos, o primeiro diz respeito às distâncias
abstratas em relação ao tempo, enquanto que o segundo se remete aos lugares físicos. Tempo
e espaço são separados, permitindo que lugares distantes estejam em contato e interação de
maneira cotidiana. A seguinte passagem lança luz sobre este fenômeno:

“O advento da modernidade arranca crescentemente o espaço do tempo fomentando


relações entre „outros‟ ausentes, localmente distantes de qualquer situação dada ou
interação face a face. Em condições de modernidade o lugar se torna cada vez mais
12

fantasmagórico: isto é, os locais são completamente penetrados e moldados em


termos de influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é
simplesmente o que está presente na cena; a „forma visível‟ do local oculta as
relações distanciadas que determinam sua natureza.” (Giddens, 1990).

Por desencaixe, entenda-se o “deslocamento”, segundo Giddens, das relações e


interações pessoais, isto é, a extração de determinada relação de um contexto e sua
recolocação em outros. Intimamente relacionados com a separação tempo-espaço, os
constantes “desencaixes” que Giddens identifica na realidade moderna dizem respeito às
possibilidades de interação que se produzem nesta nova realidade “globalizada”. Para pagar
por um serviço de limpeza de carpetes a uma empresa americana por exemplo, um advogado
inglês não precisa viajar até os Estados Unidos para efetuar o pagamento, pode fazê-lo através
de seu celular, assim como a empresa provavelmente dispõe de funcionários na cidade do
advogado inglês que executarão o serviço sem a necessidade dos funcionários americanos se
trasladarem sobre o oceano. Giddens distingue dois tipos de “mecanismos de desencaixe” que
permitem este tipo de interação distante e impessoal: as fichas simbólicas, “códigos” aceitos
em escala global com valor de troca amplamente reconhecido (dinheiro, conhecimento,
produtos, etc); e os sistemas peritos, “sistemas de excelência técnica ou competência
profissional” em cuja validez se possa confiar (carro, computador, edifícios, alimentos
“light”, etc). (Giddens, 1990, 1991)
O terceiro elemento responsável pelo enorme dinamismo da sociedade moderna é,
segundo Giddens, a “reflexividade” inerente a este período social. Nas próprias palavras deste
autor: “A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são
constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias
práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter.” (Giddens 1990). Este importante
elemento da modernidade engloba, como visto, duas esferas sociais importantes: as instâncias
produtoras de conhecimento científico e os meios de comunicação. Enquanto a primeira é
responsável por um imenso montante de informação e conhecimento produzido de maneira
constante sobre as diferentes realidades humanas, a segunda esfera introduz este
conhecimento nas diversas camadas sociais, influenciando o empoderamento por parte da
comunidade e a mudança na opinião pública. A mudança da opinião pública e as mudanças
correlatas de comportamento e configuração social acarretam, por sua vez, novas realidades a
serem estudadas e um novo conhecimento a ser produzido pelas instâncias científicas da
sociedade, fechando assim o ciclo da reflexividade.
A reflexividade, como concebida por Giddens, é sem dúvida um elemento único e de
extrema importância dentro do mundo moderno. Colocando constantemente em xeque o
13

conhecimento, as certezas científicas e a própria ação humana, a reflexividade, é elemento


constituinte de uma realidade que apenas anda para frente, sem nunca parar ou fixar-se
definitivamente a qualquer coisa. A “reflexividade meticulosa e constitutiva” (Giddens, 1990)
é, de fato, um dos elementos que Giddens identifica na lógica “pós-moderna” que se avizinha,
juntamente com a dissolução do evolucionismo, o desaparecimento da teleologia histórica e a
evaporação da posição privilegiada do Ocidente.

2.2. A Identidade em Bauman e Giddens

Tendo vislumbrado alguns dos traços gerais que caracterizam o período “pós-
moderno” ou, como defendido por Giddens, aquele período em que os efeitos e características
da modernidade se agudizam e intensificam; podemos agora centrarnos sobre a maneira como
a idéia de identidade é tratada nos estudos e trabalhos sobre este período. Dado que temos
trabalhado com as produções científicas de Bauman e Giddens, delinearemos como estes
autores tratam a questão da identidade explicitamente, e se não o fazem, como seus esquemas
teóricos permitem que a questão da identidade seja encarada.
Dado o notável viés dos estudos de Zygmunt Bauman no sentido de apontar sempre as
conseqüências, novas configurações, possibilidades e limitações que a lógica pós-moderna
acarreta para os indivíduos, encontramos em sua vasta obra posicionamentos claros a respeito
dos processos de construção, adoção e problematização da identidade por parte dos indivíduos
do mundo moderno. Para a discussão sobre a temática da Identidade em Bauman, no entanto,
é essencial, em primeiro lugar, conhecer um ponto específico ao qual este autor dá uma
grande importância em seus escritos: a derrocada do Estado-Nação moderno.
Segundo Bauman, é após a transformação do Estado Nação em uma referência de
menor grandeza para a vida individual e os processos sociais, que surge a tão badalada “crise
de identidade”. Tal crise consiste basicamente em um, ora vazio, ora redemoinho de
identidades e papéis sociais em que passam a se encontrar os indivíduos modernos em
decorrência do desaparecimento e/ou enfraquecimento das identidades e papéis tradicionais
que durante muito tempo delimitaram as possibilidades do indivíduo em relação à construção
da sua identidade. Com o desaparecimento – em muitos casos um enfraquecimento ou
desencantamento - da organização familiar tradicional, da articulação entre vida pessoal e
religião, da organização hierárquica e rígida da sociedade por classes, e principalmente do
Estado-Nação, houve condições para que os indivíduos se libertassem de um processo fixo e
14

rígido de identificação e para que surgissem inúmeras outras identidades e papéis sociais
menores que os indivíduos pudessem adotar. Observe-se a seguinte passagem do autor:

“Levando-se tudo isso em consideração, o significado de „cidadania‟ tem sido


esvaziado de grande parte de seus antigos conteúdos, fossem genuínos ou
postulados, enquanto as instituições dirigidas ou endossadas pelo estado que
sustentavam a credibilidade desse significado têm sido progressivamente
desmanteladas. O Estado-Nação, como já mencionamos, não é mais o depositário
natural da confiança pública. A confiança foi exilada do lar em que viveu durante a
maior parte da história moderna. Agora está flutuando à deriva em busca de abrigos
alternativos – mas nenhuma das alternativas oferecidas conseguiu até agora
equiparar-se, como porto de escala, à solidez e aparente „naturalidade‟ do Estado-
Nação.” (Bauman, 2004).

As tradicionais identidades familiares, religiosas e nacionais vão se enfraquecendo


gradualmente, enquanto que os indivíduos passam a procurar outras identidades que sejam
mais coerentes com as novas formas e reivindicações da modernidade por um lado, e capazes
de lhes oferecer segurança e coesão individual, por outro. Identidades estas mais flexíveis,
móveis e descartáveis, já que como diz Bauman:

“Uma identidade coesa, firmemente fixada e solidamente construída seria um fardo,


uma repressão, uma limitação da liberdade de escolha. Seria um presságio da
incapacidade de destrancar a porta quando a nova oportunidade estiver batendo. Para
resumir uma longa história: seria uma receita de inflexibilidade, ou seja, dessa
condição o tempo todo execrada, ridicularizada ou condenada por quase todas as
autoridades do momento...” (Bauman, 2004).

Para Bauman, sem dúvida, os pontos centrais nesta temática são a chamada “crise da
identidade”, e a constante procura por identidades novas e seguras que tomam conta do
processo cotidiano de identificação por parte do indivíduo. Na realidade da modernidade
líquida, Bauman enfatiza a centralidade da busca de identidades e papéis sociais que
ofereçam pertencimento e segurança ao indivíduo, mesmo que de maneira temporária para
que depois este possa exercer seu recém conquistado direito à liberdade. A identidade em
tempos radicalmente modernos, portanto, se configura em Bauman como um “processo”,
algo sempre em movimento e continuação que requer sempre a intencionalidade do
indivíduo. Podemos perceber estas teses fundamentais nas duas seguintes passagens:

“Não mais monitorados e protegidos, cobertos e revigorados por instituições em


busca de monopólio – expostas, em vez disso, ao livre jogo de forças concorrentes,
quaisquer hierarquias ou graus de identidades, e particularmente os sólidos e
duráveis, não são nem procurados nem fáceis de construir. As principais razões de
as identidades serem estritamente definidas e desprovidas de ambigüidade (tão bem
definidas e inequívocas quanto à soberania nacional do Estado), e de manterem o
mesmo formato reconhecido ao longo do tempo, desapareceram ou perderam muito
do poder constrangedor que um dia tiveram. As identidades ganharam livre curso, e
agora cabe a cada indivíduo, homem ou mulher, capturá-las em pleno vôo, usando
os seus próprios recursos e ferramentas.” (Bauman, 2004)
15

“Sim, de fato, a „identidade‟ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não
descoberto; como alvo constante de um esforço, um „objetivo‟; como uma coisa que
ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar
por ela e protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja
vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da
identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta.” (Bauman,
2004).

Por outro lado, em Giddens, dada a natureza institucional de sua análise teórica, torna-
se muito mais difícil encontrar alusões diretas à temática da identidade da maneira como o faz
Bauman, por exemplo. No entanto, além de algumas considerações que o autor faz em relação
à natureza do “eu”, podemos também utilizar-nos de algumas de suas noções e idéias
principais para tratar a temática da identidade.
Talvez o modo mais proveitoso de abordarmos a temática da identidade dentro do
quadro teórico do autor Anthony Giddens em relação à modernidade, seja analisarmos melhor
e relacionarmos com o indivíduo as noções que este autor desenvolve em relação à confiança
e ao risco.
Giddens, ao discorrer sobre a confiança esboça um esquema teórico específico que
envolve, além do conceito de confiança, os conceitos de risco, segurança e perigo. Eu vejo nas
idéias que o autor desenvolve neste ponto, uma maneira de relacionar, dentro de sua teoria, as
estruturas institucionais à vida individual. Segundo Giddens, as idéias e sentimentos de
“segurança” e “perigo”, familiares às pessoas das sociedades pré-modernas, têm sido
gradativamente substituídas pelas concepções modernas de “confiança” e “risco”. Enquanto
que nas sociedades pré-modernas as cosmovisões e os modos de vida estavam muito mais
relacionados com certezas e referências fundamentadas na “fé” e na natureza, esferas que
perpassavam e superavam o plano individual - sendo portanto incontroláveis e imprevisíveis,
nas sociedades modernas, com o aumento vertiginoso da intervenção humana sobre a natureza
e com o empoderamento do discurso científico em detrimento do religioso, a vida passa a se
associar cotidianamente à própria ação do ser humano. As noções e sentimentos de
“confiança” e “risco” advêm do estabelecimento de cosmovisões cujo ator central é o próprio
homem.
Giddens se remete aqui, mesmo que não da maneira mais direta possível, a um modo
específico de comportamento do indivíduo moderno hoje em dia, um modo de vida racional
fundamentado sobre a constante avaliação das opções para determinada ação, das
possibilidades de sucesso e fracasso, dos riscos envolvidos no próprio viver. Este novo
“viver” esboçado por Giddens, no entanto, não se constitui apenas pela natureza das ações
individuais, mas também pela possibilidade constante de riscos sobre os quais os indivíduos
16

isolados não têm controle algum, riscos como o de um desastre ecológico ou de uma guerra
nuclear. Sem dúvida este modo de vida influencia e caracteriza o modo de ser e a identidade
do indivíduo moderno de maneira mais geral, como podemos ver neste trecho:

“Viver na „Sociedade de Risco‟ [comentando o termo criado por Ulrich Beck]


significa viver com uma atitude de cálculo com relação às possibilidades de ação,
tanto favoráveis quanto desfavoráveis, que encontramos continuamente em nossa
existência social contemporânea, individual e coletivamente.” (Giddens, 1991).

Ao considerar este modo de vida fundamentado na confiança e no risco como típico da


modernidade – e agudizado na modernidade tardia – devido à que, como ele mesmo coloca:
“A confiança está relacionada à ausência no tempo e no espaço. Não haveria necessidade de
se confiar em alguém cujas atividades fossem continuamente visíveis e cujos processos de
pensamento fossem transparentes...”; Giddens conecta este modo de vida a outro elemento
que podemos utilizar para analisar a formação da identidade segundo este autor: o que ele
chama de “projeto reflexivo do eu”. Observe-mos o seguinte trecho:

“Em minha opinião as transformações na identidade do eu e a mundialização são os


dois pólos da dialética do local e do universal nas condições da modernidade
recente. Em outras palavras, as mudanças nos aspectos íntimos da vida pessoal estão
diretamente relacionadas ao estabelecimento de vínculos sociais de alcance muito
amplo.” (Giddens, 1991).

Como já falamos acima, a reflexividade é um dos elementos principais no


entendimento que Giddens faz da modernidade, assim como da modernidade tardia. Este
fenômeno moderno de modificação da realidade mediante a produção e compreensão da
própria realidade se manifesta, no mundo moderno, em praticamente todas as esferas sociais.
Segundo Giddens, a constituição do “eu” não seria diferente, como podemos observar a
seguir:

“A reflexividade da modernidade alcança o coração do eu. Dito de outra maneira, no


contexto de uma ordem pós-tradicional, o eu se torna um projeto reflexivo. As
transições nas vidas espirituais têm exigido sempre uma reorganização psíquica,
algo que nas culturas tradicionais tendia a ficar ritualizado como ritos de passagem.
... Por outro lado, nas circunstâncias da modernidade, o eu alterado deverá ser
explorado e construído como parte de um processo reflexivo que vincule a mudança
pessoal e a social.” (Giddens, 1991).

Podemos concluir com base nas passagens e nos marcos teóricos defendidos por
Giddens, que, mesmo este autor não se dirigindo à temática da produção e problematização
das identidades na modernidade em si, suas teorias prevêem um modo específico de “ser” e
uma identidade específica para o indivíduo moderno. Estas posições de sujeito específicas,
determinadas pela confiança e pelo risco, assim como pelo caráter reflexivo da modernidade,
17

se caracterizariam pela inconsistência e pela mutabilidade, já que estariam sempre sendo re-
formuladas à luz da introdução dos novos conhecimentos no meio social.

2.3. Debate sobre os Estudos Culturais

Após apresentados os aspectos principais do período mais recente, radical e


problemático da modernidade, assim como a concepção e o uso do conceito de identidade por
dois de seus principais teóricos – Bauman e Giddens; tentarei agora capturar os principais
elementos do contexto teórico – no qual a identidade ocupa papel de destaque - dos chamados
“Estudos Culturais”.
Os estudos culturais são um conjunto de preocupações e delineamentos teóricos e
epistemológicos que têm como pontos centrais os debates sobre a cultura e a identidade, bem
como o modo de ser e de conviver das diferentes tendências sócio-culturais no complexo,
fragmentado e hierarquizado cenário do mundo contemporâneo. Os temas fundamentais e as
principais inquietações daqueles autores que promovem o nome de “Estudos culturais” vão
desde debates conceituais sobre cultura e identidade até discussões sobre o pós-colonialismo,
a migração, os choques culturais e o impacto da epistemologia e do modo de vida ocidentais
nas comunidades e populações “tradicionais” ao redor do globo.
Pela própria natureza deste recente campo de estudo, a identidade, assim como os
processos de choque cultural, de “transculturação” e “hibridação”, têm sido amplamente
discutidos e problematizados, desconstruídos e reformulados à luz dos processos sociais e
culturais que se manifestam na contemporaneidade e que afetam praticamente toda a
população mundial. Dito isto, percebe-se a grande importância que as noções e temáticas
discutidas neste âmbito possuem para o presente trabalho. De fato, são das noções e conceitos
construídos por alguns dos teóricos dos Estudos culturais que este trabalho se utiliza para
analisar a informação obtida junto aos sujeitos entrevistados. Devo dizer também, que dada a
produção, o reconhecimento e o protagonismo das idéias dos autores Stuart Hall e Homi
Bhabha dentro do âmbito maior dos Estudos Culturais, trabalharei principalmente enfocando
as discussões que estes autores desenvolvem em seus textos.
Dividirei esta seção em algumas partes, de modo a apresentar com um mínimo grau de
coerência alguns pontos fundamentais em torno à identidade, dentro dos estudos culturais. Em
primeiro lugar abordarei a questão da chamada “crise de identidade” como vista por Hall e
outros. Depois analisarei como Stuart Hall trabalha a idéia de “multiculturalismo” - conceito
18

interessante para pensar a temática dos choques culturais e das produções “transculturais”;
para finalmente fazer um compêndio sobre as principais maneiras como a identidade é
concebida e conceitualizada por Stuart Hall e Homi Bhabha entre outros.

2.3.1. A “Crise de Identidade”

Nos Estudos culturais, é amplamente difundida e aceita, mesmo que com algumas
ressalvas, a idéia de que existe uma “crise de identidade”. Ao igual que os teóricos da
Modernidade tardia, diversos autores dos Estudos culturais utilizam esta noção como ponto de
apoio e de partida para desenvolverem alguns de seus argumentos centrais. A linha
argumentativa inicial é bastante semelhante àquela que já tratamos, coloca-se que o sujeito
moderno este sendo “descentrado” e “deslocado” em função do desaparecimento das forças
coercitivas e referenciais tradicionais responsáveis pela centralidade, fixidez e solidez das
identidades, assim como pelo surgimento de inúmeras novas possibilidades de
posicionamento e identificação dos sujeitos, resultado da estrutura e da dinâmica da
globalização. Podemos perceber este posicionamento na seguinte passagem em Hall:

“A identidade torna-se uma „celebração móvel‟: formada e transformada


continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. ... O sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de
um „eu‟ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo
continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o
nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós
mesmos ou uma confortadora „narrativa do eu‟. A identidade plenamente unificada,
completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os
sistemas de significação e representação cultural se modificam, somos confrontados
por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com
cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.” (Hall,
1992).

Encontra-se, porém, nos teóricos dos Estudos culturais que trabalham a questão, um
olhar diferente em relação à crise das identidades no mundo moderno. Aqui, a crise de
identidade é tratada não apenas no sentido do descentramento do sujeito e seu abandono “à
caça de identidades” globais, senão que a temática é tratada também em função do conflito
entre culturas, pontos de vista e identidades diferentes. Enquanto que para os teóricos da
modernidade a crise de identidade remete simplesmente à crise pela qual as identidades
tradicionais e os indivíduos modernos passam - em função do desaparecimento das primeiras
e a falta de amparo e segurança dos segundos; nos estudos culturais a questão é também
19

construída com base nos conflitos sociais e culturais, nos choques entre o moderno e o
tradicional, no surgimento dos nacionalismos e fundamentalismos, nas contradições entre as
populações nacionais e os enclaves étnicos de migrantes que graças à modernidade agora
fazem parte da sua paisagem cotidiana. A “Crise de identidade” nos estudos culturais é
constituída de todas estas problemáticas. Observemos o seguinte trecho dos escritos de
Kathryn Woodward:

“O que é importante para nossos propósitos aqui é reconhecer que a luta e a


contestação estão concentradas na construção cultural de identidades, tratando-se de
um fenômeno que está ocorrendo em uma variedade de diferentes contextos.
Enquanto, nos anos 70 e 80, a luta política era descrita e teorizada em termos de
ideologias em conflito, ela se caracteriza agora, mais provavelmente pela
competição e pelo conflito entre as diferentes identidades, o que tende a reforçar o
argumento de que existe uma crise de identidade no mundo contemporâneo.”
(Woodward, 1997).

Na obra de Stuart Hall vemos uma enorme preocupação com estas questões chaves da
modernidade recente. Este autor se utiliza da idéia de que existe uma crise de identidades
fruto da modernidade para se aprofundar sobre temas como o multiculturalismo, a oposição
entre os liberalismos e nacionalismos modernos e a migração. Antes de delimitar melhor
algumas destas idéias do autor, no entanto, cabe observar algumas de suas considerações com
respeito a um ponto característico da crise de identidade: a diminuição da relevância e do
poder dos Estados-Nações na modernidade recente e o decorrente enfraquecimento da
identidade nacional, ponto enfatizado por Hall.
Em seu livro “A Identidade Cultural na Pós-Modernidade”, Stuart Hall dedica um
espaço considerável à análise da identidade nacional. Segundo seus propósitos de analisar o
descentramento do sujeito e o enfraquecimento de suas identidades culturais, este autor
discute em profundidade os diferentes aspectos da identidade nacional, desde a construção do
imaginário nacionalista e patriótico através de discursos e mitos fundadores, até a dissolução
final destas conexões com um passado imaginário da nação e sua substituição por outras
formas de identificação “acima” e “abaixo” do nível do Estado-Nação.
Num primeiro momento, Hall nos mostra como a nação e sua estrutura política de
controle e regulação – o Estado – constrói através de uma série de práticas simbólicas e
sociais identidades muito fortes e coesas, capazes de dar segurança e “conteúdo” ao indivíduo,
seu lugar no mundo e seu papel na sociedade nacional e global. Estas identidades construídas
são prontamente adotadas e reverenciadas pelos sujeitos, que passam a integrar assim as
“fileiras” do Estado-Nação e reproduzirem os valores ideológicos e morais implícitos nos seus
discursos. Posteriormente, ao falarmos sobre as maneiras de conceber a identidade
20

analisaremos a idéia de Hall da identidade como ponto de articulação momentânea entre o


indivíduo e as praticas discursivas que este encontra ao longo de sua vida. (Hall, 1996.)
Segundo Hall, existem diversos mecanismos utilizados para criar esta identificação
com os indivíduos. Estratégias como a “narrativa da nação” segundo “tradições inventadas” e
“mitos fundacionais”, assim como a concepção da nação como constituídas por um povo e
uma essência puras e continuas são amplamente utilizados para construir a coesão e a unidade
que vemos em muitos países onde estes processos têm sido menos problemáticos e
contestados. (Hall, 1992.) Porém, como este autor demonstra ao longo de sua análise, os
tempos modernos de crise de identidade vêm servindo de maneira muito positiva para
desmascarar e desconstruir esta natureza e esta essência fictícia dos Estados-Nação. Segundo
Hall, dois pontos centrais podem ser destacados como resultado deste processo de
desconstrução: a exposição e comprovação de que os estados nacionais e a identidade
nacional não passam de mecanismos ideológicos que transformam a diferença e a
heterogeneidade em unicidade e homogeneidade; e a perigosa constatação de que no seio do
discurso nacional se enaltece a procura e a volta a um suposto essencialismo, uma suposta
natureza pura e superior encontrada no passado e que nos dias de hoje está sendo cada vez
mais minada. (Hall, 1992, 2003.)
Com relação ao primeiro ponto, Hall ataca a idéia de uma unicidade transcendental da
nação, como muitas vezes é construída pelos discursos e práticas nacionalistas e exalta que
este processo na verdade esconde a diferença e é um eficiente mecanismo de controle e
dominação utilizado por aquelas parcelas da sociedade detentoras do poder. Ao afirmar que a
cultura e identidades nacionais não são “simples pontos de lealdades, união e identificação
simbólica. São também estruturas de poder cultural” Hall se refere diretamente ao efeito
unificante que os setores, populações e etnias dominantes imprimem aos “outros”. A unidade
da nação é construída de maneira a ressaltar a cultura e a história daqueles que dominam e a
esconder e assimilar a cultura e história daqueles que são dominados. Observe-se a seguinte
passagem a este respeito:

“A maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por
um longo processo de conquista violenta – isto é, pela supressão forçadas da
diferença cultural. ... esses começos violentos que se colocam nas origens das nações
violentes têm, primeiro que ser „esquecidos‟, antes que se comece a forjar a lealdade
com uma identidade nacional mais unificada, mais homogênea.” (Hall, 1992.)

Hall observa que, ao estarem desestabilizando noções tradicionais sobre as quais eram
construídas as fortes identidades culturais – entre elas a identidade nacional; os processos
globais estão ajudando em parte a desconstruir e enfraquecer muitos destes mecanismos de
21

exclusão e dominação calcados e fundamentados na identidade nacional e na soberania do


estado. As mudanças modernas sobre o “tempo-espaço”, como conceitualizadas por Giddens,
estão, segundo Hall, transformando as “coordenadas básicas de todos os sistemas de
representação”, possibilitando o surgimento de novos tipos de identificações regionais,
culturais e sociais, as quais vão deslocando a identidade nacional. (Hall, 1992.) Dentro
daquilo que Hall discute com relação à identidade nacional e seu caráter homogeneizante e
coercitivo em relação à diferença, esta faceta da crise de identidade parece ser bastante
benéfica, no sentido de que contribui para a afirmação de identidades étnicas antes
controladas e solapadas por um processo nacional de afirmação. Em “A Identidade Cultural
na Pós-Modernidade” Hall não dedica, contudo, ênfase especial a este caráter positivo da crise
de identidade, centrando-se quase que exclusivamente na tese da produção recente de uma
“homogeneização global”, idéia corrente entre teóricos da modernidade segundo a qual a
abrangência do capitalismo e da globalização está levando os valores e a cultura Ocidental
para todas as áreas do mundo, influenciando populações tradicionais ao redor do globo e
diminuindo gradativamente a heterogeneidade cultural. Quando trata especificamente da
libertação de identidades étnicas menores do controle de identidades nacionais, o faz focando
pouco este lado positivo e realçando o lado negativo: a possibilidade do surgimento de
nacionalismos e fundamentalismos radicais.
Esta segunda consideração de Stuart Hall sobre o cenário contemporâneo da crise de
identidade é bastante abordada e desenvolvida pelo autor quando este se refere ao
“multiculturalismo”, esquema teórico esboçado pelo autor para tentar analisar de maneira
eficiente os quadros culturais que se manifestam tanto no Ocidente quanto fora dele no que
diz respeito aos choques culturais e às identidades em conflito e afirmação nos cenários pós-
modernos.

2.3.2. O “Multiculturalismo”

Para Stuart Hall, o multiculturalismo é um conjunto de ações e políticas que devem ser
tomadas e implementadas de maneira a promover e possibilitar, da melhor maneira possível,
formas pacíficas e produtivas de relacionar-se e coexistir dentro das sociedades multiculturais.
Amparadas e munidas sempre com o conhecimento da diversidade e da complexidade cultural
das sociedades que visa, o multiculturalismo é o processo de “administrar a diversidade”
naquelas sociedades – denominadas de multiculturais - que são constituídas por povos de
22

diferentes naturezas culturais e étnicas e que enfrentam dia a dia o desafio de mediar os
conflitos e choques culturais. (Hall, 2003.) Este é um árduo processo não apenas porque é
muito difícil ainda, em muitos casos, identificar e compreender dinâmicas de exclusão e
dominação a que minorias étnicas e culturais estão sujeitas - tanto nos países de ocidentais
quanto os não ocidentais; mas também porque há diversas forças que se opõem a esta nova
estratégia política com o objetivo de manterem seu status e suas aspirações dentro de um meio
social específico. Observe-se a seguinte passagem:

“Longe de ser uma doutrina estabelecida, o „multiculturalismo‟ é uma idéia


profundamente questionada. É contestado pela direita conservadora, em prol da
pureza e integridade cultural da nação. É contestado pelos liberais que alegam que o
„culto da etnicidade‟ e a busca da diferença ameaçam o universalismo e a
neutralidade do estado liberal, comprometendo a autonomia pessoal, a liberdade
individual e a igualdade formal.” (Hall, 2003)

As idéias desenvolvidas por Hall, tanto a de “multicultural” como adjetivo, quanto a


de “multiculturalismo” como substantivo, são extremamente pertinentes aos cenários culturais
contemporâneos. De fato, vivemos num período onde não podemos mais nos esconder do
multicultural. Seja nas capitais americanas, européias ou asiáticas de primeiro mundo, ou nas
capitais dos países subdesenvolvidos do terceiro mundo, somos constantemente obrigados a
atinar para a composição multicultural das nossas realidades sociais específicas. Seja ao
observarmos os comuns restaurantes de comidas chinesas, árabes, indianas, japonesas ou
alemãs que encontramos nos nossos “shoppings”, ou o numeroso exército de vendedores
asiáticos que encontramos nas feiras e centros populares de venda de quase todo o mundo
ocidental, temos cotidianamente a certeza de que vivemos em sociedades multiculturais.
Como descrito em inúmeras passagens por Hall, a migração hoje é um processo generalizado,
em quase todos os lugares do mundo existem fluxos de pessoas que vão e que vêm
determinando o rápido aumento do caráter multicultural das nossas sociedades:

“Após a segunda Guerra Mundial, as potências descolonizadoras pensaram que


podiam simplesmente cair fora de suas esferas coloniais de influência, deixando as
conseqüências do Imperialismo atrás delas. Mas a interdependência global agora
atua em ambos os sentidos. O movimento para fora (de mercadorias, de imagens, de
estilos ocidentais e de identidades consumistas) tem uma correspondência num
enorme movimento de pessoas das periferias para o centro, num dos períodos mais
longos e sustentados de migração „não-planejada‟ da história recente.” (Hall, 1992.)

O cenário multicultural que podemos presenciar hoje em inúmeras sociedades ao redor


do globo tem sua origem, segundo Hall, devido a três fatores fundamentais: o fim do
colonialismo, o fim da Guerra fria e a globalização. Tanto o fim do colonialismo quanto o fim
da Guerra Fria possibilitaram uma visão mais clara – já que este sempre esteve lá - do caráter
23

multicultural das realidades sociais pelo mesmo motivo. Tanto o colonialismo, quanto a
guerra fria – e sua característica divisão do mundo em duas ordens opostas aparentemente
homogêneas – acabavam por esconder, disfarçar e relegar a um segundo plano as diferenças
étnicas e culturais da população em prol dos ideais de unidade e homogeneidade que eram
enaltecidos nestes momentos históricos. Enquanto que no colonialismo eram colocadas sob o
mesmo “teto” nacional populações e etnias culturalmente diferentes e inclusive rivais, sendo
obrigadas a reproduzir o discurso homogeneizante da metrópole e a conviver com as
diferenças culturais dos colonos e dos “outros” que eram colonizados; no cenário da Guerra
Fria todas as diferenças culturais, sociais e políticas foram deixadas de lado – principalmente
no bloco soviético – na tentativa de construir um modelo político transcendental às
particularidades das regiões, nações, culturas e pessoas. Foi natural que junto com a derrocada
destes sistemas e configurações viessem a tona a grande gama de diferenças, choques e
conflitos que estavam adormecidos e subjugados por Estados controladores e seus ideais
maiores.
Por último, a globalização, que como enfatizado por Hall, não é algo novo, vêm
expondo o planeta a uma série de processos e dinâmicas que entre outros, tem por resultado a
aproximação entre as pessoas, entre os modos de vida e estilos culturais diferentes. Os estilos
e valores ocidentais são amplamente difundidos pelo mundo não Ocidental ao mesmo tempo
em que as tendências capitalistas de exploração do “folclórico” e “excêntrico”, assim como a
migração trazem cada vez mais os “outros” para o seio da sociedade Ocidental. (Hall, 2003.)
Observe-se a seguinte passagem do autor Kevin Robins, citado por Hall em “A Identidade
Cultural na Pós-Modernidade”:

“Em um processo de desencontro cultural, as populações „estrangeiras‟ têm sido


compelidas a ser os sujeitos e os subalternos do Império ocidental, ao mesmo tempo
em que, de forma não menos importante, o ocidente vê-se face a face com a cultura
„alienígena‟ e „exótica‟ de seu „Outro‟. A globalização, à medida que dissolve as
barreiras da distância, torna o encontro entre o centro colonial e a periferia
colonizada imediato e intenso.” (Hall, 1992.)

O cenário multicultural contemporâneo, portanto, é um cenário relativamente novo


onde os choques culturais e os conflitos étnicos se libertam das suas amarras transcendentais e
vêm a tona, colocando à prova os mecanismos, paradigmas e estratégias tradicionais dos
Estados, suas políticas e ciências tradicionais, que são obrigados agora a construírem novos
meios – multiculturalistas - capazes de garantir a coexistência e a mediação de conflitos.
Guiando-nos pela obra de Hall, podemos, neste ponto, fazer uma análise das principais
tendências que se manifestam nas esferas sociais e nas estratégias políticas dos Estados-Nação
24

de hoje como resposta ao desenvolvimento e à difusão do modo de vida e dos valores


Ocidentais calcados sobre a economia capitalista. Hall faz importantes análises sobre dois
fenômenos do mundo moderno que surgem como duas respostas diferentes à globalização
ocidentalizada que ataca as regiões não ocidentais de todo o mundo e os enclaves
“tradicionais” que por ventura ainda possam ser encontrados nos países ocidentais. Estes
fenômenos são: o surgimento das “modernidades vernáculas” e o advento dos nacionalismos e
fundamentalismos modernos.
Por “Modernidades Vernáculas” Hall se refere ao fruto da relação dialética entre o
local e o tradicional por um lado e o liberalismo ocidental expansionista por outro. Segundo o
autor, os valores e modos ocidentais de conceber a vida vão continuamente se alastrando
sobre o globo e influenciando em grande medida as culturas tradicionais, provocando a tão
conhecida homogeneização global. Isto não significa, no entanto, que as populações
tradicionais e suas culturas locais desempenhem um papel apenas passivo neste processo. Na
verdade, trata-se de um processo dialético onde surgem variantes diferentes, próprias e
singulares de modernidade, variantes estas sempre determinadas pela avassaladora corrente
ocidental, mas cuja singularidade está sempre atrelada ao papel determinante que a tradição
joga nesse processo. A tradição se funde com as tendências modernas ocidentais e nasce um
tipo específico de modernidade, uma “modernidade vernácula” de essência híbrida onde, se
bem podemos encontrar traços de uma cultura homogeneizante Ocidental, tais como o
consumismo e a impessoalidade, encontramos também evidências da sobrevivência da
tradição nas esferas principais da vida cotidiana. Estas “modernidades vernáculas”, na
concepção de Hall, são responsáveis pela “proliferação subalterna da diferença”, como
podemos observar nas seguintes passagens:

“Contudo, a différance impede que qualquer sistema se estabilize em uma totalidade


inteiramente suturada. Essas estratégias surgem nos vazios e aporias, que constituem
sítios potenciais de resistência, intervenção e tradução. Nesses interstícios, existe a
possibilidade de um conjunto disseminado de modernidades vernáculas.
Culturalmente, elas não podem conter a maré da tecno-modernidade ocidentalizante.
Entretanto, continuam a modular, desviar e „traduzir‟ seus imperativos a partir da
base. Elas constituem o fundamento para um novo tipo de „localismo‟ que não é
auto-suficientemente particular, mas que surge de dentro do global, sem ser
simplesmente um simulacro deste.” (Hall, 2003)

E ainda:

“Juntamente com as tendências homogeneizantes da globalização, existe a


„proliferação subalterna da diferença‟. Trata-se de um paradoxo da globalização
contemporânea o fato de que, culturalmente, as coisas pareçam mais ou menos
semelhantes entre si (um tipo de americanização da cultura global, por exemplo).
25

Entretanto, concomitantemente, há a proliferação das „diferenças‟. O eixo „vertical‟


do poder cultural, econômico e tecnológico parece estar sempre marcado e
compensado por conexões laterais, o que produz uma visão o mundo composta de
muitas diferenças „locais‟, as quais o „global-vertical‟ é obrigado a considerar. Nesse
modelo o clássico binarismo iluminista Tradicionalismo/Modernidade é deslocado
por um conjunto disseminado de „modernidades vernáculas‟”. (Hall, 2003)

Percebemos nestes trechos, e de fato esta é uma preocupação fundamental de Hall, a


idéia de colocar algo no meio do “binarismo Tradicionalismo/modernidade”. Hall se empenha
em mostrar que existe uma nova possibilidade junto às duas tendências mais obvias a que se
refere tal binarismo. No cenário atual de derrocada do Estado-Nação como referência
fundamental, as sociedades modernas, assim como comunidades e enclaves mais tradicionais
podem tomar, a princípio, dois caminhos opostos. Por um lado, estes conjuntos sociais podem
sucumbir aos imperativos homogeneizantes da modernidade tardia e passarem a ser
determinadas cada vez mais pelos padrões “líquidos” e fragmentados da “pós-modernidade”.
Por outro, no entanto, podem se apegar ao passado e a um discurso nacionalista radical e
construírem Estados étnicos fechados onde seja condenada e combatida não apenas a
modernidade homogeneizante, mas a alteridade como um todo. Junto a estas tendências mais
fáceis de enxergar no cenário político de hoje - onde Estados amplamente liberalistas dão as
cartas e condenam ao mesmo tempo em que são condenados por Estados radicalmente
nacionalistas e fundamentalistas; percebe-se a tentativa por parte de Stuart Hall de
desenvolver uma forma de análise e uma política de fato – o multiculturalismo – que se
centrem na cada vez mais visível natureza híbrida das sociedades e culturas, no caráter cada
vez mais multicultural dos Estados nacionais. As “modernidades vernáculas” com sua
“proliferação subalterna da diferença”, como identificadas por Hall, são um dos meios de
desenvolvimento da cultura que encontramos em diversas sociedades não ocidentais que são
profundamente expostas à cultura Ocidental, mas que tentam e conseguem sempre manter,
sob um modelo social e cultural “híbrido”, os seus principais elementos culturais tradicionais.
Devemos ressaltar que este processo de hibridação também se manifesta nas comunidades
“transculturadas”, aquelas comunidades que foram inseridas em um meio cultural maior, tais
como imigrantes, refugiados, etc. Muitas destas comunidades culturalmente específicas são
protagonistas, hoje, de processos de hibridação e “tradução” cultural em todas as grandes
capitais do Ocidente.
Nestas passagens temos a oportunidade de, além de apreciar o sentido das idéias de
Hall sobre os processos dialéticos entre modernidade e tradição, observar a utilização de dois
conceitos importantes intimamente conectadas com a discussão sobre a identidade: os
26

conceitos de “différance” e de “hibridismo”. Estes, assim como outros conceitos e concepções


de identidade serão abordados no próximo tópico.
Outro modo de lidar com a temível ameaça da homogeneização cultural, por parte de
culturas e comunidades tradicionais, é promoverem um “fechamento” de sua cultura e de suas
fronteiras, construindo um regime político fundamentado sobre a fixidez do sistema e a
pureza da cultura e do modo de vida. São os Estados nacionalistas e fundamentalistas, dos
quais Hall também desenvolve interessantes análises, completando sua caracterização do
cenário multicultural global.
O fundamentalismo, assim como o nacionalismo, são fenômenos que surgem em
decorrência da modernidade e suas características mais recentes. Ao contrário do que possam
pensar muitas pessoas, estes fenômenos políticos tidos como “arcaicos” e fadados a
desaparecer são justamente características do mundo moderno. (Hall, 2003) Como apontado
por Stuart Hall, Alain Touraine e outros, a globalização como processo gera uma reação
temerosa e defensiva daquelas populações, comunidades e países que não detém poder dentro
desta lógica, daqueles que são desta excluídos e que participam do mundo globalizado como
simples atores passivos, destinados a serem determinados pela nova realidade em formação.
Esta “reação” se caracteriza pelo fechamento radical à lógica liberal e pelo estabelecimento da
ordem social através da procura ora da pureza étnica, ora da fixidez teológica, ora das duas
juntas. Como afirma Woodward:

“A globalização, entretanto, produz diferentes resultados em termos de identidade.


A homogeneidade cultural promovida pelo mercado global pode levar ao
distanciamento da identidade relativamente à comunidade e à cultura local. De
forma alternativa, pode levar a uma resistência que pode fortalecer e reafirmar
algumas identidades nacionais e locais ou levar ao surgimento de novas posições de
identidade.” (Woodward, 1997)

Talvez, dentre as variantes essencialistas a mais fácil de identificar e definir seja o


fundamentalismo religioso, graças à notável visibilidade que esta idéia tem recebido nas duas
últimas décadas – e especialmente nos últimos anos. Devido em primeiro lugar à ocorrência
de vários ataques terroristas nas potencias ocidentais, e em segundo à importância conferida
ao petróleo no sistema capitalista moderno, temos presenciado a ocupação de diversos países
e regiões e a destituição de governos alcunhados de terroristas e fundamentalistas. O
fundamentalismo se caracteriza principalmente por ser um regime político profundamente
permeado pelo cosmovisão religiosa. É um regime onde tanto a política orientada à população
quanto aquela feita nos contextos internacionais se caracteriza pela rigidez e pelo
cumprimento da norma, fundamentadas nos valores e crenças religiosos. Isto faz com que de
27

acordo com as visões ocidentais, tanto as estabelecidas no poder, quanto a de determinados


movimentos sociais portadores de discursos subalternos (como o feminismo, por exemplo),
estes regimes sejam taxados de atrasados, arcaicos e bárbaros, justificando qualquer tipo de
intervenção bélica.
Mas as tendências essencialistas que excluem e separam setores da população não são
problemas exclusivamente do mundo tradicional, o fundamentalismo e o nacionalismo são
encarados hoje como um grave problema que se manifesta tanto no Ocidente quanto fora
deste. Existe aqui, porém, um paradoxo a ser ressaltado. Enquanto os regimes
fundamentalistas do Oriente Médio são vistos com temor e condenados abertamente pelo
liberalismo ocidental, o surgimento de tendências nacionalistas nas grandes capitais do
primeiro mundo – as quais têm visto a diversidade étnica aumentar vertiginosamente em
função da migração – é muitas vezes promovido e amparado pelas esferas etnicamente
dominantes que estão no poder, as mesmas que apóiam as políticas bélicas e a destruição dos
sistemas fundamentalistas no Oriente.
De fato, o nacionalismo político é hoje uma forte barreira para todos aqueles que
trabalham pelo estabelecimento do multiculturalismo como estratégia política. Caracterizado
por uma natureza mais política, este fenômeno – muito mais sutil que o fundamentalismo -
também é caracterizado pelo “fechamento” e pelo estabelecimento da diferença. De acordo
com a maneira segundo a qual este fenômeno se manifesta no Ocidente, seu foco é a busca
pela restauração de uma essência passada tida como perdida ou em processo de extinção. Este
fenômeno vem se manifestando cada vez mais nos setores dominantes dos países ocidentais,
como reação ao fluxo migratório oriundo do terceiro mundo, gerando dentro das esferas
políticas e econômicas que fomentam e difundem o liberalismo, uma política e uma
mentalidade nacionalistas calcadas no suposto valor superior da população e história nacional
(como vimos, uma história e uma população que têm sofrido um processo homogeneizante
por parte daqueles segmentos sociais que ocupam o poder). Neste sentido afirmam Hall e
Touraine:

“Muitos nos antigos Estados-Nação, que estão profundamente vinculados às formas


mais puras de autoconhecimento nacional, estão sendo literalmente levados à
loucura por sua erosão. Eles sentem que todo seu universo está sendo ameaçado pela
mudança e ruindo. „A diferença cultural‟ de um tipo rígido, etnicizado e inegociável
substituiu a miscigenação sexual enquanto fantasia pós-colonial primordial. Um
„fundamentalismo‟ de impulso racial veio à tona em todas essas sociedades da
Europa ocidental e da América do Norte, um novo tipo de nacionalismo defensivo e
racializado. O preconceito, a injustiça, a discriminação e a violência em relação ao
„Outro‟, baseados nessa diferença cultural hipostasiada, passou a ocupar seu lugar
28

junto com racismos mais antigos, fundados na cor da pele ou na diferença


fisiológica.” (Hall, 2003)

“Assim como o período do imperialismo foi seguido pelo triunfo das revoluções
leninistas, poder-se-ia ver, após um período de globalização, regimes totalitários se
reformarem, ou se aliarem nos novos países industriais, o liberalismo econômico e o
nacionalismo cultural („nacional-liberalismo‟)”. (Touraine, 1997)

O nacionalismo, contudo, também se manifesta de outra maneira, através dos conflitos


étnicos que eclodem principalmente na Europa oriental, fragmentando, eliminando e criando
constantemente novos países. A derrocada da União Soviética após a Guerra Fria foi
justamente, o resultado de muitas tendências nacionalistas que reivindicavam o direito de suas
populações etnicamente diferenciadas de constituírem um estado independente. Ainda hoje,
mesmo após a fragmentação do território e do estado soviético, são inúmeros os conflitos
separatistas que colocam em xeque países que por sua vez surgiram faz pouco tempo, como é
o caso da Iugoslávia, da Sérvia, da Croácia, da Geórgia e outros. Estes movimentos apelam
para a pureza e a diferença étnica de suas populações para reivindicarem sua autonomia, a
constituição de um Estado próprio e seus direitos no contexto internacional.

2.4 Definições conceituais referentes à Identidade nos Estudos Culturais

Como temos visto, no âmbito dos Estudos Culturais são discutidas e estruturadas
importantes questões do mundo atual, nas quais a identidade se faz presente como um dos
elementos fundamentais para ler as situações e configurações sociais e culturais e ajudar a
construir esquemas teóricos capazes de captar de maneira mais completa alguns aspectos
complexos da realidade contemporânea. Dentro destes esquemas teóricos discutidos e
construídos no cenário dos Estudos Culturais a identidade recebe fundamental importância,
sendo suas definições conceituais constantemente pensadas e reelaboradas à luz dos
fenômenos da realidade multicultural com que os autores se defrontam e sobre os quais
produzem – podemos dizer que a reflexividade do conhecimento de que Giddens fala é
visivelmente importante na constante re-formulação do conceito de identidade por parte de
intelectuais diaspóricos e híbridos. Tentarei delimitar agora algumas destas concepções
principais da Identidade, assim como alguns conceitos fundamentais que são utilizados para
trabalhá-la dentro dos Estudos Culturais
29

2.4.1. A construção da Identidade através dos Sistemas de Representação

A título de introdução falarei da maneira como a identidade se relaciona com os


sistemas culturais de representação e classificação. Estas considerações teóricas sobre a
“origem” da identidade e os processos que a geram dentro da cultura não são vistas nos
grandes teóricos dos Estudos Culturais a não ser nas entre linhas e na base das suas
construções. No entanto, no ensaio “Identidade e diferença: uma introdução teórica e
conceitual” de Kathryn Woodward encontramos uma breve análise destes aspectos iniciais da
identidade.
Para a autora, assim como para diversos antropólogos que tem buscado esclarecer as
características fundamentais do processo de identificação, a identidade é o produto indireto do
processo cultural de construção, atribuição e passagem geracional de significados. Segundo
Woodward, um dos mecanismos principais da cultura é a construção de sistemas de
representação. Estes sistemas são processos de significação e conjuntos de significados que
vão sendo criados sobre a realidade, e que, agrupados, passam a fornecer visões específicas
sobre o real, determinando modos específicos de representação, concepção e atuação frente à
realidade. (Woodward, 1997) Os sistemas de representação, portanto, fornecem as “posições
de sujeito” às quais os indivíduos podem se agarrar, produzindo as diferentes facetas de suas
identidades. Observemos a seguinte passagem em Woodward:

“A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por


meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É
por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à
nossa experiência e àquilo que somos. Podemos sugerir inclusive que esses sistemas
simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar.
A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades
individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem
possíveis respostas para as questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu
quero ser? Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir
dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar.”
(Woodward, 1997)

Os sistemas de representação, os quais geram as posições de sujeito e possibilitam a


adoção de determinadas identidades por parte dos indivíduos, não são, contudo, imparciais e
universais nos significados que produzem e adotam e nas posições de sujeito que determinam.
Sistemas específicos de representação construídos sobre significados específicos podem
divergir e até se opor com outros sistemas de representação cujos significados sejam sobre a
mesma faceta da realidade, mas com valorações diferentes. Geram-se assim, posições de
sujeito parciais e específicas muitas vezes definidas justamente pela diferença, não
30

simplesmente pelo que são, mas também pelo que não são; é o que Woodward chama de
“marcação da diferença”. Segundo esta autora, a marcação da diferença e os sistemas
classificatórios da cultura são essenciais para compreender os fenômenos da identidade.
(Woodward, 1997) A autora se ampara em diversos antropólogos e sociólogos, como Lévi-
Strauss e Durkheim, para mostrar como a cultura estabelece fronteiras através da marcação da
diferença, como mecanismo para facilitar a inteligibilidade com a realidade e principalmente
como mecanismo de ordenação das relações sociais.
Estas considerações são bastante pertinentes no sentido de que nos dão uma visão
inicial da produção das identidades com base na cultura. Ao mesmo tempo, no momento em
que Woodward se refere à “marcação da diferença” como essencial para o estabelecimento
dos sistemas de representação gerados pela cultura, esta autora nos dá o primeiro elemento
para começar a definir uma das principais concepções da Identidade dentro dos Estudos
Culturais: a idéia do “jogo da diferença”.

2.4.2. O “Jogo da Diferença” / O conceito de “différance”

A idéia de que a identidade se enquadra nos padrões de um “jogo da diferença” é


muito utilizada por diversos autores – principalmente Stuart Hall - para abordarem o tema da
identidade e para definirem como se desenvolvem os processos identitários. Esta idéia se
utiliza da noção da “marcação da diferença” e principalmente do conceito de “différance”
desenvolvido pelo filosofo Jacques Derrida e adotado para tratar da temática da identidade por
Stuart Hall.
Um primeiro aspecto desta concepção é a de que, nas palavras de Kathryn Woodward,
“a Identidade é relacional” (Woodward, 1997) Isto significa que a identidade é um processo
de construção de um significado que se fundamenta não apenas naquilo que ela “é” e
simboliza, mas também naquilo que ela “não é” e não representa. A conjuntura simbólica pela
qual e com a qual nos identificamos não é suficiente para construir nossa identidade, esta é
definida também por tudo aquilo com o qual não nos identificamos e não adotamos. A
Identidade não se constrói apenas na similaridade, mas também se constrói pela diferença, e
inclusive diversos autores consideram que este segundo elemento possa vir a ser o primordial.
Nas palavras de Tomaz Tadeu da Silva:

“A afirmação „sou brasileiro‟, na verdade, é parte de uma extensa cadeia de


„negações‟, de expressões negativas de identidade, de diferenças. Por trás da
afirmação „sou brasileiro‟ deve-se ler: „não sou argentino‟, „não sou chinês‟, „não
31

sou japonês‟ e assim por diante, numa cadeia, neste caso, quase interminável.
Admitamos: ficaria muito complicado pronunciar todas essas frases negativas cada
vez que eu quisesse fazer uma declaração sobre minha identidade. A gramática nos
permite a simplificação de simplesmente dizer „sou brasileiro‟. Como ocorre em
outros casos, a gramática ajuda, mas também esconde.” (da Silva, 2000)

Segundo esta concepção, portanto, a identidade necessita do “outro”, do “exterior”


para se constituir completamente, ela não se define por si mesma, mas também por aquilo que
lhe falta. Gera-se assim, a princípio, o estabelecimento de uma oposição binária entre o “nós”
e o “eles”, o que está “dentro” e “fora” de determinada identidade cultural, nacional ou
individual, como elemento necessário para compreender a totalidade constitutiva da
Identidade. A “marcação da diferença” de que fala Woodward - a existência de elementos fora
da fronteira de determinada identidade, elementos que esta não é; é essencial para que exista
qualquer identidade. Mas esta está longe de ser um processo fixo e rígido, de fato, diversos
autores se esforçam para ressaltar a qualidade móvel e relacional da Identidade. Esta, mesmo
que sua natureza conceba a oposição entre aquilo que “é” e aquilo que “não é”, não segue a
rigidez dos binarismos - na verdade a própria concepção da Identidade como um “jogo da
diferença” é uma tentativa de superar visões binaristas, onde determinadas identidades são
vistas apenas em função de sua oposição rígida com outras identidades. A identidade aqui é
vista como um processo, uma constante e sempre inacabada produção, tentativa e busca pelo
fechamento e pela completude; uma constante “questão de tornar-se” ao invés de uma simples
questão de “ser” nas palavras de Stuart Hall; a identidade aqui é vista, finalmente, nos termos
da “différance”, como observamos na seguinte passagem de Woodward comentando Hall:

“Hall argumenta em favor do reconhecimento da identidade, mas não de uma


identidade que esteja fixada na rigidez de uma oposição binária, tal como as
dicotomias „nós/eles‟ ... Ele sugere que, embora seja construído por meio da
diferença, o significado não é fixo, e utiliza, para explicar isso, o conceito de
différance de Jacques Derrida. Segundo esse autor, o significado é sempre diferido
ou adiado; ele não é completamente fixo ou completo, de forma que sempre existe
algum deslizamento. A posição de Hall enfatiza a fluidez da identidade. Ao ver a
identidade como uma questão de „tornar-se‟, aqueles que reivindicam a identidade
não se limitariam a ser posicionados pela identidade: eles seriam capazes de
posicionar a si próprios e de reconstruir e transformar as identidades históricas,
herdadas de um suposto passado comum.” (Woodward, 1997)

Esta lógica relacional e “corrediça” da Identidade, onde esta sempre será definida por
uma gama de fatores e configurações, é justamente o que Jacques Derrida tentou apreender ao
esboçar o conceito de “différance” na teoria lingüística. Como podemos compreender na
análise que Tomaz Tadeu da Silva realiza tanto da construção conceitual de Derrida, quanto
da apropriação do conceito por Hall; o conceito de différance “é caracterizado pelo
diferimento ou adiamento (da presença) e pela diferença (relativa a outros signos)”. (da Silva,
32

2000) No campo lingüístico isto quer dizer que por mais bem elaborado que determinado
signo lingüístico seja, por mais eficiente que este seja ao definir e descrever o objeto real a
que se refere e destina, nunca poderá imitá-lo ou representá-lo perfeitamente, já que é um
signo e está fadado à incompletude. Logo o significado e a “aparência”, a natureza do objeto
real sempre escapam, o signo poderá inclusive nos dar uma boa representação, mas algo
sempre ficará indefinido. Ao mesmo tempo o signo é construído com base não apenas no
objeto real que ele define e representa, mas também em função de uma série de outros objetos
que não são o objeto que define. (da Silva, 2000) “Différance” (em francês) é ao mesmo
tempo “diferir” e “deferir”, o signo lingüístico é caracterizado pela diferença entre o que ele
define e não define e pelo constante “deslizamento” do significado real, pelo “adiamento” da
presença do objeto real. Esta falta de certeza e apreensão total do real, segundo Derrida e da
Silva, determinam o caráter sempre instável e cambiante da linguagem e dos signos
lingüísticos. (da Silva, 2000) Constantemente novas palavras e expressões são criadas como
forma de melhor definir e representar a realidade, a qual por sua vez também é cambiante e
exige a constante reformulação e criação de símbolos que tentem da melhor maneira possível
captá-la e defini-la - vemos novamente aqui, toda a força da idéia de reflexividade de Giddens
aplicada ao campo lingüístico.
A idéia de “différance” foi prontamente adotada e “traduzida” para o campo dos
Estudos Culturais por Stuart Hall, quem, imbuído desta peça chave, é o principal autor por
trás da idéia teórica do “jogo da diferença”. Ao adotar a idéia de différance ao tratar das
identidades, penso que Hall procura ressaltar o caráter sempre “movediço” de determinada
identidade em função das experiências a que o indivíduo está sujeito no seu cotidiano,
experiências estas que são capazes de modificar seus sistemas de representação e sua
identidade rapidamente. No caso das identidades cultural e nacional, a experiência de ser
inserido em outra cultura e sofrer um processo de transculturação pode ser extremamente
determinante para o deslizamento da identidade do indivíduo à medida que este toma
consciência e se posiciona com relação ao “outro”, muitas vezes desconhecido ou mal
compreendido. Neste sentido comenta Hall utilizando-se de passagens de Ernesto Laclau:

“Filosoficamente, a lógica da différance significa que o significado/identidade de


cada conceito é constituído em relação a todos os demais conceitos do sistema em
cujos termos ele significa. Uma identidade cultural particular não pode ser definida
apenas por sua presença positiva e conteúdo. Todos os termos da identidade
dependem do estabelecimento de limites – definindo o que são em relação ao que
não são. ... As identidades, portanto, são construídas no interior das relações de
poder. Toda identidade é fundada sobre uma exclusão e, nesse sentido, é um „efeito
do poder‟. Deve haver algo „exterior‟ a uma identidade. Esse „exterior‟ é constituído
por todos os outros termos do sistema, cuja „ausência‟ ou falta é constitutiva de sua
33

„presença‟. „Sou um sujeito precisamente porque não posso ser uma consciência
absoluta, porque algo constitutivamente estranho me confronta‟. Cada identidade,
portanto, é radicalmente insuficiente em termos de seus „outros‟. „Isso significa que
o universal é parte da minha identidade tanto quanto sou perpassado por uma falta
constitutiva‟ (Laclau, 1996)” (Hall, 2003)

E afirma também:

“Acima de tudo, e de forma diretamente contrária àquela pela qual elas são
constantemente invocadas, as identidades são construídas por meio da diferença e
não fora dela. Isso implica o reconhecimento não menos perturbador de que é apenas
por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com
precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior
constitutivo, que o significado „positivo‟ de qualquer termo – e, assim, sua
„identidade‟ – pode ser construído” (Hall, 1996)

O chamado “jogo da diferença”, portanto, é uma concepção que tenta da melhor


maneira possível retratar a dinâmica “relacional” da identidade, enfatizando a maneira como
esta se manifesta em contextos onde posições de sujeito diferentes se encontram e se chocam,
gerando o conseqüente “deslizamento” das identidades e a construção de novas posições de
sujeito. Se bem que na teoria dos Estudos Culturais esta idéia é usada bastante para tratar da
questão das identidades nacionais e étnicas e o aparecimento de novas identidades
“transculturais” e “híbridas”; a noção de “jogo da diferença” pode ser usada também para
tratar de outras posições de sujeitos e identidades problematizadas e discutidas nas sociedades
ocidentais dos dias de hoje, tais como as identidades de gênero, as identidades religiosas, as
identidades de classe, etc. Podemos encontrar nos escritos de Woodward, da Silva e Stuart
Hall preocupações e posicionamentos neste sentido. No caso específico de Tomaz Tadeu da
Silva, por exemplo, encontramos reflexões sobre o valor da teoria cultural contemporânea no
tratamento das questões sobre gênero e sexualidade. Segundo o autor, a utilização dos
paradigmas culturais possibilita não apenas a desconstrução das identidades fixas e dos
binarismos no âmbito do gênero, mas também a construção de novas identidades que se
construam “na fronteira” das definições e acepções tradicionais e que se alimentem de
diferentes tendências antes consideradas antagônicas e exclusivas. (da Silva, 2000)
Há aqui, três últimas considerações importantes a serem feitas sobre a idéia de “jogo
da diferença” como marco teórico dentro dos Estudos Culturais. A primeira relativa à forte
ênfase que os autores colocam sobre as relações de poder no cenário da construção relacional
da identidade. A segunda relativa à ênfase pessoal que Hall faz sobre a articulação entre os
sujeitos e os discursos que provêm e constroem posições de sujeito dentro da sociedade. A
terceira com relação à valorização da relação dialética entre passado e presente no âmbito da
construção da identidade segundo a lógica da différance.
34

Ao falarem sobre o “processo relacional” de produção da identidade, isto é, sua


produção nos moldes da “différance”, os autores Tomaz Tadeu da Silva e Stuart Hall são
enfáticos ao colocar sempre a questão das redes de poder nos contextos e dinâmicas em que a
identidade é construída. Segundo eles, a “identidade e a diferença não são, nunca, inocentes”,
pelo contrário estão permeadas de relações de poder, apropriações e imposições discursivas
que visam a satisfação de interesses específicos à parcela social dominante no processo. (da
Silva, 2000) Segundo Tomaz Tadeu da Silva, a produção da Identidade está fortemente
marcada pelas relações de poder, já que aquele que detém o discurso e o poder de definir a
diferença define também quem são os excluídos, os diferentes, os “outros” a quem é
necessário aplicar a norma. (da Silva, 2000)
Por outro lado, à esta ressalva importante sobre a participação das relações de poder
nos mecanismos de construção da identidade, Stuart Hall adiciona outro elemento importante.
Este autor, já vinha desenvolvendo em trabalhos anteriores uma concepção específica da
identidade, a qual neste momento ele junta à idéia do “jogo da diferença” fundamentada na
différance. Segundo Hall, é necessário que vejamos a identidade como um posicionamento
estratégico do indivíduo. Como uma estratégia pela qual o indivíduo gera identidades
momentâneas através da sua articulação pessoal com as identidades e posições de sujeito
fornecidas naquele momento específico pelos discursos dominantes na sociedade. (Hall, 1994,
1996, 2003) Esta concepção é enriquecida pela discussão que o conceito “différance” sucita,
já que são adicionadas as considerações sobre a construção da identidade com base na
diferença e no “posicionamento relacional” dentro de uma cadeia de elementos. Mesmo
assim, Hall ainda enfatiza sua tese da “sutura” entre o indivíduo e as práticas discursivas
capazes de gerarem identidade no seio da sociedade. Observem-se as seguintes passagens:

“As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições de sujeito que as
práticas discursivas constroem para nós. Elas são o resultado de uma bem sucedida
articulação ou „fixação‟ do sujeito ao fluxo do discurso” (Hall, 1996)

“É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso


que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e
institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas,
por estratégias e iniciativas específicas. Além disso, elas emergem no interior do
jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação
da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente
constituída, de uma “identidade” em seu significado tradicional – isto é, uma
mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem
diferenciação interna.” (Hall, 1996)

Ao mesmo tempo em que nos fornece as idéias de Stuart Hall com relação às
considerações que este autor faz sobre as relações de poder e a articulação do sujeito às
35

práticas discursivas, esta segunda passagem também contém a terceira consideração


importante que encontramos em Hall, a respeito da “Identidade relacional”. É importante
percebermos a diferença entre a concepção da identidade como produzida dentro de um “jogo
das diferenças” e a identidade nos moldes desregrados das teorias pós-modernas. Ao vermos a
identidade como profundamente móvel, conjuntural e instável, pode parecer-nos que estamos
lidando com uma concepção de identidade semelhante àquela apresentada aqui por Zygmunt
Bauman – mas adotada por muitos teóricos. No entanto, devemos atinar que a construção do
processo identitário segundo a idéia de “différance” obedece a determinadas regras – dentre as
quais a já apresentada característica do “posicionamento relacional” da identidade é talvez a
principal. Neste sentido, Hall se esforça em diferentes momentos de sua obra, em apresentar a
relação das identidades culturais e nacionais (suponho que seja possível fazer esta co-relação
com outras identidades também) com o passado e sua própria configuração no passado como
um outro ponto de “fixação” da identidade. De fato, Hall enfatiza a necessidade de
compreender determinada identidade cultural e/ou nacional como conectada com a forma
como esta identidade era em determinado período passado. Para Hall, as identidades
respondem e se posicionam no presente à maneira como eram estruturadas no passado, e
inclusive podem chegar a se utilizar de mitos e discursos passados para se estruturarem no
presente. (Hall, 1992, 1994, 2003) Em seu ensaio “Identidade cultural e Diáspora” o autor
afirma:

“Sob esse aspecto, a identidade cultural não é jamais uma essência fixa que se
mantenha imutável, fora da história e da cultura. Nem é dentro de nós, algum
espírito transcendental e universal no qual a história não faz marcas fundamentais.
Também não é „de uma vez para sempre‟. Não é uma origem fixa à qual possamos
fazer um retorno final e absoluto. E, é claro, não é um simples fantasma. Mas é
alguma coisa – não um mero artifício da imaginação. Tem suas histórias – e as
histórias, por sua vez, têm seus efeitos reais, materiais e simbólicos. O passado
continua a nos falar. Mas já não é como um simples passado factual que se dirige a
nós, pois nossa relação com ele, como a relação de uma criança com a mãe é sempre
já „depois da separação‟. É construído sempre por intermédio de memória, fantasia,
narrativa e mito. As identidades culturais são os pontos de identificação, os pontos
instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e da
história. Não uma essência, mas um posicionamento.” (Hall, 1994)

Estas considerações finais sobre a identidade como produzida dentro de um “jogo da


diferença”, nos trazem parâmetros analíticos que permitem enxergar de maneira mais concreta
o complexo processo relacional a que as identidades estão sujeitas. Estas são produzidas
sempre com base numa configuração maior, da qual consta uma vasta gama de outras
identidades, e seu significado de fato nunca se completa e sempre é re-elaborado. Temos, no
entanto, nas relações de poder, nos discursos dominantes e na articulação com o passado,
36

elementos que nos permitem situar e delimitar de melhor forma as identidades e os processos
pelos quais estas se constroem e modificam.

2.4.3. “Tradução” e “Hibridismo”

Junto ao conceito de “différance” e às conseqüentes construções teóricas que deste


partem – a idéia do “jogo da diferença”, a Identidade como “relacional”, devemos colocar
também as noções de “tradução” e “hibridismo” trabalhadas pelo autor Homi Bhabha como
extremamente importantes e pertinentes para pensarmos a questão da identidade, neste caso
principalmente a forma como se constroem e se modificam as identidades nacionais, étnicas e
culturais.
No desenvolvimento teórico do autor, o conceito de “tradução” vem antes e determina
em certo sentido a idéia de “hibridismo”. É importante atinarmos para a importância que
Homi Bhabha atribui ao que ele chama de “incomensurabilidade” dos códigos culturais.
Antes, no entanto, devemos analisar a teoria deste autor a respeito da diferença. Em sua obra,
Bhabha constrói uma importante crítica à idéia do multiculturalismo como este é concebido
no Ocidente, com base na idéia de que a diversidade e a diferença, como ideologias - são
coisas bastante diferentes. Para este autor, muitas sociedades ocidentais estão cada vez mais
aderindo ao discurso multiculturalista como uma forma de manter a diferença sob controle.
(Bhabha, 1990) Segundo ele, no momento em que se prega a tolerância e as políticas de
identidade com relação à diversidade, adota-se, por parte dos estados ocidentais, um modo de
ação que ainda contêm o elemento ideológico do controle e do distanciamento em relação ao
diferente, ao “outro”. (Bhabha, 1994) Para Bhabha, devemos deixar de falar em diversidade e
definirmos o período multicultural contemporâneo com base na “diferença”. Uma
diferenciação radical porém sincera que pode de fato levar a um convívio mais harmônico
entre culturas que por si mesmas não podem ser relativizadas, suavizadas e impelidas à
interação e à mescla artificialmente através de políticas públicas. Bhabha é partidário de que a
diferença e a incomensurabilidade das culturas devem ser reconhecidas. Melhor do que prover
políticas de identidade construídas pelo e segundo os interesses do poder dominante às
comunidades étnicas que crescem aceleradamente no ocidente, devemos conferir-lhes
“empoderamento” e autonomia, de maneira que o processo de “tradução” aconteça vagarosa,
porém espontaneamente.
37

Na base da crítica de Bhabha está, como vimos, a noção de que os códigos culturais
são “incomensuráveis”. Esta noção teórica, que é o princípio para o surgimento do conceito
de “tradução” representa uma inteligente crítica e contribuição aos paradigmas teóricos do
contato cultural. Noções como a de “aculturação”, “transculturação” – a qual vou abordar no
presente trabalho, e “hibridização” como utilizada por alguns teóricos dos Estudos Culturais
contemporâneos, tendem a ver o contato cultural como um processo dialético onde a mistura
dos diferentes elementos culturais gera a produção de um novo código cultural que tem sua
origem nos dois precedentes, ao mesmo tempo em que os supera em abrangência e
perspectivas. Mais do que uma crítica desconstrutiva, Bhabha se esforça por mostrar que se
esta junção e o conseqüente aparecimento de um “terceiro espaço” acontecem, se deve não à
combinação dos conteúdos culturais – os quais são incomensuráveis, mas ao fato de que todas
as culturas, por mais variados que sejam seus conteúdos, são o mesmo processo de produção
de sentido e significado e ordenação do mundo social:

“Neste ponto eu gostaria de apresentar a noção de „tradução cultural‟, para sugerir


que todas as formas de culturas estão de algum modo relacionadas umas com as
outras, porque a cultura é uma atividade significante ou simbólica. A articulação de
culturas é possível não por causa da familiaridade ou similaridade de conteúdos,
mas porque todas as culturas são formadoras de símbolos e constituidoras de temas
– são práticas interpelantes.” (Bhabha, 1994)

Vemos, portanto, que Bhabha não nega a produção de novos elementos culturais, ele
se esforça por desenvolver este ponto, o qual foi tratado de maneira muito simplista pelos
conceitos que tratam o choque cultural. Segundo Bhabha, a produção de um “terceiro espaço”
onde novas posições de sujeito são produzidas e novas identidades se manifestam não se dá
pela simples utilização mesclada de elementos culturais diferentes, mas por um processo onde
determinados conteúdos culturais são reconstruídos com base em outro código cultural, um
processo de “tradução”. Gera-se assim, portanto, um conteúdo cultural “traduzido” que é
adicionado e aumenta o espectro cultural do grupo que “traduz”, este é o momento da
“hibridação” de determinada cultura, comunidade ou indivíduo, o momento em que elementos
novos são introduzidos no código cultural daquele que “traduz”, porém não elementos soltos e
não identificados, mas elementos re-construídos segundo o próprio código. Por outro lado às
novas possibilidades culturais e posições de sujeito fruto desta hibridação é o que Bhabha
denomina de “terceiro espaço”. (Bhabha, 1994)

Como vimos, as noções de identidade como fruto dos sistemas culturais de


representação, “jogo da diferença” e “identidade relacional”, assim como os conceitos de
38

“différance”, “tradução” e “hibridismo” são bastante importantes e utilizados para tratar a


identidade no âmbito dos Estudos Culturais. Tentarei utilizar estes elementos teóricos na
análise da informação obtida junto ao grupo estudado e observado, como forma de obter
conclusões coerentes com o cenário contemporâneo e com as preocupações teóricas que se
apresentam no campo da identidade. De fato, estes conceitos retratam muito bem os processos
a que os grupos migrantes estão sujeitos, do ponto de vista individual, quando inseridos em
um meio cultural estranho. Completarei o marco teórico com uma breve análise de outro
conceito, o de “transculturação”, o qual trás especificidades interessantes na análise do
migrante e, portanto, me credenciará para a análise teórica da informação obtida.

2.5. A “Transculturação” e a “Experiência transcultural”

O antropólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969) é o autor por trás do conceito de


“transculturação”, foi este quem primeiro o apresentou e lhe deu cunho teórico no âmbito dos
estudos sobre encontros e choques culturais. Ortiz trás o conceito de transculturação como
substituto para o de “aculturação”, amplamente utilizado e discutido por antropólogos do
calibre de Melville Herskovits, Franz Boas e Bronislaw Malinowski. Implicitamente, Ortiz se
posiciona de maneira cuidadosa e crítica em relação a este conceito, propondo a idéia de
“transculturação” justamente para superar e corrigir algumas das limitações que ele via nesta
idéia precedente. Para ele o conceito de “aculturação” era muito rígido ao conceber o choque
de culturas como uma imposição linear de poder onde a cultura mais poderosa e forte
englobava e adequava completamente a outra cultura; o conceito era muito falho e pouco
profundo ao tratar de como se dava o processo de mudança de uma cultura para outra.
(Iznaga, 1989) O conceito de “transculturação” vem, justamente, fornecer a esse debate as
idéias de “desarraigo” “desculturación” e “neoculturación” (Ortiz, 1963); segundo as quais o
choque entre as duas culturas em questão se produz de maneira muito mais dialética e
negociada, havendo intensa mescla de elementos culturais que não simplesmente produzem
um resultado igual à soma das partes, mas produzem elementos culturais novos e
extremamente ricos. (Iznaga, 1989)
É importante aqui ressaltar que o teórico Fernando Ortiz, através de suas idéias sobre a
“transculturação” lançou luz e introduziu desde muito cedo, idéias, noções e discussões que
hoje vemos bastante desenvolvidas e difundidas. Mesmo que possam ser encontradas na
vastíssima obra de Fernando Ortiz o germe das discussões pós-coloniais, as principais idéias a
39

respeito do multiculturalismo de um ponto de vista antropológico, assim como a questão da


dialética e da complexidade na produção da cultura, raramente este autor é mencionado e
nunca me deparei com uma ênfase em suas idéias a não ser a que Walter Mignolo desenvolve
ao falar sobre a importância da “transculturação no lócus da enunciação” (Mignolo, 2003)
O estudo que Ortiz desenvolve através do conceito de “transculturação” gira em torno
também da história cubana e do Caribe, tal aspecto da discussão de Ortiz facilita sua visão e
construção encima da idéia de “desarraigo”, já que em Cuba houve uma completa povoação
do território com populações advindas de diversas partes do globo, principalmente negros
africanos e brancos europeus – tal como aconteceu em Cabo Verde. Para o autor, o fato de
populações com diferentes culturas, porém na mesma situação de desamparo e falta de
perspectiva, se encontrarem massivamente num território absolutamente novo, sendo
obrigadas a interagir, influencia profundamente os caminhos e a intensidade do processo
transcultural. O sentimento de “desarraigo” e abandono determina o estado de espírito
específico em que se encontram as populações em choque cultural, determinando, portanto, os
frutos do contato. Segundo Ortiz, ponto característico da transculturação é justamente o
sentimento de perda e “solidão” pelo qual passam os povos que estão interagindo. Tal
sentimento, no caso cubano, é sentido pelas diversas culturas em questão, o que fornece
condições para uma interação singular e a construção de uma cultura nova à medida que as
culturas constituintes se mesclam. (Ortiz, 1963) Estas idéias principais em torno do conceito
se apresentam de maneira sucinta na seguinte passagem:

“Entendemos que el vocablo transculturación expresa mejor las diferentes fases del
proceso transitivo de una cultura a otra, porque éste no consiste solamente en
adquirir una distinta cultura, que es lo que en rigor indica la voz anglo-americana
aculturation, sino que el proceso implica también necesariamente la pérdida o
desarraigo de una cultura precedente, lo que pudiera decirse una parcial
desculturación, y, además, significa la consiguiente creación de nuevos fenómenos
culturales que pudieran denominarse de neoculturación. Al fin, como bien sostiene
la escuela de Malinowski, en todo abrazo de culturas sucede lo que en la cópula
genética de los individuos: la criatura siempre tiene algo de ambos progenitores,
pero también siempre es distinta de cada uno de los dos. En conjunto, el proceso es
una transculturación, y este vocablo comprende todas las fases de su parábola.”
(Ortiz, 1963)

Estas concepções do autor em torno à idéia de transculturação serão bastante úteis no


meu trabalho, já que tanto a análise que Ortiz faz da povoação da ilha de Cuba, quanto a
noção de “desarraigo” são particularidades do conceito “transculturação” que aproveitarei na
discussão teórica e na análise da informação. No caso de muitos dos alunos entrevistados, por
exemplo, a idéia de “desarraigo” se mostra presente devido aos sentimentos de saudade e
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deslocamento que eles demonstram sentir profundamente no Brasil. Tal sentimento, como
ressaltado por Ortiz, é um dos elementos chave que canalizam e possibilitam o processo de
transculturação e a negociação cultural que este processo supõe. Explorando as valorações e
reflexões dos alunos em relação com a própria saudade e o fato de estarem por um período
determinado de tempo afastados de sua cultura e sua família, temos elementos importantes
para analisar quais foram as principais mudanças que estes alunos tem sofrido no Brasil e
porque estas mudanças específicas têm acontecido. Por outro lado, no caso específico dos
alunos cabo-verdianos, foi regularmente mencionado nas entrevistas o processo de povoação
das ilhas de Cabo Verde, o qual parece ter sido muito similar ao processo que Ortiz descreve
na povoação da ilha de Cuba – uma povoação, por parte de populações culturalmente muito
distintas, de um território absolutamente vazio. Tal processo tem visivelmente um grande
peso no desenvolvimento do imaginário nacional de Cabo Verde e na identidade nacional de
sua população, outro elemento importante para analisar tanto as identidades dos alunos deste
país quanto às mudanças que estes vivenciam ao se estabeleceram no ambiente cultural
brasileiro.
Outros casos de transculturação, subentendidos no texto de Ortiz são aqueles onde
uma cultura é inserida e absorvida por outra mais poderosa. Em semelhante caso apenas este
pequeno grupo cultural é “desarraigado” da sua cultura e meio originais, porém o processo
dialético da transculturação se dá igualmente com a criação, a nível local, de elementos
culturais novos resultado da interação entre as duas culturas. O trabalho que pretendo
empreender parte deste ponto, faz-se necessário porém, fazer algumas ressalvas com relação
aos aportes e deficiências que o conceito de “transculturação” apresenta com relação à
discussão contemporânea desenvolvida dentro dos Estudos Culturais, e a maneira como
utilizarei, portanto, o conceito de transculturação.
Com relação aos conceitos utilizados dentro dos Estudos Culturais, vemos uma nítida
aproximação do conceito de “transculturação” com as idéias de “tradução” e “hibridismo”
como apresentadas por Bhabha. De fato, ambas as construções teóricas se referem ao processo
de contato cultural e aos mecanismos de produção cultural inerentes a este fenômeno. Como
já disse, no entanto, as construções teóricas de Bhabha apresentam um certo desenvolvimento
e um aprofundamento com relação às idéias mais simples de que “as culturas em contato
geram resultados sempre mais complexos do apenas a soma das partes em choque”. Podemos
dizer, com base na abrangência e na complexidade, que as construções teóricas de Bhabha são
mais desenvolvidas e completas do que as idéias de “aculturação” e “transculturação”. Devo
ressaltar que não se trata aqui, porém, da simples escolha de um conceito que deverá ser
41

utilizado como prisma e mecanismos de análise. Os paradigmas teóricos e seus conceitos são
extremamente complexos e por mais completos que sejam nunca abarcam totalmente a
realidade que pretendem, assim como nunca se substituem e se excluem totalmente. Neste
sentido, mesmo sendo extremamente interessante e bem construída a noção de “tradução” em
Bhabha, ela não se apropria do elemento do “desarraigo” tal qual o conceito de
“transculturação” em Ortiz, elemento este que considero bastante importante para a análise da
identidade dos alunos entrevistados. Isto não quer dizer que utilizarei apenas a
“transculturação” como prisma teórico deixando de lado outros pontos de vista, pelo
contrário, quer dizer que a articulação entre a realidade analisada e a teoria produzida é
complexa e problemática e será vista e tratada deste modo no presente trabalho. Os conceitos
de Bhabha, assim como as idéias de Hall serão amplamente utilizadas no trabalho, não
substituindo porém, a noção de “transculturação” devido àquelas características específicas
que este conceito possui que não são contempladas em outras construções.
Utilizo-me, portanto, da complexidade do marco teórico utilizado e as diversas opções
que este prevê para formular a idéia de “experiência transcultural”. Uma formulação que tenta
extrapolar certos limites da teoria e prescinde de outros elementos teóricos que extrapolam a
realidade aqui estudada, na tentativa de enquadrar da melhor maneira possível o processo a
que os alunos estrangeiros estão sujeitos ao virem estudar no Brasil. Cabe analisar alguns
destes limites e elucidar em que consiste propriamente a “experiência transcultural”.
A teoria de Fernando Ortiz em torno do conceito de “transculturação” se fundamenta
fortemente sobre alguns pontos que não fazem parte da realidade dos indivíduos que
constituem meu universo de pesquisa. Ortiz, ao propor a idéia de transculturação supõe, para
que existam a “desculturación”, a “neoculturación”, assim como a formação de elementos
constitutivos de uma cultura híbrida totalmente nova, que duas culturas ou focos culturais
estejam não apenas em desarraigo, mas também em intenso contato por um longo período de
tempo. Os estudantes africanos que analisarei não possuem estas características. Embora em
situação de abandono momentâneo de sua cultura natal e imersão em um meio cultural
estranho, estes indivíduos não estão na penosa condição de desarraigo de suas terras, já que,
além de manter todo o tipo de contato e comunicação com suas famílias que os meios
contemporâneos permitem, sabem que cedo ou tarde voltarão para seus países de origem,
encontrando suas casas e famílias relativamente do mesmo jeito que as deixaram. Além disto,
a perspectiva que estes alunos possuem de tempo de permanência no Brasil não é muito
grande, variando de 4 a 10 anos no máximo na maioria das vezes, isto faz com que a estância
no Brasil não tenha o mesmo peso e caráter transformador que supunha Fernando Ortiz para
42

aqueles escravos africanos que tinham obrigatoriamente que se integrar à nova realidade sob
pena de não sobreviverem.
Um dos objetivos de caráter teórico deste trabalho investigativo porém, é o de mostrar
que o processo transcultural não se manifesta apenas no nível macro-social, sob
circunstancias rígidas e pré-definidas. À luz das contemporâneas discussões sobre identidade
e diferença, acredito que este processo começa a se manifestar justamente nos primeiros
momentos em que o indivíduo necessita posicionar-se dentro da nova cultura, necessita
urgentemente “traduzir” os elementos culturais que encontra no novo meio em prol de evitar
maiores dificuldades e obstáculos dentro deste. Portanto, mesmo que não vejamos de imediato
o aparecimento de “novos elementos culturais” ou uma terceira expressão cultural na
realidade que está sendo observada, sabemos que o processo de “tradução” dos códigos
culturais é constante e imediato ao contato com o “outro”. As estruturas simbólicas e
produtoras de sentido do indivíduo são obrigadas a se transformarem, integrarem e ajustarem
à nova realidade desde muito cedo na experiência do contato e englobamento cultural.
Neste momento inicial portanto, compreendo a “experiência transcultural” como a
forma que a imersão em uma nova realidade cultural toma no âmbito da subjetividade e dos
sistemas de representação do indivíduo; um processo que age prontamente sobre estes
sistemas, questionando e problematizando a identidade do indivíduo.
Proponho assim, a noção de “experiência transcultural” como idéia e instrumento que
permitiria analisar o processo de “identificação” dos indivíduos neste contexto específico de
mudança, desarraigo e tradução cultural que é o intercâmbio educacional. Esta experiência
singular tem o poder de gerar e iniciar mecanismos de adaptação, tradução e integração que
culminam com novos processos de identificação e a adoção, exclusão ou transformação de
variados elementos identitários tanto positivos quanto negativos. Gera-se, assim, uma re-
construção da identidade à luz da experiência constante da tradução cultural e da vivência
num meio cultural alheio, esta reconstrução modifica, de maneira corrediça, a identidade do
indivíduo e suas valorações sobre seu país e cultura de origem e aquele país e cultura que
agora o engloba.
43

3. Metodologia

Como visto anteriormente, o fato de ser fruto de um processo “transcultural” como


diria Ortiz, ou de ser um sujeito “traduzido” nas concepções de Homi Bhabha, foi uma das
principais influências que tive no momento de escolher e começar a teorizar e desenvolver a
temática deste trabalho. Outro ponto que me influenciou bastante foi o contato que iniciei e
aprofundei durante a graduação com uma grande gama de alunos estrangeiros, principalmente
cabo-verdianos e guineenses. Ambos estes fatores me levaram a produzir sempre uma postura
crítica, do ponto de vista da minha própria experiência e daquilo que eu observava neste
conjunto de amigos, sobre aquelas teorias e paradigmas que tratavam da identidade. Num
primeiro momento me focava nas teorias que trabalhavam a identidade dentro das
perspectivas ditas “pós-modernas”, e posteriormente passei também a me familiarizar com os
“Estudos Culturais” e a pesar, comparar e analisar as concepções sobre identidade produzidas
neste campo com as minhas próprias impressões. Tendo em vistas estas condições iniciais
senti a necessidade de, no meu trabalho, tentar trazer elementos novos para o marco teórico já
existente sobre a questão, tentando acrescentar novas idéias em alguns pontos, tanto dentro
das perspectivas dos pós-modernos quanto dos teóricos dos Estudos Culturais.

3.1 O Campo de Pesquisa

Os primeiros contatos que tive com os alunos africanos em convênio com a


Universidade de Brasília foram logo no primeiro semestre, dado que nas aulas introdutórias
tive a oportunidade de ter colegas cabo-verdianos e guineenses tanto calouros de Ciências
Sociais, quanto de outros cursos. A amizade e a afinidade com estas pessoas foram se
desenvolvendo rapidamente, ao mesmo tempo em que me deparava com a grandeza do
fenômeno dos alunos estrangeiros. Tanto através de conversas, quanto através da simples
observação me dava conta da quantidade de alunos estrangeiros estudando na Universidade de
Brasília, bem como a variedade de países e culturas representadas.
O conhecimento mais profundo a respeito da vida, da cultura e das histórias destas
pessoas foi possível de ser desenvolvido, no entanto, apenas quando criei laços de amizade
mais fortes e duradouros. Isto não tardou a acontecer, já que desenvolvi amizades muito
profundas e sinceras com uma colega cabo-verdiana do curso de Sociologia, e com dois
44

colegas guineenses que compartilhavam comigo as atividades esportivas oferecidas pela


Universidade, treinávamos basquete juntos. Estas amizades e a possibilidade que ofereciam
para trocar experiências e satisfazer minha curiosidade facilitaram sobremaneira para que eu
passasse a compreender e conhecer cada vez mais e melhor os diferentes grupos de estudantes
oriundos de países africanos. Além destas amizades frutíferas, devo ressaltar que iniciei
namoro com uma cabo-verdiana, fator decisivo para começar um processo de inserção e
convivência com o grupo de alunos cabo-verdianos da UnB, processo este que resultou em
muitas indagações e interesses, dentre eles o presente trabalho.
A médio prazo, portanto, passei a fazer parte de muitas atividades e a conviver com o
grupo dos estudantes africanos em diversos momentos e ambientes. Considero que esta
inserção e este conhecimento um pouco mais íntimo do grupo foram um fator fundamental
que posteriormente me ajudaria no desenvolvimento deste trabalho final. Inclusive, esta
inserção e esta convivência passam e gerar não apenas indagações e hipóteses, mas também
observações e experiências tais que a observação como instrumento metodológico foi incluída
como um ponto central dentro do processo investigativo neste trabalho. O processo de
construção da informação e de análise que pretendo aqui analisar são fortemente
determinados pelas experiências e pela vivência que tive junto a uma parcela dos estudantes
africanos. É importante ressaltar que mesmo que os estudantes africanos tenham um ótimo
convívio com a realidade e as pessoas brasileiras é difícil ver estas pessoas interagindo com
estes alunos em seus núcleos mais íntimos. Neste sentido, portanto, acredito que eu fui uma
exceção, já que é raro ver pessoas não africanas inseridas e participando de atividades dentro
deste grupo da maneira como eu o fiz. Acredito que pude ser a exceção em parte graças ao
meu relacionamento mais íntimo com uma pessoa do grupo e também graças à minha
nacionalidade e meu caráter de imigrante.
O conjunto de estudantes africanos da UnB divide-se em diferentes grupos,
principalmente segundo o critério das nacionalidades. É comum vermos as pessoas de
determinado país junto com seus conterrâneos ou também junto de pessoas de países
próximos ao seu. Há outras distinções básicas, no entanto, que caracterizam este grupo, como
por exemplo, entre aqueles alunos que residem nos alojamentos universitários e aqueles que
residem nas quadras residenciais, ou a distinção econômica entre aqueles que são filhos de
diplomatas ou outro tipo de profissional bem remunerado e recebem uma ampla quantidade
de dinheiro para se manterem no Brasil, e aqueles que não recebem mais que o suficiente para
sobreviverem durante sua estância no país. A complexidade e a gama de possibilidades que se
manifestam dentro do grupo é muito grande e deve-se tomar cuidado para não incorrer em
45

erros generalizantes nos momentos de análise e produção intelectual sobre o grupo dos
estudantes africanos da Universidade de Brasília.
Os estudantes estrangeiros, como depois seria explorado e confirmado nas entrevistas,
tendem a se agrupar e se manterem sempre muito unidos, fazendo deste fato uma estratégia
para poderem facilitar suas próprias vidas na realidade cultural brasileira. À medida que eu fui
conhecendo e interagindo cada vez mais com os diferentes grupos de alunos estrangeiros fui
tendo acesso à esta dinâmica de união e aos locais onde esta se manifesta e perpetua com mais
força. Ao andar pelo campus da UnB é comum ver os estudantes estrangeiros nas atividades
corriqueiras da vida estudantil. Porém, é apenas em determinados lugares que podemos
observar e vivenciar esta lógica de irmandade, união e identidade que se manifesta dentro do
grupo dos estudantes estrangeiros e dentro dos seus grupos específicos. O acesso que tive às
atividades culturais, oficiais ou cotidianas, em locais como a CEU (Casa dos Estudantes), o
Restaurante Universitário, a Embaixada de Cabo Verde e a residência do embaixador de Cabo
Verde, e inclusive diversas “repúblicas” estudantis situadas nas quadras residenciais da Asa
Norte, foi extremamente enriquecedor no sentido de que me permitiu a observação dos
sujeitos estrangeiros não apenas como estudantes, mas como membros de um grupo. Um
grupo de imigrantes, de “diferentes”, de pessoas que compartilham culturas e identidades
diferentes àquelas do país que os abriga nesta etapa de estudos. É dentro das dinâmicas e
lógicas dos grupos que pude observar com mais clareza os conflitos, esforços e reflexões que
fazem parte da vida destes indivíduos no cotidiano brasileiro.

3.2 Problema

Dois pontos foram fundamentais para a formulação inicial do problema de pesquisa.


Em primeiro lugar o contato e o conhecimento que tive com os alunos estrangeiros da UnB.
Transitar pelo ambiente físico e cultural destas pessoas, assim como me comunicar com eles e
participar de fato de suas vidas, me propiciou não apenas as primeiras inquietações, mas um
conhecimento do campo que me permitiu teorizar sobre a temática em geral partindo deste
ponto de vista específico. E justamente este é o segundo ponto: ao estudar e me aprofundar
nas teorias sobre a questão fui gerando um modelo teórico – nos moldes do que coloca
González Rey – que deriva do marco teórico geral mas que também responde a necessidades
ou características específicas do contato com a realidade estudada. Ao propor a idéia de
“experiência transcultural”, uma noção que problematiza o choque cultural do ponto de vista
46

do indivíduo, colocando em questão os sentidos subjetivos que este produz e as necessidades


que se lhe apresentam desde o primeiro momento de imersão num ambiente cultural diferente;
a problemática inicial do meu trabalho passa a girar em torno desta idéia. Procuro justamente
saber quais são os modos principais pelos quais a identidade de determinado indivíduo se
modifica no momento em que este vivencia uma experiência transcultural.

3.3 Objetivos

De acordo com a formulação inicial do problema de pesquisa, o objetivo geral da


pesquisa se relaciona com o modelo teórico utilizado e pode ser dividido em duas partes,
ambas importantes. Em primeiro lugar, me preocupo justamente em inserir a idéia de
“experiência transcultural” na discussão teórica mais ampla sobre encontros e transações
culturais, assim como nos processos de transformação da identidade nestes contextos. No
capítulo teórico esta tentativa já foi ao menos começada. A construção e a discussão da
informação certamente envolverão também a discussão teórica e conceitual onde serão
confrontados novamente os diversos conceitos e teorias do marco teórico e também a idéia de
“experiência transcultural”. Em segundo lugar, está o objetivo central do trabalho, o qual é
justamente compreender como a identidade e os sistemas de representação dos alunos
estudados se comportam no momento em que estes alunos vivem uma experiência
transcultural.
Dentro deste objetivo geral que diz respeito ao estudo das identidades dos alunos
estrangeiros, vejo, neste primeiro momento dois pontos bastante importantes, os quais
gostaria de aprofundar e tratar explicitamente como momentos fundamentais do objetivo
geral. O primeiro destes objetivos mais específicos é avaliar a reflexão dos alunos em relação
ao que eles percebem como conflitante entre suas culturas e a cultura brasileira e a maneira
como eles enfrentam este choque cultural. Procurarei estabelecer um canal de comunicação
com os alunos entrevistados, que me permita alcançar aquelas convicções, preocupações e
reflexões mais profundas a respeito da mudança que neles tem acontecido (se é que têm
acontecido), assim como a forma como eles avaliam essas mudanças. O segundo objetivo
específico é mostrar como, ao contrário do que alguns autores têm escrito, pode haver um
fortalecimento de determinadas identidades coletivas como a nacional ou a cultural dentro de
um grupo que esteja vivenciando uma experiência transcultural. Mostrar as características
singulares deste processo pode ser muito importante, suponho, para entender como
47

determinados tipos de identidade se comportam em contextos transculturais como o que


estudo.

3.4 Caráter metodológico geral

Ao longo do curso de Sociologia da Universidade de Brasília, e principalmente em


suas disciplinas de pesquisa, apresenta-se a oportunidade de aprender e aplicar as principais
teorias e técnicas metodológicas desenvolvidas e aprimoradas neste campo desde seu
surgimento. Em diversos trabalhos e pesquisas desenvolvidas por mim em diferentes
disciplinas do curso, sempre me inclinei mais pela utilização de modos qualitativos de
analisar a realidade e desenvolver os trabalhos. Junto a esta inclinação prévia, o fato de me
sentir fortemente inserido não apenas dentro da temática que abordo, mas também dentro do
grupo de alunos que pretendo entrevistar, foi um fator decisivo para que optasse por uma
abordagem qualitativa que me permitisse explorar as facilidades naturais da observação e as
facilidades comunicativas da entrevista em profundidade.
Adotarei neste trabalho, algumas das idéias propostas pelo psicólogo Fernando
González Rey em seu trabalho: “Pesquisa Qualitativa e Subjetividade: Os processos de
construção da informação.” Nesta obra, o autor se esforça por delinear os principais pilares
que sustentariam uma Epistemologia verdadeiramente qualitativa, epistemologia esta capaz de
dar origem e base para uma pesquisa desenvolvida com métodos e instrumentos realmente
qualitativos, dentro da Psicologia. Embora seu objetivo central seja desenvolver um método
para o estudo do “tecido informacional complexo” da subjetividade humana, podemos utilizar
a Epistemologia Qualitativa proposta pelo autor para explorar outros tipos de fenômenos
complexos, principalmente os que tomam lugar na realidade social. Esta possibilidade se abre
em parte porque as características da pesquisa qualitativa que o autor propõe são diretamente
orientadas para o estudo da “complexidade” do real, e em parte porque, segundo o autor, a
subjetividade e a produção constante de sentidos subjetivos faz parte da vida de todas as
pessoas e tem papel fundamental em qualquer tipo de fenômeno humano. (González Rey,
2005)
As inquietações do autor ao propor uma Epistemologia verdadeiramente Qualitativa
têm base nas suas constatações de que tanto no campo específico da psicologia, quanto no
campo mais geral das Ciências Sociais têm sido desenvolvida uma grande gama de estudos
ditos qualitativos que continuam atrelados, no entanto, a concepções e prescrições de caráter
48

positivista. O autor crítica justamente estas prescrições e princípios gerais que estão por trás
das pesquisas qualitativas. A concepção da pesquisa como um procedimento rígido e
ordenado em diferentes etapas definidas aprioristicamente, a autonomia e importância
intrínseca dos instrumentos e os dados que estes produzem, a falta de iniciativa e
protagonismo que caracterizam o trabalho do pesquisador como sujeito e o caráter
coadjuvante da produção teórica são alguns pontos centrais amplamente discutidos e
criticados pelo autor. (González Rey, 2005) Do ponto de vista deste, tais características
positivistas da pesquisa devem ser superadas em prol de produzir informação científica sobre
a realidade da maneira mais realista possível, além de transformar a pesquisa científica em um
processo sempre em movimento capaz de transformar e melhorar constantemente os
paradigmas e modelos teóricos sobre o real. Observe-mos, a respeito das características
principais da Pesquisa Qualitativa proposta pelo autor, e conseqüentemente a respeito da série
de princípios a que esta se opõe, os seguintes trechos:

“A pesquisa qualitativa proposta por nós representa um processo permanente, dentro


do qual se definem e se redefinem constantemente todas as decisões e opções
metodológicas no decorrer do próprio processo de pesquisa, o qual enriquece de
forma constante a representação teórica sobre o modelo teórico em
desenvolvimento. Tal representação teórica guia os diferentes momentos da pesquisa
e define a necessidade de introduzir novos instrumentos e momentos nesse processo,
em dependência das idéias e novos fatos geradores de novas necessidades no
desenvolvimento do modelo teórico.” (González Rey, 2005)

(...)

“A cientificidade de uma construção está definida por sua capacidade para inaugurar
zonas de sentido que crescem e se desenvolvem diante dos desafios do avanço do
modelo teórico em questão, em suas diferentes confrontações com o momento
empírico, no curso de uma linha de pesquisa. Tal conceito de cientificidade deve ser
separado, de uma vez por todas, da representação da pesquisa como conjunto de
momentos ordenados em uma relação seqüencial, invariável e rigidamente
estruturada.” (González Rey, 2005)

Para poder desenvolver estes princípios e perspectivas gerais e poder atingir os seus
objetivos, a Pesquisa Qualitativa se fundamenta sobre três princípios epistemológicos
fundamentais, os quais serão delineados brevemente dada a sua importância dentro do
presente trabalho. São eles: o caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, a
legitimação do singular como instância de produção de conhecimento científico e a
compreensão da pesquisa como um processo de comunicação.
Afirmar o caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, segundo o autor, “de
fato indica compreender o conhecimento como produção e não como apropriação linear de
uma realidade que se nos apresenta”. O autor, através desta idéia tenta chamar a atenção para
49

o modo como a realidade adquire significado dentro das pesquisas científicas. Segundo o
autor, o “dado empírico”, assim como a realidade e as relações sociais que o pesquisador
enxerga dentro desta são construções intelectuais produzidas pelo próprio pesquisador através
dos sistemas teóricos com os quais olha e interpreta o real. Observe-se a seguinte passagem:

“Portanto, o dado, mais que uma expressão de respeito à realidade tal qual ela
se apresenta, argumento que tem apoiado os autores positivistas a sustentarem a
legitimidade do caráter científico da pesquisa, representa a primeira grande
evidência de que qualquer aproximação em relação à realidade é, inevitavelmente,
uma expressão do conceito de realidade que precede e organiza tal aproximação.”
(González Rey, 2005)

O fato desta concepção sobre o caráter da realidade não ser levada em consideração ou
valorizada pelos segmentos dominantes dentro do campo científico gera, segundo o autor, um
modelo de produção científica pouco comprometido com os paradigmas teóricos a respeito do
problema e da realidade estudada, e muito em função da aplicação de uma seqüência de
instrumentos e estratégias de pesquisa muitas vezes definidos aprioristicamente. Um modelo
científico, portanto, onde a produção de conhecimento se dá pelo “culto aos dados” e aos
instrumentos de pesquisa, onde se dá ainda a desvalorização da iniciativa e da capacidade do
pesquisador e dos modelos teóricos que são utilizados e produzidos ao longo da pesquisa.
(González Rey, 2005)
Ao conceber o conhecimento produzido pelas atividades científicas como
“construtivo-interpretativo”, o autor dá o primeiro passo para formular um modelo de
produção científica que leve em conta tanto os aspectos complexos da realidade, quanto o
valor da produção de novos modelos teóricos sobre o real que por sua vez possibilitem novos
momentos de inteligibilidade com este. Ao levar em conta o caráter complexo da realidade
estudada, as pesquisas realizadas dentro das Ciências Sociais serão capazes de
compreenderem de maneira mais completa e “orgânica” os fenômenos estudados. Por outro
lado, ver a construção de novos modelos teóricos sobre o que se estuda como um dos
objetivos principais da produção científica significa transformar a ciência em um instrumento
sempre em mudança e desenvolvimento que acompanhe o caráter complexo da realidade
através da constante criação de novas “zonas de sentido”. A definição deste conceito é muito
importante no conjunto de idéias que González Rey propõe já que, segundo este autor, a
produção desta zonas seria uma dos principais objetivos da pesquisa científica. O autor
afirma:
50

“Quando afirmamos o caráter construtivo-interpretativo do conhecimento,


desejamos enfatizar que o conhecimento é uma construção, uma produção humana,
e não algo que está pronto para conhecer uma realidade ordenada de acordo com
categorias universais do conhecimento. Disso surgiu o conceito de „zonas de
sentido‟ (1997), definido por nós como aqueles espaços de inteligibilidade que se
produzem na pesquisa científica e não esgotam a questão que significam, senão que
pelo contrário, abrem a possibilidade de seguir aprofundando um campo de
construção teórica.” (González Rey, 2005)

O segundo princípio epistemológico proposto pelo autor diz respeito à “legitimação do


singular como instância de produção do conhecimento científico”. Este princípio está
intimamente relacionado com o primeiro e se centra sobre a importância da produção
científica na Epistemologia Qualitativa e sobre o papel que o pesquisador deve representar
neste modelo de produção científica.
Novamente, num momento de crítica aos modelos científicos tradicionais dentro das
Ciências Sociais, o autor expressa que, historicamente, dentro desse modelo de ciência, a
legitimidade dos resultados das pesquisas passa pela procedência instrumental, pela
generalidade e pela possibilidade de verificação estatística. (González Rey, 2005) Estas
características da produção científica tradicional não dão muito espaço ou reconhecimento
para pesquisas que se baseiem no estudo de casos singulares. Em sua proposta de uma
Epistemologia Qualitativa no entanto, o autor enxerga no estudo de casos e fenômenos
singulares um caminho importante para atingir o objetivo ou tarefa principal da atividade
científica na sua opinião: a criação de novos modelos teóricos que permitam novos momentos
de inteligibilidade e compreensão do real. O autor afirma:

“O valor do singular está estreitamente relacionado a uma nova compreensão acerca


do teórico, no sentido de que a legitimação da informação proveniente do caso
singular se dá através do modelo teórico que o pesquisador vai desenvolvendo no
curso da pesquisa. A informação ou as idéias que aparecem através do caso singular
tomam legitimidade pelo que representam para o modelo em construção, o que será
responsável pelo conhecimento construído na pesquisa.” (González Rey, 2005)

Este segundo princípio valoriza o estudo científico de casos singulares devido ao


acréscimo teórico que estes estudos possam trazer para um paradigma mais geral ou para uma
teoria em desenvolvimento. Acréscimo este que estabeleceria novas formas de olhar e
compreender determinada realidade. Ao discorrer sobre este segundo princípio o autor
também ressalta a necessidade que se configura, dentro da Epistemologia Qualitativa, de que
o pesquisador desenvolva um papel central na elaboração e condução da pesquisa. Segundo o
autor, o papel secundário que tem sido relegado ao pesquisador em prol do forte
instrumentalismo dentro das Ciências Sociais, acarreta a perda do processo de pesquisa em
51

termos de criatividade e produção intelectual por parte do sujeito que pesquisa. (González
Rey, 2005) Dentro dos parâmetros de uma pesquisa qualitativa embasada nos princípios
epistemológicos descritos pelo autor, a recuperação do pesquisador como sujeito ativo dentro
da pesquisa é essencial não apenas em função do desenvolvimento de um modelo teórico, mas
também para que a informação seja produzida da maneira mais consciente e coerente
possível.
O terceiro princípio epistemológico da pesquisa qualitativa diz respeito, justamente ao
“ato de compreender a pesquisa, nas ciências antropossociais, como um processo de
comunicação, um processo dialógico”. Este princípio se refere justamente à característica
central que vai guiar os diversos momentos em que o pesquisador se relacionará com a
realidade estudada. Segundo o autor, a pesquisa social, da maneira como esta é realizada
segundo estes princípios qualitativos, é dotada em seus diferentes momentos de um rico
sistema de comunicação entre o pesquisador e aquele ou aqueles que este pesquisa. É a
comunicação que permitirá ao pesquisador acessar, da maneira mais completa possível, os
fenômenos do real que se deseja compreender. O acesso se dá a partir da perspectiva
complexa e única dos sujeitos implicados na pesquisa. (González Rey, 2005)
Vemos, portanto, que os instrumentos mais adequados e proveitosos, implícitos neste
princípio epistemológico, são aqueles que valorizam a expressão do sujeito. De fato, na sua
obra “Pesquisa Qualitativa e Subjetividade: Os Processos de construção da informação” o
autor nos dá uma variedade de instrumentos bastante interessantes e promissores do ponto de
vista do princípio comunicativo da Epistemologia Qualitativa. Alguns deles são: a entrevista,
o completamento de frases, o questionário aberto, a redação, a apresentação de estímulos
diversos (fotos, desenho, filmes, etc) seguido de um diálogo analítico e reflexivo, etc. Todos
estes instrumentos, sempre atrelados ao esforço constante do pesquisador por gerar um
processo comunicativo não violento, têm em comum a valorização da expressão do sujeito
entrevistado. Seus motivos e valorações mais profundos, assim como seus sentidos subjetivos,
se expõem para o pesquisador neste processo comunicativo amplo e igualitário entre os dois
sujeitos. Neste sentido, observemos a seguinte passagem em González Rey:

“A ruptura com a epistemologia estímulo-resposta faz com que reivindiquemos, em


nossa metodologia, os sistemas conversacionais, os quais permitem ao pesquisador
deslocar-se do lugar central das perguntas para integrar-se em uma dinâmica de
conversação que toma diversas formas e que é responsável pela produção de um
tecido de informação o qual implique, com naturalidade e autenticidade, os
participantes. Os elementos que nos indicam a qualidade do clima no qual a
informação surge, têm, nessa perspectiva, um maior valor para julgar a veracidade
da informação, que os processos operacionais associados à construção de
instrumentos.” (González Rey, 2005)
52

A escolha dos instrumentos utilizados nesta pesquisa foi fortemente influenciada pela
idéia de colocar o sujeito estudado no centro da produção informacional. Tanto na observação
participante naturalista, quanto na entrevista, instrumentos que utilizei para produzir
informação junto ao grupo estudado, a expressão do sujeito foi sempre o momento central, o
momento de onde partem os diálogos, os questionamentos, a construção de hipóteses e
conclusões, etc. Tendo em vista que: “A comunicação será a via em que os participantes de
uma pesquisa se converterão em sujeitos, implicando-se no problema pesquisado a partir de
seus interesses, desejos e contradições.” (González Rey, 2005), sempre foi, neste trabalho,
valorizada e priorizada a expressão do sujeito segundo seus sentidos e reflexões em relação à
temática abordada.

Após vermos os três princípios gerais da Epistemologia Qualitativa proposta por


González Rey, é possível vislumbrar a maneira como uma pesquisa poderia ser realizada
tendo em conta uma metodologia qualitativa que siga estes princípios. A pesquisa qualitativa
tem no centro do seu delineamento e desenvolvimento a figura pensante do pesquisador,
engajado na análise e na produção teórica a respeito do tema abordado, produção esta que
pode muitas vezes ser nova e diferenciada, alargando o marco teórico geral e criando novas
zonas de inteligibilidade sobre o estudado. No que concerne aos seus métodos, a pesquisa
qualitativa procederia através de um processo de comunicação igualitário e que envolvesse e
incentiva-se os sujeitos da pesquisa a se expressarem de uma forma despreocupada e
interessada a respeito do tema que está sendo trabalhado. Por último, na pesquisa qualitativa,
o pesquisador deve empreender um esforço de interpretação, compreensão e construção a fim
de lograr articular toda a complexa malha informacional garimpada e produzida de maneira
dialógica junto aos sujeitos. Tal esforço poderá garantir ao pesquisador a construção de
informações e conclusões fidedignas e pertinentes com relação aos fenômenos estudados e
aos posicionamentos dos sujeitos abordados frente a estes fenômenos, além de possibilitar o
alargamento do paradigma teórico sobre a questão mediante a configuração de novas posições
teóricas que indiquem e analisem novas facetas daquela realidade.
É este modelo de produção científica que tentarei desenvolver neste trabalho, para
tanto, além de transitar pelo marco teórico já esboçado anteriormente, utilizo-me, no que toca
à metodologia, dos instrumentos da observação e da entrevista. Através destes, e seguindo as
prescrições com relação à comunicação dentro da pesquisa e dentro da entrevista tratados por
González Rey e Bourdieu entre outros, pretendo ter acesso a um rico e profundo conjunto de
informações sobre os fenômenos centrais de que trata este trabalho.
53

3.5 Procedimentos e fundamentação metodológica dos instrumentos

Dada a natureza qualitativa da pesquisa e a complexidade da problemática e da


realidade que este estudo visa, apresentou-se desde o começo a necessidade de serem
utilizadas técnicas capazes de revelar e retratar da melhor maneira possível a visão, as
motivações e convicções dos sujeitos do presente estudo em relação à problemática que é
abordada.
A observação e a entrevista como técnicas de pesquisa que possibilitam analisar
qualitativamente a realidade surgiram como as opções mais promissoras dentro da estrutura
do trabalho. Ambos os instrumentos permitem uma aproximação maior entre o pesquisador e
os sujeitos, realidades e fenômenos que este procura trabalhar, possibilitando assim uma
melhor compreensão de algumas características que poderiam não ser tão bem observadas de
outros modos. Especificamente no caso do estudo da “experiência transcultural” a que os
alunos estrangeiros da Universidade de Brasília estão sujeitos, configurou-se como principal,
a obtenção e a produção de informação sobre aspectos tais como: as motivações dos
estudantes em virem para o Brasil, suas motivações ou repulsas em entrar em contato e
interagir com outras pessoas e outras culturas, as mudanças que estes alunos sofrem em seus
esquemas subjetivos, convicções e crenças, e as mudanças conscientes e inconscientes que a
identidade destes indivíduos sofre continuamente em decorrência do processo a que estão
cotidianamente sujeitos. Tornou-se claro, nos momentos iniciais da pesquisa, que para atingir
aspectos tão profundos da subjetividade dos sujeitos era necessário manter com eles uma
relação de comunicação mais profunda, o que caracteriza a entrevista, assim como observá-
los e conviver com eles no seu dia-a-dia na universidade e fora dela.
A escolha e utilização das técnicas da observação e da entrevista mostraram-se muito
pertinentes dentro dos objetivos e da realidade do meu trabalho. De fato, fui capaz de
relacionar as duas técnicas e de criar uma estrutura eficiente de análise da realidade empírica,
trabalhando diretamente com as questões e problemáticas que desejava e visava. A
compreensão dos procedimentos que realizei junto ao campo e os sujeitos da pesquisa, assim
como uma análise mais específica de cada uma das técnicas utilizadas, serão capazes de
esclarecer como se deu todo o processo de construção da informação na parte empírica do
meu trabalho.
54

3.5.1 Procedimentos

Uma vez tendo acesso aos locais, e portanto às atividades principais tanto do grupo
dos cabo-verdianos, quanto do grupo dos estudantes africanos em geral, foi fácil desenvolver
a atividade observadora. A maneira como utilizei a observação e suas fundamentações
metodológicas serão delineadas mais tarde. Em termos do procedimento da observação, esta
se deu de uma maneira bastante simples e natural, dada as possibilidades de inserção e
convivência. Em festas, atividades e encontros culturais, eventos esportivos, ou até no dia a
dia dos estudantes estrangeiros, eu me concentrava em observar os comportamentos, as
formas de expressão e relacionamento e o que estas significavam nos contextos em que se
configuravam. No caso de uma atividade específica em um local específico - uma festa na
embaixada por exemplo, eu tentava me manter em uma posição de não muito destaque, que
me permitisse observar, porém, as dinâmicas centrais e principais do local e da atividade.
Eventualmente participava de rodas de conversa ou conversava pessoalmente com alguém e
tentava absorver o máximo dos posicionamentos e reflexões que se manifestavam na
conversa. Nunca me referia às temáticas da identidade, da migração ou das diferentes culturas
(brasileira e africanas) que estavam em choque dentro do grupo e das pessoas, de uma
maneira direta, mas tentava avaliar as conseqüências de todos estes fenômenos nas pessoas
com quem interagia e como estes fenômenos determinavam as idéias e o discurso das diversas
pessoas, desde os embaixadores em suas falas oficiais, até os alunos em suas conversas
informais.
Um ponto importante a ser ressaltado no procedimento observacional, é o que diz
respeito à observação que pude desenvolver dentro das casas e ambientes caseiros dos alunos
estrangeiros. Compartilhar da dinâmica de uma casa específica foi algo extremamente valioso
pois pude observar diversas manifestações e fenômenos específicos. A lógica dentro de uma
casa, entre os membros de uma mesma casa, aqueles que convivem e interagem todo dia, é
fundamentalmente singular e rica. Os membros de uma mesma moradia, ou “república”
estudantil compartilham de uma relação mais próxima e de uma cumplicidade especial que
faz com que, nesse ambiente, se observem muitas brincadeiras, diálogos, problemas e
reflexões interessantes do ponto de vista da identidade e da transculturação. Neste sentido,
tive a oportunidade de visitar diversas casas, desde repúblicas de alunos na CEU e nas
quadras residenciais, até a residência de um embaixador. Nestas oportunidades geralmente me
mantinha como apenas um observador atento do diálogo e das conversas entre os membros da
casa. O fato de muitas vezes os membros dos locais se expressarem em outra língua
55

(principalmente o crioulo, o qual não é difícil de compreender pois se parece muito com o
português) as vezes dificultou a compreensão de algumas idéias, mas outras vezes aclarou e
definiu aspectos importantes do modo de pensar e sentir destas pessoas. A observação e a
absorção dos diálogos que se produzem nestes contextos foi muito produtiva, já que nestes
são constantemente problematizadas questões importantes, tais como as diferenças entre as
pessoas - devido à cultura diferente, e as dificuldades destes alunos estrangeiros em se
adaptarem a determinados padrões culturais brasileiros. A compreensão da dificuldade do
cotidiano do aluno estrangeiro é um fator primordial para o estudo das transformações em sua
identidade. Os diálogos e conversas informais desses núcleos que podem ser considerados
quase como familiares revelam muitos aspectos desta luta cotidiana dos alunos por se
“adaptarem” ou lidarem da melhor maneira possível com a realidade cultural brasileira.

Em função da escolha da entrevista como um importante instrumento a ser utilizado


junto aos sujeitos da pesquisa, logo passei a me preocupar com a escolha dos sujeitos a serem
entrevistados e com a construção do instrumento em si.
A primeira providência tomada foi elaborar os tópicos-guia da entrevista a ser
realizada. Junto à minha orientadora, a doutora Analia Soria Batista, foram analisados pontos
importantes no marco teórico revisado, assim como as primeiras observações e hipóteses que
se configuravam fruto do contato com o campo de estudo. O resultado foi um esquema de
entrevista fundamentado sobre quatro tópicos-guia principais: parecer sobre o local de
nascimento; características e reflexões sobre as culturas (a da pessoa sendo entrevistada e a
brasileira); principais mudanças e adaptações após a vinda para o Brasil e características do
grupo cultural do entrevistado aqui no Brasil (os cabo-verdianos, os guineenses, etc).
Posteriormente, estes tópicos-guia foram divididos em algumas perguntas fundamentais que
eu julgava importantes de serem feitas durante a entrevista. Foi elaborado, portanto, um
roteiro de entrevistas, o qual consistia nas perguntas principais dentro desses quatro tópicos-
guia. Devo ressaltar, no entanto, que este roteiro não era rígido, caracterizando um
questionário aberto, senão que era bem flexível e dinâmico, sendo mais um elemento para
propiciar o diálogo do que um conjunto rígido e ordenado de perguntas. De fato, muitas vezes
as temáticas trabalhadas dentro das entrevistas fugiam às perguntas e inclusive aos tópicos e
geravam caminhos interessantes não previstos pelo instrumento. Falarei mais sobre a
utilização deste instrumento de pesquisa num tópico específico mais adiante.
Junto à construção do instrumento de pesquisa e o começo da sua aplicação, tive a
idéia de ir fazendo um tipo de “pesquisa de opinião” junto aos sujeitos do grupo de estudantes
56

africanos, com a finalidade de ir escolhendo as pessoas a quem entrevistaria. Tudo começou


através das “entrevistas teste” realizadas para avaliar o instrumento.
Ao longo do curso “Técnicas de Pesquisa” ministrado na UnB pela doutora Analia
Soria Batista, e especificamente dentro da atividade de pesquisa que os alunos desenvolveram
nesse curso, me familiarizei com a estratégia da “bola de neve” como um mecanismo
interessante para cooptar pessoas para determinada atividade de pesquisa. Esta estratégia
consiste basicamente em ir perguntando para certos indivíduos dentro do grupo estudado, que
pessoas eles indicariam para participar de determinada pesquisa e o porquê desta pessoa ser
uma boa escolha. Cada pessoa vai dando nomes ou indicações e os motivos pelos quais essas
pessoas deveriam ser entrevistadas. À medida que o entrevistador vai adentrando no grupo e
pesquisando a opinião de cada vez mais pessoas, ele passa a perceber quais são aqueles
sujeitos que são apontados por um grande número de pessoas consensualmente. Estes sujeitos
e suas opiniões ou vivências dentro daquilo que está sendo trabalhado podem ser
extremamente frutíferas para o trabalho.
Foi desta maneira que procedi para realizar todas as dezoito entrevistas que constituem
o trabalho de campo dentro desta pesquisa. O ponto de partida foram as “entrevistas-teste”, as
quais realizei junto à minha namorada e outra amiga cabo-verdiana. Escolhi estas duas
pessoas para a realização dos testes justamente pela nossa proximidade e pelo conhecimento
que possuíam a respeito do meu trabalho. Como elas estavam a par do meu trabalho, eu já
tinha decidido não entrevistá-las oficialmente, já que suas respostas provavelmente seriam
afetadas devido ao conhecimento que elas tinham sobre as minhas expectativas com relação
aos depoimentos dos alunos estrangeiros. Sendo assim, optei por fazer as entrevistas-teste
com elas para avaliar as respostas e a coerência entre as diferentes partes do roteiro de
entrevistas. Estas duas entrevistas teste me permitiram corrigir alguns detalhes, excluir
algumas perguntas e adicionar outras, além de ser um ótimo momento para tentar alcançar os
patamares comunicativos que González Rey e Bourdieu colocam em suas obras como ideais
para a prática da entrevista.
As entrevistas teste também foram o ponto de partida para o desenvolvimento da
estratégia da “bola de neve”, através da pesquisa de opinião com cada sujeito entrevistado.
Assim, ao final destas duas entrevistas teste pedi às entrevistadas impressões, sugestões e
conselhos, assim como a opinião delas sobre quais pessoas dentro do grupo dos alunos
estrangeiros seriam ideais para a realização dessa entrevista. Pedi para que cada uma delas me
desse três nomes e as justificativas das escolhas. Dentre os seis nomes dados pelas duas
entrevistadas havia um nome em comum. Eu conhecia esta pessoa e, de fato, em alguns
57

momentos da minha observação tinha percebido que talvez seria um pessoa interessante para
entrevistar, dadas algumas características pessoais e alguns comportamentos que esta pessoa
manifestava dentro do grupo. Sendo assim, decidi que esta pessoa seria a primeira pessoa a
ser entrevistada oficialmente. A coerência entre a observação e as opiniões e sugestões dos
próprios sujeitos foram, portanto, o fator primordial que determinou quais pessoas de fato eu
entrevistaria.
Além de realizar as entrevistas que se evidenciavam através da coerência entre as
sugestões e minhas próprias observações, procurava interagir também com todas as pessoas
sugeridas. Assim, no caso desta primeira entrevista, procurei também as outras quatro pessoas
sugeridas nas entrevistas teste e mantive conversas informais com elas, apresentando minha
pesquisa e fazendo algumas indagações básicas sobre a temática trabalhada. Em função deste
primeiro contato eu poderia marcar de fato a entrevista com alguma pessoa que acreditasse ser
relevante, ou caso contrário pedir para que estas pessoas me indicassem três outras pessoas
que, na sua opinião, serviriam para minha investigação. Procedendo desta maneira, em pouco
tempo tinha uma ampla gama de possibilidades, possibilidades estas que iam aumentando e
diminuindo à medida que eu entrava em contato com mais e mais pessoas. Usando o critério
da coerência entre as sugestões e as características das pessoas que a observação me revelava,
assim como as conversas informais fui pouco a pouco definindo todos os dezoito sujeitos que
foram entrevistados.
Terminei por realizar, para o presente trabalho, dezoito entrevistas, sendo que
entrevistei oito alunos e dois ex-alunos cabo-verdianos, quatro alunos e um ex-aluno
guineenses, dois alunos nigerianos e um aluno são-tomense; sendo que dos dezoito
entrevistados, onze são homens e sete mulheres. Este grupo apresentou uma grande variedade
em outras diferentes características; entrevistei ex-alunos, alunos em processo de graduação e
alunos quase recém chegados; alunos que trabalham e se sustentam aqui no Brasil e alunos
que recebem dinheiro dos pais desde fora do país; alunos que constituíram família no Brasil e
não têm clareza de quando regressariam a seus países e alunos que desejam voltar assim que
terminarem o curso, etc.

Claro está que a inserção e a convivência com o grupo e com os sujeitos da pesquisa
foram fatores que possibilitaram os procedimentos metodológicos da observação e da
entrevista. No entanto, uma boa compreensão dos fundamentos destes instrumentos foi
essencial para a produção de um conhecimento coerente com a realidade estudada. De fato, a
observação e a entrevista foram utilizadas neste trabalho de modo cuidadoso, tendo sempre
58

em vista os cuidados necessários para a produção de um conhecimento não enviesado. O


delineamento dos principais fundamentos destes instrumentos facilitará a compreensão da
informação produzida e da discussão em torno desta informação.

3.5.2 A Observação

Como já foi mencionado anteriormente, a observação como método e instrumento


científico visa principalmente a análise de aspectos subjetivos e complexos das realidades
sociais e dos indivíduos. Seu surgimento e sua afirmação como um modo eficiente de
produzir conhecimento se deve, em parte, às limitações das metodologias e técnicas
tradicionais na análise de determinados fenômenos sociais e na lacuna que era deixada por
estes modelos. Segundo Teresa Maria Frota Haguette em seu livro: “Metodologias
Qualitativas na Sociologia”, a observação passa a ser considerada como alternativa plausível
para o ofício científico dentro da Sociologia e da Antropologia a partir das primeiras décadas
do século XX, em decorrência do surgimento e empoderamento de vertentes teóricas que
ressaltavam a importância da participação do pesquisador “dentro” do fenômeno pesquisado,
assim como a necessidade de se compreender os processos de construção de sentido que
norteavam as ações dos atores sociais. Observe-se a seguinte passagem da autora:

“Os termos gerais „trabalho de campo‟, „pesquisa de campo‟, „estudo de campo‟


eram usados tanto por antropólogos, para se contrapor aos trabalhos que utilizavam
o método comparativo dos „antropólogos de gabinete‟, como por sociólogos
americanos que reagiam à crescente influência da teoria funcionalista na sociologia,
que sofreu um vertiginoso crescimento no período compreendido entre as décadas
de trinta e cinqüenta. As duas áreas, Antropologia e Sociologia, lançaram mão de
técnicas semelhantes na abordagem do real, especialmente no valor que alocaram à
participação do pesquisador no local pesquisado, e à necessidade de ver o mundo
através dos olhos dos pesquisados.” (Haguette, 1987)

Especificamente dentro da Sociologia, o surgimento de paradigmas teóricos que


buscavam analisar as interações e fenômenos sociais através da construção de símbolos e
sentidos determinantes da ação, comandou fortemente o surgimento de novas estratégias
metodológicas associadas a estas teorias. O interacionismo simbólico, a etnometodologia e o
dramaturgismo social são exemplos de alguns destes marcos teóricos que trouxeram consigo
novas estratégias metodológicas. (Haguette, 1987) Estratégias estas que coincidiam nas
preocupações e necessidade de superar as lacunas informacionais dos métodos tradicionais, e
que, portanto, valorizavam amplamente técnicas emergentes, principalmente a observação. De
fato, a observação participante passou a ser amplamente sugerida e utilizada pelos teóricos e
59

metodólogos destas novas vertentes, dada à capacidade atribuída à observação de ser mais
eficiente no estudo da produção simbólica dos indivíduos dentro das interações sociais e da
cultura, assim como a maneira em que esta produção simbólica influenciava a própria
subjetividade e identidade dos indivíduos.
A partir do estabelecimento da observação como uma metodologia e uma técnica
cientificamente eficaz, esta passou a ser definida e re-definida constantemente à luz das novas
demandas que as situações empíricas exigiam dos pesquisadores observadores. Assim, como
Haguette nos mostra brevemente, a observação passou gradativamente de uma concepção
mais instrumental e positivista, onde a realidade deveria ser observada de uma maneira
distante com base em prescrições extremamente rígidas, para um modelo mais flexível e
“interativo” onde o pesquisador é orientado a fazer parte do grupo e a tentar constantemente
“colocar-se no lugar do outro” como forma de compreender da melhor maneira possível os
mecanismos simbólicos de produção de sentido e de ação dos indivíduos estudados.
(Haguette, 1987) A observação é, assim, uma metodologia pouco estruturada (a menos
estruturada) que visa especialmente a compreensão dos fenômenos, interações e sujeitos
sociais através da inserção do pesquisador dentro dos seus sistemas sociais, culturais e
interacionais.

Após vermos os delineamentos principais do que seja a metodologia da observação,


poderemos discorrer sobre o tipo de observação que foi utilizado no presente trabalho. Esta
classificação da observação utilizada será feita com base nas 5 dimensões esboçadas por
Friedrichs (1973), que aparecem tanto nos escritos de Uwe Flick, quanto de Heraldo Vianna.
As categorias, segundo Friedrichs, podem ser assim diferenciadas:
 Observação secreta versus observação pública: até que ponto a observação é
revelada àqueles que são observados?
 Observação não-participante versus observação participante: até que ponto o
observador torna-se um componente ativo do campo observado?
 Observação sistemática versus observação não-sistemática: existe a aplicação de
um esquema de observação mais ou menos padronizado ou a observação
continua bastante flexível, respondendo aos próprios processos?
 Observação em situações naturais versus observações em situações artificiais: as
observações são feitas no campo de interesse, ou as interações são “deslocadas”
60

para um local especial (por exemplo, um laboratório) para melhorar a capacidade


de observação?
 Auto-observação versus observar os outros: na maioria das vezes são as outras
pessoas que são observadas; assim, quanta atenção é destinada à auto-observação
reflexiva do pesquisador para embasar ainda mais a interpretação do que é
observado? (Flick, 2002)

Esta esquematização das diferentes características que definem o tipo de observação


permite o enquadramento do tipo de observação que foi utilizada no presente trabalho.
A técnica observacional utilizada foi, primeiramente, voltada para um grupo
específico: os estudantes estrangeiros africanos da Universidade de Brasília. A auto-
observação, no entanto, também esteve presente principalmente nos momentos de trabalhar
com o material empírico coletado, através de um olhar reflexivo crítico que visava controlar
possíveis interpretações e vieses das observações e depoimentos coletados. A observação foi
naturalista, já que o grupo de alunos foi observado em ambientes naturais principalmente do
campus universitário, tal como as salas e corredores dos edifícios de aula, o restaurante
universitário, as quadras poli-esportivas e a biblioteca. Também foram palco da observação as
residências e outros locais de congregação e manifestação festiva ou cultural dos membros do
grupo. A observação que realizei foi secreta, já que em nenhum momento foi revelado aos
alunos observados que estes estavam sujeitos à minha observação e que suas atitudes
poderiam ser alvo de análise científica. A observação realizada foi do tipo “não-sistemática”,
já que não foi utilizado nenhum esquema rígido de observação ou coleta imediata de dados,
em função da falta de “naturalidade” que estes mecanismos imprimiam no momento da
observação. De fato, após percebida a necessidade de estar constantemente atento a possíveis
fenômenos para a utilização na minha pesquisa, comecei o processo observacional munido de
um caderno de anotações, mecanismo que foi abandonado prontamente pelo impacto que
causava nos indivíduos do grupo observado. Tentei da melhor maneira possível, escrever
posteriormente aos momentos de observação, aqueles eventos e ocorrências que tenha
considerado importantes.
Finalmente, de acordo com o sistema classificatório idealizado por Fridrichs, a minha
observação é participante, já que de fato, eu sempre observei “desde dentro” do grupo. É
importante perceber aqui, no entanto, que no meu caso específico eu não tive que realizar
nenhum esforço metodológico para pertencer e “ser membro” do grupo. Isto se deve a que,
como já foi dito, a minha relação com uma pessoa do grupo me permitia integrá-lo e vivenciá-
61

lo cotidianamente de maneira natural; ao mesmo tempo em que a minha condição como


estrangeiro e imigrante me aproximava muito – em termos de vivência, em termos de “caráter
híbrido” – dos membros do grupo e do que estes estavam passando no Brasil. Neste sentido
fui um observador participante bastante bem preparado para a observação deste grupo em
específico, graças ao fato de já ter vivido o que estas pessoas estavam vivendo.
No presente trabalho, portanto, a observação foi utilizada de uma maneira fiel à sua
concepção como uma forma de análise que tenta compreender desde “dentro” grupos,
dinâmicas e interações entre pessoas. Lógico está que dentro desta definição da observação
existem diversos pontos conflitivos, assim como aspectos importantes a seres ressaltados e
discutidos. Devido à especificidade do meu trabalho e particularmente da minha situação
dentro do campo empírico pesquisado, devo fazer também uma série de ressalvas e
considerações sobre o uso desta técnica no presente trabalho. Me aproveitarei, portanto, da
exposição de determinados pontos específicos da metodologia da observação, para discorrer
sobre o meu trabalho específico e a forma como a observação foi utilizada neste.
Um primeiro ponto importante é o que diz respeito aos diferentes momentos e
propósitos da observação dentro de determinada pesquisa. Podemos encontrar em diversos
trabalhos sobre a metodologia da observação, a idéia de que a observação pode ser uma
importante ferramenta num primeiro momento da pesquisa, ferramenta que permite o
discernimento, dentro do campo a ser estudado, entre aqueles fenômenos que mais importam
e sobre os quais deve se concentrar o pesquisador, e aqueles outros fenômenos que são de
menor importância e relevância. Este tipo de “observação inicial” ou “observação casual”
possibilita a organização do trabalho de campo de determinada pesquisa, e o direcionamento
objetivo para os principais fenômenos no momento principal da pesquisa empírica,
direcionamento que poderá inclusive ser realizado através de técnicas específicas escolhidas
em função daquilo que as observações iniciais apontaram. Neste sentido, vejamos o seguinte
fragmento extraído do livro de Heraldo Marelim Vianna “Pesquisa em Educação – a
observação.”:

“A observação de uma situação, em que os sentidos (visão e audição) e o espírito


estão em alerta, pode oferecer vários insights e informações indispensáveis para a
coleta de dados significativos em momentos subseqüentes do trabalho. A observação
casual é bastante útil na tomada de decisões sobre a melhor situação para fazer uma
observação e de desenvolver diferentes tipos de categorias necessárias a uma
observação sistemática.” (Vianna, 2003)

No meu trabalho a observação casual teve grande importância em decorrência da


minha condição específica como uma pessoa muito próxima e algumas vezes participante do
62

grupo dos alunos estrangeiros estudados. O contato natural com o grupo, a amizade com
vários de seus membros, e a participação em encontros, festas e outras manifestações culturais
foram momentos propícios e enriquecedores do ponto de vista da observação casual. De fato,
a temática e os problemas do presente trabalho foram em grande parte influenciados pelas
observações não sistemáticas nem estruturadas, mas apenas casuais, que eu tive a
oportunidade de realizar em uma variedade de eventos e situações. Fenômenos como a união
de certos grupos culturais em relação a seu país e sua cultura, a existência de uma
“concorrência cultural” entre dois ou mais grupos, o fechamento de algumas comunidades em
relação à cultura brasileira englobante e outros logo pulam aos olhos de quem, como eu,
convivia com os diferentes grupos de alunos estrangeiros da Universidade de Brasília.
A observação casual me permitiu não apenas a definição mais clara dos meus
problemas, objetivos e hipóteses, mas também foi um passo preliminar importante na
construção e utilização da principal técnica de pesquisa que utilizei: a entrevista. A
observação inicial ofereceu os recursos necessários para a construção mais objetiva possível
do roteiro de entrevistas, com questões direcionadas para pontos que se configuravam como
conflitivos e importantes através da observação. Todos os quatro momentos do roteiro de
entrevistas foram construídos tendo como base um conhecimento prévio que foi obtido
justamente através da observação casual dos momentos iniciais da pesquisa e inclusive desde
antes, tendo em vista toda a experiência acumulada que tive durante aproximadamente 3 anos
antes do começo deste trabalho.
Um segundo ponto a ser ressaltado sobre a metodologia da observação é o que diz
respeito ao cuidado que devemos ter ao utilizarmos este método para produzir informação.
Assim como todas as metodologias e técnicas, a observação tem uma série de problemas aos
quais o pesquisador que a utiliza deve estar atento sob pena de produzir conclusões e
informações enviesadas e não necessariamente verdadeiras. É justamente pela observação ser
a menos estruturada das metodologias científicas que o pesquisador deve elevar ao máximo
seu nível de reflexividade crítica e atenção ao que está sendo observado e ao que está
pensando e concluindo em relação ao que está sendo observado. Estas preocupações são
direcionadas, principalmente, para controlar dois aspectos da observação que podem
comprometer a informação produzida: o “efeito do observador” e o “viés do observador”.
Por “efeito do observador” ou reatividade das pessoas observadas devemos entender
as reações não naturais que as pessoas possam vir a ter como conseqüência da percepção de
que alguém os esteja observando, filmando, retratando, etc. O efeito do observador acaba por
gerar fenômenos, depoimentos, ações e relações não naturais que podem comprometer o
63

resultado e as conclusões de determinada pesquisa, como podemos ver na seguinte passagem


em Vianna:

“O fato de que alguém perceba que está sendo observado por outra pessoa ou por
instrumentos (câmara ou gravadores, por exemplo) afeta a maneira como
habitualmente se comporta em determinada situação. Ocorre, assim, o chamado
efeito do observador (ou reatividade). Esse efeito traduz-se por um
comprometimento na validade dos dados. É necessário, portanto, tomar cautelas
quando se pretende usar uma metodologia observacional em pesquisa, existindo,
para essa finalidade, meios que possibilitam minimizar os efeitos da reatividade.”
(Vianna, 2003)

Os principais meios que possibilitam este controle sobre os efeitos da reatividade são:
além de ocultar da melhor maneira possível quaisquer instrumentos que delatem a observação
científica, a destreza e a capacidade do observador para se camuflar e passar da melhor forma
possível despercebido dentro do grupo observado, a fim de que os membros do grupo sempre
ajam como se este não estivesse presente. Pelas razões já expostas acima, posso afirmar que
as observações por mim realizadas durante a etapa de coleta de dados – tanto a observação
casual quanto a participante – não foram comprometidas pela reatividade dos observados, já
que a maioria destes em nenhum momento chegou a tomar consciência do meu papel
científico dentro do grupo (apenas os que foram entrevistados posteriormente o foram).
O principal problema que a observação como metodologia e técnica enfrenta, no
entanto, é o do “viés do observador”. Assim como em outras metodologias e técnicas de
pesquisa, o observador dever ser extremamente cuidadoso e manter uma crítica constante ao
próprio trabalho que desenvolve, a fim de eliminar as influências que este possa exercer sobre
o processo de pesquisa. Observe-se:

“A reatividade não modifica apenas o comportamento dos observados, afeta,


igualmente, o próprio observador, que desenvolve um novo tipo de viés, o viés do
observador. O fato de o observador estar comprometido intelectual e
emocionalmente com o seu projeto, a ponto de influenciar demais suas percepções,
acentua Wilkinson (1995), pode fazer com que veja certas ocorrências que
comprovam suas hipóteses, deixando, igualmente, de ver eventos que as
contrariam.” (Vianna, 2003)

A neutralização do viés do observador, embora extremamente necessária para a


validade dos dados e do processo de pesquisa, é complicada de empreender, especialmente
num método tão pouco estruturado como a observação. Discorrendo sobre esta técnica,
Haguette desenvolve uma lista sobre os principais tipos de vieses a que o observador está
sujeito e suas origens. Segundo a autora, determinado observador pode modificar os
resultados da sua observação - e portanto de sua pesquisa – por determinações e vieses
64

socioculturais, profissionais, ideológicos, normativos e inclusive emocionais, como já


exemplificado por Vianna acima. (Haguette, 1987) Existem algumas estratégias práticas para
diminuir ao máximo o viés do observador, um exemplo é a utilização de “observadores
cegos” bem treinados que não tenham familiaridade com os propósitos da pesquisa, outro é
inserir algum elemento estruturante, como o “check-list”, que permita uma padronização e
uma objetivação dos resultados. A principal forma de combater este fenômeno, no entanto, é a
constante revisão crítica, por parte do observador, do que esta sendo observado e concluído
através da observação. (Haguette, 1987; Vianna, 2003; Bourdieu, 2003)
No caso específico da minha pesquisa, tentei sempre realizar o esforço por manter uma
postura crítica frente aos fenômenos que via no dia-a-dia do processo de observação.
Realmente não tenho meios de mostrar ou inclusive de comprovar para mim mesmo que
realmente os fatos observados e analisados foram o fruto de um processo crítico de
observação, avaliação e seleção. Porém, acredito que o posicionamento deste trabalho no que
tange à questão da constante re-definição das problemáticas, hipóteses e conclusões do
trabalho de pesquisa, demonstra que a minha preocupação não foi exclusivamente a
confirmação de determinadas teses (o que não impede que isto ocorra), mas a compreensão da
realidade analisada na sua complexidade.
De fato, reitero e adoto como um dos princípios metodológicos de todo o trabalho – e
não apenas da técnica da observação participante – a qualidade da constante re-formulação em
busca do problemático. Seguindo a linha de González Rey, vejo no ato científico um processo
sempre em construção, no qual o conhecimento empírico, ao ser articulado com um modelo
teórico em construção vai gerando sempre novas “zonas de sentido”, novos modos de
inteligibilidade com o real que definem novos problemas, variantes de estudo e hipóteses
teóricas. (González Rey, 2005) Desta maneira, a lógica da minha pesquisa se encaixa numa
das qualidades da pesquisa qualitativa segundo Jorgensen: “uma lógica e processo de pesquisa
aberto, flexível, oportunístico e que requer constante redefinição do que é problemático, com
base em fatos coletados em situações da existência humana.” (Vianna, 2003) Isto, pelo menos
para mim, ilustra o fato de que em nenhum momento me esforcei para forçar e encaixar certos
aspectos do real no molde do quadro teórico com o qual trabalho ou das teses que venho
construindo. Ao contrário, tentei sempre observar também o diferente, o destoante e o
inesperado como um importante momento da pesquisa, momento no qual os caminhos e
verdades até aquele momento construídas poderiam ser modificadas ou relativizadas.
65

3.5.3 A Entrevista

Tendo a técnica observacional como base, foi utilizada junto a esta a técnica da
entrevista. Sua escolha esteve relacionada à necessidade de compreender e avaliar as
apreciações e configurações subjetivas que os sujeitos da pesquisa detêm com relação à
temática. A entrevista é uma técnica que permite – mesmo que com diversas ressalvas – trazer
à tona e tornar explícitas as opiniões, crenças e sentimentos dos indivíduos entrevistados em
relação a determinado assunto, aspecto primordial para compreendermos melhor os processos
pelos quais a identidade dos indivíduos estudados se modifica de acordo com sua inserção em
um ambiente cultural estranho.
Ao contrário do que acontece com a técnica observacional, a entrevista possui uma
definição simples e clara que é adotada pela maioria dos autores que estudam o tema. A
entrevista pode ser definida como “um processo de interação social, no qual o entrevistador
tem por objetivo a obtenção de informações por parte do entrevistado”. (Haguette, 1987;
Colognese e Melo, 1996) No entanto, mesmo com a simplicidade da definição, a entrevista
também é objeto de diversas discussões e disputas científicas, dada a grande variedade de
possibilidades que esta técnica permite e as vantagens e riscos de cada uma delas.
Como coloca Flick, a entrevista como instrumento qualitativo de pesquisa passou a
ganhar terreno e importância, e contracenar com a observação – em determinado momento
tida como a única técnica qualitativa de fato – no momento em que se percebeu que as
informações poderiam ser obtidas de maneira mais clara e segura através de um entrevista
aberta do que através de questionários ou entrevistas fechadas, como ele coloca no seguinte
trecho:

“O ponto de partida do método é a suposição de que os inputs que caracterizam


entrevistas ou questionários padronizados, e que restringem o momento, a seqüência
ou o modo de lidar com os tópicos, obscurecem, ao invés de esclarecer, o ponto de
vista dos sujeitos.” (Flick, 2002)

Começava a surgir então a entrevista segundo uma concepção qualitativa. Uma


entrevista “aberta” que, confiando no talento e capacidade do entrevistador – como foi
amplamente explorado por Bordieu – seria capaz de produzir informação com validade
científica desde que se tomassem os devidos cuidados numa série de pontos.
Antes de falar sobre os principais cuidados que devem ser tomados ao utilizar a
técnica da entrevista, e quais foram as dificuldades e medidas tomadas a este respeito no
presente trabalho, é pertinente definir claramente o tipo de entrevista que utilizei. Assim como
66

na técnica observacional, existem algumas dimensões que compõem e distinguem as


diferentes maneiras de se realizar uma entrevista. Colognese e Melo em seu artigo: “A
Técnica de Entrevista na Pesquisa Social” discorrem um pouco sobre os cinco aspectos de
classificação das entrevistas e sobre as diferentes variáveis existentes dentro de cada um
destes aspectos. Segundo estes autores, a entrevista pode ser classificada segundo: 1 – a
padronização, 2 – a natureza das informações, 3 – os informantes, 4 – o nível de controle e 5 –
a elaboração do roteiro de entrevista. (Colognese e Melo, 1996)
No que tange à padronização, a entrevista utilizada foi do tipo “semi-estruturada”. Este
tipo de entrevista consiste num ponto intermediário entre as entrevistas “não-estruturada” e
“estruturada”. Enquanto que nas entrevistas amplamente estruturadas as perguntas são
rigidamente definidas a priori e inclusive muitas vezes são perguntas “fechadas” com
respostas já preconcebidas, nas entrevistas ditas “não-estruturadas” o pesquisador não se
prende a absolutamente nenhum instrumento ou auxílio para a realização da entrevista, a qual
acaba se tornando uma mera conversa entre o pesquisador e o sujeito. (Colognese e Melo,
1996) Por outro lado, a entrevista semi-estruturada é lavada a cabo com base num roteiro de
entrevistas onde estão as temáticas e/ou perguntas a serem abordadas e trazidas à tona no ato
da entrevista. Esta variante de entrevista permite e favorece o diálogo e a comunicação entre
as duas partes, assim como a flexibilidade por parte do entrevistador no que diz respeito às
temáticas abordadas e às perguntas realizadas, já que este está em constante observação e
apreciação reflexiva do depoimento do entrevistado, tendo liberdade para modificar questões
e inclusive perguntar aspectos não previstos nos tópicos guias da entrevista.
No que tange à natureza das informações, a entrevista utilizada foi a entrevista oral. A
entrevista oral favorece o processo comunicativo e canaliza a atenção de ambas as partes –
entrevistado e entrevistador – para o diálogo e as problemáticas que estão sendo tratadas.
Junto com anotações pertinentes ao comportamento do entrevistado e alguns pontos chaves do
seu depoimento, foi utilizado um gravador para poder gravar as entrevistas, a fim de poderem
ser transcritas e inclusive ouvidas novamente em outro momento.
Com relação à qualidade dos informantes, a entrevista realizada foi do tipo individual,
já que foi entrevistada apenas uma pessoa por vez. Mesmo tendo cogitado a entrevista grupal
no começo do planejamento, esta idéia foi deixada de lado devido à natureza do problema e
dos objetivos específicos que pretendia estudar neste trabalho. Uma entrevista grupal ou
grupo focal poderia não apresentar os resultados mais claros e autênticos possíveis. Com o
isolamento do sujeito numa relação a dois foi mais fácil driblar alguns medos e receios que
67

provavelmente teriam modificado a informação se houvessem mais pessoas participando da


atividade.
Quanto ao nível de controle, a entrevista realizada se caracteriza como formal, já que
os resultados das entrevistas foram utilizados de fato no processo analítico e conclusivo da
pesquisa. Junto com a observação casual, e em parte como resultado dela, foram realizadas
duas entrevistas iniciais, de caráter informal que serviram para avaliar e melhorar os tópicos
guias e o roteiro das entrevistas, assim como para saber em que momentos aprofundar a
discussão a fim de obter depoimentos elucidativos.
Por último, com relação à elaboração do roteiro de entrevistas, existem duas variantes
fundamentais a serem seguidas: a do roteiro específico e a do roteiro contextual. Enquanto
que o roteiro específico se caracteriza por numa série de perguntas rígidas que são
perguntadas da mesma forma e na mesma ordem, o roteiro contextual é mais flexível e se
baseia na construção de “tópicos guias” que nortearão as perguntas a serem realizadas a cada
entrevistado. (Colognese e Melo, 1996) O roteiro construído para a realização das entrevistas
no presente trabalho possuía características de ambas variantes, parecendo-me aproximar-se
mais de um roteiro contextual. Como dito anteriormente, primeiramente foram definidos os
tópicos guias das entrevistas, mas foi definida também, em segundo lugar, uma seqüência
lógica de perguntas com base nesses tópicos. Embora essa seqüência de perguntas tenha
constituído o roteiro de entrevista, a entrevista não esteve presa a elas. Foram realizadas
entrevistas flexíveis e abrangentes onde inúmeras vezes as temáticas analisadas extrapolaram
as questões pré-definidas e inclusive os tópicos principais, gerando depoimentos complexos,
extensos e reflexivos que forneceram uma boa base de análise ao serem confrontados com a
teoria na fase de produção da informação.

Após vermos as características gerais da entrevista da maneira como ela foi utilizada
na presente pesquisa, podemos analisar algumas das principais problemáticas e vieses a que
esta técnica está sujeita. Poderemos também discorrer sobre as características específicas da
utilização da técnica da entrevista no presente trabalho e como foram trabalhadas as
dificuldades inerentes a esta técnica.
A meu ver, e de acordo com os autores e obras pesquisadas e estudadas, existem duas
problemáticas centrais em torno do processo de entrevista, os quais oferecem perigos a serem
identificados e evitados ou reduzidos por parte do pesquisador durante o processo de
realização da entrevista. O primeiro ponto se refere aos incômodos que o entrevistado possa
vir a sofrer em decorrência da não adaptação à experiência da entrevista, considerando-a
68

como uma experiência “estranha”. Por outro lado, o segundo ponto diz respeito aos vieses que
podem se manifestar na entrevista, oriundos da assimetria e da diferença em diversos aspectos
entre o entrevistador e o entrevistado.
Em primeiro lugar está a preocupação sobre como o entrevistado encara a experiência
de uma entrevista formal. De fato, diversos autores ressaltam como a entrevista como
experiência pessoal pode influenciar o estado emotivo do entrevistado e influenciar, portanto,
seu depoimento. (Colognese e Melo, 1996; Haguette, 1997) Fatores como o local de
realização da entrevista, a gravação da mesma, a presença de outras pessoas além do
entrevistador, a temática e outros são geralmente causa de preocupações e desconforto por
parte de muitos sujeitos, o que pode influenciar a relação de entrevista. No presente trabalho,
foram tomadas medidas como: a realização da entrevista em locais de confiança do
entrevistado, se possível em locais onde este se sentisse a vontade (em casa, na biblioteca, no
restaurante universitário, etc); a presença exclusiva do entrevistador e do entrevistado e a
garantia sincera e absoluta de que a gravação e a informação produzidas na entrevista seriam
tratadas com extremo cuidado e confidencialidade, sendo utilizadas apenas pelo entrevistador.
Mesmo que em muitos casos estas medidas tenham resultado em efeitos positivos visíveis,
talvez o que mais tenha influenciado na tranqüilidade dos entrevistados tenha sido o
estabelecimento de uma relação e uma comunicação “não-violenta”, nos moldes do que
propõe Pierre Bourdieu em seu artigo “Compreender”, parte da obra organizada por ele: “A
Miséria do Mundo” (2003). Esta estratégia relacional será tratada a seguir, na questão do
principal viés que aflige aqueles que são entrevistados.
O principal ponto a destacar quando se discute sobre a técnica da entrevista, é o da
validade das respostas dos sujeitos entrevistados com relação à temática analisada. Este é um
primeiro grande ponto que diferencia a entrevista – e especialmente a entrevista semi-
estruturada – de outros métodos qualitativos como, por exemplo, a observação. Enquanto na
observação estamos de fato observando o sujeito, como este age e vive naturalmente, sem
termos de nos preocupar com a influência que o sujeito possa vir a sofrer devido à presença
do pesquisador – pelo menos na observação naturalista e secreta; na entrevista devemos sim
nos preocupar com o fato de estarmos, como pesquisadores, influenciando o conteúdo do
depoimento do entrevistado.
Diversos autores têm tratado esta problemática central da entrevista, seja como crítica
à técnica, seja tentando sugerir e aprimorar métodos e estratégias que permitam diminuir a
influência do pesquisador e da relação de entrevista sobre os sujeitos e conseqüentemente os
resultados. Invariavelmente, o ponto de partida dos debates encontrados nos escritos sobre a
69

entrevista começam com a constatação de que é necessário compreender que nunca obteremos
dados e informações cem por cento objetivas ao utilizarmos técnica alguma, e especialmente
uma técnica que depende consideravelmente das motivações subjetivas tanto do entrevistado
quanto do entrevistador. Observe-se, por exemplo, a seguinte passagem dos autores
Colognese e Melo citando o metodólogo Hartwig Berger:

“Segundo Berger (1978), a situação de entrevista pode ser caracterizada como um


processo de interação social, predominantemente, mas não apenas, verbal. Esta
caracterização é importante pois significa admitir que na situação de entrevista, cada
indivíduo é influenciado e influencia o outro, age e reage de variados modos,
produzindo alterações sobre o curso do diálogo, sobre as reações dos entrevistados
e sobre os protocolos dos resultados obtidos pelo entrevistador. Em outros termos,
este entendimento implica em renunciar às reivindicações de objetividade dos dados
obtidos através da entrevista e reconhecer que as validade é relativa e que está
referida à situação social contextualizada da investigação.” (Colognese e Melo,
1996)

Vejamos também o que afirma Bourdieu sobre o reconhecimento e o esforço com que
as ciências sociais devem se comprometer a fim de realizar análises realistas e conscientes:

“O sonho positivista de uma perfeita inocência epistemológica oculta na


verdade que a diferença não é entre a ciência que realiza uma construção e aquela
que não o faz, mas entre aquela que o faz sem o saber e aquela que, sabendo, se
esforça para conhecer e dominar o mais completamente possível seus atos,
inevitáveis, de construção e os efeitos que eles produzem também inevitavelmente.”
(Bourdieu, 2003)

Aceitando que a entrevista como relação social não pode deixar de influenciar de
inúmeras maneiras tanto o pesquisador como aquele que é entrevistado (Bourdieu, 2003),
coloca-se a questão de como esta influência é exercida e de que maneira o depoimento do
sujeito entrevistado pode ser abalado e transformado a ponto de perder sua validade científica.
Diversos autores enfocam o ponto da “assimetria” entre entrevistador e entrevistado
como o fator primordial de desestabilidade para o entrevistado e seu depoimento. Esta
assimetria consiste basicamente nas diversas diferenças existentes entre os indivíduos que
interagem através da entrevista. Diferenças culturais, de classe social, de status, de capacidade
lingüística e expressiva entre outras, podem representar uma ameaça e um fator desmotivador
– no momento da entrevista – tanto para entrevistadores quanto para entrevistados, sendo
mais comum este segundo caso. O entrevistado, ao sentir-se “inferior” em algum sentido,
pode reagir de uma maneira defensiva e até combativa, atuando inconscientemente sobre
aquilo que se lhe está sendo perguntado e, sobretudo, sobre aquilo que responde. O
depoimento pode, assim, ao sofrer tal viés por parte do entrevistado, ser imparcial, impreciso
70

e não-verídico, gerando conclusões equivocadas por parte do pesquisador. Neste sentido


observe-mos as seguintes passagens em Bourdieu e em Colognese e Melo:

“É o pesquisador que inicia o jogo e estabelece a regra do jogo, é ele quem,


geralmente, atribui à entrevista, de maneira unilateral e sem negociação prévia, os
objetivos e hábitos, às vezes mal determinados, ao menos para o pesquisado. Esta
dissimetria é redobrada por uma dissimetria social todas as vezes que o pesquisador
ocupa uma posição superior ao pesquisado nas hierarquias das diferentes espécies de
capital, especialmente do capital cultural. O mercado dos bens lingüísticos e
simbólicos que se institui por ocasião da entrevista varia em sua estrutura segundo a
relação objetiva entre o pesquisador e o pesquisado ou, o que dá no mesmo, entre
todos os tipos de capitais, em particular os lingüísticos, dos quais estão dotados.”
(Bourdieu, 2003)

“Pode-se concluir, portanto, que existe a necessidade de que o pesquisador que de


fato estiver interessado em ir além de suas próprias impressões, leve em conta
algumas prescrições de prudência (Foucault), tais como: considerar os problemas da
interação verbal assimétrica; da não neutralidade das questões, do caráter denotativo
e conotativo do discurso, do caráter de censura estabelecido pelo rol de questões
formuladas, dos lugares (posições) sociais dos quais e nos quais o discurso é
pronunciado; enfim, do caráter precário da técnica de entrevista.” (Colognese e
Melo, 1996)

Ao perceber que a assimetria entre entrevistador e entrevistado dentro do processo


pode ser um problema real que acarrete a invalidade do depoimento de determinado
indivíduo, diversos autores passaram a propor estratégias e meios de burlar ou controlar os
“vieses do informante”. Na segunda passagem acima, encontrada em Colognese e Melo já
está presente o elemento inicial do “cuidado reflexivo” que o pesquisador deve ter ao analisar
determinado depoimento. As “prescrições de prudências” de que falam os autores nada mais
são que os diferentes cuidados que os pesquisadores devem ter não apenas na relação social
que é a entrevista, mas também na análise da informação produzida através desta.
Como já foi visto anteriormente, ao adotarmos os princípios da Epistemologia
Qualitativa propostos por González Rey, privilegiamos a expressão autêntica do sujeito, assim
como a comunicação ampla entre este e o pesquisador como necessidades fundamentais para
uma produção de informação coerente com os aspectos subjetivos dos indivíduos estudados.
Tendo como base esta tese sobre a importância da comunicação na pesquisa qualitativa, vale a
pena analisar também as convicções e prescrições de Pierre Bourdieu a respeito do processo
de entrevista e da “comunicação não-violenta” que ele propõe como tipo por excelência de
relação entre pesquisador e pesquisado. (Bourdieu, 2003) Basicamente, o que Bourdieu
propõe é uma relação de entrevista diferenciada que fuja às prescrições e estratégias pré-
concebidas tradicionais, uma relação pautada fundamentalmente na valorização da
singularidade, numa espontaneidade verdadeira, e acima de tudo na paixão e capacidade
71

intelectual e humana do pesquisador. Segundo este autor, a relação de entrevista, para que seja
o mais bem sucedida possível, deve contar com a entrega do pesquisador ao projeto de
compreender amplamente o sujeito entrevistado desde dentro, ao mesmo tempo em que o
analisamos o mais objetivamente desde fora. É um “duplo esforço” que requer do pesquisador
o talento intelectual e a capacidade humana de se centrar e “vivenciar” o mais veridicamente
possível o complicado contexto sócio-histórico daquele que analisa, ao mesmo tempo em que
articula o depoimento deste com teorias e hipóteses que lhe permitem fazer conclusões
imparciais sobre a temática em questão. É justamente esta relação autêntica e compreensiva
que se estabelece no momento em que o pesquisador submerge no mundo do indivíduo
entrevistado, que eliminaria ou atenuaria razoavelmente a distância que se estabelece assim
que o entrevistador e o entrevistado se identificam como pessoas de diferentes classes sociais,
culturas, crenças, capacidades lingüísticas e intelectuais, etc. Vejamos dois importantes
trechos onde Bourdieu explica de maneira exemplar este complicado papel do pesquisador
que trabalha com entrevistas:

“Só a reflexividade, que é sinônimo de método, mas uma reflexividade reflexa


baseada num „trabalho‟, num „olho‟ sociológico, permite perceber e controlar no
campo, na própria condução da entrevista, os efeitos da estrutura social na qual ela
se realiza. Como pretender fazer ciência dos pressupostos sem se esforçar para
conseguir uma ciência de seus pressupostos? Principalmente esforçando-se para
fazer um uso reflexivo dos conhecimentos adquiridos da ciência social para
controlar os efeitos da própria pesquisa e começar a interrogação já dominando os
efeitos inevitáveis das perguntas” (Bourdieu, 2003)

(...)

“Procurou-se então instaurar uma relação de escuta ativa e metódica, tão afastada da
pura não-intervenção da entrevista não dirigida, quanto do dirigismo do
questionário. Postura de aparência contraditória que não é fácil de se colocar em
prática. Efetivamente, ela associa a disponibilidade total em relação à pessoa
interrogada, a submissão à singularidade da sua história particular, que pode
conduzir, por uma espécie de mimetismo mais ou menos controlado, a adotar sua
linguagem e a entrar em seus pontos de vista, em seus sentimentos, em seus
pensamentos, com a construção metódica, forte, do conhecimento das condições
objetivas, comuns a toda uma categoria.” (Bourdieu, 2003)

Devo dizer que, dada a natureza específica da minha relação com o grupo
entrevistado, este trabalho foi facilitado em grande medida. De fato, torna-se muito mais
simples se doar e se entregar, nos moldes do que propõe Bourdieu, a uma entrevista quando a
pessoa entrevistada compartilha com o entrevistador alguns aspectos sociais e inclusive
afetivos. Mesmo tendo escolhido as pessoas a serem entrevistadas segundo o método da “bola
de neve”, muitas das pessoas que entrevistei me conheciam, senão pessoalmente, pelo menos
de nome ou vista. Em todo caso a maioria sabia que eu era: em primeiro lugar uma pessoa
72

muito próxima àquele abrangente grupo dos “estudantes estrangeiros”, em segundo lugar o
namorado de uma pessoa deste mesmo grupo, e finalmente um estudante não brasileiro.
Sendo assim, logo se estabelecia na maioria das entrevistas uma identificação e uma ligeira
aproximação afetiva com relação à temática trabalhada no interrogatório. Este fenômeno
garantia em grande escala que os sujeitos se sentissem extremamente à vontade para se
expressarem sobre a temática abordada nas entrevistas junto a mim em vez de para mim.
Possibilitando aquele “clima” comunicativo propício e positivo que González Rey vê como
requisito fundamental para uma real obtenção de informações com valor científico. O autor
assinala esta perspectiva comunicativa no seguinte trecho:

“A pesquisa representa, nas ciências antropossociais, um espaço permanente de


comunicação que terá um valor essencial para os processos de produção de sentido
dos sujeitos pesquisados nos diferentes momentos de participação nesse processo. A
pessoa que participa da pesquisa não se expressará por causa da pressão de uma
exigência instrumental externa a ela, mas por causa de uma necessidade pessoal que
se desenvolverá, crescentemente, no próprio espaço da pesquisa, por meio dos
diferentes sistemas de relação constituídos nesse processo.” (González Rey, 2005)

Bourdieu, em sua obra, também assinala os aspectos positivos da condição de


proximidade entre entrevistador e entrevistado. Segundo ele, esta é uma das condições
essenciais que podem possibilitar que a entrevista seja dirigida segundo uma “comunicação
não-violenta”:

“A proximidade social e a familiaridade asseguram efetivamente duas das


condições principais de uma „comunicação não-violenta‟. De um lado, quando o
interrogador está socialmente muito próximo daquele que ele interroga, ele lhe dá,
por sua permutabilidade com ele, garantias contra a ameaça de ver suas razões
subjetivas reduzidas a causas objetivas; suas escolhas vividas como livres, reduzidas
aos determinismos objetivos revelados pela análise. Por outro lado, encontra-se
também assegurado neste caso um acordo imediato e continuamente confirmado
sobre os pressupostos concernentes aos conteúdos e às formas de comunicação: esse
acordo se afirma na emissão apropriada, sempre difícil de ser produzida de maneira
consciente e intencional, de todos os sinais não verbais, coordenados com os sinais
verbais, que indicam quer como tal ou qual enunciado deve ser interpretado, quer
como ele foi interpretado pelo interlocutor.” (Bourdieu, 2003)

As entrevistas realizadas neste trabalho, de fato, tornaram-se uma conversa amistosa e


espontânea sobre a temática trabalhada. Mesmo atinando para a possibilidade de vieses
relativos à forma como a maioria das entrevistas tomaram, realmente senti na condução das
entrevistas que grande parte dos entrevistados se sentiu à vontade para falar, de maneira ativa,
reflexiva e denunciativa, sobre vários aspectos concebidos no roteiro de entrevista. Muitas
vezes, as perguntas e os rumos que as reflexões e idéias tomaram levaram os indivíduos
entrevistados a refletir e articular suas idéias em torno de pontos antes obscuros para eles,
73

fenômeno que comprova a centralidade que eles próprios como sujeitos estavam
desempenhando na sua própria expressão. Houve diversos momentos – notavelmente
importantes - de descobrimento e reflexões profundas por parte dos entrevistados, assim como
existiu em muitos outros aquela “sócio-análise a dois” à qual Bourdieu se refere em sua obra:
um momento de descoberta e reflexão também para o entrevistador, onde os argumentos e
idéias trocados na relação de pesquisa parecem tomar um único rumo e se transformam num
único discurso construído por pontos de vista diferentes porém semelhantes sobre o tema em
questão. (Bourdieu, 2003) Acredito que nas entrevistas realizadas neste trabalho a assimetria
dentro da interação da entrevista pôde ser controlada e minimizada, se é que em alguma
entrevista esta assimetria se mostrou realmente fonte de desconforto para alguma das partes.
74

4. Discussão dos resultados e construção da informação

A análise e compreensão tanto das inúmeras situações observadas no dia a dia dos
estudantes estrangeiros, como das entrevistas realizadas junto aos sujeitos participantes deste
trabalho, promoveram um rico e abrangente leque de informação relativo à vida destes
estudantes, à sua experiência pessoal de viajarem, viverem e estudarem em um país
estrangeiro, bem como às variadas mudanças e transformações a que suas identidades estão
sujeitas. Dada a extensão e a abrangência das dinâmicas conversacionais entre o pesquisador e
os sujeitos da pesquisa, foram levantados inúmeros dados, aspectos, relatos e pontos de vista
diferentes sobre os fenômenos em pauta – tais como as influências que os fizeram vir estudar
no Brasil, mudanças vivenciadas por estes estudantes em suas identidades, os aspectos
conflitivos entre as realidades culturais, etc. Nesta seção final, no entanto, o principal objetivo
não é listar ou esgotar todo tipo de manifestação que foi registrada junto aos estudantes, mas
sim mapear, compreender e analisar fenômenos e aspectos primordiais que, em conjunto, nos
possibilitem construir conclusões e formulações minimamente satisfatórias com relação aos
objetivos e indagações que têm norteado o trabalho desde o começo.
Tendo em conta o objetivo geral deste trabalho, o qual é compreender como a
identidade dos sujeitos se comporta e se modifica quando estes vivenciam o que chamei de
“experiência transcultural”, é possível, dentre a gama informacional produzida nas entrevistas,
distinguir e propor alguns núcleos temáticos como principais e decisivos para as
transformações identitárias dos alunos estrangeiros. Estes núcleos temáticos se revelam
fundamentais não por “aparecerem” nas entrevistas como dados concretos, senão por serem
pilares principais de todo um sistema existencial e comportamental dos grupos ou
comunidades de estudantes estrangeiros, bem como dos próprios indivíduos. Estes pilares
aparecem muitas vezes de maneira objetiva na fala e nas reflexões dos alunos entrevistados,
muitas outras vezes, porém, estas perspectivas não aparecem claramente, senão que
demonstram sua importância de uma maneira indireta, as vezes sem consciência plena dos
sujeitos. Neste sentido, muitas vezes é necessário empreender uma busca e uma série de
reflexões sobre os sentidos ocultos e camuflados que os sujeitos entrevistados atribuem às
suas vivências e conclusões. Outro ponto importante a ser destacado é que estes núcleos são
pontos centrais da complexa teia informacional produzida através das entrevistas. São pontos
cardinais que tocam e determinam praticamente todos os fenômenos, reflexões e situações que
75

fazem parte da vida cotidiana dos alunos estrangeiros em Brasília. Através deles poderemos
tocar, mesmo que brevemente, muitos outros pontos secundários que embora isolados não
cobrem muito valor, em conjunto são a “experiência transcultural” em si. Pretendo,
finalmente, a partir da apresentação destes núcleos temáticos principais e seus
desdobramentos, procurar formular reflexões e construções capazes não apenas de atingir o
problema e os objetivos deste trabalho, mas capazes também de dialogar com as idéias,
conceitos e paradigmas do marco teórico apresentado previamente.

4.1. As perspectivas dos alunos migrantes

No decorrer das entrevistas, um dos primeiros temas a se configurarem para mim


como fundamentais para começar a ter uma compreensão dos fenômenos identitários entre os
estudantes migrantes, foi o das motivações, aspirações e perspectivas que o aluno migrante
carrega consigo para o Brasil. Desde o começo do trabalho, eu imaginava que a forma em que
se dava a vinda para o Brasil, os elementos que motivavam e determinavam esta escolha
teriam, posteriormente, algum peso e algum efeito sobre as possíveis mudanças que os
estudantes viessem a sentir na realidade brasileira. Eu acreditava que o fato do estudante
escolher propriamente o Brasil como seu destino para passar alguns anos e cursar um curso de
nível superior, já delimitava e definia de alguma maneira, a relação desse estudante com o
Brasil e as mudanças a que ele poderia estar sujeito. A partir da realização das entrevistas, no
entanto, percebi que muitas vezes a definição do local onde determinado aluno irá estudar, e
inclusive até o próprio curso que este cursará se dá de maneira complexa e burocrática, muitas
vezes determinada pela disponibilidade de vagas e de boa vontade das Universidades que
aceitam estes alunos através de programas de convênio estudantil. Me vi, portanto, obrigado a
abandonar determinadas hipóteses sobre como a escolha consciente do local de estudo poderia
influenciar ou determinar as mudanças posteriores que determinado indivíduo sofresse
naquele país. No entanto, interessantes pontos de determinadas entrevistas me revelaram que
há um elemento, o qual começa a se configurar antes da viagem, que determinará bastante a
maneira como os estudantes que vêm para o Brasil encararão esta experiência: as perspectivas
que estes estudantes possuem para com a experiência que estão prestes a empreender.
Ao falar em “perspectivas” nos referimos a uma série de idéias e desejos que o
estudante migrante mantém principalmente com relação ao país e à cultura onde se dirige,
mas também com relação a seu próprio país. Neste sentido, as perspectivas que interessam
76

serem discutidas neste momento são as que dizem respeito à estância, à formação intelectual,
social e profissional do jovem estudante e às possibilidades futuras e posteriores da
experiência que o estudante migrante está empreendendo. Deve-se ressaltar, porém, que há
uma diferenciação entre as “perspectivas iniciais” dos alunos recém-chegados e as “novas
perspectivas” daqueles alunos que já estão há algum tempo no Brasil e já estão gerando novas
metas e horizontes.

4.1.1. As “Perspectivas iniciais” nos alunos lusófonos

É notório que ao serem indagados sobre o país em que gostariam de nascer caso
tivessem uma segunda chance e pudessem escolher, a grande maioria dos entrevistados citou
seu próprio país e sua própria cidade e em seguida listou uma série de qualidades e vantagens
para explicar o porquê da escolha. Em todas estas explicações ficam evidentes os fortes laços
emotivos e históricos que prendem o sujeito ao seu país, sua cidade, seu círculo de amigos e
família. Esta evidente ligação sentimental com o país natal gera uma perspectiva inicial da
experiência de estudar no Brasil caracterizada pela finitude. Mesmo isto não tendo aparecido
de maneira explícita em nenhuma entrevista, o convívio com os estudantes africanos
lusófonos logo revela que um dos temas de conversa preferidos e um dos objetivos centrais,
pelo menos dos alunos que estão há pouco tempo no Brasil, é a volta para o país natal. Seja
em conversas informais, em atividades curriculares, e principalmente em manifestações
culturais, a idéia-sentimento do “desarraigo” da qual fala Fernando Ortiz ao se referir ao
processo transcultural cubano, está constantemente presente entre estes alunos. Em pouco
tempo de convivência com os alunos africanos lusófonos eu já sentia que o anseio por
terminarem o curso e voltarem para seu país natal é um dos elementos que motivam e movem
grande parte destes alunos no seu cotidiano acadêmico dentro da realidade brasileira. Dentre
as perspectivas iniciais ainda, posso afirmar baseado na observação do grupo, que os
estudante que chegam ao Brasil almejam terem uma boa formação acadêmica que os
condicione e lhes possibilite poder voltar a seu país natal com boas possibilidades de emprego
e ocupação na área de estudos.
Podemos dizer, portanto, que as perspectivas iniciais dos estudantes lusófonos ainda
estão muito atreladas e dominadas pela sua conexão sentimental com os países natais, com
suas culturas e com o conjunto de relações pessoais que deixaram para trás. A configuração
destas perspectivas iniciais pode gerar – num primeiro momento - um fenômeno interessante
que é a criação de certa dificuldade ou falta de vontade de interagir mais profundamente com
77

a realidade cultural brasileira e criar, junto a esta, laços mais profundos. Isto se dá por meio de
outro fenômeno, o da absorção do sujeito recém-chegado por parte daquela pequena
comunidade cultual constituída de alunos, corpo diplomático e simpatizantes do seu país natal
em Brasília. Esta ação do grupo e o embate entre os interesses deste e os interesses
individuais é outro dos núcleos temáticos fundamentais e será explorado mais à frente.
Mais uma vez, mesmo que este sentimento inicial não seja explicitamente mencionado
nas entrevistas, é fácil de identificá-lo, principalmente ao observar-se a constituição dos
grupos de estudante estrangeiros tanto no campus, quanto em outros espaços da cidade. É
comum, no campus da UnB, observarmos os estudantes africanos (principalmente os
lusófonos) andando em grupos – quando não grandes, pequenos. Tanto no Restaurante
Universitário, quanto na Biblioteca, no Centro Olímpico e outras dependências da
universidade, bem como nas quadras residenciais, supermercados e quadras poliesportivas da
Asa Norte é mais comum vermos estudantes africanos andando e compartilhando no mínimo
em duplas do que sozinhos. Este fato também pode ser analisado tomando como base o
número de estudantes africanos (lusófonos) que moram sozinhos. Particularmente, durante
todo o processo de convivência, observação e entrevista que levei a cabo junto a estes grupos
de estudantes, conheci apenas duas pessoas que morassem sozinhas. A grande maioria destes
estudantes moram em grupos e repúblicas com colegas quase sempre das mesmas
nacionalidades e inclusive das mesmas cidades, como será abordado posteriormente. O fato é
que esta união e este convívio refletem a criação, em determinado grau, de núcleos coesos e
estáveis que giram em torno da própria cultura nacional e que diminuem em algum grau as
necessidades e as disposições destes estudantes com relação ao contato e à interação com a
cultura brasileira.
É interessante analisar como este fenômeno, que como coloco, pode ser facilmente
observado e é muitas vezes sentido e comentado pela população brasileira, a qual por vezes se
manifesta no sentido de apontar os alunos africanos como anti-sociais que ficam apenas
convivendo com seus próprios grupos, nas suas próprias festas e lugares, não foi explicitado e
admitido em nenhuma entrevista. Muitos dos estudantes entrevistados, mesmo sabendo e
tendo consciência de já terem passado por essa fase inicial, não a comentam abertamente e
preferem se focar num segundo momento de maturidade e perspectivas mais “integrativas”.
Na entrevista de C.V., 32 anos, cabo-verdiano, graduado em Ciência Política, porém, estas
características do grupo aparecem sob o tom denunciativo do entrevistado, ao ser indagado
sobre se em Cabo Verde ele teve a oportunidade de conversar com ex-estudantes que lhe
passaram informações proveitosas sobre o Brasil:
78

“Não, eu não tive essa oportunidade, até porque, e eu digo para você, com muita
tranqüilidade e certeza que noventa por cento, para não dizer cem, dos estudantes
que chegam aqui voltam e não sabem o que que o Brasil é. Porque olha aqui, vamos
olhar os estudantes, estou falando dos estudantes que estudam aqui em Brasília que
eu conheço. Pergunta quantos estudantes foi pra uma festa em Samambaia, visitou
um amigo em Recanto das Emas, visitou um amigo em Taguatinga, Ceilândia,
pergunta. Porque os estudantes que chegam aqui em Brasília eles conhecem o
território da Universidade, território da Asa Norte. Eles não transitam de certa
forma, pelos outros espaços sociais que tem outra camada da população. Porque
você tem vários Brasis dentro do Brasil, eles conhecem um Brasil, eles não
conhecem os outros Brasis. Eles transitam muito pouco, os cabo-verdianos se
reúnem muito entre si e não se locomovem por outros espaços. Um cabo-verdiano
não sabe como é o cotidiano de uma família que ganha um salário mínimo no Brasil,
você consegue imaginar isso? Eles não conhecem essa realidade”.

Além das perspectivas iniciais fortemente atreladas à terra natal e direcionadas a uma
formação rápida e sem estabelecimento de laços emotivos ou identitários com a realidade
brasileira, há perspectivas iniciais mais voltadas para a valorização da integração e da troca
cultural. Diversos entrevistados defenderam, durante a realização da entrevista, a posição de
que no começo suas perspectivas eram ao mesmo tempo de integração com a realidade
cultural e o meio social brasileiro, e de afirmação e conservação das suas identidades culturais
e nacionais. Dentro deste grupo, no entanto, há entrevistas que chamam bastante a nossa
atenção para um aspecto interessante: o da “cultura da migração”. Mesmo que existam muitos
alunos que em um primeiro momento pensem apenas em voltar para casa, há outro tipo de
aluno que não pretende voltar imediatamente e está muito mais aberto e predisposto – pelo
menos num primeiro momento – ao contato com experiências, pessoas e culturas novas. Estes
estudantes encaram a fase de estudos no Brasil como uma oportunidade de conhecer e
adquirir uma nova cultura, uma nova língua, uma nova maneira de pensar e ver o mundo.
Deve-se ressaltar que tanto Guiné-Bissau, como Cabo Verde e São Tomé e Príncipe,
cujos alunos entrevistei neste trabalho (além de Nigéria), são países onde a migração tem um
papel preponderante na vida da maioria das famílias. É muito comum encontrar imigrantes
destes três países em Portugal e outros países da Europa, assim como nos Estados Unidos. Da
mesma maneira, estes países mandam muitos dos seus estudantes de nível superior para
estudarem fora, em países como Portugal, Brasil e Cuba. É de se supor que a migração nestes
países seja vista de uma maneira natural e inevitável. A separação, mesmo que temporária
entre pais e filhos, irmãos e irmãs já é um elemento cultural nestas regiões. Quase todos os
sujeitos oriundos destes países que participaram deste trabalho, não apenas não vivem em sua
terra, mas possuem algum parente em algum outro lugar do mundo, assim acontece também
com outras inúmeras pessoas destes grupos com as quais tenho conversado. Nesse sentido é
interessante analisar como pessoas onde esta marca cultural da migração se manifesta mais
79

fortemente devido às suas histórias de vida e familiares, geram perspectivas diferentes com
relação è experiência de estudar no Brasil e disposições diferentes com relação aos embates
culturais. Este é o caso, por exemplo, de duas alunas cabo-verdianas: M.B, 23 anos, estudante
de Relações Internacionais e P.V, 24 anos, graduada em Ciências Sociais. Estas duas
estudantes têm tido um contato muito próximo com o fenômeno da migração, e não é
coincidência que elas tenham sido das pouquíssimas pessoas que não optaram pelo seu país
natal caso tivessem a oportunidade de nascer de novo (apenas três pessoas entre as dezoito
optaram por nascer em outros países).
Na entrevista de M.B, por exemplo, percebe-se claramente a importância que os
eventos migratórios têm tido na sua vida. Tendo ido embora de Cabo Verde desde criança,
esteve um período de tempo em Portugal e depois passou boa parte da infância e adolescência
na França, onde teve um forte contato com a faceta multicultural do mundo ocidental
moderno. Após voltar a Cabo Verde com 16 anos, passou lá algum tempo antes de optar por
sair para cursar um curso superior. Filha de diplomata, veio estudar no Brasil devido à grande
paixão do pai com relação ao país no qual ele estudou quando jovem. Todas estas
experiências migratórias atuaram na individualidade de J.B proporcionando outro tipo de
configuração identitária. Uma vez no Brasil, como ela mesma afirma na entrevista, ela não se
afirmou tanto como cabo-verdiana ou africana simplesmente por estas identidades não
estarem tão bem definidas e consolidadas na sua representação pessoal. Ao contrário,
procurou sempre aprofundar o contato e o conhecimento da realidade cultural e social
brasileira, visando sempre os possíveis ganhos pessoais que ela poderia obter. Observe-se a
seguinte passagem da conversa com M.B, no momento em que pergunto a ela se quando ela
chegou ao Brasil ela pensava mais em se integrar à cultura brasileira ou interagir mais com o
grupo dos cabo-verdianos:
“Eu pensava em me pregar à cultura brasileira, porque assim, eu não tinha muita
afirmação como cabo-verdiana, como eu te falei, eu não cresci em Cabo Verde e não
tinha muita afirmação como cabo-verdiana. Acho que eu vim me afirmar como
cabo-verdiana depois que eu cheguei aqui, que eu conheci muita coisa. Mas é o que
eu te falei, eu tinha muito contato com o Brasil, meu pai é um brasileiro de coração,
como ele fala né. Tanto é que eu fiz de tudo... Em qualquer lugar que você vai na
verdade, você tem que... Eu gosto de tentar me adaptar, eu sou totalmente contra de
imigrante que tem quarenta anos num país, como tem muitos cabo-verdianos por
exemplo na Europa, mundo afora, nos Estados Unidos, que não sabem falar a língua,
não sabem nada da cultura entendeu. Renegam mesmo, você tem a impressão que é
o teu país lá reproduzido no outro país entendeu. Eu nunca fui assim, eu gosto de
aprender línguas novas, sotaques novos, culturas novas. Sou muito observadora das
pessoas, gosto muito das pessoas, gosto de ver..., então é massa isso.”

De fato, a conversa com M.B revela outros aspectos que a diferenciam notavelmente
das tendências gerais encontradas nas entrevistas. Estes aspectos diferenciais estão
80

intimamente conectados com esta predisposição e esta abertura com que M.B encara a
experiência de vir estudar no Brasil e interagir com a cultura brasileira. O melhor exemplo
que pode ser dado é em relação à valoração que M.B faz da realidade social brasiliense.
Enquanto a maioria dos entrevistados sempre faz uma valoração negativa da realidade
brasiliense – as pessoas, as relações sociais, a frieza da cidade, etc, é muito interessante que
M.B faz uma avaliação extremamente positiva e rica, como pode ser observado na seguinte
passagem:

“Brasília não tem nada a ver com o Brasil, Brasília é um mundo a parte e tem tudo a
ver comigo. Brasília não a cidade que eu estou falando, o núcleo a UnB, eu gosto
muito da UnB. (...) É aquela coisa, eu encontrei em Brasília uma mistura de tribos
assim... Sentando aqui nesses baquinhos, pessoas que aparecem aqui, galera que já
se formou, que está se formando, cabeção mesmo... Pessoas que você vê na rua e
fala 'não acredito que esse bicho seja assim'... (...) Então eu gosto de Brasília porque
é aquela coisa de pessoas mais..., uma coisa mais assim, tranqüila... Muito legal
Brasília mesmo nesse aspecto. As pessoas que eu encontrei aqui, conheci muito de
música, antes de Brasília não tinha contato nenhum com música. E agora é o lance
de conhecer mesmo, instrumentos, galera que tem aquela vibe musical, vibe de
natureza, vibe hippie assim, eu conheci tudo aqui em Brasília e não conheci isso
nem em São Paulo nem no Rio...”

Nota-se nessa passagem o apreço e o agradecimento que M.B tem para com Brasília e
as oportunidades que esta lhe propiciou no sentido de cultivar novas relações sociais e
vivenciar novas experiências. Percebe-se também como M.B se manifesta sempre de uma
forma aberta à exploração e à integração com novos elementos sociais e culturais do meio
brasileiro. Sem dúvida alguma, a perspectiva integrativa que M.B possuía ao vir estudar no
Brasil, perspectiva esta determinada pelo peso da experiência migratória em sua história de
vida, determina a forma como ela se comporta frente à realidade brasileira, uma forma mais
aberta e propensa à aquisição de novos elementos culturais, ao convívio e ao aprendizado com
os brasileiros, ao crescimento pessoal através do constante acréscimo de novos modos de
pensar e sentir a realidade. No contexto multicultural do Ocidente, M.B é uma estudante
migrante em constante transformação e hibridação, tentando, nos moldes do que falam os
teóricos da pós-modernidade, sempre dar acabamento e forma final à sua identidade, a qual
está em constante mutação.

4.1.2. O caso dos alunos nigerianos

A experiência de vir estudar no Brasil se configura de maneira diferente entre os


estudantes oriundos de países lusófonos e os estudantes nigerianos (única nacionalidade não
lusófona presente nas entrevistas). A compreensão desta diferença pode nos dar uma
81

interessante idéia de como as perspectivas que os alunos carregam consigo ao virem ao Brasil
pode influenciar nos posteriores câmbios e transformações identitárias.
A maioria dos alunos nigerianos que estudam na Universidade de Brasília não
participa do mesmo programa de cooperação educacional que os alunos que vêm de países
lusófonos. Ao invés de vir estudarem pelo convênio conhecido como PEC-G (Programa
Estudante-Convênio de Graduação), os alunos nigerianos que estudam na UnB geralmente são
filhos de membros do extenso corpo diplomático nigeriano em Brasília. Isto quer dizer que os
alunos nigerianos não necessariamente vêm para o Brasil para estudar especificamente, senão
que muitas vezes vêm junto com os pais em missão diplomática, sabendo que terão que
adaptar-se às condições do novo país, estudar, trabalhar e viver normalmente até o momento
em que possam voltar, seja com a família ou seja individualmente.
Esta conjuntura é muito diferente daquela que enfrentam a maioria dos alunos
lusófonos, os quais, como visto, vêm ao Brasil com uma perspectiva de estudar quatro ou
cinco anos para depois poderem voltar ao país de origem. Para os alunos nigerianos, em
decorrência da perspectiva de estadia indeterminada no Brasil, bem como pela grande
diferença cultural entre estes dois países e pela diferença de idioma, surge a necessidade de
entrar em um contato profundo e consciente com as realidades social e cultural do Brasil. O
fato destes alunos precisarem aprender a língua portuguesa rapidamente e precisarem se
familiarizar com os costumes e as dinâmicas típicas do Brasil em prol de facilitarem sua vida
neste novo país, os leva a quererem e procurarem manter relações profundas e produtivas
tanto com os elementos da cultura brasileira como a língua, a história e os costumes, quanto
com as pessoas. Dadas estas perspectivas que os estudantes nigerianos desenvolvem devido à
sua condição no Brasil, é comum encontrarmos que estes estudantes possuam mais facilidade
e vontade quando se trata de interagir e relacionar-se com a realidade brasileira.
Deve-se ressaltar que, na Nigéria, existe uma idéia do que seja o Brasil bastante
parecida àquela que existe nos países lusófonos. Neste país também passam novelas
brasileiras e as tradições culturais do carnaval e do futebol são muito conhecidas. Há, porém,
alguns elementos específicos a este respeito que divergem com relação aos países lusófonos e
que podem ter alguma influência importante sobre imaginário que se possui, na Nigéria, sobre
o Brasil. O primeiro destes elementos é a inexistência de um canal fixo de cooperação
educacional entre o Brasil e a Nigéria. Se por um lado vemos que a histórica cooperação
educacional entre o Brasil e os países lusófonos – principalmente Cabo Verde, Guiné-Bissau e
São Tomé e Príncipe – gera não apenas uma grande aproximação cultural entre os países, mas
a possibilidade de um imaginário mais rico e mais fidedigno do Brasil nestes países, por outro
82

lado a inexistência de um intercâmbio histórico desta magnitude na Nigéria faz com que o
imaginário brasileiro neste país se resuma apenas ao que se vê nas novelas, ao carnaval e ao
futebol. Se, como verificado nas entrevistas, nos países lusófonos o imaginário que se tem do
Brasil já é dominado por aspectos fantasiosos e irreais, mesmo que nestes países as muitas
pessoas que estudaram e residiram no Brasil podem desmistificar estas visões e mostrar outros
lados do Brasil para os futuros estudantes migrantes, podemos imaginar que na Nigéria este
imaginário transmitido pelas novelas e pelas poucas coisas conhecidas do Brasil se torne a
única referência para os estudantes que venham estudar no Brasil.
Um segundo elemento que podemos encontrar na realidade social e cultural nigeriana
e que, afortunadamente, vai de encontro ao primeiro elemento citado acima, é o que diz
respeito ao bairro intitulado “Brazilian Quarter”, o qual se situa na cidade de Lagos, a mais
populosa da Nigéria. Este bairro teve sua origem nas inúmeras famílias de “retornados”,
famílias de ex-escravos que, uma vez libertos no Brasil, decidiram voltar para os países e
regiões de onde foram retirados seus pais e avôs, durante o período escravocrata. A cidade de
Lagos, por seu amplo desenvolvimento e extensão, assim como por sua característica costeira,
era um dos locais preferidos pelas famílias de “retornados” para desembarcarem no continente
africano. Uma vez lá, muitas destas famílias estabelecia residência e acabava ficando para
sempre. Mesmo que entre o contingente de ex-escravos retornados houvessem famílias
oriundas dos Estados Unidos, do caribe, especialmente Cuba, e de diversos países da América
do Sul, eram majoritárias as famílias “brasileiras”. Foi-se criando e estabelecendo, assim, o
bairro conhecido como “Brazilian Quarter”, onde muitas famílias de retornados não apenas se
estabeleciam para começar vida nova em território africano, mas também mantinham vivas –
sempre sob o peso constante e transformador da hibridação cultural – muitas tradições
culturais brasileiras, as quais até hoje fazem parte do cotidiano da comunidade que reside no
“Brazilian Quarter”. É de se esperar que, dentro desta comunidade muito específica, na cidade
de Lagos, haja uma visão diferente do que seja o Brasil. De fato, estudando um pouco sobre a
cultura e o cotidiano das famílias descendentes de brasileiros que residem neste bairro, vemos
uma forte ligação cultural e afetiva com o Brasil. Com certeza o imaginário e as perspectivas
de um jovem nigeriano que pertencesse ou tivesse familiaridade com esta comunidade do
“Brazilian Quarter”, que estivesse vindo estudar no Brasil seriam muito diferentes das de
outro jovem nigeriano. Infelizmente este não foi o caso e não há nenhum estudante nigeriano
oriundo deste segmento social e cultural estudando na UnB. Os dois estudantes nigerianos
entrevistados tinham uma idéia bem simples do que fosse o Brasil, no entanto, como foi
83

colocado anteriormente, desenvolveram fortes ligações emotivas e disposições de integração


para com a realidade brasileira.
Tanto na entrevista de W.O, 25 anos estudante de Administração, quanto na de L.S, 23
anos, estudante de Ciência Política, ambos nigerianos, aparecem elementos interessantes que
apontam justamente nesse sentido da integração e da hibridação destes estudantes. O contato
com a língua é um primeiro ponto importante. Ambos estudantes foram pegos de surpresa
com a notícia de que viriam residir no Brasil. Não tiveram tempo suficiente para
aprofundarem o conhecimento do português ou entrarem em contato com pessoas ou
instituições que lhes pudesse fornecer informação sobre a realidade brasileira, vieram apenas
com o que lograram garimpar na Internet sobre o Brasil. Portanto, tiveram que aprender o
português já aqui, em escolas especializadas mas também na prática, conversando e
interagindo com brasileiros no dia a dia e posteriormente na Universidade. Ambos os
estudantes eram incentivados pelos pais e colegas a conhecerem e se apropriarem cada vez
mais da cultura brasileira, já que disto dependeria o sucesso da sua passagem pelo Brasil. Os
principais conselhos variavam desde assistir a televisão e conversar o máximo possível com
os brasileiros, até encontrar uma brasileira para namorar, o que possibilitaria a estes
estudantes aprender mais rapidamente as dinâmicas sociais e culturais brasileiras.
No caso dos alunos e do grupo nigeriano, portanto, vemos que as perspectivas com
relação à experiência de vir para o Brasil são muito diferentes, principalmente porque não
envolvem a certeza de voltar em alguns anos, ou até mesmo a certeza de voltar algum dia à
Nigéria; é uma verdadeira mudança na vida. Este fato possibilita e impulsiona um
comportamento muito mais voltado à integração com a realidade brasileira. Este
comportamento, por sua vez, possibilita uma transformação identitária muito mais ampla por
parte destes alunos. Elementos culturais tais como as vestimentas típicas e os costumes
alimentícios, bem como modos e características pessoais culturalmente definidos tais como o
respeito à família e à mulher, que estes alunos aprenderam e vivenciaram em seu país natal,
vão desaparecendo e sendo substituídos por novos elementos culturais presentes na realidade
brasileira. Novas formas de agir, pensar, vestir, comer e falar vão aparecendo nestes
indivíduos. A negociação e o constante posicionamento com relação à diferença e aos novos
elementos se tornam tarefas naturais para estes estudantes.
84

4.2. Brasil idealizado x realidade brasiliense

Como vimos anteriormente, a perspectiva que os alunos estrangeiros trazem consigo


ao virem para o Brasil é muito importante já que determinará como será o comportamento –
pelo menos o inicial – desses estudantes frente à realidade brasileira. Esse aspecto da análise
ganha força e relevância maior, no entanto, se nos aprofundarmos em outro núcleo teórico, no
caso o que diz respeito ao choque entre a visão idealizada ou imaginada do Brasil e a
realidade com que esses estudantes migrantes se deparam de fato uma vez aqui.
O fato é que, dada a proximidade cultural entre o Brasil é os países africanos
lusófonos, o imaginário que se cultiva sobre o Brasil nestes países é muito rico e se edifica
sobre diversos aspectos. No entanto, esse imaginário muitas vezes não condiz com a realidade
– para bem ou para mal – que os estudantes encontram aqui. Esse confronto entre expectativas
idealizadas e realidade gera nos indivíduos bruscos câmbios nas disposições, nos interesses e
nas valorações com relação ao Brasil, seu povo e sua cultura. Estes câmbios se refletem na
identidade dos alunos e nos sentimentos e sentidos que estes possuem – e passam a modificar
– sobre seu país e sobre si mesmos.

4.2.1. O imaginário brasileiro nos países lusófonos

Como foi dito anteriormente, na formulação do roteiro de entrevista houve uma


preocupação especial em avaliar diferentes aspectos da vida e do modo de pensar dos
estudantes entrevistados antes deles viram para o Brasil. Um dos principais temas debatidos
foi o do imaginário brasileiro nestes países, o qual configura toda uma série de expectativas
que o aluno carrega consigo através do atlântico. Ouve, nas reflexões e explicações sobre este
ponto, uma constante muito forte, presente em praticamente todas as entrevistas: a de que a
construção deste imaginário passa basicamente pelas novelas e outros programas televisivos
brasileiros que são transmitidos nos países lusófonos.
Segundo eles, em seus países há uma tendência bastante generalizada de pensar o
Brasil como o país do carnaval, do futebol, das mulheres bonitas, um país onde a festa, a
bonança e a bagunça são eternas. Observemos a seguinte passagem da conversa com V.M,
cabo-verdiana, 25 anos, estudante de Relações Internacionais, quando indagada sobre a idéia
que ela tinha no Brasil antes de vir estudar no Brasil:
85

“Nossa, é o pais das maravilhas. O Brasil? Pra gente lá? Nossa...É tudo, é o melhor
lugar do mundo para se viver, acredito. Talvez ficando atrás dos Estados Unidos.
Mas o Brasil é aquela coisa, porque lá a gente assiste muita novela brasileira, então
o que que acontece, o que passa nas novelas brasileiras é a parte mais linda do
Brasil, as praias, Copacabana, Rio de Janeiro sabe. Você idealiza um lugar lindo,
maravilhoso, verde, cheio de praia, cheio de gente bonita. Eu só vi gente bonita na
novela, não tem ninguém feio. Só vi gente bonita sabe, fazendo muitas coisas. As
roupas brasileiras, os biquínis, os sapatos, tudo, tudo do Brasil, era tudo
maravilhoso.”

Por outro lado, o aluno C.V. comenta outros aspectos deste imaginário brasileiro
compartilhado pelos países africanos lusófonos:

“No imaginário cabo-verdiano, que é um imaginário que o próprio Brasil construiu,


o Brasil dizendo quem administra o Brasil, o Brasil é o paraíso da beleza, é o paraíso
do futebol, é o paraíso de mulher bonita, é o paraíso do carnaval. Eu por exemplo,
antes de vir para o Brasil o imaginário que eu tinha é que era o país da violência,
isso também fica muito claro. Antes de vir para o Brasil qual era o imaginário que
eu tinha na minha adolescência? Que o carnaval no Brasil era seis meses. Que tipo,
pessoas famosas como Roberto Carlos, quando era época de carnaval eles viajavam
porque não tinha lei, não tinha ordem, era tudo baderna né. Então o carnaval são seis
meses de curtição e ninguém te impõe limite.”

Este imaginário do Brasil que é compartilhado tanto por alunos guineenses, cabo-
verdianos quanto são-tomenses, se constrói e se impõe na realidade e na subjetividade social
destes países principalmente através do meio televisivo. Como foi referido por V.M., a novela
é o principal modo de criação deste imaginário paradisíaco de beleza infinita. O Brasil, não
apenas nestes países, mas ao redor do mundo, é conhecido pela qualidade das suas novelas.
Estas são traduzidas e exportadas para um grande conjunto de países principalmente na
América Latina e na África. O ponto central levantado por diversos alunos estrangeiros, é que
as novelas raramente mostram os piores lados da realidade brasileira, limitando-se a exibirem
os “cartões postais” mundialmente conhecidos: a praia, o carnaval, a beleza das mulheres, etc.
Isto acaba por gerar visões utópicas capazes de ludibriar os menos perspicazes, que chegam
ao Brasil esperando encontrar praias extensas e perfeitas em todas as cidades, carnavais de
vários meses de duração e mulheres belíssimas servindo água de coco em ambos os cenários.
No entanto, as novelas brasileiras não são o único programa televisivo que contribui
para formar uma imagem irreal do Brasil. Se por um lado, as novelas apresentam o Brasil
como um paraíso da beleza e do prazer, os programas sensacionalistas de notícias urbanas
contribuem para pintar o Brasil como um país caótico e desregrado, extremamente violento e
perigoso. Segundo: M.D, 28 anos, cabo-verdiano, graduado em Ciência Política:

“Lá existem duas imagens do Brasil. Quando eu era criança, o Brasil para mim era o
que passava nas novelas. Eram todas as pessoas felizes, era riqueza. E as novelas
simplesmente não mostravam a pobreza do povo brasileiro, não mostravam o
sacrifício do povo brasileiro. Então a gente pensava que tudo era bom, era mulher
86

bonita entendeu, carnaval e futebol, era isso. E mais tarde, em 96 mais ou menos,
quando a Rede Record começou a transmitir para Cabo Verde começamos a ver
muita violência também. Mas não é só isso, no Brasil há violência sim, como há em
outros países, mas não é só violência. Então em Cabo Verde hoje a imagem é essa. É
de violência por causa da 'Cidade Alerta' da Rede Record e das mulheres bonitas por
causa das novelas da Rede Globo.”

Os estudantes que vêm estudar no Brasil oriundos de países africanos lusófonos,


portanto, geralmente possuem uma visão muito parcial do Brasil, ora dominada pela idéia de
um país paradisíaco de gente bonita e hospitaleira, ora pela idéia da violência e da
periculosidade do país sem leis que é o Brasil. Independente destes dois pontos abertamente
comentados e analisados durante as entrevistas, um outro ponto fundamental que constitui o
imaginário do Brasil nestes países é o de que o Brasil é um país que se interessa pelo
continente africano, principalmente a parte deste que fala português. De fato, percebe-se
claramente que os alunos que vêm ao Brasil pela cooperação educacional esperam encontrar
aqui muitas oportunidades e muito incentivo, certo sentimento de solidariedade e de ajuda
dada a proximidade histórica e cultural do Brasil com estes países. Estes diferentes
imaginários e as expectativas que produzem irão se chocar, no caso dos alunos da UnB, com
uma realidade social bastante peculiar, o que causará muitas mudanças no jeito de pensar e de
se afirmar destes estudantes recém-chegados.

4.2.2. O Choque com a realidade brasiliense

O choque entre os imaginários que se têm do Brasil nos países africanos e a realidade
que os alunos que vêm estudar no Brasil – especificamente no DF – encontram é um dos
pontos principais da discussão a respeito da experiência transcultural. Nas entrevistas
aparecem inúmeros argumentos e perspectivas que mostram como encontrar coisas tão
diferentes e inesperadas na realidade brasileira muda completamente a visão que os estudantes
tinham do Brasil, suas perspectivas com relação à sua estadia no país e elementos da sua
própria identidade nacional e cultural. Claro que os alunos estrangeiros também encontram
muitos pontos positivos no Brasil, características que eles não pensavam encontrar aqui e que
também lhes transformam as perspectivas e projeções em outro sentido. No entanto, é notável,
no discurso dos alunos, o peso e a dimensão que alguns aspectos considerados negativos da
realidade brasileira tomam nas configurações de sentido destes indivíduos com relação ao
Brasil, determinando o surgimento de novas posturas, reflexões e necessidades políticas,
sociais e identitárias.
87

Dentre os aspectos considerados negativos, há três principais que realmente atingem o


centro das expectativas e do imaginário que os estudantes possuem com relação ao Brasil, são
eles: a “frieza” da sociedade brasiliense, a discriminação racial e a ignorância da população
brasiliense com relação ao continente africano e aos países que dele fazem parte. Na verdade,
estes três aspectos são muito próximos e se determinam mutuamente numa parcela da
população brasiliense. Combinados, estes três fatores negativos encontrados uma vez que o
estudante chega aqui, causam um forte choque e um conjunto de sentimentos tais como:
desapontamento, frustração, raiva e indignação. Em função disso o estudante passa a elaborar
interessantes respostas culturais e identitárias que passam por uma afirmação e um
fechamento maior em torno do grupo e da própria identidade. A fim de podermos
compreender estas reações, vejamos primeiro os principais pontos destes aspectos negativos.
A começar pela característica fria e distante que os alunos estrangeiros sentem ao chegarem
na capital do país:

“Como eu já notei aqui na UnB especialmente, realmente é uma cultura do povo


brasiliense... Você chega aqui, cumprimenta algumas pessoas..., se a pessoa está de
bom coração‟ vai te responder e tal, mas senão vai ficar parado, num vai olha, vai te
ignorar. Não é todo mundo que tem esse comportamento assim receptivo. Como
uma carioca que estava falando uma vez, numa aula que eu fiz, ela era esse tipo
extrovertido... „Pá‟, chega e começou a falar com todo mundo... O povo brasiliense
não é assim não, o povo brasiliense é bem mais no cantinho deles. Eles não vão
mexer contigo, mesmo que você faça uma aula com eles um mês inteiro sem nem
olhar na tua cara. Então, pra alguém como eu foi diferentes. Eu sou o tipo: chego, „e
aí, beleza?‟ Se eu noto que você está a fim também então a gente tem amizade. (...)
Eu notei isso, quando eu cheguei foi difícil quebrar aquela barreira, especialmente
com meu primeiro semestre aqui, foi difícil mas graças a Deus consegui.”

“O modo de conviver das pessoas aqui de Brasília... O pessoal é muito fechado,


você nem conhece os seus vizinhos. Você abre a porta da sua casa, um vizinho está
saindo e você nem dá um bom dia pra ele, cada um vai pro canto dele. No meu país
já é outra coisa. Tem muita comunhão, você conhece o seu vizinho, se você está
precisando alguma coisa você bate na porta dele, pede emprestado, no dia seguinte
você devolve. Aqui no Brasil isso não tem, pelo menos aqui em Brasília eu não vi.”

Estes são alguns trechos das entrevistas de W.O. e de M.G., aluno guineense de 28
anos graduado em administração de empresas. Em ambos os trechos pode-se ter uma noção
de como o estudante estrangeiro que estuda no Brasil enxerga a realidade brasiliense,
principalmente seu aspecto social. Muitos dos alunos entrevistados manifestaram seu
desagrado e sua decepção ao constatarem as particularidades sociais de Brasília. Devemos
observar que ao falar de Brasília estes estudantes estão se referindo ao Plano Piloto, já que a
maioria deles não costume transitar por outros espaços da realidade social brasiliense, como
foi explicitado num trecho da entrevista de C.V.
88

Ao chegarem no Distrito Federal para estudar, os estudantes africanos estabelecem


residência no Plano Piloto, os principais fatores que influenciam esta decisão são a
localização do campus da UnB (na Asa Norte) e a prévia existência das repúblicas, moradias e
grupos de estudantes da sua nacionalidade próximos ao campus. Deste modo, como fica claro
em diversos momentos, não existe praticamente a possibilidade do aluno recém-chegado se
estabelecer em outro local, dada a diferença de possibilidades e de elementos que
desequilibram a favor do estabelecimento no Plano Piloto. Ao se estabelecerem nesta
localidade, os alunos estrangeiros passam a conviver com uma natureza social muito
diferente.
Há dentro da Sociologia e da Antropologia da UnB, uma série de trabalhos e temas
que focalizam o Plano Piloto e suas características particulares ligadas ao isolamento, ao
individualismo e a falta de comunicação entre os seus habitantes. Esta perspectiva encaixa
perfeitamente com a opinião dos alunos estrangeiros, os quais sofrem e repudiam bastante
essas características do meio social brasiliense. O aluno, que muitas vezes vêm para o Brasil
com expectativas e idealizações que remetem a um povo sociável, acolhedor e solidário, se
encontra na capital do país, com um segmento social de classe média a alta que se diferencia
muito daquilo que a maioria dos alunos imaginava antes de sua vinda. A partir das entrevistas
e de muitas outras dinâmicas conversacionais observadas dentro dos grupos, os alunos
encontram barreiras quanto à comunicação, quanto ao desenvolvimento de amizades
“sinceras” e duradouras, quanto ao estabelecimento de ligações emotivas com brasileiros, e
tantos outros aspectos da interação social. Este choque, assim como as barreiras que após ele
se configuram vão, de maneira geral, impelindo o aluno estrangeiro a se voltar cada vez para
o interior do grupo e a conceber a experiência no Brasil como algo apenas intelectual, de
caráter temporário, no qual não vale a pena se inserir ou se envolver demasiado.
O segundo grande aspecto negativo encontrado na realidade brasiliense é a
discriminação racial. Para os alunos entrevistados, encontrar este elemento na realidade social
brasileira, e mais especificamente brasiliense, é simplesmente devastador. É uma verdadeira
demolição de muitas das expectativas e visões idílicas que estes estudantes possuíam do
Brasil. Em muitas entrevistas fica claro que os alunos enxergam o preconceito e a
discriminação como fenômenos brasileiros, já que em seus países de origem ou eles não
existiam ou se manifestavam de maneira muito mais fraca. Da mesma maneira, o preconceito
que passa a assolar estes alunos é um fator primordial que determina a diminuição da vontade
de interagirem com os brasileiros por parte destes alunos, assim como o aumento da coesão
89

das comunidades de alunos estrangeiros. Observemos diferentes passagens da entrevista com


o aluno guineense M.G., onde são tocados alguns destes pontos.

“Eu nunca cheguei a pensar que existia assim, discriminação e preconceito aqui no
Brasil. Eu pensei que por ser um país de maioria negra, que isso seria difícil. Como
no meu país, a maioria das pessoas são negras, então não existe esse negócio de
preconceito. Então eu achei que aqui no Brasil não teria preconceito...”

“Assim, eu tentei me integrar, quando eu cheguei aqui, que estava fazendo


economia, só que eu consegui fazer poucos amigos. Não sei se porque economia é
um curso cheio do pessoal da elite, aí acabou criando aquelas coisas. Eu então
acabei ficando mais com os guineenses e com os africanos que com os brasileiros.
(...) Houve uma barreira, tanto é que hoje em dia eu encontro com algumas pessoas
do meu antigo curso, que era Economia e poucas me cumprimentam, tem alguns que
me cumprimentam e tem outros que olham dentro da sua cara e passam, tipos assim,
para ele não é nada...”

O fato de sofrer um preconceito, de ser discriminado e inferiorizado com base na cor


da pele, na forma dos cabelos, no lugar de origem de determinada pessoa, é um fato
extremamente relevante para a constituição subjetiva e para a configuração de sentido de uma
pessoa – especialmente se aquela pessoa nunca sofreu esse tipo de preconceito, como é o caso
de muitos dos alunos estrangeiros. Embora haja poucos relatos sobre experiências de
discriminação nas entrevistas, é possível sentir, nas conversas com os estudantes estrangeiros,
como o peso de ser exposto às humilhações e ao desrespeito do racismo e da discriminação
gera novas emoções e reflexões que culminam em novas produções de sentido com relação
tanto ao Brasil, como aos países de origem. O conhecimento e a vivencia destes pontos
negativos da sociedade brasileira são o começo de algumas transformações individuais que
serão debatidas mais tarde.
O terceiro ponto negativo muito comentado pelos alunos é o da ignorância com
relação ao continente africano e aos países dos estudantes que estudam na UnB. Neste ponto a
discussão se centra sobre o ambiente acadêmico da UnB, onde os alunos africanos vivenciam
este fenômeno de duas maneiras diferentes. Foram comuns nas entrevistas os relatos sobre
como os estudantes brasileiros da UnB se surpreendiam ao saberem da existência de
estudantes africanos. O caráter das perguntas feitas pelos estudantes brasileiros aos estudantes
africanos revela a falta de conhecimento e interesse que historicamente a sociedade brasileira
demonstrou pelo continente africano, seus países e culturas. Um desconhecimento propiciado
pela lacuna que existe na educação brasileira a respeito da história e das características do
continente africano. À medida que o estudante africano vai se familiarizando com estas
lacunas e vai sentindo como, no imaginário brasileiro, a África é extremamente folclorizada e
mitificada, ele vai produzindo novas reflexões e novas maneiras de ver a sociedade brasileira.
90

O resultado, como já foi dito anteriormente, geralmente é o estabelecimento de dificuldades e


barreiras para com o meio social e cultural brasileiro, e o fortalecimento da identidade
nacional e cultural através do convívio com o grupo dos estudantes africanos e a comunidade
nacional de cada país. Neste sentido, observemos a seguinte passagem da conversa com L.S.,
22 anos, cabo-verdiana, estudante de Ciência Política:

“E eles não conhecem a história de Cabo Verde, não conhecem a história da


África..., acham..., uma vez eu falei que eu era africana e uma menina: „você é
africana‟, a sua pele é...” o que?, bem clarinha?. Saca, (eles) têm noção do africano
negro, cabelo „pixuin‟ que nem eles falam aqui, dentão, aquela coisa bem nativa
sabe. Eles não conhecem, e para conhecer a história do Brasil você estuda Cabo
Verde, porque as comidas que vieram, as sementes, os escravos que vieram,
escravos não, as pessoas livres que foram feitas escravas e vieram para o Brasil
pararam em Cabo Verde. A viagem da África para o Brasil era longa, não tinha
como fazer a viagem sem parar em Cabo Verde, então pra você conhecer a história
do Brasil, você tem que conhecer um pouquinho de Cabo Verde e eles não têm
noção. Eles não têm noção do que são as ilhas, que Cabo Verde não é continental,
são 10 ilhas no Oceano Atlântico, ele não tem essa noção de nada. Ai a gente aos
poucos vai ensinando, mas existe a barreira. Porque já tem quatro anos que eu estou
aqui e tem ainda pessoas que fazem as mesmas perguntas: „ah vocês usam internet?‟,
„você consegue falar com teus pais?‟, „como você vai para Cabo Verde?‟, tem essas
perguntas, já perguntaram pra mim „você morava em árvores?‟, tem pessoas que já
querem saber se a gente anda com leão e essas coisas... Ah: „vocês devem passar
muita fome.‟”

Por outro lado, M.F., 24 anos, guineense, estudante de Sociologia, faz uma reflexão
interessante que nos mostra como alguns estudantes tendem a se posicionar ao vivenciar os
pontos negativos aqui apontados:

“Eu sinto isso (necessidade de se afirmar como africano e guineense) até para
mostrar que eu sinto orgulho se ser africano, por mais que ele seja um continente
que passou por diversas coisas... Você vê, você andando e alguém pergunta „você é
africano?‟, tipo „você já matou algum animal?‟, você já fez não sei o que. Tipo, eu
sinto orgulho de dizer isso, é por isso que eu afirmo isso em qualquer lugar. Eu sou
africano. Para mostrar que o africano ele não só mata animais, ele pode conviver
com muitas pessoas (risos). Pode conviver com as pessoas que não matam animais.
O estereótipo do africano é caça, sei lá, guerra, então eu sinto orgulho de afirmar
isso para as pessoas que não perceberam o que que é ser africano começarem a
entender que o africano é africano. Ele tem sua identidade como africano, pode ser
guineense, cabo-verdiano, mas acima de tudo ele é africano.”

Este trecho da conversa com M.F. pode servir de exemplo de uma das maneiras como
a identidade cultural e nacional se fortalece em decorrência do choque cultural e da diferença
cultural. No caso de M.F., ele se posiciona ainda de um modo pacífico e racional como pode
ser visto no trecho. Eu tive a oportunidade, contudo, de observar e apreciar nas entrevistas
outros indivíduos que se expressam de maneira mais emotiva, chegando a demonstrar um
pouco de rancor, desdém e desprezo pela sociedade brasiliense. O fato é que muitos alunos
africanos se desapontam com estes aspectos da realidade social e cultural brasiliense. O
91

choque determina novos momentos de definição e de ponderação enquanto ao que eles são, o
que sentem e o que desejam para si e seus países, bem como a respeito do próprio Brasil. É
comum a identidade nacional e cultural sair reforçada desta experiência de choque, com os
alunos estrangeiros ostentando o seu patriotismo, seu nacionalismo e sua responsabilidade
para com o Brasil mais do que antes. Este é um claro exemplo de como, dentro dos cenários
multicultural e pós-moderno, a identidade pode passar por processos de fortalecimento e
sedimentação, uma hipótese pouco abordada e desenvolvida pelos autores que tratam da dita
pós-modernidade.

Os principais pontos considerados negativos com que os estudantes africanos se


deparam na realidade brasiliense já foram observados. Façamos uma breve análise agora dos
principais pontos positivos que estes alunos encontram quando chegam no Brasil e em
Brasília para estudar, a fim de que possamos compreender da maneira mais completa e
complexa possível, como e por quais caminhos os estudantes passam a sofrer câmbios
identitários.
Durante as entrevistas, foi mais difícil os alunos entrevistados se expressarem sobre
pontos positivos da realidade brasiliense e brasileira do que pontos negativos. Enquanto os
pontos negativos vinham à tona naturalmente e eram minuciosamente explicados e debatidos,
os pontos positivos possuíam menos brilho e relevância. Isto não quer dizer, contudo, que
estes pontos positivos não são capazes de promover câmbios identitários, muito pelo
contrário. Estes aspectos são extremamente relevantes já que, ao contrário dos outros pontos,
estes acrescentam elementos à formação do sujeito. Esta análise será desenvolvida em
seguida, primeiro vejamos as características centrais dos principais pontos positivos
encontrados pelos estudantes estrangeiros na realidade brasileira e brasiliense.
Os pontos positivos da realidade brasileira que mais marcam os alunos estrangeiros,
principalmente os oriundos de países lusófonos, estão intimamente relacionados com o
ambiente intelectual da Universidade. O curso superior que o aluno vem cursar no Brasil
conta muito neste sentido. Assim, vemos como os estudantes que vêm fazer Relações
Internacionais e Ciência Política, por exemplo, ressaltam bastante o bom funcionamento da
democracia brasileira e suas instituições políticas fundamentais, bem como a capacidade do
Brasil de promover e liderar todo um cenário de relação e cooperação internacional,
principalmente com os países africanos. Por outro lado, vemos como os estudantes de
Sociologia ressaltam a mobilização social da sociedade brasiliense, o nível de organização de
instituições governamentais e não governamentais e a força como reivindicam direitos e
92

mudanças dentro da sociedade brasileira. Os alunos que estudam Economia, por outro lado,
ressaltam o desenvolvimento das instâncias profissionais e do comércio nas realidades
brasileira e brasiliense mais especificamente. Fica claro, através das entrevistas, e também ao
observarmos algumas dinâmicas conversacionais dentro dos grupos de alunos estrangeiros,
que muitas destas surpresas positivas, destes aspectos que a realidade brasileira oferece e que
os alunos assimilam como exemplos a serem apreendidos e desenvolvidos, adquirem tamanha
relevância não por serem algo fora do comum – tanto que na sociedade brasileira estes
mesmos elementos muitas vezes são vistos com outros olhos – mas por serem elementos
ainda não desenvolvidos nos países de origem destes estudantes. Em várias das conversas
mantidas com os estudantes estrangeiros é possível perceber o impacto de alguns destes
elementos na forma como os indivíduos concebem seu próprio país:

“No âmbito político, hoje em dia o Brasil já se identificou com a democracia.


Consegue implantar a democracia, muito embora meio frágil, mas já conseguiram
implantar. Na Guiné ainda não. Nos ainda não conseguimos implantar a democracia.
A democracia ainda é muito verde, ainda tem muita turbulência, então ainda têm
muita turbulência de parte dos militares, tem muita interferência exterior. Então nós
ainda não conseguimos implantar a democracia. Enquanto que o Brasil já conseguiu.
(…) A Guiné é um país que ainda é muito…, digamos assim, novo em termos
democráticos, um país ainda muito precário em termos de democracia. Então ainda
tem, como aqui aconteceu - porque eu vou pegar exemplo do Brasil para aplicar na
Guiné, nós temos que pegar coisas boas para aplicar no país – ontem a ditadura,
força militar, intervenções militares, lá ainda tem, e isso não ajuda, não ajuda no
desenvolvimento de um país. Então ainda existe uma retaliação da imprensa, tem
certas coisas que você publica, que ainda tem políticos e algumas pessoas que vão lá
e retaliam essas pessoas, censura. Então isso ainda é uma diferença que não ajuda.”

Este trecho da conversa com o estudante guineense V.E., 28 anos, que cursa
Administração de empresas revela como um elemento por ele encontrado aqui no Brasil se
transforma em referência e em modelo para a análise do próprio país. Neste caso, V.E. faz
uma importante reflexão sobre o sistema político guineense a partir do conhecimento que
adquire sobre o sistema político brasileiro a partir da sua experiência como estudante
migrante. No caso da cabo-verdiana V.L., 32 anos, doutoranda em Sociologia, o elemento
brasileiro que ganha destaque e serve como exemplo é o nível de engajamento e mobilização
social que ela encontra na sociedade brasileira:

“Uma coisa que me impressionou muito e me chamou muito a atenção, que eu falei:
„eu gostaria muito que meu país fosse assim‟, foi perceber que aqui de certa forma
existe uma cultura mais ativa, de cidadania. Porque? Porque como eu acho que a
gente tem uma cultura de maior passividade lá em Cabo Verde, me impressionou
aqui no Brasil… Quer dizer, a coisa mais simples sabe, você vai no mercado e se
você for lá troca, pode ligar e reclamar e tal. Em Cabo Verde a gente não tem isso
muito. (…) Eu nunca gostei daquela coisa do meu pais da gente ser muito passivo,
de aceitar as coisas, muito comodistas né. Mas isso eu acho que tem a ver com nossa
história, nós tivemos uma colonização de muita repressão, depois a gente teve um
93

regime de partido único que pôde ter tido lá um lado que certamente não foi tão
opressivo mas certamente é de partido único. E quando eu chego no Brasil eu chego
em 94, o Brasil já tinha feito abertura política, tem uma história. Eu fui vendo, fui
lendo, vi que era uma sociedade civil ativa. Então uma coisa que me impressionou
muito foi exatamente ver isso, essa sociedade civil ativa, eu falei: „Gente eu quero
isso na minha terra‟.”

Assim como nestes trechos conversacionais, em diversas entrevistas e conversas


informais surgiu o tema de alguns elementos positivos da realidade social e política brasileira
que deveriam ser “copiados” nos países dos alunos que abordavam a questão. Para fora das
instâncias políticas – houve muita referência ao bom funcionamento do sistema político
brasileiro, principalmente entre os guineenses, um aspecto importante levantado em algumas
conversas e outras situações é a questão do preconceito. Principalmente entre os alunos cabo-
verdianos – onde existe uma questão polêmica envolvendo pessoas de peles mais escuras e
mais claras, o conhecimento através da realidade intelectual da UnB, dos movimentos, teorias
e debates que se desenvolvem dentro da chamada “questão racial”, gerou interessantes
reflexões sobre os conflitos raciais em Cabo Verde, impelindo muitos estudantes a
repensarem, questionarem e criticarem certas ideias e posicionamentos que antes passavam
despercebidos.

4.2.3. Choque e processos identitários: um momento de posicionamento

Foi observado nas entrevistas que o choque com a realidade brasileira se dá de


maneira positiva e negativa, com o estudante se deparando com elementos sociais, políticos e
culturais novos e interessantes que o fazem desenvolver um apreço por certos aspectos da
realidade brasileira, bem como com elementos inesperados que os decepcionam e
desestimulam com relação ao Brasil. Como já foi dito, no espaço das entrevistas quase sempre
sobressaíram os aspectos negativos da sociedade brasileira, o que nos indica que,
aparentemente, estes elementos adquirem maior valor nas configurações de sentido dos
sujeitos. Porém, mesmo que os elementos positivos encontrados no Brasil não sejam tão
debatidos, muitos dos entrevistados chegam, durante a entrevista, à conclusão de que eles têm
mudado muito durante sua experiência aqui no Brasil. A ideia de que desta experiência serão
levadas muitas coisas boas por grandes períodos de tempo ou até para sempre é quase
unânime, demonstrando que os câmbios identitários que os alunos vivem no Brasil são
determinados por complexos processos de negociação e posicionamento, onde existem
sempre múltiplos elementos desempenhando papéis por vezes antagônicos. Certamente os
elementos negativos encontrados no Brasil ocupam um grande espaço nas concepções
94

objetivas dos indivíduos. Existem, porém, diversos aspectos que vão transformando e
hibridizando o sujeito sem que este sequer se dê conta. Estes aspectos estão fortemente
relacionados com o caráter pessoal e íntimo da experiência de estudar em outro país e serão
analisados mais tarde.
Por enquanto, analisaremos o complexo embate entre os aspectos positivos e os
aspectos negativos encontrados pelos estudantes estrangeiros ao chegarem no Brasil, bem
como as perspectivas produzidas pelos novos posicionamentos produzidos neste embate. É a
partir deste embate que vão sendo produzidos novos posicionamentos e mudanças nas
identidades dos indivíduos que vivem a experiência transcultural.
Num momento inicial podemos mapear dois tipos diferentes de comportamento que
resultam do choque com o Brasil. O primeiro mais voltado à integração e a produção de novas
perspectivas positivas com relação à sociedade brasileira. O segundo por outro lado, mais
voltado para a convivência com o pequeno grupo de alunos da comunidade nacional, para o
fechamento e a repulsa para com a cultura brasileira e com a criação de certas “necessidades”
e “vontades” com relação à própria cultura, ao próprio país e à própria identidade.
Se por um lado já vimos que diversos estudantes vêm para o Brasil com a idéia de se
integrarem e aproveitarem ao máximo o que a cultura brasileira tem para oferecer, por outro
se pode observar que muitas vezes esse processo se desencadeia já no Brasil, em decorrência
de algumas boas experiências, vivências ou aprendizagens em solo brasileiro. Tanto os alunos
que vêm com uma perspectiva de sentirem e adotarem a cultura brasileira, quanto aqueles que
vêm mais centrados em realizar seus estudos e voltarem para seus países de origem, são
capazes de se surpreender e se cativarem por coisas positivas que a realidade brasileira tem a
oferecer. Isto pode determinar, portanto, uma confirmação de determinadas perspectivas e
planos em alguns casos, e uma mudança de visão e de perspectivas em outros casos. Vejamos
a continuação da conversa com V.L.:

“Outra coisa que eu gostei no brasileiro, que tem muito a ver também com um pouco
do imaginário que a gente tem em Cabo Verde sobre o brasileiro que não é bem
assim, que a gente precisa também desmistificar e repensar os conceitos que às
vezes a gente cria quando você esta num lugar antes de vir morar nele. Em Cabo
Verde tem uma idéia para além dessa imagem que passa do Brasil na televisão, que
o brasileiro é um povo acomodado, preguiçoso e que é do “facilite”. Eu acho que
isso tem muito a ver com o que a mídia passa. E também sempre aquela idéia que
passa que o Brasil é o país da diversão, samba e futebol. Portanto, samba, mulher e
futebol, portanto é um país onde não se trabalha. Uma coisa que me impressionou
que eu achei maravilhoso, que eu falei: „Cabo Verde precisa aprender com a
experiência brasileira‟, eu achei o povo super criativo. Criativo num sentido assim,
eles driblam as dificuldades. Eu me impressionava ao ver o cara vendendo
churrasquinho na rua, a mulher fazendo bolsa de croché para vender, outra fazendo
brinco. Ou então ir passando e vendo as placas sabe?, „eletricista‟ embaixo de uma
95

árvore, „bombeiro‟. Eu falei: „gente, no meu país eu não vejo isso‟. Porque é como
se as pessoas lá tivessem medo de expor que passam dificuldades. Aqui eu não vi
isso. Eu acho que pode ter muita coisa errada, gente corrupta, mas eu acho que isso
em todo lugar tem, eu vi muita gente que batalha. Ai eu falei: „gente, eles têm uma
criatividade que a gente não têm‟. Sabe? A criatividade de criar, de tentar ultrapassar
a dificuldade. E detalhe, com uma coisa, com uma energia positiva, com a coisa do
„fé em Deus‟, da alegria, do jeitinho. E o cabo-verdiano já tem uma coisa da
negatividade, do mais ou menos: „ah tá mais ou menos, tudo tá ruim‟, do reclamar
sabe, ai eu falei: „gente, a gente precisava aprender um pouco mais com eles‟. Por
isso que eu tenho essa admiração sabe…”

Podemos observar neste trecho da conversa com a estudante V.L. que ela, a partir da
sua inserção na realidade brasileira, passou a derrubar e desmistificar certas ideias ao mesmo
tempo em que descobria e se admirava com outros elementos do povo brasileiro, até então
desconhecidos para ela. É interessante analisar certos aspectos da entrevista desta aluna, a
qual exemplifica o tipo de estudante que acaba gerando novas perspectivas com relação à
sociedade brasileira. A experiência de vir para o Brasil foi particularmente difícil para esta
aluna, já que ela chegou no Brasil sem conhecer absolutamente ninguém, seja brasileiro ou
cabo-verdiano. No entanto, sua história no Brasil acabou tomando um rumo que a colocou de
frente com muitos brasileiros e muitas situações pelas quais a maioria de estudantes cabo-
verdianos não passa ao chegar no Brasil. Esta experiência complicada que possuía todos os
elementos para fazer com que V.L. se voltasse rapidamente para seu grupo e sua comunidade,
na realidade fizeram com que ela visse novas facetas da realidade brasileira e gerasse novas
perspectivas e projetos. No caso desta estudante, encontrar esses aspectos positivos na
realidade brasileira possibilitou uma mudança e uma reavaliação das suas formas de
identificação. O trecho mostra algumas das reflexões críticas que V.L. passou a produzir
sobre seu próprio país e cultura. Ela não apenas abriu os olhos para estes aspectos da cultura
cabo-verdiana, como também passou não apenas a opor-se a eles, mas a incorporar a seu
modo de vida, seu modo de pensar, e à sua própria identidade novos elementos culturais que
ela encontrou na realidade brasileira.

Por outro lado, encontrar elementos tão negativos quanto o preconceito, a falta de
comunicação e solidariedade e principalmente a ignorância sobre a África, é uma situação
bastante forte para muitos dos estudantes africanos que vêm para o Brasil. Uma situação que,
como já foi dito, começa a gerar nos alunos estrangeiros que são mais atingidos por estas
situações, sentimentos muito fortes de repulsa à realidade brasileira, tanto às pessoas, quanto à
cultura. As entrevistas e a observação de espaços sociais onde coexistem os alunos africanos
com os brasileiros revelaram que objetivamente, os alunos estrangeiros prefiram e procurem
conviver apenas com seus conterrâneos ou estudantes de outras nacionalidades africanas. As
96

amizades duradouras com brasileiros se reduzem muito, as predisposições para freqüentar


espaços sociais ou eventos “de brasileiros” tendem a desaparecer, e o contato destes
estudantes atingidos fortemente pelo choque com os estudantes brasileiros, tende a se reduzir
às salas de aula e outras dependências da Universidade onde o contato é inevitável. Tanto as
entrevistas como vários momentos da observação mostram que os indivíduos que sentem este
choque negativo e se decepcionam com a realidade brasiliense pouco a pouco se voltam
apenas para seu grupo, colocando-o no centro da sua vida aqui no Brasil e colocando-se a si
mesmo no centro do grupo. Observemos neste sentido um trecho da conversa com a estudante
cabo-verdiana V.M., onde ela expõe claramente esta passagem de um choque com algum
aspecto da realidade brasiliense, para um momento de afirmação e reforço dos elementos
nacionais e culturais da sua identidade e do grupo dos estudantes cabo-verdianos:

“No início eu não sabia mais ou menos como agir sabe, eu ficava meio: „o que é que
eu faço?‟ Mas o que eu fiz?, Comecei a observar as coisas acontecendo, a observar
como as pessoas agem. Em função disso eu comecei a tirar as minhas próprias
conclusões. Eu senti uma necessidade de resistir em termos de..., me afirmar,
muito...Como negra, como africana, como cabo-verdiana. Primeiro porque eu faço
um curso que é bastante elitizado. (…) Chegando no meu curso eu achei branco, só
branco, branco rico que mora no lago, branco que tem carro, que pode se deslocar,
fazer todas as coisas que bem entender... E eu? Quem era eu no meio dessas
pessoas? Eu era uma menina que veio de Cabo Verde, negra... Mas o que
acontece… Eu senti que as pessoas me aceitavam..., tudo bem que eu era negra e era
africana, tudo bem que eu era da Cabo Verde, mas me aceitavam porque eu tinha a
pele mais clara, eu sentia isso muito! Por exemplo, a O.P., que é de Trinidad e
Tobago e que era negra, negra mesmo, ela não fez tanta amizade como eu fiz, ela
não conseguiu fazer tantas amizades. As pessoas não tiveram aquela coisa de chegar
nela. Não teve tantas pessoas chegando nela como chegavam em mim. Em mim
chegavam pessoas fazendo mil perguntas, queriam saber como Cabo Verde era,
tudo. Eu sentia que as pessoas tinham uma facilidade maior de falar comigo pelo
fato de eu ser mais clarinha, eu era africana mas passava desapercebida, entre aspas.
Eu decidi que não ia ser assim as coisas, não necessariamente tinham que ser desse
jeito. Então eu senti a necessidade de me afirmar...Passei a me encontrar, passei a
conviver ,muito mais com os meus companheiros de Cabo Verde. Por isso que aqui
as pessoas ficavam: „Ah, mas vocês só vivem juntos‟. A gente só vive junto
justamente por isso. Você sente que você não é aceito, você sente que..., é muito
estranho aqui. E pra quem que a gente vai se voltar? É pros nossos iguais, é por isso
que a gente tem necessidade de ficar sempre junto, porque a gente se entende. E lá a
gente é mais forte, nesse grupo, a gente se sente parte, todo mundo igual, o jeito de
falar alto, o jeito de pentear, o jeito de fazer tudo é igual, entre aspas. Então eu sentia
essa necessidade muito grande de me afirmar junto à minha comunidade, junto às
minhas pessoas do meu país, e não só..., eu tento me dar bem com todos os africanos
que tem.”

Este trecho exemplifica alguns dos pontos levantados até agora. Em primeiro lugar
devemos notar como a estudante V.M. se chocou e decepcionou profundamente com um
aspecto da realidade brasileira. Se considerarmos a entrevista completa de V.M., poderemos
observar como ela possuía o imaginário idealizado do Brasil que as novelas costumam passar
97

em Cabo Verde, assim como sua grande ligação com o Carnaval da ilha de São Vicente – o
qual é profundamente influenciado pelo Carnaval brasileiro; poderíamos apreciar, também,
como ela nunca havia imaginado que num país tão miscigenado como o Brasil haveria tanto
preconceito e como aproveitou a experiência intelectual no Brasil para se familiarizar com a
questão da negritude e do combate à discriminação racial. Todos estes elementos se
apresentam e se unem num momento específico da experiência transcultural de V.M.
acabando por configurar uma série de sentidos subjetivos extremamente negativos com
relação à porção da sociedade elitizada de Brasília que ela conhece na Faculdade de Ciências
Sociais Aplicadas da UnB. Ela, acostumada à alegria do carnaval, desconhecendo o
preconceito e a discriminação pela cor da pele, com uma imagem quase idílica do Brasil e dos
brasileiros, acaba tendo que conviver com uma parcela da população brasiliense que é
praticamente o oposto do que ela esperava.
Como o depoimento de V.M. e outros alunos nos revelam, muitos destes choques
definem momentos de reflexão e reposicionamento com relação à própria identidade. No caso
desta estudante, fica claro como ela passa a se afirmar de maneira mais consciente e engajada
como negra, cabo-verdiana e africana. Suas identidades nacional e cultural são reforçadas pela
oposição àqueles elementos que ela encontrou na sociedade brasileira e aos quais se opõe.
Como colocam Hall e Derrida, dentro do jogo da “différance” que caracteriza os processos de
identificação, ser cabo-verdiana, para V.M., a partir do momento em que ela choca com
determinados elementos e os repudia voltando-se para seu grupo e sua identidade, não é mais
a mesma coisa que antes. Sua identidade como cabo-verdiana e africana se apóia agora sobre
novas oposições, sobre novos elementos que V.M. não é e não deseja ser. Neste sentido, à
medida que uma experiência transcultural fornece para determinado sujeito, experiências e
elementos novos e constantes, sua identidade vai sendo obrigada a se definir e complexificar a
cada momento, graças à nova gama de elementos que o indivíduo pode assimilar ou repudiar.
Dentro desta perspectiva, tanto ao absorver quanto ao evitar elementos culturais, as
identidades dos indivíduos migrantes devem estar em constante ação e reformulação.

Ao enxergarmos estas duas maneiras diferentes de reação dos estudantes africanos


diante das surpresas que a chegada ao Brasil lhes reserva não devemos conceber, contudo, que
sejam duas alternativas opostas e irredutíveis. Pelo contrário, as entrevistas nos demonstram
que os processos de configuração subjetiva e produção de sentidos dos estudantes que chegam
ao Brasil são extremamente complexos. Não é possível determinar que respostas um aluno
estrangeiro dará frente à realidade brasileira, já que na produção subjetiva desta resposta estão
98

envolvidos muitos fatores diferentes, desde a história do sujeito, até suas necessidades e
projetos futuros. Todos os alunos acabam, devido ao contato inevitável com a realidade
brasiliense, incorporando novos elementos, mesmo que em maior ou menor grau e com mais
ou menos durabilidade. Todos também conservam inúmeras coisas das suas culturas e
rejeitam elementos brasileiros. As possibilidades de reação dos alunos migrantes frente à
realidade brasileira são muitas e envolvem uma complexa série de fatores.

Foi possível, através dos trechos de entrevista analisados, compreender como o choque
entre as ideias pré-concebidas sobre o Brasil e a realidade que os alunos encontram ao chegar
aqui, pode determinar a produção de novos sentidos sobre a realidade brasileira por parte do
indivíduo, e sua mudança identitária seja através da aquisição, seja através da negação de
aspectos pontuais da realidade cultural e social brasileira. Este primeiro momento de choque
cultural e câmbios identitários já nos possibilita alcançar, pelo menos em parte, os objetivos
específicos propostos no começo do trabalho. Como pôde ser observado nas análises
desenvolvidas acima, não apenas as culturas dos estudantes africanos que vêm estudar no
Brasil são muito diferentes da brasileira, como o choque que estes estudantes sofrem ao
chegar e viver em Brasília é muito grande, determinando uma série de reações e mudanças
nas identidades dos indivíduos. O material coletado nas entrevistas, bem como a gama de
observações e conversas informais acumuladas, nos permitem observar também como uma
determinada identidade nacional ou cultural – como o são as de “guineense” e “africano”,
pode, dentro do contexto Ocidental pós-moderno, ser extremamente firme, fixa e relevante
para inúmeros sujeitos. Refiro-me aos indivíduos que, inseridos em uma experiência
transcultural se apegam às suas identidades coletivas como forma de se afirmarem e se
fortalecerem frente a uma realidade cultural que não os valoriza.
Certamente, a liquefação das identidades coletivas tradicionais de que fala Bauman
não necessariamente se concretiza em todo o mundo ocidental. Se por um lado uma parcela da
sociedade no Ocidente sofre com a “volatilização” das identidades e com a fragmentação e o
desaparecimento daquelas identidades que historicamente serviram como referência à vida em
sociedade, por outro lado existem outras parcelas da população do Ocidente cuja única saída
pode ser justamente a recuperação e o constante fortalecimento e afirmação destas
identidades: identidades nacionais, culturais, de gênero, familiares, etc. Se, de acordo com
Hall, aceitamos que estamos vivendo, nos dias contemporâneos num cenário multicultural
regidos pela globalização e pelas migrações de massa, então devemos supor que cada vez
mais os processos identitários relativos às experiências transculturais tenham mais relevância
99

e permeiem a vida de mais pessoas. Imigrantes de todo tipo cujo apego às suas identidades
nacionais e culturais é uma das suas principais estratégias para sobreviverem em ambientes
culturais diferentes e muitas vezes hostis.

4.3. A experiência pessoal de “estudar fora” e o crescimento do indivíduo

Uma vez inserido na realidade cultural e social brasiliense, se deparando com uma
variedade de elementos que vão modificando suas ideias sobre o Brasil, bem como a sua
identidade, o estudante estrangeiro vivencia um importante processo de crescimento. Para
além dos aspectos sociais e culturais, devemos observar cuidadosamente a mudança pessoal e
o amadurecimento que se promovem no aluno estrangeiro em decorrência da singularidade da
experiência de vida que é sair do próprio país para estudar em outro país, onde tudo é
diferente. É este crescimento e este amadurecimento que pretendo tratar neste núcleo
temático, bem como a relação entre este fenômeno e a identidade do indivíduo.
A experiência de sair do próprio país para estudar em um país desconhecido, sem
conhecer absolutamente ninguém, sem a presença dos pais e dos amigos, é uma experiência
mais do que cultural. Esta experiência que os estudantes africanos enfrentam cotidianamente é
uma verdadeira experiência de vida, algo que carregarão consigo para sempre e que
influenciará suas histórias de vida de maneira impar. O estudante africano que vem estudar
em Brasília crescerá e se transformará não apenas em termos de acréscimo de elementos
culturais e novos posicionamentos identitários – que são os aspectos que este trabalho tenta
explorar ao máximo – mas crescerá também de diversas outras maneiras como pessoalmente,
humanamente e intelectualmente. Estas outras formas de desenvolvimento do estudante
migrante determinarão, e muito, as suas escolhas, projetos e perspectivas futuras com relação
a si próprio e seu país de origem, tendo uma relevância muito grande assim, nas possíveis
reavaliações e novos posicionamentos identitários que o alunos estrangeiro venha a
desenvolver. De fato, as mudanças na esfera cultural e na esfera pessoal vão se manifestando
conjuntamente, possibilitando uma acentuada transformação identitária nos indivíduos.
Inclusive nos indivíduos que, como vimos, tendem a desenvolver um apego às suas
identidades nacionais e a se fecharem em torno do grupo, limitando ao máximo a interação
com a realidade social e cultural brasileira, o crescimento pessoal proporcionado pela
experiência do “estudar fora” gera transformações identitárias que estarão sempre atreladas à
100

experiência vivida no Brasil. É possível, assim, que a cultura brasileira influencie, mesmo que
indiretamente, de uma maneira camuflada, alguns destes reposicionamentos identitários.
Um primeiro ponto muito comentado e enfatizado nas entrevistas é aquele que diz
respeito à falta que fazem os cuidados e as funções dos pais dos estudantes estrangeiros. Ao
começarem uma vida radicalmente nova em solo brasileiro, os estudantes africanos que vem
pelo PEC-G logo de cara sentem a dura realidade de não ter ninguém que se importa e que
cuide deles. A maioria destes estudantes estava acostumado aos cuidados dos pais e a ter sua
vida mais ou menos regulada e determinada pela vida dos pais. Esta lacuna, no entanto, abre
espaço para um forte desenvolvimento pessoal, um amadurecimento destes estudantes em
vários aspectos, principalmente os que dizem respeito aos cuidados pessoais e ao manejo do
dinheiro. Observemos neste sentido o seguinte trecho da conversa com C.L., 27 anos, cabo-
verdiana, estudante de administração:

“Todo mundo que está aqui, quando veio de Cabo Verde estava com os pais. A
responsabilidade era totalmente deles e você pensa que o mundo é bom assim. Mas a
partir do momento em que você chega aqui tem que se virar sozinho, pagar as suas
contas, resolver tudo sozinho, estudar, sem ajuda de ninguém, você começa a
colocar a cabeça no lugar e a pensar: „Eu tenho que ter responsabilidade, se eu não
sei eu tenho que aprender porque se eu fizer alguma coisa errada hoje vai me
prejudicar amanhã com certeza.‟ Tipo assim, quando você recebe seu dinheiro, você
recebe quatrocentos reais. Se eu acabar tudo hoje e amanhã, depois de amanhã não
vou ter ninguém que vai me dar uma mão. Enquanto que lá em Cabo Verde se você
tem 500 escudos e gastar tudo hoje, amanhã tem comida porque sua família esta ai,
pode falar que tem tudo. Mas aqui é diferente, você gasta tudo, hoje é dia 20, você
recebe dia 10, vai passar todo esse tempo sem nada porque gastou tudo e não tem
família, não tem ninguém pra me ajudar e não vou pedir para o meu colega porque
ele também tem suas contas, essas coisas… Ai tem que ter essa responsabilidade, e
se não tem tem que aprender a ter.”

Vejamos também um trecho da conversa com o estudante guineense E.D., 30 anos,


formado em Sociologia:

“Aquilo de que eu dependia antes, tudo eu encontrava em casa, agora eu faço por
meio próprio, e isso é uma das características importantes que a experiência no
Brasil me mostrou. Agora tenho que sobreviver por mim mesmo. Tem para comer?
Tem para pagar a renda? Tem para fazer alguma coisa? Você que se vire! Você vai
ter que dar conta. Eu ganhei mais responsabilidade para ver as coisas, mais cautela,
mas atenção nas minhas coisas que eu vou fazer. Com o que?. Com saúde,
alimentação, a moradia… Como que eu vou me gestionar? Como que eu vou me
gerenciar? Com mais responsabilidade e com mais maturidade. Brasília ofereceu
isso para mim. Porque antes na Guiné era assim, estando doente eu fico deitado, só,
os meus pais vão cuidar de mim… Mas aqui eu vou me cuidar para não ficar doente,
e se eu ficar doente eu vou ter que correr para o hospital sozinho porque eu estou
sozinho, não tem ninguém para me apoiar.”

Em ambos os trechos percebemos como o fato de estar por conta própria no Brasil
gera a necessidade de amadurecimento e aumento de responsabilidade entre os indivíduos
101

estrangeiros. Estes passam a se preocupar com uma série de coisas e dominar uma série de
aspectos da “vida adulta” que antes desconheciam ou viam como elementos distantes e
alheios. Precisam aprender a gestionar seu dinheiro, cuidar da sua casa, pagar as contas,
participar da vida bancária, etc. A identidade dos estudantes estrangeiros vai mudando
vagarosamente a medida que estes vão descobrindo outros aspectos da vida e outras funções
que agora cabe a eles desenvolver. Os elementos “adultos” do cuidado, da precaução, do
planejamento e da responsabilidade passam a ocupar um lugar central na vida dos estudantes
e na forma como eles passam a se enxergar a si próprios.
Outra forma de crescimento pessoal, mais difícil de observar entre os estudantes
africanos, é o crescimento pessoal através do desenvolvimento de qualidades mais humanistas
como a solidariedade, a amizade, o altruísmo, etc. Embora os conflitos e oposições
identitárias que permeiam o cotidiano dos estudantes tendam a afastá-los desse tipo de
conquista humana, podemos encontrar diversos casos em que a necessidade acaba por
possibilitar o aparecimento de novos elementos no indivíduo, elementos estes que o fazem se
aproximar de pessoas e/ou grupos específicos. Observemos, por exemplo, a seguinte reflexão
da estudante cabo-verdiana V.M:

“Eu acho que hoje eu sou uma pessoa mais preocupada com outras pessoas, eu sou
uma pessoa que se preocupa muito, no sentido de companheirismo assim sabe.
Tendo um amigo, um colega, brasileiro ou não, estrangeiro, cabo-verdiano,
africano…, no sentido de ajudar ele em qualquer coisa que puder, qualquer coisa
que der. Eu acho que esse sentimento de companheirismo, de ajuda, floresceu mais
no Brasil, floresceu mais depois que eu vim pra cá. Porque quando você chega aqui
você se sente fora do mundo, você se sente abandonado. Você sente que você não
tem os seus amigos que sempre te ajudaram, os teus pais que sempre te ajudaram.
Então o que que acontece, você tem que cultivar amizades para você poder continuar
sobrevivendo aqui. Ou seja, eu tentei ser companheira, assim como os meus amigos
de Cabo Verde sempre foram comigo durante todo o tempo que eu vivi lá,
companheiras, amigas, me ajudando sempre que eu pedia sabe, sempre que eu
precisava de um amigo eu sabia que eu tinha ele lá. Eu comecei a ser assim com as
novas amizades que eu comecei a fazer. E eu consegui fazer algumas amizades boas.
E sempre que eu pedia alguma coisa para um colega meu eles me ajudavam, e
sempre que eles me pediam também eu ajudava eles. Então esse espírito eu acabei
desenvolvendo ele mais. Talvez lá em Cabo Verde eu nem me preocupava, eu era
amiga, mas era uma coisa natural, que eu nem lembrava. Aqui eu percebi o valor de
uma boa amizade, percebi mesmo. Porque eu me senti sozinha num mundo
diferente…”

A reflexão da estudante nos mostra uma qualidade que ela desenvolveu fruto da
experiência de vir estudar no Brasil e da solidão e isolamento que esta experiência acarreta.
No entanto, a aluna em questão logrou driblar as dificuldades através do desenvolvimento de
uma qualidade de solidariedade e companheirismo. É importante percebermos que este tipo
de desenvolvimento pessoal passa a ser um novo elemento presente na identidade do
102

indivíduo, uma nova referência que dificilmente será abandonada mesmo depois do fim da
experiência de estudar no Brasil. Os alunos, na sua maioria, admitem ou prevêem que
diversos elementos culturais, como o sotaque próprio do português do Brasil, os hábitos
alimentares e algumas formas de comportamento, serão apenas passageiros, desaparecendo a
medida que o indivíduo se reinserir no contexto cultural e social do seu país natal. Contudo,
todos os estudantes entrevistados percebem que estas mudanças pessoais dificilmente
desaparecerão, pois não foram simples adaptações a um meio cultural, mas sim adaptações a
uma nova etapa da vida. Elementos tais como a responsabilidade, a autonomia e a maturidade
continuarão com estes estudantes para o resto da vida.
Outro tipo de desenvolvimento pessoal que, nas reflexões dos alunos estrangeiros,
ficará para toda a vida é o crescimento produzido pela formação intelectual e profissional
proporcionado pela Universidade de Brasília e seus diferentes elementos. Segundo os alunos
de determinadas áreas – é importante frisar que apenas alunos de determinados cursos de
humanas como economia e sociologia se manifestaram neste sentido – aprofundar-se
intelectualmente em áreas do conhecimento que permitam novas e mais abrangentes visões
sobre a realidade é um aspecto importantíssimo do crescimento pessoal por estes alunos
vivenciado durante sua experiência de estudar no Brasil. Observe-se, por exemplo, as
reflexões do estudante guineense M.F., quem cursa Sociologia na UnB, com relação às
mudanças que ele observa no seus modos de pensar e de se expressar:

“As minhas formas de pensar e de ver as coisas tem mudado muito, estão muito
diferentes. Com o tempo você percebe que mudou muita coisa em você. A primeira
coisa que mudou foi minha visão com relação ao mundo cara. Quando eu falo do
mundo eu falo das relações inter-pessoais, das relações humanas…, é uma coisa que
eu percebo que mudou muito em mim. Umas coisas que eu não entendia eu consigo
entender hoje. Consigo analisar e ver a origem…, e como deve ser tratado. É uma
coisa que é muito importante para mim. (…) Eu acho que quanto mais você pratica,
mais você ganha a habilidade da linguagem e tem mais visão de exemplos. Você
ganha mais habilidade tanto na fala, como na forma de pensar e expressar no seu
interior. Eu tenho uma maior facilidade de expor os argumentos, organizar o
discurso na cabeça…”

Vejamos ainda, como o estudante de Economia E.O., 21 anos, natural de Cabo Verde,
tem se desenvolvido e se beneficiado graças ao meio acadêmico e a opção profissional que
este oferece:

“Isso é uma das coisas que eu agradeço ter chegado aqui em Brasília, que é
justamente a questão do profissionalismo, que vem automaticamente associada à
sociabilidade. Então eu acredito que isso teve um grande impacto, e isso só
aumentou mesmo desde quando eu passei a participar da empresa júnior. Porque tem
a questão da disciplina. Tem que preencher os requisitos mínimos para ser um
103

empresário júnior. Justamente para não deixar a empresa na mão e contribuir para
que a imagem da própria empresa se valorize automaticamente e que o próprio PIB
da empresa possa aumentar. (…) As mudanças na minha forma de falar são
notáveis, principalmente pelo fato do meio acadêmico exigir isso do aluno,
principalmente do aluno estrangeiro, que acaba por pegar várias particularidades
lingüísticas. É também derivado das leituras, dos temas abordados no curso, nas
disciplinas. E também pela convivência com pessoas que já tiveram um tempo
significativo dentro do mundo acadêmico, o que acaba por culminar em mudanças
na nossa maneira de expressar.”

Em ambos os trechos conversacionais, fica bastante evidente que os estudantes têm


sentido um forte desenvolvimento de suas capacidades intelectuais (no caso de M.F.),
profissionais (no caso de E.O.) e lingüísticas. Em diversas outras entrevistas também
aparecem as manifestações dos alunos com relação ao seu desenvolvimento intelectual,
sempre acompanhadas de um forte sentimento de gratidão para com a UnB e o governo
brasileiro, bem como da vontade de canalizar e aplicar esse conhecimento adquirido no Brasil,
no desenvolvimento de seus países natais.

A experiência de vir estudar no Brasil, como pôde ser visto, é extremamente rica não
apenas pelo contato e pela diversidade cultural que o aluno estrangeiro aqui encontra. Esta
experiência é muito satisfatória também do ponto de vista do crescimento do indivíduo em
vários aspectos pessoais, crescimento este que determina uma mudança irreversível na
personalidade e na identidade do estudante migrante. Na maioria dos casos, os estudantes
africanos chegam ao Brasil com perspectivas e vivências muito diferentes da realidade que
encontrarão no Brasil. Tanto o forte choque com a realidade brasiliense, quanto as
possibilidades positivas que a experiência de estudar fora de casa oferece, agirão
incessantemente sobre a identidade do indivíduo, o qual irá embora do Brasil muito diferente
de quando chegou pela primeira vez. O indivíduo acoplará, ao longo desta grata experiência,
novos elementos à sua identidade, ao mesmo tempo em que outros elementos ficarão sem
sentido e serão esquecidos. Às atribulações culturais e sociais somam-se a descoberta de
novas responsabilidades e possibilidades e o crescimento pessoal, elementos capazes de
reformular a identidade de um indivíduo por si só.
De acordo com as entrevistas e as reflexões dos estudantes mais maduros, podemos
afirmar que os estudantes migrantes que vem ao Brasil cursar um curso superior tendem a
amadurecer e a crescer muito, tanto pessoal, quanto intelectualmente, no cenário brasileiro.
Neste sentido, a experiência de estudar no Brasil certamente sempre será lembrada e inclusive
recomendada para os mais jovens como positiva. Na subjetividade social de países tais como
Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, onde a migração é um forte elemento
104

cultural, a experiência de “estudar fora” pode se configurar quase como um rito de passagem,
como uma etapa fundamental para o desenvolvimento pessoal e intelectual dos jovens
daquelas sociedades.

4.4. A importância do grupo nas dinâmicas identitárias

Na discussão anterior sobre as questões do imaginário e do choque com a realidade


brasileira, já apareceram, em diversos momentos, alguns dos pontos centrais que serão
tratados neste ultimo núcleo temático. De fato, já vimos como uma das principais mudanças
identitárias que os alunos estrangeiros geram aqui no Brasil, passa pela valorização e o
fortalecimento do coletivo nacional daqueles estudantes aqui em Brasília. Esta temática, no
entanto, possui vários outros pontos interessantes e importantes que revelam como os
comportamentos e os posicionamentos identitários são produzidos e manifestados pelos
estudantes africanos que estudam no Brasil. Desde a ação do grupo sobre os indivíduos no
sentido de “recrutá-los” para seus interesses de afirmação e continuação, até as situações em
que os conflitos internos do grupo se expõem e acabam por fragmentá-lo e enfraquecê-lo,
existem diversas situações e elementos que nos mostrarão as dinâmicas do “jogo” de
identificação e afirmação que toma lugar nos espaços sociais da Universidade de Brasília.

4.4.1 A relevância da existência do grupo para os processos identitários dos indivíduos

A existência de um grupo que acolha os estudantes estrangeiros no momento em que


eles chegam e se estabelecem na realidade brasileira, é algo extremamente determinante para
o futuro da identidade dos estudantes que chegam a Brasília. Encontrar, em Brasília, um
grupo oriundo do mesmo lugar, que possua a mesma identidade e que busque os mesmos
objetivos pode fazer toda a diferença nas concepções e nas mudanças identitárias que um
determinado indivíduo possa vir a sofrer no novo contexto cultural. É de se esperar, por
exemplo, que um jovem cubano que chegue em território brasileiro sem ter absolutamente
ninguém com quem compartilhar e preservar a sua cultura cubana, acabe desenvolvendo uma
necessidade de interagir com a realidade brasileira muito maior do que um jovem cabo-
verdiano que chega em Brasília e encontra um vasto grupo de conterrâneos na sua faixa etária
dispostos a acolhe-lo e ajudá-lo. Neste sentido, já nos referimos anteriormente, por exemplo, à
aluna cabo-verdiana V.L. e ao fato dela ter desenvolvido, após sua chegada ao Brasil uma
105

empatia e uma perspectiva de integração para com a população brasileira, em grande parte
devido ao fato dela não ter sido acolhida pelo grupo de estudantes cabo-verdianos existentes
no Brasil. De fato, podemos perceber, nas reflexões de V.L., a associação entre a falta de
contato e de fechamento no grupo dos estudantes cabo-verdianos, com o desenvolvimento de
um modo mais “aberto” de ver e sentir a sociedade brasileira e sua cultura:

“Eu acho que aqui eu consolidei o que eu trouxe comigo. Eu acho que o que eu
trouxe, o que veio comigo tem a ver com o que me ensinaram na minha casa. E eu
acho que os meus valores aqui se tornaram mais forte porque eu caí num ambiente
que era propício àquilo, me favoreceu àquilo. Porque quando eu cheguei aqui eu não
morei em república, eu morei num pensionato de freiras, sabe assim? Que tinha um
rigor, tinha um horário para chegar e que todo mundo que estava lá supostamente
tinha uma coisa, uma tradição para a religião. Eu acho que eu consolidei o que eu
tinha, o que eu trouxe, mas eu acho que eu me tornei mais aberta. Sabe, eu acho que
você vem, é uma experiência diferente, você convive com uma cultura diferente,
com pessoas diferentes e eu acho que necessariamente você se torna mais aberto,
mais tolerante… Eu me tornei muito mais aberta e mais tolerante e as vezes eu até
olho e acho que me tornei mais sensível. Você se torna uma pessoa mais sensível
para um monte de coisa. E sobretudo eu me tornei uma pessoa muito crítica, porque
eu passei a estar numa sociedade que exala muito isso.”

Como podemos analisar no trecho, ao refletir sobre o ambiente que a acolheu aqui no
Brasil, a aluna V.L. demonstra sua satisfação por ter residido em um local “neutro”
caracterizado pela disciplina, o rigor e a tranqüilidade, e que lhe permitiu extrair e melhorar
muitas coisas nela mesma. Por outro lado, ao opor esta localidade que ela escolheu à
“república” – que neste caso pode ser considerada como o símbolo do grupo, a aluna deixa
transparecer entre as linhas que esta localidade talvez não tenha as mesmas condições
propícias que, no seu caso, lhe permitiram se desenvolver uma vez estabelecida no meio
brasileiro. Acredito que podemos inferir, segundo este trecho, que existe uma ligação entre o
estabelecimento ou não de relações com determinados grupos, e as possibilidades de
desenvolvimento do indivíduo dentro da nova realidade cultural na qual foi inserido. No caso
de V.L., por exemplo, ela expressa como se tornou uma pessoa muito mais aberta e
interessada na realidade brasiliense, a ponto mesmo de começar a assimilar, de forma
consciente, novos elementos culturais – como o pensamento crítico – que modificam as
formas como ela se identifica.
Mesmo havendo um grande número de casos, inclusive entre os alunos entrevistados,
de estudantes migrantes que não mantêm relações com os seus respectivos grupos nacionais
aqui em Brasília, prevalecem os casos em que o convívio e a participação nas atividades do
grupo são momentos comuns da vida dos estudantes estrangeiros. É importante, portanto, para
compreender alguns dos processos a que os estudantes estão sujeitos, entendermos o
funcionamento destes grupos de estudantes estrangeiros da Universidade de Brasília. Com
106

base tanto nas entrevistas realizadas junto aos estudantes, quanto às observações
desenvolvidas em espaços importantes onde se desenvolvem as atividades dos grupos,
vejamos algumas características principais destes grupos que se formam no meio intelectual
da UnB, e como estes desempenham um papel importante na vida do estudante estrangeiro no
Brasil.
Estes grupos que muitas vezes se tornam o principal “porto seguro” do estudante
africano durante sua experiência no Brasil, se estruturam fundamentalmente em torno à
identidade nacional, em torno ao país de origem. Assim, no ambiente acadêmico pode-se
observar nitidamente como os alunos africanos geralmente estão acompanhados de
conterrâneos. Tanto no horário de almoço, quanto no tempo livre, ou até mesmo dentro das
salas de aula, é comum vermos, por exemplo, os estudantes oriundos de Cabo Verde, andando
juntos, almoçando juntos, estudando juntos, chegando e indo embora do campus juntos, etc.
Claro que há momentos específicos em que aparece, entre os alunos africanos, outra forma de
organização grupal que se estrutura em torno à outro tipo de identidade. Dentro da sala de
aula, por exemplo, é comum que os estudantes africanos tendam a desenvolver amizade e
unir-se para assistir a aula, estudar, fazer trabalhos e etc. Em outras ocasiões e espaços sociais,
como comemorações que abranjam toda a cultura africana ou festas onde há uma grande
quantidade de brasileiros, podemos observar como a identidade como “africano” se sobressai
às diferenças regionais e acaba por criar uma categoria de união que fortalece o grupo naquele
momento específico. Estas dinâmicas de identificação e suas particularidades serão abordadas
mais a frente, por enquanto trataremos das comunidades estudantis dos diferentes países e
suas maneiras de agir sobre o indivíduo. As principais destas comunidades em Brasília,
conforme os próprios dados do PEC-G revelam, são a dos alunos cabo-verdianos, dos alunos
guineenses e dos alunos são-tomenses. Devo ressaltar que estas comunidades são as maiores
em termos de estudantes na UnB, em termos de membros em Brasília propriamente podemos
ainda citar a comunidade Nigeriana, Moçambicana e principalmente a comunidade Angolana.
No entanto, o que importa para análise que queremos desenvolver é o número de estudantes
da comunidade na UnB e o peso que logram estabelecer como grupo dentro dos espaços
sociais da Universidade. Neste sentido, analisaremos mais os grupos formados pelos
estudantes dos três países citados acima, especialmente a comunidade de alunos cabo-
verdianos, cuja observação foi muito importante para a realização deste trabalho.
Um primeiro aspecto que devemos considerar sobre as comunidades formadas pelos
alunos da Universidade de Brasília, é o forte grau de influência que estes grupos exercem
sobre os alunos, principalmente sobre os alunos que estão chegando em Brasília pela primeira
107

vez. Como explicitado em diversos momentos durante a realização das entrevistas, é notório
como os estudantes cabo-verdianos, guineenses e são-tomenses costumam se localizar em um
espaço limitado da área brasiliense. Como nos explicou o ex-estudante cabo-verdiano C.V., a
comunidade cabo-verdiana que reside em Brasília se limita a transitar e conhecer um pequeno
espaço da geografia brasiliense, justamente aquele espaço que está mais perto do campus da
Universidade. Segundo ainda as palavras de C.V., todo aluno cabo-verdiano que chega em
Brasília logo percebe e é percebido pela comunidade, que naturalmente passa a influenciar e
agir sobre este indivíduo no sentido de “cooptá-lo” e integrá-lo às dinâmicas e ao cotidiano do
grupo. Perceba-se que estas tendências do grupo de alunos cabo-verdianos é perfeitamente
normal e natural, não algo planejado e executado com algum propósito. No entanto, este
fenômeno não deixa de ter conseqüências negativas que podem determinar muito a forma de
interagir e o desenvolvimento dos estudantes cabo-verdianos em Brasília, como fica claro nas
reflexões de vários estudantes. No caso dos estudantes cabo-verdianos e são-tomenses,
portanto, este fenômeno grupal pode acarretar uma falta de interesse e um desconhecimento
da realidade brasiliense, pois os estudantes se limitam a transitar em poucas quadras da L2
norte e se limitam a interagir apenas entre eles, dada a proximidade das repúblicas dentro
desta região. Por outro lado, o caso dos estudantes guineenses apresenta um fechamento ainda
maior do grupo, já que os estudantes guineenses ocupam, quase todos, vagas no C.E.U – Casa
do Estudante Universitário, limitando-se ao campus da UnB como local de convivência e
interação com a realidade brasileira. Este fator de diferenciação entre a comunidade dos
alunos guineenses e as outras duas, o qual tem sua origem em fatores econômicos – os
estudantes guineenses ganham as vagas no CEU dado o menor poder aquisitivo que possuem,
servirá, posteriormente para fazer importantes reflexões sobre a união dos grupos de
estudantes. A respeito das características de cooptação e coesão destas comunidades de alunos
africanos da UnB, observemos o seguinte trecho do aluno C.V:

“Quando você chega aqui você é acolhido pelos cabo-verdianos. Ou seja, a


comunidade cabo-verdiana é um território cabo-verdiano dentro do Brasil, ainda é.
Porque? Porque os cabo-verdianos entre eles compartilham os mesmos hábitos que
se compartilham em Cabo Verde, compartilham os mesmos costumes que se
compartilham em Cabo Verde. Então, ou seja, para todos os efeitos, um cabo-
verdiano dentro do Brasil vive num Cabo Verde, dentro do Brasil! A minha
recepção foi pelos cabo-verdianos, a minha convivência foi entre os cabo-verdianos,
até porque eu me demorei e comecei a me dar conta de onde eu estava, do que eu
estava fazendo depois de uns tempos. Porque eu não tive uma intenção inicial de
conviver só com os cabo-verdianos. Se você parar pra notar, você percebe que todos
os cabo-verdianos moram do inicio da Asa norte, até o final da Asa norte. Não sei se
você já percebeu isso. Você não consegue encontrar nenhum cabo-verdiano que
possa morar fora de Asa norte. Se você tivesse um estudante brasileiro que tivesse a
mesma renda de um estudante cabo-verdiano, dificilmente ele moraria na asa norte,
108

ele morava nas cidades satélites, onde ele pagava mais barato e sobrava mais
recursos pra fazer mais coisas. Então o cabo-verdiano ele não tem muita noção do
contexto onde ele está. Isto eu falo por muito da minha experiência, pelo que eu
observo. Ou seja, ele chegou, encontrou vivência aqui, então ele fica lá onde estão
os cabo-verdianos. Eu te digo com muita firmeza que, se um cabo-verdiano chegar
agora e encontrar todos os cabo-verdianos morando no Guará ou em Taguatinga, ele
vai ficar lá também porque…, a fruta cai debaixo da árvore”

Vemos no trecho como o grupo dos alunos cabo-verdianos tende a uma união acima
de tudo. Desde que um aluno vindo de Cabo Verde chega em Brasília, o grupo de estudantes
cabo-verdianos passa a ser talvez a principal referência do aluno no novo lugar. Esta coesão e
esta união podem ser algo inevitável dadas as condições em que estes alunos chegam em
Brasília: um total desconhecimento da cidade, com pouco dinheiro e necessitando encontrar
uma “república” de estudantes para morar, com alguma indicação para procurar algum
estudante já estabelecido na cidade, e com uma certa falta de maturidade e experiência para
saber o que significa conhecer e viver num país e numa cultura diferentes. No entanto, mesmo
que o fenômeno da inserção dentro do grupo seja natural e inevitável, este fato acarreta
conseqüências negativas que só serão percebidas pelos alunos muito depois, como é o próprio
caso do aluno C.V.. A rápida inserção nas dinâmicas e nos espaços do grupo de estudantes
residentes em Brasília, assim como o caráter fechado deste podem levar estes alunos a uma
acomodação e um desconhecimento profundo da sociedade brasiliense. Isto já ficou claro em
algumas passagens de C.V., observemos agora o que pensa o estudante cabo-verdiano M.D.,
ao ser perguntado sobre a relação entre o grupo dos cabo-verdianos e o meio brasileiro
quando ele chegou para estudar aqui em Brasília:

“Muito preconceituosa, dos africanos, dos cabo-verdianos principalmente, com


relação aos brasileiros. Com certeza também existe preconceito dos brasileiros com
a gente. Mas eu via muito o dos cabo-verdianos, porque eles (cabo-verdianos)
achavam que a gente não devia andar com eles (brasileiros), sair com eles, que eles
eram brasileiros e podiam nos trair a qualquer momento, entendeu? Tem muito disso
entendeu, mesmo entre os africanos, os cabo-verdianos com os angolanos têm essa
rixa, com os guineenses têm essa rixa. Eles tentam viver muito nessa comunidade
cabo-verdiana, muito pequena assim, muito fechada entendeu. (…) Isso é mais um
reflexo do grupo, por causa de medo…Isso é um erro que eu acho que vem
perpetuando desde sempre. Porque muitas vezes chegam uns calouros, ai eles
chegam e infelizmente vão diretamente para a casa dos cabo-verdianos que já estão
aqui inseridos. E se você não conhece um cabo-verdiano que tentou integrar-se (com
a realidade brasileira), por exemplo, você vai ficar lá, fazendo parte desse grupo,
porque vão te levar para o grupo deles entendeu? Eles vão fazer sempre as mesmas
coisas. E então ai você acaba como eu te falei. Os cabo-verdianos acabam se
acomodando, essa é a parada, acabam se acomodando no meio desse grupo e não
tentam sair para conhecer outras coisas.”
109

No trecho de M.D., quem como C.V. estabeleceu laços matrimoniais com uma mulher
brasileira, podemos observar como o fato de determinado indivíduo se manter completamente
fiel e comprometido com os interesses e tendências do grupo pode ser prejudicial para ele.
Nas reflexões de ambos os estudantes eu pude perceber como eles geram reflexões críticas a
respeito do próprio grupo dos estudantes cabo-verdianos não porque eles nunca fizeram parte
dele, tal como a doutoranda V.L., senão porque eles integraram este grupo e fizeram parte do
seu “quadro” durante muito tempo, tendo em determinado momento, no entanto, tomado
outros caminhos que os fizeram enxergar os malefícios de se manterem fechados na sua
comunidade e o “tempo perdido” com relação à interação e ao conhecimento da sociedade
brasileira.
A inserção nestes tipos de comunidades nacionais, no entanto, não apresenta apenas
aspectos negativos para os alunos que deles participam. Devemos ressaltar que muitos alunos
encontram no grupo fontes diversas para o desenvolvimento e o crescimento. Neste sentido, a
importância dos grupos vai para além de dar suporte e tranqüilidade aos estudantes recém-
chegados, ou fortalecer a identidade e a cultura de determinado país em solo brasileiro. Do
ponto de vista dos indivíduos, a experiência de encontrar e participar de um grupo de
conterrâneos fora de seu país, pode lhes trazer grandes benefícios sociais e culturais. Muitos
alunos guineenses manifestam, por exemplo, a importância de conviver com estudantes da
própria terra, mas que, no entanto, cursem outros cursos. Isto faz com que, nos debates e
discussões constantes dentro da comunidade, existam diferentes pontos de vista e diferentes
argumentos fundamentados por diferentes áreas do conhecimento. Estes debates costumam
ser, assim, bastante frutíferos para os membros do grupo dos alunos guineenses, que acabam
absorvendo um pouco de cada área do saber e desenvolvendo projetos e idéias mais completas
e complexas com relação ao seu país (na comunidade guineense se percebe um engajamento e
uma vontade política maiores que em outras comunidades, todos os guineenses entrevistados
manifestaram sua vontade de voltar e ajudar seu país em diferentes aspectos).
Outro ponto positivo que a existência do grupo e a participação no mesmo acarreta
para o fortalecimento da identidade nacional do indivíduo é o que diz respeito ao
conhecimento cultural e social do próprio país que se passar a ter uma vez que se convive
com outros conterrâneos de outras regiões e outras idades. Neste sentido observemos as
seguintes reflexões da aluna cabo-verdiana L.S.:

“Como aqui tem uma diversidade cultural muito grande, mesmo não aceitando, a
gente passa a ver o que acontece em Cabo Verde. Tem diversidade em cada ilha,
mas a gente tem aquela limitação, a gente acaba por conhecer mais a nossa e não
110

buscar conhecer sobre as outras. (…) Agora eu reparei, quando eu sai eu vi, quantas
coisas eu deixei de conhecer em Cabo Verde por causa da limitação da minha ilha.
Quando eu sai que deu pra perceber isso. Quando eu entrei em contato com os
outros meninos das outras ilhas eu falei: „Poxa, quantas coisas tinha dentro de Cabo
Verde e eu não conhecia‟. Então quando você acaba saindo e conhecendo outros
cabo-verdianos, que eles acabam te mostrando outras coisas típicas das ilhas e você
acaba conhecendo. Outro dia foi muito engraçado, eu fui almoçar na casa dos
meninos, a maioria é de Santo Antão e de São Vicente (L.S. é da ilha de Santiago),
aí eles estavam fazendo peixe cozido, peixe seco aliás. O peixe seco é um peixe que
eles trouxeram da nossa ilha, leva vários legumes, várias coisas. Tinha um legume
que eu nunca tinha visto na minha vida, e o pessoal: „poxa, você não teve infância, a
gente comia isso‟. É uma coisa da ilha deles, eu nunca tinha comido nada de fora da
milha ilha, então a gente não comia assim. Acabei aprendendo mais uma coisa. E lá
a gente ficou: „ah quando eu era criança eu comia isso‟, e eu: „ o que que é isso?‟
Sabe, são frutos típicos da ilha deles que eu não tinha noção que existisse. E eu
descobri isso justamente por sair fora, porque a gente tem esse contato quando a
gente sair fora.”

Neste trecho da conversa com L.S. a gente percebe um aspecto extremamente positivo
da convivência e da participação no grupo dos estudantes cabo-verdianos de Brasília. Ela nos
mostra como foi descobrindo coisas novas e desconhecidas para ela através do contato com
cabo-verdianos de outras ilhas (Cabo Verde é um arquipélago com 10 ilhas). Neste sentido o
ganho e os benefícios que a estudante L.S. obteve ao conviver com seu grupo foram além da
simples afirmação e união frente à realidade cultural diferente do Brasil, chegaram a
atingiram e modificar a própria identidade de L.S. como cabo-verdiana e como natural da ilha
de Santiago. Isto acontece em alto grau com a comunidade cabo-verdiana devido às
características geográficas deste país. É muito raro, entre a população de alunos cabo-
verdianos em Brasília, encontrar alguém que conheça um numero razoável das ilhas que
formam o país. Na maioria dos casos os estudantes costumam conhecer suas ilhas e a ilha
onde se encontra a capital (Santiago). A experiência de vir estudar no Brasil é extremamente
rica para esta população, já que a troca cultural entre indivíduos do próprio país é um
elemento extra vivenciado pelos estudantes. Este fenômeno também acontece com os
estudantes são-tomenses, os quais tem contato com pessoas oriundas da outra ilha (São Tomé
e Príncipe são duas ilhas que constituem um país), e entre os estudantes guineenses, onde é
comum o contato entre a população da capital e a população do interior e entre membros de
diferentes etnias.
Como podemos observar através dos trechos acima, a ação do grupo no indivíduo
determinará, em algum grau pelo menos, quais são as possibilidades futuras desse indivíduo
no que toca à interação com o meio brasileiro e à transformação da sua identidade. A falta de
contato com o grupo abre a possibilidade de um envolvimento e uma transformação grande da
própria identidade; por outro lado, a cooptação do indivíduo pelo grupo pode gerar um
fechamento e uma valorização, um reforço da própria identidade nacional e cultural. Neste
111

caso, diversos fatores vão desempenhando seus papéis ao mesmo tempo. A identidade
nacional do indivíduo se fortalece não apenas porque este se fecha ao contato com a
comunidade brasileira e convive apenas com “os seus”, mas também porque as dinâmicas e
modos de afirmação do grupo lhe cobram, ao mesmo tempo que lhe suscitam, um
posicionamento de afirmação e orgulho incondicional com relação à sua cultura e ao seu país.
Nas diversas observações que fiz em manifestações culturais e festas destas comunidades é
possível ver como os indivíduos acabam desempenhando o papel nacionalista que o grupo
lhes imprime. Pode ser que estes indivíduos sejam de fato extremamente nacionalistas e
orgulhosos, mas está claro que quando se encontram na condição de “membro do grupo”,
principalmente em alguma manifestação ou apresentação cultural, eles tem o dever de serem
extremamente nacionalistas e orgulhosos. Outro aspecto que favorece o fortalecimento da
identidade nacional é a produção de uma imagem mais completa e rica do que seja o próprio
país, produção esta que se dá graças à interação com membros do próprio grupo. Todo este
fortalecimento da identidade nacional e cultural é extremamente benéfico em uma série de
pontos, acontece, porém, que muitos indivíduos passam a viver exclusivamente inseridos
dentro deste grupo, o que os torna desinteressados e cegos com relação ao contato cultural e
às possíveis vantagens que possam tirar deste.
Em meio a todas estas possibilidades devemos lembrar que vivenciar uma experiência
transcultural é extremamente complexo e difícil. Particularmente, acredito que a experiência e
a maturidade possuem um papel fundamental dentro do processo transcultural, sendo
características que podem levar os indivíduos a repensarem e reavaliarem suas posições com
relação ao grupo, ao Brasil, às suas perspectivas iniciais, aos seus projetos iniciais, etc. Não é
a toa que diversos entrevistados puderam avaliar e refletir sobre as comunidades de estudantes
da UnB desde dois pontos de vista diferentes: desde dentro e desde fora. A trajetória do aluno
estrangeiro no Brasil é longa e conturbada, caracterizada pelo choque cultural, pela
transformação social e intelectual, pelo crescimento pessoal e outros fatores de peso. Nesse
sentido, parece-me natural que as primeiras respostas subjetivas tendam a ser a da afirmação
junto à comunidade, à do distanciamento com relação à cultura brasileira e ao brasileiro em si,
a de projetar a volta o quanto antes, etc. Contudo, à medida que o indivíduo vivência e se
alimenta cada vez mais da cultura brasileira e das outras culturas com as quais interage, vão se
gerando novas reflexões e pontos de vista, novos projetos e idéias que vão levando o
estudante estrangeiro por seu caminho próprio. Muitas vezes as necessidades de afirmação e
integração se misturam e confundem, bem como se há períodos em que o sentido da
experiência gira em torno da comunidade, certamente haverá outros em que novos sentidos
112

sobre a experiência transcultural serão gerados e o grupo possa vir a ser rechaçado por parte
do indivíduo.

4.4.2. As dinâmicas de identificação na comunidade dos estudantes africanos

Outro aspecto interessante no que concerne aos grupos de estudantes estrangeiros da


UnB é o das dinâmicas de identificação entre estes grupos e no interior de cada um deles.
Segundo o “jogo da différance” como concebido por Stuart Hall para analisar as questões
identitárias, a identidade é algo em constante formação, sempre incompleta e sempre numa
busca “agonística” pelo acabamento e a completude. A identidade dos indivíduos está em
constante transformação com base em tudo o que ela não é e com base também nos discursos,
contextos e situações sociais e culturais que permitem e possibilitam novas posições de
sujeito às quais o indivíduo pode se agarrar. É dentro desta concepção que analisamos as
dinâmicas grupais que tem lugar nos ambientes onde os diferentes grupos de estudantes
africanos, bem como a sociedade brasiliense se encontram e convivem.
É extremamente importante, para uma apuração e avaliação melhor da própria
identidade, que o indivíduo esteja constantemente entrando em contato com elementos
diferentes e desconhecidos. Para um estudante africano inserido numa experiência
transcultural como a de vir estudar no Brasil, o que não faltam são elementos culturais e
sociais novos e inesperados. Sendo assim, vai se gerando, à medida que este estudante se
estabelece no meio cultural brasileiro, um forte embate entre seus elementos culturais e sua
identidade e os elementos culturais e a identidade do país que o acolhe. No caso específico
que analisamos, no entanto, os estudantes não enfrentam apenas a realidade cultural brasileira,
senão que entram em contato também com muitas outras culturas, muitas outras realidades
sociais e culturais representadas pelos estudantes dos mais variados países que cursam seus
cursos na UnB. Este choque múltiplo, com múltiplas culturas e múltiplas maneiras de pensar
gera elementos muito importantes a nível grupal, que podem agir de maneira determinante
inclusive nas identidades individuais.
Como visto anteriormente, na UnB estudam uma grande quantidade de estudantes
estrangeiros oriundos principalmente da América Latina e da África. No que toca ao
continente africano há um bom número de países representados no cotidiano da UnB. A
existência de várias comunidades de estudantes africanos na realidade brasileira, bem como o
desconhecimento e a ignorância que os estudantes africanos constatam no ambiente social e
intelectual da UnB com relação à África, possibilitam um fenômeno interessante do ponto de
113

vista da identidade: a descoberta da “africanidade” e identificação como “africano”.


Observemos os seguintes trechos extraídos das entrevistas:

“Eu em Cabo Verde não me afirmava como africana, ou então que eu tinha alguma
ascendência africana. Pra mim eu era mestiça e pronto. A realidade daqui foi o que
me chocou, porque aqui mesmo eu fui tratada como negra e africana. Ai eu comecei
a tentar buscar, procurar a minha identidade. Eu comecei a ver que realmente eu sou
africana, apesar de eu estar no oceano Atlântico, estar no meio do oceano
geograficamente, mas politicamente, economicamente, socialmente eu faço parte da
África. Mesmo que seja uma forma de distanciamento ou proximidade eu faço parte
da África, eu sou africana, porque a minha raiz está na África. Eu não tenho nada a
ver com a Europa, por mais que o cabo-verdiano queira se aproximar com a Europa
e tudo mais, a gente não tem nada da Europa.”

“Quando eu cheguei aqui eu passei a ter essa consciência que eu era africano.
Porque quando o povo fala: „tu é africano?‟ No começo eu dizia: „sim, mas eu sou
mais nigeriano que africano‟. A África é o continente gente. É como se eu chegasse
aqui e falasse: „cara, você não é sul-americano?‟ „Não!, sou brasileiro!‟ Exatamente
isso.”

Em ambos os trechos aparece, embora que de maneira diferente, o mesmo fenômeno


de descoberta de uma “africanidade”, de uma identidade e de uma comunidade centradas na
idéia da África, principalmente como esta idéia aparece no contexto brasileiro onde os
estudantes estão inseridos. No primeiro trecho podemos observar como a estudante cabo-
verdiana P.V. se depara, na realidade brasileira com um elemento que a leva a repensar e a
reavaliar certos aspectos da sua identidade. É importante frisar, a este respeito, que durante o
convívio com o grupo dos estudantes cabo-verdianos de Brasília, pude observar diversas
vezes as polêmicas em torno à origem de Cabo Verde e sua associação ou não com o
continente africano. Existem discursos e argumentos que tentam separar Cabo Verde da
África em função do modo como se deu sua povoação ou devido às influências que sofre de
Portugal e outros países europeus, além dos EUA. É este modo de pensar que podemos
observar nas entrelinhas do depoimento da estudante P.V.. No entanto, como ela mesma
coloca, uma vez estabelecida no Brasil, esta estudante passou a sentir na pele o mesmo tipo de
discriminação, menosprezo e desvalorização que a maioria dos estudantes africanos sofrem na
realidade brasiliense. Isto leva P.V. a fazer uma importante reavaliação e a reposicionar-se em
termos políticos e identitários com relação às suas raízes, ao seu país e sobretudo a si mesma.
Várias outras entrevistas revelam, de fato, como, ao chocarem com elementos da realidade
brasiliense como o preconceito e a ignorância com relação à África, uma resposta muito
comum dos estudantes estrangeiros é a adoção da identidade de “africano”. O segundo trecho,
citado acima, do aluno nigeriano W.O., nos mostra claramente como essa concepção
identitária de “africano” é algo que é gerado e definido com mais força uma vez que o
estudante estrangeiro chega ao Brasil. Nos seus países de origem, os indivíduos em questão
114

não necessitam e não se afirmam como africanos, se identificam apenas com seu país e outras
identidades abaixo deste nível, tais como o pertencimento a diferentes etnias na Guine e na
Nigéria, ou o fato de nascer em determinada ilha em Cabo Verde. É uma vez aqui no Brasil,
onde a África, como os próprios estudantes colocam, é tratada com um grande país,
caracterizado pela barbárie, pela fauna e flora selvagens e pelas inúmeras tribos, que estes
estudantes passam a ter mais contato com esta forma de identificação. A generalização sobre a
África, assim como a visão simplista e pré-concebida sobre as culturas, tradições e
características naturais que lá se encontram, associadas ao desconhecimento quase absoluto
sobre os países especificamente, gera reações interessantes do ponto de vista identitário. A
reação natural a este fenômeno é a apropriação deste elemento identitário como forma de se
afirmar e “contra-atacar” o imaginário precário que se tem no Brasil sobre o continente
africano.
Tendo em vista esta problemática encontrada pelos estudantes africanos no Brasil e o
posicionamento que estes adotam no sentido de se afirmarem, é comum, nos ambientes em
que os grupos sociais brasileiros e africanos convivem, observarmos como as diferentes
comunidades de alunos africanos se juntam, se agregam e se afirmam como “africanos” e
como “negros” em uma produção identitária que claramente se opõe e nega a população
brasileira. É assim, por exemplo, nas diversas festas relacionadas com a África organizadas
tanto pela comunidade de alunos estrangeiros, quanto por brasileiros. Pude participar, ao
longo do período de convivência e observação com o grupo de alunos cabo-verdianos, de
inúmeras festas deste tipo, tais como as festas de independências dos variados países, as
“International Partys”, as festas promovidas pelo dia da consciência negra, etc. É notável,
nestes ambientes festivos, como os alunos africanos presentes coexistem, se juntam e se
relacionam como se fossem, de fato, uma grande comunidade homogênea. Por outro lado,
esta união acarreta a desunião com o grupo de brasileiros presentes – e um detalhe
interessante é que não importa se os brasileiros em questão sejam negros ou brancos, a
diferenciação com base na categoria “africano” é mais forte do que a união com base na
categoria “negro”. Pode-se observar, portanto, um grande grupo de estudantes africanos
participando da festa à sua maneira, separados ora simbolicamente apenas, ora simbólica e
espacialmente do grupo dos alunos brasileiros que também tendem a se fechar entre eles.
Apenas elementos isolados de cada grupo participam da festa transitando entre os grupos ou
no grupo oposto.
Esta identidade fundamentada no continente africano é o primeiro nível do “jogo” de
associações e conflitos que vão determinando as identidades dos alunos estrangeiros
115

conforme as situações e contextos em que se encontram. Para um brasileiro que freqüente a


festa acima descrita, e que não tenha um contato mais profundo com os estudantes africanos,
poderia ficar a forte impressão de que os estudantes africanos são um grupo muito unido e
fechado. Contudo, isto está longe de ser verdade, já que o fenômeno de união que se
manifesta na festa descrita é apenas temporário e contextual. É uma resposta subjetiva do
grupo de estudantes à forma como a sociedade brasileira os vê e concebe, uma resposta que
visa fortalecer e afirmar a identidade do grupo e de cada um dos indivíduos.
Na realidade, a comunidade de estudantes africanos possui inúmeros conflitos e
fissuras que a fragmentam e separam seus grupos internos, assim como seus membros. Se
lançarmos um olhar mais profundo, observaremos outros níveis de identificação e afirmação e
os diferentes grupos que se opõem e se negam neste contexto. Um primeiro exemplo muito
claro é o da oposição entre os estudantes africanos advindos de países lusófonos e estudantes
africanos advindos de países não lusófonos. Vejamos a avaliação do estudante nigeriano W.O.
a este respeito:
“A relação entre estudantes nigerianos e os outros estudantes lusófonos não é 100%
não... Isso é uma questão também que a gente está querendo trabalhar encima. Não
sei o que que está errado com os africanos…, provavelmente foi pela colonização e
cada parte. O bom seria só essa idealização de cada um de nós crescendo. Porque
tem o fato de que eu tenho boas relações com quem é gente boa. Eu cumprimento
todo mundo, não tem essa restrição não: „Você não é nigeriano, então não vou
conversar contigo‟. Mas quando você faz uma coisa dessas eles não deixam que seja
uma coisa boa, então complica. Aqui tem mais do que seis ou sete países africanos e
a maioria eu não conheço, não porque eu não queira conhecer, mas porque eles não
estão dando essa oportunidade. Então fica complicado pra gente como um
continente que seja unido. É difícil.”

Este depoimento nos trás uma visão, de um aluno oriundo de um país de fala inglesa,
do conflito existente entre algumas comunidades de estudantes africanos, principalmente
entre aquelas que falam português e as outras. De fato, dada a grande quantidade de
estudantes oriundos de São Tomé, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, é
natural que estes alunos tendam e se identificar mais entre eles e desenvolverem menos
relações e interações com os estudantes nigerianos, botsuanos, congoleses e outros, presentes
em menor número no cotidiano da UnB. Com certeza a barreira da língua é muito
determinante para o contato e a interação ente estas comunidades, já que, mesmo muitos
alunos lusófonos dominarem algo da língua inglesa, e muitos alunos anglófonos dominarem
algo da língua portuguesa, estes estudantes costumam estar com seus respectivos grupos nos
espaços da universidade, se comunicando entre eles através dos seus dialetos culturais não
oficiais (quase sempre preferidos às línguas oficiais em conversas informais) como o crioulo
116

dos cabo-verdianos e o kikongo dos congoleses, o que dificulta a existência de um primeiro


momento de interação.
O principal tipo de fragmentação do grupo dos estudantes africanos consiste na divisão
por origem nacional. A oposição e a competitividade entre os diferentes países costuma ser
um foco primordial de conflito e produção identitária. Transitando dentro do grupo de
estudantes africanos e dentro de cada grupo específico percebe-se, para além das oposições e
provocações normais, a existência de conflitos tácitos e históricos entre alguns países,
principalmente entre os guineenses e os angolanos e os cabo-verdianos e os angolanos.
Vejamos um fragmento extraído da entrevista da estudante V.M.:

“Quando você fala „África‟, quando você fala: „eu sou africano‟ as pessoas pensam
que a África é uma coisa só. Mas não, tem muitos países na Africa que são muito
diferentes uns dos outros. Mas o que que acontece, você não vê um grupo de
africanos juntos, todos juntos. Isso só acontece quando você tem uma festa, esta todo
mundo lá. Mas mesmo numa festa você tem grupinhos. Porque eu sou diferente de
uma guineense, uma guineense é diferente de uma angolana. Ou seja, uma coisa que
eu faço aqui, no meio das cabo-verdianas, por exemplo, uma coisa que eu faça
assim: „Ah!‟, grito de uma forma e faço uma coisa meio pateta, as meninas e Cabo
Verde vão rir, cair no chão, porque elas estão me entendendo. Se eu fizer a mesma
coisa na frente de uma angolana, ela vai achar que eu sou uma doida e vai virar as
costas e vai embora. Então, a gente se agrupa justamente por ter os mesmos valores,
por conhecer as mesmas coisas, entendeu? Porque a gente sabe que nos
comunicando uns com os outros a gente se entende.”

A passagem expõe como os grupos, por mais que possam parecer unidos e
homogêneos em diversas circunstâncias, possuem conflitos e diferenças entre si, diferenças
que determinam visões e estereótipos sobre os quais vão se edificar as distinções e as
exclusões típicas dos processos de identificação. A oposição enfatizada pela estudante cabo-
verdiana V.M. entre os estudantes de seu país e os estudantes angolanos apareceu diversas
vezes durante as entrevistas. No entanto, foi como observador que pude apreciar toda a
magnitude desta problemática entre estes dois grupos. Ao ouvir e ver muitos cabo-verdianos
falando sobre os angolanos, descrevendo o seu comportamento nas festas, comentando sobre
sua união como grupo e sobre seu modo de ser e caráter, é constante a sensação de “definição
pela exclusão” da qual falam Michael Ignatieff e Kathryn Woodward ao comentar a oposição
entre sérvios e croatas, ou Evans-Pritchard ao analisar a sociedade Nuer e seu eterno conflito
com a sociedade vizinha. A situação oposta se dá de maneira idêntica. Ao observar, nas
conversas com estudantes angolanos, o imaginário sobre como sejam os cabo-verdianos,
vemos que há uma certa visão estereotipada e generalista típica da exclusão e do apartamento
que um grupo cria em relação a outro.
117

Em ambos os grupos em oposição – neste caso estamos analisando a oposição entre o


grupo de estudantes angolanos e o grupo de estudantes cabo-verdianos – são produzidas
idéias e imagens do outro grupo e suas principais características. Obviamente que estas
características centrais do “outro” são sempre características com o qual o “nós” não está de
acordo, características que o “nós” condena e desdenha. Esta idealização do grupo contrário
gera uma forte oposição que define o próprio grupo e acrescenta um ponto importante à
identidade de cada um de seus indivíduos. Além disto, é produzida a exclusão simbólica do
outro grupo. Esta exclusão simbólica é uma barreira que dificultará ao máximo ou
impossibilitará o contato e uma interação mais profunda entre membros destes grupos. Assim,
podemos observar, nos cenários dos grupos de estudantes cabo-verdianos e angolanos, não
apenas como cada grupo possui um imaginário simplista e preconceituoso do outro grupo,
sempre enfatizando os aspectos negativos do mesmo, senão que podemos observar também
como este imaginário determina um isolamento, uma reserva e uma dificuldade de interação
entre os membros de ambos os grupos. Por outro lado, a afirmação e a valorização das
características do próprio grupo, processo inerente à afirmação de determinado grupo como
diferente de todos os outros grupos, acaba por agir sobre a identidade individual dos membros
da comunidade. Há um constante fortalecimento e valorização de elementos identitários
determinados, elementos estes que o indivíduo manifestará cada vez mais, quanto mais
incluído e valorizado ele se sentir dentro do seu grupo.
Por último, as dinâmicas de identificação se encontram também presentes dentro da
própria comunidade nacional. No interior mesmo das comunidades de alunos estrangeiros
podemos encontrar uma grande variedade de conflitos e fissuras que muitas vezes dividem
aquele grupo que se mantém tão coeso ao entrar em embate com outras comunidades de
estudantes de outros países, assim como com a sociedade brasileira. Os conflitos dentro das
comunidades tendem a ser mais numerosos e por uma maior variedade de razões do que os
conflitos entre as comunidades ou dentro do conjunto de estudantes africanos no geral. Isto se
deve a que muitos dos conflitos dentro das comunidades tem características mais pessoais e
corriqueiras, já que muitas vezes surgem entre indivíduos que convivem diariamente em
determinada moradia, ou que se encontram sempre em festas, atividades na embaixada, nas
salas de aula etc. Embora estes conflitos pessoais sejam importantes no âmbito individual,
tentarei mostrar exemplos de conflitos que atingem os grupos como um todo, tendo um papel
importante na identidade dos indivíduos.
A fim de exemplificar bem como os conflitos dentro dos próprios grupos podem
fragmentá-lo e como estes conflitos agem sobre a identidade dos indivíduos, tomarei o caso
118

específico do grupo de alunos cabo-verdianos, já que dentro desta comunidade há uma grande
heterogeneidade devido às características geográficas de Cabo Verde. Vejamos, portanto, um
trecho interessante sobre as dinâmicas de conflito dentro da comunidade cabo-verdiana,
extraído da conversa com a estudante V.M., nascida em São Vicente. Ao ser perguntado sobre
os elementos que fragmentam sua comunidade no Brasil, ela passa a se referir à oposição
histórica que existe entre duas das ilhas cabo-verdianas: Santiago, cuja capital é Praia, e São
Vicente. Vejamos:
“Já passando pra parte daquela coisa entre São Vicente e Praia, tem muito isso. Por
exemplo, uma moça que sai de São Vicente para ir passar férias na cidade da Praia,
as meninas da cidade da Praia só querem comer ela viva, porque rola um ciúme,
rola um divergência sabe. Porque também tem uma coisa que é assim, que os
meninos da cidade da Praia gostam das meninas de São Vicente, e as meninas de
São Vicente gostam é dos meninos da Praia sabe, então tem toda uma coisa por trás.
E tem também o fato do crioulo ser diferente, tem também isso sabe. O crioulo da
Praia é um crioulo bem diferente do crioulo de São Vicente. Tem muitas expressões
que os meninos da Praia usam que eu não consigo entender, eu falo: „ o que que é
isso?‟ E tem muita coisa também que a gente fala que eles não entendem, então há
essa fragmentação. Há essa separação entre as pessoas de São Vicente e as pessoas
de Santiago.”

Neste primeiro momento, o depoimento de V.M. nos mostra como funciona uma
oposição identitária muito conhecida e identificada por todos os cabo-verdianos: a oposição
entre a ilha de São Vicente e a ilha de Santiago. Dadas as suas características geográficas,
Cabo Verde possui, historicamente, uma série de oposições que acabam gerando pequenas
barreiras culturais e sociais dentro da própria sociedade cabo-verdiana, como fica muito bem
retratado nas entrevistas, onde este elemento apareceu fortemente. A oposição a que a
estudante V.M. se refere, entre estas duas ilhas, na realidade faz parte de um conflito maior,
historicamente estabelecido neste país: o conflito entre “Sampadjudus” e “Badios”. Este
conflito tem base não apenas na diferença de tonalidades da pele – a dos badios mais escura e
a dos sampadjudus mais clara – mas também na proximidade com o continente africano e em
supostos modos e características diferentes que cada grupo atribui ao outro. Devemos frisar
que não se trata, como no caso de Guiné-Bissau, de etnias diferentes, mas de uma
diferenciação social estabelecida conforme os critérios da cor da pele e da proximidade
geográfica com o continente africano – os badios são a população da ilha de Santiago, a mais
próxima do continente africano. Esta diferenciação, que como foi visto na passagem acima se
faz presente na vida social e na subjetividade do povo cabo-verdiano, acaba por se refletir no
grupo de estudantes cabo-verdianos em Brasília. Observemos a continuação da fala de V.M.:

“Se você for ver as repúblicas, é uma coisa que você percebe facilmente. Na
república lá da 314, lá só mora pessoal das ilhas do norte, ou seja, das ilhas de
Barlavento. É tudo pessoal dessa parte, só tem uma pessoa da ilha de Santiago, mas
119

ele se destaca porque ele é uma pessoa legal, uma pessoa de boa, relaxada, tranqüila.
E tem aquela outra parte, por exemplo na casa da 502, só mora pessoal de Praia, de
Santiago. Eu morava com outra menina de São Vicente…Por exemplo, quando essa
menina morou com o pessoal da Praia, de Santiago, deu problema, deu problema
(enfatizando). A menina de São Vicente com o pessoal de Santiago. Então, são
pessoas diferentes, são pessoas diferentes. (enfatizando) É muita coisa, é o modo de
ver as coisas, o modo de agir, o modo de falar, que acaba irritando aquela outra
pessoa que não está acostumada com isso. É tudo dentro de Cabo Verde, mas são
regiões diferentes.”

Neste trecho já observamos como as diferenciações entre as regiões e entre estes dois
grupos socialmente determinados que existem em Cabo Verde se reflete no cenário do grupo
de estudantes cabo-verdianos em Brasília. É comum o agrupamento dos estudantes por
regiões e inclusive por ilhas. Muitos dos conflitos têm sua origem nos supostos modos
diferentes das populações das diversas ilhas, principalmente entre a ilha de Santiago e as
outras. Quando não é assim, pelo menos é certo que a diferenciação e o estereótipo entram em
cena para explicar e muitas vezes agravar as situações de conflito. Quantas vezes pude
observar, dentro dos espaços privados dos alunos cabo-verdianos e também nas entrevistas
realizadas junto a cabo-verdianos, expressões como: “tinha que ser badio”, “os badios são
sujos”, “Praia é a cidade mais suja de Cabo Verde”, “esses sampadjudus são todos racistas”,
“os sampadjudus acham que são melhores que nós porque tem a pele mais clara, são todos
uns preconceituosos”. Pude observar também diversas piadas e ataques verbais diretos e
indiretos cujo cerne era o conflito entre sampadjudus e badios. É facilmente observável, tanto
nos ambientes domiciliares dos alunos cabo-verdianos, quanto nas entrevistas que realizei
junto a eles, como em muitos deles se desenvolvem um núcleo identitário relativo à sua
condição como badio ou sampadjudu. Enquanto os primeiros se orgulham da sua condição de
badios e da sua suposta ligação mais estreita com o continente e as raízes africanas, os
segundos se orgulham de nascerem e viverem em lugares mais calmos, limpos e bonitos do
que a capital.

Ao analisarmos as diferentes dinâmicas de identificação existentes dentro do coletivo


geral de estudantes africanos podemos compreender melhor outros processos e elementos
identitários que vão se projetando nos indivíduos. Podemos, por exemplo, compreender como
um aluno que não estava acostumado e familiarizado a se identificar como “africano” passa a
fazê-lo com orgulho, e provavelmente continuará a o fazer mesmo depois de sua experiência
no Brasil ter terminado. Por outro lado, podemos ver, ao percebermos como funcionam as
dinâmicas e os níveis de identificação, como os processos identitários são flexíveis,
“oportunistas” e extremamente complexos. No contexto analisado, onde há diferentes grupos,
120

diferentes momentos e espaços, e diferentes interesses por parte dos diferentes grupos
envolvidos, percebemos que os processos identitários dos indivíduos acompanham a tese de
Stuart Hall segundo a qual “as identidades são pontos de apego temporário às posições de
sujeito que as práticas discursivas constroem para nós”. De fato, vemos que conforme uma
série de fatores se articula, determinadas identidades se sobressaem a outras, sem, no entanto,
extinguir estas outras identidades completamente. Trata-se apenas de diferentes momentos e
situações em que diferentes identidades prevalecem com relação a outras. Assim, por
exemplo, em situações onde se faça presente um grupo grande de brasileiros, a identidade
africana tende a se fortalecer e a ocupar momentaneamente o espaço de outras identidades
culturais e nacionais. Por outro lado em festas e situações onde participam apenas os grupos
de estudantes africanos da UnB, tendem a sobressair e se impor as identidades nacionais de
cada grupo. Por outro lado, como vimos, dentro dos grupos tendem a haver discrepâncias
políticas, regionais e sociais que se manifestam e adquirem maior importância quando os
membros do grupo se encontram apenas entre eles.
Todas estas formas de identificação coexistem no indivíduo, são partes da sua
identidade de maneira geral. O funcionamento desta nos diferentes momentos e contextos
onde o indivíduo se encontra é extremamente complexo e imprevisível. Neste sentido, o
questionamento central, para a temática da identidade, que se pode fazer destas situações é o
seguinte: quando estas identidades deixam sua condição de “roupagem” e passam a marcar e a
modificar de maneira mais profunda e permanente o indivíduo? Acredito que a resposta possa
ser encontrada no próprio fenômeno dos níveis de identificação. Quando existe apenas uma
oposição binária ente dois grupos, sem mais nenhuma referência, como é o caso do exemplo
dos sérvios e dos croatas citado pelo escritor russo Michael Ignatieff, é praticamente
impossível, para os indivíduos que participam dessa oposição, adquirir coisas novas e mudar.
No entanto, no contexto das dinâmicas de identificação que observamos entre as comunidades
estrangeiras da UnB, os diferentes posicionamentos podem influenciar o indivíduo, já que este
estará em algum momento, do mesmo lado de pessoas e de identidades às quais em outros
momentos se opôs. Ao se afirmar como cabo-verdiano frente a um grupo de guineenses,
aquela menina de São Vicente e aquele pessoal de Praia vão estar do mesmo lado e poderão
aprender algo uns com os outros, no mínimo poderão se tolerar mais da próxima vez que se
oponham em algum conflito. O mesmo pode acontecer com os cabo-verdianos e os angolanos
quando estes se dêem conta, por algum motivo, que estão representando o mesmo continente
e os mesmos interesses africanos. Acredito que esta característica das dinâmicas de
identificação pode ir transformando o indivíduo pouco a pouco, senão em seus elementos
121

culturais e sociais, provavelmente sim em suas qualidades pessoais, providenciando o


aumento do respeito, da tolerância e da dignidade.
122

5. Conclusão

Após apresentar estes quatro núcleos temáticos principais e constatar como os


processos identitários dos indivíduos vão se enriquecendo e diversificando devido aos
diversos aspectos inerentes à experiência de virem estudar no Brasil, podemos amarrar alguns
pontos e esboçar as principais idéias e conclusões que este trabalho conseguiu produzir.
Acredito que os momentos empíricos de observação e realização de entrevistas
levados a cabo ao longo do trabalho lograram produzir informações ricas e relevantes o
bastante a ponto de lograrmos atingir os objetivos centrais propostos no começo deste
trabalho. Ao formular o objetivo geral, o mesmo foi dividido em duas partes, que julgava
serem ambas muito importantes dentro das temáticas abordadas. A conceitualização e a
compreensão do que seria a “experiência transcultural”, bem como a compreensão da maneira
como se comportam as identidades dos alunos estrangeiros nesse tipo de experiência, eram
ambos, aspectos fundamentais e objetivos a serem alcançados neste trabalho.
A começar pela idéia de “experiência transcultural”, proposta no capítulo teórico como
um conceito que englobasse vários elementos teóricos e se focalizasse sobre as instâncias
subjetivas do indivíduo e as respostas pessoais que este passa a formular com relação à nova
realidade cultural que o engloba, acredito que após a análise dos principais núcleos de
informação sobre a experiência de se inserir repentinamente em uma nova realidade cultural,
temos elementos para enxergar esta idéia de um modo mais claro e definira-la melhor.
Acredito que a idealização e a elaboração deste conceito foi fortemente determinada pela
necessidade de tratar a questão dos choques culturas em instâncias mais individuais.
Historicamente, os teóricos dos encontros e choques culturais têm fornecido paradigmas e
conceitos de qualidade sempre com relação ao fenômeno em escala grupal. Tanto os conceitos
de aculturação, inculturação e transculturação, quanto os paradigmas do multiculturalismo e
da diferença – como pensado por Bhabha, são fundamentalmente modelos de análise
idealizados não para os indivíduos em si, mas para os conjuntos populacionais. Por outro
lado, os conceitos de différance, tradução e hibridação, bem como o paradigma do jogo da
diferença, são construtos teóricos mais centrados nos processos individuais. Os conceitos de
tradução e hibridação, como formulados por Bhabha, são fortemente influenciados pelo
campo lingüístico e trazem uma visão do choque cultural e da transformação identitária
centrada principalmente nas negociações e produções que o indivíduo se vê obrigado a fazer
ao se ver entre aqueles diferentes códigos culturais e lingüísticos. Mesmo sendo ambos os
123

conceitos muito interessantes e pertinentes, me dá a impressão que falta nestes conceitos


alguma ênfase nos aspectos complexos da produção de sentidos e do posicionamento
identitário do individuo com relação às culturas em choque e à sua própria condição como
indivíduo híbrido. Estes aspectos podem ser mais bem vistos, em parte, no paradigma do jogo
da diferença, o qual se fundamenta no conceito filosófico de différance como adaptado por
Stuart Hall para o estudo das transformações identitárias. A dinâmica grupal e individual
principal enfatizada através deste conceito é a da definição pela oposição. A identidade de
determinado grupo ou determinada pessoa pode ser construída apenas na relação de negação
com muitos outros aspectos identitários. À medida que a experiência vivida vai trazendo para
os grupos e indivíduos o conhecimento de novas realidades e novos fenômenos sociais,
culturais e pessoais desconhecidos, estes vão obrigatoriamente renegociando suas identidades,
reposicionando-se de maneira corrediça com relação a tudo aquilo que se é e que não se é. A
agência e as necessidades subjetivas do indivíduo podem ser vistas aqui com muita força. Este
paradigma, no entanto, se mantém muito abstrato e é difícil de ser conectado com as
realidades cotidianas de pessoas e grupos reais. A maneira como este processo de constante
reformulação identitária vai sendo promovida em determinado indivíduo ou em determinados
contextos não abordada de maneira específica.
Pela forma como eu via e sentia o processo de choque com a cultura brasileira, e as
diferentes e complexas respostas que tanto eu, quanto os alunos entrevistados produziam com
relação a esta experiência cultural, senti a necessidade de estudar a forma como o choque
cultural atinge e abala todo um sistema identitário já formado e consolidado, bem como os
sentidos, as motivações e as possibilidades que vão sendo produzidas a partir desta nova
experiência. Neste sentido, propomos o conceito de “experiência transcultural” para analisar a
maneira como o choque cultural é percebido e sentido pelo indivíduo, assim como o modo de
reação que o indivíduo tem frente a esta nova realidade. Um modo de reação onde são gerados
sentidos subjetivos específicos relacionados não apenas com a experiência em si, mas também
com o amplo leque de fatores que permeiam a história de vida, a personalidade e a identidade
daquele indivíduo até aquele momento. A “experiência transcultural” é a maneira como a
inserção em uma nova realidade abala a subjetividade de determinado indivíduo, obrigando-o
a produzir sentidos e respostas complexas que lhe proporcionem possibilidades de definição
dentro daquele novo contexto. Possibilidades estas que podem variar desde integrar-se e
tornar-se um indivíduo “híbrido”, facilitando sua vida e criando chances de sair adiante em
este novo contexto, até afastar-se e renegar aquela cultura que o engloba a fim de tentar
manter-se fiel a determinados valores e elementos culturais que por alguma produção
124

emotiva, não são passíveis, para esse indivíduo específico, de serem perdidas ou
transformadas.

Tendo como base a idéia de experiência transcultural, um momento e um fenômeno


específico que cobra do indivíduo a produção de novos sentidos e câmbios identitários, foi
possível passar a analisar e estudar as reflexões e as histórias de cada individuo entrevistado,
assim como o amplo número de observações e vivências acumuladas em alguns anos de
convívio com os diferentes grupos de alunos africanos.
Como visto nos núcleos temáticos apresentados, foi possível vislumbrar e
compreender alguns elementos centrais que influem e determinam as transformações
identitárias dos indivíduos que vivenciam uma experiência transcultural. Aspectos como o
crescimento pessoal, as perspectivas iniciais que os alunos possuem com relação à
experiência que estão prontos a empreender, o choque entre um certo imaginário do Brasil e a
realidade brasiliense, e o peso das comunidades nas dinâmicas sociais dentro da realidade
brasileira, surgiram como fundamentais para entender alguns dos modos em que as
identidades vão sendo transformadas.
Foi possível perceber que algo determinante para as mudanças identitárias que se
verificavam em muitos estudantes entrevistados, é o fato do imaginário sobre o Brasil que se
tem nos países natais dos estudantes não condizer com a realidade social e cultural encontrada
em Brasília. Este choque pode promover mudanças radicais nas perspectivas que o estudante
possuía com relação ao Brasil, tendendo a levar o estudante desiludido a se afirmar e se isolar
dentro da pequena comunidade nacional que encontra em Brasília. Neste caso, há um
fortalecimento da identidade nacional e cultural em oposição à desvalorização e ao rechaço da
cultura brasileira. Por outro lado, dependendo das perspectivas do estudante que vem para o
Brasil, o choque pode ser encarado como positivo e coisas novas podem atrair o estudante ao
invés de repeli-lo. Se isto acontecer podem ser desenvolvidas, neste estudante, tendências de
integração e interação com a realidade e a população brasiliense, o que leva sua identidade a
se transformar através da aquisição de novos elementos culturais e de reposicionamentos com
relação à ideias pré-concebidas sobre o Brasil e a ideias e reflexões sobre sua cultura e seu
país natal. No entanto, nestes casos pode se gerar tanto o fenômeno de aceitar a integração
com o Brasil e dispor-se a criar laços duradouros e estáveis com a realidade brasileira – como
é o caso dos estudantes que se casaram com brasileiros, quanto o fenômeno de, em prol dos
benefícios e do crescimento pessoal que a experiência transcultural e individual de estudar no
Brasil propiciaram, querer a todo custo voltar para o país natal a fim de trabalhar e ajudar de
125

alguma maneira o próprio povo. Este é um exemplo de como podem haver fortalecimentos de
identidades e sentimentos nacionais ao mesmo tempo em que inúmeros elementos da cultura
brasileira são adotados e admirados pelos indivíduos estrangeiros.
Outro aspecto extremamente determinante para os mecanismos de definição da
identidade dos indivíduos é o da existência de grupos coesos, fechados em torno das suas
identidades nacionais, que cooptam os alunos estrangeiros assim que eles chegam na
realidade brasiliense. Deste fenômeno decorre não apenas que o modus operandi dos grupos
sempre influenciarão os indivíduos para o fechamento em torno à própria identidade nacional
e cultural, dificultando a interação com o meio brasileiro, senão que deste fenômeno resultará
também a inserção dos indivíduos, mediante seu grupo específico, em dinâmicas de
identificação contextuais e corrediças que promoverão a existência de diferentes modos de
identificação prontos para serem usados e defendidos a partir dos diferentes contextos e
situações que o estudante vive. Estas dinâmicas de identificação, sempre deixarão, no entanto,
alguma marca, algum ganho e alguma modificação nas identidades dos indivíduos, que
passam a relativizar e revelar os conflitos identitários.
Por último, podemos concluir que à experiência transcultural e às modificações que
esta experiência promove na identidade do indivíduo, somam-se os ganhos e transformações
decorrentes do crescimento pessoal dos estudantes africanos. Este crescimento pessoal se dá
graças à experiência pessoal que o aluno vivência ao vir estudar no Brasil. A falta que os pais
e os amigos, assim como as certezas e garantias que possuíam antes, fazem quando estes
estudantes se vêm inseridos na realidade brasileira, acaba por gerar a maturidade destes
indivíduos. Junto com esta maturidade podem ser observados ganhos humanos e o
desenvolvimento intelectual propiciado pelo aprendizado na Universidade. Juntos, estes
elementos modificam de uma maneira enfatizadamente irreversível, as identidades dos
indivíduos. Ambas as experiências, a transcultural e a pessoal, promovem portanto, uma série
de câmbios importantes na identidade dos estudantes africanos que vêm ao Brasil estudar.
As identidades, portanto, vão se transformando e se redefinindo constantemente com
base em produções de sentido extremamente complexas e diversificadas, impossíveis de
serem generalizadas ou previstas, já que variam conforme os diferentes indivíduos, as
diferentes histórias de vida, as diferentes motivações individuais, etc. Mesmo que seja
impossível dominar o sistema complexo que é a identidade, assim como apontar com certeza
absoluta o que determina sua formação e suas mudanças, podemos, através do trabalho
realizado, perceber como uma situação de choque cultural é capaz de abalar e modificar este
sistema primordial do ser humano.
126

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